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R o n a l d ].

Sider
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JticcA
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EM TEMPOS DE

FOME
M O V I N G F R O M A F F L U E N C E to G E N E R O S I T Y

• Me r e t h i n t OO. OOO n Prill


RONALD J. SIDER

(èBQStrâos saeos
BGa tragos
oa ffooaa
Traduzido e adaptado por

Enio R. Mueller

EDITORA SINODAL
1984
AGRADECIMENTOS DO AUTOR

Fui bastante beneficiado com as observações críticas de vários


bons amigos que leram partes do primeiro rascunho: Judy e John F.
Alexander, Arthur Simon, Edgar Stoesz, Richard Taylor, Carol e
Merold Westphal. Uma vez que não sou economista, apreciei espe­
cialmente a grande ajuda de dois amigos. Cari Gambs e John Mason.
Algumas vezes rejeitei obstinadamente as suas sugestões e idéias.
Por isso não podem ser culpados pelos resultados. Mas a sua ajuda
e amizade são profundamente apreciadas.
A Debbie Reumann e Titus Peachy eu quero agradecer espe­
cialmente pelas longas horas gastas na máquina de escrever. A senho­
ra Anne Allen, que datilografou alguns dos capítulos iniciais, externo
o meu profundo apreço pela sua magnífica assistência secretarial e
administrativa durante vários anos.
Finalmente quero agradecer à revista HIS, por publicar uma ver­
são primitiva do capítulo sete, bem como ao Ashland Theological
Seminary e à Emmanuel School of Religion, pela oportunidade de
apresentar partes do material como palestras públicas.
Talvez todos os livros devam ser vividos antes de serem escritos.
Isso certamente é verdade quando se trata de livros como esse. Devo
confessar de imediato que não estou vivendo todas as implicações
de tudo que aqui está escrito. Mas já comecei a peregrinação. A razão
mais importante de eu já ter inclusive percorrido um trecho do ca­
minho é a minha esposa, Arbutus Lichti Sider. Sempre entusiasta
em tudo que diz respeito a padrões de vida simples, espontaneamente
generosa e pronta para experiências, devagarinho ela foi me rebocan­
do pelo caminho. Pela sua leitura crítica do manuscrito, pela nossa

5
vida em comum, sem a qual este livro nunca teria sido possível, e
pelo seu amor, quero expressar-lhe o meu mais profundo apreço.

Nota à Segunda Edição (revisada):

Ao revisar os capítulos 1, 2, 6 e 9, fui grandemente beneficiado


com a ampla assistência do Dr. Roland Hoksbergen, agora Professor
Assistente de Economia no Calvin Collegc. A suo ajuda (e paciência)
foi de muito valor.
Além disso um bom número de amigos que são economistas con­
tribuíram com pareceres críticos, seja em relação à primeira edição,
seja do rascunho preliminar da segunda: Robert Chase, Cari Gambs,
Donald Hay, Cari Kreider, John Mason, Henry Rempel e John P.
Tiemstra. Nenhum deles, tenho certeza, ficará plenamente satisfei­
to com todas as minhas decisões finais. O seu conselho, todavia, que
foi muito apreciado, melhorou significativamente o texto.
INDICE

Agradecimentos do Autor ............. .............................................. 5


Prefácio ......................................................................................... 11
Prefácio do T ra d u to r......................................................... .. 13

Introdução..................................................................................... 15

PARTE I: OS CRISTÃOS RICOS E LÁZARO, O POBRE . . . . . 17

1. Um Bilhão de Próximos Famintos ........................................ 19


Novas Divisões Econômicas no Terceiro M un do.......................... 21
Um Histórico da Situação.............................................................. 24
Uma Redefinição da Fom e............................................................ 26
Crianças, Retardamento Mental e Protefnas....................... .. 29
População.............................................................................31
Limites Para o Crescimento ......................................................... 33
Perspectivas Para o F u tu ro ............................................................ 35

2. A Minoria R ica ....................................................... ................ 40


Um Abismo Cada Vez Maior ....................................................... 41
Pobreza Com 30 mil Dólares por A no ?...................................... .. 47
A Grande M entira...................................................................... .. 49
Promessas, Promessas .................................................................... 50
Pretextos Para a Nossa Riqueza ................................................... 53

PARTE IkPOBREZA E RIQUEZA EM PERSPECTIVA BÍBLICA57

3. Deus e os Pobres..................................................................... 60
Pontos-Chave da História da Revelação ............................. .... 61
a — 0 Éxodo ..................... .'.................................................. 62

7
b — Destruição e Exílio .......................................................... 63
c — A Encarnação.................................................................... 67
Deus se Identifica com os Pobres................................................. 70
Os Instrumentos Especiais de Deus............................................... 71
Deus — Um Marçista?.................................................................... 74
Os Interesses de Deus e os Nossos................................................. 80

4. Relações Econômicas Entre o Povo de Deus......................... 91


O Princípio do J u b ile u .................................................................. 92
O Ano Sabático ............................................................................ 96
Leis Referentes aos Dízimos e às Coletas.................................... 97
Modelos a Seguir, Modelos a Serem Evitados.............................. 98
A Nova Comunidade de Jesus....................................................... 100
O Modelo de Jerusalém ................................................................ 102
Koinonia Econômica .................................................................... 108
Conclusões.................................................................................... 116

5. Posição Bíblica Com Relação à Riqueza


e Posse de Bens M ateriais....................................................... 117
Propriedade Privada...................................................................... 117
Não Andeis Ansiosos . . . ...................................... '•.................. 122
O Homem Rico e Louco................................................................ 125
As Alianças e o Noivo Amado ..................................................... 129
Prosperidade: Um Sinal da Bênção de Deus? .............................. 131

6. A Fome Mundial e o Pecado "Estrutural" ............................136


A Bíblia e o Pecado E strutural..................................................... 137
O Pecado Institucionalizado no Mundo de H o je .......................... 142
Origens e Crescimento.................................................................. 143
Comércio Internacional ................................................................ 148
Consumo de Recursos Não-Renováveis........................................ 161
Padrões de Consumo de Alim entos............................................... 168
As Multinacionais no Mundo Menos Desenvolvido..................... 173
O Caso das Bananas...................................................................... 179
O Arrependimento de Zaqueu ..................................................... 183

PARTE III: IM PLEM ENTAÇÃO................................................. 185

7. Contribuição Proporcional Progressiva e Propostas


Para um Estilo de Vida Mais Simples .................................... 188
O Deus do Mundo Afluente e o Seu P rofeta................................ 191

8
0 Dízimo Escalonado..................................................... ..............192
Vida Comunal .............................................................................. 195
Critérios Gerais..............................................................................199
Sugestões Práticas.......................................................................... 199
Critérios Para a C ontribuição.......................................................201

8. Zelando Uns Pelos Outros Com Amor .................................. 203


Uma Perspectiva Sociológica ....................................................... 205
Novos Modelos de Comunidade C ris tã ........................................ 207
Comunidades Domésticas.................................. ...........................209
Comunidades de Vizinhança......................................................... 214
A Comuna Cristã .......................................................................... 215

9. Transformações Estruturais ...................................................217


Quem Será Beneficiado?................................................................222
Mudanças na Política .................................................................... 224
Transformação Social e Conversão...............................................225
Desenvolvimento Voltado Para as Necessidades Básicas.............227
Conclusão....................................................................................... 231
Epílogo ......................................................................................... 233
Algumas Entidades Que Desenvolvem Trabalho Social............... 235

9
PREFACIO

O presente livro é um desafio ao estudo das Escrituras. Elas apre­


sentam as alternativas de Deus para transpor o grande abismo que
está colocado entre os que possuem, em demasia, bens e conforto,
e os que vivem na miséria absoluta.
Agrada-nos trazer ao público brasileiro o estudo de Ronald J.
Sider, pelos seguintes motivos:
— Nossa dívida com a Evangelização dentro e fora do Brasil.
No Congresso Brasileiro de Evangelização (Belo Horizonte
1983) ficou evidenciado que as portas no mundo inteiro estão aber­
tas para missiona'rios brasileiros. Além destas fronteiras geográficas
temos incontados grupos e estratos não alcançados em nossa Pátria.
Será que a Igreja brasileira é pobre demais para assumir tal desafio?
Não estará a Igreja brasileira acomodada exatamente porque deixou
de estudar certas passagens das Escrituras?
— Nossa d (vida com o povo pobre.
A salvação em Jesus Cristo nos compromete com uma ética de­
terminada pelos valores do Reino de Deus. O Evangelho do Reino
não é propriedade da Igreja, nem se limita a ela. ê a mensagem
que proclama o Senhorio de Jesus Cristo sobre todos os governos,
poderes e potestades (ideologias também) presentes e estruturadas
neste mundo. 0 fruto evidencia o caráter de uma estrutura ou regi­
me. E o fruto que está diante dos nossos olhos é um aviltamento
aos valores do Reino. Cabe à Igreja, em primeiro lugar, viver e ser a
Comunidade da Partilha, primícias da justiça, como a conhecemos
de Atos 2 e 4, atendendo à medida das necessidades de cada um. E
não nos enganemos, partir o pão com quem está morrendo de fome
não é nenhuma virtude cristã, senão a mais elementar das obrigações
éticas do ser humano.
R. Sider nos desafia com estudo de passagens incômodas a res­
peito de propriedades e bens. Mas se não tivermos mais condições
de estudar as passagens da Bíblia que falam contra o nosso fútil
comportamento, corremos o risco de domesticar a própria Palavra
do Senhor.
— Nosso compromisso com a autoridade das Escrituras.
Com facilidade aceitamos o enunciado teológico: As Escrituras
são autoridade suprema e suficiente em questões de fé e ética. Mas
como está a prática desta afirmação? Não reduzimos a Bíblia para os
assuntos internos de nossa congregação? Quantas vezes esquecemos
que o primeiro assunto abordado pela Bíblia é a Criação e a responsa­
bilidade confiada ao ser humano de bem cuidar e administrar esta
criação? Ela é o jardim de Deus que produz o suficiente para que a
dignidade de cada criatura seja respeitada. Respeito à dignidade hu­
mana significa acesso condigno à alimentação, saúde, habitação, edu­
cação, liberdade de fé, liberdade de participação política . . . Ora,
onde isto não é assegurado as estruturas injustas dos homens ofen­
dem a criação e são um aviltamento à vontade do Criador.
A Igreja, como comunidade do Reino, deve zelar para que soja
anunciado e vivido o conselho todo de Deus. Para isto é necessário
conhecimento profundo do texto bíblico e conhecimento igual­
mente profundo da realidade. R. Sider nos desafia a esta at:tude.
Finalmente cumpre lembrar que é simplesmente farsa pedir ao
governo legislar o que a Igreja se recusa a viver. Busquemos, pois,
em humildade e arrependimento a face de Deus; busquemos obe­
diência a todo o seu conselho para que se torne realidade o novo céu
e a nova terra onde habitará a justiça (2 Pe 3.13).
Que o presente trabalho nos ajude neste propósito.

Pela Equipe do ENCONTRÃO da


Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
P. Arzemiro Hoffmann
PREFÁCIO DO TRADUTOR

Em vários sentidos, este livro é mais do que uma simples tradu­


ção. 0 tema em si, e a forma em que é abordado, exigiram aqui e ali
algumas adaptações, sempre se pensando em tornar o livro mais rele­
vante para o leitor brasileiro. Naturalmente, quanto a adaptações,
procuramos restringir-nos ao máximo, e sempre contando com o
consentimento do autor. A própria história do livro exigiu que o
tradutor fosse algumas (poucas) vezes editor. A primeira edição
americana data de 1976. Em 1978 Sider aproveitou o lançamento
da edição inglesa para fazer algumas modificações (principalmente
no arranjo interno da obra). A tradução que ora sai ao público
foi iniciada em cima da primeira edição, e concluída a partir do
manuscrito da nova edição americana, na qual fica evidente uma
nova estrutura (tendendo para a mencionadada edição inglesa),
além dé'ser toda ela retrabalhada, atualizada (até setembro de 1983)
e bastante ampliada, é evidente que, até chegar à impressão final,
pode ela própria passar ainda por algumas pequenas modificações.
No todo, porém, a presente tradução reproduz quase que integral-
mete a edição americana revisada.
No meio do capítulo 6 foram cortadas algumas páginas, por se­
rem absolutamente irrelevantes para o leitor brasileiro. 0 mesmo
vale para as páginas finais do capítulo 9, onde o autor lança um
desafio especificamente para os cristãos norte-americanos (e euro­
peus), partindo dos temas trabalhados no capítulo 6. Para o livro
não perder o seu impacto para um leitor latino-americano, decidi­
mos sintetizar em um parágrafo todo esse trecho, preservando as­
sim a sua mensagem essencial, e acrescentar um desafio de caráter
mais geral, por um lado, e mais específico à nossa realidade, por ou-
tro. E com isso já entramos no último dos pontos que tornam neces­
sário este prefácio. Em duas ou três ocasiões (sempre devidamen­
te assinaladas no texto) o trabalho do tradutor chegou, praticamen­
te, ao de co-autoria, onde o material exigia uma drástica adaptação
à realidade brasileira. Afora isso (e mesmo, de certa forma, nessas
poucas inserções) é sempre a voz do autor que soa clara e incon­
fundível, obrigando-nos a pelo menos refletir profundamente diante
de mensagem tão lúcida e tão importante.

Enio R. Mueller
/ 2 f iv OOO <“0

IN TRO DUÇÃO I *- X '" V ,

4 íjfo o . o o o ^

Fome e miséria assolam a terra. A fome está presente e vai bem


no planeta Terra. Milhões de pessoas morrem por inanição a_cada ano
que passa. Mesmo as estatísticas mais conservadoras refletem uma si­
tuação horrível. Em seu relatório referente a 1982-83 o diretor da
UNICEF (programa de assistência a menores mantido pelas Nações
Unidas) informa.que, a cada dia, 40.000 crianças pequenasjmorrem
de desnutrição ou de doenças com ela relacionadas. Diz também que
um quarto das crianças nos países em desenvolvimento são_desnutri-
das. Do total da população mundial, um bilhão de pessoas t êm urna
renda anual de menos de 50g la re s 1 ,~PcTdem'pessoas bem aiimenta-
das e bem vestidas, morando em casas luxuosas, compreender a po­
breza? Podemos nós verdadeiramente sentir o que significa ser um
menino de nove anos a brincar do lado de fora de uma escolinha à
qual ele não pode ir simplesmente porque seu pai não consegue
comprar os livros necessários? (Os livros -Custariam menos do que
minha esposa e eu gastamos durante, uma noite de lazer.) Podemos ^
realmente entender o que representa para pais pobres ficar vendo,
angustiados e sem poder fazer nada, sua filhinha morrer de uma doen­
ça infantil muito comum, por não terem acesso a cuidados médicos
(como acontece efetivamente com um terço dos nossos vizinhos em
escala mundial)? Provavelmente, não. ;
Mas podemos ao menos tentar entender. Podemos empenhar-nos
na busca por respostas honestas a questões como sejam: Quantas pes-

1James P. G ra n t, T h e S tate o f th e W o rld 's C h ild re n 1 9 8 2 -8 3 (O x fo rd : O x fo rd Univ.


Press, 1 9 8 3 ), p. 1. S tep h en C oats, " M ilit a r y Spending and W o rld H u n g er", Bread fo r the
W o rld Background Paper, 6 2 , A g o sto , 1 9 8 2 , p . 1. V e r tam bém W illy B randt, N o rth -S o u th :
A Program fo r Survival (C am bridge, Mass.: M I T Press, 1 9 8 0 ), p. 16.

15
soas estão realmente passando fome no mundo de hoje. Quais são os
efeitos da pobreza? Sem querer usar de chavões apelativos: Quão
grande é o abismo entre os ricos e os pobres, hoje? E a que se parece
a nossa opulência quando comparada com a pobreza daqueles? De­
pois de buscarmos respostas a essas questões, nos capítulos 1 e 2, es­
taremos prontos para, nos capítulos 3 a 6, pesquisar as Escrituras,
com vistas a saber o que diz a Palavra de Deus sobre riqueza e po­
breza.
0 objetivo deste livro é desenvolver um posicionamento bíblico
com relação ao assunto. A primeira parte procura nos situar dentro
dele, com uma breve visão geral da pobreza mundial e da riqueza do
Hemisfério Norte. A parte central do nosso estudo é a segunda, "Po­
breza e Riqueza em Perspectiva Bíblica". Na terceira parte procura­
mos apresentar sugestões concretas para o indivíduo, a igreja e a
sociedade.

16
PARTE I

OS CRISTÃOS RICOS
E LÁZARO, O POBRE
CAPITULO UM

UM B I L H Ã O DE
PRÓ XI MOS F A M I N T O S

As vezes penso: "Se eu morresse não precisava ver meus filhos so­
frendo desse je ito ." Âs vezes até chego a pensar em me matar. Quan­
tas vezes eu vejo eles chorando, com fome: e fico aí parada, sem um
centavo sequer para poder comprar um pedaço de pão. Penso comi­
go mesma: "Meu Deus, eu não agüento! Vou dar um fim na minha
vida. IMão quero mais ver isso!'' (Iracema da Silva, moradora de uma
favela no Brasil)1.

0 que realmente significa a pobreza no dia-a-dia? Uma maneira


de responder esta pergunta seria a de fazer uma lista de tudo de que
uma típica família americana teria que se desfazer se fosse adotar
o padrão de vida de uma família dentre o bilhão de nossos próximos
famintos. 0 economista Robert Heilbroner fez tal "lista de supér­
fluos":

Começamos entrando na casa da nossa imaginária famíiia ameri­


cana e tirando dela todos os móveis. Vai tudo: camas, cadeiras, me­
sas, televisão, lâmpadas. Deixaremos a família só com uns poucos
cobertores velhos, uma mesa de cozinha, uma cadeira de madeira.
Junto com os roupeiros vão as roupas. Cada um poderá guardar em
seu "guarda-roupa” seu mais velho terno ou vestido, uma camisa
ou blusa. Permitiremos que o chefe da família fique com um par de
sapatos, mas a mulher e os filhos terão que ficar sem calçados.

1 ''tfa c e m a ’s S to r y " , C h ristian C e n tu ry . 12 N o v . 1 9 7 5 . p . 1 0 3 0 .

19
Entramos na cozinha. Como os eletrodomésticos já haviam sido
tirados antes, nos voltamos agora para o guarda-louças . . . A caixa
de fósforos pode ficar, um pequeno pote com farinha, algum açúcar
e um pouco de sal. Umas poucas batatas mofadas, que já tinham ido
para o lixo, têm que ser resgatadas depressa, pois representam a ga­
rantia do próximo jantar. Deixaremos também um punhado de ce­
bolas e uma tigela de feijões ressequidos. Tudo o mais vai fora: a car­
ne, as hortaliças frescas, os enlatados, os biscoitos, os doces.
Deixamos a casa quase vazia. 0 banheiro foi desmantelado, fo i
cortada a água encanada, e desligada a rede elétrica. O próximo pas­
so agora é levar a própria casa. A família pode se mudar para a gara­
gem . . .
Passamos para o setor das comunicações. Nada mais de jornais,
revistas, livros — não farão falta, pois teremos que tirar também de
nossa família a própria capacidade de ler e escrever. Em lugar disso
permitiremos um rádio no barraco. ..
Depois é a vez dos serviços públicos. Nada de correio, nem de
bombeiros. Há uma escola, mas fica a quase cinco quilômetros e
conta com apenas duas salinhas de aula . . . Obviamente não há, nas
proximidades, hospitais ou médicos. 0 posto de saúde mais próximo
está a quinze quilômetros e é atendido por uma parteira. Pode-se
ir até lá de bicicleta — isto, se a família dispuser de uma bicicleta, o
que é pouco provável. . .
Finalmente, o dinheiro. Deixaremos para a família uma reserva
de cinco dólares. Isso evitará que o responsável pelo sustento da fa­
mília viva a tragédia de um camponês iraniano que ficou cego por
não conseguir arranjar os 3,94 dólares que ele, equivocadamente,
achava precisar para dar baixa num hospital onde podia ter sido
curado2.

Quantos dos nossos irmãos e irmãs de hoje se confrontam com


tal pobreza opressora? Provavelmente pelo menos um bilhão de
pessoas se encontram nesse nível de pobreza, embora seja muito di­
fícil obter estatísticas exatas. Um boletim informativo da entidade
"Bread For The World" ("Pão Para o Mundo") relatava, em agosto
de 1982. que havia um bjlhão de pessoas,, nos países pobres, com
uma renda anual não superior a 50 dólares3. Um relatório recente

2 R o b e rt L . H e ilb ro n e r, T h e G reat A scent: T h e Struggle fo r E eonom ic D evelopm ont in


O u r T im e (N o v a Io rq u e : H arp e r & R o w , 1 9 6 3 ), pf>- 3 3 -3 6 .
3 B ackground Paper, n ? 6 2 , A g osto, 1 9 8 2 ,p. 1. V e r tam b ém N a tio n a l Research C o u n cil,
W orld F ood and N u tr itio n S tu d y : Th e P o te n tia l C o n trib u tio n s o f Research (W ashington:
N atio n al A c a d e m y o f Sciences, 1 9 7 7 ), p. 3 4 ,

20
do Banco Mundial menciona haver mais de 800 milhões empestado
de indigência4. Um suplemento especial do "Development Forum"
(publicaçãcTdas Nações Unidas), intitulado "Facts on Food" ("Fa­
tos sobre Alimentação"), publicado em novamhro de 1974. estima­
va que " metade da população mundial. 2 bilhões, está mal alimenta-
da". Usaremos aqui uma cifra bastante conservadora de um bilhão
de pessoas subnutridas, tomando por base um ano normal: pois tal
cifra sobe muito em tempos de escassez mundial de alimentos, como
os anos 1972-74, podendo ser menor quando as colheitas são boas,
especialmente nos países em desenvolvimento, como, graças a Deus,
tem acontecido entre 1975 e 1982.

NOVAS DIVISÕES ECONÔMICAS NO TERCEIRO MUNDO

Quase todo esse bilhão de pessoas desesperadamente pobres vi­


vem no Terceiro Mundo. Até há pouco tempo tõâos os pa7ses~que
'nãõ_pertenciam ao mundo desenvolvido (seja capitalista ou comu­
nista) eram cosiderados, sem maiores distinções, como nações do
"Terceiro Mundo". Contudo, transformações ocorridas na última
década (especialmente desde a triplicação dos preços do petróleo
em 1973) exigem uma nova divisão: países do Terceiro Mundo com
baixa renda e_países com renda média.
India, Bangladesh, Paquistão e vários países africanos como a
Etiópia, Burundi, Chade, Tanzânia e Somália pertencem ao grupo
de baixa renda. Quadros típicos nesse grupo são: menos de um alfa-
betizado em cadà guãtrõ~3essoas~(embora~nirTndia o índice de al-
fàEè‘fTzãçãcTsejá de 36% e na Tanzânia, 74%5); taxas de mortalida-
de infantil dez vezes maiores que nos países desebvolvidos. bem co-
mo Índices^de crescimento populacional mais elevados (veia abaixo'-'^
as tabelas 1 e 4). A menos que aconteçam/fráhsformações)de vulto,
nos planos interno e externo, há poúcaFperspectivas de umaTnêlho-
ra realmente significativa nas tristes condições de vida da popula­
ção desses países. A fome vai continuar vitimando milhões de pes-

Alguns dos países do Terceiro Mundo têm perspectivas de um


futuro um pouco mais alentadoras. São conhecidos como os paí­
ses de renda média, e entre eles estão a maior parte das nações da

4 B ra n d i, p. 18.

5J ohn P. Lew is e V aleria n a K atlab teds.J, U.S. Foreign P o licy and tho T h ird W orld:
Agenda 1 9 8 3 (N ov a Io rq u e : Praeger. 1 9 8 3 ). p . 2 1 0 .

21
■ A :ís
/
r ^
América Latina e algumas outras na Asia e na Africa. Alguns des-
ses_países têm experimentado um_crescirnento_econômico conside-
^ rávei. Tragicamente,_isso^rn_geraMem;traz4fjo pouco ou nenhum be-
Ia , inefício para_os_p_obres. (O Brasil e o Méxiaysão exemplos clássicos.
® j ~ No Brasil, uma ditadurêT militar fortemente apoiada pelos Esta
■"v . ,^dos Llnidos (3rornoyeu_um^çxescimento real da economia a uma taxa
de 10% ao ano, entre 1968 e 1974. Um~crescimento em torno de
í S% ao ano continuou até 19806. Mas quem foi beneficiado? O pró­
prio Ministro da Fazenda brasileiro admitiu, em 1972, que someote
5% da população havia se beneficiado com o fantástico crescimento
âa economia brasileira. O governo brasileiro não desmentiu um estu­
do feito em 1974 que mostrava que o_pod£iiagijjsitivo-real-dos-dois
terços mais pobres da população havia_diminuído em mais da metade
nos_dêz~ãrfos anteriores.'Em'T975, 58% das crianças brasileiras com
menos de 18 anos estavam subnutridas7. Em 1980, 40% da popula­
ção total sofria de desnutrição". Em 1972, 60% da população brasi­
leira recebia uma parcela em torno de 16% da renda total do país.
Os 10% mais ricos, por outro lado, ficavam com mais de 50% da ren­
da do pais. De 1960 a 1972, os 40% mais pobres viram a sua parte
da renda total declinar de 10 para 1%'>. (Infelizmente, informações
j mais recentes sobre distribuição de renda etc., baseadas no censo,
/ de 1980, estão sendo retidas pelo governo brasileiro.10 )
A taxa de mortalidade infantil é um dos indicadores mais sensí­
veis para averiguasse uma sociedade vai de encontro às necessidades

V e r o W orld D ev elo p m e n t Report 1981 (N ova Io rq u e : O x fo rd U n iv . Press. fo r the


W o rld B an k. 1 9 8 1 ). p p . 1 3 5 . 1 3 7 . para estatísticas sobre crescim ento.

7 A rth u r S im o n , Bread fo r th e W o rld (G rand Rapids: Eerdm ans; Paramus. N J : Paulist


Press, 1 9 7 5 ), p p . 6 4 -6 5 . O N e w Y o rk Tim es tra zia , no dia 11 de Ju lh o. 1 9 7 6 . p. 3 . o seguin­
te : "S egundo estatísticas do governo (brasileiro) os salários para a m ão-de-obra não especia
liza d a , considerando-se a in flação, d im in u íra m em quase 4 0 % desde que o governo m ilita r
de d ire ita assumiu o p o d e r, d o ze anos atrás. E nq u an to isso, o P ro d u to Nacional B ru to cres­
ceu mais de 15 0 % nesse mesm o p e río d o . . . H o u ve um a d istribu ição d e renda radical a fa ­
v or dos setores eco n o m ic am en te mais prósperos." E ainda: " A agricu ltura brasileira se ex­
p ande ra p id am en te, mas quase sô em p roveito dos rico s." (N e w Y o rk Tim es, Agosto. 16.
1 9 7 6 , p. 2 ) . Para a estatística sobre desnutrição, ver o W o rld Bank C o u n try S tu d y . B razil:
H u m an Resources Special R e p o rt (W ashington: T h e W o rld B ank, 1 9 7 9 ), p. 61 do A n e x o I I I .
8 ...
T ra d e w ith J u s tic e ". Bread fo r th e W o rld Background Paper, nP 6 7 (A gosto , 1 9 8 3 ).
P- 4.

T h eo d o re M o rg an , E c o n o m ic D evelo p m en t: C oncept and S trategy (N ova lo rq u e:


H arp er, 1 9 7 6 ), p. 2 0 5 . V e r as p p . 1 6 7 -1 9 0 de M organ para um a excelente visão geral dos
e feito s da s u b n u triçã o . V e r ta m b ém o W o rld D evelo p m en t R eport 1 9 8 1 . p p 1 8 2 -1 8 3 , para
referências estatísticas.

1 ° H á rum ores no Banco M u n d ia l de que o governo brasileiro não quer d ivulg ar os d a ­


dos sobre a d is trib u iç ão de renda p o r não gostar dos núm eros.

22
básicas dos 50% mais pobres da sua população. No Brasil os índices
de mortãfidádê infantil urbana cresceram, de 1961 a 1970, de 103
RaraJ_09_emj:ada mil crianças11.
Provavelmente as coisas deterioraram para os pobres no Brasil
nesta década, à medida que foram mais atingidos pelos problemas da
economia brasileira desde o aumento dos preços do petróleo em
1973. Infelizmente o rápido crescimento econômico brasileiro mui­
to pouco contribuiu para melhorar a situação dos que mais necessi­
tam dele.
_No_México, onde a renda média per capita cresceu, em termos
reais, em torno de 2,7% ao ano entre 1960 e 1978, os 20% mais ri­
cos conseguiram aumentar a sua parte na distribuição da renda de
56,5 para 57,7%. E os pobres, nesse meio tempo, tiveram reduzida
a sua parte. Em 1968, os 40% da base inferior da pirâmide da renda
ficaram com 12,2% do bolo; em 1977, a sua parte era menor que
10%. Os 20% mais pobres viram a sua parte cortada de 3,6 para me-
nosde3%. Isso não quer dizer que os pobres tiveram realmente ren­
das mais baixas. As cifras mostram que a renda per capita dos 20%
mais pobres da população permaneceu mais ou menos a mesma, su­
bindo de 183 para mais ou menos 187 dólares por ano. Mas os 20%
mais ricos viram ã sua renda aumentada em mais de 850 dólares per
capita, passando de 2.867 para 3.722 dólares anuais. O cidadão po­
bre médio teve a sü¥ nriãgra renda aumentada em 4_dójares num pe-
río.do^de_-18-anos, enquanto que o rico médio acrescentou 850 dó-
lares-à-sua no mesmo período12.
A dor e as lágrimas de toda essa gente estão contidas nas pala­
vras da sra. Alarin, das Filipinas. A família Alarin (composta de sete
pessoas) vjye_Duma_peça_de_2,5-por 3 metros. De mobília, só pane­
las. O sr. Alarin consegue 70 centavos de dólar nos melhores dias,
vendendo sorvete. Várias vezes por mês a sra. Alarin passa a noite
em pé fazendo doce de coco que, depois, sai a vender pelas ruas. Por
uma noite de serviço como essa, tudo que consegue são 40 centavos
de dólar. Fazia um mês que a família não sabia o que era comer car­
ne quando foi visitada por Stanley Mooneyham, de "Visão Mun-
JTal". Este conta o seguinte a respeito da sra. Alarin:

1 K a t h le e n N e w la n d , In fa n t M o r ta lity and th e H ealth o f Societies (W o’r tdw atch Paper,


n9 4 7 , D eze m b ro , 1 9 8 1 ) , p. 1 5 .

1 2Estes dados vém d o W o rld D evelo p m en t R eport 1 9 8 0 , pp. 1 1 1 , 1 4 3 , 1 5 7 . Dados so­


b re d is trib u iç ã o , população e P N B são usados para se chegar às cifras de renda m édia para
as respectivas classes.
Lágrimas banhavam suas olheiras fundas e escuras enquanto ela
ia falando: "Fico tão triste quando minhas crianças choram de noite
porque estão com fome. Sei que minha vida nunca vai mudar. Que é
que eu posso fazer para resolver os meus problemas? Fico tão preo­
cupada com o futuro dos meus filhos'. Gostaria que fossem à escola,
mas, como poderíamos nos dar a esse luxo? Estou doente a maior
parte do tempo, mas não posso ir ao médico, porque cada consulta
custa 2 pesos [28 centavos de dólar) e os remédios ainda são cobra­
dos à parte. Que posso fazer?" E rompeu num silencioso pranto.
Não me envergonho de dizer que chorei com ela13.

A pobreza no mundo significa centenas de milhões de mães cho­


rando, como a sra. Alarin, por não terem com que alimentar seus fi­
lhos. QuaLs são as_causas dessa trágica situação?

UM HISTÓRICO DA SITUAÇÃO

I No fim dos anos 60 a assim chamada Rey.oIução Verde criou um


j o timismo generalizado. Especialistas em agricultura conseguiram pro­
duzir novas espécies de arroz e de trigo. Como conseqüência, nações
pobres como o México e a índia chegaram a se tornar auto-suficientes
em cercais nos inícios da década de 70. Contudo, o crescimento po­
pulacional praticamente, contrapesou o-aumento da produtividade
v agrícola14, e assim, quando as colheitas fo ram más em 1972. por
' causã~dãs más condições climáticas a fome voltou a aumentar. A pro-
i dução mundial total de alimentos sofreu uma queda substancial em
í 1972, pela primeira vez desde a II Guerra Mundial.
Quando os precos do petróleo-triplicaram. entre meados de 72
e fins de 73, os agricultores nas nações em desenvolvimento não dis­
punham mais nem do dinheiro necessário para comprar o com­
bustível para as bombas de irrigação das suas lavouras; nem tinham
condições financeira para comprar fertilizantes, cujos preços haviam
aumento em 150% entre 1972 e 197415.

13 W . S ta n le y M o o n e y h a m , W hat do Y o u S ay to H u n g ry W orld? (W aco. Texas: W ord


Books, 1 9 7 5 ), p p . 3 8 *3 9 . Usado co m a permissão da casa publicadora.

1 4 1 9 7 4 P ro d u c tio n Y e a r B o o k, da F A O (O rganização das Nações Unidas para A lim e n ­


tação e A g ric u ltu ra ), (R o m a : F A O , 1 9 7 5 ), pp . 2 5 -2 6 , 2 9 -3 0 .

15 Jo h n W . Sew ell e t al., U n ited S tates and W orld D evelo p m en t: A genda 1 9 7 7 (L o n ­


dres: Praeger), p. 1 8 8 . C álculos a p a rtir da tabela na p. 1 8 8 m ostram que o preço dos fe r ti­
lizantes à base d e n itro g é n io subiram 2 3 0 % entre 1 9 7 2 -7 4 . Os de fo sfato au m e n ta ra m em
1 2 7 % , e os de potássio 4 0 % . A m édia do a u m en to fica em 150% .

24
Para aumentar a tragédia, dois fatores mais se acrescentaram:
colheitas fracas na América do Norte, Europa, União Soviética e
Japão, e uma venda excepcionalmente elevada de cereais dos Esta­
dos Unidos para a União Soviética, fazendo com que o custo do
grão para exportação praticamente triplicasse nesse mesmo curto
período. E quando as nações pobres saíram desesperadas à procura
de cereais para alimentar as suas massas famintas, em 1974, tiveram
que pagar duas e meia vezes a mais do que dois anos antes por cada
tonelada. Para algumas das milhões e milhões de pessoas que já es­
tavam gastando 80% do seu salário só em alimentação, restava um
só destino — morrer de fome. Milhões morreram.
Em 1975, voltamos a ter boas colheitas, e até 1983 não têm ha­
vido problemas em escala mundial como aqueles do princípio da dé­
cada de 70. Mas, a despeito da ausência de crises imediatas, os proble­
mas a longo prazo permanecem. John Sewell, do respeitado "Overseas
Development Council", sediado em Washington, observa que "mes­
mo que a produção total tenha continuado a crescer em todas as
regiões (desde 1970), a produção de alimentos per capita aumentou
muito pouco nos países em desenvolvimento"16. Mais adiante prè-
coniza que, ' em virtude de que 90% do crescimento da população
mundial até 1990 ocorrerá nos países em desenvolvimento, estas na­
ções terão que, pelo menos, dobrar as suas importações para atender
à demanda crescente prevista para 1990, a não ser que haja um avan­
ço substancial na sua capacidade de produzir mais alimentos"11. As
crescentes importações de alimentos pelos países pobres representa­
rão um dreno muito grande nas suas balanças comerciais, se eles não
forem capazes de aumentar as exportações o suficiente para compen­
sar as quantidades de alimentos importados cada vez maiores. E, pelo
menos até o presente, não temos qualquer razão para crer que as
suas exportações darão um grande salto na próxima década.
Sewell está certo. A menos que haja um esforço internacional em
larga escala visando especificamente melhorar a sorte das massas de
trabalhadores rurais nas nações famintas^as perspectivas de talvez um
bilhão de pessoas serão as mesmas em(T99p)como são hoje.

16Jo h n W . Sew ell et a l., T h e U n ite d States and W o rld D evelo p m en t: Agenda 1 9 8 0
(N ova Io rq u e : Praeger. 1 9 8 0 ), p. 6 0 .

1 7 lb id ., p. 6 0 (os grifos são seus).

25
UMA REDEFINIÇÃO DE "FOME"

Segundo Lester Brown, um dos especialistas mais versados no


assunto, devemos redefinir o nosso conceito de "fom e".

Uma das razões pelas quais aqueles que estão bem de vida podem
ignorar tragédias como esta é que ocorreram modificações no próprio
modo como a fome se manifesta. Em períodos anteriores da histó­
ria, . . . nações inteiras . . . passavam por duras experiências de fo­
me e de morte p o r inanição. Hoje os progressos nos sistemas de distri­
buição, tanto nacionais como internacionais, concentraram os efei­
tos da escassez de alimentos sobre os pobres do mundo, estejam on­
de estiverem18.

Quem tem dinheiro sempre pode comprar comida; a fome afeta


somente aos pobres.
Quando a escassez de alimentos triplica o preço das importações
de cereais, como aconteceu em 1972-73, as pessoas de média ou alta
renda que vivem nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvi­
dos continuam a comer normalmente. Porém milhões que já gasta­
vam 60 a 80% do seu salário somente com alimentação passam a co­
mer menos e morrer mais cedo. A morte em geral vem como conse­
qüência de doenças a que os organismos subnutridos não tiveram
condições de resistir.
As crianças são as primeiras vítimas. Nos países acima menciona­
dos, uma em quatro crianças morre antes de completar cinco-anos
dejíjda. O índice de mortalidade infantil é dez vezes mais elevado
que nos países desenvolvidos. E metade destas mortes está relacio­
nada com dietas inadequadas. Em 1974, segundo estimativas da
UNICEF, 210 milhões de crianças em todo o mundo eram subnu­
tridas19. Uma para cada cidadão americano! Em 1982-83, a UNICEF
publicou estatísticas ainda mais assustadoras: mais de uma em cada
quatro crianças no mundo em desenvolvimento sofre de desnutri­
ção30. Estudos feitos na América Latina, segundo o Banco Mundial,
"apontam para a desnutrição como a principal causa — ou ao menos
um dos maiores fatores causadores — de 50 a 75% das mortes entre

l 8 l_ester R . B ro w n , In th e H u m a n Interest (O x fo rd : Pergam on Press, 1 9 7 6 ), pp. 5 5 -5 6 .

1 9 L a rry M in e a r, N e w H o p e fo r th e H ungry? (N o va lo rq u e : Friendship Press, 1 9 7 5 ),


p. 1 9 .

2 0 G ra n t, T h e S ta te o f th e W o rld 's C h ild re n , p . 1.

26
um e quatro anos de Idade"21.
Carolina Maria de Jesus nos dá uma mostra da realidade do terror
e da angústia enfrentadas por gente pobre numa terra onde poderiam
ter o suficiente para comer. Os sentimentos diariamente registrados
em sobras de papel por esta brilhante semi-analfabeta, que dava duro
para conseguir sobreviver numa favela em São Paulo, foram publica­
dos num livro muito tocante intitulado "Quarto de Despejo":
"22 de maio. Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se cho­
ro ou saio correndo sem parar até cair inconsciente, ê que hoje
amanheceu chovendo. E eu não saf para arranjar dinheiro [ela cos­
tumava sair à cata de papel velho para vender e poder comprar co­
mida] . . . Tem uns metais e um pouco de ferro que eu vou vender
no Seu Manuel. Quando o João chegou da escola eu mandei ele ven­
der os ferros. Recebeu 13 cruzeiros. Comprou um copo de água mi­
neral, 2 cruzeiros. Zanguei com ele. Onde já se viu favelado com es­
tas finezas? . . .
Os meninos come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas
quando não tem eles comem pão duro. Duro é o pão que comemos.
Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.
Oh! São Paulo, rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro
que são os arranha-céus. Que veste viludoc seda e calça meias de algo­
dão que é a favela.
. . . 0 dinheiro não deu para comprar carne, eu fiz macarrão com
cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que re­
clama e pede mais. E pede:
— Mamãe, vende eu para a Dona Julita, porque lá tem comida
gostosa"22.
Stanley Mooneyham, da "Visão Mundial", conta de uma visita
que fez à casa de Sebastião e Maria do Nascimento, um pobre casal
brasileiro, e que o deixou muito comovido e impressionado. 0 bar­
raco de uma peça era de chão batido e coberto com palha. Uma
banqueta, um fogareiro e quatro camas-de-esteira cobertas com sa­
cos parcialmente forrados com palha, era o que havia de mobília.

Minhas emoções mal podiam suportar o que ali presenciei e ouvi.


Os gêmeos de três anos de idade, deitados numa pequena esteira,

2 'C it a d o em B ro w n , In th e H u m a n In terest, p. 1 0 2 . V e r tam bém R u th Rice Puffer


& C a rio V . S e rran o . Patterns o f M o r ta lity in C hikJhood: R ep o rt o f th e In ter-A m erican In*
vestigation o f M o r ta lity in ChikJhood (O rganização M undial de Saúde, Organização Pan-
am ericana do S oúde, S c ie n tific P u b lico tion n 9 2 6 2 , W ashington D .C ., 1 9 7 3 ), pp. 1 64-66.

2 2 Q u a rto d e D espejo: O D iário de C arolina M aria de Jesus (S£o Paulo: Edibolso,


1 9 6 0 . 1 9 7 6 ). p p . 3 9 -4 0 .

27
pelados, imóveis, estavam a viver o último ato do seu drama pessoal.
Movidas de compaixão, as cortinas se fechavam para a sua tão curta
existência. 0 bandido da peça chamava-se 'desnutrição'. Ao lado, o
menino de dois anos representa um papel silencioso.Seu cérebro ve­
getava, em conseqüência do marasmo, uma forma severa de desnu­
trição.
O pai está desempregado. Tanto ele como Maria estão angustia­
dos com relação à própria sobrevivência, pois têm orgulho demais pa­
ra saírem a mendigar. Ele tenta ganhar alguma coisa como engraxate.
Maria não consegue nem falar sobre a situação em que se encontram.
Ela tenta, mas as palavras não querem sair. O amor dessa mãe pelos
seus filhos é terno e profundo e a lenta deterioração de suas vidas
é mais do que ela pode suportar. O vocabulário de uma alma angus­
tiada são as lágrimas23.
A pequena filha de Carolina não precisaria suplicar que a vendes­
sem a um vizinho um pouco mais rico. E enquanto os gêmeos de Se­
bastião e Maria morriam de fome, havia comida suficiente e em abun­
dância no Brasil. Mas ela não era dividida de modo justo. Os "bem-
de-vida'' no Brasil tinham de sobra para comer. Duzentos e dez mi­
lhões de americanos consumiam alimento suficiente (em parte por
causa do grande consumo de carne de gado engordado à base de
cereais) para satisfazer as necessidades de um bilhão de pessoas nos
países pobres!
Assim é que a fome tem sido redefinida — ou melhor, redistri­
buída! Ela já não consegue mais afetar aos ricos e poderosos. Fere só
osj>0b£gs_fi_impotentes. E uma vez que os pobres geralmente mor­
rem sem grande estardalhaço, em relativa obscuridade, os ricos de
todas as partes do mundo sossegadamente fazem de conta que a
fome não existe mais. Contudo — redefinida e redistribuída — ela
está aí, muito presente. Mesmo em tempos "bons", milhões e mi­
lhões de pessoas vão dormir famintas. Os cérebros de seus filhos vege­
tam e seus corpos sucumbem prematuramente diante de uma doença.
Po breza significa analfabetismo,., atendimento médico inadequa-
do, doença, retardameüto mental.
Só 36% dos 688 milhões de habitantes da Índia sabiam ler, em
1981. Nesse mesmo ano, somente a metade (54%) de todos os
3,4 bilhões de habitantes do mundo em desenvolvimento eram al­
fabetizados24 .

2 3 M ooneyham , p. 48.

2 4 R oger O . Hanson (e d .), U .S . Foreign P o lic y and th e T h ird W o rld : A genda 1 9 8 2


(N o va lo rq u e: Praeger, 1 9 8 2 ), p p . 1 5 5 , 1 6 0 .

28
As pessoas no ocidente têm usufruído há tanto tempo dassegu-
ranças oferecidas pela moderna medicina que simplesmente acha­
mos que ela deve estar já ao alcance de todos. Todavia, em 1982,
40% de toda a população na América Latina simplesmente não te­
ve acesso a serviços de saúde“ . Na África e Ásia, a situação possivel­
mente é pior.

CRIANÇAS, RETARDAMENTO MENTAL E PROTEÍNAS

Por falta tanto de comida como de remédios, o Terceiro Mundo


tem índices deTnortalidade infantil bãstante altos.

Veja Tabela 1 na página 30.

Como podemos ver na Tabela 1 o índice de mortalidade infantil


é muito maior nos países menos desenvolvidos.
O retardamento mental permanente, causado-por. deficiência de
proteínas, é um dos"”áspectos mais devastadores da pobreza do mun­
do. 80% do desenvolvimento total do cérebro acontece entre o_mo-
mènto da concepção e os dois anos de idade. Uma ingestão adequada
de proteínas — precisamente o que pelo menos 210 milhões de crian­
ças subnutridas não têm — é necessária para o desenvolvimento nor­
mal do cérebro. Um recente estudo feito no México constatou que
um grupo de crianças de menos de cinco anos de idade, gravemente
desnutridas, tinham um Q.l. 13 pontos mais baixo do que as de ou­
tro grupo que contava com alimentação adequada, cientificamente
controlada26. A ciência médica atualmente é unânime em afirmar que
um alto grau_de desnutrição produz lesões cerebrais irreversíveis.
Quando uma família não tem o que comer, quem mais sofre são
as crianças. A-Curto_pcazo uma criança não é um problema tão sério
quanto um adulto sem forças para enfrentar o trabalho. Mas, a longo
prazo, a desnutrição infantil pode gerar milhões de retardados merT-
tais.
"A pequena Marli, uma carioca sorridente de seis anos de idade,
é tão somente um dos muitos exemplos disso. Ela parecia normal
sob todos os aspectos. Saudável. Feliz. Só havia uma coisa errada

2 5 V e r os núm eros para 1 9 8 2 em " H e a lth C o n d itio n s in the A m e ric a s " , S cien tific Pu­
b licatio n 4 2 7 , da Organização Pan-am ericana de S aúde (a agência regional da Organização
M u n d ia l d e S aú d e).

2 6 lb id .. p. 1 0 2 .

29
Tabela 1

indice de mortalidade infantil por 1000 nascimentos com vida

Suécia 7

Austrália 12

EUA 13

Reino Unido 13

Alemanha Ocidental 19

URSS 36

Chile 38

Guatemala 69

Egito 90

Brasil (1974) 94

Ruanda 127

India 134

Malawi 142

F o n to rR o g er D . Hanson (e d .), U S F oreign P o licy and th e T h ird W o rld : A genda, 1 9 8 2


(N ova Io rq u e : P raeger, 1 9 8 2 ), p p . 1 6 1 -9 .

com eia. Não conseguia estudar. A princípio seus professores pensa­


vam que seu problema fosse psicológica conseqüência talvez de
falta de carinho, o que seria compreensível num lar com onze filhos.
Sua irmã mais nova tinha tido o mesmo problema. Depois de um pe­
ríodo de testes e de cuidadosa observação, porém, tornou-se claro
que Marli, filha das pobres e miseráveis favelas brasileiras, não conse­
guia aprender porque o corpinho desnutrido de uma criança não ti-

30
nha conseguido gerar um cérebro saudável"27 .
Ninguém sabe quantas crianças pobres sofreram lesões cerebrais
irreversíveis por causa de uma dieta protéica insuficiente durante a
infância. Contudo, como já mencionado, havia 210 milhões de crian­
ças subnutridas em 1974 e mais em 1983. Disso pode-se inferir que
o número de deficientes mentais, como Marli, deve chegar a dezenas
de milhões.
Fome^n3lfabetismo,_doença, lesão cerebral, morte — é o que sig­
nifica a pobreza. E pelo menos um bilhão de pessoas supõrtãTTTdia-
riãmente o tormento que ela traz.

POPULAÇAO

A explosão demográfica é outro problema fundamental. Apenas


em 1830 é que a população mundial conseguiu chegar a üm bilhão
de habitantes. Daí em diante levou só mais cem anos para ser acres­
centado outro bilhão. Depois, num espaço de apenas trinta anos, t í ­
nhamos mais outro. O quarto bilhão foi alcançado, então, em quin­
ze anos (1975). A previsão é de que por volta do ano 2000 vamos che­
gar a mais ou menos seis bilhões de pessoas28.

Veja Tabela 2 na página 32.

Os índices atuais da explosão demográfica levam algumas pessoas


simplesmente ao desespero. 0 "Environmental Fund" dos EUA pu­
blicou, em 1976, uma nota em vários jornais, inclusive o New York
Times e o Wall Street Journal, redigida por William Paddock e Garrett
Hardin, entre outros, declarando: "O mundo, como o conhecemos,
provavelmente estará arruinado antes do ano 2000 . . . O movimento
em direção à tragédia, a esta altura, é tão forte que, provavelmente,
seja impossível de contê-lo"25.
É claro que tais pontos-de-vista são demasiado pessimistas. As
tendências do crescimento populacional dos últimos vinte anos ofe­
recem alguma esperança. Enquanto o crescimento geral da popula-

2 7 M o o n e y h a m , p . 19 1 .

2 " V e r E r ik P. E c k h o lm , D o w n to E a rth : E n viro n m e n t and H u m an Needs (Nova Io r­


q ue: N o rto n , 1 9 8 2 ), p. 3 7 .

2 9 C itad o em "B rea d fo r th e W o rld N e w s le tte r” , J u lh o , 1 9 7 6 . Este núm ero contém


uma excelente refu tação da proposta d e H a rd in e Paddock paro uma trlogom e uma ótica
salva-vidas.

31
Tabela 2

Anos passados para o acréscimo de um bilhão de pessoas

n? de anos ano em que foi


que levou alcançado

Primeiro bilhão 10.000 ou mais 1830

Segundo bilhão 100 1930

Terceiro bilhão 30 1960

Quarto bilhão 15 1975

Quinto bilhão 11 1986

Sexto bilhão 9 1995

F o n te .L e s te r B ro w n , T h e T w e n ty -N in th D ay (N ova lo rq u e : N o rto n , 1 9 7 8 ), p. 7 4 .

ção mundial apresentava um índice em torno de 2% em 1960, o 1983


World Population Data Sheet (informativo contendo dados sobre a
população mundial) do "Population Reference Bureau" (departa­
mento para questões populacionais) indica que ele caiu agora para
1,8%.
É claro que a taxa de crescimento populacional não pode conti­
nuar indefinidamente no índice em que hoje se encontra. Uma po­
pulação que cresce à razão de 2,3% (o índice de 1983 para a Amé­
rica Latina) aumenta dez vezes em 100 anos! Se a população lati-
noamericana, que está em torno de 390 milhões, crescesse na mé­
dia atual durante os próximos cem anos, haveria quase tanta gen­
te na América Latina em 2083 como há no mundo inteiro hoje.
O atual índice de crescimento do México, de 2,6%, se perma­
necesse estável por 100 anos, produziria uma população total de
mais de 900 milhões de habitantes. Felizmente, o crescimento no
México está baixando (de mais ou menos 3,5% em 1968 para 2,6%
em 1983).

32
Tabela 3

Crescimento Populacional em 25, 50 e 100 anos

Indice de crescimento Relação entre a popu lação projetada e a atual


populacional (% - ano) 25 anos 50 anos 100 anos

0,5 1,13 1,28 1,65

1,0 1,28 1,65 2,70

1,5 1,45 2,11 4,43

2,0 1,64 2,69 7,24

2,5 1,85 3,44 11,81

3,0 2,09 4,38 19,22

3,5 2,36 5,58 31,19

Ao considerarmos a questão do crescimento populacional, é im­


portante relembrar que, embora as nações desenvolvidas do Ociden­
te tenham hoje índices mais baixos que as nações em desenvolvi­
mento (veja a Tabela 4), o número de crianças por família na Euro­
pa Ocidental e na América do Norte era muito maior na segunda
metade do século passado que o normal de hoje, dois ou três filhos
por família. As taxas de mortalidade infantil também eram mais al­
tas, não há dúvida. Contudo, o tamanho das famílias e o crescimen­
to populacional no Ocidente de então eram bastante parecidos com
os de muitos países em desenvolvimento desde a II Guerra. Maior
riqueza e_d£clínio_no crescimento populacional parecem caminhar
juntos, ao menos a longo^prazo.

LIMITES PARA O CRESCIMENTO?

Junto com a crise alimentícia e a explosão demográfica, há um


terceiro conjunto de fatores complexos_eJnterrelacionados que tor-
nã~o"nòsso dilema ãinda~ mais~desesperador. Por quanto tempo ainda

33
0_D0SS0_planeta_p0derá sustentar o atual nível de industrialização?
Qual será o efeito da poluição?~Quando se esgotarão os nossos re-
cúrsos_natura is- (especialmente_conTtíUstíveiS::derõrigémfóssil,como
o carvão e o petróleo)? Em 1972 o Clube de Roma (um grupo inter­
nacional de elite, formado por executivos, tecnocratas e cientistas)
chocou o mundo com respostas a perguntas como essas baseadas em
análises feitas com uso de sofisticados computadores.

Tabela 4

Crescimento populacional por ano em alguns países


(meados de 1983)

Taxa de Popul. em
crescimento meados 1983

Reino Unido 0,1% 56,1 ‘


EUA 0,7% 234,2
URSS 0,8% 272
Alemanha Ocidental 0,2% 61,5
Japão 0,7% 119,2
Canadá 0,8% 24,9
Austrália 0,9% 15,3
China 1,5% 1023,3
Mundo 1,8% 4677
índia 2,1% 730
Filipinas 2,7% 52,8
Etiópia 2,5% 31,3
Moçambique 2,7% 13,1
Brasil 2,3% 131,1
Paquistão 2,8% 95,7
Nigéria 3,3% 84,2
México 2,6% 75,5

(• ) — m ilhões de hab.

F o n te : " P o p u la tio n R eference B u re a u ", 1 9 8 3 W o rld P o p u la tio n D ata S heet.

Em seu livro Limites do Crescimento, o Clube de Roma chegava


à seguinte conclusão:

Se as atuais tendências de crescimento da população mundial e


34
dos níveis de industrialização, poluição, produção de alimentos e
diminuição de recursos naturais continuarem imutáveis, os limites
de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos
próximos cem anos. 0 resultado mais provável será um declínio sú­
bito e incontrolável tanto da população quanto da capacidade in­
dustriai10.

Muitas objeções válidas têm sido levantadas contra o modelo


computadorizado usado no estudo Limites do Crescimento, e tanto
o Clube de Roma como as Nações Unidas publicaram, desde então,
projeções menos pessimistas31. Contudo, os problemas por ele ex­
postos continuam bem presentes.
Embora as taxas de crescimento na produção industrial e na po­
pulação tenham sido menores desde a crise do petróleo, o cresci­
mento na produção industrial do Ocidente e em alguns países menos
desenvolvidos ainda pode representar no futuro um rombo insuportá­
vel nos recursos naturais da Terra.
Muita gente concorda com o economista Robert Heilbroner:

Decididamente a capacidade da Terra de suportar ou tolerar o


processo de atividade industrial tem um limite absoluto, e temos ra­
zão para crer que estamos atualmente rios movendo m uito depres­
sa em direção a este limite32.

PERSPECTIVAS PARA O FUTURO

A explosão demográfica e a necessidade possível de redução do


processo de industrialização (ao menos nos países desenvolvidos)
constituem as dificuldades implícitas numa tentativa de se repartir
os recursos mundiais de maneira mais justa. Não causa surpresa a
avalanche de preconizações de um juízo final. Quais são as nossas

3 0 D onetla H . M eadow s e t a l.. L im ites d o Crescim ento (S ío Paulo: Perspectivas. 1 9 7 3 ),


p. 2 0 . (A trad u ção fo i u m p ouco m o d ific ad a , para expressar m elh o r a idéia o riginal.)

3 1 E rvin Laszlo et al. (eds.). Goals fo r M an k in d (N ova Io rq u e: D u tto n , 1 9 7 7 ); D . Ga­


b or et al. (eds.). Beyond th e A ge o f W aste (E lm sfo rd , Nova lo rq u e : Pergam on Press, 1 9 7 8 );
Wassily L e o n tie f et a l.. T h e F u tu re o f th e W o rld E co n o m y : A U n ited N atio n s S tu d y (O x ­
fo rd U n iv e rs ity Press, 1 9 7 7 ). Esse p ro je to co m p u ta d o riza d o , com andado pelo economista
am ericano (ganhador d o Prém io N o b el) P ro f. W assily L e o n tie f, conclui qu e existem recur­
sos adequados para u m crescim ento eco n ó m ico c o n tin u ad o em todas as naçôès, para o fu tu ­
ro previsível.

3 2 R o b ert L . H eilb ro n e r, A n In q u iry in to th e H u m an Prospect (N ova lo rq u e: N o rto n ,


1 9 7 4 ), p p . 4 7 -4 8 .

35
perspectivas para o futuro?
Ninguém pode afirmar com segurança o que vai acontecer na pró-
xima~~década. Grandes períodos de fome cm nações pobres podem
levar seus líderes à tentação de desencadear guerras de redistribuição,
nüm^êsTõrço desesperado de conseguir ou impor uma distribuição
mais honesta dos recursos do Globo. Tal conjetura não é mera fan­
tasia.
O mundialmente famoso economista Prof. Heilbroner preconi-
\zou o terrorismo nuclear e "guerras de redistribuição". Heilbroner
imagina o mundo como "um imenso trem, no qual uns poucos pas­
sageiros (quase todos no avançado mundo capitalista) viajam em va­
gões de primeira classe, em condições de conforto simplesmente ini­
magináveis para a grande multidão espremida nos vagões de gado,
que constituem o grosso da composição"33. Quando a situação che­
ga a ponto tal que milhões morrem e dezenas de milhões têm dian­
te de si o terrível destino da inanição, um país como a India vê-se
obrigado a procurar uma saída.

Restam poucas dúvidas de que, certamente nas próximas déca­


das e possivelmente bem mais cedo do que se espera, as maiores den­
tre as nações subdesenvolvidas terão em mãos algum potencial nu­
clear . . . Bem posso imaginar que isso poderia ser usado como
meio de pressão para forçar as nações desenvolvidas a efetuarem
uma transferência substancial de riquezas para o mundo castigado
pela pobreza . . . "Guerras de redistribuição" poderão representar
para os países pobres a única esperança de verem remediada a sua
condição34.

Menos de um ano depois da publicação do livro de Heilbroner a


India explodiu a sua primeira bomba atômica.
As conseqüências de tal confronto seriam um horrível derrama­
mento de sangue, de proporções nunca antes presenciadas na histó­
ria humana. Sem dúvida usaríamos o nosso enorme potencial m ili­
tar para defender a nossa parte injusta das riquezas deste mundo.
Dezenas de milhões morreriam.
Tal desfecho parece demasiado horrível para ser imaginado. To­
davia uma visão realista exige que consideremos o fato de que, a me­
nos que os 25% de nações desenvolvidas promovam, sem demora,

3 3 lb id ., p . 3 9 .

3 4 lb id „ p p . 4 2 -4 3 .

36
mudanças fundamentais, guerras de proporções e ferocidade nunca
vistas continuarão perfeitamente dentro do quadro das possibilidades.
Stanley Mooneyham, presidente da "Visão Mundial", notável
entidade evangélica de assistência e desenvolvimento, nos ajuda a
entender o porquê disso:

/ Eles [os países não-desenvolvidos\ sofreram durante muito tem-


jpo com 'auxílios' que na realidade não o são, com política comer-1
'ciai discriminatória, com o roubo dos seus recursos naturais.35)

Com isso concorda o senador americano Mark Hatfield, ao ad­


vertir:

A maior ameaça para esta nação (os Estados Unidos) e para a


estabilidade mundial é a fome. Ela é mais explosiva do que todo o
armamento atômico das grandes potências. Pessoas desesperadas são
levadas a tomar atitudes desesperadas; e não devemos esquecer que
os meios de processamento da fissão nuclear já estão nas mãos in­
clusive dos países em desenvolvimento36.

Em 1980, a Comissão Presidencial formada para analisar a fo­


me mundial, nos EUA (composta por Democratas e Republicanos,
conservadores e liberais), repetia essa advertência:

A força potencialmente mais explosiva no mundo de hoje é o


desejo frustrado, nas gentes pobres, de chegar a um padrão de vida
decente . . . A Comissão acredita que promover o desenvolvimento
econômico em geral, e em particular vencer a fome, são tarefas mui­
to mais críticas para a segurança nacional americana do que a maio­
ria dos estrategistas reconhece ou mesmo acredita. Desde o advento
das armas nucleares, a maioria dos americanos têm sido condiciona­
dos a equiparar segurança nacional com o potencial das forças m ili­
tares estratégicas. A Comissão considera essa idéia prevalecente co­
mo sendo uma ilusão simplista37.

De acordo com a conclusão do Global 2000 Report to the Pre-


sident (1980), a cooperação global no sentido de reduzir a fome e a
3 5 M o o n e y h a m , p. 5 0 .

3 6 " W o rld H u n g e r” , W o rld V is io n , X X (F e v e re iro , 1 9 7 5 ), p. 5 .

3 7 CiTado em S tep h en C oats, " H u n g e r, S e c u rity and U .S . Foreign P o lic y '' ( “ Bread for
the W o rld Background P ap er" 5 3 . M a io , 1 9 8 1 ).
injustiça é o único caminho para a paz38.
0 Prof. Georg Borgstrom, especialista internacionalmente conhe­
cido em ciências da alimentação e nutrição, teme que "o mundo ri­
co está caminhando para um choque direto com os pobres do mun­
do . . . Nós não conseguiremos sobreviver atrás da nossa Linha Ma-
ginot de mísseis e bombas"35. Mas provavelmente o tentaríamos. E
as conseqüências inevitáveis seriam guerra e carnificina, repressão e
totalitarismo. O que fariam os cristãos nestas circunstâncias?
Ousaremos continuar insistindo em que o Deus revelado nas Es­
crituras está constantemente em ação procurando "pôr em liberda­
de os oprimidos" (Lucas 4:18)? Terão os cristãos coragem para lu­
tar pela justiça para os pobres, mesmo que isso signifique prisão?
De que lado estaremos, você e eu? Com os que passam fome ou
com os que comem demais? Com Lázaro, o mendigo, ou com o ri­
co? A maioria das nações ricas são brancas e nominalmente cristãs.
Que irônica tragédia, a minoria branca, rica, "cristã" continuar acu-
imulando bens enquanto milhoès de pessóaVão redor do mund o
vãô morrendo de fome!
' Uma” revista evangélica bastante popular, de tendência funda-
metalista (com uma circulação de mais de sessenta mil exemplares),
conclamou os cristãos a armazenarem alimentos desidratados. Numa
engenhosa combinação de piedade apocal íptica com refinada promo­
ção de vendas, a revista citava várias "autoridades" em estudos bíb li­
cos para provar que alguns cristãos sobreviverão à grande tribulação.
A conclusão? Uma vez que ninguém pode estar absolutamente segu­
ro sobre onde estarão durante esta tribulação, o negócio é ir com­
prando um estoque de alimentos suficientes para sete anos, pela ba­
gatela de alguns mil dólares40!
Em tempos de fome como os nossos, muitos cristãos (independen­
temente de rótulos teológicos) são fortemente tentados a sucumbir
diante dessa heresia liberal de basear-se mais em valores culturais e
sociais da moda do que na verdade bíblica41. A sociedade terá argu­
mentos diaboj jr.amentR convincentes para que fiq uemos usufruindo
da nossa opulência sem nós lembrarmos _do_bilhão de?p rõxTmos f a-
mmtõs^

3 8 G lo b a l 2 0 0 0 R e p o rt to th e President (U .S . G o ve rn m e n t: W ashington, 1 9 8 0 ), p . I V
da in tro d u ç ão .

3 9 P h ilad elp h ia In q u ire r, 13 de O u tu b ro , 1 9 7 4 , p. 9B .

S u p lem en to d e R ad ar N ew s, Janeiro, 1 9 7 5 , p p . 3-4.

