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NAUS DA ILUSÃO

Uma análise transdisciplinar sobre


a crença em “discos voadores”

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2
Carlos Reis

NAUS DA ILUSÃO
Uma análise transdisciplinar sobre
a crença em “discos voadores”

EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro ¦ 2016

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EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro – RJ
CEP 20230-152

Capa
Diagramação ¦ Paula Guimarães

Revisão ¦ Ana Carolina Fellet

Naus da Ilusão
REIS, Carlos
1ª Edição
Maio de 2016
ISBN: 978-85-5996-066-2

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais
sem prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.

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Aos meus amados filhos
Márcia, Maurício,
Ana Carolina e Guilherme,
luzes do meu caminho.

À minha amada Izaura,


centro da minha caminhada.

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Argo Navis. 1687. Johannes Hevelius

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Índice

11 Gratidão
15 Prefácio
27 Uma bússola para a leitura
77 História e Cultura – ventres da fantasia
81 Arquitetura de uma ilusão. Jung e os símbolos
de natureza psíquica. Frazer, Malinowski,
Durkheim e o homem religioso primitivo
89 A sedução, o encantamento. Freud explica o poder
da crença?
105 O messianismo atravessando mares. A herança
cultural e mística portuguesa e o Brasil mágico
de Arthur Ramos
117 O não identificado, identificado? Morin e a
reconstrução do saber a partir das representações
141 Os deuses entre nós. Cassirer e a linguagem, Eliade
e o mito, Otto e o numinoso
146 Nós, os outros. Diálogos (in)visíveis: do outro
de Chauí à criança de Lacan e o si-mesmo
de Ricoeur
153 Santa visão. Alucinação? Histeria coletiva?
Quem responde: Neurociência ou Psicologia?
157 Crer ou não crer não é a questão. A imaginação
poética na tradição ocidental pós-iluminismo
segundo Bloom
170 Crescer é preciso. A navalha de Olavo e as escolhas
de Fromm

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185 Ficção científica e a linguagem ufológica
199 Ufologia científica ou ficção ufológica? À mesa
com Sartre, Baudrillard, Lacan, Pessoa e convidados
desossando o humano
210 Onde estão todos? Antropo vs. alienmorfismo;
As funções de representação de Chartier
216 Espelho, espelho meu, há alguém mais tolo do que
eu? Quem está por trás de nossa imagem?
A melancolia de Narciso
235 O imaginário reinventando o futuro
246 A imaginação mitopoética. A equilibração
antropológica de Durand e a preocupação
de Lévi-Strauss
252 O homem no vazio do espaço e do tempo.
Os contos de fadas alimentando as fantasias e os
desejos de adulto
265 As ficções nossas de cada dia. Ernest Beckere a
negação do inegável: a morte
265 Criação, Ascensão e Queda. A heroização
do humano e a humanização do herói
280 Sobre a morte e o morrer. Bakhtin e o homem
amedrontado, transiente e solitário. A senectude
e o fim silencioso e indiferente
294 As narrativas surreais do real imaginado
303 Considerações finais
335 Apêndice I - O fenômeno Óvni no folclore fantástico

8
346 Apêndice II - Pequena galeria do imaginário extraterrestre
na cultura sci-fi "pré-1947"

371 Referências literárias

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Gratidão

Toda e qualquer obra literária é composta por várias


mãos, muitas delas invisíveis, mas só o autor leva os
méritos. Se a bibliografia ao final indica o percurso teórico,
os agradecimentos na entrada revelam o reconhecimento
àqueles que, mesmo que não saibam, deram o suporte
prático basilar para a realização do projeto. Destaco, então,
alguns contributos relevantes.
Mais uma vez, devo ao meu querido irmão Álvaro
pelo seu empenho por prospectar e enviar, desde as terras
ultramarinas, obras fundamentais indisponíveis no Brasil,
que consubstanciaram meus escritos. Seu carinho me é
imprescindível. Foi por seu intermédio, via redes sociais,
por exemplo, que sua amiga Cristina Pereira, da mesma
Lisboa, generosamente dispôs, com delicadeza e total
desprendimento, um precioso título de sua biblioteca.
Dedico um agradecimento especial também aos
queridos amigos Dr. Ubirajara Rodrigues e Prof. Matheus
Carvalho, pelas direções e sugestões advindas de suas
respectivas formações, que engrandeceram sobremaneira
esta obra.
A todos, meu afetuoso muito obrigado.

Carlos Reis
Outono de 2014

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Conheço muitos que não fizeram,
quando deviam,
porque não quiseram
quando podiam.

RABELAIS

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Prefácio

As ilusões talvez sejam em tão grande número quanto


as relações dos homens entre si e entre as coisas.
E, quando a ilusão desaparece, quando vemos o ser
ou o fato tal como existe fora de nós, experimentamos
um sentimento bizarro, metade dele complicada pela
lástima da fantasia desaparecida, metade pela surpresa
agradável diante da novidade, diante do fato real.

BAUDELAIRE

Ascending and Descending. M. Escher.


Litogravura. 1960.
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Sobre discos voadores: Pensamentos inquietos sobre
espiritualidades difusas.

Apropriando-me livremente de um conceito


freudiano (mal-estar), teço algumas palavras sobre o livro
de Carlos Reis. E aqui remeto ao sentido que pretendo
imprimir ao termo neste prefácio: um mal-estar nascido da
flutuação dos signos, significados e significantes na cultura
e na sociedade, não mais atrelados às suas tradicionais
raízes; uma livre flutuação, na qual o verdadeiro e
verossímil trocam de sinais e de lugar.
Ambos, verdade e verossimilhança, flutuam como
discos voadores e sintomatizam o mal-estar em nossa
época: representação democrática liberal em crise no
mundo ocidental, a ascensão das direitas radicais e das
ortodoxias religiosas (muçulmana, cristã, hindu, budista e
outras), a desintegração do patrimônio ambiental (o
chamado aquecimento global), a multiplicação de
religiosidades esotéricas, com muitos movimentos
ufológicos e outras vertentes. Contudo, a esse mal-estar,
Reis contrapõe uma vigorosa reflexão, sobrepondo, aos
ruídos pós-modernos de crenças e de pertencimentos
deslocalizados, desterritorializados, em deslizamento
constante, uma reflexão permeada de tons claros e

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intensos, articulando filósofos, antropólogos e sociólogos
numa “tapeçaria persa”.
Dessa forma, quando os mestres da ficção científica
como Asimov, Bradbury ou Clarke são citados, constata-se
que a ideia de disco voador e todo o cortejo de sociedades
e redes de sociabilidade ufológicas tornaram
intercambiáveis e equivalentes termos como ficção,
realidade, magia, religião e ciência: não se sabe mais
quando um começa e outro termina.
O texto deste livro rasga o tecido diáfano da
narrativa ufológica com impetuosidade, às vezes de forma
ácida e peremptória. O “disco voador” é sempre uma
ausência presente, um vazio cheio de infinitas
possibilidades desdobradas constantemente, que, contudo,
nunca são ou se apresentam realizadas em plenitude. Um
trabalho interminável empreendido pelos “cientistas” das
vidas extraterrestres em busca do Santo Graal: a busca do
disco voador e de seus pilotos, os ETs. O mundo dos discos
voadores reelabora antigas mitologias e em especial, as
cosmologias milenaristas – as otimistas, a restauração do
paraíso terreal, e as pessimistas, a destruição da Terra e seu
esquecimento, conjugando-as com as metáforas da
tecnologia e da ciência.
A escrita do presente livro é rigorosa na crítica e
com raios e trovões, procurando destroçar os céus
povoados de “disco-voadorismo”. Partindo de um implícito
argumento de Karl Popper, quando este redige
considerações sobre a lógica que preside a investigação
científica, o texto de Carlos Reis opõe teorias científicas a
doutrinas. As teorias científicas encontram seu lastro,
bússola e âncora na probabilidade, sempre aberta e
possível, de serem falseadas, contraditadas e questionadas.

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Os processos de prova e contraprova são parte essencial da
ciência moderna. Num dos inúmeros casos citados pelo
livro, a discussão de projetos espaciais futurísticos que
levariam homens e mulheres para futuras viagens espaciais,
Reis, dominando dados físicos e cosmológicos, critica esse
e outros casos recorrendo a fatos concretos: a equação
espaço-tempo, as distâncias intergalácticas e muitos outros
aspectos.
Sobre a visita de alienígenas e espaçonaves que
pousam no planeta Terra, o livro pergunta, em tons
fortemente irônicos: “Diversas civilizações viajando trilhões
de quilômetros há milhares e anos até nós para que?
Cientistas de Sírius a explorar a flora e a fauna, minerais,
água, solo e vísceras animais? Médicos geneticistas de
Órion interessados em nosso sistema reprodutivo para
procriação híbrida?” Contudo, indivíduos envolvidos no
verossímil discurso ufológico ousariam responder
afirmativamente às perguntas feitas por Carlos Reis, com
base em suas próprias idiossincrasias. Nesse aspecto, as
doutrinas, ao contrário das teorias científicas, não se
coadunam com o princípio da falseabilidade, segundo
Popper. São autocentradas, tendem a se fechar diante de
questionamentos, dúvidas e críticas, embora usem
raciocínios lógicos e racionais. Aliás, sabe-se, pela
psicanálise que desejos, fantasias, traumas e outras
emoções podem ser racionalizados, ou seja, podem ser
expressos sob a forma racional e lógica.
No caso deste livro, pode-se falar de teorias
ficcionais científicas, como parece ser o caso da Ufologia
que, com certeza, não se vê como religião, embora os
sintomas de ser religioso estejam entranhados. Mas, no
caso dos ufólogos e ufologia, é sempre um objeto que,

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apesar de concreto e verdadeiro para os membros que
acreditam nas conferências, revistas e congressos sobre
vida extraterrestre, é um quase-ser: indícios, sombras,
pistas, sintomas, sempre inconclusos, por um lado, mas
sempre apresentados como provas verdadeiras. Aqui, faço
uma pequena pausa teórica para citar Andreas Grünschloß,
professor na Universidade de Göettingen, Alemanha
(Faculdade de Teologia) e seus estudos sobre o fenômeno
das crenças e práticas ufológicas. Numa dessas pesquisas,
ele analisou três movimentos ufológicos e os comparou em
termos de cosmologia milenarista e imaginário científico-
tecnológico, sendo um dos casos mais impactantes o da
comunidade Heaven’s Gate. Em março de 1997, essa
comunidade ufológico-religiosa praticou suicídio coletivo,
com 39 pessoas mortas. Seus membros acreditavam que,
morrendo dessa forma, poderiam passar a um “nível
superior de realidade”, já que o mundo e a realidade
terrena eram projeções holográficas contaminadas por
seres extraterrestres decaídos (alienígenas luciferianos).
Segundo essa comunidade, a única forma de
salvação seria sair do mundo terreno (projeção virtual
contaminada por vírus tecnológico) abandonando o
“invólucro carnal”. Eufemismo para suicídio. Assim,
durante a passagem de um cometa, o Hale-Bopp (visto em
seu periélio a partir de abril de 1997, portador de uma
órbita longa), os membros da Heaven’s Gate acreditavam
que seriam levados a naves espaciais pilotadas por “seres
acima do nível humano” e a novos locais mais
desenvolvidos, com novos corpos e nova consciência. A
partir desse e outros estudos realizados por Grünschloß, é
possível pensar que os cultos ufológicos são, também,

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mitologias científico-seculares com fortes aspectos
milenaristas e reinterpretações de símbolos cristãos.
Frise-se que o texto de Reis é incisivo e demonstra
amplo domínio de autores e conceitos clássicos e
contemporâneos como Gilbert Durand, Edgar Morin e
Mircea Eliade, entre outros. Com isso, são perfiladas
diversas categorias para pespegar sobre os discos voadores
e seus fantásticos representantes, uma dura análise:
fantasia, estruturas heroicas ou esquizomorfas do
imaginário entre tantas outras. “Imaginário”, por exemplo,
detentor de alto rendimento hermenêutico, torna o texto
denso – mitos, ficção, racionalidade e fantasia fundem-se
nos discos voadores e ufólogos. Contudo, o texto nos
aponta o “disco voador” como representação do
contemporâneo. Pergunta-se: que contemporâneo? A
época e seu espírito? Que época é a nossa? Uma época em
que ficção, mito e fantasia perduram, prolongam e
misturam-se sob novas formas, adquirem novos trejeitos e
trilhas?
O “contemporâneo” é herdeiro de uma época
(século XIX) em que se acreditava na ciência e nos seus
discursos, entendidos como pura positividade e
racionalidade, abririam uma era de progresso sem fim.
Mas, ao mesmo tempo, uma era em que o mito e a
superstição – que muitos acreditavam – seriam
progressivamente dominados e deixariam de existir. Nada
mais falso. Do ponto de vista de uma antropologia da
cultura, o discurso mítico é conatural às existências
humanas, social e culturalmente condicionadas. O discurso
da ciência é, também, para além de seus anseios de
investigação empírica e interpretativa das dimensões do

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real, um discurso, uma narrativa, com regras e lógicas
próprias.
Portanto, em vez de opor verdade e mentira como
critérios básicos para rejeição da ufologia, dos ufólogos e
de todo o imenso cabedal de imagens, livros e objetos que
vão da “ciência ufológica” a “ficção religio-científica”,
pode-se perceber o “disco voador” como uma narrativa.
Ou seja, todo esse mundo de naves que vem e vão
constantemente e ETs que abduzem, monitoram seres
humanos e implantam chips, governos que escondem
supostas provas e corpos de aliens, etc., não é senão um
enredo dramatúrgico, uma narrativa, um discurso
simbólico, um sintoma social. Nesse caso, melhor do que
opor, de forma dura, verdade científica versus disco
voador, é compreender, de forma dialética, que ambos são
linguagens, não necessariamente opostas, mas vistas por
uns como conflitantes, e por outros, como
complementares.
Assim sendo, todo o capital de escritos, grupos e
pessoas em torno do disco voador, poderia ser entendido
como um enredo dramatúrgico ufológico, um enredo que
se desdobra em múltiplos mundos simbólicos conectando
religião, narrativas racionais e mitologias, apaixonando
pessoas e grupos a ponto de movimentar milhões de reais,
centenas de congressos internacionais e nacionais,
associações, grupos de estudo, debates, revistas e imagens,
todas verossímeis, com efeito de realidade. Eu diria, numa
livre apropriação das ideias centrais de Foucault e
Baudrillard, um efeito do real e um efeito de simulacro.
Por outro lado, há aqui um paradoxo irônico: nesse
mundo agônico e amorfo em que as tecnologias e
aparelhos de captura, produção e edição de imagens

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popularizam-se e melhoram sua qualidade, os aliens e os
“discos” ficam mais precavidos, deixam de aparecer em
alguns lugares e passam a frequentar mais amiúde os salões
dos congressos e os grupos e redes ufológicas de crença e
sociabilidade. Porém, para dentro da comunidade dos que
compartilham as crenças e discursos ufológicos, as imagens
são nítidas, seus contornos inegavelmente grossos e fortes.
Real com efeito de real. Aqui, todo detalhe é essencial: o
verossímil ufológico remete aos relatos, narrativas e
afirmações sobre discos voadores parecidos com verdades,
a elas semelhantes, mas delas distantes também.
Entretanto, para fora da comunidade ufológica,
essas mesmas imagens são apenas rastros que, de tão
tênues e diáfanos, só podem ser narradas como “verdade
objetiva” com o amparo do mito e da fantasia. Pode-se
dizer que, nesse caso, se está diante de fatos quase reais
com efeito reais, ou, para os mais críticos, fatos
verdadeiramente falsos, embora verossímeis. De uma forma
ou de outra, como quase real, verdadeiro falso ou falso
verdadeiro, a perpetuação do “fato ufológico” se dá
também a partir dos rituais de iniciação, celebração e
proclamação das ufo-verdades acalentadas pelas
comunidades de ufólogos e simpatizantes espalhadas pelo
mundo e futuros membros.
Fato é que, somente os que se cortaram no fio da
navalha das crenças e ficções ufológicas se dão conta que
o discurso dos “discos” é uma linguagem cifrada como
tantas outras como, por exemplo, as teorias dos Illuminati e
da Nova Ordem Mundial, aspirando a ser uma verdade
definitiva sobre um aspecto do real. Há um trabalho de
Sísifo implícito no mundo ufológico: nunca chega ao fim,
um eterno retorno do mesmo. Talvez haja aqui, para

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lembrar um importante intelectual, Ernesto Laclau, um
significante vazio: nele cabe tudo, pode tudo, é, por fim,
uma imorredoura ponte de crenças e movimentos, um
vaivém interminável de ficções e teorias verossímeis.

Prof. Dr. Emerson José Sena da Silveira


Ciências da Religião/Antropologia
Universidade Federal de Juiz de Fora

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Estilhaços de Vidro. Cortesia GD Fotografias. 2010.
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Uma bússola para a leitura

Maravilhas sem conta há neste mundo,


mas a maior de todas é o homem.
Homem habilidoso e criativo!
Ele aprendeu a fala e os pensamentos
alados, bem mais rápidos que o vento.
Das duras intempéries se defende,
dos gelos e das chuvas fustigantes.
Só não tem meios para fugir da morte,
porém não cansa de buscar remédios
que desbaratem males incuráveis.

SÓFOCLES

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Tendo pela frente um cenário continuamente
redesenhado por fervilhantes transformações culturais e
ciclônicas (r)evoluções tecnológicas e científicas, fustigado
por tempestuosas convulsões sociais e abalos geopolíticos,
e estilhaçado por enfrentamentos ideológico-religiosos
literalmente explosivos, o mais recomendável é abdicar de
concepções e valores superados e congelados no tempo, e
não hastear bandeiras em defesa de convicções
enferrujadas, enrijecidas, petrificadas, emboloradas. Hoje,
observa-se que tudo, absolutamente tudo, em todos os
setores da vida humana e em todas as áreas do
conhecimento – inclusive, e sobretudo, o próprio, está
sendo reexaminado, desconstruído e recomposto sob as
lentes polidas de um implacável olhar crítico.
As crises do mundo contemporâneo resultam na crise
de individualidade, e a crise do indivíduo gera a do
mundo. Crise nada mais é quando acontece a ruptura dos
antigos padrões, bastante desgastados, e os novos, que
deverão desalojá-los das posições que ocupam, ainda não
estão prontos. O problema está em nossas matrizes internas
do conservadorismo, que resistem às mudanças e às trocas
pelo novo. Por isso muitos ainda não se deram conta de

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que estão presos ao idealismo romântico do século
passado, e que para conter a defasagem e entrar no fluxo
da história, a única saída é – com urgência – encarar os
desafios do século 21 despregado de dogmas, ranços e
sectarismos e com visão multiangular do mundo.
Morin não se cansa de dizer, com reconhecida
autoridade, que os atuais modelos de educação não
produzem apenas saber e esclarecimento, mas também
cegueira e ignorância. O modelo dominante troca o todo
pela parte, separando os objetos do conhecimento de seu
contexto, fragmentando o mundo, fracionando os
problemas e impedindo que o indivíduo tenha uma
compreensão melhor da realidade. Morin insiste que a
reforma do pensamento é uma necessidade-chave da
sociedade moderna. É somente com a ideia de um
pensamento não fragmentado que o homem pode analisar
e perceber a vida e o mundo a sua volta, onde a reforma
do pensamento lhe permitirá o pleno uso da inteligência
para compreender e, principalmente, enfrentar os
problemas contemporâneos. Este pensamento de Morin
posto logo de início está replicado algumas vezes, com
outras palavras, para que o leitor não o perca de vista dada
sua importância no entendimento e no contexto desta obra.
A complexidade do mundo “pós-moderno”, com a
pluralidade dos seus problemas e de realidades cada vez
mais globais e poliédricas, impõe enxertar saberes
transdisciplinares, reinventar perspectivas e apurar a visão
periscópica do todo. É proibido simplificar o mundo, por si
só um tecido complexus onde o caos convive com a
ordem, a demência com a sabedoria, a verdade com o
erro. E complexus deve ser entendido como aquilo que se
trama em conjunto, reassocia o que está dissociado, une o

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que está desunido. Vivemos num permanente refluxo entre
o certo e o incerto, onde cada nova resposta, cada nova
possibilidade faz nascer novas inquietações e novas
interrogações. É escolher entre a coragem e a omissão: ou
enveredar por caminhos desafiadores ou recolher-se na
enfadonha aridez de uma mente em crepúsculo
antecipado.
A simplificação das ideias é mortal para o
pensamento, ao passo que a complexidade é o instrumento
conceitual para entender e redescobrir o mundo em sua
intrínseca complexidade, e vital para impedir a cegueira e a
atrofia mental, perigosas para a humanidade. Não explorar
a dimensão labiríntica do pensamento é não ser capaz de
forjar uma reflexão crítica sobre si e o mundo. Nesse
aspecto, Morin é direto: “O desafio da globalidade é
também um desafio de complexidade”. Existe
complexidade de fato quando os componentes que
constituem um todo (como o econômico, o político, o
sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são
inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo
e interretroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes.
Os desenvolvimentos próprios de nosso século nos
confrontam, inevitavelmente e com mais e mais frequência,
com os desafios da complexidade. Morin complementa
afirmando que inteligência que só sabe separar fragmenta o
complexo do mundo em pedaços isolados, confinando as
questões e atrofiando as possibilidades de reflexão e de
compreensão, eliminando as oportunidades de um
julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo. Esse é
o problema da “especialização”, compartimentar e
restringir o saber em seu campo específico de ação, sem
associar, correlacionar, contextualizar e integrar os demais

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conhecimentos em seus conjuntos próprios. Parece
desnecessário referir a importância desse pensamento
dentro da Ufologia, reducionista e simplificadora por
natureza, com a mais absoluta falta de refinamento
intelectivo, um dos pontos mais discutidos nesta obra.
A complexidade não é, necessariamente, um desafio,
um motor do pensamento, como acredita Morin, mas uma
receita que substitui a simplificação que quase sempre só
responde, não esclarece. Além disso, é a complexidade
que leva ao conhecimento multidimensional e polinizador,
mas incompleto. A correta compreensão dos enunciados é,
também, acima de tudo, um processo não modulado de
interpretação, que mobiliza a inteligência geral e conclama
ao conhecimento do mundo.
Este ambiente ruidoso e trepidante não permite mais
sonolência, conformismo, acomodação e menos ainda
alheamento, porque sentenciam o sujeito ao
distanciamento no tempo e ao deslocamento para longe da
efervescência da história. E para fora da própria história,
ou, para ser mais direto, fazem-no encalhar no charco da
pasmaceira e do atraso. Sem fazer qualquer julgamento de
natureza qualitativa ou quantitativa sobre tais revoluções, é
inegável que elas se traduzem num novo mapa de
possibilidades e fricções, ultrapassam todas as fronteiras,
ensejam uma reformulação na visão de mundo e a
mudança de comportamento do homem e das sociedades.
Ninguém está imune ao choque causado pela
globalização, que é de uma voltagem muito mais alta do
que se supunha a princípio – e irreversível, com todos os
riscos e consequências, para o bem e para o mal. Giddens
adverte que esse risco é a dinâmica mobilizadora de uma
sociedade em plena mutação, desejosa de construir seu

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próprio futuro e não de entregá-lo nas mãos da religião, da
tradição ou aos desígnios da natureza. Entram em
confronto, com elevadas doses de intransigência e refração,
questões sobre identidades individuais e coletivas, tradição
e modernidade, dependência e autonomia, crenças,
pensamentos e ideologias, trazendo preocupações e
incertezas marcadas por várias e profundas divisões. Não
há como saber por quanto tempo a humanidade
conseguirá se equilibrar nessa frágil esfera derrapante
surfando errática sobre ondas diluvianas.
A espécie humana respira na incoerência de si
mesma, engendra e estimula conflitos intermináveis,
celebra grandes conquistas, supera catástrofes, vive em
busca do macrocosmo e morre por causa do microcosmo.
Ao mesmo tempo em que localiza seu corpo no mapa
astronômico, descerra os segredos do corpo no mapa
genômico. É capaz de sacrificar sua vida pela de um
estranho e no instante seguinte tirar a de um irmão por um
torrão de terra ou coisa menor. Num átimo vai de anjo
virtuoso a demônio ceifador.
Governos torram milhões em obras faraônicas
superfaturadas e supérfluas ante o olhar famélico de
crianças em vias de extinção. O telejornal exibe, por vários
ângulos, homem-bomba mandando pelos ares prédios e
vidas inocentes, seguido da notícia de que uma facção
radical islâmica sequestrou, estuprou e matou ou vendeu
centenas de meninas, e no rodapé da imagem uma nota
curta sobre o ganhador do Nobel de Medicina. O sangue
que respinga na tela é o mesmo que salva embaixo, mas
genocídio dobra audiência; enquanto a cena da tragédia se
repete exaustiva e mórbida, do Nobel ninguém já nem se
lembra, além de outras tantas atrocidades inomináveis

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perpetradas em nome de convicções ideo-políticas ou
convicção nenhuma. Uma horda de celerados
ensandecidos e descerebrados transforma uma arena
esportiva em praça de guerra, numa batalha campal
incontrolável aos moldes de outra milionária arena. Num
show feérico de luzes, com direito a trilha sonora e efeitos
especiais, brutamontes truculentos enjaulados guindados à
celebridade se atracam aos socos e pontapés, para catarse
de uma plateia sedenta por fraturas expostas e tripas
esgarçadas. Exultando a cada golpe, atinge o clímax
quando o estropiado vencido desaba exangue sob o
espocar feérico de flashes, bem ao gosto de uma grotesca e
deprimente sociedade do espetáculo pós-moderna.
Midiática, excitada e coisificada, onde tudo é imagem,
signo, teatro, narcisismo, mímica, pastiche.
Para Christoph Türcke, a avalanche imagética e o
tsunami tecnológico contribuem para o surgimento de um
novo modelo de anestésico coletivo, um novo “ópio do
povo”, se considerarmos o véu litúrgico que recobre essas
duas “fontes de prazer”: a (auto)imagem e a tecnologia na
ponta dos dedos, ou como extensão dos mesmos, uma
metralhadora tecno-visual com mira laser teleguiada ao
nosso psiquismo primário para o que ele chama de
“distração concentrada”. O compulsivo desejo proto-
obsceno pela elaboração e preservação da imagem
demonstra, para Kracauer, um inegável temor pela
dissolvência do sujeito e uma indisfarçável angústia pela
sua insignificância. Essas mercadorias hedonistas revelam a
necessidade, ou o desejo de experimentar sensações, sejam
triviais ou “sensacionais”. O leitor pode substituir sensação
por emoção, sem problema. Sensação, hoje, para Türcke,
não é outra coisa senão algo trivial, vazio, frívolo,

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profanado, desbotado, plastificado. Ele acredita que “A
palavra sensação tomou um caminho semântico que
significa, inicialmente, percepção banal, comum - em
última instância, a sensação de qualquer coisa”, uma
crítica à espetacularização da vida, a sensação no lugar da
percepção e da reflexão, o que é efetivamente relevante
sendo ignorado ou pior, sabotado. Estamos todos sendo
empurrados ladeira abaixo, de olhos vendados,
amordaçados e mãos atadas.
Civilização e barbárie numa luta inglória e sem
tréguas de forças desiguais entre córtex e bíceps, a
irracionalidade planetária em seu grau mais primitivo,
renascida dos confins da história com os paramentos da
modernidade em um cenário digno de Dante. Enigmático
esse ser humano que não consegue ser humano em tempo
integral. Heterônomo, permutante, conserva o instinto
selvático do paleocéfalo a lhe atiçar as garras e arreganhar
os caninos.
A mediocridade, o imbecilismo e a estupidez
caminham de par com a genialidade, a hostilidade com a
generosidade, a confiança com a incerteza, o medo com a
ousadia, a fé com a razão. Vivemos numa sociedade
enfeitiçada por lendas, superstições, curandeiros,
taumaturgos, amuletos, bruxarias e oráculos, e ao mesmo
tempo enfeitiçada pela nanotecnologia – a tecnosfera – e
pelo ciberespaço, entorpecida e seduzida pela imagosfera –
a irrupção vulcânica das imagens. Tudo é imagem,
modificando substancialmente nossa percepção de mundo
e de nós mesmos. É triste pensar que temos mais a mostrar
do que a dizer, ou, em outro sentido, só existimos quando
e porque nos expomos. “Onde estou, se estou em toda
parte?”, pergunta com filosófica ironia o pensador francês

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Paul Virilio. Como posso encontrar meu Eu se ele está em
todo lugar, menos em mim? A imagem hoje atingiu tal
poder de penetração e de fidelidade com o real que já não
sabemos mais distinguir original e cópia. Paradoxo? Talvez
não para Asimov, para quem toda tecnologia
suficientemente avançada não poderia ser distinguida da
magia – deus ex machina. A cartola e o coelho agora são
feitos de bits, inclusive o mágico. Admirável mundo novo
esse do ilusionismo high-tech. É o germe da tecnomagia e
do pós-humano.
Mas, além dos aspectos mais preocupantes e
perceptíveis que revestem o front cotidiano como medo,
inquietação, tensão e insegurança, convivem outros de
igual valor a serem trazidos para essa leitura que,
resumidos a duas palavras, não comprometem esta
microanálise: volatilidade e voracidade. Volatilidade, aqui,
fala das ações de curto prazo, que ignoram o tempo como
vetor de qualificação e consolidação de resultados. Fala da
visão de curto alcance, ou da falta dela. Fala da ausência
de planejamentos de longo prazo, da notícia telegráfica,
epidérmica, que se perde em meio a desmedida saturação
de outras tantas, expandindo e congestionando a bolha da
(des)informação, numa mescla deliberada de excesso e
escassez. Excesso de informação e escassez de reflexão,
excesso dos meios de transmissão e escassez de tempo
para a sedimentação de ideias. Efemeridade é o melhor
sinônimo.
Já voracidade se refere ao ritmo eletrizante e
descartável da “vida moderna”, que se traduz pela
sofreguidão, impaciência, pressa por resultados. As
agendas se sobrepõem, o imediatismo compulsivo e
confuso incorporou-se como modo de vida, onde

36
obsolescência, superficialidade, cinismo, omissão,
simulacro, artificialidade e futilidade dominam a cena, o
indivíduo vaporizado na massa amorfa indistinta. Multidão
de solitários, coletivo espectral de anônimos. Bem, talvez
nem tão mais anônimos assim. As areias do tempo
encobrem nossas pegadas antes que o próximo passo seja
dado. Impaciência é seu sinônimo.
O dado perturbador é que a volatilidade tornou-se
irrefreável e a voracidade, descontrolada. A união de
ambas resulta em mais um fosso negro – vulnerabilidade.
Juntas, elas se encarregam de aniquilar com o ato de
pensar, de refletir, indagar, questionar – única faculdade
que garante a espécie. Juntas, elas alienam e entorpecem a
consciência sem deixar espaço para a construção do
sujeito e o reencontro consigo mesmo. A condição
fundamental para reconciliar-se com o mundo real é a
desconstrução do mundo ideal, inventado para negar o
real. Juntas, voracidade e volatilidade representam o que se
entende hoje por “sociedade líquida” – a nossa, tão
liquefeita que está escoando pelo ralo. Essa desorganização
do sujeito e do mundo traz implicações autodestruidoras
para ambos.
Massa amorfa indistinta? Se lhe pareceu uma
expressão deselegante, Charles Mackay chamava de
“pessoas em manada”, e isso em 1841. É bom ir se
acostumando com as várias leituras que terá pela frente,
porque os luminares aqui reunidos escrevem em linha reta
sem tergiversar, sem borrões, falando com cirúrgica
mordacidade, como Baudrillard: “O termo massa não é um
conceito. Leitmotiv da demagogia política, é uma noção

37
fluida, viscosa, ‘lumpen-analítica’. 1 Uma boa sociologia
procurará abarcá-la em categorias ‘mais finas’: sócio-
profissionais, de classe, de status cultural, etc. O vácuo
social é atravessado por objetos intersticiais e acumulações
cristalinas que rodopiam e se cruzam num claro-escuro
cerebral. Tal é a massa, um conjunto no vazio de partículas
individuais, de resíduos do social e de impulsos indiretos:
opaca nebulosa cuja densidade crescente absorve todas as
energias e os feixes luminosos circundantes, para
finalmente desabar sob seu próprio peso. Buraco negro em
que o social se precipita” .
A massa é homogênea, entrópica, esponjosa e
disruptiva, torpedeada por estímulos, solicitações,
provocações e signos, formada por indivíduos de
pensamentos semelhantes, porém fragmentados, míopes e
atomizados. A interação física é substituída pela mídia. Essa
massificação faz com que o sujeito aceite a inoculação da
propaganda e da informação, reagindo condicionado,
mecânica e idioticamente feliz aos estímulos das imagens.
A propósito das massas em rebanho, Mackay explora
historicamente as extravagâncias e os delírios populares em
uma obra que se tornou referência nos estudos do
comportamento no campo da psicologia social. Diz ele
que toda época tem sua loucura peculiar, um plano, um
projeto ou alguma fantasia na qual mergulha, seja por quais
motivos forem ou pela simples força da imitação. Mesmo
que nada disso aconteça, ainda assim possui uma loucura,
a que é incitada por causas políticas, místicas, culturais ou
religiosas, ou por todas combinadas.

1
O termo lumpen pode ser traduzido como “pessoa desprezível, trapo,
farrapo”. Pode-se entender como uma análise de baixo valor. (N.A.)

38
Mackay se refere às “bolhas” que a cada época
causam enorme frenesi nas populações – bolhas místicas,
financeiras, políticas, artísticas, religiosas. Se ele fosse
contemporâneo, provavelmente identificaria uma bolha
mística a partir dos anos 50 com os movimentos da
contracultura, a new age, o peace and love, o flower power
e todo um modismo esotérico vindo à esteira das
revoluções sociais e culturais que grassavam no mundo,
imprimindo uma radical transformação no comportamento,
nos hábitos e nos costumes.
Surgia nessa época uma nova consciência, uma
espécie de utopia que englobava florais curativos,
alimentação natural, o resgate das filosofias e práticas
orientais, meditação transcendental, criptentre-lugaestesia
(percepção extrassensorial), cultos indígenas e africanos,
objetos mágicos, cristais, mandalas, pulseiras, anéis,
incensos, penduricalhos, ética ecoplanetária e os
extraterrestres, vistos como “irmãos cósmicos”. Um
autêntico festim esotérico ou “carnaval da alma”, como
bem sugere o título da obra de Leila Amaral. Carnaval, uma
celebração pagã, estuário multicultural de todas as tribos
new age num cortejo que vai de feng shui a tarô, de
astrologia transpessoal a aromaterapia, de reiki a cristais; de
regressão a vidas passadas a pirâmides, canalização
(comunicação com os mortos), cura prânica, florais, magia
xamânica, mind power, bioenergia, ecologia, vidência,
bruxas, world music, chacras, turismo esotérico, anjos e
seminários de Ufologia mística com a participação de
contatados e abduzidos. Uma Babel e tanto. Assim,
considero indispensável analisar esse momento marcante
do passado recente para compreender em qual cenário,
como e por que a ufologia nele se inseriu.

39
Diversas autoras, entre elas, Maria Júlia Carozzi,
Maria del Rosário Contepomi, Leonarda Musumeci, Fátima
Tavares, Roberta Bivar Campos e a própria Leila abordam a
New Age em vários aspectos: história, as “novas
espiritualidade e religiosidade” e o viés antirreligioso; a
agricultura orgânica, as comunidades naturistas, o
messianismo, o milenarismo, a filosofia e a mística oriental,
as terapias alternativas holísticas e o rentável comércio
esotérico no contexto da globalização nos tempos pós-
modernos, além de outros tópicos que compõem essa
malha neo-espiritualista. Nenhuma delas, contudo, avança
nos termos da questão mística da Ufologia, sua faceta mais
atuante, embora concordem sobre a dificuldade em definir
o que é exatamente “nova era”, dado o seu caráter errante,
marginal, heterogêneo, alternativo.
Difícil também é saber quem surfou nas ondas de
quem, se a Ufologia que aderiu à new age para alavancar
sua ideologia, ou se foi arrastada para as praias do
“alternativo”. Provavelmente as duas coisas. A literatura
nacional pesquisada sobre a Nova Era não aprofunda as
conexões entre ambas, exceto menções ou comentários
bastante sumários e superficiais, o que permite supor ser
este trabalho, salvo engano, o primeiro a sacramentar os
claros vínculos entre pós-modernidade, nova era e
ufologia.
Mesmo sabendo tratar-se de uma paleta multicolorida
de ideias, crenças, atitudes, doutrinas e propostas, a
definição dada por Otto Friedrich para a revista Time, em
1987, como sendo um amálgama de várias correntes de
pensamento heterogêneas que tem como fio condutor a
adoção de “novas” práticas, ainda que confusas e
irracionais, como negação aos pensamentos e valores

40
convencionais. Novas porque alegam serem resgatadas de
elementos misteriosos, “do além”, logo, transcendentais.
José Magnani consegue descrever esse movimento de
forma clara e concisa: “Toda essa atividade vai buscar sua
fundamentação – às vezes de maneira mais elaborada, às
vezes na forma de um leve verniz – em alguns sistemas de
pensamento e religiões de origem oriental, em cosmologias
indígenas, em correntes espiritualistas, no esoterismo
clássico europeu e até em propostas inspiradas em certos
ramos da ciência contemporânea; e não poucas vezes, em
todos eles, simultaneamente, resultando em surpreendentes
bricolages.” A exemplo do elenco feminino, ele também
lança interrogações: O que caracteriza esse fenômeno?
Existe nele uma unidade? Pode ele ser identificado como
herdeiro, depositário ou continuador de alguma corrente
espiritual, filosófica, gnóstica ou esotérica mais antiga?
Por outro lado, Olavo de Carvalho, com sua
indefectível verve ferina e cáustica, transforma a carruagem
da nova era em abóbora, sem mágica. Para ele, esse
movimento representa unicamente um sentimento coletivo
dentro de um dado momento histórico – o “novo tempo”,
não importando se expressa uma verdade objetivamente
válida, mas que se justifica como único critério do
pensamento certo. Então, de repente, o sujeito se sente
como parte do Todo, intensificado e identificado com essa
nova “causa”, obediente e placidamente convertido a um
místico coletivo.
Resguardado pela redoma daquele mo(vi)mento
histórico e pelo cacoete mental do mito da revolução, ele é
impedido de vislumbrar para além dele mesmo, de exercer
o privilégio de uma inteligência autônoma, de ter razão
contrária à opinião majoritária seja ela a do establishment

41
conservador ou o anseio coletivo dos ambiciosos
insatisfeitos. Porém, a “supraconsciência” revolucionária
da Era de Aquário está programada para ignorar estas
distinções. O resultado disso, imagino que o leitor
concordará, é catastrófico. O indivíduo e a sociedade, se
querem ter independência intelectual, não precisam de
nenhum novo e exótico sistema de percepção estabelecido
pela ditadura filosófica da moda, que idiotiza e imobiliza,
mas que precisa ser consumida. Basta ter a coragem para
raciocinar. A maior habilidade da mente humana está em
seu tirocínio, sua capacidade de discernir o real da ilusão,
o verdadeiro do falso.
Pelo estudo de Leila, a Nova Era tem suas raízes nas
manifestações espiritualistas e esotéricas do final do século
19 como a da tradição teosófica – a mais influente, por sua
metafísica do oculto –, somada a uma reinterpretação
ocidental da religião hindu. A new age é considerada
“caudatária da tradição romântica” porque incorpora uma
interpretação religiosa do mundo e da natureza. De todo
modo, Leila também reconhece que se trata de um
movimento de difícil definição, dada sua mobilidade,
plasticidade, estética e sincretismo móvel, ou “cruzamento
heterodoxo”.
A autora mostra, por um enfoque antropológico, que
a Nova Era (Morin prefere nova gnose ou novo paradigma)
se comporta muito mais como uma “cultura religiosa
errante” transitória, performática, acéfala e ritualística, sem
muros, portões e hierarquias, carente de discurso teológico,
portanto, dessacralizada, ou de um sagrado sem território.
Nela, ou através dessa “religião alternativa”, o sagrado se
profana ao deslocar-se para o indivíduo, para o self, ou
seja, é ela que se “submete” ao indivíduo porque ele é

42
quem elabora e reformula seu universo simbólico prático
imediato, além de ressignificá-lo e ampliá-lo a partir de
uma linguagem idiossincrática. Por todas as questões
envolvidas, e sem tecer reflexões mais profundas nem
estabelecer conexões macrossociais, percebe-se o quanto a
new age está umbilicalmente imbricada com o mundo
contemporâneo, com o pós-moderno, e também a
presença e a representatividade da Ufologia (leia-se “disco
voador”, assim, entre aspas) neste ambiente. E qual a razão
para tamanha importância? Talvez seja possível entender se
fizermos uma análise dialogal entre ambas – new age e
Ufologia.
Ainda segundo Leila, o sentimento de esperança e
apreensão que a Nova Era desperta, principalmente entre
os “buscadores”, perante o desconhecido, de uma
“totalidade virtual”, pode estar relacionado à noção de
"sublime" pós-moderno de Jameson, uma experiência
intraduzível que expressa a fissura entre a hipertrofia da
ordem mundial tecno-financeira e a incapacidade de
apreensão psicossocial. Tal vazio induz – ou pode induzir
– a uma atitude de excitação e fascinação do sujeito que,
intensificada pelas altas volatilidade e estimulação de uma
cultura virtual e prostática, leva a novos e radicais
experimentos de subjetividade.
Jameson também detecta a necessidade de uma nova
sensibilidade estética que seja capaz de mapear cognitiva,
comportamental e afetivamente esta colossal ordem pós-
moderna. Para Carozzi, a nova era está atrelada a um
macromovimento sociocultural que prega mudanças ao
mesmo tempo planetárias e internas através de um ideal de
autonomia, “como causa, método e princípio de
organização”. A Nova Era é um movimento expresso numa

43
rede de redes, produto da aplicação deste ideal
autonômico aos campos do esotérico e do religioso,
individualizando seus efeitos contra um megaprocesso
alienador e asfixiante de globalização.
O “disco voador”, como experiência pessoal e
intransferível, associa-se e incorpora-se a essa dinâmica de
espiritualização do sujeito, dando-lhe uma perspectiva
existencial de autoconhecimento, libertação do espírito,
comunhão com a natureza e o universo, crescimento,
transformação, revalorização e ressignificação diante do
misterioso, do “elevado” e do transcendente. Desse modo,
torna-se mais uma [experiência] entre tantas opções que se
encontram e se articulam na própria base das regras do
(novo?) jogo de reprodução e vivências religiosas e
culturais.
Para alguns analistas, a característica marcante deste
movimento é sua natureza não oficial, que pressupõe uma
segunda via, ou vida alternativa, um jogo teatral concreto,
mas efêmero, um duplo das práticas da Igreja e do Estado,
onde todos participam de uma comunhão utópica de
liberdade e dissolução das fronteiras entre imaginação e
realidade. Leila tende ver a Nova Era como um fenômeno
parcial, ambíguo, transitivo, provisório, no qual ela
identifica, adequadamente, uma “arquitetura da errância”.
Vale ressaltar, concluindo a explanação sobre a
“bolha mística”, que esse espírito libertário e contestador
da contracultura já se manifestava nos Estados Unidos
desde os anos 50 (e veremos porque este período teve
importância capital na formação osteoporótica da Ufologia,
que se apoia nas mesmas muletas até hoje), influenciando
gerações muito além dos totens Elvis, Dylan, Warhol,
Hendrix, Joplin, Stones, Beatles, James Dean e a juventude

44
transviada. E o mundo viu surgir Woodstock, LSD, Betty
Friedan, Mary Quant, Marilyn Ferguson e a conspiração
aquariana, Hair; Aleister Crowley, Blavatsky, Che Guevara,
a pílula, Luther King, hells angels, cultura underground,
Vietnã, geração beat. Havia algo mais no ar do que simples
aviões de carreira, sexo, drogas e rock’n roll.
Sociedades e indivíduos têm lá seus caprichos, suas
manias, neuras, obsessões, compulsões e peculiaridades, e
aferram-se – e se ajoelham – a ideias, causas, um corpo
totêmico ou uma ilusão – o santo graal, o elixir da
juventude, as tábuas da lei, a pedra filosofal, a arca da
aliança e outras bem mais populares e menos místicas, e
partem em busca de seus objetivos até que uma nova
forma de excitação as cativem e assuma o lugar da anterior.
Por que mencionamos “corpo totêmico”? o totemismo,
segundo Frazer, “é uma relação íntima que se supõe existir,
por um lado, entre um grupo de pessoas aparentadas entre
si e, por outro, uma espécie de objetos naturais ou
artificiais, aos quais se dá o nome de tótemes do grupo
humano”.
O totemismo apresenta duas facetas: um modo de
agrupamento social e um sistema religioso de crenças e
práticas. Para Durkheim, o pensamento “religioso” é similar
ao “social”: “De um modo geral [...] uma sociedade possui
tudo o que é preciso para despertar a sensação do Divino
nas mentes, unicamente através do poder que exerce sobre
elas; para os seus membros é o mesmo que um Deus para
os seus veneradores”, concluindo ser o totemismo a forma
mais primitiva de religião ou, dito de outra forma, ele
entendia o pensamento religioso como um primado da
consciência coletiva. Seus estudos o levaram a antever o
crescente das formas religiosas individuais, e ele estava

45
certo, porque a proliferação de “igrejas” mistura-se e
confunde-se às crenças menos formais. A religião é a
superstição coletiva e a superstição é a religião individual,
escreveu Freud.
O indivíduo perambula sobre uma pátina de gelo
suportando nos ombros o peso do próprio cadáver.
Fernando Pessoa revira nossas tripas a sangue frio com
ferro em brasa: “cadáver adiado que procria”. Vivemos um
tempo em que os horizontes se apequenam e o futuro se
esvanece num mar de improbabilidades. Vivemos um
tempo em que as respostas antecipam as perguntas porque
qualquer resposta será melhor que resposta nenhuma, e se
for uma resposta fácil e rápida, tanto melhor. No fundo, é
apenas livrar-se de representações angustiantes, é o
princípio de superar o mistério, de impotência ante o
desconhecido. Enquanto Luís Fernando Veríssimo coloca a
questão de forma filosófica afirmando que “Quando
pensamos ter todas as respostas, vem a vida e muda todas
as perguntas”, Rosset não adoça o verbo: “Se a incerteza é
cruel, é que a necessidade de certeza é premente e
aparentemente inextirpável na maioria dos homens.
Tocamos aqui em um ponto bastante misterioso e, em todo
caso, ainda não elucidado da natureza humana: a
intolerância à incerteza, intolerância tamanha que leva
muitos homens a sofrer os piores e mais reais males em
troca da esperança, mesmo que vaga, de um pouquinho de
certeza”.
São os tempos líquidos de Bauman. Eis o script da
biografia humana, uma ambivalência geradora de conflitos
e incoerências que arrasta o homem por uma correnteza de
forças incontroláveis que não lhe permite ancorar-se em
leito firme, apenas segurar-se debilmente em margens

46
escorregadias. Que força incontrolável regra o curso destas
águas? O que se encontra para além do delta que nos
aguarda? Para entender o presente é preciso retroceder ao
passado, não à nascente porque já muito distante, mas a
um período em que seja possível compreender o presente e
o devir da nossa história. O século 20 será suficiente para
empreender uma reflexão, mas em certos momentos esse
túnel do tempo regredirá necessariamente em algumas
centenas de anos.
O estado atual da nossa civilização tem sido
diagnosticado por um coro uníssono, indicando um quadro
perturbador que caracteriza a condição humana
contemporânea. Gilles Lipovetsky emprega expressões
como indiferença pós-moderna, deserção social, geração
de surdos, surto de apatia da massa, império do efêmero,
hiperindividualidade e era do vazio. Fredric Jameson
preconiza o ocaso da história. Zygmunt Bauman fala em
mal-estar da pós-modernidade, nova desordem mundial,
fim das utopias, sociedade líquida e tempos líquidos.
Ricardo Petrella aponta o individualismo exacerbado e
cidadania mutilada; Adorno via a pós-modernidade como
um punhado de experiências individuais fragmentadas,
repetitivas e vazias de significado, mediadas pelo conceito
de “mercadoria”, do qual não se pode esperar nada além
de um “solipsismo compartilhado”, multitudinário.
Nietzsche acusa o “espírito de rebanho”, e Baudrillard
avalia esse tempo como uma capitulação simbólica,
derrota da vontade e inauguração de um mundo sem o
sujeito “em proveito de uma mecânica operacional e de
uma falta de responsabilidade total do homem”. Para ele,
há tempos iniciou-se uma “contagem regressiva” da
humanidade, enquanto Foucault preferia “declive suave”.

47
Por fim, Roger Scruton sintetiza em uma única expressão:
mundo sem rosto.
O que se extrai desta coletânea de reflexões é que há
uma vigorosa mutação em curso, um conflito, um duelo de
valores, pensamentos, deslocamentos conceituais e ações.
Ou uma ruptura. Não sabemos ainda muito bem o que está
acontecendo, apenas que estamos no olho desse furacão,
fomos sugados por ele e agora estamos sendo levados “a
algum lugar”. Ou a lugar nenhum.
Não se trata de catastrofismo ou pessimismo
exagerado, esse é o fluxo natural dos acontecimentos. As
concepções de Baudrillard inquietam porque ele se inspira
em fontes demolidoras como Baudelaire, Artaud, Rimbaud,
Nietzsche e Barthes, apontando para uma direção
geralmente no sentido contrário ao que estamos adestrados
a olhar, oferecendo novos pensares, mostrando também os
lados reverso e avesso, os não visíveis, expondo suas ideias
através de uma luminescência fecundante.
Como não poderia ser diferente, vários pontos em
comum unem os autores trazidos aqui: a crítica lúcida, o
debate inteligente e estimulante, a reflexão inspiradora, um
convite a considerações profundas, posto que escancaram
nossa realidade às últimas consequências, jogam com a
honestidade de nossa consciência sem pudores nem
reservas. Por exemplo, ainda para Baudrillard, quanto mais
o mundo avança, mais “regride”, mas só um olhar
filosófico é capaz de decifrar seu pensamento. Em resumo,
todos eles procuram mostrar, pela sua letra, quem somos, o
que somos e porque somos o que somos. E o que somos,
afinal? A resposta será dolorosamente reveladora e
verdadeira.

48
Por outro lado, Sérgio Rouanet não usa a poesia para
afirmar que o processo de transformação está ligado a uma
visão pessimista da história, que nos vê como vítimas da
modernidade que demoliu os valores e as referências
estabelecidas, “e nos expôs à anomia, à desorientação
existencial, à incapacidade de pensar o homem e seu
futuro”2. Mas ele despeja algumas gotas de otimismo neste
cenário sombrio, acreditando que ainda há tempo para
uma retomada no curso da conscientização para repensar o
ser.
Mas a transformação que está em curso não acontece
à nossa revelia, somos parte ativa dela como diretores e
produtores, e é imperativo que ocorra uma inflexão – a
transição a um estádio em que o homem volte a ser agente
do processo de geração e aplicação do conhecimento, o
que só é possível a partir da visão do todo, do conjunto das
operações cognitivas no âmbito técnico, científico,
humanista e filosófico. Ficamos com o pensador Pascal:
“Todas as coisas, sendo causadas e causantes, e todas elas
se comunicando por um laço natural e insensível que liga
as mais afastadas e as mais diversas, considero impossível
conhecer as partes sem conhecer o todo, ou conhecer o
todo sem conhecer particularmente as partes.”
É surpreendente notar como o espírito humano é
capaz de se locomover ao mesmo tempo por dois
caminhos tão distintos. De um lado, o intelecto, a
capacidade criativa e o conhecimento acumulado
direcionando nossos passos para grandes conquistas. Pode-
se discordar no que concerne aos resultados da ciência ou
a seus princípios, porém é inquestionável sua função geral.

2
Sérgio Paulo Rouanet, “Ciência e Religião: crença contra crença?” A
Invenção das Crenças. Adauto Novaes (org.), São Paulo, SESC, 2011.

49
A ciência é produto da imaginação, da fantasia, dos
sonhadores, dos inventores – aqueles que descobrem o que
procuram –, dos pensadores, esses atormentados que têm
um olhar no agora de olho no depois. Do grego, episteme,
saber, ciência, derivada da raiz que significa fixidez e
estabilidade, daí que o saber científico conduz ao
equilíbrio e fortalecimento do universo de nossas
percepções e de nossos pensamentos. Se Arquimedes
precisava de um ponto para mover o mundo, à ciência
basta uma célula para desvendar uma humanidade inteira.
A distância que separa o fêmur primal e a nave
espacial é de apenas um fotograma do filme cósmico. À
sombra dessa caminhada, o pensamento místico age com
grande vigor: templários, religião, ocultismo, sociedades
secretas, práticas divinatórias, esoterismo, milagres,
priorados, espiritismo, vida após a morte, confrarias
herméticas, reencarnacionismo, fantasmas, curandeirismo,
discos voadores e seres alienígenas. Como explicar esse
estranho poder das crenças? De que elementos
psicológicos surgem esses sentimentos? O filósofo francês
Pascal Engel tem a seguinte definição: “Em sentido lato,
uma crença é certo estado mental que leva a dar seu
assentimento a certa representação ou a trazer um
julgamento cuja verdade objetiva não é garantida e que
não é acompanhada de um sentimento subjetivo de
certeza. Neste sentido, crença é sinônimo de opinião que
não implica verdade daquilo no que se crê e opõe-se ao
saber”. A seguir, deixa uma indagação no ar: ”Como as
pessoas podem acreditar não apenas em coisas
inacreditáveis, mas também em coisas que elas sabem
serem tais? Por que preferem acreditar quando dispõem de
meios para saber?”

50
Conforme Abbagnano, o significado mais geral de
crença “é a atitude de quem reconhece como verdadeira
uma proposição, portanto, à validade de uma noção
qualquer“ (grifo nosso). Desde o alvorecer dos tempos o
homem crê no fantástico seja científico, religioso, surreal
ou infantil, no mágico, no misterioso, mesmo quando
desmascarado pela ciência ou pela pesquisa histórica. A
necessidade de aventura e mistério leva ao bloqueio do
senso crítico e da análise racional, revigorando a
credulidade ingênua em personagens fabulosos e objetos
mágicos como o Graal, a Arca da Aliança ou a espada
Excalibur, por exemplo, do não menos lendário Rei Arthur;
lugares lendários e míticos como Lemúria e Atlântida e seu
adiantadíssimo povo, os Atlantes; Shangri-lá, Shamballa, as
terras de Avalon ou os antípodas habitantes de Agarttha nas
entranhas de uma Terra oca, lugares detectados apenas
pelas parabólicas da imaginação.
No fundo, não somos nós que possuímos crenças,
são elas que nos possuem. Deve existir boas razões para
que a crença verdadeira seja considerada um
conhecimento. Um mero palpite não é conhecimento e
alguém que tenha uma crença verdadeira deve estar em
condições de justificá-la. Afirmar uma crença num
determinado fato é diferente de justificá-la, e mesmo que
ela venha justificada, isso não atesta sua validação. Há uma
noção distorcida sobre o conceito de crença: não é crer
primeiro para entender depois, mas o contrário, é preciso
saber para ter fé. Somente podemos depositar uma crença
naquilo em que somos capazes de compreender. A crença
precipita ao erro, e evitar o erro é mais importante que
encontrar a verdade. É preciso que a justificação seja aceita
como verdadeira a partir da existência de um

51
conhecimento igualmente verdadeiro, caso contrário
continuará simples palpite, ou uma crença sem
fundamento. Que fique bem claro: é esta crença e só ela
que se coloca em um dos centros de discussão deste
trabalho.

“ Somos mais livres e independentes, pois nossa


faculdade de julgar é íntegra. Estamos livres de
qualquer necessidade de defender dogmas prescritos
quase como éditos, pois os outros estão atados antes
de poderem julgar qual doutrina é melhor. A seguir,
estabelecem juízos sobre coisas desconhecidas, e
agarram-se como uma pedra a qualquer doutrina
qual são trazidos pela tempestade.

Cícero
Acadêmicas

Charles Peirce entende que os métodos não
científicos não são suficientes para levar ao progresso do
conhecimento, ainda que este se ampare em alguma
crença como forma de conduzir-se frente ao que está
adiante, ao que irá acontecer. As crenças, sejam por
afinidade ou pela autoridade, acabam por afastar o sujeito
de tudo que possa alterar suas opiniões, fugindo do ser
racional, isentando-o da dúvida, não proporcionando a
oportunidade da indagação. Não indagar é não duvidar, e
não duvidar é enrijecer a ação pensante, é trancafiar-se no
silêncio indivisível do calabouço interior.
A fé, como o medo, é uma natural predisposição
psicológica, orgânica, um imperativo biológico que está

52
além da crítica, da razão e da reflexão, induzindo a certa
estagnação intelectual. A crença apazigua a dúvida ao
mesmo tempo em que dita as regras de conduta e hábitos,
tornando-se o guia máximo para nossas ações. É a base do
ensaio de Peirce: “A essência da crença é a criação de um
hábito; e diferentes crenças distinguem-se pelos diferentes
modos de ação a que dão origem”.
Pelo não pensar a fé chega e se instala, e o inverso é
tão ou mais verdadeiro: quanto mais o pensar, menos a
crença. O maravilhamento, o espanto, o deslumbramento,
o assombro e a perplexidade indicam desconhecimento de
um determinado fato, e isso produz um bloqueio da
consciência, que prefere acolher a confortável postura da
crença qualquer que seja sua procedência. Credos
religiosos, políticos, morais, mágicos ou de qualquer
natureza haurem uma força psíquica ilimitada. As crenças
e lendas populares traduzem o real que transborda da
interiorização mental privada do sujeito, e a forma mais
pura da coesão sociológica de um grupo se enraíza numa
espécie de focus imaginário. A equação é simples, clara e
insofismável: a busca/dúvida/pergunta pela verdade e pelo
saber exige compromisso com o método investigativo, um
incansável trabalho intelectivo, acurácia, disciplina e
persistência, ou seja, implica uma ação (movimento); a
crença/certeza/resposta, baseada apenas numa convicção
pessoal, não pede nenhum esforço ou questionamento,
portanto, resulta uma inação.
Se a crença é insular, o saber é tentacular, já que a
razão é uma amante cruel, torturando e martelando o
cérebro com uma vitalidade insaciável atrás de mais e mais
conhecimento. Da mesma forma, enquanto a Ufologia
(crença) é centrípeta, o conhecimento é centrífugo. Não

53
fosse assim, você ainda estaria lendo pergaminhos à luz de
velas, transformando em cinzas hereges e feiticeiras, que
aliás, acabaram se tornando objetos de graça com suas
vassouras voadoras. Talvez estivesse conversando com
fadas e duendes nos bosques e jardins, acreditando em
unicórnios e santas barrocas que vertem lágrimas, que o
abominável homem das neves caminha pelas encostas
geladas do Himalaia, que folclóricas e estranhas criaturas
se esgueiram furtivamente pelas sombras atemorizando
pacatos viajantes, ou em homúnculos esverdeados,
cabeçudos, com escamas e olhos esbugalhados. Pior que
isso, não fossem o conhecimento e a capacidade de
percepção e você poderia estar recolhido no fundo de uma
gruta úmida se coçando, grunhindo e mastigando
folhagens, insetos e restos de carniça. Mas você não está lá
porque não crê mais nessas coisas, meras trampolinagens
do espírito humano para explicar ou confortar o que lhe é
desconhecido.
Mas surpreende que ainda se acredite em fantasmas e
assombrações que vagueiam pelas vielas escuras das
megalópoles multifraturadas, e casarões abandonados
assolados por gemidos e lamentos, em curandeiros atuando
na ilegalidade que abusam da credulidade alheia e que a
psicografia extraterrestre - ou não - continue despejando
garranchos por aí.
O sociólogo Gustave Le Bon é enfático ao afirmar
que a reflexão permite raciocinar convenientemente desde
que não intervenham as lógicas afetiva e mística. Se os
assuntos que queremos pensar enveredam para a crença, a
reflexão perde seu papel crítico. Ele entende que a crença é
um ato de fé, inconsciente, que nos força a admitir em
bloco uma ideia, uma opinião, uma explicação, uma

54
doutrina. A razão é estrangeira à sua formação, e quando
tenta justificar a crença, esta já está formada. Tudo o que é
aceito como um simples ato de fé deve ser definido como
crença. Não obstante o autor ter se pronunciado em 1895,
sua voz não sofreu erosão com o passar do tempo,
ressoando a plenos pulmões até hoje. Cuidaremos disso
mais adiante.

A dúvida é um estado de desconforto e

“ insatisfação do qual lutamos para nos libertar e


passar ao estado de crença; enquanto este último
é um estado calmo e satisfatório que não
desejamos evitar, ou alterar por uma crença
noutra coisa qualquer. Pelo contrário, agarramo-
nos tenazmente, não meramente à crença, mas a
acreditar exatamente naquilo em que
acreditamos. Assim, tanto a dúvida como a crença
têm efeitos positivos sobre nós, embora muito
diferentes. A crença não nos faz agir
imediatamente, mas coloca-nos numa posição em
que nos comportaremos de certa forma, quando
surge a ocasião. A dúvida não tem qualquer efeito
deste tipo, mas estimula-nos a agir até que é
destruída. (...) A irritação da dúvida provoca uma
luta para alcançar um estado de crença

Charles Peirce

A Fixação da Crença

Assim, com este mapeamento e de posse deste


diagnóstico, inauguramos um modelo de estudos de largo
espectro, interconectado a múltiplas áreas, de longa

55
duração e sem restrições ou amarras, ou seja, funciona em
tempo integral como um observatório panóptico. Iniciada
em meados dos anos 80 a partir de diálogos ainda
incipientes com outros campos, à medida que se
intensificava, ampliava e aprofundava, gradualmente foi
provocando fissuras nas convicções iniciais geradas pelo
meio, fissuras que nunca foram sinais de hesitação, mas de
percepção e adaptação ao novo, que de “novo” não tinha
nada.
Durante o realinhamento de conceitos, ainda
ajustando o foco e o ângulo de visão, alguns escritos
pontuaram na forma de ensaios, protótipos para um
reposicionamento, e tempos depois, com a parceria de
Ubirajara Rodrigues, publicou-se A Desconstrução de um
Mito, que abriu a caixa preta da “pesquisa” ufológica,
expondo seus intestinos e descalabros. Plantada em seu
útero, da semente do que viria a seguir surgia Reflexões
Sobre uma Mitopoética, que postula o reenquadramento
do fenômeno Óvni na categoria de mito, através do estudo
comparado com demais campos das ciências sociais, em
todos os seus estratos. Ambas puseram em marcha o dever
de esclarecer aspectos ignorados pelo público, numa
iniciativa séria e assumidamente ambiciosa de oxigenar e
higienizar o palco ufológico. Mais que descontaminar, tal
assepsia pretende substituir a máscara mortuária deformada
da Ufologia por uma face mais calorosa e saudável,
sintonizada com os tempos atuais, e alçá-la a outro
patamar. Assim, quem sabe um dia ela possa conquistar a
credibilidade que tanto reivindica.
Se no primeiro livro o mote é a desconstrução, neste
terceiro é a reconstrução, de modo a refazer a trajetória,

56
“pois o fim da busca será retornar ao ponto inicial e
conhecer o lugar pela primeira vez”, como disse T. S. Elliot.
Para entender o fio condutor deste trabalho, é
importante saber que toda análise deve produzir uma crise,
uma ruptura, uma dissensão. Se não produziu é porque não
foi uma análise suficientemente crítica. O que isto quer
dizer? Análise, do grego analyó – cortar, romper,
interpretar, resolver, tem ligação com crise e crítica, que
têm a mesma raiz etimológica, do latim crisis, criticus –
quebrar, desmembrar, segmentar, podendo derivar para
mudar, transformar. Na origem, crise é o termo médico que
indica a transformação de um corpo doente. Crítica, em
Kant, é “o tribunal que garante a razão em suas pretensões
legítimas, mas condena as que não têm fundamento”. Isso
responde por que professamos uma linha de análise crítica
integrada: para combater a forma canhestra com que o
assunto tem sido (mal)tratado pelos pesquisadores, em não
poucos casos demonstrando explícita vigarice e
charlatanismo, causando prejuízos irreparáveis ao público
consumidor, que acaba recebendo uma informação
truncada, adulterada, deturpada, habilmente manipulada,
subvertida, prostituída mesmo na essência, levando a uma
compreensão esquálida e desfigurada. Uma análise que se
pretenda séria deve agrupar o que o senso popular separa,
e separar o que ele confunde.
Diga-se, por fim, que, em nenhuma instância
procuramos criticar o universo ufológico – e o fazemos
sistematicamente – pelo “prazer” mórbido e gratuito de
criticar, com predisposição tendenciosa e arbitrária, menos
ainda com imposições de saber autoritário. Ao contrário,
antes, muito modesta e criteriosamente, anatomizar sua
estrutura, dissecar seus elementos e, ao detectar suas falhas

57
(que são muitas), propor redirecionar caminhos (que são
muitos), apresentar argumentos de bases sólidas (que são
muitos) e articular estudos de conteúdos sérios que
conduzam a reflexões concretas. Toda crítica é
essencialmente polêmica, mas não necessariamente
beligerante. A crítica pode ser relativa ao passado, daquilo
que já aconteceu, portanto, incorrigível e imutável; ao
presente, daquilo que ainda é passível de ser corrigido e
modificado, e para o futuro, antevendo e prevenindo
possíveis distorções, o que pressupõe, ou pode pressupor,
transformação. Em suma, criticar o passado é colocar o
dedo na ferida para estancar a sangria de hoje e evitar mal
pior amanhã.
É uma questão de entender o pensamento que separa
e reduz daquele que distingue e une. Não se trata de
abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento
pertinente, nem da análise pela síntese; é preciso conjugá-
las. O dizer crítico assume o papel construtivo de ventilar a
discussão e não de emparedá-la, mesmo que venha em
tom mercurial e cáustico. Não pode ser de outra forma,
tratamento de choque prescinde de anestesia.
Para finalizar a discussão sobre as crenças, a posição
do sociólogo Edgar Morin é bem clara: “O poder
imperativo e proibitivo conjunto dos paradigmas, das
crenças oficiais, das doutrinas reinantes e das verdades
estabelecidas determina os estereótipos cognitivos, as
ideias recebidas sem exame, as crenças estúpidas não
contestadas, os absurdos triunfantes, a rejeição de
evidências em nome da evidência, e faz reinar em toda
parte os conformismos cognitivos e intelectuais”. Le Bon
segue afirmando que as crenças não são formadas por uma
decisão voluntária submetida à parte racional do espírito.

