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A PSICOTERAPIA DE GRUPO NA PATOLOGIA BORDERLINE – “NO LIMBO DA

DESCONTINUIDADE”

João Paulo Ribeiro1; Maria Moura 2; Catarina Rosa3; Ana Sofia Oliveira4; Andreia Araújo5

Resumo:
Procura-se criar um espaço de reflexão sobre as características de funcionamento
borderline e as especificidades da intervenção clínica de grupo com adolescentes com
estes traços de funcionamento.
Começa-se por abordar as características do funcionamento borderline. De seguida,
aborda-se o grupo desenvolvido na Equipa de Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de
Psiquiatria do Hospital de Vila Franca de Xira. Trata-se de um grupo constituído por
adolescentes do sexo feminino, com traços de funcionamento borderline, cujo motivo de
encaminhamento à consulta de Pedopsiquiatria foram os comportamentos de
automutilação. Pretende-se uma reflexão acerca do impacto destas características no
trabalho psicoterapêutico de grupo, e sobre as particularidades que advêm desta
intervenção.
Explanam-se as vicissitudes e as dificuldades que tiveram de ser superadas, de forma a
não se constituírem como obstáculos à psicoterapia, incluindo, a este respeito, as
necessidades de reforço e de reestruturação de setting.

1
Psicólogo Clínico e da Saúde, Psicodramatista. Sócio Aderente da Sociedade Portuguesa de
Psicodrama Psicanalítico de Grupo, Sócio Candidato da Associação Portuguesa de Psicanálise e
Psicoterapia Psicanalítica, Sócio Candidato da Poiesis - Associação Portuguesa de Psicoterapia
Psicanalítica de Casal e Família. Coterapeuta do grupo de jovens com comportamentos
autolesivos e do respetivo grupo de pais. Equipa de Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de
Psiquiatria do Hospital de Vila Franca de Xira.
2
Pedopsiquiatra. Sócia Candidata da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia
Psicanalítica. Coterapeuta do grupo de jovens com comportamentos autolesivos. Coordenadora
da Equipa de Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de Psiquiatria do Hospital de Vila Franca de
Xira.
3
Psicóloga Clínica e da Saúde. Estagiária da Ordem dos Psicólogos Portugueses na Equipa de
Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de Psiquiatria do Hospital de Vila Franca, em 2016/2017.
Coterapeuta do grupo de pais de jovens com comportamentos autolesivos.
4
Psicóloga Clínica e da Saúde. Equipa de Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de Psiquiatria do
Hospital de Vila Franca de Xira.
5
O Pedopsiquiatra. Equipa de Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de Psiquiatria do Hospital de
Vila Franca de Xira.
1
Adicionalmente, apresenta-se o grupo de autoajuda constituído pelos familiares das
jovens em questão.
Palavras-chave: Adolescência, Personalidades Borderline, Comportamentos Autolesivos,
Psicoterapia de Grupo

Abstract:
It is sought to create a space for reflection on the characteristics of borderline functioning
and the specificities of the clinical group intervention on adolescents with these traits of
functioning.
The article begins by addressing the common features of borderline functioning.
Posteriorly, we will approach the group that we developed in the Pedopsychiatry Team of
the Autonomous Unit of Psychiatry of the Vila Franca de Xira Hospital. A group
constituted by female adolescents, with borderline functioning traits, whose reason for
referral to Pedopsychiatry consultation was self-mutilation behaviours. It is intended to
reflect on the impact of these characteristics on the work of the psychotherapeutic group,
and on the particularities, that come from this intervention.
The article will explain the vicissitudes and difficulties that had to be overcome, so that
these difficulties do not constitute obstacles to psychotherapy, including, in this regard,
the need for reinforcement and restructuring of the setting.
In addition, we present the self-help group made up by the families of the girls in
question.
Keywords: Adolescence, Borderline Personalities, Self-injurious Behaviours, Group
Psychotherapy

“Onde está o medo está o desejo” (Francisco Alvim)

Introdução
O grupo psicoterapêutico que apresentamos no presente trabalho deriva da necessidade
crescente da Equipa de Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de Psiquiatria do Hospital
de Vila Franca de Xira responder, de um ponto de vista psicoterapêutico, à problemática
da automutilação.

