Você está na página 1de 19

Um

Novo Humano












Certa vez, um bichinho invisível, meio
gordo, meio espinhento, resolveu
assustar pessoas de toda parte do
mundo.
Tão safado era o bicho que, quando
menos se esperava, ele entrava pelo
nariz das pessoas e tocava o terror.


Não era só o nariz. Os olhos e a boca
eram outras portas que ele gostava de
entrar.
Não demorou e todo mundo correu
pra dentro de casa fugindo daquele
monstro invisível. Aliás, nem todo
mundo. Houve aqueles que
resolveram enfrentar de corpo aberto
o danado do bicho. Muitos não estão
mais aqui pra contar a história. O tal
do vírus derrubou muita gente. Gente
pobre, gente rica, gente de tudo que é
canto.
Eu também me tranquei no quarto e...
Epa! Nem me apresentei. Eu sou João,
filho dos tempos difíceis, e estou aqui
para contar um pouco da minha
história e de como aprendi a lidar com
tempos sombrios.

Pois é... eu vi pessoas assustadas,
sofrendo, se despedindo de pai, de
mãe, avós, amigos... Tanta dor e eu
me perguntava por que tudo isso? Por
que, meu Deus?

No início gostei de não ir para a


escola. Nunca me senti à vontade
aprendendo coisas que eu não sabia
pra quê. Depois, tendo que estudar a
distância, pelo computador, foi pior
ainda. Não tinha recreio, colegas para
brincar, professoras para zoar... Tudo
muito chato e confuso.
Um dia... um dia de muita luz, sem
tantos compromissos, com a cabeça
vazia de tarefas, as ideias me
visitaram.
Foi então que, dentro do meu quarto,
ou melhor, dentro de mim, ouvi uma
voz que me disse: “- João, feche os
olhos e veja”.
Sem entender muito bem o que se
passava, fechei os olhos e, de
repente... vi homens e mulheres sem
braços, homens e mulheres sem mãos,
homens e mulheres sem ouvido, sem
olhos, sem rosto...
Fiquei paralisado. Pessoas sem
pernas, sem tronco, sem alma...
Cidades e mais cidades abandonadas,



com pessoas adormecidas que não se
lembravam quem eram, de onde
vinham e para onde iam. Uma
paisagem desértica, de desolação e
normalidade.
Até crianças de barba e bigode, com
roupas cinzas e sérias visitavam meu
interior. Filme de terror.
Tive medo e chorei. O que será isso,
meu Deus?!



Foi quando A Voz, novamente me
falou: “- Não tenha medo, João. Isso
que você está vendo é uma parte
realidade.


Existem outras realidades. Realidades
que você desconhece, pois esteve
sempre ocupado fazendo tudo aquilo
que te mandavam fazer. Realidades
que você mesmo pode criar.
Aproveite esse tempo suspenso no ar,
em que a mãe Terra mandou parar,
parar tudo e fazer contato com aquilo
que estava escondido dentro de você.
Vá mais fundo no seu interior e
realmente veja. Sua imaginação o
guiará. A imaginação, João! Sua
capacidade de enxergar, de se ver por
inteiro, te revelará os caminhos que
terá que seguir. Caminhos felizes, os
teus caminhos verdadeiros e não
aqueles que te ensinaram a seguir”.




Foi aí, então, que João viu mulheres e
homens
extraordinários. Eles tinham mãos
que se tocavam, braços que
abraçavam, ouvidos que escutavam,
olhos que enxergavam, pernas que
dançavam, troncos que guardavam
um tesouro em sentimentos, alma que
os guiavam... e principalmente
crianças felizes que brincavam com
suas roupas coloridas da terra, da
chuva, do sol e do aroma das árvores.


... e João se perguntou: “- com quanta


imaginação se faz uma realidade? Que
Voz é essa que mora dentro de mim e
que meus pais nunca me falaram?”

O infeliz do bicho continuava a
assustar. O terror já fazia parte do
dia-a-dia das pessoas e eu, agora
sabendo de como curar realidades
sombrias através da imaginação,
imaginação que inventa novas
realidades, me pus a enxergar dentro
de mim caminhos novos que nunca
antes foram tentados, que nunca
antes ninguém havia me falado. Fiquei
feliz, feliz e cheio de esperança.
Esperança. Foi quando, de repente,
meu pai abriu a porta do quarto e, em
tom de preocupação, me disse: “- João,
já fez o dever da escola? Amanhã tem
prova”.
Por um instante, vi o tamanho da
dificuldade que enfrentaria com
compromissos que não escolhi, que
não traduziam aquilo que de fato
queria. E pensei: “Será que meu
mundo interior dá conta de
sobreviver a este mundo de
realidades sem alma?”

“Tá bom, pai. Vou fazer o dever” –


disse João, que sabia muito bem a
importância da escola, mas que
escola?! Se o mundo estava mudando,
a escola também tinha que mudar. E
um sentimento ambíguo lhe tomou o
peito: uma força e um poder de
transformar mundos lhe fazia brilhar
os olhos e, ao mesmo tempo, uma
impotência em mudar coisas erradas
que impedem que as pessoas sejam,
tão somente, elas mesmas.





E daquele dia em diante, João, todos
os dias, em algum momento, fechava
os olhos e em profundo silêncio
aguardava que seu mundo interior lhe
apresentasse caminhos a seguir.
Quem sabe, talvez A Voz... A Voz
emergisse do fundo de sua alma e,
como uma guardiã da Vida, inspirasse
João a saber lidar no diálogo entre
esse mundo novo que pedia passagem
e um velho mundo doente, que
lentamente se despedia e abria espaço
para um novo humano.



Um Novo Humano é uma história escrita por
Sergio Seixas com ilustrações de Lygia
Franklin em 2021 sobre o difícil tempo da
pandemia pelo Coronavírus no planeta.
Tempo que, apesar da dor, poderá se tornar
um Portal para a humanidade se reencontrar
com o humano depois de séculos e séculos de
descaminhos e esquecimentos.

Você também pode gostar