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IV.

O oficial

Hans W. Schröder, nascido em 1896, por formação engenheiro mecânico e natural de Hamburgo, fora o
pequeno oficial da marinha alemã que, afastado por conta de certo acidente, ainda durante a Primeira
Grande Guerra, perdia a si e o seu tempo. Sempre a manusear e ler livros, títulos, e demais obras
obscuras, empoeiradas e esquecidas, fundo na Biblioteca Estatal de Berlim. Uma das muitas instituições a
que se associara com o ínsito fim de se ver distraído, gastando da melhor forma o grande descanso que
tinha por um luxo, caro, decerto, mas à mais vultosa moda que lhe permitiria o seu paladar, e o seu
incessante desejo que tinha de uma descoberta.
Perdera a visão do olho esquerdo, ficava com as beldades do rosto completamente desfiguradas e, para
completar o já lastimável quadro, mal conseguia andar por causa da contusão, que sofrera no crânio, à
direita, durante o serviço na marinha. Estava na praça de máquinas, a mando do capitão, quando um
pedaço do vigamento despencara do convés, provocando uma perturbação ou um delírio de durações
incertas, porque só foram socorrê-lo no momento em que a batalha principiava a acabar, e faziam por
último caso de um sumiço, o do abatido marinheiro, os demais tripulantes.
Os efeitos não foram de todo imediatos. Quando se levantara e por fim se reanimara, fora levado à
enfermaria donde, depois do tratamento de frente, e de uns reparos provisórios, passou para um hospital
em terra firme e foi dispensado por invalidez. Promoveram-no a oficial, mas a que preço? uma temível
desfiguração na face, e a lesão da caixa craniana. Que horrendo montante, quanta foi a sacrificada valia!
porque dando tudo à sua pátria, no exato dia em que ela por ele clamava, o que recebia de volta? A
rendição humilhante do império, as lacerações e os traumas antes expostos e, além do que, um pequeno
soldo. Que daí só ia a diminuir e a diminuir em valor! sendo comido pela ascensão dos preços, e pela
escalada incessante da inflação.
Para piorar, o acidente ainda o deixara com uma oculta moléstia. Pela primeira vez o afligia, já em
meados de 1929, ao levantar-se à mesa de jantar e, num acesso de dor, tender para o lado, ir a cair, quando
em seguida era segurado pela esposa, impedindo-o de se estabanar todo no chão. Schröder veio a saber
que a sua afecção era um sintoma da degeneração física do cérebro, fomentada pela fratura e preservada
pela insuficiência dos tratamentos recebidos desde então. Certamente, a explicação havia de se encontrar
nas contingências de um serviço público que, diante da dispendiosidade das soluções, e do colapso da
economia nacional, não pôde remediar a emergência de tão incômoda situação.
Por aí o partido nacional-socialista começava a ganhar suas forças, Hitler tornava-se uma figura famosa,
e cada vez mais falada. Um amigo do oficial, o Sr. Ignaz C., certa vez lhe fizera visita e, emendando com
isso, contava-lhe nova tenção. Um novo trajeto, a trilhar-se desde o começo. Sucedia, no entanto, sondar o
oficial aposentado, a ponto de saber se havia nele qualquer inclinação que viesse a calhar, ou a obstar, que
fosse útil ouvir e conhecer de antemão. Levava o garfo com a comida à boca quando, aproveitando uma
interrupção para o vinho, intercalava por junto singular proposição. Já teria procurado cautelosamente o
momento apropriado para iniciar o colóquio, mas apenas agora é que tomava a justa coragem.
- Que pensas tu sobre o nacional-socialismo? - perguntou-lhe ultimamente o Sr. C.
- Nacional-socialismo?
Schröder olhou para o alto, em direção ao belo teto arqueado do seu apartamento. Erguendo bem a
cabeça, e com isso observando infantilmente os traços e adornos das suas paredes e voltas elevadas, em
forma de abóbada celestial, e respondeu-lhe o seguinte:
- Não penso nada. Nem conheço o tal partido! - riu - Só ouvi dizer por nome.
