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Prisma Social
E-ISSN: 1989-3469
arodriguez@isdfundacion.org
IS+D Foundation for Advanced Social
Research (Fundação IS+D para Pesquisa
Social Avançada)
Espanha

Vivanco Saavedra, Luis Ignacio


UM ESTADO DEMOCRÁTICO PODE SER TOTALITÁRIO?
Prisma Social, no. 2, junho de 2009, pp. 1-24
IS+D Foundation for Advanced Social Research
Las Matas, Espanha

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=353744575008


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Luis Vivanco . "Um Estado
democrático pode ser totalitário? "

nº 2 - junho de 2009 - revista de ciências


sociais

UM ESTADO DEMOCRÁTICO
PODE SER TOTALITÁRIO?
UM ESTADO DEMOCRÁTICO
PODE SER TOTALITÁRIO?

Luis Ignacio Vivanco Saavedra

Palestrante. Escola de Filosofia.


Faculdade de Ciências Humanas e
Educação Universidad del
Zulia Maracaibo - Venezuela
E-mail: luisvivancosaavedra@gmail.com

1 prismasocial - Nº 2 | Junho 2009 | revista de ciências sociais 1


Luis Vivanco . "Um Estado
democrático pode ser totalitário? "

nº 2 - junho de 2009 - revista de ciências


sociais

Sumário
A partir da preocupação sobre se um Estado democrático, embora
mantendo sua aparência como tal, pode exibir comportamento totalitário ou
traços, surge a questão sobre o que caracterizaria tal tipo de regime
político, além da maioria das formas ou sistemas existentes ou conhecidos.
Embora historicamente a democracia e o totalitarismo tenham sido
antinômicos, pode-se perguntar se o caráter democrático de um Estado
exclui necessariamente a possibilidade de desenvolvimento e promoção de
um comportamento particularmente totalitário como parte do mesmo.
Portanto, tal caráter não constituiria, a priori, uma salvaguarda contra tal
comportamento. O presente artigo reformula esta preocupação,
especialmente a partir de uma perspectiva mais psicológica da ação política.

Palavras-chave
Totalitarismo; democracia; autoritarismo

Abstrato
Pensar se um Estado democrático, mesmo mantendo sua aparência como
tal, pode exibir características ou condutas que são totalitárias, traz a
questão do que caracteriza tal tipo de regime político, além das muitas
formas e sistemas políticos existentes ou conhecidos. Embora
historicamente a democracia e o totalitarismo tenham sido opostos como
conceitos, uma questão sobre esta relação pode ser afirmada, que vai
assim: O caráter democrático de um Estado exclui necessariamente a
possibilidade de desenvolvimento e promoção de condutas especialmente
totalitárias como parte desse Estado? Se assim for, então esse caráter
democrático não constituiria uma proteção contra tais condutas. Este artigo
reflete sobre esta questão, especialmente a partir de uma perspectiva mais
psicológica da ação política.

Palavras-chave
Totalitarismo; democracia; autoritarismo

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Luis Vivanco . "Um Estado
democrático pode ser totalitário? "

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sociais

1. Introdução

1.1. Declaração de problema


As seguintes linhas oferecem algumas reflexões em forma de ensaio
sobre a seguinte questão: Um Estado democrático pode ser totalitário? Esta
questão também abrange outras questões relacionadas ou relacionadas,
tais como se a democracia e o totalitarismo são verdadeiramente
excludentes, e se para alcançar o totalitarismo é necessário passar primeiro
por etapas como despotismo, governo absoluto ou ditadura.
Além disso, dado que vários ensaios e textos atuais aludem ao
problema de como a democracia às vezes paira sobre algumas sociedades
avançadas de forma totalitária, deve ficar claro que este texto não expõe
suas reflexões nessa direção.1 O democrático e o totalitário são
considerados aqui como esferas e coisas distintas, mas precisamente por
causa desta distinção, surge a estranha possibilidade de que uma dessas
esferas possa coexistir e de alguma forma conter a outra.
Estas reflexões têm alguma base real na realidade, e se baseiam em
algo que já existe? Antes de falar de qualquer caso específico, é preferível
apresentar estas reflexões como hipotéticas, embora nada impeça que uma
de nossas repúblicas sul-americanas caia na paixão pela construção de um
sistema totalitário a partir de uma forma democrática e dentro dela, sem
necessariamente se desprender dela, pelo menos na aparência. Isto pode
ser tão estranho que observadores políticos de diferentes

1
Dois textos recentes sobre este assunto que podem ser encontrados na Internet são: BROCOS
FERNÁNDEZ, José Martín: "La deriva totalitaria de la democracia liberal", publicado na revista eletrônica
Arbil, nº 113 e consultado em 19 de abril de 2009 em http://www.arbil.org/113demo.htm (neste artigo
o autor rejeita a democracia liberal por critérios morais que emanam de uma postura religiosa); ILLÁN
OVIEDO, Alberto: "Hacia el totalitarismo democrático", datado de 17 de maio de 2006, no site:
http://www.juandemariana.org/comentario/666/totalitarismo/democratico/ (acessado em 20 de abril de
2009); A própria expressão "Totalitarian Democracy" foi elaborada por Bertrand de Jouvenel em 1930, e
foi amplamente desenvolvida por Jacob Leib Talmon em sua obra seminal The Rise of Totalitarian
Democracy (Secker & Warburg, Londres, 1952, mais tarde revisada e republicada como The Origins of
Totalitarian Democracy); Frederick A. Praeger, "The Rise of Totalitarian Democracy" (Secker & Warburg,
Londres, 1952, mais tarde revisada e republicada como The Origins of Totalitarian Democracy).
Frederick A. Praeger, Nova York, 1960), e Friedrich von Hayek em sua A Constituição da Liberdade.
Chicago University Press, Chicago, 1960. Por outro lado, para Raymond Aron (Démocratie et
Totalitarisme. Éditions Gallimard, Paris, 1965) ambos conceitos, democracia e totalitarismo, são
radicalmente opostos e irreconciliáveis.

