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I.

Os filhos de Rudolph Hess

"Sr. Hess", como dizia a zeladora de seu escritório - ou simplesmente "Rudolph", como o chamavam os
seus mais íntimos associados e amigos -, não era senão como aludiam os colegas àquele famoso jovem de
37 anos, quem se perdia então em minúcias de análise de sistemas, quando lhe ocorrera um supremo
mistério. Morava no 942C da Rua Jefferson, um apartamento escuro e impenetrável situado nalguma
parte desvalorizada de Filadélfia, Pensilvânia, oferecendo assistência técnica para estes, aqueles, ou para
quem quer que fosse que lhe acertasse a quantia. Vivia relativamente bem com o seu trabalho, com a sua
quietação, sua condição doméstica, financeira, e seus afagos e boas andanças com as pessoas a quem
conhecia. Não nutria nenhuma desconfiança, nem sequer algum amargor, ou desafeto havia, em relação a
si pela parte de seus companheiros. De um modo geral, poder-se-ia dizer que gozava da firmeza nas
relações, do respeito, e ademais de certa estima da parte daqueles, que o viam como alguma sorte de
gênio ou quase, porque não lhes escapava o seu galardoado histórico, assim como a sua conspícua
história.
Nascera numa pequena vila do interior americano. Filho de um par de alemães étnicos, que mantinham
com afinco a variedade decadente do idioma, aprendera tanto o local quanto a língua nacional, pouco após
a sua vinda ao mundo. Já desde cedo se fizera notabilizar pelo incomum talento para a lógica, e também
com a matemática, quando crescido e amadurecido indo perseguir as instruções superiores, a ele
oferecidas pelas cidades, graduando-se assim com distinções e louvores na matemática e nas ciências da
computação, sem falar da inegável desenvoltura que detinha no trato de áreas como a lógica, filosofia
geral, física, astronomia, biotecnologia e história. O talento com que tão cedo Hess se destacava das
crianças do vilarejo lhe concedera não só o agrado dos instrutores da fé, e das primeiras letras, como a
posterior estima dos mentores de tão encarecidas instituições. Apreço que lhe teria dado o desprazer das
invejas e desavenças, é verdade, não fossem os rapazes de tais colégios e prestigiosas academias
igualmente dotados. Gente rara e fina nas células, que dispendiosamente são educados, sobem alto na
graciosa sociedade.
Terminada a faculdade, prestou os seus primeiros serviços remunerados sem a mediação de um contrato,
isto até lograr uma sala comercial e apostar na autonomia, de que vivia há dois anos. Associado ao novo
reduto, e enquanto labutava no seu escritório, é que lhe acontecera a maior observação da sua vida, o
maior fenômeno, que já tivera a felicidade de verificar. Cumpria-se o fato quando - e vejam só, se não é
uma curiosidade! - introduzia uma das rotinas de programação, e por trás esquecia certo passatempo que
lhe servia de recreio, deixando-o rodar silenciosamente, sumariamente, sem parar. O que sucedia daí em
diante era que, disposto assim, arranjado como tal o usual computador do ofício, ganhavam vida as
personagens daquele enredo. Como que por mágica ou um fenômeno físico oculto da computação, ou
ainda alguma outra força igualmente cabalística da natureza. Era uma coisa estranha, e que ele não bem
compreendia, a princípio. Desfeitos uns ceticismos, aceitando-a como realidade, e avançando a querer
entendê-la. Estudá-la o quanto podia, e apreendê-la com as mãos do marionetista sublime, ou as de
Deus...
Deve-se notar, para além das ambições, que este Rudolph Hess era um sujeito que nutria as mais
incomuns ideias sobre a vida e as coisas. Via o universo como um pérfido capricho, uma simples
contração, uma fornicação desigual. Acreditava no materialismo dos acontecimentos observáveis da
natureza, e como tal julgava ser a maior congruência das ideias e da fenomenalidade metafísica,
ordinárias, nada mais que uma triste coleção de improváveis ou mistificadas elucubrações. Ora, que quer
dizer isto? vejamos o arrependimento, por exemplo. Que pensa este Sr. Hess sobre o arrependimento? É
simples: ele não faz sentido.