* C f . R o n ald J . S id e r, "W h e re H ave A li th e Liberais Gone?, T h e O th e r Side, M aio-


J u n h o , 1 9 7 6 , p p . 4 2 -4 4 .
Se. no entanto, o Cristo da Escritura é nosso Senhor, nos recusa­
remos a ser moldados pelo nosso abastado e pecaminoso meio cul­
tural. bm tempos de fome, os cristãos têm que ser marcados obri­
gatoriamente pelo não-conformismo. Mas é doloroso ser não-confor-
mista. Só quando estivermos firmemente fundamentados na visao
bíblica de posses, de riqueza e de pobreza seremos capazes de viver
um estilo-de-vida obediente ao nosso Senhor.
CAPITULO 2

A MINORIA RICA

Eu costumava pensar, quando criança, que Cristo devia estar exage­


rando quando advertia sobre os perigos da riqueza. Hoje já entendo
melhor as coisas. Sei como é difícil ser rico e continuar a ser simples
e humano. O dinheiro tem um jeito muito perigoso de colocar tra­
ves no olho da gente, de congelar as mãos, os olhos, os lábios e os
corações1. (Dom Helder Câmara)

A divisão de hoje.
Com uma ou duas exceções, os países ricos se situam no Hemisfé­
rio Norte e os pobres no Sul. A América do Norte, Europa, Rússia
e Japão representam uma opulenta aristocracia nortista. Nosso pa­
drão de vida, quando comparado com o de um bilhão de pobres
no mundo, é pelo menos tão luxuoso como o da aristocracia medie­
val em comparação com o dos seus servos.

; torna maior a cada ano


.175
que
y passa. Entre 1960 e 1980, o abismo entre os 1/5 mais ricos e òs
17 mais'pobres no mundo aumentou em mais de duas vezes2.
!

d e v o lu t i o n T h ro u g h Peace (N ova lo rq u e : H arp er & R o w , 1 9 7 1 ). p. 1 4 2 .

2 R u th Leger S iv a rd , W orld M ilita ry and Social E xpenditures 1 9 8 2 (Leesburg, V A :


W o rld P rio rities, 1 9 8 2 ), p . 19.

40
UM ABISMO CADA VEZ MAIOR

O Produto Nacional Bruto (PNB) oferece uma medida viável de


comparação. Ele representa a soma de todos os bens e serviços pro­
duzidos por uma nação em um ano (menos os lucros e o pagamen­
to de juros que deixam o país e vão parar nas mãos dos donos de
capital no exterior, e mais os pagamentos similares feitos aos em­
presários do país que possuem capital em outros países.) Dividindo-
se o PNB total pelo número de habitantes, chegamos a um PNB "per
capita", o qual, então, pode ser comparado com o de outros países3.

Tabela 5

PNB per capita em 1981 (em US dólares)

Suécia 14.500
Estados Unidos 12.530
Japão 9.890
Brasil 2.214
Nigéria 873
Quênia 432
índia 253
Bangladesh 144

F o n te : A d a p tad o de: John P. Lew is e Valerian o (eds.), U S Foreign Policy


and th e T h ird W o rld : A genda 1 9 8 3 (Praeger, 1 9 8 3 ), pp. 2 1 0 -2 1 8 .

3 E x iste m , c o n tu d o , alguns problem as sérios no uso do P N B com o padrão de com para­


ção:
a. O P N B e o P N B per cap ita nada d ize m sobre a d istribuição da renda. U m país com
d eterm in ad o P N B per capita b em d is trib u íd o pode estar em condições m u ito melhores do
q u e o u tro , d e P N B per ca p ita b em mais elevado, no qual um a pequena p arte d a população
c o n tro la um a p arte d e s p ro p o rcio n alm en te elevada d o P N B .
b . G e ra lm en te as econom ias m enos desenvolvidas dispõem de grandes áreas rurais,
e ali pode haver u m b o m co m ércio de bens e serviços sem o uso d o d in h e iro . Em bora as
cifras do Banco M u n d ia l te n te m levar em conta tais contingências, há sem dúvida uma am ­
pla m argem d e e rro e m suas estatísticas.
c. U m a vez q u e o fa to r que rea lm e n te nos interessa é saber o q u e cada pessoa conse­
gue co m p rar co m a sua renda, com parações internacionais se to rn a m bastante difíceis. Os
preços d e bens e serviços sim ilares p o d em te r grandes variações nos diferentes países. U m
c orte d e c ab elo , p o r ex e m p lo , po d e custar caro nos E U A , mas não custa m u ito no Quénia.
d . Os núm eros d o P N B p o d em não expressar tu d o aq u ilo q ue se relaciona estritam en­
te co m padrões de bem -estar. S e, p o r e x e m p lo , o governo do Irã decide p ro d u zir um grande
estoque de equ ip am en to s m ilitares , o P N B poderá a u m en tar significativam ente; mas não
se vai p o d er d izer q u e co m isso o povo d o Ir ã d e fa to m elh orou de vida.

41
A tabela 5 mostra que os bens do mundo encontram-se reparti­
dos de uma forma assustadoramente desigual. O PNB per capita nos
EUA em 1981, por exemplo, foi de 12.530 dólares; na índia foi de
apenas 235 dólares.
Virtualmente todos os especialistas concordam com que o abis­
mo se alargará ainda mais até o ano 2000. O Global 2000 Report to
the President (1980) preconiza o seguinte:

As atuais disparidades na renda entre as nações mais ricas e as


mais pobres, ao que tudo indica, aumentarão. Partindo do pressu­
posto de que as tendências atuais continuarão, o grupo dos países
industrializados terá um PNB per capita de aproximadamente 8.500
dólares (na cotação de 1975) no ano 2000. E a América do Norte, a
Europa Ocidental, a Austrália, a Nova Zelância e o Japão terão uma
média de mais de 11.000 dólares. Em contrapartida, o PNB per ca­
pita nos países menos desenvolvidos se situará numa média inferior
a 600 dólares. Para cada dólar de aumento no PNB per capita destes
últimos, prevê-se um aumento de 20 dólares para os países industria-
lizados4.

Reconhecendo o fato de que as comparações dos PNB per capi­


ta são passíveis de uma série de restrições, alguns especialistas em
questões de desenvolvimento tentaram aperfeiçoar esses cálculos.
Uma conclusão freqüentemente citada é a de que "as diferenças na
renda per capita entre os países pobres e os ricos oscilavam em to r­
no de 1:2 no início do século XIX; hoje . . . correspondem aproxi­
madamente a 1:20 "s .
Em 1975, o Prof. Irving Kravis, especialista em estudos compa­
rativos de renda da Universidade de Pennsylvania, publicou volu­
mosa obra, na qual faz uma detalhada comparação da renda total
com o poder aquisitivo real, em diferentes países. Sua conclusão é de
que a renda real por pessoa nos EUA é 14 vezes maior que na fndia
e 17 vezes maior que no Quênia6. Assim, conforme os cálculos meti­
culosos, o americano médio é 14 vezes mais rico que o indiano.
Uma comparação do consumo de energia torna ainda mais evi-

4 G lo b al 2 0 0 0 , p. 1 3.

James W . H o w « , e t a l.. T h e U S and W orld D ev e lo p m e n t: Agenda fo r A c tio n , 1 9 7 5


(N o v a Io rq u e: Praeger, 1 9 7 5 ), p . 1 6 6 .

New sw eek, 1 8 A g o s to , 1 9 7 5 , p. 6 6 ; Irving B. Kravis, e t al., A System o f In te rn a tio n a l


C om parisons o f Gross P ro d u c t and Purchasing P ow er (B a ltim o re : Joh n H o pkins U n iversity
Press, 1 9 7 5 ) , esp ecialm ente p p . 8 -9 .

42
dente a opulência em que v.ivemos. Por causa de uma lista cada vez
maior de "luxos" — grande número de aparelhos e utensílios elé­
tricos, automóveis com ar condicionado, arranha-céus e por aí a fo­
ra — os norte-americanos consomem duas vezes mais energia por pes­
soa que os seus parceiros em países industrializados como a França
e a Inglaterra, e 150 vezes mais que a média das pessoas no Zaire7.
Existem várias formas de tornar evidente a incrível opulência
do Ocidente em relação aos países menos desenvolvidos. Mas, sem
dúvida, a conclusão mais frapante do medir as dimensões do abismo
entre nações ricas e pobres fornece a comparação do consumo nas
necessidades mais elementares — alimentação. Como mostra a Tabe­
la 6, os cidadãos norte-americanos consomem quatro vezes mais ce­
reais por pessoa do que a média da população nos países em desen­
volvimento.

Tabela 6

Consumo médio anual de cereais per capita


(direto e indireto), 1969-71 e 1973-75 (em quilos)

média média
1969-71 1973-75

Estados Unidos 825 748


União Soviética 663 796
Comunidade Européia 432 443
Japão 268 274
China 220 222
Países menos desenvolvidos 188 182
(excluindo a China)

F o n te : A d a p tad o de G lo b a l 2 0 0 0 R e p o rt to th e President ( 1 9 8 0 ) , pp. 2 0 -2 1 .

A maior razão para essa berrante diferença é que os norte-ame­


ricanos consomem a maior parte dos grãos por via indireta — por in­
termédio do gado e de aves alimentadas com rações à base de cereais.
Mas por que isso é tão importante? Pelo simples fato de que são
precisos muitos quilos de cereais para produzir um quilo de bife. Em

7V e ja o C a p ítu lo 6 , p. 1 3 6 .

43
julho de 1983 conversei com George Allen, economista-agrônomo
do Serviço de Pesquisas Econômicas do Departamento da Agricultu­
ra dos EUA8. Allen nos disse que um novilho consome na engorda,
para cada quilo de carne que produzirá, treze quilos de cereais! O
New York Times de 28 de novembro de 1974 reportava que na dé­
cada de 40 somente um terço do gado destinado para abate era ali­
mentado à base de grãos. Em 1970 o índice era de 82%. Allen disse
ainda que, se for considerado o tempo de vida total do animal, cada
quilo de carne representa sete quilos de cereais consumidos. Isso sig­
nifica que (fora o pasto, feno e outras forragens) são necessários se­
te quilos de grãos para produzir um quilo de carne de gado que com­
pramos hoje. Felizmente os índices de conversão para aves e porcos
são menores. A carne de gado-é-o—cadilaaue" dos produtos alimen­
tícios9 . Será.que já não_é hora de começarmõTTadenrjips carros
econômicos?
É por causa deste elevado índice de consumo de carne que a mi­
noria rica do mundo devora uma parte tão significativa do alimento
disponível. A Tabela 7 mostra que, em 1982, 775 milhões de pessoas
nas nações desenvolvidas consumiram quase tanto cereal (428 mi­
lhões de toneladas) como os 2.248 milhões de habitantes das nações
menos desenvolvidas (475 milhões de toneladas). Enquanto come­
mos grande parte do cereal indiretamente, via carnc, o povo dos paí­
ses pobres se alimenta diretamente com cereal. Dados da ONU revela­
ram que os rebanhos nas nações ricas comeram tantos grãos em 1974
quanto as populações somadas da fndia e da China10.

Veja Tabela 7 na página 45.

A Tabela 7 mostra que as nações menos desenvolvidas emprega­


ram só 16% do seu cereal na alimentação dos rebanhos. Nas nações
desenvolvidas, essa porcentagem subiu a 65%. É por isso que elas
consomem tanto cereal a mais que as nações pobres.
A ironia f inal é que o nosso elevado consumo de_carne.é preiudi-
cial à nossa-saúde! Segundo um nutricionista de Harvard, Dr. Jean
Mayer, uma dieta rica em gordura contribui para o surgimento de

8 Conversa pessoal p o r te le fo n e , co m R o n ald J .S id e r , 21 d e ju lh o d e 1 9 8 3 .

9 A o m esm o te m p o devem os le m b rar de qu e rum inantes ígado, ovelhas), d iferen tes de


porcos, p o d em co n verter cap im , palha e forragens em p ro te ín a . Terras q ue não servem para
plan tação d everiam c o n tin u a r sendo usadas para a criação de gado.

10"F a c ts on F o o d " , sup lem en to de D evelo p m en t F o ru m , N o vem b ro , 1 9 7 4 .

44
Tabela 7

Consumo de cereais 1982-83, nas Principais Formas de Consumo


(em milhões de toneladas métricas)

População Consum o Ração % d o to ta l Outras fo r­


to ta l to ta l de para os destinado mas de
(m ilhões) cereais rebanhos a rebanhos consumo —
prim aria­
m ente na
alim entação

Mundo 4.436 1.485 537 36% 948

Economias c/
Planejamento
Central 1.413 582 183 31% 399

Nações Menos
Desenvolvidas 2.248 475 75 16% 400

Nações
Desenvolvidas 775 428 279 65% 149

Fo n te: D e p a rta m e n to de A g ricu ltu ra dos E U A , Serviço de Pesquisas E co nôm icas11.

doenças cardíacas12. O Instituto Nacional do Câncer já alertou que


dietas com elevado índice de carne podem contribuir para o câncer
de colo (o segundo mais comum na América do Norte)13. O Dr.
Mark Hegsted, da Escola de Saúde Pública de Harvard, diz que "o
consumo de carne neste país é absurdamente elevado em relação à
real necessidade, e não pode ser justificado em bases nutricionais"14.

11 M a te ria l conseguido com B rad K arm en , analista de cereais do Serviço de Pesquisas


Econôm icas do D ep a rta m en to de A g ric u ltu ra dos E U A (U S D A ), em c o n ta to telefô n ico , no
dia 21 de ju lh o d e 19 8 3 .

12Jean M a y e r, " H e a r t Disease: Plans fo r A c tio n " , U .S . N u tritio n Policies in th e Se­


venties (San Francisco: W . H . F reem an & C o ., 1 9 7 3 ), p . 4 4 .

13" H o w M u ch is E n o u g h ? '', C onsum er R ep o rts, 3 8 , n? 9 ( 1 9 7 4 ), p . 6 6 8 .

l4 C ita d o em M o o n e yh a m , H u n g ry W o rld , p. 1 8 4 . Excelentes sugestões para alim enta-


• ção mais salutar: ver D o ris Langacre, M o re W ith Less C o o kb o o k (Scottdale, Pa.: Herald
Press, 1 9 7 6 ), e F . M . Lap p e. D ie t fo r a Sm all P lanet, ed. rev. (N o va Io rq u e: Ballantine,
1 9 7 5 ).

45
Felizmente as tendências nos EUA têm se inclinado para a direção
certa nos anos mais recentes. De 1940 a 1972 o consumo anual de
carne de gado por pessoa saltou de 25 para 53 quilos. Em 1973, en­
tretanto, caiu para 50 quilos e em 1982 estava por volta de 36 qui­
los15 .
Enquanto a falta de comida mata milhões nos países pobres, o
excessoae comida^fai o mesmo nos países ricosT Segun3cTã pesquisa
mais recente do Uentro Nacional ae Estatísticas sobre a Saúde, dos
EUA, terminada em 1980, 32% dos homens e 36% das mulheres
americanas entre os 20 e os 74 anos têm excesso de peso16.
A porcentagem da renda gasta em alimentação nos diferentes
países fornece outros contrastes: Nos Estados Unidos, são meros
12,7%; na índia, 55,5% e na Nigéria, 63,6%.

Veja Tabela 8 na página 47.

A agonia e a angústia não aparecem nas simples estatísticas da


Tabela 8. Se alguém está gastando 13% da sua renda disponível em
alimentação, um aumento de 50% nos preços dos alimentos causará
uma pequena irritação. Mas quando já se está gastando 64% da renda
em alimentação, um aumento de 50% significa fome.
A Tabela 9, sobre as calorias disponíveis, conta a mesma histó­
ria. Enquanto que a população na América do Norte e na Europa
Ocidental ingere mais calorias do que necessita, em muitos países po­
bres a população dispõe de menos que o mínimo necessário por dia.

Veja Tabela 9 na página 48.

Não há como negar os fatos. Norte-americanos, europeus, russos e


japoneses devoram uma fatia tremendamente desproporcional do
total de alimentos disponíveis no mundo. Meça-se em termos de PNB
ou de consumo de energia ou de alimentos, somos muitas, muitas

Para as cifras m ais antigas, ver B ro w n , In th e H u m a n In terast, p. 4 4 . Os dados de


1 9 8 2 vêm do G eorge A lle n , econom ista-agrônom o d o U S D A , através de c o n tato te le fô n ic o
no d ia 21 d e ju lh o d e 1 9 8 3 .

16D ados n âo -publicados da pesquisa nacional sobre saúde e n u trição . " N a tio n a l H ealth
and N u tr itio n E x a m in a tio n S u rv e y " (1 9 7 6 -8 0 ), realizada pelo C e n tro N acional de E s ta tís ti­
cas sobre Saúde. 3 2 % dos hom ens e 3 6% das m ulheres am ericanas tê m 10% de peso em
excesso, em m éd ia. 1 6 % d e todos os hom ens e 2 4 % d e todas as m ulheres tê m 2 0 % d e excesso.
N ú m e ro s o b tid o s através de c o n ta to pessoal p or te le fo n e , no dia 9 d e agosto de 1 9 8 3 , com
S id n ey A b ra h a m , ch efe d o S e to r de Estatísticas sobre N u triç ã o d o C en tro N acional de E sta­
tís tica s sobre Saúde. V e r , além disso, "O verw eig h t A d u lts in th e U n ite d S tates” , A dvanced
D a ta , N r 5 1 , 3 0 A g o sto , 1 9 7 9 .

46
Tabela 8

Porcentagem de gastoscom alimentação por pessoa,


no consumo doméstico (1979)

Pais % gastos em Renda


alimentação disponível
(US dólares)

Estados Unidos 12,7 9.595


Canadá 14,5 8.323
Reino Unido 17,3 6.297
Alemanha Ocidental 19,5 10.837
Japão 21,5 7.414
Venezuela 31,8 3.332
URSS 33,7 4.040
Honduras 44,1 340
Panamá 48,6 1.119
Ghana 53,6 873
índia 55,6 195
Filipinas 56,9 343
Tanzânia 57,9 159
Nigéria 63,6 80

Fo n te : U n ite d N a tio n s Y e a rh o o k o f N a tio n a l A ccounts Statistics, 1 9 8 0 , V o lu m e s 1 , 2 , 3;


suplem entado p o r O E C D N a tio n a l A ccounts.

í
vezes mais privilegiados 0o que -a maioria de nossos irmãos e irmas,
que são pobres. E o hiato se plarga a cada ano que passa.

V
"POBREZA" COM 30.000 DÓLARES POR ANO?

Estávamos em fins de 1974. Milhões de pessoas estavam literal­


mente morrendo de fome. Mas não era essa a preocupação de Judd
Arnett, colunista associada do "Knight Newspapers". Em um arti­
go lido (e provavelmente crido) por milhões de norte-americanos,
Arnett lamentava o fato de haver pessoas nos EUA ganhando 15.000
dólares por ano, o que significava, para ela, estar quase no limite da

47

r
Tabela 9

Suprimento de calorias per capita, 1978-80

Calorias Calorias, cf. %


disponíveis mínima estipulada

EUA 3624 138


URSS 3460 135
França 3390 134
Canadá 3358 126
Japão 2916 125
China 2472 105
Paquistão 2300 100
Guatemala 2064 94
Brasil 2121 89
Zâmbia 1992 86
Bangladesh 1877 85
Haiti 1882 83
Afeganistão 1833 79
Chade 1808 76

F o n te : E statísticas da F A O citadas em : R u th Leger Sivard, W o rld M ilrta ry and Social


E xp e n d itu re s, 1 9 8 2 , p p . 3 1 -3 5 . As taxas estipuladas de calorias representam esti­
m ativas da F A O (Jan eiro , 1 9 8 0 ) , indicando o consumo necessário para u m a a tiv i­
dade m o d erad a, levando-se em con ta diferenças de idade, sexo, clim a , etc.

pobreza. (Lembre-se que 15.000 dólares em 1974 equivalem a


30.345 em 1983.)17 "Um dos grandes mistérios da vida para mim",
dizia ela, "é como uma família com um salário na faixa dos 15.000
ou mesmo 18.000 dólares de renda bruta pode arcar com todas as
suas despesas e ainda proporcionar estudo para os seus filhos"18.
Poucos anos depois a revista Newsweek trouxe uma história sobre " 0
Pobre de Classe Média" mencionando tranqüilamente o fato de que
cidadãos americanos ganhando na faixa dos 25, 30 ou mesmo 40 mil

Segundo o U S C ity Average C onsum er Price In d ex fo r all Consum ers, A ll h e m s " ,


da S ecretaria do T ra b alh o dos E U A , o ín d ic e de preços ao consum ido r (sendo 1 0 0 em
1 9 6 7 ) era de 1 4 6 ,9 em ju n h o d e 1 9 7 4 e d e 2 9 8 ,1 em ju n h o de 1 9 8 3 . Assim a taxa de in fla ­
ção en tre 1 9 7 4 e 1 9 8 3 fo i de 1 0 2,9% .

18" M id d le Class? N o t on $ 1 5 ,0 0 0 a Y e a r" , Philadelphia In q u ire r, 2 8 O u tu b ro , 1 9 7 4 ,


p . 9 -A .

48
dólares anuais (pela cotação de 1983) se sentiam como estando à bei­
ra da pobreza19.
Para a grande maioria da população mundial, tal afirmação pare­
ce incompreensível — ou muito desonesta. Bem, certamente precisa­
remos de 30, 40 mil ou mais por ano, se insistirmos em ter dois
carros, uma casa grande e luxuosa em zona residencial, um seguro de
vida de 100.000 dólares, roupas novas a cada mudança de moda, as
últimas novidades em aparelhos práticos para a casa e o jardim ("pa­
ra poupar tempo"), três semanas de férias por ano para viajar, etc. e
etc. Muitos norte-americanos são levados a ambicionar exatamente
isso. Mas isso está longe do que se poderia chamar de "lim ite de po­
breza".
Avaliados a partir de qualquer critério objetivo, os 5% da popula­
ção mundial que vivem nos EUA formam uma aristocracia incrivel­
mente rica vivendo no meio de massas de proletariado. Por isso, uma
das coisas mais espantosas, no que diz respeito a essa rica minoria, é
estarmos sinceramente convencidos de que mal temos o suficiente pa­
ra sobreviver dentro de um modesto conforto.

A GRANDE MENTIRA

Um sistema de propaganda constante e sedutora ajuda a criar es­


sa ilusão. Os anunciantes sempre de novo estão aí para nos persuadir
de que realmente necessitamos de um luxo após outro. Acabamos
convencidos de que precisamos ter o mesmo padrão, ou se possível
melhor, que os nossos vizinhos. Por isso compramos outra malha,
outro vestido, outro carro-esporte, forçando assim o padrão de vida
para cima. Poder íamos_dizerque.-Q. p_adrao de vi_da_cada vez-mais opu-.
lento é o deus do Ocidente neste_século-XX_e_os publicitários,.os seus
profetas.
O objetivo da propaganda já não é mais o de informar, é criar de­
sejo. "CRIAR MAIS DESEJO" é o título, em manchete, de um espa­
ço comercial no "New York Times", de surpreendente honestidade.
E continua: "Hoje, como sempre, o lucro e o crescimento são direta­
mente derivados da habilidade do vendedor de saber criar mais dese­
jo "20 . Casas luxuosas, como as mostradas na revista "Casa e Jardim",

19N ew sw eek, 21 S ete m b ro , 1 9 7 7 , pp. 3 0 *3 1 . A s cifras usadas no artig o , pelo d ó la r na


cotação de 1 9 7 7 , fo ra m U S $ 1 5 .0 0 0 , U S $ 1 8 .0 0 0 e U S $ 2 5 .0 0 0 , q u e , convertidos aos equi-
valentes e m 1 9 8 3 . dão os núm eros d o te x to , um a vez qu e o a u m en to no IP C fo i de 64%

^ N e w Y o r k Tim es, 12 J u lh o , 1 9 4 9 . C ita d o em Jules H e n ry , C u ftu re Against M an (N o ­


va Io rq u e : R a n d o m H ouse, 1 9 6 3 ), p . 19 .

49
nos levam a ver as nossas (perfeitamente adequadas) casas, por com­
paração, como se fossem barracos pequenos e em ruínas, a necessitar
urgentemente de uma reforma completa. A exposição dos novos mo­
delos para outono e inverno fazem os nossos trajes e blusas dos anos
anteriores parecerem gastos e decididamente ultrapassados.
Em cada esquina, somos bombardeados por uma propaganda so­
fisticada e manipuladora. Um adolescente norte-americano médio já
assistiu a 350.000 comerciais de TV antes de terminar o segundo
grau!21 Os americanos gastam mais dinheiro em publicidade do que
em todas as instituições de ensino superior. Em 1981, 61,3 bilhões de
dólares foram gastos em propaganda, "para nos convencer de que Je­
sus estava errado no que ensinou sobre a abundância de bens ma­
teriais"22 .
Luxos são transformados em necessidades urgentes pelo poder da
propaganda."Nosso carteiro recentèmentelnosTrouxe um bem-acaba-
d^fõnTetlrn, ilustrado com bonitas fotos de casas muito finas. Um
anúncio trazia a sedutora mentira de que a revista "Architéctural Di-
gest" nos ajudaria, enfim, a satisfazer a "ardente necessidade huma­
na de beleza e luxo". Supostamente, "necessitamos" de luxo! g
Algumas vezes chega a ser cômico o exagero da propaganda. Uma
livraria evangélica, que costuma oferecer bons descontos em suas ven­
das, criou recentemente essa jóia promocional, com um toque de pie­
dade: "Você vai ficar com água na boca e com a alma em chamas
quando puser os olhos nas barganhas que providencialmente prepara­
mos para o seu benefício durante este mês". (E eu prontamente fiz
uma encomenda de livros no valor de 24 dólares! A minha bibliote­
ca é um dos meus quase-ídolos.)

PROMESSAS, PROMESSAS

Talvez o aspecto mais devastador e demoníaco da propaganda.é


Q-t fátõ~~de~eía tentar persuadir-nos-de-que bensjrateriais trazem ale­
gria e reãTizacão. "Que a felicidade pode ser obtiãa pelo enrique­
cimento material sem limites é algo negado por todas as religiões
e filosofias conhecidas; contudo, isto mesmo é pregado sem cessar.

R o b e rt N . B ellah, T h e B ro ken C ovenant (N ova lo rq u e : Seabury Press, 1 9 7 5 ), p . 1 3 3 .


V e r tam b 6m W ilb u r S ch ra m m , Jack L y le & E d w in B. Parker. Television in th e Lives o f
O u r C h ild ren (S tan fo rd : S ta n fo rd U n iversity Press, 1 9 6 1 ).

R ich ard K . T a y lo r , " T h e Im p e ra tiv e o f E co n o m ic D e -D e v e lo p m e n t" . Th e O th e r Side,


Ju lh o -A g o sto , 1 9 7 4 , p. 1 7 , Para os dados sobre propaganda e educacSo, ver U .S . Bureau o f
th e Census, S tatistical A b s tra c t, 1 9 8 2 -8 3 , p. 5 6 6 .
em cada comercial de TV que assistimos"13. Os publicitários prome­
tem que os seus produtos satisfarão as nossas mais profundas necessi­
dades, anseios poramor, aceitação, segurança e realização sexual.
0 uso do desodorante certo, prometem, trará aceitação e amizade. 0
último lançamento em creme dental ou xampu tornarão você irre­
sistível. Uma casa ou uma boa caderneta de poupança lhe garantirão
segurança e amor.
Exemplos neste sentido encontramos em toda parte. Um banco
de Washington, D.C., anunciou recentemente novas cadernetas de
poupança com a seguinte pergunta: "Quem o amará quando você es­
tiver velho e grisalho?" E acrescenta uma proposta muito sedutora:
"Ponha de lado um pouco de amor. Todo mundo precisa de um dó­
lar para uma eventual necessidade. Poupe um pouco de amor." Es­
tas palavras não são bíblicas, são heréticas, demoníacas. Ensinam a
grande mentira da nossa sociedade secular e materialista. Porém, as
palavras e o fundo musical são tão atraentes que depois ficam dan­
çando pela cabeça da gente para lá e para cá, centenas de vezes.
Se ninguém prestasse atenção a essas mentiras elas seriam inó­
cuas. Mas isto é impossível. A propaganda exerce um impacto pode­
roso em todos nós. Ela molda os valores dos nossos filhos. Muita gen­
te em nossa sociedade crê firmemente que possuir mais significa mais
aceitação e mais felicidade. 0 criador de jóias Barry Kieselstein, de
Nova Iorque, expressou com as seguintes palavras a tendência das
pessoas buscarem sentido e amizade em coisas: "Uma peça preciosa
de joalheria, com a qual você se relaciona, é como ter um amigo sem­
pre presente"24. t
Em certo sentido, prestamos demasiado pouca atenção à eficiên­
cia das propagandas. Em geral estamos convencidos de poder igno­
rá-las simplesmente. Mas o fato é que elas se infiltram em nosso sub- \
consciente. Nós as assimilamos em vez de analisá-las. Deveríamos
mesmo é nos flagrar das espalhafatosas mentiras e dai» gargalhadas
em cima das suas promessas absurdas. John V. Taylor sugeriu que as
famílias cristãs adotassem o "slogan": "Quem você pensa que está
tapeando?" e gritá-lo em coro toda vez que aparece um comercial
no vídeo” . '
0 teólogo Patrick Kerans declarou recentemente que a obses­
são da nossa sociedade pelo crescimento econômico e por um ideal

33B ellah. B ro ken C o ve n an t, p . 1 3 4 .

- 4 N ew sw eek, 2 8 d e O u tu b ro . 1 9 7 4 , p, 6 9 .

2 * J o h n V . T a y lo r. Enough is E nough (L o n d re s :S C M Press, 1 9 7 5 ), p. 7 1 .

51
do padrão de vida sempre mais elevado, promovido por uma cons­
tante propaganda, é na realidade uma conseqüência final do llumi-
nismo.
Por volta do século X V III, a sociedade ocidental concluiu que
o método científico é que deveria determinar nosso relacionamento
com a realidade. Uma vez que somente critérios quantitativos de va­
lor e de verdade eram aceitáveis, valores menos concretos como co­
munhão, confiança e amizade passaram a um plano mais secundário.
O PNB pode ser mensurado, o mesmo não acontecendo com valores
como amizade e justiça. Em conseqüência desses princípios, chega­
mos à nossa competitiva economia de crescimento, onde o lucro e o
sucesso econômico (considerados na prática quase a mesma coisa) se
tornam os critérios dominantes26.
Se Kerans tem razão, o resultado disso só pode ser a desintegra­
ção social. Se as nossas estruturas sociais básicas estão construídas so­
bre as pressuposições heréticas do lluminismo, de que o método cien­
tífico é o único caminho para chegar à verdade e aos verdadeiros va­
lores, então — se o cristianismo tem razão — parece inevitável o co­
lapso da nossa sociedade.
A propaganda contém em si mesma uma contradição fundamen­
tal21 . Os cristãos sabem que riqueza não traz felicidade, amor e acei­
tação. A propaganda, porém, promete tudo isso àqueles que cobiçam
ter sempre mais posses e contas bancárias mais polpudas. Dada a nos­
sa inclinação natural para a idolatria, a propaganda é tão diabolica­
mente poderosa e persuasiva que consegue levar tanta gente a per­
sistir em seus esforços infrutíferos por satisfazerem a sua sede de
sentido e realização com uma crescente enxurrada de dinheiro e pos­
ses.
A conseqüência é: internamente, uma angustiante infelicidade
e insatisfação indefinida; externamente, injustiça social e estrutural.
A nossa riqueza não consegue satisfazer os nossos corações inquie­
tos. E além disso ainda ajuda a privar um bilhão de próximos famin­
tos dos alimentos e recursos tão necessários para a sua vida. Teremos
nós, cristãos ricos, a coragem e a sinceridade para aprender a não nos
deixarmos determinar pela propaganda sedutora e satânica deste
mundo?

2 6 P a tric k Kerans, S in fu l Social Stru ctu res (N ova Io rq u e :P a u lis t Press, 1 9 7 4 ), pp. 8 0 -8 1 .

2 'V e r os valiosos co m entários a esse respeito em A rt Gish, B eyond th e R at Rac


(S co ttd ale, Pa.: H erald Press, 1 9 7 3 ). p p . 1 2 2 -2 6 .

52
PRETEXTOS PARA A NOSSA RIQUEZA

Seria impossível para a minoria rica viver consigo mesma se não


tivesse desculpas ou justificativas plausíveis. Essas tentativas de jus­
tificar sua riqueza se apresentam de diversas formas. Analisar algumas
das mais comuns poderá ser proveitoso, no sentido de nos ajudar a
reconhecer as novas formas apresentadas a cada ano.
Nos últimos anos, conceitos como "triagem" (seleção)28 e "é ti­
ca salva-vidas" ("life-boat ethics") têm se tornado cada vez mais
populares. O Dr. Garrett Hardin, distinguido biólogo da Universida­
de da Califórnia, em Santa Bárbara, provocou amplos e apaixonados
debates a partir da publicação dos seus artigos provocativos sobre a
"ética salva-vidas"29. Seu argumento é de que não devemos enviar
auxílios ou alimentos às nações pobres. Cada país rico é como um
barco salva-vidas, que poderá sobreviver somente se se recusara des­
perdiçar os seus recursos já limitados com as massas famintas que es­
tão nadando ao seu redor. Se comermos juntos hoje, todos juntos
morreremos de fome amanhã. Ademais, se os países pobres, "irres­
ponsavelmente", permitem um crescimento populacional irrestrito,
a morte pela fome é a única maneira de se estabelecer um controle
sobre o sempre crescente número de bocas famintas. Assim, um au­
mento na ajuda a estes países significa apenas adiar um pouco o dia
do colapso final. Quando este chegar, ficará claro que os auxílios
que demos tiveram tão somente a função de preservar mais pessoas
para, no final, morrerem de fome. Portanto, é eticamente correto
ajudá-los a aprenderem por si mesmos — deixando-os morrer de fome
já agora!
Contudo há falhas fundamentais na argumentação de Hardin. Ele
ignora dados recentes que mostram que os países pobres podem (e
de fato alguns já o conseguiram) travar o crescimento populacional
de modo bastante rápido se, ao invés de investir em tecnologia avan­
çada e desenvolvimento industrial, concentrarem seus esforços em
melhorar a situação das massas pobres. Se estas tiverem alimenta­
ção assegurada, tiverem acesso a serviços de saúde básicos (que sejam
relativamente baratos), bem como oportunidades, ainda que modes-

Alude-se ao p rin c íp io d e colocar determ inad as utilid ad es escassas (com o cuidados


médicos ou co m id a ) som ente à disposição daqueles a quem aju d ariam para sobreviver, e
n5o daqueles q u e não tém chance de sobrevivência ou que sobreviveriam mesmo sem as­
sistência.

2 9 G a rre tt H a rd in , " L ife b o a t Ethics: T h e Case Against H elping th e P o o r" , Psychology


T oday, 8 , N ? 4 (S e tem b ro , 1 9 7 4 ), p p . 38ss. V e r tam b ém W illia m & Paul Paddock, Famino
1975! (Boston: L ittle , B row n & C o ., 1 9 6 7 ). Reimpresso em 1 9 7 6 sob o títu lo de T im e o f
Famines: A m eric a and th e W orld F ood Crisis.

53
tas, no setor educacional, o crescimento populacional tende a decair
rapidamente. Lester Brown nos oferece um resumo de recentes des­
cobertas nesse campo:

Há evidências surpreendentes de que em um crescente número


de nações pobres . . . os índices de natalidade têm baixado conside­
ravelmente a despeito de uma renda "per capita" relativamente bai­
xa . . . Uma análise de sociedades tão diferentes umas das outras
como China, Barbados, Sri Lanka, Uruguai, Formosa, Punjab, Cuba
e Coréia do Sul sugere um fator comum. Em todos estes países, uma
grande parte da população teve acesso a modernos serviços sociais e
econômicos — tais como educação, emprego e sistemas de crédito . ..
Torna-se cada vez mais evidente que exatamente as estratégias que
mais contribuem para o bem-estar geral da população são também
as mais eficazes na redução do crescimento populacional30.

0 tipo certo de ajuda — dirigida especialmente para a promo­


ção de um desenvolvimento agrícola baseado na mão-de-obra hu­
mana, com uso de tecnologia intermediária31 — contribuirá para o
controle do crescimento populacional. A tese chocante de Hardin
sugere que nada façamos, numa época em que o tipo certo de ação
provavelmente ainda evitará o desastre.
Outra falha na tese de Hardin é ainda mais espantosa. Ele ignora
completamente o fato de que a concentração cada vez maior de ri­
quezas nas mãos da minoria rica é uma das causas fundamentais da
crise atual. Está simplesmente errado dizer que não há comida sufi­
ciente para todos. Há o suficiente — se fosse melhor distribuído. Em
1970, as Nações Unidas estimavam que seriam necessários apenas 12
milhões de toneladas de cereal a mais por ano para prover 260 calo­
rias extras por dia aos 460 milhões de pessoas subnutridas. Isso repre­
senta nada mais do que 30% do cereal com que alimentamos os reba­
nhos nos Estados Unidos32. Num mundo em que o gado da minoria

O desenvolvim ento baseado na m ão-de-obra intensiva emprega pessoas em vez de


m áquinas (p. e x.: barragens p o d em ser construídas p o r 5 0 0 0 pessoas carregando te rra e
pedras tã o bem com o pelo em prego de duas terraplenadoras e trés escavadeiras). A d vo g a­
dos do uso d e tecn o lo g ia in te rm ed iária instam com as nações em desen volvim ento para
q u e , para dar u m ex e m p lo , passem d a enxada para o arado de bois, e não da enxada para o
tr a to r d e grande p o rte . V e r E . F . Schum acher, O N egócio é Ser Pequeno E d . inglesa: (N o ­
va Io rq u e : H a rp e r T o rc h b o o k s , 1 9 7 3 ), pp . 1 6 1 -1 7 9 . A edição brasileira é de Z ah a r E d itores,
ca ix a postal 2 0 7 , 2 0 0 0 0 R io de Janeiro , RJ, 2? ed ição, 1 9 7 9 .

3 2 H o w e . Agenda fo r A c tio n , 1 9 7 5 , pp. 6 0 -6 2 .

54
rica consome mais cereal do que um quarto de toda a população
mundial, é absurdo e imoral falar em necessidade de deixar gente
morrer de fome em determinados países. O barco em que naveqam
psricos não é um bote salva-vidas. precariamente eqüTpãgõ. £ um lu­
xuoso transatlântico carregando uma sociedade esbanjadora. ~~
A proposta de Hardin é também não-realista. Nações famintas
deixadas ao léu para morrerem de fome não iriam desaparecer pas­
sivamente, em silêncio e submissão. A índia, por exemplo, é uma das
nações mais freqüentemente lembradas a ser honrada com tal desti­
no. Só que, como já foi frisado, um país possuidor de armamento
nuclear não toleraria assim no mais tal decisão a seu respeito!33
Uma segunda espécie de justificação vem acompanhada de um
toque de santidade. Será que o mandato evangelístico de testemu- i
nhar o evangelho a pessoas importantes exige que alguns cristãos /
adotem um estilo-de-vida condizente com a posição dessas pessoas? (
Talvez.
Mas é tão fácil achar justificativas! A igreja Garden Grove Com-
munity, na Califórnia, dispõe de um luxuoso complexo de instalações,
inclusive com uma série de chafarizes que começam a jorrar água
quando o pregador aciona um botão no púlpito. Tudo isso custou
milhões de dólares, ü pastor, Robert Schuller, justifica as suas ins­
talações luxuosas dizendo:
Estamos tentando causar uma boa impressão para o americano
rico e não-religioso que viaja por esta movimentada rodovia. É cla­
ro que não estamos tentando impressionar os cristãos'. . . . Supo­
nhamos que tivéssemos dado o dinheiro para alimentar aos pobres:
que teríamos hoje? Teríamos ainda outra gente pobre e faminta
por aí, e Deus não teria essa tremenda base de operações, a qual ele
está usando para inspirar pessoas a se torriarem mais bem sucedidas,
mais ricas, mais generosas, mais genuinamente despojadas de si no
ato de dar3* .
Onde afinal terminam as justificativas válidas e começam os sub­
terfúgios? É claro que precisamos evitar um legalismo simplista. Cer­
tamente os cristãos podem morar onde quiserem, no subúrbio ou
no centro. Contudo, os que defendem um padrão-de-vida mais eleva-
___________ (
3 3 Para um a c rític a bem resum ida com relação á seleção e ética salva-vidas, ver Lester
B ro w n , Th e Po litics and R esponsability o f th e N o rth -A m e ric a n Breadbasket, p. 3 6 ; bem
com o Bread fo r th e W o rld N e w slette r, Ju lh o , 1 9 7 6 .

3 4 R o b ert H . S ch u ller. Y o u r C hurch Has Real Possibilities! (G lendale, C a lif.: Regai


Books, 1 9 7 4 ), p . 1 1 7 .

55
do com base num chamado a testemunhar aos ricos devem confron­
tar-se com perguntas incômodas como estas: Üuanto do meu eleva­
do padrão-de-vida está diretamente relacionado com o meu testemu­
nho a vizinhos ricos? A quanto daquilo eu poderia renunciar em fa­
vor dos irmãos pobres de Cristo, podendo ainda assim continuar
dando um testemunho eficiente? Falando sem rodeios: A quanto de­
vo renunciar para poder proclamar com credibilidade o Cristo bíbli­
co, que ensinou de maneira muito clara que deixar de alimentar os
pobres implica em condenação eterna (Mateus 25.45-46)?
As respostas dos principais governantes norte-americanos a re­
centes propostas feitas pelas nações em desenvolvimento nos mos­
tram como as tentativas de justificação podem degenerar em incoe­
rência. Em 1974 houve um encontro histórico nas Nações Unidas.
Os países em desenvolvimento apresentaram um documento reivin­
dicando uma nova ordem econômica internacional. Insistiam em
preços mais elevados para as suas matérias-primas e outras mudan­
ças nos padrões comerciais, bem como acordos monetários inter­
nacionais que acreditavam que facilitariam o seu desenvolvimen­
to. 0 Secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, junto
com outros dirigentes americanos, acusou aquela grande coalisão
de países de estar "usando" os Estados Unidos. Alguns chegaram a
afirmar que essa "tirania da maioria" poderia até justificar a saída
dos EUA da ONU. Não é o princípio democrático da lei da maio­
ria o nosso princípio? Não é um papo incoerente e desonesto falar
de tirania quando acontece que a maioria faz uso dos seus núme­
ros para exigir justiça? Seria irônico, sem dúvida, depreciarmos os
princípios democráticos a fim de defender a nossa riqueza!
Nas próximas décadas serão legiões as justificativas que inven­
taremos para defender a nossa opulência. Serão populares e persua­
sivas. "Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no
reino dos céus" (Mateus 19.23). Mas para Deus tudo é possível —
se nos dispusermos a ouvir e obedecer à sua palavra. Se há alguma
faísca de esperança para o futuro, ela reside na possibilidade de que
sempre mais cristãos ricos permitam que a Bíblia determine sua re­
lação para com um bilhão de filhos e filhas do pobre Lázaro.
Por isso, nos próximos quatro capítulos, procuraremos desen­
volver uma perspectiva bíblica com relação à pobreza e riqueza.

56
PARTE II

POBREZA E RIQUEZA
EM PERSPECTIVA BÍBLICA

i
V. i i t í h • -■ í
Martim Lutero disse certa vez que "se você proclama o evangelho em
todos os sentidos, com exceção dos assuntos que tra ta m especifica­
mente do seu tempo, você não está pregando evangelho algum". A
observação de Lutero vai no sentido das conclusões de um recente
estudo. Cientistas sociais têm examinado os fatores que determinam
o comportamento dos americanos em assuntos relacionados ao desen­
volvimento das nações pobres. Constataram que a religião nem ao me­
nos se encontra entre eles! As pessoas com profundas convicções re­
ligiosas não estavam preocupadas em maior escala com a assistên­
cia aos pobres e com o seu desenvolvimento do que as pessoas com
pouca ou nenhuma vivência religiosa1.
Os cristãos americanos e os cristãos economicamente bem suce­
didos de quase todo o mundo têm falhado em mostrar a perspecti­
va de Deus com respeito à situação difícil de um bilhão de próxi­
mos que passam fome — seguramente uma das questões mais pre­
mentes de nossos dias.
Contudo, recuso-me a crer que estamos inevitavelmente condi­
cionados a persistir nessa omissão. Estou convicto de que hoje há
milhões de cristãos para os quais Jesus é mais importante do que

i>‘!u 1 A . L au d ic ln a , W o rld P o verty and D e velo p m en t: A S urvey o f A m erican O p in io n


(W ashington, D .C ., Overseas D ev elo p m en t C o u n c il. 19731, p. 2 1 0 .

58
tudo. Há milhões que estão dispostos a correr qualquer risco, fazer
qualquer sacrifício, renunciar a qualquer tesouro, uma vez que vis­
sem claramente que a Palavra de Deus o requer. Essa é a razão por
que a 2? parte, "Pobreza e Riqueza em Perspectiva Bíblica", é a
mais importante deste livro.
Nesta 2? parte há muitas citações bíblicas. Mesmo assim, repre­
senta só uma pequena seleção da grande quantidade de material
bíblico que fala sobre o assurrto. Cry Justice contém quase duzen-
tas páginas de textos bíblicos diretamente relacionados ao tema da
Parte II2.

2 R o n ald J . S id er (e d .l, C ry Justice: T h e B ible Speaks on Hunger and P o verty (Nova


lorque: P aulist; D o w n ers G ro ve: In te rV a rs ity , 1 9 8 0 ).

59
CAPITULO 3

DEUS E OS POBRES

Quem se compadece do pobre, ao Senhor empresta (Provérbios 19.17).


Sei que o Senhor manterá a causa do oprimido, e o direito do neces­
sitado (Salmo 140.12).

Qual é a atitude de Deus em relação aos pobres e oprimidos?


Está Deus do lado do pobre? Alguns teólogos recentemente afir­
maram que sim1. A questão, todavia, é ambfgua. Significa que Deus
está mais interessado na salvação do pobre que na do rico? Ou signi­
fica que Deus e o seu povo tratam o pobre de maneira bem diferen­
te do que são normalmente tratados pelos ricos e poderosos? E
que, face a isso, só podemos deduzir que Deus parece ter uma preo­
cupação especial pelos pobres e oprimidos? Está Deus do lado do
pobre com preferência maior que do lado do rico?
Só poderemos responder a estas questões referentes à "inclina­
ção" de Deus em favor dos pobres depois de termos pesquisado a
Bíblia em busca de respostas a cinco questões correlacionadas:
1) Que preocupação mostrou Deus pelos pobres nos pontos-chave
de sua atuação na história, na qual se revelou (especialmente o êxo­
do, a destruição de Isfael e Judá e a encarnação)? 2) Em que sentido
Deus se identifica com o pobre? 3) Que significa o fato de Deus com

V e ja , p o r e x e m p lo , E n z o G a tti, R ich C h u rc h — P o o r C h u rc h ? (M a ry k n o ll: O rbis,


1 9 7 4 ), p . 4 3 . A Te o lo gia da Lib e rtaçã o , e m geral, se inclina nessa direção. U m a b oa ava­
liação da Te o lo g ia da Lib e rtaçã o co nstitui o liv ro de J . A n d re w K irk , L ib e ra tio n T h e o lo ­
g y : A n Evangelical V ie w F r o m T h e T h ir d W o rld (J o h n K n o x Press. 1 9 8 0 ); veja ta m b é m
os dois excelentes capi'tulos (8 , 9 ) sobre o tem a escritos p o r Ha rvie C o n n , e m : S ta n le y
N . G u n d r y e A la n F . Jo h n s o n (eds.). Te n s io n s in C o n te m p o ra ry T h e o lo g y (C h ica g o : M o o d y
Press, 1 9 7 6 ). H á tra du çã o e m português. Te o lo g ia C on te m p o râ n e a , E d . M u n d o C ris tã o , 19 83 .

60
muita freqüência preferir atuar por meio dos pobres e oprimidos?
4) Que quer dizer a Bíblia quando sempre de novo diz que Deus des-
trói o rico e exalta o pobre? 5) Ordenou Deus ao seu povo que tives­
se uma preocupação especial pelos pobres?
Antes de examinarmos estas questões, temos que parar um pou­
co e perguntar: Quem são os "pobres" na Bíblia?
As palavras hebraicas que designam o pobre são 'àni, ‘ànàw;
'ebyôn, dal e rás. 'A ni (e ‘ànàw, que originalmente tinham mais ou
menos o mesmo significado) denota alguém "injustamente empobre­
cido ou despojado"2. 'Ebyôn se refere a um mendigo implorando ca­
ridade. Dai designa uma pessoa franzina, fraca, p.ex., um camponês
empobrecido e sem recursos3. Divergindo dos outros termos, ras é
essencialmente neutro. Na sua persistente polêmica contra a opres­
são dos pobres, os profetas usaram os termos ’ebyôn, ‘’àni e dai. As­
sim, a conotação primária de "pobres" nas Escrituras é econômica.
Em geral, também, uma calamidade ou alguma forma de opressão
são pressupostas como a causa da pobreza.
Com isso não queremos passar por cima de um fato importan­
te que as Escrituras também ensinam, ou seja, que algumas pessoas
são pobres por serem vadias e preguiçosas (cf., p.ex., Provérbios
6.6-11; 19.15; 20.13; 21.25; 24.30-34). A Bíblia também conhece
a pobreza voluntária por causa do Reino. Todavia, a conotação bí­
blica mais comum de "os pobres" designa aqueles que estão econo­
micamente empobrecidos por causa de alguma calamidade ou explo­
ração4 . É com este sentido do termo que queremos operar neste
capítulo.

PONTOS-CHAVE DA HISTÓRIA DA REVELAÇÃO

A Bíblia ensina clara e repetidamente um ponto fundamental,


que muitas vezes temos desconsiderado. Nos momentos cruciais da
atuação poderosa de Deus na história com vistas à revelação de sua

" E rn s t B a m m el, art. " p t o x o s " , Th e o lo g ic a l D ic tio n a ry o f th e N e w Te sta m e n t (ed.


G . F rie d ric h ), V I , 8 8 8 . O le ito r em portu gu ês e n con tra um a boa análise sobre o tema desta
seção no a rt. " P o b r e " , N o v o D ic io n á rio Inte rn a cion a l de T e o lo g ia d o N o v o Testam ento
(E d . V id a N o v a ), I I I , p p . 5 6 4 -5 7 3 .

3 A . G e lin , T h e P o o r o f Y a h w e h (C olle ge ville: Litu rg ica l Press, 1 9 6 4 ), p p . 1 9 -2 0 . Há


tradução e m portu gu ês, " O s Pobres de Ja v é " (E d . Paulinas).

4 V e r as distinções entre os q u e são pobres p o r causa d e : 1 ) vadiagem ; 2 ) calamidades;


3) e x ploraçã o ; 4 ) o p çã o volu n tá ria , em R . C . S p r o u l, " W h o A r e T h e P o o r? ", Ta b lo ta lk,
V o l. 3 , N ? 6 , J u lh o , 1 9 79 . V e r ta m b é m a discussão sobre o “ espiritualm ente p o b re ", abai­
xo, nota 2 9 .

61
natureza e vontade. Deus também interveio para libertar pobres e j

oprimidos.
a. O Exodo. Deus mostrou seu poder no êxodo com o propó­
sito de libertar escravos oprimidos! Quando chamou Moisés na sarça
ardente, a intenção de Deus era a de pôr fim a uma situação de so­
frimento e injustiça: "V i a aflição do meu povo, que está no Egito,
e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe ò so­
frimento, por isso desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios" j
(Êxodo 3.7, 8). Não podemos afirmar que este texto constitui j
uma passagem isolada dentro do grande evento do êxodo. Ano j
após ano, durante a festa da colheita, os israelitas repetem uma j
confissão litúrgica que celebra o modo como Deus agiu para libertar
um povo pobre e oprimido.
Arameu, prestes a perecer, foi meu pai, e desceu para o Egito,
e ati viveu como estrangeiro . . . Mas os egípcios nos maltrataram e
afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao SENHOR,
Deus de nossos pais; e ele ouviu a nossa voz, e atentou para a nossa
angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e nos tirou
do Egito com poderosa mão . . . (Deuteronômio 26.5-8).

O Deus da Bíblia não fica indiferente quando algumas pessoas


escravizam e oprimem a outras. No evento do êxodo, sua atuação
teve por objetivo acabar com um estado de opressão econômica e í
trazer liberdade a escravos.
E claro que a libertação de escravos oprimidos não foi o único
propósito de Deus no êxodo. Ele agiu também por causa da sua alian­
ça com Abraão, Isaque e Jacó. Seu objetivo também era o de criar
um povo especial, ao qual pudesse revelar-se5. Ambos os propósitos
eram claramente centrais na atuação de Deus no êxodo. O texto a
seguir revela bem o propósito multilateral de Deus neste evento:

De m o d o dife re n te d o q u e alguns teólogos da lib e rtação , que to m a m o é x o d o m era-


m e n te c o m o sendo s im b ó lic o , de caráter insp ira tivo, insisto e m que n o é x o d o Deus estava
em açSo ta n to lib e rtan d o pessoas o p rim id a s c o m o ch a m a n d o para si u m p o v o especial, pa ­
ra serem os recipientes da sua revelaçéfo especial. Javé suscitou u m p o v o especial, de m o d o
que através deles ele pudesse revelar a sua von ta d e e salvaçffo a to dos os povos. Mas a sua
v o n ta d e in c lu ía , c o m o ele foi revelando sem pre mais claram ente ao p o v o d o seu p a cto , o
fato de q ue o seu p o v o deveria segui-lo e estar d o lado dos pobres e o p rim id o s . O fa to de
Javé náo ter lib e rtad o to d os os pobres egípcios p o r ocasião do é x o d o náo significa que ele
náo estivesse p re o cu p a d o pelos pobres em toda parte, nao mais d o que o fato de ele náo
te r d a d o os D e z M a n d a m e n to s a to d os no O rie n te M é d io náo significa que ele náo quisesse
q ue eles tivessem aplicaçáo universal. P o r Deus te r escolhid o revelar-se a si m e sm o na his tó ­
ria, d e m on s tro u a u m p o v o p a rticu la r em circunstâncias particulares a sua von ta d e para t o ­
dos os p ovos em to d o lugar.

62
Ainda ouvi o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios
escravizam, e me lembrei da minha aliança [com Abraão, Isaque e
Jacó ] . . . Vos tirarei de debaixo das cargas do Egito, vos livrarei da
sua servidão, e vos resgatarei com braço estendido e com grandes
manifestações de julgamento. Tomar-vos-ei por meu povo, e serei
vosso Deus; e sabereis que eu sou o SENHOR vosso Deus, que vos
tiro de debaixo das cargas do Egito (Êxodo 6.5-7).

Javé queria que seu povo o conhecesse como aquele que os li­
bertou da escravidão e da opressão.
0 preâmbulo aos Dez Mandamentos, provavelmente a parte mais
importante de toda a Lei israelita, começa com essa mesma verda­
de revolucionária. Antes de dar as duas tábuas da Lei, Javé se identi­
fica: "Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirei da terra do Egito,
da casa da servidão" (Deuteronômio 5.6; Êxodo 20.2). Javé é aque­
le que liberta da servidão. 0 Deus da Bíblia quer ser conhecido como
o libertador dos oprimidos.
O êxodo do Egito foi certamente o evento decisivo na criação do
povo escolhido. E se não virmos, nesse ponto-chave da história, o
Senhor do universo em ação punindo a opressão e libertando os po­
bres, estamos distorcendo a interpretação bíblica desse momentoso
acontecimento.

b. Destruição e Exílio. Ao se estabelecerem na terra prometida,


os israelitas não tardaram a descobrir que o zelo de Javé pela justiça
era uma faca de dois gumes. Quando estavam oprimidos, ele os trou­
xe à liberdade. Quando, porém, eles se tornaram os opressores, isso
os levou à destruição.
Quando Deus chamou: Israel para fora do Egito e fez sua aliança
com eles, deu-lhes a sua lei, para que pudessem conviver em paz e
justiça. Israel, contudo, não foi obediente à lei da aliança. Em conse­
qüência, Deus destruiu a Israel, mandando seu povo escolhido para
o cativeiro.
Por quê?
A explosiva mensagem dos profetas é que Deus destruiu Israel
por terem tratado mal os pobres! A idolatria, sem dúvida, foi uma
razão igualmente importante. Demasiadas vezes, contudo, nos lem­
bramos só deste problema "espiritual" de Israel, passando por cima
do claro e alarmante ensino bíblico de que também a exploração
econômica levou o povo escolhido ao cativeiro.
Os meados do século oitavo a.C. foram uma época de sucesso
político e de prosperidade econômica para Israel como não se via

63
desde os tempos de Salomão6 . Mas foi exatamente nessa época que
Deus enviou seu profeta Amós para anunciar a má notícia: Israel, o
reino do norte, seria destruído. Por trás da fachada de prosperidade
geral e do fantástico crescimento econômico, Amós viu uma terrível
opressão dos pobres. Viu o rico "esmagando sobre o pó da terra a
cabeça dos fracos" (2.7 — BJ). Viu que o opulento padrão de vida
dos ricos havia sido construído na base da opressão dos pobres
(6.1-7). Denunciou as mulheres ricas ("vacas" foi o termo que
usou!), "que oprimem os pobres, que esmagam os necessitados e
dizem aos seus maridos: dai cá, e bebamos" (4.1). Mesmo nos tribu­
nais o pobre não tinha esperança de obter o seu direito, porque os
ricos subornavam os juizes (5.10-15).
Os arqueólogos confirmaram este quadro de contrastes extremos
de riqueza e de pobreza apresentado por Amós7. Nos primeiros tem­
pos do estabelecimento de Israel em Canaã, a terra havia sido distri­
buída de maneira igual entre as famílias e tribos. Todos os israelitas
gozavam de um padrão de vida mais ou menos igual. Os arqueólogos
confirmaram que, ainda lá pelo décimo século a.C., as casas todas
tinham aproximadamente o mesmo tamanho. Entretanto, ao tempo
de Amós, dois séculos mais tarde, a situação já era diferente. As es­
cavações mostram casas maiores e melhor construídas numa área, e
casas mais pobres amontoadas em outros setores8. Portanto, não
é de se admirar a advertência de Amós aos ricos: "Não habitareis
nas casas de pedras lavradas que tendes edificado" (5.11).
A palavra de Deus, dada por intermédio de Amós, era de que
o reino do norte seria destruído e o povo levado ao exílio (7.11, 17).

A i de vós que dormis em camas de marfim,


e vos espreguiçais sobre os vossos leitos,
e comeis os cordeiros do rebanho,
e os bezerros do cevadouro . . .
Portanto agora ireis em cativeiro
entre os primeiros que forem levados cativos
e cessarão as pândegas dos espreguiçadores (Amós 6.4, 7).

Não muitos anos depois de ter o profeta proferido estas palavras,

6 .John B rig h t, A H is to ry o f Israel (P hila de lph ia : W estm inster Press, 1 9 5 9 ), p p . 2 4 0 -4 1 .


Há tra d u çd b em p ortuguês, "H is tó ria de Isra el" (E d . P aulinas).

7 lb id .

8 R o la n d de V a u x , A n c ie n t Israel (N o va Io rq u e : M c G ra w H ill, 1 9 3 5 ), I I , p p . 7 2 -7 3 .

64
elas se cumpriram, exatamente como Deus havia dito. Os assírios
conquistaram o reino do norte, levando milhares ao cativeiro. Por
causa dos maus tratos contra os pobres. Deus destruiu o reino de Is­
rael — para sempre.
Como no caso do êxodo, não podemos ignorar um outro fator
importante. O profeta Oséias (contemporâneo de Amós) aponta
para o fato de que a idolatria da nação foi outra das causas da des­
truição. Por haverem trocado Javé pelos ídolos, a nação teria que ser
destruída (Oséias 8.1-6; 9.1-3)9 . Conforme os profetas, então, o rei­
no do norte caiu tanto por causa da idolatria como da exploração
econômica contra os pobres.
Deus mandou outros profetas a anunciarem o mesmo destino para
o reino do sul, Judá. Isaías, por exemplo, advertiu que uma catás­
trofe similar estava por desabar sobre Judá, por causa do mau trata­
mento dispensado aos pobres:

A i dos que decretam leis injustas. . .


para negarem justiça aos pobres,
para arrebatarem o direito aos aflitos do meu povo . . .
Que fareis vós outros no dia do castigo,
na calamidade que vem de longe?. . . fIsaías 10.1-4).

Miquéias denuncia aqueles em Judá que "cobiçam campos e os


arrebatam, e casas e as tomam; assim fazem violência a um homem e
à sua casa, a uma pessoa e à sua herança" (Miquéias 2.2). Em conse­
qüência, adverte, Jerusalém um dia se tornaria em "montões de ruí­
na" (3.12).
Felizmente, Judá estava mais aberto para a palavra profética, sen­
do a nação, então, poupada por algum tempo. Mas a opressão aos po­
bres continuou. Cem anos depois de Isaías, o profeta Jeremias nova­
mente condenava os ricos que haviam ajuntado riquezas oprimindo
os pobres:

Porque entre o meu povo se acham perversos;


cada um anda espiando, como espreitam os passarinheiros;
como eles dispõem armadilhas
e prendem os homens.
Como a gaiola cheia de pássaros,
são as suas casas cheias de fraude;
por isso se tornaram poderosos, e enriqueceram.

9 A ssim ta m b é m no caso de Ju d á ; c f. E ze quie l 2 0 , Jerem ias 1 1 .9 -1 0 .


Engordam, tornam-se nédios
e ultrapassam até os feitos dos malignos;
não defendem a causa,
a causa dos órfãos, para que prospere;
nem julgam o direito dos necessitados.
Não castigaria eu estas cousas?
diz o SENHOR;
não me vingaria eu
de nação como esta? (Jeremias 5.26-29).

Mesmo nesse tempo avançado Jeremias ainda pôde prometer que ha­
veria esperança se o povo deixasse tanto a injustiça como a idola­
tria.

Se deveras emendardes os vossos caminhos e as vossas obras, se de­


veras praticardes a justiça, cada um com o seu próximo; se não
oprimirdes o estrangeiro e o órfão e a viúva . . nem andardes após
outros deuses para vosso próprio mal, eu vos farei habitar neste lu ­
gar, na terra que dei a vossos pais. . . (Jeremias 7.5-7).

Eles, todavia, continuaram a oprimir os pobres e desamparados


(Jeremias 34.3-17). Por isso, o profeta persistiu em afirmar que Deus
usaria os babilônios para destruir a Judá. Em 587 a.C. Jerusalém
caiu, dando início ao cativeiro babilónico.
A destruição de Israel e de Judá, entretanto, não foi um simples
castigo. Deus quis usar os assírios e os babilônios para purgar o seu
povo da opressão e da injustiça. Em uma notável passagem, Isaías
mostra que Deus atacaria os seus adversários e inimigos (isto é, o
seu povo escolhido!) para purificá-los e restaurar a justiça.

Como se fez prostituta a cidade fiel',


ela que estava cheia de justiça'.
Nela habitava a retidão,
mas agora homicidas.
A tua prata se tornou em escórias,
o teu licor se misturou com água.
Os teus príncipes são rebeldes,
e companheiros de ladrões;
cada um deles ama o suborno
e corre atrás de recompensas.
Não defendem o direito do órfão,
e não chega perante eles a causa das viúvas.
66
Portanto diz o Senhor,
o SENHOR dos Exércitos,
o Poderoso de Israel:
Ah', tomarei satisfações dos meus adversários,
e vingar-me-ei dos meus inimigos.
Voltarei contra ti a minha mão,
purificar-te-ei como com potassa das tuas escórias,
e tirarei de t i todo metal impuro.
Restituir-te-ei os teus juizes, como eram antigamente,
e os teus conselheiros, como no princípio;
depois te chamarão cidade de justiça,
cidade fiel (Isaías 1.21-26).

A catástrofe da destruição nacional e do exílio revelam o Deus do


Exodo sempre atuante no sentido de castigar a opressão aos pobres.

c. A Encarnação. Os cristãos crêem que a revelação mais com­


pleta que Deus fez de si mesmo aconteceu na pessoa de Jesus de Na­
zaré. Como define o Deus encarnado a sua missão?
Suas palavras na sinagoga de Nazaré, pronunciadas mais ou me­
nos no início do seu ministério público, ainda soam palpitantes de
esperança para os pobres. Jesus leu do profeta Isaías:
0 Espírito do Senhor está sobre mim,
pelo que me ungiu
para evangelizar aos pobres;
enviou-me
para proclamar libertação aos cativos
e restauração da vista aos cegos,
para pôr em Uberdade os oprimidos,
e apregoar o ano aceitável do Senhor (Lucas 4.18-19).
Terminada a leitura, comunicou aos seus ouvintes que esta Escritura
se cumpria agora em sua própria pessoa. A missão do Deus feito Ho­
mem era a de libertar os oprimidos e curar os cegos. (Também era
a pregação do evangelho. E isto é igualmente importante, embora
não esteja dentro dos objetivos deste livro uma discussão mais am­
pla sobre este aspecto10). Os pobres são o único grupo especifica-

Pregar o evangelho e buscar justiça para os pobres s3o dimensCes distintas e de


igual im p ortâ ncia da missão total da igreja; ver m eus artigos "E va n g e lis m , S alvatio n and
Social Ju stice : D e fin itio n s and In te rre la tio n s h ip «'', In te rn a tio na l Review o f M ission, J u ­
lh o , 1 9 75 , p p . 251 ss (especialm ente p . 2 5 8 ), e "E va n g e lis m o r S ocial Ju stice : E lim in a tin g
the O p tio n s " , C h ris tia n ity T o d a y , 8 O u tu b ro 1 9 7 6 , p p . 2 6 -2 9 .

