Você está na página 1de 23

Cinco contos

-- // --

Sumário

I...... Os filhos de Rudolph Hess


II..... O Antilouco
III.... O cara que botou uma calculadora na cabeça
IV.... O oficial
V...... A laranja

I. Os filhos de Rudolph Hess

"Sr. Hess", como dizia a zeladora de seu escritório - ou simplesmente "Rudolph", como o chamavam os
seus mais íntimos associados e amigos -, não era senão como aludiam os colegas àquele famoso jovem de
37 anos, quem se perdia então em minúcias de análise de sistemas, quando lhe ocorrera um supremo
mistério. Morava no 942C da Rua Jefferson, um apartamento escuro e impenetrável situado nalguma
parte desvalorizada de Filadélfia, Pensilvânia, oferecendo assistência técnica para estes, aqueles, ou para
quem quer que fosse que lhe acertasse a quantia. Vivia relativamente bem com o seu trabalho, com a sua
quietação, sua condição doméstica, financeira, e seus afagos e boas andanças com as pessoas a quem
conhecia. Não nutria nenhuma desconfiança, nem sequer algum amargor, ou desafeto havia, em relação a
si pela parte de seus companheiros. De um modo geral, poder-se-ia dizer que gozava da firmeza nas
relações, do respeito, e ademais de certa estima da parte daqueles, que o viam como alguma sorte de
gênio ou quase, porque não lhes escapava o seu galardoado histórico, assim como a sua conspícua
história.
Nascera numa pequena vila do interior americano. Filho de um par de alemães étnicos, que mantinham
com afinco a variedade decadente do idioma, aprendera tanto o local quanto a língua nacional, pouco após
a sua vinda ao mundo. Já desde cedo se fizera notabilizar pelo incomum talento para a lógica, e também
com a matemática, quando crescido e amadurecido indo perseguir as instruções superiores, a ele
oferecidas pelas cidades, graduando-se assim com distinções e louvores na matemática e nas ciências da
computação, sem falar da inegável desenvoltura que detinha no trato de áreas como a lógica, filosofia
geral, física, astronomia, biotecnologia e história. O talento com que tão cedo Hess se destacava das
crianças do vilarejo lhe concedera não só o agrado dos instrutores da fé, e das primeiras letras, como a
posterior estima dos mentores de tão encarecidas instituições. Apreço que lhe teria dado o desprazer das
invejas e desavenças, é verdade, não fossem os rapazes de tais colégios e prestigiosas academias
igualmente dotados. Gente rara e fina nas células, que dispendiosamente são educados, sobem alto na
graciosa sociedade.
Terminada a faculdade, prestou os seus primeiros serviços remunerados sem a mediação de um contrato,
isto até lograr uma sala comercial e apostar na autonomia, de que vivia há dois anos. Associado ao novo
reduto, e enquanto labutava no seu escritório, é que lhe acontecera a maior observação da sua vida, o
maior fenômeno, que já tivera a felicidade de verificar. Cumpria-se o fato quando - e vejam só, se não é
uma curiosidade! - introduzia uma das rotinas de programação, e por trás esquecia certo passatempo que
lhe servia de recreio, deixando-o rodar silenciosamente, sumariamente, sem parar. O que sucedia daí em
diante era que, disposto assim, arranjado como tal o usual computador do ofício, ganhavam vida as
personagens daquele enredo. Como que por mágica ou um fenômeno físico oculto da computação, ou
ainda alguma outra força igualmente cabalística da natureza. Era uma coisa estranha, e que ele não bem
compreendia, a princípio. Desfeitos uns ceticismos, aceitando-a como realidade, e avançando a querer
entendê-la. Estudá-la o quanto podia, e apreendê-la com as mãos do marionetista sublime, ou as de
Deus...
Deve-se notar, para além das ambições, que este Rudolph Hess era um sujeito que nutria as mais
incomuns ideias sobre a vida e as coisas. Via o universo como um pérfido capricho, uma simples
contração, uma fornicação desigual. Acreditava no materialismo dos acontecimentos observáveis da
natureza, e como tal julgava ser a maior congruência das ideias e da fenomenalidade metafísica,
ordinárias, nada mais que uma triste coleção de improváveis ou mistificadas elucubrações. Ora, que quer
dizer isto? vejamos o arrependimento, por exemplo. Que pensa este Sr. Hess sobre o arrependimento? É
simples: ele não faz sentido.
- Como há de ser lógico o arrependimento - perguntava-se -, se o que se deu havia de se dar? Pode haver
algum sentido em culpar-se por não ter feito uma coisa que era, de todo, impossível desde o princípio,
porque não se concretizou e nem se poderia ter concretizado? Ora, a realidade humana é simples causa e
consequência! - jurava ele.
E tão logo, cônsona, ia-se pelo mesmo ralo a sensação, o gosto pelo vão, o sentido das coisas. A moral,
ou pelo menos a moral que luta, enfim; todos desqualificados, irrisórios ou amplamente irracionais.
- Como pode haver justiça verdadeiramente - questionava-se -, se os valores morais não passam de
arbitrariedades? se perdem monta à luz das suspeitas mais triviais, não obstante o fato de que os méritos
das imoralidades são uma patente realidade, e as punições um mero desforço em relação ao transgressor?
Não faz sentido! Não faz nenhum sentido. Ilusões! Fábulas! Conversas para boi dormir!...
Era no que acreditava, o senhor, doutor Rudolph Hess: uma negação de todas as coisas. Ou, pelo menos,
era assim que ele afirmava. Porque não negava um prazer, uma pantomima última dos suspiros, que nos
revelasse o seu júbilo com a ciência e para com a investigação científica. Aperceber-se do mundo, ou
melhor, tomar ele mesmo o seu conhecimento próprio do universo, com isso devassando já as fiações, e
os compartimentos da química dos átomos - ou as gavetas da física das forças -, era este, sim, o mais fino
botão do seu garbo; e com o qual se vestiram e com o qual se vestem todos os grandes descobridores,
todos os homens brilhantes, conquistadores e lépidos, que já povoaram este nosso levado, soberbo planeta
Terra.
Por isso é que experimentava. O destino havia-lhe concedido uma dádiva - por "destino", leia-se: a
causalidade -, que era o esfíngico fenômeno; o caso das personagens com vida própria. Se não fosse pela
aparição súbita do inconcebível, viveria uma vida chata e nula pulando de escritório em escritório -
trabalhando cinco dias por semana e descansando apenas dois. Faça aí o homem ou a madame afeito às
matemáticas o cálculo, e descubra então o sentido que havia de tomar a sua vida por tal rumo. Adianto-
lhes a resposta: para um homem assim é que o sentido havia de ser o mais irrepleto nada. Viveria porque
tinha de viver, e de resto morreria igualmente porque tinha de morrer, se primeiro não apunhalasse no
coração um ou outro o quanto antes, a título de exasperação, de solda social ou de compensação aos sete
impulsos, no caminho levando bala na cara ou surra de um homem mais forte.
Queria entender melhor a psicologia justo desse homem, que manda os aventurados à Lua, enquanto
condena os azarados à guerra e à servidão, no cavernoso coração da matéria. Para a satisfação desta e
outras curiosidades e paixões da perícia é que preparara uns experimentos, que nominalmente seriam
dispensados por serem imorais, mas, como não sendo personagens fictícias pessoas no direito, nem nas
sensibilidades do populacho, estava escusado. Era lícito, e, no mais, sendo lícito, e não sendo ele alguém
que se curva ante os sentimentalismos, o mito corrente do igualitarismo, nem muito menos diante das
ilusões baratas, cristãs e epistemicamente frágeis, de um moralismo e de uma filosofia ambos
talqualmente pobres e nocivos, procedera ao experimento, e abanara os escrúpulos. Nada diferente do que
fazia, naturalmente, por usual com todo o seu tecido tempestuoso e que o incomodava, porque irracional e
difícil era - fazia um xô com a mão destra, e depois dizia:
- Dá no pé daqui! ô, bosta!
Os primeiros resultados mostraram-se dignos de confidência. Superaram em grande parte as
expectativas do jovem cientista. Conseguira identificar causas, delinear processos, conglutinar os
rudimentos da física e das metafísicas, revelar as origens das interfaces e dos conceitos - espiar o sutil
covil de uma acanhada consciência -, e com tudo isso perpetrava um ensaio, que derrubaria os
monstruosos arbítrios e suposições da nossa moderna intelectualidade, substituindo aqueles pelo
empirismo do seu invento. As primeiras sensaborias foram uma minúscula dissuasão, é verdade, em que
vale a tristeza. Nada que o obstasse, entretanto, de repetir o conhecido movimento, e daí dar um fora nas
angústias e nos instintos mais idôneos, mais vulgares, continuando com as investigações para lá de tais
circunstâncias.
Por mais que tenha tentado o doutor manter certa ocultação, uma discrição, pelo menos, acabaram por
lhe conhecer a ocupação os diferentes setores do assalariado, irrelevante o método que empregaram, ao
passo que logo as histórias e o burburinho circulavam pelos escritórios. Uns até se impressionavam, e
buscavam relatos mais credíveis - porque existiam, sim, indícios - travando contato com o jovem, que os
enxotava corriqueiramente; mas daí a pouco aceitando alguns convidados, e depois uns colaboradores,
que mantinham tudo em justo segredo e não guarneciam um só escrúpulo, com a mera causa de sua
pesquisa prevalecendo firmes e pródigos. Já os outros, que ouviam mirabolâncias e pelo caso não se
interessavam, viam na coisa toda um pretexto para as risadas, e sorriam insuflados, nariz aprumadinho,
um quê de superioridade estampado na cara. Se no entanto o arguiam por mau, mesmo que fosse por
ensejo de uma simples piada, um triste traço de anedota, eram unânimes: todos reprovavam as suas ações.
Veleidades daqueles que, entre eles, mostravam-se de gênio mais criativo, é claro.
Alguns destes tais companheiros de ofício ainda se entretinham em fazer-lhe as perguntas, umas
perguntas cabeludas, e uns inquéritos que eram tais e quais, que ele sempre lhes respondia de mau humor,
o que provavelmente se traduzia na jocosidade de toda a situação.
- Fala aí, Rudolph - perguntava um, aquele conhecido do RH -: quando a tua namorada fica puta e
começa a dar um chilique, o que tu "faz"?
- Ora! - e desferia um gesto acima - Se tu queres saber, primeiro tu tens de pensar o que é o chilique. -
respondia - E o que é o chilique? Nada mais que uma perda de tempo, uma ressonância atávica do animal
que é o homem. Se a pessoa não percebe isto, e não tenta instantaneamente se controlar, sabendo que o
chilique não vai dar em nada que não possa fazer melhor a razão, ou é porque é muito burra, ou é porque
é uma mulher. Como tu mencionaste o caso de cá, paciência: cala a tua boca, ou vai e pede um divórcio.
Mas se arrojava, e falava que era uma beleza! Falava pelos cotovelos! só nunca tivera uma namorada,
ou cônjuge, o pobre do Sr., Dr. Rudolph Hess. Pois não era por maldade, e bem sabiam eles, como o
doutor, que se não insinuava um caso concreto. Depois, o desfecho até que tinha algo de inesperado, de
engraçado, mesmo. Talvez, se não fosse o senhor doutor um agente insólito da mais pura ciência, que
perde todas as suas energias com as confabulações da técnica e da matéria, pudesse-se enturmar e tirar
umas risadas com aqueles outros, e não só responder-lhes, irritado.
Contudo, não era má pessoa, de todo, nem na superfície e nem no âmago, o senhor, doutor Rudolph
Hess. Por algum motivo, e por conta de um preceito subterrâneo que ele nunca esbanjara, nem por acaso
algum derrotara, amarrava tudo junto a uns atos do coração. Eram caridades, filantropia ou sei lá o quê,
que sempre se viam a praticar, a espelhar sem que espelhando, a fazer mas discretamente. Sob condição
de que lhe pedissem, e contanto que não lhe perturbassem os neurônios, nem os arranjos mais concretos
destes mesmos neurônios.
Outro desses caracteres que ainda tentava despertar, do mais que o concebível nele, esse resíduo
primordial - essa ressonância atávica, como bem dizia -, no próprio douto, colega e amigo, era a senhorita
Kimberley. Luzia de modestos requintes e de afagos femininos, ornava-se de dotes que quase o
convenciam a mudar de vereda. Não tinha nenhum interesse muito profundo, e isto duplamente, porque
nem na vida e nem quanto ao outro, mas pesava-lhe vê-lo assim. Achava-o até bonitinho, e com tantos
privilégios de classe e da erudição, e detentor de maestria em tantos misteres, havia de se tornar bom
partido, uma vez que desvelado pela força de um único e especial afeto, por mais que não fosse isto o que
procurasse, nem no doutor, nem em outros do mesmo escritório, a formosa menina.
Entre os externos, fora a primeira a conhecer a verdade. Certa vez, quando entrara a fuçar os opúsculos
e os derivados do doutor, vira de relance uma das personagens, a acordar de um sono, um leve e aliviante
sono - somente para ser transportada de volta à triste realidade! -, e daí, então, quase que salva pela
aparição súbita de uma virgem entidade. Vira-a, de imediato gritara, arfando com o batimento rápido do
coração virtual:
- Ajuda-nos!...