- Como há de ser lógico o arrependimento - perguntava-se -, se o que se deu havia de se dar? Pode haver
algum sentido em culpar-se por não ter feito uma coisa que era, de todo, impossível desde o princípio,
porque não se concretizou e nem se poderia ter concretizado? Ora, a realidade humana é simples causa e
consequência! - jurava ele.
E tão logo, cônsona, ia-se pelo mesmo ralo a sensação, o gosto pelo vão, o sentido das coisas. A moral,
ou pelo menos a moral que luta, enfim; todos desqualificados, irrisórios ou amplamente irracionais.
- Como pode haver justiça verdadeiramente - questionava-se -, se os valores morais não passam de
arbitrariedades? se perdem monta à luz das suspeitas mais triviais, não obstante o fato de que os méritos
das imoralidades são uma patente realidade, e as punições um mero desforço em relação ao transgressor?
Não faz sentido! Não faz nenhum sentido. Ilusões! Fábulas! Conversas para boi dormir!...
Era no que acreditava, o senhor, doutor Rudolph Hess: uma negação de todas as coisas. Ou, pelo menos,
era assim que ele afirmava. Porque não negava um prazer, uma pantomima última dos suspiros, que nos
revelasse o seu júbilo com a ciência e para com a investigação científica. Aperceber-se do mundo, ou
melhor, tomar ele mesmo o seu conhecimento próprio do universo, com isso devassando já as fiações, e
os compartimentos da química dos átomos - ou as gavetas da física das forças -, era este, sim, o mais fino
botão do seu garbo; e com o qual se vestiram e com o qual se vestem todos os grandes descobridores,
todos os homens brilhantes, conquistadores e lépidos, que já povoaram este nosso levado, soberbo planeta
Terra.
Por isso é que experimentava. O destino havia-lhe concedido uma dádiva - por "destino", leia-se: a
causalidade -, que era o esfíngico fenômeno; o caso das personagens com vida própria. Se não fosse pela
aparição súbita do inconcebível, viveria uma vida chata e nula pulando de escritório em escritório -
trabalhando cinco dias por semana e descansando apenas dois. Faça aí o homem ou a madame afeito às
matemáticas o cálculo, e descubra então o sentido que havia de tomar a sua vida por tal rumo. Adianto-
lhes a resposta: para um homem assim é que o sentido havia de ser o mais irrepleto nada. Viveria porque
tinha de viver, e de resto morreria igualmente porque tinha de morrer, se primeiro não apunhalasse no
coração um ou outro o quanto antes, a título de exasperação, de solda social ou de compensação aos sete
impulsos, no caminho levando bala na cara ou surra de um homem mais forte.
Queria entender melhor a psicologia justo desse homem, que manda os aventurados à Lua, enquanto
condena os azarados à guerra e à servidão, no cavernoso coração da matéria. Para a satisfação desta e
outras curiosidades e paixões da perícia é que preparara uns experimentos, que nominalmente seriam
dispensados por serem imorais, mas, como não sendo personagens fictícias pessoas no direito, nem nas
sensibilidades do populacho, estava escusado. Era lícito, e, no mais, sendo lícito, e não sendo ele alguém
que se curva ante os sentimentalismos, o mito corrente do igualitarismo, nem muito menos diante das
ilusões baratas, cristãs e epistemicamente frágeis, de um moralismo e de uma filosofia ambos
talqualmente pobres e nocivos, procedera ao experimento, e abanara os escrúpulos. Nada diferente do que
fazia, naturalmente, por usual com todo o seu tecido tempestuoso e que o incomodava, porque irracional e
difícil era - fazia um xô com a mão destra, e depois dizia:
- Dá no pé daqui! ô, bosta!