67
mente mencionado como destinatários da mensagem de Jesus. Cer­
tamente o evangelho por ele proclamado era para todos, porém
mostrava-se particularmente interessado em que os pobres com­
preendessem que suas boas novas eram para eles.
Alguns tentam desviar-se do sentido claro deste pronuncia­
mento de Jesus, espiritualizando as suas palavras. Não há dúvidas de
que, como mostram outros textos, ele veio para abrir os nossos cora­
ções cegos, para morrer pelos nossos pecados e para nos libertar da
opressão do pecado. Mas não é isso que ele quer dizer aqui. As pala­
vras sobre libertação de cativos e oprimidos provêm de Isaías (61.
1, 2). E, em seu contexto original, no Antigo Testamento, inquestio­
navelmente referem-se à opressão e cativeiro físicos.
Em Lucas 7.18-23, que contém uma lista semelhante à de Lucas
4.18-19, fica mais do que claro que Jesus está se referindo a proble­
mas materiais, físicos11.
O ministério de Jesus, de fato, correspondeu precisamente a es­
tas palavras de Lucas 4. A maior parte do seu tempo esteve ele não
entre os ricos e poderosos em Jerusalém, mas entre os pobres, na Ga-
liléia, cultural e economicamente marginalizada. Curou os doentes
e os cegos. Alimentou os famintos. E advertiu os seus seguidores
com palavras as mais fortes possíveis de que aqueles que não dessem
alimento aos que estivessem com fome, que deixassem de vestir os
que estivessem nus e que esquecessem de visitar os que se encontras­
sem prisioneiros estariam sujeitos à condenação eterna (Mateus
25.3146).
No momento supremo da história, em que Deus se revestiu de um
corpo humano, o Deus de Israel continuava libertando os pobres e
oprimidos e conclamando seu povo a fazer o mesmo. Esta é a razão
central da preocupação cristã para com os pobres.
Entretanto, não é só no êxodo, exílio e encarnação que constata­
mos o cuidado de Deus para com os pobres, fracos e oprimidos. A
Bíblia está cheia de passagens que falam disso. Duas ilustrações dos
Salmos são típicas de uma série de textos sobre o assunto.
O Salmo 10 começa com desespero. Parece que Deus se encontra
distante e oculto, enquanto os maus prosperam, oprimindo os po­
bres (versículos 2 e 9). Porém o salmista conclui com esperança:

C o m isso náo querem os negar que u m uso " e s p iritu a l" d o te rm o " p o b r e " tenha
surgido no p e rfo d o in te rtestam entário . Mas m e sm o então o fu n d a m e n to m aterial e e con ô­
m ico nunca esteve ausente. V e r o m eu a rtig o " A n Evangelical Th e o lo g y o f L ib e ra tio n ", e m :
K e n n eth S . K a n tz e r e S ta n le y N . G u n d r y (e d s.), Perspectives o n Evangelical Th e o lo g y
(G ra n d R a p id s: Baker, 1 9 7 9 ), p p. 1 2 2 -2 4 .

68
A t i se entrega o desamparado;
tu tens sido o defensor do órfão . . .
Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos humildes;
tu lhes fortalecerás o coração,
e lhes acudirás,
para fazeres justiça ao órfão e ao oprimido (Salmo 10.14, 17,18).

0 Salmo 146 é uma retumbante declaração de que importar-se


com os pobres é algo central à própria natureza de Deus. 0 salmista
exulta no Deus de Jacó por ele ser ao mesmo tempo o criador do uni­
verso e o defensor dos oprimidos.

Aleluia'.
Louva, ó minha alma, ao SENHOR.
Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio,
cuja esperança está no SENHOR seu Deus,
que fez os céus e a terra,
o mar e tudo o que neles há,
e mantém para sempre a sua fidelidade.
Que faz justiça aos oprimidos,
e dá pão aos que têm fome.
O SENHOR liberta os encarcerados,
o SENHOR abre os olhos aos cegos,
o SENHOR levanta os abatidos,
o SENHOR ama os justos.
0 SENHOR guarda o peregrino,
amapara o órfão e a viúva,
porém transtorna o caminho dos ímpios (Salmo 146.1, 5-9).

Segundo as Escrituras, faz parte da própria essência de Deus


tanto defender o fraco, o estrangeiro e o oprimido como ser cria­
dor do universo. Por ser o que én , Javé dá novo alento ao maltra­
tado. A base da preocupação do cristão pelos famintos e oprimi­
dos é o fato de que Deus mesmo cuida deles de maneira especial.

12 V e r ta m b é m a discussão s obre É x o d o 2 0 .2 acim a, p . 6 3 , e A p o calip se 7 .1 6 .

69
DEUS SE IDENTIFICA COM OS POBRES

Deus não atua na história só para libertar o pobre; mas, de ma­


neira misteriosa, que só em parte podemos compreender, o soberano
do universo se identifica com os fracos e necessitados. Duas passa­
gens de Provérbios dão testemunho dessa bela verdade. Provérbios
14.31 a coloca negativamente: "O que oprime ao pobre insulta
aquele que o criou." Ainda mais tocante é a formulação positiva:
"Quem se compadece do pobre, ao SENHOR empresta" (19.17).
Que afirmação! Ajudar a uma pessoa pobre é como fazer um em­
préstimo ao Criador de tudo que existe.
Somente na encarnação podemos começar a perceber vagamente
o que significa a identificação de Deus com o fraco,, oprimido e
pobre. "Sendo rico", diz Paulo a respeito de nosso Senhor Jesus, "se
fez pobre por amor de vós " (2 Coríntios 8.9).
Jesus nasceu em uma pequena e insignificante província do Im­
pério Romano. Os primeiros a visitá-lo, os pastores, eram gente en­
carada como marginais pela sociedade judaica. Seus pais eram tão
pobres que não podiam trazer a oferta normal para a purificação.
Em vez de um cordeiro, trouxeram dois pombos para o templo13.
Jesus foi um refugiado (Mateus 2.13-15) e depois um imigrante na
Galiléia (Mateus 2.19-23). Uma vez que os rabinos judeus não rece­
biam remuneração pelo ensino que ministravam, Jesus não teve um
salário regular durante o seu ministério público. (Os professores e
estudiosos pertenciam às classes mais pobres no judaísmo.)14 Nem
teve ele a sua casa própria. A um seguidor impulsivo, que promete­
ra segui-lo a qualquer lugar, ele advertiu: "As raposas têm seus co­
vis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde
reclinar a cabeça" (Mateus 8.20). Do mesmo modo, Jesus enviou
os seus discípulos para a missão em condições de extrema pobreza
(Lucas 9.3; 10.4).
Sua identificação com os pobres e miseráveis foi, segundo ele, um
sinal de que realmente era o Messias. Quando João Batista mandou
mensageiros para perguntar a Jesus se ele era mesmo o Messias, tão
ansiosamente esperado, Jesus simplesmente apontou para o que es­
tava fazendo. Curava os doentes e pregava aos pobres (Mateus 11.2-6).
Jesus também pregou aos ricos. No entanto, aparentemente foi o
seu particular propósito de pregar aos pobres que deu validade à sua

13 Lucas 2 .2 4 . C f . L e v ftic o 1 2 .6 -8 .

14 R ic h a rd B a te y , Jesus a nd the P o o r (N o va lo rq u e : H a rp e r, 1 9 7 2 ), p . 7.

70
reivindicação messiânica. Sua preocupação com os pobres e despri-
vilegiados contrastava fortemente com o estilo de seus contemporâ­
neos. Seria esta, talvez, a causa de ter ele acrescentado ainda uma pa­
lavra a mais para ser levada a João: "Bem-aventurado é aquele que
não achar em mim motivo de tropeço" (Mateus 11.6)?
Somente à medida que sentimos a presença do Deus encarnado
na figura de um pobre galileu começamos a entender as suas palavras:
Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber...
estava nu e me vestistes. . . Em verdade vos afirmo que sempre que o
fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. (.Ma­
teus 25.35-40).
0 que significa alimentar e vestir o Criador de tudo que existe?
Não podemos saber. Só podemos olhar para os pobres e oprimidos
com novos olhos e resolver curar suas feridas e ajudar a pôr fim à
sua opressão.
Se o dito de Jesus em Mateus 25.40 é surpreendente, seu parale­
lo é assustador: "Em verdade vos digo que sempre que o deixastes de
fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer" (v.
45). O que quer dizer isso num mundo em que milhões de semelhan­
tes morrem de fome a cada ano, enquanto cristãos abastados, indife­
rentes, ficam a desfrutar suas riquezas? O que significa ver o Senhor
do universo deitado na calçada morrendo de fome e preferir passar
lá do outro lado da rua? Não podemos saber. Só podemos nos com­
prometer, em temor e tremor, a não matá-lo novamente.

OS INSTRUMENTOS ESPECIAIS DE DEUS

Quando Deus selecionou um povo escolhido, sua escolha recaiu


sobre pobres escravos no Egito. Quando Deus chamou a igreja prim iti­
va, a maior parte dos seus membros era gente pobre. Quando Deus
se tornou homem, o fez na forma de um pobre galileu. Representam
estes fatos um fenômeno isolado, sem correlação, ou fazem parte de
um modelo que quersignificar alguma coisa? Esta é a terceira questão
que nos colocamos, sempre com o propósito de discernir o sentido
da preocupação especial de Deus para com os pobres.
Deus podia ter escolhido uma nação rica e poderosa para ser o
seu povo eleito. Em vez disso optou por escravos oprimidos. Deus
escolheu um povo empobrecido e escravizado para ser seu instrumen­
to especial de revelação e salvação para todo o mundo. (Veja também
a história de Gideão, em Juizes 6.15, 16; 7.2.)
Na igreja primitiva, grande parte dos membros eram pobres.

71
Num livro recente, no qual apresenta uma síntese da história social
do cristianismo primitivo, Martin Hengel destaca o fato de que as
primitivas comunidades gentílico-cristãs "eram predominantemente
pobres"ls . Paulo assombrava-se com o tipo de gente que Deus cha­
mou para a sua igreja:

Não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos po ­


derosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus es­
colheu as cousas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e es­
colheu as cousas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e
Deus escolheu as cousas humildes do mundo, e as desprezadas, e
aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que
ninguém se vanglorie na presença de Deus (1 Coríntios 1.26-29).

Da mesma forma Tiago:


Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor
da glória, em acepção de pessoas. Se, portanto, entrar na vossa sina­
goga algum homem com anéis de ouro nos dedos, em trajes de luxo,
e entrar também algum pobre andrajoso, e tratardes com deferên­
cia o que tem os trajes de luxo e lhe disserdes: Tu, assenta-te aqui
em lugar de honra; e disserdes ao pobre: Tu, fica a li em pé, ou as-
senta-te aqui abaixn do estrado dos meus pés, não fizestes distinção
entre vós mesmos, e não vos tornastes juizes tomados de perversos
pensamentos? Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que
para o mundo são pobres, para serem ricos em fé e herdeiros do reino
que ele prometeu aos que o amam? Entretanto, vós outros menos­
prezastes o pobre. Não são os ricos que vos oprimem, e não são eles
que vos arrastam para os tribunais? Não são eles os que blasfemam
o bom nome que sobre vós fo i invocado? (Tiago 2.1-7).
A pergunta retórica no v. 5 indica que também a igreja de Jerusa­
lém estava longe de sêr rica. Essa passagem como um todo é uma ilus­
tração de como a igreja tantas vezes abandona os caminhos de Deus,
optando, ao invés, pelos caminhos do mundo. Tanto por ocasião do
êxodo como do surgimento da igreja primitiva. Deus escolheu gente
pobre como seus instrumentos especiais.
Obviamente, não devemos superestimar o fato. Abraão parece
ter ido muito bem de vida. Moisés viveu na corte do Faraó durante
quarenta anos. Paulo e Lucas nem eram pobres nem iletrados. Deus

15 M a rtin Hengel, P ro p e rty and Riches in th e E a r ly C h u r c h : A spects o f a S ocial H is


r y o f E a r ly C h ris tia n ity (P hila de lph ia : Fo rtre ss Press, 1 9 7 4 ), p . 3 8 .

72
não trabalhou exclusivamente por intermédio de gente empobrecida
e oprimida. Todavia, podemos observar um agudo contraste entre a
sua maneira de proceder e a nossa. Quando nós queremos transfor­
mar alguma coisa, quase sempre procuramos fazer contato com pes­
soas influentes, dotadas de prestígio e poder. Quando Deus quis sal­
var o mundo, escolheu escravos, prostitutas e outros representantes
das classes marginalizadas.
Mais uma vez a encarnação é o exemplo mais significativo. Em
nenhum outro lugar o contraste entre os caminhos de Deus e os nos­
sos é mais claro do que aqui. Deus poderia ter entrado na história
como um poderoso imperador romano, ou ao menos como um in­
fluente saduceu, ocupando um cargo importante no Sinédrio. Em vez
disso, veio e viveu como um pobre carpinteiro, na modestíssima al­
deia de Nazaré, insignificante demais para ser mencionada no Antigo
Testamento ou nos escritos de Josefo, o historiador judeu do 1?
século16. Esta foi, todavia, a maneira escolhida por Deus para efe­
tuar a nossa salvação.
Quando Jesus escolheu seus discípulos, aqueles que haveriam de
levar adiante a sua missão, todos, à exceção de Mateus, eram pesca­
dores ou outra gente provinda do povo simples da terra. Aqueles que
pensam que somente os ricos e poderosos é que transformam a histó­
ria continuam tendo dificuldades de aceitar a preocupação de Jesus
para com os fracos e pobres.
De novo devemos opor-nos ao ponto-de-vista contrário, de que
Deus nunca usa pessoas ricas e poderosas como seus instrumentos
escolhidos. Ele o fez e faz. Nós, porém, sempre escolhemos tais pes­
soas. Deus, por sua parte, freqüentemente escolhe os pobres para se
desincumbirem das suas tarefas mais importantes. Ele vê potencial
onde nós não vemos. E quando a missão está cumprida, os pobres
e fracos são menos suscetíveis de se vangloriarem de merecimentos.
O fato de Deus escolher pessoas humildes para serem mensageiros
da salvação para o mundo é uma notável evidência da atenção espe­
cial que lhes devota. E sua encarnação na pessoa de um pobre gali-
leu nos sugere que o seu freqüente uso dos pobres como seus ins­
trumentos não é uma trivialidade histórica insignificante, mas, pelo
contrário, aponta para algo bastante significativo na própria natu­
reza de Deus.

1 6 B a te y , Jesus and the P o o r, p . 6 .

73
DEUS: UM MARXISTA?

A história do homem rico e de Lázaro, contada por Jesus, ilustra


e repete um quarto ensinamento que se destaca ao longo das Escritu­
ras: O rico pode prosperar durante certo tempo, mas, afinal. Deus o
destruirá; o pobre, por outro lado, virá a ser exaltado por Deus.
O "Magnificat" de Maria afirma isso de modo simples e objetivo:

A minha alma engrandece ao Senhor. . .


Derrubou dos seus tronos os poderosos
e exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos
e despediu vazios os ricos (Lucas 1.46-53).

Centenas de anos antes o cântico de Ana proclamava a mesma


verdade:

Não há santo como o SENHOR;


porque não há outro além de t i . . .
Não multipliqueis palavras de orgulho,
nem saiam cousas arrogantes da vossa boca . . .
O arco dos fortes é quebrado,
porém os débeis cingidos de força.
Os que antes eram fartos, hoje se alugam por pão,
mas os que andavam famintos, não sofrem mais fome . . .
O SENHOR empobrece e enriquece. . .
Levanta o pobre do pó,
e desde o monturo exalta o necessitado (1 Samuel 2.2-8).
Jesus pronunciou uma bênção sobre os pobres e uma maldição sobre
os ricos:
Bem-aventurados vós os pobres,
porque vosso é o reino de Deus.
Bem-aventurados vós os que agora tendes fome,
porque sereis fartos. ..
Mas ai de vós, os ricos',
porque tendes a vossa consolação.
A i de vós os que estais agora fartos'.
porque vireis a ter fome (L ucas 6.20-25) 17.

V e r ta m b é m S a lm o 1 0 7 .3 5 -4 1 . V e r a b a ix o , p . 1 3 4 , para u m a discussão sobre as d ife -


rentes versões das bem -oventuranças e m M ateus 5 e Lucas 6 .

74
"Atendei agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas des-
. venturas, que vos sobrevirão" (Tiago 5.1), é um tema constante na
revelação bfblica.
Por que razão a Escritura declara que Deus regularmente rever­
te a boa sorte do rico? Está Deus engajado numa luta de classes?
Na verdade, os textos que estamos usando nunca afirmam que Deus
ama mais aos pobres que aos ricos. Porém, estão constantemente fa­
zendo menção ao fato de que Deus reabilita ao pobre e desprivilegia-
do. Persistentemente nos asseguram de que Deus derruba os ricos e
poderosos — exatamente por terem chegado a esta posição por meio
da opressão aos pobres e por terem deixado de alimentar aos famin­
tos.
Por que teria Tiago dito aos ricos que chorassem e se lamentas­
sem por causa da miséria que lhes estava por sobrevir? Por terem lo­
grado os seus empregados:

Tesouros acumulastes nos últimos dias. Eis que o salário dos trabalha­
dores que ceifaram os vossos campos, e que por vós foi retido com
fraude, está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até
aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente
sobre a terra. Tendes vivido nos prazeres. Tendes engordado os vos­
sos corações, em dia de matança (Tiago 5.3-5).

Deus não tem classes especi'ficas por inimigos. Porém ele odeia
e pune a injustiça e negligência com relação aos pobres. E os ricos,
se aceitamos as repetidas advertências das Escrituras, são freqüente­
mente culpados de ambos18.
Muito antes da época de Tiago, o salmista já sabia que os ricos
muitas vezes eram ricos por causa da opressão. Mas ele tomou alento
na confiança de que Deus puniria tais malfeitores.

Com arrogância os ímpios perseguem o pobre. . .


São prósperos os seus caminhos em todo tempo. . .
Pois diz lá no seu íntimo: Jamais serei abalado:
de geração em geração nenhum mal me sobrevirá. . .
Está ele de emboscada como o leão na sua caverna;
está de emboscada para enlaçar o pobre:
apanha-o e, na sua rede, o enleia . . .

18 N ã o d evem os passar p o r cim a , 6 claro, d o ensino b fo lic o de que a ob e d iência traz


prosperidade. V e r a b a ix o , p p . 1 3 1 -1 3 3 . para u m a discussão sobre esse tem a.

75
Levanta-te, SENHOR'. 0 Deus, ergue a tua mão\
não te esqueças dos pobres . . .
Quebranta o braço do perverso e do malvado . . .
Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos humildes;
tu lhes fortalecerás o coração, e lhes acudirás,
para fazeres justiça ao órfão e ao oprimido . . . (Salmo 10).

A mesma mensagem Deus anunciou por intermédio do profeta


Jeremias:

Porque entre o meu povo se acham perversos;


cada um anda espiando, como espreitam os passarinheiros;
como eles dispõem armadilhas
e prendem os homens.
Como a gaiola cheia de pássaros,
são as suas casas cheias de fraude;
por isso se tornaram poderosos, e enriqueceram.
Engordam, tornam-se tiédios
e ultrapassam até os feitos dos malignos;
não defendem a causa, a causa dos órfãos,
para que prospere;
nem julgam o direito dos necessitados.
Não castigaria eu estas cousas? diz o SENHOR (Jeremias 5.26-29).

Não podemos dizer que a fé de Jeremias e do salmista era tão


somente expressão de um desejo por ver as coisas acontecerem. Por
meio dos profetas Deus anunciou devastação e destruição tanto para
indivíduos ricos como nações ricas, que oprimiam os pobres. E real­
mente aconteceu o que haviam predito. Jeremias foi quem pronun­
ciou uma das críticas mais sarcásticas e satíricas que se encontram
nas Escrituras, contra o rei Jeoaquim, de Judá:

A i daquele que edifica a sua casa com injustiça,


e os seus aposentos sem direito;
quem se vale do serviço do seu próximo sem paga,
e não lhe dá o salário;
que diz: Edificarei para mim casa espaçosa;
e largos aposentos,
ele abre janelas,
forra-a de cedros
e a pinta de vermelhão.

76
Reinarás tu,
só porque rivalizas com outro em cedro?
Acaso teu pai não comeu e bebeu,
e não exercitou o juízo e a justiça?
Por isso tudo lhe sucedeu bem.
Julgou a causa do aflito e do necessitado;
por isso tudo lhe ia bem.
Porventura não é isso conhecer-me?
diz o SENHOR. '
Mas os teus olhos e o teu coração
não atentam senão para a tua ganância,
e para derramar o sangue inocente,
e para levar a efeito a violência e a extorsão . . .
Portanto assim diz o SENHOR acerca de Jeoaquim . . .
Como se sepulta um jumento assim o sepultarão;
arrastá-lo-ão e o lançarão para bem longe,
para fora das portas de Jerusalém (Jeremias 22.13-19).
Segundo os historiadores Jeoaquim foi assassinado19 .
Deus destrói tanto nações inteiras como indivíduos ricos por
causa da opressão aos pobres. Já examinamos alguns dos textos mais
expressivos quanto a isso no início deste capítulo20. Ainda outro
se destaca pela sua importância. Por meio de Isaías Deus declarou
que os governantes de Judá eram ricos por terem logrado os pobres.
Cegadas pela riqueza, as mulheres ricas exibiam-se com vaidade e
malícia, completamente indiferentes ao sofrimento dos oprimidos.
A conseqüência, Deus disse, seria destruição.

O SENHOR entra em juízo


contra os anciãos do seu povo,
e contra os seus príncipes.
Vós sois os que consumistes esta vinha:
o que roubastes do pobre está em vossas casas.
Que há convosco que esmagais o meu povo
e moeis a face dos pobres?
diz o Senhor, o SENHOR dos Exércitos.
Diz ainda mais o SENHOR:
Visto que são altivas as filhas de Sião,

19 B rig h t, H is to ry o f Israel, p . 3 0 6 . Para u m e vento sim ilar, ver D a n iel 4 (especialm en-
te o v. 2 7 ).

2 0 V e r a cim a, p p . 6 4 ss; ver ta m b é m M iquóias 2 .1 -3 .

77
e andam de pescoço emproado,
de olhares impudentes,
andam a passos curtos,
fazendo tinir os ornamentos de seus pés,
o SENHOR fará tinhosa
a cabeça das filhas de Sião. . .
Naquele dia tirará o SENHOR
o enfeite dos anéis dos artelhos,
e as toucas e os ornamentos. . .
Será que em lugar de perfume haverá podridão,
e por cinta, corda,
em lugar de encrespadura de cabelos, calvície,
? em lugar de veste suntuosa, cilício,
è marca de fogo em lugar de formosura.
Os teus homens cairão à espada,
e os teus valentes na guerra (Isaías 3.14-25).
Pelo fato de os ricos estarem oprimindo os pobres e fracos, o Senhor
da história está em ação, demolindo e arrasando suas casas e reinos.
As vezes a Escritura não acusa os ricos de uma opressáfo di­
reta ao pobre. Simplesmente os acusa de omissão no compartilhar
das suas riquezas com os necessitados. Mas o resultado é o mesmo.
Na história do rico e de Lázaro (Lucas 16), Jesus não disse que
o rico estava explorando o pobre mendigo. Ele apenas mostra que
o tal homem simplesmente não se importava com o mendigo doente
que jazia diante do seu portão. "Vestido de púrpura e de linho finís­
simo", o rico "se regalava esplendidamente todos os dias" (Lucas
16.19). Lázaro, por seu turno, "desejava alimentar-se das migalhas
que caíam da mesa do rico" (16.21). Será que o homem lhe negava
até as migalhas? Talvez não. Mas fica claro que não mostrava real
preocupação com ele. Tal negligência pecaminosa para com os neces­
sitados enche de fúria o Deus dos pobres. Quando Lázaro morreu.
Deus lhe deu conforto no seio de Abraão. Quando o rico morreu,
foi colocado em tormento21. 0 sentido do nome Lázaro, "alguém
ajudado por Deus"22, sublinha o ponto básico dessa história. Deus
ajuda ao pobre, mas ao rico manda embora de mãos vazias.

Jo a c h im Jerem ias, As Parábolas do Jesus (E d iç õ e s Paulinas, 1 9 8 0 ), p p . 1 25ss„ e


o u tro s , tôm a rgu m e n ta d o q u e o p o n to aonde Jesus qu eria chegar era o u tro c o m p le ta m e n ­
te dife re n te . E u , c o n tu d o , c o n tin u o in clin a d o a seguir a inte rp re ta çã o usual; ve r, p o r e x e m ­
p lo , T h e In te rp re ter's B ib le , 8 , p p . 2 8 8 -9 2 .

22 Ib id ., p . 2 9 0 .

78
Clark Pinnock certamente tem razão quando observa que "uma
história como a do rico e Lázaro deveria explodir nas nossas mãos
quando a lemos comodamente sentados diante de nossas mesas far­
tas, enquanto o Terceiro Mundo está ali fora"23. Não apenas a Lei e
os Profetas, mas o próprio Senhor Jesus proclama esta aterradora pa­
lavra de que Deus destrói o rico quando deixa de prestar assistência
ao pobre.
A explanação bíblica da destruição de Sodoma fornece outra ilus­
tração desta terrível verdade. Se perguntados pelas causas da destrui­
ção de Sodoma, virtualmente todos os cristãos apontariam para a
brutal perversão sexual dos moradores da cidade. Mas tal resposta é
bastante parcial, sendo apenas parte do que diz a Bíblia. Ezequiel
mostra que uma importante razão pela qual Deus destruiu Sodoma
foi por recusar-se obstinadamente a compartilhar seus bens com os
pobres!

Eis que esta fo i a iniqüidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura


de pão e próspera tranqüilidade teve ela e suas filhas; mas nunca am­
parou o pobre e o necessitado. Foram arrogantes e fizeram abomi­
nações diante de mim ; pd o que, em vendo isto, as removi dali (Eze­
quiel 16.49-50)2* .

0 texto não afirma que eles oprimiam os pobres (embora provavel­


mente o fizessem); simplesmente os acusa de se terem omitido de
assistir aos necessitados.
Os cristãos abastados relembram o mau comportamento sexual
dos sodomitas, mas se esquecem da sua omissão pecaminosa com re­
lação aos pobres. Por que será? Será pelo, fato do primeiro fator ser
menos revolucionário para nossa s itu a ç ã o ? ^ ^ que temos permLtido
esses econômicos e egoístas torcam a interpretação
em dúvida, assim acontece! Porém, na exata medida
em que a nossa submissão à autoridade das Escrituras é sincera, per­
mitiremos que textos mais perturbadores como esse corrijam a nos­
sa visão. Em permitindo que isso aconteça haveremos de reconhecer,
com temor e tremor, que o Deus da Bíblia proclama uma horrenda
ameaça de destruição sobre os ricos. Não o faz porque não amasse os
ricos, mas porque sempre de novo os ricos oprimem os pobres e/ou
negligenciam o amparo aos necessitados.
2 3 C la rk H . P in n o c k , " A n Evangelical T h e o lo g y o f H u m a n L ib e ra tio n ", Sojournors,
Fevereiro, 1 9 7 6 , p . 3 1 .

2 4 C f. ta m b é m Isafas 1 .1 0 -1 7 .

79
OS INTERESSES DE DEUS E OS NOSSOS

Uma vez que Deus zela tanto pelos pobres, não é de causar sur­
presa que queira ver o seu povo fazendo o mesmo. 0 mandamento
de Deus aos crentes, de dar especial importância aos pobres, fracos
e marginalizados é o quinto tema da literatura bíblica sobre riqueza
e pobreza que queremos enfocar.
Justiça igual nos tribunais, tanto para pobres como para ricos,
é um tema constante das Escrituras. A Lei o ordena (Êxodo 23.6).
O salmista invoca a assistência divina ao rei para que ele possa cum-
pri-la (Salmo 72.1-4). Os profetas anunciaram destruição porque
os governantes obstinadamente subvertiam a justiça (Amós 5.10-
15).
Viúvas, órfãos e estrangeiros também, com muita freqüência,
recebem particular atenção.

Não afligirás o forasteiro, nem o oprimirás; pois forasteiros fostes


na terra do Egito. A nenhuma viúva nem órfão afligireis. Se de
algum modo os afligirdes, e eles clamarem a mim, eu lhes ouvirei
o clamor; a minha ira se acenderá, e vos matarei à espada; vossas
mulheres ficarão viúvas e vossos filhos órfãos (Êxodo 22.21-24).

"Os órfãos, as viúvas e os estrangeiros", observa John F. Ale-


xander, "têm cada um mais ou menos 40 versículos que exigem que
se lhes faça justiça. Deus tenciona deixar bem claro que, em sentido
todo especial, ele é o protetor dos fracos. Os estrangeiros devem ser
tratados como se fossem judeus, e ai daquele que quiser tirar vanta­
gem dos órfãos e das viúvas"25.
Raros são, por exemplo, os cristãos que prestam alguma atenção
ao mandamento de Jesus de "dar preferência" aos pobres ao convi­
darem gente para alguma festa ou jantar.

Quando deres um jantar ou uma ceia, não convides os teus amigos,


nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos ricos . . . Antes,
ao dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e
os cegos; e serás bem-aventurado, pelo fato de não terem eles com
que recompensar-te (Lucas 14.12-14)16.

2 5 " T h e B ible and the O th e r S id e " , T h e O th e r S id e , 1 1 , N ? 5 (S e te m b ro -O u tu b ro ,


1 9 7 5 ), p . 5 7 .

2 6 V e r ta m b é m Hebreus 1 3 .1 -3 .

80
Obviamente Jesus usou de uma hipérbole, uma técnica típica da
literatura hebraica quando se quer enfatizar alguma coisa. Sua in­
tenção não era a de proibir festinhas com amigos e parentes. Certa­
mente, porém, teve a intenção de nos dizer que deveríamos convi­
dar os pobres e menos favorecidos (que não têm condições de retri­
buir o convite) ao menos tantas vezes — e possivelmente com maior
freqüência — quanto os nossos amigos, parentes e gente "bem suce­
dida". Você conhece algum cristão que esta' levando Jesus a sério
nesta questão?
A Bíblia ordena especificamente aos crentes que imitem a Deus
na preocupação especial que ele mostra pelos pobres e oprimidos.
No Antigo Testamento, Javé freqüentemente relembra aos israelitas
a sua anterior condição de opressão no Egito, ao ordenar que zelem
pelos pobres. O imerecido zelo de Deus pelos escravos hebreus no
cativeiro egípcio é o modelo a ser imitado (Êxodo 22.21-24; Deute-
ronômio 15.13-15).
Jesus ensinou os seus seguidores a imitarem a bondade de Deus
inclusive no que diz respeito a empréstimos!

Se fizerdes o bem aos que t/os fazem o bem, qual é a vossa recom­
pensa? . . . E se emprestais àqueles de quem esperais receber, qual é
a vossa recompensa? . . . emprestai, sem esperar nenhuma paga; se­
rá grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo. Pois ele
é benigno até para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, co­
mo também é misericordioso vosso Pai {Lucas 6.33-36).
Por que emprestar sem esperar devolução? Porque esse é o modo
como o Pai o faz. Os seguidores de Jesus são chamados a inverter os
padrões normais dos homens exatamente pelo fato de serem filhos
de Deus e quererem refletir a Sua natureza.
Quando Paulo estava levantando a coleta para os pobres em Je­
rusalém, propositalmente lembrava os coríntios de que o Senhor
Jesus se fez pobre para que eles se tornassem ricos (2 Coríntios
8.9). Quando o autor de 1 João conclamou os cristãos a comparti­
lharem com os necessitados, primeiramente mencionou o exemplo
de Cristo: "Nisto conhecemos o amor, em que Cristo deu a sua vida
por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos" (1 João 3.16). En­
tão, logo no versículo seguinte, instou com os cristãos a que dessem
generosamente aos necessitados, é o maravilhoso auto-sacrifício de
Cristo que os cristãos são chamados a imitar no seu relacionamento
com os pobres e oprimidos.
Temos visto que a Palavra de Deus instrui os crentes a zelarem

81
pelos pobres. Com efeito, a Bíblia sublinha o mandamento com o
ensino de que quando o povo de Deus zela pelos pobres está imitan­
do o próprio Deus. Mas isso ainda não é tudo. A Palavra ensina que
aqueles que tratam com negligência os pobres e oprimidos não são
realmente povo de Deus — não importando a quantidade de seus ri­
tos religiosos nem a ortodoxia de seus credos e confissões.
Sempre de novo Deus fala trovejando por meio dos seus profe­
tas que o culto num contexto de abuso dos pobres e menos favo­
recidos é ultraje. Isaías denunciou a Israel (chamando-o de Sodoma
e Gomorra!) porque queria prestar culto a Javé e ao mesmo tempo
oprimir os fracos:

Ouvi a palavra do SENHOR,


vós príncipes de Sodoma;
prestai ouvidos à lei do nosso Deus,
vós, povo de Gomorra.
De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios?. . .
Não continueis a trazer ofertas vãs;
o incenso é para mim abominação,
e também as luas novas, os sábados, e a
convocação das congregações;
não posso suportar iniqüidade associada
ao ajuntamento solene.
As vossas luas novas, e as vossas solenidades,
a minha alma as aborrece;. . .
sim, quando multiplicais as vossas orações,
não as ouço,
porque as vossas mãos estão cheias de sangue (Isaías 1.10-15).
0 que é que Deus quer? “ Cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o
bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito
do órfão, pleiteai a causa das viúvas" (Isaías 1.16-17).

Igualmente fortes são as palavras de Isaías contra a prática de


jejuns quando ao mesmo tempo se cometiam injustiças:

Por que temos jejuado


e tu não o vês?
Temos mortificado as nossas almas
e tu não tomas conhecimento disso?
A razão está em que, no dia mesmo do vosso jejum,
correis após os vossos negócios
e explorais os vossos trabalhadores . . .
82
Por acaso é este o jejum que escolhi,
um dia em que o homem mortifique a sua alma? . . .
Por acaso não consiste nisto o jejum que escolhi:
em romper os grilhões da iniqüidade,
em soltar as ataduras do jugo
e pôr em liberdade os oprimidos
e despedaçar todo o jugo?
Não consiste em repartires o teu pão com o faminto,
em recolheres em tua casa os pobres desabrigados,
em vestires aquele que vês nu
e em não te esconderes daquele que é tua carne?
(Isaias 58.3-7 — BJ).

As palavras de Deus por intermédio de Amós são igualmente


severas:

Aborreço, desprezo as vossas festas,


e com as vossas assembléias solenes
não tenho nenhum prazer.
E, ainda que me ofereçais holocaustos
e vossas ofertas de manjares,
não me agradarei deles . . .
Antes corra o juízo como as águas,
e a justiça como ribeiro perene (Amós 5.21 -24)21.

Um pouco antes, já no capítulo 5, o profeta havia condenado


os ricos e poderosos por oprimirem os pobres. E ainda subornavam
os juizes para não serem derrotados nos tribunais. Deus quer, de
tais pessoas, justiça, e não ritos religiosos28. Seu culto é uma zom­
baria, uma abominação ao Deus dos pobres.
E nisso Deus não mudou. Jesus repetiu o mesmo tema. Ele ad­
vertiu o povo a respeito dos escribas, "os quais devoram as casas das

V e r J . A . M o ty e r, T h e D a y o f the L io n : T h e Message o f A m o s {D o w n e rs G ro v e :
In te rV a rs ity, 1 9 7 4 ), p p . 1 2 9 -3 7 , para um a boa exegese destes versículos. (T ra d u ç ã o p o r tu ­
guesa deste livro está sendo anunciada pela A B U E d ito ra .) V e r ta m b é m M iquéias 6 .6 -8 ;
T ia g o 2 .1 4 -1 7 .

2 8 C o m isso não quere m os d ize r que Deus não esteja interessado na verdadeira a d o ­
ração. N e m A m ó s 5 .2 1 -2 4 q uer significar: " E u não qu e ro que vocés d e fendam os meus
d ireitos, reais ou im aginários; q u e ro q ue lu tem e gastem as suas energias no progresso da
causa dos pobres e o p r im id o s " (G a tti, R ich C h u r c h — P o o r C h u rc h ? , p . 1 7 ). T a l d ico to m ia
ignora o ataque p ro fé tico à id olatria, tão central na mensagem dos profetas. Deus quer
am bos, adoração e justiça. Trag ica m e n te , alguns hoje se co nce n tra m em u m , o u tro s em
o u tro aspecto. Poucos estão buscando am bas as coisas sim ultaneam ente.

83
viúvas e, para o justificar, fazem longas orações" (Marcos 12.38-40).
Suas vestes, que lhes davam um ar de piedade, suas freqüentes visi­
tas à sinagoga, era tudo fingimento. Jesus foi um profeta dentro da
tradição de Amós e Isaías. Como eles, anunciou que Deus rejeita
os que' tentam misturar práticas piedosas com o tratar mal aos
pobres.
A palavra profética contra os hipócritas religiosos levanta uma
questão extremamente delicada: É o povo de Deus verdadeiramente
povo de Deus, se oprime o pobre? É a igreja verdadeiramente igreja,
se não faz nada para libertar os oprimidos?
Vimos como Deus declarou que o povo de Israel era, na realida­
de, Sodoma e Gomorra, e não povo de Deus (Isaías 1.10). Deus sim­
plesmente não podia mais tolerar a exploração a que submetiam os
pobres e desprivilegiados. Oséias chegou a anunciar solenemente que,
por causa dos seus pecados, Israel já não era mais o povo de Deus e
que ele já não era mais o seu Deus (Oséias 1.8-9). E o fato foi que
Deus os destruiu. Jesus foi ainda mais duro e contundente. Aos
que deixarem de alimentar os pobres, vestir os que estão nus e visi­
tar os prisioneiros, ele proferirá uma terrível sentença por ocasião
do juízo final: "Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno,
preparado para o diabo e seus anjos" (Mateus 25.41). O sentido
aqui é claro e não deixa lugar a dúvidas. Jesus quer que os seus dis­
cípulos o imitem no zelo especial que demonstrou para com os po­
bres e necessitados. Os que desobedecerem, sofrerão a condenação
eterna.
Talvez, porém, tenhamos interpretado mal o texto de Mateus
25. Alguns pensam que "estes mais pequeninos" (v. 45) e "estes
meus pequeninos irmãos" (v. 40) se refere somente a cristãos. A exe­
gese dessa passagem é controvertida. Mas, mesmo que estas palavras se
refiram, primeiramente, a crentes pobres, outros aspectos do ensino
de Jesus não só permitem como exigem que ampliemos o sentido
de Mateus 25, englobando tanto a crentes como descrentes pobres e
oprimidos. A história do bom samaritano (Lucas 10.29ss) ensina que
qualquer um que estiver passando necessidade é nosso próximo. Ma­
teus 5.43ss é ainda mais explícito:

Ouvistes que fo i dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu ini­


migo. Eu, porém, vos digo: Amai os vossos inimigos e orai pelos
que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste,
porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e vir chuvas so­
bre justos e injustos.

84
0 ideal na Comunidade de Qumran (conhecida através dos Rolos
do Mar Morto) era, de fato, "amar todos os filhos da luz" e "odiar
todos os filhos das trevas" ("A Regra da Comunidade", 1 QS 1:9-
10). Até mesmo no Antigo Testamento, aos israelitas havia sido or­
denado que amassem o vizinho que era filho do seu próprio povo, e
que não buscassem a prosperidade dos amonitas e moabitas (Leví-
tico 19.17-18; Deuteronômio 23.3-6). Jesus, porém, proíbe explici­
tamente aos seusseguidores limitarem o amor ao próximo que é mem­
bro do seu próprio grupo étnico ou religioso. O seu mandamento pa­
ra eles é que imitem a Deus, que faz o bem a todos, em toda parte.
Como disse George Ladd: "Jesus redefine o sentido do amor ao
próximo; ele significa amor a toda pessoa necessitada"29. A luz da
parábola do bom samaritano e do ensino claro de Mateus 5.43ss,
somos compelidos a dizer que parte do ensino mais amplo de Ma­
teus 25 é que aqueles que deixam de atender aos pobres e oprimi­
dos (sejam crentes ou não) simplesmente não são povo de Deus.
Para que não esqueçamos a advertência. Deus a repete em 1 João
3.17-18: "Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu
irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode
permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra,
nem de boca, mas de fato e de verdade". (Veja também Tiago 2.14-
17 .) Aqui de novo as palavras são claras. Que significam elas para
cristãos ocidentais que ambicionam sempre maior bem-estar material,
enquanto cristãos no Terceiro Mundo estão subnutridos, tendo cor­
pos e mentes deformados — inclusive chegando a morrer de fome?
O texto afirma claramente que, se deixamos de ajudar ao necessita­
do, não temos o amor de Deus —digamos o que quisermos. O que se
faz é o que conta, e não a piedade sobre a qual se fala e prega. A
despeito do que façamos ou digamos no domingo de manhã, gente
rica que negligencia os pobres não é povo de Deus.
Persiste, contudo, o problema. Deixam de ser cristãos os crentes
professos por causa de constante pecado? é claro que não. O cristão
sabe que o egocentrismo pecaminoso é algo que continua a atormen­
tar até os mais santos. A salvação é pela graça somente, e não por
obras de justiça. Somos membros do povo de Deus, não por nossa
| justiça própria, mas unicamente em virtude da morte de Cristo
por nós.

G . E . L a d d , A T h e o lo g y o f th e N e w Te s ta m e n t (G ra n d R apids: Ee rd m a n s , 1 9 7 4 ),
p . 1 3 3. Para toda essa questão, se M ateus 2 5 , 1 Jo ã o 3 , e tc ., devem ser lim ita d o s em sua
aplicação a cristãos, ver a magistral discussão de S te p h e n C . M o t t, B ib lica l E th ics and S o ­
cial Change (N o v a lo rq u e : O x f o r d , 1 9 8 2 ), p p . 3 4 -3 6 .

85
Esta resposta é verdadeira — mas incompleta. Mateus 25 e 1 João
3 com certeza querem dizer mais do que simplesmente que o povo de
Deus é desobediente (e ainda justificado ao mesmo tempo) quando
trata o pobre com negligência. Estas passagens afirmam expressa­
mente que há pessoas que desobedecem a Deus de tal modo que de
fato não são seu povo, a despeito de sua piedosa profissão de fé. E
a negligência em relação aos pobres é um dos freqüentemente repe­
tidos sinais bíblicos de tal desobediência. Certamente nenhum de nós
diria que cumprimos à risca as palavras de Mateus 25. E todos nos
apegamos à esperança do perdão. Mas a coisa chega a um ponto (e,
graças a Deus, só ele sabe qual é!) em que a negligência para com o
pobre não é perdoada. E punida. Eternamente.
Não seria possível que muitos dos "cristãos" ocidentais já tenham
chegado a este ponto? Nós, norte-americanos, ganhamos 14 vezes
mais que as pessoas na índia; contudo, damos só uma pequena parte
disso à igreja. E a maioria das igrejas ainda gastam essa ninharia que
lhes damos consigo mesmas. Podemos dizer que estamos sendo obe­
dientes ao mandamento bíblico de zelar pelos pobres? Podemos ho­
nestamente dizer que estamos sendo imitadores de Deus no que diz
respeito à preocupação pelos pobres e oprimidos? Podemos seria­
mente ter esperança de experimentar o amor eterno, e não a separa­
ção eterna do Deus dos pobres?
Como a Bíblia claramente nos ensina, Javé tem um cuidado espe­
cial pelos pobres e oprimidos. Significaria isto, porém, como alguns
afirmam atualmente, que Deus é parcial em favor dos pobres? Certa­
mente, não. As Escrituras explicitamente nos proíbem de ser parciais.
"Não farás injustiça no juízo: nem favorecendo o pobre, nem com­
prazendo ao grande: com justiça julgarás o teu próximo" (Levítico
19.15; também Deuteronômio 1.17). Êxodo 23.3 diz exatamente a
mesma coisa: "não serás parcial com o pobre na sua demanda". Deus
instrui seu povo a ser imparcial, porque ele mesmo não tem precon-,
ceito nem para um lado nem para outro.
O ponto crucial para nós, no entanto, não é a imparcialidade de
Deus, e sim a conseqüência dessa sua atitude de não pender para
nenhum lado. O texto declara a imparcialidade de Javé e, logo a se­
guir, mostra o terno cuidado de Deus para com os pobres e despri-
vilegiados.

O SENHOR vosso Deus é o Deus dos deuses, e o SENHOR dos


senhores, o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção
de pessoas, nem aceita suborno; que faz justiça ao órfão e à viúva,
e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes. (Deuteronômio 10.17-18).
Deus não é parcial. Ele tem a mesma preocupação amorosa para
com cada pessoa que criou30. Precisamente por essa razão é que ele
se importa tanto com os pobres e desprivilegiados como com os for­
tes e afortunados. Se confrontamos a maneira com que você e eu,
bem como os poderosos e cheios de conforto de todas as épocas e
sociedades sempre agimos em relação aos pobres, com o modo com
que Deus os trata, parecerá mesmo que Deus tem uma grande incli­
nação por eles. Tão somente quando nós colocamos a nossa perver­
sa preferência pelos prósperos e bem-sucedidos como natural e nor­
mativa é que a posição de Deus parece tendenciosa.
Por isso, ao dizer que Deus está do lado dos pobres, há várias coisas
importantes que não tenho em mente. Primeiro, Deus não é tenden­
cioso. Segundo, pobreza material não é um ideal bíblico. Terceiro,
os pobres e oprimidos, simplesmente por serem pobres e oprimidos,
não são por isso membros do povo de Deus. (Os pobres são pecami­
nosos e desobedientes a Deus tão bem como os pecadores de classe
média, tendo necessidade, pdr isso, de se arrependerem e serem sal­
vos pela graça justificadora de Deus.) Quarto, Deus não está mais
preocupado com a salvação dos pobres do que com a dos ricos.
Quinto, não deveríamos partir de um contexto de opressão ideolo­
gicamente interpretado (p.ex., a análise marxista) e então reinter-
pretar as Escrituras a partir de tal preconceito ideológico. Sexto,
Deus não passa por cima do pecado dos que são pobres por causa de
preguiça ou alcoolismo. Deus pune tais pecadores31.
Deus, contudo, não é neutro. Sua imparcialidade não significa
que ele se mantém neutro na luta pela justiça. Deus está do lado
do pobre! A Bíblia clara e repetidamente ensina que Deus está em
ação na história derrubando os ricos e levantando os pobres, porque
freqüentemente os ricos e prósperos o são exatamente por terem
oprimido os pobres ou tratado com negligência os necessitados. Co­
mo veremos no próximo capítulo, Deus também se posiciona ao la­
do dos pobres por desaprovar extremos de riqueza e de pobreza. O

E nem Deus deseja a salvaçffo dos pobres mais d o que a dos ricos. D is co rd o e n fa ti-
cam ente da afirm a çã o de G a t ti: "E le s [os pobres e o p rim id o s ] s5o aqueles qu e tém o m a ior
dire ito a esta palavra; sao eles os privilegiados destinatários d o e va n ge lho" (R ic h C h u rc h —
Poo r C h u rc h ? , p . 4 3 ). Deus deseja q ue to dos — opressores e o p rim id o s igualm ente — sejam
salvos. N in g u é m te m " d i r e i t o " a lgum de o u v ir a palavra de Deus. To d o s m erecem os a m o r ­
te. E m contraste co m a pecam inosa perversidade dos cristSos que preferem pregar nos b a ir­
ros residenciais em vez de ir às favelas, Jesus e Paulo parecem tendenciosos ern fa vor da p re ­
gação aos pobres.

31 U m d e se n volvim e nto mais d e talh ado destas questões encontra-se n o m eu artigo


" A n Evangelical T h e o lo g y o f L ib e ra tio n ", K a n tz e r e G u n d r y (e d s.). Perspectives o n Eva n -
gelical T h e o lo g y , p p . 1 1 7 -1 2 0 .

87
Deus da Bíblia está do lado dos pobres justamente por não ser ten­
dencioso, por ser um Deus de justiça imparcial.
Os ricos negligenciam ou até se opõem à justiça, porque esta exi­
ge que acabem com sua opressão e compartilhem com os pobres.
Por isso Deus se opõe ativamente aos ricos. Mas isso não significa
de modo algum que ele ame menos aos ricos que aos pobres. Deus
anseia pela salvação tanto de um como de outro. Ele deseja realiza­
ção, alegria e felicidade para todas as suas criaturas. Isto, entretan­
to, não está em contradição com o fato de que ele se posiciona ao
lado do pobre. 0 arrependimento e a conversão genuinamente bí­
blicos levam as pessoas a se afastar de todo pecado — incluindo o da
opressão econômica32. Salvação, para os ricos, certamente incluirá
libertação da sua injustiça. Assim, o anseio de Deus pela salvação e
realização dos ricos está em total harmonia com o ensino bíblico
de que Deus está do lado do pobre.
O zelo de Deus pelos pobres é surpreendente e ilimitado. Nos
pontos-chave da história da revelação vemos Javé em ação libertan­
do os oprimidos. Podemos ter uma pequena idéia da profundidade
desta sua identificação com os fracos pelo que nos foi revelado na
Encarnação. Freqüentemente os pobres são os seus instrumentos,
especialmente escolhidos, de revelação e salvação. Sua paixão pela
justiça o compele a destruir sociedades e indivíduos ricos que opri­
mem o pobre e negligenciam o necessitado. Conseqüentemente, o
povo de Deus — se de fato o é — segue nas pisadas do Deus dos
pobres.
À luz desse claro ensino bíblico, quão bíblica é a nossa teologia
evangélica? Penso que devemos confessar que os cristãos estão mui­
to mais do lado dos opressores ricos do que dos pobres oprimidos.
Imaginem o que aconteceria se todas as nossas instituições eclesiás­
ticas — nossas organizações de jovens, nossas publicações, nossas fa­
culdades e seminários, nossas congregações e as cúpulas das deno­
minações — se arriscassem a empreender, durante dois anos, uma
ampla avaliação de todo o seu programa e suas atividades, buscando
responder a seguinte pergunta: Está havendo o mesmo equilíbrio
em nossos programas, a mesma ênfase na justiça para os pobres e
oprimidos que encontramos nas Escrituras? Inclino-me a predizer
que, se o fizéssemos com uma disposição incondicional de mudar
tudo que não corresponda à revelação bíblica sobre o cuidado espe­
cial de Deus pelos pobres e oprimidos, desencadearíamos um novo

32 V e ja c a p itu lo 6 . p p . 1 3 6 -1 4 2 .

88
movimento de preocupação social bíblica que haveria de mudar o
curso da história moderna.
Mas o nosso problema não é primariamente de ética. Não se tra­
ta tanto de que tenhamos deixado de viver o que os nossos mestres
nos ensinaram. A nossa própria teologia tem sido não-bíblica. Por
ignorar em grande parte o ensino bíblico central de que Deus está do
lado dos pobres, a nossa teologia tem sido profundamente não-orto-
doxa. A Bíblia tem tanto a dizer sobre esta doutrina como sobre a
ressurreição de Jesus. Nós, todavia, insistimos na ressurreição como
um critério de ortodoxia, e quase que ignoramos o importante en­
sino bíblico de igual importância de que Deus está do lado do pobre
e do oprimido.
Agora, por favor, não me entendam mal. Não estou querendo di­
zer que a ressurreição não é importante. A ressurreição corporal de
Jesus de Nazaré é de central importância para a fé cristã, e quem
quer que a negue ou diga que ela não é importante caiu em here­
sia33 . Mas se é que o embasamento nas Escrituras representa um
critério de importância doutrinal, então o ensino bíblico de que
Deus está do lado dos pobres deve ser uma doutrina extremamente
importante dos cristãos.
Temo que aqueles cristãos que se têm considerado como os
mais ortodoxos tenham caído em liberalismo teológico. Geralmen­
te pensamos num liberalismo teológico em termos dos liberais clás­
sicos do século dezenove, que negaram a divindade, a expiação e a
ressurreição corporal de Jesus, nosso Senhor. E está certo. Pessoas
que abandonam estas doutrinas centrais caíram em terrível heresia.
Mas observem bem qual é a essência do liberalismo teológico — é
permitir que o nosso pensamento e a nossa vida sejam moldados pe­
los valores e pelos pontos-de-vista da sociedade que nos rodeia, e
não pela revelação bíblica. Os teólogos liberais pensavam que a cren­
ça na divindade de Jesus Cristo e na sua ressurreição corporal era in­
compatível com uma visão de mundo moderna e científica. Assim,
seguiram os ditames da sociedade científica que os rodeava, ao invés
de seguirem as Escrituras.
Os cristãos ortodoxos, com razão, alertaram contra essa heresia
— para entâfo, tragicamente, fazer exatamente a mesma coisa em ou­
tra área. Temos permitido que os valores da nossa opulenta socieda­
de materialista moldem o nosso pensar e agir com relação aos pobres.
é bem mais fácil hoje, em círculos teologicamente conservadores, in­
sistir em uma cristologia ortodoxa do que insistir no ensino bíblico

33 V e r os v á r i o s artigos q ue escrevi sobre a ressurreição, na lista da n ota 2 d o E p ílo g o .

89
de que Deus está do lado dos pobres. Temos permitido que a nossa
teologia fosse moldada por preferências econômicas dos nossos con­
temporâneos materialistas, e não pelas Escrituras. E isso é cair em
liberalismo teológico. Não temos sido tão ortodoxos como pensa­
mos.
Falhas passadas, contudo, não são razão para desespero. Penso
que é isso que queremos dizer quando cantamos "para mim mais va­
le ter a Jesus do que casas e terras". Penso que é isso que queremos
dizer quando escrevemos e afirmamos formulações doutrinais que co­
rajosamente declaram que não somente queremos crer mas também
viver conforme tudo que as Escrituras nos ensinam. Mas se é isso
que queremos dizer, então temos que ensinar e viver, num mundo
cheio de injustiça e de fome, a importante doutrina bíblica de que
Deus e o seu povo crente estão do lado dos pobres e dos oprimidos.
A menos que reformulemos drasticamente tanto a nossa teologia
como toda a nossa vida institucional como igreja, de modo que o fa­
to de que Deus está do lado dos pobres e dos oprimidos se torne tão
central para nossa teologiaeosnossosprogramasoficiaiscomooépara
as Escrituras, estaremos demonstrando ao mundo que o nosso com­
prometimento verbal com o sola scriptura é um suporte ideológico
desonesto para um status quu injusto e materialista.
Espero e quero crer que na próxima década milhões de cristãos
vão permitir que o ensino bíblico do Deus dos pobres e oprimidos
reformule por completo a nossa teologia culturalmente determina­
da bem como os nossos programas e as nossas instituições, que são
antibiblicamente unilaterais. Se isso acontecer, forjaremos uma no­
va teologia da libertação, verdadeiramente bíblica, que transforma­
rá o curso da história moderna.

90
CAPITULO 4

R E L A Ç Õ E S E CONÔMI CA S
E N T R E O POVO DE DEUS

Porque não é para que os outros tenham alívio, e vós, sobrecarga;


mas para que haja igualdade, suprindo a vossa abundância no presen­
te a falta daqueles, de modo que a abundância daqueles venha a
suprir a vossa falta, e assim haja igualdade, como está escrito: O que
muito colheu, não teve demais; e o que pouco, não teve falta. (2 Co-
ríntios 8.13-15)

Deus quer relações econômicas radicalmente transformadas no


meio do seu povo. O pecado nos tornou alienados de Deus e uns dos
outros. As conseqüências são egoísmo, estruturas injustas e opressão
econômica. Entre o povo de Deus, todavia, o poder do pecado foi
quebrado. A nova comunidade dos remidos começa a viver um pa­
drão de relações pessoais, sociais e econômicas inteiramente novo. A
presente qualidade de vida do povo de Deus deve ser um sinal da
futura perfeição e justiça a serem reveladas quando os reinos deste
mundo se tornarem finalmente e de modo pleno o reino de nosso
Senhor, na sua segunda vinda ao mundo.
Neste capítulo nos propomos a observar alguns modelos bíblicos
fundamentais de relações economicamente transformadas. Descobri­
mos nas Escrituras que Deus criou mecanismos e estruturas para evi­
tar grandes desigualdades econômicas entre o seu povo. À medida em
que as relações econômicas são "redimidas" no corpo de Cristo, a vi­
da normal da igreja, como expressão de uma disponibilidade mútua

91
entre os seus membros, poderá apontar de modo convincente para
o reino que está por vir. E — como se isso não bastasse —a amorosa
unidade entre os cristãos deve se tornar tão visível e concreta que
convence o mundo de que Jesus veio do Pai (João 17.20-23).

O PRINCÍPIO DÓ JUBILEU

Levítico 25 é um dos textos mais radicais das Escrituras. Pelo me­


nos assim o parece a pessoas nascidas em países onde reina ou o prin­
cípio da não-intervenção econômica, ou o comunismo. A cada 50
anos, disse Deus, toda a terra deveria voltar a pertencer aos donos
originais — sem nenhum tipo de compensação! Desvantagens natu­
rais ou a morte da pessoa que sustenta a família ou mesmo a falta
de habilidade natural podem fazer com que algumas pessoas fiquem
mais pobres que outras. Deus, contudo, não quer ver essas desvanta­
gens degenerando para uma distância sempre maior entre ricos e
pobres. Por isso deu a seu povo uma lei que equalizaria as condições
de propriedade da terra a cada 50 anos (Levítico 25.10-24).
Numa sociedade essencialmente agrícola, terra é capital. A ter­
ra representava o meio de produção básico em Israel. No começo, é
claro, havia sido dividida de modo mais ou menos justo e equalitário
entre as tribos e famílias (Números 26.52-56)1. Aparentemente Deus
queria que essa igualdade econômica básica continuasse. Daí o seu
mandamento de que se devolvesse toda a terra aos seus proprietários
originais a cada 50 anos. A propriedade privada não foi, com isso,
abolida. Mas os meios de produção deveriam ser redistribuídos de
tempo em tempo.
Qual é a base teológica de tão surpreendente mandamento? A
pressuposição básica é a de que Javé é o proprietário de tudo. A ter­
ra não pode ser vendida em definitivo, porque Javé é que é o seu do­
no: "A terra não será vendida perpetuamente, porque a terra é m i­
nha; pois vós sois para mim estrangeiros e peregrinos" (Levítico 25.
23). Deus é o proprietário! Temporariamente ele permite que o seu
povo peregrine nessa boa terra, a cultive, coma do que ela produz
e encha os olhos com a sua beleza. Mas não passamos de administra­
dores ou mordomos temporários. A mordomia é uma das categorias
teológicas centrais de qualquer compreensão bíblica da nossa relação

Ta m b é m E ze q u ie l 4 7 .1 4 . V e r a discussão e a literatura citada em M o tt, B ib lica l Ethics


and S ocial Cha ng e, p p . 6 5 -6 ; e Ste p he n Charles M o tt, "E g a lita ria n Aspects o f the Biblical
T h e o r y of J u s tic e ", 1 9 78 Selected Papers: A m e ric a n S o c ie ty o f C hristian E thics, p p . 1 5 -1 9 .

92
para com a terra e os recursos econômicos em geral2.
Antes e depois do ano do Jubileu, a terra podia ser comprada e
vendida. Porém, o que o comprador adquiria, na realidade, não era a
terra em si mas um número específico de colheitas que ela daria (Le-
vítico 25.16). E ai daquele que tentasse enriquecer sob a alegação de
um mercado em baixa, recusando-se a pagar o preço justo até o pró­
ximo Jubileu! "Sendo muitos os anos, aumentarás o preço, e sendo
poucos, abaixarás o preço; porque ele te vende o número das messes.
Não oprimais ao vosso próximo; cada um, porém, tema a seu Deus;
porque eu sou o SENHOR vosso Deus" (Levítico 25.16, 17). Javé
é Senhor — até sobre a economia! Não encontramos aqui o menor
sinal de alguma sagrada lei de oferta e demanda totalmente indepen­
dente da ética bíblica e do senhorio de Javé. 0 povo de Deus se sub­
mete a ele, e ele exige que impere a justiça nas relações econômicas
entre o seu povo.
E da maior significação o fato de que esta passagem prescreve
justiça, e não alguma casual distribuição de comida por abastados
filantropos. O ano do Jubileu visava uma estrutura institucionaliza­
da, que afetava a todos os israelitas automaticamente. A pessoa po­
bre tinha o direito de receber de volta a sua herança ao tempo do
Jubileu. Devolver a terra não era uma cortesia caridosa que os ricos
podiam se dar ao luxo de fazer se quisessem.3.
O princípio do Jubileu igualmente provê chances no sentido de
auto-sustento e auto-desenvolvimento. Tendo de volta a sua terra,
a pessoa pobre novamente tem meios de ganhar a sua vida. 0 concei­
to bíblico do Jubileu sublinha a importância de mecanismos e estru­
turas institucionalizadas que promovam justiça.
é interessante como essa passagem referente ao Jubileu desafia
tanto ao capitalismo como ao comunismo de um modo igualmente
fundamental. Só Deus é proprietário absoluto. Além do mais, o di­
reito de cada pessoa, de ter os meios com os quais garantir a sua sub­
sistência, assume prioridade sobre os "direitos de propriedade" de
um comprador ou sobre uma economia de mercado totalmente li­
vre. Ao mesmo tempo, esse texto afirma claramente não apenas o
direito, mas a importância da propriedade privada dirigida por fa­
mílias que compreendem que são mordomos, administradores res­

2 V e r o excelente livro e d itado p o r L o re n W ilk in so n , E a rth K e e p in g : C h ristian S te w a r-


dship o f N a tu ra l Resources (G ra n d R a p id s : E e rdm a n s , 1 9 8 0 ), especialm ente p p . 232ss.

3V e r em co ne xã o c o m esse assunto o a rtigo de Paul G . S c h ro te n b o e r, " T h e R e tu rn


of Ju b ile e ” , In te rn a tio na l Re fo rm e d B u lle tin , O u to n o , 1 9 7 3 , p p . 19ss., especialm ente p p .
2 3 -2 4 .

93
ponsáveis diante de Deus. Deus quer que cada família tenha os re­
cursos necessários para produzir o seu próprio sustento — para
fortalecer a família, para dar às pessoas a liberdade para serem cria­
doras e participantes responsáveis da história, para evitar a centrali­
zação do poder e o totalitarismo que quase sempre acompanha a pos­
se centralizada da terra ou do capital, seja pelo estado ou por peque­
nas elites.
Finalizando, chamamos a atenção a mais um aspecto notável de
Levftico 25. Certamente é mais que mera coincidência que o toque
de trombeta que anunciava o início do Jubileu ressoava exatamente
no dia da expiação (Levítico 25.8)! Reconciliação com Deus é a
pré-condição para a reconciliação com os irmãos e irmãs4 . E, vice-
versa, uma genuína reconciliação com Deus conduz inevitavelmente
a uma transformação em todos os outros setores de relacionamento.
Reconciliados com Deus, por meio do sacrifício do dia da expiação,
os israelitas mais prósperos eram chamados a, por sua vez, libertar
os pobres, colocando em liberdade escravos hebreus e devolvendo
as terras aos seus proprietários originais5.
Não sabemos, infelizmente, se o povo de Israel chegou a pôr em
prática o ano do Jubileu. A ausência de referências a isso nos livros
históricos pode sugerir que ele nunca tenha sido efetivamente implan­
tado6. Não obstante a sua antigüidade e sua realização ou não na
história de Israel, Levítico 25 permanece sendo parte da palavra de
Deus que exige obediência. Por desaprovar extremos de riqueza en­
tre seu povo. Deus ordena mecanismos de nivelação e redistribuição,
como o ano do Jubileu.

4 V e r ta m b é m Efósios 2 .1 3 -1 7 . M a rc H . Ta n e n b a u m a p on ta para a im p o rtâ n cia d o dia


da expiação, em " H o ly Y e a r 1 9 7 5 and its O rig in s in th e Je w is h Ju b ile e Y e a r " , Ju b ila e u m
(1 9 7 4 ), p . 6 4 .

S Para o sen tido da palavra "lib e rd a d e " , e m L e v ftic o 2 5 .1 0 , ver M a rtin N o t h , Leviticus
(F ila d é lfia : W e stm inster, 1 9 6 5 ), p . 1 8 7 : " d e ró r, u m a 'libe rta çã o ' . . . é u m a palavra feudal,
d erivada d o acadiano (a n )d u rá ru ~ 'liv ra r de cargas'."