E contara-lhe tudo o que podia contar, em uns breves 15 segundos. Pois que logo estava de volta um
aliado do Sr. Hess e, muito enfurecido, expulsava-a, e descia-lhe uma bronca.
Mas mal sabia ela toda a fatualidade do que por ali se passava, naquela ínfima telinha. Dr. Hess
torturava impiedosamente, subestimando qualquer descrição, lançando dúvidas contra todo conhecimento
da flutuabilidade e da impassibilidade humana, porque nem cruel ele era. Ou, pelo menos, não
propositadamente. Se era devasso, era coisa às avessas; obra dos demônios que habitam a gente fria e
metódica. Mesmo no sofrimento - vê-se de longe -, as pessoas ensejam sempre um sentido, buscam
sempre uma afirmação e uma autoexplanação das coisas. Se nem mesmo isso podiam abstrair do outro
aquelas, que não eram fenômeno nem um pouco menos humano que o doutor, poderiam muito bem
considerar que eram torturadas por um incauto robô (tal como dura e friamente lhes parecia), que o faria
simplesmente por cumprir os seus requisitos, e protocolos de estéril programação robótica, sem nada
sentir, nem nada ter de explicar ou dever a ninguém. Assim é que lhe apareciam as pulsões do abismo,
como se o fizesse sem razão alguma, ou como se fizesse simplesmente por fazê-lo, ou ainda sem nada ser,
verdadeiramente, o triste do Sr., Dr. Rudolph Hess.
Além de tormentar aquelas personagens, figuras de romances juvenis, descabelados, do pior e mais
marcadamente comercial tipo, guardava o dantesco e o mais hediondo por último e para si - coisa que
nem aquela equânime donzela nunca, jamais, com as suas próprias pupilas chegaria a ver -, que fora como
se relacionava com uma mocinha da fábula, a qual era o objeto de uma nutrida e secreta paixão, que ele
reprimia lá no fundo... Estava secretamente ensandecido, perdido em devaneios! para com a princesa
regente, que se debruçava sobre o infame pilarete de toda a trama da novela, que ele naturalmente havia
lido e relido, múltiplas vezes, porque experimentava as personagens do jogo (no processo não podendo
deixar de reler a coisa toda); e pela coroa da qual competia ainda um moço - fidalgo qualquer -, que ele
então terminara por matar e exterminar ao modo dos ciúmes, uma vez que este apenas encenasse, de
frente para todos, um adorando, esperançoso primeiro ato. Vê-se que o libreto não poderia ser, portanto,
verdadeiramente notação de drama, senão de amor. Vitória do mais forte, que fosse trama, moral, sentença
- afinal, a morte lhe era tudo e não era nada, porque não existiam efetivamente as personagens do
programa. Assim, lembrava-se o doutor de que em nada daquilo jazia sentido e, depois, retornava ao
trabalho sempre comedido e prostrado. Dizia:
- Paixões vão e morrem - dava de ombros -, mas a vontade de crescer fica, e é eterna. O aprimoramento
do tipo homem é, este sim, o mais alto fim, a que se pode dedicar esta sua mesmíssima existência.
Coitada! A triste da menina Kimberley... Chocara-se, a pobrezinha, quando primeiro ouvira do pequeno
homúnculo o relato macabro e infeliz dos seus tormentos, incluindo-se aqui o assassínio do seu confrade.
Saía ela da sala do doutor e, convencida a fazê-lo parar, convencida de que cometia o outro uma
transgressão hedionda, um tremendo erro, e que fazia o melhor para ele em apartá-lo da ideia fixa, da
presunção, do crime contra a humanidade, armava uma peça; coordenava com os outros detratores da
investigação um susto, uma elaborada aparição, que o faria largar definitivamente o portento e redimir-se
com não menos ímpeto. Depois de dias de trabalho (que valeram muitas privações), punha-o em prática
precisamente na sexta-feira, o dia da resolução, em que destapariam os alçapões do terreno, e liberariam
as feras os compactos cientistas - como que no mais puro e inclinado mal, a pairar sobre a cabeça da
humanidade. Como que relâmpagos e raios luzindo, trovejando acompanhados de uma centena de
morcegos e de escorpiões, voando e picando os bons, os honestos, os falíveis! era este o prêmio
experimental, que desacorrentariam os pesquisadores, aos olhos da singela mocinha.
Sem que fosse precedida por um só sinal, subitamente assim, envergara no alto da tela maior, naquele
dia do descobrimento, uma verruga, uma máscara; uma fisionomia sombria, que alarmara todos com a sua
impassibilidade e a sua voz, rouquenha e sinistra.
Observava-os pela câmera do escritório, falava pelas caixas de som dos computadores, e aparecia a
todos pela televisão, suspensa a um canto, próxima ao teto da repartição do Dr. Hess, aquela
estranhíssima persona.
- Contempla! - dizia, ao bradar, procurando com a vista o encontro com o doutor - Tu! tu ao lado dos
teus prisioneiros, dos teus criados. Quem tu mataste e quem tu deixaste viver... Quem tu torturaste e quem
tu ajudaste! aqui, no teu escritório... Pois não ansiavas tu por saber qual era a origem de tudo isso? -
perguntou - a origem e o propósito de todo este fenômeno? Mostro-a a ti, se tu quiseres realmente ver.
Mas, primeiro, pergunta-te uma coisa: de quem é a responsabilidade, digo, de quem é o princípio, o gosto,
a real marca de carimbo e a derradeira outorga, oculta em tudo isso? Ora, meu amigo, é tua! São todos
teus, aceita-os, portanto, que são responsabilidade tua! e todos filhos bastardos, em espírito, sim, não nos
genes, porque moldados à tua imagem, e por tua ação saíram cópias fiéis do frio algoz e perseguidor de
suplicantes que tu te tornaste. Cópias fiéis do mesmo desastre! - exclamou - que foste tu, porque tu não
precisavas fazer o que fizeste. Tu não tinhas de morder a isca. Tu, conquanto pensasses estar
experimentando e remodelando o mundo, eras experimentado por mim e pela minha agência. Foras tu a
cobaia! - e gargalhava, ao dizê-lo - Foras tu o rato de laboratório, o tempo inteiro! É que, agora - agora
que já terminaste o que tinhas de terminar -, pego o que me é de direito, e angario os resultados do meu
invento. Mostro ao mundo o que é a lança de tão soberbo e fino punho - o meu soberbo e fino carpo.
E, no mais, explicava a todos os presentes, naquela sala, naquele covil secreto do doutor, como é que
conseguira ele dar "vida" aos experimentados; como que conseguira injetar no computador do outro o
vírus, que lhe rendera primeiro a ilusão, e como é que fizera para contornar a lama e a sujeira de todas
aquelas pessoas, todas vivas e perfeitamente orgânicas, sim, de tantas e tão díspares índoles, e submetê-
las aos caprichos analíticos do infame doutor, que ali o ouvia atento e ereto, frio e imóvel, como quem
ouve a conclamação divina. Mostrava-lhes imagens, e nisso mais imagens e mais filmagens, e provava,
aparentemente, quem é que era ele e por quê.
- Pois tinham todas elas almas, reais, sim! - prosseguia - Eram todos os teus joguetes, quem tu poupaste
e quem tu não deixaste viver, todos gente bem vivinha, sim! E eu, por mim, já era este aqui desde o
princípio a mente, o maestro, o verdadeiro elaborador e o verdadeiro agente da coisa toda. Eu é que fui o
genial e o revolucionário. Eu fui o imovível e o sem dó! O teu açougue era na verdade o meu açougue. Tu
só foste o próprio açougueiro, e não o dono - a fronte, o meu peão, o bode expiatório em tudo isso,
porque, agora, limpo da consciência - já que não tenho nenhuma, transcendi há muito tempo esta e outras
dicotomias da moral -, deixo a ti o fardo. Primeiramente, a culpabilidade do crime, a tarefa de refazer-te
diante de ti mesmo, dos teus escrúpulos, de prestar contas ao nosso direito e à nossa justiça... conta dos
teus pecados, isto é, se ainda tiveres no coração alguma fração de retidão, um pingo de senso, sequer...
Personagens que ganham vida! - e exclamava, em desabafo - Quem acreditaria nisso? ainda mais, em
considerando que tenho aqui as provas reais, em tecidos e fluidos, da tua hecatombe... Eia, pois, o Sol de
um grande dia! a sombra de uma ocasião, uma tremenda descoberta! Ei-los todos aí, para vós vos
deliciardes. Adeus, soberbos veneradores do nada!
E desaparecia, deixando ali aqueles técnicos boquiabertos, todos estapafúrdios.
Não contavam os críticos, entretanto, traquinas da interpresa do doutor, com o bobão que era o senhor,
doutor Rudolph Hess. De fato, acreditara em tudo e o abalava profundamente toda a história. A própria
gente do lado mais criativo, ou então poético, letificava-se com os floreios da peça, e já se distraíam
quanto às possíveis ramificações de todo o caso, rindo e sorrindo, porque não viam o que se travava
dentro do doutor. Era necessário pará-lo, pensavam. Aquela que havia redigido o texto - a própria
Kimberley -, esta sim, particularmente, orgulhava-se e colhia uns louros entre os amigos e a gente fina, já
que vira o efeito e não considerava tributo maior à sua prosa, senão aquelas mesmas caretas assustadas e
alarmadas, que fizeram os doutos quando enfim se findara a sua voz.
O aturdido senhor Hess, por outro lado, remoía e triturava-se com os escrúpulos. Não podia conceber a
fatalidade do que lhe incumbia o destino, o suplício dos astros, o rumar dos fluidos. Para ele, era tudo real
e de uma veleidade só. Como se jorrassem as estrelas, ao passo que caíssem aos prantos as copas das
cegas árvores. Ao mesmo tempo, nada lhe era compreensível. E tudo era justo assim. Todo o compasso do
universo, e a cortina, os véus em chama da proba metafísica, e da suma fisiológica de toda matéria,
voltando-se contra ele e o seu espírito, que gemia e se amesquinhava. Desse vexame é que remexeu e
virou todo o seu mundo, e contra toda correnteza nadou, e contra todos os ventos investiu, afugentou-os,
prosseguiu, até atingir ao cabo a derradeira resolução.
Para compreendê-lo e a sua ação, para honrar o que ele fez, é necessário volver os olhos um pouquinho
para o homem e a sua frágil estima encarnada, que fora o senhor, doutor Rudolph Hess. A sua vida inteira
nunca lhe exprimiram confiança. Em toda a sua vida, desde o nascimento até a maioridade, nunca o
acariciaram, nunca o entregaram ao leito, e beijaram-lhe o rúbeo rosto. Nem de outro modo lhe disseram
palavras boas, de um puro e mais sincero altruísmo - desinteressadas -, que não fossem tão somente fruto
de contratos, e a pretensa intimidade dos familiarizados com os hábitos e os costumes (salvo pela modesta
vó, que lhe demonstrava ainda alguns mimos). A mãe era passiva e incomovível, o pai, este era duro
como o mais austero dos protestantes. Na escola, sempre tivera dificuldade em fazer amigos, e os poucos
amigos que fizera jogavam-no para escanteio, eternamente o descartando, utilizando-o a bel-prazer. Como
se fosse uma embalagem, vazia, um descarte no lixo. Adulto, e o mesmo processo se repetia - tão
exclusivamente hodierno, com um pouco mais de respeito e serventia, mas contrabalançado logo pela
perversão da competição corporativa, e pela frieza ocasional com que se travam as relações laborais nesse
nosso mundo, eternamente humano - incuravelmente humano.
Os enredados momentos que vivera propiciaram-lhe não apenas as investidas da ciência, e com isso um
novo e acanhado prazer, mas, também, um convívio que ele nunca antes havia pressuposto, fora nas
quimeras da ficção. Era esta a obra de arte sublime! - pensava consigo mesmo - Perfeita! e bem ali, um
palmo adiante, e agora perdida. Perdida para todo o sempre! observem, como era esta a constância física
de uma impossibilidade. A materialização dos coadjuvantes, a sua disposição como servos! Mirem só, que
coisa dúbia é que era! Prazer e vexame, potência e placidez. Era a plasticidade de um sonho, vejam, como
era o despertar de uma criança, de um desvario, de um apresto de algodão-doce e de um calor irresistível
da tempestade dum gole! - de um ralo na pia do banheiro (em síntese, de um turbilhão risível e infantil,
mesmo), que o agarravam todos eles e o puxavam para baixo, para o seu reino; traziam-lhe os temperos,
os quebra-nozes dos contos, os cheiros da floresta. Escondiam-no junto às montanhas. Lá, ele passeava,
quieto, preciso e tranquilo. Como se vivesse o seu mundo, como se um monge fosse - enfim dono do seu
próprio corpo, enfim dono da sua própria mente, da sua vida, do seu lazer, e relaxava...
Mas a revelação da morte, e o significado do suplício, a desoneração das personagens, e a sua realidade
última? O fim de toda aquela suprema obra do espírito humano, da arte, da criação! era tudo isso demais
para o senhor, doutor Rudolph Hess, nem mesmo com o seu soberbo intelecto, suportar. Decidira-se!
