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BARBARA EHRENREICH
SALÁRIO DE POBREZA
COMO (NÃO) SOBREVIVER NA AMÉRICA
ISBN 972-42-3466-5
Copyright © 2001 by Barbara Ehrenreich
Impresso e encadernado para Círculo de Leitores
por Printer Portuguesa
Casais de Mem Martins, Rio de Mouro em Julho de 2005
PREPARATIVOS
Sou, como é óbvio, muito diferente das pessoas que em geral fazem
os trabalhos menos aliciantes na América, e essa diferença foi
simultaneamente vantajosa e limitativa. A diferença mais evidente era
que eu iria apenas visitar um mundo onde outros vivem a tempo
inteiro, muitas vezes durante a maior parte da vida. Com todos os
benefícios que acumulara ao chegar à meia-idade - conta bancária,
plano de poupança-reforma, seguro de saúde, casa com várias
assoalhadas - reconfortantemente à minha espera, não teria qualquer
oportunidade de «passar pela experiência da pobreza» ou de
descobrir qual a «sensação real» de ser de forma duradoura uma
trabalhadora de salário baixo. O meu alvo era muito mais directo e
objectivo - verificar se conseguiria fazer corresponder rendimento e
despesas, como as pessoas verdadeiramente pobres tentam fazer
todos os dias. Além disso, ao longo da minha vida já tive contacto
suficiente com a pobreza para saber que não é agradável, pelo
contrário, é assustadora.
Ao contrário de muitos trabalhadores de salário baixo, tenho a dupla
vantagem de ser branca e de o inglês ser a minha língua materna.
Não julgo que isso tenha influído nas minhas hipóteses de arranjar
emprego, dada a disponibilidade dos empregadores para darem
trabalho a praticamente qualquer pessoa no mercado com escassez
de mão-de-obra de 1998-2000, mas tenho quase a certeza que
condicionou os tipos de emprego que me foram oferecidos. Em Key
West, procurei a princípio um lugar de empregada de limpeza num
hotel, o que, supunha eu, seria relativamente fácil, mas fui
encaminhada para servir à mesa, sem dúvida devido à minha etnia e
domínio do inglês. Este emprego não me proporcionou grandes
vantagens financeiras em relação ao trabalho de limpeza, pelo menos
na
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estação baixa, com poucas gorjetas, a época em que trabalhei em Key
West, mas esta experiência contribuiu para determinar a minha
escolha de outras localidades onde viver e trabalhar. Excluí locais
como Nova Iorque e Los Angeles, por exemplo, onde a classe
trabalhadora é maioritariamente constituída por pessoas de cor e onde
uma mulher branca e falando inglês sem sotaque estrangeiro à
procura de trabalhos mal pagos poderia parecer desesperada ou
esquisita.
Tinha outras vantagens - o carro, por exemplo - que me distanciavam
de muitos, embora não todos, dos meus colegas. O ideal, pelo menos
se a intenção fosse obter a réplica da experiência de uma mulher que
entra no mercado de trabalho depois de um período de dependência
da Segurança Social, seria ter um par de crianças a reboque, mas os
meus filhos já são crescidos e ninguém se dispôs a emprestar-me os
seus para umas férias de um mês na penúria. Para além do carro e da
ausência de encargos familiares, tinha ainda a vantagem de o meu
estado de saúde ser, provavelmente, muito melhor do que o da maior
parte das pessoas que de forma prolongada fazem parte da mão-de-
obra com salários baixos. Tudo estava a meu favor.
Se existiam outras diferenças mais subtis, ninguém chamou a atenção
para elas. O que é certo é que não me esforcei por desempenhar um
papel nem me encaixar num estereótipo imaginativo da mulher
trabalhadora com salário baixo. Usei as minhas roupas, sempre que o
vestuário normal era permitido, e o penteado e maquilhagem do
costume. Em conversas com os colegas, falava sobre os meus filhos,
estado civil e família reais; não havia qualquer razão para inventar
uma outra vida. No entanto, modifiquei o meu vocabulário num
aspecto: pelo menos quando era ainda nova no emprego e receava
parecer atrevida ou desrespeitosa, autocensurava os palavrões que,
em grande medida devido à influência dos camionistas, fazem parte
do meu discurso normal. Tirando isso, dizia piadas e gozava, fazia
conjecturas, dava opiniões e até um grande número de conselhos em
questões de saúde, exactamente como faria em quaisquer outras
circunstâncias.