Ignaz contou-lhe então tudo o que sabia sobre o partido e o movimento, tratando de tecer-lhe uma
generosa apologia, que Schröder não entendeu senão por honesta exaltação, logo lhe respondendo:
- Está certíssimo.
- ...Mesmo? - perguntou, um tanto surpreso, o Ignaz C.
- É claro. - respondeu Schröder - Os sucessos desde a Guerra de Catorze só levaram este país à ruína. É
necessário reerguer a Alemanha, e digo-o não somente no sentido político, mas quanto às pequenas
causas, também. Prostitutas, drogados, gente enferma e desamparada, todos se alastraram como nunca
antes desde a derrota. Nós, ainda mais nós que até agora fomos pouco afetados por estes e outros desafios
e vicissitudes, devemos ao povo a nossa atitude e a nossa consternação. Não concordas?
- Concordo, e digo mais, acabo de filiar-me à ordem, meu amigo. - contou-lhe Ignaz, propondo um
gracioso cumprimento - A tua enobrecida postura em muito me alegra, porque já desde um tempo eu
vinha suspeitando que tu eras um bolshevista. Mas vejo agora que me enganava.
- Que bolchevista? Ora, sou partidário da tua causa! - disse, com um largo gesto o oficial - Nós do
exército temos é que nos unir, porque acreditamos com o mesmo afinco marcial nas mesmíssimas
virtudes.
- Pois há muito que tu podes fazer para ajudar-nos - disse Ignaz, insinuando um mundo inteiro de
subentendimentos.
Daí em diante, passou Schröder a encaminhar todas as suas energias à objetivação da causa. Doou parte
do seu soldo, fez propaganda, atendeu a comícios... Quando enfim tomara Hitler o poder, relaxara um
pouco. Mas em momento algum faltou com sua dedicação à pátria, e rejubilou grandemente ao ver a
recuperação material e espiritual de sua amada nação, atravessando rapidamente os anos trinta do
vigésimo século, e com vista a isto espalhando progressos. Cheia de alavancados espíritos, do que eram
outrora desgastados e modestos alemães, parcamente alimentados, friamente iluminados à guisa de um
lampião ou candeeiro noturno. Cobertos de farrapos, tossindo e espirrando aéreas doenças.
Em um determinado dia, já dos melhores tempos, que sobrevieram e mitigaram os efeitos da severa
crise moral e econômica, Ignaz, então promovido a certa patente, era notificado de seu destacamento para
uma nova posição na Prússia Oriental, o que deixava o aposentado oficial com pouco a que direcionar o
seu tempo livre, e muito tédio. Não tinha numerosos amigos, além do já referido Sr. C., nem depois do
acidente tinha lá grandes pretensões, ou ilusões do ego que o levassem a talhar grandes coisas. Entretanto,
era leitor ávido, e por isso mesmo, sempre que podia, visitava a biblioteca em Berlim, onde morava, e
bagunçava alguns volumes. Passava umas boas duas horas sentado na sala de leitura, ao cabo das quais
cuidava de levar emprestados alguns exemplares para o seu apartamento, na outra margem do rio Spree.
O ano era 1934, quando Schröder, então perambulando por entre as estantes, pesquisava com o diligente
olhar as lombadas nas prateleiras, pousando a vista num livro velho e empoeirado, de capa azul e sem
adornos, que lhe cativara subitamente a atenção. Arredá-lo e abri-lo foi a obra de míseros segundos.
Quando o fez, porém, deparou-se com algo que ele nunca antes tinha visto, e cuja resulta era deleite que
se estenderia por anos e mais anos, e que lhe possibilitaria eloquentes tenções e introspecções, deste
mesmo porvir.