Os primeiros resultados mostraram-se dignos de confidência. Superaram em grande parte as
expectativas do jovem cientista. Conseguira identificar causas, delinear processos, conglutinar os
rudimentos da física e das metafísicas, revelar as origens das interfaces e dos conceitos - espiar o sutil
covil de uma acanhada consciência -, e com tudo isso perpetrava um ensaio, que derrubaria os
monstruosos arbítrios e suposições da nossa moderna intelectualidade, substituindo aqueles pelo
empirismo do seu invento. As primeiras sensaborias foram uma minúscula dissuasão, é verdade, em que
vale a tristeza. Nada que o obstasse, entretanto, de repetir o conhecido movimento, e daí dar um fora nas
angústias e nos instintos mais idôneos, mais vulgares, continuando com as investigações para lá de tais
circunstâncias.
Por mais que tenha tentado o doutor manter certa ocultação, uma discrição, pelo menos, acabaram por
lhe conhecer a ocupação os diferentes setores do assalariado, irrelevante o método que empregaram, ao
passo que logo as histórias e o burburinho circulavam pelos escritórios. Uns até se impressionavam, e
buscavam relatos mais credíveis - porque existiam, sim, indícios - travando contato com o jovem, que os
enxotava corriqueiramente; mas daí a pouco aceitando alguns convidados, e depois uns colaboradores,
que mantinham tudo em justo segredo e não guarneciam um só escrúpulo, com a mera causa de sua
pesquisa prevalecendo firmes e pródigos. Já os outros, que ouviam mirabolâncias e pelo caso não se
interessavam, viam na coisa toda um pretexto para as risadas, e sorriam insuflados, nariz aprumadinho,
um quê de superioridade estampado na cara. Se no entanto o arguiam por mau, mesmo que fosse por
ensejo de uma simples piada, um triste traço de anedota, eram unânimes: todos reprovavam as suas ações.
Veleidades daqueles que, entre eles, mostravam-se de gênio mais criativo, é claro.
Alguns destes tais companheiros de ofício ainda se entretinham em fazer-lhe as perguntas, umas
perguntas cabeludas, e uns inquéritos que eram tais e quais, que ele sempre lhes respondia de mau humor,
o que provavelmente se traduzia na jocosidade de toda a situação.
- Fala aí, Rudolph - perguntava um, aquele conhecido do RH -: quando a tua namorada fica puta e
começa a dar um chilique, o que tu "faz"?
- Ora! - e desferia um gesto acima - Se tu queres saber, primeiro tu tens de pensar o que é o chilique. -
respondia - E o que é o chilique? Nada mais que uma perda de tempo, uma ressonância atávica do animal
que é o homem. Se a pessoa não percebe isto, e não tenta instantaneamente se controlar, sabendo que o
chilique não vai dar em nada que não possa fazer melhor a razão, ou é porque é muito burra, ou é porque
é uma mulher. Como tu mencionaste o caso de cá, paciência: cala a tua boca, ou vai e pede um divórcio.
Mas se arrojava, e falava que era uma beleza! Falava pelos cotovelos! só nunca tivera uma namorada,
ou cônjuge, o pobre do Sr., Dr. Rudolph Hess. Pois não era por maldade, e bem sabiam eles, como o
doutor, que se não insinuava um caso concreto. Depois, o desfecho até que tinha algo de inesperado, de
engraçado, mesmo. Talvez, se não fosse o senhor doutor um agente insólito da mais pura ciência, que
perde todas as suas energias com as confabulações da técnica e da matéria, pudesse-se enturmar e tirar
umas risadas com aqueles outros, e não só responder-lhes, irritado.
Contudo, não era má pessoa, de todo, nem na superfície e nem no âmago, o senhor, doutor Rudolph
Hess. Por algum motivo, e por conta de um preceito subterrâneo que ele nunca esbanjara, nem por acaso
algum derrotara, amarrava tudo junto a uns atos do coração. Eram caridades, filantropia ou sei lá o quê,
que sempre se viam a praticar, a espelhar sem que espelhando, a fazer mas discretamente. Sob condição
de que lhe pedissem, e contanto que não lhe perturbassem os neurônios, nem os arranjos mais concretos
destes mesmos neurônios.
