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Milhões de norte-americanos trabalham a tempo inteiro, todo o ano,

para ganharem um salário de miséria. A jornalista Barbara Ehrenreich


decidiu ir juntar-se às suas fileiras para descobrir como é possível
subsistir com seis ou sete dólares por hora. Saiu de sua casa, alugou
o alojamento mais barato que conseguiu encontrar e aceitou qualquer
emprego que lhe aparecesse, desde a limpeza doméstica até ao
trabalho num lar, desde servir às mesas atédobrar peças de roupa
num supermercado Wal – Mart.
Assim começou uma dura e arrepiante odisseia, cheia de humor
negro, no lado oculto do mundo do trabalho nos Estados Unidos. E
Barbara Ehrenreich chega à extraordinária conclusão de que muitos
milhões de norte-americanos ( apesar de muitas vezes trabalharem
em mais do que um emprego ), ganham menos do que necessário
para viver, isto é, para comer e pagar alojamento !

BARBARA EHRENREICH

SALÁRIO DE POBREZA
COMO (NÃO) SOBREVIVER NA AMÉRICA

Tradução de : Ana Saldanha

Título original: NICKEL AND DIMED ON ( NOT ) GETTTNG BY IN


AMERICA
Capa: JOÃO ROCHA
Foto da capa: TOP FILM

ISBN 972-42-3466-5
Copyright © 2001 by Barbara Ehrenreich
Impresso e encadernado para Círculo de Leitores
por Printer Portuguesa
Casais de Mem Martins, Rio de Mouro em Julho de 2005

Número de edição: 6230


Depósito legal número 227 785/05

PREPARATIVOS

A ideia que conduziu a este livro surgiu em circunstâncias algo


sumptuosas. Lewis Lapham, editor da revista Harper's, tinha-me
convidado para almoçar num restaurante francês discreto, de estilo
simples e preços elevados, para conversarmos sobre os futuros
artigos que eu poderia escrever para a sua revista. Escolhi salmão
com legumes, e estava a falar-lhe de algumas ideias relacionadas com
a cultura popular quando a conversa se desviou para um dos meus
temas habituais - a pobreza. Como é que alguém consegue viver com
o salário de um trabalhador indiferenciado? Como é que, reflectimos
nós, iriam subsistir com seis ou sete dólares por hora os cerca de
quatro milhões de mulheres prestes a serem empurradas para o
mercado de trabalho em consequência da reforma da Segurança
Social? Foi então que eu disse algo de que viria a arrepender-me
muitas vezes: «Alguém devia fazer um trabalho jornalístico à moda
antiga. Sabes, ir para o mundo real e viver a situação pessoalmente.»
Tinha em mente alguém muito mais jovem do que eu, qualquer
jornalista neófita e ambiciosa com tempo de sobra, mas Lapham ficou
com um meio sorriso louco estampado no rosto e pôs fim à minha vida
tal como eu a vivera até aí, pelo menos durante longos períodos, com
uma única palavra: tu.
A última vez que alguém me instou a trocar a minha vida normal por
um emprego rotineiro e mal pago foi nos anos 70, quando dezenas,
talvez centenas de radicais dos anos 60 começaram a ir para as
fábricas para se «proletarizarem» e, no
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decurso desse processo, organizarem a classe operária. Mas eu cá
não. Sentia pena dos pais que tinham pago as propinas destes
candidatos a trabalhadores manuais e também das pessoas que eles
tencionavam doutrinar. Na minha família, o estilo de vida típico de
quem ganha um salário baixo jamais estivera a muitos graus de
distância; encontrava-se suficientemente próximo, de qualquer forma,
para me fazer dar valor à vida de soberba autonomia, embora nem
sempre bem paga, de escritora. A minha irmã tem passado de um
emprego de salário baixo para outro - representante de uma
companhia de telefones, operária fabril, recepcionista -, lutando
constantemente contra aquilo a que chama «o desespero de ser uma
escrava assalariada». O meu marido e companheiro durante
dezassete anos trabalhava num armazém por quatro dólares e meio à
hora quando o conheci, emprego de que escapou, por fim, com um
alívio imenso ao tornar-se organizador sindical dos Teamsters
(Camionistas). O meu pai foi mineiro numa mina de cobre; tios e avós
meus trabalharam nas minas ou para a companhia ferroviária Union
Pacific. Por conseguinte, para mim, sentar-me a uma secretária todo o
dia não era somente um privilégio, mas também um dever: algo que
eu devia a todas aquelas pessoas, vivas ou mortas, que tinham muito
mais para dizer do que alguém chegou a ouvir.
A acrescentar a estas dúvidas, alguns membros da minha família não
paravam de me recordar que, de certa forma, poderia realizar este
projecto sem sair uma única vez do meu escritório, o que não era um
grande incentivo. Poderia pagar a mim própria um salário mínimo
típico por oito horas de trabalho por dia, cobrar alojamento e
alimentação e mais algumas despesas previsíveis, como a gasolina, e
fazer as contas ao fim de um mês. Com o salário mínimo em vigor na
minha cidade a cerca de seis ou sete dólares por hora e rendas a
quatrocentos dólares, ou mais, as contas deveriam, segundo me
parecia, bater certas muito à justa. Porém, caso o objectivo fosse
descobrir se uma mãe solteira excluída da Segurança Social
conseguiria subsistir sem apoio governamental sob a forma de
subsídios de alimentação e de habitação, assistência médica e creche
paga, a resposta era já bem conhecida sem eu ter de
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abandonar o conforto do meu lar. Segundo a National Coalition for the
Homeless (Coligação Nacional para os Sem-Abrigo), em 1998 - ano
em que iniciei este projecto - era necessário, na média nacional, um
salário de oito dólares e oitenta e nove por hora para poder alugar um
apartamento de duas assoalhadas, e, de acordo com os cálculos do
Preamble Center for Public Policy (Centro Preamble para Políticas
Públicas), a probabilidade de um beneficiário típico da Segurança
Social arranjar um emprego auferindo um «salário de subsistência»
era de cerca de um em cada noventa e sete. Para quê incomodar-me
a confirmar estes factos desagradáveis? Ao aproximar-se o momento
em que já não podia evitar levar o projecto avante, comecei a sentir-
me um pouco como um homem idoso que conheci, que recorria a uma
máquina calculadora para fazer o balanço dos cheques e depois
verificava os resultados voltando a fazer cada conta à mão.
Por fim, a única forma de ultrapassar a hesitação foi encarar-me como
uma cientista, coisa para que, efectivamente, havia estudado. Tenho
um doutoramento em Biologia, que não obtive ficando sentada à
secretária às voltas com números. Nessa área do conhecimento, pode
reflectir-se quanto se quiser, mas, mais cedo ou mais tarde, tem de se
ir para a bancada de trabalho e mergulhar no caos diário da Natureza,
onde se escondem surpresas nas medições mais triviais. Quando me
envolvesse no projecto, talvez descobrisse algumas economias
ocultas no mundo do trabalhador de salário baixo. Afinal, se quase
30% da mão-de-obra labuta por oito dólares, ou menos, por hora,
segundo um relatório de 1998 do Economy Policy Institute (Instituto de
Políticas Económicas), sediado em Washington, era provável que
esses trabalhadores tivessem descoberto alguns truques que eu ainda
ignorava. Talvez conseguisse até detectar em mim própria os
revigorantes efeitos psicológicos de sair de casa, como prometiam os
sábios encarregados da reforma da Segurança Social. Ou, por outro
lado, talvez surgissem custos inesperados - físicos, financeiros,
emocionais - a perturbar os meus cálculos. A única forma de ficar a
saber era ir para o terreno e meter mãos à obra.
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Com espírito científico, defini em primeiro lugar certas regras e
parâmetros. A primeira regra, obviamente, era que não poderia, na
busca de emprego, recorrer a quaisquer habilitações ou
especializações resultantes da minha educação ou profissão habitual -
não que, de qualquer forma, houvesse um grande número de anúncios
de oferta de emprego para escritoras de ensaios... A segunda era que
teria de aceitar o emprego mais bem pago que me fosse oferecido e
fazer todos os possíveis por o manter; nada de discursos marxistas ou
de es-capadelas para ler romances na casa de banho. Em terceiro
lugar, teria de alugar o tipo de alojamento mais barato que
conseguisse encontrar, pelo menos o mais barato dentro dos que me
garantissem um nível de segurança e privacidade aceitável, embora
os meus padrões a este respeito fossem algo vagos e, como veio a
verificar-se, tivessem tendência a deteriorar-se ao longo do tempo.
Embora tenha tentado cumprir estas regras, no decurso do projecto
todas elas foram, num momento ou noutro, infringidas ou
abandonadas. Em Key West, por exemplo, a cidade em que iniciei
este projecto, no final da Primavera de 1998, houve uma ocasião em
que me autovalorizei numa entrevista para um lugar de empregada de
mesa dizendo ao entrevistador que poderia cumprimentar turistas
europeus com Bonjour ou Gu-ten Tag, de acordo com o que fosse
apropriado, mas este foi o único caso em que me servi de algum
vestígio das minhas habilitações literárias. Em Minneapolis, o meu
último destino, onde vivi no início do Verão de 2000, quebrei outra
regra ao não aceitar o emprego mais bem pago que me foi oferecido,
devendo ser os leitores a ajuizar das razões que tive para o fazer. E,
perto do final, fui-me abaixo e fiz uns discursos inflamados - mas à
socapa, e nunca por perto da gerência.
Existia também o problema de como me apresentar a potenciais
empregadores e, em especial, como explicar a minha abissal falta de
experiência relevante para o emprego. A verdade, ou pelo menos uma
versão drasticamente simplificada, pareceu-me o mais fácil:
apresentei-me aos entrevistadores como uma chefe de família
divorciada a tentar reinserir-se no mercado de trabalho após muitos
anos, o que não deixava de ser
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verdade. Por vezes, embora nem sempre, indicava alguns trabalhos
como empregada doméstica, citando como referências pessoas com
quem partilhei casas e uma amiga de Key West a quem ajudo
ocasionalmente a levantar a mesa depois de jantares de festa. Nos
formulários para concorrer a empregos existem perguntas sobre as
habilitações literárias do candidato, e parti do princípio de que
mencionar o meu doutoramento não seria boa ideia, podendo mesmo
levar os empregadores a suspeitar de que eu fosse uma alcoólica
crónica, ou pior. Por conseguinte, limitei-me a referir a frequência de
uma universidade durante três anos, indicando aquela que frequentei
realmente. Ninguém jamais pôs em causa os meus antecedentes, e
apenas um empregador entre várias dezenas se deu ao trabalho de
verificar as minhas cartas de recomendação. Quando, numa ocasião,
uma entrevistadora especialmente tagarela me perguntou qual era o
meu passatempo favorito e eu respondi «Escrever», não pareceu
achar nada de estranho na resposta, embora o trabalho em questão
pudesse ser perfeitamente desempenhado por uma analfabeta.
E, por fim, estabeleci alguns limites reconfortantes para as tribulações
que seria obrigada a suportar. Em primeiro lugar, teria sempre carro.
Em Key West, conduzi o meu próprio carro; noutras cidades, aluguei
carros velhos, que pagava com o meu cartão de crédito e não com o
dinheiro que ganhava. Sim, poderia ter andado mais a pé, ou ter-me
limitado a empregos acessíveis por transporte público, mas achei que
uma história sobre esperar por autocarros não seria de leitura muito
interessante. Em segundo lugar, excluí a opção de ir engrossar as
fileiras dos sem-abrigo. A minha intenção era passar um mês em cada
local tentando arranjar emprego e, durante esse tempo, ganhar o
suficiente para pagar um segundo mês de renda. Caso estivesse a
pagar uma renda semanal e ficasse sem dinheiro, consideraria o
projecto encerrado; não dormiria em albergues nem no carro. Além
disso, também não tinha intenção de passar fome. Quando a data de
iniciar a «experiência» se aproximava, prometi a mim própria que, se
as coisas chegassem a um ponto em que a próxima refeição estivesse
em dúvida, pegaria no cartão multibanco e faria batota.
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Por conseguinte, este não é o relato de uma missão secreta plena de
riscos. Praticamente, qualquer pessoa poderia fazer o que eu fiz -
procurar empregos, trabalhar, tentar subsistir com o vencimento
auferido. De facto, milhões de americanos fazem-no todos os dias,
com muito menos alarde e hesitação.

Sou, como é óbvio, muito diferente das pessoas que em geral fazem
os trabalhos menos aliciantes na América, e essa diferença foi
simultaneamente vantajosa e limitativa. A diferença mais evidente era
que eu iria apenas visitar um mundo onde outros vivem a tempo
inteiro, muitas vezes durante a maior parte da vida. Com todos os
benefícios que acumulara ao chegar à meia-idade - conta bancária,
plano de poupança-reforma, seguro de saúde, casa com várias
assoalhadas - reconfortantemente à minha espera, não teria qualquer
oportunidade de «passar pela experiência da pobreza» ou de
descobrir qual a «sensação real» de ser de forma duradoura uma
trabalhadora de salário baixo. O meu alvo era muito mais directo e
objectivo - verificar se conseguiria fazer corresponder rendimento e
despesas, como as pessoas verdadeiramente pobres tentam fazer
todos os dias. Além disso, ao longo da minha vida já tive contacto
suficiente com a pobreza para saber que não é agradável, pelo
contrário, é assustadora.
Ao contrário de muitos trabalhadores de salário baixo, tenho a dupla
vantagem de ser branca e de o inglês ser a minha língua materna.
Não julgo que isso tenha influído nas minhas hipóteses de arranjar
emprego, dada a disponibilidade dos empregadores para darem
trabalho a praticamente qualquer pessoa no mercado com escassez
de mão-de-obra de 1998-2000, mas tenho quase a certeza que
condicionou os tipos de emprego que me foram oferecidos. Em Key
West, procurei a princípio um lugar de empregada de limpeza num
hotel, o que, supunha eu, seria relativamente fácil, mas fui
encaminhada para servir à mesa, sem dúvida devido à minha etnia e
domínio do inglês. Este emprego não me proporcionou grandes
vantagens financeiras em relação ao trabalho de limpeza, pelo menos
na
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estação baixa, com poucas gorjetas, a época em que trabalhei em Key
West, mas esta experiência contribuiu para determinar a minha
escolha de outras localidades onde viver e trabalhar. Excluí locais
como Nova Iorque e Los Angeles, por exemplo, onde a classe
trabalhadora é maioritariamente constituída por pessoas de cor e onde
uma mulher branca e falando inglês sem sotaque estrangeiro à
procura de trabalhos mal pagos poderia parecer desesperada ou
esquisita.
Tinha outras vantagens - o carro, por exemplo - que me distanciavam
de muitos, embora não todos, dos meus colegas. O ideal, pelo menos
se a intenção fosse obter a réplica da experiência de uma mulher que
entra no mercado de trabalho depois de um período de dependência
da Segurança Social, seria ter um par de crianças a reboque, mas os
meus filhos já são crescidos e ninguém se dispôs a emprestar-me os
seus para umas férias de um mês na penúria. Para além do carro e da
ausência de encargos familiares, tinha ainda a vantagem de o meu
estado de saúde ser, provavelmente, muito melhor do que o da maior
parte das pessoas que de forma prolongada fazem parte da mão-de-
obra com salários baixos. Tudo estava a meu favor.
Se existiam outras diferenças mais subtis, ninguém chamou a atenção
para elas. O que é certo é que não me esforcei por desempenhar um
papel nem me encaixar num estereótipo imaginativo da mulher
trabalhadora com salário baixo. Usei as minhas roupas, sempre que o
vestuário normal era permitido, e o penteado e maquilhagem do
costume. Em conversas com os colegas, falava sobre os meus filhos,
estado civil e família reais; não havia qualquer razão para inventar
uma outra vida. No entanto, modifiquei o meu vocabulário num
aspecto: pelo menos quando era ainda nova no emprego e receava
parecer atrevida ou desrespeitosa, autocensurava os palavrões que,
em grande medida devido à influência dos camionistas, fazem parte
do meu discurso normal. Tirando isso, dizia piadas e gozava, fazia
conjecturas, dava opiniões e até um grande número de conselhos em
questões de saúde, exactamente como faria em quaisquer outras
circunstâncias.
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Desde que completei este projecto, têm-me perguntado muitas vezes
se as pessoas com quem trabalhei não conseguiam ver a diferença -
pressupondo que uma pessoa com educação é bastante diferente,
para melhor, do trabalhador típico. Infelizmente, nenhum supervisor ou
colega alguma vez me disse que eu era diferente de uma forma
invejável - mais inteligente, por exemplo, ou obviamente com mais
estudos do que a maior parte. Mas isso nunca aconteceu, julgo eu,
porque a única coisa que me tornava «especial» era a minha
inexperiência. Dizendo isto de forma inversa, os trabalhadores com
salários baixos não são mais homogéneos em termos de
personalidade ou capacidades do que as pessoas que se dedicam à
escrita, e não são menos capazes de possuir sentido de humor e
inteligência. Os indivíduos das classes com estudos que pensam de
outra forma deveriam alargar o seu círculo de amigos.
Obviamente, existia sempre a diferença que só eu conhecia - não
estava a trabalhar pelo dinheiro, estava a fazer investigação para
escrever um artigo e mais tarde um livro. Quando voltava para casa
todos os dias, não era para algo que se assemelhasse a uma vida
doméstica normal, mas sim para um computador portátil ao qual
passava uma ou duas horas a registar os acontecimentos diários -
com grande diligência, devo acrescentar, visto que raramente era
possível tomar apontamentos durante o dia. Este ludíbrio, simbolizado
pelo computador portátil, que me proporcionava uma ligação
simultaneamente com o passado e o futuro, incomodava-me, pelo
menos no caso de pessoas com as quais simpatizava e que queria
conhecer melhor. (Gostaria de referir aqui que todos os nomes e
pormenores identificadores foram alterados para proteger a
privacidade das pessoas com quem trabalhei e que conheci noutras
situações no decurso da minha investigação. Na maior parte dos
casos, alterei também os nomes dos locais onde trabalhei e a sua
localização exacta, como mais uma forma de garantir o anonimato
dessas pessoas.)
Em cada situação, perto do final da minha permanência e após um
período de reflexão e ansiedade, revelei a verdadeira identidade a
alguns colegas. O resultado foi sempre um estonteante
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anticlímax, sendo a minha reacção preferida: «Isso quer dizer que não
voltas para o turno da noite na próxima semana?» Reflecti bastante
sobre as razões por que não se registou um maior número de
reacções de surpresa ou até mesmo de indignação, e é provável que
parte da resposta resida na ideia que as pessoas fazem de
«escrever». Há vários anos, quando me casei com o meu segundo
marido, ele anunciou com orgulho a um tio, que na altura trabalhava a
arrumar automóveis num parque de estacionamento, que eu era
escritora. A resposta do tio foi: «E quem não é?» Todas as pessoas
alfabetizadas «escrevem», e alguns dos trabalhadores de salários
baixos que conheço ou fiquei a conhecer através deste projecto
escrevem diários e poemas - até mesmo, num dos casos, um longo
romance de ficção científica.
Contudo, como me apercebi numa fase já bastante adiantada do
projecto, talvez eu tenha exagerado perante mim própria a extensão
do «ludíbrio». Não há forma, por exemplo, de fingir ser empregada de
mesa: a comida ou chega à mesa ou não. As pessoas conheciam-me
como empregada de mesa ou de limpeza, assistente numa casa de
repouso ou empregada de balcão, não porque eu agisse como tal,
mas porque o era, pelo menos durante o tempo que passei com elas.
Em todos os empregos, em todos os locais onde vivi, o trabalho
absorvia completamente a minha energia e a maior parte do meu
intelecto. Eu não andava a brincar. Embora suspeitasse desde o início
de que a aritmética do salário e da renda estavam contra mim, fiz um
enorme esforço para ser bem sucedida.
Desde a altura em que este livro foi publicado nos Estados Unidos, a
economia americana entrou num declínio constante. Hoje em dia
existem menos empregos do tipo que encontrei no comércio e nos
serviços entre 1998 e 2000, e poucas perspectivas de um aumento de
salários, embora as rendas de casa não tenham ainda começado a
baixar. Ao ler este livro, tenha portanto em mente que as situações
apresentadas são as melhores possíveis: uma pessoa só, sem
encargos familiares, tentando sobreviver no mercado de trabalho de
salários baixos numa época de extraordinária prosperidade.
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SERVIR NA FLORIDA
Em grande medida por uma questão de preguiça, decidi iniciar a
minha vida como trabalhadora de salário baixo na cidadezinha mais
próxima do local onde vivo, em Key West, na Florida, que, com uma
população de cerca de vinte e cinco mil habitantes, está a caminho de
adquirir o estatuto de verdadeira cidade. Não tardo a aperceber-me de
que a desvantagem da familiaridade é que não é fácil passar de
consumidora, gastando dinheiro sem pensar em troca de artigos de
mercearia, vídeos e gasolina, para trabalhadora no mesmo local.
Aterroriza-me, sobretudo no início, a possibilidade de ser reconhecida
por algum lojista simpático ou antigo vizinho e ter de dar uma
explicação gaguejante do projecto. Felizmente, os meus receios
revelam-se infundados: durante um mês de pobreza e trabalho árduo,
ninguém reconhece o meu rosto ou o meu nome, que passa
despercebido e quase não é pronunciado. Neste universo paralelo
onde o meu pai nunca deixou de ser mineiro e eu nunca estudei na
universidade, sou «querida», «jóia», «loirinha» e, mais
frequentemente, «rapariga».
O meu primeiro objectivo é encontrar um lugar onde viver. Calculo que,
se conseguir ganhar sete dólares por hora - o que, a ajuizar pelos
anúncios de ofertas de emprego, parece possível -, poderei gastar
quinhentos dólares na renda ou talvez, fazendo economias drásticas,
seiscentos, e ficar ainda com quatrocentos ou quinhentos para
alimentação e gasolina. Na zona de Key West, este orçamento reduz-
me a optar por sítios manhosos ou caravanas - como a casa que vou
ver,
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apenas a quinze minutos de carro da cidade. Não tem ar
condicionado, mosquiteiro na porta, ventoinha nem televisor, e como
diversão existe somente o desafio de evitar o doberman do senhorio.
Contudo, o grande problema desta casa é a renda, seiscentos e
setenta e cinco dólares por mês, o que está muito para além das
minhas posses. É certo que Key West é cara. Mas pode dizer-se o
mesmo de Nova Iorque, de Bay Área, de Jackson, Wyoming, de
Telluride, de Boston ou de qualquer outro lugar onde os turistas e os
ricos competem por um espaço para partilhar com as pessoas que
lhes limpam as casas de banho e lhes fritam os croquetes de batata.
Mesmo assim, é com choque que me capacito de que, para mim, a
«ralé dos parques de caravanas» se tornou uma categoria
demográfica à qual aspirar.
Decido, pois, desistir do adequado em favor do acessível à minha
bolsa e optar por um estúdio a cinquenta quilómetros de distância por
estrada das oportunidades de emprego de Key West, o que se traduz
por quarenta e cinco minutos de viagem, se não houver obras na
estrada e se não for apanhada por turistas canadianos encandeados
pelo sol. Detesto a viagem, ao longo de uma estrada com bermas
cravejadas de cruzes brancas a comemorar os choques frontais mais
graves, mas a casinha é amorosa - uma espécie de cabana, nas
traseiras pantanosas da caravana em que o meu senhorio, um
reparador de televisores afável, vive com a namorada, que trabalha
num bar. Antropologicamente falando, o parque de caravanas seria
preferível, mas aqui tenho um soalho branco e brilhante e um colchão
firme, e os poucos insectos facilmente são vencidos.
A fase seguinte consiste em passar a pente fino os anúncios de
emprego e encontrar trabalho. Excluo vários deles por uma razão ou
por outra: recepcionista de hotel, por exemplo, que, para minha
surpresa, é considerado trabalho indiferenciado e pago somente a seis
ou sete dólares por hora, é eliminado da lista porque implica estar de
pé, no mesmo sítio, oito horas por dia. Servir à mesa é algo que
gostaria de evitar, porque me recordo que me deixava extenuada
quando tinha dezoito anos, e desde então já se passaram umas
décadas de
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varizes e dores nas costas. As vendas por telefone, um dos primeiros
refúgios dos subitamente indigentes, podem ser excluídas com base
na personalidade necessária. Restam certos empregos em
supermercados, como empregada no balcão de charcutaria, ou
empregada de limpeza em hotéis ou pensões, um trabalho pago a
cerca de sete dólares por hora e, imagino, não muito diferente do que
tenho feito a tempo parcial, em minha casa, toda a vida.
Assim, visto o que suponho ser uma roupa apropriada, calções
engomados e T-shirt de decote redondo, e parto para uma ronda aos
hotéis e supermercados locais. No Best Western, no Econo Lodge e
no Hojo's mandam-me preencher impressos de candidatura, que, para
meu alívio, parecem ter como finalidade principal saber se sou
residente legal nos Estados Unidos e se cometi algum crime. A
paragem seguinte é o supermercado Winn-Dixie, que tem um
processo de selecção de candidatos muito demorado, com uma
«entrevista» de vinte minutos conduzida por computador, visto que,
aparentemente, nenhum ser humano nas instalações é considerado
capaz de representar o ponto de vista da empresa. Sou conduzida a
uma sala grande, decorada com cartazes ilustrativos da forma como
parecer «profissional» (ajuda ser de raça branca e, se mulher, ter um
penteado com permanente) e alertando para as promessas enganosas
com que os representantes sindicais poderiam tentar aliciar-me. A
entrevista é um questionário de escolha múltipla: tenho algum
problema, como, por exemplo, arranjar uma pessoa a quem deixar os
filhos, o que poderia dificultar chegar a horas ao trabalho? Acho que a
segurança no trabalho é da responsabilidade da gerência? Depois,
aparecendo de imprevisto, astuciosamente: qual o valor, em dólares,
dos produtos roubados que comprei no último ano? Denunciaria um
colega se o apanhasse a roubar? E por fim: «E uma pessoa
honesta?»
Aparentemente passo o teste com distinção, porque me dizem que
agora só tenho que me apresentar num consultório médico no dia
seguinte para fazer um exame à urina. Parece ser uma regra geral:
quem quer empilhar pacotes de Cheerios ou aspirar quartos de hotel
na América quimicamente fascista
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tem de se dispor a fazer chichi em frente a uma trabalhadora da saúde
(que, sem dúvida, teve ela própria de fazer o mesmo)- ( Nota 1 ) . O
salário que o Winn-Dixie oferece - seis dólares e uns cêntimos para
começar - não é compensação bastante, decido, para este vexame.
Almoço no Wendy's, onde quatro dólares e noventa e nove cêntimos
dão direito a comer quanto se quiser na parte mexicana do superbar,
um empanturramento reconfortante de feijões fritos e molho de queijo.
Ao notar que estou a ler atentamente os anúncios, uma empregada
adolescente oferece-me, simpática, um impresso de candidatura, que
preencho, embora também aqui o pagamento seja de apenas seis
dólares e pouco por hora. Depois, lá vou eu fazer a ronda das
estalagens e pensões que não pertencem a cadeias na Cidade Velha
de Key West, a zona de restaurantes que os turistas visitam e se situa
a uns quilómetros da ponta funcional da ilha, onde se encontram os
hotéis mais baratos. Em The Pairas, chamemos-lhe assim, um gerente
cheio de energia leva-me a ver os quartos e a conhecer as
empregadas da limpeza, que, noto com satisfação, são mais ou
menos do meu tipo - ex-hippies de meia-idade, de calções e com o
cabelo comprido em tranças. Contudo, na maior parte dos casos
ninguém fala comigo nem sequer olha para mim, a não ser para me
entregar um impresso de candidatura. Na minha última paragem, uma
pensão palacial, espero vinte minutos para falar com o «Max», que
acaba por dizer que neste momento não há empregos mas que em
breve haverá uma vaga, visto que «ninguém fica mais do que umas
semanas».
Assim se passam três dias e, para meu desânimo, nenhum dos cerca
de vinte locais em que concorri a um emprego me chama para uma
entrevista. Eu tinha tido a veleidade de

( Nota – 1 ) - Oitenta e um por cento dos grandes empregadores hoje


em dia exigem testes ao consumo de drogas, em comparação com
21% em 1987. Entre todos os empregadores, a taxa de testes mais
alta situa-se no Sul. A droga com mais probabilidades de ser detectada
- a marijuana, que pode ser detectada até várias semanas após o seu
uso - é também a mais inócua, enquanto a heroína e a cocaína não
são geralmente detectáveis três dias após o seu consumo. O álcool,
que é eliminado pelo corpo horas após a ingestão, não é testado.
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recear dar a impressão de ter demasiados estudos para os empregos
que procurava, mas ninguém parece sequer interessado em descobrir
quais são as minhas habilitações literárias. Só mais tarde virei a
aperceber-me de que os anúncios de oferta de emprego não são uma
forma fiável de calcular as vagas efectivamente existentes num dado
momento. São, como deveria ter deduzido do comentário do Max, uma
apólice de seguro dos empregadores contra o constante movimento
da mão-de-obra de salário baixo. A maior parte dos grandes hotéis
anuncia vagas quase continuamente, com o objectivo de dispor de
uma reserva de candidatos para substituir os que deixam de aparecer
ao trabalho ou são despedidos, pelo que encontrar emprego é apenas
uma questão de estar no sítio certo no momento certo e ser
suficientemente flexível para aceitar o que se ofereça nesse dia. É o
que por fim acontece num dos hotéis baratos de uma grande cadeia
onde vou, como de costume, à procura de trabalho de limpeza, e em
vez disso me mandam servir à mesa no «restaurante familiar», um
local deprimente com vista para um parque de estacionamento, que
tem no menu «salsichas pulacas e molho de churrasco», neste dia em
que a temperatura atinge trinta e cinco graus. Phillip, um jovem
antilhano baixo e bem vestido que se apresenta como gerente,
entrevista-me com uma assinalável falta de entusiasmo, sendo as
principais perguntas que turnos posso fazer e quando posso começar.
Murmuro que tenho pouca prática de servir à mesa, mas ele já passou
para a questão da farda: devo apresentar-me no dia seguinte de
calças e sapatos pretos; ele fornecer-me-á o pólo cor de ferrugem com
a palavra «Hearthside» (o nome que daremos aqui a este restaurante)
bordada, embora talvez eu queira trazer uma camisa vestida ao vir
para o trabalho, ha, ha, ha! Ao ouvir a expressão dia seguinte, algo
entre o medo e a indignação me comprime o peito. Apetece-me dizer-
lhe: «Muito obrigada por gastar o seu tempo comigo, mas isto é só
uma experiência, sabe, não é a minha vida real.»

Assim começa a minha carreira no Hearthside, onde, durante duas


semanas, trabalho das duas da tarde às dez da
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noite por dois dólares e quarenta e três à hora, mais gorjetas ( Nota
1) . Os empregados estão proibidos de utilizar a porta da frente, pelo
que no primeiro dia entro pela cozinha, onde um homem vermelhusco
com cabelo loiro pelos ombros está a atirar bifes congelados contra a
parede e a gritar: «Foda-se esta merda!» «É o Billy», explica Gail, a
empregada de mesa magra e de meia-idade que foi escolhida para me
treinar. «Está outra vez descontrolado.» É um estado provocado, neste
caso, pelo facto de o cozinheiro do turno da manhã se ter esquecido
de descongelar os bifes. Durante as oito horas seguintes, corro atrás
da ágil Gail, assimilando migalhas de instruções juntamente com
pedaços da sua tragédia pessoal. Toda a comida deve ser posta em
bandejas, e a razão por que está tão cansada é que acordou com
suores frios a pensar no namorado, que foi morto há alguns meses
numa escaramuça numa prisão no Norte do estado. Os clientes não
têm direito a um segundo copo de limonada de graça. E o motivo pelo
qual ele estava na cadeia era ter sido apanhado a conduzir com um
grão na asa, é tudo, podia acontecer a qualquer pessoa. As
embalagens individuais de leite para o café levam-se à mesa num
prato, nunca na mão. E depois de o namorado partir, Gail passou
vários meses a viver no camião dele, fazendo chichi para uma garrafa
de plástico e lendo à noite à luz de uma vela, mas não se pode viver
num camião durante o Verão, porque tem de se ter as janelas abertas,
o que significa que pode entrar de tudo, de mosquitos para cima.
Pelo menos a Gail sossega os meus receios de parecer possuir
demasiadas habilitações para este emprego. Desde o primeiro dia,
descubro que, de todas as coisas que abandonei, tais como o lar e a
identidade, o que me faz mais falta é a competência. Não que alguma
vez me tenha sentido 100%
( Nota 1 ) Segundo o Fair Labor Standards Act (Lei dos Padrões
Laborais Justos), os empregadores não são obrigados a pagar a
«empregados que recebem gorjetas», tais como empregados de
mesa, mais do que 2,13 dólares por hora em salário directo. Contudo,
se o total das gorjetas somadas aos 2,13 dólares for inferior ao salário
mínimo, ou seja, 5,15 dólares por hora, o empregador é obrigado a
cobrir a diferença. Este facto não foi mencionado pelos gerentes nem
tornado público de qualquer outra forma em nenhum dos dois
restaurantes em que trabalhei.
19
competente no negócio da escrita, onde o êxito de um dia não é
augúrio de sucesso para o dia seguinte. No entanto, na minha vida
dedicada à escrita, pelo menos faço uma ideia sobre o procedimento a
seguir: investigar, fazer um plano, escrever um rascunho, etc. No
entanto, como empregada de mesa sou bombardeada por pedidos
que me atacam de todos os lados como abelhas: mais chá gelado
aqui, molho de tomate ali, uma caixa de comida embalada para a
mesa catorze, e afinal onde é que estão as cadeiras altas para
crianças? Das vinte e sete mesas, até um máximo de seis é da minha
responsabilidade, embora em tardes menos movimentadas, ou
quando a Gail está de folga, fique, por vezes, com o restaurante inteiro
por minha conta. Tenho de aprender a mexer no sistema de
encomenda das refeições por computador de ecrã táctil, sistema que,
suponho, se destina a evitar ao máximo o contacto entre a empregada
de mesa e o cozinheiro, mas na prática requer constantes
esclarecimentos verbais: «É molho no puré, OK? Não no rolo de
carne», e assim por diante. Além disso, há também algo que tinha
esquecido desde os meus dezoito anos: cerca de um terço das tarefas
de uma empregada de mesa é «trabalho à parte», invisível para os
clientes - varrer, esfregar, fatiar, encher, repor os produtos em falta. Se
tudo isto não for feito com cuidado, arriscamo-nos a enfrentar sem
defesas a hora de ponta do jantar às seis da tarde e, provavelmente, a
acabar em desastre. Ao princípio falho dezenas de vezes, e sou
consolada na minha ignomínia pela Gail: «Não tenhas problemas,
querida, toda a gente faz isso uma vez por outra», porque, para minha
total surpresa e apesar da distância científica que estou a fazer os
possíveis por manter, eu importo-me.
Tudo isto seria muito mais fácil se adoptasse uma atitude
despreocupada, mas fui educada segundo o preceito absurdo , de
que, se é para fazer qualquer coisa, é para a fazer bem. Na verdade,
«bem» não é suficientemente bom. Tem de se fazer melhor do que
qualquer outra pessoa jamais fez. Pelo menos, era o que dizia o meu
pai, que certamente sabia do que estava a falar, porque conseguiu
subir, e nós com ele, das profundezas das minas de cobre de Butte
para os subúrbios ajardinados
20
do Nordeste, progredindo de aguardente barata para martinis antes de
a bebida lhe derrotar a ambição. Tal como na maior parte dos
projectos em que me meti ao longo da minha vida, «fazer melhor do
que qualquer outra pessoa» não é um objectivo razoável. Mesmo
assim, quando acordo às quatro da manhã com suores frios, não
penso nos prazos para entrega de textos que não estou a cumprir;
penso na mesa de cujo pedido não tomei bem nota e em que um dos
meninos só começou a comer o primeiro prato do menu infantil
quando o resto da família já ia na sobremesa de tarte de lima. Essa é
a outra forte motivação - os clientes, os «pacientes», como não
consigo deixar de os considerar, devido à misteriosa vulnerabilidade
que parece tê-los deixado temporariamente incapazes de se
alimentarem. Após alguns dias no Hearthside, sinto a ética de serviço
a actuar como uma injecção de oxitocina, a hormona que condiciona o
impulso de cuidar de um bebé. Muitos dos meus clientes são
trabalhadores da zona - camionistas, trabalhadores da construção
civil, empregadas de limpeza do hotel -, e quero que tenham um jantar
tão semelhante a uma «refeição de luxo» quanto permitem as pouco
sofisticadas circunstâncias. Nada de «vocês aí, pá»; todos os clientes
acima dos doze anos são «senhor» ou «senhora». Ofereço-lhes chá
gelado e várias chávenas de café; volto, a meio da refeição, para
perguntar se estão a gostar; enfeito-lhes as saladas com lamelas de
cogumelos, fatias de abóbora ou quaisquer outros pedaços de
verduras que tenham sobrevivido sem bolor à estada na despensa
refrigerada.
Há, por exemplo, o caso do Benny, baixo e musculoso, que trabalha
na reparação de esgotos e não consegue nem sequer pensar em
comer antes de ter absorvido meia hora de ar condicionado e água
gelada. Conversamos sobre hipertermia e electrólitos até ele estar
pronto para pedir uma combinação complicada, como sopa do dia,
salada de legumes e um prati-nho de papas de milho. Há os turistas
alemães que ficam tão sensibilizados com as minhas frases em
alemão macarrónico, os Wilkommen e Ist alies gut?, que até me dão
gorjeta. (Os europeus, mal habituados pelos seus países inçados de
sindicatos, salários altos e segurança social, em geral não sabem que
devem
21
dar gorjeta. Alguns restaurantes, entre os quais o Hearth-side,
permitem que os empregados de mesa «esfolem» os clientes
estrangeiros, acrescentando uma gorjeta à conta. Visto que a quantia
é adicionada à conta antes de os clientes terem hipótese de dar
gorjeta ou não, a prática consiste, de facto, numa penalização
automática imposta a quem não domina o inglês.) Há as duas lésbicas
com o rosto enfarruscado, acabadas de sair do seu turno, que ficam
tão bem impressionadas pela forma discreta como resolvo o problema
da mosca na pina colada que se dão ao trabalho de me elogiar ao Stu,
o subgerente. Há o Sam, o simpático polícia aposentado, que tem de
tapar o buraco da traqueotomia com um dedo para conseguir que o
fumo do cigarro lhe chegue aos pulmões.
Por vezes, entretenho-me com a fantasia de que sou uma princesa
que, expiando qualquer pequena transgressão, decidiu alimentar à
mão cada um dos seus súbditos. Mas as não princesas que trabalham
comigo são igualmente generosas, mesmo quando tal significa violar
as regras da gerência - por exemplo, quanto ao número de pedacinhos
de tosta que leva cada salada (seis). «Põe os que quiseres», segreda
a Gail, «desde que o Stu não esteja a olhar.» Com o seu dinheiro das
gorjetas paga biscoitos e molho a um mecânico desempregado que
gastou todo o dinheiro no dentista, inspirando-me a pagar-lhe a fatia
de tarte e o copo de leite. Talvez se encontrem níveis semelhantes de
solidariedade em toda a indústria hoteleira. Recordo-me do cartaz que
vi na parede de um dos apartamentos que visitei, onde se lia: «Se
procurares a felicidade para ti próprio, nunca a encontrarás. Somente
quando procurares a felicidade para os outros a encontrarás para ti»,
ou algo parecido - um sentimento estranho, pareceu-me na altura,
para encontrar no estúdio de um porteiro do Best Western, numa cave
húmida. No Hearthside, recorremos à pouca autonomia que temos
para encher os clientes com as calorias ilícitas que assinalam os
nossos sentimentos fraternos. Cabe às empregadas de mesa dar os
toques finais às saladas e sobremesas, pôr os temperos e as natas
batidas. Controlamos também o número de porções de manteiga a
que os clientes têm direito e as natas nas batatas assadas. Por
conseguinte, se não sabe por que
22
razão os americanos são tão obesos, tenha em consideração o facto
de que as empregadas de mesa exprimem os seus sentimentos
humanitários e ganham gorjetas através da distribuição secreta de
lípidos.
Ao fim de dez dias, este estilo de vida começa a parecer aceitável.
Gosto da Gail, que não está longe dos cinquenta, mas é tão rápida
que parece voar de um sítio para o outro. Brinco com o Lionel, o
adolescente haitiano que é ajudante de mesa, embora não tenhamos
muito vocabulário em comum, e deixo-me ficar por perto da banca
principal para escutar o crioulo musical dos lavadores de pratos,
haitianos mais velhos, que soa, nas suas vozes profundas de baixo,
como francês injectado com testosterona. Caio nas boas graças do
Timmy, o rapazinho branco de catorze anos que ajuda às mesas à
noite, quando lhe digo que não gosto que as pessoas ponham os
assentos de bebé em cima das mesas: faz o bebé parecer um prato
que mandaram vir. Ele ri-se, encantado, e em troca, em noites de
pouco movimento, começa a contar-me a história dos filmes da série
Tubarão (que se encontram entre os favoritos de todos os tempos em
Keys, uma zona infestada de tubarões): «Ela olha à volta e o
esquiador aquático já não se vê, depois, pumba! Desaparece o barco
todo...»
Gosto especialmente da Joan, a esbelta recepcionista dos seus
quarenta e tais que vem a revelar-se uma feminista militante, puxando-
me de lado um dia para me dizer: «Os homens mandam em tudo, não
temos hipótese, a menos que sejamos solidárias.» Seguindo este
princípio, ajuda-me nas ocasiões em que tenho demasiado trabalho e
em troca dou-lhe uma parte das minhas gorjetas ou fico de sentinela
enquanto ela se esgueira para fumar um cigarro. Todos nós a
admiramos por fazer frente ao Billy e lhe dizer, depois de alguma das
suas patacoadas sobre as empregadas de mesa, para «se calar com
essa merda». Chego até a simpatizar com o Billy quando, numa noite
de pouco movimento, e para se desculpar de um ataque
especialmente injustificado às minhas capacidades, pelo menos na
minha opinião, me fala sobre os seus tempos de glória na «escola de
coronária» em Brooklyn, onde andou com uma garota porto-riquenha
de estalo - ou será que se diz «culinária»?
23
Todas as noites acabo de trabalhar às dez ou dez e meia, dependendo
de quanto trabalho à parte tenha conseguido fazer durante o turno, e
vou para casa acompanhada pela música das cassetes que escolhi à
sorte quando deixei a minha verdadeira casa - Marianne Faithfull,
Tracy Chapman, Enigma, King Sunny Adé, Violent Femmes -, bastante
esgotada para a música me ressoar na cabeça, mas não propriamente
morta de cansaço. À meia-noite como bolachas de água e sal e queijo,
acompanhadas por vinho branco barato com gelo e o que a cadeia de
televisão AMC tenha para oferecer. Deito-me à uma e meia ou duas,
levanto-me entre as nove e as dez, leio durante uma hora, enquanto a
minha farda anda às voltas na máquina de lavar do senhorio, e depois
seguem-se mais oito horas, cumprindo a instrução principal formulada
em Citações do Presidente Mao Tsé-Tung. servir o povo.
Poderia deixar-me andar assim, numa espécie de sonhador idílio
proletário, se não fossem duas coisas. Uma é a gerência. Se não
abordei este assunto até agora, é porque ainda me arrepio ao pensar
que passei todas aquelas semanas sob a supervisão de homens (e
mais tarde mulheres) cuja função era vigiar o meu comportamento, à
espreita de sinais de preguiça, roubo, uso de drogas, ou pior. Não que
os gerentes, e sobretudo os «subgerentes» em postos de salários
baixos como estes, sejam exactamente o inimigo de classe. Na maior
parte dos casos, no sector da restauração são ex-cozinheiros ainda
capazes de dar um jeito na cozinha, tal como nos hotéis é provável
que sejam antigos recepcionistas, com um salário que ronda os
quatrocentos dólares por semana. Mas toda a gente sabe que
passaram para o lado de lá, o qual é, genericamente falando,
empresarial no sentido de oposto a humano. Os cozinheiros querem
preparar refeições saborosas, os empregados de mesa servi-las com
bons modos, mas a função dos gerentes é apenas uma - garantirem
que há lucros para uma entidade teórica, a empresa, que existe bem
longe, em Chicago ou em Nova Iorque, se é que se pode atribuir
existência física a uma grande empresa. Reflectindo sobre a sua
carreira, a Gail diz-me com
24
tristeza que jurou há anos jamais voltar a trabalhar para uma grande
empresa. «Eles não nos largam. A gente dá e torna a dar, e eles só
tiram.»
Os gerentes podem sentar-se - horas a fio, se lhes apetecer -, mas
compete-lhes assegurarem-se de que mais ninguém se senta, mesmo
quando não há nada para fazer, e é por esta razão que, para quem
serve, as horas de pouco movimento podem ser tão cansativas como
as de muito movimento. Começamos a fazer render cada pequena
tarefa, porque, se o gerente de serviço nos surpreender num momento
de ócio, dar-nos-á algo muito mais desagradável para fazer. Por isso,
enxugo, limpo, volto a arrumar os frascos de molho de tomate e a
verificar o fornecimento de tarte de queijo, chego mesmo a dar uma
volta pelas mesas para confirmar se os impressos de avaliação do
serviço estão bem empertigados no seu lugar - perguntando-me ao
mesmo tempo quantas calorias queimo nestes exercícios estritamente
teatrais. Em desespero, chego a tirar as sobremesas das vitrinas e a
dar-lhes uma refrescadela com uma dose de natas batidas e novas
cerejas cristalizadas; qualquer coisa serve para parecer atarefada.
Quando, numa tarde especialmente morta, o Stu me encontra a dar
uma vista de olhos a um exemplar do USA Today que um cliente
deixou ficar, manda-me aspirar o restaurante todo com o aspirador
meio avariado, que tem um tubo de somente meio metro, pelo que a
única forma de desempenhar a tarefa sem arranjar problemas
ortopédicos é andar de joelhos de um sítio para o outro.
Na primeira sexta-feira que passo no Hearthside realiza-se uma
«reunião obrigatória para todo o pessoal do restaurante», a que
assisto, ansiosa por obter informações sobre a nossa estratégia de
mercado global e o nicho gastronómico (cozinha básica do Ohio com
um toque tropical?) que pretendemos ocupar. Mas não existe qualquer
«nós» nesta reunião. O Phil-lip, o nosso gerente principal, se
exceptuarmos um «consultor» enviado ocasionalmente pela sede da
empresa, abre a reunião com uma crítica: «A sala de descanso está
um nojo. Pontas de cigarros nos cinzeiros, jornais espalhados por todo
o lado, migalhas.» Esta salinha sem janelas, que alberga também o
relógio
25
de ponto para todo o hotel, é onde guardamos as carteiras e as roupas
que usamos lá fora e onde passamos os intervalos de meia hora para
as refeições. Mas uma sala de descanso não é um direito, diz-nos ele,
pode ser retirada. Ficamos também a saber que os armários da sala
de descanso e o que quer que neles se encontre podem ser revistados
a qualquer momento. Segue-se a questão dos mexericos; houve
mexericos; os mexericos (que parecem significar que os empregados
andam a falar entre si) têm de parar. Fora das horas de serviço, os
empregados passam a estar proibidos de frequentar o restaurante,
porque «outros empregados reúnem-se à sua volta e começam nos
mexericos». Quando o Phillip esgota a lista de reprimendas, a Joan
queixa-se do estado da casa de banho das senhoras e eu dou o meu
palpite sobre o aspirador. Mas não vejo sinais de qualquer apoio por
parte das minhas colegas empregadas de mesa, que mergulharam
todas num estado de apatia; a Gail, o meu modelo de comportamento,
fixa um olhar triste num ponto a quinze centímetros do nariz. A reunião
termina quando o Andy, um dos cozinheiros, se levanta a resmungar
por ter de interromper o seu dia «por causa desta merda do caraças».
Quatro dias depois, somos chamadas à cozinha às três e meia da
tarde, embora haja ainda mesas ocupadas no restaurante. Todos nós -
cerca de dez - ficamos de pé à volta do Phillip, que anuncia, sombrio,
a existência de alguma «situação de drogas» no turno da noite e que,
por conseguinte, teremos de passar a ser um local de trabalho «sem
drogas», o que significa que todos os novos contratados serão
submetidos a testes, assim como, possivelmente, alguns dos
empregados já ao serviço, numa base aleatória. Ainda bem que esta
parte da cozinha é bastante escura, porque dou comigo a corar como
se tivesse sido apanhada na casa de banho a dar umas passas: já não
sou tratada desta forma - em fila no corredor, ameaçada com uma
revista aos cacifos, sob uma chuvada de acusações atiradas à toa -
pelo menos desde os tempos da escola secundária. De volta à sala do
restaurante, a Joan diz: «Da próxima, dizem-nos que é proibido o sexo
nas horas de expediente.» Quando pergunto ao Stu o que aconteceu
para provocar esta
26
crise, ele resmunga qualquer coisa sobre «decisões da gerência» e
aproveita a oportunidade para nos repreender, a mim e à Gail, por
seremos demasiado generosas com a distribuição dos pães. A partir
deste momento, é um pão por cliente, a acompanhar o primeiro prato,
não a salada. Também chama a atenção aos cozinheiros, levando o
Andy a sair da cozinha e a comentar, com a serenidade de um homem
cujo instrumento habitual de trabalho é uma faca afiada, que «o Stu
hoje está com impulsos suicidas».
Mais tarde, os mexericos resultam na teoria de que o culpado das
drogas é o próprio Stu, que usa o telefone do restaurante para
encomendar marijuana e manda uma das empregadas de mesa do
turno da noite buscá-la. A empregada foi apanhada e talvez tenha
denunciado o Stu, ou dito qualquer coisa que o incrimine, o que
explicaria o seu mau humor. Quem sabe? Pela minha parte, estou
disposta a acreditar no pior sobre o Stu, que não tem uma função
evidente e, tirando conclusões apressadas do facto de pertencermos à
mesma etnia, vem ter comigo uma noite para se lançar num ataque
xenófobo dirigido aos imigrantes haitianos: «Sinto-me como se eu é
que fosse o estrangeiro aqui! Eles estão a tomar conta do país!» Mais
tarde nessa mesma noite, a droga em questão passa a crack. O
Lionel, que é ajudante de mesa, entretém-nos durante o resto do turno
pondo-se por detrás do Stu e aspirando delirantemente o fumo de um
imaginário charro ou talvez um cachimbo.
O outro problema, a acrescentar ao estilo pouco amigável da gerência,
é que este emprego não dá sinais de ser financeiramente viável. A
uma distância confortável, poderia imaginar-se que as pessoas que
vivem, ano após ano, com um salário de seis a dez dólares por hora
descobriram qualquer estratagema de sobrevivência desconhecido da
classe média. Mas não. Não é difícil levar os meus colegas a falarem
sobre as suas condições de vida, porque, em quase todos os casos, o
problema da habitação é a principal fonte de perturbações, a primeira
coisa de que falam quando chegam ao trabalho. Ao fim de uma
semana, compilei já o seguinte:

A Gail partilha um quarto num albergue bem conhecido na Baixa por


duzentos e cinquenta dólares por semana. A pessoa com
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quem partilha o quarto, um amigo, começou a mexer-lhe com os
nervos, a dar-lhe cabo do juízo, mas sozinha não poderia pagar a
renda.

O Claude, o cozinheiro haitiano, está morto por sair do apartamento de


duas assoalhadas que partilha com a namorada e duas outras
pessoas estranhas. Ao que julgo, os outros homens haitianos vivem
em situações sobrelotadas semelhantes.

A Annette, uma empregada de mesa de vinte anos que está grávida de


seis meses e foi abandonada pelo namorado, vive com a mãe, que é
empregada dos Correios.

A Marianne, que serve os pequenos-almoços, e o namorado pagam


cento e setenta dólares por semana por uma caravana para uma só
pessoa.

O Billy, que, a ganhar dez dólares à hora, é o mais rico de todos, vive
numa caravana de que é proprietário, pagando somente quatrocentos
dólares por mês de estacionamento.

O outro cozinheiro branco, o Andy, vive no seu barco atracado numa


doca seca, que, com base nas suas descrições, julgo que não tenha
mais de seis metros de comprimento. Convida-me para uma volta logo
que esteja consertado, mas o convite é acompanhado por perguntas
quanto ao meu estado civil, e recuso.

A Tina, uma outra empregada de mesa, e o marido pagam sessenta


dólares por noite por um quarto na residencial Days Inn. Isto é porque
não têm carro e a residencial fica relativamente perto do Hearthside.
Quando a Marianne é expulsa da sua caravana por a subalugar (o que
vai contra as regras do parque de caravanas), deixa o namorado e vai
viver com a Tina e o marido.

A Joan, que me tinha enganado com as suas indumentárias


numerosas e de bom gosto (as recepcionistas de restaurante vestem
as suas próprias roupas), vive numa carrinha estacionada por detrás
de um centro comercial à noite e lava-se no quarto de motel da Tina.
As roupas são de lojas de segunda mão ( Nota 1) .

( Nota 1) - Não encontrei estatísticas sobre o número de pessoas


empregadas a viverem em carros ou carrinhas, mas, segundo um
relatório de 1977 da National Coalition for the Homeless (Coligação
Nacional para os Sem-Abrigo), «Myths and Facts about
Homelessness», quase um quinto dos sem-abrigo de 29 cidades
trabalham a tempo inteiro ou parcial.
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No meu egocentrismo típico da classe média, chama-me a atenção a
extraordinária imprevidência que revelam algumas destas soluções.
Quando eu e a Gail estamos a embrulhar os talheres em guardanapos
— a única tarefa que nos é permitido executar sentadas —, ela diz-me
que está a pensar em ver-se livre do companheiro de quarto, indo para
a Days Inn. Fico estarrecida: como é que pode sequer pensar em
pagar entre quarenta e sessenta dólares por dia? Porém, embora
receasse parecer uma assistente social, pareço antes uma tonta. Gail
fi-xa-me com um olhar de incredulidade: «E aonde é que vou buscar
um mês de renda e um mês de depósito para alugar um
apartamento?» Eu andava a sentir-me toda satisfeita comigo própria
por ter arranjado um estúdio a quinhentos dólares por mês, mas,
evidentemente, tal só fora possível devido aos mil e trezentos dólares
que destinara às despesas iniciais quando comecei a minha vida de
salário baixo: mil dólares para o primeiro mês de renda e o depósito,
cem para os produtos básicos e para trocos e duzentos de reserva
para uma emergência. Na pobreza, como em certas proposições da
física, as condições iniciais são tudo.
Não existem economias secretas que alimentem os pobres; pelo
contrário, há um sem-número de custos especiais. Quem não tem
posses para pagar dois meses de renda para alugar um apartamento
acaba por pagar uma fortuna por um quarto alugado à semana. Quem
tem somente um quarto, na melhor das hipóteses com um pequeno
fogão, não pode fazer economias cozinhando grandes panelas de
sopa e congelando-a para usar durante a semana. Alimenta-se de
comida rápida ou ca-chorros-quentes e sopa em copos de cartão, que
podem ser aquecidos no microondas da loja de conveniência. Quem
não tem dinheiro para um seguro de saúde — e o esquema do
Hearthside só entra em vigor ao fim de três meses — passa sem
cuidados de rotina ou medicamentos que precisam de receita e acaba
por pagar o preço. A Gail, por exemplo, estava bem, pelo menos de
saúde, até se lhe acabar o dinheiro para os comprimidos de
estrogénio. Agora já devia estar abrangida pelo seguro de saúde da
companhia, mas esta diz que o seu impresso de inscrição se
extraviou, tendo o processo de ser
29
reiniciado. Por isso, a Gail gasta nove dólares por cada comprimido
para controlar as enxaquecas, que não teria, insiste, se os
suplementos de estrogénio estivessem cobertos. O namorado da
Marianne perdeu o emprego na construção civil por faltar muitos dias
devido a não ter dinheiro para o antibiótico que lhe fora receitado para
tratar um ferimento no pé.
A minha situação, quando a avalio após duas semanas de trabalho,
não seria muito melhor se esta fosse de facto a minha vida. Um dos
atractivos de servir à mesa é que não é preciso esperar pelo dia de
pagamento para ter umas notas no bolso, e as gorjetas que recebo
cobrem as despesas de alimentação e gasolina, sobrando ainda uns
trocos para meter na gaveta da cozinha que me serve de banco.
Porém, quando o afluxo de turistas abranda, à medida que o calor
aumenta, saio muitas vezes do trabalho apenas com vinte dólares de
gorjetas (o total é mais elevado, mas as empregadas de mesa
partilham cerca de 15% das gorjetas com os ajudantes de mesa e os
empregados do bar). Com o ordenado incluído, isto atinge mais ou
menos o salário mínimo de cinco dólares e quinze cênti-mos por hora.
A pilha de notas na gaveta vai crescendo, mas, à taxa actual de
acumulação, faltar-me-ão mais de cem dólares para a renda quando
chegar o fim do mês, e não vejo que despesas poderia cortar. É
verdade que ainda não enveredei pelas lentilhas estufadas, mas isso
deve-se ao facto de não ter uma panela grande, pegas e uma colher
para mexer (que me custariam cerca de trinta dólares no Kmart, um
pouco menos numa loja barata), já para não mencionar cebolas,
cenouras e a indispensável folha de louro. Faço o meu almoço quase
todos os dias - normalmente uma combinação de hidratos de carbono
e proteínas com longo tempo de absorção, tal como panados de
frango congelados com queijo derretido e feijões de lata. O jantar é no
Hearthside, que dá a escolher aos empregados entre sanduíche de
bacon, alface e tomate, sanduíche de peixe ou hambúrguer por
apenas dois dólares. O hambúrguer enche mais, especialmente se
tiver uma boa dose de pimentos jalapenos adstringentes, mas por
volta da meia-noite o meu estômago já está a dar horas.
30
Por conseguinte, a não ser que queira usar o carro como residência,
tenho de arranjar um segundo emprego ou um trabalho alternativo.
Telefono para todos os hotéis onde, há algumas semanas, preenchi
impressos de candidatura a um lugar de empregada da limpeza - o
Hyatt, o Holiday Inn, o Econo Lodge, o Hojo's, o Best Western e uma
meia dúzia de pensões que não pertencem a cadeias. Nada! Em
seguida começo de novo a fazer a ronda, desperdiçando manhãs
inteiras à espera que um subgerente apareça; chego a ir a sítios tão
sinistros que o recepcionista me recebe por detrás de um vidro à prova
de bala e se vendem bebidas brancas aos meios litros. No entanto, ou
alguém denunciou os meus hábitos de limpeza na vida real - que são,
por assim dizer, relaxados - ou estou no lado errado de uma equação
étnica infalível: a maior parte, embora não todas, das empregadas de
limpeza que vejo nas minhas expedições à procura de emprego é afro-
americana, falante de espanhol ou refugiada do mundo pós-comunista
da Europa Central, enquanto as empregadas de mesa são brancas e
falam exclusivamente inglês. Quando, por fim, obtenho uma resposta
positiva, sou de novo identificada como pertencendo ao tipo
apropriado para servir à mesa. O Jerry's - mais uma vez, não se trata
do seu nome real -, que pertence a uma cadeia nacional bem
conhecida e se encontra, neste caso, nas instalações de um hotel
económico, está disposto a contratar-me de imediato. A ideia é
simultaneamente excitante e aterradora, porque, com mais ou menos
o mesmo número de mesas e lugares ao balcão, o Jerry's atrai o triplo
ou o quádruplo do volume de clientes do velho e triste Hearthside.

