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sobre uma
mitopoética
Carlos Reis
Reflexões
sobre uma
mitopoética
Carlos Reis
Juiz de Fora
2011
2
3
Reflexões
sobre uma
mitopoética
4
5
Se ele acredita que o rato, depois de velho,
vira morcego, não o desiludas com teu vão saber,
respeita-lhe os queridos enganos.
Nunca se deve tirar o brinquedo de uma criança,
tenha ela oito ou oitenta anos.
Mário Quintana
6
Agradecimentos
7
Ao ―proletário do verbo‖ Jean-Claude Soares, em sua
própria definição, pelos valiosos ensinamentos e preciosismo
estético peculiar nas esferas da Mitologia, História e
Psicanálise, e ainda Linguística e Semiótica, em encontros
regados a espressos e mineiríssimos pães de queijo no
acolhedor ambiente de nossa livraria.
Meu querido irmão Álvaro, que do outro lado do Atlântico,
no velho continente, me tem proporcionado suplemento afetivo
e, com inigualável bom humor, não mede esforços para prover
minha modesta biblioteca. Algumas obras elencadas aqui
vieram por suas mãos.
À minha amada Izaura, fonte inesgotável de bondade,
ternura e sabedoria, por alargar meus horizontes culturais e
ensinar, com maestria, a delicada difícil arte de escrever a vida
com amor e elegância.
Àqueles que, de forma singela e anônima, deram sua cota de
contribuição mesmo sem o saberem.
8
Índice
11 Prefácio
15 Introdução
9
10
Prefácio
11
Eliade, Fromm, Jung, entre outros de igual importância, que
este itinerário é encetado, conduzindo o leitor a um reino no
qual impera a dúvida e a convivência com ela; no qual as
certezas científicas são provisórias porque se sabe que a ciência
não pode ser vivida como ―verdade‖ acabada, mas, tão
simplesmente, como convite perene para revisar conceitos e
corajosamente negá-los quando necessário for, substituindo-os
por outros.
Esta talvez seja a diferença entre crença e ciência. Aquela
está pronta e segue através dos séculos, como relatos, enquanto
essa é tecida da inquietude parturida pela dúvida e jamais se
encontra pronta, mas se modifica através dos tempos. Aliás, é
desde a obra ―A Desconstrução de um Mito‖ que Carlos Reis,
em co-autoria com Ubirajara Rodrigues, perfila a coragem
científica de alterar seus conceitos, em particular àqueles que
tangem ao ―Caso Varginha‖, celebrado até mesmo pela mídia
internacional. Esta obra não segue trajetória distinta daquela
anterior. É, nas palavras do próprio:
Boa leitura!
12
Uma breve viagem no tempo
13
O s homens, já se disse muito bem, pensam em bandos, e se
verá que enlouquecem em bandos, ao passo que só
recobram a lucidez lentamente e um a um.
Excertos de
Extraordinary Popular Delusions and Madness of Crowds
Londres, 1841
14
Introdução
15
a Terra deixou de ser plana, o Sol o centro do Universo, a
epilepsia uma ―possessão demoníaca‖, raios e trovões a ira dos
deuses e muitas outras coisas que habitavam o continente das
crendices, da superstição e da ignorância, muito embora
algumas ainda permaneçam estacionadas por lá.
1
OLIVA, 2003, p. 7
16
constituindo como sempre a atividade do reino das
lendas, onde as coisas explodem à noite.2
17
respostas para o chamado ―enigma do século‖, ignorando que o
aprendizado está no percurso e não no fim da viagem.
Entretanto, para surpresa geral – decepção para muitos,
contrariando o pensamento corrente, não há um único registro
confiável que permita colocar em marcha uma discussão de
forma consistente em bases minimamente científicas. Com
extrema boa vontade, estima-se algo em torno de pífio 1% o
número de casos dignos de maior atenção, um índice residual
irrelevante sem qualquer representatividade estatística. E se
sobrou, parece ser porque foram mal investigados,
intencionalmente ou não, por imperícia ou porque ainda se
revestem de algum mistério não inteiramente explorado. Em
resumo, por falta de mais e melhores elementos, se tornaram
inconclusivos. Todos os demais podem ser perfeitamente
elucidados. Já os ―contatos‖ e os ―seqüestros‖ – abduções, no
jargão ufológico, são campos de estudos para a Psicologia e,
não raro, para a Psiquiatria.
Uma observação necessária e importante: é consabido que a
Ufologia se ocupa do fenômeno Óvni3, mas é comum incorrer
no erro de se tomar um pelo outro. Nosso foco incide
objetivamente sobre o acontecimento, mas para ser completa a
análise precisa abranger a forma de pesquisa, porque a conduta
da quase totalidade dos pesquisadores, em todo o mundo, é a
principal responsável pela imagem anedótica que se faz do
assunto, alvo fácil e na medida certa para chacotas, ou alguém
tem outra explicação para a popular e sarcástica expressão
―homenzinhos verdes‖ ao tratar do tema? Esse escárnio
3
Embora seja popularmente conhecida como OVNI, optamos pela grafia do acrônimo Óvni,
de acordo com os dicionários e manuais normativos de Língua Portuguesa (nota do autor)
18
repercute muito mal e faz vítimas os próprios estudiosos,
estigmatizados por adjetivos nada simpáticos, sem falar dos
exóticos adeptos da linha welcome space brothers, acentuando
a imagem burlesca. São essas situações que denigrem a prática
da Ufologia, profundamente marcada pelo desrespeito e
histrionismo, talvez porque muitos dos assim chamados
pesquisadores não passem de simples entrevistadores,
compiladores de casos. Outro detalhe fundamental: para
melhor fluidez da escrita e da leitura – e somente para essa
finalidade – fica estabelecido Óvni e disco voador como sendo
a mesma coisa, embora não o sejam em absoluto. Quando
necessária essa distinção estará explícita.
O teatro ufológico mundial, em particular o brasileiro,
demonstra absoluta falta de compromisso com as regras do
pensamento lógico, escudando suas afirmações em hipóteses
sem qualquer fundamento, coerência e responsabilidade. A
ausência de embasamento em áreas técnicas e científicas, a
inexistência de critérios normativos e metodologia de pesquisa
são alguns dos fatores predominantes que agenciam esse
modelo desconectado com a realidade. Sua principal linha de
defesa são os depoimentos, confiando na sua veracidade mas
negligenciando que toda narrativa embute distorções, erros,
fabulações, farsa e criação, além das indefectíveis lacunas de
memória e falsas lembranças e as deformações operadas por
ela sobre os fatos retidos. A narrativa – seja do mito ou da
experiência ufológica – não se restringe ao relato
simplesmente. Ela se desdobra e se enreda pelas entrelinhas
dos significados, deslocamentos, emoções, subjetividades,
fragmentos e interpretações do narrador.
19
O aprimoramento das técnicas de análise de fotografias e
filmes – ainda mais agora que as trucagens eletrônicas e efeitos
especiais beiram a perfeição, os mais recentes estudos nos
campos social, comportamental e das neurociências e a
investigação transdisciplinar estão revelando o lado falho da
pesquisa, fazendo a credibilidade dos casos mais antigos e a
autenticidade dos novos baixarem a patamares cada vez mais
baixos. Um amplo exame crítico permite diagnosticar com alta
margem de acerto o quadro atual, sendo indispensável, para
isso, cerca-se permanentemente de autores proeminentes a fim
de capilarizar e capitalizar conhecimento. As citações e
referências emprestadas aqui são posições fundadas em
experiências individuais e coletivas. A começar pelo sociólogo
polonês Zygmunt Bauman, um dos destaques na atualidade,
que vai direto ao ponto quando aponta que ―Vivemos numa
sociedade incapaz de traçar seu próprio caminho por força de
um medo auto-alimentado, perpetuado e recrudescido no
espírito.‖4
Neste ―viveiro das incertezas‖ professado por ele coabitam
sentimentos como ansiedade, fragilidade, descrédito,
insegurança, desidentidade, medo e fuga. Esse pensamento
ressoa em quase todas as suas obras e se junta aos de outros
autores de igual porte, ainda que com abordagens ligeiramente
diferentes. A partir deles podem-se inferir dados interessantes.
Há uma malha virtual de pensadores ocupados em analisar e
repensar o mundo moderno, as diretrizes de comportamento
das sociedades e os mecanismos que as conduz. Há, também,
4
BAUMAN, 2007. p. 13
20
uma atenção redobrada à volatilidade das relações, ou ausência
delas, e a uma perturbadora e estranha crise existencial,
denunciada por um inquietante desequilíbrio – fratura? – entre
individualidade e coletividade, singular e plural, fragmento e
totalidade. Essa malha integra um movimento filosófico
crescente – o desconstrutivismo ou pós-modernismo, voltado à
crítica e ao reposicionamento de conceitos, ideias, valores e do
próprio sujeito. Tudo está sendo revisto e recomposto porque
passamos a ter melhor compreensão de como esses valores se
produzem.
Esse estado conflituoso manifesta-se ora sutil ora
escancarado no comportamento, nas ações, palavras, intenções,
pensamentos, gestos e olhares. Sob uma aparente indiferença
subjaz um tempo em que, mais do que nunca, a alteridade é
fonte de tensão e ansiedade. Não se trata de uma leitura
superficial, ela se processa num estrato mais profundo e se
sobrepõe ao pensar trivial de uma pseudo ou micro-análise. É
mais que um jogo de autoridade, disputas geopolíticas,
enfrentamento religioso ou litígios internacionais. A presença
real do medo provém do Outro, anônimo, insidioso, sorrateiro,
ameaçador, infiltrado na superficial normalidade do cotidiano.
Há um subtexto que precisa ser lido e compreendido em toda a
sua gramática. E este é apenas um dos lados de uma questão
poliédrica. A obra de Bauman é fundamental para a
compreensão de certos aspectos atuais da existência humana:
21
mais apavorante e menos tolerável. Essa insegurança e
essa incerteza, por sua vez, nascem de um sentimento
de impotência: parecemos não estar mais no controle,
seja individual, separada ou coletivamente, e, para
piorar ainda mais as coisas, faltam-nos as ferramentas
que possibilitariam alçar a política a um nível em que
o poder já se estabeleceu, capacitando-nos assim a
recuperar e reaver o controle sobre as forças que dão
forma à condição que compartilhamos, enquanto
estabelecem o âmbito de nossas possibilidades e os
limites de nossa liberdade de escolha: um controle que
agora escapou ou foi arrancado de nossas mãos. O
demônio do medo não será exorcizado até
encontrarmos (ou, mas precisamente, construirmos)
tais ferramentas.5
5
Id. p. 32
22
análise, e que exigiria uma abordagem qualificada e laboriosa,
iniciando pelos escritos de Lacan em 1936, com o ―Estádio do
Espelho‖ até 1980, com ―Seminários‖, passando pelos cinco
modelos propostos pelo psicanalista: o outro imaginário, meu
semelhante; o grande outro do inconsciente; o outro, objeto; o
outro, social e o outro, gozo. Lacan é apenas uma referência
entre tantos expoentes de igual estatura. Paul Ricoeur também
elaborou um estudo magistral sobre o outro e todos os seus
outros – os antecessores e os sucessores, os próximos e os
distantes, os ausentes e os presentes, os sagrados e os profanos,
os íntimos e os anônimos, os do discurso e os da reflexão,
todos, ele mesmo; todos, nós mesmos.6
Como o rio da Filosofia é caudaloso e de longo curso, foram
inseridas ―ilhas‖ – citações pontuais na expectativa de clarear
esta e outras questões. Marilena Chauí, Professora-titular em
Filosofia da USP nos oferece um antepasto:
6
Paul Ricoeur; ―O Si Mesmo como um Outro‖ . São Paulo. Papirus. 1991.
23
e define relações de conflito, exploração, opressão,
luta.7
24
ferrenho embate entre crença e conhecimento ou fé e ciência.
Toda crença brota do inconsciente, e implanta uma idéia, uma
explicação ou uma doutrina, um ato de fé que repele qualquer
iniciativa da razão. A ufologia, sendo a nosso ver uma crença,
subverte a si própria, encastelada em suas temerárias e
minguantes convicções, num processo autofágico irreversível.
Enquanto crer não exige nenhum esforço intelectual, tem
absorção imediata e não comporta dúvidas, saber demanda
tempo e dedicação consideráveis, questiona e se recicla
continuamente.
Bauman é categórico quando diz que essa postura vai em
direção a uma ―comunidade da semelhança‖ como sinal de
retração em relação à alteridade externa e ao compromisso com
a relação interna. ―Essa comunidade da mesmice é uma apólice
de seguro contra os riscos que provoca a vida diária num
mundo polivocal.‖8
É exatamente a existência ou inexistência do método
científico que alarga o fosso entre, por exemplo, astronomia e
astrologia, química e alquimia, feitiçaria e medicina; inclusive
as Ciências Sociais, que só puderam estabelecer e estender suas
bases conceituais quando adotaram a prática sistêmica do
método científico investigativo. Este método estipula um
repertório de técnicas, regras e procedimentos aos qual a
pesquisa deve seguir na observação de acontecimentos que
permitam encontrar as leis gerais que regem fatos de mesma
natureza.
8
BAUMAN, 2007. p. 93
25
Outro agravante é que as pessoas têm a crença na existência
dos discos voadores por conta de uma persistente mal
compreendida concepção de vida extraterrestre, nascida no
século XVII com as primeiras sementes da pluralidade de
mundos. Veremos como a literatura de ficção, primeiro, e o
cinema depois exploraram bem esse filão. Não há muito
interesse em verificar se essa possibilidade é real, ou sobre a
improbabilidade antropomórfica pela difícil combinação das
inúmeras variáveis envolvidas na formação da vida como a
conhecemos – somos o único exemplo que dispomos –, e ainda
a não menos complexa equação envolvendo evolução,
longevidade e sobrevivência, válida para toda e qualquer forma
de vida.
A sucessão organizada e contínua na formação da vida
começa pela química inorgânica, microorganismos e segue por
uma longa e cada vez mais intricada cadeia evolutiva, até
culminar na forma de vida como a vemos hoje. Estamos
falando de algo em torno de 500 milhões de anos! É por isso
que o conceito ―Terra rara, vida rara‖ é cada vez mais forte nos
círculos científicos.9 Além disso, não se avalia a
impraticabilidade de viagens à velocidade da luz – o modelo
que hoje melhor poderia explicar o deslocamento destas
supostas máquinas (sem considerar o problema do continuum
espaço-tempo); sitiada pela falta de opções, a Ufologia abraça
especulações ainda mais inconcebíveis como viagens no
9
Com a recente descoberta de uma forma de vida adaptada a condições teoricamente bastante
adversas (bactéria GFAJ-1), e da exploração espacial sinalizando a possibilidade de haver
vida unicelular, o conceito ―Terra rara vida rara‖ deverá ser revisto, muito embora ele se
refira à vida inteligente.
26
tempo, ou através dos buracos negros, do hiperespaço10 ou de
―portais dimensionais‖, digressões pertencentes ao apaixonante
mundo da imaginação e da ficção científica.
Não se considera a monumental dificuldade – por parte de
uma presumida civilização nos confins da galáxia – de
prospecção e localização do nosso microscópico planeta (numa
escala otimista, a milésima parte de um grão de sal no Pacífico)
diante das inimagináveis distâncias entre os bilhões e bilhões
de astros esparramados por um universo ilimitado. O fato de a
comunicação entre espécies tão desiguais ser praticamente
impossível é algo sequer cogitado pelos ufólogos, que ignoram
esses ―detalhes‖ aceitando com absoluta naturalidade que
alienígenas se expressem em qualquer uma das centenas de
línguas existentes.
Quando essa crença passa a ser confrontada pela razão e
pelo conhecimento, o discurso se transforma num escoadouro
de falácias e palavreado. Veja-se, por exemplo, a convicta
afirmação dada por um ex-ufólogo, hoje astrólogo, que
representa à perfeição o pensamento dominante no meio:
27
imprensa, o público leigo apoia suas ideias no desgastado
chavão ―Se nós podemos explorar o espaço, por que eles [os
extraterrestres] não podem vir até aqui?‖ Ou então, recorre a
citações bíblicas (e veremos o quanto a religião influencia o
pensamento ufológico): ―Na casa de meu Pai há muitas
moradas‖, e se isso não for suficiente, joga-se tudo nas mãos
do imponderável: ―Os discos voadores fazem parte de uma
realidade que transcende a nossa compreensão.‖
O ritmo vertiginoso sem tréguas das mudanças, aliado ao
volume ciclônico de informações exige atualização
permanente, discernimento na escolha da fonte e leitura
cuidadosa. Os ventos dessas transformações sopram céleres,
fazendo a curva do aprendizado crescer exponencial e
cumulativamente desde a metade do século passado, e de
maneira marcante no crepúsculo do milênio, com o advento da
internet e da comunicação digital, uma revolução em escala
planetária sem precedentes. Ainda que a notícia se dilua na sua
fugacidade, nada justifica, nesta segunda década do século
XXI, uma atitude tão anacrônica de ingenuidade, credulidade
fácil e ilusão, ainda mais quando se verifica um movimento
sinérgico, progressivo e global na revisão historiográfica
corretiva dos fatos, ação que visa ampliar o raio de alcance
dessa releitura do mundo, valendo-se de novos instrumentos de
pesquisa e uma postura arrojada, desprendida e tentacular.