6 R o la n d de V a u x reflete o consenso entre os e ru d itos, d e qu e Le v ftico 2 5 "e ra u m a lei


u tó p ic a , e perm aneceu um a letra m o r ta " , A n c ie n t Israel, I , 1 7 7. Ta n e n b a u m (o p . c it., pp.
7 5 -7 6 ), p o r o u t ro lado, pensa q u e ela era p raticada. A s únicas outras referências certas a
ela se e n co n tra m em L e v ftic o 2 7 .1 6 -2 5 , N ú m e ro s 3 6 .4 e E ze q u ie l 4 6 .1 7 . Seria algo e x tre m a ­
m ente significativo se se pudesse d e m o n s tra r qu e Isafas 6 1 .1 -1 2 (qu e Jesus cito u para resu­
m ir a sua m issão, Lucas 4 .1 8 -1 9 ) ta m b é m se refere ao ano d o Ju b ile u . De V a u x d u vid a dis­
so (A n c ie n t Israel, I, 1 7 6 ). C o n tu d o , a m esm a palavra é usada ta n to em I saías 61.1 co m o em
Le v ftic o 2 5 .1 0 . V e r o a rgu m e n to de J o h n H . Y o d e r em T h e P olitics o f Jesus (G ra n d Rapids:
Ee rd m a n s , 1 9 7 2 ), p p . 64ss.; e ainda R o b e rt S lo a n , T h e A cc e p ta b le Y e a r o f th e L o rd (A u s tin ,
T e x a s : S c h o la r Press, 1 9 7 7 ), e D o n a ld W . Blosser, "Jesus a nd th e Ju b ile e ” (D issertação do
P h .D ., n á b -p u b lica d a. U n iversid a d e d e S t . A n d re w s , 1 9 7 9 ).

94
O ANO SABÁTICO

A Lei também providencia a liberação do solo e a anistia para es­


cravos e endividados a cada sete anos. Outra vez o objetivo é a jus­
tiça para com o pobre e desprivilegiado.
De sete em sete anos devia se deixar repousar a terra sem ser tra­
balhada durante um ano (Exodo 23.10, 11; Levítico 25.2-7)7 O pro­
pósito disso, evidentemente, é tanto ecológico como humanitário.
Não cultivar a terra depois de um período de seis anos certamente
ajuda a preservar a fertilidade do solo. Deus, contudo, está particular­
mente preocupado com os pobres: "Seis anos semearás a tua terra e
recolherás os seus frutos; porém no sétimo ano a deixarás descansar
e não a cultivarás, para que os pobres do teu povo achem que comer,
e do sobejo comam os animais do campo. Assim farás com a tua vi­
nha e com o teu olival" (Exodo 23.10-11). No sétimo ano os pobres
têm liberdade de colher para si tudo que crescer por si mesmo nos
campos e parreirais.
Escravos hebreus também recebiam a sua liberdade no ano sabá­
tico (Deuteronômio 15.12-18). Às vezes a pobreza forçava israelitas a
se venderem como escravos á vizinho? mais prósperos (Levítico
25.39-40)8. Mas essa desigualdade, diz Deus, não deve ser permanen­
te. Ao cabo de seis anos, os escravos hebreus devem ser postos em
liberdade. E os patrões são chamados a compartilhar do lucro desse
trabalho com os irmãos que se despedem: "Quando um de teus ir­
mãos, hebreu ou hebréia, te for vendido, seis anos servir-te-á, mas
no sétimo o despedirás forro. E, quando de ti o despedires forro, não
o deixarás ir vazio. Liberalmente lhe fornecerás do teu rebanho, da
tua eira e do teu lagar; daquilo com que o SENHOR teu Deus te hou­
ver abençoado lhe darás" (Deuteronômio 15.12-14; veja também
Exodo 21.2-6). O escravo libertado teria, com isso, os meios para
recomeçar sua própria vida9.
As prescrições sabáticas com referência a empréstimos são ainda
mais revolucionárias (Deuteronômio 15.1-6). A cada sete anos todas
as dívidas devem ser canceladas! Javé inclusive acrescenta uma nota
de rodapé para os especialistas em achar desculpas ou procurar evasi­

' De V a u x , A n c ie n t Israel, I , 1 7 3 -1 7 5 .

8 L e v ític o 2 5 parece p re ve r a em ancipaçáò d e escravos som ente a cada quin qu a gé sim o


ano. O p ro p ó s ito , c o n tu d o , é o m e sm o : e vitar um a desigualdade sem pre m a io r e ntre o p ovo
de Deus.

9 V e r Jerem ias 3 4 , para u m relato fascinante da ira de Deus para co m Israel p o r causa
da sua negligência em obedecer a este m a n d am e n to .

95
vas, que visam sempre o seu proveito pessoal: é pecado recusar um
empréstimo a um pobre só porque já é o sexto ano e, conseqüente­
mente, o dinheiro pode ser considerado perdido dentro de doze
meses.

Guarda-te, que não haja pensamento vil no teu coração, nem di­
gas: Está próximo o ano sétimo, o ano da remissão, de sorte que os
teus olhos sejam malignos para com teu irmão pobre, e não lhe dês
nada; e ele clame contra ti ao SENHOR, e haja em ti pecado. Livre­
mente lhe darás, e não seja maligno o teu coração, quando lhe de­
res; pois por isso te abençoará o SENHOR teu Deus em toda a tua
obra, em tudo o que empreenderes (Deuteronômio 15.9-10)'°.

Como no caso do ano do Jubileu, é muito importante observarmos


que as Escrituras prescrevem justiça, e não mera caridade. A quitação
sabática das dívidas era gm mecanismo institucionalizado para evitar
um abismo sempre maior entre ricos e pobres.
Deuteronômio 15 é tanto uma colocação idealista da exigência
perfeita de Deus como também uma referência realista ao provável
comportamento no que concerne a dívidas em Israel. 0 v. 4 promete
que não haverá pobres em Israel — se o povo obedecer a todos os
mandamentos de Deus! Mas Deus sabia que eles não conseguiriam
chegar a esse ponto. Daí o reconhecimento, no v. 11, de que sempre
haverá pobres em Israel. A conclusão, contudo, não é que se pode ,
por conseguinte, ignorar os necessitados pelo fato de as multidões de
pobres sempre irem muito além dos recursos pessoais de alguém. Pelo
contrário. "Pois nunca deixará de haver pobres na terra: por isso eu
te ordeno: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o ne­
cessitado, para o pobre na terra" (v. 11). Jesus sabia (Mateus 26.11),
e isso está implicado em Deuteronômio, que pessoas e sociedades pe­
cadoras sempre estarão a gerar pobres. Entretanto, em vez de usar­
mos isso como uma justificativa para a negligência. Deus quer que es­
se reconhecimento renove o interesse pelos necessitados e pela cria­
ção de mecanismos estruturais para a promoção de justiça.
O ano sabático, infelizmente, era praticado só esporadicamente.

A lg u n s com entaristas m od e rn o s acham q u e D e u te ro n ô m io 1 5 .1 -1 1 te m em mente


u m a suspensão d o pagam ento dos em p ré stim os p elo p e río d o de u m a n o , e náo de u m perdão
c o m p le to . V e r S . R .D riv e r. D e u te ro n o m y (I C C . 3? e d .; E d i n b u r g o :T . & T . C la rk , 1 8 9 5 ), pp.
1 7 9 -8 0 . Mas o argu m e n to d e D rive r é basicam ente o de que a remissão da d i vida seria im pra­
ticá vel. E le a d m ite q u e o v. 9 parece a p o n ta r para u m cancelam ento d e fin itiv o da devolução
dos e m préstim os. Esta é ta m b é m a o p in iã o de G e rh a rd v on R a d , D e u te ro n o m y (F ila d élfia :
W e stm inster, 1 9 6 6 ), p . 106.
Com efeito, alguns textos inclusive sugerem que a negligência na obe­
diência a essa lei foi uma das causas do exílio babilónico (2 Crôni­
cas 36.20-21; Levítico 26.25-36)“ . A desobediência de Israel, toda­
via, não diminui a exigência de Deus. Estruturas institucionalizadas
que visem à redução da pobreza e do grande desnivelamento econô­
mico entre as pessoas fazem parte da vontade Deus para o seu povo.

LEIS REFERENTES AOS DÍZIMOS E ÀS COLHEITAS

Outras prescrições legais tornam ainda mais abrangentes os pro­


pósitos do Jubileu e do ano saba'tico. A lei prescreve que um déci­
mo de toda a produção agrícola (incluindo animais, cereais e vinho)
seja posto à parte, como dízimo. "A o fim de cada três anos tirarás
todos os dízimos do fruto do terceiro ano, e os recolherás na tua ci­
dade. Então virá o levita (pois não tem parte nem herança contigo),
o estrangeiro, o órfão e a viúva, que estão dentro da tua cidade, e
comerão, e se fartarão, para que o SENHOR teu Deus te abençoe
em todas as tuas obras que as tuas mãos fizerem (Deuteronômio
14.28-29; veja também Levítico 27.30-32; Deuteronômio 26.12-15;
Números 18.21-32)n .
Rute, a viúva pobre, conseguiu sobreviver graças a essa lei referen­
te às colheitas. Quando ela e Noemi retornaram a Belém, sem um
centavo, a avó do rei Davi foi para os campos, na época da colheita,
e ajuntava as espigas deixadas para trás pelos segadores (Rute 2).
Ela podia fazer isso porque a lei de Deus decretava que os agricul­
tores deviam deixar um pouco da colheita, incluindo-se aios cantos
dos campos semeados, para os pobres. Os cachos ou as uvas caídas
acidentalmente da videira também deviam ser deixados. "Deixá-los-
ás ao pobre e ao estrangeiro: eu sou o SENHOR vosso Deus" (Leví­
tico 19.9-10).
A lembrança da sua própria pobreza e opressão no Egito devia
mover o povo a deixar generosas sobras para o estrangeiro pobre, a
viúva e o órfão. "Lembrar-te-ás de que foste escravo na terra do Egi­
to; pelo que te ordeno que faças isso" (Deuteronômio 24.19-22).
Esta lei referente às sobras da colheita era um método estabelecido
de evitar uma pobreza muito aguda no meio do povo de Deus e tam­
bém entre os estrangeiros na terra.

1 1 V e r D e V a u x , A n c ie n t Israel, I, 1 7 4 -7 5 , para um a discu ssío da im p le m e nta çã o da


lei. N o p e rfo d o helerwstico há claras evidências d e qu e ela tenha sido co lo cad a e m prática.

1 2V e r ta m b é m De V a u x , A n c ie n t Israel, 1, 165.

97
MODELOS A SEGUIR, MODELOS A SEREM EVITADOS

Como poderíamos aplicar hoje a revelação bíblica sobre o Jubi­


leu, o ano sabático, dízimos e o rebuscar das colheitas? Deveríamos
procurar implementar entre nós esses mecanismos? São leis (mesmo
que se pense só nos seus princípios básicos) ainda aplicáveis à igreja?
Deus deu a lei a Israel com o propósito de que os membros do
seu povo aprendessem a viver juntos em paz, harmonia e justiça. A
igreja, agora, é o novo povo de Deus (Gálatas 6.16; 3.6-9; 1 Pedro
2.9-10). Certamente, como Paulo e outros escritores neotestamen-
tários o indicam, partes da lei mosaica (a lei cerimonial, por exemplo)
não mais são aplicáveis à igreja. Contudo não há indicações de que
a lei moral tenha deixado de ser normativa para os cristãos (Mateus
5.17-20; Romanos 8.4)13. A revelação do Antigo Testamento sobre
o tipo de relações econômicas que promovem amor e harmonia no
seio do povo de Deus deveria ainda guiar a igreja hoje. (Se estas leis
têm ou não alguma relevância para a sociedade como um todo, é
assunto que será discutido no capítulo 9.)
Como, então, deveremos aplicar estas leis? Deveríamos tentar
fazer reviver os mecanismos específicos propostos detalhadamente
em Levítico 25 e Deuteronômio 15?
As prescrições específicas do ano do Jubileu não são mais obri­
gatórias hoje. A moderna sociedade tecnológica é muito diferente da
Palestina rural daqueles dias. Se agricultores do Rio Grande do Sul
deixassem de colher o cereal plantado nas esquinas dos seus cam­
pos, isso não ajudaria em nada aos que estão passando fome no Nor­
deste ou no interior da fndia. Precisamos de métodos apropriados à
nossa própria civilização. São os princípios básicos, e não os deta­
lhes específicos, que são importantes e normativos para os cristãos
de hoje.
A história da proibição contra a cobrança de juros nos ajuda a en­
tender essa questão. A taxa de juros anual no antigo Oriente Médio
era bastante alta — muitas vezes ao redor de 25% ou mais14. Não é
difícil, portanto, ver por que a lei incluía proibições contra a cobran­
ça de juros a compatriotas israelitas (Êxodo 22.25; Deuteronômio
23.19-20; Levítico 25.35-38)15. O comentário sobre Deuteronômio,

1 3 Este é u m p ro ble m a e x tre m a m e n te co m p lica d o , que te m sido d e b atid o através de


to d a a história da igreja. A longa d isp u ta e n tre os luteranos e m t o m o da "te rce ira aplicação
d a le i" é u m e x e m p lo deste debate.

1 4 De V a u x . A n c ie n t Israel, 1 , 17 1.

V e r De V a u x , o p . c it., p . 1 7 0; e T a y l o r , E n o u g h is E n o u g h , p p . 5 6 -6 0 .

98
da série "International Criticai Commentary", sugere que essa legis­
lação reflete uma época em que a maioria dos empréstimos eram fei­
tos por amizade e não com fins comerciais. Empréstimos comerciais,
para o estabelecimento ou ampliação de um negócio, não eram co­
muns. A maior parte constituía-se de empréstimos caritativos, de que
tivesse necessidade uma pessoa pobre ou alguém que enfrentava uma
situação de emergência temporária16. Fica bem claro que o bem-estar
dos pobres é um propósito central nos textos que falam sobre juros.
"Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo,
não te haverás com ele como credor que impõe juros" (Êxodo 22.25).
A legislação sobre juros é parte de um extensivo complexo de leis
designadas para proteger os pobres e evitar grandes extremos de ri­
queza e pobreza no seio do povo de Deus.
Deixando de compreender isso, a igreja cristã tem tentado apli­
car os textos sobre juros de maneira legalista. Vários concílios ecle­
siásticos debateram este assunto. Por fim , todo juro sobre emprésti­
mos foi proibido em 1179 (39 Concílio Laterano). As conseqüên­
cias, porém, foram trágicas. Monarcas medievais convidaram judeus
(que não estavam sujeitos ao ensino da igreja) para dentro dos seus
domínios, com o fim de servirem como prestamistas; o que deu ori­
gem, mais tarde, a uma horrível'onda de anti-semitismo. Cada vez
mais os teólogos começaram a desenvolver esquemas casuísticos vi­
sando contornar a proibição17. Tragicamente, a errônea preocupa­
ção com a letra da lei e a conseqüente adoção de aplicações impra­
ticáveis e legalistas contribuíram para fazer cair no descrédito ou, pe­
lo menos, obscurecer o importante ensinamento bíblico de que o
Deus do pobre é o Senhor da economia —Senhor, inclusive, sobre as
taxas de juros. Uma utilização legalista dos textos referentes a juros
colaborou, assim, para a criação da mentalidade moderna, que vê as
questões de juros, operações bancárias, sim, podemos dizer, todo o
campo das relações econômicas, como um universo completamente
auônomo e independente. Do ponto-de-vista da fé revelada, todavia,
tal mentalidade é herética. Ela tem suas origens no secularismo mo­
derno, não na Bíblia18.

1 6 D riv e r, D e u te ro n o m y , p . 1 7 8.

1 7Para u m relato e ru d ito e m u ito fascinante sobre a história to d a , ver B e njam in N e l­


s on , T h e Idea o f U s u ry : F r o m T r ib a l B ro th e rh o o d to U niversal O th e rh o o d , 2? ed. (C h ica ­
g o : U n iv . o f C hicag o Press, 1 9 6 9 ).

18V e r a excelente discussão de B ob G o u d zw a a rd , Capitalism and Progress: A Diagnosis


o f W estern S o c ie ty (G ra n d R a p id s: E e rdm a n s , 1 9 7 9 ).

99
Este exemplo deve servir-nos de avertência contra uma aplicação
seca da palavra de Deus. Por outro lado, também não quer levar-nos
a uma atitude tímida e omissa. Estes textos inquestionavelmente en­
sinam que, para o emprestador cristão, é decisiva a necessidade
daquele que lhe pede emprestado, e não um meticuloso cálculo do
que a operação lhe poderá render. (Neste sentido, empréstimos com
baixa taxa ou até sem juros, oferecidos por organizações cristãs a
cristãos do Terceiro Mundo, com o objetivo de promover desenvolvi­
mento, são um exemplo de uma significativa aplicação contemporâ­
nea do que diz a Palavra sobre a questão dos juros.)
Ao aplicar o ensinamento bíblico a respeito do Jubileu, do ano sa­
bático, das sobras nas colheitas e do dízimo devemos descobrir os
princípios subjacentes em cada caso. A partir daí podemos, então,
pensar em estratégias contemporâneas para dar corpo a esses princí­
pios básicos. Os textos que examinamos demonstraram claramente
que Deus quer justiça, e não mera caridade. Por isso os cristãos de­
veriam se empenhar em projetar e instituir novas estruturas que pos­
sam efetivamente eliminar a indigência entre os crentes, bem como
reduzir drasticamente os escandalosos extremos de riqueza e pobre­
za entre membros ricos e pobres do corpo uno do Jesus ressurreto.

A NOVA COMUNIDADE DE JESUS

Vejamos como os cristãos do primeiro século reafirmaram e con­


firmaram os ensinos do Antigo Testamento. Jesus havia caminhado
pelas estradas da Galiléia anunciando a surpreendente notícia de que o
reino de paz e justiça estava próximo. As relações econômicas na
nova comunidade formada pelos seus seguidores eram um vigoroso
sinal a confirmar este surpreendente anúncio.
Os profetas hebreus haviam predito mais do que o fato de que Is­
rael seria destruído por causa de sua idolatria e opressão aos pobres.
Eles também haviam proclamado uma mensagem de esperança — a
esperança de um futuro reino messiânico. Vem o tempo, prometiam
eles, em que Deus suscitará um Ramo justo da linhagem de Davi. Paz,
eqüidade e justiça serão abundantes, então, em uma nova e redimida
sociedade. Quando vier o rebento do tronco de Jessé, predisse Isaías,
os pobres e os mansos receberão finalmente o que lhes é devido: "Jul­
gará com justiça os pobres e decidirá com eqüidade a favor dos man­
sos da terra" (Isaías 11.4; veja também 9.6-7; 61.1; Jeremias 23.5;
Oséias 2.18-20).

100
A essência das boas novas proclamadas por Jesus era de que o
esperado reino messiânico havia chegado19. é certo que o reino anun­
ciado por Jesus desapontou as expectativas populares judaicas.
Jesus não recrutou um exército para expulsar os romanos. Não ten­
tou estabelecer um estado judeu livre. Mas também não permaneceu
sozinho, como um profeta isolado e individualista. Ele chamou e
treinou discípulos. Estabeleceu uma comunidade visível de discípu­
los, unidos pela submissão a ele como o Senhor. Sua nova comunida­
de começou a viver os valores do reino prometido que já havia, efeti­
vamente, irrompido no presente. Em conseqüência, todos os tipos
de relacionamento, inclusive os econômicos, experimentaram uma
profunda transformação na comunidade dos seguidores de Jesus.
Eles tinham uma caixa comum (João 12.6)20 . Judas era o admi­
nistrador deste fundo, comprando provisões ou dando aos pobres,
conforme as instruções do Mestre (João 13.29). E esta nova comu­
nidade de bens não se restringiu a Jesus e os doze. Incluía várias mu­
lheres, as quais ele havia curado. As mulheres viajavam com eles,
compartilhando seus recursos financeiros (Lucas 8.1-3; veja também
Marcos 15.40-41 )21. Vistas sob esta perspectiva, algumas palavras de
Jesus ganham um novo sentido e um novo poder. Pense, por exem­
plo, no seu conselho ao jovem rico.
Quando Jesus pediu ao jovem rico que vendesse os seus bens e
desse aos pobres, ele não disse: "Torna-te desamparado e sem ami­
gos". Não, ele disse: 'Vem e segue-me' (Mateus 19.21). Em outras pa­
lavras, convidou-o a se integrar em uma nova comunidade de comu­
nhão de bens e de amor, onde a sua segurança não estaria baseada
na posse de propriedades pessoais e sim em abertura para o Espíri­
to e no amoroso cuidado dispensado pelos novos irmãos e irmãs ali
encontrados22. Jesus convidou o jovem rico a compartilhar de uma
alegre vida em comum, característica do seu novo reino.
As palavras de Jesus em Marcos 10.29-30 por muito tempo me

V e r M arcos 1 .1 4 -1 5 ; M ateus 4 .2 3 ; 2 4 .1 4 ; Lucas 4 .4 3 ; 1 6 .1 6 ; e os meus artigos


"E va n ge lis m , S alvatio n and S ocia l Ju s tic e ", I R M , J u lh o , 19 75 , p p . 256ss.; e "W o rd s and
De e d s", Jo u rn a l o f Th e o lo g y fo r S o u th e rn A f ric a , O u to n o , 1 9 79 , p p . 31*50.

2 0 Para essa in terpretação, m u ito c o m u m , ver B a te y, Jesus a nd the P o o r, p p . 3 , 9 ,


100 (n o ta 8 ); Ziesler, C h ristian A s ce ticis m , p. 4 5 ; F . H a u c k , The o lo gisch es W o e rte rb u ch
des N e u e n Te s ta m e n ts ( T W N T - e d. G . K itt e l), I I I , 7 9 6 ; Inte rp re ter's B ib le , V I I I , 6 5 5 , 6 9 0 ;
Carl H e n r y , "C h ris tia n Perspective o n Private P ro p e r ty " , G o d and th e G o o d (eds., C . O r -
lebeke e L . Sm edes) (G ra n d R apids: Ee rdm a n s, 1 9 7 5 ), p . 9 8.

2 1 V e r ta m b é m B a te y, Jesus and th e P o o r (N o v a lo rq u e : H a rp e r, 1 9 7 2 ), p . 8 .

2 2T a y l o r , E co n o m ics and th e G o s p e l, p . 2 1 .

101
deixaram perplexo: "Em verdade vos digo que ninguém que tenha
deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou cam­
pos, por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já
no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e cam­
pos, com perseguições; e no mundo por vir a vida eterna." Mateus 6
contém um dito similar. Todos estamos bem —eu diria, embaraçado-
ramente — familiarizados com a maneira pela qual Jesus instava com
seus seguidores a viverem livres de preocupações, sem ficar ansiosos
quanto a comida, roupas e bens materiais (Mateus 6.25-33). Porém
ele termina a sua exortação com uma promessa boa demais para ser
verdade: "Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça
e todas essas coisas [isto é, comida, roupas, etc.] vos serão acrescen­
tadas." Estas promessas costumavam me parecer no mínimo um tan­
to ingênuas. Mas as suas palavras começaram a se encher de significa­
do quando as li dentro do contexto da nova comunidade dos seguido­
res de Jesus. Jesus deu início a uma nova ordem social, um novo rei­
no de fiéis seguidores, que deveriam estar completamente à disposi­
ção uns dos outros.
A caixa comum entre os discípulos de Jesus simbolizava essa ili­
mitada disponibilidade e dependência mútua. Nessa nova comunida­
de haveria genuína segurança econômica. Cada um teria, com efeito,
bem mais irmãos e irmãs do que antes. Os recursos econômicos à dis­
posição em tempos difíceis seriam, de fato, cem vezes maiores, ou
até mais. Os recursos da comunidade inteira dos discípulos obedien­
tes estariam disponíveis a qualquer um que estivesse em necessidade.
Não tenho dúvidas, tal estilo-de-vida desprendido e disposto a com­
partilhar desafiaria tão incisivamente a sociedade ao redor que have­
ria perseguições. Mas mesmo nos dias mais desesperadores, a promes­
sa não seria vã. Mesmo que perseguições levassem à morte, os filhos
de pais martirizados receberiam novas mães e pais na comunidade
dos crentes. Na comunidade dos redimidos, todos os tipos de relacio­
namento são transformados. Jesus e os seus primeiros seguidores de­
ram uma demonstração vívida de que o modelo das relações econô­
micas entre o povo de Deus, tal como o encontramos no Antigo Tes­
tamento, deve ter continuidade e ser inclusive aprofundado.

O MODELO DE JERUSALÉM

Por mais embaraçoso que isso possa parecer para alguns, o fato de
que a primeira comunidade cristã vivia num sistema econômico de
comunhão integrada de bens é indiscutível. "Da multidão dos que

102
creram era um o coração e alma. Ninguém considerava exclusivamen­
te sua nem uma das cousas que possuía; tudo, porém, lhes era co­
mum" (Atos 4.32). Por toda parte, nos primeiros capítulos de Atos,
temos abundantes e inquestionáveis evidências disso (Atos 2.43-47;
4.32-37; 5.1-11; 6.1-7). A igreja primitiva deu continuidade ao mo­
delo de partilha econômica praticado por Jesus.
A comunhão de bens na igreja de Jerusalém existia desde os pri­
meiros tempos. Imediatamente após a narração da conversão dos três
mil em Pentecostes, o livro de Atos traz a observação de que "todos
os que creram estavam juntos, e tinham tudo em comum" (2.44).
Sempre que alguém se encontrasse em necessidade, eles comparti­
lhavam do que tinham. Dar as sobras do ordenado a irmãos neces­
sitados não era suficiente. Com freqüência eles iam mais longe, até
as suas reservas de capital; vendiam propriedades para atender aos ne­
cessitados. Barnabé vendeu um campo que era seu (Atos 4.36, 37).
Ananias e Safira venderam uma propriedade, embora tivessem menti­
do quanto ao preço. A promessa de Deus a Israel (Deuteronômio
15.4)23, de que uma fiel obediência eliminaria a pobreza do meio
do seu povo, tornou-se realidade! "Nenhum necessitado havia entre
eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, as vendiam . . . c se
distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade"
(Atos 4.34-35).
Dois milênios depois, os textos ainda refletem a alegria e excita­
ção daquela comunidade. Os crentes faziam refeições juntos "com
alegria e singeleza de coração" (Atos 2.46). Experimentavam uma em­
polgante unidade, sentindo todos que "eram um coração e uma al­
ma" (Atos 4.32). Não eram indivíduos isolados lutando sozinhos pa­
ra seguirem a Jesus. Uma nova comunidade, na qual todas as áreas da
vida (incluindo a econômica) estavam sendo transformadas, ia-se to r­
nando vibrante realidade.
O impacto evangelístico dessa demonstração de unidade foi es­
pantoso. Reiteradas vezes, os textos combinam as novas relações eco­
nômicas dentro da igreja de Jerusalém c.om um fenomenal sucesso
evangel ístico. "Diariamente perseveravam unânimes no templo, par­
tiam pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e
singeleza de coração, louvando a Deus, e contando com a simpatia
de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a
dia, os que iam sendo salvos" (Atos 2.46-47). A alegria e o amor
que mostravam em seu dia-a-dia era coníagiante! Já ríiencionei

2 3V e r acim a, p p . 95s.

103
antes que, em Atos 4, o autor registra que eles tinham todas as coi­
sas em comum, ao invés de cada um se apegar às suas posses parti­
culares. No versículo imediatamente seguinte ele acrescenta: "E
com grande poder os apóstolos davam testemunho da ressurreição
do Senhor Jesus'' (v. 33). A oração de Jesus, no sentido de que a
amorosa unidade entre os seus seguidores fosse tão marcante a pon­
to de convencer o mundo de que Ele realmente tinha vindo do Pai,
foi respondida — ao menos uma vez! Assim aconteceu na igreja de
Jerusalém. A qualidade incomum de sua vida em comunhão deu po­
der â pregação apostólica.
A narrativa de Atos 6 é muito instrutiva neste particular. Apa­
rentemente havia uma pequena mas significativa minoria de hele-
nistas na comunidade de Jerusalém. (Helenistas eram judeus de
língua grega, talvez até gregos convertidos ao judaísmo.) Aconte­
ceu que, de alguma maneira, a maioria de língua aramaica negligen­
ciou as necessidades das viúvas helenistas, até que estas reclamassem
de tal injustiça. A reação da igreja foi surpreendente. Os sete ho­
mens escolhidos para cuidarem dessa questão eram todos do grupo
minoritário! Os nomes de todos eles são gregos24. A igreja colocou
todo o seu programa e os fundos para viúvas necessitadas nas mãos
do grupo minoritário, que havia sido discriminado. E qual foi a con­
seqüência desta nova atitude de solidariedade financeira? "Crescia
a palavra de Deus e, em Jerusalém, se multiplicava o número de dis­
cípulos" (Atos 6.7).
Relações econômicas "redimidas" na igreja primitiva resulta­
ram em um crescimento da Palavra de Deus. Que declaração desa­
fiante! Será que ocorre o mesmo hoje? Será que transformações
econômicas similares não produziriam um dramático aumento do
número de crentes hoje? Provavelmente! Será que aqueles que tão
eloqüentemente falam da importância da evangelização estão prepa­
rados para pagar este preço?
Mas qual é, afinal, o preço a ser pago? Em que consiste exata­
mente a natureza dessa rica "koinonia" da igreja de Jerusalém? A
comunidade não insistia em uma absoluta nivelação econômica.
Nem tampouco foi abolida a propriedade privada. Pedro lembrou
a Ananias que ele não tinha obrigação de vender a sua propriedade
ou de doar o valor à igreja (Atos 5.4). 0 compartilhar dos bens era
algo voluntário, não compulsório“ . Mas o amor pelos irmãos e ir-

2 4 V e r D . G u th rie , et al.. T h o N e w B ib la C o m m e n ta ry Ravised (G ra n d R a p id s: E e rd -


m ans, 1 9 7 0 ), p . 9 8 0 ; B a te y, Jesus and th e P o o r, p . 3 8 .

Í S T W N T , I I I , 7 9 6.

104
mãs era tão grande que muitos espontaneamente desistiam do legí­
timo direito de terem propriedades privadas. "Ninguém considera­
va exclusivamente sua nem uma das cousas que possuía" (Atos
4.32). Isso não quer dizer que todo mundo doou tudo que tinha.
Mais tarde podemos ver que Maria, mãe de João Marcos, continua­
va tendo a sua própria casa (Atos 12.12). Outros também, sem dú­
vida, retiveram alguma propriedade pessoal.
O tempo dos verbos gregos confirma esta interpretação. Tanto
em Atos 2.45 como em 4.34, os verbos estão no imperfeito. Na lín­
gua grega, o imperfeito indica uma ação continuada e repetida por
um prolongado período. Assim, o sentido é o seguinte: "eles muitas
vezes vendiam propriedades . . ou "tinham o hábito de, regular­
mente, trazer o que ganhavam com as vendas"26. O texto não diz
que a comunidade tenha decidido abolir toda propriedade privada,
nem que todos no mesmo instante tenham vendido tudo que tinham.
Antes, sugere que, ao longo de um determinado tempo, sempre que
houvesse necessidade, os crentes vendiam terras e casas para ajudar
os necessitados.
Em que consistia, então, a essência das novas relações econômi­
cas na comunidade de Jerusalém? A melhor maneira de descrever
o que lá acontecia é dizer que havia uma ilimitada sensibilidade pa­
ra com as necessidades dos outro? e uma total disponibilidade dos
irmãos entre si. 0 seu compartilhar não era superficial e ocasional.
Regular e repetidamente "vendiam as suas propriedades e bens e
distribu íam a todos, à medida que alguém tinha necessidade". Se a
necessidade era maior do que as reservas em caixa, eles vendiam pro­
priedades. Simplesmente davam até que as necessidades fossem su­
pridas. Estas é que eram decisivas, e não os direitos legais de proprie­
dade ou a segurança financeira para o futuro. Eles colocaram os seus
recursos incondicionalmente à disposição uns dos outros. Ser um em
Cristo significava para a comunidade cristã primitiva um compromis­
so ilimitado e uma total disponibilidade financeira para com os ou­
tros membros do corpo de Cristo.
Infelizmente a maioria dos cristãos não dá atenção ao exemplo da
comunidade de Jerusalém. Talvez seja por causa do egocentrismo
econômico dos cristãos ricos. De qualquer forma soubemos desen­
volver um esquema lógico no sentido de relegar o padrão da igreja
de Jerusalém ao empoeirado arquivo de trivialidades históricas ir­
relevantes. Por que teve Paulo que fazer uma coleta para a comunida­

2 6 0 s verbos-chave sáo epipraskon e d ie m e riz o n {A to s 2 .4 5 ), e ephe ron (A to s 4 .3 4 Í.


V e r In te rp re ter's B ib le , I X , 5 2 ; B a te y, p p . 3 3 , 103 (n o ta 9 ).

105
de de Jerusalém algumas décadas depois? Um livro recente oferece a
familiar resposta:

0 problema em Jerusalém fo i que eles transformaram o seu capi­


tai em renda e, com isso, não dispunham de reservas para tempos
difíceis; então os cristãos gentílicos tiveram que vir em seu socor­
ro. £ possível não viver só para o pão, não ser dominado po r valores
materialistas, e ao mesmo tempo ctgir de maneira responsável; e por
esta razão a igreja pode ser grata pelo protesto do movimento comu­
nal, mas também levar em conta que ele não constitui solução27.

Será que os cristãos de Jerusalém foram na verdade irresponsá­


veis e ingênuos, cabendo-nos respeitá-los, mas certamente não imitá-
los? é absolutamente necessário insistir em que o princípio de ilim i­
tado compromisso e total disponibilidade financeira daquela comu­
nidade não requer necessariamente que se viva em comunas. Na ver­
dade isso nem aconteceu em Jerusalém! A comuna cristã é somente
um entre vários modelos viáveis. Não devemos permitir que o fantas­
ma do movimento comunal distorça a nossa discussão sobre o mode­
lo de Jerusalém.
Mas por que, então, passou a igreja de Jerusalém por dificuldades
financeiras? ê pouco provável que a culpa tenha sido da partilha eco­
nômica por ela adotada. Pelo contrário, deve-se a uma singular su­
cessão de circunstâncias históricas. Jerusalém atraía um número de
pobres fora do comum. Uma vez que os judeus consideravam a es­
mola dada nesta cidade como especialmente meritória, o grande nú­
mero de peregrinos que para lá eram atraídos mostrava-se bastante
generoso. Em conseqüência, grandes multidões de mendigos e pobres
acorriam para a cidade28. Acrescente-se a grande quantidade de pes­
soas idosas que se dirigiam a Jerusalém para lá morrer ou esperar o
Messias (veja, por exemplo, Lucas 2.25, 36)29 . Havia também um nú­
mero bastante elevado de rabinos vivendo em Jerusalém, por ser a
sede central da fé judaica. Rabinos, entretanto, dependiam da carida­
de, uma vez que não eram pagos para o exercício da sua função.
Também seus estudantes muitas vezes eram pobres. Assim o conside­

Z iesler, C h ristia n A s ce ticis m , p . 1 1 0. N ota d o T . : O m o v im e n to co m u n a l se fez sen­


t i r bem mais n os E U A e na E u ro p a d o qu e no Brasil. E le consiste de grup o s de cristãos
q u e passam a te r, e m m a io r ou m e n o r escala, co m u n h ã o de bens (e n tre o u tro s v ín c u lo s co ­
m u n itá rio s ).

2 8 B a te y, Jesus and th e P o o r, p p . 3 6 ,9 6 .

29lbid., p. 36.

106
rável número de mestres religiosos em Jerusalém engrossava as fileiras
dos necessitados30.
E isso não era tudo. Várias calamidades naturais tiveram lugar por
volta dos meados do primeiro século. Os historiadores romanos Sue-
tônio e Tácito dão noticias de seguidos períodos de fome e falta de
alimentos durante o reinado do imperador Cláudio (41-54 a.D.).
Josefo fala de tais períodos de escassez na Palestina entre 44 e 48
a.D.31. A fome na Palestina foi tão severa em determinada época
que a igreja de Antioquia enviou auxílios de emergência (Atos
11.27-30).
Havia ainda razões especiais para uma pobreza incomum dentro
da própria igreja primitiva. O zelo especial de Jesus para com os po­
bres e oprimidos provavelmente atraiu para a igreja um número des­
proporcionalmente elevado de pessoas empobrecidas. Perseguições
também devem ter causado graves quebras na renda normal dos cris­
tãos. O livro de Atos registra uma perseguição aberta de consideráveis
proporções (8.1-3; 9.29; 12.1-5; 23.12-15). Sem dúvida os cristãos
também experimentaram formas sutis de discriminação em muitos se­
tores, incluindo o desemprego32. Afinal os Doze devem ter abando­
nado seu ganha-pão quando se transferiram de sua terra natal da Gali-
léia para Jerusalém. Assim a sua manutenção mediante auxílios im­
plicava em maiores compromissos financeiros para a igreja de Jerusa­
lém.
Estas são algumas das muitas razões por que a primeira comuni­
dade cristã enfrentou dificuldades financeiras nos meados do primei­
ro século. Dificilmente podemos dizer que uma generosidade insensa­
ta tenha sido um fator significativo no processo. Na verdade é prová­
vel que justamente o número incomum de pobres em seu meio tenha
tornado essa dramática partilha de bens uma imperiosa necessidade.
O fato de os ricos entre eles terem contribuído com grande genero­
sidade para remediar uma desesperadora necessidade no corpo de
Cristo não é sinal de um idealismo ingênuo, mas, muito antes, de um
discipulado incondicional.
A sacrificial partilha de bens da primeira igreja constitui um
constante desafio para os cristãos de todas as épocas. Eles procura­

3 0 Ib id ., p p . 3 6 ,9 6 -9 7 .

31 V e r K e ith F . N ic k le , T h e C o lle c tio n : A S tu d y o f Paul's S tra te g y, "S tu d ie s in B ib li­


cal T h e o lo g y " , N ? 4 8 (N a p e rville : A lle n s o n , 1 9 6 6 ), p . 2 9 ; e Interpreter's B ib le , I X , 1 5 3 .

3 2 V e r D ia n e M a c d o n a ld , " T h e S hared L ife o f th e A c ts C o m m u n it y " , P o s t-A m e ric a n ,


J u lh o , 1 9 7 5 , p. 2 8 .

107
ram dar expressão concreta e visível à unidade dos crentes. Na nova
comunidade messiânica dos primeiros seguidores de Jesus, depois
de Pentecostes, Deus estava em ação redimindo todas as relações
existentes. A conseqüência foi um comprometimento incondicional
e uma total disponibilidade financeira de cada um para com todos
os outros irmãos e irmãs em Cristo.
Apesar da.beleza e do atrativo de tal exemplo, não terá ele sido
uma mera visão, que rapidamente se desvanece? A maioria das pes­
soas crê que de fato assim foi. A experiência da igreja primitiva, no
entanto, é uma prova para o contrário.

KOINONIA ECONÔMICA

Paulo ampliou de modo radical a visão de colaboração econômica


entre o povo de Deus. Ele dedicou um bom tempo a ajuntar dinheiro
para os cristãos judeus, nas congregações gentílicas. Neste processo,
ele promoveu o desenvolvimento da assistência /nfraeclesiástica (den­
tro da igreja local) para uma colaboração /nfereclesiástica, entre todas
as espalhadas congregacões de crentes. Desde o tempo do êxodo.
Deus instruiu seu povo no sentido de operarem uma transformação
nas relações econômicas internas. Com Pedro e Paulo, no entanto,
a religião bíblica foi até mais além dos limites de um grupo étnico,
tornando-se uma fé universal, multiétnica. A coleta de Paulo demons­
tra que a unidade desse novo corpo de crentes requer uma colabora­
ção econômica que perpassa fronteiras étnicas ou geográficas.
A preocupação de Paulo pela partilha econômica recíproca no
corpo de Cristo era bem antiga. No ano de 46 a.D. houve fome na
Palestina. A atitude dos crentes em Antioquia fo i: "cada um confor­
me as suas posses, resolveram enviar socorro aos irmãos que mora­
vam na Judéia" (Atos 11.29). Paulo ajudou Barnabé a levar essa
assistência econômica de Antioquia para Jerusalém33 .
Essa viagem começa a mostrar o grande interesse de Paulo pelo
compartilhamento econômico entre as igrejas. Por vários anos ele de­
dicou bastante tempo e energia a essa grande coleta. Ele comenta
essa preocupação em várias das suas cartas. Já na carta aos gálatas
expressa um anseio pela assistência aos cristãos pobres de Jerusalém
(2.10). Também faz menção disso na carta aos romanos (15.22-28).
De leve comentada na primeira carta aos coríntios (16.1-4), a coleta

3 3 V e r In te rp re ter's B ib le , I X , 1 5 0 -5 2 , para u m sum ário dos m o tivo s para a aceitação


da aute n ticida d e deste relato.

108
torna-se uma preocupação central na segunda carta a essa mesma igre­
ja (2 Coríntios 7 a 9). Além disso houve conversas e combinações
a este respeito nas igrejas da Macedônia, Galácia, Êfeso e provavel­
mente ainda em outros lugares34 .
Paulo sabia estar correndo até perigo de vida. Apesar disso in­
sistiu em levar pessoalmente a oferta. Foi quando entregava essa as­
sistência financeira que ele foi preso pela última vez. Sua carta aos
romanos mostra que estava consciente do perigo (15.31). Va'rias ve­
zes amigos e profetas advertiram-no quando, juntamente com repre­
sentantes das igrejas contribuintes, dirigia-se a Jerusalém (Atos 21.4,
10-14). Tinha, porém, uma profunda convicção de que esta colabo­
ração financeira, como símbolo da unidade cristã, era extremamente
importante, mais até que a sua própria vida. "Que fazeis chorando
e quebrantando-me o coração?", respondia ele em tom de repreensão
aos amigos que lhe imploravam que não acompanhasse a comitiva a
Jerusalém; "pois estou pronto não só para ser preso, mas até para
morrer em Jerusalém, pelo nome do Senhor Jesus" (Atos 21.13).
E continuou sua jornada. Seu apaixonado empenho pelo comparti­
lhamento econômico com irmãos e irmãs levou finalmente à sua pri­
são e posterior m artírio (ver Atos 24.17).
Por que razão estava Paulo tão preocupado com os problemas f i­
nanceiros da igreja de Jerusalém? Por causa da sua compreensão de
"comunhão". Koinonia é um conceito extremamente importante na
teologia paulina, e constitui um termo-chave na sua discussão a res­
peito da coleta.
A palavra grega koinonia significa "comunhão com alguém" ou
"participação em alguma coisa". Os crentes gozam de comunhão com
o Senhor Jesus (1 Coríntios 1.9)3S. Experimentar a koinonia de Je­
sus significa ter a sua justiça imputada a nós. Também implica em
compartilhar da vida de sacrifício e auto-negação que ele viveu (Fi-
lipenses 3.8-10). Em parte alguma a comunhão do cristão com
Cristo é experimentada de maneira mais poderosa que na Eucaristia
(Santa Ceia). Tomar parte na Ceia do Senho leva o crente a uma par­
ticipação no mistério da cruz: "porventura o cálice da bênção
que abençoamos não é a comunhão (koinonia) do sangue de Jesus?
O pão que partimos, não é a comunhão (koinonia) do corpo de
Cristo?" (1 Coríntios 10.16).

3 4 V e r N ic k le , T h e C o lle c tio n , p p . 6 8 -6 9

3 5 V e r T W N T , I I I , 804ss. — N o ta d o T r a d u t o r : Para u m b o m estudo sobre o te rm o


koin on ia nas Escrituras, o le ito r p o d e consu lta r ta m b é m o " N o v o D ic io n á rio In ternacional
de Te o lo gia d o N o v o Te s ta m e n to " (E d . V id a N o v a ), V o l. I , p p . 4 5 7 -4 6 1 .

109
A inferência imediata de Paulo é que a koinonia de Cristo ine­
vitavelmente envolve koinonia com todos os membros de seu corpo.
"Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só cor­
po, porque todos participamos do único pão" (1 Coríntios 10.17;
veja também 1 João 1.3-4). Como se pode ver em Efésios 2, a morte
de Cristo pelo judeu e pelo gentio, homem e mulher, derrubou todas
as barreiras étnicas, sexuais e culturais. Em Cristo há uma nova pes­
soa, um novo corpo de crentes. Quando os irmãos e irmãs comparti­
lham de um pão e de um cálice corrfum a todos, na Ceia do Senhor,
simbolizam e tornam real a sua participação no corpo uno de Cristo.
Essa é a razão por que as divisões de classe em Corinto tanto es­
candalizavam a Paulo. Aparentemente cristãos ricos festejavam por
ocasião da celebração eucarística, enquanto crentes pobres passavam
fome. Paulo, irritado, negou inclusive a pretensão de que aquilo pu­
desse ser Ceia do Senhor (1 Coríntios 11.20-22). Na realidade eles es­
tavam profanando o corpo do Senhor e seu sangue, por não discerni­
rem o seu corpo (11.27-29).
Que quis o apóstolo dizer quando os acusou de não discernirem
o corpo do Senhor? Discernir o corpo do Senhor é compreender e vi­
ver a verdade de que comunhão com Cristo é algo inseparável do ser
membro de seu corpo, onde o nosso ser-um em Cristo transcende em
muito as nossas diferenças de raça ou classe social. Discernimento
deste singular corpo de crentes nos leva a uma disponibilidade
mútua sem restrições e um senso de responsabilidade pelos outros
irmãos e irmãs. Discernimento deste corpo nos move a chorar com os
que choram e nos alegrar com os que estão alegres. Discernimento
deste corpo é algo totalmente incompatível com festejar enquanto
outros membros passam fome. Aqueles que, na prática, vivem uma
negação da unidade e comunhão em Cristo, insiste Paulo, comem e
bebem juízo para si mesmos quando vão à mesa do Senhor. Na verda­
de eles de fato não participam da Ceia do Senhor.
Uma vez que compreendemos as implicações do ensino de Paulo
quanto ao discernir o corpo na Ceia do Senhor, não podemos mais
dormir em paz enquanto o escândalo que representa cristãos morren­
do de fome não for removido. Enquanto algum cristão em algum lu­
gar do mundo passar fome, a celebração ecuarística do resto dos cris­
tãos em todos os lugares é imperfeita.
Para Paulo, a íntima comunhão no corpo de Cristo traz consigo
implicações econômicas concretas; ele usa exatamente essa mesma
palavra, koinonia, para designar o compartilhamento financeiro entre
os crentes. No início do seu ministério, os líderes da igreja de Jeru­

110
salém, depois de dramático debate, deram endosso à sua missão entre
os gentios. Quando lhe estenderam a "destra de comunhão" (koino-
nia), recomendaram-lhe apenas uma expressão concreta dessa comu­
nhão. E Paulo prometeu assistência financeira aos seus irmãos cris­
tãos em Jerusalém (Gálatas 2.9-10)36.
Paulo freqüentemente usa o termo koinonia até como sinônimo
de "coleta". Ele fala da liberalidade da "contribuição" (koinonia)
referindo-se às generosas ofertas dos coríntios (2 Coríntios 9.13; ve­
ja também 8.4)37. A mesma linguagem é por ele empregada para se
referir à oferta dos cristãos macedônios para os de Jerusalém. "Por­
que aprouve à Macedônia e à Acaia levantar uma coleta (koinonia)
em benefício dos pobres dentre os santos que vivem em Jerusalém"
(Romanos 15.26). De fato esta comunhão financeira era apenas par­
te de uma comunhão mais ampla e completa. Os cristãos gentílicos
se tornaram comungantes (ele usa uma forma verbal de koinonia)
dos valores espirituais dos judeus. Por isso era conveniente que eles,
por sua vez, compartilhassem com estes os seus bens materiais (Ro­
manos 15.27). Para Paulo, compartilhar os recursos econômicos era
uma parte óbvia e fundamental da comunhão cristã38 .
A primeira instrução do Paulo no tocante à contribuição finan­
ceira dentro do corpo de crentes era de caráter geral: dê o quanto
você pode. Cada um deveria dar "conforme a sua prosperidade" (1
Coríntios 16.2). Mas isto não significa uma pequena doação, que não
custa nada. Paulo elogiou os macedônios porque deram "na medida
de suas posses e mesmo acima delas" (2 Coríntios 8.3). Os macedô­
nios eram gente muito pobre. Aparentemente estavam passando por
grandes dificuldades financeiras quando Paulo solicitou-lhes uma ge­
nerosa oferta (2 Coríntios 8.2). Mas deram até ãlém das suas possi­
bilidades! Não encontramos aqui o menor sinal de uma fórmula me­
cânica igual de 10% para pobres e milionários. Dar quanto puder —
este é o padrão de Paulo.
Em segundo lugar, dar era um ato voluntário (2 Coríntios 8.3).

3 6 Provavelm ente P a u lo , em A to s 1 1 .2 7 -3 0 , se e n contrava em Jerusalém para entregar


a ofe rta . V e r Inte rp re ter's B ib le , I X , 151.

3 7 V e r T W N T . I I I . 8 0 7 -8 .

38 V e r ta m b é m o interessante uso de koin on o s em F ile m o n 17ss. C o m o irm ãos e m C ris ­


to , o escravo O n é s im o , seu m estre F ile m o n e Paulo sáò com pa n he iros (k o in o n o i). Esta fra­
ternidade c o m u m significa q u e Paulo p od e pedir a F ile m o n q u e lance a d iv id a de O n é sim o
em sua p ró pria co n ta . Paulo e F ile m o n , p o ré m , ta m b é m sáò co m pa n he iros em C risto . A lé m
d o mais F ile m o n deve a Paulo a sua p ró pri3 alm a. P or isso Paulo d iz q u e náo há necessidade
de alguém reem bolsar a F ile m o n . A c o m un há o deles e m C risto cancela qu alq u er d ív id a que
O n é sim o teria, se tu d o tivesse tra ns co rrid o de m o d o dife re n te ! V e r T W N T . I l l , 8 0 7 .

111
Paulo fez questão de especificar que não estava deixando um manda­
mento para os coríntios (2 Coríntios 8.8). Legalismo não é a solu­
ção.
A terceira recomendação de Paulo é a mais surpreendente. A nor­
ma, sugere ele, seria algo que se aproxima a um nivelamento econô­
mico entre o povo de Deus. "Porque não é para que os outros tenham
alívio, e vós, sobrecarga; mas para que haja igualdade." Em apoio ao
seu princípio faz uma citação tirada do contexto da história bíblica
do maná: "como está escrito: O que muito colheu, não teve demais;
e o que pouco, não teve falta" (2 Coríntios 8.13-15).
Conforme o relato de Êxodo, quando Deus começou a mandar o
maná de cada dia aos israelitas no deserto, Moisés ordenou ao povo
que recolhesse somente a quantidade necessária para o dia (Êxodo
16.13-21). Um ômer (mais ou menos dois litros) por pessoa seria su­
ficiente, disse Moisés. Alguns gananciosos, contudo, tentaram juntar
mais do que podiam. Porém, quando foram pesar o que haviam re­
colhido, descobriram que todos tinham apenas e tão somente um
ômer por pessoa. "Não sobejava ao que colhera muito, nem faltava
ao que colhera pouco" (Êxodo 16.18).
Paulo cita o relato bíblico do maná como suporte para a sua ins­
trução sobre a partilha econômica. Assim como Deus insistiu em por­
ções iguais de maná para todo o seu povo no deserto, assim os corín­
tios devem dar agora, para que "haja igualdade" no corpo de Cristo.
Isso pode ser motivo de alarme e inquietação para cristãos ricos.
Mas o texto bíblico mostra claramente que Paulo coloca o princí­
pio da igualdade econômica entre o povo de Deus como orientação
para os coríntios, para quando fossem dar a sua contribuição. "£
uma questão de igualdade. No momento, o que vocês têm em exces­
so satisfaz a necessidade deles, mas pode ser que um dia a necessida­
de de vocês seja satisfeita com o que for excesso para eles. O alvo é
igualdade" (2 Coríntios 8.14, conforme a versão em inglês da "New
English Bible")39.
É excitante ver como o ensino bíblico a respeito de novas rela­
ções econômicas no seio do povo de Deus criou na igreja prim iti­
va um zelo pelo pobre que era algo simplesmente singular na época.

3 9 (O s grifos são m e u s ). N e m todas as tra du çõ es s ío acuradas. Mas a palavra grega isotes


claram ente significa "ig u a ld a d e ". C o n fo rm e Cha rle s H o d g e : " A palavra isotes não significa
aqui re cipro cidade ou eqüidade, mas igualdade, c o m o m ostra a ilustração no v. 15. (A n
E x p o s itio n o f th e S econd Epistle to the C o rin th ia n s ; G ra n d R apids: Ee rdm a n s, s .d .), p . 2 0 5 .
A ssim ta m b é m C . K . B a rre tt, T h e S econd Ep istle to th e C o rin th ia n s (N o va lo rq u e : H a rp e r,
1 9 7 3 ), p p . 2 2 6 -2 7 ; R . V . G . Ta ske r. T h e S econd Ep istle o f Paul to the C o rin th ia n s (G ra n d
R apids: Ee rd m a n s , 1 9 5 8 ), p . 117.

112
Escrevendo por volta do ano 125 a.D., o filósofo cristão Aristides
mostra o seguinte quadro ao descrever o compartilhamento econô­
mico na igreja:

/ Eles andam em humildade e bondade; não existe falsidade entre


eles; amam uns aos outros. Não desprezam as viúvas, nem molestam
o órfão. Aquele que tem dá liberalmente para o que não tem. Se en-
contram um estrangeiro, logo lhe dão acolhida e se alegram com ele
como se fosse um irmão: porque entre eles se chamam de irmãos,
' não na carne, mas no espírito, em Deus. Quando um dos seus pobres
i passa deste mundo e um deles é informado, logo toma providências
/ para o seu sepultamento, conforme estiver ao seu alcance. E se ou-
j vem que alguém dentre eles é preso ou oprimido por causa do nome
do seu Messias, todos providenciam para as suas necessidades; e, se é
possível que seja posto em liberdade, esforçam-se por consegui-lo.
Se há alguém entre eles pobre e necessitado, não tendo em abundân­
cia o de que necessita, jejuam dois ou três dias para suprirem-no com
o alimento de que precisa1'0 . /

Por volta do ano de 250 a.D., a igreja em Roma sustentava 1500


pessoas carentes. Segundo o teólogo alemão Martin Hengel, esse tipo
de compartilhamento econômico era algo singular no antigo Império
Romano41.
Que este novo estilo-de-vida causou uma profunda impressão nos
de fora, podemos deduzir claramente de um invejoso comentário fei­
to por um imperador pagão. Durante o seu curto reinado (361-363
a.D.), Julião, .o Apóstata, tentou aniquilar o cristianismo. Contudo
foi forçado a admitir a um amigo, também pagão, que "esses galileus
ateus [os cristãos] não só alimentam os seus pobres, mas também os
nossos". Com pesar ele reconheceu que o culto pagão que havia ten­
tado reavivar tinha falhado miseravelmente na tarefa de ajudar os
pobres42.
A prática dos cristãos do segundo século, por mais interessante
que seja, não é, obviamente, normativa para nós hoje. Com efeito,
muitos haveriam de insistir em que nem a prática de Paulo em Co­
rinto nem a dos primeiros cristãos em Jerusalém é normativa. Qual

4 0 C ita d o em H e n ge l, P ro p e rty and Riches in th e E a rly C h u rc h , p p . 4 2 -4 3 .

41 Ib id ., p p . 42^14.

4 2 E p . 8 4 ; cita d o e m ib id ., p . 4 5 .

113
1

é, então, a relevância que o compartilhar econômico deles naquela


época tem para a igreja de hoje?
Certamente a igreja não deve imitar servilmente cada detalhe da
vida da igreja primitiva, como é retratada no livro de Atos. O ensino
bíblico, não o que fazia a igreja de Jerusalém, é normativo. Isso, po­
rém, não significa que podemos simplesmente ignorar aquilo que é
descrito em Atos e nas epístolas paulinas sobre a intercolaboração
econômica das igrejas.
P~~ Sempre e sempre de novo Deus deixou mandamentos específi-
i cos para o seu povo no sentido de viverem iuntos em comunidade de
tal modo que sejam evitados extremos de riqueza e de pobreza. Este
l i o ponto central na legislação concernente ao Jubileu e ao ano sa­
bático. Este é o ponto na legislação sobre os dízim os,líi colheitas
e os empréstimos. Jesus, nosso único modelo perfeito, compartilha­
va uma caixa comum com a nova comunidade formada pelos seus
discípulos. Sempre de novo ele instruía os seus seguidores a com­
partilharem com os necessitados. Os cristãos do primeiro século
estavam simplesmente colocando em prática aquilo que havia sido
ordenado tanto pelo Antigo Testamento como por Jesus.
O poderoso impacto evangelÍStico causado pelo compartilhamen­
to econômico levado a efeito em Jerusalém é uma indicação de que
Deus aprovou e abençoou a prática daquela igreja. Quando as Escri­
turas em certas passagens ordenam que haja novas relações econômi­
cas entre os que formam o povo de Deus e, em outros lugares, des­
crevem a bênção de Deus sobre o seu povo à medida em que execu­
tavam essas ordens, podemos estar certos de ter descoberto aí um
padrão normativo também para a igreja de hoje.
O surpreendente, de fato, é a continuidade do ensino e da práti­
ca bíblica com relação a este ponto. A Bíblia repetida e claramente
revela qüe Deus quer relações econômicas transformadas entre o seu
povo. A coleta de Paulo era simplesmente uma aplicação do princí­
pio básico do Jubileu. 0 método particular usado para executá-lo,
obviamente, era diferente, uma vez que o povo de Deus a essa altu­
ra era um corpo multiétnico, vivendo em diferentes lugares. Mas o
princípio era o mesmo. Uma vez que os gregos em Corinto agora fa­
ziam parte do povo de Deus, esperava-se que compartilhassem os
seus bens com os cristãos judeus pobres de Jerusalém — para que
houvesse igualdade!
CONCLUSÕES

Estivemos olhando com atenção para o tipo de relações econô­


micas que Deus deseja entre o seu povo. Agora, o que significa a
revelação bíblica para os cristãos ricos de hoje? Para mim, só se po­
de chegar a uma conclusão.
As atuais relações econômicas no corpo de Cristo, hoje espalhado
pelo mundo inteiro, não são bíblicas; são pecaminosas, são um obs­
táculo ao evangelismo e uma profanação do corpo e sangue de Cris­
to. 0 valor, em dólares, da comida que os norte-americanos jogam no
lixo a cada ano é equivalente a mais ou menos 1/5 da renda anual
total de todos os cristãos na África43. ê simplesmente abominável
que uma parte dos cristãos no mundo enriqueça cada vez mais a
cada ano que passa, enquanto irmãos e irmãs no Terceiro Mundo pa­
decem e sofrem da falta de um atendimento mínimo de saúde, de
uma educação elementar e mesmo — em alguns casos — tendo somen­
te o suficiente de comida para não morrer logo de fome.
Nós somos como os cristãos ricos de Corinto, que festejavam sem
repartir a sua comida com os membros pobres da igreja (1 Coríntios
11.20 29). Como eles, falhamos hoje em discernir a realidade do cor­
po uno e mundial de Cristo. A trágica conseqüência é que profana­
mos o corpo e sangue do Senhor Jesus, a quem adoramos. Cristãos
nos EUA gastaram 5,7 bilhões de dólares só na construção de igrejas
nos seis anos entre 1967 e 197244. Será que contjnuaríamos a cons­
truir templos extremamente dispendjosos se membros da nossa pró­
pria congregação estivessem passando fome? E não contradizemos
'Trõntalrriinte o ensino de Paulo quando vivemos como se membros
africanos ou latino-americanos do corpo de Cristo fossem menos parte

4 3 N o dia 5 de d e ze m b ro de 1 9 7 5 , o T h e W all S treet Jo u rn a l reportava que desde


1971 u m arqueologista profissional tinha estado m e d in d o a quan tida d e de c o m id a jogada
fora em T u c s o n , A r iz o n a . A sua descoberta fo i de q u e u m a fa m ília m édia joga fora o e q u i­
valente a 100 dólares de co m id a a cada ano (e isso n S o in clu i o que é d a d o aos animais
dom ésticos e o q u e é processado nos tritu ra d ore s d om éstico s de lix o }. T o m a n d o p o r base
uma fam ília de cin c o pessoas, 2 36 m ilhões de n orte-am ericanos jogam fora o equivalente
a 4 7 bilhões de dólares em co m id a to d o an o. To m a n d o -s e as cifras d o P N B per capita
(19731 dadas em R o ge r 0 . H a n s o n , A g enda fo r A c t io n 1 9 7 6 (N o v a Io rq u e : Praeger, 1 9 7 6 ),
p 146 calculei, em 1 9 7 6 , q u e 120 m ilhões de cristãos africanos ganham 25 b ilhõ e s de
dólares p o r ano (7 4 m ilhões ga nhando U S $ 1 5 0 ; 4 5 m ilhõ es, U S $ 3 0 0 e 1 m ilh â b U S $ 1 000
p o r a n o ).

« C . H . Ja c q u e t, J r . (e d .), Y e a rb o o k o f A m e ric a n and Canadian C h u rc h e s : 1 9 7 4


(N o va Io rq u e : N a tio n a l C o u n c il o f C h u rche s, 1 9 7 4 ), p . 2 6 3 .

115
de nós que os membros da nossa própria congregação45 ?
A presente divisão no corpo de Cristo, entre os que têm e os que
não têm, é um grande obstáculo à evangelização do mundo. Gente
que passa fome, no Terceiro e Quarto Mundos, acha difícil aceitar um
Cristo proclamado por gente que é sempre um símbolo da sociedade
mais rica da terra (e que muitas vezes até defende esse "status"
econômico).
Oportunidades perdidas e pecado passado ou presente, contudo,
não devem nos impedir de ver o potencial que hoje temos. 0 mundo
em que vivemos está perigosamente dividido entre ricos e pobres. Se
ao menos uma pequena fração dos cristãos ricos começasse a aplicar
princípios bíblicos de compartilhamento econômico entre o povo de
Deus espalhado pela face da terra, o mundo ficaria embasbacado.
Provavelmente nenhuma outra medida teria hoje um impacto evan-
gelístico tão poderoso. Será que não poderia acontecer que milhões
e milhões de descrentes assim chagassem a confessar a Cristo como
Senhor? A oração de Jesus seria atendida. O amor mútuo e a unidade
dentro do corpo de Cristo convenceriam o mundo de que Jesus de
fato veio do Pai (João 17.20-23).
A igreja é o organismo mais universal do mundo de hoje. Ela tem
a oportunidade de viver um novo modelo de comunhão, num mo­
mento crucial da história mundial. Devido à sua preocupação pelos
pobres, a igreja no passado tem sido pioneira no desenvolvimento
de escolas e hospitais. Mais tarde governos secularizados institucio­
nalizaram os novos modelos que ela instituiu. Nos fins do século vin­
te, um mundo perigosamente dividido espera por um novo modelo
de partilha econômica.
A Bíblia ensina com clareza que Deus deseja relações econômicas
fundamentalmente transformadas entre o seu povo. Temos nós a fé
e a obediência para começar a viver de acordo com a visão bíblica?

V e r H e lm u t G o llw itz e r, T h e R ic h Christian s and P o o r Lazarus, tra d ., para o ingles


p o r D a vid C airn s (N o va lo rq u e : M ac m illa n , 1 9 7 0 ), p. 5 ; e A r t h u r C . C o c h ra n e , Eating and
D rin k in g w ith Jesus (F ila d é lfia : W e stm inster Press, 1 9 7 4 ).

116
CAPITULO 5

P OSI ÇÃ O B Í BL I C A
COM R E L A Ç Ã O À R I QUE ZA E
P O S S E DE B E N S M A T E R I A I S

Na casa do justo há muito tesouro (Provérbios 15.6).


Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus
(Lucas 6.20).

O títu lo deste capítulo, "A posição bíblica com relação à rique­


za e posse de bens materiais" de imediato sugere uma questão
muito importante: a Bíblia sanciona ou condena a propriedade pri­
vada? Infelizmente para muitos esta é a única pergunta importante
levantada pelo título. O ponto-de-vista bíblico é bastante diferente.
A Bíblia tem muito a ensinar com relação a propriedade e riqueza.

PROPRIEDADE PRIVADA

Os Dez Mandamentos sancionam implícita e explicitamente a


propriedade privada1. Deus proíbe o roubo e até a cobiça da casa,
terra ou animais do vizinho (Êxodo 20.15, 17; Deuteronômio 5.19,
21; veja também Deuteronômio 27.17; Provérbios 22.28). Jesus apa-

A s s im , co rre ta m e n te , C arl F . H . H e n ry , "C h ris tia n Perspective o n Private P ro p e rty ” ,


em; G o d and the G o o d , ed. C lifto n O rlcb e k e e Le w is Smedes (G ra n d R a p id s: Ee rdm a n s,
1 9 7 5 ), p . 9 7 ; H e n ge l, P ro p e rty and Riches in the E a rly C h u r c h , p . 15.