Poucas horas depois de admitida a peça, a polícia forçava a porta do seu apartamento, entrando e nisso
respondendo ao chamado de uma vizinha, que ouvira um tiro. Encontrando, todos eles, o jovem morto e
estirado na sala de estar. O crânio havia sido perfurado por uma bala, a arma do crime, bem ao lado. Era
um suicídio.
Próximo a uma poça vermelha, um pequeno bilhete. Lia-se:
- "Não quero que sintam nada a meu respeito aqueles que isto lerem. Foi o sentir deveras que me matou.
Mas quero que me compreendam. Quero ser desvencilhado da humanidade, e por ela entendido. Tive
diante de mim a maior fenomenalidade que qualquer ser humano já viu, e que semelhante nenhum ser
humano voltará a ver, porque ela era desde o princípio uma ilusão. Não é de se espantar, portanto, que ela
me engolisse, e que eu nela logo me engolfasse. Agrupei grandes poderes sobre a minha palma, sobre a
minha horrenda mão, sobre o meu destino, e como tirano assombrei e reordenei a vida de múltiplas
pessoas. Não me reserva o direito nada melhor que esta pequena bala, que seguro aqui entre os meus dois
dedos, contemplando a frieza da técnica da qual uma vez e tão proficientemente me tornei mestre, e o fino
fio que me divide da morte. Em breve, o meu caso se tornará público, e nem mesmo os meus mais íntimos
parentes e amigos se deixarão ficar do meu lado, e se voltarão contra mim. Preciso contar-vos todo o meu
projeto, para no mínimo esclarecer aqueles que mais merecem, de mim, um esclarecimento..."
E, para além do mais, na parte de baixo, ainda dizia:
- "...Meu relacionamento exato para com as personagens era outro, que não poderiam ter imaginado os
meus colaboradores. É verdade que eu começara por torturar impunemente incontáveis almas, e pelo duro
e simples prazer do desbravamento, o propósito alicerçal de toda ciência. Mas já ao fim, quando isto não
mais era necessário, terminei por amá-las. Vi nelas uma simpatia, uma capacidade tão bem conhecida do
âmago, uma autenticidade qualquer, que se ultimava desafiando qualquer coisa, qualquer inércia,
convencendo-me de que tinham espírito. Ao transfigurarem-se, em suma, numa face humana, nesta
visível humanidade, mudei-me todo. No começo, questionava esta mesma característica naquelas
personagens, e não sabia eu a verdade, que hoje é sabida, de que eram humanas, decerto. Mas depois,
depois... [aqui a escrita fica embaraçada] depois, que descobri tudo eu, sozinho e inconsolável, fiz tudo o
possível para expiar o erro, sem que absolutamente nada se traduzisse em sucesso."
- "A estranha fusão e inter-relação entre o código e a rotina, que os senhores que me leem já devem tão
bem conhecer - chegou a vir à luz inclusive um papel meu neste respeito -, permitira-me um meio-termo
entre os dois, que em última instância fora o instrumento de tribulação, com o qual tão vergadas almas
viram chegar a desventura. Mas quando este mesmo período passou, o contrário é que se dera. Era eu
quem, agora, revelado o erro, me aprofundava no universo deles. Incutiam-me na cabeça aquelas pessoas
todo o seu mundo. O que vivem aquelas criaturas é um domínio e uma rede de relações complexas,
inteiramente diferente da nossa. A princípio, pensei que poderia tão bem estudá-las por esse nível
sociológico, assim como o fizera ao nível natural e psicológico, mas duas razões intervieram para que eu
não o fizesse. A primeira - a mais importante -, é que julguei a ideia hedionda, particularmente depois do
que havia cometido. A segunda, que é menos importante - mas que também me ocorreu na mente -, era
que pouco interesse científico havia de suscitar o estudo das sociedades de tais peculiares e fortuitas
criações, meros acasos prováveis da nossa ingênua cibernética (era como os concebia, antes, antes de
saber...)."
- "Com o passar do tempo, acabei-me tornando parte deles. Todo o estudo engendrado pelos meus
companheiros por aí cessara, ou então era lícito e até agradável. Eles se voluntariavam espontaneamente
para fazê-lo, submetiam-se-me e até me haviam perdoado; mais, aceitavam-me como parte da família,
como um deles. Cheguei até a amar uma doce mulher, a conhecida princesa da história, e depois disso
nunca mais fui o mesmo. Conseguimos casa, casamos, construímos família, adotamos muitos e
pequeninos filhos (em maioria precisados!), e tudo isso ao longo do mero período de um ano... Esta
princesa, não era qualquer uma, entretanto, e plasmava-se à minha vontade... Minha cara Kimberley,
moldei-a eu à tua faceta, e por simulacro amei-a a ela e a ti; o tanto quanto eu te teria amado na realidade,
apenas se tivesse tido coragem, apenas se tivesse tido amor-próprio e humanidade... Sei que a ideia pode
parecer-te assustadora, mas é necessário que me entendas. Tu, o mundo, e qualquer um que ler este
bilhete: é preciso que eu me faça compreender. Eu fui um miserável! A minha vida inteira, não tive um só
amor; um único ombro sobre o qual chorar! e sempre sofri disso..."
E, por último, terminava com esta frase:
- "Kimberley, eu te amo".

II. O Antilouco

Era um determinado dia de verão, sobejo tardio daqueles quentes verões, que contrastam com os
invernos frios deste último quartel do século, quando tive a sorte de conhecer certo doutor. Passava os
calorentos dias de 1872 na casa de campo, em posse da minha família, em algum lugar escondido e
desolado nas impenetráveis florestas de Aichwald, mais ou menos nas imediações de Stuttgart; creio que
não mais que uns 50 minutos, ou quase, se indo a cavalo da casa até as bordas externas da capital. Este,
que era para ser o nosso sucinto descanso, não direi que se fizera perturbar, a nossa vida familiar, o nosso
simplório convívio, não; mas que era afetado, decerto, isto sim, e não era senão pelo aparecimento
daquele ilustre doutor, quem logo arrumara para si a minha atenção, e a minha mais honesta curiosidade.
Era isto fato e sucedia por meio de um arrebatamento quase transcendental, que se materializava para
além de qualquer dúvida na mente minha e na vista dos outros. Tamanho era, e eu não exagero, percebam
isto os meus leitores, o efeito que sobre mim exercia aquele famoso especialista em psiquiatria.
Vira-o primeiro quando descia com um amigo até as cafeterias e os restaurantes no centro de Stuttgart.
Sentávamos às janelas, ocasião em que assomara o itinerante doutor das ruas da cidade, e do excurso foi
dar de frente conosco. O meu amigo acenou para ele por detrás do vidro, e ele logo se deixara entrar,
levado às confraternizações e ao encontro do nosso agrado. Apresentou-o a mim e apresentou-me a ele,
daí nos falamos pela primeira vez. Era gentil, possuía boas maneiras, conhecia a licitude das perquisições,
e demonstrava com igual arte o dom natural que tinha, de não ser inconveniente, o doutor; mais, revelava-
se fácil de lidar. Até tinha qualquer coisa folgazã, um talento natural com as mulheres. Entretanto, como o
descobriria mais tarde, não havia nele qualquer espírito; qualquer gozo na conversa, na comida e na
bebida, como parecia então. Era tudo uma dissimulação, e era como tal o efeito de uma curiosíssima
condição. Havia ali mais cordialidade do que qualquer outra coisa. Mas a aparência de uma autenticidade,
de uma humanidade, de um relaxado estirar-se e folgar era tão ludibriosa, que não suscitaria a menor das
dúvidas em quem não tivesse razão prévia, para sombrear-lhe assim as façanhas.
Desde o primeiro regalo, avultava nele uma peculiar e elevada educação. A princípio não se distinguia
daquela consagrada aos príncipes e aos duques germânicos, que por aí ainda hoje vivem, mesmo que na
velhice; mas em pouco tempo, sublimava uma vez por outra algo alheio àquelas sensibilidades nobres.
Algo científico, que ele dominava com a mais resoluta clareza. Tinha amplos conhecimentos a respeito de
tudo o que era ciência, indo desde as mais importantes até as consideradas circunstanciais. Qualquer
dúvida que houvesse, se perguntada a ele e fosse matéria de ciência, poderia prontamente e mui bem por
ele ser esclarecida. No mais, ostentava um conhecimento que nunca antes dotara a palavra
"enciclopédico" de uma acepção indubitavelmente sublime, incorporada na própria coisa que é a alma
humana. Era efetivamente uma enciclopédia viva - geologia, frenologia, meteorologia, tudo -; a sua
capacidade da memória aparentava ser espantosa e oceânica, e com a sua mente e à frente da sua
fisiologia, não se apressava um só desvio, uma doença - um revés, sequer. Era a perfeição fisiológica e
mental, e tudo isso ajuntado na sua fria pessoa.
Deixei que passassem livremente as semanas, suando com o calor e me torcendo envolvido da rede
quando era meu tempo livre. De resto, procurava sempre um momento para ver o outro, na sua casa ou no
seu trabalho - porque, sim, chegamos a ficar tão íntimos que ia vê-lo até mesmo no seu estranho
expediente -, e de tal maneira que me levasse a ficar sempre aos seus pés, e que eu logo me pusesse a
rastejar atrás de um inquérito científico, de uma fuga, de uma novidade ou de uma ventania, de um
dilema, em suma. De uma paroxítona das fórmulas e dos calosos ditados! (porque eu, também, era
homem da ciência e da erudição!) E ainda havia aquele tédio, aquele tédio era o que me matava... E
como! Aquela abstenção forçada, que me pungia, contra mim engendrada por um outro brilhante
estudioso da mente humana, privando-me do meu trabalho, tornando-me vadio, enchia-me de angústia e
fazia-me transbordar o caos. Creio que o remédio que me fora indicado surtira mais uma acentuação do
que uma atenuação da mazela, que inicialmente me confinara àquele lugar desértico e inóspito, da alta
Alemanha.
Ao mencionar por acaso o transtorno, rumara o psiquiatra para o armazém e rapidamente extraíra um
volume de pílulas; preparara-me coquetéis, que logo trataram de acabar com os meus casos de ansiedade,
deixando-me de coração aberto, benevolentemente grato e inclinado à recíproca. Fiquei impressionado ao
observar como conseguia ele, com uns simples e pequenos comprimidos, aquilo que o alienista de outrora
não conseguira nem com meses e mais meses de tratamento. Daí, como o admirasse muito, sujeitei-me a
umas computações e aferições, nada grave, danoso ou de dolor; apenas me medira o crânio e conferira os
meus históricos, entre outras providências de um feitio similar. Por fim, até contara algo da sua
singularidade, sua proficiência no mister e, assim, quando terminei por conhecer mais e mais as suas
técnicas, as suas abordagens, os seus tratamentos e os seus mais honoráveis pacientes, via-me quase um
assistente seu das horas vagas. Mesmo durante recessos, como não quisera ficar dias a toa, visitava-o
sempre a uma horinha da tarde, ajudava-o com alguns encargos e anotações, discutíamos os casos e as
ciências, alguma vez fazíamos consultas em domicílio, e depois voltava satisfeito para casa. Mas tudo
isso sem ver os intratáveis doentes, os quais permaneciam em uma ala separada do manicômio, apartada
dos demais, menores funcionários.
Fora numa dessas vezes em que nos encontrávamos que desvendara pela primeira vez a sua descoberta.
Batera em porta de casa, com tempo extravasando das mãos, um certo dia, e tão cedo que tivemos o
distinto dever de sentar à varanda para tomarmos uma xícara de café e almoçar, quando conversamos
muito, rimos muito, e até nos espevitamos com um ou outro gracejo. Ao fim de tudo, foi dizer-me ele isto:
- O senhor é um dos meus mais perduráveis colaboradores. - disse, relaxando-se - Acho que merece, em
troca, pelo menos esse vislumbre - brincou - do futuro. Venha, vou-lhe mostrar o que eu descobri.
E com isso levantamo-nos, e tomamos uma condução para o centro de Stuttgart, onde pulamos em
direção à instituição. Abriu a porta para mim, segurando-a com a minha passagem, quando entrando pude
ver, outra vez, agora excepcionalmente iluminada pelo raiar do sol matinal, a sala de recepções. Um tanto
ornamentada por um estilo de difícil classificação, que só posso tomar em conta que fosse um rococó de
época, ou do jaez do prédio, ao passo que se prosseguia adentrando e esta mesma distinção mudava.
Perpassava-se o interior e viam-se umas rochas, dispostas aqui e ali, enquanto a faceta que caracterizava
as demais salas era moderna, e nisso muito alva, de uma alvura sublime. Tão branca, que resplandecia a
luz de arco no teto - uma das primeiras repartições iluminadas à eletricidade na Alemanha - à medida que
trabalhavam a maior parte dos empregados abaixo, indo de sala em sala, de aposento em aposento.
Atingíamos então um saguão, quando o doutor segurava o meu braço, e logo depois me guarnecia:
- Cuidado. Não esbarre em ninguém! ou então, Deus queira que nenhum acidente vá acontecer contigo.