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Em muitas outras partes do mundo, as pessoas não saberiam o que pensar
sobre isso, muito menos se deveriam condená-lo ou apoiá-lo. Não foi
diferente quando apareceram no mundo fenômenos sem precedentes, como
a Rússia soviética, a Itália fascista ou a Alemanha nacional-socialista: a
princípio, nem todos sabiam o que pensar desses sistemas, embora mesmo
antes do nazismo chegar ao poder ele tenha proclamado suas duras
intenções2 . Entretanto, a nenhum desses sistemas políticos faltaram
apoiadores apaixonados e até mesmo esclarecidos. Levou muito tempo para
que o julgamento se tornasse mais firme sobre a natureza de tais
realidades políticas para vê-las em sua enfermidade básica.
Certamente, quando barbáries sem precedentes ocorrem na história,
poucas mentes têm julgamento suficiente para julgar e falar claramente
sobre seus méritos ou males. E as realidades sul-americanas são
freqüentemente atípicas demais e estranhas ao resto do mundo para
descartar que algo como "totalitarismo democrático" ou "democracia
totalitária" possa um dia ser instalado nessas costas.
É por isso que estas linhas começam como um exercício de
imaginação, colocando um modelo hipotético no qual algo como a instalação
progressiva ou gradual de um modelo totalitário aconteceria, sem apreciar
abrupta ou claramente as facetas totalitárias que começam a aparecer na
estrutura do país. É possível que algumas dessas facetas sejam algo
diferente do totalitário; isto é, é possível que comecem como aspectos
arbitrários, autoritários, irracionais, etc. O objetivo é tentar distinguir -
sempre em uma chave imaginária - quando
2
Cf. HITLER, Adolf: My Struggle. Tradução de Alberto Saldívar, Ediciones Modernas, n.d., n.d., pp. 67-
68, e também Vladimir Ilich Lenin, que, uma vez no poder, manifestou seu caráter implacável e cruel
para com aqueles que ele considerava inimigos em inúmeras cartas, telegramas e notas, nas quais ele
insistia quase obsessivamente em pedir sua destruição "imediatamente, sem misericórdia, a qualquer
custo, absoluta e irrevogavelmente"; por exemplo: "É necessário organizar uma guarda intensiva de
homens confiáveis e bem selecionados para implementar um terror em massa sem piedade contra os
kulaks (camponeses desembarcados), padres e guardas brancos; os suspeitos devem ser levados para
campos de concentração fora da cidade. A expedição punitiva deve começar agora. Telegrafe-me quando
a missão for cumprida" (Carta a Eugene Bosh, agosto de 1918, citada em PAYNE, Robert: A Vida e a
Morte de Lenin. Simon and Schuster, Nova York, 1964, pp. 481-482). As ordens de Lênin eram às vezes
um pouco estranhas, pois ele estava tão acostumado a ordenar "atirar" em seus telegramas que o verbo
perdeu seu significado, e então ele escreveu coisas como "atirar e deportar", sem parar para pensar
como alguém poderia ser morto e depois deportado. Pelo menos, como Payne também aponta, isto
parece claro: o notável nas notas e telegramas de Lenin é a sua vulgaridade.

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começa o totalitarismo, e o que então caracterizaria essencialmente este
fenômeno político de modo a permitir que ele seja inequivocamente
identificado, ainda que possa apresentar variantes com outros totalitarismos
históricos. O principal "objetivo" destas linhas seria distinguir aquelas
nuances totalitárias que podem não apenas coexistir, mas também se
combinar com a democracia, e meu "método" seria colocar em jogo este
exercício de imaginar um modelo hipotético de um país no qual isto poderia
acontecer. Certamente, há muitas outras reflexões ligadas a o que vou
expor no que se segue, mas estas reflexões - exceto por algumas
digressões talvez inoportunas pelas quais peço desculpas ao leitor com
antecedência - são para enquadrar reverencialmente o assunto, ou para dar
clareza ao que está sendo apresentado e, acima de tudo, para tornar minha
abordagem mais explícita.

1.2. Breves notas sobre o totalitarismo

O totalitarismo tem sido um fenômeno que, embora possa ter suas


raízes em tempos antigos, é distintamente moderno. Isto pode ser afirmado
porque tal fenômeno requer pressupostos ou estruturas que foram
alcançados na modernidade e que não podiam ser pensados na antiguidade
ou na Idade Média. Questões como a relação entre a aplicação de uma
tecnologia expressa e cuidadosa, destinada a sustentar o poder existente,
não teriam sequer sido concebíveis há mil ou dois mil anos, pois teriam
exigido a criação e utilização de uma tecnologia declaradamente racional,
que só poderia ser desenvolvida a partir de séculos mais próximos de nosso
próprio tempo e, sobretudo, a partir do
XIX. São precisamente estas tecnologias e técnicas avançadas de
modernidade que permitiram melhores formas de induzir e controlar a
população, através de coisas como publicidade e propaganda, teorias de
administração e planejamento de ação em grandes entidades e instituições,
e certamente, a elaboração de doutrinas de poder que têm algo ou muito a
dizer sobre educação, economia, o

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arte, crenças e até mesmo a saúde humana. Entretanto, as presentes
observações sobre o totalitarismo pretendem ir além de uma mera
caracterização política ou doutrinária. Eles começaram com perguntas
como: O totalitarismo inclui o autoritarismo (ou, expresso de outra forma:
O totalitarismo deve necessariamente ser autoritário? Ele pressupõe
essencialmente isso?), O totalitarismo pode ser "mais suave" do que o
autoritarismo, ou é o contrário? A afirmação básica aqui seria que o
totalitarismo passa pelo autoritarismo, e enquanto o último não inclui ou
implica o primeiro, o totalitarismo incluiria e implicaria o autoritarismo. Mas,
novamente, é assim?
Esta é uma questão importante, se pensarmos que, sendo conjuntos
distintos e separados de coisas, que podem ir juntos, mas que não precisam
necessariamente estar relacionados, seria o caso de que o totalitarismo
também poderia ser insinuado e até mesmo postulado como um objetivo
em uma estrutura que não considera o autoritarismo nem como um meio
nem como um objetivo. E a estrutura a que me refiro é a da sociedade
democrática; e aqui surge a questão: uma democracia pode se tornar
totalitária? Outras questões derivadas desta talvez queiram qualificar os
termos (por exemplo: totalitário em que sentido? Como uma democracia
poderia ser autoritária fora dos tempos de emergência? etc.).

Não vou parar aqui para definir os múltiplos significados do que


concebo como democracia, pois isso mereceria um tratamento particular,
mas é claro que a democracia está mais orientada para definir e estabelecer
responsabilidades e não autoridades; e está mais relacionada a assumir
direitos de forma responsável do que a renunciar a eles. E é precisamente
esta renúncia e limitação dos direitos dos cidadãos que define o caráter da
ditadura e do autoritarismo.

Então, se a democracia pode ser estabelecida de forma divergente do


autoritário, como se poderia falar de uma democracia totalitária, que, como
tal, iria mais longe ao negar os direitos do indivíduo do que um regime
autoritário em si?

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Bem, dependendo do que entendemos como totalitarismo,


poderíamos falar sobre isso. Agora vou tentar uma definição funcional de
totalitarismo, que vou refinar ao refletir sobre o que me interessa como
aspectos mais profundos deste fenômeno, que ajudam a entender como
poderia existir uma democracia totalitária.3
Eu defino aqui o totalitarismo como aquele modo de existência no
qual toda consideração da realidade, vida e possibilidades humanas estão
subordinadas a um único sistema de crenças, valores, verdades e princípios.
Esta é, como se pode ver, uma definição de totalitarismo do ponto de vista
daqueles que o impõem. Entretanto, é claro que existem diferentes
maneiras de pensar e considerar a realidade em qualquer comunidade, e
isto tem sido o caso até mesmo em regimes que têm sido paradigmas do
totalitarismo. De fato, diz-se que há tantas maneiras de pensar a realidade
quanto há pessoas no mundo.4 Mas o que distinguiria o caso totalitário de
outros modos de coexistência de diversos sistemas de crença e pensamento
no mesmo grupo humano é que nele, todas essas outras formas de
considerar a realidade, todos esses outros sistemas de crença, estão
sujeitos ao que reina como dominante, passam por seu controle e regra de
ferro, e são avaliados, validados ou invalidados, parcial ou totalmente por
ele. Em tais sociedades, é o sistema totalitário dominante que julga a
realidade, e o