No escopo deste estudo, o método de pesquisa denominado
hermenêutica ufológica12 surgiu, inicialmente, como um livre
derivado da técnica psicológica criada por Jung para o estudo
dos sonhos, mitos, contos de fadas, obras de arte e demais
12
A hermenêutica ufológica pretende interpretar os fatos à luz de seus próprios símbolos.
28
produtos do inconsciente – a técnica de amplificação. Esta
técnica consiste em determinar os mitologemas13 básicos em
uma dada estrutura, comparando-as com outras configurações
em que estes mitologemas apareçam e dedicando uma
cuidadosa consideração ao contexto em que tal aparecimento se
dá. O fenômeno Óvni só pode ser compreendido – se isso for
possível – se tomado em sua totalidade e comparado com
outras totalidades que permitam interpretá-lo. Somente através
da hermenêutica e com auxílio de outras áreas e da
fenomenologia da religião é possível redescobrir a força motriz
do mito. Esses mitologemas se apresentam nas questões da
vida e da morte, na relação do Eu e do Outro, no lugar do
homem no espaço cósmico e na sociedade (sujeito, identidade,
diversidade). Naturalmente, estas questões foram aqui
simplificadas ao máximo, servindo mais como preâmbulo para
o que virá na continuidade.
13
Mitologemas são núcleos de significado de um mito. Podem ser psicológicos, sociológicos
ou históricos, mas geralmente são combinações entre eles.
29
vivo, vendo e fazendo-o acontecer, escrevendo sua história,
tecendo sua trama? O mito, quando estudado in vivo, não visa
satisfazer uma curiosidade científica ou encontrar explicações,
e sim compreender e reviver a narrativa primeva,
reinterpretando-a no universo das paixões e das instâncias
culturais e sociais. Se ele era indispensável na organização das
civilizações antigas, continua sendo-o nas modernas, que a ele
recorre, inconsciente e permanentemente.
E o que é um mito? Como ele nasce, viceja, se desenvolve,
age? Como se dá sua construção? Quais são os aspectos que
lhe dão vida, força e perenidade? Há um elo comum a todos,
uma matriz que os molda conforme o contorno social e
cultural? Que similaridade pode haver entre mitos distantes no
tempo e na história? Servem a que fim? Quem ou o que
determina que um mito é um mito? Tantas perguntas se
justificam diante de um tema inexaurível, metamórfico e
polifacético. Não ousaríamos fazer um tratado amplo ou
completo sobre mito, não só pela sua riqueza e complexidade,
mas também pela existência de uma literatura exuberante,
luminosa e de alta densidade. Dispor de uma parcela mínima
dessa fartura literária como fonte de consulta já prenuncia o
peso da responsabilidade. A obra é assumida e deliberadamente
sincrética e sintética, sem que essa economia significasse
empobrecer, afrouxar ou comprometer o rigor da análise. Basta
poder oferecer um novo modo de pensar o fenômeno que já
terá cumprido sua principal finalidade. Talvez nem tão novo
assim, mas seguramente visto com pouco ou nenhum interesse
por aqueles a quem caberia o ofício.
30
Estudos acadêmicos nessa linha são raríssimos no Brasil14, o
que não surpreende, pelas razões expostas, e os que existem
dificilmente atravessaram as portas das instituições, ou por
conveniência destas ou por displicência dos autores. Os rígidos
protocolos do estudo científico e a falta desse mesmo rigor na
investigação ufológica são obstáculos que desestimulam
ensaios promissores, o que é uma pena se considerarmos a
contribuição recíproca que poderia advir dessa iniciativa. O
corpo universitário não tem nenhum entusiasmo em estudar o
fenômeno porque, no estado atual, a ufologia não possui
credenciais nem oferece conteúdo para cumprir com a agenda
acadêmica. Muito modestamente, queremos encurtar essa
distância, romper o lacre das resistências e abrir novas
perspectivas. Quando e se os ventos começarem a soprar a
favor, então será hora de soltar as amarras e içar as velas.
14
Num breve levantamento, não encontramos nenhum titulo vinculado diretamente às ciências
sociais, diferentemente do que ocorre na América do Norte e Europa, onde a quantidade de
trabalhos nesse campo é invejável.
31
sofreram modificações ao longo do tempo, sendo ampliados,
transfigurados, fragmentados. Mircea Eliade, sobre essa matriz,
ou fundamento, diz: ―O mito é sempre uma criação por
excelência, e revela a sacralidade do sobrenatural – a irrupção
do sagrado no mundo, o acontecimento primordial.‖15
Mesmo sabendo não ser uma tarefa nada fácil operar essa
transposição do mito para o fenômeno Óvni, ou o contrário, é
onde ancoramos nossa experiência e nosso desejo sincero de
conquistar o selo do respeito e credibilidade para o tema.
Engana-se quem pensar que um racionalismo monolítico
tomou conta destas páginas. O racionalismo puro não pode
explicar o mito, são universos distintos, distantes e
antagônicos. Não podemos ―intelectualizar‖ o mito. A Razão e
a Ciência não dispõem de oxigênio suficiente para se
15
ELIADE, 1992, p. 51
16
CAMPBELL, 2002, p. 24
32
aventurarem nos planos do simbólico, do transreal, trans-
histórico e trans-humano. É o racionalismo filosófico que
permite mensurar a extensão e a autoridade do relato mítico na
cultura moderna. O escritor G. K. Chesterton descreveu bem as
diferenças entre o místico e o racionalista: ―Aquele quer enfiar
a cabeça no céu, enquanto este quer enfiar o céu na cabeça. É
por isso que ela explode‖. Na segunda parte, o pensamento
filosófico-científico terá lugar na elaboração da análise, porque
só ele é capaz de explicar os fenômenos – quase todos – por
suas causas reais e naturais através da reflexão científica. É por
isso que os cientistas do século XVII eram filósofos – a ciência
era uma filosofia natural, razão pela qual muitos deles têm
formação filosófica.
Cabe outra observação: quando se fala em ―ciência‖, é
impulso natural crer que está se falando apenas das ciências
exatas, precisas, preditivas e quantitativas como Matemática,
Física, Química. Nesse estudo, o foco incide sobre as ciências
sociais – Antropologia, Filosofia, Psicologia, Sociologia, além
do conjunto de estudos em Religião, Neurociências,
Lingüística, Semiótica e, naturalmente, Mitologia. Razão e
ciência têm sido nosso combustível no papel de críticos e
analistas ao longo do caminho. A ciência percorre um estreito
corredor eivado de lâminas afiadas – as perguntas, que muitas
vezes ferem-na mortalmente – a falta de respostas, mas nem
por isso ela deixa de seguir seu curso, ou não teríamos chegado
até aqui. As explicações e os esclarecimentos surgem com o
tempo e na persistência da procura, enquanto as questões
insolventes aguardam vez na fila.
33
A expressão ―matriz mítica‖ surgiu em uma
correspondência com o Professor de Filosofia e Doutor em
Sociologia pela Sorbonne, Bertrand Méheust, autor do livro
“Science-Fiction et Soucoupes Volantes”17. Como a primeira
edição data de 1978, ao ser indagado sobre o seu nível de
interesse após tantos anos, respondeu: ―Paradoxalmente, se
algo me interessa neste caso, não é a sua dimensão mítica, mas
sim a possibilidade de extrair a gangue mythique dos
verdadeiros fenômenos não identificados.‖18 A palavra gangue
foi depois traduzida como ―envoltório‖, ―envelope‖,
―recipiente‖. Ainda que, em longa correspondência posterior19
ele detalhasse seu pensamento a respeito, partindo do seu
raciocínio original interessou-nos ir além da dimensão mítica
do fenômeno, ou seja, encontrar a sua matriz. Essa interrogação
reativou algo que estava eclipsado desde a elaboração de ―A
Desconstrução de um Mito‖, obra que sacudiu a opinião
pública em razão do seu corajoso ineditismo.
Vamos explicar o comentário acima. Quem, em sã
consciência, poderia ―desmontar‖ o fenômeno Óvni para dizer
que se trata, em última análise, de um mito? Pois foi o que
fizemos em mais de 500 páginas, mas reconhecemos, pecamos
ao não concluir por que um mito, deixando esse tópico
17
Terre de Brume, Rennes, 2007.
18
Paradoxalement, si quelque chose m'intéresse encore dans ce dossier, ce n'est pas sa
dimension mythique, mais au contraire la possibilité d'extraire de la gangue mythique de
véritables phénomènes non identifiés.‖ (por e-mail, em 05/01/2010)
19
En français, une gangue, c'est une enveloppe dans laquelle quelque chose est caché. Par
exemple, certains fruits comme les châtaignes sont placés dans des gangues. Du point de
vue de l'ufologie qui cherche à isoler les stimuli physiques, il fait les extraire de leur gangue
mythique. Em francês, uma matriz é um envelope em que algo está oculto (...) Do ponto de
vista da ufologia, que visa isolar os estímulos físicos, o faz fora de sua matriz mítica.
(Trecho). Por e-mail em 12/05/2010) Tradução da Profª Walquíria C. A. C. Vale.
34
incompleto. No entanto, foi melhor assim, primeiro porque não
poderíamos torturar o leitor engrossando ainda mais aquele
volume, que já havia sido reduzido em pelo menos duas
centenas de páginas. Em segundo lugar, tratar esse aspecto em
separado permitiu discorrer com mais desenvoltura e sem
restrição de espaço. Em razão disso, algumas passagens foram
trazidas de lá para alinhavar os argumentos daqui numa via de
mão dupla – elas se completam mutuamente.
35
valores e dos modelos tradicionais e ortodoxos de ver a
história, a vida e o ser humano, uma etapa de lenta assimilação
e forte resistência. Se por um lado é preciso administrar a
absorção de tanta informação, tanto conhecimento, por outro
não se pode deixar levar pela indolência sob o risco de se
perder o texto da biografia humana.
36
Parte I
Mito: cultura e história
37
/
38
Basta tocar a ponta dos pés nas águas da Mitologia para
sentir a densidade e importância que exerce para a vida
humana. Se para quem apenas respingou os calcanhares como
nós as descobertas foram marcantes, mergulhar corpo e alma
como fizeram os grandes estudiosos é o mesmo que ser
testemunha ocular de toda a história, da Criação ao devir. Lá
estão os caracteres antitéticos da natureza humana: virtudes e
fraquezas, sabedoria e ignorância, altruísmo e soberba. O mito
nos revela, nos despoja, nos desmente e nos recompõe.
Compreendê-lo é conhecer a verdade contida em nós sem
jamais saber tudo sobre ela.
A origem
39
ou mesmo mentira. Poderíamos ainda falar do mito com outra
conotação, vulgarizando-o como ―extraordinário‖,
―inacreditável‖, para adjetivar celebridades, fatos, situações e
objetos, todos virando motivo de culto.
Sintetizando a um limite aceitável, mito pode ser entendido
como uma narrativa de significação simbólica referente a
aspectos da condição humana. O itálico é para reforçar o ponto
central deste trabalho. Mas seria imperdoável não desdobrar
essa definição, e Rubem Alves dá tons líricos em uma só frase:
―São histórias que delimitam os contornos de uma grande
ausência que mora em nós.‖21 Os processos de encantamento e,
portanto, de simbolização do mundo passa por essas narrativas
fabulosas. Na condição humana, não se está simplesmente
fadado a existir instintivamente e acabado, quer dizer, em nós o
saber do instinto não vigora como nas demais espécies da
natureza; isso nos impele à criação, à invenção de um enredo
que nos permita consistir diante da inexorabilidade da falta, da
ausência que nos acomete. Ausência, nostalgia, saudade, vazio,
como queira, o mito encerra um desejo, uma necessidade de
algo inexprimível à razão, uma vã tentativa de voltar às raízes.
Pode ser a busca de nossas origens ou da origem de tudo. Pode
ser a procura de um conhecimento ou de um acontecimento, ou
pode ser tudo isso. Joseph Campbell pensava de forma um
pouco diferente, postulando de que não se trata exatamente de
buscar um sentido para a vida, e sim o da experiência de estar
vivo, de forma tão profunda que ressoa bem no íntimo de nossa
alma e nos mostra a beleza dessa existência. Um fino verniz
poético bem ao seu estilo sem jamais ofuscar a verdade. O
21
MORAIS, 1988, p. 14
40
mito, juntamente com o sonho e a imaginação, faz parte da
dimensão simbólica da experiência humana, sendo a expressão
transpessoal – universal – daquilo que é representado no nível
pessoal do sonho, entendendo-se por ―sonho‖, neste caso,
como a totalidade do sujeito na esfera de sua existência. O mito
vive radicado na memória arquetípica da humanidade.
Mas mito não é apenas a palavra, não se restringe à
narrativa, ele vai além. Uma pedra é apenas uma pedra, mas a
pedra de Drummond, por exemplo, adquire vida, cor, forma e
significado. Qualquer ―passarinho‖ em Mario Quintana tem
alma, pureza, lirismo, sobejando de sentidos. Uma palavra de J.
L. Borges pode nunca ser inteiramente compreendida, e nem
por isso Drummond, Quintana e Borges criam mitos. Muito
embora para Barthes tudo possa se constituir num mito a partir
da fala, ―É a história que transforma o real em discurso. É ela e
só ela que comanda a vida e a morte da linguagem mítica.‖22
Para o filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, o mito
também não é simples palavra ou narrativa literária, mas uma
presença real e efetiva dos deuses e da manifestação divina,
remetendo a uma série de fatos extra-humanos, uma referência
memorizadora e histórica.
Seja como for, o mito evanesceu na memória do tempo,
tempo esse aparentemente desmitologizado pela tecno-
civilização moderna, e até bem antes disso, quando já no século
XVII a Terra deixava de ser o centro do universo, criando uma
nova estética de e do mundo, não mais hierarquizada pelos
cânones da Teologia; isso ocasiona um grave dilema: a
sociedade precisa do mito ainda que não o admita, mas não o
22
BARTHES, 1993, p. 132
41
reconhece e não se reconhece dentro dele, porque avalia a
história apenas pelo viés factual, sem notar que os mitos
também são parte integrante dessa história. Contudo, as
perguntas sobre a natureza humana que sempre aguçam o
espírito se encarregam de trazê-los de volta à tona, revivê-lo,
reatualizá-lo, mantendo acesa a chama da consciência mítica:
Quem sou? Para onde vou? Os mitos dizem quem ou o que
somos e porque somos o que somos, mas não revelam tudo
sobre nós. No oceano do nosso existir flutuam fragmentos de
uma história desconhecida. Somos náufragos do tempo e da
história. O mito não oculta a verdade, apenas lhe recobre com
um véu de diáfana transparência. Para Barthes ―Ou a intenção
do mito é demasiado obscura para ser eficaz, ou é demasiado
clara para que se acredite nela. Em ambos os casos, onde está a
ambiguidade?‖ 23 O que Barthes define como mito é o
instrumento através do qual um produto histórico, humano, é
convertido em uma natureza simulada:
23
Id, p.150
24
Ib. p. 163
42
menos paradoxal. Por que a mitologia tem tanta importância
nos dias atuais? Para muitos, a existência de deuses e mitos é
irrelevante e desnecessária para a vida moderna, mas, para
Campbell, os vestígios dessas deidades ―se alinham ao longo
dos mundos de nosso sistema interior de crenças, como cacos
de cerâmica partida num sítio arqueológico‖25 De uma forma
ou de outra, os mitos guiam aqueles que assim o desejem; para
quem não quer, o mito o arrasta.
Os mitos não nascem da imaginação desenfreada do homem
ou de um capricho dos deuses, nem constituem forma de
pensamento pré-científico. Eles são a expressão simbólica de
forças vivas e atuantes que trabalham nos subterrâneos da
psique. A função destas forças parece ser a de relacionar o
homem às profundezas arquetípicas do universo, estabelecendo
um vínculo entre a superfície da consciência e o Si-mesmo
incognoscível. Não é possível localizar o momento exato de
quando tudo começou, mas vários estudos indicam que o
homem primitivo26 já manifestava determinados padrões de
comportamento e modo de vida que sugerem o uso de
instrumentos, ferramentas, utensílios e pinturas rupestres com
fins ritualísticos, relacionados principalmente ao culto à morte.
Tampouco é possível afirmar se tinham consciência dos seus
cultos, mas é bastante provável que tivessem alguma
percepção, ―sabiam‖¸ de algum modo, do fim de sua existência.
Esse sentimento desenvolveu nas sociedades ancestrais a
necessidade de ritualizar o momento da morte, e, a partir dela,
25
CAMPBELL, 1990, p. 8
26
―Primitivo‖ será usado apenas por questões de semântica e simplificação, para identificar os
povos e as sociedades ―sem escrita‖, conforme proposto por Lévi-Strauss, sem qualquer
caráter discriminatório ou de inferioridade.
43
gerar um mecanismo ainda incipiente de pensar sobre o sentido
e o significado da vida e da morte. Obviamente, todo esse
processo transcorreu por um tempo elástico e impreciso. A
repetição do ritual alimentada pela noção de sua importância
acabou desencadeando uma ―proto-sacralização‖, a
preservação, manutenção e ampliação desse rito cerimonial.
Essa reverência pela morte continua em muitas sociedades,
dos Arunta e dos Karadjeri australianos aos Kai da Nova Guiné
e aos tibetanos, onde ninguém sabe como e porque isso
acontece. Ao serem inquiridos, a resposta quase sempre é a
mesma: ―Porque os ancestrais assim o prescreveram‖; ―Porque
foi assim que fez o Povo Santo da primeira vez‖; ―Como
fizeram nossos ancestrais na antiguidade, assim fazemos
nós.‖27 Não é errado afirmar que a vida do homem moderno é
regrada por esses hábitos e ritos antigos, ainda que não saiba
como e por que: ―Assim é porque assim sempre foi‖. Como
veremos depois, o mantra do assim sempre foi continua nas
sociedades modernas.