Imagine-se o inferno de uma pessoa gorda, e não estou a pensar num


sítio sem comida... Pelo contrário, existe tudo o que se comeria, se
isso não tivesse quaisquer consequências físicas - batatas fritas com
queijo derretido, bifes, sobremesas cheias de caramelo -, mas aqui
cada dentada tem o seu preço, de uma forma ou de outra, em
desconforto humano. A cozinha é uma caverna, um estômago que
conduz ao intestino, que é a zona do lixo e da lavagem de pratos, de
onde se
31
evolam odores bizarros, combinando o comestível com o visceral:
carne podre cremosa, arroto de piza e um aroma enigmático e único
do «Jerry's, peido de limão». O chão é escorregadio devido aos
líquidos entornados, obrigando-nos a atravessar a cozinha em
passinhos curtos, como se estivéssemos de saia travada. Todos os
lava-louças estão entupidos com pedaços de alface, quartos de limão
a apodrecer, migalhas de torrada empapadas em água. Quem toque
em qualquer superfície arrisca-se a ficar agarrado, devido à película
arqueológica de caramelo líquido entornado, o que pode ser um
problema, porque aqui as mãos são os utensílios utilizados para pôr
alface nos pratos de salada, pegar em fatias de tarte e até mesmo
passar croquetes de batata de um prato para outro. O cartaz do
costume na casa de banho unissexo aconselha-nos a lavar bem as
mãos, e dá mesmo instruções sobre a maneira de o fazer, mas falta
sempre qualquer substância essencial - sabão, toalhas ou papel
higiénico, três coisas que nunca encontrei em simultâneo. Aprende-se
a encher os bolsos de guardanapos de papel antes de ir à casa de
banho; e o pior é para os clientes, que, embora não o saibam, nos
vêm literalmente comer à mão. A sala de descanso resume a situação:
não existe, porque não há descanso no Jerry's. Durante seis ou oito
horas seguidas, o pessoal nunca se senta, a não ser quando vai à
casa de banho. É verdade que existem três cadeiras desdobráveis
junto a uma mesa mesmo ao lado da casa de banho, mas quase
ninguém se senta neste verdadeiro recto do sistema gastroarqui-
tectónico. A função desta zona é albergar os cinzeiros nos quais as
empregadas de mesa e os lavadores de pratos têm os cigarros
sempre acesos, como velas votivas, para não perderem tempo a
acendê-los outra vez quando dão aqui uma saltada para uma
«passa». Quase toda a gente fuma como se o seu bem-estar
pulmonar dependesse dos cigarros - o grupo multinacional de
cozinheiros; os lavadores de pratos, que aqui são todos checos; as
empregadas de mesa, de naturalidade americana -, criando uma
atmosfera na qual o oxigénio é um poluente ocasional. Na minha
primeira manhã no Jerry's, quando se instalam os tremores da
hipoglicemia, digo a uma das colegas que não compreendo como é
que consegue passar tanto
32
tempo sem comer. «Bem, eu não entendo como é que tu consegues
passar tanto tempo sem fumar», responde ela num tom de
repreensão. Porque trabalhar é o que se faz para os outros; fumar é o
que se faz para si próprio. Não sei porque é que os cruzados
antitabagistas nunca compreenderam a rebeldia de um acto
completamente egocêntrico que torna o vício tão querido das suas
vítimas - como se no local de trabalho, na América, as únicas coisas a
que as pessoas podem chamar suas fossem os tumores que nutrem e
os momentos livres que dedicam a alimentá-los.
Ora bem, a Revolução Industrial não é uma transição fácil, sobretudo,
segundo a minha experiência, quando tem de se ultrapassar apenas
em meia dúzia de dias. Passei directamente do trabalho artesanal
para a fábrica, da morgue com ar condicionado do Hearthside para as
chamas. Os clientes chegam em vagas humanas, às vezes vomitados
aos cinquenta dos autocarros de excursão, cheios de larica e
rabugentos. Em vez de duas «raparigas» a servir ao mesmo tempo,
chegamos a ser seis a correr de um lado para o outro, com as nossas
berrantes camisas havaianas cor-de-rosa e cor de laranja. As
conversas, quer com os clientes quer com as colegas, raramente
duram mais de vinte segundos. No primeiro dia, a frieza das colegas
magoa-me. A minha mentora nesse dia é uma mulher de vinte e três
anos de uma competência e impassibilidade extraordinárias, e as
outras empregadas, que tagarelam entre si sobre a verdadeira razão
por que uma colega está de baixa e sobre a fiança que uma outra
pessoa teve de pagar, ignoram-me completamente. No segundo dia,
descubro a razão. «É bom ver-te aqui de novo», diz uma delas em
jeito de saudação. «Quase ninguém volta depois do primeiro dia.»
Sinto-me uma autêntica vencedora - uma sobrevivente -, mas
demoraria muito tempo, provavelmente meses, antes de ser aceite por
esta irmandade.
Começo com a bela ideia heróica de acumular os dois empregos, e
durante dois dias quase o consigo: faço o turno do pequeno-almoço e
almoço no Jerry's, das oito às duas, chego ao Hearthside alguns
minutos atrasada, às duas e dez, e tento aguentar-me até às dez. Nos
poucos minutos que tenho entre
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os dois empregos, compro uma sanduíche de frango picante sem sair
do carro no Wendy's, como-a à pressa e mudo de calças caqui para
calças pretas, de camisa havaiana para pólo cor de ferrugem. Mas há
um problema: quando, durante a hora morta entre as três e as quatro,
me sento, por fim, para embrulhar os talheres em guardanapos, fico
colada à cadeira. Tento reanimar as forças com uma caneca de sopa
de peixe roubada, como vi a Gail e a Joan fazer dezenas de vezes,
mas o Stu apanha-me com a boca na botija e diz, ríspido: «Nada de
comer!», embora não haja clientes presentes para se ofenderem com
a visão de alimentos a entrarem em contacto com os lábios de uma
empregada de mesa. Digo à Gail que vou despedir-me, e ela dá-me
um abraço e afirma que é capaz de ir também trabalhar para o Jerry's.
Porém, as hipóteses de tal acontecer são ínfimas. A Gail deixou o
albergue e o colega de quarto irritante e está a viver de novo no
camião. Mas, surpresa das surpresas, diz-me ela mais tarde nessa
mesma noite, o Phillip deu-lhe autorização para ficar durante a noite
no parque de estacionamento do hotel, desde que se mantenha fora
de vista, e o parque de estacionamento é completamente seguro, pois
é patrulhado por um guarda do hotel! Com o Hearthside a oferecer
regalias assim, como poderia alguém pensar em deixá-lo? Esta deve
ser a teoria do Phillip. Aceita a minha demissão com um encolher de
ombros, e a sua principal preocupação é que não me esqueça de
devolver os dois pólos e os aventais.
Não duvido de que a Gail triunfaria no Jerry's, mas para mim é um
curso acelerado em gestão da exaustão. Há muitos anos, um
cozinheiro com quem aprendi a servir à mesa num restaurante de
camionistas em Los Angeles costumava dizer: «Nunca te desloques
sem necessidade; se não tiveres de andar depressa, anda devagar; se
não tiveres de andar, fica parada.» Mas no Jerry's até o esforço de
distinguir o necessário do desnecessário e o urgente do que pode ficar
para depois seria um dispêndio de energia excessivo. A única coisa a
fazer é tratar cada turno como uma emergência: tem-se cinquenta
pessoas famintas lá fora, tombadas no campo de batalha, por isso é
preciso avançar e dar-lhes de comer! Temos de esquecer que
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vai voltar a ser a mesma coisa no dia seguinte, que será necessário
estar suficientemente desperta à noite para evitar os bêbedos no
regresso a casa - só avançar, avançar, avançar! Idealmente, a certa
altura entra-se naquilo a que os empregados de mesa chamam
«ritmo» e os psicólogos classificam como «estado de fluidez», em que
os sinais vão dos órgãos dos sentidos directamente para os músculos,
sem passarem pelo córtex cerebral, e se instala um vazio semelhante
a um estado de zen. Estou agora no turno das duas às dez da noite, e
um empregado de mesa do turno da manhã fala-me de uma vez em
que «fez uma tripla» - três turnos de seguida, vinte e quatro horas - e
quando saiu do trabalho tomou uma bebida e encontrou uma rapariga,
e talvez não devesse contar-me isto, mas fizeram amor ali mesmo, e
foi o máximo.
Mas existe uma outra capacidade do sistema neuromus-cular, que é a
dor. Começo a tomar ibuprofeno como se fosse vitamina C, quatro
antes de cada turno: uma velha lesão por esforço repetitivo na parte
superior das costas, provocada pelo uso do rato, voltou a fazer-se
sentir, desta vez com a intensidade de um espasmo, por carregar as
bandejas cheias. Na minha vida normal, este nível de incapacitação
talvez justificasse um dia de descanso com compressas de gelo. Aqui,
consolo-me com o anúncio do Aleve, onde um trabalhador manual
bem-parecido pergunta: «Se parasses ao fim de quatro horas de
trabalho, o que é que o teu patrão dizia?» E um trabalhador manual
não tão bem-parecido, que transporta uma barra de metal às costas,
responde: «Despedia-me, era o que era!» Mas felizmente, diz-nos o
anúncio, nós, trabalhadores, podemos exercer o mesmo tipo de
autoridade sobre os analgésicos que os nossos patrões exercem
sobre nós. Se o Tylenol não quiser trabalhar mais do que quatro horas,
manda-se para a rua e contrata-se o Aleve.
É verdade que tiro folgas ocasionais desta vida, voltando a casa de
vez em quando para ler os e-mails e fazer visitas conjugais (embora
tenha o cuidado de «pagar» tudo o que como, a cinco dólares por
jantar, que ponho num frasco) ou ver o filme The Truman Show - A
Vida em Directo com amigos, deixando que eles me paguem o bilhete.
E durante o trabalho
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ainda tenho momentos em que me pergunto o que estou aqui a fazer e
sinto tais saudades da palavra escrita que leio e releio,
obsessivamente, as seis páginas da ementa. Contudo, à medida que
os dias vão passando, a minha vida anterior começa a parecer-me
estranha. Os e-mails e mensagens telefónicas dirigidos ao meu
anterior eu vêm de uma raça longínqua de pessoas com
preocupações exóticas e demasiado tempo para gastar. O mercado de
bairro aonde ia comprar produtos frescos lembra-me agora um
intimidante empório de yuppies em Manhattan. E quando uma manhã
me sento na minha casa real para pagar contas da minha vida
passada, fico estonteada com as dezenas e centenas de dólares
devidas a empresas como o ginásio Club Body Tech e a Amazon.com.
Em geral, os gerentes do Jerry's são mais calmos e «profissionais» do
que os do Hearthside, com duas excepções. Uma é a Joy, uma mulher
gorducha e espampanante de trinta e poucos anos que uma vez
dedicou generosamente vários minutos do seu tempo a explicar-me o
método correcto de transportar a bandeja numa só mão, mas cuja
disposição se altera de forma desconcertante de um turno para o
seguinte e até num mesmo turno. A outra é a B. J., também conhecida
por Sacana B. ]., cuja contribuição é pôr-se ao lado do balcão da
cozinha a berrar: «Nita, o teu pedido está aqui, vamos a andar!», ou
«Barbara, não viste que tens outra mesa lá fora? Anda, rapariga!»
Entre outras coisas, é odiada por ter substituído os sprays de chantilly
por grandes sacos de plástico de chantilly, que têm de ser espremidos
com ambas as mãos - porque, segundo dizem, viu ou julgou ver
empregados a tentarem inalar o gás dos sprays, na esperança de que
fosse óxido nítrico. Na terceira noite, chama-me de lado bruscamente
e aproxima o seu rosto do meu, dando a impressão de que tenciona
dar-me uma cabeçada. Mas em vez de me despedir, diz: «Estás a ir
bem.» O único problema é que ando a perder tempo a falar com os
clientes. «E assim que eles te apanham.» Além disso, estou a deixar
que «mandem em mim», o que significa ser incomodada com pedidos
em sequência: traz-se o molho de tomate, e eles decidem que querem
mais maionese; traz-se a maionese, e dizem que querem mais uma
dose de batatas fritas,
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e assim sucessivamente, até à loucura. Por fim, pede-me que não a
interprete mal. Tenta dizer as coisas de uma forma simpática, mas
«entra-se no ritmo, sabes, porque tudo tem de avançar tão
depressa...» ( Nota 1).
Engrolo uns agradecimentos pelos seus conselhos, sentindo-me como
se o executor enlouquecido de uma lei sumptuária antiga me tivesse
arrancado as roupas: para ti, nada de conversinhas, rapariga! Nada de
ética de serviço fino para os servos! As conversas com os clientes são
para os empregados atraentes e com formação universitária dos
restaurantes chiques do centro, os jovens que chegam a ganhar entre
setenta e cem dólares por noite. Em que é que estava a pensar? O
meu trabalho consiste em levar pedidos das mesas para a cozinha e
bandejas com comida da cozinha para as mesas. Os clientes são, na
realidade, o principal obstáculo à eficiente transformação de
informação em comida e de comida em dinheiro - são, em suma, o
inimigo. E o pior é que eu própria começo a ver as coisas desta
maneira. Há os tradicionais broncos - os estudantes universitários que
bebem várias cervejas e depois fazem um escarcéu porque os bifes
estão sem cor e a dose de batatas fritas é demasiado pequena -, bem
como pessoas com problemas variados - devidos à idade, diabetes ou
fraca alfabetização -, que precisam de um paciente aconselhamento
nutricional. Os piores, não sei bem porquê, são os Cristãos Visíveis -
como a mesa de dez pessoas, todas bem-dispostas e santificadas
após o serviço religioso de domingo à noite, que me fazem andar
numa roda-viva e me deixam uma gorjeta de um dólar numa conta de
noventa e dois. Ou o sujeito com a T-shirt da crucificação (alguém a
quem admirar), que se queixa que a batata assada está demasiado
dura e o chá gelado demasiado gelado (resolvo ambos os problemas
com bons

( Nota 1 ) - Em Workers in a Lean World: Unions in the International


Economy, Verso, 1997, Kim Moody cita estudos que revelam um
aumento de ferimentos e doenças devidos a stresse no local de
trabalho entre meados da década de 80 e o início dos anos 90 do
século xx. Moody defende a tese de que os níveis crescentes de
stresse reflectem um novo sistema de «gestão por stresse», no qual
os trabalhadores de uma série de indústrias estão a ser «espremidos»
para lhes ser extraída a máxima produtividade, em detrimento da
saúde.
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modos) e não deixa gorjeta. Regra geral, as pessoas com cruzes ou
alfinetes-de-peito com as letras WWJD [What would Jesus do? (O que
faria Jesus?)] olham-nos com desaprovação façamos o que fizermos,
como se confundissem o serviço de empregada de mesa com a
profissão original de Maria Madalena.
Com o tempo vou fazendo amizade com as outras «raparigas» que
trabalham no meu turno. A Nita, uma mulher tatuada de vinte e tal
anos, que anda sempre a perguntar, num tom jovial e trocista: «Então?
Já começámos a fazer dinheiro?» A Ellen, cujo filho adolescente é
cozinheiro no turno da madrugada, foi em tempos gerente de um
restaurante em Massa-chusetts, mas não vai tentar um emprego
desses aqui, porque prefere ser «uma trabalhadora comum» e não
«andar a dar ordens às pessoas». E a Lucy, uma quarentona bem-
disposta que tem um riso estridente e coxeia ao aproximar-se o fim do
turno devido a um problema na perna, cuja natureza exacta não pode
ser diagnosticada sem seguro de saúde. Falamos sobre os assuntos
típicos de «raparigas» - homens, filhos e a sinistra atracção da tarte de
chocolate, manteiga de amendoim e natas do Jerry's -, embora
ninguém, reparo, aborde tópicos potencialmente dispendiosos, como ir
às compras ou ao cinema. Tal como no Hearthside, as únicas
distracções referidas são as festas, que requerem pouco mais do que
umas cervejas, um charro e alguns amigos íntimos. Seja como for,
aqui ninguém é sem-abrigo, normalmente graças a um marido ou
namorado que trabalha. Bem vistas as coisas, formamos um grupo de
apoio mútuo garantido: se uma de nós está a sentir-se mal ou
assoberbada pelo trabalho, outra toma uma mesa a seu cargo ou
ajuda a levar bandejas. Se uma de nós quer escapulir-se para ir fumar
um cigarro ou fazer chichi, as outras fazem os possíveis por ocultar a
sua ausência aos aplicadores da racionalidade empresarial ( Nota 1 ) .

( Nota 1 ) - Até Abril de 1998, não existia na lei federal qualquer direito
a pausas para ir à casa de banho. Escrevem Marc Linder e Ingrid
Nygaard, autores de Void Where Prohibited: Rest Breaks and the Right
to Urinate on Company Time, Cornell University Press, 1997: «O
direito a descansar e ir à casa de banho durante as horas de trabalho
não ocupa um lugar destacado na lista de causas sociais ou políticas
apoiadas por trabalhadores de profissões liberais ou executivos, que
desfrutam de liberdades pessoais no local de trabalho com as quais
milhões de operários fabris somente podem sonhar... Enquanto nós
ficámos abismados ao descobrir que os trabalhadores não têm o
direito expresso de ir à casa de banho durante as horas de trabalho,
[os trabalhadores] ficaram surpreendidos pela ingénua crença das
pessoas estranhas ao seu ambiente de que os empregadores lhes
permitiriam estas funções corporais quando necessário... Uma
operária fabril, trabalhando seis horas sem intervalo, usava pensos
higiénicos para urinar, e uma educadora de um jardim infantil sem
assistentes tinha de levar as vinte crianças com ela para a casa de
banho e perfilá-las à porta, à sua espera.»
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Mas o contacto humano que é a minha salvação - o meu receptor de
oxitocina, por assim dizer - é o George, o lavador de pratos checo de
dezanove anos, que se encontra neste país há exactamente uma
semana. Começamos a conversar quando ele me pergunta, de forma
tortuosa, quanto custam os cigarros no Jerry's. Faço os possíveis por
lhe explicar que custam um dólar ou mais acima do preço nas
tabacarias normais e sugiro-lhe que tire um cigarro dos maços meio
cheios que estão sempre em cima da mesa junto à casa de banho.
Mas tal seria impensável. Com excepção de um brinco minúsculo a
simbolizar o seu alinhamento com um ponto de vista vagamente
alternativo, o George é mais direito do que uma seta - cabelo curto,
trabalhador e ansioso por contacto humano. «República Checa ou
Eslováquia?», pergunto. Ele parece encantado por eu saber a
diferença. «Vaclav Havei, Revolução de Veludo, Frank Zappa?»,
continuo. «Sim, sim, 1989», diz o George, e apercebo-me de que para
ele já se trata de história.
O meu projecto é ensinar inglês ao George. «Como estás, George?»,
digo sempre no início de cada turno. «Estou bem, e tu como estás,
Barbara?» Fico a saber que não é pago pelo Jer-ry's, mas pelo
«agente» que o enviou - cinco dólares por hora, recebendo o agente o
dólar ou mais da diferença em relação ao que o Jerry's paga aos
lavadores de pratos. Fico também a saber que partilha um
apartamento com um grupo de outros «prateiros», como lhes chama, e
que não pode dormir até um deles sair para o seu turno e deixar uma
cama vaga. Num fim de tarde estamos numa das nossas sessões de
inglês para estrangeiros quando a B. J. nos apanha em flagrante e
ordena ao «Joseph» que tire os tapetes de borracha junto aos lava-
louças e limpe o chão. «Julguei que o teu nome era Geor-
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ge», disse eu, suficientemente alto para a B. J. ouvir ao regressar a
passadas largas ao balcão. Fica embaraçada? Talvez um pouco,
porque as primeiras palavras que me diz do balcão são: «George,
Joseph... São tantos!» Eu não respondo, não aceno nem sorrio, e por
isto sou castigada mais tarde: quando julgo que já posso ir-me
embora, ela diz-me que tenho de embrulhar mais cinquenta talheres
em guardanapos, e não será altura de misturar uma nova dose de
quinze litros de molho de queijo? Que envelheças neste emprego, B.
J., é a maldição que lhe lanço quando tenho finalmente autorização
para sair. Que o caramelo líquido te cole os pés ao chão!
Tomo a decisão de mudar de casa para mais perto de Key West. Em
primeiro lugar, por causa da viagem. Em segundo e terceiro lugares,
também por causa da viagem: a gasolina está a levar-me quatro ou
cinco dólares por dia e, embora o Jerry's tenha muitíssimo movimento,
as gorjetas são, em média, de 10%, e não só para uma novata como
eu. Com o pagamento de base de dois dólares e quinze cêntimos por
hora e a obrigação de partilhar as gorjetas com os ajudantes de mesa
e os lavadores de pratos, estamos a ganhar, em média, somente cerca
de sete dólares e meio por hora. E há a despesa de trinta dólares para
as calças usadas pelas empregadas de mesa do Jer-ry's - um buraco
que pode demorar semanas a tapar. (Tinha passado a pente fino os
dois armazéns baratos da cidade na esperança de encontrar qualquer
coisa mais em conta, mas decidi, por fim, que estas Dockers em saldo,
originalmente a quarenta e nove dólares, tinham mais probabilidades
de resistir à lavagem diária.) Entre as minhas colegas, todas as que
não têm marido ou namorado com trabalho parecem ter um segundo
emprego: a Nita faz qualquer coisa ao computador oito horas por dia;
uma outra é soldadora. Sem os quarenta e cinco minutos de viagem,
talvez consiga trabalhar em dois empregos e ainda ter tempo para
tomar um duche entre um e outro.
Por isso, pego no depósito de quinhentos dólares que tinha a haver do
meu senhorio, nos quatrocentos que juntei para pagar a renda do mês
seguinte e em mais duzentos do fundo de emergências e, com os mil
e cem dólares, pago um mês de renda e o depósito da caravana
número quarenta e seis no
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Overseas Trailer Park, a quilómetro e meio do punhado de hotéis
baratos que constitui a versão de Key West de um parque industrial. A
caravana número quarenta e seis tem cerca de dois metros e meio de
largura e a forma de uma barra de pesos por dentro, com uma zona
estreita - devido ao lava-louça e ao fogão - entre o quarto e aquilo a
que, com optimismo, se poderia chamar a zona de estar, onde há uma
mesa para duas pessoas e um sofá pequeno. A casa de banho é tão
minúscula que os meus joelhos roçam o chuveiro quando me sento na
sanita, e não me é possível sair da cama pelo lado, tenho de ir por
cima dela até aos pés para encontrar um pedacinho de espaço no
chão. Lá fora, estou a alguns metros de uma loja de bebidas, de um
bar que anuncia «cerveja grátis amanhã», de uma loja de
conveniência e de um Burger King - mas não de um supermercado
nem, infelizmente, de uma lavandaria automática. O parque Overseas
tem a reputação de ser um ninho de crime e de crack, e tenho a
esperança de haver pelo menos um ambiente multicultural e cheio de
animação. Mas reina a desolação noite e dia, exceptuando uma
procissão desgarrada de peões a dirigirem-se para o trabalho no
Sheraton ou no 7-Eleven. Aqui não há propriamente pessoas, antes
mão-de-obra enlatada, protegida do calor entre os turnos.
Para agravar as minhas novas condições de vida já tão
desfavorecidas, surge um novo tipo de problema no Jerry's. Em
primeiro lugar, somos confrontados - através de um anúncio nos
computadores nos quais inserimos os pedidos - com uma nova regra
segundo a qual a frequência do bar do hotel, o Driftwood, passa a ser
interditada ao pessoal do restaurante. Descubro pelos boatos que
circulam que a culpada é a empregada ultra-eficiente de vinte e três
anos que me treinou - também moradora num parque de caravanas e
mãe de três filhos. Uma manhã alguma coisa a tinha perturbado, pelo
que se esgueirou para beber um copo e voltou para o restaurante um
pouco tocada. Esta interdição afecta principalmente a El-len, que tem
o hábito de soltar o cabelo do elástico com que o prende e passar pelo
Driftwood para beber uns copos de vinho antes de ir para casa no fim
do seu turno, mas todos nós
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sentimos a afronta. Depois, no dia seguinte, quando vou buscar
palhinhas, descubro a despensa dos produtos secos fechada à chave.
Isto nunca aconteceu; andamos sempre a entrar e a sair - para ir
buscar guardanapos, recipientes para geleia, copos de cartão para as
bebidas para fora. O Vic, o subgerente bem constituído que me abre a
porta, explica que apanhou um dos lavadores de pratos a tentar roubar
qualquer coisa e, infelizmente, o transgressor continuará a trabalhar
até se arranjar quem o substitua - daí a porta fechada à chave. Não
pergunto o que é que ele tinha tentado roubar, mas o Vic diz-me quem
é - aquele rapaz com o cabelo curto e o brinquinho, aquele que está lá
no restaurante agora.
Gostava de poder dizer que corri para a cozinha e fui ter com o
George para obter o seu lado da história. Gostava de poder dizer que
fiz frente ao Vic e insisti que arranjassem um intérprete para o George
poder defender-se ou que anunciei que ia procurar um advogado que
tomasse conta do caso de graça. No mínimo, deveria ter atestado a
sua honestidade. Para mim, o mistério é que não há nada que valha a
pena roubar na despensa dos produtos secos, pelo menos não em
quantidades que possam facilmente vender-se no mercado negro.
«Está aqui o Gyorgi e tenho duzentos, talvez duzentos e cinquenta,
pacotes de molho de tomate. Que me diz?» O que suponho é que ele
tinha tirado - se é que tirou alguma coisa - umas bolachas de água e
sal ou uma lata de recheio de tarte de cereja e que o motivo tinha sido
a fome.
Então porque não intervim? Não foi, com certeza, por me ter refreado
aquela espécie de paralisia moral que pode disfarçar-se de
objectividade jornalística. Pelo contrário, algo novo - algo detestável e
servil - me tinha infectado, juntamente com os odores da cozinha que
conseguia detectar no soutien quando me despia à noite. Na vida real
sou razoavelmente corajosa, mas muitas pessoas valentes perdem a
coragem em campos de prisioneiros de guerra, e talvez algo
semelhante ocorra no ambiente infinitamente mais agradável dos
locais de trabalho americanos de salário baixo. Talvez com mais um ou
dois meses no Jerry's tivesse recuperado o meu espírito de cruzada.
Por outro lado, após um ou dois meses, talvez me
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transformasse num tipo de pessoa completamente diferente - por
exemplo, o tipo de pessoa que denunciaria o George.
Mas nunca chegaria a sabê-lo. Quando o meu mergulho de um mês
na pobreza estava quase a chegar ao fim, arranjei, por fim, o emprego
dos meus sonhos - na limpeza. Consegui-o indo directamente ao
escritório do pessoal do único local de trabalho onde supunha ter
alguma credibilidade, o hotel do Jerry's, e confessando que precisava
urgentemente de um segundo emprego para poder pagar a renda, e
que não, não podia ser recepcionista. «Está bem», resmunga a
senhora da secção de pessoal. «Então é limpeza», e leva-me a
conhecer a Millie, a supervisora das empregadas da limpeza, uma
mulher hispânica, minúscula e frenética, que me chama «garota» e me
entrega um panfleto salientando a necessidade de uma atitude
positiva. O salário é de seis dólares e dez cêntimos por hora, das nove
da manhã até «quando calhar», o que, espero, possa definir-se como
«antes das duas». Quando conheço a Carlotta, a afro-americana de
meia-idade que vai treinar-me, não preciso de perguntar se tenho
direito a seguro de saúde. A Carlie, como ela quer que lhe chame, não
tem nenhum dos dentes superiores da frente.
Nesse primeiro dia como empregada de limpeza, que - embora não o
saiba ainda - é também o último da minha vida como trabalhadora de
salário baixo em Key West, a Carlie está de mau humor. Deram-nos
dezanove quartos para limpar, a maior parte «saídas», não
«permanências», o que requer o serviço completo: fazer a cama de
lavado, aspirar, limpar a fundo a casa de banho. Quando um dos
quartos que estava na lista como sendo de permanência é afinal uma
saída, ela chama a Millie para se queixar, mas, obviamente, sem
resultado. «Então, arruma essa merda», diz-me ela, e eu faço as
camas enquanto ela limpa a casa de banho. Durante quatro horas,
sem qualquer pausa, tiro lençóis e faço camas, levando cerca de
quatro minutos e meio por cama de casal, que poderia reduzir para
três minutos, se houvesse motivo para tal. Tentamos evitar aspirar,
apanhando à mão a sujidade mais evidente,
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mas frequentemente não há nada a fazer se não tirar do carrinho o
aspirador monstruoso - pesa cerca de quinze quilos - e tentar arrastá-
lo pelo chão. Por vezes a Carlie passa-me a garrafa de «Bam» (um
acrónimo de algo que começa pelo promissor «butírico» - o resto da
etiqueta está apagado) e deixa-me limpar as casas de banho. Não há
ética de serviço que me desafie aqui a atingir novos cumes de
perfeição. Apenas me concentro na remoção dos pêlos púbicos das
banheiras, ou pelo menos dos pêlos escuros que consigo ver.
Agradava-me a perspectiva de limpar os quartos de permanência, uma
espécie de assalto que me daria a hipótese de examinar a existência
física secreta de estranhos. Mas o conteúdo dos quartos é sempre
banal e surpreendentemente arrumado - estojos de barbear com o
fecho corrido, sapatos alinhados contra a parede (não há armários),
folhetos a anunciarem expedições subaquáticas, talvez uma ou duas
garrafas de vinho vazias. É a televisão que nos vai animando, o Jerry,
a Sally, o Hawaii Five-0 e depois as telenovelas. Quando há algo
especialmente interessante, como, por exemplo, «Não aceita uma
resposta negativa» no programa do Jerry, sentamo-nos na beira de
uma cama e soltamos risadinhas por um momento, como se fôssemos
adolescentes numa festa e não adultas num emprego terminalmente
sem saída. As telenovelas são o melhor, e a Carlie sobe o som ao
máximo, para não perder nem pitada enquanto limpa as casas de
banho ou aspira o chão. No quarto quinhentos e três, a Mareia
confronta o Jeff acerca da Lauren. No quinhentos e cinco, a Lauren
goza a desgraçada da Mareia, a esposa traída. No quinhentos e onze,
a Helen oferece dez mil dólares à Amanda para deixar de andar com o
Eric, o que faz a Carlie sair da casa de banho para examinar o rosto
perturbado da Amanda. «Aceita, mulher! Eu nem olhava para trás...»,
aconselha ela.
Ao fim de algum tempo, os quartos que limpamos e os interiores bem
mais luxuosos das telenovelas começam a misturar-se. Entramos num
mundo melhor - um mundo de conforto onde todos os dias são dias de
folga à espera de serem preenchidos com intrigas sexuais. Contudo,
não passamos de mirones desta fantasia, forçadas a pagar a nossa
presença com
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dores nas costas e uma sede constante. Os espelhos (e há
demasiados espelhos nos quartos de hotel) reflectem o tipo de pessoa
que normalmente identificaríamos com um sem-abrigo a empurrar um
carrinho de supermercado pelas ruas - desgrenhada, com uma camisa
de algodão do hotel dois números acima do seu tamanho e suor a
escorrer-lhe pelo queixo como baba. Sinto um alívio enorme quando a
Carlie anuncia um intervalo de meia hora para o almoço, mas o meu
apetite desvanece-se quando vejo que o saco que ela trazia no nosso
carrinho contém não lixo de um dos quartos, mas sim folhados de
salsicha para o seu almoço.
Entre a televisão e o facto de, por ser o meu primeiro dia, não estar
em posição de sugerir novos tópicos de conversa, não fico a saber
muito sobre a Carlie, a não ser que tem dores, e não apenas de um
único tipo. Trabalha devagar, resmungando qualquer coisa sobre
dores nas articulações, o que provavelmente a vai condenar, visto que
as jovens imigrantes empregadas de limpeza - vindas da Polónia e de
El Salvador - gostam de acabar às duas da tarde, enquanto ela arrasta
o trabalho até às seis. Não faz sentido andar com pressas, comenta,
quando se é paga à hora. A gerência já enviou uma pessoa para fazer
o que parece ser um estudo da relação tempo-movimento, e fala-se de
passar a pagar ao quarto ( Nota 1) . A Carlie remói também as
pequenas demonstrações de falta de respeito de que é vítima, e não
só por parte da gerência. «Não querem saber de nós», diz, a propósito
dos clientes do hotel; na verdade, nem dão conta da nossa existência,
a menos que algo seja roubado dos quartos. «Então saltam-nos em
cima.» Estamos a almoçar lado a lado na sala de descanso quando
passa um homem branco envergando uma farda dos serviços de
manutenção e a Carlie diz, de forma amigável: «Eh lá, tu aí! Como te
chamas?»

( Nota 1 ) - Algumas semanas depois de sair deste emprego, ouvi na


rádio anúncios de oferta de empregos de limpeza neste hotel,
incrivelmente pagos a «até 9 dólares por hora». Quando investiguei a
questão, descobri que o hotel tinha de facto começado a pagar ao
quarto, e suspeito que a Carlie, se não tinha sido despedida, ganhava
ainda o equivalente a 6 dólares por hora, ou bem menos.
45
«Peter Pan», graceja ele, já de costas para nós.
«Não teve graça nenhuma», diz a Carlie, voltando-se para mim.
«Aquilo não é resposta. Para que é que ele quis ter graça?» Sugiro
que o homem deve ter um problema de atitude e ela acena, como se o
meu diagnóstico fosse certeiro. «Pois, tem mesmo atitude.»
«Talvez o dia lhe esteja a correr mal», acrescento, não porque sinta
qualquer obrigação de defender a raça branca, mas porque o rosto
dela está contorcido com a afronta.
Quando peço autorização para sair por volta das três e meia, uma
outra empregada da limpeza avisa-me que ninguém até agora
conseguiu acumular este emprego com o de empregada de mesa no
Jerry's. «Uma rapariga nova conseguiu uma vez, durante cinco dias,
mas tu já não és nenhuma jovem.» Com esta informação útil em
mente, apresso-me a voltar para a caravana número quarenta e seis,
engulo quatro Advils (é este o nome dos analgésicos que ando a tomar
agora), tomo um duche, baixando-me para caber no chuveiro, e tento
recobrar forças para o turno que se avizinha. E é tudo quanto àquilo a
que Marx chamou «reprodução da força de trabalho», que significa as
coisas que um trabalhador tem de fazer somente para estar pronto a
trabalhar de novo. O único obstáculo imprevisto a uma transição suave
entre um emprego e o outro é que as minhas calças castanhas do
Jerry's, que ontem à noite, quando lavei a camisa havaiana à mão,
pareciam razoavelmente limpas à luz de uma lâmpada de quarenta
watts, agora que as vejo à luz do dia verifico que estão afinal cheias
de manchas de molho de tomate e condimentos. Passo a maior parte
do intervalo de uma hora entre os dois empregos a tentar tirar as
manchas de comida das calças com uma esponja e a secá-las ao sol
em cima do carro.
A minha teoria é que conseguirei manter dois empregos se conseguir
ingerir cafeína suficiente e evitar que o sofrimento cada vez mais óbvio
do George me perturbe ( Nota 1 ) . Nos dias a

( Nota 1 ) - Em 1996, o número de pessoas com dois empregos, ou


mais, rondava 7,8 milhões, ou seja, 6,2% da população activa. A taxa
era semelhante para os homens e para as mulheres (6,1% contra
6,2%). Cerca de dois terços das pessoas com mais de um emprego
têm um emprego a tempo inteiro e outro a
tempo parcial. Apenas uma heróica minoria - 4% de homens e 2% de
mulheres - trabalha simultaneamente em dois empregos a tempo
inteiro (John \: Stinson, Jr., «New Data on Multiple Jobholding Available
from the CPS», Monthly Labor Review, Março de 1977).
46
seguir ao alegado roubo, não parecia aperceber-se do problema em
que estava metido, e as nossas animadas conversas tinham
prosseguido, mas nos dois últimos turnos andava letárgico e com a
barba por fazer, e hoje à noite parece o fantasma que todos sabemos
que ele é, com olheiras escuras. A certa altura, quando estou parada
uns breves instantes a encher pequenas taças de papel com natas
azedas para as batatas assadas, vem ter comigo e dá a impressão de
querer explorar os limites do vocabulário que partilhamos, mas
chamam-me do restaurante para ir servir a uma mesa. Resolvo dar-lhe
as minhas gorjetas nessa noite, e que vá para o inferno a experiência
de gestão financeira de um salário baixo! Às oito, eu e a Ellen
comemos qualquer coisa de pé no canto mais malcheiroso do balcão
da cozinha, mas só consigo engolir dois ou três palitos de mozzarella,
e o almoço tinha sido meia dúzia de McNuggets. Não me sinto
cansada, digo a mim própria, embora talvez já não exista um «eu»
para monitorizar o meu cansaço. O que eu veria se estivesse mais
alerta ao que me rodeia é que as forças da destruição estão já a
congregar-se contra mim. Está somente um cozinheiro de serviço, um
homem novo chamado Jesus (Hei-Suse, é como se pronuncia), que é
novo no emprego. E está a Joy, que aparece a meio do turno para
tomar conta da situação, de tacões altos e vestido branco, comprido e
justo, e furiosa como se a tivessem deixado pendurada à espera em
algum bar.
E depois rebenta a tempestade! Quatro das minhas mesas ficam
ocupadas ao mesmo tempo. Para mim, agora, quatro mesas não é
nada, mas só se não forem simultâneas. Quando levo as bebidas à
mesa vinte e sete, as mesas vinte e cinco, vinte e oito e vinte e quatro
fixam-na com inveja. Quando levo as bebidas à mesa vinte e cinco, os
clientes da mesa vinte e quatro lançam-me olhares de morte, porque
ainda nem sequer encomendaram as bebidas. Na mesa vinte e oito
estão quatro sujeitos com ar de yuppies, o que significa que tudo tem
de vir
47
separadamente, e as instruções que me dão sobre a salada de galinha
são uma lenta agonia. À mesa vinte e cinco está um casal negro de
meia-idade que se queixa, com alguma razão, de o chá gelado não
estar fresco e de a mesa estar pegajosa. Mas a mesa vinte e quatro é
o acontecimento meteorológico do século: dez turistas britânicos que
parecem apostados em absorver a experiência americana inteiramente
por via oral. Nesta mesa, toda a gente manda vir pelo menos duas
bebidas - chá gelado e batido de leite, cerveja e água (com uma rodela
de limão na água, por favor) - e uma enorme e promíscua orgia de
pequenos-almoços especiais, palitos de mozzarella, tiras de frango,
quesadilías, hambúrgueres com queijo e sem queijo, doses de
croquetes de batata com queijo, com cebola, com molho, batatas fritas
apimentadas, batatas fritas normais, sorvetes de banana. Pobre
Jesus! Pobre de mim! Porque, quando chego à mesa com a primeira
bandeja de comida - após três viagens só para lhes trazer mais
bebidas -, a princesa Diana recusa-se a comer as tiras de frango com
o prato especial de panquecas e salsichas, visto que, como revela
neste momento, tinha pedido as tiras de frango como entrada. Talvez
os outros estivessem dispostos a aceitar as suas doses, mas a Di, que
já vai na terceira cerveja, insiste que volte tudo para trás enquanto
eles atacam as entradas. Entretanto, os yuppies acenam-me a pedir
mais descafeinado e o casal negro parece pronto a chamar a NAACP
( Nota 1 ).
A maior parte do que acontece em seguida perde-se no nevoeiro da
guerra. O Jesus começa a ir-se abaixo. A pequena impressora à sua
frente começa a cuspir encomendas a uma tal velocidade que ele mal
consegue tirar o papel impresso da máquina ao mesmo ritmo, quanto
mais confeccionar as refeições!... Uma irrequietude ameaçadora
espalha-se pelas mesas, que estão todas ocupadas. Até a invencível
Ellen está macilenta do stresse. Levo à mesa vinte e quatro os pratos
principais aquecidos de novo, que imediatamente rejeitam por estarem
ou frios ou fossilizados pelo microondas. Quando volto à cozinha

( Nota 1 ) - National Association for the Advancement of Colored


People (Associação Nacional para a Promoção das Pessoas de Cor).
(N. da T.)
48
com as bandejas deles (três bandejas em três viagens) a Joy
confronta-me com os braços na cinta: «Mas o que é isto?» Refere-se à
comida - aos pratos rejeitados de panquecas, croquetes de batata com
vários sabores, torradas, hambúrgueres, salsichas, ovos. «Ah!, ovos
mexidos com queijo», respondo. «E isso é...» «Não!», berra-me ela.
«E um prato tradicional, um super ou um abre-olhos?» Finjo examinar
a conta à procura de uma pista, mas a entropia fez das suas, não só
nos pratos mas também na minha cabeça, e tenho de reconhecer que
é impossível reconstituir o pedido original. «Não sabes distinguir um
abre-olhos de um tradicional?», pergunta ela, indignada. Eu só sei é
que as minhas pernas perderam o interesse pelo empreendimento em
curso e anunciaram a sua intenção de desistir. Sou salva por um
yuppie (felizmente não um dos meus) que escolhe este momento para
entrar pela cozinha a bradar que o seu pedido está vinte e cinco
minutos atrasado. A Joy grita-lhe que saia imediatamente da sua
cozinha, por favor, e depois vira-se para o Jesus, furiosa, atirando uma
bandeja vazia pelo ar para vincar a sua arrelia.
Eu vou-me embora. Não me despeço, pura e simplesmente vou-me
embora. Não acabo o trabalho à parte nem vou à caixa registadora
buscar as gorjetas dos clientes que pagaram com cartão de crédito, se
é que as tenho, nem, evidentemente, peço autorização à Joy para sair.
E o que é surpreendente é que uma pessoa pode ir-se embora sem
autorização: a porta abre-se, o ar da noite, pesado e tropical, sopra à
minha passagem e o meu carro está ainda estacionado onde o deixei.
Não há qualquer ajuste de contas nesta saída, nem uma onda de
alívio do tipo «que se foda!», somente uma sensação avassaladora de
fracasso que se abate sobre mim e parece abarcar todo o parque de
estacionamento. Metera-me nesta aventura animada por um espírito
científico, para testar uma proposição matemática, mas algures ao
longo do caminho, na visão em túnel imposta por turnos longos e
concentração constante, ela tornou-se um teste de mim própria, que
claramente não passei. Não só tinha sido incapaz de acumular os dois
empregos como me esquecera de dar ao George as minhas gorjetas,
o que, por razões que pessoas trabalhadoras e generosas como a Gail
49
e a Ellen talvez compreendam melhor, me magoa. Não choro, mas
encontro-me num estado que me permite constatar, pela primeira vez
em muitos anos, que os canais lacrimais ainda cá estão, prontos a
entrar ao serviço.
Quando me fui embora do parque, dei a chave da caravana número
quarenta e seis à Gail e transferi o depósito para o seu nome. Ela
contou-me que a Joan ainda estava a viver na carrinha e que o Stu
tinha sido despedido do Hearthside. Segundo os boatos mais
recentes, a droga que ele encomendara no restaurante era crack e
tinha sido apanhado a meter a mão na caixa registadora para a pagar.
Nunca cheguei a saber o que aconteceu ao George.
50

LIMPAR NO MAINE

Escolhi o Maine pela sua brancura. Alguns meses antes, na


Primavera, estivera na zona de Portland a fazer uma palestra numa
universidade local e chamara-me a atenção o que parecia ser um caso
extremo de albinismo demográfico. Não eram brancos só os
professores e os alunos, o que, evidentemente, não é incomum;
também o eram as empregadas da limpeza, os mendigos e os
taxistas, que, para além de serem brancos, também falavam inglês, ou
pelo menos uma variante regional de Nova Inglaterra, sem os erres.
Talvez isto não fizesse do Maine um lugar ideal para uma pessoa se
instalar a longo prazo, mas tornava-o o local perfeito para uma
caucasiana de olhos azuis e falante de inglês se infiltrar nas fileiras da
mão-de-obra barata sem lhe fazerem quaisquer perguntas. Um
atractivo adicional, como tinha notado na minha visita na Primavera,
era que a comunidade de negócios da zona de Portland estava
extremamente necessitada de mão-de-obra. Nos telejornais regionais,
sugeria-se aos telespectadores que concorressem a um lugar numa
empresa de vendas por telefone que oferecia um turno especial «para
mães»; a estação de rock clássico promovia «feiras de emprego»,
onde quem andava à procura de trabalho podia circular por entre as
mesas dos empregadores, como quem anda às compras num centro
comercial, a fazer-se de caro. Antes de decidir regressar ao Maine
como mão-de-obra indiferenciada, gravei para o disco os anúncios de
oferta de emprego do site do Portland Press Herald, e o meu
computador até resfolegou com o esforço. Pelo menos
51
três dos cerca de mil anúncios que li prometiam ambientes de trabalho
«divertidos e descontraídos», e pus-me a imaginar equipas de
empregados com camisas de flanela em ameno convívio nos
intervalos, a beberem cidra e a comerem donuts. «Quando se dá aos
brancos todo um estado só para eles», pensei eu, «talvez se tratem
mesmo bem uns aos outros.»
Ao fim da tarde do dia 24 de Agosto, ainda em pleno Verão mas já
com os saldos do regresso às aulas a tentarem atrair a atenção em
todos os centros comerciais, chego à estação de autocarros Trailways
em Portland e, como é demasiado tarde para ir buscar a carripana que
aluguei, apanho um táxi para o Motel 6, que será a minha base até
encontrar os pré-requisitos de uma cidadã normal - emprego e casa.
Não nego que se trata de uma aventura estranha para quem não
esteja envolvido num esquema de protecção de testemunhas em
perigo de vida: deixar o lar e a companhia e mudar para um local a
três mil quilómetros de distância onde não conheço praticamente
ninguém e sobre o qual ignoro tudo, desde os dados geográficos e
meteorológicos mais elementares até ao nome dos restaurantes onde
se come bem. De qualquer forma, digo a mim própria que esta súbita
mudança para um estado desconhecido não difere em nada dos tipos
de deslocação rotineira que retalham a vida dos que são
verdadeiramente pobres. Perde-se o emprego, o carro, a ama dos
filhos. Ou talvez se perca a casa, porque se estava a viver com a mãe
ou uma irmã, e vai-se para a rua porque o namorado dela voltou ou
precisa da cama ou do sofá para outro parente tresmalhado. E fica-se
assim. E assim fico eu - mais desorientada e sozinha do que jamais
estivera na minha vida adulta.
Um dos passos que a organização Alcoólicos Anónimos sugere aos
alcoólicos em recuperação é que façam «um inventário moral profundo
e desassombrado» de si próprios, e agora, sozinha no meu quarto de
motel, dou comigo bastante obcecada com as minhas coisas, quanto
tenho e quanto tempo me durarão. Tenho o meu computador portátil e
uma mala com T-shirts, jeans e calças caqui, três camisas de manga
comprida, um par de calções, vitaminas e um sortido de produtos de
higiene. Tenho um saco cheio de livros, que, juntamente
52
com as botas de caminhada que trouxe para os fins-de-semana, se
revelarão os itens mais inúteis do meu inventário. Tenho mil dólares e
mais algumas notas amachucadas nos bolsos. E agora, pela
alarmante quantia de cinquenta e nove dólares por noite, tenho uma
cama, televisor, telefone e uma vista quase desimpedida da estrada
número vinte e cinco. Há dois tipos de motéis baratos na América: o
tipo do Hampton Inn, que é claramente calibrado, mais do que
decorado, para produzir um ambiente de esterilidade ameaçadora - e
o outro tipo, no qual se permitiu que a história se acumulasse sob a
forma de manchas nas alcatifas, cheiro persistente a tabaco e
migalhas sepultadas debaixo da cama. Este Motel 6 pertence à
segunda categoria, o que o torna mais acolhedor, poderia dizer-se, ou
talvez apenas mais assombrado. Saindo pela entrada principal e
atravessando o parque de estacionamento da garagem VIP Auto
Parts, chego à estação de serviço Texaco, que tem um minimercado
Clipper Mart. Atravessando a estrada junto à estação de serviço - uma
façanha que, realizada a pé, requer rapidez e nervos de aço -, tenho
acesso a fontes de consumo mais substanciais, entre as quais um
Pizza Hut e um Shop-n-Save. Como é óbvio, estou numa situação
considera-velmente melhor do que a descrita por J. G. Ballard no seu
arrepiante romance Concrete Island («Ilha de Betão»), no qual o
protagonista choca contra um tabuleiro separador na estrada c, qual
náufrago isolado pelo trânsito, é condenado a sobreviver com o que
tem no carro e com os restos de comida que consegue encontrar no
lixo deixado pelos condutores. Trago piza e salada para o quarto,
consolando-me com a ideia de que qualquer coisa sabe melhor
quando se adquire com risco de vida, como se fosse carne fresca de
veado acabado de caçar. Para além de fugitivos e refugiados, quantas
pessoas fazem algo semelhante - abandonar todas as rotinas e
relações passadas, dizer adeus às montanhas de correio e
mensagens telefónicas por responder e começar de novo, com pouco
mais do que a carta de condução e o cartão da Segurança Social a
estabelecerem um laço de continuidade com o passado? Digo a mim
própria que esta experiência deveria ser excitante, como
53
um mergulho no frígido Atlântico da Nova Inglaterra seguido por umas
braçadas lentas e relaxantes no mar calmo para lá da rebentação.
Porém, naqueles primeiros dias em Portland, as ansiedades da minha
classe social apoderam-se de mim. Nós, os profissionais liberais,
nunca nos lançamos para o futuro à sorte, vulneráveis a qualquer
surpresa que possa assaltar-nos de imprevisto. Temos sempre um
plano, ou pelo menos uma lista de coisas a fazer; gostamos de saber
que tudo foi previsto, que as nossas vidas são, num certo sentido, pré-
vividas. Então, o que estou eu aqui a fazer, e por que ordem deveria
fazê-lo? Preciso de um emprego e de um apartamento, mas para
arranjar emprego preciso de ter morada fixa e telefone, e para arranjar
casa ajuda ter provas de um emprego estável. O único plano que me
ocorre é fazer tudo de uma vez e esperar que os adolescentes que
atendem o telefone na recepção do Motel 6 sejam bons transmissores
de mensagens.
O jornal que recolho no Clipper Mart traz a notícia inesperada de que
não há apartamentos para alugar em Portland. Na verdade, há
bastantes condomínios fechados e «apartamentos de luxo» por mil
dólares por mês, ou mais, mas as únicas opções de renda baixa
parecem agrupar-se numa zona a sul, a cerca de trinta quilómetros de
automóvel, na cidade com o nome simpático de Old Orchard Beach
(Praia do Pomar Velho). Contudo, mesmo aí as rendas situam-se aos
níveis de Key West - bem mais do que quinhentos dólares por um
estúdio. Após alguns telefonemas, confirma-se a minha suspeita de
que o alojamento de Inverno dos pobres consiste nos quartos de motel
que as pessoas com mais posses ocupam durante o Verão ( Nota 1 ).
Conseguem-se as tarifas mais baratas após o Labor Day ( Nota 2 ) e o
contrato de arrendamento termina em Junho. E se partilhasse um
apartamento? O Glenwood Apartments (não é

( Nota 1 ) - Também em Cape Cod a subida das rendas está a


empurrar a classe trabalhadora para motéis, onde no Inverno um
quarto pode chegar a custar 880
dólares por mês, atingindo os 1440 na estação turística. O Cape Cod
Times noticia a existência de famílias de quatro pessoas a viverem
num quarto, cozinhando no microondas e comendo sentadas nas
camas (K. C. Myers, «Of Last Resort», Cape Cod Times, 25 de Junho
de 2000).
( Nota 2 ) - Dia do Trabalho, celebrado na primeira segunda-feira de
Setembro. (N. da T.)
54
o seu nome real), em Old Orchard Beach, anuncia quartos a sessenta
e cinco dólares por semana, partilhando a casa de banho e a cozinha
com uma mulher que me é descrita ao telefone como «excêntrica, mas
limpa» - e penso que bem podia ser uma descrição de mim própria, ou
pelo menos da minha nova melhor amiga. Orientando-me com o mapa
que comprei no Clipper Mart, chego por volta das dez à cidade
costeira, evidentemente em declínio e sem pomares, e o Earl conduz-
me numa visita ao Glenwood Apartments. Volta a dizer que a minha
potencial companheira de casa é «excêntrica, mas limpa»,
acrescentando que estão «a dar-lhe mais uma hipótese». Pergunto se
ela trabalha, e o Earl diz-me que é empregada de limpeza. Mas não
chego a conhecê-la, porque este sítio é perturbante ao ponto de
provavelmente ser ilegal. Descemos à cave desta espécie de motel
degradado e pensão ao mês, onde o Earl aponta para uma porta
fechada - a cozinha, diz ele -, mas não podemos entrar agora, porque
está lá um sujeito a dormir. Solta uma risada, como se dormir na
cozinha fosse mais uma daquelas excentricidades que um senhorio
tem de aturar. Então, como é que se faz o comer, pergunto-lhe. Bem,
ele não está lá sempre. O quarto, em si, ao fundo do corredor perto da
«cozinha», ocupa metade do espaço do meu pouso no Motel 6 e tem
duas camas de solteiro por fazer, uma cómoda com duas gavetas,
duas lâmpadas no tecto e nada mais. Não tem janela. Quer dizer, há
uma espécie de janela perto do tecto com vista para um torrão de
terra, o tipo de paisagem que veria um sepultado se olhasse para cima
na sua cova. Regresso a pé para a rua principal da cidade e instalo o
meu «escritório» na cabina telefónica perto do cais, e consigo marcar
mais algumas visitas a outros apartamentos, pondo de lado as
partilhas de casa. No SeaBreeze, um sujeito corpulento e desdenhoso
mostra-me as instalações e diz-me que aqui não há problemas,
porque é polícia aposentado e o genro também é polícia, facto de que
toda a gente está a par, mas não sei se devo sentir-me sossegada ou
avisada. Outra potencial vantagem: só aceita um número limitado de
crianças no SeaBreeze, e as que lá vivem não causam problemas,
garante. Mas
55
a renda é de cento e cinquenta dólares por semana, pelo que avanço
para o Biarritz, onde uma rapariga bem-disposta me mostra um
estúdio por cento e dez dólares por semana - não tem televisor, roupa
de cama nem louça. O que me desagrada é o facto de ser no rés-do-
chão, numa rua comercial bastante movimentada, o que significa que
tem de se optar entre privacidade e luz natural. Bem, não é este o
único pormenor que não me agrada, mas basta. Preparo-me para
regressar a Port-land, vencida, quando noto que o Blue Haven Motel,
na estrada número um, tem apartamentos para alugar, e o sítio parece
tão engraçado, de um modo alpino, com as suas filas de casinhas
brancas contra um fundo de pinheiros azuis-escuros, que paro. Por
cento e vinte dólares por semana posso alugar um estúdio com
cozinha incorporada, roupa de cama incluída e um televisor que tem
TV Cabo, pelo menos até a companhia se aperceber de que o
inquilino anterior deixou de pagar a conta. Ainda por cima, o depósito é
de apenas cem dólares, que entrego de imediato.
Se tivesse levado mais alguns dias ou semanas a procurar casa,
talvez conseguisse melhor, mas tenho o contador a funcionar à razão
de cinquenta e nove dólares por dia no Motel 6, que, com o passar dos
dias, se parece cada vez mais com algo inventado por Ballard. Na
tarde do terceiro dia de estada, quando regresso ao quarto descubro
que já não consigo abrir a porta com a minha chave. Afinal, é um
estratagema da gerência para me recordar que lhes devo dinheiro.
Mesmo assim, passo um mau bocado, o tempo suficiente para
vislumbrar um futuro sem escova de dentes nem muda de roupa.
E agora, arranjar emprego. Pela minha experiência em Key West, sei
que tenho de concorrer ao maior número de vagas possível, visto que
um anúncio de oferta de emprego pode não querer dizer que existe
uma vaga neste momento. Os empregos para servir à mesa não
abundam, agora que a estação turística está a chegar ao fim, e, de
qualquer forma, eu procuro novos desafios. O trabalho em escritórios
está fora de questão, devido a limitações de vestuário. Não tenho na
mala - nem mesmo no meu guarda-fatos em casa - indumentárias
próprias para trabalhar num escritório em número que
56
chegue para uma semana. Por conseguinte, respondo a anúncios de
serviço de limpeza (de escritórios e doméstica), trabalho em
armazéns, casas de repouso e numa fábrica, e também a um anúncio
que pede uma «ajudante geral», o que soa simpático e altruísta. É
humilhante, esta coisa de concorrer a empregos de salário baixo,
porque implica uma oferta - de energia, sorrisos, uma vida de
experiência real ou falsificada - a uma série de pessoas para quem o
produto em questão não é de especial interesse. Numa fábrica de
tortilhas, onde o trabalho consistiria em colocar bolas de massa num
tapete rolante, a «entrevista» é conduzida por uma secretária
entediada, sem ao menos um «olá, como está?». Vou ao Goodwill,
sobre o qual tenho alguma curiosidade, já que, em resultado de uma
investigação anterior, sei que é uma organização que tenta posicionar-
se a nível nacional como o empregador ideal para os pobres no
período pós-Segurança Social, assim como para portadores de
deficiências. Preencho o impresso de candidatura e informam-me que
o pagamento é de sete dólares por hora e que serei contactada dentro
de duas semanas. Durante todo este tempo, num armazém onde
cerca de trinta pessoas de ambos os sexos apartam roupas em
cestos, ninguém me olha nos olhos. Bem, na verdade há uma pessoa
que olha para mim. Quando estou à procura da saída, reparo num
sujeito magricela e deformado que, equilibrado num só pé e com o
outro encostado à dobra do joelho, me fixa com um olhar de ameaça e
faz gestos de nadador por cima da cabeça, ou para manter o equilíbrio
ou para me enxotar.
Nem todos os sítios são assim descontraídos. Num Wal-Mart dos
subúrbios, que anuncia uma «feira de empregos», sento-me a uma
mesa a que estão atados alguns balões (é este o traço que lhe confere
o carácter de «feira») à espera da Julie. Quando aparece, dez minutos
depois, vem com um ar ansioso porque, como me explica, trabalha no
supermercado e nunca entrevistou ninguém. Felizmente para ela, a
entrevista consiste quase exclusivamente numa «sondagem de
opinião» de quatro páginas sem «respostas certas ou erradas»,
assegura-me, apenas a minha opinião pessoal em dez graus, de
«concordo totalmente» a «discordo totalmente». Tal como no teste
57
do Winn-Dixie que fiz em Key West, há as perguntas habituais sobre
se um colega surpreendido a roubar deveria ser perdoado ou
denunciado, se a culpa é da gerência quando as coisas correm mal e
se é aceitável chegar tarde quando se tem uma «boa desculpa». A
única coisa que distingue este inquérito do outro é a sua obsessão
com a marijuana, dando a impressão de que o seu autor é um drogado
a tentar desespera-damente ajustar-se ao estilo de vida empresarial.
Entre as afirmações sobre as quais me convidam a dar a minha
opinião, encontram-se: «Algumas pessoas trabalham melhor quando
estão um bocadinho "flipadas", «Toda a gente experimenta marijuana»
e, curiosamente, «A marijuana é o mesmo que a bebida». Hum...
Apetece-me perguntar: que tipo de bebida? «O mesmo», como?
Química ou moralmente? Ou será que deveria dar uma resposta
atrevida, como, por exemplo: «Não sei, porque não bebo.» Pagam
seis dólares e meio por hora, diz-me a Julie, mas pode rapidamente
atingir os sete. Ela acha que eu seria óptima na secção de pronto-a-
vestir de senhora e eu concordo.
O que estes testes dizem aos empregadores sobre os potenciais
empregados é difícil de imaginar, visto que as respostas «certas»
deveriam ser óbvias para todos quantos já estiveram em contacto com
o princípio da hierarquia e da subordinação. Trabalho bem com os
outros? Sem dúvida, mas não tão bem que hesitasse em denunciá-los
à mínima infracção que cometessem. Sou capaz de tomar decisões
autónomas? Claro que sim, mas sei que não devo deixar que esta
capacidade interfira com uma obediência cega às ordens. Na The
Maids (As Criadas), uma empresa de serviços de limpeza, submetem-
me a algo chamado «teste de personalidade Accutrac», no qual se
avisa logo de início que «o Accutrac recorre a múltiplas medições que
detectam quaisquer tentativas de distorcer ou aplicar "truques
psicológicos" ao questionário». Naturalmente, «nunca» tenho
dificuldade em «pôr fim a estados de autocompaixão», não imagino
que as outras pessoas andam a falar de mim nas minhas costas nem
acredito que «a gerência e os empregados estarão sempre em
conflito, porque
têm objectivos totalmente diferentes». Chego à conclusão de que a
função real
destes testes
58
é transmitir uma informação ao potencial empregado e não ao
empregador, sempre a mesma: não nos ocultarás quaisquer segredos.
Não queremos apenas os teus músculos e aquela porção do cérebro
que está directamente ligada a eles, queremos também o teu ser mais
íntimo.
A principal lição que tiro deste processo de procura de trabalho é que,
apesar de todos os anúncios e feiras de emprego, Portland é mais
uma cidade onde se paga entre seis e sete dólares por hora. Este
facto deveria ser tão surpreendente para os economistas como uma
súbita vaga de radiações exóticas para os astrónomos. Se a oferta (de
mão-de-obra) é escassa relativamente à procura, o preço deveria
aumentar, não é? Essa é a «lei». Numa das empresas de limpeza a
que concorro - Mer-ry Maids (Criadas Alegres) - a minha potencial
empregadora faz-me perder uma hora e um quarto, passando a maior
parte do tempo a queixar-se sobre a dificuldade de arranjar alguém de
confiança. É bastante fácil pensar numa solução, porque ela oferece
«entre duzentos e duzentos e cinquenta dólares» por semana para
uma média de quarenta horas de trabalho. «Não tente traduzir o
salário em dólares por hora», avisa-me, vendo que franzo o sobrolho a
fazer aquela conta simples. «Não o calculamos dessa forma.» Mas é
assim que eu o calculo, e cinco ou seis dólares à hora por aquilo que
esta senhora admite ser trabalho pesado com alto risco de lesões por
esforços repetitivos parece uma forma infalível de excluir quem
procura emprego e tem alguns rudimentos de aritmética. Porém,
começo a compreender que, tal como em Key West, um emprego não
será suficiente. Na nova versão da lei da oferta e da procura, os
empregos são tão mal pagos que um trabalhador vê-se obrigado a
arranjar quantos possa.
Após dois dias a espalhar pedidos de emprego por Portland e
arredores, obrigo-me a ficar sentada no meu quarto no Motel 6, onde
estou encalhada até o Blue Haven me deixar entrar para o
apartamento, no domingo, à espera que o telefone toque. Isto requer
mais esforço do que poderia imaginar-se, porque o quarto é muito
pequeno para se andar de um lado para o outro e demasiado
deprimente para me permitir sonhar acordada, se estivesse em
condições psicológicas para tal. Feliz-
59
mente, o telefone toca duas vezes antes do meio-dia e - mais devido à
claustrofobia do que a sérios cálculos económicos - aceito os dois
primeiros empregos que me são oferecidos. Uma casa de repouso
contrata-me para os fins-de-semana por sete dólares à hora, a
começar no dia seguinte; The Maids tem o prazer de me comunicar
que «passei» no teste Accutrac e posso começar na segunda-feira, às
sete e meia da manhã. É o serviço de empregadas domésticas mais
simpático e bem pago que encontrei até agora - seis dólares e
sessenta e cinco cên-timos à hora, embora, como castigo, baixe para
seis dólares por duas semanas se faltar um dia ( Nota 1 ) . Não
compreendo exactamente o que fazem os serviços de empregadas
domésticas e em que diferem de agências, mas a Tammy, a
responsável do escritório da The Maids, garante-me que o trabalho
será simples e fácil, visto que «limpar está-nos no sangue». Não estou
assim tão confiante que seja fácil, depois dos avisos que me fizeram
no Merry Maids, mas calculo que as minhas costas talvez aguentem
por uma semana. Em teoria, acabamos todos os dias por volta das
três e meia, o que me deixa tempo suficiente para procurar emprego à
tarde durante a semana. Tenho em mira uma fábrica de batatas fritas a
dez minutos de carro do Blue Haven, por exemplo, ou poderia procurar
o L. L. Bean ( Nota 2 ) e despachar compras por catálogo sentada
naquilo que espero ser uma cadeira ergonómica. Isto começa a
assemelhar-se a um plano: do serviço de empregadas domésticas
para algo melhor, com a casa de repouso a ajudar-me a fazer a
transição. Para celebrar, janto no Appleby's - um hambúrguer e um
copo de vinho tinto por onze dólares e noventa e cinco, mais gorjeta,
consumidos ao balcão enquanto involuntariamente vejo o programa do
canal ESPN.

