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Rio de Janeiro
2023
LUMA DOS SANTOS PIMENTA MARIATH MORAES
Rio de Janeiro
2023
NACIONALISMO ENTRE AS QUATRO LINHAS:
Examinado por:
Rio de Janeiro
2023
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço à maior das minhas inspirações, minha mãe Kátia, que durante
vinte e quatro anos não duvidou de mim nem por um segundo sequer. Devo tudo ao seu amor
incondicional, sem você nada disso seria possível. Espero deixá-la orgulhosa.
Ao meu pai Leonardo, pela base sólida que construiu ao meu redor e por sempre me
impulsionar em direção aos meus sonhos. Foram as experiências que você me proporcionou
que me fizeram ousar pensar em um dia chegar até aqui. À minha madrasta Ione, pelos sábios
conselhos e por todo o acolhimento.
Ao meu mais leal companheiro, Rodrigo Mariath, pelos ensinamentos e apoio durante
toda a vida. Tudo faz mais sentido ao seu lado, desde os desafios que enfrentamentos até as
vivências extraordinárias que compartilhamos. Às minhas irmãs, Mayara e Beatriz, que
representam um exemplo de força e uma renovação de esperanças para o futuro.
À minha sobrinha Rebecca, por ter dado sentido a tantas coisas desde que chegou, e aos
meus queridos avós Roberto, Regina e Léa, pelo cuidado e aconchego.
Aos amigos que estiveram ao meu lado durante a jornada, me apoiando nos momentos
difíceis e vibrando comigo nas minhas vitórias, em especial à Ana Júlia, Bernardo, Eduardo,
Isabella, Letícia, Nathana, Paulo, Rebeca e Renato. Àqueles que já fazem parte de quem eu sou
há tanto tempo que representam minha família: Beatriz Baes, Bruna Andrei, Eric Yuzo, Pedro
Henrique e Rillary. Marcos Winícius, você também faz parte dessa conquista e de todas que
vierem daqui pra frente.
À Universidade Federal do Rio de Janeiro, por me formar como internacionalista, mas
sobretudo como ser humano. Saio confiante no poder transformador da educação pública,
gratuita e de qualidade, e reafirmo meu compromisso na missão de que ela seja acessível para
todos. Aqui, aproveito para agradecer a todos os professores que participaram do processo de
formação do meu senso crítico, em especial ao professor Carlos Eduardo, que prontamente
acolheu o tema deste trabalho, ao professor Elídio Marques, à professora Flavia Guerra e ao
professor Patrick Greco, que ainda no ensino médio me instigou a questionar toda a
complexidade das ciências humanas.
À Associação Atlética Acadêmica de Relações Internacionais, ambiente no qual a
paixão pelo esporte, que me acompanhou durante a vida toda, foi de encontro a relações
genuínas que construí. É motivo de orgulho fazer parte de uma história tão bonita.
“100 mil deixaram o estádio depressivos; e
porque uma vitória nesse jogo de futebol é mais
próxima do coração das pessoas do que a captura
de uma cidade no Leste, tal evento deve ser
proibido pelo bem do humor nacional”
Esta pesquisa se propõe a analisar o papel desempenhado pelo futebol no processo de formação
das identidades nacionais ao explorar as dimensões políticas, econômicas e sociais desse
esporte. Nesse sentido, busca-se sintetizar, tanto em aspectos teóricos gerais quanto em pontos
específicos da história de Argentina, Brasil e Chile, os significados atribuídos ao futebol que o
levaram a ser utilizado como ferramenta por parte dos Estados nacionais. Tendo como base a
Teoria construtivista das Relações Internacionais, os estudos sobre cultura e identidade são
investigados a fim de compreender a relevância do elemento identitário do futebol no contexto
pós-Guerra Fria, marcado pela intensificação do processo de globalização e pelo
estabelecimento de uma nova economia política. Não obstante, os desdobramentos da
mercantilização do jogo são pautados visando problematizar seu afastamento da cultura
popular.
This research proposes to analyze the role played by football in the formation process of
national identities by exploring the political, economic and social dimensions of this sport. In
this sense, it seeks to synthesize, both in general theoretical aspects and in specific points in the
history of Argentina, Brazil and Chile, the meanings attributed to football that led it to be used
as a tool by the national States. Based on the constructivist Theory of International Relations,
studies of culture and identity are investigated in order to understand the relevance of football's
identity element in the post-Cold War context, marked by the intensification of the globalization
process and the establishment of a new economic policy. Nevertheless, the consequences of the
commercialization of the game are based on the aim of problematizing its detachment from
popular culture.
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10
NAÇÕES E NACIONALISMO.............................................................................................11
1.1 ABORDAGENS TEÓRICAS ............................................................................................ 12
1.1.1 O nacionalismo do pós-Guerra Fria........................................................................... 13
1.2 ENTRE O LOCAL E O GLOBAL: CULTURA E IDENTIDADE NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS ................................................................................................................ 15
1.2.1 Cultura e identidade nacional na teoria construtivista...............................................16
1.2.2 Cultura, identidade e os interesses dos Estados......................................................... 18
CONCLUSÃO.........................................................................................................................58
REFERÊNCIAS......................................................................................................................59
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INTRODUÇÃO
integração regional da nova conjuntura internacional. Como destacado por Hobsbawm (2007),
o futebol é a atividade pública que demonstra enfaticamente a dialética entre a globalização, a
identidade nacional e a xenofobia. Sua natureza, ambígua entre a espetacularização do esporte
e um espaço de manifestação da cultura e da identidade nacional, ajuda a explicar a
complexidade da relação entre a homogeneização da cultura a nível mundial e a manutenção
dos vínculos nacionais coletivos.
O presente estudo procurará, então, analisar os significados atribuídos ao futebol que
o fizeram se consolidar como um dos principais elementos de identificação nacional no pós-
Guerra Fria, sendo utilizado como ferramenta política por parte dos Estados nacionais – em
especial os regimes autoritários, que buscavam legitimação. Nesse sentido, ao se aprofundar
nas visões acerca do nacionalismo e nos conceitos de comunidade imaginada e tradição
inventada, a pesquisa busca explorar as características do futebol enquanto prática cultural
reforçada ao longo da história em diferentes partes do mundo a fim de investigar sua capacidade
de resistir ao processo de homogeneização da cultura no contexto da globalização.
Por fim, o terceiro capítulo terá como foco a modernização do futebol no âmbito da
globalização, uma vez que, conforme Giulianotti e Robertson (2006), não seria correto pensar
o futebol como um fenômeno sobre o qual a globalização tem atuado. Na verdade, esse esporte
interage de forma dinâmica com esse processo, criando uma interdependência. Partindo desse
princípio, as relações entre clubes e jogadores são criticadas sob uma visão marxista a respeito
das relações sociais de trabalho, considerando a mercantilização do futebol orientada pela
lógica neoliberal.
1 NAÇÕES E NACIONALISMO
Este capítulo busca estabelecer o marco teórico que servirá como base para a análise
crítica das relações entre futebol e as identidades nacionais. Na primeira seção, serão abordados
os conceitos de nação e nacionalismo sob diferentes perspectivas para, posteriormente, explorar
de que forma o futebol influencia e é influenciado por esses fenômenos. Serão elencadas as
transformações que impactaram as novas formas de nacionalismo no pós-guerra, enquanto na
segunda seção, os estudos sobre cultura e identidade nas relações internacionais são
12
nacionalismo através dos pontos de vista da doutrina, da política e dos sentimentos, o autor
propõe uma alternativa às abordagens primordialista, funcionalista e narrativa.
Sob o ponto de vista da doutrina, o nacionalismo poderia ser cívico ou étnico. A
abordagem primordialista, de Anthony Smith, compreende que a etnia é responsável pela
unidade cultural de um grupo com descendência comum, condicionando a origem da nação à
origem da etnia e dando foco na importância da narrativa histórica para a construção dessas
noções ao longo do tempo. Por outro lado, o nacionalismo cívico representa o compromisso
dos indivíduos com o Estado e seus valores, o que a abordagem funcionalista enxerga como um
elemento do mundo contemporâneo em função do enfraquecimento de aspectos como dinastia
e religião (BREUILLY, 2008).
O nacionalismo enquanto sentimento também pode diferir entre de elite ou de massas,
a depender do grupo com maior identificação. Essa definição, o processo de identificação com
o projeto de nacionalismo, relaciona-se com os interesses a que servirá. Por isso, do ponto de
vista da política, o nacionalismo pode significar tanto o fortalecimento como a subversão do
Estado, com objetivos distintos de assegurar uma legitimidade interna e externamente ou criar
um novo Estado, como é o caso dos movimentos separatistas que reivindicam a dissociação de
um Estado maior (BREUILLY, 2008). Por fim, a abordagem narrativa entende que
nacionalismo foi um dos rumos tomados pela história, partindo do princípio que o tempo corre
em um sentido linear e que ambos convergiram em determinado ponto.