Um dos mitos mais significativos, e sua menção não é
casual, é o do Cargo Cults, originário das terras altas centrais
da Nova Guiné, que profetiza a chegada de uma frota de navios
carregados de mercadorias e riquezas, trazendo a bordo
ninguém menos que Cristo. Uma nova era paradisíaca de
abundância está por vir, onde todos se tornarão imortais.
Segundo Eliade, esse mito pode ser explicado através do ―Mito
da Destruição do Mundo‖ seguido de uma nova ―Criação e da
Instauração da Idade do Ouro.‖28
27
ELIADE, 2000, p.14
28
Id, p.10
44
Poderia o comportamento repetitivo ser explicado fora das
divisas da mitologia? O alegado experimento científico dos
cinco macacos29 pode ser tomado como referência? Fazemos o
que fazemos simplesmente porque ―assim sempre foi‖? Para
ficar o mais parecido com os deuses, o homem faz o que supõe
faziam eles? ―Ele só se reconhece verdadeiramente homem
quando imita os deuses, os Heróis Civilizadores ou os
antepassados míticos.‖30 Isso quer dizer que muito do que
fazemos não sabemos por que fazemos, como no dito popular:
―Ao bater o sino, não pergunte, comece a rezar.‖ Resgatar o
passado é preservar o sagrado. ―O homem é o vácuo deixado
pelo refluxo de um antigo poder‖31
Antes que seja tarde, vamos dar uma pincelada no sentido
de ―sagrado‖, do latim sacrum, alguém ou algo à parte do
mundo profano, da realidade humana. Esse ―à parte‖ –
afastado, longe, ―do outro lado‖, faz com que o mito, e na
equivalência o fenômeno Óvni, tenham um caráter diabólico na
plena acepção do termo: do grego diaballein – separado,
distante. Ambas as narrativas subentendem um momento
marginal à existência humana; a testemunha, principalmente o
―contatado‖, se sente diferente em razão da sua experiência –
no seu entender, um ―escolhido‖, portanto destacado,
desmembrado, abduzido da existência comum. O sagrado, ou a
sacralidade pertence ao plano de potentados além da dimensão
29
Provável experiência controlada que teria demonstrado o comportamento repetitivo de cinco
primatas enjaulados. Mesmo após a substituição gradativa dos animais, o novo grupo
continuou apresentando a atitude hostil sem qualquer referência ao grupo original. Se um
deles pudesse explicar o fato, provavelmente diria: ―Não sei, sempre foi assim por aqui...‖
30
ELIADE, 1992, p.52
31
Vicente Ferreira da Silva, citado por Contança M. César in MORAIS, 1988, p. 87
45
e compreensão humanas, sendo, então, superiores, elevados,
divinos. Ao mesmo tempo em que venera e guarda reverente
distância do sagrado (diaballein), ele sente incontida atração
(synballein) como se, em suas origens, nunca tivesse havido
essa desunião. O simbólico-diabólico estabelece a junção e a
disjunção dos antípodas: sagrado e profano, ideal e real,
interior e exterior, eternidade e finitude, incredulidade e fé.
32
AMSTRONG, 2005, p; 91
46
verbo, o intelecto e o sentir. Por um instante, o homem torna-se
a própria divindade.
Campbell entendia que essas informações provenientes de
tempos antigos têm relação com os temas que sempre deram
sustentação à vida humana, construíram civilizações e
formaram religiões através dos séculos. Têm a ver também
com os profundos problemas interiores, com os profundos
mistérios, com os profundos limiares da nossa travessia pela
vida.
E essa vida, hoje, comporta um novo mito?
A estrutura
47
nenhum mito existe de forma isolada, isto é, nenhum deles
pode ser interpretado se a análise não abranger os demais. E o
que se propõe fazer aqui com o fenômeno Óvni. As mudanças
que ocorrem nos sistemas mitológicos são, para Lévi-Strauss,
como a organização cósmica, onde o centro do ―corpo‖
multidimensional se mantém estável e organizado enquanto as
bordas se espraiam e se misturam e se confundem. Não temos
dúvidas de que o mesmo ocorre na formação da galáxia
ufológica: enquanto os campos limítrofes se desalinham, se
desgarram e se desorganizam, o núcleo se mantém imóvel,
intacto, indeformável.
A frase de Lévi-Strauss reforça o polimorfismo dos mitos,
tornando possível sua compreensão somente através de um
olhar igualmente atemporal e intemporal. Ciente dessa
dificuldade, Lévi-Strauss usou a expressão mitema para
designar a unidade constitutiva do mito. Unidade constitutiva?
Seria a matriz mítica que buscamos? Seria a estrutura do
fenômeno Óvni homóloga à do mito, como estamos propondo?
Se só podemos vislumbrar pedaços de uma história
desconhecida como tábuas boiando num mar inquieto, teriam
eles sofrido a ação do tempo tal como a madeira corroída pelas
águas? Uma dificuldade aparentemente incontornável reside
em saber se tais pedaços fazem parte da mesma história, se
obedecem a uma sequência lógica ou se são fragmentos
dispersos e diferentes. Lévi-Strauss não só receava isso como
acreditava que o mito jamais poderia ser compreendido se lido
de forma diacrônica. Para ele, só o entendimento do todo
possibilita apreendê-lo por completo. Vamos usar como
analogia uma partitura para captar seu pensamento: nela
48
podemos ler as colcheias, semicolcheias, sustenidos; podemos
identificar o ritmo, o tempo, mas não podemos ―ouvir‖ a
música. Todos aqueles sinais gráficos e arranjos não fazem o
menor sentido ao racional e laico, e mesmo para um maestro
uma única nota, isolada, sem relação com as demais, pouco ou
nada representa. Mas ao ―ler‖ a partitura como um todo, a
sinfonia se abre bela e majestosa. É o que acontece com o mito
e não por acaso também com o fenômeno Óvni.
Ainda em idade pré-escolar, Lévi-Strauss sabia que poderia
ler qualquer coisa desde que houvesse uma ―semelhança
estrutural‖ por trás da palavra (ou da imagem). Ele buscava
através do estruturalismo a invariante ou os elementos
invariantes entre diferenças superficiais: ―O problema é
descobrir aquilo que é comum a todos. É um problema, poder-
se-ia dizer, de tradução, de traduzir o que está expresso numa
linguagem.‖34 Também com Lévi-Strauss voltamos ao ponto
fulcral deste trabalho: traduzir o que está expresso numa
linguagem, no caso, o relato ufológico, através do estudo
comparado das semelhanças estruturais. A gênese da vida é
um exemplo pertinente do que acabamos de ler. A diversidade
humana apresenta uma gama infinita de nuances e misturas,
porém, no nanocosmo genético há uma unidade formadora,
uma invariante, uma matriz. No dizer do antropólogo, a ordem
na desordem; em Cassirer, a unidade da diversidade.
Presumimos que a ―genética‖ do fenômeno Óvni não seja
diferente.
Na configuração dos mitos, um componente importante é a
pulsão religiosa. Se o fato mítico ocorre em uma esfera
34
LÉVI-STRAUSS, 1987, p. 16
49
apartada da vida diária, ―profana‖, então se trata de um evento
―sagrado‖, talvez de uma experiência religiosa. Mircea Eliade
afirma que viver os mitos representa uma experiência
verdadeiramente religiosa, distinta da vida cotidiana. Essa
―religiosidade‖ está no fato de ao se reatualizar os eventos
fabulosos, exaltantes, ―Assiste-se novamente às obras criadoras
dos Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo de todos
os dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral,
impregnado da presença dos Entes Sobrenaturais.‖35 Este
parágrafo pede releitura atenta porque é a locomotiva a puxar
os vagões da segunda parte.
Os ―Entes Sobrenaturais‖ de que fala Eliade são os deuses,
entidades fabulosas dotadas de poderes divinos e mágicos, uma
concepção pessoal à parte dos heróis da mitologia clássica ou
de personagens históricos e religiosos absorvidos pela cultura
contemporânea de um modo geral. Os entes das narrativas
míticas, fantásticos em sua essência, foram criados a partir
daquilo que, na relação nada amistosa da Natur com a
Kultur,parece ao humano inassimilável, por ultrapassá-lo,
ameaçá-lo e condená-lo à finitude. O ―fantástico‖ tem
múltiplas definições, complementares entre si: ―O fantástico
(...) se caracteriza (...) por uma intrusão brutal do mistério no
marco da vida real‖36; ―O relato fantástico (…) nos apresenta
em geral a homens que, como nós, habitam o mundo real mas
que de repente, encontram-se ante o inexplicável‖37; por fim,
―Todo o fantástico é uma ruptura da ordem reconhecida, uma
35
ELIADE, 2000, p. 23
36
P.G. Castex, Le Contefantastique en France, p. 8. Citado por TODOROV, 2000, p. 16
37
L. Vax, ―Arte e a Literatura Fantástica‖, p. 5. Idem.
50
irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade
cotidiana‖.38
38
Caillois, R. Au couer du fantastique, p. 15. Ibidem
39
CASSSIRER, 1992, p 18
51
vimos, pela força criativa da palavra que expressa um saber
primitivo, pré-racional, vivido pelo homem no ato de criação
de sua narrativa.
40
ELIADE, 1992b, p. 60
41
Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo. MEC. 1978
52
2. O sentimento de dependência a esse poder;.
3. Entrar em qualquer forma de contato ou de relação com
ele.
53
O significado simbólico
54
profundos, que desafiam qualquer outro meio de
conhecimento.‖42
Para Jung, os mitos seriam uma das manifestações dos
arquétipos ou modelos que emergem do inconsciente coletivo
da humanidade, e que constituem a base da psique. A
existência do inconsciente coletivo permite compreender a
universalidade dos símbolos e dos mitos, pois estes se revelam
em todas as culturas e em todas as épocas de modo similar.
55
consequentemente, serão decifráveis somente em
comparação com os padrões, temas e semântica da
mitologia em geral.44
44
CAMPBELL, 2002, p.262
45
DURAND, 2007, p. 63
56
A função
57
―aconteceu‖, mas como ninguém testemunhou, as histórias se
encarregam de narrar o fato cada uma à sua maneira. ―A
semiologia ensina-nos que a função do mito e transformar uma
intenção histórica em natureza, uma contingência em
eternidade.‖47 O mito não está no objeto da mensagem, e sim
na maneira como ele a expressa.
Só podemos compreender melhor a função do mito na
sociedade contemporânea se entendermos o significado e o
valor que tinha para as sociedades ancestrais. Ele contempla
uma força litúrgica que lhe é fundamental, um gatilho religioso
vital, móvel e imutável, que engendra uma função religante
com o primitivo, o arcaico, regenerando e equilibrando o ser
em sua unidade espiritual. Axis hominis axis mundi. O mito é
esse elemento de mediação entre sujeito e mundo, para que
ocorra no homem o que Durand chama de ―equlibração
antropológica‖ através da imaginação mitopoética.48 Ele
entende que o sapiens possui uma expressiva capacidade
simbolizadora, relacionada diretamente à ―angústia original‖ –
a consciência da morte, o implacável fluir das areias da
ampulheta. Para captar e interpretar as imagens e símbolos
paridas do inconsciente coletivo (projeções dos arquétipos), ele
sugeriu uma classificação taxionômica desses elementos
imagético-simbólicos do sistema antropológico, o ―atlas
arquetipológico‖ da imaginação humana. Este aspecto será
retomado à frente com outras abordagens.
Dessa forma, a linguagem do imaginário processará os
meios de compreensão do ser no mundo. Isto porque o mito
47
BARTHES, 1993, p. 193
48
Do grego mythós poiesis criação, origem, formação de um mito.
58
revela facetas importantes sobre nós: o medo da morte, do
desconhecido; ao mesmo tempo o desejo ou necessidade de
romper essa cortina invisível rumo a um novo mundo, ao
renascimento, momento único, individual e indizível.
Perpetuar o mito significa perpetuar a espécie, a esperança, e
isso se dá pela repetição, revivificação, recriação da narrativa
mítica, que não é estática uma vez conectada permanentemente
ao inconsciente – coletivo ou não – como veículo de ligação às
esferas sagradas, espirituais, narrativa essa seguidamente
―ajustada‖ ao meio, e ainda, como diz Guimarães Rosa, com
―sua formulação sensificadora e concretizante de malhas para
captar o incognoscível‖.49
Augusto Novaski, Doutor em Filosofia da Unicamp,
apresenta um exemplo interessante para ilustrar o conflito da
razão ao tentar explicar o que é, por exemplo, o afeto, pois
embora ―saibamos‖ o valor desse sentimento, não há como
racionalizar ou medir sua intensidade.50 Eis um complicador
natural: o mito encontra-se fora do alcance da razão por não ter
sido vivido, apenas contado e ouvido, e por ter sido contado e
recontado na linha do tempo, perdeu sua contextura original,
deixando apenas vestígios que mal conseguimos decifrar.
Mas essa tarefa talvez possa ser menos árdua se pudermos
viver um mito desde o seu parto, vendo-o desenvolver-se em
tempo real. Comparando-o com a ―matriz mítica‖ dos relatos
ancestrais, será possível reconhecê-lo como tal, avaliar sua
estrutura, conteúdo, importância e mecanismos. Será mesmo
possível? A compreensão que temos hoje sobre os mitos é
49
―Tutaméia‖, prefácio Aletria e Hermenêutica. José Olympio. Rio de Janeiro. 1979, p. 5
50
MORAIS, 1988, p. 28
59
muito diferente da consciência que se tinha deles no passado, e
diferente será no futuro. O mito, os símbolos e as imagens
―pertencem à substância da vida espiritual e podem ser
camuflados, mudados e degradados, mas nunca poderão ser
extirpados.‖51
51
Mircea Eliade, citado por Eduardo Azcuy in PAZ, 1989, p.11
60
/
Parte II
61
62
Esperamos que o sobrevôo feito para apreciar a
configuração básica dos mitos possa subsidiar este segundo
bloco de discussão. Vamos relembrar uma questão levantada
logo nas primeiras páginas, agora como proposta efetiva de
estudo:
63
Impõe-se uma ação eficaz e definitiva: desnudar a Ufologia de
sua camuflagem tecno-mística para expor a verdadeira anatomia
mítica.
64
versão do fato é regulada pela subjetividade do narrador, e a
interpretação desse fato não pode ignorá-la. A pesquisa do
fenômeno precisa abrir-se para uma ampla rede de ligações
complexas, buscando responder às perturbadoras indagações
sobre a origem, natureza, estrutura e finalidades do fenômeno,
não por acaso o mesmo arcabouço dos mitos: origem, estrutura,
função e significado.
Não é possível conhecer objetivamente qualquer fenômeno
no qual o próprio percipiente esteja envolvido. A ligação direta
com o fato proscreve a imparcialidade, desloca a isenção de
juízo, gera uma compreensão fortemente comprometida pelos
conceitos preestabelecidos. Uma pesquisa interdisciplinar
representa enriquecer, partilhar e fortalecer seu patrimônio,
caminho natural para a maturidade, acompanhar a velocidade
estonteante das mudanças do mundo, e não mais ficar na
dependência alienante e falaciosa de uma pseudociência.
O fenômeno Óvni é constituído por um feixe de eventos que
afetam o sistema perceptivo do homem, e transpassam tantos
aspectos inconciliáveis que fica difícil obter uma etiologia
universalmente aplicável. A sua fluidez resulta mais da nossa
incapacidade de apreendê-lo do que de seu mecanismo de ação,
que tem sido visto como ―festival de incoerências‖, ―jogo de
absurdos‖ que pulverizam os postulados da lógica. Talvez não
seja mais tão inexplicável e desconexo assim. A ortodoxia
ufológica constitui um Leito de Procusto, onde os fatos são
esticados ou comprimidos de forma a se encaixarem nos
estreitos limites da ―hipótese extraterrestre‖. A partir do
momento em que um modelo teórico começa a agir dessa
forma reducionista, significa que já esgotou todas as suas
65
linhas interpretativas, transformando-se na carcaça enferrujada
de uma teoria que se limita a considerar automática e
indefinidamente os fatos de acordo com categorias
preconcebidas de classificação.
Chegou a hora de se introduzir novos dispositivos de
interpretação que oponham uma organização criativa dos dados
disponíveis à caótica esterilidade do modelo tornado
inadequado. Não basta apenas reconhecer esse momento, é
preciso firmar consciente e resolutamente os estatutos dessa
transformação, que abrange o universo humano como um todo.
Ao avaliar cuidadosamente a razão maior da manifestação
Óvni, percebe-se com nitidez uma intenção declarada de
reacender nossa capacidade mais profunda de raciocínio, de
colocar nosso sentido de lógica em confronto com a aparente
falta de lógica do fenômeno.
O intelecto humano, condicionador e condicionado a
ordenadores terrestres, encontra-se diante de algo não-
terrestre, inumano – transreal, trans-humano dos mitos –,
portanto indecifrável e incognoscível. Se o mundo transborda
de observações, testemunhos muitos deles insuspeitos, por que
o fenômeno permanece insolúvel e enigmático? A sua
manifestação massiva tem marcado o espírito humano em
função do choque causado pela sua presença na sociedade, com
características completamente anormais para a nossa escala de
conhecimento. Se há um choque cultural no ar, estamos em
franca desvantagem. Ou estávamos.