( Nota 1 ) - Segundo o Bureau of Labor Statistics (Instituto de


Estatísticas do Trabalho), «os trabalhadores e empregados
domésticos em casas particulares» tinham um rendimento médio de
223 dólares por semana em 1998, o que se situa 23 dólares abaixo do
limiar de pobreza para um agregado familiar de três pessoas. Por uma
semana de 40 horas de trabalho, o nosso salário na The Maids atingia
os 266 dólares, ou seja, 43 dólares acima do limiar de pobreza.
( Nota 2) - Empresa de venda de roupa desportiva por catálogo. (TV.
da T.)
60
No meu quarto dia completo em Portland, levanto-me às cinco menos
um quarto para chegar a horas ao Woodcrest Re-sidential Facility (não
é o seu nome real) e começar o meu turno às sete. Sou auxiliar de
nutrição, o que soa importante e técnico, e ao princípio o trabalho
parece agradável. Uso as minhas próprias roupas, o que significa T-
shirt e calças de sarja ou jeans, com uma rede de cabelo obrigatória e
um avental facultativo. Nem preciso de trazer almoço, porque temos
direito a comer o que sobrar depois de os «residentes», como
respeitosamente lhes chamamos, acabarem de almoçar. A Linda, a
minha supervisora - uma mulher com aspecto simpático, de cerca de
trinta anos -, dá-se até ao trabalho de me informar sobre os meus
direitos: não tenho de aturar qualquer espécie de assédio sexual,
especialmente vindo do Robert, embora ele seja filho da dona do lar.
Se tiver algum problema, devo ir ter com a Linda. Fico com a
impressão de que ela gostaria de receber uma queixa contra o Robert
de vez em quando. Por outro lado, existe uma disciplina severa
relativamente a asneiras que possam pôr vidas em perigo, como
quando alguns dos rapazes adolescentes que trabalham ali aos fins-
de-semana puseram manteiga num interruptor e esta escorreu para o
chão, criando uma zona escorregadia perigosa - não que ela espere
esse tipo de coisa de uma pessoa como eu. Hoje trabalharemos na
enfermaria fechada dos doentes de Alzheimer: levaremos os
pequenos-almoços da cozinha principal, no rés-do-chão, para a
cozinha mais pequena, na enfermaria, serviremos os residentes, no
fim levantaremos as mesas e em seguida faremos os preparativos
para o almoço.
Para uma ex-empregada de mesa como eu, isto é canja. Os
residentes começam a aparecer quarenta minutos antes de o
pequeno-almoço estar pronto, apoiados a bengalas, em cadeiras de
rodas ou caminhando com passos rígidos mas sem ajuda, e discutem
por breves instantes quem se senta onde. Ando de um lado para o
outro a servir café - só descafeinado, avisa Linda, caso contrário as
coisas podem descontrolar-se - e tomo nota dos «pedidos», tentando
imaginar que estou num restaurante, embora não deixe de pensar que
num restaurante normal poucos clientes cheiram a fraldas sujas. Se
alguém rejeita o pão frito, eu e a Linda fazemos torradas ou
61
uma sanduíche de manteiga de amendoim, porque o objectivo,
especialmente ao pequeno-almoço, é fazê-los comer depressa, antes
que tombem em cima dos pratos devido a uma queda de açúcar no
sangue ou nos escapem para o corredor. Ando numa correria, mas
não tenho de me preocupar com esquecimentos - os nossos
«clientes» também não têm grande memória. Esforço-me por fixar os
seus nomes: a Marguerite, que chega à sala de jantar com um ursinho
de pelúcia e sem roupa da cintura para baixo, com excepção da fralda;
a Grace, que me segue com um olhar acusador e exige que lhe encha
a chávena, embora ainda nem lhe tenha tocado; a Letty, uma diabética
que tem de ser vigiada porque rouba donuts dos pratos dos outros. A
Ruthie, que amolece o pão frito deitando-lhe por cima sumo de laranja
- que espalha também sobre boa parte da mesa -, é uma das
«garotas» mais atinadas. Pergunta-me o nome e, quando lho digo,
grita: «Barbara Bush!» Apesar dos meus vivos protestos, a piada é
repetida duas vezes durante o pequeno-almoço.
A parte pior é a limpeza. Eu não sabia que uma auxiliar de nutrição é,
em grande medida, uma lavadora de pratos; e há cerca de quarenta
pessoas - contando as enfermeiras e as auxiliares de enfermagem,
que aproveitam e tomam o pequeno-almoço com os residentes - a
sujar louça. Raspar os restos de comida dos pratos para o caixote do
lixo, passá-los por água, deixá-los de molho, pô-los num tabuleiro e
metê-lo na máquina de lavar louça, o que implica baixar-me quase até
ao nível do chão com o tabuleiro carregado, que, pelos meus cálculos,
pesa entre sete e dez quilos. Após terminar o ciclo de lavagem da
máquina, esperar que os pratos arrefeçam o suficiente para se poder
pegar neles, tirá-los da máquina e voltar a enchê-la - continuando
entretanto a levantar as mesas e a servir pequenos-almoços aos
retardatários. O truque consiste em ter sempre um tabuleiro pronto a
meter na máquina logo que o ciclo de lavagem chega ao fim. Eu lavo
pratos desde os seis anos, altura em que a minha mãe me incumbiu
dessa tarefa para poder fumar um cigarro descansada depois das
refeições, e não desgosto de trabalhos que envolvam meter as mãos
na água, mas tenho dificuldade em me ajustar ao ritmo da
62
máquina de lavar, por um lado, e ao fluxo de pratos sujos, por outro.
Com a lavagem da louça sob controlo, a Linda manda-me aspirar a
alcatifa da sala de jantar, o que na realidade não limpa as partes
pegajosas, obrigando-me muitas vezes a pôr-me de gatas debaixo das
mesas para raspar com as unhas pedaços de bolo colado ao chão.
No intervalo do meio da manhã, vou ter com o Pete, um dos dois
cozinheiros de serviço, para fumar um cigarro. Tinha trocado umas
palavras com ele quando cheguei, às sete da manhã, antes de a Linda
aparecer, e ele fizera-me três perguntas: de onde era? Onde estava a
viver? Era casada? Dou-lhe a resposta mais curta à última pergunta,
deixando de lado o namorado, para já, em parte porque não faz
sentido falar do «homem com quem vivo» quando não estou a viver
com ele neste momento e em parte porque, confesso, tenho um
intenso desejo de recrutar o Pete como meu aliado, sob quaisquer
condições que venham a apresentar-se. Na minha opinião, uma
auxiliar de nutrição está tão dependente do cozinheiro como uma
empregada de mesa. O cozinheiro pode tornar a vida da pessoa que
serve relativamente fácil, ou, se o entender, dar-lhe cabo dela. Por
conseguinte, vou com ele até ao parque de estacionamento e sento-
me no seu carro a fumar os seus Marlbo-ro, o que me dá uma
sensação esquisita de ter ido sair com ele, com um único pormenor
improvável: as portas do carro estão escancaradas para deixar sair o
fumo. Que tal este emprego? Óptimo, respondo, e, visto que o meu pai
passou os últimos dias de vida num lar para doentes de Alzheimer,
sinto-me quase em casa - o que, assustadoramente, é verdade. Bem,
eu que tenha cuidado com a Molly, avisa-me. Trabalha-se bem com
ela, mas é das que nos apunhalam pelas costas. A Linda é fixe, mas
saltou em cima do Pete na semana passada por ele ter deixado que
um prato de sobremesa fosse ter ao tabuleiro de um diabético (para os
residentes que não podem deslocar-se à sala de jantar, as refeições
vão em tabuleiros da cozinha), e o que é que ela julga que isto é, uma
porra de um hospital? Olha, ninguém sai daqui vivo! Cuidado também
com o Leon, que tem o hábito de seguir as colegas até aos quartos de
arrumos. Na verdade, cuidado com toda a gente,
63
porque este sítio vive de mexericos, e o que se diz agora passa a ser
do domínio público numa questão de horas. E o que é que eu faço
para me distrair? «Oh, leio...», respondo. Não bebo, nem vou a umas
festarolas? Aceno que não, acrescento, pu-dicamente, sentindo-me
como uma menina bem-comportada ou, pelo menos, um tópico de
conversa sem interesse para os mexeriqueiros, entre os quais este
que se encontra aqui ao meu lado.
Gostaria de deixar bem claro que não está em questão um possível
envolvimento sentimental. O Pete é, com certeza, dez anos mais novo
do que eu (embora não pareça aperceber-se do facto e eu nada faça
para lho indicar) e, apesar de ser extraordinariamente parecido com
um actor cómico bastante popular, não se pode dizer que o seu
sentido de humor seja evidente. Afazer fé na história que me conta, é
tão impostor como eu (embora, claro, não o saiba). Recebe sete
dólares à hora, diz-me ele, embora pudesse ganhar muito mais em
restaurantes, mas isso não o incomoda, porque fez uma fortuna ao
jogo aqui há uns anos e investiu bem o dinheiro. Não posso deixar de
pensar que, se é assim tão rico, não faz sentido andar nesta carripana
ferrugenta e ter em tão mau estado os poucos dentes da frente que
não lhe faltam. E o que é que um cozinheiro de restaurante está a
fazer neste ambiente isento de sabores, onde entre um terço e metade
dos alimentos são reduzidos a puré quando são preparados?
Obviamente, a pergunta que faço é diferente: então porque é que
trabalha, se tem tanto dinheiro? Oh, tentou ficar em casa, mas não se
consegue estar sem fazer nada, sabe como é, uma pessoa começa a
sentir-se como um marginal... Isto comove-me, mais ainda do que a
presumível mentira sobre os seus rendimentos: que este sítio, que
considera morbidamente dis-funcional, seja para ele uma comunidade
humana real e atraente. Que lhe dizia eu a irmos dar um passeio na
praia um destes dias, depois do trabalho? Está bem, pode ser - e
regresso à casa de repouso a toda a pressa, para me preparar
psicologicamente para o almoço.
Para minha surpresa, muitos dos residentes menos senis parecem
reconhecer-me ao almoço. Uma delas agarra-me no braço quando lhe
trago o bife e segreda: «Você é uma boa pessoa,
64
sabia?», e repete o elogio a cada coisa que lhe sirvo. Um outro
residente diz-me que estou «lindíssima» e uma das enfermeiras até se
lembra do meu nome. Isto pode resultar, começo a pensar: tornar-me-
ei uma espécie de farol luminoso na escuridão crescente da demência,
compensando assim, num qualquer sistema cósmico de justiça, os
cuidados impessoais que o meu pai recebeu numa instituição bem
menos carinhosa. Despacho com um sorriso os pedidos especiais de
mais sorvete e de tostas de queijo; rio com a piada da Barbara Bush,
uma e outra vez. Este estado de santidade dura até voltar a encher o
copo de leite de uma senhora idosa, pequena e escalavrada e com o
cabelo branco todo revolto, que parece ter sido dobrada em duas e
encafuada na cadeira de rodas. «Quero atirar-to», é o que parece
estar a dizer, e quando me baixo para confirmar este desejo
improvável a velha bruxa atira-me com o leite todo, molhando-me as
calças de alto a baixo. «Ah!, ah!, ah!», casquinam os meus
admiradores de há pouco. «Fez chi-chi nas calças!» Mas pelo menos
já não sou uma marginal, como diria o Pete, neste estranho estado
branco. Fui iniciada num mundo cheio de mexericos e intrigas e
baptizada agora com o mais branco dos líquidos.
Recuso-me a passar a noite de sábado, a última no Motel 6, metida no
quarto. Mas o que há-de fazer uma pessoa com recursos limitados e
pouco virada para festarolas? Durante a semana, passei várias vezes
de carro pela igreja «Salvação», na Baixa, e já só o nome exerce
sobre mim uma atracção assustadora. Será que existe uma
congregação inteira de pessoas que nunca ouviram falar do romance
de James Dickey e do filme nele baseado ( Nota 1 ) ? Ou, o que é
ainda pior, será que este grupo de cristãos está perfeitamente a par
dessa história de uma violação homossexual num bosque? Na tenda
em frente à igreja está anunciada uma «tenda do renascimento» no
sábado à noite, o que parece o entretenimento perfeito para uma ateia
sem companhia. Atravesso de carro uma zona que parece

( Nota 1 ) - Deliverance, romance adaptado ao cinema com o mesmo


nome por John Unorman, em 1972. Exibido em Portugal com o título
Fim-de-Semana Alucinante. (N. da T.)
65
perigosa, cheia de armazéns desocupados, até avistar a tenda ao
lusco-fusco. Infelizmente, do ponto de vista do entretenimento, estão
ocupadas apenas sessenta das cerca de trezentas cadeiras
desdobráveis. Conto três ou quatro pessoas de cor - afro-americanos
e suponho que mexicano-americanos; todas as outras pertencem a
um tipo trágico de rústico, o meu povo, geneticamente falando
(Ehrenreich é o meu nome de casada; o nome de solteira, Alexander,
é originário do Kentucky).
Converso com uma mulher que está sentada ao meu lado - «Bonita
noite», «Veio de longe?», e coisas assim - e ela empresta-me uma
Bíblia, já que pareço ser a única pessoa presente que não tem um
exemplar próprio. É um alívio quando um dos cerca de dez homens no
palco nos manda levantar e cantar, porque a cadeira desdobrável está
a dar-me cabo das costas. Alinho no bater de palmas ritmado e nos
movimentos corporais, que parecem definir um nível mínimo de
participação. Estão presentes alguns adeptos genuínos que se
abandonam à música de olhos fechados e braços erguidos,
aguardando, decerto, que a glossolalia se apodere deles.
Mas antes que aconteça algo de interessante, começa o sermão. Um
homem em mangas de camisa diz-nos que a Bíblia é um livro
maravilhoso e lamenta o facto de as pessoas comprarem tantos livros
sem préstimo, quando realmente apenas precisam de um. Alguém na
televisão recomenda a leitura de um livro qualquer (secular) e depois
«sobe, sabem... qual é a palavra?». Acho que a palavra que lhe falta é
vendas, mas ninguém é capaz de o ajudar. Seja como for, «aquilo»
pode atingir trezentos, o que dá um rácio de dez para um. Han? Em
seguida, um mexicano-americano pega no microfone, fecha bem os
olhos e dispara num resumo rápido da nossa dívida ao Cristo
crucificado. Depois, é a vez de um homem branco de idade, que ataca
«esta cidade pecadora» pelo seu contributo de almas, hereticamente
inadequado, para o renascimento - que custa dinheiro, sabem, a tenda
não se montou sozinha... O que está em questão são despesas, não
alguém a fazer fortuna, e quando se pensa no que Jesus deu para que
nós pudéssemos desfrutar da vida eterna com Ele no céu...
66
Sem querer, distraio-me a pensar nas implicações da doença de
Alzheimer para a teoria da imortalidade da alma. Quem quererá a vida
depois da morte, se a vida imediatamente anterior é passada a agarrar
os braços de uma cadeira de rodas, com a cabeça tombada num
ângulo de quarenta e cinco graus, de olhos e boca escancarados e
igualmente mudos, como muitos dos idosos de quem trato no
Woodcrest? Será que a «alma» que vive para sempre é a que
possuímos no momento da morte, caso em que o céu deve parecer-se
com o Woodcrest, com bastantes auxiliares de enfermagem e de
nutrição para tomarem conta dos que morreram num estado de
deterioração mental? Ou será que é a nossa melhor alma - digamos, a
que albergamos no auge das nossas capacidades cognitivas e
aspirações morais? Nesse caso, não faz qualquer diferença os
diabéticos dementes comerem bolos ou não, porque, de um ponto de
vista puramente soteriológico, já estão mortos.
Os sermões continuam, interrompidos pelos devidos «améns». Seria
bom se alguém lesse o Sermão da Montanha a esta multidão de olhar
triste, acompanhado por um comentário inspirador sobre a
desigualdade de rendimentos e a necessidade de um aumento do
salário mínimo. Mas Jesus aqui só faz a sua aparição como cadáver; o
homem vivo, o vagabundo que bebia vinho e era um socialista avant Ia
lettre não é mencionado uma única vez, nem nada do que alguma vez
disse. O que importa é o Cristo crucificado, e talvez a verdadeira tarefa
do cristianismo dos nossos dias seja crucificá-lo uma e outra vez, para
que nunca consiga dizer uma palavra. Não me importava de ficar até
começarem os milagres, mas os mosquitos, enlouquecidos por esta
conversa toda sobre o Seu sangue, estão a lançar um ataque em
grande escala. Levanto-me para sair, tendo o cuidado de fazer
coincidir a minha partida com o momento em que os movimentos
metronómicos da cabeça do pregador o fazem olhar para o outro lado,
e vou à procura do carro, quase esperando ir encontrar Jesus lá fora
no escuro, amordaçado e atado a um dos paus da tenda.

No domingo mudo-me, por fim, para o Blue Haven, tão satisfeita por
sair do Motel 6 que as deficiências do meu novo
67
lar parecem insignificantes, até mesmo, ao princípio, encantadoras.
Para começar, é mais pequeno do que eu recordava, porque um
barracão de ferramentas usado pelos proprietários do motel ocupa
parte do espaço da minha casa, o que resulta numa combinação
pouco satisfatória das funções biológicas. Com a sanita a um metro de
distância da minúscula mesa da cozinha, tenho de fechar a porta da
casa de banho para não sentir que estou a comer numa latrina, e o
facto de a cabeceira da cama ficar a cerca de dois metros do fogão
significa que o aroma da solha que frito para o jantar de inauguração
da casa fica no ar toda a noite. Na prática, fritos é a única coisa que
posso fazer, porque o equipamento da cozinha limita-se a uma
frigideira, um prato, uma tigela pequena, uma cafeteira e um copo
grande - nem ao menos há uma panela! Tenho de improvisar: os
recipientes de papel metálico das saladas que compro já preparadas
podem ser reciclados como pratos; o único prato existente passa a
tábua de cortar alimentos. A concavidade no meio da cama é
rectificada por uma toalha dobrada, e assim por diante. Não há motivo
para preocupações - tenho casa, dois empregos e uma carripana. A
ansiedade que me dominara naqueles primeiros dias no Motel 6
começa finalmente a esvair-se.
Descubro que o simples facto de ter uma casinha só para mim me
torna uma verdadeira aristocrata na comunidade do Blue Haven. Os
outros residentes a longo prazo, que encontro no alpendre da
lavandaria, são trabalhadores com fardas e fatos-macaco para lavar e
geralmente bastante silenciosos à noite. Muitos são casais com filhos,
semelhantes aos trabalhadores brancos que por vezes aparecem nas
séries da televisão, mas, ao contrário dos seus equivalentes
televisivos, os meus vizinhos estão apinhados aos três e quatro num
estúdio, ou, na melhor das hipóteses, num apartamento de duas
assoalhadas. Um homem novo pergunta-me em que casa estou e
depois diz-me que viveu nessa mesma casa - com dois amigos. Uma
mulher de meia-idade com uma neta de três anos a reboque tenta
consolar-me, dizendo que ao princípio é sempre difícil viver num motel,
especialmente quando se está habituada a uma casa normal, mas que
uma pessoa se adapta ao fim de algum
68
tempo, faz-se por não pensar nisso. Ela, por exemplo, vive no Blue
Haven há onze anos.
Estou repousada e pronta para tudo quando chego ao escritório da
The Maids na segunda-feira, às sete e meia. Não sei nada sobre
serviços de limpeza como estes, que, segundo o folheto que me dão,
tem mais de trezentas franchises por todo o país, e o que sei sobre
empregadas domésticas em geral vem-me de romances ingleses do
século xix e da série televisiva Upstairs, Downstairs ( Nota 1 ) . Algo
profeticamente, apanhei uma repetição dessa mesma série na cadeia
de televisão PBS durante o fim-de-semana, e admirei o aspecto
incrivelmente correcto dos empregados, com as suas fardas pretas e
brancas, e a sabedoria que demonstravam, muito mais em evidência
do que a dos seus patrões inexperientes e egoístas. Também nós
temos fardas, embora pendam mais para o vulgar do que para o digno
nos tamanhos errados e numa combinação demasiado garrida de
calças verde-vivo e pólo amarelo-girassol ofuscante. E, como é
explicado por escrito e no estágio de um dia e meio, também nós
temos um código especial de decoro. Não é permitido fumar, pelo
menos quinze mminutos antes da chegada a uma casa. Não podemos
comer, beber ou mascar pastilha elástica nas residências. Nada de
praguejar dentro das casas, mesmo que o proprietário não esteja
presente, e - talvez

( Nota 1 ) - Os serviços de limpeza nacionais e até mesmo


internacionais, como Merry Maids, Molly Maids e The Maids
International, todos surgidos depois dos anos 70, detêm neste
momento entre 20% e 25% do negócio de limpeza doméstica. Num
artigo de 1997 sobre a Merry Maids, a revista Franchise Times
informava sucintamente que «a categoria está em expansão, o nicho é
atraente, visto os americanos procurarem mão-de-obra pré-contratada
mesmo para serviços domésticos» («72 Merry Maids», Franchise
Times, Dezembro de 1997). Nem todos os serviços de limpeza têm o
mesmo êxito, verificando-se uma alta taxa de insucesso nas empresas
informais, familiares, como aquela a que me candidatei por telefone,
que nem sequer requeria uma simples entrevista - bastava-me
aparecer por lá no dia seguinte, às sete da manhã. A «expansão»
concentra-se nas cadeias nacionais e internacionais - companhias
como Merry Maids, Molly Maids, Mini Maids, Maid Brigade e The
Maids International -, todas elas, curiosamente, com nomes que
salientam os traços mais antiquados da indústria, embora a «criada»
seja por vezes do sexo masculino. A Merry Maids afirmava ter um
crescimento de 15% a 20% por ano em 1996, enquanto
representantes da Molly Maids e da The Maids Interna-(ional me
disseram, em entrevistas realizadas após ter deixado o Maine, que o
volume de negócios das suas empresas regista um crescimento de
25% ao ano.
69
para treinarmos - nada de palavrões no escritório. Então isto é
Downstairs ( Nota 1 ) , é o meu primeiro pensamento positivo. Mas não
faço ideia, claro, das profundezas a que me levarão estas escadas.
Só ao fim de quarenta minutos alguém me dá um sinal mais claro do
que um aceno distraído de ter notado a minha presença. Durante este
tempo, vão chegando as outras empregadas, cerca de vinte, já
ofuscantes nas suas fardas, e tomam um pequeno-almoço grátis de
café, pãezinhos e donuts generosamente fornecido pela The Maids.
Com uma excepção, somos todas mulheres com uma média de idades
que ronda os vinte e muitos anos, embora a gama pareça abranger
desde adolescentes até avós. Há um bulício agradável, enquanto as
pessoas tomam o pequeno-almoço e enchem baldes de plástico com
panos e embalagens de produtos de limpeza, mas,
surpreendentemente, poucas conversas, à parte algumas referências
ao que as pessoas comeram (piza) e beberam (há menções a
copinhos de gelatina com brande) no fim-de-semana. Como a sala
onde nos encontramos tem apenas duas cadeiras desdobráveis,
ambas ocupadas, eu e a outra empregada nova sentamo-nos no chão
de pernas cruzadas, em silêncio e prontas a entrar em acção,
enquanto as empregadas já habituais são distribuídas por equipas de
três ou quatro e despachadas com a lista das casas para esse dia.
Uma das mulheres explica-me que as equipas não voltam
necessariamente às mesmas casas semana após semana, nem há
garantia de as mesmas pessoas integrarem a mesma equipa todos os
dias. Isto, suponho eu, é uma das vantagens para os clientes do
serviço de limpeza empresarial: não estão em causa relações
problemáticas e possivelmente dominadas por sentimentos de culpa,
porque os clientes comunicam quase em exclusivo com a Tammy, a
responsável do escritório, ou com o Ted, o proprietário àz franchise e
nosso patrão2. A vantagem para o empregado é

( Nota 1 ) - O andar de baixo, significando «o andar dos criados».


Jogo de palavras com o título da série Upstairs, Downstairs
(literalmente, O Andar de Cima, o Andar de Baixo). Esta série foi
transmitida em Portugal com o título A Família BeLlamy. (N. da T.)
( Nota 2 ) - Todos os assuntos relativos às empregadas, os salários, o
pagamento da Segurança Social, as autorizações de permanência no
país, as dores nas costas e os problemas com a guarda dos filhos -
tudo isto é da responsabilidade exclusiva da companhia, ou seja, do
proprietário da franchise local. Se houver queixas de qualquer das
partes, devem ser dirigidas ao proprietário da franchi-se\ o cliente e os
trabalhadores não precisam de interagir. Como o proprietário da
franchise é, em geral, uma pessoa branca da classe média, os
serviços de limpeza são a solução ideal para alguém que ainda seja
bastante sensível para considerar moralmente questionável a
tradicional relação patrão-criada.
70
mais difícil de determinar, já que o pagamento é inferior ao que pode
ganhar uma empregada de limpeza a trabalhar por conta própria - até
quinze dólares por hora, segundo ouvi dizer. Enquanto espero que me
dêem uma farda na sala de dentro, onde está o telefone e a Tammy
tem a sua secretária, ouço-a dizer a um cliente potencial que a The
Maids cobra vinte e cinco dólares por hora. A companhia recebe vinte
e cinco dólares e nós seis dólares e sessenta e cinco cêntimos por
cada hora que trabalhamos? Julgo que ouvi mal, mas alguns minutos
depois ouço-a dizer o mesmo a outra pessoa. Então, a única
vantagem de trabalhar aqui em vez de o fazer por conta própria é que
não se precisa de ter clientela ou carro. Pode chegar-se directamente
da Segurança Social ou, no meu caso, da estação de autocarros -
acabada de sair do barco ( Nota 1 ).
Por fim, depois de todas as outras empregadas terem sido
despachadas nos berrantes carros verdes e amarelos da companhia,
sou conduzida a uma salinha do tamanho de um armário ao lado do
escritório para aprender o meu ofício assistindo a um vídeo. A gerente
de um outro serviço de limpeza a que tinha concorrido dissera-me que
não gostava de contratar pessoas que já tivessem trabalhado na
limpeza, porque lhes era mais difícil aprenderem o sistema da
companhia, pelo que me preparo para esvaziar a mente de qualquer
experiência prévia de limpeza doméstica. Há quatro cassetes - limpar
o pó, casas de banho, cozinhas e aspirar -, cada uma delas com uma
protagonista jovem e atraente, possivelmente hispânica, que se move
de forma serena, obedecendo à voz de um homem. Para aspirar,
comece pelo quarto principal; quando limpar o pó,

( Nota 1 ) - Não sei que percentagem das minhas colegas na The


Maids em Portland linha previamente subsistido à custa da Segurança
Social, mas o proprietário da franchise da empresa em Andover,
Massachusetts, disse-me numa entrevista telefónica que metade das
suas empregadas se encontravam nessa situação e que são tão
fiáveis como qualquer outra pessoa.
71
comece pela divisão ao lado da cozinha. Quando entrar numa divisão,
divida-a mentalmente em secções que não excedam o espaço ao
alcance das mãos. Comece na secção à sua esquerda e, dentro de
cada secção, mova-se da esquerda para a direita e de cima para
baixo. Desta forma, nada ficará por fazer.
O meu preferido é Limpar o Pó, pela sua inegável lógica e uma certa
beleza austera. Ao entrar numa casa, borrife um pano branco com
Windex e ponha-o no bolso esquerdo do seu avental verde. Um outro
pano, borrifado com desinfectante, vai para o bolso do meio, e um
pano amarelo com cera vai para o bolso direito. Um pano seco, para
puxar o lustro, ocupa o bolso direito das calças. As superfícies
brilhantes levam com Windex, a madeira com cera, e tudo o resto é
limpo com desinfectante. De vez em quando, o Ted entra no cubículo
para assistir ao filme comigo, parando o vídeo em momentos
especialmente dramáticos: «Está a ver como ela anda a trabalhar
perto da jarra? Tem ali um acidente em potência.» Se o Ted
aparecesse num vídeo, teria de ser num filme de desenhos animados,
porque os únicos traços esboçados no seu rosto gorducho são uns
olhos castanhos como botões e um nariz minúsculo e achatado; a
barriga, enfaixada no pólo, esconde a cinta dos calções. «Sabe, tudo
isto foi calculado com um cronometro», diz-me com um certo orgulho.
Quando o vídeo avisa que não é aconselhável encharcar os panos
com produtos de limpeza, põe-no em pausa para me explicar que há
um certo perigo em não borrifar o suficiente, especialmente se disso
resultar um abrandamento do ritmo de trabalho. «Os produtos de
limpeza não custam tanto como o seu tempo.» É bom saber que existe
alguma coisa mais barata do que o meu tempo, ou que, na hierarquia
dos valores da companhia, eu me situo acima do Windex.
Aspirar é o vídeo mais perturbante; é, na verdade, constituído por dois
filmes, começando por uma introdução ao as-pirador-mochila especial
que vamos usar. Sim, o aspirador afivela-se às costas, explica um
sujeito rechonchudo, que se apresenta como seu inventor. Afivela o
aspirador, puxando as correias firmemente sobre o peito e na cinta, e
em seguida diz
72
com orgulho, olhando para as câmaras: «Está a ver? Eu sou o
aspirador.» Segundo ele, pesa somente quatro quilos e meio, mas,
como descobrirei em breve, com os acessórios pendurados na correia
à volta da cinta, o total ronda sete quilos. E os meus problemas
lombares, que trato normalmente com paninhos quentes? O inventor
volta ao tema da fusão ser humano/ máquina: quando correctamente
afiveladas à máquina, também nós seremos aspiradores,
constrangidas apenas pelo fio que nos liga a uma tomada eléctrica, e
os aspiradores não sofrem de dores nas costas. Toda esta informação
deixa-me exausta, e vejo o segundo filme, que explica o processo de
aspiração em si, com o interesse objectivo de uma cineasta. Será que
a criada-modelo é uma criada a sério e a casa-modelo o verdadeiro lar
de alguém? E quem são estas pessoas cujas ideias de decoração
consistem numa série de quadros de patos em pleno voo e cuja casa
é impessoal e imaculada, mesmo antes de a criada deitar mãos ao
trabalho?
Ao princípio acho intrigantes os vídeos sobre as cozinhas e as casas
de banho, e demoro alguns minutos a compreender porquê: não há
água, ou quase nenhuma água. Fui ensinada a limpar pela minha
mãe, uma «fada do lar» compulsiva que usava água tão quente que
precisávamos de luvas de borracha para não sofrermos queimaduras
de primeiro grau, e em quantidades tais que a maior parte dos
micróbios provavelmente eram esmagados pela força das cataratas
antes de o produto de limpeza ter hipótese de penetrar as suas
paredes celulares. Mas os germes não são mencionados nos vídeos
fornecidos pela The Maids. Os nossos antagonistas existem
inteiramente no mundo visível - sarro, pó, restos de comida, pêlo de
cão, manchas e dedadas - e devem ser atacados com panos húmidos
ou, em casos mais virulentos, com um Dobie (a marca de esfregões de
plástico que usamos). Só esfregamos para remover impurezas que
sejam detectáveis a olho nu ou ao tacto; em todos os outros casos,
cabe-nos apenas passar um pano por cima da sujidade. Nada se diz
sobre a possibilidade de transportar bactérias, através dos panos ou
das mãos, das casas de banho para as cozinhas ou até mesmo de
uma casa para outra. São os «toques cosméticos» que os vídeos
salientam e é para eles que o
73
Ted, quando entra na salinha onde estou a vê-los, continuamente me
chama a atenção. Afofar todas as almofadas e dispô-las
simetricamente. Dar brilho aos lava-louças de aço inoxidável com óleo
de bebé. Deixar todos os frascos de condimentos, champôs, etc, com
os rótulos virados para fora. Pentear as franjas dos tapetes persas
com um palito. Usar o aspirador para criar um padrão especial, como
de fetos, nas carpetes. As pontas do papel higiénico e das toalhas de
papel na cozinha devem levar uma dobra especial (a mesma que se
encontra nas casas de banho dos hotéis). As «desarrumações» de
papéis, roupas ou brinquedos devem ser empilhadas em
«desarrumações arrumadas». Por fim, a casa deve ser perfumada
com o ambientador floral do serviço de limpeza, um sinal para os
proprietários, mal regressem a casa, de que esta foi «limpa» ( Nota 1 ).
Após um dia de estágio considera-se que estou pronta para sair com
uma equipa de limpeza, e não tardo a descobrir que a vida real não
tem nada a ver com os filmes, pelo menos não

( Nota 1 ) - Quando descrevi os métodos utilizados pela The Maids


para limpar casas à especialista de limpeza doméstica Cheryl
Mendelson, autora de Home Comforts, ela não queria acreditar. Um
pano humedecido com desinfectante não limpa uma superfície,
explicou-me, porque a maior parte dos desinfectantes fica inactivo
quando entra em contacto com matérias orgânicas - ou seja, lixo -,
pelo que a sua eficácia é reduzida com cada utilização do pano. O que
é necessário é um detergente e água quente, seguido por uma
passagem com água limpa. Quanto à limpeza do chão, na sua opinião
a quantidade de água que utilizávamos - um balde pequeno meio de
água, nunca a uma temperatura superior à temperatura ambiente - era
totalmente inadequada, e, para dizer a verdade, a água com que eu
lavava o chão tinha muitas vezes um tom cinzento repugnante.
Descrevi também os métodos de limpeza da The Maids a Don Aslett,
autor de um grande número de livros sobre técnicas de limpeza e
autoproclamado «o número um em limpezas da América». Hesitou em
criticar a The Maids directamente, talvez porque é, segundo ele,
convidado com frequência para fazer palestras em congressos de
detentores de franchises de serviços de limpeza, mas explicou-me
como limpar uma superfície. Em primeiro lugar, borrifa-se
completamente com um produto de limpeza genérico, que se deixa
ficar por três ou quatro minutos, a «matar» os germes, e por fim passa-
se um pano limpo. Passar um pano humedecido pela superfície a
limpar, disse-me ele, apenas espalha a sujidade. Contudo, o objectivo
na The Maids não parece ser limpar, mas antes dar a aparência de ter
sido limpo, não tornar o espaço sanitário, mas sim criar uma espécie
de cenário para a vida em família. E o cenário que os americanos
parecem preferir é estéril apenas no sentido metafórico da palavra,
como um quarto de motel ou os interiores artificiais em que são
filmadas as telenovelas e as séries de televisão.
74
quando o filme se chama Limpar o Pó. Uma das diferenças é que,
comparados com o nosso ritmo, os vídeos pareciam filmados em
câmara lenta. De manhã, com os baldes cheios de produtos de
limpeza e utensílios, não nos dirigimos em passo normal para os
carros - corremos; e quando chegamos a uma casa também corremos
com os baldes até à porta. A Liza, uma mulher simpática de trinta e
poucos anos que é a líder da minha equipa, explica que dispomos de
um determinado número de minutos por casa, desde menos de uma
hora para um apartamento de um quarto e uma casa de banho até
mais de três horas e meia para uma «primeira vez» com várias casas
de banho. Eu gostaria de saber porque é que se preocupam com os
limites de tempo definidos pelo Ted, se estamos a ser pagas à hora,
mas receio dar a impressão de querer criar ondas. Ao chegarmos a
cada casa, a Liza distribui as tarefas e eu rezo para que não me caiba
a limpeza das casas de banho ou aspirar. No entanto, até mesmo a
limpeza do pó se transforma num exercício de ginástica aeróbica sob
pressão, e, após cerca de uma hora - a esticar-me para chegar ao
cimo das portas, a rastejar para limpar rodapés, pondo-me em cima de
um balde para chegar às prateleiras mais altas -, não me importava
nada de me sentar e beber um grande copo de água. Porém, logo que
termino a tarefa atribuída, tenho de ir ter com a líder da equipa para
ela me mandar ajudar outra pessoa. Uma ou duas vezes, quando o
processo normal de evaporação é considerado demasiado lento, cabe-
me secar um pavimento esfregado pondo panos debaixo dos pés e
patinando pelo chão. Normalmente, quando chego ao carro e despejo
a água suja usada na limpeza do chão e torço os panos, o resto da
equipa já está lá dentro com o motor ligado. A Liza garante-me que
nunca deixaram uma pessoa para trás numa casa, nem mesmo,
suponho, uma empregada muito recente que ninguém conhece. Na
minha entrevista tinham-me prometido uma pausa de trinta minutos
para o almoço, mas esse intervalo transforma-se numa paragem de
cinco minutos, se tanto, numa loja de conveniência. Trago uma
sanduíche todos os dias - sempre de peito de peru e queijo -, e o
mesmo fazem duas outras colegas; as restantes comem qualquer
coisa comprada na loja de
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conveniência, um pãozinho ou um donut guardado do pequeno-
almoço grátis, ou nada. As duas mulheres casadas mais velhas que
pertencem à minha equipa são quem come melhor - sandes e fruta.
Entre as mais novas, o almoço consiste numa fatia de piza, um «pão»
de piza (massa de pão com recheio de molho de piza) ou um pacote
pequeno de batatas fritas. Tenha-se em consideração que não somos
empregadas de escritório, sentadas todo o dia a funcionar à taxa
metabólica basal. Um cartaz na parede do escritório indica o número
de calorias gastas por minuto nas várias tarefas que fazemos, que vai
de três e meia a limpar o pó até sete a aspirar. Partindo de uma média
de cinco calorias por minuto num dia de sete horas de trabalho (oito
horas menos o tempo passado nas deslocações entre as casas), seria
necessário consumir duas mil e cem calorias para além do mínimo de
cerca de novecentas necessário quando se está em repouso.
Repreendo a Rosalie - que, tal como eu, é nova no emprego e saiu há
pouco tempo da escola numa zona rural do Norte do estado - pela
inadequação dos seus almoços, que consistem unicamente em
Doritos - meio pacote do dia anterior ou um pacote pequeno comprado
na altura. Não tinha nada em casa, diz ela (embora viva com o
namorado e a mãe dele), e não tem dinheiro para comprar comida,
como descubro quando me ofereço para lhe trazer um refrigerante de
um Quik Mart e se vê obrigada a confessar que não tem oitenta e nove
cêntimos. Dou-lhe o refrigerante e lamento não poder obrigá-la a
beber leite, como se fosse mãe dela. Então, como é que aguenta oito
ou nove horas por dia? «Bem, às vezes sinto tonturas», confessa.
Qual é o nível de pobreza das minhas colegas? O facto de alguém
estar neste emprego pode considerar-se prova irrefutável de uma
espécie de desespero, ou pelo menos de um passado de erros e
desilusões, mas não estou em posição de fazer perguntas. Nos filmes
passados em prisões, que me servem de guia mental para a forma
como devo comportar-me, a nova prisioneira não se põe a
cumprimentar as colegas e a perguntar: «Ora viva, o que fizeste para
vir parar cá dentro?» O que faço, pois, é escutar as conversas nos
carros e quando estamos reunidas no escritório, e a primeira coisa que
fico a saber é
76
que ninguém parece estar sem casa. Quase todas as minhas colegas
estão inseridas em famílias alargadas ou artificialmente alargadas com
hóspedes. Falam de visitas a avós no hospital ou de enviarem um
cartão de parabéns ao marido de uma sobrinha; as mães solteiras
moram com as suas mães ou partilham um apartamento com uma
colega ou o namorado. A Pauline, a mais velha de todas nós, tem casa
própria, mas dorme no sofá da sala de estar, enquanto os quatro filhos
crescidos e os três netos ocupam os quartos ( Nota 1 ).
Embora aparentemente ninguém durma no carro, logo de princípio há
indícios de reais dificuldades, senão de miséria. Cigarros meio
fumados voltam ao maço. Discute-se quem há-de adiantar os
cinquenta cêntimos de uma portagem e se é previsível que Ted os
reembolse prontamente. Uma das minhas colegas de equipa está
desesperada com a dor de um

( Nota 1 ) - As mulheres com quem trabalhei eram todas brancas e,


com uma excepção, de origem anglo-saxónica, como o são a maioria
das empregadas de limpeza doméstica na América, ou pelo menos
aquelas de que o Bureau of Labor Statistics (Instituto de Estatísticas
do Trabalho) tem conhecimento. Das «empregadas de limpeza e
criadas de casas particulares» que conseguiu localizar em 1998, o
BLS averiguou que 36,8% eram hispânicas, 15,8% de raça negra e
2,7% «outras». Contudo, a associação entre o serviço doméstico e um
estatuto minoritário está bem arraigada na psique da classe
empregadora branca. Quando a minha filha Rosa foi apresentada ao
pai de um colega rico de Harvard, ele perguntou se lhe tinham dado o
nome de uma criada favorita. E Audre Lorde descreveu uma
experiência que teve em 1967: «Empurro o carrinho das compras com
a minha filha de dois anos por um supermercado... e uma menina
branca que passa no carrinho da sua mãe diz, cheia de excitação:
"Oh, olha, mamã, uma bebé criada!"» (Citado em Mary Romero, Maid
in the U.S.A.: Perspectives on Gender, Nova Iorque, Routledge, 1992,
p. 72.)
Mas a composição da mão-de-obra dos serviços domésticos não é
propriamente fixa, sofre alterações com as oportunidades que vão
surgindo para os diferentes grupos étnicos. No final do século xix, as
imigrantes irlandesas e alemãs serviam as classes média e alta
urbanas, passando a trabalhar em fábricas logo que podiam. As
mulheres de raça negra vieram substituí-las, constituindo 60 % das
empregadas domésticas na década de 40, e dominaram o sector até
passarem a estar-lhes abertos outros empregos. As empregadas
domésticas da Costa Oeste eram em grande parte americanas de
origem japonesa, até também esse grupo encontrar opções mais
favoráveis (consultar Phyllis Palmer, / Domesticity and Dirt:
Housewives and Domestic Servants in the United States, l920-1945,
Temple University Press, 1989, pp.12-13). Hoje em dia, a cor das
mãos que empunham o esfregão varia de zona para zona: chicanas
no Sudoeste, antilhanas em Nova Iorque, havaianas nativas no Havai,
brancas, nativas, muitas vindas de zonas rurais, no Midwest e,
obviamente, no Maine.
77
dente do siso incluso e farta-se de fazer telefonemas nas casas por
onde passamos para tentar encontrar cuidados dentários grátis.
Quando a minha equipa - ou talvez devesse dizer a equipa da Liza -
descobre que não há um único esfregão nos nossos baldes, sugiro
que paremos numa loja de conveniência e compremos um, em vez de
voltarmos a fazer o caminho todo até ao escritório. Mas acontece que
não trouxe dinheiro e entre as quatro não conseguimos arranjar dois
dólares.
Na sexta-feira da minha primeira semana na The Maids está um calor
fora do comum para o Maine no início de Setembro - trinta e cinco
graus, segundo os relógios-termómetros digitais à porta dos bancos
por onde passamos. Estou numa equipa constituída pela tristonha
Rosalie e a nossa líder, a Maddy, cujo comportamento sombrio, nestas
circunstâncias, é quase um alívio depois da boa disposição
inesgotável da Liza. Fiquei a saber que a Liza ocupa o posto mais alto
no escalão das empregadas de limpeza, é uma espécie de
supervisora, e tem a fama de ser bufa, mas a Maddy, mãe solteira de
uns vinte e sete anos, só trabalha há três meses e anda preocupada
com o problema de a quem deixar o filho. A irmã do namorado, diz-me
quando vamos a caminho da primeira casa do dia, toma conta do seu
bebé de dezoito meses por cinquenta dólares por semana, o que é um
rombo no salário da The Maids, e, além do mais, não tem absoluta
confiança na cunhada, mas um infantário poderia chegar aos noventa
dólares por semana. Depois de limparmos a primeira casa sem
problemas, «almoçamos» - a Rosalie Doritos e a Maddy um pacote de
bolachinhas de aperitivo - e dirigimo-nos para uns subúrbios distantes,
para uma casa que, segundo a nossa folha de instruções, é um
casarão de cinco quartos, ainda por cima uma «primeira vez». O
tamanho da casa faz-nos estacar, de baldes na mão, antes de irmos à
procura de uma entrada apropriadamente humilde ( Nota 1 ). Parece
um paquete transatlântico

( Nota 1 ) - Para os abastados, as casas têm vindo a aumentar de


tamanho sem qualquer limite aparente. A área das casas novas
aumentou 39% entre 1971 e 1996, contando agora com «salas para a
família», salas de diversões domésticas, escritórios, quartos de dormir
e frequentemente uma casa de banho para cada membro da família
(«Détente in the Housework Wars», Toronto Star, 20 de Novembro de
1999). Até Abril de 1999, 17% das casas novas ultrapassavam os 280
metros quadrados, normalmente considerados o limiar a partir do qual
uma casa não pode ser mantida sem auxílio externo («Molding Loyal
Pam-perers for the Newly Rich», The New York Times, 24 de Outubro
de 1999).
78
encalhado na praia, com a proa a fender ondas de relvado e um sem-
número de janelas. «Ora bem», diz a Maddy, lendo o nome da
proprietária na folha de instruções. «A Sr.a W. e o seu casarão do
caraças! Espero que nos dê de almoçar...»
Na verdade, a Sr.a W. não fica satisfeita por nos ver, fazendo um
esgar de irritação quando a ama negra nos conduz à sala de família,
ou solário, ou zona de tempos livres, ou espaço com qualquer outro
nome específico onde ela se encontra sentada. Afinal, já tem de
supervisionar a ama, uma espécie de cozinheira e um grupo de
homens a darem os toques finais à casa! Não, não quer levar-nos a
fazer uma «visita guiada» à residência, porque já tinha explicado tudo
ao escritório pelo telefone, mas a Maddy deixa-se ficar, com a Rosalie
e comigo atrás, até que ela cede. Temos de tirar tudo de cima das
superfícies, avisa-nos, limpar por baixo e não esquecer os rodapés,
que, pelos meus cálculos, se prolongam por vários quilómetros. E
cuidado com a bebé, que está a fazer a sesta e não pode ter por perto
produtos de limpeza de qualquer espécie. ,
Cabe-me limpar o pó. Numa situação como esta, onde nem sei que
nome dar aos vários tipos de divisões, o sistema especial da The
Maids revela-se uma verdadeira bóia de salvação. Tudo o que tenho a
fazer é mover-me da esquerda para a direita, dentro das divisões e
entre elas, tentando identificar marcos distintivos, de forma a não
repetir a limpeza de uma divisão ou corredor. Os panos do pó
desfrutam de uma perspectiva biográfica completa, devido à
necessidade de levantar os objectos e os adornos um a um, e fico a
saber que a Sr.a W. é antiga aluna de uma importante faculdade
feminina, ocupando-se agora a seguir os movimentos dos seus
investimentos e dos intestinos do seu bebé. Encontro folhas de registo
específicas para este último objectivo, com espaços para a parte do
dia em que se verificam, ingestão mais recente de líquidos,
consistência e cor. No quarto principal, limpo o pó a uma
79
prateleira cheia de livros sobre a gravidez, a amamentação, os
primeiros seis meses, o primeiro ano, os primeiros dois anos, e
pergunto-me o que dirá de tudo isto a Maddy, com os seus problemas
de guarda do filho. Talvez se tenha verificado uma divisão secreta das
mulheres em reprodutoras e obreiras, e as que se encontram ao nível
de criadas já não deveriam reproduzir-se. É provável que seja por esta
razão que a responsável do escritório da nossa franchise, a Tammy,
que foi em tempos empregada da limpeza, usa unhas postiças de três
centímetros de comprimento e roupas provocantes - para demonstrar
que entrou para a casta reprodutora e já não podem mandá-la limpar a
casa dos outros.
Faz mais calor dentro do que fora da casa, que está sem ar
condicionado, suponho que por causa do bebé, mas aguento-me bem
até chegar à série de portas de vidro que são as paredes laterais e
das traseiras do rés-do-chão. Cada uma delas tem de ser lavada com
limpa-vidros, enxugada e polida - por dentro e por fora, de cima a
baixo, da esquerda para a direita, até ficar tão imaculada e invisível
quanto uma substância material o pode ser. Vejo lá fora os sujeitos da
construtora a beberem uma bebida isotónica, mas a regra é que
nenhum líquido ou sólido pode passar pelos lábios de uma criada
enquanto esta se encontrar dentro de uma casa. Ora bem, o suor,
mesmo em quantidades embaraçosas, não é nenhuma novidade para
mim. Vivo numa zona subtropical onde até as pessoas inactivas
podem contar com um certo grau de transpiração nove meses em
cada ano. Na minha vida normal faço exercício físico, e é com um
certo orgulho másculo que vejo as marcas de suor a formarem-se na
T-shirt após dez minutos, ou mais, nas máquinas. Contudo, na vida
normal os líquidos perdidos são imediatamente repostos. Hoje em dia
todas as pessoas no mundo yuppie - nos aeroportos, por exemplo -
parecem bebés de mama, inseparáveis das suas garrafas plásticas de
água. Aqui, no entanto, transpiro sem beber nem fazer pausas, não
gotas de suor, mas toalhas de água que me encharcam o pólo e
correm pela parte de trás das pernas. A maquilhagem dos olhos que
apliquei de manhã - uma pequena vaidade tonta - já há muito que me
escorreu pelo rosto, e
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podia torcer a minha trança, se quisesse. Enquanto limpo as várias
salas de estar, pergunto-me se a Sr.a W. tomará alguma vez
consciência de que cada uma das bugigangas e bibelôs através dos
quais expressa a sua personalidade individual e única é, de um outro
ponto de vista, apenas mais um obstáculo entre uma pessoa sequiosa
e um copo de água.
Quando já não consigo encontrar mais superfícies para limpar e
esgotei finalmente as divisões disponíveis, a Maddy manda-me lavar o
chão da cozinha. Tudo bem, mas a Sr.a W. está na cozinha, e por isso
tenho de me ajoelhar praticamente aos seus pés. Não, não dispomos
de esfregonas como a que uso na minha casa; limpar de joelhos é,
decididamente, uma das características que tornam os serviços de
limpeza empresariais como a The Maids mais atraentes para os seus
clientes. «Limpamos o chão à moda antiga - de joelhos» (itálico meu),
lê-se no folheto de uma empresa rival. De facto, quaisquer vantagens
de limpar de joelhos - está-se evidentemente mais próxima da
superfície a lavar, sendo menos provável que passe despercebida
alguma sujidade - são anuladas pelo sistema de limpeza da The
Maids. Segundo as instruções que recebemos, devemos utilizar
menos de meio balde de água tépida para uma cozinha e o chão de
todas as divisões adjacentes (zonas de pequenos-almoços e outras
refeições), o que significa que ao fim de alguns minutos o que fazemos
é redistribuir uniformemente a sujidade pelo chão. Uma vez por outra
há queixas de clientes sobre a limpeza do chão - por exemplo, de um
homem que enxugou um líquido derramado no chão recentemente
«limpo» e viu a toalha de papel que utilizou para esse efeito ficar
cinzenta. Uma esfregona e um balde cheio de água quente com
detergente não só resultaria num chão mais limpo como seria muito
mais digno para a pessoa que faz a limpeza. Mas é esta postura
básica de submissão - e do que, em última análise, representa uma
acessibilidade anal - que parece atrair os consumidores de serviços de
limpeza ( nota 1 ) .

