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Lynda Ward

O DESTINO EM SUAS MÃOS


The music
Megan conhecia bem ofo Passion
orgulho e a cólera dos von
Kleist. Fora casada com um deles – Erich – e, até que ele
morresse, experimentou todas as provações do inferno.
Conhecia também a luxúria, a sede de prazer e o poder de
destruição que aquela família aristocrática exercia sobre
as pessoas comuns, como ela. Agora, hospedada no
deslumbrante castelo dos von Kleist, no coração da
Áustria, Megan corria perigo de vida. Pior que isso, estava
consumida de paixão por Kurt von Kleist, mesmo sabendo
que ele só queria usá-la. Precisava fugir das garras
daquela família tirana, sob pena de ser destruída. Mas seu
coração enlouquecido sangrava só em pensar que jamais
Digitalização: Tinna
Revisão: Márcia Goto

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CAPÍTULO 1

Kurt von Kleist afastou as cortinas de pesado veludo marrom e olhou as árvores lá fora. Da janela de seu estúdio,
estendia-se um vasto gramado que terminava num grupo de eucaliptos altos, tremendo e curvando-se incessantemente
debaixo do sopro do vento quente foehn. Além dos troncos claros dos eucaliptos, carvalhos frondosos cobriam a colina, o
verde das folhas muito vivo, quase luminoso sob o sol de julho. Kurt podia enxergar dali um braço do lago brilhando entre
as árvores, a superfície da água agitada e perturbada, como se fosse um reflexo de seu próprio estado de espírito. Pequenas
flores brancas contrastavam vivamente com a água que era ainda mais azul que o céu austríaco, mas pela primeira vez a
incrível beleza daquela cena não o apaziguava.
Era tudo muito familiar e amado por ele desde o seu nascimento, mas agora sentia um arrepio percorrer sua espinha.
Inúmeros von Kleist antes dele tinham estado exatamente ali onde estava, admirando a mesma vista, aceitando tudo aquilo
como um direito de nascença. Mas será que os que viriam depois dele poderiam fazer o mesmo?
Ainda olhando pela janela, Kurt procurou nos bolsos a cigarreira, mas lembrou-se de que a tinha deixado no bolso do
paletó jogado sobre o encosto da cadeira giratória na qual estivera sentado até há poucos minutos, tentando inutilmente
trabalhar. Com movimentos nervosos, que não lhe eram usuais, apanhou a caixa dourada e abriu. Apertou os lábios.
Estava vazia, apesar de ele tê-la enchido de cigarros ainda pela manhã. Pigarreou irritado, olhando para o cinzeiro
transbordando sobre a escrivaninha. Cruzou a sala em longos passos para pegar mais cigarros, pensando que se os cigarros
não o matassem seu médico provavelmente o faria, por fumar tanto. Tinha lhe dado ordens de reduzir o fumo.
Do armário detrás do bar tirou um pacote de cigarros fortes, sem filtro. Com prática, rasgou o selo entre o polegar e o
dedo mínimo da mão esquerda. Parou então e olhou para a mão aleijada. Normalmente não se preocupava com aquela
deficiência, tanto quanto não se preocupava com os dedos longos e torneados da mão direita normal, mas agora, com a
chegada próxima de um visitante, punha-se a pensar. Depois de vinte e cinco anos a cicatriz tinha se reduzido a uma linha
finíssima ao longo da pele bronzeada, logo abaixo das falanges. Era quase invisível, aparecendo apenas quando se
esforçava por dobrar os dedos médio e anular. O médico tinha lhe dito, uma vez, que sua capacidade de mover
ligeiramente aqueles dedos rígidos era sinal de que os nervos seccionados poderiam ser restaurados através de
microcirurgia. Kurt, porém, tinha respondido que não se interessava. Se a tecnologia já tivesse atingido esse ponto de

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desenvolvimento na época do acidente, quando ele era um rapaz de treze anos, toda a sua vida teria sido inteiramente
diferente. Mas agora, um quarto de século tinha se passado e parecia-lhe não haver razão para pensar no assunto.
Conseguia se virar muito bem com o pequeno defeito. Era assim que as coisas eram e quem se importasse com o seu
defeito físico não merecia maiores atenções de sua parte.
Mas o que será que a americana ia pensar? Será que ela perceberia? Será que seria grosseira a ponto de comentar?
Parecia pouco provável, mas Kurt sabia que algumas pessoas tinham um preconceito latente contra qualquer imperfeição
física. Se ela fosse desse tipo, talvez criasse dificuldades. Gostaria de saber mais sobre ela.
Olhou o relógio. Faltavam alguns minutos para a uma. Karl devia estar indo ao encontro dela na praça da cidade. Mais
uma vez Kurt lamentou o fato de ter aprovado tão apressadamente os arranjos da viagem quando ainda estava em Viena.
Não tinha conseguido pensar com clareza. Na verdade, teria sido bastante mais correto encontrá-la no aeroporto em
Salzburg e viajar os restantes cinqüenta quilômetros na limusine. Mas ao receber a notícia de seu agente americano, tinha
se surpreendido depois de tantos meses de silêncio e, no momento, estava absolutamente absorvido nas negociações de
uma excelente coleção particular de obras de Braque e Matisse. Assim, tinha deixado o planejamento de viagem aos
cuidados de Gabrielle.
Só depois dos telegramas e passagens terem sido enviados foi que Kurt percebeu que a americana podia ficar ofendida
por ter de vir de ônibus até Kleisthof-im-Tirol. Talvez interpretasse isso como um tratamento arrogante para com a prima
pobre. Kurt tinha exigido que a passagem de avião de Los Angeles a Salzburg fosse de primeira classe. Gabrielle tinha
torcido o nariz, dizendo que a classe turista era mais que suficiente para uma americana caça-dotes. Mas essa observação
era típica de Gabrielle. As atitudes da americana desconhecida tinham sido bastante estranhas desde a morte de Erich e
pareciam indicar que ela não era nenhuma mercenária.
Como seria a viúva de Erich? Que tipo de mulher teria despertado a paixão de seu atribulado irmão mais novo? Kurt
não se orgulhava nada do fato do casamento ter durado dois anos e ele ainda não conhecer a cunhada. Se aquela carta
delirante de Erich podia ser levada a sério, ela era uma morena escultural, pouco mais velha que o marido, o que devia
colocá-la agora na casa dos trinta anos.
Os olhos de Kurt se ensombreceram. Erich tinha estado inebriado pela esposa e ela havia retribuído essa devoção
fugindo com outro. E no entanto, curiosamente, tinha desempenhado exemplarmente seu papel de viúva. Verdade que a
carta escrita por ela a Kurt para informar a morte do marido era breve, fria e formal, mas talvez isso tivesse sido o mais
adequado nas circunstâncias. Não tinha pedido nenhum dinheiro e Kurt, que não sabia de suas condições reais e pensava

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que Erich tinha lhe deixado alguma coisa, não tinha oferecido ajuda. Só mais tarde veio a saber que ela vendera o precioso
violino de Erich para saldar dívidas e então concluiu que ela não devia ter recursos próprios. Era possível que seu novo
amor a estivesse sustentado, mas um violino Guarneri legítimo não é coisa de que alguém se desfaça sem dor no coração...
Kurt havia tentado localizar a americana, mas todos os esforços tinham sido infrutíferos e ele concluiu que ela devia
ter se mudado para algum outro lugar com o amante. Depois, quando o assunto Bachmann apareceu, tornou-se imperativo
localizá-la. Kurt contratou então uma agência de detetives de Nova York recomendada por um associado. Depois de meses
de busca a agência localizou-a em Los Angeles, trabalhando como pianista num bar noturno, usando o nome de Megan
Halliday. Não tinha se casado de novo, mas retomara o nome de solteira. Kurt imaginava se teria sido sentimento de culpa
ou algum estranho orgulho que a impediram de usar o nome von Kleist, que ela havia desonrado. Fosse qual fosse a razão,
era irônico que ela tivesse rejeitado o nome von Kleist, considerando-se o quanto Erich tinha lutado por seu direito a usá-
lo.
Kurt sentou-se em sua escrivaninha e começou a folhear a pilha de catálogos de leilões. Tinha realmente de começar a
trabalhar, em vez de perder tempo pensando em bobagens. Mas depois de ler a primeira página por três vezes, sem
conseguir assimilar nem uma palavra, deixou os impressos de lado.
Recostou-se na cadeira, esticando negligentemente as longas pernas e fazendo ranger as molas. Através da névoa de
fumaça do cigarro, olhou o retrato do pai dependurado sobre a lareira: Graf Friedrich Johannes Horst von Kleist, o terceiro
em linhagem a usar o título de conde. Tinha seus cinqüenta anos quando aquele retrato, bastante medíocre, fora pintado,
mas mesmo a pouca habilidade do artista não tinha sido capaz de ocultar o fato de Horst ser ainda um homem muito
bonito, alto, esguio, com penetrantes olhos azuis e as clássicas feições dos von Kleist acentuadas pelos anos, a estrutura
óssea da cabeça que tinha passado a dois de seus três filhos. Quando Elisabeth viu o retrato pela primeira vez tinha
abraçado Kurt, brincando com ele.
— Bom, meu bem, agora já sabemos como é que você vai estar daqui a trinta anos. Eu espero confiante a sua velhice.
Kurt controlou a pontada de dor que sentia todas as vezes que se lembrava de sua falecida esposa e olhou mais
intensamente o quadro. Todos os que conheciam seu pai compreendiam que ele era exatamente o que aparentava: seguro,
arrogante, um aristocrata até a raiz dos cabelos. Só os membros mais íntimos da família sabiam quanto o mundo em que
vivia perturbava e deprimia o velho Horst. Era um homem alheio a seu tempo, nascido numa posição de riqueza e
inabalável privilégio numa estrutura social que tinha começado a ruir antes da primeira juventude dele, com o início da
Primeira Guerra Mundial. O velho tinha se apegado a seus valores ultrapassados e tentado a todo custo transmiti-los a

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seus filhos. Agora, ironicamente, a tarefa de preservar a herança dos von Kleist recaía sobre Kurt, justamente o filho mais
reticente quanto à riqueza material. Ele adorava a sua herança, adorava o schloss von Kleist, a velha casa, mas mesmo
assim tinha sido ele o filho que abandonara aquele ambiente precioso para tentar a vida na Europa do Mercado Comum. E
agora ali estava ele de volta, assumindo o inverossímil papel de defensor da crença dos von Kleist. Mas, na verdade, Kurt
era motivado mais pelo amor a seus falecidos pais e pela responsabilidade para com a sua filha e demais membros da
pequena família que por qualquer convicção maior na justiça daquela causa absurda.
Escorregou mais na cadeira e olhou o teto, ornamentado com pinturas de deuses e deusas em roupas vagamente
militares. A tradição local atribuía a pintura de todos os afrescos do schloss a Tiepolo, mas na opinião de Kurt as datas não
coincidiam. Soprou a fumaça em anéis e relembrou a história da família, que tinha sido martelada em seus ouvidos desde
o nascimento. Era uma saga agitada. Wagner devia ter feito uma ópera sobre ela.
Em 1683 o Sagrado Imperador Romano tinha doado o vasto território tirolês a Otto Kleist, amigo íntimo do príncipe
Eugene de Savoy, como recompensa por sua atuação na expulsão dos turcos de Viena. Um de seus netos tinha sido
arcebispo de Salzburg. Mais tarde, durante a era napoleônica, Graf Leopold von Kleist tinha se retirado para ali, a fim de
curar as feridas recebidas na batalha de Leipzig. Ao longo dos séculos os von Kleist tinham sido líderes orgulhosos na
vida militar e religiosa e, apesar das oscilações da política e das finanças nacionais, tinham sempre se apegado tenazmente
às propriedades no Tirol, tirando o seu sustento da própria terra. Agora os von Kleist se viam ameaçados, não por um
herói militar, mas por uma simples mulher, uma americana. Kurt imaginava se ele, um comerciante de obras de arte com
um pequeno defeito na mão, seria forte o suficiente para derrotá-la.

— Frau von Kleist — disse o motorista do ônibus gentilmente —, já estamos em Kleisthof-im-Tirol.


Megan despertou, assustada. Os olhos verde-escuros, com a forma e a cor de uma folha de roseira, arregalaram-se ao
se lembrar de onde estava.
— Danke — ela gaguejou, a voz jovem ainda rouca de sono. — Desculpe, eu não pretendia adormecer.
Ela se levantou, arrumando as calças do conjunto de algodão cinza-claro que vestia e afastou os cabelos ruivo-escuros
que tinham escapado da presilha de ouro com que ela os prendia na nuca.
— Não tinha intenção de atrasá-lo. — Ela tropeçava nas ásperas vogais da língua alemã. — Sinto muito. Es... es tut
mir leid.

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O motorista sorriu de seus esforços em falar alemão. Anos e anos no trato com turistas entre Salzburg e Innsbruck
tinham lhe dado um bom conhecimento do inglês americano e, pelo sotaque dela, era capaz de saber que a moça devia ser
da Califórnia. Ela evidentemente falava pouco alemão e, durante a jornada pela estrada asfaltada, ele tinha se perguntado
como é que aquela moça teria conseguido casar-se com um membro da aristocracia. Parecia jovem demais para ser Frau
Fulano-de Tal e muito menos ainda de algum ilustre von Kleist. Será que havia algum ramo bastardo da família que ele
não conhecia?
Tinha podido examinar a americana pelo reflexo no espelho retrovisor enquanto conduzia o ônibus quase vazio
montanhas acima. A pele clara como marfim não tinha nenhum traço de maquiagem e também não tinha sardas, o que era
bastante raro, uma vez que seus cabelos eram os mais vermelhos que jamais tinha visto. Ele sabia também, pelos reflexos
âmbar e dourados que a luz colocava nos cachos, que aquela cor não tinha saído de nenhum tubo de tintura. Conhecia
muito bem os horríveis tons vermelhos exibidos por inúmeras turistas de meia-idade.
E enquanto pegava a bagagem de Megan do compartimento de carga, examinava a moça em sua roupa de algodão
indiano. Não era alta, mas as pernas eram bem longas para a sua altura e, apesar de ser um pouco magra para o seu gosto,
os seios eram cheios, redondos. Afinal, resolveu o motorista, não era nada surpreendente que algum von Kleist tivesse se
casado com ela. A moça era um bilhete premiado para qualquer um.
Parada à calçada da pracinha, Megan defendeu os olhos do vento e tirou da bolsa seus óculos escuros espelhados.
Piscou aliviada detrás das lentes escuras.
— Aqui é sempre assim tão quente? — perguntou. — Pensei que o clima fosse frio nesta altitude.
— A altitude aqui ainda não é tanta — o motorista respondeu. — E o calor é por causa do joehn, o vento. Ele desce
dos lados da montanha e se esquenta por... como é mesmo a palavra? Por compressão. É bom para os fazendeiros, mas nas
áreas de neve provoca avalanches, às vezes.
Megan olhou em torno enquanto ele falava. Notou os edifícios bem cuidados de três e quatro andares, que
circundavam a praça. Estava tudo deserto. Um jovem barbudo tinha descido do ônibus antes dela, mas uma loura o havia
encontrado e já tinham sumido. Megan sentiu um arrepio de apreensão.
— Sabe para onde ir? — perguntou o motorista, percebendo a agitação dela.
— Sei, sim. Schloss von Kleist.
— Mas fica longe — comentou ele. — Vai precisar de um táxi e não sei se vão ter um por aqui.

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— Ah, não. Alguém deve vir me pegar. Já devem estar chegando.
— Bom... — disse o motorista, ouvindo os gritos rudes de dois homens com chapéus tiroleses que protestavam,
impacientes, dentro do ônibus. — Tenho de ir. Tem certeza de que sabe o que fazer?
— Tudo bem — Megan respondeu, valente. — O senhor foi muito gentil. Vielen Dank.
— Até logo — disse o homem, retornando para seu assento no ônibus. — Divirta-se na Áustria.
— Obrigada. Auf Wíedersehen.
Megan viu o grande ônibus vermelho e branco desaparecer numa esquina e toda a segurança que tinha demonstrado ao
motorista desapareceu como se tivesse dissolvido no vento quente. Estava sozinha. Estremeceu, abraçando o próprio
peito. Alguém devia vir encontrá-la. O telegrama tinha sido bem claro: haveria alguém à espera. Mas ali estava ela,
sozinha, numa cidade deserta de um país estrangeiro. Pensou pela primeira vez se não teria sido um grande erro ter vindo.
Desde que deixara Los Angeles, há quase vinte e quatro horas, tinha se sentindo excitada demais para ponderar. Com
exceção de uma breve excursão a Tijuana, aos onze anos de idade, nunca havia saído dos Estados Unidos. Tinha viajado
de avião entre Nova York e Los Angeles algumas vezes, mas o vôo até Munique e depois até Salzburg tinham lhe parecido
o cúmulo da aventura.
Áustria! A terra de Mozart, das valsas e das operetas e de toda a música que penetrava tão profundamente em sua alma.
Devia era dançar por aquela pracinha pela simples alegria de estar ali. Mas estava exausta. E cheia de maus
pressentimentos. Eles tinham começado a surgir em sua mente naquela manhã, ao ver o sol surgir sobre as muralhas do
Festung Hohensalzburg, a enorme fortaleza do século doze que pairava sobre a cidade natal de Mozart. À medida que o
ônibus da companhia aérea deslizava pelas ruas desertas da cidade adormecida, cruzando e tornando a cruzar o rio
Salzach, Megan tinha contemplado, acima das florestas da montanha, as muralhas cinzentas cheias de torres dentadas
banhadas na luz dourada do sol nascente. Um suspiro tinha brotado de seu peito. Pertencia a um mundo de praias, de luzes
de néon, de barracas de sanduíches. Que é que estava fazendo ali, à sombra de um castelo medieval autêntico?
Megan retirou os óculos e esfregou os olhos doloridos. Olhou o relógio: uma hora. Calculando mentalmente, concluiu
que em Los Angeles deveriam ser quatro da manhã, hora em que geralmente caía na cama, exausta do trabalho. Era por
isso que se sentia cansada. Naquele exato momento Dorothy, sua colega de trabalho e vizinha, estaria provavelmente
massageando os pés inchados depois de oito horas empinada em salto agulha, arrancando o sarongue estilo Hollywood e
jurando, como sempre, desistir do trabalho de garçonete noturna para ser datilografa.
Megan lembrava-se do ar surpreso nos olhos de Dorothy ao vê-la empacotar suas partituras.
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— Que história é essa de ir para a Áustria, conhecer a família do seu marido? Eu nem sabia que era casada!
Megan explicara então que seu marido tinha morrido há mais de um ano.
— Oh, Meg, sinto muito. — Dorothy piscava os olhos muito pintados. — Quando você teve... quando você ficou
doente eu pensei... Meu Deus, foi horrível. Você não tem idade para estar casada há tanto tempo!
— Eu tinha dezenove anos quando nos casamos — respondera Megan um tanto irritada, lembrando-se da
desaprovação geral que tinha tido de enfrentar. — Estávamos juntos há dois anos quando ele morreu num acidente de
carro. Não gosto de me lembrar disso.
— Uma aventura na Europa! — Dorothy tinha dito num tom alegre, percebendo a amargura de Megan diante daquelas
memórias. — Que maravilha! Sua sortuda, eu vou ter de me contentar se conseguir ir pelo menos até Catalina neste verão.
Quanto tempo acha que vai ficar fora?
— Não sei. Surgiu algum negócio de família tão importante que os von Kleist...
— Von Kleist? — Dorothy estava perplexa.
— É o nome deles. Meu também, claro, apesar de eu não usá-lo há muito tempo. Eles precisam da minha presença lá.
Mandaram-me as passagens e não sei quanto tempo vai demorar a coisa toda. Mas não estou preocupada. Tenho umas
economias e acho que posso fazer um pouco de turismo antes de voltar, se sobrar algum tempo. O patrão disse que segura
a minha vaga por um mês.
— Aposto que vai guardar, mesmo! — tinha dito Dorothy, irônica. — Em todos estes anos nunca apareceu nenhuma
pianista com tanto talento, nem tão bonita quanto você aqui nesta espelunca. Ele sabe que não vai conseguir arrumar
nenhuma substituta. Não pelo salário de fome que ele paga.
— Bom — Megan sorrira, concordando —, mas as gorjetas são boas.
— É, mas os que dão gorjetas gordas sempre exigem muito, também. Hoje tinha um beliscador, você viu? Aquele com
um topetão...
Agora, a milhares de quilômetros de distância, em plena Áustria, Megan sorria das recordações, o primeiro sorriso
daquele dia longo c cansativo. Dorothy tinha sido uma boa amiga. Não fazia perguntas, não solicitava nada e nunca se
chocava. Ao aceitar o emprego de pianista no bar, Megan ainda estava confusa com a morte de Erich e os fatos que tinham
acontecido pouco antes. E então tinha conhecido Dorothy Butler, uma mulher alegre, de trinta e muitos anos, que tinha
vindo a Hollywood para ser estrela e em vez disso tinha se casado três vezes e se tornado uma excelente garçonete de

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bares noturnos. Às vezes Megan se punha a pensar se o permanente bom humor de Dorothy é que a salvava de um colapso
total. Sem dúvida, a doença de Megan teria sido muito mais grave se não fosse a assistência de Dorothy. Ia mandar
montes de cartões postais: Dorothy ia adorar, mesmo que Megan acabasse voltando para Los Angeles antes de os cartões
chegarem.
Examinou os óculos, tão úteis mas horríveis, que a amiga tinha lhe dado como presente de última hora no aeroporto.
— Óculos espelhados são a melhor coisa para proteger os olhos do brilho da neve nos Alpes — tinha dito Dorothy.
Mas até agora Megan não tinha visto nenhuma neve, nem qualquer montanha que parecesse mais alta que a Sierra
onde tinha nascido e crescido. O motorista do ônibus tinha informado que aquelas eram ainda as cadeias mais baixas, que
os Alpes realmente altos ficavam mais para oeste.
Megan olhou as lojas fechadas que circundavam a praça e chegou à conclusão de que os austríacos, assim como seus
vizinhos italianos, deviam fazer a sesta depois do almoço. Não conseguia entender as tabuletas dependuradas das vitrines
e que deviam informar o horário de reabertura das lojas, e sentia-se ainda mais isolada. Se ninguém aparecesse para
apanhá-la, ela nem saberia como fazer um telefonema. Não ia conseguir utilizar o catálogo, e seu reduzido vocabulário
alemão certamente não bastaria para pedir o auxílio da telefonista. Nos aeroportos isso parecia não ter tido importância,
uma vez que todo mundo falava inglês, e mesmo o motorista do ônibus tinha ficado contente com a oportunidade de
demonstrar seus talentos lingüísticos. Mas ali, numa cidade pequena, suas limitações certamente provocariam
dificuldades. Culpa do Erich! Ele podia tê-la ajudado quando tentou aprender alemão, em vez de ficar caçoando do
sotaque dela. Megan decidiu resolutamente que esperaria mais quinze minutos e depois iria procurar um telefone. Ia ter de
dar um jeito.
Encostou-se à mureta baixa da pracinha e relaxou. Estava muito cansada. Todas aquelas horas sentadas num avião a
haviam deixado dura e dolorida. Estava acostumada a passar horas e horas sentada ao piano, mas isso era diferente do
confinamento dos assentos apertados do avião. O que tinha de fazer agora era dar uma boa corrida em volta do quarteirão
uma ou duas vezes, para reativar os músculos. Espreguiçou-se, lânguida, dobrando a cabeça para trás a ponto de seus
longos cabelos vermelhos quase tocarem a mureta, esticando os braços para cima e para os lados. O movimento esticava o
tecido fino da túnica contra seus seios. Durante algum tempo ficou assim arqueada para trás, sentindo a dorzinha gostosa
dos músculos tensos relaxando gradualmente. Endireitou-se então.

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De repente percebeu que estava sendo observada. Alguém, parecia um homem, a olhava da janela do segundo andar de
uma casinha na esquina. Megan curvou os ombros depressa. Enrubesceu ao pensar quanto devia ter parecido provocativa
ao se espreguiçar. Olhou disfarçadamente para a janela outra vez, mas o vulto tinha desaparecido.
— Entschuldigung. Sina Sie Frau von Kleist? — perguntou uma voz.
Megan deu um salto, assustada. Um homem grisalho, de rosto cor-de-rosa, estava parado ao lado dela. Seria ele o vulto
da janela, pensou ela depressa, notando a limusine Mercedes-Benz prateada parada na curva da rua. Mergulhada em seus
pensamentos, não tinha ouvido o carro se aproximar. O homem vestia um terno marrom extremamente severo, que não
chegava a ser um uniforme, e Megan notou que as calças impecáveis estavam sujas de lama e grama nos joelhos.
— Sind Sie... — insistiu ele.
— Já, ich bin Megan von Kleist — ela respondeu sem jeito, achando que não conseguiria pronunciar nem mesmo o
próprio nome. Mas aparentemente sua pronúncia bastara para o austríaco acreditar que ela falava bem, pois o homem
começou a falar em frases longas que ela não conseguia acompanhar, apesar de entender que ele devia estar se
justificando pelo atraso.
— Bitte — ela interrompeu —, ich spreche weniger Deutsche. O senhor fala inglês?
— Nein — ele lamentou.
Durante alguns momentos os dois se olharam em silêncio. Megan sentiu-se arrepiar ao pensar que não conhecia
aquele homem, mas ele podia muito bem ser o misterioso Kurt von Kleist que havia lhe mandado a passagem de avião
acompanhada de uma carta breve e seca. Mas parecia velho demais para ser irmão de Erich. Além disso, a carta tinha sido
escrita em inglês.
— O senhor, como se chama? — perguntou ela, usando todo o seu conhecimento do alemão. — É Kurt von Kleist?
— Nein, nein, ich bin Karl Weber, der... — O homem parecia perplexo e um tanto horrorizado, prolongando-se em
explicações que Megan novamente foi incapaz de compreender.
O homem era o chofer e estava incomodado com o fato de ter sido tomado pelo cunhado dela. Ele chutou um dos
pneus, fazendo gestos explicativos, e Megan finalmente compreendeu que um dos pneus do carro tinha furado. Daí as
manchas nos joelhos do homem, pensou.
Um pouco mais relaxada, Megan disse a Karl, procurando as palavras alemãs com todo o cuidado, que não se
importava com o atraso e que gostaria de ir imediatamente para a casa dos von Kleist. Pela expressão meio alarmada do

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homem, ela percebeu que tinha invertido a ordem no verbo em sua frase, uma séria ofensa para os alemães, mas ele sorriu
bem-humorado e colocou as duas malas dela no porta-malas. Ao deixarem a praça, Megan impulsivamente olhou para
trás. Na entrada da casa de esquina viu um jovem que olhava fixamente a limusine que se afastava.
Com um suspiro, ela se deixou afundar no banco estofado de camurça cinzenta. Olhou em torno, examinando o interior
do carro luxuoso, tão diferente do carrinho que tinha em Los Angeles. Nunca havia entrado num carro tão caro antes. Já
tinha visto limusines algumas vezes, conduzindo gente chique aos concertos de Erich. Mas isso, claro, tinha sido depois
de ela desistir de ser a acompanhante de Erich, quando então era forçada a passar aqueles minutos de suspense, que
precedem a abertura da cortina, vagando pelos corredores e camarins sem nada para fazer. No começo, quando seu nome
ainda aparecia abaixo do dele no programa, é claro que sempre em letras muito menores, aqueles poucos minutos antes de
a cortina subir eram sempre muito ocupados para poder pensar na platéia ou em seus carros. Ela ficava sempre agitada,
alisando as pregas do vestido longo, preto, perguntando pela milésima vez ao diretor de cena se o piano tinha sido afinado,
verificando a posição da partitura na estante, fazendo as mil pequenas coisas que fazia para poupar Erich e deixá-lo
entregue à sua concentração.
Erich... Sempre que pensava nele agora, para se preservar, Megan tentava relembrá-lo como aparecia no palco, sozinho
num círculo de luz branca, alto, imponente, o cabelo louro-prateado brilhando em vivo contraste com as roupas pretas e
formais. Ele ficava imóvel alguns segundos enquanto a platéia esperava em suspenso, uma espécie de tensão elétrica se
formando no ar. Sentada ao piano, Megan sempre ouvia alguns suspiros femininos quando Erich examinava a platéia, os
olhos cinzentos animados de uma paixão que só ela entendia. Megan duvidava que ele jamais tivesse ouvido as
exclamações das mulheres sobre a beleza dele, pois naquele momento já estava possuído inteiramente pelo único amor de
sua vida: a música. Lentamente ele levantava o precioso violino Guarneri até a posição, no ombro, os dedos longos de sua
mão esquerda acariciando o instrumento, como um amante. E então o braço do arco, animado de uma espécie de tensão
erótica, subia e, com um minúsculo sinal de cabeça, Erich indicava a Megan que podia começar a introdução da peça que
iam tocar no recital. Megan, que respondia àquela paixão, mesmo não sendo a ela dirigida, fazia soar as primeiras notas
no piano e, juntos, os dois traçavam um tecido musical tão sensual e sedutor quanto lençóis de cetim. E, pelo breve
momento de uma composição musical, os dois eram um só.
Tinham sido bons momentos. E agora, olhando para trás, Megan percebia que podia contar nos dedos as vezes que,
durante os dois anos de casados, eles tinham conseguido atingir tal ligação. Ela, então uma confusa e desesperada garota
de dezenove anos, tinha tentado atingi-lo, primeiro como mulher e depois como musicista. Mas tinha falhado em ambas as

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coisas. Depois de uma desastrosa lua-de-mel, em que ficou evidente, mesmo para a inexperiência de Megan, que ele a
tocava com absoluta indiferença, ela quis saber por que ele tinha se casado com ela. Ele não respondeu, afastando-a como
se fosse apenas uma criança petulante. Tocada e humilhada, Megan tinha atirado a ele então aquela acusação imperdoável.
Ela lamentou ter dito aquelas palavras ao terminar de pronunciá-las, mas já era tarde demais. Podia sentir a fria fúria com
que Erich a olhava.
— Bem, Liebling —a expressão carinhosa em alemão tinha sido como uma bofetada em seu rosto —, se é isso que
pensa de mim, pode ficar tranqüila que nunca mais dormirei em sua cama, apesar do dúbio prazer que isso possa
proporcionar. Casei com você porque é boa acompanhante e fica mais cômodo tê-la sempre a meu lado. Em troca disso,
você pode continuar com suas lições de música e ter a honra de ser Frau Erich von Kleist. Se isso não lhe parecer
suficiente, pode ir embora quando quiser.
Ela não tinha podido acreditar. Imaginou que, se pedisse desculpas com extrema humildade, talvez fosse perdoada
pelas palavras rudes; poderiam então tentar reacender o amor que tinha surgido tão depressa entre eles. Foi só depois de
uma série de rejeições humilhantes que Megan entendeu que Erich tinha dito a verdade e nunca mais a tocaria. E foi então
que compreendeu que só ela amava. Ele, não. Mas, mesmo assim, não o havia deixado. Não tinha ninguém no mundo e
compreendia tarde demais que essa era uma das razões de Erich tê-la pedido em casamento. Aos dezenove anos, mesmo
uma vida estéril ao lado de Erich parecia preferível a uma vida solitária dando lições de piano a crianças sem nenhuma
vontade de aprender. E assim tinha continuado, como sua acompanhante, vivendo de verdade apenas nos momentos em
que se relacionavam musicalmente e alimentando ainda algumas esperanças. Ninguém sabia que a intimidade física deles
tinha terminado logo de início e, com o tempo, Megan passou a ver aquelas poucas noites em companhia do marido como
um mero sonho mau e perturbador. Os fatos vieram lhe provar, mais tarde, que estava errada em duvidar da virilidade
dele; mas, quando isso aconteceu, já não importava mais.
A vida musical em conjunto tinha terminado também. Depois de um ano ficara evidente que o virtuosismo de Erich
estava muito além da capacidade dela de acompanhá-lo. Durante um recital num colégio na Pensilvânia, ela executou tão
mal sua parte da sonata de Philip Halstead que só a imensa perícia de Erich conseguiu salvar o número. Depois da
execução ele saíra do palco furioso, sem olhar para ela. Ela se arrastou até o camarim para enfrentar a fúria dele, mas
encontrou a porta trancada. Quando Herschel Evans, patrocinador e agente de Erich, a encontrou, Megan estava chorando
baixinho num canto escuro da estufa da escola.

~ 13 ~
— Não leve tão a sério, querida — disse ele, afagando-a carinhosamente. — Não é o fim do mundo. Todos sabíamos
que isso ia acabar assim. Você é ótima pianista, excepcional para a sua idade, mas Erich é um gênio e nós dois sabemos
que não dá para você acompanhá-lo mais. Mas não é nenhuma desgraça. Até agora, Erich vem tocando em universidades
e cidades menores. Mas agora já está pronto para seu grande momento... Nova Iorque, Boston, San Francisco, lugares em
que todos os músicos sonham se apresentar... A próxima temporada vai ser a mais importante da vida dele e depois ele
será considerado um dos grandes violinistas do país. Não preciso lembrá-la de quanto dinheiro e esforço gastei com Erich
até agora. E agora chegou a hora de eu começar a lucrar com meu investimento.
— E acha que eu vou estragar tudo, não é?
— Falando assim você me faz parecer um monstro. Eu me preocupo com Erich, mas me preocupo com você também.
Você não é feita para a vida de concertos, Megan, não a este nível. A pressão está, sendo excessiva para você. Quando
Erich a apresentou a Lavínia e a mim, achei que era uma das moças mais lindas que já tinha visto em toda a minha vida.
Ainda acho isso, mas você está pálida, magra, com olheiras. Sei que é por causa de todas essas viagens, do excesso de
trabalho. Você tem que assentar-se um pouco, descansar. Talvez ter um filho. — Ele olhou para ela, provocador. — Você
daria uma boa mãe, Megan, e um bebê seria ótimo para coroar a turnê triunfal de Erich. Talvez Lavínia e eu pudéssemos
ser padrinhos, hein?
Megan olhou aqueles olhos castanhos e ternos, sentindo uma pontada de dor no coração. Se ele soubesse! Lançou os
braços em torno do pescoço dele e soluçou baixinho, enquanto ele a confortava dando palmadinhas no ombro.
Megan levantou a cabeça, voltando à realidade. Suas mãos estavam contraídas como garras, as unhas curtas marcando
profundamente o estofamento de camurça do carro. Nem tinha notado o que estava fazendo. Olhou para fora. O Mercedes
atravessava campos verdejantes. A Áustria era um belo país e era difícil entender por que Erich tinha resolvido abandonar
aquilo para ir viver na selva de concreto que eram os Estados Unidos. Megan suspirou profundamente. Não havia porquê
continuar pensando em Erich. Ele estava morto. Um pouco de sua música sobrevivia nas duas gravações que tinha feito,
mas a arrogância e crueldade que tinham causado a ela tanto sofrimento estavam acabadas para sempre, eliminadas nas
chamas do carro acidentado. A polícia disse que ele tinha morrido antes da explosão do carro. Pelo menos isso era algum
consolo.
A limusine atravessava agora uma área de florestas em que a luz formava desenhos de claro-escuro na grama
luxuriante debaixo dos troncos. Megan tentou se concentrar na vista, mas sua mente a traía, evocando pensamentos
inquietos e ela se sentia um pouco como se estivesse drogada. Devia ser por causa da viagem muito longa, claro. O

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relógio lhe mostrava que era ainda o começo da tarde, mas para seu corpo já era o meio da noite. Não sabia quanto teriam
viajado desde Kleisthof-im-Tirol, mas sentia que não estavam mais na estrada principal. Karl manobrava habilmente o
veículo ao longo das curvas do que parecia ser uma estrada particular. Logo, a mansão von Kleist surgiria a distância.
Megan fechou os olhos e tentou se lembrar do pouco que sabia sobre a família de Erich. Ele nunca falava dos parentes
e aparentemente não mantinha contato regular com eles. Pouco antes do primeiro aniversário de casamento, Erich tinha
recebido uma carta com carimbo de Osterreich e parecera tão surpreso com ela quanto Megan.
— É de meu irmão Kurt — ele informara.
Megan tinha olhado o papel coberto por uma pesada escrita germânica, que ela evidentemente não conseguia ler.
Depois de terminar as muitas páginas, Erich tinha ficado um tanto alheio, olhando o espaço com uma expressão vaga.
— Más notícias? — ela perguntou timidamente.
— Depende do ponto de vista. — Erich sorria levemente. — Kurt conta que meu pai e nosso irmão mais velho,
Wilhelm, morreram num acidente em Innsbruck, onde estavam esquiando.
— Oh, meu Deus! — exclamara Megan, horrorizada.
— Poupe suas condolências — dissera Erich, impaciente. — Wilhelm nunca se importou nada comigo e meu pai...
toda a afeição que me deu foi muito pouca e veio tarde demais.
— Você não vai para os funerais?
— O funeral já deve ter acontecido — dissera Erich, indiferente. — É uma outra coisa que Kurt quer saber, uma
coisa... surpreendente. É pena. Eu sempre pensei que um dia ia poder voltar e mostrar a eles... Bom. Agora não volto
nunca mais.
E não voltou mesmo. Depois do enterro de Erich, Megan tinha examinado os objetos pessoais dele. Na verdade, era o
contato mais íntimo que estava tendo com ele desde que se conheceram. E acabou encontrando a carta do irmão. Pegou o
endereço do destinatário e tinha escrito uma breve carta, explicando rapidamente as circunstâncias da morte de Erich.
Enquanto escrevia, tinha a consciência de que devia estar parecendo fria e sem sentimento. Mas de que outra maneira
podia contar a um absoluto estranho que seu único irmão estava morto? Depois disso tinha dado todos os valores de Erich
para Herschel Evans, como reembolso, pelo menos parcial, por todo o dinheiro e tempo que ele havia investido na carreira
de Erich. E tinha fugido para Los Angeles, para recomeçar a vida.

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Meses depois recebera uma carta toda amassada, que a havia perseguido por todo o país. As marcas do correio
indicavam que tinha sido extraviada mais de uma vez, em parte devido ao fato de estar endereçada à Sra. Erich von Kleist,
quando na verdade ela havia voltado a usar seu nome de solteira, Megan Halliday. Ao ler a mensagem, ficara
surpresíssima. Era de um advogado de Nova York, que dizia estar agindo na função de representante de Kurt von Kleist,
irmão de seu falecido marido. Um assunto urgente a respeito das terras de Erich . “Que terras?”, se perguntava ela exigia a
presença da Sra. von Kleist na Áustria. A família von Kleist estava disposta, generosamente, a pagar por todas as despesas
de viagem.
Megan não podia imaginar que tipo de negócio seria tão importante a ponto de a família de Erich estar disposta a
mandar buscá-la na Califórnia, sobretudo por terem eles ignorado absolutamente a existência dela até aquele momento.
Porém, estava cansada do trabalho no bar e uma viagem grátis à Europa não era coisa para se recusar.
E agora ali estava ela numa limusine estilosa, sendo conduzida pelo chofer para... para o quê? Um arrepio de medo a
percorreu. Tinha embarcado nessa viagem tão cegamente quanto tinha embarcado no casamento com Erich. Será que os
resultados seriam igualmente desastrosos? Erich tinha dito: Quero que seja minha mulher. E ela ingenuamente tinha
achado que isso queria dizer: Eu a amo. A família dele tinha dito: Aqui está a passagem para a Áustria. Será que isso
significava que não devia ter vindo? Megan arrepiou-se de novo. De repente sentia enorme desejo de estar de volta ao seu
apartamento atravancado em Los Angeles, o ruído familiar dos roncos de Dorothy filtrando-se através das paredes finas.
— Frau von Kleist — disse o chofer. E só então Megan percebeu que ele já estava falando com ela há algum tempo.
— Desculpe, que foi que disse? — perguntou em alemão.
— Disse que já estamos quase chegando à casa — ele repetiu em alemão. — Já vai poder vê-la, assim que cruzarmos a
montanha.
— Danke, Karl.
Megan aprumou-se no banco, querendo enxergar logo o lugar ao qual o destino a havia trazido. O Mercedes prateado
rodava depressa, saindo da floresta e subindo uma encosta coberta de trevos e flores silvestres. No alto da subida Megan
viu um grande arco de pedra com uma letra K de ferro batido pendurada. Os portões se abriram e o grande veículo
deslizou para dentro. Ao ver a casa, Megan deixou escapar um suspiro.
A mansão repousava na colina como uma jóia numa caixa forrada de veludo verde. Como estavam no alto, Megan
podia ver que tinha a forma de uma ferradura aberta, o intervalo entre seus braços formando um belo jardim que se
estendia até um lago brilhante a certa distância. A fachada frontal era de pedra branco-creme, com três andares e janelas
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altas ornadas de caixilhos de madeira marrom e dourada. Podia se ver também uma quarta fileira de janelas menores lá no
alto, debaixo do teto verde-acinzentado de ardósia.
Karl tocou ligeiramente a buzina duas vezes, deslizando pelo caminho em curva que atravessava um jardim cheio de
flores bem-cuidadas e a clássica fonte onde nereides brincavam com um boto que jorrava água, até chegar ao portal de
onde saíam criados, descendo as escadas de pedra. Quando o carro parou Megan notou a mesma letra K, entalhada desta
vez num escudo.
Olhou absolutamente perplexa. Então esse castelo tinha sido o lar de Erich. E ela nunca suspeitara. Karl abriu a porta
para ela com um ar de enorme dignidade que não combinava nada com as calças de joelhos sujos. Ele estava
evidentemente satisfeito pela surpresa dela.
— Schloss von Kleist — disse ele orgulhoso, apontando a casa com um gesto amplo.

CAPÍTULO 2

F
— rau von Kleist quer ver a senhora, Frau von Kleist — disse a criadinha vestida de marrom.
Megan limitou-se a acenar com a cabeça, fascinada demais por aquele lugar para perceber a repetição de nomes. Meio
tonta, seguiu a criada por uma série de longos corredores, virando e revirando tantas esquinas que se desorientou. Passou
por altas janelas de vitrais que davam para uma vista de gramados bem-cuidados e árvores oscilando ao vento. Atravessou
corredores cheios de pinturas escuras, obviamente valiosas, emolduradas em ouro pesado. Chegou a reconhecer um retrato
de van Eyck, que tinha certeza de já ter visto antes, em algum livro de arte. Os saltos de madeira de suas sandálias batiam
no assoalho, ecoando pelas paredes silenciosas, perturbando os pensamentos que ela tentava controlar para compreender
direito tudo o que via e que era tão inesperado.
Tinha sempre suspeitado que a família de Erich era rica. O violino dele, por exemplo, era uma peça antiga,
manufaturada por um famoso artesão italiano. Erich tinha lhe contado que o violino fora presente do pai. Às vezes Megan
pensava em por quê, uma vez que eram tão ricos, os von Kleist não financiavam a carreira ascendente de Erich. Em vez
disso, deixavam que ele fizesse cada vez mais dívidas com Herschel Evans, que, apesar de ser um patrocinador tão gentil,
era apenas um estranho. Evidentemente nunca ousara perguntar nada a Erich. Baseada em seu parco conhecimento sobre a
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Áustria, Megan tinha composto um quadro mental em que os von Kleist eram prósperos burgueses vestidos em calças de
couro e aventais coloridos, morando num chalé coberto de neve, ornamentado com corações, flores e chifres de caça.
Mas aquela opulenta mansão representava riqueza numa escala que superava toda as previsões e isso a deixava ainda
mais apreensiva que antes.
Acompanhou a criada através do hall, tentando não perder o fôlego diante do esplendor das salas decoradas em estilo
italiano, entrevistas através de portas decoradas com entalhes de folhas douradas e rica decoração.
— Frau von Kleist pediu que a trouxesse ao salão matinal assim que chegasse — explicou a empregada.
Megan despertou com a voz dela e pôs-se a pensar quem seria essa Frau von Kleist. A mãe de Erich? Não. Ela havia
morrido no parto dele, Megan se lembrava bem disso. Talvez uma cunhada ou uma prima? Não tinha como adivinhar.
Sentiu o medo crescer no peito como um balão. Quem seria aquela mulher, a primeira da família de Erich que ela ia
encontrar e qual seria a relação dela com o músico morto?
A empregada parou diante de uma porta entalhada e bateu de leve.
— Hier ist Frau Erich von Kleist, Frau von Kleist — disse ela para dentro, depois de abrir a porta.
Megan hesitou, maravilhada diante da habilidade com que a empregada fazia as apresentações. Respirou fundo e
entrou.
Depois daquele hall severo e sombrio, o salão matinal parecia acolhedor, uma verdadeira sinfonia branca e dourada. As
paredes empapeladas em seda dourada subiam até o teto branco, todo entalhado As altas janelas que davam para um
jardim florido tinham cortinas de veludo dourado, o mesmo tecido que revestia as poltronas rococó agrupadas em torno da
escrivaninha Luís XV. Mas, depois da primeira surpresa, Megan se arrepiou diante da arrumação excessiva de tudo aquilo.
O salão era perfeito demais. Até mesmo o vestido da mulher do grande quadro na parede era dourado. E então os olhos de
Megan pousaram em sua anfitriã. A mulher estava olhando pela janela quando Megan entrou, e só depois de um intervalo
calculadamente longo para ser intimidante, mas não longo demais a ponto de ser rude, foi que ela se virou. Megan olhou
para ela e compreendeu imediatamente que ali não encontraria nenhum aconchego, nenhuma amostra de Gemiitlichkeit
que tinham lhe dito ser característica dos austríacos. A mulher era alta e tinha um rosto anguloso e magro, que lembrou a
Megan os modelos de coleções de alta-costura. Devia ter sido muito bela quando jovem, mas agora, por volta dos
quarenta, apesar de ainda atraente, sua face parecia uma máscara cuidadosamente pintada. Os olhos cor de avelã eram tão
duros quanto os cabelos fixados num elaborado penteado, e ela encarou Megan, examinando-a.

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Megan, de repente, sentiu-se tão jovem quanto uma colegial. Admirou o tailleur de linho cru que a mulher vestia e que
fazia suas roupas de algodão indiano, amassadas pela longa viagem, parecerem baratas e vulgares. Os olhos da outra
examinaram seus cabelos despenteados pelo vento e inconscientemente ela os arranjou com a mão. Os olhos duros
brilharam, triunfantes.
— Você é a viúva de Erich? — perguntou ela rapidamente, em alemão.
Lá vamos nós outra vez, pensou Megan consigo mesma.
— Ja — respondeu alto. — Ich bin Megan von Kleist. A senhora fala inglês?
— Uma vez que seu marido era austríaco — continuou a mulher em inglês perfeito, quase sem sotaque —, pensei que
falasse a língua dele. Mas talvez lhe falte o dom das línguas?
— Uma vez que morávamos nos Estados Unidos — respondeu Megan, irritada, pois odiava sarcasmo e a mulher era
decididamente cínica —, Erich nunca achou que fosse necessário eu aprender alemão. Ele falava inglês com perfeição,
como deve saber.
— Claro. Devido à sua posição, os von Kleist sempre consideraram seu dever aprender as línguas estrangeiras
significativas.
— Quanto à minha capacidade — disse Megan, achando ridícula a declaração da mulher —, falo espanhol
fluentemente e um pouco de francês.
A mulher sorriu, condescendente. Era evidente que, sendo austríaca, ela devia falar francês tão bem quanto inglês.
— Posso saber seu nome, por favor? — perguntou Megan, endireitando os ombros e percebendo que não tinha por que
comportar-se como uma colegial. — Acho que não sei quem é a senhora.
— Ora — respondeu ela, levantando a sobrancelha pintada —, eu sou Gabrielle von Kleist, cunhada de Erich. Achei
que sabia.
— Erich e eu nunca falamos sobre nossas famílias. Nossos interesses eram outros.
— Você é muito jovem — observou a mulher, piscando os olhos diante daquela arrogância e examinando o rosto sem
maquiagem e a figura esguia de Megan.
— Tenho vinte e três anos — disse Megan, sentindo aquela observação como uma acusação.
— É mesmo? Parece menos. Erich tinha quase trinta anos quando morreu. A diferença de idades não a incomodava?

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Megan gelou. Nem bem tinha chegado e já começavam a discutir seu casamento, assunto que procurava evitar a todo
custo. Especialmente com os von Kleist. Não tinham esse direito! O que tinha sofrido com Erich era assunto particular e
ninguém ia conseguir forçá-la a falar.
— Minhas relações com meu marido — respondeu, levantando a cabeça —, não lhe dizem respeito.
— Pelo contrário — Gabrielle respondeu, apertando os olhos, ameaçadora. — Sua relação com Erich é a única razão
de você estar aqui. E me dizem respeito, sim. Diz respeito, sem dúvida, à família von Kleist! — Megan notou que
Gabrielle fechava os punhos com tanta força que suas unhas longas afundavam-se na carne. — Eu disse a Kurt que era
melhor não mexer com isso, não procurar você. Eu disse que haveríamos de dar um jeito, que não havia por que misturar
uma mera caça-dotes americana num assunto que é exclusivamente familiar. Mas ele achou que não, que a esposa de
Erich era agora parte da família e que tínhamos de agir com toda a honra. — Ela riu, amarga e cínica. — Honra, mein
Gott! Como se houvesse alguma honra em permitir a uma mocinha, uma mera estrangeira, penetrar e destruir aquilo que
os von Kleist vêm representando nos últimos trezentos anos... — Gabrielle se interrompeu e olhou para algo às costas de
Megan, perguntando em alemão: — O que foi agora?
Megan voltou-se para trás e viu que a criadinha tinha voltado e falava timidamente com a patroa. Depois de algumas
frases rápidas demais para a compreensão de Megan, ela tornou a sair e Gabrielle voltou para a moça seu olhar gelado. A
fúria que havia neles fazia que Megan quisesse fugir. Mas a certeza de que era exatamente isso que Gabrielle esperava fez
com que ela ficasse.
— Não tenho idéia do que é que está falando — disse Megan, parecendo bem mais calma do que realmente estava. —
Estou aqui a convite de...
— Eu sei por que está aqui — disse a mulher, parecendo mergulhar em si mesma. Os olhos que brilhavam de ódio se
ensombreceram e a voz adquiriu uma calma mortal que assustou Megan mais que a hostilidade aberta. — E, talvez você
não saiba mesmo por que é que significa uma ameaça para nós. Talvez não nos deseje nenhum mal. Mas você é como o
portador duma doença terrível e sua ignorância do poder que tem a torna ainda mais perigosa. Se eu pudesse, a expulsaria
daqui antes que possa causar algum mal. Poderia mesmo destruí-la, se fosse necessário. Mas, felizmente para você, Kurt
não pensa assim. Ele insiste em ser civilizado. É esse o maior defeito de Kurt: insistir em ser civilizado num mundo cada
vez mais bárbaro. — Gabrielle levantou a cabeça. — Pode ir agora. Ele quer vê-la. Greta vai levá-la até a sala dele. E
depois ela a levará para seu quarto. Acho que deve estar cansada da viagem e querendo tomar um banho. Mandarei
alguma coisa para comer. Tomamos os aperitivos às oito e meia e o jantar é servido às nove. A rigor. — Ela olhou para as

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roupas de Megan e fez um gesto indicando a sala. — Eu compreendo que tudo isto por aqui deve ser bem diferente do que
está acostumada. Se achar que suas roupas não são adequadas, minha prima Adelaide poderá ajudá-la. Ela tem mais ou
menos a sua idade e talvez possa lhe emprestar algo adequado, apesar de ser bem mais alta, claro.
— Tenho roupas, sim — disse Megan, entredentes.
— Muito bem — disse Gabrielle, levantando uma sobrancelha, incrédula —, então nos vemos de novo ao jantar. Gulen
tag. — Voltou-se para a janela.
Megan saiu sem conseguir desgrudar os olhos daquela mulher ameaçadora e contraditória. Fechou a porta e apoiou-se
nela, sem ar, o coração disparado.
No mundo em que vivia as pessoas não ameaçavam as outras com "expulsar" ou "destruir". As próprias palavras
tinham um ar antiquado que combinavam mais com a era medieval que com a Europa contemporânea. E que poder
poderia ela ter para "destruir tudo o que os von Kleist significam"? A coisa toda parecia idiota, melodramática, produto de
uma imaginação doentia. Gabrielle era evidentemente uma mulher com problemas emocionais.
— Podemos ir? — perguntou Greta, a criada. — Herr von Kleist ficou muito irritado de a senhora não ter sido levada
até ele assim que chegou.
— Vamos — disse Megan, louca para sentar e descansar, irritada pelo fato de os von Kleist parecerem sempre
incapazes de virem até ela.
Seguiu a criada através de uma enorme sala, ornamentada com pinturas e mobiliada apenas com um sofá e uma
poltrona ao lado do maior piano que já tinha visto na vida. Era um piano de cauda, evidentemente uma antigüidade
construída por algum mestre-artesão, e ela se aproximou do instrumento reverentemente. O revestimento de madeira de
roseira era finíssimo e Megan mal podia refrear o desejo de tocar aquelas teclas de marfim amarelecido pelo tempo.
Tentou calcular quantos anos teria. Não era mobília original do schloss, pois podia ver debaixo da tampa aberta que as
cordas se cruzavam em camadas, técnica que só havia sido desenvolvida no começo do século dezenove. Era tão lindo!
Imaginava se a afinação seria tão perfeita quanto o móvel. Seria um verdadeiro sacrilégio instrumento tão perfeito estar
desafinado!
Havia uma partitura na estante e, indiferente à criada, Megan a virou, esperando encontrar alguma coisa de Liszt. Ou
quem sabe Chopin, talvez Mozart. Mas viu, decepcionada, que era algo chamado Das Madchen und San Hund escrito em
notas e números bem grandes, para crianças. Erich nunca tinha mencionado nenhuma criança na família, mas era evidente
que aquele magnífico instrumento era usado para alguma criança praticar, usando uma música insípida e simplória.
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— Frau von Kleist, temos de ir — implorou Greta. — Herr von Kleist está esperando! — A voz da criada indicava
que Herr von Kleist não era homem acostumado a esperar.
Apesar de tentada a demorar ainda mais, só para provocá-lo, Megan resolveu acompanhar a criada, para não criar
problemas à coitada, pois não seria justo. Mas antes de sair da sala de música prometeu a si mesma que tocaria aquele
instrumento, nem que fosse uma única vez, antes de sair daquela casa.
Megan, seguiu Greta através de uma série de salas enormes, tão opulentas quanto as que já tinha conhecido. Os estilos
variavam, mas havia uma grandeza barroca dominando tudo. Era como um museu. Tudo perfeito. E frio. Diante do calor
que fazia lá fora, o frescor do interior contribuía ainda mais para a sensação de irrealidade. De repente percebeu que,
ocultas atrás de decorações nas paredes, havia grades de ar condicionado. Isso talvez fosse necessário para preservar as
obras de arte, mas enfatizava ainda mais a sensação de estar num mausoléu. Era tudo como um cenário de ópera depois
que o teatro se fechou. Dava para imaginar dançarinos fantasma vestidos em veludo e com perucas empoadas, deslizando
no chão brilhante, ou uma mulher de roupa esvoaçante e pesada maquilagem cantando no alto dos degraus... mas parecia
impossível que alguém vivesse ali. E, no entanto, as pessoas desenvolviam suas atividades diárias entre o dourado e os
querubins das paredes. Kurt von Kleist morava ali, e também Gabrielle, que Megan presumia ser esposa dele. E em algum
lugar havia até mesmo uma criança.
Como uma resposta a seus pensamentos, Megan ouviu um ruído e olhou para cima. Do meio da grande escadaria uma
menininha a encarava. Devia ter nove anos, grandes olhos azuis num rosto um tanto severo e cabelos louros como trigo.
Vestia jeans e uma camiseta e, assim que chegou ao pé da escada, Megan sentiu-se tentada a cumprimentá-la.
— Guten tag — disse.
— Guten tag — a menina respondeu, examinando Megan.
— Eu sou Megan von Kleist — insistiu ela, em seu alemão deficiente. — Como é o seu nome?
— Eu sou Elisabeth von Kleist — disse a menina, sorrindo, em inglês —, mas todo mundo me chama de Liesl. Você é
mesmo a tia Megan? A americana? Pensei que você já fosse velhinha.
Megan retribuiu o sorriso pensando em o que uma criança de nove anos chamaria de velha.
— Fraulein Liesl, sein Vater... — interrompeu Greta, muito nervosa.