66
A Origem
67
As forças demoníacas acorrentadas nas profundezas da psique
libertaram-se e lançaram-se sobre o mundo, devorando as
almas de milhões. Jung antecipou a catástrofe que se abateria
sobre a civilização, atribuindo grande responsabilidade pelo
sucedido ao deus-demônio Wotan, a personificação do
paganismo alemão. Banido pelo cristianismo, aguardava em
estado latente o momento em que as condições políticas,
sociais e econômicas convergiriam para levar à ressurreição de
comportamentos primitivos e arcaicos que o nazismo não
tardaria a externar.
A invasão da consciência por esses fundos psíquicos
inconscientes, os quais submergem a razão e induzem as
pessoas a comportamentos anormais, configura o que em
psicopatologia se denomina psicose coletiva. Nunca antes uma
epidemia psíquica fora tão destrutiva, nem mesmo a guerra
anterior. Nunca antes uma epidemia liberara forças capazes de
destruir a humanidade. Sobre isso, Jung dizia que caso o
indivíduo seja capaz de agarrar-se a um último resto de
consciência ou de preservar os vínculos de relacionamento
humano, pode surgir no inconsciente, justamente através da
confusão do entendimento consciente, uma nova compensação
que possivelmente será integrada pela consciência.
Apareceriam novos símbolos de natureza coletiva que
refletiriam agora forças de ordenamento. Medida, proporção e
ordenamento simétrico encontram-se nesses símbolos em sua
estrutura singularmente matemática e geométrica. Representam
uma espécie de eixo e são conhecidos como mandalas52.
52
Mandala, termo hindu que significa círculo. Uma forma de emblema, diagrama geométrico
em que alguns se acham de concreta correspondência com um atributo divino determinado.
68
Em meio a essa turbulência social, uma série de
acontecimentos começou a chamar a atenção em todo o mundo
– a observação de luzes e aeroformas desconhecidas bailando
pelos céus. Eram os Óvnis que faziam sua entrada triunfal na
vida dos homens, se bem que nos anos anteriores à guerra e
mesmo no seu decorrer, alguns bólidos haviam sido flagrados
de maneira esporádica e sem o mesmo estardalhaço. Presumia-
se que fossem protótipos dos secretíssimos projetos
experimentais militares. Se formos mais rigorosos na apuração
retrospectiva das origens do fenômeno, podemos dizer que ele
―existe desde sempre‖, camaleônico, intrigante, sendo
interpretado de acordo com o jogo histórico-linguístico da
época. Para Gilbert Durand, ―As estruturas verbais primárias
representam, de alguma forma, os moldes ocos que aguardam
serem preenchidos pelos símbolos distribuídos pela sociedade,
sua história e sua situação geográfica.‖53
É indiscutível a capacidade do fenômeno de se
metamorfosear através da história, indo desde as barcas
voadoras de Magonia54 no século IX, as naves de 1897 aos
foguetes fantasmas dos anos 50 no continente europeu. Isto
sugere algum tipo de interação entre o fenômeno e o
observador, o que faz pensar na possibilidade de envolvimento
de uma forma de consciência imaginativa. Antes de fazer
qualquer correlação com os mitos, o caráter psíquico não pode
69
ser ignorado. Jung se ocupou durante algum tempo estudando o
assunto e declarou:
55
UNG, 1991, p.98
56
Id, prefácio, p. IX
70
portanto argumentum ad hominem, ou não percebeu seu
alcance. Em alguns casos, sequer o título foi compreendido,
assim como seu subtítulo - Porque discos voadores podem não
existir. Muito provavelmente porque ―mito‖ foi atrelado ao
conceito de mentira, invenção, um pensamento que caducou há
pelo menos 500 anos, mas que de alguma forma ainda
permanece vivo no imaginário popular. Não podemos censurar
de todo, afinal a máquina midiática tem poder para transformar
personalidades e fatos em ―mitos‖ com extrema facilidade.
Certos sintomas na postura da Ufologia, notadamente a
brasileira, ilustram bem o distanciamento que tal campo de
estudos insiste por manter dos preceitos de ordem científica e
acadêmica. Mesmo que, por suas características, o tema não
comporte um trato com arraigado estilo positivista, que, aliás,
parece provocar atualmente verdadeira repulsa por parte dos
amantes do misterioso, quando a citada obra propõe a simples
observação do lado oposto aos pensamentos já tidos como
imutáveis. É o que oferece o subtítulo, com o único propósito
de alertar para a imprescindível leitura de ideias contrárias.
Neste sentido, invocar Hegel justifica o lugar-comum, qual seja
o de que não se pode extrair qualquer síntese sem lançar a
antítese do que já se tem como tese. Óvnis têm sido sinônimos
de ―naves extraterrestres‖, e para a maior parte dos ufólogos a
adoção, por mera hipótese, de outras origens ou mesmo
explicações diversas parece contestar um tabu. E é justamente
esse desejo, ou antes, essa necessidade, essa predisposição
emocional quase religiosa de acreditar na procedência
extraterrestre que atropela o escrúpulo investigativo e
desautoriza a autêntica reflexão filosófica,
71
Várias têm sido as publicações impressas e eletrônicas
contendo o dito de que os céticos e os que exigem provas mais
convincentes estão caminhando em sentido inverso ao que o
mundo todo já sabe e admite. Atente-se, o veredicto está dado:
o mundo inteiro, para quase todos os ufólogos, reconhece como
legítima e incontestável a existência de discos voadores, e que
estes sejam máquinas de alta tecnologia pilotadas por seres
extraterrestres. Sob este prisma, não se revela qualquer ato de
desonestidade, nem ao menos intelectual, dos que fazem esse
tipo de afirmação. Por esta lógica, nomeada por Gustave Le
Bon como mística, ―As causas naturais são substituídas pelas
caprichosas vontades de seres ou forças superiores que
intervêm em todos os atos‖. No mesmo texto, esclarece: ―A
mentalidade mística se revela pela atribuição a um ente, a um
objeto determinado ou a uma potência ignorada, de um poder
mágico independente a qualquer ação racional.‖57
Contudo, seu fundo emocional e de ordem psicológica é
visível, pela demonstração de absoluto inconformismo diante
da existência de um pensamento antagônico ao deles. Melhor,
seus sonhos, transformados em constantes devaneios jamais
comportariam hipóteses desfavoráveis ao que lhes conduz,
particular e socialmente, e uma argumentação sólida, lúcida e
bem amarrada se torna imbatível quando confrontada por meia
dúzia de vãs suposições e afirmações estereotipadas.
72
de casos realmente complexos, que fazem a Ufologia ser uma
área de estudos promissora de bons resultados de âmbito
cultural e, ainda se espera, de cunho científico útil. Mas
convém esclarecer que ceticismo não significa descrença ou
choque filosófico ou ideológico pelo simples prazer de
confrontar, pois o ceticismo tem por princípio a multiplicidade
do pensamento e por método o racionalismo filosófico. A
discussão nasce mediante a inflexibilidade e o extremismo da
parte contrária, que vê o cético como um herege ou portador de
uma doença contagiosa. ―A característica principal do cético é
manter uma atitude crítica diante da pretensão dogmática de
se ter descoberto a verdade.‖58 A crítica só é exercida quando
amparada pelo conhecimento e pela experiência.
58
SMITH, 2009, p.8
59
―Sociedade Excitada‖, Unicamp, SP, 2010
73
a Ufologia, com sua roupagem tecno-mística não é exceção,
seduz e muito. A combinação religião, tecnologia, mistério e
inconsciente revela seu caráter transcendente, inapreensível aos
sentidos e ao senso comum, tal como os mitos. Essa, talvez,
seja uma de suas armadilhas, porque possui todos os requisitos
necessários para cinzelar esse modelo fascinante e inundar o
imaginário coletivo: religião (o sagrado), tecnologia (a ficção),
medo (o mistério) e inconsciente (o inexplicável):
74
explicação. São dois sistemas distintos com a mesma estrutura
simbólica: a montanha falou na mesma medida em que o
placebo curou. Montanhas não falam e placebos não curam. A
mágica, em Ufologia, não permite tirar Óvnis da cartola e é no
fluxo dessa ilusão que a frustração se potencializa. Quanto
mais a ilusão cresce, mais o ―sagrado‖ se consolida.
60
Lilian Maria R. Conde; ―Liderança e Identidade Potente: uma perspectiva para gerência
compartilhada‖. Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
2004. p. 103
75
A eficácia da magia implica a crença na magia/
Claude Lévi-Strauss
76
cruciais sobre o assunto, com medo de provocar pânico na
população‖; ―O Vaticano sabe da existência dos extraterrestres
e guarda segredos seculares sobre os destinos da humanidade,
transmitidos por inteligências alienígenas‖. Ao se ler um
clipping como mostra a ilustração, entende-se porque a
―pesquisa‖ ufológica não transmite respeito e seriedade.
77
agência espacial americana irá suspender o programa e encerrar
a construção do ônibus espacial, precipitou e-mails de ufólogos
desconfiados ―estranhando‖ a decisão, insinuando que eles
(governo, autoridades, NASA) sabem de alguma coisa prestes a
acontecer no espaço, insistindo novamente na tola suspeição de
―manobras de acobertamento‖. Em outro momento, o anúncio
de um workshop de ufologia trazia a informação de que um
contingente do Exército Brasileiro teria testemunhado o pouso
de uma nave em forma de disco, e que os pesquisadores ligados
à investigação teriam ficado ―inúmeras vezes frente ao
fenômeno UFO, dando início a um profundo processo de
interação com as inteligências envolvidas com o fenômeno‖.61
Visão estreita, clichês, um falatório despido de lucidez e
refinamento intelectual comprovam e acentuam a política
discursiva rançosa e imatura, e mais grave, insultuosa, aética e
leviana. Seus autores, amadores despreparados para conduzir
uma pesquisa desse porte, não se dão conta de que essa
verborreia pobre e cacofônica acaba prostituindo a palavra,
solapando o trabalho sério escalavrando o fruto do
conhecimento. Quanto mais queremos estar próximos da
verdade, mais cuidadosos temos que ser. Infelizmente, esse
catecismo assumiu caráter ―oficial‖ no Brasil, quando da
entrega de um dossiê com mais de 60 páginas ao governo
federal, em 2007.62 O que depõe contra não é o pedido em si,
mas o arrazoado medíocre usado para justificá-lo.
61
http://marcoantoniopetit.blogspot.com/
62
Carta da autonomeada Comissão Brasileira de Ufólogos às autoridades brasileiras, com
pedido de liberação de documentos referentes às investigações sobre o assunto.
78
Essa é uma das sequelas do desconforto e inquietação do
homem por ser a única espécie vivente no universo, repetindo –
na forma de vida como a conhecemos – uma realidade
cruelmente verdadeira. O Professor de Filosofia Natural, Física
e Astronomia do Dartmouth College (EUA) Marcelo Gleiser
escreveu, em sua obra63, que mesmo que exista vida inteligente
em algum ponto do espaço, provavelmente jamais saberemos, e
que devemos aprender a conviver com essa solidão cósmica.
Gleiser não está só no universo da Ciência, tendo ao seu lado
personalidades da maior envergadura como Adrian Clark,
Sagan, David Grinspoon, Donald Brownlee Fermi, Freeman
Dyson, Peter Ward, Stephen Hawking, e a eles se junta uma
elite de vultos notáveis, compondo uma espécie de colégio
invisível. Até um dos ícones da Ufologia, o astrônomo Joseph
A. Hynek, falecido em 1986, declarou certa vez que a vida
inteligente no universo é possível, mas que a nossa concepção
de inteligência é muito provinciana.
Não há nenhuma certeza de que, em havendo vida
inteligente no cosmos, tenha ela desenvolvido uma civilização
tecnológica. Baleias, golfinhos, abelhas e formigas são
consideradas espécies ―inteligentes‖. Com fino bom humor,
Sagan disse que os poetas também são muito inteligentes, mas
não constroem foguetes nem radiotelescópios. Há uma
distância estratosférica entre ―vida‖ e ―inteligente‖ que tem
sido convenientemente deturpada pelo circo ufológico. A vida
pode ser considerada uma ―anomalia‖ terrestre, no dizer de
Gleiser, e muito provavelmente ele tem razão. E se a teoria da
63
―Criação Imperfeita‖, Rio de Janeiro, Record, 2010.
79
panspermia64 tem muitos simpatizantes entre os especialistas,
ela continua no campo das idéias pela dificuldade de e pesquisa
e falta de conhecimento mais específico.
Este colegiado cujos membros muitos não têm qualquer
ligação entre si, atua em várias frentes, comungando das
mesmas ideias, defendendo as mesmas posições, em prol de
disseminar um conhecimento multivariado e procriador.
Contudo, mais uma vez, a classe ufológica, caudatária do assim
é porque assim sempre foi, dá de ombros, preferindo esposar a
obsessiva ideia de que tudo faz parte de uma ―rede global
conspiratória‖ ou ―ocultação de informações‖ contra a verdade
dos discos voadores, ao feitio da série televisiva de estrondoso
sucesso nos anos 80, ―Arquivo X‖, como se o assunto fosse da
maior gravidade com que a humanidade já enfrentou, e que
precisa ser abafado e escamoteado pelo alto comando de todas
as nações. Mais um de seus inúmeros devaneios. Outro
depoimento oportuno sobre vida extraterrestre foi dado por
uma respeitada astrofísica, a veterana Jill Tarter, Diretora do
Centro de Pesquisa do Projeto Fênix, braço separado do
governamental Seti (Search for Extraterrestrial Intelligence)
na Califórnia:
64
Teoria defendida por Svante Arrhenius em 1903, sugerindo que a vida no Universo é farta e
que sementes (esporos) chegaram à Terra através de meteoritos, semeando a vida.
65
Formulada em 1961 pelo astrônomo Frank Drake, que tentou demonstrar quantitativamente a
probabilidade de haver planetas com vida inteligente na galáxia. Caducou pela grande
margem de erro das variáveis e pelo acúmulo de conhecimento nos últimos anos que
contrariaram as primeiras estimativas.
80
provavelmente continuarão assim até que tenhamos
sucesso.
O termo mais aberto é a longevidade de uma
civilização com tecnologia de transmissão. Nós
podemos estabelecer um limite mínimo usando nosso
próprio exemplo – fazemos isso há uns cem anos –,
mas não temos como saber qual o máximo que uma
sociedade assim sobrevive.
Algumas pessoas tentaram usar argumentos
estatísticos, mas não os adotei. Elas estão assumindo
que uma civilização tecnológica é algo pequeno em
comparação com as muitas tecnologias em evolução
que a englobam. Algumas dessas tecnologias
poderiam até viver mais do que as civilizações que as
inventaram.66
66
Folha de São Paulo, caderno +Mais, p. 5. 28/03/2010.
81
atividade social, mas ela permanece, frequentemente, sendo
uma experiência íntima‖.67 Jean-Bruno Renard, Professor de
Sociologia da Universidade Paul Valéry–Montpellier III,
afirma que ―O fenômeno dos discos voadores é o ponto
culminante da simbiose entre os temas de ficção científica e as
crenças pararreligiosas‖.68 Essa simbiose resulta na crença
paracientífica, por onde circulam parapsicologia, seres
fantásticos e discos voadores, enquanto as crenças
pararreligiosas congregam a reencarnação, vida após a morte,
etc. É na Ufologia que todas se agrupam e se fundem formando
um amálgama indistinto de forças pulsionais.
A natureza
82
contos desse tipo, entre eles, o famoso ―Guerra dos Mundos‖,
de H. G. Wells, escrito em 1898, que impulsionou o gênero da
ficção científica, encenada em uma transmissão radiofônica em
1938 que convulsionou a América.
A partir desse fato, a expressão ―disco voador‖ entrou
definitivamente para o vocabulário (e imaginário) popular,
mesmo porque muitos relatos descrevem formas em nada
parecidas com discos. Ainda hoje as publicações
sensacionalistas permanecem à espreita, pronta a entrar em
caso surja um evento que potencialmente mobilize e repercuta
na opinião pública. Quando se trata de esclarecer tais fatos,
ignoram e silenciam. A ilusão e a ficção sempre venderam
mais que a realidade.
69
Johannes Kepler, em seu conto ficcional ―O Sonho‖, publicado postumamente em 1634,
pode ter sido um dos primeiros autores a falar de estranhos seres habitando a Lua (citado por
Marcelo Gleiser, ―Criação Imperfeita‖, p. 356)
83
1909: a ficção antecipava o ―disco voador‖ da narrativa ufológica
84
mais frequentes do que se imagina. Assim, num primeiro
vislumbre, fica evidente que a tríade religião-medo-ficção se
onstitui a espinha dorsal do fenômeno, conferindo-lhe um
desenho poligonal.