Breuilly (2000) se afasta dessas abordagens pois sua análise concentra-se no papel da
modernidade na ascensão do nacionalismo, enfatizando a necessidade da existência do primeiro
para propagação do segundo. Para o autor, o nacionalismo teria sido construído a partir da
necessidade de fidelidade a uma nação para que essa alcance sua busca por poder político
através de estruturas de dimensão política, jurídica e econômica (BREUILLY, 2000). Ou seja,
a própria modernização política com a globalização teria imposto às nações o desafio de
controle daqueles que a compõem por meio da criação de uma unidade identitária.
Segundo Breuilly (2008), o nacionalismo atual estaria mais relacionado a uma busca
por reconhecimento cultural, uma ação afirmativa, do que por independência política. No
período pós-guerra, a fragmentação de Estados de composição multiétnica fez ascender
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permite o maior fluxo de informação causaram uma maior percepção da existência do outro
(GUIBERNAU, 1997).
Dessa forma, é possível afirmar o nacionalismo enquanto uma resposta à sensação de
fragmentação produzida pela globalização. Antes, a principal estratégia para a preservação seria
o isolamento (GUIBERNAU, 1997), logo, como isso não é mais uma possibilidade, as tradições
continuam a ser perpetuadas com o objetivo de estabelecer uma continuidade no tempo e uma
diferenciação necessária.
Ainda, conforme será analisado mais a fundo no terceiro capítulo, pode-se acrescentar
a questão da mobilidade humana como outro aspecto influenciando as tensões do nacionalismo
no mundo moderno. Isso porque a diferenciação entre “nós” e “eles” é supostamente ameaçada
pela presença de migrantes, o que reflete um aumento de casos de xenofobia e racismo
principalmente em países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Como aponta Hobsbawm
(2007), os países europeus que foram berço do nacionalismo – a partir de confrontos que
visavam estabelecer etnias homogêneas – recentemente testemunham uma miscigenação étnica
produto das transformações socioeconômicas globais.
Assim como a cultura, Bourdieu (2004) também identifica a fronteira como elemento
importante para as RIs: “(...) esse produto de um ato jurídico de delimitação, produz a diferença
cultural do mesmo modo em que é produto desta (...)”. Enquanto a fronteira é resultado da
imposição daqueles que têm maior autoridade, muitas vezes estabelecida a partir de conflitos,
a cultura, do seu ponto de vista, tem como objetivo incitar um senso comum identitário pela
repetição de certas práticas. Com a influência da cultura no imaginário coletivo, ela torna-se,
portanto, de extrema importância para o Estado-nação, que se utiliza do sentimento de coesão
social para exercer poder político.
Nesse sentido, Gellner (1998, p.62) afirma que “(o Estado) é um protetor da cultura, a
cultura é o simbolismo e a legitimação do Estado”. Estima-se que cada país represente uma
cultura própria em função de antecedentes históricos e que o senso de identificação produza
uma comunidade simbólica, que se identifica entre si. Em uma relação de interdependência, a
identidade nacional constitui uma nova forma de identificação tanto individual como coletiva
que cultiva a lealdade daqueles que compartilham uma mesma cultura.
O aspecto cultural, portanto, exerce grande influência nas ideias, concepções e ações
do respectivo Estado nacional, contribuindo para o processo de formação da identidade.
Conforme aponta Hall (2003), a cultura nacional não se trata de algo natural, mas é
constantemente transformada pela representação da imagem da nação:
Para que se resgaste a trajetória dos estudos de cultura e identidade no campo das
Relações Internacionais, é imprescindível olhar para o caminho aberto pelo pós-positivismo,
presente no chamado Terceiro Debate em RI. Responsável por desafiar e criticar o pensamento
hegemônico das teorias anteriores que não consideravam dimensões sociais em suas análises
dos fenômenos internacionais, essa virada trouxe consigo a possibilidade de diálogo com as
demais ciências sociais, de forma a questionar estruturas estatais e institucionais do Sistema
Internacional.
As perspectivas construtivistas afastaram-se das teorias realistas e liberais, tidas como
mainstream das RIs, ao adotarem uma epistemologia que posiciona as ideias e valores no centro
da categoria de análise. Para tal, essas abordagens rejeitaram a noção de que o conhecimento é
objetivo e utilizaram-se do questionamento sobre as estruturas sociais. Como bem aponta Mark
A. Neufeld (1995), toda verdade seria uma construção discursiva, ou seja, nenhum
conhecimento ou realidade estaria livre da influência de ideias e percepções.
Diferente do realismo e do liberalismo, que se referem a poder, interesse e até mesmo
a instituições como fatores “materiais”, o construtivismo costuma dar espaço maior para as
questões culturais e de identidade, uma vez que entende o mundo a partir das construções
sociais (WENDT, 1999). Inspirado na teoria da estruturação de Giddens, Alexander Wendt, um
dos principais teóricos construtivistas, passou a questionar as percepções de Keneth Waltz sobre
as relações entre agentes e estrutura. Para o autor, ambos constituem um processo contínuo de
influência mútua, o que significa que o interesse nacional é moldado pelas mudanças na
identidade do Estado.
Wendt (1999, p.139-190) argumenta que a estrutura possui três elementos: condições
materiais, interesses e ideias, como fatores que seriam interdependentes. Portanto, é justamente
a noção de que a estrutura é socialmente construída que permite pensar mudanças a partir de
uma transformação estrutural, e por isso as teorias que consideram apenas um dos elementos
não são capazes de determinar o comportamento dos agentes, seus interesses e sua identidade.
No entanto, Frederico Merke (2008) entende a análise de Wendt como um
“construtivismo sistêmico” devido à falta de problematização da identidade estatal. Uma vez
que o autor aponta os interesses do Estado como influenciados diretamente pela sua identidade,
para Merke (2008), o autor falhou em não discutir o processo de formação dessas identidades.
Por um lado, a teoria construtivista de Wendt permite compreender o comportamento do Estado
no que tange a sua política externa, pelo outro, não trata das questões domésticas.
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Apesar das relações entre futebol e sociedade já serem amplamente analisadas a partir
da ótica das ciências sociais, sobretudo da antropologia, a produção em Relações Internacionais
ainda é limitada e subestimada. Os teóricos da disciplina muitas vezes ignoram a relevância das
práticas sociais subnacionais no comportamento dos Estados e nas suas interações dentro do
sistema internacional. Nesse sentido, este capítulo utilizará das ideias de invenção das tradições,
de Hobsbawm, e de comunidades imaginadas, de Benedict Anderson, para expor o papel
desempenhado pelo futebol na formação das identidades nacionais e a sua importância enquanto
ferramenta cultural/social, política e econômica. Para fins de compreender as motivações por
trás da apropriação estatal do esporte, a história dos regimes autoritários no Brasil, Chile e
Argentina é revisitada.
Segundo Eric Hobsbawm (2004, p.170-171), no período entre guerras o futebol passou
a assumir o papel de espetáculo de massas que refletia os atritos dos Estados-nação em forma
de rivalidade esportiva. Tendo em vista a necessidade de existência do “outro” para que a
rivalidade se sustente, os jogadores em campo passaram a representar uma expressão da causa
nacional e um meio de identificação com o próprio país:
A imaginária comunidade de milhões parece mais real na forma de um time de onze
pessoas com nome. O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio
símbolo de sua nação. (HOBSBAWM, 2004, p.171)
Nesse sentido, é comum que as rivalidades no âmbito do futebol reflitam conflitos que
acontecem fora das quatro linhas, como será visto mais a fundo no último capítulo. Um exemplo
é o caso da Alemanha e da Inglaterra, que sustentam uma rivalidade baseada em guerras
históricas travadas entre as duas nações. Quando enfrentando uma à outra enquanto rivais
esportivos, ambas as mídias nacionais reforçam a representação de um jogo como “batalha” e
incitam questões históricas na tentativa de cultuar um sentimento nacionalista por parte dos
indivíduos (MAGUIRE; BURROWS, 2005). Uma parte da torcida da Inglaterra, por exemplo,
possui um cântico que diz: “Duas Guerras Mundiais e uma Copa do Mundo”, fazendo referência
ao título mundial de 1966, quando a seleção nacional inglesa venceu a Alemanha na final pelo
placar de 4x2.
Portanto, o esporte, mas sobretudo o futebol, assume um papel importante enquanto
veículo do sentimento nacionalista, tornando-se um palco para as expressões do sentimento de
identificação nacional e cultural na forma de um time. Os eventos esportivos mundiais, como a
Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, servem como “propaganda” da nação e estabelecem
noções identitárias sobre um país diante dos demais, refletindo as diferenças entre “nós” e os
“outros” através da rivalidade.