3
Prefiro o termo "democracia totalitária" ao "totalitarismo democrático", porque este último apresenta
este fenômeno como uma variante dividida do totalitarismo, o que não é o caso, porque o totalitarismo
em si, como fenômeno político extremo, não se move em direção a outros espaços, mas busca sua
própria permanência e imobilidade. A democracia, por outro lado, por sua imperfeição ou inacabamento,
está constantemente buscando se readaptar e se reinventar, daí sua característica "instabilidade", que
de fato é uma característica essencial da democracia, tanto quanto é uma característica essencial do ser
humano. Trata-se, portanto, de uma degeneração do caráter democrático de uma sociedade e de um
Estado, que deslizaria para uma espécie de imobilidade política característica do totalitarismo, que será
descrita nas páginas seguintes.
4
Depois há o fato de que as pessoas nem sempre pensam da mesma forma. Basta olhar para a
diferença entre o que as pessoas pensam quando são jovens e o que pensam quando crescem. Para dar
apenas um exemplo, se quando alguns jovens acreditam na violência e no poder para conter elementos
dissidentes ou rebeldes em uma sociedade através da repressão e da força, por amor à pátria e aos
conceitos sagrados de honra e sacrifício, depois de uma certa idade tudo isso parece menos razoável ou
viável porque, entre outras coisas, o entusiasmo e a fé tanto na violência quanto na paz começam a
diminuir. Ao invés de se chegar a certezas, chega-se a dúvidas às quais todos nós (exceto os fanáticos)
nos rendemos filosoficamente. A ingenuidade e a esperança - pelo menos a esperança ilusória - estão
perdidas, e o mal no mundo é aceito e tolerado como parte de sua natureza. Tal tolerância seria talvez
correlativa à "prudência" de Aristóteles (frassese), que é alcançada com a idade e a experiência, e não
apenas pela pura racionalidade, e assim dificilmente pode ser encontrada nos jovens. Outros chamariam
esta tolerância de "conformismo", e a considerariam nem honrosa nem respeitável.

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Outros sistemas podem ser permitidos na medida em que coincidam ou não
colidam com o sistema vigente. Em outras palavras, a discordância do
sistema dominante e prevalecente é desencorajada, invalidada ou
minimizada até o ponto de insignificância. O sistema totalitário funciona
assim e se posiciona, em tal sociedade, como um repositório das verdades
da cultura.

A caracterização do totalitarismo que acaba de ser apresentada é,


como se pode ver, uma caracterização externa. Mas também pode haver
outra definição - na verdade, muitas mais - mais interna ao fenômeno, ou
seja, mais em relação a uma atitude totalitária, em nível pessoal e
individual5 . Traços totalitários ou atitudes como tais podem estar presentes
em qualquer ser humano. Em tais atitudes, a convicção de que se tem
princípios que orientam a ação e o pensamento é apresentada com uma
rigidez sem alternativas ou dúvidas. No âmbito do totalitarismo, é
impensável ser flexível em idéias ou valores que se apresentam como
fundamentais e identitários.

Tudo isso parece fazer alusão a algo estranho à experiência cotidiana,


mas na realidade é algo muito comum. Quase poderia ser dito que todos
nós, em algum momento de nossas vidas, ou em certas situações pelas
quais passamos, podemos ter agido de uma forma "totalitária". Mais
comumente é o pai que proclama que em sua casa a única lei é sua, e o que
ele ordena é feito, ou o marido que diz que tudo em casa deve ser para seu
benefício como sustento da casa, ou o chefe de escritório que exige
obediência sem resposta e sem admitir objeções, ou a mãe que está
sempre certa em suas opiniões e ninguém pode discordar dela. Embora em
todos estes exemplos o autoritário, e não o totalitário, pareça se destacar
mais. Certamente, estes exemplos são figuras um tanto caricaturadas e
servem para construir ironias e piadas sobre os estereótipos em que se
baseiam. Mas eles são reais.

5
Ao mencionar outras referências a definições de totalitarismo, devo deixar claro que concordo
substancialmente com as observações sobre totalitarismo contidas não apenas em enciclopédias e
manuais técnicos sobre filosofia política, mas sobretudo nas reflexões e estudos mais importantes sobre
este fenômeno político contemporâneo de autores como Hannah Arendt, Jacob Talmon, Isaiah Berlin, e

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outros.

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Mais facilmente encontramos esse totalitarismo individual nos


fanáticos das seitas político-religiosas. No caso de muitos deles, sua atitude
não dependeria simplesmente de uma questão de temperamento, ou
"histeria" ou mau caráter, mas de um curso de ação que pode ser bastante
calculado e calmo, que eles proclamam ou ditam simplesmente por causa
da autoridade com a qual acreditam estar investidos, e por causa da
verdade que acreditam possuir. Nesta perspectiva, se alguém tem a
verdade, não há necessidade de negociar e, de fato, não se negocia nem se
faz concessões. Poder-se-ia dizer que aqui uma certa lógica rígida substitui
um procedimento que seria humanamente mais prudente. Quase se poderia
dizer, parafraseando o que Aristóteles diz sobre a moralidade em relação à
política, que o totalitarismo político é a aplicação em nível coletivo, e para
uma comunidade, do que é considerado supremamente válido (seja
doutrina ou ideologia proclamada como tal) em nível individual. E de fato, o
totalitarismo nazista, por exemplo, foi a proclamação a nível coletivo das
verdades que Hitler acreditava e mantinha a nível individual. Poder-se-ia
discutir aqui se existe alguma variante substantiva entre esse totalitarismo
nazista e o totalitarismo comunista de Lenin, Stalin, Khrushchev e empresa.

Uma diferença que me parece bastante essencial entre os dois é que,


enquanto o nazismo emergiu de algumas idéias mal representadas,
infundadas, pouco sólidas ou coerentes, não muito bem enfiadas, da cabeça
de Hitler e outros pensadores (precursores antes dele, e "filósofos do
regime" depois dele)6 , o comunismo marxista-leninista emergiu da
elaboração e extensão das doutrinas de Marx e, sobretudo, de Lenine,
Stalin e vários outros ideólogos do mesmo. Embora se pudesse esperar erro
e trivialidade de uma doutrina tão grosseira quanto a do nazismo, muitos
não acreditavam que erros igualmente sinistros pudessem ser derivados de
uma doutrina de "socialismo científico".

No final, sãs ou não, fundadas ou infundadas, ambas as doutrinas

6
Como Ernst Krieck e Alfred Rosenberg, no nível mais exotérico, e Dietrich Eckardt e Karl Haushofer, em
um nível mais oculto.

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produziu morte e destruição. Acho que se deve considerar cuidadosamente
que o grau de destrutividade, crueldade e totalitarismo de ambas as
doutrinas não variou substancialmente porque uma era mais sólida do que a
outra, ou mais coerente, ou mais profunda, ou mais significativa, ou mais
racional ou mais lógica ou mais "científica". Creio que algo semelhante ao
princípio teológico hermenêutico de que o critério de exegese das Sagradas
Escrituras são as próprias Escrituras poderia ser aplicado à consideração de
ambos os totalitarismos. Neste sentido, o critério para julgar o totalitarismo,
em vez de procurá-lo em seus fundamentos, nas doutrinas ou idéias que lhe
deram origem e apoio, deve ser buscado em seus efeitos, nos resultados
que sua aplicação teve. E aqui eu acho que me diferenciaria de Aristóteles
ao dizer que conhecer algo seria conhecer suas causas, porque aqui,
conhecer bem o totalitarismo não é precisamente conhecer suas causas,
mas acima de tudo conhecer seus efeitos, suas conseqüências. E se
tivessem sido suficientemente conhecidas, muitas outras nações talvez
tivessem intervindo para impedir a construção da URSS ou da Alemanha
nazista, ou pelo menos para enfraquecer eficientemente o desenvolvimento
de ambas.