117
rentemente pressupunha de igual modo a legitimidade da proprieda­
de privada. Seu discípulo, Simão Pedro, tinha uma casa, a qual Je­
sus freqüentava (Marcos 1.29). Aos seus seguidores ele ordenou que
dessem ao pobres (Mateus 6.2-4) e emprestassem dinheiro mesmo
quando não houvesse esperança de retribuição (Mateus 5.42; Lucas
6.34, 35). Conselhos como esses não teriam razão de ser se Jesus não
tivesse concordado com a legitimidade da posse de propriedades e de
dinheiro. Como vimos no capítulo anterior, nem mesmo o intenso
compartilhamento econômico na igreja de Jerusalém implicava na re­
jeição da propriedade privada. A afirmação da sua legitimidade se
encontra ao longo de toda a revelação bíblica2.
Mas o direito à propriedade privada não é absoluto.Na perspecti­
va da revelação bíblica, os donos de propriedades não são livres para
buscar o proveito próprio sem consideração para com as necessidades
do próximo. Tal ponto-de-vista não é derivado das Escrituras, e sim
de um conceito econômico secular, baseado no princípio da não-
intervenção primeiramente formulado pelo deísta Adam Smith.
Smith publicou um livro, em 1776, que exerceu profunda influên­
cia na sociedade ocidental nos últimos dois séculos3. (Desde a revo­
lução keynesiana, é claro, a influência das idéias de Smith é menor
do que antes; contudo, a sua perspectiva fundamental, ainda que em
forma um tanto revisada, ainda hoje permanece como a base da es­
trutura ideológica de muitos norte-americanos.) Smith sustentava que
uma mão invisível garantiria o bem de todos, se cada pessoa buscas­
se os seus próprios interesses econômicos no contexto de uma socie­
dade competitiva. A oferta e procura de bens e serviços deveria ser o
único fator determinante de preços e de salários. Se reinar a lei da
oferta e procura e se todos buscarem as suas próprias vantagens den­
tro de uma economia abertamente competitiva e não-monopolística,
o bem comum da sociedade será o resultado. Proprietários de terras e
de capital, por isso, têm não apenas o direito mas inclusive a obriga­
ção de tirar deles o maior proveito possível.
Tal ponto-de-vista pode ser extremamente atrativo para cidadãos
norte-americanos bem sucedidos. Com efeito, o princípio da não-
intervenção econômica foi desposado por alguns como sendo o prin­

V e r mais sobre esse assunto em E m il B ru n n e r, Ju stice and th e S ocial O r d e r, tra d,


para o inglôs p o r M a ry H o ttirtger (L o n d re s : L u t te rw o r th Press, 1 9 4 5 ), p p . 4 2 ss„ 133ss.;
e E . C lin to n G a rd n e r, F é B íb lic a e Ética Social (São P a u lo : A S T E , 1 9 6 0 , 1 9 6 5 ), p p . 3 3 6 -4 3 .

3 A d a m S m ith , T h o W ealth o f th e N a tio n s C A R iqu eza das N a ç õ e s ") (N o v a Io rq ue :


M o d e rn L ib ra ry , 1 9 3 7 ).

118
cípio econômico cristão. Na verdade, contudo, ele é um produto do
lluminismo4. Reflete uma perspectiva moderna e secularizada, não a
perspectiva bíblica.
É interessante observar o evidente paralelo que existe entre o
princípio da não-intervenção e a posição da Roma pagã dos primei­
ros séculos em relação à propriedade privada. Cari F. H. Henry, ex-
editor da revista "Christianity Today", acertadamente contrasta a
posição bíblica com a romana: " 0 ponto-de-vista romano ou justi-
niano deriva o direito à propriedade do direito natural, e o define
como o poder exclusivo e incondicional do indivíduo sobre a pro­
priedade. Uma implicação disso é o direito do dono de usar a pro­
priedade como lhe agrada . . . independente do que pensem os ou­
tros." E Henry reconhece que essa visão pagã "ainda permanece
sendo a silenciosa pressuposição de uma boa parte do sistema do
mundo livre de hoje"5.
Segundo a fé bíblica Javé é o Senhor sobre tudo. Ele é o sobera­
no Senhor da história. A economia não é uma esfera secular neutra,
independente do seu senhorio. Pelo contrário, a atividade econômica,
como qualquer outra área da vida, deve estar sujeita à sua vontade, de
acordo com a sua revelação nas Escrituras.
Qual é a modificação que a visão bíblica de Javé como Senhor
de tudo que existe requer em relação à crença comum de que o di­
reito à propriedade privada é absoluto e inviolável? A Bíblia insiste
em que somente Deus tem direito absoluto à propriedade. Mais ain­
da, ela ensina que este Dono Absoluto impõe significativas restrições
ao modo pelo qual as pessoas podem adquirir e usar a sua proprieda­
de.
0 salmista sumariza a visao bíblica de Javé como o Proprietário
Absoluto: "A o SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se con­
tém, o mundo e os que nele habitam" (Salmo 24.1). " 0 que está de­
baixo de todos os céus é meu", diz Deus a Jó (Jo 41.11; veja ainda
Salmo 50.12; Deuteronômio 26.10; Êxodo 19.5). No último capí­
tulo examinamos a questão do Jubileu, ê exatamente por ser a pro­
priedade absoluta da terra um atributo exclusivo de Javé e não
dos colonos israelitas, que ele tinha o direito de dar ordens no sen­
tido de uma redistribuição da terra a cada 50 anos: "A terra não se
venderá em perpetuidade, porque a terra é minha: pois vós sois para
mim estrangeiros e peregrinos" (Levítico 25.23; veja também Deute-

4 V e r G o u d zw aa rd , C ap ita lism and Progress.

5 H e n ry . "C h ris tia n Perspective o n Private P ro p e r ty " , p . 9 7 .

119
ronômio 10.14). Pelo fato de ser o Criador e Sustentador de toda a
criação. Deus é o único que tem direito absoluto de propriedade.
Como proprietário absoluto. Deus impõe limitações à aquisição
e uso de propriedades. Segundo o Antigo Testamento, “ o direito à
propriedade era, em princípio, subordinado à obrigação de cuidar
dos membros mais fracos da sociedade''6. Esta é a clara implicação da
legislação, discutida no capítulo anterior, sobre o Jubileu, o ano
sabático, as colheitas e os juros. Os donos dos campos não tinham
o direito de colher tudo. Tinham que deixar alguma coisa para os
pobres. Quando um colono israelita comprava uma terra, na realida­
de o que estava comprando era o direito do uso da terra até o próxi­
mo Jubileu (Levítico 25.15-17). Na verdade, mesmo o direito de
usar a terra nesse meio tempo não era absoluto. Se aparecesse um pa­
rente da pessoa que a tinha vendido, com condições de comprá-la de
volta, o comprador teria que vendê-la logo. Ou ainda se a própria
pessoa que a vendera conseguisse de novo se recuperar financeira­
mente, teria direito a comprar de volta a terra assim que quisesse ou
pudesse (Levítico 25.25-28). O direito de propriedade do comprador
estava subordinado ao direito do proprietário original de ter meios
com que ganhar sua subsistência.
A Deus interessava evitar extremos de riqueza e pobreza entre seu
povo. Seu desejo era que cada família tivesse os seus próprios meios
de subsistência. Estes direitos humanos, inclusive os do menos privi­
legiado, que sempre de novo ficava para trás daqueles mais ativos e
mais prósperos, eram mais importantes do que os direitos de pro­
priedade da pessoa que tinha condições de pagar pela terra o preço
estabelecido pelo mercado imobiliário. Assim os direitos dos pobres
e desprivilegiados, de possuir meios que lhes possibilitassem uma justa
subsistência, tinham precedência sobre os direitos ao lucro por parte
dos mais prósperos7.
Ao mesmo tempo os princípios bíblicos de modo algum apóiam
um sistema econômico comunista. Eles apontam, isso sim, na dire­
ção de uma posse privada descentralizada, que permite às famílias
controlarem o seu destino econômico. Como mordomos da terra e
de outros recursos econômicos que pertencem, em última instância,
a Deus, elas têm a responsabilidade e o privilégio de obter o seu pró­
prio sustento, e de compartilhar seus bens generosamente com outros
à medida que houver necessidade. Esse tipo de sistema econômico

6 Hongel, P ro p e rty and Riches in th e E a r ly C h u r c h , p . 1 2 .

7V e r T o n y C ra m p , " C u t tin g th e C a k e ", T h i r d W a y , 2 8 Ju ih o , 1 9 7 7 , p p . 3 -6 .

120
descentralizado torna todas as pessoas capazes de serem co-criado-
ras com Deus. E também protege a todos contra o poder econômico
centralizado (como ocorre tanto quando o estado tem a posse dos
meios de produção, como nas grandes empresas multinacionais
controladas por pequenas elites). Tal poder centralizado representa
uma ameaça à liberdade e promove o totalitarismo.
Essa posição do Antigo Testamento com relação à propriedade
tem suas raízes no alto conceito em que a pessoa humana era tida
em Israel. Especialistas no Antigo Testamento têm destacado que
Israel, em contraste com outras civilizações antigas como a Babilô­
nia, Assíria e o Egito, considerava todos os cidadãos iguais perante
a lei. Em outras sociedades o "status" social do réu (oficial do reino,
homem pobre, sacerdote) determinava o modo pelo qual seu crime
era julgado e punido. Em Israel todos eram iguais perante a lei. Por
causa deste alto conceito das pessoas, a propriedade, na comparação
entre ambos, parecia menos significante.

Essa igualdade perante a lei é acompanhada por um novo respei­


to pela vida humana. Enquanto que em países vizinhos os crimes re­
lacionados com a propriedade, como roubo, extorsão, etc., eram fre­
qüentemente punidos com pena de morte, tal não se dava com a lei
do Antigo Testamento. A vida, mesmo da pessoa mais degradada,
valia mais que as maiores riquezas8 .

A questão dos escravos ilustra o que acabamos de ver. Em todas


as outras civilizações antigas os escravos eram vistos como mera pro­
priedade. 0 dono era completamente livre para tratar o escravo co­
mo melhor lhe parecesse. Em Israel, porém, o escravo era uma pes­
soa, não um objeto. Leis específicas lhe garantiam determinados di­
reitos (Êxodo 21.20, 26-28; Deuteronômio 23.15-16). "O fato de
que, de conformidade com a ordem de Deus, a vida de cada indiví­
duo, mesmo do mais pobre, possui mais valor que todas as coisas
materiais, representa um impedimento insuperável a todo e qualquer
modelo de desenvolvimento econômico que leva alguns poucos a lu­
crarem com a miséria de outros"9.

8 W a lter E ic h r o d t , " T h e Q u e stio n o f P ro p e rty in the Lig h t o f th e O ld Te s ta m e n t",


em B iblica l A u t h o r it y fo r T o d a y , ed. A la n Richa rd son e W . S c h w e itze r (L o n d re s : S C M
Press, 1 9 5 1 ). p . 2 6 1 .

9 Ib id ., p . 2 7 1 .

121
NÃO ANDEIS ANSIOSOS .

Jesus chama seus seguidores para uma vida alegre e livre de preo­
cupações com relação a posses materiais:

Por isso eu vos advirto: não andeis ansiosos pela vossa vida, quan­
to ao que haveis de comer, nem pelo vosso corpo, quanto ao que ha­
veis de vestir. Porque a vida é mais do que o alimento, e o corpo mais
do que as vestes. Observai os corvos, os quais não semeiam nem cei­
fam, não têm despensa nem celeiros; todavia Deus os sustenta. Quan­
to mais valeis do que as aves'. Qual de vós, por ansioso que esteja, po­
de acrescentar um côvado ao curso de sua vida? Se, portanto, nada
podeis fazer quanto às cousas mínimas, por que andais ansiosos pelas
outras?
Observai os lírios: eles não fiam nem tecem. Eu, contudo, vos
afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qual­
quer deles. Ora, se Deus veste assim a erva que hoje está no campo
e amanhã é lançada no forno, quanto mais tratando-se de vós,
homens de pequena fé. Não andeis, pois, a indagar o que haveis de
comer ou beber, e não vos entregueis a inquietações. Porque os gen­
tios de todo o mundo é que procuram estas cousas; mas vosso Pai sa­
be que necessitais delas. Buscai, antes de tudo, o seu reino e a sua jus­
tiça, e estas cousas vos serão acrescentadas. (Lucas 12.22-31; vejam
também 2 Coríntios 9.8-11.)

As palavras de Jesus são um anátema tanto para marxistas como


para capitalistas: para marxistas, porque adoram a Mamon, quando
defendem a tese de que forças econômicas são os fatores causais úl­
timos na história; para capitalistas, porque estão adorando a Mamon,
quando idolatram a eficiência e o sucesso econômico como sendo o
maior bem que se pode ter10. Num outro nível, de fato, as palavras
de Jesus são anátema para o "cristão" acomodado e que vive para
desfrutrar do seu conforto. Na verdade devo confessar que não con­
sigo lê-las sem sentir, bem no fundo, um certo mal-estar. A beleza
e atração desta passagem sempre de novo me surpreendem, mas
também me fazem lembrar que ainda não cheguei ao tipo de vida li­
vre de preocupações que Jesus aqui apresenta, a despeito de contí­
nua luta e esforço para chegar lá.
Qual é o segredo de tal vida, livre de ansiosas preocupações? Pri­

10V e r ainda G a rd n e r, Fé B fb lica e Ética Socia l, p p . 3 2 4 -2 5 .

122
meiro: muita gente se agarra ao que tem, em vez de compartilhá-lo,
por temerem o futuro. Mas tal atitude, em última análise, não cons­
titu i incredulidade? Se realmente cremos que Deusé quem Jesus dis­
se que ele é, podemos começar a viver despreocupados quanto ao fu­
turo. Jesus disse que Deus é o nosso Pai amoroso. A palavra que ele
usou, "Abba" (Marcos 14.36), é uma expressão íntima e carinhosa
como "papai". Se realmente cremos que o todo-poderoso Criador e
sustentador do cosmo é o nosso amoroso papai, podemos começar
a deixar de lado a preocupação com relação a bens materiais.
Em segundo lugar, uma vida assim, livre de ansiedades, é fruto de
um comprometimento incondicional com Jesus como Senhor. Deve­
mos realmente querer buscar em primeiro lugar o reino dos céus. Je­
sus deixou a coisa bem clara. Não podemos servir a Deus e às rique­
zas. "Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborre­
cer-se de um, e amar ao outro; ou se devotará a um e desprezará ao
outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas" (Mateus 6.24). "R i­
quezas" aqui é tradução da palavra mamon. Mamon não é algum mis­
terioso deus pagão. O termo representa simplesmente a translitera-
ção grega de uma palavra aramaica que significa "riqueza" ou "pro­
priedade"11 . Tal como o jovem rico e como Zaqueu, temos que de­
cidir entre Jesus e as riquezas. Como o negociante na parábola, te­
mos que decidir entre o reino dos céus e a nossa prosperidade econô­
mica: "O reino dos céus é também semelhante a um que negocia e
procura boas pérolas; e tendo achado uma pérola de grande valor,
vendeu tudo o que possuía, e a comprou" (Mateus 13.45, 46; veja
também o v. 44). Ou Jesus e o seu reino são tão importantes que es­
tamos dispostos a sacrificar tudo o mais, inclusive nossas riquezas, ou
não somos sinceros com relação a Deus.
Se ele é realmente o Senhor, e se confiamos num amoroso Pai
celestial, podemos ter a coragem de viver sem preocupações com
bens materiais. Cumpre dizer, todavia, que esse tipo de vida despreo­
cupada com riquezas não representa meramente algo interior, espiri­
tual. Ela envolve ação concreta. Imediatamente após o comovente
pronunciamento de Jesus sobre a despreocupação mostrada pelos
corvos e pelos lírios, ele continua: "Vendei os vossos bens e dai esmo­
la; fazei para vós outros bolsas que não desgastem, tesouro inextin-
güível nos céus, onde não chega o ladrão nem a traça consome, por­
que onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração"
(Lucas 12.33-34).

11 In terpreter's B ible , V I I , 3 2 0 ; ver ta m b é m 1 T im ó te o 6 .17*19.

123
Se existe gente pobre, que necessita de assistência, o despreocu­
pado discípulo de Jesus os ajudará — mesmo se isso significar a venda
de alguns bens. Pessoas são muito mais importantes do que coisas.
“ Fazer um tesouro nos céus" significa exatamente isso. "Na litera­
tura judaica, as boas obras de uma pessoa religiosa são muitas vezes
descritas como tesouros guardados no céu"12. Uma pessoa faz para
si um tesouro no céu praticando a justiça na terra. E ajudar aos po­
bres é um dos atos de justiça mais fundamentais. Jesus não quer di­
zer, é claro, que conquistamos a salvação por assistir ao necessitado.
Ele quer, isso sim, instar com seus seguidores a que —por gratidão para
com a graça perdoadora de Deus — sejam tão livres de preocupação em
relação a propriedades que a qualquer momento possam, se for o ca­
so, se desfazer delas para ajudar ao pobre e oprimido. Tal prontidão é
parte integral de uma vida alegre e saudavelmente despreocupada
com as riquezas.
Mas fica ainda em aberto uma questão bastante difícil. Queria
Jesus dizer que deveríamos vender tudo que temos? Quão literal­
mente devemos interpretar o que ele disse em Lucas 6.30: "dá a todo
o que te pede; e se alguém levar o que é teu, não entres em deman­
da"? Jesus várias vezes usou de hipérboles para dar ênfase a algo im­
portante, um modo de proceder que é tipicamente judaico, como já
vimos acima. Pur exemplo, dificilmente ele queria dizer, em Lucas
14.26, que alguém deve realmente odiar a seu pai e sua mãe para po­
der ser seu discípulo. O problema é que nós nos tornamos tão fami­
liarizados com as suas palavras, e tão acostumados a deixar por me­
nos o seu chamado para um discipulado radical e um comprometi­
mento incondicional, que obscurecemos a sua real intenção. O que
99% de nós necessitamos ouvir em 99% dos casos é: "dá a todo o que
te pede" e "vende os teus bens", ê certamente verdade que os segui­
dores de Jesus continuaram a ter alguma propriedade privada. Mas ele
ensinou de maneira bem clara que o tipo de compartilhamento subs­
tancial que queria ver entre eles envolveria, sem dúvida, venda de
bens. Os seus primeiros seguidores em Jerusalém levaram-no muito a
sério. E os cristãos ricos, hoje, que quiserem conhecer por experiên­
cia própria essa libertadora despreocupação que Jesus mostrou, de­
verão fazer o mesmo.
Outras partes do Novo Testamento retomam este tema. Bispos
não devem ser pessoas que amam o dinheiro ("avarentos", 1 Timó­
teo 3.3, Tito 1.7). Diáconos, igualmente, não sejam "cobiçosos de

1 2A . W . A r g y le , M a tth e w , " T h e C a m b rid g e B ib le C o m m e n ta ry " (C a m b rid g e : C a m b r i­


dge U n iv e rs ity Press, 1 9 6 3 ), p . 5 8 . A ssim ta m b é m In te rp re ter's B ible , V I I , p . 3 1 8 .

124
sórdida ganância" (1 Timóteo 3.8). Em muitas igrejas hoje, "suces­
so" nos negócios é um dos critérios mais importantes na escolha do
presbitério. Não representa isso uma flagrante inversão do ensino bí­
blico? Os que são ricos inclusive devem ter cuidado de não coloca­
rem suas esperanças na "instabilidade da riqueza". Pelo contrário,
confiem em Deus e sejam "generosos em dar e prontos a repartir"
(1 Timóteo 6.17-19). "Seja a vossa vida sem avareza. Contentai-
vos com as cousas que tendes; porque ele tem dito: De maneira algu­
ma te deixarei, nunca jamais te abandonarei" (Hebreus 13.5). Nosso
futuro está assegurado, não porque contamos com recursos à nossa
disposição, e sim por estarmos nas mãos de um Pai amoroso e onipo­
tente. Se realmente confiamos nele e estamos incondicionalmente
submetidos ao seu senhorio, podemos ter a mesma atitude de Jesus,
livres de preocupação e sem grandes interesses por posses e bens ma­
teriais.

O HOMEM RICO E LOUCO

A maioria dos cristãos de classe média e alta simplesmente não


acreditam no que Jesus disse sobre o perigo mortal que representa
a riqueza. Todos temos conhecimento das suas advertências de que
ter bens é algo altamente perigoso — tão perigoso, na verdade, que
inclusive é extremamente difícil para um rico ser cristão. "É mais
fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar
um rico no reino de Deus" (Lucas 18.24, 25). Mas nós não acredita­
mos em Jesus. Os cristãos americanos, por exemplo, vivem na socie­
dade mais rica que já houve na história mundial, rodeados por vizi­
nhos dos quais um bilhão passa necessidade. No entanto, exigimos de
nossos governantes que promovam uma expansão econômica cada
vez maior, para que a nossa renda aumente de ano para ano. Quere­
mos sempre mais e mais. Se Jesus teve tão pouco do espírito ociden­
tal que chegou a considerar as riquezas algo perigoso, então só nos
resta ignorá-lo ou reinterpretar a sua mensagem.
Mas ele disse exatamente isso, gostemos ou não. Mateus, Marcos
e Lucas, todos registram a terrível advertência: "Quão dificilmente
entrarão no reino de Deus os que têm riquezas" (Lucas 18.24; Mar­
cos 10.23; Mateus 19.23). O contexto nos mostra a razão do perigo.
Jesus disse essas palavras aos seus discípulos logo depois do jovem ri­
co tomar a decisão de ficar com o seu dinheiro em vez de segui-lo
(Lucas 18.18-23). A riqueza é perigosa porque seu poder de sedução
muito freqüentemente nos persuade a rejeitar a Jesus e seu reino.

125
O sexto capítulo de 1 Timóteo sublinha e reforça o ensino de
Jesus. Os cristãos devem ficar contentes tendo o necessário para co­
mer e vestir (1 Timóteo 6.8). Por quê?

Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação e cilada, e em


muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os
homens na ruína e perdição. Porque o amor do dinheiro é a raiz de
todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé, e a si mes­
mos se atormentaram com muitas dores (1 Timóteo 6.9, 10).

O desejo de ficar rico leva o sujeito a fazer qualquer coisa para


obter sucesso econômico. A conseqüência, advertem as Escrituras, é
angústia agora e perdição no fim.
Que o sucesso financeiro é uma tentação para as pessoas, para
que se esqueçam de Deus, já era um tema corrente no Antigo Testa­
mento. Antes de entrarem na terra prometida, Deus advertiu o povo
de Israel sobre o perigo das riquezas.

Guarda-te não te esqueças do SENHOR teu Deus . . . para não


suceder que, depois de teres comido e estiveres farto, depois de ha­
veres edificado boas casas, e morado nelas; depois de se multiplica­
rem os teus gados e os teus rebanhos, e se aumentar a tua prata e o
teu ouro, e ser abundante tudo quanto tens, se eleve o teu coração
e te esqueças do SENHOR teu Deus . . . Não digas, pois, no teu co­
ração: a minha força e o poder do meu braço me adquiriram estas
riquezas (Deuteronômio 8.11-17).

A abundância de recursos materiais pode facilmente nos levar a


esquecer que Deus é a fonte de todo o bem. Antes que confiar no
Todo-poderoso, preferimos confiar em nós mesmos e naquilo que
temos.
0 dinheiro não nos tenta apenas a abandonar a Deus. Guerra e
negligência do pobre muitas vezes são conseqüência da gananciosa
busca por riquezas. "De onde procedem guerras e contendas, que há
entre vós? . . . Cobiçais e nada tendes; matais e invejais e nada po­
deis obter; viveis a lutar e a fazer guerras" (Tiago 4.1-2). Mesmo
uma rápida lida sobre a história mundial confirma esta constatação.
Em vez de criar mais compaixão para com os pobres, a riqueza
muitas vezes endurece o coração daquele que a possui. As Escritu­
ras estão cheias de exemplos de pessoas ricas que simplesmente não
dão a mínima importância ao pobre deitado diante das suas portas
(Lucas 16.19-31; Isaías 5.8-10; Amós 6.4-7; Tiago 5.1-5). O arcebis­
126
po de Recife, Dom Helder Câmara, que tem dedicado sua vida ao
empenho por justiça para os pobres, faz uma vigorosa colocação nes­
se sentido:

Eu costumava pensar, quando criança, que Cristo devia estar exa­


gerando quando advertia sobre os perigos da riqueza. Hoje já entendo
as coisas um pouco melhor. Sei como é d ifíc il ser rico e continuar a
ser humano. O dinheiro tem um jeito muito perigoso de colocar tra­
ves no olho de uma pessoa, de endurecer suas mãos, olhos, lábios
e corações13.
Riquezas são, definitivamente, algo perigoso, porque muitas ve­
zes induzem à falta de preocupação pelos pobres, porque levam a
contendas e guerras e, não por último, porque seduzem as pesssoas
a abandonar a Deus.
A maneira de usar o termo "cobiça" ou "avareza" reflete a com­
preensão bíblica do perigo representado pelas riquezas. A palavra
grega pleonexia ("avareza", "cobiça") significa "luta pela aquisição
de bens materiais"14.
A parábola de Jesus sobre o homem rico e louco retrata vivida-
mente a natureza dessa pleonexia. Em vindo um homem ao seu en­
contro, a pedir-lhe que o ajudasse a obter a sua parte de uma heran­
ça familiar, Jesus recusa-se a se envolver na questão. Pelo contrário,
percebendo qual era o real problema, lança uma advertência sobre o
perigo representado pela avareza. "Tende cuidado e guardai-vos de
toda e qualquer avareza (pleonexia); porque a vida de um homem
não consiste na abundância dos bens que ele possui" (Lucas 12.15).
Sabendo que o homem estava obcecado pelas coisas materiais, conta-
lhe a seguinte história, sobre um homem rico e louco:

O campo de um homem rico produziu com abundância. E arra­


zoava consigo mesmo, dizendo: Que farei, pois não tenho onde reco­
lher os meus frutos? E disse: Farei isto: Destruirei os meus celeiros,
reconstruí-los-ei maiores e a í recolherei todo o meu produto e todos
os meus bens. Então direi à minha alma: Tens em depósito muitos
bens para muitos anos: descansa, come e bebe, e regala-te. Mas Deus
lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma; e o que tens prepa­
rado, para quem será? Assim é o que entesoura para si mesmo e não

1 3H e ld e r C âm a ra , R o vo lu tio n T h r o u g h Peace (N o va Io rq u e : H a rp e r, 1 9 7 1 ), p p . 1 4 2 -4 3 .

I 4 T W N T , V I , 2 7 1 . T a y l o r (E n o u g h Is E n o u g h , p . 4 5 ) acha qu e a palavra te m a co n o ta -
ç5o de "e x ce ss o " ou "q u e re r mais e m a is".

127
é rico para com Deus (Lucas 12.16-21).

Esse homem é um avarento típico. Tem uma voraz compulsão


a adquirir mais e mais coisas, mesmo não necessitando delas. E o seu
fenomenal sucesso em ajuntar sempre mais propriedades e bens leva-o
à blasfema conclusão de que os bens materiais podem satisfazer todas
as suas necessidades. Sob a perspectiva de Deus, no entanto, pensar
assim é uma grande loucura. Ele é um doido varrido.
Não se pode ler esta parábola sem deixar de pensar em nossa so­
ciedade moderna. Nós, adoidadamente, multiplicamos aparelhos sem­
pre mais sofisticados, construções sempre maiores e mais amplas,
meios de transporte mais rápidos, não porque tais coisas verdadeira­
mente enriquecem a nossa vida, mas porque somos levados por uma
obsessão por ter sempre mais e mais. A avareza — luta para ter sem­
pre mais bens materiais — se tornou um dos vícios cardeais da civili­
zação ocidental.
O Novo Testamento tem muito a dizer sobre a avareza. Ela é o
castigo divino pelo pecado do homem. Na sua essência, é idolatria.
As Escrituras ensinam que pessoas gananciosas devem ser expulsas
da igreja, é certo que nenhum avarento herdará o reino de Deus.
No primeiro capítulo da carta aos Romanos, Paulo observa que
Deus às vezes pune o pecado deixando os pecadores experimentarem
as sempre mais desastrosas conseqüências de sua contínua rebelião
contra ele. "E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o
próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para
praticarem cousas inconvenientes, cheios de toda injustiça, malícia,
avareza, . . . homicídio, contenda . . (Romanos 1.28-29). A avare­
za é um dos pecados com que Deus pune a nossa rebelião. A parábo­
la do rico louco mostra uma maneira como se concretiza essa puni­
ção. Uma vez que somos criados para ter comunhão com o Criador,
não podemos obter uma realização genuína em bens materiais. Por
isso, corremos frenética e desesperadamente em busca de sempre
mais casas e celeiros. Eventualmente, chegamos ao ponto de adorar
de maneira idólatra os bens que possuímos. Como observa Paulo,
a avareza, por fim, é franca idolatria (Efésios 5.5; Colossenses 3.5).
Paulo deu, efetivamente, ordens aos coríntios para que executas­
sem a disciplina da igreja contra pessoas avarentas (1 Coríntios 5.11).
Os cristãos de hoje não se surpreendem nem um pouco com o fato de
ter ele insistido com os coríntios a que excomungassem um membro
da igreja que vivia com a mulher de seu pai (1 Coríntios 5.1-5). Mas
fazemos pouco caso do fato que Paulo passa daí a exortar (1 Corín­
tios 5.11) aos cristãos a que não se associem com ou mesmo façam
refeições junto com pessoas que se dizem cristãs mas que são ava­
rentas! Não somos nós avarentos quando ambicionamos um padrão-
de-vida sempre mais elevado para nós mesmos, enquanto milhões de
crianças morrem de fome a cada ano? Já não é hora de a igreja come­
çar a aplicar sua disciplina sobre aqueles que são culpados deste peca­
do15? Não seria mais bíblico aplicar a disciplina da igreja a pessoas
cuja cobiçosa ganância tem-nas levado ao “ sucesso financeiro", em
vez de elegê-las para o presbitério?
Tal atitude talvez seja o último meio que nos resta para transmi­
tir a advertência bíblica de que pessoas avarentas não herdarão o rei­
no de Deus.

Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus?


Não i/os enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem
efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bê­
bados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus
(1 Coríntios 6.9-10).
A avareza é tão pecaminosa quanto a idolatria e o adultério.
A mesma mensagem, vigorosa e clara, aparece em Efésios: "Sabei,
pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é idó­
latra, tem herança no reino de Cristo e de Deus" (5.5). Estas passa­
gens bíblicas deveriam nos colocar, a todos, de joelhos. Quanto a
mim, tenho receio de ter sido repetida e pecaminosamente avaren­
to. E o mesmo é verdade para a grande maioria dos cristãos ociden­
tais.
Bens materiais são altamente perigosos. Levam a uma multidão
de pecados, inclusive a idolatria. Os cristãos ocidentais hoje deses­
peradamente precisam voltar as costas a uma civilização avarenta e
materialista.

AS ALIANÇAS E 0 NOIVO AMADO

As riquezas são perigosas. Mas não são más por natureza16. A


revelação bíblica começa com a criação. E as coisas criadas, disse

15Para urna discussão da disciplina eclesiástica, ver o m eu a rtig o "W a tc h in g O ve r O n e


A n o th e r in L o v e " , T h e O th e r S id e, X I (M a io -Ju n h o , 1 9 7 5 ), p p . 10ss. (especialm ente p . 5 9 ).

1 6 Para um a boa discussão desse assunto, ver J . A . Ziesler, C h ristia n A sceticism (C a p .


4 , n ota 2 0 ).

129
Deus, são todas muito boas (Gênesis 1).
A fé bíblica não conhece as idéias ascéticas de que se abster de
comida, posses ou sexo é algo virtuoso por si só. Na verdade todas
essas coisas boas da criação são, como disse Agostinho, apenas alian­
ças dadas a nós pelo nosso Noivo Amado. Não são o próprio Noivo.
Às vezes circunstâncias particulares — tais como uma missão urgen­
te ou a necessidade dos pobres — podem exigir uma renúncia a elas.
São e permanecem, entretanto, parte da boa criação de Deus, como
as alianças dadas pelo Amado, são símbolos do seu amor por nós.
Se as valorizamos como provas da afeição que ele nos devota, em
vez de as confundirmos com ele próprio, são presentes maravilho­
sos, que enriquecem as nossas vidas.
A prescrição que Deus deu a Israel no tocante ao uso do dízimo
representa bem a perspectiva bíblica sobre o assunto (Deuteronô-
mio 14.22-27). A cada três anos, como já vimos, o dízimo era dado
aos pobres. Nos outros anos, entretanto, o povo devia ir ao lugar de
culto e fazer uma grande festa. Era para ser uma grande celebração,
cheia de alegria! "E, perante o SENHOR teu Deus, no lugar que es­
colher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu
cereal, do teu vinho e do teu azeite, e os primogênitos das tuas va­
cas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer ao SENHOR teu
Deus todos os dias" (Deuteronômio 14.23). Aqueles que moravam
longe do santuário podiam vender o dízimo da sua produção e levar
o dinheiro. Prestem atenção nas instruções de Deus para os partici-
pates dessa festa: "Esse dinheiro dá-lo-ás por tudo o que deseja a
tua alma, por vacas, ou ovelhas, ou vinho, ou bebida forte, ou qual­
quer coisa que te pedir a tua alma; come-o ali perante o SENHOR
teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa" (14.26). Deus quer que o seu
povo celebre a gloriosa excelência da sua criação.
O exemplo de Jesus encaixa perfeitamente na visão do Antigo
Testamento. E certo que ele falou um bocado sobre o perigo que re­
presenta ter bens materiais. Todavia não foi um asceta. Participou
com prazer de festas de casamento, e inclusive colaborou com a be­
bida (João 2.1-11). Jantou com pessoas abastadas. Aparentemente
ele era ligado o suficiente a festas e celebrações para que seus inim i­
gos pudessem espalhar o boato de que era um glutão e beberrão
(Mateus 11.19). O ascetismo cristão tem uma longa história; contu­
do a vida de Jesus solapa as suas pressuposições básicas.
Uma breve passagem na primeira carta a Timóteo resume bem o
ponto-de-vista bíblico. Nos últimos dias vai haver gente proibindo o
casamento e pleiteando abstinência de alimentos. Mas isso não é
certo, "pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de
130
r

graça, nada é recusável" (1 Timóteo 4.1-4).


O ensino bíblico quanto à criação ser boa em si mesma não con­
tradiz os outros temas bíblicos que temos analisado, E igualmente
verdade que os bens materiais são perigosos e que o povo de Deus
deve praticar a auto-negação para ajudar os pobres e alimentar os
famintos. Mas é muito importante que enfoquemos o mandamen­
to bíblico de trazer libertação aos pobres sem distorcer outros aspec­
tos das Escrituras. Não é porque alimentos, roupas e propriedades
sejam intrinsecamente más que os cristãos devem hoje baixar o seu pa-
drão-de-vida. E porque outros estão morrendo. A criação é boa. Mas
aquele que nos deu essa maravilhosa prova da sua afeição, que ela repre­
senta, nos pediu que a compartilhássemos com nossos irmãos e irmãs.

PROSPERIDADE: UM SINAL DA BÊNÇÃO DE DEUS?

A obediência a Deus representa uma garantia de prosperidade


material? Ê verdade que "na casa do justo há grande tesouro" (Pro­
vérbios 15.6)? E o inverso, também é verdade? São as riquezas um
sinal seguro de virtudes?
A Bíblia certamente não romantiza a pobreza, que é uma mal­
dição (2 Samuel 3.29; Salmo 109.8-11). Algumas vezes é conse­
qüência do pecado, mas nem sempre. Uma das questões fundamen­
tais no livro de Jó é que pobreza e sofrimento nem sempre se devem
à desobediência. Na verdade podem inclusive conter um elemento
de redenção (Isaías 53). Mesmo assim pobreza e sofrimento não são
algo bom por natureza. São trágicas distorções da boa criação de
Deus.
A prosperidade, por outro lado, é boa e desejável. Repetidamen­
te Deus prometia ao seu povo, Israel, que a obediência traria consigo
abundante prosperidade numa terra que mana leite e mel (Deutero-
nômio 6.1-3).

Se ouvires a voz do SENHOR teu Deus, virão sobre t i e te alcan­


çarão todas estas bênçãos . . . O SENHOR te dará abundância de
bens no fruto do teu ventre, no fruto dos teus animais, e no fruto do
teu solo, na terra que o SENHOR sob juramento a teus pais prome­
teu dar-te (Deuteronômio 28.2, 11; veja também 7.12-15).
Que Deus freqüentemente recompensa a obediência com abun­
dância material é um ensinamento claro das Escrituras.
Mas a ameaça de uma maldição sempre acompanha a promessa

131
de bênção (Deuteronômio 6.14-15; 28.15-68; 8.11-20). Como vi­
mos nos últimos dois capítulos, um dos mandamentos mais freqüen­
tes de Deus para o seu povo era que alimentassem os famintos e fi­
zessem com que houvesse justiça para o pobre e oprimido. Por ter
sempre de novo ignorado este mandamento, Israel sofreu a maldi­
ção de Deus. A prosperidade nacional nos dias de Amós e Isaías não
era resultado da bênção divina. Era fruto de pecaminosa opressão
aos pobres. Em conseqüência. Deus destruiu a nação.
Achamos com maior freqüência textos bíblicos que advertem
sobre a punição de Deus para os ricos e poderosos, por causa da sua
negligência ou opressão para com os pobres, do que textos que di­
zem resultar a abundância material da obediência” . As duas coi­
sas, no entanto, não são mutuamente contraditórias. Ambas são ver­
dade. O que precisamos é do equilíbrio bíblico.
A Bíblia realmente ensina que Deus recompensa a obediência
com prosperidade. Mas nega o inverso. É uma heresia, particular­
mente em voga no Ocidente, pensar que riqueza e prosperidade
são sempre um sinal seguro de virtudes. Podem ser resultantes de
pecado e opressão, como no caso de Israel18. O teste decisivo é
se as pessoas prósperas estão obedecendo o mandamento de Deus
de fazer justiça ao oprimido” . Se não o fazem, estão vivendo em
condenável desobediência a Deus. Por isso, em bases bíblicas, pode-
se ter certeza de que a prosperidade, num contexto de injustiça, re­
sulta de opressão, e não de obediência, não sendo, conseqüentemen­
te, um sinal de justiça.
A estreita relação entre justiça, prosperidade e zelo pelos pobres
é explicitamente ensinada nas Escrituras. A descrição da "mulher
virtuosa", em Provérbios 31, oferece uma bela ilustração disso.
Essa mulher é uma aplicada negociante que compra campos e está
envolvida no comércio (versículos 14, 16 e 18). É uma pessoa justa,
que teme ao Senhor (v. 30). Sua obediência e diligência claramente
lhe trazem prosperidade. Porém, posses materiais não endurecem
seu coração contra os pobres: "abre a mão ao aflito; estende-a ao
necessitado" (v. 20).

17 V e r os texto s b íb lic o s em S id e r, C r y Ju stice , p p . 1 7 5 -8 7 para o p rim e iro e p p . 1 4 8 -


53 para o ú ltim o .

18 V e r a c im a, p p . 6 3 -6 7 , 7 4 -7 9 .

I 9 V e r G o rd o n D . Fee, “ T h e N e w Te s ta m e n t V ie w o f W ealth and Possessions", N e w


O x fo rd R e vie w , M a io , 1 9 81 , p . 9 : " É só q u a n d o alguém é jus to — isto é, anda em c o n f o r­
m idade co m a lei de Deus — que lhe é p ro m etida a bênção da abundância e da fa m ília . Mas
ser justo significa especialm ente que a pessoa se p re ocupava e se em penhava pela causa dos
pobres e o p rim id o s ".

132
0 Salmo 112 é igualmente explícito.

" Bem-aventurado o homem que teme ao SENHOR,


e se compraz nos seus mandamentos. . .
Na sua casa há prosperidade e riqueza,
e a justiça permanece para sempre.
Aos justos nasce luz nas trevas;
ele é benigno, misericordioso e justo.
Ditoso o homem que se compadece e empresta . . .
Distribui, dá aos pobres;
a sua justiça permanece para sempre . . . " (Salmo 112.1,3-5,9).

A pessoa que é justa distribui voluntária e liberalmente de suas ri­


quezas aos pobres, se esforça para que seja estabelecida justiça para
os oprimidos. Esse é o tipo de vida que evidencia que a prosperidade
da pessoa resulta de obediência, e não de opressão.
Deus quer prosperidade com justiça. Como John V. Taylor defi­
niu de maneira tão bela, a norma bíblica com relação às posses mate­
riais é "suficiência"20 . Provérbios 30.8-9 nos dá um perfeito sumário:

Não me dês nem a pobreza nem a riqueza:


dá-me o pão que me for necessário;
para não suceder que, estando eu farto, te negue
e diga: Quem é o SENHOR?
ou que, empobrecido, não venha a furtar,
e profane o nome de Deus.

Os cristãos ocidentais, todavia, devem ter muito cuidado para não


distorcerem o ensino bíblico de que Deus às vezes recompensa a
obediência com abundância material.
Gente rica que faz cestas de Natal e contribui para alguma causa
assistencial não está satisfazendo a exigência de Deus. Deus quer jus­
tiça para os pobres. E justiça, como já vimos, significa alguma coisa
do tipo do Jubileu e do cancelamento sabático das dívidas. Significa
estrutruras econômicas que impeçam o surgimento de extremos de
riqueza e de pobreza. Significa um substancial compartilhamento de
recursos econômicos entre o povo de Deus. Prosperidade sem esse
zelo bíblico por justiça é um sinal claro de desobediência.
Temos visto que o Antigo Testamento ensina que posses mate­

2 0 J o h n V . T a y lo r , E n o u g h is E n o u g h (L o n d re s : S C M Press, 1 9 7 5 ), c a p ítu lo 3 .

133
1

riais às vezes são resultantes da bênção divina. No entanto, será es­


se ponto-de-vista compatível com as palavras de Jesus: "Bem-aventu­
rados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus" (Lucas 6.20)? i
Consideraria Jesus a pobreza como uma virtude em si mesma? Além <
disso, como conciliar a versão desta bem-aventurança em Lucas j
com a versão de Mateus: "Bem-aventurados os pobres de espírito"
(Mateus 5.3)? O desenvolvimento da idéia do "pobre piedoso", nos
séculos imediatamente anteriores à vinda de Jesus, nos ajudará^res-
ponder estas perguntas.
Já nos Salmos os pobres eram muitas vezes identificados como
alvos especiais do favor e da proteção de Deus, precisamente por se­
rem oprimidos pelos ricos perversos (veja, p.ex., o Salmo 8)21. i
Quando os gregos e depois os romanos conquistaram a Palesti­
na, a cultura e os valores helenistas foram impingidos sobre os judeus.
Aqueles que permaneciam fiéis a Javé muitas vezes se viam prejudica­
dos financeiramente. Assim o termo pobre veio a ser usado para des­
crever judeus fiéis. "Era virtualmente equivalente a piedoso, temente
a Deus, devoto; e reflete uma situação em que os ricos eram geral­
mente aqueles que se renderam à nova cultura que se impunha, dei­
xando assim que os novos costumes corrompessem a sua devoção
religiosa. Se os pobres eram os piedosos, fiéis e oprimidos de muitas
maneiras, os ricos eram os poderosos, ímpios, mundanos, apósta­
tas"22 .
Num contexto desses o justo muitas vezes é pobre, faminto e
abatido, não meramente "de espírito", mas de fato. Mateus não
"espiritualizou" as palavras de Jesus. Ele simplesmente captou um
outro aspecto do sentido original que Jesus lhes havia dado. Jesus
estava falando sobre aquelas pessoas fiéis que tinham tanta fome e se­
de de justiça que sacrificavam até mesmo a sua prosperidade mate­
rial, quando isto se tornava necessário. Não quis dizer, portanto, que
a pobreza e a fome eram desejáveis em si mesmas. Mas, num mundo
de pecado, onde freqüentemente sucesso e prosperidade só são pos­
síveis se se transgride a lei de Deus, pobreza e fome são de fato uma
bênção. E o Reino é precisamente para estas pessoas.
O comentário de Jesus em Marcos 10.29-30 ajuda a esclarecer
melhor o assunto. Ele prometeu que aqueles que abandonassem tu ­
do por causa do Reino receberiam cem vezes mais já aqui nesta vida.

21 V e r , além disso, as v in te referencias em B a te y, Jesus a nd th e P o o r. p . 9 2 .

*2 Ziesler, C h ristian A s ceticism , p . 5 2 . V e r ta m b é m o m eu artigo " A n Evangelical


Th e o lo g y o f L ib e ra tio n ", em K a n tz e r e G u n d r y {e d s .l. Perspectives o n Evangelical T h e o ­
lo g y , p p . 1 2 2-1 2 5.

134
r

E inclui aí casas e terras, parte da boa criação que Deus fez para
que dela usufruíssemos. Na mesma frase, contudo, prometeu também
perseguição! Às vezes —talvez a maior parte das vezes —os maus, po­
derosos e ricos haverão de perseguir àqueles que se arriscarem a seguir
incondicionalmente o ensino de Jesus. Daí resultam freqüentemen­
te fome e pobreza. E em circunstâncias tais o discípulo pobre e fa­
minto é de fato abençoado.
Temo que estejamos no limiar de tempos como esse. Pode chegar
o dia, e talvez não demore muito, em que aqueles que se aventura­
rem a pregar e viver o que a Bíblia ensina sobre os pobres e os bens
materiais terá que enfrentar uma terrível perseguição. Em algumas
regiões, com efeito, isso já se faz sentir. Muitos cristãos na América
Latina têm sido torturados, alguns inclusive mortos, por causa da
sua identificação com os pobres. Se as guerras de redistribuição
preconizadas por Heilbroner” se tornarem realidade, se nações ricas
forem à guerra para proteger a sua desproporcional fatia dos re­
cursos e alimentos de que o mundo dispõe, então inevitavelmente
ocorrerão perseguições nesses países.
Em tais circunstâncias os cristãos fiéis continuarão a manter o
seu ponto dc vista do que os direitos de propriedade não são abso­
lutos. Corajosamente insistirão em que o direito de indivíduos e na­
ções de usar terras e recursos como bem entenderem é subordinado
ao direito que têm todas as pessoas a recursos e meios justos de sub­
sistência. Certamente eles compreenderão, então, de modo mais
profundo a despreocupação e a desimportância com que Jesus enca­
rava os bens materiais. Ao verem outros membros da igreja optarem
por segurança e boa vida em lugar de fidelidade e perseguição, se da­
rão conta de quão perigosos são, de fato, as posses materiais e a ri­
queza. Certamente não haverão de desprezar as boas dádivas da cria­
ção. Mas, quando forçados a escolher entre as posses e o Reino, de

* 3 V e r a c im a, p . 3 6 .

135
CAPITULO 6

A FOME MUN DI AL
E 0 PECADO " E S T R U T U R A L "

Atendei agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desven­
turas, que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão corruptas e as vos­
sas roupagens comidas de traça, o vosso ouro e a vossa prata foram
gastos de ferrugens e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra
vós mesmos, e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros
acumulastes nos últimos dias. Eis que o salário dos trabalhadores que
ceifaram os vossos campos, e que por vós foi retido com fraude, es­
tá clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos
do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra.
Tendes vivido nos prazeres. Tendes engordado os vossos corações,
em dia de matança (Tiago 5.1-5).
Li há algum tempo que Upton Sinclair, o escritor, leu essa passa­
gem (Tiago 5.1-5) . . . para um grupo de pastores. Atribuiu, então,
a autoria dessas palavras a Emma Goldman, na época uma agitadora
anarquista. Houve grande indignação entre os pastores, que respon­
deram: "Essa mulher deve ser deportada imediatamente"! |De um
sermão não-publicado, proferido a 1P de junho de 1975 pelo dr.
Paul E. Toms, ex-presidente da "National Association o f Evangeli-
cals", dos Estados Unidos],

136
A BIBLIA E O "PECADO ESTRUTURAL"

A negligência no que tange ao ensino bíblico sobre a injustiça


estrutural ou o pecado institucionalizado é hoje uma das omissões
mais fatais de muitos setores da igreja. O que diz a Bíblia a respeito
do "pecado estrutural" e o quanto isto aprofunda a nossa compreen­
são da perspectiva bíblica com relação à pobreza e à fome?
Freqüentemente os cristãos restringem o escopo da sua ética a
determinada classe de pecados "pessoais". Em estudo feito entre
mais de 1500 pastores, nos Estados Unidos, pesquisadores desco­
briram que os pastores teologicamente conservadores falam a res­
peito de pecados tais como abuso de drogas e má conduta sexual1.
Deixam, contudo, de pregar sobre temas como o racismo institucio­
nalizado, estruturas econômicas injustas e instituições militaristas
que destróem tanta gente quanto o álcool e as drogas.
Há uma importante diferença entre atos individuais, feitos de
plena consciência (como mentir a um amigo ou cometer adulté­
rio), e a participação em estruturas sociais pecaminosas. A escravi­
dão é um exemplo do último tipo. Tomemos o caso do sistema de
feitorias existente na Grã-Bretanha, na época vitoriana, onde crian­
ças de dez anos trabalhavam 12 a 16 horas por dia. Tanto a escravi­
dão como o trabalho infantil eram legais. Mas destruíram gente aos
milhões. Eram injustiças estruturais ou institucionalizadas. No sé­
culo XX, ao contrário do século passado, os evangélicos estão mais
preocupados com atos pecaminosos individuais do que com a sua par­
ticipação em estruturas sociais injustas.
A Bíblia, no entanto, condena de maneira igual a ambos. Falan­
do por intermédio de Amós, seu profeta, o Senhor declarou o se­
guinte:

Assim diz o SENHOR: Por três transgressões de Israel, e por qua­


tro, não sustarei o castigo, porque os juizes vendem o justo por d i­
nheiro, e condenam o necessitado por causa de um par de sandálias.
Suspiram pelo pó da terra sobre a cabeça dos pobres, e pervertem o
caminho dos mansos; um homem e seu pai coabitam com a mesma
jovem, e assim profanam o meu santo nome. (Amós 2.6, 7)

Exegetas têm demonstrado que havia alguma espécie de amparo

'p s y c h o lo g y T o d a y , A b r il, 1 9 7 0 , p p . 38ss.

137
legal para a "condenação do necessitado por um par de sandálias"2.
Maltratar os pobres era legal'.
Deus condena tanto os desvios sexuais como a opressão legaliza­
da, dos pobres. Pecados sexuais e injustiça econômica são abominá­
veis a Deus em escala de igualdade.
Algo semelhante nos é dito através do profeta Isaías:

A i dos que ajuntam casa a casa,


reúnem campo a campo,
até que não haja mais lugar,
e ficam como únicos moradores no meio da terra'.
A meus ouvidos disse o SENHOR dos Exércitos:
Em verdade que muitas casas ficarão desertas,
até as grandes e belas sem moradores . . .
A i dos que se levantam pela manhã
e seguem a bebedice,
e continuam até alta noite,
até que o vinho os esquente, flsaias 5.8-11)

Igualmente marcante é o sumário satírico dos versfculos 22 e


23 do mesmo capítulo: "A i dos que são heróis para beber vinho, e
valentes para misturar bebida forte; os quais por suborno justificam
o perverso, e ao justo negam justiça!" Aqui Deus, de um só fôlego,
condena tanto os ricos que são donos de grandes latifúndios em de­
trimento dos pobres, como aqueles que se entregam à bebedeira.
Grande disparidade econômica é algo tão abominável ao nosso Deus
justo como o vício da bebida.
Alguns jovens ativistas têm suposto que, enquanto estão a lutar
pelo direito das minorias e a se opor ao militarismo, são moralmente
justos, não importando quantas vezes vão para a cama à noite com
uma garota do seu movimento. Alguns dentre os seus pais, por outro
lado, têm pensado que, por não fumarem, beberem ou mentirem, são
moralmente corretos, a despeito de estarem morando em comunida­
des racialmente segregadas e de terem participação no capital de
empresas que exploram os pobres do mundo. Deus, todavia, nos mos­
tra que roubar de um empregado, deixando de lhe pagar um salário
justo, é tão pecaminoso quanto roubar um banco. Votar num racis­
ta exatamente por ser um racista é tão pecaminoso quanto dormir
com a mulher do vizinho! Ter participação numa empresa que polui

2 John B right, A H is to ry o f Israel (F ila d é lfia : W e stm inster Press, 1 9 5 9 ), p. 2 4 1 , nota 8 4 .

138
o meio-ambiente (inflingindo pesados danos a terceiros) e ficar cala­
do é algo tão errado como destruir seus próprios pulmões com ta­
baco.
Deus revela o seu desagrado com referência a instituições injus­
tas de maneira muito clara em Amós 5.10-15: (Para compreender
essa passagem é importante lembrar que as sessões do tribunal em
Israel tinham lugar ao lado do portão da cidade.) "Eles odeiam aque­
le que repreende à porta . . . Eu conheço os vossos inúmeros delitos
e os vossos enormes pecados . . . Aceitam suborno e repelem os indi­
gentes à porta . . . Odiai o mal e amai o bem, estabelecei o direito
à porta" (BJ). "Que o direito corra como a água e a justiça como um
rio caudaloso" (5.24 — BJ), não é uma verbalização abstrata. O pro­
feta quer dizer, com isso, que haja justiça no sistema legal (legislati­
vo e judiciário). Ele quer dizer: Acabem com este sistema legal cor­
rupto que permite aos ricos comprarem a sua absolvição enquanto
onera os pobres com longas penas de prisão.
Também não se trata apenas de serem condenados os indivíduos
desonestos e corruptos dentro do sistema legal. As próprias leis são,
às vezes, uma abominação para Deus, conforme ele tem claramente
dito:

Pode acaso associar-se contigo o trono da iniqüidade,


o qual forja o mal, tendo uma lei por pretexto?
Ajuntam-se contra a vida do justo,
e condenam o sangue inocente.
Mas o SENHOR é o meu baluarte e o meu Deus,
o rochedo em que me abrigo.
Sobre eles faz recair a sua iniqüidade,
e pela malícia deles próprios os destruirá;
o SENHOR nosso Deus os exterminará. {Salmo 94.20-23)

A Bíblia de Jerusalém (BJ) oferece uma excelente tradução do


v. 20: "Estás aliado a um tribunal criminoso que erige a desordem em
nome da lei?" Deus quer qué o seu povo saiba que existem governos
iníquos que "forjam o mal, tendo uma lei por pretexto".
A mesma mensagem Deus proclama por intermédio do profeta
Isaías:

A i dos que decretam leis injustas,


dos que escrevem leis de opressão,
para negarem justiça aos pobres,
para arrebatarem o direito aos aflitos do meu povo,
139
a fim de despojarem as viúvas
e roubarem os órfãos'.
Mas que fareis vós outros no dia do castigo,
na calamidade que vem de longe?
A quem recorrereis para obter socorro,
e onde deixareis a vossa glória?
Nada mais w s resta a fazer
senão dobrar-vos entre os prisioneiros
e cair entre os mortos.
Com tudo isto não se aparta a sua [de Deus] ira,
e a mão dele continua ainda estendida. (Isaías 10.1-4).

é perfeitamente possível tornar a opressão legalizada. Naquela


época como hoje, os legisladores fazem leis injustas e os burocratas
as executam. Mas Deus faz ressoar um brado de alerta contra os
que usam a sua posição oficial para baixarem leis injustas e decisões
legais tendenciosas. Opressão legalizada desagrada extremamente ao
nosso Deus. Por isso ele chama seu povo a se opor a estruturas po­
líticas que "forjam o mal, tendo a lei por pretexto". 0 Senhor justo
do universo destruirá governantes iníquos e instituições sociais injus­
tas (veja também 1 Reis 21). Deus está atento para estruturas econô­
micas e sistemas legais injustos — precisamente porque destróem
gente às centenas, aos milhares, aos milhões.
Há um outro aspecto na injustiça institucionalizada que a torna
especialmente perniciosa. Ela é tão sutil que se pode ser enrolado por
ela sem mesmo se dar conta do que está acontecendo. Deus inspirou
seu profeta Amós para falar algumas das palavras mais severas que se
encontram nas Escrituras, contra as cultas e corteses madames da
classe alta de sua época:
"O uvi esta palavra, vacas de Basã, que. . . oprimis os pobres, es­
magais os necessitados, e dizeis a vossos maridos: Dai cá, e bebamos!
Jurou o SENHOR Deus pela sua santidade, que dias estão para vir
sobre vós, em que vos levarão com anzóis e as vossas restantes com
fisga de pesca" (Amós 4.12).
As senhoras aí mencionadas talvez tenham tido pouco contato
direto com os camponeses pobres. Talvez nunca tenham se dado con­
ta de que seus vestidos deslumbrantes e suas animadas reuniões so­
ciais somente eram possíveis por causa do suor e das lágrimas de cam­
poneses que todo dia davam duro no trabalho. Na verdade, talvez
elas até se mostrassem generosas ocasionalmente com um ou outro
necessitado que encontrassem. (Talvez lhes davam "cestas de Natal"
uma vez por ano.) Contudo, Deus chamou a essas privilegiadas mu­

140
I

lheres de "vacas", porque tiravam benefícios para si de um mal so­


cial. Daí serem pessoal e individualmente culpadas diante de Deus3.
Se alguém faz parte de uma classe privilegiada, que lucra com es­
truturas sociais injustas, e nada faz para tentar mudar a situação, f i­
ca sendo culpado diante de Deus4 . A injustiça social é tão desagra­
dável a Deus como a pessoal. E é mais sutil.
Na primeira edição deste livro eu havia acrescentado aqui que o
mal social atinge a mais pessoas. Isso pode ser verdade no Terceiro
Mundo. Mas não creio mais ser o caso na América do Norte e na Eu­
ropa Ocidental. Nas nações industrializadas a agonia causada por la­
res desintegrados, pela promiscuidade sexual, infidelidade conjugal
e pelo divórcio iguala ao sofrimento causado pela injustiça estrutu­
ral. Isso não é dito para negar ou minimizar este último. Ê simples­
mente para sublinhar que tanto o pecado pessoal como o social
produzem danos devastadores na sociedade de hoje.
Os profetas também revelaram como o Deus da justiça reage a
estruturas socias opressivas. Deus zela tanto pelos pobres que des­
truirá estruturas que toleram e criam grande pobreza. Sempre de
novo ele declarava que destruiria a nação de Israel tanto por causa
da sua idolatria como dos maus-tratos aos pobres (como, p. ex.,
em Jeremias 7.1-15).
Esse tanto/como é crucial. Não devemos ficar tão preocupados
com problemas horizontais, de justiça social, que negligenciamos os
problemas verticais, como a idolatria. Os cristãos modernos parecem
ter uma irreprimível tendência de cair num ou noutro extremo. A
Bíblia, porém, corrige a nossa unilateralidade. Deus destruiu a Is­
rael e Judá por causa tanto da sua idolatria como da sua injustiça
social.
Aqui, todavia, o nosso foco se concentra mais no fato de que
Deus destói estruturas sociais opressivas. As palavras de Amós, que
poderiam ser multiplicadas com outras tantas passagens bíblicas,
deixam bem clara a resposta divina.

3C f . ta m b é m Isaías 3 .1 3 -1 7 .

4 C o m isso n ã o quere m os negar q u e o grau de responsabilidade e d e cu lp a te m algum a


relação c o m o grau de conscie n tiza çã o, com preensão e co m a m edida em q u e a opçã o da
pessoa foi consciente. V e r q u a n to a isso os co m en tário s u m p ou co mais a m p lo s n o m eu ar­
tigo " R a c is m " , U n ite d Evangelical A c t io n , X X X V I (P rim avera, 1 9 7 7 ), p p . 1 1 -1 2 . A o mes­
m o te m p o é im p o rta n te re lem b rar q u e nós sem pre de novo o p ta m o s p o r não apre n de r mais
sobre tó p ic o s d o s quais sabem os q u e vão nos desafiar e e xigir u m a m u d an ça em nossa m a ­
neira atual de pensar e de viver. Para u m estudo mais p ro fu n d o da in ju stiça sistém ica (in ­
clu in d o um a discussão do co nce ito p a u lin o de "p rin cip a d o s e p o te s ta d e s "), v e r M o t t, Bi-
b lical E th ic s and Social C hange, c a p ftu lo 1.

141
w

Portanto, visto que pisais o pobre, e dele exigis tributo de tri­


go, não habitareis nas casas de pedras lavradas que tendes edifica­
do; nem bebereis do vinho das vides desejáveis que tendes planta­
do (5.11).
A i dos que . . . dormis em camas de marfim, e vos espreguiçais
sobre os vossos leitos, e comeis os cordeiros do rebanho,. . . mas não
vos afligis com a ruma de José. Portanto agora ireis em cativeiro en­
tre os primeiros que forem levados cativos (6.4-7).
Ouvi isto, vós que tendes gana contra o necessitado, e destruís
os miseráveis da terra, dizendo: Quando passará a lua nova, para
vendermos o grão? E o sábado, para abrirmos os celeiros de trigo,...
e procedendo dolosamente com balanças enganadoras, para com­
prarmos os pobres por dinheiro, e os necessitados por um par de san­
dálias, e vendermos o refugo do trigo? ($.4-6)
Eis que os olhos do SENHOR Deus estão contra este reino pe­
cador, e eu o destruirei de sobre a face da terra (Amós 9.8).
Dentro de uma geração, a contar dos dias de Amós, o reino do
norte, Israel, foi completamente destruído.
Provavelmente a afirmação mais vigorosa da atuação de Deus no
sentido de destruição de estruturas sociais injustas se encontre no
Novo Testamento — no "Magnificat"! Maria louvou ao Senhor, que
"derrubou dos seus tronos os poderosos e exaltou os humildes; en­
cheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos" (Lucas 1.52-
53). 0 Senhor da história está em ação, derrubando sociedades mar­
cadas pelo pecado, onde as classes altas vivem do suor, trabalho e
sofrimento dos pobres.
O PECADO INSTITUCIONALIZADO NO MUNDO DE HOJE
Que significado tem esse ensino bíblico para os cristãos ricos de
hoje? Se Amós estivesse vivo hoje, será que acusaria a nós do mesmo
modo como acusou os israelitas injustos do seu tempo?
A resposta, penso eu, é "sim ". Stanley Mooneyham, presidente
da Visão Mundial ("World Vision International"), fala do "sufoco
com que o Ocidente desenvolvido tem estrangulado as goelas eco­
nômicas do Terceiro Mundo". Ele acredita que "o ponto crucial
nos problemas de pobreza e fome são sistemas humanos que igno­
ram, maltratam e exploram o homem . . . Se os famintos têm real­
mente que ser alimentados, . . . então alguns dos nossos sistemas
terão que passar por drásticos reajustamentos, enquanto que outros
terão de ser jogados fora de vez"s . Devemos parar aqui para juntos

SM o o n e yh a m , H u n g ry W o r ld , p p . 1 2 8 , 117.

142
examinarmos as evidências que levam a uma tal avaliação.
Cito esses dados perturbadores, que vêm a serguir, não com sá­
dico prazer de uma chance para açoitar os abastados, nem com o
desejo de criar sentimentos de culpa insolúvel. Mas creio firmen-
te que o Deus dos pobres quer que todos nós sintamos uma pro­
funda dor pela agonia e angústia que atormentam os pobres. E tam­
bém creio que devemos chamar o pecado pelo seu nome bíblico.
Todas as nações desenvolvidas estão diretamente envolvidas.
Também o estão as poderosas elites nos países pobres. Padrões sociais
antigos, valores herdados e perspectivas filosóficas acalentadas nos
países em desenvolvimento também contribuem com parcela es­
sencial para a presente situação de pobreza6. Seria ingênuo tentar sim­
plificar realidades complexas e isolar um bode expiatório. Mas cer­
tamente a nossa responsabilidade primária é a de tirar a trave do
nosso próprio olho. A nossa necessidade mais urgente é compreender
e mudar aquilo que estamos fazendo de errado.
De que modo, então, somos nós parte de estruturas injustas que
contribuem para a fome mundial? Faremos inicialmente uma breve
investigação sobre as origens históricas do problema que enfrenta­
mos hoje, passando a seguir a examinar quatro questões correntes:
comércio internacional, consumo de recursos naturais, consumo e
importação de alimentos, e corporações multinacionais no Terceiro
Mundo.

ORIGENS E CRESCIMENTO

Um quarto da população mundial se debate no lamaçal de uma


profunda pobreza. Quarenta mil crianças morrem cada dia por des­
nutrição e doenças correlatas. Um bilhão de pessoas tem renda anual
de menos de 50 dólares7. Enquanto um ser humano em cada quatro
vai lentamente morrendo de fome, nós, que temos recursos suficien­
tes para dar fim a tal miséria, parecemos estranhamente idiferentes à
situação difícil que estão enfrentando. Na verdade nós, americanos,
por exemplo, insistimos em exigir que o nosso governo preserve e in­
clusive faça crescer o nosso padrão de vida incrivelmente elevado.
A conseqüência é um abismo sempre crescente entre os ricos e os
pobres.