Com efeito, descobrira ali um intrigante relato de cirurgias e de operações, um manuscrito. "Um
exemplar único!" - era como o concebia Schröder, enquanto mirava e folheava as páginas, lendo
rapidamente os traçados e admirando-se dos contornos, transpirando curiosidade e estupor. Mas o que ele
então não percebia era que o tal relato guardava ainda a comprovação e as instruções de uma descoberta
sublime, que até aí nenhum estudioso jamais considerara, sob hipótese ou como verdade que fosse.
Schröder era pobre em contatos; mas lembrava-se de haver jantado certa vez com um ilustre professor, o
Dr. Heine, magistrado na Universidade de Frederico-Guilherme. Quando enfim chegara à sua casa,
expeditamente entrara a compor uma carta para o docente, identificando-se e mencionando o incomum
achado. Dr. Heine tomou grande interesse pela obra, apurado o teor, e as ciências de sua disposição,
sugerindo-se encontrar com o oficial na biblioteca a tempo oportuno, para que pudesse revistar o caderno
e tentar-se facultar o empréstimo. Schröder acedeu à proposta do professor, tratando de transcrever umas
pequenas partes no decurso dos dias vindouros, antes que por fim se reunissem na data acordada.
Na semana seguinte, examinou e debateu com o catedrático a desvelada dissertação. Dr. Heine não
conseguiu, a princípio, permissão para tomá-la por empréstimo, mas depois de dias visitando a biblioteca
e a estudando, convenceu as autoridades de que o conteúdo do manuscrito era inestimável, e acertou com
elas um convênio para que pudesse melhor perscrutá-la.
Enquanto isso, também Schröder visitava a biblioteca, e buscava compreender em sua totalidade as
premissas do manuscrito. Quando coubera analisá-lo, enviou uma carta ao doutor, solicitando que
averiguasse os objetos de sua averbação. Recebeu resposta, e nesta dizia o catedrático que já havia
realizado o necessário experimento, e que era tudo verdade. Pois então?... O oficial da marinha ficou
pasmo quando leu estas três últimas, curtas palavras de ratificação, e contemplou enquanto ascendia a
fronte aos céus, a grandiosidade do seu descobrimento, que era verdadeiramente um oráculo das ciências.
Ide ver se eu exagero.
A obra trazia uma revelação sísmica; um abalo às teorias vigentes mais acreditadas. Indicava a
localização de certas organelas microscópicas no cérebro, cujo funcionamento desafiava os teoremas da
física, e o conjunto equilíbrio da química das moléculas. Mesmo se retiradas e isoladas, as partes móveis
que havia continuavam a volver e a volver em torno do próprio eixo, violando os preceitos das forças
enquanto realizavam operações de atração e repulsão, trocas de fluidos, transformações da matéria e
demais inobservâncias, com uma energia bombástica que nunca se esgotava.
Já acrescentava o Dr. Heine, ao final da carta, que o motivo de tal coisa era impossível de se constatar, e
sublinhava, tão convencido estava, que não importavam quais instrumentos ou teorizações
desenvolvessem os homens do futuro, jamais entenderiam a causa de tamanho fenômeno. Era
simplesmente uma coisa incognoscível.
Schröder teve mais um posterior alvoroço ao ler a descrição técnica e esquemática dos princípios
implicados, e concluiu que a origem de tudo estava na conturbada física envolvida. Leu livros a respeito,
estudou os seus mais modernos fenômenos, investigou avidamente tudo o que lhe parecesse pertinente -
como um enorme redomoinho humano indo atrás de ensaios e de publicações acadêmicas as mais
diversas. Tanto, de fato, que quase morrera ao fazê-lo. Já que, certo domingo, estando a estudar horas e
horas afim, e sem intercalá-las com um descanso, sequer, sofria primeiramente uma forte dor, depois, um
desmaio. Quando enfim acordara, via-se distendido no leito de sua casa, com o clínico ao seu lado, pronto
para desvendar de que se tratava a sua gritante condição cerebrina.