~ 22 ~
— Você tem que ir ver o meu pai agora — disse a menina, ainda em inglês —, e Karl está me esperando para me levar
para a cocheira. Eu vou andar no meu cavalo. Mas quero muito falar com você, por favor. Quero saber tudo sobre os
artistas do cinema.
— Mas eu não conheço nenhum! — respondeu Megan, surpresa.
— Pensei que você era da Califórnia. — Liesl olhava Megan, apertando os olhos, desconfiada. — Adelaide disse que
todo mundo na Califórnia conhece os artistas do cinema. Adelaide um dia ainda irá para Hollywood e vai ser uma grande
estrela.
Megan imaginou como seria Adelaide, pensando nas milhares de moças que chegavam à Califórnia todos os anos com
o mesmo sonho. Mas notou, pela expressão da menina, que ela estava decepcionada e Megan não queria cair em desgraça
tão depressa.
— Uma vez, eu vi Burt Reynolds na Disneylândia — contou depressa, sem mencionar o fato de que ele estava a mais
de duzentos metros, de óculos escuros, e podia nem ser ele mesmo.
— Disneylândia! — gritou Liesl. — Você já foi à Disneylândia?
— Já. Muitas vezes.
— Frau von Kleist, pelo amor de Deus — suplicou Greta desesperada, tocando o braço de Megan.
— Desculpe, Liesl, tenho de ir agora, conversamos depois.
A menina saiu correndo pelo corredor, gritando um "até logo" por cima do ombro. Megan voltou-se então e seguiu a
empregada até uma porta tão dourada quanto a da sala de Gabrielle.
— Será que não se cansam de tanto ouro? — perguntou baixinho a si mesma, enquanto a empregada se justificava
dentro da sala. Sentiu raiva daquele rigor excessivo, empinou os ombros e entrou, pronta para enfrentar um novo ataque.
Mas, em vez disso, o homem sentado à mesa pareceu não notar sua presença. Ela imaginou se, como Gabrielle, ele estava
tentando colocá-la em seu devido lugar, como uma mera parente pobre. A cabeça morena estava curvada sobre um
panfleto, à margem do qual ele fazia anotações.
Nervosa, Megan olhou em torno. Apesar das paredes e do teto serem tão pesadamente decorados quanto as da sala de
Gabrielle, a cor predominante ali era o marrom e a sala era obviamente usada como escritório, onde tudo devia funcionar.
A escrivaninha de nogueira era de desenho contemporâneo, contrastando com a lareira antiga, toda entalhada. Uma
cadeira moderna, estofada e macia, não tinha nada a ver com a mesinha Luís XVI a seu lado, nem com a tigela de

~ 23 ~
porcelana chinesa cheia de pontas de cigarro. No outro extremo da sala havia um barzinho portátil encostado à parede e,
diante da escrivaninha, uma pintura emoldurada em alumínio e que, surpreendentemente, não era de nenhum mestre
antigo, mas sim uma obra abstrata de um pintor contemporâneo! Megan estava perplexa. A arrumação eclética daquela
sala contrastava vivamente com a rígida formalidade que tinha visto em todas as outras.
Olhou em torno mais uma vez e descobriu o retrato dependurado sobre a lareira. De início chegou a pensar que o
homem alto e esguio da pintura era Erich. Mas viu então que os olhos eram azuis em vez de cinzentos, o rosto marcado e
o cabelo grisalho. Devia ser o pai de Erich, sem dúvida. A semelhança era incrível. Megan conhecia cada traço
nitidamente, pois tinha caído vítima daquele enorme fascínio desde o primeiro encontro.
Um movimento à sua frente chamou sua atenção para o homem à mesa. Com um murmúrio de desculpas ele afastou os
livros que estava examinando e olhou para ela. Os olhos azul-mar encontraram os dela e Megan prendeu a respiração.
Depois de um segundo Megan baixou o rosto, tentando esconder sua expressão para não revelar a sensação estranha que
se apossara dela. Era o irmão de Erich. O que ela sentia devia sem dúvida ser resultado da incrível semelhança entre os
dois homens. Ver as feições de Erich no retrato dependurado na parede já tinha sido um choque, mas vê-las agora vivas, se
movimentando... Será que todos os homens da família von Kleist se pareciam? Teriam todos o mesmo rosto fino de
malares salientes, o mesmo nariz aristocrático, o queixo forte? É claro que as cores eram diferentes. Os olhos de Erich
eram cinzentos e os cabelos louros, quase brancos. O irmão mais velho, porém, tinha cabelos castanho-escuros e os olhos
cor do mar. As sobrancelhas retas se juntavam enquanto ele a examinava, pensativo. Quando ele arranjou uma mecha de
cabelos que lhe caía na fronte, Megan notou que seus dedos eram longos, como os de Erich. Mão de musicista e, no
entanto, ele a movia com uma certa rigidez que ela não conseguia definir.
Mas Megan percebeu que seu interesse pela mão dele poderia parecer curiosidade insensível e desviou os olhos. Mas
ele tinha percebido o olhar dela. Lentamente Kurt se levantou e Megan viu que ele era ainda mais alto que Erich. Com um
ar à vontade que ela admirou, ele vestiu o casaco cinzento e ajustou a gravata com a mão defeituosa. Megan viu então a
fina cicatriz. Compreendeu instintivamente que aquele homem seguro e calmo não estava fazendo nenhuma pose. Parecia
maduro além do ponto de precisar provar alguma coisa às pessoas. Ela imaginou onde ele poderia ter se ferido... Erich
nunca tinha mencionado o fato.
Megan precisou de toda a sua coragem para suportar o exame silencioso que Kurt fazia dela agora. Os olhos dele se
detiveram por um instante em seu cabelo acobreado antes de examinarem o rosto. Ele notou os seios, um pouquinho
cheios para a baixa estatura dela, a cintura fina, as pernas longas, torneadas. Ele examinava o corpo dela como se fosse

~ 24 ~
uma pintura, indiferente, reservando seu julgamento para quando tivesse analisado tudo, ponto por ponto. Megan tentava
não tremer. Durante os longos meses de trabalho no bar tinha se acostumado a ser examinada, mas a avaliação impessoal
de Kurt a perturbava, sobretudo porque ela não conseguia descobrir se ele gostava ou não do que estava vendo.
Para disfarçar a própria confusão, Megan resolveu examiná-lo também. E concluiu que, definitivamente, gostava
bastante do que via. Kurt era alto, ágil, esguio e todo seu corpo parecia cheio de um controlado poder. Todos os seus
movimentos eram precisos como os de um atleta. Ele devia ser espadachim. Tinha o porte aristocrático de quem manejaria
muito bem um florete.
— Fui informado de que não fala alemão — disse ele de repente, numa voz muito grave e com pronúncia nitidamente
britânica.
— Falo muito pouco — disse ela —, mas não creio que seja o bastante para manter uma conversação. Não sabe quanto
estou feliz pelo senhor e sua mulher falarem inglês.
— Minha mulher? — indagou Kurt, intrigado.
— É... aquela senhora... Gabrielle. Não é sua esposa?
— Minha esposa morreu há sete anos — disse ele, tenso. — Gabrielle é minha cunhada, viúva de meu falecido irmão
Wilhelm. Pensei que soubesse disso.
— Sabia que havia outro irmão, mas não sabia que era casado.
— Éramos três irmãos — explicou Kurt. — Wilhelm, o mais velho, morreu junto com o meu pai quando o teleférico
em que viajavam em Innsbruck se soltou e caiu. Ele e Gabrielle não tinham filhos, apesar de há alguns anos terem adotado
a prima mais jovem de Gabrielle, Adelaide. Erich era o mais novo, claro. E ele também morreu prematuramente. De toda
a família von Kleist restam apenas dois: eu e minha filha Liesl.
— Encontrei Liesl. — Megan estava ansiosa por mudar de assunto. — Ela parece ser uma criança adorável.
— Acho que sim — concordou Kurt, sorrindo.
Megan quase perdeu o fôlego ao ver a transformação por que passava aquele rosto ao falar da filha. As linhas duras em
torno da boca se amaciavam e os olhos, de repente, pareciam mais jovens. Kurt não podia ter mais de trinta e sete, trinta e
oito anos, calculou Megan, mas parecia acumular em si uma amargura eterna.
Megan tinha certeza de que não ia convidá-la a sentar-se. Não sabia se isso se devia a uma grosseria inata dos von
Kleist ou era apenas um plano para colocá-la em seu lugar, Deus sabe por que razão. Inquieta, olhou em torno da sala,
~ 25 ~
notando que os catálogos sobre a mesa eram de algumas das mais famosas casas de leilão de obras de arte do mundo.
Christie's em Londres, Sotheby Parke Beraet em Nova York e outras, em Paris, Milão e Frankfurt, que deviam ser
igualmente conhecidas para os entendidos em arte.
— Coleciona obras de arte? — perguntou, meio gaguejante.
Kurt sorriu, caminhando em passos longos, revelando as coxas musculosas debaixo do tecido fino do terno.
— Sou comerciante de obras de arte. — Sorriu, acendendo um cigarro da cigarreira dourada, depois de oferecer a
Megan. — Tenho uma galeria em Viena. Suponho que não sabia disso, também.
— Não, não sabia — admitiu ela, sentindo-se pouco à vontade.
— Conhece bastante arte?
— Pintura? — ela perguntou. — Pouco. Como se diz, conheço aquilo de que gosto. Meu campo é a música.
— Natürlich — ele murmurou. — Você é pianista, não?
— Sou. Era acompanhante de Erich.
— Assisti ao concerto de Erich em Boston, mas não a vi. — Ele pousou nela os olhos agudos. — Cabelos ruivos, olhos
verdes... uma aparência bastante... marcante. Não creio que pudesse esquecê-la.
— Quando foi isso? — Megan sentiu o coração saltar no peito. — Erich nunca mencionou o fato.
— Erich não sabia de nada — disse Kurt, tragando o cigarro. — Eu estava em Boston a negócios, no dia do concerto,
por coincidência. Comprei o ingresso e entrei, só isso.
Mas não podia ter sido assim tão simples, Megan pensou consigo mesma. O concerto com a Orquestra Sinfônica de
Boston tinha sido o maior sucesso de Erich, com ingressos esgotados semanas antes. Era um programa excelente,
culminando com o Concerto para Violino e Orquestra em Ré Menor de Beethoven, que tinha sido a consagração definitiva
de Erich junto à crítica e ao público.
— Eu não toquei com Erich em Boston — Megan disse depois de uma pausa. — Ele... quer dizer, nós... ele achou que
eu precisava descansar. Mas por que é que não entrou em contato conosco? Estar assim tão próximo e não...
Megan se interrompeu. Pela expressão de Kurt, ela devia ter dito algo errado, algo de que absolutamente não fazia
nenhuma idéia. Não que isso fosse novidade. Toda a sua vida com Erich tinha sido baseada em mentiras e subterfúgios, a
maior parte dos quais ela só veio a descobrir depois que o desprezo dele chegou ao ponto de não se preocupar mais com as
aparências. Com a morte de Erich tinha se sentido aliviada do domínio do marido. Mas agora se via frente a seu irmão, um
~ 26 ~
homem que lhe parecia infinitamente mais perigoso do que Erich jamais tinha sido, e sentiu que ia acabar servindo
novamente de bode expiatório. Como se já não bastasse tudo o que tinha sofrido na vida com Erich... e mesmo depois que
ele tinha morrido, com a história daquela sobrevivente do acidente fatal, que a havia acusado de ter empurrado o marido
para a tragédia.
Imersa em pensamentos, Megan não percebeu que seu rosto tinha se tornado abatido e cinzento, os olhos verdes
brilhando, febris. O homem diante dela evidentemente percebeu que Megan estava em profundo sofrimento mental, mas
interpretou mal a razão disso. Depois de esmagar o cigarro no cinzeiro, colocou-se diante dela em apenas um passo.
Megan manteve o olhar vago e ele apanhou o queixo dela com a mão e levantou sua cabeça num gesto rude. Ela piscou
diante dos duros olhos azuis que a olhavam, gelados, fixos, procurando alguma coisa. O coração dela começou a bater
furiosamente e, depois de algum tempo, percebeu que os arrepios de eletricidade que atravessavam todo o seu corpo eram
na verdade pontadas de dor causadas pelos dedos dele, que a apertavam com força.
— Está me machucando — protestou debilmente.
Sem nada dizer Kurt a soltou e ela acarinhou o queixo machucado. Estavam tão próximos um do outro que, quando ela
baixou a mão, tocou sem querer o paletó dele e recolheu o braço depressa, instintivamente. Kurt percebeu essa reação e
sorriu, irônico, alçando uma sobrancelha.
— Muito bem — disse ele, acendendo mais um cigarro e encostando-se à beirada da escrivaninha. — Eu estava
querendo ver até que ponto você ia conseguir levar esta charada, mas é evidente que seus nervos não estão resistindo. E
como não gosto de ver gente desmoronar diante de mim, acho melhor acabar logo com isso. Quem é você, Fraulein, e
quem a mandou aqui? Qual é o sentido desta palhaçada? Por que está tentando se fazer passar pela viúva de meu irmão?
— É... é evidente que não me conhece — gaguejou ela, confusa e atemorizada diante da tensão de Kurt, alerta como
uma pantera pronta a atacar. — Eu... não passo... de uma americana absolutamente estranha. É natural que queira que eu
me identifique. Tenho aqui o meu passaporte, mas a certidão de casamento e a de nascimento estão em minha mala. Foi
seu agente quem me pediu que trouxesse.
— Documentos podem ser falsificados — disse Kurt, pesado e alheio. — Portanto, vamos parar com esse jogo. Nós
dois sabemos que você não é a pessoa que finge ser. Deixando de lado...
— Documentos falsificados? — Megan sentia vontade de rir diante do absurdo da situação. — Meu Deus, isto está
parecendo um filme de James Bond! Eu sou Megan Halliday von Kleist. Por que acha que não sou?

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— Não vai lhe adiantar nada subestimar minha inteligência, Fraulein. Você chega aqui dizendo ser a esposa de meu
irmão, mas na verdade não passa de uma criança!
— Tenho vinte e três anos. — Megan sentia o bom humor se transformar em raiva. — Tinha quase vinte anos quando
nos casamos.
— Não sabe absolutamente nada do passado, nem da família de Erich — Kurt prosseguia, ignorando-a completamente.
— Diz que era acompanhante dele, mas eu vi com meus próprios olhos que o acompanhante era um homem. E, pior de
tudo, não se parece nem um pouquinho com a descrição que ele próprio me fez da esposa numa carta!
— Erich lhe escreveu a meu respeito? Por quê?
— Por que seria? Não há nada de mais em escrever ao irmão sobre a futura esposa, não?
— Normalmente, não, mas... — Megan se controlou. Não podia contar a Kurt a farsa que o casamento tinha sido desde
o início, não podia sacrificar o pouquinho de respeito próprio que lhe sobrava naquela situação absurda.
— Ainda me lembro das palavras de Erich — continuou Kurt —, especialmente porque foi a única carta que recebi
dele desde que deixou a Áustria. E também porque parecia estranho ele fantasiar as coisas daquela forma. Meu irmão não
era do tipo de expressar as emoções em palavras, mas escreveu assim: "encontrei a mulher dos meus sonhos, a única
mulher no mundo para mim. É alta, voluptuosa, olhos como a noite, uma valquíria morena..." — Kurt passou os olhos por
Megan, insolente. — Você é uma moça bastante atraente, mas deve admitir que não se parece nada com uma "valquíria
morena".
Megan sentiu-se ferver e depois gelar. Era mais uma das mentiras de Erich que sobrevivia a ele. Encarou o homem que
a olhava com tanta suspeita. Se estivesse nos Estados Unidos, simplesmente viraria as coisas e iria embora, mas, ali,
estava à mercê dele. E tinha jurado nunca mais ficar à mercê de um homem.
— Não. Eu admito que essas palavras não servem para mim. — Ela respirou fundo, tentando soar segura e sofisticada.
— Mas são na verdade uma descrição bastante poética da mulher do agente de Erich, Lavínia Evans, que era amante de
Erich mesmo antes de eu ser apresentada a ele.
Megan baixou os olhos, incapaz de encarar Kurt. Lembrou-se de Lavínia, a esposa infiel. Herschel Evans tinha sido
amigo de Megan, mas acreditara nas mentiras histéricas que Lavínia tinha contado a respeito do acidente de carro, ao qual
ela sobrevivera: que Megan tinha fugido com outro homem e que Lavínia e Erich haviam viajado para trazê-la de volta
quando o acidente aconteceu.

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E Erich... Megan tinha certeza de que tinha sido idéia de Lavínia encontrar para Erich uma esposa que fosse ingênua e
tratável, alguém que nunca tivesse coragem de revelar nada quando descobrisse que o casamento seria apenas uma
cobertura para o fato de Erich estar traindo o homem que se empenhava em construir para ele uma carreira brilhante.
Megan tinha sido perfeita: dezenove anos, cursando a escola de música, sem um vintém, sem família a que recorrer
quando a coisa estourasse. Ela já tinha se conformado em abandonar a escola quando Erich apareceu: bonito, brilhante,
extremamente talentoso. Apaixonou-se por ele à primeira vista. Erich a pediu quase imediatamente, casaram-se e ele a
levou para a cama com a mesma indiferença com que alguém se serve de lenços descartáveis para assoar o nariz. E então
Megan descobriu a verdade. Sabia que a humilhação que Erich lhe tinha imposto ficaria gravada em seu coração até a
morte. E era irônico que Lavínia a tivesse acusado de trair o marido, pois depois do tratamento que Erich lhe dispensara,
Megan não podia nem pensar em permitir que outro homem a tocasse.
— Conheci Herschel Evans — disse Kurt, depois de observar o jogo de expressões que brincavam no rosto da moça.
— Mas não fui apresentado à sua mulher. Como é que ela é?
— Espera mesmo que eu possa fazer uma descrição imparcial? — perguntou Megan, irônica. — Lavínia era... e ainda
é, pelo que sei, uma mulher bonita, jovem, profundamente egoísta. E sedutora. Uma Circe morena... pelo menos, todos os
homens que se apaixonam por ela viram porcos.
— Sabia do caso com ela quando se casou com Erich?
— Não. No começo, não. Mas descobri logo. — Ela mordeu o lábio. Não devia ter mencionado a outra mulher, tinha o
orgulho muito ferido. E preferia ser considerada uma aventureira que um capacho. — Erich e eu tínhamos o que ele
chamava de um casamento "civilizado".
— Sei. Eu conheço esses casamentos. Acontecem sempre entre casais de meia-idade que não se amam mais, mas cujo
divórcio é inconveniente por alguma razão. Mas você e Erich eram muito jovens para isso. — Por um momento ele
estudou a cinza do cigarro, parecendo pensar em como iria colocar a próxima pergunta. — Uma vez que Erich tinha uma
amante, suponho que você também tinha um. É assim, sempre.
— Acho que Erich não aprovaria isso. — Ela sorriu de leve. — Ele preferia que eu fosse abjeta em minha devoção.
— Mas não foi o que ouvi dizer. Pelo que sei, você estava abandonando meu irmão na noite em que ele morreu.
— Como foi que descobriu isso? — Megan sentiu faltar-lhe o ar. — Foi Herschel quem contou?
— Então é verdade? — Kurt apertou os olhos.

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— A verdade que eu estava indo embora, mas não com outro homem. — Ela o encarou. — Olhe, Herr von Kleist, não
sei exatamente o que foi que lhe contaram, mas ainda não entendo porque é que resolveram me arrastar até a Áustria. Seja
o que for, recuso-me a responder qualquer coisa sobre Erich. Não lhe devo nenhuma explicação.
Algo que parecia ser respeito brilhou nos olhos de Kurt, mas antes que ele pudesse falar o telefone tocou. Megan
aproveitou para massagear as têmporas. Sentia que estava a ponto de ter uma de suas enxaquecas.
— Von Kleist hier — disse Kurt, irritado, ao telefone. — Ah, é você, Swanson. Was wollen Sie jetzt? Não, não temos
nada a conversar. Achei que já tinha entendido isso. Warum... — Kurt estava evidentemente furioso, rabiscando enquanto
falava. — Nein, Swanson, já lhe disse antes que não é bem-vindo em minha casa, verstehen Sie? Olhe, tenho gente aqui
comigo e peço que não me incomode mais. Auf wiederharen! — Kurt bateu o telefone e voltou-se para Megan.
— Um patrício seu. Um jovem bastante desagradável que parece achar que a persistência pode funcionar onde a razão
não consegue nada.
Mas Megan não ouviu. Tinha os olhos fechados por causa da dor de cabeça e pensava profundamente. Nos quinze
meses de viuvez tinha conseguido, com enorme dificuldade, não mais se apegar ao passado, não se emocionar quando
uma passagem musical lhe despertava lembranças. O único sintoma que não tinha conseguido controlar era a dor de
cabeça que a dominava quando perdia o controle das emoções. Estava tudo indo muito bem em sua vida solitária em Los
Angeles. Ia começar nova vida e de repente viera o chamado para a Áustria. Tinha sido tola em pensar que poderia se
divertir viajando à Europa sem sofrer ainda mais no contato com os von Kleist. Estava cansadíssima e não ia conseguir se
controlar...
Megan gritou assustada quando as mãos de Kurt deslizaram sob ela e a levantaram do chão.
— Solte-me! — gritou impotente, enquanto ele a carregava pela sala.
— Fique quieta — ele ordenou, depositando-a na poltrona. — Você estava desmaiando.
Assim que se sentou, começou a tremer de fadiga. Kurt ajoelhou-se diante dela, afastando do rosto inclinado os
cabelos vermelhos. A mão dele era quente e reconfortante e Megan teve de resistir à tentação de apoiar nela o rosto.
— Está melhor? — ele perguntou, preocupado.
— Estou muito cansada.
— É claro. — Kurt pôs-se de pé. — Acabou de fazer uma viagem longa. Eu devia ter pensado nisso, desculpe-me. Esta
história toda me fez ficar muito desconfiado. E bruto também. Posso fazer alguma coisa por você, Frau von Kleist?

~ 30 ~
Megan notou a ligeira hesitação dele antes de pronunciar o nome. Era a primeira vez que o fazia desde que chegara.
— Herr von Kleist — perguntou —, por que é que estou aqui? Qual é esse assunto tão urgente que exige a minha
presença?
— É sobre algumas propriedades que você herdou com a morte de Erich, mas isso não importa agora. Você acabou de
chegar e precisa de descanso. Podemos conversar depois.
— Ótimo — disse Megan, esgotada. — Posso ir para o meu quarto agora?
— É claro. Acha que consegue andar?
— Tenho de conseguir, não é? — respondeu sem pensar.
— Posso carregá-la... — disse Kurt, ajudando-a a levantar-se.
— Não... não... eu... — Megan ia responder quando percebeu um brilhozinho de humor nos olhos dele. Sorriu de volta,
relutante, sentindo as pernas tremerem. Kurt chamou a empregada e Megan se despediu dele.
— Descanse bem, Frau von Kleist — disse ele. — Ou devo chamá-la de Fraulein Halliday, uma vez que não usa mais
o nosso nome?
— Por que não me chama de Megan?
— Então, boa tarde, Megan — disse ele, com um amplo e cálido sorriso, quase juvenil. — Megan. Eu gosto. É um
nome estranho.
— Nem tanto. É galês. Sou descendente de celtas.
— Com essas cores nos cabelos e nos olhos não me surpreende — ele murmurou. — E é claro que pode me chamar de
Kurt.
— Kurt.
— Sehr gut. Logo, logo, você vai estar falando alemão com perfeição.
— Acho que não — ela disse. — Já tentei antes, mas...
A voz dela morreu quando seus olhos verdes encontraram os olhos azuis dele. Megan fixou, num transe, aquele rosto
moreno e tremeu com uma sensação que tinha até medo de definir, a mesma sensação que a invadira quando Erich tinha
pedido que substituísse seu acompanhante que estava doente.

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Kurt sorriu para ela, cálido, benevolente, próximo. Megan corou até a raiz dos cabelos e desviou os olhos. Não podia
ser assim, pensou indignada, não outra vez, não com o irmão de Erich...

CAPÍTULO 3

A luz do sol poente banhava obliquamente o quarto quando Megan acordou. Os últimos raios de luz adquiriam uma
tonalidade rosada pelas cortinas transparentes que pendiam da porta da sacada. Tinha dormido quase cinco horas. Depois
de a criada levá-la até o quarto, Megan tinha apenas tomado dois comprimidos para dor de cabeça, chutado longe as
sandálias e caído na cama, atravessada. Agora, sentia-se ainda um tanto tonta e notou que, enquanto dormia, alguém tinha
desfeito silenciosamente suas malas e arrumado tudo em seus devidos lugares. Numa mesinha aos pés da cama havia uma
bandeja com uma refeição ligeira absolutamente gelada. Era evidente que tinha estado ali durante horas e, apesar da fome
que sentia, a comida não parecia nada atraente. Olhou o relógio. Se as refeições fossem pontuais naquela casa, e Gabrielle
parecia fazer questão de horários quase militares, tinha de esperar pouco mais de uma hora para o jantar.
Megan estudou o quarto, satisfeita. Era espaçoso e muito feminino. A enorme cama de dossel era entalhada em mogno
e a madeira lustrosa testemunhava anos e anos de uso e cuidados. Era, evidentemente, uma antigüidade. O rosa suave do
dossel repetia-se no delicioso tapete, também antigo, o padrão florido esmaecido pelo tempo. Megan achou que aquele
quarto era o mais atraente de todos os que tinha visto até aquele momento no schloss.
Foi para o banheiro e descobriu que era moderno, em tons de rosa-pálido com chuveiro, bidê e uma banheira tão
grande que dava para nadar. Abriu as torneiras de água muito quente e jogou um punhado de sais de banho aromáticos.
Mergulhou na banheira perfumada, sentido o corpo relaxar na água muito quente. Ali ficou, permitindo-se um pouco de
prazer, e saiu sentindo-se bem e relaxada pela primeira vez desde que deixara Los Angeles.
Vestiu o roupão felpudo e foi até o guarda-roupas escolher o que vestir. Gabrielle tinha dito que usavam rigor para o
jantar, coisa a que não estava acostumada. Mas depois do tratamento que recebera da mulher, Megan estava decidida a ser
impecável. Deixou de lado os vestidos mais brilhantes que usava para trabalhar e escolheu o seu favorito. Era de seda,
sem ombros, estampado em tons de esmeralda, safira e ametista. A saia era solta e moldava suas pernas ao caminhar, com
um franzido na barra. Prendeu os cabelos num coque fofo no alto da cabeça, deixando dois cachos nas orelhas. Pouca

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maquiagem e sandálias de salto alto. No pescoço, amarrou uma fitinha de veludo com um camafeu de jade, que tinha sido
de sua avó.
Prendeu os brinquinhos de jade nas orelhas furadas e passou a mão pelo corpo, alisando a tecido sedoso. Tinha
esquecido os prazeres que existem nas coisas mais simples, como um tecido gostoso. Há mais de um ano vivia como um
robô, com todos os sentidos desligados, exceto talvez a audição, mas agora sentia-se voltar a viver. Lembrava-se com
impaciência de que tinha deixado de usar aquelas cores de pedras preciosas porque Erich um dia dissera que o verde a
fazia parecer uma árvore de Natal.
Olhou o relógio e saiu do quarto. Seus saltos batiam no soalho polido, ecoando pelos corredores vazios. Ao chegar à
escadaria parou um instante, tomada de uma estranha sensação de vertigem. Os degraus pareciam íngremes e intimidantes.
Segurou a saia comprida com uma das mãos e com a outra agarrou o corrimão. Riu de si mesma, pensando que não estava
se comportando de acordo. Aquela escadaria pedia uma grande entrada, com peruca empoada e saias rodadas, o toque das
trombetas anunciando sua chegada à multidão lá embaixo. Maria Antonieta saberia perfeitamente o que fazer, mas nunca a
pobre Megan Halliday! Porém não havia ninguém olhando quando ela desceu, e as salas que atravessou estavam desertas,
um pouco sombrias, apesar de belas, em sua atmosfera gelada e sem vida.
Kurt estava sozinho no salão, preparando um drinque. De inicio ele não percebeu a chegada dela e, naqueles breves
segundos, Megan aproveitou para estudá-lo intensamente. Ela queria entender aquele homem enigmático. Era alto, suave,
elegante na roupa de rigor que devia ter sido feita sob medida. Megan sentiu um arrepio. De perfil ele se parecia muito
com Erich, mas o corpo esguio possuía uma força masculina e um poder mais cru, que faltavam ao irmão. Ela sempre
achara o marido o homem mais bonito que já encontrara, mas via agora que havia algo de muito mais atraente no rosto de
Kurt, as feições duras, seguras, os olhos azuis e vividos debaixo do cabelo castanho sempre caindo na testa. Comparando,
Erich parecia quase juvenil, e se encontrasse os dois juntos, ela pensou de repente, talvez nem notasse a presença de Erich.
Megan prendeu a respiração, preocupada com a direção de seus pensamentos. Kurt então voltou-se para ela e por um
longo momento estudou-a, pousando os olhos em seus cabelos e seu rosto, descendo depois pelos seios cheios, a cintura
fina, as pernas e quadris moldados pela saia fina. Megan se arrepiou como se ele a tivesse tocado, percebendo o fogo que
animou aquele olhar durante um breve instante. Se Erich tivesse me olhado assim pelo menos uma vez, pensou para si
mesma.
— Sente-se melhor agora, Megan? — perguntou ele, com sua voz profunda.
— Sim, obrigada — ela murmurou.
~ 33 ~
— Você está muito bonita. Posso lhe preparar um drinque? O que quer?
— Qualquer coisa que não tenha rum — ela respondeu. — Trabalho num bar noturno chamado Paraíso Polinésio e
tudo o que servem é feito com rum e suco de abacaxi. Já cansei disso.
— Imagino — comentou ele secamente, entregando a ela um uísque. — Não acha o seu trabalho cansativo também?
Com sua formação de música erudita, imagino que deve ser muito desagradável ter de tocar só música popular.
— Bom, eu já estou ficando famosa por tocar a Dança Ritual do Fogo toda vez que as coisas ficam meio paradas —
ela disse, sorrindo e suspirando em seguida. — Não, Kurt, eu aceito meu trabalho pelo que ele é: apenas um estágio
provisório, enquanto não posso me dedicar a outras coisas.
— Que tipo de coisas?
— Dar aulas, talvez. Acho que eu seria uma boa professora de piano. É uma idéia que me atrai cada vez mais, agora
que estou mais velha.
— Mais velha? — Kurt riu. — Uma criança como você?
—Pelo menos madura o suficiente para ter aprendido através de duras experiências que não tenho nem o talento, nem
o temperamento para ser uma grande concertista. Tentei com todas as forças durante anos e o esforço quase me matou.
— Esforço? — Kurt perguntou, sério. — Erich?
Megan não respondeu, caminhando até a janela. Tomou um gole da bebida, sentindo imediatamente os olhos
formigarem. Ia ficar bêbada se não comesse logo alguma coisa.
— Sua filha vai jantar conosco? — perguntou.
— Vai. Liesl e Gabrielle devem estar chegando. Adelaide também, se voltar a tempo do lugar para onde fugiu.
— Bom, já que temos alguns minutos sozinhos, você poderia me contar sobre essa propriedade de Erich? — ela
perguntou. — Ele nunca falou no assunto e naturalmente estou curiosa.
Kurt virou o copo e tornou a enchê-lo de bebida. Megan notou novamente os dedos rígidos da mão defeituosa.
— Esta é a sua primeira noite em meu país, Megan — disse ele. — E quero que seja memorável. Não vamos estragá-la
falando de negócios.
— Como quiser. É que sempre pensei nos austríacos como gente muito eficiente e direta.

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— Não, esses são os alemães. — Kurt riu. — Nós somos diferentes, sabe? Dizem que quando um alemão é
apresentado a alguém, a primeira coisa que pergunta é o nome e a profissão da pessoa. O austríaco, por outro lado,
pergunta o nome e quais os últimos livros que a pessoa leu.
Megan sorriu. Estava começando a se sentir quente e relaxada. Tomou mais um gole.
— E então?
— Então o quê? — ele perguntou.
— Não vai me perguntar sobre os livros que eu li... — Ela sacudiu a cabeça e procurou um lugar para pôr o copo. —
Quando começo a falar mole é porque já bebi o que baste. Não comi nada desde manhã e não estou acostumada com esta
altitude.
— Ah, deve ser a altitude, sim. — Kurt riu, divertido, chegando um passo mais perto.
Megan corou. Ela nunca flertava e não entendia por que o fazia agora. Não era só a bebida e era mais do que a mera
admiração por um homem bonito. Alguns dos homens que tentavam se aproximar dela também eram bonitos e bem-
educados, mas no trabalho nunca se sentira atraída por nenhum deles, rejeitando qualquer avanço. Agora, Kurt estava
apenas olhando para ela, e seu coração disparado e a respiração curta a assustavam.
Kurt olhava interessado aquelas sucessivas ondas de cor invadirem o rosto e o colo dela e Megan pensou em como era
desvantajoso ser tão branca e corar diante de qualquer emoção mais forte. Meu Deus, pensou, o drinque subiu mais do que
eu imaginava.
Os olhos azuis de Kurt se entrefecharam e suas narinas se dilataram quando percebeu os biquinhos dos seios de Megan
se projetando, duros, sob a fazenda fina. Avançou para ela, mas Megan se virou, mortificada. Quando ele tocou o ombro
nu, ela sacudiu a cabeça energicamente. Não vou deixar acontecer assim, prometeu a si mesma, não vou entrar nesse
inferno outra vez!
— Megan... — ele murmurou, apertando mais os dedos nos ombros brancos.
— Vati... Papai — chamou Liesl da porta da sala de música. — Olhe, a tia Gaby deixou eu pôr o vestido novo!
A garotinha entrou no salão, muito bonita em seu vestido cor-de-rosa suave.
Kurt retirou a mão instantaneamente e seus olhos se suavizaram enquanto a menina se aproximava dele e abraçava-o
pela cintura.
— Está linda, Liebling — ele disse com ternura, afagando os cabelos da filha.
~ 35 ~
Megan sorriu e avançou um passo, mas esbarrou numa mesinha muito frágil, derrubando ao chão uma estatueta de
porcelana que se espatifou entre o tapete e a parede.
Morta de vergonha, ajoelhou-se para apanhar os cacos, murmurando desculpas embaraçadas. Mas imediatamente Kurt
a segurou pelo pulso, forçando-a a levantar-se.
— O que é isso, Megan? — ele exclamou. — O que é que está fazendo? Vai se cortar!
— Mas... o bibelô. Sinto muito, eu...
— Esqueça essa droga — disse, rude, e voltou-se para a filha que assistia a tudo de olhos arregalados. — Liesl, vá
chamar Greta ou alguma das outras moças. Diga que houve um pequeno acidente.
A menina caminhou para a campainha, mas Kurt chamou sua atenção, enérgico.
— Eu disse para ir chamar!
Liesl olhou para o pai, assustada, e saiu da sala, batendo a porta. Megan estava a sós com Kurt, que ainda segurava seu
pulso. Ela tentou se libertar, mas ele não a soltou; em vez disso, puxou-a para mais perto de si. Megan tentou empurrá-lo
pelo ombro, mas ele agarrou sua outra mão e prendeu-a às costas dela. Megan estava penosamente alerta à proximidade
dele, sentia o calor do corpo de Kurt contra o seu, os dedos dele tocando seu seio.
— É sempre assim tão desajeitada? — ele perguntou muito baixo.
— Desculpe. Foi um acidente.
Megan encarou-o, depois baixou os olhos, incapaz de enfrentar aquele olhar azul e intenso. Viu então que Kurt ainda
apertava seu pulso, mas a pressão que fazia tinha mudado e em vez de machucá-la ele acariciava delicadamente o seio
dela com as costas da mão.
— Por favor, não faça isso — ela murmurou.
— Por que não? — Kurt sorriu docemente.
— Porque... porque eu não quero, só isso.
— Mein Schatz, eu não acredito.
— Kurt, por favor!
Surpreso, ele percebeu o tom de verdadeiro pânico na voz dela e soltou-a imediatamente.
— Megan — ele murmurou, olhando fixamente os olhos verdes e apavorados dela.

~ 36 ~
— Kurt — disse a voz de Gabrielle, vinda da porta.
Megan voltou-se imediatamente. Gabrielle estava parada à porta, alta e evidentemente chique num vestido de cetim
cor de ostra. Seu rosto porém estava retorcido por alguma emoção feroz que Megan não conseguia definir. Kurt xingou
baixinho. Acenou com a cabeça para a cunhada que olhou para Megan um instante, irrompendo em seguida numa torrente
violenta, em alemão. Kurt respondeu à altura. A discussão foi breve e dura e Megan, morrendo de vergonha, ficou feliz
por não entender o que diziam. Viu Gabrielle estremecer e ficar absolutamente pálida até ser forçada a concordar com a
cabeça, silenciosamente.
Kurt estendeu-lhe uma bebida, que ela tomou em silêncio. Os olhos castanho-claros piscavam cheios de suspeita
enquanto ela olhava os outros dois. Megan imaginou se Kurt e Gabrielle seriam amantes. Afinal, eram ambos viúvos, mais
ou menos da mesma idade.
Mas seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de Liesl com a criada. Só então Gabrielle notou a estatueta
quebrada no chão.
— Oh, não! — gritou, horrorizada. — Minha porcelana de Sèvres...
— Esqueça, Gaby — Kurt ordenou.
— Mas, Kurt, foi presente de casamento do...
— Eu disse: esqueça!
Gabrielle lançou um olhar venenoso a Megan e virou o rosto, furiosa.
— Hora de jantar — disse Kurt, olhando o relógio. — Onde é que Adelaide está?
— Deixei-a ir de carro para St. Johann, visitar uma amiga da escola. Mas já devia ter voltado. Acha que aconteceu
alguma coisa?
— Se tivesse havido um acidente já saberíamos, com certeza — disse ele, irritado. — Ela deve ter resolvido dormir lá
e, como sempre, se esqueceu de avisar. Ela é boa motorista. O que precisa é aprender a se comportar. O jantar está
esperando — disse finalmente, oferecendo o braço a Megan.
Mas o jantar não começou bem. Kurt estacou ao chegarem à sala de jantar. A mesa estava coberta por uma toalha de
linho branco, bordada, um enorme centro de mesa de prata brilhando com velas e flores, além dos copos de cristal,
talheres de prata e porcelana dourada.
— Não acha um pouco demais para um mero jantar familiar? — ele perguntou, voltando-se para Gabrielle.
~ 37 ~
— Mas, Kurt, você disse para dar as boas-vindas à nossa convidada!
— Boas-vindas, sim — ele protestou —, mas mein Gott, Gaby, esse centro de mesa não é usado desde o tempo do
imperador Franz Josef.
— Apenas segui suas instruções, Kurt.
Ele apertou os maxilares, mas nada disse, conduzindo Megan até a mesa. Ela sentou-se à direita dele e Liesl a seu lado.
Gabrielle sentou-se diante de Megan e estudou-a como se ela fosse alguma espécie desconhecida de inseto. Muito pouco à
vontade, Megan observava os dragões e sereias da peça de prata.
— Não é bonita? — perguntou Liesl. — Levou dois dias para polir. Eu ajudei.
— Bom trabalho, meu bem — respondeu Megan, sorrindo.
A um sinal de Gabrielle, os criados entraram conduzindo as bandejas de caminha. Começaram com truta defumada,
seguida de vitela envolta em queijo e presunto, e uma sucessão de pratos cremosos à base de macarrão e vegetais que, no
entanto, não conseguiram despertar o apetite de Megan. Apesar de estar morta de fome, ficou virando a comida no prato,
oprimida pela formalidade da refeição. Kurt tentava manter a conversa, mas o silêncio acabava sempre se abatendo sobre
os quatro, naquela mesa onde cabiam pelo menos sessenta pessoas. Megan respondia com monossílabos e Gabrielle não
falou quase nada. Até Liesl acabou ficando quieta, perplexa com a atitude dos adultos.
De repente a porta se abriu e uma adolescente irrompeu na sala, vestindo jeans muito justos e um colante escarlate.
— Desculpem o atraso — ela disse rindo, em alemão.
Estacou ao ver Megan, que olhou para ela, também. A moça devia ter dezoito ou dezenove anos, era alta e angulosa,
olhos cor de avelã e cabelos castanhos muito lisos, cortados curtos. Tinha algumas sardas nas faces e no nariz arrebitado.
— Oi! Quem é você? — perguntou rindo, com uma careta simpática para Megan. — A última namorada de Kurt?
— Cuidado com o que diz, Adelaide — disse Kurt, severo. — Permita que lhe apresente Adelaide Steuben. Ela é filha
adotiva de Gabrielle e consegue ser bem agradável quando não tenta ser original. Adelaide, esta é Megan, esposa de meu
irmão Erich, que veio dos Estados Unidos.
Adelaide assentiu com a cabeça, sentando-se ao lado de Gabrielle.
— Então acho que não entendi direito — disse ela, em inglês, com sotaque bem mais pesado que o dos von Kleist: —
Achei que estávamos esperando algum velho amigo de família que vinha tratar de uma pensão. Gaby disse que...
— Adelaide — interrompeu Gabrielle —, você não pretende jantar vestida desse jeito, não é?
~ 38 ~
— Ah, não seja tão antiquada — ela protestou, brincalhona. — Se eu subir para trocar de roupa a comida vai estar fria
quando voltar.
— Devia ter voltado mais cedo, então — sugeriu Kurt.
— Eu bem que tentei. Mas o tráfego está horrível. Sabe como é Salzburg durante o festival...
— Você me disse que ia até St. Johan visitar sua amiga da universidade — protestou Gabrielle.
— E fui. Mas o irmão de Barbie está com um amigo de Nápoles e resolvemos ir todos juntos assistir ao último filme
de Al Pacino.
— E evidentemente não pensou em comunicar sua mudança de planos — suspirou Kurt.
— Não. Por quê?
— Se eu soubesse que ia a Salzburg, podia ter pedido para dar uma olhada nas rosas que encomendei para o baile. As
flores que eles mandaram o ano passado estavam horríveis.
— Se eu soubesse do seu itinerário — acrescentou Kurt —, podia ter pedido para apanhar Megan no aeroporto, em vez
de ela ter de vir de ônibus, que é muito cansativo.
— Está bem — disse Adelaide, olhando o peixe no prato. — Desculpem se não avisei.
Megan virava a sobremesa no prato. Odiava ter de ouvir uma discussão familiar. Ela e sua mãe nunca brigavam.
Tinham sido sempre muito chegadas e afetivas. Talvez a enorme solidão que sentira depois da morte da mãe é que a
tivesse levado a se apaixonar por Erich tão depressa.
— O tio de Franco trabalha com di Giulio, em Roma — estava dizendo Adelaide agora. — Ele disse que me consegue
um papel pequeno no próximo filme, se eu quiser. Posso ir? Só até o fim do verão?
— Adelaide, você sabe muito bem que vou precisar de sua ajuda aqui, com o baile. E, depois, vamos ter de redecorar a
sala de música.
— Mas se eu já tiver feito algum trabalho em cinema, fica tudo mais fácil quando eu for para Hollywood.
— Ih, Adelaide — Gabrielle estava irritada —, quantas vezes tenho de dizer que...
— Adelaide, talvez você possa conversar com Megan sobre Hollywood — interrompeu Kurt. — Ela é de Los Angeles
e, afinal, trabalhava nesse ramo.
— Eu não sabia! — exclamou a jovem, encarando Megan. — Você é atriz?

~ 39 ~
— Não! — Megan riu, acabrunhada com o olhar intenso da menina. — Meu trabalho realmente é do ramo de
diversões, mas não acho que possa contribuir com alguma coisa, mesmo morando em Los Angeles. Conheci Erich em
Nova York e era lá que a gente morava antes, quando não estava em tournée.
— Como foi que conheceu Erich? — perguntou Gabrielle, louca para desviar o assunto das fantasias hollywoodianas
de Adelaide. — Vocês pareciam um casal tão... improvável.
— Conheci Erich no Conservatório Halstead, onde eu estudava piano. Ele foi lá para um recital uma vez e precisava de
alguém para acompanhá-lo. — Megan fechou os olhos. Por alguns segundos reviveu as emoções daquele primeiro
momento. O impacto de vê-lo pela primeira vez e saber imediatamente que era aquele o homem que queria. Um sorriso
apenas e ela caíra para sempre, seduzida pela beleza1 dele, inspirada por seu talento.Nada mais lhe acontecera na vida que
pudesse igualar-se ao êxtase daquele primeiro momento.
— Acho que nunca ouvi falar do Conservatório Halstead — disse Gabrielle. — Mas, na verdade, não conheço bem as
escolas de música nos Estados Unidos. Tem Juilliard, claro.
— Halstead é uma escola pequena, sem a reputação da Juilliard, mas me sinto honrada por ter estudado lá.
— Claro — concordou Gabrielle, aparentemente gentil —, você deve ter sido um orgulho para a escola. Está tocando
num bar agora, não é?
— Sim, Frau von Kleist — respondeu furiosa, com toda a dignidade de que era capaz —, é verdade que meu trabalho
agora não está de acordo com a educação que recebi, mas acho que concordaria em que muito poucas coisas na vida
acontecem exatamente como planejamos, não acha?
Com o rabo do olho Megan percebeu que Kurt esboçava um ligeiro sorriso, divertindo-se com a situação. Voltou-se
para ele, furiosa.
— Liesl está estudando piano agora — ele disse, antes que ela pudesse falar. — Acho que ela é uma promessa.
Megan esqueceu a raiva ao olhar para a menina, surpresa de ser de repente o centro das atenções.
— Gosta de música, Liesl? — Megan perguntou. — Há quanto tempo está aprendendo?
— Comecei quando tinha sete anos. Eu gosto do piano quase tanto quanto do meu cavalo. Pena que não possa ter aulas
durante o verão.
— Por quê? — Megan perguntou.
— Você acha que se pode encontrar bons professores aqui em Kleisthof? — perguntou Gabrielle, cheia de desdém.
~ 40 ~
— Desculpe, mas não estou entendendo. — Megan perguntou a Kurt: — Não é aqui que Liesl estuda?
— Não, é em Viena — Kurt respondeu. — Liesl e eu ficamos em Viena quase o tempo todo. É só durante as férias
escolares que podemos passar mais tempo aqui no Tirol. E, mesmo assim, tenho de voltar várias vezes, por causa do
trabalho.
— Ah, é mesmo, você contou que sua galeria fica em Viena. — Megan disse, aliviada pelo assunto mais neutro. —
Deve ser mesmo impossível dirigir um comércio de arte morando aqui nas montanhas. Mas por que não fazer a galeria
mais perto de casa, em Salzburg, por exemplo?
— Minha casa é em Viena, Megan — ele explicou, calmo. — Lembre-se, eu nunca pretendi herdar as propriedades.
Megan corou. Tinha se esquecido de Wilhelm, o irmão mais velho, falecido. Olhou para Gabrielle, viúva dele. Devia
ser horrível viver aquele explendor todo esperando um dia herdar tudo aquilo e um mero acidente roubar seu marido e os
direitos à propriedade.
— Sinto muito, Frau von Kleist — disse Megan, com simplicidade. — Eu não pretendi...
— Quando precisar de sua compaixão, pode deixar que eu peço — interrompeu Gabrielle, cheia de desdém, a voz
áspera. — Você aqui tem menos direito que qualquer um de nós. Até Adelaide é minha prima, tem o mesmo sangue.
Você... você não passa de uma caça-dotes!
— Gabrielle! — rugiu Kurt. — Peça desculpas imediatamente.
— Mas, Kurt — implorou, deprimida —, como pode ficar do lado dela, contra mim? Eu sou von Kleist tanto de
sangue quanto por meu casamento. Ela não passa da esposa abandonada de um bastardo!
— Gabrielle! — disse Kurt, furioso.
— Bastardo? — Megan olhou de um para outro. — Não entendo. Do que é que estão falando?
— Seu querido marido não lhe contou? — rugiu Gabrielle. — Apesar de toda aquela pose ele não passava do filho
ilegítimo de uma vendedora. — Ela se pôs de pé, gesticulando. — Acha que ele cresceu aqui? Ora, ele tinha quatorze anos
quando entrou nesta casa pela primeira vez e se Willi tivesse...
— Gabrielle, você está perturbada — disse Kurt, numa voz gelada e implacável. — Por favor, peça licença e se retire.
Megan se arrepiou. A ira de Kurt era fria como gelo e ela chegou a sentir pena da mulher que pareceu despencar diante
deles, incapaz de se mexer, a máscara pintada partida, parecendo muito mais velha.
— Adelaide, ajude Gabrielle a subir — Kurt ordenou.
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— Mas eu ainda não acabei — a garota protestou.
— Agora! — insistiu Kurt.
Por um momento a moça o encarou, depois se pôs de pé lentamente.
— Claro, Kurt — disse sem expressão. — Quando um verdadeiro von Kleist ordena, quem sou eu para desobedecer?
Ela passou um braço pelos ombros de Gabrielle e levou-a para fora até sala. Megan suspirou, aliviada, sem conseguir
entender aquela mulher.
Kurt caiu sentado em sua cadeira. Liesl, hesitante, lhe fez uma pergunta em alemão. Kurt esfregou as têmporas e
respondeu algo que Megan entendeu como: "Por favor, meu bem, agora não!" Os lábios da menina tremeram, os olhos se
encheram de lágrimas e ela saiu correndo da sala. Megan afastou então a cadeira, mas antes que se levantasse Kurt fez um
sinal.
— Por favor — disse —, não vá ainda. Sei que não foi um começo muito agradável para a sua visita, mas peço que me
desculpe. Não quer conversar, enquanto terminamos o vinho? — Megan concordou com a cabeça e ele tornou a encher o
copo dela. — Sei que os brindes devem ser feitos no começo, mas acho que podemos beber por... um dia melhor amanhã?
— Claro — concordou Megan, tomando um gole em silêncio. — É verdade o que Gabrielle disse?
— Sobre Erich? É, sim. Ele não lhe contou, não é?
— Eu não sei quase nada da vida de Erich — disse Megan. — E nunca tive razões para desconfiar de que ele não fosse
apenas o filho de uma família comum.
— Era bem do gênero dele deixar que você pensasse isso. — Kurt terminou o vinho e acendeu um cigarro, oferecendo
a cigarreira a Megan, que recusou. — Não é que eu queira desculpar meu pai, mas entendo. Acho, pelo pouco que sei, que
depois do meu nascimento meus pais não dormiram mais juntos. Mamãe ficou doente e havia... outras dificuldades entre
eles. Seja qual for a razão, meu pai começou um caso com uma moça chamada Eva Müller, que trabalhava numa loja de
roupas em Kleisthof-im-Tirol. Pelo que sei, ela era muito bonita, os cabelos loiros quase brancos, como os de Erich. Eu
tinha só oito anos na época e tudo o que sei é de ouvir dizer. Eva talvez esperasse que meu pai fosse se divorciar de minha
mãe, mas isso não aconteceu. E não importou também, pois ela morreu ao dar à luz. O menino foi criado pelos pais dela,
que se envergonhavam do... erro da filha. Acho que meu pai devia ajudar com algum dinheiro, mas só reconheceu Erich
oficialmente quando mamãe morreu e ele já tinha quatorze anos.
— E ele sabia, em criança, quem era seu pai? — perguntou Megan baixinho.

