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OS SINOS DE NAGASAKI

PAULO NAGAI

Paulo Nagaí faleceu em maio de 1951. Seu enterro, um cortejo de cinco quilómetros, foi
a homenagem justa e visível que lhe prestaram seus amigos e admiradores. Na sua auto-
biografia Os Sinos de Nagasaki, o Dr. Nagaí revela a sua alma de escol. Pagão até o 3."
ano da Escola de Medicina, entregou-se com entusiasmo às pesquisas científicas.
A leitura das Obras de Pascal abala as suas convicções materialistas e dedica-se então a
novas pesquisas — as de ordem espiritual. . . Encontra a Verdade e essa descoberta dá-
lhe nova feição à vida. Já formado, é professor da Escola de Medicina de Nagasaki. A
bomba atómica surpreende-o em plena atividade profissional. No seu livro descreve as
cenas terríveis, heróicas e comoventes que acompanham o cataclismo, e os seis anos
que viveu ainda, estudando no próprio corpo os efeitos funestos da radioatividade.

Perde a esposa na explosão i acarreta a difícil missão de educar dois filhos pequeninos.
Apesar de todos esses infortúnios, as palavras do Dr. Nagaí são impregnadas de paz.
Lança ao mundo um apelo de amor e concórdia que convence e comove profundamente.
O AUTOR E SEUS FILHOS Depois da catástrofe atómica
Tempos Atuais

OS SINOS DE NAGASAKI
PAULO NAGAÍ
Tradução de CECÍLIA DE M. DUPRAT
2.° Edição

FLAMBOYANT
BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALVALADE
Título original
Les Cloches de Nagasaki Êditions Casterman — Tournai • Paris
Copyright by Dr. R. SHIKIIÍA — Japão
Ilustração da capa TRUONG DINH KIM
1959
Todos os direitos reservados pela
LIVRARIA EDITORA FLAMBOYANT
Rua Lavradio, 222 - Tel.: 51-5837 - São Paulo
Biblioteca Municipal do Bairro da CRUZ VERMELHA
Apresentação de
PAULO NAGAI
No dia 14 de maio de 1951, um enterro de cinco quilómetros de comprimento
caminhava lentamente em direção da igreja católica de Urakami, em Nagasaki. Através
das ruínas, desfilava a elite da cidade. Nunca, sem dúvida, uma multidão semelhante,
nunca tantas autoridades, mesmo de outros credos, se reuniram para uma cerimónia
cristã.
Esta multidão, estas autoridades homenageavam um médico católico: o Doutor Paulo
Nagaí, morto após um longo martírio em consequência da explosão atómica. A sua vida
tornou-o um herói nacional, um exemplo luminoso de dedicação profissional absoluta e
de uma otimista fé cristã. . . É êle o autor deste livro.
Paulo Nagaí é um convertido: mergulhado no materialismo pelo ensino universitário,
quando ainda pagão, dali se ergueu, e encontrou a fé, frequentando assiduamente, nos
últimos anos de seu curso, numerosos católicos de sua cidade natal.
Especialista em pesquisas radiológicas já fora atacado — e êle o sabia — quando o
cataclismo de 9 de agosto de 1945 atingiu-o no seu corpo e na sua alma, carbonizando a
esposa, matando numerosos
amigos e colaboradores seus, acelerando os danos de uma leucemia que o levaria ao
túmulo em menos de seis anos.
Assim condenado, quis todavia manter-se — como magnificamente se expressou um
outro católico, antigo ministro, Tanaka — "a scientist with a message of hope": um
sábio incansável, portador de uma mensagem de esperança. Sem esmorecer, continuou a
estudar, no seu próprio corpo torturado, os efeitos dos raios X; educou os dois filhinhos,
procurando aliar à força do pai, uma ternura maternal. A seus concidadãos prodigalizou
os apelos ao perdão, à confiança, ao trabalho, à FÉ.
Estes conselhos, ele os dava na sua cabana humilde, do leito onde o prendeu o progresso
do mal. Todos aqueles que o ouviam, entretanto, pediam que aquelas palavras fossem
difundidas mais largamente, e para isso, que fossem impressas. Com simplicidade
aquiesceu, e seus livros espalharam através do país sacrificado, uma luz suave que,
embora velada era imensamente confortadora.
O seu primeiro livro chama-se "La chaíne du Rosaire" e logo veremos a razão deste
título.
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O segundo é: "Os Sinos de Nagasaki", fornecendo este o tema de um filme que, desde
março de 1951, tem tido sucesso espantoso no Japão.
Da união destes dois volumes — trechos do primeiro e o segundo integral — nasceu a
presente edição.
O terceiro volume "En quittant ses enfants" constitui o testamento espiritual, deixado
por Paulo Nagaí a seu filho Makoto e a sua filha Kayano, que aparecerão
frequentemente nestas páginas.
Os exemplares destes livros foram espalhados em centenas de milhares: levaram a todo
o Japão, mesmo não cristão, a mensagem humana e católica do médico, o Doutor Nagaí.
Com a confiança das multidões, vieram as honras ao encontro deste moribundo que
nunca as procurou. Nagasaki deu-lhe o título de prefeito; o Imperador visitou-o, e o país
conferiu-lhe o Prémio do Mérito Nacional. Da parte de Sua Santidade o Papa Pio XII, o
cardeal Gilroy e o legado apostólico, Monsenhor de Furstenberg, levaram-lhe palavras
de apoio, elogio e conforto.
i
Aceita todas as honrarias com humildade, esclarecido sobre o valor de tudo isso, pela
morte que sentia aproximar-se.
Expirou no dia 1.° de maio de 1951, ao romper do mês de Maria. Para chegar à igreja,
seu enterro percorreu a famosa aléia das cerejeiras, que ele mesmo doara à sua paróquia,
e deteve-se entre as paredes pintadas às suas custas.
Mesmo depois de morto, as coisas ainda falavam dele. . .
Bem mais, porém, do que nas pinturas ou nas flores, é nos livros que conservamos a
lembrança essencial e a lição de sua vida. Uma lição que êle repetiu frequentemente,
sob diversas formas, em diferentes tons. . . no correr dos dias, como se repetem as Ave-
Marias ao longo do rosário.
As contas do terço foram consumidas pela chama atómica. Mas a corrente resistiu; ela
brilha sob o céu escuro, pois é feita deste metal indestrutível que chamamos: esperança
cristã.
J. MASSON, S. J.
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INTRODUÇÃO
Há já dois anos que estou deitado, enfermo, inválido, nesta planície de Nagasaki. Se
sobrevivi, foi graças às orações, ao encorajamento de tantos amigos conhecidos ou
desconhecidos.
O Doutor Shikiba amavelmente se oferece para publicar os pequeninos ensaios que
escrevi ultimamente, e Miss Isae Yashida copiou-os para mim.
Relendo esses manuscritos, uma vez terminados, não posso deixar de me sentir confuso,
vendo assim meus defeitos postos à mostra. Todas as críticas dirigidas a essa relação
sincera de uma vida destruída, serão por mim aceitas de bom grado.
As vítimas de uma guerra tremenda começam enfim a trocar suas vestes rotas pela
roupagem dos tempos de paz; também eu me disponho a entrar numa vida nova. Deixo
atrás de mim, no campo de batalha, este livro simples, lembrança do que não existe
mais. Desejo que a minha nova existência seja toda consagrada à reconstrução e não a
uma volta ao passado; toda de esperança, não de lamentações.
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Um único pensamento me anima: dar glória a Deus. Evidentemente não sou senão um
inválido, um frangalho, que não espera mais poder ser útil. Desejo, todavia, serxiir a
Deus com um coração sincero até o momento em que este fio de minha vida, cada dia
mais frágil, por fim se rompa.
A santa Eucaristia, que me é trazida todos os domingos pelo Padre Nakada, constitui
uma força infinita, na comunhão com Deus. Por mim mesmo, nada posso. Creio, porém,
firmemente que, pela força do sacramento que recebo, possa ainda glorificar a Deus.
Suplico-Lhe conceda Suas bênçãos a todos aqueles que, conhecidos ou desconhecidos,
deram estímulo e conforto a um infeliz.
TAKASHI NAGAÍ
25 de março de 1948
Urakami-Nagasaki
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I
IMAGENS ANTERIORES AO DESASTRE
Meus pais.
Meu pai não chegou a terminar a escola primária: era preguiçoso demais para tanto.
Certa manhã de verão, êle atirou ao rio um ídolo de pedra, altamente respeitado: às
pessoas que o barulho atraiu, teve ainda a audácia de responder friamente: — Vejam
como ela sorri dentro d'água. O mergulho agradou-lhe, não há dúvida. . .
Algum tempo depois, subiu um dia numa pereira, no pátio de sua escola, e de lá de cima
ouvia a lição, enquanto se fartava de frutas ! Quando o diretor veio repreendê-lo, o
insubordinado contentou-se em sacudir os galhos e deixar cair uma chuva de peras
duras sobre a cabeça do indignado mestre, dizendo:
— Que tal, professor ? Quer mais ainda ?
— Desça, seu patife !
— Nunca !.. .
— Desça, estou mandando !
E a batalha durou até o entardecer. Os adversários já não se enxergavam mais, e
ouviam-se ainda
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OS SINOS DE NAGASAKI
ressoar as altercações. Finalmente, num último esforço de sua voz já quase totalmente
rouca, o diretor decretou a expulsão de meu pai.
Foi a primeira, seguida de cinco ou seis mais, até que numa extensão de dez quilómetros
não houve uma escola que o aceitasse ! Meu avô acabou tomando um professor
particular que também, pouco tempo depois, foi forçado a deixar o insuportável aluno.
Decidiram então empregá-lo numa fazenda. Ali trabalhou até a idade de vinte anos,
esquecido de todos. Ignoro o que, em seguida, determinou meu pai. . . Mas quando fêz
vinte anos, desapareceu em busca de fortuna. Todos os camponeses repetiam: — Não
adianta ! voltará sem vintém, após 50 anos de vagabundagem !
Como se enganavam ! Quatro anos mais tarde, o filho pródigo reaparecia, exibindo ao
velho pai o seu diploma de médico. Aquele vadio formara-se em medicina ! Os
conterrâneos não acreditavam no que viam e ouviam ! Mesmo o meu avô, médico da
velha guarda, que todos os dias rezara pelo filho, olhava-o com incredulidade; punha e
tirava os óculos para melhor examinar o fugitivo, agora sentado diante dele, todo bem
trajado, e para reler o diploma oficial!
Depois de ter abandonado o lar, meu pai empregara-se no consultório de um clínico,
servindo como porteiro, farmacêutico, assistente no seu escritório e nas suas visitas. À
noite, tomava emprestados os livros do médico para estudar e, quando amanhecia, o dia
encontrava-o debruçado sobre eles. Somente uma constituição enrijecida pelos trabalhos
do campo lhe permitiria resistir a semelhante tensão. . . Foi depois
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ANTES DO DESASTRE
para Matsue e empregou-se no hospital de um ginecologista, o Dr. Tano, a maior
autoridade sobre o assunto em toda aquela região. Ali também, trabalhando durante o
dia, estudando à noite nos livros da excelente biblioteca, aumentou enormemente os
seus conhecimentos. Por isso, até hoje, na família Tano, conservam a lembrança do
"jovem Nagaí, tão aplicado e estudioso".
Seus esforços tornaram-no capaz de passar, de uma vez, depois de 4 anos apenas, todos
os exames de medicina. Em seguida, meu pai trabalhou com Tano perto de quatro anos:
casou-se e eu nasci no seu quarto de assistente. Com 28 anos foi convidado a se
estabelecer num vilarejo a 10 quilómetros de distância. .. Como êle e sua esposa
viveram então naquela região isolada constituiria, em si, matéria para outra história.
Moravam numa cabana onde os ursos passeavam no jardim, onde os macacos se
escondiam no mato mais próximo, onde se podia ouvir o uivo de lobos; uma zona cujo
nível de cultura não progredira desde os tempos mitológicos !. . .
Meus pais lutaram para ali introduzir o seu jovem ideal de progresso. Juntos faziam seus
passeios, estudavam, distraíam-se arranhando a shamisen (guitarra de 3 cordas),
pescando trutas ou galopando por montes e vales.
Nunca me forçaram a estudar. Eles pareciam tão felizes quando se debruçavam sobre os
livros, que me inspiravam o desejo de imitá-los. Vejo-os ainda sob um pequeno lampião
de querosene, um tratado de medicina entre os dois, enquanto no jardim arrulhavam as
pombas com ternura.
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OS SINOS DE NAGASAKI
Infelizmente, meu pai morreu de câncer aos 59 anos. Minha mãe dera-lhe 5 filhos e
deve ter trabalhado arduamente para educá-los, fazendo ao mesmo tempo todo o serviço
da casa, ajudando o esposo médico, ocupando-se dos que o procuravam. Nunca a vi,
entretanto, de fisionomia fechada: sorria constantemente.
Como educadora, foi bastante severa, não em relação aos erros ou irreflexões, mas sim,
ao egoísmo e à maldade. Aos 5 anos, recebi dela um castigo cuja lembrança guardei
para sempre. Não me recordo das minúcias. . . devo ter respondido com insolência.
Agarrou-me pelo braço, tirou-me a roupa e abriu a porta da casa. Nevava: de um só
golpe atirou-me sobre a camada de neve que devia ter 2 metros de espessura. . . Sinto
ainda o tremor que se apoderou de mim, o medo que me causou aquele enorme lençol
branco.
Hoje é que avalio o trabalho que deve ter tido para transformar um bebe chorão, egoísta
e obstinado, numa criança bem educada !. . .
A carne e o sangue.
Desde os meus cursos de humanidades, fiquei seduzido pelo materialismo. Logo que
passei para os estudos médicos, deixei-me facilmente convencer de que o homem é
somente matéria. Não nos mostravam, nas aulas de anatomia, elementos materiais que
— conforme diziam os mestres — constituíam o ser humano ? A maravilhosa estrutura
do corpo tomado
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ANTES DO DESASTRE
como um todo, o complicado sistema de suas particularidades mínimas causavam nossa
admiração; mas o que eu manejava assim não era, na verdade, senão matéria pura, sob
todos os pontos de vista. Passando para a fisiologia, estudei as complexas e coordenadas
funções do organismo, explicadas como fenómenos físico-químicos de excitação e de
reação... As lições recebidas não deixavam aparentemente nenhum lugar à pretensa
existência da alma e do espírito.
Depois de termos dissecado os cadáveres, começámos a analisar, com a mesma frieza,
os nossos próprios corpos vivos: o corpo é um composto orgânico de elementos tais
como oxigénio, azoto, etc.. . . que, por si mesmos, nada têm de respeitável. A vida não
é, pois, senão o encontro, a repartição desses elementos segundo os fenómenos físicos
ou químicos. Coisa alguma permanecia, então, digna de veneração no homem: com a
morte êle se decomporia, voltando àqueles elementos. A vida só durava até o túmulo:
nada mais certo, portanto, do que passá-la na alegria, no prazer, até o momento de
sermos despojados. Bebamos, cantemos, dancemos, divirtamo-nos antes que o sangue
da juventude se arrefeça.
Não tendo nenhum respeito pela carne, nunca tive escrúpulos em profaná-la. Persistia, é
verdade, no fundo de meu coração, uma vaga inquietude que se recusava a acalmar-se;
mas referir-se à voz da consciência teria sido, decididamente, uma volta a um mito
caduco.
A palavra suprema da moda era a ciência todo-poderosa, o positivismo. Lançavam-se no
esquecimento do passado os fantasmas da consciência.
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OS SINOS DE NAGASAKI
Se é real a existência de almas e espíritos, como o afirmam os velhos, que o mostrem;
queremos vê-los com nossos próprios olhos ! Mas não; esses espantalhos foram
inventados por despeito contra os jovens, para estragar os seus prazeres. . .
Durante as férias da primavera, entre meu segundo e terceiro ano de universidade,
minha mãe foi acometida de um ataque de apoplexia. No momento em que eu me
precipitava à sua cabeceira, havia ainda nela um sopro de vida; expirou, olhando-me
com insistência. Este último olhar maternal abalou completamente a minha filosofia
materialista. Os olhos daquela mãe que me dera a vida, que me educara e me amara até
o fim, aqueles olhos diziam-me claramente que, mesmo após sua morte, permaneceria
sempre junto de seu querido Takashi. Fixei aqueles olhos, eu que negava a existência da
alma, e instintivamente senti que a alma de minha mãe existia: ela separava-se do seu
corpo, mas não pereceria jamais.
Terminadas as cerimonias do funeral, nossa casa privada agora da voz alegre de minha
mãe, recaiu na sua tranquilidade. Profunda transformação, todavia, operava-se em mim.
Apesar de todos os meus esforços, não conseguia convencer-me de que o que havia sido
"minha mãe" estivesse completamente destruído. Meus olhos abriram-se, pela primeira
vez, ao mundo espiritual.
O 3.° ano de universidade nos iniciou à prática clínica nos seus diversos ramos.
Começamos a estudar
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ANTES DO DESASTRE
corpos vivos. Diferiam bem dos cadáveres e outro tanto dos animais de experiências.
Víamos também que não eram macacos superiores. Criatura à parte, o homem vivo é,
certamente, "carne e sangue", mas com alguma coisa a mais.
Foi no momento em que eu fazia estas constatações que li a obra de Pascal: "Pensées".
Introduzir diretamente um prisioneiro do materialismo no pensamento de um sábio
dotado de uma fé profunda, era como que mergulhar um profano no estudo da
astronomia, sem nem ao menos o auxílio de um telescópio. Meus pés estavam presos ao
solo; rneu olhar tentava em vão atingir os céus. Meu coração, cheio de impaciente
emoção, agitava-se no vácuo. O que Pascal dizia parecia-me verdadeiro, irrefutável;
mas não podia aceitar tranquilamente aquelas verdades como autênticas. As almas. . .
eternidade. . . Deus. Nosso grande precursor, o físico Pascal admitira, pois, seriamente
estas coisas ! Aquele sábio incomparável acreditara verdadeiramente nelas ! Que
deveria ser esta fé católica para que um cientista como Pascal as pudesse aceitar sem
contradizer a sua ciência ?
E assim, muito naturalmente, a minha curiosidade orientou-se para o catolicismo. Bem
ao lado da Universidade, erguia-se a igreja de Urakami, a mais bela catedral do Extremo
Oriente; mais de dez mil católicos viviam à sombra de suas torres. Todos os dias, até
então, pelas janelas do auditório, contemplei, com um olhar de admiração, o grande
edifício de tijolos. Escutara, com misterioso espanto, o Ângelus do meio-dia. Muitas
vezes, porém, vendo as
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OS SINOS DE NAGASAKI
procissoes de véus brancos saírem da igreja e tomarem o caminho que margeia a
Universidade, para irem até o cemitério, desprezei-as como sendo formadas de escravos
pervertidos de um culto ocidental. E este sentimento impediu-me de me interessar por
eles. Agora, no entanto, que minha filosofia fora despedaçada por Pascal, começava a
olhar a catedral com olhos diferentes.
Resolvi, finalmente, estabelecer-me em Urakami. A fé daquela gente era simples, mas
firme. Jamais tentaram doutrinar-me, mas muitas vezes vi-os reunidos para rezar por
"intenções particulares". Como poderia adivinhar que eles se reuniam a fim de pedir por
nós, seus irmãos pagãos ? Só o soube depois de minha conversão.
Prosseguia eu no meu trabalho. Empreendendo por conta própria certas experiências
precisas, verifiquei até que ponto os resultados podem variar segundo os métodos de
experimentação; compreendi que existiam limites ao que este ou aquele sistema
permitia concluir ou afirmar. Constatei, igualmente, que o domínio que pode ser
explorado pelos métodos das ciências naturais e submetidos às suas leis, tem, êle
próprio, suas fronteiras e dentro das quais jamais poderão ser resolvidos todos os
problemas do universo: a existência da alma, por exemplo, não depende dos processos
científicos. Mas esta existência pode ser provada por outros métodos: meu erro estava,
precisamente, em teimar nas provas científicas. Eu negava a existência da alma por estar
preso a um falso axioma: a ciência é o único meio para descobrir a verdade. Na
continuação, fiquei
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ANTES DO DESASTRE
realmente surpreendido de encontrar o domínio da ciência tão imperfeito e cheio de
contradições. Mais perturbado ainda fiquei, constatando que certas leis, geralmente
admitidas,. não eram, na verdade, mais do que simples hipóteses. Cheguei assim a
conhecer melhor a carência da ciência humana, a imperfeição de nossos sistemas de
pesquisas, e a pensar que devemos ser mais humildes. Fazendo, por fim, a experiência
pessoal do mundo sobrenatural, envergonhei-me do tempo em que negava a existência
da alma. Foi então que, pela primeira vez, comecei a compreender os "Pensamentos" de
Pascal.
Logo depois que voltei do meu serviço militar na Mandchuria, recebi o batismo.
Esclarecido pelo Espírito Santo, comecei a penetrar no âmago do Universo: o homem
vivo, combinação de alma e de carne, que a morte dissocia, provisoriamente; o homem
criatura, feito para a glória de Deus e a felicidade do céu; o homem, imagem de Deus,
que não podemos profanar. Fatos que só aprendi a discernir depois de ter deixado a
Universidade. Aprendi a conhecer a alma e sua dignidade e, desde então, compreendi
igualmente o respeito que devemos à carne. De modo especial, indo comungar,
repetindo esta experiência de união com Jesus Cristo, percebi que não podia tratar meu
corpo de qualquer maneira. A hóstia santa, corpo do Cristo vivo, é dada aos fiéis
durante a missa. A alma do comungante torna-se uma com o Cristo, enquanto seu corpo
recebe o pão.
Jesus disse também: Quem come deste pão viverá eternamente. Aprendi assim a
respeitar meu
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OS SINOS DE NAGASAKI
corpo porque êle ressuscitará no último dia, de novo unido à alma. Se o corpo, pela
morte, deixasse de existir definitivamente, poderíamos, sem consideração, atirá-lo à
cova como um chinelo de palha. Mas essa carne deve voltar à vida como corpo glorioso
à face de Deus. Não pode, pois, ser mal tratada. Respeito agora este corpo de carne
criado para Deus. E por isso pergunto a mim mesmo se essa leucemia provém de uma
vontade amorosa do Pai ou se houve, na sua origem, uma negligência culposa da minha
parte. Não terei contas a dar do meu julgamento individual ? (1).
Até o último momento de minha vida tomarei todos os remédios que me ordenar a
consciência. Além do mais, quero utilizar meu corpo para preciosas experiências na
pesquisa de um tratamento específico da leucemia. Não farei coisas arriscadas, como
um homem prestes a se afogar agarrar-se-ia ao menor fio de palha; nem tomarei
qualquer remédio de charlatão. É com prudência e respeito que cuidarei deste corpo
enfermo.
Não deve êle contribuir à felicidade da geração desta nova época, época atómica, e, em
última análise, à glória de Deus ?. . .
(1) O Dr. Nagaí contraiu, de fato, esta doença nos longos anos de pesquisas no campo
dos raios X, em benefício dos doentes.
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ANTES DO DESASTRE
Civilização.
Antes da guerra, minha mulher e eu fomos um dia convidados pelos Higashiyama.
Éramos grandes amigos da família e, sem protocolos, fizeram-nos entrar no salão.
Durante várias gerações os Higashiyama foram senhores feudais e, ao mesmo tempo,
proprietários das principais pesqueiras das ilhas Goto. Nada apresentavam do "nouveau
riche". O salão continha valiosas peças de mobiliário, cujo aspecto indicava cuidados
seculares. Os membros da família receberam educação aprimorada: discutimos sobre os
romances de Bourget, ouvimos um belo disco de Mozart, enquanto saboreávamos um
delicioso chocolate quente e uma fatia de melão, servidos pela senhora Higashiyama.
Despedimo-nos de bom humor, em parte talvez, também, por causa do excelente vinho
que nos foi oferecido !
Aproximando-nos de nossa casa, ficamos chocados com a sua aparência miserável,
como se a víssemos pela primeira vez. . . Entrando na nossa sala familiar, sentei-me e
deitei um olhar em torno de mim: a escrivaninha barata, fabricada por sentenciados
numa casa de detenção, e coberta de papéis, tudo numa desordem tremenda. Do outro
lado do cómodo, a máquina de costura de onde pendia a manga de uma camisa em
confecção.
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OS SINOS DE NAGASAKI
— Que maravilha a casa dos Higashiyama, exclamou minha mulher, repondo seu
vestido caseiro. Suponho que isso é que se chama cultura ?. . .
— Com certeza. Deve ser.
— Não acha você que, mesmo à custa de um esforço permanente, nunca chegaríamos a
levar vida semelhante ?
— E ela não seria de utilidade alguma. Na nossa atual sociedade, os Higashiyama são o
que se chama puros "consumidores". . .
— Pode ser. . . Mas nós, então ?
— Nós somos o contrário. Somos os "produtores", no ponto de vista cultural.
— No fundo, é isso mesmo, concluiu ela, depois de um momento de reflexão.
Parecia de novo tranquila. Sua máquina de costura retomou o ritmo habitual, enquanto
eu recomecei as mensurações radiográficas, sobre minha mesa feita por um prisioneiro.
Nesse pequenino cómodo de seis esteiras (1), nós dois constituíamos uma fonte de
cultura: o médico-pesquisador, pobremente trajado, e a modista, manejando um corte de
chita.
Agora, mesmo esta humilde companheira me falta; o quarto foi reduzido a cinzas com a
escrivaninha e tudo o mais. Sou um doente, abrigado
(1) Os japoneses constroem e medem os cómodos de sua casa pelos múltiplos da
"esteira" de palha clássica, que mede, aproximadamente 1,80 X 0,90 m. Um quarto de
seis esteiras equivale a um quarto de 2,70 X 3,60 m.
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ANTES DO DESASTRE
sob cobertas recebidas de esmola, alojado numa cabana, no meio de ruínas.
Continuo, todavia, o trabalho de minha dissertação; prossigo nos meus estudos. . .
E mantenho a minha convicção de que, pobre e doente, permaneço um homem de
cultura.
Maru-boro (Panquecas).
Fui convidado para fazer uma conferência na Associação das Senhoras, num templo
budista, no extremo da cidade de Tabira.
Levaram-me à ante-sala e, depois das apresentações, as diretoras deixaram-me só, para
os últimos preparativos. Arriscando-me a abrir o shoji (cortina de papel, servindo de
porta, de janela, de parede...) vi-me em frente ao mar. . . Estava tão azul, que toda a
paisagem parecia tinta de anil. Da altura em que me achava, meu olhar, penetrando
através das águas, nelas via nadar, preguiçosas, milhares de lagostas magníficas. Seria
por causa do mar azul que as lagostas pareciam tão belas ? E por que seriam tão
vermelhas as libélulas, no ar do outono ? Como estas, meus pensamentos esvoaçavam
de um lado para outro, até que fui trazido à realidade por uma voz musical.
— Aceita uma xícara de chá, doutor ? Voltei-me e vi uma jovem sorridente, num
quimono de algodão brilhante.
— Pronto ! aqui está a rainha das fadas, disse eu maquinalmente.
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OS SINOS DE NAGASAKI
A "rainha das fadas" enrubesceu fortemente. . . Sob os traços carmesins a curva clara do
pescoço deu-me a impressão de algo irreal, de uma flor desabrochada do quimono azul
escuro.
A moça hesitou um instante, saudou-me profundamente e saiu. Uma xícara de gyokuro
(chá verde) e um prato cheio de maru-boro (panquecas) permaneciam os únicos
testemunhos de sua rápida passagem. De fato, somente uma fada poderia ter trazido
aquele chá e aquelas panquecas com o sabor "dos bons tempos". Comi um maru-boro,
apanhei um segundo, e estava pronto a devorar um terceiro. . . quando pensei nos meus
filhos, que me esperavam em Nagasaki. Nunca, na sua vida, tinham provado
semelhantes gulodices, feitas com verdadeiro açúcar, com verdadeiros ovos, e com
farinha de verdade !. . . Disfarçadamente abri minha pasta e, no saco de palha em que
trouxera minha merenda, empilhei as panquecas. Aliás, para parecer bem educado,
deixei duas no prato. . .
Terminada a conferência, três membros da diretoria acompanharam-me até à estação.
Através de suas conversas superficiais, percebi que estavam ansiosas por dizer alguma
coisa. A presidente falou, por fim:
— Ficamos muito contentes, Doutor, que o senhor tenha gostado dos nossos maru-
boro !
Estremeci; minha pasta de repente tornou-se pesadíssima ! Deveria ter explicado, mas
covardemente respondi:
— De fato, há muito tempo não como panquecas iguais. . . Regalei-me e até me excedi
sem perceber.
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ANTES DO DESASTRE
Na certa, as senhoras nunca tiveram um hóspede que esvaziasse o prato !. . .
— Tanto melhor, Doutor, mas às vezes ficamos pensando. . .
— Em que ?
— Como se arranjam em Nagasaki para alimentar as crianças ?
— Ah ! eu dou sempre um jeito para os meus.
— Suas crianças ? O senhor tem filhos, Doutor ? O espanto deixou-as perplexas,
enquanto respondi:
— Sim senhora, tenho dois filhos.
Não puderam esconder certo desapontamento. Sentia-me cada vez pior, com a minha
pasta pesando no braço. A tesoureira, por fim, propôs:
— Não deveríamos dar ao Dr. Nagaí alguns maru-boro para os seus filhos ? Vou
correndo buscá-los . . .
Como que livre de um grande peso, correu em direção à cidade, enquanto as outras
puseram-se a rir incontidamente. . . Diante de nós, o mar rolava as suas ondas. . . Não
sei por que, pensei de novo na "rainha das fadas".
— Diga-nos, Doutor, falou justamente a presidente, como que lendo o meu pensamento,
e rindo-se ainda: Que achou o senhor da rainha das fadas ?
— A senhora se refere à jovem que me serviu o chá ?
— Exatamente.
— Sem dúvida, era muito bonita; parecia ter surgido do oceano !... Mas provavelmente
mora nesta cidade ?
25
OS SINOS DE NAGASAK1
— Mora, e pertence a uma família tradicional. Para dizer a verdade, Doutor. . .
As duas senhoras riam de novo.
— Por que riem ?
— Pois bem; para dizer a verdade, nós a mandamos servi-lo com a esperança de que
pudesse vir a ser um dia uma boa esposa para o senhor.
— Para mim ?
— É verdade. Desculpe-nos, mas o senhor parece tão jovem que nunca pensamos que
fosse casado.
Pus-me a rir também: — As senhoras não repararam nos meus cabelos brancos ?
— De longe... na sala de conferências. . . era impossível ver. . .
Chegávamos à cidade. Numa casa comercial, a tesoureira recebia o embrulho das
panquecas. A presidente exclamou:
— Contamos tudo ao Doutor. . . Foram-se as nossas esperanças em trazê-lo para morar
na nossa cidade !. . .
Neste momento, eu deveria ter feito a minha "confissão". E estava resolvido a fazê-la,
quando a tesoureira, saindo da loja com o seu embrulho bem amarrado, disse num
ímpeto:
— Ah ! o senhor tem uma pasta, tanto melhor ! Dê-me aqui e não terá que levar dois
pacotes.
A ocasião de contar a verdade já se fora. Nada mais podia fazer senão amontoar mentira
sobre mentira. E foi o que fiz, desesperadamente.
— Ah ! muito obrigado. A pasta é tão pequena que o embrulho não caberia dentro. . .
26
\ ANTES DO DESASTRE
— Mas não fica bem, a uma pessoa como o senhor, carregar um embrulho assim.
Deixe-me fazer e darei um jeito. . .
— Em absoluto ! Hoje em dia não temos mais esses preconceitos. Levo como está. . .
está ótirno !. . .
Uma transpiração fria inundava-me o rosto: entrava em jogo, naquele momento, a honra
de ura médico. Se eu segurasse a pasta com a mão direita, a presidente tentaria tomá-la;
se passasse para a esquerda, era certo a vice-presidente apoderar-se dela. . . Diante de
mim, a tesoureira estava à espreita como um gato diante da sua presa. Esconder a pasta
atrás das costas, seria ridículo !. . .
Não sei mais qual o milagre que me tirou daquela situação !. . .
Recebendo hoje de presente umas panquecas, a lembrança daqueles dias felizes veio-me
à memória.
Atualmente estou pregado a um leito. Não terei mais ocasião de recomeçar estas
brincadeiras. . . e talvez as boas ações me sejam ainda mais difíceis.
27

II O CATACLISMO
Às horas que o precederam.
Como todos os dias, nasceu o sol por trás do monte Kompira; sobre Urakami apenas
despertada, derramava êle a sua luz de ouro. O calendário indicava: 9 de agosto de
1945. A cidade embebia-se de paz pela última vez. Sobre a colina, no quarteirão
residencial, as chaminés começavam a fumegar, enquanto as plantações de batata-doce,
dispersas nos espaços livres da vertente, brilhavam sob o colorido do orvalho. Em
baixo, ao longo do rio, na fábrica de munições, colunas de fumaça branca erguiam-se
das chaminés; e os telhados da rua principal confundiam-se, no horizonte róseo, com as
águas do braço de mar.
Na catedral majestosa, uma multidão de fiéis rezava pelos erros da humanidade, numa
atitude piedosa. Um novo dia começava. . .
Como de costume, os cursos da manhã, da Universidade de Medicina de Nagasaki,
começaram exatamente às 8 horas. O Exército Nacional Voluntário
29
OS SINOS DE NAGASAKI
determinara que os estudantes, embora cumprindo seus deveres militares, continuariam
as aulas: classes, laboratórios, hospitais organizaram-se num Corpo Médico auxiliar, e
cada um sabia o que teria de fazer em caso de emergência. Todos iguais, nos seus
uniformes de defesa antiaérea, a bolsa de primeiros socorros pendurada a tiracolo,
professores e estudantes já haviam iniciado seus trabalhos. Cuidadosamente exercitados,
porém, estavam prontos para, em qualquer momento, socorrer as vítimas de um reide
eventual.
A sua eficiência já fora posta em prova, pela primeira vez, na semana anterior: a própria
Escola sofrera um bombardeio. Resultado: três mortos, mais de doze feridos. . .
Todavia, graças à ativa e corajosa intervenção dos estudantes, nenhum doente foi
atingido. Depois deste batismo de fogo, o pessoal da casa estava para sempre
familiarizado com a guerra. . .
Repentinamente, soou a sirena em sinal de alarma: hoje, de novo, o Kyushu meridional
seria objetivo de um ataque de grande envergadura. Com extraordinária rapidez os
estudantes espalharam-se nos postos indicados. Os responsáveis percorriam os
corredores, davam ordens através dos alto-falantes. A sereia soou ainda, anunciando a
queda de bombas; no céu claro da manhã, formavam-se pequeninas nuvens que
brilhavam ao sol. Fixando bem o olhar, podia-se entrever os aviões inimigos.
Vagas de som, queixosas e enfeitiçadoras, sibilavam nos ouvidos.
30
\ OCATACLISMO
— Parem com isto ! Este barulho maldito ! Já sabemos que elas vêm !, dizia cada um
consigo mesmo. Mas as sirenas insistiam, ampliavam seus assobios. Era de
enlouquecer: aquela queixa prolongada arrasava toda a coragem. . .
As flores das murtas ostentavam-se vermelhas; vermelhas também as espirradeiras; e
vermelho-sangue, as canas-da-índia. À sombra dessas flores, os enfermeiros e os
estudantes do primeiro ano mantinham-se no seu posto, à entrada do hospital.
Comprimiam-se no abrigo, prontos a se atirarem quando necessário fosse.
— Como acabará esse diabo de guerra ? perguntou aquele que chegara da Escola
Secundária de Kagoshima. . . Vários rapazes e eu juntamo-nos aos Cadetes do ar,
acrescentou êle.
— Gostaria de saber onde estão os nossos aviões, disse outro, no dialeto arrastado de
Osaka.
— Para que querer combater ? Não temos a menor chance !.. .
Ninguém respondeu: todos, mais ou menos, pensavam como êle. Na verdade, o país
achava-se entre a vida e a morte. Começamos a guerra, certamente, para ganhá-la; o
governo não abrira o pano sobre esta tragédia numa perspectiva de fracasso. . . Mas
desde a perda de Saipan, os comunicados do G. Q. G. revelavam uma posição indecisa e
suspeita; os estudantes não tardaram em percebê-lo, e sen-tiam-se pouco à vontade. . .
— Hein, seu capitão ? continuou o rapaz de Osaka. Como é que o senhor acha que essa
guerra
31
0 5 SINOS DE NAGASAKI
vai acabar ? Erguendo fora do abrigo o rosto redondo, sombreado por duas lentes
grossas, fazia lembrar um polvo em miniatura.
O capitão Fujimoto mantinha-se imóvel, braços cruzados, olhos fixos no céu. De
estatura baixa, mas dotado de nervos de aço, parecia ao seu ordenança, impecavelmente
correto no seu uniforme, desde o capacete até as polainas pretas, cuidadosamente
calçadas.