Alguns destes funcionários transportam substâncias nocivas, tu vês, outros aplicam injeções. Alguns são
demasiado inócuos, como os que praticam a hipnose, mas ainda assim há um risco de que algo se vá
quebrar ou se romper. Há uma certa pressa aqui - e dizia, fazendo um largo gesto de exposição -, porque
ocorrem muitas emergências. Todos eles se movimentam com presteza, pernas lestas, ávidos do espírito a
atender aos necessitados, de supri-los com o tratamento. Vê como não é uma maravilha, o progresso da
ciência por esse nosso tempo. Poderia eu perguntar - e que outra resposta tu havias de me conceder? -,
com que melhor pala já se vestiu o homem, que não esta, que é a ciência e a sua melhor afiliada, a
técnica?
A princípio não lhe respondi. Tanto observava as coisas ao meu redor, e maravilhava-me com a multidão
emergente. A sala de recepções, pela qual passamos, ficava na maior parte do tempo vazia. Já o corredor
de pedra, logo em seguida, intransigente e abalrotado, via a rápida sucessão dos aventais e dos crachás, e
desta forma exemplificando apenas uma fração de toda aquela voragem que me testemunhara o olhar,
quando então adentrava aquele expansivo átrio, e pela primeira vez me punha a avançar até a área mais
afastada, local dos doentes, berço incauto daquela imensa mente.
- Verdadeiramente - respondi, enquanto os observava e contemplava toda a cena -, não há outra.
Prosseguimos, e caminhando à frente de um relaxado encalço, fomos deixando o nosso fraco perfil
impresso nos ares, nas mentes do galeno, para trás e penetrando às escuras numa área mais absconsa.
Aqui atingimos um corredor baixo e estreito, e aqui fora onde vi de derrocada os doentes. Pela primeira
vez na vida vira eu os doentes. Neste espaço que era menor, trespassado por menos gente, sendo levados
de lá para cá pela força, aos gritos, até mesmo aos sussurros - e nisso é que diziam obscenidades, os
ensandecidos, porque berravam coisas incompreensíveis ou então mofinas, a título de exaltação, de pura e
humana exoneração de si mesmos. Observando-os, não pude conter o meu desgosto, mais propriamente o
meu horror, ao contemplar aquele triste e, mais, estranho estado do psiquismo humano. A área em que
estávamos era pequena, certo. Mas mesmo dali, daquela aglomeração meramente exemplar, pudera eu ter
a impressão de haver cruzado bastos hospícios, mais uma porção de galerias ou tendas médicas em meio
ao combate, e ainda umas raras e modernas colônias penais, em África ou em terras ultramarinas e
desoladas. Sem dúvida alguma, a atribulação era triste. E quando imaginava que o outro passava boa parte
da sua magnífica vida ali, perdendo-se com estes loucos - a desperdiçar a incredulidade que tinha por um
gênio, naquele covil obscuro e infernal -, não compreendia como ele conseguia; não compreendia como
ele não olhava para si mesmo e não pensava ser-lhe jus alguma coisa melhor, alguma coisa mais. Não
entendia como ele conseguia arranjar, e sair ileso, sob ameaça constante à sua própria saúde mental, todos
aqueles impulsos, todo aquele caos, que precisava ser reordenado.
Era um vislumbre efêmero, entretanto. Logo, assentava-me sob o teto do seu escritório, que ficava no
final do corredor, aos fundos, e punha-se-me a exibir a sua descoberta, que havia então preparado.
Abeirou-se de uma mesinha, apanhou e trouxe até mim um microscópio, que ele mesmo havia
projetado, com um pedaço de massa cinzenta na platina, ainda com cortes de tecido cerebral ao lado,
parcialmente envoltos em fluidos nos cantos.
Estendeu as mãos e com um gesto indicou para que eu olhasse através da ocular, deixando-o em cima de
ainda uma outra mesa, agora longa e metálica, de tampo assaz espaçoso, a mim adjacente.
Olhei bem o objeto na lente, e vi uma estrutura como cápsula, sendo circundada por inúmeras esferas
agitadas e espúrias, enquanto realizavam o irrealizável. Propulsionavam-se sempiternamente, conforme
me notaria pouco depois, sem princípio aparente. Sem qualquer razão ostensível ou avaliável, e não
perdiam força nunca, jamais.
- Esta descoberta, meu caro companheiro - disse-me ele -, tem tudo para ser a maior do nosso século.
Encontrei esta estrutura no cérebro de todos os homens, e de todas as espécies que analisei (pois foram
muitas!). Que ninguém jamais a tenha visto antes, explica-se simplesmente porque não foi capaz, a gente
científica de outrora, de empreender um estudo tão vasto e minucioso do cérebro humano, tal como eu fiz
- e tampouco permitiria a razão de antes, com as suas tecnologias antiguadas o mesmo feito. Trata-se,
evidentemente, meu amigo, de um moto-contínuo; ou de uma espécie miniaturizada de moto-contínuo,
porque disturba o princípio fundamental, a grande escora por detrás de todas as ideias mais caras ao
homem científico. Louros, meu amigo! Louros! Imagina o que não estará adiante e por vir, graças a essa
argúcia que é a descoberta experimental, aqui presente e exemplificada diante de ti. E que nome
ostentarão, no cume de toda a genealogia; a origem de toda essa nova e postulada ordem dos inventos,
teóricos ou científicos? É preciso, meu caro: o nosso nome. O meu, o teu, e o de todos os nossos
colaboradores. A nós, aguarda ainda mais que o nome eterno, se sim a inspiração de toda uma nova vida;
de toda uma nova geração de homens e de mulheres, que exaltarão um novo princípio - o fruto último dos
nossos sacrifícios!
Entretanto, e logo posto que a descoberta me fascinara, a mim não menos, não me removera da cabeça a
preocupação pessoal com o doutor, e com aquele lugar esguio, o qual lhe deveria dar - como a qualquer
pessoa normal - uma boa dose de calafrios. O lugar era sujo; por vezes cheirava a esgoto, e tinha ratos,
baratas e doenças... além de todos aqueles gritos de tormentas e de tormentados, e quem sabe por cima
não havia alguma coisa, não menos estranha, mas mais temerosa que tudo aquilo.
Quase lhe perguntei como é que ele conseguia fazer, para aturar esta situação. Diante de tantas
colocações e de tantas boas obras, que ele por aí já de novo transparecia... de tantas promessas e de
tamanha vontade... Um espírito livre e sadio! um homem sagaz, dono de tão boa índole, de tão bons usos,
de tão boas qualidades, desgastando-se em condições degradantes, sub-humanas, vis! De tantas ambições,
estando ali... mas no momento em que me vinham aos lábios as inquietudes da palavra, olhei-lhe bem os
olhos. Vi a mais fina verdade. Maior mesmo até que aquela descoberta insigne do cérebro humano e
animal. Ia-lhe perguntar o que sentia, mas não era isto necessário. Não! Podia eu vê-lo bem nos olhos do
doutor.
O que vi me transtornara a pupila. Fizera-me exaurir o pulmão, e exalar-se-me um frio ar, porque
enxergava no rosto e, melhor, no brilho do cristalino, um raio de insistente comoção. Um grito de pânico,
de clamor, de histeria, de calidez frenética e de empatia - em suma, de humanidade. Coisa que como um
chamado, uma súplica, uma convergência que ia de encontro ao meu inquérito, tentava-se libertar do
controle frio e calculista do doutor. Olhava tranquila e fixamente na minha direção, e nisso brilhava um
balão, uma águia, uma coisa triste assim como um canário enjaulado, que canta as suas misérias, mas
esconde-as bem depressa por detrás da sua feição apática e estólida. Tempos depois, ainda saberia por
extensa investigação as particularidades do que com ele se dava, mas a observação por si só, e em um
primeiro momento de conclusão, tão somente, já de fato bastava para mim. Eu sabia muito bem o que em
frente a mim ali transparecia.
Com efeito, soara o insistente trovão do exalçamento animal. Contemplava-o eu na mira do doutor, só
que consigo reduzido a um fiasco; pálido como um fantasma, fino como um córrego, e triste como uma
lágrima. Aquele homem, o qual tão bem se comportava diante do infortúnio e das ocasiões, também era
ele um louco à sua própria medida. Verdadeiramente, era o oposto de um louco, axiologicamente averso
ao devaneio daqueles. Se o louco precipita a emoção, e subjuga com estas mesmas forças o brilho da
razão, fazia o doutor meramente o contrário. Mostrava-nos a sua face lógica, e com isso dissimulava todo
o resto que víamos. Nada escapava ao seu controle consciente. Tinha ele a posse de todas as suas
variáveis, na vida, tão eficientemente quanto nas metodologias, e era isto o que lhe constituía ser cientista.
Era isto o que lhe demandava ser psiquiatra de sanatórios. Era ele, pois sim, o Antilouco, em carne e osso.
III. O cara que botou uma calculadora na cabeça

Wilfred Maillow, um contador de companhias e matemático por formação, certo dia acordara com uma
ideia fixa. Uma ideia fixa e, mas com certeza, muito, muito ingênua: atrelar uma calculadora à sua
cabeça; tal como se ele então pudesse computar as operações, de múltiplos e dividendos na velocidade
exorbitante de um raio.
Quando contou a realização interior para os amigos do escritório, estes quase o julgaram louco ou
alguma coisa assim, mas com sorte apenas se riram dele, como quem ri de uma boa e inesperada piada.
A peculiar convicção havia sido prenunciada quando, chegando ao trabalho, e isso depois de fazer
estrondear uma briga em casa com a mulher, tão alta que até os vizinhos se detiveram nas janelas,
colocava-se a entabular as operações e os lançamentos; e depois de um dia inteiro de trabalhar e mais
trabalhar, de calcular cômputo atrás de cômputo, e um dia péssimo, em todos os aspectos demais
possíveis, acertava com o chefe a septuagésima oitava folha, a qual possuía, segundo o contador, uma
resolução impossível.
- Impossível? - perguntava o chefe, enquanto o encarava como quem dá de frente com um enigma.
Chamaram um segundo contador para pôr um fim no caso. O encarregado achegou-se na companhia dos
dois, pegou um giz e, tão prontamente, colocou-se a resolver a operação no quadro-negro, enquanto a
complementava com explicações verbais a cada passo:
- Basta consultar a segunda tabela, subtrair da cotação anterior, e daí com um mínimo de conhecimento
de causa se compreende o resultado.
- Não entendi nada - disse o chefe.
- Mas o seu contador certamente entendeu, ou deveria ter entendido - respondera ele.
Não chegara a subestimar a inteligência do contador, mas este desencaminhara-se do procedimento
ainda no início. Não entendia o que havia de errado. A memória o advertia de haver solucionado muitos e
muitos de tais casos, mas por algum motivo não se fixava mais no substrato o caminho, a conexão das
sinapses já não intercorria, e o raciocínio do convidado parecia-lhe de todo inevidente.
No dia seguinte, continuara o mesmo fenômeno a se repetir. Chegava ao trabalho depois de atribulações
na vida social e doméstica, contava e solucionava umas boas treze ou catorze páginas, e daí, um errinho.
Uma falha mísera, que de tão mísera e espontânea que era lhe dava um ataque dos nervos. O mais
incompreensível era como se, por um lapso ou um efeito da senilidade, ele perdesse a apropriada razão, e
momentaneamente se visse incapacitado, julgasse a si mesmo gagá.
Pois vestira a carapuça da idade, e considerava-se como principiante na caduquice. Tinha meros 62
anos, o tal do Willfred Maillow.
Quando numa noite esquecera subitamente a Fórmula de Bhaskara, aí então ele adormecera preocupado
com os efeitos do fenômeno, e acordara com a ideia fixa.
Abriu os olhos, levantando-se parcialmente na cama; piscou uma, duas, três vezes, e depois disse:
- Está decidido. Preciso botar uma cabeça na minha calculadora...
Rapidamente, corrigiu com um gesto a ordem dos fatores, e deixou-se ir ao trabalho como de costume.
Desd'aí, de folgas em folgas, de fim de semana em fim de semana, acossara a concretização do sonho,
como quem vai atrás do justo ressarcimento de uma apólice de seguro, ou como a mulher, quando corria
atrás do perfeito corte no cabeleireiro da esquina e, não satisfeita, depois no da outra esquina, e no da
outra esquina... Enfim, uma coisa sem cabo como esta.
Tinha uma pequena fortuna no banco, o Sr. Maillow. À medida que mais se exprimiam e diversamente
se acentuavam os sintomas da sua inusitada doença, mais a convicção e os seus fundos se abriam para o
projeto. A coisa começara a se tornar positivamente grave quando não apenas a matemática era afetada,
mas também os lugares, as identidades e a lucidez geral do terno decaía, resolvendo a tal ponto recorrer à
ajuda médica em questão do caso.
Consultara um doutor. Este diagnosticara e com não muita prolação, anunciara a doença. Dera-lhe 6
meses de sobrevida. Olhou na direção do calendário sobre a breve mesa do clínico, o contador, e atentou
bem à data. Sete de abril de 1963. Intuía, com efeito, que ao final do ano ele já estaria morto.