Japão, por exemplo, os jogos do time nacional tornaram-se fundamentais para a disseminação
dos ícones sagrados. Antes do país adotar a bandeira hinomaru e o hino kimigayo como
símbolos nacionais em agosto de 1999, os torcedores japoneses já cantavam o hino e
balançavam as bandeiras nos estádios (HOBSBAWM, 1990; HORNE; MANZENREITER,
2002).
Outro exemplo da relevância da equipe nacional como sagrada formadora de tradições
é a seleção inglesa. No futebol, as nações inglesa, escocesa, galesa e norte-irlandesa são
representadas individualmente, o que não corre nos Jogos Olímpicos, quando todas se unem
sobre a denominação de Grã-Bretanha, e na ONU, onde todas representam em conjunto o Reino
Unido. Assim, a seleção de futebol é uma das poucas instituições que ainda mantém uma
nacionalidade inglesa distinta.
Goldblatt (2006) aponta que por ocasião da Copa do Mundo de 1966 na Inglaterra, quase
nenhuma bandeira de São Jorge (Inglaterra) era vista nas arquibancadas, à medida que a
bandeira do Reino Unido era vastamente utilizada. Porém, a partir da Eurocopa de 1996 que
ocorreu na Inglaterra e do processo gradual que concedeu maior autonomia às outras nações do
Reino Unido, os jogos da seleção nacional consolidaram-se como a primeira expressão pública
do renascimento do nacionalismo inglês, contando com diversas bandeiras de São Jorge
(GOLDBLATT, 2006; HOBSBAWM, 2007; ROBINSON, 2008).
O significado social atribuído ao futebol por meio da função de identificação coletiva
de pessoas de status equiparado acompanhou o processo de difusão desse esporte. Além da
popularização por meio da possibilidade de remuneração, e posteriormente a aceitação de
equipes de origem popular em ligas profissionais, outros três fatores inerentes ao futebol são
essenciais para entender a propagação desse esporte nas classes mais baixas: a
imprevisibilidade, o acesso democrático e o funcionamento do jogo (WISNIK, 2008).
Segundo Wisnik (2008), devido ao fato de o futebol ser jogado sobre a grama e a céu
aberto, as condições naturais para sua realização constituem um importante elemento no que
tange a imprevisibilidade do jogo. Nesse mesmo sentido, por ser jogado com pés, uma das
partes menos flexíveis do corpo humano, a posse de bola é altamente transitória em relação aos
esportes manuais. As dificuldades impostas pelo terreno e pelo clima adverso, em conjunto com
o frágil controle da bola, conferem uma enorme gama de possibilidades ao jogo de futebol,
fazendo com que o time considerado inferior possa surpreender (WISNIK, 2008).
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Para os Estados constituídos, o futebol funciona como uma fonte de reafirmação regular
da identidade nacional antes e durante as competições internacionais. Trata-se de um processo
de formalização e de ritualização das tradições que estabelece a continuidade com o passado,
ideia desenvolvida no capítulo anterior deste trabalho. Os resultados dessas competições
permanecem na memória coletiva da mesma forma que os grandes episódios da história
nacional, ainda que algumas vezes sejam marcados pela tristeza da derrota ao invés da alegria
da vitória.
Após o feito histórico da seleção croata de conquistar o terceiro lugar na Copa do Mundo
de 1998, o então presidente da Croácia Franjo Tudjman declarou que “as vitórias futebolísticas
formam a identidade das nações da mesma forma que as guerras”. No Brasil, tanto as vitórias
como as derrotas nas Copas permanecem na memória coletiva, servindo para reforçar a
comunidade imaginária. O futebol como um todo permite a mobilização e a demonstração de
pertencimento a uma identidade coletiva. Ao reunirem-se para dar apoio a uma equipe,
torcedores experimentam essa sensação de pertencimento, uma afirmação do grupo. Ele permite
igualmente a expressão dos antagonismos locais, sociais ou religiosos, de se afirmar face ao
outro (BONIFACE, 2006).
Como espaço para a expressão de antagonismos nacionais, o futebol se mostra como
uma arena para a manifestação de ressentimentos históricos. Na partida entre China e Japão
pela final da Copa da Ásia em agosto de 2004, torcedores chineses vestiam o uniforme dos
militares japoneses que invadiram o país na década de 1930 e carregavam faixas que continham
o número 300 mil, referente ao número de chineses assassinados pelo exército japonês no
Massacre de Nanking em 1937. A vitória japonesa por 3 a 1 na ocasião resultou em prisões do
lado de fora do estádio, bandeiras japonesas queimadas e forte esquema de segurança a fim de
proteger a embaixada japonesa em Pequim, cidade que recebeu o jogo entre as duas equipes
(BONIFACE, 2006; GOLDBLATT, 2006).
Da mesma forma, Japão e Coréia do Sul se viram obrigados a cooperar diante da decisão
da FIFA de deixar a edição de 2002 da Copa do Mundo a cargo dos dois países. A escolha
significou que ambos os países deveriam dar suporte em áreas como o controle de vistos, as
telecomunicações, a segurança e a logística do evento. Após um período de intensas disputas
envolvendo a escolha da sede – que opôs não apenas os comitês dos dois países como também
as divisões internas da FIFA –, as disputas acerca do nome do evento, a pressão da Coréia do
Sul para que os japoneses reconhecessem e pedissem desculpas pelas atrocidades cometidas
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Assim como diversas outras práticas que constituem a cultura de um país, o futebol é
extremamente influenciado pelo contexto social que o cerca. A esfera esportiva reflete
fenômenos que ocorrem na sociedade e muitas vezes é o palco onde eles se manifestam
simbolicamente, podendo assumir diversas implicações e constituindo uma ferramenta de
análise capaz de traduzir tensões sociais, culturais, políticas e econômicas. Nesta seção, o
estudo está centrado no papel do futebol como ferramenta em dois âmbitos que estão
interligados a fim de compreender suas utilizações por parte de diferentes atores. A dimensão
econômica do futebol, em contrapartida, será tratada no próximo capítulo.
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regiões em formar jogadores habilidosos, as ligas europeias são capazes de lhes oferecer maior
visibilidade e melhores condições.
Assim como a Inglaterra introduziu o cricket em suas ex-colônias do Caribe, que hoje
exportam seus melhores jogadores para a Europa, os Estados Unidos instauraram uma cultura
de baseball na República Dominicana, país que invadiram duas vezes. Contudo, em casos como
o de Austrália, Nova Zelândia e Canadá, o esporte é utilizado principalmente como forma de
afinidade cultural (HOULIHAN, 1994, p.188-194). Isso provoca, entre outras coisas, o desejo
por parte desses países em de manter laços políticos e culturais com a sua ex-metrópole
baseados em um princípio de identificação.
Segundo Hoberman (1978, p.234-237), ao longo da história é possível perceber a
utilização do esporte como um veículo ideológico muitas vezes apropriado por conservadores.
Correlacionando política e esporte a fim de equalizá-los, esses grupos relacionaram as
atividades esportivas com valores como individualismo, culto ao corpo e cavalheirismo, além
de historicamente as associarem ao sexo masculino. Por esse motivo, os marxistas já rejeitaram
os esportes como uma atividade de lazer que carregavam valores que não estavam de acordo
com os ideais revolucionários.
Um exemplo é a Yong Men´s Christian Association (YMCA), que principalmente
durante a Primeira Guerra Mundial, utilizava da atividade física como uma ferramenta de
difusão cultural de valores americanos (TERRET, 2002). No sentido contrário, é possível
verificar o futebol e a ideologia anticapitalista caminhando lado a lado na forma do clube
alemão Sankt Pauli, considerado um símbolo da esquerda no país. No seu estatuto, o clube se
posiciona contra ações preconceituosas de cunho racista, homofóbico e machista, além de
repudiar o fascismo. O Sankt Pauli politizou-se em meio às ideologias neonazistas que se
espalhavam pela Europa durante a década de 1980, e atualmente os seus torcedores costumam
se posicionar contra a mercantilização do futebol e a favor da sua democratização.
