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PAULO NAGAI
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Paulo Nagaí faleceu em maio de 1951. Seu enterro, um cortejo de cinco quilómetros, foi
a homenagem justa e visível que lhe prestaram seus amigos e admiradores. Na sua auto-
biografia Os Sinos de Nagasaki, o Dr. Nagaí revela a sua alma de escol. Pagão até o 3."
ano da Escola de Medicina, entregou-se com entusiasmo às pesquisas científicas.
A leitura das Obras de Pascal abala as suas convicções materialistas e dedica-se então a
novas pesquisas — as de ordem espiritual. . . Encontra a Verdade e essa descoberta dá-
lhe nova feição à vida. Já formado, é professor da Escola de Medicina de Nagasaki. A
bomba atómica surpreende-o em plena atividade profissional. No seu livro descreve as
cenas terríveis, heróicas e comoventes que acompanham o cataclismo, e os seis anos
que viveu ainda, estudando no próprio corpo os efeitos funestos da radioatividade.
Perde a esposa na explosão i acarreta a difícil missão de educar dois filhos pequeninos.
Apesar de todos esses infortúnios, as palavras do Dr. Nagaí são impregnadas de paz.
Lança ao mundo um apelo de amor e concórdia que convence e comove profundamente.
O AUTOR E SEUS FILHOS Depois da catástrofe atómica
Tempos Atuais
OS SINOS DE NAGASAKI
PAULO NAGAÍ
Tradução de CECÍLIA DE M. DUPRAT
2.° Edição
FLAMBOYANT
BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALVALADE
Título original
Les Cloches de Nagasaki Êditions Casterman — Tournai • Paris
Copyright by Dr. R. SHIKIIÍA — Japão
Ilustração da capa TRUONG DINH KIM
1959
Todos os direitos reservados pela
LIVRARIA EDITORA FLAMBOYANT
Rua Lavradio, 222 - Tel.: 51-5837 - São Paulo
Biblioteca Municipal do Bairro da CRUZ VERMELHA
Apresentação de
PAULO NAGAI
No dia 14 de maio de 1951, um enterro de cinco quilómetros de comprimento
caminhava lentamente em direção da igreja católica de Urakami, em Nagasaki. Através
das ruínas, desfilava a elite da cidade. Nunca, sem dúvida, uma multidão semelhante,
nunca tantas autoridades, mesmo de outros credos, se reuniram para uma cerimónia
cristã.
Esta multidão, estas autoridades homenageavam um médico católico: o Doutor Paulo
Nagaí, morto após um longo martírio em consequência da explosão atómica. A sua vida
tornou-o um herói nacional, um exemplo luminoso de dedicação profissional absoluta e
de uma otimista fé cristã. . . É êle o autor deste livro.
Paulo Nagaí é um convertido: mergulhado no materialismo pelo ensino universitário,
quando ainda pagão, dali se ergueu, e encontrou a fé, frequentando assiduamente, nos
últimos anos de seu curso, numerosos católicos de sua cidade natal.
Especialista em pesquisas radiológicas já fora atacado — e êle o sabia — quando o
cataclismo de 9 de agosto de 1945 atingiu-o no seu corpo e na sua alma, carbonizando a
esposa, matando numerosos
amigos e colaboradores seus, acelerando os danos de uma leucemia que o levaria ao
túmulo em menos de seis anos.
Assim condenado, quis todavia manter-se — como magnificamente se expressou um
outro católico, antigo ministro, Tanaka — "a scientist with a message of hope": um
sábio incansável, portador de uma mensagem de esperança. Sem esmorecer, continuou a
estudar, no seu próprio corpo torturado, os efeitos dos raios X; educou os dois filhinhos,
procurando aliar à força do pai, uma ternura maternal. A seus concidadãos prodigalizou
os apelos ao perdão, à confiança, ao trabalho, à FÉ.
Estes conselhos, ele os dava na sua cabana humilde, do leito onde o prendeu o progresso
do mal. Todos aqueles que o ouviam, entretanto, pediam que aquelas palavras fossem
difundidas mais largamente, e para isso, que fossem impressas. Com simplicidade
aquiesceu, e seus livros espalharam através do país sacrificado, uma luz suave que,
embora velada era imensamente confortadora.
O seu primeiro livro chama-se "La chaíne du Rosaire" e logo veremos a razão deste
título.
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O segundo é: "Os Sinos de Nagasaki", fornecendo este o tema de um filme que, desde
março de 1951, tem tido sucesso espantoso no Japão.
Da união destes dois volumes — trechos do primeiro e o segundo integral — nasceu a
presente edição.
O terceiro volume "En quittant ses enfants" constitui o testamento espiritual, deixado
por Paulo Nagaí a seu filho Makoto e a sua filha Kayano, que aparecerão
frequentemente nestas páginas.
Os exemplares destes livros foram espalhados em centenas de milhares: levaram a todo
o Japão, mesmo não cristão, a mensagem humana e católica do médico, o Doutor Nagaí.
Com a confiança das multidões, vieram as honras ao encontro deste moribundo que
nunca as procurou. Nagasaki deu-lhe o título de prefeito; o Imperador visitou-o, e o país
conferiu-lhe o Prémio do Mérito Nacional. Da parte de Sua Santidade o Papa Pio XII, o
cardeal Gilroy e o legado apostólico, Monsenhor de Furstenberg, levaram-lhe palavras
de apoio, elogio e conforto.
i
Aceita todas as honrarias com humildade, esclarecido sobre o valor de tudo isso, pela
morte que sentia aproximar-se.
Expirou no dia 1.° de maio de 1951, ao romper do mês de Maria. Para chegar à igreja,
seu enterro percorreu a famosa aléia das cerejeiras, que ele mesmo doara à sua paróquia,
e deteve-se entre as paredes pintadas às suas custas.
Mesmo depois de morto, as coisas ainda falavam dele. . .
Bem mais, porém, do que nas pinturas ou nas flores, é nos livros que conservamos a
lembrança essencial e a lição de sua vida. Uma lição que êle repetiu frequentemente,
sob diversas formas, em diferentes tons. . . no correr dos dias, como se repetem as Ave-
Marias ao longo do rosário.
As contas do terço foram consumidas pela chama atómica. Mas a corrente resistiu; ela
brilha sob o céu escuro, pois é feita deste metal indestrutível que chamamos: esperança
cristã.
J. MASSON, S. J.
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INTRODUÇÃO
Há já dois anos que estou deitado, enfermo, inválido, nesta planície de Nagasaki. Se
sobrevivi, foi graças às orações, ao encorajamento de tantos amigos conhecidos ou
desconhecidos.
O Doutor Shikiba amavelmente se oferece para publicar os pequeninos ensaios que
escrevi ultimamente, e Miss Isae Yashida copiou-os para mim.
Relendo esses manuscritos, uma vez terminados, não posso deixar de me sentir confuso,
vendo assim meus defeitos postos à mostra. Todas as críticas dirigidas a essa relação
sincera de uma vida destruída, serão por mim aceitas de bom grado.
As vítimas de uma guerra tremenda começam enfim a trocar suas vestes rotas pela
roupagem dos tempos de paz; também eu me disponho a entrar numa vida nova. Deixo
atrás de mim, no campo de batalha, este livro simples, lembrança do que não existe
mais. Desejo que a minha nova existência seja toda consagrada à reconstrução e não a
uma volta ao passado; toda de esperança, não de lamentações.
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Um único pensamento me anima: dar glória a Deus. Evidentemente não sou senão um
inválido, um frangalho, que não espera mais poder ser útil. Desejo, todavia, serxiir a
Deus com um coração sincero até o momento em que este fio de minha vida, cada dia
mais frágil, por fim se rompa.
A santa Eucaristia, que me é trazida todos os domingos pelo Padre Nakada, constitui
uma força infinita, na comunhão com Deus. Por mim mesmo, nada posso. Creio, porém,
firmemente que, pela força do sacramento que recebo, possa ainda glorificar a Deus.
Suplico-Lhe conceda Suas bênçãos a todos aqueles que, conhecidos ou desconhecidos,
deram estímulo e conforto a um infeliz.
TAKASHI NAGAÍ
25 de março de 1948
Urakami-Nagasaki
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I
IMAGENS ANTERIORES AO DESASTRE
Meus pais.
Meu pai não chegou a terminar a escola primária: era preguiçoso demais para tanto.
Certa manhã de verão, êle atirou ao rio um ídolo de pedra, altamente respeitado: às
pessoas que o barulho atraiu, teve ainda a audácia de responder friamente: — Vejam
como ela sorri dentro d'água. O mergulho agradou-lhe, não há dúvida. . .
Algum tempo depois, subiu um dia numa pereira, no pátio de sua escola, e de lá de cima
ouvia a lição, enquanto se fartava de frutas ! Quando o diretor veio repreendê-lo, o
insubordinado contentou-se em sacudir os galhos e deixar cair uma chuva de peras
duras sobre a cabeça do indignado mestre, dizendo:
— Que tal, professor ? Quer mais ainda ?
— Desça, seu patife !
— Nunca !.. .
— Desça, estou mandando !
E a batalha durou até o entardecer. Os adversários já não se enxergavam mais, e
ouviam-se ainda
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OS SINOS DE NAGASAKI
ressoar as altercações. Finalmente, num último esforço de sua voz já quase totalmente
rouca, o diretor decretou a expulsão de meu pai.
Foi a primeira, seguida de cinco ou seis mais, até que numa extensão de dez quilómetros
não houve uma escola que o aceitasse ! Meu avô acabou tomando um professor
particular que também, pouco tempo depois, foi forçado a deixar o insuportável aluno.
Decidiram então empregá-lo numa fazenda. Ali trabalhou até a idade de vinte anos,
esquecido de todos. Ignoro o que, em seguida, determinou meu pai. . . Mas quando fêz
vinte anos, desapareceu em busca de fortuna. Todos os camponeses repetiam: — Não
adianta ! voltará sem vintém, após 50 anos de vagabundagem !
Como se enganavam ! Quatro anos mais tarde, o filho pródigo reaparecia, exibindo ao
velho pai o seu diploma de médico. Aquele vadio formara-se em medicina ! Os
conterrâneos não acreditavam no que viam e ouviam ! Mesmo o meu avô, médico da
velha guarda, que todos os dias rezara pelo filho, olhava-o com incredulidade; punha e
tirava os óculos para melhor examinar o fugitivo, agora sentado diante dele, todo bem
trajado, e para reler o diploma oficial!
Depois de ter abandonado o lar, meu pai empregara-se no consultório de um clínico,
servindo como porteiro, farmacêutico, assistente no seu escritório e nas suas visitas. À
noite, tomava emprestados os livros do médico para estudar e, quando amanhecia, o dia
encontrava-o debruçado sobre eles. Somente uma constituição enrijecida pelos trabalhos
do campo lhe permitiria resistir a semelhante tensão. . . Foi depois
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ANTES DO DESASTRE
para Matsue e empregou-se no hospital de um ginecologista, o Dr. Tano, a maior
autoridade sobre o assunto em toda aquela região. Ali também, trabalhando durante o
dia, estudando à noite nos livros da excelente biblioteca, aumentou enormemente os
seus conhecimentos. Por isso, até hoje, na família Tano, conservam a lembrança do
"jovem Nagaí, tão aplicado e estudioso".
Seus esforços tornaram-no capaz de passar, de uma vez, depois de 4 anos apenas, todos
os exames de medicina. Em seguida, meu pai trabalhou com Tano perto de quatro anos:
casou-se e eu nasci no seu quarto de assistente. Com 28 anos foi convidado a se
estabelecer num vilarejo a 10 quilómetros de distância. .. Como êle e sua esposa
viveram então naquela região isolada constituiria, em si, matéria para outra história.
Moravam numa cabana onde os ursos passeavam no jardim, onde os macacos se
escondiam no mato mais próximo, onde se podia ouvir o uivo de lobos; uma zona cujo
nível de cultura não progredira desde os tempos mitológicos !. . .
Meus pais lutaram para ali introduzir o seu jovem ideal de progresso. Juntos faziam seus
passeios, estudavam, distraíam-se arranhando a shamisen (guitarra de 3 cordas),
pescando trutas ou galopando por montes e vales.
Nunca me forçaram a estudar. Eles pareciam tão felizes quando se debruçavam sobre os
livros, que me inspiravam o desejo de imitá-los. Vejo-os ainda sob um pequeno lampião
de querosene, um tratado de medicina entre os dois, enquanto no jardim arrulhavam as
pombas com ternura.
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OS SINOS DE NAGASAKI
Infelizmente, meu pai morreu de câncer aos 59 anos. Minha mãe dera-lhe 5 filhos e
deve ter trabalhado arduamente para educá-los, fazendo ao mesmo tempo todo o serviço
da casa, ajudando o esposo médico, ocupando-se dos que o procuravam. Nunca a vi,
entretanto, de fisionomia fechada: sorria constantemente.
Como educadora, foi bastante severa, não em relação aos erros ou irreflexões, mas sim,
ao egoísmo e à maldade. Aos 5 anos, recebi dela um castigo cuja lembrança guardei
para sempre. Não me recordo das minúcias. . . devo ter respondido com insolência.
Agarrou-me pelo braço, tirou-me a roupa e abriu a porta da casa. Nevava: de um só
golpe atirou-me sobre a camada de neve que devia ter 2 metros de espessura. . . Sinto
ainda o tremor que se apoderou de mim, o medo que me causou aquele enorme lençol
branco.
Hoje é que avalio o trabalho que deve ter tido para transformar um bebe chorão, egoísta
e obstinado, numa criança bem educada !. . .
A carne e o sangue.
Desde os meus cursos de humanidades, fiquei seduzido pelo materialismo. Logo que
passei para os estudos médicos, deixei-me facilmente convencer de que o homem é
somente matéria. Não nos mostravam, nas aulas de anatomia, elementos materiais que
— conforme diziam os mestres — constituíam o ser humano ? A maravilhosa estrutura
do corpo tomado
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ANTES DO DESASTRE
como um todo, o complicado sistema de suas particularidades mínimas causavam nossa
admiração; mas o que eu manejava assim não era, na verdade, senão matéria pura, sob
todos os pontos de vista. Passando para a fisiologia, estudei as complexas e coordenadas
funções do organismo, explicadas como fenómenos físico-químicos de excitação e de
reação... As lições recebidas não deixavam aparentemente nenhum lugar à pretensa
existência da alma e do espírito.
Depois de termos dissecado os cadáveres, começámos a analisar, com a mesma frieza,
os nossos próprios corpos vivos: o corpo é um composto orgânico de elementos tais
como oxigénio, azoto, etc.. . . que, por si mesmos, nada têm de respeitável. A vida não
é, pois, senão o encontro, a repartição desses elementos segundo os fenómenos físicos
ou químicos. Coisa alguma permanecia, então, digna de veneração no homem: com a
morte êle se decomporia, voltando àqueles elementos. A vida só durava até o túmulo:
nada mais certo, portanto, do que passá-la na alegria, no prazer, até o momento de
sermos despojados. Bebamos, cantemos, dancemos, divirtamo-nos antes que o sangue
da juventude se arrefeça.
Não tendo nenhum respeito pela carne, nunca tive escrúpulos em profaná-la. Persistia, é
verdade, no fundo de meu coração, uma vaga inquietude que se recusava a acalmar-se;
mas referir-se à voz da consciência teria sido, decididamente, uma volta a um mito
caduco.
A palavra suprema da moda era a ciência todo-poderosa, o positivismo. Lançavam-se no
esquecimento do passado os fantasmas da consciência.
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OS SINOS DE NAGASAKI
Se é real a existência de almas e espíritos, como o afirmam os velhos, que o mostrem;
queremos vê-los com nossos próprios olhos ! Mas não; esses espantalhos foram
inventados por despeito contra os jovens, para estragar os seus prazeres. . .
Durante as férias da primavera, entre meu segundo e terceiro ano de universidade,
minha mãe foi acometida de um ataque de apoplexia. No momento em que eu me
precipitava à sua cabeceira, havia ainda nela um sopro de vida; expirou, olhando-me
com insistência. Este último olhar maternal abalou completamente a minha filosofia
materialista. Os olhos daquela mãe que me dera a vida, que me educara e me amara até
o fim, aqueles olhos diziam-me claramente que, mesmo após sua morte, permaneceria
sempre junto de seu querido Takashi. Fixei aqueles olhos, eu que negava a existência da
alma, e instintivamente senti que a alma de minha mãe existia: ela separava-se do seu
corpo, mas não pereceria jamais.
Terminadas as cerimonias do funeral, nossa casa privada agora da voz alegre de minha
mãe, recaiu na sua tranquilidade. Profunda transformação, todavia, operava-se em mim.
Apesar de todos os meus esforços, não conseguia convencer-me de que o que havia sido
"minha mãe" estivesse completamente destruído. Meus olhos abriram-se, pela primeira
vez, ao mundo espiritual.
O 3.° ano de universidade nos iniciou à prática clínica nos seus diversos ramos.
Começamos a estudar
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ANTES DO DESASTRE
corpos vivos. Diferiam bem dos cadáveres e outro tanto dos animais de experiências.
Víamos também que não eram macacos superiores. Criatura à parte, o homem vivo é,
certamente, "carne e sangue", mas com alguma coisa a mais.
Foi no momento em que eu fazia estas constatações que li a obra de Pascal: "Pensées".
Introduzir diretamente um prisioneiro do materialismo no pensamento de um sábio
dotado de uma fé profunda, era como que mergulhar um profano no estudo da
astronomia, sem nem ao menos o auxílio de um telescópio. Meus pés estavam presos ao
solo; rneu olhar tentava em vão atingir os céus. Meu coração, cheio de impaciente
emoção, agitava-se no vácuo. O que Pascal dizia parecia-me verdadeiro, irrefutável;
mas não podia aceitar tranquilamente aquelas verdades como autênticas. As almas. . .
eternidade. . . Deus. Nosso grande precursor, o físico Pascal admitira, pois, seriamente
estas coisas ! Aquele sábio incomparável acreditara verdadeiramente nelas ! Que
deveria ser esta fé católica para que um cientista como Pascal as pudesse aceitar sem
contradizer a sua ciência ?
E assim, muito naturalmente, a minha curiosidade orientou-se para o catolicismo. Bem
ao lado da Universidade, erguia-se a igreja de Urakami, a mais bela catedral do Extremo
Oriente; mais de dez mil católicos viviam à sombra de suas torres. Todos os dias, até
então, pelas janelas do auditório, contemplei, com um olhar de admiração, o grande
edifício de tijolos. Escutara, com misterioso espanto, o Ângelus do meio-dia. Muitas
vezes, porém, vendo as
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OS SINOS DE NAGASAKI
procissoes de véus brancos saírem da igreja e tomarem o caminho que margeia a
Universidade, para irem até o cemitério, desprezei-as como sendo formadas de escravos
pervertidos de um culto ocidental. E este sentimento impediu-me de me interessar por
eles. Agora, no entanto, que minha filosofia fora despedaçada por Pascal, começava a
olhar a catedral com olhos diferentes.
Resolvi, finalmente, estabelecer-me em Urakami. A fé daquela gente era simples, mas
firme. Jamais tentaram doutrinar-me, mas muitas vezes vi-os reunidos para rezar por
"intenções particulares". Como poderia adivinhar que eles se reuniam a fim de pedir por
nós, seus irmãos pagãos ? Só o soube depois de minha conversão.
Prosseguia eu no meu trabalho. Empreendendo por conta própria certas experiências
precisas, verifiquei até que ponto os resultados podem variar segundo os métodos de
experimentação; compreendi que existiam limites ao que este ou aquele sistema
permitia concluir ou afirmar. Constatei, igualmente, que o domínio que pode ser
explorado pelos métodos das ciências naturais e submetidos às suas leis, tem, êle
próprio, suas fronteiras e dentro das quais jamais poderão ser resolvidos todos os
problemas do universo: a existência da alma, por exemplo, não depende dos processos
científicos. Mas esta existência pode ser provada por outros métodos: meu erro estava,
precisamente, em teimar nas provas científicas. Eu negava a existência da alma por estar
preso a um falso axioma: a ciência é o único meio para descobrir a verdade. Na
continuação, fiquei
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ANTES DO DESASTRE
realmente surpreendido de encontrar o domínio da ciência tão imperfeito e cheio de
contradições. Mais perturbado ainda fiquei, constatando que certas leis, geralmente
admitidas,. não eram, na verdade, mais do que simples hipóteses. Cheguei assim a
conhecer melhor a carência da ciência humana, a imperfeição de nossos sistemas de
pesquisas, e a pensar que devemos ser mais humildes. Fazendo, por fim, a experiência
pessoal do mundo sobrenatural, envergonhei-me do tempo em que negava a existência
da alma. Foi então que, pela primeira vez, comecei a compreender os "Pensamentos" de
Pascal.
Logo depois que voltei do meu serviço militar na Mandchuria, recebi o batismo.
Esclarecido pelo Espírito Santo, comecei a penetrar no âmago do Universo: o homem
vivo, combinação de alma e de carne, que a morte dissocia, provisoriamente; o homem
criatura, feito para a glória de Deus e a felicidade do céu; o homem, imagem de Deus,
que não podemos profanar. Fatos que só aprendi a discernir depois de ter deixado a
Universidade. Aprendi a conhecer a alma e sua dignidade e, desde então, compreendi
igualmente o respeito que devemos à carne. De modo especial, indo comungar,
repetindo esta experiência de união com Jesus Cristo, percebi que não podia tratar meu
corpo de qualquer maneira. A hóstia santa, corpo do Cristo vivo, é dada aos fiéis
durante a missa. A alma do comungante torna-se uma com o Cristo, enquanto seu corpo
recebe o pão.
Jesus disse também: Quem come deste pão viverá eternamente. Aprendi assim a
respeitar meu
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OS SINOS DE NAGASAKI
corpo porque êle ressuscitará no último dia, de novo unido à alma. Se o corpo, pela
morte, deixasse de existir definitivamente, poderíamos, sem consideração, atirá-lo à
cova como um chinelo de palha. Mas essa carne deve voltar à vida como corpo glorioso
à face de Deus. Não pode, pois, ser mal tratada. Respeito agora este corpo de carne
criado para Deus. E por isso pergunto a mim mesmo se essa leucemia provém de uma
vontade amorosa do Pai ou se houve, na sua origem, uma negligência culposa da minha
parte. Não terei contas a dar do meu julgamento individual ? (1).
Até o último momento de minha vida tomarei todos os remédios que me ordenar a
consciência. Além do mais, quero utilizar meu corpo para preciosas experiências na
pesquisa de um tratamento específico da leucemia. Não farei coisas arriscadas, como
um homem prestes a se afogar agarrar-se-ia ao menor fio de palha; nem tomarei
qualquer remédio de charlatão. É com prudência e respeito que cuidarei deste corpo
enfermo.
Não deve êle contribuir à felicidade da geração desta nova época, época atómica, e, em
última análise, à glória de Deus ?. . .
(1) O Dr. Nagaí contraiu, de fato, esta doença nos longos anos de pesquisas no campo
dos raios X, em benefício dos doentes.