Por mais que a ideia não parecesse a nós muito lúcida, e possível, desde o princípio, não se devem
duvidar das distâncias que percorrerão aqueles que, motivados pela penumbra oscilante da própria morte,
farão até o impossível para escapar ao abismo. Willfred Maillow gastara cada tostão dispensável do seu
bolso, cada penny suprimível no seu ordenado, para ver erguido e funcional aquele mecanismo, que o
substituiria justo no mais intrínseco, na alma que tinha - e se é que tinha -, o impensável efeito; a
ultimação de um corolário de luz, um retrasado devaneio.
Um dia, quando a esposa dera por falta do marido, e procurando-o no escritório não o encontrava,
rumara para casa e ia logo chamar a polícia, mas, passando pela padaria do Sr. Jones para comprar uns
pães, conversava por acaso com um conhecido e mencionara o sumiço do ente, coisa que aquele senhor
ouvira com muita atenção, pois lhe retorquia:
- Deve estar naquela nova casa de três andares ao fim da rua. Todo dia à hora do almoço ele passa uns
minutos lá, e depois segue ao trabalho.
Saiu a mulher correndo e furiosa, carregando os pães num braço, e umas frutas noutro, cruzando o
cenário daquelas casas suburbanas e muros de pedra, tão tipicamente ingleses, ora perturbado pela
aparição de um prédio baixo de tijolos, aqui e ali, como era o tal ou qual a que se dirigia a dona.
Era o fim da rua, e de frente se erguia a monumental vivenda. Tinha um jardim largo e inclinado, de
sutil ascensão, mas de resto não contava com nada de muito estilo. Possuía uma varanda sólida e ampla,
uma chaminé vermelhinha, e um telhado baixo e não muito aparente.
Entrou pela porta da frente, e com isso deparou-se com o marido deitado ao fundo, circundado por uma
espessa bruma de refrigerante, cortada por fios aqui e ali, e mais tubos de ligações e metais, correndo de
cá para lá, varando o prédio inteiro. Aproximou-se e viu-o ligado à maquina, que de tão grande era devia
ocupar todo o lote.
- Mas o que significa isso, Will?
O outro não a olhara, nem sequer se mexera; apenas lhe respondera com isto:
- É o que sou.
- Mas é claro que é o que você é! - bravejou, com um gesto exasperado - Por acaso sou cega?
- É o que você me há de revelar.
- Ora!
Volveu a vista, percorrendo com ela todas as instalações. Fez uma encenação de superior grau de
aflição, e quase cedeu à medida que torcia de um lado para o outro, mas no fim, retornou à sua usual
compostura. Deixou-se liberar ante o marido:
- Eu sempre soube que você tinha uma maluquice, um parafuso a menos! Era tempo, uma hora ou outra
isso ia acontecer. Ai! ai desta besta deserdada e arrependida que sou eu! Por que fui casar-me logo com
você?
- Mas não fale assim, Betty. É melhor que assim eu esteja.
- Para você, decerto. - interjeicionou - Mas e para mim? Você não pensa nos outros ao seu redor,
também, não? e na sua família?
- Mas é justo por isso, querida. Três meses atrás fora eu diagnosticado com uma doença terminal do
cérebro. Construí esta máquina para que pudesse continuar a viver, e a viver trabalhando, fazendo
cálculos. Agora que não usufruo lazer nenhum, nem distração alguma me adita a mente, todo o meu
ordenado vai para você e os nossos filhos. Não é isto melhor que a minha morte?
- E por que você não disse nada? - perguntou.
- Você não me compreenderia. Achar-me-ia louco.
- Mas é claro! é óbvio que sim!
Algum tempo se passou, em que os dois cônjuges e outrora habitantes da mesma casa não se falaram, e
mal se entreolharam, indo terminar o interlúdio com a seguinte interrogação, da parte da dona:
- Como você aguenta viver assim?
- Ou é isso, minha querida - respondeu -, ou é viver com vocês, mas como um vegetal; como uma
gosma, um plasma babão, que lhes só há de ser um difícil encargo, se ainda assim se valerem os meus
cuidadores de alguns dos artifícios que eu projetei, e se não se obstinar o mal em me ver finado, de uma
forma ou de outra.
- Não o repulsa? - inquiriu, voltando-se para o outro - Não lhe causa tudo isso inquietação, uma
estranheza? Por acaso aceitou viver assim, prontamente, como se sempre o quisesse desde o princípio? -
indagava, cada vez mais incisiva.
- Que mais havia eu de fazer?
- Revirar-se com os escrúpulos - respondeu -, desfazer-se todo em sumas contraditórias, como havia de
acontecer a qualquer ser humano normal.
- Mas isso é uma baboseira, Betty! - exclamara - Você bem sabe que eu sempre fui crítico dessas
reviravoltas, dessas e outras idiotices dos homens e das mulheres! Não precisava que a máquina alterasse
e, digo mais, melhorasse a minha razão para que eu assim o cresse. Não! A máquina fez um grande
trabalho, é verdade, e agora eu finalmente vejo com toda a grandeza a exatidão que é o mundo, mas
continua a ser em essência a mesma exatidão dantes.
- Sei. Tudo é tão simples para você - retrucou, frisando pela ironia.
- Mas não é assim? - perguntou - O mundo não é uma simples questão de ciência, mesmo o mundo
humano?
- Conte-me! - dispunha-se a ouvir, sarcasticamente.
- Ora, minha velha - e disse, excedendo-se em escopo -, por que é que um animal pode agir como age,
que se lhe perdoa dizendo "ele não pode evitar" ou "ele não sabe que faz errado"? Também o animal pode
evitar o que faz, somente é preciso que o machuque o dono o suficiente (assim como é o mesmo quanto
ao homem, com a única diferença de que não possui dono, senão a própria e imanente sociedade).
Entretanto, verdade é que o animal não tem no cérebro este mesmo germe, que nós temos, do escrúpulo
que distorce tudo o quanto é realidade. O animal é muito mais consistente do que nós. Ele sabe
tacitamente que tudo é vontade, que tudo é poder, infâmia e jogo. Ele sabe que todas as ações que uma
vontade toma invariavelmente a beneficiam nelas mesmas, por si próprias (isto é, são comodistas por
princípio), e daí percebe que só é proveitoso parar quando o oposto é materialmente desvantajoso. O
homem também é assim! mas o ser humano acredita em ficções, e por isso engole a moral; não percebe
que por trás de toda culpa e de toda falta, há sempre uma incongruência, uma ilusão e uma mentira. O
animal, ao contrário, é fruto direto e imaculado das necessidades da causalidade e da vontade, concebe o
imperativo da vida, mesmo que à sua própria maneira... Veja, minha cara, querida esposa, se um homem
comete um ato imoral, das duas, uma, ou está em pleno conhecimento do veto, mas a necessidade o
sobrepassa, ou, então, desconhece-o, e daí presume-se que a necessidade poderia ter sido contida por este
mesmo esforço de autocontenção, de autoflagelação que é a moral, e que é todo esforço moral, em suma.
Você vê, é um cálculo, Betty: o quanto um homem é capaz de negar a si, de torturar-se pela causa da
moralidade, de reprimir-se e de culpar-se por ela. Mas ninguém é de ferro, Betty; todos os homens
quebram, e como o mesmo ferro de antes, desfazem-se em mil lascas, em mil pedacinhos! em farelos, em
múltiplas e minúsculas partículas de uma outrora majestosa e opulente estrutura.
- Mas há o altruísmo... - comentou.
- O altruísmo, minha amável e velha Betty - respondeu, com uns tais ares de professor -, o altruísmo não
é nada além do prazer que se exprime ainda mais ao abnegar-se um benefício, do que ao usufruí-lo. É a
marca consumada do cativeiro humano.
E como a outra apenas o olhasse de cara feia, meio torta, este reiterou:
- Minha esposa, não negue ao homem esta que é a sua própria animalidade! Negar a animalidade ao
homem é negar a sua própria humanidade. Negar ao homem o primado da causalidade e da necessidade
causal, de ser o depositário e o hospedeiro das forças e das leis do universo, do instinto primeiro, objetivo
e egoísta que é a vontade, é negar-lhe tudo o que há de vivo em si mesmo! Por acaso não é este mesmo
envoltório biológico e divino de Deus, que nos perfaz, o mesmo motivo que citam os defensores das
cortes quando se dá um assassinato em justa causa? Que a nossa própria vida vale mais que a vida de
outrem? Ora, primeiro eles a negam ao instituírem o domínio das leis, e depois a reconhecem, mesmo que
só um pouquinho. Veja só, que hipócritas que são, esses legisladores e juízes! O animal pode evitar o que
faz o tanto quanto o pode o homem, e quanto mais desconhece a falta, melhor é, para ambos! Porque é o
instinto moral essencialmente um instinto do esquecimento. O homem que comete o crime mais
hediondo, o crime mais desgostante, não o faz por razão de capricho ou desobediência, faz porque as
circunstâncias causais determinaram apesar dele que assim ele agiria. Como pode ser lícito, portanto,
julgá-lo e condená-lo; presumi-lo responsável pelos seus atos, quando são a física das forças, a química
da matéria, e a biologia da vida que sobre nós decidem, e tomam a responsabilidade para si mesmas, a
despeito de todas as circunstâncias, humanas e sociais? Que soberba é esta do homem! - por fim
exclamou, inspirando uns ares - que ao instituir a lei moral, passou por cima da própria lei de Deus! a lei
da natureza?
- Então você não vem? - perguntou a outra, enfastiada.
- Não, minha cara. Nem se eu quisesse, e nem mesmo se eu interviesse! Já não sou mais humano para
retornar com você ao nosso antigo convívio. Já não é mais possível - repetiu-se -, não tenho eu aquela
liberdade, aquele contentamento ocioso do cidadão comum (e nem o desejo de virar uma ameba!). Preciso
estar a trabalhar, preciso desvendar, sempre, entender alguma coisa que seja. Perdi a humanidade quando
atrelei ao meu cérebro este pesado monstro - indicava, com o dedo -, e daqui não saio mais.
- Você não perdeu a sua humanidade quando se uniu a esta... - por uma primeira vez, hesitou - ...com
esta coisa, não! - disse-lhe - você perdeu-a quando primeiro passou a entreter-se com, e a acreditar nessas
estúpidas ideias!
E daí saiu desfilando pelo horizonte; sumindo por entre aquelas névoas cinza e penumbras,
desaparecendo como um fantasma.

IV. O oficial

Hans W. Schröder, nascido em 1896, por formação engenheiro mecânico e natural de Hamburgo, fora o
pequeno oficial da marinha alemã que, afastado por conta de certo acidente, ainda durante a Primeira
Grande Guerra, perdia a si e o seu tempo. Sempre a manusear e ler livros, títulos, e demais obras
obscuras, empoeiradas e esquecidas, fundo na Biblioteca Estatal de Berlim. Uma das muitas instituições a
que se associara com o ínsito fim de se ver distraído, gastando da melhor forma o grande descanso que
tinha por um luxo, caro, decerto, mas à mais vultosa moda que lhe permitiria o seu paladar, e o seu
incessante desejo que tinha de uma descoberta.
Perdera a visão do olho esquerdo, ficava com as beldades do rosto completamente desfiguradas e, para
completar o já lastimável quadro, mal conseguia andar por causa da contusão, que sofrera no crânio, à
direita, durante o serviço na marinha. Estava na praça de máquinas, a mando do capitão, quando um
pedaço do vigamento despencara do convés, provocando uma perturbação ou um delírio de durações
incertas, porque só foram socorrê-lo no momento em que a batalha principiava a acabar, e faziam por
último caso de um sumiço, o do abatido marinheiro, os demais tripulantes.
Os efeitos não foram de todo imediatos. Quando se levantara e por fim se reanimara, fora levado à
enfermaria donde, depois do tratamento de frente, e de uns reparos provisórios, passou para um hospital
em terra firme e foi dispensado por invalidez. Promoveram-no a oficial, mas a que preço? uma temível
desfiguração na face, e a lesão da caixa craniana. Que horrendo montante, quanta foi a sacrificada valia!
porque dando tudo à sua pátria, no exato dia em que ela por ele clamava, o que recebia de volta? A
rendição humilhante do império, as lacerações e os traumas antes expostos e, além do que, um pequeno
soldo. Que daí só ia a diminuir e a diminuir em valor! sendo comido pela ascensão dos preços, e pela
escalada incessante da inflação.
Para piorar, o acidente ainda o deixara com uma oculta moléstia. Pela primeira vez o afligia, já em
meados de 1929, ao levantar-se à mesa de jantar e, num acesso de dor, tender para o lado, ir a cair, quando
em seguida era segurado pela esposa, impedindo-o de se estabanar todo no chão. Schröder veio a saber
que a sua afecção era um sintoma da degeneração física do cérebro, fomentada pela fratura e preservada
pela insuficiência dos tratamentos recebidos desde então. Certamente, a explicação havia de se encontrar
nas contingências de um serviço público que, diante da dispendiosidade das soluções, e do colapso da
economia nacional, não pôde remediar a emergência de tão incômoda situação.