58
Ele entende que as crenças podem ser justificadas pela
razão, pois pertencem muito mais ao universo da
imaginação e das paixões. A seu modo, Montaigne via que
o valor dos acontecimentos mágicos, dos milagres, dos
encantamentos e visões origina-se do poder da imaginação
atuando principalmente contra as almas mais frágeis do
povo; a crença apoderou-se delas de tal modo que elas
pensam ver o que não veem. As imagens são fundamentais
para se entender a realidade como se fosse um holograma.
“O principio hologramático”, acentua Morin, “significa que
não apenas a parte está no todo, mas que o todo está
inscrito, de certa maneira, na parte”.
O público, indefeso e desarmado tem sido doutrinado
enganosamente neste assunto porque a Ufologia chega até
ele como um produto acabado, sem saber se sua
procedência é ou não confiável. O “disco voador” é esse
objeto de consumo exposto na vitrine, rutilante,
espalhafatoso, bombástico e, como qualquer mercadoria,
está lá para ser consumido. E está sendo consumido, mas
de forma acrítica, ao sabor das contingências. Segundo
Baudrillard, o consumo serve de base a todo nosso sistema
cultural. Exposto, sim, mas não à venda. Quanto mais na
ignorância o sujeito ficar, melhor para o ufólogo, que
continuará destilando sua verborreia eivada de pseudo
autoridade e falso saber, ou seja, autoridade e saber
postiços, mas que lhe dão salvo-conduto para exercer uma
prática, a rigor, indevida.
Este comportamento é explicado pela Síndrome de
Dunning-Kruger3 (síndrome do impostor), quando o sujeito

3
Cf. Kruger, J; Dunnings, D.; Unskilled and Unaware of It: How Difficulties
in Recognizing One's Own Incompetence Lead to Inflated Self-
Assessments . J. Personality and Social Psychology;77:6, 1121-1134, 199.

59
expressa um conhecimento que na verdade não tem sobre
um dado assunto; incapaz de reconhecer a fragilidade, a
inexistência ou a falácia deste saber, ignorando a legítima
competência alheia. Esse estudo, Nobel em 2000, foi
aplicado principalmente na avaliação do raciocínio lógico
e na compreensão de leitura. Em outras palavras, é muito
farol e nenhuma luz.
O público, então, uma vez enredado pelo tecido do
argumento e eloquência da oratória, deixa-se levar pelo
discurso por confiar na palavra de quem o produz, porque
há nele coerência com aquilo que ele acredita e, no íntimo,
quer, gosta, espera e deseja ouvir – via de mão dupla de
uma atitude beirando a devocional.
Como a experiência é indizível pela sua natureza
insólita, qualquer palavra que seja dita sobre ela passa a ter
contornos de verdade; instaura, além da convicção nela
própria, o papel destacado do indivíduo em seu círculo, do
seu ambiente, da sua comunidade. Fica, dessa forma,
caracterizado o erro primário da Ufologia, seu erro matriz
em dose dupla: o pesquisador que acredita na testemunha
que acredita no pesquisador. Uma conivência muda de um
e de outro onde ninguém ganha e todos perdem. Entre
ambos se interpõe não uma película de límpida
transparência em que as falas assumem uma verdade
indiscutível, mas um vidro semiopaco que deixa um
entrever a presença do outro, ao mesmo tempo em que
reflete sua própria imagem, isto é, cada um se vê refletido
no espectro do outro e assim confirmadas suas crenças
individuais, com os egos se acariciando mutuamente em
tácita aceitação dos discursos.
Estabelece-se assim uma silenciosa e recíproca
cumplicidade. Resta saber, se isso for possível, o que há no

60
vácuo existente entre eles, que não reconhecem seus
equívocos porque traídos não só dada a penumbra sobre
suas cabeças pela pouca incidência de luz que obscurece a
experiência dos sentidos, mas traídos principalmente pelas
paixões e desejos de suas almas. A informação é solapada,
o déficit é enorme e a inadimplência cresce. Quem paga
essa conta? Quem paga é a inteligência coletiva do corpo
social, intoxicada e infectada por dejetos retóricos que
bloqueiam a razão e a capacidade de reflexão.
A inépcia dos ufólogos em grande medida é de tal
ordem que tipifica muito mais um arremedo de pesquisa
que um procedimento cuidadoso conduzido por pessoas
habilitadas. Há uma paralaxe entre o que e o como fazer,
ou seja, entre o desejo de buscar esclarecer e a aptidão
para tal, já que se trata de uma intervenção amadora
irresponsável, desastrada e invasiva, em flagrante
desrespeito ao próximo, infringindo e triturando os
princípios éticos. Por essa incúria e outras ações não menos
inconsequentes, esse tipo de pesquisa de campo, da forma
como tem sido feita, do ponto de vista legal tem caráter
impeditivo. Réu, confesso, lavro aqui um mea culpa pela
inabilidade nas minhas investigações no passado.
A expressão irresponsável é tomada ao pé da letra: ao
ufólogo pressupor-se-ia ter, no mínimo, como requisito
fundamental para essa atividade, graduação em Psicologia,
uma vez que interage diretamente com o gênero humano
e, via de regra, ele não dispõe da formação, das instruções
e os instrumentos legais para atuar nessa área. Ele não
considera que a personagem de sua pesquisa terá suas
identidade e intimidade atiradas à exposição pública,
sujeita ao constrangimento que poderá lhe custar o

61
desconforto e o risco do juízo popular, com efeitos
deletérios irremediáveis à sua vida social e saúde psíquica.
Responsabilidade é o dever de consciência e a
consciência do dever; toda e qualquer investigação requer
técnica, normas, métodos e ética de conduta, inexistentes
em Ufologia; ainda mais, o ufólogo precisaria do
conhecimento profundo sobre o objeto de seu estudo, que
seguramente não tem. É uma imposição: conhecer para
saber, que deve triunfar, para bem do próprio
conhecimento, sobre todas as impossibilidades que o
limitam. Neste sentido, uma vez não tendo conhecimento
objetivo do que é o “disco voador”, o ufólogo acaba
praticando um embuste intelectual, investido de um falso
saber, um saber inexistente. Os ufólogos não estão, de
forma alguma, qualificados e aptos técnica e culturalmente
a exercerem essa atividade de pesquisa, até porque o que
fazem não pode ser chamado de pesquisa, e quando
fazem, fazem-na às avessas e de maneira rasa. É, apenas,
uma questão de autoconservação e sobrevivência de suas
crenças. A Ufologia está muito além e muito acima de suas
supostas atribuições, não sendo matéria para entusiastas
neófitos brincarem de fazer ciência, a menos que queiram
transformá-la em Patafísica 4 - a ciência das respostas
imaginárias e das exceções, para alguns, a ciência das
bobagens. Não é por outra razão que os ufólogos carregam
o jocoso rótulo de “caçadores de Óvni”5, pois que nunca
exerceram de fato o verdadeiro estudo dos Ufos, o que me
parece remontar ao tempo dos antigos povos caçadores-

4
Contração do grego epì tà metà tà phusiká – o que está além da
(meta)física). Criada pelo dramaturgo francês Alfred Jarry (1873-1907)/
5
“Óvni” é um acrônimo e, de acordo com os dicionários e manuais
normativos da língua portuguesa, não pode ser grafado no plural (N.A.).

62
coletores, há cerca de 20 mil anos, em sua versão pós-
moderna, onde o que muda é apenas o objeto fim:
caçadores de Óvni, coletores de casos.
Desde cedo Jung demonstrava sua preocupação, ao
perceber que o homem não está preparado para entender
acontecimentos desse porte, por estar em posição
desfavorável, em desvantagem, dada a sua total
incompreensão dos fatos, enfim, à mercê de sua
ignorância. Jung se referia a todos os envolvidos –
observadores, supostos contatados e pesquisadores – os
ufólogos, principalmente estes, que deveriam estar
seriamente engajados de trazer esclarecimentos.
Outro aspecto a ser colocado em discussão tem muita
importância dentro da questão ufológica: Ética, do grego
ethos – conduta, caráter, e sendo um vocábulo
polissêmico, pode ser traduzido livremente como um
conjunto de regras, princípios e valores do indivíduo ou do
grupo social, que norteia suas ações. Ao darmos a palavra a
Deleuze, dirá ele que ter ética é estar à altura do mundo
em que se vive. É um guarda-chuva que abriga muitos
outros significados, logo, o que Deleuze diz vai além de
sua própria definição. É, em resumo, comportamento,
comportar, com – estar junto, e portar – proceder, agir, “ter
atitude para com o outro” ou, numa ótica mais ampla, é a
conexão do individual com o coletivo.
Vista sob duas concepções fundamentais, temos a
primeira como ciência do fim para a qual a conduta dos
homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim,
deduzindo tanto o fim quanto os meios da natureza do
homem. A segunda a considera como a ciência do móvel
da conduta humana e procura determinar tal móvel com
vistas a guiar ou disciplinar essa conduta. Temos então

63
duas construções distintas, e a definição clássica é dada por
Abbagnano6: “A primeira fala a língua do ideal para o qual
o homem se dirige por sua natureza e, por conseguinte, da
"natureza", "essência" ou "substância" do homem. Já a
segunda fala dos "motivos" ou "causas" da conduta humana
ou das "forças" que a determinam, pretendendo ater-se ao
conhecimento dos fatos.”
O autor destaca que são dois pontos de vista
heterogêneos. Sua explicação é longa e ocupa um bom
espaço na obra, mas podemos extrair o trecho mais
explicativo. “A primeira asserção (no sentido em que é
feita, p. ex., por Aristóteles e por S. Tomás), significa: "a
felicidade é o fim da conduta humana, dedutível da
natureza racional do homem", ao passo que a segunda
asserção significa "o prazer é o móvel habitual e constante
da conduta humana". Como o significado e o alcance das
duas asserções são, portanto, completamente diferentes,
sempre se deve ter em mente a distinção entre ética do fim
e ética do móvel nas discussões sobre ética. Tal distinção,
ao mesmo tempo em que divide a história da ética, permite
ver como são irrelevantes muitas das discussões a que deu
ensejo e que outra causa não tem senão a confusão entre
os dois significados propostos.” Note-se que não está se
falando de conduta “moral”, que é apenas uma
contingência da ética, e não o contrário. Não é discutir
“bem” e “mal” ou “certo” e “errado”, mas entender a forma
com que ética é usada nesse campo, obviamente que longe
da pretensão de fazer um tratado mergulhando nos
conceitos clássicos de Platão, Aristóteles, Leibniz, Kant e
outros nomes citados pelo autor.

6
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes.
1992. p. 389.

64
A questão que se levanta é que tipo de ética move o
ufólogo? Qual a natureza dos seus ideais? A finalidade é
patente: provar para a opinião pública e principalmente
para si e para seus pares que discos voadores existem,
denotando um inegável agir ego-narcisista, agir que, na
verdade, prolifera a olhos vistos: importa é o “eu e agora”;
o “outro e o amanhã”, nem pensar. A força dessa
comunidade reside exatamente na rigorosa obediência ao
seu sacerdócio ordenador, e quanto mais funda a crença,
maior a intolerância às oposições.
A diferença entre as teorias científicas e as doutrinas
(sistemas fechados em si mesmos convictos de suas
verdades) é que aquelas aceitam ver suas demonstrações
refutadas pelo seu próprio sistema, porque sujeitas ao erro,
ao passo que as doutrinas não suportam contradições de
qualquer outro sistema. Essa paixão é desvinculada da
razão, transformando em verdade tudo aquilo em que seja
“útil” acreditar, acentuando que paixão, do grego pathós,
significa sujeição, passividade, padecimento. Lacan refere
que “As estruturas clínicas neurose e psicose declinam as
formas imaginárias da paixão individual do sujeito pelo
significante.” Neste sentido, as convicções estão fortemente
atadas a interesses pessoais. A influência exercida pela
coletividade, por contágio direto ou indireto – mídia,
cultura de massa ou simples rumores – tem muita
preponderância na gênese de um número considerável de
opiniões e acabam se tornando seus verdadeiros
reguladores.

O intelecto humano, quando assente

“ em uma convicção (ou por já bem aceita e


acreditada ou porque o agrada), tudo

65
arrasta para seu apoio e acordo. E ainda
que em maior número, não observa a força
das instâncias contrárias, despreza-as, ou,
recorrendo a distinções, põe-nas de parte e
rejeita, não sem grande e pernicioso
prejuízo. Graças a isso, a autoridade
daquelas primeiras afirmações permanece
inviolada.

Francis Bacon
Novum Organum

A virulência das opiniões e das crenças, agindo no
inconsciente, alcança a velocidade da luz e tem força
suficiente para esvaziar a importância do valor racional
destas crenças. O contágio não se propaga quando
encontra uma parede de anticorpos. Convém jamais acatar
qualquer coisa como verdadeira sem que ela seja
evidentemente conhecida como tal, e rejeitar como falsas
todas aquelas em que podemos vislumbrar o menor sinal
de dúvida.
Com relação aos meios utilizados pelos ufólogos, são
eles inteiramente questionáveis, uma vez que se baseiam
quase que exclusivamente na natureza humana falível e
permeável a injunções, e naquilo que eles acham, supõem,
imaginam o que seja o “disco voador”, sem qualquer
conhecimento ipso facto do objeto. Podemos deduzir, por
experiência que, no cenário ufológico, os fins e os meios
são “prazeres individuais”, auferindo uma equilibração
psíquica e/ou uma satisfação psicológica, em total prejuízo
da genuína procura de esclarecimento.

66
Os motores desta conduta estão amplamente
discutidos na parte final do livro. “Palco ufológico” vem a
caráter, uma vez que presenciamos um metateatro e uma
metanarrativa que busca sua autolegitimação, mas que não
passa de um jogo de cena desregrado na linguagem, uma
peça dentro da peça, a representação do nada: o ufólogo
que pensa ser ufólogo e finge pesquisar, a plateia que
acredita no que não vê e aplaude mesmo assim, a mídia
que tudo ignora e pensa divulgar, a autoridade que nada
sabe e finge saber tudo. Em resumo, a Ufologia é
tragicômica – de perto, uma comédia; de longe, uma
tragédia. Como tal, uma farsa. Essa metapeça, como
veremos depois por outro ângulo e outro contexto, é a
mentira que revela a verdade – a peça ficcional que nos
espatifa contra o muro da realidade além do pensamento, o
que faz unir Shakespeare e Calderón de La Barca: “O
mundo é um palco. Vida é sonho”.
Até onde foi possível garimpar a literatura dentro
deste campo, não foi encontrado qualquer estudo de teor
semelhante. De fato, reunir e fundir alguns dos melhores
ensaios em ciências sociais, história, religião, mitologia,
biologia, exobiologia, filosofia e muitas outras para
entabular múltiplos diálogos com autores do mais alto
quilate, é um desafio que pede boa dose de atrevimento e,
mais que isso, uma dose ainda maior de humildade e
honestidade intelectual para reconhecer que a jornada mal
começou. Tudo para embasar e aprumar um estudo não
acadêmico de um tema bastante estigmatizado, alvo de
preconceito, chacota, troça, escárnio. E por que é assim?
Por causa das regras da engenharia política da cultura de
massa, que regra o que deve e como deve ser injetado no
cardápio cultural público, como será abordado.

67
Levando em conta que o continente desta obra colide
frontalmente com tudo o que se supõe saber sobre o
assunto, no contrafluxo do “já sabido”, fica claro que a
opção foi pelo caminho mais difícil, o menos ou, talvez,
nunca antes trilhado por qualquer outro, uma escalada
íngreme que faculta uma visão mais ampla do horizonte, e
isso faz toda a diferença.
Nenhuma disciplina isoladamente esclarece o
problema, nem cada obra responde às interrogações. Só
quando os saberes são reunidos e contextualizados é que
dão sentido ao ponto central da discussão. Exatamente por
essa razão, ao contrário da Ufologia, que é totalmente “ex-
cêntrica” (fora do centro) ou “ufocêntrica”, esta obra se
propõe policêntrica, com vários núcleos de análise em que
a costura das partes revela a complexidade do tecido.
A Ufologia, o fenômeno Óvni e o “disco voador”
ocupam setores distintos no trato analítico, embora façam
parte do mesmo fio temático. As obras antecessoras
Desconstrução e Reflexões lidaram com o assunto cada
uma a seu modo, enquanto esta aglutina e complementa as
redações anteriores sob um novo enfoque, procurando
juntar as peças soltas para montar um painel amplo,
sempre incompleto, sobre o tema. Ver-se-á que, amiúde,
muitos verbetes foram buscados em sua raiz etimológica
para lhes trazer o real significado nos contextos utilizados,
a fim de clarificar o sentido proposto. Acredito que os
capítulos se metabolizaram satisfatoriamente por vasos
comunicantes, e que os temas tenham se relacionado em
chaves combinatórias, se sobrepondo em alguns momentos
até, de maneira a proporcionar uma leitura leve, fluente e
dinâmica, buscando minimizar uma eventual prolixidade.

68
O “disco voador”, como signo, apresenta uma folha
corrida muito mais afeita à linearidade histórica dos
acontecimentos do que a de um “veículo extraterrestre”, do
qual nunca se comprovou sua existência a despeito dos
milhares de relatos, milhares de registros, milhares de
“contatos”. Milhares de tudo, ou melhor, de nada, por isso
o mistério continua, e o autoproclamado “enigma do
século” vai se tornando do milênio. Entendo que, neste
sentido, é preciso redimir a falta pelo excesso – a absoluta
falta de provas pelo excesso de “provas”. E os ufólogos
prosseguem empilhando caso sobre caso, dia após dia, ano
após ano como se fosse uma construção sólida a
demonstrar a realidade dos discos. Pura ilusão, pois são
incapazes de perceber que quanto mais milhares, mais
improvável se torna. Não é contraditório, é questão de
lógica: quando um dado evento se repete sem que possa
ser comprovado – e em ufologia essa é a tônica –, seu grau
de credibilidade cai para zero.
Sôfregos pela “chancela oficial”, os ufólogos, como
porta-vozes desautorizados sobre a realidade dos fatos,
formam uma trupe insistindo na enfadonha ladainha da
liberdade de informação, acusam governos e instituições
de sonegar dados e conspirar contra a “verdade sobre os
discos voadores” e outras tolices, outras sandices e mais
disparates. Por exemplo, a existência de “acordos
estratégicos” com civilizações alienígenas, ou que naves
espatifadas na Terra foram recolhidas, assim como seus
tripulantes, mantidos isolados em prédios subterrâneos
ultrassecretos; ou ainda que os progressos da medicina e da
ciência só foram obtidos graças aos ensinamentos “deles”.
Isso é deplorável, revelando imaturidade e sintomas
esquizoides para desenterrar mistérios do gênero “o fim do

69
segredo sobre os discos voadores está próximo”.7 Ao menor
sinal de que há um burburinho nos intramuros oficiais, os
ufólogos se agitam em febril patrulhamento à espreita de
alguma revelação. Como isto nunca aconteceu e não irá
acontecer porque não há o que revelar, irrompem pruridos
de indignação e frustração, até que um novo fato suscite
um novo jus esperniandi.
A partir desse processo de estímulo-resposta, surge
um jogo de provocações recíprocas: um espera pelo que o
outro não tem mas finge que tem para que o outro continue
querendo. E por que isso? No que concerne ao ufólogo,
sinal evidente de falta de segurança em suas convicções,
porque o disco só será validado e autenticado se alguma
agência governamental ou autoridade instituída confirmar a
existência daqueles veículos e daquelas civilizações. Como
o mais provável é que tal fato irá para as calendas, para
que o declarante não se exponha a uma pantomima,
reivindicações, petições e abaixo-assinados mendigando
tais informações serão olimpicamente engavetadas.
Por não estar lastreada em solo científico, a Ufologia
corre a esmo tentando encontrar um rumo que a justifique,
mas o estrabismo crônico resulta uma panaceia (do grego
panakéia, remédio para tudo, que tudo resolve), ou seja,
aporta em um parque temático dos mais abstrusos que
encanta os crédulos.
Rodrigues está correto quando defende que “disco
voador” é uma denominação popular folclórica e
fantasista, classificado como objeto voador não identificado
– Óvni, que existe enquanto fenômeno. Na significação
filosófica e científica atual, fenômeno é o objeto, o ser em

7
Chamada para o VI Fórum Mundial de Ufologia, novembro/2014.

70
si. E até que se chegasse a admitir fenômeno8 como tal, ele
foi antes considerado como a mera aparência da coisa que
se manifesta; depois, passou a demonstrar apenas o objeto
do conhecimento, portanto, limítrofe àquilo que o
experimentador ou o observador consegue captar.
Entenda-se linearidade histórica a convergência dos
fatores de onde surgiu o fenômeno Óvni, sob o signo de
acontecimentos aparentemente sem vínculos entre si: a
eclosão da Segunda Guerra Mundial e, em decorrência, o
abalo nas instituições seculares da Igreja e do Estado e a
ascensão na produção de obras de ficção científica, além
das transformações culturais marcantes do pós-guerra. São
eventos complexos com implicações que não podem ser
examinadas em separado, mas entrelaçadas e em conjunto
a outras causas.
No entroncamento de todos aqueles fatores, o “disco
voador” rapidamente decolou, ganhou forma, identidade,
origem e objetivos. Esse atalho discursivo intempestivo,
poroso e folhetinesco jamais conheceu uma reflexão, uma
revisão crítica ou autocrítica, na contramão do senso lógico
de se apurar os fatos com profundidade antes de apresentar
uma conclusão definitiva. O calcanhar de Aquiles da
Ufologia está exatamente na sua vã tagarelice, no seu
palavrório recheado de ilogismos, traída pelo uso indevido
de sua própria estrutura narrativa e critério investigativo.
Então, acontece o óbvio: cada discurso se forma no
vácuo do anterior, um após outro após outro, uma
recitação cacofônica, coro dissonante da mesma ópera-
bufa. Monolítico e anacrônico propagou-se pandêmico e se
reproduz por inércia, e hoje, em plena metade da segunda

8
Para completo entendimento de “fenômeno”, consultar Dicionário de
Filosofia, de Nicola Abbagnano Martins Fontes, 1992.

71
década do novo século, qual um mantra polivocal, o disco
voador continua sendo... Veículos extraterrestres
provenientes de civilizações longevas e avançadas,
pilotados por seres inteligentes que visitam a Terra há
milhares de anos com os mais diversos objetivos. Com
pequenas variações, a versão oficial, documentada na
“Carta de Brasília” diz: O fenômeno já teve sua origem
plenamente identificada como sendo extraterrestre e que os
veículos que nos visitam tão insistentemente provém de
civilizações tecnologicamente mais avançadas que a nossa,
mas que coexistem conosco no universo.9 Não há a menor
dúvida quanto a isso, apregoam peremptoriamente
ufólogos, neófitos e leigos. O enunciado foi aqui decupado
e dissecado para demonstrar que não se sustenta como
argumento científico e é incompatível com o pensar
racional.
Nesse processo, é necessário primeiro entender o
indivíduo e encontrar um nexo entre ele e o objeto, uma
via para tentar destrinchar parte do enigma, demonstrando
que o objeto foi descaracterizado de seu verdadeiro
contexto. Esse é, do ponto de vista da fatura desse estudo, o
alvo que se empreende: reabilitar o objeto a partir do
homem e compreender o homem a partir do objeto.
Certamente, isso terá repercussões fundamentais na
consolidação de uma nova imagem de ambos, homem e
objeto, que se pretende articular às discussões ulteriores
sob novas interpretações.
O disco voador nunca foi disco e muito menos
voador, disse-me no final dos anos 70 um experiente amigo
em seus 80 anos de muita sabedoria e singular perspicácia,
arguto pesquisador do tema desde os seus primórdios.
9
Ver texto na íntegra em A Desconstrução de um Mito, p. 119ss.

72
Custei a perceber o quanto ele estava certo. Nada mudou,
o “disco voador” continua sobrevoando nossas cabeças,
alheio às opiniões em contrário, e o fenômeno segue sendo
reinterpretado à medida que o conhecimento se avoluma.
Esta obra reúne os quatro pontos cardeais que
encaminham o estudo: história, cultura, ficção e
imaginário, que se interpenetram buscando oferecer
explicações, ou, pelo menos, trazer novos territórios de
pesquisa com mais e melhores possibilidades e opções
para entendimento do tema. Não descobrimos a pólvora,
apenas a usamos para implodir um sistema deteriorado e
deformado pelo mau uso, para depois reconstruir com
outra estética e novas perspectivas. O pensar científico tem
a intenção explícita de produzir conhecimento numa busca
sem tréguas da verdade. Penetrar no mundo da linguagem
da ciência é descobrir-se cercado por questões
epistemológicas, ou seja, que a relação entre o discurso e o
objeto sobre o qual ele fala é que é o ponto decisivo. O
papel da ciência não é outro senão estabelecer, pela sua
práxis, a distância entre aparência e essência.
Na complexa trama urdida para este plano de
trabalho, o “disco voador” passou a ser visto como uma
representação do mundo, um espelho, uma projeção, um
duplo imaginado e imaginário. Para Morin, o homem “[...]
está fechado numa caixa negra cerebral, e recebe apenas,
através dos receptores sensoriais e dos centros nervosos
(que são, eles próprios, representações cerebrais),
excitações (elas próprias representadas por movimentos
ondulatórios/corpusculares), que ele transforma em
representações, isto é, em imagens”. Para Gilbert Durand,
ele é um museu de imagens, produzidas e a produzir, que
designa o conjunto das imagens elaboradas pelo animal

73
simbólico, como costuma dizer Cassirer. Museu é a palavra
que Durand usa com frequência para nomear o
colecionador de experiências em que se constitui o sujeito
– um museu de representações e simbolismos. Com estas
palavras impressas na mente fechando esta nada curta
reflexão inicial, o leitor pode perceber que a dor de cabeça
está só começando. As imagens não são cópias fiéis da
realidade, são somente artifícios para simular algo de que
não se tem acesso direto.
Ficarei grato e me sentirei recompensado se alguém,
um dia, se dispuser a preencher as lacunas, corrigir as
imperfeições, e descer a profundidades que o tema exige.
Ao contrário do que possam pensar aqui e acolá uns e
outros, vendo esta obra blasfema em rota de colisão com
suas convicções, ela é, com suaves tons alquímicos, não
mais que um candeeiro numa estrada sinuosa envolta em
constante névoa. Diz um antigo provérbio português,
“Candeia que vai adiante alumia duas vezes, o caminho de
quem a segura e de quem vem atrás.” Se escrever é ter o
saudável desejo de encontrar essa via iluminada, pensar é
caminhar com a chama acesa. A penúltima inscrição do
Mutus Liber é exatamente isso: Ora, lege, lege, relege,
labora et inventies. 10 Quando a escrita se entalha na
eternidade, a eternidade se esculpe na palavra.
O leitor deverá identificar nestas páginas um espírito
em certa medida iconoclasta, mas deverá perceber também,
assim espero, uma profunda religiosidade em sua finalidade
última: imolar as imagens, os objetos e as crenças que
hipnotizam e seduzem para recuperar, re-ligar e

10
Numa versão mais ampla: “Pensa, estuda, estuda, estuda de novo, sofra as
aflições e descobrirás”.

74
restabelecer a comunhão do homem com o mundo, o
mundo real, o mundo em sua mais pura transcendência.

“ Esclarecimento é a saída do homem de sua


menoridade, da qual ele próprio é culpado. A
menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direção de outro indivíduo. O
homem é o próprio culpado dessa menoridade se a
causa dela não se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e coragem de
servir-se de si mesmo sem a direção de outrem.
Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu
próprio entendimento.

Immanuel Kant
O que é o iluminismo?

The Man of the Center of the Universe. Hildegard von


Bingen. Liber Divinorum Operum, Biblioteca Statale.
Lucca, Itália. 1165.
75
76
História e Cultura – ventres da fantasia

Um estranho paradoxo: as pessoas, quando agem,


têm em mente o interesse privado mais mesquinho
mas ao mesmo tempo, no seu comportamento,
são mais do que nunca determinadas pelo instinto
das massas. E mais do que nunca,
o instinto das massas tornou-se errado.

BENJAMIN

77
78
Há pouco mais de cem anos, na primavera de 1914,
o mundo assistia incrédulo e estarrecido irromper a sua
primeira grande guerra do século. Dadas as circunstâncias
e nas devidas proporções, ela é vista como mais terrível do
que a que lhe sucederia dois decênios depois. As
estatísticas impressionam: 30 milhões de mortos, outro
tanto igual de feridos e mutilados, famílias inteiras
exterminadas, orfandade em nível alarmante, novas e letais
armas de guerra – granadas, morteiros, metralhadoras,
tanques e aviões, e a derrocada de impérios centenários. O
primeiro dia de batalha dizimou mais de 60 mil
combatentes num massacre sem precedentes. As mudanças
no panorama mundial causaram um profundo impacto na
política, nos costumes, na economia, no trabalho, na
educação e na cultura, nas tradições e nas instituições, na
organização social e na ordem estabelecida em todos os
setores da vida pública. Era o nascedouro de uma
sociedade que iria viver sobressaltada e encurralada pelo
medo e pela insegurança. Os reflexos desse golpe não
tardariam a se manifestar. Era o prenúncio da depressão
que iria se manifestar com grande força poucos anos
depois. Perto do fim, em 1917, um acontecimento
inusitado concorreria para dividir as atenções, instigar o

79
imaginário e revigorar as esperanças: A aparição da “Nossa
Senhora” na região de Fátima, em Portugal, levando
multidões a esperar por um milagre e pelo término da
guerra, e como de fato ela acabou meses depois, atribuiu-
se à Virgem o “milagre” da paz. Esse fato tem profundas
ligações com a Ufologia, como veremos.
Após esse período tenebroso, a primeira metade do
século 20 chegava ao seu limiar sob o trauma de uma
segunda guerra que devastara cidades inteiras, trazendo
desesperança, tensão, medo e mais dor. Os ideais de uma
vida ordenada e organizada se perdiam nas paisagens
calcinadas recortadas por fumaça e escombros. Duas
guerras tão próximas e tão sangrentas sepultavam de vez as
expectativas de um mundo livre desse horror. O espectro
do cogumelo atômico representava o fim das utopias e o
início da idade das incertezas. A humanidade jamais seria a
mesma. Mundo sem rosto. Entravam em cena algumas das
maiores transformações de sua história.
As tensões acorrentadas nas profundezas da psique
libertaram-se e lançaram-se sobre o mundo. A invasão da
consciência por esses fundos psíquicos inconscientes, os
quais submergem a razão e induzem as pessoas a
comportamentos anormais, configura o que em
psicopatologia se denomina psicose coletiva. Esse período
pós-guerra foi o marco inicial do que se convencionou
chamar de pós-modernidade, modernidade tardia,
hipermodernidade ou neomodernismo. Pouco importa o
nome, o fato é que nunca antes uma epidemia psíquica
fora tão destrutiva, nunca antes liberara forças capazes de
destruir a humanidade, e essa humanidade teria agora que
enfrentar, às cegas e despreparada, um novo tempo, sem
ter a menor ideia do que viria pela frente.

80
Arquitetura de uma ilusão

Em meio ao caos deflagrado por esta guerra e no


rescaldo da contabilidade de danos e perdas, uma série de
ocorrências começou a chamar a atenção em todo o
mundo – a observação de luzes e artefatos estranhos
revoando pelos céus. Eram os discos voadores que
invadiam a vida dos homens. Sobre isso, Jung preconizava
que, caso o indivíduo fosse capaz de agarrar-se a um
último resto de consciência ou de preservar os liames de
relacionamento humano, poderia surgir, pelo canal do
inconsciente, em função da confusão do entendimento
consciente, uma nova compensação que possivelmente
seria integrada pela consciência. Segundo ele, surgiriam
novos símbolos de natureza coletiva que refletiriam agora
forças de ordenamento, e os discos voadores poderiam ser
os protagonistas do espetáculo. Jung defendia que “Uma
ideia tão poderosa como a de um mediador divino
corresponde a uma necessidade profunda da alma, que
não desaparece quando uma manifestação desta se torna
obsoleta. Entre opostos psíquicos forma-se,
espontaneamente, um símbolo unificante, de unidade e
totalidade, por ora inconsciente.” E conclui: “Este processo
se dá no inconsciente dos homens contemporâneos. Agora,
se no mundo exterior acontecer algo inusitado, ou
impressionante, seja homem, objeto ou ideia, então, o
conteúdo inconsciente pode projetar-se sobre este
acontecimento”.
Nessa projeção, assinala, este “algo” torna-se
numinoso e portador de forças míticas, produzindo um
efeito altamente sugestivo que o transforma no mito do
salvador, cujos traços básicos se reconstroem através dos

81
arquétipos de repetição. Embora Jung tenha se pronunciado
com base em informações, mas sem o exercício
investigativo necessário para um parecer mais completo,
seu domínio no ofício psicanalítico lhe dava plena
autoridade para sustentar seus argumentos. Atento e
intrigado pelas notícias e movido pelo desejo profissional
de encontrar uma explicação razoável, ele escreve, no
prefácio de “Um Mito Moderno”, que aquelas
manifestações, “Ao que parece, são modificações na
constelação das dominantes psíquicas, dos arquétipos, dos
‘deuses’, que causam ou acompanham transformações
seculares da psique coletiva.” Foi talvez a primeira tentativa
séria de se entender o fenômeno dentro dos princípios da
lógica empírica, à parte da visão material, física e,
principalmente, metafísica. Ressalte-se ainda que Jung tinha
profundos conhecimentos de mitologia, religiões e
simbolismo, juntando esse saber no esforço de chegar a
uma explicação razoavelmente satisfatória para os
acontecimentos.
Parece-me essencial introduzir já nestas
considerações iniciais uma definição clara do termo
“arquétipo”, visto que estará onipresente ao longo do
trabalho pelas palavras de outros autores. Recorro,
portanto, ao que escreve Jung: “O conceito de arquétipo,
que constitui um correlato indispensável da ideia do
inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas
formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em
todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as "motivos"
ou "temas"; na psicologia dos primitivos, elas
correspondem ao conceito das représentations collectives
de Levy-Brühl e no campo das religiões comparadas foram
definidas como "categorias da imaginação" por Hubert e

82
Mauss. Adolf Bastian designou-as bem antes como
"pensamentos elementares" ou "primordiais". O conteúdo
do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de
arquétipos.” O que nos chama a atenção são as
représentations collectives, que ele mesmo resume como
sendo uma maneira de “pensamento instituído”, que pode
mudar desde que subjugado por uma força contrária ao
sistema estabelecido. Jung faz o seguinte comentário: “O
homem do passado, que vivia num mundo de
représentations collectives arcaicas ressurgiu em uma vida
visível e dolorosamente real, e não só em alguns indivíduos
desequilibrados, mas em muitos milhões de seres
humanos.”
É óbvio que a Segunda Guerra provocou um
choque profundo e um sentimento angustiante de vazio e
impotência, e apesar do horror das bombas, o clima
americano de otimismo e fé no progresso tecnológico e na
ciência começava a substituir a desconfiança e o medo.
No âmbito da cultura, os enredos da ficção
científica vão-se tornando cada vez mais apocalípticos e
pós-apocalípticos, ocasionando aumento da procura de
histórias que abordem a temática nuclear. Novos leitores
acorrem à ficção científica na busca de respostas para as
perplexidades do mundo em que vivem e qual o futuro que
podem esperar. Não é exagero dizer que a sci-fi adquire
uma força quase oracular, inclusive porque agrega à sua
nova narrativa questões de psicologia, sociologia, história e
meio ambiente, chegando à maturidade e à sofisticação ao
incorporar elementos reais da ciência.
O que se percebe nestes dois episódios de guerra é
que, o primeiro, em seu período final, foi marcado por um
“prodígio celeste” – a aparição da Virgem, e o segundo,

83
também no seu estertor, teve a presença de “sinais celestes”
– luzes e aeroformas desconhecidas. Podemos pensar, a
princípio, que no primeiro caso a força da presença
religiosa direcionou e determinou o rumo dos
acontecimentos a seu favor; no segundo, marcado pela
influência da tecnologia e, mais subjetivamente, pela
penetração das obras da science fiction no inconsciente
podem ter contribuído na interpretação das visões. Por que
não ocorreu o inverso? Por que os discos voadores não
apareceram na primeira guerra e mesmo depois dela e a
santa não ressurgiu na segunda?
A denominação disco voador entrou para o
vocabulário popular por causa de uma interpretação
distorcida e prematura de um evento isolado, e como o
inconsciente coletivo já estava bastante embebido de
alienígenas através da literatura sci-fi, os flying saucers
assumiram seu papel na ordem do dia para nunca mais
saírem. A distorção ocorreu porque a imagem do disco
estava plasmada no inconsciente desde o final do século
19 graças às primeiras novelas sci-fi, entre elas, a famosa
“Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells, escrita em 1898,
que impulsionou o gênero. Em 1938, este conto foi
encenado em uma transmissão radiofônica que aterrorizou
a América, no mesmo momento em que começava a
guerra. Aqui, realidade e ficção guardam estreitos vínculos.
Mesmo sabendo tratar-se de um radioteatro, a população,
impressionada e temendo o pior, relegou esse dado e
entrou em pânico coletivo, refugiando-se em abrigos,
porões, igrejas, templos, promessas e orações, enquanto os
mais corajosos saíam às ruas armados dispostos a defender
seu país, suas famílias e sua honra. Fuga em massa, linhas

84
telefônicas e estradas congestionadas, aglomerações,
suicídios, medo, meio milhão de pessoas em total pânico.
Em resumo, o “fenômeno Óvni” se instalou e se
consagrou, catapultado pela combinação de situações
históricas e sociais únicas, pulsões religiosas, aspectos
culturais e fatores arquetípicos, num processo de
atualização e ritualização do pensamento mítico. A partir
daí, os discos voadores passaram a habitar o imaginário
popular a partir de uma premissa toda distorcida.
“Esquecida” ou de fato convertida, a versão se consolidou e
se autopromoveu fomentada por uma infindável,
sistemática e progressiva reincidência de erros. Não um
erro pontual, mas coletivo e contagiante. Incorrer no
mesmo erro uma ou duas vezes é aceitável, porém, repeti-
lo por teimosia denota pouca ou nenhuma inteligência. A
Ufologia entende que preservar a história reescrita à sua
conveniência pode legitimar o presente, e um presente que
se queira impor prepotentemente deve negar e apagar tudo
aquilo que do passado ponha em risco sua autoafirmação.
É intrigante a capacidade que o fenômeno tem de se
metamorfosear através da história, indo desde as barcaças
voadoras do século 9 aos foo fighters (foguetes-fantasmas)
dos anos 50, além das tentativas de explicação das
aparições, no passado, de deuses, diabos, entidades
folclóricas, dragões, anjos, etc. Isso sugere algum tipo de
interação entre o fenômeno e o observador, o que supõe
num possível envolvimento de uma forma de consciência
imaginativa. Esse caráter psíquico não pode nunca ser
negligenciado porque é de grande importância, como
defendia Jung. Com seu saber e aguda percepção, ele
entreabriu uma porta por cuja fresta a vazou um tênue raio
de luz. Na medida em que os ventos do conhecimento

85
abriram essa porta, iluminou-se um novo patamar de
compreensão. Jung plantava as sementes de uma
interpretação que ao longo do tempo encontraria revérbero
graças ao desenvolvimento dos estudos interdisciplinares.
Num recorte mais atual, porém com viés bastante
diferente, Bauman indiretamente endossa e suplementa o
trabalho do psiquiatra suíço ao afirmar que o medo
instalado, absorvido, autoalimentado, fortalecido e
perpetuado no cerne do espírito acaba provocando um
efeito colateral de busca de heróis salvadores e protetores.
Medo. Busca de heróis salvadores e protetores. Essa dicção,
ao encontrar eco em autores de diferentes sonoridades,
pressupõe as bases lançadas por Jung serem corretas.

The Angel of the Revolution. George Chetwynd. Ilustração


F. T. James. p. 335, 1893. Cortesia The British Library.

E essa ressonância vem desde o final do século 19 a


partir, muito provavelmente, da respeitada e ambiciosa
obra em 13 volumes de Sir James Frazer, The Golden
Bough: a study in magic and religion, de 1890 (publicada
em português de forma condensada), da qual Malinowski

86
parece ter se servido ao escrever o seu Magia, Ciência e
Religião. Frazer observa que o homem primitivo procurava
controlar a natureza (colheita, clima, etc.) através de ritos e
fórmulas mágicas. Só quando se deu conta das limitações
do seu “poder” é que, por medo ou esperança, recorreu
aos seres superiores, sobrenaturais – anjos, espíritos
ancestrais, mestres, deuses. Foi no decorrer destes estudos
que Frazer estabeleceu a distinção entre magia e religião.
Malinowski retoma o trajeto a partir daí, onde a
“semelhança” apontada por Asimov entre magia e ciência
é mera retórica; a magia é hermética e se assenta na
crença, na tradição e na mística, enquanto a ciência nasce
da observação e da experiência, fruto da razão, “filha do
sonho”, como diz a epígrafe de Morin. Centenária, a obra
de Frazer desafiou o tempo e manteve a legitimidade da
essência ao discorrer sobre os meandros do espírito
humano, ao apontar a magia, a religião e a ciência – nessa
ordem – como uma linha evolutiva em marcha.
Malinowski apruma o estudo de Frazer, encorpando e
ratificando o fato de que ainda somos culturalmente
primitivos em relação às práticas mágico-religiosas –
principalmente – com todo tipo de sortilégios, magos,
oráculos e superstições, mesmo estando cercados por uma
estonteante evolução tecnológica e científica: “A ciência
baseia-se na convicção de que a experiência, o esforço e a
razão são válidos; a magia, na crença de que a esperança
não pode falhar ou o desejo decepcionar”. Para Lévy-
Bruhl, a mente primitiva encontra-se irremediável e
completamente imersa num estado de espírito místico,
incapaz de perceber com clareza e equidade, desarmada
da faculdade de abstração e de reflexão, encarcerada numa
“manifesta aversão ao raciocínio e às operações discursivas

87
do pensamento”, inábil em tirar qualquer proveito da
experiência ou compreender as mais elementares leis da
natureza.
Está claro que é uma necessidade atávica para o
homem manter, de alguma forma, em qualquer
circunstância e seja lá com o que ou quem for, laços
vitalícios com os planos espirituais, transcendentes e
superiores, e esse dado é de crucial importância para este
ensaio, pois é a estrutura formadora da nossa psique e
modo de ser. Sólidos e extensos trabalhos nos campos
antropológico e religioso ressaltam tal importância, e os
mais expressivos autores corroboram que a fé e o culto
brotam dos conflitos existenciais humanos, mas não só. O
que animava os acontecimentos na antiguidade era algo
imanente à natureza, enquanto para o homem animista
suas próprias faculdades, instintos e pulsões animam fatos
que ele mesmo produz. Segundo Abbagnano, animismo,
termo criado por Edward B. Tylor, é a crença dos povos
primitivos de que as coisas naturais são todas animadas, daí
a tendência a explicar os fatos pela ação de forças ou
princípios animados. Porém, ainda segundo Abbagnano, a
sociologia da religião observa que tais crenças estão antes
vinculadas à magia que ao animismo.

“ - Valha-me Deus! – exclamou Sancho – Não


lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que
fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que
só o podia desconhecer quem dentro na cabeça
tivesse outros?
Miguel de Cervantes
Don Quijote de la Mancha ”
88
A sedução, o encantamento

Mas, afinal, por que o “disco voador” seduz tanto?


De onde vem tamanha fascinação? Assim como toda
crença, a sedução ou encantamento tem sua matéria-prima
na irracionalidade, e o disco voador, com sua roupagem
tecno-mística, não é exceção, seduz e muito. A
combinação do sagrado, da imaginação, do mistério e do
inexplicável revela sua natureza metafísica,
incompreensível ao senso comum, tal como os mitos, a
religião e o sagrado. Podemos deduzir que talvez esteja
nesse coquetel um de seus trunfos, porque possui todos os
requisitos necessários para cinzelar esse modelo fascinante
e inundar o imaginário coletivo: O sagrado seduz porque
liga com o supranatural; a imaginação seduz pelo livre
exercício do fantástico; o mistério seduz porque enfrenta o
medo do desconhecido. Por fim, o inexplicável seduz
porque joga com o inconsciente. O disco voador então
seduz porque coloca o homem em contato com o
transcendente através da imaginação diante do
desconhecido, fazendo isso com maestria, estimulando o
lado mágico e imagético da coisa, e a crença nessa magia é
tanto social quanto psicológica.
A sedução não é exclusiva de fenômenos ou
acontecimentos insólitos, ela faz parte do cotidiano, da
imagosfera, pertence ao imaginário individual, realçando as
condutas sociais e coletivas. As figuras de sedução
preenchem um vazio imediato e constroem, através do
imaginário, a sensação interior de pertencimento no
mundo. Esse dado é de tamanha relevância que se constitui
num dos principais pontos de discussão de todo o trabalho.

89
A sedução provocada pelo objeto tem um
componente “mágico”. Sedução, do latim seducere,
seductio – separar, por à parte, enganar através de um jogo
de aparências; porém, a magia só terá efeito se a plateia
estiver inserida no tecido social – a rede simbólica a qual
pertence porque, como dizia Lévi-Strauss, a eficácia da
magia implica na crença da magia. Sobre isso, Nöth
observa que “A magia pura é caracterizada pela confiança
imperturbável da comunidade, que pratica a magia, na
eficiência real do ato mágico no mundo”. A convicção do
ufólogo na validez de sua retórica e naquilo que ele julga
saber, a crença da testemunha na autoridade que ele julga
exercer como conhecedor do assunto, e a confiança e as
exigências da opinião pública formam um campo
gravitacional onde se definem e se situam as relações entre
o ufólogo e a coletividade.
É interessante observar como a força coercitiva da
crença coletiva é capaz de reformular verdades
inteiramente assimiladas subjetivamente, fato perfeitamente
demonstrável na Ufologia: se um ufólogo confirmar a
observação de alguém como tendo sido mesmo um “disco
voador”, essa pessoa se sentirá privilegiada e terá ratificada
sua crença no fenômeno; mas, se o pesquisador lhe disser
que foi um engano, um erro de interpretação, então ele
cairá em desgraça pelo observador, contrariado em seu
inabalável sistema de crenças. “Muitas pessoas pedem um
'atestado' de que é um disco voador. É um grande
problema, pois parte dos relatos tem objetivo comercial. E
as pessoas ficam bastante irritadas quando digo que não é
um óvni”, diz Ricardo Varela, astrofísico e pesquisador do
INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), afirmando

90
que 100% das fotos que recebe para análise têm
explicações técnicas bastante simples.11
Seguindo a linha estruturalista de Lévi-Strauss,
resume-se assim eficácia da magia: a crença do ufólogo, a
crença do observador/contatado e a crença da
coletividade, ou seja, das pessoas do grupo. Esta projeção
particular de uma realidade em si mesma desconhecida,
feita de procedimentos e de representações, é afiançada
numa tripla experiência: a do próprio ufólogo que, se ele
acredita que sua asserção é real, experimenta estados de
natureza psicossomática; a do observador/contatado, que
vivencia um êxtase, e do público envolvido pela emoção,
cujo arrebatamento determina um consenso auto-
alimentador.
Sendo a testemunha e o público ignorantes sobre o
assunto, o ufólogo poderá dizer o que quiser que o seu
auditório tomará como verdade, até porque ele irá ouvir
exatamente o que quer e deseja ouvir. O “pensamento
mágico” é o que atende às expectativas espirituais do
homem para respostas nas quais o pensamento lógico não
o satisfaz ou não lhe interessa. Segundo Piaget – esse dado
interessa em particular –, o pensamento mágico é uma
primeira fase do desenvolvimento infantil, na qual
realidade e imaginação ainda não estão inteira e
suficientemente diferenciados. A relação entre pensamento
mágico e desenvolvimento infantil ficará mais clara no
último capítulo.
Quem discorre muito bem sobre esse aspecto é
Winfried Nöth, da cadeira de Linguística e Semiótica da
Universidade de Kassel, Alemanha. Segundo ele, “Na era
pós-moderna, encontramos uma reabilitação cultural da
11
“Caçador de óvnis”, Folha de S. Paulo, 21/06/2015, p. B12.

91
magia. Magia pura não só se torna novamente respeitada
em ambientes subculturais, tal como no movimento New
Age, mas, sobretudo, a crítica positivista da magia arcaica
tem sido abandonada por uma nova avaliação que
reconhece o potencial psicoterapêutico do signo mágico.
Magia, desse ponto de vista, já não é uma falácia
semiótica, mas um potencial semiótico para influenciar a
mente de um participante na semiose mágica.” Para
completar o comentário, Malinowski entendia a ação
mágica como uma atividade semiótica que tinha por
função preencher lacunas na realização da vida prática, ou
seja, funciona como uma válvula de escape e uma
alternativa para os impasses e as agressões do cotidiano. A
magia pós-moderna está imersa na ficção científica e nas
novas plataformas tecnológicas.
Freud explica o poder da crença? Já vai longe a
data em que ele, num artigo12 escrito em 1890, fala sobre
o poder “milagroso” das palavras no tratamento dos
fenômenos patológicos da vida anímica. Afirma ele: “Agora
começamos a compreender a 'mágica' das palavras. As
palavras são, sem dúvida, o mais importante meio pelo
qual um homem busca influenciar outro; as palavras são
um bom método de produzir mudanças mentais na pessoa
a quem são dirigidas e por isso já não parece enigmático
afirmar que a magia da palavra pode eliminar fenômenos
patológicos, ainda mais aqueles que, por sua vez, tem sua
raiz em estados anímicos.”
A “fé" das pessoas na palavra do outro justifica, por
exemplo, o sucesso dos curandeiros, pois não há dúvida de
que eles produzem as condições psíquicas propícias à

12
FREUD, Sigmund. “Tratamento psíquico (tratamento da alma), AE: vol. I, p.123;
ESB: vol. VII, 1890. p.306.

92
recuperação de seus pacientes. Assim também os milagres
obtidos através da fé religiosa são vistos por Freud como
algo real, pois ocorrem em todos os momentos da história.
Estas curas milagrosas não acontecem só com as doenças
ditas psíquicas, que têm como base a imaginação e por
isto, supostamente, estariam mais sujeitas às influências
externas. O sábio de Viena reconhecia a existência de
milagre também na cura de estados patológicos de origem
orgânica, que até então não apresentaram resultados por
qualquer tratamento médico. Isso seria explicado pelo que
ele denomina de "poder psíquico". Tendo como hipótese a
ação de uma força mental sobre a manifestação da doença,
ele considerava que também a “expectativa esperançosa”
(fé?) é capaz de ocasionar os mais notáveis efeitos tanto no
aparecimento quanto no desaparecimento de doenças
físicas. “Tudo ocorre naturalmente; na verdade, o poder da
fé religiosa é reforçado neste caso por diversas forças
pulsionais genuinamente humanas.”
Freud ressalta que um fator intensificador da fé
religiosa é a influência grupal, na qual o poder psíquico
pode ser bastante magnificado pelo coletivo. Mas há outro
fator, ainda segundo o psicanalista, de cunho narcísico,
que pode intensificar a crença religiosa, que é o desejo de
ser escolhido, uma vez que a graça divina só é obtida por
poucos. Ele sublinha que sempre que tais forças tão
poderosas se alinham, não é de se surpreender que em
algumas ocasiões a meta seja alcançada.
Lévi-Strauss, citando os trabalhos de Cannon 13 ,
relata que uma forte emoção como medo, cólera, êxtase ou
euforia é acompanhada de uma atividade particularmente
intensa do sistema nervoso simpático, que produz
13
W. B. Cannon, Voodoo Death. American Anthropologist. 14:5; 1942.

93
alterações orgânicas que possibilitam ao sujeito adaptar-se
a situações novas. Entretanto, caso a pessoa não disponha
de uma resposta instintiva ou adquirida para essa situação
extraordinária, o corpo se desorganizará provocando uma
sucessão de distúrbios com severos prejuízos à saúde física
e mental. Os ufólogos e as testemunhas passam então a
acreditar que o disco voador ou o “contato” foram os
causadores diretos da disfunção orgânica e lhe atribuem,
por conseguinte, intenções malévolas.
Aqueles três elementos que corresponderiam ao
“complexo xamanístico” (adaptado do texto original de
Lévi-Strauss) – crenças do ufólogo, da testemunha e do
coletivo – são indissociáveis. Mas vê-se que eles se
organizam em torno de dois polos: pela experiência
pessoal do ufólogo, e pelo consensus coletivo. A ufologia
se compraz no caos da ignorância. Cabe perguntar: Os
discos voadores continuariam existindo mesmo se os
pesquisadores dissessem convictamente que eles não
existem? Sim, continuariam existindo, precisam continuar
existindo. Dito de outra forma, o objeto de tais paixões –
no caso o disco voador – seja real ou irreal, não muda o
afeto tenaz e incurável daquele que nele investe todas as
suas forças. Ou esperanças.
A mágica, em Ufologia, não permite tirar discos da
cartola e é por essa frustração que a ilusão – e a sedução –
se potencializa. Do latim illusio, illudere, da raiz ludus,
jogo, engano, burla, fábula, fantasia, podendo chegar ao
extremo de alucinação, devaneio, delírio, de onde eludir –
escapar, fugir com destreza. Ilusionar, no espanhol, adquire
o sentido de suscitar a alegre esperança de algo desejável,
e, de fato, em última análise, ilusão é fruto do desejo, a
realização projetiva dos anseios, inerente ao homem

94
desejante. Ele não gosta de ser desenganado, de ver suas
vontades negadas, seu futuro ameaçado, seus sonhos
desvanecidos, frustrados, tornados decepção.
Mas certamente o ponto mais relevante, crucial e
que nos propõe intensa reflexão não reside no objeto da
crença, mas no seu mecanismo de produção, ou seja, nela
em si mesma. Ora, a crença em algo só se dá na
inexistência desse algo, na sua ausência, na falta. Se a coisa
existe, não há necessidade de crer, ela existe, e ponto final.
Hume defende que a relação causal não existe nas coisas,
que a necessidade da crença está presente no espírito e não
nos objetos. A maçã não é saborosa em si mesma, ela
apenas é.
Rosset reforça esse princípio ao afirmar que “A
crença extrai sua substância não de uma relação com a
coisa, mas da ausência da coisa.” Essa é a natureza da
crença – ainda conforme Hume – a de ser desprovida de
contato direto com um objeto e definir-se apenas pela
operação da adesão, tão persuasiva que se exime de
precisar o isto ao qual ela adere. E a conclusão é tão lógica
que desarma qualquer réplica: se o objeto da crença não
existe, descarta qualquer possibilidade de discussão – só se
discute sobre algo, enquanto o nada escapa a fortiori a um
exame racional.
Se lhe parece um paradoxo – a crença só é por
aquilo que não existe, basta ver que Freud e Lévi-Strauss,
por exemplo, cada qual em seu espaço, dividem o mesmo
espaço dialético quando reiteram o caráter ilusório no
substrato da crença. Por fim, cabe dizer que este tópico,
dada sua importância e extensão, foi cogitado ser um
terceiro apêndice. Ao leitor interessado em avançar nesse
entendimento, recomendo ler os autores mencionados.

95
Eis aqui a síntese das reflexões que originaram esta
obra: o homem como um poço de desejos, vontades,
quereres, carências, necessidades, tornados objetos de
representação do mundo; pela caligrafia de Schopenhauer,
“o mundo como objetividade da vontade”. A vontade surge
na representação.
O desejo é constituinte do sujeito, motor do seu
agir, vetor na busca de afirmação, porém, como nunca
satisfeito, leva-o ao eterno sofrimento, à dor de existir. O
indivíduo, como ser incompleto, lacunar, é regido pelos
impulsos de preenchimento do que lhe falta, não
necessariamente busca do prazer, mas antes, do objeto.
Logrando ou não êxito, outra assume o lugar da anterior e
um novo ciclo de desejos tem início, e assim por diante.
Um sujeito nolitivo, um indivíduo sem desejos e sem
necessidades não passa de um corpo morto insepulto,
dessubstanciado. Ser e objeto não existem separados. Ser
sujeito é formar e ter representações; ser objeto é ser
conteúdo de uma representação. Por este aspecto,
podemos pensar o “disco voador” como um fármaco,
apenas mais um e, como tal, balsâmico, paliativo, ilusório,
um produto de conveniência gerador de dependência.
Ao se conhecer o significado de ilusão em outras
línguas, a compreensão se amplia, como nos exemplos
illusion, no inglês, pode-se traduzir como excited –
excitado, animado, otimista, mesma conotação dada à
equivalente alemã schwärmerei – exaltado, entusiasmado;
do francês ilusión temos “aquele que deposita suas
esperanças em algo ou alguém”. Ainda que predomine a
noção de “erro”, a ilusão está fora do âmbito do falso e do
verdadeiro, e independe da ausência ou da presença do
objeto desejado. Sendo uma projeção, um olhar ao futuro,

96
cria à nossa volta uma espécie de zona de segurança e
conforto mediante o incerto por vir. Quanto mais a ilusão
cresce, mais o “sagrado” se cristaliza. A ilusão é uma
espécie de religião silenciosa do sujeito moderno e uma
das principais proteínas da cultura de massa, que tem na
sua força natural os modelos e conteúdos das necessidades
imaginárias e afetivas particulares.

O lugar que uma época ocupa no

“ processo histórico pode ser determinado


de modo muito mais pertinente, a partir
da análise de suas discretas manifestações
de superfície do que dos juízos da época
sobre si mesma. Estes, enquanto expressão
de tendências do tempo, não representam
um testemunho conclusivo para a
constituição conjunta da época. Aquelas
[manifestações de superfície], em razão de
sua natureza inconsciente, garantem um
acesso imediato ao conteúdo fundamental
do existente. Inversamente, ao seu
conhecimento está ligada sua
interpretação. O conteúdo fundamental
de uma época e os seus impulsos
desprezados se iluminam reciprocamente.

Siegfried Kracauer
O Ornamento da Massa

97
Lilian Conde esclarece: “Podemos notar nesses
processos mentais, a busca de fragmentos da realidade que
possam injetar certeza a fatos que provêm muito mais do
mundo mental do que da realidade externa. Conexões
lógicas entre os dados, argumentos que buscam demonstrar
a veracidade dos fatos são artifícios para dar indumentária
lógica e de convencimento àquilo que não passa de delírio.
A este fato, caracterizado por distúrbios na área do
pensamento, Bion denominou de psicose sana.” É
necessário borrifar mais alguns conceitos nesse campo para
minimizar um possível mal-entendido.
Bion adota o jargão psiquiátrico para descrever os
fenômenos relativos a pessoas ditas “normais”. Assim,
quando se refere a “distúrbios do pensamento” como
correlato à psicose sana, ele está querendo dizer que
estamos todos sujeitos a pensar de forma psicótica. A
experiência que nos leva a aprender exige, mesmo
amparados por referenciais teóricos, a convivência próxima
com a incerteza e a dúvida, que certamente conduzirá a
uma tensão psíquica. “Se quem aprende não tolera a
frustração essencial do aprender, mergulha nas fantasias de
onisciência e na convicção de um estado em que tudo se
sabe.” Na Ufologia, a frustração pela total ausência de
“provas” é desesperadora para os ufólogos, um fato
facilmente comprovável pela busca compulsivamente
doentia dos dados comprobatórios definitivos. Nesse
sentido, Lilian reforça essa postura afirmando que “Nos
distúrbios de pensamento face à impossibilidade de
tolerância à frustração, esta tensão não é suportada e é
descarregada sob a forma de ações evacuatórias”. Em
decorrência daqueles distúrbios, aflora a necessidade de
persuadir muito mais como tentativa de estancar a

98
hemorragia do conflito (frustração) e de negar a realidade
da ausência.
Com Bion e Lilian, chegamos a um consenso (os
itálicos são meus): “Outra forma de rejeição à realidade e
de ódio a ela é representada pelo ataque à percepção. Este
pode ser entendido como anulação das diferenças a partir
das atividades que Freud nomeou de processo primário e
que se calca na fantasia. A fantasia passa a substituir, para o
indivíduo, a realidade. Dito de outra forma, a realidade
passa a ser o que dela fantasia o indivíduo.” De sua parte,
Hume entendia que a fantasia, ou a imaginação em suas
características menos estáveis, contribui para a formação
de crenças verdadeiras.
Em sua produção teórica, Bion observou que a
mente opera estados psíquicos distintos, podendo
apresentar um funcionamento tanto opositor e contraditório
quanto em compasso dinâmico entre as partes da
personalidade. A diferença de seu trabalho está no fato de
ter reconhecido o interjogo entre estados neurótico e
psicótico, entre aspectos adultos e infantis e entre
elementos sadios e patológicos; esse balanço configura um
fluxo contínuo em uma mesma personalidade e caracteriza
a mente como um universo multidimensional, ou seja, para
esse psicanalista, a forma de lidar com as realidades interna
e externa depende do tipo predominante de funcionamento
mental, que enfatiza, na sua compreensão, o conceito
nodal da qualidade do pensamento; em outras palavras, na
dinâmica psíquica há uma atividade do pensar trabalhando
psicoticamente e outra trabalhando neuroticamente.
A magia, os milagres, as curas, visões, oráculos,
invocações, oferendas, etc. são remanescentes das práticas
medievais nascidas no seio da Igreja, considerados pelos

99
seus fiéis como pontes para o transcendente. Essas religiões
funcionavam como sistemas de explicações e fontes para a
imortalidade, significando a perspectiva de um elemento
não natural que controlava (submetia) e fidelizava o
indivíduo. Agia como um grande reservatório de poder
mágico secular, pronto a suprir todas as carências, os
desejos e as necessidades humanas através de uma série de
rituais eclesiásticos propiciatórios: orações, peregrinações,
leituras, cânticos, prédicas, hagiolatria e penitências. Não
se opunha, entretanto, a que alguns “milagres” e
“encantamentos” fossem creditados à intervenção divina,
atestando a força do poder divino dos páramos celestiais;
mesmo que práticas como veneração da hóstia, das
relíquias, a recitação de preces ou o uso de talismãs e
amuletos contivessem abusos, eram vistas com
complacência.
Adorar santos era parte integrante da estrutura da
sociedade medieval. Cada igreja possuía seu santo
padroeiro e, muitas vezes, conferiam à hagiolatria um
caráter quase totêmico. Cada santo era “profissional” em
atender um determinado pedido, para cada ocasião, um
santo especial incumbido de oferecer conforto e mitigar o
sofrimento: na dor, no parto, nas tempestades, na penúria,
na peste, na doença, na escassez, na harmonia conjugal,
na causa perdida, na fecundidade do leito matrimonial e
até para expurgar os demônios. Dessa forma, o seio da
Igreja Católica estava saturado de rosários e signos
eclesiásticos usados para fins milagrosos destinados a
proteger numa ampla gama de contextos e, como os
demais sacramentos cristãos, gerou um conjunto de
crenças parasitárias, atribuindo-se a cada cerimônia um
dado significado.