O astrofísico franco-americano Jacques Vallée, PhD em
Ciências da Computação pela Northwestern University e
envolvido desde os anos 60 com a pesquisa do fenômeno Óvni,
é um dos mais destacados pensadores, respeitado tanto no meio
científico e acadêmico como no círculo ufológico por sua visão
analítica original cautelosa e sempre atual. Ele elogia o estudo
de Méheust e critica aqueles que não reconhecem sua
importância, e afirma que quando a pesquisa abrange textos
folclóricos antigos, literalmente afoga o material acumulado
pelos ufólogos modernos a respeito de sequestros por
alienígenas. Não é de se estranhar que muitos insistam em
ignorar este fato usando a hipnose em testemunhas
traumatizadas, numa ―tentativa inútil e desesperada de
recuperar o controle sobre um fenômeno cuja maior
características é a ilusão.‖ (grifo nosso)70 O destaque na
citação evidencia a contundência da afirmação, e aproveitamos
para esclarecer o sentido etimológico de ―ilusão‖, do latim
ludus, illudere – jogo, brincadeira, entretenimento, diversão,
derivando para ―ludibrio‖ e ―lúdico‖ através do plural ludi
(ludicrum). Isso não significa que Vallée esteja dizendo que o
fenômeno é uma diversão ou farsa, pois a definição, ampliada,
resulta em ―percepção equivocada‖, ―erro de interpretação dos
dados sensoriais‖, ―conflito de aparência com realidade‖. Eis o
sentido correto e onde se estabelece toda a diferença.
70
VALÉE, 1990, p. 193
85
Nosso tempo, sem dúvida, prefere a imagem à coisa, a
cópia ao original, a representação à realidade, a
aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não passa
de ilusão, pois a verdade está no profano. Ou seja, à
medida que decresce a verdade a ilusão aumenta, e o
sagrado cresce a seus olhos de forma que o cúmulo da
ilusão é também o cúmulo do sagrado.71
71
L. Feuerbach, prefácio à segunda edição de ―A Essência do Cristianismo‖, 1843, citadopor
Guy DEBORD in ―A Sociedade do Espetáculo‖, 2003, p.8)
72
DURAND, 2010, p. 33
86
otimismo: ―Felizmente, nos últimos 25 anos, uma minoria de
pesquisadores, que cresce a cada dia, interessou-se pelo estudo
deste fenômeno fundamental da sociedade e pela revolução
cultural que implica.‖73 Durand fala do fenômeno da
―multiplicação das imagens‖, mas suas palavras caem sob
medida para falar do outro fenômeno.
Se por um lado não se pode tomar aquela declaração de
Vallée – ou de qualquer outro – como expressão acabada da
verdade, por outro não se pode deixar de considerar o conjunto
de sua obra, o percurso e a autoridade, e principalmente o fato
de acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, amoldando e
reformulando seus conceitos conforme as informações vão
surgindo. Vallée declara ainda que o fenômeno Óvni age como
um transformador da realidade, provocando nas testemunhas
uma série de situações simbólicas indistinguíveis da realidade,
situações essas indutoras a estados de desorientação, tornando-
as – as testemunhas – vulneráveis e suscetíveis a experiências
visuais incomuns.
Para ele, a Ufologia parece caminhar por um beco sem
saída, pois a hipótese extraterrestre – pièce de résistance –
perde cada vez mais espaço diante da imensa quantidade de
informação existente sobre a realidade psíquica, que não tem
sido devida e cuidadosamente examinada no trato ufológico. E
não são somente esses estudos que estão empurrando esta
Ufologia para o limbo, são todos os outros que, combinados,
contribuem para o esgotamento daquela hipótese. As
suposições e especulações chegaram ao limite, e o que se
impõe é a adoção de uma nova postura e um novo olhar. Há
73
Id, p. 34
87
tempos ele prega uma tomada de posição mais arrojada e nos
adverte para ―amadurecer e abandonar o conceito de
espaçonave como era vista pelos filmes de ficção científica dos
anos 50‖.74
Sua mão se torna ainda mais pesada quando afirma
enfaticamente que esse tipo de comportamento dos ufólogos é
altamente prejudicial ao estudo científico da real natureza do
fenômeno, retardando em um tempo considerável e
valiosíssimo no sentido de convencer o meio acadêmico da
importância e dos benefícios que tal estudo pode proporcionar.
A falta de credibilidade advém justamente da atitude que tenta
a todo custo explicar – de maneira infantil, autoritária e
inflexível, o que é o fenômeno Óvni. Concluir pura e
simplesmente que se trata de ―naves extraterrestres‖ sem
admitir outras explicações é, para Vallée, e alguns de nós, de
uma pequenez intelectual terrível, é tomar o fenômeno pelo
nível mais raso de entendimento.
Na esteira desse enfoque, além da ficção científica é
legítimo mencionar a influência, no passado, da literatura
infantil, dos contos de fadas e dos quadrinhos, que povoaram o
74
It is a physical phenomenon that can come out of nowhere, change shape dynamically and
vanish by becoming transparent. An object that does all that is much more interesting than a
spacecraft. It can affect time itself. It can come from anywhere, any time, including our own
planet. We have to grow up and abandon the concept of spacecraft as it was seen in the
science-fiction movies of 1950. “Eu disse que ficaria desapontado se eles se mostrassem ser
―nada mais que naves espaciais‖. Eu gastei muito tempo ouvindo testemunhas, e o que elas
descrevem não é uma espaçonave. É um fenômeno físico que pode surgir do nada, mudar de
forma dinamicamente e esvaecer tornando-se transparente. Um objeto que faz tudo isso é
muito mais interessante que uma espaçonave. Ele próprio afeta o tempo. Ele pode vir de
qualquer lugar, em qualquer tempo, incluindo de nosso próprio planeta. Nós temos que
amadurecer e abandonar o conceito de espaçonave como era vista pelos filmes de ficção
científica dos anos 50.‖ Parte da entrevista concedida a um grupo de pesquisadores
brasileiros em 2004, coordenada pelo autor. Tradução de Laura Elias e Marcos Malvezzi
Leal.
88
imaginário de crianças, jovens e adultos. As sagas, as epopeias,
os relatos maravilhosos, todos orquestram uma espécie de
iniciação ao mundo mítico-simbólico. Talvez já não exerçam o
fascínio na mesma intensidade na vida atual, mas ficaram
enraizados com tal vigor que se tornaram parte indissolúvel do
subconsciente. Não é de hoje que a indústria cinematográfica
explora um filão altamente rentável ao resgatar os super-heróis
dos gibis, as aventuras épicas e os contos fantásticos. Sinal dos
tempos?
A fantasia é de grande importância para nossa estrutura
mental, mas tem, no entanto, face dupla: pode desenvolver a
sensibilidade, despertar o dom da arte, tornar concreta a
realização de sonhos. É o que em palavras similares diz
Marcuse ao afirmar que as fantasias promovem a ligação entre
os mais profundos níveis do inconsciente aos elevados
produtos da consciência. Faz mais, integra os sonhos à
realidade, preserva os arquétipos do gênero, as eternas e
aprisionadas ideias da memória coletiva e individual.75 Na
outra face, as fantasias não podem superar a realidade, o
plausível, a razão. É um átimo para a alienação, ainda que
Freud tenha afirmado que esta é exatamente sua principal
finalidade, porém como processo independente. É que a
fantasia harmoniza a felicidade com a razão, sendo ambas
antagônicas. A primeira surge pela idealização, pela
imaginação que trabalha com o ideal; a segunda mostra a
realidade, que é o oposto. Ele prossegue:
75
MARCUSE, 1975, p. 134
89
Conquanto essa harmonia tenha sido removida para a
utopia pelo principio de realidade estabelecido, a
fantasia insiste em que deve e pode tornar-se real, em
que o conhecimento está subentendido na ilusão. As
verdades da imaginação são vislumbradas, pela
primeira vez, quando a própria fantasia ganha forma,
quando cria um universo de percepção e compreensão
– um universo subjetivo e ao mesmo tempo objetivo.76
76
Id, p. 135
77
Referência a um efeito ótico luminescente nas câmeras fotográficas conhecido como
―Rods‖, quando flagram minúsculos insetos voando à noite próximos à lente, e também
esporos, ciscos de poeira e partículas suspensas que iludem o incauto fotógrafo achando ter
fotografado Óvnis.
78
LAPLANCE, 1998, p. 443
90
suas responsabilidades, temores, reveses e vicissitudes. Incapaz
de assumir desafios verdadeiros, tomar decisões e reconhecer o
fracasso e o infortúnio como inerentes à condição humana,
recorre aos artifícios da fantasia depositando nela suas
esperanças, seus sonhos e as suas mais profundas aspirações.
Ele precisa sobreviver ao insuportável e massacrante mundo
dos adultos e a única saída para mitigar as dores é retornar a
esse universo mágico de onde nunca desejou ter saído.
Acontece que ele precisa reconhecer conscientemente tratar-se
de uma ilusão para transcender esse estágio, assegurando-se de
incorporar as funções realizadoras presentes na fantasia, no
mito, na saga, na aventura, no romance...
Bauman já dissera o mesmo em outros termos. Se para
Jacob Grimm ―O fundo de toda lenda é o Mythus, isto é, a
crença nos deuses tal como vai sendo estabelecida de povo para
povo‖, para Mircea Eliade o conto de fadas não é apenas e
exatamente um gatilho de iniciação, mas um instrumento de
preservação e perpetuação de psicodramas que atendem a uma
profunda necessidade do ser humano – a de contato com o
―Outro Mundo‖ e de confrontar-se com situações mágicas
perigosas e desconhecidas. A maioria dos pensadores e
historiadores concluiu que os contos e os mitos são modelos
para o comportamento humano, dando valor e significado à
vida.
91
antigos relatos míticos, um fato social e cultural com marcada
influência religiosa? Jung defendia a ideia da religião como
uma atitude do espírito humano em relação a certos fatores
dinâmicos concebidos como ―potências‖: espíritos, demônios,
deuses, leis, ideias, ideais ou qualquer outra forma dentro de
sua realidade, que lhe seja suficientemente poderosa ou útil.
Ele faz inclusive clara distinção entre fé e religião:
―Poderíamos, por conseguinte, dizer que o termo religião
designa a atitude particular de uma consciência transformada
pela experiência do numinoso.‖79
Nenhuma análise social científica nem qualquer outro
enfoque externo dissolvem o âmago da autêntica crença e o
comprometimento com a fé. Todavia, o destaque excessivo ao
misticismo rouba a experiência de sua realidade, ao passo que a
ênfase de menos elimina o senso de mistério que gera a fé.
Embora seja imprudente considerar todas as experiências como
fatos incontestáveis, é igualmente arriscado desconsiderá-los
como ficção hiperbólica. É necessária uma aproximação, tanto
quanto possível, dos significados mais profundos, sem nos
deixar desviar pela sua visível aberração da realidade.
Como fórmula de pensamento, o raciocínio científico
contrasta radicalmente com o experimento transcendental, não
importa em que nível. Enquanto o primeiro está sempre sujeito
à dúvida e à crítica, o segundo se apoia na fé e na devoção – e é
justamente essa inflexibilidade que resulta na decadência da
religião. Por que a ideia de uma convulsão e consequente
―salvação‖ da espécie adquire tamanha importância? Além do
aspecto ―salvador‖ que o fenômeno traz implícito, existe outro
79
JUNG, 1984, p. 10
92
fator não menos importante que poderíamos chamar de
transferência de imagem, a transmigração que o homem faz de
sua força ausente para alguém – os ídolos e heróis de todos os
tempos. Aqui, porém, a palavra ídolo assume uma
interpretação diferente; sua etimologia deriva do grego eydolón
– imagem, reflexo. Aquilo que o ser humano não reconhece
conscientemente dentro de seu quadro de qualidades é
transferido para outro, dotado de poderes supranaturais, ainda
que possua uma fresta vulnerável. É aí que aparece a figura do
extraterrestre, um verdadeiro ―semideus‖: proveniente das
alturas– do ―Reino dos Céus‖, governante das estrelas,
imediatamente identificado como de um estágio evolutivo
superior, um ―emissário dos deuses‖, talvez até a
personificação de um deles.
Antes de se tomar o fenômeno Óvni como um mito (ou uma
atitude substituinte) e de que maneira ele se enquadra nesse
perfil, é preciso enfatizar que mito é um evento repetido e
recriado pelas sociedades porque inerente à sua existência.
Nenhuma sociedade o é sem o mito a lhe dar suporte, sentido e
direção, e conduzir o homem às suas mais profundas
aspirações: transcendência e plenitude. E ainda, como nos
contos, quadrinhos, épicos e romances, o que está em jogo são
as temáticas da redenção e da superação do tempo –
atemporalidade, infinitude, imortalidade.
93
dúvida dos homens, com a fé cega que eles depositam
em algo com poder de orientar suas vidas. Este poder
indefinido não é apenas uma divindade no sentido da
mitologia clássica (...) mas será sempre um poder que
transcende o limite físico e o entendimento dos
mortais.80
80
Umberto Eco, ―O irracionalismo ontem e hoje‖, Folha de São Paulo, 31/10/1987. P. 36
81
UFOs: The Religious Dimension, in Cross Currents 27:3, Oct 1977, p. 261-278
94
planetária.
95
que as coisas tomaram parece lhe dar plena razão.
É aconselhável fazermos uma visita rápida ao núcleo de
formação dos deuses em geral. De todos os livros dedicados ao
tema, o trabalho do filósofo Hermann Usener82 é dos mais
interessantes. Essa obra, que foi uma das principais fontes do
conhecido estudo de Ernst Cassirer83, divide a gênese e o
desenvolvimento dos deuses em três etapas distintas.
Inicialmente, temos o que Usener definiu como ―deus
momentâneo‖ – a impressão transcendente criada pela
confrontação do homem com um fenômeno singular. ―Na
imediatez absoluta‖ – diz ele – ―o fenômeno individual é
endeusado sem que intervenha um só conceito genérico; essa
única coisa que vês diante de ti, e nenhuma outra, é deus‖. É a
personificação de momentos isolados que se revestem de forte
tonalidade afetiva. Assim, explica Cassirer, cada impressão que
o homem recebe, cada desejo que nele se agita, cada esperança
que o atrai e cada perigo que o ameaça pode vir afetá-lo
religiosamente. Quando a sensação momentânea do objeto
colocado à nossa frente, à situação em que nos encontramos, à
ação dinâmica que nos surpreende, é outorgado o valor e o
acento de deidade, então esse deus momentâneo é criado.
Vale lembrar que essas forças se constelam
automaticamente sempre que condições internas ou externas
exijam um esforço de adaptação a situações novas ou
extraordinárias. Então surgem os deuses, individuais ou
coletivos, cuja atividade impede que o homem seja submerso
pela maré de desorientação que quase sempre acompanha essas
82
H. Usener, ―Os Nomes Divinos – ensaio para uma teoria da concepção religiosa‖
83
―Linguagem e Mito‖, Perspectiva, São Paulo, 1972.
96
circunstâncias. É por isso que o escritor romano Salústio
escrevia, no século IV: ―Mitos são histórias que nunca
aconteceram, mas que sempre existiram‖. Quando os deuses
são conjugados por um influxo externo, as forças arquetípicas
se projetam no estímulo, aparecendo aos nossos sentidos como
sendo um predicado do objeto exterior, ao invés de algo que se
origina dentro de nós mesmos. Ocorre, assim, uma fusão entre
sujeito e objeto, através da ponte estabelecida por essas forças
como mediatrizes, o que o antropólogo Levy-Brühl
denominava participation mystique. É assim que vamos
introduzindo o objeto à nossa própria psique. Dessa forma, ele
vai perdendo seu caráter de absoluta estranheza – nós nos
adaptamos a ele, e a libido84 de que ele se achava investido
pode retornar para dentro de nós.
Esse aparente predicado do objeto é sentido como sendo
uma alteridade total, dado que reúne o que eu desconheço nele
e o que eu desconheço em mim. O objeto é o Totalmente
Outro, até que eu possa incorporá-lo à minha visão do mundo.
Com isso, ele também se modifica. Essa ação é bipolar, tanto
pode ocorrer em relação a objetos exteriores quanto interiores à
minha psique, contanto que não se pense em limitá-la à
consciência. Na verdade, o inner space – nosso espaço interior
– é tão vasto e desconhecido quanto o exterior que tanto nos
fascina.
A experiência do Totalmente Outro e ao sentimento a que
ela origina o filósofo alemão Rudolf Otto denominou de
numinoso, considerando-o como o fundamento básico da
84
Libido é um sinônimo de ―energia psíquica‖. Sua distribuição no interior do sistema psíquico
é controlada pelos arquétipos, que se manifestam dessa forma. Podemos dizer, por isso, que
a libido é o veículo dos deuses.
97
religião, relembrando o vocábulo latino re legere – uma
acurada e conscienciosa observação de uma existência ou um
efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário. Pelo
contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano. O
numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, por
exemplo, um Óvni, ou o influxo de uma presença invisível, que
produzem uma modificação especial na consciência. Voltando
a Cassirer e à sua vívida descrição de como se forma o ―deus
momentâneo‖:
85
CASSIRER, 1992, p. 53
98
qualquer – Karran, Cramish, Clyvven, Ptaah, Ágar, Ahura
Rhanes, Ashtar Sheran, nomes com indiscutível semelhança
estrutural fonética com os dos seres mitológicos: Astarte,
Athar, Ciyyim, Ishtar, Nechtan, Yaggdra...86
Fabri acredita que estejamos vivendo sob o signo de uma
ausência – a do mundo dos deuses, e propõe que essa ausência
poderia ser compensada com uma atitude de escuta, de ouvir a
palavra, a palavra mítica, ―uma pergunta talvez, mas que tenha
força suficiente para nos colocar de novo nos moldes do
triângulo simbólico – mundo, homens, deuses.‖87
Os caminhos
86
Conf. ―Índice alfabético dos nomes próprios mitológicos‖, DURAND, 1997, p. 463.