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ANTES DO DESASTRE
Civilização.
Antes da guerra, minha mulher e eu fomos um dia convidados pelos Higashiyama.
Éramos grandes amigos da família e, sem protocolos, fizeram-nos entrar no salão.
Durante várias gerações os Higashiyama foram senhores feudais e, ao mesmo tempo,
proprietários das principais pesqueiras das ilhas Goto. Nada apresentavam do "nouveau
riche". O salão continha valiosas peças de mobiliário, cujo aspecto indicava cuidados
seculares. Os membros da família receberam educação aprimorada: discutimos sobre os
romances de Bourget, ouvimos um belo disco de Mozart, enquanto saboreávamos um
delicioso chocolate quente e uma fatia de melão, servidos pela senhora Higashiyama.
Despedimo-nos de bom humor, em parte talvez, também, por causa do excelente vinho
que nos foi oferecido !
Aproximando-nos de nossa casa, ficamos chocados com a sua aparência miserável,
como se a víssemos pela primeira vez. . . Entrando na nossa sala familiar, sentei-me e
deitei um olhar em torno de mim: a escrivaninha barata, fabricada por sentenciados
numa casa de detenção, e coberta de papéis, tudo numa desordem tremenda. Do outro
lado do cómodo, a máquina de costura de onde pendia a manga de uma camisa em
confecção.
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OS SINOS DE NAGASAKI
— Que maravilha a casa dos Higashiyama, exclamou minha mulher, repondo seu
vestido caseiro. Suponho que isso é que se chama cultura ?. . .
— Com certeza. Deve ser.
— Não acha você que, mesmo à custa de um esforço permanente, nunca chegaríamos a
levar vida semelhante ?
— E ela não seria de utilidade alguma. Na nossa atual sociedade, os Higashiyama são o
que se chama puros "consumidores". . .
— Pode ser. . . Mas nós, então ?
— Nós somos o contrário. Somos os "produtores", no ponto de vista cultural.
— No fundo, é isso mesmo, concluiu ela, depois de um momento de reflexão.
Parecia de novo tranquila. Sua máquina de costura retomou o ritmo habitual, enquanto
eu recomecei as mensurações radiográficas, sobre minha mesa feita por um prisioneiro.
Nesse pequenino cómodo de seis esteiras (1), nós dois constituíamos uma fonte de
cultura: o médico-pesquisador, pobremente trajado, e a modista, manejando um corte de
chita.
Agora, mesmo esta humilde companheira me falta; o quarto foi reduzido a cinzas com a
escrivaninha e tudo o mais. Sou um doente, abrigado
(1) Os japoneses constroem e medem os cómodos de sua casa pelos múltiplos da
"esteira" de palha clássica, que mede, aproximadamente 1,80 X 0,90 m. Um quarto de
seis esteiras equivale a um quarto de 2,70 X 3,60 m.
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ANTES DO DESASTRE
sob cobertas recebidas de esmola, alojado numa cabana, no meio de ruínas.
Continuo, todavia, o trabalho de minha dissertação; prossigo nos meus estudos. . .
E mantenho a minha convicção de que, pobre e doente, permaneço um homem de
cultura.
Maru-boro (Panquecas).
Fui convidado para fazer uma conferência na Associação das Senhoras, num templo
budista, no extremo da cidade de Tabira.
Levaram-me à ante-sala e, depois das apresentações, as diretoras deixaram-me só, para
os últimos preparativos. Arriscando-me a abrir o shoji (cortina de papel, servindo de
porta, de janela, de parede...) vi-me em frente ao mar. . . Estava tão azul, que toda a
paisagem parecia tinta de anil. Da altura em que me achava, meu olhar, penetrando
através das águas, nelas via nadar, preguiçosas, milhares de lagostas magníficas. Seria
por causa do mar azul que as lagostas pareciam tão belas ? E por que seriam tão
vermelhas as libélulas, no ar do outono ? Como estas, meus pensamentos esvoaçavam
de um lado para outro, até que fui trazido à realidade por uma voz musical.
— Aceita uma xícara de chá, doutor ? Voltei-me e vi uma jovem sorridente, num
quimono de algodão brilhante.
— Pronto ! aqui está a rainha das fadas, disse eu maquinalmente.
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OS SINOS DE NAGASAKI
A "rainha das fadas" enrubesceu fortemente. . . Sob os traços carmesins a curva clara do
pescoço deu-me a impressão de algo irreal, de uma flor desabrochada do quimono azul
escuro.
A moça hesitou um instante, saudou-me profundamente e saiu. Uma xícara de gyokuro
(chá verde) e um prato cheio de maru-boro (panquecas) permaneciam os únicos
testemunhos de sua rápida passagem. De fato, somente uma fada poderia ter trazido
aquele chá e aquelas panquecas com o sabor "dos bons tempos". Comi um maru-boro,
apanhei um segundo, e estava pronto a devorar um terceiro. . . quando pensei nos meus
filhos, que me esperavam em Nagasaki. Nunca, na sua vida, tinham provado
semelhantes gulodices, feitas com verdadeiro açúcar, com verdadeiros ovos, e com
farinha de verdade !. . . Disfarçadamente abri minha pasta e, no saco de palha em que
trouxera minha merenda, empilhei as panquecas. Aliás, para parecer bem educado,
deixei duas no prato. . .
Terminada a conferência, três membros da diretoria acompanharam-me até à estação.
Através de suas conversas superficiais, percebi que estavam ansiosas por dizer alguma
coisa. A presidente falou, por fim:
— Ficamos muito contentes, Doutor, que o senhor tenha gostado dos nossos maru-
boro !
Estremeci; minha pasta de repente tornou-se pesadíssima ! Deveria ter explicado, mas
covardemente respondi:
— De fato, há muito tempo não como panquecas iguais. . . Regalei-me e até me excedi
sem perceber.
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ANTES DO DESASTRE
Na certa, as senhoras nunca tiveram um hóspede que esvaziasse o prato !. . .
— Tanto melhor, Doutor, mas às vezes ficamos pensando. . .
— Em que ?
— Como se arranjam em Nagasaki para alimentar as crianças ?
— Ah ! eu dou sempre um jeito para os meus.
— Suas crianças ? O senhor tem filhos, Doutor ? O espanto deixou-as perplexas,
enquanto respondi:
— Sim senhora, tenho dois filhos.
Não puderam esconder certo desapontamento. Sentia-me cada vez pior, com a minha
pasta pesando no braço. A tesoureira, por fim, propôs:
— Não deveríamos dar ao Dr. Nagaí alguns maru-boro para os seus filhos ? Vou
correndo buscá-los . . .
Como que livre de um grande peso, correu em direção à cidade, enquanto as outras
puseram-se a rir incontidamente. . . Diante de nós, o mar rolava as suas ondas. . . Não
sei por que, pensei de novo na "rainha das fadas".
— Diga-nos, Doutor, falou justamente a presidente, como que lendo o meu pensamento,
e rindo-se ainda: Que achou o senhor da rainha das fadas ?
— A senhora se refere à jovem que me serviu o chá ?
— Exatamente.
— Sem dúvida, era muito bonita; parecia ter surgido do oceano !... Mas provavelmente
mora nesta cidade ?
25
OS SINOS DE NAGASAK1
— Mora, e pertence a uma família tradicional. Para dizer a verdade, Doutor. . .
As duas senhoras riam de novo.
— Por que riem ?
— Pois bem; para dizer a verdade, nós a mandamos servi-lo com a esperança de que
pudesse vir a ser um dia uma boa esposa para o senhor.
— Para mim ?
— É verdade. Desculpe-nos, mas o senhor parece tão jovem que nunca pensamos que
fosse casado.
Pus-me a rir também: — As senhoras não repararam nos meus cabelos brancos ?
— De longe... na sala de conferências. . . era impossível ver. . .
Chegávamos à cidade. Numa casa comercial, a tesoureira recebia o embrulho das
panquecas. A presidente exclamou:
— Contamos tudo ao Doutor. . . Foram-se as nossas esperanças em trazê-lo para morar
na nossa cidade !. . .
Neste momento, eu deveria ter feito a minha "confissão". E estava resolvido a fazê-la,
quando a tesoureira, saindo da loja com o seu embrulho bem amarrado, disse num
ímpeto:
— Ah ! o senhor tem uma pasta, tanto melhor ! Dê-me aqui e não terá que levar dois
pacotes.
A ocasião de contar a verdade já se fora. Nada mais podia fazer senão amontoar mentira
sobre mentira. E foi o que fiz, desesperadamente.
— Ah ! muito obrigado. A pasta é tão pequena que o embrulho não caberia dentro. . .
26
\ ANTES DO DESASTRE
— Mas não fica bem, a uma pessoa como o senhor, carregar um embrulho assim.
Deixe-me fazer e darei um jeito. . .
— Em absoluto ! Hoje em dia não temos mais esses preconceitos. Levo como está. . .
está ótirno !. . .
Uma transpiração fria inundava-me o rosto: entrava em jogo, naquele momento, a honra
de ura médico. Se eu segurasse a pasta com a mão direita, a presidente tentaria tomá-la;
se passasse para a esquerda, era certo a vice-presidente apoderar-se dela. . . Diante de
mim, a tesoureira estava à espreita como um gato diante da sua presa. Esconder a pasta
atrás das costas, seria ridículo !. . .
Não sei mais qual o milagre que me tirou daquela situação !. . .
Recebendo hoje de presente umas panquecas, a lembrança daqueles dias felizes veio-me
à memória.
Atualmente estou pregado a um leito. Não terei mais ocasião de recomeçar estas
brincadeiras. . . e talvez as boas ações me sejam ainda mais difíceis.
27
II O CATACLISMO
Às horas que o precederam.
Como todos os dias, nasceu o sol por trás do monte Kompira; sobre Urakami apenas
despertada, derramava êle a sua luz de ouro. O calendário indicava: 9 de agosto de
1945. A cidade embebia-se de paz pela última vez. Sobre a colina, no quarteirão
residencial, as chaminés começavam a fumegar, enquanto as plantações de batata-doce,
dispersas nos espaços livres da vertente, brilhavam sob o colorido do orvalho. Em
baixo, ao longo do rio, na fábrica de munições, colunas de fumaça branca erguiam-se
das chaminés; e os telhados da rua principal confundiam-se, no horizonte róseo, com as
águas do braço de mar.
Na catedral majestosa, uma multidão de fiéis rezava pelos erros da humanidade, numa
atitude piedosa. Um novo dia começava. . .
Como de costume, os cursos da manhã, da Universidade de Medicina de Nagasaki,
começaram exatamente às 8 horas. O Exército Nacional Voluntário
29
OS SINOS DE NAGASAKI
determinara que os estudantes, embora cumprindo seus deveres militares, continuariam
as aulas: classes, laboratórios, hospitais organizaram-se num Corpo Médico auxiliar, e
cada um sabia o que teria de fazer em caso de emergência. Todos iguais, nos seus
uniformes de defesa antiaérea, a bolsa de primeiros socorros pendurada a tiracolo,
professores e estudantes já haviam iniciado seus trabalhos. Cuidadosamente exercitados,
porém, estavam prontos para, em qualquer momento, socorrer as vítimas de um reide
eventual.
A sua eficiência já fora posta em prova, pela primeira vez, na semana anterior: a própria
Escola sofrera um bombardeio. Resultado: três mortos, mais de doze feridos. . .
Todavia, graças à ativa e corajosa intervenção dos estudantes, nenhum doente foi
atingido. Depois deste batismo de fogo, o pessoal da casa estava para sempre
familiarizado com a guerra. . .
Repentinamente, soou a sirena em sinal de alarma: hoje, de novo, o Kyushu meridional
seria objetivo de um ataque de grande envergadura. Com extraordinária rapidez os
estudantes espalharam-se nos postos indicados. Os responsáveis percorriam os
corredores, davam ordens através dos alto-falantes. A sereia soou ainda, anunciando a
queda de bombas; no céu claro da manhã, formavam-se pequeninas nuvens que
brilhavam ao sol. Fixando bem o olhar, podia-se entrever os aviões inimigos.
Vagas de som, queixosas e enfeitiçadoras, sibilavam nos ouvidos.
30
\ OCATACLISMO
— Parem com isto ! Este barulho maldito ! Já sabemos que elas vêm !, dizia cada um
consigo mesmo. Mas as sirenas insistiam, ampliavam seus assobios. Era de
enlouquecer: aquela queixa prolongada arrasava toda a coragem. . .
As flores das murtas ostentavam-se vermelhas; vermelhas também as espirradeiras; e
vermelho-sangue, as canas-da-índia. À sombra dessas flores, os enfermeiros e os
estudantes do primeiro ano mantinham-se no seu posto, à entrada do hospital.
Comprimiam-se no abrigo, prontos a se atirarem quando necessário fosse.
— Como acabará esse diabo de guerra ? perguntou aquele que chegara da Escola
Secundária de Kagoshima. . . Vários rapazes e eu juntamo-nos aos Cadetes do ar,
acrescentou êle.
— Gostaria de saber onde estão os nossos aviões, disse outro, no dialeto arrastado de
Osaka.
— Para que querer combater ? Não temos a menor chance !.. .
Ninguém respondeu: todos, mais ou menos, pensavam como êle. Na verdade, o país
achava-se entre a vida e a morte. Começamos a guerra, certamente, para ganhá-la; o
governo não abrira o pano sobre esta tragédia numa perspectiva de fracasso. . . Mas
desde a perda de Saipan, os comunicados do G. Q. G. revelavam uma posição indecisa e
suspeita; os estudantes não tardaram em percebê-lo, e sen-tiam-se pouco à vontade. . .
— Hein, seu capitão ? continuou o rapaz de Osaka. Como é que o senhor acha que essa
guerra
31
0 5 SINOS DE NAGASAKI
vai acabar ? Erguendo fora do abrigo o rosto redondo, sombreado por duas lentes
grossas, fazia lembrar um polvo em miniatura.
O capitão Fujimoto mantinha-se imóvel, braços cruzados, olhos fixos no céu. De
estatura baixa, mas dotado de nervos de aço, parecia ao seu ordenança, impecavelmente
correto no seu uniforme, desde o capacete até as polainas pretas, cuidadosamente
calçadas.
Quantas vezes já não havia êle retirado dos escombros pessoas feridas e exangues,
ganhando assim a confiança e estima de seus companheiros ?. . . Quando o viam atirar-
se por dentro da fumaça e do fogo, todos o seguiam. Trazia sempre consigo o binóculo
do pai, e assim que surgiam aviões inimigos, êle os focalizava. Era, sem dúvida, o seu
único prazer na sombria realidade da guerra.
— Meu capitão, insistiu o rapaz de Osaka; que vai ser de nós ?
— Não se trata do que vai ser de nós, mas da maneira como nós reagiremos, respondeu
Fuj imoto, com energia. Não é a guerra que decidirá os nossos destinos; somos nós que
decidiremos os destinos da guerra. Trata-se de uma prova de fogo entre as juventudes
dos dois países.
— Sim. . . mas que diabo ! Do jeito que as coisas vão agora !. . . De mal a pior ! É só
olhar a diferença dos recursos materiais. . . Que podemos fazer ?. . . Bater com a cabeça
na parede ?
— Você talvez tenha razão. Mas escute uma coisa, disse Fuj imoto com voz séria e
decidida: as bombas vão cair — quem sabe ! — sobre nós; você
32
O CATACLISMO
continua a querer discutir ? Claro que não, não é verdade ? Então cumpra o seu dever,
estancando o sangue que correr. Eu, pelo menos, é isso que vou fazer.
O jovem de Osaka calou-se, mas não se convenceu. Precisamente naquele momento
aparecia o vice-capitão, carregando no ombro uma pesada trave de madeira. Era êle
formado pela Escola Secundária de Kokura, e chamava a atenção pelo silêncio com que
executava o seu dever. Naquela hora tinha apenas uma preocupação: reforçar as vigas
das trincheiras de observação, e, trabalhando sozinho, estava alagado de suor.
— Que faremos, vice-capitão, retomou o estudante de Osaka, se realmente o inimigo
começar a atirar ?
— Vivemos e morremos conforme o nosso destino, respondeu o interpelado, abrindo o
leque e refrescando o rosto em brasa. O principal é viver e morrer de tal modo que
ninguém venha a nos desprezar.
Caiu sobre eles um silêncio pesado... As murtas, as espirradeiras e as canas-da-índia
mantinham uma imobilidade de sangue coalhado. Através dos galhos fluía o canto
estridente das cigarras.
Naquele dia competia a mim comandar as equipes de defesa passiva do hospital. Entrei
pela porta da frente, percorri o grande corredor, passei por todos os postos e saí,
finalmente, pela porta dos fundos. Enfermeiras e estudantes, de uniforme, manti-nham-
se alertados, na entrada de cada sala, prontos para qualquer eventualidade. Os baldes
cheios
33
OS SINOS DE NAGASAKI
d'água; as mangueiras de incêndio desenroladas; picaretas, pás, enxadas, tudo
preparado. Tudo preparado para desafiar o que viesse. . . Calmamente, transportavam os
doentes para os abrigos. . .
À entrada da sala de radioscopia, encontrei Ueno, estudante do 3.° ano, rapaz cheio de
coragem e de audácia. Durante o último reide, quando a sala de ginecologia começou a
incendiar-se, permaneceu êle sozinho, no telhado da sala contígua, até que soasse o fim
do alarma. Enquanto carregávamos baldes d'água para o edifício em chamas, os aviões
não cessavam de baixar e atirar bombas. Apesar de tudo, Ueno permanecia no seu
posto, gritando com toda a força:
— Eles vêm e vão ! Já estão indo, meus amigos ! Todos para fora agora; a sala está
pegando fogo !
E um pouco mais tarde:
— Estão de volta ! Ei-los de novo ! As bombas estão caindo ! Depressa, para o abrigo !
— Às suas ordens, Ueno, disse-lhe eu desta vez, cumprimentando-o.
Perplexo, coçou a cabeça e disse sem outro preâmbulo:
— Recebi, outro dia, uma recomendação de minha mãe. Ela me disse nunca fazer cenas;
comportar-me de maneira a não chamar a atenção de ninguém. E acrescenta: "Você não
é mais uma criança, meu filho." E Ueno calou-se, sorrindo. . .
Serventes, com extintores na mão, mantinham-se na saída dos fundos. Nos limites do
poder humano,
34
O CATACLISMO
parecia que todas as precauções tinham sido tomadas. Satisfeito, dirigi-me para a ala
direita do hospital. Os escombros nas salas de cirurgia, ginecologia e otorrinologia,
bombardeadas no reide precedente, pareciam mais trágicos do que feridas humanas.
Também ali as espirradeiras estavam cobertas de flores vermelhas, e um ligeiro odor de
ácido carbónico flutuava pelo ar. Um súbito arrepio de temor percorreu-me a espinha. . .
Entretanto, o sinal de fim de alerta rasgou o ar de lado a lado, como que rompendo os
elos de dúvida e ansiedade que pareciam nos acorrentar. . .
Quando entrei na minha sala, os estudantes conversavam ruidosamente, retirando seus
capacetes. Miss Inoue, a enfermeira de olhos vivos, da Secção de Informações, dava
notícias, os olhos mais acesos ainda que de costume:
— Nenhum avião inimigo em Kyushu, concluiu ela, transmitindo um comunicado
fornecido pelo rádio, alguns minutos antes. O suor cobria suas pálpebras avermelhadas
sobre as quais pendiam três mechas de cabelo.
Os responsáveis do Q. G. local puseram-se a gritar no corredor:
— As aulas vão começar imediatamente !
Docilmente, os estudantes voltaram a suas classes; o estudo recomeçou. A Escola
readquiriu sua calma e a aparência de um palácio onde homens procuram a verdade.
No hospital, os doentes afluíam ao ambulatório; estudantes de branco, juntaram-se a
eles, preparando-se
35
OS SINOS DE NAGASAKI
para os diagnósticos preliminares. Da classe de medicina interna, situada em frente ao
meu posto, do outro lado do corredor, chegava-me aos ouvidos a voz agradável do Dr.
Tsuno-o, Diretor da Escola, dando o seu curso de clínica médica. . .
E foi então que veio a coisa. . .
A bomba.
Tsuchimoto está lidando com plantas no cume da colina de Kawabira. Deste local, êle
descortina, a três quilómetros para o sudeste, a região de Ura-kami em Nagasaki. O sol
do verão envolve a cidade e as colinas com tranquila indiferença.
De repente, Tsuchimoto percebe o ruído fraco mas inconfundível de um avião. Ergue-
se, foice na mão, e olha para cima. O céu está claro, excetuando uma nuvem larga com
forma de mão, justo sobre sua cabeça; o barulho parece vir de dentro desta nuvem. O
homem continua a observar, seguindo o som que se desloca, e por fim surge-lhe um B-
29 ! O minúsculo objeto de alumínio está na extremidade esquerda da nuvem, a uma
altura que êle calcula em oito mil metros. Fixa o olhar no pássaro de prata e diz consigo
mesmo: Jogaram alguma coisa. . . preta, comprida; é uma bomba. Uma bomba !
Tsuchimoto atira-se ao solo. Passam-se cinco segundos, dez, vinte, um minuto.
Permanece na mesma posição, contendo a respiração. . . Brutalmente
36
O CATACLISMO
através do firmamento, brilha uma luz. "Luz terrível, pensa êle, mas sem barulho; é
estranho !" Nervosamente, receoso, ergue a cabeça. "É mesmo uma bomba e atingiu
Urakami !" Do lugar onde se acha a catedral, começa a subir uma coluna de fumaça
branca que se alarga cada vez mais.
O que o aterroriza, porém, o que lhe congela o sangue, é o imenso sopro que se
desprende por baixo da nuvem branca. Com uma velocidade espantosa, passa sobre
colinas e campos que se despedaçam pela força do fenómeno. Antes que o espectador
tivesse tempo de pensar, o sopro já ceifou a floresta em frente, vai arrasar o local onde
Tsuchimoto se deitara.
Dir-se-ia gigantesco mas invisível compressor, destruindo tudo à sua frente. "Pronto !
vou ser esmagado", pensa Tsuchimoto, e juntando as mãos, cola o rosto contra o chão,
murmurando: "Meu Deus ! meu Deus !"
Um barulho tremendo fere seus ouvidos: sente-se soerguido e atirado de encontro a um
muro de pedra, a cinco metros de distância. . .
Quando, por fim, cria coragem para abrir os olhos e olhar em torno de si, vê as árvores
arrancadas, nem mais uma folha, nem mesmo a relva. Tudo foi levado. Permanece no ar
um odor de resina. . .