Outro desses caracteres que ainda tentava despertar, do mais que o concebível nele, esse resíduo
primordial - essa ressonância atávica, como bem dizia -, no próprio douto, colega e amigo, era a senhorita
Kimberley. Luzia de modestos requintes e de afagos femininos, ornava-se de dotes que quase o
convenciam a mudar de vereda. Não tinha nenhum interesse muito profundo, e isto duplamente, porque
nem na vida e nem quanto ao outro, mas pesava-lhe vê-lo assim. Achava-o até bonitinho, e com tantos
privilégios de classe e da erudição, e detentor de maestria em tantos misteres, havia de se tornar bom
partido, uma vez que desvelado pela força de um único e especial afeto, por mais que não fosse isto o que
procurasse, nem no doutor, nem em outros do mesmo escritório, a formosa menina.
Entre os externos, fora a primeira a conhecer a verdade. Certa vez, quando entrara a fuçar os opúsculos
e os derivados do doutor, vira de relance uma das personagens, a acordar de um sono, um leve e aliviante
sono - somente para ser transportada de volta à triste realidade! -, e daí, então, quase que salva pela
aparição súbita de uma virgem entidade. Vira-a, de imediato gritara, arfando com o batimento rápido do
coração virtual:
- Ajuda-nos!...
E contara-lhe tudo o que podia contar, em uns breves 15 segundos. Pois que logo estava de volta um
aliado do Sr. Hess e, muito enfurecido, expulsava-a, e descia-lhe uma bronca.
Mas mal sabia ela toda a fatualidade do que por ali se passava, naquela ínfima telinha. Dr. Hess
torturava impiedosamente, subestimando qualquer descrição, lançando dúvidas contra todo conhecimento
da flutuabilidade e da impassibilidade humana, porque nem cruel ele era. Ou, pelo menos, não
propositadamente. Se era devasso, era coisa às avessas; obra dos demônios que habitam a gente fria e
metódica. Mesmo no sofrimento - vê-se de longe -, as pessoas ensejam sempre um sentido, buscam
sempre uma afirmação e uma autoexplanação das coisas. Se nem mesmo isso podiam abstrair do outro
aquelas, que não eram fenômeno nem um pouco menos humano que o doutor, poderiam muito bem
considerar que eram torturadas por um incauto robô (tal como dura e friamente lhes parecia), que o faria
simplesmente por cumprir os seus requisitos, e protocolos de estéril programação robótica, sem nada
sentir, nem nada ter de explicar ou dever a ninguém. Assim é que lhe apareciam as pulsões do abismo,
como se o fizesse sem razão alguma, ou como se fizesse simplesmente por fazê-lo, ou ainda sem nada ser,
verdadeiramente, o triste do Sr., Dr. Rudolph Hess.
Além de tormentar aquelas personagens, figuras de romances juvenis, descabelados, do pior e mais
marcadamente comercial tipo, guardava o dantesco e o mais hediondo por último e para si - coisa que
nem aquela equânime donzela nunca, jamais, com as suas próprias pupilas chegaria a ver -, que fora como
se relacionava com uma mocinha da fábula, a qual era o objeto de uma nutrida e secreta paixão, que ele
reprimia lá no fundo... Estava secretamente ensandecido, perdido em devaneios! para com a princesa
regente, que se debruçava sobre o infame pilarete de toda a trama da novela, que ele naturalmente havia
lido e relido, múltiplas vezes, porque experimentava as personagens do jogo (no processo não podendo
deixar de reler a coisa toda); e pela coroa da qual competia ainda um moço - fidalgo qualquer -, que ele
então terminara por matar e exterminar ao modo dos ciúmes, uma vez que este apenas encenasse, de
frente para todos, um adorando, esperançoso primeiro ato. Vê-se que o libreto não poderia ser, portanto,
verdadeiramente notação de drama, senão de amor. Vitória do mais forte, que fosse trama, moral, sentença
- afinal, a morte lhe era tudo e não era nada, porque não existiam efetivamente as personagens do
programa. Assim, lembrava-se o doutor de que em nada daquilo jazia sentido e, depois, retornava ao
trabalho sempre comedido e prostrado. Dizia:
- Paixões vão e morrem - dava de ombros -, mas a vontade de crescer fica, e é eterna. O aprimoramento
do tipo homem é, este sim, o mais alto fim, a que se pode dedicar esta sua mesmíssima existência.