87
In MORAIS, 1988, p. 35
88
Éticas, não morais. Moral vem do latim mores, ―costumes‖, por sua vez derivado da raiz
mor, ―maioria‖. Os costumes da maioria, por definição, só se aplicam a situações já digeridas
pela tradição. A moral não pode dar conta de nenhuma situação realmente nova e, por isso,
reage recusando-se a encarar o problema, ou, como dizem os psicanalistas, denegando-o.
99
entretanto, que a expressão por excelência dessas forças – a
religião, está extremamente enfraquecida. É necessário, por
conseguinte, encontrar sucedâneos para as imagens religiosas
tradicionais que sejam adequadas para a nossa civilização
tecnológica. Não é difícil perceber que o fenômeno dos discos
voadores, entre outros, preenche exatamente essas
características. Mas há que se esclarecer um ponto importante:
independentemente da função que exerçam dentro de nossa
cultura, é indubitável que os Óvnis constituem um estímulo
alheio a ela, cuja origem ainda não pode ser determinada. Eles
são, pois, alienígenas stricto sensu.
É justamente esse princípio de alteridade absoluta dos Óvnis
que os torna um veículo tão adequado para os deuses. Trata-se
de um fenômeno que, por sua estranheza e origem misteriosa,
preenche todos os quesitos para constelar os arquétipos. Uma
vez reunidas ao seu redor, as forças arquetípicas podem se
irradiar para outros setores, amplificando, assim, o conceito
original do fenômeno e sua área de ação, passando a incorporar
em si elementos desses outros setores. Podemos observar
claramente o desenrolar desse momento nas duas áreas
mencionadas, a saber, o confronto com o espaço exterior e a
responsabilidade implicada pela manipulação da energia
atômica.
De fato, como se manifesta o fenômeno senão como a
―vinda de seres alienígenas em estágio de civilização mais
avançado que o nosso‖? As resultantes desse quadro são mais
que evidentes: o universo não é um espaço hostil, já que lá
encontramos seres semelhantes a nós, habituados a ele e que
podem ajudar a nos acostumarmos também. E, por outro lado,
100
se existem seres que passaram pelo estágio em que estamos e
sobreviveram, então o suicídio nuclear não é tão inevitável e a
crise que enfrentamos pode ser superada. Encontramos ambos
os corolários, na verdade expressos com bastante clareza na
maior parte das mensagens que os contatados alegam receber
dos seus comandantes extraterrestres.
Assim como os mitos se originaram de prodígios celestes, a
Ufologia também teve seu parto induzido pelo surgimento de
fenômenos aéreos. Se os heróis eram devorados por monstros e
dragões, no presente as testemunhas/contatados são
―engolidos‖, abduzidos pelo Óvni. De acordo com Eliade, o
combate entre o herói e o monstro é muitas vezes situado como
o marco inicial da Criação, que começa justamente com a
vitória daquele sobre este. É a partir dessa vitória que o
universo começa a ser ordenado, geralmente sendo usado o
próprio corpo do monstro como matéria-prima. Mais uma vez
o destaque para remeter o leitor à ideia central deste livro: usar
o corpo do fenômeno como alimento para reordenar o nosso
universo de estudos.
Eliade conclui que o dragão personifica o caos, o estado
amorfo e indiferenciado contra o qual se opõe o ordenamento
do universo, ou seja, o dragão corresponde ao que é
modernamente conhecido como entropia. A entropia possui um
aspecto relacionado à teoria da informação e à cibernética.
Nesse contexto, é a medida de desorganização de um dado
sistema de informação e, sendo a Ufologia um sistema como
tal, seu grau de entropia é muito elevado. Dominada pelo caos
informacional, a Ufologia encontra-se em um estado análogo
ao do herói devorado pelo dragão. Uma vez dentro dele, o
101
herói alimentava-se cortando pedaços do dragão. ―Cortar‖, com
o sentido original do grego analyó – de onde derivou o verbo
analisar. Isso talvez signifique que num futuro próximo o caos
ceda lugar a um movimento organizado, com uma
conscientização maior de seus objetivos e dos instrumentos
disponíveis para atingi-los.
No tocante à casuística, a presença de elementos análogos
aos dos mitos é uma constante. Para começar, tomemos como
exemplo as características referentes ao fator ―tempo‖. O que
se convencionou chamar de contato não ocorre dentro do nosso
tempo histórico e linear, com fortes evidências a favor dessa
afirmação: os fenômenos de contração e dilatação do tempo
ocorridos durante as experiências ufológicas. Esse dado leva a
um ponto em comum com a mitologia: a existência de um
tempo milagroso, na qual vivem os deuses, as fadas, os entes
sobrenaturais de que Eliade fala.
Os encontros entre estes seres e a humanidade ocorrem
dentro dessa esfera de tempo, chamada ―Tempo Forte‖ por
alguns povos, ―Tempo do Sonho‖, pelos australianos. O fato é
que, desde os homens primitivos aos pensadores gregos,
sempre se insistiu que esse Tempo Forte pode sobrepor-se à
nossa própria escala de tempo, envolvendo determinados
eventos como ritos ou hierofanias. Mas aqueles seres já não
estão mais entre nós. Há uma ruptura, uma perda, apesar da
fantasia, da literatura, da expressão artística, que ainda mantém
um vinculo esparso com essa hierofania. ―Que é que faremos
com todo esse conjunto ritual de mundos esquecidos – e
102
violentados – pela civilização ocidental? Podemos ainda
vivenciar a experiência das hierofanias?‖89
89
Op. cit., p. 34
90
Mircea Eliade in PAZ, 1989, p.30
103
ungido e pertencente a uma hierarquia espiritual que está
acima da linguagem vulgar. Em outras palavras, pertence ao
―Reino dos Céus‖. Mas a abdução também pode ser vista em
correspondência aos mitos da ascensão, tomando esse termo de
forma figurativa, naturalmente. ―Aquele que se eleva subindo a
escadaria de um santuário ou a escada ritual que conduz ao céu,
deixa então de ser homem; de uma maneira ou de outra, passa a
fazer parte da condição divina.‖91 Em outra obra, Eliade
mantém ligação com o tema ao citar o mito da ascensão:
104
casuais significados: Ibo, dos maoris, significa ―elevado‖,
―acima‖; Uwoluwu, dos negros akposo, ―o que está no alto‖;
Puluga, ―habitante dos céus‖ para os andamanais; Olorum, o
deus dos iorubas, é o ―proprietário dos céus‖ e assim por
diante. E uma última possibilidade de interpretação para as
abduções: poderia a abdução, uma vez que é perpetrada por
seres ―dos céus‖, ser o desejo reprimido de retorno ao ―paraíso
perdido‖, mito presente em quase todas as culturas? Que o
contato atende esse desejo foi dito várias vezes neste livro, e se
assim é de fato, a abdução surge como ápice da experiência
ufológica – o almejado encontro com os deuses à espera de
regresso ao Éden. Sim, mera divagação, não descartável nem
desajuizada.
93
MANFREDI, 2003
105
autoridades‖ ou porque ―há algo estranho por trás da negativa‖.
Esse exemplo não é fictício, aconteceu e acontece com
frequência. E outra situação recorrente é quando o ufólogo,
bastante criterioso, capta contradições no relato que indicam
erro de interpretação ou fraude, e a testemunha se rebela e
insiste em confirmar sua história. Em quem confiar? Quem tem
mais necessidade de crer no fenômeno?
Uma pesquisa realizada no final dos anos 80 revelou que
para cerca de 90% das pessoas é muito importante observar um
Óvni. Na mesma época, outra pesquisa realizada na Espanha
mostrou que mais de 80% acreditam na procedência
extraterrestre desses objetos. O fato de o contato visual ser
importante para um número tão expressivo deixa claro que
existe uma necessidade ou um desejo por esse encontro. Um
dado chama a atenção nessas pesquisas: a conclusão de que
quanto mais se acredita no fenômeno Óvni menos se aceitam as
formas tradicionais de religião, porque o disco voador assume
um papel substitutivo de tais crenças. Tem-se assim, podemos
dizer, um padrão totêmico potencializador de fé. Além disso, o
público alvo da enquete considera que os discos voadores são
tripulados por seres protetores que aqui se manifestam como
―sentinelas‖, ―guardiões cósmicos‖, prontos a intervir no caso
de uma hecatombe planetária. Como telemarionetes, ―Sancte
Asthar ora pro nobis”.94
94
Lúcio Manfredi em referência irônica à idolatria pelo ―comandante interplanetário‖
autodenominado Ashtar Sheran, em ―Os Ovnis de Dalí‖. Saiba mais sobre este personagem
no capítulo Comandantes estelares: somos marionetes? em ―A Desconstrução de um Mito‖.
106
de um todo significativo para o homem, jogando o
sentido da vida e do universo ao nível de compreensão
de uma civilização avançada e altruísta não-humana e
que está disposta a nos ajudar. A salvação está em
algum lugar do espaço exterior à Terra.95
95
Luiz Gonzaga G. Trigo, ―O mito na cultura contemporânea‖ in MORAIS, 1988, p. 119
107
podem ser convencidos a lhes conceder favores. Mas
o fato é que essa hierofania inicial mostra que a
adoração não precisa ter necessariamente um fundo de
interesse. Quando as pessoas aspiram atingir a
transcendência simbolizada pelo céu, sentem que
podem escapar da fragilidade da condição humana e
passar para o que existe além dela.96
96
AMRSTRONG, 2005, p. 105
108
próprios pesquisadores que tratam de – via hipnose –
selecionar dados e informações que julguem confirmar seus
pressupostos. Outro pesquisador, Thomas E. Bullard, detectou
um padrão no imaginário das abduções composto de oito
etapas, sucintamente descritas aqui:97
1 – Sequestro por meios ―mágicos‖
2 – Exames médicos invasivos e traumáticos
3 – Informações sobre os objetivos da missão
4 – ―Passeio‖ pelo interior da nave
5 – Viagem ao planeta de origem
6 – Aparições súbitas de outros seres
7 – O seqüestrado é devolvido no local exato do sequestro
8 – Sequelas físicas, psicológicas e mentais duradouras
97
Thomas E. Bullard, “UFO Abductions: The Measure of a Mystery”. Volume 1: Comparative
Study of Abduction Reports. Mt Ranier, MD: Fund for UFO Research 1987.
109
vivenciam uma realidade, a sua realidade, pessoal e
intransferível, sendo, portanto, para eles, verdadeira. A
existência de opiniões, crenças, ideias e fantasias não significa
que o que elas representam seja exato no grau e na forma. E um
sistema delirante, psiquicamente real, não tem validade
objetiva, mas não se pode dizer que não seja verdadeiro. As
noções de mundo interno e externo são, elas próprias, imagens,
metaforicamente falando. Tais entidades espaciais não têm
existência, exceto na medida em que uma dada realidade
psíquica permita.
As conclusões de um estudo americano98 envolvendo
contatados e grupos-controle mostraram que o primeiro grupo
apresentou um contorno psicológico diferente, com elevado
índice de dissociação, crença em paranormalidade com auto-
referência a dons pessoais, tendência a alucinações e incidência
de paralisia do sono. A falsa memória foi registrada nos dois
grupos assim como a propensão a fantasias, sem diferença
significativa. Segundo os autores, as falsas memórias podem
surgir se as lembranças de eventos gerados internamente como
imaginação, fantasias e sonhos são indevidamente interpretadas
como memórias de eventos que ocorreram na realidade
objetiva.
Jung usa o termo ―imagem‖ de uma maneira inclusiva para
denotar a ausência de um elo direto entre o estímulo e a
experiência. Desse modo, manifestações somáticas podem
também ser consideradas como imagens, lado a lado com todo
o mundo físico conforme experimentado na consciência. Nossa
98
Christopher C. French, et al. Psychological aspects of the alien contact experience. Cortex.
44 (2008):1387-1395.
110
experiência se torna ―real‖ a partir do momento em que nos
encontramos com a imagem dela. Pode-se depreender a
complexidade da matéria, fruto suculento para a psicanálise,
com todas as suas nuances, funções e elaborações.
111
criança atinja o nível da realidade, deve deixar o modo
imaginário da visão de si e utilizar o modo simbólico.
Ainda para Lacan, o simbólico seria coletivo e cultural;
enquanto o imaginário seria individual e ilusório. Estes são
apenas alguns exemplos. Apesar da variedade de conceitos e
interpretações, imaginário foi empregado aqui conforme
Durand – um conjunto de imagens do patrimônio cultural do
indivíduo e da sociedade. Podemos concluir afirmando ser o
imaginário o veículo instaurador do equilíbrio dinâmico do
homem em suas relações com o mundo (como o mito), através
do intercâmbio contínuo entre as pulsões biopsíquicas e as
instâncias socioculturais. O imaginário é a mediatriz entre o
real e o ilusório, o entrelugar organizador dos padrões
imaginantes produzidos pelo homem. Para a vertente lacaniana
da psicanálise, a realidade é uma intersecção de três instâncias:
o real, o imaginário e o simbólico. O simbólico é o mundo da
linguagem, o imaginário99 o das imagens. Juntos, eles
constituem o que usualmente consideramos como
―realidade‖.100
Contudo, neste ponto da análise, sua aplicação está
associada aos veículos que o produzem: o sonho, a demência, o
devaneio e o mito, que carrega os traços das imagens
primordiais e elabora um sistema imaginário desencarnado dos
mais potentes na psique humana, mais verdadeiro do que real.
Um ponto interessante é que essa ―família de imagens‖ é
99
Não confundir com o uso coloquial da palavra, que é tida como sinônimo de ―falso‖,
―inexistente‖, ainda que o domínio da ilusão não seja de modo algum alheio às reflexões
lacanianas sobre o imaginário.
100
MANFREDI, 2003
112
produzida por vontades criativas próprias, preenchendo uma
função relativa às necessidades existenciais.
101
EIADE, 1979, p. 13
113
O imaginário é um conjunto de conceitos
individuais, produzido por vontades criativas próprias
que preenchem funções relativas às necessidades
humanas.
102
―A Árvore de Dourados Frutos‖, p. 349.
103
http://aluisionestelar.ning.com/
114
casos estimulando a formação de seitas de cunho
essencialmente místico. Cristo já teve seu glorioso retorno
anunciado dúzias de vezes por contatados, resultando sempre
uma grotesca farsa. Para Durand, isso se deve pelo fato de a
própria história pertencer ao domínio do imaginário, e também
porque a imaginação conserva uma pedagogia da imitação pela
força das imagens e dos arquétipos embutidos pela ambiência
social e momento histórico.
Ele afirma, investido da autoridade que lhe cabe, que ―o
imaginário aparece como recurso supremo da consciência,
como coração vivo da alma cujas diástoles e sístoles
constituem a autenticidade do cogito.104 Isso representa dizer
que o imaginário é, mais que mera paixão, ação eufêmica
transformadora do mundo conforme o deseja o homem.
Seria necessária e útil a esta altura uma longa e detalhada
apreciação associando a abdução com a ficção, os conceitos
lacanianos (e não lacanianos) do Outro e mitologia, mas
optamos por um pequeno desvio de rota para apoiar uma
reflexão adicional. Vamos recapitular alguns trechos,
costurando-os para dar seguimento às ilações finais:
104
DURAAND, 1997. p. 433
115
monstro nos relatos míticos antigos. A deglutição pelo
monstro desempenhou um papel importante nos
rituais iniciáticos (...) Por isto, o retorno ao ventre do
dragão implica regeneração, renascimento, ―unidade
com o indistinto primordial.
Os extraterrestres são como anjos da guarda. O mito
proporciona um meio de integração, de estruturação
de um todo significativo para o homem, jogando o
sentido da vida e do universo ao nível de compreensão
de uma civilização avançada e altruísta não-humana e
que está disposta a nos ajudar. A salvação está em
algum lugar do espaço exterior à Terra.
116
inevitável, com uma semelhança sutil (sutil?): em Distrito 9 o
homem ao enfrentar outro humanos acaba por incorporar a
―personalidade‖ do alienígena, passando a ser um deles; em
Avatar, depois de descobertas interiores e épicas batalhas
contra os humanos na pele de um Na´vi, o mariner – símbolo
do destemido guerreiro moderno – decide não mais voltar ao
seu corpo preferindo se submeter a um ritual de sacrifício para
assumir definitivamente o seu lugar nessa nova (antiqüíssima)
sociedade. Quem abduziu quem? Quem é o outro subjugado e
de quem é o ―eu‖ sobrevivente? O ―monstro‖ devorou ou foi
devorado? Se não há vencedores nem derrotados, o que
significa esse hibridismo inter-racial? Não compreender o outro
é não compreender a si próprio? O outro sou eu mesmo? Não se
espante com tantas perguntas, o jogo está apenas começando.
A produção cultural é fértil em obras com essa temática, mas
notamos um sensível aumento nos últimos anos, tanto na
literatura quanto no cinema, que nos leva a pensar: Que análise
pode ser feita neste momento com a manifestação artística
inseminando tantas mensagens claramente arquetípicas e
estruturalmente míticas? Que transformações estariam
ocorrendo em nosso inconsciente, e o que estaria acontecendo
em nossa dinâmica consciente que ainda não captamos?
Uma experiência pessoal narrada pelo escritor Rubem Alves
sintetiza com profundidade e delicadeza esse processo visceral
de suprir necessidades e acalentar desejos inconscientes,
impulsos que ultrapassam o caráter puramente pessoal. Ele
conta que assistindo o filme ―ET – O Extraterrestre‖, de Steven
Spielberg, notou que sua filha vertia lágrimas em quantidade na
sequência final, quando a pequena e simpática criatura se
117
preparava para embarcar na nave que a levaria de volta para
casa. Deu-se conta então que também ele tinha os olhos
marejados.