2
Com efeito, a quantidade de jovens com comportamentos autolesivos encaminhados
para a nossa equipa era considerável e necessitava de resposta. Apesar do receio do,
eventual, efeito de réplica dos comportamentos autolesivos6, havia descrição de algumas
intervenções em grupo com bons resultados (Mayoral, 2015), pelo que nos pareceu viável
a criação de um grupo terapêutico. O intuito foi criar um espaço livre do estigma, por
vezes paralisante da procura de ajuda, na medida em que, frequentemente, estes
comportamentos desencadeiam medo de rejeição pelos pares e uma sensação de
desadequação potenciadora do isolamento.
O grupo permitiria promover a identificação e autoajuda entre os jovens, na ótica de um
espaço grupal de confiança, viabilizador da partilha dos comportamentos e das suas
causas, espaço que poderia favorecer a significação dos conflitos indutores das
automutilações.
As automutilações são formas agidas de comunicar. Nesse sentido, com vista a criar-se,
também, pontes de significação para as famílias, sentimos ser fundamental a criação de
um grupo de suporte para os pais das jovens em questão. Estes comportamentos
desencadeiam nos pais inúmeras ansiedades e sentimentos de impotência, ao mesmo
tempo que os conflitos entre os jovens e os pais facilitam os comportamentos de
automutilação, num ciclo agido de conflito não expresso.
Em Março de 2015 foram então criados o grupo de jovens adolescentes do sexo feminino
com comportamentos autolesivos e o grupo de pais destas jovens.

Personalidades ou Organizações Borderline


As jovens que integraram o grupo eram, maioritariamente, jovens com traços de
funcionamento borderline, pelo que ao longo do processo psicoterapêutico foram
emergindo os conflitos internos, as defesas psíquicas e os estilos de vinculação associados
a este funcionamento mental.

6
Segundo Suyemoto (1998) podem ser definidos seis modelos explicativos dos comportamentos
autolesivos: a) Modelo ambiental, b) Modelo de regulação emocional, c) Modelo anti-dissociativo,
d) Modelo sexual, e) Modelo anti-suicídio, f) Modelo interpessoal.
O modelo ambiental centra-se na interação com o ambiente, atribuindo ao ambiente um papel
relevante no surgimento e perpetuação dos comportamentos autolesivos. De acordo com este
modelo, no aparecimento e continuidade dos comportamentos autolesivos estão implicados
fenómenos de reforço comportamental e de contágio, imitação e socialização com os pares
(Jorge, Queirós & Saraiva; 2015).
3
Começamos, pois, por apresentar as particularidades associadas à organização limite ou
borderline, dada a sua constante emergência no processo psicoterapêutico destas jovens.
Segundo Bergeret (1996), nos sujeitos das organizações limítrofes predomina uma relação
de objeto anaclítica, que dificulta a entrada na genitalidade triangular, tal como
Bettelheim (1971) a descreveu. Assim, a “normalidade” destes sujeitos corresponde, do
ponto de vista do funcionamento mental, à necessidade de restabelecer
incessantemente, por apoio ao outro, um narcisismo vivido como podendo falhar a
qualquer momento, se o outro deixar de atuar enquanto figura de suporte (Bergeret,
1996). Enquanto doença de um narcisismo dependente da existência de uma constante
relação de objeto anaclítica, o perigo da organização borberline é, acima de tudo, a
depressão pela perda do objeto necessitado. Por isso, as pessoas com este tipo de
organização encontram-se numa incessante atividade de luta contra a depressão,
mobilizada pela eterna sedução dos seus objetos relacionais (ibidem).
Tratam-se, pois, de indivíduos com personalidades bastante frágeis e escassa resistência à
frustração, na medida em que as frustrações atuais acordam as frustrações antigas. Esta
fragilidade narcísica desencadeia, frequentemente, traços de carácter paranoide, com o
intuito de se procurar travar quem os poderia frustrar. Ao mesmo tempo, desencadeia
uma contínua necessidade de compreensão, de afeto e de suporte, para que o objeto
relacional não seja sentido como persecutório. A descompensão destes estados limite,
decorrente da rutura da relação analítica, não conduz, então, a uma tristeza legítima de
um luto normal, mas a um verdadeiro pânico, como se se tratasse de uma amputação de
uma parte de si mesmo (ibidem).
A organização borderline é, consequentemente, uma organização instável, que oscila
entre funcionamentos de tipo neurótico e de tipo psicótico.
Segundo Amaral Dias (2004), o funcionamento borderline revela um problema da
dependência, e uma lacuna da simbolização e do aparelho de pensar. Este é um
funcionamento cuja origem remonta a falhas ambientais anteriores à triangulação
edipiana, cujos mecanismos de defesa psicóticos (reações projetivas e clivagem do objeto)
e neuróticos (recalcamento e evitamento) denotam essa prematuridade (Bergeret, 1996).
De facto, as falhas ambientais precoces parecem desenvolver personalidades com uma
aparente boa adaptação social, mas com falência de interioridade e simbolização
emocional, fomentando uma identificação adesiva (Bick, 1968) às qualidades superficiais