Furue voltava para casa, vindo de Michino-o para Urakami. Ladeando a fábrica de
munições, pareceu-lhe ouvir o barulho de uma hélice. Ergueu os olhos e viu no céu, à
altura do monte Inosa, na
37
OS SINOS DE NAGASAKI
direção do bairro Matsuyama, uma bola de fogo vivo. Uma bola incandescente não
bastante forte para cegar, mas brilhante como estrôncio numa lanterna. A bola vinha
descendo. Não podia calcular o que fosse: para se certificar, tapou uma das vistas e
fixou melhor com a outra. Veio então a explosão, fulgurante como uma explosão de
magnésio. Furue sentiu-se arrebatado no ar. . . Só muitas horas mais tarde voltou a si:
fora atirado a um arrozal, juntamente com a sua bicicleta. Um de seus olhos
irremediavelmente perdido...
Escola primária de Kagakure, a 7 quilómetros de Urakami. No jornal dos alertas aéreos,
Tagawa, um instrutor, registra os fatos do momento. Levanta-se depois e olha pela
janela. Diante dele, em baixo, entre a região plana do país e o céu azul, estende-se a
cidade de Nagasaki.
Inesperadamente, o céu se ilumina um instante, ofuscando-o com uma luz que
empalidece o próprio sol de verão.. .
— Que ideia de usarem faróis em pleno dia ! pensou o instrutor, debruçando-se para ver
melhor. Mas que espetáculo se lhe depara então !
— Corram aqui ! grita êle aos colegas que se achavam na mesma sala. Venham ver !
que é aquilo ?
Precipitam-se todos para a janela. Uma coluna de fumaça branca ergue-se de Urakami e
não cessa de avolumar-se. Que é aquilo ? que é aquilo ? exclamam os espectadores,
vendo a tocha transformar-se num cogumelo gigantesco, de mais de um quilómetro de
diâmetro...
33
O CATACLISMO
Sopra então tremendo vento: abala-se a sala, despedaçam-se as vidraças, cobrindo os
instrutores de estilhaços.
— É uma bomba, e a Escola foi atingida. Es-condam-se ! grita Tagawa, precipitando-se
para o abrigo cavado na colina, atrás da escola.
Reina ali absoluta calma. Todavia, enquanto se acomoda sobre a terra fresca, no escuro
subterrâneo, como poderia supor que, naquele mesmo instante, na sua casa de Urakami,
a esposa e os filhos exalam o último suspiro, chamando por êle !. . .
A pequena cidade de Oyama estende-se sobre a vertente do monte Hachiro, ao sul do
porto de Naga-saki, distante uns oito quilómetros de Urakami. Dali, para além da baía,
vê-se, no horizonte nebuloso, a bacia de Urakami.
Kato trabalhava no campo, com seu búfalo. Acabara de encontrar uns morangos
vermelhos, destacan-do-se na relva muito verde. Morangos agrestes. Posse a comê-los
tranquilamente. . . Neste momento viu um clarão. O búfalo também pressentiu algo e,
sob o choque virou a cabeça. Uma nuvem igual a uma grande bola de algodão desfiado
formou-se no céu, acima de Urakami. Começou a avolumar-se, avolumar-se cada vez
mais. Dir-se-ia uma lanterna envolta em lã. O exterior era branco, mas dentro brilhava
uma chama viva que, através da bola branca lançava relâmpagos de todas as cores do
arco-íris. Belos relâmpagos vermelhos, roxos, amarelos... A seguir, a nuvem tomou a
forma de uma brioche e a
39
OS SINOS DE NAGASAKI
parte superior começou a subir, a subir, a subir, asse-melhando-se a enorme cogumelo.
No mesmo instante, um negro remoinho de poeira e escombros ergueu-se do vale de
Urakami. A impressão é que tudo estava sendo aspirado pelo cogumelo que continuava
a subir.
De repente, a nuvem principiou a descer e des-viou-se para leste. O torvelinho girou
mais alto do que as colinas; depois, uma parte tornou a descer, enquanto outra se
desprendia do mesmo lado que a nuvem. . .
O dia estava lindo: colinas e mar banhados de sol; mas a região de Urakami, sob a
nuvem, aparecia negra e desoladora.
Veio o sopro gigantesco. As roupas de Kato foram agitadas; as folhas arrancadas das
árvores, mas o sopro já perdera muito de sua força. O búfalo não se perturbou e Kato
pensou: "Pronto ! mais uma bomba, e não muito longe daqui..."
Takami reconduzia seu búfalo até Koba, caminhando ao longo da estrada de Odorize, a
dois quilómetros de Urakami. De repente sente como que um bafo quente.
Aparentemente, não é calor forte, entretanto, ele e seu animal ficam queimados. E logo
a seguir, bolas de fogo caem sobre eles, assobiando. Uma delas atinge seu pé e explode,
deixando um rasto de fumaça branca e um cheiro de parafina derretida. Aqui e ali, uma
chuva de fogo ateia incêndios sem conta...
40
O CATACLISMO
As horas seguintes.
A distância que separava o centro da explosão dos prédios da Universidade, variava,
conforme o caso, de 300 a 700 metros; assim sendo, esses edifícios foram atingidos em
cheio pelo furacão. Num abrir e fechar de olhos, as salas de Medicina Fundamental,
construídas de madeira e que se encontravam mais próximas, foram derrubadas,
demolidas e incendiadas. Nenhum professor ou aluno sobreviveu para descrever a cena.
Nos postos de Clínica Médica, construídos de cimento e mais afastados, algumas
pessoas, entre as quais eu mesmo, tiveram a sorte de se salvar.
Passava um pouco de 11 horas. Estava eu no meu quarto, no 1.° andar do edifício
principal, em cima do ambulatório dos doentes externos. Separava as radiografias que
deveria exibir aos estudantes. Repentinamente houve um relâmpago, um choque. Um
breve instante julguei que uma bomba houvesse explodido na entrada. Quis me deitar no
chão. . . não consegui: naquela hora as janelas foram impelidas para dentro, vento
impetuoso suspendeu-me no ar, levando-me a certa distância, com os olhos abertos. Os
estilhaços de vidro assobiavam, cortando o espaço como folhas num louco rodopio.
"Estou perdido !" foi o que pensei.
Enorme punho invisível parecia tudo revolver dentro da sala. Enquanto eu continuava
estirado no chão, cama, cadeiras, armários, capacetes, sapatos, casacos, tudo foi
igualmente despedaçado, dispersado,
41
O CATACLISMO
levantado e atirado novamente sobre mim. Um vento poeirento e nauseabundo,
entrando-me pelas narinas, obrigou-me a tossir com força. . . Continuava de olhos
abertos e olhava pela janela.
Lá fora, as trevas invadiam o espaço, enquanto no interior, o vento desencadeava-se
como o rumor de ondas, o ronco da tempestade: arrastando, consigo, de um para outro
lado, pedaços de madeira, de roupa, folhas de zinco e toda sorte de objetos, numa dança
demoníaca.
Seguiu-se um silêncio estranho.
— Que coisa espantosa ! pensei comigo mesmo. Deve ser uma bomba diferente... de
mais de uma tonelada, com certeza. . . e caída perto da entrada. Aposto que há mais de
cem feridos. Onde vamos colocá-los ? Temos que cuidar deles. . . mas como ? Em todo
caso, a primeira coisa a fazer é pôr o pessoal trabalhando nas classes. O pior é que
talvez muitos deles não estejam em condição de andar. . . De qualquer jeito, eu é que
preciso sair daqui.
Tentei esticar os joelhos, retirar as pernas de sob os escombros. Mas de repente tudo
escureceu e não enxerguei mais. "E agora ? que devo fazer ?" pensei.
Ferido na região dos olhos, imaginei a princípio que a hemorragia procedesse do globo
ocular e me estivesse cegando; logo descobri, porém, que podia ainda mover com os
olhos. Constatando que não ficara cego, avaliei, pela primeira vez, o horror de minha
situação: "Todo o edifício deve ter sido destruído e eu estou enterrado vivo ! Engraçada
e ridícula maneira de morrer ! Devo fazer tudo o que
42
O CATACLISMO
puder antes de chegar a isso !" Comecei então uma luta titânica para sair daquele
amontoado de paus, vidros, cacos e objetos que me retinham prisioneiro. Mas estando
achatado como uma folha no seu impressor, não me foi possível fazer o menor
movimento. Nem o rosto podia virar, senão com imensa cautela, por causa da
quantidade de vidro quebrado em volta de mim. Além do mais, a escuridão era completa
e eu nada sabia quanto à natureza e ao equilíbrio das coisas que me esmagavam. Um
ligeiro movimento do ombro direito provocou o desmoronamento de uma porção de
objetos. Gritei por socorro: todavia minha voz se perdeu na escuridão.
A enfermeira Hashimoto encontrava-se na sala de raios X no momento da explosão.
Teve a sorte de estar de pé entre as estantes, e não foi ferida. Durante os minutos
horríveis em que os objetos inanimados pareciam dotados de vida, por um poder
misterioso, e rodopiavam com assustador barulho, ela permaneceu presa à parede.
Depois de alguns minutos, embora pairasse ainda no ar uma poeira bastante densa, teve
a impressão de que pelo menos os objetos mais pesados tivessem parado. Lembrou-se
de que era tempo de ir em socorro dos feridos, esgueirou-se entre as estantes
derrubadas, e quedou-se estupefata diante do que a rodeava. Tudo estava de pernas para
o ar. Trepando pelos escombros chegou à janela, e deparou então com uma cena que a
fêz estremecer. Que teria acontecido ? Não podia compreender. Há poucos minutos
atrás, uma cidade estendia-se ali em frente até as águas do estreito.
43
os
SINOS
DE NAGASAKI
Onde estavam Sakamato-cho e Swakawa-cho e Hama-guchi-cho ? Desaparecidas ? Mas
onde ?. . . E as fábricas que ainda há pouco ali se achavam, atirando penachos de
fumaça ? E o monte Inosa que esta manhã ostentava um intenso verde e parece agora
uma rocha árida e seca ? Todo verde, folhagem ou relva, tinha desaparecido. A terra
fora despojada.
Que fim levou aquela gente toda que estava perto da entrada ? Olhou naquela direção,
viu o pátio em frente ao hospital coberto de árvores arrancadas, e entre elas, incontável
número de cadáveres nus. Escondeu o rosto entre as mãos e exclamou: "É o inferno ! o
inferno !" Mas era também um mundo morto. Um mundo morto onde não sobrara
ninguém, nem que fosse para gemer. Enquanto mantinha as mãos no rosto, tudo
escureceu; reabriu os olhos e olhou em torno: impossível distinguir alguma coisa: estava
envolta em breu e nenhum som lhe chegava aos ouvidos.
Imaginou de repente que somente ela continuava viva neste mundo, e o pavor
imobilizou-a. De um minuto para outro a morte viria para ela também. . . Num relance
viu sua casa no campo, e sua mãe; esteve a ponto de desatar no pranto, pois, apesar de
tudo, tinha apenas 17 anos. . . Nesse momento, porém, ouviu uma voz. Alguém falava
perto, cada vez mais perto. . . embora o som parecesse chegar a ela somente através das
paredes.
Ainda um grito: era a voz de seu chefe de serviço. Êle vivia, então ! E se êle vivia, os
dois ao menos poderiam se ocupar dos cadáveres na frente do hospital. A coragem de
Miss Hashimoto renasceu.
44
O CATACLISMO
Guiada pela voz, tentou chegar a sala ao lado. Esbarrou no que lhe pareceu ser o
aparelho de raios X e seus pés tropeçaram nos fios elétricos. Impossível prosseguir,
pensou. Entretanto, conseguiu chegar a um canto, onde, habitualmente, havia uma pá
guardada. Mas essa fora retirada dali e, no lugar, encontrou um alto-falante. Lembrou-se
então de que, embaixo, na sala de radiografias, vira umas enxadas. Além do mais, ali
estariam a enfermeira-chefe e outros. Quanto maior número de pessoas chamasse para
ajudar, melhor seria. Animada por essa ideia, conseguiu sair da sala.
Os black-outs tinham-na habituado a percorrer os corredores na escuridão; mas apenas
dera alguns passos, esbarrou numa coisa de consistência mole. Abaixou-se, apalpou,
reconheceu um corpo humano e sentiu uma substância pegajosa que só poderia ser
sangue. Procurou o braço, tomou o pulso: imperceptível. Juntou então as mãos para uma
pequena oração e deu novos passos, até tropeçar de novo em outro corpo. Cabelos
grudados aderiram à sua mão. A escuridão continuava completa; não podia determinar
quantos mortos jaziam em torno dela. Enquanto apalpava o pulso, escancarava os olhos,
tentando enxergar. . .
De repente, lá fora, surgiu um clarão: fogo ! As chamas cresciam iluminando um
espetáculo verdadeiramente alucinante. Deixando cair o braço do morto, a enfermeira
manteve-se de pé, como um fantasma vivo. Por todos os lados do corredor, só havia
cadáveres. Envoltos numa luz escarlate, uns tinham o rosto voltado para o céu; outros
estavam caídos de
45
OS SINOS DE NAGASAKI
lado ou de bruços; alguns tombaram de joelhos ou pareciam ainda, com seus braços
rígidos, lutar em vão para se erguerem.
Impossível fazer qualquer coisa sozinha, pensou a jovem. Era preciso uma equipe de
socorro, um trabalho coordenado para chegar a um resultado. Antes de tudo, porém, o
que se impunha era reunir os vivos e os válidos, no local onde o chefe de serviço jazia
soterrado. Com essa ideia, Miss Hashimoto pôs-se a pular os corpos — desculpando-se
interiormente, perante cada um — e desceu, com dificuldade, as escadas em ruínas até a
sala das radiografias.
Miss Tsubakiyama, jovem aluna de enfermagem, Shiro Tomokiyo e o Dr. Choro Si
estavam preparando o aparelho de raios X. De repente, o barulho fraco mas agudo de
um avião feriu-lhes os ouvidos.
— Que será ? perguntou Miss Tsubakiyama.
— Um B-29, respondeu Shiro, continuando a dispor o aparelho.
— Jogaram uma bomba, disse Choro, que, durante o reide precedente fora ferido na
perna.
— É melhor fugir ?
— Parece que sim, e o mais depressa possível. Escondam-se !
Meteram-se os três debaixo de uma grande mesa. Houve o clarão e a seguir o estrondo.
— Mais uma ! exclamou Shiro, mas sua voz per-deu-se no ruído da tempestade infernal
que desencadeara na sala. Mantinham-se imóveis, esperando
46
O CATACLISMO
o fim do tumulto. Miss Tsubakiyama continha a respiração; por fim falou:
— Machucados ?
— Não, e você ?
— Também não sinto nada. . .
— Enfermeira-chefe ! gritaram juntos.
— Já vou ! respondeu da peça ao lado, a voz tão familiar. Esperem um pouco. Um
mundo de coisas caiu em cima de mim !
Houve então um estrondo terrível e uma escuridão completa os envolveu. A figura côr
de cinza de Miss Tsubakiyama, sentada em frente dos dois outros, desapareceu aos seus
olhos.
— Que vem a ser isto ? murmurou Choro e prosseguiu: deve ser um novo tipo de
bomba, como a que jogaram em Hiroshima. . . Ou será que o sol estourou ?
— Pode bem ser; não notam como começou a esfriar de repente ? observou Shiro num
tom pausado.
— Se o sol estourou, que nos vai suceder ? indagou a voz hesitante e cansada de Miss
Tsubakiyama.
— Será o fim do mundo. . .
Choro parecia resignado. Esperaram, mas as trevas permaneciam. Um minuto passou.
Num tique-taque fraco, o relógio de pulso da enfermeira marcava segundos eternos,
num ritmo angustiante, dentro da tensão da noite.
— Que vamos fazer para o almoço ? disse Shiro.
— Eu já comi ! respondeu Choro. Vocês ainda têm provisões ?
47
OS SINOS
DE NAGASAK1
Parecia desejar uma última refeição, ar. Les de morrer.
— Eu tenho. Vamos dividi-la, enquanto ainda vivemos...
Mas, como um trem que vai saindo do túnel, o barulho cessou gradativamente. A luz
voltou pouco a pouco. A dentadura branca de Choro apareceu de novo e seu nariz
comprido, e a pintinha no rosto de Miss Tsubakiyama.
— E o sol então ? Portou-se como devia, afinal, concluiu Shiro.
— Estou com fome, apesar de tudo, declarou Choro; traga seu lanche !
Saíram de sob a mesa, defendendo-se de uma camada de vidro quebrado, de
instrumentos partidos, de cadeiras em pedaços, de fios embaraçados.
— Onde poderá ter caído este diabo de bomba ? Para ter-nos sacudido assim, só tendo
caído aqui em cima. Mas não vejo rombo no teto.
— Você ouviu-a cair ?
— Não!
— Talvez seja uma espécie de mina aérea. .. Explosão no ar ?
— Seja como fôr, é medonha ! Conversavam ainda quando a enfermeira-chefe,
Miss Hisamatsu pulou dentro da sala como uma bola de borracha. Era, aliás, o seu
sistema ! Arrumando com as duas mãos o cabelo em desalinho, perguntou: — Estão
sãos e salvos ?
Naquele mesmo instante, uma enfermeira do 1.° ano, saindo não se sabe de onde, veio,
soluçando, agarrar-se à enfermeira-chefe.
48
O CATACLISMO
— Que bobinha ! disse esta. Você ainda está viva, isso não basta ?
Mas a jovem continuava em prantos. Provavelmente alguém fora atingido a seu lado.
— Vamos, ponha a sua touca, procure umas bandagens, prosseguiu a chefe com voz
doce mas firme...
Um cano tinha sido furado e um filete de água escorria. Miss Hisamatsu aproximou-se,
lavou as mãos, o rosto e gargarejou.
— Tenho a sensação de ter sido gaseada, disse ela, e recomeçou a gargarejar com mais
força. Parecia que arrancava os pulmões da gente !
— Tsubakiyama-san, venha lavar as mãos, ordenou ela. Se você tocar nas feridas com
essas mãos sujas, elas se infeccionam imediatamente. Você também, Tomokiyo-san;
lave as mãos e o rosto. E você, Si-san, prepare-se depressa. Há uma infinidade de
feridos.
Todos a atenderam e prepararam-se para enfrentar o trabalho. Mas eis que ouvem um
crepitar: Miss Tsubakiyama corre à janela e exclama:
— Tudo está pegando fogo !
Os recém-escapados, agarrando baldes, precipi-tam-se então para o local onde
irrompera o incêndio.
Uma pilha de madeira velha, proveniente de demolições anteriores, já formava braseiro
imenso no local da antiga sala de radiologia. Puseram-se eles a atirar água sobre as
chamas, concentrando seus esforços sobre um único lugar, conforme lhes haviam
determinado. Mas este foco não era o único. A cantina demolida estava envolta em
chamas; de al-
49
OS SINOS DE NAGASAKI
guns edifícios de madeira, as labaredas surgiam também. Somente os pavilhões de
cimento mantinham-se intactos.
Durante algum tempo continuaram seu trabalho, mas era bem pequena a superfície
atingida e o incêndio alastrava-se rapidamente. Verificaram logo que os baldes de água
de nada serviam. As chamas erguiam altas colunas de fumaça preta; pela aparência, o
incêndio se generalizava.
— Salvemos os instrumentos, propôs Shiro.
— Vamos ver os feridos, sugeriu Choro.
— São os hospitalizados que devemos mudar primeiro, resolveu Miss Tsubakiyama.
— Peçamos ordens, determinou a enfermeira-chefe, procurando evitar inútil dissipação
de esforços.
Foi precisamente nessa hora que Miss Hashimoto apareceu para avisar que o Dr. Nagaí,
chefe da Seção de Radiologia, fora enterrado vivo.
— Como ? exclamaram todos. O Dr. Nagaí soterrado ?
— Meu Deus ! murmurou Miss Tsubakiyama; êle é tão gordo ! como vamos tirá-lo de
lá ?
— Não se preocupe, havemos de conseguir, disse Choro encaminhando-se para a porta.
Seguindo Miss Hashimoto, as cinco pessoas, ajudando-se mutuamente, puseram-se a
escalar as vigas, os móveis, os escombros. Passaram pelas janelas, agarraram-se aos
canos e chegaram por fim à sala de raios X. Para alcançar a janela alta da farmácia,
tiveram de subir nos ombros uns dos outros.
50
O CATACLISMO
Na câmara escura, o Dr. Si revelava uma fotografia, quando um estudante que se achava
num posto de observação, atrás do prédio da escola, gritou inesperadamente, com toda a
energia:
— Um avião diferente está voando em cima de nós ! Escondam-se 1 escondam-se
depressa !
O médico interrompeu o trabalho para ouvir melhor: escutou o ruído agudo de uma
hélice, pensou que o aparelho estivesse descendo para aterrissar. Quis ainda molhar as
chapas e pô-las no fixador. Terminava de fazê-lo, quando uma força irresistível
arrastou-o e fê-lo cair inconsciente. Quando recobrou os sentidos, estava comprimido
entre duas pesadas vigas. Moveu-se com tanta habilidade que conseguiu desembaraçar
os membros inferiores, depois os braços, retirou os cacos acumulados sobre si e
libertou-se. Quis saber o que acontecera com suas fotografias, mas tendo perdido os
óculos, não enxergava coisa alguma. Lembrou-se então de Miss Moriuchi que
trabalhava com êle: chamou-a diversas vezes, sem obter resposta; olhou sob os
escombros, mas não havia nenhum vestígio dela. "Com certeza conseguiu fugir antes de
acontecer a coisa", pensou o médico. Pulando por sobre os entulhos saiu para o corredor
e ficou estarrecido: parecia-lhe estar num local onde jamais tivesse pisado: tudo
irreconhecível ! Diversas vezes, esfregando os olhos, olhou em volta de si, não
compreendendo o que sucedera.
As testemunhas da explosão atómica que depuseram até aqui, achavam-se todas no
interior de um edifício de cimento armado; tiveram, pois, a felicidade
51
OS SINOS DE NAGASAKI
de escapar dos efeitos diretos da radioativi-dade. . . Outros trabalhavam fora. Também
estes forneceram o seu testemunho,
O professor Seiki cavava um abrigo, com seus estudantes, atrás do Instituto de
Farmácia. Era êle quem revolvia, enquanto os rapazes transportavam a terra. Nenhum
deles poderia supor que, um instante mais tarde, aqueles que estavam fora do abrigo
morreriam, enquanto que viveriam os que se achavam dentro. Dorso nu, trabalhavam
com ardor. Estavam a quatrocentos metros do ponto do impacto. Inesperadamente,
viram um clarão que iluminou o abrigo até o fundo, seguindo-se um estrondo.
Tomita, que se achava na entrada, de lata na mão, esperando a sua carga, foi impelido
para o interior e atirado violentamente sobre as costas do Dr. Seiki que, curvado, cavava
a terra.
— Que é isso ? gritou êle, erguendo-se furioso.
Pedaços de pau, tiras de roupas, cacos de telha entraram pelo abrigo a dentro,
acompanhando Tomita: uma viga pesada atingiu em cheio o professor. Êle caiu
inanimado no buraco que escavava. . .
Quando voltou a si, após alguns instantes, estava estirado no chão; o abrigo tornara-se
um inferno de chamas e fumaça. Camadas de ar quente entravam assobiando. Levantou-
se cambaleando, e, num esforço desesperador, atravessou as chamas até a entrada. O
sentimento de alívio que experimentou então, durou somente uma fração de segundo.