6 V e r especialm ente G h e d d o , W h y is th e T h ir d W o rld P oo r?

7 V e r o c a p ftu lo 1 , n ota 1 , e W illy B ra n d t. N o r th -S o u th : A Program fo r S u rviv a l (C a m ­


bridge, Mass.: M I T Press, 1 9 8 0 ), p . 9 0 .

143
Como chegamos a essa situação? Parte da resposta — só parte —
pode ser encontrada na história do colonialismo8.
Quão diferentes as coisas teriam sido se as nações ocidentais t i­
vessem seguido princípios econômicos bíblicos nestes últimos sécu­
los. Mas quando as nações européias em expansão econômica come­
çaram a explorar e conquistar os continentes da Ásia, África e das
Américas, fidelidade aos princípios econômicos da Bíblia muito di­
ficilmente era algo central em suas cabeças.
Na maioria dos casos os países colonizadores tinham o objetivo
de usar as suas colônias para projetar o seu próprio status nacional
na comunidade mundial. Assim eram as coisas na era mercantilista.
A pompa das nações poderosas se tornou o objetivo último, e o con­
trole sobre terras e riquezas ao redor do mundo era a chave para o
poder9. A criação de colônias, então, era algo extremamente provei­
toso. Preocupados com o status da pátria-mãe, os colonizadores rara­
mente mostraram consideração pelas condições econômicas, sociais
e culturais dos povos indígenas.
É um fato geralmente reconhecido hoje pelos historiadores que as
civilizações que a Europa descobriu não eram menos desenvolvidas
ou subdesenvolvidas em nenhum sentido (à parte da ausência da fé

8V e r G u n n d i M y iü ü l, Asian D ra m a : A n In q u ir y Into tho P o v o rry o t N a tio n s (N o va


Io rq u e : P a n thé on , 1 9 6 8 ; 3 v o ls .), p. 4 5 5 ; e ta m b é m p p . 4 4 7 -4 6 2 , para um a análise mais
a m pla. Ta m b é m M a h b u b ul H a q , T h e P o v e rty C u rta in (N o va Io rq u e : C o lu m b ia U n iv e rsity
Press, 1 9 7 6 ), p . 1 6 2 . Q u e m quiser 1er mais sobro o im pacto d o co lo nia lis m o no Te rc e iro
M u n d o , p od e ver W a lter R o d n e y , H o w E u ro p e U n d e rdeveloped A fric a (L o n d re s : Bogle
— L 'O u v e rt u r e P ublica tion s, 1 9 7 2 ). R o d n e y explica co m o nações européias encon tra ra m
na Á fric a nações c u ltu ra lm e n te sofisticadas e, d e n tro d o sistema c o lo n ia l, gradualm ente
foram -nas de sp o ja n d o da sua vita lid ad e cu ltu ra l, social e e con ô m ica . N u m pe que n o e bas­
tante co nciso estudo de caso, C ristob a l K a y (" C o m p a ra tiv e D e ve lop m e n t o f th e E u ro p e a n
M anorial S yste m and the L a tin A m e ric a n H a cienda S y s te m ", Jo u rn a l o f Peasant Studies,
V o l. 2 (2 ), Ja n e iro 1 9 7 5 ) m enciona as injustiças q u e prevaleceram d u ra n te os p rim e iro s anos
d o co nta to europeu na A m é ric a d o S u l. S e m d ú v id a , corre-se aqui o perigo de u m a radica-
lidade exagerada na linha de estudiosos m arxistas que a trib u e m tu d o a u m a explanação his­
tó rica nos te rm os da luta de classes. M as o m esm o perigo existe, p o r o u t ro lado. e m negar
a im p o rtâ ncia da história co m o u m fa to r crucial de interpretação. P . T . B a uer, p o r e x e m ­
p lo , em E q u a lit y , T h e T h ir d W o rld , a nd E c o n o m ie D e lu sion (C a m b rid g e : H a rva rd U n iversity
Press, 1 9 8 1 ), desconsidera a história a rg u m e n ta n d o em vez disso q u e as desigualdades e co­
nôm icas correntes se de ve m quase to ta lm en te a diferenças na criatividade, esforço e na dis­
trib u içã o d e recursos, e não ta n to a abusos histó ricos d o p od e r p o lític o e e c o n ô m ic o . O e x ­
tre m ism o de B auer é tão e rrado c o m o o d o s m arxistas. Para um a crític a a B a uer. feita por
u m e conom ista bastante tra dicion a l, ver A m a rt y a S e n , " J u s t Deserts", um a resenha d o li­
v ro de B a uer, no N e w Y o r k R eview o f B o o k s , 4 de M a rço , 19 82 . É intressante ta m bém
observar q u e D a vid B e ckm a n n , u m e conom ista cristão qu e trabalha no B anco M u n d ia l,
a u to r d o liv ro W here F a ith and E c o n o m ie s M eet (A ug sb u rg Press, 1 9 8 1 ), a trib u i m u ito
da pob re za d o Te rc e iro M u n d o ao sistema co lo nia l e outras práticas de e xploração .

9Para dois p ontos-de-vista divergentes sobre a validade e a orige m d o e sp írito m e rca n ­


tilista, ver W illia m C u n n in g h a m , "M e d ie v a l a nd M o d e m E c o n o m ie Ideas C o n tra s te d ",
G ro w t h o f En g lish In d u s try and C o m m e rce (L o n d re s : Jo h n M u r ra y ), V o l. I (1 9 1 0 ), pp.
4 5 7 -4 7 2 ; e G . S c h m o lle r, T h e M erca ntile S yste m and Its H isto rica l S ig nificance (N o va
lo rq u e : M a c m illa n , 1 8 9 5 ).

144
cristã, por um lado, e, por outro, da tecnologia militar superior do
Ocidente) quando os europeus travaram o primeiro contato com elas.
Certo, as civilizações da Ásia, África e das Américas eram muito dife­
rentes das da Europa. Mas em quase nenhum sentido eram subdesen­
volvidas. O fato de muitos estudiosos verem o colonialismo europeu
como uma das principais causas da fome e da pobreza hoje tão alas­
tradas leva a uma dolorosa reflexão sobre a capacidade da sociedade
cristã européia de transmitir o seu cristianismo.
Num dos clássicos da literatura sobre desenvolvimento, O Drama
Asiático, de Gunnar Myrdal, o autor lança boa parte da responsabili­
dade pela estagnação econômica do Sudeste Asiático sobre os coloni­
zadores europeus. Ele diz, por exemplo, que "em geral os regimes
coloniais no Sul da Ásia eram inimigos do desenvolvimento das indús­
trias manufaturadoras nas colônias. Isso se tornou ainda mais verda­
deiro quando começaram gradualmente a abandonar, depois de
1850 e 1870, as políticas cruamente exploradoras da primeira fase
do colonialismo, passando a encorajar os investimentos e a produ­
ção. Foi predominante ou exclusivamente a produção de matéria-
prima para exportação que foi encorajada." Outro altamente res­
peitado economista do desenvolvimento, Mahbub ul Haq, que por
vários anos foi um dos principais economistas do Banco Mundial,
escreve que "as razões básicas para a (presente) desigualdade entre
as nações hoje desenvolvidas e as em desenvolvimento se encontram
profundamente arraigadas em sua história. Na maior parte do Tercei­
ro Mundo séculos de domínio colonial deixaram o seu legado de de­
pendência. A independência política não conseguiu eliminar nem a
dependência econômica nem a escravidão intelectual".
Em seu livro Bread and Justice, James B. McGinnis cita o exem­
plo da cidade de Potosi, na Bolívia. Potosi era um próspero aglome­
rado urbano no século dezessete, quando os espanhóis vieram para
explorar o ouro e a prata existentes na região.

De início, os mineradores espanhóis produziram um brilhante


crescimento econômico. Quando, porém, se esgotou a prata, o cres­
cimento da cidade acabou, e a área foi abandonada ao "subdesen­
volvimento".
. . . O subdesenvolvimento de Potosi, então, começou no abuso
do seu povo e dos seus recursos pelo sistema colonial europeu. A
economia latinoamericana fo i engrenada pelos europeus para satis­
fazer aos seus próprios interesses, e não aos da população local. O
subdesenvolvimento,queé característico dessa “ cidade-fantasma” ho-

145
^1

je, tem as suas raízes na história das conquistas militares. Países sub­
desenvolvidos hoje estão cheios de cidades-fantasmas como Potosi,
e quase todos foram um dia colônias européias.
A chegada dos europeus na Ásia, África e América Latina — o
que é conhecido hoje como Terceiro Mundo — alterou fundamen­
talmente os processos de desenvolvimento existentes na época.
Em alguns casos estas sociedades eram mais avançadas do que ou­
tras; e todas, sem dúvida, tinham problemas a superar. Mas os po­
vos nessas terras estavam construindo sociedades que, embora não
industrializadas, eram muitas vezes altamente sofisticadas e com­
plexas. Eles eram capazes de atender às suas necessidades físicas e
psicológicas através das suas próprias instituições. A conquista m ili­
tar do Terceiro Mundo levou ao saque e à destruição de algumas das
maiores civilizações do mundo10.

Como enfatiza McGinnis, exemplos como este são abundantes.


Chamo a atenção para um artigo numa edição recente de The Wall
Street Journal. 0 artigo examina o presente esforço do Gabão pela
construção de uma ferrovia transnacional, e pergunta por que não se
construiu uma nos tempos coloniais. O autor responde:

Os franceses construíram somente o de que necessitavam para


descobrir e exportar a matéria-prima do Gabão. Na verdade, o há­
bito colonialista de construir só as estradas, portos e usinas que ser­
viam aos seus propósitos, ignorando o resto do país, ainda sufoca as
economias do Terceiro Mundo. "Elas herdaram um legado que as
condena ao subdesenvolvimento", lamenta Doo Kingue, represen­
tante junto às Nações Unidas, cujo próprio país, a República dos
Camarões, fo i colonizado por alemães, ingleses e franceses11.

Seria simplista, sem dúvida, concluir que o impacto causado pelo


colonialismo e pelas subseqüentes relações econômicas e políticas
com as nações do Ocidente tivessem sido totalmente negativos. Não
foi o caso. Pense-se, por exemplo, na difusão da alfabetização e no
aprimoramento do atendimento à saúde. Além do mais só podemos
agradecer a Deus pelas oportunidades de difundir o evangelho ao re­
dor do mundo durante o período colonial. Os valores cristãos muitas

^ Jam es B . M c G in n is , Bread and Ju stice (N o v a Io rq u e : Paulist Press. 1 9 7 9 ), pp.

Ju n e K ro n h o lz , "G a b o n 's Been W o rk in g o n its N e w R a ilro a d , B u t P ay D a y is Far


O f f " , T h e W a ll S treet Jo u rn a l, 3 0 de J u lh o . 1 9 8 1 , p p . 1 ss.

146
vezes acabaram com antigos males sociais, como o sistema de casta
na India. Que tragédia, por outro lado, que o impacto do Ocidente
cristão sobre as estruturas políticas e econômicas em desenvolvimen­
to nas colônias foi determinado em tão grande escala pelo interesse-
próprio econômico, e não pelos princípios bíblicos de justiça, é mui­
to possível que, se a mensagem bíblica total tivesse sido compartilha­
da e vivida no âmbito social e econômico, haveria bem menos misé­
ria hoje no Terceiro Mundo. Se atitudes cristãs face às posses e às
riquezas tivessem guiado as ações dos colonizadores, se os princípios
do Jubileu, do ano sabático e do contínuo apoio aos pobres tivessem
sido uma integrante da aventura colonial e das atividades econômicas
internacionais desde então, provavelmente não haveria necessidade
de escrever este livro hoje.
Infelizmente, não foram. Nem houve maior esforço por parte das
nações desenvolvidas, desde então, no sentido de restaurar ou insti­
tu ir relações econômicas justas entre o Primeiro e o Terceiro Mun­
dos. As nações ricas continuam atreladas aos seus próprios interésses,
demonstrando interesse marginal para com o progresso (ou retroces­
so) econômico das nações pobres12.
Em conseqüência, o legado permanece. O que começou como
uma relação colonial, desleal, entre os países ricos e os pobres, cres­
ceu e se desenvolveu, chegando à cadeia estrutural que rege a ordem
econômica internacional de hoje. E não surpreende que muitas das
injustiças perpetradas antes no colonialismo vieram a se consolidar
nas instituições que governam a atividade econômica contemporâ­
nea.
é verdade que muitos economistas de hoje, armados de uma teo­
ria econômica nascida e criada no mundo ocidental desenvolvido,
argumentam que as presentes relações econômicas entre países ricos
e pobres são perfeitamente apropriadas. Os padrões correntes do co­
mércio, das finanças internacionais e dos investimentos estrangeiros
lhes causam pouca preocupapão. Tais relações, porém, parecem mui­
to diferentes quando vistas da perspectiva da evidente injustiça da
era colonial13

Boa parte da nossa preocupação, parece q u e d eriva de um a estudada co nscie n ti-


zaç5o dos nossos p ró p rio s interesses. É virtu a lm e n te im possível "v e n d e r" u m program a
governam ental de assistência aos eleitores am ericanos, p o r e x e m p lo , a m enos qu e ele este­
ja a poiado e m algum a coisa q u e tenha referência aos seus p ró prio s interesses.

1 3Jo a n R o b in s o n , Aspects o f D e ve lop m e n t and U n d e rd e v e lo p m e n t (C a m b rid g e :


C a m b rid ge U n iv e rs ity Press. 1 9 7 9 ).

147
ê aqui que reside o fator insidioso da injustiça estrutural. As in­
justiças iniciais, a menos que sejam corrigidas, rapidamente prolife­
ram. E por quanto mais esse processo se prolonga, mais sérios e in­
solúveis se tornam os problemas. £ como uma pequena mentira que
é obrigada a crescer e se multiplicar muitas vezes para proteger a
primeira "pequena" mentira.
ê muito mais confortável acreditar que a pobreza do Terceiro
Mundo é inteiramente ou pelo menos em grande parte produto da
preguiça, da falta de inteligência, da prodigalidade em procriar e da
corrupção do seu próprio povo. Mas isso significa ignorar os dados
históricos dos séculos de colonialismo. Nem todos os problemas con­
temporâneos, é claro, têm a sua causa no passado. As atuais estrutu­
ras econômicas internacionais também são desleais.

COMÉRCIO INTERNACIONAL

As nações industrializadas têm trabalhado cuidadosamente os


padrões de comércio internacional em seu próprio benefício. Nos
tempos coloniais, como já vimos, as pátrias-mães regularmente se cer­
tificavam de que as questões econômicas estavam organizadas de mo­
do a resultar em vantagens para si próprias14.
Tais vantagens eram adquiridas em grande parte pela manipula­
ção do comércio dos produtos primários. Instituições e estratégias
eram implementadas visando aumentar a quantidade de bens úteis
que iam para os países colonizadores, e ao mesmo tempo frustrar
todos os esforços locais no sentido de aumentar a capacidade de ma-
nufaturação. Em conseqüência, muitos países do Terceiro Mundo se
tornaram gravemente dependentes do comércio com os países de­
senvolvidos do Ocidente.
Ainda hoje a maioria das nações menos desenvolvidas depende
grandemente do comércio internacional para uma boa parte da sua
subsistência. No Equador, por exemplo, o comércio de produtos
diversos abrange bons 33% do Produto Interno Bruto do país. Em
Honduras a porcentagem é de 41%, no Quênia 29%, nas Filipinas
21%, e na Guiana ela vai até 66%. Para os Estados Unidos, por outro
lado, a cifra é relativamente baixa: 8%,s . Como podemos deduzir

14 Para u m sum á rio b e m e q u ilib ra d o , ver G h e d d o , W h y is th e T h ir d W o rld P oo r?,


p p . 69ss.

l s Os d ados referentes ao E q u a d o r, G uia n a e H o n d uras são to m a d os de E c o n o m ic


and S ocia l Progress in L a tin A m e ric a , R e la tório para 1 978 d o 8 a nco In te ra m e rica n o de
D e s en volvim e n to (W a shin gto n , D . C .) . O s dados sobre o Q u é n ia , as Filip in as e os E U A
p ro vê m de U .S . Statistical A b stracts, 1 9 7 9 , p p . 4 4 2 -5 1 ,9 0 7 , 4 3 7 , 8 7 4 .

148
dai', padrões de comércio internacional favoráveis são algo vital
para as nações do Terceiro Mundo.
Os países industrializados também continuaram impondo tari­
fas restritivas e quotas de importação, para manter longe muitos
dos bens produzidos nos países menos desenvolvidos16. As estrutu­
ras tarifárias e as quotas de importação que afetam aos países do
bloco menos desenvolvido são realmente um aspecto fundamental
da injustiça presente nas atuais estruturas de comércio internacional.
Uma vez que a maior parte desses países é tão dependente do comér­
cio, tais restrições resultam muito prejudiciais. A sua remoção, por
outro lado, seria algo estremamente valioso. Mas o mundo desen­
volvido sempre de novo tem se recusado a efetivar tais medidas.
Nos primeiros anos da década de 60, só para dar um exemplo, a ro­
dada de negociações sobre tarifas promovida por Kennedy baixou
as taxas sobre bens comercializados entre as ricas nações industriais
em cerca de 50%. Mas fez muito pouco para baixar as tarifas sobre
os bens dos países mais pobres. A posição relativa destes na realida­
de foi se tornando cada vez pior17.
Tradicionalmente os países desenvolvidos permitiram que mui­
tos produtos agrícolas e outros produtos primários (minerais, cacau,
borracha, sisal, etc.) entrem relativamente livres de taxações. Toda­
via, com bens manufaturados eles têm sido menos indulgentes.
Quanto mais industrializado e processado for o produto, mais alta
é a tarifa. A taxa sobre chocolates e bombons, por exemplo, é cinco
vezes superior à do cacau bruto18 .
As razões para a imposição de tais restrições comerciais são fá­
ceis de serem percebidas. Nos tempos coloniais elas existiam para lim i­
tar a competição com os novos empreendimentos industriais da pró­
pria pátria-mãe, bem como facilitar a importação dos produtos pri­
mários que estas necessitavam. Hoje as restrições são mantidas prin­
cipalmente porque a sua remoção ameaçaria os interesses de certos
grupos bem organizados e politicamente influentes. Tanto os sindica­
tos e trabalhadores como o empresariado nos países desenvolvidos

16 Para um a criteriosa discussão de co m o as estruturas tarifárias am ericanas d iscri­


m inam as exportações dos países pobres, ver G u y F . E r b , " U .S . T r a d e Policies T o w a r d
Developing A reas” , C o lu m b ia Jo u rn a l o f W o rld Business, V I I I , N ? 3 (O u t o n o , 1 9 7 3 ), p p .
5 9-67.

17 Jam es P. G ra n t, " C a n the C h u rc h e s P ro m o te D e v e lo p m e n t? ", E cu m e n ica l R e vie w .


X X V I (Ja n e iro , 1 9 7 4 ), p . 2 6 .

l 8 M c G in n is , Bread and Ju stice , p. 7 2 .

149
se unem no propósito de continuar comprando matéria-prima barata
para lucrar com o seu processamento e manufaturação.
Mais recentemente se tornaram praxe as quotas "voluntárias"
sobre bens industrializados das nações pobres. Os Estados Unidos
publicam ameaças de novas barreiras alfandegárias sobre determina­
dos produtos manufaturados exportados pelos países pobres, a me­
nos que estes "voluntariamente" limitem o seu volume de exporta­
ção. O resultado é: falta de trabalho em países famintos e um saldo
menor nas exportações.
A tentativa do Brasil, de desenvolver uma indústria de processa­
mento de café, fornece uma ilustração para isso. 0 café representava
para o Brasil, na época, a metade do volume total de suas exporta­
ções. As exportações brasileiras de café tiveram um aumento de 90%
entre 1953 e 1961. A renda total daí obtida, contudo, caiu em cerca
de 35%. Em 1966 o governo brasileiro decidiu começar a processar
dentro do país a sua produção cafeeira, objetivando assim novos em­
pregos e maior renda para o seu povo. O café processado no Brasil
conquistou rapidamente o mercado americano, chegando a represen­
tar, em determinada época, 14% do total do consumo interno nos
EUA. A reação das grandes processadoras de café (Tenco, General
Foods, Standard Brands e outras) foi a de acusar os brasileiros de
"competição desleal": Qual foi a atitude tomada pelo governo
americano? Prontamente ameaçou cortar os auxílios que vinha dan­
do ao Brasil, advertindo ainda que não renovaria o Acordo Interna­
cional do Café (que mantém mais ou menos estáveis os preços do
produto no mercado internacional). E o que aconteceu? O governo
brasileiro foi obrigado a consentir em impor uma taxa de exporta­
ção, e a sua jovem e incipiente indústria foi seriamente prejudica­
da19 .
Dando outro exemplo: o mundo desenvolvido impôs quotas res­
tritivas sobre os têxteis. Estes poderiam ser oferecidos a baixo custo
por vários países em desenvolvimento, como a India. E está havendo
uma grande pressão para que essas quotas sejam reduzidas ainda mais,
para ajudar com isso as indústrias domésticas abaladas nos países
desenvolvidos.
Num texto sobre Desenvolvimento Econômico o Prof. Theodore
Morgan faz o seguinte resumo da situação:

9 ” B ra zil vs. the U S ” , N e w Y o r k T im e s . 7 de Ja n e iro , 1 9 6 8 ; " B ra z il Agrees to Accept


T e rm s ” , T h e W all S treet Jo u rn a l, 2 0 de F e vereiro, 1 9 6 8 .
O padrão geral é claro. Produtos primários e simples recebem
taxas pequenas, embora alguns sejam quotados. Manufaturados sim­
ples têm taxas mais elevadas, e manufaturados complexos ainda mais.
Existem obstáculos muito grandes à efetivação de cortes relevantes
nas tarifas, por causa da resistência dos empresários locais, das asso­
ciações de trabalhadores, e de regiões que temem prejuízos resultan­
tes de um aumento nas importações20.

A conseqüência é que os países pobres são privados de milhões


de empregos e bilhões de dólares a mais que viriam com o aumento
das exportações. Mahbub ul Haq calculou que "os países do Tercei­
ro Mundo perdem hoje 20 a 25 bilhões de dólares por ano em ren­
da oriundas da exportação, por serem estas frustradas pelas barreiras
tarifárias do Primeiro Mundo"21.
A grosso modo podemos dizer que os países do Terceiro Mundo
têm sido historicamente vinculados à produção de artigos primários
para exportação. Em muitos casos, os governos coloniais desencora­
javam com restrições as indústrias manufatureiras, incentivando a
produção e exportação de determinados produtos agrícolas e outras
matérias-primas. Outras vezes, poderosos proprietários de terras con­
seguiam acabar com os esforços de industrialização locais, permitin­
do queassim as empresas de exportação agrícola continuassem alta­
mente lucrativas22. E tão logo os processos de industrialização come­
çaram, vieram as tarifas e quotas para desencorajá-los. Por todas es­
sas razões, os países menos desenvolvidos permaneceram restritos
à produção primária, tendendo, por outro lado, a importar produ­
tos manufaturados das nações industrializadas.
Alguns argumentariam que tal padrão se conforma muito bem
com a teoria econômica das vantagens comparativas. Essa teoria,
em resumo, diz que cada país deveria se especializar e comercializar
aqueles produtos que consegue produzir com vantagens nos custos.
Os EUA, por exemplo, têm maior vantagem proporcional em com­
putadores e alguns aparelhos, o Japão em automóveis e televisores,
a Colômbia em café e bananas. A teoria da vantagem comparativa
diria, então, que a Colômbia não deveria se preocupar muito com a

2 0 T h e o d o re M o rg a n , E c o n o m ic D e ve lo p m e n t: C o n ce p t and Stra teg y (N o v a lo rq u e :


H a rp e r, 1 9 7 5 ), p . 3 1 6 .

2 1 C ita d o em M cG in n is , Bread and Ju s tice , p . 7 2 .

2 2 V e r , p o r e x e m p lo , W . A r t h u r Le w is, T h e E v o lu tio n o f th e In te rn a tio na l E c o n o m ic


O rd e r (P rin c ito n : P rin c e to n U n iv e rs ity Press, 1 9 7 8 Ï, p p . 2 3 -2 4 .

151
industrialização. Investindo maciçamente em café e bananas, os co­
lombianos se sairiam da melhor forma possível. Porquanto essa teo­
ria possa ser inteligente, também pode ser míope. Em particular,
ela não presta atenção aos efeitos a longo prazo de tal especializa­
ção. A verdade é que os padrões de comércio que são estabelecidos
criam problemas sérios e específicos para os exportadores de produ­
tos primários.
Em primeiro lugar, muitos economistas do Terceiro Mundo
reclamaram porque a limitação dos países menos desenvolvidos aos
produtos primários os tem destinado a sofrer condições relativas de
comércio continuamente declinantes. As evidências citadas são tais
como a capacidade do Brasil, em 1954, de comprar um jipe america­
no por catorze sacas de café, enquanto que em 1968 o mesmo jipe
custaria o equivalente a 45 sacas23. Em outro caso semelhante, a
Tanzânia conseguia comprar um trator, em 1963, com cinco tonela­
das de sisal; em 1970, o trator já custava dez toneladas24. O 1982
World Development Report mostra como Sri Lanka (que tem sido
dependente, nas suas exportações, de chá, borracha e coco) sofreu
severas perdas no comércio durante os últimos trinta anos25.
Alguns dos casos são extremos e cercados por circunstâncias
especiais, mas entre os economistas é geralmente reconhecido que
durante os últimos trinta anos a baixa renda dos países menos de­
senvolvidos sofreu uin sério declínio nos preços relativos dos produ­
tos agrícolas26. Por outro lado países de renda média, com ten­
dência a exportar mais minerais (inclusive petróleo) do que pro­
dutos agrícolas, foram mais afortunados. Os preços sobre estes artigos
não mostram a mesma tendência acentuada para baixo27. Algumas
vezes certos produtos agrícolas experimentam pequenas oscilações
nos preços, como o café em 1977 ou o açúcar periodicamente. Mas
em geral a tendência declinante é clara. Hans Singer, há anos um eco­
nomista altamente respeitado das Nações Unidas, diz que "trata-se

2 3 G h e d d o , W h y is the T h ir d W o rld P o o r? , p . 8 3 .

2 4 N e w In te rn a tio na list. A g o s to 1 9 7 5 , p . 1.

25W o rld D e ve lo p m e n t R e p o rt 1 9 82 , p . 2 8 .

2 6V e r o q u a d ro m o stra n do a tendência d u ra n te os ú ltim o s 3 0 anos, em ib id ., p p . 2 6 -


3 0 . Para u m sum á rio de o u tro s pontos-d e -vista , v e r Jo h n S praos, " T h e S tatistical Debate
o n the N e t B arter T e rm s o f Tra d e Betw een P rim a ry C o m m o d itie s and M a n u fa ctu re rs",
T h e E c o n o m ic Jo u rn a l, V o l. 9 0 {M a rço 1 9 8 0 ), p p . 1 0 7 -2 8 .

2 7D o n a ld H a y , " T h e In te rn a tio na l S o c io -E c o n o m ic P olitica l O rd e r and O u r Life s ty le s ",


c m : R o n a ld S id e r (e d .i. Lifes tyle in the Eigh tie s: A n Evangelical C o m m itm e n t to S im p le
Lifes ty le (L o n d r e s :P aternoster, 1 9 8 1 ), p. 1 0 4.

152
de um fato histórico, que já desde os anos 70 [1870] a tendência
dos preços tem sido fortemente contra os que vendem alimentos
e matéria-prima, sendo bem mais favorável aos vendedores de arti­
gos manufaturados. As estatísticas são passíveis de dúvidas e obje-
ções nos detalhes, mas a história geral que elas contam é inequí­
voca"28 .
Um segundo problema é que a violenta flutuação dos preços
dos produtos primários exportados pelos países em desenvolvimen­
to é muito prejudicial às suas economias. Ela torna quase impos­
sível um planejamento, uma vez que eles dependem dos saldos nas
exportações para poderem importar bens essenciais. Há casos de paí­
ses que dependem tão somente de um único produto para virtual­
mente todas as suas exportações. Bangladesh depende da juta e Zâm­
bia, do cobre. Assim, as suas economias flutuam violentamente, jun­
to com o preço mundial do produto que exportam. E como viver
perpetuamente em cima de uma grande montanha-russa, num
momento usufruindo dos benefícios de preços altos e no momento
seguinte tendo que agüentar uma angustiante queda nas valas dos pre­
ços baixos.
Temos analisado brevemente vários aspectos dos atuais padrões
de comércio internacional que estão em vigor trazendo desvanta­
gens âs nações em desenvolvimento: altas taxas alfandegárias e
quotas reduzidas de exportação (especialmente sobre bens manufatu­
rados) impostas pelas nações industrializadas; um período de trinta
anos de declinantes termos relativos de comércio; e flutuações in-
controláveis nos preços das mercadorias primárias exportadas.
Qual foi a reação dos países menos desenvolvidos?
Há décadas eles vêm protestando contra esses padrões injustos
de comércio internacional. Na Conferência Afro-Asiática de Ban-
dung, em 1955, e na Conferência das Nações Unidas sobre Comér­
cio e Desenvolvimento, em 1964, eles pressionaram as nações ricas no
sentido de apoiar padrões de comércio que não fossem tão prejudi­
ciais aos países pobres. Mas os abastados se fizeram de surdos. Em
1972, o jornal americano Journal of Commerce reportava que Was­
hington estava simplesmente ignorando todas as reformas propostas
pelos países menos desenvolvidos. E concluiu: "Em outras palavras,
uma a uma das mais importantes proposições lançadas com o intuito
de proteger as nações menos desenvolvidas de serem ainda mais
arruinadas em termos comerciais, estão provocando uma reação ne­

2 8 H a n s W . S in g er, In te rn a tio na l D e v e lo p m e n t: G ro w t h and C hange (N o v a Io rq u e :


M c G r a w H ill, 1 9 6 4 ), p . 1 6 5.

153
1

gativa em Washington"29.
Em 1973, todavia, os Estados Unidos e outros países desenvolvi­
dos começaram a notar que não podiam ignorar as demandas do Ter­
ceiro Mundo assim tão simplesmente. Naquele ano a OPEP conse­
guiu fotmar um poderoso cartel internacional de petróleo. Desde
então, tem aumentado o preço do barril de petróleo em cerca de
600% (em dólares, e levando-se em conta a inflação).
Atualmente há um sentimento geral de que a OPEP se desinte­
grou, ou está prestes a tanto. A combinação de recessão mundial
com medidas de racionamento nos países importadores levou a um
decréscimo na demanda pelo petróleo da OPEP, o que por seu turno
tem gerado desavenças nas fileiras dos líderes do cartel. As conse­
qüências de tudo isso, para o momento, são preços ligeiramente
mais baixos e que, embora relativamente estáveis, provavelmente
não deverão subir acentuadamente num futuro próximo, a menos
que a recessão acabe de forma dramática e que a demanda mundial
de petróleo cresça rapidamente. Com isso, porém, não estamos
querendo dizer que a OPEP morreu. Muito pelo contrário. O petró­
leo ainda é vendido a um preço significativamente mais elevado do
que o seria se não existisse a OPEP. Por causa da recessão, o seu po­
der diminuiu um pouco, mas não permanente nem significativamen­
te. A OPEP continua sendo uma das principais forças nas questões
econômicas mundiais.
Quando ficou claro que a empreitada da OPEP não foi apenas
um truque que casualmente deu certo (como os países industrializa­
dos esperavam que fosse), lentamente foi surgindo um novo res­
peito pelo poder do Terceiro Mundo. Ambos os lados começaram
a se dar conta de que as nações industrializadas eram tão dependen­
tes dos países pobres como estes dos ricos. De fato muita matéria-
prima vital e necessária para a produção industrial era e é na maior
parte importada dos países menos desenvolvidos.

Veja Tabela 10 na página 155.

Por diferentes fatores econômicos, cartéis do tipo OPEP d ificil­


mente terão êxito para a maioria dos produtos acima expostos. Mas
isso não causou o arrefecimento dos espíritos otimistas dos países
menos desenvolvidos. Em 1974 eles apresentaram na ONU propos­
tas para a formação de uma Nova Ordem Econômica Internacional.

2 9 " A p p o in t m e n t in S antiago ( I ) : R o u g h t S le d d in g A h e a d " (e d ito ria l), Jo u rn a l o f


C o m m e rc e , 2 7 de M a rç o , 1 9 7 2 .

154
Tabela 10

IMPORTAÇÕES AMERICANAS DE ALGUNS


MINERAIS, DE PAfSES MENOS DESENVOLVIDOS

M ineral Principais expo rtad o re s. Porcentagem to ta l Porcentagem d o to -


e porcentagens e x p o rta - das im portações tal usado pelos E U A
das p ara cada u m q u e p ro vé m desses que p ro vô m desses
países países

Alumínio Jamaica 36 82 77
Bauxita Guiné 22
Cobalto Zaire 27 45 41
Colúmbio Brasil 84 91,7 91,7
(Nióbio) Nigéria 7
Cobre Chile 23 50,9 7
Zâmbia 12
Peru 10
Grafite México 57 88,6 88,6
Brasil 10
China 10
Minério de Venezuela 14 30,8 8
Ferro Brasil 8
Estanho Malásia 44 97,3 78
Tailândia 20
Bolívia 17
Tungsténio China 18 70,7 37
Tailândia 9

F o n te : Overseas D e ve lop m e n t C o u n c il, U .S . Fo re ign P o lic y and the T h ir d W o r ld : A genda


1 9 8 3 (N o va Io rq u e : Praeger, 1 9 8 3 ), T a b . A -6 .

Naquele mesmo ano a assembléia geral adotou uma "Declaração e


Programa de Ação" e uma "Carta dos Direitos e Deveres Econô­
micos dos Estados" para a nova ordem econômica. Houve várias
propostas-chave:30
1. Preços dos produtos primários e matéria bruta. Estes preços,
insistiram as nações em desenvolvimento, deveriam subir imediata-

3 0 V e r " A S tu d y o f the P ro blem s o f R a w M aterials a nd D e v e lo p m e n t", U .N . D o c u m e n t


A / 9 5 5 6 (Part I I ) , 1? d e M a io , 1 9 7 4 ; e N e w sw e ek , 15 de S e te m b ro , 1 9 7 5 , p p . 3 8 -4 0 .

155
mente. Além do mais, deviam ser ligados diretamente aos preços
dos produtos manufaturados que as nações pobres têm que impor­
tar das ricas.
Um fundo comum devia ser estabelecido, o qual seria usado para
financiar estoques-tampões de vinte ou trinta mercadorias-chave,
de modo que as violentas flutuações nos preços pudessem ser conti­
das.
2. Tarifas e outras barreiras ao comércio. Os países desenvolvi­
dos deviam remover as tarifas e outras barreiras comerciais aos pro­
dutos das nações em desenvolvimento.
3. Soberania nacional sobre os recursos nacionais. Isso inclui o
"d ireito " de nacionalizar grupos estrangeiros com justa compensa­
ção.
4. Auxílios estrangeiros. As nações ricas deviam aumentar tanto
os auxílios de alimentação de emergência como os subsídios para
desenvolvimento a longo-prazo. 0 índice-meta previsto pela ONU
para assistência oficial ao desenvolvimento, por parte dos países
desenvolvidos, que é de 0,7% do PNB, devia ser posto em prática.
5. O mundo em desenvolvimento devia poder aumentar a sua
parte na produção mundial de bens manufaturados, de mais ou me-
no 10% em 1975 para 25% até o ano 2000.
6. A dívida externa devia ser renegociada no caso de muitos
países em desenvolvimento, e para os mais pobres devia ser cance­
lada. (Muitos dos países em desenvolvimento gastam uma grande
proporção do auxílio que recebem atualmente no pagamento de ju-'
ros e amortização de capital dos "auxílios" prévios.)
7. Deviam se fazer acordos para a transferência de tecnologia dos
países desenvolvidos para os em desenvolvimento de outras formas,
que não através de companhias multinacionais. Estas (compreensi-
velmente, à luz de algumas experiências recentes) despertam suspei­
tas por parte dos países em desenvolvimento.
8. Organizações monetárias internacionais. As nações pobres
queriam uma participação maior no Fundo Monetário Internacional
e outras instituições monetárias internacionais que afetam o comér­
cio e o desenvolvimento. Com o fim de promover o comércio e aju­
dar a países com problemas em sua balança de pagamentos, o FMI
criara originalmente os Direitos Especiais de Saque (DES), no va­
lor de mais ou menos 3 bilhões de dólares por ano. Porém James P.
Grant, presidente do Overseas Development Council, mostra quão
desigualmente são distribuídos os recursos disponíveis: "Pela fór­
mula de distribuição adotada, entretanto, três-quartos destes re­
cursos eram colocados à disposição, virtualmente sem custos, dos

156
países ricos; uma vez que de novo foram estes que instituíram o
sistema e que determinaram como seriam alocados os DES"31.
Estas propostas não deveriam ser aceitas simplesmente pelo fa­
to de que foram dirigentes do Terceiro Mundo que as lançaram.
Algumas críticas válidas têm sido feitas32. Contudo, como tem
defendido o economista de Oxford, Donald Hay, as propostas me­
recem uma consideração cuidadosa e simpática33.
Infelizmente muito pouco de concreto aconteceu depois. Ne­
nhuma das propostas mencionadas foi implantada. De início os paí­
ses desenvolvidos fizeram com que parecesse que fariam realmente
algumas concessões. Na prática, entretanto, eles têm sido extrema­
mente renitentes para qualquer coisa que não medidas meramente
paliativas.
Algumas das proposições foram testadas como que fazendo de
conta, sem muito interesse (o fundo das mercadorias, por exemplo).
Mas a maior parte foi ou ignorada até cair no esquecimento, ou "ne­
gociada" até morrer34.
Considere-se o item 7. Uma das maneiras de transferir tecnolo­
gia e compartilhar recursos deveria ser através de acordos concer­
nentes à Lei do Mar. No fundo do mar existe uma grande quantida­
de de recursos que "não têm dono". Nenhuma nação pode, com
justiça, exigir direitos de propriedade sobre os oceanos. Assim a
riqueza do solo oceânico ainda não explorada oferecia ao Tercei­
ro Mundo uma chance de ganhos sem sacrifício para as nações ri­

31 G ra n t, " C a n the C h u rc h e s P ro m o te D e velopm ent?'*, p . 2 6 .

3 2 V e r, p o r e x e m p lo , W . M . C o rd e n , T h e N I E O P roposals: A C o o l L o o k (" T h a m e s
Es s a y" N ? 2 1 ; Lo n d re s: T r a d e P o licy Research C e n tre , 1 9 7 9 ), e H e rb e rt G . G ru b e l, " T h e
Case Again st the N e w In te rn a tio n a l E c o n o m ic O r d e r " , e m : J o h n A d a m s (e d .). T h e C o n ­
te m p o ra ry Inte rn a tio na l E c o n o m y (N o v a lo rq u e : S t. M a rtin ’s Press, 1 9 7 9 ). G ru b e l argu­
m enta no sentido de q u e , p o rq u a n to a N o v a O r d e m E c o n ó m ic a in te rn a cion a l possa pare­
cer p o litica m e n te interessante para os p e quenos parses pob re s, ela lhes seria e co n o m ica ­
m ente p re jud icia l. E le não acre d ita n e m q u e os países desenvolvidos e n e m q u e as c o rp o ra ­
ções m u ltin a cion a is possuam a lg u m p o d e r de m ercado excessivo. A sua sugestão 6 q u e ,
em vez de in stitu ir a lg um n o v o e e n orm e sistema b u ro crá tico , os pafses pobres d e veriam
p ro m o v e r u m am b ie n te e c o n ó m ico in te rn a cion a l mais c o m p e titiv o , co m as suas p ró pria s
p olfticas de pre ço internas o u c o m ações coletivas na O N U .

D o n a ld H a y , " T h e In te rn a tio n a l S o c io -E c o n o m ic P olitical O rd e r and O u r L ife s ty­


le ", R o n a ld J . S id e r (e d .). Life s ty le in th e Eighties (F ila d é lfia : W e stm in ster, 1 9 8 2 ), pp.
1 1 6 -2 2 ; e D o n a ld H a y , " N o r t h and S o u t h : T h e E c o n o m ic D e b a te ", e m : J o h n S to tt (e d .).
T h e Y e a r 2 0 0 0 (L o n d re s : M arshall, M org an & S c o tt, 1 9 8 3 ).

’ *í interessante ob servar q u e e m 1 9 7 5 o e ntão S ecretário d e E s ta d o , H e n ry Kissinger,


p ro pô s a criação de nove novas agências internacionais d e assistência ás nações mais pobres.
A lé m disso p ro m ete u d a r ás nações pobres tarifas preferenciais de im p orta ção para os seus
p ro d u to s . M as ao co m en tar a essência dessas propostas, o N e w sw e ek observa qu e "a s expe cta ­
tivas de Kissinger . . . . na verdade, a sua esperança . . . é de q u e as negociações se estendam
p o r meses e talvez até a n o s " (N o w s w e e k , 1 5 d e S e te m b ro , 1 9 7 5 , p .4 5 ) .

157
cas. O leito do mar foi então descrito como uma "herança comum da
humanidade", cujas riquezas deveriam beneficiar a todos. No entan­
to os pafses menos desenvolvidos naturalmente não possuem a sofis­
ticada tecnologia necessária para a exploração destes recursos.
As negociações nesse sentido começaram em 1973, e continua­
ram regularmente até 1981. Então, na última hora, quando estavam
para ser acertados os detalhes finais e assinado o tratado por todas
as nações participantes, os Estados Unidos, por orientação do presi­
dente Ronald Reagan, pularam fora. A razão dada foi que a admi­
nistração temia que a transferência de tecnologia fosse comprome­
ter o desempenho econômico de companhias de mineração sediadas
nos EUA. A Lei do Mar, mecanismo que possivelmente poderia ser
de grande benefício para os países pobres, assim foi efetivamente
posta a pique35.
Um destino semelhante decerto aguarda o relatório de 1980
da Comissão Brandt. Esta, uma comissão internacional de dirigentes
tanto de países desenvolvidos como de menos desenvolvidos, publi­
cou, em 1980, um importante relatório, intitulado NorthSouth:
A Program for Survival ("Norte-Sul: Um Programa para a Sobrevi­
vência")36. O objetivo do relatório era o de reabrir os canais de co­
municação entre as nações ricas do Hemisfério Norte e as nações po­
bres do Sul. Uma das suas tônicas era a interdependência mútua en­
tre todas as nações do globo. Enfatizava que os países ricos não po­
diam esperar relações internacionais pacíficas enquanto mais da
metade do mundo se debate com a pobreza. Por outro lado, o re­
latório também enfatizava que os países pobres não poderiam espe­
rar um desenvolvimento sem o suporte dos seus parceiros ricos. Em
síntese o relatório encorajava a cooperação em lugar da confronta­
ção. Fez recomendações bastante significativas, que tratavam de
questões como o controle das multinacionais, o encorajamento do
desenvolvimento local nos países menos desenvolvidos, a solução da
crise de energia que afeta o globo, a instituição de uma nova ordem
monetária mundial e o estabelecimento de novas relações comer­
ciais. As proposições refletem muito do pensamento da Nova Ordem

3S_
ra ra u m sum ário o b je tiv o d o s detalhes d o quase fin a liza d o a co rd o , ver S . P. Ja go ta ,
"D e v e lo p m e n ts in th e U N C o n fe re n ce o n the L a w o f the S e a " . T h ir d W o rld Q u a rte rly , V o l.
3 , N . 2 , A b r il, 1 9 81 , p p . 2 8 6 -3 1 9 . E ta m b é m " S e a -L a w C on fe re n ce Begins F in a l P ha se",
U N C h ro n ic le . V o l. X V I I I , M a io . 1 9 8 1 ; e N e w sw e ek , 2 3 de M a rço , 1 9 8 1 .

W illy B ra n d t, N o r th -S o u th : A P ro gra m f o r S u rviv a l. Para u m a re s e n h a d o re latório e


d o seu im p acto in icia l, ver M igue l S . W io n c z e k . " T h e B ra n d t R e p o rt " , T h ir d W o rld Q u a r-
V o l. 3 , N . 1 . Ja n e iro , 1 9 8 1 . p p . 1 0 4 -1 1 8 ; o u J o h n P. Le w is , "S h a k in g Lo ose fr o m a
D iffic u lt Y e a r " , O E C D Ob se rve r, N ? 1 0 7 , N o v e m b ro . 1 9 8 0 , p p . 6 -1 3 .

158
Econômica Internacional, sendo porém amplamente reconhecidas
como realísticas e praticáveis. Tragicamente, entretanto, o relatório
não chegou a gerar nenhuma reação significativa por parte dos gran­
des países desenvolvidos, à exceção da Inglaterra.
O Relatório Brandt levou a uma potencialmente significativa reu­
nião de cúpula entre 22 dirigentes mundiais em Cancun, México, no
mês de outubro de 1981. Muitos esperavam que ali ocorressem pro­
gressos com relação às proposições do Relatório. Porém, uma sema­
na antes de viajar a Cancun, o presidente Ronald Reagan enfureceu
os participantes do Terceiro Mundo com um agressivo discurso, no
qual rejeitava implicitamente todas as principais recomendações da
Comissão Brandt.
Em Cancun, a Primeira-ministra britânica Margaret Thatcher pa­
receu impressionada com um provérbio indiano usado pela Primei­
ra-ministra da índia, Indira Ghandi: "Eu me lamentava por não ter
sapatos, até que encontrei um homem que não tinha pés"37. Con­
tudo as nações industrializadas virtualmente não fizeram concessões.
0 presidente Reeagan se recusou a assumir quaisquer compromis­
sos específicos, limitando-se a concordar "em princípio" com algum
tipo de negociações globais. Seis meses depois um editorial no The
Third World Quarterly, um jornal desenvolvimentista que reflete as
opiniões do Terceiro Mundo, lamentava:

Seis meses depois de Cancun havia poucas evidências de que a ro­


dada de negociações globais fosse encetada num futuro previsível.
A administração dos EUA não modificou a sua posição38.

Tragicamente provável é que o Relatório Brandt seja ignorado


até que por fim também desapareça nos anais das oportunidades
perdidas.
Uma análise abstrata de padrões comerciais injustos pode pare­
cer algo enfadonho para norte-americanos que não sabem o que é
passar necessidade. Mas experimentar os seus efeitos pode significar
uma agonia sem tamanho. No seu livro Whatdo you Say to a Hungry
World?, Stanley Mooneyham conta a história de Juan Díaz, traba­
lhador numa plantação de café em El Salvador, pequeno país da

3 7 C ita d o e m H a y , " N o r t h -S o u t h : T h e E c o n o m ic D e b a te ", p . 9 (m a n u scrito !.

3 8 " E n d o f D ia lo g u e ? ", T h ir d W o rld Q u a rte rly , V o l. 4 ( 2 ) , A b r il , 1 9 8 2 , p . X I I . Para


o u tra avaliação de C a n c u n , ver C a n c u n : A C an d id E v a lu a tio n , p ro d u zid a p elo R o u n d ta b le
S ecretariat o f th e N o r th -S o u th R o u n d ta b le , 1 717 Mass. A v e ., N . W ., W a sh in gto n , D .C .,
2 0036.

159
América Central cuja renda nacional depende grandemente das ex­
portações de café.

Ele e três das suas cinco filhas passam longos e estafantes dias nas
plantações de café em Montenango. Em dias bons, Juan consegue
colher uma quantidade suficiente para lhe garantir 1,44 dólares;
suas filhas juntas fazem um total de 3,35 dólares. Com 1,24 Juan e
sua esposa Paula conseguem suprir as necessidades alimentares da
família por um dia. Em tempos maus, contudo, ele e as filhas conse­
guem juntos num dia nada mais que 0,56 dólares — menos que a
metade do que precisam só para comer.
Quando terminam as seis semanas da colheita do café, Juan
faz biscates, o que aparecer, pelos arredores da fazenda — isso se
houver algo para ser feito. Assim consegue juntar 0,90 dólares em
oito horas de trabalho. Paula complementa a renda do marido traba­
lhando no mercado. Quando o povo tem dinheiro para poder com­
prar os tomates, repolhos e outras hortaliças que ela venda, pode con­
seguir em tomo de 0,40 dólares num dia.
A fazenda oferece uma casinha simples para a família, mas sem \
as facilidades modernas. A luz é na base de lampiões, a água é tirada
de um poço e a mobília consiste em pouco mais do que uma mesa
e algumas cadeiras. Além de um vestido e calçados para cada uma
das meninas durante a temporada do café, a família não conseguiu
comprar muita coisa mais nos últimos cinco anos. Todo o dinheiro
que sobra, que não é gasto em comida, fica para consultas no posto
de saúde (0,40 dólares cada consulta), os juros, bastante altos, nas
contas do armazém da companhia, despesas escolares das crianças
e para imprevistos como o enterro do pai de Juan, que faleceu no
ano passado.
"Sabe, estou lutando para que as minhas filhas possam ter uma
vida melhor", diz Juan. " O meu sonho é que, se for possível — isto
é, se eu conseguir chegar lá — as minhas filhas não precisem seguir
nas minhas pisadas, que elas consigam sair de algum jeito dessa vi­
da terrível que aqui levamos. Mas os problemas financeiros que en­
frentamos cada dia fazem desvanecer os sonhos. Me sinto mal, ner­
voso, não durmo noites inteiras, me preocupando em como arran­
ja r alguma coisa pra elas comerem. Penso e penso, e não acho ne­
nhuma saída. Trabalho duro, minha mulher e minhas filhas tam- '
bém. Todos damos duro. Mas ainda assim sofremos. Por quêP"39.

3 9 M o o n e y h a m , H u n g ry W o rld , p p . 117-18..,

160
Uma das grandes razões é porque os atuais padrões de comér­
cio internacional são fundamentalmente injustos. A sua gênese se
encontra no período colonial, quando as colônias começaram a sua
jornada rumo ao subdesenvolvimento. Os países menos desenvolvi­
dos ainda hoje estão sendo afligidos pelas relações comerciais que
foram construídas desde então. Nos capítulos sete a nove queremos
analisar propostas para uma mudança construtiva — nos nossos esti-
los-de-vida pessoais, na igreja e na sociedade como um todo. Para o
momento é suficiente que vejamos que os padrões comerciais cor­
rentes fazem com que seja impossível viver no Ocidente abastado
sem estar envolvido em estruturas sociais que contêm sérias injus­
tiças e que ajudam a manter famintas milhões de pessoas.

CONSUMO DE RECURSOS NAO-RENOVÂVEIS

Infelizmente o comércio internacional não é a única maneira pe­


la qual se manifesta o mal em nossas estruturas. As nações ricas con­
tribuem gravemente para o esgotamento dos recursos não-renováveis
do mundo e com isso ameaçam seriamente as possibilidades de de­
senvolvimento do Terceiro Mundo.

Veja Tabela 11 na página 162.

A Coluna 7 da Tabela 11 mostra a enorme proporção destes oito


recursos naturais não-renováveis que é consumida pelas nações desen­
volvidas do mundo, para sustentar a sua próspera sociedade de consu­
mo. 27,6% da população mundial é responsável por 83 a 94% do con­
sumo mundial total, e isto a despeito do fato de que no período de
1974-76 o mundo ocidental enfrentava a sua pior recessão nos ú lti­
mos quaranta anos!
A Coluna 6 mostra que, mesmo dentro do grupo das nações de­
senvolvidas, as nações nominalmente "cristãs" da Europa Ocidental,
Escandinávia, América do Norte e Australásia, com somente 13,4%
da população mundial, dão conta de mais da metade do consumo
mundial total anual de todos menos um dos recursos mencionados,
e isso sem a ajuda do Japão, da URSS e dos 200 milhões de habitan­
tes dos países "mais pobres" da Europa Oriental e do Sul do Euro­
pa!
O nosso consumo de energia per capita oferece um exemplo
vívido da desconcertante falta de equilíbrio no consumo de recursos.
A Tabela 12 mostra que o cidadão médio nos EUA consome 358

161
Tabela 11

CONSUMO DE RECURSOS NATURAIS NAO-RENOVÁVEIS


DOS PAÍSES RICOS, 1974-76

C o l. 1 C o l. 2 C o l. 3 C o l. 4 C o l. 5 C o l. 6 C o l. 7
EUA Re in o A le m a ­ C anadá A u s trá lia , M .C . E . , E u ro p a
U n id o nha O c id . N ova Escand. A m . N o r-
Ze lândia A m . N o r - te, U R S S
te , A u s tr a -J a p a o ,
lásia A u s tra -
lásia

% da Popul. 5,4 1,4 1,5 0,6 0,4 13,4 27,6


Mundial

% do consumo mundial
total de recursos

Petróleo 28,5 3,5 4,8 3,1 1,3 53,7 83,0


Gás natural 47,4 3,0 3,1 3,9 0,5 65,0 92,1
Alumínio 32,8 3,4 6,5 2,5 1,4 57,0 90,2
Cobre 21,2 5,7 8,6 2,8 1,4 52,8 89,1
Chumbo 22,3 6,0 5,8 1,4 1,9 51,7 86,0
Níquel 24,1 4,7 8,2 1,8 0,6 50,6 94,2
Estanho 23,8 6,4 6,1 2,0 1,7 51,6 84,1
Zinco 18,5 4,3 6,1 2,6 2,0 45,7 85,6

F o n te s : " W o rld M etal S ta tis tic s ", p ub licad o pelo W o rld B ureau o f M etal S tatistics, BP
Statistical R e vie w o f th e W o rld O il In d u s try — 1 976

vezes mais energia por ano do que o habitante médio na Etiópia.


Os canadenses e americanos consomem mais ou menos o dobro de
energia do que consomem as pessoas na Alemanha Ocidental, Fran­
ça ou Inglaterra. Em 1979 A Escola de Comércio de Harvard publi­
cou o livro Energy Future. Os autores observaram que os americanos
poderiam gastar 30 a 40% menos energia, sem que isso alterasse o
seu estilo-de-vida40. Que comentário incrível sobre o nosso esbanja­
mento!

N ew sw eek, 10 de D e ze m b ro , 1 9 7 9 , p . 9 8 .

162
Tabela 12

CONSUMO DE ENERGIA PER CAPITA - 1970 e 1980

País Quilogramas por pessoa (Equivalente a carvão)

1970 1980

EUA 10870 10410


Canadá 8779 10241
Alemanha Ocidental 5124 5727
URSS 4048 5595
Grã-Bretanha 5029 4835
França 3814 4351
Japão 3098 3690
Itália 2647 3318
México 1055 1770
Brasil 449 761
Filipinas 263 328
India 142 191
Zaire 68 67
Etiópia 27 29

F o n te : U .S . B ureau o f the C ensus, Statistical A b s tra c t o f the U .S ., 1 9 8 2 -8 3 , p p . 8 7 6 -7 7 .

As disparidades estatísticas desta tabela sobre consumo de ener­


gia se tornam muito mais significativas quando colocadas dentro de
situações de vida reais. Em 1973-74, e novamente em 1978-79, os
ocidentais se queixavam da falta de gasolina para os seus automóveis
e resmungavam nas longas filas diante dos postos de gasolina. Foi
uma inconveniência, sem dúvida, mas poucos, se houve, passaram
fome por causa disso. Na fndia, contudo, a situação era muito dife­
rente. Lá agricultores esperavam na fila durante vários dias para con­
seguir encher uma pequena vasilha com combustível, para poderem
tocar as suas bombas de irrigação. Muitos não recebiam nada, sendo
em conseqüência forçados a voltar a usar métodos mais primitivos
de trabalho, menos produtivos. E o resultado foi: menos comida e
mais fome. Nos Estados Unidos a redução do consumo de energia
é uma inconveniência, ou um luxo que passou. Na India e outros
países menos desenvolvidos pode ser uma questão devida ou morte.

163
Já vimos que as nações ricas consomem uma porcentagem muito
elevada dos recursos não-renováveis gastos a cada ano. Mas não seria
tão somente o resultado da nossa industrialização e da abundância
material por ela criada? Os dados acima não causam realmente grande
surpresa, uma vez que o consumo de recursos naturais está estreita­
mente ligado ao processo de industrialização. De fato, se os países
menos desenvolvidos progredirem materialmente, como devem, tam­
bém eles passarão a gastar quantidades maiores de recursos não-re-
nováveis. Conseqüentemente não são os simples dados estatísticos
sobre o consumo de recursos que nos interessam. Eles meramente
destacam a bem conhecida disparidade entre estados relativos de de­
senvolvimento (bem como o esbanjamento dos norteamericanos).
Antes, há duas questões mais profundas que devem ser levantadas.
Primeiro, o gasto extravagante de recursos naturais pelo mundo de­
senvolvido melhora ou atrapalha as perspectivas de desenvolvimento
do Terceiro Mundo? Segundo, existem realmente limites para o cres­
cimento, e, se houver, quais são?
Em relação à primeira pergunta, os peritos discordam. Muitos
observadores profissionais do mundo insistem em que o Terceiro
Mundo não pode esperar um desenvolvimento a menos que o mun­
do industrializado continue a comprar dele um grande volume de re­
cursos naturais. Com isso concorda a Comissão Brandt. Por outro
lado, alguns argumentam que foi em grande parte o contato entre
o Primeiro e o Terceiro Mundos que levou, num primeiro momen­
to, ao subdesenvolvimento das nações pobres do mundo. Essas pes­
soas são muito céticas com relação a esquemas de desenvolvimento
que dependem em elevado grau do Primeiro Mundo. E o seu argu­
mento é de que as nações desenvolvidas saqueiam o Terceiro Mundo.
Do mesmo modo-que os espanhóis levaram embora metais preciosos
da América Latina, assim também os países desenvolvidos continuam
a extorquir matéria-prima dos seus vizinhos mais fracos. Isso conse­
guem primariamente via acordos barganhados de forma desonesta
entre as companhias multinacionais de mineração e extração e os
governos desses países. Conforme este segundo ponto-de-vista os
países menos desenvolvidos estão vendendo o seu direito de primo-
genitura sobre os recursos naturais aos países ricos, e isso ao preço
de alguns poucos bens de luxo para as suas elites ricas.
Ambos os lados estão parcialmente certos. Dado o presente es­
tado de coisas, o Terceiro Mundo deve voltar os olhos para o mun­
do desenvolvido em busca de mercados para vender os seus produ­
tos (esperamos que com padrões de comércio mais favoráveis) bem

164
como de tecnologia de que têm necessidade. Por outro lado um
maior comércio com as nações industrializadas só lhes trará bene­
fício se estas mudarem significativamente. Em vez de tranqüilamen­
te fechar os olhos a negócios que são contraproducentes para os
países menos desenvolvidos, os governos das nações ricas poderiam
começar a insistir em acordos mais eqüitativos de comercialização
de recursos. As nações do Ocidente poderiam encorajar o desenvol­
vimento das economias do Terceiro Mundo, de modo que as nações
pobres pudessem começar a fazer melhor uso dos recursos naturais.
Ao mesmo tempo, o Primeiro Mundo poderia mostrar menos preo­
cupação com o seu próprio consumo, sempre crescente.
A segunda pergunta é ainda mais difícil de se responder com
segurança, por causa da natureza especulativa dessa tarefa. Freqüen­
temente ouvimos admoestações contra a excessiva preocupação em
torno do declínio da disponibilidade de recursos. A tecnologia vence­
rá, nos garantem confiantemente os otimistas. O progresso tecnoló­
gico vai criar alternativas para os recursos naturais que no presente
são essenciais mas cada vez mais escassos.
Por outro lado somos muitas vezes confrontados com adver­
tências no sentido de que estejamos sendo muito esbanjadores em
um mundo com recursos escassos. Lester Brown, especialista em
desenvolvimento internacional, por exemplo, argumenta nos seguin­
tes termos:

Já de há muito faz parte da sabedoria convencional dentro da


comunidade dos países desenvolvidos, que os dois bilhões de pessoas
que vivem nos países pobres não poderiam aspirar ao padrão-de-vida
desfrutado pelo cidadão ocidental médio, porque não haveria miné­
rio de ferro, petróleo e proteínas em quantidade suficiente no mun­
do para tornar isso possível41.

Se Brown tem razão, torna-se imperioso para a sociedade oci­


dental começar a buscar maneiras de reduzir o consumo destes re­
cursos escassos, tornando-os disponíveis para as nações mais pobres.
Tal conclamação contrasta fortemente com a insistêncaia corrente
nos Estados Unidos em fazer a economia americana crescer nova­
mente. (No capítulo nove veremos que o crescimento econômico
não envolve necessariamente um maior consumo de recursos natu­
rais. Entretanto, o tipo de crescimento que atualmente está sendo
promovido nos EUA o exige.)

41 B ro w n , In the H u m a n In te re st, p . 9 2 ,
Alguns dados novos sobre esta questão apareceram com o The
Global 2000 Report to the President, que foi publicado em 19804J.
Este estudo fez uma tentativa de projetar as condições que haveria
no ano 2000 se as atuais tendências tivessem continuidade. As con­
clusões não sao otimistas. Num dos parágrafos introdutórios o rela­
tório afirma:
Os estresses ambientais, populacionais e dos recursos naturais ,
estão se intensificando, e cada vez mais haverão de determinar a
qualidade da vida humana em nosso planeta.
Estes estresses são já agora suficientemente severos para negar
a milhões de pessoas as necessidades básicas de alimentação, mora­
dia, saúde, trabalho e quaisquer esperanças de que as coisas melho- |
rem. Ao mesmo tempo a capacidade de- sustentação da terra — 1
a capacidade dos sistemas biológicos de prover recursos para as ne­
cessidades humanas — está erodindo. As tendências que se refletem
no estudo Global 2000 sugerem fortemente uma progressiva degra­
dação e empobrecimento da base de recursos naturais da terra.*3
0 relatório não vê nenhuma séria ameaça de grave escasseamen-
to de metais de uso comum, ao contrário do afirmado por Brown,
nem prevê quaisquer deficiências sérias no suprimento energético44
(pressupondo que grande parte das novas demandas serão satisfeitas
pela energia nuclear!).
Diversos problemas, contudo, estão assumindo proporções cada
vez maiores. Os perigos surgem não tanto pelo fato de metais e re­
cursos energéticos vitais estarem desaparecendo, mas pelo fato de
o sempre crescente uso destes materiais ameaçar a capacidade de sus­
tentação do meio ambiente. Por exemplo, à medida em que a econo­
mia americana cresce, aumenta a demanda de energia. Um dos pla­
nos correntemente propostos para atender a esta nova demanda se
concentra no aumento do número de usinas termoelétricas. Entretan­
to, quando o carvão é queimado, grandes quantidades de enxofre e
óxidos de nitrogênio são lançados ao ar45. Uma das conseqüências

Este estudo fo i a uto riz a d o p elo presidente C a rte r, em 19 77 . O seu p ro p ó s ito era o
de ja z e r u m le va nta m en to in tegrado de transform ações am bientais a lo ngo p ra zo , co m vistas
a ajustam entos d e estratégias e program as à lu z de descobertas q u e fossem significativas.

3G lo b a l 2 0 0 0 , p . iii d o V o l. I.
44. , .
A qui o re latório c o m b in a c o m o u tro sim ilar fe ito pela In te rfutures. Este ú ltim o re-
1*979*0 6 m A rC TH e re P hvsical L im its to G r o w t h ? " , O E C D Ob sorve r, N ? 1 0 0 , S e te m b ro .

4 SG lo b a l 2 0 0 0 , p . 3 6 d o V o l. I .

166
são as chuvas ácidas, que já causaram grandes prejuízos a muitos la­
gos, florestas e plantações no nordeste dos Estados Unidos. Outro
efeito potencialmente perigoso do aumento do consumo de energia
é o nível crescente de dióxido de carbono (CO ) na atmosfera. Os
efeitos últimos disso ainda não são bem conhecidos, mas muitos
cientistas temem uma tendência para um aquecimento geral na tem­
peratura global, que teria um significante impacto negativo sobre a
agricultura mundial e sobre a estabilidade ambiental como um todo.
A atividade industrial e os altos índices de consumo de recursos
naturais, portanto, afetam adversamente os nossos mais preciosos
recursos: o ar, a água e a terra cultivável. Segundo o relatório, se as
tendências do presente não se modificarem, as conseqüências futuras
serão a poluição atmosférica, uma base agrícola em deterioração e
uma sempre maior poluição da água associada a escasseamentos
mais freqüentes de água potável.
Todas essas deformações ecológicas resultam da industrialização,
da afluência e do crescimento populacional. Quanto mais bens pro­
duzimos, mais energia consumimos; quanto mais produtos agríco­
las desenvolvemos, maior o perigo de um cataclisma iminente. No
presente, os que mais contribuem para estes problemas são as nações
afluentes. Como afirma sem rodeios E. F. Schumacher:

Ê óbvio que o mundo não agüenta os EUA. Nem consegue


agüentar a Europa Ocidental ou o Japão . . . Pense nisso — um só
americano botando a mão em recursos que dariam para sustentar
cinqüenta indianos'. . . . Os pobres não causam muitos prejuízos; a
gente modesta não causa m uití prejuízo. Virtualmente todo o es­
trago é feito por, digamos, 15%. . . Os passageiros problemáticos na
Espaçonave Terra são os da primeira classe, e mais ninguém46.