Quantas vezes já não havia êle retirado dos escombros pessoas feridas e exangues,
ganhando assim a confiança e estima de seus companheiros ?. . . Quando o viam atirar-
se por dentro da fumaça e do fogo, todos o seguiam. Trazia sempre consigo o binóculo
do pai, e assim que surgiam aviões inimigos, êle os focalizava. Era, sem dúvida, o seu
único prazer na sombria realidade da guerra.
— Meu capitão, insistiu o rapaz de Osaka; que vai ser de nós ?
— Não se trata do que vai ser de nós, mas da maneira como nós reagiremos, respondeu
Fuj imoto, com energia. Não é a guerra que decidirá os nossos destinos; somos nós que
decidiremos os destinos da guerra. Trata-se de uma prova de fogo entre as juventudes
dos dois países.
— Sim. . . mas que diabo ! Do jeito que as coisas vão agora !. . . De mal a pior ! É só
olhar a diferença dos recursos materiais. . . Que podemos fazer ?. . . Bater com a cabeça
na parede ?
— Você talvez tenha razão. Mas escute uma coisa, disse Fuj imoto com voz séria e
decidida: as bombas vão cair — quem sabe ! — sobre nós; você
32
O CATACLISMO
continua a querer discutir ? Claro que não, não é verdade ? Então cumpra o seu dever,
estancando o sangue que correr. Eu, pelo menos, é isso que vou fazer.
O jovem de Osaka calou-se, mas não se convenceu. Precisamente naquele momento
aparecia o vice-capitão, carregando no ombro uma pesada trave de madeira. Era êle
formado pela Escola Secundária de Kokura, e chamava a atenção pelo silêncio com que
executava o seu dever. Naquela hora tinha apenas uma preocupação: reforçar as vigas
das trincheiras de observação, e, trabalhando sozinho, estava alagado de suor.
— Que faremos, vice-capitão, retomou o estudante de Osaka, se realmente o inimigo
começar a atirar ?
— Vivemos e morremos conforme o nosso destino, respondeu o interpelado, abrindo o
leque e refrescando o rosto em brasa. O principal é viver e morrer de tal modo que
ninguém venha a nos desprezar.
Caiu sobre eles um silêncio pesado... As murtas, as espirradeiras e as canas-da-índia
mantinham uma imobilidade de sangue coalhado. Através dos galhos fluía o canto
estridente das cigarras.
Naquele dia competia a mim comandar as equipes de defesa passiva do hospital. Entrei
pela porta da frente, percorri o grande corredor, passei por todos os postos e saí,
finalmente, pela porta dos fundos. Enfermeiras e estudantes, de uniforme, manti-nham-
se alertados, na entrada de cada sala, prontos para qualquer eventualidade. Os baldes
cheios
33
OS SINOS DE NAGASAKI
d'água; as mangueiras de incêndio desenroladas; picaretas, pás, enxadas, tudo
preparado. Tudo preparado para desafiar o que viesse. . . Calmamente, transportavam os
doentes para os abrigos. . .
À entrada da sala de radioscopia, encontrei Ueno, estudante do 3.° ano, rapaz cheio de
coragem e de audácia. Durante o último reide, quando a sala de ginecologia começou a
incendiar-se, permaneceu êle sozinho, no telhado da sala contígua, até que soasse o fim
do alarma. Enquanto carregávamos baldes d'água para o edifício em chamas, os aviões
não cessavam de baixar e atirar bombas. Apesar de tudo, Ueno permanecia no seu
posto, gritando com toda a força:
— Eles vêm e vão ! Já estão indo, meus amigos ! Todos para fora agora; a sala está
pegando fogo !
E um pouco mais tarde:
— Estão de volta ! Ei-los de novo ! As bombas estão caindo ! Depressa, para o abrigo !
— Às suas ordens, Ueno, disse-lhe eu desta vez, cumprimentando-o.
Perplexo, coçou a cabeça e disse sem outro preâmbulo:
— Recebi, outro dia, uma recomendação de minha mãe. Ela me disse nunca fazer cenas;
comportar-me de maneira a não chamar a atenção de ninguém. E acrescenta: "Você não
é mais uma criança, meu filho." E Ueno calou-se, sorrindo. . .
Serventes, com extintores na mão, mantinham-se na saída dos fundos. Nos limites do
poder humano,
34
O CATACLISMO
parecia que todas as precauções tinham sido tomadas. Satisfeito, dirigi-me para a ala
direita do hospital. Os escombros nas salas de cirurgia, ginecologia e otorrinologia,
bombardeadas no reide precedente, pareciam mais trágicos do que feridas humanas.
Também ali as espirradeiras estavam cobertas de flores vermelhas, e um ligeiro odor de
ácido carbónico flutuava pelo ar. Um súbito arrepio de temor percorreu-me a espinha. . .
Entretanto, o sinal de fim de alerta rasgou o ar de lado a lado, como que rompendo os
elos de dúvida e ansiedade que pareciam nos acorrentar. . .
Quando entrei na minha sala, os estudantes conversavam ruidosamente, retirando seus
capacetes. Miss Inoue, a enfermeira de olhos vivos, da Secção de Informações, dava
notícias, os olhos mais acesos ainda que de costume:
— Nenhum avião inimigo em Kyushu, concluiu ela, transmitindo um comunicado
fornecido pelo rádio, alguns minutos antes. O suor cobria suas pálpebras avermelhadas
sobre as quais pendiam três mechas de cabelo.
Os responsáveis do Q. G. local puseram-se a gritar no corredor:
— As aulas vão começar imediatamente !
Docilmente, os estudantes voltaram a suas classes; o estudo recomeçou. A Escola
readquiriu sua calma e a aparência de um palácio onde homens procuram a verdade.
No hospital, os doentes afluíam ao ambulatório; estudantes de branco, juntaram-se a
eles, preparando-se
35
OS SINOS DE NAGASAKI
para os diagnósticos preliminares. Da classe de medicina interna, situada em frente ao
meu posto, do outro lado do corredor, chegava-me aos ouvidos a voz agradável do Dr.
Tsuno-o, Diretor da Escola, dando o seu curso de clínica médica. . .
E foi então que veio a coisa. . .
A bomba.
Tsuchimoto está lidando com plantas no cume da colina de Kawabira. Deste local, êle
descortina, a três quilómetros para o sudeste, a região de Ura-kami em Nagasaki. O sol
do verão envolve a cidade e as colinas com tranquila indiferença.
De repente, Tsuchimoto percebe o ruído fraco mas inconfundível de um avião. Ergue-
se, foice na mão, e olha para cima. O céu está claro, excetuando uma nuvem larga com
forma de mão, justo sobre sua cabeça; o barulho parece vir de dentro desta nuvem. O
homem continua a observar, seguindo o som que se desloca, e por fim surge-lhe um B-
29 ! O minúsculo objeto de alumínio está na extremidade esquerda da nuvem, a uma
altura que êle calcula em oito mil metros. Fixa o olhar no pássaro de prata e diz consigo
mesmo: Jogaram alguma coisa. . . preta, comprida; é uma bomba. Uma bomba !
Tsuchimoto atira-se ao solo. Passam-se cinco segundos, dez, vinte, um minuto.
Permanece na mesma posição, contendo a respiração. . . Brutalmente
36
O CATACLISMO
através do firmamento, brilha uma luz. "Luz terrível, pensa êle, mas sem barulho; é
estranho !" Nervosamente, receoso, ergue a cabeça. "É mesmo uma bomba e atingiu
Urakami !" Do lugar onde se acha a catedral, começa a subir uma coluna de fumaça
branca que se alarga cada vez mais.
O que o aterroriza, porém, o que lhe congela o sangue, é o imenso sopro que se
desprende por baixo da nuvem branca. Com uma velocidade espantosa, passa sobre
colinas e campos que se despedaçam pela força do fenómeno. Antes que o espectador
tivesse tempo de pensar, o sopro já ceifou a floresta em frente, vai arrasar o local onde
Tsuchimoto se deitara.
Dir-se-ia gigantesco mas invisível compressor, destruindo tudo à sua frente. "Pronto !
vou ser esmagado", pensa Tsuchimoto, e juntando as mãos, cola o rosto contra o chão,
murmurando: "Meu Deus ! meu Deus !"
Um barulho tremendo fere seus ouvidos: sente-se soerguido e atirado de encontro a um
muro de pedra, a cinco metros de distância. . .
Quando, por fim, cria coragem para abrir os olhos e olhar em torno de si, vê as árvores
arrancadas, nem mais uma folha, nem mesmo a relva. Tudo foi levado. Permanece no ar
um odor de resina. . .
Furue voltava para casa, vindo de Michino-o para Urakami. Ladeando a fábrica de
munições, pareceu-lhe ouvir o barulho de uma hélice. Ergueu os olhos e viu no céu, à
altura do monte Inosa, na
37
OS SINOS DE NAGASAKI
direção do bairro Matsuyama, uma bola de fogo vivo. Uma bola incandescente não
bastante forte para cegar, mas brilhante como estrôncio numa lanterna. A bola vinha
descendo. Não podia calcular o que fosse: para se certificar, tapou uma das vistas e
fixou melhor com a outra. Veio então a explosão, fulgurante como uma explosão de
magnésio. Furue sentiu-se arrebatado no ar. . . Só muitas horas mais tarde voltou a si:
fora atirado a um arrozal, juntamente com a sua bicicleta. Um de seus olhos
irremediavelmente perdido...
Escola primária de Kagakure, a 7 quilómetros de Urakami. No jornal dos alertas aéreos,
Tagawa, um instrutor, registra os fatos do momento. Levanta-se depois e olha pela
janela. Diante dele, em baixo, entre a região plana do país e o céu azul, estende-se a
cidade de Nagasaki.
Inesperadamente, o céu se ilumina um instante, ofuscando-o com uma luz que
empalidece o próprio sol de verão.. .
— Que ideia de usarem faróis em pleno dia ! pensou o instrutor, debruçando-se para ver
melhor. Mas que espetáculo se lhe depara então !
— Corram aqui ! grita êle aos colegas que se achavam na mesma sala. Venham ver !
que é aquilo ?
Precipitam-se todos para a janela. Uma coluna de fumaça branca ergue-se de Urakami e
não cessa de avolumar-se. Que é aquilo ? que é aquilo ? exclamam os espectadores,
vendo a tocha transformar-se num cogumelo gigantesco, de mais de um quilómetro de
diâmetro...
33
O CATACLISMO
Sopra então tremendo vento: abala-se a sala, despedaçam-se as vidraças, cobrindo os
instrutores de estilhaços.
— É uma bomba, e a Escola foi atingida. Es-condam-se ! grita Tagawa, precipitando-se
para o abrigo cavado na colina, atrás da escola.
Reina ali absoluta calma. Todavia, enquanto se acomoda sobre a terra fresca, no escuro
subterrâneo, como poderia supor que, naquele mesmo instante, na sua casa de Urakami,
a esposa e os filhos exalam o último suspiro, chamando por êle !. . .
A pequena cidade de Oyama estende-se sobre a vertente do monte Hachiro, ao sul do
porto de Naga-saki, distante uns oito quilómetros de Urakami. Dali, para além da baía,
vê-se, no horizonte nebuloso, a bacia de Urakami.
Kato trabalhava no campo, com seu búfalo. Acabara de encontrar uns morangos
vermelhos, destacan-do-se na relva muito verde. Morangos agrestes. Posse a comê-los
tranquilamente. . . Neste momento viu um clarão. O búfalo também pressentiu algo e,
sob o choque virou a cabeça. Uma nuvem igual a uma grande bola de algodão desfiado
formou-se no céu, acima de Urakami. Começou a avolumar-se, avolumar-se cada vez
mais. Dir-se-ia uma lanterna envolta em lã. O exterior era branco, mas dentro brilhava
uma chama viva que, através da bola branca lançava relâmpagos de todas as cores do
arco-íris. Belos relâmpagos vermelhos, roxos, amarelos... A seguir, a nuvem tomou a
forma de uma brioche e a
39
OS SINOS DE NAGASAKI
parte superior começou a subir, a subir, a subir, asse-melhando-se a enorme cogumelo.
No mesmo instante, um negro remoinho de poeira e escombros ergueu-se do vale de
Urakami. A impressão é que tudo estava sendo aspirado pelo cogumelo que continuava
a subir.
De repente, a nuvem principiou a descer e des-viou-se para leste. O torvelinho girou
mais alto do que as colinas; depois, uma parte tornou a descer, enquanto outra se
desprendia do mesmo lado que a nuvem. . .
O dia estava lindo: colinas e mar banhados de sol; mas a região de Urakami, sob a
nuvem, aparecia negra e desoladora.
Veio o sopro gigantesco. As roupas de Kato foram agitadas; as folhas arrancadas das
árvores, mas o sopro já perdera muito de sua força. O búfalo não se perturbou e Kato
pensou: "Pronto ! mais uma bomba, e não muito longe daqui..."
Takami reconduzia seu búfalo até Koba, caminhando ao longo da estrada de Odorize, a
dois quilómetros de Urakami. De repente sente como que um bafo quente.
Aparentemente, não é calor forte, entretanto, ele e seu animal ficam queimados. E logo
a seguir, bolas de fogo caem sobre eles, assobiando. Uma delas atinge seu pé e explode,
deixando um rasto de fumaça branca e um cheiro de parafina derretida. Aqui e ali, uma
chuva de fogo ateia incêndios sem conta...
40
O CATACLISMO
As horas seguintes.
A distância que separava o centro da explosão dos prédios da Universidade, variava,
conforme o caso, de 300 a 700 metros; assim sendo, esses edifícios foram atingidos em
cheio pelo furacão. Num abrir e fechar de olhos, as salas de Medicina Fundamental,
construídas de madeira e que se encontravam mais próximas, foram derrubadas,
demolidas e incendiadas. Nenhum professor ou aluno sobreviveu para descrever a cena.
Nos postos de Clínica Médica, construídos de cimento e mais afastados, algumas
pessoas, entre as quais eu mesmo, tiveram a sorte de se salvar.
Passava um pouco de 11 horas. Estava eu no meu quarto, no 1.° andar do edifício
principal, em cima do ambulatório dos doentes externos. Separava as radiografias que
deveria exibir aos estudantes. Repentinamente houve um relâmpago, um choque. Um
breve instante julguei que uma bomba houvesse explodido na entrada. Quis me deitar no
chão. . . não consegui: naquela hora as janelas foram impelidas para dentro, vento
impetuoso suspendeu-me no ar, levando-me a certa distância, com os olhos abertos. Os
estilhaços de vidro assobiavam, cortando o espaço como folhas num louco rodopio.
"Estou perdido !" foi o que pensei.
Enorme punho invisível parecia tudo revolver dentro da sala. Enquanto eu continuava
estirado no chão, cama, cadeiras, armários, capacetes, sapatos, casacos, tudo foi
igualmente despedaçado, dispersado,
41
O CATACLISMO
levantado e atirado novamente sobre mim. Um vento poeirento e nauseabundo,
entrando-me pelas narinas, obrigou-me a tossir com força. . . Continuava de olhos
abertos e olhava pela janela.
Lá fora, as trevas invadiam o espaço, enquanto no interior, o vento desencadeava-se
como o rumor de ondas, o ronco da tempestade: arrastando, consigo, de um para outro
lado, pedaços de madeira, de roupa, folhas de zinco e toda sorte de objetos, numa dança
demoníaca.
Seguiu-se um silêncio estranho.
— Que coisa espantosa ! pensei comigo mesmo. Deve ser uma bomba diferente... de
mais de uma tonelada, com certeza. . . e caída perto da entrada. Aposto que há mais de
cem feridos. Onde vamos colocá-los ? Temos que cuidar deles. . . mas como ? Em todo
caso, a primeira coisa a fazer é pôr o pessoal trabalhando nas classes. O pior é que
talvez muitos deles não estejam em condição de andar. . . De qualquer jeito, eu é que
preciso sair daqui.
Tentei esticar os joelhos, retirar as pernas de sob os escombros. Mas de repente tudo
escureceu e não enxerguei mais. "E agora ? que devo fazer ?" pensei.
Ferido na região dos olhos, imaginei a princípio que a hemorragia procedesse do globo
ocular e me estivesse cegando; logo descobri, porém, que podia ainda mover com os
olhos. Constatando que não ficara cego, avaliei, pela primeira vez, o horror de minha
situação: "Todo o edifício deve ter sido destruído e eu estou enterrado vivo ! Engraçada
e ridícula maneira de morrer ! Devo fazer tudo o que
42
O CATACLISMO
puder antes de chegar a isso !" Comecei então uma luta titânica para sair daquele
amontoado de paus, vidros, cacos e objetos que me retinham prisioneiro. Mas estando
achatado como uma folha no seu impressor, não me foi possível fazer o menor
movimento. Nem o rosto podia virar, senão com imensa cautela, por causa da
quantidade de vidro quebrado em volta de mim. Além do mais, a escuridão era completa
e eu nada sabia quanto à natureza e ao equilíbrio das coisas que me esmagavam. Um
ligeiro movimento do ombro direito provocou o desmoronamento de uma porção de
objetos. Gritei por socorro: todavia minha voz se perdeu na escuridão.
A enfermeira Hashimoto encontrava-se na sala de raios X no momento da explosão.
Teve a sorte de estar de pé entre as estantes, e não foi ferida. Durante os minutos
horríveis em que os objetos inanimados pareciam dotados de vida, por um poder
misterioso, e rodopiavam com assustador barulho, ela permaneceu presa à parede.
Depois de alguns minutos, embora pairasse ainda no ar uma poeira bastante densa, teve
a impressão de que pelo menos os objetos mais pesados tivessem parado. Lembrou-se
de que era tempo de ir em socorro dos feridos, esgueirou-se entre as estantes
derrubadas, e quedou-se estupefata diante do que a rodeava. Tudo estava de pernas para
o ar. Trepando pelos escombros chegou à janela, e deparou então com uma cena que a
fêz estremecer. Que teria acontecido ? Não podia compreender. Há poucos minutos
atrás, uma cidade estendia-se ali em frente até as águas do estreito.
43
os
SINOS
DE NAGASAKI
Onde estavam Sakamato-cho e Swakawa-cho e Hama-guchi-cho ? Desaparecidas ? Mas
onde ?. . . E as fábricas que ainda há pouco ali se achavam, atirando penachos de
fumaça ? E o monte Inosa que esta manhã ostentava um intenso verde e parece agora
uma rocha árida e seca ? Todo verde, folhagem ou relva, tinha desaparecido. A terra
fora despojada.
Que fim levou aquela gente toda que estava perto da entrada ? Olhou naquela direção,
viu o pátio em frente ao hospital coberto de árvores arrancadas, e entre elas, incontável
número de cadáveres nus. Escondeu o rosto entre as mãos e exclamou: "É o inferno ! o
inferno !" Mas era também um mundo morto. Um mundo morto onde não sobrara
ninguém, nem que fosse para gemer. Enquanto mantinha as mãos no rosto, tudo
escureceu; reabriu os olhos e olhou em torno: impossível distinguir alguma coisa: estava
envolta em breu e nenhum som lhe chegava aos ouvidos.
Imaginou de repente que somente ela continuava viva neste mundo, e o pavor
imobilizou-a. De um minuto para outro a morte viria para ela também. . . Num relance
viu sua casa no campo, e sua mãe; esteve a ponto de desatar no pranto, pois, apesar de
tudo, tinha apenas 17 anos. . . Nesse momento, porém, ouviu uma voz. Alguém falava
perto, cada vez mais perto. . . embora o som parecesse chegar a ela somente através das
paredes.
Ainda um grito: era a voz de seu chefe de serviço. Êle vivia, então ! E se êle vivia, os
dois ao menos poderiam se ocupar dos cadáveres na frente do hospital. A coragem de
Miss Hashimoto renasceu.
44
O CATACLISMO
Guiada pela voz, tentou chegar a sala ao lado. Esbarrou no que lhe pareceu ser o
aparelho de raios X e seus pés tropeçaram nos fios elétricos. Impossível prosseguir,
pensou. Entretanto, conseguiu chegar a um canto, onde, habitualmente, havia uma pá
guardada. Mas essa fora retirada dali e, no lugar, encontrou um alto-falante. Lembrou-se
então de que, embaixo, na sala de radiografias, vira umas enxadas. Além do mais, ali
estariam a enfermeira-chefe e outros. Quanto maior número de pessoas chamasse para
ajudar, melhor seria. Animada por essa ideia, conseguiu sair da sala.
Os black-outs tinham-na habituado a percorrer os corredores na escuridão; mas apenas
dera alguns passos, esbarrou numa coisa de consistência mole. Abaixou-se, apalpou,
reconheceu um corpo humano e sentiu uma substância pegajosa que só poderia ser
sangue. Procurou o braço, tomou o pulso: imperceptível. Juntou então as mãos para uma
pequena oração e deu novos passos, até tropeçar de novo em outro corpo. Cabelos
grudados aderiram à sua mão. A escuridão continuava completa; não podia determinar
quantos mortos jaziam em torno dela. Enquanto apalpava o pulso, escancarava os olhos,
tentando enxergar. . .
De repente, lá fora, surgiu um clarão: fogo ! As chamas cresciam iluminando um
espetáculo verdadeiramente alucinante. Deixando cair o braço do morto, a enfermeira
manteve-se de pé, como um fantasma vivo. Por todos os lados do corredor, só havia
cadáveres. Envoltos numa luz escarlate, uns tinham o rosto voltado para o céu; outros
estavam caídos de
45
OS SINOS DE NAGASAKI
lado ou de bruços; alguns tombaram de joelhos ou pareciam ainda, com seus braços
rígidos, lutar em vão para se erguerem.
Impossível fazer qualquer coisa sozinha, pensou a jovem. Era preciso uma equipe de
socorro, um trabalho coordenado para chegar a um resultado. Antes de tudo, porém, o
que se impunha era reunir os vivos e os válidos, no local onde o chefe de serviço jazia
soterrado. Com essa ideia, Miss Hashimoto pôs-se a pular os corpos — desculpando-se
interiormente, perante cada um — e desceu, com dificuldade, as escadas em ruínas até a
sala das radiografias.
Miss Tsubakiyama, jovem aluna de enfermagem, Shiro Tomokiyo e o Dr. Choro Si
estavam preparando o aparelho de raios X. De repente, o barulho fraco mas agudo de
um avião feriu-lhes os ouvidos.
— Que será ? perguntou Miss Tsubakiyama.
— Um B-29, respondeu Shiro, continuando a dispor o aparelho.
— Jogaram uma bomba, disse Choro, que, durante o reide precedente fora ferido na
perna.
— É melhor fugir ?
— Parece que sim, e o mais depressa possível. Escondam-se !
Meteram-se os três debaixo de uma grande mesa. Houve o clarão e a seguir o estrondo.
— Mais uma ! exclamou Shiro, mas sua voz per-deu-se no ruído da tempestade infernal
que desencadeara na sala. Mantinham-se imóveis, esperando
46
O CATACLISMO
o fim do tumulto. Miss Tsubakiyama continha a respiração; por fim falou:
— Machucados ?
— Não, e você ?
— Também não sinto nada. . .
— Enfermeira-chefe ! gritaram juntos.
— Já vou ! respondeu da peça ao lado, a voz tão familiar. Esperem um pouco. Um
mundo de coisas caiu em cima de mim !
Houve então um estrondo terrível e uma escuridão completa os envolveu. A figura côr
de cinza de Miss Tsubakiyama, sentada em frente dos dois outros, desapareceu aos seus
olhos.
— Que vem a ser isto ? murmurou Choro e prosseguiu: deve ser um novo tipo de
bomba, como a que jogaram em Hiroshima. . . Ou será que o sol estourou ?
— Pode bem ser; não notam como começou a esfriar de repente ? observou Shiro num
tom pausado.
— Se o sol estourou, que nos vai suceder ? indagou a voz hesitante e cansada de Miss
Tsubakiyama.
— Será o fim do mundo. . .
Choro parecia resignado. Esperaram, mas as trevas permaneciam. Um minuto passou.
Num tique-taque fraco, o relógio de pulso da enfermeira marcava segundos eternos,
num ritmo angustiante, dentro da tensão da noite.
— Que vamos fazer para o almoço ? disse Shiro.
— Eu já comi ! respondeu Choro. Vocês ainda têm provisões ?
47
OS SINOS
DE NAGASAK1
Parecia desejar uma última refeição, ar. Les de morrer.
— Eu tenho. Vamos dividi-la, enquanto ainda vivemos...
Mas, como um trem que vai saindo do túnel, o barulho cessou gradativamente. A luz
voltou pouco a pouco. A dentadura branca de Choro apareceu de novo e seu nariz
comprido, e a pintinha no rosto de Miss Tsubakiyama.
— E o sol então ? Portou-se como devia, afinal, concluiu Shiro.
— Estou com fome, apesar de tudo, declarou Choro; traga seu lanche !
Saíram de sob a mesa, defendendo-se de uma camada de vidro quebrado, de
instrumentos partidos, de cadeiras em pedaços, de fios embaraçados.
— Onde poderá ter caído este diabo de bomba ? Para ter-nos sacudido assim, só tendo
caído aqui em cima. Mas não vejo rombo no teto.
— Você ouviu-a cair ?
— Não!
— Talvez seja uma espécie de mina aérea. .. Explosão no ar ?
— Seja como fôr, é medonha ! Conversavam ainda quando a enfermeira-chefe,
Miss Hisamatsu pulou dentro da sala como uma bola de borracha. Era, aliás, o seu
sistema ! Arrumando com as duas mãos o cabelo em desalinho, perguntou: — Estão
sãos e salvos ?
Naquele mesmo instante, uma enfermeira do 1.° ano, saindo não se sabe de onde, veio,
soluçando, agarrar-se à enfermeira-chefe.
48
O CATACLISMO
— Que bobinha ! disse esta. Você ainda está viva, isso não basta ?
Mas a jovem continuava em prantos. Provavelmente alguém fora atingido a seu lado.
— Vamos, ponha a sua touca, procure umas bandagens, prosseguiu a chefe com voz
doce mas firme...
Um cano tinha sido furado e um filete de água escorria. Miss Hisamatsu aproximou-se,
lavou as mãos, o rosto e gargarejou.
— Tenho a sensação de ter sido gaseada, disse ela, e recomeçou a gargarejar com mais
força. Parecia que arrancava os pulmões da gente !
— Tsubakiyama-san, venha lavar as mãos, ordenou ela. Se você tocar nas feridas com
essas mãos sujas, elas se infeccionam imediatamente. Você também, Tomokiyo-san;
lave as mãos e o rosto. E você, Si-san, prepare-se depressa. Há uma infinidade de
feridos.
Todos a atenderam e prepararam-se para enfrentar o trabalho. Mas eis que ouvem um
crepitar: Miss Tsubakiyama corre à janela e exclama:
— Tudo está pegando fogo !
Os recém-escapados, agarrando baldes, precipi-tam-se então para o local onde
irrompera o incêndio.
Uma pilha de madeira velha, proveniente de demolições anteriores, já formava braseiro
imenso no local da antiga sala de radiologia. Puseram-se eles a atirar água sobre as
chamas, concentrando seus esforços sobre um único lugar, conforme lhes haviam
determinado. Mas este foco não era o único. A cantina demolida estava envolta em
chamas; de al-
49
OS SINOS DE NAGASAKI
guns edifícios de madeira, as labaredas surgiam também. Somente os pavilhões de
cimento mantinham-se intactos.
Durante algum tempo continuaram seu trabalho, mas era bem pequena a superfície
atingida e o incêndio alastrava-se rapidamente. Verificaram logo que os baldes de água
de nada serviam. As chamas erguiam altas colunas de fumaça preta; pela aparência, o
incêndio se generalizava.
— Salvemos os instrumentos, propôs Shiro.
— Vamos ver os feridos, sugeriu Choro.
— São os hospitalizados que devemos mudar primeiro, resolveu Miss Tsubakiyama.
— Peçamos ordens, determinou a enfermeira-chefe, procurando evitar inútil dissipação
de esforços.
Foi precisamente nessa hora que Miss Hashimoto apareceu para avisar que o Dr. Nagaí,
chefe da Seção de Radiologia, fora enterrado vivo.
— Como ? exclamaram todos. O Dr. Nagaí soterrado ?
— Meu Deus ! murmurou Miss Tsubakiyama; êle é tão gordo ! como vamos tirá-lo de
lá ?
— Não se preocupe, havemos de conseguir, disse Choro encaminhando-se para a porta.
Seguindo Miss Hashimoto, as cinco pessoas, ajudando-se mutuamente, puseram-se a
escalar as vigas, os móveis, os escombros. Passaram pelas janelas, agarraram-se aos
canos e chegaram por fim à sala de raios X. Para alcançar a janela alta da farmácia,
tiveram de subir nos ombros uns dos outros.
50
O CATACLISMO
Na câmara escura, o Dr. Si revelava uma fotografia, quando um estudante que se achava
num posto de observação, atrás do prédio da escola, gritou inesperadamente, com toda a
energia:
— Um avião diferente está voando em cima de nós ! Escondam-se 1 escondam-se
depressa !
O médico interrompeu o trabalho para ouvir melhor: escutou o ruído agudo de uma
hélice, pensou que o aparelho estivesse descendo para aterrissar. Quis ainda molhar as
chapas e pô-las no fixador. Terminava de fazê-lo, quando uma força irresistível
arrastou-o e fê-lo cair inconsciente. Quando recobrou os sentidos, estava comprimido
entre duas pesadas vigas. Moveu-se com tanta habilidade que conseguiu desembaraçar
os membros inferiores, depois os braços, retirou os cacos acumulados sobre si e
libertou-se. Quis saber o que acontecera com suas fotografias, mas tendo perdido os
óculos, não enxergava coisa alguma. Lembrou-se então de Miss Moriuchi que
trabalhava com êle: chamou-a diversas vezes, sem obter resposta; olhou sob os
escombros, mas não havia nenhum vestígio dela. "Com certeza conseguiu fugir antes de
acontecer a coisa", pensou o médico. Pulando por sobre os entulhos saiu para o corredor
e ficou estarrecido: parecia-lhe estar num local onde jamais tivesse pisado: tudo
irreconhecível ! Diversas vezes, esfregando os olhos, olhou em volta de si, não
compreendendo o que sucedera.
As testemunhas da explosão atómica que depuseram até aqui, achavam-se todas no
interior de um edifício de cimento armado; tiveram, pois, a felicidade
51
OS SINOS DE NAGASAKI
de escapar dos efeitos diretos da radioativi-dade. . . Outros trabalhavam fora. Também
estes forneceram o seu testemunho,
O professor Seiki cavava um abrigo, com seus estudantes, atrás do Instituto de
Farmácia. Era êle quem revolvia, enquanto os rapazes transportavam a terra. Nenhum
deles poderia supor que, um instante mais tarde, aqueles que estavam fora do abrigo
morreriam, enquanto que viveriam os que se achavam dentro. Dorso nu, trabalhavam
com ardor. Estavam a quatrocentos metros do ponto do impacto. Inesperadamente,
viram um clarão que iluminou o abrigo até o fundo, seguindo-se um estrondo.
Tomita, que se achava na entrada, de lata na mão, esperando a sua carga, foi impelido
para o interior e atirado violentamente sobre as costas do Dr. Seiki que, curvado, cavava
a terra.
— Que é isso ? gritou êle, erguendo-se furioso.
Pedaços de pau, tiras de roupas, cacos de telha entraram pelo abrigo a dentro,
acompanhando Tomita: uma viga pesada atingiu em cheio o professor. Êle caiu
inanimado no buraco que escavava. . .
Quando voltou a si, após alguns instantes, estava estirado no chão; o abrigo tornara-se
um inferno de chamas e fumaça. Camadas de ar quente entravam assobiando. Levantou-
se cambaleando, e, num esforço desesperador, atravessou as chamas até a entrada. O
sentimento de alívio que experimentou então, durou somente uma fração de segundo.
Sem querer, deixou cair a pá que conservava na mão e, apavorado com o que vira, parou
petrificado.
52
O CATACLISMO
Os pavilhões do Instituto de Farmácia tinham desaparecido, assim como os de
Bioquímica. Os muros não existiam mais, nem as casas em volta. Até quanto podia ver,
estendia-se um mar de chamas.
Mesmo este físico, especialista em energia nuclear, não presumiu tratar-se de uma
bomba atómica: ignorava que a ciência americana tivesse progredido a este ponto.
E os estudantes ? perguntou a si mesmo. Inclinou-se para procurá-los e um arrepio de
terror percorreu-o todo: seria possível que todas aquelas formas inanimadas, estendidas
pelo chão, fossem os seus alunos ? Pensou que estivesse ainda inconsciente. "É um
pesadelo ! é um pesadelo I" repetia êle. "Mesmo em tempo de guerra, coisas assim
nunca sucederam !" Apalpou-se, pegou no pulso: vivia ! então era verdade ! Sacudiu um
corpo a seu lado: "Vamos, levante-se !" Silêncio absoluto. Ergueu então o corpo pelos
dois braços e tentou carregá-lo. Sob seus dedos, a pele saiu em pedaços, como fruta que
se descasca. Õkamoto estava morto. Ouvindo um gemido, o professor voltou-se e correu
para outra vítima. "Murayama, Murayama !" gritou êle, enquanto colocava sobre os
joelhos o rapaz atingido. "Professor. . . ah ! professor !" murmurou o infeliz e a cabeça
tombou para o lado. Com um suspiro de dor, o professor estendeu o corpo, fêz uma
oração e passou para o seguinte: Araki. O rosto todo inchado, a pele saindo em tiras.
Tentou abrir os olhos que pareciam dois fios de linha branca entre as pálpebras
intumescidas, e disse calmamente: "Eles me venceram, doutor". E acrescentou: "Creio
que é o fim.
53
OS SINOS DE NAGASAKI
O senhor fêz tudo por mim; muito obrigado". E calou-se para sempre.
Das orelhas e narinas de alguns cadáveres, o sangue filtrava. Evidentemente tiveram o
cérebro esmagado. Noutros, com o sangue, uma espuma saía também da boca. Pelo
menos, a agonia desses fora rápida: tinham sido atirados ao solo e calcados por uma
força terrível.
Tomita sobrevivera e corria de um para outro, oferecendo água àqueles que ainda
respiravam, confortando com palavras de carinho. Nenhum sobrevivente podia mover-
se por si mesmo. Cada vez que ouviam um gemido, Tomita ou o professor
precipitavam-se em direção ao corpo tombado, mas quase sempre para constatar que
nesse ínterim o homem calara-se, morrendo com expressão convulsa. Uns vinte
estudantes morreram assim, ao lado um do outro...
Aqueles dois homens não podiam, sozinhos, fazer coisa útil; precisavam de ajuda. O
professor pôs-se a gritar, com toda a força, em todas as direções: Socorro ! há alguém
aqui ? Parava, ouvidos atentos. Mas o vento só lhe trouxe outros gritos de desespero,
que saíam de casas demolidas, angustiados, terríveis: Salvem-me ! socorro ! estou
sufocando ! acudam-me, pelo amor de Deus! estou sufocando ! água ! água ! mamãe !
O professor sentiu-se vacilar e perdeu novamente os sentidos. Quando, logo depois,
voltou a si, uma nuvem preta cobria o céu, escondendo o sol; um inesperado crepúsculo
envolvia a terra. Fazia frio.
54
O CATACLISMO
Já ouvia menos gritos. Sem dúvida, muitas vítimas haviam sucumbido; sem dúvida, a
criança que chorava fora queimada viva, longe de sua mãe. . .
Estudantes do 1.° ano tomavam suas notas, tranquilamente. As insólitas palavras latinas
que se sucediam nos seus cadernos, davam-lhes a sensação de já serem médicos. E
escrever em letras ocidentais era motivo de orgulho para eles !
Explodiu então a bomba e foi como que o fim do mundo. A voz do professor não se
extinguira ainda nos seus ouvidos; não tiveram tempo de olhar para cima ou para o lado.
O teto soterrou-os na própria posição em que estavam.
Fujimoto, chefe da classe, viu-se preso pelos quadris. A escuridão era total e a poeira
que empestava o ar sufocava-o. Conseguiu, finalmente, mover-se no espaço vazio entre
os bancos. Gemiam feridos perto dele, outros gritavam alto. Mas, contando as vozes,
verificou que muito poucos eram os sobreviventes. Bem depressa, aliás, o cheiro de
queimado filtrou pelas frestas, enquanto uma fumaça quente e picante invadia a sala.
Evidentemente, o incêndio irrompia. Fujimoto compreendeu, com horror, que bem
pouco tempo lhe sobrava para agir. Tentou remover o que o prendia; mas as traves, as
tábuas e telhas amontoadas eram pesadas demais para êle afastar. Avolumava-se o
crepitar da madeira queimando. Êle empurrava, afastava, batia. . . esforço vão. . . Com
toda a sua força escorou a cabeça, ombros e pescoço contra o montículo que o cobria. . .
mas nada se
55
OS SINOS DE NAGASAKI
mexeu. Calculando, desesperadamente, o peso que o recobria, tentou ainda.
O ar tornava-se cada vez mais quente; o reflexo das chamas dançantes era mais e mais
brilhante. . . Alguém pôs-se a cantarolar uma trágica canção de soldado: "Irei dormir no
fundo das águas. . . ou na encosta das colinas". Fujimoto sentiu fugir toda sua coragem e
parou para escutar o canto do amigo. "Não lastimarei..." A canção foi interrompida, mas
o cantor acrescentou ainda: "Até logo, camaradas. Meus pés estão começando a
queimar".
Dentro de alguns minutos, seria a sua vez. Fuji-moto juntou as mãos para rezar. Surgiu-
lhe no pensamento a figura do pai: fique calmo, parecia dizer-lhe. Depois a sua mãe, seu
irmão mais moço, Masao. Masao provavelmente tomaria o lugar dele como médico. . .
Em seguida pensou nos seus colegas de radiologia, um por um. Até o dia em que entrara
para a Universidade como estudante, aplicara-se como técnico nessa secção. "Oue terá
sucedido — pensou ele — a meu amigo Tako-chan que passou comigo o seu exame de
admissão e formou-se comigo?. . ." As poucas palavras que, cada manhã e cada noite,
trocava com seus colegas, voltavam-lhe agora à memória. "Vamos com calma. Para que
se alterar quando se perdeu a liberdade, quando se é prisioneiro, em ponto de se torrar
sem compaixão; de tornar-se um monte de cinza ?" O corpo estava sem defesa, sem
atividade, mas bem depressa a alma se erguerá, cantando, através do universo imenso.
Questão de poucos minutos. O cheiro de carne queimada
56
O CATACLISMO
chegou até êle, cheiro adocicado dos joveris corpos aniquilados. . .
"Isso é o que se pode chamar de uma situação crítica, pensou fleumàticamente. É isso
mesmo. Aliás, de que serve esse corpo que não pode senão assimilar e rejeitar..."
Lembrou-se do que seu professor, o Dr. Si, lhe dissera um dia: "Quando você não puder
resolver um problema, pense nele em termos contrários." Essa sugestão iluminou-o. Em
vez de tentar se erguer, Fujimoto passou a mão pelo chão e encontrou uma fenda entre
as tábuas. Toda a força concentrada nos dedos, puxou freneticamente. A tábua cedeu
com um estalo. O choque terrível da explosão arrancara os pregos do assoalho. . . Fuj
imoto passou a mão por baixo, e a tábua se desprendeu com um som delicioso. O ar
chegou até êle. Uma segunda, depois uma terceira tábua retiradas facilmente e de
repente, Fuj imoto caiu sobre o chão fresco do andar térreo.
A Doutora Yamada e Miss Tsujita abriram a janela dos fundos, na sala de bacteriologia,
para se refrescar da longa caminhada que fizeram. Tinham ido à estação buscar suas
passagens para Tóquio, pois deviam fazer lá, um curso sobre a manipulação de soros.
Nagasaki não tardaria em ser sitiada — pensavam — e era preciso, rapidamente,
preparar-se para a eventualidade. Como a maioria dos homens partira para o fronte,
essas duas jovens médicas, dedicadas à ciência, tomaram a si a séria responsabilidade.
57
OS SINOS DE NAGASAKI
O mato crescia nas quadras de ténis: esportes e jogos eram coisas do passado,
esquecidas desde o dia em que a guerra dominou. Só ela contava agora. . . Por trás das
quadras cresciam pinheiros, canforeiras e através dos seus galhos podia-se ver o terreno
do estádio, transformado em cultura de batata-doce. Mais atrás e mais alto, a certa
distância, erguia-se, majestosa, a catedral. Duas moças, de calças largas e compridas,
que atravessavam o pátio, acenaram as mãos: eram Hama-san e Oyanagi-san, ambas
enfermeiras da Seção de Radiologia onde Tsujita trabalhara até então. . . No estádio,
Yamashita-san, Yoshida-san e Inoue-san, enfermeiras do mesmo ramo, de cócoras,
arrancavam as ervas daninhas que prejudicavam a plantação. Sobre as colinas, em redor
de Urakami, nos campos em primeiro plano, os fazendeiros faziam o mesmo,
aproveitando aquele fim de alerta. Uma fila de pessoas caminhava em direção da
catedral. Ao longo da estrada brilhava o colorido das sombrinhas. . .
— Bela região a de Nagasaki ! Não me canso de olhá-la. . .
— É verdade; mas. . . será que a veremos ainda assim, quando voltarmos daqui a dois
meses ?
— Tenho a impressão de que a cidade será destruída.
— E eu creio que será a única poupada. . .
A explosão cortou esse diálogo... A Doutora Yamada atirou-se ao chão e escapou. Miss
Tsujita, a seu lado, morreu asfixiada. . .
Verdadeiro pesadelo, repentino, irreal. . . mas sobretudo, verdadeiro e pavoroso. A sala
de bacteriologia
58
O CATACLISMO
já estava em chamas. Somente a doutora sobreviveu. Todos devem ter morrido
instantaneamente.
Quando Yamada conseguiu sair, a escuridão era absoluta e soprava o vento demolidor.
Diante do vasto espaço vazio à sua frente, parou, imobilizada de espanto. Verificou que
as árvores tinham sido arrancadas, que os edifícios estavam desmoronados. Toda a parte
superior da catedral, inclusive as torres de 50 metros, foram levadas pelo tufão. O que
restava do edifício parecia uma antiga ruína. Corpos pendiam, cabeças para baixo,
braços e pernas arrancadas; o mesmo se via sobre os muros de pedra, nas estradas, e em
número incontável, no campo.
A médica lembrou-se das enfermeiras que estavam no estádio. Olhou naquela direção:
seus cadáveres jaziam imóveis, mutilados pela explosão. Quem estivesse fora deveria
ter morrido instantaneamente. Ela não ficara seriamente ferida; todavia, sentia como que
enorme peso sobre os ombros. Depois de alguns passos, os joelhos dobraram e caiu
sobre o cimento. A seu lado, viu atirado um velho compêndio alemão de bacteriologia.
"Não servirá para mais nada", pensou ela, e colocando-o sob a cabeça, transformou-o
em travesseiro. E ali, perdida num doloroso sonho, esperou socorro.
59