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Desde que completei este projecto, têm-me perguntado muitas vezes
se as pessoas com quem trabalhei não conseguiam ver a diferença -
pressupondo que uma pessoa com educação é bastante diferente,
para melhor, do trabalhador típico. Infelizmente, nenhum supervisor ou
colega alguma vez me disse que eu era diferente de uma forma
invejável - mais inteligente, por exemplo, ou obviamente com mais
estudos do que a maior parte. Mas isso nunca aconteceu, julgo eu,
porque a única coisa que me tornava «especial» era a minha
inexperiência. Dizendo isto de forma inversa, os trabalhadores com
salários baixos não são mais homogéneos em termos de
personalidade ou capacidades do que as pessoas que se dedicam à
escrita, e não são menos capazes de possuir sentido de humor e
inteligência. Os indivíduos das classes com estudos que pensam de
outra forma deveriam alargar o seu círculo de amigos.
Obviamente, existia sempre a diferença que só eu conhecia - não
estava a trabalhar pelo dinheiro, estava a fazer investigação para
escrever um artigo e mais tarde um livro. Quando voltava para casa
todos os dias, não era para algo que se assemelhasse a uma vida
doméstica normal, mas sim para um computador portátil ao qual
passava uma ou duas horas a registar os acontecimentos diários -
com grande diligência, devo acrescentar, visto que raramente era
possível tomar apontamentos durante o dia. Este ludíbrio, simbolizado
pelo computador portátil, que me proporcionava uma ligação
simultaneamente com o passado e o futuro, incomodava-me, pelo
menos no caso de pessoas com as quais simpatizava e que queria
conhecer melhor. (Gostaria de referir aqui que todos os nomes e
pormenores identificadores foram alterados para proteger a
privacidade das pessoas com quem trabalhei e que conheci noutras
situações no decurso da minha investigação. Na maior parte dos
casos, alterei também os nomes dos locais onde trabalhei e a sua
localização exacta, como mais uma forma de garantir o anonimato
dessas pessoas.)
Em cada situação, perto do final da minha permanência e após um
período de reflexão e ansiedade, revelei a verdadeira identidade a
alguns colegas. O resultado foi sempre um estonteante
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anticlímax, sendo a minha reacção preferida: «Isso quer dizer que não
voltas para o turno da noite na próxima semana?» Reflecti bastante
sobre as razões por que não se registou um maior número de
reacções de surpresa ou até mesmo de indignação, e é provável que
parte da resposta resida na ideia que as pessoas fazem de
«escrever». Há vários anos, quando me casei com o meu segundo
marido, ele anunciou com orgulho a um tio, que na altura trabalhava a
arrumar automóveis num parque de estacionamento, que eu era
escritora. A resposta do tio foi: «E quem não é?» Todas as pessoas
alfabetizadas «escrevem», e alguns dos trabalhadores de salários
baixos que conheço ou fiquei a conhecer através deste projecto
escrevem diários e poemas - até mesmo, num dos casos, um longo
romance de ficção científica.
Contudo, como me apercebi numa fase já bastante adiantada do
projecto, talvez eu tenha exagerado perante mim própria a extensão
do «ludíbrio». Não há forma, por exemplo, de fingir ser empregada de
mesa: a comida ou chega à mesa ou não. As pessoas conheciam-me
como empregada de mesa ou de limpeza, assistente numa casa de
repouso ou empregada de balcão, não porque eu agisse como tal,
mas porque o era, pelo menos durante o tempo que passei com elas.
Em todos os empregos, em todos os locais onde vivi, o trabalho
absorvia completamente a minha energia e a maior parte do meu
intelecto. Eu não andava a brincar. Embora suspeitasse desde o início
de que a aritmética do salário e da renda estavam contra mim, fiz um
enorme esforço para ser bem sucedida.
Desde a altura em que este livro foi publicado nos Estados Unidos, a
economia americana entrou num declínio constante. Hoje em dia
existem menos empregos do tipo que encontrei no comércio e nos
serviços entre 1998 e 2000, e poucas perspectivas de um aumento de
salários, embora as rendas de casa não tenham ainda começado a
baixar. Ao ler este livro, tenha portanto em mente que as situações
apresentadas são as melhores possíveis: uma pessoa só, sem
encargos familiares, tentando sobreviver no mercado de trabalho de
salários baixos numa época de extraordinária prosperidade.
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SERVIR NA FLORIDA
Em grande medida por uma questão de preguiça, decidi iniciar a
minha vida como trabalhadora de salário baixo na cidadezinha mais
próxima do local onde vivo, em Key West, na Florida, que, com uma
população de cerca de vinte e cinco mil habitantes, está a caminho de
adquirir o estatuto de verdadeira cidade. Não tardo a aperceber-me de
que a desvantagem da familiaridade é que não é fácil passar de
consumidora, gastando dinheiro sem pensar em troca de artigos de
mercearia, vídeos e gasolina, para trabalhadora no mesmo local.