( Nota 1 ) - Em Home Comforts: The An and Science of Keeping


House, Scribner, 1999, Cheryl Mendelson escreve: «Nunca peça a
empregadas da limpeza que lavem o chão de joelhos; esse pedido
será provavelmente considerado degradante» (p. 501).
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O chão da Sr.a W. é duro - de pedra, acho eu, ou de um material
semelhante - e hoje não trouxemos almofadas para os joelhos. Na
minha inocência de classe média, julgara que as almofadas para os
joelhos eram uma das fantasias eróticas da Monica Lewinsky, mas
não, existem de facto e são normalmente uma parte integrante do
nosso equipamento. Então, aqui estou eu de joelhos a limpar a
cozinha como uma espécie de penitente fanática a cumprir as
estações da cruz, quando noto que a Sr.a W. está a olhar para mim -
tão fixamente que, por momentos, me ocorre a possibilidade de ter
alguma vez proferido uma palestra na sua faculdade e ela estar agora
a tentar lembrar-se de onde me viu. Se me reconhecesse, eu seria
despedida? Oferecer-me-ia pelo menos um copo de água? Decido
que, se me oferecer água, aceito, sem querer saber das regras, e se
esta infracção chegar aos ouvidos do Ted direi que me pareceu
indelicado recusar. Afinal não valia a pena preocupar-me. A Sr.a W.
está só a ver se deixo por limpar um centímetro quadrado que seja, e
quando me ergo a custo, piscando os olhos por causa do suor, diz:
«Já agora, podia esfregar também o chão na entrada?»
Apresso-me a regressar ao Blue Haven no fim do dia, corro os
estores, tiro a farda na cozinha - a casa de banho é demasiado
pequena para nela cabermos eu e as roupas despidas - e fico debaixo
do chuveiro uns bons dez minutos, pensando que toda esta água é
minha. Paguei-a, efectivamente ganhei-a. Cheguei ao fim de uma
semana na The Maids sem percalços, lesões ou insurreição. Não sinto
problemas de costas, o que significa que não sinto as costas de todo;
até mesmo os pulsos, há anos afectados pela síndrome de túnel
carpal, não se queixam. Algumas colegas avisaram-me que, da
primeira vez que andaram com o aspirador às costas, se sentiram
quase a desfalecer, mas eu não. Sou forte e, o que é ainda mais
importante, sou boa. Atirei com o balde de água imunda à branca
roupa prática e estival da Sr.a W.? Não. Peguei no tubo do aspirador e
fiz em mil pedaços as estatuetas de porcelana chinesa ou as
figurinhas de Hummel dos clientes? Nem uma vez. Demonstrei sempre
boa disposição, energia e vontade de ajudar e a competência que se
pode esperar de uma empregada
82
nova. Se posso trabalhar uma semana, posso trabalhar mais outra -
na verdade, tenho mesmo de trabalhar mais outra, porque não tive um
único momento livre para procurar outro emprego. A saída às três e
meia revela-se um mito; é frequente regressarmos ao escritório às
quatro e meia ou cinco. E o que é que eu julgava? Que iria a
entrevistas para empregos toda transpirada e malcheirosa do
trabalho? Decido recompensar-me a mim própria e ir dar um passeio
ao pôr do Sol em Old Orchard Beach.
Devido ao calor que faz ainda estão alguns banhistas na praia, mas eu
contento-me em ficar sentada, de calções e T-shirt, a ver as ondas
baterem na areia. Quando o Sol se põe, volto a pé para o centro da
cidade e fico espantada por ouvir um som que associo a cidades como
Nova Iorque e Berlim. Há dois músicos peruanos a tocar no pequeno
relvado do passeio junto ao cais, e cerca de cinquenta pessoas -
habitantes da zona e veraneantes - juntaram-se ao seu redor,
oferecendo ao som os rostos inexpressivos de fim do Verão. Furo por
entre a multidão e arranjo um lugar sentada de onde posso ver os
músicos de perto - o belo jovem guitarrista e o homem mais alto, que
toca flauta. O que estão a fazer neste local de férias pouco sofisticado
para trabalhadores e o que pensa a assistência da visita-surpresa
destes morenos do Sul? A melodia que a flauta sobrepõe à percussão
é ao mesmo tempo estranha e familiar, como se tivesse sido gravada
na mente dos meus antepassados rurais há séculos e esquecida até
este momento. As outras pessoas parecem tão enfeitiçadas quanto eu.
Os músicos piscam o olho e sorriem um ao outro enquanto tocam, e
compreendo então que eles são os emissários secretos de uma
conspiração mundial das classes baixas para arrancar alegria à
degradação e ao lixo. Quando acabam o número que estavam a tocar,
dou-lhes um dólar, o equivalente a cerca de dez minutos de suor.

Este estado de espírito de supermulher não dura. Uma das razões é


que, embora os músculos e as articulações estejam a resistir bem, a
minha pele decidiu revoltar-se. Ao princípio
83
julgo que os papos cor-de-rosa que tenho nos braços e nas pernas
devem ser uma reacção alérgica a uma planta venenosa, o
toxicodendro, contraída numa das ocasiões em que não pudemos
entrar numa casa. Por vezes o dono de uma residência esquece-se de
que é dia de virmos fazer a limpeza, ou não se lembra de deixar a
chave debaixo do capacho, ou muda de ideias em relação ao serviço
sem pensar em avisar o Ted. Para nós estas ocasiões não são motivo
de júbilo, como um nevão para as crianças das escolas, porque o Ted
culpa-nos da incompetência dos seus clientes. Quando as donas de
casa se esquecem da nossa vinda, explica-nos numa das reuniões
matinais antes de sairmos do escritório, isso «quer dizer qualquer
coisa», por exemplo, que não estão satisfeitas com o nosso trabalho e
são demasiado agressivo-passivas para o dizerem. Numa ocasião,
quando é a Pauline a chefe da minha equipa, telefona ao Ted para lhe
comunicar que não podemos entrar numa casa e a resposta dele, diz-
nos, deprimida, é: «Não me faças isso!» Por conseguinte, antes de
desistirmos, procuramos, quais assaltantes, pontos de entrada
alternativos, o que pode implicar atravessar um matagal para espreitar
pelas janelas e tentar todas as portas. Ainda não vi toxicodendros
nesta zona, mas quem sabe que outras espécies da mesma família (o
suma-gre, por exemplo) não estarão à espreita na flora do Maine? Ou
talvez a culpa seja dos produtos de limpeza, mas, nesse caso, o
problema de pele deveria ter começado pelas mãos. Após dois dias
com uma pequena irritação, desencadeia-se um colapso epidérmico a
grande escala. Besunto-me com creme antiprurido da cadeia de
farmácias Rite Aid, mas só consigo dormir uma hora e meia de cada
vez até o tormento voltar. Acordo e penso que posso ir trabalhar, mas
talvez não deva, quanto mais não seja porque pareço uma leprosa.
Porém, o Ted não tem grande paciência para doentes; uma das
nossas reuniões matinais versou o tópico «aguentar e trabalhar».
Alguém - e não ia dizer nomes - estava a faltar por causa de uma
enxaqueca. «Ora bem, quando eu tenho uma enxaqueca tomo dois
Excedrins e ando para a frente. É o que vocês têm de fazer: aguentar
e trabalhar!» Por conseguinte, animada
84
por um espírito de experimentação científica, apresento-me ao
trabalho, perguntando-me se o meu aspecto borbulhento e inflamado
será suficiente para me mandarem para casa. Eu não gostaria que
alguém com o meu aspecto mexesse nos brinquedos dos meus filhos
ou no sabonete da casa de banho... Mas não há problema. O
diagnóstico do Ted é que deve tratar-se de uma alergia ao látex.
Basta-me não pôr as luvas de borracha que usamos para trabalhos
especialmente sujos; ele vai dar-me um outro tipo para eu usar.
Para desempenhar o meu papel de forma consequente, deveria ir à
procura de cuidados de saúde grátis depois do trabalho, mas é
demasiado: o prurido é tão forte durante a noite que tenho «birras»,
esbracejando e batendo o pé para não me coçar nem chorar, por isso,
recorrendo à rede de apoio da vida real da minha classe social,
telefono ao dermatologista que conheço em Key West e convenço-o a
receitar-me qualquer coisa sem me ver. O episódio - incluindo o creme
antiprurido, o prednisone, o creme de prednisone e o Benadryl, para
conseguir dormir - fica-me por trinta dólares. Continua demasiado
quente para a época, e muitas vezes olho para a piscina azul de
alguém enquanto aspiro ou esfrego, desatinada com a vontade de me
coçar a que tento não ceder. Mesmo as minhas colegas, que não
sofrem de um problema semelhante ao meu, se sentem afectadas
pela justaposição de calor insuportável e água fresca e inacessível. No
carro, num dos dias mais quentes, depois de limpar uma casa com
piscina e respectiva cabina e caramanchão, eu, a Rosalie e a Maddy
pomo-nos a falar obsessivamente sobre imersões em todas as formas
imagináveis - água salgada e água doce, lagos e piscinas, ondas
revoltas e mar calmo, liso como uma superfície de vidro. Nem
podemos lavar as mãos nas casas que limpamos, pelo menos não
depois de os lavatórios e lava-louças serem polidos, e quando consigo
lavá-las antes há sempre qualquer tarefa suja de última hora, como
torcer os panos que usamos para o chão depois de sair de uma casa.
Talvez tenha apanhado um germe qualquer numa das casas ou seja
do líquido com que borrifo as mãos para as desinfectar. Ao fim de três
dias com esta irritação de pele, vou de novo a Old Orchard Beach e
entro no mar com a roupa
85
vestida (não me lembrei de trazer um fato de banho de Key West para
o Maine), tentando fingir que uma onda me molhou acidentalmente e
que não sou uma vagabunda patética a usar a praia como banheira.
Há um outro factor a minar a minha boa disposição. Eu andava toda
satisfeita comigo própria por ser capaz de trabalhar tanto ou mais do
que mulheres vinte ou trinta anos mais novas do que eu, mas esta
vantagem diz menos sobre mim do que sobre elas. Os laços que nos
ligam, embora ténues, são físicos. A doença de uma pode ser o fardo
extra da equipa; há um tráfico constante de remédios de ervanário e
de soluções para a dor que não requerem receita médica. Embora não
saiba como as minhas colegas conseguem viver com o que ganham
nem o que pensam sobre a nossa condição infernal, estou a par das
suas dores, cãibras e ataques de artrite. A Lori e a Pauline estão
dispensadas de aspirar devido a problemas de costas, o que significa
que rezo para não ficar na equipa delas. A Helen tem um problema
num pé, o que o Ted, ao explicar um dia a sua ausência, atribui aos
sapatos baratos que, insinua, teima perversamente em usar. A artrite
da Marge torna esfregar o chão uma verdadeira tortura; uma outra
colega tem de ir ao fisioterapeuta por causa de um problema na
articulação do ombro. Quando a Rosalie me diz que arranjou o
problema nos ombros a apanhar mirtilos em «criança» - aos meus
olhos ela ainda não passa de uma criança -, lembro-me de uma cena
da minha infância, a passear pelos campos num dia quente de Julho e
a apanhar frutos silvestres às mancheias. Mas quando a Rosalie era
pequena trabalhou nos campos de mirtilos do Norte do Maine, e o
problema que tem no ombro é uma doença profissional.
O nosso mundo é um mundo de dor - controlada por Excedrin e Advil,
compensada com cigarros e num ou dois casos com álcool, mas só
aos fins-de-semana. Será que os proprietários das casas fazem ideia
do sofrimento que acarreta tornar os seus lares tão perfeitos como
hotéis? Ficariam incomodados se soubessem, ou sentiriam um orgulho
sádico por aquilo que têm dinheiro para pagar - gabando-se aos
convidados de um jantar de festa, por exemplo, que o chão que eles
pisam é
86
esfregado somente com as lágrimas humanas mais puras? Numa das
minhas poucas trocas de palavras com a dona de uma casa, uma
mulher bem musculada e em forma, cuja secretária revela que
trabalha a tempo parcial como treinadora particular, eu estou a aspirar
e ela nota que transpiro. «É mesmo como uma boa sessão de
exercício, não é?», comenta, não sem simpatia, e na realidade até me
oferece um copo de água, a única vez que tal me aconteceu. Violando
a regra que proíbe a ingestão seja do que for enquanto estivermos
dentro de uma casa, aceito, deixando um fundo no copo para evitar o
embaraço de uma possível oferta de mais água. «Eu digo a todas as
minhas clientes: se quer ficar em forma, despeça a sua empregada e
faça você mesma a limpeza», conta-me ela. «Ah, ah», é a minha
resposta, visto que não estamos a ter uma conversinha num ginásio e
não posso explicar-lhe que este tipo de exercício é assimétrico,
brutalmente repetitivo e com certeza destrói a estrutura muscular e
esquelética, em vez de a fortalecer.
O autodomínio torna-se mais difícil quando a dona de uma casa de um
milhão de
dólares (segundo os meus cálculos, já que tem três andares e uma
vista
panorâmica da lendária costa rochosa), que, a fazer fé numa fotografia
encaixilhada na parede, conhece a verdadeira Barbara Bush, me leva
ao quarto
de dormir principal para me explicar as dificuldades que anda a ter
com o cubículo
do chuveiro. Parece que as paredes de mármore andam a «sangrar»
para cima
dos adereços de bronze, e não me importo de esfregar muito bem as
junções ?
Apetece-me dizer-lhe que não é o mármore que está a sangrar, mas a
classe
trabalhadora do mundo inteiro - as pessoas que extraíram o mármore
da pedreira,
teceram os tapetes persas até cegarem, colheram as maçãs que estão
no centro
de-mesa outonal na sala de jantar, fundiram o aço para os pregos,
conduziram os
camiões, construíram esta casa e agora se baixam, ajoelham e suam
para a
limpar.
Não que eu, nem mesmo nos meus momentos mais histriónicos,
imagine que pertenço a essa classe trabalhadora oprimida. A minha
própria capacidade de trabalhar sem me cansar hora após hora é
produto de décadas de cuidados
87
médicos acima da média, de uma dieta rica em proteínas e de
exercício em ginásios que cobram quatrocentos ou quinhentos dólares
por ano. Se agora sou um pretenso membro produtivo da classe
trabalhadora, é porque não trabalho fisicamente de forma intensa há
tempo suficiente para ter dado cabo do corpo. Mas uma coisa posso
dizer: nunca recorri a uma empregada ou serviço de limpeza (com
excepção de duas ocasiões em que precisava de preparar a minha
casa para a arrendar por um curto período de tempo), embora vários
companheiros tenham insistido comigo ao longo dos anos para que o
fizesse. Quando a ajuda me teria sido útil, com os meus filhos ainda
pequenos, não tinha dinheiro, e mais tarde, quando a despesa seria
comportável, continuei a achar a ideia repugnante. Em parte esta
atitude resulta de ter uma mãe que acreditava que uma residência
limpa pela dona de casa era um marco de virtudes femininas, mas
deve-se também ao facto de o meu trabalho normal ser sedentário, de
forma que as tarefas domésticas que desempenho - aos quinze
minutos e meias horas - funcionam como uma pausa. No entanto
continuei a rejeitar a ideia, até mesmo quando os meus amigos da
classe média-alta, de forma culposa e tão disfarçadamente quanto
possível, tinham já contratado empregadas de limpeza, porque não é o
tipo de relação que quero ter com outro ser humano ( Nota 1 ).

( Nota 1) - Em 1999, entre 14% e 18% dos lares empregavam alguém


para fazer a limpeza, estando esta percentagem a subir
acentuadamente. A Mediamark Research regista um aumento de 53%,
entre 1995 e 1999, no número de lares que recorre a uma empregada
ou serviço de limpeza uma vez por mês, ou mais, e, segundo a Maritz
Marketing, 30% das pessoas que contrataram serviços de limpeza em
1999 fizeram-no pela primeira vez nesse ano.
Os gestores destes novos serviços de limpeza empresariais, como
aquele para quem trabalhei, atribuem o seu êxito não só à entrada das
mulheres no mercado de trabalho mas também às tensões quanto ao
trabalho doméstico resultantes desse fenómeno. Quando a tendência
para recorrer a serviços de limpeza começava a popularizar-se, em
1988, o proprietário de uma franchise da Merry Maids em Arlington,
Massachusetts, disse ao Christian Science Monitor. «Brinco com
algumas clientes. Digo-lhes: "Nós até salvamos casamentos! Neste
novo período dos anos 80, as mulheres esperam mais do seu
companheiro, mas frequentemente não obtêm a cooperação que
gostariam de ter. A alternativa é pagar a alguém de fora."»
(«Ambushed by Dust Bunnies», Christian Science Monitor, 4 de Abril
de 1988.) Um outro proprietário de uma franchise da Merry Maids
aprendeu a tirar mais directamente partido das discussões
relacionadas com as tarefas domésticas; fecha entre 30% e 35% dos
seus negócios com um telefonema entre as 9 e as 11 da manhã de
sábado - que é o «horário nobre das discussoes sobre o facto de a
casa estar uma vergonha» («Homes Harbor Dirty Secrets», Chicago
Tnbune, 5 de Maio de 1994).
88
Falemos de merda, por exemplo. Acontece, como diz um autocolante
que vi num pára-choques, e acontece todos os dias a uma pessoa
empregada no sector da limpeza. A primeira vez que como criada vi
uma sanita com manchas de merda, fiquei chocada com a sensação
de intimidade indesejada. Há algumas horas, um traseiro bem nutrido
estava a esforçar-se por defecar sentado nesta sanita, e agora aqui
estou eu a limpar o que ele sujou. Para benefício de quem nunca
limpou uma sanita realmente suja, gostaria de explicar que existem
três tipos de manchas de merda. Há marcas de derrapagem no interior
da sanita. Há restos agarrados ao lado inferior do assento. E, talvez o
mais repulso de tudo, há por vezes uma crosta castanha no rebordo
dos assentos das sanitas, contra o qual um cagalhão colidiu
acidentalmente ao mergulhar na água. Não quer saber isto? Bem, não
é algo em que eu própria optasse por me deter, mas os diversos tipos
de mancha requerem métodos de limpeza diferentes. As manchas no
interior da sanita são preferíveis, porque podem atacar-se com uma
escova, que é uma espécie de arma controlada à distância. E as
crostas nos assentos são as piores, especialmente quando requerem
a intervenção de um pano e de um Dobie.
Ou poderíamos falar daquele outro grande castigo de quem limpa
casas de banho - os pêlos púbicos. Não sei o que se passa com a
classe alta americana, mas caem-lhe os pêlos púbicos a uma taxa
alarmante. Encontram-se em grande quantidade nos cubículos dos
chuveiros, nas banheiras, nos jacuzis, nos ralos e até mesmo,
inexplicavelmente, nos lavatórios. Uma vez passei quinze minutos
debruçada sobre um enorme jacuzi para quatro pessoas, fora de mim
com o esforço de encontrar os pequeos caracóis camuflados no fundo
cerâmico vermelho-escuro, mas fascinada pela imagem dos púbis da
elite económica, que a esta altura devem estar já completamente
carecas.
89
Há coisas que os donos das casas podem fazer piores do que cagar
ou caírem-lhes os pêlos. Podem espiar-nos, por exemplo. Quando
pergunto a uma colega a que se deve a regra segundo a qual não
podemos dizer palavrões, ela explica-me que há casos de
proprietários que deixam gravadores de som ligados enquanto
trabalhamos. As câmaras de vídeo também figuram nestas histórias,
posicionadas nas imediações de objectos de valor, para apanharem a
empregada da limpeza num acto de furto. Quer seja verdade ou não, o
Ted aconselha-nos a imaginar que estamos todo o tempo sob
vigilância em cada uma das casas ( Nota 1 ) . Outros proprietários
montam-nos armadilhas. Numa casa, sou repreendida pela chefe de
equipa por não aspirar todo o soalho debaixo dos vários tapetes
persas, porque a dona desta casa gosta de deixar montinhos de lixo
colocados estrategicamente, só para ver se ainda lá estão quando nós
acabamos de limpar. O mais comum é os clientes estarem em casa
quando nós chegamos, para poderem vigiar-nos enquanto
trabalhamos. Estou a aspirar a casa de um casal de reformados e, por
acaso, espreito para dentro de uma divisão que já acabei de limpar e
vejo o enorme traseiro vestido de vermelho da cliente, que me fita do
chão. Não a imaginava assim tão ágil, mas ela rastejou para debaixo
de uma secretária à procura de partículas de pó.
Gostaria de dizer mais coisas sobre as próprias casas, mas falta-me o
vocabulário para todas as formas de acabamentos de paredes,
materiais para o chão, adereços de iluminação, equipamento de
lareiras, entradas e estatuária com que nos deparamos. Relativamente
à decoração de interiores, a minha opinião, em geral, é que é uma
pena já não termos o corpo coberto de pêlos e precisarmos de viver
em casas. As várias consequências desta deficiência - manifestadas
na arquitectura, no mobiliário, etc. - nunca conseguiram prender-me a
atenção. Para compreender os tiques, pretensões e inseguranças da
classe proprietária, considero muito mais úteis os livros

( Nota 1 ) - Na altura considerei que estes medos não passavam de


histórias para assustar, mas desde então vi já vários anúncios a
câmaras de vídeo dissimuladas, como a Tech-7, uma «câmara incrível
do tamanho de uma moeda» cuja função é «obter um registo visual
das acções da sua babysitter» e vigiar «empregados para prevenir
roubos».
90
e outros artefactos relacionados com a palavra escrita. Fico a saber
que um dos nossos clientes é «cientologista»; um outro reclama-se
orgulhosamente descendente dos mesmos clãs escoceses a que os
meus antepassados pertenciam. Uma outra tem um certificado
emoldurado a comprovar que aparece na lista das mulheres
americanas mais importantes, o Who's Who of American Women.
Quanto a livros, na parte inferior do espectro literário, onde se situa a
maior parte dos nossos clientes, encontro Grisham e Limbaugh; na
parte superior, há bastantes Amy Tan e uma vez vi até um Ondaatje.
Contudo, na maioria dos casos os livros são ornamentos e a vida real -
a julgar pela quantidade de manchas de comida e peças de vestuário
abandonadas - passa-se na divisão da casa onde se encontra o
televisor com o maior ecrã. Os únicos livros que me ofendem
seriamente são os antigos, sem dúvida comprados ao quilo, que estão
por vezes expostos em mesinhas para dar um toque de antiguidade e
«autenticidade» - como se os seus donos passassem de facto os seus
tempos livres a ler uma obra de 1920 intitulada Bobsledding in
Vermont: One Boy's Adventu-re [«De Trenó no Vermont: A Aventura de
Um Menino»]. Mas a falta de tempo limita inevitavelmente as minhas
investigações literárias. A verdadeira questão que se põe a uma criada
é o número de livros por prateleira: se for superior a doze, podemos
tratá-los como um bloco e limpar o pó à sua volta; caso contrário, cada
um tem de ser retirado do lugar e espanado separadamente.
Nem todos os nossos clientes são ricos. Entre um quarto e um terço
das casas parecem ser da classe média e algumas delas - talvez
porque não dispõem de quem faça a limpeza mais ligeira entre as
nossas visitas semanais ou quinzenais - estão mesmo muito sujas.
Mas a classe social é relativa. Uma vez, depois de limpar duas casas
nas quais o número de ocupantes excedia claramente o número de
casas de banho - sinal inconfundível de dificuldades financeiras,
juntamente com a presença de pelúcias com funções decorativas -,
perguntei à Holly, a chefe da minha equipa nesse dia, se a próxima
casa na nossa lista era «rica». A sua resposta foi: «Se vamos limpar-
lhes a casa, são ricos.»
91
Chegámos ao Outono, e agora integro a equipa da Holly dia após dia.
Há nevoeiro de manhã e na berma da estrada vendem-se abóboras.
No rádio do carro da companhia, o programa de rock clássico assinala
a estação passando Maggie May várias vezes por dia - Its late
September and Ireally should be back at school [«É o Fim de
Setembro e Eu Devia Estar de volta à Escola»]. Outras pessoas vão
para os seus escritórios ou salas de aula; nós ficamos, quais
Cinderelas, nas suas casas normalmente desertas. Na estação de
música pop, passam Last Kiss, de Pearl Jam, uma canção tão bonita,
hipnótica e triste que faz o luto parecer uma condição invejável. Não
que nós comentemos o que dizem nos programas de rádio ou
qualquer outro assunto fora da esfera da The Maids e da sua série de
casas de clientes. Nesta equipa, a mais séria e cumpridora em que já
estive, a conversa, pelo menos de manhã, é exclusivamente sobre as
casas que nos esperam. Murphy... não é a que levou quatro horas da
primeira vez? B, mas não há problema depois de se limpar a banheira
da suíte principal, em que tem de se usar um produto para o bolor... E
assim por diante. Ou passamos de mão em mão a lista das tarefas
para esse dia e estudamos as «questões prementes» dos clientes
definidas pela Tam-my. As «questões prementes» são os rodapés, os
parapeitos das janelas e as ventoinhas - nunca, claro, a pobreza, o
racismo ou o aquecimento global.
Mas a questão relevante sobre a Holly é que está doente -
provavelmente mais branca, de dia para dia, do que qualquer outra
pessoa do estado. Não falo de raça; pense-se em vestidos de noiva,
tuberculose e morte. Tudo o que sei sobre ela é que tem vinte e três
anos, é casada há quase um ano e tenta sustentar-se a si própria, ao
marido e a um parente idoso com entre trinta e cinquenta dólares por
semana, pouco mais do que eu gasto em comida só para mim. Não
acredito que pese mais de quarenta quilos antes do pequeno-almoço,
partindo do princípio de que esta refeição consta dos seus hábitos.
Durante um turno de oito a nove horas, nunca a vejo comer mais do
que uma sanduíche minúscula de bolachas de
92
água e sal com manteiga de amendoim, e julgar-se-ia que não gosta
de comida, se não fosse o facto de todas as tardes, cerca das duas e
meia, iniciar uma conversa no carro baseada em fantasias
alimentares. «O que comeste ontem ao jantar?», pergunta à Marge, a
pessoa de mais idade e posses do nosso grupo, que, graças ao
marido, pescador comercial empregado, por vezes nos traz histórias
sobre restaurantes luxuosos como o T. G. I. FridayY Ou vamos a
passar por um Dairy Queen e a Holly diz: «Têm foursquares óptimos [o
nome que dão na zona a gelados em taça], sabem? Com quatro tipos
de molho. Tem-se direito a chocolate, morango, caramelo e doce de
mal-vaísco e a qualquer gelado que se queira. Uma vez, comi lá um e
deixei-o derreter um bocadinho e... oh, meu Deus!»
No entanto, hoje até mesmo a Marge, que normalmente tagarela sem
pensar sobre os acontecimentos insignificantes da sua vida («Era uma
aranha enorme» ou «Então ela põe um bocadinho de mostarda nos
feijões estufados...»), nota que a Holly está com muito mau ar. «E só
indigestão, ou também tens enjoos?», pergunta-lhe. Quando a Holly
confessa que tem enjoos, a Marge quer saber se ela está grávida. Não
obtém resposta. A Marge volta a perguntar e novamente fica sem
resposta. «Estou a falar contigo, Holly, responde-me!» É um momento
de tensão, com a Marge a interrogar a Holly e ela a responder-lhe com
um silêncio igualmente rude, mas, como chefe da equipa, a Holly leva
a melhor.
Somos só as três - a Denise está a faltar devido a uma enxaqueca -, e
na primeira casa sugiro que nesse dia a Marge e eu aspiremos. A
Marge não adere à minha proposta, mas não importa, porque a Holly
diz que de maneira nenhuma. Decido então limpar o pó a toda a
velocidade para poder aliviar ao máximo a carga da Holly. Quando
acabo, vou à pressa para a cozinha, onde me deparo com uma cena
tão melodramática que, por momentos, julgo que saí do vídeo Limpar
o Pó e entrei num filme completamente diferente. A Holly está numa
posição pouco apropriada para uma chefe de equipa, caída sobre um
armário com a cabeça entre os braços. «Não devia estar aqui hoje»,
diz, olhando para cima com ar desfalecido.
93
«Tive uma grande discussão com o meu marido. Eu não queria vir
trabalhar, mas ele disse que tinha de vir.» Esta confidência é tão
inesperada que fico sem palavras. Ela continua a falar. O problema é
que é capaz de estar grávida. Já lá vão sete semanas e os enjoos
estão descontrolados, razão por que não consegue comer nada e se
sente tão fraca, mas quer manter segredo até ganhar coragem para
falar ao Ted.
De forma tímida, tendo em mente que, como me explicou um
sociólogo meu conhecido, os habitantes da zona rural do Maine são
profundamente reservados, toco-lhe no braço e digo-lhe que não devia
estar a fazer isto. Mesmo que se sentisse bem, provavelmente não
deveria manusear os produtos químicos que utilizamos. Devia ir para
casa, mas só consigo convencê-la a comer a tablete de Puré Protein
que trago sempre na carteira, para o caso de a sanduíche não chegar.
Ao princípio recusa. Depois, quando insisto, diz: «A sério?», e por fim
pega nela, quebrando pedacinhos com dedos trémulos e metendo-os
à boca. Já agora, será que eu me importaria de conduzir durante o
resto do dia, porque ela não se sente capaz, com as tonturas?
Pela primeira vez na minha vida como criada tenho um objectivo mais
importante do que tentar satisfazer os padrões estéticos da burguesia
da Nova Inglaterra. Farei o trabalho de duas pessoas, se necessário
de três. A casa seguinte pertence a uma mulher a que a Holly e a
Marge chamam «uma sacana do carago» e que parece ser Martha
Stewart1, ou pelo menos uma sua devota. Tudo nesta casa me
enraivece, e algumas das coisas seriam irritantes mesmo que só
viesse tomar uma bebida e não estivesse a trabalhar ao lado desta
criança pálida e subnutrida: a placa de latão na porta a anunciar a data
de construção (meados do século xviii), o bar com o seu alinhamento
ostentador de uísques single malt, a enorme cama de dossel, o jacuzi
tão grande que tem de se subir umas escadas para entrar nele e,
quando cheio, é provável que possam dar-se uns mergulhos. Limpo as
casas de banho a toda a velocidade
1 Autora de livros sobre culinária, decoração de interiores, ete, e
personalidade televisiva. (N. da T.)
94
e até consigo acabar a cozinha enquanto as minhas colegas estão
ainda a fazer as tarefas iniciais. Em seguida a Marge entra na cozinha
e aponta para a fila de tachos e panelas de cobre pendurados de um
varão junto ao tecto. Segundo as nossas instruções, diz-me ela, cada
um tem de ser polido com o produto especial da dona da casa.
OK. A única forma de chegar ao varão é subir para o balcão da
cozinha, ajoelhar-me e, nessa posição, alcançar cada um deles. É
bom que se note que não se trata de tachos e panelas para cozinhar,
mas de peças decorativas expostas de forma a reflectirem os raios de
sol ou os rostos dos proprietários, sem dúvida igualmente esfregados
e polidos. O último tacho é demasiado pesado - estão dispostos por
tamanhos -, e quando o agarro da minha posição acocorada foge-me
das mãos e cai sobre um pequeno aquário artisticamente enfeitado
com berlindes. Os peixes voam, os berlindes saltitam pelo chão e a
água - que, no nosso trabalho, é considerada um produto
contaminador perigoso - encharca tudo, inclusive uma prateleira de
livros, incluindo Cucina Simpática, uma série de obras sobre a
Provença e, sim, livros da própria Martha Stewart! Ninguém se zanga
comigo, nem sequer o Ted, quando voltamos ao escritório, porque tem
seguro para este tipo de coisas. O meu castigo é a expressão da Holly,
quando corre para a cozinha para ver o que estava a passar-se,
completa-mente transida de medo.
Depois do acidente, a Holly decide que podemos fazer um intervalo e
parar numa loja de conveniência. Compro um maço de cigarros e
sento-me à chuva a fumar (já não inalo o fumo há anos, mas ajuda,
mesmo assim), enquanto as outras duas bebem Coca-Cola no carro.
Tenho de ultrapassar este complexo de salvadora, digo a mim própria,
ninguém quer ser salva por uma tola. Naquele momento, até as
minhas motivações parecem dúbias. Sim, quero ajudar a Holly e todas
as pessoas necessitadas, a nível mundial, se possível. Sou uma «boa
pessoa», como concordam os meus idosos senis da casa de repouso,
mas talvez esteja também farta da insignificância que adquiri
subitamente. Talvez queira «ser alguém», como lesse Jackson gosta
de dizer, uma pessoa generosa, competente,
95
corajosa e, acima de tudo, uma pessoa em que os outros reparem.
Como grupo profissional, as criadas não são visíveis; e, quando o são,
é frequentemente por motivos indesejáveis1. A caminho da casa ao
estilo de Martha Stewart, quando a Holly e a Marge se queixavam da
sobranceria da cliente num encontro anterior, atrevera-me a perguntar
por que motivo tantos clientes pareciam demonstrar-nos hostilidade ou
desprezo. «Pensam que somos estúpidas», foi a resposta da Holly.
«Acham que não sabemos fazer mais nada.» Também a Marge
parecia subitamente séria. «Para estas pessoas, nós não somos
nada», acrescentou. «Não passamos de criadas.» Também não somos
grande coisa para as outras pessoas; até mesmo as empregadas das
lojas de conveniência, que ganham seis dólares à hora, parecem
olhar-nos de alto. Em Key West, a minha camisa de empregada de
mesa era sempre pretexto para meterem conversa comigo: «Está no
Jerry's?», perguntava uma empregada de balcão, por exemplo. «Eu
dantes trabalhava naquela pastelaria ao cimo da avenida.» Mas a
farda de empregada da limpeza tem o efeito oposto. Num sítio onde
paramos para comprar bebidas, um restaurante com balcão, tentei
pedir chá gelado para levar, mas a empregada continuou a conversar
com uma colega, ignorando os meus «Desculpe lá...».
1 Esta invisibilidade persiste ao nível macroscópico. O Census Bureau
regista a existência de 550 000 trabalhadores domésticos em 1998,
um aumento de 10% desde 1996, mas talvez este número esteja
subestimado, visto que uma grande parte da economia do serviço
doméstico é ainda clandestina ou semickndestina, pouco acessível a
quem recolhe dados. Em 1993, por exemplo, o ano em que Zoe Baird
perdeu a oportunidade de ser procuradora-geral por não ter declarado
os pagamentos à imigrante ilegal que era ama dos seus filhos, as
estimativas indicavam que, dos americanos que pagavam mais de
1000 dólares a uma empregada da limpeza, menos de 10%
declaravam às Finanças esses pagamentos. A socióloga Mary Romero
dá um exemplo do alcance que podem ter estas estimativas
incorrectas: no censo de 1980, existiam somente 1063 «trabalhadores
domésticos particulares» em El Paso, embora simultaneamente o
Departamento de Planeamento, Investigação e Desenvolvimento
dessa cidade calculasse que ascendiam a 13 400, e, segundo os
condutores de autocarros locais, metade das 28 300 viagens diárias
eram feitas por empregadas domésticas a deslocarem-se de e para o
trabalho (Maid in the U. S. A., p. 92). A honestidade dos empregadores
aumentou desde o escândalo Baird, mas a maior parte dos
especialistas acredita que os trabalhadores domésticos continuam em
grande medida por contar e são invisíveis na economia geral.
96
E há também o caso do supermercado. Eu costumava fazer compras
a caminho de casa, mas não conseguia suportar os olhares que me
lançavam, facilmente traduzíveis: «Mas o que estás aqui a fazer?» e:
«Não admira que seja pobre, leva uma cerveja no carrinho das
compras!» É verdade que o meu aspecto ao fim de um dia de trabalho
não é dos melhores, e provavelmente tresando a água-de-colónia e
suor, mas é a espampanante vestimenta verde e amarela que me trai,
como a farda prisional de uma fugitiva. Chego a pensar que talvez
esteja a ter uma pequeníssima amostra de como seria pertencer à
raça negra. E olhem agora para mim, sentada na berma da estrada
junto a uma estação de serviço, a fumar debaixo de uma chuva
persistente e lenta, tão encharcada de suor que nem me importo. «As
coisas não podem piorar», penso. Mas podem - podem mesmo! -, e de
facto pioram. Na casa seguinte, quando estou a tirar a escova de
sanita do saco com fecho onde a guardo, o líquido que tem vindo a
acumular-se ao longo do dia derrama-se sobre o meu pé - 100% puro
sumo de sanita a escorrer pelos atacadores e para a meia. Na vida
normal, se alguém, por exemplo, nos urinasse em cima do pé, o que
faríamos seria tirar o sapato e a meia e deitá-los fora. Mas este é o
único par de sapatos que tenho. O que há a fazer é tentar esquecer a
porcaria horrorosa que me está a encharcar o pé e, como nos exorta o
Ted, continuar a trabalhar.
Mensagem para mim do meu anterior eu: abranda o ritmo e, acima de
tudo, mantém a distância. Se não consegues estar com pessoas que
sofrem, então não tens lugar neste mundo do trabalho de salário
baixo, quer como jornalista quer como outra coisa qualquer. Além
disso, tenho problemas meus a resolver, o mais urgente dos quais é
financeiro. Segundo os meus cálculos iniciais, poderia subsistir com os
dois empregos - mas a longo prazo e se não ocorresse qualquer
imprevisto. Contudo, não sou paga ao fim da primeira semana na The
Maids, visto que, como me informam, o primeiro cheque de uma nova
empregada é retido até ela ir embora ou se despedir, aparentemente
para evitar que se precipite num ataque desenfreado
97
de consumismo e não apareça ao trabalho na segunda semana. A
acrescentar às despesas relacionadas com a irritação de pele, tenho a
desagradável surpresa de descobrir que a renda da primeira semana
no Blue Haven é duzentos dólares e não cento e vinte, porque a
estação turística não se considera ainda terminada. Além do mais,
como o meu apartamento, embora o alugasse «equipado», não
continha praticamente nenhuns utensílios de cozinha quando me
mudei para lá, vi-me obrigada a comprar uma espátula, um abre-latas,
uma faca, uma vassoura e outros utensílios no Wal-Mart. Quando
começar a receber dos dois empregos não terei problemas, mas neste
momento, perto do final da minha segunda semana, prevejo um fim-
de-semana apertado, mesmo tomando em consideração os almoços
grátis no Woodcrest.
Existe auxílio para os trabalhadores que são pobres? Sim, mas para o
encontrar é necessário ser-se determinado e não estar na miséria.
Numa quinta-feira depois do trabalho, vou a uma estação de serviço
Mobil em frente à The Maids e telefono para o Prebles Street
Resource Centre (Centro de Recursos de Prebles Street), que vem na
lista telefónica como uma fonte de refeições grátis e auxílio em geral.
Ouço uma mensagem gravada a dizer que Prebles Street fecha às
três horas - tanto pior para os pobres que trabalham! -, mas que
depois dessa hora posso tentar o número de telefone 774-help.
Espero quatro minutos antes de ser atendida. Digo que cheguei
recentemente a esta zona e que estou empregada, mas necessito de
auxílio alimentar e financeiro imediato. Como é que preciso de dinheiro
se estou empregada, pergunta o funcionário; não trouxe dinheiro
comigo? Gastei-o a alugar casa, respondo, que foi mais cara do que
esperava. Bem, então porque é que não averiguei os montantes das
rendas antes de me mudar para aqui? Tinha pensado em falar-lhe
também da irritação de pele, como circunstância atenuante, mas
decido que a nossa relação ainda não chegou ao ponto em que não
me importo de discutir com ele o meu corpo. Por fim cede e dá-me um
outro número de telefone. Depois de uma sequência de quatro
telefonemas, encontro um ser humano prestável, a Gloria, que me
aconselha a ir à sopa dos pobres em Biddeford no dia
98
seguinte, entre as nove e as cinco. Mas que ideia é esta de que as
pessoas com fome têm o dia todo livre para andarem de carro de um
lado para o outro a visitar «centros de acção comunitária» e
instituições de caridade? E então que a Gloria me dá o número da
Karen, funcionária de uma outra instituição voluntária, onde me dizem
que estou no condado errado. Muito lentamente, e tentando adoptar o
tom despachado que utilizaria se o motivo do meu telefonema fosse
uma dúvida sobre um extracto bancário, volto a passar em revista as
minhas limitações geográficas e de tempo, sublinhando que trabalho
sete dias por semana, pelo menos oito horas por dia, e que por acaso
neste momento estou na área geográfica da sua jurisdição. Bingo! A
Karen cede. Dinheiro não me pode dar, mas vai fazer um telefonema e
posso ir buscar um vale alimentar a uma loja Shop-n-Save (Compre e
Poupe) em South Portland. O que é que eu gostava de comer ao
jantar?
A pergunta parece frívola, ou trocista. O que é que quero para o
jantar? Que tal filete de salmão frito com molho de manjericão e um
belo copo de chardonnay J. Lohr Mas a Karen não está a brincar. Não
pode dar-me dinheiro, que, quem sabe, eu poderia desbaratar em
bebida, mas também não posso escolher a ementa a meu bel-prazer.
As minhas opções para o jantar limitam-se, segundo me explica, a
dois pratos entre os seguintes: uma embalagem de massa chinesa,
um frasco de molho de tomate, uma lata de legumes, uma lata de
feijão guisado, uma embalagem de acompanhamento de hambúrguer
ou uma embalagem de acompanhamento de atum. Nenhuns legumes
ou frutos frescos, nada de frango ou queijo e, estranhamente, nenhum
atum para comer com acompanhamento. Para o pequeno-almoço,
dão-me flocos de cereais e leite ou sumo. Nada mau! Vou ao Shop-n-
Save, levanto o vale (de que consta a lista das minhas parcas opções)
no balcão de atendimento e começo a comprar - e, sem dúvida, a
poupar. Levo um quarto de litro de leite, um pacote de flocos de
cereais, meio quilo de carne picada e uma lata de feijão-encarnado,
com a intenção de transformar estes dois últimos ingredientes numa
espécie de chili ou, pelo menos, feijão com carne, e felizmente a
funcionária da caixa não questiona a minha
99
substituição de feijão guisado por feijão-encarnado. Tento agradecer-
lhe, mas ela está a olhar para o outro lado, para nada em especial.
Feitas as contas, tenho compras no valor de sete dólares e dois
cêntimos, adquiridas ao fim de uma hora e dez minutos de
telefonemas e deslocações, a que tenho de descontar dois dólares e
oitenta das chamadas - o que equivale a um salário de três dólares e
sessenta e três à hora.
E há os fins-de-semana no Woodcrest. Esforço-me por interpretá-los
como verdadeiros fins-de-semana, como se, depois de passar a
semana em obras fúteis e em grande medida cosméticas, tivesse
decidido empregar o meu tempo em algo útil.. «Deve ser tão
deprimente!», dizem nas cartas que me escrevem; a minha irmã e,
claro, outros órfãos de doentes de Alzheimer, mas não é. Desde que
alinhemos com os doentes e esqueçamos que já foram seres
humanos de posse de todas as suas faculdades, podemos encará-los
como bebés mirrados num lanche de festa. Comparados com as
mulheres que trabalham na The Maids, os meus colegas do
Woodcrest formam um grupo entusiástico e expansivo, embora haja
caras novas todos os fins-de-semana. Afastando-me um pouco do
Pete - em parte porque não quero cair de novo no hábito de fumar -,
chego pelo menos ao nível de dizer «Olá, viva!» a cerca de uma dúzia
de cozinheiros, enfermeiras e auxiliares de enfermagem e de nutrição.
O que mais aprecio são a autonomia e a liberdade de movimentos não
regulados ao minuto. Os fins-de-semana são isentos de supervisão, e
a Linda, que, de qualquer maneira, não é propriamente uma ditadora,
é raro aparecer depois do primeiro dia. Posso começar a pôr mesas ou
a varrer da parte da sala que muito bem entenda; aqui não há «da
esquerda para a direita» e «de cima para baixo», como na The Maids.
Posso decidir se vamos precisar de mais gelado para o serviço de
almoços e se será de chocolate ou morango. Quando um residente
rejeita o frango ou as almôndegas que temos na ementa, posso
propor-lhe uma alternativa minha: e se lhe fizesse uma tosta de queijo
e uma sopa de tomate quentinha? A lavagem dos guardanapos e das
toalhas de mesa está inteiramente à minha discrição.
100
Mas pode haver demasiada liberdade e, sem dúvida, demasiado
movimento. No sábado a seguir ao incidente do aquário, quando
chego ao lar, às sete horas, descubro que nesse dia a minha colega
auxiliar de nutrição não apareceu e que serei a única a trabalhar na
enfermaria fechada dos doentes de Alzheimer. Além disso, nem o Pete
nem qualquer dos seus colegas da cozinha principal parecem estar
disponíveis para desempenhar a sua função, habitual aos pequenos-
almoços, de encher os pratos na pequena cozinha da enfermaria
enquanto eu sirvo às mesas. Os «além disso» multiplicam-se:
descubro que a máquina de lavar louça do andar de cima, a que dá
mais jeito para a enfermaria dos doentes de Alzheimer, está avariada,
o que significa que a louça tem de ser pré-lavada no andar de cima e
depois carregada num carrinho para a máquina da louça ao lado da
cozinha principal, no andar de baixo. Num último toque de azar,
desapareceram as chaves da cozinha do andar de cima, e, claro, para
sair da enfermaria fechada tenho de ir à procura de uma enfermeira de
cada vez que preciso que me abram a porta. Não recordo quase nada
desse dia, e os apontamentos que escrevi no meu diário têm o tom
ofegante e de pânico de uma alpinista no Evereste que chegou ao fim
da última garrafa de oxigénio: «Tirar restos e passar por água pratos e
carregar o carrinho para primeira ida à máquina do andar de baixo.
Arrumar produtos alimentares não usados (caramelo líquido, leite, etc).
Trazer primeira carga de louça limpa e arrumar na despensa do andar
de cima. Recolher toalhas de mesa, panos individuais e guardanapos
e metê-los na máquina. Varrer debaixo das cadeiras; aspirar à volta
delas.» Desenvencilho-me graças às auxiliares de enfermagem, que
me ajudam a servir à mesa, e graças também à lição que aprendi no
Jerry's: não parar, não reflectir nem pensar em fazer uma pausa por
um instante que seja, porque, se o fizer, aperceber-me-ei
imediatamente do cansaço que me invade e ele levará a melhor sobre
mim.
Depois do trabalho, decido fazer uma visita ao parque estatal aonde o
Pete anda a tentar levar-me, para desfrutar deste belo dia de Outono.
Andam crianças a trepar pelos enormes rochedos negros junto ao
oceano; normalmente eu faria o mesmo, mas as minhas pernas, que
se aguentaram tão bem
101
durante horas a fio, parecem agora de borracha, e sento-me num
rochedo, fitando um ponto à minha frente. Que ideia é esta de deixar
que alguém sem preparação tome conta de um lar, ou pelo menos de
uma parte vital de um lar, por um dia?1 É verdade que este foi o único
emprego em que as referências que apresentei foram verificadas,
mas... e se eu fosse uma daquelas trabalhadoras da saúde que se
arvoram em anjos da morte e decidem libertar os doentes a seu cargo
de uma vida apenas semivivida? Ainda mais relevante para esta
situação é a questão de saber como ficaria, ao fim de alguns meses,
uma pessoa a trabalhar em dois empregos sem um único dia de
descanso. Na minha vida de escritora trabalho, em geral, sete dias por
semana, mas escrever é uma forma de alimentar o ego auto-
supervisionada e que, ocasionalmente, resulta em elogios. Aqui,
ninguém reconhecerá o meu heroísmo neste turno de sábado. (Mais
tarde faço questão de contar à Linda o que se passou e recebo um
aceno de cabeça distraído.) Se uma pessoa labutar num trabalho
indiferenciado mais de trezentos e sessenta dias por ano, será que
uma espécie de lesão por esforços repetitivos lhe atacará o espírito?
Não sei e não tenciono descobrir se é verdade, mas adivinho que um
dos sintomas é um ataque agudo de visão de túnel. O trabalho
preenche o campo visual; os colegas adquirem foros de membros da
família ou inimigos figadais. As desfeitas tomam proporções
desmedidas e uma reprimenda pode assombrar-nos uma noite inteira.
Se cometo um erro qualquer ao aspirar, o que é frequente, posso
contar que passarei uma
1 Num relatório publicado pelo U. S. Department of Health and Human
Services (Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA) em
Julho de 2000, constatou-se que a maior parte dos lares apresentava
graves carências de pessoal, especialmente os lares particulares
como aquele em que trabalhei. Segundo o relatório, entre as
consequências da falta de pessoal encontram-se o aumento da
incidência de problemas tais como chagas, desnutrição, desidratação,
complicação cardíaca e infecções. Embora nunca tenha visto um
doente ser ignorado ou maltratado na zona de refeições onde trabalhei
no Woodcrest, facilmente uma auxiliar poderia cometer um erro que
pusesse em perigo a vida dos doentes, como, por exemplo, servir
comida com açúcar a um diabético. Considero que eu e os meus
doentes tivemos uma sorte extraordinária por não ter,
inadvertidamente, causado problemas a alguém no dia em que tive a
meu cargo exclusivo a alimentação na enfermaria dos doentes de
Alzheimer.
102
parte da noite a reviver a situação e a refilar contra a reprimenda:
«Mas o vídeo não dizia para aspirar até meio debaixo dos tapetes...»,
e assim por diante (não que me lembre do que dizia o vídeo). No
domingo à noite, depois da minha actuação a solo no Woodcrest,
acordo às três da madrugada obcecada pela teoria de que o Pete me
tinha montado esta armadilha deliberadamente. Ele tinha a obrigação
de me ajudar a encher os pratos, mas devia estar chateado comigo
por eu andar a faltar aos nossos encontros de fumadores e decidira
tentar fazer-me descarrilar o trabalho. Na verdade esta teoria não tem
fundamento; no sábado seguinte, o Pete até me traz um Egg McMuffin
caseiro. Porém, é alarmante o simples facto de ter desperdiçado horas
de sono preciosas a imaginar que tinha sido apunhalada pelas costas.
Eh, lá, rapariga, tens de te controlar!
O objectivo para a minha terceira semana na The Maids é atingir um
estado de autodistanciamento transcendente. A ira é tóxica, como
lembram as filosofias New Age, e não tenho qualquer prova de que as
minhas colegas partilhem a indignação que sinto em seu nome, pelo
menos de uma forma explícita. Existem apenas duas formas de
rebelião de que vi indícios, e nenhuma delas põe em questão o topo
da hierarquia social. Uma delas é o roubo. Nunca vi ninguém a roubar,
mas essa possibilidade é um subtexto persistente da disciplina e dos
mitos da The Maids. Por exemplo, os nossos carros e fardas
berrantes, verdes e amarelos, provavelmente destinam-se a distinguir-
nos do típico bando de assaltantes, e suspeito que a razão de as
nossas calças não terem bolsos atrás é para não os enchermos com
jóias e dinheiro. Alguns clientes deixam à vista pilhas de moedas ou
até mesmo montes de notas, talvez com uma câmara de vídeo
assestada sobre elas para apanhar em flagrante uma criada amiga do
alheio ou demasiado gananciosa. Numa das reuniões matinais, o Ted
informa-nos com ar grave de que houve um «incidente» e de que a
perpe-tradora já não está a trabalhar connosco. Este tipo de situação
raramente acontece, diz ele, porque o Accutrac é quase 100% fiável
na detecção de pessoas desonestas (com excepção de mim própria, é
claro).
103
A outra forma de rebelião consiste em violações públicas do código de
decoro da The Maids. Duas das minhas colegas - chefes de equipa,
por acaso - adoram meter prego a fundo e aterrorizar as zonas
residenciais chiques que servimos. Não me surpreenderia que o Ted
tivesse recebido queixas contra um destes ralis, em que a condutora
(que não identificarei nem mesmo através do seu pseudónimo, para
que qualquer outra das suas características não revele acidentalmente
a sua identidade) decidiu acelerar numa zona onde existem várias
casas de clientes nossos, com uma cassete de música rap, cuja letra
consistia, em larga medida, em «vai-te foder, seu otário», e outras
variações sobre este tema, a tocar no máximo, enquanto a proprietária
de uma das casas, que ia a empurrar um carrinho de bebé, ficou
transida no passeio. Rimos perdidamente no banco de trás, agarradas
aos braços do assento e tentando não enjoar com a velocidade. Mas
este tipo de rebelião só constitui ameaça para os raros peões da
classe proprietária. Na maior parte do tempo, as minhas colegas
limitam-se a ocupar o seu pequeno nicho na escarpada encosta da
desigualdade de classes. Afinal, se não existissem pessoas com
demasiado dinheiro, espaço e bens, não existiriam criadas.
A pouco e pouco, enquanto esfrego, limpo e puxo o lustro, organizo
uma filosofia de gloriosa abnegação. Inspiro-me no Jesus que foi
proibido de entrar na tenda do renascimento, o que disse que os
últimos serão os primeiros e que, se alguém nos pedir o manto,
devemos dar-lhe também a camisa. Acrescento uma pitada de
budismo em segunda mão, que recordo do que me contou uma amiga
sobre um mosteiro no Norte da Califórnia onde pessoas ricas pagam
para passar o fim-de-semana a meditar e a fazer vários trabalhos
indiferenciados, entre os quais se contam tarefas domésticas. Quando
ouvi falar pela primeira vez deste mosteiro, fartei-me de rir, mas agora
a imagem de milionários da Internet a esfregarem o chão para o bem
das suas almas apresenta-se como uma bóia de salvação psíquica. E,
como me disse o meu filho numa conversa ao telefone, há também o
facto de uma vez Simone Weil ter trabalhado numa fábrica com um
objectivo metafísico que não compreendi completamente, o que
acrescento à mistura.
104
Na bela fantasia resultante, não estou a trabalhar num serviço de
criadas; entrei para uma ordem mística dedicada a realizar as tarefas
mais desprezadas, com um sorriso e praticamente de borla - até
agradecida por esta oportunidade de entrar em estado de graça
através da submissão e do trabalho. A Holly pode esvair-se em sangue
à minha frente, se quiser, que eu apenas a considerarei especialmente
escolhida por um Deus inescrutável, mais ou menos como aconteceu
a Jesus. Decido nem sequer me queixar por me reterem o primeiro
pagamento ou pelas várias formas como se aproveitam de nós todos
os dias. Dizem-nos para nos apresentarmos ao trabalho às sete e
meia, mas o taxímetro só começa a funcionar às oito, a hora a que
partimos para as casas, e também não nos pagam a meia hora que
passamos no escritório ao fim de cada dia a apartar os panos sujos
para serem lavados e a encher as garrafas com produtos de limpeza.
Mas porquê queixar-me por não ser paga, quando naquele mosteiro
budista as pessoas pagam para fazer o mesmo tipo de trabalho?
Este estado de espírito elevado dura cerca de um dia, e mesmo assim
verificam-se recaídas: por exemplo quando, numa enorme casa de
campo com paredes pintadas à mão, deparo com uma prateleira cheia
de encómios neoconservadores ao estado de coisas, que considero
arrogante e, nestas circunstâncias, um insulto pessoal, e me passa
pela cabeça recorrer a tácticas de guerra bacteriológica contra os
proprietários com as armas que tenho nos bolsos do avental. Bastar-
me-ia pegar num dos panos embebido em E. coli que usei para as
sanitas e utilizá-lo para «limpar» os balcões da cozinha - um plano que
me entretém durante uma hora, ou mais. Mas, curiosamente, é a casa
de um budista que destrói o meu estado de santidade. É frequente
encontrarmos sinais da «espiritualidade» dos clientes - livros como
Dez Coisas Que Aprendi sobre a Vida no Meu Jardim e ornamentos
inspiradores nas paredes a aconselharem a encontrar o centro do eu,
mas esta casa é de um genuíno budista - um ocidental convertido,
claro -, com livros de bolso zen e uma estátua de um metro do Buda
na sala de estar, com um papel afixado na fronte serena e lisa a avisar
que não devemos tocar-lhe, nem mesmo para limpar o pó.
105
Ao sairmos daquela casa, com a pressa habitual de levar os baldes
para o carro, a Holly tropeça num buraco no chão, cai e grita. Volto-me
e vejo-a a chorar, com o rosto, normalmente de uma palidez de morte,
congestionado. «Partiu-se alguma coisa», soluça. «Eu ouvi qualquer
coisa a partir-se.» Ajudo-a a pôr-se de pé, dizendo à Marge, que nos
fita de boca aberta, que lhe pegue no outro braço. «Temos de te levar
à urgência, para fazeres já uma radiografia.» Mas não, ela consente
apenas em telefonar ao Ted da casa seguinte, embora tenha de ser a
Denise a conduzir. No carro tento convencê-la, discursando sobre
fracturas e entorses como se soubesse alguma coisa do assunto, mas
a Holly só chora e fala dos vários dias de trabalho que já perdeu nas
últimas semanas, e as outras nem parecem escutar o que nós
dizemos.
Quando chegamos, a Holly deixa-me examinar-lhe o tornozelo e,
enquanto estou debruçada sobre ele - não que haja alguma coisa a
ver -, murmura que a dor é mesmo insuportável. «Não podes trabalhar.
Estás-me a ouvir, Holly? Não podes trabalhar com o tornozelo neste
estado.» No entanto, a única coisa que concorda em fazer é ligar ao
Ted do telefone na cozinha, e eu fico ao lado dela a ouvi-la
choramingar desculpas e dizer que a Barbara está a fazer um
escarcéu, e sinto a bela serenidade zen a esvair-se no suor do meu
rosto. Estendo a mão e insisto que me passe o telefone. As primeiras
palavras que ouço, ainda antes de conseguir dizer: «Ouça», são: «Ora
bem, vamos lá a acalmar, Barbara», embora ele já tenha idade para
saber que «acalmar» geralmente funciona como um incitamento para
uma pessoa se enfurecer.
E enfureço-me. Não consigo lembrar-me das palavras exactas, mas
digo-lhe que não pode continuar a pôr o dinheiro acima da saúde das
empregadas e que não quero ouvi-lo dizer que é «trabalhar para a
frente», porque esta rapariga está mesmo mal. Mas o Ted continua a
recomendar calma, e entretanto a Holly anda a saltitar ao pé-coxinho
pela casa de banho, a recolher pêlos púbicos.
Desligo-lhe o telefone na cara e vou ter com a Holly para lhe fazer ver
o meu ponto de vista. Deveria dizer: «Olha, eu, na realidade, sou uma
pessoa com estudos, até tenho um
106
doutoramento, e não posso ficar de braços cruzados...» Mas soaria
estúpido, e o que é que interessaria à Holly? É bem possível que o
marido lhe bata quando ela falta ao trabalho. Por conseguinte, faço a
única outra coisa que me ocorre. Digo: «Eu não trabalho se não fores
tratar-te. Ou, pelo menos, se não te sentares com o pé ao alto
enquanto nós fazemos o teu trabalho.» Viro-me para a Denise, que
está à espreita à porta da casa de banho. «Isto é uma paralisação de
trabalho. Já ouviste falar? Isto é uma greve.» A Denise volta ao
trabalho, fazendo uma careta de embaraço ou talvez de reprovação.
«Só vou limpar as casas de banho...», diz a Holly para me aplacar.
«Quê, ao pé-coxinho?»
«Eu sou de uma família teimosa...»
«Eu também, caramba!»
Mas os antepassados da Holly vencem os meus. A chefe da equipa
(ela) leva a melhor sobre a mãe (eu). De qualquer forma, se me for
embora, para onde vou? Lá fora há cavalos a pastar no prado, aves
migratórias cruzam os céus numa formatura perfeita. Não faço a
mínima ideia de onde estou - a norte de Portland, a oeste? Podia
chamar um táxi, mas não trouxe dinheiro que chegue para a viagem
até casa nem tenho lá dinheiro para pagar. Podia montar um daqueles
cavalos, se soubesse montar, e galopar de prado em prado, passando
por pátios e auto-estradas, só parando à beira-mar. Mas a minha
partida - se tivesse meios de o fazer - resultaria apenas em aumentar
a carga de trabalho das outras três, incluindo a Holly, porque ela
deixou bem claro que vai aguentar-se até lhe tirarem o último pano de
limpeza das mãos gélidas e mortas.
Por conseguinte, a única coisa a fazer é aceitar a situação. Tremendo
de raiva (contra o Ted), com a sensação de ter sido traída (pela Marge
e pela Denise) e, acima de tudo, com a minha total e abjecta
impotência, ponho o aspirador às costas e afivelo as correias. Não é
fácil concentrar-me em carpetes quando só consigo ver à minha frente
um incêndio a alastrar pelo capim e a devorar casa após casa à sua
passagem. Só faço asneiras, para as quais a Denise me chama a
atenção com uma malícia evidente, e tenho de limpar de novo o andar
de baixo.
107
No carro, impera o silêncio durante algum tempo e ninguém olha para
mim, com excepção da Marge, que, como habitualmente, não perde
tempo a pensar no passado. Depois a Holly começa com uma
daquelas pornográficas conversas alimentares de fim de tarde de que
tanto gosta. «O que vais fazer para o jantar hoje, Marge?... Ah, sim?
Com molho de tomate?»
Vou no carro na longa viagem de regresso a tentar manter a minha
raiva em ponto de ebulição, ensaiando o que vou dizer ao Ted quando
ele me despedir por insubordinação: «Ouça, eu posso aturar merda e
ranho e todas as outras substâncias nojentas com que me deparo
neste trabalho. A única coisa que me arrepia é o sofrimento humano.
Desculpe lá, tentei ignorá-lo, mas a minha eficiência ressente-se
quando tenho de trabalhar lado a lado com pessoas a chorar, a
desmaiar, esfomeadas ou com qualquer outro sofrimento visível, por
isso é realmente melhor arranjar alguém mais dura do que eu», ou
outro discursinho como este, cheio de razão. Quando estamos a dois
quarteirões de distância do escritório, a Marge fita-me com um olhar
que parece de compaixão. Eu sei que a Marge não desempenhou um
papel admirável nesta história, mas já tivemos várias conversas
demoradas e íntimas sobre hormonas, antidepressivos e outros
problemas da meia-idade. Houve um dia em que fizemos troça uma da
outra por transpirarmos tanto, e depois de acabarmos de limpar a casa
corremos as duas lá para fora, deitámos a cabeça para trás e abrimos
os braços à chuva, rindo como pagãs, e senti um grande afecto por
ela. Agora, diz-me: «Pareces cansada, Barbara.» A palavra certa é
derrotada, mas eu apenas respondo - suficientemente alto para ser
ouvida pela Holly e a Denise no banco da frente: «Estou a preparar-
me para um confronto com o Ted.»
«Ele não vai despedir-te», acrescenta a Marge, a animar-me. «Não te
preocupes com isso.»
«Oh, não estou preocupada com isso! Há milhões de empregos à
minha espera. É só olhar para os anúncios.» A Denise volta a cabeça,
olhando para mim de lado com uma expressão vazia. Será que elas
não lêem os anúncios de oferta de emprego? Não se apercebem de
que a quantidade que há significa que têm o Ted na mão e podiam
pedir o que quisessem -
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digamos, sete dólares e meio à hora, calculado a partir do momento
em que chegam ao escritório, de manhã, até à altura em que acabam
de arrumar os panos, ao fim do dia?
«Mas nós precisamos de ti», diz a Marge. E depois, como se isso
soasse demasiado afectuoso, acrescenta: «Não podes deixar o Ted
pendurado.»
«E porque é que estás a preocupar-te com o Ted? Ele encontra outra
empregada. Contrata qualquer pessoa que consiga chegar sóbria ao
escritório às sete e meia da manhã. Sóbria e a andar direita.»
«Não», diz por fim a Holly, «isso não é verdade. Nem toda a gente
consegue este emprego. Tem de se passar no teste.»
O teste? O teste Accutrac? «O teste», quase grito, «é uma merda!
Qualquer pessoa pode passar naquele teste!»
E um desabafo indesculpável. Em primeiro lugar, porque é insultuoso,
especialmente para a Holly e o seu sentido agudo de profissionalismo,
que a faz trabalhar mesmo quando está doente e magoada. Não me
admirava que o teste tivesse constituído para ela um obstáculo a nível
básico de literacia. Todas as empregadas sabem ler, mas por vezes a
Holly pergunta-me como se escrevem palavras simples como
transportar e pesava, de que precisa para fazer o relatório de
«incidentes» ocorridos. Em segundo lugar, porque é contra as regras
usar «palavrões» num carro da companhia. De qualquer forma, onde
está o meu profissionalismo, a distância jornalística que supostamente
me guiaria e apoiaria ao longo desta experiência?
Mas não é fácil manter uma sensação de raiva dirigida ao alvo errado;
as últimas faíscas apagam-se, como merecem, nas águas geladas da
humilhação e da derrota. Prevejo que a Holly vai detestar-me para
sempre, porque desafiei a sua autoridade como chefe da equipa e tive
mais de uma oportunidade de a ver em lágrimas e atemorizada. A
Denise vai odiar-me, claro, por eu ter provocado uma cena que a fez
sentir-se desconfortável, ou talvez apenas por ter atrasado o trabalho.
A Marge esquecerá tudo. Mas mesmo agora, meses mais tarde, não
faço ideia de como deveria ter-me comportado naquela situação.
Manter-me calada quando a Holly caiu? Ou persistir em fazer greve
até - quem sabe? - ela acabar por ceder e nos deixar
109
levá-la à urgência mais próxima, ou pelo menos sentar-se? A única
coisa que sei com certeza é que aquele foi o ponto mais baixo a que
poderia chegar na minha vida como criada e, provavelmente, na maior
parte das minhas outras vidas.
O Ted não me despede. Na manhã seguinte, encontro por acaso a
Holly no parque de estacionamento, encaminhando-se, a coxear, para
o seu carro. «Queres acreditar?», diz à Mar-ge, que apareceu nesse
preciso momento. «O Ted mandou-me para casa!» Fala como se
estivesse perante uma injustiça arbitrária. Eu teria dito qualquer coisa
se a Marge não estivesse presente, como «Desculpa» e «Trata de ti,
por favor», mas deixo fugir a ocasião, e o reconhecimento de que tinha
razão, se é que se trata disso, tem um sabor amargo. No escritório, o
Ted agradece-me pela minha «preocupação» e diz que seguiu o meu
conselho e mandou a Holly para casa, mas - tem de haver um «mas» -
sabe que não se pode ajudar uma pessoa que não quer ser ajudada...
Acho que é o meu instinto maternal, é a minha resposta
desconchavada. Ao que ele diz, impaciente: «Bem, eu também sou
pai, mas isso não me torna uma pessoa pior.» Muito calmamente,
orgulho-me de o poder afirmar, respondo: «Em teoria, torna-o uma
pessoa melhor.»
Não sou eu a ter a última palavra, claro. Dois dias mais tarde, estou a
trabalhar com a Holly, que ainda coxeia e continua a tratar-me como
um objecto ou um produto de limpeza pouco fiável - um produto
multiusos com defeito -, quando ela recebe um telefonema do Ted a
dizer que tenho de voltar para o escritório para integrar uma outra
equipa que vai limpar uma «primeira vez» difícil. Porquê eu? Não sei,
talvez o Ted queira falar comigo. A primeira coisa que diz quando
vamos no carro a caminho da casa, só ele e eu, é que estou a sair-me
muito bem - tem ouvido grandes elogios ao meu trabalho -, pelo que
vai aumentar-me para seis dólares e setenta e cinco à hora. Não
acredito: partir aquários e ameaçar com greves é sair-se bem? Mas
ele já passou para o tópico seguinte: não é mau homem, eu devia
saber, e preocupa-se muito com as suas raparigas. É que, tenho de
perceber, ele tem
110
umas garotas fenomenais, como a Holly e a Liza, mas há um certo
número de descontentes, e o que ele queria era que deixassem de se
queixar. Sei do que está a falar, não sei? Deve ser a minha deixa para
lhe dizer os nomes das culpadas, porque é assim que o Ted funciona,
segundo afirmam as minhas colegas - arranjando delatoras e tentando
voltar as empregadas umas contra as outras. Disse-nos, por exemplo,
que, se alguém está a faltar, cabe às outras resolver a questão,
porque quem sofre as consequências de equipas desfalcadas somos
nós. Mas eu aproveito a ocasião para lhe fazer a pergunta que anda a
incomodar-me desde a queda da Holly: pagar-lhe-ão o dia que teve de
ir para casa, visto que, ao fim e ao cabo, se magoou a trabalhar? «Oh,
sim, claro» - mas a sua risadinha parece algo forçada. «O que é que
julga que eu sou, algum monstro?» Bem, não; embora não a diga, a
palavra em que estou a pensar é chulo.
Porque é que as pessoas suportam isto, se há tantos empregos
disponíveis? De facto, uma das minhas colegas despede-se para ir
para um emprego que, segundo ela, é melhor - ao balcão de um
Dunkin' Donuts. Mas há algumas razões práticas para continuar na
The Maids: mudar de emprego significa uma semana, ou talvez mais,
sem ser paga; além disso, há ainda a vantagem do chamado «horário
das mães», embora, na prática, acabemos muitas vezes por trabalhar
até às cinco. O outro factor, menos tangível, é o isco da aprovação do
Ted. Talvez tanto quanto o dinheiro, é isto que leva a Holly a trabalhar
com náuseas e dores, e até algumas das mulheres mais animadas e
atrevidas parecem excepcionalmente sensíveis ao que ele pensa a
seu respeito. Apanhar uma «sarabanda» do Ted pode arruinar um dia
inteiro; uma migalha de elogio é saboreada durante semanas. Vejo
muito claramente o poder da sua aprovação no último dia da Pauline.
Tem sessenta e sete anos e está neste emprego há mais tempo do
que qualquer das outras - dois anos -, o suficiente para merecer uma
referência no boletim publicado pela sede da empresa. Há muito que
já não aguenta das costas, mas vai-se embora agora porque tem uma
operação ao joelho marcada para daqui a duas semanas, um
problema resultante de esfregar o chão de joelhos há
111
muito tempo. No entanto, o Ted não faz qualquer referência à sua
saída na reunião matinal do último dia, nem lhe agradece em particular
ou faz votos de melhoras ao fim do dia. Sei isto porque lhe ofereço
boleia para casa quando lhe falha a boleia habitual. Enquanto vamos
de carro pelas ruas molhadas de South Portland, fala sobre a
operação e as semanas de recuperação que vão seguir-se e sobre a
necessidade de encontrar trabalho, de preferência um emprego que
não implique dobrar-se, pegar em pesos e ajoelhar-se. Mas do que
fala principalmente é do Ted e da mágoa que sente. «Ele nunca mais
gostou de mim desde que eu tive de deixar de aspirar por causa das
costas», afirma. «Perguntei-lhe porque é que recebo menos do que as
outras» - penso que quer dizer as outras com o mesmo nível de
antiguidade na empresa - «e ele respondeu: "Bem, se pudesse ao
menos aspirar..."» Não há azedume no seu tom de voz, somente a
tristeza mortal de ver à sua frente, ao aproximar-se do fim da vida, as
ruas cinzentas e a chuva.
A grande questão é porque é que a aprovação do Ted é tão
importante. O que me parece é que as carências afectivas das minhas
colegas - porque é disso que se trata - resultam de uma situação de
privação crónica. Os donos das casas não vão agradecer-nos por
trabalharmos bem e tampouco as pessoas na rua vão saudar-nos
como heroínas do trabalho proletário. Ninguém ficará a saber que o
balcão sobre o qual corta o pão nessa noite serviu de apoio a uma
mulher quase desmaiada - e decidirá recompensá-la com uma
medalha pela sua coragem. Ninguém vai dizer, depois de eu aspirar
dez divisões e ter ainda tempo para esfregar o chão de uma cozinha:
«Caramba, Barbara, és mesmo o máximo!» Em teoria, o trabalho
salva-nos da marginalidade, como diz o Pete, mas o que fazemos é
um trabalho de marginais, invisível e até mesmo repelente. Os
porteiros, as empregadas de limpeza, os cantoneiros, os que mudam
fraldas a adultos são os intocáveis de uma sociedade supostamente
democrática e sem castas. Daí o carisma imerecido de um homem
como o Ted. Talvez seja ganancioso e casualmente cruel, mas na The
Maids é o único representante vivo de um mundo melhor, onde as
pessoas vão para a
112
universidade, vestem à civil no trabalho e vão às compras ao fim-de-
semana por prazer. Se, por qualquer razão, não há um número
suficiente de casas para limpar, mantém uma equipa ocupada
mandando-a limpar a casa dele, que, segundo me dizem, é «mesmo
bonita».
Ou talvez seja o trabalho de salário baixo em geral que provoca nas
pessoas a sensação de serem párias. Quando vejo televisão ao jantar,
passa perante os meus olhos um mundo em que quase toda a gente
ganha pelo menos quinze dólares por hora, e não estou a pensar nos
locutores. As séries e os filmes são sobre estilistas, professores ou
advogados, pelo que facilmente uma empregada de um restaurante de
comida rápida ou uma auxiliar de enfermagem deduz que é uma
anomalia - a única, ou praticamente a única, que não foi convidada
para a festa. E, num certo sentido, tem razão: de forma geral, os
pobres desapareceram da nossa cultura, da sua retórica política e
preocupações intelectuais, assim como do seu entretenimento diário.
Até mesmo a religião parece ter pouco a dizer sobre os problemas dos
pobres, se aquela tenda do renascimento era uma boa amostra. Os
vendilhões conseguiram finalmente expulsar Jesus do templo.
Na minha última tarde, tento explicar às mulheres da equipa de que
faço parte nesse dia, um grupo muito mais animado do que o da Holly,
quem sou e por que motivo tenho estado a trabalhar aqui. O que digo
atrai tão pouca atenção que tenho de repetir: «Estão a ouvir? Sou
escritora e vou escrever um livro sobre este sítio.» Por fim a Lori vira-
se do lugar da frente e manda calar as outras com: «Eh lá, isto é
interessante», e pergunta-me: «Então tu estás a investigar?»
Bem, não apenas este sítio e não exactamente a «investigar», mas a
Lori agarrou-se à ideia. Ri à gargalhada. «Este sítio bem precisa de
ser investigado!» Agora toda a gente parece ter compreendido, não
quem eu sou nem o que faço, mas que, seja o que for que esteja a
fazer, a piada é à custa do Ted.
Pelo menos, agora que revelei a minha identidade posso fazer a
pergunta que sempre quis fazer durante este tempo todo: como é que
elas se sentem, não em relação ao Ted, mas aos donos das casas,
que têm tanto, enquanto outras pessoas,
113
como elas próprias, mal conseguem sobreviver? Esta é a resposta da
Lori, que, aos vinte e quatro anos, tem um grave problema de costas e
uma dívida do cartão de crédito de oito mil dólares: «O que eu penso
é: "Caramba, gostava de um dia ter estas coisas todas!" Motiva-me e
não sinto o mínimo ressentimento, porque, sabes, o meu objectivo é
chegar aonde eles estão.»
E esta é a resposta da Colleen, uma mãe solteira com dois filhos, que
normalmente é uma pessoa directa e cheia de vida, mas agora olha
para um ponto distante, talvez onde o seu antepassado que escapou à
Grande Fome da Irlanda, no século xix, lhe devolve o olhar, tão atento
como eu ao que ela vai dizer: «Não me importo, a sério, porque acho
que sou uma pessoa simples e não cobiço o que eles têm. Quer dizer,
para mim não me diz nada. Mas o que eu gostava era de poder ter um
dia livre de vez em quando, se precisasse, e mesmo assim ter dinheiro
para comprar comida no dia seguinte.»
Trabalho um último dia no Woodcrest e depois dou parte de doente.
Desculpem lá, Linda, Pete e todas vós, queridas velhinhas dementes!
Vou a casa da Lori no domingo e dou-lhe a satisfação de devolver as
minhas fardas ao Ted e explicar-lhe a minha partida como bem
entender. < ,