Assim, os fundamentos, idéias ou doutrinas do totalitarismo podem


ser discutidos e argumentos a favor ou contra (tanto para os totalitarismos
mencionados acima, se seus princípios e ideais forem apresentados em sua
melhor perspectiva, podem parecer bastante plausíveis). Mas, por outro
lado, há um consenso muito maior ao considerar os resultados e efeitos do
totalitarismo como prejudiciais e, portanto, foram condenados
universalmente pela reunião de todas as nações modernas por
unanimidade.7

7
Este julgamento sobre os efeitos de uma doutrina pode ser visto como a aplicação geral da máxima
evangélica "Pelos seus frutos os conhecereis" (Mt. 7, 16-20, cf. Lc. 6, 43). E em várias outras partes do
Novo Testamento esta questão dos frutos é aludida como os efeitos lógicos e reais das atividades
espirituais e morais, que às vezes são apresentados ali, de forma alegórica, como correlativos à
atividade do trabalho selvagem. É curioso que, ao lidar com uma questão tão antiga, as doutrinas,
especialmente as sociais e políticas, ainda sejam julgadas pela solidez e coerência de seus princípios e
fundamentos, e não pela qualidade dos efeitos históricos de sua aplicação. O preceito filosófico parece
ser esquecido aqui, o que nos lembra que, embora a argumentação nascida do erro conceitual
raramente seja sólida ou coerente, nem a construção sobre bases sólidas ou verdadeiras é uma garantia
de alcançar a verdade. Na verdade, a história da filosofia está repleta de doutrinas errôneas que
nasceram de princípios consistentes e certos. É necessário "seguir" e orientar a argumentação ao longo

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do sociais
"curso" de seu desenvolvimento, e garantir que ela não se desvie em caminhos de possíveis efeitos
ou conseqüências indesejáveis, ou evitar a possibilidade de conseqüências indesejáveis ou indesejáveis.

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Acabo de aludir a um termo - unanimidade - que se refere a uma


terceira característica do totalitarismo, mais psicológica do que sociológica
ou política. Quem detém as rédeas de um Estado totalitário não só aspira ao
domínio indiscutível sobre uma sociedade da doutrina que ele usa como
ideologia de poder, mas também aspira à aquiescência, concordância e
conformidade dos membros dessa sociedade com essa doutrina. Como esta
terceira característica está muito mais precisamente relacionada ao assunto
destas páginas, tratarei dela abaixo, referindo-me precisamente à questão
de se é possível que uma democracia assuma, à sua maneira, e por assim
dizer, 🕦voluntarily🕧, características aberta e definitivamente totalitárias.

2. A dimensão psicológica do totalitarismo, ou O que


o líder totalitário quer?

Seguindo a intenção expressa no início destas linhas, iremos além do


fenômeno do totalitarismo, no que nos mostrou em sua perspectiva
histórica, certamente documentado com abundância e seriedade suficiente
para sermos firmes no reconhecimento dos males de tal procedimento
político.

Este "além" no qual desejo especular é precisamente o que passa


pela mente daqueles que desejam estabelecer um regime totalitário e, de
fato, o que passa pela mente de muitos que o apóiam do povo.

Não me refiro aqui tanto ao caráter ideológico ou doutrinário daqueles


que querem instalar tal regime ou de seus seguidores, mas aos desejos
mais profundos e aos impulsos mais íntimos de ambos os termos,
dominantes e dominados.

pernicioso. Mas como esta orientação é feita mais por intuição do que por experiência (pois os efeitos
práticos de uma doutrina política ou econômica ou moral só são bem conhecidos após sua aplicação), é
preciso treinar a intuição para ser especialmente sensível às possibilidades e riscos das idéias que se
está erguendo sistematicamente. Esta é uma das dificuldades do trabalho filosófico, mas esta nota não é
o lugar para elaborar este problema, que se refere a um aspecto metodológico significativo da
importante reflexão sobre a política.

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Creio que se pode inferir que existem vários elementos que colocam a
suposta necessidade do Estado totalitário no palco político de uma
sociedade. O líder que promove tal sistema certamente deseja, antes de
tudo, impô-lo, tê-lo dominado a sociedade, tê-lo governado de acordo com
os princípios de tal sistema, e ter suas verdades guiando os projetos da
sociedade. Mas este desejo de dominação, domínio e imposição, embora
terrível em suas conseqüências, não é tudo o que o totalitarismo é. De fato,
se fosse apenas isso, se o totalitarismo fosse apenas sobre o controle e o
domínio onipotente de uma realidade, não seria tão diferente do
autoritarismo, da tirania, ou mesmo de algumas simples ditaduras. Acima
de tudo, se este desejo de dominação simples fosse toda a história do
totalitarismo, sua conexão com o espírito democrático não seria muito bem
explicada. E certamente existe tal conexão, tal estranha relação de atração
entre uma e outra. Uma relação historicamente tão viável a ponto de ter
significado que, mais de uma vez, os totalitarismos chegaram ao poder ou
foram endossados no poder por um apoio popular externo e plausivelmente
democrático.8

Portanto, como observado nos parágrafos anteriores, o líder do


sistema totalitário não busca apenas incluir em seu domínio e controlar
todos os atos e comportamentos que ocorrem em uma realidade social. Este
objetivo é buscado, mas como um derivado de outro, que seria induzir na
sociedade o desejo de ser governado de forma totalitária, ou melhor, de ter
tal sistema controlando suas vidas. Neste sentido, se tal totalitarismo for
promovido

8
O caso da ascensão de Hitler ao poder entre 1931 e 1934. A ascensão de Mussolini ao poder não foi
democrática em princípio ou no início, mas anos após sua instalação, plebiscitos contínuos endossaram e
consolidaram seu apoio em massa, dando um toque democrático a seu governo. Hoje se sabe que tais
plebiscitos, além de algumas irregularidades no processo eleitoral comum em todo o mundo, eram
bastante transparentes e limpos, o que só aumenta o problema e o mistério sobre o caráter ilusório
"democrático" que tal totalitarismo poderia ter assumido, pois se essas consultas tivessem sido
predominantemente manipuladas, não haveria mistério nesta relação entre apoio popular ou
consentimento a um regime totalitário, pois não teria havido tal apoio popular, mas sim uma mentira
forjada pelos governantes para disfarçar sua administração de democrática. Isto é muito claro: a
democracia é muito mais do que contar votos em um referendo, embora tal referendo seja uma parte
fundamental do mesmo. Por outro lado, os sufrágios em regimes autoritários, tirânicos e totalitários nos
quais a maioria dos eleitores apóia seus governantes não são incomuns. As causas disto são complexas
e, embora em alguns casos se assemelhem de uma sociedade para outra, na realidade merecem
explicações em fatores culturais ou históricos de cada sociedade onde ocorrem. Em todo caso, isto nos
convida a entender que, assim como uma pesquisa não mede a verdade de algo, mas sim a verdade do
que algumas pessoas pensam sobre algo que lhes é perguntado, nem a justiça de um regime pode ser

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Luis Vivanco . "Um Estado
democrático pode ser totalitário? "

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medida apenas pelos votos que a apóiam.