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— Sempre existe gente disposta a contar esse tipo de coisa — Kurt respondeu, amargurado.
Megan olhou o copo vazio, pensando em seu marido. Não o conhecera de fato, nunca. Aquela incrível arrogância,
aquele prazer em humilhá-la... era assim, talvez, que ele se vingava de tudo o que tinha sofrido na infância. O que será que
sentia o menino ao ver o castelo nas montanhas, sabendo que nunca viveria lá? O que será que sentia ao ver o homem que
era seu pai? É verdade que acabara sendo reconhecido, mas tarde demais.
— Pobre Erich — Megan disse, sacudindo a cabeça.

Megan atravessava um corredor quando ouviu um ruído através de uma porta meio aberta. Demorou para perceber que
era uma criança chorando. Empurrou a porta. No quarto ridiculamente decorado em nuvens de organdi branco e rosa, e
paredes de seda, viu uma figurinha encolhida na cadeira diante da janela: Liesl, em seu vestido rosa, comprido, abraçada a
um ursinho meio careca.
Megan se arrepiou diante da cena. Ela mesma costumava sentar-se assim, encolhida, agarrada a uma boneca de pano,
tentando não ouvir os gritos dos adultos discutindo lá embaixo. Já tinha se conformado com o fracasso do casamento dos
pais naquela época, mas não conseguia evitar de se sentir vagamente culpada pela briga das pessoas grandes.
— Liesl — disse baixinho, aproximando-se um passo. — Posso ajudar em alguma coisa?
A menina sacudiu a cabeça em silêncio e continuou olhando a janela.
— Lembra que você queria conversar comigo? — disse, carinhosa e cuidadosamente, sentando-se ao lado da menina.
— Estou aqui agora. Às vezes é bom ter alguém para conversar.
Liesl continuou muda, mas voltou para ela os olhos azuis idênticos aos do pai.
— Os adultos às vezes podem ser muito bobos — continuou Megan. — Eles gritam, brigam, como se fossem bater na
gente. Foi isso o que aconteceu hoje. As pessoas dizem uma porção de bobagens, mas no dia seguinte as coisas melhoram
outra vez. Compreende?
— É sempre assim quando estamos aqui — soluçou a menina. — Sempre que a gente vem para o schloss, Vati e tia
Gaby ficam nervosos. Às vezes tia Gaby grita com Adelaide ou comigo. Ela gritou quando eu quis pendurar o cartaz que
veio no meu disco.
— Liesl — disse Megan, sorrindo —, os cartazes não iam combinar mesmo com este quarto...

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— É, mas Adelaide pendurou os dela no quarto dela. Tia Gaby ficou brava, mas ela não tirou. Só que eu não posso
porque meu pai disse que aqui é a casa da tia Gaby e tenho de obedecer a ela quando estou aqui. — Ela olhou ao redor e
disse com raiva: — Eu odeio esta casa. Queria não precisar mais vir aqui todo verão. Queria ficar na minha casa em
Viena.
— Mas você não acha bonito isto aqui?
— Não tem nada para fazer! Só os cavalos. E tia Gaby, dizendo o tempo inteiro que eu tenho de aprender a ser uma
von Kleist. Que bobagem! Eu já sou von Kleist, desde que nasci. Lá na minha casa eu tenho os meus amigos e posso
aprender piano...
— Mas você não tem amigos aqui? Parece que eu ouvi falar de uma festa.
— Mas não é para mim, não. Eles dizem que é, porque vai ser no dia do meu nome, mas isso é só porque eu tenho o
mesmo nome da minha mãe. É um baile de caridade que eles fazem todo ano, para conseguir dinheiro para a clínica que o
meu avô e o meu pai construíram quando minha mãe morreu. — A menina de repente se entristeceu. — Ela morreu aqui,
sabe?
— Não, não sabia — respondeu Megan, carinhosa.
— Ninguém acredita quando eu digo que lembro, mas eu lembro. Tinha muita gente, e velas acesas, e meu pai estava
chorando.
— Você se lembra de sua mãe?
— Não sei direito. Às vezes eu acho que lembro, mas pode ser por causa dos retratos. Papai tem uma fotografia dela
no quarto dele, lá na nossa casa. Ela era inglesa e tinha cabelo loiro como eu. Todo mundo diz que eu pareço muito com
ela.
— Então sua mãe devia ser linda — brincou Megan, pensando que Kurt devia ter amado muito a esposa. Passou o
braço em torno da menina, que parecia mais tranqüila agora. — E as aulas de piano? Não vou ficar muito por aqui, mas
talvez possa ensinar alguma coisa nova a você. Algo para você ir praticando até voltar para Viena. Quer?
— Claro que eu quero! — exclamou a menina, contente.
— Então vamos fazer uma troca. Você me ensina alemão e eu ensino piano. Por que não me conta o que já aprendeu?
Lenta e pacientemente Megan conversou com a menina sobre música, respondendo às perguntas interessadas de Liesl
de maneira simples, ilustrando a lição com rimas e brincadeiras. Liesl se abriu para ela como uma flor ao sol. Liesl disse
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que Megan tinha péssima pronúncia de alemão e começou a corrigi-la e logo, logo estavam rindo tanto que nem
perceberam quando Kurt parou no corredor, acendendo um cigarro. Durante um longo tempo ele ficou olhando as duas
pela porta aberta, uma expressão indefinível nos olhos azuis.

CAPÍTULO 4

Megan sentou-se na cama abraçando os joelhos. Durante a noite o vento tinha parado e, as nuvens, coberto o céu. A
chuva tranqüila caía agora na vidraça que dava para a sacada. Ela havia dormido muito, mas não se sentia descansada. A
fadiga era grande demais para poder relaxar completamente, os pensamentos muito perturbados. Tinha tido novamente o
mesmo sonho, que a deixava agitada.
Começava com uma frase simples ao piano, um tema leve logo seguido em seqüência pelo violino até um elaborado
contraponto. Mas assim que as duas linhas musicais começavam a se trançar como amantes sem corpo, uma gargalhada
feminina rompia a harmonia e uma voz masculina, com ligeiro sotaque dizia: "Você é minha mulher e não vai me deixar
nunca". Depois outra voz, a sua, infantil, amedrontada, suplicando incoerentemente. Os sons todos se repetiam mais e
mais altos até uma dissonância que culminava com o guincho de pneus no chão molhado, metal se amassando, vidros
partindo e uma explosão ensurdecedora...
Megan afundou o rosto nos braços. Logo depois da morte de Erich tinha ficado com medo de dormir, com medo dos
sonhos que voltavam sempre; pouco depois estava absolutamente exausta, incapaz de reconstruir sua vida. Foi então que
encontrou Dorothy Butler. A mulher, mais velha, tinha entendido tudo ao olhar para a nova vizinha e, calada, adotara
Megan, alimentando-a quando esquecia de comer e levando-a para o emprego de pianista no bar onde ela própria
trabalhava. Quando Megan desmaiou ao abortar, sem saber sequer que estava grávida, tinha sido Dorothy quem a havia
levado ao hospital, dizendo à enfermeira que ela não tinha marido nem parentes, guardando em segredo o fato de ouvir
Megan chorar todas as noites durante o sono, chamando um nome masculino estranho.
Com o tempo os pesadelos tinham se tornado menos freqüentes, menos vívidos. Megan recobrou as forças graças aos
cuidados de Dorothy, que nunca perguntara nada sobre sua vida passada.

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E agora, em sua primeira noite na Áustria, o pesadelo voltava e ela sentia que estava se apaixonando por um estranho
arrogante que a lembrava em tudo o falecido marido.
Que é que havia naquela combinação de feições e maneiras que lhe era tão irresistível? Por que é que um determinado
conjunto de músculos e ossos despertavam nela uma reação instantânea? Com Erich tinha sido instantâneo, e ela se sentira
inevitavelmente atraída por ele, fisicamente. Agora, a perspectiva de repetir a experiência com Kurt era insuportável. Kurt
não tinha sido nada gentil no primeiro encontro, mas, ainda assim, ela reagira à aproximação nada sutil dele com a
intensidade esfaimada de uma colegial recém-saída do convento.
Talvez fosse mesmo uma questão de fome, de necessidade física. Tinha vinte e três anos e jamais experimentara uma
real satisfação sexual. Erich tinha sido sempre absolutamente indiferente às necessidades dela e mais tarde, quando outros
homens tentaram se aproximar dela no lugar onde trabalhava, não tinha tido coragem de aceitar o que ofereciam, ainda
traumatizada. Agora, porém, estava saudável, a cabeça mais ou menos tranqüila e o corpo pedindo coisas que ela havia
conseguido reprimir por um longo tempo.
Precisava de um amante, pensou. Era apenas isso. E logo haveria de encontrar um. Alguém que fosse razoavelmente
inteligente, um freqüentador atraente do bar onde tocava piano. Não tinha nenhuma exigência pessoal a não ser que ele
não bebesse qualquer mistura de rum com suco de abacaxi, nem que lhe pedisse para tocar algum tema de filme em moda
no momento.
E que não fosse um von Kleist!

Liesl a esperava na grande sala de jantar formal e levou Megan para uma saleta mais íntima, onde o café da manhã
estava servido sobre bandejas aquecidas.
— Vati pediu que você o desculpasse porque tem que cuidar de uma pintura antes de ir para Viena amanhã — disse ela.
— E tia Gaby e Adelaide estão no salão matinal, preparando a festa.
Com a desenvoltura de um adulto, ela levantou o pesado bule de prata e serviu Megan.
Sentaram-se à mesa e, enquanto comia, Megan se desculpou.
— Desculpe eu ter dormido demais. Foi muita gentileza sua me esperar. Você tinha alguma outra coisa para fazer?

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— Bom, eu queria sair com o meu cavalo — respondeu a menina —, mas está chovendo. — Liesl falava como se a
chuva tivesse caído especialmente para impedi-la de sair, mas seu rosto se iluminou. — Que tal você me dar aquela aula
de piano que prometeu?
— Claro, meu bem, se não incomodar ninguém.
Ao terminar o café, seguiu Liesl até a sala de música, um pouco inquieta por não saber bem o que se esperava de um
hóspede dos von Kleist. O piano reinava solitário na sala e Megan sentou-se ao lado do banquinho.
— Então Liesl, toca alguma coisa para mim?
Depois de complicadas preparações, Liesl respirou fundo e atacou Das Madchen una Sein Hund. Mas mesmo o
extraordinário som do piano não conseguia compensar a má execução. Liesl se agitava a cada nota errada, olhando sem
jeito para Megan.
— Pode começar de novo, se quiser — disse Megan, reconhecendo o nervosismo da criança. Mas depois de tentar
novamente, Liesl começou a esmurrar as teclas, irritada.
— Não faça isso — reprovou Megan. — Pode desafinar o piano.
— É que eu odeio essa música — disse Liesl. — É tão chata.
— É mesmo — concordou Megan. — Não tem nenhuma outra?
— Não. Eu esqueci de trazer.
— Mas deve haver, em algum lugar. Eu nunca vi uma casa que tivesse piano e não tivesse partituras em algum lugar.
— Vamos procurar no armário — disse a menina, saltando do banquinho e abrindo as portas de uma em uma. — Nada
aqui. Aqui também não. Não, aí fica só o toca-discos. Não consigo abrir esta porta aqui, tia Megan, me ajuda?
— Acho que está trancada, Liesl — disse Megan, puxando a maçaneta.
— Posso ajudar? — perguntou uma voz atrás dela.
Megan se voltou vivamente. Kurt vestia calças pretas de veludo e uma camisa vermelho-escura aberta no pescoço.
Megan corou imediatamente.
— Estamos procurando partituras para Liesl.
— Esqueceu as suas, Liebchen? — ele perguntou à filha. — Por que não me disse? Posso trazer para você quando for à
Viena.

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— Não pensei nisso, Vati — respondeu a menina.
— Que tipo de música vocês querem? — ele perguntou a Megan.
— Pensei numa coleção dos clássicos mais fáceis: Alegre Pastorzinho, esse tipo de coisa. Essa partitura no piano não é
nada inspiradora.
— Acho que tem aqui — disse Kurt, puxando um molho de chaves do bolso e abrindo a porta trancada. Na prateleira
de baixo havia uma pilha de livros de exercícios e partituras envelhecidas, e a primeira delas se esfacelou quando Liesl a
tocou.
— Weichlich, mein Kind — disse Kurt. — Algumas dessas partituras têm mais de trinta anos, mas acho que...
Megan porém não estava ouvindo. Estava sem fôlego, olhando fixamente uma caixa de violino de couro preto na
terceira prateleira.
— É o próprio — disse Kurt, percebendo o susto dela.
— Mas como é que conseguiu? Eu o dei para Herschel...
— O que é isso, Vati? Posso ver?
— É o violino que era de seu tio Erich — explicou Kurt, levando o instrumento até o piano.
Ele abriu a caixa e tirou o instrumento envolto num lenço branco, estendendo-o para Megan. Ela o pegou com cuidado.
Tinha aprendido com Erich que um violino Guarneri era uma relíquia quase sagrada.
— Ninguém o toca mais? — perguntou, tornando a guardar o belíssimo instrumento em perfeito estado.
— Ninguém — suspirou Kurt, fechando a caixa. — É uma pena.
Kurt tornou a guardar a caixa e fechou a porta. Megan certificou-se de que Liesl estava distraída com sua pilha de
partituras.
— Eu dei o violino para Herschel Evans — disse baixinho. — Como é que o conseguiu?
— Evans me vendeu o instrumento. Ele sabia que era herança dos von Kleist e que eu gostaria de tê-lo de volta. Por
que não entrou em contato comigo, Megan? Você precisava de dinheiro...
— Eu não vendi o violino para Herschel — Megan protestou. — Dei de presente. Não sabia que era parte da herança.
Erich sempre me disse que era presente do pai. Quando morreu, ele devia uma soma enorme a Herschel e o violino era a
única coisa que eu tinha para saldar a dívida.

~ 48 ~
— Mas você devia saber que um Guarneri genuíno, em perfeitas condições, vale pelo menos o dobro do que Erich
devia a seu agente...
— Você e Herschel devem se conhecer muito bem para ele lhe ter contado quanto é que Erich lhe devia.
— Não conheço Herschel. Combinamos um encontro da última vez que ele veio à Europa. Ele foi honesto. Cobrou
apenas o que Erich lhe devia. Disse que não havia como pagar o tempo e o amor que tinha dedicado.
— Amor... — murmurou Megan.
— Acho que Evans gostava de Erich de verdade — comentou Kurt. — Falou sobre ele com muita afeição. Mas foi
muito amargo ao falar de você.
— Eu sei — disse Megan, pesada. — Graças a Lavínia, Herschel acha que eu fui culpada pela morte de Erich.
— O quê, exatamente, aconteceu naquela noite? — perguntou Kurt, notando que o rosto de Megan se retorcia de dor.
— Evans foi um tanto vago e eu gostaria de ouvir o seu lado da história.
Megan viu que Liesl ainda estava absorta com suas novas partituras, mas caminhou para longe da menina. Kurt parou
a seu lado e ficaram olhando a janela.
— Estava chovendo também na noite em que Erich morreu. Eu estava a caminho do aeroporto para tomar um avião
para Los Angeles. Estava abandonando Erich porque a situação tinha se tornado intolerável. Erich e Lavínia saíram atrás
de mim no carro dela. Erich estava dirigindo. Tinha bebido... sabia disso?
— Evans não disse nada.
— Acho que Herschel não sabia. Erich raramente bebia, mas infelizmente tinha bebido nessa noite. O carro derrapou,
bateu num poste e explodiu. Erich morreu na hora e Lavínia ficou seriamente ferida. Não podia contar ao marido que ela e
Erich estavam indo atrás de mim com medo de eu revelar a Herschel o caso que eles tinham. E por isso inventou a história
de eu estar fugindo com outro homem. Herschel acreditou. — Os olhos de Megan se turvaram. — Herschel era meu
amigo, mas no funeral nem falou comigo.
— Então você de repente ficou sem marido, sem amigos, sem dinheiro — disse Kurt, olhando-a fixamente.
— Falando assim parece uma grande tragédia, mas não foi tão patético. Eu me virei. A gente sempre se vira, sabe? E
mesmo que Erich não tivesse morrido, eu não aceitaria nada dele, a não ser que...
— A não ser o quê? — perguntou Kurt quando ela parou de falar.

~ 49 ~
— Eu sofri um aborto dois meses depois da morte de Erich — ela murmurou, emocionada. — Se não tivesse perdido o
bebê, talvez tivesse de aceitar a ajuda dele...
— Era filho de Erich? — Kurt estava pálido, os olhos fixos.
— É claro.
— Desculpe — ele disse, afastando o cabelo da testa. — Eu não tinha entendido. Pelo que você me contou ontem, eu
não sabia que suas relações com Erich chegaram a isso.
— Há muitas coisas que você não sabe, Kurt — suspirou Megan.

Na hora do almoço a chuva tinha passado e as nuvens começavam a se abrir. Kurt acompanhou Megan e Liesl até a
sala de jantar e se ofereceu para levá-las a passear de carro depois. Ele incluiu Gabrielle e Adelaide no convite, mas
Gabrielle recusou, dizendo que esperava um telefonema de Salzburg para acertar detalhes com a orquestra contratada para
a festa. Adelaide aceitou, mas Gabrielle lembrou-a de que tinha de supervisionar o pessoal da limpeza no salão de baile.
Megan odiava a idéia de ter de ver Gabrielle de novo, mas para sua surpresa a mulher foi cortês com ela, comportando-
se com enorme gentileza, totalmente diferente da megera do dia anterior. Depois do almoço Kurt foi para o escritório um
pouco e Gabrielle mostrou a mansão a Megan, acompanhada de Adelaide. Gabrielle sabia tudo sobre o edifício e, ao
passarem por algumas das salas vazias, explicou que lentamente estava redecorando tudo.
— É deprimente pensar — suspirou ela —, que os von Kleist ficaram reduzidos a ter de vender a própria mobília
durante a depressão, depois da Primeira Guerra Mundial. Mas felizmente isso é coisa do passado. Estou decidida a
restaurar a antiga glória ao schloss.
— Deve ser um trabalho gigantesco para uma pessoa sozinha — disse Megan.
— Ah, mas não estou sozinha. Kurt é meu conselheiro quanto aos tesouros artísticos que há aqui e as antigüidades que
estou comprando para repor as que foram vendidas. E Adelaide ajuda muito. Ela está estudando decoração de interiores na
universidade, sabe? E História da Áustria também, para compreender tudo o que temos diante de nós.
Megan olhou a mocinha que caminhava de cabeça baixa. E onde é que entram os sonhos com Hollywood em todos
esses planos?, pensou Megan.
Ao passearem pelos corredores, Gabrielle ia apontando detalhes da elaborada arquitetura e decoração e de vez em
quando pressionava Adelaide para esclarecer algum ponto. As respostas da moça eram precisas e mecânicas, como as de
~ 50 ~
um bem treinado guia turístico. Gabrielle, por outro lado, se entusiasmava falando das sucessivas gerações de von Kleist
que tinham vivido ali.
— O schloss von Kleist é relativamente novo, não tem nem trezentos anos. — Ela riu ao perceber o espanto de Megan.
— Claro, eu sei que para vocês americanos isso parece muito, mas deve saber que uma porção de edifícios na Áustria data
do século XII. Aqui, não. Os alicerces foram lançados em 1690 e a construção levou mais de cinqüenta anos. O que é
maravilhoso, no schloss, além da beleza, é que a propriedade permaneceu intacta e sempre nas mãos de uma única família,
desde o início até agora. Nem um hectare do dote original jamais saiu da família! E acredite, ninguém é mais consciente
disso do que Kurt.
Entraram numa longa galeria, cujas paredes eram cobertas de retratos. Adelaide pediu licença, murmurando alguma
desculpa sobre o baile e subiu as escadas.
— Minha querida Adelaide — murmurou Gabrielle quando a menina se afastou. — Ela tem sido uma enorme alegria
desde que veio para nós. Evidentemente o começo não foi fácil. Ela estava cheia de sonhos tolos, de maus costumes. Mas
acho que está assentando agora. Não é uma von Kleist, mas... acho que sente o chamado.
Megan encarou Gabrielle, perturbada pelo brilho apaixonado, quase fanático, daqueles olhos. Prosseguiram pelo
corredor parando diante de cada pintura. Gabrielle sabia os nomes e as histórias de cada um daqueles personagens e a data
aproximada em que o retrato havia sido pintado. Depois de examinarem uma longa série de quadros, pararam diante de
uma pintura que mostrava uma velhinha soturna de cabelos brancos. Ao lado do quadro havia uma mesinha com toalha de
veludo, sobre a qual uma caixa aberta exibia um par de belas pistolas de duelo italianas, ornamentadas com filigranas de
ouro.
— Olhando este retrato é quase impossível acreditar que Marthe von Kleist foi, em sua juventude, extraordinária-
mente bela. O marido teve de enfrentar dois duelos por causa dela. Foi ferido no segundo e ela sentiu tanto remorso que
passou a ser uma esposa perfeita. Tiveram oito filhos e as pistolas do duelo passaram a ser uma espécie de relíquia para
eles.
Megan tocou a filigrana, mas Gabrielle gritou:
— Não toque nelas! Cuidado, estão carregadas. Meu Wilhelm adorava armas antigas. Era o hobby dele e temos várias
espalhadas pelo schloss, todas funcionando perfeitamente.
Prosseguiram pela galeria, Gabrielle explicando cada retrato. O último era uma pintura moderna, muito contrastante
com o resto da coleção. Mostrava um lindo grupo de três jovens. Um rapaz e uma moça de seus dezessete anos e um
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segundo rapaz, mais novo. O rapaz mais velho, de loiros cabelos cacheados, era totalmente estranho, mas a garota e o
menino eram vagamente familiares.
— Esse é Willi, meu marido, Kurt e eu — Gabrielle comentou, tomando-se aos poucos distante e alheia. — Faz tanto
tempo...
— Você é seu marido se conheciam desde criança? — Megan perguntou, cuidadosamente.
— Crescemos juntos — Gabrielle contou, mergulhando cada vez mais em suas reminiscências. — Moro nesta casa
desde os sete anos de idade. Minha mãe era prima-irmã de Horst von Kleist, pai de Willi e de Kurt. Morávamos em Viena
numa casa linda, não assim tão grande e luxuosa, claro, mas uma casa alegre, cheia de luz. Mas papai morreu na Polônia
durante a guerra e nossa casa foi destruída pelos bombardeios. Então minha mãe disse: "Temos de ir procurar o primo
Horst". E caminhamos até aqui.
— Você tinha sete anos de idade e veio andando desde Viena? — perguntou Megan, perplexa.
— Não havia escolha. O exército russo estava invadindo a cidade. Não tínhamos comida, nem transporte e qualquer
coisa era melhor que enfrentar os russos. Quando finalmente chegamos ao Tirol, era o comecinho da primavera. As
edelvais brotavam da neve e havia uma brisa quente. Ainda me lembro da sensação de sentir calor, depois de tantos meses
de frio... — Ela fechou os olhos um momento. Megan imaginava os horrores que devia ter passado, mas Gabrielle sorriu e
continuou: — Minha mãe e eu paramos na entrada do portão e olhamos para esta casa magnífica. Mamãe estava doente,
quase morrendo e disse: "Este é o seu lar agora, Gaby". O schloss era tão perfeito e íntegro, depois de toda a destruição
que tínhamos visto, que me pareceu a verdadeira entrada para o paraíso. — Gabrielle olhou pensativa para Megan e seu
sorriso se desfez lentamente. — E é por isso, mocinha americana, que eu não vou nunca permitir que você, nem ninguém,
jamais ameace o schloss von Kleist. Isto é um aviso.

Kurt estacionou a perua numa colina da qual se via, ao longe um pequeno lago. Ajudou Liesl a descer o cavalo do
pequeno trailer acoplado ao carro. A menina montou e saiu galopando pelo campo, como uma jovem valquíria. O sol
estava quente e a brisa refrescante parecia carregada do perfume das flores silvestres. Megan caminhou pela grama
molhada e curvou-se para apanhar uma florzinha azul. Perguntou a Kurt sobre as edelvais.
— Edelvais? — ele repetiu. — É uma linda florzinha em forma de estrela, com as pétalas peludas. Mas não vai
encontrar nenhuma agora. Ela só brota no comecinho da primavera. Por quê?

~ 52 ~
— Porque sempre que penso na Áustria, penso em edelvais, em roupas típicas e na família Trapp cantando junta.
Kurt deu uma gargalhada profunda e alegre, contrastante com o tom seco e ligeiramente irônico que sempre usava.
— Acho que Liesl ainda tem um avental colorido em algum lugar e eu, a única coisa que me arrisco a cantar é o hino
nacional, quando estou numa multidão. — Os olhos azuis brilhavam, divertidos. — É uma decepção? Mas, apesar disso, o
que acha do meu país?
— É lindo — ela respondeu, olhando a colina verdejante, a grama úmida semeada de pequenas flores silvestres e o céu
incrivelmente azul refletido no lago. — Los Angeles é o meu lar e gosto de muitas coisas de lá, mas o ar é irrespirável e o
rio não passa de um canal de concreto onde as pessoas abandonam carros velhos. A gente se acostuma, mas a beleza
natural passa a ser muito especial. Nem consigo imaginar como seria viver num lugar destes. Você já se acostumou com
esta beleza toda? Será que algum dia consegue olhar tudo isto e ficar indiferente?
— Não. Nunca me aconteceu — ele respondeu. — Eu adoro este lugar. Conheço estas montanhas, a colina, o lago,
desde que nasci e todos os dias agradeço a Deus o privilégio. Em todos os lugares em que já estive, na Inglaterra enquanto
era estudante, Viena, onde moro agora, em qualquer lugar é sempre reconfortante pensar que minhas terras estão aqui,
eternas, imutáveis. E agora que meu pai e meus irmãos morreram, sou o responsável por tudo. E confesso que a
responsabilidade é um tanto assustadora.
— Gabrielle me disse que você é muito cônscio de sua herança.
— Claro. Se não me preocupasse estaria traindo os von Kleist que existiram antes de mim. Minha família vive aqui há
séculos. Lutaram, alguns até morreram para defender o que era deles. Às vezes eu questiono a moralidade de uma única
família ter tanto, no mundo em que vivemos hoje, mas sinto que é meu dever manter a propriedade para os von Kleist que
virão depois de mim, se Deus quiser. — Ele olhou ao longe, para a filha galopando pelo prado e sorriu, irônico. — Se é
que sobrará algum von Kleist. Eles parecem estar morrendo depressa. Aquela criança inocente é a última de sua raça. E
em seus pequenos ombros repousam trezentos anos de História, nem sempre recomendável.
— Mas você ainda é jovem — protestou Megan. — Pode se casar de novo.
— Talvez — disse Kurt, acendendo um cigarro.
Durante longos minutos ele fumou em silêncio e finalmente apagou o cigarro na grama molhada.
— Agora, Megan — disse —, vamos falar das razões por que a chamei para a Áustria. Esta colina até o lago e toda
aquela montanha lá pertencem agora a você.

~ 53 ~
— Você está brincando! — ela exclamou depois de uma pausa, o coração disparado.
— Gostaria de estar. Não porque não tenha gostado de você. Na verdade, eu devia tê-la convidado antes porque
estamos imersos em questões legais e de títulos com as quais venho lutando há mais de dois anos. Em resumo, a situação
é esta: durante seus últimos anos de vida, meu pai parece ter se ressentido com o tratamento que tinha dado a Erich. Ele
percebeu que nada do que dera a Erich, o nome von Kleist, a melhor educação musical, o uso do Guarneri, compensariam
os catorze anos em que tinha ignorado o próprio filho. Sabia também que, assim que morresse, Wilhelm, que sempre
considerara Erich um usurpador, provavelmente o proibiria de entrar nas terras. Então meu pai fez uma coisa que nunca
tinha sido feita em todas as gerações de von Kleist, desde o primeiro: em vez de deixar as propriedades integrais para o
filho mais velho que estivesse vivo, separou a parte da colina, deixando-a para Erich. Ninguém sabia disso, a não ser o
testamenteiro, e evidentemente ninguém podia prever que papai e Wilhelm morreriam juntos. Quando tive conhecimento
disso, escrevi para Erich, mas ele nunca respondeu à carta. Nem sei se a recebeu.
— Recebeu, sim — disse Megan. — Foi por essa carta que descobri seu endereço para comunicar a morte de Erich.
— E você não a leu? — perguntou Kurt, desconfiado.
— Como? Eu não falo alemão, lembra?
— É claro — disse ele, embaraçado. — Percebe onde quero chegar?
— Está me dizendo que, como viúva de Erich, a propriedade agora me pertence?
— Mais ou menos. A situação é essa. Mas existem inúmeras dificuldades. Como você não é austríaca, existem certas
restrições sobre o que pode herdar aqui. Mas como Erich morreu nos Estados Unidos, resta pendente a questão de qual
legislação deverá ser aplicada: a de lá ou a daqui. Meus advogados acham que a melhor maneira de resolver o problema é
você assinar um documento renunciando a todos os direitos da propriedade... por um preço razoável, claro. Assim seria
possível assentar as coisas, apesar de poder levar muitos anos.
— Não sei o que dizer. Erich nunca mencionou... Eu nunca sonhei que.
— Não é nenhum sonho, isso eu garanto — disse Kurt. — A soma que definimos me parece justa, de acordo com os
valores das terras aqui.
— Meu Deus! — exclamou Megan, baixinho. De repente suas pernas pareciam incapazes de sustentá-la e sentou-se,
subitamente, na grama molhada.

~ 54 ~
— Desculpe — disse Kurt, rindo e agachando-se ao lado dela. — Eu devia ter lhe contado enquanto ainda estávamos
no carro. Vai estragar sua roupa.
— Não, não. Por favor, desculpe — disse ela, recusando a mão que ele estendia para ajudá-la a levantar-se. — Eu já, já
me recupero. Dê-me um minuto para entender isso tudo.
— Claro. Vou deixá-la sozinha um pouco.
Kurt afastou-se, caminhando pela grama em direção à filha que cavalgava. Megan olhou ao redor, a umidade se
infiltrando no tecido fino das calças.
Mas nada lhe importava naquele momento a não ser a notícia que Kurt lhe tinha dado. Aquele campo era seu! A grama
alta, as flores silvestres, a terra negra e fértil, tudo pertencia a ela, Megan Halliday, a moça pobre de cidade que tinha
passado a vida inteira em casas geminadas e apartamentos. Sentia vontade de rir e, depois de se certificar de que Kurt e
Liesl ainda estavam longe, riu alto, como louca, atirando-se para trás, deitando-se na grama molhada. Fechou os olhos
sentindo as hastezinhas do mato picarem suas costas, inebriada pelo perfume das plantas, o sol quente brincando sobre sua
pele de porcelana. Por um instante sentiu-se fundir com a natureza, como uma força que a penetrava.
Depois de algum tempo, percebeu uma sombra projetada sobre seu rosto e abriu os olhos. Era Kurt, de pé ao lado dela,
estudando cada detalhe de seu corpo com um olhar faminto: os cabelos molhados, os seios debaixo da fazenda fina, a
perna dobrada. Megan encarou Kurt, o sol formando um halo em torno de sua cabeça alta. E seus olhares se entrelaçaram.
Eu o desejo, ela pensou, e lentamente um calor tão básico como a terra em que estava deitada começou a se espalhar de
seu ventre para todo o corpo. Muito lentamente, Kurt esticou a mão para ela. Ao entrelaçarem os dedos, Megan tremeu.
Mas então Liesl chegou, trotando em seu cavalo, e o momento se desfez.
— Tia Megan, sua roupa vai ficar toda suja — disse Liesl enquanto Kurt ajudava Megan a se levantar. — Suas costas
estão molhadas. Por que é que estava deitada no chão? Você caiu?
— Acho que tia Megan queria olhar o céu, Liebling — explicou Kurt, secamente.
— O que é que tem o céu? — a menina perguntou, olhando para cima.
— Não estou acostumada com o céu tão azul — gaguejou Megan. — Em Los Angeles o céu é sempre cinzento e sujo
de fumaça.
— Que feio! — disse Liesl, com uma careta.
Kurt estendeu a mão para os cabelos de Megan, mas ela, muito alerta à presença da menina, desviou a cabeça.
~ 55 ~
— Tem uma folha em seu cabelo — ele disse friamente, retirando o galhinho da testa dela.
Megan corou, ainda mais envergonhada. Kurt voltou-se para Liesl abruptamente e mandou que levasse o cavalo para o
trailer.
— Ah, Vati — a menina protestou —, a gente já vai? Não ficamos quase nada!
— Quando chegarmos na casa dos Weber você pode ficar lá brincando um pouco. Eu tenho trabalho a fazer.
A menina obedeceu relutante, mas consolada pelo fato de poder brincar com os filhos do motorista Weber, que cuidava
dos cavalos.
— É tão lindo este lugar! — exclamou Megan olhando ao redor. — Não há nenhuma possibilidade de eu poder ficar
com ele, não?
— Não — disse Kurt, direto —, de jeito nenhum. É mais razoável aceitar o dinheiro.
Ela entrou na perua e Kurt sentou-se ao lado dela.
— Bom, com todo esse capital acho que vou poder voltar a estudar para tirar meu diploma e poder dar aulas. E ainda
vai sobrar o bastante até para abrir uma escola de música, minha mesmo.
— Quer tanto ser independente?
— Acho que sim. Não consigo imaginar alguém me sustentando a vida inteira — Megan disse.
— É para isso que servem os maridos — insistiu Kurt.
— Duvido que me case outra vez — ela disse, encarando-o.
— Muito bem. — Ele ligou o motor. — Tenho de voltar a Viena por uns dias. Vou mandar preparar os papéis.

Ao descer para jantar, Kurt estava esperando ao pé da escada e levou-a para o salão onde as outras duas mulheres e
Liesl já esperavam. Megan notou que desta vez Adelaide estava de vestido longo. Era verde, um tanto pesado para os seus
dezenove anos, como também a maquilagem nos olhos era um pouco excessiva. Mesmo assim Megan reconheceu que se
a moça realmente se dedicasse a seu sonho de se tornar estrela, sua beleza lhe valeria muito.
Gabrielle olhou para Megan intensamente.
— Já está tudo arranjado, Kurt? — perguntou baixinho.
— Está — respondeu Kurt —, Megan foi muito compreensiva.
~ 56 ~
Enquanto ele caminhava até o bar, Gabrielle estudou Megan por um instante e, surpreendentemente, sorriu para ela.
— Agradeço muito a sua compreensão — disse.
— Entendo agora porque gosta tanto destas terras — disse Megan, sorrindo também. — Em seu lugar eu também não
gostaria de me separar delas.
Kurt retornou do bar e entregou a Megan sua bebida. Abriu a porta da sala de jantar e entraram todos.
— Kurt — disse Adelaide, aproximando-se dele —, esqueci de contar ontem, que quando passei de carro pelo campo,
tinha um trailer estacionado lá.
— Turistas? — perguntou Kurt.
— Não. Acho que não — respondeu a moça. — Não parei para olhar, mas parece que estavam com algum tipo de
equipamento.
— Entendo — respondeu Kurt, preocupado.
— Kurt, você acha que... — perguntou Gabrielle, tocando o braço dele.
— Não se preocupe, Gaby — ele disse, apertando de leve a mão dela e cortando o assunto. — Eu trato disso.
Apesar de jantarem na sala grande, a refeição foi mais simples e Megan pôde apreciá-la desta vez. Como estava
esgotada pela enorme surpresa, limitou-se a comentar sobre a beleza natural daquele lugar. Adelaide parecia imersa em
seus próprios problemas e, se não fosse Liesl, o jantar teria sido incomodamente silencioso. A menina falava de seu
cavalo, Blitzen, explicando a Megan que o nome queria dizer Relâmpago e tinha sido escolhido porque o animal tinha
nascido numa noite de tempestade. Gabrielle estimulava as fantasias da menina, que sonhava em aprender equitação e
ganhar muitos prêmios. Megan percebeu que ela teria sido uma ótima mãe, se tivesse tido filhos com que se ocupar em
vez de dedicar-se tanto à mansão. Suas relações com Adelaide pareciam um tanto conflitadas, mas isso talvez se devesse
ao fato de a garota ter vindo morar com ela quando já era grande. Kurt parecia muito alheio durante toda a refeição e
assim que terminaram de comer ele foi para seu escritório. Liesl foi para a cama e Gabrielle e Adelaide foram cuidar dos
intermináveis preparativos para o baile.
Megan subiu para seu quarto, atirou longe os sapatos e deixou-se cair na poltrona estofada. Imaginava o que ia fazer
com sua herança e deixou o pensamento voar livremente. Pensou em deixar o emprego e mudar para um apartamento
maior. A idéia de voltar para a escola não era muito atraente, com todas as formalidades, exames e recitais de formatura,
mas precisava do diploma se quisesse ser professora de música.

~ 57 ~
Por um momento se divertiu escolhendo nomes para a escola que ia fundar. Megan Halliday Conservatório Musical em
manuscrito sobre as portas de vidro. Não, não, era pomposo demais. Halliday Studios numa placa de latão dourado era
mais elegante e simples. Ficou construindo castelos nas nuvens até pôr os pés no chão novamente, pensando que depois de
pagar todas as taxas na Áustria e nos Estados Unidos, ia ter de se dar por feliz se sobrasse o suficiente para pagar a
passagem de volta a Los Angeles.
Levantou-se e se espreguiçou. Estava inquieta, presa em seu quarto, excitada demais para conseguir dormir. Os livros
que tinha trazido não a atraíam. Normalmente ouviria um pouco de música agora, mas não tinha rádio no quarto. Tinha
visto um conjunto estéreo sofisticadíssimo na sala de música, mas não ousaria tocá-lo. Pensou no piano. Será que os
outros se importariam se ela tocasse um pouco, para relaxar?
Já estava no meio da escada quando se lembrou de que estava descalça. Pensou voltar para pegar os sapatos quando
ouviu ruídos vindos da sala de música que a fizeram esquecer de tudo. Alguém estava tocando piano. Ela reconheceu
instantaneamente a Sonata Facile de Mozart e, quem quer que fosse o pianista, era bastante bom, tocando com segurança.
Mas só tocava a parte da mão direita.
Entreabriu a porta e deslizou para dentro. Kurt estava de costas para ela. Seu paletó de rigor estava jogado sobre o sofá
e a camisa branca pendia solta dos ombros fortes, como se ele a tivesse desabotoado. Ela via os dedos finos e ágeis da
mão direita deslizando com segurança pelo teclado e de vez em quando o braço esquerdo mover-se instintiva e
convulsamente para as teclas, tornando a baixar a mão rígida.
A porta rangeu de leve quando Megan a fechou e Kurt voltou-se vivamente para ela.
— O que quer aqui? — perguntou.
— Desculpe. — Megan corou. — Não conseguia dormir. Pensei em tocar um pouquinho, se não incomodar ninguém.
Não pensei que você...
— Que eu ainda me permitisse essas fantasias — concluiu ele secamente. — Venha, Megan. Não tem por que ir
embora, agora que já descobriu o meu segredo.
Ele tirou o casaco do pequeno sofá e fez um gesto para que ela se sentasse ali. Megan notou que a camisa dele estava
abotoada só até a cintura, revelando, na abertura,os pêlos escuros de seu peito. Sentiu-se estranhamente perturbada.
Desviou os olhos e se sentou.
— Descalça? — perguntou Kurt, sorrindo.

~ 58 ~
— Não pensei que fosse encontrar ninguém — ela se desculpou.
— Achei mesmo que estava mais baixinha. Em dois anos acho que Liesl já vai estar da sua altura.
— Mais alta, talvez — respondeu Megan, fingindo não perceber a provocação dele. — Não sabia que você tocava
piano.
— Mas eu não toco.
— Não, mas... — Megan corou até a raiz dos cabelos. — Deve... Já tocou...
— Minha cara Megan — ele disse, carinhoso. — Não precisa fingir que não notou o meu defeito físico. Depois de
vinte e cinco anos eu lhe garanto que aceito muito bem o fato de meus dedos não dobrarem mais.
— Vinte e cinco anos? — ela exclamou. — Você era então muito criança quando... aconteceu.
— Tinha treze anos. — Kurt suspirou. — Foi uma bobagem de criança, mas com resultados trágicos.
— O que foi que aconteceu?
— Meu pai tinha de ir a Dresden a negócios e resolveu me levar com ele. Ironicamente a viagem era um prêmio por
meu último recital de piano. Erich não era o único músico da família. Eu fui uma criança prodígio. Chegou-se a falar de
eu fazer carreira profissional. Mas, como estava contando, o homem que meu pai foi visitar tinha um filho, mais ou menos
da minha idade e saímos os dois para brincar. A cidade estava sendo reconstruída com enorme velocidade, mas ainda
havia algumas ruínas deixadas pelos bombardeios da guerra. Apesar de todas as proibições, nós resolvemos explorar um
edifício incendiado. E lá dentro encontramos uma bomba que não tinha explodido.
Megan aspirou o ar com ruído, assustada.
— O outro menino morreu — prosseguiu Kurt. — E eu feri minha mão esquerda, que ficou aleijada para sempre. Eu
tento me convencer de que a única razão para tocar estes meus solos de mão direita é para fortalecer os dedos, mas no
fundo sei que não é só isso. — Kurt suspirou. — Espero que você tenha razão a respeito de Liesl. Seria uma enorme
satisfação para mim se ela fosse musicista.
Mergulhado em si mesmo, ele voltou a tocar as frases musicais da sonata. Megan observou seus dedos pressionando as
teclas. Imaginou como devia ter sido duro para uma criança sensível saber que estaria aleijado para o resto da vida. Perder
o uso da mão já seria um golpe duríssimo para qualquer um, mas talvez fosse ainda mais duro para um pianista, pois o
privava de sua música. E Megan sabia que, para um artista nato, a vida sem música era pior que a morte.
Inconscientemente Megan foi até o piano e sentou-se ao lado de Kurt, tocando a parte da mão esquerda da sonata.
~ 59 ~
— Continue nesse ritmo — ela disse, quando Kurt hesitou ligeiramente.
Por alguns compassos tocaram juntos, num dueto desordenado.
— É mais difícil do que parece — disse Megan rindo, leve. — Você está indo depressa demais!
Ela ainda ria quando Kurt deslizou a mão pelo teclado e agarrou o pulso dela.
Estavam muito próximos no banquinho e ela arregalou os olhos verdes quando ele a enlaçou pela cintura, acariciando
com a outra mão o pescoço e o queixo dela.
— Kurt... — ela murmurou.
— Shh... Megan, não fale nada — ele sussurrou, chegando os lábios aos dela.
Ao toque daqueles lábios quentes e sensuais, cheirando a tabaco, Megan sentiu renascerem os fantasmas do passado e
virou o rosto, temendo o sofrimento, a rejeição. Mas a mão suave e forte dele pegaram seu queixo, trazendo sua boca de
volta, abrindo-lhe os lábios com o polegar. Ele era surpreendentemente delicado, não exigindo nada além do que ela podia
dar. E quando afinal relaxou, sentindo os pêlos do peito dele roçarem seu colo e a mão rígida apertar mais suas costas, ela
ousou corresponder. Os lábios de Kurt a queimavam num doce fogo, agitando sensações estonteantes, despertando
lembranças e o desejo longamente reprimido, trazendo-lhe de volta à mente a única realidade, o único nome que jamais
tivera algum sentido em sua vida.
— Erich... — ela sussurrou.
Kurt afastou-a vivamente e pôs-se de pé de um salto. Megan se apoiou no piano para se equilibrar e cortou o braço na
borda afiada de marfim de uma tecla. Demorou a entender o que tinha feito de errado para despertar a ira dele e quando
percebeu, ainda tonta de paixão, quase morreu de vergonha.
— Desculpe, Kurt.
Ele respirava ruidosamente enquanto procurava a cigarreira no bolso do paletó. Acendeu o cigarro e soprou a fumaça.
— Você é obcecada por ele.
— Sou — ela admitiu, desarmada.
— Ele já está morto há mais de um ano — Kurt disse com raiva. — Será que fez algum voto de viuvez eterna? Vai
venerar para sempre a memória dele?
— Não venero a memória dele! — ela gritou.

~ 60 ~
— Então o que é isso? Uma mulher jovem, bonita, que não pode olhar para nenhum outro homem sem enxergar
imediatamente a imagem do marido morto?
— Você não está entendendo — protestou Megan em tom áspero e cansado, enquanto alisava o braço ferido. — Erich
foi o único homem em minha vida. Não só o meu único amante, se é que se pode dizer assim, mas o único homem com
quem tive algo além de um mero contato passageiro. Não tive nem pai para me guiar, pois ele abandonou minha mãe
quando eu era criança. Bem ou mal, tudo o que sei sobre os homens aprendi com o meu marido. — Megan respirava com
dificuldade, sem fôlego, encarando a figura alta de Kurt parado a seu lado. — Diga-me, então, como é que posso olhar
para um homem sem pensar em Erich, quando cada linha do corpo masculino, cada movimento me relembra o mal que ele
me fez?
— O que quer dizer?
— Você não sabe? Tenho de dizer com todas as letras? — A voz dela subia, histérica. Ela se pôs de pé enfrentando
Kurt, os olhos verdes queimando no rosto pálido. — Eu cometi um ato imperdoável... eu ousei abandoná-lo. Mas ninguém
abandonava Erich. Não Erich, que tocava o violino como um anjo divino, Erich o maior! O gênio! Ele era um von Kleist!
E para me punir pela minha insolência, Erich me violentou. Brutalmente. Enquanto a amante dele ria às gargalhadas na
sala ao lado!

CAPÍTULO 5

No silêncio que se seguiu Megan pensou, desconsolada: oh, Deus, por que é que eu fui contar? Nunca tinha dito a
ninguém, nem mesmo a Dorothy, que era sua amiga mais chegada e que tinha cuidado dela durante a recuperação do
aborto que resultará do ataque selvagem de Erich. Tinha jurado a si mesma carregar aquele horrível segredo consigo até a
morte, e agora deixava escapar tudo, justamente para Kurt, o irmão de Erich, a última pessoa no mundo que deveria saber.
Kurt a olhou fixamente, os olhos azuis arregalados e sombrios de horror. Ele abriu a boca para falar, mas não
conseguiu articular nada.
— Meu Deus — ele disse finalmente —, o que é isso?

~ 61 ~
Megan baixou os olhos, esgotada. Sentia-se fraca, confusa. Notou que o cigarro queimava, abandonado entre os dedos
de Kurt.
— Esqueça, Kurt. Já não importa mais. — Ela se levantou do banquinho e caminhou para a porta. Mas antes que
pudesse dar mais de meia dúzia de passos, Kurt soltou um grito ao se queimar com o cigarro, atirando o toco no chão. Ele
agarrou Megan e virou-a para que o encarasse. Ela tentou escapar mas os dedos dele quase penetravam na carne de seu
braço, machucando-a.
— Solte-me Kurt. Esqueça tudo o que eu disse. Você nada tem a ver com isso.
— Agora que sei, tenho, sim. Explique-se, Megan. Não pode dizer uma coisa dessas e depois simplesmente virar as
costas e ir embora.
— Oh, Kurt, como é que posso dizer? Nunca contei a ninguém e você... você é irmão dele.
— Sou também um homem que não entende por que alguém com uma esposa jovem e bonita teria de recorrer à
violência.
— Que machista! — Megan exclamou com desdém. — Você não acredita... ou quem sabe ache que se aconteceu foi
porque eu provoquei, de alguma forma. Bom, talvez esteja certo. Se eu tivesse tido coragem de ir embora logo no começo
nada disso teria acontecido.
Kurt arrastou-a até o sofá. Ela se sentou numa ponta, encolhendo as pernas debaixo da saia longa do vestido.
— Espere um minuto — disse Kurt. E saiu da sala.
Enquanto estava sozinha, Megan fixou os olhos no piano, relembrando, relembrando. Quase não percebeu a chegada
de Kurt, até o momento em que ele colocou um copo gelado em sua mão. Ela tomou um gole.
— Achei que um drinque a ajudaria a se acalmar — ele disse.
Ela levou o copo aos lábios outra vez, mas em vez de beber equilibrou-o sobre o joelho, fazendo um círculo molhado
no tecido fino do vestido.
— Acho que prefiro um pouco de música, se não se importa — disse.
Kurt levantou-se e foi até o toca-discos. Um momento depois todo o salão se enchia com os acordes da Pavane para
uma Menina Morta, de Ravel. Ele voltou a sentar-se ao lado dela, seu joelho tocando levemente a perna dela. Silencioso,
esperou que ela falasse.
Depois de estudar o copo durante algum tempo, ela falou, calmamente:
~ 62 ~
— Erich e eu não dormíamos mais juntos depois da horrível lua-de-mel que tivemos. Ele não precisava de mim. Tinha
Lavínia. Eu devia ter adivinhado logo o que estava acontecendo, havia muitas pistas, mas eu era jovem e ingênua e só
compreendi quando já era tarde demais.
Entrecortadamente no início, depois com mais e mais facilidade, Megan contou a vida que tivera com o marido. Sua
voz era baixa e sem expressão ao narrar a curiosa maneira como Erich a tinha pedido em casamento e a maneira como
tinha lhe tirado a virgindade sem levar em conta o medo e a inexperiência dela e, como, poucas semanas depois, a havia
abandonado em troca da cama da amante. Com a eloqüência nascida dos longos meses de silêncio, Megan contou sua
humilhação, mas, ao chegar aos acontecimentos da última noite, hesitou.
— Continue, Megan — pediu Kurt, tão emocionado quanto ela.
— Naquele dia eu passei a tarde cuidando das coisas de Erich — disse, respirando fundo —; contatos com a
lavanderia, os impressores, o arranjador. Estava exausta. Disse a ele que ia jantar fora e depois a um cinema, mas quando
vi o tamanho da fila, na chuva, desisti do cinema e voltei para o nosso apartamento. Lá encontrei Erich com Lavínia.
Estavam no sofá, já meio bêbados, e, quando os vi, compreendi que não agüentaria mais. Fui até o armário, tirei minha
mala e disse a Erich que ia deixá-lo. Eles riram de mim. Erich disse que esposas eram uma chatice. Lavínia riu,
acariciando a coxa dele e disse algo como "só a própria esposa é que é chata, querido. Herschel acha que Megan devia ter
um filho"...
Megan fez uma pausa e olhou para Kurt. A expressão dele era indecifrável.
— Não sei por que Lavínia disse aquilo — prosseguiu —, mas, sinceramente, não acho que ela tivesse sugerido o que
Erich entendeu. Ele olhou para ela, depois para mim com uma expressão estranha e disse: "Que idéia maravilhosa,
Lavínia". E então veio na minha direção, atirou-me para dentro do quarto e trancou Lavínia do lado de fora.
Os cubos de gelo tilintavam no copo que tremia na mão de Megan. Ela se inclinou e depositou-o no chão. Brincou com
o tecido molhado em seu joelho e olhou para Kurt. Ele parecia relaxado agora, as longas pernas esticadas, o rosto
escondido pela mão ferida.
— Desculpe, Kurt — disse quando ele olhou para ela de novo —, eu não devia ter contado. Nunca contei para
ninguém, nem para o médico que...
— Meu Deus, então foi assim que ficou grávida?

~ 63 ~
Ela fez que sim com a cabeça, tremendo ao lembrar-se da angústia que sentira naquela noite em que tinha desmaiado
com fortes dores abdominais e que Dorothy a tinha levado ao hospital. Apesar de tudo, tinha exultado com a notícia da
gravidez, esquecendo instantaneamente tudo o que tinha acontecido, feliz por levar dentro de si uma vida nova que
poderia dar alguma ordem ao caos em que estava vivendo. Mas seu corpo, mais sábio que sua mente, reconhecera que
naquele momento ela não estava em condições de cuidar nem de si mesma, quanto mais de um filho. E, de manhã, o bebê
tão desejado já não passava de uma memória dolorosa.
— Engraçado, não é? — ela disse, com a voz estrangulada, os olhos torturados. — Era a primeira vez que Erich se
aproximava de mim depois de um ano e meio e eu fiquei... fiquei...
A voz de Megan sumiu, estrangulada num soluço, e ela começou a chorar. As lágrimas, que tinha penosamente
conseguido conter durante anos, rolavam agora de seus olhos, queimando-lhe as faces como se fossem ácido. Ela afundou
a cabeça nos braços, tentando esconder a vergonha que sentia.
Então as mãos fortes de Kurt pousaram em seus ombros e ele a puxou para si, aninhando o rosto dela no peito nu.
Segurando-a suavemente pela nuca, ele a ninava, falando baixinho, como se ela fosse uma criança assustada.
— Chore — disse docemente. — Desabafe tudo.
A voz dele era suave e murmurava frases confortadoras, em alemão.
Lentamente as lágrimas cessaram e Megan se acomodou no peito dele, consciente dos pêlos escuros que tocavam sua
face, do pulsar do coração, e percebeu, surpresa, que era a primeira vez, desde a morte da mãe, que alguém a acariciava. E
talvez fosse a primeira vez que um homem lhe demonstrava alguma ternura. Ela se aconchegou mais, suspirando pelo
simples prazer de tocar Kurt. E quando as mãos dele alisaram seu cabelo e ele pousou os lábios nos dela uma vez mais, ela
não fugiu.
Foi um beijo quente, amigo, sem paixão. Um beijo de consolação, terno. Ele parecia perceber exatamente como ela se
sentia e reagiu adequadamente, tratando-a com delicadeza. Megan agradeceu aquela compreensão. E foi só quando seu
próprio desejo levou sua mão ao pescoço dele que o abraço mudou. Lentamente, os lábios dele deixaram os dela e
deslizaram por seu rosto, lambendo de leve o lóbulo da orelha. Ela estremeceu, convulsa, quando a mão dele penetrou seu
decote, envolvendo firmemente seu seio nu.
— Oh, Kurt — ela murmurou enquanto ele acariciava seu mamilo duro, pulsando —, eu precisava disto há tanto
tempo...