Sem querer, deixou cair a pá que conservava na mão e, apavorado com o que vira, parou
petrificado.
52
O CATACLISMO
Os pavilhões do Instituto de Farmácia tinham desaparecido, assim como os de
Bioquímica. Os muros não existiam mais, nem as casas em volta. Até quanto podia ver,
estendia-se um mar de chamas.
Mesmo este físico, especialista em energia nuclear, não presumiu tratar-se de uma
bomba atómica: ignorava que a ciência americana tivesse progredido a este ponto.
E os estudantes ? perguntou a si mesmo. Inclinou-se para procurá-los e um arrepio de
terror percorreu-o todo: seria possível que todas aquelas formas inanimadas, estendidas
pelo chão, fossem os seus alunos ? Pensou que estivesse ainda inconsciente. "É um
pesadelo ! é um pesadelo I" repetia êle. "Mesmo em tempo de guerra, coisas assim
nunca sucederam !" Apalpou-se, pegou no pulso: vivia ! então era verdade ! Sacudiu um
corpo a seu lado: "Vamos, levante-se !" Silêncio absoluto. Ergueu então o corpo pelos
dois braços e tentou carregá-lo. Sob seus dedos, a pele saiu em pedaços, como fruta que
se descasca. Õkamoto estava morto. Ouvindo um gemido, o professor voltou-se e correu
para outra vítima. "Murayama, Murayama !" gritou êle, enquanto colocava sobre os
joelhos o rapaz atingido. "Professor. . . ah ! professor !" murmurou o infeliz e a cabeça
tombou para o lado. Com um suspiro de dor, o professor estendeu o corpo, fêz uma
oração e passou para o seguinte: Araki. O rosto todo inchado, a pele saindo em tiras.
Tentou abrir os olhos que pareciam dois fios de linha branca entre as pálpebras
intumescidas, e disse calmamente: "Eles me venceram, doutor". E acrescentou: "Creio
que é o fim.
53
OS SINOS DE NAGASAKI
O senhor fêz tudo por mim; muito obrigado". E calou-se para sempre.
Das orelhas e narinas de alguns cadáveres, o sangue filtrava. Evidentemente tiveram o
cérebro esmagado. Noutros, com o sangue, uma espuma saía também da boca. Pelo
menos, a agonia desses fora rápida: tinham sido atirados ao solo e calcados por uma
força terrível.
Tomita sobrevivera e corria de um para outro, oferecendo água àqueles que ainda
respiravam, confortando com palavras de carinho. Nenhum sobrevivente podia mover-
se por si mesmo. Cada vez que ouviam um gemido, Tomita ou o professor
precipitavam-se em direção ao corpo tombado, mas quase sempre para constatar que
nesse ínterim o homem calara-se, morrendo com expressão convulsa. Uns vinte
estudantes morreram assim, ao lado um do outro...
Aqueles dois homens não podiam, sozinhos, fazer coisa útil; precisavam de ajuda. O
professor pôs-se a gritar, com toda a força, em todas as direções: Socorro ! há alguém
aqui ? Parava, ouvidos atentos. Mas o vento só lhe trouxe outros gritos de desespero,
que saíam de casas demolidas, angustiados, terríveis: Salvem-me ! socorro ! estou
sufocando ! acudam-me, pelo amor de Deus! estou sufocando ! água ! água ! mamãe !
O professor sentiu-se vacilar e perdeu novamente os sentidos. Quando, logo depois,
voltou a si, uma nuvem preta cobria o céu, escondendo o sol; um inesperado crepúsculo
envolvia a terra. Fazia frio.
54
O CATACLISMO
Já ouvia menos gritos. Sem dúvida, muitas vítimas haviam sucumbido; sem dúvida, a
criança que chorava fora queimada viva, longe de sua mãe. . .
Estudantes do 1.° ano tomavam suas notas, tranquilamente. As insólitas palavras latinas
que se sucediam nos seus cadernos, davam-lhes a sensação de já serem médicos. E
escrever em letras ocidentais era motivo de orgulho para eles !
Explodiu então a bomba e foi como que o fim do mundo. A voz do professor não se
extinguira ainda nos seus ouvidos; não tiveram tempo de olhar para cima ou para o lado.
O teto soterrou-os na própria posição em que estavam.
Fujimoto, chefe da classe, viu-se preso pelos quadris. A escuridão era total e a poeira
que empestava o ar sufocava-o. Conseguiu, finalmente, mover-se no espaço vazio entre
os bancos. Gemiam feridos perto dele, outros gritavam alto. Mas, contando as vozes,
verificou que muito poucos eram os sobreviventes. Bem depressa, aliás, o cheiro de
queimado filtrou pelas frestas, enquanto uma fumaça quente e picante invadia a sala.
Evidentemente, o incêndio irrompia. Fujimoto compreendeu, com horror, que bem
pouco tempo lhe sobrava para agir. Tentou remover o que o prendia; mas as traves, as
tábuas e telhas amontoadas eram pesadas demais para êle afastar. Avolumava-se o
crepitar da madeira queimando. Êle empurrava, afastava, batia. . . esforço vão. . . Com
toda a sua força escorou a cabeça, ombros e pescoço contra o montículo que o cobria. . .
mas nada se
55
OS SINOS DE NAGASAKI
mexeu. Calculando, desesperadamente, o peso que o recobria, tentou ainda.
O ar tornava-se cada vez mais quente; o reflexo das chamas dançantes era mais e mais
brilhante. . . Alguém pôs-se a cantarolar uma trágica canção de soldado: "Irei dormir no
fundo das águas. . . ou na encosta das colinas". Fujimoto sentiu fugir toda sua coragem e
parou para escutar o canto do amigo. "Não lastimarei..." A canção foi interrompida, mas
o cantor acrescentou ainda: "Até logo, camaradas. Meus pés estão começando a
queimar".
Dentro de alguns minutos, seria a sua vez. Fuji-moto juntou as mãos para rezar. Surgiu-
lhe no pensamento a figura do pai: fique calmo, parecia dizer-lhe. Depois a sua mãe, seu
irmão mais moço, Masao. Masao provavelmente tomaria o lugar dele como médico. . .
Em seguida pensou nos seus colegas de radiologia, um por um. Até o dia em que entrara
para a Universidade como estudante, aplicara-se como técnico nessa secção. "Oue terá
sucedido — pensou ele — a meu amigo Tako-chan que passou comigo o seu exame de
admissão e formou-se comigo?. . ." As poucas palavras que, cada manhã e cada noite,
trocava com seus colegas, voltavam-lhe agora à memória. "Vamos com calma. Para que
se alterar quando se perdeu a liberdade, quando se é prisioneiro, em ponto de se torrar
sem compaixão; de tornar-se um monte de cinza ?" O corpo estava sem defesa, sem
atividade, mas bem depressa a alma se erguerá, cantando, através do universo imenso.
Questão de poucos minutos. O cheiro de carne queimada
56
O CATACLISMO
chegou até êle, cheiro adocicado dos joveris corpos aniquilados. . .
"Isso é o que se pode chamar de uma situação crítica, pensou fleumàticamente. É isso
mesmo. Aliás, de que serve esse corpo que não pode senão assimilar e rejeitar..."
Lembrou-se do que seu professor, o Dr. Si, lhe dissera um dia: "Quando você não puder
resolver um problema, pense nele em termos contrários." Essa sugestão iluminou-o. Em
vez de tentar se erguer, Fujimoto passou a mão pelo chão e encontrou uma fenda entre
as tábuas. Toda a força concentrada nos dedos, puxou freneticamente. A tábua cedeu
com um estalo. O choque terrível da explosão arrancara os pregos do assoalho. . . Fuj
imoto passou a mão por baixo, e a tábua se desprendeu com um som delicioso. O ar
chegou até êle. Uma segunda, depois uma terceira tábua retiradas facilmente e de
repente, Fuj imoto caiu sobre o chão fresco do andar térreo.
A Doutora Yamada e Miss Tsujita abriram a janela dos fundos, na sala de bacteriologia,
para se refrescar da longa caminhada que fizeram. Tinham ido à estação buscar suas
passagens para Tóquio, pois deviam fazer lá, um curso sobre a manipulação de soros.
Nagasaki não tardaria em ser sitiada — pensavam — e era preciso, rapidamente,
preparar-se para a eventualidade. Como a maioria dos homens partira para o fronte,
essas duas jovens médicas, dedicadas à ciência, tomaram a si a séria responsabilidade.
57
OS SINOS DE NAGASAKI
O mato crescia nas quadras de ténis: esportes e jogos eram coisas do passado,
esquecidas desde o dia em que a guerra dominou. Só ela contava agora. . . Por trás das
quadras cresciam pinheiros, canforeiras e através dos seus galhos podia-se ver o terreno
do estádio, transformado em cultura de batata-doce. Mais atrás e mais alto, a certa
distância, erguia-se, majestosa, a catedral. Duas moças, de calças largas e compridas,
que atravessavam o pátio, acenaram as mãos: eram Hama-san e Oyanagi-san, ambas
enfermeiras da Seção de Radiologia onde Tsujita trabalhara até então. . . No estádio,
Yamashita-san, Yoshida-san e Inoue-san, enfermeiras do mesmo ramo, de cócoras,
arrancavam as ervas daninhas que prejudicavam a plantação. Sobre as colinas, em redor
de Urakami, nos campos em primeiro plano, os fazendeiros faziam o mesmo,
aproveitando aquele fim de alerta. Uma fila de pessoas caminhava em direção da
catedral. Ao longo da estrada brilhava o colorido das sombrinhas. . .
— Bela região a de Nagasaki ! Não me canso de olhá-la. . .
— É verdade; mas. . . será que a veremos ainda assim, quando voltarmos daqui a dois
meses ?
— Tenho a impressão de que a cidade será destruída.
— E eu creio que será a única poupada. . .
A explosão cortou esse diálogo... A Doutora Yamada atirou-se ao chão e escapou. Miss
Tsujita, a seu lado, morreu asfixiada. . .
Verdadeiro pesadelo, repentino, irreal. . . mas sobretudo, verdadeiro e pavoroso. A sala
de bacteriologia
58
O CATACLISMO
já estava em chamas. Somente a doutora sobreviveu. Todos devem ter morrido
instantaneamente.
Quando Yamada conseguiu sair, a escuridão era absoluta e soprava o vento demolidor.
Diante do vasto espaço vazio à sua frente, parou, imobilizada de espanto. Verificou que
as árvores tinham sido arrancadas, que os edifícios estavam desmoronados. Toda a parte
superior da catedral, inclusive as torres de 50 metros, foram levadas pelo tufão. O que
restava do edifício parecia uma antiga ruína. Corpos pendiam, cabeças para baixo,
braços e pernas arrancadas; o mesmo se via sobre os muros de pedra, nas estradas, e em
número incontável, no campo.
A médica lembrou-se das enfermeiras que estavam no estádio. Olhou naquela direção:
seus cadáveres jaziam imóveis, mutilados pela explosão. Quem estivesse fora deveria
ter morrido instantaneamente. Ela não ficara seriamente ferida; todavia, sentia como que
enorme peso sobre os ombros. Depois de alguns passos, os joelhos dobraram e caiu
sobre o cimento. A seu lado, viu atirado um velho compêndio alemão de bacteriologia.
"Não servirá para mais nada", pensou ela, e colocando-o sob a cabeça, transformou-o
em travesseiro. E ali, perdida num doloroso sonho, esperou socorro.
59
III SOCORROS
Assim acabou a Universidade.
No dia 9 de agosto de 1945, às 11 horas e 2 minutos, uma bomba atómica explodia a
550 metros de altitude, acima de Matsuyama-cho, centro do bairro de Urakami, em
Nagasaki. Um tufão, com velocidade de 2 000 m por segundo, derrubou, pulverizou,
dispersou tudo quanto encontrou; em seguida, o vácuo formado no centro da explosão
aspirou os escombros para cima, a uma grande altura, e por fim deixou cair essa massa
gigantesca.
Além disso, o calor de 9 000 graus gerado pelo fenómeno queimou tudo que existia. E
os fragmentos da bomba, caindo em chuva de metal incandescente, atearam incêndios
por todos os lados.
Uma nuvem de resíduos, provocada pelo cataclismo, encobriu o sol, produzindo uma
escuridão completa, como se fosse um eclipse total. Após três minutos,
aproximadamente, a nuvem pôs-se a baixar gradativamente, enquanto as partículas se
dispersavam e uma luz ténue iluminava de novo o campo da carnificina.
61
OS SINOS DE NAGASAKI
Houve uns 30.000 mortos, mais de 100.000 feridos. Dezenas de milhares de outras
pessoas foram vitimadas pela chamada doença atómica, causada pela radioatividade.
Desde o princípio tudo se fêz para prestar o maior socorro às vítimas.
Eu mesmo, soterrado, como já contei, sob um monte de ruínas, e tendo gritado para que
me acudissem, acabei por libertar-me sozinho. No momento em que entrava na câmara
fotográfica, o Dr. Si apareceu. Atrás dele, a equipe de socorro, conduzida por Miss
Hashimoto. A enfermeira-chefe irrompeu na sala, naquele seu jeito impetuoso,
abraçando-me efusivamente, expressando vivos parabéns e congratulações. Eu olhava
para aqueles recém-escapados, um após outro, e pensava: "Vidas preciosas !. . . essas
foram poupadas !. . ." Uma profunda gratidão me invadia. . . "Mas deviam ser mais
numerosas. . . Onde estão as outras ? Yamashita ? Inoue ? Umezu ?"
— Procurem os outros. Removam-nos, ordenei. E voltem aqui dentro de 5 minutos.
Todos partiram em direções diferentes. O Dr. Si e Shiro se esgueiraram entre os
escombros da câmara escura, tirando aqui uma tábua, ali pulando uma viga e gritando
nomes diferentes. Nenhuma resposta se ouvia.
Choro trouxe Umezu, bastante ferido; retirou-o do meio dos aparelhos, na sala de
radioscopia. Coberto de sangue, sem forças e como que paralisado, Umezu arrastava-se
pelo corredor, gemendo: Meus olhos ! perdi meus olhos !
62
SOCORROS
— Vamos ! respondeu Choro, examinando-lhe os ferimentos. Deixe de bobagem. Seus
olhos aí estão.
Umezu sofrera um ferimento profundo na arcada superciliária, sem mencionar os
inúmeros cortes e contusões no rosto e no corpo.
— Não se preocupe, tudo acabará bem, animava-o a enfermeira-chefe, enquanto lavava
a ferida e colocava a bandagem.
Tomei o pulso de Umezu e comecei a dar ordens de socorro e de tratamento imediatos.
Sem saber como, vi-me subitamente envolvido por uma multidão de criaturas
fantasmagóricas e seminuas:
— Salve-me, doutor !. . . Um remédio, por favor ! Que frio ! Dêem-me roupas, pelo
amor de Deus.
Todos me chamavam ao mesmo tempo: eram doentes do hospital que tinham
sobrevivido ou melhor, não tinham ainda morrido. . . Como a explosão se dera na hora
de maior movimento, na que funcionava o ambulatório para doentes externos, os
corredores, salas de espera, laboratórios eram um amontoado de corpos, corpos nus de
feridas expostas, corpos nus com a pele em tiras, corpos nus que pareciam de argila pela
cinza que aderira a eles. Espetáculo tão tremendo, que não se podia imaginar que se
tratasse de seres humanos, nem que semelhante quadro pudesse jamais existir. . . Dessa
alucinante massa de carne, arrastavam-se lentamente aqueles em que existia ainda um
sopro de vida; cercavam-me, agarravam-me as pernas: "Salve-me, doutor !" gemiam
eles. Alguns, impossibilitados de falar, exibiam
63
OS SINOS DE NAGASAKI
apenas as suas chagas. Um pulso de onde jorrava sangue, ergueu-se diante de mim.
Uma menina corria de um lado para outro, gritando: mamãe ! mamãe ! Mães,
contorcidas de dor, chamavam os filhos pelos nomes. Um adolescente alucinado, rosto
em sangue, cambaleava, perguntando: "A saída? onde fica a saída ?" Estudantes
transitavam num movimento louco, gritando à procura de macas. Confusão
desesperadora.
Começamos os primeiros socorros, mas bem depressa acabaram-se as bandagens, e
tivemos de improvisá-las, servindo-nos das tiras de nossas camisas. Dez, vinte, trinta
pacientes: o número crescia. Não havíamos terminado um curativo e outra vítima já nos
implorava: "Salve-me, doutor !" Os meus próprios ferimentos dificultavam
enormemente o trabalho. Tinha de comprimir com a mão uma pequenina artéria, que
recomeçava a sangrar cada vez que a largava. Todas as vezes que um curativo exigia as
minhas duas mãos, o sangue imediatamente espirrava até a parede. Era, entretanto, uma
artéria pequena e eu calculava poder me sustentar assim umas três horas. Tomando meu
pulso de vez em quando, continuei a cuidar das vítimas.
Hashimoto e Tsubakiyama, que tinham saído à procura de suas companheiras, voltaram
sem encontrar nenhuma e disseram: "Pensávamos que estivessem no campo de batatas.
Tentamos ir até lá, mas o caminho está bloqueado pelas árvores caídas, o incêndio e os
cadáveres. Não resta mais nenhum dos edifícios de Medicina fundamental, tudo é um
mar de fogo. O Centro do hospital está em chamas e é
64
SOCORROS
impossível atingir a entrada por trás. Incontáveis são os feridos".
Yamashita, Inoue, Hama, Onyanagi, Yoshida. . . Meu espírito evocava as suas
fisionomias: estariam mortas ? ou morrendo ? ou contorcendo-se no chão como aqueles
coitados a meus pés ? Quem sabe conseguiram se salvar e estão abrigadas nalgum
lugar ? Não é possível. Se vivessem, teriam certamente vindo para perto de nós. . .
Sentei-me no chão para refletir, enquanto o Dr. Si e uma enfermeira tratavam, enfim, de
minha ferida: "Explosão incomum, situação sem precedentes, acontecimento histórico.
Temos de enfrentá-la com sangue frio e determinação."
Sem resultado, o Dr. Si enrolava as bandagens em volta de minha cabeça: o pano muito
fino ficou logo embebido e um filete vermelho recomeçou a escorrer pelo meu rosto.
Dei ordens para que se dispersassem, procurando pinças e instrumentos indispensáveis.
De novo sozinho, pus-me a pensar: "A região tornou-se um verdadeiro campo de
batalha; nosso dever é permanecer ali, aconteça o que acontecer. Provavelmente o
inimigo vai empregar de novo este tipo de bomba, dentro de uma semana para poder
desembarcar. Não perder a cabeça. Tomar as coisas como elas são, sistematicamente.
Reunir, pois, os membros do grupo e dividi-los em equipes; garantir as reservas
medicinais e alimentares; organizar acampamentos. Poder-se-ia estabelecer depois, um
sistema de coordenações e ligações, e escolher um local apropriado para um hospital de
emergência. Sem dúvida alguma, Nagasaki será bombardeada pelo lado do
65
OS SINOS DE NAGASAKI
mar; os pacientes têm que ser removidos para o interior. . .
Lá fora, a floresta já se transformara num mar de chamas, e o edifício onde estávamos
não tardaria a pegar fogo, julgando-se pela força crescente do crepitar.
Os que tinham saído à procura de instrumentos, voltaram uns após outros com as
mesmas palavras: tudo quebrado, as válvulas partidas, fios arrebentados, o
transformador deslocado e irremovível. Os espécimens espalhados por todo o
laboratório.
Olhavam-me, atentamente, esperando de mim uma palavra. Professores, enfermeiras,
estudantes de outras seções, cobertos de sangue, e amparando-se dois e três pelas mãos,
passavam rapidamente perto de nós, sem pronunciar uma palavra.
Os estalos do incêndio cresciam; as cinzas incandescentes começaram a chover pela
janela. Que fazer ? Limitava-me a olhar para o grupo e aconselhar calma, mas exigindo
que fizessem alguma coisa. Ficar ali seria morrer queimado. Nesse momento, não pude
impedir que um sorriso nervoso passasse pelos meus lábios. Reação tão inesperada que
todos se puseram a rir. Alguns segundos de incontida hilaridade. Disse-lhes depois:
— Vejam um pouco como vocês estão ! Nesse estado não poderão trabalhar. Preparem-
se e encontrar-nos-emos perto da porta principal. E não se esqueçam da merenda.
Ninguém se defende com o estômago vazio !
Minhas ordens foram acolhidas com entusiasmo. "Sim, senhor !" "É isso mesmo !" E
enquanto se
66
SOCORROS
encaminhavam para os seus quartos, compreendi que tinham reagido, voltando a ser o
que eram.
O Dr. Si encontrou meus sapatos; a enfermeira-chefe trouxe meu casaco e chapéu.
Dirigi-me para o corredor de entrada. Em frente da sala de ginecologia, uma enfermeira,
olhos esbugalhados, girava sem parar. Segurei-a energicamente pelo ombro, mas nem o
notou: continuou a girar. O choque enlou-quecera-a momentaneamente.
O pátio diante da entrada estava coberto de mortos e feridos. Além disso, cada vez mais
numerosas eram as pessoas que vinham da cidade e subiam a colina, procurando o posto
de socorro ou o hospital. Pessoas carregando feridos e agonizantes sobre os ombros,
saíam cambaleando dos edifícios poupados.
Novamente vi-me ante o mesmo doloroso dilema: Que fazer, e como ? Toda vida é
preciosa. Para cada um desses coitados, seu próprio corpo era mais importante do que
tudo: seu ferimento, grande ou pequeno, absorvia toda a sua atenção; queria ser tratado
por um bom médico. Meu dever era satisfazê-los.
Todavia, se as vítimas eram incontáveis, os recursos médicos revelavam-se nulos; as
chamas caminhavam rapidamente e nós éramos pouquíssimos. Cuidei de três ou quatro
feridos mais próximos, mas compreendi nitidamente que, a menos que olhasse a
situação em conjunto e a encarasse de frente, corria o risco de ser tragado pelas chamas
com aqueles dos quais me ocupava.
Vinte minutos tinham se passado depois da explosão. Toda a região de Urakami ardia
em grandes
67
OS SINOS DE NAGASAK1
labaredas. O próprio centro do hospital já pegara fogo. Somente a ala direita, ao longo
da colina, permanecia intacta. Mas não tínhamos mais material ou ajudantes; era deixar
propagar-se o incêndio e contemplar o espetáculo medonho: corpos nus cambaleando,
tropeçando, continuavam a escalar a colina para fugir da fornalha. Duas crianças
passaram, arrastando o pai morto. Uma mulher jovem corria, apertando contra o peito o
filho decapitado. Um casal de velhos, mãos dadas, subiam juntos, lentamente. Outra
mulher, com as vestes repentinamente ateadas, rolou pela colina abaixo como uma bola
de fogo. Um homem enlouquecera e dançava em cima de um telhado envolto em
chamas. Alguns fugitivos voltavam-se a cada passo, enquanto outros caminhavam firme
para frente, apavorados demais para voltar. Um rapaz que tomara a dianteira, gritava à
irmã que andasse mais depressa; o menorzinho, atrasado no seu caminhar, chorava para
que o esperassem. Por de trás desta gente, as labaredas avolumadas aproximavam-se
cada vez mais.