E mesmo assim as nações desenvolvidas apelam para uma pro­


dução e um consumo cada vez maiores. Será que todo esse esban­
jamento resulta de pura ganânda? Talvez em parte, mas há um pro­
blema estrutural que é mais proíundo. Quando economias desenvolvi­
das param de crescer, estagnara. As pessoas são despedidas dos seus
empregos. Cresce a demanda soore a Previdência Social. 0 desconten­
tamento é semeado entre grufos sociais. Aumentam os confrontos

« E . F . S ch u m a ch e r, " Im p lic a tio n 3f th e L im its to G ro w t h D ebate - S m a ll Is Beautr-


fu l” . A n tic ip a tio n , N ? 1 3 , D e ze m b ro , 19*2, p . 14 (V .'C C ).

167
sociais47.
Nos tempos passados ninguém realmente suspeitava de que eco­
nomias em crescimento pudessem representar uma ameaça à qualida­
de de vida das gerações futuras. Hoje, entretanto, temos boas razões
para crer que um contínuo crescimento econômico material no mun­
do desenvolvido não pode ser justificado, tendo em vista o fato de
que os países altamente industrializados já contribuem mais para a
erosão da capacidade de sustentação da terra do que para o seu
aprimoramento.
0 nosso uso dos recursos naturais do planeta representa, portan­
to, o tipo mais problemático de injustiça estrutural. Se paramos de
crescer, a nossa sociedade é ameaçada; e, por outro lado, promover
o crescimento material coloca cada vez mais em perigo uma frágil
biosfera, e com isso as oportunidades de desenvolvimento dos paí­
ses pobres. Estamos gastando mais do que restituímos. Teremos que
usar toda a nossa cabeça e mais um pouco para conseguir sair desse
problema. A tecnologia, embora útil, não dará sozinha a resposta.
0 nosso ponto de partida terá que ser um retorno aos princípios bí­
blicos.

PADRÕES DE CONSUMO DE ALIMENTOS

Os nossos padrões de alimentação — uma terceira área em que


estamos sendo apanhados a cometer pecado institucionalizado —
podem parecer a princípio um assunto muito pessoal e privativo.
Mas na verdade eles estão fortemente interligados com complexas
estruturas econômicas, incluindo políticas agrárias nacionais e inter­
nacionais, e decisões de corporações multinacionais ativas no setor
agrícola.
0 Dr. Georg Borgstrom, mundialmente conhecido especialista em
alimentos e professor de Ciência daAlimentação e Nutrição Humana
na Michigan State University, sublinhou e frisou o modo como os
norteamericanos consomem uma parte desproporcional do supri­
mento mundial de alimentos. Tem insistido, corretamente, em que
não meçamos a população mundial rreramente em termos de número
de habitantes, mas também em temos de "carga alimentar" total

Lester T h u r o w , em seu liv ro T h e Z e ro S u m S o c ie ty {N o v a Io rq u e : Basic B oo ks,


1 9 8 0 ), a rgum enta no sentido de que u m fim co crescim ento iria ferir de m o d o d e sp ro­
porcional a parcela da população dos E U A que m enos poderia s u p o rtá -lo . S ustenta ainda
q u e, sob as estruturas atuais da sociedade e da e con o m ia , é algo irrealista insistir num a
parada im ediata d o cre scim en to, p o rq u e o sistena n S ó p oderia sup o rta r o estresse de um a
m udança estrutural de grandes im plicações.

168
do globo. Numa fascinante palestra apresentada em 1974 ele afirma
que, contados tanto os rebanhos como as pessoas, se constata que já
em 1974 a terra não tinha quatro, e sim 19 bilhões de habitantes, is­
to é, "equivalentes populacionais". Borgstrom transforma os reba­
nhos em "equivalentes populacionais" computando a quantidade de
proteína exigida por eles, e calculando então quantas pessoas essas
proteínas alimentariam“18. A "carga alimentar" dos Estados Unidos,
então, não era de 210 milhões em 1974, mas, "em termos biológicos,
era, conseqüentemente, de 1,6 bilhões"49. Embora a India tivesse
três vezes mais habitantes que os Estados Unidos, tinha um rebanho
muito menor. Contando este junto, a fndia tinha apenas 1,2 bilhões
de "equivalentes populacionais". Quem, então, é que tem as vacas
sagradas?
Outra indicação de que alguma coisa está errada resulta de um
exame das estatísticas comerciais. Os países ricos têm regularmente
importado mais alimentos das nações pobres do que exportado para
elas. Nações pobres, menos desenvolvidas, estão alimentando a mi­
noria afluente. A Tabela 13 mostra que em 1979 as nações desenvol­
vidas exportaram o equivalente a US$ 22.259.000.000,00 em ali­
mentos para as nações pobres; mas importaram o equivalente a
US$ 32.810.000.000,00. Em 1980 e 1981 o quadro se modificou
um pouco, com o saldo negativo caindo para 2 bilhões e 720 mi­
lhões em 1980, e chegando a um superávit de 2 bilhões e 100 mi­
lhões de dólares em 1981. Pode haver aqui motivo de otimismo, mas
também há razão para cautela. A razão da mudança é a recessão
mundial. Enquanto que a comida importada pelos países ricos ten­
de a ser constituída por alimentos de luxo (p.ex., frutas exóticas,
castanhas ou carne de primeira), a comida importada pelos países
pobres é bem mais vital em termos de alimentação (p.ex., cereais
básicos). Em tempos de recessão não é muito difícil para os países
ricos diminuir um pouco o seu consumo de alimentos de luxo, en­
quanto que alimentos básicos continuam tão importantes como
sempre, é provável, portanto, que à medida em que o mundo desen-
voldido for saindo da recessão, volte a aparecer um saldo negativo
para os países pobres.
Dados sobre a produção pesqueira mundial repetem a mesma
história. Em 1973 a produção mundial foi de 65,7 milhões de tone-

G eo rg B o rg s tro m , T h e H u n g ry Planet (N o v a Io rq u e : C a llie r-M a cm illa n , 1 9 6 7 ), es-


pecialm ente o ca p ftu lo 1; e um a palestra m im eografada, intitulada "P re se nt F o o d P ro d u c­
tio n a n d the W o rld F o o d Crisis” , apresentada n o dia 2 de S ete m b ro de 1 9 7 4 .

4 9 lb id „ p . 3 .

169
Tabela 13

EXPORTAÇÕES E IMPORTAÇÕES DE ALIMENTOS


(em milhões de dólares)

E x p orta çõ es d o m u n d o desenvolvido Im p orta çõe s pelo m u n d o Perda to ta l de


para o m enos d e senvolvido dese n volvid o d o m u n d o a lim e n to s dos
m enos d e senvolvido países pobres

C o l. 1 C o l.2 C o l. 3 C o l. 4 C o l. 5 C o l. 6
Ano T o d o s os sa os T o d o s os S ó os (C o l. 4 —
pafses EUA países EUA C o l.2)
desenv. desenv.

1955 2090 735 6870 2470 4780


1960 3150 1470 7160 2450 4010
1965 3130 1594 7045 2373 3915
1970 4542 1767 9864 3400 5322
1975 14496 6141 18226 5380 3730
1976 13315 5317 22909 7008 9594
1977 14884 5183 29880 8577 14996
1978 18597 7099 30289 8988 11692
1979 22259 8012 32810 9045 10551
1980 31339 11346 34059 9997 2720
1981 33861 13076 31761 9310 -2 1 0 0

F o n te : U .N / s H a n d b o o k o f In te rn a tio na l Tra d o and D e ve lop m e n t Statistics, 1 9 7 2 , e


U .N .'s M o n th ly B u lle tin o f Statistics, Fe vereiro e M aio 19 83 .

N o t a : Eco n o m ia s c o m p lanejam ento central nâb estão inclufdas.

ladas. Tivesse esse produto sido dividido de forma justa, cada pes­
soa no mundo teria recebido mais ou menos 15,5 kg.50 Mas não chega
a causar surpresa que não foi. As nações desenvolvidas, com um quar­
to da população mundial, pegaram para si em torno de três quartos
da produção. O Peru, país muito pobre, tem a maior produção de
pescado de anchovas do mundo. Porém, uma quantia não suficiente
das proteínas da anchova fica para alimentar os milhões de pobres
daquele país. Em vez disso, a maior parte serve para engordar os re­
banhos nos EUA e na Europa.
A pesca do atum nos oferece um exemplo muito interessante. 0
5 0 „.
b im o n , Bioad f o r th e W o rk ), p p . 1 9 -2 0 .

170
prof. Borgstrom observou que dois terços da produção mundial de
atum acabam nos Estados Unidos. Dessa quantia, um terço vai para
a alimentação de gatos!S1 Obviamente os americanos não importam
tantos alimentos porque precisam deles, mas porque querem e porque
têm dinheiro suficiente para pagá-los.
Por que países com um suprimento alimentar abaixo do adequa­
do para a sua própria população nos mandam, de livre e espontânea
vontade, mais comida do que ganham de volta? A resposta óbvia é
que as exportações de alimentos por parte desses países servem para
pagar as suas importações de alta tecnologia, petróleo e bens de luxo.
A gente pobre, todavia, está menos interessada nessas coisas do que
em ter comida na mesa para as suas famílias. Ficamos, assim, tendo
que responder à pergunta: Por que alimentos que são necessários pa­
ra terminar com a inanição e a desnutrição nos países pobres são ex­
portados por estes mesmos países?
A resposta tem dois lados. Um é o lado puramente econômico.
Muitos dos alimentos cultivados nos países menos desenvolvidos não
estão ao alcance dos pobres destes países, simplesmente porque estes
não podem pagar por eles. Eles não têm terra para fazerem a sua pró­
pria colheita e vendê-la. E nem conseguem encontrar um trabalho
produtivo nas cidades esquálidas e superpovoadas.
0 segundo lado da resposta é histórico, e conta por que alguns
povos pobres não têm nada hoje para oferecer em troca. Mais uma
vez as raízes se encontram nos tempos coloniais” . Naquela época,
as safras para exportação eram ativamente promovidas, em detri­
mento da produção de alimentos para consumo interno. As planta­
ções eram programadas para a produção de safras para exportação.
A população local freqüentemente era desapossada das suas terras
e transformada em escravos ou em mão-de-obra barata. Aqueles que
ficavam com alguma terra eram "encorajados" a produzir os gêne­
ros alimentícios que eram desejados nas pátrias-mães.
Produzir alimentos para a pátria-mãe era encarado como a maior
prioridade da colônia. John Stuart Mill, respeitado economista britâ­
nico do século dezoito, "raciocinava no sentido de que as colonias
não deviam ser vistas como civilizações ou mesmo países, e sirn esta­
belecimentos agrícolas' cujo único propósito era o de suprir a comu­
nidade maior à qual pertencem' " 53.
51 B o rgs tro m , "P re se nt F o o d P ro d u c t io n ", p . 12.

5 2 Para u m sum ário de lo d o esse p ro c e s s o ve r a parte III de Fran cis M o o re Lappé &
Jo sep h C o llin s , F o o d F irs t (B o s to n : H o u g h to n M ifflin C o m p a n y , 1 9 7 7 ).

s 3 C ita d o em La p p é e C o llin s, F o o d F irs t, p . 7 7 .

171
Os tempos coloniais, em sua maior parte, terminaram, mas os ves­
tígios permanecem. As plantações criadas não foram devolvidas
aos descendentes dos seus proprietários originais. Novos proprietários
(elites locais ou corporações multinacionais) dos mesmos latifúndios
continuam de olhos voltados para os países industrializados como
seus parceiros de comércio, uma vez que a pobre comunidade de
camponeses desapropriados tem pouco a oferecer que corresponda
aos desejos do proprietário da terra. Donos de grandes latifúndios
poderiam plantar feijão, milho ou arroz para a população local, mas
a gente nativa não possui recursos para produzir qualquer coisa de
valor comercial. Assim os proprietários das terras voltam seus olhos
para um país como os Estados Unidos. Exportam algodão, carne, ca­
fé, bananas ou outros produtos agrícolas, e recebem em troca o que
desejam. À medida que o tempo vai passando, eles e outras pessoas
de posses se voltam cada vez mais para o mundo desenvolvido à pro­
cura de parceiros econômicos. Além de negar a terra à comunidade
camponesa, essa vinculação com o exterior ainda leva à introdução
da lavoura mecanizada, que diminui a oferta de trabalho. São pre­
cisos, então, menos trabalhadores, ficando muita gente desempre­
gada e sem ter para onde ir. As estruturas econômicas resultantes
favorecem os ricos e oprimem os pobres.
Talvez num contexto desses é que se compreende melhor a divi­
na sabedoria do princípio do Jubileu. 0 princípio econômico por
trás do Jubileu é a redistribuição periódica dos bens de produção de
uma sociedade. Quando membros de uma sociedade perdem os seus
bens de produção, não importa porque razões, se torna muito d ifí­
cil para eles a participação na atividade econômica. Pessoas sem re­
cursos não podem produzir. E sem bens para negociarem, não pode­
rão comprar o suficiente para as suas necessidades.
Já faz muitos anos que começou, em quase todos os países hoje
menos desenvolvidos, o processo de afastar as pessoas da terra, e ele
continua até o presente. Pouquíssimas vezes ocorreram processos
que correspondessem aos princípios do Jubileu, e assim os problemas
têm só aumentado, dificultando soluções.
Por que estamos tão perplexos diante da fome e da pobreza de
hoje? Será isso realmente de causar admiração? As pessoas foram em­
pobrecidas há muito tempo atrás, e nunca foram tomadas medidas
no sentido de corrigir as injustiças iniciais ou de restaurar para os
pobres as possibilidades de produção. Eis a razão por que hoje nós
importamos mais comida dos países pobres do que mandamos para
eles. A injustiça chegou a se incrustar profundamente na vida eco­
nômica e social tanto nacional como internacional.

172
Mudanças profundas, tanto econômicas como políticas, fazem-
se necessárias. No capítulo 9 vamos analisar algumas das formas pelas
quais podemos promover tais mudanças. O meu propósito aqui é
mostrar que os nossos padrões de alimentação estão relacionados
com estruturas sociais e econômicas destrutivas, que deixam milhões
passando fome.

AS MULTINACIONAIS NO MUNDO MENOS DESENVOLVIDO

Já vimos como as estruturas e instituições internacionais são cos­


turadas com fios tintos de injustiça, e como esses fios vieram a ficar
tão firmemente entrelaçados no tecido da economia internacional
que em geral já nem percebemos as injustiças. No caso das multina­
cionais elas talvez sejam mais fáceis de se perceber, mas mais d ifí­
ceis de serem removidas.
As corporações multinacionais são filhas da afluência ocidental.
Muitas delas, a maioria, começaram, tempos atrás, como pequenas
empresas locais. Por motivos e caminhos os.mais variados foram se
expandindo até se tornarem corporações amplas e possantes. Em ge­
ral o crescimento delas tem sido gradual, acompanhando as tendên­
cias da economia como um todo. Conseqüentemente, o mundo de­
senvolvido, embora às vezes se exaspere com a aparente indiferença
das grandes corporações no que diz respeito a objetivos sociais mais
amplos, aprendeu a trabalhar de forma construtiva com elas e, até
certo ponto, controlar o seu poder.
Após a Segunda Guerra Mundial, novamente por várias razões,
essas grandes corporações revoaram à busca do estabelecimento de
operações no além-mar. Sua atividade se desenvolveu principalmente
em outros países desenvolvidos, embora também se movessem ca­
da vez mais rumo aos menos desenvolvidos. O economista Michael
Todaro, especialista em desenvolvimento, observa que o investimen­
to estrangeiro privado, em 1962, era de 2,4 bilhões de dólares. Nos
meados dos anos setenta o investimento anual nos países menos
desenvolvidos era da ordem de uns 9 bilhões54. Por um outro siste­
ma de cálculo, o valor declarado do investimento estrangeiro nesses
países (excluindo-se os países membros da OPEP) era, em 1967, de
mais ou menos 21 bilhões de dólares; em 1975 a cifra já havia subido

5 4 M ichael P. T o d a r o , E c o n o m ic D e v e lo p m e n t in the T h ir d W o rld {N o v a lo rq u e :


L o n g m a n , 1 9 7 7 ), p . 3 2 6 .

173
para 44 bilhões55. Infelizmente problemas sérios podem surgir quan­
do uma grande empresa, tecnologicamente avançada e com nível
sofisticado de administração, cujo propósito é criar lucro para os
acionistas nos seus países de origem, se estabelece num país menos
desenvolvido, materialmente pobre, administrativamente pouco so­
fisticado e economicamente dependente.
Antes de se tornar conhecido o lado negativo das multinacionais,
todavia, elas erarri promovidas como sendo dos principais instrumen­
tos para o desenvolvimento e o crescimento econômico nos países
menos desenvolvidos. Pensava-se que podiam contribuir de várias
maneiras: (1) permitindo o acesso aos escassos recursos de capital;
(2) aumentando o fluxo do comércio exterior nesses países; (3) pro­
vendo aos governos negócios com boa base financeira, dos quais se
poderia receber, via impostos, a receita necessária para os projetos
de desenvolvimento; (4) trazendo tecnologia para dentro do país e
treinando trabalhadores nas artes técnicas e administrativas56. No
papel, as possibilidades pareciam promissoras. Se os países menos
desenvolvidos tivessem sido parceiros políticos e comerciais igual­
mente poderosos, tudo podia estar indo bem. Mas não demorou pa­
ra ficar claro que as multinacionais não viriam a ser os salvadores do
mundo menos desenvolvido. Pelo contrário, surgiram evidências
cada vez mais claras de que, até certo ponto, elas haveriam de se
tornar contra-producentes em termos de verdadeiro progresso e de­
senvolvimento destes países. Retrospectivamente, isso realmente
não deveria causar surpresa a pessoas com uma visão bíblica de pe­
cado. Os poderosos regularmente dominam e tirarin vantagem dos
mais fracos. Interessados primariamente, se não exclusivamente,
nos seus próprios lucros, as multinacionais tiraram vantagem dos
países menos desenvolvidos que cortejaram.
Afinál, o que há de tão errado com as multinacionais? Richard
Barnet responde assim a esta pergunta:

Se tomarmos como prioridade do desenvolvimento a exigência


de que as necessidades básicas mínimas na alimentação, moradia,
saúde, saneamento e educação devem ser atendidas em primeiro
lugar no processo de desenvolvimento, então a contribuição das m ul­
tinacionais, baseadas na folha de serviços, quase com certeza será

Jo seph La P a lo m b a ra & S te p he n B la n k , M u ltin a tio n a l C o rp o ra tio n s and D e ve lop in g


C o u n trie s , R e la tório N ? 7 6 7 d o T h e C on fe re n ce B o a rd {N o v a to rq u e : T h e C onference
B o a rd , 1 9 7 9 ), p. 5.

56T o d a r o , p p . 3 2 8 -3 2 9 .

174
negativa57.
Em se considerando a asseveração de Barnet, existem três dimen­
sões que devem ser ressaltadas: efeitos puramente econômicos, efei­
to políticos e efeitos ideológicos.
Em primeiro lugar, os efeitos econômicos. O prof. Hay, um eco­
nomista cristão que é professor em Oxford, apontou três problemas
com relação a esta questão, em sua palestra apresentada na Consul­
ta Internacional sobre Vida Simples, promovida pela World Evangeli-
cal Fellowship e pelo Comitê de Lausanne para a Evangelização Mun­
dial. Primeiro, as multinacionais não contribuem realmente com a
quantidade de capital que em geral prom_etemS8. Ao invés, tomam
grandes empréstimos nos bancos dos países em que se instalam, re­
duzindo com isso os fundos disponíveis para empresário^ locais, e
diminuindo o volume de participação nos negócios por parte da po­
pulação autóctone. Segundo, as multinacionais naturalmente estão
mais preocupadas com os seus próprios lucros do que com o bem-
estar dos países hospedeiros. Isso resulta às vezes, para dar um exem­
plo, na paralisação das atividades de toda uma subsidiária, com um
impacto devastador sobre a economia local, embora afetando só do
leve a própria empresa. As multinacionais podem ta m b é m m u d a r
artificialmente o quadro dos seus lucros ao vender os seus produtos
às matrizes por preços abaixo da tabela, livrando-se assim de tributa­
ções locais. Um terceiro problema que Hay aponta é que as multina­
cionais freqüentemente promovem "o tipo errado de desenvolvimen­
to ". Ele diz que elas em geral produzem produtos altamente qualifi­
cados para os que têm poder aquisitivo, em vez de produzir aquilo
que é necéssário para a maioria pobre. E ao procederem dessa forma
consolidam as estruturas de contraste, que mantêm a maioria na po­
breza e uma elite minoritária vinculada às economias do mundo de­
senvolvido3*
No lado político, Barnet expõe que as multinacionais lutam por
garantir a estabilidade política, mesmo que uma mudança seja essen-

S7Richa rd J . B a rn e t, “ M ultin a tion a ls and D e ve lo p m e n t'', N e w C a th o lic W o r ld , V o l.


2 2 2 , N ? 1 3 2 5 , S e te m b ro / O u tu b ro 1 9 7 8 , p . 2 2 2 . V e r ta m b é m B a rnet, e R o n a ld M ü lle r,
G lo b a l Re a ch: T h e P ow e r o f the M u ltin a tio n a l C o rp o ra tio n s (N o va lo rq u e : S im o n & S ch u s ­
te r, 1 9 7 4 ).

58Streeten e L a ll (c o n fo rm e observação em H a y , "In te rn a tio n a l S o c io -E c o n o m ic O r ­


d e r " , S id e r (e d .l. L ife s ty le in th e Eighties, p. 1 1 3 , n. 3 0 ) d e sco b rira m q u e som ente 1 2 % d o
n o v o in vestim ento v in h a de fo ra , nos países em qu e fize ra m a sua pesquisa.

^ D o n a l d H a y , o p . c it. a cim a. p . 8 4 .

175
ciai para promover um desenvolvimento social e econômico de maior
envergadura. As multinacionais, sustenta ele, não estão interessadas
nas necessidades básicas dos pobres, mas em assegurar mercados es­
táveis, para que os seus lucros não sejam postos em risco60. Em con­
seqüência, vezes sem conta acabam apoiando com seus recursos re­
gimes militares extremamente opressivos, que não estão de fato in­
teressados em atender às necessidades básicas dos pobres. De quebra,
as multinacionais ficaram com um grande poder de barganha, porque
com o passar do tempo os países menos desenvolvidos têm se torna­
do cada vez mais dependentes da sua presença. (Muitas delas possuem
um volume de vendas anual superiores aos PNBs de um bom número
destes países.) Ameaçando ir embora, e com isso lançando no caos
uma economia dependente, essas empresas conseguem freqüentemen­
te arrancar acordos unilaterais em questões como concessões tributá­
rias, limites de remessa de lucros, treinamento de mão-de-obra autóc­
tone, etc. Uma vez estabelecida a empresa, ela se torna um grupo
de pressão, capaz de influenciar determinados órgãos para conse­
guir tratamento preferencial para firmas estrangeiras. Barnet diz que
assim as multinacionais conseguem fazer os governos deixarem de
investir em projetos de desenvolvimento, que beneficiariam os po­
bres, passando a aplicar o seu dinheiro em "estradas, portos [e] sub­
sídios para alta tecnologia, para desenvolver a infraestrutura de apoio
para um investimento privado lucrativo"61.
Enquanto os problemas econômicos e políticos poderiam obvia­
mente ser resolvidos por uma comunidade internacional inteligente
e sensata, a solução das questões ideológicas já fica mais duvidosa.
Por infelicidade, as empresas multinacionais vieram a estar exata­
mente no ponto de contato do Primeiro Mundo com a população
do Terceiro Mundo. Assim comunicam a um mundo marcado pela
pobreza como é a vida nas nações afluentes. Mas não só inculcam
nos pobres a maneira como vivem os ocidentais. Também os inci­
tam, através de pródigas campanhas de propaganda, a tentarem viver
da mesma forma.
0 resultado é que muita gente pobre é seduzida a gastar uma par­
te desproporcional da sua renda em bens que não lhes fazem nenhum
bem. Os refrigerantes são um exemplo de coissas desnecessárias mas

6 0 Barnet, "M u ltin a tio n a ls and D e v e lo p m e n t", p . 2 2 5 .

61 Ib id ., p . 2 2 4 ; ta m b é m m en cio n a do p o r H a y , "In te rn a tio n a l S o c io -E c o n o m ic O r ­


d e r " , p . 1 1 3.

176
freqüentemente compradas62. Talvez o caso mais conhecido e mais
pernicioso seja o do Grupo Nestlé, com a sua persistência num "mar­
keting" agressivo de receitas infantis para mães do Terceiro Mundo,
que ganhariam muito mais se amamentassem os seus filhos. A prática
de vestir representantes da companhia como se fossem enfermeiras,
para então recomendarem às mães que alimentem os seus filhos com
os produtos da empresa, se constitui num dos tipos mais desonestos
de promoção de produtos.
A publicidade agressiva feita por grandes corporações ocidentais
que promoveram a alimentação via mamadeira tem reduzido drasti­
camente a porcentagem de bebês amamentados pelas mães no Tercei­
ro Mundo. Em seu Relatório para 1982-83, a UNICEF observou que
a porcentagem de crianças amamentadas ao natural no Brasil dimi­
nuiu de 96% em 1940 para 40% em 1974. No Chile, decaiu de 95%
em 1955 para 20% hoje. (Felizmente os piores abusos têm sido res­
tringidos mais recentemente — em parte por causa de um boicote
internacional aos produtos Nestlé.) A UNICEF estima que um mi­
lhão de crianças por ano poderiam ser salvas dentro de uma década,
se a aleitação materna de novo substituísse as receitas infantis comer­
cializadas por grandes multinacionais do Ocidente63.
Num momento de sinceridade incomum, H. H. Walter, presiden­
te do conselho da International Flavors and Fragrances, colocou a
coisa sem rodeios:
Quantas vezes podemos observar nos países em desenvolvimento
que, quanto mais pobre a perspectiva econômica, mais importância
se dá a pequenos luxos como refrigerantes com sabores ou cigarros
aromatizados . . . Para desalento de muitos que gostariam de fazer
alguma coisa por eles, constata-se que, quanto mais pobres e miserá­
veis eles são, mais facilmente estarão propensos a gastar uma quanti­
dade desproporcional do que tiverem em algum luxo, em vez de com­
prar o de que têm mais necessidade. . . Observem, estudem e apren­
dam (como vender em sociedades rurais em rápida transformação).
Nós estamos tentando fazê-lo aqui na IFF. E parece que está dando
certo. Talvez também dê certo para vocês64 .

6 2 lva n lllic h (" O u t w it t in g th e 'D e v e lo p e d C o u n trie s ", e m : C harles K . W ilb e r (e d .).


T he P o litica l E c o n o m y o f D e ve lo p m e n t and U n derd evelo p m en t, p p . 4 6 3 - 4 4 4 ) é u m estu­
dioso da ética d o d e se n volvim e nto q u e está p a rticu la rm e n te in co m o d a d o co m a p ro life ra ­
ção dos refrigerantes nos países m enos desenvolvidos.

6 3 G ra n t, T h e S ta te o f th e W o rld 's C h ild re n 1 9 8 2 -8 3 , p p . 3 -4 . S o b re o b o ico te â N e s ­


tlé, ver o c a p ítu lo 9 , n o ta . 9 .

6 4 H . W a lte r, "M a rk e tin g in D e ve lop in g C o u n trie s ", C olum bia Jo u rn al o f W orld Busi­
ness, In ve rn o , 1 9 7 4 . C ita d o em Lappé e C o llin s , F o o d F irs t, p . 3 0 9 .

177
Todaro resume assim o argumento ideológico:

Tipicamente, as multinacionais produzem produtos inapropria-


dos (aqueles que são procurados por uma pequena minoria da popu­
lação), estimulam padrões de consumo inapropriados por meio da
propaganda e do seu poder de mercado monopolístico, e fazem tudo
isso com tecnologias inapropriadas de produção (de intensivo investi­
mento de capital)6* .

A opinião do economista Donald Hay, de Oxford, é "que as com­


panhias multinacionais, elas próprias criações dos países desenvolvi­
dos, são, no final das contas, prejudiciais aos países menos desenvol­
vidos"66 .
De novo temos que perguntar: Será que o problema está com os
governos que recebem as multinacionais, uma vez que o seu compor­
tamento é tão contrário ao que o país como um todo realmente pre­
cisa? Ou está o problema com as multinacionais, por não assumirem
uma postura mais caritativa com relação aos pobres? Ou se trata de
um problema da população no mundo desenvolvido, que sem se dar
conta dá suporte às multinacionais ao comprar os seus produtos ou
adquirir as suas ações? A resposta é: todos os três. Os três têm par­
te na responsabilidade pelo impacto negativo das multinacionais nos
países do Terceiro Mundo.
Todos nós estamos envolvidos em injustiça estrutural. Os padrões
de comércio internacional são injustos. 0 pródigo consumo de recur­
sos naturais ameaça severamente o meio-ambiente e as possibilidades
de desenvolvimento do Terceiro Mundo. Os padrões de consumo de
alimentos estão relacionados com injustiças passadas e presentes que
nunca foram retificadas. E as corporações multinacionais muitas
vezes impedem, em vez de promoverem, um desenvolvimento que te­
nha sentido nos países menos desenvolvidos. Cada pessoa nos países
desenvolvidos está envolvida nessas injustiças estruturais. A menos
que alguém tenha se retirado para algum vale isolado: e olante ou oro-
jJ uza ele mesmo tudo o que precisa,' participa das estruturas injustas
que contribuem diretamente para a fome de um bilhão de vizinhos
subnutridos.
Não podemos concluir que o comércio internacional ou o inves­
timento das multinacionais em países pobres são sempre algo imo-

T o d a ro , Eco n o m ic D e vo lo p m en t, p . 3 3 0 .
66 n
d H a V - " T h e In te rn a tio n a l S o c io -E c o n o m ic P o litica l O rd e r and O u r L ife s ty -
le . R o na ld S id e r (e d .), L ife s ty le in th e Eighties, p. 12 3 .

178
ral. Mas também não podemos deduzir que as economias do mundo
desenvolvido seriam arrasadas se tais injustiças fossem corrigidas. A
conclusão mais própria é que de fato a injustiça ficou profundamen­
te arraigada em algumas das nossas instituições econômicas básicas.
Os cristãos bíblicos — precisamente à medida em que forem fiéis às
Escrituras — não hesitarão em chamar tais estruturas de pecaminosas.
O leitor não formado em economia provavelmente desejaria que
a economia internacional fosse menos complexa, ou que o discipulado
fiel nos nossos dias tivesse menos que ver com um assunto tão com­
plicado. Mas o ex-secretário geral da ONU, Dag Hammarskjold, tinha
razão ao dizer que "em nossa época, o caminho da santificação ne­
cessariamente passa pelo mundo da ação"67. Dar o copo de água fria
de um modo efetivo nestes tempos de fome freqüentemente requer
que se entenda um pouco de economia internacional e de estruturas
políticas. O caso das bananas vai ajudar a tornar essas questões um
pouco mais claras.

O CASO DAS BANANAS

No dia 10 de abril de 1975 os norte-americanos ficaram sabendo


que a United Brands, uma das três grandes companhias americanas
que plantam e importam bananas, havia acertado de pagar 2,5 mi­
lhões de dólares (somente 1,25 milhões chegaram a ser efetivamen­
te pagos) em propinas a altos oficiais do governo de Honduras. Por
quê? Para persuadi-los a imporem uma taxa de exportação de bana­
na de menos da metade do valor que Honduras havia solicitado68!
Para aumentar os lucros de uma companhia americana e dimipuir
os preços da banana, o governo hondurenho aceitou, a troco de su­
borno, aplicar um drástico corte na taxa de exportação, mesmo que
o dinheiro que dali adviria estivesse desesperadamente sendo neces­
sitado por Honduras.
O caso começou em março de 1974. Vários países produtores de
bananas da América Central concordaram em se juntar para exigir a
taxa de um dólar sobre cada caixa de bananas exportada. Por quê?
Ora, os preços da banana para os produtores não haviam aumentado
em nada nos 20 anos anteriores marcados por uma inflação galopan­
te. Os produtos manufaturados, no entanto, estavam subindo cons­

6 7 M arkin gs (N o v a Io rq u e : K n o p f , 1 9 6 4 ), p . X X I .

6 8 Philadelphia In q u ire r, 10 de A b r il, 1 9 7 5 , p p . 1 -2.

179
tantemente. Em conseqüência, o poder aquisitivo real da receita de
exportação das bananas havia diminuído em cerca de 60%. E preci­
samos levar em conta que pelo menos a metade da renda de expor­
tações de países como Honduras e Panamá provém das bananas. Não
é de se admirar que eles sejam pobres. (Como já pudemos ver ante­
riormente, um terço da população de Honduras ganha menos de 100
dólares por ano.)
Qual foi a reação das companhias americanas quando os países
exportadores passaram a exigir a tal taxa de um dólar? Simplesmente
se recusaram a pagar. E, uma vez que somente três grandes empresas
(United Brands, Castle and Cooke, e Del Monte) controlavam 90% do
comércio e distribuição de bananas, tinham um grande poder de bar­
ganha. No Panamá pararam, de um hora para outra, de colher as ba­
nanas. Em Honduras deixaram 145 mil caixas apodrecer no cais do
porto. E assim, um após outro, aqueles países pobres foram capitu­
lando. A Costa Rica acabou, afinal, estabelecendo uma taxa de 25
cents por caixa. O Panamá, 35 cents. Honduras, graças aos subornos
de que antes falamos, concordou finalmente com uma taxa de 30
cents.65
Pode-se compreender facilmente por que uma comissão de inqué­
rito das Nações Unidas chegou à seguinte conclusão: "Os países pro­
dutores de bananas, todos de baixa renda, estão subsidiando o consu­
mo dessa fruta e, por conseguinte, o desenvolvimento dos países mais
industrializados"70.
Mas por que, então, as massas pobres não exigem mudanças? Eles
o fazem, mas têm pouco poder. Acontece que vários países da Amé­
rica Latina são governados por ditaduras que representam elites pe­
quenas e poderosas, que operam em estreita relação com os interes­
ses comerciais americanos.
O caso da Guatemala, país vizinho de Honduras, igualmente um
produtor de bananas para a companhia United Brands, mostra por
que é tão difícil mudar as coisas. Em 1954 a CIA ajudou a derrubar
um governo democraticamente eleito na Guatemala. Por quê? Porque
este havia iniciado um modesto programa de reforma agrária, que
aparentemente representava uma ameaça a terras não cultivadas de
propriedade da United Fruit Company (antigo nome de United
Brands). O Secretário de Estado americano, em 1954, era John Fos-
ter Dulles. A sua firma de jurisprudência é que havia redigido os con-

6 9 V e r "B a n a n a s ", N e w In te rn a tio na list, A g o s to , 1 9 7 5 , p . 2.

70 " A c t i o n " , N e w Inte rn a tio na list, A g o s to , 1 9 75 , p . 3 2 ,

180
tratos da companhia com o governo guatemalteco, em 1930 e 1936.
O diretor da CIA era Allen Dulles (seu irmão), que já havia sido
presidente da United Fruit Company. O Secretário de Estado assis­
tente era um dos maiores acionistas da United71. Na Guatemala, ou
em qualquer outro lugar, as mudanças são difíceis porque as empre­
sas americanas trabalham em estreita ligação com poderosas elites
locais, para protegerem os seus interesses econômicos mútuos.
No passado a maioria dos americanos sabia muito pouco sobre as
injustiças na América Central. Isso começou a mudar no começo da
década de 80. Com grandes movimentos radicais de guerrilha ganhan­
do chão em El Salvador e na Guatemala, o presidente Reagan em­
preendeu uma reação m ilitar vigorosa, com ajudas militares bem
maiores do que as normais. Manchetes sobre a situação na América
Central têm se tornado coisa comum nos jornais americanos. Em
1981 Reagan autorizou uma verba de 19 milhões de dólares para
apoio m ilitar secreto da CIA a guerrilhas de extrema direita que
combatiam o novo governo socialista da Nicarágua. A finalidade
alegada era a de fazer parar supostos carregamentos de armas da União
Sociética e de Cuba, através da Nicarágua, para as guerrilhas em El
Salvador. O objetivo real, todavia, era, pelo menos, a intimidação
e a desestabilização do governo de esquerda nicaraguense (e prova­
velmente inclusive a sua derrubada)72. Em agosto de 1983, quan­
do Reagan despachou uma grande flotilha naval para patrulhar a
costa da Nicarágua, parecia bem possível que um conflito de gran­
des proporções se deflagrasse na América Central.
As guerras civis que espoucam hoje na América Central têm,
sem dúdiva, raízes as mais diversas. Certamente o fato de alguns
movimentos de guerrilha, no desespero, se terem voltado para
países de governo marxista em busca de apoio e de suprimentos
complica o problema. O tráfico de armas soviético deve ser condena­
do. Mas a tentativa do governo Reagan de resolver os problemas ape­
lando basicamente a uma reação militar é ao mesmo tempo imoral
e insensata. A causa principal da violência e da guerra é a injustiça
econômica que existe já de há muito e a desesperadora miséria das

7 1 C arl O gle sb y e R ich a rd S h a u ll, C o n ta in m e n t and Change (N o v a Io r q u e : M a c m illa n ,


1 9 6 7 ), p . 1 0 4 ; e S te p he n Schlesinger e S te p he n K in z e r, B itto r F r u it: T h e U n t o ld S to ry o f
the A m e ric a n C o u p in G ua tem ala (N o v a Io rq u e : D o u b le d a y , 1 9 8 2 ).

7 2 V e r , p o r e x e m p lo , R o n a ld J . S id e r, " L o v e , Fre e d o m , Ju stice ? N ic a ra g u a ", R e p o rt


fr o m th e C a p ito l, M a rç o . 1 9 8 3 , p p . 1 0 -1 2 . Para um a boa visáo geral sobre o m o d o de co m o
os Estados U n id o s té m freq üentem ente in te rfe rid o e m e a poiado um a d ita d u ra repressiva na
N icarágua, ver o liv ro d o his to riad o r evangélico Richa rd M ille tt, G ua rd ia n s o f th e D y n a s ty :
A H is to ry o f the U . S. Created G ua rd ia N a cio n al de Nicaragua and th e S o m o za F a m ily
(M a ry k n o ll: O rb is , 1 9 7 7 ).

181
massas de pobres daquela região. Quando a metade dos seus filhos
morre de desnutrição antes dos seis anos, você não precisa de marxis-
tas-leninistas para lhe dizerem que alguma coisa precisa mudar.
Tragicamente sempre haverá aqueles ansiosos por arrumarem jus­
tificativas plausíveis. Andrew M. Greeley, destacado sociólogo ame­
ricano, da Universidade de Chicago, zombou daqueles que tentam
fazer com que os americanos "se sintam culpados" com respeito às
suas relações econômicas com o Terceiro Mundo:

" Bem", disse ele, "suponhamos que o nosso sentimento de cul­


pa chegue a um ponto tal que decidamos fazer uma reforma . . . Avi­
samos aos plantadores de frutas na América Central que podemos
dispensar as bananas do nosso cardápio . . . Dificilmente a sua ale­
gria será percebida, enquanto desemprego maciço e depressão cas­
tigarem aqueles países"13.

A gente fica pensando se Greeley é ingênuo ou perverso mesmo.


Não se trata — e ele certamente sabe disso — de que paremos de im­
portar bananas. 0 que acontece é que empresas multinacionais e po­
derosos investidores no mercado agrícola, em cumplicidade com to­
dos os compradores de bananas no mundo desenvolvido, estão em­
penhados num negócio sórdido que simplesmente impede que os po­
bres consigam sair do alçapão da sua pobreza. A questão é que deve­
mos encorajar a reorganização das estruturas econômicas e promo­
ver programas, aqui e na América Central, que possibilitem ao povo
pobre nos países produtores compartilhar dos benefícios da produ­
ção e do comércio agrícola.
O exemplo das bananas mostra como todos nós estamos envol­
vidos em estruturas econômicas internacionais muito injustas. As
palavras de Tiago parecem ter sido ditas diretamente para dentro
da nossa situação:

Atendei agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas


desventuras, que vos sobrevirão . . . 0 vosso ouro e a vossa prata
foram gastos de ferrugens, e a suà ferrugem há de ser por testemu­
nho contra vós mesmos . . . Eis que o salário dos trabalhadores que
ceifaram os vossos campos, e que por vós fo i retido com fraude, es­
tá clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvi­
dos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a

. _ "A m e ric a 's W o rld R o le : S h o u ld W e Feel G u i lt y ? '', P hiladelphia In q u ire r, 8 de Ju lh o ,


1974, p. 7 A .

182
terra. Tendes vivido nos prazeres. Tendes engordado os vossos co­
rações, em dia de matança (Tiago 5.1-5).

O ARREPENDIMENTO DE ZAQUEU

Qual deverá ser a nossa resposta, irmãos e irmãs? Para cristãos bí­
blicos, a única reação possível ao pecado é o arrependimento. Sem
nos darmos conta, pelo menos até certo pnntn, fnmnc
dados em uma complexa trama de pecado institucionalizado. Graças
a Deus, podemos nos arrepender. Deus é misericordioso. Ele perdoa.
Mas só se nos arrependermos. E o arrependimento .bíblico ..implica
mais do que algumaslágrimas casuais e uma oração de confissão uma
vez por semana. 0 arrependimento bíblico envolve conversão. Envol­
ve todo um novo estilo-de-vida. Aquele que está pronto a nos perdoar
pelo pecaminoso envolvimento em terríveis injustiças econômicas nos
oferece a sua graça para começarmos a viver um estilo-de-vida radical­
mente novo, marcado por uma identificação com os pobres e opri-

0 pecado é mais do que tão somente uma inconveniência ou uma


tragédia para os nossos vizinhos, é uma afronta ao todo-poderoso
Senhor do universo, passível de condenação. E se a palavra de Deus é
verdadeira, todos nós que moramos nos países ricos, ou que somos
ricos em meio a um povo pobre, estamos enredados em pecado. Te­
mos tirado proveito de injustiças sistêmicas — às vezes sabendo das
coisas só pela metade, às vezes só querendo saber pela metade, nos
importando só pela metade. Somos culpados de uma ultrajante ofen­
sa a Deus e ao nosso próximo.
Mas esta ainda não é a palavra final de Deus para nós. Se fçsse,
uma aceitação honesta do nosso envolvimento com todas as suas
conseqüências seria quase que impossível. Se não houvesse esperan­
ça de perdão, o admitir da nossa cumplicidade em um mal dessa
magnitude representaria puro desespero74, Somos aproveitadores de
um sistema_em que a sorte ris um ni'imprn raria mp.7 maior de pessoas
___ é _ a g o n i a e m o r t e . Se só tivermos olhos para ver, a graça de Deus tam­
bém ensinará os nossos corações a temer e tremer, e então também
descansar e confiar.
Mas só se nos arrependermos. Arrependimento não é vir para
frente no fim de um culto evangelístico. Não é recitar uma lei espi­

7 4 V e r os com en tário s sobre isso em P a trick K e rans, S in fu l So cial Stru ctu res (N o va
Io rq u e : Paulist Press, 1 9 7 4 ), p p . 4 7 -5 1 .

183
ritual. Não é murmurar uma confissão litúrgica. Tudo isso pode aju­
dar. Mas não pode substituir aquela profunda angústia interior que
leva para uma nova maneira de viver.
O arrependimento bíblico traz consigo necessariamente uma con­
versão. Essa palavra significa literalmente "dar meia-volta". A palavra
areaa metanoia significa, como Lutero insistiu tão vigorosamente,
uma total mudança de mentalidade. O Novo Testamento vincula o
arrependimento com um estilo-de-vida transformado. Sentindo a hi­
pocrisia dos fariseus que vieram a ele procurando o batismo, João
Batista denunciou-os como sendo uma raça de víboras. "Produzi
frutos dignos de arrependimento", exigiu ele (Mateus 3.8). Paulo
disse ao rei Agripa que, em todo lugar que pregava, chamava as pes­
soas a que "se arrependessem e se convertessem a Deus, praticando
obras dignas de arrependimento" (Atos 26.20).
Zaqueu devia ser o nosso modelo. Como um ganancioso coletor
de impostos do Império Romano, Zaqueu estava emaranhado em es­
truturas econômicas pecaminosas. Mas sabia que não poderia vir a
Jesus e continuar usufruindo todos os benefícios econômicos dessa
injustiça sistêmica. V ir a Jesus significou, para ele, arrepender-se da
sua cumplicidade em injustiças sociais. Significou fazer devoluções
e indenizações, publicamente. E significou todo um novo estilo-de-
vida.
O que poderia significar hoje um arrependimento genuíno, bí­
blico, para cristãos afluentes, envolvidos nas estruturas pecamino­
sas da sua sociedade? Essa é a questão que queremos analisar na
terceira parte.

184
PARTE III

IMPLEMENTAÇÃO
Onde teríamos que mudar?
Um proeminente centro de estudos de Washington reuniu uma
vez um grande grupo representativo de líderes religiosos para discutir
os problemas da fome no mundo. Os participantes dessa conferência
expressaram uma profunda preocupação. Fizeram apelos no sentido
de que ocorressem transformações estruturais realmente significati­
vas. Mas todas aquelas palavras soaram no vazio. 0 lugar em que esta­
vam se reunindo era um centro de conferências muito caro e exclu­
sivo, em Colorado! Temos necessidade de estilos-de-vida pessoais
mais simples.
Mas as mudanças de caráter pessoal não são suficientes. Tenho
um amigo que trocou a cidade por uma comunidade rural. Ele mes­
mo planta quase tudo que come, e vive de modo muito simples; sem
dúvida, atrapalha muito pouco a vida dos pobres do mundo. Esse
meu amigo tem talento para falar e escrever, com o que poderia
promover transformações na igreja e na sociedade; mas infelizmen­
te não o está usando como poderia. ,
Precisamos hoje de mudanças em três níveis/Um estilo -d e -v id p
pessoal mais simples é_algo essencial para simbolizar, avalizar eJacili-
tar a nossa preocupação por aqueles que passam fome. A igreja, por
sua vez, também deve mudar, e de um modo tal que a' sua vida co­
mum possa servir como um novo modelo para um mundo dividido.
^Finalmente, as estruturas da sociedade secular, tanto nos países ri­
cos como nos pobres, carecem de uma revisão.

187
CAPITULO 7

CONTRI BUI ÇÃO P RO PO RC I O NA L


P RO G RE SS I VA
E P R O P O S T A S PAR A UM E S T I L O DE
VIDA MAI S S I M P L E S

Diante de Deus e de um bilhão de vizinhos famintos, temos que re­


pensar os critérios referentes ao nosso atual padrão de vida e promo­
ver uma forma mais justa de aquisição e distribuição dos recursos
mundiais. [Declaração de Chicago sobre a Preocupação Social Evan­
gélica (1073)1]
^ Nós, que vivemos em condições de abastança, aceitamos como
obrigação a observância de um viver simples, a fim de contribuir­
mos mais generosamente tanto para a assistência social como para
o evangelismo. [Pacto de Lausanne (1974)2]
Os ricos devem viver de modo mais simples para que os pobres
possam simplesmente viver. [ Dr. Charles Birch (1975)3]

1 R o na ld J . S id e r {e d .l. T h e Chicago O eclaration (C a ro l S tre a m : C re ation H o us e , 1 9 7 4 ),


P. 2 .

2Pacto de Lausanne, seção 9 . Este Pacto fo i fru to d o Congresso Inte rn a cion a l de E v a n -


gelizaçâo M u n d ia l, realizado em Lausanne, S u iç a , em 1 9 7 4 . O P a cto , bem c o m o algum as das
p rin cipa is palestras desse Congresso, fo ram pub licad o s p o r A B U / V is ã o M u n d ia l (1 9 8 2 ) c o ­
m o leitura p reparatória para o Congresso Brasileiro de Evangelização, realizado em B elo H o -
rio n te , de 3 1/10 a 5 / 1 1 de 19 83 , sob o t ít u lo A Missão d a Igreja no M u n d o de H o je . E n c o n ­
tra-se ta m b é m em fo lh e to separado, p ub licad o p o r encargo d o m esm o Congresso.

3 "C re a tio n , Te c h n o lo g y , and H u m a n S u r v iv a l" , mensagem d irigida ao ple n á rio na 5?


Assem bléia G eral d o C on selho M un d ia l de Igrejas, em d e ze m b ro de 1 9 75 . Tra ta -s e de um a
aplicação recente da a firm ação de Eliza b e th S e to n : ‘ 'V iv a de m o d o sim ples, para qu e o u -
tros sim plesm ente v iv a m ".

188
Ouvi uma vez um senador da Pensilvânia afirmando que o seu
eleitorado estava tão próximo da pobreza, que simplesmente não
agüentariam pagar sequer um centavo a mais de imposto. E fez uma
citação de uma carta de um eleitor irritado, para provar o que dizia.
Essa boa alma lhe havia escrito informando que sua família possivel­
mente não teria condições para pagar mais impostos do que já pagava.
Porque, dizia, já tinham que pagar o imposto de renda, os impostos
sobre mercadorias e além disso estavam ainda pagando os seus
dois carros, o seu "trailer", o seu "houseboat" (casa flutuante)
e o seu barco a motor!
Isso ilustra bem o problema que temos nós, cidadãos abastados
do Ocidente^Êstamos realmente convencidos de que mal e mal con­
seguimos viver com os vinte, vinte e cinco ou trinta mil dóalres que
ganhamos por ano. Estamos numa corrida de competição incrível.
Quando o nosso salário aumenta, nós nos convencemos a nós-mes:

velmetite. Aquele senador não estava brincando. Ele realmente con­


cordava com que mais impostos poderiam significar para o seu elei­
tor uma ameaça de pobreza e privação.
Como é que vamos conseguir escapar desse delírio? Como reagi­
remos diante da situação de desespero dos pobres do mundo? Qua­
renta mil crianças morreram ontem por causa de alimentação ina­
dequada. Um bilhão de pessoas vivem em situação de pobreza deses-
peradora. O problema, e sabemos disso, é aue os recursos mundiais
não estão sendo distribuídos de forma justa. Os mais ricos estão co-
mo que vivendo em uma ilha abastada no meio de um mar de po-
. breza.
Que faremos diante dessa gritante desigualdade? O ex-presidente
dos EUA, Richard Nixon, deu a seguinte resposta, em discurso profe-
rio à nação no dia 13 de junho de 1973: "Resolvi tomar uma decisão
básica: entre pôr a nossa produção agrícola nos nossos próprios mer­
cados ou nos externos, o consumidor americano deve ser colocado
em primeiro lugar"4 . Pode ser boa política, mas certamente não é
boa teologia.
Mas se devemos dar, então, quanto? Deveríamos nos congratular
com o milionário cristão que dá fielmente o dízimo?
John Wesley respondeu a tais perguntas de forma surpreendente.
Um dos seus sermões mais freqüentes se baseava em Mateus 6.19-23

4 N e w Y o r k T im es, 14 de J u n h o . 1 9 7 3 .

189
("Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra . . .")5 ■ Os
cristãos, segundo ele, deviam passar adiante tudo. exceto_Q-'-lnecfiS-
sárío para_____
a vida" —-isto_é. comida sir saudável, roupas assea-
'Üãs~e o suficiente para o seu trabalho. A Pessoa pode e deveria se es-
|fR5rçãr por ganhar bem, de forma iusta e honesta. 0 capital não pre-
ri<á <»r Harin adiante. Porém. Weslev achava que toda a renda deve-
~ j’iã~g§r3ãda aos polãrêl, depois que as necessidades básicas estivessem
"satisfeitas. Infelizmente ele descobriu que não se encontra um entre
'"quinhentos em qualquer "cidade cristã" que obedece ao mandamen­
to de Jesus. Isso simplesmente demonstra que a maiod^ dos cristãflS
professos são "homens vivos, mas cristãos mortos" ./Todo "cristão"
foue retém para si alão mais do auq n "ppr.eSãrín para a vjtfc", jnsjs- I
ytia Weslev. "vive em negação o rnpctantp para com o Senhor", j
| Essa pessoa "alcançou riquezas e o f oao do-inferno! ,,6i
Wesley vivia de acordo com o que proclamava. As vendas dos
seus livros lhe proporcionavam muitas vezes uma renda de 1400 li­
bras por ano, mas dessa quantia ele gastava só trinta libras para si
mesmo. O resto era passado adiante. As roupas que usava eram sem­
pre modestas, e a sua comida era simples. "Se eu deixar paraJxás
uma herança de 10 lihras". escreveu ele certa vez, 'lM-0.cê__e_10.da- 3
humanidade são testemunhas de que vivi e morri como um gatuno,
^ürn.iadrão^
Não precisamos necessariamente concordar com cada palavra
de Wesley, mas fica claro que ele estava lutando para seguir o chama­
do bíblico para compartilhar com os necessitados. Quanto devemos
dar? No capítulo 4 discutimos o mandamento bíblico referente ao
Jubileu e a coleta de Paulo em favor da igreja empobrecida de Jeru­
salém. Vimos que Deus desaprovava grandes extremos de riqueza e
de pobreza. Devemos dar até que as nossas vidas reflitam verdadei­
ramente os princípios de Levítico 25 e 2 Coríntios 8. Certamente a
exortação de Paulo aos coríntios se aplica muito bem aos cristãos
abastados de hoje: "Porque não é para que os outros tenham alí­
vio, e vós sobrecarga; mas para que haja igualdade, suprindo a vos­
sa abundância no presente a falta daqueles . . . e assim haja igual­

5 Este fo i u m da série de sermCes que co nstitu iram as dou trina s-pa d rõ e s dos p rim eiros
m etodistas. V e r T h e W o rk s o f J o h n W esley (L o n d re s : W esleyan C on fe re n ce O ffic e , 1 8 7 2 ),
V , 361 ss.

6 Ib id ., p p . 3 6 5 -6 8 . H á u m a edição dos sermões de W esley em portu gu ês. Serm ões de


W esley, 2 vols. (São P aulo: Im prensa M etod ista , 1 9 5 3 ).

7J . Wesley B re a d y, En g la n d : B e fore and A f te r Wesley (L o n d re s :H o d d e r and S to u g h to n ,


n .d .), p . 2 3 8 .

190
dade" (2 Coríntios 8.13-14, grifos meus).

O DEUS DO MUNDO AFLUENTE E O SEU PROFETA

Por que razão somos tão indiferentes, tão demorados em nos


conscientizar de que devemos fazer alguma coisa? Pelo menos uma
razão aparece na história bíblica do jovem rico. Quando este pergun­
tou a Jesus sobre como obter a vida eterna, Jesus lhe recomendou
que vendesse todos os seus bens e desse aos pobres. Mas, ouvindo
isso, o jovem foi embora, chateado, pois tinha muitas posses. Como
sempre nos ensinam, o ponto central dessa história sem dúvida é
que, se queremos seguir a Jesus, somente ele deve ser o centro das
nossas afeições e nossos planos. Seja o que fo r que representem para
nós um ídolo, riquezas, fama, status, distinção acadêmica ou a par­
ticipação em qualquer grupo, temos que estar dispostos a abandoná-
lo por amor a Cristo. No caso daquele jovem, o seu ídolo eram as ri­
quezas. Jesus não nos está ordenando que vendamos tudo que pos­
suímos. Só está exigindo submissão total a si mesmo.
Essa interpretação é, por um lado, inquestionavelmente verda­
deira, e, por outro, inquestionavelmente inadequada. Não dizer
nada mais do que já foi dito acima é perder de vista o fato de que
riquezas e bens materiais são os ídolos mais comuns entre nós hoje,
ao menos entre os abastados. Suspeito de que foi isso que Jesus
quis dizer, quando acrescentou: "Em verdade vos digo que um ri-
co(!) dificilmente entrará no reino dos céus. E ainda vos digo que é
mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que
entrar um rico no reino de Deus" (Mateus 19.23-24).
Hoje estamos enredados num luxo material sem precedentes. A
propaganda constantemente nos insinua de que realmente precisa­
mos de uma coisa supérflua após outra. 0 padrão de vida é o deus
do Ocidente afluente de hoje, e os publicitários são os seus profetas.
Todos sabemos quão sutis são as tentações materialistas e quão
convincentes as nossas racionalizações. Só mesmo pela graça de Deus,
e com grande esforço, podemos escapar desse acúmulo de luxos que
tem quase que sufocado a nossa compaixão cristã. Todos nos defron­
tamos com esse problema. Há alguns anos gastei mais ou menos 50
dólares comprando um terno extra. Sem dúvida isso não é muito.
Além disso me convenci de que havia sido bom investimento (afinal,
tinha 75% de desconto). Esse dinheiro, porém, teria dado para ali­
mentar uma criança faminta na India por quase um ano. Com toda

191
a honestidade temos que perguntar-nos: Podemos ficar olhando a
moda, quando isso significa uma redução da nossa capacidade de aju­
dar os nossos vizinhos famintos? É lícito que nos preocupemos mais
em obter segurança econômica para a nossa família do que com um
estilo-de-vida efetivamente cristão?
Não acho que dar respostas honestas a tais perguntas seja coisa
fácil. Nem sempre fica claro qual seja a nossa responsabilidade. Uma
vez, num sábado de manhã, quando eu estava começando a preparar
uma palestra (sobre pobreza!), um homem pobre entrou no meu
escritório e me pediu cinco dólares. Ele estava bêbado. Não tinha co­
mida, nem emprego, nem lar. O Cristo dos pobres se confrontou co­
migo naquele homem. Mas eu lhe disse que eu não tinha tempo. T i­
nha que preparar uma palestra sobre a visão da pobreza. Para ser
mais preciso, dei-lhe alguns dólares; mas não era disso que ele pre­
cisava. Ele precisava de alguérçn com quem conversar, alguém que o
amasse. Precisava do meu tempo. Precisava de mim. Mas eu estava
ocupado demais. "Sempre que o deixastes de fazer a um destes mais
pequeninos, a mim o deixastes de fazer".
Nós, cristãos, temos que tomar atitudes concretas e resolutas
para escapar do materialismo que se infiltra na nossa cabeça através
dos constantes e diabolicamente bem feitos comerciais de rádio e
TV. Temos passado por lavagens cerebrais para acreditar que casas
maiores, negócios mais prósperos e mais coisas de luxo são objetivos
pelos quais vale a pena viver. Por conseguinte ficamos presos em uma
espiral absurda, materialista. Quanto mais ganhamos, mais achamos
que precisamos para poder viver de forma decente e respeitável. Te­
mos que descobrir uma maneira de romper com esse círculo vicio­
so, porque ele faz com que pequemos contra os nossos irmãos e ir­
mãs necessitados e, assim, contra Deus.

O DÍZIMO ESCALONADO8

O dízimo escalonado é um entre vários modelos de contribuição


proporcional que poderiam ajudar a quebrar esse círculo vicioso em
que todos, de uma forma ou outra, nos encontramos. Ele é compar­
tilhado aqui a partir de experiências concretas. Obviamente não é o
único modelo que nos pode auxiliar. E certamente também não é
uma norma bíblica a ser prescrita de forma legalista para outros.

8 T o d o este c a p ítu lo fo i substancialm ente reescrito te n d o em vista a realidade brasilei-


ra. (N . d o T r a d u t o r ).

192
Temos consciência de se tratar apenas de um modesto começo na
busca por maior coerência com os princípios bíblicos de justiça.
Nos Estados Unidos existe o chamado "lim ite de pobreza", a
partir do qual a pessoa pode ser considerada "pobre". Para o ano
de 1982, calculado em termos de família média de quatro pessoas,
o limite ficou em 9.862 dólares/ano. No Brasil é difícil fazer-se uma
estimativa que seja correta, levando em conta vários fatores. Se fôs­
semos considerar o salário mínimo como limite de pobreza, certa­
mente esse não seria um bom cálculo, por se saber que o salário m í­
nimo brasileiro ficou muito defasado. Julgando-se a partir de análi­
ses feitas por diversas entidades, e considerando-se os últimos decre-
tos-leis sobre a questão salarial, poderíamos tomar como base o valor
de três salários mínimos. Abaixo disso, considerando-se a renda lí­
quida de uma família média de quatro pessoas, teríamos a classifica--
ção de "pobreza".
Partindo desse valor (três salários-mínimos), poderia-se fazer uma
escala gradual de aumento de contribuição proporcional ao aumento
da renda. A Tabela 14 nos mostra como ficaria o quadro dando-se o
dízimo de três salários e aplicando um aumento de 5% para cada salá­
rio adicional. Essa escala permite uma diferenciação na renda, não
equalizando-a (numa proporção que ficaria em mais ou menos 1:4),
ficando o limite máximo de renda familiar no limite de 10,35 salá­
rios mínimos, para um salário real de 20 salários. Acima disso, a con­
tribuição passaria a ser integral.

Veja Tabela 14 na página 194.

Logo surge uma série de perguntas: A renda considerada é a bruta


ou a líquida? Como já foi dito, consideramos aqui o rendimento lí­
quido, isto é, descontados o imposto de renda, contribuição para o
INPS e demais descontos em folha. Para lavoureiros ou empresários
autônomos, que não tenham salário fixo, o critério poderia ser a
quantia que fica para aplicação em benefício da família. Natural­
mente muitas perguntas ficarão ainda sem resposta, e nem é o propó­
sito estabelecer aqui parâmetros de uma ética casuística. Longe dis­
so. Cada pessoa ou grupo familiar tem responsabilidade e liberdade
no uso da sua renda. A tabela aqui apresentada é tão somente com­
partilhada como fruto de experiências e como tentativa de mostrar
algo concreto em vez de só ficar falando em termos gerais e distan­
tes. Talvez ela possa ajudar a alguns, que sentem que já é hora de co­
meçar a buscar modelos efetivos da justiça que pregamos e que sen­
tem igualmente que o novo mundo de justiça deve começar em nós
193
Tabela 14

T o t a l da % de d íz im o Q u a n tia dada % to ta l (a p ro x .) Q u a n tia que


renda (em (a p a rtir d o (e m sal. m in .) da renda q u e sobra (em
sal. m ín .) 39 sal.) é dada sal. m in .)

3 10% 0,3 10% 2.7


4 15% 0,45 11,2% 3,55
5 20% 0,65 13% 4,35
6 25% 0,9 15% 5,1
7 30% 1,2 17,1% 5,8
8 35% 1,55 19,3% 6,45
9 40% 1,95 21,6% 7,05
10 45% 2,4 24% 7,6
11 50% 2,9 26,3% 8.1
12 55% 3,45 28,7% 8,55
13 60% 4,05 31,1% 8,95
14 65% 4,7 33,5% 9.3
15 70% 5.4 36% 9,6
16 75% 6,15 38,4% 9,85
17 80% 6,95 40,8% 10,05
18 85% 7,8 43,3% 10,3
20 90% 9,65 48,2% 10,35
21 100% 10,65 50,7% 10,35

próprios, para que a nossa mensagem ganhe respaldo e coerência.


Poderíamos considerar alguns exemplos para mostrar como a
tabela funciona na prática. Um trabalhador que ganhe quatro salá-
rios-mínimos (renda bruta) ficará com pouco mais de 31/: salários
de renda líquida (tomando como base uma família de quatro). A sua
opção, então, poderia ser entre adotar d valor de quatro ou o de três
salários. Se optar pelo de três, ele daria 10% da sua renda, ficando
em 90%. Já alguém que ganha oito salários ficaria com um líquido
em torno de sete. Nesse caso a sua contribuição seria a seguinte:
10% sobre os primeiros três salários, 15% sobre o quarto, 20%
sobre o quinto, 25% sobre o sexto e 30% sobre o sétimo, chegando
a uma contribuição total de 1,2 salários-mínimos, ou seja 17,1%
da sua renda líquida total.
Quando a família for maior ou menor do que quatro pessoas, a
questão fica (como tudo, aliás) a critério de cada um. Uma avaliação

194
sincera, contudo, deve levar em conta que ha' despesas numa casa
que não dependem do número de filhos, por exemplo. Essas pode­
riam ser abstraídas no caso de uma família com mais de dois filhos,
e levadas em conta no caso de menos de dois. Na verdade o melhor
seria que cada família desenvolvesse o seu próprio sistema de contro­
le de finanças. Só não podemos mais continuar contemporizando,
mas urge partir para modelos concretos e que espelhem o nosso anún­
cio e a nossa denúncia diante dos nossos semelhantes.
As seguintes sugestões podem ser úteis para aqueles que deseja­
rem desenvolver a sua própria versão de contribuição proporcional.
Primeiro, discuta a idéia com toda a família. Todos devem compre­
ender as razões que o levam a isso, chegando-se assim a uma decisão
familiar. Segundo, ponha no papel o seu plano, no princípio de ca­
da ano. é relativamente fácil, excitante inclusive, desenvolver o pla­
no teoricamente. Uma vez que houver comprometimento com os
números colocados no papel, vai doer menos separar a quantia cor­
respondente a cada mês! Terceiro, discuta a sua proposta com um
amigo ou casal de amigos cristãos que compratilham da sua preocu­
pação pela justiça. Quarto, discuta despesas maiores com estas pes­
soas. £ mais fácil para um observador um pouco mais distanciado
perceber evasivas. (E eles também podem ter sugestões interessantes
sobre como viver de modo mais simples.) Quinto, tente reduzir a ca­
da ano a quantia da renda que fica com você bem como as despesas
totais. Isso não significa que não haja compreensão para a necessida­
de de investimentos de capital para aumentar a produtividade. Sig­
nifica simplesmente que você pode dar mais, através de organizações
cristãs, para investimento de capital entre os pobres.
Como o leitor compreensivo deve ter notado, esta proposta de
contribuição proporcional é, na realidade, extremamente modesta.
De fato, tão modesta que poderia chegar a ser vista como infideli­
dade ao ensino de Paulo. Mas é também suficientemente radical
de modo que a sua implementação poderia significar uma revolu­
ção no ministério e na vida da igreja! .
Muitos cristãos estão ensaiando modelos bem mais radicais no
propósito de vencer o apelo de um mundo materialista e de ser um
pouco mais coerentes com a posição bíblica em relação aos pobres
e necessitados.