III SOCORROS
Assim acabou a Universidade.
No dia 9 de agosto de 1945, às 11 horas e 2 minutos, uma bomba atómica explodia a
550 metros de altitude, acima de Matsuyama-cho, centro do bairro de Urakami, em
Nagasaki. Um tufão, com velocidade de 2 000 m por segundo, derrubou, pulverizou,
dispersou tudo quanto encontrou; em seguida, o vácuo formado no centro da explosão
aspirou os escombros para cima, a uma grande altura, e por fim deixou cair essa massa
gigantesca.
Além disso, o calor de 9 000 graus gerado pelo fenómeno queimou tudo que existia. E
os fragmentos da bomba, caindo em chuva de metal incandescente, atearam incêndios
por todos os lados.
Uma nuvem de resíduos, provocada pelo cataclismo, encobriu o sol, produzindo uma
escuridão completa, como se fosse um eclipse total. Após três minutos,
aproximadamente, a nuvem pôs-se a baixar gradativamente, enquanto as partículas se
dispersavam e uma luz ténue iluminava de novo o campo da carnificina.
61
OS SINOS DE NAGASAKI
Houve uns 30.000 mortos, mais de 100.000 feridos. Dezenas de milhares de outras
pessoas foram vitimadas pela chamada doença atómica, causada pela radioatividade.
Desde o princípio tudo se fêz para prestar o maior socorro às vítimas.
Eu mesmo, soterrado, como já contei, sob um monte de ruínas, e tendo gritado para que
me acudissem, acabei por libertar-me sozinho. No momento em que entrava na câmara
fotográfica, o Dr. Si apareceu. Atrás dele, a equipe de socorro, conduzida por Miss
Hashimoto. A enfermeira-chefe irrompeu na sala, naquele seu jeito impetuoso,
abraçando-me efusivamente, expressando vivos parabéns e congratulações. Eu olhava
para aqueles recém-escapados, um após outro, e pensava: "Vidas preciosas !. . . essas
foram poupadas !. . ." Uma profunda gratidão me invadia. . . "Mas deviam ser mais
numerosas. . . Onde estão as outras ? Yamashita ? Inoue ? Umezu ?"
— Procurem os outros. Removam-nos, ordenei. E voltem aqui dentro de 5 minutos.
Todos partiram em direções diferentes. O Dr. Si e Shiro se esgueiraram entre os
escombros da câmara escura, tirando aqui uma tábua, ali pulando uma viga e gritando
nomes diferentes. Nenhuma resposta se ouvia.
Choro trouxe Umezu, bastante ferido; retirou-o do meio dos aparelhos, na sala de
radioscopia. Coberto de sangue, sem forças e como que paralisado, Umezu arrastava-se
pelo corredor, gemendo: Meus olhos ! perdi meus olhos !
62
SOCORROS
— Vamos ! respondeu Choro, examinando-lhe os ferimentos. Deixe de bobagem. Seus
olhos aí estão.
Umezu sofrera um ferimento profundo na arcada superciliária, sem mencionar os
inúmeros cortes e contusões no rosto e no corpo.
— Não se preocupe, tudo acabará bem, animava-o a enfermeira-chefe, enquanto lavava
a ferida e colocava a bandagem.
Tomei o pulso de Umezu e comecei a dar ordens de socorro e de tratamento imediatos.
Sem saber como, vi-me subitamente envolvido por uma multidão de criaturas
fantasmagóricas e seminuas:
— Salve-me, doutor !. . . Um remédio, por favor ! Que frio ! Dêem-me roupas, pelo
amor de Deus.
Todos me chamavam ao mesmo tempo: eram doentes do hospital que tinham
sobrevivido ou melhor, não tinham ainda morrido. . . Como a explosão se dera na hora
de maior movimento, na que funcionava o ambulatório para doentes externos, os
corredores, salas de espera, laboratórios eram um amontoado de corpos, corpos nus de
feridas expostas, corpos nus com a pele em tiras, corpos nus que pareciam de argila pela
cinza que aderira a eles. Espetáculo tão tremendo, que não se podia imaginar que se
tratasse de seres humanos, nem que semelhante quadro pudesse jamais existir. . . Dessa
alucinante massa de carne, arrastavam-se lentamente aqueles em que existia ainda um
sopro de vida; cercavam-me, agarravam-me as pernas: "Salve-me, doutor !" gemiam
eles. Alguns, impossibilitados de falar, exibiam
63
OS SINOS DE NAGASAKI
apenas as suas chagas. Um pulso de onde jorrava sangue, ergueu-se diante de mim.
Uma menina corria de um lado para outro, gritando: mamãe ! mamãe ! Mães,
contorcidas de dor, chamavam os filhos pelos nomes. Um adolescente alucinado, rosto
em sangue, cambaleava, perguntando: "A saída? onde fica a saída ?" Estudantes
transitavam num movimento louco, gritando à procura de macas. Confusão
desesperadora.
Começamos os primeiros socorros, mas bem depressa acabaram-se as bandagens, e
tivemos de improvisá-las, servindo-nos das tiras de nossas camisas. Dez, vinte, trinta
pacientes: o número crescia. Não havíamos terminado um curativo e outra vítima já nos
implorava: "Salve-me, doutor !" Os meus próprios ferimentos dificultavam
enormemente o trabalho. Tinha de comprimir com a mão uma pequenina artéria, que
recomeçava a sangrar cada vez que a largava. Todas as vezes que um curativo exigia as
minhas duas mãos, o sangue imediatamente espirrava até a parede. Era, entretanto, uma
artéria pequena e eu calculava poder me sustentar assim umas três horas. Tomando meu
pulso de vez em quando, continuei a cuidar das vítimas.
Hashimoto e Tsubakiyama, que tinham saído à procura de suas companheiras, voltaram
sem encontrar nenhuma e disseram: "Pensávamos que estivessem no campo de batatas.
Tentamos ir até lá, mas o caminho está bloqueado pelas árvores caídas, o incêndio e os
cadáveres. Não resta mais nenhum dos edifícios de Medicina fundamental, tudo é um
mar de fogo. O Centro do hospital está em chamas e é
64
SOCORROS
impossível atingir a entrada por trás. Incontáveis são os feridos".
Yamashita, Inoue, Hama, Onyanagi, Yoshida. . . Meu espírito evocava as suas
fisionomias: estariam mortas ? ou morrendo ? ou contorcendo-se no chão como aqueles
coitados a meus pés ? Quem sabe conseguiram se salvar e estão abrigadas nalgum
lugar ? Não é possível. Se vivessem, teriam certamente vindo para perto de nós. . .
Sentei-me no chão para refletir, enquanto o Dr. Si e uma enfermeira tratavam, enfim, de
minha ferida: "Explosão incomum, situação sem precedentes, acontecimento histórico.
Temos de enfrentá-la com sangue frio e determinação."
Sem resultado, o Dr. Si enrolava as bandagens em volta de minha cabeça: o pano muito
fino ficou logo embebido e um filete vermelho recomeçou a escorrer pelo meu rosto.
Dei ordens para que se dispersassem, procurando pinças e instrumentos indispensáveis.
De novo sozinho, pus-me a pensar: "A região tornou-se um verdadeiro campo de
batalha; nosso dever é permanecer ali, aconteça o que acontecer. Provavelmente o
inimigo vai empregar de novo este tipo de bomba, dentro de uma semana para poder
desembarcar. Não perder a cabeça. Tomar as coisas como elas são, sistematicamente.
Reunir, pois, os membros do grupo e dividi-los em equipes; garantir as reservas
medicinais e alimentares; organizar acampamentos. Poder-se-ia estabelecer depois, um
sistema de coordenações e ligações, e escolher um local apropriado para um hospital de
emergência. Sem dúvida alguma, Nagasaki será bombardeada pelo lado do
65
OS SINOS DE NAGASAKI
mar; os pacientes têm que ser removidos para o interior. . .
Lá fora, a floresta já se transformara num mar de chamas, e o edifício onde estávamos
não tardaria a pegar fogo, julgando-se pela força crescente do crepitar.
Os que tinham saído à procura de instrumentos, voltaram uns após outros com as
mesmas palavras: tudo quebrado, as válvulas partidas, fios arrebentados, o
transformador deslocado e irremovível. Os espécimens espalhados por todo o
laboratório.
Olhavam-me, atentamente, esperando de mim uma palavra. Professores, enfermeiras,
estudantes de outras seções, cobertos de sangue, e amparando-se dois e três pelas mãos,
passavam rapidamente perto de nós, sem pronunciar uma palavra.
Os estalos do incêndio cresciam; as cinzas incandescentes começaram a chover pela
janela. Que fazer ? Limitava-me a olhar para o grupo e aconselhar calma, mas exigindo
que fizessem alguma coisa. Ficar ali seria morrer queimado. Nesse momento, não pude
impedir que um sorriso nervoso passasse pelos meus lábios. Reação tão inesperada que
todos se puseram a rir. Alguns segundos de incontida hilaridade. Disse-lhes depois:
— Vejam um pouco como vocês estão ! Nesse estado não poderão trabalhar. Preparem-
se e encontrar-nos-emos perto da porta principal. E não se esqueçam da merenda.
Ninguém se defende com o estômago vazio !
Minhas ordens foram acolhidas com entusiasmo. "Sim, senhor !" "É isso mesmo !" E
enquanto se
66
SOCORROS
encaminhavam para os seus quartos, compreendi que tinham reagido, voltando a ser o
que eram.
O Dr. Si encontrou meus sapatos; a enfermeira-chefe trouxe meu casaco e chapéu.
Dirigi-me para o corredor de entrada. Em frente da sala de ginecologia, uma enfermeira,
olhos esbugalhados, girava sem parar. Segurei-a energicamente pelo ombro, mas nem o
notou: continuou a girar. O choque enlou-quecera-a momentaneamente.
O pátio diante da entrada estava coberto de mortos e feridos. Além disso, cada vez mais
numerosas eram as pessoas que vinham da cidade e subiam a colina, procurando o posto
de socorro ou o hospital. Pessoas carregando feridos e agonizantes sobre os ombros,
saíam cambaleando dos edifícios poupados.
Novamente vi-me ante o mesmo doloroso dilema: Que fazer, e como ? Toda vida é
preciosa. Para cada um desses coitados, seu próprio corpo era mais importante do que
tudo: seu ferimento, grande ou pequeno, absorvia toda a sua atenção; queria ser tratado
por um bom médico. Meu dever era satisfazê-los.
Todavia, se as vítimas eram incontáveis, os recursos médicos revelavam-se nulos; as
chamas caminhavam rapidamente e nós éramos pouquíssimos. Cuidei de três ou quatro
feridos mais próximos, mas compreendi nitidamente que, a menos que olhasse a
situação em conjunto e a encarasse de frente, corria o risco de ser tragado pelas chamas
com aqueles dos quais me ocupava.
Vinte minutos tinham se passado depois da explosão. Toda a região de Urakami ardia
em grandes
67
OS SINOS DE NAGASAK1
labaredas. O próprio centro do hospital já pegara fogo. Somente a ala direita, ao longo
da colina, permanecia intacta. Mas não tínhamos mais material ou ajudantes; era deixar
propagar-se o incêndio e contemplar o espetáculo medonho: corpos nus cambaleando,
tropeçando, continuavam a escalar a colina para fugir da fornalha. Duas crianças
passaram, arrastando o pai morto. Uma mulher jovem corria, apertando contra o peito o
filho decapitado. Um casal de velhos, mãos dadas, subiam juntos, lentamente. Outra
mulher, com as vestes repentinamente ateadas, rolou pela colina abaixo como uma bola
de fogo. Um homem enlouquecera e dançava em cima de um telhado envolto em
chamas. Alguns fugitivos voltavam-se a cada passo, enquanto outros caminhavam firme
para frente, apavorados demais para voltar. Um rapaz que tomara a dianteira, gritava à
irmã que andasse mais depressa; o menorzinho, atrasado no seu caminhar, chorava para
que o esperassem. Por de trás desta gente, as labaredas avolumadas aproximavam-se
cada vez mais.
Felizes ainda eram esses dez por cento que escaparam do inferno; os outros, presos e
soterrados sob escombros, morriam queimados vivos. As rajadas de vento faziam roncar
o incêndio, e traziam gritos de socorro e de agonia. Nunca em minha vida senti-me tão
impotente, tão insignificante, olhando de braços cruzados o terrível panorama de medo,
de agonia, de morte e destruição. Nada podia fazer: absolutamente nada ! "Professor, o
senhor parece o deus do fogo !" disse uma voz perto de mim. Eram Nagai e Tsutsumi,
estudantes do 3.° ano de Medicina.
68

SOCORROS
Minha turma de radiologia reunira-se também. No fim, apareceu Moriuchi, que pudera
se refugiar num abrigo, e logo após, Miss Kozasa, técnica de raios X em ginecologia.
Seus cabelos estavam ruivos e cheirava a carne queimada; as roupas em tiras desfiadas.
Contaram-nos que ela salvou duas enfermeiras do fogo, mas ela mesma não sabia como
conseguira atravessar as chamas e chegar até nós. Estavam apenas Miss Sakita e Miss
Kaneka, técnicas de raios X das seções de dermatologia e de cirurgia.
— Os instrumentos podem esperar, disse eu. Ajudemos primeiro as vítimas !
Para salvar o maior número de doentes, grupos de socorro penetravam de dois em dois
no hospital que ardia. Kozasa e Moriuchi mergulharam de novo nas chamas, à procura
de Sakita e Kaneka. Choro subiu a colina, atrás do edifício, com Umezu nas costas:
parecia um destes cromos da guerra russo-japonêsa.
Do prédio em que estávamos, fugiam aqueles que já conseguiam locomover-se.
Chamei-os, mas não responderam. Olhos esbugalhados, não me deram a menor atenção
e corriam desordenadamente. Quem poderia apanhá-los e tratar deles, se se afastavam
do hospital ? Gritei, pedindo que voltassem, que se acalmassem. Mas debalde.
Caminhando até a sala de operações, encontrei-a inundada: rutura de um cano.
Chafurdei-me até a ante-sala onde estavam as reservas medicinais. Diante do que vi,
toda a energia se foi: padiolas e macas estavam inutilizadas, os instrumentos espalhados.
Garrafas, tubos, cápsulas, recipientes de vidro transformados