2.2.2 Política
As transformações políticas também são cada vez mais sentidas no âmbito do futebol,
pois muitas vezes ele representa um ambiente no qual certas rivalidades podem se manifestar
sem consequências maiores. Segundo Pierre Arnaud (1998, p.8-12), o esporte pode exercer
influência sobre a política incorporando projetos de governo, quando os governantes
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Tudo é um só coração
A letra da música de Miguel Gustavo, “Pra frente, Brasil”, pode representar o modelo
desejado pelo Estado brasileiro no período da ditadura. Nesse sentido, argumenta-se que ela
atribui ao futebol o papel de ligadura social responsável por ser “aquela corrente pra frente /
Parece que todo o Brasil deu a mão”, anúncio de que para a Copa de 1970, após o fracasso em
1966, é preciso que a sociedade deixe suas individualidades e se concentre numa união
identitária. Essa canção tema foi um dos exemplos sobre o uso do futebol como massa de
manobra em nome do silenciamento da realidade repressora da época, e por mais que não tenha
sido encomendada pelo governo, teve todo o seu apoio por conta da identificação de interesses,
como afirma Otávio Costa no episódio do documentário que trata sobre o Brasil:
“Uma coisa convergia para a outra. A grande mola desse sucesso da Copa do Mundo
foi a canção de Miguel Gustavo, “Pra frente, Brasil”. Pensa-se que foi parte de
campanha nossa. Não! Não foi iniciativa nossa. Miguel Gustavo nos procurou com a
peça pronta, não fomos nós que mandamos fazer a peça. Peça pronta que um cliente
tinha pedido para fundo musical de suas propagandas comercial, nos mostrou a peça
e pediu ajuda na divulgação. E realmente a nossa participação, com a música de
Miguel Gustavo, foi ajudar na divulgação dessa música.”
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Apesar da euforia do futebol brasileiro por conta das vitoriosas Copas do Mundo de
1958 e 1962, que tornaram o esporte uma ferramenta importante de propaganda, em 1966, a
seleção brasileira — que se preparou para o mundial sob o discurso nacionalista de valorização
do Brasil e viajou por cidades estratégicas no projeto de controle de massas — fracassou nas
oitavas de final contra a seleção portuguesa. Pouco antes dessa edição da competição, diretores
da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e os próprios jogadores da seleção se
encontraram com o então presidente da época, Emílio Médici, no palácio das laranjeiras.
Já para a Copa de 1970, o controle continua por meio de outra estratégia. Seguindo uma
política de ‘amigos do regime’ a fim de aproximar cada vez mais a modalidade do governo, os
agentes dos extintos Serviço Nacional de Informações (SNI) e dos Centros de Informação do
Exército e da Marinha passaram a monitorar times e atletas considerados subversivos pelo
regime. Nesse contexto, personalidades do futebol como o ex-técnico da seleção João Saldanha
e jogadores como Afonsinho, Reinaldo, Sócrates e Vladimir passaram a merecer atenta
vigilância e relatórios periódicos de suas ações. No que diz respeito à Saldanha, seu nome foi
colocado em suspeita muito tempo antes da sua destituição por conta da sua ligação com
ideologias comunistas e pela possibilidade de denunciar em suas viagens ao exterior a violência
da ditadura em vigor no Brasil, inclusive portando documentos.
De fato, a autonomia de Saldanha para discursar em veículos como rádio e ocupar
espaços que não poderiam ser ocupados por outros opositores ao regime preocupava as figuras
autoritárias no poder. Após um árduo trabalho por parte dessas figuras no sentido de desgastar
a imagem do técnico para setores da opinião pública e pressionar a CBD, a saída de João
Saldanha se configura como uma intervenção direta da ditadura militar no futebol. A partir
disso, a comissão técnica ganhou como reforços agentes diretamente ligados aos órgãos de
segurança e os militares impuseram à CBD o brigadeiro Jerônimo Bastos como chefe da
seleção, que levou consigo como chefe da segurança o agente da repressão Major Roberto
Guaranys, cujo nome acredita-se ser ao que se referia João Saldanha em sua crônica no Jornal
do Brasil:
Vou escrever uma matéria sobre a presença exigida e por mim repelida, de policiais
espancadores na concentração. Foram barrados por mim, mas depois eu fui barrado
por eles. Afinal de contas estavam no poder. E que poder...
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O Major Guaranys foi escolhido pois, anos antes, se mostrou de confiança para
desempenhar esse papel ao colaborar com o episódio do Caso Para-Sar, em que o brigadeiro
João Paulo Burnier planejou uma série de assassinatos e atentados, incluindo a explosão do
gasômetro da cidade do Rio de Janeiro, com a intenção de culpabilizar a resistência ao regime
pelas mortes que ocorreriam e aproveitar o clima de caos para realizar o sequestro e assassinato
de figuras como Carlos Lacerda, Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek. Entretanto, o plano não
foi executado pois o oficial Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido como Sérgio
Macaco, se recusou a prosseguir com as ordens de seu superior. Apesar de Sérgio ter
conquistado o apoio de outros oficiais e a denúncia feita ter impedido o plano de se concretizar,
o militar perdeu sua patente após ser reformado pelo Ato Institucional Número Cinco (AI-5).
Ademais, a ditadura também manteve na presidência da antiga Federação Carioca de
Futebol (FCF) Octávio Pinto Guimarães, cujo nome consta como informante em inquéritos dos
órgãos nacionais de segurança. No caso da federação mineira, o dirigente era o coronel da
polícia José Mendes Filho, acompanhado e investigado por corrupção e que, ainda assim,
permaneceu nessa posição até o fim da ditadura, posteriormente dando lugar ao seu filho. Essas
decisões foram motivadas pelo alinhamento de tais personalidades com as práticas do regime,
que também contava com presidentes favoráveis à ditadura nas federações do Rio Grande do
Sul, Ceará e São Paulo.
São muitos os episódios que servem para exemplificar o fato de que o futebol nunca se
mostrou como um aspecto isolado da vida social e que a repressão cotidiana infiltrada nos
órgãos da sociedade brasileira foi capaz de permear diversos setores e provocar prejuízos
implícitos. A propaganda oficial do regime apropriou-se de vários recursos na tentativa de
legitimar a imposição unilateral de poder à população brasileira. Utilizou o cinema, o rádio, os
jornais e a censura a quem quisesse contrariar as mensagens positivas sobre o governo. O ex-
técnico João Saldanha, já citado, foi impossibilitado de cobrir a seleção brasileira durante a
copa de 1970 enquanto repórter da BBC após sua saída da comissão técnica.
Como em outros âmbitos da sociedade, o futebol brasileiro durante a ditadura militar foi
espaço de conivência e atrito, submissão e tensão, propaganda e resistência. Tratando-se do
campeonato de 70 em que o Brasil se sagrou tricampeão, a seleção era antítese dos tempos
obscuros, mas a vitória foi tudo que o governo precisava para a autopromoção. Em 16 de julho
do mesmo ano, menos de um mês depois de Carlos Alberto Torres levantar a Taça no estádio
Azteca, o presidente assinava o decreto-lei que deu início ao Plano de Integração Nacional
36
(PIN). O projeto visava criar uma unidade maior entre as diferentes regiões de um país tão vasto
como o Brasil e fomentar o crescimento de áreas antes isoladas e, assim como a implementação
de políticas desenvolvimentistas, o futebol também fez parte desse processo.
Muitas pessoas que combateram a ditadura se viram no dilema entre torcer ou não pela
seleção que traduzia o autoritarismo de todo um regime, uma preocupação evidente na partida
final entre o Brasil e Itália de acordo com presentes nesse jogo. Porém, quando Carlos Alberto
fez o quarto gol do Brasil, as pessoas acabaram celebrando e deixando a fria racionalidade de
lado – provando o sentido passional do futebol no imaginário coletivo. Enquanto milhões de
pessoas eram embaladas pela emoção da conquista de um título mundial, outras eram torturadas
e mortas nos subterrâneos do país.
No período da ditadura brasileira, o governo apoderou-se do conceito de patriotismo e
se utilizou de símbolos nacionais como a bandeira e o hino a fim de substituir a ordem pela
doutrina de segurança nacional, que serviu para justificar tantas formas de repressão, e o
progresso pela tecnocracia, com o milagre econômico e desenvolvimentismo. Exportador desse
tipo de conduta para os países vizinhos, o Brasil mais tarde iria ter como obsessão, junto às
nações do continente, a criação de um banco de dados comum e a conexão de informações sobre
opositores ao sistema. Além disso, mais tarde a Operação Condor iria contar com o
financiamento e treinamento de agentes das ditaduras do Cone Sul por parte da CIA (Central
Intelligence Agency), já que era interessante para os Estados Unidos que as ideologias
anticomunistas fossem disseminadas ao redor do globo.