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Ela não percebeu que tinha falado alto, até que ele a calou com um beijo. Suas bocas ansiosas procuraram uma à outra,
mordendo, saboreando, e quando ela sentiu as mãos dele abrirem o zíper do vestido, apertou-se mais a ele.
E por isso ficou chocada quando os braços dele a apertaram com força excessiva e ele levantou a cabeça abruptamente.
— O que quer você agora, Adelaide?
Como alguém que desperta de repente de um sonho, Megan voltou a cabeça devagar e viu a moça em roupão vermelho
e bobs no cabelo, olhando pela porta entreaberta. Megan mal podia entender o que estava acontecendo, até que Kurt subiu
de novo seu vestido.
— O que é que você quer, Adelaide? O que é que está fazendo aqui a esta hora? — ele perguntou irritado, a respiração
alterada.
— Desculpe, Kurt — disse a mocinha, entrando na sala. — Eu vi a luz acesa e pensei... pensei que talvez alguém
tivesse esquecido...
— Não — ele rugiu. — Como pode ver, a luz ficou acesa de propósito. Agora volte para a cama!
Adelaide hesitou, confusa, e ele repetiu a ordem de maneira mais feroz. Um minuto depois estavam de novo sozinhos,
ouvindo os chinelos dela que subiam as escadas.
Vermelha e sem fôlego de tanta vergonha, Megan baixou a cabeça, arrumando as roupas. Tentou alcançar o zíper, mas
as mãos fortes de Kurt afastaram as dela e ele o fechou. Depois, levantou o rosto dela pelo queixo e estudou-a um longo
tempo com seus profundos olhos azuis.
— Desculpe, Megan — ele murmurou, carinhoso, alisando o lábio dela com o polegar. — Às vezes me esqueço de que
nesta casa é impossível ter qualquer privacidade. Tenho de ir para Viena amanhã de manhã. Que tal vir comigo?
— Viena?
— Vou estar ocupado parte do tempo — disse ele sorrindo, sedutor —, mas é claro que sobrará muito tempo para
estarmos juntos, passear. Tem tanta coisa que eu quero lhe mostrar! Você pretende ir a Viena antes de voltar, não é?
Ela olhou para ele. Seus olhos eram tão azuis quanto o céu da pintura que havia no teto da sala. E a boca... ainda úmida
dos beijos dela, formulava aquelas palavras terríveis: "antes de voltar". Por que é que se sentia tão desolada. É claro que ia
voltar para casa. Alguns minutos entre os braços de Kurt, até mesmo algumas noites na cama dele não podiam mudar os
seus planos. Uma vez terminado o negócio que a trouxera até ali, ela teria de voltar a Los Angeles, com um cheque
polpudo e algumas lembranças de suas férias na Europa.
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E por que não podiam algumas dessas lembranças serem de um caso com Kurt? Já tinha chegado à conclusão de que
precisava de um amante e ele seria perfeito. Era experiente e tinha enorme consideração com ela. Mas seria capaz de
partilhar a cama dele enquanto ficasse ali, e depois dizer adeus sem lamentar nem um minuto que tudo acabasse? Ela não
sabia dizer. Ele era um von Kleist e ela era muito suscetível a esse fato. Era melhor não arriscar.
— Obrigada, Kurt, mas acho que vou ficar aqui, se não se importa. Talvez Liesl e eu possamos passear um pouco. Eu
adoraria conhecer Salzburg. Acho que a terra de Mozart seria muito especial para mim.
— Acho que Viena poderia ser muito especial para nós, Megan — ele disse sério, sem insistir mais.
— Talvez — ela admitiu, um tanto relutante —, mas... mas, Kurt, está indo depressa demais. Nós nos conhecemos
ainda ontem.
— Às vezes é assim — ele disse suavemente.

Megan acenou para Liesl quando a perua arrancou na entrada da casa dos Weber. Mas a menina já corria para o
estábulo onde sua égua Blitzen era mantida e Megan achou que ela nem viu. Acomodou-se melhor no banco, enquanto
Adelaide acelerava o carro em direção a Kleisthof-im-Tirol. A estrada estreita que serpenteava ao longo das colinas
parecia alarmantemente perigosa a Megan, acostumada como estava às rodovias largas e retas da Califórnia, mas Adelaide
dirigia com tanta segurança quanto o chofer. Megan se assustou quando viu o ponteiro do velocímetro chegar a sessenta,
mas percebeu aliviada que a marcação era em quilômetros e não em milhas. Relaxou de novo enquanto deslizavam
através de áreas arborizadas, florestas e, de quando em quando, fazendas bem-cuidadas onde o gado malhado de branco e
marrom pastava o capim alto.
Adelaide manobrava atenta, a expressão severa e o cabelo curto e liso combinando com a blusa fechada, branca,
dando-lhe um ar de religiosa, desmentido apenas pelas calças verdes extremamente justas que lhe moldavam as pernas.
Não parecia disposta a conversar e Megan sentia-se grata por isso. Precisava de algum tempo para pensar. Na noite
anterior tinha caído em sono profundo assim que tocou a fronha bordada de seu travesseiro. E tinha acordado tão tarde que
teve de correr para chegar a tempo ao café da manhã. Ao ouvir Adelaide dizer que ia à cidade, tinha, impulsivamente,
pedido uma carona. Sabia que se expunha ao risco de ser questionada sobre a cena que a garota presenciara na noite
anterior, mas estava decidida a escapar da atmosfera fechada e sufocante da mansão von Kleist, pelo menos por algum
tempo. Queria escapar de Kurt. Ele tinha partido muito cedo, levando consigo, numa sólida embalagem, a tela de Jackson
Pollock que ela havia visto no escritório. Mas, apesar da ausência dele, todo o schloss parecia cheio de sua presença. Cada
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um daqueles retratos antigos a lembrariam dele, os olhos azuis penetrantes que tanto a perturbavam, a boca severa que
podia ser tão sensual...
O silêncio se alongava. Megan imaginou se Adelaide se sentiria pouco à vontade em sua presença, embaraçada por tê-
la encontrado entre os braços de Kurt. E quando a garota desviou habilmente o carro de um tronco caído na estrada,
aproveitou a oportunidade.
— Você dirige muito bem, Adelaide — disse simplesmente.
— Danke — respondeu a moça. — Meu pai era piloto de corridas e me ensinou quando eu era muito pequena. Ele me
levava para as estradinhas dos campos e me ensinava tudo. Mas quando eu vim morar com Gabrielle, ela me proibiu de
dirigir até eu completar dezoito anos. Tirei minha carta no ano passado.
— Como se chamava seu pai?
— Arnold Steuben. Já ouviu falar?
— Não. — Megan sacudiu a cabeça.
— Mas teria — disse a moça, voltando a prestar atenção à estrada. — Todo mundo teria ouvido falar dele se não fosse
o pneu que estourou no treino de Le Mans há três anos. — Adelaide suspirou e sua voz tornou-se muito juvenil. — A vida
era tão alegre e excitante quando meu pai estava vivo! Éramos só nos dois e a gente brincava e ria muito, dizendo que
íamos tornar o nome Steuben famoso no mundo inteiro. Ele, como um grande campeão de corridas, e eu como uma atriz
famosa. Mas com a morte dele, tudo mudou.
— Sinto muito — disse Megan.
Por um momento rodaram em silêncio e Megan percebeu que deviam estar chegando à cidade. A floresta desaparecera,
dando lugar a casas cada vez mais numerosas e mais próximas.
— Eu estava no meu último ano de ginásio quando aconteceu o acidente — continuou Adelaide, como se não tivesse
havido nenhuma pausa. — Já tinha feito os exames para a academia de arte dramática de Baden, mas fiquei... foi um
choque, eu fiquei muito confusa. E então Gabrielle e Wilhelm, marido dela, me procuraram. Gabrielle era prima de meu
pai e quando me convidaram para morar com eles, me pareceu uma coisa boa. Horst von Kleist ainda era vivo também e
achei que ia ser bom fazer parte de uma família outra vez. Ainda não sabia que os von Kleist não fazem nada
desinteressadamente.

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— Adelaide — disse Megan, perturbada por aquela amargura na voz tão jovem —, será que não está sendo um pouco
injusta?
— Não! — ela rugiu, acelerando mais. — Você acha que já os conhece depois de apenas dois dias, mas não sabe de
nada. Os von Kleist usam as pessoas. Acham que têm esse direito e fazem tudo para conseguir que as coisas sejam como
eles querem. Gabrielle quis ficar comigo só porque eu podia ser útil a ela. Ela paga a minha educação, mas insiste em que
eu vá para a universidade e não para a escola de arte dramática, como eu e meu pai tínhamos planejado. Ela paga minhas
roupas e me dá uma mesada, mas controla todos os meus amigos e exige que eu passe todo o meu tempo disponível com
ela, trabalhando naquela casa. — A moça diminuiu a velocidade do carro e continuou: — Você viu como são as coisas
naquela primeira noite. Tudo o que pedi foi para passar algumas semanas em Roma, para ganhar alguma experiência em
cinema. Eles têm os meios para isso. Podiam pagar para eu ir até Hollywood, se quisessem. Mas, não! Cada tostão tem
que ser empregado no schloss, para maior glória dos von Kleist!
— Então você não está interessada na restauração da casa? — perguntou Megan, surpresa.
— Não, não estou. Por que deveria estar? Eu sou Steuben. E Gabrielle também era Steuben antes de se casar, apesar de
não contar isso para ninguém agora. Ela não deixa ninguém se esquecer, nunca, que a mãe dela era von Kleist... como se a
família do pai dela nada significasse.
— Eu posso perceber que Gabrielle é um tanto... neurótica com essa coisa da casa, mas...
— Não é só Gabrielle, são todos! Horst von Kleist tomou emprestada uma verdadeira fortuna para reformar o edifício
com todo aquele ar condicionado e encanamentos novos. A quantia que ele gastou é quase legendária. E os filhos são
iguais. Wilhelm morreu, é claro, mas Kurt... — Ela olhou para Megan com uma expressão maliciosa e murmurou: — Kurt
é muito fascinante, não acha? Ah, eu não censuro por ter caído por ele. — Ela riu. — As mulheres sempre caem por ele.
Eu mesma podia ter me apaixonado, se não fosse tão mais velho e não tivesse aquela mão aleijada. Eu prefiro os meus
homens jovens e inteiros.
Ela sorriu e de repente parecia muito mais velha do que era realmente.
— Kurt sabe o efeito que tem sobre as mulheres — continuou —, e usa isso. Algumas vezes, passei dias com ele e a
filha em Viena e vi como sabe encantar as mulheres que entram na galeria. Sobretudo aquelas que têm alguma pintura que
ele quer e estão relutando em vender. Um pouco de vinho, música suave, sedução... uma combinação irresistível com
aqueles olhos azuis dele, não é?
— Está insinuando que ele tentou, alguma coisa com você? — perguntou Megan, perplexa.
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— Ah, não, claro que não. Só estou lhe contando o que vi. Kurt me olha como uma criança e, além disso, eu não
possuo nada que ele esteja querendo. Com você é diferente.
Adelaide diminuiu a marcha do carro ao chegarem a um cruzamento. Megan estava surpresa e um pouco confusa.
— Estamos chegando à cidade agora — disse a moça. — Diga-me onde quer que a deixe.
— Em qualquer lugar. Só quero andar um pouco. — Tinha estado tão concentrada que nem notara que já rodavam
pelas ruas. — Ali. Aquele canteiro de margaridas parece um bom começo.
— Sehr gut — disse Adelaide, parando o carro. — Tenho de fazer algumas coisas aqui e depois ir até a outra vila.
Portanto, quando quiser voltar vai ter de telefonar para pedir a limusine. Tem o número?
— Tenho, sim.
— Bom — disse Adelaide, tocando o braço de Megan que já descia do carro. — Por favor, Megan, pense no que eu lhe
contei. Não sobre mim, claro, eu vou achar um jeito de resolver minhas coisas da mesma forma que meu pai resolvia as
coisas dele antes de uma corrida. Mas tome cuidado com você. Kurt e Gabrielle podem ser as pessoas mais gentis do
mundo se conseguirem o que querem. Você tem a colina agora e nada os deterá enquanto eles não conseguirem isso de
volta.
— Não posso acreditar que as coisas sejam assim tão terríveis, Adelaide. Sei que eles estão atrapalhando seus planos
de ir para Hollywood, mas...
— Bom, se eu não consegui convencê-la — disse a moça, sorrindo pesadamente —, pense... pense em seu marido. Ele
era von Kleist, não era?
Ela partiu depressa, assim que Megan bateu a porta.
Megan ficou olhando até o carro sumir à distância. Estava perplexa com as coisas que a moça tinha dito a respeito de
Kurt. E como é que ela sabia sobre Erich? Megan nada tinha dito quando na presença de Adelaide. A menos que ela
estivesse ouvindo na porta da sala de música muito antes de Kurt notar a presença dela. Megan se arrepiou. Que tipo de
jogo aquela garota estava fazendo? Adelaide estava evidentemente ansiosa por sua própria independência e se ressentia
com qualquer embaraço à própria liberdade. Como a maioria dos adolescentes, ela reagia à autoridade dos adultos e
dramatizava a menor repressão. Mas por que estava tão empenhada em fazer Megan desconfiar de Kurt?
Fosse qual fosse o propósito de Adelaide, Megan não ia acreditar em sua insinuação de que Kurt a estava seduzindo
apenas para conseguir que renunciasse aos direitos sobre o terreno. Pensando bem, os olhares significativos e os

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comentários maliciosos de Adelaide soavam todos como um texto inferior de alguma novela de segunda classe. Não
tinham nenhuma lógica. Afinal de contas, se Kurt não tivesse mandado buscá-la, Megan nunca ficaria sabendo da herança.
Ele podia ter resolvido tudo como bem quisesse, sem correr nenhum risco. E quanto à relação íntima da noite anterior,
Megan tinha certeza de que, ao tocar Kurt, ele estava tão excitado quanto ela...
Megan passeou devagar pela estradinha que atravessava o enorme canteiro de margaridas, admirando a beleza da vista
que se expandia diante dela. A pequena colina era evidentemente um local de passeio para os moradores da vila, pois
havia vários caminhos de pedra por entre a vegetação e no alto um banco de madeira. Megan, porém, preferiu sentar-se na
relva. Apesar das copas das árvores impedirem a visão das ruas de Kleisthof, ela podia ouvir o ruído do trânsito e de
outras atividades subindo do aglomerado de telhados das casas de três e quatro andares, que rodeavam a pracinha onde
tinha descido do ônibus. Teria sido mesmo só anteontem? Parecia que já tinha chegado ali há uma eternidade!
A torre da igreja elevava-se acima dos outros telhados, com sua cúpula alongada esverdeada pela passagem dos
séculos. Megan pensou que podia ser bizantina. Lembrava-se de ter lido, nos catálogos de viagem que estudara antes de
sair de Los Angeles, que a Áustria demonstrava traços de muitas culturas, remanescentes de seu turbulento passado. Para
além da vila estendia-se o fundo do vale, iridescente na luz matinal, plano e liso como se fosse uma mesa de bilhar
gigantesca, pontilhado aqui e ali de grandes casas de fazenda. Um caminhão rodava agora pela estrada que, ela reconhecia
agora, era a mesma que o ônibus tinha tomado ao deixar a rodovia principal que vinha de Salzburg. Do outro lado do vale,
podia ver densas florestas que subiam pelas encostas da montanha e além, majestosa, solene, eterna, a primeira cadeia dos
altos picos dos Alpes.
Megan relutantemente levantou-se, pensando como iria passar aquele dia. Tinha desejado sair do schloss não tanto
para passear pela cidade, mas para passar algumas horas a sós, para pensar e considerar a significação de tudo o que tinha
acontecido entre ela e Kurt na noite anterior. Era estranho como tinha revelado tudo a ele, depois de longos meses de
silêncio. Durante sua doença, tinha aceitado os cuidados de Dorothy com enorme gratidão, mas sem nenhuma explicação
sobre o passado, deixando que a outra mulher tirasse a óbvia conclusão de que tinha sido seduzida e abandonada. Em
certo sentido era exatamente isso o que tinha acontecido. Erich a tinha seduzido impiedosamente com seu charme
devastador e então abandonara qualquer tentativa de satisfazer as necessidades físicas e espirituais de Megan. O
casamento, na verdade, servia apenas como uma cortina de fumaça para ocultar de Herschel Evans o que acontecia entre
seu protegido e a mulher. Ele a tinha usado com a mesma arrogância com que seus antepassados aristocráticos exerciam

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seu droit du seigneur, deflorando as camponesas virgens no dia do casamento. E assim Erich a tinha marcado para toda a
vida.
Somente a última e horrível noite com ele tinha deixado Megan revoltada. Ao cambalear para o banheiro a fim de lavar
as marcas do violento assalto de Erich, ela havia olhado seu reflexo no espelho embaçado pelo vapor da água quente. Só
sabia que aquele rosto abatido e ferido era o seu porque os cabelos e os olhos eram da cor de sempre. E ainda tonta tinha
dito a si mesma: "Muito bem, Megan Halliday, você pode morrer... ou então terminar de fazer as malas e pegar o avião da
meia-noite para Los Angeles". E, ao dizer essas palavras a si mesma, tinha encontrado novas forças. Atravessara a sala
com sua mala, passando por Erich e Lavínia, que comemoravam a vitória sobre o vassalo rebelde.
— Onde pensa que vai? — perguntara Erich, atônito ao vê-la passar, os ombros humilhados mantidos muito retos com
esforço. A voz dele, normalmente clara, estava pesada, e, o sotaque alemão, ainda mais carregado por causa do álcool.
Mas Megan tinha saído sem nada responder.
O ar ali naquele jardim era quente e parado e Megan sentia a roupa de algodão indiano, que tinha parecido perfeita, um
bocado quente para o clima. Tinha prendido os cabelos num coque apertado no alto da cabeça, e o sol da manhã queimava
agora seu pescoço descoberto. Descendo pelas curvas do caminhozinho de pedra, resolveu que a primeira coisa a fazer era
comprar um chapéu de abas bem largas para proteger sua pele delicada demais, enquanto passeava pela cidade. A
perspectiva de ter de entrar numa loja não lhe parecia agora tão assustadora quanto naquele primeiro dia em que esperara
na pracinha, sozinha e morta de cansaço. As conversas que tinha tido com Liesl em alemão já lhe davam a segurança de
que podia fazer perguntas simples, sem medo de errar ou ser mal-interpretada. Ia comprar um chapéu, talvez alguns
cartões postais para Dorothy e depois desempenharia o papel de turista típica, vagando pelas ruas, fazendo perguntas em
alemão com sotaque, absorvendo tudo o que pudesse daquela adorável cidade tirolesa.
O que não ia fazer era continuar pensando em Erich. Kurt estava certo: ela era obcecada por Erich. Tinha sido um erro
guardar consigo todas aquelas lembranças durante os meses dolorosos de sua solidão. Muita gente fazia casamentos
desastrosos e conseguia prosseguir e reconstruir suas vidas. Se tivesse falado com alguém, Dorothy ou um psicanalista,
talvez até mesmo o barman do Paraíso Polinésio, talvez tivesse sido capaz de ter uma visão mais distanciada daqueles dois
anos trágicos. Agora que tinha contado tudo a Kurt sentia-se aliviada. Como se tivesse se livrado de uma pesada carga.
Sabia que nunca esqueceria sua vida com Erich, mas esperava agora que algum dia pudesse vir a entendê-la.
Numa lojinha na praça, Megan encontrou um chapéu de palha simples, que era exatamente o que precisava. A dona da
loja, uma velhota sorridente, sabia algumas palavras de inglês e conseguiram se entender para completar a transação com

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muito bom humor e abundantes erros gramaticais. Para melhorar um pouco o aspecto extremamente simples do chapéu,
Megan desamarrou o lenço que tinha nos cabelos e atou-o em volta da copa, numa faixa verde e cinza.
— Muito charmoso — garantiu a mulher da loja.
Ao sair novamente para a praça, Megan sorria satisfeita e de repente percebeu que era a primeira-vez que sorria
espontaneamente em muitos dias.
Em sua exploração da cidade, comprou um buquê de cravos brancos manchados de vermelho e levou-o na mão,
aspirando o perfume das flores de vez em quando. Passou por muitas lojas, mas resistiu à tentação de entrar,
momentaneamente satisfeita apenas em admirar os edifícios antigos e a imaculada regularidade das ruas arborizadas.
Sabia que, logicamente, a cidade devia ser mais antiga que o schloss, com as construções datando de séculos diferentes,
mas de alguma maneira toda a arquitetura parecia se fundir num todo harmônico. Acima de tudo aquilo pairava uma
curiosa sensação de parada no tempo que não se rompia nem com o ruído dos carros rodando pelas ruas calçadas de pedra,
nem pela presença de jovens vestidos de jeans e camisetas coloridas.
Megan passou por uma hospedaria com a fachada pintada de maneira muito interessante. As mesas arrumadas num
terraço eram atraentes e ela resolveu que viria almoçar ali mais tarde. Ao passar por uma ruazinha lateral em direção à
igreja, deparou de repente com um edifício de tijolos e vidro, que parecia muito recente se comparado aos edifícios
pintados que tinha visto antes. O projeto arquitetônico era muito funcional e, mesmo antes de descobrir a placa com a
inscrição Heilige Elisabeths Krankehaus, já tinha adivinhado que se tratava de um hospital. Lembrou-se vagamente de
alguém ter mencionado recentemente algo sobre um hospital, mas não sabia mais o que era. E seguiu em frente.
A igreja, com sua torre interessantíssima, ficava quase fora da cidade. Era um edifício pequeno, mas imponente, de
pedra escura, tendo ao lado um cemitério. Acima da porta em arco havia um grande vitral, mas devido à luz forte do sol
ela não conseguiu definir o desenho. Deu uma olhada ao relógio e viu que a última missa do dia ainda estaria sendo
celebrada e pensou entrar bem quietinha para assisti-la. Mas lembrou-se que os fiéis poderiam achar suas calças
compridas inadequadas. Resolveu então visitar o cemitério e empurrou o portão coberto de trepadeiras.
As alamedas de túmulos eram frescas, sombreadas por árvores, extremamente tranqüilas. O cemitério era
surpreendentemente grande e abrigava mais de dez gerações de habitantes da cidade. As pedras tumulares mais próximas
da igreja eram tão velhas que Megan mal podia ler as inscrições. Uma pedra pequena, quase invisível na grama alta entre
duas outras maiores, chamou sua atenção. Ela se ajoelhou e tocou com os dedos a inscrição: 1706. Apenas a data, como se
os pais daquela criança falecida há séculos tivessem querido ocultar a própria dor, recusando-se a dar a ela um nome.
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Megan se pôs de pé, perturbada com a própria morbidez. Por que seus olhos deviam chorar por um bebê morto há quase
trezentos anos?
Passeou entre os demais túmulos, todos escrupulosamente cuidados, apesar de alguns não passarem de depressões
retangulares no solo, com um buraco numa extremidade, onde antes devia haver alguma inscrição em madeira, destruída
pelo tempo. Ia notando as datas, percebendo que as mulheres morriam jovens e os homens não muito mais velhos.
Quando descobriu um grupo de túmulos de crianças, todos com a mesma data de falecimento, concluiu que devia ter
havido ali algum tipo de epidemia. Mas, mesmo quando chegou à seção mais moderna do cemitério, notou que muitas
pessoas não chegavam a viver muito. Talvez isso se devesse ao fato de o Tirol, apesar de sua incrível beleza natural, ser
uma região muito isolada antes do advento do transporte moderno. A vida ali devia ter sido, até há poucos anos,
extremamente dura para a média das famílias, sobretudo no inverno. O próprio Kurt havia mencionado a falta de
assistência médica da cidade, ao falar da mãe de Erich.
A mãe de Erich. Megan pensou que Eva Müller provavelmente estaria enterrada em algum lugar por ali, sem nunca
saber das violentas paixões que detonara ao se apaixonar por um nobre austríaco. Sem nunca saber da complicada cadeia
de fatos que seu caso de amor desencadearia, terminando por alterar o destino de uma moça da Califórnia que ainda nem
tinha nascido quando ela morreu. Megan caminhou mais depressa, procurando o túmulo. O sino da igreja tocava,
anunciando o fim da missa, quando o encontrou.
O túmulo ficava debaixo de um salgueiro, perto de dois outros bastante mais recentes e que, mesmo sem olhar, Megan
adivinhou serem dos pais dela, os avós de Erich, que o tinham criado até os catorze anos. Eva Müller Geliebte Tochter. A
moça tinha magoado os pais com uma atitude que, trinta anos atrás, devia ter sido extremamente humilhante numa cidade
tão pequena, mas era agora, eternamente a "filha amada", morta aos dezenove anos.
Dezenove anos! Por alguma razão Megan julgara que ela fosse mais velha. Uma aventureira decidida a conquistar um
homem casado e rico. Horst von Kleist devia ter trinta e tantos anos na época, um tanto velho para seduzir adolescentes.
Dezenove anos, uma idade tão vulnerável... a mesma idade que Megan tinha ao encontrar Erich. Ela tentou visualizar a
moça morta, mas tudo o que sabia é que Eva Müller tinha sido muito bonita, com cabelos loiros, quase brancos. Megan
não podia imaginar o rosto dela tomando por base os traços de Erich, porque ele, assim como Kurt, tinha o rosto clássico
dos von Kleist ao qual ela não conseguia resistir.
— Eva, foi assim com você? — Megan perguntou bem baixinho. — Conte-me. Você olhou aquele rosto aristocrático e
entendeu instantaneamente que seria dele para sempre, a despeito da infelicidade que isso pudesse lhe causar, foi?

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De repente, sentiu uma pungente proximidade com aquela pobre moça. Impulsivamente ajoelhou-se e arrumou o
buquê de cravos sobre a sepultura.
— Por que está colocando flores nesse túmulo? — perguntou uma voz, em alemão.
Megan voltou a cabeça. Uma mulher gorda e loira, num deselegante vestido cor de laranja, olhava fixamente para ela.
— Bitíe? — perguntou, pondo-se de pé, encarando a mulher. Ela devia ser uns dez anos mais velha que Megan, de
altura média, sólida, com olhos azuis muito pálidos e cabelos ressecados presos num lenço. Megan concluiu que ela devia
ter acabado de sair da missa e a mulher repetiu a pergunta.
— Ela era mãe de meu marido — conseguiu formular com seu fraco alemão, desconhecendo a palavra "sogra" que, de
qualquer forma, lhe parecia inadequada.
— Quem é você? — perguntou a mulher, ainda em alemão, arregalando os olhos. — Como é seu nome? Von Kleist?
— interrompeu a mulher. — Erich? Mein Gott!
Megan fez que sim com a cabeça, suspirando pela dificuldade que tinha em falar a língua. A mulher a estudou por um
longo tempo.
— Sina Sie Englanderin? — perguntou ela.
— Sou americana — respondeu Megan.
— Erich von Kleist está morto — disse a mulher em inglês, com forte sotaque teutônico. — Você é a viúva?
— Sou.
— Kurt von Kleist nos informou da morte de Erich nos Estados Unidos, mas não contou que ele tinha deixado mulher.
— Fui casada com ele durante dois anos — disse Megan tensa, recusando-se a fornecer maiores explicações. — A
senhora, quem é, por favor?
— Sou a Dra. Ulrike Müller. Apesar de não tê-la conhecido, a mulher cujo túmulo você decorou com flores era minha
tia, irmã de meu pai. Erich von Kleist era meu primo.

CAPÍTULO 6

~ 74 ~
O consultório de Ulrike ficava naquele hospital de tijolos e vidro. Megan observava sua mais recente parente com
curiosidade, impressionada pelo que via. A mulher tinha trinta e poucos anos, mas sua enorme responsabilidade fazia com
que parecesse mais velha. Ao vestir o avental branco sobre o horrível vestido laranja que a deixava tão sem graça, ela
pareceu de repente assumir um brilho de inteligência e confiança.
Ulrike sorriu, e Megan viu que tinha lindos dentes. Com o corte de cabelo correto e um pouquinho de maquilagem na
pele boa, aquela mulher podia ser bem atraente.
— A esposa de Erich! — ela disse, admirada. — Quem poderia imaginar que nos encontraríamos depois de tantos
anos!
— Você e Erich eram muito chegados? — Megan perguntou.
— Oh, não — respondeu Ulrike, um tanto irônica. — Eu mal o conhecia. Ninguém o conhecia de fato. Minha família
morava em Salzburg, mas no verão eu vinha visitar meus avós. Erich ainda vivia com eles. Era um pouquinho mais novo
do que eu, mas era uma criança... difícil de conhecer. Era sempre muito calado e vivia fugindo para as colinas, sozinho,
levando o violino de Opa. Opa era meu avô. Uma vez eu fui atrás dele. Erich estava em cima de uma pedra tocando
alguma peça, que até eu, uma criança, podia reconhecer que era muito difícil de ser executada. Quando terminou, ele se
curvou profundamente como se agradecesse os aplausos de uma platéia invisível. — Ulrike suspirou. — Eu reagi como a
criança que era: dei risada. Ele veio direto para cima de mim e me bateu com força. E gritou assim: "um dia meu pai vem
me buscar e então ninguém mais vai rir de mim!" Eu tinha só nove anos e não entendi.
— Deve ter sido muito difícil para ele — murmurou Megan.
— Ja. Acho que era difícil para todos. Ele era como um... um mutante. Quando era adolescente e o pai finalmente veio
mesmo buscá-lo, meus avós relutaram um pouco em entregá-lo, porque o amavam. Mas acharam que talvez ele fosse mais
feliz no mundo do pai. Mas mesmo no schloss Erich era também um estranho... Conte-me uma coisa, ele encontrou
felicidade na América?
— Não sei se haveria no mundo alguém capaz de fazer Erich feliz — disse Megan, percebendo que, concentrada em
seus próprios problemas, nunca tinha feito a si mesma essa pergunta. — Eu, com certeza, não consegui fazê-lo feliz.
— Mas você era esposa dele.
— Mas nem uma esposa podia competir com uma sonata de Ives ou uma fuga de Bach. Erich amava a música. E nos
Estados Unidos a carreira dele floresceu. Acho que isso bastou para ele.
~ 75 ~
Ulrike sacudiu a cabeça, parecendo compreender muitas coisas que Megan evitava colocar em palavras. Naquele
momento entrou uma criada, trazendo uma bandeja de café e alguns doces. Ulrike sorriu, desculpando-se pela quantidade
de creme que colocou em sua xícara e pelos dois doces que pegou.
— Tive uma cirurgia de apendicite hoje de manhã e perdi a missa. Ainda não comi nada hoje — justificou-se. — Claro
que não me faria nenhum mal pular uma refeição. Se eu fosse minha própria paciente me receitaria um bom regime para
emagrecer. Parece incrível engordar com comida de hospital, mas o nosso cozinheiro é ótimo. Foi Kurt von Kleist que o
encontrou para nós. Faz doces como ninguém!
— Então Kurt se interessa pelo hospital? — Megan perguntou.
— Natürlich — respondeu Ulrike, um tanto surpresa. — Pensei que você soubesse.
— Eu não sei quase nada sobre Kurt — disse Megan, corando ao se lembrar quanto tinham se beijado na noite anterior.
— Só o conheço há dois dias.
— Mas não leva mais de um segundo para ver que ele é um homem muito bonito, não é? — perguntou Ulrike, notando
o rosto corado de Megan.
Ela concordou com a cabeça. Oh, sim, tinha notado que Kurt era bonito. Como o irmão e o pai, tinha aquela beleza
masculina irresistível, arrogante, cruel, que podia dominar uma mocinha ingênua e conquistá-la para sempre.
— Kurt von Kleist é um homem bom — declarou Ulrike, despertando a curiosidade de Megan depois de tudo o que
tinha ouvido de Adelaide. — Teve os seus momentos muito duros e trágicos. A mão aleijada, a perda da família, da
mulher. Mas ainda assim preocupa-se com as necessidades dos outros. Foi ele quem fundou este hospital.
— Eu não sabia.
— Ah, sim. Se não fosse por ele os habitantes de Kleisthof-im-Tirol ainda teriam de viajar até Salzburg para receber
tratamento médico. Depois da morte da mulher, ele fez grandes esforços para fundar este hospital. O nome é uma
homenagem a Elisabeth von Kleist.
— Ah — murmurou Megan, abalada ao ouvir o nome da mãe de Liesl. — Notei que se chamava Hospital Santa
Elisabeth, mas não tinha percebido...
— Todo ano, no dia de Santa Elisabeth, os von Kleist abrem o schloss para um grande baile de caridade e o lucro é
usado para sustentar o hospital. Vai ser daqui a alguns dias. Vai estar aqui ainda?
— Não sei — disse Megan. — Minha visita foi algo súbita. É uma viagem de negócios. E não fui convidada...
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— Ah, mas você tem que ir — insistiu Ulrike. — Ninguém pode perder o baile dos von Kleist. Eles abrem o grande
salão de danças, e as roupas e as jóias que as mulheres usam... Gott im Himmel! Se eu fosse comunista ia achar tudo muito
decadente. Mas como sou uma simples médica, acho uma maravilha. Como diretora do hospital eu sou sempre convidada
e vou sempre no meu vestido preto, com o colar de pérolas que ganhei dos meus pais na formatura. Minha posição me
vale o lugar de convidada de honra, mas eu acho que isso serve é para evitar conflitos com qualquer outra mulher, pois
Kurt von Kleist sempre dança a primeira música comigo. Depois disso eu fico vagando pelas salas, imaginando como
eram aqueles dias em que o schloss ainda era novo e recebia o jovem Mozart para tocar. A gente chega a se esquecer de
que deve o baile e o próprio hospital à morte inútil e trágica de uma jovem.
— O que aconteceu? — Megan perguntou.
— Não sabe de nada? Infelizmente eu sei, lembro-me de tudo. Foi há mais de sete anos, na época do Natal. Eu tinha
acabado de me formar e estava aqui, com meus avós. Tinha conseguido um estágio em Linz e achei que poderia ser meu
último Natal com os velhinhos. O tempo estava péssimo a semana inteira. Nevava tanto que as estradas ficaram
intransitáveis, a cidade isolada. Uma noite, eu estava indo para a cama quando ouvi sinos de trenó. Bateram na porta. Era
Karl Weber, o chofer, que tinha vindo até aqui num velho trenó puxado a cavalo. Ele disse que tinha havido um acidente
no schloss e que eu era a única médica, precisavam de mim. Ainda me lembro da viagem na neve. Eu nunca tinha ido ao
schloss, apesar de Erich me convidar sempre, e estava nervosa, morrendo de frio. Assim que vi Elisabeth von Kleist
entendi que ela ia precisar de raio X e transfusão de sangue Precisava de um hospital e aqui não havia nada disso.
— Mas o que foi que aconteceu? — perguntou Megan, ansiosa. — Ela havia se machucado?
— Ela fizera um arranjo de Natal especial para a filha e o estava dependurando no alto da escadaria. Mas escorregou
da escadinha em que tinha subido e rolou escadaria abaixo, até o último degrau.
— Oh, meu Deus! — exclamou Megan, lembrando-se do pânico que tinha sentido ao descer aquelas escadas pela
primeira vez.
— Surpreendentemente, ela não quebrou o pescoço — continuou Ulrike —, mas ficou muito ferida. O hospital mais
próximo ficava a menos de quinze quilômetros, mas as estradas estavam bloqueadas. Eu fiz tudo o que estava ao meu
alcance, mas nunca me senti mais impotente em toda a minha vida. Ela ficou inconsciente, o que pelo menos a poupava da
dor. Durante todo o tempo Kurt não se afastou do lado dela, chorando, rezando, segurando sua mão. O resto da família e
os criados também passaram a noite no quarto, esperando o fim, silenciosamente. O próprio Horst von Kleist saiu no meio

~ 77 ~
da noite, debaixo da neve, para ir buscar o padre. De madrugada a filhinha dela entrou no quarto, meio dormindo. Era
pequena ainda e a agitação toda a havia assustado. O pai então a pegou no colo e, ao amanhecer, estava tudo acabado.
Ulrike estava emocionada, os olhos claros enuviados. Megan percebeu que ela estava se controlando.
— Depois do enterro, Kurt me procurou para saber se eu aceitaria ficar em Kleisthof para ajudá-lo a fundar um
hospital, para evitar que essas tragédias tornassem a acontecer. Eu fiquei perplexa, pois achava que ele ia me culpar pela
morte da mulher. Evidentemente, eu não tinha sido nada negligente, mas em casos assim as pessoas costumam reagir
dessa forma. É humano. Eu ainda não tinha percebido que Kurt von Kleist era um homem muito especial... Concordei. Ele
convenceu o pai a lhe dar algumas pinturas famosas para leiloar e, com a ajuda de Wilhelm e Gabrielle, organizou o
primeiro baile de caridade. E agora Kleisthof-im-Tirol tem este belo hospital, super-equipado, com dois outros médicos
além de mim, e todo um corpo de funcionários. É incrível o esforço que Kurt faz por este hospital, considerando que ele
mora e trabalha em Viena.
— Mas você deve ter trabalhado tanto quanto ele — comentou Megan.
— Tem sido um tremendo esforço — admitiu Ulrike, depois de uma pausa. — E há momentos em que me vejo
sonhando com o marido e a família que sempre desejei ter, além da minha carreira.
— Você tem só trinta e dois anos — Megan sugeriu, gentil. — Ainda tem tempo.
— Meu Deus — interrompeu Ulrike, olhando o relógio —, já é hora do almoço. Venha... vou levá-la para comer a
melhor Wiener Backhuhn desta parte da Áustria.
Megan descobriu que Wiener Backhuhn era um prato muito parecido com a galinha à milanesa do sul dos Estados
Unidos. E comeu satisfeita, sentada ao lado de Ulrike naquela hospedaria colorida que já tinha notado antes. Uma enorme
árvore sombreava o terraço. Megan tirou o chapéu e o vento agitava de leve seus cachos vermelhos. Ela olhava o tempo
todo as paredes da fachada da hospedaria de três andares, adornadas com afrescos de gigantescos heróis.
— Você vai ver muitos edifícios decorados com os personagens das lendas locais, tanto aqui no Tirol quanto em
Vorarlberg, o estado vizinho que faz fronteira com Liechtenstein — explicou Ulrike.
— Há tanta coisa para ver — suspirou Megan, comendo o último bocado — mas acho que não vou ter tempo para
quase nada...
— Então sua viagem é curta mesmo?

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— É. Como eu já disse, estou aqui a negócios. Assim que Kurt voltar de Viena com os papéis que eu tenho de assinar,
acho que vou poder voltar. Quero passar algum tempo em Salzburg. Não vi nada quando cheguei e para mim será como
uma peregrinação religiosa visitar a cidade de Mozart. Depois quero ver se vou a Viena, para assistir a algumas óperas.
— Acho que já perdeu a temporada lírica de Viena — disse Ulrike, preocupada —, mas o festival de Salzburg está
acontecendo justamente agora. A cidade fica cheia de turistas, claro, mas as apresentações são soberbas. Se conseguir
ainda encontrar ingressos para o teatro de marionetes do Professor Aicher, tenho certeza de que vai adorar.
Ulrike atacou o enorme pedaço de apfelstrudel que a garçonete colocou diante delas e olhou Megan com inveja.
— Você nunca se preocupa com as calorias? — perguntou.
— Depende do meu estado de espírito — explicou Megan. — Quando estou deprimida ou nervosa, não consigo comer
nada. Mas hoje estou muito feliz. Você não pode imaginar quanto gostei de conhecê-la.
Ulrike sacudiu a cabeça. Seus olhos de médica tudo viam, benignos e compreensivos, e ela tocou a mão de Megan,
maternal.
— É. Às vezes ajuda muito saber um pouco mais da vida de alguém, não acha?
Megan imaginou se Ulrike estava falando de Erich ou de Kurt, mas um carro esporte branco parou na calçada e um
jovem desceu.
— Ulrike, minha querida, como vai? — disse ele.
— Peter! — exclamou Ulrike, muito satisfeita. — Venha sentar com a gente.
O homem, vestido num terno leve, da mesma cor dos cabelos castanho-claros, se aproximou da mesa. Devia ter trinta
anos, era de altura e peso médios, com um rosto agradável e olhos castanhos detrás de óculos grossos.
— Gnadiges Fraulein — disse, acenando com a cabeça para Megan antes de se sentar.
— Fale inglês — disse Ulrike. — Megan é americana.
— É mesmo? Que ótimo! — O sotaque era evidentemente do meio oeste americano e ele olhou intensamente para
Megan. — De onde?
— Los Angeles — Megan respondeu sorrindo, com a inexplicável satisfação que se sente ao encontrar um compatriota
em terra estrangeira. — E você?
— De Chicago. — Ele voltou-se para Ulrike. — Não vai nos apresentar?

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— Claro — disse Ulrike, passando a falar num tom formal que contrastava com seu sorriso aberto. — Megan, permita
que lhe apresente Peter Swanson, um engenheiro americano bastante agradável, apesar de impetuoso, Peter, esta é Megan
von Kleist que, eu acabo de descobrir, é minha prima por casamento.
— É casada? — Peter perguntou surpreso, olhando a mão esquerda sem nenhuma aliança. — Com um von Kleist?
— Sou viúva — respondeu Megan, tensa.
Os olhos castanhos de Peter examinaram intensamente os cabelos vermelhos e o corpo dela até onde a mesa permitia
ver.
— Claro! — ele disse, estalando os dedos. — Eu a vi na praça outro dia. Você parecia meio perdida, até que o
Mercedes apareceu para apanhá-la. Não a reconheci de início porque estava de óculos escuros. Se bem que seja
impossível esconder inteiramente esse cabelo glorioso! — Ele se voltou para Ulrike. — Riki, você nunca me contou que
tinha parentes no castelo da montanha.
— Não tenho — ela cortou logo. — É uma história muito longa, Peter, e não estou com nenhuma vontade de explicar
agora.
— Tudo bem, tudo bem. É que eu pensei... — Ele sorriu fascinante para Megan. — Desculpe, é que tenho tentado falar
novamente com Kurt von Kleist, mas ele se recusa a me receber.
De repente Megan se lembrou do telefonema que tinha presenciado naquele primeiro dia, quando Kurt parecera tão
irritado. Swanson, esse era o nome.
— Kurt está em Viena, agora — disse Megan.
— Bom, é uma boa maneira de me evitar — disse Peter com uma careta.
— Você está ótimo hoje, Peter — disse Ulrike com ar de quem estava decidida a evitar assuntos desagradáveis. —
Está... limpo.
— Riki nunca me deixa esquecer — disse Peter, rindo dos olhos arregalados de Megan —, que na primeira vez em que
nos encontramos eu estava coberto de lama dos pés à cabeça.
— Quando ele entrou rastejando no hospital — explicou a doutora —, pensamos que era uma invasão de extraterrenos.
Você nem pode imaginar o que foi. Ele se arrastava pelo meu imaculado corredor, gotejando lama, com uma enorme flor
vermelha na orelha.
— E o que é que tinha acontecido? — perguntou Megan, quando a médica começou a rir.
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— Eu estava trabalhando no campo...
— Colhendo florzinhas — interrompeu Ulrike.
— Como eu dizia — disse Peter, aceitando a brincadeira —, eu 94 estava no campo fazendo explorações geobotânicas.
Pisei numa toca de coelho e torci o tornozelo. Estava trabalhando sozinho, o que foi uma bobagem, mas era para
economizar custos para o projeto. O campo estava todo cheio de lama e quando eu consegui me arrastar até o carro
parecia uma criatura saída de algum filme de horror.
— E conseguiu chegar ao hospital? — Megan perguntou.
— Claro. Ainda dava para dirigir, se fosse devagarinho. Foi só uma luxação. Riki ficou indignada com isso. Ela achava
que, para justificar toda a sujeira, eu tinha de ter pelo menos uma fratura exposta.
— Não é verdade — disse Ulrike, sorrindo e corando.
Megan estudou os dois. De repente compreendeu que a eficiente doutora tinha uma queda pelo jovem americano.
— O que disse mesmo que fazia? — perguntou, depois de uma pausa. — Geo o quê?
— Geobotânica — respondeu Peter. — É um campo relativamente novo. A gente descobre as anormalidades da vida
vegetal que possam indicar a presença de determinados depósitos minerais no solo. Foram os russos que começaram esses
estudos, mas agora suas técnicas já são usadas no mundo todo. Descobriram urânio no Colorado estudando uma espécie
de trevos e na Suécia encontraram alguns enormes depósitos de cobre pelas pesquisas com o musgo que nascia no lugar.
No meu caso estou procurando cobre, também. Para isso analiso musgo e alguns tipos de hortelã.
— Nunca tinha ouvido falar disso — disse Megan. — Você é geólogo?
— Sou engenheiro de mineração. Trabalho para a companhia de meu tio Max. Ou melhor, trabalharia, se Kurt von
Kleist não fosse tão horrível.
— Peter — cortou Ulrike, firme —, antes que comece com isso devo lembrá-lo de que Megan é uma von Kleist e você
está falando dos parentes dela.
— É, acho que esqueci desse detalhe — disse ele, tendo a coragem de ficar embaraçado, o que o fazia quase juvenil.
— Desculpe se a ofendi, Megan. Eu não pretendia ser rude, mas é que esta coisa toda está sendo muito frustrante. A
atitude senhorial de von Kleist me deixa louco. Eu sei, Riki, eu sei que você considera aquele homem quase um santo,
mas eu acho que ele é complicado e nada razoável. Mas antes que eu tenha de me desculpar de novo, acho melhor mudar
de assunto. Vamos falar de você, Megan. O que é que a trouxe à Áustria? Férias?
~ 81 ~
— De certa forma — respondeu Megan. — Tenho de cuidar de um pequeno assunto de família e depois espero passear
um pouco. Estou querendo ir a Salzburg, apesar de ainda não saber quando é que vou poder.
— Tenho de ir a Salzburg dentro de uns dois dias — disse Peter. — Adoraria que viesse comigo. E você, Riki? Acha
que conseguiria se livrar do hospital por algumas horas?
— Claro. — Ela sorriu, depois de hesitar um instante. — Eu adoraria ir também. Faz séculos que não tiro uma folga.
— Você trabalha demais — resmungou Peter.
— Alguém tem que trabalhar, não é? — disse ela, olhando o relógio. — Apesar de estar adorando a companhia de
vocês, acho que vou ter de voltar ao trabalho. Peter, meu amigo, acha que pode cuidar de Megan pelo resto da tarde?
— Por você, Riki, eu faço qualquer coisa — respondeu Peter, galante.
Ulrike chamou a garçonete e enumerou cuidadosamente tudo o que tinham comido, pagando a conta em seguida.
Megan e Peter caminharam até o muro onde os gerânios vermelhos brilhavam ao sol forte em vasos muito bem-
cuidados. Acenaram para Ulrike, que se afastava, até sumir numa ruazinha lateral. Megan voltou à mesa e pegou seu
chapéu.
— Adoro a Áustria — disse Peter, respirando fundo o ar perfumado. — Há seis anos eu vim para visitar, apenas; nunca
mais fui embora. Tinha acabado de sair da escola, estava desempregado e minha esposa tinha pedido o divórcio. A gente
se casou ainda no secundário, sabe? O mundo me parecia sombrio naquele momento. Mas tio Max me botou debaixo de
sua asa protetora e eu logo me apaixonei pela beleza do país, pela gentileza do povo. — Ele olhou para Megan. — Mas
acho que não tenho de lhe dizer nada disso. Você já sabe. Afinal, era casada com um austríaco.
— É — respondeu Megan, irônica —, era sim.
Durante o resto do dia Peter representou o papel de guia turístico para Megan. Quando a levou de carro até o schloss
von Kleist, no fim da tarde ela estava exausta, mas sentindo-se muito relaxada. Não tinha percebido até então como era
cansativa a presença de Kurt e de sua família.
— Muito obrigada, Peter — disse ela, sincera, quando o carro esporte branco parou diante da entrada da mansão. —
Foi um dia adorável e vou estar esperando por nossa ida a Salzburg.
— Ótimo, você vai adorar — disse ele. — E vai ser muito bom para Riki deixar um pouco o trabalho. Incrível este
lugar, hein? Parece coisa de cartão-postal.
— É mesmo — ela concordou. — Não tinha estado aqui antes?
~ 82 ~
— Não. As poucas vezes que encontrei Kurt von Kleist foi na cidade. Riki quer que eu venha ao baile de caridade, mas
ainda não sei. Não é bem o meu gênero de coisas.
— Não. Nem o de Ulrike. E nem o meu, se quer saber. — Megan olhou para Peter pensando em quanto devia ter
custado à médica tão discreta convidar um homem para ir ao baile. — Se Ulrike quer que você venha ao baile, acho que
deve vir. Além disso, vai ser uma cara familiar para mim no meio de todos aqueles estranhos.
— Ok — disse ele, rindo, depois de um momento. — Não sei se von Kleist vai aprovar minha presença na casa dele,
mas faço qualquer coisa por uma compatriota! Auf wiedersehen!
Ele acenou com a mão e acelerou o carrinho branco, circundando a fonte de pedra do jardim.

Megan estava tocando piano para Liesl e Adelaide naquela noite quando uma empregada veio chamá-la para atender a
um telefonema. Surpresa, ela se desculpou e acompanhou a empregada ao longo dos corredores, tentando imaginar quem
poderia ser. Ao chegar à sala branca e dourada de Gabrielle, viu que ela estava sentada à escrivaninha Luís XV, ouvindo
um tanto carrancuda quem quer que estivesse na linha. Assim que Megan chegou perto ela estendeu o aparelho, num gesto
impaciente.
— Kurt — disse — quer saber se você está bem.
Megan virou as costas para a mulher, que passou imediatamente a conferir uma lista, assim que Megan pegou o
telefone.
— Alô?
A ligação estava ruim, mas mesmo os chiados e estalos não conseguiam encobrir o tom sensual da voz grave de Kurt.
— Alô, Megan, como está?
— Muito bem, Kurt.
— Senti sua falta hoje de manhã — ele disse. — Na verdade, sinto sua falta aqui, agora, a sós comigo, sem ninguém
para nos interromper...
No espelho diante dela, Megan viu que seu rosto corou fortemente, mas antes que pudesse responder Kurt riu e
continuou:
— Pobre Megan, é maldade minha brincar com você com Gabrielle aí do seu lado — ele disse. — Chamei porque
queria saber se está se divertindo com as férias. Teve um bom dia?
~ 83 ~
— Tive, sim — ela respondeu, sincera. — Passei o dia em Kleisthof. É lindo o lugar e foi uma delícia me sentir turista.
— Liesl foi junto?
— Não, fui sozinha. Sabe, Kurt, encontrei uma mulher que é prima de Erich...
— Ulrike Müller? — ele perguntou, surpreso.
— Isso. — Megan pensou se devia mencionar Peter também, mas achou mais conveniente não dizer nada. — Ulrike é
muito atenciosa. Gostei demais dela. Convidou-me para ir a Salzburg no fim da semana.
— Você faz amigos bem depressa, não? — comentou Kurt. — Fico muito satisfeito. A Dra. Müller é uma mulher
extremamente dedicada e acho ótimo você tê-la conhecido. Eu devia ter pensado em apresentá-las, mas... Não sabia se
você queria ou não conhecer a outra família de Erich, em vista de tudo o que aconteceu.
— Bobagem, Kurt. Claro que eu queria conhecê-la. — Deliberadamente Megan mudou de assunto. — E o seu dia,
como foi? Chegou bem com à pintura de Pollock?
— Ah, sim, tudo conforme o previsto. Mas surgiram outros problemas. Uma briga entre o meu gerente e um jovem
pintor que eu estou patrocinando. Acho que não vou poder voltar ao schloss antes do dia do baile. Você consegue se virar
sozinha até lá?
— Claro. Tenho a viagem com Ulrike e, além disso, Liesl e eu resolvemos ir até Innsbruck, com o chofer. E se nada
der certo eu tenho sempre a minha música para me consolar. Seu piano é uma maravilha, Kurt. É o tipo do instrumento
com que todo pianista sempre sonhou.
— É, eu sei — disse ele baixinho, fazendo depois uma longa pausa. — Que droga, Megan, estou cansado desse seu
comportamento virginal. Quero que venha a Viena. Pode pegar um avião em Salzburg e chegar aqui antes do almoço.
— Mas, Kurt...
— Não discuta comigo, Megan. Passear com minha filha ou visitar a prima de Erich pode ser muito agradável, mas
você sabe tão bem quanto eu que preferia estar aqui comigo, em Viena.
— Kurt, você não tem o direito de... — ela gaguejou diante daquela arrogância.
— Não é verdade, Megan? — ele insistiu.
Megan fechou os olhos e prendeu a respiração, tentando com todas as forças dominar a onda de desejo que ameaçava
envolvê-la. Estar em Viena, com Kurt... Sabia o que isso queria dizer. Sentariam em algum café romântico e íntimo, de

~ 84 ~
mãos dadas, comendo torta Sacher e ouvindo um violino cigano. Olhariam juntos o pôr-do-sol na torre da Catedral de
Santo Estéfano e no escuro da noite os braços fortes de Kurt a envolveriam num abraço ardente e irresistível...
— Megan, você vem para Viena? — repetiu Kurt.
— Vou — ela sussurrou.
— Sehr gut — disse ele, muito calmo e tranqüilo. Parecia satisfeito, mas nada agitado, como se fosse normal uma
mulher concordar em ter um caso com ele.
E talvez não fosse mesmo nada especial para ele, pensou Megan de repente. Seus dedos apertaram o cabo fino do
aparelho. A mulher dele tinha morrido há sete anos e Kurt certamente não era nenhum monge. Ninguém nunca tinha
mencionado uma namorada fixa, mas Adelaide havia insinuado que Kurt era quase um playboy. Evidentemente a garota
devia estar exagerando. Kurt era o tipo de homem que devia ser discreto com suas relações, não deixando que
interferissem na vida com a filha, numa casa onde a fotografia de Elisabeth von Kleist ainda tinha lugar de honra...
— Ainda está aí, Megan? — perguntou ele.
— Sim... estou — gaguejou ela, voltando à realidade. — Alguma coisa mais?
— Preciso falar de novo com Gabrielle para ela cuidar de sua viagem para cá.
— Claro — concordou Megan. — Boa noite, Kurt.
— Boa noite, querida. Nós nos veremos amanhã de manhã. Passe-me Gabrielle agora.
Silenciosamente Megan entregou o aparelho a Gabrielle, que continuou conferindo a lista enquanto escutava. De
repente seus olhos se arregalaram e ela olhou para Megan. Temendo corar novamente, Megan voltou-se e saiu da sala.
Liesl estava sentada ao piano, lutando com O Ferreiro, enquanto Adelaide, enrolada no sofá, devorava o último livro
de Pauline Kael.
— Não, querida, não está certo — disse Megan gentilmente, depois de ouvir Liesl um instante. — As notas estão
certinhas, mas o fraseado está errado. Olhe, é assim.
Ela se sentou ao lado da menina no banquinho.
— Esta passagem tem que ser sincopada — explicou, pousando os dedos nas teclas amarelecidas. — É três, e quatro, e
um e dois e três e quatro... Viu? Percebe a diferença?