Deveras, reduzira o oficial a um mero reflexo do que uma vez fora, o doutor, pelo menos no que tange à
sua saúde neural. Contudo, fora este mesmo desespero, fora esta mesma fina flor do crepúsculo que
acerbara ainda mais a sua intrigada ambição, e o levara a esboçar uma elucidação sintética e científico-
filosófica do devido fenômeno. Pela primeira vez a vislumbrava já em 1937, e concluía-a aí por 1942 -
com o ápice do império nazista -; tendo em mãos uma poderosa dissertação, ou ferramenta, que
derrubaria todo o arcabouço das ciências - inclusive a física newtoniana.
Cabe dizer, antes que divulguemos a sua obra, que Schröder tinha desde muito cedo um determinado
talento para as matemáticas, e que conhecia como ninguém os dilemas da física quântica, a Interpretação
de Copenhaga, a relatividade etc. Fora calculando e construindo gráficos de probabilidades, permutando
grandezas e interpolando teoremas que chegara ele próprio à sua derradeira conclusão, da qual pegamos
emprestado apenas o desfecho.
Demonstrava que todos os determinismos eram meras aparências, que inevitabilidade alguma pertinente
aos fenômenos naturais verdadeiramente existia, sendo meramente substituída pela probabilidade e pela
convergência de probabilidades, que geram assim a aparência quase inelutável da lei científica.
Sobre isto, esclarecia:
"Não há lei científica." - escrevia - "Há apenas uma probabilidade esmagadora de que certa ação se
concretize, ou, mais apropriadamente, uma aglomeração de agentes probabilísticos, que em ação conjunta
favorecem uma determinada possibilidade. Tanto, com efeito, que na maioria dos fenômenos já estudados
no universo, uma possibilidade alternativa nunca se concretizou em frente da vista humana, e por isso a
ilusão da necessidade." - extrato do capítulo 38, parágrafo terceiro, da sua "Crítica da Filosofia Natural e
da Físico-Química".
Mas se por um lado a conclusão pode parecer a nós coisa por demais simples, e de não grandes esforços,
por outro, a quantidade dos cálculos, e a massa densa dos predicados eram já coisas que consumiam os
maiores dos volumes inteiramente, e ainda deixavam espaço a emendar.
"Até hoje" - escrevia o oficial, noutra linha - "até hoje, nenhum físico ou químico jamais entendeu
verdadeiramente os fenômenos naturais ao nosso redor. Somente deles extraíam a lei, sem sequer buscar
compreender por qual razão a lei é tal, ou qual, e por que a lei funciona como lei, afinal de contas. A
necessidade da lei nunca foi provada, nem a nós, e nem por nós mesmos, os homens da ciência! Precisou-
se que a ilusão da necessidade fosse quebrada, estraçalhada, perdida, de todo, para que se pudesse ver o
que se escondia, derradeiramente, por trás dos agentes que determinavam uma mera aparência de lei,
imperturbável como antanho fora. À luz de tal descobrimento não nos restam, pois, mais subterfúgios que
previnam a contemplação do universo como ele é, isto é, como eterna instabilidade e flutuação - o
produto de caprichos livres, expressos em chance, uma simples revolução dos cósmicos dados.
Ulteriormente, esta, que é a sua verdadeira essência, traduz uma única e inexorável necessidade. A de uma
mão que volteie a roleta, a de um agente por detrás do agir, uma vez que juízo pressuponha juiz, tão logo
nos deparamos com uma lacuna em branco, um espaço inexplorado. É este o agente que, embora não
sendo neste ínterim de todo esclarecido ou compreendido, nem por isso deixará de ser, por definição
mesma do termo, uma vontade - juíza perfeita como qualquer outra -, livre em sua essência e soberana em
seu arbítrio." - extrato do capítulo 113, quadragésimo terceiro parágrafo, da sua "Crítica da Filosofia
Natural e da Físico-Química".