Felizes ainda eram esses dez por cento que escaparam do inferno; os outros, presos e
soterrados sob escombros, morriam queimados vivos. As rajadas de vento faziam roncar
o incêndio, e traziam gritos de socorro e de agonia. Nunca em minha vida senti-me tão
impotente, tão insignificante, olhando de braços cruzados o terrível panorama de medo,
de agonia, de morte e destruição. Nada podia fazer: absolutamente nada ! "Professor, o
senhor parece o deus do fogo !" disse uma voz perto de mim. Eram Nagai e Tsutsumi,
estudantes do 3.° ano de Medicina.
68
SOCORROS
Minha turma de radiologia reunira-se também. No fim, apareceu Moriuchi, que pudera
se refugiar num abrigo, e logo após, Miss Kozasa, técnica de raios X em ginecologia.
Seus cabelos estavam ruivos e cheirava a carne queimada; as roupas em tiras desfiadas.
Contaram-nos que ela salvou duas enfermeiras do fogo, mas ela mesma não sabia como
conseguira atravessar as chamas e chegar até nós. Estavam apenas Miss Sakita e Miss
Kaneka, técnicas de raios X das seções de dermatologia e de cirurgia.
— Os instrumentos podem esperar, disse eu. Ajudemos primeiro as vítimas !
Para salvar o maior número de doentes, grupos de socorro penetravam de dois em dois
no hospital que ardia. Kozasa e Moriuchi mergulharam de novo nas chamas, à procura
de Sakita e Kaneka. Choro subiu a colina, atrás do edifício, com Umezu nas costas:
parecia um destes cromos da guerra russo-japonêsa.
Do prédio em que estávamos, fugiam aqueles que já conseguiam locomover-se.
Chamei-os, mas não responderam. Olhos esbugalhados, não me deram a menor atenção
e corriam desordenadamente. Quem poderia apanhá-los e tratar deles, se se afastavam
do hospital ? Gritei, pedindo que voltassem, que se acalmassem. Mas debalde.
Caminhando até a sala de operações, encontrei-a inundada: rutura de um cano.
Chafurdei-me até a ante-sala onde estavam as reservas medicinais. Diante do que vi,
toda a energia se foi: padiolas e macas estavam inutilizadas, os instrumentos espalhados.
Garrafas, tubos, cápsulas, recipientes de vidro transformados
69
OS SINOS DE NAGASAKI
num monte de cacos e seu conteúdo misturado na água que corria.
Tremenda ironia ! Não fora para utilizá-los, num dia como hoje, que fizéramos essas
reservas ?
Tudo estragado; ruína completa. Tínhamos que enfrentar dezenas de milhares de
mutilados e feridos, praticando, unicamente com as nossas mãos, a mais primitiva das
medicinas. Teríamos que salvar vidas, empregando tão-sòmente a nossa inteligência,
nossa caridade e nossos braços.
Com o coração pesado subi as escadas e em pé, diante da entrada, examinei a situação
uma vez mais. Embora desencorajado, tinha comigo, afinal das contas, uma duas
dezenas de voluntários: médicos, enfermeiras, estudantes que ajudariam os meus
esforços. Eles passavam, dois a dois, de sala em sala, carregando os feridos.
Esses eram colocados no depósito de carvão, perto da entrada. Era o único lugar onde as
lingiietas de fogo não caíam. Mantive-me no meio deles sem nada fazer, enquanto se
alastrava o incêndio: uma fumaça negra subia para o céu, e as nuvens ameaçadoras
estavam vermelhas pelo reflexo do fogo. . .
— Salvamos o Diretor, exclamou alguém ali perto. Voltei-me e vi Tomokiyo de pé, na
entrada. Nas costas, carregava uma massa escarlate: o Dr. Tsuno-o. Seus cabelos, rosto,
avental branco, calças, meias, tudo coberto de sangue. Perdera os óculos. . .
— Ah ! Nagaí, disse-me êle; que coisa tremenda ! você deve ter passado momentos bem
duros !
Tomei-lhe o pulso: regular e forte. E como a colina de trás era ainda um lugar seguro,
disse a
70
SOCORROS
Tomokiyo que levasse para lá o Diretor e lhe proporcionasse a calma necessária, num
abrigo. O Dr. Si acompanhou-o com uma seringa nas mãos.
O Dr. Tsuno-o estava examinando os doentes externos quando passou o tufão. O Dr.
Ko, embora gravemente ferido também, conseguiu transportá-lo até o corredor e em
seguida caiu exangue. Foi ali que Tomokiyo os encontrou. ..
Pouco depois Miss Maeda, enfermeira-chefe de Medicina Interna, saía correndo do
prédio, perguntando pelo Diretor. Informei-a de que êle estava atrás da colina, a 300
metros de distância e que o Dr. Si acompanhara-o.
A enfermeira estava côr de cinza; o sangue corria abundantemente das suas pálpebras.
Assim que ouviu a resposta, dirigiu-se para a colina, com uma agilidade espantosa para
uma pessoa tão corpulenta. . .
Miss Hashimoto tinha 17 anos e Miss Tsuba-kiyama, 16. Numa e noutra, a proporção
entre a altura e a largura do corpo saía do normal. Numa pilhéria cheia de afeição, os
colegas apelidaram-nas de "Pipazinha" e "Favinha".
Quando entraram juntas na sala de espera, encontraram sete ou oito pessoas, pacientes e
estudantes gemendo no chão. Levaram as vítimas até o depósito de carvão e foram
depois para a sala das consultas. A "Pipazinha" ali encontrou uma enfermeira que ela só
conhecia de vista e de nome. Ao transportá-la, sentiu uma alegria como jamais
experimentara. A vítima, Hamasaki-san, gemia de tempos em tempos, alheia ao que se
passava. Se mais tarde,
71
OS SINOS DE NAGASAKI
as duas enfermeiras não lhe disserem nada, ela nunca saberá. . . Pensando nisso, a
"Pipazinha" sorriu e a sua imaginação transpôs o tempo, levando-a aos dias de sua
infância. Como eram vermelhos aqueles morangos que colhia então ! Pareciam-lhes
rubis, jóias verdadeiras. E ela de fato os havia conservado como um tesouro,
escondendo-os no celeiro por trás de um monte de pipas. Todas as manhãs e todas as
tardes ali vinha para saborear um deles e contemplar o resto, com admiração. Nem sua
irmã mais velha, nem o irmãozinho pequeno jamais desconfiaram. . . Aqueles morangos
pertenciam a ela só, e que alegria boa eles lhe proporcionaram !
A "Favinha" pensava noutra coisa: estava admirada de constatar o quanto os adultos,
que ela transportava, pesavam pouco ! Lembrava-se daqueles treinamentos em que
tivera de carregar doentes da ambulância ao posto de socorro. Lembrava-se de como
eram pesados aqueles pacientes reais que ela, noutros tempos, transferira da maca para a
mesa. Talvez esses sejam leves porque já perderam muito sangue !. . . concluiu a jovem.
Seus pensamentos tomaram depois outro rumo: por que o Professor Nagaí fora tão
severo naqueles exercícios ? Se a realidade não é mais terrível nem mais dolorosa do
que esta, então não era necessário. . . Hoje que ela lidava com verdadeiros cadáveres e
feridos, não experimentava medo algum. Era tão fácil. . . Mas veio-lhe depois uma
sensação de abandono, de isolamento. Koyanagi-san e Yoshida-san, com as quais vivera
o ano anterior, repartindo suas alegrias ou tristezas, com as quais fizera os treinamentos,
não
72
SOCORROS
estavam a seu lado. As chamas separavam-nas e agora não sabia mais se as amigas
estavam vivas ou não. Tinha a impressão de que iam aparecer, que não estavam longe.
Pôs a cabeça fora da janela e gritou longamente: Yoshida-saaan ! Yoshida-saaan ! Com
um estrondo terrível, o prédio fronteiro, todo em brasa, começou a desmoronar em sua
direção.
Cada vez que as duas enfermeiras voltavam para buscar uma vítima, uma sala a mais
pegara fogo. Todavia, nenhum trabalho lhes parecera tão agradável e encorajador do
que introduzir-se assim, uma toalha cobrindo-lhes o nariz e a boca, para retirar um
ferido de uma sala onde as labaredas tudo devoravam. Saindo dali sentiam ainda
queimar-lhes os braços e verificavam que suas mangas estavam em fogo. Durante
aqueles poucos minutos compreenderam, de uma só vez, toda a grandeza e todo o
privilégio de serem enfermeiras. . .
As vítimas desacordadas não eram difíceis de tratar; mas as que ainda tinham
consciência causavam-lhes inúteis perdas de tempo. Queixavam-se de dores, pediam
que tivessem cuidado, imploravam aos enfermeiros que as transportavam que voltassem
para buscar algo esquecido. Não avaliavam a tragédia da situação.
Eram duas horas da tarde no relógio de Tsuba-kiyama, o único que possuíamos. Três
horas eram passadas sem que nos tivéssemos dado conta: e a catástrofe atingia agora o
seu apogeu. Desde pouco, o vento soprava do oeste; erguiam-se labaredas a 50 metros
de altura e, rebatidas pela corrente de ar, inclinavam-se com direção a leste. O depósito
de carvão
73
OS SINOS DE NAGASAKI
já não oferecia segurança. Resolvi transportar os feridos para os campos de batatas, na
colina.
Não era fácil: a estrada estreita, coberta de escombros e tínhamos que carregar as
vítimas por cima de rochas numa subida penosa. Eu mesmo transportei dois, mas
quando tentei levantar um terceiro, senti-me completamente sem forças. A artéria
continuava sangrando: já três vezes mudara o curativo. A enfermeira-chefe disse-me
que eu estava pálido e desfeito; o pulso enfraquecera consideravelmente.
Podíamos ver a "Pipazinha" e a "Favinha" subir a colina carregando, alegremente,
vítimas muito mais volumosas do que elas. Um bebé de 2 meses chorava junto de sua
mãe inanimada; como o fogo se aproximava, quis ao menos salvar a criança:
transportei-a para cima e deixei-a perto de Hamasaki. Neste momento, a mãe gemeu:
era o fim. chamada e a enfermeira-chefe, não querendo separá-la de seu bebé, levaram-
na também. A criança chorou mais alto. . . Respirava-se com dificuldade, pois o
oxigénio do ar fora aspirado pela explosão, e em troca o óxido de carbônio espalhara-se
por toda parte. As pessoas trabalhavam ofegantes.
Grossas gotas de chuva começaram a cair grandes e pretas. Pareciam vir da nuvem
escura que pairava sobre nós, e marcavam como um pingo de petróleo onde tombavam.
A cena tornou-se mais trágica ainda. . .
Quando olhei de novo o relógio de Tsubaki-yama, eram 4 horas. Os feridos estavam
estendidos lado a lado nos campos da colina; os estudantes circulavam
74
SOCORROS
à procura de um teto. Mas na vertente, não se via senão fogo e fumaça. . . Só restava
sentarmo-nos sob a chuva e contemplar o incêndio.
— Vocês precisam descansar e comer, disse eu então.
As enfermeiras alegavam não ter apetite, mas insisti que o fizessem, pois teriam de
enfrentar por dias e por meses um trabalho insano. Obedeceram, e uma vez alimentados,
sentimos mais confiança em nós mesmos. Recomeçamos a nos ocupar das vítimas,
ouvindo-as, tratando-as: era preciso atar, dar pontos, aplicar desinfetantes, dar de beber.
Tudo quanto conseguimos salvar em matéria de lençóis ou cobertores foi colocado
sobre os feridos e improvisamos talas, como foi possível. De repente alguém gritou:
Fogo na sala dos espécimens !. . . "Dez anos de trabalho árduo que desaparecem num
segundo", pensei eu, lembrando-me também das insubstituíveis fotografias.
Nova exclamação: Fogo na sala de radiologia ! Adeus aos nossos aparelhos ! Levamos
tanto tempo para retirar os pacientes que não pudemos pensar nos espécimens, nos
instrumentos e na aparelhagem ! Tudo isso subia para o céu em fumaça e em chamas. . .
E nós, silenciosos, acompanhávamos com o olhar.
O fogo progredia: deve ter chegado à sala dos filmes, pois com uma explosão surda, as
labaredas tomaram maior vulto, enquanto lançavam uma fumaça negra. Senti os joelhos
dobrarem-se, e caí no chão, murmurando: "É o fim !" As enfermeiras começaram a
chorar. . . Toda a Escola estava agora
75
OS SINOS DE NAGASAKI
em chamas. Dos professores de Medicina, somente seis tinham escapado; 80% dos
estudantes e enfermeiros estavam aparentemente desaparecidos. Os dois grupos
sobreviventes de socorro — o meu e o outro que colocamos na porta dos fundos —
contavam no máximo 50 pessoas.
Homens, equipagem e toda a Escola estavam praticamente destruídos. Em pé, sobre a
colina, assistindo aos seus últimos momentos, nós nos sentíamos como restos de um
exército vencido.
Nesta hora, o Dr. Okara apareceu, trazendo um grande lençol branco, retirado de uma
das salas. Com o sangue que me corria no rosto, da têmpora ao maxilar, desenhei no
centro do lençol um grande disco vermelho. Prendemos num bambu este estandarte do
Sol Levante. Quando o erguemos, uma rajada de vento tórrido agitou-o no céu de
chumbo. Um dos estudantes, mangas arregaçadas, bandagem branca em volta da
cabeça, levou a bandeira até o cume da colina, entre nuvens de fumaça preta. Todos nós
o seguíamos em silêncio. Eram cinco horas da tarde.
Assim findou a Universidade.
A noite rubra.
Em grupos, os professores encaminharam-se até o local onde estava deitado o Diretor.
Não pude conter as lágrimas ao vê-lo encolhido sob um sobretudo, num canto do campo
de batatas e açoitado pela
76
SOCORROS
chuva. Os membros do corpo médico e os estudantes, sob a direção do Professor
Shirabe, corriam de um lado para outro a serviço dos feridos. Relatei ao Diretor os
últimos acontecimentos e depois afastei-me. Mal dera uns vinte passos, uma tontura
obscureceu-me totalmente a vista. Caí no local em que Umezu estava deitado, assistido
por Choro. Também êle estava molhado pela chuva. De joelhos, tomei-lhe o pulso e
fiquei surpreendido ao verificar que batia mais forte do que era de esperar. Tirei meu
casaco e coloquei-o sobre êle. Levantei-me vacilando, dei ainda alguns passos e perdi os
sentidos.
"Comprima a artéria jugular", falou o Dr. Si. Percebi que me apertavam as têmporas;
gradativamente reabri os olhos e contra o cenário das nuvens escarlates, divisei os rostos
ansiosos do Dr. Si, da enfermeira-chefe, de Miss Kaneko e da "Favinha", todos
debruçados sobre mim.
— Fio de sutura, um agrafo e gaze, pediu o médico. Senti uma dor aguda enquanto êle
enfiava alguma coisa na ferida, perto da orelha. Ouvi um barulho metálico; sangue
quente deslizou pelo meu rosto.
— Mantenha apertada ! Enxugue ! Mais gaze ! ordenava o médico. A ponta do agrafo
parecia beliscar as próprias fibras dos nervos; picadas dolorosas percorriam todo o meu
corpo, crispando-me todo; agarrava nervosamente as raízes das ervas que meus dedos
encontravam.
Como o Professor Shirabe tivesse também se aproximado, o Dr. Si disse-lhe alguma
coisa em voz
77
OS SINOS DE NAGASAK1
baixa. O professor tomou-me o pulso e eu fechei os olhos, disposto ao pior.
— A extremidade da artéria deslizou para trás do osso, disse o médico.
Repetidas vezes tive de suportar aquela dor horrível que me retesava e fazia arrancar a
relva do chão. Finalmente terminou, com êxito, a operação.
O rosto do professor perdeu a sua expressão ansiosa: "Vai tudo bem, Nagaí", disse-me
êle, erguendo-se. Agradeci-lhe e uma lassidão me invadiu. Perdi de novo os sentidos.
Quando voltei a mim, o sol já havia desaparecido. Sobre a terra o fogo crepitava
incansavelmente e o céu, coberto por uma monstruosa nuvem negra, refletia seus
rubores. Via-se apenas, no ocidente, uma pequenina faixa de céu claro, ao lado do
monte Inasa, onde brilhava serena a Lua crescente.
No vale, para além d* seção dos tuberculosos, alguns homens reuniam tábuas, folhas de
zinco e palha para construir um galpão, enquanto as mulheres cozinhavam abóboras
dentro de capacetes de aço. Os estudantes Nagai e Tajima encaminharam-se para os
escritórios da Prefeitura, a fim de obter rações de urgência. Sentamo-nos em círculo,
tendo no centro o fogo onde cozinhavam as abóboras. Um pobre grupinho de vidas
poupadas ! Olhávamo-nos mutuamente, compreendendo que um destino misterioso
mantinha-nos unidos e, sem nada dizer, apoiávamo-nos um ao outro. Do mato sombrio,
atrás de nós, erguiam-se clamores pungentes !. . . "Uma maca, por favor !. . ." "Tragam-
me uma injeção !. .." Umas
78
SOCORROS
vítimas gritavam os nomes de seus amigos, outras o de seus parentes; algumas vozes
nos pareciam familiares. Por vezes, grupos inteiros punham-se a gritar ao mesmo
tempo.
Silenciosos, pensávamos nos sete companheiros nossos os quais já não contávamos
mais encontrar. Disseram-nos que Miss Sakita, do pavilhão de dermatologia, jazia numa
trincheira, a perna fraturada e impossibilitada de mcxer-se. Fujimoto a custo conseguira
retirar-se de sob o assoalho do auditório e passara por nós, apoiando-se num pau;
conservara energia bastante para voltar para casa. Entre as cinco outras enfermeiras
estavam Yamashita, Kataoka (afetuosamente apelidada de "Polvinho") e Tsujita. Se lhes
tivesse restado um sopro de vida, teriam encontrado meios para voltar às suas seções;
mesmo às portas da morte e a alma presa ao corpo por um fio, ter-se-iam arrastado até
junto de nós. . . para morrer. Elas eram assim. . . Oito horas haviam passado, porém, e
como até agora não tinham aparecido, já não contávamos vê-las com vida.
Por essas boas companheiras, cada um de nós rezou em silêncio. . .
De repente, como que brotando das chamas, surgiu um homem nu, diante de nós: "Dr.
Nagaí ! exclamou êle, enfim eu o encontro !"
— Dr. Seiki ! O senhor vive ainda ?
— Sou o único, respondeu, sentando-se pesadamente.
O pedaço de pau que lhe servira de bengala caiu no chão com um ruído seco. A vista do
Dr. Seiki,
79
OS SINOS
DE
NAGASAKI
sem fôlego, suspendendo os ombros, ícz-me pensar num grande búfalo ferido !
— Venha imediatamente, disse êle, arquejando. Os estudantes estão agonizando. A
metade já morreu. É preciso aplicar injeções nos que ainda vivem. Não podemos deixá-
los morrer assim. . . Estão num abrigo da Escola de Farmácia.
— Está bem, Professor; iremos com o senhor. Mas. . . aceita antes um pouco de abóbora
?
— Não tenho tempo para pensar em abóboras. Cem abóboras não salvariam esses
rapazes. Vamos imediatamente.
Levantou-se com dificuldade, apoiando-se em Shiro e murmurou: "A Escola acabou.
Parece incrível. E tantos mortos..."
O Dr. Si, a enfermeira-chefe Hashimoto e Ko-zasa levantaram-se também, levando suas
bolsas de socorros urgentes.
— O caminho está horrível, disse o Professor Seiki. Embora seja a 300 metros daqui,
gastei uma hora para vir. Eu voltarei, Nagaí. Fiquei muito contente por encontrá-lo.
Você verá como salvaremos esses estudantes.
Apoiando-se no ombro da enfermeira, o professor penetrou de novo na Escola em
chamas. Nosso grupo passou a noite toda tratando dos feridos sobre a colina, atrás da
classe de Medicina Fundamental.
O Dr. Okura, a enfermeira Yamada e aqueles que ficaram com eles, fizeram o mesmo
nos arredores do hangar agora terminado. O ar estava silencioso e pesado: todos os
insetos que habitualmente animavam
80
SOCORROS
as noites de verão com seus gritos variados, haviam sido exterminados.
Iluminado pelas labaredas, guiado pelos gemidos, o heróico grupo de socorro passava
de vítima em vítima, lavando, tratando, passando bandagens, dando injeções, e
finalmente, transportando os feridos para cima da colina. Por vezes, os enfermeiros
encontravam o caminho cortado por uma cortina de fogo; se tomavam outra direção
davam numa barreira intransponível de árvores tombadas. Arriscando-se na noite sobre
uma pontezinha estragada, caíam às vezes em buracos fundos, com uma vítima às
costas. Seus pés ensanguentados torturavam-nos em cada passo que davam, pois os
pregos furavam as solas de seus sapatos; os joelhos retalhados pelos cacos de vidro e as
calças ásperas pelo sangue ressecado.
Nossa equipe encontrou o Professor Takagi, chefe da Seção de Medicina e levou-o até o
galpão. Para lá conduziram também os Professores Ishizaki e Matsuo. Enquanto o
abrigo se enchia, cresciam os gemidos. Toda sorte de pessoas reunia-se ali: a filha do
Dr. Tani, responsável da farmácia, fora também levada, em péssimas condições. Um
funcionário de seguros que passava pediu que o recebessem e logo depois dois
prisioneiros. Durante a noite, aviões inimigos sobrevoaram duas vezes e lançaram
bombas, contendo manifestos. Por volta de meia-noite, o incêndio começou a declinar.
Ou porque as vítimas estivessem mortas, desesperadas ou simplesmente adormecidas,
gritos e gemidos foram cessando. Nenhum ruído entre o céu e a terra: momento solene
em Nagasaki. . .
81
OS SINOS DE NAGASAKI
Momento solene também no Palácio Imperial de Tóquio, onde Sua Majestade, o
Imperador, dera ordens de capitular.
A segunda guerra alastrara-se pelo mundo; os danos que causou atingiram uma
violência que ninguém pudera prever. A bomba atómica marcou o paroxismo e de
repente a cortina caía sobre um dos conflitos mais sangrentos da história humana.
Momento solene, realmente. Ergui os olhos para o céu, onde flutuava ainda, em reflexos
apocalíticos, a monstruosa nuvem radioativa. . . Pensamentos estranhos vieram-me à
mente: para onde iria esta nuvem ? que mensagem continha ela ? A energia atómica
revelar-se-ia de agora em diante — benéfica ou maléfica ? Serviria à causa do bem, ou a
da injustiça ?
De qualquer maneira, começava uma nova era.