É importante ressaltar que é justamente o futebol que ajuda o jornalista Luiz Claudio
Cunha a revelar uma das ações da multinacional do terror – como também era chamada a
Operação – em novembro de 1978. Alertado por um telefonema anônimo, testemunhou
juntamente ao fotógrafo João Batista Scalco uma ação da operação em Porto Alegre, que se
tratava do sequestro dos ativistas políticos uruguaios Universindo Díaz e Lilian Celiberti e seus
dois filhos. Scalco, que na verdade era fotógrafo da revista Placar e estava atuando ali devido à
ausência do fotografo da Veja no momento, havia realizado matérias esportivas e reconheceu
um dos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) gaúcho como sendo o ex-
jogador do Internacional, Orandir Portassi Lucas, vulgo “Didi Pedalada”, denunciado por
Universindo como um dos mais cruéis torturadores. Além de Didi, Lilian denuncia o temido
delegado do DOPS Pedro Seelig:
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Desde o primeiro momento ele está presente, desde a detenção, é Seelig que me pede
os documentos, é Seelig que me leva à delegacia pela primeira vez, é Seelig que me
leva à minha casa, é Seelig que decide que eu vá com os meus filhos, ou seja, ele está
presente em todos os momentos. [...] Era a voz que decidia, toda a operação. [em
momento de tortura, Seelig também estava presente?]. Sim, totalmente, sempre
presente.”
O relato de Luiz Claudio Cunha como um todo evidencia o fato de que o universo do
futebol não se restringe apenas às dimensões esportivas do jogo, mas assume também as feições
de um fenômeno dramatizador das relações sociais (DA MATTA, 1982). No Brasil, desde a
década de 1930, o futebol é considerado uma das ferramentas mais importantes no que tange a
construção de uma identidade coletiva nacional, fortemente influenciado pela tradição freyriana
da democracia racial (ANTUNES, 2004).
Conforme analisado anteriormente, as conquistas nas competições internacionais
ampliaram a conexão entre a sociedade brasileira e a seleção de futebol, fazendo com que a
equipe se tornasse um dos maiores bens simbólicos do país e fosse extremamente impactada
pelo processo de capitalização. Devido à grande penetração no imaginário coletivo do povo
latinoamericano, o campo futebolístico passou a refletir as disputas ideológicas entre diversos
agentes sociais, disseminando as políticas estatais e consolidando uma relação estabelecida pelo
“uso político do esporte e o uso da política pelo esporte” (GUTERMAN, 2009).
Quando se trata do Chile, é possível constatar que as relações entre o futebol e a ditadura
de Augusto Pinochet explicam muito do que foi a Operação Condor como um todo e seus
reflexos. Isso porque o episódio do documentário de Lúcio Castro destinado a contar o caso
chileno explica como o discurso de Médici para Richard Nixon, até então presidente dos
Estados Unidos, na Casa Branca em 1971 sobre paz, progresso e bem-estar de seus povos ecoou
em 11 de setembro de 1973, dia em que ocorreu o golpe militar no Chile.
De acordo com documentos dos arquivos americanos, o ditador brasileiro depositou sua
confiança nos militares chilenos em promover um golpe e assumiu que o Brasil estaria
trabalhando em conjunto para tal, conforme alinhado com o presidente norte-americano. Ambos
os governos fizeram parte de uma movimentação para derrubar Salvador Allende, presidente
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chileno eleito democraticamente, e para que o golpe de estado se concretizasse. No dia em que
as torres das rádios Portales e Corporacion foram bombardeadas pela Força Aérea sob o
comando de Pinochet e o caos se instaurou nas ruas de Santiago, Allende proferiu suas últimas
palavras orientando o povo chileno a não se deixar vencer pelo sistema de repressão e negou a
própria rendição ao cometer suicídio.
Morte, tortura, sequestro e perseguição sintetizam o cotidiano chileno durante o período
de Pinochet no poder. Logo após o sucesso do golpe, o Estadio Nacional de Santiago foi
transformado em prisão e virou o cenário de uma das maiores barbáries da história não só da
América Latina, mas mundial. Diversas personalidades são levadas ao Estadio que foi palco do
bicampeonato do Brasil em 1962 para serem interrogadas e torturadas, entre elas o diretor do
El Clarín, jornal de maior circulação do país, e Alberto Gato Gamboa, que no documentário
relata as violências das quais ele e os amigos foram vítimas.
Gamboa, assim como outros sobreviventes da ditadura chilena, entende que os impactos
de um símbolo nacional como o Estadio ter sido usado como ferramenta a favor do regime
foram muito intensos, principalmente para aqueles que costumavam frequentá-lo como fãs do
futebol. Mesmo após o ato de limpeza espiritual que aconteceu no estádio com a
redemocratização do país, algumas pessoas eram tomadas pelo sentimento de que estar ali era
“recordar à força” os acontecimentos da ditadura responsável pelo genocídio de milhões de
pessoas. O campo virou uma ferida na alma de quem era apaixonado pelo futebol, distorcendo
a memória das pessoas a respeito de um local que deveria traduzir essa paixão.
No Chile, a relação entre futebol e ditadura também se deu de forma que as forças
autoritárias passaram a enxergar o esporte como meio de manipular as massas para que não
houvesse manifestações opostas ao sistema e a população não fosse às ruas. Diversos clubes
profissionais foram criados ao redor do país sem precedentes com a intenção de manipular a
população, principalmente de pequenas cidades, e cegá-las quanto a situação do país.
Por sua vez, a seleção chilena, como nos outros países da operação condor, era permeada
por nomes da repressão e o esporte era vigiado de perto. O ex-jogador Leonardo Véliz conta
que ao viajar com a seleção chilena para a Rússia a fim de jogar uma partida contra a União
Soviética pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 1974 apenas 15 dias após o golpe ter
ocorrido, estava se sentindo com medo e inseguro a respeito do que poderia acontecer com a
sua família em sua ausência do país. No dia da viagem, os jogadores foram revistados no
pequeno aeroporto de Cerrillos e Véliz teve que esconder rapidamente suas fitas cassetes que
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Assim como Brasil e Chile, os efeitos políticos da época da ditadura argentina também
refletiram no futebol nacional. Primeiro país da América a sediar um jogo de futebol em 1867,
a Argentina tem como episódio marcante da sua história futebolística o gol de Diego Maradona
com a “mão de Deus” na Copa de 1986. No entanto, foi a mão militar na Copa de 1978, no
próprio país, que marcou o primeiro título mundial argentino.
Entre tantos comunicados divulgados em cadeia nacional no dia do golpe proibindo
algo, desde a proibição de greves até a proibição de legislar, um deles usava o termo “autoriza-
se”, que se tratava justamente da autorização da transmissão dos jogos da seleção argentina.
Esses comunicados se sucederam a diversas intervenções do governo sobre a população e
mostraram que a ditadura já nos primeiros dias estava ciente sobre como poderia manipular o
âmbito do futebol.
A escolha da Argentina como sede da Copa de 1978 trouxe ânimo ao governo militar
para transformar o evento na propaganda do poder ditatorial, principalmente com a confirmação
do título mundial. Ainda hoje há inúmeras especulações sobre as motivações políticas para a
escolha das sedes dessa competição, desde a primeira Copa em 1930 no Uruguai, passando pelo
Brasil em 1950, no Chile em 1962 e no México em 1970. Vários indícios tendem para a ideia
de que os aspetos políticos foram decisivos na escolha das sedes não europeias. No caso da
Argentina, a decisão mostra uma tentativa de reafirmação da política antiperonista na época da
escolha e um alinhamento com a ditadura argentina comandada por Jorge Rafael Videla.
Existe uma articulação entre o orgulho da conquista do título e frustração em relação à
ideia de que a Copa da Argentina havia sido, na verdade, a Copa da Ditadura. O governo teve
tamanho êxito em se utilizar da imagem da seleção que o time serviu como uma ferramenta
política responsável por afirmar o autoritarismo da América Latina, como aconteceu com a
seleção brasileira na Copa de 1970. A vitória insistia em remeter a uma derrota social no
imaginário coletivo, já que desempenhou papel de distrair a atenção dos argentinos de uma
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realidade de violência extrema. Nesse período, haviam 500 centros de tortura no país,
responsáveis pela morte de mais de 30 mil pessoas.
Além da morte e tortura de milhares de pessoas, a ditadura argentina ficou marcada pela
ação de sequestrar crianças filhas de militantes políticos e entrega-las a pessoas que
compactuavam com o regime ditatorial. Esse aspecto é muito abordado no documentário de
Lucio Castro a partir do depoimento de Mariana Zaffaroni, uma das crianças que passaram por
essa situação: Meus pais eram uruguaios, militavam nas associações de trabalhadores e
estudantis, e quando começou a ditadura no Uruguai vieram para a argentina. Eu nasci aqui, em
1975. E, quando começou a ditadura na Argentina, em 1976, eu tinha poucos meses.
Sequestraram nós três e nos levaram a um centro de detenção, de onde fui levada pelo pai que
me criou. Não se sabe o destino que eles tiveram. Suspeita-se que eles tenham sido levados para
o Uruguai em um voo clandestino e que tenham sido assassinados lá, mas não há nenhuma
prova disso.