Quando por último se levantara, e contemplara extasiado e meticulosamente o findado projeto,
decidindo-se pelo arremate das revisões, saíra como uma brisa a procurar editoras e contatos para uma
eventual publicação, mas sem grande sucesso, porque a guerra era impropícia para os negócios. As
comunicações, ademais, com o exterior, onde se encontrava o cerne de toda a pesquisa teorética em física
e nas ciências, no geral, estavam cortadas; e provavelmente só seria possível, com alguma sorte, uma
tímida tiragem apenas, contanto que por aí a guerra já tivesse acabado. Tampouco o Dr. Heine, um sábio
do melhor e mais auspicioso grau, fornecia-lhe alguma ajuda. De fato, estava mais era para concorrência
do que para qualquer outra coisa.
Em 1943, entretanto, retornava Ignaz C. a Berlim, não da Prússia Oriental, para onde havia partido, e
sim de algum local próximo à fronteira a este, que ele não bem revelava, porquanto fosse um posto
secreto, e de altíssima segurança.
Voltava com novo emblema. Era agora oficial da SS, e de uma respeitável se não francamente temível
chefia. Logo no primeiro dia em que chegara a Berlim, tratara o amigo de visitar o velho inválido, dando
um pulo ao seu apartamento poucas horas depois do seu check-in no hotel. Encontrara-o de pé e abstraído
em contemplações, altivo mas distante, como se a solucionar um único e imprescindível enigma. Nada
que a vista do velho companheiro não lhe pudesse retirar à cara feia, sem embargo, porque ao recebê-lo à
porta a esposa, e depois atravessar o corredor e chegar à área de estudo, cobria-se de felicidade o oficial, e
deixava-se desagarrar daquela pose pesada e sisuda, que o outro até tinha por majestosa, e mesmo digna
de um sustentáculo qualquer.
- Quanto tempo! - disse Schröder, segurando-o pelos braços - Muito aconteceu, vem! há muito que te
contar.
- Igualmente... - dizia Ignaz C.
- Mas primeiro - continuava o inválido -, tomemos um chá ou um café. Peço à Maria para fazer-nos uns
biscoitos, que achas?
Sentaram-se os dois à mesa de estudo, e depois viera a esposa com os biscoitos. Ignaz carregava uma
expressão séria consigo, coisa que não notaria o outro se não fosse acompanhada de uma intrigante
placitude, um silêncio de profundeza e circunspecção. Mal se conseguia distinguir qualquer mudança,
porém, porque era muito sutil a ruga que ele trazia no longo rostro.
Depois de seu tempo, se abria entretanto; já aí ia a falar sobre os negócios, e comentava comedidamente,
reagindo à insistência do outro, a situação do mundo, do exército, da facção, e demais coisas afins.
- Não creio que seja lícito dizer que a guerra muda completamente os homens, meu amigo. - disse Ignaz,
um certo momento - Eu, em mim, só descobri coisas que desde sempre havia, e que apenas ficavam
soterradas ou pouco aparentes...
Com o término da narração, veio Schröder e contou, por sua vez, o seu determinado caso. Ignaz não era
particularmente entendido de ciência, mas por educação e observação da instrução, da condição do outro,
aquiesceu que a pesquisa era coisa valiosa, e até sublime.
- Então - respondera o oficial, depois de ouvir todas as historietas e todos os elogios de Ignaz, sem saber
que eram supérfluas bajulações -, se tu concordas na importância, e não obsta à modéstia, acho que agora
estava bem na hora de tu me pagares aquele meu favor, que te prestei há muitos anos, e que te levou a
estas veredas e carreiras de cá... Não achas?
Ignaz desviou o olhar, enquanto o oficial procedesse a lhe expor, com mais detalhe do que em qualquer
outra vez, que poderia mui bem se utilizar de alguém de sua patente, que mexesse uns pauzinhos, que
conseguisse uma publicação ou uma notificação ao ministério, enfim, a alguém que importasse.