Aterroriza-me, sobretudo no início, a possibilidade de ser reconhecida
por algum lojista simpático ou antigo vizinho e ter de dar uma
explicação gaguejante do projecto. Felizmente, os meus receios
revelam-se infundados: durante um mês de pobreza e trabalho árduo,
ninguém reconhece o meu rosto ou o meu nome, que passa
despercebido e quase não é pronunciado. Neste universo paralelo
onde o meu pai nunca deixou de ser mineiro e eu nunca estudei na
universidade, sou «querida», «jóia», «loirinha» e, mais
frequentemente, «rapariga».
O meu primeiro objectivo é encontrar um lugar onde viver. Calculo que,
se conseguir ganhar sete dólares por hora - o que, a ajuizar pelos
anúncios de ofertas de emprego, parece possível -, poderei gastar
quinhentos dólares na renda ou talvez, fazendo economias drásticas,
seiscentos, e ficar ainda com quatrocentos ou quinhentos para
alimentação e gasolina. Na zona de Key West, este orçamento reduz-
me a optar por sítios manhosos ou caravanas - como a casa que vou
ver,
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apenas a quinze minutos de carro da cidade. Não tem ar
condicionado, mosquiteiro na porta, ventoinha nem televisor, e como
diversão existe somente o desafio de evitar o doberman do senhorio.
Contudo, o grande problema desta casa é a renda, seiscentos e
setenta e cinco dólares por mês, o que está muito para além das
minhas posses. É certo que Key West é cara. Mas pode dizer-se o
mesmo de Nova Iorque, de Bay Área, de Jackson, Wyoming, de
Telluride, de Boston ou de qualquer outro lugar onde os turistas e os
ricos competem por um espaço para partilhar com as pessoas que
lhes limpam as casas de banho e lhes fritam os croquetes de batata.
Mesmo assim, é com choque que me capacito de que, para mim, a
«ralé dos parques de caravanas» se tornou uma categoria
demográfica à qual aspirar.
Decido, pois, desistir do adequado em favor do acessível à minha
bolsa e optar por um estúdio a cinquenta quilómetros de distância por
estrada das oportunidades de emprego de Key West, o que se traduz
por quarenta e cinco minutos de viagem, se não houver obras na
estrada e se não for apanhada por turistas canadianos encandeados
pelo sol. Detesto a viagem, ao longo de uma estrada com bermas
cravejadas de cruzes brancas a comemorar os choques frontais mais
graves, mas a casinha é amorosa - uma espécie de cabana, nas
traseiras pantanosas da caravana em que o meu senhorio, um
reparador de televisores afável, vive com a namorada, que trabalha
num bar. Antropologicamente falando, o parque de caravanas seria
preferível, mas aqui tenho um soalho branco e brilhante e um colchão
firme, e os poucos insectos facilmente são vencidos.
A fase seguinte consiste em passar a pente fino os anúncios de
emprego e encontrar trabalho. Excluo vários deles por uma razão ou
por outra: recepcionista de hotel, por exemplo, que, para minha
surpresa, é considerado trabalho indiferenciado e pago somente a seis
ou sete dólares por hora, é eliminado da lista porque implica estar de
pé, no mesmo sítio, oito horas por dia. Servir à mesa é algo que
gostaria de evitar, porque me recordo que me deixava extenuada
quando tinha dezoito anos, e desde então já se passaram umas
décadas de
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varizes e dores nas costas. As vendas por telefone, um dos primeiros
refúgios dos subitamente indigentes, podem ser excluídas com base
na personalidade necessária. Restam certos empregos em
supermercados, como empregada no balcão de charcutaria, ou
empregada de limpeza em hotéis ou pensões, um trabalho pago a
cerca de sete dólares por hora e, imagino, não muito diferente do que
tenho feito a tempo parcial, em minha casa, toda a vida.
Assim, visto o que suponho ser uma roupa apropriada, calções
engomados e T-shirt de decote redondo, e parto para uma ronda aos
hotéis e supermercados locais. No Best Western, no Econo Lodge e
no Hojo's mandam-me preencher impressos de candidatura, que, para
meu alívio, parecem ter como finalidade principal saber se sou
residente legal nos Estados Unidos e se cometi algum crime. A
paragem seguinte é o supermercado Winn-Dixie, que tem um
processo de selecção de candidatos muito demorado, com uma
«entrevista» de vinte minutos conduzida por computador, visto que,
aparentemente, nenhum ser humano nas instalações é considerado
capaz de representar o ponto de vista da empresa. Sou conduzida a
uma sala grande, decorada com cartazes ilustrativos da forma como
parecer «profissional» (ajuda ser de raça branca e, se mulher, ter um
penteado com permanente) e alertando para as promessas enganosas
com que os representantes sindicais poderiam tentar aliciar-me. A
entrevista é um questionário de escolha múltipla: tenho algum
problema, como, por exemplo, arranjar uma pessoa a quem deixar os
filhos, o que poderia dificultar chegar a horas ao trabalho? Acho que a
segurança no trabalho é da responsabilidade da gerência? Depois,
aparecendo de imprevisto, astuciosamente: qual o valor, em dólares,
dos produtos roubados que comprei no último ano? Denunciaria um
colega se o apanhasse a roubar? E por fim: «E uma pessoa
honesta?»