A escolha pela história de Mariana se dá pelo fato de que sua imagem de bebê circulou
por todos os lugares após a redemocratização da Argentina e uma denúncia transformou seu
caso em símbolo da luta das “Abuelas de Plaza de Mayo”, pois assim como a avó de Mariana
lutava para provar que a menina era sua neta sequestrada e entregue para a adoção, centenas de
outras avós seguiam na mesma luta. Por meio de um trabalho de memória de segunda geração
e pós memória, o documentário enfatiza as complexidades da reconstrução dos vestígios e da
história dos pais de Mariana, que não foram conhecidos e que somente por meio dos 12
testemunhos de amigos, familiares e companheiros de militância, seria possível conhecer e se
reconhecer naquelas histórias. Como Mariana era apenas um bebê ao ser sequestrada, não
possui memória daquele período, e o filme afirma o quanto foi difícil compreender a atrocidade
na forma em que tudo aconteceu na sua vida pois a família adotiva lhe transmitiu o afeto
necessário ao desenvolvimento natural de uma criança.
O caso de Mariana serve para exemplificar um aspecto muito relevante para a história
das ditaduras latino-americanas. Tanto no Uruguai quanto na Argentina, sua família se deparou
com formas distintas de encarar o pior do autoritarismo. Foi justamente a Operação Condor que
tornou possível uma integração e cooperação entre países capaz de articular um sequestro de
militantes, pais de Mariana, a partir de um sistema de inteligência colaborativo. Nessa época, a
multinacional do terror estava em fase de implementação, mas o acordo e alinhamento entre os
regimes já existia de maneira informal.
42
Essa interação entre países também foi alinhada no âmbito do futebol, como visto
anteriormente. Assim como no resto do Cone Sul, a Argentina testemunhou seu futebol e seu
governo interagindo entre si, caminhando sempre lado a lado. Jogadores e clubes sendo
manipulados e personalidades da repressão assumindo cargos relevantes internamente no
esporte. Após a conquista do título em 1978, celebravam entre si genocidas e prisioneiros do
sistema – sentados sob a mesma mesa. Portanto, mais uma vez se evidencia o papel do futebol
como objeto de manipulação e propagador de ideais governamentais a medida em que se
compreende a memória de um título mundial como sendo algo negativo, já que essa também é
responsável hoje por relembrar tempos obscuros da história do povo latino-americano.
Era dia 12 de julho de 1998, quase dia 13 pelo horário de Paris. Naquele momento,
estima-se que quase um em cada três indivíduos encontrava-se em frente a uma televisão
observando a Taça do Mundo ser levantada pelo francês Didier Deschamps. Poucos
quilômetros a sudoeste do estádio de Saint-Denis, centenas de milhares de pessoas
encaminhavam-se para as proximidades do Arco do Triunfo, símbolo das históricas vitórias
militares francesas. Nas paredes do Arco, entretanto, o rosto projetado não era o de Chefes de
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Estado, mas sim o do novo herói nacional Zinédine Zidane. Filho de pais argelinos, Zidane
liderou uma equipe que representava bem a nova França multirracial, cuja existência tornava-
se mais concreta a partir daquela campanha futebolística.
Enquanto isso, em um quarto alugado nos andares mais altos de um prédio na Champs-
Elysées, gerentes de uma empresa transnacional de material esportivo também se encontravam
extasiados. Afinal, as tradicionais três listras da sua marca — presentes nos uniformes dos
campeões — eram facilmente perceptíveis para cerca de 2 bilhões de indivíduos espalhados por
quase 200 países do globo. Não obstante, foi a sua propaganda local que obteve a melhor adesão
popular, especialmente após o seu lema “la victoire est en nous” ser repetidamente projetado
sobre a superfície do Arco durante a madrugada do dia 13 de julho.
O caso descrito exemplifica o papel do futebol como elemento de identidade nacional
e, ao mesmo tempo, está diretamente ligado às transformações ocorridas no período pós-Guerra
Fria devido ao processo de globalização. A Copa do mundo de 1998 na França ficou marcada
pela disputa acirrada entre Nike e Adidas, as duas maiores empresas do ramo de material
esportivo. A segunda, após sofrer com o comportamento e a eliminação do seu principal garoto-
propaganda, David Beckham, alcançou a glória quando a seleção francesa conquistou seu
primeiro título mundial contra a seleção brasileira em uma final que evidenciava a disputa entre
essas corporações, uma vez que a França era patrocinada pela Adidas e o Brasil pela Nike.
Naquele dia 12 de julho, além da vitória francesa, outro fator envolvendo a escalação da
seleção brasileira acarretou grande repercussão. Na lista de jogadores divulgada minutos antes
da partida, o atacante Edmundo substituía o então melhor jogador do mundo, Ronaldo.
Conforme revelado na sequência, Ronaldo havia sofrido convulsões na noite anterior à partida,
porém, após ser levado ao hospital e nada de conclusivo ter sido constatado, o jogador teria sido
escalado para iniciar a partida (WISNIK, 2008). A apática atuação junto à seleção brasileira
como um todo naquela partida decisiva da Copa do Mundo fez com que surgissem
questionamentos a respeito do poder exercido pela transnacional Nike sobre Ronaldo, com
quem tem um contrato vitalício. A escalação do atacante, mesmo que fosse óbvio que ele não
estava nas suas melhores condições físicas e psicológicas, criou rumores de que a Nike havia
exigido a participação do jogador na final.
No início de 1999, o contrato entre a CBF e a Nike se tornou público, servindo para
evidenciar o fato de que a empresa tinha um razoável controle sobre os amistosos da seleção,
bem como sobre onde iriam acontecer e quem entraria em campo (GOLDBLATT, 2006). Desse
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A explicação mais comum no Brasil foi a de que jogadores distanciados do seu país
de origem, celebrados pelas atuações em poderosos clubes europeus, acomodados a
um sucesso financeiro discrepante das condições brasileiras, tinham perdido a
motivação nacional. [...] Em outras palavras, a globalização teria cavado, mesmo para
o “país do futebol”, uma cisão entre a vertente passional, gratuita e amadora do jogo,
tradicionalmente apresentada nas copas do mundo, e a vertente transnacional do
esporte moldada pelo capital, representada especialmente pelos campeonatos
europeus onde todos passaram a jogar (WISNIK, 2008, p.386).
Para Escher e Reis (2008), contudo, é justamente pelo fato de o futebol ser o principal
elemento da identidade nacional brasileira que um jogador dificilmente se recusaria a disputar
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uma Copa do Mundo. De acordo com os autores, “além de contribuir para a imagem do jogador,
já tornado um objeto manipulável, valorizando-o para o mercado, eles realmente incorporam o
discurso de representantes da nação brasileira” (ESCHER e REIS, 2008, p.7). Hobsbawm
(2007, p.94) destaca que “os imperativos não-econômicos da identidade nacional têm tido força
suficiente para afirmar-se no contexto do jogo” e consolidam a Copa do Mundo como “o
elemento principal e mais poderoso da presença econômica global do futebol”.
Todavia, os episódios envolvendo a preparação da seleção brasileira na cidade de
Weggis, na Suíça, comprovam ser problemática a aliança entre o futebol e a comercialização,
com destaque para o discurso midiático propagando esse tipo de relação. A CBF, seguindo
interesses de cunho mercadológico e na tentativa de espetacularizar todas as atividades da
seleção que era favorita ao título mundial de 2006, abriu completamente os treinos da equipe
tanto para os jornalistas quanto para o público, reforçando a publicidade da imagem da seleção
em detrimento da concentração necessária para a conquista de uma Copa do Mundo (WISNIK,
2008).
Entretanto, a cultura futebolística não pode ser caracterizada pela homogeneização,
mesmo considerando o grau de comercialização do futebol contemporâneo. Em contrapartida
ao que é sugerido por teóricos da globalização, o aumento da influência das empresas
transnacionais e o incremento da comunicação global não extinguiram o nacionalismo como
uma fonte de identidade (NELSON, 2007). Conforme Guibernau (1997), na verdade o
nacionalismo representaria uma resposta direta à sensação coletiva de fragmentação das
identidades existentes para dar espaço a uma identidade global.
Como destacado por Guedes (2006, p.77), “quanto mais as fronteiras dos Estados-
nações são penetradas pela economia transnacional e por uma ordem política mundializada,
mais significativas se tornam as formas modernas assumidas pelas identidades nacionais, bem
como os veículos de que se servem”. Este paradoxo é refletido na cultura que envolve o futebol,
com a mercantilização do esporte e a construção de culturas transnacionais de um lado e a
permanência de rituais simbólicos nacionais e de pertencimento local — que devem ser
exaltados pelo futebol globalizado para que este se sustente — do outro (SOARES et al., 2007;
ESCHER; REIS, 2008).
Dessa forma, os fenômenos nacionalistas possuem uma relação muito próxima com a
paixão que move populações pelo esporte. De acordo com Hobsbawm (1993), a arena que
apresenta a maior identificação da população com a nação da qual faz parte é a futebolística.