Visto do ar, o Minnesota é a imagem ideal do que deve ser o início do


Verão - o azul dos lagos a fundir-se com o azul do céu, nuvens
esculpidas pairando aqui e ali, faixas de terrenos cultivados alternando
entre o verde-licor de Chartreu-se e o verde-esmeralda -, uma
paisagem fértil e suave, aparentemente penetrável de qualquer
ângulo. Há meses que pensava em ir para Sacramento ou qualquer
outra cidade do vale central da Califórnia que não fosse distante de
Berkeley, onde passara a Primavera, mas os avisos sobre o calor e as
alergias desanimaram-me, já para não mencionar a minha
preocupação com a possibilidade de os imigrantes latino-americanos
estarem a açambarcar os maus empregos e as casas sem condições,
como de costume. Não me perguntem porque me veio à cabeça
Minneapolis; talvez ansiasse por ver umas árvores de folha caduca.
Eu sabia que é um estado relativamente liberal e mais misericordioso
do que muitos para com os pobres dependentes da assistência social.
Cerca de meia hora de investigação na Internet revelou-me um
mercado com uma certa escassez de mão-de-obra, empregos de nível
básico pagos a oito dólares por hora, ou mais, e estúdios com rendas
de quatrocentos dólares, ou menos. Se alguma jornalista
empreendedora quiser pôr à prova o estilo de vida dos que ganham
pouco nas profundezas do Idaho ou da Louisiana, que lhe faça bom
proveito. Podem chamar-me fraca, mas o que eu queria desta vez era
uma correspondência confortável entre o rendimento e a renda de
casa, algumas aventuras pouco excitantes e uma aterragem suave.
115
Um sujeito amável - deve ser a famosa simpatia do Minnesota -
entrega-me a carripana que aluguei e indica-me as sintonias da
estação NPR e de uma outra de rock clássico. Concordamos que o
swing não presta, e talvez descobríssemos mais alguns pontos de
convergência se eu não estivesse empenhada naquilo a que um
locutor de uma estação de rock de Key West chama «uma missão de
Deus». Tenho o mapa da zona das Twin Cities1, pelo qual paguei dez
dólares no aeroporto, e um apartamento que pertence a amigos de um
amigo e que posso usar de graça por alguns dias, enquanto eles estão
de visita a uns parentes no Leste dos Estados Unidos. Bem, não
completamente de graça, visto que em troca prometi tomar conta da
caturra deles, um pássaro engaiolado que, por razões de boa forma e
sanidade ornitológica, tem de ser solto algumas horas por dia. Ao
telefone concordei sem pensar; só quando chego ao apartamento é
que me lembro que o contacto com pássaros, juntamente com traças
gigantes e tudo o que tenha a ver com laranjas, são as minhas fobias
de estimação. Dou sem problemas com o apartamento, encantada por
a cidade e o mapa estarem de perfeito acordo, e passo uma hora com
um dos donos da casa adquirindo conhecimentos sobre a tecnologia
da caturra. A certa altura, o meu anfitrião tira o pássaro da gaiola e ele
voa direito ao meu rosto. Com enorme esforço, baixo a cabeça e fecho
os olhos, enquanto ele saltita no meu cabelo, debicando-me e
catando-me.
Espero que a caturra não dê uma impressão errada: isto não é um
ambiente de yuppies; é um apartamento de duas assoalhadas
minúsculo e atravancado, mobilado com trastes velhos e decorado ao
estilo das casas de estudantes de pós-graduação de finais dos anos
70. Quando os meus anfitriões se vão embora, não encontro azeite
nem vinagre balsâmico nos armários, nem garrafas meio-vazias de
chardonnay no frigorífico, nenhum álcool a não ser uma garrafa de um
quarto de litro de uísque Seagram's 7, distintamente proletário, e
margarina para barrar o pão. Com a sua cama de colchão firme
1 Cidades Gémeas: as cidades confinantes de Minneapolis e St. Paul.
(N.daT.) . . ..
116
e vista para uma rua com árvores, seria agradável, até mesmo
acolhedor, se não fosse o pássaro. Mas, como aprendi com as minhas
colegas no Maine - muitas das quais partilhavam com alguém um
espaço acanhado -, as pessoas que para terem um tecto dependem
da generosidade dos outros vêem-se sempre obrigadas a suportar
algo incómodo, em geral familiares desagradáveis e longas esperas
para usar a casa de banho. Então, imaginemos que a caturra - Budgie,
como lhe chamei, em vez do seu nome mais pretensioso -
desempenha nesta história o papel dos sogros intrometidos e dos
vizinhos barulhentos que normalmente teria de suportar uma pessoa
de meios limitados a viver por favor com familiares distantes numa
cidade estranha.
Não faz mal. Saio logo de manhã à procura de emprego. Desta vez,
nada de servir à mesa, trabalhar em casas de repouso ou fazer
limpezas domésticas; estou pronta para uma mudança - talvez um
emprego numa loja ou trabalho numa fábrica. Vou de carro aos dois
Wal-Marts mais próximos, preencho os impressos de candidatura, e
depois dirijo-me a um terceiro, que fica a cerca de quarenta e cinco
minutos de automóvel, no outro extremo da cidade. Entrego o
impresso e estou prestes a começar o ataque aos Targets e Kmarts
quando me vem uma ideia: ninguém me vai contratar com base numa
candidatura em que confesso não ter qualquer experiência prévia -
escrevi, como habitualmente, que sou uma chefe de família divorciada
a reingressar no mercado de trabalho. O que tenho de fazer é ir em
pessoa e dar uma amostra da minha vivacidade e autoconfiança. Na
cabina telefónica em frente, ligo para a loja e peço para falar com
alguém do serviço de pessoal. Passam-me à Roberta, a quem a minha
iniciativa causa boa impressão, e diz-me que vá ao seu escritório, nas
traseiras da loja. A Roberta, uma loura platinada cheia de vida com
cerca de sessenta anos, assegura-me que não há nada de errado no
meu perfil; ela própria criou seis filhos antes de começar a trabalhar no
Wal-Mart, onde em poucos anos subiu até à posição que ocupa
actualmente, devido, sobretudo, ao facto de ser uma «pessoa que
gosta de pessoas». Pode oferecer-me emprego de imediato, mas
primeiro tenho de responder a um pequeno
117
«inquérito», para o qual não há afirmações certas ou erradas, garante-
me, só a minha opinião. Por acaso já respondi ao inquérito do Wal-
Mart uma vez, no Maine, e volto a fazê-lo com grande desembaraço. A
Roberta leva as respostas para uma outra sala, onde, diz ela, um
computador vai «classificá-las». Ao fim de cerca de dez minutos,
regressa com notícias alarmantes: dei respostas erradas a três
perguntas - quer dizer, não exactamente erradas, mas a precisarem de
alguns esclarecimentos.
Ora bem, a minha abordagem aos testes de personalidade tem sido
até agora de total intolerância relativamente aos «crimes» óbvios -
consumo de drogas e roubo - e de alguma indefinição noutros pontos,
só para não parecer que estou a dar respostas falsas. A minha
abordagem estava errada. Quando uma pessoa se apresenta como
potencial empregada, não deve evitar ser excessivamente bajuladora.
Tome-se o exemplo da afirmação contida no teste de que «as regras
têm sempre de ser seguidas à risca»: eu concordara «muito» com isto,
em vez de «muitíssimo» ou «totalmente», e agora a Roberta quer
saber porquê. Bem, por vezes as regras têm de ser interpretadas, digo
eu, as pessoas têm de usar de algum juízo próprio; de outra forma,
mais valia pôr máquinas a fazerem o trabalho todo em vez de seres
humanos de carne e osso. Ela sorri. «Juízo, muito bem!», replica, e
escreve qualquer coisa. Depois de as outras respostas incorrectas
serem justificadas de forma similar, a Roberta explica-me «quais são
os valores do Wal-Mart». Ela leu o livro de Sam Walton (a sua
autobiografia, Made in America) antes de começar a trabalhar aqui e
descobriu que os três pilares da filosofia do Wal-Mart coincidem
exactamente com os seus, sendo eles serviço, excelência (ou algo
parecido) e... não consegue lembrar-se do terceiro. Serviço, eis a
chave de tudo, ajudar as pessoas, resolver-lhes os problemas, auxiliá-
las a fazerem compras - e o que é que eu acho? Confesso um forte
impulso de altruísmo na área do comércio a retalho, e até chegam a
vir-me as lágrimas aos olhos ao falar deste laço que me liga à
Roberta. A única coisa que agora tenho de fazer é um teste de drogas,
que ela marca para o princípio da próxima semana.
118
Se não fosse o teste, talvez eu tivesse parado por ali na minha procura
de emprego, mas ocorreu uma pequena transgressão química nas
últimas semanas que não me dá garantias de passar no teste. Um
cartaz na parede do escritório onde a Roberta me entrevistou
recomenda aos candidatos a um emprego que «não desperdicem o
vosso tempo nem o nosso» se consumiram drogas nas últimas seis
semanas. Caso eu tivesse consumido cocaína ou heroína não haveria
problemas, visto que estas drogas são solúveis na água e não deixam
vestígios no corpo ao fim de dois dias. (O LSD nem sequer é testado.)
Mas a minha transgressão envolvia a única droga normalmente
detectada nos testes, a marijuana, que é solúvel na gordura e,
segundo li, pode manter-se no corpo durante meses. E os
medicamentos que andava a tomar para um problema crónico de
congestão nasal? E se o Claritin-D, que me põe «numa boa»,
aparecesse nos resultados como metanfetamina?
Volto então para o carro e para os meus anúncios sublinhados a tinta
vermelha, tanto no Star Tribune como num jornal gratuito, o
Employment News. Vou a duas agências de emprego vocacionadas
para a indústria e confirmo que não tenho quaisquer impedimentos
físicos e que sou capaz de levantar pesos de dez quilos, embora
preferisse saber quantos vendedores eles têm em mente. Em seguida,
faço uma longa viagem para o outro lado da cidade, onde tenho uma
entrevista para um emprego numa linha de montagem. Há já alguns
anos que não conduzo em estradas urbanas, e felicito-me pela minha
navegação destemida e desembaraçada, mas o trânsito da tarde
acaba por levar a melhor. Não consigo encontrar a fábrica antes das
cinco, e entro num parque de estacionamento de um centro comercial
para descobrir uma maneira de voltar para trás. Dou comigo em frente
a um armazém de produtos para o lar da cadeia de lojas Menards -
uma cadeia do Mid-west - e, como há um aviso a dizer «Precisa-se de
pessoal», já agora entro e ponho mais uma vez à prova a minha
estratégia ile confronto directo. Ao atravessar o pátio das traseiras da
loja onde estão expostas as madeiras, interpelo um sujeito com um
crachá que o identifica como Raymond, e ele dispõe-se a conduzir-me
ao escritório dos serviços de pessoal. Pergunto-
119
-lhe se é um sítio bom para se trabalhar. Ele diz que não é mau, este é
o segundo emprego que tem, e não se enerva com os convidados,
porque não tem culpa de a madeira ser uma caca. Os convidados?
Devem ser os clientes; fico satisfeita por ter aprendido o termo
antecipadamente, para não fazer uma careta ou me engasgar perante
o gerente.
O Raymond acompanha-me até ao Paul, um tipo louro de braços
musculosos, que, comparado com a Roberta, tem uma aflitiva carência
de capacidade de relacionamento com os outros. Em resposta à
história do meu passado como dona de casa, apenas resmunga: «Isso
não é comigo», e entrega-me o teste de personalidade. É mais curto
do que o do Wal-Mart e, aparentemente, visa um grupo mais violento:
em comparação com outras pessoas, tenho mais ou menos tendência
para me envolver em lutas? Há situações nas quais ser passador de
cocaína não é um crime? Segue-se uma parte longa e repetitiva sobre
roubar, com um série de variantes da pergunta: «No último ano furtei
mercadoria no valor de (assinale abaixo a quantia em dólares) aos
meus empregadores.» Quando acabo o teste, o Paul deita uma vista
de olhos às respostas e rosna: «Qual é o seu ponto mais fraco?» Ah,
falta de experiência - obviamente. «Tem capacidade de iniciativa?»
Estou aqui, não estou? Podia ter apenas entregue o impresso de
candidatura... Está no papo! O Paul está mesmo a ver-me na secção
de canalização. Oito dólares e meio para começar, dependendo, claro,
do resultado do teste de drogas. Dou-lhe um aperto de mão para selar
o negócio1.
Sexta-feira à noite: estou em Minneapolis há pouco mais de quinze
horas e já fui dos subúrbios do Sul para os do Norte e tive duas
entrevistas presenciais. A procura de emprego é
1 Segundo as estimativas da organização Jobs Now Coalition, com
sede em St. Paul, em 1977 o «salário de sobrevivência» para um
adulto com uma criança a seu cargo na área metropolitana das Twin
Cities era de 11,70 dólares por hora. Esta estimativa baseava-se em
despesas mensais que incluíam I 266 dólares para a alimentação
(com todas as refeições cozinhadas e consumidas em casa), 261 para
o infantário e 550 para a renda (The Cost of Living in\ Minnesota: A
Report by the Jobs Now Coalition on the Minimum Cost ofBasicl Needs
for Minnesota Families in 1997). Este «salário de sobrevivência» não
foi I ainda actualizado tendo em consideração a inflação acelerada das
rendas de casa no ano de 2000 nas Twin Cities.
120
um processo penoso, mesmo quando os candidatos são totalmente
honestos, e estou a sentir-me bastante fragilizada. Tomemos o caso
dos testes de personalidade: a verdade é que pouco me importa que
os meus colegas se vão drogar para a zona de estacionamento ou
surripiem um ou outro produto à venda, e não os denunciaria nem que
me importasse. Também não acredito que a autoridade da gerência
resulta de um qualquer direito divino ou da força concentrada de uma
sabedoria superior, como os «inquéritos» exigem que reconheçamos.
É desmoralizador ter de mentir até cinquenta vezes nos cerca de
quinze minutos que demora a responder a um «inquérito», mesmo
quando se falta à verdade em nome de um objectivo moral mais
elevado. Igualmente esgotante é o esforço de parecer ao mesmo
tempo viva e submissa durante meia hora, ou mais, porque, embora
seja necessário demonstrar «iniciativa», não convém dar a impressão
de ser capaz de organizar algo como a sindicalização dos colegas. E
há ainda a ameaça dos testes de drogas a pairar sobre a minha
cabeça como se fosse um iminente exame de acesso à faculdade.
Incomoda-me, a um nível profundamente pessoal, quase físico, saber
que as muitas qualidades cativantes que julgo ter para dar - simpatia,
fiabilidade, vontade de aprender - podem ser deitadas por terra pelo
meu chichi1.
1 Existe um grande número de argumentos a favor dos testes de
drogas no local de trabalho: supostamente resultam na redução das
taxas de acidentes e faltas ao trabalho, numa menor utilização dos
serviços do seguro médico e num aumento de produtividade. Contudo,
segundo um relatório de 1999 da organização American Civil Liberties
Union, «Drug testing: a bad inves-tment», nenhum destes argumentos
foi ainda comprovado. Os estudos realizados demonstram que os
testes pré-emprego não reduzem o absentismo, acidentes ou volume
de negócios e (pelo menos nos locais de trabalho de altas tecnologias
estudados) reduzem de facto a produtividade - presumivelmente
devido ao seu efeito negativo sobre a moral dos empregados. Esta
prática é, além do mais, bastante dispendiosa. Em 1990, o governo
federal gastou 11,7 milhões de dólares em testes a 29 000
funcionários federais. Já que apenas se registaram resultados
positivos em 153 casos, o custo da detecção de um único consumidor
de drogas foi de 77 000 dólares. Porque persistem os empregadores
em prosseguir com esta prática? Provavelmente deve-se, em parte, à
publicidade no valor de cerca de 2000 milhões de dólares da indústria
farmacêutica, mas suspeito que o efeito humilhante dos testes
constitui também um dos seus atractivos para os empregadores.
121
Animada por um espírito de contrição pelos meus inúmeros pecados,
decido dedicar o fim-de-semana a uma desintoxicação. Uma busca na
Internet revela que é uma senda muito frequentada; há dezenas de
sites com auxílio ao potencial candidato a um teste de drogas,
principalmente sob a forma de produtos para ingerir, embora um dos
sites prometa enviar um frasco de urina não contaminada por drogas,
aquecida à temperatura do corpo. Como não tenho tempo para
encomendar e receber um produto de evasão ao teste de drogas,
demoro-me a ler um site no qual centenas de cartas, tipicamente com
assuntos como «Socorro! Teste dentro de três dias!», obtêm respostas
sóbrias de alguém chamado «Alec». Aqui fico a saber que a minha
magreza é uma vantagem - não há muitos sítios para os derivados da
cannabis se esconderem - e que o único método eficaz é ver-se livre
da maldita droga bebendo grandes quantidades de líquidos - pelo
menos onze litros por dia. Para acelerar o processo, há um produto
chamado CleanP, suposta-mente à venda nas farmácias da cadeia
CNC, pelo que vou de carro à mais próxima, bebendo água da torneira
por uma garrafa de plástico todo o caminho, e pergunto ao rapazinho
que está ao balcão onde se encontram os produtos de desintoxicação.
Talvez esteja habituado a uma procissão diária de mulheres com
aspecto de mamãs a perguntarem por CleanP, porque me leva,
impassível, até um enorme armário de vidro fechado à chave -
provavelmente porque o preço médio dos produtos de desintoxicação
do GNC ronda os cinquenta dólares, ou porque se parte do princípio
de que os seus consumidores são indivíduos desesperados e não
especialmente cumpridores da lei. Consulto a lista de ingredientes e
compro dois deles separadamente - creatinina e um diurético chamado
uva ursis - por um total de trinta dólares. O programa é o seguinte:
beber água constantemente, junto com doses frequentes do diurético,
e (este é o meu contributo científico) evitar o sal em todas as suas
formas, já que promove a retenção de água, o que significa que não
poderei consumir alimentos processados, corridas rápidas ou
condimentos de qualquer tipo. Se quero aquele emprego na secção de
canalização do Menards, tenho de me transformar num cano
desobstru-ído: entrada e saída de água igualmente pura e potável.
122

A minha outra tarefa no sábado é encontrar um sítio para viver.


Telefono a todas as agências de aluguer de apartamentos da lista
telefónica - Apartment Mart, Apartment Search, Apartments Available,
etc. - e deixo mensagens. Visito também todos os prédios de
apartamentos listados e, nos dois onde alguém me abre a porta,
descubro que os contratos de arrendamento são por um ano. Vou a pé
até ao supermercado para comprar o jornal de domingo e, enquanto lá
estou, aproveito para me candidatar a um emprego. Sim, estão a
precisar de uma pessoa; há bastante movimento por volta do princípio
do mês, logo a seguir ao pagamento dos subsídios da Segurança
Social; posso voltar na próxima semana. O jornal, porém, é uma
decepção. Há um único estúdio mobilado na totalidade da zona das
Twin Cities, e não atendem o telefone em todo o fim-de-semana. No
entanto, dada a minha incontinência incipiente provocada pelo regime
de purificação, ainda bem que não tenho apartamentos para visitar. O
jantar é um quarto de frango de churrasco do supermercado, sem sal
e empurrado por um diurético bem conhecido e tecnologicamente
pouco avançado: cerveja.
Bem vistas as coisas, não é o momento mais alto da minha vida. Se
conseguisse abandonar-me à minha condição cada vez mais líquida e
passar o fim-de-semana a ler um romance, talvez não fosse tão mau
como isso. Mas, neste caso, o apartamento onde estou não é um local
de relaxamento; é mais aquilo a que militarmente se chama «uma
situação». Quando estou em casa, o Budgie quer que o solte, desejo
que comunica grasnando ou, pior ainda, andando de um lado para o
outro como um demente. Quando está fora da gaiola, quer empoleirar-
se na minha cabeça e debicar-me o cabelo e as armações dos óculos.
Para minimizar os potenciais estragos, só o solto quando tenho a
sweatshirt vestida, com o capuz a cobrir-me o cabelo e a maior parte
do rosto, e mesmo assim estou constantemente a ter de o tirar do seu
poleiro preferido, no meu ombro, onde me fita com insistência, olhos,
para o antebraço, por exemplo, de onde avança para o meu rosto.
Alguém que chegasse nesse momento veria o seguinte: uma figura
encolhida, com os óculos a espreitarem da portinhola do capuz,
encima-
123
da por um exótico passarão branco com crista, todo satisfeito -
imagino eu - com a sua posição dominante. Mas não posso mantê-lo
encarcerado tanto tempo quanto gostaria. Fazer companhia a esta
criatura, ser o seu bando adoptivo é o meu dever, a minha forma de
pagar o alojamento.
Infelizmente o Budgie não desempenha as mesmas funções para mim,
e no domingo decido ir à procura de outros membros da minha
espécie. Uma amiga de Nova Iorque, uma jovem feminista afro-
americana, insistira comigo para eu ir visitar a sua tia de Minneapolis,
e tenho uma boa razão para o fazer, para além dos deveres de
sociabilidade: preocupa-me a possibilidade de ter criado uma situação
demasiado artificial, tanto aqui como no Maine. Na vida real, quem se
traslada para um ambiente totalmente estranho - sem alojamento,
laços de família ou emprego - e tenta tornar-se uma residente viável?
Bem, foi o que fez a tia da minha amiga no início da década de 90:
meteu-se num autocarro Greyhound em Nova Iorque, com dois filhos a
reboque, e só saiu na Florida, um estado que lhe era completamente
desconhecido. É uma história que preciso de ouvir, pelo que lhe
telefono e sou convidada, sem grande entusiasmo, para ir visitá-la à
tarde. A Caroli-ne, como lhe chamarei aqui, tem uma presença que se
impõe, com maçãs do rosto salientes e olhos cheios de vida e
sabedoria. Traz-me a única bebida que me é permitida - água -,
apresenta-me aos filhos e explica que é o dia de folga do marido, que
ele está a passar na cama. A casa... bem, pede desculpa (embora
quatro assoalhadas por oitocentos e vinte e cinco dólares por mês
neste momento não me pareça tão mau como isso), tem as suas
deficiências: os quartos de dormir são minúsculos; o prédio está
infestado com passadores de droga; pinga água do tecto da sala de
jantar sempre que usam a casa de banho no andar de cima; o
autoclismo não funciona. E porque vive aqui? Porque, com os nove
dólares por hora que lhe pagam como auxiliar de guarda-livros num
hotel do centro, mais os dez do marido, que trabalha na manutenção
de edifícios, subtraindo as contas domésticas e cinquenta e nove
dólares por semana para o seguro de saúde (ela é diabética, o filho de
cinco anos tem asma), é o que se pode arranjar. No
124
entanto, fazendo as contas, estas pessoas ganham quase quarenta
mil dólares por ano, o que, oficialmente, as torna membros da «classe
média».
Explico a minha missão em Minneapolis, embora fique a saber que a
sobrinha já a tinha posto ao corrente, e peço-lhe que me conte a sua
mudança para a Florida, há dez anos. Esta é a história, mais ou
menos como me foi narrada - a Caroli-ne não se importou que eu
tomasse apontamentos -, de alguém que fez na vida real o que eu
estou a fazer ao serviço do jornalismo.
A Caroline estava a viver em Nova Jérsia e trabalhava num banco
quando decidiu deixar o marido, porque ele não «queria saber» dos
filhos. Mudou-se para a casa da mãe, em Queens, mas era-lhe
impossível ir para o emprego em Nova Jérsia todos os dias e levar o
filho mais novo ao infantário de manhã. Em seguida o irmão dela veio
também viver com a mãe, pelo que passou a haver três adultos e duas
crianças a viverem num apartamento de três assoalhadas, uma
situação insustentável, por isso, decidiu partir para a Florida, onde,
segundo tinha ouvido dizer, as rendas de casa eram mais baixas.
Tinha a roupa, os bilhetes de autocarro e mil e seiscentos dólares em
dinheiro. Era tudo. Saíram do autocarro numa cidade a sul de Orlando,
e um taxista simpático - ainda se lembra do seu nome - levou-os a um
hotel barato. O passo seguinte foi encontrar uma igreja. «Procure
sempre uma igreja.» Umas pessoas da igreja levaram-na de carro às
instalações do WIC [Women, Infants and Children (Mulheres, Bebés e
Crianças), um programa federal que proporciona auxílio alimentar a
mulheres grávidas e a mães de crianças pequenas] e a procurar uma
escola para a filha de doze anos e um infantário para o bebé. Por
vezes também a auxiliavam com mantimentos. Não tardou a encontrar
um emprego na limpeza de quartos de hotel - de vinte e oito a trinta
quartos por dia a dois ou três dólares por quarto, num total de cerca de
trezentos dólares por semana. Era «ir para a cama com dores nas
costas e acordar com dores nas costas». A filha tinha de ir buscar o
bebé ao infantário e tomar conta dele até a Caroline chegar a casa,
por volta das oito horas, o que significava que não tinha tempo para ir
lá para fora brincar.
125
Como foi começar de novo num sítio completamente estranho?
«Ataques de ansiedade! Sabe como é?» Foi o stresse, segundo diz,
que lhe provocou a diabetes. Andava sempre com sede, a visão
enevoada e um prurido terrível na zona genital, e não fazia ideia do
que significavam estes sintomas. Um médico diagnosticou-lhe uma
doença transmitida sexualmente, mas já há muito tempo que não tinha
qualquer actividade sexual. Numa manhã, Deus disse-lhe: «Vai a um
hospital. Vai a pé.» Andou trinta quarteirões e, ao chegar ao hospital,
desmaiou. Talvez Deus tenha querido que a Caroline fosse a pé para
desmaiar e assim conseguir finalmente que lhe prestassem atenção.
Também aconteceram algumas coisas boas. No hotel onde trabalhava,
costumava ajudar um homem que sofria de cancro, trazendo-lhe
comida e limpando-lhe até as chagas mal-cheirosas, e ele sentia tal
gratidão que uma vez lhe deu trezentos e vinte e cinco dólares, que
sabia ser a quantia exacta da renda de casa. E tinha uma grande
amiga, a Irene, que conhecera «num caixote do lixo». Não há dúvida
de que a Irene tinha problemas. Era uma trabalhadora rural migrante
de raça mista negra e índia, e fora violada, e também maltratada pelo
namorado, o que lhe deixou uma cicatriz profunda no rosto. O
namorado encontrou o violador, matou-o à machadada e acabou por
ser condenado a prisão perpétua. Deu abrigo à Irene e durante algum
tempo as coisas correram muito bem. A amiga arranjou emprego num
Taco Bell e ajudava a Caroline a tratar dos filhos, que mimava e
adorava como se fossem seus, mas depois começou a beber e a
«dançar em cima das mesas» em bares, acabando por deixar a
Caroline para ir viver com um homem. Tem saudades dela, e até
chegou a voltar à Florida para tentar encontrá-la. Talvez tenha
morrido... Uma vez apareceu-lhe um tumor do tamanho de uma moeda
no seio direito. Custa não saber.
Foi na Florida que conheceu o actual marido, um homem de raça
branca, mas as suas atribulações não acabaram com o casamento:
chegou a ficar sem abrigo e andou de estado em estado com os filhos
atrás. Quando, ao fim de duas horas, me levanto para me ir embora,
pergunta-me se sou vegetariana.
126
Digo que não, e ela vai a correr à cozinha e regressa com um
recipiente de tamanho familiar com frango estufado caseiro, que aceito
com gratidão: é o meu jantar. Abraçamo-nos. Acompanha-me até ao
carro e abraçamo-nos mais uma vez. Agora tenho uma amiga em
Minneapolis, e o que é estranho é que ela é o original - a mulher que
se desenraizou e acabou por dar a volta por cima, mas na vida real e
com filhos -, enquanto eu sou uma imitação pálida e sem filhos atrás.
Porém, na terça-feira, quando começa a semana de trabalho, após o
feriado do Memorial Day1, a minha vida parece bem real, cinzenta e
triste. É o dia do teste de drogas, há muito trânsito e está a chover. O
primeiro teste, para o Wal-Mart, não custa nada; faço-o num
consultório homeopático a alguns quilómetros, por auto-estrada, do
Wal-Mart. Dão-me dois recipientes de plástico - um para urinar e o
outro para transferir para ele a urina - e mandam-me para uma casa
de banho pública ao fundo do corredor. Seria fácil substituir a minha
urina pela de outra pessoa, se trouxesse uma amostra no bolso ou
encontrasse um potencial doador na casa de banho. O teste seguinte,
para o Menards, obriga-me a ir aos subúrbios do Sudoeste, a um
hospital normal alopático, com doentes a serem transportados de um
lado para o outro em macas. Na sala de espera da Suite Smithkline,
para onde me mandaram ir, estão já à minha frente cerca de doze
pessoas, a maioria das quais, a fazer fé nos indicadores usuais de
classe social, pertence ao estrato de salário baixo. O televisor da sala
de espera está a transmitir o programa de Robin Given Forgive or
Forget [«Perdoa ou Esquece»], cujo tema é «Deste-me a mão e eu fui-
te ao bolso». Parece que o Cory, um rapaz de dezoito anos, roubou o
primo que lhe tinha dado abrigo, estragando assim o Natal à
namorada do primo e ao filho dela. O Cory não se mostra arrependido,
de facto já desde a escola julga ter boas
1 Na maior parte dos estados, celebra-se este dia na última segunda-
feira de Maio. O feriado foi criado em 1868 para comemorar os mortos
da Guerra Civil. É agora o dia em que se presta homenagem a todos
os americanos que morreram pelo seu país. (TV. da T.)
127
razões para fazer batota e roubar, é a história da sua vida. A Robin
agita o punho no ar e berra: «Cory, Cory, deixa de te fazeres de
vítima!» Aparentemente, roubar não tem importância, comparado com
o crime de se considerar vítima. A cada nova denúncia do Cory, o
público no estúdio aplaude com entusiasmo crescente. Ele é má peça,
tal como alguns dos telespectadores impassíveis nesta sala de
espera, que dentro de pouco tempo serão julgados e condenados pela
sua urina. Vem-me à mente uma das afirmações, com resposta do tipo
«concordo/discordo», no inquérito do Wal-Mart: «Há espaço em todas
as empresas para uma pessoa não conformista.» Mas não, não, não!
A resposta correcta, como não tardaremos a descobrir, é «discordo
totalmente».
Por fim, após quarenta minutos de espera, uma mulher envergando
uma farda azul e com ar despachado vem chamar-me à sala de
espera. O que é que estão a planear? Cortar-me a bexiga se eu não
produzir um volume suficiente de urina? Pergunto se fazem mais
alguma coisa além de testes de drogas. Não, é só isso, praticamente.
Verifica a minha identificação e depois esguicha-me algo que parece
ser sabão líquido para as palmas das mãos, embora não haja
qualquer lavatório à vista. Agora o que tenho a fazer é ir à casa de
banho lavar-me com água e deixar ficar a carteira. Hesito por um
momento, com as mãos pegajosas estendidas à minha frente, a
reflectir sobre as questões de confiança que surgiram entre nós as
duas. Por que razão, por exemplo, hei-de deixar ficar a carteira,
enquanto ela nem sequer confia que eu seja capaz de não deitar uma
substância antidrogas na minha urina? No entanto, qualquer atitude de
confronto da minha parte poderia levá-la a adulterar os resultados, por
conseguinte, dirijo-me humildemente para a casa de banho, lavo as
mãos e depois faço chichi - pelo menos autorizam-me a fechar a porta
-, e acaba-se este arremedo de cuidados médicos. Na totalidade,
incluindo a deslocação e a espera, gastei uma hora e quarenta
minutos, mais ou menos o mesmo tempo que demorou o teste para o
Wal-Mart, e ocorre-me a ideia de que um dos efeitos destes testes é
limitar a mobilidade do trabalhador - talvez seja mesmo uma das suas
funções. Cada novo potencial emprego requer
128
1) a candidatura, 2) a entrevista, e 3) o teste de drogas - o que não é
desprezável, com a gasolina a quase meio dólar por litro, já para não
falar na despesa provável de deixar os filhos a alguém.
Até saber o resultado do teste de drogas, sinto que é meu dever
continuar à procura de emprego. Quase todos os meus encontros são
previsíveis e pouco prometedores - preencho o impresso, dizem-me
que aguarde um telefonema, o costume, mas um deles destaca-se da
sensação empresarial, eufemística e acima de qualquer suspeita de
todos os outros. O anúncio é para um trabalho de «serviço a clientes»,
um tipo de emprego que tendo a evitar, porque normalmente requer a
apresentação de currículo, o que implicaria níveis de prevaricação que
não estou disposta a atingir. Porém, este emprego de serviço a
clientes é descrito como sendo de «nível básico». Quando telefono,
dizem-me que me apresente às três em ponto e que não me esqueça
de ir vestida «à profissional». Esta última instrução suscita-me
problemas, visto que o meu guarda-roupa é constituído por T-shirts e
apenas dois pares de calças para além dos jeans, mas tenho um
casaco e uns sapatos razoáveis, que trouxe para a paragem em Nova
Iorque a caminho de Minneapo-lis. Estes últimos, reforçados por
batom e meias até aos joelhos, dão-me um aspecto fantástico, acho
eu. Quando chego ao Mountain Air (o nome que lhe darei aqui), num
edifício que é um caixote branco anónimo junto a uma estrada
particular, já estão outros nove candidatos à espera. Afinal, trata-se de
uma entrevista em grupo, conduzida pelo Todd numa sala grande onde
nós, os candidatos, nos sentamos em cadeiras desdobráveis,
enquanto o Todd, um homem bem vestido dos seus trinta anos, nos
faz uma palestra e mostra acetatos.
Fala muito rapidamente, numa cadência cantada, dando a impressão
de recitar a mesma coisa várias vezes por dia. O Mountain Air, diz ele,
é uma «firma de consultoria ambiental» que oferece os seus «serviços
grátis» a pessoas que sofram de asma e alergias. Teremos de nos
deslocar nos nossos próprios carros até à casa dos pacientes,
auferindo mil seiscentos e cinquenta e nove dólares se fizermos
cinquenta e quatro consultas de duas horas cada em trinta dias -
embora seja preciso
129
ser muito preguiçoso para se ficar por aí. Além disso, há ainda
atractivos incríveis, tais como os estágios de fim-de-semana realizados
por todo o país, onde «se anda para a frente com a coisa, claro,
ouvindo palestras extremamente motivadoras, mas pode trazer-se o
cônjuge e também passar um bom bocado». Só é necessário ter idade
superior a dezoito anos, estar em condições de ser segurado, possuir
carro próprio e telefone e residir no Minnesota há pelo menos um ano.
Pois é! Pergunta se algum de nós não reside no Minnesota há tempo
suficiente, e quando ergo a mão ele diz que, em certos casos, pode
prescindir-se desse requisito. Do que o Mountain Air está realmente à
procura é de - neste momento põe-se a ler um acetato - «Autodiscipli-
na/Motivação monetária/Atitude positiva».
Noto que nada se diz sobre o serviço prestado ou a cura dos doentes.
Na verdade, comparado com a ética de serviço cheia de obséquios do
Wal-Mart, a ênfase que o Todd põe no que realmente interessa é uma
lufada de ar fresco. Trabalharemos por conta própria, continua, não
como empregados, o que significa que, «se mentirem a um cliente, a
companhia não é responsável». Mesmo que, pergunto, as mentiras
sejam banha-da-cobra que a companhia nos transmitiu? E muito
simples, garante, é só «uma questão de abordar pessoas que têm um
problema grave, embora não tão grave quanto julgam, e deixá-las
satisfeitas». Há dúvidas? Para mim, nada disto faz qualquer sentido,
mas limito-me a perguntar em que consiste o produto, partindo do
princípio de que se trata de vender um produto qualquer. O Todd abre
uma caixa de cartão aos seus pés, em que eu não tinha reparado: lá
dentro está um electrodoméstico pequeno e com ar algo ameaçador
que ele apresenta como o «rei dos filtros». «Então isto é um emprego
de vendedor?», pergunta alguém. «Não», responde o Todd com
veemência. «Nós temos um produto e, se eles o quiserem, nós damo-
lo.» Decerto não quer dizer que o produto é gratuito... Começam as
entrevistas pessoais de três minutos cada. Quando chega a minha
vez, pergunta-me porque é que quero este emprego e, sem pensar,
digo qualquer coisa sobre o desejo de ajudar pessoas com asma.
Onde é que eu julgo que estou, no Wal-Mart? Quando telefono,
conforme combinado,
duas horas mais tarde, dizem-me que não há vaga para mim de
momento, mas que fui seleccionada para a lista de espera. Talvez
tenha sido a questão da residência que esteve contra mim, embora
suspeite que foi a minha hipocrisia despropositada.
Entretanto, prossegue a procura cada vez mais desesperada de um
apartamento. A qualquer momento desta história, esteja eu a fazer
seja o que for, é necessário imaginar-me simultaneamente à espera de
um telefonema ou a tentar ligar a uma agência imobiliária uma
segunda, terceira ou quarta vez. Agora, durante a semana, embora
consiga por vezes ser atendida por seres humanos, são desdenhosos
ou desencorajadores. Um deles indica-me uma lista de apartamentos
que posso obter grátis em escaparates na rua, mas todos dispõem de
jacuzis e ginásios no condomínio e cobram rendas acima de mil
dólares por mês. Um outro informa-me de que escolhi uma má altura
para vir para Minneapolis; a taxa de oferta é inferior a 1%, e se
estamos a falar de rendas acessíveis, é bem capaz de ser de 0,1%.
Os anúncios de apartamentos para alugar no Star Tribune são
escassos ou inexistentes. Ninguém retribui os meus telefonemas.
Além disso, começo, por fim, a aperceber-me de que Minneapolis é
muito maior do que Key West ou Port-land, no Maine, e de que as
minhas duas hipóteses de emprego - o Wal-Mart ou o Menards -
distam cerca de cinquenta quilómetros uma da outra. O meu desejo de
conduzir pelas auto-estradas das Twin Cities diminui a olhos vistos.
Aonde quer que vá, há sempre um sujeito ou outro que nunca ouviu
falar da simpatia do Minnesota e me persegue com o camião, fazendo-
me cobiçar um autocolante que já vi várias vezes: «Se não és uma
hemorróida, sai-me do eu.» A estação local de rock clássico também
não está a dar-me o apoio necessário. Consigo aguentar
perseguidores a cento e vinte quilómetros à hora com a música dos
Creedence Clearwater Revival ou até mesmo dos ZZ Top, mas os
Eagles e os Doobie Brothers realmente não ajudam. Por conseguinte,
uma das coisas que não quero é viver a uma distância do emprego de
pôr os cabelos em pé, isto partindo do princípio de que arranjarei
emprego.
Há uma possibilidade, um único sítio na totalidade das Twin Cities que
aluga apartamentos mobilados a preços
130
131
«acessíveis», à semana ou ao mês - e este sítio, o Hopkins Park
Plaza, torna-se o alvo das minhas ânsias habitacionais nas três
semanas seguintes, o meu Xangri-La pessoal. Ao terceiro telefonema
(não responderam às duas primeiras chamadas que fiz), falo com a
Hildy. Não lhe parece que haja nada de momento, mas diz que, já
agora, eu podia dar lá uma saltada e pagar a taxa de inscrição na lista
de espera, que é de vinte dólares. Quando dou com os dois prédios de
tijolo de dois andares que constituem o Park Plaza, vejo várias outras
pessoas à procura de casa - um homem branco de meia-idade com o
cabelo pintado de castanho-pinhão, um jovem hispânico (na Califórnia
diz-se «latino», aqui chamam-lhe «hispânico»), uma mulher branca
mais idosa; estão também à espera da Hildy, o que explica porque é
que ela não responde às chamadas: o mercado está completamente a
seu favor. O sítio, quando por fim me leva a vê-lo, parece razoável,
embora os corredores sejam escuros e barulhentos e cheire a comida.
Se quiser, posso alugar de imediato um quarto sem kitchenette, mas
fica na cave e o preço - cento e quarenta e quatro dólares por semana
- parece-me um pouco puxado, por isso decido esperar que apareça
uma vaga de um quarto com kitchenette - o que pode acontecer a
qualquer momento, garante-me a Hildy, as entradas e saídas de
inquilinos são frequentes. Na altura, parece-me uma decisão cautelosa
e poupada, mas acaba por revelar-se uma grande asneira.
Decido que devo estar a fazer algo errado, que alguma pista me está a
escapar. Os donos do Budgie pareciam ter a certeza de que, através
do Apartment Search, encontraria um sítio para viver. Quando telefono
a um amigo de um amigo, um professor universitário de uma faculdade
em St. Paul que me pôs a par da história industrial das Twin Cities, ele
confessa que sabia da existência de uma «crise» de habitação a
preços acessíveis, mas não faz ideia do que eu deveria fazer. Os
agentes imobiliários que se dão ao trabalho de falar comigo
recomendam-me todos o mesmo: procurar um motel que alugue
quartos à semana e ficar lá até aparecer alguma coisa ( Nota 1 ) .