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Inicialmente por uma pessoa, um líder supremo, seu objetivo não seria
apenas que o povo o reconhecesse como líder, mesmo que de forma
resignada e sem poder, mas que o aceitasse como tal, que desejasse ter tal
líder e tal sistema sobre eles. O líder, neste caso, deseja ser desejado pelo
povo, e às vezes pode desejar ser amado por aqueles que ele lidera.9

Este último sentimento parece desequilibrado e extremo, mesmo fora


de ordem, embora todos os desejos menores e até anteriores (ser apoiado,
ser reconhecido, ser desejado) pareçam razoáveis em situações críticas ou
de emergência, e tenham sido comuns na história dos autoritarismos e das
ditaduras. Em certos momentos históricos, uma figura foi desejada para
salvar a situação diante de uma grande anarquia ou desordem. Como
geralmente é uma figura a quem são concedidos grandes poderes (ou que
os arrogam para si mesmo), isto geralmente dá origem a abusos que
precisam ser sofridos ou tolerados. E uma vez estabelecida tal figura, ela
busca a conveniência de reconhecimento ou aceitação por aqueles que ela
governa. Mas o que é ainda mais atípico (e a gota d'água) é um líder que
exige relacionamento e amor daqueles que ele governa, a unidade-
unanimidade de suas idéias com as do povo, no que aparentemente seria o
reconhecimento mútuo, mas que na realidade é o ideal de converter o povo
em um espelho dos ideais do líder, em uma relação de autoconfirmação e
auto-referência mútua.

Isto é típico do totalitarismo: eles estão procurando um intelecto


comum, a mesma mente, entre os sujeitos e o sistema, dirigido ou
representado por um líder.10 A diferença surge com o ditador e

9
Esta concretização da relação quase sentimental do líder com seu governado poderia ser dita no caso
de Hitler e Stalin: ambos queriam ser aceitos, aclamados, amados e que todas as vontades se
conformassem com as deles. E se este não foi o caso, eles reagiram emocionalmente também, punindo
o povo pelo desapontamento causado por sua traição. O caso de Hitler é talvez o mais patético, pois no
final de seu mandato, enquanto ainda sonhava em erguer novos edifícios monumentais em Berlim e
outras cidades, ele ordenou a destruição da maior parte da Alemanha possível diante do avanço aliado e
soviético, com o espírito de castigar seu próprio povo pelo fracasso da guerra. A reação de muitos de
seus seguidores foi curiosa: diante da agressão final de seu líder contra o próprio país que ele queria
liderar, eles preferiram cometer suicídio de várias maneiras ao invés de ousar pensar de maneira
diferente.
10
Outro problema surge aqui: o apego da população a um totalitarismo representado e encarnado num
líder, com o qual ela pode se identificar, porque ele é, em princípio, um ser humano como qualquer
outro, é diferente do apego da população a um totalitarismo que existe como sistema, e no qual é
possível se identificar com um líder, por um lado, e, por outro, o apego da população a um totalitarismo

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existe como sistema, e no qual é possível se identificar com um líder, com base no fato de ele ser,
em princípio, um ser humano como qualquer outro.

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o autoritário, que deseja governar mesmo contra a vontade ou o desejo de
seus súditos. Mas o totalitário extremo que imagino aqui deseja governar
com a vontade e o desejo de seus súditos, com total concordância entre
eles e ele. Um único pensamento e acordo sobre tudo entre ambas as
partes, governante e governante. E o problema democrático surgiria
precisamente no fato de que, se se governa com o consentimento,
aquiescência, aquiescência, aprovação e desejo de todos, isso pode ser
considerado violência à vontade dos cidadãos que querem tal regra?

Este ideal do sistema totalitário concebido como a regra perfeita


sobre os desejos de seus súditos apresenta, de certa forma, uma armadilha
para o resto do mundo, e especialmente para as poucas nações que tentam
se ater a um ideal democrático, imperfeito e problemático, mas que em
muitos casos pode ser dito que é como o aleijado do qual Stanislaw Jerzy
Lec disse, que coxeia, mas caminha. A maioria das outras nações do
mundo, lutando entre regimes que tentam manter uma estabilidade política
precária diante de graves problemas sociais, demográficos e econômicos,
dificilmente poderiam julgar a qualidade democrática ou antidemocrática de
um totalitarismo que se apresenta como satisfazendo os desejos de seu
povo (que deseja esse totalitarismo). Mas mesmo as nações mais
democráticas também poderiam ficar perplexas com um sistema que, por
exemplo, realiza continuamente - e às vezes até perde - eleições, que
permite que um grande número de meios de comunicação operem
livremente (e que também exerce essa liberdade opondo-se a esse
governo), e que não impõe grandes restrições legais ao

no qual o líder ou líderes (que podem ser um conselho de figuras mais ou menos desfocadas) são
apenas parte daquele sistema, daquela maquinaria que controla tudo, e não protagonistas exaltados por
propaganda ad hoc. O romance de George Orwell de 1984 sugeria tal situação. Embora "Big Brother"
fosse uma figura humana reconhecível e não pouco notável, ele era na verdade um personagem fictício,
criado pelas autoridades bastante anônimas, mas não menos poderosas, que realmente governavam ou
gerenciavam o sistema totalitário. Certamente, enquanto o totalitarismo fascista e nazista se
concentrava em uma figura humana específica e pessoal, o totalitarismo soviético e parcialmente chinês,
além de suas grandes figuras personalistas como Stalin e Mao, foi se movendo gradualmente para um
fortalecimento do sistema, deixando as figuras humanas governantes mais nas sombras. É claro,
entretanto, que a opacidade dos líderes de lá não significou o prejuízo do totalitarismo: o poder de uma
grande estrutura ou sistema que controla a vida das pessoas não diminuiu por décadas, e seria
interessante estudar e refletir sobre o caráter do que ambos os sistemas se tornaram hoje.

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Onde estaria o suposto totalitarismo nessa realidade, nesse país? E se
alguém pensa que não é um regime de força ou ditadura, mas nascido de
um processo de sufrágio tradicional e democrático, muito menos poderia ser
assimilado ao totalitarismo. Eles nos diriam, aludindo ao que foi dito no
início deste texto: "Como poderia um tal regime ser totalitário, se não é
mesmo uma ditadura, nem sequer é um país autoritário"! É verdade, como
poderia ser?

Suponha, então, o que foi sugerido no início destas linhas: o exemplo


imaginário de um hipotético estado democrático (ficticiamente colocado em
nossa América, tão tristemente dedicado desde o passado a imitar e
reinventar sistemas e utopias que o resto do mundo há muito deixou para
trás...). Suponha que este governo, depois de chegar ao poder, tente
continuamente criar coisas que, em princípio, não pertencem à tradição
política daquele país. Assim, como esta intenção é expressa, ela não parece,
em princípio, censurável. Considerando que as tradições políticas, por
melhores que sejam, têm que ser abaladas e alteradas para serem
renovadas, a idéia de reinventar coisas existentes, tais como mudar a
bandeira, ou mudar o brasão, ou mudar certos nomes de coisas, parece
boa, o que às vezes pode ter um efeito benéfico na imaginação pública.

O problema surgiria, neste exemplo hipotético, quando se percebe


que muitas destas reinvenções e recriações são empréstimos de modelos
existentes cujas realizações duvidosas demonstraram eloqüentemente seu
fracasso decisivo. Suponha que o que antes era chamado de "Assembléia"
seja agora chamado de "Congresso", os "Conselhos Comunais" de ontem
são agora chamados de "Conselhos de Vizinhança", e outras mudanças do
gênero. Tudo isso parece ser apenas uma maquiagem sócio-política, talvez
muito bonita, se acompanhada de promoção, cor, música e propaganda
suficientes. Mas se se verificar que estes nomes foram retirados de nações
da Ásia ou da África que hoje vegetam em despotismo e pobreza, fazer
estas mudanças parece uma inspiração bastante infeliz. Mais sobre

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Em qualquer caso, o que há de indício de totalitarismo? Nada em princípio.