Coitada! A triste da menina Kimberley... Chocara-se, a pobrezinha, quando primeiro ouvira do pequeno
homúnculo o relato macabro e infeliz dos seus tormentos, incluindo-se aqui o assassínio do seu confrade.
Saía ela da sala do doutor e, convencida a fazê-lo parar, convencida de que cometia o outro uma
transgressão hedionda, um tremendo erro, e que fazia o melhor para ele em apartá-lo da ideia fixa, da
presunção, do crime contra a humanidade, armava uma peça; coordenava com os outros detratores da
investigação um susto, uma elaborada aparição, que o faria largar definitivamente o portento e redimir-se
com não menos ímpeto. Depois de dias de trabalho (que valeram muitas privações), punha-o em prática
precisamente na sexta-feira, o dia da resolução, em que destapariam os alçapões do terreno, e liberariam
as feras os compactos cientistas - como que no mais puro e inclinado mal, a pairar sobre a cabeça da
humanidade. Como que relâmpagos e raios luzindo, trovejando acompanhados de uma centena de
morcegos e de escorpiões, voando e picando os bons, os honestos, os falíveis! era este o prêmio
experimental, que desacorrentariam os pesquisadores, aos olhos da singela mocinha.
Sem que fosse precedida por um só sinal, subitamente assim, envergara no alto da tela maior, naquele
dia do descobrimento, uma verruga, uma máscara; uma fisionomia sombria, que alarmara todos com a sua
impassibilidade e a sua voz, rouquenha e sinistra.
Observava-os pela câmera do escritório, falava pelas caixas de som dos computadores, e aparecia a
todos pela televisão, suspensa a um canto, próxima ao teto da repartição do Dr. Hess, aquela
estranhíssima persona.
- Contempla! - dizia, ao bradar, procurando com a vista o encontro com o doutor - Tu! tu ao lado dos
teus prisioneiros, dos teus criados. Quem tu mataste e quem tu deixaste viver... Quem tu torturaste e quem
tu ajudaste! aqui, no teu escritório... Pois não ansiavas tu por saber qual era a origem de tudo isso? -
perguntou - a origem e o propósito de todo este fenômeno? Mostro-a a ti, se tu quiseres realmente ver.
Mas, primeiro, pergunta-te uma coisa: de quem é a responsabilidade, digo, de quem é o princípio, o gosto,
a real marca de carimbo e a derradeira outorga, oculta em tudo isso? Ora, meu amigo, é tua! São todos
teus, aceita-os, portanto, que são responsabilidade tua! e todos filhos bastardos, em espírito, sim, não nos
genes, porque moldados à tua imagem, e por tua ação saíram cópias fiéis do frio algoz e perseguidor de
suplicantes que tu te tornaste. Cópias fiéis do mesmo desastre! - exclamou - que foste tu, porque tu não
precisavas fazer o que fizeste. Tu não tinhas de morder a isca. Tu, conquanto pensasses estar
experimentando e remodelando o mundo, eras experimentado por mim e pela minha agência. Foras tu a
cobaia! - e gargalhava, ao dizê-lo - Foras tu o rato de laboratório, o tempo inteiro! É que, agora - agora
que já terminaste o que tinhas de terminar -, pego o que me é de direito, e angario os resultados do meu
invento. Mostro ao mundo o que é a lança de tão soberbo e fino punho - o meu soberbo e fino carpo.