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dos objetos de dependência anaclitica e um falso self hiperadaptado à realidade, que
esconde o self verdadeiro (Winnicott, 1960).

A Figura 1 resume as características anteriormente referidas:

O Continuum dos Comportamentos Autolesivos na Adolescência


Os comportamentos autolesivos (deliberate self-harm) incluem qualquer modo de auto-
lesão não fatal, independentemente da motivação e grau de intencionalidade de morrer.
De um modo geral, existem dois tipos de comportamentos autolesivos: a) Deliberate Self-
Harm sem intencionalidade suicida: autoagressão não suicidária – non suicidal self injury;
b) Deliberate Self-Harm com intencionalidade suicida: tentativa de suicídio. (Guerreiro e
Sampaio, 2013)
De acordo com Marcelli (2005), os pensamentos de morte são comuns em crianças e
adolescentes, e não se associam com fatores de risco de suicídio na adolescência.
Todavia, ao invés do que sucede com os frequentes pensamentos de morte na infância, a
autoagressão não suicidária, a ideação suicida, a tentativa de suicídio e o suicídio
inscrevem-se num “continuum”.

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O continuum de comportamentos autolesivos na adolescência reflete um triplo fracasso
(individual, familiar e social) das tarefas maturativas: alteração da relação com os pais,
alteração na relação com o grupo de pares e formação da identidade sexual (Guerreiro e
Sampaio, 2013). Surgem como uma meta-comunicação - comunicação sobre a
comunicação familiar - e constituem uma tentativa desesperada de mudança, um
paradoxal apelo à mudança, tendo uma dimensão relacional.
O ato suicida representa uma recusa à realidade, e é levado a cabo num estado
transitório dissociativo, que é atingido no momento em que a decisão consciente é
tomada (Laufer, 1999). Neste sentido, do ponto de vista terapêutico, é importante
reconhecer a fantasia que motivou a tentativa de suicídio; muitas vezes ligada a
sentimentos agressivos para com os pais, amigos ou terapeuta; bem como reconhecer a
culpa e a vergonha que resultam da ação do adolescente.
Convém também ter-se em linha de conta de qua a fantasia que motiva a tentativa de
suicídio contém um elemento omnipotente que permite ao adolescente sentir alguma
forma de alívio e de controlo sobre o real. Esta fantasia omnipotente deve ser elaborada
por parte do jovem, e o seu enfoque deslocar-se para as suas reais capacidades de
inverter a situação em que se encontra.
A adolescência, como se sabe, é a fase da vida que permeia entre a puberdade e a
adultícia, sendo um período marcado por inúmeros conflitos e dilemas. A necessidade e o
desejo de autonomia do adolescente acarretam dificuldades na relação com os
progenitores e com os pares, bem como inúmeras ansiedades, tornando-o
emocionalmente vulnerável (Fleming, 1997; Guerreiro e Sampaio, 2013; Machado, 2015).