100
Ao declínio dessa magia estão associadas as
transformações intelectuais mais importantes a partir do
século 17, o desenvolvimento tecnológico e o surgimento
de novas aspirações que redesenharam a paisagem social.
Não obstante, como Keith Thomas parece sugerir, a
depender de como se olha a questão, postular o
desaparecimento da magia é, no mínimo, temerário (o
itálico é minha intervenção): "O certo a respeito das várias
crenças discutidas neste livro é que hoje em dia elas ou
desapareceram ou, pelo menos, tiveram seu prestígio
seriamente abalado. Por isso é bem mais fácil isolá-las e
analisá-las. No entanto, isto não significa que sejam
intrinsecamente menos merecedoras de respeito que
algumas das crenças que conservamos até hoje. Se
definirmos a magia como o emprego de técnicas ineficazes
para afastar a ansiedade quando as eficazes não estão à
mão, então teremos que reconhecer que nenhuma
sociedade estará jamais livre dela”.
Enquanto alguns estudiosos entendem a imagem de
uma magia dando lugar a avanços tecnológicos, para o
historiador isto não se aplica, uma vez que “a
correspondência entre magia e as necessidades sociais
nunca foi mais que aproximativa”, e defende que “ausência
de um remédio técnico não era por si só suficiente para
gerar uma solução mágica”.
Tudo isso é tão verdadeiro que, mesmo que o Papa
declarasse oficialmente que o segredo de Fátima nunca
existiu, ou o presidente americano jurasse solenemente que
o incidente em Roswell foi apenas um experimento secreto
com um protótipo militar, ainda assim a crença na aparição
da Virgem e na queda de uma nave alienígena continuará
irremovível na opinião pública. E diante dessa negativa

101
oficial, os ufólogos dirão sem pestanejar: “Aí tem coisa;
estão escondendo os fatos! Temos que nos mobilizar para
trazer a verdade.”
Além de sedutor, por que “sagrado” aplicado ao
disco voador? Do latim sacrum, alguém ou algo à parte do
mundo profano, da realidade humana. Rudolf Otto
esclarece que, em línguas antigas, esse termo significava
algo mais e que outros significados são reinterpretações
racionalistas do termo. O disco, posto “à parte, afastado,
longe, do outro lado”, lhe dá uma feição diabólica, na
plena acepção do termo: do grego diaballein – separado,
distante. A narrativa ufológica (e a religiosa e a mítica)
pressupõe um momento marginal à existência humana; a
testemunha, principalmente o “contatado”, sob esta
condição, sente-se diferenciado, apartado do mundo,
ungido pelos deuses, enfim, um escolhido. Essa situação
pode induzir no sujeito, consciente ou inconscientemente,
uma sensação de renascimento total. A renovação implica
mudança da essência, que pode ser chamada de
“transmutação”, a transformação do ser mortal em um ser
imortal, espiritual – o humano em divino.
De certa maneira, a seu ver, ele “vence” a morte,
transcende-a no momento da experiência, para ele,
sagrada. O contato passa a ser visto como uma espécie de
“ritual de iniciação”. Jung certamente é um dos melhores
na abordagem do inconsciente, e qualquer obra sua que se
tenha à mão é suficiente para trazer alguns
esclarecimentos. Ao se expressar sobre a experiência da
transcendência da vida que, em última instância, se
assemelha a um renascimento, ele não se dirige
especificamente à experiência Óvni, mas, se a
considerarmos como um evento de forte impacto psíquico,

102
então seus argumentos podem ser aplicados a ela: “O
‘renascimento’ é uma das proposições mais originárias da
humanidade. Esse tipo de proposição baseia-se no que
denomino arquétipo. Todas as proposições referentes ao
sobrenatural, transcendente e metafísico são, em última
análise, determinadas pelo arquétipo, e por isso não
surpreende que encontremos afirmações concordantes
sobre o renascimento nos povos mais diversos. Um
acontecimento psíquico deve subjazer a tais proposições. À
psicologia compete discutir o seu significado, sem entrar
em qualquer conjectura metafísica e filosófica. Para
obtermos uma visão abrangente da fenomenologia das
vivências de transformação, é necessário delimitar essa
área com mais precisão. Podemos distinguir principalmente
dois tipos de vivência: primeiro, a vivência da
transcendência da vida, e, segundo, a de sua própria
transformação.” Essa fala de Jung terá ecos no capítulo do
Imaginário e mais ainda no tópico sobre a morte e sua
negação.
Segundo Cassirer, “Na separação entre o mundo do
‘sagrado’ e o do ‘profano’ cria-se o pré-requisito para a
formação de algumas configurações divinas definidas.
Nessas circunstâncias, o Eu sente-se como que submerso
em uma atmosfera mítico-religiosa, que quase sempre o
rodeia e na qual vive e existe: Doravante só lhe falta um
impulso, um motivo especial, para que dela surja o deus ou
o diabo. Por mais vagos que pareçam os contornos de tais
configurações demoníacas, elas marcam.” Sedutor porque
ilude pela aparência, sagrado porque à parte do mundo
profano. Deuses, naves, atemporais, onipresentes,
superiores, transcendentes, eis a magia caleidoscópica
rorschachiana do “disco voador”.

103
Vivemos envoltos por uma consciência mítico-
religiosa ancestral, que se vê agora enovelada pela
experiência tecnológica e científica dominante. Deste
conflito surge um atrito entre o ontem e o amanhã, um
agora indeterminado, que separa (gr. diaballein) e une
(symballein) ao mesmo tempo. Não se quer perder de vista
a ligação com o passado, ainda que inconscientemente, e
não se pode ignorar o que vem pela frente, um futuro tão
imediato que já presente. O sagrado, ou a sacralidade,
pertence ao plano dos potentados divinos, elevados,
superiores, acima da dimensão e compreensão humanas.
Ao mesmo tempo em que venera e guarda reverente
distância do sagrado, a testemunha e ainda mais o
abduzido sentem incontida atração como se, em suas
origens, nunca tivesse havido essa desunião. Este
simbólico-diabólico é o que estabelece a junção e a
disjunção dos contrários: sagrado e profano, imaginal e
real, interior e exterior, eternidade e finitude, incredulidade
e fé. O fenômeno é um acontecimento acrônico,
polimórfico, formatado pelo figurino cultural, social e
histórico em que se insere, pelo Zeitgeist, o espírito da
época. A expressão abduzido, do latim abductio – separar,
apartar, isolar, situa e define bem o personagem que
vivencia tal experiência: escolhido e isolado.
Explicando melhor, na configuração dos mitos um
componente importante é a pulsão religiosa. Se o fato
mítico ocorre em um plano apartado da vida diária,
profana, então se trata de um evento sagrado, talvez de
uma experiência religiosa. Mircea Eliade considera que
viver os mitos representa uma experiência verdadeiramente
religiosa, distinta da vida cotidiana. Essa “religiosidade”
está no fato de, ao se reatualizar os eventos fabulosos,

104
exaltantes, “Assiste-se novamente às obras criadoras dos
Entes Sobrenaturais; deixa-se de existir no mundo de todos
os dias e penetra-se num mundo transfigurado, auroral,
impregnado da presença dos Entes Sobrenaturais.”
Malinowski também enfatiza que, nos ritos de natureza
religiosa, existe um ingrediente criador, quando o ato
institui não apenas um acontecimento social na vida do
sujeito como também uma mutação espiritual, ambos
associados ao fenômeno biológico, mas transcendendo-o
em importância e significado. A comparação com os mitos
é necessária para reforçar a compreensão do sentido de
sagrado em relação ao “disco voador”, de um lado, e ao
fenômeno Óvni de outro.

O messianismo atravessando mares

Neste diapasão, o professor e historiador português


Joaquim Fernandes entende que essa qualidade mágica,
sagrada e transcendente da qual o fenômeno está investido,
significa a continuidade do pensamento mítico na
sociedade tecnológica e científica, na cultura urbana e
globalizada dos nossos dias, que traduz uma estreita
ligação aos elementos arcaicos recuperados pelo
cristianismo e demais religiões. Ele assinala que os ensaios
de interpretação científica desses fatos marcam novas
etapas no reconhecimento do quadro geral do chamado
“maravilhoso”, que exprime as características básicas até
hoje inalteráveis: o onírico, a imaginação, a fábula, lado a
lado com o espanto, o medo e o mistério ante o
desconhecido.
No caminhar da história, esse maravilhoso foi se
ajustando às conjunturas sociais e culturais em cada tempo.
105
A cientificação que caracterizou o século 20 não
representou a sua dessacralização, mas antes, a
ressacralização. Fernandes e colaboradores fazem um
longo exame do universo das testemunhas sob o ponto de
vista psicossocial sem entrar no mérito da existência ou não
dos discos voadores, e perceberam que as crenças e as
representações, individuais ou sociais, acerca de um
fenômeno, interferem com as especificidades dos eventos
observados. Analisam-no por vários ângulos, tendo sempre
como fulcro os contatados (em qualquer nível) e sua
relação com o tema. Questões como imaginário, crenças,
meios de comunicação de massa, folclore, características
etnográficas, aspectos religiosos, construções da memória,
abduções e mitologia são alguns dos pontos
cuidadosamente estudados. Ele acentua ser Portugal um
país formatado pelos enlaces com o sobrenatural, os
compromissos com o milagroso, as alianças com o
maravilhoso e o fantástico. Vários são os temas discutidos
em sua obra como profecias, milagres, visões, artes
divinatórias, lendas, magos, demiurgos, o sobrenatural de
maneira geral.
Ao mencionar “folclore”, sinto-me no dever de
aclarar alguns pontos, até porque saber o mínimo sobre o
assunto será introdutório para o Apêndice, ainda que isso
custe interromper por instantes a leitura sobre a obra
lusitana. Na verdade, a obra e o tema estão muito mais
ligados do que se imagina. Poderíamos recorrer a inúmeros
autores, ou mais propriamente folcloristas, para dar uma
boa noção sobre o assunto, mas a viagem aqui precisa ser
curta. Para uns (sécs. 18-19), folk lore (povo, sabedoria) é
tudo o que o homem do povo faz e reproduz, em nome da
tradição. Para outros, é somente uma diminuta parte das

106
tradições populares, e para terceiros, é a fusão do popular
com a cultura – cultura popular, portanto. Historiador e
antropólogo, Câmara Cascudo14 é sintético: “Folclore é a
cultura do popular tornada normativa pela tradição.” E
mais: “Folclore é a presença do milênio no
contemporâneo; sua base é o assombro, o delírio e a
imaginação”. Querendo com isso dizer que o folclore não
tem história nem local de origem – como o mito, é
atemporal, atópico, planetário, onipresente, mais acústico
que ágrafo, praticado, replicado, reestilizado e reatualizado
continuamente, como uma argamassa psíquica.
Para Guénon, a própria concepção de folclore,
como é normalmente aceita, é equivocada, isto é, que
sejam “criações populares”, produtos espontâneos do
coletivo “Observa-se de imediato a estreita relação desse
modo de ver com os preconceitos ‘democráticos’”. Ele cita
Luc Besoit15: “O interesse profundo de todas as tradições
ditas populares reside em especial no fato de que não são
populares na origem,” e acrescenta que, “Em se tratando de
elementos tradicionais no verdadeiro sentido da palavra,
como quase sempre é o caso, por mais deformados,
reduzidos ou fragmentários que às vezes podem ser, e de
coisas que têm um valor simbólico real, tudo isso, muito
longe de ser de origem popular, nem mesmo é de origem
humana. O que pode ser popular, quando tais elementos
pertencem a formas tradicionais desaparecidas, é apenas o
fato da ‘sobrevivência’. [...] O povo conserva assim, sem
compreendê-los, os resquícios de tradições antigas, que

14
CASCUDO, Luis da Câmara. Tradição, Ciência do Povo. São Paulo.
Perspectiva, 1971.
15
La Cuisine des Anges, une esthétique de la pensée. Paris, R. Helleu,
1982.

107
remontam algumas vezes a um passado tão longínquo que
seria impossível determiná-lo e que muitos se contentam
em atribuir, por essa razão, ao obscuro domínio da ‘pré-
história’. O povo percebe, aí, a função de uma espécie de
memória coletiva mais ou menos ‘subconsciente’, cujo
conteúdo veio evidentemente de outra parte. E o que mais
pode parecer surpreendente é que, quando se vai ao fundo
das coisas, constata-se que aquilo que foi assim conservado
contém, sobretudo sob uma forma mais ou menos velada,
uma soma considerável de dados de origem esotérica, ou
seja, precisamente tudo o que existe de menos popular por
essência.”
Sobre essa afirmação, no entanto, Manfredi faz uma
importante ressalva, e observa que o autor erra ao confundir
inconsciente com subconsciente: “A massa coletiva
constitui um sistema de informação altamente entrópico, e
jamais conseguiria conservar inalterado o cadáver de uma
tradição, a menos que essa tradição tivesse para ela um
significado vivo e atuante não necessariamente de
significado esotérico, que coube a Jung demonstrar o
significado psíquico desse simbolismo e a sua origem no
inconsciente coletivo.” Para encerrar, e resumir, a
Sociedade Inglesa de Folclore, fundada em 1878, entende
como seu objeto de estudo “As narrativas tradicionais como
os contos populares, mitos, lendas e histórias; os costumes
preservados e transmitidos oralmente, códigos sociais e
celebrações; os sistemas populares de crenças e
superstições, o saber da tecnologia rústica, magia e
feitiçaria, e os sistemas e formas populares de linguagem.” A
Carta de Folclore Brasileiro (1995) reconhece o estudo do
Folclore como integrante das ciências antropológicas e
culturais, constituindo o fato folclórico as maneiras de

108
pensar, agir e saber de um povo, preservadas pela tradição
e pela imitação. É indiscutível a importância do folclore
como base da formação identitária, das raízes culturais, do
patrimônio histórico, da mitologia, da memória social, da
construção literária e da instrução de uma nação e de um
povo. Lévi-Strauss não tem dúvidas de que só um estudo
em colaboração sobre os simbolismos pode produzir
resultados sólidos: “A estética literária, a psicologia, a
antropologia filosófica deveriam ter em conta os resultados
da história das religiões, da etnologia e do folclore.” Isto
posto, volto ao historiador Joaquim Fernandes.
De pronto o autor dá mostras a que vem sua obra:
“Neste arrolamento de factos e feitos excecionais,
inventários de maravilhas religiosas e profanas [...] recheada
de acontecimentos onde, muitas vezes, não é fácil
descortinar a verdade e a lenda, a ficção e a realidade. Entre
as margens do sonho e da vigília vive este compêndio de
“estórias”, em parte ignoradas, indignas, noutra parte
expulsas do rol das convenções, conveniências ou
legitimidade histórica.”
Fernandes reconhece sua pátria como um país onde
se revelam episódios de uma vida coletiva mentalmente
organizada em torno de mitos, crenças e lendas, sua
excessiva sacro-dependência e credulidade pararreligiosa,
e o predomínio da emoção sobre a ação, que estão nos
alicerces das nossas crises coletivas, como a do presente. O
legado de tradições advindo daquele país coloca o Brasil
na mesma bacia cultural, propondo igual exame crítico-
reflexivo. O brasileiro arcaico caracteriza-se por uma
mística inata e uma crença religiosa com acentuada
tendência ao messianismo. Mesmo considerando a
diversidade étnica, a geografia continental e o

109
multiculturalismo, a influência histórico-cultural portuguesa
está profundamente enraizada no espírito do brasileiro,
sobretudo no sentimento relativo à sacro-dependência e
credulidade para-religiosa. A igreja não mais preside,
apenas compete no mercado religioso. Na verdade, a nossa
religiosidade é periférica e imitativa, restolho da dissolução
de cultos abandonados ou cópia de pseudorreligiões
inventadas na Europa ou em outros países. Os registros
censitários da religião no Brasil indicam queda acentuada
do catolicismo na última década, enquanto as demais
religiões e mesmo o ateísmo crescem em índices
expressivos.
Cabe acrescentar que é nessa direção que Holanda
se referiu em seu clássico “Raízes do Brasil”, ao afirmar que
o brasileiro era um “homem cordial”, no sentido de
movido pelo coração, sentimental, passional, emotivo, e
não naquele que gerou controvérsias intermináveis, qual
seja, a de um homem benfeitor, prestativo e solícito. A
expressão cordial levantou tanta polêmica que o autor se
viu forçado a redigir algumas considerações nas edições
seguintes, como resposta às críticas que não captaram o
sentido original do adjetivo. Diz ele: “O homem cordial
não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos
comportamentos de aparência afetiva”. Sobre a religião,
escreve que “o nosso velho catolicismo permite tratar os
santos com uma intimidade quase desrespeitosa.”
Neste capítulo [O Homem Cordial], Holanda
reafirma a falta de disciplina e devoção genuína aos rituais,
solenidades e cerimônias religiosas: “Cada casa quer ter
sua capela própria, onde os moradores se ajoelham ante o
padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os santos já
não aparecem como entes privilegiados e eximidos de

110
qualquer sentimento humano [...] Todos querem estar em
intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus é
um amigo familiar, doméstico e próximo”.
Em outra obra da historiografia nacional, “O Povo
Brasileiro”, Darcy Ribeiro reitera a força do misticismo
brasileiro herdado da península ibérica: “O fanatismo
baseia-se em crenças messiânicas vividas no sertão inteiro,
que espera ver surgir um dia o salvador da pobreza. Virá
com seu séquito real para subverter a ordem no mundo,
reintegrando os humildes na sua dignidade ofendida e os
pobres nos seus direitos espoliados: "[...] o sertão vai virar
mar, o mar vai virar sertão [...]". Trata-se da ressonância, no
sertão brasileiro, do messianismo português referente ao
sebastianismo. Periodicamente surgem anunciadores da
chegada do messias, conclamando o povo a jejuar, a rezar
e a flagelar-se com o fito de, purificando-se, desimpedir os
caminhos da reencarnação de velhos heróis míticos.” Esse
caráter místico da religiosidade dos trópicos é referido por
diversos autores e objeto de inúmeras teses. A frase “O
Brasil vive saturado de magia. Nós, brasileiros, ainda
vivemos sob o domínio do mundo mágico, impermeável
em muito ao influxo de uma verdadeira cultura”, poderia
ter sido retirada de algum estudo atual de etnologia, mas
ela é octogenária, proferida em 1934 pelo historiador e
antropólogo Arthur Ramos16.
O Brasil, nesse particular, apresenta o que se chama
arqueologia místico-esotérica como semente (embora não
dominante) da cultura brasileira altamente tonificada pelo
misticismo cristão desde o princípio da colonização no
primeiro século. A partir daí, aflora um fenômeno

16
RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. RJ. Graphia. 2001. Cf. Ribeiro)

111
conhecido como “santidades”, no qual se mesclavam
elementos de práticas indígenas e católicas. Diversos
autores concordam que o ethos religioso brasileiro não se
encontra, necessariamente, no catolicismo, mas no
sincretismo, afirmando que a constituição histórico-cultural
do Brasil, de influência católica, revela uma forte tendência
à religiosidade de tipo místico-sincrética. Gláucia Mello17,
por exemplo, referindo-se ao milenarismo no Brasil, fala
em uma nova “gnose”: “[...] reabilitamos as chamadas
ciências ocultas, antigas tradições orientais, a astrologia, a
alquimia, a vidência, as magias, as simpatias, a prática
mediúnica e uma infinidade de terapias alternativas que se
encontram no arrière-plan de grupos esotéricos e seitas
doutrinárias que pretendem deter os segredos das
verdadeiras ciências fundadas sobre o mistério, o secreto e
as grandes verdades esquecidas”.
É preciso dizer também que esse fascínio pelo
fantástico e pelo extraordinário transpõe a geografia
brasileira, chegando ao coração e à história do continente
latino-americano, havendo certa confusão não apenas
entre o fantástico e o maravilhoso, mas entre o real e o
imaginário. Alguns dos melhores escritores e intelectuais
opinam a respeito: Jorge Luis Borges, por exemplo, dizia
que “a realidade se confundia com o sonho, ou melhor, o
real era uma virtualidade do sonho”. Ele estende esse
pensamento ao afirmar que a realidade é uma ilusão, e a
ficção, a realidade, a qual podemos todos ter acesso através
da leitura. Alejo Carpentier, ensaísta cubano, falava que
quanto mais um acontecimento lhe parecer inverossímil,

17
MELLO, Gláucia B. Rodrigues de. Milenarismos brasileiros: Novas gnoses,
ecletismo religioso e uma nova era de espiritualidade universal (p. 103), in
Musumeci.

112
mais você pode ter certeza de que é real. E faz a pergunta
já respondendo: “O que é a história da América Latina se
não uma crônica do ‘real maravilhoso’?” Garcia Marquez,
referindo-se à realidade da América Latina que parece uma
ficção, de tão insólita e incrível, afirmava que “o
descomedimento faz parte da nossa realidade”. E o nosso
Guimarães Rosa emenda: “O que nunca se viu, aqui se
vê”.
O historiador lusitano lembra que o tema do ideário
extraterrestre é uma questão que imbrica com a existência
da humanidade, do seu destino e finalidade, emergindo no
seio do pensamento filosófico e religioso antes de se
transformar em tópico de investigação científica: a da
identidade da espécie humana perante outras
possibilidades e modalidades biológicas possíveis no
universo. “Primeiro, foram as elucubrações da teologia, da
filosofia e da literatura, que visaram responder ao desafio
colocado pela consciência copernicana; depois, à medida
da consolidação do território da Ciência, autónomo da
Filosofia, a busca do "Outro" adquiriu instrumentos que,
actualmente, vão muito além das intermináveis quaestiones
silogísticas dos tratados peripatéticos.”
Fernandes esclarece que até meados do século 19,
“extraterrestre” era sugerido no idioma francês, traduzido
como “espiritual, não material, celeste”, em oposição a
"terrestre, material e humano". Segundo Jean-Bruno Renard,
“A palavra extraterrestre, nascida na França na metade do
século XIX, conheceu uma evolução semântica relativa ao
léxico, que comprova a mudança de concepção do céu na
mentalidade ocidental. Quatro conceitos podem ser
observados cronologicamente. Primeiro, um sentido
poético-religioso devido a Baudelaire, Mallarmé,

113
Huysmans. Depois, um viés materialista fortemente
relacionado ao espiritualismo por escritores e eruditos
como Flammarion e Charles Cros, com relação à sua
crença em seres superiores de outros planetas. O uso
científico e materialista da palavra se impõe no final do
século XIX e início do seguinte, e que significa
simplesmente “exterior à Terra”. Até meados do século XX,
o adjetivo se substantiva e passa então a designar os
habitantes de outros planetas. Ainda mantendo o sentido
materialista, ele se reveste de novo da significação religiosa
presente nas mitologias modernas sobre os Óvni e dos que
têm recebido “mensagem” dos extraterrestres.” 18 Com a
conquista espacial dos anos 50 e 60 do século 20 e a
popularização do fantástico e da ficção científica, a
expressão passou a se referir a “objetos e seres procedentes
de locais fora do nosso mundo”, entrando definitivamente
no vocabulário científico.
Ora, se o mundo explode em observações, relatos,
testemunhos muitos deles insuspeitos, por que o fenômeno
permanece insolúvel e enigmático? Sabemos que ele é
constituído por um feixe de eventos que afetam o sistema
perceptivo do sujeito, e atravessam tantos aspectos
inconciliáveis que fica difícil obter uma etiologia
universalmente aplicável. A sua fluidez resulta mais da
nossa incapacidade de apreendê-lo do que de seu modus
operandi, que tem sido alardeado como um festival de
incoerências ou jogo de absurdos que derrubam os
postulados da lógica. Talvez já não seja mais tão
inexplicável e desconexo assim. Um mínimo de
honestidade íntima mostra que esse festival de incoerências

18
La croyance aux extraterrestres. Approche lexicologique. Revue
Française de Sociologie. 1986:27;221-229.

114
e jogo de absurdos não estão lá fora, mas aqui dentro, bem
aqui dentro, nada mais que um reflexo de nós mesmos.
A ortodoxia ufológica se constitui numa espécie de
Leito de Procusto, onde os fatos são esticados ou
comprimidos de forma a se encaixar nos estreitos
corredores da “hipótese extraterrestre”, conceito residual
do século 17, desde a publicação de “Diálogos sobre a
Pluralidade dos Mundos” (1686), de Bernard Le Bovier de
Fontenelle. A partir de então, o tema foi ganhando espaço,
passando a integrar os debates informais e a simpatia de
alguns setores da Igreja, graças ao respeitado matemático e
padre jesuíta setecentista Inácio Monteiro (1724-1812), que
achava possível a habitabilidade de outros mundos.
Quando um modelo teórico começa a agir de
maneira reducionista, significa que já esgotou todas as
linhas interpretativas, mostrando-se ultrapassado,
transformando-se num arcabouço carcomido de uma teoria
que se limita a considerar os fatos, automática e
indefinidamente, conforme categorias preconcebidas de
classificação. É quando o intelecto, condicionador e
condicionado a parâmetros humanos, demasiadamente
humanos, depara com algo não terrestre, inumano –
transreal, trans-humano dos mitos –, portanto inextrincável
e incognoscível.
A forma de expressão do contatado e do abduzido é
essencialmente simbólica (homo symbolicum), e o sentido
soteriológico embutido em suas mensagens e relatos reflete
os temores não apenas sobre o fim do planeta, mas da vida
em geral. Dentro da perspectiva hermenêutica, a Ufologia
pode ser descrita como um processo de reatualização e
ritualização do pensamento mítico, parecendo forjar uma
rede holística que, consciente ou inconsciente, integra os

115
antigos mitos à cosmovisão sobre a qual se apoia nossa
cultura, completando-a e transformando-a. Seu alvo, não
declarado nem reconhecido, é integrar os discos voadores
às raízes do espírito humano, renovando o contato com
elas. Lacan diz que, quando algo vem a lume que somos
forçados a admitir como sendo novo, ou seja, quando uma
outra ordem da estrutura emerge, ela cria sua própria
perspectiva no passado, e então dizemos: – isto jamais
pode não ter estado aí, existe desde toda a eternidade.19
Quando esse “novo” surge aos nossos olhos, dá-se um salto
qualitativo de tal forma que é necessário abandonar os
valores do passado e adotar uma nova perspectiva. Ou isso
ou ficar atolado na ignorância.
É uma regra empírica cujo alcance pode ser
demonstrado no campo da Ufologia. Que o fenômeno
Óvni é outra ordem de estrutura é algo que só agora
começamos a perceber, com todas as suas implicações, e a
novidade está em ser algo “velho” – isto jamais pode não
ter estado aí – repetiram os ufólogos, e puseram-se a
rastrear os registros históricos, míticos e lendários, bíblia,
escrituras de toda sorte, para concluir que somos visitados
por alienígenas “desde toda a eternidade”. É, efetivamente,
uma busca dos deuses. O sucesso dessa empreitada ratifica
a alteridade do fenômeno como fator estruturante da ordem
mítico-histórica: Os discos podem realmente estar por aí há
milhares de anos, mas a novidade é crer piamente que se
trata de naves espaciais tripuladas por extraterrestres.

19
Seminário, livro 2. O Eu na Teoria de Freud e na Prática Psicanalítica,
Jorge Zahar. Rio de Janeiro. 1985.

116
O não identificado, identificado?

E a crença na “hipótese extraterrestre”20 é a que reina


soberana, introjetada no imaginário coletivo, marcada a
ferro e fogo por anos a fio. Prova disso é a afirmação já
referida no início, dada por um ex-ufólogo que vive hoje da
astrologia 21 ; o axioma é a pérola maior do arcaísmo,
preguiça e imobilismo intelectual perante um fato que
exige um saber plural para poder discuti-lo, e fluência
dialógica com outras matérias, ou seja, essa visão oblíqua
afasta-se da questão central, reduzida a uma simplicidade
ingênua a toda prova, e postura litigante, hostil e indisposta
ao diálogo. Antes de chegarmos ao dito enunciado,
vejamos o que diz Popper: “Ao invés de discutir a
probabilidade de uma hipótese, toca-nos a tarefa de
averiguar que testes, que críticas essa hipótese conseguiu
superar; cabe-nos tentar averiguar até que ponto a hipótese
mostrou-se capaz de manter-se incólume, resistindo aos
testes a que foi submetida. Em resumo, cabe-nos averiguar
até que ponto ela foi corroborada”. Foi o que fizemos.

Os discos voadores existem! E mais, afirmo que são


veículos provenientes de civilizações longevas e
avançadas, tripulados por seres inteligentes que
visitam a Terra há milhares de anos com os mais
diversos objetivos.

É notório que temos aqui um sofisma, do grego


sofisma – invenção engenhosa, artifício, argumento

20
Como “hipótese”, o pensamento crítico desconsidera; para os sectários, passou a ser um fato.
21
Jaime Lauda, por e-mail, rebatendo A Desconstrução de um Mito; depois, em “Por trás da
análise de um mito”, revista UFO, nº 159, nov/2009.

117
capcioso, uma afirmação non sequitur, desprovida de
qualquer sustentação técnica, científica ou filosófica que
seja. Uma falação ruidosa estéril e histérica, falação no
sentido puro, de falácia, enganação, trapaça. Fica claro
também é que a Ufologia é por si um sistema anagógico
(do latim anagogia – elevação da alma em direção às
coisas divinas); arrebatador, apresenta um discurso de
leitura física e mística ao mesmo tempo: naves e seres de
natureza desconhecida com promessas de salvação e/ou
proteção.
Um discurso sincopado, aferido pela parcimônia,
expressando um pensamento arcaico de forte tônus
ficcional, eminentemente utilitarista, que transgride e
subverte os protocolos elementares da metodologia de
pesquisa. Denota uma atitude de pura contemplação,
teleológica, que se repete à exaustão, desalinhada com a
verdadeira proposta do saber, neutralizando e engolindo a
si mesma pelo vazio de sentido, portanto, autofágica.
Frazer talvez pudesse dizer que temos aqui uma “falácia
semiótica”, com a finalidade pragmática de influenciar o
destinatário humano – o mundo – para efeito de compra e
consumo do “produto”. Em outras palavras, é registro óbvio
do analfabetismo intelectivo de quem a produz e reproduz.
Vamos examiná-la de perto para demonstrar sua total
impossibilidade e depois lançar novas luzes sobre a
questão.
Quando alguém dispara que o universo é tão vasto
que é inadmissível não haver vida inteligente por lá,
geralmente está sugerindo vida inteligente, ao feitio da
ficção científica que povoa o espaço imaginário de todo
tipo de alien; então, quem afirma o faz muito mais por
repetir o que leu ou ouviu de alguma fonte pouco crível, do

118
que por uma reflexão mais aguda por falta de
conhecimento, uma espécie um pouco mais refinada do
psitacismo22, o que sugere um indisfarçável desejo de que
realmente haja vida espaço afora. Sua sintaxe é
inteiramente subjetiva, destituída de sentido e de visível
fundo emocional. Veremos também por que isso acontece.
Antes, porém, é importante observar que, dentro dos
princípios da filosofia da ciência, os maiores obstáculos
para a obtenção do conhecimento são as suposições
preconcebidas que levam a conclusões erradas. Para Oliva,
são alguns obstáculos:
- A antecipação que prevalece sobre a observação.
- Os interesses e as predisposições que tentam fazer
passar por conceito o que não passa de
preconceito.
- A reiteração passiva do que a tradição toma como
sabido; o fascínio pela autoridade intelectual em
detrimento da argumentação impessoal.
- O encantamento pela retórica, às expensas da
demonstração lógica e da comprovação empírica.
- A tendência a tomar como certo e estabelecido o
que, na melhor das hipóteses, é apenas provável.
- A subordinação da razão pela fé.
- O uso descuidado da linguagem.

Somente se nos afastarmos das crendices, das


imagens e dos preconceitos, será possível realizar a
observação pura e neutra, capaz de propiciar efetiva
explicação dos fenômenos, pois é possível distorcer os fatos

22
Psitacismo: processo automático de repetição de um discurso, ausente de
lógica e da compreensão de seu significado; palavreado sem sentido,
também conhecido como “efeito papagaio”. (N.A.)

119
e enquadrá-los em uma moldura induzida, de modo a
comprometer ou deformar os resultados.
A filosofia na ciência é essencial na engrenagem do
conhecimento. No início do século 20, surgiu uma
corrente filosófica que, voltada à análise lógica da
linguagem, buscava entender e esclarecer o sentido das
expressões, enunciados, uso contextual e uso no discurso
linguístico. Era a filosofia analítica ou filosofia da
linguagem, considerada a reformadora da Filosofia
tradicional – a metafísica – ao se dedicar a investigar seus
conceitos e propor uma nova sistematização como
condição para um pensamento rigoroso. Nunca é demais
lembrar – Philia Sofia, amor pelo saber, pela verdade. De
acordo com essa corrente, muitos dos problemas filosóficos
se reduziriam a equívocos e mal entendidos, originados do
uso ambíguo da linguagem, e o desenvolvimento dessa
nova filosofia lançou luzes sobre diversos aspectos da
questão linguística.
É importante ressaltar o fato de que a filosofia
analítica não nega os objetos da filosofia tradicional, mas
privilegia a maneira de explicitar o resultado de tais
investigações, porque possui um paradigma de clareza e de
rigor metodológico. Em vez de indagar o que é
conhecimento ou verdade, ela pergunta o que significam
ou de que modo são usadas tais palavras e como analisá-
las, aplicando técnicas apropriadas.
O problema fundamental, para alguns estudiosos,
consistiria em investigar em termos lógicos as proposições
linguísticas, para se saber o que estamos realmente falando
quando questionamos ou afirmamos isto ou aquilo. A
filosofia analítica, então, propõe uma espécie de “terapia
linguística”, desmontando as armadilhas ocultas da

120
linguagem; ou seja, ela – a linguagem – não seria a captura
conceitual da realidade, não seria a reprodução do objeto,
mas um jogo, e os jogos de linguagem adquirem o seu
significado no uso social, nos diferentes modos de ser e de
viver no qual a fala está inserida. O universo social e as
categorias intelectuais e psicológicas não são objetivas, são
produzidas historicamente pela articulação de práticas
sociais, políticas e discursivas que levam a repensar a
relação entre o social e as representações que refletem ou
camuflam este social. Em outros termos, o que se apresenta
para estes novos tempos é repensar a construção do
conhecimento. Mais importante do que ter vários saberes,
porém acumulados e estéreis, é ter a capacidade para
organizá-los, direcioná-los e dar-lhes sentido para tratar e
elucidar as questões maiores.
Morin postula que todo conhecimento abarca,
simultaneamente, tradução e reconstrução, a partir de
sinais, signos e símbolos na forma de representações,
teorias, reflexões e discursos, e sua organização é realizada
em função de princípios e regras bem definidas, tendo
ações de ligação e de clivagem – diferenciação, oposição,
seleção, exclusão. É um moto-contínuo da separação à
ligação, da ligação à separação, da análise à síntese, da
síntese à análise.
Com relação ao conhecimento, a justificação de uma
teoria depende de sua consistência lógica e de sua
fundamentação empírica. Conforme o método empregado,
é possível saber o tipo de credibilidade epistêmica que
pode ser alcançada pelos resultados obtidos. Ainda de
acordo com Oliva, a dialética entre objeto e signo precisa
ser formal e cientificamente validada pelas análises
semântica (conteúdo), análise pragmática (discurso) e

121
análise sintática (forma), o que buscamos fazer no exame
do enunciado. Por último, é igualmente importante
observar que a casuística ufológica não tem fatos sólidos a
apresentar, apenas vivências individuais baseadas em
relatos altamente questionáveis, suscetíveis a todo tipo de
inferências e interferências, logo, não têm endosso
científico e credibilidade afiançável. Isso é por demais
elementar, a teoria da informação mostra que existe o risco
do erro sob a ação de perturbações aleatórias ou de ruídos
em qualquer transmissão de informação, em qualquer
comunicação de mensagem. A rigor, a asserção em tela –
representando a unanimidade do pensamento ufológico,
antecipou-se à pesquisa sistemática e normatizada, não
possuindo regras, critérios, técnicas e parâmetros a seguir.
Caiu fortuitamente no colo dos pesquisadores e na
preferência popular.
A análise procurou alinhar-se a Bourdieu, colocando,
na pauta de discussão, verdades cientificamente validadas,
sendo fundamentais a construção e o esmiuçar desse
exame: “Trata-se de interrogar sistematicamente o caso
particular, constituído em ‘caso particular do possível’,
como diria Bachelard, para retirar dele as propriedades
gerais ou invariantes que só se denunciam mediante uma
interrogação assim conduzida.” Em outras palavras, romper
com o senso comum através da prática da dúvida radical
(do latim rádice – raiz, ir à raiz), cujo objetivo maior é
debater as pré-noções interiorizadas, buscar ao máximo
afastar-se das pré-construções para visualizar e
compreender o objeto de pesquisa. Bourdieu, contudo,
adverte que antes de se proceder à análise, devemos
desvendarmo-nos e compreendermo-nos como indivíduos
para só depois buscar deslindar e compreender o objeto-

122
alvo da pesquisa: “[...] uma prática científica que se
esquece de se por a si mesma em causa não sabe,
propriamente falando, o que faz.” Vamos, portanto, colocar
o enunciado sobre a lâmina do microscópio.

Veículos provenientes de civilizações longevas e


avançadas

Não há, em todo o histórico das alegadas


observações dessa natureza, em todo o mundo e em todos
os tempos, qualquer indício de que sejam “veículos”,
muito menos oriundos de “civilizações longevas e
avançadas”. Para que houvesse um mínimo de
possibilidade para isto, seria preciso ao menos que a vida
extraterrestre, inteligente ou não, estivesse comprovada,
como premissa fundamental. Não está e provavelmente
jamais será.
A vida extraterrestre permanece no terreno da
suposição e da especulação (do latim speculatio – observar,
refletir), pois não há até o momento nenhuma confirmação
científica para o fato. Se a Terra estivesse um pouco mais
próxima ou mais afastada do Sol, viveríamos (viveríamos?)
ou numa fornalha infernal ou numa eterna glaciação. As
condições que se criaram para o surgimento da vida na
Terra foram tantas, tão complexas e tão
extraordinariamente singulares, que a probabilidade de
terem se repetido de forma semelhante é praticamente
nula: basta que um ou dois elementos faltem nessa
composição, ou que a quantidade de água não seja
suficiente, ou que o tempo de maturação seja de alguns
milhões de anos para mais ou para menos e voilá, aí está

123
uma nova forma de vida totalmente diferente da nossa.
Estou falando de um tipo de vida semelhante ao nosso,
contudo, nada impede que possa haver outro tipo de vida,
o qual sequer imaginamos e que, por isso mesmo, também
jamais encontraremos, pois não sabemos o que, como e
onde procurar.
O caldo primordial que nos deu origem, a sopa
cósmica que alimentou as mais primitivas formas de vida –
os estromatólitos, nossos ancestrais – continha inúmeros
elementos juntados na dose certa e no tempo certo de
maturação. Em ambiente tão propício, transformou uma
terra rochosa inerte em um oásis pulsante de vida e beleza,
o que torna improvável a receita ter se reproduzido
universo afora. Dizendo de maneira mais crua, não somos
frutos do acaso, mas originados de fungos fermentados
através de reações químicas prebióticas sequenciadas
cumulativamente durante bilhões de anos, nos mais fundos
lamaçais das poças geotérmicas primordiais. Para o
historiador Leandro Karnal, “Somos a estrela cadente de
um apogeu que nunca vivemos; passamos da origem à
decadência sem passar pelo período da maturação”.
“Somos um embrião da diáspora cósmica, algumas
migalhas da existência solar, uma ínfima brotação da
existência terrestre”, finaliza Morin.
No entanto, enquanto nossas mais brilhantes mentes
em Biologia, Exobiologia, Paleontologia, Química,
Cosmologia e campos relacionados há décadas transpiram
imersas até a medula tentando descobrir a centelha da vida
na Terra, das fendas submarinas aos grotões vulcânicos, os
ufólogos, em pouco tempo e sem base nenhuma, já creem
saber tudo sobre a vida lá fora! O pensamento especulativo
predominante no período medieval deu lugar a uma nova

124
concepção, que propõe o controle e não apenas o
conhecimento da natureza, ou seja, a razão passa a ser
crítica, exploratória e demonstrativa.
O espaço é constantemente vigiado por “olhos e
ouvidos” atentos à espreita do menor indício que revele
companhia para o baile cósmico. Nossa voz é a única a
entoar canções, declamar poemas e contar histórias, um
murmúrio inaudível. Fora isso, silêncio absoluto. Diria o
poeta mineiro Mauro Fonseca, em “Recados”, não sou
domador de tempestades, prefiro contemplar estrelas, que
permanecem indiferentes às nossas leis, lutas e verdades
(...) que te faz herdeiro deste barco ao mar sem timoneiro,
sem rumo nenhum, sem sinal de porto algum.
Nosso grito jamais será ouvido, primeiro pela
distância entre os corpos celestes, e depois, porque seja lá
quem for onde estiver não entenderá nossa língua. A
eventual descoberta de microrganismos que sobrevivam
em ambientes inóspitos e de condições totalmente
adversas, quando não letais – os extremófilos, revela que a
vida oferece variações impensadas para sua adaptação e
reprodução, mas isso apenas sinaliza a possibilidade de se
proliferar pelo universo, ainda que apenas no nível do
muito pequeno, do microscópico – organismos
unicelulares tais como bactérias e arqueobactérias.
Entretanto, aqueles olhos e ouvidos, de última
geração e sempre renovados, podem ser rudimentares e até
inúteis se imaginarmos que uma hipotética civilização mais
avançada fará uso de uma tecnologia totalmente diferente e
jamais pensada pelos nossos mais brilhantes engenheiros. É
delirante supor que usem transmissores e receptores de
rádio de modo a entender e decodificar nossas mensagens.
Ora, teríamos que aceitar que estes seres também

125
inventaram o rádio, montaram e ajustaram as antenas,
dominam a mesma linguagem e queiram entrar em contato
conosco! O problema da vida extraterrestre inteligente é
extremamente complexo e não pode jamais ser
reducionista ao ponto do “assim é porque assim sempre
foi”.
Não há nenhuma certeza de que, em havendo vida
inteligente no cosmos, tenha ela desenvolvido uma
tecnologia e uma logística capazes de transitar livremente
pelo espaço com a assiduidade defendida pelos adeptos.
Baleias, golfinhos, abelhas, formigas, poetas, filósofos e
eruditos são criaturas muito inteligentes, mas nenhuma
delas constrói foguetes ou radiotelescópios. Nossa
concepção de inteligência ainda é muito primária. Grande
parte dos especialistas na área considera a vida na Terra
uma anomalia, um raro acidente, um equívoco metafísico,
um prodígio, e devemos considerar ampla e seriamente
essa possibilidade porque outros também comungam com
a equação “Terra rara-vida rara”. É verdade que essa
solidão nos causa uma inquietante estranheza, algo entre
beleza, deslumbramento e angústia, tristeza, um
avassalador vazio. O paleontólogo e biólogo Stephen Jay
Gould, por exemplo, também acredita que a vida na Terra
seja resultado de uma experiência ímpar, com uma origem
única e mecanismos de repetição e duplicação do material
genético únicos. Mesmo que a vida seja possível em algum
ponto no espaço, provavelmente jamais saberemos, e
temos que aprender a conviver com essa solidão cósmica.
Mas, para o homem, é insuportável saber que, uma vez
extinta a vida na Terra, ou ela própria, o universo seguirá
seu curso em gélida indiferença, um punhal afiado que

126
rasga e sangra a alma humana molhando o barro no qual
iremos por fim dormir.

“ O homem não é senão um caniço, o


mais fraco da natureza, mas é um caniço
pensante. Não é preciso que o universo
inteiro se arme para esmagá-lo; um vapor,
uma gota de água basta para matá-lo. Mas,
ainda que o universo o esmagasse, o homem
seria ainda mais nobre do que aquilo que o
mata, pois ele sabe que morre e a vantagem
que o universo tem sobre ele. O universo de
nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste
pois no pensamento. É daí que temos de nos
elevar, e não do espaço e da duração que
não conseguiríamos preencher. Trabalhemos,
pois, para pensar bem: eis aí o princípio da
moral.

Blaise Pascal

Pensamentos

Quem pensa que se trate mesmo de naves vindas de


culturas adiantadas e perenes não percebe a colossal
dificuldade – por parte dessa civilização em algum rincão
da galáxia – de prospectar e localizar nosso microscópico
adorável planeta, diante das incomensuráveis distâncias
entre centenas de bilhões de astros espalhados pelo
universo. Numa proporção otimista, a Terra equivale ao
menor grão de sal no Pacífico. Quanto mais distante, mais
127
longeva, mas nada faz supor que o fato de ser “avançada”
seja sinônimo de “inteligente” a ponto de atravessar
espaços inimagináveis como se fosse comprar pão na
esquina. Os dinossauros e outras espécies pré-históricas
vagaram pela Terra por 150 milhões de anos e morreram
do jeito que nasceram – ruminantes estúpidos. E não
podemos esquecer que só existimos porque algo muito
grandioso aconteceu que acabou com quase toda a vida
existente, caso contrário, provavelmente eles ainda
estariam por aqui, e nós não!
Um exemplo simples dá a exata dimensão da questão
espaço-tempo: para chegarmos a Plutão, a seis bilhões de
quilômetros, viajando à velocidade de 50 mil km/h,
levaremos cerca de 20 anos. Para Alpha Centauri, a estrela
mais próxima, distante pouco mais de 40 trilhões de
quilômetros, serão necessários 100 mil anos! Uma
varredura de 200 anos-luz no entorno do sistema solar não
mostrou o menor sinal de vida semelhante à nossa. Estão
previstos lançamentos de novos e poderosos satélites que
pretendem renovar nosso conhecimento sobre a vida
extraterrestre.
Pode-se perguntar se o avanço da astronáutica não
poderia abreviar esse tempo. Será que no espaço de cem
anos não conseguiremos atingir uma velocidade boa o
suficiente para cumprir uma viagem dessas? De fato, isso
poderá ocorrer se a astronáutica continuar investindo em
tecnologia e desenvolvendo recursos que permitam
aumentar a capacidade de navegação dos foguetes, mas
existem outros aspectos que não podem ficar fora dessa
resposta. Não há nenhuma certeza de que a exploração
espacial vá continuar, pelo menos em médio prazo. O que
há é uma grande interrogação no ar sobre isso. Em 2011, o

128
governo americano anunciou o encerramento do programa
por motivos econômicos, um dos principais entraves para a
continuidade da pesquisa espacial. Questões sociais,
políticas, científicas e militares também contribuem para
colocar esse projeto em segundo ou terceiro plano, ou em
plano nenhum. Os fundos destinados a essa empreitada
estão cada vez mais rasos e menos “fundos”. Quando
muito, a agência espacial americana e as demais nações se
ocuparão em lançar satélites com objetivos bem mais
prosaicos.
Em 2008 a economia mundial sofreu um golpe – um
rombo financeiro criminoso, segundo alguns especialistas –
que fez milhares de vítimas e deixará sequelas por muito
tempo, seja vagalhão ou marolinha, afetando todos os
setores de todas as nações. As estratégias de crescimento
dos países, sem exceção, estão tendo que se ajustar às
demandas e reprogramar seus rumos. Outros, em pior
situação, perderam o rumo. Haverá justificativa sensata
para uma excursão a Marte em algum momento? E mais,
ainda que a tecnologia avance o suficiente para viabilizar
uma nova empreitada rumo ao espaço, é absurda a
diferença na equação tempo/distância entre uma visita
rápida aos planetas solares e uma escala mais demorada
em Alpha ou qualquer outra estrela das cercanias. São
intermináveis as discussões sobre se vale a pena dispender
toneladas de dólares numa epopeia de sucesso duvidoso,
ou se se deve aplicar tal cifra na solução de problemas
emergenciais do mundo.
E ainda temos a discutir o fator longevidade de uma
suposta civilização, isto é, de quanto tempo estamos
falando? 10 mil anos? 20 mil? 100 mil? Qual a relação
entre durabilidade e superioridade? Recorde-se que a

129
declaração está no plural: “Veículos” e “civilizações”,
aludindo a vários povos nos visitando, que é o pensamento
corrente. Se existir uma única civilização nestes moldes já
é altamente improvável, várias já é devaneio superlativo:
Diversas civilizações viajando trilhões de quilômetros há
milhares de anos até nós para quê? Cientistas de Sírius a
explorar a flora e a fauna, minerais, solo, água e vísceras
animais? Piratas de Ursa Maior a sugar energia de nossas
usinas? Médicos geneticistas de Órion interessados em
nosso sistema reprodutivo para futura procriação híbrida?
Ou seriam analistas políticos das Plêiades a observar, a
distância segura, nossa incontida destrutividade como
querem tenazmente nos fazer crer os ufólogos? Talvez
venham para fazer o que Quintana versejou: “estudar a
vida dos insetos.” Sem o menor pendor para ironia, Barthes
classifica esse delírio paranoico de apelo místico ao celeste
de psicose marciana.
Os esforços da exobiologia em busca de vida
extraterrestre até hoje não deram respostas; não há
qualquer evidência científica, nenhum sinal de que possa
empolgar os especialistas a não ser excitar a imaginação.
Na ciranda de esperança e euforia prevalece a frustração,
para tristeza dos cientistas. Talvez esteja na hora de mudar
de direção e começar a encarar a questão como os
pensadores viam a natureza alguns séculos atrás: menos
com o olhar do cientista e mais com o do filósofo natural,
que é, em realidade, a matriz conceitual da astronomia. Aí
sim teríamos uma verdadeira “volta às origens” do
pensamento especulativo.
Antes de concluir essa primeira análise, uma reflexão
adicional: que elementos temos para acreditar que uma
suposta civilização longeva e avançada tenha sobrevivido

130
por tanto tempo (no exemplo, 10, 20 ou 100 mil anos),
tendo superado seus problemas internos como
esgotamento dos recursos naturais, superpopulação, uma
catástrofe planetária? Por que não teria estes problemas?
Por fim, quanto mais se conjectura sobre a tecnologia
utilizada por estas máquinas para empreender tão longas
viagens, mais o roteiro se assemelha ao da ficção científica,
a qual tem sido virtuosa hospedeira da Ufologia, sua voraz
parasita. Veremos adiante como marcha capenga esse
Rocinante de Tróia. O que se tem, enfim, é malabarismo
mental, um repositório de teorias delirantes: buracos de
minhoca, viagens no tempo ou pelo hiperespaço, fendas
dimensionais, engenharia “reversa”, motores iônicos,
fotônicos ou híbridos, buracos negros e até física quântica
são usadas para “explicar” o modo de propulsão ou
locomoção destas engenhocas. Nenhuma delas pode
realmente ser levada a sério, exceto pela ciência e pela
ficção científica, como nos filmes “Contato” e
“Interestelar”, que exploram tais possibilidades. Todas
pegam carona na teorização científica disponível, em efeito
cascata, isto é, quando uma não se encaixa no modelo
proposto, outra aparece em seu lugar. Além do mais, ao
fazer uma comparação com os nossos 10 ou 20 mil anos
atrás, bem, então, para essa turma adiantada lá do espaço,
não passamos de trogloditas estúpidos de uma era que
chamaram de “idiotizóica”, como paranoicos embevecidos
por caixinhas falantes que supostamente aproximam e
libertam. Na verdade, isolam, imbecilizam e aprisionam
como rebanhos em currais vigiados e coleiras eletrônicas.
A comparação não é fora de propósito. Nessa escala
evolutiva temporal, não passamos de criaturas estúpidas
comunicando-se de forma primitiva, agindo e pensando

131
neuroticamente. Num trabalho intitulado L’Homme
Sauvage et l’extraterrestre: deux figures de l’imaginaire
evolutionniste23, o sociólogo Jean-Bruno Renard descreveu
um estudo comparando o homem primitivo e o
extraterrestre, demonstrando que as representações
estereotipadas são perfeitamente antitéticas, uma simetria
invertida que proporciona uma ampla análise sob vários
ângulos. O autor ressalta que os contrastes revelam a
oposição básica entre a natureza bruta e a cultura
requintada, a força física e a psíquica, a sub-humanidade e
a sobre-humanidade, ambas fronteiriças – passado e futuro
– da visão evolucionista da espécie humana, na qual o
homem se situa a meio caminho: tanto progride como
regride. Seria a contagem regressiva de Baudrillard?
Ainda que montássemos uma boa hipótese para
pensar a possibilidade de uma inteligência alienígena, sem
patinar nas curvas da fantasia e da ficção, teríamos que
raciocinar a partir de parâmetros não humanos, isto é,
imaginar que qualquer forma de vida que possa existir
deverá ser obrigatoriamente diferente da nossa – para todos
os efeitos, uma anomalia, um acidente, erro cósmico, uma
singularidade, um prodígio. Nenhum artista até hoje foi
capaz de criar uma forma de vida tão extraordinariamente
diferente, pois haverá sempre um padrão terrestre a servir
de modelo. Se tal civilização existir de forma diferente da
que imaginamos, não temos como imaginar quão diferente
seria. E não há forma diferente de imaginar se tomarmos os
padrões terrestres para formular o raciocínio. Não é
impasse, é lógica, é racionalismo filosófico. Ao raciocínio

23
“O homem selvagem e o extraterrestre: duas imagens do imaginário
evolucionista”. Diogène, nº 127, 1984, p.77-88 (In Legros, p.160).

132
cabe descobrir, dentro do que já se conhece, aquilo que
ainda se desconhece.

Visitam a Terra há milhares de anos

Comecemos pelo sistema solar: Júpiter comporta mil


Terras, o Sol, um milhão, que é apenas uma pálida e
minúscula estrela anã branca; Betelgeuse, por exemplo,
uma supergigante vermelha, tem um diâmetro de um
bilhão e meio de quilômetros (nosso astro-rei tem pouco
mais de um milhão) e um brilho 10 mil vezes mais
fulgurante. Imagine agora se compararmos com uma das
maiores estrelas conhecidas, a hipergigante VY Canis
Majoris, com um diâmetro de 3 bilhões de quilômetros!
Nosso sistema solar ocupa uma lasca no subúrbio de um
delgado braço da Via Láctea rodopiando no carrossel com
mais 400 bilhões de estrelas. Essa posição é privilegiada, é
uma zona “habitável”: mais ao centro ou mais exterior
significa esterilidade total de vida. Essa habitabilidade
naturalmente diz respeito apenas e exclusivamente às
formas de vida semelhantes a nossa, e se aplica também à
posição da Terra em relação ao Sol. E a nossa galáxia, que
nem é das mais exuberantes, é mais uma entre bilhões
espraiadas pelo cosmo, que se afastam a centenas de
milhares de quilômetros por segundo, ampliando
exponencialmente as distâncias entre si.
Para se ter uma noção mais clara do que é este nosso
universo e colocar as coisas nos eixos sobre quem somos e
onde estamos nesse mapa cósmico, uma equipe
internacional de astrofísicos, após duas décadas de
pesquisas conseguiu, pela primeira vez, montar um modelo

133
quadridimensional 24 batizado de Laniakea – “horizonte
celeste” ou “céu imensurável” no dialeto havaiano (local
da instituição base da pesquisa). Trata-se de um
supercontinente de galáxias com um diâmetro próximo a
500 milhões de anos-luz e com mais de 100 milhões de
bilhões (notação europeia, N. A.) de corpos estelares.

O supercontinente de galáxias: os pontos brancos são galáxias, os filamentos, o


deslocamento de 8.000 delas através de forças gravitacionais. O diâmetro estimado
da área mapeada é de 500 milhões de anos-luz. A cartografia completa alcança 1,5
bilhão de anos-luz. Fonte: naturevideo.

Esse superaglomerado inclui o Aglomerado de


Virgem, com mais de 100 mil galáxias, formando o grupo
local onde se encontra a nossa Via Láctea. Mais do que a
numerologia descomunal impossível de se quantificar,
impressiona saber que, segundo a cosmógrafa Hélène
Courtois, membro da equipe e chefe do Institut de
Physique Nucleaire de Lyon, a área mapeada de 1,5 bilhão
de anos-luz corresponde a menos de 2% do universo
observável! Os resultados dessa admirável descoberta não

24
No caso, a quarta dimensão refere-se ao movimento de milhares de
galáxias mapeadas. Nature, Sept 2014, p.71-73.

134
tardarão aparecer, com desdobramentos difíceis de serem
avaliados, mas, a esta altura, os apressados de plantão
dirão com incontida euforia: “Isso amplia as chances de
vida no universo e demonstra que os discos voadores são
de fato uma realidade!” Certo lá errado aqui. Não se pode
negar a possibilidade de outras formas de vida no éter, mas
significa também que estamos cada vez mais invisíveis,
distantes e isolados de qualquer lugar no cosmos, e não
prova nem justifica, em absoluto, a existência dos Ufos,
pelo contrário, acaba com ela. O raciocínio é simples:
quanto maior for o palheiro, mais difícil será achar a
agulha.
Portanto, colocar a Terra no centro das atenções de
imaginadas civilizações leva a aspectos culturais,
psicológicos, religiosos, históricos, principalmente quando
diz respeito aos mais “diversos objetivos”. Para entender
esse tópico, é preciso remontar ao tempo em que se
acreditava ser a Terra o centro do cosmos – o
geocentrismo, conceito posto abaixo por Copérnico em
meados do século 16, seguido por Kepler, Newton e
Galileu. Esta foi a primeira grande desilusão da
humanidade, a primeira das três feridas narcísicas de Freud.
Falar um pouco sobre ferida narcísica ajudará muito a
entender esse ponto. Claro está que não vamos nem
arranhar a fuselagem dessa nave de conhecimentos.

“ Quem o autoriza a pensar que o


movimento admirável da abóbada celeste, à
luz eterna das coisas girando majestosamente
sobre sua cabeça, as flutuações comoventes do
mar de horizontes infinitos, foram criados e
continuam a existir unicamente para sua
comodidade e serviço? Será possível imaginar

135
algo mais ridículo do que essa miserável
criatura, que nem sequer é dona de si mesma,
que está exposta a todos os desastres e se
proclama senhora do universo? Se não lhe
pode conhecer ao menos uma pequena
parcela, como há de dirigir o todo? Quem lhe
outorgou o privilégio que se arroga de ser o
único capaz, neste vasto edifício, de lhe
apreciar a beleza?

Michel de Montaigne
Ensaios (1570~1592)

Todo mundo tem um pouco de narcisismo e também
suas fórmulas de compensação. Narcisismo não é só
necessariamente vaidade, de onde ninguém escapa (latim
vanitas – futilidade, vento que passa). O narcisismo referido
não é o da beleza física, da inteligência, do poder
financeiro, títulos e glórias, coisas sedutoramente ilusórias.
É maior que isso, é a presunção de se julgar criação divina,
ser supremo, o ápice da escala evolutiva, o centro do
universo. A “supremacia” do homem sobre a face da Terra
é fruto da percepção mais comezinha. A raiz disso está no
desamparo, na precariedade e na necessidade de proteger-
se do desconhecido e permanecer na segurança de um
útero materno. No conceito da Psicanálise, toda criança é
narcisista; o mundo gira ao seu redor, seus desejos devem
ser atendidos, está sempre em busca de atenções, de
estímulos e de aprovação. O homem é exatamente essa
criança – pensa que é o mundo que gira ao seu redor,
querendo ver atendidas todas as suas vontades. Pede
proteção, afago, atenção, e no mundo contemporâneo, ele

136
é muito mais consumista que nunca, principalmente de
seus próprios delírios, vergando sob o peso cada vez mais
aterrador e insuportável do arquétipo do abandono. Eis
mais uma de nossas assinaturas – raça dos abandonados,
observa Horkheimer. A crítica de Bauman é explícita e se
ramifica ao longo desta obro: “Os homens buscam sua
identidade não no que são, mas naquilo que consomem e
exibem”. A análise desse aspecto em especial ultrapassa o
âmbito cosmogônico, e é de tão extrema importância que
examiná-lo a meia profundidade tornou-se a pedra angular
desta obra.
Apesar de narcisismo ter sido aqui referido pela via
filosófica, não se pode deixar de fazer uma brevíssima
intervenção sobre o Mito de Narciso pelas letras da
Psicanálise, de onde emergem as melhores definições.
Explorando a competência de Azevedo, “Podemos também
ver esse jogo 25 sob a ótica do mesmo e do outro, do
paradoxo que preside à pulsão de Eros: na busca do outro,
busca-se o que falta a si mesmo, busca-se a reparação ou
ortopedia da falta e, em última instância, a perfeição do
Todo. O que o mito erótico de Narciso sublinha, em cores
trágicas, é que essa busca pela completude
necessariamente passa pelo outro, mas por um outro não
mais tomado como tal, mas reduzido à imagem de si, a um
reflexo. É com esse reflexo, com essa “sombra tomada
como substância”, que Narciso se identifica e na qual se
perde de forma trágica. Ao invés do jogo amoroso da
reciprocidade, Narciso põe cruamente em jogo a lógica da
reflexividade, da confluência sobre si de sujeito e objeto,
encerrando-se em uma circularidade mortífera.”

25
“Ele ama uma esperança sem substância e crê que é substância o que é
somente sombra.” Ovídio (43 a.C. -18 d.C.)