Aparentemente passo o teste com distinção, porque me dizem que
agora só tenho que me apresentar num consultório médico no dia
seguinte para fazer um exame à urina. Parece ser uma regra geral:
quem quer empilhar pacotes de Cheerios ou aspirar quartos de hotel
na América quimicamente fascista
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tem de se dispor a fazer chichi em frente a uma trabalhadora da saúde
(que, sem dúvida, teve ela própria de fazer o mesmo)- ( Nota 1 ) . O
salário que o Winn-Dixie oferece - seis dólares e uns cêntimos para
começar - não é compensação bastante, decido, para este vexame.
Almoço no Wendy's, onde quatro dólares e noventa e nove cêntimos
dão direito a comer quanto se quiser na parte mexicana do superbar,
um empanturramento reconfortante de feijões fritos e molho de queijo.
Ao notar que estou a ler atentamente os anúncios, uma empregada
adolescente oferece-me, simpática, um impresso de candidatura, que
preencho, embora também aqui o pagamento seja de apenas seis
dólares e pouco por hora. Depois, lá vou eu fazer a ronda das
estalagens e pensões que não pertencem a cadeias na Cidade Velha
de Key West, a zona de restaurantes que os turistas visitam e se situa
a uns quilómetros da ponta funcional da ilha, onde se encontram os
hotéis mais baratos. Em The Pairas, chamemos-lhe assim, um gerente
cheio de energia leva-me a ver os quartos e a conhecer as
empregadas da limpeza, que, noto com satisfação, são mais ou
menos do meu tipo - ex-hippies de meia-idade, de calções e com o
cabelo comprido em tranças. Contudo, na maior parte dos casos
ninguém fala comigo nem sequer olha para mim, a não ser para me
entregar um impresso de candidatura. Na minha última paragem, uma
pensão palacial, espero vinte minutos para falar com o «Max», que
acaba por dizer que neste momento não há empregos mas que em
breve haverá uma vaga, visto que «ninguém fica mais do que umas
semanas».
Assim se passam três dias e, para meu desânimo, nenhum dos cerca
de vinte locais em que concorri a um emprego me chama para uma
entrevista. Eu tinha tido a veleidade de
O Billy, que, a ganhar dez dólares à hora, é o mais rico de todos, vive
numa caravana de que é proprietário, pagando somente quatrocentos
dólares por mês de estacionamento.
( Nota 1 ) - Até Abril de 1998, não existia na lei federal qualquer direito
a pausas para ir à casa de banho. Escrevem Marc Linder e Ingrid
Nygaard, autores de Void Where Prohibited: Rest Breaks and the Right
to Urinate on Company Time, Cornell University Press, 1997: «O
direito a descansar e ir à casa de banho durante as horas de trabalho
não ocupa um lugar destacado na lista de causas sociais ou políticas
apoiadas por trabalhadores de profissões liberais ou executivos, que
desfrutam de liberdades pessoais no local de trabalho com as quais
milhões de operários fabris somente podem sonhar... Enquanto nós
ficámos abismados ao descobrir que os trabalhadores não têm o
direito expresso de ir à casa de banho durante as horas de trabalho,
[os trabalhadores] ficaram surpreendidos pela ingénua crença das
pessoas estranhas ao seu ambiente de que os empregadores lhes
permitiriam estas funções corporais quando necessário... Uma
operária fabril, trabalhando seis horas sem intervalo, usava pensos
higiénicos para urinar, e uma educadora de um jardim infantil sem
assistentes tinha de levar as vinte crianças com ela para a casa de
banho e perfilá-las à porta, à sua espera.»
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Mas o contacto humano que é a minha salvação - o meu receptor de
oxitocina, por assim dizer - é o George, o lavador de pratos checo de
dezanove anos, que se encontra neste país há exactamente uma
semana. Começamos a conversar quando ele me pergunta, de forma
tortuosa, quanto custam os cigarros no Jerry's. Faço os possíveis por
lhe explicar que custam um dólar ou mais acima do preço nas
tabacarias normais e sugiro-lhe que tire um cigarro dos maços meio
cheios que estão sempre em cima da mesa junto à casa de banho.