Por aí o partido nacional-socialista começava a ganhar suas forças, Hitler tornava-se uma figura famosa,
e cada vez mais falada. Um amigo do oficial, o Sr. Ignaz C., certa vez lhe fizera visita e, emendando com
isso, contava-lhe nova tenção. Um novo trajeto, a trilhar-se desde o começo. Sucedia, no entanto, sondar o
oficial aposentado, a ponto de saber se havia nele qualquer inclinação que viesse a calhar, ou a obstar, que
fosse útil ouvir e conhecer de antemão. Levava o garfo com a comida à boca quando, aproveitando uma
interrupção para o vinho, intercalava por junto singular proposição. Já teria procurado cautelosamente o
momento apropriado para iniciar o colóquio, mas apenas agora é que tomava a justa coragem.
- Que pensas tu sobre o nacional-socialismo? - perguntou-lhe ultimamente o Sr. C.
- Nacional-socialismo?
Schröder olhou para o alto, em direção ao belo teto arqueado do seu apartamento. Erguendo bem a
cabeça, e com isso observando infantilmente os traços e adornos das suas paredes e voltas elevadas, em
forma de abóbada celestial, e respondeu-lhe o seguinte:
- Não penso nada. Nem conheço o tal partido! - riu - Só ouvi dizer por nome.
Ignaz contou-lhe então tudo o que sabia sobre o partido e o movimento, tratando de tecer-lhe uma
generosa apologia, que Schröder não entendeu senão por honesta exaltação, logo lhe respondendo:
- Está certíssimo.
- ...Mesmo? - perguntou, um tanto surpreso, o Ignaz C.
- É claro. - respondeu Schröder - Os sucessos desde a Guerra de Catorze só levaram este país à ruína. É
necessário reerguer a Alemanha, e digo-o não somente no sentido político, mas quanto às pequenas
causas, também. Prostitutas, drogados, gente enferma e desamparada, todos se alastraram como nunca
antes desde a derrota. Nós, ainda mais nós que até agora fomos pouco afetados por estes e outros desafios
e vicissitudes, devemos ao povo a nossa atitude e a nossa consternação. Não concordas?
- Concordo, e digo mais, acabo de filiar-me à ordem, meu amigo. - contou-lhe Ignaz, propondo um
gracioso cumprimento - A tua enobrecida postura em muito me alegra, porque já desde um tempo eu
vinha suspeitando que tu eras um bolshevista. Mas vejo agora que me enganava.
- Que bolchevista? Ora, sou partidário da tua causa! - disse, com um largo gesto o oficial - Nós do
exército temos é que nos unir, porque acreditamos com o mesmo afinco marcial nas mesmíssimas
virtudes.
- Pois há muito que tu podes fazer para ajudar-nos - disse Ignaz, insinuando um mundo inteiro de
subentendimentos.
Daí em diante, passou Schröder a encaminhar todas as suas energias à objetivação da causa. Doou parte
do seu soldo, fez propaganda, atendeu a comícios... Quando enfim tomara Hitler o poder, relaxara um
pouco. Mas em momento algum faltou com sua dedicação à pátria, e rejubilou grandemente ao ver a
recuperação material e espiritual de sua amada nação, atravessando rapidamente os anos trinta do
vigésimo século, e com vista a isto espalhando progressos. Cheia de alavancados espíritos, do que eram
outrora desgastados e modestos alemães, parcamente alimentados, friamente iluminados à guisa de um
lampião ou candeeiro noturno. Cobertos de farrapos, tossindo e espirrando aéreas doenças.
Em um determinado dia, já dos melhores tempos, que sobrevieram e mitigaram os efeitos da severa
crise moral e econômica, Ignaz, então promovido a certa patente, era notificado de seu destacamento para
uma nova posição na Prússia Oriental, o que deixava o aposentado oficial com pouco a que direcionar o
seu tempo livre, e muito tédio. Não tinha numerosos amigos, além do já referido Sr. C., nem depois do
acidente tinha lá grandes pretensões, ou ilusões do ego que o levassem a talhar grandes coisas. Entretanto,
era leitor ávido, e por isso mesmo, sempre que podia, visitava a biblioteca em Berlim, onde morava, e
bagunçava alguns volumes. Passava umas boas duas horas sentado na sala de leitura, ao cabo das quais
cuidava de levar emprestados alguns exemplares para o seu apartamento, na outra margem do rio Spree.
O ano era 1934, quando Schröder, então perambulando por entre as estantes, pesquisava com o diligente
olhar as lombadas nas prateleiras, pousando a vista num livro velho e empoeirado, de capa azul e sem
adornos, que lhe cativara subitamente a atenção. Arredá-lo e abri-lo foi a obra de míseros segundos.
Quando o fez, porém, deparou-se com algo que ele nunca antes tinha visto, e cuja resulta era deleite que
se estenderia por anos e mais anos, e que lhe possibilitaria eloquentes tenções e introspecções, deste
mesmo porvir.
Com efeito, descobrira ali um intrigante relato de cirurgias e de operações, um manuscrito. "Um
exemplar único!" - era como o concebia Schröder, enquanto mirava e folheava as páginas, lendo
rapidamente os traçados e admirando-se dos contornos, transpirando curiosidade e estupor. Mas o que ele
então não percebia era que o tal relato guardava ainda a comprovação e as instruções de uma descoberta
sublime, que até aí nenhum estudioso jamais considerara, sob hipótese ou como verdade que fosse.
Schröder era pobre em contatos; mas lembrava-se de haver jantado certa vez com um ilustre professor, o
Dr. Heine, magistrado na Universidade de Frederico-Guilherme. Quando enfim chegara à sua casa,
expeditamente entrara a compor uma carta para o docente, identificando-se e mencionando o incomum
achado. Dr. Heine tomou grande interesse pela obra, apurado o teor, e as ciências de sua disposição,
sugerindo-se encontrar com o oficial na biblioteca a tempo oportuno, para que pudesse revistar o caderno
e tentar-se facultar o empréstimo. Schröder acedeu à proposta do professor, tratando de transcrever umas
pequenas partes no decurso dos dias vindouros, antes que por fim se reunissem na data acordada.
Na semana seguinte, examinou e debateu com o catedrático a desvelada dissertação. Dr. Heine não
conseguiu, a princípio, permissão para tomá-la por empréstimo, mas depois de dias visitando a biblioteca
e a estudando, convenceu as autoridades de que o conteúdo do manuscrito era inestimável, e acertou com
elas um convênio para que pudesse melhor perscrutá-la.
Enquanto isso, também Schröder visitava a biblioteca, e buscava compreender em sua totalidade as
premissas do manuscrito. Quando coubera analisá-lo, enviou uma carta ao doutor, solicitando que
averiguasse os objetos de sua averbação. Recebeu resposta, e nesta dizia o catedrático que já havia
realizado o necessário experimento, e que era tudo verdade. Pois então?... O oficial da marinha ficou
pasmo quando leu estas três últimas, curtas palavras de ratificação, e contemplou enquanto ascendia a
fronte aos céus, a grandiosidade do seu descobrimento, que era verdadeiramente um oráculo das ciências.
Ide ver se eu exagero.
A obra trazia uma revelação sísmica; um abalo às teorias vigentes mais acreditadas. Indicava a
localização de certas organelas microscópicas no cérebro, cujo funcionamento desafiava os teoremas da
física, e o conjunto equilíbrio da química das moléculas. Mesmo se retiradas e isoladas, as partes móveis
que havia continuavam a volver e a volver em torno do próprio eixo, violando os preceitos das forças
enquanto realizavam operações de atração e repulsão, trocas de fluidos, transformações da matéria e
demais inobservâncias, com uma energia bombástica que nunca se esgotava.
Já acrescentava o Dr. Heine, ao final da carta, que o motivo de tal coisa era impossível de se constatar, e
sublinhava, tão convencido estava, que não importavam quais instrumentos ou teorizações
desenvolvessem os homens do futuro, jamais entenderiam a causa de tamanho fenômeno. Era
simplesmente uma coisa incognoscível.
Schröder teve mais um posterior alvoroço ao ler a descrição técnica e esquemática dos princípios
implicados, e concluiu que a origem de tudo estava na conturbada física envolvida. Leu livros a respeito,
estudou os seus mais modernos fenômenos, investigou avidamente tudo o que lhe parecesse pertinente -
como um enorme redomoinho humano indo atrás de ensaios e de publicações acadêmicas as mais
diversas. Tanto, de fato, que quase morrera ao fazê-lo. Já que, certo domingo, estando a estudar horas e
horas afim, e sem intercalá-las com um descanso, sequer, sofria primeiramente uma forte dor, depois, um
desmaio. Quando enfim acordara, via-se distendido no leito de sua casa, com o clínico ao seu lado, pronto
para desvendar de que se tratava a sua gritante condição cerebrina.
Deveras, reduzira o oficial a um mero reflexo do que uma vez fora, o doutor, pelo menos no que tange à
sua saúde neural. Contudo, fora este mesmo desespero, fora esta mesma fina flor do crepúsculo que
acerbara ainda mais a sua intrigada ambição, e o levara a esboçar uma elucidação sintética e científico-
filosófica do devido fenômeno. Pela primeira vez a vislumbrava já em 1937, e concluía-a aí por 1942 -
com o ápice do império nazista -; tendo em mãos uma poderosa dissertação, ou ferramenta, que
derrubaria todo o arcabouço das ciências - inclusive a física newtoniana.
Cabe dizer, antes que divulguemos a sua obra, que Schröder tinha desde muito cedo um determinado
talento para as matemáticas, e que conhecia como ninguém os dilemas da física quântica, a Interpretação
de Copenhaga, a relatividade etc. Fora calculando e construindo gráficos de probabilidades, permutando
grandezas e interpolando teoremas que chegara ele próprio à sua derradeira conclusão, da qual pegamos
emprestado apenas o desfecho.
Demonstrava que todos os determinismos eram meras aparências, que inevitabilidade alguma pertinente
aos fenômenos naturais verdadeiramente existia, sendo meramente substituída pela probabilidade e pela
convergência de probabilidades, que geram assim a aparência quase inelutável da lei científica.
Sobre isto, esclarecia:
"Não há lei científica." - escrevia - "Há apenas uma probabilidade esmagadora de que certa ação se
concretize, ou, mais apropriadamente, uma aglomeração de agentes probabilísticos, que em ação conjunta
favorecem uma determinada possibilidade. Tanto, com efeito, que na maioria dos fenômenos já estudados
no universo, uma possibilidade alternativa nunca se concretizou em frente da vista humana, e por isso a
ilusão da necessidade." - extrato do capítulo 38, parágrafo terceiro, da sua "Crítica da Filosofia Natural e
da Físico-Química".
Mas se por um lado a conclusão pode parecer a nós coisa por demais simples, e de não grandes esforços,
por outro, a quantidade dos cálculos, e a massa densa dos predicados eram já coisas que consumiam os
maiores dos volumes inteiramente, e ainda deixavam espaço a emendar.
"Até hoje" - escrevia o oficial, noutra linha - "até hoje, nenhum físico ou químico jamais entendeu
verdadeiramente os fenômenos naturais ao nosso redor. Somente deles extraíam a lei, sem sequer buscar
compreender por qual razão a lei é tal, ou qual, e por que a lei funciona como lei, afinal de contas. A
necessidade da lei nunca foi provada, nem a nós, e nem por nós mesmos, os homens da ciência! Precisou-
se que a ilusão da necessidade fosse quebrada, estraçalhada, perdida, de todo, para que se pudesse ver o
que se escondia, derradeiramente, por trás dos agentes que determinavam uma mera aparência de lei,
imperturbável como antanho fora. À luz de tal descobrimento não nos restam, pois, mais subterfúgios que
previnam a contemplação do universo como ele é, isto é, como eterna instabilidade e flutuação - o
produto de caprichos livres, expressos em chance, uma simples revolução dos cósmicos dados.
Ulteriormente, esta, que é a sua verdadeira essência, traduz uma única e inexorável necessidade. A de uma
mão que volteie a roleta, a de um agente por detrás do agir, uma vez que juízo pressuponha juiz, tão logo
nos deparamos com uma lacuna em branco, um espaço inexplorado. É este o agente que, embora não
sendo neste ínterim de todo esclarecido ou compreendido, nem por isso deixará de ser, por definição
mesma do termo, uma vontade - juíza perfeita como qualquer outra -, livre em sua essência e soberana em
seu arbítrio." - extrato do capítulo 113, quadragésimo terceiro parágrafo, da sua "Crítica da Filosofia
Natural e da Físico-Química".
Quando por último se levantara, e contemplara extasiado e meticulosamente o findado projeto,
decidindo-se pelo arremate das revisões, saíra como uma brisa a procurar editoras e contatos para uma
eventual publicação, mas sem grande sucesso, porque a guerra era impropícia para os negócios. As
comunicações, ademais, com o exterior, onde se encontrava o cerne de toda a pesquisa teorética em física
e nas ciências, no geral, estavam cortadas; e provavelmente só seria possível, com alguma sorte, uma
tímida tiragem apenas, contanto que por aí a guerra já tivesse acabado. Tampouco o Dr. Heine, um sábio
do melhor e mais auspicioso grau, fornecia-lhe alguma ajuda. De fato, estava mais era para concorrência
do que para qualquer outra coisa.
Em 1943, entretanto, retornava Ignaz C. a Berlim, não da Prússia Oriental, para onde havia partido, e
sim de algum local próximo à fronteira a este, que ele não bem revelava, porquanto fosse um posto
secreto, e de altíssima segurança.