( Nota 1 ) - Nos últimos anos tem-se verificado um declínio constante


do número de apartamentos de renda acessível a nível nacional. Em
1991 havia 47 habita-
ções de renda acessível para cada 100 famílias de rendimento baixo,
enquanto em 1997 esse número descia para 36 (Rental Housing
Assistance - The Worse-ning Crisis: A Report to Congress on Worst-
Case Housing Needs, Housing and Urban Development Department,
Março de 2000). Não existem estatísticas nacionais - nem mesmo
estatísticas locais fiáveis -, mas aparentemente um número cada vez
mais elevado de pobres vê-se reduzido a viver em motéis. Os agentes
dos censos distinguem entre motéis normais, como os utilizados pelos
turistas, e motéis residenciais, onde os quartos são alugados à
semana, em geral a residentes a longo prazo. No entanto, muitos
motéis albergam populações mistas ou passam de um tipo ao outro,
consoante a estação. O número de residentes a longo prazo em
motéis é quase de certeza subestimado, visto que frequentemente os
proprietários de motéis negam o acesso aos agentes dos censos e é
possível que os próprios residentes tenham relutância em admitir que
vivem em motéis, apinhados aos quatro, ou mais, em cada quarto
(Willoughby Mariano, «The Inns and Outs ofthe Census», Los Angeles
Times, 22 de Maio de 2000).
132
Assim, após um sem-número de telefonemas, chego a uma lista de
onze motéis na área das Twin Cities, nenhum deles pertencente a uma
cadeia e todos com preços à semana. No entanto, os preços não
correspondem de modo algum à definição de «acessível», indo dos
duzentos dólares por semana no Hill View, em Shakopee, aos
duzentos e noventa no Twin La-kes, no Sul de Minneapolis, e muitos
deles não têm vagas. Vou ao Hill View, que exige um depósito de
sessenta dólares. Farto-me de andar de carro. Saio dos limites do
mapa, deixo para trás subúrbios e zonas comerciais, entro em áreas
rurais, o que, para um passeio de carro, não deixa de ser agradável -
mas para viver? Nas vizinhanças do Hill View não há quaisquer
restaurantes, bares de pronto-a-comer ou mercearias, nenhuns
estabelecimentos comerciais, a não ser dois armazéns de
equipamento agrícola. A distância é inaceitável; tal como o quarto,
quando o vejo: não tem microondas nem frigorífico, e a cama ocupa
praticamente todo o espaço. E o que faria eu se não me apetecesse
ficar na cama? Dava uma volta pelo armazém de peças para
maquinaria agrícola?
O Twin Lakes (não é o seu nome real) pelo menos fica em
Minneapolis. Aí o proprietário, um indiano, diz-me que todos os
residentes são trabalhadores a viverem ali a longo prazo e que pode
arranjar-me um quarto no segundo andar, onde não me verei obrigada
a fechar os cortinados durante o dia para ter alguma privacidade. Mais
uma vez, o quarto não
133
tem frigorífico nem microondas. Já desanimada, digo-lhe que o quero
alugar e que me mudarei para lá dentro de dois dias. Não há
problema; até prescinde do depósito. No entanto, tenho uma sensação
desagradável em relação a este sítio, em parte porque tudo parece
cinzento e manchado, mas também porque perto da máquina de lavar
e secar roupa há um tipo com aspecto tresloucado que me segue com
os olhos azuis injectados.
Porém, as coisas correm sobre rodas no que diz respeito ao emprego.
Tinham-me dito no Menards para me apresentar para uma sessão de
«orientação» às dez da manhã de quarta-feira e, como parto do
princípio de que só serei contratada se o resultado do teste de drogas
for negativo, telefono-lhes a pedir a confirmação da sessão. Sim,
aguardam-me nesse dia - espero que não apenas com o objectivo de
me denunciarem como drogada... Mas a sessão de orientação é
agradável e positiva. Sento-me com a Lee-Ann (uma quarentona loura
de aspecto cansado) do outro lado da mesa em frente ao Walt, que
explica as regras mais importantes de uma forma bem-humorada e
descontraída: sejam simpáticas para com os convidados, mesmo
quando eles ficam zangados por não poderem devolver qualquer coisa
- estão sempre a querer devolver coisas. Não faltem sem telefonar a
avisar. Cuidado com um certo gestor importante, que se mete com as
mulheres quando visita o armazém e, de forma geral, se comporta
como «um merdas». Teremos de usar um cinto, no qual penduraremos
uma faca (para abrir caixotes de papelão, suponho) e uma fita métrica,
e o custo destes materiais, que empurra por cima da mesa na nossa
direcção, será deduzido do primeiro salário. Ah, é verdade, também
receberemos umas «prendinhas» de vez em quando - esferográficas,
canecas, T-shirts de promoção de produtos sazonais... Em seguida
passa-nos os aventais e os crachás de identificação, e fico comovida
ao ver que mandou fazer dois para mim, um com «Barbara» e outro
com «Barb». Posso escolher.
Quando o Walt sai da sala por uns instantes, viro-me para a Lee-Ann e
pergunto: «Isto quer dizer que estamos contratadas?» Parece-me
estranho que não tenha havido qualquer oferta
134
ou aceitação do emprego. «É o que parece», diz ela, e confessa que
nem sequer fez o teste de drogas. Foi ao laboratório de análises
clínicas, mas não levava um documento de identificação com
fotografia, porque lhe tinham roubado a carteira, e, claro, recusaram-
se a fazer-lhe o teste sem a identificação. Nessa altura o Walt
regressa à sala e leva-me ao armazém para conhecer o Steve, «um
tipo mesmo fixe», que vai ser o meu supervisor na secção de
canalização. Mas aqui, na zona de vendas, assaltam-me as dúvidas.
As prateleiras de materiais de canalização, que parecem estender-se
por quilómetros, não têm um único produto cujo nome eu conheça, o
que me dá uma ideia do que deve sentir uma pessoa afásica.
Conseguirei sobreviver apontando para os objectos e grunhindo? O
sorriso do Steve parece de troça, como se tivesse acesso ao que me
vai na mente e não encontrasse escondida algures nela nem uma
pitada de conhecimentos de canalização. Começa na sexta-feira, diz
ele, o turno é do meio-dia às onze. Por momentos, julgo que não o
ouvi bem, nem consigo acreditar no salário que o Walt me assegura
que vou ganhar - não oito dólares e meio, mas, incrivelmente, dez
dólares à hora.
Agora já não preciso do Wal-Mart, acho eu, embora eles precisem de
mim. A Roberta telefona-me a dizer, num tom efusivo, que o resultado
do meu «teste de drogas é óptimo» e que apareça no dia seguinte, às
três, para uma sessão de orientação. O resultado do teste não tem o
efeito desejado de me fazer sentir absolvida ou mesmo limpa. Na
verdade sinto-me irritada, e não consigo deixar de pensar que talvez
tivesse obtido os mesmos resultados sem gastar trinta dólares e
passar três dias a encher-me de água para me desintoxicar. Pergunto-
lhe quanto vou ganhar - note-se que ela não dá esta informação por
iniciativa própria -, e quando me informa que são sete dólares por
hora, penso: «muito bem, caso encerrado». Mas, num espírito de
precaução e curiosidade, decido ir assistir à sessão de orientação do
Wal-Mart. Por razões fisiológicas imprevisíveis, tal decisão acaba por
ser um erro tremendo.
Quanto a grandiosidade, escala e poder de intimidação, duvido de que
qualquer sessão de orientação de outra empresa ultrapasse a do Wal-
Mart. Disseram-me que demorará oito
135
horas, com duas pausas de quinze minutos e uma de meia hora para
uma refeição, e será paga como se fosse um turno normal. Quando
chego, decentemente vestida com umas calças caqui e uma T-shirt
limpa, como se espera de uma «associada» potencial do Wal-Mart,
verifico que há outros dez novos candidatos além de mim, na sua
maioria jovens e brancos, e uma equipa de três pessoas, chefiada
pela Roberta, para nos «orientar». Sentamo-nos à volta de uma mesa
comprida na mesma sala sem janelas onde fui entrevistada, cada um
de nós com uma grossa capa de papelada à frente, e voltamos a ouvir
a Roberta contar como criou seis filhos, é «uma pessoa que gosta de
pessoas», descobriu que os três princípios da filosofia do Wal-Mart
são idênticos aos seus, etc. Começamos por um vídeo com a duração
de cerca de quinze minutos sobre a história e a filosofia do Wal-Mart
ou, como um observador antropológico talvez lhe chamasse, o «culto
de Sam». Em primeiro lugar, vemos o jovem Sam Walton fardado a
regressar da guerra. Abre uma loja de produtos em saldo permanente,
casa-se e tem quatro bonitos filhos; recebe a Medal of Freedom
(medalha da Liberdade) do presidente Bush e morre pouco depois, ao
que se seguem os encómios. Mas a companhia vai para a frente, oh,
se vai! Aqui, o enredo sobe, imparável, a alturas vertiginosas, com
pausas unicamente para assinalar novos marcos da expansão
empresarial. 1992: o Wal-Mart torna-se o maior retalhista do mundo.
1997: as vendas atingem cem mil milhões de dólares. 1998: o número
de associados (empregados) do Wal-Mart atinge oitocentos e vinte e
cinco mil, tornando-o o maior empregador privado do país. Cada data
histórica é acompanhada por imagens de multidões de clientes,
enxames de associados ou cenas de novas e bonitas lojas com os
seus parques de estacionamento. Repetidamente, ouvimos ou vemos
escritos os «três princípios», que - e isto é irritante - não seguem o
mesmo esquema sintáctico: «respeito pelo indivíduo, excedendo as
expectativas dos clientes, esforçar-se por atingir a excelência».
«Respeito pelo indivíduo» é connosco, os associados, porque, embora
o Wal-Mart seja extraordinariamente vasto e nós, como indivíduos,
sejamos minúsculos, tudo depende de nós.
136
O Sam sempre disse, e mostram-no a dizê-lo, que «as melhores ideias
vêm dos associados» - por exemplo, a ideia de ter um
«cumprimentador de pessoas», um empregado (perdão, associado)
idoso a saudar cada cliente que entra na loja. Três vezes durante a
orientação, que começou às três da tarde e se prolonga até quase às
onze da noite, recordam-nos que esta ideia brilhante teve origem num
mero associado, e quem sabe que revoluções na venda a retalho cada
um de nós virá a propor? Porque as nossas ideias são bem-vindas,
mais do que bem-vindas, e devemos pensar nos nossos gerentes não
como patrões, mas como líderes de empregados, ao nosso serviço,
bem como ao serviço dos clientes. Evidentemente, nem sempre tudo é
harmonia entre os associados e os seus líderes. Um vídeo sobre a
«honestidade dos associados» mostra um caixa a ser apanhado por
uma câmara a meter ao bolso umas notas da caixa registadora. Ouve-
se um rufar de tambores agourento enquanto o homem é algemado e
condenado a quatro anos de prisão.
O tema das tensões latentes ultrapassadas por honestidade e uma
atitude positiva prossegue no vídeo de doze minutos intitulado
Escolheu Um Sítio Óptimo para Trabalhar. Neste, vários associados
prestam o seu testemunho quanto à «sensação basicamente de
família pela qual o Wal-Mart é tão conhecido», que resulta na
conclusão de que não precisamos de sindicatos para nada. Há muito,
muito tempo os sindicatos desempenhavam um papel importante na
sociedade americana, mas agora «já não têm muito para oferecer aos
trabalhadores», sendo essa a razão pela qual as pessoas estão a
abandoná-los «às carradas». O Wal-Mart está em franca expansão; os
sindicatos estão em declínio: tirem as vossas próprias conclusões.
Mas somos avisados de que «os sindicatos têm o Wal-Mart em mira
há anos». Por que razão? Pelas quotas, claro. Pensem no que
perderiam com o sindicato: em primeiro lugar, o dinheiro das quotas,
que poderia atingir vinte dólares por mês, «e por vezes muito mais».
Em segundo, perderiam a «vossa voz», porque o sindicato falaria por
vós. Por fim, poderiam mesmo perder o salário e outras regalias,
porque eles estariam «em risco na mesa de negociações». A dúvida
inevitável
137
- e suponho que alguns dos meus colegas adolescentes desta sessão
de orientação sejam assaltados por ela - é por que razão se permite
que andem assim à solta seres perigosos como estes activistas
sindicais, verdadeiros extorsionários!...
Há mais, muito mais matéria do que eu poderia assimilar mesmo que
fosse distribuída por um curso com a duração de um semestre.
Partindo do pressuposto de que nenhum de nós tenciona ir para casa
e enroscar-se no sofá a ler o Guia do Associado do Wal-Mart, os
orientadores da sessão começam a lê-lo em voz alta, fazendo uma
pausa ao fim de alguns parágrafos para perguntarem: «Há alguma
dúvida?»
Nunca há. O Barry, o rapaz de dezassete anos à minha esquerda,
murmura que já lhe «dói o rabo». A Sonya, a afro-americana
minúscula sentada à minha frente, parece paralisada de terror. Eu já
desisti de aparentar vivacidade e faço os possíveis por manter os
olhos abertos. Ficamos a saber que não é permitido o uso de brincos
no nariz ou em qualquer outra parte do rosto; os brincos nas orelhas
devem ser pequenos e discretos, não pendentes; nada de jeans, a não
ser à sexta-feira, e mesmo assim tem de se pagar um dólar por esse
privilégio. E nada de «pastar», ou seja, não é permitido consumir a
comida de pacotes que se abriram como que por milagre; nada de
«roubos de tempo». Esta última interdição arrasta-me para uma
fantasia de ficção científica: E, quando os ladrões do tempo
regressavam ao ano 3420, carregados com fins-de-semana e dias de
folga roubados ao século xxi... Finalmente uma pergunta. O homem de
idade que vai ser contratado como «cumprimen-tador de pessoas»
quer saber: «O que é "roubo de tempo"?» Resposta: «Fazer qualquer
coisa que não seja trabalho, seja o que for, nas horas de serviço.»
Mas o roubo do nosso tempo não é problema. Há momentos, que por
vezes se prolongam por vários minutos, em que os nossos três
orientadores saem da sala e nós ficamos ali sentados em silêncio ou
aproveitamos a oportunidade para nos mexermos no lugar. Em
algumas ocasiões, os orientadores mais novos abordam uma
determinada parte do guia, e em seguida a Roberta, regressando à
sala depois de uma ausência para tratar de outros assuntos, volta a
abordar a mesma parte. Pesam-me as pálpebras e chego a pôr
138
a hipótese de me ir embora. Já houve ocasiões em que o tempo
passou mais depressa, durante um atraso de sete horas na partida de
um avião, por exemplo. Nessas situações, pelo menos, podia ler um
livro ou levantar-me e esticar as pernas, ir até à casa de banho.
Nos intervalos tomo café no Radio Grill, o restaurante de comida
rápida do Wal-Mart, café a sério, com cafeína, mais por querer estar
desperta na viagem de regresso a casa do que por sentir necessidade
de assimilar toda a informação trivial sobre a organização que estão a
impingir-me. Ora aqui está uma droga pela qual deveriam interessar-
se um pouco mais os que combatem as drogas. Como normalmente
não tomo café - basta-me chá gelado para ficar desperta -, o efeito é
semelhante ao de uma dose forte de Dexedrine: fico com a pulsação
acelerada e o cérebro a trabalhar a cem à hora e, neste caso, entro
numa espécie de delírio. Dou comigo a achar difíceis as pequenas
tarefas de nível pré-primário que nos atribuem, tais como afixar o meu
código de barras no cartão de identificação e depois escrever o nome
com letras autocolantes. As letras enrolam-se e colam-se-me aos
dedos, pelo que paro em «Barb», ou, para ser mais exacta, em
«IL4R5», pensando em todas as pessoas minhas conhecidas que
mudaram nos últimos anos para nomes mais refinados - de Patsy para
Patrícia, de Dick para Richard, e assim por diante -, enquanto eu estou
a enveredar pela direcção oposta. Em seguida vamos, à vez, sentar-
nos ao computador para fazer a ABC, ou «Aprendizagem Baseada em
Computadores», e fico fascinada com o módulo inspirado pelo HIV,
que se intitula «Patogé-neos transmitidos pelo sangue» e nos explica
o que fazer caso apareçam poças de sangue humano na loja. Ora
bem, põem-se cones de sinalização à volta da poça, calçam-se luvas
de borracha... mas não consigo deixar de imaginar as circunstâncias
que poderiam provocar o aparecimento destas poças de sangue: um
levantamento de associados? Um motim de clientes? Já acabei seis
módulos, mais três do que estavam marcados para hoje à noite - os
restantes são para completarmos nos nossos tempos livres ao longo
das próximas semanas -, quando um dos orientadores me arranca
delicadamente do computador. Temos autorização para nos irmos
embora.
139
Segue-se a pior das muitas noites de insónia dos próximos tempos.
No regresso a casa, na auto-estrada, um tipo ultrapassa-me pela
direita a mais de cento e vinte à hora, a milionésimos de centímetro de
distância, demonstrando que qualquer auto-estrada tem muito mais
saídas do que as que vemos, um número infinitamente maior de
saídas - finais, é óbvio. A esta hora, quase meia-noite, demoro quinze
minutos a arranjar lugar para estacionar e mais cinco para ir a pé até
ao apartamento, onde descubro que o Budgie, perturbado pela minha
longa ausência, está completamente desatinado. As suas penas
formam um tapete no chão debaixo da gaiola, para onde se recusa a
entrar mesmo depois de passar uns bons três quartos de hora
empoleirado na minha cabeça. Preciso de estar fresca de manhã para
o meu primeiro dia nas canalizações - o Me-nards continua a ser a
minha escolha -, mas uma série de pequenas coisas tem corrido mal
e, a este nível de finanças, nenhum problema é demasiado pequeno.
Tive de gastar onze dólares para mandar substituir a pilha do relógio
de pulso. Apareceu-me uma mancha de tinta nas calças caqui, que só
saiu depois de três lavagens na máquina (três dólares e setenta e
cinco) e um tratamento com gel antinódoas (um dólar e vinte e nove
cêntimos). Houve ainda os vinte dólares da inscrição no Park Plaza, e
outros vinte para o cinto de que preciso para trabalhar no Menards,
que só comprei depois de comparar preços num armazém de vendas
por atacado. E porque é que não tinha perguntado quanto iam custar a
faca e a fita métrica? Descubro que o telefone do apartamento não
está a receber chamadas nem a gravar mensagens - quem sabe que
oportunidades terei perdido de arranjar casa?! Por volta das duas da
manhã, tomo um Unisom para contrabalançar a cafeína, mas às cinco
o Budgie vinga-se, saudando o nascer do dia, que felizmente ainda
vem longe, com uma série de berros estridentes.
Esperam-me no Menards ao meio-dia. Neste momento, embora não
tenha aceitado formalmente qualquer dos empregos, apercebo-me de
que estou oficialmente empregada em ambos os sítios, no Wal-Mart e
no Menards. Talvez combine os dois ou ignore o Wal-Mart e opte pelo
salário mais alto do
140
Menards. Mas o Wal-Mart, com a sua interminável «orientação»,
infelizmente já me tem nas garras. As pessoas com mais de um
emprego - coisa que eu estaria efectivamente a fazer, por um dia,
seguindo do curso no Wal-Mart, das três às onze, para um dia de
trabalho no Menards - têm de saber aguentar a privação de sono. Eu
não consigo. Sinto tremuras, parece que tenho o cérebro frito, como
aquele ovo estrelado no anúncio da Partnership for a Drug-Free
America (Parceria para Uma América sem Drogas). Como vou poder
dominar a ciência dos materiais de canalização quando mal consigo
concentrar-me o suficiente para fazer um pequeno-almoço de torrada
com manteiga de amendoim? Sou assaltada por uma espécie de
instantâneos de alto contraste, sem qualquer continuidade narrativa.
Telefono para o Menards e mando chamar o Paul para esclarecer a
questão do turno. O Steve - ou teria sido o Walt? - disse que era do
meio-dia às onze, mas assim seriam onze horas, correcto?
«Correcto», diz ele. «Quer trabalhar a tempo inteiro, não quer?»
E vai pagar-me dez dólares por hora?
«Dez dólares?», pergunta o Paul, admirado. «Quem lhe disse dez?»
Ele vai ter de confirmar isso; não pode estar correcto.
Já nervosa, afirmo que não estou disposta a fazer um turno de onze
horas, muito menos se não me pagarem mais 50% por cada hora
depois das oito. Não lhe falo das gerações de trabalhadores que
lutaram e por vezes chegaram a dar a vida pelo direito ao dia de
trabalho de dez horas, e mais tarde de oito, embora nesse momento
tenha o facto bem presente1. Só lhe digo que vou devolver a faca, o
avental e a fita métrica. Nos dias seguintes tento encontrar uma
explicação racional para esta decisão e digo a mim própria que, dada
a posição
1 Ao abrigo do Fair Labor Standards Act (Lei dos Padrões Laborais
Justos), efectivamente é ilegal não pagar uma hora e meia por cada
hora de trabalho acima das 40 por semana. Certas categorias de
trabalhadores - profissionais liberais, gestores e trabalhadores
agrícolas - não se encontram abrangidas por esta lei, mas os
trabalhadores do comércio retalhista não pertencem a esse grupo.
141
ocupada pelo Wal-Mart como maior empregador privado a nível
nacional, pelo menos todas as minhas experiências aí serão de
grande significado social, mas não passa de uma forma de embelezar
mais um erro crasso, o de ter tomado aquele café todo. A embaraçosa
verdade é que estou demasiado exausta para trabalhar, especialmente
onze horas de seguida.
Por que razão não tinha feito antes todas estas perguntas sobre
salários e horários de trabalho? Já agora, porque é que não tinha
regateado com a Roberta quando me telefonou a informar-me do
resultado do teste de drogas, e não lhe disse que sete dólares por
hora estava bem, desde que incluísse um apartamento num
condomínio fechado com vista para um lago e piscina coberta? Pelo
menos parte da resposta, que só descobri algumas semanas mais
tarde, encontra-se na destreza com que o empregador manipula o
processo de contratação. Inicialmente é-se candidato e de súbito
passa-se a orientando. Entregam-nos o impresso de candidatura e
alguns dias depois já estão a dar-nos a farda e a avisar-nos de que
não são admissíveis o uso de brincos no nariz e os roubos. Não há um
ponto intermédio neste processo, uma fase em que, como uma pessoa
autónoma com direito a negociar condições, se possa confrontar o
potencial empregador. A intercalação do teste de drogas entre a
candidatura e a contratação desequilibra ainda mais os pratos da
balança, ao deixar claro que é o potencial empregado e não o
empregador que tem de dar provas. Até mesmo num mercado com
grande escassez de mão-de-obra - e não há mercado com maior falta
de mão-de-obra do que o de Minneapolis, onde provavelmente me
teriam recebido de braços abertos em qualquer estabelecimento
comercial -, a pessoa que tem um produto valioso para vender, ou
seja, mão-de-obra, é levada a sentir-se na mó de baixo, como uma
pedinte com a mão estendida.
É sábado e chegou o momento de deixar o alojamento grátis e o meu
emplumado e neurótico companheiro de quarto. Algumas horas antes
da chegada prevista dos donos do apartamento, faço as malas e dirijo-
me para o Twin Lakes,
142
onde - a surpresa não é grande - fico a saber que todos os quartos no
segundo andar estão ocupados. Aquele que eu pedira, com vista para
o pátio das traseiras e não para a zona de estacionamento, está
ocupado por uma mulher com uma criança, diz-me o proprietário, e ele
é demasiado bom para lhes pedir que mudem para um quarto mais
pequeno. Sendo assim, decido que esta é a oportunidade de uma
saída airosa e telefono para um outro sítio da minha lista que aluga
quartos à semana, o Clearview Inn (não é o nome verdadeiro), e tem
duas grandes vantagens: fica a cerca de vinte minutos de carro do
meu Wal-Mart, em vez de pelo menos quarenta e cinco, e a renda é de
duzentos e quarenta e cinco dólares por semana, em vez de duzentos
e noventa e cinco. Mesmo assim é escandalosamente alta, mais do
que o meu salário semanal líquido. No entanto, na nossa última
conversa a Hildy prometeu arranjar-me um quarto com kitchenette até
ao final da próxima semana, e estou confiante de que conseguirei
trabalho ao fim-de-semana no supermercado onde fui à procura de
emprego, na secção de padaria, se tiver sorte.
Afirmar que um determinado motel é o pior do país é arriscar-se a
grande polémica1. Nas minhas viagens tenho encontrado bastantes
candidatos ao título - o motel de Cleve-land que se transformava em
bordel à noite, por exemplo, ou o de Butte, onde a janela dava para
um outro quarto. Mesmo assim, o Clearview Inn deita a concorrência
por terra. Passo duzentos e cinquenta e cinco dólares (os dez extra
são para a utilização do serviço telefónico) pela fresta do painel de
vidro que me separa do jovem proprietário indiano - os indianos
parecem ter o monopólio do negócio de motéis do Midwest - e sou
conduzida pela sua mulher a um quarto cujo único traço digno de nota
é o cheiro a mofo. Não tenho Claritin-D
1 Talvez tenha de me retractar desta afirmação. Até ser encerrado por
violação do código de segurança contra incêndios, em 1997, o
Parkway Motel, no Sul de Maryland, podia gabar-se de ter fios
eléctricos expostos, buracos nas portas dos quartos e esgotos a
correrem pelo chão das casas de banho. Contudo, se os preços
praticados forem tidos em consideração, talvez o Clearview Inn saia
vencedor, já que o Parkway cobrava somente 20 dólares por dia na
altura (Todd Shields, «Charles Cracks Down on Dilapidated Motéis»,
The Washington Post, 20 de Abril de 1997).
143
que chegue para esta situação, uma ideia que tenho de transmitir
apertando o nariz entre dois dedos, visto que o inglês dela não chega
para compreender o conceito de alergia. Am-bientador?, sugere,
quando entende o que quero dizer. Incenso? Há um quarto melhor,
afirma o marido quando voltamos ao escritório, mas - e fita-me com os
olhos semicerrados - eu que não «dê cabo» dele! Tento soltar uma
risadinha que o sossegue, mas fico a remoer o aviso durante dias:
será que tenho andado enganada todos estes anos, pensando que
pareço uma pessoa madura e sóbria, quando afinal está à vista que
não passo de uma vândala?
O quarto cento e trinta e três tem uma cama, uma cadeira, uma
cómoda e um televisor acorrentado à parede. Peço e obtenho um
candeeiro como suplemento para a lâmpada que pende do tecto. Em
vez do cheiro a mofo, respiro agora uma mistura de tinta fresca e algo
que acabo por identificar como excremento de rato. Mas os
verdadeiros problemas estão relacionados com janelas e portas: a
pequena janela não tem mosquiteiro e não há ar condicionado nem
ventoinha no quarto; o cortinado é fino e transparente; a porta não tem
fecho. Sem mosquiteiro, tenho de fechar a janela à noite, o que
significa que não haverá circulação de ar, a não ser que esteja
disposta a tentar a minha sorte com os insectos e os vizinhos. Mas
quem são os vizinhos? O motel tem a forma de um assento de sanita
disposto à volta do parque de estacionamento, e vejo um conjunto
inexplicável de seres humanos. Uma mulher com um bebé ao colo
está encostada ao umbral da porta de um quarto. Dois grupos de
adolescentes, um deles de negros e o outro de brancos, parecem
partilhar quartos lado a lado. Há vários homens sozinhos, de idades
variadas, entre os quais um branco de certa idade com roupas de
trabalho e um autocolante no pára-choques do carro que diz «Não
roube, o governo detesta concorrência», como se os impostos fossem
a única coisa a impedi-lo de viver no Embassy Suites. Quando
escurece, vou lá fora e olho para o meu quarto com o cortinado
corrido; não há dúvida, consegue ver-se praticamente tudo, pelo
menos em silhueta. Engulo a comida que comprei na charcutaria de
um supermercado em Minneapolis e deito-me vestida, mas não para
dormir.
144
Não sou uma pessoa medrosa por natureza, pelo que posso culpar ou
gabar a minha mãe, que nunca se lembrou de me alertar para
quaisquer vulnerabilidades específicas do sexo feminino. Só quando
fui para a universidade comecei a compreender o que implica uma
violação e a descobrir que o meu costume de explorar cidades
estranhas sozinha e a pé, de dia ou de noite, parecia mais um
problema de inconsciência do que uma questão de excentricidade.
Não tive quaisquer receios relativamente ao parque de caravanas de
Key West ou ao motel do Maine, mas a porta da caravana tinha fecho
e em ambos os casos dispunha de persianas e mosquiteiros em bom
estado. Aqui, só o ar abafado do quarto com a janela fechada me
indica que estou de facto dentro de casa; de resto, sinto-me vulnerável
aos olhares de qualquer pessoa ou a qualquer coisa vinda da auto-
estrada que queira entrar pelo quarto, e não gostaria de ter de recorrer
aos donos do motel a pedir socorro. Penso em pôr tampões nos
ouvidos, para bloquear o som do televisor que vem do quarto ao lado,
e uma venda nos olhos, para evitar a luz do anúncio ao refrigerante Dr
Pepper da máquina de bebidas que há no parque de estacionamento,
mas acabo por decidir que é preferível manter todos os sentidos
alerta. Durmo e acordo, adormeço e volto a acordar, escuto os carros
que vêm e vão, vejo as silhuetas a passar pela janela.
Por volta das quatro da manhã apercebo-me de que o problema não
está em eu ser uma cobardolas. As mulheres pobres - talvez em
especial as que se encontram sozinhas, mesmo que estejam apenas a
viver por algum tempo entre os pobres por qualquer razão - têm
realmente mais a recear do que as que têm casas com fechos duplos
e sistemas de alarme e maridos ou cães. Eu já devia saber isto, ou
pelo menos já tinha ouvido dizer, mas agora assimilo a lição pela
primeira vez.
Este é, pois, o lar de que saio na segunda-feira de manhã para
começar a minha nova vida como «associada» do Wal-Mart. Após os
rigores da orientação, estou a contar com um acolhimento altamente
estruturado, talvez um cerimonial de investidura do meu avental azul-
vivo do Wal-Mart e uma sessão de quarenta e cinco minutos para me
ensinar a utilizar as
145
máquinas de bebidas da sala de descanso, mas quando chego, para o
turno das dez às seis, ninguém parece estar à minha espera.
Colocaram-me nas «linhas suaves», o que soa algo sinuoso, mas não
faço ideia do que signifique. Alguém na secção de pessoal me diz que
estou no pronto-a-vestir de senhora (um dos sectores das linhas
suaves, segundo fico a saber) e manda-me para o balcão ao lado do
gabinete de provas, onde sou passada de uma pessoa para outra - até
chegar à Ellie, que, como não usa avental, deve ser da gerência. Ela
manda-me «zonear» os vestidos de Verão de malha Bobbie Brooks,
tarefa que poderia ser utilizada como teste de QI para pessoas com
graves problemas cognitivos. Em primeiro lugar, os vestidos têm de
ser agrupados por cor (neste caso, verde-oliva, pêssego ou lavanda),
em seguida por padrão de estampado (folhas no corpete, flor única ou
ramalhetes) e, dentro de cada padrão, por tamanho. Quando acabo,
não propriamente exausta, conheço a Melissa, que, com duas
semanas de casa, está mais ou menos ao mesmo nível que eu. Pede-
me que a ajude a «consolidar» os vestidos de malha Kathie Lee, para
que os vestidos de seda da mesma marca possam tomar o seu lugar
na «imagem», uma zona ao canto de maior passagem. Em pouco
mais de duas horas, durante as quais trocamos algumas palavras de
vez em quando, fico a saber que a Melissa era empregada de mesa
antes de arranjar este emprego, que o marido trabalha na construção
civil e que os filhos já são crescidos. Houve algumas fases caóticas na
sua vida - foi mãe solteira, teve problemas com álcool e drogas -, mas
tudo isso passou desde que entregou a vida a Cristo.
Ao longo do dia aprendo a pouco e pouco que o nosso trabalho é
manter o pronto-a-vestir de senhora «comprável». Sem dúvida que
atendemos os clientes (que também aqui são cada vez com mais
frequência referidos como «convidados»), se precisarem de ajuda. A
princípio ponho em prática a «hospitalidade agressiva» vivamente
aconselhada nos vídeos do estágio: logo que aparece alguém a três
metros de distância de uma associada de vendas, esta deve sorrir
com simpatia e oferecer a sua ajuda. No entanto nunca vejo
associadas mais experientes fazerem isto - em primeiro lugar porque
muitas
146
vezes os clientes ficam irritados por lhes interrompermos o estado
quase sonâmbulo em que andam a fazer compras, e em segundo
porque temos afazeres bem mais urgentes. Na secção de pronto-a-
vestir de senhora a grande tarefa, sem equivalente na secção de
produtos para a casa ou de jardinagem, por exemplo, é arrumar as
«devoluções» - as roupas que foram vestidas e rejeitadas ou, mais
raramente, as que foram compradas e depois devolvidas à loja. Há
ainda as muitas peças que as clientes espalharam pela loja, deixaram
caída no chão, tiraram dos cabides e lançaram sobre os varões ou
esconderam em locais distantes do seu habitat natural. Cada uma
destas peças tem de ser posta no seu lugar exacto, tendo em conta a
cor, o padrão, o preço e o tamanho. Todos os momentos livres devem
ser dedicados ao «zoneamento». Quando conto isto à Caroline ao
telefone, ela condói-se de mim: «Ah, trabalho para burros!»
Mas nenhum emprego é tão fácil quanto parece à primeira vista. Tenho
de arrumar as peças de roupa; a questão é: onde? Dedico a maior
parte dos primeiros dias a tentar memorizar a planta da secção de
pronto-a-vestir de senhora, noventa (ou cento e oitenta?) metros
quadrados de espaço que fazem fronteira com o pronto-a-vestir de
homem, o de criança, a secção de postais ilustrados e a de roupa
interior. Pondo-nos ao lado dos gabinetes de provas e olhando para a
entrada principal da loja, temos à nossa frente os tamanhos grandes,
autênticas tendas, também conhecidos como tamanhos de «mulher».
Estes encontram-se ladeados, à esquerda, pela nossa linha mais
elegante e cara (chegando aos vinte e nove dólares e uns trocos), a
colecção 100% poliéster Kathie Lee, apropriada para saídas à noite e
trabalhadoras de escritório de nível médio. Avançando na direcção dos
ponteiros do relógio, encontramos as linhas Russ e Bobbie Brooks,
decididamente assexuadas, parecendo ter como alvo professoras
primárias rechonchudas com um churrasco importante marcado. A
seguir, depois do vestuário resistente da marca White Stag, vêm as
colecções arejadas e ousadas Faded Glory, No Boundaries e
Jordache, que se destinam às clientes mais jovens e magras. Pelo
meio aparecem enclaves das marcas menos importantes, como
Athletic Works e Basic
147
Equipment, e as linhas de fantasia Looney Tunes, Pooh e Mic-key,
geralmente com as personagens de desenhos animados a que se
referem estampadas nas peças de roupa. Dentro de cada zona de
uma marca existem, claro, dúzias de peças, até mesmo dúzias de
cada espécie de peça. Neste Verão, por exemplo, as calças podem
ser por baixo do joelho, clássicas, à carpinteiro, à pescador, a direito
ou à boca-de-sino, dependendo do comprimento e do corte, e é
provável que esteja a esquecer-me de algumas categorias. Por
conseguinte, a minha postura típica é girar sobre um pé lentamente,
de olhos arregalados, com a peça de vestuário na mão, perguntando a
mim própria: «Onde é que eu vi os fatos-macaco da Athletic Works a
nove dólares e noventa e seis?», ou algo semelhante. Inevitavelmente,
há peças misteriosas que requerem mais tempo e perguntas: roupas
que vieram da secção jovem ou de homem, peças de saldo com
etiquetas que não foram alteradas para o novo preço, a ocasional
peça única.
E quando já sei de cor a disposição dos produtos, ela muda
subitamente. Na minha terceira manhã, após algumas buscas em vão,
descubro que o conjunto de calção e camisa Russ destronou a Kathie
Lee na «imagem». Quando acuso a Ellie de tentar fazer-me crer que
estou com a doença de Alzheimer, ela leva-me a sério e pede-me
desculpa, explicando que a cliente média vem à loja três ou quatro
vezes por semana, pelo que é necessário introduzir um elemento de
surpresa. Além disso, a disposição dos produtos é praticamente a
única coisa sobre a qual tem algum controlo, visto que as roupas e os
preços, pelo menos os preços iniciais, são determinados pela sede da
companhia, no Arkansas. Memorizo a localização dos produtos à
mesma velocidade a que ela lhes muda o sítio.
A minha primeira reacção ao trabalho é de desilusão e uma espécie de
desprezo sexista. E pensar que podia estar nas canalizações, a
aprender o vocabulário das válvulas, com ferramentas a penderem-me
do cinto e a acamaradar com o Steve e o Walt! Em vez disso, a
missão do momento é pôr a parte de cima de um biquini cor-de-rosa
no seu lugar no escaparate de fatos de banho Bermuda. Nada é
pesado ou, tanto quanto julgo, muito urgente. Ninguém passará fome,
se magoará ou
148
morrerá se eu não der conta do recado; na verdade, como é que
alguém poderia saber que não dei conta do recado, perante a
constante actividade predatória das clientes? Sinto-me também
abafada pela gentileza obrigatória da cultura do Wal-Mart. Estou na
secção de senhoras e aqui somos todas «senhoras», proibidas por
uma regra em vigor em toda a loja de levantar a voz ou praguejar.
Dêem-me umas semanas e tornar-me-ei completamente feminina, as
minhas passadas largas ficarão reduzidas a uns passinhos curtos, e
começarei a inclinar a cabeça sobre o ombro.
No entanto, o meu emprego não é tão refinado como parece à
primeira vista, devido ao volume de roupas em circulação. No Wal-
Mart, ao contrário de numa loja cara, como, por exemplo, Lord &
Taylor, os clientes andam com carrinhos de compras, que podem
encher até acima antes de irem para o gabinete de provas. Aí as
peças rejeitadas, cerca de 90% das que experimentam, são dobradas
e penduradas em cabides por quem quer que esteja de serviço aos
gabinetes de provas e postas em carrinhos de compras para eu e a
Melissa as arrumarmos. E assim que medimos a nossa carga de
trabalho - em carrinhos. Quando entro, a Melissa, cujo turno começa
mais cedo do que o meu, diz-me como têm estado as coisas
(«Acreditas? Oito carrinhos esta manhã!») e quantos carrinhos me
aguardam. Ao princípio, um carrinho leva-me uma média de quarenta
e cinco minutos, com três ou quatro peças-mistério por arrumar. Baixo
a média para meia hora, e mesmo assim os carrinhos não param.
Na maior parte do tempo o meu trabalho requer apenas um mínimo de
interacção humana, quer com colegas quer com a supervisora, em
grande medida por consistir em tarefas simples. Chego ao princípio de
um turno ou ao fim de um intervalo, avalio os estragos causados pelos
«convidados» durante a minha ausência, conto os carrinhos cheios
que me aguardam e deito mãos ao trabalho. Mesmo que fosse surda-
muda, poderia cumprir a maior parte destas tarefas sem qualquer
dificuldade; e, apesar das directivas da sessão de orientação, segundo
as quais devemos sorrir e transmitir calor humano, ser autista talvez
fosse uma vantagem. Por vezes,
149
quando há pouco para fazer, eu e a Melissa inventamos uma tarefa
que podemos fazer juntas - «zonear» fatos de banho, por exemplo, um
emaranhado terrível de alças - e fazemos troça, ela de forma cristã, eu
de uma perspectiva mais feminista, das inúteis saídas de praia
transparentes que acompanham os fatos de banho mais reveladores.
Outras vezes a Ellie manda-me fazer algo especial, como pôr todas as
T-shirts da linha Basic Equipment em cabides, porque os produtos em
cabides vendem-se mais depressa, e depois ordená-las nos varões.
Gosto da Ellie. É uma cinquentona de tez macilenta que deve
representar a apoteose da «liderança de empregados», ou, em termos
mais seculares, o apregoado estilo «feminino» de gestão. Diz «por
favor» e «obrigada»; não dá ordens, pede. O mesmo não pode dizer-
se do jovem Howard - o subgerente Howard, como lhe chamam -, cujo
império abrange todas as linhas suaves, incluindo as secções de
bebé, infantil, de homem, de acessórios e roupa interior. No meu
primeiro dia sou convocada para uma reunião de associados, onde ele
passa dez minutos a falar sobre a assiduidade, fixando cada um de
nós à vez com o seu sorriso intimidante à Tom Cruise, com as
sobrancelhas franzidas e os cantos da boca para cima, e depois revela
(onde é que eu já ouvi isto?) o seu «ódio de estimação»: associados a
falarem uns com os outros pelos cantos, o que, evidentemente, é um
exemplo ideal de roubo de tempo.
Alguns dias depois de iniciar a minha carreira no Wal-Mart, ao
regressar ao Clearview, deparo com a porta do quarto aberta e o
proprietário do motel à minha espera. Houve um «problema» - um
refluxo do esgoto que está espalhado por todo o chão, embora
felizmente a minha mala esteja OK. Vou ser mudada para o quarto
cento e vinte e sete, que é melhor, porque tem mosquiteiro. Mas o
mosquiteiro está aos pedaços, sem sequer se poder prender em
baixo, a adejar inutilmente na brisa. Peço um mosquiteiro em
condições, e ele diz-me que não tem nenhum à medida da janela.
Peço uma ventoinha, e ele não tem nenhuma que funcione. Pergunto
porquê - quer dizer, parte-se do princípio de que isto é um motel em
funcionamento... -, e ele revira os olhos, aparentemente indicando os
outros residentes: «Podia contar-lhe cada uma!»
150
Carrego com as coisas até ao quarto cento e vinte e sete e começo a
tentar reconstruir a minha vidinha doméstica. Como não disponho de
cozinha, tenho aquilo a que chamo o «saco da comida», um saco de
supermercado com as saquetas de chá, algumas peças de fruta,
vários pacotes de condimentos trazidos de restaurantes de pronto-a-
comer e meia dúzia de queijinhos que, segundo as etiquetas,
deveriam ser mantidos no frigorífico, mas que não se estragarão, acho
eu, se não os tirar das embalagens de plástico. Tenho o meu
computador portátil, a ligação essencial à minha profissão normal, que
se transformou em motivo de preocupação crescente. Imagino que é
provavelmente o objecto portátil mais caro em todo o Clearview Inn,
pelo que hesito em deixá-lo no quarto durante as nove horas, ou mais,
em que estou fora a trabalhar. Durante os primeiros dias no Wal-Mart,
o tempo estava fresco e deixei-o na mala do carro, mas agora, com a
temperatura a atingir trinta e dois graus ao meio-dia, receio que
«asse» na mala. Uma preocupação mais premente neste momento é o
estado das minhas roupas, a maior parte das quais se encontra agora
no outro saco de papel, que normalmente uso como saco de
piqueniques. As calças caqui ainda dão para um ou dois dias e tenho
duas T-shirts limpas até à próxima ida à lavandaria, mas surgiu um
problema em relação às T-shirts. Nessa tarde a Alyssa, uma das
minhas colegas da sessão de orientação que está a trabalhar na
secção de desporto, tinha passado pela secção de pronto-a-vestir de
senhora para perguntar por uma camisa de algodão que estava em
saldos a sete dólares. Havia alguma hipótese de o preço baixar ainda
mais? É claro que eu não fazia ideia - é a Ellie quem decide os saldos
-, mas porque é que a Alyssa estava com uma fixação naquela camisa
em especial? Porque uma das regras é que as nossas camisas têm de
ter colarinhos, pelo que não podem ser T-shirts. Não sei como este
pormenor me escapara durante a orientação, e agora pergunto-me
quanto tempo tenho até o meu pescoço nu chamar a atenção do
Howard. A ganhar sete dólares por hora, uma camisa de sete dólares
não vai figurar tão cedo na minha lista de compras.
151
Já passa das sete e tenho de retomar a rotina diária de arranjar
comida para o jantar. A cidade de Clearview só apresenta duas
alternativas a preços baixos (não há opções a preços altos) aos seus
residentes sem cozinha - um restaurante chinês com serviço de bufete
ou um Kentucky Fried Chicken, cada um com as suas fontes de
entretenimento próprias. Se jantar no chinês, poderei observar as
grandes famílias mexicanas, ou as maiores ainda, em termos de
massa corporal, dos anglo-saxónicos do Minnesota. Se comer KFC no
meu quarto, posso ver televisão, um dos seis canais disponíveis. Esta
última opção parece-me de certa forma menos solitária, especialmente
se conseguir apanhar um dos meus programas favoritos - Titus, ou 0
Terceiro Calhau a Contar do Sol. Comer sem mesa é problemático.
Ponho a comida em cima da cómoda e estendo um saco do
supermercado sobre o regaço, já que é difícil evitar derramamentos
quando se come em plano inclinado, e as manchas implicam tempo e
dinheiro na lavandaria. Hoje vejo a nova sensação do canal CBS, o
programa Survivor, onde «pessoas reais» se debatem com o problema
de fazer uma fogueira na sua ilha deserta. Quem são estes tolos que
se dispõem a viver numa situação artificialmente desmoralizante para
proporcionarem entretenimento a milhões de estranhos com as suas
tentativas desastradas de sobreviverem? Mas lembro-me de quem sou
e porque estou aqui.
Depois de jantar ponho os restos no saco de plástico que serviu de
toalha de mesa e amarro-o bem, para não atrair as moscas, que têm
acesso livre ao meu «lar sem mosquiteiro». Faço as actividades típicas
do serão - escrever o meu diário e ler um romance - e depois apago a
luz e fico sentada durante algum tempo com a porta aberta, para
arejar o quarto. Os dois homens afro-americanos que vivem ao lado
também têm a porta aberta, e como por vezes está aberta durante o
dia, já reparei que o quarto deles, tal como o meu, só tem uma cama,
mas não se trata de uma escapadela de homossexuais, porque
parecem ocupar a cama por turnos: um dorme no quarto e o outro
passa pelas brasas na carrinha, lá fora. Fecho a porta, baixo os
estores e dispo-me às escuras, para não
152
ser vista de lá de fora. Ainda não descobri grande coisa sobre os meus
vizinhos do Clearview - já bem basta ser uma mulher sozinha, e com
posses para ter uma cama só para si, para ainda por cima ser
bisbilhoteira! Tanto quanto me apercebo, o motel não é um covil de
prostitutas e passadores de droga; estas pessoas são apenas
trabalhadores normais que não têm o capital necessário para alugar
um apartamento. Até mesmo os adolescentes que ao princípio me
preocuparam parecem ter mães à sua volta, provavelmente mães
solteiras, que eu ainda não tinha visto porque estavam no trabalho.
Por fim deito-me e tento respirar, lutando contra o ar sufocante que me
comprime o peito. Acordo algumas horas mais tarde com um som que
não vem do televisor: é a voz aguda de uma mulher cantando dois
versos da canção mais triste do mundo, cujas palavras não consigo
decifrar, acompanhada pelos motores dos camiões na auto-estrada.
As manhãs começam com uma ida de carro à loja de conveniência da
estação de serviço Holiday, onde compro um copo de plástico de gelo
e dois ovos cozidos. O gelo, um luxo que não existe no motel, é para o
chá gelado, que faço deixando saquetas de chá de molho num copo
de plástico durante a noite. Depois do pequeno-almoço, arrumo o
quarto: faço a cama, limpo o lavatório com papel higiénico e levo o lixo
para o contentor. É verdade que a mulher do proprietário (ou talvez
seja sua sócia) anda de quarto em quarto todas as manhãs com um
carrinho com produtos de limpeza, mas o seu trabalho indicia uma
depressão profunda ou talvez uma perturbação de défice de atenção.
Normalmente lembra-se de substituir as pequenas toalhas gastas do
uso, que mesmo depois de lavadas têm pêlos na trama do tecido e
cheiram a panos de cozinha sujos, mas não há mais nada, com
excepção de um farrapo esquecido ou de um frasco de ambientador,
que indique a sua passagem pelo quarto. Imagino um anúncio a pedir
«uma esposa com valores tradicionais e trabalhadora», um casamento
na sua vila natal, e depois - zás! - lá está ela no Clearview, no
Minnesota, com um marido americano de origem indiana que talvez
nem fale a sua língua, a milhares de
153
quilómetros da família, de um templo, de uma loja de saris1. Lavo-me
e depois prendo o cabelo com bastantes ganchos, para não se soltar
durante o turno, e lá vou eu para o trabalho. O objectivo é aparentar
ser uma pessoa que passou a noite numa casa normal com cozinha e
máquina de lavar e de secar, não alguém na fronteira do mundo dos
sem-abrigo.
O outro objectivo dos meus rituais e preparativos domésticos é ocupar
o tempo em que não posso estar no trabalho, pois pareceria estranho
que andasse pelo parque de estacionamento do Wal-Mart ou me
deixasse ficar pela sala de descanso. A vida em casa é mais
deprimente do que estou disposta a admitir, e a ideia do dia de folga
que se avizinha seria um verdadeiro martírio se não tivesse a certeza
de o passar a fazer a mudança para o Hopkins Park Plaza. Surgem
pequenos sintomas nervosos. Por vezes fico com dores de barriga
depois do pequeno-almoço, o que torna o almoço problemático, e não
há maneira de cumprir o meu turno sem pelo menos uma refeição
completa. Mais perturbante ainda é o novo hábito de beliscar a camisa
ou as calças com a mão que tenha livre. Preciso de parar com isto. A
minha avó materna, que tem cento e um anos, era um modelo perfeito
de estoicismo, mas beliscava o rosto e os pulsos, fazendo nódoas
negras e redondas, e afirmava não se dar conta de que o fazia. Talvez
seja um tique hereditário e dentro de pouco tempo eu passe do tecido
para a carne.
Chego ao trabalho cheia de energia, parando nos gabinetes de provas
para «engraxar» a senhora de serviço - em geral a Rhoda, uma
mulher mandona e toda impante -, porque a senhora dos gabinetes de
provas está para mim como um cozinheiro para uma empregada de
mesa: se quiser pode estragar-me o dia, dando-me carrinhos
«contaminados» com artigos que não pertençam à minha secção ou
peças mal dobradas ou sem cabides. «Aqui estou eu!», anuncio
teatralmente, abrindo os braços. «O dia pode começar!» Em troca
recebo um franzir
1 Os meus agradecimentos a Sona Pai, americana de origem indiana
que está a fazer uma pós-graduação em ficção não literária na
Universidade de Oregon, pelo que me elucidou sobre a comunidade
americana de origem indiana que gere motéis e sobre as vidas das
suas esposas imigrantes.
154
J
de nariz da Rhoda e um sorriso forçado da Lynne, a loura esquelética
que está nos soutiens. Vou à procura da Ellie, que encontro a disparar
novas etiquetas da «pistola» dos preços, e pergunto-lhe se há alguma
coisa especial para fazer. Em seguida procuro a Melissa, para ela me
fazer o relatório das carra-das até ao momento. Hoje parece
embaraçada quando me vê: «Se calhar, não devia ter feito isto, e tu
vais achar que é uma tolice...», mas trouxe-me uma sanduíche para o
almoço. Esta sua atitude deve-se ao facto de eu lhe ter dito que estou
a viver num motel e praticamente só compro comida rápida e ela ter
sentido pena de mim. Agora sou eu que fico embaraçada e, mais do
que isso, comovida por ter descoberto um riacho oculto de
generosidade contra a corrente dominante da mesquinhez
empresarial. Provavelmente a Melissa não se considera pobre, mas eu
sei que ela faz contas aos trocos; por exemplo, lembra-me duas vezes
que às terças-feiras há um desconto de sessenta e oito cêntimos nas
refeições especiais do Radio Grill. Por consequência, uma sanduíche
é de ter em conta. Deito mãos ao trabalho e, enquanto empurro o
carrinho, murmuro, toda contente: «Calções de cinto elástico azul-
turquesa Bobbie Brooks» e «Camisola vermelha de decote em bico
Faded Glory».
Depois, na minha segunda semana, registam-se duas alterações.
Passo do turno das dez às seis para o das duas às onze, o chamado
«turno do fecho», embora a loja esteja aberta vinte e quatro horas por
dia. Ninguém me informa desta mudança; descubro-a ao ler os
horários que estão afixados numa vitrina à porta da sala de descanso.
Agora estou com nove horas em vez de oito e, embora uma seja para
jantar (que não é paga), tenho de ficar mais meia hora em pé. Os dois
intervalos de quinze minutos, que pareciam quase supérfluos no turno
das dez às seis, tornam-se agora objecto de cálculos importantes.
Faço os dois intervalos antes do jantar, que é usualmente por volta
das sete e meia, deixando duas horas e meia ininterruptas na fase em
que estou mais cansada, entre as oito e meia e as onze, ou tento
passar duas horas e meia sem intervalo durante a tarde, seguidas por
uma maratona de quase três horas antes de poder ir jantar? E há
ainda a questão do melhor uso
155
que podemos dar a um intervalo de quinze minutos quando temos três
ou mais necessidades urgentes e simultâneas - fazer chichi, beber
qualquer coisa, sair do ambiente de luz artificial para o ar livre e, acima
de tudo, sentarmo-nos. Ganho cerca de um minuto com um pequeno
roubo de tempo que consiste em parar na sala de descanso antes de
marcar o ponto para o intervalo (é verdade, temos de marcar o ponto
até mesmo nas pausas, pelo que não é possível suplementá-las com
alguns minutos roubados). Do relógio de ponto até à saída demoro
setenta e cinco segundos; se parar no Radio Grill, posso perder até
quatro minutos à espera na fila, já para não falar dos cinquenta e nove
cêntimos que custa um chá gelado pequeno. Quando vou até à
minúscula zona vedada ao lado da loja, o único local onde os
empregados podem fumar, fico com cerca de nove minutos para me
sentar.
Outra coisa que acontece é que, decididamente, acabou a época
morta após o fim-de-semana do Memorial Day. Agora há sempre uma
dúzia, ou mais, de clientes às voltas na secção de pronto-a-vestir de
senhora, reforçadas à noite por uma vaga de bandos multigerações - a
vovó, a mamã, um bebé num carrinho de compras e uma chusma de
crianças maldispostas a reboque. Surgem novas tarefas, como
enfileirar os carrinhos que os clientes deixam ficar e empurrá-los até
ao seu lugar, na parte da frente da loja, de meia em meia hora. Não
tenho de apanhar só as roupas que as clientes deixam cair, mas
também todos os produtos que trazem de outras secções e decidem
deixar ficar na nossa - almofadas, molas para cortinados, cartões de
Pokémon, brincos, óculos de sol, pelúcia, até mesmo um pacote de
bolos de canela. E há sempre as devoluções, agora aumentadas pelo
enorme volume de peças atiradas para o chão ou levadas à toa para
fora do lugar. Por vezes tenho a sorte de conseguir arrumar as
devoluções e pegar nas peças deixadas nos varões e pelo chão a um
ritmo constante. Se pegar em peças fora do sítio tão rapidamente
quanto arrumo as devoluções, o meu carrinho nunca se esvazia e as
coisas ficam complicadas nos gabinetes de provas, onde a Rhoda ou
a substituta do turno da noite dizem com rispidez: «Tens três carrinhos
à espera, Barb. Qual é o problema?» Pois é, pensem em Sísifo ou no
aprendiz de feiticeiro.
156
J
Mesmo assim, na primeira metade do turno sou a verdadeira imagem
da solicitude bem-disposta, fascinada com a variedade multiétnica das
nossas clientes - pessoas do Médio Oriente, asiáticos, afro-
americanos, russos, ex-jugoslavos, brancos tradicionais do Minnesota
-, e aceito calmamente a segunda lei da termodinâmica, segundo a
qual a entropia vence sempre. Para minha grande surpresa, sou
elogiada pela Isa-belle, uma senhora magrinha e baixa dos seus
setenta anos que parece ser a ajudante da Ellie: estou a sair-me
«maravilhosamente», diz-me, e - o que é ainda melhor - «é óptimo
trabalhar consigo». Pavoneio-me de varão em varão, dou-me ares.
Mas então, por volta das seis ou sete, quando a vontade de me sentar
se transforma numa necessidade aguda, sofro uma transformação do
tipo Jekyll/Hyde. Não consigo ignorar o facto de que são o descuido e
os preguiçosos caprichos das clientes que me obrigam a baixar-me, a
pôr-me de joelhos e a ter de andar a correr de um lado para o outro.
Elas são as clientes, eu sou a «anticlientes», cuja missão é fazer que
pareça que elas nem sequer chegaram a entrar na loja. Neste
momento a «hospitalidade agressiva» é substituída por uma
hostilidade agressiva. Os carrinhos das clientes chocam contra o meu,
os filhos correm à solta. Numa ocasião fico a assistir, impotente,
enquanto um fedelho tira dos varões tudo aquilo a que consegue
chegar, e a minha expressão deve trair o pensamento de que o aborto
devia ser uma prática mais generalizada, porque a mãe acaba por
mandá-lo parar.
Começo até a odiar as clientes por razões não directamente
relacionadas com o meu trabalho, tais como, no caso das pessoas
brancas, o seu tamanho. Não me refiro apenas a barrigas e rabos,
mas também a banhas nos sítios mais inesperados, como a nuca e os
joelhos. Neste Verão, o Wendy's, onde muitas vezes compro o almoço,
introduziu o verbo tamanhar, como, por exemplo, em «Quer tamanhar
esse combinado?», o que se traduz por uma dose dupla de batatas
fritas e refrigerante. Algo semelhante a um tamanhamento parece ter
acontecido à população feminina que frequenta a loja. É certo que
toda a gente sabe que os habitantes do Midwest, especialmente os
pertencentes à classe média-baixa, carregam o trágico far-
157
n
do das consequências de décadas de batatas e pão fritos, e eu talvez
nem sequer devesse mencionar esse facto. No início do turno, na fase
Dr. Jekyll, sinto pena das pessoas obesas, que se vêem obrigadas a
escolher entre os modelos horrendos de tamanho de mulher, os
calções com elástico na cinta e as T-shirts com enormes riscas
horizontais, cujo objectivo evidente é torná-las motivo de troça, mas a
minha compaixão desvanece-se à medida que o tempo vai
avançando. Todas nós, as empregadas da secção de pronto-a-vestir
de senhora, somos, por motivos óbvios, bastante magras - pelos
padrões do Minnesota, provavelmente candidatas a um suplemento
nutri-cional intravenoso de emergência -, e vivemos no receio de
sermos esmagadas pelas clientes corpulentas que disparam como
uma bala de canhão pelo corredor estreito, da Faded Glory para os
tamanho de senhora, perdidas em fantasias de vestidos esbeltos
Kathie Lee.
Não é com as clientes, mas com as roupas, que estabeleço uma
relação pessoal. Acontece-me uma coisa esquisita neste novo turno:
começo a pensar que as roupas são minhas, não para levar para casa
e usar, porque não tenho tais intenções, mas minhas para as organizar
e controlar. Passa-se o mesmo com o pronto-a-vestir de senhora em
geral. Depois das seis da tarde, quando a Melissa e a Ellie vão para
casa, e sobretudo depois de a Isabelle sair, às nove horas, começo a
sentir que a loja me pertence. Sai-me da frente, Sam, isto agora é o
Bar-(bara)-Mart. Patrulho o perímetro da zona com o meu carrinho,
com incursões para pegar em peças fora do sítio ou caídas, e deixo
tudo num brinquinho, pelo menos aparentemente. Não afago as
roupas, como as clientes; ponho-as bruscamente no lugar, obrigando-
as a perfilarem-se direitas e aprumadas, ou a deitarem-se, submissas,
nas prateleiras, em perfeita ordem. Neste estado de espírito, a última
coisa que quero ver é uma cliente a remexer na mercadoria e a
desarrumar tudo. Na verdade, detesto a ideia de as coisas serem
vendidas - desenraizadas do seu habitat natural, raptadas para um
guarda-fatos sabe Deus em que estado de desordem! O meu desejo é
que a secção de pronto-a-vestir de senhora seja isolada numa cápsula
de plástico e levada para qualquer lugar seguro, um museu da história
do comércio a retalho.
158
Uma noite, quando regresso da última pausa, já completa-mente
derreada, dou com uma nova empregada, uma americana de origem
indiana ou hispânica que não deve ter mais de um metro e quarenta, a
dobrar T-shirts na zona da marca White Stag, a minha zona White
Stag. Até agora as coisas já não estavam a correr nada bem. Antes,
quando regressara do jantar, a senhora dos gabinetes de provas do
turno da noite tinha-me repreendido por estar atrasada - o que nem
era verdade - e dissera que, se o Howard soubesse, talvez não me
berrasse, porque ainda sou nova na casa, mas que, se acontecesse
outra vez... E eu refilei que bem me importava que o Howard me
berrasse, o que é um sentimento difícil de transmitir sem recorrer a
uns quantos palavrões. Por isso sinto uma certa desconfiança em
relação a esta intrusa na White Stag, e, após uma apresentação
sumária, ela vira-se contra mim.
«Arrumou alguma coisa aqui hoje?», pergunta-me.
«Sim, claro.» A verdade é que arrumei alguma coisa em todas as
zonas, como todos os dias.
«Mas isto não está no sítio certo. Está a ver o tecido? É diferente», e
acena-me com a peça transviada na direcção do peito.
E verdade, vejo agora que esta camisa verde-oliva é ligeiramente
canelada, enquanto as outras são lisas. «Tem de as pôr no sítio
certo», continua ela. «Não se tem esquecido de verificar os números
do código de barras?»
E claro que não tenho verificado os dez algarismos, ou mais, do
número do código de barras, que se encontram mesmo por baixo das
barras - ninguém o faz. O que é que ela julga que isto é, a Academia
Nacional de Ciências? Não tenho a certeza do tipo de deferência que
é devida, se é que alguma é devida: será que passou a ser a minha
supervisora? Ou estaremos envolvidas numa espécie de medição de
forças para decidir quem dominará o período entre as nove e as onze
horas? Mas isso não importa; ela está-me a chatear, a mexer nas
minhas coisas, por conseguinte, respondo (sem os numerais nem os
palavrões proibidos, claro) que 1) muitas outras pessoas trabalham
aqui durante o dia, já para não mencionar todos os clientes que
circulam por aqui, porque é que está a culpar-me
159
a mim? 2) já passa das dez, e tenho outro carrinho cheio de