- Pode até vir a ser um auxílio no esforço de guerra! - acrescentava Schröder, com meia honestidade e
meio pregoamento - Pensa, quantas guerras foram vencidas com base em inventos e revoluções técnicas?
quanto elas ajudaram? O valor é incomensurável! - concluía.
- Eu também fiz coisas que são incomensuráveis - redarguia Ignaz C., com um olhar de difícil tradução
-, e que sob pretexto algum seria direito acioná-las, sequer pronunciá-las. Ademais, a minha posição não é
nem tão alta assim... Mas tudo bem, verei o que eu posso fazer por ti.
Ao fim de uma semana, retornava Ignaz C. às imediações da fronteira, e reassumia quaisquer que
fossem os seus postos no oficialato e na ocupação de territórios recém-anexados na região. Nos meses
seguintes, visitara o oficial e transitara de Berlim às suas cercanias, e das cercanias a Berlim múltiplas
vezes; em todas as ocasiões postergando a instância do amigo, e dizendo ora que as partes não lhe davam,
nem lhe dariam ouvidos, ora que a patente não era de autoridade, ou ainda que o trabalho não lhe permitia
tempo. Em 1944, passava um último fim de semana na cidade, quando o velho camarada decidira, por
fim, lhe contar toda a verdade. Tornando-o ciente de toda a desgraça, pondo-o a par de toda a doença. E
incluindo-se aqui o seu desafortunado desfecho, o estágio mais tardio do suplício.
- ...Em não muito tempo, meu amigo, a coisa piorará tanto que eu terei de ficar deitado todo o dia. Em
não muito tempo, eu estarei morto, Ignaz! Morto! - suplicava, o inválido Schröder - Eu provavelmente
estarei em um coma profundo, quando isto me acontecer... Se ninguém mais que não tu não divulgar a
minha obra, ela ficará perdida para todo o sempre. Perdida! Perdida e sepultada em um subsolo
irreconhecível, um canto obscuro. Para sempre... Para ninguém mais ver! - exclamara.
Esta notícia funérea, dada súbita assim, chegou até mesmo a suscitar na mente do comandante de
destacamento, talvez um quase arrependimento. Um brilho pujante de alguma coisa nova ou antiga,
suprimida ou recém-formada. Chegaria a ser um filamento de escrúpulo? não, não poderia ser. Mas seja lá
como for, certo é que o militar e familiar da casa do oficial o levara à cabeça, enquanto se processava na
imaginação toda a suma de cenas rasteiras, e fragrâncias mórbidas que ele então já havia contemplado e
sancionado, suportado ou aceitado, como parte do seu ofício e da execução de misteres no oriente. Por um
momento se lhe despertou um belo de um titubeio. Um flato que desabita o corpo, uma coisa assim... Um
idílio breve de fresca e de folhas secas, lançadas ao vento do outono e guiadas pelo ocaso dos impérios!
Mas por último, porém, venceram-lhe as desilusões e o cinismo n'alma. Ignaz, como bem o poderia dizer
qualquer um dos seus múltiplos suplicantes, era um fiel nacional-socialista. Fazia o que tinha de fazer, e
não deixava que lhe perturbassem o juízo, nem os nervos; e nem muito menos o influiriam o pudor e a
moral, e certamente não o seu pudor e a sua moral.
Quando em 1945, pouco antes da Batalha de Berlim - o último combate daquela causa perdida -, fazia
Ignaz esta que seria presumivelmente a sua derradeira visita à cidade, buscava refúgio na casa do amigo.
Contava-lhe tudo o que havia sucedido no fronte oriental, e como que a essa altura já estava todo o
projeto arruinado. Uma contenda fadada à derrota, uma peregrinação destinada ao fracasso. Schröder
concordou com a visão do amigo, e aquiesceu que comemorassem aquele que poderia muito bem ser o
seu último dia, e abriram a adega; para isso, também trazendo Ignaz um disco de Bruckner, que colocara
para tocar. Puseram-se a ouvi-lo, a jogar e, ao cabo de tudo, embebedaram-se até não conseguirem mais.