O dia seguinte.
No dia 10 de agosto de 1945, quando o sol despontou de novo por trás do monte
Kompira, não iluminava mais a magnífica paisagem de uma cidade próspera na sua
vegetação, mas o trágico quadro de uma cidade em ruínas e incendiada. Em vez de uma
região viva, um amontoado de colinas mortas. Sob as chaminés derrubadas, as usinas
não exibiam senão os seus escombros; as ruas bloqueadas pelo acúmulo de telhas
partidas e entulhos. De todo um quarteirão residencial, restavam apenas os muros de
pedra; campos despojados e matas acabando de se consumir:
82
SOCORROS
árvores enormes atiradas aqui e ali como palitos de fósforos. Cenas de desolação. . .
Nada se movia, nem mesmo um cão ou outro animal passava por ali para dar um pouco
de vida à natureza. A catedral católica que, por volta da meia-noite, irrompera em fogo,
lançava ainda labaredas rubras para o alto, como que proporcionando ao drama seu
último e supremo quadro.
De madrugada deixamos o abrigo do Departamento Médico e começamos nosso
trabalho entre as ruínas da Seção de Medicina Fundamental. Encontramos um homem
atirado sobre uma folha de zinco ondulado, numa ponta do terreno de esportes. Era o
Dr. Yamada; êle contou-nos como morreu Miss Tsu-jita. . . Dirigimo-nos a seguir para a
Seção de Bacteriologia e ali vimos, entre as cinzas que cobriam o local do laboratório,
montes de ossos calcinados: sem dúvida, eram os restos dos professores que
trabalhavam lá. Descobrimos também um esqueleto feminino; pelos meus cálculos ali
era a sala onde — pelo que dissera Yamada — Miss Tsujita morrera queimada. Esse
esqueleto !. . . Ela não diria mais "Está vendo ?". . . com aquele seu sorriso suave.
Recolhendo os ossos para colocá-los num pedaço de papel, perguntava a mim mesmo:
Quando acordarei desse pesadelo ?
Chegamos ao auditório. No meio de um amontoado de cinzas acariciadas pelo sol, havia
quarenta ou cinquenta esqueletos alinhados em fila. Entre esses, certamente estava o de
Kataoka, nossa "pequenina lula". Eis tudo o que restava desses estudantes cuja vida fora
tão violentamente ceifada enquanto —
83
OS SINOS DE NAGASAKI
lápis na mão — tomavam notas da aula. E naquela manhã, como tinham entrado alegres
na escola !
Nossa apreensão em relação às outras cinco enfermeiras logo se confirmou quando
descobrimos seus cadáveres no campo de batatas. Não é de admirar que não nos tenham
respondido ! Yamashita, Yoshida, Inoue deviam estar trabalhando no campo quando
Hama e Koyanagi aproximaram-se delas, saudando-as com a mão: e as outras três,
provavelmente, retribuíram com o mesmo gesto quando a morte as colheu. Jaziam ali as
cinco, os braços acima da cabeça; os dois grupos estavam separados pela distância de
alguns metros.
As vítimas pareciam tão jovens e tão inocentes que a enfermeira-chefe não pôde se
conter e tomou-lhes o pulso, chamando-as pelo nome. Mas os cadáveres não têm mais
voz !
Tivesse eu previsto que morreriam tão cedo, jamais as teria repreendido como tantas
vezes fiz ! Passando a mão pelas cabeças frias, fixei meu olhar em Yamashita, a jovem
difícil, que eu, no entanto, talvez ainda preferisse a Inoue, sempre tão ajuizada e boa.
Seu broche, em forma de cachorrinho, estava ainda preso à blusa, e seus lábios sem côr,
sujos de terra. . . Que projétil poderia ser aquele, capaz de numa única explosão causar
tantas mortes e estragos ?
A enfermeira-chefe chegou-se a mim e deu-me um dos folhetos lançados à noite pelos
aviões. Comecei a ler e, compreendendo de repente, exclamei: a Bomba Atómica !
84
SOCORROS
O pânico da noite anterior assaltou-me de novo... Se eles possuíam a bomba atómica, o
Japão estava perdido... A ciência conhecera, pois, um novo triunfo, mas ao mesmo
tempo, a derrota de meu país apresentava-se inevitável. Dentro de mim entre-chocavam-
se a exultação do físico especializado e a dor do japonês patriota. . .
Esbarrei com os pés num bambu; êle rolou até certa distância com um barulho seco.
Apanhei-o então e levantei-o bem alto para o céu, enquanto as lágrimas rolavam pelas
minhas faces. Um bambu contra uma bomba atómica !. . . Cena trágica demais para que
se possa exprimir. Daqui por diante não haverá mais uma guerra, pensei. É melhor
colocar-mo-nos em longas filas nas praias para sermos mortos sem resistência !. . .
O folheto espalhado continha o seguinte aviso:
AO POVO JAPONÊS
Lede atentamente o seguinte:
"A América conseguiu inventar uma bomba mais poderosa do que toda outra arma
existente até hoje. Contém força igual à carga total que 2.000 grandes B-29 poderiam
transportar juntos. Refleti nesse terrível fato do qual certificamos a verdade.
Começamos a utilizar esta arma no Japão. Se tiverdes dúvida, procurai saber o que uma
única bomba atómica fêz em Hiroshima.
85
OS SINOS DE NAGASAK1
Antes de destruir pela bomba atómica todos os recursos militares que vos permitissem
continuar esta guerra insensata, nós vos pedimos que envieis petições ao Imperador para
que êle cesse as hostilidades.
O Presidente dos Estados Unidos já vos forneceu, numa proposta de treze artigos, as
condições de uma rendição honrosa. Nós vos aconselhamos a aceitar essas condições e a
começar a construir um Japão pacífico, novo e melhor.
Tomai, imediatamente, as medidas necessárias para sustar a resistência armada. Do
contrário, não hesitaremos em utilizar esta bomba e toda espécie de armas ainda
superiores, a fim de terminar esta guerra, rápida e decisivamente."
A primeira leitura abateu-me... a segunda encheu-me de desprezo e a terceira provocou
em mim uma raiva incontida. Reli de novo o manifesto e meus sentimentos
modificaram-se: tive a impressão de que o texto era razoável, e além disto,
absolutamente realista. . .
Com o bambu na mão direita, o folheto na esquerda, voltei ao abrigo onde encontrei o
Professor Seiki. Mostrei-lhe o apelo: êle leu, deixou escapar dos lábios um som estranho
e deitou-se novamente no chão, ali permanecendo imóvel e silencioso, o olhar perdido,
durante quase uma hora.
Enquanto permaneci junto àquele homem aniquilado, era esta a pergunta que me
ocupava o espírito
86
SOCORROS
: que acontecia quando um átomo explodia? Energia, átomos, ondas eletromagnéticas,
calor, foram os quatro elementos nos quais pensei primeiro.
Pouco a pouco, Choro e os outros agruparam-se em torno do Professor Seiki e
estabeleceram uma conversa animada.
— Quem está conseguindo isto ? Compton ? Lawrence ?
— Einstein deve ter tido o seu papel, assim como Bohr e outros sábios da Europa,
refugiados na América.
— O inglês Chadwick, que descobriu o neutron e o casal Curie terão certamente
participado dos trabalhos.
— Nosso isolamento científico durante esses últimos anos deixou-nos alheios a muitos
progressos e a muitos nomes. . .
— Devem ter mobilizado milhares de sábios, dividindo os campos de pesquisas e
trabalhando com a máxima eficiência.
— Não é fruto de um trabalho experimental de laboratórios. Extração, refinagem,
análise, etc, devem ter exigido uma formidável força industrial.
— Que género de átomo terão utilizado ? O urânio ?
— Um elemento talvez mais leve ? O alumínio ?
— Pequeninos átomos como o alumínio não dão senão pouca energia !
— De fato, mas o mineral de urânio é raro e seria preciso uma grande quantidade.
— Existe em abundância no Canadá. . .
87
OS SINOS DE NAGASAKI
A conversa prosseguia, e cada um revelava os seus conhecimentos sobre o assunto.
— Se sabíamos de tudo isso, por que não fizemos o mesmo ?
— Tentamos: houve até experiências para isolar o urânio 235. Mas os Militares acharam
que era dispendioso demais !
— Que estupidez !
— Agora não adianta chorar pelo passado. É a sorte dos sensatos que se deixam levar
pelos doidos.
— De qualquer modo, concluímos, conseguiram um êxito completo !
Assim, pois, especialistas e pesquisadores, éramos nós mesmos as vítimas da bomba;
servimos-lhe de cobaias e achavamo-nos agora em boa situação para observar seus
efeitos ulteriores sobre as vítimas.
Sob a dor, a cólera e o angustioso despeito da derrota, eis que despertava em nossos
corações um desejo profundo de procurar a verdade. Entre as ruínas da cidade
devastada, revivia em nós, pouco a pouco, a paixão científica.
Yamashita.
Entre as vítimas da bomba atómica, havia enfermeiras que tinham trabalhado comigo.
Uma delas, Hideko Yamashita, deixou-nos uma impressão que os anos não podem
apagar.
Nos primeiros tempos, essa jovem egoísta e irrequieta, deu-nos um trabalho imenso: o
dia inteiro
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SOCORROS
provocava minhas repreensões ! É costume, na Escola de Enfermagem da Universidade,
designar cada estagiária para uma seção determinada onde ela aprenderá, assim, a
fundo, as minúcias da prática médica. Teoricamente, essas designações deveriam ser
feitas de acordo com a vontade dos interessados; mas, na execução do plano, esse
acordo é muitas vezes impossível.
De fato, Yamashita nunca desejara trabalhar em raios X; assim que, tudo que fazia era a
contragosto e de má vontade. Não se aplicava no serviço e raramente manipulava os
aparelhos de modo correto. A técnica radiológica exige o uso da eletricidade em alta
tensão. 60.000 a 300.000 volts, e os raios podem ser prejudiciais se ultrapassam certo
volume. . . Quando uma responsável não trabalha bem, as consequências recaem sobre
os pacientes ! Assim sendo, todas as manhãs eu rezava sinceramente para que não
sucedesse nenhum acidente; e quando chegávamos à noite sem qualquer contrariedade,
agradecia a Deus com alívio ! Uma canção estudantil daquele tempo alertava: "Se
confundires o cobre com o alumínio, serás expulso aos empurrões..." fazendo alusão ao
erro clássico: o emprego do filtro de alumínio para os Raios, em vez do filtro de cobre
ou vice-versa. Bastava usar o alumínio em vez do cobre para expor o paciente a uma
inflamação grave. . . Para incutir nos estagiários os perigos desses erros, e fazê-los
compreender, tomei o hábito de dar no culpado uma boa pancada com o próprio filtro
errado. Yamashita apanhava quase todos os dias mas sem nenhum resultado, pois não
tinha interesse em acertar.
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OS SINOS DE NAGASAKI
Quanto mais a repreendia, mais se tornava preguiçosa, induzindo outras a imitá-la.
Muitas vezes tive ocasião de aconselhar e ensinar estagiários, enfermeiros ou internos.
Mas nunca um deles me deu tanto trabalho. "Não adianta o senhor querer ensinar essa
pequena", dizia-me muitas vezes a enfermeira-chefe. Mas eu insistia. . .
Por fim, Yamashita fugiu e ficamos sem notícias, até que uma carta de seus pais avisou-
nos que ela estava com eles, na sua ilha natal, Amakusa. Perguntavam na carta se lhe
tínhamos realmente concedido aquelas férias, como ela afirmava, e diziam que não
parecia nada disposta a reiniciar o trabalho no hospital. . . É fácil adivinhar qual foi a
nossa resposta ! O pai trouxe-a de volta e pediu-me que a corrigisse severamente: era a
caçula da família — contou-me êle — e totalmente diferente dos outros irmãos. Após
esse incidente, Yamashita melhorou um pouco e sua arrogância desapareceu... O
egoísmo é, muitas vezes, uma consequência do orgulho. Talvez pensasse que nós nos
ocupássemos dela de um modo especial por causa de seu talento pouco comum. Com
maldade pueril, resolvera aborrecer-nos pela sua preguiça e fuga. Mas depois de duas ou
três semanas ficamos completamente indiferentes e os comentários começaram a se
propalar na vila. . . Assim teve ela a primeira revelação de seu "valor" verdadeiro !
Tornou-se evidentemente mais dócil e, como era inteligente, progrediu com rapidez. O
que muito contribuiu para fazê-la se apegar a nossa seção, foram os reides aéreos. As
experiências de salvamentos
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SOCORROS
perigosos entre bombas e balas de metralhadora, nas quais trabalhávamos em união de
alma e de esforços, fizeram-^os esquecer as desavenças anteriores. Lembro-me bem
daquele dia em que um navio de transporte militar foi atacado um pouco fora do porto:
como ela se mostrou corajosa, saltando rápida da ambulância e cumprindo o seu dever,
de capacete de aço e com as insígnias do grupo de socorro universitário. No intervalo
dos reides verdadeiros, o exército convoca-nos para operações fictícias. Certo dia, num
desses exercícios, uma pseudobomba incendiária foi lançada sobre nossa Escola.
Enquanto trabalhávamos na extinção do fogo imaginário, outra bomba explodiu
teoricamente sobre nós. Yamashita e eu representávamos as vítimas e. . . morremos.
Transportaram "nossos corpos" em duas macas, para a reserva da sala de dissecação.
Enquanto nos levavam, eu conservava os olhos bem abertos, fixando o céu azul, e sentia
uma curiosa paz de alma, como se estivesse realmente morto !
Os enfermeiros deixaram-nos. . . Ficamos ali sobre as mesas, quietos como múmias, de
medo que um dos oficiais de vigilância nos caísse em cima, numa de suas rondas.
Estávamos tranquilos como verdadeiros mortos e tínhamos a impressão de que se
começássemos a conversar e nos ouvissem, um oficial teria gritado: "Que é isso, vocês
dois aí ? defunto não conversa..."
Esperamos, esperamos. . . ninguém apareceu e comecei a me espreguiçar. Yamashita,
deitada na mesa ao lado, estourou na gargalhada. Olhei-a com um sorriso, mas pensando
comigo mesmo: apesar
\
1
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/
OS SINOS DE NAGASAK1 /
de tudo, não é de admirar que um dia como esse, uma única bomba nos mate os
dois. . . /
Depois disso, não repreendi mais Yámashita; aliás, ela deixara de dar maiores motivos
para isso. Tornou-se uma enfermeira eficiente e cheia de boa vontade. Pensei mesmo
em mandá-la para a sua ilha, em férias verdadeiras desta vez, para a Festa das
Lanternas, a fim de que seu pai pudesse verificar por si mesmo os progressos que fizera.
Mas, em 9 de agosto as sereias soaram. Naquele dia Yámashita estava na equipe dos
avisos e transmitia notícias do rádio. Que atitude de responsabilidade assumira ela
quando, toda banhada em suor e os olhos brilhantes, exclamou: "Último boletim do Q.
G. !. . ."
E aí caiu a bomba !
Quando o cataclismo se amainou, o pessoal sobrevivente reuniu-se na grande sala
demolida. Mas Yámashita não apareceu. Em vão pronunciei o seu nome junto de cada
uma daquelas figuras enegrecidas, irreconhecíveis, que surgiam, uma após outra, das
chamas e das ruínas. . .
O cadáver de Yámashita foi encontrado pela enfermeira-chefe no campo de esportes,
entre outros corpos calcinados. Ela levou-me até lá. Ajoelhei-me, chorando. O rosto
estava queimado mas reconhecível. Transportamos seus restos ainda quentes para
inumar, provisoriamente, num abrigo. Não pude conter os soluços enquanto desprendia
do uniforme rasgado um pequenino broche em forma de boneca. Se eu tivesse previsto
que tão cedo iria morrer. . . E eu me censurava e arrependia por tê-la tantas vezes
repreendido com severidade.
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SOCORROS
. . \Na ilha de Amakusa, cresce abundantemente a sazahka (1) branca. Desejei plantar
um pé sobre seu túmulo. Mas sou agora um inválido; como poderei fazê-lo ?
Reflexões Posteriores.
— Doutor, o senhor não acha que respirei gás ? Estou tão atordoado. . .
— Doutor, sinto-me doente sem poder levantar-me. . . não será daquele vento da
explosão ?
— Doutor, fui soterrado mas não me feri. Entretanto, hoje é que tenho a impressão de
que vou morrer. . .
Assim falavam-me as vítimas que não se podiam mover, refugiadas à sombra dos muros
de pedra, pelos cantos dos prédios desabados. Eu mesmo, enquanto percorria aquelas
ruínas, sentia sintomas análogos: uma espécie de enjoo, lassidão dos membros, dor de
cabeça, náuseas, tonteiras, fraqueza generalizada . . .
Quando noutros tempos fizera experiências com o rádio, senti tudo isso, por ter-me
exposto durante muito tempo aos raios gama. O mal-estar, portanto, nada tinha a ver
com os gases e o ar aspirado; provinha dos raios X, que atravessam não somente a
madeira, mas o cimento das casas.
Conhecia bem os efeitos dos raios gama e dos neutrons. Sabia também que esses efeitos
não se
(1) Variedade decorativa de chá, muito semelhante à camélia.
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/
OS SINOS DE NAGASAKI
revelavam senão depois de um período de incubação; a incapacidade em que estava de
prevê-los exatamente, deixava-me inquieto e aflito. Eis assim, pensava eu, uma nova
espécie de doença criada pelo próprio homem.
O dia passou-se entre os cuidados aos doentes. A nuvem atómica desaparecera e
novamente o sol queimava as cinzas quentes de Urakami. Sensação de estar numa
fornalha. . . Muitos daqueles que tinham fugido para as colinas, a custo escapando da
morte, lá encontraram seu último repouso. Jaziam sob rochedos, sob arbustos, incapazes
de um movimento. Alguns viviam ainda; imploravam água e gemiam. Como tinham se
dispersado ao acaso, não havia meio de procurar alguma pessoa determinada segundo
um plano preconcebido. O único recurso era gritar. . . e ir ao encontro dos que
respondiam. Sobre o monte Kompira apenas, jaziam centenas — quiçá milhares — de
vítimas. Os departamentos da Saúde Pública na Prefeitura e na cidade, a Associação dos
Médicos e a polícia colaboraram para estabelecer um serviço de socorro metódico e
eficiente. As Associações da juventude de toda a região foram postas à disposição. O
Hospital Naval de Omura enviou imediatamente um destacamento sob o comando do
Dr. Yasuyama, seu diretor. Outro destacamento chegou do Hospital Militar de Kurume.
Que a nossa Escola — considerada desde sempre como a primeira força de socorro de
toda a zona — fosse obrigada agora a pedir ajuda. . . parecia-nos incrível ! Esta
realidade nos confrangia o coração !
94
SOCORROS
Entrementes, o Professor Koyano, apesar da destruição de sua casa e dos membros
feridos de sua família, tomara a direção da Escola, como Diretor em função. O
Professor Shirabe, que perdera dois de seus filhos, prodigalizava atenções às vítimas,
esquecido dos seus mortos tão queridos. A maioria dos outros estudantes e professores,
desprezando a própria desgraça, ocupava-se em procurar pessoas cuja ausência se fazia
notar e em estabelecer ordem na confusão que reinava. O Dr. Tsuno-o e o Professor
Takagi, estirados no abrigo úmido, continuavam a dar ordens, apesar da alteração
progressiva de seu estado. O Professor Yamane, gravemente ferido, fora trazido para
perto deles. Aliás, assim que vagava um lugar neste abrigo, novos feridos vinham
ocupá-lo.
Aviões inimigos passavam. . . Uma segunda bomba teria sido o fim de tudo. A custo
nossos nervos resistiam ainda quando, ao menor ruído de motor, corríamos para nos
abrigar. Enterramos muitos mortos, tratamos de inúmeros feridos; e pudemos, depois
desta experiência, reunir nossas observações sobre os estragos da bomba atómica.
Os ferimentos diretos provinham dos elementos da explosão: vento, calor, raios gama,
neutrons, fragmentos de bomba incandescentes. Os danos indiretos eram causados pelo
desmoronamento das casas, pelo arremesso de objetos, pelo fogo e pela radioatividade
das coisas e das pessoas; é nesta segunda categoria que se devia classificar a loucura
temporária. No caso da bomba atómica, os estragos por fragmentos eram insignificantes
em comparação aos efeitos
%
OS SINOS DE NAGASAKI
da radioatividade: esseÿÿdeviam-se ÿÿÿÿonÿÿr ÿÿ vÿÿtude do fenóÿÿÿÿ de perduração.
A pressão imediata foi tamanha que, no raio de um quilómetro, todo ser humano que se
encontrava do lado de fora ou num local aberto, morreu instantaneamente ou dentro de
poucos minutos. A 500 metros da explosão, uma jovem mãe foi encontrada com o
ventre aberto, seu futuro bebe entre as pernas. Muitos cadáveres perderam suas
entranhas. A 700 metros, cabeças foram arrancadas, e por vezes, os olhos saltaram das
órbitas. Alguns, em consequência de hemorragias internas, estavam brancos como
folhas de papel, os crânios fraturados deixavam destilar o sangue pelos ouvidos. O calor
chegou a tal violência, que a 500 metros os rostos foram atingidos a ponto de ficarem
irreconhecíveis. A um quilómetro, as queimaduras atómicas tinham dilacerado a pele,
fazendo-a cair em tiras, dando-lhe um tom marron avermelhado e deixando à vista a
carne sangrenta. A primeira impressão não foi, segundo parece, a de calor, mas sim a de
dor intensa, seguida de frio excessivo. A pele levantada era frágil e saía facilmente. A
maioria das vítimas morria com rapidez.
A uma distância de um a três quilómetros, as queimaduras eram comuns; nem todos os
feridos sentiam logo o calor; a sensação de um excessivo calor e dor só vinha mais
tarde, quando depois de uma hora ou mais, a pele tornava-se rubra e cobria-se de bolhas.
Os efeitos ulteriores dessas queimaduras não podiam ainda ser previstos.
96
\
\ SOCORROS
Os fragmentos de bomba variavam de volume: de uma bola de gude à cabeça de uma
criança. Espalhavam uma luz de um branco esverdeado e caíam assobiando, causando
queimaduras extremamente perigosas.
Os casos de esmagamento sob ruínas, ferimentos por estilhaços, morte pelo fogo,
igualavam-se aos casos similares dos reides habituais. As irradiações produziam, além
de uma fraqueza geral, a diminuição das secreções salivares, urinárias etc.
No abrigo estreito, mortos e feridos estavam estendidos lado a lado. Os sobreviventes
não podiam fazer o menor movimento. Quando um paciente parava de gemer, é que a
morte chegara. . .
A discussão sobre o átomo, sobre a classificação das vítimas continuou pelo dia a fora,
deixando todos extenuados. A água que pingava do teto parecia ritmar a fuga do tempo
dentro da escuridão que se tornara de novo silenciosa.