Mas tal seria impensável. Com excepção de um brinco minúsculo a
simbolizar o seu alinhamento com um ponto de vista vagamente
alternativo, o George é mais direito do que uma seta - cabelo curto,
trabalhador e ansioso por contacto humano. «República Checa ou
Eslováquia?», pergunto. Ele parece encantado por eu saber a
diferença. «Vaclav Havei, Revolução de Veludo, Frank Zappa?»,
continuo. «Sim, sim, 1989», diz o George, e apercebo-me de que para
ele já se trata de história.
O meu projecto é ensinar inglês ao George. «Como estás, George?»,
digo sempre no início de cada turno. «Estou bem, e tu como estás,
Barbara?» Fico a saber que não é pago pelo Jer-ry's, mas pelo
«agente» que o enviou - cinco dólares por hora, recebendo o agente o
dólar ou mais da diferença em relação ao que o Jerry's paga aos
lavadores de pratos. Fico também a saber que partilha um
apartamento com um grupo de outros «prateiros», como lhes chama, e
que não pode dormir até um deles sair para o seu turno e deixar uma
cama vaga. Num fim de tarde estamos numa das nossas sessões de
inglês para estrangeiros quando a B. J. nos apanha em flagrante e
ordena ao «Joseph» que tire os tapetes de borracha junto aos lava-
louças e limpe o chão. «Julguei que o teu nome era Geor-
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ge», disse eu, suficientemente alto para a B. J. ouvir ao regressar a
passadas largas ao balcão. Fica embaraçada? Talvez um pouco,
porque as primeiras palavras que me diz do balcão são: «George,
Joseph... São tantos!» Eu não respondo, não aceno nem sorrio, e por
isto sou castigada mais tarde: quando julgo que já posso ir-me
embora, ela diz-me que tenho de embrulhar mais cinquenta talheres
em guardanapos, e não será altura de misturar uma nova dose de
quinze litros de molho de queijo? Que envelheças neste emprego, B.
J., é a maldição que lhe lanço quando tenho finalmente autorização
para sair. Que o caramelo líquido te cole os pés ao chão!
Tomo a decisão de mudar de casa para mais perto de Key West. Em
primeiro lugar, por causa da viagem. Em segundo e terceiro lugares,
também por causa da viagem: a gasolina está a levar-me quatro ou
cinco dólares por dia e, embora o Jerry's tenha muitíssimo movimento,
as gorjetas são, em média, de 10%, e não só para uma novata como
eu. Com o pagamento de base de dois dólares e quinze cêntimos por
hora e a obrigação de partilhar as gorjetas com os ajudantes de mesa
e os lavadores de pratos, estamos a ganhar, em média, somente cerca
de sete dólares e meio por hora. E há a despesa de trinta dólares para
as calças usadas pelas empregadas de mesa do Jer-ry's - um buraco
que pode demorar semanas a tapar. (Tinha passado a pente fino os
dois armazéns baratos da cidade na esperança de encontrar qualquer
coisa mais em conta, mas decidi, por fim, que estas Dockers em saldo,
originalmente a quarenta e nove dólares, tinham mais probabilidades
de resistir à lavagem diária.) Entre as minhas colegas, todas as que
não têm marido ou namorado com trabalho parecem ter um segundo
emprego: a Nita faz qualquer coisa ao computador oito horas por dia;
uma outra é soldadora. Sem os quarenta e cinco minutos de viagem,
talvez consiga trabalhar em dois empregos e ainda ter tempo para
tomar um duche entre um e outro.
Por isso, pego no depósito de quinhentos dólares que tinha a haver do
meu senhorio, nos quatrocentos que juntei para pagar a renda do mês
seguinte e em mais duzentos do fundo de emergências e, com os mil
e cem dólares, pago um mês de renda e o depósito da caravana
número quarenta e seis no
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Overseas Trailer Park, a quilómetro e meio do punhado de hotéis
baratos que constitui a versão de Key West de um parque industrial. A
caravana número quarenta e seis tem cerca de dois metros e meio de
largura e a forma de uma barra de pesos por dentro, com uma zona
estreita - devido ao lava-louça e ao fogão - entre o quarto e aquilo a
que, com optimismo, se poderia chamar a zona de estar, onde há uma
mesa para duas pessoas e um sofá pequeno. A casa de banho é tão
minúscula que os meus joelhos roçam o chuveiro quando me sento na
sanita, e não me é possível sair da cama pelo lado, tenho de ir por
cima dela até aos pés para encontrar um pedacinho de espaço no
chão. Lá fora, estou a alguns metros de uma loja de bebidas, de um
bar que anuncia «cerveja grátis amanhã», de uma loja de
conveniência e de um Burger King - mas não de um supermercado
nem, infelizmente, de uma lavandaria automática. O parque Overseas
tem a reputação de ser um ninho de crime e de crack, e tenho a
esperança de haver pelo menos um ambiente multicultural e cheio de
animação. Mas reina a desolação noite e dia, exceptuando uma
procissão desgarrada de peões a dirigirem-se para o trabalho no
Sheraton ou no 7-Eleven. Aqui não há propriamente pessoas, antes
mão-de-obra enlatada, protegida do calor entre os turnos.