~ 85 ~
— Acho que sim, tia Megan — disse a menina, juntando as sobrancelhas num gesto parecido ao do pai. — Posso
tentar outra vez?
Ela tocou novamente o trecho, um pouco melhor, mas ainda muito imperfeito.
— Não, não, Liesl, não pense no que eu fiz. Pense na música. Não tem que me imitar. Tem que sentir o que Handel
queria dizer aí.
— Sentir... — repetiu Liesl, arregalando os olhos para Megan como se aquilo fosse uma idéia totalmente nova para ela.
— Fraulein Brecht nunca me disse isso.
Ela começou a tocar novamente a peça, hesitante a princípio, depois mais depressa, como se de repente um objetivo
muito distante tivesse tomado corpo e ela quisesse atingi-lo correndo. Entusiasmada, deixava os dedos escorregarem nas
teclas tocando muitas notas erradas, mas apesar de todos os erros Megan soube perceber naquela execução um indício
daquele sentido especial que distingue o músico da pessoa que meramente toca.
— Muito bem, querida — suspirou Megan, satisfeita, quando a menina terminou.
— Foi bom mesmo, não foi? — Os olhos azuis da menina brilhavam e ela sorria, satisfeita. — Gosto do jeito que você
me ensina, tia Megan. Pode me dar outra aula amanhã?
— Desculpe, Liesl — disse nervosa, tentando parecer natural. — Mas amanhã não vou estar aqui. Vou à Viena por uns
dias.
— O quê? — gritou Liesl. — Por que é que você vai à Viena? Foi Vati quem convidou? E o nosso passeio? Posso ir
junto com você?
— Não, querida, não pode... desta vez — gaguejou Megan, percebendo que Adelaide tinha levantado a cabeça e
encarava-a intensamente. Megan tentou falar com uma calma autoridade, que não sentia de fato. — Eu nunca estive em
Viena, sabe? E seu pai me convidou. Você não pode ir comigo, não, mas pode me pedir o que quiser, que eu trago para
você.
— Quanto tempo vai ficar lá? — perguntou Adelaide, intrigada.
— Não faço idéia — disse Megan, encolhendo os ombros. — Kurt ia pedir a Gabrielle para cuidar de tudo.
— Entendo — disse Adelaide, desenrolando as pernas e pondo-se de pé. — Então, acho que vou dizer boa noite.
Ela atravessou a sala arrumando o vestido longo que tinha usado para o jantar e virou o corredor na direção da sala de
Gabrielle.
~ 86 ~
— Você vai embora — acusou Liesl, triste.
— Mas eu volto — protestou Megan. — Só vou... passar uns dias com o seu pai. Ele quer que eu me divirta um pouco
enquanto estou em férias.
— E você não pode se divertir comigo? Não quer ir para Innsbruck comigo? Se você prefere ir para Viena, por que é
que eu não posso ir junto? Conheço um monte de lugares para levar você. Afinal, Viena é a minha cidade também.
— Claro, mas...
— Tia Megan — choramingou Liesl —, você não gosta de mim? Eu pensei...
— Por favor, Liesl, não chore — disse Megan, exasperada.
A menina se encolheu como se tivesse sido estapeada. De repente os olhos de safira brilharam, molhados, e ela fugiu
da sala, soluçando. Megan deu um passo para segui-la, mas resolveu não ir atrás da menina. Estava se envolvendo demais
com ela. Não lhe devia explicações, não tinha nenhuma responsabilidade sobre a criança. Apesar de encantadora, a
menina já exibia alguns daqueles traços possessivos e autoritários que via nos von Kleist adultos. Seria bom ela aprender
bem cedo que nem tudo podia ser como queria.
Por que então Megan se sentia tão culpada de ter, involuntariamente, magoado a criança?
Decididamente, Megan afastou a lembrança da menina chorando e foi para o seu quarto. Escolheu para levar um
conjunto de roupas que combinavam entre si, para não ter de carregar muita bagagem, uma vez que não sabia direito o que
ia fazer em Viena. Sorriu da ironia desse pensamento. Já estava fechando a mala quando se lembrou de que não estava
levando nenhuma camisola. Com dedos trêmulos escolheu uma que era muito fina, verde-água, a saia ampla saindo de um
corpete de renda transparente e estendendo-se até o chão. Apesar de dormir sempre sozinha, Megan adorava roupas
íntimas, talvez porque o tecido macio e sedoso das camisolas acariciando seu corpo nu compensassem a falta de outras
carícias. Sabia que estava embarcando em apenas uma aventura com Kurt. Nada mais que a satisfação recíproca de suas
necessidades. Não era amor. Ela não queria mais saber de amar. O amor machucava e doía. Mas, fosse o que fosse, sabia
que ia ser glorioso.
Na grande cama de dossel ela se entregou aos mais fantásticos sonhos e, ao despertar na manhã seguinte, chamada pela
empregada seu rosto brilhava de excitação. Tomou o café e vestiu-se rapidamente, a boca curvada num sorriso secreto,
pensando nos próximos dias. E noites.
Seu sorriso só murchou quando, ao entrar na limusine, descobriu que já havia outro passageiro lá.

~ 87 ~
— Surpresa! — disse Adelaide, sorrindo. — Gaby me disse que você ia passar o dia em Viena, então resolvi vir junto.
Preciso de um vestido novo para o baile.
O Danúbio Azul, Megan notou de seu lugar no avião, não era nada azul, mas sim marrom-amarelo, como a maioria dos
rios que cruzam cidades grandes. Mas aquela decepção parecia combinar bem com seu estado de espírito. Já estava
deprimida desde o schloss, quando entregara a mala de volta para a criada, dizendo, envergonhada, que não tinha
compreendido bem os arranjos de viagem.
A curta viagem de Salzburg até Viena passou depressa, com Adelaide a seu lado mergulhada na leitura do livro e
Megan tentando enxergar alguma coisa através das nuvens que dominavam quase todo o percurso. Devia ficar
emocionada por estar a caminho da cidade cujo simples nome era sinônimo de música, onde tinham vivido compositores
como Haydn, Mahler, Beethoven. Mas, em vez disso, sentia-se frustrada por ter interpretado mal o convite de Kurt. Pelo
menos, podia evitar que ele soubesse de seu erro. O que é que ele não iria pensar se ela chegasse obviamente preparada
para passar a noite com ele?
Ao descerem do avião e caminharem pelo aeroporto, Adelaide ficou um pouco para trás, arranjando a tira da sandália,
e Megan foi empurrada pela fila, forçada a seguir adiante. Ao chegar ao final da rampa olhou em volta, confusa pela
multidão agitada e a babel de línguas estrangeiras faladas ao mesmo tempo. Seus olhos verdes procuravam ansiosos por
Kurt e ele de repente apareceu, mais alto que todos, caminhando em direção a ela com um ar de autoridade latente que
fazia as pessoas abrirem caminho para ele. Megan chegou a notar alguns olhares femininos invejosos que o
acompanharam.
Kurt parou diante de Megan e nada disse, mas seus olhos azuis brilhavam em boas-vindas. Ele pousou as mãos de leve
nos ombros dela e ela sorriu.
— Olá — murmurou.
— Olá, Megan. Estou contente que tenha vindo — ele sussurrou, inclinando a cabeça e beijando-a rapidamente nos
lábios.
Estavam absolutamente alheios à multidão que os rodeava. Megan inclinou a cabeça para trás e levantou a mão para
tocar o rosto dele.
— Aqui não — ele suspirou, relutante, pegando os dedos dela carinhosamente e dando-lhe o braço.
— Kurt, Megan! Esperem por mim! — gritou Adelaide, correndo para eles.

~ 88 ~
Megan sentiu o corpo de Kurt ficar tenso de raiva. Ele olhou por cima do ombro.
— Tem tanto medo de mim que precisou trazer companhia? — perguntou baixinho, duramente, olhando para Megan.
Ela tentou balbuciar uma desculpa, mas Adelaide chegou até eles, vivaz e risonha. Risonha demais, pensou Megan,
como se não estivesse segura de ser bem recebida.
— Oi, Kurt! — Ela sorriu, beijando-o no rosto. — Espero que você não fique bravo por eu ter me convidado também
para passar o dia com vocês. Gaby achou que era uma boa oportunidade para eu comprar meu vestido para o baile. Tenho
estado tão ocupada que...
— Então veio só para passar o dia? — interrompeu Kurt.
— Claro — ela respondeu, na defensiva. — Nosso vôo de volta é às nove da noite.
— Nosso? — repetiu Kurt, apertando os olhos. — Entendo. Bom, então temos pouco tempo. É melhor irmos andando.
Megan tinha de correr um pouco para manter o ritmo dele, mas Adelaide, pendurada no outro braço de Kurt, não tinha
esse problema, com suas pernas mais longas.
— Tem bagagem? — perguntou Kurt quando chegaram ao fim do corredor.
— Não — ela respondeu, lembrando da mala que tinha deixado arrumada. — Não trouxe nada. Afinal, para um dia
só...
Caminharam depressa até a saída e Kurt estacou de repente, voltando-se para Adelaide.
— Tem dinheiro? — perguntou.
— Tenho algum. Gaby me mandou pôr o vestido na conta, mas acho que tenho o suficiente para levar Megan ao...
— Pode deixar que eu cuido de Megan — cortou Kurt, tirando do bolso a carteira e entregando a Adelaide uma nota de
valor alto. — Tome. Já cumpriu sua função de acompanhar Megan até mim. Está livre de maiores obrigações. Pode passar
o seu dia na cidade sem a amolação dos parentes. Depois de encontrar o vestido que quer pode ir ao Prater ou a um
cinema que você tanto gosta. Pode ir onde quiser, com a condição de que esteja em meu apartamento a tempo do seu vôo.
Sete e meia está bem?
— Mas como é que eu chego até a cidade? — perguntou Adelaide, absolutamente surpresa com a atitude de Kurt. —
Não posso ir com vocês?

~ 89 ~
— Não — Kurt disse friamente. — Preciso voltar à galeria muito depressa e não tenho tempo para levá-la. Pegue o
ônibus da linha aérea. Vai deixá-la na Landstrasser Hauptstrasse, perto do Hilton. Conforme você mesma sempre diz, é
uma adulta absolutamente responsável e estou certo de que saberá cuidar de si mesma. Auf Wiedersehen, Adelaide.
Antes que a garota pudesse protestar, Kurt empurrou Megan pela porta e caminharam em silêncio pelo estacionamento.

CAPÍTULO 7

T
— em certeza de que não quer que Adelaide venha conosco? — perguntou Megan antes de chegarem ao carro.
— Claro que não — disse Kurt. — Você quer?
— Mas uma garota como ela, sozinha numa cidade grande...
— Isto é Viena, Megan — ele observou secamente —, não é Nova York ou Londres. Ela vai estar bem.
— Pensei que...
— Acha mesmo que a convidei para passar apenas o dia comigo? — perguntou ele, parando no meio da pista.
— Eu... eu não sabia o que pensar — respondeu Megan, corando e mordendo o lábio. — Você pediu a Gabrielle para
cuidar das coisas e ela...
— Vamos continuar a conversa no carro — disse Kurt, levando-a pelo braço até um Mercedes esporte, azul-escuro.
Ela se sentou e Kurt mandou que apertasse o cinto de segurança. Megan obedeceu, mas a ponta do cinto estava presa
debaixo do banco e ela teve alguma dificuldade em retirá-la.
— Ainda não fechou o cinto? — disse, impaciente. — Aqui na Áustria o cinto é obrigatório.
Kurt curvou-se sobre ela para apertar os fechos e então, subitamente, os dedos dele se fecharam em torno do pescoço
dela, imobilizando sua cabeça, e ele pressionou os lábios ferozmente contra os dela. Surpresa com a violência dele, Megan
não conseguiu corresponder. Quando ele finalmente se afastou, os olhos azuis estavam sombrios.
— Por que deixou que atrapalhassem nossos planos? — ele perguntou, duro. — Por que não disse que não ia voltar
hoje à noite?

~ 90 ~
— Mas eu não sabia, até o último instante, que seria uma viagem curta. Então achei... achei que eu é que tinha
entendido errado o que você queria.
— Ah, você sabia muito bem o que eu queria — disse ele, rindo ironicamente e pondo o carro em movimento. —
Tenho mesmo de voltar à galeria. Se soubesse que sua visita ia ser tão curta, teria arranjado as coisa de outra forma.
Rodavam pela estrada e Kurt apontou um desvio que levava ao Wienerwald, os famosos bosques de Viena.
— Achei que ia ter tempo de levá-la ao Heurigen — ele lamentou. — É um dos costumes mais gostosos de Viena.
Quando uma casa de vinhos coloca na porta um ramo de pinheiro, quer dizer que estão servindo o vinho novo. Todo
mundo senta em longas mesas tomando vinho, comendo queijo e frios, conversando, ouvindo música. É tudo muito
relaxante, muito... mágico.
— Tudo em Viena é muito mágico, não é, Kurt?
— Tudo menos o vento, é o que dizem. E o vento só sopra porque tudo é tão mágico.
— Não vi nenhum vento — respondeu Megan, rindo.
— Ele parou de soprar em sua homenagem. — Ele sorriu, olhando para ela.
Atravessaram o canal do Danúbio, que era realmente azul, ali. Cruzaram ruas estreitas e vielas tortuosas onde a
arquitetura dos prédios variava desde o estilo renascentista até o contemporâneo. Passaram pela rua da universidade velha,
onde Franz Schubert morava em criança. As pessoas eram bonitas e sorridentes. E quando Megan e Kurt atravessaram a
rua a pé para ir à galeria, ela era capaz de jurar que um rapaz passara por eles assobiando um trecho de A Flauta Mágica,
de Mozart.
O interior da galeria von Kleist era todo em tons neutros, com iluminação indireta, um cenário perfeito para as pinturas
surrealistas dependuradas nas paredes. Kurt apresentou Megan a seus funcionários e ela ficou olhando, interessada,
enquanto ele resolvia os problemas que cada um deles apresentava. Kurt era respeitoso, mas firme, ouvindo
cuidadosamente o que diziam e tomando decisões que todos pareciam aceitar sem hesitação. Depois de algum tempo ela
começou a olhar os quadros coloridos, mostrando estranhas fantasias de um mundo fantásticos.
— Gosta? — perguntou Kurt, num tom meio risonho.
— Não sei. Não entendo muito.
— Precisa de alguém que lhe explique as pinturas. Talvez o próprio artista. Ele costuma estar aqui a esta hora.

~ 91 ~
Kurt desapareceu um minuto nos fundos da sala e retornou com um jovem mais ou menos da idade de Megan que,
apesar da barba e da aparência rebelde, comportava-se muito de acordo com o velho mundo. Curvou-se e beijou a mão
dela. Megan arregalou os olhos, surpresa. Era a primeira vez que alguém beijava sua mão. Ela tentou achar uma resposta
adequada, mas o artista imediatamente começou a explicar as pinturas, falando rapidamente em alemão. Incapaz de
interromper o monólogo absolutamente incompreensível, Megan procurou Kurt com os olhos, mas ele tinha se retirado
para os fundos da sala onde conferenciava com o gerente e duas mulheres que deviam ser clientes.
Suspirou e tornou a acompanhar o discurso interminável do jovem artista.
— Você fez de propósito, não foi? — protestou, quando finalmente Kurt veio em seu socorro. — Sabia que eu não ia
entender nada.
— Claro — disse Kurt, rindo, sem se arrepender —, assim você se distraiu enquanto eu estava ocupado. E mesmo que
ele falasse inglês você não entenderia nada mesmo. O Realismo Fantástico é incompreensível em qualquer língua que não
a própria pintura. Calma, calma, mein Schatz. Eu agora estou livre para o resto do dia e quero lhe mostrar tudo o que
puder. Não, de carro não — ele disse, quando ela caminhou para o Mercedes. — Tenho em mente algo... especial.
Kurt a levou pela mão pela Stephanplatz, onde o mosaico do teto da catedral brilhava em desenhos pretos, brancos e
dourados, como uma jóia ao sol do meio-dia. Megan olhava fascinada e Kurt tocou seu rosto de leve. Diante deles estava
parado um Fiaker de madeira entalhada pintada de vermelho-brilhante, puxado por dois cavalos cinzentos. O cocheiro era
jovem, resplendentemente vestido de casaco de veludo e calças xadrez de preto e branco, com chapéu coco que tirou para
fazer uma profunda reverência, convidando-os a subir.
— O Fiaker faz parte do cenário de Viena desde o século XVII — explicou Kurt, enquanto se acomodavam —, e ainda
é a melhor maneira de passear pelo centro da cidade.
Ele passou o braço pelos ombros de Megan e puxou-a. Ela se arrepiou ao sentir o contato do corpo forte de Kurt contra
o seu, o cheiro másculo excitando-a. Kurt percebeu a perturbação dela e estudou seu rosto, os olhos sombrios e
inescrutáveis.
— Vamos esquecer o passeio e ir para o meu apartamento? — ele murmurou.
Megan baixou os olhos, o coração disparado no peito. Então tinha chegado afinal o momento. Tudo o que tinha a fazer
era dizer sim e, em questão de minutos, estaria na cama de Kurt, vibrando com os carinhos dele, deixando que ele a
ensinasse o que era ser mulher. Tornou a olhar para ele, os olhos brilhando, mas, quando abriu a boca para falar, ele a
silenciou com o dedo.
~ 92 ~
— Não — disse. — Eu retiro a pergunta. Hoje não é o nosso dia. Podia ter sido, mas a interferência de outras pessoas
estragou tudo. Nosso momento chegará quando não tivermos mais de esperar por nenhuma interrupção de Adelaide. Ou
quando você não tiver de se levantar e partir às pressas depois de umas poucas horas.
Um sorriso levemente irônico aflorou aos lábios dele quando viu a decepção se estampar nos olhos de Megan.
— Eu sei — ele disse, beijando-a de leve nos lábios. — Eu também não gosto da frustração, mas você, e eu não
estamos tão desesperados a ponto de precisar aproveitar qualquer momento livre, como adolescentes no banco de trás de
um carro. Vamos esperar até o momento certo. Depois que eu voltar ao schloss... — Beijou-a na ponta do nariz. — Devia
ter trazido um chapéu, vai se queimar de novo.
Kurt fez um sinal ao cocheiro, que começou sua narração em inglês, com forte sotaque, apontando os lugares de
interesse com o chicote. O balanço da carruagem pequena, o ruído das patas do cavalo no calçamento de pedra, tudo se
encaixava com perfeição numa atmosfera mágica, de outros tempos.
Às seis horas, pontualmente, chegaram ao apartamento de Kurt. Ele abriu a porta e Megan entrou, rindo e cantarolando
baixinho uma valsa de Strauss.
— Oh, Kurt, que dia maravilhoso! — ela disse. — E que apartamento mais lindo!
A sala era ampla e aberta, carpetada de cinza-prata, com móveis baixos e simples dividindo-a em vários ambientes.
Depois da opulência florada do schloss, aquela simplicidade parecia quase árida.
— Parece que foi decorado por algum americano — comentou Megan.
— Errado — disse Kurt. — Eu o decorei. Precisava de coisas bem simples, para realçar minha coleção de abstratos.
— Lindo — repetiu Megan.
— Meu bem, você está bêbada? — sorriu Kurt, diante da alegria de Megan.
— Não, não estou, não — ela protestou. — Você sabe que só bebi o vinho no almoço. Estou tonta com tanta beleza.
Tudo é lindo: o schloss Schõnbrunn, o concerto no Belvedere, a Escola de Equitação... — Ela bocejou. — Nem sei como
ainda estou de pé.
— Pois então sente-se — sugeriu Kurt, levando-a para um dos sofás.
Ela se deixou cair no estofamento macio, ainda cantarolando, e Kurt, sorridente, ajoelhou-se diante dela, tirou suas
sandálias e começou a massagear seus pés.

~ 93 ~
— Hum... que bom! — ela suspirou satisfeita, fechando os olhos. Ria de cócegas, tentando controlar a sensação erótica
que as mãos dele lhe despertavam. Se não estivesse tão cansada...
— Coitadinha — disse Kurt. — Eu a cansei demais. Devia ter pensado que seria impossível mostrar Viena inteira num
só dia. Agora descanse, que vou fazer café.
Ela tentou dizer que queria o seu sem creme, mas sua voz não saiu. Mergulhou num cochilo gostoso, sentindo-se
segura e quente... E de repente acordou e pôs-se sentada.
— Que horas são? — perguntou confusa, quando conseguiu focalizar os olhos em Kurt, sentado na poltrona diante
dela.
— Sossegue — ele disse. — Você só dormiu meia hora. Seu café ainda está quente.
— Desculpe — disse, sacudindo a cabeça e pegando a xícara fumegante da mesinha. — Pensei que tinha perdido o
avião para Salzburg. Adelaide já chegou?
— Não — disse Kurt. — Só vai chegar no último minuto. É claro que não vai se arriscar a perder o avião, mas vai
aproveitar ao máximo.
— Adelaide é uma garota estranha — disse Megan.
— Mimada, isso sim. — Kurt fez uma careta. — Gabrielle faz tudo o que ela quer.
— Não sei, não — disse Megan, lembrando as coisas que a garota lhe tinha dito sobre a mãe adotiva.
— Está falando sobre aquela obsessão idiota de ser estrela de cinema?
— Bom... eu sei que não é da minha conta — disse Megan — mas...
— Pessoalmente, eu acho que a insistência de Gabrielle em fazer Adelaide estudar algo de útil é bastante razoável.
Acho também que ela tem todo o direito de exigir que Adelaide a ajude no trabalho da casa. É claro que Adelaide não
pensa assim, mas creio que é natural, pela maneira como foi criada.
— O que quer dizer?
— Tenho certeza de que Adelaide lhe contou a triste história do pai, o brilhante piloto de corridas que morreu antes de
atingir os píncaros da glória, não foi? Não, não me olhe assim, Megan. É claro que foi uma tragédia para ela perder o pai
aos quinze anos. Mas ele não era o herói que ela diz ter sido. Na verdade, ele era quase criminalmente irresponsável,
malbaratando a própria vida e o futuro da filha em busca de um sonho que era evidentemente incapaz de alcançar.

~ 94 ~
— Então — perguntou Megan —, Arnold Steuben não era um piloto promissor?
— Promissor? Ele não chegava a ser nem de segunda classe. Era um mecânico brilhante, mas como piloto arriscava
demais e não levava a sério as precauções mais rotineiras. Ele morreu por causa de um pneu que deixou de trocar a tempo.
Steuben não conseguiu nem patrocinador para as suas duas últimas corridas. Teve de financiar sua própria equipe,
gastando nisso todo o seu capital e ainda fazendo dívidas. Adelaide não sabe, mas Gabrielle e Willi já estavam pagando os
estudos dela muito antes de o pai morrer.
— Nesse caso, meu Deus, por que é que alguém não conta a Adelaide? Será que ela não teria mais... consideração com
Gabrielle se soubesse quanto lhe deve?
— Não sei. Talvez — continuou Kurt. — Mas Gabrielle é a tutora dela e se recusa a contar. Acho que... Gaby perdeu
os pais muito cedo e não quer que nada de negativo possa pesar sobre a memória do pai de Adelaide. Nesse caso acho que
ela está cometendo um grave erro, pois a garota obviamente se ressente com as exigências de Gabrielle. Mas eu não quero
interferir. Na medida do possível, tento não interferir na vida dela. Nem ela na minha. O fato de ela ter alterado os seus
planos de viagem foi muito estranho. Vou ter de falar com ela a respeito.
— Não entendo por que fez isso — disse Megan, corando.
— Não? — perguntou Kurt. — Bom, talvez daqui a uns vinte anos você entenda.
Os olhos dos dois se encontraram e mais uma vez Megan sentiu por todo o corpo a intensidade com que reagia ao
tácito desejo de Kurt. Por um breve instante ela achou que ele ia avançar e tocá-la, mas Kurt desviou os olhos e consultou
o relógio.
— Você toca piano para mim, Megan? — ele disse, respirando fundo. — Eu nunca a ouvi.
Ela foi até o piano, caminhando com os pés descalços pelo tapete. Deslizou os dedos pelas teclas, experimentando o
instrumento. Era um piano moderno, mas de excelente qualidade, apesar de não poder ser comparado àquela maravilha da
sala de música do schloss.
— Comprei esse para Liesl — explicou Kurt. — Pensei em trazer o piano grande do schloss, mas achei que seria um
crime colocar em risco um instrumento tão perfeito.
— Seria mesmo — concordou Megan. — Ele é simplesmente perfeito naquela sala cheia de pinturas e entalhes. — Ela
sorriu, depois ficou séria. — Kurt, posso dizer uma coisa sobre Liesl? Acho que é importante. Ouvi a menina tocar e
realmente acredito que ela tem talento, mas... mas acho que a professora não é adequada. Claro que não sei nada sobre

~ 95 ~
Fraulein Brecht. Deve ser competente, mas parece não estimular Liesl. Ela precisa de alguém que a faça entender que a
base que está aprendendo agora não é apenas um estágio cansativo, mas sim os primeiros e mais importantes passos para
chegar ao alto...
— E você acha que a professora de Liesl não faz isso?
— Não sei — continuou Megan. — Não estou sugerindo que a mande embora, mas talvez, se você falar com ela, ela
entenda as necessidades especiais de Liesl. Ou então... — Megan hesitou um momento.— Ou então, por que não a ensina
você mesmo?
Imediatamente Megan sentiu que tinha corrido o risco de enraivecê-lo. Durante algum tempo ele nada disse, olhando
Megan com olhos profundos. Depois baixou os olhos para a mão aleijada, acompanhando a cicatriz branca contra a pele
morena.
— Você seria um ótimo professor, Kurt. Sabe disso. A música está em seu sangue. É parte de você mesmo. E sempre
será. O fato de não poder mais tocar não muda nada.
Kurt prosseguiu em silêncio por um tempo tão longo que Megan pensou que seus nervos iam estourar.
— Não! — ele disse de repente, a voz rouca. Caminhou até a grande janela e ficou olhando a bela cidade, de costas
para Megan. — Sei que tem boa intenção, Megan, e aprecio seu interesse. Vou realmente procurar um professor mais
adequado para Liesl. Mas devo lhe pedir que não se preocupe mais com os sonhos e ambições dos quais eu desisti antes
de você nascer.
Megan fraquejou, tocada pela enorme frieza dele. Tinha estragado tudo! Com algumas poucas palavras, bem-
intencionadas, mas absolutamente desastradas, tinha rompido a crescente aproximação entre eles. Tinha feito um inimigo.
Ou, na melhor das hipóteses, não mais um amigo. Devia ter entendido antes que o orgulho dele nunca admitir que uma
estranha mencionasse seu defeito físico.
Pensou em desculpar-se, mas achou que podia piorar ainda mais as coisas. Era melhor calar-se e esperar que ele
voltasse a ser gentil com ela outra vez. Olhou-o, rígido, duro, silhuetado contra a janela ensolarada e, suspirando, tornou a
fechar a tampa do piano. Adelaide chegou exatamente no momento certo, falando alto, cheia de novidades sobre o filme e
sobre o vestido que tinha encontrado numa butique.
Durante o longo caminho até o aeroporto Kurt esteve calado e introvertido, reagindo com pequenos sinais de cabeça ao
discurso interminável de Adelaide e aparentemente alheio ao silêncio de Megan.

~ 96 ~
Mas quando as duas mulheres já estavam na fila para embarcar, ele pareceu abrandar.
— Obrigada por um dia inesquecível, Kurt — disse Megan, estendendo a mão hesitante para ele.
Para sua surpresa, Kurt agarrou-a pelo pulso e puxou-a para si, beijando-a com ardor.
— Desculpe-me por ser tão... verdriesslich, querida — ele murmurou. — Acho que os homens, como crianças
pequenas, ficam sempre emburrados e manhosos quando não conseguem o que querem.
Megan sentia ainda nos lábios aquele beijo forte quando se sentou em seu lugar no avião.
— Você não está se apaixonando por Kurt, está? — perguntou Adelaide, examinando-a com olhos agudos, sentada a
seu lado.
— O quê? — Megan piscou, surpresa. — Não. Não estou, não.
— Ótimo — disse Adelaide, levantando as sobrancelhas como Gabrielle fazia. — Porque não iria dar certo, você sabe
disso.

Na manhã seguinte Megan telefonou para Ulrike, para ver se podiam almoçar juntas. Estava furiosa por Gabrielle ter
interferido em seus planos e não queria encontrá-la enquanto não tivesse esfriado.
Horas depois o chofer a deixava diante da casinha caiada de branco, com venezianas vermelhas e gerânios na janela do
segundo andar. Ulrike recebeu-a com seu enorme sorriso e só ao entrar na sala foi que Megan se deu conta de que aquela
casa, tão diferente do luxo do schloss, tinha sido a casa dos avós de Erich, onde ele tinha vivido até os catorze anos.
A mobília, que devia ser a mesma de quando os velhos estavam vivos, era escura e antiga, mas muito bem-cuidada.
Numa das paredes havia um crucifixo de madeira e, abaixo dele, uma série de fotografias. Algumas eram antigas,
amarelecidas, outras eram polaróides coloridas. Ao todo havia ali, na parede, catorze gerações de Müllers.
— Tenho doze sobrinhos e sobrinhas — disse Ulrike, apontando as fotos mais recentes. — Sou uma tia fanática, uma
vez que não tenho filhos... Mas são essas fotos aqui que eu quero que você veja. Acho que poderiam ajudá-la a...
compreender melhor.
A fotografia sépia, oval, mostrava um casal jovem, posando rigidamente. A mulher tinha os cabelos loiro-brancos
presos debaixo do véu de renda, a saia dura do vestido tocando o chão. O homem vestia uniforme militar, com um
capacete pontudo debaixo do braço, de um tipo que Megan só tinha visto em filmes.

~ 97 ~
— São meus avós — revelou Ulrike, carinhosa. — Estavam casados há cinqüenta e sete anos quando vovó morreu. E
vovô morreu três meses depois. — Ela deslizou o dedo pelas outras fotos. — Aqui são eles de novo, na lojinha que
tinham. E aqui o meu pai... Ele e minha mãe ainda estão vivos. Moram em Styria, agora. E esta aqui, sabe quem é?
Megan olhou o retrato da jovem sorrindo timidamente em traje típico, os cabelos quase brancos num penteado dos
anos quarenta.
— É... é Eva, não é? — ela gaguejou. — A mãe de Erich?
— É — confirmou Ulrike. — Acho que tinha dezessete anos quando a foto foi tirada.
Era uma moça realmente linda, brilhando com a beleza de uma borboleta que desdobra as asas pela primeira vez. E,
pouco mais de um ano depois dessa foto, tinha sido seduzida por Horst von Kleist.
— Não os julgue — disse Ulrike docemente, notando a expressão rancorosa de Megan. — Não sabemos o que foi que
aconteceu. Todos eles já se foram e não podem mais se defender. Não temos o direito de julgar os mortos. Tudo o que
podemos... tudo o que podemos é viver honrosamente a própria vida. Olhe, Megan. Você acredita que esta magrinha
banguela aqui sou eu? Já fui magra, viu?
Mais tarde Ulrike levou Megan para o hospital, deixando-a no refeitório com uma xícara de café e a promessa de que
voltaria depois de dar uma olhada em seus pacientes. Sozinha, Megan olhou em torno. A sala era mobiliada com a
simplicidade despojada costumeira de hospitais, mas as janelas davam para um jardim interno cheio de rosas. Megan
notou, lá fora, uma velhinha numa cadeira de rodas. As paredes interiores tinham aquarelas suaves, mostrando cenas
alpinas, certamente fornecidas por Kurt. E, num canto, um piano de armário.
Megan olhou pensativa para ele enquanto tomava o café. Sentiu vontade de tocar. Mais do que vontade, necessidade
mesmo. Dias e dias sem praticar aumentavam a necessidade emocional de ter algum alívio. Desde que chegara à Áustria
só tinha tocado nas lições para Liesl. Sentou-se no banquinho e começou a tocar resoluta e intensamente.
O piano estava meio desafinado, as teclas meio emperradas e o som pastoso, mas Megan ignorou aquilo tudo,
esquentando-se aos poucos enquanto dedilhava os acordes tão usados no seu piano de coquetel do Paraíso Polinésio. Em
seguida, só de brincadeira, atacou alguns números clássicos de ragtime de Scott Joplin. Então parou um pouco, sem
inspiração quanto ao que tocar em seguida.
Mãos velhas, enrugadas, e manchadas tocaram seu barco.
Surpresa, Megan se voltou, deparando com a mulher na cadeira de rodas a seu lado.

~ 98 ~
— Bitte — disse a velhinha. — Não pare, por favor, eu estava gostando tanto da música!
— Claro — respondeu Megan, sorrindo gentilmente. — O que gostaria de ouvir? — perguntou com seu pouco alemão.
— Qualquer coisa — disse a velha recostando-se, satisfeita. Megan notou a expressão sofredora da doente e voltou
para o teclado, disposta a dar à velhinha alguma satisfação. Tocou uma valsa alegre de Brahms, depois o Rondo Turco de
Mozart, prosseguindo numa série de peças curtas, ligeiras. Com o canto dos olhos observava a velhinha, notando que ela
reagia melhor à música de dança, fechando os olhos enrugados e perdendo-se, talvez, em lembranças de quando era jovem
e passava a noite valsando entre os braços do amante.
Que egoísta eu sou, pensou Megan enquanto tocava, morro de pena de mim mesma, quando na verdade tenho saúde,
juventude e a vida inteira pela frente.
Continuou com ânimo renovado, buscando na memória valsas de Strauss e Lehár. Depois de algum tempo notou que
outras pessoas se agrupavam na sala: pacientes, duas enfermeiras, o padre. Pegavam um café e ficavam ouvindo com
evidente satisfação. Ela não se importava de tocar apenas as coisas mais leves de seu repertório. Gostava de dar prazer
com sua música, mas pensava: no íntimo será que eles sabem que sou apenas de segunda linha?
Quando parou finalmente, ganhou a recompensa dos aplausos e comentários satisfeitos em alemão.
— Ei, você é boa nisso aí! — disse Peter Swanson a seu lado.
— Peter! — disse ela, surpresa. — O que está fazendo aqui?
— Acredita que vim só para comer uns doces? — respondeu o rapaz, mostrando o pratinho. — Coma um. Este
hospital tem o melhor cozinheiro da cidade. Mas, na verdade, vim confirmar com Ulrike a nossa viagem até Salzburg
amanhã. Achei que seria melhor lembrar Riki, senão ela poderia marcar alguma cirurgia. Imagine a minha surpresa, ao
entrar aqui no meio de um concerto. Não tinha idéia de que você tocava tão bem, Megan.
— Obrigada, Peter — disse, olhando o doce de cerejas e creme que ele colocara diante dela. — Você não sabia que sou
pianista profissional?
— Não. Ninguém me contou. Você é ótima.
— Mas eu era melhor.
— É difícil acreditar.

~ 99 ~
— Acredite ou não, eu já toquei no grande circuito de concertos dos Estados Unidos. Quando era casada. Mas faz anos
que não estudo seriamente e agora só toco música popular num bar noturno. E, como acontece com qualquer outra coisa,
se a gente pára de trabalhar perde a habilidade.
— Podia voltar, se quisesse.
— Talvez. Mas sei que mesmo se eu trabalhar muito, com o melhor professor do mundo, nunca vou chegar ao alto.
— Isso é o que todos os músicos sempre sentem, não é? Beethoven chegou a escrever sobre isso.
— Ah, eu fico muito frustrada às vezes. Sinto dentro de mim esse... essa necessidade de tocar, mas ao mesmo tempo
sei que não vou conseguir nunca ser tão boa quanto desejaria. Eu daria a minha alma para ser boa de verdade, mas não é
só questão de falta de treino. Minhas mãos são pequenas demais.
— Para mim elas parecem perfeitas — disse Peter, pegando as mãos dela entre as suas.
— São pequenas para música mais avançada. Eu mal consigo alcançar mais de uma oitava! — Megan suspirou.
— Pessoalmente acho que você ficaria meio esquisita com mãos gigantescas. Mas talvez uma cirurgia plástica... — Ele
sorriu, brincalhão. — Ah, aí vem a pessoa certa para resolver o seu problema. Riki, acha que podia aumentar em dois
centímetros cada dedo de Megan?
Ulrike fez uma pausa quase imperceptível ao ver os dois de mãos dadas. Parecia cansada e pálida enquanto se
aproximava com o café e os doces.
— Do que é que está falando? — perguntou ela, sentando-se ao lado de Peter.
Cuidadosamente Megan recolheu as mãos, enquanto Peter puxava a cadeira para Ulrike, explicando a brincadeira.
— Riki — continuou ele —, passei aqui para a gente marcar a hora de ir para Salzburg amanhã.
— Eu gostaria muito de ir com vocês — disse ela, depois de hesitar um instante —, mas não sei se vou poder. Frau
Grünwald está para dar à luz e acho que vão ser gêmeos...
— Ora, Riki — disse Peter, irritado —, você é diretora do hospital, mas tem dois outros médicos aí perfeitamente
capazes de fazer o parto de Frau Grünwald. Você precisa descansar e se divertir um pouco.
— Claro, Peter. — Ela sorriu olhando para Peter com o que, em sua falta de charme, devia ser sedução. — Quer
mesmo que eu vá a Salzburg?
— Quero, Riki, muito mesmo — disse Peter, tomando a mão dela carinhosamente.

~ 100 ~
Salzburg ficava às margens do rio Salzach, aninhada num vale entre duas montanhas, a Kapuzinerberg e a
Mõnchsberg. Ulrike contou que a região era habitada desde pelo menos quinhentos anos antes de Cristo. A cidade era
cheia de vida, multidões de turistas com sua câmeras trotando para a casa onde Mozart nascera. Passaram pelas
catacumbas onde havia a tumba de São Virgílio. Ulrike ia apontando os lugares e explicando coisas enquanto Peter
procurava desesperadamente um lugar para estacionar. Finalmente os três atravessaram a pé a Kapitelplatz, passando pela
fonte de Netuno, e entraram na Dom Platz, a praça da catedral.
— A catedral de Salzburg foi o primeiro edifício barroco construído ao norte dos Alpes, e é um dos melhores do
mundo — explicou Ulrike enquanto Megan olhava, extasiada.
— É magnífica — murmurou ela. — Nunca pensei que as igrejas européias fossem assim tão grandes. Não dá para se
notar isso nas fotos.
— Cabem dez mil pessoas aí dentro — disse Ulrike. — Vamos entrar?
— Não, eu não vou, Riki — respondeu Peter, incomodado.
— Estou de calça comprida, Ulrike — desculpou-se Megan.
— Vocês se importam se eu entrar um momento? — suspirou Ulrike, tirando um lenço de cabeça da bolsa.
— Claro que não. Vá em frente, a gente espera.
Megan olhou em silêncio a enorme igreja com suas belíssimas portas de bronze que, surpreendentemente, eram
modernas. Peter parecia carrancudo.
— Ulrike é muito religiosa, não? — Megan perguntou timidamente.
— É — disse Peter. — E eu não sou. E sou divorciado, além disso. Às vezes, eu penso em... Droga, que diferença faz
isso? Acho que afinal de contas ela nem precisa de mim. Tem o trabalho e a igreja.
— Você não disse que tinha de tratar de negócios? — perguntou Megan, mudando de assunto.
— É. Tenho de dar uma passada para ver o tio Max. Quero ver se houve algum progresso com essa história do von
Kleist.
—O que é que seu tio faz? Além de mineração, claro.
— Muitas coisas — disse Peter, evasivo. — Já ouviu falar de Bachmann und Steiner Aktiengesellschaft?

~ 101 ~
— Não. — Megan riu. — E, mesmo que tivesse, nunca conseguiria pronunciar isso tudo.
— Quer dizer Bachmann, Steiner e Companhia. O Steiner já não existe mais, a parte dele foi comprada há mais de
vinte e cinco anos. Bachmann é o meu tio, Max Bachmann. — A voz de Peter tornou-se muito quente e afetiva. — Tio
Max é incrível. No fim da guerra, a Áustria estava um verdadeiro caos, a ponto de ser desmembrada como país. Max foi
dispensado do exército sem um tostão, sem casa, como a maioria das pessoas naquela época. O último parente dele vivo
era uma irmã, minha mãe, que se casou com um oficial americano e estava indo para os Estados Unidos com o marido.
Papai e mamãe quiseram que ele fosse junto, mas tio Max resolveu ficar e ajudar a reconstruir o país. Ele e um amigo,
Emil Steiner, fundaram uma firma de construção, trabalhando sozinhos de sol a sol, reformando edifícios destruídos na
guerra. Trabalharam muito e prosperaram. Depois de alguns anos tio Max quis diversificar um pouco e entrar na linha de
manufaturados, mas Steiner não concordou e tio Max comprou a parte dele. Pior para Steiner, porque meu tio provou ter
talento e visão e hoje é um dos maiores industriais do país.
— Nunca se casou?
— Não. Como a maior parte dos milionários, nunca precisou disso. Umas amigas dele tentaram se aproximar de mim,
provavelmente porque sou mais jovem e acham que vou herdar tudo. Mal sabem elas que o velho não vai me deixar nada
se não achar que eu trabalhei o suficiente para merecer. E, de qualquer forma, eu não quero nada mesmo. Gosto do velho e
quero que ele viva para sempre. Desculpe me alongar tanto nesse assunto Megan, mas é que...
De repente a praça se encheu de música. Um carrilhão em algum lugar tocava uma seleção de temas de Haydn e
Mozart em notas cristalinas que brilhavam no ar montanhoso. Megan olhou em volta, confusa, tentando descobrir de que
torre vinha o som.
— A torre Glockenspiel, aquela lá — apontou Peter. — É o palácio do bispo e toca um concerto três vezes por dia. São
onze horas. Riki deve estar voltando.
Ulrike voltou, desculpando-se pela demora, e os três continuaram a caminhar pela cidade. Ao chegarem ao
Festspielhaus, o grandioso edifício moderno construído como sede do Festival Mozart, foi Peter quem explicou as coisas.
— É um tributo da cidade ao seu filho favorito.
— Mozart nunca foi o filho favorito enquanto estava vivo — disse Megan, sentindo a enorme injustiça histórica quase
como uma afronta pessoal. — Ele teve de tocar para reis e imperadores, gastou a vida nisso e morreu pobre. Não se sabe
nem onde é que está enterrado, porque as únicas pessoas que acompanharam o enterro foram os coveiros!

~ 102 ~
— Calma, calma — disse Peter, surpreso. — Afinal o homem morreu há mais de duzentos anos.
— Desculpe — disse Megan, corando.
— Acho que já é hora de a gente começar a pensar num lugar para comer — disse Ulrike, sorrindo. — Senão fica tudo
cheio e vamos levar horas para ser servidos.
— Tem razão — disse Peter, pegando as duas pelo braço e levando-as para um pequeno restaurante próximo.
Depois do almoço, cruzaram o rio por uma pequena ponte de pedra.
— Desculpem, mas tenho de ir ver meu tio agora — disse Peter. — Não devo demorar muito. Riki, por que não leva
Megan até o Parque Mirabel? Encontro vocês lá assim que puder.
Ulrike conduziu Megan até o enorme parque, explicando que tinha sido construído como parte de Schloss Mirabel por
um bispo do século XVII, como presente à amante.
— É — observou Megan —, acho que o amor não respeita religião.
— Não mesmo — concordou Ulrike.
Pela expressão dela Megan percebeu que devia estar pensando em Peter. Sentiu vontade de sacudi-la. De sacudir Peter
também. Droga, será que eles não percebiam que o que sentiam um pelo outro era precioso e não podia ser desperdiçado?
Será que não sabiam que, quando duas pessoas se amam, tudo pode ser superado?
Mas, em vez de falar, Megan cerrou os dentes. Era a última pessoa no mundo a poder aconselhar sobre problemas
românticos...
Passearam mais de duas horas pelo jardim antes de Peter voltar. O rapaz chegou finalmente, parecendo alegre e
satisfeito.
— Desculpem a demora — disse —, mas levei mais de uma hora para poder entrar na sala dele.
— Você parece contente, Peter — disse Ulrike, sorrindo. — Boas notícias?
— É. De repente parece que o assunto com von Kleist vai ser resolvido. Tio Max acha que descobriu um jeito de
penetrar naquela muralha aristocrática. Finalmente vou poder trabalhar! Na verdade, vou ter de parar no lugar da pesquisa
em nosso caminho de volta, para ver umas coisas. Vocês se importam?
— Megan — perguntou Ulrike, levantando-se do banco —, você se importaria se fôssemos embora agora?

~ 103 ~
— Claro que não. Foi um dia maravilhoso e agradeço muito a vocês. Acho que já andei tudo o que era capaz. Além
disso, não estou acostumada com a altitude e me canso muito facilmente.
No banco de trás do carrinho esporte, Megan relaxou, fechando os olhos, enquanto corriam pela estrada até Kleisthof.
Peter e Ulrike conversaram baixinho em alemão enquanto ela descansava. Estava exausta, cheia de lembranças que nunca
mais esqueceria. Não tinha visto tudo o que queria na cidade de Mozart, mas assim que Kurt voltasse de Viena e ela
assinasse os papéis, estaria livre para deixar o schloss e continuar a viagem sozinha. Poderia ir onde quisesse, assistir a
concertos, óperas, recitais...
Mas por que aquela idéia não a excitava mais? Tinha vindo à Áustria pensando experimentar tudo o que pudesse da
fabulosa cultura do país. Por que de repente pensava menos na música e mais no temperamental e enigmático senhor do
schloss von Kleist?
Megan não percebeu que o carro tinha deixado a estrada e passava agora por uma estradinha na floresta. Peter parou o
carro debaixo de um carvalho, numa colina cheia de flores silvestres. Havia um trailer revestido de alumínio estacionado
ali, em contraste com a paisagem luxuriante.
— Levo um minuto só. Querem dar uma volta por aí?
Megan e Ulrike caminharam um pouco pela grama alta enquanto Peter trabalhava dentro do trailer, cheio de
equipamentos visíveis pela porta entreaberta.
A estradinha subia pela colina florida e perfumada e as duas caminharam até um carvalho muito antigo e frondoso.
— Que lugar lindo! — Megan suspirou. — Los Angeles não tem nada que possa ser comparado com isto.
— É — concordou Ulrike. — Vai ser uma pena esburacar tudo isto...
— Riki, não vamos começar com isso outra vez — disse Peter, chegando até elas. — Já chega ter de ouvir isso de von
Kleist. Concordo que a vista é linda, mas, que diabo, há mil vistas lindas por aqui. E lá da casa não vai nem dar para ver a
mina. É por isso que eu não entendo a resistência dele em permitir que a gente continue a escavação. Afinal, a colina faz
um L enorme em volta daquela montanha ali. São centenas de metros até o lago e a distância até o schloss...
— Schloss... lago? — disse Megan, encarando Peter. — Do que é que você está falando?
— Você deve estar desorientada porque viemos de direção diferente, mas estamos quase ao lado do lago que fica perto
do schloss.
Megan olhou em torno, perplexa, tentando reconhecer o lugar.
~ 104 ~
— Então... então esta deve ser a minha colina — disse finalmente.
— Sua colina? — exclamou Peter. — O que quer dizer?
— A herança de Erich, meu falecido marido — revelou Megan, hesitante. — É por isso que estou aqui. Kurt quer
comprar as terras de mim. Não tenho condições de ficar com o terreno e ele quer manter a propriedade intacta...
A voz de Megan morreu na garganta, observando as outras duas pessoas. Peter estava xingando baixinho,
violentamente e Ulrike sacudia a cabeça, os olhos sombrios de remorso.
— Muito bem, Riki — perguntou Peter, furioso —, o que acha do seu herói agora?
— Não sei o que pensar... — Ulrike suspirou.
— Do que é que vocês estão falando? — Megan perguntou, perplexa. — O que é que está havendo?
— Puxa, Megan, você não ouviu? Meu tio Max tem uma opção de direitos minerais nesta propriedade. Há muitos anos
já. Ele tem toda a certeza de que existe um enorme depósito de cobre debaixo desta colina. Agora que o preço do mineral
subiu ele quer os direitos dessa opção. Pode significar uma enorme fortuna para todos os interessados.
— Você não sabia da proposta Bachmann? — perguntou Ulrike suavemente, preocupada com o choque de Megan.
Megan sacudiu a cabeça, calada. Peter estudou o rosto dela, pálido, sem cor, exceto pelos cabelos vermelhos e o verde
dos olhos.
— Poderia me contar quanto foi que von Kleist ofereceu pela propriedade? — perguntou.
— Peter, acho que não temos o direito... — tentou dizer Ulrike.
— Que droga, Riki — interrompeu Peter —, é o meu trabalho! E se ele está tentando me enganar, eu quero saber.
— Na verdade — disse Megan, se controlando —, a quantia que Kurt mencionou me pareceu muito generosa. Tenho
certeza de que é bastante justa, sobretudo por causa das questões legais pendentes sobre o meu direito a...
— Que questões legais? — rugiu Peter. — Se ele está se propondo a pagar alguma coisa é porque deve saber que você
tem direitos. Quanto?
Megan contou.
Peter emudeceu. Tirou os óculos e esfregou os olhos, cansado. Recolocou os óculos no rosto.
— Megan — disse —, se encontrarmos o que esperamos aqui neste terreno, Kurt von Kleist vai ganhar três vezes mais
do que isso só no primeiro ano.