69
OS SINOS DE NAGASAKI
num monte de cacos e seu conteúdo misturado na água que corria.
Tremenda ironia ! Não fora para utilizá-los, num dia como hoje, que fizéramos essas
reservas ?
Tudo estragado; ruína completa. Tínhamos que enfrentar dezenas de milhares de
mutilados e feridos, praticando, unicamente com as nossas mãos, a mais primitiva das
medicinas. Teríamos que salvar vidas, empregando tão-sòmente a nossa inteligência,
nossa caridade e nossos braços.
Com o coração pesado subi as escadas e em pé, diante da entrada, examinei a situação
uma vez mais. Embora desencorajado, tinha comigo, afinal das contas, uma duas
dezenas de voluntários: médicos, enfermeiras, estudantes que ajudariam os meus
esforços. Eles passavam, dois a dois, de sala em sala, carregando os feridos.
Esses eram colocados no depósito de carvão, perto da entrada. Era o único lugar onde as
lingiietas de fogo não caíam. Mantive-me no meio deles sem nada fazer, enquanto se
alastrava o incêndio: uma fumaça negra subia para o céu, e as nuvens ameaçadoras
estavam vermelhas pelo reflexo do fogo. . .
— Salvamos o Diretor, exclamou alguém ali perto. Voltei-me e vi Tomokiyo de pé, na
entrada. Nas costas, carregava uma massa escarlate: o Dr. Tsuno-o. Seus cabelos, rosto,
avental branco, calças, meias, tudo coberto de sangue. Perdera os óculos. . .
— Ah ! Nagaí, disse-me êle; que coisa tremenda ! você deve ter passado momentos bem
duros !
Tomei-lhe o pulso: regular e forte. E como a colina de trás era ainda um lugar seguro,
disse a
70
SOCORROS
Tomokiyo que levasse para lá o Diretor e lhe proporcionasse a calma necessária, num
abrigo. O Dr. Si acompanhou-o com uma seringa nas mãos.
O Dr. Tsuno-o estava examinando os doentes externos quando passou o tufão. O Dr.
Ko, embora gravemente ferido também, conseguiu transportá-lo até o corredor e em
seguida caiu exangue. Foi ali que Tomokiyo os encontrou. ..
Pouco depois Miss Maeda, enfermeira-chefe de Medicina Interna, saía correndo do
prédio, perguntando pelo Diretor. Informei-a de que êle estava atrás da colina, a 300
metros de distância e que o Dr. Si acompanhara-o.
A enfermeira estava côr de cinza; o sangue corria abundantemente das suas pálpebras.
Assim que ouviu a resposta, dirigiu-se para a colina, com uma agilidade espantosa para
uma pessoa tão corpulenta. . .
Miss Hashimoto tinha 17 anos e Miss Tsuba-kiyama, 16. Numa e noutra, a proporção
entre a altura e a largura do corpo saía do normal. Numa pilhéria cheia de afeição, os
colegas apelidaram-nas de "Pipazinha" e "Favinha".
Quando entraram juntas na sala de espera, encontraram sete ou oito pessoas, pacientes e
estudantes gemendo no chão. Levaram as vítimas até o depósito de carvão e foram
depois para a sala das consultas. A "Pipazinha" ali encontrou uma enfermeira que ela só
conhecia de vista e de nome. Ao transportá-la, sentiu uma alegria como jamais
experimentara. A vítima, Hamasaki-san, gemia de tempos em tempos, alheia ao que se
passava. Se mais tarde,
71
OS SINOS DE NAGASAKI
as duas enfermeiras não lhe disserem nada, ela nunca saberá. . . Pensando nisso, a
"Pipazinha" sorriu e a sua imaginação transpôs o tempo, levando-a aos dias de sua
infância. Como eram vermelhos aqueles morangos que colhia então ! Pareciam-lhes
rubis, jóias verdadeiras. E ela de fato os havia conservado como um tesouro,
escondendo-os no celeiro por trás de um monte de pipas. Todas as manhãs e todas as
tardes ali vinha para saborear um deles e contemplar o resto, com admiração. Nem sua
irmã mais velha, nem o irmãozinho pequeno jamais desconfiaram. . . Aqueles morangos
pertenciam a ela só, e que alegria boa eles lhe proporcionaram !
A "Favinha" pensava noutra coisa: estava admirada de constatar o quanto os adultos,
que ela transportava, pesavam pouco ! Lembrava-se daqueles treinamentos em que
tivera de carregar doentes da ambulância ao posto de socorro. Lembrava-se de como
eram pesados aqueles pacientes reais que ela, noutros tempos, transferira da maca para a
mesa. Talvez esses sejam leves porque já perderam muito sangue !. . . concluiu a jovem.
Seus pensamentos tomaram depois outro rumo: por que o Professor Nagaí fora tão
severo naqueles exercícios ? Se a realidade não é mais terrível nem mais dolorosa do
que esta, então não era necessário. . . Hoje que ela lidava com verdadeiros cadáveres e
feridos, não experimentava medo algum. Era tão fácil. . . Mas veio-lhe depois uma
sensação de abandono, de isolamento. Koyanagi-san e Yoshida-san, com as quais vivera
o ano anterior, repartindo suas alegrias ou tristezas, com as quais fizera os treinamentos,
não
72
SOCORROS
estavam a seu lado. As chamas separavam-nas e agora não sabia mais se as amigas
estavam vivas ou não. Tinha a impressão de que iam aparecer, que não estavam longe.
Pôs a cabeça fora da janela e gritou longamente: Yoshida-saaan ! Yoshida-saaan ! Com
um estrondo terrível, o prédio fronteiro, todo em brasa, começou a desmoronar em sua
direção.
Cada vez que as duas enfermeiras voltavam para buscar uma vítima, uma sala a mais
pegara fogo. Todavia, nenhum trabalho lhes parecera tão agradável e encorajador do
que introduzir-se assim, uma toalha cobrindo-lhes o nariz e a boca, para retirar um
ferido de uma sala onde as labaredas tudo devoravam. Saindo dali sentiam ainda
queimar-lhes os braços e verificavam que suas mangas estavam em fogo. Durante
aqueles poucos minutos compreenderam, de uma só vez, toda a grandeza e todo o
privilégio de serem enfermeiras. . .
As vítimas desacordadas não eram difíceis de tratar; mas as que ainda tinham
consciência causavam-lhes inúteis perdas de tempo. Queixavam-se de dores, pediam
que tivessem cuidado, imploravam aos enfermeiros que as transportavam que voltassem
para buscar algo esquecido. Não avaliavam a tragédia da situação.
Eram duas horas da tarde no relógio de Tsuba-kiyama, o único que possuíamos. Três
horas eram passadas sem que nos tivéssemos dado conta: e a catástrofe atingia agora o
seu apogeu. Desde pouco, o vento soprava do oeste; erguiam-se labaredas a 50 metros
de altura e, rebatidas pela corrente de ar, inclinavam-se com direção a leste. O depósito
de carvão
73
OS SINOS DE NAGASAKI
já não oferecia segurança. Resolvi transportar os feridos para os campos de batatas, na
colina.
Não era fácil: a estrada estreita, coberta de escombros e tínhamos que carregar as
vítimas por cima de rochas numa subida penosa. Eu mesmo transportei dois, mas
quando tentei levantar um terceiro, senti-me completamente sem forças. A artéria
continuava sangrando: já três vezes mudara o curativo. A enfermeira-chefe disse-me
que eu estava pálido e desfeito; o pulso enfraquecera consideravelmente.
Podíamos ver a "Pipazinha" e a "Favinha" subir a colina carregando, alegremente,
vítimas muito mais volumosas do que elas. Um bebé de 2 meses chorava junto de sua
mãe inanimada; como o fogo se aproximava, quis ao menos salvar a criança:
transportei-a para cima e deixei-a perto de Hamasaki. Neste momento, a mãe gemeu:
era o fim. chamada e a enfermeira-chefe, não querendo separá-la de seu bebé, levaram-
na também. A criança chorou mais alto. . . Respirava-se com dificuldade, pois o
oxigénio do ar fora aspirado pela explosão, e em troca o óxido de carbônio espalhara-se
por toda parte. As pessoas trabalhavam ofegantes.
Grossas gotas de chuva começaram a cair grandes e pretas. Pareciam vir da nuvem
escura que pairava sobre nós, e marcavam como um pingo de petróleo onde tombavam.
A cena tornou-se mais trágica ainda. . .
Quando olhei de novo o relógio de Tsubaki-yama, eram 4 horas. Os feridos estavam
estendidos lado a lado nos campos da colina; os estudantes circulavam
74
SOCORROS
à procura de um teto. Mas na vertente, não se via senão fogo e fumaça. . . Só restava
sentarmo-nos sob a chuva e contemplar o incêndio.
— Vocês precisam descansar e comer, disse eu então.
As enfermeiras alegavam não ter apetite, mas insisti que o fizessem, pois teriam de
enfrentar por dias e por meses um trabalho insano. Obedeceram, e uma vez alimentados,
sentimos mais confiança em nós mesmos. Recomeçamos a nos ocupar das vítimas,
ouvindo-as, tratando-as: era preciso atar, dar pontos, aplicar desinfetantes, dar de beber.
Tudo quanto conseguimos salvar em matéria de lençóis ou cobertores foi colocado
sobre os feridos e improvisamos talas, como foi possível. De repente alguém gritou:
Fogo na sala dos espécimens !. . . "Dez anos de trabalho árduo que desaparecem num
segundo", pensei eu, lembrando-me também das insubstituíveis fotografias.
Nova exclamação: Fogo na sala de radiologia ! Adeus aos nossos aparelhos ! Levamos
tanto tempo para retirar os pacientes que não pudemos pensar nos espécimens, nos
instrumentos e na aparelhagem ! Tudo isso subia para o céu em fumaça e em chamas. . .
E nós, silenciosos, acompanhávamos com o olhar.
O fogo progredia: deve ter chegado à sala dos filmes, pois com uma explosão surda, as
labaredas tomaram maior vulto, enquanto lançavam uma fumaça negra. Senti os joelhos
dobrarem-se, e caí no chão, murmurando: "É o fim !" As enfermeiras começaram a
chorar. . . Toda a Escola estava agora
75
OS SINOS DE NAGASAKI
em chamas. Dos professores de Medicina, somente seis tinham escapado; 80% dos
estudantes e enfermeiros estavam aparentemente desaparecidos. Os dois grupos
sobreviventes de socorro — o meu e o outro que colocamos na porta dos fundos —
contavam no máximo 50 pessoas.
Homens, equipagem e toda a Escola estavam praticamente destruídos. Em pé, sobre a
colina, assistindo aos seus últimos momentos, nós nos sentíamos como restos de um
exército vencido.
Nesta hora, o Dr. Okara apareceu, trazendo um grande lençol branco, retirado de uma
das salas. Com o sangue que me corria no rosto, da têmpora ao maxilar, desenhei no
centro do lençol um grande disco vermelho. Prendemos num bambu este estandarte do
Sol Levante. Quando o erguemos, uma rajada de vento tórrido agitou-o no céu de
chumbo. Um dos estudantes, mangas arregaçadas, bandagem branca em volta da
cabeça, levou a bandeira até o cume da colina, entre nuvens de fumaça preta. Todos nós
o seguíamos em silêncio. Eram cinco horas da tarde.
Assim findou a Universidade.
A noite rubra.
Em grupos, os professores encaminharam-se até o local onde estava deitado o Diretor.
Não pude conter as lágrimas ao vê-lo encolhido sob um sobretudo, num canto do campo
de batatas e açoitado pela
76
SOCORROS
chuva. Os membros do corpo médico e os estudantes, sob a direção do Professor
Shirabe, corriam de um lado para outro a serviço dos feridos. Relatei ao Diretor os
últimos acontecimentos e depois afastei-me. Mal dera uns vinte passos, uma tontura
obscureceu-me totalmente a vista. Caí no local em que Umezu estava deitado, assistido
por Choro. Também êle estava molhado pela chuva. De joelhos, tomei-lhe o pulso e
fiquei surpreendido ao verificar que batia mais forte do que era de esperar. Tirei meu
casaco e coloquei-o sobre êle. Levantei-me vacilando, dei ainda alguns passos e perdi os
sentidos.
"Comprima a artéria jugular", falou o Dr. Si. Percebi que me apertavam as têmporas;
gradativamente reabri os olhos e contra o cenário das nuvens escarlates, divisei os rostos
ansiosos do Dr. Si, da enfermeira-chefe, de Miss Kaneko e da "Favinha", todos
debruçados sobre mim.
— Fio de sutura, um agrafo e gaze, pediu o médico. Senti uma dor aguda enquanto êle
enfiava alguma coisa na ferida, perto da orelha. Ouvi um barulho metálico; sangue
quente deslizou pelo meu rosto.
— Mantenha apertada ! Enxugue ! Mais gaze ! ordenava o médico. A ponta do agrafo
parecia beliscar as próprias fibras dos nervos; picadas dolorosas percorriam todo o meu
corpo, crispando-me todo; agarrava nervosamente as raízes das ervas que meus dedos
encontravam.
Como o Professor Shirabe tivesse também se aproximado, o Dr. Si disse-lhe alguma
coisa em voz
77
OS SINOS DE NAGASAK1
baixa. O professor tomou-me o pulso e eu fechei os olhos, disposto ao pior.
— A extremidade da artéria deslizou para trás do osso, disse o médico.
Repetidas vezes tive de suportar aquela dor horrível que me retesava e fazia arrancar a
relva do chão. Finalmente terminou, com êxito, a operação.
O rosto do professor perdeu a sua expressão ansiosa: "Vai tudo bem, Nagaí", disse-me
êle, erguendo-se. Agradeci-lhe e uma lassidão me invadiu. Perdi de novo os sentidos.
Quando voltei a mim, o sol já havia desaparecido. Sobre a terra o fogo crepitava
incansavelmente e o céu, coberto por uma monstruosa nuvem negra, refletia seus
rubores. Via-se apenas, no ocidente, uma pequenina faixa de céu claro, ao lado do
monte Inasa, onde brilhava serena a Lua crescente.
No vale, para além d* seção dos tuberculosos, alguns homens reuniam tábuas, folhas de
zinco e palha para construir um galpão, enquanto as mulheres cozinhavam abóboras
dentro de capacetes de aço. Os estudantes Nagai e Tajima encaminharam-se para os
escritórios da Prefeitura, a fim de obter rações de urgência. Sentamo-nos em círculo,
tendo no centro o fogo onde cozinhavam as abóboras. Um pobre grupinho de vidas
poupadas ! Olhávamo-nos mutuamente, compreendendo que um destino misterioso
mantinha-nos unidos e, sem nada dizer, apoiávamo-nos um ao outro. Do mato sombrio,
atrás de nós, erguiam-se clamores pungentes !. . . "Uma maca, por favor !. . ." "Tragam-
me uma injeção !. .." Umas
78
SOCORROS
vítimas gritavam os nomes de seus amigos, outras o de seus parentes; algumas vozes
nos pareciam familiares. Por vezes, grupos inteiros punham-se a gritar ao mesmo
tempo.
Silenciosos, pensávamos nos sete companheiros nossos os quais já não contávamos
mais encontrar. Disseram-nos que Miss Sakita, do pavilhão de dermatologia, jazia numa
trincheira, a perna fraturada e impossibilitada de mcxer-se. Fujimoto a custo conseguira
retirar-se de sob o assoalho do auditório e passara por nós, apoiando-se num pau;
conservara energia bastante para voltar para casa. Entre as cinco outras enfermeiras
estavam Yamashita, Kataoka (afetuosamente apelidada de "Polvinho") e Tsujita. Se lhes
tivesse restado um sopro de vida, teriam encontrado meios para voltar às suas seções;
mesmo às portas da morte e a alma presa ao corpo por um fio, ter-se-iam arrastado até
junto de nós. . . para morrer. Elas eram assim. . . Oito horas haviam passado, porém, e
como até agora não tinham aparecido, já não contávamos vê-las com vida.
Por essas boas companheiras, cada um de nós rezou em silêncio. . .
De repente, como que brotando das chamas, surgiu um homem nu, diante de nós: "Dr.
Nagaí ! exclamou êle, enfim eu o encontro !"
— Dr. Seiki ! O senhor vive ainda ?
— Sou o único, respondeu, sentando-se pesadamente.
O pedaço de pau que lhe servira de bengala caiu no chão com um ruído seco. A vista do
Dr. Seiki,
79
OS SINOS
DE
NAGASAKI
sem fôlego, suspendendo os ombros, ícz-me pensar num grande búfalo ferido !
— Venha imediatamente, disse êle, arquejando. Os estudantes estão agonizando. A
metade já morreu. É preciso aplicar injeções nos que ainda vivem. Não podemos deixá-
los morrer assim. . . Estão num abrigo da Escola de Farmácia.
— Está bem, Professor; iremos com o senhor. Mas. . . aceita antes um pouco de abóbora
?
— Não tenho tempo para pensar em abóboras. Cem abóboras não salvariam esses
rapazes. Vamos imediatamente.
Levantou-se com dificuldade, apoiando-se em Shiro e murmurou: "A Escola acabou.
Parece incrível. E tantos mortos..."
O Dr. Si, a enfermeira-chefe Hashimoto e Ko-zasa levantaram-se também, levando suas
bolsas de socorros urgentes.
— O caminho está horrível, disse o Professor Seiki. Embora seja a 300 metros daqui,
gastei uma hora para vir. Eu voltarei, Nagaí. Fiquei muito contente por encontrá-lo.
Você verá como salvaremos esses estudantes.
Apoiando-se no ombro da enfermeira, o professor penetrou de novo na Escola em
chamas. Nosso grupo passou a noite toda tratando dos feridos sobre a colina, atrás da
classe de Medicina Fundamental.
O Dr. Okura, a enfermeira Yamada e aqueles que ficaram com eles, fizeram o mesmo
nos arredores do hangar agora terminado. O ar estava silencioso e pesado: todos os
insetos que habitualmente animavam
80
SOCORROS
as noites de verão com seus gritos variados, haviam sido exterminados.
Iluminado pelas labaredas, guiado pelos gemidos, o heróico grupo de socorro passava
de vítima em vítima, lavando, tratando, passando bandagens, dando injeções, e
finalmente, transportando os feridos para cima da colina. Por vezes, os enfermeiros
encontravam o caminho cortado por uma cortina de fogo; se tomavam outra direção
davam numa barreira intransponível de árvores tombadas. Arriscando-se na noite sobre
uma pontezinha estragada, caíam às vezes em buracos fundos, com uma vítima às
costas. Seus pés ensanguentados torturavam-nos em cada passo que davam, pois os
pregos furavam as solas de seus sapatos; os joelhos retalhados pelos cacos de vidro e as
calças ásperas pelo sangue ressecado.
Nossa equipe encontrou o Professor Takagi, chefe da Seção de Medicina e levou-o até o
galpão. Para lá conduziram também os Professores Ishizaki e Matsuo. Enquanto o
abrigo se enchia, cresciam os gemidos. Toda sorte de pessoas reunia-se ali: a filha do
Dr. Tani, responsável da farmácia, fora também levada, em péssimas condições. Um
funcionário de seguros que passava pediu que o recebessem e logo depois dois
prisioneiros. Durante a noite, aviões inimigos sobrevoaram duas vezes e lançaram
bombas, contendo manifestos. Por volta de meia-noite, o incêndio começou a declinar.
Ou porque as vítimas estivessem mortas, desesperadas ou simplesmente adormecidas,
gritos e gemidos foram cessando. Nenhum ruído entre o céu e a terra: momento solene
em Nagasaki. . .
81
OS SINOS DE NAGASAKI
Momento solene também no Palácio Imperial de Tóquio, onde Sua Majestade, o
Imperador, dera ordens de capitular.
A segunda guerra alastrara-se pelo mundo; os danos que causou atingiram uma
violência que ninguém pudera prever. A bomba atómica marcou o paroxismo e de
repente a cortina caía sobre um dos conflitos mais sangrentos da história humana.
Momento solene, realmente. Ergui os olhos para o céu, onde flutuava ainda, em reflexos
apocalíticos, a monstruosa nuvem radioativa. . . Pensamentos estranhos vieram-me à
mente: para onde iria esta nuvem ? que mensagem continha ela ? A energia atómica
revelar-se-ia de agora em diante — benéfica ou maléfica ? Serviria à causa do bem, ou a
da injustiça ?
De qualquer maneira, começava uma nova era.
O dia seguinte.
No dia 10 de agosto de 1945, quando o sol despontou de novo por trás do monte
Kompira, não iluminava mais a magnífica paisagem de uma cidade próspera na sua
vegetação, mas o trágico quadro de uma cidade em ruínas e incendiada. Em vez de uma
região viva, um amontoado de colinas mortas. Sob as chaminés derrubadas, as usinas
não exibiam senão os seus escombros; as ruas bloqueadas pelo acúmulo de telhas
partidas e entulhos. De todo um quarteirão residencial, restavam apenas os muros de
pedra; campos despojados e matas acabando de se consumir:
82
SOCORROS
árvores enormes atiradas aqui e ali como palitos de fósforos. Cenas de desolação. . .
Nada se movia, nem mesmo um cão ou outro animal passava por ali para dar um pouco
de vida à natureza. A catedral católica que, por volta da meia-noite, irrompera em fogo,
lançava ainda labaredas rubras para o alto, como que proporcionando ao drama seu
último e supremo quadro.
De madrugada deixamos o abrigo do Departamento Médico e começamos nosso
trabalho entre as ruínas da Seção de Medicina Fundamental. Encontramos um homem
atirado sobre uma folha de zinco ondulado, numa ponta do terreno de esportes. Era o
Dr. Yamada; êle contou-nos como morreu Miss Tsu-jita. . . Dirigimo-nos a seguir para a
Seção de Bacteriologia e ali vimos, entre as cinzas que cobriam o local do laboratório,
montes de ossos calcinados: sem dúvida, eram os restos dos professores que
trabalhavam lá. Descobrimos também um esqueleto feminino; pelos meus cálculos ali
era a sala onde — pelo que dissera Yamada — Miss Tsujita morrera queimada. Esse
esqueleto !. . . Ela não diria mais "Está vendo ?". . . com aquele seu sorriso suave.
Recolhendo os ossos para colocá-los num pedaço de papel, perguntava a mim mesmo:
Quando acordarei desse pesadelo ?
Chegamos ao auditório. No meio de um amontoado de cinzas acariciadas pelo sol, havia
quarenta ou cinquenta esqueletos alinhados em fila. Entre esses, certamente estava o de
Kataoka, nossa "pequenina lula". Eis tudo o que restava desses estudantes cuja vida fora
tão violentamente ceifada enquanto —
83
OS SINOS DE NAGASAKI
lápis na mão — tomavam notas da aula. E naquela manhã, como tinham entrado alegres
na escola !
Nossa apreensão em relação às outras cinco enfermeiras logo se confirmou quando
descobrimos seus cadáveres no campo de batatas. Não é de admirar que não nos tenham
respondido ! Yamashita, Yoshida, Inoue deviam estar trabalhando no campo quando
Hama e Koyanagi aproximaram-se delas, saudando-as com a mão: e as outras três,
provavelmente, retribuíram com o mesmo gesto quando a morte as colheu. Jaziam ali as
cinco, os braços acima da cabeça; os dois grupos estavam separados pela distância de
alguns metros.
As vítimas pareciam tão jovens e tão inocentes que a enfermeira-chefe não pôde se
conter e tomou-lhes o pulso, chamando-as pelo nome. Mas os cadáveres não têm mais
voz !
Tivesse eu previsto que morreriam tão cedo, jamais as teria repreendido como tantas
vezes fiz ! Passando a mão pelas cabeças frias, fixei meu olhar em Yamashita, a jovem
difícil, que eu, no entanto, talvez ainda preferisse a Inoue, sempre tão ajuizada e boa.
Seu broche, em forma de cachorrinho, estava ainda preso à blusa, e seus lábios sem côr,
sujos de terra. . . Que projétil poderia ser aquele, capaz de numa única explosão causar
tantas mortes e estragos ?
A enfermeira-chefe chegou-se a mim e deu-me um dos folhetos lançados à noite pelos
aviões. Comecei a ler e, compreendendo de repente, exclamei: a Bomba Atómica !
84
SOCORROS
O pânico da noite anterior assaltou-me de novo... Se eles possuíam a bomba atómica, o
Japão estava perdido... A ciência conhecera, pois, um novo triunfo, mas ao mesmo
tempo, a derrota de meu país apresentava-se inevitável. Dentro de mim entre-chocavam-
se a exultação do físico especializado e a dor do japonês patriota. . .
Esbarrei com os pés num bambu; êle rolou até certa distância com um barulho seco.
Apanhei-o então e levantei-o bem alto para o céu, enquanto as lágrimas rolavam pelas
minhas faces. Um bambu contra uma bomba atómica !. . . Cena trágica demais para que
se possa exprimir. Daqui por diante não haverá mais uma guerra, pensei. É melhor
colocar-mo-nos em longas filas nas praias para sermos mortos sem resistência !. . .
O folheto espalhado continha o seguinte aviso:
AO POVO JAPONÊS
Lede atentamente o seguinte:
"A América conseguiu inventar uma bomba mais poderosa do que toda outra arma
existente até hoje. Contém força igual à carga total que 2.000 grandes B-29 poderiam
transportar juntos. Refleti nesse terrível fato do qual certificamos a verdade.
Começamos a utilizar esta arma no Japão. Se tiverdes dúvida, procurai saber o que uma
única bomba atómica fêz em Hiroshima.
85
OS SINOS DE NAGASAK1
Antes de destruir pela bomba atómica todos os recursos militares que vos permitissem
continuar esta guerra insensata, nós vos pedimos que envieis petições ao Imperador para
que êle cesse as hostilidades.
O Presidente dos Estados Unidos já vos forneceu, numa proposta de treze artigos, as
condições de uma rendição honrosa. Nós vos aconselhamos a aceitar essas condições e a
começar a construir um Japão pacífico, novo e melhor.
Tomai, imediatamente, as medidas necessárias para sustar a resistência armada. Do
contrário, não hesitaremos em utilizar esta bomba e toda espécie de armas ainda
superiores, a fim de terminar esta guerra, rápida e decisivamente."
A primeira leitura abateu-me... a segunda encheu-me de desprezo e a terceira provocou
em mim uma raiva incontida. Reli de novo o manifesto e meus sentimentos
modificaram-se: tive a impressão de que o texto era razoável, e além disto,
absolutamente realista. . .
Com o bambu na mão direita, o folheto na esquerda, voltei ao abrigo onde encontrei o
Professor Seiki. Mostrei-lhe o apelo: êle leu, deixou escapar dos lábios um som estranho
e deitou-se novamente no chão, ali permanecendo imóvel e silencioso, o olhar perdido,
durante quase uma hora.
Enquanto permaneci junto àquele homem aniquilado, era esta a pergunta que me
ocupava o espírito
86
SOCORROS
: que acontecia quando um átomo explodia? Energia, átomos, ondas eletromagnéticas,
calor, foram os quatro elementos nos quais pensei primeiro.
Pouco a pouco, Choro e os outros agruparam-se em torno do Professor Seiki e
estabeleceram uma conversa animada.
— Quem está conseguindo isto ? Compton ? Lawrence ?
— Einstein deve ter tido o seu papel, assim como Bohr e outros sábios da Europa,
refugiados na América.
— O inglês Chadwick, que descobriu o neutron e o casal Curie terão certamente
participado dos trabalhos.
— Nosso isolamento científico durante esses últimos anos deixou-nos alheios a muitos
progressos e a muitos nomes. . .
— Devem ter mobilizado milhares de sábios, dividindo os campos de pesquisas e
trabalhando com a máxima eficiência.
— Não é fruto de um trabalho experimental de laboratórios. Extração, refinagem,
análise, etc, devem ter exigido uma formidável força industrial.
— Que género de átomo terão utilizado ? O urânio ?
— Um elemento talvez mais leve ? O alumínio ?
— Pequeninos átomos como o alumínio não dão senão pouca energia !
— De fato, mas o mineral de urânio é raro e seria preciso uma grande quantidade.
— Existe em abundância no Canadá. . .
87
OS SINOS DE NAGASAKI
A conversa prosseguia, e cada um revelava os seus conhecimentos sobre o assunto.
— Se sabíamos de tudo isso, por que não fizemos o mesmo ?
— Tentamos: houve até experiências para isolar o urânio 235. Mas os Militares acharam
que era dispendioso demais !
— Que estupidez !
— Agora não adianta chorar pelo passado. É a sorte dos sensatos que se deixam levar
pelos doidos.
— De qualquer modo, concluímos, conseguiram um êxito completo !
Assim, pois, especialistas e pesquisadores, éramos nós mesmos as vítimas da bomba;
servimos-lhe de cobaias e achavamo-nos agora em boa situação para observar seus
efeitos ulteriores sobre as vítimas.
Sob a dor, a cólera e o angustioso despeito da derrota, eis que despertava em nossos
corações um desejo profundo de procurar a verdade. Entre as ruínas da cidade
devastada, revivia em nós, pouco a pouco, a paixão científica.
Yamashita.
Entre as vítimas da bomba atómica, havia enfermeiras que tinham trabalhado comigo.
Uma delas, Hideko Yamashita, deixou-nos uma impressão que os anos não podem
apagar.
Nos primeiros tempos, essa jovem egoísta e irrequieta, deu-nos um trabalho imenso: o
dia inteiro
88
SOCORROS
provocava minhas repreensões ! É costume, na Escola de Enfermagem da Universidade,
designar cada estagiária para uma seção determinada onde ela aprenderá, assim, a
fundo, as minúcias da prática médica. Teoricamente, essas designações deveriam ser
feitas de acordo com a vontade dos interessados; mas, na execução do plano, esse
acordo é muitas vezes impossível.
De fato, Yamashita nunca desejara trabalhar em raios X; assim que, tudo que fazia era a
contragosto e de má vontade. Não se aplicava no serviço e raramente manipulava os
aparelhos de modo correto. A técnica radiológica exige o uso da eletricidade em alta
tensão. 60.000 a 300.000 volts, e os raios podem ser prejudiciais se ultrapassam certo
volume. . . Quando uma responsável não trabalha bem, as consequências recaem sobre
os pacientes ! Assim sendo, todas as manhãs eu rezava sinceramente para que não
sucedesse nenhum acidente; e quando chegávamos à noite sem qualquer contrariedade,
agradecia a Deus com alívio ! Uma canção estudantil daquele tempo alertava: "Se
confundires o cobre com o alumínio, serás expulso aos empurrões..." fazendo alusão ao
erro clássico: o emprego do filtro de alumínio para os Raios, em vez do filtro de cobre
ou vice-versa. Bastava usar o alumínio em vez do cobre para expor o paciente a uma
inflamação grave. . . Para incutir nos estagiários os perigos desses erros, e fazê-los
compreender, tomei o hábito de dar no culpado uma boa pancada com o próprio filtro
errado. Yamashita apanhava quase todos os dias mas sem nenhum resultado, pois não
tinha interesse em acertar.
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OS SINOS DE NAGASAKI
Quanto mais a repreendia, mais se tornava preguiçosa, induzindo outras a imitá-la.
Muitas vezes tive ocasião de aconselhar e ensinar estagiários, enfermeiros ou internos.
Mas nunca um deles me deu tanto trabalho. "Não adianta o senhor querer ensinar essa
pequena", dizia-me muitas vezes a enfermeira-chefe. Mas eu insistia. . .
Por fim, Yamashita fugiu e ficamos sem notícias, até que uma carta de seus pais avisou-
nos que ela estava com eles, na sua ilha natal, Amakusa. Perguntavam na carta se lhe
tínhamos realmente concedido aquelas férias, como ela afirmava, e diziam que não
parecia nada disposta a reiniciar o trabalho no hospital. . . É fácil adivinhar qual foi a
nossa resposta ! O pai trouxe-a de volta e pediu-me que a corrigisse severamente: era a
caçula da família — contou-me êle — e totalmente diferente dos outros irmãos. Após
esse incidente, Yamashita melhorou um pouco e sua arrogância desapareceu... O
egoísmo é, muitas vezes, uma consequência do orgulho. Talvez pensasse que nós nos
ocupássemos dela de um modo especial por causa de seu talento pouco comum. Com
maldade pueril, resolvera aborrecer-nos pela sua preguiça e fuga. Mas depois de duas ou
três semanas ficamos completamente indiferentes e os comentários começaram a se
propalar na vila. . . Assim teve ela a primeira revelação de seu "valor" verdadeiro !
Tornou-se evidentemente mais dócil e, como era inteligente, progrediu com rapidez. O
que muito contribuiu para fazê-la se apegar a nossa seção, foram os reides aéreos. As
experiências de salvamentos
90
SOCORROS
perigosos entre bombas e balas de metralhadora, nas quais trabalhávamos em união de
alma e de esforços, fizeram-^os esquecer as desavenças anteriores. Lembro-me bem
daquele dia em que um navio de transporte militar foi atacado um pouco fora do porto:
como ela se mostrou corajosa, saltando rápida da ambulância e cumprindo o seu dever,
de capacete de aço e com as insígnias do grupo de socorro universitário. No intervalo
dos reides verdadeiros, o exército convoca-nos para operações fictícias. Certo dia, num
desses exercícios, uma pseudobomba incendiária foi lançada sobre nossa Escola.
Enquanto trabalhávamos na extinção do fogo imaginário, outra bomba explodiu
teoricamente sobre nós. Yamashita e eu representávamos as vítimas e. . . morremos.
Transportaram "nossos corpos" em duas macas, para a reserva da sala de dissecação.
Enquanto nos levavam, eu conservava os olhos bem abertos, fixando o céu azul, e sentia
uma curiosa paz de alma, como se estivesse realmente morto !
Os enfermeiros deixaram-nos. . . Ficamos ali sobre as mesas, quietos como múmias, de
medo que um dos oficiais de vigilância nos caísse em cima, numa de suas rondas.
Estávamos tranquilos como verdadeiros mortos e tínhamos a impressão de que se
começássemos a conversar e nos ouvissem, um oficial teria gritado: "Que é isso, vocês
dois aí ? defunto não conversa..."
Esperamos, esperamos. . . ninguém apareceu e comecei a me espreguiçar. Yamashita,
deitada na mesa ao lado, estourou na gargalhada. Olhei-a com um sorriso, mas pensando
comigo mesmo: apesar
\
1
91
/
OS SINOS DE NAGASAK1 /
de tudo, não é de admirar que um dia como esse, uma única bomba nos mate os
dois. . . /
Depois disso, não repreendi mais Yámashita; aliás, ela deixara de dar maiores motivos
para isso. Tornou-se uma enfermeira eficiente e cheia de boa vontade. Pensei mesmo
em mandá-la para a sua ilha, em férias verdadeiras desta vez, para a Festa das
Lanternas, a fim de que seu pai pudesse verificar por si mesmo os progressos que fizera.
Mas, em 9 de agosto as sereias soaram. Naquele dia Yámashita estava na equipe dos
avisos e transmitia notícias do rádio. Que atitude de responsabilidade assumira ela
quando, toda banhada em suor e os olhos brilhantes, exclamou: "Último boletim do Q.
G. !. . ."
E aí caiu a bomba !
Quando o cataclismo se amainou, o pessoal sobrevivente reuniu-se na grande sala
demolida. Mas Yámashita não apareceu. Em vão pronunciei o seu nome junto de cada
uma daquelas figuras enegrecidas, irreconhecíveis, que surgiam, uma após outra, das
chamas e das ruínas. . .
O cadáver de Yámashita foi encontrado pela enfermeira-chefe no campo de esportes,
entre outros corpos calcinados. Ela levou-me até lá. Ajoelhei-me, chorando. O rosto
estava queimado mas reconhecível. Transportamos seus restos ainda quentes para
inumar, provisoriamente, num abrigo. Não pude conter os soluços enquanto desprendia
do uniforme rasgado um pequenino broche em forma de boneca. Se eu tivesse previsto
que tão cedo iria morrer. . . E eu me censurava e arrependia por tê-la tantas vezes
repreendido com severidade.
92
SOCORROS
. . \Na ilha de Amakusa, cresce abundantemente a sazahka (1) branca. Desejei plantar
um pé sobre seu túmulo. Mas sou agora um inválido; como poderei fazê-lo ?
Reflexões Posteriores.
— Doutor, o senhor não acha que respirei gás ? Estou tão atordoado. . .
— Doutor, sinto-me doente sem poder levantar-me. . . não será daquele vento da
explosão ?
— Doutor, fui soterrado mas não me feri. Entretanto, hoje é que tenho a impressão de
que vou morrer. . .
Assim falavam-me as vítimas que não se podiam mover, refugiadas à sombra dos muros
de pedra, pelos cantos dos prédios desabados. Eu mesmo, enquanto percorria aquelas
ruínas, sentia sintomas análogos: uma espécie de enjoo, lassidão dos membros, dor de
cabeça, náuseas, tonteiras, fraqueza generalizada . . .
Quando noutros tempos fizera experiências com o rádio, senti tudo isso, por ter-me
exposto durante muito tempo aos raios gama. O mal-estar, portanto, nada tinha a ver
com os gases e o ar aspirado; provinha dos raios X, que atravessam não somente a
madeira, mas o cimento das casas.
Conhecia bem os efeitos dos raios gama e dos neutrons. Sabia também que esses efeitos
não se
(1) Variedade decorativa de chá, muito semelhante à camélia.
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/
OS SINOS DE NAGASAKI
revelavam senão depois de um período de incubação; a incapacidade em que estava de
prevê-los exatamente, deixava-me inquieto e aflito. Eis assim, pensava eu, uma nova
espécie de doença criada pelo próprio homem.
O dia passou-se entre os cuidados aos doentes. A nuvem atómica desaparecera e
novamente o sol queimava as cinzas quentes de Urakami. Sensação de estar numa
fornalha. . . Muitos daqueles que tinham fugido para as colinas, a custo escapando da
morte, lá encontraram seu último repouso. Jaziam sob rochedos, sob arbustos, incapazes
de um movimento. Alguns viviam ainda; imploravam água e gemiam. Como tinham se
dispersado ao acaso, não havia meio de procurar alguma pessoa determinada segundo
um plano preconcebido. O único recurso era gritar. . . e ir ao encontro dos que
respondiam. Sobre o monte Kompira apenas, jaziam centenas — quiçá milhares — de
vítimas. Os departamentos da Saúde Pública na Prefeitura e na cidade, a Associação dos
Médicos e a polícia colaboraram para estabelecer um serviço de socorro metódico e
eficiente. As Associações da juventude de toda a região foram postas à disposição. O
Hospital Naval de Omura enviou imediatamente um destacamento sob o comando do
Dr. Yasuyama, seu diretor. Outro destacamento chegou do Hospital Militar de Kurume.
Que a nossa Escola — considerada desde sempre como a primeira força de socorro de
toda a zona — fosse obrigada agora a pedir ajuda. . . parecia-nos incrível ! Esta
realidade nos confrangia o coração !
94
SOCORROS
Entrementes, o Professor Koyano, apesar da destruição de sua casa e dos membros
feridos de sua família, tomara a direção da Escola, como Diretor em função. O
Professor Shirabe, que perdera dois de seus filhos, prodigalizava atenções às vítimas,
esquecido dos seus mortos tão queridos. A maioria dos outros estudantes e professores,
desprezando a própria desgraça, ocupava-se em procurar pessoas cuja ausência se fazia
notar e em estabelecer ordem na confusão que reinava. O Dr. Tsuno-o e o Professor
Takagi, estirados no abrigo úmido, continuavam a dar ordens, apesar da alteração
progressiva de seu estado. O Professor Yamane, gravemente ferido, fora trazido para
perto deles. Aliás, assim que vagava um lugar neste abrigo, novos feridos vinham
ocupá-lo.
Aviões inimigos passavam. . . Uma segunda bomba teria sido o fim de tudo. A custo
nossos nervos resistiam ainda quando, ao menor ruído de motor, corríamos para nos
abrigar. Enterramos muitos mortos, tratamos de inúmeros feridos; e pudemos, depois
desta experiência, reunir nossas observações sobre os estragos da bomba atómica.
Os ferimentos diretos provinham dos elementos da explosão: vento, calor, raios gama,
neutrons, fragmentos de bomba incandescentes. Os danos indiretos eram causados pelo
desmoronamento das casas, pelo arremesso de objetos, pelo fogo e pela radioatividade
das coisas e das pessoas; é nesta segunda categoria que se devia classificar a loucura
temporária. No caso da bomba atómica, os estragos por fragmentos eram insignificantes
em comparação aos efeitos
%
OS SINOS DE NAGASAKI
da radioatividade: esseÿÿdeviam-se ÿÿÿÿonÿÿr ÿÿ vÿÿtude do fenóÿÿÿÿ de perduração.
A pressão imediata foi tamanha que, no raio de um quilómetro, todo ser humano que se
encontrava do lado de fora ou num local aberto, morreu instantaneamente ou dentro de
poucos minutos. A 500 metros da explosão, uma jovem mãe foi encontrada com o
ventre aberto, seu futuro bebe entre as pernas. Muitos cadáveres perderam suas
entranhas. A 700 metros, cabeças foram arrancadas, e por vezes, os olhos saltaram das
órbitas. Alguns, em consequência de hemorragias internas, estavam brancos como
folhas de papel, os crânios fraturados deixavam destilar o sangue pelos ouvidos. O calor
chegou a tal violência, que a 500 metros os rostos foram atingidos a ponto de ficarem
irreconhecíveis. A um quilómetro, as queimaduras atómicas tinham dilacerado a pele,
fazendo-a cair em tiras, dando-lhe um tom marron avermelhado e deixando à vista a
carne sangrenta. A primeira impressão não foi, segundo parece, a de calor, mas sim a de
dor intensa, seguida de frio excessivo. A pele levantada era frágil e saía facilmente. A
maioria das vítimas morria com rapidez.
A uma distância de um a três quilómetros, as queimaduras eram comuns; nem todos os
feridos sentiam logo o calor; a sensação de um excessivo calor e dor só vinha mais
tarde, quando depois de uma hora ou mais, a pele tornava-se rubra e cobria-se de bolhas.
Os efeitos ulteriores dessas queimaduras não podiam ainda ser previstos.
96
\
\ SOCORROS
Os fragmentos de bomba variavam de volume: de uma bola de gude à cabeça de uma
criança. Espalhavam uma luz de um branco esverdeado e caíam assobiando, causando
queimaduras extremamente perigosas.
Os casos de esmagamento sob ruínas, ferimentos por estilhaços, morte pelo fogo,
igualavam-se aos casos similares dos reides habituais. As irradiações produziam, além
de uma fraqueza geral, a diminuição das secreções salivares, urinárias etc.
No abrigo estreito, mortos e feridos estavam estendidos lado a lado. Os sobreviventes
não podiam fazer o menor movimento. Quando um paciente parava de gemer, é que a
morte chegara. . .
A discussão sobre o átomo, sobre a classificação das vítimas continuou pelo dia a fora,
deixando todos extenuados. A água que pingava do teto parecia ritmar a fuga do tempo
dentro da escuridão que se tornara de novo silenciosa.
As cenas horrorosas, vividas desde o dia anterior, obcecavam o espírito de todos, e o
pensamento oscilava entre o sono e a consciência. Durante a noite, a enfermeira-chefe,
que repousava perto de mim, foi de repente assaltada por uma espécie de alucinação:
sacudiu-me pelos ombros, gritando: Oyanagi, Oya-nagi. . . Era o nome de uma das
enfermeiras mortas na véspera.
Na madrugada de 11 de agosto, enquanto a temperatura estava ainda suportável, todos
os pacientes foram removidos para o Hospital Militar e licenciar am-nos. Tendo
entregue os vivos em boas
97
/
OS SINOS DE NAGASAKI I
mãos, encetamos novo trabalho: o de queimar os mortos e procurar aqueles cuja
ausência aos poucos íamos notando. Enquanto chamas vermelhas subiam dessas
cremações, grupos de duas ou três pessoas contemplavam-nos silenciosos.
Sepultamos Yamashita e as outras quatro enfermeiras. Não nos parecia justo separarmo-
nos delas assim tão simplesmente, sem nenhuma cerimónia. Colocamos, então, sobre o
local, placas de madeira com seus nomes inscritos. Flores não tínhamos para oferecer-
lhes.
Conhecedores do desastre, acorreram imediatamente ao local as famílias dos estudantes
e enfermeiras. Andavam de um lado para outro, gritando o nome dos que buscavam,
atirando-se para desconhecidos que, de costas, assemelhavam-se aos seus entes
queridos, prorrompendo em choro convulso quando encontravam um colega ou amigo
de seus filhos. Juntei-me a muitos desses pais na sua busca vã e dolorosa, confundindo
as nossas lágrimas. Nenhuma palavra poderá descrever esse quadro.
A maioria não chegava mesmo a descobrir os corpos que buscavam; sabendo que seus
parentes deveriam estar nesse ou naquele pavilhão ou classe no momento da explosão,
procuravam entre os cadáveres ou esqueletos enfileirados. Mesmo quando pensavam
reconhecer os despojos, o rosto estava tão desfigurado que somente o nome, bordado no
avental, fornecia a identificação decisiva. E quantos, após esse reconhecimento, não
conseguiam mais chorar: a dor petrificava-os.
98
\ SOCORROS
\
O dia em que perdi a metade de meu coração.
Havia três anos que deixara a Universidade, quando me casei com Midori. Meu salário
mensal, naquela época, não ia além de 40 yen. Foi durante a questão da Mandchúria, e a
vida estava barata; todavia, deve ter sido difícil à minha mulher organizar a nossa
subsistência dentro desse orçamento. Nunca, porém, ouvi-a murmurar, ou queixar-se de
alguma coisa. Jamais tive meios para comprar-lhe um quimono novo; não
frequentávamos teatros ou restaurantes. Nossa única distração consistia em, uma vez
por ano, passar algumas horas de folga à beira-mar.
Dia após dia eu permanecia até tarde no meu ♦ laboratório, enquanto ela se ocupava
com os trabalhos
domésticos. Assim vivemos durante sete anos. A roupa de toda a casa era feita por
Midori: desde as minhas meias e camisas até os aventais, tudo foi sempre confeccionado
por ela, à custa de seu cansaço e mãos ativas. Vendo-me assim vestido, as moças do
laboratório gracejavam comigo: "O Doutor Nagaí está sempre abraçado pela esposa !"
Num tempo em que tão facilmente se compravam batons de Paris e perfumes da Itália;
numa época em que as senhoras exibiam suas toaletes pela cidade, Midori mantinha-se
indiferente a tudo isso e nunca se pintou.
A alimentação era tão abundante naqueles dias, que chegava a se estragar e ser jogada
fora. Mas a
i
99
OS SINOS DÊ NAGASAK1
económica Midori tratava de seu pomar, trabalhando nele sempre que o tempo bom o
permitia. Quando chovia, dedicava seus dias à costura e ao tricô.
Exercia ainda o pesado cargo de presidente dos clubes femininos, na nossa cidade de
Urakami. E além de tudo, tinha a tarefa ingrata de ser minha mulher, de velar por um
marido distraído, todo absorto nas suas pesquisas.
Com efeito: quando eu iniciava novas experiências tornava-me outro homem. Meu
espírito concentrava-se e, durante dias seguidos, conservava-me fechado em bibliotecas,
a fim de estudar as obras de diferentes autores. Comparava fichas e relatórios; construía
aparelhos e dava início a longas experiências donde saía um artigo. . . Mas eram
precisos meses para isso ! Durante esse período, nada mais me interessava. Só falava
quando me interrogavam; só comia quando me davam alimento; se as crianças
gritavam, olhava-as com espanto. Seria incapaz de dizer o que comi ou o que fiz.
Por duas vezes Midori disse ter-se cruzado comigo na rua, quando voltava da
Universidade. Confesso que não a reconheci ! "Tenho às vezes a impressão — confiou-
me ela — que lido com um sonâmbulo!"...
Mesmo para os assuntos importantes de casa, nunca pôde contar comigo. Esforçava-se
em preparar pratos especiais que me proporcionariam forças necessárias para meu
trabalho intelectual. Infatigavelmente, cuidava de minha roupa e do meu modo de vestir,
pois não seria de estranhar se eu saísse sem gravata. Quebrava a cabeça diariamente
100
\
SOCORROS
para saber se fichas, cadernos, fotografias e papéis de toda espécie, espalhados sobre as
esteiras do chão, poderiam ou não ser arrumados. Não havia hora certa para coisa
alguma, e é um milagre que seus braços frágeis possam ter dado conta de tudo !
A única recompensa de todos os seus trabalhos e fadigas era ver os meus artigos
publicados em revistas científicas. Esses periódicos, que outros leitores percorriam, sem
dúvida, com olhos distraídos, ela recebia-os com respeito, saudando-os com profunda
reverência. Sentava-se muito tesa e lia-os atentamente. Os artigos encabeçados por meu
nome, que ainda rescendiam a tinta da tipografia, não continham senão termos técnicos
ou explicações profissionais. Pouco importa; Midori sabia que eles estavam
impregnados da vida e do espírito de seu marido. Ela os lia com lágrimas nos olhos. Eu
contemplava-a, carregando nos braços, em seu lugar, o nosso último filho: e era como
se uma nova primavera despertasse de repente no meu coração. . .
A hora de suprema felicidade, na nossa casa, era no domingo pela manhã, quando, todos
juntos, saíamos para a missa. Seguíamos, através dos campos, o caminho que subia pela
colina até o santuário. Eu segurava pela mão o nosso filhinho mais velho. Midori levava
o pequenino nas costas. Os sinos, com sua doce voz clara, chamavam os paroquianos.
As pessoas apareciam daqui, dali, de dentro das suas casas, trajes domingueiros e
alegres, para reunir-se ao cortejo sempre mais numeroso. Chegávamos à igreja; através
dos vitrais, o sol matinal envolvia nosso canto: minha voz, a de minha mulher, a mo-
101
OS SINOS DE NAGASAKI
dulação hesitante da criança, a antífona rude do camponês sentado perto, todos juntos,
louvando o Pai dos céus. . . Infelizmente esses dias felizes não voltarão mais para mim.
Tínhamos poucas relações; meus amigos eram, como eu, cientistas pobres. Certo dia em
que eu conversava com meu colega Nakamura no nosso jardim, êle me contou que
praticara a partenogênese das rãs. Midori nos ouvia, enquanto costurava minhas roupas.
Nakamura disse-me, gracejando: "Quem sabe, Dr. Nagaí, se chegará o dia em que os
esposos não serão mais necessários para ter os filhos..."
Então Midori retrucou: "Admitamos que sim ! mas acham então que o único fim do
casamento seja o de pôr filhos no mundo ?"
Quando me nomearam livre docente, meu salário foi aumentado para 100 yen. Grande
alívio para minha mulher que, sem isso, ficaria realmente embaraçada, visto nosso filho
já estar em idade escolar. Este aumento, aliás, não nos favorecia com o "luxo" de um
teatro de vez em quando. . .
Cinco anos se passaram. Minhas longas pesquisas no perigoso terreno dos raios X
acabaram por alterar minha saúde e contraí uma leucemia. Quando me certifiquei dessa
realidade e ciente de que tinha poucos anos de vida, contei tudo a Midori, perguntando-
lhe o que pretendia fazer. Recebeu minha terrível confidência sem pestanejar, o que me
confortou muitíssimo: era bem o que esperava. Quando terminei de falar ela disse: "Há
muito tempo, eu previa isso..."
102
SOCORROS
E eu pensava: Está certo; depois de minha morte, uma mulher corajosa assim, educará
perfeitamente os meus filhos, e eles prosseguirão nas minhas pesquisas. . . Posso
dedicar-me, com afinco, ao meu trabalho, sem preocupações com o futuro. . .
Depois desta conversa decisiva, Midori redobrou de ternura e cuidados para comigo;
meu estado, porém, piorava cada vez mais. Quando soavam as sirenas de alarma,
acontecia-me cambalear sob o capacete de aço. Certa vez ela chegou mesmo a precisar
me transportar até o laboratório.
No dia 8 de agosto, Midori despediu-se de mim com seu bom sorriso habitual. . . Depois
de ter dado alguns passos, lembrei-me de que havia esquecido de trazer a minha
merenda. Voltei sem que ela esperasse, e encontrei-a banhada em lágrimas. Foi assim o
nosso adeus. Aquela noite fiquei na Escola por ser o meu plantão. Na manhã do dia 9,
explodiu a bomba atómica e fui atingido. Como um relâmpago, vi em pensamento o
rosto de Midori na minha frente. Mas estava por demais ocupado com as vítimas; cinco
horas mais tarde uma hemorragia tomou conta de mim. Tive então o pressentimento da
morte de Midori: ela não viera me buscar, e a distância que separava nossa casa da
Escola era apenas de um quilómetro. Mesmo arrastando-se, não seriam precisas 5 horas
para cobrir aquela distância. E eu sabia que uma mulher como ela, embora ferida,
enquanto tivesse um fio de vida, teria tentado vir para meu lado.
No terceiro dia, terminados os trabalhos mais urgentes, voltei para casa: casa que se
tornara um
103
OS SINOS DE NAGASAKY