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Esta relação pode ser identificada em diversos episódios da história mundial, como no caso do
Dínamo de Kiev, um “simples” time de futebol no qual a população da Ucrânia viu perdurar o
sentimento à pátria, capaz de unir seu povo durante os anos em que o país foi ocupado pela
Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial.
Outro exemplo dessa relação é o caso da intensificação dos discursos nacionalistas nos
meios de comunicação na Argentina devido à crise que o país enfrentou às vésperas da Copa
do Mundo da Coréia e do Japão. Os discursos argentinos vinculavam, inclusive, um possível
êxito na competição à uma diminuição do conflito social, o que era enfaticamente negado pelo
treinador Marcelo Bielsa.
Por sua vez, a Copa do Mundo de 2018 na Rússia também foi palco de polêmicas
envolvendo questões nacionalistas. Após a vitória da Croácia sobre a seleção anfitriã, o
zagueiro croata Domagoj Vida e o membro da comissão técnica Ognjen Vukojevic publicaram
um vídeo nas redes sociais no qual ambos gritavam “Glória à Ucrânia”, fazendo referência ao
slogan da revolução que levou à destituição do presidente ucraniano pró-Rússia Viktor
Yanukovich em 2014 e a uma enorme crise na relação entre os dois países. Posteriormente,
outro vídeo em que o zagueiro grita “Queima Belgrado!” foi vazado.
Além desse episódio, a região dos Balcãs foi alvo de outra polêmica de cunho
nacionalista nas eliminatórias da Eurocopa de 2016. Durante a partida entre Sérvia e Albânia
no ano de 2014, um drone sobrevoou o estádio Partizan, na capital sérvia, carregando a bandeira
albanesa e gerou uma confusão generalizada assim que dois jogadores da Sérvia capturaram o
drone. Os jogadores das duas seleções começaram a se enfrentar e os torcedores sérvios
invadiram o campo, fazendo com que o conflito acabasse em repressão policial e com as duas
federações sendo multadas e perdendo pontos na competição.
Apesar do histórico de confrontos entre Sérvia e Albânia devido à questão da região do
Kosovo e à rivalidade entre mulçumanos albaneses e cristãos ortodoxos sérvios, a UEFA não
vetou que os dois países caíssem no mesmo grupo nas eliminatórias, como acontece entre
Gibraltar e Espanha e entre Rússia, Geórgia e Ucrânia. Para Nelson (2007), as Copas do Mundo
promovem uma aliança entre Estados-nações e as empresas transnacionais, ainda que os seus
respectivos interesses sejam contrapostos. Apesar do nacionalismo estar ligado de forma
implícita ao Estado-nação e o mesmo não ocorrer com as transnacionais, na ocasião de grandes
eventos como esse, ambos convergem na tentativa de explorar a emoção e o entusiasmo
característicos da competição.
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Enquanto o futebol, ainda que tenha se tornado uma cultura de massas global, age no
sentido de incentivar expressões nacionalistas, as empresas transnacionais são favorecidas pelo
surgimento de um mercado global com preferências homogêneas. Essas empresas, então, atuam
no sentido de terem a sua marca vinculada à lógica do espetáculo, mas afastadas o suficiente de
um nacionalismo politizado que se oponha à agenda de desregulamentação dos mercados. Tal
desafio é enfrentado pela FIFA, uma que a federação deve equilibrar os seus objetivos globais
com o fato de que a exaltação nacional é inerente ao futebol internacional (NELSON, 2007).
Dessa forma, a estrutura social que legitima o futebol como um dos meios mais poderosos de
identificação nacional traça diretrizes para os atores e condiciona o seu comportamento.
No sentido contrário, ícones de identificação nacional exaltam culturais locais a fim de
conquistar visibilidade e reconhecimento global. O clássico do futebol escocês denominado a
“Velha Firma” (The Old Firm), considerado por muitos a maior rivalidade do futebol mundial,
exemplifica a complexa dialética entre cultura local e mercantilização. De um lado, o Celtic,
fundado em 1888 por um padre marista, representava a comunidade marginalizada dos
imigrantes católicos de Glasgow, enquanto do outro o Rangers, fundado em 1872, seria adotado
pela sociedade protestante escocesa por acumular vitórias sobre o Celtic. Em 1910, o clube
reforçou essa condição ao banir jogadores católicos, ainda que do outro lado o Celtic nunca
tenha adotado uma política de contratações baseada em questões religiosas (FOER, 2005;
GIULIANOTTI, 1999; MURRAY, 2000).
Além da questão religiosa, ambas as equipes também representam o problema nacional
na turbulenta Irlanda do Norte. Com o uniforme mesclando verde e branco e utilizando um
trevo em seu emblema, o Celtic tem uma relação íntima com a católica República da Irlanda,
cuja bandeira é bastante utilizada nas partidas do clube. O Rangers adotou o vermelho, branco
e azul do Reino Unido em seu uniforme oficial e seus torcedores costumam vestir camisas e
portar bandeiras laranjas para celebrar a queda da monarquia católica em 1688 por Guilherme
de Orange. Nos dias de clássicos, é comum ver os torcedores do Celtic celebrando os atentados
do Exército Republicano Irlandês (IRA) e os torcedores do Rangers cantarem o hino do império
britânico (FOER, 2005; MURRAY, 2000).
Muitos acreditavam que a mercantilização do futebol no início dos anos 90 poderia
causar um grande impacto sobre o sectarismo da “Velha Firma”. Graeme Souness,
administrador do Rangers, defendendo que o clube deveria escolher entre o sucesso e o
sectarismo, contratou o ex-jogador católico do Celtic, Maurice Johnston, e renunciou à política
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Como destacado por Giulianotti e Robertson (2006), ainda que os clubes pretendam
expandir o seu mercado para além das fronteiras nacionais, eles devem manter os laços que o
vinculam à sua cultura local. Impossibilitados de alcançar grandes lucros no limitado mercado
escocês, os dois clubes procuram apoio no apelo mercadológico da história da rivalidade e do
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sectarismo para reforçar sua visibilidade e suas receitas. A opção mais favorável, como afirma
Giulianotti (2003), é a Old Firm participar do Campeonato Inglês (Premier League), a Liga
nacional mais competitiva e mais lucrativa do mundo. Porém, tanto a FIFA quanto a UEFA se
opõem à essa mudança, alegando que os clubes deveriam restringir-se às suas fronteiras
nacionais.
Portanto, o futebol proporciona um espaço privilegiado de materialização daquilo que
Guibernau (1997) considerou essencial para a formação de identidades: a diferenciação em
relação aos outros e a continuidade no tempo. Ao mesmo tempo que o futebol se difunde de
forma altamente comercializada, parecendo convergir para o estabelecimento de uma cultura
de massas global, ele continua sendo visto como uma arena legitimada de diferenciação
nacional, devido ao significado que carrega. Além disso, as seleções nacionais, ícones sagrados
para a maioria das nações, constroem de forma gradativa, principalmente por meio das Copas
do Mundo de quatro em quatro anos, uma continuidade em relação ao passado histórico. Nesse
sentido, o futebol e o nacionalismo convergem no sentido de evitar a fragmentação e a dúvida
características do processo de globalização.
De um modo geral, a comercialização desse esporte influencia e é influenciada pelos
significados atribuídos ao próprio futebol. Não obstante, a alta mercantilização do futebol torna
essa relação mais tensa e frágil, cabendo especialmente à FIFA a responsabilidade de
empreender normas, valores e ideias que concorram para a manutenção do vínculo coletivo na
prática futebolística.
e da África, acabou por criar uma intensa cultura de racismo e xenofobia contra esses
imigrantes. A manifestação dos preconceitos se deu, inclusive, no âmbito do futebol.
Tanto a seleção francesa de 1998 quanto a de 2018, ambas campeãs mundiais,
representaram fielmente o país multiétnico que a França se tornara. Enquanto a seleção campeã
em 1998 contava com Zidane (filho de argelinos), Lizazaru (basco), Pires (português),
Djorkaeff (armênio), Vieira (senegalês), Desailly (ganês), Karembeu (polinésio), Trezeguet
(argentino) e Lama (guianense), a seleção que conquistou o segundo título mundial francês em
2018 tinha em seu elenco Mbappé (filho de pai camaronês e mãe argelina), Dembelé (pai
malinês e mãe senegalesa), Corentin Tolisso (filho de imigrantes do Togo), Pogba (pai congolês
e mãe guinanse), Nzonzi (congolês), Matuidi (pais angolanos), Kanté (pais e mãe do Mali),
Umtiti (camaronês), Mendy (pais senegaleses), Kimpembe (filho de congoleses) e Steve
Mandanda (congolês). Essa condição obviamente não agradava à extrema-direita francesa. Jean
Marie-Le Pen, por exemplo, criticava essa miscigenação e duvidava que eles pudessem jogar
unidos como uma nação, o que não se sustentou. O primeiro título em 98 viria a demonstrar
que uma nação multirracial e socialmente tolerante poderia ser bem-sucedida (FRANCO
JUNIOR, 2007; GOLDBLATT, 2006).