~ 105 ~
Megan voltou-se abruptamente. Estava rígida, sangrando por dentro. Caminhou depressa pela colina, sem saber onde
ia, atenta apenas ao diálogo que se repetia em sua cabeça como um disco quebrado: "Não há nenhuma possibilidade de eu
poder ficar com o terreno, não é?". E a resposta de Kurt, fria e dura: "Não, de jeito nenhum. É mais razoável aceitar o
dinheiro".
Megan tropeçou numa raiz e caiu. Apoiou-se nos calcanhares para limpar os joelhos das calças, mas sua mão tocou
uma florzinha na grama. Era igual à que tinha olhado naquele outro dia. Deslizou o dedo por uma pétala. Era macia e
quente, resistindo ligeiramente ao seu toque como a pele de um homem... Fechou o punho com tanta força que uma de
suas unhas rompeu a pele. Olhou a gota de sangue que se formou.
Peter chegou a seu lado e, pegando-a pelos pulsos, a pôs de pé.
— Riki! — ele chamou. — Pegue a maleta de primeiros socorros no trailer!
Ulrike limpou com cuidados profissionais o pequeno corte, usando um algodão embebido em álcool.
— Não é nada — disse Megan, despertando de seu transe ao sentir o ardor no corte.
— Só vai ser nada se for tratado direito, a tempo — disse Ulrike calmamente, examinando Megan para ver se estava
bem,
— Desculpe tê-la perturbado, Megan — disse Peter —, mas você tinha de saber o que está acontecendo. Bachmann
und Steiner vem tentando negociar com von Kleist há meses e só agora ele parece disposto a vender. Tivemos de ser
cuidadosos porque Kurt é muito influente nesta parte do país. Não fazíamos idéia de que havia outras pessoas com direitos
à propriedade. Sabíamos que tinha sido deixada para um outro irmão chamado Erich, mas quando ele morreu pensamos
que voltaria para a posse de Kurt. Não sabíamos da sua existência.
— Kurt levou meses para me encontrar — informou Megan.
— E esse tempo todo ele jurou que não queria vender porque desejava manter as terras intactas, que estava tentando
levantar dinheiro para comprar de volta a opção de tio Max. Mas na verdade ela estava era procurando eliminar os seus
direitos sobre a colina.
— Mas por que então ele me procurou, afinal? Eu nem sabia de nada. Ele podia ter feito o que quisesse.
— Mas, Megan, havia sempre o risco de você aparecer um dia e revelar toda a verdade. — Ulrike suspirou, perturbada
também. — Não. Apesar de ser doloroso, para mim, admitir isso, acho que Peter tem razão. Se Kurt conseguir convencê-
la a vender para ele os direitos da colina, vai ter um lucro enorme quando a mina começar a produzir. Que fim horrível

~ 106 ~
para um dia tão gostoso! — Ulrike olhou o relógio. — Peter, você podia me deixar no hospital? Ainda é cedo e eu quero
dar uma olhada em alguns pacientes.
— Claro, Riki. Megan e eu temos algumas coisas a discutir também.
— Cuide de Megan para mim — disse Ulrike quando pararam diante do hospital St. Elisabeth. — Ela parece tão
confusa...
Peter apertou a mão de Ulrike e ela acenou para Megan. Mas Megan nem percebeu. Estava olhando fixamente a torre
da igreja, banhada na luz rosada do entardecer.
— Peter, onde é que os von Kleist são enterrados? — ela perguntou de repente.
— O quê?
— Onde é que os von Kleist são enterrados? Erich está em Nova; York, mas acho que o resto da família deve estar
aqui. Quando passei pelo cemitério não vi nenhum túmulo de von Kleist. Onde é que eles estão?
— Como é que eu vou saber? — Peter sacudiu a cabeça. — Como eles são a aristocracia local, suponho que devam ter
alguma espécie de cripta debaixo do altar da igreja, só para os membros da família.
— Ótimo — disse Megan, sombria. — Fico contente em saber que eles não se misturam com os outros, com a gente
decente. Os von Kleist são mentirosos e desonestos. Todos eles, todos, até o último.

CAPÍTULO 8

Megan caminhava, inquieta, pelo quarto. Sentia-se bem depois do banho quente com sais perfumados, a pele nua
brilhando rosada acima da calcinha rendada que vestia. Quando alguém bateu à porta ela agarrou rapidamente o xale novo
que tinha acabado de comprar e se enrolou nele.
— Quem é? — perguntou, em alemão.
— É Greta, Frau Megan — disse a criada, empurrando a porta com o quadril e entrando com a bandeja do jantar. A
moça falava devagar para que ela entendesse. — Frau von Kleist pede para desculpar, mas tem de jantar no quarto hoje,
porque a sala de jantar está sendo arrumada para a ceia do baile.

~ 107 ~
— Está bem — disse Megan, sentando-se à mesa enquanto a empregada levantava o pano que cobria a comida.
— Tudo bem? — perguntou a moça.
— Claro. Diga ao cozinheiro que isto parece ótimo — ela respondeu.
A comida parecia perfeita, como sempre, mas Megan tinha certeza de que engasgaria ao menor bocado. Não tinha
comido quase nada nos últimos dias, depois daquela tarde terrível em que descobrira a verdade acerca de sua herança.
Tinha voltado de Salzburg num estado de espírito que oscilava entre a depressão e o ódio, a indignação e o desespero. Que
tola tinha sido, que cega! Todos deviam saber, até mesmo Adelaide, que era apenas uma adolescente. Ela bem que tinha
tentado avisá-la, mas por respeito à família não ousara falar diretamente. Se tivesse dado ouvidos ao aviso da jovem teria
poupado a si mesma toda a dor...
Dor? Não, isso nunca. Era imune aos von Kleist, agora. Nunca mais teriam nenhum poder sobre o seu coração. A dor
que sentia no peito era apenas de indignação.
Mas o que faria agora? Na noite de seu retorno tinha descido para o jantar pronta a enfrentar Gabrielle. Mas ao ver a
mulher tão austera à mesa da grande sala, com Liesl e Adelaide ao seu lado, tinha entendido que não devia dizer nada. A
única pessoa a ser acusada estava agora fora de seu alcance, em Viena. Até o momento de encontrar Kurt, ia fingir que não
sabia de nada.
Olhou a bandeja de jantar. Tentou comer um pouco de salada. Gabrielle e Adelaide tinham andado ocupadas demais
para perceber sua falta de apetite, mas a cozinheira, que lhe tinha sido apresentada por Liesl numa das lições de alemão,
notou que os pratos da convidada voltavam sempre cheios. Tinha chegado a preparar uma imitação de hambúrguer, mas
Megan havia apenas provado, num esforço para se alimentar.
Em Los Angeles, Dorothy a forçava a comer, ameaçando mesmo fazê-la comer à força se fosse o caso. Mas a amiga
estava agora do outro lado do mar e as olheiras arroxeadas debaixo dos olhos de Megan tornavam-se dia a dia mais
pronunciadas, enquanto ela esperava pela oportunidade de enfrentar Kurt.
Não tinha falado com ele desde seu retorno de Salzburg. Kurt telefonara duas vezes, mas ela havia inventado desculpas
para não atender ao telefone. Não tolerava a idéia de ouvir aquela voz sedutora perguntando inocente se ela estava bem.
Sabia que ia ter de enfrentá-lo para revelar o que sabia, mas temia por esse momento. Tinha discutido a situação com
Peter. Ele achava que devia estar ao lado dela para o confronto, mas ela recusara a ajuda. Pelo menos dessa vez ia
enfrentar um von Kleist sozinha.

~ 108 ~
Para evitar maiores contatos com Gabrielle e Adelaide, tinha passado a maior parte do tempo com Liesl. Adorava a
companhia simples e pouco exigente da menina, que parecia adorar estar com ela. Com a permissão da tia, tinham sido
levadas por Karl Weber, o chofer, até Heilegenblut, uma das mais encantadoras vilas dos Alpes, no sopé do Grossglockner,
o pico mais alto da Áustria. Passearam pela igreja gótica do século XV, com sua alta torre e agulha reproduzindo os picos
circundantes. Liesl tinha lhe contado que a cidade tomava seu nome da lenda medieval de São Briccius, que supostamente
tinha morrido ali, levando consigo um cálice com o sangue sagrado de Cristo, trazido de Constantinopla.
Ainda cheia de lembranças, Megan olhou a comida e desistiu de jantar. Levantou-se, tirou o xale dos ombros e
colocou-o sobre a cama. Era lindo, com franjas longas e bordados de flores e corações típicos do Tirol, em branco. Tinha
comprado um igual para Dorothy, só que azul-marinho, em Kleisthof, no dia anterior, quando fora procurar um presente
para Liesl.
Ao cruzar a sala deparou com seu reflexo, quase nua, no grande espelho de corpo inteiro. Contra o fundo rosado da
decoração do quarto ela parecia uma litografia de Toulouse-Lautrec: cabelos vermelhos presos em desalinho no alto da
cabeça, pernas finas e torneadas em meias de seda preta e a pele incrivelmente branca. Tendo crescido na Califórnia, onde
a regra geral era um bronzeado profundo, Megan nunca tinha valorizado sua compleição tão clara, descobrindo muito
cedo que qualquer tentativa de bronzeamento resultava sempre em queimaduras dolorosas. Felizmente sua música exigia
mesmo que ficasse longas horas dentro de casa, permitindo-se nadar nas águas quentes do Pacífico apenas no fim da tarde.
Assim, todo o seu corpo era de cor uniforme, sem marcas, os seios cheios cor de creme com apenas um toque rosado nos
bicos.
Satisfeita com o próprio corpo, Megan pegou o vestido longo, negro, do guarda-roupa, contente por saber que sua pele
uniforme e lisa não estragaria o efeito do enorme decote que deixava à mostra suas costas, até a cintura. Tinha trazido o
vestido por insistência de Dorothy, que achava que ela devia estar preparada para alguma ocasião mais formal. Mas
Megan sabia que a amiga tinha insistido somente porque o vestido era sensual e ela se preocupava pela prolongada
ausência de homens na vida de Megan.
Mas, esta noite, aquele vestido provocante era uma espécie de munição para a batalha. A batalha contra o senhor feudal
que a havia seduzido com seu charme, que havia mentido com seus beijos. Megan não tinha nem roupas, nem jóias que
pudessem rivalizar com as das convidadas milionárias, mas pela primeira vez confiava em seu próprio poder. Sabia que
brilharia com juventude, beleza e uma fervorosa determinação de fazer Kurt von Kleist lamentar ter tentado enganá-la.
— Tia Megan, posso entrar? — perguntou Liesl, com sua vozinha, batendo na porta.

~ 109 ~
— Claro, querida — respondeu Megan, sorrindo. Aquela era a única von Kleist em quem confiava.
Liesl irrompeu no quarto usando o mesmo vestido rosa que usara na chegada de Megan. Sacudia o braço direito no ar
fazendo tilintar os berloques da pulseira brilhante.
— Olhe, tia Megan, olhe o que o meu pai trouxe de Viena para mim!
— Que pulseira linda! — disse Megan, pegando o braço da menina.
— Olhe — disse Liesl —, tem uma cabeça de cavalo, um pianinho e uma letra E, que é a inicial do meu nome. Tem
também um patins e...
Enquanto ouvia a descrição, Megan sentiu dissipar-se a pena dolorida que tinha sentido pela menina, de manhã. Ao
descer para o café, encontrara Liesl sozinha no salão com um buquê de rosas brancas no colo, esperando por Karl que
devia levá-la à missa. Era dia de Santa Elisabeth, onomástico dela e da mãe, e aparentemente ninguém se preocupara em
acompanhar a menina até a igreja. Gabrielle continuava ocupada com os preparativos, Kurt ainda estava em Viena e
Adelaide tinha desaparecido. Megan havia sentido o coração doer ao saber da solidão da criança e se oferecera para ir
junto. E, na igreja, ao ver uma lágrima rolar pelo rosto de Liesl, na hora de arrumar as rosas na cripta dos von Kleist,
Megan tinha baixado a cabeça, para esconder debaixo da aba do chapéu a raiva que sentia daquela família.
Logo depois da missa, Megan tinha dado a Liesl seu presente. Um disco de rock que a menina mencionara. Não era lá
muito imaginativo, mas não tinha podido providenciar nada melhor.
Na hora do almoço Gabrielle se juntara a elas, perguntando por Adelaide, que continuava sumida. E só muito mais
tarde Megan soubera da chegada da moça, ao ouvir uma discussão em altos brados.
Ao entardecer uma enorme agitação na frente do schloss lhe revelou que Kurt estava chegando e, subitamente relutante
em enfrentá-lo, ela correu para seu quarto, deixando Liesl perplexa, sem entender nada.
A menina agora estava à sua frente, terminando de numerar e descrever os berloques da pulseira.
—Vati me disse que ficou muito triste de não poder chegar a tempo para ir à missa com a gente hoje de manhã. Ele
mandou agradecer a você por ter ido comigo e disse que espera que eu tenha sido uma boa companhia para você enquanto
ele esteve fora.
— Você foi ótima — disse Megan, sincera.
— Por que você fugiu daquele jeito quando ele chegou hoje à tarde?

~ 110 ~
— Bom... — Ela ia ter de inventar razões. — Eu tinha de me preparar para a festa. Lavar o cabelo, fazer as unhas, me
vestir. Essas coisas.
— Queria que você pusesse aquele vestido da outra noite — disse a menina, estudando Megan. — Aquele que é verde,
roxo e azul. Eu gostei dele.
— Eu gosto dele também, Liesl, mas este aqui é mais chique para a festa.
— Ah, mas esse aí não tem nada nas costas. É preto. E você fica toda... toda balançando aqui na frente!
— É assim que eu sou "aqui na frente" — disse Megan.
— Vau disse que logo, logo, eu vou começar a me des... desenvolver. — A menina olhou o próprio peito, ainda plano.
— Disse que daqui a uns dois anos eu vou crescer aqui. E que daí ele vai ter de usar uma das pistolas do tio Willi para me
defender dos rapazes.
— É verdade — concordou Megan, olhando-se no espelho e arranjando um cacho solto e provocante sobre a orelha.
— Ainda não está pronta? — Liesl suspirou. — Quero ir lá dar uma olhada no salão. Tia Gaby não me deixou entrar
antes porque achou que eu ia atrapalhar. Mas agora que está tudo pronto, eu quero ver o salão antes das pessoas chegarem.
Papai disse que eu posso ficar acordada até meia-noite. Imagine! Até meia-noite. E que se eu for muito, muito boazinha,
ele deixa eu tomar uma taça de champanhe. Vamos, tia Megan. Ainda não está pronta? Eu não quero ir sozinha.
— Está bem, Liesl. — Megan riu, deixando que a menina a puxasse para a porta.
Quando Megan e Liesl se aventuraram timidamente pelas maciças portas que se abriam no topo da escadaria, no
terceiro andar, a primeira impressão era de que o salão de baile coruscava de luzes.
Além das janelas arqueadas o sol já se punha entre as montanhas, mas ali dentro quatro enormes candelabros
suspensos, de vidro veneziano, brilhavam em mil luzes, refletidas no chão que tomava toda a extensão da mansão e nos
imensos espelhos com molduras brancas e douradas que dominavam as paredes.
— Não é bonito? — murmurou Liesl, com reverência quase religiosa.
— Maravilhoso! — suspirou Megan.
Criados uniformizados andavam de um lado para outro, cuidando dos últimos preparativos, mas Megan não os
reconhecia.

~ 111 ~
— Todo ano tia Gaby tem que contratar criados extras — revelou Liesl. — Durante mais de uma semana, quatro
mulheres trabalharam sem parar para limpar todos os copos que estão lá nas mesas. Eu ouvi o papai discutindo com ela
por causa dos gastos.
— Você não devia me contar essas coisas — disse Megan, olhando a menina. — Isso é assunto de seu pai e Gabrielle,
só.
Continuaram o passeio junto à parede do salão, temendo sujar o chão tão brilhante. Foram até o palco da orquestra,
todo ornamentado com rosas.
— Que flores lindas! — disse Megan. — São do jardim?
— Não — contou Liesl. — Todo ano tia Gaby manda buscar as flores em Salzburg porque as do nosso jardim têm
cabo muito curto. Os músicos também são de Salzburg. Eu ouvi tia Gaby falar que queria trazer uma orquestra de
Munique, mas meu pai não deixou. Disse que queria que sobrasse algum dinheiro para o hospital.
— Liesl! — repreendeu Megan.
— O que é que eu posso fazer se escuto as discussões? — justificou-se a menina. — Eles gritam. Você ouviu a tia
Gaby brigando com Adelaide quando ela chegou tarde hoje? Adelaide disse que tinha ido ao cinema em Salzburg e tia
Gaby disse que ela não passava de uma não-sei-quê... Uma palavra que eu nunca tinha ouvido. Disse que ela não merecia
vir ao baile e ia ficar trancada no quarto. Adelaide ficou furiosa! Acho que a tia Gaby não brigava tanto quando tio Willi
era vivo. Eu gostava dele, mas não lembro direito. Eu era muito pequena.
Antes que Megan pudesse responder alguma coisa a menina já tinha mudado de assunto.
— Não é lindo o chão? Olhe como brilha.
Ela soltou a mão de Megan e saiu correndo para escorregar no chão polido, rindo satisfeita, os cabelos loiros voando.
Megan ficou olhando, enternecida.
De repente, sentiu um dedo deslizar por suas costas, de alto a baixo e espinha acima. Virou-se com raiva.
— Desculpe. — Kurt sorria, nada arrependido, os olhos azuis brilhando. — Foi uma tentação irresistível. A culpa é sua
por usar um vestido assim... Está linda!
— Algo que eu tirei do fundo do baú — disse Megan irônica, controlando-se o mais que podia. Tornou a olhar o salão
onde os primeiros casais já avançavam. — Nada como o que eles estarão usando.

~ 112 ~
— Mas todas as mulheres nesta festa trocariam alegremente de lugar com você, apesar de todas as jóias e vestidos
assinados. — Ele pegou uma linda rosa amarelada e delicadamente colocou-a no decote frontal de Megan, detendo os
dedos ali um pouquinho. — Algo mais belo que qualquer jóia. E combina com o seu colorido.
Megan baixou a cabeça e olhou a rosa, que parecia brilhar contra o preto do vestido, perfumada entre seus seios. Kurt
suspirou a seu lado.
— Meu Deus, como senti a sua falta — disse.
Megan tornou a olhar para ele. Kurt parecia ter crescido ainda mais nesses poucos dias e ela não pôde deixar de notar
mais uma vez como ele era atraente. Mil palavras cruzaram sua mente. Tinha ensaiado todas as frases, repetidamente,
durante as longas noites insones. Palavras duras, rudes, acusadoras. E agora, que finalmente estava diante dele, ficava
muda. Os olhos verdes se arregalaram, cheios de angústia, e ela pensou, desesperada, oh meu Deus, deixei que
acontecesse de novo.
— O que houve, Megan? — Kurt perguntou.
— Preciso falar com você. Mas não aqui — disse.
— É. Eu também tenho coisas a discutir com você. Mas não aqui. — Ele sorriu calidamente para ela.
Ele desviou os olhos, o sorriso ainda cordial, mas infinitamente mais frio. Os convidados chegavam até eles e um
homem gordo, mal cabendo dentro das roupas evidentemente caras, se aproximou, arrastando atrás de si a esposa num
vestido azul que teria ficado lindo em alguém vinte anos mais jovem e trinta quilos mais magra. O homem fez
apresentações em francês, que Megan não conseguiu entender inteiramente.
— Monsieur lê comte — suspirou a mulherzinha, apertando a mão de Kurt.
— Enchanté, madame — ele respondeu, alçando um pouquinho as sobrancelhas e apresentado Megan em seguida
como sua belle-saeur, que ela sabia querer dizer cunhada.
— O que foi? — perguntou Kurt quando o casal se afastou. — Você de repente ficou pálida.
— Desculpe, é que... Aquela mulher... ela o chamou de conde — Megan gaguejava. — Claro que tinha ouvido todos
falarem de Graf von Kleist, mas não tinha feito o paralelo...
— Esqueça. — ordenou Kurt. — O título já não tem mais nenhum significado. Desde os tempos de meu avô. Eu nunca
o uso.
— Mas aquele casal...
~ 113 ~
— O homem era chofer de caminhão em Lyon e enriqueceu quando conseguiu formar uma frota que trabalha em todo
o Mercado Comum. Deve ter sido uma satisfação para ele apresentar a mulher a um verdadeiro aristocrata em carne e
osso. Mas ele poderia comprar mais de dez títulos como os dos von Kleist com o dinheiro que tem. Não é que eu despreze
os novos-ricos. Nos dias de hoje, com a inflação galopante e o fim das fortunas familiares, eles são os únicos a
prestigiarem acontecimentos como este baile... Mas só Deus sabe por quanto tempo mais. Pode notar que só o pessoal
mais velho parece se interessar e gastar dinheiro na entrada.
Durante algum tempo ele olhou o vasto salão luxuoso em silêncio, perdido em pensamentos.
— Desculpe, Megan — disse depois de algum tempo, pondo-se de pé. — Não queria deprimi-la. Vai ter de me dar
licença. Gabrielle está me fazendo sinais histéricos de que a nossa convidada de honra já chegou.
— Ulrike?
— Claro — disse Kurt, afastando a surpresa. — Você já a conhece, eu tinha esquecido. Ulrike Müller é uma mulher
admirável. — Ele olhou a figura sólida da médica em seu vestido preto simples e colar de pérolas, percebendo com olhos
ferozes o homem ao lado dela. — Mein Gott, quem é aquele ao lado dela?
— Parece Peter Swanson — disse ela, lembrando-se de tudo que tinha sumido momentaneamente de sua cabeça. — Eu
o conheci em Kleisthof, também.
Depois disso, as memórias que Megan guardaria do baile seriam confusas. Ela saiu do lado de Kurt e avançou pela
multidão até onde estavam Peter e Ulrike, conversando com Gabrielle em seu resplandecente vestido amarelo. Megan
cumprimentou os amigos efusivamente e ficou ao lado deles, ignorando resolutamente os olhares irados de Gabrielle e as
atenções de Kurt. Quando ele levou Ulrike para o meio do salão para abrir o baile, Megan aceitou alegremente o convite
de Peter e flertou descaradamente durante todo o tempo em que esteve entre os braços dele. Ao trazer Ulrike de volta, toda
nervosa, Kurt deu um passo na direção de Megan, com uma expressão pesada, mas antes que pudesse tirá-la ela já
rodopiava nos braços de um homem de cabelos grisalhos, que mal podia acreditar na própria sorte de estar dançando com
a moça mais bonita da festa.
Depois dele Megan perdeu a conta dos homens com quem dançou e flertou. Nem conseguiria descrevê-los depois. A
música era boa, apesar de um tanto repetitiva. A pequena orquestra de cordas parecia se concentrar, talvez
inevitavelmente, em valsas de Strauss e Lehár. Liesl tinha se reservado o lugar de viradora de páginas para o pianista.
Mais de um dos pares de Megan pareceram fascinados ao sentirem a mão pousada nas costas nuas dela e, rodopiando
loucamente pelo salão, ela teve de afastar um grande número de convites, usando quase sempre o recurso de não falar
~ 114 ~
alemão. Sabia que estava agindo como uma louca em sua tentativa de evitar Kurt e, numa das vezes que passou dançando
por Ulrike, percebeu que a amiga médica a olhava com preocupação profissional. Mas Megan não podia parar. Não podia
se permitir relaxar a tensão porque então o pensamento que rondava sua mente acabaria tomando forma: como antes já
acontecera, ela agora tombava vítima do charme devastador, profundamente desonesto de Kurt. Mais uma vez ela havia se
apaixonado por um von Kleist.
Quando a orquestra fez sua pausa, à meia-noite, Megan finalmente parou um pouco. Estava cansada e com calor,
tomando uma taça de champanhe colocada em sua mão pelo homem que a convidava agora insistentemente a visitar sua
vila em Gastein, sem despregar os olhos da rosa amassada entre seus seios. Kurt de repente interrompeu a conversa, de
mãos dadas com Liesl, morta de sono.
— Desculpe-me — disse ele suavemente —, mas minha filha quer se despedir da tia.
Antes que Megan pudesse protestar, Kurt já a havia arrastado para fora do salão, até o segundo andar. Lá, entregou a
menina já quase adormecida a Greta, que a levou para o quarto.
Os dedos poderosos dele apertaram o pulso de Megan, forçando-a a descer com ele para o primeiro andar. Os
convidados se encaminhavam para a sala de jantar onde o suntuoso bufê estava sendo servido naquele momento. Kurt
sorria amavelmente a todo mundo, cumprimentando as pessoas com seu charme fácil e imediato, mas Megan estava com
medo de que seus ossos fossem se partir debaixo da pressão da mão dele. Tinha de correr para acompanhar o passo dele
enquanto se encaminhavam para o escritório. Ela sentia que, se tropeçasse e caísse, ele não parada, mas simplesmente
continuaria, na mesma velocidade, arrastando-a pelo chão brilhante. Quando ele finalmente trancou a porta do escritório,
Megan estava absolutamente sem fôlego.
Megan ficou de pé no meio do tapete persa daquela sala onde o havia encontrado pela primeira vez. Kurt a examinou
com seus olhos azuis frios e desdenhosos. Ela sentiu-se, de repente, agudamente consciente do próprio aspecto. O cabelo
caía em fitas de fogo, grudando-se à testa úmida de suor e a rosa que ele lhe tinha dado jazia, amassada pelo abraço de mil
homens, entre as dobras do decole. Kurt a olhava silenciosa e intensamente.
— Preciso de um drinque — disse ele, voltando-se impetuosamente para o bar. — E acho que você precisa também. O
que quer?
— Oh, qualquer coisa, contanto que não seja...
— Rum — concluiu Kurt. — É, eu me lembro.

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Ele deu a ela uma dose de bourbon, recostou-se na ponta da escrivaninha e indicou a poltrona de couro com um gesto
irritado.
— Pelo amor de Deus, Megan, pare de se agitar e sente-se. Está de pé desde que o baile começou.
— Você notou? — ela perguntou, maldosa e irônica.
— Claro que eu notei. Todo mundo notou. — Ele terminou o drinque e bateu o copo na mesa. Com os maxilares
contraídos acendeu um cigarro. — E só posso concluir que seu extraordinário comportamento desta noite é a maneira, não
muito sutil, de me dizer que descobriu tudo sobre a proposta Bachmann.
Megan sentou-se no estofamento macio da poltrona e tomou um gole de seu drinque. Estava começando a se sentir
muito cansada e os pés doíam nas sandálias de saltos altos.
— Peter me contou há vários dias, quando fomos a Salzburg.
— E esse tempo todo você não mencionou nada a Gabrielle.
— Achei que era um assunto entre mim e você — Megan respondeu. — Não queria discutir com ninguém mais.
— Mas obviamente discutiu-o com o sobrinho de Max Bachmann! — Kurt disse, irritado. — E depois de ouvir a
versão bem tendenciosa, dele, você concluiu que eu sou um avarento senhor feudal, decidido a roubar a herança de uma
pobre viúva morta de fome.
— Não acha que está sendo meio melodramático? — perguntou, irônica.
— Meu Deus — exclamou Kurt —, o que pode ser mais melodramático que a maneira como você está se comportando
hoje, se exibindo como uma bacante numa orgia romana...
— Ora, vamos, Kurt — disse ela ficando de pé num salto, os olhos verdes brilhando. — Pare com isso. Com quem
acha que está falando? Caso tenha se esquecido, eu sou a parte ofendida nessa negociata barata.
— Negociata barata! — repetiu ele depois de olhá-la durante um longo momento. — Claro que deve parecer assim
mesmo a você. Eu não soube conduzir esse negócio desde o início. O que não é comum na minha maneira de agir.
Qualquer pessoa que tenha trabalhado comigo em Viena pode lhe informar que geralmente sou bastante astuto em meus
negócios. Acho que desta vez houve muita coisa emocional perturbando o meu julgamento. Eu esperava que quando me
conhecesse melhor... Ajuda alguma coisa eu dizer que nunca pretendi enganá-la? Que nem por um momento pensei em
lucrar com a sua propriedade, autorizando Max Bachmann a escavar a mina? Acreditaria se eu dissesse que meu único
propósito é comprar de volta a opção para manter a propriedade intacta?
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— Se pensa assim — perguntou Megan —, por que é que vendeu a opção, afinal?
— Não fui eu — disse Kurt. — Foi meu pai. Ele precisava de dinheiro. O schloss não foi sempre assim como você o
vê hoje. Quando eu era criança, era bem diferente. Bonito, claro, mas caindo aos pedaços. Meu pai resolveu mudar isso.
Dizia que a honra dos von Kleist assim o exigia. Resolveu restaurar o desgaste dos séculos no exterior do edifício e
remodelar e modernizar o interior. Tem idéia de quanto custa um projeto desses?
Megan sacudiu a cabeça negativamente.
— Meu pai também não tinha — continuou Kurt secamente, com voz cansada. — Depois de ter acabado com todos os
títulos e papéis que possuía, vendeu as jóias de minha mãe, algumas das quais tinham sobrevivido à Revolução Francesa.
Mas nem assim foi suficiente. Então ele permitiu que Max Bachmann comprasse uma opção de direito às reservas
minerais da colina. Ele não esperava nunca que o velho Max tentasse exercer seus direitos. A seus olhos era apenas numa
maneira aceitável de um aristocrata tomar dinheiro emprestado.
Megan nada disse. Relaxou na cadeira e olhou para Kurt. As roupas formais dele, com camisa de babados e gravata
branca, pareciam impróprias, detrás da grande mesa de nogueira. Era a primeira vez que ele parecia estar em desacordo
com o ambiente que o rodeava. Quando se curvou para apanhar uma pasta no chão, uma mecha de cabelos caiu-lhe na
testa e ele a afastou, impaciente. Parecia cansado, vulnerável, o rosto marcado por rugas que Megan não se lembrava de
ter visto antes. Ela sentiu o coração doer de amor por ele. Desejava-o, queria envolvê-lo nos braços e repousar aquele
rosto cansado entre seus seios, afastar aquela fadiga...
— Olhe — disse Kurt, estendendo a ela a pasta —, este é o contrato que os advogados redigiram. Gostaria que pelo
menos desse uma lida, antes de tomar qualquer decisão. Está em alemão, é claro, mas tem aí uma tradução para inglês.
Acho que conseguirá entender. A soma oferecida é razoável para terras não cultivadas desta região. Não tenho condições
de lhe pagar o que Bachmann poderia. Eu já tive de dispor de alguns dotes de família para poder levantar essa quantia
oferecida. Por favor, Megan, faça-o. Por mim. — Ele sorria, quase implorando.
Megan se enrijeceu. Seus olhos verdes perderam toda a expressão e, quando ela se pôs de pé, estava fria.
— O que foi que aconteceu? — perguntou Kurt. — O que foi que eu disse de errado?
— "Por favor, Megan, faça-o por mim!" — Ela riu. — Ainda posso ouvir Erich dizendo essas mesmas palavras, com
esse mesmo sorriso, pedindo que me casasse com ele.
— Seria bom você lembrar que eu não sou Erich — disse Kurt endireitando o corpo, muito alto.

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— Não mesmo? — ela perguntou.
Encararam-se. O clima da sala era pesado, elétrico, cheio de tensão. Alguém bateu à porta. Kurt fez um sinal para
Megan ignorar a interrupção. Bateram de novo. Resmungando maldições em voz muito baixa, Kurt foi até a porta e abriu-
a. Lá estava Gabrielle em seu vestido amarelo, a mão já levantada para bater de novo. Os olhos cor de avelã passaram de
Kurt para Megan e o rosto maquiado demonstrou surpresa ao ver a pasta na mão de Megan.
— Os convidados esperam por você — Gabrielle disse simplesmente.
— Claro, já vou indo — respondeu. — Vem também?
— Não — Megan respondeu. — Acho que já... dancei o suficiente. Vou para o meu quarto.
— Muito bem. — Ele esperou que ela passasse pela porta, trancando-a em seguida. — Vai estudar a minha oferta?
Megan não respondeu. Olhou para Gabrielle, mas a mulher estava impassível.
— Vamos, Kurt — disse Gabrielle, pousando a mão possessivamente no braço dele. — Temos de voltar para o salão.
— Megan, vai estudar a minha proposta? — repetiu Kurt, sacudindo o braço para livrar-se da mão da cunhada mais
velha.
Ela olhou para Kurt e Gabrielle, o homem que amava sem esperanças e a mulher que às vezes temia, dois arrogantes
aristocratas juntando todo o seu poder contra ela. Mas estava decidida.
— Ah, vou ler o contrato, sim, Kurt — disse suavemente —, mas se fosse você não esperaria muita coisa. Não espera
de fato que eu entenda o seu enorme desejo de manter a propriedade intacta, não é? Afinal de contas, eu sou apenas uma
caça-dotes americana.
Megan jogou o xale novo sobre os ombros, desnudos pela camisola verde-água. Deslizou para o escuro da sacada que
conectava todos os quartos daquela ala e caminhou para as escadas que davam para o jardim. A enorme mansão estava
finalmente em silêncio, os últimos convidados tendo partido cerca de duas horas antes.
A grama macia e úmida de orvalho molhava a barra da camisola e picava agradavelmente seus pés nus. Arranjou os
cabelos fartos e longos, caindo soltos nas costas. A lua cheia brilhava detrás das montanhas e refletindo-se no pequeno
lago.
O que haveria no luar refletido na água que parecia tão calmo e tranqüilo? Um crítico tinha dito uma vez que os
arpejos do adágio da Sonata em Dó Maior de Beethoven pareciam os raios de luar refletidos no lago Lucerna. E desde
então a sonata era chama Sonata ao Luar. Megan sempre adorara aquela música. Era a que tinha tocado em seu primeiro
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recital, aos dez anos, e ainda se lembrava da satisfação que sentira ao terminar, recebendo os aplausos da platéia, a mãe
com os olhos cheios d'água...
— Megan — chamou a voz de Kurt, atrás dela.
— Achei que estavam todos dormindo — disse Megan muito assustada, fechando mais o xale.
— O dono da casa tem que ficar acordado para ver se está tudo fechado e em ordem — disse ele, seco. — O que foi?
Não consegue dormir?
— Tentei, mas acabei desistindo.
— Eu também estou agitado.
Ela o olhou, incapaz de discernir a expressão dele na penumbra pesada. Ele tinha a camisa aberta, solta, como se a
tivesse despido e tornado a vestir, sem se importar em abotoá-la. Pela abertura Megan via o peito sombreado de pêlos
pretos. Kurt oscilava ligeiramente. De cansaço, ou talvez tivesse bebido. Nenhum dos dois falava nada e finalmente
Megan resolveu quebrar o silêncio.
— O baile foi bem? — perguntou.
— Se pergunta pelos convidados, a resposta é sim — ele respondeu —, mas se quer saber se fizemos muito dinheiro
para o hospital, a resposta é não. Quando chegarem todas as contas, será um alívio se estivermos quites, pelo menos.
— É uma pena, depois de todo o trabalho que deu.
— Gabrielle foi quem fez quase tudo sozinha — completou Kurt. — Ela e Adelaide. Nunca consegui fazê-la entender
que a inflação afeta a todos. Até os von Kleist. Que até mesmo nós temos de economizar. — Ele tragou profundamente o
cigarro. — Gabrielle ainda não sabe, mas este foi o último grande baile de caridade dos von Kleist. O evento não é mais
lucrativo e Ulrike e eu já demos os primeiros passos para colocar o hospital sob o controle do Serviço Nacional de Saúde.
— Não vai ficar triste de desistir do hospital construído em memória de sua esposa?
— A memória de Elisabeth — disse ele, sorrindo da preocupação dela — viverá eternamente na filha dela e em meu
coração.
— Você deve tê-la amado muito — disse Megan com raiva de si mesma, por sentir ciúmes da mulher morta há tanto
tempo.
— Amei, sim — ele respondeu. — Elisabeth foi o amor da minha juventude. Nós nos conhecemos quando ainda
éramos estudantes, em Cambridge, e poderíamos ter sido felizes para sempre. Só não tivemos foi o "para sempre". Há sete
~ 119 ~
anos eu construí o hospital como penitência por ainda estar vivo enquanto ela jazia na cripta da família, debaixo do altar
da igreja. Mas, agora, acho que já é hora de eu continuar a viver.
Fez-se uma pausa. Kurt olhava o luar refletido no lago.
— Leu o contrato? — perguntou de repente. — Conseguiu entender?
— Dei uma olhada por cima.
— Entende por que eu quero aquela terra?
— Não, não entendo —ela respondeu, firme. — Se deixar Bachmann und Steiner levar adiante o projeto, poderá
ganhar muito dinheiro. Dinheiro de que realmente está necessitado. Além disso, você mesmo disse que sua família está
acabando. Por que então é tão importante manter a propriedade intacta?
— Ouça, Megan, e tente entender — ele disse. — Toda esta terra pertence à minha família há mais de trezentos anos.
Meus antepassados morreram por ela. É parte da História. É minha herança. Como é que posso negar isso? Sei muito bem
que a era que criou famílias como a minha e propriedades como esta já passou. Entendo também que dentro de algum
tempo será impossível manter as coisas nesse estado. Logo os von Kleist vão ser apenas personagens históricos, como os
Habsburg e os Holenzollerfi, cujos feitos as crianças na escola têm que memorizar e depois esquecer para sempre. Sei que
será assim e aceito isso. Mas não quero que aconteça já! Quero que os próximos von Kleist olhem para esta terra e saibam
que é a herança deles. Talvez não seja lógico. Talvez seja vaidade minha, mas não quero que os meus descendentes
venham a dizer que Kurt Rainer Friedrich, décimo quarto Graf von Kleist, permitiu que a propriedade familiar se
transformasse num deserto industrial.
— Mas não tem que ser um deserto, Kurt — protestou Megan. — Com um planejamento cuidadoso a mina pode
fornecer empregos para muitas famílias, um nível melhor de vida...
— Não! Se eu permitir que eles perfurem a mina, o lago logo estará poluído. O ar empestado de fumaça. Não vou
permitir isso. Nunca! Megan, você reclama da poluição de Los Angeles, mas aceita isso. Como aceita também que os
edifícios em sua terra sejam demolidos depois de trinta anos de vida e que os terrenos sejam subdivididos em porções
cada vez menores. Não. Evidentemente você nunca poderá compreender o que significa, para mim, tentar manter intacta a
minha herança!
— Eu também tenho uma herança, Kurt! — Megan respondeu, indignada. — Talvez não esteja tão bem documentada
quanto a sua, mas tenho tanto orgulho quanto você. Se acha que só porque sempre fui pobre...

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— Você poderia ter tudo isto aqui — Kurt interrompeu, calmo.
— O que quer dizer com isso?
— Pensei muito no assunto e cheguei à conclusão mais óbvia: você tem que ser uma von Kleist outra vez. E, agora,
sem as sombras que pairam sobre esse nome. Ter filhos e lutar para manter isto tudo intacto para eles — Kurt respirou
fundo. — Megan, quero que se case comigo.

CAPÍTULO 9

Megan fixou o rosto de Kurt, os olhos verdes brilhavam no rosto tão branco quanto o xale.
— Isso não é nada engraçado, Kurt — ela conseguiu dizer finalmente.
— Eu não estou brincando — ele disse, firme.
— Espera mesmo que eu responda? — disse ela, perplexa com a ironia da situação. Amava-o e ele a tinha pedido, mas
só sentia vontade de fugir e se esconder. — Primeiro você fala com amor de sua falecida mulher e, no instante seguinte,
me pede em casamento para que você possa conservar um pedaço de terra! Acha que devo me sentir lisonjeada?
Kurt deu uma última tragada e atirou o cigarro, amassando-o com o pé. Por um momento ficou olhando sua terra com
as pernas separadas os braços soltos. Megan achou que ele parecia um corsário que tivesse acabado de conquistar um
tesouro e olhasse o mar, em busca de novas presas. Não, os piratas eram homens rudes e brutais, enquanto que aquele
homem alto, suave, parado diante dela, tinha algo muito mais perigoso que a força bruta. Por mais que negasse, Kurt era a
encarnação de todos os seus ancestrais, o décimo quarto Graf von Kleist, um aristocrata que podia matar com elegância,
impunemente, como se fosse um direito divino. Megan estremeceu.
— Está com frio? — perguntou Kurt, transformando-se imediatamente num nobre gentil, preocupado com sua
hóspede. — Não está vestida apropriadamente para sair, assim.
Megan percebeu de repente que seu corpo todo devia estar evidente debaixo da roupa transparente, ao luar. Baixou o
rosto para esconder que tinha corado.
— Não fique envergonhada — disse Kurt, sorrindo e abraçando-a. — Gosto de olhar para você.

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Ela tentou escapar, mas ele apertou mais o abraço, tocando os lábios em seus cabelos vermelhos.
— Gosto de olhar para você — repetiu. — Gosto de tocar em você. Pense como seria bom se casasse comigo.
Os sentidos de Megan já a traíam. Ela sentia vontade de relaxar, de colar o corpo ao dele.
— Não! — gemeu baixinho, conseguindo encontrar forças para se afastar.
Kurt não a soltou. Sua mão acariciava de leve o ombro dela, debaixo do tecido do xale, sentindo-a tremer.
— Que romântica você é, Megan! Estou lhe oferecendo o meu nome, minha fortuna, até mesmo um título, se quiser. E
tudo o que você deseja é uma declaração de ternura. Sehr gut. Casa comigo se eu disser que a amo?
Megan estremeceu. O desdém dele era como uma faca afiada rasgando seu respeito próprio para expor sua
humilhação. Ele a feria, golpeando-a com palavras que ela daria a vida para ouvir, se fossem sinceras. Agoniada, rebateu
da única maneira que lhe restava.
— Para conseguir de volta aquela terra você faria qualquer coisa, não é, Kurt? Seria até capaz de se vender para mim
como um gigolô...
Por um momento houve um silêncio mortal e Megan compreendeu que tinha ido longe demais.
— Pode questionar meus motivos — rugiu Kurt baixinho, furioso —, mas nunca, jamais pode atacar minha honra.
Os braços dele a apertaram, arrancando o xale e atirando-o ao chão. Kurt agarrou os cabelos dela e inclinou sua cabeça
para trás, pousando nela os olhos azuis, febris.
— Como pode negar que desde o começo houve entre nós alguma coisa mais forte, acima dessas suas tolas noções
escolares de amor e romance?
E os lábios dele desceram ferozmente sobre os dela. Ela tentou resistir. Mas Kurt era o homem que ela amava e estava
morrendo de desejo por ele. Por alguns segundos manteve os lábios resolutamente fechados, até que sua própria frustração
a venceu e ela abriu a boca para ele. Depois disso deixou-se perder nas intimidades de língua, dentes, lábios, sentindo o
gosto do uísque e dos cigarros que ele havia fumado. Estava tonta com aquele cheiro masculino e forte. Ela deslizou os
braços por baixo da camisa dele e apertou-o mais contra si. Ao pousar o rosto nos pêlos de seu peito, sentiu o coração
dele, que batia absurdamente forte. E quando ele a carregou nos braços pelo gramado e escadas acima, Megan se
abandonou ao seu abraço.

~ 122 ~
Ele a levou para seu quarto, no extremo oposto da sacada, uma vasta câmara com uma enorme cama de dossel envolta
em veludo marrom. Depois da penumbra exterior, a luz feriu os olhos dela e quando Kurt a pousou sobre a coberta cor de
ocre, bordada com fios de ouro, Megan pediu que apagasse a lâmpada.
— Não — ele murmurou, cruel. — Quero ver você. E quero que me veja também.
Ele tirou a camisa e a atirou para o chão, sobre os sapatos. Megan olhou faminta aquele torso nu e esguio, os ombros
largos e musculosos debaixo da pele morena. Ele se deitou ao lado dela. Megan sabia que não conseguiria olhar para ele
sem se trair. Fechou os olhos e virou o rosto. Imediatamente ele prendeu os pulsos dela sobre o travesseiro com uma só
mão e com a outra puxou-a pelo queixo, forçando-a a encará-lo.
— Abra os olhos, Megan — ele ordenou com voz dura —, abra os olhos e olhe para mim.
Ela obedeceu, piscando os olhos cor de jade.
— Agora diga o meu nome — ele exigiu.
— O quê? — ela perguntou, meio estrangulada pela mão dele.
— Diga o meu nome — ele repetiu, ameaçador. — Diga quem sou eu!
Ela olhou para ele perplexa, assustada, sem compreender. Então, aos poucos, do mais profundo de si o nome brotou,
subindo lentamente para a sua garganta apertada de ansiedade.
— Você é Kurt... Meu Deus, seu nome é Kurt!
— É, eu sou Kurt — ele disse, suspirando satisfeito e soltando-a. — Nunca mais me confunda com ninguém.
E depois disso ele foi delicado. Excitou-a com seus beijos, como leves borboletas brincando em seus olhos, em sua
face, nunca em seus lábios. Até que com um gemido de frustração ela afundou os dedos nos cabelos dele e beijou-o nos
lábios. Quando os lábios dela já estavam vermelhos, e sensíveis, ele levantou a cabeça e olhou para ela, os cabelos
vermelhos espalhados sobre a cama como uma coroa de fogo.
— Eu nunca a vi antes com os cabelos soltos — ele disse baixinho. — Nunca mais os prenda. Nunca. Por mim.
Ele enrolou a mão nos cachos vermelhos e esfregou o rosto neles.
— Têm cheiro de flores silvestres — murmurou. — Mas quando toco seu cabelo, acho sempre que vou me queimar.
Os dedos dele desceram então e começaram uma delicada exploração do corpo dela. Ele colheu nas mãos as formas
redondas dos seios dela, brincando com os polegares até que os mamilos se endureceram, pulsando debaixo do tecido

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fino. Cuidadosamente ele despiu a camisola verde e ela levantou o quadril para facilitar o movimento. Megan abandonou-
se então, nua, como Vênus naquelas ondas de fino tecido verde ao toque sensual da mão e da boca de Kurt. Era um mar de
sensações que vinham em vagas, fazendo com que sentisse o próprio corpo de uma maneira que nunca sentira antes,
aprendendo sobre si mesma e sobre Kurt, enquanto ele a ensinava como acariciá-lo, guiando as mãos dela ao longo de seu
corpo duro e firme. Lá no fundo de sua cabeça jazia a noção de que ele a tocava com raiva; mas não, ele deliberadamente
a estimulava para provar que a dominava.
Então, quando Kurt parou de saborear seus seios com a boca e a língua, descendo por seu corpo em direção ao umbigo,
aconteceu!
— Nunca vi ninguém com uma pele tão branca como a sua! — ele murmurou.
Todo o corpo de Megan se enrijeceu e ela tornou a ouvir uma outra voz, cruel, dizendo a mesma frase. Erich tinha dito
isso logo depois de violentá-la naquela última noite terrível.
— Kurt, pare! Por favor, pare!
— Desculpe, querida — ele disse baixinho, os olhos ardendo de paixão. — Machucou?
— Não... Não. Quero que pare. Eu mudei de idéia.
— Você está brincando — ele disse perplexo, a respiração pesada.
— Não, não estou. Por favor, vá embora.
Kurt a olhou de perto, tentando compreender. Ela tremia debaixo do corpo dele, que estava tenso, indeciso. Então ele
silenciosamente deslizou para o lado, sentou-se na cama fechando as calças e apanhando a camisa.
— Por quê, Megan? — perguntou pondo-se de pé, os dedos trêmulos traindo sua emoção. — Sei que existem mulheres
que gostam de fazer isso, mas nunca pensei que você...
— Você está apenas me usando — ela disse baixando a cabeça, perturbada, sentindo a agonia de ter de recusá-lo. —
Você não sente nada por mim. É tudo parte do plano sujo para ficar com a minha propriedade.
— É. Eu quero mesmo aquelas terras — disse Kurt apertando os olhos. — E farei o que for preciso para consegui-las.
Pensei que tinha entendido isso. Megan, meín Schatz, você sabe muito sobre jogos sujos, também. Meu Deus, se você fez
algo assim com Erich, não me surpreende nada que ele a tenha violentado!
Megan quase gritou de horror, afundando o rosto no travesseiro.
— Saia — ela chorava alto. — Saia, vá embora e nunca mais toque em mim!
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Por longos minutos o quarto ficou absolutamente silencioso, a não ser pelos soluços de Megan. Ela esperava que ele
fosse embora, mas Kurt não se moveu do lugar.
— Vá embora. Por favor! — implorou ela chorosa, olhando o vulto alto dele através da cortina de cabelos vermelhos.
— Megan — disse ele, os olhos frios, um sorriso gelado se formando nos lábios —, este quarto é meu.
Nada do que Erich tinha lhe feito se comparava à humilhação que Megan sentiu ao se levantar da cama, nua, e vestir a
camisola diante do olhar implacável de Kurt. Sentia vergonha das marcas que o desejo dele havia deixado em seu corpo.
— Pelo amor de Deus — disse ele, impaciente com o nervosismo dela. — Não precisa pensar que sua nudez vai me
deixar louco de desejos. Eu nunca poderia tocá-la agora. Desprezo as lágrimas.
Já vestida, ela ficou ainda um instante de cabeça baixa, enquanto buscava coragem. Depois, levantou a cabeça
afastando do rosto os cabelos com ambas as mãos, endireitando os ombros. Como um soldado vencido diante do general
inimigo, ela o encarou diretamente. Algo como respeito ou admiração pareceu brilhar nos olhos de Kurt.
— Tem um roupão para me emprestar? Vou voltar ao meu quarto pela sacada e meu xale parece ter desaparecido.
Ele nada disse e cruzou o quarto, desaparecendo no banheiro. Um minuto depois retornava, trazendo nas mãos um
roupão verde de banho. Ao passar pela janela, olhou casualmente para fora e estacou.
Megan viu Kurt paralisado durante alguns segundos, olhando a noite lá fora. De repente todo o seu corpo entrou em
ação, ele gritou uma palavra em alemão, largou o roupão e saiu pela porta. Megan ficou perplexa até que lentamente a
palavra foi adquirindo sentido em sua mente: feuer... fogo.
Ela correu para a janela e quase perdeu o fôlego.
Na luz fria do amanhecer o schloss dormia sombrio, as filas de janelas negras, apagadas. Todas, menos uma. Na ala de
hóspedes, do lado oposto da casa, uma janela ardia na luz trêmula do fogo que devorava o interior em grandes labaredas.
Era o quarto dela.
Percebeu num instante que Kurt tinha ido por dentro, que era o caminho mais comprido. Saiu para a sacada, vestindo o
roupão dele. Voou pelo gramado, tropeçando na barra enquanto subia as escadas do outro lado.
Mesmo antes de chegar à porta envidraçada que dava para sua suíte sentiu o cheiro característico de madeira queimada
e uma lufada de calor. Quando entrou, o quarto estava cheio de fumaça amarelada. Tossiu, sacudindo a cabeça. Um lado
do quarto estava totalmente tomado pelas chamas. A penteadeira de mogno estava completamente envolta em labaredas e,
de repente, o espelho se partiu por causa do calor. Línguas de fogo subiam para o teto pelas cortinas de seda da cama de
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dossel de onde, antes, sua inquietação a havia feito levantar. Ainda agora, no brilho trêmulo do fogo, parecia que havia
alguém entre os lençóis. Megan sentiu náuseas ao pensar que tinha escapado por pouco.
— Megan! Mein Gott eu pensei... pensei... — era Adelaide que surgira na porta interna do quarto, rígida de terror, o
corpo magro apertado ao batente como se quisesse sumir dentro da parede. Ao entrar no quarto Megan não tinha notado a
presença da moça, que soluçava agora. — Deus do céu, Megan, onde é que você estava? Pensei que... eu tinha certeza...
Mas antes que Adelaide pudesse dizer qualquer coisa a porta se abriu com violência, jogando-a de joelhos no chão.
Kurt entrou depressa com um grande extintor de incêndio nas mãos. Ignorou a garota caída, olhando em torno avaliando a
situação. Tentou abrir a válvula do extintor, mas sua mão defeituosa tremia e ele disse um palavrão. Megan empurrou a
mão dele e abriu a válvula rapidamente. Por uma fração de segundo os dois se encararam, os rostos muito juntos. Então,
quando a espuma branca começou a jorrar do tubo, ele empurrou Megan e atacou as chamas.
Minutos depois estava tudo apagado e ele abriu todas as janelas para a fumaça sair. Kurt esfregou os olhos vermelhos
de fumaça, manchando o rosto de fuligem, como uma máscara. Parecia cansadíssimo, olhando ao redor para avaliar o
estrago. Megan viu que o traje rigor dele estava reduzido a alguns trapos chamuscados.
— Não é tão ruim quanto parece — disse ele, suspirando. — O fogo parece ter ficado só deste lado do quarto. Oh, meu
Deus, se você estivesse aqui...
— Mas não estava — interrompeu Megan, tranqüila. — Esqueça. Já está tudo acabado. Descanse um pouco, você está
muito nervoso.
Ele obedeceu quando ela o empurrou para a poltrona e sentou-se, sorrindo para ela.
— Liebling — disse, rindo. — Eu estou nervoso desde que a conheci.
Uma tosse seca chamou a atenção dele para a porta.
— Adelaide? — disse Kurt, surpreso ao ver a moça. — Was machst du hier?
— Fui eu... fui eu que cheguei aqui primeiro — disse a garota avançando um passo, o rosto muito pálido. — Estava
olhando pela janela e vi o fogo. Corri até aqui para... para ver se Megan estava bem. — Ela torcia as mãos nervosamente,
gemendo de dor enquanto falava.
— Está ferida? — perguntaram Kurt e Megan ao mesmo tempo. A moça fez que não com a cabeça, escondendo as
mãos atrás das costas.
— Adelaide! — gritou Kurt.
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— Deixe ver — disse Megan, fazendo um sinal para Kurt e pegando delicadamente a mão de Adelaide.
A palma da mão direita da garota era uma massa só de bolhas inchadas e lívidas.
— Pensei que ainda estava na cama — gaguejou ela, as lágrimas rolando de seus olhos. — Não queria que se
machucasse...
— Quieta — disse Megan. — Não pense mais nisso. Kurt tem alguma pomada? Gaze? Isto parece superficial, mas
deve estar doendo muito.
— Tenho uma pomada para diminuir a dor. Volto já.
Depois que ele saiu do quarto, Megan fez Adelaide se sentar ao lado dela na cama. Ela se recuperou depressa, parando
de chorar imediatamente.
— Tudo culpa de Kurt — disse raivosa, olhando a mão ferida.
— O que é isso? — Megan estava perplexa.
— Nada, esqueça.
— Não, senhora — insistiu Megan. — Você fez uma acusação e vai ter de explicar.
— Acho que foi Kurt quem provocou o incêndio — disse ela depois de um momento.
— O que é que está dizendo?
— Pense em como seria fácil — a garota continuou —, ele entra aqui, encontra você dormindo, atira uma ponta de
cigarro no cesto de lixo. Você viu como o cesto estava queimado? E pronto! Acabaram-se os problemas com a colina.
— Isso é uma enorme bobagem, Adelaide. — Megan estava irritada. — E espero que não fique repetindo por aí. Meu
Deus do céu, parece história de filme!
— Bom, pode muito bem ter sido assim mesmo — ela insistiu. — Eu disse que ele faria qualquer coisa para conseguir
aquela preciosa propriedade.
— Mas nunca um assassinato — Megan disse secamente.
— Bom... talvez o fogo não fosse para matá-la. Talvez só para assustar você...
— Adelaide, eu não sei como o fogo começou, mas sei que Kurt não é o responsável. Portanto, cale a boca. Não seja
criança.