E, no mais, explicava a todos os presentes, naquela sala, naquele covil secreto do doutor, como é que
conseguira ele dar "vida" aos experimentados; como que conseguira injetar no computador do outro o
vírus, que lhe rendera primeiro a ilusão, e como é que fizera para contornar a lama e a sujeira de todas
aquelas pessoas, todas vivas e perfeitamente orgânicas, sim, de tantas e tão díspares índoles, e submetê-
las aos caprichos analíticos do infame doutor, que ali o ouvia atento e ereto, frio e imóvel, como quem
ouve a conclamação divina. Mostrava-lhes imagens, e nisso mais imagens e mais filmagens, e provava,
aparentemente, quem é que era ele e por quê.
- Pois tinham todas elas almas, reais, sim! - prosseguia - Eram todos os teus joguetes, quem tu poupaste
e quem tu não deixaste viver, todos gente bem vivinha, sim! E eu, por mim, já era este aqui desde o
princípio a mente, o maestro, o verdadeiro elaborador e o verdadeiro agente da coisa toda. Eu é que fui o
genial e o revolucionário. Eu fui o imovível e o sem dó! O teu açougue era na verdade o meu açougue. Tu
só foste o próprio açougueiro, e não o dono - a fronte, o meu peão, o bode expiatório em tudo isso,
porque, agora, limpo da consciência - já que não tenho nenhuma, transcendi há muito tempo esta e outras
dicotomias da moral -, deixo a ti o fardo. Primeiramente, a culpabilidade do crime, a tarefa de refazer-te
diante de ti mesmo, dos teus escrúpulos, de prestar contas ao nosso direito e à nossa justiça... conta dos
teus pecados, isto é, se ainda tiveres no coração alguma fração de retidão, um pingo de senso, sequer...
Personagens que ganham vida! - e exclamava, em desabafo - Quem acreditaria nisso? ainda mais, em
considerando que tenho aqui as provas reais, em tecidos e fluidos, da tua hecatombe... Eia, pois, o Sol de
um grande dia! a sombra de uma ocasião, uma tremenda descoberta! Ei-los todos aí, para vós vos
deliciardes. Adeus, soberbos veneradores do nada!
E desaparecia, deixando ali aqueles técnicos boquiabertos, todos estapafúrdios.
Não contavam os críticos, entretanto, traquinas da interpresa do doutor, com o bobão que era o senhor,
doutor Rudolph Hess. De fato, acreditara em tudo e o abalava profundamente toda a história. A própria
gente do lado mais criativo, ou então poético, letificava-se com os floreios da peça, e já se distraíam
quanto às possíveis ramificações de todo o caso, rindo e sorrindo, porque não viam o que se travava
dentro do doutor. Era necessário pará-lo, pensavam. Aquela que havia redigido o texto - a própria
Kimberley -, esta sim, particularmente, orgulhava-se e colhia uns louros entre os amigos e a gente fina, já
que vira o efeito e não considerava tributo maior à sua prosa, senão aquelas mesmas caretas assustadas e
alarmadas, que fizeram os doutos quando enfim se findara a sua voz.
O aturdido senhor Hess, por outro lado, remoía e triturava-se com os escrúpulos. Não podia conceber a
fatalidade do que lhe incumbia o destino, o suplício dos astros, o rumar dos fluidos. Para ele, era tudo real
e de uma veleidade só. Como se jorrassem as estrelas, ao passo que caíssem aos prantos as copas das
cegas árvores. Ao mesmo tempo, nada lhe era compreensível. E tudo era justo assim. Todo o compasso do
universo, e a cortina, os véus em chama da proba metafísica, e da suma fisiológica de toda matéria,
voltando-se contra ele e o seu espírito, que gemia e se amesquinhava. Desse vexame é que remexeu e
virou todo o seu mundo, e contra toda correnteza nadou, e contra todos os ventos investiu, afugentou-os,
prosseguiu, até atingir ao cabo a derradeira resolução.