Voltava com novo emblema. Era agora oficial da SS, e de uma respeitável se não francamente temível
chefia. Logo no primeiro dia em que chegara a Berlim, tratara o amigo de visitar o velho inválido, dando
um pulo ao seu apartamento poucas horas depois do seu check-in no hotel. Encontrara-o de pé e abstraído
em contemplações, altivo mas distante, como se a solucionar um único e imprescindível enigma. Nada
que a vista do velho companheiro não lhe pudesse retirar à cara feia, sem embargo, porque ao recebê-lo à
porta a esposa, e depois atravessar o corredor e chegar à área de estudo, cobria-se de felicidade o oficial, e
deixava-se desagarrar daquela pose pesada e sisuda, que o outro até tinha por majestosa, e mesmo digna
de um sustentáculo qualquer.
- Quanto tempo! - disse Schröder, segurando-o pelos braços - Muito aconteceu, vem! há muito que te
contar.
- Igualmente... - dizia Ignaz C.
- Mas primeiro - continuava o inválido -, tomemos um chá ou um café. Peço à Maria para fazer-nos uns
biscoitos, que achas?
Sentaram-se os dois à mesa de estudo, e depois viera a esposa com os biscoitos. Ignaz carregava uma
expressão séria consigo, coisa que não notaria o outro se não fosse acompanhada de uma intrigante
placitude, um silêncio de profundeza e circunspecção. Mal se conseguia distinguir qualquer mudança,
porém, porque era muito sutil a ruga que ele trazia no longo rostro.
Depois de seu tempo, se abria entretanto; já aí ia a falar sobre os negócios, e comentava comedidamente,
reagindo à insistência do outro, a situação do mundo, do exército, da facção, e demais coisas afins.
- Não creio que seja lícito dizer que a guerra muda completamente os homens, meu amigo. - disse Ignaz,
um certo momento - Eu, em mim, só descobri coisas que desde sempre havia, e que apenas ficavam
soterradas ou pouco aparentes...
Com o término da narração, veio Schröder e contou, por sua vez, o seu determinado caso. Ignaz não era
particularmente entendido de ciência, mas por educação e observação da instrução, da condição do outro,
aquiesceu que a pesquisa era coisa valiosa, e até sublime.
- Então - respondera o oficial, depois de ouvir todas as historietas e todos os elogios de Ignaz, sem saber
que eram supérfluas bajulações -, se tu concordas na importância, e não obsta à modéstia, acho que agora
estava bem na hora de tu me pagares aquele meu favor, que te prestei há muitos anos, e que te levou a
estas veredas e carreiras de cá... Não achas?
Ignaz desviou o olhar, enquanto o oficial procedesse a lhe expor, com mais detalhe do que em qualquer
outra vez, que poderia mui bem se utilizar de alguém de sua patente, que mexesse uns pauzinhos, que
conseguisse uma publicação ou uma notificação ao ministério, enfim, a alguém que importasse.
- Pode até vir a ser um auxílio no esforço de guerra! - acrescentava Schröder, com meia honestidade e
meio pregoamento - Pensa, quantas guerras foram vencidas com base em inventos e revoluções técnicas?
quanto elas ajudaram? O valor é incomensurável! - concluía.
- Eu também fiz coisas que são incomensuráveis - redarguia Ignaz C., com um olhar de difícil tradução
-, e que sob pretexto algum seria direito acioná-las, sequer pronunciá-las. Ademais, a minha posição não é
nem tão alta assim... Mas tudo bem, verei o que eu posso fazer por ti.
Ao fim de uma semana, retornava Ignaz C. às imediações da fronteira, e reassumia quaisquer que
fossem os seus postos no oficialato e na ocupação de territórios recém-anexados na região. Nos meses
seguintes, visitara o oficial e transitara de Berlim às suas cercanias, e das cercanias a Berlim múltiplas
vezes; em todas as ocasiões postergando a instância do amigo, e dizendo ora que as partes não lhe davam,
nem lhe dariam ouvidos, ora que a patente não era de autoridade, ou ainda que o trabalho não lhe permitia
tempo. Em 1944, passava um último fim de semana na cidade, quando o velho camarada decidira, por
fim, lhe contar toda a verdade. Tornando-o ciente de toda a desgraça, pondo-o a par de toda a doença. E
incluindo-se aqui o seu desafortunado desfecho, o estágio mais tardio do suplício.
- ...Em não muito tempo, meu amigo, a coisa piorará tanto que eu terei de ficar deitado todo o dia. Em
não muito tempo, eu estarei morto, Ignaz! Morto! - suplicava, o inválido Schröder - Eu provavelmente
estarei em um coma profundo, quando isto me acontecer... Se ninguém mais que não tu não divulgar a
minha obra, ela ficará perdida para todo o sempre. Perdida! Perdida e sepultada em um subsolo
irreconhecível, um canto obscuro. Para sempre... Para ninguém mais ver! - exclamara.
Esta notícia funérea, dada súbita assim, chegou até mesmo a suscitar na mente do comandante de
destacamento, talvez um quase arrependimento. Um brilho pujante de alguma coisa nova ou antiga,
suprimida ou recém-formada. Chegaria a ser um filamento de escrúpulo? não, não poderia ser. Mas seja lá
como for, certo é que o militar e familiar da casa do oficial o levara à cabeça, enquanto se processava na
imaginação toda a suma de cenas rasteiras, e fragrâncias mórbidas que ele então já havia contemplado e
sancionado, suportado ou aceitado, como parte do seu ofício e da execução de misteres no oriente. Por um
momento se lhe despertou um belo de um titubeio. Um flato que desabita o corpo, uma coisa assim... Um
idílio breve de fresca e de folhas secas, lançadas ao vento do outono e guiadas pelo ocaso dos impérios!
Mas por último, porém, venceram-lhe as desilusões e o cinismo n'alma. Ignaz, como bem o poderia dizer
qualquer um dos seus múltiplos suplicantes, era um fiel nacional-socialista. Fazia o que tinha de fazer, e
não deixava que lhe perturbassem o juízo, nem os nervos; e nem muito menos o influiriam o pudor e a
moral, e certamente não o seu pudor e a sua moral.
Quando em 1945, pouco antes da Batalha de Berlim - o último combate daquela causa perdida -, fazia
Ignaz esta que seria presumivelmente a sua derradeira visita à cidade, buscava refúgio na casa do amigo.
Contava-lhe tudo o que havia sucedido no fronte oriental, e como que a essa altura já estava todo o
projeto arruinado. Uma contenda fadada à derrota, uma peregrinação destinada ao fracasso. Schröder
concordou com a visão do amigo, e aquiesceu que comemorassem aquele que poderia muito bem ser o
seu último dia, e abriram a adega; para isso, também trazendo Ignaz um disco de Bruckner, que colocara
para tocar. Puseram-se a ouvi-lo, a jogar e, ao cabo de tudo, embebedaram-se até não conseguirem mais.
Já era tarde da noite quando enfim saíra Ignaz, deixando o triste amigo e a esposa sozinhos, enquanto os
tiros e os estouros começavam a estremecer, e fazer rugir o longínquo horizonte.
Schröder apreciava ainda o disco e a sua música, como nunca antes apreciara disco ou música qualquer,
enquanto a esposa, dizendo-se cansada, subia já a escada até o quarto do casal, indo dormir ou tentar
dormir, se é que não era isto desculpa para alguma coisa mais ou menos infeliz, decerto penosa como tudo
aquilo. Schröder desenfadou-se um pouco mais com a música e, depois de determinado tempo, foi
realizar o mesmo procedimento. Quis se retirar para a área de estudo, movido por alguma sensação
estranha, misto de temor e de precipitação ansiosa, quando, subindo aqueles mesmíssimos degraus de
madeira a caminho do seu escritório, ouviu um breve barulho. Um sonido curioso chamara-lhe a atenção,
advindo do quarto do casal.
Esticara-se à entrada, e o barulho intensificara-se. Era um som chistoso, mas peculiar, e de origem muito
distinta. Aproximou-se com o olho bom à fechadura da porta, e viu Ignaz e a esposa unidos no leito,
debaixo de um cobertor rico e volumoso, de um fino algodão egípcio.
Ainda conseguiu distinguir um pedaço de conversação, quando por último se levantaram e se
recostaram à margem da cama. Dizia, o oficial de destacamentos:
- ...Pelo menos o teu fardo irá acabar; se todos nós morrermos hoje, ou amanhã, não terás tu de aturar
aquele ensandecido desfigurado. Tenho ainda alguma estima por ele, sabe-o, mas não se pode negar que
ultimamente é só isso o que se tornou. Pouco lhe resta da sua original pessoa.
- Virou completamente o juízo com essa história de ler e de escrever - replicou a esposa.
Schröder retirou-se pasmo. Ocorreram-lhe mil reações e mil tenções, enquanto lançava os olhos de lá
para cá, e daqui para ali. Olhou para o alto do teto arqueado; ouviu a música tocando, rugindo o final do
primeiro movimento daquela oitava sinfonia - a apocalíptica, do compositor de Ansfelden -, enquanto
caíam as primeiras bombas a distância, e estremeciam as janelas dos corredores até a sala. O oficial
espiou por uma delas. Viu a cidade pegando fogo: os telhados ardendo esburacados, e os tijolos e paredes
cedendo e tombando-se a tudo quanto era lado. Pensou que era tudo uma enorme lástima; pensou que,
naquele momento de indizível horror e dificuldade, devia alguma coisa à sua nação e ao seu povo, mas
olhou para o lado, um curto lapso, e rapidamente dera pelo erro. Ali todos atentavam somente aos seus
próprios instintos, pensara Schröder. Aos seus próprios prazeres e às suas próprias escusas insólitas. Uma
barbárie! era o que era! Era este o erro daquele país, e de seu estranho povo. Uma reviravolta completa
em caráter... Um caldo primordial, no qual tudo se derretia; se transformava em vontade primitiva e
liberta, animalesca e incontrolável, depois de séculos de impulsos comedidos e de progressos ordeiros,
que o fizeram passar de um punhado de principados e ducados, a nada menos que o próprio coração da
Europa! Não era Schröder que virara o juízo, não... Eram todos eles. Todos estavam loucos, e loucos bem
na sua frente.
Depois de tudo contemplar, virou-se languidamente. Nunca se sentira tão triste. Dirigiu-se ao seu
escritório, e pôs-se mais uma vez a estudar e a ler os seus livros, enquanto os tiros de metralhadora
soavam ao longe, as tropas aliadas e pátrias lutavam por Berlim, e destruíam um a um, todo resquício de
uma outrora rica e pujante capital. E em tudo isso a música tocava! as bombas explodiam; e os gemidos
dos amantes intensificavam-se!
V. A laranja

A minha filha era a minha flor. Vinha destinada a arrebatar de mim toda solidão, e fui justo eu quem a
matou. Matei-a contra as exortações da mãe sobre a pétala, e naquele estado mesmo em que não se
distingue embrião de uma espécie da de outra, ou o homicídio mais perverso - vejam bem! - da simples e
pacata destruição de um conglomerado de células. Fiquei aborrecido, incurável, cabisbaixo e abatido.
Talvez não seja exagero algum dizer que me comportava como amnésico. Já não me lembra aqui na
cachola um só dolo que a houvesse feito aturar. Entretanto, sabia-o bem, e sabia como é que se dera a
coisa toda. Passamos por brigados. Eu, alienado, inconvencível. Ela, amarga e vítima. Vítima a menina
fora, decerto. Brigávamos conquanto respeitássemos e admirássemos um ao outro. Em mim, sei que por
sua vez sempre vira um motivo mais para continuar. As desavenças eram momentâneas, mas a nossa
união, a capacidade desvelada em nós mesmos para o convívio, a coabitação, a conjugação matrimonial e
a família, era o que havia de traduzir-se em uma insistente procura, um necessário arranjo. Pouca certeza
encontrei em mim mesmo, do seu querer a mim ou não, mas do pouco que vi, e que em mim rutilou, fito
abaixo da luz de uma lua, cri que a menina ainda estaria a me amar. Não deixava de ressaltar que era coisa
por demais difícil, é verdade. O futuro daí em diante era incerto. E, ainda que de coração não nos
buscássemos - além disso, nos distanciássemos -, nominalmente, continuávamos a namorar. Por mais que
quebrada, estilhaçada, e desfeita e refeita em finos pedacinhos, porquanto era o primado de uma
desforrada pétala, subsistia ainda assim a nossa relação de outrora.
Isto no verão de 1979. Pouco depois, finalizava a compra de uma casa em Maricá, com um vasto quintal
e um largo pomar de laranjeiras, que se estendia pelo sopé de uma colina. No mais, ficava à beira de uma
ruazinha de terra mui pitoresca. Tinha também uma piscina, e um amplo terraço elevado, de onde se
poderiam bem observar a vida e os labores da gente local, que ainda tinham um quezinho de ruralidade.
Mari havia ficado de passar alguns dias comigo, enquanto esta fosse a minha nova morada, porque jurava
a todos os meus conhecidos dar um festim no primeiro dia em que aqui pusesse os meus pés. Assim, pus
os pés em casa nova, e cá estou, mais uma vez. Cumpri a minha promessa, que a todos jurei, mas não veio
Mari ao meu encontro, não. Brigamos de véspera. E sabe-se lá que tipos de coisas atravessavam a cabeça
da boa menina, com os seus negros e bastos cabelos de Moreninha, quando lhe ocorrera esta terminante
decisão. Todos os meus amigos, e amigas, nisto também, vieram à minha festa. Saibam vocês que fora ela
a única exceção.