devoluções para arrumar; não faria mais sentido se trabalhássemos
ambas, em vez de «zonear» a porra das T-shirts?
Ao que ela responde, amuada: «Não faço devoluções. O meu
emprego é dobrar.»
Pouco depois constato porque é que não faz devoluções: não chega
aos varões. Na verdade, até tem de usar um escadote para chegar às
prateleiras mais altas. E querem saber o que sinto quando vejo a
pobre pequenota a arrastar o escadote de um lado para o outro? Uma
onda de hilaridade maldosa. Espreito de onde estou a trabalhar, na
marca Jordache, com a esperança de a ver dar um tombo.
Quando saio, nessa noite, vou abalada com a minha reacção à
intrusa. Se ela fosse uma supervisora, eu poderia ser denunciada pelo
que disse, mas o pior foi o que pensei. Estarei aqui a transformar-me
numa pessoa mesquinha, será uma reacção normal ao fim de um
turno de nove horas? Nessa noite registou-se outro ataque de
maldade mental. Dirigira-me ao balcão junto ao gabinete de provas
para ir buscar mais um carrinho cheio de devoluções e encontrei o
empregado que atende o telefone no balcão à noite, um homem novo
com ar pensativo preso numa cadeira de rodas, com um olhar
distraído e ainda mais triste do que habitualmente, e o pensamento
que me ocorreu foi: «Pelo menos trabalhas sentado.»
Esta não sou eu, pelo menos não uma versão com a qual gostaria de
lidar muito tempo, assim como é provável que a minha colega
minúscula habitualmente não seja uma cabra. Venho a descobrir mais
tarde que trabalha toda a noite e dorme uma soneca durante o dia
quando o bebé a deixa, e fico também a saber que não é supervisora
de ninguém e está sempre a ser criticada pela Isabelle nos períodos
em que os turnos das duas coincidem. A verdade que tenho de
encarar é que a «Barb», o nome no meu crachá de identificação, não
é exactamente a mesma pessoa que a Barbara. «Barb» era como me
chamavam em criança e como me tratam ainda os meus irmãos, e
tenho a sensação de que, em certa medida, estou a regredir. Retirem-
se a carreira e a educação superior e talvez se fique com esta Barb
original, a que provavelmente na vida real
160
teria acabado por trabalhar no Wal-Mart, se o pai não tivesse
conseguido sair das minas. Por conseguinte, é interessante e bastante
perturbador ver como a Barb evoluiu - constatar que é mais
mesquinha e manhosa do que eu, mais pronta a acalentar rancores, e
não tão esperta quanto eu esperava.
No dia da minha mudança para o Hopkins Park Plaza, acordo a
saborear a ideia dos produtos alimentares com os quais vou encher o
frigorífico: maionese, mostarda, peito de frango. Porém, quando
chego, já não é a Hildy que me atende, e a mulher de cabelo negro
penteado como um capacete que tomou o seu lugar diz que eu não
compreendi; o quarto não estará disponível até à próxima semana, e o
melhor é telefonar a confirmar. Será que estava tão iludida pela minha
vontade de mudar de casa que tinha «interpretado mal» o que
parecera uma combinação bastante pormenorizada (traga o dinheiro
às nove no sábado e pode mudar-se às quatro, etc.)? Ou será que
outra pessoa me tinha passado à frente? Paciência! Desde o início
que sabia que o apartamento do Park Plaza com kitchenette, a cento e
setenta e nove dólares por semana, não era uma opção a longo prazo,
com o salário de sete dólares por hora do Wal-Mart. O meu plano era
acumular um emprego de fim-de-semana, que me foi mais ou menos
oferecido no supermercado Rainbow, perto do apartamento onde
fiquei inicialmente, a quase oito dólares por hora. Com os dois
empregos, ganharia cerca de trezentos e vinte dólares líquidos por
semana, pelo que os cento e setenta e nove dólares da renda de casa
teriam constituído 55% do meu rendimento, o que começava a parecer
«acessível»1. Mas o emprego no
1 Na verdade, a renda de casa deve ser menos de 30% do rendimento
para ser considerada «acessível». Segundo Peter Dreier, analista de
questões de habitação, 59% dos inquilinos pobres, o que se traduz
num total de 4,4 milhões de lares, gastam mais de 50% do seu
rendimento em despesas de habitação («Why America's Workers Can't
Pay the Rent», Dissent, Verão de 2000, pp. 38-44). Uma sondagem de
1996-1997 de 44 461 lares revelou que 28% de pais com rendimento
inferior a 200% do nível de pobreza - ou seja, menos de cerca de 30
000 dólares por ano - admitiram ter problemas com o pagamento da
renda de casa, da prestação do empréstimo ou de contas domésticas
(Welfare Reform Network News 1:2, Março de 1999, Institute for
Womens Policy Research, Washington, D. C). Nas Twin Cities, na
época da minha estada, cerca de 46 000 famílias de trabalhadores
estavam a gastar mais
161
Rainbow também falha; decidem que querem que eu trabalhe a tempo
parcial cinco dias por semana, não somente aos fins-de-semana. Além
disso, neste momento não tenho autonomia para decidir quais serão
os meus dias de folga. O Howard atribuiu-me a sexta-feira livre numa
semana, a terça e a quarta na seguinte, e teria de dar muita «graxa»
para conseguir um horário melhor e mais estável.
Ou seja, ou arranjo marido, como a Melissa, ou um segundo emprego,
como algumas das minhas colegas. A longo prazo, tudo se resolverá
se dedicar as manhãs a procurar emprego, enquanto espero uma
vaga no Park Plaza ou, melhor ainda, um apartamento a sério por
quatrocentos dólares por mês, cem à semana. Contudo,
parafraseando Keynes: a longo prazo, todos estaremos falidos, pelo
menos todos os que trabalham por salários baixos e vivem em motéis
com preços exorbitantes. Telefono ao YWCA1 para ver se têm quartos
livres, e eles indicam-me um sítio chamado Budget Lodging
(Alojamento Económico), que também não tem quartos vagos, embora
tenha camas em dormitórios por dezanove dólares por noite. Terei
direito a um armário individual e não fecham de manhã - pode ficar-se
no dormitório todo o dia, caso se queira. Mesmo com estes atractivos,
tenho de confessar que fico aliviada quando o funcionário do Budget
Lodging me diz que as instalações se situam no outro lado de
Minneapolis. Devido aos custos de deslocação, posso riscar o
dormitório da minha lista, pelo menos enquanto estiver a trabalhar no
Wal-Mart. Talvez devesse ter mandado o Wal-Mart às malvas, mudado
para o dormitório e começado de novo a procurar emprego, mas a
verdade é que não estou ainda disposta a deixar o Wal-Mart; é a
minha ligação ao mundo exterior, a minha fonte de identidade, o meu
lugar.
O funcionário do Budget Lodging, que parece familiarizado
de 50% do rendimento em despesas de habitação e,
surpreendentemente, 73% dessas famílias eram proprietárias da sua
própria casa e vítimas das subidas dos impostos sobre a propriedade
(«Affordable Housing Problem Hits Moderate-Income Earners»,
Minneapolis Star Tribune, 1 de Julho de 2000). 1 Young Women
Christian Association: organização caritativa cristã que proporciona
alojamento económico em albergues. (N. da T.)
162
com o pesadelo que é o alojamento para os trabalhadores de salário
baixo, sugere-me que continue a tentar os motéis. Tem a certeza de
que deve haver alguns que custem menos de duzentos e quarenta
dólares por semana. Entretanto, o Clear-view Inn exige mais de
cinquenta e cinco dólares por cada noite extra, o que significa que, por
uma ou duas noites, quase qualquer outro motel seria preferível.
Telefono à Caroline a pedir-lhe conselho sobre a situação e - algo que
devia ter adivinhado - ela liga-me daí a pouco a convidar-me para ficar
em sua casa. Digo-lhe que não, já desfrutei uma vez da vantagem de
ter alojamento grátis, e agora tenho de arriscar a minha sorte no
mercado como qualquer outra pessoa. Por um momento, tenho a
sensação de ter sido tocada por um anjo, algo semelhante ao que
sentira quando a Melissa me deu a sanduíche: não estou
completamente sozinha. Começo mais uma vez a telefonar para
motéis, alargando agora o âmbito a uma área ainda maior, fora de
portas, até às cidades a norte, às cidades a oeste, a St. Paul. Mas a
maioria não tem quartos vagos, quer agora quer nas próximas
semanas, devido à estação em que estamos, dizem-me, embora seja
difícil imaginar por que razão um sítio como Clearview, Minnesota,
possa ser destino de férias em qualquer época do ano. Só o Comfort
Inn tem um quarto livre, a quarenta e nove dólares e noventa e cinco
por noite, que reservo para dois dias. O alívio que deveria sentir por ir
deixar o «Pior Motel do País» é anulado por uma sensação
avassaladora de derrota.
Poderia ter sido mais bem sucedida? A edição de 13 de Junho do St.
Paul Pioneer Press, que tiro sofregamente da caixa em frente ao Wal-
Mart, proporciona-me uma percepção da realidade que já devia ter
tido. «Rendas de apartamentos disparam em flecha», declara o título
principal da primeira página; aumentaram 20,5% em Minneapolis só
no primeiro trimestre de 2000, uma subida sem precedentes, segundo
os especialistas locais de imobiliário. E, o que é ainda mais pertinente
para a minha situação, a região das Twin Cities «apresenta uma das
taxas de vagas mais baixas do país, talvez a mais baixa». Quem
imaginaria? A breve investigação que eu fizera antes da partida nada
revelara sobre uma crise de habitação.
163
Na verdade, tinha lido artigos em que se lamentava a ausência da
indústria da Internet na região das Twin Cities, o que me levou a
acreditar que a região tinha sido poupada à inflação descontrolada dos
preços imobiliários que acossa, por exemplo, Bay Área, na Califórnia.
Mas parece que não é necessária a existência da riqueza internética
para dar cabo de uma zona para os seus habitantes de baixo
rendimento. Citado no Pioneer Press, o secretário do HUD [Housing
and Urban Deve-lopment Department (Departamento de Habitação e
Desenvolvimento Urbano)], Andrew Cuomo, lamenta a «cruel ironia»
de a prosperidade estar a provocar a contracção do número de
habitações acessíveis a nível nacional. «Quanto mais forte é a
economia, tanto maior é a pressão ascendente sobre as rendas.»
Portanto, não sou uma vítima da pobreza, mas sim da prosperidade.
Os ricos e os pobres, que normalmente se julga viverem num estado
de interdependência harmoniosa - um grupo fornecendo empregos de
salário baixo, o outro mão-de-obra barata -, já não podem coexistir.
Vou para o Comfort Inn na expectativa de ser apenas por uma ou duas
noites, antes de me aparecer qualquer coisa, algures. O que não
poderia imaginar é que, em certo sentido, este é o momento da minha
derrota final. Fim do jogo. Fim da história - pelo menos da história da
minha tentativa de adequar o que ganho ao que pago de renda de
casa. Em menos de três semanas gastei mais de quinhentos dólares e
só ganhei quarenta e dois - no Wal-Mart, pelo dia de orientação. Virei
a receber mais - o Wal-Mart, como tantos outros empregadores que
pagam ordenados baixos, retém o salário da primeira semana -, mas
então já será demasiado tarde.
Não chego a encontrar um apartamento ou motel a preço acessível,
embora faça uma última tentativa, procurando auxílio uma manhã
numa instituição de caridade. Encontrei-a depois de telefonar para a
United Way of Minneapolis, que me indicou uma outra instituição, a
qual, por sua vez, me encaminhou para algo denominado Community
Emergency Assis-tance Program (Programa de Assistência
Comunitária de Emergência), convenientemente localizado a quinze
minutos
164
de automóvel do Wal-Mart. No escritório do CEAP desenrola-se uma
cena perturbadora: dois homens magros como um espeto - da
Somália, calculo, pela pronúncia e porque há muitos somalis na zona
das Twin Cities - dizem: «Pão? Pão?», obtendo como resposta: «Não
há pão, não há pão.» Saem, e uma mulher branca dos seus cinquenta
anos entra e faz a mesma cena, saindo com o sorriso de súplica ainda
estampado no rosto. Por qualquer razão que desconheço - talvez
porque tenho hora marcada e ainda não esgotei a boa vontade da
organização -, sou conduzida a um escritório, onde uma mulher jovem
me entrevista distraidamente. Tenho carro? Sim, tenho. E, minutos
minutos mais tarde: «Então, não tem carro?», e assim por diante.
Quando lhe digo que estou a trabalhar no Wal-Mart e quanto ganho,
sugere-me que me mude para um albergue, de forma a conseguir
poupar o suficiente para o primeiro mês derenda e o depósito, e
depois manda-me a um outro escritório, onde, segundo diz, posso
candidatar-me a um subsídio de renda e obter auxílio na procura de
apartamento. Mas no outro escritório apenas existe uma lista de
apartamentos de renda acessível, que deveria ser actualizada
semanalmente, mas já está desactualizada. De regresso ao primeiro
escritório, a entre-vistadora pergunta-me se tenho necessidade de
auxílio alimentar de emergência, e explico mais uma vez que não
tenho frigorífico. Vai-me arranjar qualquer coisa, diz ela, e regressa
com um caixote contendo um sabonete, um desodorizante e alguns
produtos alimentares sem utilidade, do meu ponto de vista - uma
quantidade de doçarias e bolachas e uma lata de meio quilo de
fiambre, que, não tendo frigorífico, teria de comer todo de uma
assentada1. (No dia seguinte levo o caixote,
1 As pessoas da classe média criticam frequentemente os pobres
pelos seus hábitos alimentares, mas esta organização de caridade
parecia promover a dependência das «calorias vazias». O inventário
completo do caixote de alimentos grátis que recebi é o seguinte: 600 g
de flocos de cereais General Mills Honey Nut Chex\ 680 g de flocos de
cereais Post Grape-Nuts; 550 g de molho de churrasco Mississippi
Barbecue Sauce\ várias saquetas de doçarias, entre as quais Tootsie
Rolls, Smarties de frutos, Sweet Tarts e duas tabletes de chocolate
Ghirardelli; uma caixa de pastilhas elásticas; um pacote de 370 g de
bolachas com cobertura de açúcar; pães para hambúrguer; seis
pacotes de sumo Minute Maid de 170 g; um pão de forma; pedaços
de frutos secos Star Wars;
165
intacto, a uma outra organização de assistência aos pobres, para não
parecer mal-agradecida e a comida não se desperdiçar.)
Só quando já vou no carro, mais o meu saque de doçarias, a caminho
de casa me apercebo da importância do que aprendi neste encontro. A
certa altura, perto do final da entrevista, a senhora do CEAP tinha-me
pedido desculpa por esquecer quase tudo o que eu dissera sobre mim
própria - que tinha carro, vivia num motel, etc. Estava a confundir-me
com outra pessoa que trabalhava no Wal-Mart, explicou-me, alguém
que tinha entrevistado há uns dias. Ora bem, obviamente eu tinha
reparado que muitos dos meus colegas eram pobres, de todas as
formas indisfarçáveis e estereotipadas. Dentes tortos e amarelados
são um dos sinais, calçado inapropriado, outro. Doem-me os pés após
quatro horas de trabalho, embora traga calçados os meus velhos e
confortáveis ténis Reebok, mas muitas das minhas colegas correm de
um lado para o outro todo o dia com sapatos de sola fina. O cabelo dá
outra pista quanto à classe social. Os rabos-de-cavalo são comuns ou,
para aquele aspecto derrotado e sem expectativas típico do Wal-Mart,
o cabelo liso pelos ombros, com risca ao meio e um travessão de cada
lado a segurá-lo.
Mas agora sei mais uma coisa. Na orientação aprendemos que o êxito
dos armazéns depende inteiramente de nós, os associados; nos
nossos aventais azul-forte está escrito: «No Wal-Mart, o nosso pessoal
faz a diferença.» No entanto, por baixo desses aventais há casos reais
de penúria, talvez mesmo gente a viver em albergues1.
uma forma de pão de canela; 500 g de manteiga de amendoim; 500 g
de champô de jojoba; 450 g de fiambre enlatado; um sabonete Dial;
quatro barras de Kellog Rice Krispies Treats; dois pacotes de bolachas
de água e sal Ritz\ 140 g de peito de frango enlatado da marca
Swanson; 50 g de refrigerante em pó, do tipo Kool-Aid; dois
desodorizantes Lady Speed Stick.
1 Em 1988, o senador do estado do Arkansas Jay Bradford acusou o
Wal-Mart de pagar tão pouco aos seus empregados que eles tinham
de recorrer à esmola da Segurança Social. No entanto, não conseguiu
provar a acusação, obrigando a companhia a tornar público o registo
dos seus pagamentos (Bob Ortega, In Sam We Trust: The Untold Story
of Sam Walton and Wal-Mart, the World's Most Powerful Retailer,
Times Books, 2000, p. 103).
166
Seja como for, é assim que começa a minha existência sur-real no
Comfort Inn. Vivo luxuosamente, com ar condicionado, uma porta com
fecho, uma janela grande protegida por um mosquiteiro intacto - como
uma turista ou uma mulher de negócios em viagem. Mas daí parto
todos os dias para uma vida que a maioria das mulheres de negócios
consideraria deprimente - almoço no Wendy's, janto no Sbarro (o
restaurante de comida rápida com sabor italiano) e trabalho no Wal-
Mart, onde me sentiria embaraçada se algum empregado do Comfort
Inn entrasse e desse comigo de avental azul-forte. Evidentemente,
espero sair em breve, mal haja uma vaga no Hopkins Park Plaza.
Entretanto deleito-me com o esplendor do meu alojamento, admirada
por a diária custar menos cinco dólares e cinco cêntimos do que
estava a pagar na espelunca de Clearview. Deixa de me preocupar a
possibilidade de o meu computador ser roubado ou estragado, durmo
toda a noite, vai-se atenuando o hábito doentio de beliscar a roupa.
Sinto-me como aquele homem nos anúncios ao Holiday Inn Express,
que fica tão refeito depois da sua estada de uma noite no hotel que
consegue fazer uma operação no dia seguinte ou ensinar pessoas a
utilizarem um pára-quedas. No Wal-Mart desempenho o meu trabalho
muito bem, melhor do que poderia ter imaginado ao princípio.
A transformação acontece num sábado, um dos dias com mais
movimento. Quando chego, às duas horas, há dois carrinhos de
compras à minha espera, e grande parte do chão está coberta por
uma espessa camada de peças atiradas à toa. Não andam às
compras, é um verdadeiro saque! Numa situação destas, só me resta
fazer tudo ao mesmo tempo - baixar-me, estender a mão, pôr-me de
cócoras, pegar nas peças, correr de varão em varão a empurrar o
carrinho. E de repente dá-se o milagre - um estado mágico e fluido em
que as roupas começam a arrumar-se a si próprias. Oh, eu tenho um
papel a desempenhar, mas não de forma consciente. Em vez de
pensar «saia-calção de sarja azul-marinho White Stag» e procurar com
determinação saias-calções semelhantes, basta-me formar a imagem
da peça na minha mente, transpor essa imagem para
167
o meu campo visual e encaminhar-me para onde a imagem encontra
os seus iguais no mundo exterior. Não sei como este processo
funciona. Talvez a minha mente esteja tão atarefada a processar os
dados visuais recebidos que tem de ignorar os centros verbais do
hemisfério esquerdo do cérebro e as suas complicadas instruções:
«Dirige-te à zona da marca White Stag, no canto noroeste da secção
de pronto-a-vestir de senhora, olha para os varões inferiores perto dos
calções caqui...» Ou talvez o truque resida em compreender que cada
peça quer ir juntar-se às suas iguais e aos membros do seu clã e que,
dentro de cada clã, a peça quer ocupar o seu lugar próprio na
hierarquia de cores e tamanhos. Logo que deixo as roupas tomarem
as rédeas, assim que compreendo que não passo de um mero veículo
da sua reunificação, elas voam do carrinho para os seus habitais
naturais.
No mesmo dia, talvez porque a minha nova celeridade me permite
pensar com mais clareza, faço as pazes com os clientes e descubro o
objectivo da vida, ou, pelo menos, da minha vida no Wal-Mart. A
gerência talvez pense que o objectivo é vender, mas este é um ponto
de vista excessivamente reducio-nista e capitalista. Para dizer a
verdade, eu nunca chego a ver vender nada, já que as vendas se
processam longe da minha vista, nas caixas registadoras, na frente da
loja. Tudo o que vejo são clientes a desdobrarem T-shirts
cuidadosamente dobradas, a tirarem vestidos e calças dos cabides, a
inspeccioná-los distraidamente e depois a deixarem-nos cair em
qualquer lado para nós, as associadas, os apanharmos. Entrevejo
uma saída para esta sensação de ressentimento numa pista que me é
dada por um cartaz junto da sala de descanso, nas traseiras da loja,
aonde só vão os associados; diz assim: «A sua mãe não trabalha aqui.
Por favor, arrume o que desarrumar.» Passei por este cartaz muitas
vezes, pensando: «Ah, é o que eu faço, arrumar o que os outros
desarrumam!» Mas então faz-se luz: muitas das pessoas cuja
desarrumação eu arrumo são elas próprias mães, o que significa que
aquilo que eu faço no trabalho é o que elas fazem em casa - arrumar
os brinquedos e as roupas e o que cai ao chão. Por conseguinte, uma
das vantagens de
168
vir às compras é que aqui elas têm a oportunidade de se comportar
como crianças, ignorando os bebés que choram nos carrinhos de
compras e atirando coisas à toa, que outros arrumarão. E não tem
graça nenhuma, pois não?, a não ser que as roupas estejam numa
ordem razoável, que é onde entro eu, a recriar constantemente uma
situação de ordem para que as clientes a destruam com maldade. É
horrível, mas está-lhes na massa do sangue: só uma exposição de
roupas imaculada e virginal as excita de verdade.
Testo esta teoria com a Isabelle: que o nosso trabalho consiste em
recriar constantemente o cenário no qual as mulheres podem
desempenhar o seu papel. Sem nós, subiria em flecha a taxa de maus
tratos a crianças. De certa forma funcionamos como terapeutas, e
provavelmente deveríamos ser pagas de acordo com esse papel,
entre cinquenta e cem dólares por hora. «Vá sonhando, vá», diz ela,
abanando a cabeça. Mas esboça um sorrisinho malandro, fazendo-me
suspeitar de que não acha a ideia tão má como isso.
Com a competência vem uma nova impaciência: «Porque é que as
pessoas aceitam o salário que lhes pagam?» E verdade que a maior
parte dos meus colegas está numa situação melhor do que a minha;
vivem com o cônjuge ou filhos crescidos, ou têm outros empregos
para além deste. Uma noite sento-me com a Lynne na sala de
descanso e descubro que ela trabalha aqui a tempo parcial - seis
horas por dia -, com mais oito horas numa fábrica, a nove dólares à
hora. Não fica muito cansada? Não, sempre trabalhou assim. A
cozinheira do Radio Grill tem mais dois empregos. Poderiam esperar-
se algumas queixas, alguns sinais de descontentamento aqui e ali -
grafi-tos nos cartazes com conselhos na sala de descanso, risos
abafados durante as reuniões de associados -, mas não detecto nada
disso. Talvez seja o que se consegue quando se excluem todos os
rebeldes através de testes de drogas e «testes» de personalidade -
trabalhadores uniformemente servis e desanimados, que se contentam
em sonhar com o dia longínquo em que serão incluídos no plano de
partilha de lucros da companhia. Até alinham na «saudação do Wal-
Mart» quando tal é pedido nas reuniões, segundo diz a senhora do
turno da noite
169
do gabinete de provas, embora eu tenha a sorte de nunca ter
presenciado esse rebaixamento extremo1.
Contudo, se é difícil arrancar os antolhos, talvez seja praticamente
impossível arrancar antolhos assim tão grandes. O Wal-Mart, quando
se está inserindo nele, é uma totalidade - um sistema fechado, um
mundo próprio. Arrepio-me quando, uma tarde, estou a ver televisão e
aparece... um anúncio ao Wal-Mart. Quando um Wal-Mart aparece na
televisão num Wal-Mart, tem de se pôr em questão a existência de um
mundo exterior. É verdade que uma pessoa pode meter-se no carro,
andar cinco minutos e chegar a outro sítio - ou seja, ao Kmart ou ao
Home Depot, ao Target, ao Burger King, ao Wendy's, ao KFC. Para
onde quer que se olhe, não existe alternativa à ordem empresarial a
megaescala, da qual todas as formas de criatividade e iniciativa locais
foram abolidas por sedes distantes. Até mesmo os bosques e os
prados foram espoliados de formas de vida desordenadas e forçados
a envergar um uniforme de cimento. O que a vista alcança - auto-
estradas, parques de estacionamento, lojas - é tudo o que existe, ou
que existe para nós aqui, num reino em que tudo é global, total,
cimentado, empresarial. Gosto de ler as etiquetas para saber onde são
fabricadas as roupas que vendemos - Indonésia, México, Turquia,
Filipinas, Coreia do Sul, Sri Lanka, Brasil -, mas as etiquetas apenas
servem para me lembrar que já nenhum destes países é «exótico»,
foram todos engolidos pela grande máquina do lucro, global e cega.
A única coisa a fazer é perguntar: porque é que você, ou antes, porque
é que nós trabalhamos aqui? Porque é que continuamos a trabalhar?
Quando a Isabelle elogia o meu desempenho uma segunda vez(!),
aproveito para dizer que fico muito
1 Segundo Bob Ortega, especialista do Wal-Mart, Sam Walton foi
buscar a ideia da saudação a uma viagem ao Japão em 1975, «onde
lhe causou profunda impressão o espectáculo dos trabalhadores fabris
a fazerem ginástica e as saudações à companhia». Ortega descreve
Walton a conduzir uma saudação: «"Dêem-me um W!", gritava ele.
"W!", respondiam os trabalhadores, e assim sucessivamente, com as
restantes letras do nome Wal-Mart. Ao chegar ao hífen, Walton gritava
"Dêem-me um tracinho!", e baixava-se e torcia as ancas ao mesmo
tempo; os trabalhadores retribuíam o gesto» (In Sam We Trust, p.91).
170
satisfeita com o seu elogio, mas que não consigo viver com sete
dólares por hora - como é que ela consegue? A resposta é que vive
com a filha, que também trabalha, além do facto de estar aqui há dois
anos, ao longo dos quais o seu vencimento subiu vertiginosamente
para sete dólares e setenta e cinco por hora. Aconselha-me paciência:
poderá vir a acontecer-me o mesmo. A Melissa, que tem a vantagem
de ter o marido a trabalhar, diz: «Bem, é um emprego.» Sim, ganhava
o dobro quando era empregada de mesa, mas o restaurante fechou, e
na idade em que está não vai conseguir emprego num sítio onde
dêem boas gorjetas. Reconheço a inércia, a falta de vontade de voltar
a concorrer a empregos, ir a entrevistas e fazer testes de drogas. Ela
acha que aguenta mais um ano. Um ano? Confesso-lhe que estou a
pensar se hei-de aguentar mais uma
semana.
Alguns dias depois, acontece uma coisa que enfurece a bondosa e
doce Melissa. Durante três horas é desterrada para os soutiens, que é
terra incógnita para nós - enormes encostas de prateleiras com
objectos bicónicos que mal se distinguem. Sei como ela se sente,
porque uma vez mandaram-me trabalhar durante umas horas para a
secção de homem, onde vagueei, perdida pela floresta estranha de
varões, atordoada com a monotonia de cores e estilos1. É a diferença
entre trabalhar e fazer de conta que se trabalha. Empurra-se o
carrinho um metro, pára-se com uma peça na mão, olha-se com
perplexidade para os varões circundantes e depois avança-se,
repetindo o processo. «Não gosto de os estar a fazer perder dinheiro»,
diz a Melissa quando lhe permitem que regresse ao seu lugar. «Quer
dizer, eles estão a pagar-me e eu não estava ali a fazer nada.» Na
minha opinião, esta indignação tem um alvo errado. O que é que ela
julga, que a família Walton vive num quarto acanhado nas traseiras da
loja numa situação de extrema fru-galidade e que vinte e um dólares
de trabalho perdido podem levá-la à falência? Estou a lançar-me neste
tema quando
1 «Durante a sua carreira no Wal-Mart, poderá estagiar noutros
departamentos das suas instalações. Tal constituirá um desafio para si
em novas áreas e contribuirá para o transformar num associado
competente» (Wal-Mart Asso-ciate Handbook, p. 18).
171
subitamente, ela se afasta e vai esconder-se por detrás do varão que
separa o lugar onde estávamos, na secção Jordache/No Bounda-ries,
da zona Faded Glory. Receando tê-la ofendido, sigo-a. «O Howard»,
segreda-me. «Não o viste a passar? Não temos autorização para falar,
não sabes?»
«A questão é que o nosso tempo é tão barato que eles não se
importam se o desperdiçarmos», continuo, consciente de que isto não
é verdade; caso contrário, porque estariam constantemente a vigiar-
nos para nos apanharem a cometer «roubos de tempo»? Mas
desabafo: «Isso é o mais insultuoso!» Obviamente, neste acesso de
militância não tenho em consideração o contexto - duas mulheres
maduras, duas mulheres muito trabalhadoras, por sinal, escondidas
atrás de um varão de roupas para não serem vistas por um gerente
parvalhão de vinte e seis anos. Nem vale a pena fazer qualquer
comentário...
A Alyssa é outro alvo da minha cruzada. Quando regressa para
verificar mais uma vez o preço daquela camisa de algodão de sete
dólares, encontra-lhe uma mancha. Que desconto é que poderia fazer-
lhe? Acho que talvez 10% e, se adicionar o desconto de 10% para os
empregados, o preço baixaria para cinco dólares e sessenta. Estou a
tentar negociar um desconto de 20% com a senhora do gabinete de
provas quando - maldita sorte! - o Howard aparece e anuncia que nas
peças em saldo não há reduções nem descontos para empregados;
são as regras. A Alyssa parece deprimida, e eu digo-lhe, depois de o
Howard desaparecer da nossa vista, que há algo de errado quando
não se ganha o suficiente para comprar uma camisa do Wal-Mart, uma
camisa do Wal-Mart em saldo e manchada. «Estou-te a ouvir»,
responde, e confessa que o Wal-Mart também não é para ela, se o
objectivo for ganhar a vida.
Depois adopto uma atitude de desafio. Nessa tarde, quando anunciam
pelos altifalantes uma reunião de associados, decido ir, embora a
maioria das minhas colegas não se mexa do sítio. Não compreendo o
objectivo destas reuniões, que se realizam mais ou menos de três em
três dias e consistem, em grande medida, em marcar presença; talvez
seja a forma de o Howard nos demonstrar que como ele há só um e
que nós
172
somos muitas. Fico satisfeita por ter alguns minutos para me sentar,
ou, neste caso, me empoleirar nuns sacos de fertilizante, visto que a
reunião é na secção de jardinagem, e conversar com alguém entre as
pessoas que comparecerem, hoje uma empregada da secção de
óptica. Tem um penteado e uma maquilhagem melhores do que os da
maioria das restantes associadas - viu-se obrigada a arranjar emprego
devido a um divórcio recente, diz-me ela, e já está arrependida,
porque descobriu que o seguro de saúde não presta para nada.
Segue-se uma longa história sobre problemas de saúde preexistentes
e o que é dedutível e a extensão do seu seguro de saúde1, que está a
chegar ao fim do prazo. Ouço-a sem grande atenção, porque, tal como
a maioria das outras pessoas do meu grupo de orientação, não optei
por seguro de saúde - as contribuições pareceram-me demasiado
elevadas. «Sabes do que é que precisamos aqui?», respondo, por fim.
«Precisamos de um sindicato!»
Pronto, saiu-me a palavra da boca. Se não estivesse com os pés tão
doridos talvez não a tivesse dito, e provavelmente também não o faria
se tivéssemos autorização para dizer «caramba!», ou «fogo!», ou,
melhor ainda, «merda!». Mas ninguém proibiu claramente a palavra
sindicato e, neste momento, são as sílabas mais potentes que posso
pronunciar. «Precisamos de qualquer coisa», responde ela.
Depois disto fico imparável. Estou empenhada numa missão: Levanta
as questões! Planta as sementes! Os intervalos agora têm um
objectivo para além de descansar as pernas. Há aqui centenas de
trabalhadores - não chego a descobrir o número exacto - e, mais cedo
ou mais tarde, acabarei por me encontrar com todos eles. Rejeito a
sala de descanso para este fim, porque a televisão inibe as conversas,
o que, tanto quanto sei, é o seu objectivo. É melhor ir lá para fora, para
a zona vedada destinada aos fumadores, na frente da loja. Na América
antita-bagista é mais provável que os fumadores sejam rebeldes; pelo
1 No original: COBRA (Consolidated Omnibus Budget Reconciliation
Act), lei que proporciona a continuação da cobertura de despesas de
saúde que normalmente seria suspensa. (N. da T.)
173
menos era verdade na The Maids, onde as não fumadoras esperavam
em silêncio no escritório pela hora de começar a trabalhar, enquanto
as fumadoras, no passeio, lá fora, passavam um bom bocado em
amena cavaqueira. Além disso, pode meter-se conversa pedindo lume,
o que, de qualquer maneira, tenho de fazer quando há vento. A
pergunta seguinte é: «Em que departamento está?», e depois: «Há
quanto tempo trabalha aqui?», e o passo seguinte e óbvio é abordar o
assunto em questão. Quase toda a gente está ansiosa por falar, e em
breve passo a ser um repositório ambulante de queixas. No Wal-Mart
ninguém recebe pagamento por horas extraordinárias, dizem-me,
embora frequentemente haja pressões para trabalhar para além do
horário1. Muitos acham que o seguro de saúde não vale o dinheiro
que se paga. Há muita frustração relativamente a horários, em
especial no caso da senhora que pertence a uma igreja evangélica e
nunca tem os domingos de manhã livres, por muito que peça. E há
sempre queixas contra os gerentes: o que tem fama de mandar novos
empregados em lágrimas para casa, o que pega numa régua e atira
para o chão tudo o que estiver numa prateleira que ele considere mal
arrumada,
1 Alguns empregados do Wal-Mart processaram a cadeia retalhista por
horas extraordinárias não pagas em quatro estados - West Virgínia,
Novo México, Oregon e Colorado. Os queixosos alegam que foram
pressionados para trabalhar horas extraordinárias e que a companhia
apagou essas horas do seu registo de tempo de trabalho. Dois dos
queixosos de West Virgínia, que tinham sido promovidos a postos de
gerência antes de se despedirem do Wal-Mart, disseram que tinham
participado na alteração de registos de tempo de trabalho para ocultar
a existência de horas extraordinárias. Em vez de pagar uma hora e
meia por cada hora extraordinária, a companhia recompensava os
trabalhadores com «mudanças de horário pretendidas, promoções e
outros benefícios», enquanto os trabalhadores que se recusavam a
trabalhar horas extraordinárias sem retribuição eram ameaçados com
«denúncias, despromoções, horários reduzidos ou suspensão do
pagamento» (Lawrence Messina, «Former Wal-Mart Workers File
Overtime Suit in Harrison County», Charleston Ga-zette, 24 de Janeiro
de 1999). No Novo México, um processo movido por 110 empregados
do Wal-Mart foi resolvido em 1998, quando a companhia concordou
em pagar as horas extraordinárias («Wal-Mart Agrees to Resolve Pay
Dispute», Albuquerque Journal, 16 de Julho de 1998). Num e-mail que
me enviou, o porta-voz do Wal-Mart, William Wertez, declarou que «é
política do Wal-Mart compensar os empregados justamente pelo seu
trabalho e cumprir totalmente todos os requisitos federais e estatais no
que respeita a salários e horários de trabalho».
174
obrigando o empregado a apanhar as coisas e a arrumar tudo de
novo...
Descubro que por vezes o meu assunto preferido, a tabela de salários
abissal, parece ser uma questão melindrosa. O Stan, por exemplo, um
homem de vinte e poucos anos com dentes muito tortos, tem tal
vontade de falar que quase salta do lugar, ao meu lado, no banco da
zona de fumadores, mas, quando chegamos à questão do salário, fica
com uma expressão desanimada. A ideia, estou a ver, é que queria ir
estudar (menciona uma escola técnica com cursos de dois anos)
enquanto trabalha, mas o trabalho interrompia-lhe demasiado o
estudo, pelo que teve de desistir, e agora... Fita o chão coberto de
pontas de cigarros, vendo talvez espraiar-se à sua frente uma
eternidade na secção de electrodomésticos. Sugiro que aquilo de que
precisamos é de um sindicato, mas, pela expressão do seu rosto, é
como se eu tivesse dito «pastilha elástica» ou «Pro-zac». Assim,
talvez concorra a um emprego no Media One, onde trabalha um amigo
dele e os salários são mais altos... Tentar a escola outra vez, humm...
No outro extremo há pessoas como a Marlene. Estou sentada lá fora a
falar com uma loura com ar de boneca que julgara ser aluna do
secundário, mas que, fico a saber, trabalha a tempo inteiro desde
Novembro e anda a matutar se terá posses para comprar um carro. A
Marlene vem cá fora no intervalo, acende um cigarro e apoia
enfaticamente a minha opinião sobre os salários do Wal-Mart. «Falam
sobre ter ânimo», diz ela, referindo-se à gerência, «mas não nos dão
qualquer motivo para isso.» Em sua opinião, o Wal-Mart preferiria
contratar novo pessoal a ter de tratar decentemente os empregados.
Qualquer pessoa pode ver que todos os dias há cerca de uma dúzia
de candidatos a um emprego na sessão de orientação - o que é
verdade. O apetite do Wal-Mart por carne fresca é insaciável; até nos
encorajam a aliciarmos empregados do Kmart que por acaso
conheçamos. Não se importam de nos terem treinado, nem nada,
prossegue a Marlene, se nos queixarmos não têm dificuldade em
arranjar quem nos substitua. Animada pela sua veemência, arrisco-me
a pronunciar mais uma vez a palavra quente: «Eu sei que isto vai
contra a filosofia do Wal-
175
Mart, mas precisamos cá de um sindicato.» Ela sorri, portanto
continuo: «Não é só uma questão de dinheiro, é uma questão de
dignidade!» A Marlene acena vivamente, acendendo outro cigarro no
que acabou de fumar. Ponham aquela mulher no comité organizador,
ordeno aos meus imaginários co-conspiradores quando volto para
dentro.
É certo que não sou organizadora sindical, do mesmo modo que não
tenho «estofo para a gerência» do Wal-Mart, como a Isabelle parece
acreditar. Na verdade, não perfilho a crença de muitos activistas
sindicais de que a sindicalização seria uma panaceia universal. Sem
dúvida que aqui qualquer sindicato faria subir os salários e endireitar
algumas costas vergadas, mas sei que mesmo os sindicatos mais
activos e democráticos devem ser cuidadosamente vigiados pelos
seus sócios. A verdade, que não consigo evitar reconhecer quando
estou naquelas fases - vastas como desertos - entre os intervalos da
tarde, é que estou apenas a distrair-me de uma forma que me parece
bastante inofensiva. Alguém tem de desmascarar a ficção vigente de
que aqui somos uma «família», nós, os associados, e os nossos
«líderes de empregados», unidos pelo compromisso para com os
«convidados». Afinal, disfiincional não é um termo suficientemente
forte para descrever uma família em que algumas pessoas comem à
mesa enquanto as restantes - os «associados», as costureiras de pele
escura e os operários fabris de todo o mundo que fabricam aquilo que
vendemos - apanham as migalhas do chão: psicótica seria um
adjectivo mais apropriado1. E alguém tem de deslindar o misterioso
«nós» implícito no «nosso» da afirmação: «O nosso pessoal faz a
diferença», que usamos nas costas. Já agora posso ser eu, porque
não tenho nada a perder, realmente nada. Por cada dia em que não
consigo encontrar alojamento mais barato estou a
1 Em 1996, o National Labor Committee Education Fund in Support of
Worker and Human Rights in Central America (Fundo de Educação
para Apoio do Trabalhador e dos Direitos Humanos na América Central
do Comité Nacional do Trabalho) revelou que algumas roupas da
marca Kathie Lee eram confeccionadas por crianças com idades a
partir dos doze anos, numa fábrica ilegal nas Honduras. A
personalidade televisiva Kathie Lee Gifford, proprietária da marca
Kathie Lee, veio à televisão, quase em lágrimas, negar a acusação,
mas mais tarde prometeu deixar de recorrer a fábricas ilegais.
176
gastar quarenta e nove dólares e noventa e cinco pelo privilégio de
arrumar roupas no Wal-Mart. A este ritmo, em menos de uma semana
vou acabar com o resto dos mil e duzentos dólares que reservei para a
minha vida em Minneapolis.
E preciso de distracções. Ando a descobrir uma grande verdade sobre
o trabalho de salário baixo, que provavelmente também se aplica a
muito do trabalho de salário médio - nada acontece, ou antes,
acontece sempre a mesma coisa, o que equivale, dia após dia, a
nada. Esta lei não se aplica tão estritamente aos empregos do sector
de serviços que tive até agora. A servir à mesa têm-se sempre novos
clientes para estudar; até mesmo a limpeza doméstica oferece um
desfile diário de casas a explorar. Mas aqui - bem, já expliquei que o
que eu faço é desfeito num ápice e começo outra vez do princípio e
volto a fazer o mesmo. Como é que julguei que ia sobreviver numa
fábrica, onde cada minuto, não somente cada dia, é idêntico ao
seguinte? Aqui não haverá crises, com a possível excepção do
movimento na época natalícia. Não haverá qualquer «Código M»,
significando uma «situação de reféns», e provavelmente também não
haverá Código I ou T (estou a inventar estas letras, que não anotei nos
apontamentos tomados durante a orientação e que, de qualquer
forma, talvez sejam segredo da companhia), significando incêndio ou
tornado - nenhuma oportunidade para actos de coragem, façanhas
extraordinárias ou uma evacuação de emergência da loja. Esses
acontecimentos dignos de notícia de última hora, quando um ex-
empregado descontente desata aos tiros ou um magote de pessoas é
esmagado numa avalancha de mercadoria empilhada, são raríssimos.
O que o futuro me reserva são carrinhos de compras - cheios, em
seguida vazios, e depois outra vez cheios.
Aqui podia-se envelhecer rapidamente. De facto, o tempo prega-nos
partidas esquisitas quando não há pequenas surpresas para o dividir
em segmentos dignos de nota, e tenho a sensação de que já
envelheci vários anos desde que aqui comecei a trabalhar. No único
espelho de corpo inteiro que existe na secção de pronto-a-vestir de
senhora, uma figura de estatura média está debruçada sobre um
carrinho de compras, com
177
uma expressão de concentração absurda no rosto - não sou eu, com
certeza. Quanto tempo me resta até ficar grisalha como a Ellie, irritável
como a Rhoda, mirrada como a Isabelle? Quando nem mesmo uma
dieta de comida rápida rica em sódio consegue evitar que corra para a
casa de banho de hora a hora e os meus pés vão com certeza
subsidiar as propinas do filho do calista? Sim, eu sei que um destes
dias vou regressar à vida variada e cheia de acontecimentos da
Barbara Ehrenreich, mas esse facto consola-me como a perspectiva
de ir para o céu anima uma pessoa com uma doença terminal: é bom
saber, mas no momento presente não serve de grande coisa. O que
não se compreende quando se começa a vender o tempo à hora é
que, na verdade, se está a vender a própria vida.
Porém, nesse momento acontece algo, não a mim nem no Wal-Mart,
mas, mesmo assim, com implicações extraordinárias. É um grande
título no Star Tribune: mil quatrocentos e cinquenta trabalhadores da
indústria hoteleira, sócios do Sindicato dos Empregados de Hotel e
dos Empregados de Restaurante, fazem greve em nove hotéis locais.
Na secção de negócios do Pioneer Press, comentando esta greve
mais a dos camionistas da unidade de engarrafamento da Pepsi Cola
e uma marcha de trabalhadores de uma fábrica de embalagem de
carne de St. Paul a exigirem o reconhecimento do seu sindicato, um
jornalista pergunta, apanhado de surpresa: «O que se está a passar?»
Quando chego ao trabalho, nesse dia, repesco o jornal do caixote do
lixo mesmo à porta da loja - o que não é difícil, porque, como de
costume, o caixote está a transbordar e não tenho de remexer muito
no lixo. Depois levo o jornal para a sala de descanso, onde o deixo em
cima de uma mesa, bem visível, para o caso de a notícia ter escapado
a alguém. Este meu novo papel - portadora de notícias importantes! -
faz-me sentir atarefada e importante. Na secção de pronto-a-vestir de
senhora, conto as notícias à Melissa, acrescentando que os
trabalhadores da indústria hoteleira ganham, por hora, um dólar mais
do que nós, e isso não os impediu de fazerem greve a exigirem
aumento. Ela pisca os olhos, pensativa, e depois a Isabelle aparece e
diz que o gerente regional vai visitar a nossa loja no dia seguinte, e
que, por conseguinte, tudo tem de ser «zoneado ao máximo». O dia
começou.
178
Tenho outras coisas em que pensar para além da tarefa de organizar
as prateleiras dos jeans Faded Glory. Por volta das seis fiquei de
telefonar a dois motéis que cobram apenas quarenta dólares por dia e
onde talvez tenha surgido uma vaga, mas dou-me conta de que deixei
os números de telefone no carro. Não quero desperdiçar os intervalos
a ir buscá-los - não hoje, com a notícia das greves como tópico de
conversa. Será que me atrevo a cometer um «roubo de tempo» em
grande escala? E como é que consigo sair sem a Isabelle se
aperceber? Ela apanhou-me a dobrar os jeans ao contrário - dobram-
se em três, com a parte de baixo para dentro, não para fora - e já veio
inspeccionar o meu trabalho uma segunda vez. Por ironia, é o Howard
quem me proporciona uma saída, quando aparece subitamente ao
meu lado para me informar que estou muito atrasada na minha ABC.
Os novos empregados devem completar os módulos de treino da ABC,
abandonando o trabalho com autorização dos seus supervisores, o
que eu andava a fazer sem grande entusiasmo - já tinha acabado a
abertura de caixotes de cartão, o carregamento de fardos e a
compactação de lixo -, até se verificar uma avaria no programa. O
problema da avaria já está resolvido, diz-me ele, e devo regressar ao
computador imediatamente. É a oportunidade para me escapar da
minha secção, mas fico ainda mais longe da saída da loja. Estudo um
módulo em que o Sam Walton tece grandes louvores ao sistema de
inventário perpétuo e depois levanto-me cautelosamente, para ver se
o Howard anda por ali. Óptimo, o caminho está livre! Dirijo-me a
passos largos para a frente da loja quando o vejo a encaminhar-se na
mesma direcção, cerca de trinta metros à minha esquerda. Enfio para
a secção de sapataria, e quando saio de lá vejo que ele ainda está a
avançar paralelamente a mim. Volto a evitá-lo entrando na secção de
soutiens e tomando um desvio à direita para o outro lado da secção de
senhora. Já vi este tipo de coisa nos filmes, onde o herói finta o mau
da fita num espaço público complicado, mas nunca tinha imaginado
que viria a protagonizar uma cena semelhante.
De regresso à loja com os números de telefone no bolso do avental,
decido roubar mais uns minutos e fazer as chamadas, durante tempo
pertencente à companhia, no telefone público junto ao balcão de
assistência a clientes. O primeiro motel não responde, o que não é de
estranhar em locais baratos. Impulsivamente, telefono à Caroline para
ver se está em greve: não, o hotel dela não, mas, ri-se quando me
conta que na noite anterior, nas notícias na televisão, viu um gerente
do hotel onde trabalhava. E um homem de raça branca que gostava
de lhe lembrar que ela era a primeira afro-americana a ser contratada
para um emprego acima da limpeza, e lá estava ele na televisão,
obrigado a varrer o chão enquanto o pessoal da limpeza fazia piquete.
Estou a discar o número do segundo motel quando o Howard aparece.
Porque é que não estou no computador?, quer saber, esboçando o
seu sorriso odiento. «Intervalo», respondo, com aquilo a que os
primatólogos chamam «ricto de medo», um misto de arreganho de
dentes e careta. Quando uma pessoa se dispõe a roubar, deve estar
preparada para mentir. Ele pode descobrir a mentira num minuto,
claro, indo verificar se marquei o ponto, e eu poderia ser objecto de
uma queixa escrita, desterrada para os soutiens, repreendida por uma
Roberta profundamente desiludida comigo. Mas o segundo motel não
tem vagas para os próximos dias, o que significa que, de qualquer
forma, por razões puramente financeiras, a minha carreira no Wal-Mart
se encontra prestes a ter um fim abrupto.
Quando a Melissa está a preparar-se para sair, às seis, digo-lhe que
me vou despedir, talvez no dia seguinte. Bem, nesse caso acha que
também se vai embora, porque não quer trabalhar ali sem mim.
Olhamos ambas para o chão. Compreendo que isto não é uma
declaração de amor, apenas uma questão prática: não se pode
trabalhar com quem não faz o que lhe compete ou ao lado de pessoas
com as quais não se gosta de conviver, e não é possível estarmos
sempre a adaptar-nos a novas colegas. Trocamos moradas, incluindo
a minha morada real e permanente. Falo-lhe do livro que estou a
escrever e ela acena com a cabeça, não muito surpreendida, e afirma
que espera não ter dito «demasiadas coisas más sobre o Wal-Mart».
Garanto-lhe que não e que, de qualquer forma, a
sua identidade será bem disfarçada no livro. Ela diz-me que tem
andado a pensar no assunto e que sete dólares não é suficiente para
o trabalho que fazemos, pelo que decidiu concorrer a um emprego
numa fábrica de plásticos, onde conta ganhar nove dólares.
Às dez horas dessa noite dirijo-me para a sala de descanso no meu
último intervalo, com os pés demasiado doridos para ir lá fora, até à
zona de fumadores, sento-me e ponho os pés em cima de um banco.
O intervalo anterior, por cuja preservação cometera tantos «crimes»,
tinha sido um fracasso total, sem qualquer outro ser humano a não ser
uma funcionária da contabilidade. Tenho aquela sensação
claustrofóbica, típica do turno da noite, de que não existe mundo para
além das portas, nenhum problema mais importante do que as peças-
mistério no fundo do meu carrinho de compras. Na sala só está outra
pessoa, uma mulher branca dos seus trinta anos, a ver televisão, e
não tenho energia suficiente para meter conversa, nem mesmo com o
tópico quente da greve à mão.
E então, pela graça do Senhor que ditou o Sermão da Montanha a
Jesus e que protege a Melissa e os pardais, aparecem as notícias
locais na televisão, e a principal é a greve. Um homem de piquete,
com um rapazinho pequeno, diz perante as câmaras: «Isto é pelo meu
filho! Estou a fazer isto pelo meu filho!» O senador Paul Wellstone
também lá está. Cumprimenta o rapazinho e diz: «Podes orgulhar-te
do teu pai.» Ao ouvir isto, a minha companheira de sala levanta-se de
um salto, sorri e ergue o punho. Faço um gesto rápido com os dedos
indicadores a apontarem para baixo, que significa: «Aqui! Nós!
Podíamos fazer o mesmo!» Ela dirige-se a passos largos para onde eu
estou sentada - se me sentisse mais desperta, teria ido ter com ela -,
debruça-se sobre mim e exclama: «Porra! Tens razão!» Não sei se é
por causa dos pés doridos, ou por ela ter dito «porra», ou por qualquer
outra razão, mas dou por mim a ir-me abaixo. Conversa comigo muito
para além do meu tempo legal de intervalo e possivelmente do dela -
fala da filha, de como está farta de trabalhar horas e horas a fio e
nunca ter tempo para estar com ela, e, de qualquer
180
181
maneira, a que é que isto leva, quando não se consegue ganhar o
suficiente para poupar?
Acredito que nós as duas poderíamos ter feito algo, se eu tivesse
posses para trabalhar no Wal-Mart durante mais algum tempo.
Que tal me saí como trabalhadora de salário baixo? Se me permitem,
começarei por uma breve salva de palmas: não me saí nada mal no
trabalho em si, o que me parece uma considerável façanha. Talvez
pensem que um trabalho indiferenciado seria canja para alguém que
tem um doutoramento e cuja actividade regular implica aprender
coisas inteiramente novas a cada duas semanas, mas não é verdade.
A primeira coisa que descobri é que nenhum emprego, por mais baixo
que seja, é verdadeiramente «indiferenciado». Cada um dos seis
empregos que tive no decurso deste projecto requeria concentração, e
a maior parte exigia o domínio de novas terminologias, instrumentos e
capacidades - desde encomendar refeições nos computadores dos
restaurantes até manobrar o aspirador-mochila. Não aprendi nenhuma
destas coisas tão facilmente quanto desejaria; ninguém jamais disse:
«Ena, que rapidez!», ou: «Acreditas que ela só começou agora?»
Sejam quais forem os meus atributos na minha vida normal, no mundo
do trabalho de salário baixo fui uma pessoa de capacidades médias -
capaz de aprender a fazer o trabalho, mas também de cometer erros.
Tive os meus momentos de glória. Houve dias na The Maids em que
acabei as tarefas com tal rapidez que ainda pude aliviar o fardo a
outras colegas, e sinto-me orgulhosa disso. Houve aquele momento
de viragem no Wal-Mart; se tivesse conseguido manter a boca
fechada, acredito que num ano ou dois teria progredido para um
salário de sete dólares e
183
cinquenta à hora, ou mais. E guardarei para o resto da vida a
recordação daquele dia no Woodcrest em que, completamente
sozinha, dei de comer à enfermaria fechada dos doentes de Alzheimer,
fiz a limpeza e consegui arrancar alguns sorrisos aos rostos vazios dos
residentes.
Não é apenas o trabalho que em cada situação tem de se aprender.
Cada emprego apresenta um mundo social estanque, com as suas
próprias personalidades, hierarquia, costumes e padrões. Por vezes,
eram-me facultados fragmentos de dados sociológicos, tais como:
«Cuidado com aquele tipo, é um merdas do caraças!» Mais
frequentemente tinha de ser eu a descobrir informações essenciais,
como quem é que mandava, com quem se podia trabalhar, quem era
capaz de encaixar uma piada. Neste caso, é provável que anos de
viagens me tenham sido úteis, embora na minha vida normal costume
entrar em novas situações desempenhando papéis que requerem o
respeito ou até mesmo a atenção dos outros, como «oradora
convidada» ou «orientadora de seminário». Descobri que é muito mais
difícil deslindar o modo de funcionamento de um microssistema
humano quando se está a olhar para ele de baixo, e evidentemente
também é muito mais necessário.
A questão dos padrões é outro tópico problemático. Para ser uma
pessoa com quem «é bom trabalhar» tem de ser-se rápida e
competente, mas não tão rápida e competente que se acabe por
tornar as coisas mais difíceis para os outros. Raramente corri o perigo
de subir demasiado a fasquia, embora uma vez, no Hearthside, a
Annette me tenha repreendido por «refrescar» as sobremesas no
escaparate: «Eles vão querer que desatemos todas a fazer isso!» Por
conseguinte, desisti, do mesmo modo que em qualquer emprego teria
abrandado para um ritmo artrítico se aparecesse um gerente a
conduzir um estudo de tempo e movimento. No Wal-Mart, uma colega
advertiu-me uma vez de que, embora ainda tivesse muito a aprender,
também era importante não «saber demasiado», ou pelo menos nunca
revelar a totalidade das minhas capacidades à gerência, porque
«quanto mais eles julgam que podes fazer, tanto mais usarão e
abusarão de ti». Os meus mentores nestas questões não eram
preguiçosos; apenas sabiam que há poucas
184
ou nenhumas recompensas por desempenhos heróicos. O truque está
em descobrir como gerir a energia que se tem, de forma a sobrar
alguma para o dia seguinte.
E todos estes empregos exigiam grande esforço físico, sendo alguns
deles prejudiciais à saúde se desempenhados mês após mês. Estou
em óptima forma física, pois levo anos de levantamento de pesos e de
aeróbica, mas aprendi algo que ninguém mencionou no ginásio:
grande parte da sensação de força que experimentamos provém de
saber o que fazer relativamente à fraqueza. Quando sentimos a
fraqueza a aproximar-se, a meio de um turno ou mais tarde, podemos
interpretá-la da forma normal, como sintoma de uma espécie de
doença sem gravidade, curável através de repouso imediato. Ou
podemos interpretá-la de outra forma, como um lembrete do trabalho
duro que realizámos até esse momento, e por conseguinte como
prova do quanto ainda somos capazes de fazer - caso em que a
exaustão se transforma numa espécie de tala para nos manter de pé.
Como é óbvio, há limites para esta forma de auto-ilusão, que eu teria
atingido rapidamente se tivesse de ir para casa ao fim dos meus vários
empregos para andar a correr atrás de filhos pequenos e arrumar o
que a família desarrumava, como acontece a muitas mulheres, mas o
facto de ter sobrevivido fisicamente, de nunca me ter ido abaixo nem
necessitado de faltar ao trabalho para recuperar, num período da
minha vida em que já tenho cinquenta e tal anos, é algo de que me
orgulho profundamente.
Além disso demonstrei, ou pelo menos em geral demonstrei, todos os
traços considerados essenciais para manter um emprego:
pontualidade, higiene, boa disposição e obediência. São estas as
qualidades que pretendem inculcar os programas de preparação para
um novo emprego para pessoas que dependem de subsídios da
Segurança Social, embora suspeite que a maior parte dessas pessoas
já possui tais qualidades, ou possuiria, se fossem resolvidos os seus
problemas de transporte e guarda dos filhos. Eu estava simplesmente
a seguir as regras que definira no início do projecto e a fazer os
possíveis por manter cada emprego. Não sou só eu que o afirmo: os
supervisores diziam-me por vezes que estava a sair-me bem - que
185
era uma trabalhadora «capaz», ou mesmo «óptima». Em suma: com
alguns deméritos por asneiras e medalhas pelos meus esforços,
parece-me justo dizer que, como trabalhadora, como empregada,
mereço uma nota bastante alta.
No entanto, a verdadeira questão não é saber se me saí bem no
trabalho, mas sim se me saí bem na vida em geral, o que inclui a
alimentação e o alojamento. Deve sublinhar-se o facto de se tratar de
duas questões distintas. Na retórica favorável à reforma da Segurança
Social, o consenso era que um emprego representava passaporte
para sair da pobreza e que a única coisa que impedia os beneficiários
de subsídios de progredirem era a sua relutância em entrar no
mercado de trabalho e arranjar emprego. Eu arranjei um emprego, às
vezes mais do que um, mas o meu cadastro na questão da
sobrevivência é muito menos admirável do que o meu desempenho
como detentora de um emprego. Em pequenas coisas era bastante
poupada; não gastei em «festarolas», roupas vistosas ou qualquer das
fraquezas que frequentemente se acredita serem responsáveis pelos
problemas de dinheiro dos pobres. É verdade que as calças de trinta
dólares em Key West e o cinto de vinte dólares em Minneapolis foram
extravagâncias; sei agora que poderia ter conseguido gastar menos
dinheiro numa das lojas do Exército de Salvação ou até mesmo num
Wal-Mart. A alimentação, no entanto, foi abordada com rigor científico:
muita carne picada, feijão, queijo e massa, quando tinha cozinha onde
confeccionar as refeições; nos outros casos, comida rápida, em que
consegui não gastar mais de nove dólares por dia. Mas examinemos
as contas.
Em Key West ganhei mil e trinta e nove dólares num mês e gastei
quinhentos e dezassete em comida, gasolina, produtos de higiene
pessoal, lavandaria, telefone e contas domésticas. A renda de casa foi
o que desequilibrou o meu orçamento. Se tivesse permanecido no
estúdio de quinhentos dólares, teria conseguido pagar a renda e ainda
ficar com vinte e dois dólares (mesmo assim, menos setenta e oito
dólares do que tinha no bolso no início do mês). Esta situação ter-se-ia
tornado algo problemática se tentasse prosseguir com a experiência
durante mais alguns meses, porque mais cedo ou mais tarde teria
186
de gastar dinheiro em cuidados médicos ou dentários, ou em
medicamentos para além doIbuprofen. Mas a mudança para o parque
de caravanas - com o objectivo, recorde-se, de acumular um segundo
emprego - deu-me um encargo de seiscentos e vinte e cinco dólares
por mês só em renda, sem contar água, luz e gás. Aqui poderia ter
feito economias, se deixasse de usar o carro e comprasse uma
bicicleta em segunda mão (por cerca de cinquenta dólares) ou fosse a
pé para o trabalho. Mesmo assim, teria de ter dois empregos ou, pelo
menos, um emprego e meio, e eu sabia que não conseguiria trabalhar
em dois empregos fisicamente duros no mesmo dia, pelo menos não a
um nível de desempenho aceitável.
Foi em Portland, no Maine, que estive mais perto de alcançar uma
relação satisfatória entre o rendimento e as despesas, mas apenas
porque trabalhava sete dias por semana. Nos dois empregos ganhava
aproximadamente trezentos dólares líquidos por semana e pagava
quatrocentos e oitenta dólares de renda mensal, ou seja, 40% do meu
vencimento, o que não era mau. Tinha a vantagem de o gás e a
electricidade estarem incluídos na renda e de ter duas ou três
refeições grátis ao fim-de-semana na casa de repouso. Mas a minha
estada coincidiu com o início da estação baixa. Se tivesse ficado até
Junho de 2000, ter-me-ia defrontado com uma renda de Verão de
trezentos e noventa dólares por semana no Blue Haven, o que,
obviamente, estaria fora de questão. Assim, para subsistir durante
todo o ano, precisaria de ter poupado o suficiente, entre os meses de
Agosto de 1999 e Maio de 2000, para o depósito e o primeiro mês de
renda de um apartamento a sério. Julgo que talvez tivesse conseguido
poupar entre oitocentos e mil dólares, pelo menos se despesas
imprevistas com o carro ou problemas de saúde não desequilibrassem
o meu orçamento. No entanto, não tenho a certeza se conseguiria
manter mês após mês o regime de trabalho de sete dias por semana
ou evitar os tipos de acidentes de trabalho de que eram vítimas as
minhas colegas do serviço de limpeza.
Em Minneapolis... bem, aqui há muita matéria para especulação. Se
tivesse conseguido arranjar um apartamento por quatrocentos dólares
por mês, ou menos, o meu vencimento
187