Para agravar as minhas novas condições de vida já tão
desfavorecidas, surge um novo tipo de problema no Jerry's. Em
primeiro lugar, somos confrontados - através de um anúncio nos
computadores nos quais inserimos os pedidos - com uma nova regra
segundo a qual a frequência do bar do hotel, o Driftwood, passa a ser
interditada ao pessoal do restaurante. Descubro pelos boatos que
circulam que a culpada é a empregada ultra-eficiente de vinte e três
anos que me treinou - também moradora num parque de caravanas e
mãe de três filhos. Uma manhã alguma coisa a tinha perturbado, pelo
que se esgueirou para beber um copo e voltou para o restaurante um
pouco tocada. Esta interdição afecta principalmente a El-len, que tem
o hábito de soltar o cabelo do elástico com que o prende e passar pelo
Driftwood para beber uns copos de vinho antes de ir para casa no fim
do seu turno, mas todos nós
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sentimos a afronta. Depois, no dia seguinte, quando vou buscar
palhinhas, descubro a despensa dos produtos secos fechada à chave.
Isto nunca aconteceu; andamos sempre a entrar e a sair - para ir
buscar guardanapos, recipientes para geleia, copos de cartão para as
bebidas para fora. O Vic, o subgerente bem constituído que me abre a
porta, explica que apanhou um dos lavadores de pratos a tentar roubar
qualquer coisa e, infelizmente, o transgressor continuará a trabalhar
até se arranjar quem o substitua - daí a porta fechada à chave. Não
pergunto o que é que ele tinha tentado roubar, mas o Vic diz-me quem
é - aquele rapaz com o cabelo curto e o brinquinho, aquele que está lá
no restaurante agora.
Gostava de poder dizer que corri para a cozinha e fui ter com o
George para obter o seu lado da história. Gostava de poder dizer que
fiz frente ao Vic e insisti que arranjassem um intérprete para o George
poder defender-se ou que anunciei que ia procurar um advogado que
tomasse conta do caso de graça. No mínimo, deveria ter atestado a
sua honestidade. Para mim, o mistério é que não há nada que valha a
pena roubar na despensa dos produtos secos, pelo menos não em
quantidades que possam facilmente vender-se no mercado negro.
«Está aqui o Gyorgi e tenho duzentos, talvez duzentos e cinquenta,
pacotes de molho de tomate. Que me diz?» O que suponho é que ele
tinha tirado - se é que tirou alguma coisa - umas bolachas de água e
sal ou uma lata de recheio de tarte de cereja e que o motivo tinha sido
a fome.
Então porque não intervim? Não foi, com certeza, por me ter refreado
aquela espécie de paralisia moral que pode disfarçar-se de
objectividade jornalística. Pelo contrário, algo novo - algo detestável e
servil - me tinha infectado, juntamente com os odores da cozinha que
conseguia detectar no soutien quando me despia à noite. Na vida real
sou razoavelmente corajosa, mas muitas pessoas valentes perdem a
coragem em campos de prisioneiros de guerra, e talvez algo
semelhante ocorra no ambiente infinitamente mais agradável dos
locais de trabalho americanos de salário baixo. Talvez com mais um ou
dois meses no Jerry's tivesse recuperado o meu espírito de cruzada.
Por outro lado, após um ou dois meses, talvez me
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transformasse num tipo de pessoa completamente diferente - por
exemplo, o tipo de pessoa que denunciaria o George.
Mas nunca chegaria a sabê-lo. Quando o meu mergulho de um mês
na pobreza estava quase a chegar ao fim, arranjei, por fim, o emprego
dos meus sonhos - na limpeza. Consegui-o indo directamente ao
escritório do pessoal do único local de trabalho onde supunha ter
alguma credibilidade, o hotel do Jerry's, e confessando que precisava
urgentemente de um segundo emprego para poder pagar a renda, e
que não, não podia ser recepcionista. «Está bem», resmunga a
senhora da secção de pessoal. «Então é limpeza», e leva-me a
conhecer a Millie, a supervisora das empregadas da limpeza, uma
mulher hispânica, minúscula e frenética, que me chama «garota» e me
entrega um panfleto salientando a necessidade de uma atitude
positiva. O salário é de seis dólares e dez cêntimos por hora, das nove
da manhã até «quando calhar», o que, espero, possa definir-se como
«antes das duas». Quando conheço a Carlotta, a afro-americana de
meia-idade que vai treinar-me, não preciso de perguntar se tenho
direito a seguro de saúde. A Carlie, como ela quer que lhe chame, não
tem nenhum dos dentes superiores da frente.