137
Freud também se ocupou do mito, construindo a
concepção metapsicológica de sua teoria sob os
pressupostos básicos da noção de sexualidade do aparelho
psíquico e do recalque observados na prática diária.
Contudo, é quando ele começa a compreender as psicoses
a partir dos preceitos psicanalíticos que se iniciam as
revisões e inovações em sua visão, surgindo a partir daí o
conceito de narcisismo. Freud atesta a aplicabilidade da
teoria sexual também às psicoses, firmando a sexualidade
como propulsora do funcionamento do aparelho psíquico.
Mesmo partindo da psicose, Freud não se limita a ela,
ampliando o narcisismo também às neuroses. No
transcorrer do estudo, ele relaciona as pulsões sexuais com
“necessidades”, que chama de pulsão de autoconservação.
Aos poucos Freud vai adensando seu trabalho, e em
“Totem e Tabu” ele reformula sua concepção, afirmando
que o narcisismo não seria apenas uma fase passageira do
desenvolvimento sexual do sujeito, e sim uma estrutura
perene, envolvida na formação do Eu. Por fim, usa das
observações da esquizofrenia, da vida mental de crianças e
dos povos primitivos para desenvolver o conceito do
narcisismo. Segundo ele, enquanto na esquizofrenia há
uma retirada da libido do mundo externo para o Eu, na
neurose a libido retirada dos objetos externos será investida
nos objetos da fantasia. Para finalizar, em “Além do
Princípio do Prazer”, Freud introduz o conceito de pulsão
de morte, substituindo os termos pulsões do eu e pulsões
sexuais por pulsões de vida e pulsões de morte, que teriam
desdobramentos em outras obras.
Com Lipovetsky, temos que toda geração costuma
eleger uma figura mitológica ou lendária para se identificar,
seja Prometeu, Édipo, Fausto ou Sísifo, reinterpretando-a de

138
acordo com o momento vivido. “Hoje em dia é Narciso
que, aos olhos de considerável número de pesquisadores
[...] simboliza os tempos atuais.” Instala-se, dessa forma,
um novo paradigma de individualismo, que designa um
novo perfil nas relações do sujeito consigo próprio, com
seu corpo, com o outro, com o mundo, com o tempo, no
momento em que surge uma cultura inteiramente voltada
ao hedonismo e ao permissivo.
A comprovação do heliocentrismo retirou do homem
o protagonismo na peça cósmica, Deus deixa de ser o
centro do conhecimento, deslocando a verdade mais uma
vez. Demolir um dogma de mais de mil anos, ir contra
todas as concepções geocêntricas de Ptolomeu e todos os
saberes da Bíblia e os ditames da Igreja era algo inaceitável,
mas o golpe foi letal e certeiro na autoestima e no orgulho
do homem. Não bastasse essa dura realidade, 200 anos
depois foi a vez de Darwin lacerar a alma ao demonstrar
que éramos apenas uma consequência natural da evolução
da vida no planeta, aparentados com os primatas, uma
espécie proveniente da combinação aleatória de genes, e
não uma criação divina. Como escreveu Millôr Fernandes
com acre ironia, “O homem é um macaco que não deu
certo”. Os pilares dos estatutos religiosos começavam a
ceder.
E o derradeiro golpe seria desferido justamente por
Freud, ao apresentar as bases científicas sobre o
inconsciente. O homem deixava definitivamente de ser o
centro do mundo e senhor de si mesmo. Sua dignidade se
esfacelara, e nessa topografia acidentada ele começava a
conhecer sua frouxidão, seus temores e suas inquietudes,
escancarando sua vulnerabilidade mais profunda,
comprovando quão longe está da maioridade no

139
calendário do universo. Condensando esse trajeto, o
homem deixou de ser o centro do Universo (Copérnico), o
centro da espécie (Darwin) e, como último prego do
caixão, o centro de si mesmo (Freud), isto é, não passa de
uma criatura vazia que só sobrevive graças à sua estrutura
de linguagem.
O homem sempre teve a ambição de conhecer o seu
destino e obter a proteção das potências sobrenaturais de
que se julga cercado. É diante desse vazio que analisamos
a parte final daquela declaração. Quais seriam, portanto, os
objetivos de tão ilustres visitantes? Antes, uma pergunta:
Alguém já indagou se tais civilizações adiantadas e
longevas estão interessadas em nós? Temos algo a oferecer,
a ensinar? Somos anfitriões simpáticos e generosos? A
história revela o contrário: o passado nos condena, o
presente é o estopim aceso de um barril de pólvora
plantado no futuro. Desconhecemos a extensão desse
pavio, mas sabemos que, quando ele chegar ao fim, a Terra
não deixará herdeiros.
De acordo com o pensamento em vigor dentro e fora
da Ufologia, estes seres estariam tão preocupados com
nossa escalada armamentista e a destruição do planeta a
ponto de emitirem um alerta-padrão recorrente:
Interrompam imediatamente todos os testes atômicos com
propósitos bélicos. O equilíbrio do universo está
ameaçado. Estaremos atentos e vigilantes, prontos a intervir
no caso de uma catástrofe planetária. 26 Uma enquete
realizada nos anos 80 revelou que uma parcela significativa
do público considerava os extraterrestres seres protetores,

26
Suposta mensagem telepática recebida por H.V.A. em 24/4/1959, relativa
ao Caso Piatã, na Bahia. O fato repercutiu mundialmente, tornou-se
emblemático, gerando eventos similares ao longo dos anos.

140
guardiães estelares, irmãos cósmicos. Em 1987, a Gallup
revelou que metade da população americana acreditava na
existência dos discos voadores e que os extraterrestres eram
reais. Passadas três décadas o quadro não mudou. Ainda
hoje as crenças em anjos, extraterrestres, milagres, visões,
fantasmas, oráculos e outras mais continuam firmes. Para
Le Bon, a adoção de crenças quiméricas permanecerá
sempre geradora das longas esperanças, das religiões e dos
deuses através das idades. É essa “magia” que encanta a
massa de Baudrillard, como ele mesmo diz: “As massas
resistem escandalosamente a esse imperativo da
comunicação racional. [...] elas idolatram o jogo de signos
e de estereótipos, idolatram todos os conteúdos desde que
eles se transformem numa sequência espetacular. O que
elas rejeitam é a ‘dialética’ do sentido. Elas “farejam” o
terror simplificador que está por trás da hegemonia ideal do
sentido e reagem à sua maneira, reduzindo todos os
discursos articulados a uma única dimensão irracional e
sem fundamento, onde os signos perdem seu sentido e se
consomem na fascinação: o espetacular.”

Os deuses entre nós

Se eles estão por aí o tempo todo, é importante


conhecer o núcleo de formação dos deuses em geral, e o
farei de modo abreviado. De todos os trabalhos dedicados
ao tema, destaca-se “Os Nomes Divinos – Ensaio para uma
teoria da concepção religiosa” (Götternamen: Versuch
einer Lehre von der Religiösen Begriffsbildung, Bonn,
1896), de Hermann Usener, uma das principais fontes de
um livro capital, “Linguagem e Mito”, de Ernst Cassirer. A
obra de Usener divide a gênese e o desenvolvimento dos

141
deuses em três etapas distintas. Primeiro, temos o “deus
momentâneo” – a impressão transcendente criada pela
confrontação do homem com um fenômeno ímpar. “Na
imediatez absoluta”, diz ele, “o fenômeno individual é
endeusado sem que intervenha um só conceito genérico;
essa única coisa que vês diante de ti, e nenhuma outra, é
deus.” É a personificação de momentos isolados que se
revestem de forte tonalidade afetiva.
Cassirer explica que cada impressão que o homem
recebe, cada desejo que emana, cada esperança que o atrai
e cada perigo que o ameaça pode vir afetá-lo
religiosamente. Quando a sensação momentânea do objeto
colocado à sua frente, à situação em que se encontra, à
ação dinâmica que o surpreende, é outorgado o valor e o
acento de deidade, então esse deus momentâneo é criado.
É importante destacar que essas forças se constelam
automaticamente sempre que condições internas ou
externas exijam um esforço de adaptação a situações novas
ou extraordinárias. Então, surgem os deuses, individuais ou
coletivos, cuja atividade impede que o sujeito seja
submerso pela onda de desorientação que quase sempre
acompanha essas circunstâncias.
Quando os deuses são conjugados por um influxo
externo, as forças arquetípicas se projetam no estímulo,
aparecendo aos nossos sentidos como sendo um predicado
do objeto exterior, ao invés de algo que se origina dentro
de nós mesmos. Ocorre, assim, uma fusão entre sujeito e
objeto, através da ponte estabelecida por essas forças como
mediatrizes, o que o antropólogo Levy-Brühl denominava
participation mystique. É assim que vamos introduzindo o
objeto à nossa própria psique. Dessa forma, ele vai
perdendo seu caráter de absoluta estranheza – nós nos

142
adaptamos a ele, e a libido (como sinônimo de energia
psíquica) de que ele se achava investido pode retornar para
dentro de nós.
Esse aparente predicado do objeto é sentido como
sendo uma alteridade total, porque reúne o que eu
desconheço nele e o que eu desconheço em mim. Só para
reforçar a ideia de Outro, vejamos o que diz Abbagnano:
“Ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro”.
Voltando a Levy-Brühl: “O objeto é o Totalmente Outro até
que eu possa incorporá-lo à minha visão do mundo. Com
isso, ele também se modifica. Essa ação é bipolar, tanto
pode ocorrer em relação a objetos exteriores quanto
interiores à minha psique, contanto que não se pense em
limitá-la à consciência”. Na verdade, o inner space – o
espaço interior – é tão vasto e desconhecido quanto o
exterior que tanto nos fascina. A experiência do Totalmente
Outro e ao sentimento a que ela origina o filósofo alemão
Rudolf Otto chamou de numinoso 27 , considerando-o o
fundamento básico das religiões, mas não exclusivo delas;
cabe observar que “numinoso” e “fenômeno” têm uma
origem latina comum, respectivamente numen e noumeno
– a coisa em si, a realidade última à parte da ação humana,
o sagrado, inalcançável aos sentidos e ao racional. O
numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, por
exemplo, um Óvni, ou o influxo de uma presença invisível,
que produz uma modificação especial na consciência.

27
Rudolf Otto não se considera criador do termo, atribuindo ao clérigo
alemão Nikolaos Zuzendorf (1700-1760) o uso original do termo como
descobridor do sensus numinis – percepção do sagrado, da divindade (in
OTTO).

143
Otto faz uma importante observação, citando o
teólogo Schleiermacher 28 , que destacou com muita
propriedade um elemento notável na experiência do
numinoso – o sentimento de “dependência”, mas Otto
esclarece e redefine esse sentimento como de criatura: o
“sentimento da criatura que afunda e desvanece em sua
nulidade perante o que está acima de toda criatura”,
nulidade perante não só o “absolutamente avassalador”
mas do caráter desse poder avassalador; em outras
palavras, a sensação de arrebatamento, de inacessibilidade
e superioridade absoluta do tremendum – do numinoso.
Quando adquirem valor, os objetos e atos se tornam
reais porque passam a fazer parte de uma realidade que os
transcendem, tornam-se sagrados e constituem-se em
hierofanias, um “centro”, um ponto fixo e absoluto; revela-
se aí um momento mítico. “O objeto surge como
receptáculo de uma força exterior que o diferencia de seu
próprio meio e lhe dá valor e significado”, afirma Eliade,
para quem “esta força pode estar na substância do objeto
ou em sua forma; [...] Ela resiste ao tempo; sua realidade
combina-se com a perenidade.”
O segundo estágio, para Usener, os “deuses especiais”
surgem quando atribuímos um predicado aos tripulantes
dos discos: conquistadores, salvadores, arautos de uma
nova era. Por último, o terceiro estágio – o mais elevado
para aquele autor, é a configuração dos “deuses pessoais”,
que são nomeados e, de certa forma, extrapolam seu
âmbito específico para ganhar uma identidade, uma
personalidade e um caráter individual. Podemos reconhecer

28
Friedrich Schleiermacher. Über die Religion: Reden an die Gebildeten
und ihre Verächter. 6. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.
(in OTTO).

144
os “deuses momentâneos” nas observações de “naves” e em
toda a ampla gama de respostas emocionais que provocam;
os “deuses pessoais”, aos seres anônimos que se
transformam neste ou naquele ufonauta específico,
ganhando um nome qualquer – Karran, Cramish, Clyvven,
Ptaah, Agar, Ahura Rhanes, Ashtar Sheran, nomes com
indiscutível semelhança fonética e de significados com os
dos seres mitológicos Astarte, Athar, Ciyyim, Ishtar,
Yaggdra29, reforçando a moldura mítica dada ao fenômeno.
E não poderia ser diferente, já que essa associação é
resultado do entendimento de que estes são habitualmente
identificados como heróis civilizadores ou deuses da
antiguidade. Esse hibridismo tecno-mítico-religioso sugere
uma espécie de grande retorno espiritual, que por vezes
pode ter um forte viés de ficção científica ou algum tipo de
mitologia científica.
No que tange não só à atitude devocional que certas
entidades provocam no sujeito, Caillois, referindo-se ao
culto à personalidade, principalmente no cenário político,
ressalta que essa pregnância carismática foge ao controle,
por tornar-se inseparável da “figura do chefe” e da
fascinação que ele provoca. Alimentada pelo entusiasmo,
essa figura – dê-lhe o nome que quiser – transmite absoluta
segurança e superioridade, razão pela qual surge como o
emissário místico dos destinos daquele a quem ele se dirige
arbitrariamente. Para Weber, as deidades mitológicas são
concebidas como “formas místicas” do comportamento
humano, enquanto Jung considerava abertamente os deuses

29
Cf. “Índice alfabético dos nomes próprios mitológicos” (Durand,
2002:463). Astarte (sírio), Athar (árabe), Ishtar (babilônico): símbolo de
uma nostalgia (p.235); Ciyyim (assírio): peregrino do deserto (p.84);
Yaggdra (nórdico): símbolo da totalidade, da perenidade (p.341).

145
da mitologia como símbolos das instâncias psíquicas e dos
arquétipos. “O imaginário social resulta, nesse domínio, de
uma excepcional complementaridade entre a mitologia e a
psicologia, no seio da qual a distinção entre a realidade e a
mentira não têm, verdadeiramente, sentido” (Legros). Tais
figuras mitológicas, usadas como instrumento de
interpretação do social, podem ser extraídas do fantástico
tanto antigo como moderno. Caillois afirma que uma
imagem assim “coletivizada”, mesmo em se tratando de
uma farsa, age como verdadeira, encontra sempre uma
eficácia na conjuntura histórica da qual ela é objeto de fé.
Segundo Alfred Piette (in Legros), a religiosidade
(sacralidade) secular aparece quando, no ambiente profano,
juntam-se três características: representação de uma
transcendência – beleza, força e poder de vida e morte;
sacralização de pessoas, ideias ou objetos, e um conjunto
mítico-ritual específico – mitos de origem, celebrações. Para
Morin, o estudo das “celebridades” em geral e dos ídolos
(no contexto religioso) revela, em particular, o imaginário
religioso secular: heroização, iconografia, manifestações de
efervescência coletiva, processos de identificação e
projeção. Não há grande diferença na estrutura de
veneração para um “ídolo” (celebridade ou religioso) e para
o extraterrestre, guardadas as proporções.

Nós, os outros

Antes de prosseguir com o exame, pergunta-se: Afinal,


quem ou o que é o Outro? Não é uma resposta simples a
princípio, e não será ao final. O Outro não é apenas nosso
próximo, são todos – antecessores e predecessores, jovens e

146
velhos, homens e mulheres, os ausentes e os presentes;
deuses e demônios, amados e odiados, negros, imigrantes,
índios, asiáticos, os mandantes e os mandados, prósperos e
desvalidos, qualquer população, grupo, tribo ou
comunidade de feições opostas. Estrangeiros, refugiados,
alienígenas no real sentido do termo. É o sagrado e é o
profano, é o íntimo e o anônimo, é o verbo e a reflexão. O
outro é, na verdade, aquele que está no espelho. E o
espelho está vazio. Ele não reflete a nossa imagem, mas
aquilo que julgamos ver. Por isso ele é nosso algoz.

“ Cassius: Tell me, good Brutus, can you see


your face?
Brutus No, Cassius, for the eye sees not itself,
but by reflection, by some other things.30

Shakespeare
Julius Cesar

O capital literário sobre o tema é da melhor qualidade, e
talvez a síntese mais adequada esteja no título da obra de
Ricoeur – O si mesmo como um outro. Mas poderia ser
também a de Rimbaud: “Eu é um outro”. De fato, elas
parecem resumir a ideia central dos demais, na medida em
que nos coloca como “outro” e traz esse “outro” de volta
para nós. Para Ricoeur, a dinâmica de sua teoria se

30
Cassio: Diga-me, meu bom Brutus, você pode ver seu rosto?
Brutus: Não, Cassio, o olho não pode ver a si mesmo, a não ser pelo
reflexo, por alguma outra coisa. (Tradução livre do autor)

147
equilibra em dois veículos: a identidade-idem e a
identidade-ipse: Identidade-idem ou mesmidade é uma
identidade estática e constante de permanência no tempo.
Entende-se por esta identidade que o sujeito é sempre
o mesmo - desde o momento em que nasce até que morre.
No entanto o sujeito vai sofrendo algumas mudanças ao
longo da sua vida sem que essas mudanças rompam com a
sua personalidade. Esta questão da mudança que o sujeito é
objeto remete-nos para outra visão da identidade, a
Identidade-ipse ou ipseidade, a forma dinâmica da
manutenção do si ao longo do tempo. Estas duas
identidades do sujeito estão inter-relacionadas”.
É na história do sujeito e das narrativas temporais
dessa vida que se constrói o hibridismo identitário, e afirma:
“É pela escala de uma vida inteira que o si procura sua
identidade: entre as ações curtas, às quais se limitam nossas
análises anteriores sob o constrangimento da gramática das
frases de ação, e a conexão de uma vida”.
Para a filósofa Marilena Chauí, é na relação com o
mundo, com a natureza, com as coisas e as pessoas que nos
fazemos, é daí que surge nosso Eu e nossa identificação
com o mundo, a natureza, as coisas e as pessoas. E é dessa
relação, inclusive, que o indivíduo desenvolve as artes, as
religiões, a imaginação e as crenças como formas de se
integrar, comunicar, entender e se fazer entender. Lacan,
por sua vez, plantou suas teorias sobre a formação do Eu (e
os Outros) a partir do seu denso trabalho intitulado Estádio
do Espelho, base do desenvolvimento da função do eu. Em
dado momento, após a fase inicial de “contato” com esse
“outro corpo”, ainda não reconhecido como seu, a criança
adquire a sensação de totalidade e unidade. Antes disso, ela
possuía uma sensação de fragmentação, despedaçamento,

148
corpo desgovernado. O espelho dá ilusão de unidade.
Assim, ao admitir nossa infância cósmica, me permito
estabelecer paralelos com o estudo lacaniano; a presença
do alienígena dá ao homem a mesma ilusória sensação de
totalidade e unidade, dissolve sua desorientação e lhe
fornece um registro identitário. Marcado pela incompletude,
algo lhe falta, e só a alienterapia é capaz de lhe restituir o
ser integral e amortecer o impacto provocado pela
descoberta desse vazio. Contudo, Lacan observa que ao
buscar no outro – qualquer outro – o sentimento de
completude, o outro não existe para trazer de volta a
imagem com que o Eu precisa ser sustentado.
Para selar este comentário e dar subsídios às reflexões
do leitor, Lacan esclarece que o Imaginário identitário se
encontra nos problemas da imagem, e corresponde ao ego
(eu), um investimento libidinal no eu (narcisismo). Diz ele
que “O eu é como Narciso: ama a imagem de si mesmo
que ele vê no outro. Esta imagem que ele projetou no outro,
no mundo, é fonte de amor, de paixão, de desejo de
reconhecimento, o eu se constitui na Fase do Espelho. A
criança, ao ver-se no espelho, estabelece uma relação
especular e de totalidade imaginária. Podemos dizer que
este é o momento do início do ser. Numa situação de
desamparo, a imagem vem tentar recobrir esta sensação de
incompletude e fragmentação do ser humano. Esta sensação
de unidade imaginária vem inaugurar a subjetividade. “Na
procura de si mesma, a consciência crê se encontrar no
espelho das criaturas e se perde no que não é
ela!”(Santaela). A metáfora da condição humana pode ser
pensada como a miragem que criamos diante de um real
insuportável! O próprio Eu se projeta nas imagens em que
se espelha.

149
Segundo Anna Freud, o ego é lógico, objetivo e
racional, mas quando certas condições ou estados psíquicos
desencadeiam sentimentos de ansiedade, tensão ou
estranheza, ele perde estas propriedades e a habilidade
fundamental de equalizar as demandas de realidade e as
pressões inconscientes, tendo por desfecho a total
desadaptação ao mundo exterior.
À medida que seus estudos avançavam, Lacan foi
ampliando suas noções de Outro: o Pequeno Outro -
semelhante, igual e rival, que se encontra no par do estádio
do espelho, sendo, portanto, do registro do imaginário, e o
Grande Outro – o inconsciente, que se manifesta nos
sonhos, nos símbolos e nas fantasias. Lacan indaga: Quem
sou eu em relação ao outro? Se Freud mostrou que o Eu
não é senhor de sua própria casa, Lacan pulveriza a ilusão
de totalidade e postula que o Eu é, antes de tudo, outro, e o
outro é, na sua essência, Eu! “É isso mesmo: o eu e o outro
se confundem. Eu projeto no outro conteúdos, intenções e
até pensamentos meus; eu me vejo nesse outro no qual
identifico traços meus, eu o vejo como meu ideal, que tanto
admiro – como eu gostaria de ser igual a ele!” Importa, no
confronto com o espelho, o olhar, ou a troca de olhares do
mesmo olhar, porque um depende do outro, ou um deriva
do outro: um não existe sem o outro. A distância desse face
to face é determinada pela coragem de se medi-la. Espelho,
do francês mirroir, do latim, mirare significa surpreender-se,
encantar-se, espantar-se, derivando para miracolo, milagre
e mirabilia, maravilha. O milagre não se explica pela lógica,
ele é um fato espantoso, admirável e, na visão lacaniana,
este estado de encantamento seria provocado pela crença
em um Outro de quem tudo se espera. As crenças estão
bem menos baseadas em evidências do que supõem os

150
crédulos. Do ponto de vista freudiano, os sonhos noturnos
são, em grande medida, a representação da satisfação de
nossos desejos e, os sonhos diurnos, os entendia como
aquilo a que chamamos crenças.
Obviamente que essa brevíssima navegação sobre o
Outro é insuficiente para demonstrar a estatura desse corpo,
mas pode-se notar o quanto é fundamental para o presente
estudo. A existência do outro/extraterrestre no quadro do
imaginário não pode escapar à régua psicanalítica. Também
o encontro do ufólogo com a testemunha, um crendo no
outro, se encaixa perfeitamente nessa formulação.
É interessante investigar esse ato de nomear pessoas,
objetos, animais e mesmo alienígenas, que transpõe as
noções de afeto – afinidade, identificação, ligação, e de
poder – não só no sentido de controle, mas de laços afetivos
– meu amigo, minha irmã. A criança pratica essa
necessidade, nomeando seus brinquedos, bichos de
pelúcia, amiguinhos imaginários, animais de estimação,
bonecas. Já os adultos nomeiam seus outros ”brinquedos” –
carros, armas e até acessórios eletrônicos. No filme “2001”,
a dupla sobrevivente da tripulação conversava com o
supercomputador HAL, programado não só para controlar e
monitorar a nave, mas para ser um companheiro inteligente
e interativo. Enquanto aguardava ser resgatado, perdido
numa ilha, Chuck (Tom Hanks), em “Náufrago”, conversou
todo o tempo com uma bola de vôlei, seu “amigo” Wilson
(marca do produto); na ficção e na vida real são incontáveis
os exemplos e as situações em que o indivíduo se acerca do
que está próximo e o faz “seu”, um expediente sutil para
disfarçar/contrabalançar sua solitude. Para Cassirer, o fato
de que tudo deva ter um nome é uma das maiores
prerrogativas do simbolismo humano. No pensamento

151
mítico, o nome de um deus é parte integrante de sua
natureza. Não pronunciar o seu nome, o feitiço, a oração
ou a evocação de sua presença não produz o efeito
desejado.
Mas afeto e posse apenas mostram o efeito do
impulso, não a causa, o fundo gerador. Tudo começa a
partir do momento em que o homem criou seus mitos, suas
religiões, seus deuses, fantasias, crenças e ficções, na
expectativa de encontrar uma explicação do mundo e de si.
Há, por certo, um fundamento mítico-religioso neste
sentimento que vem desde a Grécia antiga. Segundo o
filólogo Max Müller, “Por causa desta vivacidade e
excitabilidade do sentimento religioso, qualquer conceito,
qualquer objeto que por um instante dominasse todos os
pensamentos, podia ser exaltado, independentemente da
hierarquia divina [...] Tudo o que nos vem repentinamente
como envio do céu, tudo o que nos alegra, entristece/ou
esmaga, parece um ser divino para o sentimento
intensificado.”
Ante sua insciência, seus temores, desassossegos,
desejos e, essencialmente, percebendo sua ineludível
solidão, o instinto de territorialidade se intensifica e se
projeta em tudo aquilo que esteja no seu perímetro e lhe dê
a (falsa) sensação de poder: meu isso, meu aquilo. Uma vez
no (ilusório) comando da situação, “apropria-se” de tudo
que é do seu convívio e com o qual se identifique ou tenha
ligação, seja animal, pessoa, objeto ou até, inclusive,
principalmente, um extraterrestre, dando simbolicamente
uma identidade, uma personificação, um nome. Talvez isso
faça parte do processo de humanização do qual falaremos à
frente.

152
A crença e a esperança de “retorno do Messias” no
fim dos tempos, da salvação, da remissão universal, é bem
sabido, vem de longa data e não é privilégio desta ou
daquela sociedade, mas de todas. Essa “esperança” faz um
estrago irrecuperável para a consciência ao se acomodar na
possibilidade da “ressurreição” (re-elevar-se, voltar ao
paraíso, ao éden, aos céus) ou do “encontro com os entes
queridos”, que é a base das doutrinas escatológicas (últimos
dias ou acontecimento final), do milenarismo cristão
tradicional e de outras religiões, com promessas de virgens,
de paraíso eterno, do jardim das delícias, de júbilo, do
assento ao lado de suas divindades maiores. O Reino está
próximo, a parúsia – a segunda vinda de Cristo, para julgar
vivos e mortos, é iminente. Dessas expectativas derivaram
as utopias, do grego ou topos – lugar nenhum, inexistente
ou imaginário, que derivou para “lugar perfeito”31. Como
toda utopia já nasce com defeito de fabricação, ela só pode
acabar em distopia.

Santa visão

Quão “iminente” é a volta do Salvador? Qual o


critério usado para determinar a medida desse tempo? Que
ligações há entre a parúsia e as aparições marianas? A
cronologia dessas “aparições” se inicia no século 1 com a
visão de São Tiago Maior, em Saragoza, hoje Espanha, e
nos séculos subsequentes as visões de Nossa Senhora
pontuaram em várias regiões, tendo se registrado a última

31
De acordo com Eco (2013), o nome dá título ao libreto “As Ilhas da
Utopia” (1516), de Thomas Morus, para designar uma sociedade, um
país ou um Estado ideal, portanto, inexistente.

153
delas em 1981 na Vila Medjugorje, região dos Balcãs32, na
então Iugoslávia. Consta que nestes dois mil anos de
história cristã, mais de mil manifestações tenham sido
registradas, sendo que apenas a de Fátima, em 1917, foi
oficialmente reconhecida pela Igreja. É, por isso mesmo, a
mais famosa, embora outras tenham certa relevância
histórica: Guadalupe, México (1631); Salette (1834) e
Lourdes (1858) na França. O censo mariano inclui todas as
ocorrências, sejam oriundas de distúrbios mentais, estados
delirantes, processos alucinatórios, relatos falsos e
fenômenos de natureza diversa. Em Julho de 2002, o
município de Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo,
foi invadido por uma multidão de 20 mil pessoas em
peregrinação à aparição de Nossa Senhora. Não era a
santa, mas sua “imagem” que refletia na vidraça de uma
janela, nada mais que um efeito ótico provocado pela
reação química de um produto de limpeza.
É bastante comum esse tipo de ilusão, um efeito
ótico conhecido como pareidolia: olhe para as nuvens ou
para uma mancha na parede e você verá o que quiser ver,
ou o que imagina ver. Por exemplo, em Marte, um jogo de
luz e sombra sobre a superfície rochosa, sob certas
condições e em determinados momentos mostra um rosto
humano, ou, para muitos, a face de Cristo (mais uma), que
também pode ser vista do alto sobre uma planície nevada,
ou ainda a carranca de Satanás nas volutas fumarentas do
11 de setembro.
Este preâmbulo necessário nos leva de volta à
questão da aparição mariana no final da Primeira Guerra,
única reconhecida pelo Vaticano. Essa apropriação será

32
Região sudeste da Europa que compreende Albânia, Bósnia e
Herzegovina, Bulgária, Grécia, Macedônia, Montenegro e Sérvia.

154
discutida no terceiro capítulo. Este episódio ganhou
notoriedade porque trouxe supostas mensagens
transmitidas às três crianças campesinas que
testemunharam a aparição, principalmente a terceira
mensagem, conhecida como “O Terceiro Segredo de
Fátima”. É bem verdade que algumas aparições não
ocorreram em datas “redondas”, geralmente virada de
milênio, mas é igualmente verdade que houve mensagens
que conclamavam a retomada da fé cristã em momentos
de declínio e dispersão, ou cuidavam de advertir e
repreender a humanidade face à escalada armamentista
sem freios.
Os estudos sócio-antropológicos relacionados às
aparições marianas analisam os comportamentos das
sociedades diante dos acontecimentos e também as
tendências, convergências e divergências dentro da Igreja
Católica. Alguns autores são consensuais ao afirmar que as
supostas aparições de Maria têm crescido no século 20,
sendo então um fenômeno característico desse fim de
milênio, e que as aparições mais aceitas e divulgadas
trazem, em sua maioria, mensagens com um caráter
apocalíptico anunciando guerras e catástrofes devastadoras.
Chega a ser cansativo constatar que o teor é tão
rigorosamente o mesmo que naufragam num lodaçal
enjoativo de clichês. Zimdars-Swartz, por exemplo,
entende que esses dois aspectos se explicam mutuamente:
os eventos conteriam teor apocalíptico ligado ao fim do
milênio, e aumentariam nesse período justamente por
causa desse tipo de mensagem33.

33
ZIMDARS-SWARTZ, Sandra L. Encountering Mary; from La Salette to
Medjugorje. New York: Avon Books. 1992. (Cf. Mariz, p.36)

155
É sabido que o século 20 ficou marcado pelo
confronto do catolicismo – Igreja, religião e cultura católica
– e a modernidade, instabilidade gerada pelo
questionamento da tradição e da fé, reforçado, como
vimos, pelas guerras que cindiram o mundo. O que poderia
explicar as aparições? Do que se trata exatamente? Temos
aí um problema que salta para fora destas páginas. Ao
mesmo tempo em que é tentador aprofundar a questão,
dada sua importância e íntima relação com o principal da
obra, esforcei-me para condensar a discussão a um mínimo
razoável.
De acordo com Yves Chiron34, o aumento de relatos
de pretensas aparições é global e recente, em grande
medida turbinado pelos veículos de comunicação, mas
também pelas (pretensas) mensagens que acabaram tendo
ampla divulgação e replicadas mundo afora. Zimdars-
Swartz defende o mesmo ponto de vista ao afirmar que “As
aparições públicas nas quais um número de pessoas se
reúne para observar um vidente em êxtase, parece ser, ao
menos no contexto da história do cristianismo, um
fenômeno peculiar dos dois últimos séculos”.
A alucinação, principalmente aquela não
patológica, a do tipo transitória, é comum em nossa
cultura, porém muito mal compreendida. Está na raiz das
religiões e do misticismo e pode explicar uma boa
quantidade de acontecimentos misteriosos: aparições de
criaturas sobrenaturais, visões de anjos, demônios, deuses e
fantasmas, encontros com alienígenas, viagens fora do

34
CHIRON, Y. Enquête sur les Apparitions de la Vierge. Paris. Perrin/Mame.
1995. (Cf. Mariz, p.38).

156
corpo e experiências de quase-morte. Ioan Lewis afirma
que o rito, a crença e a experiência espiritual são a base
das religiões, mas destaca que a experiência deve ser vista
sob o ambiente social onde é vivenciada, porque carrega
as marcas da cultura e da sociedade onde vigora. “Os
fenômenos acessórios associados a essas experiências
particularmente o “dom das línguas” (glossolalia, N.A.), a
profecia, a clarividência, a transmissão de mensagens e
outros dotes místicos têm, naturalmente, atraído a atenção
não apenas dos devotos mas também de céticos. Para
muitos, de fato, esses fenômenos parecem fornecer provas
persuasivas da existência de um mundo transcendente ao
da experiência cotidiana comum”.

Crer ou não crer não é a questão

Dentro deste quadro das aparições marianas


incluem-se as de anjos e “mestres ascensionados” ou “seres
de luz”, as quais se inserem, naturalmente, alguns tipos
específicos de extraterrestres. Em muitos casos, observa-se,
as entidades (con)fundem-se, não havendo mais distinção
entre elas, o “quem é quem” no momento da visão. Harold
Bloom engloba à questão da angelologia (sem os
extraterrestres), os elementos premonitórios dos sonhos, as
experiências de quase-morte e o milenarismo, lembrando
serem manifestações datadas de tempos medievos. Ele
inclui nesse pacote, as viagens astrais (extracorpóreas), o
xamanismo, as profecias e a imortalidade. Interessar-nos-ia
discutir tudo, mas fiquemos por ora com anjos e mestres
(imortalidade está discutida na parte final) porque se
encaixam nesse estudo.

157
A crença nos discos voadores e ETs, anjos e mestres
alcança os expressivos índices de 80 e 70%
respectivamente, o que não é pouca coisa, indicando
inequivocamente a presença marcante de carências e
desorientação e, numa perspectiva mais profunda,
ansiedade, medo e imaturidade. Sua crítica é direta:
“Nossas indústrias em desenfreado florescimento de culto
aos anjos, ‘experiências de quase-morte’ e astrologia –
redes de adivinhação de sonhos – são versões em massa de
um gnosticismo adulterado ou travestido (...). A
comercialização da angelologia e das mistificações das
viagens fora do corpo junta-se apropriadamente à história
secular da astrologia e da adivinhação de sonhos
mercantilizada.”
Tomando como primeira referência o próprio
Bloom, ele cuida de não descartar nem literalizar tais
experiências, e também não procede a qualquer
julgamento. “A imaginação poética”, diz ele, “na tradição
ocidental pós-iluminismo, atua nesse vazio [o fosso
ocidental entre a percepção dos sentidos e o processo
intelectual], mas a maioria de nós vê os produtos dessa
imaginação apenas como ficções ou mitos”.
Ainda que de origem antiga, a angelologia tomou
impulso com o movimento new age e seu largo esoterismo,
e chegou ao auge na transição dos anos 80-90 alavancado
por obras como, por exemplo, “O Livro dos Anjos”, de
Sophy Burnham, encabeçando por meses a lista dos mais
vendidos do NY Times. A febre não parou mais desde
então, e até uma “angelíngua” foi criada para que as
pessoas pudessem se comunicar com seus anjos da guarda,
além de uma variedade impressionante de adereços:
manuais para identificar o anjo pessoal, cristais, joias,

158
pulseiras, incensos e incensários, velas aromáticas com a
cor “do seu anjo”, essências curativas, preces – em latim,
para dar mais “credibilidade”, mantras invocatórios, livros,
muitos livros, objetos de uso pessoal, imagens,
numerologia angelical e um criativo portfólio dos anjos.
No extremo oposto, a demonologia, com igual
diversidade de objetos – livros, imagens, rituais, evocações,
nominações, signos e vestuário. Não será por falta de
elementos que o adepto/seguidor deixará de celebrar seu
ícone, seja ele quem ou o que for. Intriga pensar que o
Senhor das Trevas não é outro senão Lúcifer – “portador de
luz” – o anjo descaído por contrariar os termos celestiais ao
pronunciar “Eu” em vez de “Nós”, puro deslize narcísico
semente do “Pecado Original”.
Preocupa mesmo é saber que, se o presidente de
uma poderosa nação justifica deflagrar uma guerra “porque
Deus assim me disse para fazer” 35 , o que será de nós
quando a ordem partir da própria Besta? Devemos esperar
que os extraterrestres venham nos salvar? Entende-se
perfeitamente a conexão feita por Bloom em sua análise de
anjos, xamãs, profecias, viagens astrais, sonhos
premonitórios, experiências de quase-morte e imortalidade
– e agora reintroduzidos os alienígenas. Por isso, talvez ele
devesse ter lançado seus olhos ao espiritismo, à
reencarnação, às artes divinatórias, à vida após a morte,
temas cuja função é preencher a vacuidade deixada pelas
indagações não respondidas, pelos mistérios não aclarados,
pela insegurança do presente e incertezas do amanhã. O

35
Em 5/10/2005, a BBC divulgou trechos de um pronunciamento do então
presidente George W. Bush: “Estou movido por uma missão divina.
Deus me disse: George, vai e luta contra os terroristas do Afeganistão.
Acabe com a tirania no Iraque. E eu o fiz”.

159
ser humano vive atrás intensa e compulsivamente de
explorar outras dimensões, buscar no improvável, na
mística e no transcendente, aspectos desconhecidos e
obscuros de sua natureza aos quais ele não tem a senha de
acesso.
Se há uma doutrina que mais se aproxima da
Ufologia, que mais contém elementos comuns e mais
cativa o público sem causar estranheza ou medo, é a do
espiritismo, por razões óbvias: contatos com o “outro
lado”, com outra dimensão, com o “além”. São os vivos
que procuram os mortos ou estes que teimam em se manter
“vivos”? O velho dilema de saber o que há após a morte
parece encontrar no espiritismo um bálsamo, uma resposta,
uma solução. Não importa mais saber se “Deus está
morto”, mas os benefícios da crença. “O que se
convencionou chamar de sobrenatural, maravilhoso ou
fantástico revela, na realidade, atos de fé (...) Eles são
recebidos como uma mensagem na qual se lê toda a
onipotência e as marcas da intervenção de Deus, ou
deuses, em nosso mundo”, escreve a historiadora Del
Priore em seu estudo sobre o espiritismo e outras
manifestações do sobrenatural.
Surgido em Paris em meados do século 19, o
espiritismo não demorou a encontrar solo fértil no Brasil
dividido entre a religião espírita, a indagação científica e o
devaneio esotérico-ocultista, fincando raízes profundas em
grande parte do território, aumentando o rol de práticas e
personagens que interagem com o sobrenatural, com o
“invisível”: pais-de-santo, profetas, xamãs, curandeiros,
videntes, satanistas, médiuns, oráculos, exorcistas e
contatados. E quem está do outro lado da linha? Seres de

160
luz, das trevas, espíritos, anjos, ascensionados, mestres,
guias, outras entidades e... extraterrestres.
Bloom cita o poeta Milton em sua definição sobre
os anjos, e não vejo discrepância ao comparar com os
extraterrestres: “Para Milton, os anjos eram um espelho no
qual todos nós nos miramos, e não vemos nem a nós
mesmos, nem uma absoluta alteridade, mas uma região
média onde se fundem o eu e o outro”. Essa é uma questão
presente no capítulo sobre o imaginário, mas que transita
pelas entrelinhas o tempo todo.
Devo aqui abrir uma janela para iluminar e arejar
uma expressão que tem sido usualmente muito mal
interpretada e empregada pelo senso comum, ainda mais
dentro de um campo tão propenso a discussões como é o
da Ufologia, dirigido àqueles que ousam contestar seus
pressupostos. Sem a pretensão de uma imersão histórica, a
palavra em questão é “cético”, que no uso corrente tornou-
se o equivalente a “cientificista”, como aquele que duvida
de tudo que não possa ser comprovado ou demonstrado
cientificamente, uma noção demasiado vaga e simplista.
O ceticismo, adotado com outra roupagem teórica
em ambiente distinto do filosófico – a Filosofia é seu local
de origem e o ceticismo é um dos pilotis da filosofia
moderna – pode destituí-lo de seu real significado. Daí,
mais uma vez, reporte-se ao estudo etimológico para dar a
conhecer seu conceito correto e definitivo: do latim
scepticus, do grego skeptikos; ceticismo, do grego
skepticism, significa indagar, refletir, observar, examinar,
vasculhar, investigar e duvidar, sim, mas com inteligência e
equilíbrio, exercitando e aprimorando o espírito crítico a
partir do conteúdo do conhecimento adquirido.

161
O cético não é um ser intransigente e duro opositor
ou um descrente categórico contumaz que se esconde na
crítica, e sim um pensador infatigável, sensível e maleável
em suas posições, porém exigente e seguro em seus
questionamentos sem impor ou impugnar. Ele é aquecido
pela chama da inquietude, em permanente ebulição atrás
de saciar sua ânsia de verdade, e mesmo que não a
encontre, vale a pena entregar-se às searas do
conhecimento.
Julgo relevante citar Dumont: "O termo ceticismo
terminou por designar, hoje, na linguagem comum, uma
atitude negativa do pensamento. O cético é visto,
freqüentemente, não apenas como um espírito hesitante ou
tímido, que não se pronuncia sobre nada, mas como
aquele que, qualquer coisa que aconteça ou qualquer coisa
que se possa dizer, se refugia na crítica. Da mesma forma,
acredita-se ainda que o ceticismo é a escola da recusa e da
negativa categórica. Na realidade (...) o ceticismo não
autorizaria qualquer posição decidida, a começar até pela
que consistiria em afirmar, muito antes de Pirro e como
Metrodoro de Abdera, que sabemos apenas uma coisa: que
nada sabemos. Os céticos qualificam a si mesmos de
zetéticos 36 , isto é, de pesquisadores; de eféticos, que
praticam a suspensão do juízo; e de aporéticos, filósofos da
contrariedade, da perplexidade e dos resultados não
encontrados."
Para encerrar, podemos afirmar que a razão crítica
não irá nunca render suas armas porque o cético não pode
desaparecer. Como colocado no primeiro parágrafo deste
trabalho, tudo está sendo reconstruído pelo olhar

36
“Que pensa, examina, assume atitude intelectualmente investigativa”.
(Houaiss).

162
impiedoso de uma mente pluralista, rejeitando ideologias
autoritárias que não dão espaço para a reflexão crítica.
Enquanto certas aparições envolvem uma só
testemunha, vidente ou receptor da suposta mensagem,
pode-se interpelar fortemente sobre a sua legitimidade, mas
quando ocorre para centenas ou milhares,
simultaneamente, é lícito duvidar? Poderia afirmar tratar-se
de alucinação coletiva? É possível tal fenômeno? No caso
de Fátima, teria ocorrido uma visão em massa ou a Santa,
de fato, apareceu para as multidões? Teria o sol “dançado”
nesse episódio, como afirmam os presentes? As mensagens
são autênticas?
Não é nenhuma heresia afirmar que as visões de
cunho religioso se equiparam às de fantasmas e seres da
natureza conhecidos como elementais – fadas, duendes,
gnomos, sílfides e outras entidades míticas (ou místicas).
Todos provêm do psiquismo humano e são classificados
como alucinações, diferentemente de delírio. De acordo
com a American Psychiatric Association, a definição técnica
para alucinação é “A percepção sensorial falsa, na ausência
de um estímulo externo real. Pode ser induzida por fatores
emocionais e outros, tais como drogas, álcool e estresse.
Pode ocorrer em qualquer dos sentidos, visão, audição...”
William James defendia a ideia de que a experiência
religiosa pessoal tem raízes nos estados místicos da
consciência, e enumera quatro características, que classifica
de místicas:

Inefabilidade – A mais comum das marcas pelas quais


classifico de místico um estado de espírito é negativa.
Quem a experimenta diz incontinenti que ela desafia a
expressão, que não se pode fazer com palavras nenhum
relato adequado do seu conteúdo. Só pode ser

163
experimentada diretamente. Por essa peculiaridade,
parecem-se mais a estados emocionais que a intelectuais.

Qualidade noética – Embora semelhantes a estados


emocionais, para quem os vivenciam são também estados
de conhecimento, de visão interior dirigida a profundezas
da verdade insondáveis pelo intelecto, carregando, via de
regra, um curioso senso de autoridade após a vivência.

Transitoriedade – Estados que não podem ser sustentados


por muito tempo. Com frequência, quando reaparecem, só
podem ser imperfeitamente reproduzidos pela memória,
suscetíveis de contínuo enriquecimento e importância
interiores.

Passividade – Embora o advento do estado místico seja


facilitado por ações voluntárias preliminares, como a
concentração ou outras técnicas específicas, o místico tem
a impressão de que a sua própria vontade está como que
suspensa, adormecida, e outras vezes que está dominado
por uma força superior. O estado místico não se apaga
totalmente, permanece residual na memória, revalorizado
em sua importância e modificando a vida interior do
sujeito.

Uma boa definição para alucinação é dada pelo


neurologista britânico Oliver Sacks logo na abertura de seu livro:
“Quando a palavra ‘alucinação’ foi usada pela primeira vez,
no começo do século XVI, denotava apenas ‘uma mente
divagante’. Só nos anos 1830, o psiquiatra francês Jean-
Étienne Esquirol deu ao termo sua presente acepção. Antes
disso, o que hoje chamamos de alucinação era chamado
simplesmente de ‘aparição’. As definições precisas da
palavra ‘alucinação variam consideravelmente, sobretudo
porque nem sempre é fácil discernir as fronteiras entre
164
alucinação, erro de percepção e ilusão. De modo geral,
porém, definimos alucinações como percepções que
surgem na ausência de qualquer realidade externa — ver ou
ouvir coisas que não existem”.
Sacks conhece bem estes aspectos e põe abaixo certos
preconceitos sobre o tema, desmistifica outros e discorre
com grande clareza sobre a riqueza da percepção e das
faculdades imaginativas humanas. Ele está seguro de que,
nas alucinações, as imagens evocadas se projetam no
espaço externo e possuem as mesmas (ou quase) qualidades
das coisas percebidas pelos sentidos. Ele salienta que
“Muitas alucinações parecem ter a criatividade da
imaginação, dos sonhos ou da fantasia – ou os vívidos
detalhes e a externalidade da percepção. Mas uma
alucinação não é nenhuma dessas coisas, embora possa ter
alguns mecanismos neurofisiológicos em comum com cada
uma delas.”
Os relatos de alucinações atravessam a história
humana, mas nos tempos pré-modernos elas eram
explicadas através da linguagem simbólica das experiências
religiosas de transe, de magia, profecias, ou por intermédio
da percepção meta-empírica de ordem mística ou divina.
Somente no fim do século 18 e início do seguinte é que foi
possível traçar uma etiologia e uma fenomenologia da
manifestação alucinatória nas áreas da Neurociência, da
Psicologia e da Psiquiatria. Um ponto interessante de sua
obra (um tratado sobre o assunto!) é a relação que ele
apresenta entre alucinações e religião. Pelo seu parecer,
muitas dessas percepções podem adquirir uma
interpretação divina, como a visão de anjos, demônios,
pessoas que já se foram – ou a visão de si mesmo, como
uma experiência extracorpórea enquanto se está entre a

165
vida e a morte, acreditando que seu espírito “saiu do
corpo”.
Para concluir o tópico sobre alucinação, Sacks coloca
várias interrogações: “As alucinações sempre tiveram um
lugar importante em nossa vida mental e nossa cultura.
Devemos até nos perguntar em que medida experiências
alucinatórias ensejaram nossa arte, nosso folclore e até
mesmo nossa religião. Será que os padrões geométricos
vistos na enxaqueca e em outros distúrbios prefiguram os
temas da arte aborígine? As alucinações liliputianas (que
não são raras) teriam originado os gnomos, diabretes,
leprechauns e fadas do folclore? As terríveis alucinações do
pesadelo de ser cavalgado e sufocado por uma presença
maligna terão algum papel na geração dos nossos conceitos
de demônios, bruxas e alienígenas malignos? As convulsões
“extáticas”, como as de Dostoiévski, contribuíram de algum
modo para gerar o nosso senso do divino? As experiências
extracorpóreas legitimam a ideia de que uma pessoa pode
sair do corpo? A insubstancialidade das alucinações
encoraja a crença em fantasmas e espíritos? Por que toda
cultura conhecida procurou e encontrou drogas
alucinógenas e as usou, antes de tudo, com propósitos
sacramentais? O tempo só fez ampliar e aprofundar nossa
compreensão da grande importância cultural do que
poderia, a princípio, parecer pouco mais do que uma
peculiaridade neurológica.”
É relevante ressaltar que, de certa forma, a fantasia e o
imaginário têm muita importância para a construção do
mundo, já que apenas uma ínfima parte do nosso sistema
neurocerebral recebe os estímulos do mundo externo, ao
passo que o restante opera internamente e com certa
independência; é aí exatamente onde fermentam os sonhos,

166
as ideias, os desejos, as imagens e as fantasias, que se
infiltram e reconstroem nossa visão e concepção de mundo.
O problema está em como organizamos este material.
Mariz relata que “As aparições desse final de milênio
têm fascinado fiéis, a mídia e os pesquisadores pelo caráter
apocalíptico de muitas das mensagens anunciadas pela
Virgem Maria. Na maior parte dos relatos de aparições, há
previsões de castigos e catástrofes que podiam ser
identificadas como características de “um fim de era”.
Catástrofes, Besta Fera e Maria desempenham um papel
muito importante nas previsões para os fins dos tempos
anunciadas desde o início do cristianismo.” Essa questão
apocalíptica, já vista nos aspectos históricos e culturais,
voltará ser discutida nos próximos capítulos, ampliando a
compreensão.
As alucinações podem acontecer quando um
elemento interno dispara um padrão de atividade
equivalente ao que é normalmente gerado quando um
órgão do sentido responde a um evento publicamente
observável. Estudos revelam que cerca de 4% das pessoas
em uma população normal possuem uma imaginação
muito intensa e mais dificuldade em julgar as diferenças
entre eventos reais e imaginários. Alguns exemplos típicos
de personalidades propensas às fantasias são os grandes
visionários do passado compelidos por vozes ou visões
alucinatórias, como Sócrates, Joana D'Arc, Santa Terezinha
e Swedenborg; mas se encaixam nessa definição também os
que relatam abduções em naves alienígenas, os que ouvem
vozes e os “médiuns visuais” que veem espíritos em
profusão, por toda parte e a todo momento. As alucinações
aproveitam o material já arquivado na memória arquetípica

167
do indivíduo, que é interpretado segundo seu sistema de
crenças e valores e em seu universo cultural.
Pierre Janet, filósofo e psicólogo, defendia a existência
de uma “segunda consciência” subjacente à corrente
normal de pensamentos. Quando a personalidade humana
perde sua coesão, se liquefaz, uma parcela da consciência
separa-se do conjunto e dá origem a diversos automatismos
motores e sensoriais, isto é, fenômenos tão distintos como
anestesias, catalepsias, escrita automática, sonambulismo,
alucinações e possessões seriam formas de “desagregação
psíquica”, manifestações de uma corrente secundária (Janet
usa “conservadora”) de pensamentos, vontades e imagens
que se sobrepõe ao campo habitual de consciência.37
As alucinações coletivas podem ser induzidas pelo
poder da sugestão? Sim. Ocorrem geralmente em situações
de exaltação emotiva, especialmente entre devotos
religiosos, mas não necessariamente. A expectativa e
esperança de ser testemunha de um milagre, combinadas
com longas horas de olhar fixo num objeto ou lugar, torna
certas pessoas suscetíveis a ver coisas tais como uma
imagem que chora ou que se move, ou a aparição da
Virgem Maria. Relatos de guerra dão conta de soldados que,
mortos em combate, “ressurgiram” no campo de batalha
para avisar os companheiros sobre ciladas e ataques
inimigos, ou simplesmente para “se despedir”. Sacks
acrescenta que as alucinações podem ser cheias de
surpresas, e são frequentemente mais detalhadas do que as
imagens mentais. Muitos casos envolvendo a morte de
37
JANET, P. L’automatisme Psychologique: Essai de psychologie
expérimentale sur les forme inférieures de l’activité humaine. Centre
National de la Recherche Scientifique. Paris. 1973. In Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, vol. 11:2,
jun/2008, p. 310-314. (Trad. Alain François).

168
entes queridos dão conta de que os familiares, por diversas
vezes e por muito tempo (meses ou anos), “conversaram”
longamente com seus cônjuges, filhos, pais e parentes
falecidos, segundo Sacks um claro sintoma de alucinação
visual e auditiva.
Já o historiador e antropólogo Michel de Certeau
sugere uma análise da mística a partir de componentes
psicanalíticos sublimatórios e de deslocamentos libidinais,
expondo sua visão sobre as alucinações e visões coletivas:
“As referências englobantes e os discursos dogmáticos que
vêm da tradição, aparecem como particularidades. Estão na
própria experiência dos crentes, elementos, entre outros,
num quadro onde tudo fala de uma unidade desaparecida.
O que era totalizante não é mais senão uma parte nesta
paisagem em desordem que requer um outro princípio de
coerência. Os critérios de cada comunidade crente se
encontram, por isso, relativizados [...].” Seu comentário
final pede atenção: “Desta maneira, massas populares sem
âncoras e como que errantes através dos enquadramentos
sociais e simbólicos, são entregues a alucinações feiticeiras
que esta ausência cria. O ceticismo que se estende atesta a
mesma ausência, mas nos meios cultivados. Feitiçaria e
ceticismo, com efeito, esboçam o vazio que uma razão
universal ou uma Lei Natural não preenchem.”
Ele não deixa escapar a conclusão de que as
alucinações têm desempenhado um importante papel na
vida das pessoas e na história das artes, da religião e da
cultura, de um modo geral, e que nossa ingênua concepção
da realidade, segundo a qual nós percebemos o mundo de
forma praticamente direta por meio de nossos sentidos,
parece estar totalmente equivocada. O contínuo avanço das
pesquisas das neurociências contribui enormemente para

169
compreendermos nossa estrutura mental, mas isso só será
possível quando e se admitirmos que os deuses não sejam
astronautas ou entidades sutis que só se revelam a eleitos,
vindos do puro éter. São apenas projeções de um drama
interior encenado desde as origens em cada um de nós,
cujos medos e esperanças se recortam à contraluz da
película invisível da mente.
Se de um lado James critica a postura arredia dos
cientistas em relação à pesquisa dos fenômenos
considerados “absurdos e inabordáveis”, por outro, censura
aqueles que, vivenciando tais fenômenos, adotam uma
atitude de ingênua e irrefletida aceitação. O resultado,
lamenta, é a total falta de colaboração entre aqueles que
presenciam os eventos e os mais competentes para discuti-
los.

Crescer é preciso

Nossa ignorância sobre nossa ignorância retardou por


tempo demais o desenvolvimento das ciências. Durante
séculos, na Europa, as práticas médicas foram relegadas ao
limbo, substituídas por orações, horóscopos, poções,
simpatias e curas milagrosas. Uma era negra de
obscurantismo e retrocesso que ainda deixa sobras no
presente. Nem precisamos retroceder tanto, em pleno
século 20 as amarguras e os sofrimentos foram causados
por erros e ilusões humanas de forma hedionda. E
continuam causando! A consciência cognitiva é de extrema
importância antropológica, social, cultural e histórica, é o
único meio para não mais nos submetermos aos jogos de
ideias e de mentiras, só nos fortalecendo de conhecimento
e lucidez. O desejo de explicações é tão grande que
170
sempre se encontra alguma resposta para os fenômenos
menos compreensíveis. É mais cômodo aceitar que Júpiter
lance raios que se confessar ignorante em relação às causas
verdadeiras.
A mente infantilizada, imatura, gira em torno de si
mesma, o que pressupõe um empecilho para o
aprendizado. O encadeamento se forma: Sem
conhecimento, não há autonomia; sem autonomia, não há
identidade e sem identidade não há liberdade. O círculo
então se fecha: onde não há o livre pensar não há o saber.
O conhecimento do conhecimento, que integra o
conhecedor em seu saber, precisa ser um princípio
permanente, como oxigênio e energia vital do intelecto.
Existem totais condições bioantropológicas – as
aptidões da mente, aspectos socioculturais – a cultura
aberta, que permite diálogos, e variáveis noológicas – as
teorias abertas, que oferecem interrogações fundamentais
sobre o mundo, a vida, o homem e sobre o próprio
conhecimento. Morin alerta que precisamos compreender
que, na busca da verdade, as atividades auto-observadoras
não podem estar desgarradas das observadoras, as
autocríticas das críticas, os processos reflexivos dos de
objetivação.
O maior inconveniente das opiniões assentadas em
explicações errôneas é que, admitindo-as como definitivas,
não procuramos outras possibilidades. Crer que se conhece
a razão das coisas é uma forma segura de não as descobrir.
Olavo de Carvalho não alivia: “O que é uma imaginação
que não intelige o que concebe, um sentimento que não se
enxerga a si mesmo, uma razão que raciocina sem
compreender, uma fé que aposta às cegas, sem a visão
clara dos motivos de crer? São cacos de humanidade,

171
jogados num porão escuro onde cegos tateiam em busca
de vestígios de si mesmos. Toda ‘cultura’ que se construa
em cima disso não será jamais senão um monumento à
miséria humana, um macabro sacrifício diante dos ídolos.”
Fernando Pessoa escreveu em um de seus poemas
que pensar incomoda tanto como andar numa chuva de
vento. 38 Nas águas dessa metáfora, pensar incomoda a
ponto de doer; quanto mais nos açoitam a face os ventos
cortantes e os pingos lancinantes, mais nos escondemos ao
primeiro abrigo seguro e lá ficamos à espera de alguém que
pense por nós. Não, pensar não dói, é para isso que serve o
cérebro, é um privilégio exercer aquilo que nos diferencia
dos seres sencientes, capitanear nossas escolhas com
liberdade e confiança.
Talvez devêssemos refletir por um instante sobre as
assustadoras antecipações de Orwell no antológico “1984”,
considerada sua magnum opus. Se algumas de suas
“previsões” pudessem ter um verniz delirante à época
(1948), hoje não há dúvida de que elas integraram-se ao
cotidiano, tornando-se matéria viva do presente. A obra
pode ser vista como uma reflexão não ficcional sobre a
essência do poder, uma distopia projetada num futuro não
mais fictício: ausência de liberdade e privacidade, onde o
ato de pensar em si já é um sacrilégio. O indivíduo está
continuamente monitorado, controlado, algemado, um
marionete, onde quer que esteja, de uma espécie de polícia
do pensamento, ou rede psicopolítica.
A linguagem criada por Orwell – a novilíngua39 – que
unifica o planeta, universalizou-se (redes sociais?), ou seja,

38
Alberto Caieiro/Fernando Pessoa, “O Guardador de Rebanhos”.
39
Um dos muitos neologismos criados pelo autor como duplipensar,
teletelas, crimideia, proprivida, entre outros.

172
é a mesmidade da comunicação, padronizada e
mesmerizada. 40 Esse novo idioma busca estreitar e
gradualmente esvaziar a gama de pensamentos. Se na obra
o passado é continuamente alterado, moldando a história e
a memória conforme as necessidades e os interesses do
Sistema – “Quem controla o passado, controla o futuro;
quem controla o presente, controla o passado”, no mundo
atual a mentira encobre/substitui a verdade reescrevendo o
presente, e qualquer um que discorde do que é imposto é
execrado, posto fora de circulação, ou pior, pode sumir dos
registros como se nunca houvera existido. Vale ainda
mencionar as três regras que ordenam a filosofia do Estado
na obra do ativista contestatário: a liberdade é escravidão,
guerra é paz e a força está na ignorância. Naturalmente, a
intenção do autor é ser bem mais contundente, verdadeiro
e humano do que essa análise simples ousou mostrar, mas
essa filosofia está muito presente nos dias de hoje.
George Orwell, assim como Jean Baudrillard, não é
propriamente um pessimista, mas dotado de uma
(ante)visão mordazmente crítica, o que faz as obras de
ambos matrizes ensaísticas visionárias da maior
importância. A obra “1984” prognostica um quadro
perturbadoramente chocante da sociedade contemporânea,
confirmando que o grande mérito da ficção científica não é
prever o futuro, mas apresentá-lo de modo tão horrendo
que todos lutem para que ele não aconteça. Tarde demais,
ele já acontece fora do nosso controle, a menos que a obra
de Orwell se torne um ícone da resistência.

40
Mesmerizado: hipnotizado, enfeitiçado, induzido, magnetizado; método
de indução hipnótica desenvolvida pelo médico alemão Dr. Franz Anton
Mesmer (1734-1815)

173
É a produção de ideias, a inteligência, a capacidade
de abstração e de refletir sobre nossa existência e conhecer
o que nos é desconhecido que nos torna melhores,
perseverantes, independentes e menos indolentes.
Inteligência é expressão integral do ser, o que há de mais
essencialmente humano. Na esfera da crença, presidida
pela lógica mística, as convicções se formam muito
diversamente e a credulidade se alastra descontrolada. A
consciência só se liberta de seu primitivismo quando
ultrapassa a barreira das crendices, das superstições, das
lendas, dos oráculos e dos curandeiros. Vivemos rodeados
de superstições, desde as três batidas na madeira para
“afastar mau-olhado” ao técnico de futebol que não troca a
camisa enquanto seu time seguir vencendo, e muitos outros
rituais inócuos ao longo de uma vida, enquanto funcionar.
O imaginário se encontra latente nos símbolos, e ao menor
sinal de fraqueza de nossa percepção, a alucinação se
torna possível, as emoções nublam as diferenças e as
realidades se confundem. O pensamento de Spinoza é
conclusivo (os itálicos estão por minha conta): “Do que
acabamos de dizer sobre a causa da superstição, segue-se
claramente que todos os homens são, por natureza,
propensos a ela. (...) Segue-se, além disso, que a
superstição deve ser extremamente variada e inconstante,
como são variadas e inconstantes todas as ilusões da alma
humana e as loucuras em que ela se deixa arrastar; e que,
finalmente, só se mantém pela esperança, pelo ódio, pela
ira e pela fraude, já que não tem sua origem na Razão, mas
exclusivamente na Paixão mais poderosa. Daí que, quanto
mais fácil é que os homens sejam vítimas de qualquer tipo
de superstição, tanto mais difícil é conseguir que persistam
na mesma; ainda mais, como o vulgo é sempre igualmente

174
miserável, em parte alguma acha descanso duradouro, e só
o satisfaz o que é novo e ainda não o enganou”. A causa
da superstição, em Spinoza, reside no medo, ou no recuo
ante a verdade, ou recusa da realidade.
Para neutralizar ou mascarar a angústia visceral do
desamparo e da solidão – a mais vasta solidão consciente
jamais imaginada, o homem cria fantasias, sonhos, ilusões
e utopias, levantando contra uma realidade que desvela
sua indigência e seu não lugar na economia do cosmo,
seus medos ontológicos inescrutáveis, inadministráveis
(Bauman), ao contrário dos “racionalizáveis” (Jung). À
construção poética da casa de Bachelard para descrever
nossa alma, com todos os “cômodos” e divisões, Jung usa
das imagens do sótão e do porão para analisar os medos
que habitam essa “casa”: o homem não tem coragem de
descer ao porão/inconsciente para enfrentar os medos
primitivos que teimam em se ocultar pelos cantos e
reentrâncias, preferindo o álibi da solaridade do sótão que,
mesmo abrigando outros medos, permite vê-los e dominá-
los. “Mesmo com um castiçal na mão, o homem vê as
sombras dançarem na muralha negra do porão”.
Ao desejo ontogênico de fazer parte do universo,
Morin afirma que “Ao antropomorfismo, que tende a
carregar de esperança humana as coisas, vem juntar-se,
mais fraca e obscuramente o cosmomorfismo, ou seja, a
tendência para carregar o homem de presença cósmica.”
Eco chama isso estruturas de consolação, tudo aquilo que
contenha apelo imediato de lazer, de espetacular, que o
distancia de suas misérias, horrores e infortúnios. Como o
antropocosmomorfismo não consegue ancorar-se no
mundo real e objetivo, ele migra para o imaginário. O
sujeito, preso à microvisão de si próprio, ainda por cima

175
desfocada, não tem a macrovisão do mundo e,
consequentemente, jamais a cosmovisão. Se não há uma
identidade terrena, como requerer uma cósmica?
Segundo Fromm, o estudo sobre o homem faz
reconhecer que a necessidade de um sistema comum de
orientação e de um objeto de devoção é inerente à
condição humana. O indivíduo é livre para deliberar sobre
qual idealidade seguir: Devotar-se ao culto de uma força
exterior autoritária, ou cultivar a razão e o desenvolvimento
interior. “O que perturba e assusta o homem não são as
coisas, mas suas opiniões e fantasias sobre as coisas”.41 E o
martelo nietzschiano desce forte de novo: “"A invenção de
um ideal é a mentira maior, maldição que oprime a
realidade”. A Pandora ufológica não distribui riquezas e
presentes, mas traz em sua “nave” sonhos, quimeras,
esperanças – consolação dos homens, justamente por sua
carga de ilusão, consolando o que lhes é inconsolável.
Talvez os defensores dos discos voadores anseiem cavalgar
no delírio machadiano 42 que os levarão ao começo de
tudo, à origem da história, e depois, com igual rapidez, ao
futuro, aos tempos vindouros. Sair em busca de suas
origens e depois, alcançar o futuro. Pode haver sonho
maior?
Veículos, civilizações longevas e avançadas, seres
inteligentes, visitas constantes, vários objetivos. É nisto em
que se resume o discurso ufológico, é nisso a que se
apegam cegamente os ufólogos, e ao decompor, medir,
anatomizar, pesar cada elemento da afirmação, o que se
tem é uma folha morta, um balaio furado, sem qualquer

41
Epicteto, in CASSIRER: Ensaio sobre o Homem.
42
Referência ao capítulo “O Delírio” da obra Memórias Póstumas de Brás
Cubas.