monte de cinzas. . . No que fora a cozinha, imediatamente descobri alguns vestígios


ainda quentes e completamente calcinados: tudo que me restava de Midori; mas, bem
perto, brilhava a corrente de seu Rosário e a cruz pequenina.
Em volta de nossa casa todos os vizinhos também morreram. Muitos ossos —
igualmente enegrecidos — estavam visíveis entre as cinzas, sob a luz do poente.
Para conservar os restos de minha mulher, encontrei apenas um balde de ferro, retorcido
pelo fogo. Foi assim que a levei ao cemitério, apertando-a de encontro ao peito.
Destino estranho ! Tantas vezes pensei ser levado ao túmulo por Midori. . . Agora, seus
pobres restos repousavam nos meus braços. . . Sua voz parecia murmurar: perdão,
perdão. . .
104
IV
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
Até a Assunção.
Ao norte de Nagasaki, um grupo de montanhas cobertas de verde destaca-se sob o fundo
azul do céu. No mapa, elas são designadas como Kuradake, mas os moradores da região
chamam-nas, mais simplesmente, Mitsuyama, as Três Montanhas. No vale, além
daqueles picos, existe uma fonte mineral, conhecida através dos séculos, como infalível
para curar queimaduras.
Essa zona atraía numerosos doentes e lá construíram, há mais de vinte anos, uma
hospedaria para recebê-los. Imaginamos que suas águas seriam ainda o melhor meio de
curar nossos milhares de vítimas, e um posto de socorro foi, pois, instalado em Koba.
No dia 12 de agosto, carregando de encontro ao peito as caixas que continham os ossos
de nossos mortos, deixamos Urakami, em direção a Koba. Largando atrás de nós uma
paisagem despojada, calcinada e triste, vimo-nos rodeados por árvores e folhagens
exuberantes. A brisa fresca da montanha aliviava nossos corpos exaustos e reanimava os
espíritos
105
OS SINOS DE NAGASAK1
abatidos. De vez em quando parávamos para respirar profundamente, limpando os
pulmões da poeira e das impurezas do incêndio e da carnificina. Cada aspiração lenta
tinha o efeito de uma purificação.
Em Fujino-o, arrabalde de Koba, alugamos uma casa para transformá-la em
ambulatório. Antes, porém, caminhamos até a floresta que se estendia em frente ao
nosso prédio: dentro dela serpenteava um riacho claro e fresco. Tirando nossas roupas,
deitamo-nos na corrente. Seu leito servia-nos de colchão e algumas pedras, de
travesseiro. Olhadas de baixo para cima, as margens pareciam subir a pique, as árvores
cruzando os seus ramos acima de nós. As cigarras entoavam uma sinfonia estival e, na
faixa estreita de céu azul que se estendia sobre nossas cabeças, leves nuvens brancas
moviam-se preguiçosamente. "Como é bom viver !" pensei comigo mesmo. Lembrei-
me de um poema que compus no fronte: "Hoje ainda sobrevivi; e nas minhas mãos, a
vida me parece tanto mais maravilhosa..." Repeti essas palavras diversas vezes.
Enxugando-me, descobri, com surpresa, que todo o lado direito do meu corpo estava
coberto com inúmeros cortes, feitos por estilhaços de vidro. Tomava agora
conhecimento deles pela dor que me causavam. Lavei minhas roupas manchadas de
sangue e, enquanto esperava que secassem, tentei dormir sob uma árvore. Foi a primeira
vez — desde a explosão — que consegui um bom sono. Ao despertar, vi que todas as
enfermeiras também haviam adormecido e alegrei-me com isso: deviam estar
terrivelmente fatigadas.
106
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
À tarde, de casa em casa, visitamos os doentes. Em primeiro lugar, Okamurasan, chefe
do grupo da região de Koba: encontramo-lo deitado, seriamente ferido. Disse-nos que
era difícil saber quantas vítimas havia em cada cabana. Com efeito: quando fomos
visitar Takamisan, o conhecido fazendeiro da zona, a mulher nos afirmou que mais de
cem pessoas refugiaram-se na sua casa. Enxugando o suor que lhe corria da testa, ela
cortava em fatias, enorme quantidade de abóboras. . . Muitos feridos e grande número
de religiosas budistas do mosteiro de Junshin jaziam sob os mosquiteiros. Morriam,
aliás, um após outro, e o fazendeiro saiu uma vez mais para abrir sepulturas. Os feridos
tinham sido transportados de Urakami, conforme estavam; ninguém lhes tocara ainda
nos ferimentos, cobertos apenas com os trapos que tínhamos encontrado no primeiro
momento. Por isso mesmo, muitas feridas já supuravam e quando suspendíamos as
bandagens improvisadas, o pus corria com cheiro nauseabundo. Limpando as feridas,
encontrávamos, quase sempre, cacos de vidro, lascas de madeira, fragmentos de argila.
Lavávamos os ferimentos com dureza, mas eficazmente, usando creosoto. Por mais
empedernidos que estivéssemos, arrepiavamo-nos ao fazer isso.
Como cada vítima tinha, pelo menos, dez a vinte lesões, os cuidados não eram fáceis.
Levávamos tempo enorme com cada um daqueles infelizes para lavar, limpar, coser,
ajustar e passar as bandagens. O recorde foi de cento e dez feridas numa pessoa !
As queimaduras também eram graves, sobretudo quando afetavam os braços, o peito e o
rosto. Gran-
107
OS SINOS DE NAGASAKI
des placas de pele tinham-se desprendido, deixando exposta a carne viva. Os rostos
incharam monstruosamente, dificultando o falar. As queimaduras que foram tratadas
com óleo — de acordo com nossas instruções — apresentavam-se em boas condições,
mas em muitos casos empregaram batatas amassadas, casca de abóbora ou até mesmo
terra. Nessas, a infecção era seríssima ! Desinfetamos e ensinamos os doentes a aplicar
compressas de água nas fontes.
De uma casa para outra, através dos campos, a vista dos mosquiteiros indicava-nos a
presença de vítimas. O pensamento de que contavam conosco, renovava a nossa
coragem.
Às dez horas da noite, tínhamos visitado todas as casas de Inutsugi e voltávamos a
Fujino-o pelo caminho da montanha, atentos às cobras que ali existem. O orvalho já
cobria a relva tenra e os insetos zumbiam. No céu, a Grande Ursa desaparecera e o
Escorpião espreitava-nos por cima das Três Montanhas. Na noite anterior, Antares —
vista do abrigo, entre as ruínas — tinha um brilho vermelho de sangue; mas hoje,
quando a contemplei do fundo daquele vale calmo, parecia que me acenava
amigavelmente. Ninguém falava. Enquanto caminhava pelo atalho estreito, trazia meus
amigos mortos no íntimo de meu coração, pensando também nos que ainda viviam.
Ergui de novo os olhos, procurando no limite do horizonte a constelação da Virgem.
Sentia necessidade de contemplar sua luz clara e azulada. E minha oração subiu ao céu,
numa súplica fervorosa, pelas enfermeiras vitimadas.
108
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
O dia 13 de agosto despontou límpido e quente. Após termo-nos banhado no rio
descemos até Ro-kumai-ita, no intuito de visitar aquela cidade, assim como Toppomizu,
Akamizu e Odorize. Era uma volta de uns oito quilómetros, aproximadamente, e
pensávamos terminá-la em Rokumai-ita antes do almoço. Encontramos um número de
feridos muito maior do que tínhamos previsto e, à notícia de nossa chegada, afluíram
muitos outros: trabalhamos, sem descanso, até dez horas da noite.
Prepararam nossa refeição na casa do fazendeiro Matsushita e tivemos uma agradável
surpresa quando penetramos na sala. Sentado na esteira, saboreando um arroz branco e
fumegante, pensei outra vez: que sentimento curioso o de estar vivo ainda ! E as
lágrimas me subiram aos olhos.
O dono da casa insistia para que comêssemos à vontade. "Todas as cidades precisam
dos senhores e não podemos deixá-los com fome. Comam bastante para terem forças..."
Tínhamos terminado de visitar Akamizu quando ouvimos um forte ruído de motor.
Rapidamente deitamo-nos, colocando-nos à encosta de um rochedo. Uma explosão
atómica seria o fim de tudo e rezei para que tal não sucedesse. As bombas comuns, as
rajadas de metralhadoras, já nos eram familiares; com certa prudência podíamos escapar
delas. Mas, da bomba atómica nada sabíamos: nem de onde e quando vinha, nem como
nos defender. . . Era de admirar se nos sentíamos trémulos e nervosos ?
O ronco extinguiu-se por fim. Voltando para a estrada, continuamos em fila indiana,
com cuidado
109
OS SINOS DE NAGASAKI
para não projetar, sobre a estrada branca, nossas sombras pretas e movediças.
Não tínhamos mais casa, nem família, nem bens; íamos de vilarejo em vilarejo nos
trajes miseráveis achados entre as ruínas. Quem acreditaria ser aquele grupo composto
de médicos, professores, assistentes e alunos de uma Faculdade de Medicina ?
Tinham alguns, em volta da cabeça, bandagens trespassadas de sangue; outros
mancavam com um pé ferido; outros, atingidos no peito, respiravam penosamente. Era
impressionante a palidez desses; a radioatividade afetara-lhes o sangue. Muitos havia,
que andavam às apalpadelas, tendo ficado sem os óculos.
Mas nós prosseguíamos, sustentando-nos em bengalas improvisadas ou apoiando-nos
no ombro de um dos companheiros. Dávamo-nos a mão fraternalmente e continuávamos
a marcha. Uns calçavam sapatos arrebentados, outros, chinelos, tamancos de madeira ou
botas de borracha. Sangue seco cobria as calças rasgadas e as camisas em farrapos.
Alguns protegiam a cabeça com uma toalha, um lenço, enquanto outros conservavam o
capacete de aço. Cobrimos as cabeças e os ombros com folhagens, camuflando-nos
contra os aviões. Parecíamos soldados derrotados, mas animava-nos o desejo da verdade
e da ação. Sob o sol ardente e o ronco de aviões inimigos, íamos ao encontro dos
feridos, impelidos pelo entusiasmo profissional. Ajudar os homens: era o que
queríamos, pois continuávamos a ser uma Escola Médica ! Mas era também para a
investigação da verdade que ficamos vivos: eis que se nos oferecia um campo
110
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
de observação absolutamente novo: desprezá-lo seria não somente cruel em relação às
criaturas, mas uma falta contra a ciência.
Tinha começado a sentir os sintomas da doença atómica; sabia que, esgotando-me como
estava fazendo, em breve morreria ou cairia seriamente enfermo. Não tínhamos nenhum
instrumento de experimentação, nem ao menos um lápis ou uma folha de papel.
Somente alguns escalpelos, pinças, agulhas e uma pequena reserva de desinfetantes e
bandagens que carregávamos nas nossas bolsas. Conservávamos, porém, nossas
cabeças, nossos olhos, nossas mãos, e o desejo ardente de fazer alguma coisa !
— Aviões ! Todos deitados !
Atiramo-nos sobre a relva poeirenta. Formigas circulavam sobre as hastes que
encostavam nos nossos rostos.. .
— Já se foram ! Continuemos. Levantávamo-nos vacilantes e, com maior zelo
ainda, prosseguíamos.
— Outro avião ! um caça ! Depressa, sob os rochedos!
— Cuidado com os vidros de remédio ! São os ^s> únicos !
Abrigar-se contra os aviões, correr para recuperar o tempo perdido, descansar exaustos
sob árvores, olhar o relógio e tornar a partir, assustados com o adiantado da hora. . .
assim foi todo o nosso dia. A ronda das cidades levou mais tempo do que tínhamos
previsto. Nossos pés doíam-nos barbaramente e à noite, estávamos física e moralmente
extenuados.
111
OS SINOS DE NAGASAKI
Havia um número de doentes cinco vezes maior do que pensávamos: pelo menos um em
cada casa. Muitos eram desconhecidos dos próprios moradores, mas tombavam à sua
porta, incapazes de dar mais um passo, e recolhidos com carinho, eram por eles tratados
da melhor forma possível. Outros jaziam nos bosques de bambu, sobre esteiras. . . Em
pouco tempo faltaram-nos bandagens. A enfermeira-chefe e Tsubakiyama tiveram de
caminhar uma hora, até a Escola, sob um sol abrasador, para refazer nossas provisões.
No momento em que se afastavam, disse-mo-nos, meio rindo e meio sérios: "Se houver
ainda uma explosão, adeus para sempre !"
Mas à noite elas voltaram vivas e alegres, com seus sacos de emergência. A enfermeira
Oishi veio junto. Na manhã do dia 9, antes da explosão, sabendo que seu irmão morrera
em combate, ela fora para casa. No outro dia, informada da destruição da Escola, voltara
imediatamente de Kita Matsuura, numa viagem de dez horas, para oferecer seus
préstimos.
— "Queria ao menos encontrar os seus restos !" disse-nos ela, chorando. A vinda
daquela jovem, forte e enérgica, reanimou-nos de verdade: às 10 horas da noite,
pudemos acabar nossa tarefa e voltar para Fujino-o. Em torno do fogo, fazíamos
cozinhar batatas e abóboras. Discorremos sobre os sintomas da doença atómica; as
perturbações digestivas já começavam a aparecer: herpes purulentos da boca,
estomatites. . . Atirando lenha no fogo e argumentos nos debates, depressa tivemos
diante de nós uma sopa fumegante.
112
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
14 DE AGOSTO DE 1945
Hoje, num raio de nove quilómetros, tínhamos quatro cidades para visitar: Azebetto,
Kawadoko, Tobita e Kotani. A estrada serpenteava por montes e por vales; muitas
vezes, olhando uma casinha solitária no cume de uma montanha, hesitávamos em ir até
lá. Pensando, porém, no serviço que poderíamos prestar, na observação a fazer,
empunhávamos o nosso bastão e, passo a passo, vencíamos a subida.
As famílias recebiam-nos com alegria e gratidão. Os doentes sentiam-se melhor já com
a chegada dos médicos. Percebíamos o cortar dos pepinos na cozinha, e o chá que
preparavam para nós. . .
À noite estávamos arrasados pelo cansaço, a fome e dor. Voltamos dois a dois, sem
conversar, seguros pelas mãos, enquanto a Lua olhava-nos do alto.
— O dia está declinando e ainda temos muito que andar, murmurou o Professor
Seiki. . . Nesse momento tive uma câimbra no pé direito e caí em cheio. Todos
acorreram para levantar-me.
A Lua desapareceu e a escuridão envolveu-nos. Não enxergávamos ninguém. Fujino-o
ainda distava três quilómetros. . . Após meia hora, os músculos de minha perna se
relaxaram; apoiado no ombro da "Favinha", consegui andar, mas depois de uns mil
metros, foi ela que não resistiu. Duas enfermeiras sustentaram-na, colocando seus
braços sobre os ombros, enquanto Choro me carregava nas costas.
113
OS SINOS DE NAGASAKI
Finalmente chegamos à casa de Takamisan, onde paramos. A dona da casa, desolada em
ver-nos naquele estado, preparou uma ceia. Por demais famintos não protestamos:
Devoramos o arroz e as abóboras, as batatas e as ameixas como pobres cães
famintos . . .
15 DE AGOSTO DE 1945
Para celebrar a Assunção, houve missa na igreja de Koba. Foi interrompida, entretanto,
por aviões inimigos que roncavam muito perto. Apressadamente, o Padre Shimizu
transportou a Santa Hóstia para o abrigo, atrás da igreja.
Terminada a cerimónia, recomeçamos as visitas aos feridos de Inutsugi. Os pacientes
continuavam a morrer, enquanto o afluxo de casos novos entrava em regressão.
Sentíamo-nos como que nos limites de nossas forças: seria interessante verificar se não
constituíamos, nós mesmos, os casos mais graves. Os pacientes, pelo menos,
exprimiam-se sem cuidados; mas nós, para articular as mais simples respostas,
deveríamos refletir. . . É a guerra; não podemos entregar-nos agora, pensávamos.
Choro que havia saído cedo, esta manhã, para procurar abastecimento no quartel-
general da Escola, voltou à tarde, visivelmente emocionado. O saco de arroz, o pacote
de farinha, de feijão e as conservas foram recebidas com júbilo. Mas que notícias
transmitiu-nos êle !
— Parece que a guerra acabou, disse-nos.
— Acabou ? como assim ?
114
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
— Rendição sem condições. Aceitação total da declaração de Potsdam.
Um silêncio opressivo caiu entre nós. Afinal exclamei:
— É impossível !
— A cidade está um caos. Uns afirmam isso, outros o negam. Houve uma transmissão
especial ao meio-dia pelo rádio. Não se conseguiu captar. . . mas a palavra "nós",
reservada ao Imperador, foi ouvida muitas vezes e há quem pense que foi o próprio
Imperador quem falou. Por outro lado, a polícia fêz a volta da cidade em caminhões,
proclamando que tudo aquilo era propaganda inimiga, na qual não deviam crer.
Gritavam mesmo: Combateremos até o fim, mesmo em nossa terra, ou coisa
semelhante. Confusão completa. Muitas pessoas foram espancadas por terem dito: a
guerra acabou !
Não conseguíamos falar. Será verdade ? Não, não pode ser. Ainda um boato !. . . Mas,
quem sabe ?. . . E nessas alternativas de dúvidas e incertezas meus pensamentos se
agitavam.
De novo soaram dez horas e encerramos os trabalhos; mas o jantar, embora enriquecido
pelas conservas de Choro, pareceu-nos insípido.
Após a Assunção.
16 DE AGOSTO DE 1945
"Não há dúvida; é uma bomba retardatária; uma bomba atómica retardatária. Num
minuto ela vai explodir. . . tenho certeza. . . ou quem sabe den-
115
OS SINOS DE NAGASAKI
tro de cinco minutos. . . Mas ninguém sabe que ela caiu aqui... Só eu sei !. . . Devo
destruí-la ! Tenho um bambu na mão e lutarei. . . Perto de mim há uma porção de
dardos; lanço-os um atrás do outro. Desespero-me, transpiro. . . Ela vai explodir... Eu
sei !. . . Escutem o barulho ! o clarão ! A luz no meu rosto." Grito: "Ela atingiu-me !"
— Doutor, doutor: que é isso ?
A enfermeira-chefe debruça-se sobre mim; a "Favinha" escancara as janelas... o sol fere
meus olhos...
— O senhor está com febre, diz a enfermeira, passando sobre minha testa uma toalha.
Tento levan-tar-me, fico atordoado, e uma dor forte na perna direita impede-me de
movê-la.
— Não é de estranhar: todas as suas feridas estão infeccionadas e supuram, disse a
enfermeira, examinando-me. Por que não nos disse antes ?
— É a guerra, respondi com uma falsa vaidade, mas sem poder erguer a cabeça.
Depois de me terem tratado e dado uma injeção, os outros foram para Kawabira.
Tsubakiyama saiu para a cidade, em busca de notícias. Fiquei, pois, sozinho, abatido e
cheio de dor. Algum tempo mais tarde ouvi de novo a voz de Tsubakiyama. Com ar
tristonho entregou-me um jornal. Um olhar bastou-me: eram bem esses os títulos que,
durante anos, receávamos ler: Uma decisão imperial põe término à guerra. O Japão
derrotado.
Desatei em pranto: durante vinte, trinta minutos, chorei como vima criança; mesmo já
sem lágrimas, os soluços não cessavam. Tsubakiyama e eu
116
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
permanecemos deitados no chão, os ombros sacudidos pela nossa dor.
À noitinha, revendo meus companheiros que chegavam de seus trabalhos, pus-me de
novo a chorar. Juntos derramamos nossas lágrimas durante horas a fio. Nem chá, nem
jantar. Nenhum pensamento, nem uma palavra sequer. Nossos espíritos estavam
mergulhados num oceano de mágoa. Somente o cansaço conseguiu adormecer-nos.
17 DE AGOSTO DE 1945
"Os montes e os rios permanecem, embora pereçam os impérios." Abrindo as janelas,
revimos as três montanhas, perfilando-se no céu, tranquilas como sempre, alheias às
nuvens que passavam sobre elas. Naquele momento, todas as coisas, para nós, não
valiam uma fumaça. Nossa fé na inviolabilidade do Império desvaneceu-se num
segundo. No céu de verão, aviões americanos voavam vencedores. Passavam baixo,
examinando o país à vontade. Um B-29 apareceu e sumiu, sua cauda gigantesca quase
tocando os três cumes.
A guerra terminou e nós a perdemos. Resolvemos nada fazer nesse dia. Depois do
almoço ficamos estendidos nas nossas esteiras, olhando as nuvens, as colinas, os aviões.
Copos e pratos abandonados em volta do fogo. NÃO sentíamos vontade de fazer coisa
alguma... OS SINOS DE NAGASAKI
Um homem veio pedir que fôssemos ver um doente. . . Estávamos derrotados; que
importava um doente, quando cem milhões de homens choravam ? Que valiam um ou
dois feridos ? Sua salvação em nada iria alterar o destino de nossa pátria. Despedimos o
homem. . . Êle retirou-se, acabrunhado. Fiquei olhando para êle, enquanto se afastava.
De repente meus sentimentos se modificaram: Façam-no voltar ! exclamei. Salvar vidas
humanas, eis o que conta ! O país foi vencido mas as vítimas vivem ainda. A guerra
terminou, mas continuamos a ser uma equipe de socorros. O Japão pereceu, mas a
Medicina permanece ! Este é nosso trabalho e o nosso dever: velar sobre a saúde e a
vida das pessoas, independentemente da sorte do Estado. O Japão chegou a este ponto
por não ter dado o devido valor à vida individual. . . Respeitar esta vida poderia ser —
começava eu a compreender — o princípio de uma nova visão do mundo.
Essas pessoas, às quais fizeram crer que seu país podia ganhar a guerra, foram na
verdade atingidas de tal forma, como se elas é que a tivessem perdido. Eram, de fato, os
mais desesperados. . . Eu, eu podia dar-lhes alívio e reconforto. Competia a mim
aproximar-me deles. Levantei-me, cambaleando; os outros imitaram-me; nossa coragem
voltou; a determinação de continuar nosso trabalho deu-nos força e alegria. Não era
mais em nome da guerra que nos animávamos a agir. íamos com espontaneidade,
compreendendo que nos cabia salvar a vida de nossos compatriotas. Extenuados
fisicamente, sentíamos intensa força espiritual.
118
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
Aviões de caça com bandeira branca nos sobrevoavam; mas hoje era tudo indiferente.
Caminhávamos em grupo, ao longo da estrada; a cada avião que passava, um
sentimento curioso nos assaltava: o de não precisar correr; o de não mais nos
escondermos.
18 DE AGOSTO DE 1945
Espalharam-se boatos de que as tropas aliadas desembarcariam e que as mulheres e
crianças deveriam evacuar a cidade. Espetáculo triste e, ao mesmo tempo, ridículo: ver
os japoneses, meio desvairados, fugir com o que podiam levar, abandonando suas casas
e sua cidade para um destino incerto. Durante várias semanas a desordem, consequente
da capitulação, manifestou-se de maneiras diferentes. A nós não afetou: tendo perdido
tudo que tínhamos e não nos restando senão os doentes e os feridos, continuamos
tranquilamente a nossa tarefa. Nosso sofrimento interior era profundo e pesava-nos na
alma. Nosso Japão, simbolizado pelo Fuji que penetra as nuvens na luz do sol levante,
esse nosso Japão sucumbira. Ao nosso povo, esmagado no fundo de um abismo, só
restava viver na desonra. Felizes os nossos amigos, ceifados pela bomba atómica.
Todas as noites, após o jantar, ao ar livre, sob a claridade da Lua, ou dentro de casa,
quando chovia, conversávamos horas a fio, com o coração nas mãos. Debatíamos, por
vezes, dúvidas angustiosas: que fa-
119
OS SINOS DE NAGASAKI
remos no futuro ? E, em torno deste problema atual, giravam nossos assuntos. Durante o
dia, porém, o cuidado com os doentes absorvia totalmente os nossos pensamentos.
Progressivamente, a terrível doença atómica apareceu nos nossos pacientes, nos
refugiados que até então pareciam indenes, e em nós mesmos. Certos sintomas eram-nos
familiares, graças às nossas experiências anteriores e sua presença, confirmando as
nossas teorias, deixava-nos quase vaidosos. Outras perturbações, porém, eram
inesperadas e não sabíamos como tratá-las. . .
Enquanto isso, o Posto de Saúde de Mitsuyama continuava seu trabalho. Só fechou no
dia 8 de outubro.
Um depois do outro, caíram doentes os membros da equipe: esgotamento, má
alimentação e irradiação atómica solaparam nossas forças. No Dr. Si, os glóbulos
brancos estavam reduzidos à metade. Em Moriuchi apareceram pontos de hemorragia.
A en-fermeira-chefe perdeu seus cabelos. Aqueles que estavam acamados eram os
únicos que ficavam no Posto durante o dia. Os outros voltavam à tarde e à noite, a fim
de cuidar deles e partiam de novo na manhã seguinte, para as visitas aos doentes.
Faziam, regularmente, uns oito quilómetros pela estrada abrasadora do vale, passando
de vila em vila, casa por casa.
Quando algumas pessoas se refizeram, caíram enfermos aqueles que os haviam cuidado.
Tratar e deixar-se tratar, dar injeções e recebê-las; buscar
120
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
água no rio quando esse doente tinha sede, trazer umas peras quando outro não queria
aceitar uma alimentação comum; fazer quinze milhas até a cidade principal para buscar
os remédios necessários; era neste ritmo que se unia a nossa equipe.
Nessa época, nossa amizade era sincera e profunda. À noite, à luz de uma lanterna,
reuníamo-nos para rezar pelos nossos mortos queridos. Se Takami trazia-nos flores do
campo, lembrávamo-nos dos olhos brilhantes de Inoue e se Harada-san mandava bolos
de arroz, pensávamos em Hama. Se se tratasse de cerejas, vindas da mulher do cesteiro,
recordávamos do narizinho vermelho de Yamashita, e se as batatas-doces chegavam da
família de Mitsushita-san, lamentávamos Oyanagi e Yoshida que estavam no campo de
batatas, na hora da explosão. Meus olhos ficaram cheios de lágrimas, pensando o quanto
seríamos felizes se Fujimoto e Kataoka e Kozasa estivessem ali conosco, saboreando o
que comíamos. . .
No dia 20 de setembro, meu estado agravou-se e perdi toda esperança de cura. Durante
mais de uma semana a doença atómica me atacou com toda a intensidade e febre alta.
Nesse período, imploraram-me que fosse ver um doente, no alto de uma colina, a
alguma distância de onde estava. A extensão podia precipitar minha morte, mas achei
que dar minha vida por um irmão desconhecido seria um belo sacrifício e pus-me a
caminho. As pernas pareciam não poder sustentar-me. Depois de um breve descanso no
prédio improvisado do Mosteiro Junshin em Kawadoko, onde fui repreendido pelo
Abade, por
121
OS SINOS DE NAGASAKI
causa de minha temeridade, consegui afinal, com esforço, fazer a visita a meu doente.
Quando, tarde da noite cheguei, fui diretamente para a cama, da qual nunca mais
deveria levantar-me.
Acordando de uma espécie de coma doloroso, notei uma curiosa modificação no meu
ritmo respiratório. Ansioso pus-me a ouvir e reconheci os sintomas de Cheynes-
Stock. . . a respiração dos moribundos . . . "Todas as aparências de Cheynes-Stock"
disse eu em voz alta. Neste momento, vi à minha cabeceira o Dr. Tomita que estudou
outrora na nossa seção, partira para a guerra e acabara de chegar. "É verdade",
concordou êle com certo embaraço.
— Foi muito amável de sua parte ter vindo de tão longe, falei, estendendo-lhe a mão.
Notei também, nessa hora, a presença de Miss Morita, enfermeira-chefe do Hospital da
Marinha.
— Não se preocupe, Doutor Nagaí, o senhor vencerá essa crise. Mas fique calmo.
Aplicou-me uma injeção no braço. Pela dor que senti, calculei tratar-se de coramina.
Nesse caso — pensei — meu pulso deve estar bem fraco. Sentia, com efeito, no
coração, um peso doloroso, mas a enfermeira tranqúilizou-me... Se ela dizia isso, quem
sabe eu venceria realmente ? Toda espécie de ideias invadiram minha mente,
desapareceram, voltaram ainda e se apagaram. Não podia mover a cabeça e custava até
para abrir os olhos. Parecia-me, entretanto, haver uma porção de pessoas em volta de
mim, ora cochichando, ora se movimentando. Apesar disso, assaltou-me um sentimento
de solidão.
122
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
Perguntei pelo Dr. Si. Responderam-mc que saíra por alguns instantes, mas logo
voltaria.
— Onde ? murmurei, e caí de novo inconsciente.
O Dr. Si lutara o dia todo para salvar minha vida, e naquela hora fora chamar os
Professores Koyano, Shirabe e Kagura, a fim de trocar ideias com eles sobre meu
estado. Concluíram que não havia esperanças. Sem que o soubesse, muitos amigos
estavam se afligindo para tirar-me daquela triste situação.
O Padre Togawa veio trazer os últimos sacramentos. Preparei-me para o fim, pronto
para qualquer eventualidade. Aquele estado de semi-incons-ciência durou até a tarde.
Todos os amigos me rodeavam e essa presença me reconfortava. Meu coração já
começara a lutar contra a morte, e eu sabia que outra crise seria decisiva. . . As janelas
estavam abertas e as Três Montanhas, símbolo da Trindade, recortavam-se no céu azul
escuro, que falava do outono. "A nuvem do outono desaparece na luz do céu." Repeti o
poema duas vezes, antes de mergulhar numa última inconsciência. . .
Quando saí dessa situação crítica — uma semana mais tarde — não havia quem não
falasse em milagre !
Sintomas e remédios.
Os efeitos da radioatividade sobre seres vivos já eram — em muitos pontos —
conhecidos pela experiência. Diferem conforme tenha a pessoa sido exposta
123
OS SINOS DE NÂGASAK1
brevemente a uma ação intensa, ou longamente a uma ação fraca; mas o princípio geral
é sempre que a radioatividade destrói as células de todo ser vivo e provoca a
degenerescência dos tecidos. Essas consequências não são, entretanto, imediatas:
intercala-se um período de incubação cuja duração difere segundo os órgãos afetados.
Na ocasião, nenhuma dor, nenhum ferimento: a penetração dos raios não afeta os
centros nervosos; a vítima não se apercebe senão mais tarde, quando surgem os
sintomas. Algumas partes do organismo resistem muito mais do que outras. As mais
vulneráveis são: a medula, as glândulas linfáticas e genitais.
A medula dos ossos é a oficina onde se fabrica o sangue. Qualquer mal que a atinja
diminui, em geral, a produção de glóbulos vermelhos e brancos. Ao contrário, em casos
de afecção crónica, a medula degenera, emitindo enorme quantidade de glóbulos
brancos, popularmente chamados de "o sangue branco" (leucemia). Esse caso apresenta-
se, de modo particular, sob a influência prolongada de uma radioatividade franca. As
amídalas, por exemplo, são muitas vezes atingidas e frequentemente exterminadas. As
glândulas genitais diminuem ou cessam suas funções: as vítimas tornam-se estéreis ou a
progenitura é mal conformada. As mucosas também são facilmente afetadas: congestão,
inflamação, e até úlceras. A inflamação dos órgãos digestivos produz uma forma de
disenteria. Atingidos nas pontas e nas raízes, os cabelos caem. Esses efeitos, todavia,
são passageiros.
Se os pulmões forem tomados, a consequência é a pneumonia; se se tratar dos rins, é a
atrofia.
124
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
Entre os efeitos iniciais, sentidos algumas horas depois e podendo durar vários dias,
salientam-se uma espécie de astenia, torpor e náuseas. Quanto mais jovem fôr a vítima
mais intensos os efeitos: pessoas idosas podem resistir a uma irradiação que mataria um
moço.
Cada variedade de radioatividade é mortal em determinada dose, mas como um período
de incubação é necessário, a morte nunca é imediata. Entretanto, não existe nada que
possa salvar a vida de quem passe pelo efeito da dose funesta. . .
Evidentemente, o maior dano foi causado pelos neutrons e os raios gama que a própria
bomba desprendia. A radioatividade residual foi logo muito mais fraca, mas também
mais difícil de ser combatida. Isso fêz nascer a ideia de que, durante setenta anos, a
região seria inabitável.
Os rumores em relação aos gases envenenados, a convicção de que o vento da explosão
era nocivo, tudo isso, na verdade, eram efeitos da radioatividade.. . É esta,
aproximadamente, a ordem dos sintomas: umas três horas após a explosão, náuseas e
torpor aumentavam durante um dia e desapareciam gradativamente. A partir do terceiro
dia manifes-tavam-se as perturbações digestivas e, nesse caso, os doentes morriam após
oito dias. Na segunda semana produziam-se as hemorragias, devido às desordens
sanguíneas. A maioria das vítimas morria. Na quarta semana revelavam-se os graves
distúrbios causados pela diminuição dos glóbulos brancos, distúrbios quase sempre
fatais.
125
OS SINOS DE NAGASAKI
A perda dos cabelos começava na terceira semana; a irregularidade das glândulas
sexuais vinha mais cedo, prolongando-se durante umas dez semanas.
Em todos os casos, as crianças eram acometidas mais depressa e violentamente do que
os adultos.
Em setembro, quando as manhãs já eram mais frescas e o perfume do outono pairava no
ar, a confusão produzida pela capitulação tornou-se, por assim dizer, amainada. Os
sobreviventes, na maioria, consideravam-se garantidos e davam suspiros de alívio.
Entretanto, lá pelo dia 5 deste mês, isto é, durante a quarta semana depois da explosão,
houve novo surto de mortandade. Essa hecatombe, provocada pela diminuição dos
glóbulos brancos, causou pânico geral. Pessoas que estavam a uma distância de um
quilómetro, dentro de suas casas, que nada tinham sofrido e que se achavam
aparentemente bem, tratando dos enfermos ou removendo escombros, de repente caíam
doentes: abatimento, palidez por todo o corpo, temperatura acima de 40°, estomatite e
aftas. Faringite, amidalite, impediam-nas de engolir o que quer que fosse. Manchas
sanguíneas, de um vermelho-escuro, apareciam na pele, primeiro nos braços e depois
nas coxas. Variavam de tamanho entre uma cabeça de alfinete e uma fava, inchando às
vezes muito mais. Verificava-se, geralmente, uma queda dos glóbulos brancos, e
quando o número desses caía abaixo de 2.000, a morte era quase sempre inevitável.
Aliás, o processo da moléstia era rapidíssimo e dentro de nove dias os pacientes vinham
a falecer.
126
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
Entre os casos mais curiosos figuravam as vítimas indiretas da radioatividade. Árvores e
plantas, entre dois a sete metros de altura, mudaram de côr, tornando-se vermelho-
claras. A relva sobre a qual caiu a chuva radioativa, murchou em seguida. No dia da
explosão, dois fazendeiros de Kawabira cortaram esta relva e levaram-na para casa
como combustível. Na manhã seguinte, seus braços e pernas, que estiveram em contacto
com a planta, cobriram-se de uma erupção vermelha, acompanhada de prurido intenso.
Mas esses se curaram dentro de poucos dias.
Nos primeiros sintomas, os remédios mais eficazes foram as injeções de vitaminas B e
de glicose.
Para as queimaduras, as fontes minerais impuseram-se à experiência, de preferência aos
remédios e injeções: aquelas curavam as feridas numa média de 24 dias, enquanto esses
exigiam de 38 a 40. Os banhos de água mineral também foram úteis para os
traumatismos e eu mesmo, fui um dos mais beneficiados. As fontes são uma farmácia
natural.
Fomos nós os primeiros a experimentar o tratamento pelo auto-sôro, que foi
rapidamente adotado por outros médicos, com diferentes resultados. . . Tirávamos do
paciente dois centímetros cúbicos de sangue e os injetávamos de novo. Os melhores
resultados foram obtidos nos moribundos: sem exceção voltavam à vida, e depois disto
cessou a mortandade.
Quanto ao regime que dávamos aos doentes, consistia sobretudo de fígado de qualquer
animal, ora cru ora ligeiramente cozido, assim como legumes frescos, o quanto podiam
comer. O sistema revelou-se eficaz.
127
OS SINOS DE NAGASAKI
Também o vinho de arroz produziu excelentes resultados. Houve mesmo diversos casos
em que os doentes, abandonados pelo médico, e desejosos de fazer o que bem
quisessem antes de morrer, beberam como esponja e. . . restabeleceram-se !
Os efeitos da radioatividade residual nas zonas próximas do centro da explosão
constituíram, em seguida, o objetivo de meus estudos. . . Depois de fechado o posto de
Mitsuyama, em outubro, mandei construir uma cabana em Ueno-Machi, a uns 600
metros do local da explosão e é aí que estou hoje deitado, observando cuidadosamente
tudo quanto se passa em volta de mim, enquanto escrevo "Os Sinos de Nagasaki".
É inútil dizer que uma radioatividade notável subsistiu algum tempo nesta região. Foi
diminuindo aos poucos, mas ainda hoje, um ano depois da explosão, existe certa
quantidade de bário e de estrôncio radioativos, produzidos pela separação dos átomos de
urânio, e que emitem mínimas quantidades de raios.
Naturalmente os efeitos dessa radioatividade residual foram tanto mais graves quanto
mais cedo as pessoas vieram morar aqui. Aqueles que mudaram para cá três semanas
depois do cataclismo, sentiram as náuseas atómicas durante um mês, acompanhadas de
violento desarranjo intestinal. Os que vieram depois de um mês sofreram menos, mas os
sintomas foram iguais. As pessoas que mais padeceram foram as que tinham
transportado cinzas ou telhas para desobstruir suas casas incendiadas, ou que
removeram cadáveres. Além disso, qualquer picada de
128
O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
mosquito ou um pequeno arranhão supuravam facilmente: nova consequência da falta
de glóbulos brancos...
Depois de três meses não se observaram outros distúrbios graves. Em grande número, as
pessoas começaram a construir suas cabanas e a habitar nesta região. Eram, sobretudo,
os desmobilizados, refugiados de outros setores bombardeados e, por fim, repatriados.
Fato que observamos: os glóbulos brancos desses últimos chegados aumentavam a
ponto de dobrar durante o primeiro mês. Esse fato, revelador de uma exposição contínua