~ 127 ~
— Como é que pode saber? — Adelaide estava nervosa. — Por que não escuta o que eu estou dizendo? Por que
ninguém nunca me leva a sério?
— Eu sei que não foi Kurt quem começou o incêndio — disse Megan calma, sentindo-se muito mais velha que a outra
—, porque eu estava com ele. No quarto dele.
Os olhos de Adelaide se arregalaram e ela notou, então, o roupão enorme que Megan estava vestindo. Mas, antes que
pudesse dizer alguma coisa, Kurt retornou com o remédio. Rapidamente ele aplicou ungüento e enfaixou a mão da moça,
forçando-a a tomar dois comprimidos de analgésico. Durante todo o tempo Adelaide olhava Kurt e Megan com expressão
estranha.
— Vou mandar alguém mudar suas coisas para outro quarto, Megan — disse Kurt, conduzindo Adelaide para a porta.
— Não, agora não, Kurt. Devem estar todos cansados do baile e surpreendentemente parece que ninguém acordou. Eu
não vou conseguir dormir, mesmo. Fica para amanhã. Vá dormir você, Kurt. Parece muito cansado — ela disse tocando o
braço dele, realmente preocupada.
— Quanta gentileza! — observou Adelaide, irônica. Os adultos ignoraram o comentário, olhando-se profundamente
nos olhos. Megan estava cansada demais para conseguir esconder o que sentia e Kurt entendeu o seu olhar.
— Falaremos amanhã — ele disse.
Quando Adelaide e Kurt saíram do quarto, Megan deixou-se cair na poltrona estofada. De um lado o quarto estava
absolutamente destruído e, se ela estivesse dormindo, Deus sabe o que poderia ter acontecido. Do outro lado, porém,
estava tudo intacto. Felizmente o armário, onde estavam todas as suas roupas, estava intacto.
Quem poderia ter feito isso?, ela se perguntava. E por quê? Megan sabia que não tinha sido Kurt. Ele tinha métodos
mais sutis de conseguir o que queria, acendendo outro tipo de fogo. Gabrielle? Ela sabia que a mulher se ressentia de sua
presença o suficiente para recorrer à violência. Mas sabia também que ela nunca faria nada que colocasse em risco o
schloss.
Sobrava só Adelaide. Tinha de ser ela. Durante todo o incidente tinha agido de maneira suspeita. Mas por que faria
isso? Adelaide era auto-indulgente, ligeiramente neurótica, adorava se sentir a heroína de tolos melodramas. Talvez tivesse
imaginado que, salvando Megan de um incêndio, Kurt e Gabrielle ficariam tão orgulhosos que permitiriam que fosse para
Hollywood.

~ 128 ~
Lentamente Megan se pôs de pé. Sabia exatamente o que tinha de fazer. Enquanto ficasse no schloss estaria em risco
de vida. Tinha sido um erro desde o início aceitar a hospedagem dos von Kleist. Devia ter ficado na cidade, de onde
poderia negociar com Kurt em solo neutro. Se é que qualquer lugar na Áustria pudesse ser considerado solo neutro para
um von Kleist.
Se quisesse retornar algum dia a Los Angeles sã e salva, devia deixar o schloss o mais depressa possível.
Pegou as malas do guarda-roupa e começou a arrumá-las.

— Não compreendo — disse a voz em alemão do outro lado do telefone. — Por favor, fale claro.
Mas eu estou falando claro, pensou Megan irritada, esquecendo momentaneamente tudo o que Liesl tinha lhe ensinado.
— Bitte, quero falar com Peter Swanson — ela disse com calma, repetindo o nome na esperança de que a telefonista
do hotel compreendesse pelo menos isso. — Peter Swanson!
— Jawóhl, ein Moment — disse a voz do outro lado, silenciando em seguida.
Megan respirou aliviada e apoiou-se no canto da escrivaninha. Pelo reflexo no espelho via que sua roupa cor-de-rosa e
os cabelos ruivos eram a única mancha de cor na perfeição branco e dourada da sala de Gabrielle, mas seu rosto estava
pálido e cansado. Não tinha dormido nada.
Enquanto arrumava as malas tivera a idéia de pedir ajuda a Peter, pois no estado em que estava não seria capaz de se
virar sozinha com o pouco alemão que sabia.
A pasta que Kurt lhe dera com o contrato estava em sua bolsa e ela pensou que provavelmente assinaria os papéis.
Não, não "provavelmente". É claro que ia assiná-los. O dinheiro não era tão importante para ela. E tinha ficado fascinada
com a quantia que Kurt oferecera. Não saberia o que fazer com mais do que aquilo. O que a magoava era o fato de Kurt
tê-la enganado, usando sua atração sensual para forçá-la a assinar. Mas Megan já estava cansada de resistir. Não queria
mais ser atacada. E algo lhe dizia que, se entregasse a colina a Kurt e ainda assim ele viesse atrás dela, isso seria uma
prova de amor de verdade.
E se ele não viesse? Bem, pelo menos então ela teria certeza.
— Swanson hier. Wer ist das, bitte? — disse a voz sonolenta ao telefone.
— Peter, sou eu, Megan.
— Megan, tudo bem? — Imediatamente ele pareceu despertar. — Estava preocupado com você desde ontem à noite.
~ 129 ~
— Claro que estou bem — disse ela, surpresa. — Por que não estaria?
— Porque von Kleist a levou embora do baile e você não voltou mais...
— Pelo amor de Deus, Peter, o que achou que ele tinha feito? — perguntou ela, já quase esquecida do baile da noite
anterior. — Me trancado numa masmorra? Eu estava cansada, tinha bebido champanhe demais. Kurt e eu conversamos e
depois eu fui dormir.
— Escute, Megan, eu sei que alguma coisa aconteceu quando você desapareceu da festa ontem com von Kleist. — A
voz de Peter tinha perdido seu tom juvenil. Megan tinha quase esquecido que o rapaz tinha trinta anos e era bastante
maduro. — Eu notei a expressão de Kurt quando ele nos viu dançando. Portanto, não me venha com essas histórias de que
estava só um pouco alta. O homem estava quase desesperado. Tem que ter havido alguma discussão entre vocês quando
ele soube que você já sabia da proposta do tio Max.
— Está bem, houve mesmo — Megan admitiu, relutante. — Mas nada tão grave que eu não pudesse controlar.
— Tem certeza? Eu queria ter falado com ele pessoalmente, mas Ulrike não me deixou de jeito nenhum. Você sabe o
que ela pensa de Kurt von Kleist: que ele é um cavalheiro até o último fio de cabelo. Mas eu fiquei preocupado. Não devia
ter deixado você enfrentá-lo sozinha, eu devia tê-la ajudado.
— Pode me ajudar agora — disse ela. — Será que podia vir me buscar de carro? Eu quero sair do schloss o mais
depressa possível.
— É assim tão grave, Megan? Estão lhe tratando mal?
— Não. Ainda não encontrei nenhum deles hoje de manhã. — Ela respirou fundo antes de prosseguir. — É que... já
está tudo acertado e eu não quero ficar por aqui além do necessário. Por favor, Peter, podemos conversar mais tarde, na
cidade.
— Claro, meu bem — disse Peter com firmeza. — Passo aí dentro de meia hora.
— Obrigada, eu espero. — Megan desligou o telefone e suspirou. Estava acabado.
Dentro de alguns minutos sairia do schloss von Kleist para sempre. Se tivesse de ter outros contatos com a família
seria através dos advogados. A menos que Kurt viesse procurá-la... Durante alguns segundos acariciou essa idéia no
coração. Mas não, Kurt não iria atrás dela. Ele já teria então tudo o que queria.

~ 130 ~
Megan pensou se não estaria sendo injusta com Peter, pedindo a ajuda dele e levando-o a pensar que ela ia vender a
terra a Bachmann und Steiner. Mas depois que chegassem à cidade ela tentaria explicar a ele por que não ia vender. Era
uma tarefa difícil, pois nem ela mesma compreendia bem as próprias razões.
Megan voltou-se para sair da sala. Queria estar pronta, esperando na porta para evitar qualquer possibilidade de Peter
tentar fazer um escândalo no schloss.
Adelaide estava parada à porta da sala, paralisada, os olhos brilhando, fixos.
— Vai embora? — ela perguntou, sem esconder a ansiedade,
— Vou — disse Megan, olhando a moça que não parecia nada alterada pela noite passada, a não ser pelo curativo na
mão. — Não sei se era isso que você queria botando fogo em meu quarto ontem à noite, mas estou indo embora. Não se
preocupe, vou assinar o contrato de Kurt antes de deixar o país.
— Sua idiota! — disse Adelaide furiosa, depois de encarar Megan um instante. — Não pode fazer isso! Vai arruinar
tudo!
— Do que é que você está falando? — perguntou Megan, surpresa.
— Não pode, não pode — gritava Adelaide sacudindo a cabeça,chorando. — Eu trabalhei tanto e agora você vai
estragar tudo!
— O que é que está havendo? — perguntou Gabrielle, aparecendo na porta.
Com um grito estrangulado Adelaide empurrou a mulher e fugiu da sala correndo. Gabrielle viu a moça se afastar e
voltou a olhar para Megan.
— Bom dia, Gabrielle — disse Megan, imaginando quanto a mulher teria ouvido daquela conversa. — Já levantou
depois de tanto trabalho? O baile estava lindíssimo.
Megan notou que, mesmo a essa hora da manhã, Gabrielle estava tão impecável como se tivesse saído das páginas da
revista Vogue francesa, mas, estranhamente, trazia um embrulho malfeito nas mãos.
— Desculpe ter invadido seu escritório e usado seus catálogos de telefone — disse Megan, irritada pelo silêncio da
outra —, mas eu vou embora e precisava fazer uma ligação antes de ir.
— Então a Dra. Müller vem buscá-la? — perguntou Gabrielle, notando a palidez de Megan.
— Não. Peter Swanson.

~ 131 ~
— O americano. — Gabrielle ficou muito séria. — Entendo.
— Desculpe ir embora assim tão de repente — desculpou-se Megan —, mas acho que é o melhor.
— É — concordou Gabrielle. — Você não devia ter vindo aqui nunca. Kurt já sabe que vai embora?
— Não. Mas, dadas as circunstâncias, não creio que ele vá se surpreender.
— Tome — disse Gabrielle, estendendo para ela o embrulho que tinha na mão, — acho que isto é seu. Um dos
jardineiros encontrou no gramado e não pude imaginar quem mais pensaria em usar uma coisa dessas.
— Obrigada — disse Megan, corando ao ver o xale, de que tinha se esquecido completamente. — Acho que... que
deixei cair lá fora a noite passada.
Automaticamente ela dobrou o xale com cuidado. O tecido de lã sedosa estava sujo, cheio de hastes de grama e exibia,
num canto, a marca nítida de um pé masculino. Gabrielle notou a pegada, apertando os olhos.
— Pena que um xale tão bonito esteja assim estragado. Vou mandar lavar quando chegar a Los Angeles, mas não sei se
vou poder usá-lo mais — disse Megan, esperando que Gabrielle desimpedisse a passagem. — Por favor, Gabrielle, me dê
licença. Quero ir colocar isto aqui na mala.
Lenta e rigidamente, como se sentisse uma dor aguda, Gabrielle afastou um passo e Megan saiu correndo. Minutos
depois ela descia de novo trazendo suas malas para a entrada da casa. Na passagem viu que Gabrielle ainda estava parada
no mesmo lugar.
Do lado de fora o ar brilhante da manhã já estava quente, prometendo um dia de forte calor. A fonte espirrava seus
jatos de água, que brincavam na luz. Megan esperou no alto dos degraus de mármore. Saltou para a mureta quando uma
criada mal-humorada avançou em sua direção, esfregando o chão com uma escova. Sorriu para ela, mas a mulher grunhiu
alguma coisa em alemão e continuou seu trabalho. Ao pé da escada um dos jardineiros resmungava também, reclamando
contra os convidados que tinham apagado tocos de cigarros nas grandes urnas cheias de plantas que ele cuidava com
carinho.
Megan tornou a consultar o relógio. Olhou para o arco de pedra que ficava lá em cima, na estrada. A qualquer
momento o carrinho branco de Peter ia aparecer, como uma carga de cavalaria para resgatar a donzela e levá-la para longe,
bem longe...
Engoliu em seco. De repente lembrou-se que não tinha se despedido de Liesl.

~ 132 ~
Como podia ter esquecido?, pensou, angustiada. Liesl era a única pessoa que lhe tinha demonstrado afeição e
consideração durante sua estadia ali, era a única von Kleist em quem confiava. E, além disso, Megan sabia que, nos
poucos dias que passaram juntas, tinha preenchido as necessidades íntimas que a menina tinha da companhia de uma
mulher adulta. Liesl ia ficar magoada por ela ir embora, talvez se sentisse abandonada, mas partir sem se despedir seria
ainda pior, seria cruel.
Megan voltou a entrar na casa e foi procurar Liesl.
— Por favor — perguntou à mulher que descia as escadas —, onde está Liesl? Ainda no quarto? Tenho de falar com
ela antes de ir embora.
— Não — respondeu Gabrielle, percebendo a expressão terna de Megan —, acho que Kurt saiu com ela para andar a
cavalo, bem cedinho.
Como é que ele pode ter ido cavalgar cansado como estava?, pensou Megan consigo mesma.
— Não quero ver Kurt — disse em voz alta.
— Ah, mas tenho certeza de que ele deve ter ido trabalhar depois de deixar Liesl com seu cavalo — respondeu
Gabrielle. — Se me der licença um instante, tenho de ver uma coisa, mas posso levá-la até o lago. Tenho certeza de que
ela foi galopar lá pelo gramado e podemos descer juntas para encontrá-la. A manhã está linda para um passeio, não é?
Desorientada pela efusividade de Gabrielle, Megan assentiu com a cabeça. Nunca tinha visto aquela mulher tão
calorosa. Talvez Gabrielle estivesse sentindo que podia ser mais agradável, agora que Megan já não constituía ameaça à
propriedade dos von Kleist. Enquanto esperava, Megan caminhou até a porta da sala de música para dar uma olhada no
piano antigo. Não, pensou, não estava arrependida de ter vindo ao schloss von Kleist. Tinha sido uma oportunidade rara
no mundo moderno.
Gabrielle veio até ela novamente e saíram da casa pela escada da sacada, por onde tinha subido com Kurt na noite
anterior.
— Não estou vendo Liesl em lugar nenhum — disse Megan, dando uma olhada no amplo gramado que se estendia até
o lago.
— Não se preocupe — garantiu Gabrielle —, eu a vi por ali não faz nem dez minutos. Venha, vamos procurá-la.
— Mas Peter vai chegar...

~ 133 ~
— Ele espera um pouquinho — disse Gabrielle em tom leve. — Claro que ele espera uma moça bonita como você!
Venha! Olhe que Liesl vai ficar muito triste se você não se despedir dela. Corra, meu bem, em um minuto a gente chega
até o lago. Liesl deve estar dando de beber ao cavalo. Que delícia, não, um dia tão bonito...
Era de fato um lindo dia. À tarde já estaria escaldante, mas mesmo agora Megan sentia falta de seu chapéu por causa
do sol forte. Até Gabrielle parecia mais relaxada pelo calor, pois tinha tirado o casaquinho e levava-o rigidamente na mão.
— Liesl não está aqui — disse Megan, irritada, quando chegaram até o lago.
— Mas eu tinha certeza de que estava — insistiu Gabrielle.
— Desculpe, mas tenho mesmo de voltar para a casa agora — disse Megan, tornando a olhar o relógio. — Eu queria
muito ver Liesl antes de ir embora, mas Peter já deve estar chegando.
— Olhe lá — disse Gabrielle, agarrando o braço de Megan. — Atrás das árvores, está vendo? A menina está brincando
conosco! Liesl, não seja boba, saia daí agora! Nós já vimos você!
Houve uma pausa na qual Megan ouvia apenas os pássaros cantando loucamente no dia de verão.
— Liesl, eu disse para sair daí. A tia Megan tem que ir embora — disse Gabrielle, ainda agarrada ao braço de Megan.
— Acho que vamos ter de ir até lá para encontrá-la. Venha, Megan.
— Ora, Gabrielle — protestou Megan, tentando se libertar da mão da mulher —, isto está indo longe demais. Se Liesl
não quer se despedir de mim, vamos esquecer isso.
Mas Megan não conseguiu se soltar dos dedos de Gabrielle, que apertavam seu braço, e teve de segui-la, tropeçando,
com dificuldade para acompanhar os passos muito mais largos de Gabrielle, até que chegaram debaixo do bosque que
margeava o lago.
— Não está aqui também — disse Megan soltando-se e olhando em torno, fervendo de raiva. — Você me trouxe até
aqui à toa.
— Ah, eu não diria isso — a voz de Gabrielle soava estranha. Com o rabo dos olhos Megan viu o casaquinho de
Gabrielle deslizar do braço, caindo ao chão, seguido de um ruído metálico característico. Megan voltou-se depressa e
deparou com a pistola antiga em filigrana dourada que servira noutros tempos para defender a, honra de Marthe von Kleist
e que agora estava apontada para ela.

~ 134 ~
Surpreendentemente Megan não sentiu medo. A situação lhe parecia mais uma farsa que uma tragédia. As mãos
magras de Gabrielle apertavam a arma toda ornamentada e tremiam debaixo dos retalhos de sol que as árvores faziam no
chão.
Megan sentiu vontade de rir, mas bastou olhar para os olhos de Gabrielle para ver que a situação era séria.
— Por que isso, Gabrielle? Eu estou indo embora. Qual a razão desse jogo?
— Não é um jogo, americana. Eu não vou permitir que arruíne esta família.
— Mas eu não...
— Desde que chegou — interrompeu Gabrielle —, eu vejo a cada dia você cavar o seu caminho em direção ao afeto de
Kurt. O meu Wilhelm teria desvendado você logo no primeiro olhar, mas Kurt se recusa a acreditar que você é uma
oportunista, uma caça-dotes atrás de um golpe do baú, igualzinha àquele seu marido. E agora você quer vender a colina,
um pedaço de terra dos von Kleist, para Max Bachmann, um homem que enriqueceu com as ruínas de seu próprio país.
Esta casa é a única segurança que tenho e que jamais tive nos últimos trinta anos e não vou permitir que você a ponha
abaixo! Se Kurt se recusa a derrotá-la, então é meu dever fazer isso.
Megan sacudiu a cabeça devagar. Ficou aliviada por não ter dado risada, pois percebia agora, debaixo do exterior bem-
arrumado de Gabrielle, uma mulher neurótica, patética, perturbada pelo medo.
— Nunca tive a intenção de prejudicá-la, Gabrielle — disse com sinceridade. — Tem que acreditar nisso. Eu já resolvi
assinar os papéis e transferir a propriedade para Kurt.
— Mentira! — disse Gabrielle.
— Não. Os papéis estão em minha bolsa, no schloss. Venha comigo e posso mostrá-los a você. — Megan via que as
mãos de Gabrielle tremiam violentamente. — Por que não abaixa essa arma? Baixe a arma, Gabrielle e podemos voltar
juntas e pegar os papéis.
— Não me toque! — gritou Gabrielle, quando Megan deu um passo adiante para apanhar a pistola.
E puxou o gatilho.
A arma explodiu num ruído ensurdecedor, uma chuva de faíscas e muita fumaça. A bala calibre 55 passou de raspão
pela cabeça de Megan, como uma garra de fogo deslizando por seus cabelos. Com a força do choque ela caiu para trás e
bateu violentamente a cabeça numa raiz saliente de um velho carvalho.

~ 135 ~
Caída no chão, tonta, com náuseas de dor, o rosto pálido se cobrindo de sangue, Megan percebeu confusamente a
forma de Gabrielle rígida e horrorizada pairando sobre ela. A mulher começou a gritar histericamente pelo nome de Kurt.
Megan sentia ainda mais dor com aqueles gritos e desejou que a mulher se calasse.
Lentamente a escuridão foi baixando sobre Megan como uma sedutora promessa de paz, depois de tanto tumulto.
Involuntariamente ela se entregou àquela nuvem que a envolvia. Seu último pensamento consciente foi para lamentar
não ter podido realmente mostrar a Kurt o quanto tocava bem naquele belíssimo piano antigo da sala de música.

CAPÍTULO 10

Dor. O mundo era uma neblina vermelha, cheia de dor e em algum lugar, não muito longe, alguém gritava. Onde
estava? Sentia-se desorientada e confusa e a cama era dura, cheia de calombos. Tinha de virar a cabeça, só um pouquinho,
para sair daquele travesseiro duro como pedra, mas estava tonta e não era nada fácil se mexer. As têmporas doíam como se
alguém estivesse tocando o final da Abertura 1812 de Tchaikovsky dentro de seu crânio. Com muita dificuldade conseguiu
abrir os olhos e sua mente lutou para interpretar as imagens que ondulavam em torno dela.
Estava em seu quarto? Não, seu quartinho casto em Manhattan era decorado em azul-claro e tudo o que via agora era
uma massa de tons de verde com manchas douradas como o sol. Árvores? Não, que bobagem. Devia ser aquela trepadeira
que subia pelo suporte do vaso que ela havia levado meses a fazer em macramê, enquanto Erich se ausentava com
Herschel e Lavínia, ou talvez só com Lavínia. Sua visão estava borrada. Havia alguma coisa dentro de seus olhos. Alguma
coisa quente e pegajosa. Dentro de um minuto ia conseguir piscar e tudo ficaria claro outra vez, dentro de um minuto...
Mas suas pálpebras estavam tão pesadas...
Deus, por que é que Lavínia não ficava quieta? Por que é que gritava tanto? Sua voz estava tão desesperada que
parecia estar falando uma língua estrangeira. E agora uma outra voz gritava também. Gostava dessa outra voz. Era
profunda, atraente, mas estava alta demais. E as palavras? Se ela pudesse entendê-las. Erich estava morto, era isso que
estavam dizendo? Não, não, não, Erich estava ali mesmo, curvado sobre ela, pegando-a nos braços, ninando-a como se
fosse uma criança. Erich, Erich, terno e carinhoso como jamais tinha sido. Como estava moreno e bem-disposto, que
lindo! E que engraçado! Naquela luz os olhos cinzentos dele pareciam azuis...

~ 136 ~
Ele a retirou do sol, levou-a para dentro do schloss von Kleist. Os criados se agitavam em volta dele, mas terminaram
se afastando diante da expressão do senhor, muito severa. Liesl tentou passar pelas pessoas.
— Não! — gritou Kurt. — Não chegue perto.
— Mas, Vati, eu quero ver... — a menina protestou, chorando.
— Não, Liesl — disse Kurt, virando o corpo para esconder Megan dos olhos dela —, você vai ficar impressionada.
Greta, Greta, leve Liesl para o quarto e fique lá com ela até eu mandar sair.
— Mas, papai — Liesl implorou de novo.
— Por favor, querida — ele disse suavemente, olhando para a menina com olhos cálidos —, não discuta comigo agora.
Sei que você está triste por causa do que aconteceu com tia Megan, mas não há nada que possa fazer. Vamos levá-la para o
hospital e prometo que, telefono para você assim que tiver alguma notícia.
— Está bom, pai — disse a menina relutante, fungando o nariz e mordendo o lábio.
Greta levou-a pelo corredor.
Kurt suspirou ao ver a menina se afastar. Em seus braços Megan tossiu dolorosamente.
— Alguém telefonou para o hospital? — ele perguntou aos criados. — Ótimo. Então mandem Karl trazer o carro
imediatamente. Não temos tempo de esperar a ambulância. Preciso de cobertores. Schnell!
Enquanto falava ele continuava caminhando depressa pelo grande hall, seguido alguns passos atrás por Gabrielle.
Os criados a olhavam, perturbados. Ela já não era a orgulhosa senhora do castelo. Os olhos castanho-claros estavam
opacos e a pele emaciada e pálida, exceto pela mancha vermelha na face, no lugar onde Kurt lhe havia dado uma bofetada
para conter sua histeria.
Kurt pousou Megan suavemente no sofá do salão, ajeitando suas pernas. Ele aspirou o ar com ruído ao ver o lenço
branco que colocou na testa dela se tingir rapidamente de vermelho. Apertou mais forte.
— Está.. me... machucando... — ela fazia pausas enormes entre uma palavra e outra, como se tivesse de fazer um
esforço para falar.
— Eu sei — disse Kurt. Alguém lhe entregou um cobertor de lã fina e ele a cobriu cuidadosamente, tentando não
mexê-la demais, mas ela se debatia. — Calma, Megan, calma. Fique quietinha. Já vamos levá-la.

~ 137 ~
Kurt olhou em volta para examinar mais uma vez os rostos assustados agrupados na porta. Chiando viu Gabrielle, seus
lábios se contraíram. A mulher parecia absolutamente alheia a tudo, caída como um trapo numa cadeira rococó.
— Procurem Fraulein Steuben — ordenou ele aos criados. — Ela deve levar Frau von Kleist para o quarto dela e
impedir que saia até eu...
Parou de falar quando um novo som veio perturbar ainda mais o clima reinante. Gritos indignados vinham da entrada
da casa, seguidos de passos apressados. De repente, Peter Swanson irrompeu na sala, o jardineiro ainda agarrado a seu
braço, tentando detê-lo.
— O que é que está acontecendo? — gritou ele. — Onde está Megan? Encontrei as malas na... Meu Deus! O que é que
vocês fizeram com ela?
Peter estava perturbado por ver Megan ensangüentada no sofá. Correu para ela, mas Kurt o segurou com firmeza pelos
ombros.
— Não toque nela — disse. — Ela não deve se mexer mais que o estritamente necessário.
— Então eu não me enganei a seu respeito, von Kleist — disse ele, encarando Kurt, o rosto retorcido de ódio detrás
dos óculos grossos. — Nada haveria de detê-lo para conseguir o que queria. Nem mesmo uma moça solitária está a
salvo...
— Cale a boca, Swanson. Não se faça de ainda mais tolo que o absolutamente necessário.
— Kurt... Peter... — gemeu Megan do sofá. — Por favor, não gritem. Minha cabeça dói...
— Meu Deus, onde está esse carro? — rugiu Kurt, pondo-se de joelhos ao lado dela. — Calma, querida, vamos levá-la
para o hospital agora mesmo.
Carinhosamente, como se carregasse Liesl ou Elisabeth em seu leito de morte, Kurt limpou o sangue que escorria da
bandagem improvisada.
— É isso, Megan — disse Peter agitado atrás dele. — Nós vamos levá-la para Ulrike. Riki vai curar você.
Mais uma vez o grupo de empregados à porta se abriu e Adelaide entrou correndo na sala, estacando ao ver o que
estava acontecendo.
— Gott im Himmel! — exclamou — O que foi isso?
— Não faça perguntas agora, Adelaide. Obedeça! Quero que leve Gabrielle para o quarto e mantenha-a lá.

~ 138 ~
— Oh, Gaby — disse a garota, horrorizada —, o que foi que você fez?
— Ela atirou em Megan — disse Kurt brutalmente. — Agora tire-a daqui, falo com vocês depois.
Peter franziu a testa, olhando intrigado para Adelaide enquanto ela cruzava a sala em direção a Gabrielle.
— Eu conheço você de algum lugar — disse ele de repente.
— Não, acho que não — disse Adelaide, enrijecendo o corpo e estacando no meio do salão.
— É claro! — continuou Peter. — Eu me lembro agora. Você é a moça que estava falando com meu tio Max outro dia
em Salzburg!
— Não — disse Adelaide rouca, empalidecendo. — Não, eu só estive em Salzburg para ir ao cinema. Deve estar me
confundindo com outra pessoa..
— Não, não, era você mesma. Jovem, alta, magra, cabelo castanho claro. Você passou mais de uma hora conversando
com meu tio no escritório. E assim que você saiu ele me disse que finalmente tinha arranjado um jeito de conseguir que os
von Kleist entregassem a colina.
O tempo pareceu parar, suspenso. Muitos olhos se voltaram para a garota de jeans e camiseta e tudo se imobilizou por
um momento que pareceu interminável. O único som que se ouvia era a respiração irregular de Megan. Subitamente
Adelaide pareceu recobrar vida. Voltou-se para fugir, mas as longas unhas vermelhas de Gabrielle se cravaram em seu
braço, detendo-a.
— Adelaide, o que é que esse homem está dizendo? — perguntou Gabrielle confusa, falando muito baixo.
— Acho melhor se explicar, Adelaide — disse Kurt friamente. Adelaide se afastou até a parede, tropeçando no tapete,
batendo numa mesinha. Os cabelos curtos se agitavam enquanto ela sacudia a cabeça, nervosa.
— Eu nunca tentei ferir ninguém! Como é que eu podia saber que Gaby chegaria a tentar matar alguém? Eu só queria
era dinheiro para ir para Hollywood.
— Meu Deus, isso ainda! — gemeu Kurt.
— É isso, sim! — gritou Adelaide, toda sua figura sombria, como se uma nuvem de ressentimento pairasse sobre ela.
— Tentei mais de mil vezes fazer vocês entenderem que eu quero ser atriz. Mas vocês nunca me deram ouvidos! Tratam-
me sempre como se eu fosse uma criança burra, incapaz de planejar minha própria vida, de tomar conta do meu próprio
destino. Mas vocês estão errados e eu consegui provar isso! Fui procurar Max Bachmann e contei tudo para ele. Contei de

~ 139 ~
Megan e dos papéis que você quer que ela assine. Você nunca fez segredo disso. Sempre falou tudo na minha frente, como
se eu fosse ignorante demais para entender.
— Sim — disse Kurt —, o que fizemos foi confiar demais em você, foi pensar que você não trairia um segredo de
família.
— Que família? — rugiu Adelaide. — Vocês não são minha família!
— O que é que está dizendo, Adelaide? — disse Gabrielle, com a voz fraca e cheia de dor. — Willi e eu não a
recebemos em nosso lar? Não foi sempre tratada como uma filha? Eu sempre fiz tudo o que estava em meu poder para
transformá-la em uma de nós.
— Mas eu não sou uma de vocês! — declarou Adelaide ferozmente. — Eu sou Steuben! Meu pai e eu teríamos
tornado o nome Steuben famoso no mundo inteiro, mas não, vocês não podiam permitir isso. Tinham de tentar me
transformar naquilo que vocês acreditavam que eu devia ser. E ainda têm a ousadia de querer que eu seja grata? Você
espera, Gabrielle, que eu dedique a minha vida toda a preservar este mausoléu? Espera que eu desista para sempre de tudo
o que eu e meu pai sempre desejamos?
— Mas... mas eu tentei sempre dar tudo o que precisava... — gemeu Gabrielle.
— Claro — continuou Adelaide —, você podia ser bem generosa, contanto que fosse nos seus termos. Mas se eu
ousasse quebrar uma só das suas regras... Trabalhei como uma burra de carga para ajudar a preparar esse miserável baile
de caridade e aí, só porque eu não ajudei nos últimos preparativos, você me proibiu de ir à festa! Mas talvez tenha sido
melhor assim. — Ela sorriu, mais calma. — Porque ontem de manhã eu fui a Salzburg outra vez para fazer os últimos
arranjos com Max Bachmann e forçar Megan a vender a colina para ele.
— Está dizendo que meu tio Max a encorajou a trair os von Kleist? — perguntou Peter, perplexo.
— E isso o deixa chocado? Saber que um parente não é tão limpo e honesto? Bem, não se preocupe. Posso lhe garantir
que ele ia pagar muito bem. E mesmo que não me pagasse tanto, eu teria feito qualquer coisa do mundo, até vender minha
alma, se fosse o caso, para não ter de ser uma vestal neste templo do orgulho dos von Kleist! Eu teria até mesmo...
— Acho que já falou o bastante, Adelaide — disse Kurt, duro.
— Ah, não fique tão melindrado, Kurt von Kleist — disse a garota, violentamente irônica. — Essa sua mão aleijada
também não está lá tão limpa assim. Você não ia nem contar a Megan da proposta Bachmann. Você ia enganar a coitada
como...

~ 140 ~
— Cale a boca, Adelaide!
— Está bem — disse a moça, baixando a cabeça, deprimida —, acho que chega. Eu perdi. Você comprou Megan com
uma coisa que ela desejava mais que dinheiro. Com isso eu não contava. Não contava que ela fosse ficar tão caída por
você, a ponto de desistir de tudo só para rastejar para a sua cama.
Kurt cerrou o maxilar, fechou os punhos e, silenciosamente, pôs-se de pé. Deu um passo na direção de Adelaide.
— Por favor, Kurt — disse Gabrielle, surpreendentemente, colocando-se entre ele e a moça —, ela não tinha intenção.
É muito criança. Diga, Adelaide, diga que ele não está entendendo. Sabemos que você não faria nada para nos prejudicar.
São os estranhos que provocam confusão. Os estranhos como Erich e agora essa mulher dele. E aquele novo-rico, Max
Bachmann. Gente desse tipo é que é realmente uma ameaça para...
— Não me toque — disse Adelaide, enrijecendo o corpo debaixo das mãos de Gabrielle. — Você não entende, sua
velha maluca? Eu o odeio! Odeio todos os von Kleist! Odeio tudo o que é deles... — Suas palavras ferozes terminaram
num grito estrangulado e ela saiu correndo da sala, fugindo de Gabrielle, passando pelo grupo de criados que tinha
assistido a toda a cena da porta da sala.
— Ela não entende, não entende... — disse Gabrielle, o rosto pálido e deprimido, deixando-se cair sentada na poltrona.
— Está tudo errado. Não é culpa dela. Adelaide nunca faria nada que pudesse causar mal a nós ou a esta casa. Ela não é
uma von Kleist, mas tem o chamado... tem...
Gabrielle afundou o rosto nas mãos e começou a chorar convulsamente.
— Meu Deus — suspirou Peter, chocado com a cena que acabara de presenciar.
O chofer apareceu então e Kurt carregou Megan no ninho de aço dos seus braços, levando-a da sala, acompanhado de
perto por Peter.

— E então — perguntou Ulrike —, como é que está a minha paciente mais importante hoje? Dor de cabeça?
— Não, hoje não — respondeu Megan, levantando os olhos do livro que tentava ler. — Mas me sentiria melhor se
você me deixasse sair da cama.
— Paciência, paciência — ralhou Ulrike. — Você tem que repousar, já disse. Perdeu muito sangue. Ferimentos na
cabeça são sempre assim. Além disso, aquela batida foi um choque e tanto.
— Mas eu já me sinto mais forte.
~ 141 ~
— Ah! Se tentasse levantar ia ver só como ainda está fraca. — Os olhos de Ulrike se ensombreceram. — Por favor,
minha amiga, ouça o que estou dizendo. Só eu soube a gravidade do seu estado quando Kurt e Peter a trouxeram para cá
há três dias. Tinha concussão cerebral e por algum tempo cheguei a achar que ia precisar de uma transfusão de sangue.
Seu sangue estragou todo o estofamento da Mercedes de Kurt.
— Ora, Ulrike, não precisa dar esses detalhes mórbidos. — As duas riram. Megan sabia que a leveza da amiga servia
de fato para encobrir a seriedade do ferimento.
Ao recobrar a consciência completamente, Megan se lembrava muito pouco do que tinha acontecido depois de
Gabrielle puxar o gatilho. Imagens soltas dançavam diante de seus olhos, encobertas por nuvens de dor. Lembrava-se da
pistola cintilando ao sol e fazendo um arco no ar antes de mergulhar nas águas do lago, atirada por Kurt. Lembrava-se de
um amontoado de rostos passando por ela, de pessoas gritando em alemão e depois do guincho dos pneus e da buzina
soando forte, apesar de ser proibida na Áustria.
Lembrava-se de Kurt e Peter, dois homens tão diferentes, cujas feições adquiriam um ar extremamente semelhante
quando estavam determinados num momento de crise. Gabrielle, chorando, absolutamente arrasada e, estranhamente,
lembrava-se também de Adelaide, excitada em seu ressentimento, arrogância e... culpa.
— Sabe por que estou aqui? — perguntou Ulrike. — Vamos retirar o curativo. É claro que os pontos ainda vão ficar
uns dias, mas vai ficar livre de toda essa gaze.
— Que bom! — murmurou Megan, abandonando-se às mãos experientes de Ulrike, ajudada por uma enfermeira.
— Hum, está cicatrizando muito bem — disse a médica examinando o ferimento, enquanto a outra se afastava levando
os restos do curativo. — Se ficar alguma cicatriz vai ser abaixo dos cabelos, absolutamente invisível. Você teve sorte.
— É, eu podia ter sangrado até morrer.
— Nem pense nisso, Megan — disse Ulrike, calma. — Você recebeu assistência quase imediata. Peter já estava quase
chegando para invadir o schloss e Kurt e Liesl estavam cavalgando por ali mesmo...
— Estavam? — perguntou Megan, surpresa. — Eu pensei... Oh, não! Não me diga que Liesl me viu assim...
— Não. O pai mandou-a correndo buscar ajuda. Evidentemente ela estava assustada, mas não a viu ferida.
— O que aconteceu com Gabrielle? — perguntou Megan.
— Coitada — disse Ulrike, estalando a língua —, teve um colapso total. Não admira! Depois de descobrir a traição da
enteada! Como é que aquela menina pôde trair a família dessa maneira? Pensar que aquele dia a gente estava se divertindo
~ 142 ~
tanto em Salzburg enquanto ela conspirava com o tio de Peter... E talvez ela até conseguisse mesmo o que estava
planejando se Peter não a reconhecesse.
Megan suspirou. Então era por isso que Adelaide tinha tentado tão desesperadamente fazer com que ela desconfiasse
de Kurt. A ponto de tocar fogo no quarto e acusá-lo disso. Queria dinheiro, claro. Os von Kleist nunca financiariam sua
aventura cinematográfica. E Max Bachmann devia ter lhe parecido a única saída.
— E o que é que vai acontecer com Adelaide e Gabrielle agora? — perguntou Megan.
— Vai ter de perguntar a Kurt — respondeu a médica. — Eu não sei.
— Como? Ele nem veio me ver!
— Oh, ele ficou do seu lado o tempo inteiro, até termos certeza de que estava fora de perigo — disse Ulrike. — Peter
também. Foi ele que trouxe esses cravos lindos?
— Ele me visita todos os dias — disse Megan, olhando o buquê de cravos malhados ao lado da cama.
— Eu sei — disse Ulrike. Depois de uma pausa, acrescentou: — Peter ficou muito abalado com o comportamento do
tio nessa história toda. Ele foi dizer a Max Bachmann que, se o velho agisse assim de novo, por trás das costas dele, ia
fazer as malas e voltar para os Estados Unidos,
— Riki — perguntou Megan, olhando intensamente a amiga, pensando se seria o momento de falar —, você gosta de
Peter, não?
— Gosto muito.
— Está apaixonada por ele? — Megan perguntou meio hesitante.
— Você é bem franca, não? — perguntou Ulrike rindo ironicamente, um tanto envergonhada.
— Desculpe, Ulrike — disse Megan, sincera —, mas... bom, pensei que você não ia se importar de eu perguntar
porque... porque pensei que fôssemos amigas.
— E somos, meu bem — respondeu Ulrike, tocando o ombro de Megan carinhosamente. — É difícil acreditar que nos
conhecemos há menos de duas semanas. Lembra que você estava com um buquê de cravos naquele dia também? Quem
poderia adivinhar que você ia ter tamanha influência na minha vida!
Ulrike andou pelo quarto, agitada, arrumando as cortinas e verificando o diário hospitalar de Megan, dependurado aos
pés da cama.

~ 143 ~
— Quanto à sua pergunta — disse, depois de suspirar —, é, eu estou apaixonada por Peter Swanson, sim. Adoro
aquela impulsividade e exuberância dele, a maneira como ele brinca comigo às vezes, me fazendo rir como eu não ria há
anos. Se ele voltar para os Estados Unidos acho que eu morro. Mas esqueça. Estou sendo absurda!
— Não é nenhum absurdo amar alguém!
— Não — disse Ulrike —, mas mesmo que Peter não vá embora, ainda assim haverá problemas.
— A diferença de religiões?
— Sempre achei que, se me apaixonasse um dia seria por alguém com a mesma fé que eu — disse Ulrike. — Nunca
pensei que meu coração pudesse ser tão caprichoso.
— Sei que as regras católicas para casamento com outras religiões já não são tão restritas quanto antigamente. Será
que não há um jeito de vocês superarem isso?
— Sempre há um jeito se ambas as pessoas se preocupam. Mas... Peter não está assim tão envolvido. Gosta de mim,
isso eu sei, mas não me olha como mulher. Sinto que ele me considera assim como a tia mais querida.
— Largue de ser boba — ralhou Megan. — Você é o quê? Dois anos mais velha que ele?
— Por aí — murmurou Ulrike, olhando pela janela.
Megan estudou a amiga. Gostava dela quase tanto quanto gostava de Dorothy e queria ajudá-la de alguma forma. O
problema, a seu ver, não eram os sentimentos de Peter pela médica, mas sim a falta de auto-estima de Ulrike. Ela era
extremamente segura quando se tratava de medicina, mas enquanto mulher era tão frágil quanto uma adolescente.
Megan sorriu. Era irônico querer ajudar Ulrike, quando em sua própria vida tinha sido tão infeliz com os homens. Mas
achava que podia ajudar, sim. Olhou os cabelos loiros presos para trás, sem nenhum estilo, o rosto sem maquilagem e o
vestido mal cortado que, como os outros, era de uma cor que não combinava nada com ela.
— Ulrike, já pensou em cortar o cabelo? — perguntou.
— O que é que está conspirando agora, Megan? — perguntou ela sorrindo, o sorriso aberto e expansivo que era seu
traço mais bonito. — Algum tipo de transformação como a de Cinderela, para fazer Peter cair de amores aos meus pés?
Não adianta, nada no mundo poderá me transformar em Miss Universo.
— E por que você ia querer ser Miss Universo? — disse Megan, indignada. — Você é uma mulher inteligente e capaz,
que tem muito mais a oferecer a um homem que qualquer peituda de maio por aí. E tenho certeza de que Peter sabe disso.
— Estou certa que Peter a ama, mas você vai ter de descobrir isso sozinha, pensou Megan, e continuou em voz alta: —
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Acho que você só precisa de uns truques femininos. Um penteado novo, roupas bonitas. Acho que você se dedica demais
ao hospital e esquece que deve alguma coisa a si mesma também.
— A sabedoria dos jovens! — disse Ulrike rindo, encantada. — Você é um anjo, Megan, mas é uma romântica
incurável, acho.
— Sou mesmo — disse Megan, lembrando-se da noite em que Kurt tinha lhe dito a mesma coisa. — E nunca lucrei
nada com isso.
Uma enfermeira apareceu na porta e chamou Ulrike. As duas conversaram baixinho em alemão e a médica retornou à
cama de Megan.
— Kurt von Kleist telefonou para saber se pode visitá-la. Mandei dizer que sim e ele deve estar aqui dentro de uma
hora.
— Ulrike! — gritou Megan, quase saltando da cama.
— Calma aí! — disse Ulrike, forçando-a a deitar-se de novo. — Você pode recebê-lo e acho que deve.
— Mas assim?
— Megan — disse a doutora, severa —, neste momento a sua aparência é o que menos importa.
— O que quer dizer com isso?
— Eu sei que existe alguma coisa entre você e Kurt — continuou a médica. — Na noite do baile você e ele pareciam
estar lançando faíscas, mesmo quando não estavam juntos. Também sou observadora o suficiente para saber que alguma
coisa vai mal na sua relação com ele. E não tem nada a ver com essa disputa das terras. Apesar de não saber exatamente
qual é o problema, não posso admitir que você fique nervosa, porque isso prejudicaria sua recuperação.
— Você acha que eu devo enfrentá-lo?
— Acho que deve resolver seus problemas de alguma forma. Se não resolver, quando voltar para os Estados Unidos
vai acabar ficando ainda mais nervosa do que quando chegou à Áustria.
— É? Muito obrigada!
— Minha querida — disse Ulrike sorrindo, plácida. — Eu sou médica. É meu trabalho notar sintomas nos outros.
Depois que Ulrike saiu, Megan tentou alcançar o espelho que havia ao lado de sua cama. Virou-se um pouco e
conseguiu ver o ferimento. O corte era menor do que tinha imaginado e, como Ulrike tinha dito, iria ficar oculto pelos

~ 145 ~
cabelos, uma vez cicatrizado totalmente. Agora, porém, estava inchado e esbranquiçado, cheio de pontos pretos que
pareciam os de Frankenstein. O que mais a incomodava no entanto era que tinham tido de raspar um pouco do cabelo na
área ferida. Evidentemente iria crescer de novo, mas estava horrível naquele momento. Pegou a escova e tentou escovar os
longos cabelos ruivos para cobrir o ferimento, quando ouviu um toque na porta.
Kurt estava parado diante da porta aberta, olhando para ela. Megan pousou nele os olhos verdes arregalados e
famintos. Ele estava parecendo mais velho que dias atrás. E mais magro também, os ossos do rosto ameaçando romper a
pele esticada, o clássico nariz dos von Kleist mais proeminente.
— Disseram que você estava melhor — falou ele baixinho —, mas você parece... parece...
Megan largou a escova. Era uma verdadeira tortura falar com ele sem revelar seu amor. A frustração endurecia a sua
voz.
— Já sei que não pareço bem, mas na verdade estou me sentindo melhor. Você não sabe que quando uma mulher
começa a se preocupar com a aparência é porque está quase boa de novo?
— Não diga isso. Se soubesse como eu estava preocupado!
— Não o suficiente para vir me visitar — reclamou Megan sem poder se conter.
— Eu queria vir mas... — Kurt a olhou de maneira estranha. — Mas tive de cuidar de Gabrielle.
— Ah, Gabrielle — disse Megan, irritada consigo mesma por ter-se revelado a ele. — Tenho certeza de que qualquer
advogado que você contrate haverá de ser o melhor de todos. Ela vai ser acusada, não? Sei que a sua família é influente na
Áustria, mas suponho que aqui também seja crime tentar matar alguém, não?
— Pensei que você soubesse — disse Kurt, sacudindo a cabeça. — Gaby foi internada num clínica em Baden. O
hospital é de um amigo meu e ela vai ser tratada lá.
— Você está brincando! — exclamou Megan, perplexa.
— Não, estou falando sério. O Dr. Weiss é um psiquiatra famoso e no caso...
— Meu Deus, Kurt — interrompeu Megan, furiosa. — Ela tentou me matar. Isso não significa nada para você?
— Megan, por favor, tente entender. — Kurt gesticulava, sem jeito. — Gabrielle sempre foi... nervosa. Desde criança.
Ela sofreu muito durante a guerra e ficou bastante marcada por isso. Sempre foi insegura. Amava Willi e se sentia segura
com ele. Mas quando ele morreu, tão de repente, foi como se o mundo dela desabasse. Tentei levar isso em conta. Talvez

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tenha cedido demais. Mas, apesar do que pensa dela, Megan, apesar do que ela fez, Gaby foi sempre como uma irmã para
mim. E é meu dever protegê-la.
— E essa proteção chega ao ponto de destruir as provas?
— Do que é que você está falando?
— A arma, droga! — gritou Megan. — Eu vi quando você jogou a arma no lago!
— É. Eu me lembro agora de que joguei a arma no lago — disse ele, juntando as sobrancelhas. — Mas foi uma coisa
de momento. Você estava lá caída, tão abandonada... Senti uma enorme revolta quando a vi. Nunca pensei que estava... Se
for preciso, o lago não é assim tão fundo, nem tão grande. Pode ser dragado para se encontrar a arma de volta.
— Mas não é muito provável que isso aconteça, não é?
— Não, não é — disse Kurt.
— Claro que não! — Megan estava ferida. — Ninguém sonharia em processar Gabrielle por ter me atacado. Afinal, ela
é uma von Kleist, uma verdadeira von Kleist, enquanto eu sou apenas... como foi mesmo que ela me chamou aquela
noite? A esposa desprezada de um bastardo!
— É. É isso mesmo — disse Kurt devagar, apertando os olhos.
— Não admira que Adelaide quisesse fugir — disse Megan, tornando a deitar-se no travesseiro.
— Não mencione o nome daquela cadelinha! Foi ela a causa disso tudo.
— Ora, vamos, Kurt...
— Você não ouviu o que ela disse — continuou ele. — Eu senti vontade de bater nela. Depois de tudo o que a pobre
Gaby fez por ela... E não sentiu o menor arrependimento! Só estava interessada em suas próprias ambições egoístas. O
que queria era escapar.
— E você não entende isso? Evidentemente eu não endosso os métodos de Adelaide, mas a culpa não foi dela. Ela não
passa de uma criança, vitimada por uma mulher que você mesmo admite não ser muito estável. Quando ela tentou fazer
aquele negócio com Max Bachmann, estava tentando escapar, da única maneira que lhe restava. Ela estava errada, sim,
mas a culpa real não era dela e sim dessa obsessão que vocês têm com a propriedade. Se vocês pelo menos...
— Megan, a maneira de eu conduzir os negócios de família não lhe diz respeito — disse Kurt friamente.

~ 147 ~
Megan se encolheu como se ele a tivesse esbofeteado. Olhou para ele com olhos arregalados, que se encheram de
lágrimas fatigadas. Ela as enxugou e começou a tremer.
— Desculpe — pediu Kurt baixinho, muito incomodado. — Esqueci do seu estado.
— E o que fez com Adelaide? — perguntou Megan, mudando de assunto.
— Praticamente a expulsei de casa. Dei a ela o dinheiro para ir a Roma ver se consegue entrar para o cinema. Acho
que se ela falhar, isso já será um castigo.
— Belo castigo! — disse Megan, sarcástica.
— Adelaide é parente — disse Kurt, simplesmente.
— Claro! Família é sempre família. Aquela noite do baile eu tive uma visão de você e Gabrielle e todos os von Kleist,
desde Otto I, todos alinhados numa longa fila contra mim. Eu me senti absolutamente indefesa. Mas agora acabo de
perceber que não estou indefesa. Tenho a arma perfeita para usar contra você. Alguém tem que detê-lo antes que você
possa magoar mais alguém, Kurt. Um dia, quando Gabrielle recobrar a razão, pode dizer que sou grata a ela, porque foi
ela quem me fez decidir. Eu antes estava relutando, mas agora vou vender a colina para Max Bachmann.
Ela ouviu Kurt fazer um ruído estranho, estrangulado na garganta, mas não teve coragem de encará-lo.
— Não cheguei a ter tempo de contar a Peter que ia assinar os papéis — Megan prosseguiu —, mas agora estou
contente por isso. Porque quando eu vender as terras para Max Bachmann, não só receberei todo aquele dinheiro, mas
terei também a satisfação de saber que você, afinal, foi derrotado. Ver as máquinas esburacarem a colina vai ser quase
como ver alguém dando uma mordida em vocês, os von Kleist. Vocês não terão tempo de tratar a ferida e ela logo
começará a supurar...
— Mein Gottí — Kurt se agarrou à guarda da cama, tremendo de raiva e sacudindo toda a cama. — Como pode ser tão
vingativa?
— Vingativa? — repetiu Megan, os olhos verdes brilhando como jóias iradas. — Já parou para pensar em tudo o que
eu sofri nas mãos de sua preciosa família, começando por Erich? Fui enganada, ludibriada, humilhada, violentada e quase
assassinada! Não acha que tenho o direito de ser vingativa?
Kurt olhou para o rosto pálido de Megan, os cabelos gloriosamente ruivos, os olhos brilhantes. Sua própria raiva
desapareceu e seus ombros penderam, numa atitude de derrota.

~ 148 ~
— Eu só queria... — suspirou ele, depois de uma longa pausa —, eu só queria que tivesse sido eu e não Erich quem a
encontrou naquela escola de música em Nova York. Às vezes eu penso que tudo teria sido diferente se tivesse sido eu em
vez dele.
O coração de Megan quase parou. O que teria sido de sua vida se isso tivesse acontecido? Olhou para Kurt, sem poder
esconder o desejo que brilhava em seu rosto. Queria devorá-lo com o olhar. Mas sabia agora que tinha de mandá-lo
embora. Erich a tinha encontrado primeiro e fizera dela os frangalhos emocionais que era hoje. Tinha sido Erich o
responsável por aquela disputa de terras entre ela e Kurt. E por causa disso ela sabia que não teriam futuro.
— Nada teria sido diferente se você me encontrasse primeiro — disse ela, sabendo que o estava ferindo. — Sabe, Kurt,
em todas as coisas que realmente importam, você e Erich são exatamente iguais.
Por um momento Kurt pareceu transformar-se em pedra. Depois respirou fundo. Os olhos dele passearam pelo corpo
dela, detendo-se nas curvas que nem a horrível camisola do hospital conseguia esconder. Ele sorriu, alheio, irônico,
perdido em lembranças da noite em que tinham estado juntos.
— Uma coisa teria sido diferente, Megan. Se eu fosse seu marido, querida, nada no mundo conseguiria jamais me
arrancar de sua cama.
E ele se virou e saiu do quarto, decidido, sem olhar para trás.