As cenas horrorosas, vividas desde o dia anterior, obcecavam o espírito de todos, e o
pensamento oscilava entre o sono e a consciência. Durante a noite, a enfermeira-chefe,
que repousava perto de mim, foi de repente assaltada por uma espécie de alucinação:
sacudiu-me pelos ombros, gritando: Oyanagi, Oya-nagi. . . Era o nome de uma das
enfermeiras mortas na véspera.
Na madrugada de 11 de agosto, enquanto a temperatura estava ainda suportável, todos
os pacientes foram removidos para o Hospital Militar e licenciar am-nos. Tendo
entregue os vivos em boas
97
/
OS SINOS DE NAGASAKI I
mãos, encetamos novo trabalho: o de queimar os mortos e procurar aqueles cuja
ausência aos poucos íamos notando. Enquanto chamas vermelhas subiam dessas
cremações, grupos de duas ou três pessoas contemplavam-nos silenciosos.
Sepultamos Yamashita e as outras quatro enfermeiras. Não nos parecia justo separarmo-
nos delas assim tão simplesmente, sem nenhuma cerimónia. Colocamos, então, sobre o
local, placas de madeira com seus nomes inscritos. Flores não tínhamos para oferecer-
lhes.
Conhecedores do desastre, acorreram imediatamente ao local as famílias dos estudantes
e enfermeiras. Andavam de um lado para outro, gritando o nome dos que buscavam,
atirando-se para desconhecidos que, de costas, assemelhavam-se aos seus entes
queridos, prorrompendo em choro convulso quando encontravam um colega ou amigo
de seus filhos. Juntei-me a muitos desses pais na sua busca vã e dolorosa, confundindo
as nossas lágrimas. Nenhuma palavra poderá descrever esse quadro.
A maioria não chegava mesmo a descobrir os corpos que buscavam; sabendo que seus
parentes deveriam estar nesse ou naquele pavilhão ou classe no momento da explosão,
procuravam entre os cadáveres ou esqueletos enfileirados. Mesmo quando pensavam
reconhecer os despojos, o rosto estava tão desfigurado que somente o nome, bordado no
avental, fornecia a identificação decisiva. E quantos, após esse reconhecimento, não
conseguiam mais chorar: a dor petrificava-os.
98
\ SOCORROS
\
O dia em que perdi a metade de meu coração.
Havia três anos que deixara a Universidade, quando me casei com Midori. Meu salário
mensal, naquela época, não ia além de 40 yen. Foi durante a questão da Mandchúria, e a
vida estava barata; todavia, deve ter sido difícil à minha mulher organizar a nossa
subsistência dentro desse orçamento. Nunca, porém, ouvi-a murmurar, ou queixar-se de
alguma coisa. Jamais tive meios para comprar-lhe um quimono novo; não
frequentávamos teatros ou restaurantes. Nossa única distração consistia em, uma vez
por ano, passar algumas horas de folga à beira-mar.
Dia após dia eu permanecia até tarde no meu ♦ laboratório, enquanto ela se ocupava
com os trabalhos
domésticos. Assim vivemos durante sete anos. A roupa de toda a casa era feita por
Midori: desde as minhas meias e camisas até os aventais, tudo foi sempre confeccionado
por ela, à custa de seu cansaço e mãos ativas. Vendo-me assim vestido, as moças do
laboratório gracejavam comigo: "O Doutor Nagaí está sempre abraçado pela esposa !"
Num tempo em que tão facilmente se compravam batons de Paris e perfumes da Itália;
numa época em que as senhoras exibiam suas toaletes pela cidade, Midori mantinha-se
indiferente a tudo isso e nunca se pintou.
A alimentação era tão abundante naqueles dias, que chegava a se estragar e ser jogada
fora. Mas a
i
99
OS SINOS DÊ NAGASAK1
económica Midori tratava de seu pomar, trabalhando nele sempre que o tempo bom o
permitia. Quando chovia, dedicava seus dias à costura e ao tricô.
Exercia ainda o pesado cargo de presidente dos clubes femininos, na nossa cidade de
Urakami. E além de tudo, tinha a tarefa ingrata de ser minha mulher, de velar por um
marido distraído, todo absorto nas suas pesquisas.
Com efeito: quando eu iniciava novas experiências tornava-me outro homem. Meu
espírito concentrava-se e, durante dias seguidos, conservava-me fechado em bibliotecas,
a fim de estudar as obras de diferentes autores. Comparava fichas e relatórios; construía
aparelhos e dava início a longas experiências donde saía um artigo. . . Mas eram
precisos meses para isso ! Durante esse período, nada mais me interessava. Só falava
quando me interrogavam; só comia quando me davam alimento; se as crianças
gritavam, olhava-as com espanto. Seria incapaz de dizer o que comi ou o que fiz.
Por duas vezes Midori disse ter-se cruzado comigo na rua, quando voltava da
Universidade. Confesso que não a reconheci ! "Tenho às vezes a impressão — confiou-
me ela — que lido com um sonâmbulo!"...
Mesmo para os assuntos importantes de casa, nunca pôde contar comigo. Esforçava-se
em preparar pratos especiais que me proporcionariam forças necessárias para meu
trabalho intelectual. Infatigavelmente, cuidava de minha roupa e do meu modo de vestir,
pois não seria de estranhar se eu saísse sem gravata. Quebrava a cabeça diariamente
100
\
SOCORROS
para saber se fichas, cadernos, fotografias e papéis de toda espécie, espalhados sobre as
esteiras do chão, poderiam ou não ser arrumados. Não havia hora certa para coisa
alguma, e é um milagre que seus braços frágeis possam ter dado conta de tudo !
A única recompensa de todos os seus trabalhos e fadigas era ver os meus artigos
publicados em revistas científicas. Esses periódicos, que outros leitores percorriam, sem
dúvida, com olhos distraídos, ela recebia-os com respeito, saudando-os com profunda
reverência. Sentava-se muito tesa e lia-os atentamente. Os artigos encabeçados por meu
nome, que ainda rescendiam a tinta da tipografia, não continham senão termos técnicos
ou explicações profissionais. Pouco importa; Midori sabia que eles estavam
impregnados da vida e do espírito de seu marido. Ela os lia com lágrimas nos olhos. Eu
contemplava-a, carregando nos braços, em seu lugar, o nosso último filho: e era como
se uma nova primavera despertasse de repente no meu coração. . .
A hora de suprema felicidade, na nossa casa, era no domingo pela manhã, quando, todos
juntos, saíamos para a missa. Seguíamos, através dos campos, o caminho que subia pela
colina até o santuário. Eu segurava pela mão o nosso filhinho mais velho. Midori levava
o pequenino nas costas. Os sinos, com sua doce voz clara, chamavam os paroquianos.
As pessoas apareciam daqui, dali, de dentro das suas casas, trajes domingueiros e
alegres, para reunir-se ao cortejo sempre mais numeroso. Chegávamos à igreja; através
dos vitrais, o sol matinal envolvia nosso canto: minha voz, a de minha mulher, a mo-
101
OS SINOS DE NAGASAKI
dulação hesitante da criança, a antífona rude do camponês sentado perto, todos juntos,
louvando o Pai dos céus. . . Infelizmente esses dias felizes não voltarão mais para mim.
Tínhamos poucas relações; meus amigos eram, como eu, cientistas pobres. Certo dia em
que eu conversava com meu colega Nakamura no nosso jardim, êle me contou que
praticara a partenogênese das rãs. Midori nos ouvia, enquanto costurava minhas roupas.
Nakamura disse-me, gracejando: "Quem sabe, Dr. Nagaí, se chegará o dia em que os
esposos não serão mais necessários para ter os filhos..."
Então Midori retrucou: "Admitamos que sim ! mas acham então que o único fim do
casamento seja o de pôr filhos no mundo ?"
Quando me nomearam livre docente, meu salário foi aumentado para 100 yen. Grande
alívio para minha mulher que, sem isso, ficaria realmente embaraçada, visto nosso filho
já estar em idade escolar. Este aumento, aliás, não nos favorecia com o "luxo" de um
teatro de vez em quando. . .
Cinco anos se passaram. Minhas longas pesquisas no perigoso terreno dos raios X
acabaram por alterar minha saúde e contraí uma leucemia. Quando me certifiquei dessa
realidade e ciente de que tinha poucos anos de vida, contei tudo a Midori, perguntando-
lhe o que pretendia fazer. Recebeu minha terrível confidência sem pestanejar, o que me
confortou muitíssimo: era bem o que esperava. Quando terminei de falar ela disse: "Há
muito tempo, eu previa isso..."
102
SOCORROS
E eu pensava: Está certo; depois de minha morte, uma mulher corajosa assim, educará
perfeitamente os meus filhos, e eles prosseguirão nas minhas pesquisas. . . Posso
dedicar-me, com afinco, ao meu trabalho, sem preocupações com o futuro. . .
Depois desta conversa decisiva, Midori redobrou de ternura e cuidados para comigo;
meu estado, porém, piorava cada vez mais. Quando soavam as sirenas de alarma,
acontecia-me cambalear sob o capacete de aço. Certa vez ela chegou mesmo a precisar
me transportar até o laboratório.
No dia 8 de agosto, Midori despediu-se de mim com seu bom sorriso habitual. . . Depois
de ter dado alguns passos, lembrei-me de que havia esquecido de trazer a minha
merenda. Voltei sem que ela esperasse, e encontrei-a banhada em lágrimas. Foi assim o
nosso adeus. Aquela noite fiquei na Escola por ser o meu plantão. Na manhã do dia 9,
explodiu a bomba atómica e fui atingido. Como um relâmpago, vi em pensamento o
rosto de Midori na minha frente. Mas estava por demais ocupado com as vítimas; cinco
horas mais tarde uma hemorragia tomou conta de mim. Tive então o pressentimento da
morte de Midori: ela não viera me buscar, e a distância que separava nossa casa da
Escola era apenas de um quilómetro. Mesmo arrastando-se, não seriam precisas 5 horas
para cobrir aquela distância. E eu sabia que uma mulher como ela, embora ferida,
enquanto tivesse um fio de vida, teria tentado vir para meu lado.
No terceiro dia, terminados os trabalhos mais urgentes, voltei para casa: casa que se
tornara um
103
OS SINOS DE NAGASAKY
OS SINOS DE NAGASAKI
qual devemos levar nossa carga é a única esperança que nos foi deixada: ela nos
favorece a oportunidade de expiar nossas faltas.
Bem-aventurados aqueles que choram, porque serão consolados. É fielmente e até o
fim, que devemos percorrer essa via dolorosa. Caminhando nela, famintos, sedentos,
desprezados, açoitados, suaremos, sangrentos, seremos certamente ajudados por Aquele
que, até o alto do Calvário, carregou a Cruz: Jesus Cristo.
Deus nos dá e Deus nos tira. Que Seu Nome seja bendito ! Agradecemos-Lhe por ter
sido Ura-kami a escolhida para o sacrifício. Sejamos-Lhe gratos, já que, por esse
sacrifício, a paz foi devolvida ao mundo e a liberdade de crer, ao Japão. Que as almas
dos fiéis defuntos descansem em paz pela misericórdia de Deus. Assim seja !"
Ichitaro-san leu esse discurso até o fim e fechou os olhos ao terminá-lo. Após alguns
momentos, murmurou:
— Depois disso, chego a pensar que minha mulher e meus filhos não foram para o
inferno. Mas então, doutor, quem somos nós, nós que fomos deixados para trás ?
— Diria que fomos reprovados no nosso exame de admissão ao céu !
— Reprovados?. . . Ah! agora compreendo!. . . Pusemo-nos os dois a rir: sentíamo-nos
muito
mais à vontade agora.
— Devo trabalhar, prosseguiu êle, para reunir-me a minha mulher, no céu. Os mortos da
guerra
158
A VIDA É MAIS FORTE
sacrificaram-se, penando até o fim, sem pensarem em si. Temos que nos apressar para
igualá-los.
— É exato; comecemos, pois, imediatamente a reconstruir esse deserto atómico, o
maior do mundo, esse deserto solitário e terrível de cinzas e telhas quebradas. Choremos
sobre os restos de nossos falecidos, mas choremos, trabalhando.
— Sou um pecador, e assim sendo, expiar minhas faltas pelo sofrimento ser-me-á uma
alegria. . . Por isso, trabalho rezando.
E o rosto de Ichitaro iluminou-se ao dizer essas palavras.. .
As quatro idades da reconstrução.
No deserto atómico, vivemos quatro idades de reconstrução: a idade do abrigo, a idade
da barraca, a idade da casa provisória, a idade da casa definitiva.
A primeira durou, aproximadamente, um mês e poderia também chamar-se a idade da
vida em comum, pois as pessoas, na falta de habitações, agrupavam-se, conforme as
afinidades de vizinhança, numa existência comunitária; em relação à autoridade, a
distribuição do reabastecimento tornava-se mais fácil. Havia grande número de feridos
nos abrigos, e as raras pessoas indenes, compreendendo sua comunhão de sorte,
ajudavam-se mutuamente, e dividiam suas parcas riquezas. Na sua pobreza extrema, na
sua calamidade física e moral, esta vida tinha os seus encantos. Naquele momento,
todos se sentiam perdidos
159
OS SINOS DE NAGASAKI
os dias se passavam unicamente a preparar refeições e a procurar os corpos dos entes
queridos. Nenhum de nós sabia o que fazia, e muito menos, o que tinha para fazer.
A idade das barracas assistiu aos preparativos de uma vida nova. As pessoas
recomeçaram a fazer projetos. Estavam agora mais informados sobre o destino de seus
parentes e amigos. Após enterrar seus mortos, começaram a lutar pelo reabastecimento,
retirando dos bancos suas economias: em resumo, preparavam-se para reconstruir.
Pessoas aparentadas reuniam-se e construíam, com vigas e folhas de zinco, cabanas de
alguns metros quadrados. Ajudavam-se mutuamente, mas já era mais fraca a alegria de
ter escapado: os interesses se defrontavam. A vida comum começava a suscitar
animosidades e dificuldades com os estranhos. Entre parentes próximos, tudo era mais
simples. As cabanas davam apenas para se abrigarem da chuva: viviam todos como
carneiros debaixo de um rochedo.
No quinto mês após a explosão, isto é, em dezembro, os ventos frios começaram a
soprar, o granizo a cair e a umidade a penetrar pelas frestas. Era impossível continuar a
morar naquelas bibocas. Vieram carpinteiros das redondezas com material apropriado.
Irmãos e primos ajudavam-se entre si para construir casas provisórias. As paredes, de
barro; não havia tetos mas somente uma coberta de palha, semelhante às casas dos
camponeses. Embora construídas rapidamente, essas casas tinham esteiras no chão e
janelas ao longo dos corredores. Eram verdadeiros palacetes em comparação com as
barracas.
160
A VÍDA É MAIS FORTE
Aproveitam-se os novos estabelecimentos para realizar casamentos: uma média de dez
famílias por semana 1
O período da reconstrução definitiva está por vir. Não podemos pensar nisso, antes de o
país readquirir fundações mais estáveis. No momento, apesar de sua carência, o povo
encontrou uma razão de viver; estão ricos já que estão contentes, e estão contentes
porque trabalham para o futuro. Esta vida, sob um teto temporário, num deserto atómico
é, a meu ver, a maior expressão do valor humano.
Quando entrei na minha nova casa, meu velho professor, o Dr. Suetsugu, entregou-me
um quadro onde estavam escritas essas palavras: "Inesgotável riqueza na ausência de
tudo..." Quando se olham, da janela, as colinas de Urakami, ainda tão desoladoras, tão
pouco habitadas, podemos pensar que nada foi feito, e que a reconstrução é impossível.
Mas as pessoas trabalham e padecem; removem escombros e constroem. Pouco a pouco,
sem que se perceba, renasce uma cidade. Um punhado de gente, devotos fervorosos que
encontram sua felicidade nas lágrimas e nos sofrimentos, realizam um dos deveres desse
século: o dever da expiação. Os que não têm fé, não voltaram. É ela o único estímulo da
obra que se faz aqui. . .
De novo repicam os sinos.
A igreja de Urakami era construída de tijolos vermelhos; sua fachada ornamentada por
duas torres de trinta metros, com dois sinos: um grande e um
161
OS SINOS DE NAGASAKI
menor. O grande era tocado todos os dias na hora do Ângelus; mas o pequeno só
repicava nos dias de festa. Diziam que êle continha mais ouro. De qualquer forma,
possuía um som encantador que podia ser ouvido a três quilómetros de distância.
Desapareceram os sinos: os fiéis indagavam ansiosamente que fim teriam levado, até
que um dia Tagawa descobriu o menor, absolutamente intacto, debaixo de um monte de
tijolos. O grande estava fendido.
Esse velho Tagawa, trabalhando com o pai na sua juventude, ajudara a montar os sinos
e agora êle repetia a todos que encontrava: "Nada no mundo me impedirá de recolocá-
los, assim que a torre fôr de novo construída !. . ."
Mas Tagawa era uma vítima da bomba: abandonado dos médicos, incapaz de um
trabalho pesado.
Enquanto isto, os paroquianos suspiravam:
"Se ao menos os sinos pudessem repicar de novo nesse deserto !" Quantos meses já
haviam passado desde o dia em que foram impedidos de espalhar seu som ! Hoje,
estavam livres e em paz, mas os seus corações continuavam tão devastados quanto suas
casas ou seus campos.
Que ressonâncias celestes despertariam neles se os sinos do Ãngelus soassem
novamente, límpidos e suaves, sobre a cidade arruinada.
Foi no dia 24 de dezembro que Ichitaro Yamada teve uma ideia, alegremente recebida
por todos os
162
A VIDA É MAIS FORTE
rapazes de Motoo. Dirigiram-se para a Catedral e eu os acompanhei, apoiado sobre
minha bengala. Não sentia forças e tudo quanto pude fazer foi sentar-me nas
proximidades e rezar. . .
Por que delicadeza da Providência chegamos a encontrar uma roldana com a corrente,
justo no local onde se achava o presbitério ?
Primeiramente, todos se ajoelharam. Recitamos o Terço, pedindo que o sino, sepultado
sob os tijolos, pudesse ser de novo suspenso, para entoar, nessa vigília de Natal, a glória
de Deus.
Enquanto trabalhavam, continuei de joelhos.
Conseguiriam eles retirar o sino de sob aquele amontoado de escombros ? Com os
músculos retesados seguram a corrente. . .
"Nosso Pai que estais nos céus. . ." Dão o primeiro arranco, depois param.
"Santificado seja o vosso nome. . ." Um segundo esforço, a corrente se estende.
"Venha a nós o vosso Reino. . ."
Esforçam-se por erguer esse sino que proclamará de novo o Reino de Deus.
"Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu..."
Eis que o sino se balança. . . é suspenso no ar; as correntes, lentamente puxadas, entre
fervorosas invocações, alçaram-no, afinal !
No momento em que o sol se deita, tingindo de escarlate a colina de Inasa, nosso sino,
entre
163
OS SINOS DE NAGASAKI
as ruínas da torre, esboça a sua forma elegante. Eu fico a olhá-lo, cativo, incapaz de
mexer-me.
Longe, bem longe, na direção do porto, outros sinos agora fazem-se ouvir sobre a terra
queimada. Sinos de Omura, a seis quilómetros de distância, mas cujo som percorre
livremente os campos de morte.
— O Ângelus, diz Yamada e êle se ajoelha.
Todos o imitam. No nosso sino, Iwagana, dando com o badalo de encontro ao lado
interno, também toca o Ângelus. . .
Pela primeira vez depois de tantos e tantos meses, o sino ressoou sobre as colinas de
Urakami. De todas as barracas, de todas as cabanas, os cristãos saem depressa. É como
se estivessem assistindo a um milagre. Aqui, ali e acolá, todos se ajoelham e começam a
rezar.
As frases santas confundem-se com o badalar.
. . . E o Verbo se fêz carne.. . . . . Rogai por nós, pecadores. . .
E até onde chega o som dos sinos de Urakami, homens e mulheres, com lágrimas nos
olhos, erguem a suas preces, carregadas de esperança, sobre esse deserto apocalítico.
164
VI MEUS FILHOS
Kayano, a criança sem lágrimas.
Somos quatro irmãos e irmãs. Uma de minhas irmãs morreu de depressão nervosa,
enquanto o marido estava na guerra. A outra perdeu o marido da mesma maneira como
fui privado de minha mulher. Somente meu irmão, estabelecido no continente asiático,
sobreviveu com sua família. Precisou, porém, voltar para o Japão e resolvemos que êle,
e os seus, viriam morar comigo.
No mesmo dia em que sepultei minha mulher, fui para as montanhas, para onde haviam
levado meus filhos. Quando abri a porta da casa, encontrei-os brincando com uma
cigarra que apanharam. Tiveram um gesto de susto, vendo-me coberto de sangue.
Olharam-me fixamente por um instante e precipitaram-se para a porta, olhando em
torno. Não ! não apareceu a figura que esperavam... A cigarra fugiu das mãos de
Makoto.
Depois desse dia, nos lábios de meus dois filhos, jamais floresceu o nome de Mamãe. . .
Mandei depois meu filho Makoto para Omura, de maneira que ficamos, em Nagasaki,
minha filha
165
OS SINOS DE NAGASAKI
Kayano, uma velha empregada e eu. Tínhamos o hábito de falar baixo. Talvez Kayano
achasse que isso seria melhor para mim, o doente. Sempre ajuizada, entrava em casa
sem dizer palavra, até mesmo quando, brincando, se machucava. Quanto a mim, mesmo
quando acontecesse estar de mau humor, não erguia a voz, pois temia ferir os
sentimentos de uma criança que não tinha mãe para consolá-la. A desgraça
insensibiliza: depois de certo tempo não se percebe a dor. Habituamo-nos a viver assim,
sem jamais gritar, e, sem dúvida, ela veio a pensar que a vida era assim mesmo. . . Foi
nessa ocasião que chegou a família de meu irmão. . .
Repentinamente minha casa, tão deserta desde o grande desastre, encheu-se de barulho e
de alegria. Para um observador atento, que felicidade profunda se desprende de uma
família poupada, com todas as suas crianças, isentas de recordações tristes. . .
Não posso dizer que só ouvíamos palavras amenas ! Não ! O dia todo era um grito
permanente, misto de choro, por vezes. Entretanto, essa atmosfera de gritos, repreensões
e lágrimas contribui a criar um clima de felicidade inefável.
Nos seus acessos de raiva, o pai parece perfeitamente feliz; é com beatitude que a mãe
castiga os filhos, e esses, por sua vez, parecem chorar com inteira satisfação.
A menorzinha só abre a boca para murmurar: Mamãe, mamãe ! e a mãe não cessa de
responder: "Estou aqui, filhinha, estou aqui !. . ."
Cada vez que Kayano ouve a palavra "Mamãe", com a resposta afetuosa, é como se
recebesse um
166
MEUS
FILHOS
golpe no coração. Minha cunhada e a filha, inconscientemente, involuntariamente, não
cessam de torturá-la.