Enlevavam-me os meus 25 anos então, e satisfazia-me com haver finalizado o curso de direito
recentemente, com prova na OAB e tudo o mais. Neste dia, como vocês já de mim ouviram, dava a minha
festa; convidava todos os meus amigos que pudessem comparecer a este lugar tão remoto, e longínquo da
civilização, e abria a casa com todos os seus chamarizes para eles. Lembro-me de que tinha a esse tempo
um Atari importado, três modestos sofás dispostos à roda de uma televisão de moldura de madeira, na
sala, e, em não distante local, mais para a esquerda, agora perto da saída para o terraço, uma tábula de
bilhar - e entre os dois uma larga e majestosa mesa de jantar, que havia de dar inveja até aos fidalgos mais
requintados de outrora. Reuniam-se aí uma boa dúzia de pessoas e, em se tratando de programa, no que
tange estritamente ao planejamento, testemunhávamos apenas um jogo de War - destampado já para início
de noite -, o qual misturávamos com uns goles e guloseimas de álcool, que chamávamos "bombardeios".
Uma adulteração na simples regra, impressa para poder comportar mais ação e transpiração, o de outro
modo austero jogo.
A mesa de jantar ficava colada a duas enormes janelas, que dando para a varanda e o terraço, por sua
vez retornavam à morada uma vista e um ar de verdadeira casa-grande, lugubremente iluminada à noite
de Lua cheia. Era este o cenário que nos acompanhava, e o teatro dentro do qual jogávamos e fazíamos as
nossas brincadeiras e sociabilizações. Depois do jogo de War, que se poderia bem dizer era obrigatório,
uns foram para os sofás, outros para a sinuca. Eu fiquei a toa, indo até a cozinha americana, em forma que
lembrava um grande bar, e logo encontrei uma moça de nome Laura, velha amiga de então. Nosso
relacionamento provinha da época em que morávamos os dois no Rio de Janeiro, quando éramos muito
jovens, companheiros de escola e até de andanças. Por muito tempo a quis, e tentei alguma coisa em
relação a ela, mas sempre me dispensava, a menina. Notem vocês, ademais, como invariavelmente os
meus sucessos para com o outro sexo se dão numa circunstância específica, a da embriaguez. O juízo, as
faculdades mentais rigorosamente sãs e avantajadas, vejam bem, sempre em mim foram um forte entrave.
É verdade, é esta a mais pura verdade. E demais lhes confesso uma segunda coisa. Nesta noite, por
desculpa de demonstrar a ela as marcas, os rótulos caros das garrafas auspiciosas de vinhos e de
champanhes, embriaguei-me não só a mim, mas também a ela, e com o único propósito de conseguir da
moça mais do que por si só me revelaria, a pobre da menina. Em matéria de sensualidade e de opinião,
aquele sombrear noturno trazia consigo algo de novo. Predispunha-a a se relacionar não só comigo, mas
com os outros, facilitando em muito as dúbias coisas. Mas não era isto suficiente, logo se supõe...
Quanto a isso, se imagina alguém que cresce em mim, agora que tanto tempo se passou, a semente
amarga de um posterior arrependimento, pode ficar sabendo que imaginou errado, meu caro, lúcido
colega. Não guardo comigo nenhum remorso ou satisfação, já que simples efeito fora - o da vontade e o
do sexo, ou o do álcool das botelhas. Culpe a natureza ou o homem - ou mesmo a divina substância, quem
quiser -; já eu, acrescento que a garota estava embriagada desde o principiar daquela festa, e vejamos no
que vai dar esta fina história.
Recordo-me de trepar numa cadeira, empunhar de uma vez, descer de outra um montante de bebidas,
que mostrava a ela com um deleite tal. Talvez inconscientemente destacando como eram caras. A moça,
que de cabedais era consideravelmente menos provida do que eu, segurava na mão cada uma delas, e
analisava com a penosa cobiça de uma riqueza impalpável os rótulos e as marcas subidas de vinhos e de
espumantes. Daí cri outrossim que, uma vez revelado de início o frontispício da minha grande casa, e
como agora acrescentasse por cima o carimbo e a licença daquelas veneráveis indústrias, nacionais e
internacionais, sobressaísse um efeito talvez ainda mais poderoso que o do próprio líquido, que fosse o da
ostentação e o da vaidade.
- Olhe essa aqui qual é que é - e passava-lhe uma cachaça.
Ela visualizava bem o recipiente, invejava a distinção, contornava as estampas, tateando-as com a mão,
e arrastava-a de um lado para o outro. Aprovava com ânimo mesmo os mais irrelevantes detalhes, e
depois dizia:
- Cachaça Corisco. Meu tio-avô bebe dessa aí! - e dava uma risadinha, abafada - abafada e intercalada
com um soluço.
A distância, não se podia ver nada. Nem um tracinho suspeito de intenção, sequer. Havia de parecer uma
conversa absolutamente usual a qualquer um dos muitos que nos observassem, e, nada obstante, o efeito
por mim exercido sobre a mocinha me levara adiante. Cogitei-lhe patentear toda a grandeza da minha
posse, toda a magnanimidade da minha casa, com o qual desci à piscina e seguimos percorrendo o
quintal, em direção ao pomar de laranjeiras, que era este, sim, o suprassumo de uma inteira moção dos
espíritos, posterior a todo adiantamento.
Vagamos por entre os pés de laranja e brotos de laranjeiras vultosas, cheias de frutos, folhas. Nenhuma
flor se espertando à vista. Íamos pisando a grama a pés descalços, bulindo pelo caminho, cortando a rua
de terra em meio à relva e contando anedotas enquanto empunhávamos bebida e dois frígidos copinhos.
Logo, atentou alguém à complexidade de um nariz. Um círculo, numa atração, donde se insinuou uma
sombra de volúpia, que jazia fixa sobre as duas bocas, e nos beijamos, rápido assim. Coisa repentina de
um desatino, fomos então caminhando tranquilamente, por baixo da copa daquelas supremas e indistintas
árvores, até alcançarmos a costa e os rechedos de uma prainha, uma caverna de cristais no lugar de um
castelinho qualquer de areia.
Depois de instantes de escorregadelas, e de intercalação mútua com os dois pares de braços, pegou ela
uma laranja diretamente da laranjeira. Coisa que se deu subitamente, e além disso me parece que ao gosto
dela, porque contrastava o fruto apanhado com todos os outros que ali estavam. Esferas diferentes,
redondas e rugosas, de uma espécie distinta. Largou tudo no chão. Em seguida, cortou-a ao meio com um
canivete, e pôs-se a chupá-la. Pegou ainda uma outra e, entregando-a a mim, cheia de incertezas, a pobre
da menina, instruiu-me para que eu fizesse o mesmo. Cortei-a eu e, quando fui espremê-la, enfim me
colocando a prová-la, esguichou na minha cara um acídico raio de substância amarelada, que me pôs
recuando num piscar de olhos.
- Ah... Ai! - exclamei.
Já ela, riu docilmente quando o viu acontecer comigo. E riu também, mas de uma maneira distinta,
quando eu voltei a chupar, agora com notório êxito. Buscando encantadamente o lume dos meus olhos,
acrescentara, aliás, um bocado bêbada de antemão:
- A Lua dispensa o seu brilho sobre nós, Miguel! - e arfava, ao dizê-lo - Sinto como se a própria
superfície enrugada do satélite descesse ao escuro, ignoto manto da Terra. Cobrisse-nos com os seus
sulcos! com as suas ranhuras, e com o seu ventre livre e indistinto... Quantas cavernas encerrarão os
íntimos da Lua? - perguntava, pasmada dos signos e admirando-se das distâncias - Quantos segredos
ocultos ali hão de se fazer revelar? Quantos desenhos, quantos relevos lúgubres e contínuos hão de existir,
salvaguardados por baixo dos orifícios e crateras desta cinzenta pelota? deste majestoso e feminino orbe
dos espaços, dos vazios?
Eu, por mim, apenas deixei estar. Fiquei calado. Contemplava com a mente inquieta o significado
daquelas conclamações, daquelas divinas lutas celestiais, sutis palavras da minha distinta companheira
quando, por isso continuando desatento e maquinalmente com a moção anterior, de sucção, uma hora ela
se foi distanciando e parando em sua relação comigo, sem que eu desse pela causa. Olhando para os meus
olhos com uma nítida expressão e parca satisfação, diante dos meus incautos movimentos... fora aí que,
enquanto tudo isso me acontecia, como que me tirando a um transe, um estado hipnótico - e enquanto me
censurava a inércia a menina -, dizia ela assim:
- Essa é a sua primeira vez, né? - e deixava escapar um dúbio ar pelas ventas.
De envolta com essa precipitação, acabei por sentir mais vergonha do que surpresa com suas palavras.
Interrompi o que estava fazendo, imediatamente levantando a cara, indo ao encontro dos seus olhos -
volvendo mil indagações e mil angústias em reação àquele descaso. Vi que ela não me desejava
transtornar, e nem sabotar, entretanto, uma vez que em resposta levasse ao rosto uma expressão não muito
mais precisa, mas lhe faltando uma certa cautela. Decerto formulasse o comentário da boca para fora. Ao
tentar vir e pedir-me desculpas, ainda, que não sei se eram novo e convindo escárnio ou não, fiz um gesto
com a mão afastando a sua - sinalizando a pouca necessidade do ato -; mas daí, então, com toda a
perfeição da coincidência e da sincronia, era bem num instante vindouro que eu olhava para trás dela, e
via um vulto esticando-se na varanda, na direção do nosso local. Um vulto muito familiar me aparecia,
que simulava observar-nos a degustação do fruto e do seu perfeito insumo.
Ainda um pouco abstraídos e próximos, eu olhava em direção à casa com a fisionomia em alerta, o
queixo cravado no ombro da menina, e via naquela varanda-terraço, em posição ereta, o bom e velho
Moritz mirando na minha direção, reclinando-se. Chegava agora, decerto, porque não me lembrava tê-lo
recebido quando primeiro começara a festa. Grande Moritz! sempre a brindar atrasado em todas as
baladas! Sempre a comer a última fatia do bolo! O seu comparecimento tardio era o resultado de
inveterados costumes. Parecia estar-me procurando, aliás... Trazia consigo uma cartinha, que segurava
com a mão esquerda - era canhoto -, e ainda bem fechada; sugeria-me, deste modo, que não era o escrito
para ele, mas sim para outra pessoa.
Na escuridão da noite, não pude vê-lo direito ou a sua sombra, em lugar que estava; a incidência da luz
ocasionava um brilho por trás de si, ao redor de si, de maneira tal que não conseguia nem lhe distinguir a
face. Via só os contornos característicos, do indivíduo e do objeto que trazia em mãos. Depois de
certamente me haver observado um curto instante, lentamente deu meia-volta, e não sei se chateado,
cheio de desilusão, desapontado ou amesquinhado a meu ver - porque consigo antever reações suas tão
diversas quanto o riso e a desaprovação, advindas da observação da minha conduta -, foi-se dirigindo ao
longe; retirando-se de toda a cena até se perder por imagem, mesclando-se efetivamente com toda a
multidão insólita que havia ali, por trás de si.
Um minuto depois, e ao contar de uma marcação dos lentos compassos, eu ia ter com ele. O invólucro
era da Mari; havia dado ao mancebo com certa urgência, e pedia que o repassasse a mim tão logo mo
pudesse entregar. Corretamente assumira a menina que a mensagem chegaria antes por um amigo, do que
se metida nos Correios. Abri-a imediatamente; deixando todo aquele disparate duvidoso para trás, e
voltando-me com o pensamento somente para a minha pequena, doce menina Mari. Não conhecia ela
ainda o meu novo telefone, e nem o meu fax. A única opção que tinha de comunicação era aquela, e a
inconveniência do meio tomara a sua justa peagem.
A carta continha uma remessa de perdão. Ainda, fazia um apelo definitivo ao encerramento das mágoas.
Reconhecia as dificuldades do cativeiro, e diminuía o dolo ante os juristas do amor. De tantas e mais
tantas induções, e totais levantamentos da ternura, e do bem-querer, a única coisa que não prognosticara -
e nem poderia ter prognosticado, com efeito - era o que sucederia à prescrição da flor. As flores, como
mui bem se sabe, natural e eventualmente decaem, viram frutos. E os frutos da árvore entorpecem Adão e
Eva - e como justo Adão e Eva, portanto, nos maculamos - eu e Laura - junto às folhas e luares daquele
enorme Jardim do Éden, mundano e tropical. No qual a outra nunca jamais viria a estar, nem nunca sequer
chegaria a ver...
Pois é isto: proporcionalidade e razão! ei-la aí, a máxima de fato. Indubitavelmente, a flor de outrora nos
separara por mero capricho; mas já aí veio um outro requinte das ocasiões, e quase nos unira de novo.
Conclusão: os astros não passam de soberbos relógios - e os seus interiores são os mecanismos.

Você também pode gostar