Mas eis que o regime daquele país inicia uma série de ações para
promover, primeiro, um pensamento sobre si mesmo, como a realização de
um movimento político que traz uma mudança que deixa para trás tudo o
que ele se opõe. Isto será muito útil para criar o contraste entre aquele
regime (= o presente, o presente) e seus oponentes (= o passado, a
resistência a mudanças vitais). Esta e outras idéias que promovem a noção
de um regime que não só é bem intencionado como ideologicamente correto
começam a ser disseminadas, como nunca antes as idéias, princípios,
opiniões, pensamentos e doutrinas de um governo foram disseminados
naquele país: através de muitos meios de comunicação, imprensa,
literatura, textos escolares, etc. Pode-se dizer que isso implica uma
realidade totalitária? Não parece possível, porque toda essa informação
doutrinária que é transmitida existe em uma situação alternativa, vis-à-vis
a informação e as múltiplas doutrinas e ideologias que existem na sociedade
e que cada pessoa decide acreditar ou seguir o melhor de seu
conhecimento, sem que o Estado assuma o controle sobre o que cada
pessoa deve acreditar e saber. Portanto, não há totalitarismo como tal.

Ao mesmo tempo, a mídia estatal: estações de rádio e televisão, que,


como outras mídias oficiais em outros países do mundo, costumavam
transmitir informações sobre cada país e seus aspectos culturais (música,
história, literatura, etc.) vão agora, em primeiro lugar, crescer: de um
punhado de estações de rádio para várias dúzias, e depois para centenas. E
de um ou dois canais de televisão, para também mais de uma dúzia de
emissoras de televisão. E de algumas publicações a um grande número de
órgãos de imprensa, tanto na capital como nas províncias. E todos esses
meios de comunicação vão transmitir as mensagens, crenças e doutrina
oficial do governo. Não entre concertos, histórias e programas noticiosos,
mas continuamente, a qualquer hora, mesmo nas primeiras horas da
manhã, em benefício dos insones, juntamente com os discursos do chefe de
Estado. E não apenas isso, mas todos esses meios de comunicação
excluirão, de forma precisa e atenta, qualquer pensamento ou opinião

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sociais desse único pensamento oficial,
dissidente

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e não aceitará críticas e murmurações contra ela, não importa de onde elas
venham.

Entretanto, como ainda existem canais de televisão e estações de


rádio que não transmitem o pensamento oficial e até mesmo transmitem
contra este pensamento oficial, não se pode dizer que não há
predominância nem controle do Estado sobre o que é transmitido em todos
os meios de comunicação naquele país e, portanto, ainda não existe um
totalitarismo efetivo naquele país.

Da mesma forma, todas as instituições educacionais, culturais e


acadêmicas, que de alguma forma dependem do Estado para seu
funcionamento ou operação, serão gradualmente mediatizadas como
instrumentos para a disseminação e extensão do pensamento político oficial
do governo (que se tornará o pensamento político oficial do Estado, já que a
fronteira entre Estado e governo está começando a se esbater,
especialmente porque o governo permanece no poder por mais anos do que
os governos anteriores). Por exemplo, editoras patrocinadas pelo Estado
que promovem a publicação de livros por escritores daquele país agora, é
claro, publicarão livros, mas principalmente estimulando a produção que
exalta ou engrandece o trabalho do regime e as obras daqueles escritores e
autores que elogiam e elogiam o regime. Em compensação justa, os
escritores críticos ou contrários ao regime não são publicados em tais
prensas, mas podem continuar a escrever, publicar e divulgar suas idéias na
mídia não governamental e nas editoras (se tais autores ainda fizerem o
esforço e conseguirem ser publicados). Aparentemente, ainda há liberdade,
e todos estão (assim) felizes. E nada disto nos autoriza a falar de
totalitarismo ainda, embora alguns possam começar a ficar impacientes.

Mas passemos agora à lista dos funcionários públicos e empregados


deste país imaginário, que recebem salários pagos pela administração
pública, e cujo número está inchando por centenas de milhares de pessoas,
algumas das quais são qualificadas e capazes de ocupar cargos públicos.

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Eles não têm nenhuma ou muito pouca posição, mas muitos outros não têm
nada ou muito pouco. No entanto, todos eles são ajudados e empregados
por causa de sua lealdade aos princípios e à doutrina do regime. Suponha
que isto não fosse novidade naquele país. O que é novo seria, antes de
tudo, a radicalização da mensagem e da doutrina assimilada e, sobretudo, o
fato de que aqueles que não compartilham ou não professam tais idéias
começam a perder seus espaços, seus empregos. Sem a possibilidade de
alcançar outros cargos ou promoções, não apenas no nível público, mas
também no privado, numa espécie de veto imposto pelo governo, devido ao
que ele considera um comportamento rebelde ou insubmisso por parte
dessas pessoas, que se no início fossem apenas algumas, com o tempo
imaginemos hipoteticamente que serão centenas de milhares, com tudo isso
significando muito mais centenas de milhares de membros da família ou
pessoas que dependem deles. É claro que cada uma dessas pessoas será
um adversário em potencial, mas como elas seriam substituídas por um
número igual ou maior de pessoas que sabem ser astutamente a favor do
regime, o equilíbrio do regime é favorável em termos de apoio. Mas vamos
concluir dizendo que, apesar de uma política administrativa tão odiosa,
ainda haveria funcionários em tal país - geralmente idosos ou próximos da
aposentadoria - que, mesmo não concordando com o regime, não perderam
seus empregos, e há milhões de pessoas instruídas que, apesar de sua
simpatia pelo regime, não encontram trabalho nem no setor público nem no
privado. Isto revela uma espécie de falta de controle do regime sobre a
realidade do país, e se este for o caso, ainda não é possível falar de
totalitarismo.

E podemos até aludir ao caso, não mais de simples funcionários


públicos e funcionários públicos, mas daqueles que ocupam cargos de maior
importância e até altos cargos no governo, que, quando se exige lealdade-
obediência ao líder e ao regime ao ponto de irracionalidade e indignidade,
não só se submetem a ele com prazer, mas com sorrisos e aplausos,
mesmo que por dentro sintam suas entranhas arder. Suponha - não é difícil
supor - que essa ignomínia também aconteça com aqueles que ocupam

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cargos importantes nos poderes que não o executivo, como o legislativo e o
judiciário, surge a pergunta: isso não está destruindo esse governo?

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uma hipotética divisão imaginária de poderes e a possibilidade de sua
autonomia em relação ao executivo?11 Pode-se dizer que isto é verdade.
Mas mesmo assim, duvido que mesmo assim pudéssemos considerar tal
Estado como totalmente totalitário, porque ainda é possível que tal
desprezível servilismo pudesse acontecer não por causa do incitamento do
líder-guia do país a tal comportamento, nem como uma política estatal
expressa, mas por causa da inclinação natural de certas pessoas para
serem implacáveis e canalhas, algo que, infelizmente, não é incomum nos
políticos e naqueles que exercem altas funções públicas. De fato, é um
comportamento que pode ser observado também em ditaduras e
democracias (embora democracias bastante sui generis). Portanto, também
a este respeito, não podemos dizer que estamos lidando com um regime
fundamentalmente totalitário.