176
referendo científico, em fase terminal de um anunciado
processo falimentar. O que se verifica é que em toda a sua
história o homem tem centrado e concentrado seus
pensamentos nas projeções de futuro, apoiando-se nos
recursos intelectivos de que dispõe. A cada tempo, esses
meios são aplicados conforme suas experiências
individuais e coletivas. A Ufologia – o “disco voador”, em
nosso tempo, é um destes instrumentos, e é isso o que este
livro endossa.
O medo de “não viver até o futuro chegar” gera
expectativas e ansiedades profundas. A memória do já
vivido, dos desejos realizados confunde-se com a do ainda
por viver e dos desejos ainda por realizar, ou, pior, que
talvez não se realizem nunca. Ao comprimir passado e
futuro, tudo se torna uma coisa só. Se o pretérito é história,
o futuro só poderá sê-lo se for um “futuro contemporâneo”.
No imaginário dos veículos de civilizações avançadas e
inteligentes que nos visitam reside sua última esperança,
melancólica e utópica esperança. Fugir deste “velho
mundo” rumo a um mundo imaginário perfeito funciona
como lenitivo, uma compensação a realizar sonhos e
aspirações. Devemos lembrar que o fenômeno contém um
verniz tecno-místico, ou, se puder traduzir de outra forma,
“máquinas que transcendem”, “tudo podem” inclusive,
principalmente, manipular o tempo cósmico – longevidade,
imortalidade, infinitude.
Rapidamente, importa destacar o papel que as
instituições militares desempenham para estimular o
imaginário alienígena ao redor do mundo, iniciado no
período do pós-guerra e em vigor até hoje. Grupos civis e
setores militares de pesquisa limitam-se a compilar relatos
de pouca ou nenhuma relevância, fotos e vídeos de

177
procedência e qualidade duvidosas e a ouvir supostos
contatados, sem nunca terem chegado a qualquer resultado
que justificasse o investimento. Nenhum depoimento é
fonte segura de informação, sob qualquer circunstância,
pois a fragilidade implícita das fontes sempre foi
considerada universal e irreparável. Adotar cautela e
verificar todas as variáveis é conduta normativa em
qualquer procedimento de investigação, totalmente
desconsiderada na “pesquisa ufológica”. O resultado, claro,
é sempre inconclusivo, por causa da suspeição dos dados,
displicência, negligência e imperícia dos pesquisadores,
geralmente inaptos para a tarefa ou tendenciosos em
ratificar suas convicções.
Por mais que as autoridades reafirmem não ter
nenhum “segredo secretíssimo” sobre o assunto – e não
têm mesmo –, elas adoram fingir que sim porque essa mise
en scéne fertiliza o jogo de poder e mantém o status quo da
instituição. Mas não é o que pensam os ufólogos e o
grande público, o que ajuda a fortalecer e aumentar ainda
mais o imaginário extraterrestre, ajudado pela mídia
sensacionalista. É aqui que entram em jogo interesses de
todo tipo, onde se definem as estratégias de divulgação,
retransmitindo os interesses, sentimentos e expectativas da
sociedade, conduzindo-a cultural e ideologicamente,
conforme prega Umberto Eco, para quem “o homem morre
quando o veículo de massa triunfa”. Ou, como diz Wolf,
“Se uma pessoa é apanhada pela propaganda, pode ser
controlada, manipulada, levada a agir”. E complemento: e
levada a não pensar. O mecanismo da mass media age,
dentro da teoria hipodérmica, como uma agulha fina que
injeta seu conteúdo na mente dos receptores sem qualquer
obstáculo, direto na veia. Relembro a influência do rádio

178
no caso da transmissão de “Guerra dos Mundos”, que
pegou de surpresa uma audiência fragilizada e indefesa
ante a ameaça da guerra, a real, suscetível, portanto, a
ações e reações que de fato aconteceram.
Morin argumenta que o padrão se beneficia do
sucesso passado e o original é a garantia de novo sucesso,
mas o que já é conhecido corre o risco de esgotar, de
fatigar, enquanto o novo corre o risco de não agradar. É por
isso que se busca uma vedete 43 (união do arquétipo ao
individual), o melhor “anti-risco” da cultura de massa: dar
o que o público quer. Para Ortega y Gasset, “[...] a massa é
tudo que não avalia a si próprio – nem no bem nem no mal
– mediante razões especiais, mas se sente ‘como toda a
gente’ e, todavia, não se aflige por isso, antes se sente à
vontade ao reconhecer-se idêntico aos outros.” (in Wolf)
Essa cultura de massa de baixa qualidade é
duramente criticada por Noam Chomsky, Bourdieu e
Morin, entre muitos outros, que acusam os meios de
comunicação de estarem cada vez mais subservientes a
uma diretriz inimiga da palavra, da verdade e dos
significados reais da vida. Em outras palavras, que ela é
estupidificante. Eles consideram a cultura de massa uma
mercadoria cultural ordinária, atuando na superfície da
atualidade como “barbitúricos ou mistificação deliberada”,
desviando a atenção dos verdadeiros problemas.
“Cultura” é um complexo de normas, símbolos e
imagens que estruturam os instintos e orientam as emoções
do indivíduo, fornecendo pontos de apoio imaginários à
vida prática e pontos de apoio práticos à vida imaginária.
O indivíduo é, para os veículos de comunicação, mero

43
O termo, usado por Morin, vem do francês vedete, derivado do latim
vedetta – observar, ver, vigiar.

179
“vetor de consumo”, dotado de uma mentalidade mediana
e notórias dificuldades de apreensão e entendimento a
questões minimamente complexas. Mas é preciso também
que as situações imaginárias correspondam a interesses
profundos, que tenham relação direta com necessidades e
aspirações do sujeito. Nessa relação de projeção-
identificação, o imaginário secreta mitos diretivos que
podem gerar verdadeiros modelos culturais. A informação
é então padronizada, aclimatada e simplificada para ser
assimilada e consumida em seus diversos segmentos,
classes e conteúdos. Chomsky aperta o garrote ao afirmar
que existe uma divisão bastante clara entre a opinião
popular e a da elite, e a mídia reflete preferencialmente a
desta última.
Que a mídia manipula, direciona e subverte a
informação todo mundo sabe, ninguém duvida e ninguém
desmente. É o “Quarto Poder”, que elege governantes e
derruba governos, planta mentiras e enterra verdades, gera
lendas e crenças. Para um rebanho desordenado – a massa
baudrillardiana – aplicam-se filtros na fabricação de
consenso para uma lavagem cerebral sob liberdade. A ideia
não é nova, como se lê nesta declaração do experiente
jornalista Walter Lippmann, em 1920: “A manipulação
consciente e inteligente das opiniões e hábitos organizados
das massas é um aspecto crucial de um sistema
democrático. Cabe às “minorias inteligentes” executar essa
manipulação das atitudes e opiniões das massas.”44
A cultura de massa, ou a cultura popular, tem no
entretenimento seu principal produto, de maneira a aliciar,
seduzir e “educar” a audiência através da

44
CHOMSKY, Noam. “Para entender o Poder” Bertrand Brasil. Rio de
Janeiro. 2005, p. 34

180
espetacularização do cotidiano (o extremista do telejornal,
um ato de racismo, o aparecimento de um disco voador,
(por exemplo), formando padrões hegemônicos de
comportamento, levantando um véu de alienação e
levando-a a identificar-se com as representações sociais ou
ideológicas nela presentes. Para alguns estudiosos, nesta
delirante simbiose homem-máquina (tecnologia, imagem,
virtualidade), nos tornamos precursores de uma sociedade
tautista (tautológica e autista) num solilóquio coletivo. O
espetáculo é um dos agentes organizadores da vida
cotidiana em campos tão variados como política, esporte,
arte, economia, cultura, moda e, com muita ênfase hoje,
violência, erotismo e terrorismo. Nessa perspectiva, o
“disco voador” tem presença assegurada na cultura
midiática.
No passado, o papel (de)formador de opinião a
respeito destes assuntos marginais à objetividade do
exercício jornalístico já foi mais atuante, mas parece ter
perdido fôlego em anos recentes. Tudo o que é estranho,
singular, diferente – o paranormal, a metafísica, o
sobrenatural, a mediunidade não é levado a sério e com a
devida civilidade, recebendo um tratamento de deboche e
ironia, visto como charlatanismo ou de figurino exótico ao
gosto popular pelo extraordinário, como “realidade”, um
produto do discurso, da ficção simbólica. Salvo raras
exceções, sentimos isso na pele, atestando que a ótica dada
a qualquer tema desse naipe partia do pressuposto de que
se tratava sempre de uma fantasia de birutas ou ardil de
espertalhões, daí a cobertura noticiosa sob um manto
anedótico ou de uma mentira. Este comportamento parece
ter se esgotado pelo cansaço e/ou pelo surgimento de
temas mais chamativos e rentáveis, ainda que banais.

181
Bauman constata que essa sociedade líquida, pós-
moderna, “é orientada pela sedução, por necessidades
sempre crescentes e por quereres voláteis.” Quando uma
sociedade atribui à imagem o certificado de sua existência,
ela automaticamente transforma cada sujeito em
espetáculos individuais autopromotores, isto é, não apenas
colecionamos imagens, mas somos devorados por elas:
iconofagia. Para dor de Descartes, a regra agora é: clico,
logo existo. Ser-objeto, um rosto a ser visto pelo outro.
Contrassenso claro: se eu já não vejo rosto algum, quem há
de ver o meu? A noção de “espetáculo midiático” virou
meio alienante de manipulação ideológica, que nutre uma
cultura de lazer e de entretenimento fácil visando a
docilização do público, funcionando como um duplo do
mundo operando com regras próprias.

“ A verdadeira imagem do passado perpassa,


veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem
que relampeja irreversivelmente, no momento em
que é reconhecido. "A verdade nunca nos escapará"
– essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto
exato em que o historicismo se separa do
materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada
imagem do passado que se dirige ao presente, sem
que esse presente se sinta visado por ela. Quando a
notícia fresca sai da boca do historiógrafo, no
mesmo instante cai no vazio.

Walter Benjamin ”
182
Close Encounters of the Third Kind. Divulgação.
Columbia Pictures. 1978.
183
184
Ficção Científica e a Linguagem Ufológica

Abre tua mente ao que te revelo


e retém bem o que digo,
pois não é ciência ouvir
sem reter o que se escuta.

Dante

185
186
Não paira nenhuma dúvida de que a Ufologia é um
sorvedouro de dados da ficção científica num processo
mimético, uma transfusão incessante de ideias e conceitos,
e veremos como e principalmente porque isso acontece. É
uma história que precisa de uma outra história para se fazer
valer, não tem vida própria, se inscreve e se (d)escreve por
vias alheias, enfim, por palavras emprestadas perdidas.
Devo registrar neste momento que o mimetismo45 é
uma das características fundamentais do ser humano, como
um conjunto de códigos internalizados, predefinidos da sua
base comportamental, referida de Aristóteles a René Girard,
passando, subjetivamente, pelos grandes literatos da
história. Não há nada de novo, portanto, que a Ufologia
atue dentro desse princípio imitativo.
Para o sociólogo Jean-Bruno Renard, o fenômeno
dos discos voadores é o ponto culminante da simbiose
entre os temas de ficção científica e as crenças
pararreligiosas. Nesse sentido, podemos dizer que a ficção
científica é a sua porta de entrada, a religião, a de saída.
Diversos autores adotam o mesmo discurso; eis uma
pequena amostra: segundo Grünschloß: “Sem dúvida, um

45
Do grego mimesis, imitar, reproduzir, copiar; numa dimensão ampliada,
pode atingir o auge de estar no lugar do modelo fundante; de certo
modo, é uma maneira de preservar a matriz, revalorizada.

187
importante atrativo das crenças em UFOs é a sua
capacidade de sintetizar elementos de tradições esotéricas,
espirituais, teosóficas e cristãs, para reconciliá-las com a
ciência, a tecnologia espacial e a cosmologia moderna.
Especialmente, as tradições de pessoas "numinosas" (por ex.
os chamados "mestres ascensos" da teosofia, ou as
representações esotéricas de Jesus Cristo) aparecem
frequentemente no espectro dos movimentos de UFOS e
suas publicações com um padrão consistente de funções.”
Saliba46, por sua vez, declara: “Muitos aspectos das
mitologias de UFOS (antropogênese e evolução) parecem
combinar "a procura religiosa por respostas absolutas com
a certeza da objetividade científica", e assim, tendem a
parecer como mitos secularizados ou científicos”. Já para
Ernst Benz47, “As culturas e as sociedades ocidentais estão
prontas para as reinterpretações ufológicas da religião, pois
a crença em alienígenas, que teriam "inspirado grandes
conquistas neste planeta no passado, e que serão, como se
alega, os futuros salvadores da humanidade", é sempre
afirmada e sugerida como uma normal e óbvia constituinte
de nossa moderna e científica visão de mundo”.
Desde já é importante ressaltar que a ficção
científica não pode e não deve ser estereotipada como
mera modalidade de entretenimento, literatura menor ou
gênero de alienação, muito menos ser olhada
pejorativamente como cultura de massa, marginal e
escapista. Seu valor para a construção social
contemporânea não pode ser ignorado. Ela se move por
um fluxo de provocações, reflexões, revelações e verdades,

46
John A. Saliba, Religious Dimensions of UFO Phenomena. The Gods have
Landed. Albany, 1995, p. 15-64.
47
Ernst Benz, Newe Religionen. Sttutgart, 1971, p.124.

188
instigadora por vocação. Os escritores de ficção científica
talvez sejam aqueles que melhor compreendam a
palpitação do mundo e, em certo sentido, sintam a
ausência do ser no humano e a expressem em suas obras
nem sempre com sutileza.
Ficção é oriunda do latim fictus, fictionis –
fingimento, criação, fantasia, invenção. Não se pode
chamar de marginal ou subliteratura um gênero que integra
nomes da envergadura de Jules Verne e H. G. Wells,
considerados os “fundadores” da ficção científica, e ainda
Tsiolkovsky, Arthur C. Clarke, Edgar Allan Poe, Philip K.
Dick, Robert Heinlein, Asimov, Bradbury, Doris Lessing,
Tarkovski, Arthur C. Doyle, H. P. Lovecraft, Stanislaw Lem,
só para citar alguns dos mais conhecidos. Para alguns
estudiosos, Frankenstein, de Mary Shelley, de 1818, seria a
primeira obra de ficção científica, embora não tenha
relação com a linha espacial/extraterrestre/tecnologia, que
predomina no ramo. No início dos anos 70, o escritor J. G.
Ballard acreditava que a ficção científica representava a
principal tradição literária do século, seguramente a mais
antiga, uma resposta imaginativa à ciência e à tecnologia
que segue uma linha ininterrupta, perpassando toda uma
geração de grandes escritores.
O termo “ficção científica” pode parecer um
oximoro – uma contradição interna, pretendendo que a sua
construção lógica de contraposição e diferenças integra
procedimentos de natureza totalmente diversa: o ficcional e
o científico. Não é correto, pois ela opera essencialmente
com metáforas mediadoras entre o sujeito e o mundo, sem
os rigores da ciência, e é curioso observar que, por outro
lado, é a ciência que está atenta ao movimento ficcional,
com os cientistas afirmando estenderem seu horizonte

189
cultural às séries de televisão, às novidades
cinematográficas e ao universo dos videogames.
A Dra. Ieda Tucherman, da Escola de Comunicação
da UFRJ, mostra otimismo com relação ao olhar que se
deita hoje sobre a ficção, entendendo que isso é bastante
sintomático: “Além disto, as narrativas de ficção científica
oferecem aos críticos da cultura outras inspirações,
especialmente o questionamento das fronteiras entre a
subjetividade, a tecnociência e as possibilidades de
experiências espaço-temporais, assim como também
importantes antecipações sobre as questões que hoje
precisamos enfrentar, já que nosso ambiente é efetivamente
dominado pela técnica que é, ao mesmo tempo, a
condição de possibilidade do nosso presente e o agente da
passagem do nosso ontem ao nosso amanhã.”
Antes de chegarmos ao âmago da discussão, é
indispensável conhecer a gramática ficcional e apreender a
sua aparente complexidade. Aparente porque, ao tomar
contato com sua forma de agir, de interpretar o mundo e
compreender o homem, veremos que ela produz um
choque de consciência que torna essa interpretação e essa
compreensão bem mais digerível do que se supunha. A
ficção científica é uma narrativa que visualiza as fronteiras
entre subjetividade, tecnociência e espaço-tempo como
estratégia de interrogar o humano. Ao fazer isso, percebe,
com alguma surpresa, que a resposta já vem embutida na
pergunta.
O eclético Umberto Eco entende que a ficção, de
um modo geral, oferece uma realidade que nem a própria
realidade concreta é capaz de suplantar, onde o universo
da narrativa é o único no qual podemos estar totalmente
seguros de uma coisa e que oferece uma ideia forte de

190
verdade. Existe um mundo real onde tudo acontece, de
Hiroshima a penicilina, do Hubble ao Ebola, e existe a
estrada da ficção, na qual se pode trafegar com velocidade
acreditando em tudo, qualquer coisa, elaborando qualquer
enredo, por exemplo, que as crônicas de Nárnia narram as
peripécias prodigiosas de Harry Potter, o senhor dos anéis,
contra os sete guerreiros imperiais do Templo do Dragão
Escarlate, na floresta encantada da Cidade Sagrada das
Esmeraldas. Ao mergulhar no contexto ficcional levando a
sério um mundo possível, tudo será possível. “É seguindo
as geografias imaginárias que construímos o nosso mundo:
o resto é apenas confirmação”, escreve Alberto Manguel.48
Em sua rica historiografia sobre terras e lugares
lendários (que poderia se estender a fatos e personagens
com o mesmo requinte de detalhes), Umberto Eco não só
revela a capacidade humana para criar mundos
imaginários como também por que o faz. Os muitos
continentes perdidos e terras míticas mostram uma
característica comum: ou se originando de lendas
antiquíssimas, que se perdem na noite dos tempos, ou
sendo invenções modernas, todos criaram fluxos de
crenças e realidades ilusórias.
Quando Colombo lançou-se aos mares em busca do
novo mundo, ele sabia o que iria encontrar por conhecer
os bestiários medievais, mas não pôde esconder alguma
decepção ao constatar que a realidade diferia daquela que
ele havia lido: “Hoje vimos três sereias aproximarem-se do
costado da embarcação, mas não tão belas como as
descrevem”. As sereias vistas eram, na verdade, manatins,
um tipo de peixe-boi que vive na costa do Caribe.

48
MANGUEL, Alberto; GUADALUPI, Gianni. “Dicionário de Lugares
Imaginários”. Lisboa. Tinta da China. 2013.

191
Os primeiros contos de ficção não traziam a
preocupação de representar os problemas humanos, eram
apenas entretenimento com doses futuristas, como as
viagens extraordinárias de Verne (Viagem ao Centro da
Terra, Da Terra à Lua) ou os romances científicos de Wells
(A Máquina do Tempo, O Homem Invisível). Passaram-se
alguns anos até os autores perceberem que tinham à mão
uma ferramenta formidável para descrever o mundo através
de uma linguagem metafórica, e a partir daí a sci-fi
encontrou o seu caminho para mostrar o nosso. É
incomparável o seu poder não apenas de expor, mas de
discutir o presente de forma muitas vezes crua e cruel,
como nenhum outro gênero literário tem feito: identidade,
comportamento, ciência, tecnologia, a vida em si mesma.
A chave está em entender o contemporâneo como tônica
narrativa para refletir sobre o futuro. E a ficção é sempre
terrível e amarga porque “verdadeira” em relação à
realidade, por si só intrinsecamente dolorosa e indigesta.
“Quero dizer que se pode, bastante ordinariamente, e
mesmo, em certa medida, bastante razoavelmente, julgar
que a realidade é cruel por natureza, mas também, e por
uma espécie de um último requinte de crueldade,
verdadeiramente real”, diz Rosset.
Em “A Mão Esquerda da Escuridão”, Ursula Le Guin
entende que a ficção científica começa a ser descrita e
mesmo definida como “extrapolação”. Ela deseja que o
autor de ficção científica purifique e interprete o presente
estendendo-o para o futuro. “Se isso continuar, eis o que
acontecerá. Faz-se uma previsão. [...] Isto talvez explique
por que muitas pessoas, que não leem ficção científica, a
descrevam como “escapismo”, mas, quando questionadas
mais a fundo, admitem que não a leem porque é muito

192
deprimente.” 49 O itálico foi aplicado como gancho para o
comentário a seguir. Se a ficção mostra um futuro perfeito,
bem acabado e glorioso, ele transparece como improvável
ou irreal, “bom demais para ser verdade”, logo, deprime
pela sua impossibilidade. Se, contudo, a ficção nos conduz
para um futuro catastrófico, então evitamos pensar nisso
mas já prenunciando laivos depressivos.
Com perspicácia e malícia, Le Guin relata que a
ficção científica não é profética, não versa sobre o futuro,
mas elabora uma espécie de “jogo de mentiras”: “A única
verdade que consigo entender ou expressar define-se,
logicamente, como uma mentira. A ficção científica não
prevê, descreve”, e finaliza: “A ficção científica é, de fato,
uma grande metáfora, ou um procedimento alegórico, em
que interatuam as ‘dominantes’ da contemporaneidade.” E
ela está certa, a ficção é mesmo a mentira que conta a
verdade. A mentira traz à superfície o simbólico,
determinando seu traço constitutivo. Alguns dos temas que
marcam presença na ficção científica estão intimamente
relacionados com as questões do contemporâneo: o fim do
mundo e o fim dos tempos; os paradoxos temporais, a
comunicação e a interação com inteligências totalmente
diferentes; os hibridismos e as mutações genéticas, não por
acaso temas recorrentes nos mais exigentes encontros
filosóficos e científicos, em que as discussões sobre as
articulações entre tecnologia, subjetividade e experiências
possíveis têm convergido para temas e círculos estéticos da
ficção científica, evidenciando a atrição entre factual e
ficcional na atualidade.

49
Aleph, São Paulo, 2008.

193
Se a ficção expõe a verdade pela mentira, Morin
afirma que justamente por ser um espelho antropológico, o
cinema, como veículo de massa da ficção, reflete as
realidades práticas e imaginárias, as necessidades e os
dramas da individualidade humana. À realidade imaginária
do cinema corresponde a realidade imaginária do homem.
Para ele, há uma predominância da fantasia realista e da
ficção sobre o fantástico e o documental, e é a antropologia
do imaginário que nos leva à essência das questões
contemporâneas. Falando das verdades que o cinema nos
conta através das mentiras, o genial Charles Chaplin
expressou-se de forma primorosamente lírica: “Se você
tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades,
teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando. Falei
muitas vezes como palhaço, mas nunca desacreditei da
seriedade da plateia que sorria”.
Dois pronunciamentos distintos, em épocas
distantes, são emblemáticos: “Nós vivemos ficção
científica”, do teórico da comunicação Marshall McLuhan.
Nos anos 60, McLuhan criou a expressão “aldeia global”,
prevendo que as novas tecnologias iriam encurtar
distâncias, tornando o planeta uma comunidade, com todos
se comunicando simultânea e instantaneamente,
permanentemente conectadas. Na outra ponta, Ballard, no
prefácio de Crash50, escreveu: “Nós anexamos o futuro ao
nosso próprio presente”. McLuhan entendia que toda
sociedade é influenciada e conduzida conforme os
indivíduos se comunicam. Nestes tempos de
hipervelocidade da comunicação, não se pode negar a
força da mídia e seu alto valor de penetração e poder de

50
Reino Unido. Jonathan Cape. 1973. Edição recente, Cia. das Letras, 2007.

194
influência. Comprimindo o tempo nos tornamos voláteis,
vorazes e vulneráveis, lembra?
Biagio D’Angelo, doutor em Teoria Literária, acresce
que o termo “extrapolação” é primordial na história da
literatura de ficção científica, mas não é, absolutamente,
sua essência, é o processo da imaginação relacionado a
mundos fictícios a partir das descobertas ou teorias
científicas e culturais, particularmente sobre tentativas de
aproximação científica ao futuro. Para ele, a ficção
científica incorpora, em suas metáforas, as viagens
espaciais, o ideário de uma sociedade alternativa composta
por humanos, humanoides, robôs, alienígenas, androides e
máquinas e, ainda, a biologia, considerada na sua forma
mais futurista e, portanto, possível. Muitos de seus colegas
reconhecem na sci-fi uma “utopia crítica”, que mantém a
chama da discussão das capacidades imaginativas da
literatura. Devo lembrar que Biagio discorre sobre ficção
não apenas no nível da escrita, seu ofício, mas de qualquer
forma de expressão.
É preciso não esquecer que a ficção científica
cresceu em função das mudanças provocadas pela
revolução industrial que modificaram o cotidiano, e, de
forma mais insidiosa, o imaginário das sociedades
modernas. Desde cedo, portanto, exerceu a tarefa de pensar
e “antecipar” – não no sentido de profetizar – os efeitos
sociais, políticos e psicológicos da modernidade técnica e
científica. Jorge Luis Borges entendia a ficção científica
como uma “produção razoada”, obras que transferem o
leitor a mundos, terras e ilhas impossíveis, tornadas
verossímeis pela ficção. É leitura adulta para gente adulta,
dotada de consciência crítica exigente, pois contém
questões filosóficas existenciais de que a humanidade é

195
tecida. A função da ficção científica é ir além dela própria,
como diz Tucherman: “Na verdade, o mundo moderno se
absteve de pensar as mudanças, as metamorfoses, os
hibridismos: estas figuras cuja presença hoje define nossa
atualidade não puderam se fazer ver fora de um gênero
menor que, justamente em razão de sua pouca importância,
permitiu-se pensar os hibridismos e metamorfoses, os
mistérios deste mundo submetido a essa radical e acelerada
transformação.”
Ela considera que a consequência mais evidente foi
a concessão de um caráter profético à ficção científica
ligado ao medo moderno, que o impediu de compreender a
tecnociência, que a um suposto processo divinatório que
lhe seria próprio. A ficção científica é a narrativa da
presença da técnica num mundo que Ballard vê dessa
maneira: “O equilíbrio entre ficção e realidade mudou na
última década. Seus papéis estão invertidos. Somos
dominados pela ficção. O papel do escritor é inventar a
realidade.”
O crítico literário estudioso da ficção científica, o
croata Darko Suvin, observa, neste gênero, uma
proximidade cognitiva que permite, mais do que profetizar
o futuro, compreender a realidade angustiante do tempo
presente, de onde a exaltação das viagens como estruturas
metafóricas da narração cognitiva. Para Suvin, ainda, ao
mesmo tempo em que a ficção aproxima, ela cria uma
espécie de “estranhamento cognitivo”, argumentando que o
movimento de distanciamento é inverso, ou seja, não
pretende alienar o objeto conhecido, mas familiarizar o
desconhecido. Ao fazer esses dois movimentos, o sujeito
produz o distanciamento crítico para uma nova leitura do
real.

196
O primeiro apelo é reenviar o sujeito à hipótese da
verdade. A ficção científica trabalha e articula com a
verdade, não importando sua natureza. A ironia da sci-fi,
brincando com a “verdade das mentiras”, é uma passagem
obrigatória em narrativas que se ocupam de mundos futuros
e, portanto, não autênticos, porque estão “por vir” – não
presentes e não diretamente vinculados à verdade de um
presente ficcionalmente representado. O núcleo cognitivo
que abriga a busca da verdade é análogo a outros textos
paradigmáticos e refinados que, ao indagar sobre a política
da ciência e o saber epistemológico, altera e dinamiza o
nosso entender excessivamente dicotômico da realidade.
Há uma relação clara entre ciência e conhecimento,
e mais ainda com o conhecimento da verdade, todavia,
essa “verdade absoluta” jamais será conhecida porque o
processo de conhecimento é um processo de aproximação
à verdade, enquanto a ciência nada mais é que um
processo de produção do conhecimento. Esse movimento
de produção é, inclusive, sem fim e sem “garantias” de
sucesso, submetido sempre àquilo que lhe é dado
conhecer, deslocando-se, por um processo lógico, às
camadas cada vez mais profundas.
Para Doris Lessing, a mente humana sente
necessidade de se expandir na direção das estrelas, das
galáxias e ao infinito. A literatura, diz ela no prefácio a
“Shikasta”51, seria como o resultado da “eclosão do nada:
quando já não se espera mais nada.” Essa eclosão poderia
ser também uma espécie de renascimento da necessidade
do mito e, ainda, da função das religiões na produção
estético-literária. Lessing sabe que as literaturas sagradas do
mundo, com grande audácia, souberam interpretar o
51
Nova Fronteira, São Paulo, 1979.

197
mundo e o presente dentro de uma lógica nem sempre
plenamente compreensível à mente humana. Os mitos são
ainda atuais, parece entender a escritora, pois oferecem
conclusões “lógicas” ou possivelmente aceitáveis para
viver, reunindo em si os questionamentos sobre a ciência e
a sociedade.
O componente utópico que opera velada ou
desveladamente na ficção liga-se intimamente às narrativas
do apocalipse – a centelha que gera a combustão dos
movimentos milenaristas. Biagio crê na necessidade que
temos da ficção científica não para reforçar nossas utopias,
mas para adentrar no discurso do inner space fiction, nada
mais que uma viagem alegórica ao inner space individual.
É importante aditar que a ficção também pega os
antigos mitos e os reveste de uma exterioridade
tecnológica que os torna aceitáveis para a nossa época. A
ficção, como quer que se expresse, exerce influência no
plano psicológico, e no simbólico e no psíquico. Os
cruzamentos entre ficção científica e discos voadores são
muito mais intensos e profundos do que se imagina.
É fácil observar nestes elementos ficcionais a
alegoria, por meio dos insumos científicos, das questões
básicas sobre a nossa origem e das tentativas humanas de
alcançar uma resposta satisfatória e totalizadora. A
Filosofia está presente de corpo inteiro na estrutura da
ficção, assim como a História e a Mitologia. Discutem-se
nela as relações entre ciência, o pensamento humano e os
questionamentos existenciais.
Rowlands reforça alguns pontos dessa relação de
maneira interessante, colocando de imediato a questão do
confronto com algo essencialmente alienígena, seja robô,
monstro, mutante, enfim, uma ameaça, um invasor – o

198
Outro na linguagem psicanalítica. Ao longo da obra,
Rowlands propõe reflexões sobre identidade, a morte e o
sentido da vida, o bem e o mal e outros assuntos. No seu
entender, os filmes levam discreta vantagem sobre os
livros ao concretizarem, combinando imagens, sons e
movimento, questões complexas advindas do pensamento
abstrato. Através das grandes histórias de ficção científica,
afirma ele, nós encaramos um monstro e descobrimos nos
encarando de volta.

Ufologia científica ou ficção ufológica?

A respeito da influência do cinema de ficção


científica no imaginário da sociedade contemporânea, a
socióloga Alice Fátima apresenta uma via discursiva
bastante semelhante à da literatura do gênero. Seja qual for
o meio de expressão, a ficção desencadeia uma dimensão
imaginária aderente ao mundo real. Nas histórias de ficção
científica, segundo Alice, predomina o desejo primordial da
volta às origens, “Ao anel de moebius do tempo, ao elo
mítico onde o passado remoto e o futuro longínquo se
enredam e se confundem para dar sentido à grande saga da
vida humana.” De novo estamos falando da compressão do
tempo. Ela resume seu estudo na simpática expressão
“saudades do futuro”, título de sua obra, referência ao
poema “O Marinheiro” de Fernando Pessoa. A raiz
etimológica de saudade, do latim solitatem – solidão, falta
de alguém, de algo, de algum lugar, revela em seu
significado a pedra-de-toque do presente estudo.
As metáforas científico-ficcionais das narrativas
fílmicas são vistas como testemunhos dos contextos sociais
e históricos nos quais são produzidas, e sua análise parte
199
dos elementos internos da narrativa, buscando estabelecer
relações com os ambientes nos quais estão inscritas. O
conceito de imaginário social, para Alice, é entendido
como a base na qual cada sociedade elabora a imagem de
si mesma e do universo em que vive. A ideia de passado,
presente e futuro referencia a experiência da construção
social humana na noção de tempo, e o futuro projeta as
inquietações que povoam o imaginário quanto às
transformações da massa social. A ficção reveste-se de um
caráter híbrido por onde transitam, entrecruzam-se e
sobrepõem-se história, ciência, filosofia, tecnologia,
mitologia, religião, imaginário. Não por acaso, as mesmas
matérias utilizadas nesta análise ufológica. É onde também
se desenrola o drama entre encanto e crítica, infinito e
finitude, esperança e desconfiança, utopia e distopia, entre
o racional e o metafísico, o humano e o não humano.
A ficção científica desempenha esse papel
antecipatório, precursora que é de aspectos da ciência e das
tecnologias modernas, da história e da realidade, já que tem
o tempo futuro como temática central e o tempo presente
como metáfora crítica, exatamente pela sua relação com o
contemporâneo. O que difere a História da Ficção, uma vez
que ambas escrevem o presente com as tintas do passado e
a caligrafia do futuro, é que esta última traz a presença do
sublime, aquilo que está fora de nós, que subjaz na
consciência da fragilidade, do desamparo diante da
magnitude do cosmo e que, por isso mesmo, causa
intraduzível deslumbramento, igualmente presente na
religião
Desse modo, vários estudiosos asseguram a
existência de uma relação bastante próxima entre ficção
científica e religião, sugerindo que a sci-fi preenche uma

200
função que antes cabia à religião. A racionalidade e as
“verdades” científicas contribuem largamente para a erosão
da fé e dos dogmas religiosos, mas falham pela
incapacidade em alimentar o encantamento por conterem
implícita a promessa de que o universo pode ser conhecido
e a alteridade, dominada. A ficção, por sua vez, recupera o
temor e encanto religiosos traduzidos no discurso da
ciência, projetando noutro espaço e noutro tempo algumas
das características das narrativas míticas e místicas. Assim,
permite a celebração da ciência e da tecnologia e o
encontro com a alteridade cósmica. Foi nessa linha que a
ficção acabou gerando uma “religião”- a cientologia,
fundada pelo escritor de FC Ron Hubbard, que arrebanhou
adeptos mundo afora.
Na ficção, no mito, nos contos infantis e no
fenômeno Óvni, tempo e espaço são indefinidos, ou seja,
respectivamente, acrônico e atópico – tempo algum e lugar
nenhum ou outro tempo e outro lugar ou qualquer tempo e
qualquer lugar. Esse tempo e esse espaço são centrais na
ficção científica, a partir do momento em que são
reconfigurados, construindo heterotopias e heterocronias,
que são dimensões de cruzamento entre o real e o virtual.
Terra do Nunca. Como tentamos sucintamente mostrar, não
é de se admirar que a linguagem ufológica demonstre laços
consanguíneos com a ficcional, ratificando a distância
infinitesimal entre o real e o imaginário, uma divisão
esfumaçada, embaralhada, indistinguível. O território da
ficção está na fronteira do imaginário com o real. Tão
importante quanto estudar a ficção à luz da antropologia, é
compreender o antropos no contexto da ficção; é perceber
a diferença entre real e imaginário, e perceber a confusão
entre ambos, sua complexidade e complementaridade. No

201
pensamento de Morin, é no núcleo desta posição que está o
fato que caracteriza o homo sapiens e o homo demens –
produtor de fantasmas, mitos, ideologias e magias.
Um cuidadoso exame da ficção científica e de suas
representações revela as inquietações produzidas pelas
sociedades. A ficção científica é inegavelmente um
indicador sociológico e um ensaio antropológico de
enorme importância. Existe um visível e crescente
sentimento de que as coisas “não caminham bem” nesse
mundo pós-moderno, e de que alguém deve resolver isso.
Há um perigoso desequilíbrio em curso, e mais uma
vez o cinema se encarrega de nos mostrar, mesmo que não
queiramos ver. Filmes que apontam para uma sociedade
com seus valores em queda livre rumo à distopia somam-se
às dezenas, surgidos com ênfase a partir dos anos 80: Blade
Runner (1982), O Exterminador do Futuro (84), Gattaca
(97), Cidade das Sombras (98), Os Doze Macacos (2001) e
Eu Sou a Lenda (07). Seria imperdoável não citar três obras
literárias únicas, precursoras do gênero distópico: Admirável
Mundo Novo (Huxley, 1932), 1984 (Orwell, 1949) e
Farenheit 451 (Bradbury, 1953). Isso caracteriza o espírito
de tensão e insegurança que vem gradual e discretamente
se instalando nas sociedades, ou seja, o cinema tem se
mostrado o instrumento mais eficiente e mais incisivo em
replicar nas telas, no irreal das imagens, o real dos nossos
tempos. Para Morin, “O real é banhado, cotejado,
atravessado, arrastado pelo irreal. O irreal é moldado,
determinado, interiorizado pelo real.” Estão criadas, assim,
as cláusulas essenciais para análise do sujeito
contemporâneo e suas estruturas individuais e coletivas
diante destas questões. Enquanto aquele alguém não
aparece, a ficção e o imaginário se encarregam de criar

202
super-heróis, sejam máquinas, robôs, androides, alienígenas
e humanos para resolver as mazelas do mundo e colocar
ordem na casa. Pois não é a ficção a verdade das mentiras?
No estudo comparativo, a Ufologia e a ficção se
apresentam como sistemas especulares de construção: na
ficção, cria-se à vontade, sem limites, ao sabor da mais
fecunda e lisérgica imaginação, sem compromisso com o
mundo real, mas com o imaginado. Na Ufologia, da mesma
forma, cria-se à vontade, nas asas da imaginação mais
delirante porque nada é verificável, tudo se esvai num
turbilhão de incoerências, sem compromisso com realidade
alguma. É manifesto que a Ufologia encontrou na ficção
científica seu reduto, seu ninho, e não seria descabido
afirmar, diante de tanta apropriação, que ela é, em larga
medida, um balão de ensaio da ficção, um campo de
provas, senão a própria ficção, mais “fantástica” que
“científica”. A ficção científica é uma espécie de versão
contemporânea do mito, e o mundo está banhado de
rituais, sonhos e visões não racionais, manifestando novas
formas de sincretismos mágico-afetivos.
Alice relata que muitos autores referem-se à natureza
mítica das narrativas científico-ficcionais. Muniz Sodré, por
exemplo, entende que a ciência e a tecnologia representam
o poder mágico do mito que atravessa as narrativas da
ficção científica, onde tudo é possível no nível da “magia”,
deslocando as relações temporais. Para ele, a ficção seria
mesmo um “mito vivo e contínuo”, uma grande narrativa
não fragmentada, um saber totalizador operando passado e
futuro.
Para Sartre, a imagem mental é uma estrutura
essencial da consciência, uma função psicológica. A
imagem então é um certo tipo de consciência – consciência

203
de alguma coisa. Conforme Max Müller, a mitologia foi
mais intensa nos tempos antigos da história, mas nunca
desapareceu inteiramente. O problema, para ele, é que não
reparamos nela não só porque vivemos à sua própria
sombra, mas porque, principalmente, recuamos ante a luz
meridiana da verdade. “Mitologia, no mais elevado sentido
da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre
o pensamento, e isto em todas as esferas possíveis da
atividade espiritual.” É necessário dizer que Müller se referia
à sua atualidade – 1876, mas não há dúvida que seu
pensamento permanece vivo pouco menos de um século e
meio depois.
De sua parte, Morin acredita ser impossível dissociar
a imagem da presença do mundo no homem e da presença
do homem no mundo. Para ele e Sartre, é um intermediário
recíproco e, ao mesmo tempo, no entanto, “A imagem não
passa dum duplo, dum reflexo, isto é, duma ausência.”
Uma potência psíquica, projetiva, cria um duplo de tudo,
para depois o vir a desenvolver no imaginário. Uma
potência imaginária desdobra tudo numa projeção psíquica.
A imagem detém a qualidade mágica do duplo,
internalizada, nascente, subjetivada. O duplo é detentor da
qualidade psíquica, afetiva da imagem, mas uma qualidade
alienada e mágica. Sartre diz também que “A característica
essencial da imagem mental é um certo modo de o objeto
estar ausente na sua própria presença. E é recíproco: de
estar presente na sua própria ausência”. E arremata: “O
original encarna-se, desce à imagem”. A imagem é uma
presença vivida e uma ausência real, uma presença-
ausência. É como se a necessidade que o homem tem de
lutar contra a erosão do tempo se fixasse, privilegiadamente,
na imagem. De volta a Morin, ele assevera que: “Quanto

204
mais poderosa é a carência subjetiva, tanto mais a imagem
a que ela se fixa tende a projetar-se, a alienar-se, a
objetivar-se, a alucinar-se, a fetichizar-se [...], tanto mais
essa imagem, se bem que aparentemente objetiva, e
exatamente por essa razão, se apresenta rica daquela
carência, a ponto de adquirir um caráter surreal.”
Baudrillard se diferenciava por ter uma visão
privilegiada do mundo das imagens, no sentido de ver os
objetos nas profundezas de sua estrutura para saber o que
há por trás, atravessando sua essência. Como um
colecionador de signos – “esse algo que está no lugar de
outra coisa”, como disse Umberto Eco 52 , Baudrillard
afirmava que a imagem tende a apagar o real diante do
simulacro. Ao querer mostrar tudo, a imagem anula a
representação, algo desaparece, e ele buscava desvendar
esse enigma, fazer a transição entre signos manifestos e
signos latentes, participar desse jogo de esconde-esconde.
Simulacros são experiências, formas, códigos, signos e
objetos sem referência, que se apresentam tão reais como a
própria realidade. O simulacro, segundo David Harvey,
pode ser designado como “Um estado de réplica tão
próxima da perfeição, que a diferença entre o original e a
cópia é quase impossível de ser percebida.” Pode ser
apenas uma simples piada, mas quanto de real não se
esconde no seguinte diálogo: duas jovens mulheres se
encontram no parque, e uma delas traz sua criança ao colo.
– Nossa, que linda a sua filha! Exclama a amiga. – É porque
você ainda não viu a foto dela, responde a orgulhosa mãe.
No entender de Cassirer, todo o conhecimento é um
conhecimento simbólico, assim como a relação do sujeito

52
Eco, Umberto. Tratado Geral de Semiótica. São Paulo: Perspectiva,
1980: 11

205
com o mundo se dá através das “formas simbólicas”. Seu
homo symbolicum é um ser que cria signos e símbolos que
“interpreta” ou constrói a realidade, mesmo que nos
estágios mais primitivos não tenha consciência dessa
produção; a produção sígnica é o sistema captador da
realidade. O que ele chama de forma simbólica é a
linguagem, o mundo mítico-religioso e a arte, que se nos
apresentam como outras tantas formas simbólicas
particulares advindas do espírito, ou da energia espiritual,
que deve ser compreendida como aquilo que o sujeito
efetua espontaneamente, ou seja, não recebe passivamente
as sensações exteriores, mas sim as enlaça com signos
sensíveis significativos. Toda relação do homem com a
“realidade” não é imediata, mas mediada pelas várias
construções simbólicas.
O duplo referido por Morin é a imagem primordial
do homem, arcaica, universal e mítica, anterior à
consciência de si mesmo, reconhecida no reflexo, no
sonho, na alucinação, na representação, na sombra,
amplificada nas crenças, na religião e nos cultos. Essa
imagem mental projeta a fatalidade ou a esperança, a
imortalidade ou a morte.
O sujeito não é um agente passivo, mero receptor
das impressões se conformando a elas, ao contrário, são
elas que são conformadas pelas faculdades humanas.
Através da faculdade de produzir imagens e signos, o
indivíduo é capaz de determinar e fixar o particular na sua
consciência. Os conteúdos sensoriais não são apenas
recebidos pela consciência, são arquitetados e
transformados em conteúdos simbólicos. A linha mestra
de Cassirer é que toda relação do homem com o mundo é
arbitrada por um sistema de signos, que podem ser os

206
mitos, as religiões, a ciência. O signo se confunde com o
significado, ambos se fundem. O signo é, em última
análise, a própria condição da organização interna das
representações. Embora imaginário seja um vasto campo a
explorar no capítulo seguinte, faz-se necessário antecipar
questões pertinentes à ficção científica para que ambos se
completem e se façam entender, o que justifica alongar
sua inserção neste momento.
Ainda sobre a imagem, o estudo de Alice faz um
levantamento interessante, que é a presença da palavra
alien nos títulos dos filmes de ficção científica. Num
universo de 1028 filmes pesquisados, 29 trazem a palavra
alien ou suas variações, sem contar aqueles que não tendo
um título referencial, têm como tema o embate entre
alienígenas e heróis humanos. Ademais, é amplamente
sabido que os filmes do gênero sempre estiveram entre os
campeões de bilheteria em todo o mundo, não apenas
pelos ótimos efeitos visuais e celebridades no elenco, mas
pela “submensagem” que, a maior das vezes, passa direto
pela consciência, indo aninhar-se mansamente no
inconsciente. O que os filmes devem fazer, e o fazem de
modo impecável, é apresentar criaturas que impressionem
com aparências repugnantes e asquerosas, mas que, em
contrapartida, seduzam e encantem um público ávido pela
ação predatória e destruidora com que geralmente estão
predispostos.
Asquerosos, repulsivos, predadores, os aliens atraem
e repelem – o simbólico-diabólico do sagrado, do mito, da
religião e agora do “disco voador”. E o cinema, essa incrível
fábrica de ilusões, conseguiu transformar uma figura
grotesca e disforme em uma criatura adorável, divertida,
que seduziu e comoveu milhões quando retornou ao seu

207
planeta de origem. Trata-se do filme “E.T.”, de Spielberg,
que logrou êxito mundial por encarnar no personagem um
espírito infantil sem dúvida cativante. É profundamente
significativo o fato de choramingar não porque o ET foi
embora, mas por saber, bem lá no fundo da alma, que ele
não existe, que ele frustrou um desejo, um desejo
verdadeiro, como todo desejo é – verdadeiro, mesmo se
inalcançável ou inexistente. Como nosso simpático ET do
filme.
A imagem do feio, do monstruoso, do horrendo, do
disforme é, a seu modo, também sedutora, o que não é
nenhuma novidade. A literatura, o cinema e a arte, de uma
forma geral, produzem permanentemente personagens que
exercem um fascínio irresistível, hipnótico, apesar de não
serem esteticamente belos. Assim, teriam uma razão e uma
dignidade no consenso da criação, o mal se torna belo e
bom. De acordo com Eco, os monstros, amados e temidos,
penetram cada vez mais, com todo o fascínio do horrendo,
na literatura e na pintura das descrições infernais desde a
Idade Média. Esse encantamento pelo “muito outro”,
portanto, nunca foi uma aquisição da cultura
contemporânea, mas atravessa a história humana de uma
ponta à outra.
Vale comentar que, em outros gêneros, é bastante
comum o vilão conquistar o público pela sua inteligência,
beleza, empatia, carisma, astúcia, poder de sedução. De
onde vem essa atração? [Por que o “disco voador” seduz
tanto?] Talvez Morin possa responder ao dizer que “Tudo o
que é imagem tende, em certo sentido, a tornar-se afetivo, e
tudo o que é afetivo tende a tornar-se mágico. E, noutro
sentido, tudo o que é mágico tende a tornar-se afetivo.” Ou,
quem sabe, Alice Fátima: “[...] Uma observação mais

208
cuidadosa revelará que a natureza e a identidade dos
monstros estão mescladas com o contexto histórico-social e
das relações de força em que eles são concebidos e
projetados.” Isso pode ser demonstrado, por exemplo, com
o cinema japonês do pós-guerra, tomado por monstros
bizarros e destrutivos como Godzilla, Gorgo, Gappa, entre
muitos outros, que revelavam medos e tensões
obscuramente escondidas após o indescritível trauma do
holocausto atômico.
Identidade do Outro? Ficção científica e sociedade
são reflexos mútuos, como espelhos frente a frente: as
mesmas imagens se reproduzindo ao infinito. Uma não
escapa à outra. Uma sonha com um mundo desejável, a
outra mostra um mundo (in)desejável. Uma revela o que
não é, a outra se revela como é. Um promove viagens
imaginárias, a outra imagina viagens ideais. Uma demonstra
que o ser é impossível, a outra, o que é impossível ser.
Identidade de quem estamos falando? O Outro é quem?
Quem representa quem? Diversos escritores debruçam-se
na questão da construção imaginária de uma sociedade,
considerando que ela depende, para sua existência, de um
aparato de ficções culturais.

Onde estão todos?

Muito estranhamente, a história ufológica não


registra encontros entre terráqueos e máquinas, robôs,
cyborgs, exoesqueletos, répteis, androides e mutantes, ou
seres extravagantes como os exibidos em seriados como
“Arquivo X”; nenhum ser etéreo, luminescente ou
translúcido como os de Cocoon ou “Prometeus”. Os
encontros nunca acontecem com criaturas como as de
209
“Alien – o 8º Passageiro”, “O Predador”, “Sinais”, “Guerra
dos Mundos”, “O Dia em que a Terra Parou”, “Distrito 9”,
“John Carter Entre dois Mundos” e tantos outros. Ao
contrário, o biótipo predominante é o dos humanoides de
“Contatos Imediatos”, “O Homem que Veio do Céu”,
“Starman” e os da série televisiva “Os Invasores”, uma
seleção com a melhor tipologia humana. Muito estranho,
se considerarmos as diversas civilizações nos visitando há
milhares de anos! Realidade ou ficção? Talvez seja
possível entender melhor a ausência daquela família de
seres marginais depois que “atravessarmos o espelho”
mais à frente.
Uma explicação plausível para a hegemonia do
antropomorfismo pode estar na imediata humanização do
não humano. Plantada pela ficção, viceja na Ufologia. Pela
necessidade de se apegar ao “familiar”, é impossível pensar
o radicalmente Outro. Pensar a alteridade é considerar
graus de diferença, mas nunca a diferença absoluta. Pensar
o totalmente diferente seria sem significado, e dar sentido é
também uma forma de humanizar. Contudo, se a
imaginação está assentada no real, a alteridade também está
assentada nas bordas do imaginável, por isso o biomorfismo
alienígena retratado é fidelíssimo ao perfil humano.
O nível de estranhamento que acompanha as perdas
de referência é explicitada pela ficção através da fusão
homem-máquina com a humanização dos androides. São
muitos os exemplos, desde as séries televisivas como
“Cyber – o homem de seis milhões de dólares”, que ganhou
a versão feminina com “A Mulher Biônica” gerando o par
romântico. No cinema, os replicantes de “Blade Runner”,
embora projetados imunes a emoções, desenvolvem
subjetividades hostis a partir do momento programado de

210
sua morte; em “O Exterminador do Futuro”, o andróide
tenta compreender os sentimentos humanos, o mesmo
acontecendo no primeiro “Alien” da série, onde um
cientista-androide demonstra rompantes de humanidade, e
no último filme, em que a Tenente Ripley é uma andróide
com lembranças de sua vida humana.
Retornando a Morin, o imaginário é um sistema que
se constitui num universo espectral, permitindo a projeção e
a identificação mágica, religiosa ou estética (afetiva). No
curso desse processo funciona certa identificação com
personagens que são estranhos, que proporcionam
experiências incomuns, ainda mais quando as situações
imaginárias correspondem a interesses profundos ou
atendam a aspirações e necessidades individuais.
É curioso observar que essa tipologia estranha foi
perdendo espaço à medida que as ciências astronômicas
foram empurrando as possibilidades de vida cada vez mais
longe do sistema solar. A partir daí, os venusianos, selenitas,
marcianos e jupiterianos deixaram de fazer parte do elenco
imaginário e da própria ficção, dando lugar a robôs e
máquinas inteligentes, aos moldes da tecnologia mais
futurista. Ao mesmo tempo em que discute sutilezas sobre
alteridade, a humanização reverte o estranhamento inicial
facultando a aproximação. Ao antropomorfismo do Outro
se segue a humanização (personificação) que se completa
com a nominação, passando pelos atos e intenções; o alien
adquire identidade, um rosto 53 , um nome, caráter,
afinidades e elevado grau de sentimento e espiritualidade.

53
Rosto, no itálico, é para indicar persuasivamente uma obra admirável
sobre alteridade, mas indo muito além dela: O Rosto de Deus, de Roger
Scruton. Densa e complexa, mas altamente recomendável.

211
Na ficção, essa humanização permite “matar” as máquinas,
os robôs e androides através do seu desligamento.
Foi com o astrônomo e escritor francês Camille
Flammarion que a ideia da existência de seres alienígenas
ganhou força, através das suas histórias de não ficção
publicadas a partir de 1950. Flammarion apresentou os
aliens como seres pacíficos e bem intencionados, visão
humanista que só durou até surgir o romance de Wells em
1898 e seus monstros invasores. Mesmo assim, os contos de
Camille influenciaram gerações e deixaram rastros até
nossos dias.
No início do século 20, as histórias publicadas nas
revistas americanas seguiam o modelo proposto por Edgar
Rice Burroughs, que consistia em povoar outros mundos
com habitantes quase humanos, exibindo belas garotas
apaixonadas pelo herói terrestre. Com o surgimento das
revistas especializadas no gênero, ocorre a fusão dos
paradigmas de Wells e Burroughs. Foi uma época em que
proliferaram os invasores alienígenas monstruosos e
horripilantes. O antigo modelo Wells-Burroughs de seres
híbridos monstro-homem, ou ainda como variações da
fauna terrestre sofreu uma mudança drástica com a
publicação, em 1934, do conto “Uma Odisséia Marciana”,
de Stanley G. Weinbaum, considerado por muitos como
um dos marcos da sci-fi contemporânea. Entrava em cartaz
o alienígena inteligente, inserido em sua biosfera própria,
tão minuciosa, complexa e peculiar quanto a de nosso
mundo.
Chegamos agora a outro ponto nevrálgico nas
relações entre ficção científica e Ufologia. Alguns autores
começaram a se preocupar com os problemas de
comunicação decorrentes dos primeiros contatos entre

212
terráqueos e extraterráqueos. Durante a segunda guerra,
esses encontros foram abordados como relacionamentos
complexos, delicados e instáveis. Em 1945 surge o conto
First Contact, de Murray Leinster, em que uma nave da
Terra encontra outra alienígena. As respectivas tripulações
não trocam informações que possam comprometer a
segurança de seus mundos de origem (!). No alvorecer da
segunda metade do século 20, a ficção científica ganha
destaque ao estabelecer conexões com a temática teológica,
até então pouco explorada pelo gênero. No romance de
Clarke, “O Fim da Infância” (1953), os extraterrestres
invasores, chamados de “Senhores Supremos” por serem
muito mais evoluídos tecnológica e intelectualmente,
tomam uma série de funções transcendentais, como anjos
da guarda que alertam a humanidade com revelações
apocalípticas. Eles não se mostram imediatamente aos
humanos, e governam uma Terra por muito tempo, sem
guerras, fome, desigualdades, misérias, levando a uma
longa e utópica era dourada de felicidade e prosperidade.
Uma nova geração de crianças vem ao mundo, com
poderes supranormais. Não é à toa que se tornou uma obra
antológica no gênero da ficção científica, e, arriscaria dizer,
embrionária e inspiradora para a narrativa ufológica. Como
seria de se imaginar, a Ufologia “adotou” esse enredo e não
são poucos os que acreditam que realmente uma fornada
de bebês híbridos superdotados está por aí. Quanto ao
sugestivo título, cabe ao leitor refletir a respeito. Uma
curiosidade (simples coincidência?): o nome Karellen, do
líder alienígena, tem semelhança fonética com Kar-el (Filho
das estrelas), o “Superman” (1938).
Até mesmo o tabu do relacionamento sexual entre
aliens e sapiens foi demolido em 1952 por Philip José

213
Farmer em “The Lovers”, depois transformada no romance
“Os Amantes do Ano 3050”, no qual um humano, oriundo
de uma teocracia repressiva, se enamora por uma criatura
insetóide cujas formas exteriores são as de uma mulher
muito bonita. Em 1957 acontece o primeiro caso de relação
sexual entre um humano e uma fêmea alienígena na
casuística ufológica: numa noite de insônia, um humilde
lavrador mineiro é levado a bordo de uma nave e induzido
a copular com uma “bela mulher”. 54 Coincidência?
Realidade ou ficção?
Na Ufologia, esse humanizar chega ao paroxismo
de, na esmagadora maioria dos casos, estabelecer uma
comunicação no idioma nativo do contatado, independente
de nacionalidade ou geografia: o chinês e o extraterrestre
conversarão sem dificuldades em mandarim, o paquistanês
em urdu, o neozelandês em maori e por aí afora com o
javanês, armênio, o malaio, quem sabe até falem bem em
sânscrito, aramaico ou alemão medieval. Não surpreende,
se recordarmos um caso brasileiro em que os supostos
alienígenas teriam deixado uma mensagem escrita em...
hebraico! 55 Para explicar essa facilidade linguística, os
ufólogos argumentam que se trata de “alta tecnologia” dos
seres espaciais, que se adaptam aos padrões linguísticos
graças a sofisticados aparelhos de tradução. O dado
fantástico é que mesmo quando a conversa flui por
telepatia, a língua não é obstáculo. Mas a questão da
comunicação entre espécies era frequentemente
considerada pela ficção, que achava soluções através de

54
Caso A.V-B., ocorrido em São Francisco de Sales, Minas Gerais, em
5/10/1957
55
Caso do Embornal, ocorrido em Baependi, Minas Gerais, em maio de
1979. Pesquisas posteriores confirmaram tratar-se de uma farsa.

214
“tradutores universais” bastante rudimentares. Somente no
final da década de 60 é que a ciência astronáutica começou
a pensar seriamente nessa possibilidade. Ficção ou
realidade?
No texto introdutório expusemos superficialmente
sobre a antropomorfização do que é não humano,
comentando ser difícil para os escritores de ficção criar
aliens que não se encaixassem nos padrões terrestres.
Alguns até tentaram: nuvens inteligentes (A Nuvem Negra,
1957), ameboides (Dragon’s Egg, 1980); outros preferiram
não mostrar, como em “Contato”, baseado no livro
homônimo de Carl Sagan, em que uma civilização alhures
se comunica através de uma excepcional inteligência
matemática tridimensional. Tanto na ficção como na
Ufologia, o alienígena, não sendo antropomórfico, será
sempre antropocêntrico. Os autores e criadores desse
gênero procuram demonstrar a necessidade de se tentar
estabelecer uma base intelectual comum que permita a
comunicação interracial, deixando clara a crença na
universalidade do pensamento racional, e, portanto, na
existência de uma similaridade fundamental entre todos os
seres inteligentes.
A antropomorfização do alien, contudo, desce a
conceituações bem mais profundas. Morin, por exemplo, vê
os mitos, sonhos, crenças e ficções como frutos da visão
mágica do mundo, que elaboram o antropomorfismo e o
duplo, afirmando que “O imaginário é a prática espontânea
do espírito que sonha.” Nesse reino do imaginário,
aspirações e temores, desejos e receios modelam as
imagens ordenadoras do espírito através dos sonhos, das
literaturas, dos mitos, das religiões, das crenças, enfim, de
todas as ficções. Na vida real, olhamos apenas o que

215
queremos olhar, nunca o que precisamos ver, ao passo que
a ficção científica está sempre a nos mostrar justamente o
contrário.
É indiscutível que a ficção científica constitui-se em
solo fértil de representações e na formulação de reflexões
sobre a sociedade contemporânea, sua estrutura e as
relações com o saber científico e desenvolvimento
tecnológico, e é o berço das metáforas que refletem o
imaginário social – capacidade criadora do coletivo
anônimo – sobre passado, presente e futuro. As
representações são instrumentos de identificação, de
ordenação e hierarquização da estrutura social, e
identificam o grupo ou meio que as produziu e que as
consome. Como entende Roger Chartier, “A função
simbólica (simbolização ou representação) é definida como
uma função mediadora que informa as diferentes
modalidades de apreensão do real, quer opere por meio dos
signos linguísticos, das figuras mitológicas e da religião, ou
dos conceitos do conhecimento científico.” As funções de
representação, antes, tinham apenas dois enfoques: o de
mostrar a ausência e o de exibir uma presença, ou seja, a
representação relacionava-se com a ação de imaginação.
Faltava a relação entre representante e representado.

Espelho, espelho meu

Confrontar essas criaturas é como ter um espelho


voltado para nosso rosto – ele nos permite ver e entender a
nós mesmos de maneira muito mais clara. Confrontar o
mundo exterior é o mesmo que encarar o mundo interior, o
real termômetro de nossa estabilidade psíquica e mental.
Mesmo com ressalvas, Jung afirmava que a maior vitória da
216
sanidade foi a conquista da racionalidade. Assim como o
mito, a religião e a ficção – e aqui nos permitimos uma
breve digressão, a arte também tem ligações com as forças
inconscientes. Aniela Jaffé, discípula de Jung, estudou o
modo como a arte moderna pretende restabelecer aquelas
conexões, mostrando quais são os símbolos religiosos
subjacentes a esse movimento artístico.
O escritor e roteirista Lúcio Manfredi destaca esse
aspecto em “Os Óvni de Dalí”56. Tomando por base para
exemplificar a produção artística de Salvador Dalí e René
Magritte, ele postula que um dos motivos pelos quais o
estudo das obras de arte é útil para compreender o
fenômeno Óvni, é a vertente psicossociológica porque,
independentemente de sua origem, os discos voadores são
uma espécie de espelho no qual, à maneira das figuras de
Rorschach, o homem projeta as questões centrais de sua
vida e de sua sociedade. Se no mundo exterior surge algo
novo, estranho à nossa compreensão, só podemos recorrer
a signos igualmente novos para interpretá-lo, e não ficar
tentando adivinhar possíveis respostas ou arranjando
explicações espúrias e delirantes.
É isso que faz a psicóloga junguiana ao relatar que
os rumores sobre discos voadores começaram a circular
mais ou menos na mesma época em que o símbolo do
círculo tornou-se dominante na pintura moderna. Usando
como referências quadros de Kandinsky, Klee e Delaumay,
entre outros, Aniela Jaffé sugere que tanto essas obras
quanto as aparições dos discos sejam interpretados como
uma tentativa da psique inconsciente coletiva para curar a
dissociação de nossa época apocalíptica através do símbolo
do círculo.
56
Metaxy, Rio de Janeiro, 2003.