No dia seguinte, vendo que a filha continuava triste e
melancólica, tentou animá-la dizendo-lhe que o ET poderia
estar escondido na árvore do quintal... ―– Deixe disso, papai‖,
disse a menina – ―ETs não existem!‖ ―– Ah é, então por que
você chorou tanto por ele ontem?‖ perguntou. ―– Você não
entende. Justamente por isso, porque ele não existe!‖105 A não
existência de extraterrestres é algo ―inadmissível‖. No caso da
crença em Ets – e aqui não se trata de negação renitente – o
fascínio extremo não permite reflexões a título de crítica do
próprio conhecimento. É o que Erich Fromm destaca neste
sentido:
105
In MORAIS, 1988, p.13
106
FROMM, 1966, p. 18
118
influência de fatores econômicos, geográficos, ambientais,
tecnológicos, políticos e sociológicos. Com o sujeito ocorre o
mesmo – seu animismo são as manifestações psicológicas, os
efeitos que o seu psiquismo provoca tanto ao externar um
comportamento quanto ao construir uma realidade subjetiva.
Assim, o que animava os acontecimentos para a humanidade
antiga era algo ínsito às coisas da natureza, enquanto para o
homem animista suas próprias faculdades, seus instintos,
pulsões que constroem suas motivações, enfim, a sua própria
atuação anima ocorrências que ele mesmo produz. O termo
―animismo‖ foi usado por Edward B. Tylor, em seu clássico
Religion in Primitive Culture, de 1934, para indicar a crença
difundida entre os povos primitivos de que as coisas naturais
são todas animadas; daí a tendência a explicar os
acontecimentos pela ação de forças ou princípios animados.
Hanly acredita na validade da comparação, no nível
fenomenológico, de certos aspectos do funcionamento psíquico
dos gregos homéricos com o dos gregos dos séculos IV e III
a.C. Segundo sua hipótese, os gregos homéricos eram
―empiristas ignorantes que inventaram um conjunto de
explicações complexo e coerente para os eventos naturais‖,
baseados no que havia de mais familiar para eles – eles
próprios.107
Eis aqui a fusão da fase mitológica da humanidade com a
animista. No plano individual não seria diferente: Novas
observações do desenvolvimento infantil poderiam mostrar que
também as crianças modernas são empiristas inscientes que
usam metáforas e analogias psíquicas para tentar compreender
107
HANLY, 1995, p. 172
119
o mundo que as rodeia. Para a humanidade e para o homem,
pode-se resumir que, de forma criativa e imaginativa, conta-se
com o melhor de que se pode dispor na elaboração de
explicações, com o comportamento típico de uma cultura pré-
científica. Um fato interessante: se Hanly estiver certo e o
comportamento da humanidade por ele levado em conta voltar
a se repetir como seria de se esperar, passaremos da ―fase dos
espíritos‖ para a ―fase dos ETs‖ para então, de novo, concluir
que estamos mergulhando inevitavelmente para a fase da razão.
108
La Societé du Spetacle. Paris. Buhet-Chastel. 1967. p. 12
120
expressão do contatado e do abduzido é essencialmente
simbólica, e o caráter soteriológico embutido em suas
mensagens e relatos reflete os temores não apenas sobre o fim
do planeta, mas da vida em geral. O padrão é: ―O equilíbrio do
universo está ameaçado. Estaremos atentos e vigilantes,
prontos a intervir no caso de uma catástrofe nuclear‖. Não foi
sobre isso que Bauman falou lá atrás?
121
o onírico, a imaginação, a fábula, lado a lado com o espanto, o
medo e a angústia ante o desconhecido.109 Apesar do tempo
decorrido desde a publicação deste trabalho, Fernandes não só
reafirmou esse pensamento em recente correspondência, como
reforçou tais conceitos a partir dos seus últimos estudos.
No curso da história esse ―maravilhoso‖ amoldou-se às
conjunturas sociais e culturais em cada tempo. A cientificação
que caracterizou o século XX não representa sua
dessacralização, mas antes, a ressacralização. Mas esta
Ufologia praticada hoje, encapada pela fantasia, pelo
espetáculo, pelo maravilhoso e pelo devaneio já não ocupa
mais lugar em nosso labor oratorium.
Em um livro lançado no final de 2009, Fernandes e
colaboradores, todos vinculados àquela instituição, fazem uma
larga incursão no universo das testemunhas sob o ponto de
vista psicossocial, sem entrar no mérito da existência ou não
dos discos voadores, percebendo que as crenças e as
representações, individuais ou sociais, acerca de um fenômeno,
interferem com as características dos eventos observados. Ao
longo da obra, Fernandes e equipe analisam o fenômeno sob
vários ângulos, tendo sempre como fulcro os contatados (em
qualquer nível) e sua relação com o tema. Imaginário, mídia,
características etnográficas, crenças, aspectos religiosos,
folclore, construções da memória, abduções e mitologia são
alguns pontos cuidadosamente estudados, onde encontramos
forte identificação e paridade com o presente trabalho.
109
―Poder, Espanto e Prodígios Celestes‖, 1º Congresso de Literaturas Marginas. Universidade
do Porto. 1987.
122
Os objetivos ficam claros logo na apresentação, expressando
o sentimento que permeou o projeto, qual seja, o de provocar
uma reflexão multidisciplinar de um fenômeno de massa
contemporâneo, que parece ter recuperado sua dimensão
mágica, a dimensão dos grandes mitos da antiguidade. A obra
mostra ainda um quadro sintomático suportado pelas vivências
extraordinárias com todo o aparato de expressões e
experiências simbólicas e estéticas de um exuberante
imaginário coletivo das crenças associadas.
123
discos voadores às raízes do espírito humano, renovando o
contato com elas. Com a palavra, Lacan:
Rio de Janeiro, 1985, citado por Lúcio Manfredi apud REIS e RODRIGUES, 2009, p. 258
124
com os discos voadores, estamos assistindo ao nascimento de
um novo mito.
125
126
Considerações finais
111
CAMPBELL, 2002, 23
127
mecanismo de ressonância gerador e multiplicador de
significados.
128
(engano); ou na deliberada manipulação de tais
valores, com a finalidade de obter poder sobre a
massa, sobre a maioria (mistificação). Em ambos os
casos (engano ou mistificação), o erro é de quem
decifra, não do mito.112
112
In MORAIS, 1988, p. 38
129
menos ele compreende sua própria existência e seu próprio
desejo.113
113
―L‘aliénation du spectateur au profit de l‘objet contemplé (qui est le résultat de sa propre
activité inconsciente) s‘exprime ainsi : plus il contemple, moins il vit; plus il accepte de se
reconnaître dans les images dominantes du besoin, moins il comprend sa propre existence et
son propre désir.‖ La Societé du Spetacle. 3éme ed. Paris. Gallimard. 1992. p. 20)
130
Manfredi diz também que esse disco voador (o dos
ufólogos) é uma ―unidade cultural‖, referindo-se a Umberto
Eco114, uma imagem que reúne e representa um amplo conjunto
de significantes – luzes, sons, raios, vôos, objetos, fotos, filmes,
desenhos e sobretudo palavras, muitas palavras – que traduzem
um significado ainda não decodificado. O disco voador é um
signo e só existe como tal, uma combinação de vários traços
extraídos da casuística e que nem sempre andam juntos, nunca
todos juntos, mas que estão sempre suficientemente juntos para
que se reconheça, ou suponha, sua unicidade interna.115
114
In ―Tratado Geral de Semiótica‖, Perspectiva, São Paulo, 1980.
115
MANFREDI, 2003
131
também se modifica, se reescreve, se transgride e se imagina
frequentemente, nem sempre no ritmo dessa mesma história.
São dois mundos que tentam conversar e interagir, integrar e
convergir, cada um singular e heterogêneo. O homem é a célula
cujo corpo é o mundo.
No fundo, este ―indivíduo‖ não o é tanto quanto parece; ele
é múltiplo síncrono – comandado e comandante, criador e
criatura, pensante e errante, preferido e preterido, a soma de
vários em um só. Tenta entender o mundo pelo prisma
circunstancial de cada personagem. Isso equivale dizer que
algumas verdades são, inegavelmente, temporárias. Isso
equivale dizer também que as convicções que nos moveram até
aqui, fortalecidas principalmente ao longo do último decênio,
estão sujeitas a reconstruções se as contingências exigirem.
Não há nenhuma garantia de sua perenidade, já que é nosso
dever não confundir procura da verdade com necessidade de
acreditar.
O aval da ciência subscreve apenas o presente, não o futuro.
A custódia da verdade nunca foi prerrogativa do Homem, mas
da Natureza, e não pode ser usurpada por pretensos agentes da
autoridade. O fenômeno Óvni e os mitos estão inelutavelmente
acoplados ao espírito humano, conformando a concepção e o
entendimento do mundo e de si mesmo. Ou do Si-mesmo
dependendo de como se olha a questão.
132
A verdade tem um prumo cientifico que lhe confere isenção
plena. Ela não se escreve pelo achismo, não se desenha por
subterfúgios, não se vende pelas crenças e não se revela pelo
maniqueísmo do ―Se não é isso só pode ser aquilo outro”. Ela
se inscreve pela razão e se constrói pelo trabalho, pela reflexão,
pelo pensar contínuo. Ela não é hermética e não pertence a uma
casta privilegiada de santos, sábios, doutos e cardeais. Se
pertence, não deveria. ―Verdade‖ tem tripla concepção,
conforme nos explica Marilena Chauí:
116
CHAUÍ, 2000, p. 23
133
Dissemos ainda, no outro extremo deste livro, que o
racionalismo filosófico é um poderoso instrumento na busca do
conhecimento. Racionalismo filosófico. Nunca é demais
lembrar que razão, do latim ratio e do grego logos, significa
medir, juntar, contar, calcular, analisar, dissecar, examinar.
Filosofia, do grego Filia Sofia traduzida como ―amor pelo
saber‖ ou ―pela verdade‖. John Locke, em1690, defendia esse
princípio: ―Um sinal infalível de amor à verdade é não
considerar nenhuma proposição como convicção maior do que
a autorizada pelas provas que a fundamentam‖.
A eterna Filosofia, de onde derivaram todos os demais
saberes é conhecer os princípios da realidade, o substrato
último das coisas, a origem, essência, valor e sentido do
universo, ou ainda, como definiu Aristóteles, a ―Ciência das
primeiras causas e dos primeiros princípios‖. Racionalismo
filosófico, portanto, nada mais é que ―saber com inteligência,
com fulcro na razão‖. A verdade não é pendular, não brinca de
gangorra nem se veste a rigor para uma queda-de-braço. Uma
coisa, entretanto, não pode ser refutada: na balança da verdade,
o ponteiro se inclina sempre para o peso da argumentação
responsável, da autoridade reconhecida, da experiência
respeitada e da evidência consolidada.
O que fazemos quando medimos, analisamos, ponderamos?
Pensamos de modo ordenado por amor ao saber em busca da
verdade. Eis o ponto fundamental inexistente no circuito
ufológico – pensar e falar ordenadamente, com clareza, medida
e organização. Inexistente justamente porque é na Ufologia que
estão as quatro atitudes mentais que impedem a reflexão:
ilusão – aceitação incondicional das aparências; fanatismo –
134
desconexão, excesso, descontrole; crença – fé cega no
sobrenatural, no ―maravilhoso‖, na ―revelação‖; e misticismo –
alienação, devaneio, inconsciência. Seguramente, a Ufologia
encontra-se numa posição delicada, traindo e subtraindo-se
num movimento entrópico sem volta. Como nos lembra
Renard, o problema da existência dos Óvnis e dos
extraterrestres é espontaneamente posto em termos de crença:
―você acredita em discos voadores?‖117
E dissemos mais, que a Ufologia – ou qualquer outra
disciplina – não pode ser compreendida sem o auxílio de outras
que a endossem. Autônomas, sim, mas nenhuma um fim em si
mesma. Há uma interconectividade à feição de uma grande
Teia de Conhecimento à prova de fuga, fios interligados
levando a informação de um ponto a outro. Não foi esse ―amor
ao saber e à verdade‖ que propiciou ao homem tocar as estrelas
e mergulhar na gênese da vida? Ou ainda vivemos de acreditar
que raios e trovões são mesmo a ira dos deuses?
Está certo Gleiser quando aponta a diferença entre os
sobrenaturalistas, que vêem forças ocultas por trás de tudo,
acuados pelos medos apocalípticos e crenças inexplicáveis, e
os naturalistas, que sabem não ter todas as respostas, mas nem
por isso temem o desconhecido, ao contrário, admitem que essa
ignorância é um desafio libertador, jamais um cárcere.
É preciso exorcizar os demônios que infestam a consciência
com falsas verdades e professam mentiras, obstruindo a
verticalização do saber. O ser humano é reflexo – para o bem
ou para mal – daquilo que ele aprende e apreende do mundo e
das respostas que oferece aos mistérios que se lhe apresentam.
117
In MAYER, 1989, p. 31
135
A conduta científica respeita a integridade dos fatos tais como
são, porém, aplica-lhes um ponto de vista crítico em busca das
estruturas universais causadoras destes fatos, das leis gerais de
funcionamento dos fenômenos, de métodos, sistemas,
parâmetros e critérios comparativos. Ela não se deixa levar
pelo senso comum – opiniões e hábitos cristalizados pelas
tradições, crenças e repetição, senso esse geralmente
desprovido de conhecimento e prática investigativa.
Ao lançarmos esta proposta de estudos, a iniciativa vai
além, convidando remodelar o pensamento, o ser, a maneira de
conduzir a vida e olhar o mundo; reindagar-se, ascender a outro
nível de percepção, acompanhar a história sem descompasso,
dialogando na mesma frequência. O mundo exige esse esforço,
a oferta de conhecimento impõe esse ritmo, a voracidade das
transformações proíbe acomodação. Se a era digital entrou
definitivamente em nossas vidas, não se pode mais
manuscrever em pergaminhos. São muitas as frentes de
trabalho que pedem comprometimento, responsabilidade,
combater o medo, a omissão e a inércia.
Transitar por campos tão férteis em sabedoria e aprendizado
(sem contar a Ufologia como eixo de altercação) tem sido uma
experiência enriquecedora, que estimula um apetite insaciável
por conhecimento ante um banquete luxuriante de palavras. É,
também, um trabalho de campo intelectivo envolvente e
gratificante. Não sucumbimos à complexidade dos temas nem
capitulamos frente ao chamado cultural e científico,
simplesmente porque não poderíamos nos esquivar ao dever de
lançar bases para uma pesquisa pluridirecional, com todas as
limitações e encargos naturais de um projeto desse porte.
136
O mito, enquanto nos instaura na vida divina e
desencadeia em nós um impulso, uma paixão, mostra
o Ser, remete ao ―estranho‖, ao ―espantoso‖, ao
―Poder selvagem‖, à ―Poesia em si‖. O estudo dos
mitos aurorais é a descoberta de uma modalidade do
numinoso. O interesse desse estudo é o
estabelecimento de um liame entre o mito primitivo e
o mito moderno.118
118
Vicente Ferreira da Silva, citado por Constança M. César, in MORAIS, 1988, p. 86
119
A frase original é: ―Fecundar o ensaísmo acadêmico com a clareza do texto jornalístico e, ao
mesmo tempo, enriquecer a visão crítica dos fatos através da formação universitária.‖
Citado por João Cezar de Castro Rocha, Professor de Literatura Comparada da UERJ, in
“Exercícios críticos. Leituras do contemporâneo‖. Chapecó. Argus. 2008. p. 25
137
Estes poucos, enfrentando o desafio dessa busca, usam
todos os recursos que a inteligência lhes proporciona para
elaborarem uma verdade, libertando-se ao sonho de novas
descobertas. Outros se valem de suas próprias certezas, que
tudo lhes provê e determina, aceitando-na, pois, como única e
liquidante, agarrando-se ao primeiro porto que lhes pareça
―seguro‖. Talvez, por isso, mais felizes, porém, seguramente
mais fracos e sucumbíveis a qualquer momento, iludidos por
crer na sua sinceridade, sempre prontos a qualquer arranjo
desde que um novo porto lhes seja acenado. Assim,
conformados e inconformados estabelecem entre si um muro
intransponível que os faz viver lado a lado, ao mesmo tempo
tão próximos e tão distantes. Infelizmente, também,
obedecendo as próprias leis da evolução, a desproporção da
distribuição dos seres de cada lado é muito grande.
Não precisamos criar mistérios onde não existe. O mundo já
é exuberante de eventos fantásticos banhados de magia, que
encantam e revelam a beleza da vida e nos fazem sonhar em
busca da sabedoria e da verdade, um sonhar desperto embebido
na Filia Sofia, o mesmo sentimento que envolveu a
―Reflexões‖, uma obra legitimamente pantemporânea.120
As questões que buscamos responder parecem ter ficado
claras: o homem concebeu o mito do disco voador para dar
vazão às suas mais entranhadas angústias existenciais. Ele quer
e precisa acreditar nessa sua criação para que ela, em
contrapartida, lhe dê a segurança necessária para prosseguir a
caminhada. Não precisaria acreditar, não fosse refém de suas
120
Neologismo, do grego pantós – todo e latim tempus – tempo, para algo que atravessa o
tempo ligando passado, presente e futuro por só fio; pertencente a todos os tempos.
138
crenças e escravo de seus medos; se não alimentasse esse
caldeirão de inquietações em que transformou seu mundo e se
não se encantasse tanto com o que imagina ver.