Já era tarde da noite quando enfim saíra Ignaz, deixando o triste amigo e a esposa sozinhos, enquanto os
tiros e os estouros começavam a estremecer, e fazer rugir o longínquo horizonte.
Schröder apreciava ainda o disco e a sua música, como nunca antes apreciara disco ou música qualquer,
enquanto a esposa, dizendo-se cansada, subia já a escada até o quarto do casal, indo dormir ou tentar
dormir, se é que não era isto desculpa para alguma coisa mais ou menos infeliz, decerto penosa como tudo
aquilo. Schröder desenfadou-se um pouco mais com a música e, depois de determinado tempo, foi
realizar o mesmo procedimento. Quis se retirar para a área de estudo, movido por alguma sensação
estranha, misto de temor e de precipitação ansiosa, quando, subindo aqueles mesmíssimos degraus de
madeira a caminho do seu escritório, ouviu um breve barulho. Um sonido curioso chamara-lhe a atenção,
advindo do quarto do casal.
Esticara-se à entrada, e o barulho intensificara-se. Era um som chistoso, mas peculiar, e de origem muito
distinta. Aproximou-se com o olho bom à fechadura da porta, e viu Ignaz e a esposa unidos no leito,
debaixo de um cobertor rico e volumoso, de um fino algodão egípcio.
Ainda conseguiu distinguir um pedaço de conversação, quando por último se levantaram e se
recostaram à margem da cama. Dizia, o oficial de destacamentos:
- ...Pelo menos o teu fardo irá acabar; se todos nós morrermos hoje, ou amanhã, não terás tu de aturar
aquele ensandecido desfigurado. Tenho ainda alguma estima por ele, sabe-o, mas não se pode negar que
ultimamente é só isso o que se tornou. Pouco lhe resta da sua original pessoa.
- Virou completamente o juízo com essa história de ler e de escrever - replicou a esposa.
Schröder retirou-se pasmo. Ocorreram-lhe mil reações e mil tenções, enquanto lançava os olhos de lá
para cá, e daqui para ali. Olhou para o alto do teto arqueado; ouviu a música tocando, rugindo o final do
primeiro movimento daquela oitava sinfonia - a apocalíptica, do compositor de Ansfelden -, enquanto
caíam as primeiras bombas a distância, e estremeciam as janelas dos corredores até a sala. O oficial
espiou por uma delas. Viu a cidade pegando fogo: os telhados ardendo esburacados, e os tijolos e paredes
cedendo e tombando-se a tudo quanto era lado. Pensou que era tudo uma enorme lástima; pensou que,
naquele momento de indizível horror e dificuldade, devia alguma coisa à sua nação e ao seu povo, mas
olhou para o lado, um curto lapso, e rapidamente dera pelo erro. Ali todos atentavam somente aos seus
próprios instintos, pensara Schröder. Aos seus próprios prazeres e às suas próprias escusas insólitas. Uma
barbárie! era o que era! Era este o erro daquele país, e de seu estranho povo. Uma reviravolta completa
em caráter... Um caldo primordial, no qual tudo se derretia; se transformava em vontade primitiva e
liberta, animalesca e incontrolável, depois de séculos de impulsos comedidos e de progressos ordeiros,
que o fizeram passar de um punhado de principados e ducados, a nada menos que o próprio coração da
Europa! Não era Schröder que virara o juízo, não... Eram todos eles. Todos estavam loucos, e loucos bem
na sua frente.
Depois de tudo contemplar, virou-se languidamente. Nunca se sentira tão triste. Dirigiu-se ao seu
escritório, e pôs-se mais uma vez a estudar e a ler os seus livros, enquanto os tiros de metralhadora
soavam ao longe, as tropas aliadas e pátrias lutavam por Berlim, e destruíam um a um, todo resquício de
uma outrora rica e pujante capital. E em tudo isso a música tocava! as bombas explodiam; e os gemidos
dos amantes intensificavam-se!

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