Um dia, acordando-se a pequenina e não vendo a mãe perto dela, perguntou a Kayano:
"Onde está mamãe ?" Kayano, — que provavelmente pensava na própria mãe, —
respondeu: "Mamãe está no céu, você sabe. . ." Nesse mesmo momento, porém, minha
cunhada entrou e a criança correu a seu encontro, gritando: Mamãe, mamãe ! Kayano
não disse uma palavra: encaminhou-se para fora e pôs-se a tamborilar na grade de
madeira.
Kayano tornou-se uma criança sem lágrimas. Certas noites, a lembrança de minha
companheira dá-me vontade louca de chorar, mas vejo Kayano que, silenciosamente,
morde os lábios, contemplando a nossa solidão. . . Mesmo quando cai e esfola os
joelhos, ela mesma enxuga o sangue. Uma vez um cachorro perseguiu-a: entrou em casa
correndo, mas sem dar um grito. Tornou-se uma criança na qual a solidão ou a tristeza,
o desgosto ou o medo não provocam mais lágrimas; morder os lábios é a sua única
manifestação exterior.
Os vizinhos, as visitas, todos dedicam a Kayano uma ternura especial, sabendo que ela
perdeu a mãe; graças a essas pessoas ela parece, por vezes, esquecer um pouco a sua
solidão. Depois que começou a frequentar a escola, aprendeu a cantar, a brincar, e já
chegou mesmo a dançar no seu quarto pequenino.
No princípio, ela e Makoto eram as únicas crianças daqui; mas à medida que os
repatriados cons-
167
OS SINOS DE NAGASAKI
troem na redondeza, eles fizeram novos amigos. Nesses últimos tempos, Kayano parecia
feliz e com o rostinho iluminado. E eu, radiante, por vê-la de novo contente. Foi então
que a família de meu irmão chegou: pai, mãe e dois filhos.
Para dizer a verdade, as crianças choram demais. A caçula, de três anos, grita uma hora
inteira quando acorda, e mais ainda durante o dia: chora por tudo e por um nada. Creio
que passa um bom terço de seu tempo a gritar e a chorar, até que a mãe venha ocupar-se
com ela. Outras vezes, fica rouca à custa de berrar, mas continua tenazmente, tanto
tempo que ela mesma não sabe, no fim, por que chora. No íntimo, deseja ser mimada
pela mãe.
Pela mãe só; quando esta não está, é inútil tentar consolar as duas crianças. Gritam
como sereias de alarma. A presença da mãe termina, instantaneamente, o concerto.
Certa vez, o menino, voltando do colégio, gritou pela mãe: "Mamãe, já cheguei !. . ."
Minha cunhada havia saído e o pequeno desatou no choro e começou a correr
desastradamente pela casa, sempre gritando pela mãe.
Kayano estava sentada perto de minha cama. Olhou, primeiramente para aquele
espetáculo, com sorriso irónico: "Ridículo, não é mesmo ?" perguntou-me ela. Depois,
seu rosto foi aos poucos se tornando sério, como se estampasse as recordações que lhe
vinham do coração. Acompanhava com olhar de inveja o menino que procurava a mãe,
e uma dor insuportável fê-la esconder a face nas duas mãos. Esse menino faz então uma
cena dessas, só porque a mãe ausentou-se por algum tempo ? Ainda esta manhã o
168
MEUS
FILHOS
havia beijado e dentro de poucos minutos voltaria. Não tinha a pequenina Kayano mil
razões mais para chorar ? Entretanto, não chorou. Mordeu mais fortemente os lábios e
abraçou-se a mim. E eu então compreendi, intimamente, por que ela se tornara uma
criança sem lágrimas.
Chamam de infelizes aqueles que desaprenderam de rir. Mas quanto mais devemos
lamentar as crianças que não sabem mais chorar, porque não têm mãe para consolá-las !.
..
Carta ao professor de meu filho.
Prezado Senhor Ikeda,
Foi com grande alegria que li sua carta. . . Já que o senhor se encarregou de meu filho
Makoto, creio dever expor-lhe, como pai, os meus pontos de vista e pedir seus
conselhos.
Como é do seu conhecimento, a mãe de Makoto morreu na explosão atómica, e eu
mesmo, na Universidade, fiquei gravemente ferido. Makoto e a irmã salvaram-se por
terem ido, justamente naquele dia, para a casa da avó. A escola de meu filho foi quase
completamente destruída e soube que sobreviveram apenas quatro de seus
companheiros.
Construímos então uma cabana de 2,00 X 2,00 m no local da antiga casa, e tentamos
recomeçar a viver. Naquele momento, meu principal objetivo era pesquisar os efeitos da
radioatividade residual no corpo
169
OS SINOS DE NAGASAKI
humano, tanto nos adultos como nas crianças. Vivi assim, naquela cabana, cerca de seis
meses, com Ma-koto e Kayano, e pude verificar que a radioatividade residual diminuía
muito rapidamente. Após dois meses não produzia mais nenhum efeito, salvo um ligeiro
aumento de glóbulos brancos no sangue. Convicto dessa experiência é que insisti com
os refugiados, para que voltassem o mais depressa possível e reconstruíssem suas
moradas. Agindo dessa forma, estava certo de cumprir a minha obrigação de médico e
de cidadão de Nagasaki.
Durante os primeiros seis meses vivemos num regime escasso. Quando chovia, nosso
fogão muito úmido negava-se a cozinhar o arroz; e certa manhã em que nevou,
encontramos uma camada de neve sobre nossos cobertores. Mas, muito mais do que
todas as privações, o que tornava Makoto realmente triste, era acordar cada manhã para
constatar a ausência de sua mãe. . . se bem que desde o dia terrível, êle sempre evitou de
pronunciar a palavra mamãe. . .
Um dos motivos que me levou a impor a Makoto essa vida no meio de esqueletos e
ruínas, foi o desejo de inspirar-lhe um profundo ódio à guerra. Uma permanência no
deserto atómico transformará o mais extremado nacionalista num pacificador decidido.
Estou certo de que meu filho, daqui por diante, só optará pela paz, aconteça o que
acontecer.
O Japão declarou que se tornaria uma nação civilizada e pacífica. Mas talvez exista, em
certos rincões não atingidos de nosso país, pessoas que ainda considerem a guerra como
coisa boa e útil; pessoas
170
MEUS FILHOS
que não podem conter seus instintos batalhadores, e que, talvez um dia, ponham a
perder de novo a opinião pública.
Minha esperança é que Makoto se lembrará de sua experiência, conservará sua fé e
ajudará assim a salvar a humanidade de uma destruição total.
Que carreira escolherá Makoto ? A êle compete decidir; nem mesmo eu, seu pai, tenho
o direito de influenciá-lo. No fundo do coração tenho, porém, um anseio: espero
firmemente que êle se torne um pesquisador atómico. O estudo da medicina nuclear foi
o objetivo de minha vida. Os segredos do átomo exigem existências inteiramente
consagradas em explorá-los. Apesar do perigo deste trabalho, continuo a achar que não
há nada mais apaixonante. . . Embora eu mesmo tenha sido vitimado pelos raios, não
posso deixar de sonhar com a volta a meu laboratório, assim que puder me locomover, a
fim de prosseguir no meu trabalho.
Se digo a Makoto que estude o átomo, não falo como pai, querendo impor ao filho uma
carreira: mas é o pesquisador veterano, dirigindo-se ao noviço. E ficaria alegre se êle me
respondesse: "Concordo !" Deixaria então este mundo inteiramente feliz. Era meu
propósito prepará-lo para semelhante escolha quando resolvi viver no nosso deserto.
Todo homem sente-se assombrado quando se vê nessa planície vazia e verifica os
efeitos da energia atómica. Esse assombro, esse espanto faz nascer a curiosidade; essa
curiosidade aumenta o interesse que, por sua vez, gera o espírito de pesquisa.
171
OS SINOS DE NAGASAKI
Espero, no íntimo de meu ser, que quando meu filho atingir a idade do curso secundário
e começar a investigar sobre sua vocação, a resposta que muito naturalmente há de
surgir a seu espírito, seja: a ciência do átomo.
Entretanto, um abrigo precário, no meio de escombros, não é um lugar ideal para a
educação: as crianças juntam ossos e brincam de coveiros; roubam pratos e louças nas
ruínas dos vizinhos; descuidam-se de lavar as mãos. Suas apreciações estéticas e morais
vão por água abaixo e é impossível, em tais circunstâncias, incutir-lhes delicadeza e
bons modos. Foi por isso que achei útil afastar Makoto e colocá-lo em condições mais
normais, até que essa região seja restaurada, a fim de que êle adquira maneiras mais
finas. Quando, pois, minha Faculdade universitária se estabeleceu provisoriamente em
Omura, aproveitei a ocasião para me instalar nessa cidade, trazer Makoto e matriculá-lo
na sua escola. Por um feliz acaso, o Dr. Tomonaga, que me recebeu, mora perto de seu
instituto e permitiu que morássemos na sua casa.
Tudo aqui contribuiu para apagar dos olhos da criança o aterrorizante espetaculo
atómico: a baía magnífica, as colinas verdejantes, a escola bem equipada, a afetuosa
autoridade do Sr. Yajima e do Sr. So, a atmosfera alegre dos companheiros de estudo, e
a vida metódica em casa.
Suas experiências matemáticas, Doutor Ikeda, e suas experiências de física, exerceram
sobre Makoto a fascinação da ciência; as suas excursões no parque
172
MEUS FILHOS
despertaram nele os atrativos do belo. Como parecia feliz no dia em que representou a
Escola no concurso de canto ! Conforme o senhor mesmo pôde constatar, na visita que
nos fêz há pouco tempo, a casa do Dr. Tomonaga é um centro de amor e de verdade. Êle
é um sábio, especializado em medicina interna. Sua esposa, uma mãe de família amável
e culta. Educam Makoto como se fora um filho e esse, de corpo e alma, tornou-se um
membro da família: ora malcriado, ora mimado; repreendido de vez em quando e
elogiado quando o merecia.
Durante três meses morei com os Tomonaga, mas como me sentia cada dia pior, adquiri
o mau hábito de deitar-me no meu quarto, sobre as esteiras, quase que o dia todo. Muito
contra meu gosto, Ma, de 5 anos, filhinho dos Tomonaga, começou a imitar-me (1).
Nesta época, mais ou menos, minha Faculdade transferiu-se de novo para Nagasaki e
resolvi voltar também. Hesitei muito tempo se levaria Makoto comigo, mas por fim
decidi deixá-lo com meus amigos. Quando revi Nagasaki, o local da explosão havia
sido todo desembaraçado e o povo a êle voltava, numeroso. A região perdera o seu
aspecto desolador e retomara uma aparência pacífica. Pode-se levar agora uma vida
civilizada, sem condenar o meio como impróprio para uma obra de educação. A escola
(1) Os quartos japoneses têm seu chão coberto de grossas esteiras de palha. Facilmente
nelas se deitam, como sobre um colchão. Este hábito é, porém, pouco educado,
sobretudo para as crianças. A doença justificava Dr. Nagaí... mas não havia desculpas
para Ma...
173
OS SINOS DE NAGASAKI
primária foi reconstruída, a população cresce com rapidez. Eu mesmo, tenho uma casa e
se bem que conste de um só quarto, rosas brancas e perfumadas crescem no meu jardim.
Numa palavra: tudo está pronto para receber Makoto. Poderão então perguntar por que
continuo a manter o menino afastado ?
É justamente para explicar meus motivos, e ter a sua opinião, que lhe escrevo esta carta.
Makoto é um futuro órfão: sua mãe já morreu e o pai está estirado sobre o que será seu
leito de morte. A criança está, pois, destinada a ver-se privada, dentro em breve, do pai
e da mãe. Quando se vir sozinho, nesse mundo cruel, será ele capaz de manter-se no
caminho reto, sem hesitação, e prosseguir corajosamente no rumo traçado na infância ?
O Cristo disse-nos: "Olhai para os pássaros dos céus que não semeiam nem ceifam, nem
amontoam nos celeiros. E todavia Deus os sustenta. . . Olhai como crescem os lírios:
eles não trabalham, nem fiam. E contudo eu vos afirmo que nem Salomão, com toda a
sua glória, se vestia como um deles. Se, pois, Deus assim veste uma planta do campo,
que hoje existe mas que amanhã se lança ao fogo, quanto mais velará por vós, ó homens
de pouquíssima fé ?"
Pensando nesse texto, convenço-me de que se me preocupo, é devido à fraqueza de
minha fé. Diga-me uma coisa: estarei iludido pelas ideias loucas de um pai amoroso em
excesso ? Não posso, contudo, deixar de pensar que, se acostumo Makoto a essa vida de
semi-órfão que êle leva entre estranhos (só vem aqui uma vez por semana), o choque
que experi-
174
MEUS FILHOS
mentará com minha morte será muito atenuado. Se, ao contrário, eu permitir que viva
comigo, sem familiarizá-lo com as dificuldades de uma vida com outras pessoas, não
será êle levado pela maré deste mundo, quando nela fôr atirado, lutando para levar
consigo a irmãzinha ? Ah ! queira Deus que não se torne um desses órfãos mendicantes
1
Makoto, Kayano; já que de qualquer forma vocês têm de ser órfãos, sejam fortes e leais;
caminhem corajosamente e com um sorriso, através da vida. . .
Eis, Dr. Ikeda, o pensamento e as preces que se ocultam sob minha decisão de deixar
meu filho nas suas mãos.
Mas, para ser franco, como desejaria ter Makoto perto de mim ! Como gostaria de
poder, durante o dia, contemplar o seu rostinho, ouvir sua voz, deixar que suas mãos
tratassem de minhas pernas doentes. Não sei por quanto tempo terei vida ainda; sinto,
todavia, que o fim se aproxima. Mais uma razão imperiosa para eu desejar passar com
meu filho, no mesmo quarto, os meus derradeiros dias.
Todos os sábados à noite êle chega, dizendo: "Papai ! estou aqui !" Sai domingo de
manhã para a missa e passa o resto do dia dispensando-me toda espécie de cuidados.
Parte novamente na segunda-feira, muito antes de nascer o sol. Ouço, ao longo da
colina, arquejar o trem que leva Makoto: o barulho decresce pouco a pouco. E, às vezes,
quando o silêncio de novo invade a minha casa, pergunto a mim mesmo se a alma da
mãe de Makoto não estará triste comigo. . .
175
OS SINOS DE NAGASAKI
Discussão por causa de uma boneca.
— Porque você não arruma as coisas ? Não tenho culpa de ter pisado nela. Por que a
deixou no chão ?
O racionamento de eletricidade, naqueles anos difíceis, obrigava-nos a levantar no
escuro e foi assim que, certa manhã, ouvi Makoto brigar com Kayano. O menino pisara
na boneca da irmã. Kayano, na noite anterior, levara a boneca nos braços, quando se
deitou, mas com certeza, ao dormir, deixou-a cair. Logo que acordou, lembrando-se da
filha, pôs-se a procurá-la no escuro, quando ouviu o irmão — que se levantara primeiro
— quebrá-la sob os pés. Da minha cama ouvia a discussão e duas coisas eram claras:
nenhuma das partes agira de propósito, mas ambas mereciam uma censura por seu
descuido. Acima de tudo, porém, agira aí, visivelmente, o acaso. Aparentemente, o mais
prejudicado era eu, pois deveria fornecer a Makoto os meios para comprar uma boneca
nova para a irmã.
As duas crianças recorrem a meu tribunal. É bom ver como argumentam, procurando
expor suas razões com clareza e sem chorar, quando pela morte da mãe pareciam tão
desamparados. Quantas vezes, ansiosamente, perguntei-me se era possível, para um pai
só e doente, realizar, com êxito, a obra da educação.
Eis que já se passaram três anos desde o dia em que recolhi os restos de minha mulher e
enterrei-os sob um pinheiro, indo a seguir visitar meus filhos
176
MEUS FILHOS
no seu refúgio, entre as colinas. Estavam a uns seis quilómetros daqui. Uma ansiedade
vaga, indefinida, me impacientava contra minhas pernas feridas que tão lentamente me
conduziam até lá. Alcancei, afinal, o vestíbulo da casa onde moravam as crianças.
Abrindo a porta apareci a eles, assustando-os com a minha aparência tão diferente:
apoiado sobre o ombro de uma enfermeira, tendo a cabeça e mãos envoltas em
bandagens.
Eles me olharam atentamente, recuando pouco a pouco. A cigarra com a qual brincavam
escapou das mãos de Makoto. Foi nesse momento que tive o sentimento vivo da
paternidade. Nunca, antes ou depois desse dia, senti, de maneira tão profunda, as
relações íntimas que unem o pai aos filhos. Evidentemente já os amava antes disto; mas
um pai, não tendo que passar por sofrimento algum para pôr os filhos no mundo, não
sente sua paternidade tão fortemente quando a mãe experimenta a sua maternidade.
Se, naquele dia, vivi tão nitidamente minha qualidade de pai, foi sem dúvida porque a
morte de minha mulher levou-me a ser também, de certo modo, a mãe deles. Não quero
com isso dizer, no sentido rigoroso, que o espírito da morta tenha entrado em mim; mas
— até certo ponto — é pura verdade. Desde esse primeiro encontro, após o que sucedeu,
tentei orientar a educação das crianças tendo sempre presente esse pensamento: que
faria a mãe deles em meu lugar ?
Tirei de meu bolso uma caixa de pêssegos cristalizados, uma das provisões que
encontrei no meu
177
OS SINOS DE NAGASAKI
abrigo depois do desastre. Mandei Makoto trazer os pauzinhos de bambu (1). Abri a
caixa e ofereci a eles:
— Provem como é bom !
Eles hesitaram, nervosos; seus olhinhos iam de meu rosto para a caixa, da caixa para os
pauzinhos. Estavam sérios e não se moviam. Entretanto, foi para eles que trouxe da
cidade, a pesada caixa. Comecei a impacientar-me:
— Então ? por que não comem ?
Meu tom áspero chocou-os e percebi que a custo continham as lágrimas. Continuei a
olhar para ambos e, com o coração apertado, compreendi. . . Eles estavam esperando a
mãe. Essa caixa de pêssegos foi, tempos antes, comprada por ela. Viam agora a caixa
aberta diante deles: mas por que a mamãe não tinha vindo também ? Tudo teria sido tão
diferente ! Os doces não teriam sido dados de maneira tão brusca, os pauzinhos
colocados ao contrário, e as palavras tão ásperas ! Envergonhado percebi tudo: tinha
resolvido desempenhar o papel de mãe e, desde o primeiro ensaio, fracassei
miseravelmente.
Fui à cozinha, apanhei dois pratos pequenos, coloquei os pêssegos neles e, com ternura,
ofereci-os às crianças. Desta vez aceitaram e então me lembrei de que Midori
recomendava-lhes sempre que não comessem dentro das caixas, mas usassem os
pratinhos para isso.
(1) Pauzinhos que, no Japão, servem de talher.
178
MEUS FILHOS
Depois de cada um comer dois pedaços, sobraram ainda dois na caixa. Era a parte de
Midori. Teríamos comido tão alegremente se estivéssemos juntos, mesmo no abrigo,
mesmo sob as bombas. . . Meu pensamento revia o passado; voltando-se depois para o
futuro pareceu-me ver a longa e difícil estrada que nós três devíamos ainda percorrer.
. . . Desde então, três anos se passaram; três longos, longos anos: das vinte e quatro
horas de cada clia, posso dizer que nenhuma foi fácil. Se o tempo pareceu-me tão longo,
é que cada dia, cada hora, encerrou uma luta penosa contra o sofrimento e a solidão,
contra a angústia e a miséria. Como foram pesados esses anos, e no entanto, as cinzas de
Midori eram tão leves !
. . .As crianças desenvolveram-se bastante e espero que minha mulher aprove, lá do céu,
o trabalho que fiz, trabalho bem penoso para um homem sem apoio. Não tenho dúvidas
sobre um ponto: eles seriam bem melhores se a mãe estivesse aqui para educá-los. . .
Cai a noite enfim, o céu tinge-se de sombras. Os sinos da igreja tocam matinas. A
discussão sobre a boneca terminou pacificamente: Makoto comprará uma cabeça nova:
Kayano lhe fará um novo vestido. Ela herdou da mãe o gosto pela costura e consegue
fazer o que quer com suas mãozinhas desajeitadas. Makoto e Kayano, de mãos dadas,
saem para a missa.
"Senhor ! guardai-os hoje ainda e derramai sobre eles a abundância de vossas graças..."
179
199
ÍNDICE
Apresentação de Paulo Nagai ................. 5
Introdução .................................. 9
I — IMAGENS ANTERIORES AO DESASTRE
Meus Pais ........................ 11
A carne e o sangue ............... 14
Civilização ........................ 21
Maru-boro (Panquecas) ............ 23
II — O CATACLISMO
As horas que o precederam......... 29
A bomba ......................... 36
As horas seguintes ................. 41
III — SOCORROS
Assim acabou a Universidade ...... 61
A noite rubra ..................... 76
O dia seguinte .................... 82
Yamashita ......................... 88
Reflexões posteriores ............... 93
O dia em que perdi a metade do meu
coração ....................... 99
IV — O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
Até a Assunção .................... 105
Após a Assunção .................. 115
Sintomas e remédios ............... 123
201
OS SINOS DE NAGASAKI
V — A VIDA É MAIS FORTE
Renasce a vida .................... 131
Meus visitantes .................... 147
As quatro idades da reconstrução ... 159
De novo repicam os sinos.......... 161
VI — MEUS FILHOS
Kayano, a criança sem lágrimas..... 165
Carta ao professor de meu filho .... 169
Discussão por causa de uma boneca .. 176
VII — AMANHÃ PODE SER MELHOR
O fim de uma época............... 181
Questões de pão ................... 189
Os avarentos ...................... 192
Será feliz a era atómica ?.......... 194
De um Ângelus a outro............ 197
202
•
Obra executada nas oficinas da São Paulo Editora S. A. - São Paulo, Brasil
*/
I
1
l
Para além do
ORIENTE E DO OCIDENTE
JOHN WU
•
JOHN WU — Este chinês ilustre, tão notável jurista quanto filósofo e homem de letras,
relutou em escrever a história de sua vida. A insistência de amigos e sobretudo do editor
americano Frank Sheed persuadiu-o, finalmente, a dar-nos o sua biografia. Daí resulta
este livro cheio de colorido, de frescura, de espontaneidade, rico de conteúdo humano,
recebido com entusiasmo nos Estados Unidos e na Europa.
E' uma palpitante narrativa de aventuras: o filho de um simples comerciante de Ningpo
torna-se Embaixador da China junto ao Vaticano. A história verídica é tecida de
pitorescos e saborosos ditos da velha China e marcada por autêntica poesia. E' uma vida
humana intensamente vivida.
E é também o longo itinerário espiritual de uma alma que busca a Verdade e a encontra
por fim na luz que brilha "para além do Oriente e do Ocidente". Educado nas três
religiões da China, John Wu convertendo-se ao catolicismo não abandona por isso a sua
cultura oriental: conserva-se um autêntico Chinês, sendo um católico autêntico.