A Figura 2 aborda algumas das fragilidades que Laufer (1999) identificou como
características da adolescência:

6
FACTORES PREDISPONENTES FACTORES PRECIPITANTES
(VULNERABILIZANTES)
Ansiedade acerca da vivência da sexualidade Possibilidade de mudança na vida do
relacionada com o desenvolvimento pubertário; Adolescente;

Intolerância a afectos dolorosos (dificuldade de Perda de controlo da sua agressão e ódio;


integrar a agressividade com sentimentos de
culpa e medo);
Experiências de dependência sentida como
ameaçadora do frágil sentido de identidade;

Medo do abandono que leva a que qualquer


separação seja sentida como uma rejeição
(relacionado com dificuldades no processo de
separação e individuação).

Comportamentos Autolesivos e Fragilidades Específicas na Família


As famílias dos adolescentes com comportamentos autolesivos apresentam diversos
problemas que se correlacionam com as automutilações destes jovens.
São descritos os seguintes problemas da dinâmica familiar e do relacionamento família-
jovem: a) Padrão de hostilidade marcada; b) Indefinição de papéis parentais; c) Processo
de escalada do conflito em fases de mudança; d) Relação simbiótica que não tolera a
autonomia; e) Tradição familiar de resolução de crises através de manifestações
sintomáticas; f) Comportamento suicidário como forma de comunicação. (Laufer,1999;
Frazão, Santos e Sampaio; 2014)

Intervenção Psicoterapêutica de Grupo


No contexto hospitalar, os grupos terapêuticos permitem aumentar a capacidade de
resposta das equipas de pedopsiquiatria, sendo uma importante ferramenta de melhorar
o alcance da intervenção psicoterapêutica. Ao mesmo tempo, possibilitam, através de
psicoterapias individuais realizadas em grupo, trabalhar os conflitos internos e externos
das crianças e dos jovens alvo deste tipo de intervenção. Permitem, ainda, trabalhar as
dificuldades de socialização das crianças e jovens (Vidigal e col., 2005; Ribeiro, 2016),
tendo, a este respeito, uma maior eficácia do que as terapias individuais.

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A psicoterapia de grupo, em geral, é identificada como fonte contentora, de conforto e
segurança, na qual as emoções, pensamentos, comportamentos e fantasias podem ser
explorados e compreendidos (Zimerman, 1993; Zimerman e Osorio, 1997).
O presente trabalho incide em dois dos grupos levados a cabo na Equipa de
Pedopsiquiatria da Unidade Autónoma de Psiquiatria do Hospital de Vila Franca, o Grupo
de Adolescentes com Comportamentos Autolesivos e o Grupo de Pais dos Adolescentes
com Comportamentos Autolesivos.

Grupo de Adolescentes com Comportamentos Autolesivos (13-16 Anos)


As jovens que constituíram este grupo apresentavam comportamentos autolesivos
reincidentes, condição fundamental para a frequência no mesmo. Assim sendo, os
conflitos internos característicos destes comportamentos, bem como os conflitos
familiares e as respetivas consequências, foram o principal alvo da intervenção
psicoterapêutica. De entre os conflitos referidos, destacamos a dificuldade na elaboração
da agressividade que caracterizava todas as jovens do grupo. Com efeito, o
comportamento de lesão infringida no próprio, resultante da dificuldade de
externalização da agressividade de uma forma mentalizada e, consequentemente,
construtiva, é um ato impulsivo, uma descarga corporal que ocorre quando a
mentalização do conflito é impossível de alcançar, ou a intolerância ao mesmo se revela
insuportável. O grupo psicoterapêutico procurava, assim, constituir-se enquanto espaço
de elaboração dos conflitos, um grupo-ambiente suficientemente bom, tal como
Winnicott (1962) diria. Quer dizer, um grupo-ambiente potenciador de uma confiança que
viabilizasse a partilha das angústias que estavam na base das automutilações.
O grupo era composto por três a cinco participantes do género feminino, sendo a sua
frequência semanal e a duração das sessões psicoterapêuticas de cerca de uma hora. Para
cada participante, o processo grupal tinha uma duração mínima de um ano, de forma a se
consubstanciar como um processo psicoterapêutico de continuidade, que promovesse
mudanças efetivas, observáveis através da consistência dos comportamentos alterados.
Porém, este período temporal definido como mínimo foi ultrapassado por todas as jovens
que integraram o grupo, que necessitavam de um processo psicoterapêutico de maior
duração.
Os objetivos psicoterapêuticos fundamentais do grupo eram os seguintes:

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Promover uma melhoria da autoestima em geral e da autoestima corporal: Tal como
sabemos, existe uma correlação significativa entre os comportamentos autolesivos e a
fragilidade emocional de foro narcísico. Com efeito, vários autores anotam que sujeitos
narcisicamente vulneráveis, dada a ansiedade abandónica, apresentam uma labilidade
emocional considerável e dificuldades de significação emocional (Bergeret, 1996; Matos,
2003; Dias, 2004), apresentando uma maior vulnerabilidade ao agir impulsivo.
Desenvolver um trabalho psicoterapêutico de promoção das competências pessoais e
sociais destes indivíduos parece, pois, ser uma necessidade terapêutica imperiosa.
Trabalhar a relação entre os jovens e o corpo: O corpo é o “lugar” agredido pelo jovem
que se automutila. Este corpo agredido, sendo a marca visível da autoagressão, apenas
perpetua a falha narcísica do jovem. Trabalhar a relação entre o jovem e o seu corpo, de
forma a melhorar a autoimagem corporal é, pois, um objetivo terapêutico essencial nas
psicoterapias com jovens que se automutilam.
Trabalhar os aspetos emocionais associados aos comportamentos de autoagressividade:
Como já fizemos questão de mencionar, são inúmeras as emoções associadas aos
comportamentos autolesivos, tais como: zanga, ira, sentimentos de desvalorização, e
consequente necessidade de valorização, sentimento de incompreensão, solidão,
desesperança e desespero, entre outros. Estas emoções desagradáveis provocam no
jovem adolescente uma luta interna entre a liberação da zanga emergente e o receio de
se zangarem, pela possível perda do objeto de amor, isto é, devido à angústia
abandónica. Por outro lado, é também frequente que a zanga provoque no adolescente
um sentimento de culpa, a culpa de ter danificado o objeto de amor, o que favorece a
inibição dos sentimentos hostis associados à zanga. Aprender lidar com estes
sentimentos, procurando deflectir a agressividade para o exterior, de uma forma
mentalizada, é pois um importante objetivo do trabalho terapêutico com estes jovens.

O Processo Grupal7

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Ao longo do processo psicoterapêutico, foram várias as frases nas quais as jovens que
constituíam o grupo refletiam sobre o impacto do mesmo, tais como: a) “Gosto da confiança que
por vezes se ganha para falar de certos assuntos. Não gosto de não ter confiança suficiente para
falar dentro do grupo”; b) “Posso falar dos meus problemas sem ninguém criticar nem julgar”; c)
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Como já referimos, o grupo surgiu da necessidade de dar resposta a um número
crescente de casos com comportamentos autolesivos, e da consequente necessidade de
se conter um desenlace fatal.
Por norma, as sessões grupais começavam por um silêncio mortífero. Era evidente a
dificuldade de mobilização do discurso, com uma preocupação dos psicoterapeutas muito
centrada nas automutilações. Sentia-se um impasse, um excesso de respeito pelo limbo
da vida e o espreitar da morte. O objetivo implícito no processo era sessar o
comportamento que se repetia numa autoflagelação. Tínhamos muitas incertezas do
caminho a seguir. As palavras eram, por vezes, sentidas como cortantes.
Em alguns momentos, emergiu a urgência de avaliar o risco suicidário em contexto
grupal, pela emergência de verbalização de ideação suicida por parte de jovens do grupo.
Nesse sentido, foi essencial abordar a agressividade do gesto, também em relação aos
psicoterapeutas, mas focando sempre na vida, no futuro, incluindo a dimensão temporal,
que parece perder-se no agir impulsivo.
A principal arma terapêutica do grupo foi o humor, o “puxar para a vida”, o foco no
sofrimento, deixando de parte o sintoma. “Sem prazer não se pode viver, ao
intelectualizar em demasia perde-se isso”.