a uma radioatividade fraca, demonstra que existe ainda uma quantidade infinitesimal de
radioatividade na zona, como, aliás, haviam-nos prevenido os americanos. Mas, visto o
ritmo relativamente rápido do decréscimo dessa radioatividade, a teoria dos 75 anos
perigosos é absolutamente falsa, e todo perigo cessará, é de prever, dentro de muito
pouco tempo.
As pessoas cujos glóbulos brancos tanto aumentaram, estão, aliás, em ótimas condições
de saúde. Durante o tempo que ali morei nunca me vieram consultar senão para doenças
parasitárias. No inverno, essa gente dormiu em cabanas expostas a todas as intempéries;
a neve entrava nelas e as estalactites de gelo formavam-se no teto: para se cobrir tinham
apenas os cobertores que foram distribuídos. Entretanto, nunca se ouviu falar de
pneumonia nem de simples resfriados: pelo contrário, nesses últimos tempos, as feridas
cicatrizavam sem supurar. . .
No campo da fecundidade cessaram os acidentes. Olho o futuro com otimismo. Os
únicos casos du-
129
OS SINOS DE NAGASAKI
vidosos ou desanimadores são as queimaduras atómicas, que diferem das queimaduras
comuns. É sabido que esse género de queimadura desenvolve os quelóides; provocam
uma comichão horrível que ninguém contém. Depois de alguns anos tornam-se úlceras
e, mais tarde, câncer. O câncer virá das queimaduras atómicas ? Pergunta difícil, que
somente o futuro responderá.
ISO
V A VIDA É MAIS FORTE
Renasce a vida.
Pés gretados
No dia 16 de outubro, terminei o meu trabalho no posto de socorro de Miyama. Voltei a
Urakami para estabelecer-me entre as suas ruínas calcinadas. Os primos de minha
mulher haviam construído ali uma cabana; pedi-lhes hospitalidade, para mim e meus
filhos.
Já moravam lá cinco pessoas, de duas famílias; somos mais quatro agora. Nove
habitantes sobre uma área de pouco mais de um "tsubo", isto é, de quatro metros
quadrados. Para dormir, somos obrigados a nos deitar de lado, apertando-nos uns contra
os outros, a cabeça de um virada para os pés do outro. Por vezes, os pés rachados de um
vizinho passam pelo meu rosto. Consciência viva da intimidade que existe entre todos
aqueles aos quais a morte poupou.
131
OS SINOS DE NAGASAKI
Buracos de pregos
Nossa cabana é feita de vigas, tábuas, folhas de zinco, grampos e pregos. Uma parede
de pedra, de um metro e meio de altura, milagrosamente conservada, foi utilizada, tal
qual, como outra parede mestra. As vigas são sustentadas pelos ganchos de ferro; sobre
elas pregaram o zinco. É uma miscelânea de material, recolhido aqui por perto e que o
fogo desprezou. Uma coberta velha que nos foi dada serve de tapete; temos até uma
porta de madeira. O problema é o da luz: não existe janela, de sorte que, quando
fechamos a famosa porta, a escuridão é completa; se a abrimos, há claridade, mas que
frio entra também !. . .
A porta dá para o leste, a "parede" para o oeste, as folhas de zinco para o norte e o sul
(1).
Nas quatro faces, foi preciso tapar os buracos dos antigos pregos, cobrindo-os com
papel ou fazendo uma bucha de madeira. Apesar de tudo, é maravilhoso nas noites de
lua. Em cada parede refletem os buracos, como um céu semeado de estrelas.
Acender o fogo!
A estação chuvosa começa em novembro. Nosso fogão, por enquanto, funciona do lado
de fora, perto da entrada. Como não tem proteção, dificilmente o
(1) Os povos do Médio e Extremo Oriente situam os objetos em relação aos pontos
cardeais e não como diríamos nós: à direita e à esquerda, em frente e atrás.
132
A VIDA É MAIS FORTE
fogo acende. Fósforos não existem. Quando o fogo se extingue, é uma tragédia. Chego a
chorar de verdade. Pelas minhas faces correm gotas frias: é a chuva; mas essas gotas
quentes, não há dúvida ! são lágrimas.
Enquanto me mantenho sentado, sozinho, encharcado, eis que uma criança da cabana ao
lado aparece correndo com uma mecha acesa. Imediatamente o nosso fogo crepita.
Kayano, minha filha, bate palmas de alegria. A prestativa vizinha volta depressa de
onde veio, a cabecinha baixa e os ombros curvos...
Samambaias
A bomba atómica espalhou por toda parte uma camada de cinzas, de telhas e restos
queimados. O lugar onde antes se achavam as casas e os campos, está igualmente
recoberto de quinze centímetros de escombros. A explosão provocou um vácuo que
aspirou todos os objetos leves; e esses, num contra-choque, foram atirados por todo
lado.
Foi assim que um cartão postal, dirigido a mim, voou para o quintal de um amigo, em
Yagami, a 12 quilómetros de distância ! Êle deduziu que minha casa tivesse sido
destruída. Conclusão exata, aliás.
Agora, milhares de samambaias começaram a brotar sobre o local de minha casa; as
sementes foram, sem dúvida, trazidas do monte Inasa, pelo vento do oeste. Nossa
colina, desembaraçada de toda construção, c invadida pelas samambaias, parece uma
floresta virgem.
133
OS SINOS DE NAGASAKI
Trigo
Também o trigo germinou por toda parte, proveniente de espigas guardadas nas casas.
Muitos desses estoques queimaram, mas algumas sementes resistiram e cresceram
rapidamente entre as ruínas férteis. Em fins de novembro, sem mesmo ter semeado,
contentamo-nos em transportar essas hastes tenras (1) que já haviam atingido 20 ou 30
cm. Pensávamos que esse trigo, germinado antes do tempo, amadureceria cedo também;
todavia, as espigas só apareceram na época normal, no fim da primavera. Eram, aliás,
pequenas e a colheita foi fraca. Creio que se pode atribuir esse fato à radioatividade
residual.
Porcelanas
O que atrai os olhos para o solo calcinado são os pedaços de pratos ou tigelas que
refletem os raios do sol. Como é triste reconhecer as pinturas vermelhas sobre fundo
branco de uma preciosa porcelana de Imari (2). Os deuses da fortuna, no bocal de um
vaso de Kutani, são quebrados em grupos de dois e cinco, mas corajosamente
continuam a sorrir. O famoso tom alaranjado das porcelanas de Kakiemon, passou a ter
uma côr de tâmaras secas, e aquele vaso
(1) A transplantarão da semente já germinada é normal para o arroz, mas não para o
trigo.
(2) Esse nome e os que se seguem designam a região onde são fabricadas essas
preciosas porcelanas.
134
A VIDA É MAIS FORTE
de Hagi revestiu-se de umas curvas mais fantasistas. Sento-me entre as cinzas e,
enquanto o tempo corre, distraio-me com a beleza desses tesouros escondidos. Tantas
peças quantas as recordações das alegres reuniões de um passado feliz.
Muito tempo e de longe procurei uma tigelinha de arroz de Hasami, pela qual Midori
tinha especial preferência. Esforço inútil. Mesmo que a tivesse encontrado, tê-la-ia
imediatamente enterrado de novo nas cinzas.
Cinzas
Começo a retirar os escombros de minha casa. Choveu muitas vezes depois do dia fatal
e as cinzas petrificaram-se. São de diversas qualidades. Onde era meu escritório,
encontro montes de cinzas ora brancas, ora pretas: diferença de papel ? Algumas cinzas
pretas conservam a forma de página. Pode-se ainda mesmo ler fragmentos do texto:
"Na profundeza das montanhas, encontro folhas de bambu que balançam ao vento E me
fazem pensar em você !"
Enquanto leio as palavras do velho poema, perpassa uma súbita brisa; os suspiros
enviados pelo poeta viajante à sua esposa que o esperava no seu lar longínquo,
espalharam-se aqui e ali em lantejoulas pretas.
135
OS SINOS DE NAGASAKI
Decorações
Medalhas, decorações surgem nas cinzas. Eis aqui uma da Águia de Ouro: perdeu sua
forma e seu esmalte, e a pequenina águia de ouro que a remata está retorcida.
No reverso ficou uma decoração do Tesouro Sagrado: dir-se-ia dois nómades que,
trémulos de frio, encostam-se um ao outro para aquecer-se. A Ordem do Sol Levante
não possui senão um furo no lugar do Astro. Duas medalhas militares viraram
chapinhas vulgares, como que para mostrar que tudo não passa de um sonho.
A Ordem da Águia foi-me conferida por ter eu, sob uma chuva de balas, conseguido
salvar grande número de soldados feridos. Pergunto às vezes a mim mesmo se não os
terei salvo para receber esta medalha, mais do que por amor ao próximo ?
Não quero dizer que o meu gesto tenha sido errado ou tolo. Censuro apenas a minha
intenção, achando que eu me contentava então com essas distinções passageiras.
Crucifixo
Virando as cinzas num canto do terreno, descobri afinal este Crucifixo que pertencia ao
oratório familiar. Evidentemente, a cruz de madeira desapareceu no fogo, mas o Cristo
de bronze permanece intacto, sem um defeito, sem um arranhão. Relíquia
136
A VIDA É MAIS FORTE
preciosa do tempo em que os Tokugawa perseguiam o cristianismo.
Tudo me foi tirado; esse Crucifixo somente me resta !
Flores
Arrastando-me apoiado à bengala, acompanhei minha filha Kayano até o antigo pomar.
Ela me guiava e de repente exclamou:
— Flores ! olha as flores !
Dentro de um mar de telhas partidas vi desabrochada, solitária, uma epoméia. Diante
deste esplendor azul-forte, tive ímpetos de me ajoelhar, ali mesmo e agradecer a Deus
— apesar de tudo — por este dom magnífico: primeiro presente de Sua bondade, no
meio destas ruínas desoladoras. Sinal que o Senhor não nos esqueceu. . .
A grande árvore
Havia outrora, atrás de nossa casa, uma grande árvore espinhosa. Seus galhos cobriam
quase toda a casa e diziam ter quase três séculos. Dela, agora, resta apenas um tronco
enorme. Traz exposta a ferida branca de sua madeira, quebrada justo na altura do
primeiro galho. Dias e meses se passaram, benfazejas noites de chuvas. Todavia, da
árvore grande não saiu mais nem um broto.
Aos seus pés, entretanto, floresceu uma epoméia. . .
137
OS SINOS DE NAGASAKI
Cinco vinténs
Quando o fogo me expulsou de minha casa, trazia no bolso do meu uniforme de defesa
passiva uma moeda de cinco vinténs. . . Toda a minha fortuna. Consegui arranjar um
cartão postal, escrevi nele a minha desgraça, e confiei-o (com os cinco vinténs para o
selo) a uma enfermeira que voltava para o seu país natal.
Recebendo o meu recado, meu primo Otomi-sen enviou-me 100 yen. Uma fortuna !
quase tanto quanto o meu salário mensal. Bem depressa, porém, dei os 100 yen a um
monge polonês que voltava do campo de concentração para o seu convento. Um mês
depois do mosteiro já reaberto, enviaram-me uma Bíblia e uma imagem de Nossa
Senhora.
Com meu Crucifixo na parede, não tenho necessidade de mais nada. Rezando pelos
meus benfeitores, considero-me o homem mais rico do mundo. Presumo que o Senhor
retribuirá ao bom Otomi-sen pelo menos um milhão de yen !
Abastecimento
Os campos foram danificados, recobertos de entulhos, mas apesar disso, frutas
machucadas espalham-se por todo lado. Ninguém sabe a quem pertencem; resolvemos,
então, que aquelas que estiverem na nossa área são nossas. Terminadas as frutas,
plantamos batata-doce. Suas folhas, porém, foram comidas por
138
A VIDA É MAIS FORTE
uma espécie de lagartas de 3 centímetros, pretas, listadas de amarelo. Lembram as
calças dos soldados, no tempo da guerra russo-japonêsa. Devoraram toda a folhagem e
além disso, havendo ainda um resto de radioatividade, a colheita não produziu 10% do
rendimento normal.
Mas não morremos de fome: como quase toda a população desapareceu, esse punhado
de batatas foi suficiente para alimentar os sobreviventes.
Cupidez castigada
Aqui e ali, nas colinas e nos vales, as cabanas vão surgindo. Dizem os velhos que isso
lhes recorda a volta da "Grande Viagem". Referem-se à expulsão que, no princípio da
era Meiji, baniu para o Japão do Norte os "Kiristans" de Urakami.
Só puderam voltar após muitos anos: campos e casas entregues ao abandono e
imediatamente tiveram de lutar contra a carência de alimentos. Mas no pantanal dos
arrozais, não cultivados desde tanto tempo, descobriram cardumes de caborjes.
Alimentaram-se, pois, com esses peixes e puseram-se a trabalhar. Como não tinham
enxadas ou ancinhos, cavaram a terra com bambus e nela plantaram batata-doce.
Enquanto isto, parecendo que os peixes eram inesgotáveis, três homens tiveram a ideia
de revendê-los na cidade. . . Desse dia em diante os caborjes desapareceram !
139
OS SINOS DE NAGASAKI
Os anciãos que nos contam isso, não deixam nunca de acrescentar: Não vos preocupeis:
Deus é bom e Êle vos alimentará hoje, amanhã e mais tarde ! Mas se deixardes crescer
em vós desejos ambiciosos, Êle deixará de vos abençoar...
Fantasmas
Como o local da explosão atómica está coberto de esqueletos, não é de admirar que
fantasmas sejam vistos por ali ! Garantem que, se alguém atravessar de noite os campos
de Urakami, ouvirá os soluços abafados de uma mulher. É tudo falso: Urakami, cidade
cristã, não pode ter tais superstições: mas resolvi certificar-me pessoalmente do fato.
Enceto um passeio noturno na região danificada. Sobre a extensão de ruínas, a luz fria e
azulada da Lua de inverno cria uma atmosfera que parece exigir a presença de
fantasmas. Não ouço, porém, soluço algum. Estendo minha exploração de Hashiguchi a
Haranoda, indo até Sajono-saka.
Apenas um trilho está aberto, ladeado de um duplo deserto: nem uma cabana. Chego à
altura de Shuku. O vento gélido da noite, vindo do porto, açoita-me o rosto e sem
querer, estremeço.
Foi então que ouvi os "ahn, ahn" dos soluços. Paro. A leste, a planície da Universidade,
do lado onde eram as salas de anatomia. A oeste, branca como um espectro, na luz da
Lua, uma árvore morta. Ahn !
140
A VIDA É MAIS FORTE
ahn ! Os soluços partem dali; mais distante, as mulheres parecem chorar em grupos. E,
dir-se-ia, crianças também. . .
Aqui, o quarteirão da Escola; assistentes e estudantes viviam entre as lojinhas de
cigarros, de selos, e as que vendiam laranjas no inverno e refresco no verão. Lembro-me
daquela mocinha pálida que contava três vezes, sem um sorriso, os dois cartões que nos
vendia. O gigante que o dia inteiro amestrava cães pastores. A menina que, durante
horas, tocava exercícios ao piano. Sobre seus tamancos de pau, o velho doutor que
nenhum caso urgente jamais conseguiu fazer andar mais depressa. Os ossos de toda essa
gente estão aqui, sob este luar. . . Penso neles e isso aumenta o trágico da situação. A
mocinha deve ter morrido contando seus cartões postais; o gigante protegendo os cães
com seu próprio corpo. Será que a pianista ouviu arrebentar as cordas de seu piano, no
momento fatal ? O velho doutor deve ter sido envolto pelas chamas, enquanto
calmamente se encaminhava para o posto de socorro. Enveredo por dentro das ruínas.
Mais nada ! Nenhum barulho !. . . E aqueles soluços ? Uma ilusão ?
O vento volta a soprar na direção do porto, roçando a colina. "Ahn, ahn !" Eis que ali
mesmo, junto de mim, renascem os lamentos. Paro, escuto e então compreendo ! São as
telhas que choram ! Amontoadas em desordem, oferecem ao vento inúmeras formas
irregulares nas quais êle sopra o seu queixume. É bem verdade que aqueles cochichos se
assemelham a soluços !. . .
141
OS SINOS DE NAGASAK1
Telhas, chorai !. . . chorai já que ninguém sobreviveu aqui para lamentar as famílias
exterminadas. Que ao menos, sobre seus túmulos, chorem as telhas no vento frio da
noite.
Volta de um soldado
Um soldado desmobilizado apareceu sobre a colina. Êle vacila sob o peso da mochila,
pára, olha em volta. Dá mais alguns passos; de novo se detém, examinando a redondeza.
De repente, parece ter achado uma rocha de jardim (1) ou qualquer outro ponto de mira.
Titubeia e, olhando para o chão, cai pesadamente. Bastante tempo fica imóvel como um
morto. De cada cabana, os olhares observam-no, mas ninguém tem coragem de sair. A
voz embargada pela emoção não consegue mesmo chamá-lo. Todos pensam: É Yamada
que volta do Sul. . . Toda sua família desapareceu. E êle ficará sozinho, assim: êle que
se preparou para morrer pelo seu país. . .
O sobrevivente de uma esquadra-suicida murmurou: a guerra não devia existir !. . .
Pobreza
Como sabem, não possuo mais nem um vintém ! Ainda uma vez disse eu hoje essa frase
a uma visita. Desde há algum tempo, são essas as minhas palavras
(1) Os jardins japoneses apresentam um misto de vegetação e de blocos de pedras de
formas curiosas.
142
A VIDA É MAIS FORTE
favoritas. No fundo, há muita vaidade dentro delas: é exatamente o mesmo sentimento
que faz aquele outro dizer: Eu sou milionário. Face positiva e face negativa de uma
idêntica busca de si mesmo.
Vangloriar-se de ser pobre não é uma pobreza honesta; poderíamos chamá-la de pobreza
viciosa. A pobreza viciosa procura escapar das responsabilidades sociais, refugiando-se
por trás de um escudo de pobreza.
Saudações
"Como ? você ainda está vivo ?" Eis o que dizem uns aos outros, os que se encontram
entre as ruínas. É natural, visto serem os mortos muito mais numerosos do que os que
vivem. Mas, pensando bem, essas palavras não revelam a amizade verdadeira. Aquele a
quem minha sorte realmente preocupou deveria vir a meu encontro, de braços abertos e
dizer: "Enfim ! cansei-me de procurá-lo, amigo velho ! Em que diabo de lugar você se
escondeu ?. . ."
Minha irmã mais moça veio de Sampeiyama, lá na região de Iwani, para ver-me.
Atirou-se para mim antes mesmo de se desfazer do seu saco de viagem e, vendo o meu
estado, desatou no pranto. . . Seu marido foi morto na Birmânia.
Digo-lhe que se desfaça de sua bagagem e eis que a vejo tirar do saco, com um barulho
de campainhas, um grande relógio de parede, muito antigo:
143
OS SINOS DE NAGASAKI
recordo-me da minha infância, com aquele relógio pendurado na sala de nossa casa.
— Durante todo o caminho olharam para mim com espanto, meu irmão ! O relógio não
parava de tilintar !. . .
E ela pôs-se a rir, sem mesmo lembrar de enxugar as lágrimas. Pendurou o relógio na
parede, dando-lhe corda.
Com o ritmo desse tique-taque, a cabana parece ter adquirido vida.
— Um relógio, disse ela, é o coração de uma casa. Consulta o seu próprio relógio e
acerta os ponteiros nas 2 e 50. Dentro de dez minutos vai bater. O velho e conhecido
som ressurgiu da minha memória de criança.
— Psiu, Kayano, minha filha. Fique quietinha ! Daqui a dez minutos, quando o ponteiro
grande chegar ali em cima, o relógio vai bater três vezes: Den. . . den. . . den. . . Assim !
escute. . .
— E quando tocar, é a hora do chá ?
— É sim, Kaya querida. Mamãe. . . não, titia vai lhe dar uma laranja de Iwani. . .
A tia deve estar chorando de novo, pois virou-se de costas e não acaba de remexer no
seu saco de viagem.
Mas eu e Kayano, contendo a respiração, olhávamos o ponteiro grande caminhar
lentamente, lentamente . . .
144
A VIDA t MAIS FORTE
Escombros
Com Majoto (1) comecei a retirar os escombros calcinados. Cavamos a camada de
cinzas, de escombros e de telhas. Peneiramos e espalhamos as cinzas pelos campos,
enquanto as telhas eram enterradas no antigo abrigo. O trabalho é lento e difícil, pois
não passo de um inválido e Seiichi é uma criança.
Enquanto sacudia a peneira, percebi entre os cacos de telhas um belo objeto: pegando-o,
vi que era a fivela de um cinto (2). As cores daquela porcelana de Fajima estavam um
pouco desmaiadas, mas enquanto mantinha o objeto entre as mãos, inúmeras cenas
familiares povoaram a minha mente: pensei naqueles dias, quando comprei essa peça,
perto da grande ponte de Matsue, na região de San-In, voltando de minha primeira
viagem a Kyoto, onde fui para um congresso, logo depois de meu casamento. Midori
gostava imensamente desse "obi-dome" e usou-o muitas vezes. Era tão simples,
entretanto. . .
Penso também nas cortinas brancas da varanda, e nas flores, nas abelhas. . . Seiichi faz-
me voltar à realidade; sobre as cinzas, o sol poente alonga minha sombra e o vento frio
gela as minhas pernas. Ajoelho-me no local onde encontrei os restos de Midori: rezo o
meu rosário e volto.
(1) Filho do autor.
(2) Obi-dome. O "obi" é o cinturão largo das mulheres japonesas, que elas usam sobre o
quimono.
145
OS SINOS DE NAGASAKI
Depois disto, não quis mais mexer nos escombros. Se tivesse continuado, outras
relíquias teriam aparecido e não suportaria tanta dor. Não que queira esquecer, mas
somente evitar recordações por demais penosas.
Desentulhar
Toizumi, um de meus amigos, ofereceu-se para vir remover os escombros, com três
alunos da escola secundária.
Infinitas recordações prendem-se aos objetos que pertenceram aos seres que amamos —
ainda que esses objetos não possuam, por si mesmos, nenhum valor.
Oh ! essa roda da máquina de costura !. . . Mas os braços indiferentes de um dos rapazes
atiram-na no antigo abrigo: "Não presta, diz ele, é apenas uma velha máquina de
costura". Um. . . dois. . . três. . . Joga-a longe !
Oh ! esse ferro elétrico ! Mas Toizumi decreta: "Esse negócio não serve mais ! Para o
lixo !" e atira-o fora. . .
Esses vestígios, carregados de imperecíveis recordações, são jogados no monturo, pelas
mãos indiferentes de meus quatro ajudantes. Mas já nessa noite, o campo de carnificina
transformou-se num belo jardim.
E Toizumi diz: "Plantaremos aqui uma roseira para você..."
146
A VIDA É MAIS FORTE
Meus visitantes.
Tínhamos chegado há pouco em Mitsuyama, quando decidiram reabrir a Escola: os
sobreviventes reuniram-se; estudos e trabalhos médicos foram reiniciados no prédio da
escola primária de Shinkozen. No dia 2 de novembro realizou-se uma cerimónia
comemorativa, na qual rezamos pelos nossos 807 companheiros desaparecidos.
Morava eu numa cabana de folhas de zinco — com seis pés de comprimento,
construída, para mim, em Ueno-machi, e ali morei desde então. Apoiava-se ela contra
uma parede cujos buracos se revelaram logo extremamente úteis para guardar papéis.
Nos dias de chuva, porém, a coisa era diferente ! Os membros da Faculdade, que
frequentemente me visitavam, não se referiam à minha "casa", mas à minha "caixinha".
Um capelão militar americano perguntou-me um dia: "É esse o seu palácio ?"
Constantemente recebia visitas das mais variadas, desde o bispo de Fukuoka, até
mendigos. Certo dia em que eu conversava seriamente com um dos professores da
Escola, vieram-me oferecer, com grande estardalhaço, um par de sapatos velhos do
Exército, pertencentes a nossos estoques de socorro !. . .
Yamannoto e Hazamoto, dois alunos meus, voltaram da guerra e vieram visitar-me.
Sentados a meu lado, olhavam-me em silêncio. Pressentíamos que uma só palavra
desencadearia o pranto.
— É medonho, não é verdade ?
147
OS SINOS DE NAGASAKI
— De fato; e vocês lutaram bem. Obrigado, meus amigos. . .
— Mas nós não esqueceremos: eles nos pagarão ! Pouco importa se não fôr já !
— É realmente esse o sentimento de vocês ?
— Claro que é.
— É o que a gente pensa quando perde uma guerra que poderíamos ter ganho ! E
quando existe ainda no país força bastante para prosseguir. . .
— Exatamente ! O Japão não estava tão enfraquecido que precisasse render-se.
Tínhamos ainda muita energia.
— Vocês acham ? Se o Japão rendeu-se incondicionalmente, não é por reconhecer que
toda resistência era vã ?
— Ora essa ! olhe para nós ! Não somos fortes bastante para lutar ?
— Por que não o fizeram antes da derrota ? Como sobrariam forças nos indivíduos,
quando o Estado se esgotou ? É como se uma família falisse e sofresse toda a
consequência, enquanto o filho caçula se vangloria de ter escondido a sua conta no
banco.
Eles não responderam e eu continuei:
— Durante a guerra, fiz pelo meu país tudo que pude. A Escola também funcionou até o
fim. Durante os reides aéreos socorremos os feridos, sem medo, no espírito da Cruz
Vermelha. Até o dia da explosão atómica, estivemos sempre a postos e a Escola
mantinha o seu ideal de estudo e de ensino. Mesmo depois da guerra, destruída a Escola,
permanecemos no nosso posto até o último momento,
148
OS SINOS DE NAGASAK1
abandonando-o somente após ter feito o que era humanamente possível. Que os nossos
rapazes tenham continuado os seus estudos e se mantido nos cargos que lhes
competiam, eis, com efeito, e independentemente de nossa derrota ou de nossos
objetivos de guerra, uma coisa maravilhosa !
— Realmente ! E compreendo o que o senhor quer dizer. Excluindo a nossa derrota, o
trabalho deles e seu espírito de sacrifício, foram algo de muito belo e nobre.
— A Escola foi destruída; os prédios viraram cinzas; morreu a maioria dos que ali
viviam, e muitos sobreviventes ficaram, como eu, inválidos. Perdi meus bens, minha
casa e até minha mulher. Perdi tudo. O fracasso depois de um esforço total. Mas como
posso considerar isso uma coisa horrível ? Por que haveria de me lastimar ? Lutamos
conscienciosamente até o último momento: estou agora nas disposições do homem que
contempla a Lua após a chuva.
— O senhor nos confunde, Professor.
— Talvez eu também ficasse revoltado e sofresse espiritualmente, se a capitulação me
atingisse enquanto eu tivesse ainda minha mulher, minha casa, meus bens. Sofreria pelo
meu país arruinado, pelos meus compatriotas que o incêndio expulsou de seus lares.
Mas na verdade, tudo o que eu tinha desapareceu com a minha nação; e no meio de
minhas dores, isto me é consolo.
— Está certo, Professor. . . mas, e esses aproveitadores de guerra, que nunca viveram
tão bem na sua vida ?
149
OS SINOS DE NAGASAKI
— Existem, e deviam ser liquidados. Acham que uma guerra, cada dez anos torná-los-ia
multimi-lionários. Esses miseráveis serão a fonte inesgotável do militarismo; são eles
que desencaminham uma juventude inocente e lhes põem na cabeça ideias de vingança !
Bando de canalhas, que vive às custas da nação !
— Mas, não é justamente a guerra que traz proveito ao país ?
— Talvez. . . se o país vencê-la.
— Uma guerra começada pelo interesse, pode ser uma guerra justa ?
— Como poderia sê-lo ? Não pode haver vitória numa guerra que é injusta aos olhos de
Deus.
— Mas nós rezamos todo o tempo, especialmente ao deus da guerra. . .
— O deus da guerra ?. . . Criação do homem, como o deus do soluço.
— Perdão; êle sempre existiu no Japão.
— Foi inventado, na realidade, por nossos antepassados, cuja teologia e cuja filosofia
eram as mais primitivas. . . Nós fabricamos nossos deuses e, em seguida, pedimos-lhes
que nos concedessem o que desejamos !. . . E foi assim que chegamos a crer na
invencibilidade de nosso país e em lendas como "O vento divino" (1). Rendíamos
homenagens a imagens mortas.
— Então, o senhor acha que não éramos bastante sinceros ?
(1) Alusão a um tufão que, em 1281, destruiu uma frota mongó-lica que partira do
continente para invadir o Kyushu, e que assim salvou o Japão.
150
A VIDA
É
MAIS FORTE
— Não é uma questão de sinceridade, mas é inútil crer em coisas que não existem. Não
podemos esperar triunfar contra inimigos que tinham a graça do verdadeiro Deus ao
lado deles.
— Mas assim como há um espírito japonês, é preciso também haver deuses para o
Japão.
— Pois sim... se esses deuses são admitidos livremente pelo povo, e não impostos a
muque. Em todo o caso, a sua maneira de ver realça uma fé nacionalista primitiva,
julgada desde há uns 2.000 anos.
— Ponhamos de lado a questão dos deuses. Mas a guerra não é, como dizem, a mãe do
progresso para as ciências ? A bomba atómica, por exemplo.
— Teríamos mais proveito ainda se todas essas vidas, todo esse material fossem
consagrados a invenções pacíficas. A guerra não compensa. . . E que lhe disseram os
seus oficiais, quando vocês deixaram o Exército ?
— Para usar de rodeios durante algum tempo, fazer o que os americanos mandassem.
Esperar: mas um dia nós nos reergueremos, fuzil na mão, como fêz a Alemanha. O
importante é estar prontos para esse dia.
— Afastem essas ideias, categoricamente, se vocês crêem em mim. A estratégia dos
amadores só pode acabar em desastre. . . Esses oficiais tinham alguma experiência do
combate real ?
— Para dizer a verdade, não, não tinham. Sempre fizeram parte do comando.
— Era o que eu imaginava. Ler livros de guerra, recostado num sofá, não é nada difícil:
tudo ali parece -
151
OS SINOS DE NAGASAKI
belo, heróico, empolgante e nos incita a imitar. Mas a realidade é totalmente diferente:
como descrever a crueldade de um combate real ? Alguns livros, que expunham a feição
exata da guerra, foram interceptados pela censura. Há um lado pitoresco nas batalhas de
Yoshitsune e alguma poesia no retrato do General Nogi; mas, na bomba atómica ?
Se vocês tivessem experimentado esse inferno na terra, não continuariam com essas
ideias tolas. . . Numa nova guerra, haverá, por toda parte, explosões atómicas: milhões
de pessoas serão massacradas num segundo. Nada de histórias heróicas, de poesia, de
pintura, de música. Nada, senão a morte sem frases. Como um rolo compressor sobre
uma fila de formigas. É terrível demais para imaginar !
— O Japão deve então ficar vencido para sempre ?
— Deus disse na Escritura: "A vingança me pertence, e Eu é que a retribuo." Êle se
incumbe de castigar aqueles que são injustos a Seus olhos, sem ter necessidade de
nossas guerras.
— Que faremos daqui por diante ?
— É o que me pergunto. Penso, tento resolver o problema enquanto permaneço aqui
deitado. Mas não consegui ainda achar uma solução.
— Talvez também devêssemos retirar-nos num lugar tranquilo para refletir sobre esse
problema ?
— A ideia é boa. Vão para as montanhas. Se ficarmos no turbilhão dos homens,
contentamo-nos em correr de um lado para outro na agitação, sem saber nem o que
fazer, nem aonde ir. Mas as mon-
152
A VIDA É MAIS FORTE
lanhas permanecem lá onde elas estão, enquanto as nuvens fogem. Muitas vezes
contemplo as montanhas para refletir melhor.
Meus dois visitantes deixam-me, levando sentimentos novos. Um silêncio calmo invade
a choupana. Kayano, minha filha de cinco anos, fala sozinha, mexendo nos seus
brinquedos: uma cabeça de boneca, vidrinhos vazios, pedaços de espelho catados nos
escombros. Tem que brincar sozinha: todas as suas companheiras morreram.
— Nós tínhamos uma casa grande, diz ela na sua conversa. Com um sobrado. E mamãe
fazia doces. Eu dormia em cima de um colchão, e havia eletricidade na nossa casa. ...
Escutava-a falar do passado, e, fechando os olhos, senti subir em mim uma visão
desaparecida: como num conto de fadas, um palácio maravilhoso no fundo do mar. . .
Depois abri os olhos. . . e qual o pescador que durante cem anos tivesse vivido nesse
palácio encantado, toda a beleza de meu sonho desapareceu diante do espaço árido que
eu contemplava.
Soprava o vento do outono, fazendo um ruído estranho no teto da cabana.
Ichitaro-san apareceu de repente, desnorteado e miserável como de costume. Usava
ainda o velho uniforme, com a boca da calça amarrada nos tornozelos. Desde a sua
desmobilização, voltara depressa. . . para procurar entre as cinzas os ossos calcinados de
sua mulher e dos cinco filhos.
153
OS SINOS DE NAGASAKI
— Não tenho mais razão para viver, disse-me êle.
— E alguém tem, depois desta derrota ? perguntei.
— É verdade. . . Dizem que a bomba atómica foi uma vingança celeste; que todos os
que morreram eram pecadores; que os que escaparam tiveram uma graça celestial de
Deus. Mas então, quer dizer que minha mulher e meus filhos eram pecadores ?
— Não sei; sobre toda essa questão, tenho um modo de pensar diferente. Acho que foi a
Providência que destinou para Urakami — por uma graça — a bomba atómica. A nossa
cidade deve agradecer-Lhe.
— Agradecer ?
— Como não ! Escute: depois de amanhã eu vou representar os leigos, numa cerimónia
fúnebre pelas vítimas, na Catedral. Escrevi uma mensagem. Gostaria de lê-la ?. . . Ela
explica tudo isso.
Ichitaro-san tomou o manuscrito e começou a ler, primeiramente em voz alta e sem
prestar muita atenção ao sentido, mas depois em voz baixa, parando de vez em quando
para refletir. Uma lágrima desceu pela sua face.
Meu texto dizia o seguinte:
"No dia 9 de agosto de 1945, às dez e trinta da manhã, reuniu-se o Conselho Superior de
Guerra, a fim de decidir se deviam capitular ou resistir. Naquele momento em que
resolviam para a humanidade uma solução de paz ou uma carnificina maior, exatamente
às 11 horas e 2 minutos, uma bomba atómica explodiu sobre a região de Urakami, em
Nagasaki.
154
A VIDA É MAIS FORTE
Oito mil almas católicas foram enviadas, num décimo de segundo, ao tribunal de seu
Criador, e um incêndio devastador, em poucas horas, reduziu a cinzas essa cidade cristã.
Nessa mesma data, à meia-noite, a Catedral foi destruída pelas chamas. Também nessa
mesma hora, Sua Majestade, o Imperador, fêz pública a sua decisão de terminar a
guerra.
No dia 15 de agosto, o Rescrito Imperial, que suspendia as hostilidades, foi formalmente
promulgado, e a paz concedida ao mundo inteiro. Celebrávamos, nesse dia, a Assunção
da Virgem Maria, a quem — devem estar lembrados — era dedicada a Catedral de
Urakami.
Poderão ser fortuitas todas essas coincidências ? Não devemos, ao contrário, ver nisso a
ação delicada da vontade divina ?
Disseram-me que a segunda bomba atómica, feita para dar o golpe decisivo ao poder
combativo do Japão, tinha sido primeiramente destinada a outra cidade. Mas sobre
aquela, o céu coberto de nuvens tornou impraticável a execução do plano. E esse foi
alterado no último momento. E assim é que Nagasaki, "alvo de reserva" até então, foi
finalmente escolhida. Mais ainda: soube que, quando lançaram a bomba, o vento fê-la
desviar-se, do norte das fábricas de munições — que constituíam o objetivo — para
explodir sobre a Catedral. Assim sendo, Urakami não foi, em hora alguma, visada pelos
pilotos americanos. Foi a Providência que orientou a bomba.
Deixaríamos então de reconhecer uma profunda conexão, uma relação misteriosa entre a
cessação da
155
OS SINOS DE NAGASAKI
guerra e a destruição de Urakami ? Urakami, o único setor católico e santificado de todo
o Japão, não fora escolhido como vítima apropriada, para ser sacrificada e queimada,
sobre o altar da expiação, por todos os crimes cometidos pela humanidade nessa guerra
mundial ? Pela humanidade, herdeira do pecado de Adão e do sangue de Caim; pela
humanidade esquecida de sua filiação divina e toda entregue aos ídolos; por essa
humanidade que ignora a caridade e se odeia, matando-se a si mesma. . . A fim de que
acabem todos esses horrores e floresçam, uma vez mais, as bênçãos da paz; para essa
grande redenção, não era bastante um simples ato de arrependimento: era preciso obter
o perdão de Deus por um sacrifício conveniente. . .
Antes dessa hora, inúmeras ocasiões já se haviam oferecido para acabar-se a guerra:
cidades inteiras tinham sido destruídas. Deus não aceitara essas oferendas que não
possuíam dignidade suficiente. Mas quando Urakami foi destruída, Êle aceitou, enfim,
esse sacrifício, perdoou os homens, inspirou ao Imperador que terminasse a guerra.
Nossa igreja de Urakami guardou sua fé intacta durante 400 anos, num Japão que a
proscrevia; sangrou sob todas as formas de perseguição e durante esta guerra ela não
cessou de rezar por uma paz duradoura. Essa igreja não era, verdadeiramente, o único
sacrifício que poderia ser oferecido sobre o altar de Deus ? Por este ato, dezenas de
milhões de homens se salvaram, criaturas que, de outra forma, teriam tombado, vítimas
dos malefícios da guerra.
156
A VIDA É IÇAIS FORTE
Pensemos na grandezá\ no esplendor do holocausto que, no dia 9 de agosto, ergueu suas
chamas diante da Catedral, enquanto desapareciam as trevas da guerra, já deixando
entrever a luz da paz. Nós o contemplávamos então, e no meio de toda a nossa dor, não
podíamos deixar de pensar: como é belo, puro, sublime !. . .
Oito mil católicos, inclusive os padres da Catedral, foram sacrificados. Gente boa, cuja
lembrança a todos comove. Como são felizes por terem deixado a vida sem conhecer a
derrota ! Quão alegremente voltaram, a alma sem mancha, para junto do seu Senhor !
Comparada à deles, nossa sorte é de fato miserável. O país foi vencido, a cidade
destruída: um deserto de ruínas e cinzas estende-se a perder de vista. Não temos nem
casas, nem roupas, nem alimentos. Nossos campos estão devastados; contam-se os
sobreviventes. Sustentamo-nos em grupos de dois ou três, no meio das ruínas,
contemplando vagamente o céu. . .
Por que não morremos nós, naquele dia, naquela hora, naquela Catedral ? Por que
devemos continuar essa vida miserável ? É que tínhamos pecado. Ah ! sim ! Agora
reconhecemos a enormidade de nossas faltas. Se fomos deixados para trás, é que não
tínhamos ainda expiado bastante. Ficaram somente aqueles que estavam por demais
mergulhados nos seus crimes para constituir uma digna oferenda.
Um futuro cheio de dor e de sofrimento abre-se diante de nós, habitantes de uma nação
vencida ! As reparações impostas pela Declaração de Potsdam são um pesado fardo.
Todavia, a estrada difícil pela
157