Nesse primeiro dia como empregada de limpeza, que - embora não o
saiba ainda - é também o último da minha vida como trabalhadora de
salário baixo em Key West, a Carlie está de mau humor. Deram-nos
dezanove quartos para limpar, a maior parte «saídas», não
«permanências», o que requer o serviço completo: fazer a cama de
lavado, aspirar, limpar a fundo a casa de banho. Quando um dos
quartos que estava na lista como sendo de permanência é afinal uma
saída, ela chama a Millie para se queixar, mas, obviamente, sem
resultado. «Então, arruma essa merda», diz-me ela, e eu faço as
camas enquanto ela limpa a casa de banho. Durante quatro horas,
sem qualquer pausa, tiro lençóis e faço camas, levando cerca de
quatro minutos e meio por cama de casal, que poderia reduzir para
três minutos, se houvesse motivo para tal. Tentamos evitar aspirar,
apanhando à mão a sujidade mais evidente,
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mas frequentemente não há nada a fazer se não tirar do carrinho o
aspirador monstruoso - pesa cerca de quinze quilos - e tentar arrastá-
lo pelo chão. Por vezes a Carlie passa-me a garrafa de «Bam» (um
acrónimo de algo que começa pelo promissor «butírico» - o resto da
etiqueta está apagado) e deixa-me limpar as casas de banho. Não há
ética de serviço que me desafie aqui a atingir novos cumes de
perfeição. Apenas me concentro na remoção dos pêlos púbicos das
banheiras, ou pelo menos dos pêlos escuros que consigo ver.
Agradava-me a perspectiva de limpar os quartos de permanência, uma
espécie de assalto que me daria a hipótese de examinar a existência
física secreta de estranhos. Mas o conteúdo dos quartos é sempre
banal e surpreendentemente arrumado - estojos de barbear com o
fecho corrido, sapatos alinhados contra a parede (não há armários),
folhetos a anunciarem expedições subaquáticas, talvez uma ou duas
garrafas de vinho vazias. É a televisão que nos vai animando, o Jerry,
a Sally, o Hawaii Five-0 e depois as telenovelas. Quando há algo
especialmente interessante, como, por exemplo, «Não aceita uma
resposta negativa» no programa do Jerry, sentamo-nos na beira de
uma cama e soltamos risadinhas por um momento, como se fôssemos
adolescentes numa festa e não adultas num emprego terminalmente
sem saída. As telenovelas são o melhor, e a Carlie sobe o som ao
máximo, para não perder nem pitada enquanto limpa as casas de
banho ou aspira o chão. No quarto quinhentos e três, a Mareia
confronta o Jeff acerca da Lauren. No quinhentos e cinco, a Lauren
goza a desgraçada da Mareia, a esposa traída. No quinhentos e onze,
a Helen oferece dez mil dólares à Amanda para deixar de andar com o
Eric, o que faz a Carlie sair da casa de banho para examinar o rosto
perturbado da Amanda. «Aceita, mulher! Eu nem olhava para trás...»,
aconselha ela.
Ao fim de algum tempo, os quartos que limpamos e os interiores bem
mais luxuosos das telenovelas começam a misturar-se. Entramos num
mundo melhor - um mundo de conforto onde todos os dias são dias de
folga à espera de serem preenchidos com intrigas sexuais. Contudo,
não passamos de mirones desta fantasia, forçadas a pagar a nossa
presença com
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dores nas costas e uma sede constante. Os espelhos (e há
demasiados espelhos nos quartos de hotel) reflectem o tipo de pessoa
que normalmente identificaríamos com um sem-abrigo a empurrar um
carrinho de supermercado pelas ruas - desgrenhada, com uma camisa
de algodão do hotel dois números acima do seu tamanho e suor a
escorrer-lhe pelo queixo como baba. Sinto um alívio enorme quando a
Carlie anuncia um intervalo de meia hora para o almoço, mas o meu
apetite desvanece-se quando vejo que o saco que ela trazia no nosso
carrinho contém não lixo de um dos quartos, mas sim folhados de
salsicha para o seu almoço.
Entre a televisão e o facto de, por ser o meu primeiro dia, não estar
em posição de sugerir novos tópicos de conversa, não fico a saber
muito sobre a Carlie, a não ser que tem dores, e não apenas de um
único tipo. Trabalha devagar, resmungando qualquer coisa sobre
dores nas articulações, o que provavelmente a vai condenar, visto que
as jovens imigrantes empregadas de limpeza - vindas da Polónia e de
El Salvador - gostam de acabar às duas da tarde, enquanto ela arrasta
o trabalho até às seis. Não faz sentido andar com pressas, comenta,
quando se é paga à hora. A gerência já enviou uma pessoa para fazer
o que parece ser um estudo da relação tempo-movimento, e fala-se de
passar a pagar ao quarto ( Nota 1) . A Carlie remói também as
pequenas demonstrações de falta de respeito de que é vítima, e não
só por parte da gerência. «Não querem saber de nós», diz, a propósito
dos clientes do hotel; na verdade, nem dão conta da nossa existência,
a menos que algo seja roubado dos quartos. «Então saltam-nos em
cima.» Estamos a almoçar lado a lado na sala de descanso quando
passa um homem branco envergando uma farda dos serviços de
manutenção e a Carlie diz, de forma amigável: «Eh lá, tu aí! Como te
chamas?»