A Figura 3 ilustra o processo psicoterapêutico:

“Gosto de ouvir opiniões diferentes das minhas, pois às vezes as minhas não são as mais
corretas”, d) “Gosto de poder conversar com pessoas que me compreendem”.
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GRUPO DE
ABORDADA A A PRINCIPAL ARMA
AGRESSIVIDADE DO TERAPÊUTICA DO
GESTO, TAMBÉM EM GRUPO FOI O HUMOR,

ADOLESCENTES RELAÇÃO AOS


TERAPEUTAS
O PUXAR PARA A VIDA,
O FOCO NO
SOFRIMENTO,
DEIXANDO DE PARTE O
SINTOMA

FOCO NA VIDA, NO
FUTURO, INCLUINDO A
DIMENSÃO TEMPORAL
QUE PARECE PERDER-SE
2015 2016 NO AGIR IMPULSIVO 2017

SILÊNCIO MORTÍFERO

DIFICLULDADE DE PALAVRAS SENTIDAS


MOBILIZAÇÃO DO COMO CORTANTES
DISCURSO
A URGÊNCIA DE
PREOCUPAÇÃO DOS AVALIAR O RISCO
TÉCNICOS MUITO SUICIDIÁRIO EM
CENTRADA NAS AUTO- CONTEXTO DE GRUPO,
MUTILAÇÕES PELA EMERGÊNCIA DE
IDEAÇÃO SUICIDA POR
IMPASSE. EXCESSO DE PARTE DE ALGUMA
RESPEITO LIMBO DA JOVENS
VIDA E O ESPREITAR DA
MORTE

Grupo de Pais dos Adolescentes com Comportamentos Autolesivos (13-16


Anos)
O grupo de pais das adolescentes com comportamentos autolesivos foi constituído com o
propósito de intervir, simultaneamente, na dinâmica parental das famílias destas jovens.
Com efeito, eram inúmeros os conflitos entre as jovens e os pais, que tendiam a instalar-
se como um ciclo de feedback fechado, do qual as jovens e os pais não conseguiam sair.
Além disso, os comportamentos autolesivos das filhas geravam nos pais desespero e
fortes sentimentos de impotência, fomentando variadas dificuldades na dinâmica
familiar.
O grupo de pais era constituído por três a seis participantes, procurando mobilizar a
presença dos dois elementos do casal parental, se tal presença fosse possível. As sessões
de grupo tinham uma frequência quinzenal e a duração de uma hora. A duração mínima
do processo grupal era de um ano.

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O Processo Grupal
No início do processo grupal era frequente os pais estarem angustiados face ao
comportamento autolesivo das filhas. Deste modo, manifestavam dificuldade em dialogar
sobre estes comportamentos; sobre as suas causas, sendo a principal angústia a
incapacidade de compreender, prevenir e de conter os mesmos.
Seguiu-se uma fase grupal em que os pais (um pai e quatro mães) começaram a verbalizar
as dificuldades comunicacionais e relacionais com as filhas: isolamento por parte delas,
que dificultava o diálogo, tendência para o controle, conflitos maioritariamente com as
mães, comportamentos das filhas sentidos como agressivos e incapacitantes, dado que,
para a maioria destes familiares, as filhas denegriam as suas capacidades parentais e não
os respeitavam enquanto pais.
As dificuldades dos pais em lidar com o silêncio que envolve estes comportamentos, bem
como as suas causas e consequências emocionais, estiverem sempre presentes, e foram
um foco quase constante do grupo.
Ao longo do percurso grupal, as jovens foram deixando de se cortar e as dificuldades
comunicacionais e relacionais com os pais foram diminuindo. Isto permitiu restaurar a
esperança dos elementos do grupo.
O grupo foi sendo sentido como útil e a ajuda obtida dos outros pais, por identificação e
complementaridade, foi sendo valorizada e considerada importante. Para além disso, o
tempo de ausência de cortes foi aumentando, o que vitalizou essa esperança.
Durante o processo grupal, o grupo de pais foi confrontado com gestos suicidários de duas
jovens, tendo-se tornado visível alguns movimentos rejeitantes parentais, mobilizáveis
com a ameaça iminente de morte. Estas dinâmicas foram sendo trabalhadas, o permitiu
melhorar a natureza da comunicação pais-jovens.