O carro de Peter corria pela estrada, cortando o vale, e o vento que entrava pela janela fazia as pontas do lenço que
Megan usava na cabeça baterem em seu rosto. Ela as afastou, irritada, mas tinha sido uma boa sugestão de Ulrike comprar
aquele lenço cigano para esconder o ferimento na cabeça.
Durante a expedição de compras, Ulrike tinha seguido os conselhos de Megan, primeiro um tanto insegura, depois se
divertindo consigo mesma ao escolher roupas de cores mais adequadas e mais bem cortadas que os vestidos apenas
confortáveis que estava acostumada a usar. Ulrike chegou mesmo a admitir que devia usar mais maquiagem, coisa em que
raramente pensava, ocupada como estava sempre no hospital. Mas quando o cabeleireiro que cortava os longos cabelos
loiros de Ulrike se ofereceu para mudar o corte de Megan, a fim de esconder o ferimento, Ulrike tinha subitamente
assumido de volta seu ar profissional, dizendo a Megan que devia evitar xampus e fixadores enquanto não chegasse a Los
Angeles e seu médico pessoal removesse os pontos. O desapontamento de Megan, porém, logo desapareceu ao ver a
tremenda diferença que roupas novas e um corte de cabelo diferente tinham feito à amiga.

~ 149 ~
— Já que não responde — disse Peter, enquanto dirigia o carro —, acho que não concorda com a minha sugestão, não
é?
— Desculpe, Peter — disse Megan, surpresa. — Eu não estava prestando atenção. O que foi que disse?
— Eu estava dizendo — ele repetiu devagar —, que em vez de ir de Salzburg para Munique você podia pegar o avião
em Viena. Há um vôo direto para os Estados Unidos.
— Mas eu já estive em Viena. E, além disso, fica do outro lado do país!
— Megan — disse Peter, sorrindo —, eu não estou falando de ir da Califórnia até Nova York de carro. A Áustria
inteira é menor que o estado do Maine, sabia? É uma viagem de três horas apenas, pela rodovia principal. E a gente
passaria por algumas das vistas mais lindas do mundo. Acho que vale a pena você dar uma olhada em tudo antes de ir
embora. Se você não está com pressa, a gente podia viajar pelo norte da Áustria. Passar alguns dias em Traunsee. Há uma
hospedaria incrível que eu conheço em Traunkirchen, bem na margem do lago... Além disso, tio Max vai estar em Viena e
eu queria que você o conhecesse.
— Por que quer que eu conheça seu tio? — perguntou Megan, absolutamente surpresa.
— Bom, primeiro porque é um homem incrível e acho que vai gostar dele. Ele deve estar intrigado com a mulher que
finalmente conseguiu dobrar os von Kleist. E segundo... bom, acho melhor a gente esperar mais para falar disso, está
bem?
— Pensei que estivesse bravo com o seu tio — disse Megan olhando Peter, um tanto inquieta. — Você chegou a
ameaçar voltar para os Estados Unidos.
— É, acho que eu disse isso mesmo, mas não tinha a intenção. Eu estava furioso com ele naquela hora, lembrando de
você lá no sofá, toda ensangüentada... Sabe, tio Max ficou tão chocado quanto eu com o que lhe aconteceu. Quando
aquela garota foi dizer para ele que sabia de um jeito para acabar com a disputa contra Kurt von Kleist ele não fazia idéia
de que a coisa toda ia acabar em sangue.
— Esqueça — disse Megan duramente. — Não é coisa que eu gostaria de experimentar de novo, mas já acabou, sem
maiores tragédias. Não culpo ninguém.
— É muito generoso de sua parte — observou Peter. — Acho que eu não seria assim tão tolerante.

~ 150 ~
— Não, não é nenhuma nobreza da minha parte. O que eu entendi foi que as ações das pessoas são ditadas por
influências que estão fora do controle delas mesmas. Não se pode esperar que ajam diferentemente, por mais que a gente
queira.
Por algum tempo rodaram em silêncio. Deixaram o vale para trás e Megan reconheceu a estradinha em curvas que
levava à colina.
— Tenho de verificar umas coisas — explicou Peter. — Já respirou ar tão puro quanto este antes? Meu Deus, eu adoro
este país! Talvez porque eu seja austríaco por parte de mãe. Quando cheguei aqui, há seis anos, senti como se tivesse
voltado para casa. E com a ajuda do tio Max fiz uma vida para mim. Ultimamente tenho pensado que é hora de eu me
casar de novo, assentar, ter filhos...
Ele parou o carro debaixo do velho carvalho, ao lado do trailer cheio de instrumentos. Desligou o motor e voltou-se
para Megan.
— Megan, querida... — disse ardentemente.
— Pelo amor de Deus, Peter — disse Megan, levantando a mão para silenciá-lo —, você não está se preparando para
me pedir em casamento, está?
— Não, não estava — disse ele, rindo muito —, mas admito que deve ter soado como uma proposta. Na verdade, é
uma proposta, mas nada assim tão permanente. O que eu tinha em mente era um giro pelo país, completado com
acomodações confortáveis e companhia agradável.
— Soa maravilhoso! Mas por que eu?
— Você é linda — disse Peter, simplesmente. — É sério. Eu estou convidando, mesmo. E prometo que você não vai se
decepcionar.
— Muito obrigada, Peter — disse Megan, com um pequeno sorriso —, mas a resposta é não. Tenho certeza de que
seria a maneira mais rápida de acabar com a nossa amizade. Além disso, acho que você está animado por que seus
negócios finalmente vão dar certo. Nós dois sabemos que não sou eu quem você quer de fato.
— Não se subestime — disse ele, inclinando a cabeça e olhando, curioso, para ela. — Diga-me uma coisa, o que é que
você teria respondido se o convite partisse do Graf von Kleist?
Megan baixou os olhos, pensando em Kurt.

~ 151 ~
— Esqueça — disse Peter, descendo do carro e caminhando até o carvalho com as mãos nos bolsos. Então voltou-se
para Megan, que o olhava pela janela, ainda sentada no carro. — Não sei o que é que você vê nesses von Kleist. São todos
uns maníacos arrogantes, com mentalidades feudais. Acham que a terra gira só porque isso convém a eles. Já deu para
perceber que seu marido não era grande coisa, mas agora você vem e acaba caindo por Kurt, o pior de todos eles. Pelo
amor de Deus, Megan! Oh, claro que o homem é muito atraente, muito brilhante com aquele jeitão de século XVIII. Até
mesmo Riki, que é a mulher mais razoável do mundo, não conseguiu ficar imune ao charme dele. Se ele a excita tanto
assim, por que é que você não tem só um caso rápido com ele e acaba logo com isso?
— Eu quase tive, mesmo — respondeu Megan, forçando um sorriso para esconder a dor que aquele "quase" lhe tinha
custado. — E não adianta perguntar que não vou responder a mais nenhuma pergunta.
— Não, nenhuma pergunta mais — disse Peter, sacudindo a cabeça.
Ele abriu a porta do carro e ajudou Megan a descer. Caminharam pela trilha até o alto da colina, onde havia outro
carvalho, ainda mais antigo.
Megan olhou em torno. A colina era muito bonita e seria uma pena entregá-la à companhia do tio de Peter, mas... Era
inevitável. Assim como era inevitável que ela amasse Kurt. Um amor que tinha nascido do acaso de um encontro, da
atração sexual e dos conflitos não resolvidos de sua vida com Erich. Era inevitável que um homem com a tradição e a
cultura de Kurt colocasse as necessidades de família acima de seu interesse por uma jovem simples como ela. No entanto,
como era duro superar tudo aquilo!
— Venha admirar a minha obra de arte — chamou Peter. Megan caminhou até ele, que brincava com um canivete no
tronco da árvore, e olhou por cima de seu ombro. Peter tinha entalhado na casca rugosa um grande coração e dentro
escrevera: P. S. ama...
— Seu bobo — disse Megan, rindo.
— No fundo do meu coração eu não passo de um escoteiro — disse Peter. — O que acha que eu devo pôr? M. H. ou
M. von K.?
— Que tal U. M.? — perguntou Megan, provocante.
— Riki? — perguntou Peter olhando-a, surpreso.
— Claro!
— Dá para perceber tanto assim? — perguntou ele, corando.

~ 152 ~
— Eu percebi — respondeu Megan. — Não sei se todo mundo percebe. De qualquer forma, acho que vocês formam
um casal incrível.
— Eu também acho — concordou Peter. — Ulrike Müller é uma das mulheres mais maravilhosas que eu já conheci. E
eu a amo. Muito. Mas ela não está interessada em mim. Não tem tempo para nada, a não ser aquele hospital dela.
— Não sei, não. Eu tenho a nítida impressão de que ela vai abandonar o Santa Elisabeth logo, logo.
— É? Ela vai para algum outro lugar?
— Não sei, Peter. Você mesmo vai ter de perguntar para ela.
— Eu não acredito — disse Peter, baixinho. — Aquele hospital é a própria vida dela.
— Talvez seja justamente esse o problema. Talvez seja hora dela encontrar outro interesse na vida. Um marido, filhos,
por exemplo.
— Hoje de manhã — disse Peter, parecendo enveredar por uma linha de pensamento totalmente nova —, eu ia dizer
para ela que estava muito bem naquela roupa cor-de-rosa. É nova, não é? A cor fica boa para ela e aquela blusa realça o...
E o cabelo também. Já era bonito antes, mas agora, todo curtinho, fez ela ficar parecendo uma garotinha.
Megan deixou Peter mergulhado em seus pensamentos particulares e passou os dedos pelo tronco da árvore,
percebendo pela primeira vez que havia vários outros entalhes.
— Droga! Que diferença faz se eu amo Riki? Eu não sou católico e ela não perdoa o fato de eu ser divorciado.
— Mas isso não é assim tão grave, é? — perguntou Megan, surpresa com a súbita explosão dele.
— Você nem faz idéia, Megan. A primeira vez que eu falei de minha ex-mulher, Riki ficou chocadíssima. Ela me fez
sentir como se eu fosse um velhote sujo.
— Talvez tenha sido só a surpresa...
— Não sei — continuou Peter. — Acho que foi um choque para ela e nunca mais falamos no assunto. Se ela pelo
menos me deixasse explicar... Annie e eu éramos apenas duas crianças brincando de gente grande. Não foi culpa de
ninguém, na verdade. Ela se casou de novo há quatro anos e, pelo que sei, está muito feliz. Riki e eu também podíamos...
— Ora, Peter — interrompeu Megan —, pare de reclamar. Se você ama Riki, vá e diga isso a ela. E aproveite para
dizer que podem reconciliar as diferenças religiosas e casar. Ponto final. Não acho que ela vá discordar, não.
— Mas... mas...

~ 153 ~
— Peter — prosseguiu Megan, mais suavemente —, você já parou para pensar em tudo o que Ulrike tem que suportar?
Ela é jovem mas há sete anos está literalmente sendo a responsável pela vida e pela morte de toda a população de
Kleisthof-im-Tirol. Não acha que ela deve se cansar de tomar todas as decisões sozinha? Que seria um alívio para ela que
alguém mais resolvesse alguma coisa? Se você a ama de fato, não acha que deve isso a ela?
Megan voltou-se, para continuar examinando a árvore. Já tinha dito tudo que tinha a dizer. Demais talvez, mas Peter ia
ter de fazer o resto.
O tronco da velha árvore era todo cheio de entalhes e inscrições, muitas das quais tão velhas que era quase impossível
discernir o que diziam, misturadas que estavam às irregularidades da casca escura. Stefan und Mina. Wolfgang Hebe Elke.
Tantos casais, agora velhos ou já mortos, haviam se encontrado ali, debaixo daquela copa protetora! Megan não conseguia
evitar de pensar em quantas donzelas teriam resistido aos seus ardorosos cavaleiros, terminando por ceder, na grama
macia, os seus favores ao amado. Talvez fosse ali que os jovens von Kleist de outras eras trouxessem suas namoradinhas
camponesas...
Descobriu uma inscrição um tanto mais baixa que as outras, tão antiga que quase se confundia com as marcas da casca.
Removeu um pouco o musgo ressecado e traçou as marcas com a ponta dos dedos: S. von K., 1763. Megan sentiu um
tremor percorrê-la, como se tivesse tocado a eternidade: 1763. Mais de duzentos anos tinham se passado desde que um
garotinho von Kleist se encostara àquele tronco para gravar suas iniciais e se afastara em seguida para seguir seu destino.
Destino que podia ser incerto, mas a árvore ali permanecia. O menino podia ter morrido ainda criança, ou crescido e se
tornado um daqueles rostos da galeria de retratos do schloss. Mas o que quer que lhe tivesse acontecido, já tinha sido
varrido pelos séculos. Só as tênues letras na casca da árvore permaneciam. E permaneceriam pelos séculos seguintes, se os
homens, tão tolos, não a destruíssem.
Pela primeira vez Megan compreendeu o que Kurt tinha dito a respeito de preservar a herança para seus sucessores. E
de repente lhe ocorreu que, se ela vendesse a propriedade, a pessoa que mais sairia prejudicada seria a filha de Kurt, Liesl,
a única von Kleist que Megan nunca gostaria de magoar.
— Peter, o que acontecerá com esta árvore quando começarem a cavar a mina? — perguntou baixinho.
— Tudo depende do lugar exato onde começarmos a escavar. — Ele olhou em volta, fazendo cálculos mentais. — Mas
se não me engano essa árvore vai ter de sair daí.
— Então por que perder tempo em marcar suas iniciais? — perguntou Megan, notando imediatamente quanto Peter se
sentiu envergonhado com a pergunta. — Não posso fazer isso. Não posso permitir que tudo isso seja destruído. Não
~ 154 ~
pertence a mim, apesar de tudo o que a lei diz. Não tenho o direito. Os únicos que podem decidir o que acontecerá com
esta árvore e com esta colina são as pessoas que fazem parte disto aqui: Kurt e especialmente Liesl.
— Eu sabia — gritou Peter, cravando o canivete no coração que tinha gravado na árvore —, eu sabia que isso ia acabar
acontecendo. Estava tudo indo bem demais! Por que é que eu fui inventar de trazer você aqui? Por quê?
— Então todas aquelas coisas maravilhosas que me disse eram só para me fazer vender a terra? — perguntou Megan,
horrorizada.
— Não, Megan, claro que não. Eu realmente queria que você viesse viajar comigo. Qualquer homem adoraria isso.
Muito sério, ele pousou ambas as mãos nos ombros de Megan, olhando-a nos olhos.
— Então, mesmo depois de tudo o que eles lhe fizeram, você está decidida a vender a propriedade para os von Kleist
por uma fração apenas do preço real?
— Eu não vou vender — disse Megan, direta. — Vou dar. Vou dar para Liesl, que talvez tenha mais direitos sobre a
terra do que qualquer outra pessoa. É do futuro dela que estamos falando. Ainda tenho os papéis que Kurt me deu. Deve
ser simples transferir os nomes, não?
— E depois? — perguntou Peter, estudando-a, atento.
— Não sei — ela murmurou, rouca, cansada, vencida, a cabeça doendo. — Depois... acho que vou para casa.
Peter soube reconhecer nas palavras dela o lamento das crianças quando estão magoadas, e abraçou-a calidamente.
Megan repousou o rosto no ombro dele.
— E onde é a sua casa, Megan? — ele perguntou docemente.
— Não sei — soluçou Megan. — Acho que em Los Angeles. Mas aqui, não! Meu Deus, qualquer lugar do mundo,
menos aqui!

CAPÍTULO 11

— O brigada, Dorothy — disse Megan, parada na porta. — Não sei o que faria sem você. Meu secador resolveu
quebrar logo agora que eu preciso dele.
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Ela atravessou a sala chamando a amiga com um gesto para acompanhá-la através do quarto, ainda menor que a sala,
até o banheiro.
Dorothy se recostou na colcha de retalhos que cobria a cama e ficou olhando pela porta aberta enquanto Megan secava
o cabelo, agora cortado curto, em muitos cachos cor de cobre.
— E quem é esse cara com quem você vai sair? — perguntou Dorothy, falando alto por causa do secador. — Alguém
que eu conheça?
— Não — respondeu Megan, rindo e desligando o aparelho enquanto ajeitava o penteado. — E um rapaz que eu
conheci na loja de música ontem. Eu estava indo para o caixa pagar as partituras e dei um encontrão com ele. As partituras
caíram todas no chão, misturando Vivaldi com música popular. Ele é professor na U.C.L.A., e dirige também o coro
daquela igreja grande do Wilshire Boulevard, aquela que parece gótica.
— Parece um encontro planejado pelos céus — disse Dorothy. — Quantos anos ele tem?
— Não sei. Uns vinte e cinco, vinte e oito. Começamos a conversar enquanto apanhávamos as partituras. Eu contei que
tinha acabado de marcar algumas aulas para tirar o diploma e ele achou ótimo saber que eu ia voltar a estudar. Daí ele
disse que não tinha conseguido entradas para o concerto da Hollywood Bowl hoje à noite e eu disse que tinha um ingresso
a mais que ninguém ia usar e daí...
— Quer dizer que você o convidou para sair? — perguntou Dorothy.
— É. Acho que foi.
— Ah... Estou vendo que o Paraíso Polinésio logo vai ter de arranjar uma pianista nova. Diretores de coro de igreja
não gostam que as esposas trabalhem em bares noturnos.
— Esposa? Meu Deus, Dorothy, eu ainda nem conheço o rapaz!
— Às vezes é mesmo assim depressa — disse Dorothy, notando que suas palavras tinham despertado memórias em
Megan. — Mas não pense mais naquele von Kleist, Megan. Aquela gente não presta para você. Quando eu lembro sua
cara ao descer do avião... Você foi viajar de férias e voltou parecendo, um mutilado de guerra! Esqueça a Áustria e trate de
começar uma vida nova para você aqui em Los Angeles, que é a sua terra.
— Claro, Dorothy. Isso tudo é passado agora. — Megan se maquilava, caprichando na base debaixo dos olhos para
esconder as olheiras. — E então? Estou bem? — perguntou, girando no meio do quarto.

~ 156 ~
— Muito próprio para sentar na grama e ouvir música — comentou Dorothy —, mas essa calça não tinha de ser mais
justa?
— Era mais justa quando eu comprei. Acho que emagreci.
— Seu cabelo está ótimo assim. Eu sei que você gostava dele comprido, mas está ótimo, agora que a parte raspada já
cresceu. — Os instintos maternais de Dorothy a deixavam furiosa sempre que se lembrava do que tinha acontecido a
Megan. — Você está linda, querida, e espero que se divirta. Agora tenho de voltar para casa e me aprontar, senão vou
chegar tarde ao trabalho. Nem todos têm a sua sorte de estar de folga hoje.
Megan suspirou ouvindo a amiga entrar no apartamento vizinho, onde morava. Ela estava tão contente com o encontro
que Megan não tinha tido coragem de contar que nem se lembrava da cara do rapaz com quem ia sair. Sabia que era muito
loiro e queimado de sol e que parecia respeitável, mas toda vez que tentava lembrar dos traços dele o que lhe vinha à
mente era um par de olhos azuis, cabelos escuros caindo na testa, malares salientes e um nariz longo e aristocrático.
Oh, Deus, quando é que ia se libertar dos von Kleist? Primeiro Erich e agora Kurt. Ela cortara os cabelos, na esperança
de, eliminando aquilo que excitava Kurt, eliminá-lo também de sua vida. Mas tinha sido inútil. Não podia se livrar dos
lábios que ele tinha beijado, do corpo que tremera, excitado pelo toque dele. Peter tinha lhe aconselhado a ir para a cama
com ele, para poder assim superar aquilo. Mas, será que teria adiantado?
Pobre Peter! Como ele tinha tentado fazê-la desistir de doar a colina a Liesl! Até o próprio Max Bachmann tinha lhe
telefonado em Salzburg, pedindo que desistisse daquilo. Mas era inútil, pois tudo o que ela queria era se livrar de qualquer
contato posterior com os von Kleist. Era por isso também que tinha recusado o cheque que um representante de von Kleist
tinha vindo lhe trazer em mãos, em seu apartamento de Los Angeles.
Tinha de se livrar dos von Kleist. Era uma questão de sobrevivência. Preferia ficar assim, frustrada, mas pelo menos
com seu respeito próprio intacto.
Andou pelo apartamento minúsculo, mobiliado com peças velhas e que ela havia tentado embelezar enchendo de
plantas e cartazes. Ficava mais nervosa a cada minuto que passava. Não tanto pelo jovem professor que vinha buscá-la, e
de cuja cara nem conseguia lembrar, mas porque naquela noite estava começando uma nova fase em sua vida.
A campainha tocou. Ela notou que o rapaz era pontual. Endireitou os ombros, marchou através da sala e foi abrir.
Kurt estava parado diante da porta aberta.

~ 157 ~
Ela olhou para ele quase sem poder acreditar. Nunca o tinha visto com roupas tão esportivas: calças pretas, camisa
cinza-pálido aberta no pescoço e um paletó xadrez de preto e branco jogado no ombro. Parecia à vontade, como se fosse a
coisa mais natural do mundo ele estar ali na porta da casa dela.
Megan o olhava, paralisada, incapaz de se mexer, apenas o coração batendo tão forte que parecia querer sair pela boca,
desejando-o. Tentou dizer o nome dele, mas nenhum som saiu de sua boca. Hipnotizada por aqueles olhos firmes, Megan
compreendeu instantaneamente que era bobagem tentar escapar dele, mesmo que fugisse para o outro lado do mundo.
— Olá, Megan — disse ele, olhando-a fixamente, um ligeiro sorriso no canto dos lábios. — Posso entrar?
— Eu... eu ia sair — ela gaguejou com esforço. — Ten... tenho um encontro.
— Eu viajei até aqui só para vê-la, Megan. Não acha que podia cancelar seu encontro? Só desta vez?
Como em resposta à pergunta dele, ouviram os passos de alguém, que subia os degraus de dois em dois.
— Oi, Megan. Desculpe o atraso... — O rapaz loiro, vestido de jeans e com uma camiseta da U.C.L.A. estacou diante
do homem elegante que olhava Megan possessivamente. — Eu... será que me enganei? Pensei que a gente ia ouvir o
concerto hoje.
— Sinto muito, mas acho que os planos de Megan tiveram de ser mudados — respondeu Kurt antes que ela pudesse
abrir a boca. — Ela vai sair comigo hoje.
— Kurt! — protestou Megan indignada, retomando consciência. Tocou o braço do rapaz. — Desculpe-me. Eu queria
muito ir ao concerto com você. Mas Kurt... Kurt é meu cunhado. Ele acaba de chegar à cidade, de repente. Eu não fazia
idéia...
— Tudo bem — disse o jovem petulante, irritado, virando-se para ir embora.
— Talvez outro dia — disse Megan, tímida.
O rapaz hesitou, olhou Megan de alto a baixo, depois olhou Kurt.
— Acho que não vai dar — disse, enfiando as mãos nos bolsos e se afastando depressa.
— Quem você pensa que é para dispensar o rapaz dessa forma? — perguntou Megan indignada.
— Na verdade, foi você quem dispensou o rapaz — disse Kurt suavemente. — Mas se vamos discutir é melhor fazer
isso lá dentro, com a porta fechada.
Ele a empurrou para dentro e trancou a porta. Olhou em volta, examinando tudo.

~ 158 ~
— Há quanto tempo você sai com esse... cara?
— Ele não é um "cara" apenas. É professor de música.
— É mesmo? Dorme com ele?
— Não! — rugiu Megan.
— Não? Ele queria muito.
— Pelo amor de Deus, Kurt. Eu conheci esse rapaz ontem.
— E já vai sair com ele? — Kurt riu. — Você trabalha depressa.
— Íamos assistir a um concerto na Hollywood Bowl. Só isso.
— Não, não era só isso, Megan — disse Kurt, apertando os olhos. — Você ainda não aprendeu que todo homem que a
olha sente vontade de fazer amor com você?
— Não é verdade, Kurt. E, mesmo que fosse, o que é que você tem a ver com isso? Não acha que sou capaz de me
defender?
— Baseado em experiências passadas, eu diria que não.
— E o que adianta tudo isto? — disse Megan, depois de uma pausa. — Sente-se, Kurt, e diga-me: por que está aqui?
Evidentemente você não veio lá da Áustria até aqui só para me insultar, não?
Sentaram-se e Megan ficou olhando para ele. As rugas em seu rosto pareciam mais profundas, ele tinha emagrecido
mais ainda e parecia tão cansado quanto ela.
— Quando foi que chegou?
— Faz umas três horas. Eu queria vir para cá antes, mas demorei muito tempo para alugar o carro e deixar a bagagem
no hotel. Além disso, peguei o trânsito do fim da tarde. Congestionamento, fumaça... mein Gott, Megan, como é que você
agüenta?
— A gente se acostuma. Como está Liesl?
— Muito bem, obrigado. Ficou na casa de uns amigos meus. Ela sente sua falta, sabe?
— Eu também tenho saudades dela — disse Megan, deixando que se formasse um silêncio incômodo. Finalmente
disse: — Kurt, por que está aqui?
— Eu tinha de... Eu queria saber por que você recusou o pagamento pela colina.
~ 159 ~
— E você viajou milhares de quilômetros só para me perguntar isso? — Megan estava perplexa. — Não acha que um
telegrama ou um telefonema seriam mais rápidos e mais baratos?
— Não pensei nos gastos.
— Você nunca pensa.
— Você realmente não gosta de dinheiro, não é, Megan? — Kurt inclinou-se para a frente, os olhos brilhando. —
Desde o começo foi a fortuna dos von Kleist que você odiou, não é? Foi isso que nunca deixou você ver a mim ou à
minha família de maneira objetiva.
— Não é o dinheiro, Kurt — Megan sacudiu a cabeça —, é a arrogância que resulta do dinheiro. Essa convicção de
que se pode forçar os outros a fazerem tudo o que a gente quer.
— Eu posso — ele disse, cínico.
— Seu dinheiro não conseguiu me forçar a casar com você — respondeu, indignada. — Não pôde evitar que Gabrielle
tivesse um colapso nervoso! Se quer mesmo saber, eu recusei o pagamento pelas terras por causa do meu orgulho, o meu
orgulho de Halliday. Pronto, já tem a sua resposta, agora saia! Saia! — Megan abriu a porta violentamente, num gesto
melodramático.
— Há outra coisa que eu queria dizer antes de ir. — Kurt se levantou, caminhando lentamente para a porta. — E foi
por essa razão que não vim vê-la antes. Estive falando com Max Bachmann. Ao doar a colina a Liesl você embargou a
propriedade até pelo menos a maioridade dela, mas Bachmann e eu discutimos um arranjo para permitir que a propriedade
seja utilizada, permanecendo ainda sob o controle dos von Kleist.
— Vai deixar que eles perfurem a mina?
— Vou — disse Kurt —, se as pesquisas de Swanson indicarem que vale a pena. Não era assim que eu queria que
fosse, mas acho que é inevitável. Sabe, Max Bachmann é um homem interessante. Descobri que ele se preocupa tanto
quanto eu em manter a integridade histórica e ecológica da propriedade von Kleist. Estamos organizando um comitê com
representantes de Kleisthof-Tirol para supervisionar a operação e impedir que o campo seja prejudicado. A mina vai trazer
uma infinidade de novos empregos à área e provavelmente aumentará a população. E os rendimentos vão garantir também
que o schloss permaneça na família von Kleist por mais tempo. Achei que ia gostar de saber disso.

~ 160 ~
Kurt voltou-se para sair. O coração de Megan se encolheu. O homem que ela amava tinha viajado metade do mundo
para vê-la e ela estava deixando que fosse embora. Tinha certeza de que, se ele passasse daquela porta, nunca mais o veria
de novo.
— Por favor, não vá embora — ela disse, pousando a mão no braço dele e sorrindo. — Você e eu parecemos acabar
sempre aos berros um com o outro. E um de nós vai embora, sempre. Gostaria, pelo menos desta vez, que a gente se
despedisse como amigos.
— Eu também — respondeu Kurt, sorrindo calidamente. — O que é que você sugere?
Ela queria gritar ame-me, abrace-me, beije-me, possua-me!
— Bem — disse, tímida —, eu tenho dois ingressos para um concerto. Podemos ir jantar, depois eu posso lhe mostrar
um pouco da minha cidade e, para terminar, vamos ver o concerto na Hollywood Bowl.
— Acho um ótimo programa. — Kurt riu. — Por outro lado... Não, talvez seja melhor você me mostrar a cidade.
Foram para o bairro japonês e comeram num restaurante típico, sentados no chão, o cozinheiro preparando a refeição
na mesa. Conversaram sobre assuntos gerais; tempo, política, música e arte.
Quando chegaram à enorme concha acústica, Megan sentia-se relaxada e contente com a presença de Kurt. Aceitava o
fato de que ele ia retornar à Áustria e provavelmente nunca se encontrariam novamente. Sabia também que ia lamentar o
fato de não ter sido amante dele, mas no momento eram bons amigos, camaradas, e ela se sentia em paz.
Cruzaram o gigantesco estacionamento de mão dadas, Kurt levando no braço a coberta sobre a qual se sentariam.
Entregaram os ingressos, pegaram programas e Megan conduziu Kurt ao longo das arquibancadas de cimento, preferindo
sentar no gramado que ficava nos fundos do grande auditório ao ar livre da Hollywood Bowl. Abriram a coberta no chão,
onde outras pessoas faziam o mesmo.
— Eu prefiro sempre sentar aqui em cima, na grama. Aqueles bancos são muito duros e a gente não pode nem se
mexer.
— É porque você é jovem — disse Kurt, rindo. — Quando tiver a minha idade vai ver que sentar no chão pode ser
também muito doloroso. — Ele passou os dedos levemente no rosto de Megan. — Você é muito jovem, não, Megan?
Jovem demais para ter essas olheiras. E esse cabelo curto faz você parecer ter dezesseis anos. Eu gostava tanto do seu
cabelo comprido...

~ 161 ~
— Eu não tinha escolha — disse Megan, tremendo sob o toque dele. — Meu cabelo estava horrível com aquele buraco
que Ulrike teve de fazer.
— Sabia que Ulrike Müller e Peter Swanson estão noivos? Eles parecem tão descombinados!
— Eu já sabia. Ulrike me escreveu, contando. Ela contou também que vai deixar o hospital e abrir um consultório para
combinar melhor os horários com o trabalho de Peter. E acho que eles combinam, sim. Ela precisa de alguém que não a
deixe esquecer que ainda é jovem e Peter, às vezes, precisa de uma influência mais madura e estável.
— Engraçado! Eu achava que Peter gostava de você — disse Kurt.
— De mim? Ah, não.
Kurt olhou o programa do concerto, que era em benefício dos países africanos atingidos pela seca.
— Programa variado: algumas árias de Puccini, Debussy, a sonata de Halstead...
— O quê? — disse Megan num salto.
— Aqui, olhe. Quase o último número. Sonata em Lá Menor Violino e Piano, de Halstead. Acho que não conheço a
obra.
— Não sabia que iam tocar isso — ela murmurou, perturbada. — Se soubesse nunca teria vindo.
— Isso tem algo a ver com Erich? — Kurt olhava intensamente para ela. — Megan, você não pode passar o resto da
vida evitando violinos.
— Eu sei, mas é que...
As luzes se apagaram na platéia e Kurt tocou a mão de Megan, carinhosamente. Ele tirou o paletó e acomodou-se
melhor.
No escuro, Megan estava rígida. Não ouviu o discurso apaixonado pedindo doações, feito pelo mestre-de-cerimônias,
nem uma das árias de La Boheme e Madame Butterfly. O pianista que tocou o poema complexo de Debussy podia ter
tocado O Bife que para ela teria sido a mesma coisa. Seus ouvidos, todo o seu corpo estavam tensos, alerta para o
momento em que afinal seria forçada a ouvir novamente a misteriosa sonata de Philip Halstead.
Os acordes iniciais soaram sobre a multidão silenciosa. O pianista dedilhou o tema e então, com enorme sensibilidade,
reduziu: o volume de sua execução e o violinista começou a melodia. Megan olhava fixamente a enorme concha acústica,
ouvindo o tecido musical que eles urdiam, como "lençóis de cetim", ela havia dito um dia para si mesma. Esperava sentir
novamente aquela dor a que já se habituara. Lá longe, os executantes eram vultos escuros na luz de cena. Tocavam com
~ 162 ~
maestria, sem saber que na platéia havia alguém para quem a sonata de Halstead simbolizava tudo o que tinha ido errado
em seu casamento, em sua vida. Não era uma obra muito conhecida. Tinha sido composta por Philip Halstead, fundador
da escola de música onde Megan estudara. Erich tinha gostado tanto da obra que a havia transformado em sua assinatura
para concertos. Quando ele e Megan tocavam a sonata, ela sempre sentira que era como se estivessem fazendo amor
através da música. Ingenuamente achava que ele sentia a mesma coisa, mas um dia, ao retornar da execução dessa obra
exatamente, encontrara no camarim Erich e Lavínia beijando-se apaixonadamente.
Agora, porém, percebia surpresa que a música não tinha mais nenhum efeito sobre ela. Não sentia mais dor, somente
pena. Uma enorme pena.
Olhando aquele mar de cabeças na platéia, Megan pensou em quantos ali teriam ouvido falar de Erich von Kleist.
Poucos, talvez ninguém. Erich tinha morrido no início de sua ascensão, conhecido por um punhado de apreciadores de
música, mas ainda desconhecido do grande público. Pobre Erich, tão brilhante, tão talentoso e tão atormentado. Que vida
curta! Megan sabia agora que ele tinha sido na verdade uma vítima, tanto quanto ela. Uma vítima das circunstâncias, a
personalidade deformada pelas condições de nascimento e criação. Talvez a única coisa que lhe desse alguma paz, alguma
alegria, fosse a música.
Megan piscou e lágrimas quentes desceram por seu rosto, lágrimas derramadas por Erich, pela tragédia daquela vida
tão breve. Agora ela o conhecia como nunca tinha podido conhecer enquanto estava vivo. Conhecia e perdoava. Tudo.
E então os braços de Kurt se fecharam em torno dela e ele a puxou para si. Com a mão esquerda segurava sua nuca e
com a direita cobria seu ouvido, acariciando seus cabelos ruivos, mantendo a cabeça dela contra seu peito, a música se
dissolvendo para ela nas batidas do coração dele.
Megan se apertou mais nele, chorando a dor e o pesar que tinham fermentado dentro dela por tanto tempo, criando
uma barreira para o amor. De repente um som amorfo encheu seus ouvidos como se uma enorme muralha estivesse
ruindo. Ela levantou a cabeça e descobriu que eram os aplausos.
— Desculpe — disse, sorrindo para Kurt e limpando as lágrimas com a mão. — Música romântica sempre me
emociona.
Kurt tirou a cigarreira. No escuro, quando a chama se acendeu, Megan viu que a expressão dele era calma. Mas os
movimentos que ele fazia, fumando no longo silêncio que se formou, eram nervosos.
— Vai deixar que toda a sua vida fique arruinada pelas coisas que Erich lhe fez, Megan? Não vai nunca se libertar
dele?
~ 163 ~
— Mas eu estou livre dele. — Megan sorria porque sabia que agora era verdade.
— Há menos de um minuto você estava chorando porque o amava.
— É verdade — ela admitiu —, eu amava Erich. Amava, no passado. Erich está morto e eu já tive pena de mim mesma
por tempo demais.
Voltou a prestar atenção aos números finais do concerto e, quando tudo terminou, voltou-se para Kurt. Na luz que
vinha do palco podia ver que ele estava muito sério, fumando mais um cigarro, a grama em volta dele toda cheia de tocos,
alguns ainda fumegando.
As pessoas passavam por eles em direção à saída, mas Kurt permanecia imóvel. Megan esperou.
— O que lhe dá tanta certeza de que superou Erich agora? — Kurt perguntou finalmente.
— Pensando naqueles dois anos, entendo agora que pelo menos; parte do que aconteceu foi provocado por mim
mesma. Eu era muito jovem e tinha muito medo de ficar sozinha. Quando conheci Erich, minha mãe tinha morrido há
pouco e eu estava confusa, horrorizada pela solidão. A proposta de Erich me pareceu um presente dos céus, porque
significava que eu teria alguém novamente. Depois, quando; eu descobri sobre o caso dele com Lavínia, fui tão covarde
que pensei que viver ao lado dele seria, em qualquer circunstância, melhor que tentar fazer minha própria vida. Levei dois
anos para admitir que, estava errada. — Megan endireitou os ombros e disse, com firmeza: — Mas agora está tudo
acabado. Sou adulta, responsável por mim mesma. Se ser sincera comigo mesma quer dizer ficar sozinha... Bom, eu sei
que posso suportar.
— Eu não posso — disse Kurt com a voz estrangulada depois de um longo silêncio.
— O quê? — Megan estava assustada.
— Eu não posso — Kurt repetiu. — Não consigo mais vive sozinho. Convivi com a solidão todos estes anos, mas acho
que não consigo mais. — Ele atirou o cigarro e agarrou-a pelos ombros, sacudindo Megan ligeiramente para fazê-la
entender. Tinha o rosto atormentado. — Só me sobrou minha filha. O resto, tudo o que eu amava, me foi tirado: Elisabeth,
minha família, minha música. E agora uma parte da minha herança. Sempre me orgulhei da minha auto-suficiência, mas
não suporto mais. Se perder mais alguma coisa, será o meu fim. Por favor, Megan, preciso da sua ajuda.
Megan perdeu o fôlego, chocada. Seria aquele o mesmo Kurt, Graf von Kleist, senhor da propriedade, humilhando-se,
implorando a ela?

~ 164 ~
— Você acha que eu não a amo? — ele continuou, desesperado diante do silêncio dela. — Meu Deus, eu a amei desde
aquele primeiro dia em meu escritório no schloss, quando você quase desmaiou. Eu nunca esquecerei seu rosto pálido, os
cabelos ruivos, compridos, esses enormes olhos verdes. Você estava tão nervosa, tão cansada, mas enquanto suas pernas
agüentaram você resistiu, desafiante, corajosa, uma pequena fúria enfrentando minhas absurdas acusações. E antes
daquela conversa acabar eu já sabia que a amava.
— Mas... mas você nunca agiu como se me amasse...
— Eu sei... eu sei. Agi como um idiota. Estava aterrorizado...
— Aterrorizado? — perguntou Megan. — Não acredito. Você parece nunca ter tido medo de nada em sua vida.
— Eu tinha medo de você — declarou Kurt —, medo dos sentimentos que você despertava em mim. Era uma coisa
absolutamente nova para mim. Para mim e Elisabeth o amor veio de mansinho, fluindo devagar. Mas com você... bastou
um olhar e eu estava perdido. Eu me recusava a acreditar que pudesse acontecer tão depressa, tentava me convencer de
que era mera atração sexual, que no momento em que a tivesse para mim, a sensação desapareceria. Não podia admitir
que alguém tivesse tal poder sobre mim. — Kurt percebeu que estava machucando os braços dela e a soltou, suspirando.
— Eu a machuquei de novo. Parece que é só isso que eu sei fazer. Chicoteá-la com minha frustração e orgulho ferido. A
velha arrogância dos von Kleist.
Megan colocou os dedos sobre os lábios dele, examinando-o de perto. Aquele cinismo habitual tinha desaparecido dos
olhos dele. Havia apenas humildade, ansiedade e uma emoção que ela nunca tinha visto antes naqueles olhos azuis.
— Eu o amo, Kurt — ela sussurrou.
Kurt a encarou por um instante e suspirou, relaxando a tensão. Seus olhares se encontraram e nenhum dos dois foi
capaz de negar a paixão que brotava entre eles. Kurt pegou as mãos dela e beijou as palmas. O toque dos lábios dele
despertava faíscas em todo o seu corpo. Ele a fez deitar-se no cobertor. Ela olhava o céu estrelado e sentiu com enorme
prazer o peso do corpo de Kurt deitando-se sobre o seu. Ele a tocava ainda mais lentamente do que ela esperava, com
infinita ternura, os lábios e os dedos traçando cada curva do corpo dela com uma delicadeza que a deixava mole, entregue.
Sabendo agora que ele a queria tanto quanto ela o queria, Megan começou a acariciá-lo, impaciente com as roupas que
havia entre eles. Lutou com os botões da camisa e seus dedos começaram a procurar os pontos de prazer que tinha
aprendido naquela noite na Áustria. Os lábios de Kurt deslizavam, deixando uma trilha de fogo em seu colo, descendo
para seus seios e...
— Ei, garotos — gritou uma voz rouca —, o concerto já terminou.
~ 165 ~
Megan e Kurt deram um pulo, assustados com o vulto que pairava sobre eles segurando uma lanterna.
— Essa garota! — disse a voz, protestando.
Kurt abraçou Megan rapidamente para esconder os seios nus dela e o homem desviou a lanterna, rindo malicioso.
— Desculpe, gente — continuou o homem —, mas são geralmente os mais jovens que vêm se esconder aqui em cima
na grama. Melhor vocês irem, agora. A música já terminou faz tempo e vamos fechar. Por que é que não vão para um bom
motel?
O homem se afastou e Megan sentiu que Kurt estava furioso. Ela começou a se arrumar.
— Não fique bravo, Kurt — disse ela. — Foi culpa nossa deixar uma coisa dessas acontecer. — Ela se pôs de pé,
tentando rir. — Que vergonha! Eu me senti como uma adolescente num drive-in.
— Você tem razão — disse Kurt, controlando a raiva. — Devíamos ter sido mais discretos. Bom, pelo menos não
vamos ter de nos preocupar com isso depois que estivermos casados.
— Kurt, eu nunca disse que me casaria com você — disse Megan engolindo em seco, olhando-o no escuro.
— O quê?
— Não posso me casar com você, Kurt — repetiu.
Mesmo no escuro ela percebeu que ele ficou pálido, mas antes que pudesse falar a voz gritou de novo, no escuro.
— Vamos logo, vocês dois aí!
Kurt resmungou, furioso, entregou a bolsa a Megan e dobrou o cobertor. Megan tinha de correr para acompanhar o
passo dele enquanto iam para o estacionamento. Ao chegarem ao carro alugado, ele abriu a porta para ela e jogou a
coberta no banco de trás. Entrou em seguida e bateu a porta com força.
— Desculpe, Kurt — disse Megan, tocando o braço dele —, mas eu não...
— Cale a boca!
Megan afundou no banco. Depois de consultar o mapa, Kurt ligou o motor e deixaram as colinas Hollywood, que
davam nome à cidade. Mesmo àquela hora o tráfego ainda era pesado. Sem dizer uma palavra passaram pelo bairro que já
fora famoso, ao longo de Sunset Boulevard e continuaram em direção ao sul.
— Onde vamos? — perguntou Megan, quando ele virou à esquerda.

~ 166 ~
— Você ouviu o que o vigia disse. Vamos para algum lugar onde possamos ficar sozinhos, sem ninguém para
perturbar. Temos de conversar.
Chegaram ao hotel de Kurt e ele praticamente a arrastou pelos corredores. Empurrou-a para dentro do quarto e trancou
a porta. Antes que Megan pudesse examinar o quarto luxuoso, Kurt agarrou-a pelos ombros, forçando-a a encará-lo.
— E agora — disse ele, feroz —, que bobagem é essa de não poder casar comigo?
— Bobagem, é? — disse Megan, ressentida com aquele tom arrogante de senhor feudal novamente. — Quer dizer que
o conde não pode admitir que alguém o recuse? Não se esqueça, eu já disse não para você antes.
— Mas acaba de dizer que me ama! — Ele quase gritou, controlando com enorme dificuldade a própria raiva.
— É verdade. E há muito tempo eu lhe disse também que nunca me casaria de novo. Já fui casada. E não gostei.
— Que droga, Megan! — disse ele, apertando-a ainda mais. — Você sabe que nunca esteve casada com relação às
coisas que realmente importam. A experiência que teve com Erich não tem nada a ver com o casamento de verdade, a
união alegre de duas pessoas que se amam. Megan, eu a amo. Você me ama.
— É, eu o amo — admitiu Megan —, e o desejo muito. Mas nós dois nunca conseguiríamos manter uma relação. Olhe
para nós agora. O único momento em que não brigamos é quando estamos nos beijando. Nosso amor é fogoso demais e...
não significa nada.
Megan conseguiu se libertar das mãos dele e caminhou até a janela, panorâmica. Ficou olhando as luzes da cidade
meio encobertas pelas nuvens de poluição.
— Além disso, Kurt — ela continuou —, não creio que faça idéia do que está me pedindo. Lá no schloss, quando você
me pediu em casamento, se você tivesse falado de maneira diferente eu provavelmente teria dito sim. Aquele tempo que
passei na Áustria parece quase mágico, irreal. Não o fim, claro, mas o começo, quando tudo parecia tão lindo, com a
música, as danças, um verdadeiro conto de fadas. Se você tivesse me dito que me amava naquele momento eu teria
acreditado que Cinderela podia casar com o príncipe e viver feliz para sempre. A desilusão só viria depois. Não, Kurt, não
me interrompa, deixe-me terminar. Quando eu voltei para a minha querida e poluída Los Angeles, consegui ver as coisas
com alguma perspectiva. Vi a mim mesma como sou, como devo ser. Eu sou Megan Halliday. Nasci e cresci nesta cidade
maluca e este é o meu lar, com suas vias expressas, suas praias. Eu toco piano num bar e tarde da noite volto para o meu
apartamentinho. Não nasci para ser concertista de alto nível. Não nasci para morar numa mansão e ser... ser uma... qual é a
palavra para condessa?

~ 167 ~
— Grafin — disse Kurt.
— Obrigada. Aí está. Você pode me imaginar como Grafin von Kleist? Eu, que nem falo alemão?
— Megan, você está inventando desculpas apenas. E sabe disso. — Kurt estava impaciente. — Megan, eu preciso de
você.
Ela olhou para aquele rosto marcado, cansado e pensou quanto tempo mais conseguiria resistir. Estava segura de que
era mais razoável assim. Será que ele não entendia que ela sentia medo de perder a independência pela qual tanto lutara?
— É só nisso que você pensa, não é, Kurt? Nas suas necessidades, nos seus desejos...
— Que inferno! Eu sei de uma coisa que nós dois queremos desde o começo — ele disse duramente, puxando-a de
repente para si.
— Não! — Megan gritou, tentando afastá-lo com as mãos que tremiam pelo desejo de acariciá-lo. — Não quero que
faça isso!
— Então me impeça — ele desafiou, colando os lábios ao pescoço dela.
— Não é justo... — ela conseguiu murmurar, sentindo-se tragada pelo mar do próprio desejo.
— A vida não é justa. Agora fique quieta. Você fala demais... — Ele riu ironicamente, agarrando o seio dela,
apertando-a contra si.
Ela não se lembrava de Kurt tê-la carregado para o quarto, mas era isso o que devia ter acontecido, pois ela sentira as
pernas fracas, incapaz de ficar em pé. Não sabia também quem tinha se despido primeiro, ou se os dois tinham despido
um ao outro, mas as roupas deles estavam empilhadas no chão, aos pés da cama.
Deitados, nus, lado a lado, eles não se tocavam, devorando-se com o olhar, ambos esperando que o outro tomasse a
iniciativa do último gesto, o menor, mas o mais difícil.
— Eu... eu amo você, Kurt — sussurrou Megan à medida que a mão rígida de Kurt acariciava seus seios róseos. Ela
pegou a mão defeituosa dele, de forma que não pudesse tocá-la.
— Isso a incomoda? — ele perguntou baixinho.
— Não, claro que não! — Ela beijou os dedos rígidos um a um. — O que incomoda é saber que você sofreu. Deixe-me
tocá-lo primeiro. Deixe eu descobrir que... que sou capaz de tocar o seu corpo.

~ 168 ~
Ele examinou o rosto dela intensamente, percebendo o nervosismo e insegurança dela. Sorriu, acalmando-a, e relaxou
no travesseiro, deixando que ela começasse a explorar seu corpo.
Apesar de ter sido casada, Megan era quase totalmente inexperiente e tinha muita curiosidade sobre essa coisa
maravilhosa que era o corpo de um homem. Queria conhecer cada milímetro dele. Ela apalpou a mão que tinha entre as
suas, depois deslizou os dedos sensíveis ao longo daquele braço forte e musculoso, acariciando os ombros, sentindo os
ossos debaixo da pele morena e macia. Deslizou os polegares pelo pescoço, procurando os pontos onde as veias pulsavam.
Um V de pele ainda mais bronzeada apontava para o triângulo de pêlos grossos, quase pretos, que cobriam seu peito largo.
Ela enfiou os dedos naqueles pêlos, sentindo a maciez sedosa dos cachinhos. O coração dele batia forte. Quando deslizou
a mão pela barriga firme, acariciando uma inesperada cicatriz de operação de apêndice, Megan sentiu Kurt vibrar.
E então tocou o sexo dele, maravilhada por sentir o evidente desejo dele por ela, pulsando debaixo de sua mão. Seu
próprio corpo vibrava com os carinhos que fazia. Os seios ficavam mais rijos, os mamilos duros e, no ventre, uma
estranha dor que não doía. Quando Megan escorregou as mãos pelas coxas musculosas e pelas pernas, até os pés finos e
sólidos de Kurt, estava quase sem fôlego, tremendo inteira.
Ela recomeçou sua exploração do corpo dele, dessa vez com a boca. A pele de Kurt estava úmida, ligeiramente
salgada. Ele gemeu e puxou-a sobre si.
— Nossa! Você tem muita fé no meu autocontrole! — ele murmurou, afundando o rosto entre os seios dela,
esmagando-a contra si. Ele puxou com a mão a cabeça dela para baixo e seus lábios se encontraram num beijo feroz,
fluido, forte, fundindo suas bocas numa só expressão de prazer. E então, num único movimento ele a virou e tomou
controle da situação. Os lençóis eram macios e quentes debaixo das costas dela enquanto ele a possuía completamente.
Ele era o senhor agora, o explorador, conduzindo-a para territórios de prazer com que ela nunca tinha sonhado. Os
olhos dela estavam fixos nele, arregalados de surpresa e gratidão, até que brilharam, eroticamente e a voz dela soou como
a música da paixão numa série de gemidos em staccato, notas graciosas de prazer. Como dois instrumentos vibrantes
tocando dueto, voaram numa candenza de amor e de desejo, até que explodiram, juntos, no gran finale.
Depois, quando tudo silenciara, mole e trêmula Megan repousava a cabeça no peito dele, ouvindo seu coração bater
tranqüilo, seus olhos verdes brilharam úmidos de lágrimas de satisfação. A mão de Kurt acariciava distraidamente sua
espinha e ele murmurava carinhos em alemão.
— Viu, Megan, viu como será sempre conosco? — Megan sorriu apenas. —E sabendo o que temos em comum, ainda
não quer se casar comigo?
~ 169 ~
No silêncio do quarto só o bater do coração dele revelava a enorme ansiedade que sentia.
— Quero — disse Megan suavemente.

O sol afundava no Pacífico quando o enorme avião levantou vôo do Aeroporto Internacional de Los Angeles. Dorothy
talvez ainda estivesse lá embaixo, mas uma nuvem de poluição escondeu a cidade. Megan afundou em seu lugar com um
suspiro.
— Cansada, meu bem? — perguntou Kurt a seu lado.
— Um pouco. Estes últimos dias foram uma loucura. — Ela olhou para ele, maliciosa. — E as noites também.
— Prometo que pelo menos até Londres você vai poder descansar — Kurt respondeu rindo, pegando a mão dela onde
brilhava a enorme esmeralda do anel de noivado, ao lado da aliança.
Megan tinha ficado extremamente surpresa quando Kurt lhe disse que queria se casar na Califórnia, pois tinha pensado
que ele haveria de preferir esperar para ter Liesl a seu lado. Kurt tinha inventado a desculpa de que tudo ficaria mais
simples se ela retornasse à Áustria já como sua esposa, mas acabou admitindo a verdadeira razão: pura covardia. Tinha
medo de perdê-la de novo.
E agora ela finalmente era dele. Até que Deus permitisse.
Ele pensava se não estaria sendo egoísta, exigindo demais dela ao levá-la para viver num país estrangeiro. Faria tudo o
que estivesse a seu alcance para tornar a vida de Megan feliz. Havia tantas coisas que queria lhe dar... Poderia até mimá-
la, mas tinha como um dever sagrado apagar do rosto jovem de Megan aquelas olheiras que eram um legado do passado.
— Liebling — disse Kurt, olhando para ela —, tenho um presente para você.
— Mais um? — perguntou Megan, curiosa.
— Você não vai recebê-lo até o Natal, mas quero contar agora. — Ele fez suspense um momento. — Preparei tudo
para sua amiga Dorothy vir passar o Natal conosco em Viena.
— Oh, Kurt — disse Megan, querendo pular no pescoço dele, feliz. — Eu pensei que nunca mais ia vê-la.
— Claro que vai. — Ele pegou a mão dela, emocionado pelo sacrifício que ela estava disposta a fazer por ele. — Um
dia vamos voltar a Los Angeles. Afinal, nossos filhos vão querer saber tudo sobre a herança da mãe deles também.
E, apesar dos cintos de segurança, ele se inclinou sobre ela e seus lábios se uniram num beijo.

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***FIM***

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