OS SINOS DE NAGASAKI
qual devemos levar nossa carga é a única esperança que nos foi deixada: ela nos
favorece a oportunidade de expiar nossas faltas.
Bem-aventurados aqueles que choram, porque serão consolados. É fielmente e até o
fim, que devemos percorrer essa via dolorosa. Caminhando nela, famintos, sedentos,
desprezados, açoitados, suaremos, sangrentos, seremos certamente ajudados por Aquele
que, até o alto do Calvário, carregou a Cruz: Jesus Cristo.
Deus nos dá e Deus nos tira. Que Seu Nome seja bendito ! Agradecemos-Lhe por ter
sido Ura-kami a escolhida para o sacrifício. Sejamos-Lhe gratos, já que, por esse
sacrifício, a paz foi devolvida ao mundo e a liberdade de crer, ao Japão. Que as almas
dos fiéis defuntos descansem em paz pela misericórdia de Deus. Assim seja !"
Ichitaro-san leu esse discurso até o fim e fechou os olhos ao terminá-lo. Após alguns
momentos, murmurou:
— Depois disso, chego a pensar que minha mulher e meus filhos não foram para o
inferno. Mas então, doutor, quem somos nós, nós que fomos deixados para trás ?
— Diria que fomos reprovados no nosso exame de admissão ao céu !
— Reprovados?. . . Ah! agora compreendo!. . . Pusemo-nos os dois a rir: sentíamo-nos
muito
mais à vontade agora.
— Devo trabalhar, prosseguiu êle, para reunir-me a minha mulher, no céu. Os mortos da
guerra
158
A VIDA É MAIS FORTE
sacrificaram-se, penando até o fim, sem pensarem em si. Temos que nos apressar para
igualá-los.
— É exato; comecemos, pois, imediatamente a reconstruir esse deserto atómico, o
maior do mundo, esse deserto solitário e terrível de cinzas e telhas quebradas. Choremos
sobre os restos de nossos falecidos, mas choremos, trabalhando.
— Sou um pecador, e assim sendo, expiar minhas faltas pelo sofrimento ser-me-á uma
alegria. . . Por isso, trabalho rezando.
E o rosto de Ichitaro iluminou-se ao dizer essas palavras.. .
As quatro idades da reconstrução.
No deserto atómico, vivemos quatro idades de reconstrução: a idade do abrigo, a idade
da barraca, a idade da casa provisória, a idade da casa definitiva.
A primeira durou, aproximadamente, um mês e poderia também chamar-se a idade da
vida em comum, pois as pessoas, na falta de habitações, agrupavam-se, conforme as
afinidades de vizinhança, numa existência comunitária; em relação à autoridade, a
distribuição do reabastecimento tornava-se mais fácil. Havia grande número de feridos
nos abrigos, e as raras pessoas indenes, compreendendo sua comunhão de sorte,
ajudavam-se mutuamente, e dividiam suas parcas riquezas. Na sua pobreza extrema, na
sua calamidade física e moral, esta vida tinha os seus encantos. Naquele momento,
todos se sentiam perdidos

159
OS SINOS DE NAGASAKI
os dias se passavam unicamente a preparar refeições e a procurar os corpos dos entes
queridos. Nenhum de nós sabia o que fazia, e muito menos, o que tinha para fazer.
A idade das barracas assistiu aos preparativos de uma vida nova. As pessoas
recomeçaram a fazer projetos. Estavam agora mais informados sobre o destino de seus
parentes e amigos. Após enterrar seus mortos, começaram a lutar pelo reabastecimento,
retirando dos bancos suas economias: em resumo, preparavam-se para reconstruir.
Pessoas aparentadas reuniam-se e construíam, com vigas e folhas de zinco, cabanas de
alguns metros quadrados. Ajudavam-se mutuamente, mas já era mais fraca a alegria de
ter escapado: os interesses se defrontavam. A vida comum começava a suscitar
animosidades e dificuldades com os estranhos. Entre parentes próximos, tudo era mais
simples. As cabanas davam apenas para se abrigarem da chuva: viviam todos como
carneiros debaixo de um rochedo.
No quinto mês após a explosão, isto é, em dezembro, os ventos frios começaram a
soprar, o granizo a cair e a umidade a penetrar pelas frestas. Era impossível continuar a
morar naquelas bibocas. Vieram carpinteiros das redondezas com material apropriado.
Irmãos e primos ajudavam-se entre si para construir casas provisórias. As paredes, de
barro; não havia tetos mas somente uma coberta de palha, semelhante às casas dos
camponeses. Embora construídas rapidamente, essas casas tinham esteiras no chão e
janelas ao longo dos corredores. Eram verdadeiros palacetes em comparação com as
barracas.
160
A VÍDA É MAIS FORTE
Aproveitam-se os novos estabelecimentos para realizar casamentos: uma média de dez
famílias por semana 1
O período da reconstrução definitiva está por vir. Não podemos pensar nisso, antes de o
país readquirir fundações mais estáveis. No momento, apesar de sua carência, o povo
encontrou uma razão de viver; estão ricos já que estão contentes, e estão contentes
porque trabalham para o futuro. Esta vida, sob um teto temporário, num deserto atómico
é, a meu ver, a maior expressão do valor humano.
Quando entrei na minha nova casa, meu velho professor, o Dr. Suetsugu, entregou-me
um quadro onde estavam escritas essas palavras: "Inesgotável riqueza na ausência de
tudo..." Quando se olham, da janela, as colinas de Urakami, ainda tão desoladoras, tão
pouco habitadas, podemos pensar que nada foi feito, e que a reconstrução é impossível.
Mas as pessoas trabalham e padecem; removem escombros e constroem. Pouco a pouco,
sem que se perceba, renasce uma cidade. Um punhado de gente, devotos fervorosos que
encontram sua felicidade nas lágrimas e nos sofrimentos, realizam um dos deveres desse
século: o dever da expiação. Os que não têm fé, não voltaram. É ela o único estímulo da
obra que se faz aqui. . .
De novo repicam os sinos.
A igreja de Urakami era construída de tijolos vermelhos; sua fachada ornamentada por
duas torres de trinta metros, com dois sinos: um grande e um
161
OS SINOS DE NAGASAKI
menor. O grande era tocado todos os dias na hora do Ângelus; mas o pequeno só
repicava nos dias de festa. Diziam que êle continha mais ouro. De qualquer forma,
possuía um som encantador que podia ser ouvido a três quilómetros de distância.
Desapareceram os sinos: os fiéis indagavam ansiosamente que fim teriam levado, até
que um dia Tagawa descobriu o menor, absolutamente intacto, debaixo de um monte de
tijolos. O grande estava fendido.
Esse velho Tagawa, trabalhando com o pai na sua juventude, ajudara a montar os sinos
e agora êle repetia a todos que encontrava: "Nada no mundo me impedirá de recolocá-
los, assim que a torre fôr de novo construída !. . ."
Mas Tagawa era uma vítima da bomba: abandonado dos médicos, incapaz de um
trabalho pesado.
Enquanto isto, os paroquianos suspiravam:
"Se ao menos os sinos pudessem repicar de novo nesse deserto !" Quantos meses já
haviam passado desde o dia em que foram impedidos de espalhar seu som ! Hoje,
estavam livres e em paz, mas os seus corações continuavam tão devastados quanto suas
casas ou seus campos.
Que ressonâncias celestes despertariam neles se os sinos do Ãngelus soassem
novamente, límpidos e suaves, sobre a cidade arruinada.
Foi no dia 24 de dezembro que Ichitaro Yamada teve uma ideia, alegremente recebida
por todos os
162
A VIDA É MAIS FORTE
rapazes de Motoo. Dirigiram-se para a Catedral e eu os acompanhei, apoiado sobre
minha bengala. Não sentia forças e tudo quanto pude fazer foi sentar-me nas
proximidades e rezar. . .
Por que delicadeza da Providência chegamos a encontrar uma roldana com a corrente,
justo no local onde se achava o presbitério ?
Primeiramente, todos se ajoelharam. Recitamos o Terço, pedindo que o sino, sepultado
sob os tijolos, pudesse ser de novo suspenso, para entoar, nessa vigília de Natal, a glória
de Deus.
Enquanto trabalhavam, continuei de joelhos.
Conseguiriam eles retirar o sino de sob aquele amontoado de escombros ? Com os
músculos retesados seguram a corrente. . .
"Nosso Pai que estais nos céus. . ." Dão o primeiro arranco, depois param.
"Santificado seja o vosso nome. . ." Um segundo esforço, a corrente se estende.
"Venha a nós o vosso Reino. . ."
Esforçam-se por erguer esse sino que proclamará de novo o Reino de Deus.
"Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu..."
Eis que o sino se balança. . . é suspenso no ar; as correntes, lentamente puxadas, entre
fervorosas invocações, alçaram-no, afinal !
No momento em que o sol se deita, tingindo de escarlate a colina de Inasa, nosso sino,
entre
163
OS SINOS DE NAGASAKI
as ruínas da torre, esboça a sua forma elegante. Eu fico a olhá-lo, cativo, incapaz de
mexer-me.
Longe, bem longe, na direção do porto, outros sinos agora fazem-se ouvir sobre a terra
queimada. Sinos de Omura, a seis quilómetros de distância, mas cujo som percorre
livremente os campos de morte.
— O Ângelus, diz Yamada e êle se ajoelha.
Todos o imitam. No nosso sino, Iwagana, dando com o badalo de encontro ao lado
interno, também toca o Ângelus. . .
Pela primeira vez depois de tantos e tantos meses, o sino ressoou sobre as colinas de
Urakami. De todas as barracas, de todas as cabanas, os cristãos saem depressa. É como
se estivessem assistindo a um milagre. Aqui, ali e acolá, todos se ajoelham e começam a
rezar.
As frases santas confundem-se com o badalar.
. . . E o Verbo se fêz carne.. . . . . Rogai por nós, pecadores. . .
E até onde chega o som dos sinos de Urakami, homens e mulheres, com lágrimas nos
olhos, erguem a suas preces, carregadas de esperança, sobre esse deserto apocalítico.
164
VI MEUS FILHOS
Kayano, a criança sem lágrimas.
Somos quatro irmãos e irmãs. Uma de minhas irmãs morreu de depressão nervosa,
enquanto o marido estava na guerra. A outra perdeu o marido da mesma maneira como
fui privado de minha mulher. Somente meu irmão, estabelecido no continente asiático,
sobreviveu com sua família. Precisou, porém, voltar para o Japão e resolvemos que êle,
e os seus, viriam morar comigo.
No mesmo dia em que sepultei minha mulher, fui para as montanhas, para onde haviam
levado meus filhos. Quando abri a porta da casa, encontrei-os brincando com uma
cigarra que apanharam. Tiveram um gesto de susto, vendo-me coberto de sangue.
Olharam-me fixamente por um instante e precipitaram-se para a porta, olhando em
torno. Não ! não apareceu a figura que esperavam... A cigarra fugiu das mãos de
Makoto.
Depois desse dia, nos lábios de meus dois filhos, jamais floresceu o nome de Mamãe. . .
Mandei depois meu filho Makoto para Omura, de maneira que ficamos, em Nagasaki,
minha filha
165
OS SINOS DE NAGASAKI
Kayano, uma velha empregada e eu. Tínhamos o hábito de falar baixo. Talvez Kayano
achasse que isso seria melhor para mim, o doente. Sempre ajuizada, entrava em casa
sem dizer palavra, até mesmo quando, brincando, se machucava. Quanto a mim, mesmo
quando acontecesse estar de mau humor, não erguia a voz, pois temia ferir os
sentimentos de uma criança que não tinha mãe para consolá-la. A desgraça
insensibiliza: depois de certo tempo não se percebe a dor. Habituamo-nos a viver assim,
sem jamais gritar, e, sem dúvida, ela veio a pensar que a vida era assim mesmo. . . Foi
nessa ocasião que chegou a família de meu irmão. . .
Repentinamente minha casa, tão deserta desde o grande desastre, encheu-se de barulho e
de alegria. Para um observador atento, que felicidade profunda se desprende de uma
família poupada, com todas as suas crianças, isentas de recordações tristes. . .
Não posso dizer que só ouvíamos palavras amenas ! Não ! O dia todo era um grito
permanente, misto de choro, por vezes. Entretanto, essa atmosfera de gritos, repreensões
e lágrimas contribui a criar um clima de felicidade inefável.
Nos seus acessos de raiva, o pai parece perfeitamente feliz; é com beatitude que a mãe
castiga os filhos, e esses, por sua vez, parecem chorar com inteira satisfação.
A menorzinha só abre a boca para murmurar: Mamãe, mamãe ! e a mãe não cessa de
responder: "Estou aqui, filhinha, estou aqui !. . ."
Cada vez que Kayano ouve a palavra "Mamãe", com a resposta afetuosa, é como se
recebesse um
166
MEUS
FILHOS
golpe no coração. Minha cunhada e a filha, inconscientemente, involuntariamente, não
cessam de torturá-la.
Um dia, acordando-se a pequenina e não vendo a mãe perto dela, perguntou a Kayano:
"Onde está mamãe ?" Kayano, — que provavelmente pensava na própria mãe, —
respondeu: "Mamãe está no céu, você sabe. . ." Nesse mesmo momento, porém, minha
cunhada entrou e a criança correu a seu encontro, gritando: Mamãe, mamãe ! Kayano
não disse uma palavra: encaminhou-se para fora e pôs-se a tamborilar na grade de
madeira.
Kayano tornou-se uma criança sem lágrimas. Certas noites, a lembrança de minha
companheira dá-me vontade louca de chorar, mas vejo Kayano que, silenciosamente,
morde os lábios, contemplando a nossa solidão. . . Mesmo quando cai e esfola os
joelhos, ela mesma enxuga o sangue. Uma vez um cachorro perseguiu-a: entrou em casa
correndo, mas sem dar um grito. Tornou-se uma criança na qual a solidão ou a tristeza,
o desgosto ou o medo não provocam mais lágrimas; morder os lábios é a sua única
manifestação exterior.
Os vizinhos, as visitas, todos dedicam a Kayano uma ternura especial, sabendo que ela
perdeu a mãe; graças a essas pessoas ela parece, por vezes, esquecer um pouco a sua
solidão. Depois que começou a frequentar a escola, aprendeu a cantar, a brincar, e já
chegou mesmo a dançar no seu quarto pequenino.
No princípio, ela e Makoto eram as únicas crianças daqui; mas à medida que os
repatriados cons-
167
OS SINOS DE NAGASAKI
troem na redondeza, eles fizeram novos amigos. Nesses últimos tempos, Kayano parecia
feliz e com o rostinho iluminado. E eu, radiante, por vê-la de novo contente. Foi então
que a família de meu irmão chegou: pai, mãe e dois filhos.
Para dizer a verdade, as crianças choram demais. A caçula, de três anos, grita uma hora
inteira quando acorda, e mais ainda durante o dia: chora por tudo e por um nada. Creio
que passa um bom terço de seu tempo a gritar e a chorar, até que a mãe venha ocupar-se
com ela. Outras vezes, fica rouca à custa de berrar, mas continua tenazmente, tanto
tempo que ela mesma não sabe, no fim, por que chora. No íntimo, deseja ser mimada
pela mãe.
Pela mãe só; quando esta não está, é inútil tentar consolar as duas crianças. Gritam
como sereias de alarma. A presença da mãe termina, instantaneamente, o concerto.
Certa vez, o menino, voltando do colégio, gritou pela mãe: "Mamãe, já cheguei !. . ."
Minha cunhada havia saído e o pequeno desatou no choro e começou a correr
desastradamente pela casa, sempre gritando pela mãe.
Kayano estava sentada perto de minha cama. Olhou, primeiramente para aquele
espetáculo, com sorriso irónico: "Ridículo, não é mesmo ?" perguntou-me ela. Depois,
seu rosto foi aos poucos se tornando sério, como se estampasse as recordações que lhe
vinham do coração. Acompanhava com olhar de inveja o menino que procurava a mãe,
e uma dor insuportável fê-la esconder a face nas duas mãos. Esse menino faz então uma
cena dessas, só porque a mãe ausentou-se por algum tempo ? Ainda esta manhã o
168
MEUS
FILHOS
havia beijado e dentro de poucos minutos voltaria. Não tinha a pequenina Kayano mil
razões mais para chorar ? Entretanto, não chorou. Mordeu mais fortemente os lábios e
abraçou-se a mim. E eu então compreendi, intimamente, por que ela se tornara uma
criança sem lágrimas.
Chamam de infelizes aqueles que desaprenderam de rir. Mas quanto mais devemos
lamentar as crianças que não sabem mais chorar, porque não têm mãe para consolá-las !.
..
Carta ao professor de meu filho.
Prezado Senhor Ikeda,
Foi com grande alegria que li sua carta. . . Já que o senhor se encarregou de meu filho
Makoto, creio dever expor-lhe, como pai, os meus pontos de vista e pedir seus
conselhos.
Como é do seu conhecimento, a mãe de Makoto morreu na explosão atómica, e eu
mesmo, na Universidade, fiquei gravemente ferido. Makoto e a irmã salvaram-se por
terem ido, justamente naquele dia, para a casa da avó. A escola de meu filho foi quase
completamente destruída e soube que sobreviveram apenas quatro de seus
companheiros.
Construímos então uma cabana de 2,00 X 2,00 m no local da antiga casa, e tentamos
recomeçar a viver. Naquele momento, meu principal objetivo era pesquisar os efeitos da
radioatividade residual no corpo
169
OS SINOS DE NAGASAKI
humano, tanto nos adultos como nas crianças. Vivi assim, naquela cabana, cerca de seis
meses, com Ma-koto e Kayano, e pude verificar que a radioatividade residual diminuía
muito rapidamente. Após dois meses não produzia mais nenhum efeito, salvo um ligeiro
aumento de glóbulos brancos no sangue. Convicto dessa experiência é que insisti com
os refugiados, para que voltassem o mais depressa possível e reconstruíssem suas
moradas. Agindo dessa forma, estava certo de cumprir a minha obrigação de médico e
de cidadão de Nagasaki.
Durante os primeiros seis meses vivemos num regime escasso. Quando chovia, nosso
fogão muito úmido negava-se a cozinhar o arroz; e certa manhã em que nevou,
encontramos uma camada de neve sobre nossos cobertores. Mas, muito mais do que
todas as privações, o que tornava Makoto realmente triste, era acordar cada manhã para
constatar a ausência de sua mãe. . . se bem que desde o dia terrível, êle sempre evitou de
pronunciar a palavra mamãe. . .
Um dos motivos que me levou a impor a Makoto essa vida no meio de esqueletos e
ruínas, foi o desejo de inspirar-lhe um profundo ódio à guerra. Uma permanência no
deserto atómico transformará o mais extremado nacionalista num pacificador decidido.
Estou certo de que meu filho, daqui por diante, só optará pela paz, aconteça o que
acontecer.
O Japão declarou que se tornaria uma nação civilizada e pacífica. Mas talvez exista, em
certos rincões não atingidos de nosso país, pessoas que ainda considerem a guerra como
coisa boa e útil; pessoas
170
MEUS FILHOS
que não podem conter seus instintos batalhadores, e que, talvez um dia, ponham a
perder de novo a opinião pública.
Minha esperança é que Makoto se lembrará de sua experiência, conservará sua fé e
ajudará assim a salvar a humanidade de uma destruição total.
Que carreira escolherá Makoto ? A êle compete decidir; nem mesmo eu, seu pai, tenho
o direito de influenciá-lo. No fundo do coração tenho, porém, um anseio: espero
firmemente que êle se torne um pesquisador atómico. O estudo da medicina nuclear foi
o objetivo de minha vida. Os segredos do átomo exigem existências inteiramente
consagradas em explorá-los. Apesar do perigo deste trabalho, continuo a achar que não
há nada mais apaixonante. . . Embora eu mesmo tenha sido vitimado pelos raios, não
posso deixar de sonhar com a volta a meu laboratório, assim que puder me locomover, a
fim de prosseguir no meu trabalho.
Se digo a Makoto que estude o átomo, não falo como pai, querendo impor ao filho uma
carreira: mas é o pesquisador veterano, dirigindo-se ao noviço. E ficaria alegre se êle me
respondesse: "Concordo !" Deixaria então este mundo inteiramente feliz. Era meu
propósito prepará-lo para semelhante escolha quando resolvi viver no nosso deserto.
Todo homem sente-se assombrado quando se vê nessa planície vazia e verifica os
efeitos da energia atómica. Esse assombro, esse espanto faz nascer a curiosidade; essa
curiosidade aumenta o interesse que, por sua vez, gera o espírito de pesquisa.
171
OS SINOS DE NAGASAKI
Espero, no íntimo de meu ser, que quando meu filho atingir a idade do curso secundário
e começar a investigar sobre sua vocação, a resposta que muito naturalmente há de
surgir a seu espírito, seja: a ciência do átomo.
Entretanto, um abrigo precário, no meio de escombros, não é um lugar ideal para a
educação: as crianças juntam ossos e brincam de coveiros; roubam pratos e louças nas
ruínas dos vizinhos; descuidam-se de lavar as mãos. Suas apreciações estéticas e morais
vão por água abaixo e é impossível, em tais circunstâncias, incutir-lhes delicadeza e
bons modos. Foi por isso que achei útil afastar Makoto e colocá-lo em condições mais
normais, até que essa região seja restaurada, a fim de que êle adquira maneiras mais
finas. Quando, pois, minha Faculdade universitária se estabeleceu provisoriamente em
Omura, aproveitei a ocasião para me instalar nessa cidade, trazer Makoto e matriculá-lo
na sua escola. Por um feliz acaso, o Dr. Tomonaga, que me recebeu, mora perto de seu
instituto e permitiu que morássemos na sua casa.
Tudo aqui contribuiu para apagar dos olhos da criança o aterrorizante espetaculo
atómico: a baía magnífica, as colinas verdejantes, a escola bem equipada, a afetuosa
autoridade do Sr. Yajima e do Sr. So, a atmosfera alegre dos companheiros de estudo, e
a vida metódica em casa.
Suas experiências matemáticas, Doutor Ikeda, e suas experiências de física, exerceram
sobre Makoto a fascinação da ciência; as suas excursões no parque
172
MEUS FILHOS
despertaram nele os atrativos do belo. Como parecia feliz no dia em que representou a
Escola no concurso de canto ! Conforme o senhor mesmo pôde constatar, na visita que
nos fêz há pouco tempo, a casa do Dr. Tomonaga é um centro de amor e de verdade. Êle
é um sábio, especializado em medicina interna. Sua esposa, uma mãe de família amável
e culta. Educam Makoto como se fora um filho e esse, de corpo e alma, tornou-se um
membro da família: ora malcriado, ora mimado; repreendido de vez em quando e
elogiado quando o merecia.
Durante três meses morei com os Tomonaga, mas como me sentia cada dia pior, adquiri
o mau hábito de deitar-me no meu quarto, sobre as esteiras, quase que o dia todo. Muito
contra meu gosto, Ma, de 5 anos, filhinho dos Tomonaga, começou a imitar-me (1).
Nesta época, mais ou menos, minha Faculdade transferiu-se de novo para Nagasaki e
resolvi voltar também. Hesitei muito tempo se levaria Makoto comigo, mas por fim
decidi deixá-lo com meus amigos. Quando revi Nagasaki, o local da explosão havia
sido todo desembaraçado e o povo a êle voltava, numeroso. A região perdera o seu
aspecto desolador e retomara uma aparência pacífica. Pode-se levar agora uma vida
civilizada, sem condenar o meio como impróprio para uma obra de educação. A escola
(1) Os quartos japoneses têm seu chão coberto de grossas esteiras de palha. Facilmente
nelas se deitam, como sobre um colchão. Este hábito é, porém, pouco educado,
sobretudo para as crianças. A doença justificava Dr. Nagaí... mas não havia desculpas
para Ma...
173
OS SINOS DE NAGASAKI
primária foi reconstruída, a população cresce com rapidez. Eu mesmo, tenho uma casa e
se bem que conste de um só quarto, rosas brancas e perfumadas crescem no meu jardim.
Numa palavra: tudo está pronto para receber Makoto. Poderão então perguntar por que
continuo a manter o menino afastado ?
É justamente para explicar meus motivos, e ter a sua opinião, que lhe escrevo esta carta.
Makoto é um futuro órfão: sua mãe já morreu e o pai está estirado sobre o que será seu
leito de morte. A criança está, pois, destinada a ver-se privada, dentro em breve, do pai
e da mãe. Quando se vir sozinho, nesse mundo cruel, será ele capaz de manter-se no
caminho reto, sem hesitação, e prosseguir corajosamente no rumo traçado na infância ?
O Cristo disse-nos: "Olhai para os pássaros dos céus que não semeiam nem ceifam, nem
amontoam nos celeiros. E todavia Deus os sustenta. . . Olhai como crescem os lírios:
eles não trabalham, nem fiam. E contudo eu vos afirmo que nem Salomão, com toda a
sua glória, se vestia como um deles. Se, pois, Deus assim veste uma planta do campo,
que hoje existe mas que amanhã se lança ao fogo, quanto mais velará por vós, ó homens
de pouquíssima fé ?"
Pensando nesse texto, convenço-me de que se me preocupo, é devido à fraqueza de
minha fé. Diga-me uma coisa: estarei iludido pelas ideias loucas de um pai amoroso em
excesso ? Não posso, contudo, deixar de pensar que, se acostumo Makoto a essa vida de
semi-órfão que êle leva entre estranhos (só vem aqui uma vez por semana), o choque
que experi-
174
MEUS FILHOS
mentará com minha morte será muito atenuado. Se, ao contrário, eu permitir que viva
comigo, sem familiarizá-lo com as dificuldades de uma vida com outras pessoas, não
será êle levado pela maré deste mundo, quando nela fôr atirado, lutando para levar
consigo a irmãzinha ? Ah ! queira Deus que não se torne um desses órfãos mendicantes
1
Makoto, Kayano; já que de qualquer forma vocês têm de ser órfãos, sejam fortes e leais;
caminhem corajosamente e com um sorriso, através da vida. . .
Eis, Dr. Ikeda, o pensamento e as preces que se ocultam sob minha decisão de deixar
meu filho nas suas mãos.
Mas, para ser franco, como desejaria ter Makoto perto de mim ! Como gostaria de
poder, durante o dia, contemplar o seu rostinho, ouvir sua voz, deixar que suas mãos
tratassem de minhas pernas doentes. Não sei por quanto tempo terei vida ainda; sinto,
todavia, que o fim se aproxima. Mais uma razão imperiosa para eu desejar passar com
meu filho, no mesmo quarto, os meus derradeiros dias.
Todos os sábados à noite êle chega, dizendo: "Papai ! estou aqui !" Sai domingo de
manhã para a missa e passa o resto do dia dispensando-me toda espécie de cuidados.
Parte novamente na segunda-feira, muito antes de nascer o sol. Ouço, ao longo da
colina, arquejar o trem que leva Makoto: o barulho decresce pouco a pouco. E, às vezes,
quando o silêncio de novo invade a minha casa, pergunto a mim mesmo se a alma da
mãe de Makoto não estará triste comigo. . .
175
OS SINOS DE NAGASAKI
Discussão por causa de uma boneca.
— Porque você não arruma as coisas ? Não tenho culpa de ter pisado nela. Por que a
deixou no chão ?
O racionamento de eletricidade, naqueles anos difíceis, obrigava-nos a levantar no
escuro e foi assim que, certa manhã, ouvi Makoto brigar com Kayano. O menino pisara
na boneca da irmã. Kayano, na noite anterior, levara a boneca nos braços, quando se
deitou, mas com certeza, ao dormir, deixou-a cair. Logo que acordou, lembrando-se da
filha, pôs-se a procurá-la no escuro, quando ouviu o irmão — que se levantara primeiro
— quebrá-la sob os pés. Da minha cama ouvia a discussão e duas coisas eram claras:
nenhuma das partes agira de propósito, mas ambas mereciam uma censura por seu
descuido. Acima de tudo, porém, agira aí, visivelmente, o acaso. Aparentemente, o mais
prejudicado era eu, pois deveria fornecer a Makoto os meios para comprar uma boneca
nova para a irmã.
As duas crianças recorrem a meu tribunal. É bom ver como argumentam, procurando
expor suas razões com clareza e sem chorar, quando pela morte da mãe pareciam tão
desamparados. Quantas vezes, ansiosamente, perguntei-me se era possível, para um pai
só e doente, realizar, com êxito, a obra da educação.
Eis que já se passaram três anos desde o dia em que recolhi os restos de minha mulher e
enterrei-os sob um pinheiro, indo a seguir visitar meus filhos
176
MEUS FILHOS
no seu refúgio, entre as colinas. Estavam a uns seis quilómetros daqui. Uma ansiedade
vaga, indefinida, me impacientava contra minhas pernas feridas que tão lentamente me
conduziam até lá. Alcancei, afinal, o vestíbulo da casa onde moravam as crianças.
Abrindo a porta apareci a eles, assustando-os com a minha aparência tão diferente:
apoiado sobre o ombro de uma enfermeira, tendo a cabeça e mãos envoltas em
bandagens.
Eles me olharam atentamente, recuando pouco a pouco. A cigarra com a qual brincavam
escapou das mãos de Makoto. Foi nesse momento que tive o sentimento vivo da
paternidade. Nunca, antes ou depois desse dia, senti, de maneira tão profunda, as
relações íntimas que unem o pai aos filhos. Evidentemente já os amava antes disto; mas
um pai, não tendo que passar por sofrimento algum para pôr os filhos no mundo, não
sente sua paternidade tão fortemente quando a mãe experimenta a sua maternidade.
Se, naquele dia, vivi tão nitidamente minha qualidade de pai, foi sem dúvida porque a
morte de minha mulher levou-me a ser também, de certo modo, a mãe deles. Não quero
com isso dizer, no sentido rigoroso, que o espírito da morta tenha entrado em mim; mas
— até certo ponto — é pura verdade. Desde esse primeiro encontro, após o que sucedeu,
tentei orientar a educação das crianças tendo sempre presente esse pensamento: que
faria a mãe deles em meu lugar ?
Tirei de meu bolso uma caixa de pêssegos cristalizados, uma das provisões que
encontrei no meu
177
OS SINOS DE NAGASAKI
abrigo depois do desastre. Mandei Makoto trazer os pauzinhos de bambu (1). Abri a
caixa e ofereci a eles:
— Provem como é bom !
Eles hesitaram, nervosos; seus olhinhos iam de meu rosto para a caixa, da caixa para os
pauzinhos. Estavam sérios e não se moviam. Entretanto, foi para eles que trouxe da
cidade, a pesada caixa. Comecei a impacientar-me:
— Então ? por que não comem ?
Meu tom áspero chocou-os e percebi que a custo continham as lágrimas. Continuei a
olhar para ambos e, com o coração apertado, compreendi. . . Eles estavam esperando a
mãe. Essa caixa de pêssegos foi, tempos antes, comprada por ela. Viam agora a caixa
aberta diante deles: mas por que a mamãe não tinha vindo também ? Tudo teria sido tão
diferente ! Os doces não teriam sido dados de maneira tão brusca, os pauzinhos
colocados ao contrário, e as palavras tão ásperas ! Envergonhado percebi tudo: tinha
resolvido desempenhar o papel de mãe e, desde o primeiro ensaio, fracassei
miseravelmente.
Fui à cozinha, apanhei dois pratos pequenos, coloquei os pêssegos neles e, com ternura,
ofereci-os às crianças. Desta vez aceitaram e então me lembrei de que Midori
recomendava-lhes sempre que não comessem dentro das caixas, mas usassem os
pratinhos para isso.
(1) Pauzinhos que, no Japão, servem de talher.
178
MEUS FILHOS
Depois de cada um comer dois pedaços, sobraram ainda dois na caixa. Era a parte de
Midori. Teríamos comido tão alegremente se estivéssemos juntos, mesmo no abrigo,
mesmo sob as bombas. . . Meu pensamento revia o passado; voltando-se depois para o
futuro pareceu-me ver a longa e difícil estrada que nós três devíamos ainda percorrer.
. . . Desde então, três anos se passaram; três longos, longos anos: das vinte e quatro
horas de cada clia, posso dizer que nenhuma foi fácil. Se o tempo pareceu-me tão longo,
é que cada dia, cada hora, encerrou uma luta penosa contra o sofrimento e a solidão,
contra a angústia e a miséria. Como foram pesados esses anos, e no entanto, as cinzas de
Midori eram tão leves !
. . .As crianças desenvolveram-se bastante e espero que minha mulher aprove, lá do céu,
o trabalho que fiz, trabalho bem penoso para um homem sem apoio. Não tenho dúvidas
sobre um ponto: eles seriam bem melhores se a mãe estivesse aqui para educá-los. . .