LIMPAR NO MAINE
No domingo mudo-me, por fim, para o Blue Haven, tão satisfeita por
sair do Motel 6 que as deficiências do meu novo
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lar parecem insignificantes, até mesmo, ao princípio, encantadoras.
Para começar, é mais pequeno do que eu recordava, porque um
barracão de ferramentas usado pelos proprietários do motel ocupa
parte do espaço da minha casa, o que resulta numa combinação
pouco satisfatória das funções biológicas. Com a sanita a um metro de
distância da minúscula mesa da cozinha, tenho de fechar a porta da
casa de banho para não sentir que estou a comer numa latrina, e o
facto de a cabeceira da cama ficar a cerca de dois metros do fogão
significa que o aroma da solha que frito para o jantar de inauguração
da casa fica no ar toda a noite. Na prática, fritos é a única coisa que
posso fazer, porque o equipamento da cozinha limita-se a uma
frigideira, um prato, uma tigela pequena, uma cafeteira e um copo
grande - nem ao menos há uma panela! Tenho de improvisar: os
recipientes de papel metálico das saladas que compro já preparadas
podem ser reciclados como pratos; o único prato existente passa a
tábua de cortar alimentos. A concavidade no meio da cama é
rectificada por uma toalha dobrada, e assim por diante. Não há motivo
para preocupações - tenho casa, dois empregos e uma carripana. A
ansiedade que me dominara naqueles primeiros dias no Motel 6
começa finalmente a esvair-se.
Descubro que o simples facto de ter uma casinha só para mim me
torna uma verdadeira aristocrata na comunidade do Blue Haven. Os
outros residentes a longo prazo, que encontro no alpendre da
lavandaria, são trabalhadores com fardas e fatos-macaco para lavar e
geralmente bastante silenciosos à noite. Muitos são casais com filhos,
semelhantes aos trabalhadores brancos que por vezes aparecem nas
séries da televisão, mas, ao contrário dos seus equivalentes
televisivos, os meus vizinhos estão apinhados aos três e quatro num
estúdio, ou, na melhor das hipóteses, num apartamento de duas
assoalhadas. Um homem novo pergunta-me em que casa estou e
depois diz-me que viveu nessa mesma casa - com dois amigos. Uma
mulher de meia-idade com uma neta de três anos a reboque tenta
consolar-me, dizendo que ao princípio é sempre difícil viver num motel,
especialmente quando se está habituada a uma casa normal, mas que
uma pessoa se adapta ao fim de algum
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tempo, faz-se por não pensar nisso. Ela, por exemplo, vive no Blue
Haven há onze anos.
Estou repousada e pronta para tudo quando chego ao escritório da
The Maids na segunda-feira, às sete e meia. Não sei nada sobre
serviços de limpeza como estes, que, segundo o folheto que me dão,
tem mais de trezentas franchises por todo o país, e o que sei sobre
empregadas domésticas em geral vem-me de romances ingleses do
século xix e da série televisiva Upstairs, Downstairs ( Nota 1 ) . Algo
profeticamente, apanhei uma repetição dessa mesma série na cadeia
de televisão PBS durante o fim-de-semana, e admirei o aspecto
incrivelmente correcto dos empregados, com as suas fardas pretas e
brancas, e a sabedoria que demonstravam, muito mais em evidência
do que a dos seus patrões inexperientes e egoístas. Também nós
temos fardas, embora pendam mais para o vulgar do que para o digno
nos tamanhos errados e numa combinação demasiado garrida de
calças verde-vivo e pólo amarelo-girassol ofuscante. E, como é
explicado por escrito e no estágio de um dia e meio, também nós
temos um código especial de decoro. Não é permitido fumar, pelo
menos quinze mminutos antes da chegada a uma casa. Não podemos
comer, beber ou mascar pastilha elástica nas residências. Nada de
praguejar dentro das casas, mesmo que o proprietário não esteja
presente, e - talvez
ÍNDICE
Pág.
Preparativos ............................................................ 5
1. Servir na Florida .................................................. 14
2. Limpar no Maine .................................................. 51
3. Vender no Minnesota ........................................ … 115
Avaliação .................................................................. 183