217
Contudo, o espelho revela algo além do que nossos
olhos veem: revela, na verdade, o que não vemos. E o que
não vemos ou não queremos ver? Quando diante do
espelho, literal ou alegórico – o cinema ou a ficção, por
exemplo – o que está refletida é a imagem do Narciso em
nós, não do monstro que nos habita e que nos escapa como
viajante nômade. O monstro nunca pode ser contemplado,
já que o espelho não reproduz sua imagem. O espelho
refletirá sempre a divindade, o herói: se a face do Outro
revela a nossa, ela não pode jamais ser “ultrajada”, pois que
feita “à imagem e semelhança do Criador”, logo, o monstro
não existe, e se existir, será repelido e ignorado. A presença
do monstro representa uma anomalia, um desvio, uma
(dis)torção, um afastamento do modelo divino, ou seja, uma
condenação do corpo. Para Eco, o espelho fala a verdade
de modo desumano – a perda da ilusão sobre a própria
juventude. Mas o monstro existe, e por ele se colocam
questões extremamente contemporâneas, porque
precisamos de sua imagem para retomar a reflexão sobre a
humanidade do homem, uma vez esgarçadas as certezas de
sua identidade e integridade.
Diante deste quadro, embora Tucherman refira-se
mais diretamente ao hibridismo dos cyborgs, entendo e
aplico sua escrita a qualquer outro, monstro ou não: “Pois
não é a oposição simples que marca a diferença entre
monstros e homens, mas um sistema complexo de
aproximações e distâncias. Sendo o Outro, ele não é
externo como deuses e animais, vigora sempre no limite do
humano, um limite “interno”, produtor de figuras estranhas
em relação às quais não deixamos de nos perguntar se são
efetivamente humanas, já que nos surgem como a folia do
corpo, o desregramento da cultura, a desfiguração do

218
Mesmo no Outro. Como algo com o qual não nos
confundimos, mas também não nos diferenciamos
totalmente: nesse sentido, sua definição é instável e sua
alteridade é móvel.” No mesmo texto, ela cita um
pensamento de Ralph Waldo Emerson, de 1832: “Os
sonhos e as bestas são duas chaves através das quais vamos
descobrir nossa natureza, são objetos de prova”.
Sherry Turkle, também citada por Tucherman, afirma
que ele, Emerson, “encontrara (antecipara) os objetos de
pensamento da modernidade, sendo profético: Freud
pensou a racionalidade confrontando-a com o sonho;
Darwin e seus seguidores pensaram o mesmo confrontando
o homem com a natureza: o mundo das bestas visto como
nosso passado e ascendência”. E Tucherman finaliza: “Os
monstros talvez existam para nos mostrar o que poderíamos
ser, não o que somos, mas também não o que nunca
seríamos, e assim articulam a questão: Até que grau de
deformação ou estranheza permanecemos humanos?”
Chama atenção não só a moderna ficção científica,
que estimula no imaginário vários tópicos intimamente
ligados ao universo ufológico, mas também aquela que
irrompeu no início do século passado, entre as décadas de
20 e 50, na qual os alienígenas, as naves e os propósitos
desses invasores não ficaram presos nas páginas e nos
celuloides, mas saltaram para dentro do inventário
ufológico. O sociólogo Bertrand Méheust publicou, em
1978 (reeditada em 2008), Science-Fiction et Soucoupes
Volantes, um extenso e completo estudo sobre a influência
da ficção científica na vida ufológica. Dispensaria dizer que
o ufólogo desdenha, rechaça ou esquiva-se de qualquer
leitura que cause estranheza e desconforto às suas crenças.
Um crítico entre ufólogos é como vagalume rodopiando por

219
sobre vegetais carnívoros. Saber distinguir o que importa do
que não importa é o fundamento primeiro da inteligência,
sem o qual o raciocínio balança em falso em cima de
equívocos. Inteligência: quanto menos se tem, menos se
sente falta.
Méheust identifica que as criações literárias e
artísticas da ficção no período 1700-1800 anteciparam as
descrições das formas alegadamente observadas no século
seguinte, o que pode indicar que já estavam arquivadas no
inconsciente. Para o autor, todas as constantes do fenômeno
Óvni – naves, biótipo antropomórfico, tecnologia, efeitos
físicos e psíquicos, ambiência e muito mais foram
“previstas” pela ficção científica dos anos 20 e 30, e mesmo
muito antes disso, processadas, incorporadas e adaptadas
pela Ufologia. Em sua detalhada e caudalosa explanação,
Méheust comprovou que o cenário simbólico vivido pelos
abduzidos é idêntico, na composição, aos rituais de
iniciação e, em muitos detalhes, aos estados alterados de
consciência.
É importante notar que, segundo o historiador Ciro
Flamarion, a ficção científica se divide em vários períodos.
Vamos a eles até o ponto que nos interessa, ressaltando que
é uma datação arbitrária, sujeita a flutuações conforme a
visão de cada autor: Período Fundador, que vai de 1862 a
1901 com as obras de Verne e Wells. Período Popular, de
1901 a 1926, quando surgem nomes que se consagrariam
no futuro como Doyle e Burroughs, aumentando o interesse
pelo gênero. O terceiro período, de 1926 a 1946, a Idade
de Ouro, chama atenção por dois aspectos diretamente
relacionados ao propósito deste trabalho: o primeiro é a
data estimada - 1946, não por coincidência um ano antes
do nascimento “oficial” da Ufologia – 1947; vale lembrar o

220
pânico causado pela novela que Orson Welles transmitiu
pelo rádio em 1938, simulando uma invasão alienígena
global, que municiou substancialmente o imaginário sobre
o tema.
E é a partir dessa data que a sci-fi experimenta uma
curva crescente na produção em larga escala através de
revistas especializadas (Amazing Stories, Astounding
Science-Fiction) e editoras que resolvem investir no gênero
(Doubleday, Simon & Schuster, depois Ace Books e
Ballantine). As publicações vinham recheadas de invasões
alienígenas, batalhas espaciais, experiências genéticas,
impérios galácticos dominadores e uma coleção
interminável de aventuras fantásticas, conquistando leitores
de todas as idades, criando legiões de admiradores que
criariam fã-clubes e promoveriam reuniões para debater as
histórias. E o cinema e a televisão não perderam tempo,
procurando acompanhar essa evolução. Ciro nota também
que o período seguinte (1946-1968) dava início ao das
incertezas, que se refletiria na produção artística.
Groff Conklyn, um dos editores na época, declarou:
“A ficção científica chegou por fim. Milhares de pessoas
que costumavam pensar nela em termos de revistas de
histórias em quadrinhos ou de revistas pulp de aventuras
descobriram que uma parte dos escritos de imaginação
mais efetivos de nossa época estão sendo produzidos nesse
campo. Outros milhares que jamais haviam sequer ouvido
falar dela estão aprendendo que pode ser um tipo excitante
de diversão para suas horas de lazer. Por conseguinte, a
circulação das principais revistas de ficção científica está
crescendo aos saltos; novas revistas estão sendo planejadas,
e muitos editores sóbrios e cautelosos de livros, percebendo
o sucesso das pequenas editoras especializadas em ficção

221
científica, se dão conta de que existe um público leal para
este notável ramo novo da árvore da literatura.”
Ciro entende que a ficção científica representou a
continuidade, em novo formato, “De uma tradição ficcional
milenar, caracterizada por favorecer a imaginação e a
extrapolação.” E classifica os diversos gêneros de narrativas
em épocas variadas:

1) Viagens fantásticas e extraordinárias, incluindo-se


aqui os “mundos perdidos”, a noção de uma
“Terra oca”, a Atlântida.
2) Utopias; ou o seu contrário, desde o século
passado tendo-se cunhado o termo distopias.
3) O conto filosófico, com frequência de intenção
satírica.
4) O gótico ou o horror sobrenatural.
5) A antecipação sociológica ou tecnológica.

Mencionando a “Terra oca”, vale comentar que essa


foi mais uma daquelas hipóteses mirabolantes que a
Ufologia tomou para si, tentando explicar outra possível
origem dos discos voadores, a intraterrestre. A ideia de um
reino habitado nas carnes da Terra remonta à antiguidade,
do Hades de Homero ao inferno de Dante. Foi retomada
séculos depois pelo astrônomo Edmond Halley (1692), que
inspirou o romance de ficção “A Viagem Subterrânea de
Niels Khun”, de Ludwig Holberg (1741), e mais tarde Jules
Verne com o clássico “Viagem ao Centro da Terra” (1864),
seguindo-se crônicas, romances e muitas ficções de sofrível
qualidade, além das fantasias ocultistas e confusos cálculos
matemáticos intentando demonstrar a factibilidade de um
“mundo côncavo”, mas sem respaldo científico. Eco

222
pondera que “Penetrar no coração do planeta, sob a crosta
terrestre, sempre atraiu os seres humanos, e alguns viram
nesta paixão por grutas, fendas e túneis um indisfarçável
desejo de retornar ao útero materno”.
Coincidência ou não, em 1947 o explorador Richard
Byrd, oficial aviador da Marinha americana, ao sobrevoar o
Ártico, relatou não só ter encontrado uma gigantesca
abertura com vários quilômetros de diâmetro que levava ao
interior da Terra, como teria entrado por ela e visitado terras
verdejantes e férteis, com cidades e naves voadoras. Ele
chegara a Agarttha57, morada do Rei do Mundo. Nota um:
na Antártida haveria uma segunda abertura, a qual Byrd
também relatara. Nota dois: um Sol interno manteria o
equilíbrio climático e a fotossíntese da flora. Nota três: os
seres interiores teriam pedido a Byrd para pararmos com as
explosões atômicas, pois isso afetava o mundo deles (e o
nosso, não?). Nota final: obviamente, os ferrenhos
defensores das teorias conspiracionistas insistem que o
governo americano guarda o mais absoluto sigilo sobre o
fato por questões de segurança. Alimentada por supostos
mapas, artigos ditos “científicos” de credibilidade discutível,
diários e anotações duvidosamente atribuídas a Byrd, a
Terra Oca não passa de um amontoado de boatos, falsos
documentos e registros incomprováveis. De que estamos
falando afinal, realidade ou ficção?
Encerrando o comentário sobre esse “período das
incertezas”, vamos recordar que a FC já vinha abastecendo
o imaginário popular com a possibilidade das viagens
57
Agarttha ou Asgharttha, com variações através dos tempos, surgiu pela
primeira vez numa novela de Luis Jacolliot; o nome é um coquetel de
expressões tiradas de textos sânscritos, elementos indianos e tradições
maçônicas, todos de origem desconhecida, ou só conhecidas pelo próprio
autor. (cf. Eco, op. cit.)

223
espaciais, os temores de uma guerra nuclear, a rivalidade
entre as duas superpotências, e o ambiente do pós-guerra
mostrava que a Guerra Fria era uma realidade, portanto, as
incertezas quanto ao futuro da humanidade também o
eram. Com estes ingredientes, fica fácil entender agora que
o momento era propício para a mensagem protecionista e
de advertência dada por extraterrestres no episódio de Piatã.
Vê-se que, na Ufologia, a presença da ficção não é mesmo
gratuita, pois essa mensagem tinha o mesmo teor da que foi
dada pelo alienígena Klaatu em “O Dia em que a Terra
parou”, de 1951.58
Faço aqui uma rápida e oportuna inserção antes de
voltar a Flamarion. Ficção científica, Guerra Fria, incertezas
no futuro, realidade social foram temas também na obra da
escritora Hannah Arendt, “A Condição Humana”, uma obra
de referência em várias áreas das ciências sociais. Com
olhar muito mais voltado ao ambiente político de sua
época, a filósofa alemã demonstrou preocupação com a
falta de visão da sociedade para com esse gênero literário
que, segundo ela, tem muito a nos dizer. Simultaneamente
ao receio do crescimento dos possíveis atritos político-
militares entre as duas grandes potências, Hannah saudava
entusiasticamente o advento do Sputnik em 1957, que dava
início à exploração espacial e que ela considerava mais
importante que a fissão do átomo: “A humanidade não
permanecerá para sempre presa à terra” Ela pretendia
mostrar que o homem poderia libertar-se de sua precária

58
“[...] Não é de nossa conta como vocês dirigem seu planeta. Mas caso
vocês ameacem estender sua violência, essa sua Terra será reduzida a
cinzas. Sua escolha é simples. Juntarem-se e viverem em paz, ou
persistirem em seu caminho atual e arcar com sua total obliteração.
Estamos esperando sua resposta. A decisão está em suas mãos”.

224
condição humana e refletir sobre o que estamos fazendo
nessa “condição de escravos indefesos, não tanto de nossas
máquinas quanto de nosso know-how”.
O serviço que a ficção científica desempenhava
então, para a autora, estava subestimado e “tão destituído
de respeitabilidade (e à qual, infelizmente ninguém deu até
agora a atenção que merece como veículo dos sentimentos
e desejos das massas)”. Pacifista, ela lamentava a
dificuldade de viabilizar uma interlocução sobre o
progresso científico em suas perspectivas mais otimistas e
múltiplas possibilidades, e sua esperança se voltava para a
literatura de ficção científica. E é nesse sentido que a
liberdade imaginativa que origina a ficção em torno da
ciência poderia ser interessante como catalisadora de uma
política sincronizada ao nosso (dela) tempo. À parte o
recorte político do livro, no qual Hannah tece suas críticas a
certos regimes autocráticos, ela delibera sobre chamar a
atenção das instituições para o desenvolvimento científico,
muito mais promissor para a humanidade, e indica a
literatura de FC como um veículo inspirador. Constata-se,
assim, que o universo sci-fi já trazia o embrião de
discussões extremamente importantes para a sociedade,
chamando atenção não só dos autores daquele gênero, mas
de todos que se mostravam atentos aos rumos de seu
tempo.
Voltando a Ciro, os dois últimos períodos
assinalados pelo historiador são o New Wave (1968-1982)
e o Cyberpunk (1982 em diante). Neste último, um detalhe
é tão revelador que transcrevo um curto trecho da obra:
“Na denominação, o elemento cyber remete a cibernética e
punk foi tomado à terminologia roqueira dos anos 70.
Aplica-se a relatos marcados por elementos temáticos bem

225
definidos: um futuro quase sempre próximo, dominado por
grandes corporações capitalistas, seja na Terra, seja no
espaço, globais mais do que nacionais, as quais controlam
redes mundiais de informação; as possibilidades do corpo
humano aumentadas por implantes de elementos
mecânicos e cibernéticos, pela engenharia genética ou pelo
uso de drogas.” E esse gênero da ficção científica promove
outras reflexões em razão de sua influência na
comunicação, no underground e no imaginário
tecnológico, que engloba uma subcultura pop de
contestação no útero necrosado do espaço obscuro da
metrópole distópica.
O que se destaca é: as possibilidades do corpo
aumentadas por implantes de elementos mecânicos e
cibernéticos. Terá sido outra coincidência que foi nesse
período que começaram a surgir relatos de abduzidos nos
quais lhes teriam sido implantados minúsculos dispositivos
– chips – para atividades de monitoramento biológico? Não,
apenas a Ufologia apostou na ideia, adicionando à sua
longa lista de “argumentos” para induzir de que estamos
sendo permanentemente vigiados por alguém, em algum
ponto do espaço, talvez por uma grande espaçonave-
laboratório geoestacionária no lado escuro da Lua.
Sucessiva e copiosamente, a Ufologia abriga todo novo
recurso lançado pela ficção científica, desde os discursos
utópicos e distópicos, as antecipações de futuros
alternativos, a supremacia de outros seres e de outros
mundos.
Para ilustrar o poder que a ficção científica exerce no
psiquismo no contexto da Ufologia, Arthur Clarke relata que
quando foi encontrar-se com o cineasta Stanley Kubrick
pela primeira vez, em 1964, este já tinha absorvido uma

226
substancial quantidade de dados científicos e de ficção
científica, a ponto de correr sério risco de acreditar em
discos voadores; foi quando Clarke intercedeu: “Senti que
chegara a tempo de salvá-lo desse destino horrível”.
Ainda no campo da Ufologia, os relatos de
“contatos” e mesmo os de alegada “psicografia
extraterrestre” apresentam semelhanças irrefutáveis com as
narrativas de ficção científica, sua fonte de inspiração,
subsidiadas pela abundante literatura e filmografia do
gênero. Poderíamos enumerar dezenas de títulos literários,
filmes e seriados para televisão de grande alcance em todo
o mundo. Na obra “Shikasta”, de Lessing, por exemplo, a
narrativa da autora, na pele de um personagem da história,
adquire duplo valor. De um lado, enfatiza a hipótese de um
apocalipse futuro, e, por outro, reforça a necessidade de
resgate histórico e psicológico dos deuses e dos mitos como
tentativa de resposta às desilusões existenciais.
Para melhor desenvolver o estudo, seccionei a
análise da Ufologia, nos termos da ficção científica, em dois
níveis: Numa primeira tomada em plano fechado (flertando
com a linguagem cinematográfica), fazer um exame de
superfície, direto e objetivo, enfocando os elementos
comparativos mais evidentes da narrativa, e depois, em
plano aberto, o exame de profundidade, que se detém no
olhar sociológico, psicológico, filosófico, histórico e
cultural. A Ufologia propicia essa dinâmica, gerando
inervações importantíssimas para o conjunto da análise.
A quase totalidade dos filmes e obras de ficção
científica versa sobre esperanças utópicas e, ao mesmo
tempo, sobre os medos mais contidos do homem
contemporâneo. O imaginário trágico da era midiática
estabelece-se como um imaginário da crise do moderno,

227
tendo na melancolia a afecção que melhor o caracteriza,
uma alegria com lágrimas que se concretiza nestes filmes
com um final feliz para os personagens, felicidade esta,
contudo, insignificante perante a tragédia da humanidade.
Melancolia. Abre parêntese: há exatos cem anos Freud
terminava de escrever seus estudos sobre narcisismo, ao
mesmo tempo em que esboçava os primeiros ensaios sobre
esse perturbador sentimento. Narcisismo, melancolia,
depressão. Para Freud, melancolia é “o desejo de recuperar
algo que foi perdido” (itálico não original). Melancolia trata
de uma perda, “uma perda na vida pulsional”59. Mais tarde,
ele revê tal pensamento, acreditando ser uma perda do ego,
o que retoma a importância da noção de narcisismo. Freud
chegou a chamar de “bebês eternos” os melancólicos,
acabando por incluir a melancolia entre as neuroses
narcísicas, enunciando-a como um conflito entre o ego e o
superego, formulação que manterá até o fim de sua obra.
Fecha parêntese. Fica como reflexão adicional.
E por que a ficção insiste em dar aos seus enredos (e
ao nosso) um final trágico? A resposta pode estar oculta lá
no início, por trás da palavra voracidade. O tempo que nos
consome, que nos corrói, antecipa o futuro e dita a
celeridade dos minutos, não dá brechas para se viver a
história presente. Mas o futuro não é uma mercadoria
exposta no supermercado ou um valor a ser sacado no
caixa eletrônico. É a historicidade que delineia a
experiência do indivíduo, da sociedade, mas se ocorre uma
sufocação, uma compressão da história pelo tempo, essa
sufocação e essa compressão atingem em cheio aquelas

59
Ana Cleide G. Moreira, “A melancolia na obra de Freud. Um Narciso sem
[des]culpa”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. IV,
92-102. 2001.

228
esperanças utópicas. Ao mesmo tempo em que o indivíduo
é um feitor da história, é por ela feito, e é nessa tensão entre
sujeito ativo e reativo que se desenrola o drama do homem
pós-moderno.
Por outro lado, essa mesma ficção oferece condições
ao indivíduo de eternizar-se, sobrevivendo à hecatombe
planetária e recolonizando o mundo. Em seu imaginário,
contudo, o indivíduo sabe que essa esperança é uma ilusão,
um trabalho heroico para o qual ele não foi e não está
preparado, então transfere a responsabilidade a outro, a
outros. Na Ufologia, é usual que quando ocorre um
contato, telepático ou não, o teor da presumida mensagem
venha repleto de alertas e conselhos ecopacifistas. Não há
mal algum na aspiração por heroísmo, afinal, como diz
William James, “O instinto comum da natureza humana
para com a realidade… sempre sustentou ser o mundo
essencialmente um teatro para o heroísmo”.
Há um extenso repertório para exemplificar a
questão da transferência de responsabilidade, isso de
esperar que alguém venha resolver nossos problemas e nos
salvar. Ashtar Sheran, líder da frota extraplanetária da
“Confederação Intergaláctica da Grande Fraternidade
Branca Universal”, um título pomposo que não vale nada.
Esse comandante/anjo guardião com a pretensão de usurpar
o poder de Cristo, prepara um arrebatamento espetacular
que adentrará pelas nuvens de modo apoteótico. Será que
venerar um “deus” abrandará a ira dos “deuses” e salvará a
humanidade de seu fim? Antes dele, em 1971, a americana
Ruth Norman previu (cabe profetizou) a chegada, em 2002,
de 3360 naves interconectadas, cada uma delas trazendo a

60
Em vários cultos, seitas, doutrinas ditas esotéricas, escolas filosóficas e
sociedades igualmente secretas, o número 33 é tido como “mestre” para a

229
bordo mil habitantes do seu planeta, dando início à Unarius
Age – UNiversal ARticulate Interdimensional Understanding
of Science. Fiquemos com estes exemplos, a lista é longa.
Ashtar Sheran não passa de uma peça ficcional,
figura cosmética, emblemática e reveladora da insuficiência
humana. Não é de hoje que o homem aspira a mais perfeita
e elevada purificação. Como outrora, religiosos fielmente
devotados empreendem uma luta interior buscando
alcançar o Olimpo, atingir o Nirvana ou vivenciar o
paraíso. A “santidade” idealizada e perseguida em ciclos
míticos como o hindu, o islâmico e o cristão, por exemplo,
é válida. Desejar, no entanto, a santificação esquecendo-se
da condição humana é um gesto deplorável.
Para o mitólogo Joseph Campbell, este aspecto em
especial da experiência humana obedece aos dois grandes
temas que transpassam as mitologias e religiões do mundo.
Eles não são iguais. Têm histórias diferentes. O primeiro a
surgir pode ser chamado espanto em algumas de suas
modalidades, da mera confusão frente ao inexplicável até o
arrebatamento de um terror demoníaco ou a reverência
mística. O segundo é a salvação de si mesmo: a redenção
ou libertação de um mundo que perdeu o brilho. Os deuses
representam forças protetoras que sustentam o sujeito em
seu campo de ação. Ao contemplar as divindades, ele
ganha uma espécie de força estabilizadora que o coloca,
digamos assim, no papel representado por uma divindade
particular, porque os símbolos da divindade coincidem com
os do Si Mesmo, isto é, com aquilo que, em forma de

compreensão dos mistérios do mundo e do homem. Mil e uma utilidades:


astrologia, Bíblia, I Ching, runas, biorritmos. Para a numerologia, é um dos
números sagrados (duplo 3), precisando de algum malabarismo aritmético
para se chegar aos resultados desejados.

230
experiência psicológica, representa a totalidade psíquica e
exprime a ideia da divindade.
Outro aspecto significativo a se observar é a
linguagem, tanto na experiência ufológica como na ficção
e, por extensão, no mito e na religião, permitindo uma
análise de grande valor. Como elementos comuns a todos,
ainda que na relação Ufologia-religião esses pontos se
acentuem, temos a Transcendência: “Do alto”, “dos céus”,
de “outra dimensão”; Onisciência: Sabem tudo sobre nós
todo o tempo; Onipresença: Estão em toda a parte
simultaneamente; Plenipotência: Dotados de poderes supra-
humanos, e Redenção: Proteção e salvação, coletiva e
individual.
Temos visto que a ficção científica apresenta uma
dialética apocalíptica, dupla face de Janus – utopia e
distopia. O que se está querendo dizer é que, a depender
das obras ficcionais, não temos escolha quanto ao nosso
futuro. Elas tratam da estética da destruição, do caos, do
flagelo, da aniquilação. De sua parte, a Ufologia tenta
denegar esse final “infeliz”, pois, como vimos, o imaginário
magnifica o real, tornando-o mais real que o real, onde
volta à baila longevidade, atemporalidade, infinitude. A
catástrofe constitui um dos maiores temas da arte, talvez
porque na catástrofe esteja em jogo a própria sobrevivência
da humanidade e da sua aventura cósmica e a sua
capacidade de saber – ou não – fazer frente à possibilidade
da sua própria aniquilação.
A partir do momento em que a cultura da ciência e
da tecnologia assomou no mundo contemporâneo, foi
inevitável que o imaginário das massas se conduzisse, cada
vez mais, aos elementos que pudessem ser traduzidos em
termos dessa ação tecnológica e dos saberes científicos

231
disponíveis. Aos poucos, tudo que não se encaixasse nesse
domínio foi perdendo sua força simbolizadora e acabou
sendo reduzido a mera condição de “produto cultural” ou
“crença”, sem mais nenhum poder de preensão sobre a
realidade. O enfraquecimento do imaginário ficou agravado
pela crescente devoção ao poder da ciência e da
tecnologia, depositárias de todas as esperanças e detentoras
de uma autoridade. Assim, as dimensões supramateriais só
se tornam acessíveis ao imaginário quando expressas em
termos de uma “simbologia tecnológica e científica”, ou
seja, daí a moda da ficção científica, dos extraterrestres e
dos deuses astronautas, significando um rebaixamento
caricatural à linguagem do imediato e do banal.
A realidade parece cada vez mais dar vida a cenários
imaginados pela ficção científica a partir da emergência de
um mundo transformado pelos avanços da ciência e da
tecnologia, onde estas se colocam no centro na
(re)construção de identidades, esboroadas e desintegradas
no processo de globalização, sugerindo a pertinência das
observações de Fredric Jameson, que vê nesse gênero um
dos modos por excelência de cartografar cognitivamente o
presente como passado de futuros que a própria ficção
científica parece ser capaz de desenhar, de um modo que
nenhuma operação prospectiva consegue, sequer, emular,
ainda que modestamente.
É possível pensar também que o mundo e a
experiência do mundo tenham assumido, ao longo das
últimas décadas, uma textura de ficção científica: o impacto
das tecnologias no cotidiano, a transformação estrutural das
sociedades, a crescente virtualização de dimensões
importantes da existência individual e social, a
desconfiança em relação à incapacidade de as instituições

232
políticas e culturais responderem aos desafios de um
cenário cada vez mais marcado pelas incertezas.
A conclusão que praticamente se impõe é a de que,
se os discos voadores não são a única forma de expressão
alternativa das forças arquetípicas da psique, não há como
duvidar, entretanto, que a Ufologia esteja integrada em um
multifacetado fenômeno histórico de transformação da
consciência. Resta ver de que modo isso opera numa
sociedade, tendo em conta o que escreve Patrick Legros: “A
arborescência inconsciente de cada pessoa é irrigada por
sua biografia, mas o lençol freático no qual ela se nutre é
escavado sob o fardo das sedimentações culturais e da
história”. Para finalizar com uma pitada de humor e boa
dose de filosofia, nada melhor que o comentário de um dos
personagens da história em quadrinhos americana Calvin &
Harold; vendo a sujeira no parque e um toco de árvore,
Harold dispara: “Às vezes eu acho que o sinal mais
evidente de que existe vida inteligente em algum lugar do
universo é o de que ninguém até agora tentou entrar em
contato conosco”. Sarcasmo puro.

Don Quijote de La Mancha.


Cortesia Fabricio Moraes. Pastel. 2004
233
234
O Imaginário Reinventando o Futuro

– Viver somente, não te peço mais nada.


Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu?
E, se eu amo a vida, por que te hás de
golpear a ti mesma, matando-me?

MACHADO

235
236
Chegamos agora a um tema de importância,
densidade singular e complexidade labiríntica – crescente,
diga-se – que exigirá, para melhor entendimento, uma
leitura atenta livre de ruídos externos. Não será e nem
poderia ser um capítulo de poucas linhas. Um ponto
decisivo não só da obra como do próprio tema “disco
voador”. Imaginário, sem dúvida alguma, é um dos mais
belos produtos da mente humana, e exatamente por isso, se
não for bem assimilado, poderá gerar distorções difíceis de
serem corrigidas. Recomendo uma leitura com vagar,
cautelosa, entremeada por pausas para reflexão. Sendo um
campo fértil de revelações sobre nós e de como vemos e
elaboramos o mundo, e espargindo uma miríade de
subtextos densamente ligados, assumi explorar as
referências literárias e enveredar por um corpo de
definições que mais poderiam confundir que elucidar, mas
foi realmente necessário fazer dessa forma. Procurei fixar
laços simbióticos entre o conjunto das argumentações à
temática ufológica com a maior clareza possível.
O historiador francês Jacques Le Goff abre a lista,
apontando que o imaginário pertence ao ramo das
representações não reprodutivas, ou seja, uma
representação original, criadora. Legros destaca que
representações sociais são os universos das trocas próprias

237
de um grupo cultural e dos objetos do ambiente do qual
estes indivíduos dependem. Elas podem estar associadas às
opiniões, às informações, às crenças, isto é, a um “conjunto
de elementos cognitivos relativos a um objeto social”.
(Moliner, in Legros) Para Durand, o imaginário é o total das
imagens e das relações de imagens que constitui o capital
pensado, o grande denominador onde se encaixam os
procedimentos do pensamento humano. Ele esclarece,
sucintamente que [o imaginário] “define-se como uma
representação incontornável, a faculdade da simbolização
de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos
culturais jorram continuamente desde os cerca de um
milhão e meio de anos que o homo erectus ergueu-se na
face da Terra”.
Gilles Deleuze o vê como um conjunto de trocas
entre uma imagem real e uma virtual. Lacan interpreta o
imaginário ilustrando com a ideia da criança que se vê no
espelho: ao mesmo tempo em que o reflexo confirma a
existência do “real”, sugere uma ilusão, apenas um reflexo.
As definições foram simplificadas ao máximo servindo
apenas como antessala de um vastíssimo campo de
estudos. Podemos, talvez, compor uma síntese ao dizer que
o imaginário é um conjunto de imagens com uma função
catártica e formadora da identidade coletiva, tradutor
histórico do intemporal e do universal.
O caudal de hiperestímulos que bombardeiam sem
dó e sem descanso nosso operacional sensório-perceptivo
(estímulos visuais principalmente) produz o rebaixamento,
a banalização e a desintegração da sensibilidade, ao
valorizar a superfície e nunca o conteúdo da imagem. É a
“penúria por inundância”, nas palavras de Türcke. De novo
– agora num sentido mais orgânico – olhamos, sempre,

238
apenas para o que queremos olhar, nunca para o que
precisamos ver. É o mesmo que assistir a um filme em
velocidade rápida, quando não é possível acompanhar e
compreender de modo consciente cada momento. Como a
vida hoje não roda mais em câmera lenta, não a vemos
“quadro a quadro”, em minúcias e com tempo para refletir,
empalidecendo e esvaziando de sentido a experiência de
viver, desviando a atenção da leitura exploratória para
decifrar o mundo.
Devemos entender que o ser racional e o sujeito
imaginário não são contraditórios, nem dissociados, mas
complementares. A interpretação do imaginário
subentende que se deva descobrir algo por detrás do
aparente. A produção imaginativa se baseia em um fundo
contemporâneo de símbolos vivos. Dessa construção
simbólica resulta uma matriz razoavelmente eficaz das
angústias culturais. Desde eras imemoriais, o homem
desenvolveu a capacidade de criar imagens simbólicas,
que o permitiram fundar uma teologia e uma mitologia que
se expressavam através dos ritos, dos cultos e das artes, na
qual os entes supranaturais representavam seus medos e
suas apreensões, mas, principalmente, os desejos extraídos
da coletividade social. Ou, dito de outra forma, a
representação do vazio, da ausência, da falta. A função
imaginária seria uma atividade do psiquismo que inclui,
entre tantas, uma modificação na percepção da realidade e
a criação de um sistema de referências, dando um novo
sentido simbólico à imagem. A imagem, embora
inseparável do psiquismo, só teve reconhecida sua
importância a partir dos trabalhos freudianos, que se
baseavam na existência de um inconsciente psíquico. Mais
tarde, Jung tratou de aprofundar e estender os conceitos de

239
inconsciente, adicionando a noção do inconsciente
coletivo, revalorizando a função da imagem e do
imaginário.
Thompson destaca que esta forma simbólica – as
imagens – contém, em primeiro lugar, um aspecto
referencial representando um evento, fala sobre alguma
coisa. Depois, este algo criado no espaço e no tempo,
possui um dado contextual, ou seja, as imagens pertencem
a um momento sócio-histórico por onde são produzidas,
transmitidas, recebidas e consumidas. É por essa produção
e essa transmissão cultural que a sociedade se organiza.
Nessa mesma linha de raciocínio, Aumont entende que “A
imagem é sempre modelada por estruturas profundas,
ligadas ao exercício de uma linguagem, assim como à
vinculação a uma organização simbólica (a uma cultura, a
uma sociedade); mas a imagem é também um meio de
comunicação e de representação do mundo, que tem seu
lugar em todas as sociedades humanas”.
Peço permissão para apropriar-me, de modo um
tanto antropofágico, do texto de Santaella e Nöth, apenas
para não ficar na estética de citação, porque é extenso, e a
pretexto de amalgamá-lo à obra porque complementa as
demais definições sobre imagem, signo e representação.
Vamos ao texto: “O mundo das imagens se divide em dois
domínios. O primeiro é o das imagens como
representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras,
fotografias e as imagens cinematográficas, de televisão,
holo e infográfica. São signos que representam o meio
ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das
imagens na nossa mente, que aparecem como visões,
fantasmas, imaginações, esquemas, representações mentais
em geral. Ambos os domínios não existem separados, estão

240
inextrincavelmente ligados em sua gênese. Não há imagens
como representações visuais que não tenham surgido de
imagens daquelas que a produziram, do mesmo modo que
não há imagens mentais que não tenham alguma origem
no mundo concreto dos objetos. A noção de representação
adquiriu vários significados, mas sem perder sua ligação
com a imagem, e pode ser vista como sinônimo tanto de
imagem simbólica como de signo.”
Para Peirce, “Um signo ou representâmen é algo
que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa
alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria
na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um
signo melhor desenvolvido. Ao signo assim criado,
denomino interpretante do primeiro signo. O signo
representa alguma coisa, seu objeto. Coloca-se no lugar
desse objeto, não sob todos os aspectos, mas com
referência a um tipo de ideia que tenho, por vezes
denominado o fundamento do representâmen”. E, para ele,
o interpretante também é uma outra representação.
Umberto Eco complementa: “Podemos definir como signo
tudo quanto, à base de uma convenção social previamente
aceita, possa ser entendido como algo que está no lugar de
uma outra coisa”. Parece importante ressaltar que, por
exemplo, a palavra alemã bild para “imagem” significa
também “signo mágico” ou “miraculoso” denotando íntima
relação entre a palavra (semântica) com o objeto (semiótica
– do grego semeion – signo, objeto, representação) e com
os processos mágicos de forma geral. Outro exemplo é
dado pela palavra inglesa spell, que tanto significa “soletrar”
como “fórmula mágica”, e, para encerrar, outra palavra
germânica, runa, que não só designa as letras do alfabeto
rúnico como significa também “feitiço” ou “encantamento”.

241
O homem vive em um universo simbólico. Este é o
pensamento nuclear de Cassirer, para quem a linguagem, o
mito, a arte e a religião são partes desse universo, os vários
fios que tecem a rede simbólica e formam o emaranhado
das experiências humanas. Todo progresso humano em
pensamento e experiência é apurado por essa rede, e a
fortalece. A realidade física parece recuar em proporção ao
avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar
com as próprias coisas ele está, de certo modo, dialogando
sempre consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo em
formas linguísticas, imagens artísticas, símbolos místicos ou
ritos religiosos, que não consegue ver ou conhecer coisa
alguma a não ser pela interposição desse meio artificial.
Nossos sentimentos deformam as coisas e nos ludibriam na
percepção dos fatos e dos acontecimentos, e esse
envolvimento afetivo é matriz permanente do imaginário. O
indivíduo não vive em um mundo de fatos nus e crus ou de
acordo com suas necessidades e desejos imediatos, mas
envolto em emoções imaginárias, em esperanças, temores,
ilusões e desilusões, em suas fantasias e seus sonhos. Ainda
assim, mesmo symbolicum, ele ainda é, também, um homo
rationale. É indiscutível que o pensamento e o
comportamento simbólicos estão entre os traços mais
característicos do homem e que todo o progresso da cultura
humana está assentado nessas condições.
Os sonhos e a imaginação refletem a verdade deste
“ser da necessidade”, ou “do desejo”, e se colocam na
vanguarda do fazer humano, que se (re)inventa por sentir-se
incompleto. Neste sentido, portanto, ficcionalizar a
realidade significa trabalhar para a concretização do sonho.
Morin vê o sonho como uma realização irreal que aspira à
realização prática; é por isso que as utopias prefiguram as

242
sociedades futuras, que as alquimias prefiguram as
químicas, as asas de Ícaro prefiguram as do avião.
Certamente foram os contributos de Jung que
criaram a possibilidade de um estudo das estruturas
antropológicas do imaginário, inaugurando uma nova era
nas ciências. Como não poderia ser diferente, seu
empreendimento era visto com muita reserva porque
contrapunha preceitos tidos como definitivos. No entanto,
à parte as críticas, todos consideravam que os novos
elementos apresentados indicavam a coerência funcional
do pensamento simbólico e do mundo conceitual. Não
está se falando de acesso simbólico ao universo, mas da
construção simbólica do universo. Através da sua
linguagem, as imagens exprimem o motivo inicial do
inconsciente, e se ajustam ao arquétipo como o desenho se
ajusta ao modelo.
A imagem arquetípica é de fato o arquétipo
desenvolvido pela imaginação e que subtrai da experiência
exterior as formas de sua manifestação. Jung esclarece que,
excetuando as lembranças pessoais, há em cada um de nós
as grandes imagens originais, ou seja, a aptidão hereditária
da imaginação humana de ser como era nos primórdios.
Essa membrana imaginária pode ser muito tênue, quase
translúcida, mero pretexto em torno do real, mas pode
envolvê-la também numa grossa casca. “Um conteúdo
arquetípico sempre se expressa em primeiro lugar
metaforicamente. Se, falar do Sol e com ele identificar o
leão, o rei, o tesouro de ouro guardado pelo dragão, ou a
"força vital de saúde" do homem, não se trata nem de um,
nem de outro, mas de um terceiro desconhecido, que se
expressa mais ou menos adequadamente através dessas
metáforas, mas que – para o intelecto é um perpétuo

243
vexame – permanecendo desconhecido e não passível de
uma formulação.” Bachelard via a imaginação não como
sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da
realidade, mas a de formar imagens que ultrapassam a
realidade, que “cantam” a realidade.
Morin ressalta que o continente imaginário funde-se
com a nossa vida anímica e a realidade afetiva, e aponta
que “A única realidade da qual nós estamos certos é a
representação, ou seja, a imagem, ou seja, a realidade, já
que a imagem remete a uma realidade desconhecida.”
Diante disso, não é de se espantar que a realidade
antropossocial se situe entre o real e o imaginário e só se
manifeste com vigor quando é trançada por esse
imaginário. Disso resulta que não há como desvencilhar o
imaginário da natureza humana. De novo, é o homo
demens e o homo faber – o homem imaginário e o prático,
duas faces do mesmo corpo tornando a sua realidade sem
imaginária.
Através do mesmo psiquismo embrionário, a
expressão do imaginário e a compreensão da realidade
encontram-se no núcleo da atividade psíquica, isto é, da
troca mental com o mundo. No curso dessas transferências
imaginárias o indivíduo se enriquece geneticamente. O
imaginário é o hormônio no qual se desenvolve e se
constrói a realidade do homem, da natureza e da sua
individualidade, de forma que não se pode dissociar o
imaginário da natureza humana. Morin entende que o
imaginário confunde, numa mesma osmose, o real e o
irreal, o fato e a carência, não só para atribuir à realidade
os encantos do imaginário, como para conferir ao
imaginário as virtudes da realidade. O vocábulo
fundamental que corresponde à imaginação não é

244
“imagem”, e sim “imaginário”. O valor de uma imagem se
mede pela extensão da sua aura imaginária, e, graças ao
imaginário, a imaginação é essencialmente aberta, evasiva.
Ela é no psiquismo humano a experiência da abertura, a
experiência da novidade.
Essa hereditariedade explica o fenômeno, no fundo
surpreendente, de alguns temas e motivos de lendas se
repetirem no mundo inteiro e em formas idênticas, além de
explicar por que os nossos doentes mentais podem
reproduzir exatamente as mesmas imagens e associações
que conhecemos dos textos antigos. Isso não quer dizer,
em absoluto, que as imaginações sejam hereditárias;
hereditária é apenas a capacidade de ter tais imagens, o
que é bem diferente, é o que nos ensina Jung.
O arquétipo tem, para ele, todos os requisitos para
reproduzir, constantemente, as mesmas ideias míticas, ou
parecidas. Tudo indica que aquilo que se decalca no
inconsciente é exclusivamente a ideia da fantasia subjetiva
provocada pelo processo físico, permitindo então supor
que os arquétipos sejam as impressões gravadas pela
repetição e reações subjetivas. Para Eliade, “A imitação de
um modelo transumano, a repetição de um enredo
exemplar e a ruptura do tempo profano mediante uma
abertura que desemboca no Grande Tempo, constituem as
notas essenciais do comportamento mítico, isto é, do
homem das sociedades arcaicas, que encontra no mito a
própria fonte de sua existência.” E novamente Jung ressalta
esse aspecto, para o qual recomendo atenta leitura: “Há
tantos arquétipos quantas situações típicas na vida.
Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na
constituição psíquica, não sob a forma de imagens
preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas

245
formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade
de um determinado tipo de percepção e ação. Quando
algo ocorre na vida que corresponda a um arquétipo, este é
ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de
uma reação instintiva contra toda a razão e vontade, ou
produz um conflito de dimensões eventualmente
patológicas, isto é, uma neurose.”

A imaginação mitopoética

Antes de entrarmos no tema principal deste


segmento, pelas várias menções aos mitos e à mitologia,
uma conversa adicional é necessária. Só é possível
compreender a função do mito no mundo atual se
entendermos o significado e o valor que tinha para as
sociedades ancestrais. Ele contempla uma força litúrgica
que lhe é fundamental, um gatilho religioso vital, móvel e
imutável, que organiza uma função religante com o
primitivo, o arcaico, regenerando e equilibrando o ser em
sua unidade espiritual. O mito é esse elemento de
mediação entre sujeito e mundo, para que ocorra o que
Gilbert Durand chama de “equlibração antropológica”
através da imaginação mitopoética, do grego mythopoiesis
– criação, origem, formação de um mito. A substância do
mito não está no estilo nem no modo de narração, nem na
sintaxe, mas na história que nele é contada. Durand
entende que o homem possui uma expressiva capacidade
simbolizadora, relacionada diretamente à angústia original
– a consciência da morte, do inexorável pêndulo do tempo.
Para captar e interpretar as imagens e os símbolos paridos
do inconsciente coletivo (projeções dos arquétipos), ele
elaborou uma classificação taxionômica desses elementos

246
imagético-simbólicos do sistema antropológico – o “atlas
arquetipológico” da imaginação humana.
Lévi-Strauss assim verbalizou sua preocupação com
relação às interpretações que se fazem hoje dos mitos:
“Como quer que se encarem os mitos, eles parecem se
reduzir todos a um jogo gratuito, ou a uma forma grosseira
de especulação filosófica.” Ele lamenta que a consciência
mítica e o pensamento mítico tenham se desmanchado no
tempo, e acrescenta: “É melhor reconhecermos que o
estudo dos mitos nos leva a constatações contraditórias.
Tudo pode acontecer num mito. A sucessão dos eventos
não parece estar aí submetida a nenhuma regra de lógica
ou de continuidade, qualquer sujeito pode possuir
qualquer predicado, qualquer relação concebível é
possível”. E complementa seu pensamento: “Contudo, os
mitos, aparentemente arbitrários, se reproduzem com as
mesmas características e, muitas vezes, os mesmos
detalhes, em diversas regiões do mundo. Daí a questão: se
o conteúdo do mito é inteiramente contingente, como
explicar que, de um extremo a outro da Terra, os mitos se
pareçam tanto? Tomar consciência dessa antinomia
fundamental, que pertence à natureza do mito, é condição
sine qua non para podermos esperar resolvê-la. Será que,
para entendermos o que é um mito, só podemos, portanto,
escolher entre a banalidade e o sofismo?” Vejamos um
resumo das suas recomendações, em que se pode perceber
o perfeito encaixe com o “mito Óvni”:

1) Se os mitos possuem um sentido, este não pode


decorrer dos elementos isolados que entram em
sua composição, mas na maneira como esses
elementos estão combinados.

247
2) O mito pertence à ordem da linguagem, faz parte
dela; entretanto, a linguagem, tal como é utilizada
no mito, exibe propriedades específicas.
3) Tais propriedades só podem ser buscadas acima do
nível habitual da expressão linguística; em outras
palavras, elas são de natureza mais complexa do
que as que se encontram numa expressão
linguística de um tipo qualquer.

No terreno do imaginário o nome de destaque é o


do sociólogo e antropólogo Gilbert Durand, que se
dedicou intensamente a esse estudo, escrevendo, entre
outras obras, “As Estruturas Antropológicas do Imaginário”,
citação obrigatória em qualquer trabalho nesse campo.
Durand afirma que os mitos, as crenças, sonhos e ficções
ordenam, com sua lógica própria, os medos, as aspirações
e os desejos modelados pelas imagens, que serão
trabalhados pelas forças subjetivas e introduzidos em uma
visão mágica de mundo. Ele assegura que o imaginário é o
fundamento sobre o qual se constroem as concepções de
homem, de mundo e de sociedade.
Perpetuar o mito significa imortalizar a espécie
humana e a esperança, e isso se dá pela repetição e
revivificação da narrativa mítica, que não é estática uma
vez conectada ao inconsciente – coletivo ou não – como
veículo de ligação às esferas sagradas, espirituais, narrativa
essa seguidamente ajustada ao meio. Para o filósofo
Vicente Ferreira da Silva, o mito também não é simples
palavra ou narrativa literária, mas uma presença real e
efetiva dos deuses e da manifestação divina, evocando uma
série de fatos extra-humanos, uma referência
memorizadora e histórica. Para Durand, “A história não

248
explica o conteúdo mental arquetípico, pertencendo a
própria história ao domínio do imaginário. E sobretudo em
cada fase histórica a imaginação encontra-se presente
inteira, numa dupla e antagonista motivação: pedagogia da
imitação, do imperialismo das imagens e dos arquétipos
tolerados pela ambiência social, mas também fantasias
adversas da revolta devidas ao recalcamento deste ou
daquele regime de imagem pelo meio e o momento
histórico.”
O pensamento de Durand é o que melhor orienta o
presente estudo, sem descurar dos demais: Um conjunto de
imagens do patrimônio cultural do sujeito e da sociedade.
Podemos afirmar ser o imaginário o veículo instaurador do
equilíbrio dinâmico do homem em suas relações com o
mundo (como o mito), através do intercâmbio contínuo
entre as pulsões biopsíquicas e as instâncias socioculturais.
Ele é a mediatriz entre o real e o ilusório, o entrelugar
organizador dos padrões imaginantes criados pelo homem.
Destaquei todo o pensamento de Legros, que está em boa
parte assentado nos trabalhos de Durand: “O imaginário
intervém em todos os processos de socialização porque os
afetos governam as crenças e os desejos, estimulam a ação
dos sujeitos e determinam um movimento universal no seio
do qual se combinam as características de base da
existência na sua totalidade: a repetição e a diferenciação.”
A escritora inglesa Karen Armstrong diz que, como
adultos, gostamos de explorar possibilidades diferentes, e,
como crianças, seguimos criando mundos imaginários. A
segunda oração dessa frase é a mais importante, o que nos
leva à raiz da questão. Embora não seja possível
esquadrinhar aqui como desejado os contos infantis ou
“contos de fadas”, não há como não fazer uma breve

249
menção, responsáveis que são pela engenharia imaginativa
do ser humano desde a infância.
O leque de autores que produziram ricos e extensos
trabalhos que traduzem e incorporam essencialmente
motivos mitológicos vai de Freud a Todorov, de Lévi-
Strauss a Marie-Louise von Franz, compondo uma fortuna
literária de considerável peso. Mais uma vez, Jung nos diz
que “Nos mitos e contos de fada, como no sonho, a alma
fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua
combinação natural como formação, transformação, eterna
recriação do sentido eterno”. Um elemento sobre o qual
Jung discorre longamente, relativo ao conto infantil e
presente também nos sonhos, é o “Velho” que, como
arquétipo do espírito, tem como tarefa provocar a reflexão
do herói ou de qualquer outro personagem que esteja
enfrentando um momento de indecisão ou de escolha. E
prossegue: “Na realidade, o Velho representa essa reflexão
útil e a concentração das forças morais e físicas que se
realizam espontaneamente no psíquico extraconsciente,
quando um pensamento consciente não é possível ou já
não o é mais.” Esse “espírito ancião” (sabedoria, intuição,
inteligência, temperança, virtude, perseverança) encaminha
à reflexão com as perguntas que nos fazemos
permanentemente: quem, o quê, por que, quando, como,
para quê. Como não sabemos as respostas – a consciência
não as tem, recorremos ao velho (inconsciente) e este, em
vez de nos atender, devolve-as para que nós as busquemos.
A criança geralmente as encontra, o adulto não. E o
“velho” Jung verbaliza de novo: ”Para tanto é necessária –
não só no conto de fadas, mas na vida em geral – a
intervenção objetiva do arquétipo que neutraliza a reação

250
puramente emocional através de uma cadeia de
confrontações e conscientizações internas.”
Para o psicólogo e educador Bruno Bettelheim, o
conto de fadas reflete um conflito interno de caráter
simbólico que pode ser solucionado, embora não seja esta
sua principal função. Há uma concordância generalizada
de que os mitos e os contos falam-nos na linguagem de
símbolos, representando conteúdos inconscientes. Recorro
sempre ao itálico para chamar a atenção de determinadas
passagens sugerindo com isso especial atenção: “Os contos
de fadas lidam, de forma literária, com os problemas
básicos da vida, especialmente os inerentes à luta pela
aquisição da maturidade. Advertem contra as
consequências destrutivas de não conseguirmos
desenvolver níveis superiores de egoicidade responsável,
dando exemplos admonitórios [...]”. Ele ratifica que essas
histórias refletem algumas condições de nosso mundo
interior e o que é preciso fazer para passar da imaturidade
ao amadurecimento.
Em sua esclarecedora análise psicanalítica dos
contos, Bettelheim cita as histórias do “ciclo de João”61,
destacando “João e o Pé de Feijão” como um dos contos
mais significativos, em razão dos muitos elementos de
natureza mítica e dos simbolismos contidos. Não sei
quanto às crianças de hoje, mas certamente os mais velhos
conhecem bem a história do menino que chegou aos céus
subindo por um pé de feijão e lá matou um terrível gigante.
O símbolo central da narrativa é a árvore – o pé de feijão –
que germina durante a noite, enquanto João dorme e que,
ao acordar, vê que ultrapassou as nuvens. A árvore é o

61
De origem britânica, uma coleção dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm
produzidos entre 1780 e 1790.

251
“eixo cósmico”, símbolo ascensional por excelência, do
qual falaremos mais adiante.

O homem no vazio do espaço e do tempo

Comparando as fantasias infantis aos sonhos e aos


mitos, observamos que todos visam atender aos desejos,
contendo semelhanças significativas entre si e com outras
formas de fantasia, e qualquer acontecimento social pode
ganhar uma explicação mítica. Existem mitos e sonhos e
fantasias para cada estrutura psicológica. A fantasia
apresenta, como característica essencial, a racionalização
do fantástico. Na visão de Mircea Eliade, os contos de fadas
e os mitos são modelos para o comportamento humano
que dão significação e valor à vida. Com paralelos
antropológicos, ele e outros sugerem que estas histórias
(mitos e contos) derivam ou dão expressão simbólica a ritos
de iniciação ou de passagem, como o da morte metafórica
de um velho e inadequado “Eu” para renascer em um
plano mais elevado de existência. Ele sente ser esta a razão
destes contos encontrarem uma necessidade sentida de
modo intenso e serem transmissores de tanto significado
profundo. Para Bettelheim, “O que parece desejável para o
indivíduo é repetir na sua dimensão de vida o processo
envolvido historicamente na gênese do pensamento
científico. Por um longo tempo na sua história, a
humanidade usou projeções emocionais – tais como os
deuses – nascidas de suas esperanças e ansiedades
imaturas para explicar o homem, sua sociedade e o
universo; estas explicações davam-lhe um sentimento de
segurança.” (itálico não original)

252
Na composição de todos os escritos, a leitura surge
concordante, onde o fulcro é o indivíduo e sua suprema
dificuldade em compreender a si, a vida e o universo, e por
essa incompreensão, sua existência é marcada a ferro pelo
vazio, pela amargura e pela dor da finitude, pelo desespero
diante da irreversibilidade da morte. Mais que isso, pelo
caráter inconclusivo sobre o que há depois da morte.
Fromm é bastante claro ao afirmar que se o homem
prescinde da ilusão de um Deus protetor, se encara a sua
própria solidão e insignificância no universo, ele se sentirá
como a criança longe da casa paterna; porém, o verdadeiro
sentido do desenvolvimento humano consiste em
sobrepujar esta fixação infantil. O homem sempre buscou
participar do cosmo de todas as formas, inscrever-se nele,
ser parte integrante e importante dele, e, ao mesmo tempo,
faze-lo unir-se a si próprio. Lacan determina: “Para que a
criança atinja o nível da realidade, deve deixar o modo
imaginário da visão de si e utilizar o modo simbólico”.
O recado é esse. Ambos falam do amadurecimento
do homem, algo muito distante para quem ainda está na
primeira infância como nós. E, como em toda infância, o
doce mundo da magia, da fantasia e da ilusão é, sem
dúvida, muito mais palatável. E é vivendo nessa inocência
cósmica que nos encantamos e nos seduzimos com a
magia construída pelo imaginário. Ficamos à espera que a
Divina Providência nos atenda, como a criança que
aguarda pelo presente na noite de natal. Para Jung, tudo
que vem do inconsciente tem primeiramente um caráter
infantil: “O desejo inconsciente é infantil, ou melhor, é um
desejo proveniente do passado infantil que não se adequa
mais ao presente, razão pela qual é reprimido, e isso por
motivos morais.” Freud entendia a linguagem do

253
inconsciente como a terra infantil da realização dos
desejos.
A vida humana é permanentemente submetida aos
impulsos imaginários, às imagens encarnadas nas artes e
nas produções mentais coletivas e individuais. O
imaginário fala de uma civilização, transita através da
história, das culturas e dos grupos sociais. Consultamos
astros, pedras, conchas, cartomantes, tabuleiros e oráculos,
qualquer oráculo, para que eles digam o que nós devemos
fazer. Vestimo-nos de branco no réveillon e pulamos sete
ondas para que os “bons fluidos das energias cósmicas”
nos purifiquem para o novo tempo. Qual uma criança,
olhamo-nos no espelho e não entendemos o que há “do
outro lado”. Não podendo barganhar com o tempo,
recorremos a artifícios estéticos temerários tentando
enganá-lo. Assistimos a um boom de livros e filmes de
vampiros, faunos, aventuras temporais, reinos mágicos,
castelos encantados, demônios, princesas, guerreiros
imortais e sábios mestres, voltados ao público de todas as
idades, ou seja, inclusive aos adultos infantilizados.
Ao passear por um shopping, constatei que as suas
cinco salas de cinema exibiam somente filmes blockbusters
hollywoodianos direcionados ao público adulto-infanto-
juvenil; na mesma época, na lista dos livros mais vendidos
de uma revista semanal de circulação nacional, na
categoria não ficção, uma única obra de literatura no final
do ranking digladiava com biografias de celebridades,
banalidades sobre futebol, culinária, erotismo de má
qualidade, etc. Hoje, no momento mesmo em que rabisco
estas linhas, os livrinhos para colorir encantam os adultos
como alternativa de terapia anti-stress ou como simples
lazer. Suplementos literários de muitos dos principais

254
jornais, em todo o mundo, foram suprimidos ou enxugados
e com eles jornalistas culturais perderam o emprego.
Livrarias fecham aos borbotões enquanto proliferam salões
de beleza e lojinhas de bijuteria. Se as outras categorias são
ficção e autoajuda, resta pouco espaço para divulgar uma
cultura de melhor qualidade. Difícil saber a quais interesses
essa lista atende, mas a massa silenciosa segue o indicador
e incrementa o mercado. E chama a atenção os muitos
filmes sobre zumbis, que podem sugerir, nada sutilmente, a
atual condição humana. Ainda que tais personagens
pertençam mais ao universo fantástico que científico, o
princípio de construção da realidade, a linguagem e o
objetivo são os mesmos. Prepondera a descultura. Paira no
ar um sentimento de vulgaridade, massificada e
massificante, o popularesco subindo a patamares
estratosféricos com tendência a piorar. Assim define sua
melancolia um professor americano sobre sua profissão:
“Como educador, sinto-me como um aiatolá mandando
crianças correrem num campo minado”.62
Nem sempre o fantástico contém o científico, mas a
recíproca não é verdadeira: o científico contém sempre o
tempero do fantástico, como explica o filósofo e linguista
Todorov: “Chegamos assim ao coração do fantástico. Em
um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem anjos,
sílfides, fadas, gnomos, íncubos, súcubos, dráculas e
monstros, se produz um acontecimento impossível de
explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Quem
percebe o acontecimento deve optar por uma das duas
soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos,
de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem

62
André Barcinski: “Crítica: Obra aniquila mitos otimistas sobre a
‘democracia digital’. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 09/03/2015.

255
sendo o que são, ou o acontecimento se produziu
realmente, parte integrante da realidade, e então esta
realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o
diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente,
como outros seres, com a diferença de que rara vez o
encontra.”
O imaginário é o legado do pensamento mítico, um
pensamento concreto que, funcionando sobre o princípio
da analogia, se exprime por imagens simbólicas
organizadas de modo dinâmico. A analogia determina as
percepções de espaço e tempo, as construções materiais e
institucionais, as mitologias, as ideologias, saberes e
comportamentos coletivos. Em Durand, a capacidade
humana para imaginar está intimamente relacionada à dor
originada com a consciência da morte e do tempo que
passa – a temporalidade: “A necessidade da função
fantástica reside na faculdade do imaginário de ultrapassar
a temporalidade e a morte. A eufemização que ela assegura
é o principal motor deste grande processo sócio-
antropológico. É, por essa razão, que o mito se torna o
provocador destas duas inelutáveis e inexpugnáveis
barreiras culturais: a cronologia e o falecimento.” É por
estes dois trilhos que corre nossa proposta de análise do
“disco voador”.
Como mito tem sido amplamente referido, embora
não seja ele o foco deste ensaio, dentro do plano das
discussões não há como dissociá-lo do fenômeno Óvni e
do “disco voador”. E é exatamente a sua presença paralela
nestas páginas que lhe confere um caráter adjuvante,
isentando-o do compromisso direto com o texto. E como as
estruturas do mito e do “disco voador” foram muito
comparadas, Bauman se faz ouvir novamente quando diz

256
que os mitos obrigam o pensamento à busca de denotação
no mundo e produzem o imaginário que, caso seja
inundado pela experiência religiosa, “mágica” (como se dá
com a criança), fazem a mente apurar pensamentos que só
existem, de fato, na linguagem, mas parecem estar no
mundo. Mito, neste momento, é apenas uma presença
ausente, mas, por outro lado, ele existe para que não nos
esqueçamos daquilo que não queremos ou não gostamos
de lembrar, afinal ele é a base antropológica por onde a
significação histórica se sobressai: “A consciência do mito
é o laço que une os homens uns aos outros e ao insondável
mistério de onde surgiu a humanidade.”63
Durand esclarece que a construção imaginária se
forma através dos mitos, que são “os sistemas dinâmicos
dos símbolos, dos arquétipos e dos schèmes, sistema
dinâmico que, sob a impulsão de um schème, tende a se
compor em narrativa”. O que o autor faz é “hierarquizar” a
construção imaginativa na seguinte ordem:

a) Schème – é anterior à imagem, corresponde a


uma tendência geral dos gestos, leva em
conta as emoções e as afeições. Ele faz a
junção entre os gestos inconscientes e as
representações.
b) Arquétipo – a representação dos schèmes.
Imagem primeira de caráter coletivo e inato; é
o estado preliminar, zona onde nasce a ideia.
Ele constitui o ponto de junção entre o
imaginário e os processos racionais.

63
Wheelwright, Philip. Poetry, Myth, and Reality, em Goldberg, Gerald J. e
Goldberg, Nancy M. “The Modem Critical Spectrum” (ed.). Englewood
Cliffs, Nova Jersey: Prentice-Hall, Inc., 1962, p. 319.

257
c) Símbolo – é todo signo concreto evocando,
por uma relação natural, algo ausente ou
impossível de ser percebido. Uma
representação que faz “aparecer” um sentido
secreto. Eles são visíveis nos rituais, nos
mitos, na literatura, nas artes plásticas.
d) Mito – sistema dinâmico de símbolos,
arquétipos e schèmes que tende a se compor
em relato, ou seja, que se apresenta sob
forma de história. Por este motivo, ele já
apresenta um início de racionalização.

O schème é, portanto, a dimensão mais abstrata,


correspondendo ao verbo, à ação básica. O arquétipo,
dando forma a esta intenção fundamental, já vai ser uma
imagem (herói, velho, mãe, ou tempo cíclico), mas
universal. Já o símbolo vai ser a tradução desse arquétipo
dentro de um contexto específico. Dessa forma, schèmes,
arquétipos, símbolos e mitos vão, a partir da sua
organização feita por uma dada cultura, orientar o
desenvolvimento desta cultura. Esse é, para Durand, o
“trajeto antropológico”, a maneira própria de cada cultura
estabelecer a relação entre a sua sensibilidade (pulsões
subjetivas) e o meio em que vive, seja geográfico, histórico
ou social, ou todos juntos. Existe um isomorfismo de
schèmes, de arquétipos e de símbolos presente nos mitos
ou nas constelações de imagens. A constatação da
existência desse isomorfismo leva a perceber certas normas
definidas de representação imaginária.
Estas representações, agrupadas em torno de
schèmes originários, são chamadas estruturas. Segundo o
autor, cada imagem, seja mítica, literária, visual, se forma

258
em torno de uma orientação fundamental que se compõe
dos sentimentos próprios de uma cultura, assim como de
toda a experiência individual e coletiva. Pelo seu prisma,
Morin ressalta que o símbolo está na origem da linguagem,
uma ligação de símbolos que realizam a comunicação, ou
a evolução de uma realidade total, por fragmentos,
convenções, abreviaturas ou acessórios.
Se o mito pode explicar o que é inexplicável no
homem, ele pode ser a via para tentar entender aspectos
contraditórios e incompreensíveis. O mito é um veículo de
comunicação com o mistério, com todos os mistérios, mas
como a humanidade despiu-se das estruturas míticas,
deixou de compreender a si mesma. Ele é um relato do
mundo, da origem do mundo, dos deuses, do homem. Para
Marilena Chauí, o mito “Não se define pelo objeto da
narrativa ou do relato, mas pelo modo como narra ou pelo
modo como profere a mensagem, de sorte que qualquer
tema e qualquer ser podem ser objeto de mito: tornam-se
míticos ao se transformarem em valores e símbolos
sagrados; tem como função resolver, num plano simbólico
e imaginário, as antinomias, as tensões, os conflitos e as
contradições da realidade social que não podem ser
resolvidas ou solucionadas pela própria sociedade, criando,
assim, uma segunda realidade, que explica a origem do
problema e o resolve de modo que a realidade possa
continuar com o problema sem ser destruída por ele. O
mito cria uma compensação simbólica e imaginária para
dificuldades, tensões e lutas reais tidas como insolúveis.”
Para auxiliar na compreensão sobre mito e justificar
a importância de contracenar com o imaginário, peço
licença para prolongar a explicação dessa doutora; os
itálicos, de minha responsabilidade, pedem reflexão e

259
dispensam comentários: “[o mito] Consegue essa solução
imaginária porque opera com a lógica invisível e
subjacente à organização social. Ou seja, conflitos,
tensões, lutas e antinomias não são visíveis e perceptíveis,
mas invisíveis e imperceptíveis, comandando o
funcionamento visível da organização social. O mito se
refere a esse fundo invisível e tenso e o resolve
imaginariamente para garantir a permanência da
organização. Além de ser uma lógica da compensação, é
uma lógica da conservação do social, instrumento para
evitar a mudança e a desagregação do grupo. Em outras
palavras, é elaborado para ocultar a experiência da História
ou do tempo. O logos busca a coerência, construindo
conceitualmente seu objeto, enquanto o mythós fabrica seu
objeto pela reunião e composição de restos díspares e
disparatados do mundo existente, dando-lhes unidade num
novo sistema explicativo, no qual adquirem significado
simbólico. O logos procura a unidade sob a diversidade e a
multiplicidade; o ‘mythós’ faz exatamente o oposto,
procura a multiplicidade e a diversidade sob a unidade. É
um pensamento empírico e concreto, e não conceitual e
abstrato.”
Durand ratifica a retórica da imagem simbólica e
reabilita a dimensão dos arquétipos e a força diretiva dos
mitos porque, para ele, o imaginário não é, como ainda se
pensa, uma vaga abstração, uma vez que segue regras
arquitetônicas com vistas a uma hermenêutica.
Revalorizando sua importância, ele vê o mito como o
último fundamento teoricamente possível de explicação
humana, um alicerce de conteúdo arquetípico passível de
procedimento analítico. É da operacionalização do
conceito de mito que ele constrói a sua mitodologia – uma

260
classificação dinâmica e estrutural das imagens, de onde se
seguiu a mitocrítica e a mitanálise. Ele afiança que em
todas as épocas e em todas as sociedades existem,
subjacentes, mitos que orientam e modulam o curso do
homem, da sociedade e da história. Podemos dizer, ao
menos, que a mitanálise revela a alma de um grupo, de
uma época, por detrás dos acontecimentos etnológicos,
numa coerência significativa profunda.
A grande revolução (no sentido de ruptura)
epistemológica do século 20 foi a aproximação de temas
antes divorciados: a lógica, a razão, o entendimento, e o
mito, o irracional ou a ficção. Para ele, a mitologia é, antes
de tudo, um trabalho sobre a conceitualização do mundo.
Os boatos e lendas modernas são micromitos produzidos
pelo pensamento simbólico e constituem um campo
privilegiado para a sociologia do imaginário. Para entender
porque as pessoas acreditam em coisas falsas, boatos e
lendas, Renard elaborou uma grade de análise com seis
itens:

1) coleta das narrativas e suas variantes;


2) o estudo do contexto da propaganda;
3) o grau de veracidade;
4) o estudo do paratexto64;
5) análise da estrutura narrativa;
6) a interpretação dos boatos.