Onde, então, estaria o totalitarismo deste regime aparentemente


democrático, e até mesmo exemplar a este respeito? (esqueci de perguntar
que também imaginamos que ele consulta freqüentemente seus cidadãos
em referendos e eleições).
Teríamos que examinar as intenções desse regime e talvez um pouco
de sua doutrina de poder para começar a apoiar nossa posição. Este
segundo, o exame da doutrina do regime, como este é um exemplo
puramente hipotético, não o farei aqui, pois teria que aludir a alguma
doutrina particular, e prefiro me referir a uma doutrina geral ou genérica do
regime exemplificado. Mas olhemos não tanto para as idéias do líder ou guia
que comanda o regime, mas para seu tom, seu estilo, a intenção geral,
como mencionei antes, de seu(s) discurso(s).

E aqui encontramos, tanto nestas intenções expressas em cartazes,


cartazes, anúncios, comerciais, televisão, rádio, imprensa, livros, estátuas,
pinturas, exposições, festivais, congressos, seminários, conferências, em
comunicados, escritórios, circulares, despachos, correspondências,
correspondência, etc., que as intenções não são apenas expressas em
cartazes, cartazes, anúncios, comerciais, televisão, rádio, imprensa, livros,
estátuas, pinturas, exposições, festivais, congressos, seminários,

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conferências, comunicados, escritórios, circulares, despachos,
correspondências, correspondência

11
Outra coisa que contribui para diluir esta divisão e autonomia de poderes é a criação de novos poderes
propostos pelo Executivo, o que seria bastante paradoxal, uma vez que estes novos poderes teriam
ainda menos autonomia do que os anteriores, estando mais sujeitos ao Executivo. Mas como esta
criação de poderes é um tanto rebuscada e certamente incomum, eu queria deixá-la fora do exemplo
hipotético, a fim de me ater a uma realidade mais logicamente inclinada.

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As idéias do regime (seja em doutrina ou ideologia) visam claramente
alcançar os cantos mais intrincados do país, ser abraçado, acreditado e
amado pelos cantos mais intrincados do país, e ser abraçado, acreditado e
amado pelos cantos mais intrincados do país, a clara intenção de que as
idéias (seja em doutrina ou ideologia) do regime e seu líder, cheguem aos
cantos mais intrincados do país, e sejam acolhidas e acreditadas e amadas
por cada cidadão, e seguidas, "internalizadas", e assimiladas por cada
pessoa do país, independentemente do nível, profissão ou classe: criança,
mulher, ancião, homem, militar, profissional, padre, pastor, ministro, cheij,
rabino, engenheiro, médico, barbeiro, policial, classe média, classe baixa,
classe alta. Ninguém está contemplado a fugir desta audiência e deste
convite algo insidioso, insistente, resistente, opressivo, avassalador,
irritante, sufocante, sufocante de amar o regime, de amar o regime, de
desejá-lo, de querer que ele exista, de "agradecê-lo por ser ele e por
existir", e de querer servi-lo e obedecê-lo, de acreditar nele e não resistir a
ele, de acolhê-lo e não se opor a ele. É uma convocação para aceitar
sentimentos e opiniões, para descartar totalmente aqueles que discordam
do que nos é oferecido e para substituí-los pelos sentimentos e opiniões que
nos são apresentados pelo líder ou pelo sistema que o apóia. É um apelo à
aceitação total, à confiança total, ao consentimento total. O regime e seu
líder se confundem e, como uma paráfrase moderna do rei do sol, este
último poderá dizer: o regime sou eu, a ideologia sou eu, a verdade sou eu.

Assim, regime e líder-guia, eles não se contentam apenas em


governar aquele país; nem mesmo em governá-lo de forma quase absoluta,
abrangente e poderosa, mas querem ser amados, querem que o povo lhe
dê seus pensamentos por seus pensamentos, sua vontade política por sua
vontade política, sua visão da verdade e reis nus por sua versão da verdade
e reis vestidos de forma royally. Como cortesia, ele não lhes ordenará que
acreditem que dois e dois são cinco, pelo menos no nível da matemática,
mas em outros níveis ele poderá pedir-lhes que queiram fechar os olhos,
parar ou silenciar suas vozes de consciência e

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alegações de sua criticidade, se ainda assim a mantiverem.

E nada disso é o que o regime e seu líder-guia querem fazer com a


violência (se assim fosse, já seria ditatorial ou despótico), mas pelo
contrário, o que este binômio quer é que as pessoas queiram ser como
querem, querem que as pessoas abandonem um modo supostamente
antigo de ser, o modo do passado, e se alinhem com o modo do presente,
do presente; que os cidadãos abandonem o que em uma figuração religiosa
poderia ser chamado de "o velho homem" e abracem, abracem neles, o
"novo homem".12 E sua mente já estando alinhada com a do regime de
líderes, eles estariam "em seu próprio", e de volta de sua suposta alienação
por terem se oposto a seu superior guia político-existencial-vital. O regime
deseja aquele antigo e pessoalmente impossível anseio humano: deseja o
amor incondicional de seus cidadãos-sujeitos.

Esta concepção de totalitarismo não é nova. Orwell já o esbateu em


seus dois trabalhos clássicos sobre este fenômeno político.13 Mas

12
Aqui e em outros lugares foi feita referência à esfera religiosa, uma esfera que teria semelhanças e
coincidências com o totalitarismo, especialmente no que diz respeito à interferência psicológica de uma
idéia na consciência e no coração da pessoa, já que em tal interferência não há divisão entre "o que
pertence a Deus" e "o que pertence ao homem" (o que geralmente é o caso em uma cultura mágico-
religiosa), porque tudo pertence a Deus. Mas haveria diferenças na maneira como algumas religiões
vêem o reino humano, pois se ontologicamente ele pertence a Deus, isso não significa que ele pode ou
deve ser alienado por outro homem. Em outras palavras, nenhum homem tem o direito de tomar o lugar
de Deus, pelo menos nas principais religiões Abrahâmicas, muito menos no Islã. No Islã, a shari🕧a (lei
"religiosa") define um espaço privado (haram) que o Estado não pode penetrar. A família, como tal, é
intocável. E um Estado que reconhece este status intocável, esta esfera além de sua interferência, que é
a esfera privada da família, como pode ser totalitário? Nesta perspectiva, a ação coercitiva do Estado
contra a família individual parece claramente ilegítima. O paradoxo tem sido que muitos estados
islâmicos adotaram códigos e leis ocidentais para aumentar o poder do estado (e a raison d'état) e
diminuir a esfera autônoma que o shari🕧a reserva para entidades como, por exemplo, a família.
Certamente, em um país islâmico moderno como o Irã, há complicações legais em executar algo como
uma batida ou uma rusga em um lugar onde a lei é violada (por exemplo, um laboratório de drogas),
mas isto deriva precisamente da sacralidade e da intocabilidade da esfera familiar. O Imã Khomeini, por
exemplo, disse que era perfeitamente legal para um casal casado andar nu em sua casa na frente um do
outro. Na verdade, eles podem até ter feito coisas ilícitas, como violar um jejum ou comer alimentos
proibidos ou qualquer outra violação da lei religiosa, mas enquanto isso não foi tornado público, só Deus
é testemunha e só Ele é o mestre da sanção. Há muitas anedotas na cultura islâmica sobre esta
autonomia do privado em relação ao público, e parece ser um impedimento a qualquer vontade
totalitária de dominar que envolva a invasão do privado.
13
Cf. Fazenda Animal, e sobretudo 1984, onde a figura do "Big Brother" representa tanto um possível
líder totalitário e tirânico como a imagem projetada por um sistema totalitário. Em outras palavras, "Big
Brother" pode até não existir, ele pode até ser uma figura fictícia e genérica. Para que o ideal do regime
se enraíze mais profundamente na consciência de seus súditos, cria-se a figura humana do líder, cria-se
uma imagem (e é aqui também que acontece grande parte do que se enquadra no nome de "culto à
personalidade"). Desta forma, a idealidade do regime se encarna em alguém próximo à imagem e
semelhança de cada pessoa e que, portanto, pode ser amado por todos, ao contrário do amor de um
sistema ou de uma doutrina, que é menos eficaz, pois é amar algo abstrato.