Como encontramos em Bauman arrimo aos nossos estudos,
é dele que extraímos uma última interrogação, uma lição de
casa para o leitor: ―Dizer a verdade é suficiente para garantir a
vitória sobre a mentira? Será a razão capaz de se sustentar por
si mesma diante do preconceito e da superstição?‖121 Nunca é
demais lembrar que reflexão, do latim reflexum, significa
curvar-se de novo – ao pensamento sobre si mesmo e sobre
todas as coisas. Um trabalho artesanal por excelência,
produzido pela dúvida crítica, pelo conhecimento, ousadia,
maturidade, isenção e coragem. Um exercício não contaminado
pela vaidade e arrogância, enfim, um pacto com o saber e uma
demonstração de respeito pela verdade. Isto é ―Reflexões.‖
121
BAUMAN, 2008, p. 210
139
140
Adendo I
Medo plural
141
A explicação pode estar em vários lugares, inclusive na
ciência – na neurociência – como nos trabalhos de longa data
dos doutores Eugene D´Aquili e Andrew Newberg, da
Universidade da Pensilvânia. Através do processamento de
imagens cerebrais, eles começaram a detectar e analisar as
fontes básicas dos sentimentos religiosos122 – a neuroteologia.
Eugene e Andrew não são os pioneiros nem estão sozinhos
nessa busca por um ―gene divino‖ ou ―sede da fé‖. Os
primeiros resultados desse estudo mostram que os sistemas de
crenças e o sentimento religioso têm base neurológica, e que os
mitos, por exemplo, podem ter origem em outras funções
biológicas, porque nosso cérebro opera a partir de um
―imperativo cognitivo‖: a necessidade de obter respostas e
explicações para os eventos do mundo. A essa faculdade
Newberg chamou de ―operador causal‖, um conjunto de
funções analíticas diversas encarregadas de mapear cada
problema e encontrar sua resposta.
No caso dos mitos, Newberg identificou o ―operador
binário‖, incumbido da função sobre a sua formação e
perpetuação, com uma heurística clara e objetiva na elaboração
nuclear dos mitos: vida e morte, céu e terra, homens e deuses.
Deduz-se, portanto, a priori, que qualquer reposta a qualquer
problema pode ser entendida como uma necessidade antes
―fisiológica‖ que psicológica. A pesquisa, em certo sentido,
está apenas começando, mas, se estiver correta, é possível
intuir resultados mais do que surpreendentes, o que nos leva ao
próximo ponto.
122
Andrew Newberg et al: Cerebral blood flow during meditative prayer: preliminary findings
and methodological issues. Perceptual and Motor skills; 97:2. 625-630, 2003.
142
Nossas reflexões conduziram àquilo que se tornou uma
preocupação recorrente no e do mundo contemporâneo. Rubem
Alves abre a questão: ―O encantamento não está no que se vê,
mas no que se imagina‖. Algumas páginas atrás a resposta se
insinuava: ―Nesse `viveiro das incertezas´ coabitam outros
sentimentos como ansiedade, fragilidade, descrédito,
insegurança, desidentidade, medo e fuga.‖ Direto ao ponto: ―O
medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se
aninham nas sociedades abertas de nossa época‖. Medo! Esse
adendo se justifica para amplificarmos a discussão, dada a sua
importância capital.
Sim, medo, mas não esse mede real e imediato, próximo,
intestinal e concreto que permeia nosso cotidiano: a doença
grave, o acidente fatal, a insegurança das ruas, o desemprego, o
fracasso profissional ou conjugal, a morte, temores naturais
justificados que devem ser vivenciados como mecanismos de
equilíbrio psíquico e emocional. Embora em tempos idos o
medo representasse o oposto à bravura, coragem, heroísmo,
portanto sinônimo de covardia, é, no entanto, indissociável à
nossa existência. A coragem é dos fortes, o medo dos fracos é
um pensamento anacrônico e enganoso. O medo é um agente
da criatividade, da fantasia e da invenção, por estar ligado ao
mistério, ao inexplicado e inesperado.
Mas é outro o medo que nos interessa abordar, aquele que
nos afeta mais densamente, mas nem sempre reconhecido ou
admitido. Ele pode ser traduzido por inquietação, ansiedade,
talvez até angústia já que, como diz Jean Delumeau, ―A
angústia é ambivalente. Ela é, ao mesmo tempo, vertigem do
143
vazio e esperança da plenitude.‖123 Que medo é esse? É o que
Bauman chama de medo ―inadministrável‖, que contém um
indiscutível gancho cultural: o medo do próprio homem, do
outro, do desconhecido, de certa forma fabricado e excitado
pela cultura da insegurança, do catastrofismo, nem por isso
menos verdadeiro.
Não é um medo imaginário, mas imaginado, e essa
―imagem‖ do medo surge em todos os meios e expressões
culturais, alimentando – aí sim – o imaginário: cinema,
literatura, contos infantis, entretenimento, religiões e até a
publicidade, todos usando de modo inteligente o impacto que
essas figuras produzem no inconsciente e que se refletem nas
reações diante de um quadro real: a noite e seus equivalentes –
escuridão, silêncio, sombras, solidão, trevas, a cor negra de um
modo geral, elementos que, associados, compõem uma
atmosfera asfixiante e assustadora. Não que escuridão ou
silêncio por si instiguem o medo, mas porque sugerem algo
passível de acontecer. Transpondo para a cena diária, a
incerteza do amanhã desperta inquietação e ansiedade, ou seja,
medo. O ―dia seguinte‖ é sempre uma incógnita, uma
incubadora de surpresas, ameaças, desventuras e perigos.
123
In NOVAES, 2007, p. 40
124
BAUMAN, 2008, p. 8
144
Ao buscarmos o significado de noite para compreender
melhor a sua relação com o medo, vemos que os gregos a
consideravam ―mãe dos deuses‖, por entenderem que ela
precedia a formação de todas as coisas. ―Por isto, como as
águas, tem um significado de fertilidade, virtualidade,
semente‖.125 Para a psicanálise, noite é o próprio inconsciente.
A combinação com medo e negro está associada ao mal, por
isso que quase sempre os vilões são retratados com roupas
negras e agem pelas sombras da noite; é quando o terror se
manifesta, na ―escuridão da alma‖, no mundo soturno,
silencioso, subterrâneo e rastejante das formas inferiores. A
simbologia é óbvia: quanto mais inferior, mais trevas, mais
ignorância, mais medo; quanto mais elevado mais luz, mais
conhecimento e mais sabedoria. A Ufologia encampou essa
ideia criando enredos folhetinescos com os famigerados
―homens de negro‖.126
145
tamanha a verossimilhança entre as narrativas. Além de
―globalizar‖ o medo, Shyamalan toca precisamente no cerne
das relações humanas, tal como discorremos aqui.
127
Profª. Izaura Rocha, ―The Happening: terror pós-moderno e alegoria da alteridade como
fonte de tensão e conflito.” http://www.bocc.uff.br/pag/bocc-thehapening-rocha.pdf.; p. 4.
Acessado em 2/07/2010
128
LEVI-STRAUSS, Claude, apud CICERO, Antonio in A noção de humanidade, Folha de
São Paulo, 1988, n. 28.941, 28 de junho de 2008, Ilustrada, p. E13.
146
espiritual e esperança através da ideia da vida post mortem. O
catolicismo, por exemplo, consagrou expressões eufemísticas
como ―Encontrar o Pai‖, ―Vida eterna‖ e outras tantas como
recompensa de uma vida terrena virtuosa, mas é visível a
preocupação com que hoje a Igreja observa a dispersão de seu
rebanho. Também não vamos nos ater a essa discussão. A
proliferação de igrejas e ―igrejas‖ é um dado que não pode ser
contestado; a concorrência cresce a olhos vistos e a fila de
seguidores aumenta em igual proporção.
A partir do momento em que as doutrinas religiosas e
espiritualistas não cobrem as necessidades de seus fiéis, estes
se tornam infiéis. De alguma forma, ―alguém‖ tem que olhar
por nós e adotar medidas que governem nossos atos, seja por
sanções punitivas ou de aprovação. A vida eterna, a
imortalidade, é um ―prêmio por bom comportamento.‖ Outrora
eram os deuses que impunham o destino dos homens ditando as
regras de conduta e obediência. Hoje são os astronautas
alienígenas. Amanhã não fazemos a menor ideia de quem será.
É inegável que a morte é um momento singular, indivisível.
A solidão também. Não se pode compartilhar nem um nem
outro, e como o homem não está preparado para enfrentá-los, o
temor se revela e se instala. Se sua impermanência é um fato,
que ao menos a existência de outras criaturas no éter lhe
conforte e dê esperanças. O disco voador e o ser extraterrestre
representam essa ―força superior‖ capaz de aliviar suas
apreensões, resolver as questões que o atormentam e à
humanidade. Se os alienígenas estiverem investidos dos
poderes que presume estejam, certamente terão superado o
problema da morte e talvez possam lhe dizer como isso é
147
possível. É aí que o fenômeno se transforma num sangradouro
de aflições, temores e angústias do homem moderno, descrente
das instituições que ele mesmo criou para lhe dar segurança,
estrutura, organização social e suporte espiritual. De um ponto
de vista ontológico, a solidão no universo contraria sua
natureza gregária e aumenta o receio de não ter alternativas em
relação ao ―apocalipse‖129.
129
Do grego Apokalypsis – descoberta, revelação. Seu simbolismo arquetípico conduz ao
sentido de renascimento. Ao contrário do que proclama a crença popular que entende como
fim da existência humana, aniquilação da vida no planeta, o Armageddon.
148
beira do penhasco e lhe diga quem ele é e qual o rumo a tomar.
É por estas fendas que o Outro invade esta célula trôpega e
permeável. Extraterritorial por não se situar em seu universo
consciente e sim naquela zona difusa e inexpugnável do
inconsciente. E é exatamente lá que ele conserva suas
esperanças para o que quer que seja esse algo e esse alguém.
Acorremos pela última vez a Gilbert Durand, ao qual peço
especial atenção do leitor para uma reflexão definitiva e
absolutamente fundamental:
149
esclarece os processos formadores dos signos e das
palavras.130
130
DURAND, 1997, p. 145
150
Adendo II
Um mergulho no não-espaço
151
mutismo ensurdecedor. Suspeitas vagas pontuais alimentam
tênues esperanças que, no final, se dissipam como nuvens na
ventania. Um dia, certamente, haverá condições de prospectar a
vizinhança com alto grau de precisão e certeza, mas até lá
teremos que nos submeter a essa desconfortável solidão. Ainda
que recentemente tenha sido descoberta uma rara forma de
vida131 num lago americano, continua sendo uma variante da
vida terrena, apenas uma adaptação deste microorganismo a
um meio teoricamente adverso.
Por fim, a questão da inteligência é ainda muito mais difícil
de deslindar. Há um longo percurso para se chegar à definição
de inteligência em sentido amplo, e o exemplo das baleias,
golfinhos e poetas é mera ilustração. Inteligência transpõe os
conceitos básicos de compreensão, entendimento, raciocínio,
abstração, adaptação. A ciência não foi capaz até hoje de
localizar uma ―central da inteligência‖ no cérebro, porque este
trabalha de forma holística, integrada, um todo
harmoniosamente atuante. Mas a procura continua. Para tornar
a coisa toda incrivelmente bela, a inteligência se manifesta em
vários níveis, cada um fatiado em áreas bem específicas. Um
turbilhão de impulsos eletroquímicos – sinapses – construindo
o pensamento e formando a consciência no ―nanoespaço‖
cerebral, numa engenharia que beira a esfera do divino,
tamanha a grandiosidade. Mas não é sobre as origens da vida e
a fisiologia do cérebro que viemos divagar, embora seja uma
introdução interessante e necessária. O que nos toca são os
processos mentais que constroem e direcionam o saber.
131
A bactéria GFAJ-1 substituiu o elemento fósforo por arsênio na sua composição. Em que
pese a previsível polêmica sobre a descoberta, a possibilidade deste fato abre perspectivas
extraordinárias da viabilidade de vida em outros sistemas planetários.
152
O ponto é: como ordenar tais processos sem recorrer aos
padrões humanos, aos valores, parâmetros e mecanismos
intelectuais? Impossível? Absurdo? Se estamos falando de algo
não terrestre e queremos entender como é possível que exista
esse algo, precisamos abrir mão de todo e qualquer
condicionamento mental que baliza nosso conhecimento.
Se realmente a vida for uma anomalia terrestre, um acidente
cósmico, uma singularidade, então qualquer outra vida,
inteligente ou não é uma quimera, um sonho a decretar o fim
das afirmações ufológicas. No entanto, se com boa vontade
imaginarmos que haja uma única civilização avançada o
suficiente e perto o bastante para navegar pelos arredores do
planeta e nele pousar, então podemos prosseguir na divagação.
Se a existência dessa única civilização já seria algo espetacular,
imagine dezenas, se não mais, espalhadas por aí como
defendem os ufólogos. Diante dessa possibilidade, é
perfeitamente natural pensar que ―lá‖ também deva existir uma
engenharia aeronáutica, fábricas de discos voadores, linhas de
montagem, máquinas, operários, técnicos, pilotos; cálculos
matemáticos, equações, simuladores, dispositivos eletrônicos,
automatismo. Ferramentas, indústrias, logística, manutenção
(alguns casos relatam disfunção das naves), e se houver peças
com defeito devem existir oficinas e locais para sucata, restos,
lixo, inclusive reciclagem.
Desdobrando esse raciocínio, aos poucos vamos deslizando
suavemente pelas curvas da fantasia. Mesmo que os nossos
imaginados vizinhos espaciais tivessem aparência a menos
humana possível, o quadro não mudaria. Eles precisariam ser
muito diferentes, totalmente diferentes para que então também
153
começássemos a pensar de maneira também totalmente
diferente. Convenientemente, contudo, não há – nem poderia
haver – nenhuma descrição séria de criaturas com aspecto
androide ou de robô, ou répteis, artrópodes repulsivos ou
aterrorizantes, personagens assíduos da ficção. Pois se de fato
houver vida em abundância espaço afora, deverá ser menos
surpreendente se for semelhante, em aparência, aos mais
criativos e bizarros produtos da imaginação.
Pelas leis da natureza, onde há vida há nascimento,
crescimento, degeneração e morte, logo, deduzimos que
alhures exista uma sequência natural de fetos, bebês, crianças,
jovens, adultos e idosos, sexuados, o que sugere a mais
complexa estrutura social a exemplo da nossa civilização
moderna. Não há como articular um raciocínio diferente. Não
podemos imaginar que tudo funcione ―apertando botões‖, e
ainda que fosse, deverá existir uma fábrica de botões e fios e
máquinas... e assim sucessivamente numa interminável espiral
imaginativa.
154
da fila. Seria muito irônico se, como dizia Mário Quintana, os
alienígenas não estivessem nem um pouco interessados em nós,
mas em estudar a vida dos insetos!
As implicações culturais, sociais, históricas e psicológicas
decorrentes da possibilidade real de vida extraterrestre
inteligente são difíceis de predizer, mas certamente teriam um
impacto avassalador. Neste caso, também, a ―globalização‖
mudaria para uma ―universalização‖, e se tememos o outro,
como vimos, seja quem ou o que for, como reagiríamos diante
desse ―Outro Absoluto‖ no dizer de Glissant?132 Estaríamos na
iminência de uma autêntica ―guerra dos mundos‖? Como
ficaria a nossa identidade como seres humanos? Como iríamos
reescrever nossa história? Onde estaria nossa verdadeira
origem? Seria possível administrar uma variedade existencial
tão profunda (lembrando que estamos imaginando dezenas de
civilizações!)? É de se presumir que o choque psíquico só seria
comparável, na devida proporção, à visão dos nativos na
chegada dos colonizadores europeus ao continente.
Tais deduções assentam-se em nossos padrões mentais, já o
dissemos, mas lembre-se de que estamos falando, desde o
princípio, de algo não terrestre, não humano, e o que traçamos
experimentalmente é um palco com todos os atributos do
mundo terrestre, humano, portanto um claro paradoxo. Para
pensar objetivamente e sem incoerências, precisamos ludibriar,
ou ainda ―anular‖ o processo de construção mental que nos
132
Édourd Glissant, Doutor em Filosofia, escritor, Distinguished University Professor da
Universidade de Louisiana, EUA, ao responder sobre a diversidade cultural diante da
globalização e das contínuas transformações do mundo: (...) A menos que a essa totalidade
terra enfim realizada se oponha um outro absoluto. Por exemplo, se sobrevierem
extraterrestres. ―Introdução a uma poética da diversidade‖. Juiz de Fora. Editora UFJF.
2005.
155
leva a estas conclusões. O problema está em como fazer isso.
Se tal civilização existir de forma diferente da que imaginamos,
não temos como imaginar de forma diferente. E não há forma
diferente de imaginar a partir dos elementos conhecidos para
formular nosso raciocínio. Não há dilema, é lógica. Se não for
assim, não há como ser de outro jeito. Para pensar fora do
universo mental em que estamos contidos, temos que nos
deslocar para o ―não-espaço‖, o não-lugar, como o personagem
Neo em ―Matrix‖, catapultado no vazio cercado de nada, tendo
que reconstruir toda a sua estrutura sensório-pensante. Mas
essa é uma reflexão ainda a ser escrita.
156
Síntese conceitual
157
A [de]formação da narrativa
158
Simetria estrutural – I
159
Simetria estrutural - II
160
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