no Wal-Mart, mil cento e vinte dólares ilíquidos mensais, talvez fosse


suficiente, embora a despesa do motel enquanto procurava casa me
pudesse impedir de poupar o suficiente para pagar o depósito e o
primeiro mês de renda. Um emprego de fim-de-semana, como o que
quase consegui num supermercado a sete dólares e setenta e cinco
por hora, teria ajudado, mas não havia garantias de conseguir
organizar o horário do Wal-Mart de forma a nunca trabalhar aos fins-
de-semana. Se tivesse aceitado o emprego no Menards e o
vencimento realmente fosse de dez dólares à hora por onze horas
diárias, teria ganho cerca de quatrocentos e quarenta dólares líquidos
por semana - o suficiente para pagar um quarto de motel e ainda pôr
algum dinheiro de lado para os custos iniciais de um apartamento.
Mas será que pagavam mesmo dez dólares por hora? E conseguiria
eu trabalhar de pé onze horas diárias, cinco dias por semana?
Portanto, sim, se tivesse feito algumas opções diferentes,
provavelmente teria conseguido sobreviver em Minneapolis. Mas não
vou voltar para fazer nova experiência! É certo que cometi erros,
sobretudo em Minneapolis, erros que na altura me provocaram
sensações de fracasso e vergonha. Devia ter tido coragem e aceitado
o emprego mais bem pago, devia ter-me mudado para o dormitório
que acabei por encontrar (embora, a dezanove dólares por noite, até
uma cama num dormitório fosse um luxo para quem ganhava o salário
do Wal-Mart). Mas deve dizer-se, em minha defesa, que muitas outras
pessoas estavam a cometer os mesmos erros: trabalhar no Wal-Mart
em vez de aceitar um dos outros empregos mais bem pagos
disponíveis (muitas vezes, julgo eu, devido a problemas de
transportes); viver em motéis residenciais a pagar entre duzentos e
trezentos dólares por semana. Por conseguinte, o problema
transcende os meus fracassos e erros de cálculo pessoais. Algo está
errado, muito errado, quando uma pessoa sozinha e com saúde, e
que, além do mais, dispõe de carro, mal consegue sustentar-se com o
produto do suor do seu rosto. Não é preciso ter uma licenciatura em
Economia para constatar que os salários são demasiado baixos e as
rendas demasiado altas.
188
O problema das rendas é fácil de compreender para quem não é
economista, até mesmo para um trabalhador de salário baixo com
poucos estudos: é o mercado, claro! Quando os ricos e os pobres
estão em competição no mercado aberto, os pobres não têm hipótese.
Os ricos podem sempre pagar mais, comprar os prédios de
apartamentos dos pobres ou os seus parques de caravanas e
substituí-los por condomínios, «McMansões», campos de golfe ou o
que muito bem entenderem. Visto que os ricos se tornaram mais
numerosos, em grande medida graças à especulação bolsista e aos
salários dos executivos, os pobres são empurrados para um tipo de
habitação mais caro, mais degradado ou mais distante dos seus locais
de trabalho. Recorde-se que em Key West o parque de caravanas
conveniente para os empregos nos hotéis cobrava seiscentos e vinte e
cinco dólares por mês por uma caravana com metade da área normal,
obrigando os trabalhadores de salário baixo a procurarem alojamento
cada vez mais longe, em zonas mais desfavorecidas. Mas as rendas
também estavam a disparar em flecha na nada turística cidade de
Minneapolis, onde os últimos redutos de habitação a preços quase
acessíveis se encontravam em plena cidade, ao passo que o
crescimento do mercado de trabalho se verificou na periferia, perto de
subúrbios fora do alcance dos trabalhadores. Visto que os pobres têm
de trabalhar perto das casas dos ricos - como é o caso de tantos
empregos do sector de serviços e do comércio -, estão condenados a
longas deslocações diárias ou a alugar casas a preços
incomportáveis.
Se parece existir uma indiferença generalizada perante a crise da
habitação para os que têm baixos rendimentos, em parte isso deve-se
ao facto de a crise não ser tomada em conta para determinar a taxa
oficial de pobreza, que se tem mantido reconfortantemente baixa nos
últimos anos, a cerca de 13%. A razão de não se estabelecer uma
relação entre o pesadelo da habitação vivido pelos pobres e a
«pobreza», tal como é oficialmente definida, é simples: o nível oficial
de pobreza ainda é calculado através do método arcaico de tomar as
despesas de
189
alimentação de uma família com um determinado número de
elementos e multiplicar o resultado por três. No entanto, a alimentação
é relativamente imune à inflação, pelo menos quando comparada com
as rendas de casa. Nos primeiros anos da década de 60, quando foi
definido este método de calcular a pobreza, as despesas com a
alimentação tomavam 24% do orçamento da família média (e não
33%, nem sequer nessa altura, é bom que se note) e as despesas de
habitação 29%. Em 1999, as despesas de alimentação constituíam
apenas 16% do orçamento familiar, enquanto as despesas de
habitação subiram aos 37%'. Sendo assim, a escolha da alimentação
como base para calcular o orçamento familiar parece hoje em dia
bastante arbitrária; mais valia abolir a pobreza de uma vez por todas,
pelo menos no papel, definindo um rendimento de subsistência como
múltiplo das despesas médias com fio dental ou livros de banda
desenhada.
Quando o mercado não distribui um bem vital como a habitação a
todos quantos dele necessitam, a habitual expectativa liberal ou
moderada é que o Estado intervenha na resolução do problema.
Aceitamos este princípio - pelo menos de uma forma inconsistente - no
caso dos cuidados de saúde, em que o Estado oferece o programa
Medicare aos idosos, o programa Medicaid às pessoas extremamente
pobres e vários programas estaduais aos filhos dos que são muito
pobres. Porém, no caso da habitação o movimento marcadamente
ascendente do mercado tem sido acompanhado por uma demissão
cobarde de responsabilidades pelo sector público. As despesas com a
habitação social desceram desde a década de 80 e a expansão dos
subsídios às rendas foi suspensa em meados da década de 90.
Simultaneamente, os subsídios de habitação para os proprietários de
casas - que em geral pertencem a um estrato mais desafogado do que
os arrendatários - mantiveram-se aos seus habituais níveis generosos.
Não deixei de notar, enquanto vivi como uma pessoa de rendimentos
baixos, que o subsídio de habitação que recebo na minha vida real -
mais
1 Jared Bernstein, Chauna Brocht e Maggie Spade-Aguilar, «How
Much Is Enough? Basic Family Budgets for Working Families»,
Economic Policy Insti-tute, Washington, D. C, 2000, p. 14....., -
190
de vinte mil dólares por ano, sob a forma de dedução aos juros do
empréstimo - teria permitido a uma família de rendimento
verdadeiramente baixo viver em relativo esplendor. Se em Minneapolis
tivesse tido acesso a esta quantia em prestações mensais, podia ter-
me mudado para um daqueles apartamentos num condomínio «de
executivos» com sauna, ginásio e piscina.
Contudo, se as rendas são extremamente sensíveis às forças do
mercado, os salários não o são. Todas as cidades onde trabalhei no
decurso deste projecto estavam a passar por aquilo que os homens de
negócios locais definiam como «escassez de mão-de-obra» -
comentada na imprensa local e revelada pelos cartazes existentes por
todo o lado a anunciar «Procuramos empregados» ou, mais
imperiosamente, «Estamos a aceitar pessoal». No entanto, os salários
para as pessoas dos escalões mais baixos do mercado de trabalho
continuam bastante parados, até mesmo «estagnados». «É
indubitável», noticiava o The New York Times em Março de 2000, «que
os aumentos infla-cionários de vencimentos não são evidentes nas
estatísticas nacionais de salários1.» Alan Greenspan, o presidente da
Reserva Federal, que passa grande parte do tempo a perscrutar
ansiosamente o horizonte à procura dos mais ténues sinais de tais
ganhos «inflacionários», teve o prazer de poder informar o Congresso,
em Julho de 2000, de que as previsões pareciam livres de problemas.
Chegou a sugerir que deixaram de vigorar as leis económicas que
estabelecem uma relação entre taxas de desemprego baixas e
aumentos de salários, o que praticamente equivale a dizer que foi
anulada a lei da oferta e da procura2. Alguns economistas
argumentam que o aparente paradoxo é sustentado por uma ilusão:
não há uma «escassez de mão-de-obra» real, apenas uma escassez
de pessoas dispostas a trabalhar pelos salários actualmente
oferecidos3. Já agora, também
1 «Companies Try Dipping Deeper into Labor Pool», The New York
Times, 26 de Março de 2000.
2 «An Epitaph for a Rule That Just Won't Die», The New York Times,
30 de Julho de 2000.
3 «Fact or Fallacy: Labor Shortage May Really Be Wage Stagnation»,
Chicago Tribune, 2 de Julho de 2000; «It's a Wage Shortage, Not a
Labor Shortage», Minneapolis Star Tribune, 25 de Março de 2000.
191
se podia falar de uma «escassez de automóveis Lexus» - que existe,
em certo sentido, para todas as pessoas que não estão dispostas a
pagar quarenta mil dólares por um carro.
De facto os salários aumentaram, ou pelo menos aumentaram entre
1996 e 1999. Quando, no Verão de 2000, falei com vários economistas
e me queixei da inadequação dos salários de trabalhadores de nível
básico, a sua primeira reacção foi: «Mas os salários estão a subir!»
Segundo o Economic Poli-cy Institute (Instituto de Políticas
Económicas), para os 10% dos trabalhadores americanos mais pobres
registou-se um aumento salarial de cinco dólares e quarenta e nove
por hora (em dólares de 1999) em 1996 para seis dólares e cinco
cênti-mos em 1999. Subindo na escala socioeconómica, a faixa
seguinte de 10% dos americanos - que corresponde genericamente ao
estrato onde me situei como trabalhadora de salário baixo - passou de
seis dólares e oitenta por hora em 1996 para sete dólares e trinta e
cinco em 19991.
Obviamente estamos perante um daqueles debates em que se discute
se o copo está meio cheio ou meio vazio; os aumentos que parecem
ter reconfortado tantos economistas não me impressionam muito.
Encarando os aumentos salariais dos últimos quatro anos numa
perspectiva algo deprimente, eles não foram suficientes para os
trabalhadores de salário baixo atingirem o que ganhavam há vinte e
sete anos, em 1973. No primeiro trimestre de 2000, os 10% dos
trabalhadores mais pobres ganhavam somente 91% do que auferiam
na já distante era do escândalo Watergate e da música disco. De
todos os trabalhadores, os mais pobres são os que menos
progrediram em relação aos níveis salariais de 1973. Os trabalhadores
mais ou menos abastados do oitavo decil (fatia de 10%), o grupo em
que os vencimentos são de cerca de vinte dólares por hora, ganham
agora 106,6% do que ganhavam em 1973. Quando eu insistia nas
minhas lamentações junto dos economistas, em geral eles cediam um
pouco, admitindo que, embora os salários mais baixos estejam a subir,
não estão a subir a grande velocidade.
1 Os meus agradecimentos a John Schmidt, do Economic Policy
Institute de Washington, D. C, pela elaboração destes dados salariais.
192
Lawrence Michel, do Economic Policy Institute, que no início da nossa
conversa adoptara a perspectiva do copo meio cheio, adensou ainda
mais o mistério quando comentou que a produtividade - à qual os
salários estão teoricamente ligados - tem aumentado a tal ritmo que os
«trabalhadores deveriam estar a ganhar muito mais»1.
A razão mais óbvia para tal não se verificar é que os empregadores
resistem a aumentos de salários com todos os truques imagináveis e
toda a força possível. Tive oportunidade de questionar um dos meus
empregadores do Maine sobre este assunto. Talvez se recordem da
ocasião em que o Ted, o meu patrão na The Maids, me levou de carro
numa deslocação de cerca de quarenta minutos até uma casa onde eu
era necessária para reforçar uma equipa desfalcada. No meio das
queixas sobre a vida dura que levava, confessou que poderia duplicar
o volume de negócios de um dia para o outro se conseguisse
encontrar um número suficiente de trabalhadoras de confiança. De
forma tão polida quanto possível, perguntei-lhe porque é que
simplesmente não aumentava os salários. Não pareceu compreender
a pergunta. Oferecemos «horários de mães», respondeu-me, o que,
em teoria, significava que o dia de trabalho terminava às três da tarde,
como que a dizer: «Com um benefício destes, como poderia alguém
queixar-se do salário?»
Na verdade, suspeito que o pequeno-almoço grátis que ele nos
fornecia representava a única concessão que estava disposto a fazer
à escassez de mão-de-obra. De igual modo, o Wal-Mart onde trabalhei
oferecia donuts grátis uma vez por semana a todos os empregados
cujo intervalo coincidisse com os períodos em que os donuts ainda
não se tinham esgotado. Como afirmou Louis Uchitelle numa
reportagem publicada no The New York Times, muitos empregadores
estão dispostos a oferecer seja o que for - refeições grátis, subsídio de
transporte, descontos nos produtos que vendem - em vez de
aumentarem os salários. A razão, nas palavras de um empregador, é
que tais extras «podem ser suspensos mais facilmente» do que os
aumentos de salário, quando as mudanças no mercado
1 Entrevista, 18 de Julho de 2000.
193
parecem torná-los desnecessários1. Com o mesmo espírito, a
indústria automóvel prefere oferecer descontos aos clientes a reduzir
os preços; a vantagem do desconto é que parece uma oferta e pode
ser suspenso sem qualquer explicação.
Mas a resistência dos empregadores apenas suscita uma segunda
questão, na realidade de resposta mais difícil. Porque é que esta
resistência não é enfrentada por uma contrapressão mais eficaz dos
próprios trabalhadores? Ao evitarem e rejeitarem aumentos salariais,
os empregadores estão a adoptar um comportamento
economicamente racional; o seu objectivo não é tornar a vida dos
empregados mais confortável e segura, mas sim maximizar os lucros.
Então porque não se comportam os trabalhadores de forma
igualmente racional, exigindo salários mais altos aos empregadores ou
procurando empregos mais bem pagos? O pressuposto da lei da
oferta e da procura, quando aplicado ao trabalho, é que os
trabalhadores se organizam de forma tão eficaz como berlindes num
plano inclinado - movendo-se na direcção dos empregos mais bem
pagos e deixando os empregadores mais recalcitrantes ou forçando-os
a subir a fasquia. Supostamente, o «homem económico», essa grande
abstracção da ciência económica, faz o necessário, dentro de certos
limites, para maximizar a sua vantagem económica.
Inicialmente fiquei perplexa com o que parecia uma certa falta de
iniciativa por parte dos meus colegas. Porque não arranjavam um
emprego mais bem pago, como eu fiz quando mudei do Hearthside
para o Jerry's? Parte da resposta é que os seres humanos sofrem um
pouco mais «fricção» do que os berlindes, e quanto mais pobres são
tanto mais reduzida é a sua mobilidade. As pessoas com salários
baixos que não têm carro frequentemente dependem de um familiar
que esteja disposto a ir levá-las e buscá-las ao emprego todos os dias,
por vezes passando por casa da ama ou pelo infantário. Ao mudar de
local de trabalho pode-se ser confrontado com um problema
topográfico impossível de resolver ou, pelo menos, com um
1 «Companies Try Dipping Deeper into Labor Pool», New York Times,
26 de Março de 2000.
194
condutor relutante que há que persuadir. Alguns dos meus colegas,
tanto em Minneapolis como em Key West, iam de bicicleta para o
emprego, o que lhes limitava o âmbito geográfico. Para os que têm
carro há ainda o problema do preço da gasolina, para não mencionar o
incómodo, bem mais difícil para quem não tem automóvel, das
deslocações para concorrer a empregos, comparecer a entrevistas e
fazer testes de drogas. Mencionei já a relutância geral de trocar o mal
que se conhece por outro que não se conhece, mesmo quando este
último oferece um pacote de salário e regalias mais aliciante. Em cada
novo emprego, tem de se começar de novo, sem pistas e sem amigos.
Existe ainda outra diferença entre os trabalhadores de salário baixo e
o «homem económico». Para que as leis da economia funcionem, os
«jogadores» devem estar bem informados sobre as suas opções. O
caso ideal - e li algures que a tecnologia para esta situação está
iminente - seria um consumidor cujo computador de bolso apresenta a
informação sobre as ementas e preços de todos os restaurantes e
lojas por onde passa. Mesmo sem tal assistência tecnológica, as
pessoas de um estrato económico mais desafogado que procuram
emprego partem do princípio de que examinarão o pacote salarial e de
regalias oferecido pelos seus potenciais empregadores e lerão as
notícias financeiras para saber se este pacote é comparável com o
oferecido em outras regiões ou sectores, e provavelmente negociarão
as condições antes de aceitarem um emprego.
Mas não há computadores de bolso, televisão por cabo ou sites da
Internet para aconselhar o candidato a um emprego de salário baixo.
Este só dispõe dos cartazes afixados nas montras das lojas e dos
anúncios de oferta de emprego, a maior parte dos quais, muito
astuciosamente, não menciona o «vil metal». Por conseguinte, a
informação sobre quem ganha quanto e onde é transmitida por via oral
e, por razões culturais inexplicáveis, esta via é muito lenta e pouco
fiável. Kristine Jacobs, analista do mercado de trabalho das Twin
Cities, aponta aquilo a que chama o «tabu do dinheiro» como um dos
principais factores que impedem os trabalhadores de optimizarem os
seus vencimentos. «Há um código de silêncio à volta de
195
questões relacionadas com os vencimentos dos indivíduos», disse -
me ela. «Na nossa sociedade confessamos todas as outras coisas:
sexo, crime, doença. Mas ninguém quer revelar quanto ganha ou
como obteve o dinheiro. O tabu do dinheiro é uma coisa com que os
empregadores podem sempre contar»1. Suspeito de que este «tabu»
é mais forte entre as pessoas com salários mais baixos, porque, numa
sociedade que está permanentemente a elogiar os seus milionários da
indústria da Internet e atletas multimilionários, sete ou mesmo dez
dólares por hora podem parecer um sinal de inferioridade inata. Por
conseguinte, é possível não sabermos que o Target da nossa rua, por
exemplo, está a pagar melhor do que o Wal-Mart, mesmo que a nossa
cunhada trabalhe lá.
Como é evidente, os empregadores pouco fazem para fomentar a
literacia económica dos seus trabalhadores. Exortam os potenciais
clientes: «Compare os nossos preços!», mas não têm interesse em
que os trabalhadores façam o mesmo em relação aos salários. Já
referi a forma como em alguns casos o processo de contratação
parece estar intencionalmente organizado de forma a evitar qualquer
discussão de salários ou mesmo a sua revelação - o candidato ao
emprego é levado numa roda-viva da entrevista para a sessão de
orientação antes de surgir uma oportunidade para colocar a
embaraçosa questão do dinheiro. Alguns empregadores vão ainda
mais longe: não se limitam a confiar no «tabu do dinheiro» como
entrave à discussão e comparação de vencimentos por parte dos
trabalhadores; dão ordens específicas para que tais assuntos não
sejam abordados. O The New York Times noticiou recentemente vários
processos judiciais movidos por empregados que teriam sido
despedidos por violarem esta regra - por exemplo, uma trabalhadora
que exigiu um aumento de salário depois de os seus colegas
masculinos a informarem de que estava a receber consideravelmente
menos do que eles pelo mesmo trabalho. A National Labor Relations
Act (Lei Nacional das Relações Laborais) de 1935 considera ilegal
punir alguém por revelar o
1 Comunicação pessoal, 24 de Julho de 2000.
196
montante do seu salário, mas é provável que a prática subsista até vir
a ser erradicada por processos judiciais, empresa a empresa1.
Mas se é difícil os trabalhadores obedecerem às leis da economia
estudando as suas opções e mudando para empregos melhores,
porque é que um maior número não toma posição no emprego onde
se encontra - exigindo melhores salários e condições de trabalho, quer
individualmente quer em grupo? Esta é uma questão importante, com
certeza tema de inúmeras dissertações no campo da psicologia
industrial, e aqui apenas posso comentar aquilo que observei. Por
exemplo, o poder cooptativo da administração, ilustrado por
eufemismos como associado e membro da equipa. Na The Maids, o
patrão - que, sendo o único elemento do sexo masculino no nosso
meio, exercia um tipo de poder paternalista e sinistro - tinha
conseguido convencer algumas das minhas colegas de que lutava
contra dificuldades e merecia a sua generosa compreensão. O Wal-
Mart tem uma série de formas mais impessoais e provavelmente mais
eficazes de fazer os trabalhadores sentirem-se como «associados».
Havia o plano de partilha de lucros, com o preço das acções do Wal-
Mart afixado diariamente num local bem visível perto da sala de
descanso. Havia o apregoado patriotismo da companhia, demonstrado
através dos cartazes pendurados na loja a instarem os trabalhadores e
os clientes a darem o seu contributo para a construção de um
monumento aos veteranos da Segunda Guerra Mundial (entre eles
Sam Walton). Havia reuniões de «associados» que funcionavam como
comícios de simpatizantes, a que não faltava a saudação: «Dêem-me
um W!», e outras coisas mais.
A oportunidade de se identificar com uma entidade poderosa e rica - a
empresa ou o patrão - é apenas a cenoura; existe também o cacete. O
que mais me surpreendeu e ofendeu nos locais de trabalho de salário
baixo (e revelo aqui indubitavelmente a verdadeira extensão dos
privilégios da classe
1 «The Biggest Company Secret: Workers Challenge Employer
Practices on Pay Confidentiality», The New York Times, 28 de Julho de
2000.
197
média) foi o facto de sermos obrigados a prescindir de direitos civis
básicos e - o que acaba por vir a dar no mesmo -, do respeito por nós
próprios. Aprendi esta verdade no início da minha carreira de
empregada de mesa, quando me avisaram de que a minha carteira
poderia ser revistada pela gerência a qualquer momento. Eu não tinha
saleiros roubados nem qualquer outra coisa que me comprometesse,
mas, mesmo assim, há algo na ideia de revistarem a carteira a uma
mulher que a faz sentir-se despida. Quando saí do trabalho fiz uns
telefonemas e descobri que esta prática é legal: se a carteira estiver
em propriedade do patrão - e estava, evidentemente -, este tem o
direito de examinar o seu conteúdo.
O teste de drogas é outro insulto rotineiro. Os defensores dos direitos
civis consideram-no uma violação da Quarta Emenda, que consagra o
direito de não ser objecto de «revistas não razoáveis»; a maior parte
dos empregados e candidatos a emprego considera-o simplesmente
embaraçoso. Nos protocolos de alguns destes testes, o empregado
tem de ficar em roupa interior e fazer chichi para um recipiente na
presença de um auxiliar ou técnico. Por sorte não tive de me despir e
fechei a porta da casa de banho, mas, mesmo assim, urinar é um acto
privado e é degradante ter de o realizar às ordens de alguém que se
encontra numa posição de poder. Ainda acrescentaria à lista de
intrusões humilhantes os testes de personalidade, ou pelo menos
grande parte do seu conteúdo habitual. Talvez os tipos hipotéticos de
perguntas possam ser justificados - se o candidato roubaria caso
surgisse uma oportunidade ou denunciaria um colega ladrão, e assim
por diante -, mas não perguntas sobre «as tendências para ter pena
de si próprio», se é um solitário ou acredita que normalmente ninguém
o compreende. E, no mínimo, perturbador facultar a um estranho
coisas como os sentimentos de dúvida e a própria urina, inti-midades
que em geral apenas seriam expostas em situações médicas ou
terapêuticas.
Existem ainda outras formas mais directas de manter os empregados
de salário baixo no seu lugar. As regras que proíbem os «mexericos»
ou até mesmo as «conversas» tornam difícil desabafar com os colegas
ou - audácia das audácias! -
solicitar a participação de outros trabalhadores num grupo para tentar
mudar as coisas, através de uma campanha de organização sindical,
por exemplo. Os que pisam o risco são frequentemente vítimas de
pequenas punições, tais como mudanças unilaterais de horário ou de
tarefas. Ou podem ser despedidos; os trabalhadores de salário baixo
que trabalham sem contratos sindicais, que são a grande maioria,
fazem-no «por vontade», o que significa que trabalham à vontade do
empregador e estão sujeitos a ser despedidos sem qualquer
explicação. Segundo uma estimativa da confederação AFL-CIO, por
ano são despedidos dez mil trabalhadores por participarem em
campanhas de organização sindical, e suspeito que, visto que o
despedimento por motivos de actividade sindical é ilegal, esses
despedimentos habitualmente são justificados por meio de infracções
menores não relacionadas com o seu verdadeiro motivo. Alguns
empregados do Wal-Mart que resistiram à empresa - por se
envolverem em actividades de organização sindical ou processarem a
empresa por falta de pagamento das horas extraordinárias - foram
despedidos por desrespeitarem a regra que proíbe o uso de
palavrões1.
Por conseguinte, se os trabalhadores de salário baixo nem sempre se
comportam de uma forma economicamente racional, ou seja, como
indivíduos autónomos no seio de uma democracia capitalista, é porque
se encontram num espaço que não é livre nem democrático. Quando
se entra no local de trabalho de salário baixo - e em muitos locais de
trabalho de salário médio também -, deixam-se ficar as liberdades civis
à porta, deixa-se para trás a América e tudo aquilo que suposta-mente
representa, e aprende-se a fechar a boca durante o turno. As
consequências desta rendição rotineira ultrapassam a questão dos
salários e da pobreza. Ao fim e ao cabo, não podemos orgulhar-nos de
ser a principal democracia do mundo se um grande número dos
nossos cidadãos passa metade da vida naquilo que, falando claro, não
passa de uma ditadura.
1 Bob Ortega, In Sam We Trust, p. 356; «Former Wal-Mart Workers
File Overtime Suit in Harrison County», Charleston Gazette, 24 de
Janeiro de 1999.
198
199
Qualquer ditadura tem repercussões psicológicas nas suas vítimas.
Quando somos tratados como alguém em quem não se pode confiar -
um potencial preguiçoso, toxicodependen-te, ladrão -, é provável que
comecemos a sentir-nos menos dignos de confiança. Quando a
inferioridade da nossa posição na hierarquia social nos é
constantemente recordada, quer pelos gerentes quer por uma série de
regras impessoais, começamos a aceitar esse estatuto indesejável.
Para tomar o exemplo de uma área completamente diferente, aquela
parte da minha vida relacionada com a biologia, existem provas
abundantes de que os animais - ratos, macacos - que são forçados a
um estatuto subordinado dentro dos seus sistemas sociais adaptam a
química do cérebro à situação, tornando-se «deprimidos» de forma
semelhante aos seres humanos. O seu comportamento é ansioso e
introvertido, o nível de serotonina (o neurotransmis-sor reforçado por
alguns antidepressivos) no cérebro desce. E - o que é especialmente
relevante - evitam lutar até em defesa de si próprios1.
É claro que os seres humanos são bem mais complicados; mesmo em
situações de extrema subordinação, conseguimos reforçar a nossa
auto-estima pensando na família, na religião, nos planos para o futuro.
Porém, tanto como qualquer outro animal social, e mais do que muitos
deles, dependemos, para a nossa auto-imagem, dos seres humanos
que nos rodeiam, a ponto de alterarmos a nossa percepção do mundo
para a adaptarmos à deles2. Calculo que as humilhações impostas a
tantos trabalhadores de salário baixo - os testes de drogas, a vigilância
constante, as repreensões dos gerentes - são factores que intervêm
na manutenção das remunerações inferiores.
1 Consultar, por exemplo, C. A. Shively, K. Laber-Laird e R. F. Anton,
«Behavior and Pnysiology of Social Stress and Depression in Female
Cyno-molgous Monkeys», Biológica! Psychiatry 41:8, 1997, pp. 871-
882, e D. C. Blanchard et ai., «Visible Burrow System as a Model of
Chronic Social Stress: Behavioral and Neuroendocrine Correlates»,
Psychoneuroendocrinology 20:2, 1995, pp. 117-134.
2 Consultar, por exemplo, capítulo 7, «Conformity», in David G. Myers,
Social Psychology, McGraw-Hill, 1987.
200
Quando nos fazem sentir que não temos grande valor, podemos
acabar por acreditar que aquilo que nos pagam corresponde ao que
de facto valemos.
É difícil imaginar outra função do autoritarismo no local de trabalho. Os
gestores talvez acreditem que, sem os seus esforços incansáveis, o
trabalho não tardaria a parar, mas não foi essa a impressão com que
eu fiquei. Embora tenha encontrado algumas pessoas cínicas e muitas
outras que tinham aprendido a gerir a sua energia, nunca deparei com
um único trabalhador realmente preguiçoso nem, já agora,
toxicodependente ou ladrão. Pelo contrário, surpreendeu-me, e por
vezes entristeceu-me, o orgulho que as pessoas tinham em empregos
que as recompensavam tão parcamente, quer em dinheiro quer em
reconhecimento. A verdade é que em geral estas pessoas sentiam que
os gerentes as impediam de fazer o seu trabalho como devia ser. As
empregadas de mesa indignavam-se com a sovinice dos gerentes
para com os clientes; as empregadas de limpeza queixavam-se das
limitações de tempo que por vezes as obrigavam a «aldrabar» o
serviço; os empregados de comércio desejavam que as suas lojas
fossem atraentes, não que estivessem a abarrotar de mercadoria,
como pretendia a gerência. Entre si, os trabalhadores organizavam
sistemas de cooperação e partilha de tarefas; quando ocorria uma
crise, estavam à altura das circunstâncias. Na verdade, muitas vezes
tornava-se difícil perceber qual era a função da gerência, para além de
impor obediência.
Parece existir um círculo vicioso em acção, que nos torna não só uma
economia mas também uma cultura de extrema desigualdade. Os
decisores empresariais, e até mesmo os empresários «de meia
tigela», como o meu patrão na The Maids, ocupam uma posição
económica muito superior à das pessoas mal pagas de cujo trabalho
dependem. Por razões que têm mais a ver com preconceitos de classe
- e frequentemente de raça - do que com experiências reais, têm
tendência a recear e a desconfiar da classe social a que pertencem as
pessoas que recrutam como seus trabalhadores. Daí a percepção da
necessidade de uma gestão repressiva e de medidas intrusivas tais
como testes de drogas e de personalidade. Mas estas coisas custam
dinheiro - vinte mil dólares, ou mais, por ano para
201
um gerente, cem dólares por cada teste de drogas, e assim por diante
-, e o alto custo da repressão resulta numa pressão cada vez maior
para manter baixos os salários. A sociedade em geral parece estar
dominada por um ciclo semelhante: cortes nos serviços públicos para
os pobres, a que por vezes se alude como o «fardo social», em
simultâneo com investimentos cada vez mais elevados em prisões e
guardas. E também na sociedade em geral o custo da repressão se
transforma em mais um factor contra a expansão ou a reactivação de
serviços necessários. É um ciclo trágico, que nos condena a uma
desigualdade cada vez mais profunda, e a longo prazo quase ninguém
beneficia dele, a não ser os próprios agentes da repressão.
No entanto, seja o que for que mantém os salários baixos - e não
duvido de que os meus comentários apenas afloraram a questão -, a
consequência é que um grande número de pessoas ganha muito
menos do que precisa para viver. Quanto dinheiro é necessário? O
Economic Policy Institute passou recentemente em revista dezenas de
estudos do que constitui um «salário de subsistência» e propôs a
quantia média de trinta mil dólares por ano para uma família composta
por um adulto e duas crianças, o que se traduz num salário de catorze
dólares por hora. Não é o mínimo dos mínimos com que uma família
destas poderia sobreviver; o orçamento contempla um seguro de
saúde, telefone e as mensalidades de um infantário, por exemplo, o
que não está ao alcance de milhões de pessoas. Mas não inclui
refeições em restaurantes, aluguer de vídeos, acesso à Internet, vinho
e bebidas brancas, cigarros e bilhetes de lotaria ou sequer uma
quantidade razoável de carne. O que é chocante é que a maior parte
dos trabalhadores americanos, cerca de 60%, ganham menos de
catorze dólares por hora. Muitos deles subsistem vivendo com outra
pessoa empregada, o cônjuge ou um filho crescido. Alguns recorrem à
assistência estatal sob a forma de subsídios de alimentação e de
habitação, crédito do imposto sobre o rendimento1 ou - para os
beneficiários da assistência social que
1 Eamed income tax credit. crédito do imposto sobre os rendimentos
para trabalhadores de baixos salários que reunam determinadas
condições; permite reduzir os montantes do imposto. (N. da T.)
202
arranjam emprego em estados relativamente generosos - subsídios de
infantário, mas certas pessoas - as mães solteiras, por exemplo -
apenas podem contar com o seu salário, qualquer que seja o número
de bocas a sustentar.
Os empregadores olham para a quantia de trinta mil dólares, mais do
dobro do que pagam a trabalhadores de nível básico, e apenas vêem
a perspectiva da falência. De facto, provavelmente é impossível ao
sector privado proporcionar um padrão de vida adequado a toda a
gente apenas através dos salários, ou até de salários e outras
regalias: muitas coisas essenciais, como infantários de confiança, são
demasiado dispendiosas, mesmo para famílias da classe média. A
maior parte das nações civilizadas compensa a inadequação dos
salários providenciando serviços públicos relativamente generosos,
como seguro de saúde, infantários grátis ou subsidiados, habitação de
renda económica e transportes públicos eficientes, mas os Estados
Unidos, apesar de toda a sua riqueza, deixam os seus cidadãos
desenvencilharem-se sozinhos - por exemplo, enfrentando o problema
das rendas de casa com preços de mercado só com o que ganham.
Para milhões de americanos, o vencimento horário de dez dólares - ou
mesmo oito ou seis - é tudo o que têm.
Entre os que não são pobres é comum considerar a pobreza como
uma condição sustentável - talvez austera, mas eles lá sobrevivem,
não é verdade? Eles estão «sempre connosco». O que é mais difícil
para quem não é pobre é ver a pobreza como um problema agudo: o
almoço que consiste num pacote de Doritos ou num folhado de
salsicha e resulta num estado de fraqueza antes do final do turno; a
«casa» que é também um carro ou uma carrinha; a doença ou
ferimento com que se é obrigado a trabalhar, porque não se tem
subsídio de doença nem seguro de saúde e a perda de um dia de
trabalho significaria não ter dinheiro para comer no dia seguinte. Estas
experiências não fazem parte de um estilo de vida sustentável, nem
sequer de um estilo de vida de privação crónica e pequenos
sofrimentos constantes; são, por quaisquer padrões de subsistência,
situações de emergência. E é assim que devemos encarar a pobreza
de tantos milhões de americanos com salários baixos - como um
estado de emergência.
203
I
No Verão de 2000 regressei - permanentemente, tenho boas razões
para crer - ao meu lugar do costume no espectro socioeconómico. Vou
a restaurantes, muitas vezes bem mais caros do que aqueles em que
trabalhei, e sento-me a uma mesa. Durmo em quartos de hotel que
outra pessoa limpou e faço compras em lojas que outros arrumarão
depois de eu sair. Ir dos 20% do escalão mais baixo para os 20% do
escalão mais alto é entrar num mundo mágico, onde as necessidades
são satisfeitas e os problemas resolvidos quase sem esforço
intermédio. Quando queremos ir rapidamente a um sítio, chamamos
um táxi. Quando os nossos pais idosos ficam difíceis de aturar ou
incontinentes, mandamo-los para instituições onde o problema das
fraldas sujas e da demência está a cargo de outras pessoas. Se
pertencemos à maioria da classe média superior que tem empregada
ou um serviço de limpeza doméstica, regressamos do trabalho e
encontramos a ordem milagrosamente restaurada nas nossas casas -
as sanitas sem excrementos e a brilharem, as meias que deixámos
espalhadas pelo chão repostas nos seus lugares. Aqui o suor é uma
metáfora de trabalho duro, mas raramente a sua consequência.
Centenas de pequenas coisas aparecem feitas, todos os dias, sem
que ninguém pareça tê-las feito.
Os 20% do escalão superior exercem outras formas de poder no
mundo com consequências bem mais importantes. A este estrato, que
abrange aquilo que num livro anterior chamei a «classe profissional
gestora», pertencem os decisores, os formadores de opinião e
criadores de cultura - os nossos catedráticos, advogados, executivos,
artistas, políticos, juizes, escritores, produtores e editores1. Quando
falam são escutados. Quando se queixam alguém se apressa a
corrigir o problema e a pedir desculpa. No caso de se queixarem
repetidamente, alguém muito abaixo deles em riqueza e influência
poderá ser castigado ou até mesmo despedido. Também o poder
político se concentra nestes 20% do escalão superior, já que,
comparados
1 Fear of Falling: The Inner Life of the Middle Class, Pantheon, 1989.
204
com os pobres - ou até com a classe média -, os seus membros têm
muito mais probabilidades de reconhecer as distinções subtis entre
candidatos que fazem valer a pena contribuir, participar e votar. De
todas estas formas, os ricos exercem um poder extraordinário sobre a
vida dos menos ricos, e especialmente sobre a vida dos pobres,
determinando se haverá serviços públicos e quais, bem como os
salários mínimos e as leis que regulamentam as relações laborais.
Por conseguinte, ao regressar à classe média-alta após uma estada
entre os pobres, por mais artificial e temporária que tenha sido, é
alarmante constatar que a toca do coelho se fechou tão súbita e
completamente atrás de mim. Estiveste onde, a fazer o quê? Uma
estranha propriedade óptica da nossa sociedade altamente polarizada
e desigual torna os pobres quase invisíveis aos seus superiores
económicos. Os pobres vêem com frequência os ricos - na televisão,
por exemplo, ou nas capas das revistas -, mas os ricos raramente
vêem os pobres ou, se os vislumbram num espaço público qualquer,
não sabem o que estão a ver, já que - graças aos hipermercados e ao
Wal-Mart - os pobres normalmente conseguem disfarçar-se de
membros das classes mais desafogadas. Há quarenta anos, o tópico
jornalístico do momento era a «descoberta dos pobres» nas «bolsas
de pobreza» das zonas degradadas das cidades e dos Apalaches.
Hoje em dia, é mais provável encontrarem-se referências ao seu
«desaparecimento», quer como suposta realidade demográfica quer
por falta de imaginação da classe média.
Num artigo sobre o «desaparecimento dos pobres» publicado no ano
de 2000, o jornalista James Fallows explica que, do ponto de vista dos
novos-ricos da Internet, é «difícil compreender pessoas para quem um
milhão de dólares seria uma fortuna... Já para não falar daqueles para
quem duzentos e quarenta e seis dólares são o vencimento de uma
semana»1. Entre as razões que este jornalista e outras pessoas citam
para a cegueira dos ricos está o facto de ser cada vez menos provável
que partilhem espaços e serviços com os pobres. Com a
1 «The Invisible Poor», The New York Times Magazine, 19 de Março
de 2000.
205
deterioração das escolas públicas e de outros serviços públicos, os
que têm posses mandam os filhos para escolas particulares e passam
as horas de lazer em espaços privados - ginásios, por exemplo, em
vez do parque público. Não andam de autocarro nem de metro.
Mudam-se de zonas de população mista para subúrbios distantes,
comunidades fechadas ou blocos de apartamentos com porteiro e
segurança; fazem compras em lojas que, de acordo com a
«segmentação do mercado» vigente, se destinam exclusivamente a
pessoas com posses. Até mesmo os jovens abastados passam cada
vez menos as férias a aprender como vive a «outra metade»,
trabalhando como salva-vidas nas praias ou empregados de mesa ou
de limpeza em hotéis de zonas turísticas. Segundo o The New York
Times, preferem agora actividades relevantes para a carreira futura,
como cursos de Verão ou estágios num contexto profissional
apropriado, em vez do «trabalho físico mal pago e monótono que os
empregos de férias costumavam ser»1.
O momento político específico favorece igualmente aquilo que parece
quase uma «conspiração de silêncio» sobre a pobreza e os pobres.
Os Democratas não estão ansiosos por encontrar falhas no período de
«prosperidade sem precedentes» pelo qual se consideram
responsáveis; os Republicanos perderam o interesse pelos pobres,
agora que a «assistência social como a conhecemos» chegou ao fim.
A própria reforma do sistema de assistência social é um dos factores
impeditivos de uma investigação pormenorizada das condições dos
pobres. Ambos os partidos a apoiaram, e reconhecer que o trabalho
de salário baixo não tira as pessoas da pobreza seria admitir que, em
termos humanos, a reforma talvez tenha sido um erro catastrófico. De
facto, pouco se sabe sobre o destino dos ex-beneficiários da
assistência social, porque a reforma de 1996 impensadamente, não
previu quaisquer medidas para monitorizar a sua condição económica
pós-assistência social. Nos relatos dos meios de comunicação, a
situação é persistentemente apresentada como sendo positiva,
salientando as ocasionais históricas
1 «Summer Work Is Out of Favor With the Young», The New York
Times, 18 de Junho de 2000.
206
de sucesso e minimizando o reconhecido aumento da fome1, e por
vezes parece existir um engano quase intencional. Em Junho de 2000,
a imprensa apressou-se a saudar um estudo que supostamente
demonstrava que o programa de passagem da assistência social para
uma situação de emprego no Minnesota tinha reduzido de forma
drástica a pobreza e era, nas palavras da revista Time, um «êxito»2. O
que se esquecia nestas notícias era o facto de o programa em questão
ser um projecto-piloto que facultava subsídios de infantário e outros
muito mais generosos do que o programa efectivo de reforma do
sistema de assistência social do Minnesota. Talvez seja possível
perdoar este erro - o projecto-piloto, que terminou em 1997, tinha o
mesmo nome, Minnesota Family Investment Program (Programa de
Investimento na Família do Minnesota), que o programa muito mais
alargado de reforma do sistema de assistência social do Minnesota3.
Ter-se-ia de ler muito atentamente um grande número de jornais de
ponta a ponta para detectar os sinais da desgraça. Descobrir-se-ia,
por exemplo, que em 1999 as sopas dos pobres do Massachusetts
registaram um aumento de 72% no recurso aos seus serviços
relativamente ao ano anterior, que os bancos alimentares do Texas,
assim como os de Atlanta, andavam a «pedinchar» alimentos, apesar
de se terem registado níveis de donativos iguais ou superiores aos de
19984. Poderia ficar-se a saber que em San Diego, a partir de Janeiro
de 2000, a Igreja Católica deixou de poder aceitar famílias sem

1 O National Journalinforma que a «boa notícia» é que, desde 1996,


quase seis milhões de pessoas foram retiradas do rol de beneficiários
da assistência social, enquanto «o resto da história» inclui o problema
de «estas pessoas por vezes não terem o suficiente para comer»
(«Welfare Reform, Act 2», 24 de Junho de 2000, pp. 1978-1993).
2 «Minnesota Welfare Reform Proves a Winner», Time, 12 de Junho
de 2000.
3 Center for Law and Social Policy, «Update», Washington, D. C,
Junho de 2000.
4 «Study: More Go Hungry Since Welfare Reform», Boston Herald, 21
de Janeiro de 2000; «Charity Can't Feed Ali while Welfare Reforms
Implemen-ted», Houston Chronicle, 10 de Janeiro de 2000; «Hunger
Grows as Food Banks Try to Keep Pace», Atlanta Journal and
Constítution, 26 de Novembro de 1999.
207
abrigo no seu albergue, que é o maior da cidade, porque estava já a
funcionar com o dobro da capacidade normal1. Encontrar-se-ia a
notícia de um estudo que revelava que a percentagem de famílias do
Wisconsin dependentes de assistência alimentar que se encontrava
numa situação de «pobreza extrema» - definida como menos de 50%
do limiar federal de pobreza - triplicou na última década, atingindo
mais de 30%2. Talvez se descobrisse que, a nível nacional, os bancos
alimentares da América estão a experimentar «uma enxurrada de
necessidades que não podem satisfazer» e que, segundo uma
sondagem realizada pela U. S. Conference of Mayors, 67% dos
adultos que solicitam assistência alimentar de emergência são
pessoas empregadas3.
Uma das razões por que ninguém se dá ao trabalho de compilar todas
estas histórias e anunciar um estado de emergência generalizado
talvez seja o facto de os americanos da classe média, com cursos
superiores e que lêem jornais, estarem habituados a considerar a
pobreza como uma consequência do desemprego. No auge do
downsizing, durante a presidência de Ronald Reagan, muitas vezes
isso era verdade, como ainda o é para muitos residentes das zonas
degradadas do centro das cidades que não têm acesso aos empregos
de nível básico nas periferias urbanas. Quando o desemprego causa
pobreza, sabemos como formular o problema - «a economia não está
a crescer a um ritmo suficientemente rápido» - e qual a solução liberal
tradicional: o «pleno emprego». Mas quando temos pleno emprego, ou
quase, quando há disponibilidade de empregos para quem possa
chegar a eles, o problema passa a ter raízes mais profundas e começa
a afectar a rede de expectativas que constituem o «contrato social».
Segundo uma sondagem recente realizada por uma empresa de
estudo
1 «Rise in Homeless Families Strains San Diego Aid», Los Angeles
Times, 24 de Janeiro de 2000.
2 «Hunger Problems Said to Be Getting Worse», Milwaukee Journal
Senti-nel, 15 de Dezembro de 1999.
3 Deborah Left, presidente e directora da organização de alívio da
fome Americas Second Harvest, citada no National Journal; «Hunger
Persists in U. S., despite the Good Times», Detroit News, 15 de Junho
de 2000.
208
do emprego de Boston, Jobs for the Future, 94% dos americanos
concordam que «as pessoas que trabalham a tempo inteiro deveriam
poder ganhar o suficiente para manterem as suas famílias ao abrigo
da pobreza»1. Cresci a ouvir repetir até à exaustão que o «trabalho
duro» era a chave do sucesso: «Trabalha no duro e progredirás», ou:
«Foi o trabalho duro que nos fez chegar aonde chegámos.» Mas
ninguém disse que se podia trabalhar no duro - mais duramente até do
que alguma vez se julgou possível - e, mesmo assim, continuar
afundado na pobreza e na dívida.
Quando as mães solteiras pobres tinham a opção de não entrarem no
mercado de trabalho e continuarem a subsistir à custa da assistência
social, as classes média e média-alta geralmente encaravam-nas com
uma certa impaciência, se não mesmo desprezo. Os pobres
dependentes da assistência social eram criticados pela sua preguiça,
a sua persistência em se reproduzirem em circunstâncias
desfavoráveis, os seus presumíveis vícios e, acima de tudo, a sua
«dependência». Aqui estavam eles, contentando-se em viver de
«esmolas do Estado», em vez de procurarem a «auto-suficiência»,
como todas as outras pessoas, através de um emprego. Precisavam
de se deixar de coisas, aprender a dar corda a um despertador, ir para
a rua e meter mãos ao trabalho. Mas agora que o Estado suspendeu
em grande medida as suas «esmolas», agora que a esmagadora
maioria dos pobres labuta no Wal-Mart ou no Wendy's - bem, agora o
que havemos de pensar deles? A reprovação e a condescendência já
não têm cabimento; qual é a forma de os encarar que faz sentido?
«Com um sentimento de culpa», estareis talvez a pensar com
desânimo. Não é o que deveríamos sentir? Mas a culpa não chega, de
forma alguma; o sentimento apropriado é a vergonha - vergonha da
nossa própria dependência, neste caso do trabalho mal pago dos
outros. Quando alguém trabalha por menos dinheiro do que necessita
para viver - quando, por exemplo, passa fome para que nós possamos
comer de
1 «A National Survey of American Attitudes toward Low-Wage Workers
and Welfare Reform», Jobs for the Future, Boston, 24 de Maio de
2000.
209
forma mais económica e conveniente -, então essa pessoa fez um
enorme sacrifício por nós, concedeu-nos a dádiva de uma parte das
suas capacidades, da sua saúde e da sua vida. Os «pobres que
trabalham», como são referidos de forma apreciativa, são de facto os
principais filantropos da nossa sociedade. Negligenciam os seus
próprios filhos para cuidarem dos filhos dos outros; vivem em casas
sem condições para que as casas dos outros sejam reluzentes e
perfeitas; aguentam privações para que a inflação continue baixa e os
preços das acções subam. Pertencer ao grupo dos pobres que
trabalham é ser um doador anónimo, um benfeitor não identificado de
todas as outras pessoas. Como dizia a Gail, uma das minhas colegas
no restaurante, «a gente dá e torna a dar».
Um dia, evidentemente - e não vou aqui fazer previsões sobre a data
exacta -, cansar-se-ão de obter tão pouco em troca e exigirão que lhes
paguem o que merecem. Quando esse dia chegar haverá muita raiva,
greves e perturbações. Mas o céu não cairá, e no fim de contas todos
acabaremos por beneficiar.
AGRADECIMENTOS
Com agradecimentos por todo o auxílio a Michael Ber-man, Sara
Bershtel, Chauna Brocht, Kristine Dahl, Frank Herd e Sarah Bourassa,
Kristine Jacobs, Clara Jeffery, Tom Engelhardt, Deb Konechne, Marc
Linder, John Newton, Francês Fox Piven, Peter Rachleff, Bill Sokal,
David Wagner, Jennifer Wheeler e Patti.

ÍNDICE

Pág.
Preparativos ............................................................ 5
1. Servir na Florida .................................................. 14
2. Limpar no Maine .................................................. 51
3. Vender no Minnesota ........................................ … 115
Avaliação .................................................................. 183

Digitalizado e Corrigido por

Carla Maria Ferreira vdos Mártires


E

José Alberto Canelas

Lisboa, 23 de Janeiro de 2005

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