Para Durand, um ponto de capital importância na


sua concepção de Imaginário mostra que a imaginação
humana representa simbolicamente o tormento diante da

64
Neste caso, paratexto se refere não à narrativa em si, mas a opinião do
narrador sobre o fato narrado.

261
finitude e da iminência da morte. Da mesma forma, cria
imagens que triunfam sobre ela, revelando esquemas
primários fundamentais. O princípio constitutivo da
imaginação consiste em representar, figurar, simbolizar os
rostos do Tempo e da Morte, visando a dominá-los, e o
desejo fundamental da imaginação humana é a redução da
angústia existencial, ligada a todas as experiências
negativas do tempo.
Fica evidente que o fator tempo é indissociável ao
capítulo do fim da vida, o apagar das luzes, o derradeiro
sono, o inverno, a morte, posto que é retomado em todos
os demais discursos, direta ou indiretamente conectado
também à questão do espaço, ou seja, ao fato de o nosso
clamor perder-se no vazio abismal do éter sem qualquer
chance de ser ouvido. É diante desse oceano de nada que o
sujeito se vê obrigado a refletir sobre si mesmo e sua
efêmera condição existencial. É isso, na verdade, o real
significado de apocalipse, do latim apocalipsis, do grego
apo kalyptó, descobrir o que está oculto; apokalypsis,
revelar, desmascarar, dar a conhecer.

“ Se a razão humana pretende tornar-se


um guia efetivo para as nossas ações, ela não
pode ser dominada por emoções irracionais. A
inteligência continua sendo inteligência,
mesmo quando devotada a fins perversos. A
razão, porém, a nossa percepção consciente
da realidade tal como é e não como
gostaríamos de vê-la a fim de podermos
explorá-la para os nossos próprios fins - a
razão, nesse sentido, só pode ser eficaz na

262
medida em que pusermos de lado as nossas
emoções irracionais, isto é, na medida em que,
como seres humanos, nos tornarmos
verdadeiramente humanos e os impulsos
irracionais deixarem de ser a principal força
motivadora subjacente em nossas ações.

Erich Fromm
Quem é o Homem?

As ficções nossas de cada dia

Se para o imaginário Durand é o nome chave, sobre


a morte destaca-se a obra de Ernest Becker, falecido meses
antes de receber o Pulitzer em 1974 por “A Negação da
Morte”. Ainda que em certos momentos possa parecer um
déjà vu, dada a assiduidade do assunto ao longo deste
livro, é imprescindível evocar seus escritos. O título da obra
já é direto: o conceito de mentira serve para explicar que a
morte, desempenhando uma função capital na existência, a
tendência humana mais instintiva é negá-la através de ardis
psicológicos inconscientes de autoengano e auto-ilusão. “A
ideia da morte e o medo que ela inspira perseguem o
animal humano como nenhuma outra coisa,
representando, em realidade, uma proposição universal da
condição humana.” O autor não erra a mão quando trata
de espetar a agulha na chaga, e ela machuca mais por
reconhecermos que ele está absolutamente certo. Aqui
começa o segundo ato desse espinhoso tema. Antes,
porém, retomo brevemente Durand.

263
Ele percebeu, ao longo do seu extraordinário
estudo, duas intenções fundamentalmente diversas na base
da organização das imagens: uma dividindo o universo em
opostos (alto/baixo, esquerda/direita, feio/bonito, bem/mal,
etc.), outra unindo os opostos, complementando, pela luz
que permite as distinções, pelo debate. O segundo é o
regime caracterizado pela unificação, pela conciliação. É
importante frisar que estes dois regimes da imagem
recobrem três estruturas do imaginário, estruturas estas que
dão respostas à questão fundamental do homem que é a
sua mortalidade.
A consciência da própria finitude, direta e “sem
sentido”, expressa através das fatias do tempo, vai criar no
ser humano a necessidade de elaborar um sentido, o de
tornar o universo e a própria vida, significativos. Este
exercício de criação não se faz de maneira arbitrária, mas
segundo a sensibilidade específica a cada cultura e o
ambiente em que ela se encontra, ou seja, segundo um
trajeto antropológico específico. O imaginário, para
Durand, não é mais que esse trajeto no qual a
representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos
imperativos pulsionais do sujeito. Estudando as imagens
originadas de diversas culturas, Durand notou que estas se
dividem em dois sistemas primários, mas que esta
bipartição compreende na verdade, uma tripartição de
estruturas que são a “mística”, a “heroica” e a “sintética”,
cada uma se dividindo em subgrupos.
Quando Durand discorre sobre as estruturas
místicas do imaginário, ele de pronto adverte para se ter
cuidado na apreensão do sentido de “mística”, que não é o
religioso. Trata-se, antes, do seu sentido mais comum que
significa “construção de uma harmonia”, na qual “se

264
conjugam uma vontade de união e um certo gosto pela
secreta intimidade”. “Face aos semblantes do tempo, outra
atitude imaginativa se desenha, consistindo em captar as
forças vitais do devir, em exorcizar os ídolos mortíferos de
Kronos, em transmutá-los em talismãs benéficos, enfim, em
incorporar à inelutável movência do tempo as
tranquilizantes figuras de constantes, de ciclos que no
próprio seio do devir parecem executar um desenho
eterno.” Dessa forma, a estrutura mística do imaginário,
diante da angústia existencial e da morte, vai negar suas
existências e vai criar um mundo em harmonia baseado no
aconchego e na intimidade de si e das coisas.

Criação, Ascensão e Queda

A segunda estrutura irrompe aqui com grande força,


promovendo uma reflexão tão profunda que a considero
certamente uma das mais importantes no discurso desta
obra, em absoluta sintonia com todos os demais escritos.
Trata-se das estruturas heroicas ou esquizomorfas do
imaginário. Nestas estruturas, as constelações de imagens
se organizam em torno dos dois grandes schèmes: o
diairético e o ascensional. Os diairéticos são os da divisão,
da separação do bem e do mal, vida e morte, a
transcendência sempre pronta. E a ascensão, ligada aos
arquétipos da luz, conforme o autor: “Aos schèmes, aos
arquétipos, aos símbolos valorizados negativamente e aos
semblantes imaginários do tempo, poder-se-ia opor, ponto
por ponto, o simbolismo simétrico da fuga diante do tempo
ou da vitória sobre o destino e sobre a morte”.

265
O simbolismo ascensional se coloca como a
reconquista de uma potência perdida, a elevação para
além do tempo pela rapidez do voo. A ascensão representa
o caminho sagrado rumo às esferas celestiais – vida eterna,
em oposição ao umbral do repouso final – a morte. Eis o
processo diairético: na antítese, o combate espiritual do
herói. Os símbolos de elevação são todos aqueles ligados à
verticalidade. Conforme Durand, os esquemas e os
arquétipos de transcendência exigem um procedimento
dialético: a intenção profunda que os guia é intenção
polêmica que os põe em confronto com os contrários. A
ascensão é imaginada contra a queda e a luz contra as
trevas. Igualmente polissêmica, outra leitura para ascensão
simboliza a “subida” do inconsciente em direção ao
consciente, superior, daí dizer-se “ir ao encontro da luz (do
saber)”; ela representa também o “eixo cósmico” unindo o
Céu à Terra, o espírito à matéria, o divino ao humano. E
cabe mais uma interpretação: após a noite (Lua –
inconsciente), surge um “novo” dia correspondendo um
“novo” Sol (luz – saber) – a luz nascida das trevas.
Eliade ressalta que o simbolismo da ascensão
representa a espécie de transição de uma condição
“petrificada” a um nível que possibilita uma nova condição
de ser, de mobilidade, de liberdade, de transcendência e de
descondicionamento. Como acabamos de ver, a escada
contém um simbolismo extremamente rico: ela representa
plasticamente a ruptura de nível que torna possível a
passagem de um modo de ser a um outro, ou, colocando-
nos no plano cosmológico, que torna possível a
comunicação entre Céu, Terra e Inferno.” O símbolo da
escada é de fato muito especial, referida por vários
estudiosos, entre eles, novamente, Eliade: “Mas, é preciso

266
que não se esqueça, a escada simboliza todas as coisas
porque se supõe erguer-se num “centro”, porque torna
possível a comunicação entre os diferentes níveis do ser,
porque, enfim, não é mais do que uma fórmula concreta da
escada mítica, da liana ou do fio de aranha, da Árvore
Cósmica ou do Pilar universal que ligam as três zonas
cósmicas.”
Como e onde se encaixa, se encaixa, o simbolismo
da ascensão na Ufologia? Seria o “disco voador” um
símbolo dessa ordem? Tudo leva a uma resposta afirmativa,
além da obviedade explícita, se atentarmos para o que
dizem alguns autores. Repetimos Jung (de novo o itálico
destaca os pontos mais importantes): “Uma ideia tão
poderosa como a de um mediador divino corresponde a
uma necessidade profunda da alma, que não desaparece
quando uma manifestação desta se torna obsoleta. Entre
opostos psíquicos forma-se, espontaneamente, um símbolo
unificante, de unidade e totalidade, por ora inconsciente.
Este processo se dá no inconsciente dos homens
contemporâneos. Agora, se no mundo exterior acontecer
algo inusitado, ou impressionante, seja homem, objeto ou
ideia, então, o conteúdo inconsciente pode projetar-se
sobre este acontecimento.”
Se do mundo exterior acontecer algo inusitado ou
impressionante. Aqui retomamos Durand, quando teoriza
sobre os símbolos ascensionais em uma de suas
subdivisões – os símbolos espetaculares, a qual não se
pode sintetizá-la sem amputar o entendimento. Faz-se
impositiva a transcrição de um pequeno trecho deste
capítulo: “Um notável isomorfismo une universalmente a
ascensão à luz, o que faz Bachelard descrever que “é a
mesma operação do espírito humano que nos leva ao alto”.

267
Esse isomorfismo aparece aos olhos do psicólogo quer em
pessoas normais que descrevem automaticamente
horizontes luminosos na prática de elevação imaginária,
horizontes “deslumbrantes”, de “azul-celeste e dourado”,
quer em psicóticos nos quais os processos de gigantização
imaginária se acompanham sempre de luz implacável,
brilhante, “que cega... impiedosa.”
Cumpre notar que os símbolos ascensionais estão
intimamente relacionados ao espetacular e às imagens da
iluminação: Luz e Sol – isomorfismo entre céu e luminoso;
pureza celeste e brancura; o dourado e o azulado; o sol
nascente (adoração do Sol); as divindades solares (o
Oriente); coroa e auréola (solaridade da espiritualidade).
“Na tradição medieval, o Cristo, constantemente
comparado ao Sol, é chamado Sol Salutis, Sol Invictus, ou
ainda, em nítida alusão a Josué, Sol Ocasum Nesciens, e,
segundo Santo Eusébio de Alexandria, os cristãos, até o
século 5, adoravam o sol nascente”.
Há ainda uma outra alusão ao Cristo Solar, e para
isso recorro a Jung. Há uma correlação entre Cristo e o
mercúrio, o metal que é líquido (unidual): “Como, na
linguagem dos Padres da Igreja, Cristo é uma "fonte
borbulhante", da mesma forma o mercúrio é chamado
pelos alquimistas de aqua permanens [...] o mercúrio é um
“redentor”, que estabelece “a paz entre os inimigos” e,
como cibus immortalis (alimento da imortalidade), livra as
criaturas das doenças e da corruptibilidade.” Redentor,
pacificador, fonte da eternidade, alimento da imortalidade
– é tudo o que representam os deuses astronautas e suas
estupendas máquinas voadoras, ainda com débeis ecos da
natimorta teoria dos astronautas ancestrais de Däniken e
seus epígonos.

268
Mercúrio é também o deus alado e, do ponto de
vista psíquico, simboliza o inconsciente coletivo. Ainda
conforme a perspectiva junguiana, as imagens arquetípicas
produzidas pelo inconsciente estruturam as memórias
individuais para representar o real, que não é diretamente
cognoscível.
O puer aeternus – juventude eterna referido como
um arquétipo, é considerado um componente neurótico da
personalidade por ser visto como um dominante arquétipo
ou imagem arquetípica de um dos elementos de uma
polaridade ativa na psique humana e em busca de união
com o outro – o Velho. Jung via o puer aeternus como o
arquétipo da criança e especulava que sua fascinação
recorrente origina-se da projeção, pelo homem, de sua
incapacidade de se renovar. A capacidade de correr o risco
de um desligamento das origens, de estar em evolução
perpétua, de se redimir pela inocência, de visualizar novos
começos são atributos desse salvador emergente. A figura
do puer aeternus torna-se fascinante como um símbolo
para a possibilidade de reconciliar opostos antagônicos.
Subir voando pela atmosfera significa, sempre,
transcender a condição humana e penetrar nas camadas
superiores, cósmicas. Todos os símbolos do eixo do mundo
relacionam-se com o significado da ascensão: escada,
árvore, corda, montanha e, na era moderna, o foguete e o
disco, transmitindo a noção de conquistar
(fecundar/povoar) outras orbes (óvulos). O fálico
penetrando e procriando o cosmo com o gene da vida
humana. Fecundar é, em certo sentido, imortalizar – o
desejo primordial do ser humano. Jung recorre à etimologia
mais profunda de falo, do grego falós, brilhante, reluzente –
uma das principais características dos discos. Manfredi nota

269
que “A raiz de ambos os termos, fallós e falós é o indo-
europeu bhale, inchar, intumescer, inflar.” Indo além da
referência fisiológica imediata, isso se relaciona ao que os
junguianos chamam de inflação, e que se refere “em um
grau maior ou menor a uma identificação com a psique
coletiva causada por uma invasão de conteúdos
arquetípicos inconscientes ou em resultado de uma
consciência ampliada.”
Tomemos o cuidado de não psicologizar em
demasia esse aspecto, observando o que Jung fala sobre a
excepcionalidade dos discos, que encontra
correspondência na excepcionalidade do seu contexto
psicológico. Ele lembra que esse contexto deve ser levado
em consideração caso se tenha a coragem de enfrentar a
interpretação de um fenômeno desta espécie. Não se pode
esperar que os nossos conhecidos princípios de explicação
racionalista estejam à altura da estranheza essencial do
fenômeno. “Uma abordagem psicanalítica só conseguiria
levar os pensamentos para uma fantasia sexual através de
uma "teoria sexual" pressuposta, para, quando muito,
chegar à conclusão de que, por exemplo, um útero
reprimido esteja descendo do céu. Isto até que combinaria
com o antigo conceito médico da histeria (hysteros =
uterus).” Mas ele coloca um freio nesse raciocínio ao
concluir que a linguagem sexual não deve significar mais
do que qualquer outro meio de expressão simbólica, pois
este tipo de explicação é tão mitológico, e ao mesmo
tempo racionalista quanto as divagações tecnológicas sobre
a natureza e a finalidade dos discos. Prudente, Jung evita a
expressão “disco voador”, optando quase sempre pela sigla
Óvni.

270
Essa inflação associada ao falo, inclusive
etimologicamente, conduz ao que Lacan denomina
identificação narcísica ou identificação imaginária, a
projeção do imaginário no lugar do real, exatamente o erro
cometido pela Ufologia: confundir existência com
essência, supor que as coisas são o que aparentam ser e
acreditar piamente que, por exemplo, Ashtar Sheran seja
mesmo a inteligência por trás dos discos voadores, em vez
de reconhecer nele apenas uma máscara por trás da qual se
oculta o Totalmente Outro – o próprio sujeito.

“ Temos uma personalidade de confecção,


‘ready made’. Vestimo-la como se veste uma
roupa e vestimos uma roupa como quem
desempenha um papel. Representamos um
papel na vida, não só perante os outros, mas
também e sobretudo perante nós próprios. O
vestuário (esse disfarce), o rosto (essa máscara),
as palavras (essa convenção), o sentimento da
nossa importância (essa comédia), tudo isso
alimenta, na vida corrente, esse espetáculo que
damos a nós próprios e aos outros, ou seja, as
projeções-identificações imaginárias.

Edgar Morin
O cinema ou o homem imaginário

Não custa lembrar que todo este simbolismo tem
uma raiz mítica, isto é, os símbolos dados como exemplos
– escada, árvore, corda e montanha têm sua respectiva
significação mítica que repousa no imaginário através dos

271
arquétipos. Como se vê mais uma vez, imaginário e mito
são construções siamesas. De fato, todos aqueles mitos
apresentam o homem primitivo desfrutando de uma
beatitude e de uma liberdade que se perderam em razão da
queda, o acontecimento mítico que provocou a cisão entre
Céu e Terra, entre deuses e homens e, importante, entre o
homem e ele mesmo. Naquele tempo paradisíaco, os
deuses desciam à Terra e misturavam-se com os humanos:
por sua vez, os homens podiam subir aos céus, escalando
uma montanha, uma árvore, uma corda ou uma escada, ou
ainda deixando-se transportar pelas aves. E hoje, como o
homem pode ascender aos deuses? Escadas, árvores,
cordas e montanhas já não fazem parte do seu arsenal nem
atendem a uma necessidade tão premente, então a
imaginação tecnológica na qual está imerso produz o seu
instrumento de voo – o “disco voador”, de volta à
liberdade, à imortalidade, às origens, ao paraíso, ao
antropocosmomorfismo.
Durand dá tons finais antes de voltarmos ao diálogo
com Becker: “Os símbolos ascensionais aparecem
marcados pela preocupação da reconquista de uma
potência perdida, de um tônus degradado pela queda. [...]”
Pode manifestar-se também em imagens fulgurantes,
sustentadas pelo símbolo da asa e da flecha, e a
imaginação tinge-se de um matiz ascético que faz do
esquema do voo rápido o protótipo de uma sublimação da
carne e o elemento fundamental de uma meditação da
pureza
Narcisistas, cultivamos expectativas, exigências e
ansiedades, e, como adultos, reproduzimos um
comportamento que é mais evidente nas crianças: o desejo
de afirmar-se como centro do universo, reconhecido e

272
admirado por todos, ser o primeiro e o único, o que se
torna muito problemático quando há mais de um
competindo por esses privilégios. A esta carência de nossa
psique corresponde um estatuto ontológico desejável, ao
qual Becker dá o nome de significância cósmica – um
sentimento oceânico de ser parte dos planos da Criação,
dotado de importância e valor absolutos. Seja como for,
mais do que expressar um problema pedagógico ou
cultural redutível às formas de educação adequadas
(apenas as crianças mimadas se comportam assim…), a
necessidade de significância cósmica é, para Becker, um
dado antropológico estrutural, diretamente ligado ao terror
da aniquilação pela morte e à percepção da própria
nulidade perante a imponência do universo. Agora
podemos responder, parcialmente, à pergunta “O que
somos?” Somos crianças narcísicas e mimadas!
O conjunto dos nossos referenciais motores, seja
para o psiquismo como para o comportamento, a ideia ou
sua concretização passam pela matriz imaginária. Durand
nos coloca frente a frente com nossa consciência criativa,
imaginativa, dotada de um poder de fabulação até então
pouco explorado. Ele desnuda nossa alma através de uma
série de questões que ou fingíamos ignorar ou de fato
ignorávamos. “A imaginação nos leva, permanentemente, a
recriar o mundo a nossa imagem, mas amplificando-a,
deformando-a, tornando-a imaginária. Nossos sonhos,
nossas histórias, nossas imagens são manifestações deste
ato primeiro e vital”, diz Renard.
Através do imaginário, o homem torna-se um
(re)criador de deuses como referência do real, mas com os
sentidos dados pelo corpo simbólico que utiliza uma
realidade que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e

273
recria. Há mais deuses que realidades no mundo,
martelava Nietzsche, e são todos ocos com pés de argila,
na verdade, não são, de modo algum, deuses (entendendo
os deuses de Nietzsche como todo e qualquer tipo de
modelo mental escravizante). Essa recriação das deidades
segue na esteira de um real formatado pelas interpretações
religiosas. Laplantine e Trindade salientam que “A fantasia
não propõe apenas outra realidade na qual os objetos estão
sujeitos às suas novas regras e normas, mas também
ultrapassa as representações sistematizadas pela sociedade,
criando outro real. Não deixa de ser real, porque não é
ilusão ou loucura, mas uma outra forma de conhecer,
perceber, interpretar e representar a realidade. Possui uma
lógica própria compartilhada pela coletividade, que desafia
a descrença na existência de seres extraordinários e nas
experiências insólitas”.
Nascemos e crescemos num universo de
racionalidade no qual esses fenômenos são eventos
estranhos, ou estrangeiros (extra, de fora), que não
obedecem às leis naturais que explicam o mundo. O
fantástico é a intervenção de um elemento desconhecido
na dinâmica da vida cotidiana; ao mesmo tempo em que
bloqueia o julgamento, gerando hesitação e a impressão
imediata de um “absurdo”. Laplantine e Trindade
entendem que, ao utilizar essas representações simbólicas
como matéria-prima, o homem elabora, no processo do
imaginário, os deuses consubstancializados, que tomam
forma no centro de suas experiências sociais e, partindo do
real, transformam-se e estruturam uma nova realidade
social. Nesse universo real do imaginário, os partidários,
através do culto, elaboram suas relações com os deuses em
suas experiências cotidianas. No plano ideológico, estes

274
sequazes podem impor, através de uma elaboração
secundária, determinados aspectos dessa divindade.
“Assim, atribuem-lhes, de maneira seletiva, as qualidades
que correspondam aos valores que interessam ao grupo
social dominante e que devem ser transmitidas para os
adeptos.”
Toda estrutura social traz consigo influência e
herança de sua formação como nação, etnias ou tribos, e
deve-se observar que cada cultura dessas estruturas sociais
constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e
imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade,
construindo seus instintos e orientando suas emoções.
Assim é porque cada cultura proporciona núcleos
imaginários à vida prática e pontos de apoio práticos à vida
imaginária, alimentando aquele homo duplex (Durkheim),
semirreal e semi-imaginário que cada um secreta no
interior de si e no qual se envolve.
A racionalidade é a melhor ferramenta contra a
ilusão e o erro. A racionalidade construtiva (tal como a
crítica construtiva) organiza teorias coerentes dentro de um
princípio lógico, estabelece a compatibilidade entre as
ideias que compõem a teoria, a consonância de suas
asserções e os dados empíricos aos quais se aplica. A
racionalidade deve se manter aberta às contestações e ao
diálogo às resistências para não se tornar uma doutrina e
se converter em racionalização abstrata e unidimensional,
ou seja, numa falsa racionalidade. Por outro lado, há a
racionalidade crítica exercida especificamente sobre os
erros e ilusões das crenças, doutrinas e teorias, com o
adendo de ser também autocrítica (tal como a crítica). A
racionalidade não tem o monopólio da verdade, e se torna
passível de erro quando se perverte em racionalização, que

275
se crê racional porque constitui um sistema lógico perfeito,
porém fundamentado em bases falsas e corrompidas e
porque se nega contestar seus argumentos e a sua
verificação empírica.
Antes que seja tarde, convém observar que
“imaginário” não pode e não deve ser confundido com o
uso coloquial da palavra, que é tida como sinônimo de
“falso”, “inexistente”. Nesta análise, sua aplicação está
associada aos veículos que o produzem: o sonho, a
demência, o devaneio, a ficção e o mito, que carrega os
traços das imagens primordiais e elabora um sistema
imaginário desencarnado dos mais potentes na psique
humana, mais verdadeiro do que o real. Um ponto
interessante é que essa “família de imagens” é produzida
por vontades criativas próprias, preenchendo uma função
relativa às necessidades existenciais,
Faço sempre questão de lembrar que “imagem” vem
do grego eydólon – espelho, reflexo, simulacro, imagem
concebida pelo espírito. Vale acrescentar que espelho é
speculum; speciabilis – visível, da mesma família de
spetaculum – festa pública onde o spectator não apenas se
vê como parte do evento como pratica o speculandus –
exame, análise, distinguindo entre a specie e o spectrum – o
real e a fantasia. Em sua obra maior, Durand mostra que a
partir do século 4 a.C., com Aristóteles, e por centenas de
anos depois, a via de acesso à verdade era aquela que
partia da experiência dos fatos, das certezas da lógica, por
meio do raciocínio binário, a dialética, na qual se dá a
trama plena do princípio do “terceiro excluído”: ou é... ou
é..., que propõe duas únicas soluções, ou absolutamente
falsa ou absolutamente verdadeira, excluindo qualquer
terceira solução possível. O que a dialética exalta é o

276
espírito crítico e autocrítico, sendo fundamental estar
sempre preparado para reconsiderar as proposições na qual
se baseia sua argumentação.
É tão evidente que, se o dado da percepção ou da
conclusão de um raciocínio só permite proposições
“verdadeiras”, a imagem – que não pode ser reduzida a um
argumento formal “verdadeiro” ou “falso” – é desvalorizada
como incerta e ambígua porque não se pode concluir, a
partir de sua percepção – sua visão, uma única proposição
formal “verdadeira” ou “falsa”. A imaginação, então, sofre
com a suspeita de ser a “mestra do erro e da falsidade”. A
percepção nada mais é do que a compreensão das
informações dos dados em sua composição total, não
fragmentada, não dispersa. Funciona como um quebra-
cabeças: juntam-se as peças nos espaços vazios de modo
ordenado e coerente. O pedaço isolado não nos diz nada.
Tudo o que fazemos é buscar as peças certas para
completar o modelo. O problema maior consiste, até então,
em ter-se uma única peça – o “disco voador” – e deduzir
dela o modelo acabado tomando como “verdadeiro”, não
falso, e definitivo.
A imagem pode se abrir infinitamente a uma
descrição, a uma inesgotável contemplação, mas ela não
pode se bloquear no enunciado claro de um silogismo. Ela
propõe “um real velado”, ao passo que a lógica aristotélica
exige clareza e distinção. No contexto ufológico, isso pode
ser traduzido da seguinte maneira: dentro do pensamento
aristotélico, a observação de um artefato ou é um disco
voador (nave extraterrestre) ou é um objeto identificado
(balão, avião...), não permitindo uma terceira explicação.
Essa é a prática ufológica. Pelo modelo durandiano, ao
contrário, é esta terceira via – a da imaginação simbólica –

277
que não pode nunca ser descartada. Devemos considerá-la,
concentrar a atenção, apurar as reflexões, usar de toda a
nossa capacidade cognitiva/imaginativa. É um desperdício
não aproveitar esse manancial. Com tantos e tão
expressivos estudos nesse terreno do imaginário, caem de
uma vez por terra conceitos depreciativos como “pré-
lógico”, “primitivo”, “pensamento místico”, substituídos
agora por “arquétipo”, “lógica outra”, “participação” etc.
Exorcizada a inferioridade do “terceiro dado”, este território
das ciências sociais recupera sua verdadeira dimensão e
legitimidade.
É imprescindível reproduzir, na íntegra, um trecho
de outra obra de Durand, “O Imaginário”, pelo simples fato
de que ele permite a interpretação correta sobre a
importância do imaginário, evitando ingerências que
possam prejudicar sua compreensão:

O século 18 acrescentará outra coluna da tradição


aristotélica a esta herança cristã de cinco séculos de
racionalismo incontornável: o empirismo factual (que
delimitará os “fatos” e fenômenos). Os grandes nomes de
David Hume e Isaac Newton permanecem atrelados ao
empirismo e com eles esboça-se o início do quarto
momento (no qual ainda estamos mergulhados) do
iconoclasmo ocidental. O “fato”, aliado ao argumento
racional, surge como outro obstáculo para um imaginário
cada vez mais confundido com o delírio, o fantasma do
sonho e o irracional. Este “fato” pode ser de dois tipos: o
primeiro, derivado da percepção, poderá ser tanto o fruto
da observação e da experiência como um “evento”
relacionado ao fato histórico.

278
Mas, se o Século das Luzes nem sempre atingiu o
frenesi iconoclasta dos “enraivecidos” de 1793, colocou,
cuidadosamente – com Emmanuel Kant, por exemplo –, um
limite intransponível entre o que pode ser explorado (o
mundo do fenômeno) pela percepção e a compreensão,
pelos recursos da Razão pura, e o que permanecerá
desconhecido para sempre, como o campo das grandes
questões metafísicas – a morte, o além e Deus (o universo
do “númeno”)... – as quais, com suas soluções possíveis e
contraditórias, constituem as “antinomias” da Razão.

Voltando a Laplantine e Trindade, ainda que soe


repetitivo nunca é demais enfatizar e reforçar o discurso
unissonante proferido por Durand, Cassirer, Renard e
Fromm, entre outros: “A construção da divindade é
realizada no imaginário coletivo. Este imaginário
caracteriza-se por uma criação limitada e definida pelo
sistema religioso e social. À medida que são colocados para
a sociedade novos fenômenos e problemas, criam-se novos
deuses ou reinterpretam-se as divindades tradicionais. As
criações de novos deuses são feitas pelas relações entre as
tradições religiosas e socioculturais e a reinterpretação
dessas tradições.”
Estes autores entendem, e me associo a eles, que os
deuses trazem, à sua existência histórica, a reatualização
mítica no presente, o princípio da esperança lançada no
futuro terreno ou extraterreno. A correlação dinâmica
entre história e mito permeia todo o processo de
construção dos deuses – antepassados divinizados ou
indivíduos que continuam na existência terrena
atravessando a morte.

279
Sobre a morte e o morrer

Becker vê o homem contemporâneo como um


covarde inveterado que se engana acerca de suas forças e
capacidades, de sua importância e valor, para não
sucumbir ao completo desespero em um mundo que pode
engolfá-lo a qualquer momento. No fundo, ele se sabe
frágil, impotente, ignorante, sem a força necessária para
tornar-se o deus que desejaria ser. Mesmo assim, segue
adiante mentindo para si mesmo (self-deception) sobre sua
debilidade existencial; o egocentrismo e a necessidade de
autojustificativa impedem detectar essa mentira da qual é
autor.
Essa radiografia humana indica um corpo em
degenerescência mental e espiritual. Aquilo que chamamos
de “caráter” – a pretensão de uma individualidade
simbólica autosubsistente – é uma ilusão, uma falsidade,
um embuste resultante de uma negação, de uma covardia
instintiva. Nossos traços de caráter seriam pequenas
neuroses que refletem a maneira como reagimos ao
problema da vida e da morte, da existência consciente em
meio à cadeia alimentar. Eis porque o autoconhecimento
ter sabor azedo: por levar à admissão de que vivemos à
custa de mentir para nós mesmos, sobre a vida, sobre o
mundo, subservientes a um protetorado imaginado e
imaginário.
Dessas necessidades surgiram as variadas formas da
magia, arte praticada em todos os períodos da história
humana. A quiromancia, a astrologia, as cartas, a
adivinhação em geral eram praticadas pelos oráculos e
representavam a forma mais geral da antiga magia, pois sua
palavra respeitada se constituía inclusive numa religião de

280
Estado. Os sacerdotes, conhecidos como áugures, tinham
um papel preponderante na vida pública e militar, pois
eram frequentemente consultados pelos generais antes das
batalhas, e seus prognósticos podiam alterar as próprias
leis. Mas o tempo foi passando, o cristianismo aflorou com
enorme poder e, aos poucos, essa magia foi perdendo
fôlego. Os oráculos modernos se dividem entre o Google, o
mercado financeiro, às redes sociais e eventualmente a
astrólogos e cartomantes de plantão, ou até animais –
polvos, tartarugas e camelos, como nas duas últimas copas
do mundo de futebol, nas quais os bichos adivinharam os
resultados dos jogos.
A civilização, desassistida pelos deuses, à mercê de
seus flagelos, lamúrias e desgraças, pressente a iminência
da tragédia no fluir inclemente do tempo, por isso quer e
precisa acreditar em suas criações, ainda que ilusórias, para
que elas, em contrapartida, lhes dê a força necessária para
suportar sua travessia na longa aventura humana. Não
precisaria acreditar, não fosse presa fácil de suas crenças e
refém de seus medos, se não inflamasse o caldeirão
fumegante em que transformou seu mundo e se não se
encantasse tanto com o que imagina ver.
A reflexão sobre as diferentes formas do desespero
(des-espero – não esperar), da finitude e da infinitude,
relacionados, respectivamente, ao fator corporal limitante e
ao fator espiritual expansivo e ilimitado da síntese humana,
mostra como o indivíduo pode beirar o colapso psíquico
caso afirme em excesso ou suprima um de seus polos.
Sujeito compósito, bífido, dual, ou, como diz Morin,
unidual – dois em um, metade divino, dotado de
linguagem, expressão e sentimentos, autoconsciente,
metafísico, de potencial ilimitado, e metade humano,

281
assustado, desorientado, condenado a se decompor sete
palmos sob a relva como alimento a vermes gulosos. Eis o
ser contraposto – um corcunda apolíneo.

“ Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro,


um granito açoitado por ondas de assombro,
a dormir nos confins de um Saara brumoso.
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
esquecida no mapa, e cujo áspero humor
canta apenas os raios do sol a se pôr.

Baudelaire
Melancolia [trecho]

O sujeito oscila entre o paranoico deprimido e o
esquizofrênico despedaçado. É sua essência. Uma criatura
indecifrável pendurada entre dois extremos, para a qual
não existe saída. O homem é um ser aporético – um
problema sem solução. Um espectro medieval, andarilho
quixotesco metido em uma armadura de farrapos, exibindo
seu escudo de lata e brandindo sua espada de papelão,
incapaz de se reconhecer maltrapilho e fracassado em sua
jornada. (Quixotesco é, também, o melhor adjetivo para o
exercício ufológico atual). De um lado, depara com total
ausência de sentido da vida e uma existência nua de razão;
de outro, joga com as convenções, agarra-se ao desejo de
conservação, atribuindo sentido de acordo com sua
conveniência. Morin: “É esse o drama do sujeito:
autotranscende-se espontaneamente, embora não passe de

282
um ácaro microscópico, de um momento efêmero no
universo”.
Citado por Bauman, um dos mais importantes
filósofos do século passado, Mikhail Bakhtin, expressou-se,
no tocante ao medo cósmico, como sendo uma emoção
puramente humana, provocada pela transcendente
magnificência do universo. Para ele, esse medo é a
comoção sentida diante do indescritivelmente grande e
intenso firmamento estrelado, a enormidade das
montanhas, dos oceanos e o medo de convulsões cósmicas
e desastres naturais. No cerne do medo cósmico está “a
não entidade do sujeito amedrontado, transiente,
defrontado permanentemente com a enormidade do
universo – a simples fraqueza, a incapacidade de resistir, a
vulnerabilidade do frágil e delicado corpo humano
revelada pela visão do céu estrelado ou do volume
substancial das montanhas”.
Mais que isso, escapa à percepção do homem de
que não está ao seu alcance apreender e assimilar a
impressionante grandiosidade do universo. Eliade reforça
esse aspecto ao afirmar que basta contemplar a abóbada
celeste para se deixar envolver por uma experiência
religiosa. O céu abre-se infinito, transcendente. “É por
excelência o ganz andere65 diante do qual o homem e seu
meio ambiente pouco representam.” O “muito alto” torna-
se atributo das divindades. As regiões superiores
inacessíveis ao homem (diaballein), o espaço sideral,
adquirem o prestígio do transcendente, da realidade
absoluta, da sacralidade, logo, da eternidade. Pascal
descreve assim seu sentimento sobre essa emoção:
“Quando considero a breve duração de minha vida
65
“O todo”, o tudo. (N.A.)

283
absorvida na eternidade que vem antes e depois... o
pequeno espaço que ocupo e que vejo ser engolido pela
infinita imensidão dos espaços de que nada sei e que nada
sabem sobre mim, fico amedrontado e surpreso por me ver
aqui e não ali, agora e não depois.”
Somos totalmente incapazes de imaginar o Big
Bang, o começo de tudo, da mesma forma que não
podemos prever o que virá a seguir. Essa é uma boa
definição também para esse medo cósmico, o medo do
desconhecido, o passado jogado num canto escuro da
memória e o enigmático amanhã como uma porta fechada
sempre prestes a abrir. Diante dos temores da finitude, e se
à ciência não cabe o papel de Deus, o sujeito moderno
opta por negar sua débil condição humana, não sem antes
recorrer a modelos exteriores para sustentar sua existência.
Por que o homem vive essa ansiedade? Por que esse
“absurdo” na vida humana? Por que buscamos um
significado para a vida e ela parece negar-nos esse
significado? Não é tanto o “quando?” e o “como?” que
atormenta a consciência do indivíduo, mas o “por quê?”.
Não se engane, não há e não haverá jamais respostas
satisfatórias e totalizadoras para esse ser paradoxal, meio
homem meio deus, porque às perguntas do homem deus
não responde, e às perguntas de deus o homem não tem
respostas.
Mais que um conflito, uma neurose. A neurose está
intimamente enlaçada com o problema do próprio tempo e
representa uma tentativa frustrada do indivíduo de resolver
dentro de si um problema universal. A neurose é uma cisão
interna. A vida humana se situa entre o nada do antes e o
nada do depois, uma nanofração do tempo cósmico, e é
nessa faísca temporal que o sujeito nasce, cresce, procria e

284
morre. A vida não é mais que uma fina chuva de verão,
rimam os poetas. Segundo Braudel, que divisou as três
instâncias temporais da história, a vida está no tempo
“curto”, imediato, que desencanta, esfacela, transforma
seus sonhos em pesadelos e materializa seus medos. A
seguir, os “outros tempos”, que passam subjetivamente, os
quais ele não exerce qualquer poder, pois já estavam lá
antes dele e continuarão após a sua partida: o tempo social,
histórico, das sociedades e das comunidades com suas
oscilações e nuances, e o tempo longo, lento, parecendo
imóvel, um quase não-tempo, o grande relógio geológico
das eras, dos largos ciclos.
Se “o tempo é o tecido das nossas vidas” (Antonio
Candido), e se não temos mais tempo para o tempo que
deveria ser nosso porque ele se desfaz antes que possamos
senti-lo, buscamos esticá-lo, alongá-lo a fim de tentar vivê-
lo antes que seja tarde, antes que esvaneça em si próprio.
Paradoxalmente, entretanto, para alguns filósofos, o tempo
parece “não existir”. Enquanto alguns dizem que o tempo
não passa, ele “é“.
Bergson afirma que o presente não existe, pois ele é
a milésima parte da milésima parte de uma dimensão que o
passado empurra para frente ao mesmo tempo em que o
futuro apaga, engole. Entende-se então que o passado é
apenas memória (passível de nem existir) e o futuro simples
fantasia, ficção, virtual (passível de nem existir), e a única
certeza que esse futuro nos dá é a morte, e o temor disso é
passar pela vida “sem ter a experiência de escrever a sua
própria rapsódia”, como escreveu Benjamin.
Os conceitos de Morin concernentes à morte se
coadunam com os de Becker. Para ele, o homem teme a
morte porque ela o faz perder sua individualidade, e essa

285
perda resulta no que ele chama de “traumatismo da morte”
que, juntamente com a consciência da morte e a crença na
imortalidade, formam o triplo dado, eixo do seu trabalho: a
antropobiologia, o duplo e a morte-renascimento. A
consciência realista da morte é traumática em sua própria
essência, a consciência traumática da morte é realista da
sua própria essência. “Onde o traumatismo ainda não
existe, onde o cadáver não está singularizado, a realidade
física da morte ainda não está consciente”.
A morte para o homem é algo “irreal”, um não-
acontecimento que não quer ver nem falar nem ouvir falar,
um laboratório sobre cegueira, mudez e surdez. No
momento das exéquias do sujeito morto é quando
assistimos ao ensaio geral de nosso próprio funeral. A
consciência da morte não é inata, é cultural. Por fim, a
crença no renascimento deriva para outra de concepções
mais arcaicas. É a manifestação do duplo através do qual o
indivíduo pensa assegurar sua vida após a morte, e o
caminho mais comum é o do espiritismo e de outros cultos,
aos quais Morin denomina “fixação institucionalizada do
infantilismo humano diante da morte”. Já perdi a conta de
quantas vezes os vocábulos imaturo e infantil e suas
variantes foram usados para definir a real condição
humana.
Tudo converge para o fato de que o mito, a religião,
os credos, a ficção e os discos voadores, inter-relacionados,
preenchem um vazio e expõem o terror da morte, a
amargura pela invisibilidade e isolamento no cosmo. Os
mitos, os contos, as lendas, todos eles delimitam os
contornos de uma grande ausência que mora em nós, dizia
Rubem Alves. Ausência de quê, ausência de quem? Para
ele, o mundo encantado das histórias, das lendas, dos

286
contos, das fábulas e mitos expressa um desejo: “O que é
dito circum/escreve outra coisa, não dita, escreve pelo
avesso, de modo que quem lê a escritura pelo direito,
como o fazem os filósofos, cientistas e outras pessoas
normais, só pega a mentira. Quem acredita no que o sonho
diz foi enganado. É preciso não acreditar, para que ele
então revele a verdade que ele dissimula”.
Bachelard dizia que é preciso despertar dos sonhos
fundamentais. Conta-se uma história para fazer sonhar,
para se entrar num outro mundo, esquecido. Desejamos,
mas não sabemos o quê. Esperamos, mas não sabemos
quem. Freud recorre ao mito porque sua origem não é
alcançável, ou seja, trata-se de um ponto de falta que só é
possível de ser dito através de uma construção ficcional.
Essa ausência – lacuna, vácuo –, pode explicar muita coisa
em Ufologia. Ou pode explicar tudo.
No rol das experiências deitadas no cadinho das
reflexões, concluo, sem qualquer temor, que o “disco
voador” integra um complexo sinérgico de crenças, sendo
ele mesmo uma crença paracientífica ou pararrreligiosa
com um declarado pano de fundo mítico e místico. Indo
mais longe, considerando o corpo biológico de que somos
constituídos, esse termo pode ser estendido para
biopsicossociocultural. “O mito,” – ressalta Malinowski –
“quando estudado ao vivo, não procura satisfazer uma
curiosidade científica, mas uma narrativa que faz reviver
uma realidade primeva, que atende aspirações morais, a
profundas necessidades religiosas, a pressões e a
imperativos de ordem social e mesmo a exigências
práticas”. Ele observa ainda que o mito exalta e codifica a
crença, salvaguardando os princípios morais oferecendo
regras para a orientação do homem.

287
Complexo sinérgico de crenças biopsicossocioculturais

Para Malinowski, o mito é um elemento essencial e


indispensável de toda cultura; “longe de ser uma fabulação
vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se
recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria
abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira
codificação da religião primitiva e da sabedoria prática
(...).Constantemente ele se regenera; cada mudança
histórica cria sua mitologia, que é, no entanto, apenas
indiretamente relacionada ao fato histórico. O mito é um
resíduo de fé viva que necessita de milagres”. São histórias
que constituem a expressão de uma realidade maior,
determinando a jornada e o destino do homem.

288
É aí que mora o dilema existencial do sujeito, que
Becker nomeia em termos de uma condição de
individualidade dentro da finitude: ele se encontra cindido
entre a finitude e a necessidade da parte física do ser, e a
dimensão da infinita possibilidade que constitui sua
consciência reflexiva, seu universo simbólico, sua
capacidade de abstrair e imaginar: Os dois lados da mesma
moeda – um olhar ao passado (origens) outro ao futuro
(origens?).
O espaço não é o limite, o futuro, a “volta para
casa”, a casa sonhada de Bachelard, aquela que
habitaremos um dia, mais tarde, sempre mais tarde, tão
mais tarde que certamente não teremos tempo para
construí-la, erguida no universo imaginário sobre o devir,
fonte de desejo e temor pela impossibilidade da conquista.
A esse sentimento denomino utopia nostálgica. O “disco
voador” é o equivalente da memória proustiana à procura
de um algo perdido.
Ao falar da poética da “casa”, Bachelard está
falando, na verdade, do nosso ser, nossa alma, com seus
“aposentos secretos”, e outros, “esquecidos”, das janelas
que descortinam largos horizontes e de outras que não se
abrem para o sol, dos afrescos barrocos e filigranas
supérfluas. “Como os refúgios efêmeros e os abrigos
ocasionais recebem às vezes, de nossos devaneios íntimos,
valores que não têm qualquer base objetiva?” O que se
oculta nos sótãos e porões de nosso íntimo? Jung percorreu
estes corredores por anos a fio vasculhando cada canto e
cada fresta, para concluir que estava diante de “Uma casa
cujo andar superior foi construído no século XIX, o térreo
data do século XVI e o exame mais minucioso da
construção mostra que ela foi feita sobre uma torre do

289
século 2. No porão descobriram fundações romanas e,
debaixo dele, acha-se uma caverna em cujo solo se
encontram ferramentas de sílex na camada superior, e
restos da fauna glaciária nas camadas mais profundas. Tal
seria mais ou menos a estrutura de nossa alma”66, onde se
pode apreciar a “ossatura do vigamento e a geometria do
carpinteiro”. Ainda assim, as fundações que nos mantêm
permanecem invisíveis aos olhos.
Líquido e certo, o ser humano tem medo da morte e
usa todos os meios de que dispõe para denegar o inevitável
curso do destino. Não é um medo posto às claras, não
frequenta conversas de bar nem sussurrado na alcova dos
amantes; ele é ínsito à existência aquietado no baú do
inconsciente. Vamos mudar de assunto? Isso o aflige
porque não permite escolhas, prorrogações, barganhas,
privilégios ou exceções. A morte vem sendo, ao longo do
tempo, paulatinamente empurrada para a periferia da vida
cotidiana de várias maneiras: os velórios não são mais
domésticos, a cerimônia dos funerais deu lugar a uma mal
disfarçada indiferença e as notas de condolências são mais
raras, praticamente em total desuso.
Na visão de Baudrillard, lentamente os mortos
“deixam de existir”, rejeitados e jogados para fora da
circulação simbólica do grupo. Não são mais seres integrais
e fazemos que se deem conta disso ao proscrevê-los para
cada vez mais longe do grupo dos vivos, da intimidade
familiar. Todos os demais excluídos têm um lugar de abrigo
da cidade moderna, asilos, clínicas, etc. “Não se sabe mais
o que fazer com relação a isso, porque hoje não é normal
estar morto, e isso é novo”. Estar morto é um acidente

66
JUNG, Carl G. Estudos de Psicologia Analítica. Rio de Janeiro. Vozes.
1981

290
inconcebível, seu espaço é inencontrável, nada de lugar ou
tempo, mas eis o paradoxo radical: as cidades hoje
assumem esse perfil de necrópoles contemporâneas.
A nossa cultura esforça-se para desvincular a vida
da morte, conjurar a ambivalência da morte em beneficio
exclusivo da manutenção da vida. Abolir a morte é o
fantasma delirante da modernidade. E vem ocorrendo um
fenômeno que está inquietando os especialistas e
provocando debates: na primeira metade do século 20, a
expectativa média de vida era de 45 anos, e hoje chega à
marca de 75 anos, em alguns países até 80 anos.
Ganhamos três décadas de vida em tão pouco tempo
graças a inúmeros fatores que não cabe discutir aqui (nem
mencionar o nó social e o caos econômico previdenciário
que o fato irá causar), mas o dado que chama
verdadeiramente a atenção é que o número de jovens
diminui assustadoramente, ou seja, a taxa de natalidade
vem decrescendo ano após ano. A pirâmide etária
lentamente se inverte: menos jovens (na base) e mais idosos
(no topo). Se antes as mulheres pariam seis, sete, oito ou
mais filhos e suas filhas outro tanto de rebentos, hoje esse
número despencou para um ou dois. Estima-se que nas
próximas três décadas, o índice de idosos (dados Brasil)
chegue aos 30%. No mundo, os 700 milhões de idosos
poderão chegar, no mesmo período, a espantosos dois
bilhões! O que determina a condição de “velho” é a
certidão de nascimento, os registros burocráticos oficiais, a
escala de valores dos benefícios e direitos sociais. Velho,
hoje, soa quase pejorativo, por isso é preferível as
metáforas poéticas de Rubem Alves para designar aquele
que exala experiência e sabedoria nos sulcos da face: tem
o crepúsculo no olhar, atravessa o inverno do tempo.

291
A morte deve ocorrer distante do calor familiar, na
glacial solidão dos leitos hospitalares ou na vala comum
das clínicas e dos “lares” assistenciais. Daí a expressão
“aposentado” – o que está no aposento, não mais no
“centro da casa” (da agitação da vida). A morte é um tabu,
tema proscrito e interdito para uma sociedade obediente à
ditadura da imagem saudável e jovial, cultuada e
hipervalorizada. A velhice, a senectude, passa a ser um
estorvo, um corpo pré-moribundo, um incômodo social
como carro usado a ser descartado no ferro-velho ou um
sapato desgastado que não tem mais serventia. A sociedade
revela, ao isolar os velhos e desvalidos do ambiente
familiar, a sua incapacidade e dificuldade em administrar
essa situação, em superar o preconceito e o estigma da
velhice e, não muito sutilmente, desfazer-se sem
constrangimento dos cuidados afetivos explicitando seu
terror pela morte. É, talvez, outra forma de “transferir
responsabilidades”.
O sociólogo Norbert Elias é incisivo quando afirma
que essas sociedades recalcam a morte, pois ela é cada vez
mais “postergada”. No seu entender, a expressão recalcada
deve ser analisada sob dois aspectos. Do ponto de vista
individual, Elias adota a formulação freudiana que se refere
“a todo um grupo de mecanismos psicológicos de defesa
socialmente instilados, pelos quais experiências de infância
muito dolorosas, sobretudo conflitos na primeira infância, a
culpa e a angústia a eles associados, bloqueiam o acesso à
memória.” No plano social, ele situa o conceito dentro do
seu enquadramento teórico de um processo civilizatório
cujo comportamento social em relação à morte está
associado “a sentimentos de vergonha, repugnância e
embaraço”.

292
Por outras páginas, a filósofa e historiadora
Françoise Dastur diz que “Nossa existência não se vê
fundamentada, a não ser sobre o abismo de uma ocultação
e de um esquecimento sem limite do qual só saímos para
confirmá-lo. Na verdade, é existindo que testemunhamos a
morte, mesmo e, sobretudo, quando nos levantamos contra
ela e “trabalhamos” para vencê-la, e empregamos, para
superá-la, o arsenal de nossas técnicas”. Esquecer, ocultar,
dissimular (a morte) em grego, se expressa em uma só
palavra – lethe, significando deitar no rio do esquecimento,
que pode ser lido como permanecer escondido. Não deixa
de ser interessante notar seu antônimo – aletheia, que não
apenas significa não oculto, revelado, mas é o verbete
designado para “verdade”.
Permita-me o leitor uma breve pausa para dissertar
sobre o problema da verdade, considerando-se sua tripla
concepção a partir das raízes grega, latina e hebraica. Do
grego, como vimos, é o manifestado aos olhos do corpo e
do espírito. Do latim, veritas, que se relaciona ao rigor, à
precisão, à exatidão do corrido, com detalhes e fidelidade,
diretamente unido à linguagem. Por fim, em hebraico,
temos emunah, confiança. Assim, quando predomina
aletheia, tem-se que a verdade está na evidência, ou seja, a
visão intelectual e racional da realidade tal como é em si
mesma, obtida pelas operações da razão ou do intelecto;
quando veritas é preeminente, considera-se que a verdade
depende do rigor e da exatidão; quando emunah se
sobressai, a verdade depende de um pacto de confiança e
de convenções universais sobre o conhecimento
verdadeiro. Fato é que a verdade está atrelada à realidade,
à linguagem, ao conhecimento e à confiança.

293
Não basta que nossos juízos pareçam verdadeiros,
precisamos da certeza de que sejam, mas como distinguir
um juízo verdadeiro de um falso? Para que a verdade seja
estabelecida, há um conjunto de critérios a ser observado,
que não cabe discuti-lo neste espaço, mas, em síntese,
conforme Bazarian, temos:

a) Autoridade: histórica e psicologicamente,


a palavra da Autoridade ainda mantém um papel
decisivo na opinião das pessoas;
b) Evidência: o critério mais conhecido e aceito entre
os filósofos, desde a antiguidade;
c) Ausência da contradição: refere-se à concordância
ou coerência do pensamento consigo mesmo;
d) Utilidade: diz respeito à sua utilidade prática;
e) Prova: é o critério supremo, real e objetivo, o mais
eficiente e cientificamente válido. A prova é um
raciocínio ou uma apresentação de fatos pela qual
se constata ou se estabelece a verdade de uma
proposição.Toda tese cientificamente comprovada,
portanto, é, sem dúvida, verdadeira.

As narrativas surreais do real imaginado

Não se pode deixar de discutir, ainda que


brevemente, um tópico bastante comentado nestas páginas,
porém pouco explorado como debate – a narrativa
ufológica. É, pois, essencial apresentar alguns exemplos
para ilustrar de maneira concreta as argumentações feitas.
Os relatos das testemunhas, dos pretensos contatados e
abduzidos seguem uma lógica particular, com o agravante

294
da influência direta e decisiva dos operadores da memória,
além dos já citados aspectos ficcionais, imaginativos,
emocionais e psicológicos.
Os relatos colhidos pela investigação, pessoal e
compartilhada, somados àqueles fornecidos pela literatura
especializada, são de uma diversidade e riqueza semântica
excepcionais, perfazendo um conjunto retórico que não
deixa dúvidas a respeito de uma construção elaborada
“artificialmente”, isto é, que não corresponde a uma
realidade objetiva, mas inteiramente subjetiva. Não é
intenção correlacionar os relatos aos motivos folclóricos, às
lendas urbanas e boatos, que implicaria um novo e extenso
trabalho, que nem seria inédito, pois a literatura existente já
comporta um vasto material. Citado por Leonardo Martins,
Dewan relata que “como "corpos globais de
conhecimento", muitas vezes contêm elementos
sobrenaturais ou "supercientíficos" e, no caso do fenômeno
óvni, servem como um contexto primário tanto para a
percepção inicial quanto para a subsequente interpretação
de muitas dessas experiências. Generalizando, crenças
alimentadas por experiências pessoais podem ser ligadas a
lendas locais ou regionais, enquanto as lendas, por sua vez,
estão ligadas a corpos globais de conhecimento.”67 Para
Dewan, ocorre um moto-contínuo: a crença que abastece
o memorado que alimenta a lenda que nutre a crença, um
processo de classificação que permite contextualizar uma
experiência Óvni.
Em face do inquantificável número de casos
registrados ao longo de décadas cobrindo o planeta, optei
por extrair do estudo de Martins alguns dos mais

67
Dewan, W. J. A Saucerful of secrets: An interdisciplinary analysis of UFO
experiences. Journal of American Folklore, 119(472), 187-188.2006.

295
representativos exemplos, sem julgar, opinar ou comentar.
Todos espelham tudo o que foi exposto nesta obra.
Algumas observações pontuais do autor foram inseridas
como contribuição adicional. Nota-se que os relatos
expressam um rol de ficções, credos, seitas, doutrinas,
imaginários, uma miscigenação de emoções, desejos,
medos, ansiedades, expectativas e frustrações, e ainda que
seja uma amostra bastante diminuta, é muito significativa.

Era um objeto brilhante, em forma de charuto bem


grande... bem luminosa, uma luz amarelada... com
movimentos de pulsação.... Depois de um tempo,
essa luz lança uns feixes pra baixo... uns quatro
feixes, em direção à terra.... Isso gerou um misto de
pânico e atenção das pessoas que estavam comigo
(...)
***

Tinham dois seres cinza me olhando e que faziam


um som estranho... que parecia [som de] abelhas
[tenta reproduzir o som, à semelhança de um
zumbido grave].... Eles eram cinza, um cinza claro,
olhos pretos grandes, eles olhavam um para o outro
lentamente.... hoje eu sei que... eram seres
extraterrestres mesmo.
***

Por quatro oportunidades, eu estive fora do planeta a


bordo de naves espaciais alienígenas.... plenamente
consciente, acordado.... A primeira viagem a bordo
de uma espaçonave... nós [os alienígenas e ele]
fomos até a Lua; houve uma alunissagem.... Havia

296
algumas janelas [na nave], que de dentro pra fora,
dava a nítida impressão de que era vidro. Agora, de
fora pra dentro, era metal.... A terceira vez que eu
estive fora do planeta, eu fui até Marte... eu tive que
vestir um traje espacial adequado porque houve um
pouso... eu caminhei por Marte.
***

[Eu vi] navezinhas no céu programadas. [Nós,


membros do grupo esotérico a que pertenço]
recebemos um horário e isso vai a campo para ser
confirmado. Se isso é confirmado [i.e., a nave surge
no horário programado], a perspectiva do trabalho
que vem se desenvolvendo pelo grupo [sob alegada
orientação extraterrestre] é muito grande.... [Esse
horário é recebido] telepaticamente... pelo indivíduo
que está dentro deste trabalho.
***

Eu vi passando sobre a rua... um objeto estranho....


Ele deveria ter o tamanho de uma kombi... era um
objeto esférico... tinha uma luz fosca.... Era cercado
em seu perímetro por janelas redondas ou escotilhas
que irradiavam luz.... Essas luzes da escotilha
pareciam girar num determinado sentido, enquanto
embaixo do objeto... havia uma série de luzes... que
giravam no outro sentido.
Em 1998, eu tive uma experiência de abdução. Eu
estava na casa de um ex-namorado.... Eu já começo
a sentir uma coisa estranha, e aí eu perdi a
gravidade.... Meu cabelo ia todo pra trás, sendo
puxado pra trás, como se eu estivesse em cima de
uma tábua, só que em suspenso [gesticula com a
mão, sugerindo que o corpo flutuava]... Além de

297
estar esse “homem” [um dos alienígenas, visto
primeiro]... existiam mais duas “pessoas”.... Nesse
dia, eu acordei com o punho ardendo, doendo, e
essa parte do pé aqui também ardendo [mostra a
articulação do pé]... eu tinha marcas escuras [nesses
locais]... e isso sumiu com o tempo, e o mais
engraçado que ele [o ex-namorado] ficou também...
a gente [ela e o ex-namorado] acorda com as
mesmas marcas.... Além do medo enorme que eu
fiquei... [dentro da nave, era] um lugar como se fosse
um caixão de vidro, mergulhada em um líquido, toda
cheia de tubos, e sendo estudada realmente... eu
participei de uma experiência genética, onde foi
criado algum ser através de mim; esse ser existe em
algum lugar [a voz começa a ficar embargada e a
expressão facial se torna chorosa]... eu estava dentro
de uma nave, isso eu tenho certeza.
***

Eu vi um ser desses pela primeira vez... ele apareceu


pra mim, foi um choque... ele mostrava um objeto na
mão... ele era todo dourado... era uma pele normal,
só que ela tinha uma nuance dourada.... E o
macacão era amarelo fulgurante. E ele tinha um
símbolo no peito.... No primeiro impacto, eu
acreditei que [o objeto na mão do ser] era uma
arma.... Falei com meu irmão assustada, olhando
aquele “homem” assim de dois metros e trinta... Que
ser é esse?!.... Ele [o irmão, que também é um
contatado] disse tratar-se de Orson, um ser que vem
de Órion.
<o>

Você vai com uma imagem do que você espera


encontrar lá dentro. E eu fui esperando encontrar um

298
painel cheio de reloginhos, cheio de luzinhas, cheio
de indicadores, como você vê nos aviões daqui.
Quando eu cheguei pra ver, não tinha absolutamente
nada, absolutamente nada! Tinha um único controle
e uma tela preta na frente. Só! Pra mim foi um
choque aquilo lá.
***

Na época, a gente [ela e seu grupo de contatados]


não estava preparado pra ouvir esses seres. Então a
gente ouvia, eu ouvia como se tivesse um ruído...
como se alguém tivesse tentando falar alguma coisa e
você não entendia o que era.... Pra gente conseguir
entender o que ele tava falando... ele começava a
jogar flashes de luz na gente. Então cada flash que
ele dava, a gente passava a ouvir melhor. É porque
ele estava colocando a gente na frequência dele.
***

A experiência contribuiu para minha construção de


visão de mundo... pra continuar meus estudos de
espiritismo, de ter uma espiritualidade, de ter uma
compreensão mais complexa da natureza, me
ajudou a fazer esse rompimento dessa visão utilitária
da natureza.
***

Eu passei um período de contatos com seres de


origem de fora da Terra, em outra dimensão
quântica, não é a dimensão que nós vivemos. Ou
seja, esses seres podem estar aqui presentes agora e
nós não os estamos vendo. Mas eles atravessam
portais e penetram na nossa dimensão na hora que
eles bem entendem. Isso explica, por exemplo,

299
porque tantas naves não identificadas, perseguidas
por aviões militares, desaparecem. Eles atravessam
um portal e mudam de dimensão.

Eles são nossos irmãos mais velhos, irmãos cósmicos,


com a missão de nos guiar.... Eles são muitíssimo
mais evoluídos.... Eles só não apareceram para todo
mundo ver ainda por nossa própria culpa.... Se não
conseguimos conviver nem entre nós mesmos aqui
na Terra, o que dirá conviver com civilizações
cósmicas!
Tem seres dos dois lados... esses de abdução são
seres assim altamente evoluídos tecnologicamente,
mas, na questão do Amor, não. São cientistas
espaciais.... Eles querem fazer experimentos com a
gente, igual a gente faz com camundongos.... [Em
contrapartida] a gente já fez canalização com eles
[extraterrestres espiritualmente evoluídos]... eu
achava eles bonitos demais, tanto que da primeira
vez eu fiquei só olhando pra cara deles.
***

Martins, dentro da sua linha de pesquisa, é da


opinião de que essas experiências “podem se situar
entre o ansiogênico e o protetor, desempenhando um
papel precoce ou posterior na organização
psicológica do protagonista.” Em outro contexto, ele
acrescenta que “as experiências de todos os tipos
tendem a ser consideradas por eles como construtivas,
ampliando a visão de mundo dos protagonistas e
alavancando uma ressignificação da vida em direção
a valores humanitários e a possibilidades metafísicas
como a vida após a morte e outros planos de
existência”. Por fim, ele se refere à grande dificuldade

300
dos protagonistas em entender suas experiências, e
concluírem que o fenômeno não poderia ser
explicado de forma prosaica diante do conflito
intrapsíquico da dissonância cognitiva, ou seja, o
choque entre a informação percebida pelos sentidos e
a sensação da impossibilidade da ocorrência do fato
em razão de sua natureza insólita.
***

Abandono 1. Óleo e acrílica sobre tela.


Cortesia Gloria Paillás, s/d.

301
302
Considerações finais

Os homens conseguiram finalmente


ser bem sucedidos em converter
tudo o que a mente humana é capaz de mentir
e acreditar em algo mais compreensível que
a verdade, e é isso que prevalece por todo o mundo.
Durante séculos a verdade irá continuar à frente
do nariz das pessoas, mas elas não a tomarão:
irão persegui-la através da fabricação,
precisamente porque procuram algo fantástico e utópico.