Cai a noite enfim, o céu tinge-se de sombras. Os sinos da igreja tocam matinas. A
discussão sobre a boneca terminou pacificamente: Makoto comprará uma cabeça nova:
Kayano lhe fará um novo vestido. Ela herdou da mãe o gosto pela costura e consegue
fazer o que quer com suas mãozinhas desajeitadas. Makoto e Kayano, de mãos dadas,
saem para a missa.
"Senhor ! guardai-os hoje ainda e derramai sobre eles a abundância de vossas graças..."
179

VII AMANHÃ PODE SER MELHOR


O fim de uma época.
— É a sua vez ! diz a enfermeira, introduzindo dois novos clientes.
Um casal de idade, cuidadosamente trajado, entrou no meu laboratório. O marido
avança, com todo o respeito. Apresenta-se e solicita um exame médico. . . Cada vez que
abre a boca, a longa barba branca estremece.
— Sou, diz-me êle, o padre xintoísta de Onsen Jinja. Acabo de chegar e trago uma carta
de apresentação do médico de minha cidade. . .
Li a carta. De acordo com as informações, o que primeiramente alertou o velho, foi o
fato de que o som do gongo que êle batia todas as manhãs perdera muito de sua força,
nos últimos tempos. Notara também que, quando mais jovem, a modulação clara de suas
entoações subia além do primeiro "torii" (o pórtico mais afastado do seu templo), mas,
no último festival do outono, já se sentiu incapaz de fazer realçar a sua voz e, bem no
meio do canto, experimentou perturbações respiratórias bastante incómodas. Os fiéis,
percebendo essa diminuição de vigor, ,atribuíram-na à dureza dos tempos. Quanto
181
OS SINOS DE NAGASAKI
ao sacerdote, continuara todos os dias, da melhor maneira possível, a rezar, a bater o
gongo, confiando plenamente na vitória final do Japão Sagrado.
Mas eis que, em vez de ser beneficiado pelo vento divino que o salvaria, o país foi
derrotado, arrastando no seu desastre, deuses e mitos. E quando suprimiram as
contribuições regulares que os fiéis pagavam aos templos, foram os padres os que mais
vieram a sofrer. A guerra levara tudo dessa pobre gente. Seus deuses revelavam-se
impotentes; e essa própria gente tinha sido ingenuamente iludida: honra, meios de vida,
tudo lhes faltava ao mesmo tempo.
O velho padre encarava o futuro com apreensão. Se ao menos o filho mobilizado
voltasse da Birmânia, que grande apoio seria ! Mas nem notícias tinha dele !
Contou que começara a emagrecer rapidamente. Os outros atribuíam ao racionamento,
mas — coisa curiosa ! — mesmo comendo pouco, não sentia fome. Convencera-se de
que a austeridade dominava o seu estômago; e quando os fiéis queixavam-se das
restrições, êle respondia com sinceridade: Vocês sofrem, sobretudo, de fraqueza
espiritual !
O infeliz ignorava que essa perda de apetite tinha uma causa terrível, e que êle era
portador de um câncer. Mas a esposa começava a desconfiar de qualquer coisa: via que
o marido tocava nos alimentos cada vez menos e seus gostos se modificavam de modo
estranho. . . Um dia, não se contendo mais, apresentou-lhe um espelho: Olhe ! veja
como você está ! Êle reconheceu que havia emagrecido, mas o que mais o chocou foi o
aspecto de sua barba: aquela barba outrora tão branca e sedosa, perdera por com-
182
AMANHÃ PODE SER MELHOR
pleto o brilho e adquirira um tom acinzentado, doentio. Baixou os olhos e examinou os
braços: a pele flácida e sem vida parecia a pele velha de uma serpente.
"Não creio que esteja realmente doente", disse o padre quando, naquele mesmo dia,
entrou no consultório do médico de sua cidade. Mas os dedos experientes do seu médico
bem depressa encontraram no estômago um volume duro, suspeito. Um câncer !
Nenhum médico pronuncia de chofre tão terrível veredicto. Limitou-se a dizer:
"Alguma coisa não está bem no seu estômago. Vou dar-lhe um medicamento que o
senhor tomará com regularidade. Além do mais, acho-o muito enfraquecido: procure
alimentar-se antes que seja tarde..."
Mas o velho não compreendeu as últimas palavras do doutor. Voltou tranquilamente
para casa, remédio no bolso e transmitiu à mulher o vago diagnóstico. Ela não se
contentou com isso. Sem nada dizer ao marido, procurou o médico e dele ouviu, com
toda a clareza, a terrível sentença: câncer. . . operação inútil. . . talvez uns três meses de
vida. . . nada a fazer. Mas, sobretudo, que o doente não venha a saber ! recomendou o
clínico.
A mulher dispunha-se a voltar para junto do marido, esmagada sob o peso do segredo.
Ah ! pensava ela, se ao menos êle vivesse até a volta do nosso filho... Gostaria de poder
rezar, mas já que os deuses são falsos !
Enquanto atravessava a cidade, um soldado desmobilizado chegou-se a ela ! Conhecera
seu filho, lá. . . na Birmânia !
183
OS SINOS DE NAGASAKI
— E quando voltará ? perguntou a mãe. . . mas logo interrompeu suas palavras, pois
notou que uma nuvem cobria o rosto de seu interlocutor. O homem tentou falar uma
vez, duas vezes: a voz não saiu. O coração da mãe parou de bater. Os olhos do soldado
se toldaram e deixaram cair uma lágrima. Ela compreendeu tudo: baixou a cabeça e
tombaram-lhe os braços. "Mas pelo menos êle. . . nada saberá !" decidiu ela com
energia, pensando no marido. "Se tem apenas três meses de vida, em breve encontrará o
filho num mundo melhor."
Erguendo os olhos, disse ao soldado:
— Meu amigo, prometa-me sob sua palavra de honra que nada dirá!
Correndo depois para o prefeito da cidade, pediu-lhe que cancelasse qualquer
notificação oficial que chegasse.
As más notícias, infelizmente, acabam sempre por espalhar-se: toda a cidade logo soube
que o padre estava desenganado e que o filho morrera. Entretanto, a mulher persistira no
seu silêncio heróico e no risco em que incorria. Uma palavra indiscreta, uma carta de
pêsames e tudo se revelaria ! Tanto mais que o padre ainda saía e conversava com
todos. Era preciso, sem cessar, estar de sobreaviso, prevenir as visitas, suster a
correspondência. . . Era preciso, sobretudo, escondendo as lágrimas, manter o
sorriso !.. .
Também ela agora se modificara muito, esgotada pela tensão nervosa. Empalidecera,
emagrecia a olhos vistos e, certa manhã, foi o padre quem — por sua vez — estendeu o
espelho à esposa.
184
AMANHÃ PODE SER MELHOR
Ela olhou distraidamente e devolveu-lho: "Qual nada ! não estou doente, não sinto coisa
alguma. Cansaço de espírito, talvez. . . São tantas as preocupações !. . ." Parou de
repente, verificando a imprudência que cometera. Mas o padre não desconfiou: pensou
que ela se referisse às dificuldades domésticas e, alisando a barba, pôs-se a rir, dando-
lhe coragem:
— Vamos para a frente ! suportemos ainda alguns aborrecimentos ! Quando nosso filho
chegar, nós lhe arranjaremos uma boa esposa, e aí, nós dois não teremos mais nada a
fazer, senão plantar crisântemos.
Com íntimo desespero, a mulher refreou suas lágrimas ardentes e riu um riso sem vida.
Mas no dia seguinte, o marido levava-a ao médico. . . Esse, naturalmente, não encontrou
nada no físico. Aproveitou, todavia, a ocasião para mandar o padre, com a esposa, ao
Hospital Universitário a fim de fazerem um exame: é claro que mesmo o Hospital em
nada modificaria a situação, mas ao menos, em caso de morte, sua responsabilidade
estaria coberta. Declarou num tom falsamente indiferente: Não vejo nada de grave na
sua esposa. Mas poderíamos pedir umas radiografias, lá na Universidade. Acompanhe-a
e aproveite para passar também pelos raios X.
O padre concordara e era êle quem agora eu examinava. Na câmara apagam-se as luzes,
brilha a chapa fosforescente, mostrando-se a parte interna daquele homem: um câncer
reconhecível à primeira
185
OS SINOS DE NÀGASAK1
vista. O médico da vila acertara: diagnóstico e prognóstico indubitáveis. Num instante o
exame termina, acendem-se as luzes. . . A diminuta estatura óssea, ainda em pé no
aparelho, parece tão frágil quanto um velho pinheiro retorcido à beira de um precipício.
Sob a barba branca, a mancha amarela de um medicamento. . .
O padre sai do aparelho e sua esposa que manteve as roupas quentes de encontro ao
peito, ajuda-o, maternalmente, a vestir-se. Pode-se ler, nos seus gestos, a intensidade do
seu amor para com o inconsciente condenado.
— Então, doutor, que acha o senhor ?
— Bem... eu. . .
Não posso dizer mais nada. Na Universidade, esperam de nós uma sinceridade absoluta,
mas aqui, nesse caso, como falar alguma coisa a esse ancião que se veste calmamente
em frente a mim ? Diante da minha restrição, os olhos da mulher, por trás do marido,
transmitem-me uma mensagem desesperada . . .
— Quer dizer que não tenho nada de sério, não é verdade ? Foi o que o outro médico me
disse também. Sobretudo não me venham a falar de câncer ou de outro horror. . .
— Bem. . . é justamente isso — e a sua pergunta me salva — é justamente o que disse o
outro médico.
— Era o que eu pensava: aliás, o remédio que êle deu, tem-me feito um bem enorme. E
com essas palavras, retirou-se da sala.
186
\
AMANHÃ PODE SER MELHOR
O exame da senhora confirma, igualmente, o diagnóstico do clínico. Organicamente,
nada de especial: tudo deriva de uma tensão psicológica. Pronta, ela me interroga acerca
do marido, agarran-do-se ao que eu dizia, como um náufrago à sua tábua. . . Mas devo-
lhe ser franco. Dentro de um mês os alimentos não passarão mais. Deve-se acamar e
quando adquirir uma côr amarelada, será o sinal do fim. . . Os dois ou três últimos dias
se escoarão num sono calmo: o fim será sereno; vai-se extinguindo como uma chama.
Enquanto falo, a mulher me ouve, sentada, olhos pregados no chão. Aperta,
nervosamente, entre os dedos, o lenço que antes tirara da bolsa. Mas sua dor está acima
do pranto. . . Não perde nem um instante o seu domínio: modelo perfeito da digna
reserva japonesa. Quando parei de falar, levantou-se suavemente, cumprimentou-me e
foi para junto do marido que a esperava.
Custou-me sair do laboratório, nessa tarde, pensando na sorte trágica daquela família. É
assim que, enquanto o povo japonês enceta, com uma coragem renovada, a reconstrução
de uma nação democrática, essa pobre gente está condenada a desaparecer com os
sonhos do Japão Sagrado, e sem culpa da parte deles. O pai viveu, sem dúvida,
honestamente; o filho tombou com coragem, lutando contra o inimigo, e a mãe levará
uma existência desoladora, amaldiçoando os deuses que eram, eles mesmos, os frutos de
sua imaginação. É todo o povo japonês que merece a censura, por não ter tido a
coragem de buscar a verdade. . .
187
OS SINOS DE NAGASAK1
Deito um olhar sobre a cadeira onde a senhora se sentou. Uma coisa branca está ali
perto, caída no chão: seu lenço. Posso ter achado desumana a coragem dessa mulher
japonesa, mas no fundo, ela se mantém mulher: na agonia das suas lágrimas interiores,
perdeu o lenço. Meu primeiro movimento é de entregar a ela, com palavras de simpatia.
Chego mesmo a me aproximar da porta. . . mas ouço falar e me detenho. É o padre: êle
fala lentamente, parando, repetindo-se; a mulher cala-se, derramando lágrimas
silenciosas, com certeza.
— Mas, que isto ? Não se preocupe !. . . Pois o médico já não disse que você não tem
nada ? Então, para que chorar ? Não há motivos para se afligir. . . É apenas uma
depressão nervosa, e é o que a emociona à tôa, sem razão. . . Vamos ! Lembre-se do que
o médico disse do meu estômago que tanto a atormentava também. . . Não é nada. . . O
próprio raio X. . .
Êle insiste. Trágica inadvertência desse padre, consolando sua mulher sadia, enquanto
ela, a êle, nada pode dizer. . . é um condenado inconsciente.
— Está bem, respondeu por fim. Procurarei ser mais corajosa.
— Isto mesmo ! replicou o homem. Nós não podemos morrer, não é verdade ? Não
podemos morrer antes que o nosso filho volte !
A mulher não respondeu: vagarosamente, eu me afasto da porta, e entregando o lenço à
enfermeira, digo-lhe:
— Tome ! você o devolverá a ela. . . dentro de pouco tempo !. . .
188
AMANHÃ PODE SER MELHOR
Questões de pão.
Pouco depois da volta de meu irmão, vindo do continente, o marido de minha irmã
voltou da Sibéria.
Ambos moram agora conosco, depois de terem vivido com os russos, como
prisioneiros: campo de concentração, trabalhos forçados. . . Passam horas confrontando
suas experiências e, ouvindo-os, do meu leito, vejo, consternado, como todas as suas
conversas giram unicamente em torno de pão.
Incessantemente rememoram, comparam e discutem sobre as rações de pão que
recebiam lá; esse assunto parece exercer sobre eles uma invencível fascinação. Seus
dois anos de Sibéria foram, de princípio a fim, baseados sobre o pão e sobre o pão
somente.
Durante o tempo que ali estiveram, nenhum outro pensamento ocupou-lhes o espírito.
Na verdade, onde estavam, a vida era organizada de tal maneira que nenhuma outra
ideia, a não ser a do pão, prendia-lhes a atenção. Naquela existência, literalmente, o
homem "vive só do pão".
— Quanto lhe davam lá ?
— Puxa ! isso era quase normal !. . .
— Felizardo ! minhas rações eram extremamente pequenas: o campo ficava nas colinas
e, por cúmulo do azar, morávamos a dois passos do Quartel-General. Por isso o regime
era seguido à risca.
189
OS SINOS DE NAGASAKI
— Que é que vocês faziam ?
— Terraplenagem, fossas. Rações teóricas de trabalhador manual. Classe C. |
— Ah ! você era um desses privilegiados de 300 g por dia ?
— Sim, se você acha. . . mas no inverno o solo gelava e não conseguíamos nunca atingir
o 100% do trabalho mínimo. Deste modo, só nos davam 250 g.
— Você deve ter passado fome. . . Eu, para dizer a verdade, estava de serviço na
enfermaria.
— É mesmo ? Classe C também, então ? Quer dizer que você recebia 300 g completas ?
— É, 300.
— Na enfermaria sua ração era permanente. Mas nós, trabalhadores de terra, comíamos
na medida do trabalho. Por isso viviam alguns a fazer cálculos complicadíssimos ! "Se
eu der mais 30 cm, terei 50 g a mais". Ou o contrário: "Chega ! o que fiz já me dará 400
g !" Calculava-se a quantidade de pão pelas pás de terra !. . . E nem assim o sistema é
eficaz; cada um pensava mais no pão do que no trabalho. . .
quanto mais cavávamos, mais deveríamos cavar. O fiscal soviético coçava a cabeça,
pensava, e depois concluía: "Cavem mais !"
Um dia, criei coragem e perguntei: "Mas afinal, que é que procuramos ?"
— A junção de duas canalizações de água, respondeu.
190
AMANHÃ PODE SER MELHOR
— O senhor sabe onde está ?
— Hein ? deve ser por aqui mesmo. .. Comecei a fazer um reconhecimento do terreno
e localizei quatro captações de água e perguntei de novo:
— O senhor não acha que o que procuramos deve estar na interseção de duas linhas
retas, unindo duas a duas as captações opostas ?
Êle me olhou, cheio de espanto e depois objetou:
— Como é possível estabelecer duas linhas retas em semelhante distância ?
— Não é preciso. Coloque um soldado em cada captação e tire uma visada. . .
Fiz isso num instante. Cavamos, e dois minutos depois estávamos, realmente, sobre a
junção. Interrompemos o trabalho mas o fiscal disse: "Cavem agora uma fossa entre
seus trabalhos precedentes e este cruzamento."
— Para fazer o que ?
— Ora essa ! Se deixamos a coisa assim, o inspetor não tomará em consideração senão
a nossa última pequena escavação e não teremos quase pão hoje. Liguem a grande
terraplenagem ao fosso ! É o pão de vocês que está em jogo !
E desde aquela hora até à noite, cavamos inutilmente aquela fossa, levados por um só
motivo: pão !. . .
As conversas desse género prolongavam-se horas a fio ! Um de meus amigos, voltando
da Rússia, foi
191
OS SINOS DE NAGASAKI
um dia ver-me: também êle só tinha um assunto: pão e calorias.
Parece que todos, soldado ou oficial, operário ou intelectual, todos se tornavam
incapazes, uma vez na Rússia, de pensar noutra coisa senão em pão. Não podia deixar
de admirar a astúcia diabólica do sistema empregado para fazê-los chegar a isso.
Quando o homem tem fartura de pão, não precisa se preocupar e sobra-lhe tempo para
pensar na alma. Quando, pelo contrário, não tem pão nenhum, pensa também em sua
alma porque vê-se em face da morte.
Mas dai a um homem justo um pouco menos que o mínimo requerido, fazendo que se
sinta sempre faminto: êle começará a não se preocupar senão com o pão. Se, além do
mais, todo o sistema fôr ligado ao trabalho: trabalho intensificado, alimento suficiente;
baixa de produção, diminuição das rações, o homem, dentro em breve, só pensará no
trabalho em termos de pão. Seu pensamento, da manhã à noite, estará preso nesse
problema. Como, então, poderá ainda pensar na alma ?
A "norma de produção" é o meio mais eficaz para matar qualquer maneira de viver
conforme a palavra de Deus.
Os avarentos.
Os avarentos não são amados. . .
Nesse tempo de mercado negro, o dinheiro prolifera nos bolsos de alguns fazendeiros e
comerciantes.
192
AMANHÃ PODE SER MELHOR
Dizem que esses fazem agora a "festa dos 30 centímetros". Trata-se de uma reunião
íntima onde os aproveitadores, com suas famílias, regozijam-se em ver sua pilha de
notas de 100 yen elevar-se até 30 centímetros !. . . Estou certo de que devem ter
trabalhado muito tempo e penosamente, para atingir esta altura. E terão mais trabalho
ainda para guardar do que para ganhar. Mas deixemos de lado as "festas dos 30
centímetros". A questão é saber como vão gastar esse dinheiro. Se resolverem financiar
os trabalhos de utilidade pública, está muito bem; se o dessem aos pobres, melhor seria.
O mais comum, porém, é olhar duas vezes o dinheiro, antes de gastá-lo, ou então fazer
com suas riquezas toda sorte de chantagens: "Se precisa que eu lhe empreste dinheiro,
venha mendigá-lo !. . . Se quiser que eu dê para suas escolas, ponha-me na Comissão
patrocinadora !" Evidentemente, aqueles que falam assim, estão condenados pela
opinião pública. Mas existe outra espéj cie de avarentos. Não os conhecemos como tais,
nem os proscrevemos da coletividade. Ao contrário; o mundo considera-os como
grandes homens, e as cidades homenageiam-nos. Refiro-me a certos sábios que são
como que os avaros da ciência e que encontramos entre professores, pesquisadores,
técnicos de indústria, bibliófilos. Guardam para si seus conhecimentos, suas
descobertas, seus livros raros. É uma avareza verdadeira. Essas pessoas constituem-se
oráculos, fecham-se na sua tôrre-de-marfim com um olhar de desprezo para a massa;
recusam revelar ao público uma invenção útil; rejeitam cooperar na educação e na
promoção do país; alegam que não
193
OS SINOS DE NAGASAKI
lhes compete tornarem-se "apregoadores da ciência". E são respeitados !
Com efeito, eles lutam para acumular a ciência que adquiriram; empregaram muito mais
esforço, é certo, do que o fazendeiro para vencer nas suas colheitas. Mas o trabalho dos
sábios não é destinado a ajudar toda a humanidade ?. . . Aliás, os próprios avaros não
começaram, certamente, com suas ideias egoístas. Essas só nasceram quando eles
empilharam seus estoques intelectuais nos celeiros do seu espírito. O desejo da
influência, da honra, da superioridade, do ganho material que a ciência pode favorecer,
esse desejo cresceu com os anos.
Competirá a eles condenar os fazendeiros pelas suas "festas dos 30 centímetros" ? E eu
me pergunto, por vezes, sem pretender, aliás, que meu capital de ciência mereça crédito:
não serei um desses avaros do espírito ?. . .
Será feliz a era atómica ?
É com razão que se pergunta se o progresso da ciência traz, à humanidade, felicidade ou
miséria.
Os sábios — ao que parece — nada inventam senão para a guerra: explosivos, aviões,
rádios, energia atómica; tudo isso tem sido utilizado para a carnificina. Os próprios
sábios foram mobilizados para sustentar o esforço militar. . . Entretanto, seria
194
AMANHÃ PODE SER MELHOR
lamentável se concluíssemos que os sábios voltaram-se somente para a guerra, a maior
das tragédias humanas. Uma única bomba, caros concidadãos de Nagasaki, arruinou
todo o vosso meio de vida. Mas é inconcebível que Marie Curie, precursora das
pesquisas sobre a energia atómica, a ela se tenha dedicado prevendo as atuais
aplicações. . . Vós sabeis ainda que tremendas angústias torturaram os últimos anos de
Nobel, o inventor da dinamite. Calculo que os sábios que trabalharam na execução da
bomba atómica pensam agora, nas suas orações cotidianas e com o coração
despedaçado, no horrível espetáculo de Nagasaki, semeado de cadáveres. . . Mas não é
aos sábios que devemos censurar.
De fato, a bomba atómica demonstrou à humanidade que existem ainda formidáveis
recursos latentes no universo. Depois de ter entrevisto a ruína quando o carvão e o
petróleo fossem esgotados, eis que a humanidade, com a explosão da "pika-don" (nome
popular japonês da bomba), foi de repente introduzida num domínio completamente
novo. Até agora, dadas as exigências de combustível, de alimento, de energia, os
políticos do mundo inteiro, colocados diante dos problemas de terra e de população, só
podiam recorrer à diplomacia ou à guerra, isto é, sempre à luta. A utilização da energia
atómica, a meu ver, poderia eliminar muitas causas de competição e de conflitos. Basta
uma pesquisa paciente para fazer surgir, nos lugares mais inesperados, novos recursos
que tornarão a vida mais confortável.
Inútil querer multiplicar as provas. Olhai simplesmente em torno de vós: observareis as
transfor-
195
OS SINOS DE NAGASAKI
mações advindas nesses últimos cinquenta anos, e chegareis à conclusão de que, nesse
ritmo, a vida poderia ser, para nós, se todos colaborassem, verdadeiramente confortável
e agradável. E quais seriam os problemas da humanidade ?
Nesse momento, no Japão, para muita gente falta o essencial, e todos se preocupam com
questões de subsistência; ninguém possui reserva mental suficiente para ocupar-se com
sua alma. Os comunistas mantêm também os homens na miséria, para retirar deles o
vagar que favorece os assuntos da alma. Se lhes dessem bastante de comer, roupas à
vontade, não teriam de consagrar todas as forças do seu espírito aos problemas da vida
material. Começariam a pensar seriamente nos mistérios da eternidade.
É lamentável que as questões de abastecimento constituam ainda um dos principais
assuntos de nossas conversas. Não posso deixar de pensar que os sábios podem fazer
qualquer coisa para alterar nossas maneiras, tão materiais, de encarar a vida.
Devem os sábios esforçar-se para criar um mundo no qual a humanidade não tenha mais
necessidade de consagrar todo seu esforço e todo seu trabalho unicamente às
necessidades terrenas. Sei que acusam a civilização técnica de ser um obstáculo à
cultura espiritual. Mas aqueles que fazem esta objeção não enxergam todo o cenário: a
civilização técnica é, precisamente, o fundamento necessário sobre o qual, daqui por
diante, com toda a liberdade, poder-se-á edificar uma cultura espiritual.
196
AMANHÃ PODE SER MELHOR
De um Ângelus a outro.
Quando desce a noite, como não há eletricidade, enrolo-me nas minhas cobertas, com
Kayano nos braços.
— Um átomo é grande ? pergunta meu filho Makoto, que está no 4.° ano primário.
— Ah! não; é pequeníssimo, digo-lhe; um centimilionésimo de cm em diâmetro.
Por longo tempo continua com suas perguntas: explico-lhe o núcleo, os neutrons e o
resto.
— E será que se pode utilizar os átomos sem ser para fazer bombas ?
— Claro que sim, meu filho, e de várias maneiras. Se nós os fizermos explodir pouco a
pouco, com regularidade, sua energia propulsará navios, trens, aviões. . . sem carvão,
sem gasolina e sem eletricidade. Não haverá mais necessidade de máquinas pesadas e os
homens viverão felizes.
— Quer dizer que um dia tudo será movido pelos átomos ?
— Sim. . . Você e Kayano estão vivendo a era atómica.
— A era atómica. . . murmurou Makoto, e adormeceu logo em seguida.
Sob meu travesseiro, um grilo cantava. . .
Será a humanidade feliz ou desgraçada na idade atómica ? Essa arma de dois gumes
escondida por
197
OS SINOS DE NAGASAKI
Deus no Universo e agora descoberta pelo homem; que farão dela ?
O seu justo emprego fará progredir vertiginosamente a nossa civilização; o seu mau
emprego destruirá o mundo. A decisão repousa no livre arbítrio do homem. Êle tem nas
mãos o seu destino. Pensando nisso, um terror nos percorre e, convenço-me cada vez
mais de que um verdadeiro espírito religioso é a única garantia neste terreno.
... O grilo continua cantando. Kayano, quase adormecida nos meus braços, tateia como
que à procura do regaço materno. Depois de um instante, recorda-se, sem dúvida, e
choraminga docemente, pegando de novo no sono. . . Não somos os únicos infelizes,
pensei eu. Quantos órfãos, quantas viúvas choram nesta noite nas casas vizinhas ?. . .
A noite é longa, mas o sono é curto. O último sonho é afastado pelos clarões da aurora
que filtram através das frestas das janelas.
Os sinos batem. Nasce um novo dia. . . Makoto e Kayano saltam de seus leitos e
ajoelham-se perto de mim para recitar suas orações. As notas claras ressoam no ar da
manhã, enviando sua mensagem de paz. . . até os confins do mundo.
O céu proíbe que se pense noutra guerra: com a bomba atómica, seria a destruição da
humanidade. Partindo de nossas pobres casas na encosta de Ura-kami, na cidade de
Nagasaki, lançamos este apelo a todos os povos da terra: Renunciai à guerra.
198
AMANHÃ PODE SER MELHOR
Cooperemos, trabalhemos juntos, num espírito de amor e fraternidade universal. De
joelhos, sobre as cinzas deste deserto atómico, rezemos para que Urakami seja a última
vítima da bomba.
O sino bate... Ó Maria, concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós. . .
Makoto e Kayano acabaram suas preces e fazem o sinal da cruz. . .

199

ÍNDICE
Apresentação de Paulo Nagai ................. 5
Introdução .................................. 9
I — IMAGENS ANTERIORES AO DESASTRE
Meus Pais ........................ 11
A carne e o sangue ............... 14
Civilização ........................ 21
Maru-boro (Panquecas) ............ 23
II — O CATACLISMO
As horas que o precederam......... 29
A bomba ......................... 36
As horas seguintes ................. 41
III — SOCORROS
Assim acabou a Universidade ...... 61
A noite rubra ..................... 76
O dia seguinte .................... 82
Yamashita ......................... 88
Reflexões posteriores ............... 93
O dia em que perdi a metade do meu
coração ....................... 99
IV — O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA
Até a Assunção .................... 105
Após a Assunção .................. 115
Sintomas e remédios ............... 123
201
OS SINOS DE NAGASAKI
V — A VIDA É MAIS FORTE
Renasce a vida .................... 131
Meus visitantes .................... 147
As quatro idades da reconstrução ... 159
De novo repicam os sinos.......... 161
VI — MEUS FILHOS
Kayano, a criança sem lágrimas..... 165
Carta ao professor de meu filho .... 169
Discussão por causa de uma boneca .. 176
VII — AMANHÃ PODE SER MELHOR
O fim de uma época............... 181
Questões de pão ................... 189
Os avarentos ...................... 192
Será feliz a era atómica ?.......... 194
De um Ângelus a outro............ 197
202

Obra executada nas oficinas da São Paulo Editora S. A. - São Paulo, Brasil

*/
I
1
l
Para além do
ORIENTE E DO OCIDENTE
JOHN WU

JOHN WU — Este chinês ilustre, tão notável jurista quanto filósofo e homem de letras,
relutou em escrever a história de sua vida. A insistência de amigos e sobretudo do editor
americano Frank Sheed persuadiu-o, finalmente, a dar-nos o sua biografia. Daí resulta
este livro cheio de colorido, de frescura, de espontaneidade, rico de conteúdo humano,
recebido com entusiasmo nos Estados Unidos e na Europa.
E' uma palpitante narrativa de aventuras: o filho de um simples comerciante de Ningpo
torna-se Embaixador da China junto ao Vaticano. A história verídica é tecida de
pitorescos e saborosos ditos da velha China e marcada por autêntica poesia. E' uma vida
humana intensamente vivida.
E é também o longo itinerário espiritual de uma alma que busca a Verdade e a encontra
por fim na luz que brilha "para além do Oriente e do Ocidente". Educado nas três
religiões da China, John Wu convertendo-se ao catolicismo não abandona por isso a sua
cultura oriental: conserva-se um autêntico Chinês, sendo um católico autêntico.

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