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Aqui tentei apresentar um esboço do desenvolvimento teórico de tal
possibilidade, penetrando no exemplo descrito a plena intenção totalitária
deste regime imaginário e hipotético. E acredito ter mostrado ou insinuado
com este exemplo de forma persuasiva que não só existe a possibilidade de
uma democracia totalitária, mas que ela pode e deve ocorrer precisamente
nesta sombra semi-pacífica e semi-cordial de um poder que quer seduzir os
cidadãos para amá-la e se render a ela. Ela não quer conquistá-la pela
força, mas persuasivamente e por pressão lenta mas firme, para que as
formas democráticas não sejam infringidas ou violadas. É por isso que
acredito que o conceito de sedução é a chave para entender a intenção
totalitária de tal estado. Não parece óbvio que seja necessário para tal
totalitarismo recorrer a um sistema de controle policial terrorista, muito
menos ao controle de todas as forças armadas, pois é justamente o fator
sedutor que confere a este fenômeno seu caráter psicológico perversamente
pervertido.14

Mas é claro que não é assunto político de um Estado democrático ou


de um regime democrático seduzir os cidadãos, mas ser responsável
perante eles e exigir que eles cumpram seu dever tanto quanto garantir que
seus direitos sejam salvaguardados.

Certamente, embora eu me referisse várias vezes a coisas como


doutrina, ou ideologia no exemplo apresentado, nunca esclareci se era um
totalitarismo fascista-mussolino-nazi-lenino-hitleriano ou um totalitarismo
socialista-marxista-leninista-comunista. Penso que, para um exemplo
hipotético, é irrelevante de onde vem a peste, ou seja, o totalitarismo.
Poderia até ser uma doutrina moral-messiânica, um misticismo político.

14
Cf. FRIEDRICH, Carl J. e BRZEZINSKI, Zbigniew: Totalitarian dictatorship and autocracy, Cambridge
University Press-Harvard University Press, Cambridge, UK e Boston, USA, 1956; ÁLVAREZ TURIENZO,
S.: "Totalitarismo I. Sociología y Politica". Sociología y Politica", acessado em 20 de abril de 2009 em
http://www.canalsocial.net/GER/ficha_GER.asp?id=11848&cat=sociologia; e MALTEZ, José Adelino:
"Totalitarismo", artigo em http://maltez.info/aaanetnovabiografia/Conceitos/totalitarismo.htm; acessado
em 20 de abril de 2009. Para Friedrich e Brzezinski, o totalitarismo tem estas características: uma
ideologia oficial, um único partido de massa, um sistema de controle policial terrorista, controle da mídia
de massa, controle e monopólio das forças armadas, e controle e direção da economia. Mas na
realidade, uma vez que uma pessoa é "lavada do cérebro", em princípio ela não deve mais ter que ser
paga ou alimentada ou ameaçada a obedecer. É por isso que se argumenta acima que não há
necessidade de todas estas características como fatores de totalitarismo. Eles ajudam, certamente, e
especialmente na primeira etapa, mas depois alguns deles podem ser dispensados ou sua atividade pode
ser relaxada.

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15
ou um socialismo utópico e nacionalista, para melhor corresponder ao
trágico destino da América Latina. Nem é o problema se é de esquerda ou
de direita. Ambos os pólos políticos tradicionais, apesar do que é dito sobre
o quanto estão ultrapassados em nosso tempo, continuam a ser úteis e até
mesmo necessários para um pensamento imaginativo sobre política de dois
lugares naturais que surgem em cada situação humana com respeito a
como nós, humanos, estamos no mundo. Mas nem essas posições, nem
qualquer outra postura política distinta podem realizar seus melhores e
mais justos sonhos e intenções se sonham e brincam desejando a existência
onipresente de uma forma de pensar que, como o totalitarismo, deseja
substituir em toda a sociedade, em cada família, em cada pessoa, sua
forma de ser, de existir, de pensar, de errar, de vencer, de amar, de morrer
e de viver.

3. Em conclusão
Acho que a maioria dos leitores terá sido capaz de tirar conclusões do
que eu disse sem a necessidade de uma formulação escolar deles. No
entanto, para que não fique debaixo da mesa, acredito que nas últimas
páginas consegui mostrar como poderia haver algo tão estranho como uma
democracia totalitária. Certamente, pode não ser a democracia que a
maioria das pessoas gosta (dificilmente seria aceitável para os europeus),
mas, dado que não há seres humanos sem, pelo menos em alguns períodos
de suas vidas, algum grau de neurose, pode-se pensar que também na vida
coletiva dos povos pode existir aquele estranho fenômeno individual de
masoquismo, da vontade que quer, deseja e ama sua própria dor, sua
própria desgraça, seu próprio castigo. Que aceita tudo isso sem oposição.
Porque em qualquer caso, uma pergunta deve ser feita: O que há de errado
com uma sociedade ou um povo que se submete à sedução totalitária? Para
mim, muito: de cumplicidade, por comissão ou omissão,

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Como o movimento político-magico-religioso de Antonio Maciel (O Conselheiro) no Brasil no final do
século XIX, que tem curiosas afinidades com o movimento anárquico Cristeros no México (1926-1929).
Cf. HERRING, Hubert: Uma História da América Latina. Alfred E. Knopf, Nova York, 1968, pp. 354 e 850,
e o romance Os Sertões do escritor brasileiro Euclides da Cunha.

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Luis Vivanco . "Um Estado
democrático pode ser totalitário? "

nº 2 - junho de 2009 - revista de ciências


sociais
com as perversões e possíveis abusos que tal regime poderia provocar (e a
primeira perversão é a da relação política entre governantes e governados,
que se torna uma relação de dominação e não de cooperação).
E diante de tudo o que foi dito, a seguinte pergunta surge em minha
mente: quanto algumas - ou muitas - mentes devem odiar ou temer certos
erros ou certos abusos, de modo a preferir outros abusos contrários ou
contrários a eles? Alguns, diante dos abusos da desigualdade, sacrificam
sua liberdade em nome do igualitarismo, e vice-versa: diante dos abusos da
liberdade (ou da repressão da mesma) sacrificam os ideais e até mesmo as
realidades alcançadas pela igualdade, caindo no oposto da igualdade. O
método utilizado aqui para mostrar o que é apresentado pode não ser o
melhor, mas isto permanece: sua intenção de nos fazer pensar. Nossos
problemas não são resolvidos apenas pelo pensamento imaginativo, mas
não podem ser resolvidos sem tal pensamento. A sensibilidade, a criticidade
e a atenção que devem nos manter alertas, como cidadãos e como
pensadores e seres humanos, é o que permite que coisas como realidades
tão sinistras como a descrita permaneçam apenas no plano imaginário.

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