DOSTOIÉVSKI

303
304
Ao amarrar todas as fontes em seus diferentes
formatos para tratar e entender o “disco voador”, estava
evidente que teríamos uma abordagem multifacetada, na
qual a reflexão atravessaria os contornos teórico e
epistemológico das matérias e do próprio fenômeno. Em
outras palavras, Naus propicia desfrutar de um “banquete“
e não de um prato pronto. O itinerário argumentativo,
delineado com o suporte das letras e vozes de um panteão
de catedráticos de alto nível, não teve preferência por este
ou aquele em especial, embora alguns tenham sido
circunstancialmente mais exigidos. É inevitável a sensação
de que alguém ou alguma obra tenha ficado de fora, ou
que algo que precisava ser dito não o foi. Melhor assim,
que esta obra não se encerre nela própria, afinal, chega um
ponto em que é preciso mesmo descansar a caneta.
Não devemos subestimar o fato de que todo saber
não está, em si mesmo, isento do erro e da ilusão em busca
da verdade, ao navegar num mar de interrogações
pontilhado de arquipélagos de certezas. Cometemos um
crasso erro ao achar que não cometemos erros. Como
clichê inverso, as partes não superam o todo, que é
inegavelmente grandioso, ou seja, o todo não é a soma das

305
partes. Longe de um expediente retórico, é um modo de
ratificar um dos pilares do pensamento complexo: a
incompletude, o inacabamento, o conhecimento
fracionado. Estas páginas falam por alguém que
compreende o mundo a partir do mirante que ocupa, da
maneira como o percebe e das informações que considera
respeitantes. Por isso, ainda que todos tenham acesso aos
mesmos dados, cada um os organiza conforme os modelos
de pensar e de viver, decorrentes justamente da natureza
subjetiva do conhecimento e de suas vivências pessoais.
O presente século exige, reclama, impõe a
premência de uma conduta daquele que pretenda lidar
com o mundo: abrir uma roda de conexões com os saberes
na qual diálogo, reflexão, dialética, crítica e
transdisciplinaridade devem ser os gestores dos novos
paradigmas. Ou isso, ou aquela fina lâmina de gelo sob
seus pés se romperá sob o peso de sua imobilidade.
Entramos de vez na Era da Informação e da Comunicação
com todas as suas plataformas, dimensões e direções, e
empacar na soleira destes novos tempos é comprazer-se na
própria ignorância. Por estarmos sempre no plano das
interpretações, é importante entender que, na relação entre
o sujeito e o fenômeno do qual ele trata, não se pode
afirmar “isto é assim”, sendo mais conveniente o moderado
“é isso que posso dizer”. Ocorre que o ufólogo é vítima
(vítima?) de uma única interpretação e seu ideal é imutável.
A complexidade do tema é movida pela dinâmica da
incompletude, o que vale dizer que este trabalho também
estará sempre inteiramente sujeito a revisões e
reformulações.
No entender de Morin, o processo cognitivo é a
conjugação, em dosagens variadas tanto no nível

306
individual quanto no coletivo e histórico, de três domínios
de aptidões que constituem o sujeito cognoscente: pulsão,
razão e emoção. É a ligação entre eles que constitui uma
dada estrutura a partir da qual os conhecimentos e as
informações reunidas são retotalizadas, significadas,
compreendidas, avaliadas e julgadas. Ele alerta, entretanto,
para uma das ciladas que esse processo normalmente nos
arma, a de que toda cognição, toda concepção e
percepção são impulsionados pela emoção – no sentido de
uma mobilização cognitiva a partir da alquimia entre
aqueles domínios, que devem se harmonizar para se tornar
uma produtiva ferramenta artesanal de conhecimentos.
O quadro geral do estudo nos mostra que, pelo viés
histórico, parece não haver dúvidas de que a conjunção de
fatores específicos contribuiu para o surgimento de um
fenômeno avant la lettre, de indiscutível natureza psíquica
em muda gestação: as guerras, as agruras, as incertezas, as
tensões, as transformações políticas e sociais e uma cultura
em formação, espelhando uma nova e estranha realidade.
Estranha realidade? Na esfera cultural ligada àquelas
mudanças sócio-históricas, detectou-se que o sujeito não
conseguia reconciliar-se consigo mesmo nem com o
mundo, encontrando nos arquétipos o escoadouro para
manifestar esse conflito, mas a única linguagem que o
inconsciente dispunha vinha dos símbolos, das imagens,
delírios, mitos e sonhos. E das neuroses. Com a descoberta
do inconsciente, o homem viu brotar suas fraquezas mais
recalcadas, suas dores mais viscerais, seu despreparo para a
vida, sua incapacidade e sua solidão no cosmo. O sujeito
pensador encarcerado no animal predador, uma dualidade
inconciliável, um conflito subterrâneo avassalador, a
absoluta impossibilidade de um animal transcendente:

307
saber muito, mas não saber tudo, cego e visionário – um
corpo finito que enxerga o infinito, causa e efeito, tem
consciência de si mas não do que é. O indivíduo nega-se a
reconhecer que está só e que se escora em algo que está
além dele – um sistema de ideias e poderes no qual está
inteiramente submerso. Para Becker, o homem vive
incomodado por se encontrar preso a um corpo que um
dia pertenceu a um peixe, e ainda traz as marcas das
guelras para prová-lo. E incomodá-lo.

Exilado em seu existente, o homem quer

“ ultrapassar-se. Não se satisfaz com ser,


numa quietude fechada em si mesma, o
perpétuo retorno do existente. Não mais se
reconheceria autenticamente como
homem, se se contentasse com ser o
homem que hoje é.

Karl Jaspers

Introdução ao Pensamento Filosófico

Ao papel que a ficção científica cumpre nas


sociedades contemporâneas, a fala de Tucherman serve à
perfeição: “Temos assim, de um lado, a modernidade
sonhando com a realização da utopia pela irreversibilidade
da flecha do tempo, o mito do progresso e do progresso da
razão e, de outro, a ficção científica fabulando utopias,
distopias e heterotopias, construindo suas histórias tendo
como temas hibridismos entre homens, animais e máquinas
308
assim como experiências em inusitadas configurações
espaço-temporais.“
Presumo que tenha ficado suficientemente claro que
as experiências ufológicas aproveitam-se das
particularidades das narrativas ficcionais, ambas traduzindo
uma identidade tanto social como individual. Dentro da
configuração característica da modernidade, o sujeito não
pode constituir a sua estrutura psíquica sem a confrontação
com o outro no reconhecimento do não eu como
existência autônoma em relação ao eu. Vários autores,
entre eles Lacan, Freud e Elias, analisam as dinâmicas
sociais a partir das relações entre os indivíduos, afirmando
que a individualidade só se realiza em meio aos outros.
Inclusive outros mais exteriores. A ficção científica constrói
uma moldura filosófica e metafísica envolvendo os mais
importantes aspectos de nossas vidas e de nossas
consciências, ao lume de uma dura realidade. Ela habita e
pulsa no espaço intangível e silencioso entre o real e o
irreal, é ali que ela tem o seu passaporte carimbado, a
fronteira mágica onde finda o verdadeiro e começa o
imaginário, levando na bagagem a ufologia, os discos, a
fauna extraterrestre e todas as esperanças humanas.
Enquanto o homem procura um sentido para a vida,
encontra a morte, e ao encontrar a morte, não sabe que
sentido a vida tem, se tem um. Faz sentido viver para
morrer? Sartre diz que, mais que a morte, a própria
existência é um absurdo, ela não tem razões nem
explicações, não se justifica por si mesma. Existir é
simplesmente estar presente. Já Castoriadis diz que o
homem cria um sentido para aquilo em que não vê sentido
algum, e a busca de um se confunde com a veneração da
obscuridade, explicada dessa forma por Eco: “A tentativa

309
de buscar um significado geral inatingível leva à aceitação
de uma permanente oscilação ou desvio do significado.
Uma planta não é vista em termos de suas características
morfológicas e funcionais, mas com base em sua
semelhança, embora apenas parcial, com outro elemento
do cosmos. Se ela se parece vagamente com a palma da
mão, então tem significado porque se refere ao corpo. Mas
aquela parte do corpo tem significado porque se refere a
uma estrela, que tem significado porque se refere a uma
escala musical e isso porque esta, por sua vez, refere-se a
uma hierarquia de anjos, e assim por diante ad infinitum.”
Não encontrar um sentido para a vida produz no
homem um tipo específico de neurose – a noogênica,
espiritual, um dos sofrimentos psíquicos mais disseminados
no mundo: nosso medo da morte e do pavor de que a vida
seja só isso: um instante de solidão entre o primeiro grito e
o último suspiro. O mago de Bologna, como Umberto Eco
é conhecido pela sua enciclopédica erudição, dá um
exemplo. Em “O Pêndulo de Foucault” 68 ele cita a
existência do livro medieval Mundus Symbolicus, de
Philippi Picinelli, escrito em 1694, que contém orientações
de como deveriam ser construídos os jardins dos nobres, de
maneira que seus traçados evocassem forças místicas.
Trata-se de uma ficção, uma história paralela para compor
o cenário da história principal, mas os leitores acreditaram
e correram atrás de Mundus para construir seus jardins.
Mais recente, o romance de Dan Brown, “O Código Da
Vinci”, fez muito leitor ingênuo percorrer os mesmos
lugares relatados na obra, no intuito de descobrir sinais
secretos que denunciassem a conspiração de silêncio sobre
a descendência viva de Jesus. Santa inocência, pois
68
Rio de Janeiro, Record, 1997.

310
ignoram que a história foi criada e grande parte
descaradamente copiada de farsantes, que fabricaram
documentos históricos e mapas com o explícito objetivo de
fazer dinheiro.
Se a vida é de fato um acidente cósmico, uma
anomalia, um prodígio, obra do acaso e da natureza, um
extraordinário e fortuito encontro de organismos aleatórios
sob o influxo de fatores improváveis, então não parece
fazer sentido buscar um sentido para ela. Uma existência
sem sentido, um real que não pode ser interpretado, um
inconsciente irrevelável, uma consciência que não
consegue ver a si mesma, uma desalentadora quietude
sideral. O que resta ao infeliz senão a neurose? Resta
representar, ser artífice do imaginário e da habilidade em
(re)criar imagens e relacioná-las de modo a inventar
sentidos e saídas.
O sujeito deseja a eternidade, sonha dominar o
tempo, mudar sua história, comandar seu destino. Não é
pouco, e, incapaz, cria fantasias, quimeras, ilusões,
mentiras, devaneios e ficções. Mergulha no imponderável
pensando ter alcançado as respostas sem saber se fez as
perguntas certas. Cavaleiro solitário no reino de Pasárgada,
conversa com o próprio eco – ou ego – num monólogo
tragicômico. No mundo real, esconde-se por trás de
máscaras sociais, jacta-se de seus bens, reverencia os
honrosos títulos, vomita empáfia, até que a morte o separe.
Sua existência não pode ser destituída de significado, o
universo é muito vasto para que seja habitado por uma
única espécie, mesmo não a melhor delas, deve haver mais
alguém por aí, precisa haver. Na falta de evidências,
fabrica-se uma, é para isso que serve a imaginação, a
faculdade criativa, a ilusão, o que nos permite preencher os

311
buracos do que não sabemos, não conhecemos. Pensar
dói. A ficção é a narrativa concreta, o imaginário, a
linguagem abstrata.
É assim que funciona, essa é a válvula para
desafogar a angústia, o martírio, suprir a grande ausência
que mora em nós. Difícil é livrar-se da marca indelével em
nossos circuitos – o egocentrismo exibicionista como parte
da configuração padrão original. Difícil é aceitar a verdade
desvelada pela mentira, mas difícil mesmo é olhar-se no
espelho e deparar com a criança mimada, narcisista,
insegura, belicosa, neurótica, barulhenta, carente,
insatisfeita, patética, delirante, desonesta, melancólica,
covarde, chorona e principalmente, angustiada. Platão diria
que somos uma lástima, uma improbabilidade, um
equívoco. É o que somos, é o estofo do humano, goste-se
ou não.

O disco voador virá para nos arrebatar e nos levar a


um mundo paradisíaco. Os alienígenas são nossos irmãos
cósmicos protetores e guardiães do Universo. Estão se
preparando há milhares de anos para o contato final;
realizam experiências genéticas para adaptação das
espécies, gerando filhos híbridos para acelerar o processo
de miscigenação; monitoram eletronicamente nossos
passos, uma colônia deles está infiltrada nos governos
ocupando cargos vitais nas grandes potências, observando
e agindo nos bastidores, tudo em nome da irmandade
galáctica.

Eis a amostra do mundo ufológico fantasmático que


está por toda parte, mais próximo do que se imagina,
roçando os calcanhares. A ilusão é oportunista, dissimulada

312
e traiçoeira: quando menos se espera somos laçados por
seus longos e aveludados braços. O mistério é fascinante, o
desconhecido atraente e a imaginação sedutora. Somente a
razão e o conhecer nos libertam do enlevo hipnótico da
fantasia e da ilusão. O saber não é um espelho do mundo,
o percepto e o afecto são, simultaneamente, traduções e
reconstruções mentais baseados em estímulos codificados
pelos sentidos, que resultam incontáveis ilusões e erros de
percepção originados de nosso sentido mais confiável que
é o da visão. Ao traduzir e reconstruir as coisas, nosso
intelecto as interpreta através da linguagem, da palavra,
elas mesmas igualmente sujeitas ao erro.
A Ufologia inspira-se no exercício ficcional e na
prática imaginativa para fundar seus próprios conceitos, tão
sólidos como palafitas no pântano, tão palpáveis como um
arco-íris, enquanto o fenômeno Óvni, no plano mítico,
revela um conteúdo de simbolismos muito além da sua
presença. Seja como for, ambos, por diferentes percursos,
tratam da natureza humana ambígua e dilemática: ora
mística, crédula e frágil, ora crítica, racional e centrada.
Qualquer que seja o território da análise, o resultado
é sempre compensador: o indivíduo está no centro da
questão e é por ele – e só por ele – que se pode encontrar a
verdade, incompleta e fragmentada. Há uma dimensão
humana perpetuamente oculta à espera desejando ser
desbravada. Ou redescoberta. Deixemos o
deslumbramento para aqueles momentos que pedem essa
emoção, já que a vida é abundante de esplendor, ela
própria uma obra de arte a ser renovadamente admirada.
A ficção científica aquece desejos, reacende
temores e acalenta fantasias, fortalecendo crenças e
opiniões a favor da existência destes objetos. Sendo

313
influente elemento condicionante e desencadeante na
percepção de fenômenos incomuns, a sci-fi acarreta um
aumento nas notícias de observações que denotam na
população um estado latente de emoção pronto a se
manifestar.
Em sua pueril ignorância e na vã esperança de
driblar suas angústias, o homem constrói suportes
alternativos, mais apropriadamente chamados muletas
metafísicas como, por exemplo, a crença na vida após a
morte, na vida eterna, na reencarnação como processos
cíclicos de retorno ao mundo dos vivos. Becker ressalta a
necessidade das pessoas por um “além”, e elas se apegam
ao porto mais próximo, o que lhes dá o alento de que
precisam, ao mesmo tempo limitando-as e escravizando-as.
Ele considera o problema todo de uma vida perguntando
em que tipo de além as pessoas tentam expandir-se e
quanto de individualização obtém nele.
Angústias, muletas metafísicas. É tão óbvia a relação
que nem precisaria comentar não fosse pela relevância no
entendimento desse estudo, ainda que o faça sucintamente.
A raiz etimológica de angústia vem do latim angustius e se
refere a um “abismo profundo e estreito” que se deve saltar,
isto é, a sensação causada diante do vazio. Na filosofia,
recorrendo a Kierkegaard, esta noção se traduz como a
atitude do homem face sua situação no mundo, ou, dito de
outra forma, sua existência como sentimento puro de
possibilidade – a dimensão do futuro na qual vive
mergulhado e que não lhe traz nenhuma certeza de
sucesso, ao contrário, ele sabe conscientemente que a
finitude é o único futuro possível e garantido. A inocência é
ignorância e a ignorância é angústia. Ao se dar conta disso,
reconhece apenas dois caminhos: a morte ou a fé, ou o

314
recurso a “Aquele em que tudo é possível”. Kierkegaard vê
a angústia como elemento essencial da espiritualidade
própria do homem, ainda que frágil, e a fé não como uma
realidade de certezas absolutas, mas como a “certeza
interior que antecipa a infinitude”. Encerro este brevíssimo,
mas relevante comentário, pela simples razão de que há
inúmeros tratados a respeito de angústia que dissecam o
tema de forma brilhante e infinitamente melhor, mas foi o
suficiente para prover o leitor em suas observações a
respeito do assunto “disco voador”.
Na idade tecnocrática atual, o sujeito acredita em
discos voadores que virão resgatá-lo no dia do juízo final, e
em seres extraterrestres salvadores que irão responder às
indagações centrais de sua vida – Quem sou, de onde vim
e para onde vou e qual o sentido da vida. Não se iluda,
elas jamais serão respondidas, e isso é torturante para o ser
humano: se lhe afoga o espírito, lhe incendeia o intelecto,
se a curiosidade lhe move, o medo o paralisa, daí as
neuroses e as crenças obsessivas no impalpável como
caminhos vicinais de explicação para o inexplicável. Se de
um lado amplia-se o conhecimento das partes, de outro,
agrava-se a ignorância do todo. O ser humano percorre a
sua existência forjada pela precariedade, perambulando na
farsa ilusória de que é capaz de dominar-se e dominar os
perigos, construindo insistentemente tentativas mágicas de
proteção.
A quase totalidade dos ufólogos é naturalmente
refratária aos estudos no campo das ciências sociais ou de
qualquer outro saber que esteja fora ou supostamente fora
do seu exíguo campo de pesquisa, ou que esteja
contraditório às suas trancadas convicções. Como a visão é
unidirecional, só enxergam a cenoura porque estão muito

315
mais (pre)ocupados com o disco que não percebem, não
podem perceber, um pujante fenômeno por trás esperando
e pedindo para ser explorado, eclipsado pelo objeto à
maneira de um palimpsesto.
Para Horkheimer, é a razão que está eclipsada e
gradualmente se estupidifica: “Hoje, a ideia de maioria,
privada dos seus fundamentos racionais, assumiu um
aspecto totalmente irracional. Toda a ideia filosófica, ética
e política - tendo sido cortado o cordão umbilical que
ligava essas ideias às suas origens históricas – tende a
tornar-se o núcleo de uma nova mitologia, e esta é uma das
razões pela qual o avanço do iluminismo tende a reverter,
até certo ponto, para a superstição e a paranoia”. E mais,
“O princípio da maioria, na forma de veredictos populares
sobre todo e qualquer assunto, implementado por toda a
espécie de escrutínios e modernas formas de comunicação,
tornou-se a força soberana à qual o pensamento tem de
prover”. E fecha sua argumentação: “A crise atual da razão
consiste basicamente no fato de que até certo ponto o
pensamento ou se tornou incapaz de conceber tal
objetividade em si ou começou a negá-la como ilusão. O
resultado disso é o desterro da razão”.
O palimpsesto está além dos olhos, mostrando o que
não se vê. Freud designou de “recalcamento” o ferrolho
que se observa em todos os casos de recusa de percepção.
Muitos preferem a opinião e a paixão aos fatos. Esta
inapreensão de uma dada realidade lembra o diálogo dos
peixes de David Wallace: “Dois peixinhos estão nadando
juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em
sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz: – Bom dia,
meninos. Como está a água? Os dois peixinhos nadam

316
mais um pouco, até que um deles olha para o outro e
pergunta: – Água? Que diabo é isso?”69
O espelho é um palimpsesto, o símbolo, o mito, a
memória, a linguagem, a escrita, a ficção são palimpsestos.
O “disco voador” e as imagens também, como dizia
Baudrillard: “Por trás da orgia das imagens, alguma coisa se
esconde. O mundo furtando-se por trás da profusão das
imagens é o caso de uma outra forma de ilusão, talvez uma
forma irônica”. Enquanto livros dormitam em prateleiras
empoeiradas, nota-se um crescente assustador de mentes
desprovidas da mais modesta intelecção, com absoluta
inapetência pelo saber. Em vista disso, cabe reproduzir
Antonio Candido ao citar Napoleão: “As ciências
contribuem muito com o que o homem é. A literatura é o
próprio homem”.
É óbvio que se os ufólogos, como apedeutas à deriva,
não menosprezassem o saber e a reflexão, teriam outra
postura e outra concepção sobre o fenômeno, e não
estariam estáticos e extáticos por décadas acorrentados na
estaca zero, no ponto mais raso da pesquisa. Usando da
inspirada gravura de Escher no início da obra, eles sobem
(ou descem?) em círculos, às cegas e aos tropeços, no topo
de um castelo imaginário, indo do nada a lugar nenhum. E
fica a lição nas palavras do gato de Alice: “Qualquer
caminho serve àquele que não sabe para onde vai”.

69
David Foster Wallace, escritor americano, em discurso como paraninfo
de formandos do Kenyon College, em 2005.

317
“ Então eis que o livro desencadeia em nós,
durante uma hora, todas as venturas e todas as
desgraças possíveis, algumas das quais
levaríamos anos para conhecer na vida, e outras,
as mais intensas dentre elas, jamais nos seriam
reveladas, pois a lentidão em que se processam
nos impede de as perceber. Assim muda nosso
coração, e esta é a mais amarga das dores, mas é
uma dor que só conhecemos pela leitura e pela
imaginação. A literatura é, sobretudo, uma
forma de compreender e se relacionar com o
mundo.

Marcel Proust ”
Quando o ufólogo adere a um pensamento único, ele
não se dá conta de que está deixando para trás uma
preciosa parte de si como criatura pensante, ignorando o
próprio poder de compreensão. Não dando valor à sua
inteligência porque jamais a testou, curva-se à primeira
crença que o impressione e cative e a tem como verdadeira
e definitiva com demencial soberba. Além disso, não
percebe que está ficando cada vez mais desabrigado,
enfraquecido, asfixiado, entrevado, deslocado do mundo,
mas embarricado em becos – bunkers –, bolsões de
sobrevivência, ou, como os invertebrados (inflexíveis),
fechados em sua própria concha, ou ainda, que caminha
sobre um cadafalso que se lhe abrirá sob os pés a qualquer
momento. Mentes disjuntivas, atomizadas, confinadas em
seu restrito campo de visão, perdem suas aptidões para

318
contextualizar os demais saberes e integrá-los em seus
conjuntos naturais.
O anulamento da percepção global conduz ao
esvaziamento da responsabilidade e empobrecimento do
conceito de conjunto. O fenômeno Óvni opera dentro de
um sistema intelectual de perplexidade, com dimensões e
perspectivas que mostram os vícios e as imperfeições dos
sentidos. O conhecimento estagnado dos ufólogos é uma
forma particular de abstração. A “especialização” extrai o
objeto de seu contexto e de seu conjunto, rejeita os laços e
as interrelações com o ambiente, introduzido o objeto no
setor conceitual abstrato do seu meio – a Ufologia, cujas
matrizes quebram a sistemicidade – relação da parte com o
todo – e a multidimensionalidade dos fenômenos. Essa
redução, tanto do pensamento como do conhecimento,
restringe a lógica do complexo à lógica do simples,
entendendo por complexo, do latim complexus – tecido
junto. Pode também conduzir ao banimento de tudo que
não seja quantificável e mensurável. Da mesma forma,
quando obedece estritamente ao postulado determinista, o
princípio de redução repele qualquer movimentação que
desestabilize o sistema ordenador primário. A incapacidade
de aglutinar, organizar e articular o conhecimento implica
na atrofia da disposição mental natural de contextualizar e
totalizar.
Ter consciência das incertezas do ato cognitivo
constitui a oportunidade de alcançar o conhecimento
pertinente, que exige análises, cuidados, observações,
verificações e a convergência dos indícios. Através dos
pensamentos cruzados, atinge-se a precisão para conduzir
a adequação simultânea de sua definição e sua
congruência com as demais ideias comuns. O conjunto

319
harmonioso e concordante das verificações comporta a
legitimidade da premissa cognitiva.
Diante da incapacidade de apreender o Ser, e se os
sistemas religiosos não atendem a aspiração para a
imortalidade pretendida, um sucedâneo deverá confortá-lo
na hora final. Nietzsche pode ser remédio amargo, mas seu
efeito não se discute: ou caímos no despenhadeiro
dançando e cantando ou gemendo e chorando. “A grande
maioria dos homens suporta a vida sem muito resmungar, e
acredita então no valor da existência, mas precisamente
porque cada um quer e afirma somente a si mesmo, e não
sai de si mesmo como aquelas exceções: tudo extrapessoal,
para eles, ou não é perceptível ou o é, no máximo, como
uma frágil sombra. Portanto, para o homem comum,
cotidiano, o valor da vida baseia-se apenas no fato de ele
se tomar por mais importante que o mundo.”
Aceitar a natureza humana, o desconhecido e
reordenar o caos interior devem ser os objetivos
primordiais do sujeito, para que o sentimento de abandono
frente a sua mortalidade não seja visto em sua real
extensão. A vida humana ocupa um espaço entre o nada
do antes e o nada do depois, um nada cósmico em que
tudo acontece. Ou o homem se enreda nas teias da crença
e se entrega às ilusões e fantasias, ou carrega o pesado
fardo da razão por um caminho de conhecimento e
descobertas. A escolha se situa entre o princípio do prazer,
que preza a busca da satisfação por meio da aparência, e o
princípio de realidade que, pelo sistema
perceptivo/cognitivo, trata das relações do sujeito com o
mundo exterior e com as restrições impostas por este.
Não há solo neutro entre a zona de conforto e a zona
de conflito. É preciso escolher entre a pílula azul e a

320
vermelha de Matrix. A escolha significa viver na deleitosa
ilusão e ignorância ou na dolorosa, crua, áspera e cruel
realidade, na vegetativa alienação ou na luminosa
autenticidade. Nossa consciência é o que nos move
conforme o modo como (re)agimos aos significados
ocultos, na medida em que podem se relacionar com a
nossa experiência de vida e com o atual estado de
desenvolvimento pessoal.
Ao propor que o “disco voador” seja uma
representação ampla do mundo em que vivemos e das
contingências e convenções da vida que levamos, o mito
da caverna de Platão surge como uma boa alegoria para
tecer os comentários finais. O disco voador projeta sombras
sobre a realidade e por elas o homem pensa deduzir a
natureza do objeto. Os fatos observáveis, palpáveis,
ostensivos podem ter pequena repercussão no íntimo, na
essência da personalidade individual; as tendências apenas
indicadas, os sonhos desfeitos, os encontros fortuitos são,
não raro, muito mais importantes e serão também
fertilíssimo material analítico.
O impacto provocado pelo conhecimento ao
romper-se os grilhões da ignorância impõe sacrifícios
sempre dolorosos: libertar-se dos medos, crescer, abrir os
olhos, lapidar o espírito inquiridor para poder contemplar o
mundo em sua integralidade. Esse encontro, essa
descoberta, não se limita ao conhecimento per si, mas à
compreensão do todo, inclusive e principalmente de si
mesmo. São dois mundos que desafiam nossa percepção –
o visível e o inteligível. Enquanto no primeiro o reino dos
sentidos captado pelo olhar subjetivo vive a maioria dos
homens, condicionados pela obscuridade da caverna e
iludidos pelas aparências do que imaginam ver, no

321
segundo impera a inteligência e a sabedoria através do
olhar da razão.

“ Sócrates — Considera agora o que lhes


acontecerá, naturalmente, se forem libertados
das suas cadeias e curados da sua ignorância.
Que se liberte um desses prisioneiros, que seja
ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a
voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos
para a luz: ao fazer todos estes movimentos,
sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de
distinguir os abjetos de que antes via as
sombras. Que achas que responderá se alguém
lhe vier dizer que não viu até então senão
fantasmas, mas que agora, mais perto da
realidade e voltado para objetos mais reais, vê
com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe
cada uma das coisas que passa, o obrigar, à
força de perguntas, a dizer o que é? Não achas
que ficará embaraçado e que as sombras que
via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do
que as objetos que lhe mostram agora?

Platão
A República

Se para Platão a fuga da caverna joga o indivíduo
para outra ordem de questões que só pela contemplação
ele poderá pressentir, para Castoriadis a razão é labiríntica
por si própria e só a capacidade permanente de instituir-se
pode salvar a sociedade e o homem do engano e da

322
manipulação. O cativo que passa toda sua vida aprisionado
à caverna, não tem possibilidade de ver o que se passa lá
fora nem o fulgor do sol a brilhar, onde vivem as coisas
reais e verdadeiras. Sartre sente o homem arrastando-se
letárgico por entre as fendas escuras da caverna,
imaginando-se conhecedor do universo quando, na
realidade, se satisfaz com suas pequenas descobertas com
sadia ilusão para manutenção de sua existência.
A partir do "Penso, logo existo", Sartre aprofunda sua
reflexão. A consciência da existência, o sentir-se existir,
advém do fato do pensamento, ou seja, à medida que se
pensa, sente-se existir. Porém, essa consciência é algo
horrível quando ele constata que a única forma para fugir à
existência é fugir ao pensamento. Mas como fugir ao
pensamento se a necessidade de fuga já é um pensamento
que nos reconduz à existência? Ele então conclui que
estamos encaixotados no existir, pois o caminho do
pensamento e a chegada ao sentimento de ser são
inseparáveis. Eis a náusea: quem suporta estar consciente
de sua prisão sem se sentir nauseado?
Estamos abandonados numa ilhota perdida em
algum lugar do espaço, exaurindo seus recursos, sem que
nossos clamores sejam ouvidos e sem saber se alguém
pode nos ouvir. Ao menor movimento no horizonte, nos
colocamos em polvorosa, nos agitamos esperançosos, nos
alvoroçamos, lançamos garrafas ao ar, acendemos
fogueiras, fazemos fumaça e muito barulho e nunca fomos
notados. Jamais seremos. Nossa sanidade fica
comprometida ao não distinguirmos mais o real do
imaginário, da alucinação, do delírio. Estamos mesmo
encrencados. Não podemos ignorar o fato de que
dependemos unicamente das nossas melhores e mais

323
criativas capacidades. Não podemos jogar utópicas
esperanças em deuses mitológicos ou alienígenas,
autênticos devaneios e auto-ilusão. Não podemos
imaginar, na mais remota possibilidade de encontro com
alguma civilização extraterrestre, longeva e avançada, que
estaremos protegidos e a salvos do aniquilamento ou que
alcançaremos as estrelas.
Desse modo, a aquarela que tingiu esta clínica se
constituiu de vários matizes: a) o cenário mundial
contemporâneo e a inserção da Ufologia nesse contexto; b)
a recomposição historiográfica e “arqueológica” dos fatos;
c) a experiência prática, o estudo e o conhecimento
entretecidos no decurso de mais de quatro décadas; d) a
estrutura do próprio fenômeno Óvni; e) a consulta em
fontes de alto teor cognitivo. Assim, pareceu legítimo
deduzir que o ser humano encontrou no “disco voador”
mais uma fórmula para encobrir as dores mais submersas,
mais reprimidas – a ignorância sobre a origem da vida,
sobre a própria vida, sobre si mesmo e, sobretudo, a
perturbadora consciência da morte. Começo, meio e fim,
um mistério tão inacessível quanto o próprio cosmo. Sendo
inviolável, como todo mistério, o homem o modela em seu
constructo e lhe dá forma , nome e uma linguagem.
Parafraseando Montaigne ao se referir às crenças,
“Amoldamos [o mistério] tal qual cera mole a nossos
caprichos, obrigando-o assumir a forma que queremos”.
A face do mundo contemporâneo mostra a distância
entre os dois discursos: o da razão, marcado pela busca da
verdade através de uma lógica da não contradição, e o
imagético, de raiz mitopoética, constituído por aspectos
ficcionais e imaginários. Há ainda a separação de duas
dimensões sociais da formação humana: a produção de

324
conhecimentos, e a mídia, ponto de circulação e consumo
de uma cultura massificada, célere, sinóptica, portanto
quebradiça e dispersiva. O que o nosso estudo propõe, ao
revés, é mediar e imantar o diálogo, fazer o papel de
pontífice (do latim pontifex – construtor de pontes),
estabelecendo ligação entre a imagem e a razão. Vai,
assim, ao encontro do pensamento de Benjamin, que
desaprova tal separação, buscando aproximar o discurso
mitopoético com o conhecimento, quando acolhe o
conceito na imagem para renovar os instrumentos desse
conhecer.
“Todos os homens desejam, naturalmente, saber”,
dizia Aristóteles, que o pensamento de Santo Agostinho,
séculos depois, complementaria: “Mas nem todos
desejamos crer”. Conhecer, saber, investigar, é um impulso
natural, espontâneo, o mais nobre, fonte de toda a
sabedoria, toda ciência, toda cultura e toda liberdade.
Movemo-nos por um contínuo interfluxo de ideias – as que
temos e as que nos têm, buscando convivência em que
tramitem crítica e autocrítica, diálogo, abertura, liberdade,
reflexão e complexidade.
Desconfiamos de nossos ideais, que nos são
necessários, por isso estamos sempre atentos para evitar
idealismo e racionalização, negociando e controlando ao
mesmo tempo os produtos da mente e as ideias. A troca de
comunicação entre as diferentes zonas de nossa mente é
essencial para tentar detectar a mentira em nós mesmos, e
assim desenvolver uma nova geração de teorias abertas,
racionais, críticas e autocríticas, sempre prontas a se
autorreformar.
Volto a Baudrillard neste final para refletir um pouco
mais sobre os (des)caminhos da Ufologia e entender

325
porque as coisas funcionam desse modo. Um conto que
absorveu a atenção do escritor por muitos anos foi “Os
Nove Trilhões de Nomes de Deus”, de Arthur C. Clarke, de
1953. Vou dividir este comentário em três etapas: um
resumo do conto, uma comparação com o universo
ufológico, e usando a filosofia baudrillardiana, uma análise
do problema.
O conto de Clarke se refere a uma confraria de
monges do Tibet que se dedicava à recitação dos nomes de
Deus. Todos os nove trilhões de nomes! Quando todos
tivessem sido declamados, o ciclo do mundo chegaria ao
fim. Eis o seu delírio religioso — ou a verdade da sua
pulsão de morte. Essa tarefa tem levado séculos, até que
descobrem que a tecnologia poderia abreviar esse tempo, e
encomendam um poderoso computador que, graças à sua
capacidade, completaria a missão dos lamas em
pouquíssimo tempo. E como se daria o fim do mundo? A
cada nome declinado, uma estrela apagar-se-ia. Quando
não houvesse mais estrelas, o mundo chegaria ao seu
termo.
Tomando emprestada a estrutura do conto, não é
difícil encontrar paralelos com o “delírio” ufológico. Não
temos nove trilhões de nomes a recitar nem as estrelas
apagar-se-ão caso o façamos. Mas há decênios os ufólogos
empilham casos, relatos, fotografias, filmes, contatos,
“provas irrefutáveis”, um após outro, pouco importando a
inconsistência dos resultados ou a seriedade das fontes.
Não satisfeitos, duelam com quem se lhes opõe,
pressionam tenazmente governos e autoridades a “abrir
seus arquivos”. E as estrelas seguem brilhando. Eis aí uma
tarefa cansativa – a dos ufólogos, não a dos monges, numa
espécie de tributo a Sísifo. Os monges fatigados recorrem à

326
tecnologia. “Por assim dizer, a história do mundo realiza-se
em tempo real, devido à operação do virtual. Infelizmente,
dá-se também a desaparição do mundo em tempo real.”
Baudrillard propugna que a verdade é que acabará
com o mundo, pois sua beleza consiste na imperfeição, nas
contradições, nos embates, nas alternâncias, nos
paradoxos, nas ilusões. “Não há lugar na Terra,
simultaneamente, para Deus (os astros naturais) e para os
nomes de Deus. É um ou outro. Não há lugar ao mesmo
tempo para o mundo e para seu duplo.” Não há lugar no
mundo para duas verdades, nem para o “ou é... ou é”: ou o
“disco voador” é um disco voador, ou é qualquer outra
coisa inclusive uma terceira possibilidade. Será o fim da
história ufológica a contagem regressiva pensada por
Baudrillard, isto é, somente quando todas as estrelas se
apagarem é que os ufólogos saberão a “verdade” sobre os
discos voadores? Ou pode ser também que quando a
verdade for revelada, o mundo chegará ao seu fim? O mais
provável, justamente por estar acima da compreensão
humana, é que nem ufólogos nem não ufólogos
encontrarão a verdade, com ou sem fim do mundo. Veritas
filia temporis, no autoritatis.
A narrativa de Clarke esconde o prazer e o
desespero do colecionador de nomes. O que seria uma
hipérbole a respeito da infinita grandeza de Deus, seu
caráter inapreensível, sua transcendência, torna-se para o
lama um desafio, uma obsessão narcisista. O que seria um
número indefinido de nomes, simbolizando o indizível,
porque incontável, passa a ser o objetivo do colecionador,
“senhor no seio de seus objetos.” Na mesma linha,
encontramos o prazer e o desespero do colecionador de
figurinhas, ou melhor, do compilador de relatos sobre

327
discos. O que seria uma hipérbole a respeito da “grande
revelação” do fenômeno, seu caráter transcendente torna-
se, para o investigador, um desafio, uma obsessão narcísica
bem característica destes tempos. Como diz Lipovetsky,
“uma monumental explosão individualista”, ou ainda, a
“sedutora leveza do ser”, aludindo a Kundera, que chamou
de imagologia para definir a desmedida importância e
poder da imagem social como valor prioritário.
Em seu delírio possessivo, os lamas queriam
apressar o término do trabalho. Os ufólogos querem logo
as respostas. Os lamas não tinham consciência de que se
manifestava nesta sua pressa a pulsão de morte. O mesmo
vale para os ufólogos ao não perceberem que é através do
conhecimento partilhado que as explicações afloram.
Possuído pelo fanatismo, o religioso se angustia e precipita
os acontecimentos. Fanatismo, para entender a relação,
vem do latim fanum, templo, santuário, lugar sagrado,
portanto, fanático é seguidor, servidor devotado. O
ufólogo, no furor desgovernado para resolver o caso,
antecipa os resultados, sobrepondo equívocos e erros
grotescos. O desenlace da coleção dos significantes de
Deus levará ao cumprimento antecipado do projeto
coletivo, mas tal conclusão é também a finalização de
outro processo, o regressivo.
A comunidade ufológica ignora etapas, fortalece o
radicalismo, prejudica o pensar coletivo e acaba
retardando todo o processo de entendimento. Juntar todos
os nomes de Deus não revelará Deus. Reunir todos os
casos não revelará o “disco”. Os significantes coletados vão
apagar o significado real de Deus. Acumular registros só
fará obliterar o significado do fenômeno. A posse de tudo
conduz ao nada, ao vazio. Retirado de seu contexto

328
original, o objeto da coleção é desestruturado, mapeado e
rotulado em uma nova condição que não mais lhe
pertence. O objeto colecionado não é mais, portanto, o
objeto primário que era, mas outra coisa. Essa ruptura e
troca de contextos são características da coleção que, para
Baudrillard, é apenas uma faceta da dinâmica consumidora
latente do homem. Ele faz essa arriscada leitura do
contemporâneo dentro do viés pessimista realista que lhe é
próprio, propondo um rumo diferente de pensamento,
muito diferente, posto que não é o que normalmente
tomamos porque o fazemos de bocas e olhos fechados, e
ele não compactua com a maioria silenciosa, “essa
substância flutuante cuja existência não é mais social, mas
estatística.”

Em que ideias fundamentais se vão basear as

“ sociedades que sucederão à nossa?. Por enquanto,


não o podemos saber. Mas podemos prever que
terão de contar com um novo poder, último poder
soberano da idade moderna: o poder das
multidões. Sobre as ruínas de tantas ideias outrora
consideradas verdadeiras e já mortas hoje, sobre os
destroços de tantos poderes sucessivamente
derrubados, este poder das multidões é o único
que se ergue e parece destinado a absorver
rapidamente os outros. No momento em que as
nossas antigas crenças vacilam e desaparecem, em
que os velhos pilares das sociedades desabam, a
ação das multidões é a única força que não está
ameaçada e cujo prestígio vai sempre
aumentando. A época em que estamos a entrar
será, na verdade, a ‘Era das multidões’.

Gustave Le Bom (1895) ”


329
Por isso, este projeto integra-se ao Espírito das luzes,
filiado aos três princípios fundamentais dessa filosofia:
autonomia, finalidade, universalidade, que são as
coordenadas de uma linha de força producente confiável
de conhecimento de valor. A autonomia do conhecimento
busca privilegiar nossas escolhas e não o que é imposto por
uma hierarquia externa. Para isso, exige uma conduta
crítica construtiva e ética através da emancipação, da
liberdade de examinar, questionar, colocar em dúvida.
Nada mais é sagrado, rejeita a submissão a doutrinas e
preceitos ditados pela tradição, pelos ancestrais, pela
autoridade ou pelos deuses. “Luzes” pensa o futuro, não o
passado. Para Todorov, o conhecimento vem pela
experiência e pela razão, esta valorada como instrumento
[do conhecimento], opondo-se à fé e às paixões. A
compreensão que se tem hoje do conhecimento é de algo
objetivo, universal e impessoal, apropriação e domínio do
mundo a partir da acumulação de verdades objetivas que
devem permanecer externas ao homem.
O segundo constituinte das Luzes – finalidade,
intenta promover o autêntico saber. A verdade não pode
ser direcionada, inventada, condicionada ou reivindicada
pelo desejo, pela autoridade ou pelo poder, porque é
própria da natureza das coisas e pertence ao tempo da
sabedoria. O cientificismo é uma doutrina filosófica
nascida na modernidade, e pressupõe ser o mundo
inteiramente passível de conhecimento, logo, de
transformação, conforme os objetivos a que nos propormos
atingir a partir desse conhecimento.
A universalidade, terceiro elemento, antecipa
qualquer definição: ir além das fronteiras, não ser apenas
um cidadão no mundo, mas do mundo, um ser

330
cosmopolita pertencente ao gênero humano e não
geográfico. O princípio é quanto menos nos envolvermos
com o objeto de nossos estudos, menos devemos temer o
ardil de atender a interesses pessoais.
Essas Luzes, nascidas há trezentos anos, são do tipo
que não se apagam nunca porque alimentadas por mentes
que pensam além de si próprias e regem-se pela liberdade,
pela busca corajosa da verdade e humanidade. A defesa
desse ideal coloca-se acima do individualismo, da ambição,
do desejo, do poder e do imediato. Os oponentes habituais
– obscurantismo, autoridade arbitrária, fanatismo, são
“como as cabeças de Hidra que renascem assim que
cortadas, pois tiram sua força das características dos
homens e de suas sociedades tão desenraizáveis quanto o
desejo de autonomia e de diálogo. Os homens precisam de
segurança e de consolo tanto quanto de verdade; eles
preferem defender os membros de seus grupos a aderir aos
valores universais.” A Hidra, como se sabe, é uma
referência mítica: serpente monstruosa da mitologia grega,
representa as dificuldades que se multiplicam quando são
vencidas, isto é, para cada uma das sete cabeças destruída
em luta, outras duas nascem no lugar. Destruir a Hidra é um
desafio que requer destemor e sabedoria.
À medida que fomos avançando e adentrando no
estudo da Ufologia através de uma espiral imaginária em
direção ao seu núcleo formador, a expectativa inicial foi
sendo substituída por sucessivas camadas de
desconcertantes revelações sobre a natureza humana. Essa
espiral, que nos conduz por amplos porém solitários e
silenciosos caminhos labirínticos de reflexões propicia, a
cada volta que parece retroceder ao plano anterior, um
novo olhar, uma perspectiva diferente, algo que não havia

331
sido captado na passagem anterior adquire outro valor e um
novo significado, dando clarividência (aqui, no sentido de
“ver com clareza”, do francês clairvoyant) aos temas
estudados, daí porque desconcertantes revelações. É a
mesma espiral que conduziu o leitor por aqui, voltando
algumas vezes ao mesmo tema para complementar uma
explicação anterior.
Se o disco voador nunca foi mesmo disco e muito
menos voador, o que fazer com aquilo que faz ser o que
somos? O mundo que quer ser pensado é o que nos pensa;
o objeto (o outro) que é visto é o que nos vê. A fugacidade
de sua aparição é a mesma da desaparição, e é nisso que
consiste sua existência – ou inexistência. O que fica é um
enigma indevassável, um vestígio da síntese do mundo,
contornos que se fundem e se confundem com o vazio; sua
identidade, secreta ou não, é a nossa identidade, ou seja,
somos sim feitos à sua semelhança – singular, impenetrável,
atemporal, incomunicável e transitivo.
Um existe em função do outro, mas, estranho
paradoxo, é preciso que um desapareça para que o outro
possa efetivamente existir não mais como mera imagem
espelhada daquele. O medo maior não é do outro que me
falta, nem mesmo daquele a quem faço falta, mas daquele
para quem não faço falta por ser capaz de existir sem mim.
O outro (o objeto) fala muito sobre mim, enquanto nada sei
sobre ele. Só compreendendo-o compreenderei a mim, e só
quando compreender a mim compreenderei a ele, é a
lógica da dialética e da alteridade, da reciprocidade, como
já referido por Ricoeur: o si-mesmo é um outro. Lévinas
dirá, de forma diferente igualmente verdadeira, que o Outro
é um outro Eu. Tu és espelho de mim. Se dependo do outro
para existir, e vice-versa, óbvio, então ambos passamos de

332
indivíduos para in(ter)divíduos. Como seres relacionais que
somos. O olhar não pode ser exclusivo, tem que ter a noção
de conjunto, a perspectiva do todo, a compreensão global
do problema e do feixe de relações em toda a sua
dimensão, e ela é, como vimos, difícil de ser medida.
A primeira e principal providência para essa
compreensão e na legítima tentativa de esboçar uma
autobiografia minimamente humanística, é abandonar os
agentes ilusórios da existência e superar o infantilismo
narcísico, tarefas, dadas as circunstâncias, quase
impraticáveis. Se tomada a decisão e assumido o
compromisso do antropocosmomorfismo, todo o resto virá
a reboque. O homem é um animal que crê. Existe a
necessidade de preencher o vazio deixado por aquela
grande ausência que mora em nós, uma “força estranha que
obriga o espírito a voltar-se para o inacessível”, escreve Jean
Starobinsk, força essa constituída de imagem sem objeto
que são, em última análise, invenções nossas.
Quem, verdadeiramente, deseja alcançar o saber,
deve, também verdadeiramente, renunciar às ilusões. Por
outro lado, em sua Pequena Carta sobre os Mitos, Paul
Valéry escreve: “O que seríamos nós sem o socorro daquilo
que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos,
desocupados, se desfaleceriam se as fábulas, as abstrações,
as crenças, os monstros, as hipóteses e os pretensos
problemas metafísicos não preenchessem com seres e
imagens sem objetos nossas profundezas e nossas trevas
naturais. Os mitos são as almas de nossas ações e de nossos
amores. Só podemos agir movendo-nos em direção a um
fantasma. Só podemos amar aquilo que criamos”.
Montaigne lembra que o ato de olhar para fora de
nós mesmos é de extrema valia. Somos objeto de

333
autodescontentamento, “em nós não vemos senão miséria e
vaidade. Avançamos facilmente ao sabor da corrente, mas
inverter a nossa marcha contra ela, rumo a nós próprios, é
um penoso movimento, como o mar que se turva e
remoinha quando em refluxo é impelido contra si mesmo.”
Isto me remete a um pretenso lampejo filosófico escrito há
muito tempo, quando sequer imaginava esbarrar no
pensador francês: Como ser o que não sou se ainda nem sei
quem sou. Como ser o que nunca fui se nunca fui o que
penso ser.
Como última reflexão, há que se pensar nas palavras
de outro filósofo renascentista do século 15, Pico della
Mirandola, ao dizer que “O homem é o único ser capaz de
criar sua própria condição existencial. Servindo-se de sua
liberdade, pode realizar obras magníficas e assim comparar-
se aos deuses, ou pode mergulhar no horizonte trevoso da
desmedida e igualar-se às bestas”.

No adulto está oculta uma criança, uma


“ eterna criança, algo ainda em formação e
que jamais estará terminado, algo que
precisará de cuidado permanente, de
atenção e de educação.

Carl G. Jung

O Desenvolvimento
da Personalidade

334
Apêndice I

A Presença do fenômeno Óvni


no folclore fantástico
Bertrand Méheust

O grande preconceito vivido pela Ufologia tem


impedido que antropólogos e outros estudiosos analisem o
fenômeno Óvni de maneira adequada. Essa tarefa recai
sobre os amantes pelo assunto, os ufólogos, que
acumularam uma grande quantidade de informação. Ainda
que este montante gigantesco de dados identifique um
fenômeno singular, ele permite inferir algumas explicações.
Sabemos que os alegados abduzidos agem de boa-
fé, que realmente vivenciaram suas terríveis experiências e
que, quase sempre, trata-se de pessoas psiquicamente
equilibradas que passaram por eventos traumatizantes. No
entanto, alguns fatos trazem dificuldades para serem
assimilados por serem aparentemente contraditórios. Como
é possível uma pessoa com pleno domínio de suas
faculdades mentais agir de boa fé e persistir nesses relatos
alucinantes? Em condições normais, isso não deveria
acontecer, então perguntamos: não haverá um problema
de fundo psicológico em todos estes testemunhos? Esta
simples pergunta serve como ponto de partida para nossa
investigação. Ainda que os extraterrestres nada tivessem a
ver com tudo isto, certamente é possível achar algo novo e
interessante em toda essa fantástica fenomenologia
representada pelos alienígenas.

335
Psicofolclore e implicações

Desde o início da década de 1970, temos


investigado ativamente o fenômeno Óvni e as abduções,
contribuindo com o debate sugerindo um novo método
para abordar e interpretar as abduções alienígenas. Esse
método provém da etnologia dos contatos ou, pelo menos,
de suas narrativas. Ao pretendermos sair do campo
ufológico e ampliarmos os dados sobre os quais esta
disciplina se baseia, percebemos logo que as abduções
realizadas por extraterrestres são uma espécie da versão
ocidental contemporânea de um tema universal: o rapto
por seres sobrenaturais, sobre os quais os etnólogos, desde
o final do século XIX, tinham coletado uma infinidade de
informações. Dado o rigor do método seguido por eles,
achamos pertinente adotá-lo no estudo das abduções.
Não podemos esquecer, porém, que o objeto de
nosso estudo são os relatos das abduções, e não elas
próprias. Descreveremos, de forma detalhada, a estrutura
dos relatos, avaliando o conteúdo cultural e deixando
deliberadamente de lado as circunstâncias que os
acompanham. O conceito proposto para se interpretar os
testemunhos é o da Psicofolclore, que consiste em
considerar as abduções sob dois aspectos: primeiro, como
narrativas fantásticas, e segundo, como eco de experiências
vividas. Quando falamos em Psicofolclore, estamos
conscientes de estarmos introduzido um conceito
paradoxal. De fato, para os etnólogos, o termo folclore
evoca formas arcaicas e fossilizadas de cultura; Já as lendas
do folclore fantástico – histórias de duendes, gnomos e
fadas – são, também para estes mesmos etnólogos, relatos
estereotipados e nada mais do que isso. Pois bem, o estudo

336
da documentação sobre as abduções nos faz revisar esta
interpretação do folclore e afirmar que os relatos dos
abduzidos os fazem reviver experiências muito intensas,
passadas em algum momento de suas vidas. Por outro lado,
podem também confirmar que estão relacionadas com
crendices contemporâneas.
O aspecto legendário das abduções não é folclore
fóssil, muito ao contrário, é dinâmico e em
desenvolvimento contínuo. Esta característica é a que
confere interesse e proporciona um ponto de partida
concreto justamente em razão dessa atualidade, para
compreendermos a fundo a criação destas crendices.

Estrutura dos relatos das abduções

Esboçamos uma estrutura destes relatos em


Soucoupes Volantes et Folklore70, e alguns anos depois, o
investigador e folclorista americano Thomas E. Bullard deu
a este enfoque uma relevância considerável, ao utilizar de
forma rigorosa o método analítico dos folcloristas,
aplicando-o a centenas de casos de abduções 71 . Ele
também elaborou o que seria uma espécie de “abdução-
modelo”, que se desenrola dentro da sequência abaixo
descrita:

1 Sequestro: O abduzido é levado pelos alienígenas que o


conduzem à sua nave. Normalmente, em 98% dos

70
Paris, Mercure de France, , 1985.
71
Thomas E. Bullard, UFO Abduction Reports: the supernatural kidnap
narrative returns in technological guise. The Journal of American Folklore,
102:404;147-170. 1989.

337
casos, essa condução se dá à força, sendo as vítimas
arrastadas na maioria dos casos, ou levadas
hipnoticamente dopadas.
2 Exame: Em seguida, o abduzido é submetido a um
exame físico assustador, no qual os ETs extraem sangue,
pele, esperma, cabelos, etc. Muitas vezes, o abduzido
descreve ter estado em uma maca de alumínio do tipo
hospitalar, ou em uma cadeira semelhante a dos
dentistas. Comumente vê luzes fortes sobre seu rosto.
3 Conversação: Depois deste exame, normalmente o chefe
dos extraterrestres se apresenta amável ou amistoso,
apesar do que os demais seres fizeram ao abduzido, e o
“doutrina” detidamente, explicando-lhe sua origem e os
objetivos de sua visita. Muitas vezes essa explanação, ou
doutrinamento, se dá com diálogo telepático, mas em
outros casos a conversa é gestual.
4 Passeio: A seguir, o abduzido é convidado a visitar a
nave numa espécie de tour por suas salas e ambientes.
Em muitas oportunidades o abduzido pode ver a sala
dos motores e os controles da nave, descrevendo o que
vê da forma mais inusitada.
5 Vagem dimensional: Algumas vezes ocorre uma viagem
a um outro mundo, frequentemente o dos extraterrestres.
Noutras vezes, a viagem é a um lugar misterioso e
indeterminado como, por exemplo, uma frondosa selva.
É comum o relato de terem sido conduzidos a bases
subterrâneas ou subaquáticas. Igualmente, em alguns
casos, os abduzidos informam terem visto a Terra à
grande distância.
6 Teofania: Depois desta “viagem dentro da viagem”, tem
lugar o que poderia ser denominado de a “visão dentro
da visão”: Nessa etapa, o abduzido tem uma aparição

338
da qual seus sequestradores não têm conhecimento. É
geralmente um fato novo dentro de todo o contexto da
experiência.
7 Retorno: Após todas essas etapas, o abduzido é libertado
pelos extraterrestres, que o conduzem de novo ao lugar
da captura. Muitas vezes, eles são deixados no lugar
exato onde foram recolhidos, mas é comum
reaparecerem a alguns quilômetros ou quadras desse
local.
8 Conclusão: De volta à vida normal, o abduzido sofre
diversos transtornos fisiológicos ou psíquicos, volta a
encontrar-se regularmente com seus captores em novos
episódios e, às vezes, têm sua personalidade
transformada. Os novos sequestros parecem tornar-se
parte de sua vida, embora alguns sejam mais dolorosos
que o inicial. No geral, o abduzido se conforma com a
ideia de que sua vida não lhe pertence e que poderá ser
pego a qualquer momento pelos seres.

[Insiro aqui um trecho relevante do artigo citado]

“Os relatos de sequestros por alienígenas são


releituras de antigas tradições dos encontros
extraordinários, nos quais os extraterrestres
desempenham os papéis funcionais de seres
divinos ou espíritos da natureza. (...)
A ciência pode ter expulsado os fantasmas e
as bruxas de nossas crenças, mas com igual
rapidez preencheu o espaço vazio, com os
alienígenas exercendo as mesmas funções. Só
os enfeites exteriores são novos. Todo o medo
e todos os dramas psicológicos de lidar com

339
o problema simplesmente parecem ter
encontrado mais uma vez o seu lugar,
constituindo como sempre a atividade do
reino das lendas, onde as coisas explodem à
noite.”72

Certamente, esta sequência ideal de um sequestro é


verificada em boa parte dos acontecimentos. Na realidade,
ela foi montada a partir da constatação do padrão
manifestado nas abduções. No entanto, há casos em que
essa sequência é totalmente diferente. Bullard quantificou a
fidelidade destes relatos a respeito das abduções-modelo da
seguinte forma: Cerca de 72% dos relatos apresentam só
duas dessas etapas; 18% apresentam quatro e 10% cinco
delas. Por fim, algumas abduções contêm toda a sequência
na ordem apresentada. Com isso, a conclusão do estudo de
Bullard é a de que a fenomenologia das abduções, longe
de ser o caos que poderíamos supor se se tratassem
somente do resultado das visões delirantes, corresponde a
uma ordem e uma lógica definidas. Com efeito, esta
conclusão proporciona inúmeras interpretações. Ou
estamos diante de uma manifestação objetiva que nos
impõe esta ordem, ou trata-se da lógica da imaginação.

Conteúdo cultural dos relatos


72
Y et all the science fiction rappings, abduction reports sound like rewrites
of older supernatural encounter traditions with aliens serving the
functional roles of divine beings or nature spirits. (…) Science may be
evicted ghosts and witches from our beliefs, but it just as quickly filled
the vacancy with aliens having the same functions. Only the
extraterrestrial outer trappings are new. All the fear and psychological
dramas for dealing with it seem simply to have found their way home
again, where it is business as usual in the legend realm where things
always go bump in the night.”

340
Ao desvelarmos o material cultural que compõe esta
estrutura, detectamos a existência de duas facetas nos
relatos das abduções. A primeira, no começo de nossas
investigações sobre os discos voadores, descobriu um fato
inusitado até então para nós, devido à sua própria
evidência: os testemunhos sobre UFOs não eram
novidades absolutas, como pretendia a maioria dos
investigadores até o fim dos anos 70. Eram, pelo contrário,
pura cópia dos relatos de ficção científica anteriores à
década de 40. Tudo ocorria como se os escritores de ficção
proporcionassem os elementos necessários para a
construção de uma nova mitologia.
Dediquei meu primeiro livro, Science Fiction et
Soucoupes Volantes, para estabelecer este fato de forma
minuciosa, pensando que assim influiria na interpretação
dos dados sobre UFOs e invalidaria as hipóteses
comumente admitidas. Mas, por outro lado, a outra faceta
dos relatos de abdução nos mostra que, por trás das
aparências de uma ciência maravilhosa, havia um conjunto
de temas e motivos que já constavam nos relatos do então
chamado folclore fantástico. Em outras palavras, dizer que
por trás da ficção científica está o folclore é só uma forma
simplificada de expressão. Os temas folclóricos não estão
por trás da ficção científica da mesma forma que o estão os
extratos etnológicos. A realidade é muito mais complexa
do que isso. É preciso, antes de mais nada, examinar a
estrutura invariável descoberta por Bullard. Sob esta ideia
transparece o conceito tradicional da prova iniciática.
Num exemplo oportuno, o aspirante a xamã isola-se
na mata; os espíritos da floresta o arrastam a uma caverna
de paredes luminescentes, rasgam-lhe a pele, enchem seu

341
corpo de fragmentos de vidros, retiram suas vísceras e
tornam a colocá-las. A seguir, devolvem-no à tribo. O
aspirante transformou-se em xamã porque experimentou
morte e ressurreição sucessivamente. Chama-se a isso
iniciação. Dessa forma, observamos que a maioria dos
componentes de estrutura invariável é apenas a
readaptação destes temas ao núcleo mais imaginário da
ficção científica.
No entanto, nota-se também que há dois aspectos na
Ufologia que se apresentam iniciáticos, dois temas
recentemente incorporados a esta estrutura e a exemplo
dos aspirantes a xamã: a doutrinação dos abduzidos pelos
“chefes” dos ETs e o tour que a vítima faz dentro da nave,
sempre com um guia. Em ambos os casos, os infelizes
acham-se na mesma novela popular do princípio do
século, que por sua vez inspira-se na narrativa de Júlio
Verne. E a história é clássica: o herói, depois de ter sido
capturado pelos homens do espaço, perde o conhecimento
e volta a si num local fechado e ovoide, banhado por uma
estranha claridade. Aparece então o “senhor da nave”, que
lhe expõe seus planos de conquista do mundo.
Encontramos também uma série de temas flutuantes e
periféricos aos contatos, inequivocamente extraídos do
folclore fantástico e que se incorporam à estrutura básica,
seja de forma única ou repetitiva. Estes temas, assim como
os da estrutura invariante, apresentam diversos níveis de
integração. Alguns têm se readaptado aos esquemas da
ciência maravilhosa, outros são criações híbridas. Por
último, alguns outros integram-se muito mal à ficção
científica, o que às vezes confere aos relatos o aspecto de
um quebra-cabeças surrealista. Bastará o exemplo
surpreendente de Julio Ferrini (nome fictício), um espanhol

342
raptado por ETs em 5 de fevereiro de 1978, perto de Soria.
Ferrini foi convidado a subir por uma velha escada que o
conduzia ao interior do disco. O próprio abduzido
expressa seu desconcerto no contraste de que uma
tecnologia tão avançada utilizasse uma escada tão
rudimentar. E assim é que a escada, que comunica os dois
mundos, tema recorrente da imaginação arcaica,
surpreende em meio a esta decoração de ficção científica,
e que provoca um sentimento de estranheza inquietante. É
oportuno lembrar que um caso clássico de abdução é o do
brasileiro Antonio Vilas Boas, levado a bordo do UFO por
uma escada ridiculamente simples. Esta impressão de
estranheza experimenta-se quando se lê a maior parte dos
relatos de abduções.
No caso de um sequestrado inglês, que entrou numa
dependência da nave e na qual foi retido por alguns
minutos, este viu um enorme cachorro negro adormecido,
cuja imagem pertence indiscutivelmente ao folclore local.
Uma vez mais surge ante o observador esta tensão entre
um ambiente de ficção e um elemento extremamente
anacrônico, antiquado.
Experiências reais nos relatos – outro ponto do
enfoque psicofolclórico das abduções – pretende esclarecer
situações nas quais os relatos são apenas um débil reflexo.
Para alcançar este objetivo, procederemos logicamente. A
seguir expomos, por ordem de complexidade decrescente,
algumas hipóteses possíveis. As experiências dos
sequestrados são, antes de serem examinadas:

a) simples lendas.
b) fantasias voluntárias com desejo de obter algum
benefício ou o interesse dos demais.

343
c) episódios oníricos provocados em espíritos
impressionáveis e repletos de ficção, pela
observação de uma cena mal interpretada.
d) episódios alucinatórios, que nos transportam ao
mundo da psicose.
e) episódios alucinatórios não patológicos, que nos
transportam a estados de consciência próximos do
transe.
f) alucinações produzidas por manipuladores não
humanos. Após estudadas criticamente, é preciso
que descartemos as hipóteses (a), (b), (c) e (d), pelo
menos.

Se levarmos em conta de que não existem provas


concretas suscetíveis de apoiar a hipótese supra-humana,
devemos concentrar toda a atenção na hipótese “e” sobre
vivências alucinatórias não patológicas, ou seja, estados
espontâneos de transe. Esta hipótese, proposta em
Soucoupes volantes et Folklore, interessa atualmente a um
grande número de investigadores, pois concilia as hipóteses
e os fatos contidos na informação das abduções. Esta
hipótese “e” é também a única que nos permite resolver a
contradição exposta no princípio deste artigo: é possível
estar são, agir de boa-fé e pretender ter sido abduzido por
extraterrestres, ainda que, segundo toda a verossimilhança
possível, não haja extraterrestres...
Isso é particularmente verídico porque é uma
propriedade paradoxal, mas essencial ao espírito humano,
elaborar mentalmente como reais (e também como
excessivamente reais) os seres fantásticos da cultura. Se esta
hipótese estiver correta, os relatos de abdução por ETs
demonstrariam que a faculdade de recriar por meio do

344
transe não está reservada só aos seres primitivos, mas que
sobrevive no seio do ocidente contemporâneo.

345
Apêndice II

Pequena galeria do imaginário extraterrestre


na cultura sci fi “pré-1947”

The War of the Worlds. H. G. Wells. 1898.


Arquivo do autor

346
Le vainqueurs de l’espace. Arnould Galopin. Paris,
fev. 1909. Cortesia Yven Bosson Collection agende-
martienne.fr

347
The Gods of Mars. Edgar R. Burroughs. 1913. Arquivo do
autor.

348
Acima e abaixo. Ilustrações de José Moselli para
Science et Voyages: La fin d’illa. 1925. Cortesia
papy-dulaut.com

349
Amazing Stories. Nov 1926. Capa: Frank R. Paul.
amazingstoriesmag.com

350
Word Tales. Clare W. Harris. 1926. Arquivo do
autor.

351
Superworld Comics. 1929. Capa: Frank R. Paul.
Arquivo do autor.

352
Anazing Stories Quarterly. 1930. amazingstoriesmag.com

353
Air Wonder Stories. 1930. Capa: Frank R. Paul.
Cortesia Collection Pierre Lagrange.

354
Amazing Stories. Oct 1935. amazingstoriesmag.com

355
Wonder Stories. Dec 1935. Capa: Frank R. Paul.
amazingsotiresmag.com

356
Wonder Stories. April 1936. Capa: Frank R. Paul.
amazingsotiresmag.com

357
The Man from Venus. Amazing Stories. Jul 1939.
Gallery Frank R. Paul’s Artwork. frankwu.com

358
Thrilling Wonder Stories. Aug 1940. Capa: Frank R. Paul.
Gallery Frank R. Paul’s Artwork. frankwu.com
.
359
Capa e ilustrações de Paul Frank. 1941.
Gallery Frank R. Paul’s Artwork. frankwu.com

360
Science Fiction. 1941.
Gallery Frank R. Paul’s Artwork. frankwu.com

361
Amazing Stories. 1941. amazingsotiresmag.com

362
Amazing Stories. Jul 1943. amazingstoriesmag.com

363
Amazing Stories. 1944. crotchertyoldfan.worldpress.com

364
Stories of the Stars: Mizar. May, 1946.
Gallery Frank R. Paul’s Atwork. frankwu.com

365
Amazing Stories. 1945. crotchertyoldfan.worldpress.com

366
Amazing Stories. Oct, 1946. amazingstoriesmag.com

367
368
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Editora Multifoco e impresso em papel offset 75 g/m².

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