A Figura 4 resume as principais etapas:

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Desafios e Estratégias
Como principais desafios psicoterapêuticos emergiram:
 Dificuldades de adesão às regras do setting psicoterapêutico: Com efeito, as jovens
do grupo, dadas as suas características de personalidade, tendiam a criar relações
fusionais entre elas, que se estendiam para além do grupo terapêutico,
continuando o processo grupal fora do grupo e ocultando aos psicoterapeutas
este comportamento, aquando do seu início.
 Dificuldades de mentalização e mobilização de fortes aspetos transferenciais:
Estas transferências, por vezes maciças, mobilizavam contratransferências
inconscientes nos psicoterapeutas, nem sempre consciencializadas durante as
sessões grupais.

A análise destes processos resultou num ajuste de estratégias, a saber:


 Assegurar consultas por um pedopsiquiatra distinto do pedopsiquiatra terapeuta;
 Não associar diretamente o protagonismo às situações mórbidas, mas à
mentalização das dificuldades;
 Inversão de cartas de despedida para cartas do que se pretendia alterar;

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 Abertura do grupo a novos elementos, o que permitiu uma maior circulação de
dinâmicas, com o propósito de estimular a comunicação entre os elementos do
grupo;
 Precaver a entrada excessiva de jovens com características demasiado paranoides
e conflituosas, procurando um equilíbrio entre organizações borderline mais da
linha neurótica e não com predomínio psicótico.
 Criação de um ambiente grupal que, progressivamente, estimulou a confiança, a
segurança e o conforto;
 Necessidade de dois psicoterapeutas refletirem em conjunto sobre as sessões
grupais e as suas contratransferências, para integração progressiva da clivagem,
sem receio da discórdia construtiva. Esta supervisão das dinâmicas que se
imiscuíam nos técnicos, num mandado de ação inconsciente, revelou-se essencial.
De facto, esta reflexão em contexto de intervisão foi fundamental para quebrar o
ciclo fechado de um pensar com falta de esperança na transformação.

Conclusões
Uma das metas na saúde mental é detetar e intervir nos primeiros estádios das
perturbações mentais, com vista a modificar o curso das mesmas.
O gesto autolesivo engloba uma multiplicidade de sentimentos, mas terá implícito um
desejo de mudança. Encarado enquanto sinal e sintoma, o comportamento autolesivo
denota a fragilidade emocional em que se encontra o jovem, bem como o seu contexto
familiar. Neste sentido, as respostas psicoterapêuticas aos jovens e às suas familiares
podem ser determinantes na construção de um caminho de mudança, individual e
familiar. No presente artigo refletimos sobre estas problemáticas e apresentamos um
trabalho psicoterapêutico de grupo com jovens com comportamentos autolesivos.
Apresentamos, ainda, uma intervenção com as famílias das referidas jovens; o grupo
psicoterapêutico para os pais destas adolescentes, cujo objetivo era dotar estes
progenitores de melhores competências parentais.
No decurso do processo grupal, as jovens foram adquirindo novas formas de expressão
emocional, com a extinção progressiva do sintoma, e as dificuldades comunicacionais e
relacionais com as famílias foram diminuindo. Isto derivou da melhoria das capacidades
de mentalização das referidas jovens, bem como dos seus pais.

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Citando Pommereau, o trabalho transformativo visa dois desejos fortíssimos e
paradoxais: destruir a fonte de sofrimento e recuperar a identidade (Pommereau, 1998).

Figura 5: Desenho de jovem do grupo, com a seguinte redação a acompanhar “Ela gosta
de si, mas quando se olha ao espelho vê-se inferior a tudo (…). Ligava muito aos
comentários de quem a invejava”.

Agradecimentos
À Dra. Maria José Vidigal, pelos momentos de supervisão, que revitalizaram sempre a
nossa vontade de pensar acerca das jovens do grupo, e mobilizaram a nossa esperança no
processo grupal.

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