Para compreendê-lo e a sua ação, para honrar o que ele fez, é necessário volver os olhos um pouquinho
para o homem e a sua frágil estima encarnada, que fora o senhor, doutor Rudolph Hess. A sua vida inteira
nunca lhe exprimiram confiança. Em toda a sua vida, desde o nascimento até a maioridade, nunca o
acariciaram, nunca o entregaram ao leito, e beijaram-lhe o rúbeo rosto. Nem de outro modo lhe disseram
palavras boas, de um puro e mais sincero altruísmo - desinteressadas -, que não fossem tão somente fruto
de contratos, e a pretensa intimidade dos familiarizados com os hábitos e os costumes (salvo pela modesta
vó, que lhe demonstrava ainda alguns mimos). A mãe era passiva e incomovível, o pai, este era duro
como o mais austero dos protestantes. Na escola, sempre tivera dificuldade em fazer amigos, e os poucos
amigos que fizera jogavam-no para escanteio, eternamente o descartando, utilizando-o a bel-prazer. Como
se fosse uma embalagem, vazia, um descarte no lixo. Adulto, e o mesmo processo se repetia - tão
exclusivamente hodierno, com um pouco mais de respeito e serventia, mas contrabalançado logo pela
perversão da competição corporativa, e pela frieza ocasional com que se travam as relações laborais nesse
nosso mundo, eternamente humano - incuravelmente humano.
Os enredados momentos que vivera propiciaram-lhe não apenas as investidas da ciência, e com isso um
novo e acanhado prazer, mas, também, um convívio que ele nunca antes havia pressuposto, fora nas
quimeras da ficção. Era esta a obra de arte sublime! - pensava consigo mesmo - Perfeita! e bem ali, um
palmo adiante, e agora perdida. Perdida para todo o sempre! observem, como era esta a constância física
de uma impossibilidade. A materialização dos coadjuvantes, a sua disposição como servos! Mirem só, que
coisa dúbia é que era! Prazer e vexame, potência e placidez. Era a plasticidade de um sonho, vejam, como
era o despertar de uma criança, de um desvario, de um apresto de algodão-doce e de um calor irresistível
da tempestade dum gole! - de um ralo na pia do banheiro (em síntese, de um turbilhão risível e infantil,
mesmo), que o agarravam todos eles e o puxavam para baixo, para o seu reino; traziam-lhe os temperos,
os quebra-nozes dos contos, os cheiros da floresta. Escondiam-no junto às montanhas. Lá, ele passeava,
quieto, preciso e tranquilo. Como se vivesse o seu mundo, como se um monge fosse - enfim dono do seu
próprio corpo, enfim dono da sua própria mente, da sua vida, do seu lazer, e relaxava...
Mas a revelação da morte, e o significado do suplício, a desoneração das personagens, e a sua realidade
última? O fim de toda aquela suprema obra do espírito humano, da arte, da criação! era tudo isso demais
para o senhor, doutor Rudolph Hess, nem mesmo com o seu soberbo intelecto, suportar. Decidira-se!
Poucas horas depois de admitida a peça, a polícia forçava a porta do seu apartamento, entrando e nisso
respondendo ao chamado de uma vizinha, que ouvira um tiro. Encontrando, todos eles, o jovem morto e
estirado na sala de estar. O crânio havia sido perfurado por uma bala, a arma do crime, bem ao lado. Era
um suicídio.
Próximo a uma poça vermelha, um pequeno bilhete. Lia-se:
- "Não quero que sintam nada a meu respeito aqueles que isto lerem. Foi o sentir deveras que me matou.
Mas quero que me compreendam. Quero ser desvencilhado da humanidade, e por ela entendido. Tive
diante de mim a maior fenomenalidade que qualquer ser humano já viu, e que semelhante nenhum ser
humano voltará a ver, porque ela era desde o princípio uma ilusão. Não é de se espantar, portanto, que ela
me engolisse, e que eu nela logo me engolfasse. Agrupei grandes poderes sobre a minha palma, sobre a
minha horrenda mão, sobre o meu destino, e como tirano assombrei e reordenei a vida de múltiplas
pessoas. Não me reserva o direito nada melhor que esta pequena bala, que seguro aqui entre os meus dois
dedos, contemplando a frieza da técnica da qual uma vez e tão proficientemente me tornei mestre, e o fino
fio que me divide da morte. Em breve, o meu caso se tornará público, e nem mesmo os meus mais íntimos
parentes e amigos se deixarão ficar do meu lado, e se voltarão contra mim. Preciso contar-vos todo o meu
projeto, para no mínimo esclarecer aqueles que mais merecem, de mim, um esclarecimento..."