Contudo, apesar de os jogadores imigrantes e filhos de imigrantes representarem
importantes peças dos times e das seleções europeias, o racismo e a xenofobia ainda se fazem
presentes contra eles. Para Franklin Foer (2005), as tendências xenófobas em uma parcela cada
vez maior da população europeia podem ser facilmente percebidas no estádio de futebol:
“A Europa também mudou por causa da globalização. [...] Antes da guerra, judeus e
ciganos [...] carregavam o fardo do desprezo da cultura europeia pela alteridade. A
chegada de senegaleses, paquistaneses e chineses não dotou o nacionalismo europeu
de uma ideia significativamente mais multiétnica de Estado. Mas difundiu o ódio [...].
Pode-se ver isso com muita clareza no estádio de futebol (FOER, 2005).
privilégio, visto que somente uma pequena parcela da população demonstra qualidade
necessária para suceder e, mais importante, recebe oportunidade para tal. Não se trata de um
recorte social amplo o suficiente para ser transformado em uma explicação sociológica a
respeito de trajetórias específicas. De forma recorrente, o futebol reflete diversos processos
sociais e ajuda, lado a lado com as ciências humanas e sociais aplicadas, a repensar caminhos.
No contexto de dissolução da Iugoslávia, o futebol refletiu tensões sociais maiores e até
os dias atuais continua a ser um veículo de manifestação nacionalista por parte dos países que
um dia foram apenas um. A ascensão dos ressentimentos históricos se tornou cada vez mais
presente através de atos violentos nos ambientes dos estádios. Em 1990, por exemplo, em uma
partida entre o Dínamo de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado, a violência entre as duas
torcidas resultou no grave ferimento de 60 pessoas, tendo sido a primeira vez em quinze anos
que a Iugoslávia testemunhou um confronto aberto entre seus grupos étnicos.
Pouco antes dessa partida, os croatas elegeram o ultranacionalista Franjo Tudjman, ex-
presidente do Partizan de Belgrado, que estimulou as facções mais violentas da torcida do
Dínamo de Zagreb e reforçou o papel do clube enquanto veículo para a independência croata
(FOER; 2005; GOLDBLATT, 2006). Enquanto isso, os torcedores da Arkan – grupo radical da
torcida do Estrela Vermelha de Belgrado –, além de criarem faixas em contraposição ao
catolicismo croata, mobilizaram grupos nacionalistas dentro da torcida para atuar como uma
força paramilitar na guerra contra a Bósnia e a Croácia (FOER, 2005; GOLDBLATT, 2006).
Mais recentemente, durante a Copa do Mundo de 2018 na Rússia – um dos países que
não reconhece a independência do Kosovo –, a partida entre Suíça e Sérvia ficou marcada pela
comemoração dos gols suíços. Ao marcarem na vitória por 2x1, os jogadores Granit Xhaka e
Xherdan Shaqiri comemoraram fazendo o formato da águia de duas cabeças com as mãos, um
elemento presente na bandeira da Albânia. Enquanto o pai de Granit é de origem kosovar e já
foi preso político em 1985 após uma manifestação contra o governo iugoslavo, migrando
posteriormente para a Suíça, Xherdan Shaqiri nasceu no Kosovo e migrou para a Suíça com a
família em 1992. Durante o jogo ambos foram vaiados pela torcida sérvia quando dominavam
a bola, e posteriormente, tanto os jogadores quanto a Federação Sérvia de Futebol, em nome
dos torcedores que se manifestaram politicamente, foram punidos.
Já na Espanha, o FC Barcelona, um dos maiores clubes do mundo, tornou-se um símbolo
das manifestações separatistas catalãs ao dar visibilidade às suas representações. A partir da
década de 1910, o clube adotou o catalão como língua oficial em substituição ao castelhano e,
53
O tipo ideal do torcedor também pode ser associado a outras plateias esportivas, como
o tênis, mais preocupadas com o aplauso e a fruição estética das jogadas de efeito do
que com a emulação da vitória, quesito gerador, como se supõe, de rixas e dissensões.
O panorama atual do futebol brasileiro e da Copa do Mundo de 2014 se situa, portanto,
no mesmo horizonte das transformações contemporâneas do mundo esportivo, com a
conversão do torcedor em potencial consumidor. A gentrificação é um fenômeno
observado em diversos espaços públicos nas últimas décadas, na esteira neoliberal que
atingiu a América Latina dos anos 1990 (HOLLANDA, 2014, p. 344).
Dado o exposto, a nova economia política do futebol concede um poder maior aos clubes
que se tornaram grandes marcas. Dentro das quatro linhas, a receita de uma equipe também
influencia a imprevisibilidade do resultado na medida em que a concentração de renda por parte
dos clubes reflete na sua capacidade de monopolizar jogadores. Para além, as exigências de
performance do futebol moderno agora demandam grandes investimentos em centros de
treinamento, tecnologias avançadas para a avaliação e recuperação de jogadores e a
modernização das práticas e recursos de forma geral (HOLLANDA; LOPES, 2018).
A desigualdade econômica se torna, portanto, um obstáculo em diversos âmbitos para
os clubes menores. Da mesma forma que a organização social do trabalho no sistema capitalista
orienta as relações entre jogadores e os clubes para os quais trabalham, a maximização da
performance é sustentada pela lógica do potencial mercadológico. Hollanda e Lopes (2018)
argumentam que as instituições esportivas incapazes de sobreviver financeiramente diante
dessa nova ordem acabam se fundindo entre si, em sobreposição às suas histórias, tradições e
identidades:
Abu Dhabi. Para Giulianotti (2010), que desenvolve uma crítica marxista sobre as relações de
trabalho dos jogadores de futebol, esse contexto faz com que os jogadores sejam convertidos
em trabalhadores alienados da sua produção e os clubes extraiam mais-valia e lucro do trabalho
desses atletas.
Em campo, os jogadores desempenhariam um conjunto limitado de movimentos com
o objetivo de viabilizar o funcionamento de um sistema de jogo pré-definido que se sobrepõe à
criatividade – um dos principais alvos de críticas do “futebol moderno”. Portanto, é possível
afirmar que o desenvolvimento do aspecto tático no futebol atual seria o equivalente à divisão
social do trabalho, existindo uma similaridade com a linha de produção fordista
(GIULIANOTTI, 2010). Além disso, existe a imposição de um tipo de “mentalidade” que diz
respeito à obediência do jogador:
Essa obsessão pela ação controlada e dirigida é parte da não liberdade do esporte
(Adorno, 1967), a predominância da “ação racional-determinada” sobre a “ação
comunicativa” consensual (Habermas, 1970). No futebol, isso significa planejamento
para evitar derrota muito mais do que um debate a respeito de como o jogo deveria
ser praticado. Aos jogadores é negada a oportunidade de superar o desempenho de
seus adversários individuais; o objetivo maior de sucesso do time, seguindo as
instruções do técnico, tem prioridade (Overman, 1997, p. 197). Ao mesmo tempo, “o
fetichismo da mercadoria” aflige os jogadores mais bem remunerados, uma vez que
se tornam conhecidos e apreciados por seu valor da “etiqueta de preço” muito mais
do que por suas qualidades técnicas ou por seu valor intrínseco (Marx, p. 1963, p.
183). (GIULIANOTTI, 2010, p. 143 - 144).
Além disso, outra transformação ocorreu no que diz respeito à figura do jogador. Se no
futebol de antes ele era tido como um herói nacional, inculcando valores da comunidade
imaginada e a representando, hoje ele é visto como celebridade. Os jogadores de futebol
acompanharam o processo de modernização da modalidade, uma vez que se tornaram símbolos
da ideologia neoliberal através do discurso de ‘superação’.
Em relação ao processo de modernização, Giulianotti (2010) entende que a consolidação
do Estado-nação moderno e a afirmação da identidade nacional constituíram processos
importantes. O uso de uma linguagem comum, a disseminação de valores cívicos comuns por
meio do sistema educacional e o desenvolvimento de meios de comunicação em massa foram
apenas alguns dos fatores que contribuíram para que se estabelecesse um sentimento identitário
58
nacional, que por sua vez era palpável através de elementos culturais. É nesse contexto que o
futebol é inserido e reforçado. Contudo, com a mercantilização da cultura popular, o futebol foi
incorporado à lógica do espetáculo, transformando-se em mais um produto da indústria cultural.
CONCLUSÃO
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