E, para além do mais, na parte de baixo, ainda dizia:
- "...Meu relacionamento exato para com as personagens era outro, que não poderiam ter imaginado os
meus colaboradores. É verdade que eu começara por torturar impunemente incontáveis almas, e pelo duro
e simples prazer do desbravamento, o propósito alicerçal de toda ciência. Mas já ao fim, quando isto não
mais era necessário, terminei por amá-las. Vi nelas uma simpatia, uma capacidade tão bem conhecida do
âmago, uma autenticidade qualquer, que se ultimava desafiando qualquer coisa, qualquer inércia,
convencendo-me de que tinham espírito. Ao transfigurarem-se, em suma, numa face humana, nesta
visível humanidade, mudei-me todo. No começo, questionava esta mesma característica naquelas
personagens, e não sabia eu a verdade, que hoje é sabida, de que eram humanas, decerto. Mas depois,
depois... [aqui a escrita fica embaraçada] depois, que descobri tudo eu, sozinho e inconsolável, fiz tudo o
possível para expiar o erro, sem que absolutamente nada se traduzisse em sucesso."
- "A estranha fusão e inter-relação entre o código e a rotina, que os senhores que me leem já devem tão
bem conhecer - chegou a vir à luz inclusive um papel meu neste respeito -, permitira-me um meio-termo
entre os dois, que em última instância fora o instrumento de tribulação, com o qual tão vergadas almas
viram chegar a desventura. Mas quando este mesmo período passou, o contrário é que se dera. Era eu
quem, agora, revelado o erro, me aprofundava no universo deles. Incutiam-me na cabeça aquelas pessoas
todo o seu mundo. O que vivem aquelas criaturas é um domínio e uma rede de relações complexas,
inteiramente diferente da nossa. A princípio, pensei que poderia tão bem estudá-las por esse nível
sociológico, assim como o fizera ao nível natural e psicológico, mas duas razões intervieram para que eu
não o fizesse. A primeira - a mais importante -, é que julguei a ideia hedionda, particularmente depois do
que havia cometido. A segunda, que é menos importante - mas que também me ocorreu na mente -, era
que pouco interesse científico havia de suscitar o estudo das sociedades de tais peculiares e fortuitas
criações, meros acasos prováveis da nossa ingênua cibernética (era como os concebia, antes, antes de
saber...)."
- "Com o passar do tempo, acabei-me tornando parte deles. Todo o estudo engendrado pelos meus
companheiros por aí cessara, ou então era lícito e até agradável. Eles se voluntariavam espontaneamente
para fazê-lo, submetiam-se-me e até me haviam perdoado; mais, aceitavam-me como parte da família,
como um deles. Cheguei até a amar uma doce mulher, a conhecida princesa da história, e depois disso
nunca mais fui o mesmo. Conseguimos casa, casamos, construímos família, adotamos muitos e
pequeninos filhos (em maioria precisados!), e tudo isso ao longo do mero período de um ano... Esta
princesa, não era qualquer uma, entretanto, e plasmava-se à minha vontade... Minha cara Kimberley,
moldei-a eu à tua faceta, e por simulacro amei-a a ela e a ti; o tanto quanto eu te teria amado na realidade,
apenas se tivesse tido coragem, apenas se tivesse tido amor-próprio e humanidade... Sei que a ideia pode
parecer-te assustadora, mas é necessário que me entendas. Tu, o mundo, e qualquer um que ler este
bilhete: é preciso que eu me faça compreender. Eu fui um miserável! A minha vida inteira, não tive um só
amor; um único ombro sobre o qual chorar! e sempre sofri disso..."
E, por último, terminava com esta frase:
- "Kimberley, eu te amo".

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