VIDA COMUNAL

O modelo que permite o padrão de vida mais simples é, prova-


195
velmente, a comuna. Moradias, móveis, utensílios, ferramentas e car­
ros, que normalmente serviriam a uma família pequena, podem ser­
vir a dez ou vinte pessoas. A vida comunal libera grandes recursos
em dinheiro e tempo para serem investidos em atividades alternativas.
Diversas comunas cristãs tiveram o seu início como tentativas
conscientes de desenvolver um padrão de vida menos injusto e eco­
logicamente mais responsável. Nem todas, porém, são tão especí­
ficas nos seus propósitos. O exemplo da Igreja do Redentor, em
Houston, Texas, é interessante porque o seu estilo-de-vida comu­
nal, simples, “ simplesmente aconteceu". Esta igreja, de denomina­
ção episcopal, estava virtualmente morta há pouco mais de vinte
anos atrás. Então ocorreu um reavivamento carismático. Uma mul­
tidão de pessoas que precisavam de um amor e um cuidado todo es­
pecial acorreram a esta igreja. O modelo de vida comunal parecia
ser a única saída.
Por volta de 1976, mais ou menos 350 pessoas viviam comunal­
mente, em umas 35 casas. Cada casa tinha de oito a quinze membros.
Numa casa típica de onze pessoas, duas trabalhavam em empregos
fixos, sendo que os seus rendimentos sustentavam a casa. Os outros
ficavam à disposição para assumir os numerosos programas da igreja.
Da renda percebida por cada casa, 20% ia para a igreja. O restan­
te permitia aos membros um padrão modesto de vida. Jerry Barker
explica como chegaram a isso:

Logo tornou-se evidente que as necessidades com as quais nos de­


frontávamos exigiriam grandes recursos; começamos, então, a cor­
tar despesas com coisas às quais estávamos acostumados. Paramos
de comprar carros novos, televisores novos e coisas desse tipo. Pa­
ramos mesmo de pensar nisso. Começamos a usar nossos carros até
que literalmente se partiam ao meio, e então comprávamos um car­
ro usado ou alguma coisa que substituía o carro antigo. Começamos
a pensar de modo diferente sobre seguros de vida e outras coisas do
gênero, amenizando assim a drenagem de recursos financeiros. En­
contramos tanta segurança em nosso relacionamento com o Senhor,
que já não era mais importante esse tipo de seguro para o futuro . ..
Nunca tivemos regra alguma com relação a isso, nem pensamos que
uma atitude dessas era necessariamente parte da vida cristã. Tratava-
se simplesmente de usar o dinheiro que tínhamos à disposição de
um modo mais eficiente, particularmente no sustento de tantas pes­
soas a mais. Aprendemos a viver de uma forma muito econômica.
Paramos de comer filés ou assados dispendiosos e coisas desse tipo,
adotando uma alimentação mais simples . . . muitas vezes comíamos
196
o que pessoas nos traziam — um pacote contendo secos e molhados
ou um saco de arroz . . ,9 .

As comunas cristãs têm hoje uma importância simbólica que


vai muito além do número dos seus membros. Quietamente, elas
questionam a afluência de largos segmentos das nossas socieda­
des e oferecem uma alternativa viável.
É óbvio que tal modelo não serve para todos, e diríamos até
que para uma boa maioria. Temos necessidade de modelos mais di­
versificados.
Em seu aprazível livro intitulado Living More With Less ("V i­
vendo Mais Com Menos"), Doris Longacre apresenta rápidos "fla ­
shes" da vida de centenas de pessoas que estão aprendendo a expe­
rimentar a alegria de poder partilhar mais daquilo que possuem10.
Algumas ainda vivem no que poderíamos considerar como afluên­
cia substancial. Outras já vivem de modo muito simples. Todas, po­
rém, estão tentando gastar menos consigo mesmos para poder dar
mais.
Foi isso que fez Robert Bainum. Bainum era um homem de ne­
gócios cristão de muito sucesso — na verdade, um milionário. Em
conversa pessoal, recentemente, ele me contou que, enquanto esta­
va lendo a primeira edição deste livro (Rich Christians in an Age of
Hunger), Deus o chamou a partilhar mais com os pobres da terra.
Doou a metade da sua fortuna e passou a dedicar a sua criatividade
e o seu talento de organização a programas de assistência e desenvol­
vimento entre os pobres, tanto nos EUA como em outros países11.
Nos meados dos anos 70, Graham Kerr era um conhecido apre­
sentador de programas culinários na televisão, assistido cada semana
por mais de 200 milhões de telespectadores. Era muito rico e tinha
grande sucesso, mas a sua vida pessoal estava se desintegrando. Des­
de seu encontro com Cristo, em 1975, a sua vida familiar tem sido
restaurada de forma maravilhosa. Ele abandonou o seu programa
de televisão, doando a maior parte dos seus bens. Hoje a sua vida
está centrada no uso dos seus conhecimentos de nutrição para de­

M ichael H a rp e r, A N ow W a y o f L iv in g (P la in fie ld, N J . : Logos In te rn a tio n a l, 1 9 7 3 },


p. 9 3 . O a n tigo líd e r da igreja, W . G ra h a m P u lk in g h a m , escreveu dois livros sobre a Igreja
d o R e d e n to r: G athe re d fo r P o w e r (N o va Io rq u e : M ore h o u se -B a rlo w , 1 9 7 2 ) e T h e y Le ft
T h e ir N ets (N o v a Io rq u e : M o re h o u se -B a rlo w , 1 9 7 3 ).

10S c o ttd a le , Pa: He ra ld Press, 19 80 . V e r ta m b é m os testem unhos pessoais em R o na ld


J . S id e r (e d .), L iv in g M o re S im p ly : B iblica l Principles a nd Practical M od e ls (D o w n e rs G ro v e :
In te rV a rs ity Press, 1 9 8 0 ), p p . 5 9 -1 5 9 .

1 * V e r G en e M . D a ffe rn, " O n e M an C a n M ake a D iffe re n ce ", The se T im e s (S e te m b ro ,


1 9 8 2 ), p p . 6 -1 1 .

197
senvolver um novo tipo de missionário-agricultor, que visa tanto
compartilhar o evangelho como ajudar a população pobre do Tercei­
ro Mundo a desenvolver uma dieta alimentar mais rica a partir de
produtos da própria terra. Graham e sua esposa, Treena, vivem uma
vida muito simples —mas não por serem ascetas. Vivem de forma sim­
ples porque querem contribuir com o máximo possível para a evan­
gelização e para a redução da pobreza12.
Cristãos bíblicos estão fazendo experiências com uma variedade
de estilos-de-vida simples. Tempos de fome demandam mudanças
drásticas. Mas temos que ser extremamente cuidadosos para evitar o
legalismo e o orgulho da justiça própria. "Temos que cuidar para não
cair no extremo oposto, numa esnobação de desprendimento espi­
ritu a l''13.
Nenhum modelo representa a vontade de Deus para todos. O
nosso Deus aprecia a variedade e a diversidade. Mas significaria isso
que deveríamos voltar a cair no típico individualismo ocidental, on­
de cada pessoa ou família faz aquilo que parece bom aos seus pró­
prios olhos?
De jeito nenhum. Aqui duas coisas podem ajudar. Temos neces­
sidade da ajuda de outros irmãos e irmãs — em nossa congregação
local, cm nossa cidade e ao redor do mundo. Precisamos desenvolver
um processo de discussão do nosso estilo-de-vida econômico com
amigos cristãos achegados. Precisamos também de novas maneiras
de dialogar com cristãos pobres sobre como seria um estilo-de-vida
coerente14.
Em segundo lugar penso haver alguns critérios que podem servir
de auxílio. Oferecemos aqui seis deles, como sugestões, não como
normas ou leis1’ .

V e r o seu co m o ven te te s te m u n h o , " F r o m G a llo p in g G o u rm e t to S ervin g the P o o r” ,


em R o n a ld J . S id e r (e d .). Lifes tyle in the Eigh ties: A n Evangelical C o m m itm e n t to S im p le
Lifes tyle (F ila d é lfia : W e stm inster, 1 9 8 2 ), p p . 1 7 4 -1 8 2 . Para saber m ais sobre as suas novas
a tividades, pode-se escrever para: In te rn a tio n a l Q u a lity o f L ife C e n te r, 5 0 5 B ro a d w a y, T a c o ­
m a, W a sh in gton , 9 8 4 0 2 , E U A .

13W a lter e G in n y H e a rn , ' T h e Price is R ig h t",- R ig h t O n , M a io , 1 9 7 3 , p p . 1 ,1 1 .

1 4V e r as m inhas sugestões sobre isso em " L iv in g M o re S im p ly F o r Evangelism and


Ju s tic e ", S id e r (e d .), Lifes tyle in th e Eigh ties, p p . 3 2 -3 5 . Este liv ro resulto u da C onsulta
In ternacional sobre E s tilo de V id a S im p les , realizada em H o d d e s d o n , Inglaterra, em m a r­
ço de 1 9 80 . Desse e n co n tro surgiu u m "C o m p ro m is s o Eva n gé lico co m u m E s tilo de V id a
S im p le s ", p ub lic ad o em livro e c o m e n ta d o p o r A la n N ic h o ls , em p ortuguês, na Série
Lausanne, A B U / V is ã o M un d ia l (1 9 8 3 ), c o m o t ít u lo de V iv a a S im p lic id a d e !

15E x t ra íd o de Ib id ., p p . 3 5 -6 .

198
CRITÉRIOS GERAIS

1. Deveríamos buscar um estilo-de-vida pessoal que pudesse ser


sustentado por longo tempo se fosse compartilhado por toda a popu­
lação mundial.
2. Temos que aprender a distinguir entre necessidades e luxos, e
normalmente rejeitar tanto o nosso desejo por esses últimos como
a nossa inclinação no sentido de camuflar a distinção entre os dois.
3. Despesas com o propósito de obter status, alimentar a vaidade,
ficar na moda ou manter o padrão de vida dos vizinhos são condená­
veis.
4. Precisamos distinguir entre despesas com o desenvolvimento
dos nossos dons criativos particulares e hobbies legítimos, e uma de­
manda geral por todo tipo de itens culturais, equipamentos de lazer
e hobbies de moda que as "pessoas de sucesso" da nossa classe ou
nação praticam. Cada pessoa tem interesses e dons singulares. Den­
tro dos limites, deveríamos poder expressar a nossa criatividade nes­
sas áreas. Se, contudo, descobrirmos que estamos a justificar um
monte de coisas em várias áreas diferentes, deveríamos ficar caute­
losos.
5. Temos que aprender a fazer distinção entre festas ocasionais
e rotinas festivas diárias. Um peru com todo o acompanhamento no
Dia de Ação de Graças, para celebrar a boa dádiva da criação, é bí­
blico (Deuteronômio 14.22-27). Infelizmente muitos de nós come­
mos demais todos os dias, e isso é pecado.
6. Não há necessariamente conexão entre quanto ganhamos e
quanto gastamos com nós mesmos. Não deveríamos comprar coisas
simplesmente porque temos condições de comprá-las.

SUGESTÕES PRATICAS

Apresentamos a seguir algumas sugestões concretas (sugestões,


não regras! Liberdade, alegria e descontração são elementos essen­
ciais de uma vida simples.)
1. Reduza o seu orçamento alimentar:
■ fazendo uma horta (em vez de, p.ex., plantar grama);
■ substituindo proteína animal por proteína vegetal;
■ organizando cooperativas de alimentos;
■ jejuando regularmente;
■ opondo-se (em palavras e dando o exemplo!) ao flagrante
mau uso de cereais para a fabricação de cerveja e outras

199
bebidas alcoólicas (os EUA utilizam anualmente, na produ­
ção de bebidas alcoólicas, uma quantidade de cereal — 5,2
milhões de toneladas — suficiente para alimentar 26 mi­
lhões de pessoas num país como a 1’ndia);16
■ éstabelecendo um orçamento mensal, e se atendo a ele.
2. Questione o seu próprio estilo-de-vida, não o do vizinho.
3. Reduza o consumo de energia:
■ dando apoio aos transportes públicos, com os seus pés e seu
voto;
■ utilizando-se de bicicleta e, para distâncias menores, cami­
nhando;
■ fazendo da hora de lavar a louça um tempo em família, em
vez de comprar uma máquina de lavar;
■ comprando um ventilador em vez de um condicionador de
ar.
4. Resista ao consumismo:
■ rindo na hora dos comerciais de TV; talvez desenvolvendo
slogans familiares, como "acha que tá conseguindo me ta­
pear?" ou "pode ficar você mesmo com isso!";
■ fazendo uma lista de propagandas desonestas, e boicotan­
do aqueles produtos;
■ usando os envelopes dos cartões de resposta comercial, com
selo pago, para escrever protestando contra a propaganda
inescrupulosa.
5. Reduza o seu consumo de recursos naturais não-renováveis:
■ resistindo ao supérfluo;
■ compartilhando aparelhos, ferramentas, equipamentos es­
portivos, livros e mesmo carros;
■ organizando em sua igreja uma espécie de depósito com coi­
sas usadas só ocasionalmente — afiadores, cortadores de gra­
ma, camas de campanha para hóspedes inesperados, equipa­
mento de camping, escada.
6. Tenha um ou dois filhos próprios, e depois adote;
7. Veja quanto do que você gasta é para manter o status, e então
elimine tais despesas.
8. Recuse-se a acompanhar a moda. ( ê bem provável que poucos
leitores deste livro tenham necessidade de comprar qualquer
peça de roupa — exceto, talvez, sapatos — por um espaço de

As cifras sobre cereal usado na p ro d u ç ã o de bebidas alcoólicas sã o d o D e p arta m e n -


to de A g ric u ltu ra dos E U A . U m a tonelada de cereal alim entaria cin co pessoas na In d ia p o r
u m a no in te iro.

200
dois ou três anos.)
9. Aproveite o que é de graça.
10. Dê a seus filhos mais amor e dedicação em vez de mais coisas.

CRITÉRIOS PARA A CONTRIBUIÇÃO

Se dez por cento de todos os cristãos adotassem o dízimo escalo­


nado, vultosas somas em dinheiro seriam colocadas à disposição para
o trabalho do Reino. Onde este dinheiro traria os maiores benefícios?
Obviamente os cristãos não deveriam destinar todo o seu dinheiro
para o alívio da fome no mundo. A evangelização e a educação cris­
tã são extremamente importantes e necessitam de contínuo sustento.
Muitas pessoas têm procurado repartir mais ou menos equitativamen­
te as suas contribuições entre a evangelização e a promoção de justiça
social. Recursos também podem ser canalizados por meio de organi­
zações não-eclesiásticas ou seculares que visem à manutenção de pro­
gramas sociais, e também para campanhas políticas devotadas à justi­
ça social.
No livro Christian Responsability in a Hungry World são feitas as
seguintes sugestões de alocação da parcela de contribuição destinada
aos programas sociais:
■ 20% para auxílios de emergência;
■ 40% para programas de desenvolvimento no setor agrícola e
de comunidades rurais;
■ 20% para o aumento da conscientização da necessidade de esti-
los-de-vida mais simples entre a população afluente;
■ 20% para o testemunho cristão na área da política pública e
de mudanças estruturais17.
No Brasil temos diversas agências que trabalham num ou noutro
destes setores. Especialmente dignas de recomendação são as organi­
zações com programas holísticos, procurando alcançar o homem in­
tegral em suas necessidades, tanto a nível espiritual como social. (Ve­
ja o apêndice no final deste livro.)
Temos focalizado principalmente a contribuição financeira nes­
te capítulo. Mas essa não é a única forma com que podemos colabo­
rar. Dar-se a si mesmo é igualmente importante. Ha' cristãos que op­
tam por empregos com menor remuneração, por serem maiores as
oportunidades de servir. Outros abdicam de horas extras ou de um

l 7 C . Dean Freud e n be rg e r e Paul M . M in u s , J r ., Christian Respon sab ility in a H u ngry


W orld (N a shville : A b in g d o n , 1 9 7 6 ), p p . 8 6 -8 7 .

201/ ' "


trabalho de expediente completo para poderem se dedicar mais a ati­
vidades voluntárias. Milhares de cristãos têm dado dois ou mais anos
de sua vida para servirem em regiões mais carentes.
Há uma grande necessidade de pessoas sensíveis que se dediquem
a vivèr ao lado do povo em comunidades rurais, mostrando aos po­
bres que Deus quer que eles mesmos ajudem a mudar as estruturas
injustas que os oprimem. Trabalhadores no setor agrícola que podem
ensinar a trabalhar com tecnologia intermediária também são uma
grande necessidade. "Uma pessoa com habilidades práticas e que es­
teja preparada para trabalhar e viver em algum vilarejo remoto é, em
termos gerais, mais útil que uma dúzia de professores universitários
visitantes ou magnatas do mundo dos negócios"17. Tempo é dinhei­
ro. Compartilhar do tempo é tão importante como compartilhar
recursos financeiros.
Estamos convencidos de que uma vida mais simples é um impera­
tivo bíblico para os cristãos contemporâneos, em especial nas clas­
ses mais afluentes. Todavia, precisamos ter clareza quanto às nossas
razões e motivações. O nosso compromisso não é com uma vida sim­
ples. O nosso único compromisso, a nossa absoluta lealdade é para
com Jesus Cristo e o seu reino. Mas o cabeça desse reino é o Deus dos
pobres! E centenas de milhares dos seus pobres estão passando fome.
Tempos de fome conclamam as pessoas afluentes para adotarem
um padrão de vida mais modesto. Uma concordância geral diante dis­
so, porém, não é suficiente. Todos nós temos necessidade de planos
específicos e concretos. Evite, por todos os meios, cair no legalismo
e na justificação própria. Mas tenha a coragem de se comprometer
com algum método específico de caminhar em direção a um estilo-
de-vida pessoal mais justo.
Estamos nós dispostos a medir os nossos padrões de vida pelas
necessidades dos pobres, e não pelo padrão de vida dos nossos vizi­
nhos?

18 Paul M inear, N e w H o p e fo r th e H u n g ry , p . 79,

202
CAPITULO 8

Z E L A N D O UNS
P E L O S O UT RO S COM AMOR

Extra ecclesiam, nulla salus.


De algum modo, as pressões da sociedade moderna estavam tornan­
do cada vez mais difícil para nós uma vida a partir dos valores que
nos foram ensinados. Pensávamos que a nossa igreja deveria se cons­
titu ir numa comunidade de crentes capaz de resistir a essas pressões;
parecia, no entanto, se conformar com que as coisas continuassem
como estavam, ao invés de encorajar o desenvolvimento de uma es­
pécie de sociedade alternativa. Os 'colunas' da igreja pareceriam tão
envolvidos com preocupações de ordem material como a maioria
dos não-cristãos que conhecíamos. [Dave e Neta Jackson1]

A igreja deveria consistir de comunidades onde as pessoas pudes­


sem desafiar-se mutuamente, com amor. Em vez disso consiste mui­
tas vezes tão somente de confortáveis clubes conformistas. Uma re­
forma ampla e abrangente da igreja torna-se um pré-requisito para
que ela possa chegar a se comprometer com a missão de Jesus, de li­
bertar os oprimidos.
Se a análise dos capítulos precedentes estiver correta, mesmo que
só aproximadamente, então é verdade que o Deus da Bíblia-está
chamando cristãos de hoje a viver uma vida de fundamental não-

’ Dave e N eta Ja ck son , L iv in g To g e th e r in a W o rld Fa llin g A p a rt (C a ro l S tre a m : C re a -


tio n House, 1 9 7 4 ), p . 15.

203
conformismo em relação à sociedade que os cerca, marcada que está
pela obsessão do materialismo, sexo, sucesso econômico e poderio
militar. Nela as coisas são mais importantes do que as pessoas.
Estabilidade no emprego e um salário o quanto mais alto possível
valem mais que crianças, a morrer de fome e trabalhadores oprim i­
dos. A advertência de Paulo aos romanos tem uma pertinência toda
especial para nós hoje: "Não vos conformeis com o presente século
(BJ: "com este m undo")" (Romanos 12.2). A revelação bíblica nos
convoca a desafiar muitos dos valores básicos de nossa sociedade ma­
terialista e adúltera.
Mas isso é impossível! Se pensarmos em termos de indivíduos,
sim. Dificilmente crentes isolados poderão oferecer resistência aos
valores anti-cristãos que jorram de nossos aparelhos de rádio, de TV,
dos cartazes de propaganda. Os valores da sociedade em que vive­
mos penetram lenta e sorrateiramente em nossos corações e men­
tes. A única maneira de desafiá-los é mergulhar a fundo numa vi­
vência de comunidade cristã, de tal modo que Deus possa remode­
lar os fundamentos de todo o nosso pensamento à medida em que
vamos encontrando a nossa identidade primária com outros irmãos
e irmãs também comprometidos incondicionalmente com os valores
bíblicos.
Que a obediência fiel só é possível dentro do contcxto de uma
profunda comunhão cristã não deveria ser motivo de surpresa para
nós. A igreja primitiva foi capaz de desafiar os decadentes valores
da civilização romana precisamente por ter experimentado de manei­
ra poderosa a realidade da comunhão cristã. Para os primeiros cris­
tãos koinonia não era a artificial e enfeitada "comunhão" de festi-
nhas entre os membros. Não era um chazinho com bolachas e con­
versa à toa no saguão de entrada, após o culto. Era um compartilhar,
sem reservas, de suas vidas, com os outros membros do corpo de
Cristo.
Comunhão cristã significava estar em disponibilidade incondicio­
nal para os outros irmãos e irmãs, ser sensível às suas necessidades
— emocional, financeira e espiritualmente. Quando um membro so­
fria, todos sofriam. Quando um estava alegre, todos se alegravam com
ele (1 Coríntios 12.26). Quando alguém ou alguma igreja passava por
dificuldades financeiras, os outros prontamente compartilhavam da­
quilo de que dispunham2. E quando um irmão ou irmã caía em pe­
cado, os outros ajudavam-no, com amor, a se levantar de novo (Ma­
teus 18.15-17; 1 Coríntios 5; 2 Coríntios 2.5-11; Gálatas 6.1-3).

2 V e r a c im a, c a p ftu lo 4 , p p . 91 ss.

204
Os irmãos estavam disponíveis uns para os outros; de fato, podia-se
contar com o outro para qualquer coisa3.
E claro que a igreja primitiva nem sempre correspondeu e viveu
plenamente conforme a visão do corpo de Cristo que encontramos no
Novo Testamento. Havia falhas até bastante grandes. Mas é certo
que aquela rede de pequenas igrejas domésticas espalhadas pelo Im­
pério Romano da época teve experiências tão vívidas do seu ser um
em Cristo que isso os tornou capazes de desafiar e, a seu tempo, con­
quistar uma poderosa civilização pagã.
Os primeiros grupos dos metodistas de John Wesley captaram e
experimentaram alguma coisa do espírito da igreja primitiva. Reu-
niam-se semalmente em casas, como gente "unida com o propósito
de orar juntos, receber uma palavra de exortação e exercer mútua
vigilância em amor, para poderem se ajudar uns aos outros a desen­
volver a sua salvação"4 . A grande maioria das igrejas de hoje, con­
tudo, não provêem este contexto em que irmãos e irmãs possam se
encorajar, admoestar e crescer mutuamente no discipulado. Temos
uma desesperadora necessidade de novas estruturas e de novos con­
textos que possibilitem sermos zelosos e nos preocuparmos uns pe­
los outros em amor.

UMA PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA

A sociologia do conhecimento sublinha a importância da comu­


nidade cristã para os não-conformistas bíblicos. Os sociólogos têm
estudado a relação que existe entre as idéias e as condições sociais
que surgem. Uma de suas descobertas é a de que a viabilidade das
idéias serem aceitas depende do apoio social que têm. "Nós conse­
guimos nossas noções sobre o mundo originalmente de outros se­
res humanos, e estas noções continuam nos sendo plausíveis, em
grandíssima parte, porque os outros continuam a afirmá-las"5. Um
jovem Amish6 que vai morar em Nova Iorque não demorará a come­
çar a questionar os seus antigos valores. A razão sociológica para es­

3V e r o m e u a rtigo "S p a re th e R o d a n d S p o il the C h u r c h " , E te rn ity , O u tu b ro , 1 9 7 6 .

4Do relato de J o h n W esley (1 7 4 3 ) sobre a origem das reuniSes de gru p o s. T h e W orks


o f Jo h n W esley (G ra n d R apids: Z o n d e rv a n , s .d .), V I I I , 2 6 9 .

s Peter Berger, U m R u m o r de A n jo s (P e tróp o lis: V o ze s, 1 9 6 9 , 1 9 7 3 ), p . 5 3 . A lé m de


toda a p rim e ira p arte desse liv ro , ver ainda Peter Berger e T h o m a s L u c k m a n n , A C o n stru ­
ção S ocial da Realidade (P e tróp o lis: V o ze s , 1 9 6 6 ,1 9 7 3 ).

6 A d e p to da linha mais conservadora e rígid a da co m un id a de dos M en o n ita s.

205
sa mudança é que os "outros significativos", que antes proviam um
suporte para as suas idéias e valores, já não se encontram mais ao
seu lado.
A complexa rede de interações sociais em que uma pessoa desen­
volve- e mantém a sua .visão da realidade é chamada de "estrutura
de plausibilidade". Esta consiste__de um diálogo_ continuo com
"outros significativos", bem como de costumes específicos, rituais e
meios de legitimação destinados a provéTsuporte para a validade de
certas idéias. Enquanto tais processos sociais.lêm continuidade, a
nossa tendência é a de aceitar as crencas correspondentes como
"verdadeiras ou plausíveis. Desaparecendo, porém, as estruturas de
apoio, começam a surgir as dúvidas e incertezas.
Daí a dificuldade que sempre enfrenta uma "minoria cognitiva".
"Minoria cognitiva" é um pequeno grupo de pessoas que sustenta
um conjunto de crenças que difere acentuadamente do da maioria
em seu meio social. Por estarem em constante contato com gente que
desafia as suas idéiasfundamentais, os membros de uma minoria cogni­
tiva sempre encontram grandes dificuldades para manter as suas cren­
ças distintivas. Conforme o conhecido sociólogo Peter Berger, ela só
vai conseguir manter em pé as suas idéias impopulares se contar com
uma estrutura comunitária sólida:
A não ser que nosso teólogo tenha a força interior de um santo
do deserto, ele só terá um remédio eficaz contra a ameaça de colapso
cognitivo diante destas pressões: juntar-se com colegas separatistas
que pensam como ele — e ficarem bem pertinhos um do outro. So­
mente numa contracomunidade de considerável força é que o sepa­
ratismo cognitivo tem chance de se manter. A contra-comunidade
fornece contínua terapia contra a dúvida subliminar de, no final de
contas, a gente talvez não ter razão, mas a maioria ter. Para poder
desempenhar sua função de dar apoio ao corpo divergente de "co­
nhecimento", a contracomunidade deve manter uma forte consciên­
cia de solidariedade entre seus membros7.

A análise de Berger é relevante para cristãos de hoje que estão


firmemente determinados a seguir o ensino bíblico sobre a pobreza
e as riquezas. Berger analisou o problema de cristãos ortodoxos que
se opõem às idéias "científicas" dominantes do secularismo contem­
porâneo, mantendo a crença bíblica no sobrenatural. Essa análise
7 Berger, U m R u m o r de A n jo s , p p . 3 3 -3 4 . V e r ainda as p p . 62ss, on d e Berger rejeita
a idéia m u ito c o m u m de que a sociologia d o co nh ecim e n to leva in exo ra ve lm en te a u m t o ­
tal relativism o.

206
é pertinente de uma forma clara também ao problema de como viver
a ética do reino de Jesus em meio a um mundo que segue padrões di­
ferentes. A maioria dos nossos contemporâneos —tanto dentro como
fora das igrejas — aceita os valores dominantes da nossa cultura mate-
rilista, orientada para o consumo. Os cristãos genuínos, por outro
lado, estão comprometidos com as normas reveladas nas Escrituras,
que são de natureza muito diferente. Não deveria ser motivo de sur­
presa para ninguém que só um remanescente fiel continua ainda se
apegando a esses valores. Mas o fato de que tais cristãos constituem
uma minoria cognitiva nos deve alertar para a necessidade de uma
sólida comunidade cristã.
Isso não significa que os cristãos devam imitar os Amish e se re­
tirar para a solidão de um isolamento rural. Temos que permanecer
no centro da sociedade contemporânea, para podermos desafíá-la,
testemunhar contra ela e, queira Deus, até mesmo transformá-la.
Mas é exatamente quando estamos no mundo, não sendo dele, que
a pressão para que troquemos os padrões bíblicos pelos valores con­
temporâneos se torna mais intensa. Daí a necessidade, hoje, de no­
vas formas de comunidade cristã.
A velha expressão católica, extra ecclesiam nulla salus ("fora
da igreja não há salvação") contém em si uma significante verdade
sociológica. Certamente não é impossível para cristãos, individual­
mente, manter as suas convicções mesmo quando uma maioria dis­
corda delas. Se a igreja, porém, deve consistir de comunidades de
amoroso desafio em meio a um mundo pecaminoso, então ela cer­
tamente deve prestar mais atenção à qualidade da sua comunhão.
Como poderiam ser os modelos promissores de comunidade
cristã para o nosso tempo?

NOVOS MODELOS DE COMUNHÃO CRISTÃ

Comunhão cristã não é a mesma coisa que "comuna" cristã.


Não se devem confundir as duas coisas. Comunas representam ape-
na uma entre muitas formas de discipulado genuíno em nossos
dias. Comunidades domésticas ou grupos de missão dentro de co­
munidades maiores, comunidades de vizinhança e comunidades
tradicionais muito pequenas — todas essas formas oferecem um
contexto excelente para vivenciar o conceito bíblico de igréja.
Entretanto, estou convencido de que a grande maioria das igre­
jas ocidentais não mais compreende ou experimenta a koinonia

207
bíblica de forma significativa. Como já foi mencionado, a essência
da comunidade cristã é uma responsabilidade ilimitada e um com­
promisso incondicional entre irmãos e irmãs dentro do corpo de
Cristo. Isso significa que o nosso tempo, o nosso dinheiro e todo
o nosso ser estão disponíveis para os irmãos.
Tal comunhão dificilmente ocorre em congregações maiores,
com cem ou mais membros. Ela requer pequenas comunidades
de crentes, como as igreja domésticas do cristianismo primitivo.
O movimento que conquistou o Império Romano consistiu de uma
extensa rede de pequenas igrejas, que se reuniam nas casas de algum
dos seus membros. Paulo fala com freqüência da "igreja que se reú­
ne em casa de . . (Romanos 16.5, 23;. 1 Coríntios 16.19; Colos-
senses 4.15; Filemom 2; ver também Atos 2.46, 2.12, 20.7-12). Foi
somente pelos fins do terceiro século que as igrejas começaram a cons­
truir templos. A estrutura da igreja primitiva promovia uma estrei­
ta interação e comunhão entre os seus membros8.
E o que acontece quando Deus concede o dom da genuína co­
munhão cristã? A típica conversa polida do domingo de manhã
começa a ser substituída por um compartilhar profundo e alegre.
Irmãos e irmãs começam a falar sobre aquilo que de fato é impor-
tate para eles. Compartilham os seus receios e temores mais íntimos,
as suas experiências nas áreas em que mais freqüentemente são tenta­
dos, as suas alegrias mais profundas. E começam a se desafiar mutua­
mente, ajudando uns aos outros a crescer no discipulado, conforme
Mateus 18.15-17 e Gálatas 6.1-3.
é num contexto desses — e talvez só ali — que a igreja de hoje
será capaz de forjar um estilo-de-vida fiel e coerente para os cristãos
nesses tempos de fome. Num ambiente como o das pequenas igre­
jas domésticas irmãos e irmãs podem desafiar-se no que toca, por
exemplo, ao estilo-de-vida opulento que vivem. Podem discutir a
situação financeira fartiiliar e avaliar reciprocamente os seus orça­
mentos. Despesas maiores (como casas, carros e longas tempora­
das de férias) podem ser sinceramente avaliadas, em termos da neces­
sidade tanto das pessoas envolvidas como dos pobres de Deus ao re­
dor do mundo. Sugestões quanto a uma vida mais simples podem ser
compartilhadas. A opção certa, pensando em termos de libertação
para os pobres, empregos ecologicamente coerentes, doações carido­
sas que promovam a auto-suficiência entre os oprimidos — estes e

^ V e r F lo y d F ils o n , " T h e S ig nificance o f th e E a r ly H o use C h u rc h e s ", Jo u rn a l o f B i­


blical Lite ra tu re , L V I I I (1 9 3 9 ), p p . 1 0 S -1 1 2 . V e r ta m b é m a breve visSo geral feita p o r
J o h n W . M ille r, "H o u s e C h u rc h H a n d b o o k ” (m im e o g ra fa d o ).

208
muitos outros assuntos podem ser discutidos aberta e honestamente
entre pessoas que se empenharam e se comprometeram mutua­
mente como irmãos e irmãs em Cristo.
Quais são os modelos de igreja que promovem esse tipo de co­
munhão cristã?

COMUNIDADES DOMÉSTICAS

Comunidades cristãs formadas por conjuntos de comunidades


domésticas são, na minha opinião, a alternativa mais excitante e
viável para uma forma tfpica de ser igreja hoje. A Comunidade Pa­
lavra Viva, em Filadélfia, e a Igreja do Salvador, em Washington,
D.C. representam duas variações desse modelo.
Quinze anos atrás, a Palavra Viva (então chamada de Templo
do Evangelho) era uma típica e bem-sucedida igreja pentecostal. A
comunidade, grande e sempre crescente, era de várias centenas de
pessoas, da área metropolitana. A igreja mantinha um pastor jovem
e dinâmico, uma programação muito intensa, todas as organizações
internas que normalmente existem numa igreja, mas segundo o pas­
tor: havia pouca comunhão cristã verdadeira.
Em 1970 foi tomada uma decisão no sentido de promover mu­
danças drásticas. A igreja suspendeu todas as suas atividades, exceto
o culto dominical. Todos os membros foram convidados a participar
de reuniões em casas, onde doze a vinte pessoas se reuniam durante
a semana para estudar, orar, adorar e se aconselharem mutuamente.
Por alguns anos eles várias vezes chegaram a ficar apreensivos, pensan­
do terem feito um grande erro. "Passar de um banco de igreja para
uma cadeira de sala-de-estar e encarar as pessoas face-a-face era uma
experiência aterradora"’ . Mas o gelo começou a quebrar quando os
coordenadores das reuniões se aperceberam de que a maioria do
pessoal simplesmente não sabia como ir de encontro, concretamente,
às necessidades dos outros. Os líderes, então, começaram a fazer su­
gestões: "Vocês duas poderiam ir para a casa de Jane Brown e cozi­
nhar para ela, ela está doente"; "vocês três, ajudem a pintar o apar­
tamento de Jerry sábado que vem."
Começou a se desenvolver um senso de unidade e um desejo de
servir. Aquelas reuniões semanais se tornaram o centro da atividade
espiritual da igreja. Aconselhamento, discipulado e mesmo evangelis-

9 C onversa pessoal c o m J o h n P oo le , pastor da co m un id a de Palavra V iv a .

209
mo passaram a acontecer primariamente nas casas. Um dos resulta­
dos foi que a congregação começou a crescer com rapidez. Quando
passava de 25 o número de pessoas que se reunia numa casa, o grupo
era dividido em dois.
Em 1974 o crescimento já havia forçado a realização de dois cul­
tos dominicais. Em 1976 entre 1300 e 1400 pessoas assistiam regular­
mente aos cultos. Havia 50 núcleos nas casas e quatro cultos por fim-
de-semana.
Destas quatro reuniões congregacionais, só uma ainda é realizada
no domingo de manhã no templo original. Para as outras a comuni­
dade aluga as instalações de outras igrejas, fazendo os cultos no sá­
bado ou domingo à noite. Com isso evitou dispendiosos programas
de construções, deixando os recursos financeiros disponíveis para
coisas mais importantes.
Essa drástica reestruturação teve como resultado o surgimento de
uma genuína comunhão cristã. Por causa das pequenas reuniões nas
casas, os pastores podem assegurar confiantes que todos os oitocen­
tos membros da sua igreja recebem um atendimento pastoral persona­
lizado. Os fardos e problemas de cada um são conhecidos no peque­
no grupo de que fazem parte.
Compartilhamento financeiro era algo que não fazia parte da
visão original, mas começou a acontecer, e de modo bastante signifi­
cativo. Membros dos grupos meteram a mão no bolso, tocando na
sua poupança ou vendendo ações, para fazerem um empréstimo, sem
juros, a duas famílias que estavam morando em trailers por não te­
rem como pagar uma casa. Quando alguns outros se apresentaram pa­
ra assinar os papéis necessários para o resgate da hipoteca de uma ou­
tra família da igreja, as pessoas que estavam ali à volta ficaram com­
pletamente perplexas ao verem que o negócio seria feito sem juros!
Hoje, quando um membro de um dos grupos precisa de uma peque­
na ajuda financeira (50 ou 100 dólares), os próprios participantes
do grupo resolvem o problema. Para necessidades maiores há um fun­
do mantido pela congregação. Estão sendo desenvolvidos planos de
cooperativas de alimentos e de um depósito de roupas e móveis usa­
dos. Uma parte relativamente grande (30% num dos últimos anos)
das ofertas totais da comunidade é usada para esse compartilhamen­
to nos casos de necessidade.
A Palavra Viva começou a desenvolver uma ampla preocupação
pela justiça social e pelos pobres. Os pastores pregam sobre o tema.
A igreja compartilha de forma substancial com uma congregação
negra da cidade. 10% da renda bruta da igreja são destinados ao alí­
vio da pobreza no mundo. Uma área de atuação bem especial tem si­

210
do o atendimento a refugiados do Sudeste Asiático. Já existem pla­
nos bem adiantados no sentido de desenvolver um centro de saúde
holístico10 no centro da cidade. Há necessidade ainda de um com­
prometimento mais firme com estilos-de-vida simples, e uma maior
compreensão no que diz respeito à injustiça nas estruturas econô­
micas. Mas creio que aos poucos isso também está começando a
acontecer. A revolução criativa dos últimos quinze anos produziu
maior flexibilidade e abertura para novas direções no discipulado.
E a pequena comunidade doméstica é, sem dúvida, um contexto
ideal para o forjamento de estilos-de-vida novos em termos econô­
micos.
A Palavra Viva demonstrou que é possível transformar uma co­
munidade tradicional em um conjunto de comunidades domésticas.
E a conseqüência tem sido não uma cisão destrutiva, mas um cres­
cimento — no discipulado, na comunhão e nos números.
A Igreja do Salvador, em Washington, foi a pioneira do mode­
lo dos pequenos grupos, começando logo após o fim da II Guerra
Mundial11. Todos os seus membros teriam que participar em um
dos seus vários grupos de missão. Os candidatos a membro da igre­
ja tinham que passar por cinco cursos, durante um período de dois
anos. Um pacto, renovado a cada ano, compromete cada membro
a quatro disciplinas: oração diária, estudo bíblico diário, culto
semanal e contribuição proporcional (começando com o dízimo
da renda bruta).
Tendo de cinco a doze pessoas, os grupos de missão são a peça-
chave da Igreja do Salvador. Não são meramente células de oração,
reuniões de estudo bíblico ou grupos de encontro ou de ação social
(embora tudo isso ocorra). Gordon Cosby, o pastor, sublinha o fato
de que é nesses grupos que os membros vivenciam a realidade do cor­
po de Cristo: "O grupo de missão incorpora as várias dimensões da
igreja. Ele é total em seu escopo. Atua tanto para dentro como
para fora e requer que estejamos à disposição de Cristo e uns dos
outros com tudo que isso possa implicar. Ele parte do princípio de
que compartilhamos uma irrestrita responsabilidade uns pelos ou­

1 0 " H o lis tic o '': de caráter integral, abrangendo to d os os aspectos de necessidades


hum anas.

U S o b re esse assunto, m o baseei m o rm e nte n o livro de G o rd o n C o s b y , H a n d b o o k fo r


M ission G ro u p s (W a co , Te x a s: W o rd B oo ks, 1 9 7 5 ). Pode-se ver ta m b é m os diversos livros
escritos p o r Eliza b e th O 'C o n n o r sobre ou para a Igreja d o S a lv a d o r, in c lu in d o C a ll to C o m ­
m itm e n t (N o v a Io rq u e : H a rp e r, 1 9 63 ) e Jo u rn e y In w a rd , Jo u rn e y O u tw a rd (N o v a Io rque :
H a rp e r, 1 9 6 8 ).

211
tros"l í . Verbalmente ou por escrito os membros dos grupos com­
partilham, cada semana, os seus fracassos e sucessos no seguimento
das disciplinas constantes no pacto, as lições que aprendem nas Es­
crituras, os problemas e alegrias que experimentam durante a se­
mana.
No compromisso que cada membro assume o aspecto econômi­
co é bastante significativo. Uma parte do pacto diz o seguinte:

Creio que Deus é o dono absoiuto da minha vida e dos recursos


de que disponho. Dou a ele a soberania em relação aos aspectos
materiais da minha vida. Deus é o proprietário, eu sou o devedor'3.
Deus é um doador liberal, e por isso também eu devo ser liberal e
bem disposto nas minhas ofertas regulares14.

A comunidade tem mantido o alvo da responsabilidade dos ir­


mãos uns pelos outros no uso das finanças pessoais. Alguns grupos
compartilham regularmente as suas declarações de imposto de ren­
da, como base para discutir o orçamento e as finanças de suas famí­
lias. A preocupação com estilos-de-vida mais simples está crescendo
na Igreja do Salvador. Vários dos grupos de missão têm como alvo
específico a libertação para os pobres. Os membros do grupo cha­
mado "Jubilee Housing" se empenham na renovação de casas em
mau estado de conservação. Junto com outros grupos ("Jubilee
Jobs", "Columbia Road Health Service", "Family Place") estão
trazendo esperanças de genuína transformação para centenas de pes­
soas na cidade. O grupo "F or Love o f Children" tem lutado pelos
direitos das crianças desamparadas, através de ações judiciais, legisla­
ção compatível e monitoração da atividade governamental, tanto lo­
cal como federal.
Em anos recentes surgiram vários grupos que se dedicam à luta
pela paz e justiça no cenário internacional. 0 grupo "World Peace-
makers" trabalha no desenvolvimento de grupos de justiça e paz
(com estruturas similares às dos grupos de missão da Igreja do Sal­
vador) em igrejas através de todo o país. O COSIGN ("The Church
of the Saviour International Good Neighbors") viabilizou a possibi­
lidade de várias centenas de americanos servirem nos campos de refu­

12 C osby, H a n d b o o k fo r Mission G roups, p. 6 3 .

1 3 N o origina l inglôs consta u m tro c a d ilh o , q u e se perde na traduçffo, e n tre o w ner


(p ro p rie tá rio ) e o w er (d e v e d o r).

14 Ib id ., p . 1 4 0 .

212
giados tailandeses. Agora esse grupo, juntamente com o Central Ame­
rican Peace Institute", o "Dayspring Refugee Mission" e o "World
Peacemakers", está providenciando auxilio direto aos refugiados da
América Central, que por causa da violência nos seus países são leva­
dos a buscar refúgio em países vizinhos e nos Estados Unidos. Ao
mesmo tempo esses grupos estão lutando por mudanças na política
externa norte-americana, que exacerba grandemente o problema dos
refugiados da América Central.
O conceito dos "grupos Dunamis" surgiu em um desses grupos
de missão. Diferentes grupos de trabalho selecionam questões espe­
cíficas da política pública e articulam relacionamentos de amor,
oração, preocupação pastoral e testemunho profético para com
senadores e congressistas. Em 1983 Henri Nouwen viajou por todo
o país promovendo "grupos Dunamis" locais, que passaram a se con­
centrar na questão da política americana na América Central. A abor­
dagem do tipo Dunamis, formando um relacionamento pastoral/
profético com pessoas que estão desempenhando funções na polí­
tica, também poderia ser aplicada nos níveis municipais e estaduais15.
Por volta de 1976 o constante crescimento parecia ameaçar a
genuína vida em comunhão naquela comunidade. Por causa disso
a igreja hoje se encontra dividida em sete comunidades-irmãs, todas
completamente autônomas. A expectativa de üordon Cosby era a
de que as novas comunidades tivessem um espectro econômico mais
amplo, de modo que o compartilhamento pudesse ser ainda maior,
e mais consciente a busca de uma vida simples. Tal como a Palavra
Viva, em Filadélfia, a Igreja do Salvador prefere se subdividir em
congregações menores a correr o risco de diluir a sua vida comuni­
tária.
Milhares de igrejas hoje contam com pequenos grupos — grupos
de encontro, grupos de comunhão, grupos de recreação, células de
oração e uma infinita variedade de grupos de ação que igualmente
visam a comunhão. Mas será que tais grupos conseguem alcançar
os mesmos objetivos que as reuniões domésticas da Palavra Viva, ou
os grupos de missão da Igreja do Salvador? Dificilmente.
Embora os numerosos pequenos grupos que florescem nas igre­
jas de hoje sejam úteis e tenham o seu valor, poucas vezes eles avan­
çam o suficiente. Os seus participantes podem concordar em com­
partilhar até de modo profundo em uma ou duas áreas da vida, mas
não assumem uma responsabilidade pelo crescimento dos outros ir-

15 Para m aiores inform ações sobre D u n a m is , pode-se escrever pa ra : D u n a m is Vo ca -


tio ns C h u r c h , 2 0 2 5 Mass. A v e ., N .W ., W a sh in gton , D .C ., 2 0 0 3 6 , E U A .

213
mãos em direção à maturidade cristã em todas as áreas da sua vida.
Alguns nem sonham que ser verdadeiramente irmãs e irmãos em
Cristo significa uma comprometida preocupação pelas condições
econômicas uns dos outros, ou responsabilidade pelo estilo-de-vida
econômico dos outros! A questão fundamental é a seguinte: Têm
os participantes do grupo se comprometido a serem irmão ou irmã
um para o outro, em escala tão elevada que existem disponibilida­
de e responsabilidade quase totais de uns para com os outros? Em
geral os pequenos grupos têm a tendência de se dissolver num espa­
ço de seis meses a dois anos. E então a vida continuará como antes.
São grupos de "responsabilidade limitada". Têm a sua genuína im­
portância, isso não se pode negar. Mas o que as pessoas precisam
desesperadamente hoje é ter uma igreja. E, a partir da perspectiva
bíblica, ser igreja significa aceitar uma condição de dedicação quase
incondicional e de inteira disponibilidade e responsabilidade pelos
outros membros locais do corpo de Cristo.

COMUNIDADES DE VIZINHANÇA

Outra estrutura que propicia a comunhão cristã é a comunida­


de de vizinhança. Praticamente não envolve despesas. Quando não é
possível ter uma vivência comunitária genuína de outra forma, pe­
quenos grupos de cristãos poderiam começar a se reunir em suas
próprias casas. (Mas deveriam logo procurar um relacionamento com
outros grupos ou igrejas. Franco-atiradores não correspondem à von­
tade de Deus para a sua igreja!). Em seu livro sobre estruturas de igre­
ja, Howard A. Snyder propõe que as denominações adotem o mode­
lo das comunidades de vizinhança para a fundação de novas comuni­
dades, especialmente nas cidades maiores. Essa estrutura é flexível,
móvel, inclusiva e pessoal. Pode crescer por divisão, é um meio efi­
ciente de evangelização e necessita de pouca liderança profissional16.
Uma coisa ideal em termos de comunidade de vizinhança seria se
diversas famílias ou pessoas morassem bem próximas umas das ou­
tras. Morar perto dos outros, precisando só atravessar uma rua ou
caminhar uma quadra, facilita muito o compartilhamento de car-
; ros, máquinas de lavar roupa, secadoras, geladeiras ou freezers,
cortadores de grama, ferramentas. Morar próximo um do outro tam­
bém encoraja a vivência comunitária cristã. Rapidamente se criam

1 6 H o w a rd A . S n y d e r, T h e P ro b le m o f W ineskins: C h u r c h S tru c tu re in a Te ch n o lo g ica l


Age (D o w n e rs G ro v e : In te rV a rs ity Press, 1 9 7 5 ), p p. 1 4 0-4 2 .

214
relacionamentos abertos, que promovem uma sincera busca recípro­
ca por padrões de vida menos injustos.

A COMUNA CRISTÃ

Milhares de experimentos de vida comunal têm ocorrido na úl­


tima década, especialmente nos Estados Unidos e na Europa. Mui­
tos são explicitamente cristão. A comuna cristã representa um mode­
lo alternativo para pessoas insatisfeitas com a sociedade de consumo.
A Reba Place Fellowship, em Evanston, Illinois, começou com três
pessoas em 195717. Em 1983 havia 130 pessoas vivendo com uma
caixa comum. Uma pequena porcentagem vive em grandes famílias,
mas a maior parte tem os seus próprios apartamentos. Todos moram
bem perto uns dos outros, na mesma vizinhança.
Além dos 130 que compartilham de uma caixa única, outras 200
pessoas fazem parte da Igreja Reba Place. Esses têm os seus orçamen­
tos pessoais, mas compartilham do profundo comprometimento da
comunidade com um estilo-de-vida simples e um partilhar generoso
uns com os outros e com os pobres.
Os 130 que participam de uma caixa única todos depositam as
suas rendas em um fundo central. Este se encarrega diretamente
das despesas maiores como as de moradia, serviços públicos, impos­
tos, transportes. Todo mês cada uma das famílias e das pessoas sol­
teiras recebe uma mesada para os gastos com alimentação, roupas
e imprevistos. Os gastos com alimentação procuram levar em con­
ta uma distribuição justa entre o todo da população. Em virtude
do tamanho e do caráter permanente da comunidade, não são
necessários seguros ou pecúlios (exceto os requeridos por lei). Deixar
de investir na rica indústria de seguros libera consideráveis quantias
de dinheiro para outros fins. Viver em comunidade também requer
menos automóveis, máquinas de lavar e cortadores de grama18. O
estilo-de-vida simples em Reba Place possibilita que a comunidade
compartilhe generosamente com os pobres da sua própria redondeza
e de outras partes do mundo.
Um pequeno acontecimento assinala o caráter da grande disponi­
bilidade mútua. Certo dia um homem com um sério problema de
alcoolismo veio à procura de Virgil Vogt, um dos presbíteros.

Para u m a discussão sobre Reba Place, ver Dave e N eta Ja ck son . L iv in g To g e th e r


in a W o rld Fa llin g A p a rt , especialm ente as p p . 3 6 -3 9 , 2 3 0 -3 3 . Para os nom es e endereços
de 2 4 co m un id a de s, ver p p . 2 8 7 -9 7 ,

18 Ib id ., p . 1 8 3.

215
Quando este o convidou a aceitar a Cristo e participar da comunida­
de dos crentes, o homem ficou todo sem jeito e depressa fez ques­
tão de insistir em que só queria dinheiro para uma passagem de ôni­
bus a Cleveland!
"O .K .", disse Virgil, " nós podemos lhe dar esse tipo de ajuda
também, se é mesmo só isso que deseja." Ficou quieto por um mo­
mento, e depois balançou a cabeça. "Sabe de uma coisa?" disse, fi­
tando-o nos olhos, " você acabou de me tirar do anzol. Sim, porque
se você tivesse optado por um novo modo de vida no reino de Deus,
então como irmão eu estaria na obrigação de me colocar com tudo
que tenho à sua disposição, dispor-lhe toda a minha vida. Essa casa,
meu tempo, todo o meu dinheiro, tudo que você precisasse para
as suas necessidades estaria totalmente à sua disposição pelo resto
da sua vida. Mas, como tudo que você quer é dinheiro para uma pas­
sagem de ônibus . . . " 0 homem ficou tão espantado que se levan­
tou e fo i embora, inclusive esquecendo de pegar o dinheiro. No
próximo domingo ele estava sentado ao lado de Virgil, no culto
dominical19.
Embora sendo uma coisa que não é para todos, a Reba Place e
outras comunas cristãs propiciam um contexto em que uma ampla
dedicação e responsabilidade mútua entre irmãos e irmãs pode se
tornar realidade20.
A Bfolia e o jornal de hoje nos conclamam para a mesma coisa:
pessoas fiéis, nesses tempos de fome, devem adotar estilos-de-vida
mais simples e mudar estruturas econômicas injustas. Mas esse não
é um caminho muito popular dentro de uma sociedade afluente. Por
isso, a menos que os cristãos estejam firmemente ancorados em ge­
nuínas comunidades cristãs, serão incapazes de viver o não-confor-
mismo radical ordenado pelas Escrituras e tão essencial para os nos­
sos dias. A nossa única esperança é um retorno à visão do corpo de
Cristo que encontramos no Novo Testamento. Acontecendo isso, o
Senhor da igreja poderá de novo criar comunidades onde haja amor e
desafio, comunidades capazes de resistir e conquistar poderosas civi­
lizações pagãs do Oriente e do Ocidente, que adoram no santuário
de Mamon.

1 9 lb id .,p .6 5 .

2 0 Para u m a boa perspectiva histórica sobre as co m unas cristffs, e um a excelente b ib lio ­


grafia, ver D o n a ld G . B loesch, Wellsprings o f R enew al: Promise in Christian C o m m u n al
L ife (G ra n d R a p id s: E e rdm a n s , 1 9 7 4 ). Para u m m anual escrito p o r u m ca tó lico carism áti­
co , ver Ste p he n B . C la rk , B uilding C hristian C o m m u n ities (N o tre D a m e , A v e M aria Press,
1 9 7 2 ).

216
CAPITULO 9

TR ANSFORMAÇÕES ESTRUTURAIS

A presente ordem social é a coisa mais abjeta que o mundo já viu . ..


Os governos ainda não aprenderam até agora a legislar de forma a
distribuir os frutos do trabalho do seu povo. As nações do mundo
produzem o suficiente para o sustento de todos. Se toda a renda
fosse distribuída com justiça, todos teriam alguma coisa e ninguém
teria demais. Essa nossa grande civilização não aprendeu a distribuir
o produto dos esforços do homem de um modo tal que todos o pos­
suam equitativamente. Por isso, o governo cai. [C. I. Scofield, autor
da "Bíblia de Scofield", 1903.1 ]

Um grupo de cristãos devotos vivia uma vez num pequeno vilare­


jo ao pé de uma montanha. Uma estrada sinuosa e difícil, com cur­
vas fechadas e ladeando abruptos precipícios, desprovida de cercas
de proteção, serpenteava subindo a montanha de um lado e descendo
do outro. Acidentes fatais ali eram freqüentes. Aquela cena que sem­
pre de novo se repetia, de pessoas feridas sendo tiradas de dentro
dos destroços de carros, começou a tocar profundamente os cristãos
das três igrejas do vilarejo. Reunindo-se, decidiram fazer alguma coi­
sa. Juntaram recursos e compraram uma ambulância, para poderem
levar os feridos com maior rapidez e eficiência até o hospital na cida­
de vizinha. Semana após semana, voluntários, membros das igrejas.

1 De u m a rtigo em O u r H o p e . 1 0 , n ? 2 (A g o s to , 1 Ô 0 3 Í, p p . 7 6 -7 7 .

217
sacrificavam fielmente parte do seu tempo para que a ambulância
pudesse estar à disposição, para ser usada a qualquer hora do dia ou
da noite. Chegaram a salvar muita vidas, mesmo que várias das v íti­
mas tenham ficado aleijadas pelo resto da vida.
Certo dia, então, chegou um visitante para a cidade. Perplexo,
perguntou por que não fechavam a estrada e construíam, ao invés,
um túnel através da montanha. Inicialmente surpresos, os voluntá­
rios da ambulância logo se puseram a explicar que tal solução (em­
bora tecnicamente viável) não era realista e nem mesmo aconselhá­
vel. Afinal a estradinha da montanha já estava ali há muito tempo.
E além disso o prefeito iria se opor fortemente à idéia (ele era
proprietário de um grande restaurante e posto de serviços localiza­
do mais ou menos no meio da subida.)
O visitante ficou chocado com o fato de aqueles cristãos se im­
portarem mais com os interesses econômicos do prefeito do que com
as numerosas vítimas dos acidentes. Um tanto hesitante, sugeriu que
talvez representantes das igrejas fossem falar com o prefeito. Afinal, o
prefeito mesmo era presbítero da igreja mais antiga do lugar. Talvez
devessem até eleger um novo prefeito, se este se mostrasse inflexí­
vel e indiferente em relação ao problema. Agora os cristãos é que
ficaram chocados. Com grande indignação, e com a convicção dos
justos, informaram ao jovem radical que a igreja não devia se meter
em política. A igreja é chamada a pregar o evangelho e dar um copo
de água fria. Sua missão não consiste em se envolver em questões
mundanas como estruturas sociais e políticas.
Perplexo e entristecido, o visitante foi embora. Enquanto saía,
uma pergunta martelava a sua mente abalada pelo que vira. E real­
mente mais espiritual cuidar das ambulâncias que carregam as ensan­
güentadas vítimas de estruturas sociais destrutivas, do que tentar
transformaras próprias estruturas?
Tempos de fome exigem de nós uma compaixão mostrada em
atitudes concretas e simplicidade no viver. Mas compaixão e vida sim­
ples sem transformações estruturais podem significar não muito mais
do que um irrelevante domínio-próprio ou uma orgulhosa busca por
pureza pessoal.
Comer menos carne, ou mesmo tornar-se vegetariano, não ajuda­
rá necessariamente a alimentar uma criança desnutrida. Mesmo que
milhões de pessoas afluentes ao redor do mundo reduzissem o seu
consumo de carne, se não atuarem politicamente, no sentido de
procurar transformar a política ofieial com relação à questão, o resul­
tado não será automaticamente menos fome no Terceiro Mundo. Se
o dinheiro assim economizado for entregue a organizações privadas

218
que visam a promoção de desenvolvimento rural em nações pobres,
então sim. Contudo, a menos que a política governamental também
seja mudada, o efeito primário de uma mera redução no consumo
de carne poderá simplesmente ser o de permitir que os russos com­
prem mais cereal por preços menores no ano que vem, ou de persua­
dir os agricultores a plantarem menos trigo. O que precisamos é de
uma transformação na política pública. Os nossos tempos de fome
exigem mudanças estruturais.
Imediatemente surgem várias perguntas. Certo, alguma mudan­
ça nas estruturas se faz necessário; mas, é o nosso atual sistema
econômico basicamente justo, ou deveriam os cristãos lutar por uma
reestruturação fundamental? E quais seriam, especificamente, as mu­
danças estruturais coerentes com os princípios bíblicos? E seriam
estes princípios pertinentes mesmo à sociedade secular? Israel, afi­
nal, era uma teocracia. Podemos nós realmente esperar que descren­
tes vivam conforme a ética bíblica?
A Bíblia não responde diretamente a estas perguntas. Não encon­
tramos nas Escrituras um projeto, amplo e abrangente, para uma no­
va ordem econômica, embora a revelação bíblica nos diga que Deus e
o povo que lhe é fiel estão sempre procurando libertar os oprimidos,
e nos apresente alguns princípios referentes à justiça social.
Certamente que a aplicação primária da verdade bíblica sobre re­
lações justas entre o povo de Deus diz respeito à igreja. Como o novo
povo de Deus2, a igreja deveria ser uma nova sociedade que encarna
em sua vida diária os princípios bíblicos relacionados com a justiça
social. De fato, somente se a igreja for ela mesma um modelo visível
de relações sócio-econômicas transformadas, ela terá a integridade
necessária para tornar eficaz qualquer apelo ao governo. Muita ação
social recente por parte dos cristãos tem sido ineficaz porque líde­
res cristãos tentam pressionar o governo a fazer leis que eles próprios
não conseguem aplicar entre os membros das suas igrejas.
Todavia, de forma secundária mas não menos importante, os
princípios bíblicos também são aplicáveis a sociedades seculares.
Deus não ditou arbitrariamente algumas normas sociais para o seu
povo. O Criador revelou certos princípios e padrões sociais por saber
que poderiam conduzir a uma paz e felicidade duradouras para as
suas criaturas. Seguir os princípios bíblicos sobre a justiça na socie­
dade é o único caminho para uma paz duradoura e a harmonia so­
cial,e isso vale para todas as sociedades humanas.

2 Gálatas 6 .1 6 ; 3 ,6 -9 ; 1 Pe d ro 2 . 9 , 1 0 .

219
A visão bíblica do reino que está por vir sugere o tipo de ordem
social que Deus deseja. E a igreja deveria se constituir já agora num
modelo vivo (imperfeito, sem dúvida) daquilo que será o futuro rei­
no de justiça e paz. Isso significa que, quanto mais perto uma socie­
dade secular chegar das normas bíblicas de relações justas entre o po­
vo de Deus, mais paz, felicidade e harmonia tal sociedade poderá ex­
perimentar. Obviamente indivíduos e sociedades pecaminosas nunca
passarão de uma aproximação muitíssimo imperfeita. Mas as estrutu­
ras sociais exercem uma poderosa influência não só sobre o santo,
mas também sobre o pecador. Por isso os cristãos deveriam procurar
exercer influência política para implementar mudanças na sociedade
como um todo.
O fato de os autores bíblicos não hesitarem em aplicar normas
reveladas a pessoas e sociedades que não faziam parte do povo de
Deus só apóia essa tese. Amós anunciou o castigo divino sobre as
nações vizinhas de Israel, como conseqüência de sua maldade e in­
justiça (Amós 1 e 2). Isaías denunciou a Assíria pela sua arrogância
e injustiça (Isaías 10.12-19). O livro de Daniel mostra que Deus
removeu reis pagãos, como Nabucodonosor, pelas mesmas razões pe­
las quais destruíra os governantes de Israel, quando negligenciaram
os oprimidos (Daniel 4.27). Deus acabou com Sodoma e Gomorra,
do mesmo modo que fez com Israel e Judá, por terem deixado de
ajudar os pobres e alimentar os famintos (Ezequiel 16.49). Como
Senhor do universo, Javé aplica os mesmos padrões de justiça social
a todas as nações.
Quais seriam, então, os princípios bíblicos fundamentais que pre­
cisamos ter sempre em mente quando pensamos em transformações
estruturais na sociedade? Os pressupostos teológicos mais básicos
são dois: Primeiro, Deus nos fez mordomos da criação, responsáveis
diante dele no que diz respeito aos cuidados para com a terra. Segun­
do, o soberano Senhor deste universo está sempre em ação, visando
libertar os pobres e oprimidos, e destruindo os ricos e poderosos que
são injustos (Lucas 1.52, 53). Deus está do lado dos pobres (confor­
me pudemos ver no capítulo 3). Ao tornar-se o povo de Deus
co-agente nessa tarefa de libertação, os princípios revelados nas Es­
crituras acerca da justiça na sociedade deverão moldar o seu pensa­
mento e a sua ação.
Na Parte 2, examinamos a perspectiva bíblica sobre o pobre e
sobre as riquezas. Uma breve recapitulação dos princípios que lá
pudemos detectar será útil nesse ponto: O Deus da Bíblia se desagra­
da de extremos de riqueza e de pobreza; Javé quer estruturas institu­
cionalizadas (e não mera caridade), que de forma sistemática e regu­

220
lar reduzam os grandes abismos existentes entre ricos e pobres. Con­
quanto não sugiram um equalitarismo seco e legalista, todos os pa­
drões bíblicos de compartilhamento econômico (por exemplo, o
Jubileu e a coleta levantada por Paulo) tendem muito mais a uma
igualdade econômica do que as nossas sociedades pecaminosas nor­
malmente admitem.
Pessoas são tremendamente mais importantes do que proprieda­
des. A propriedade privada descentralizada é não só legítima, mas im­
portante — tanto para que tenhamos meios de cumprir o mandado
do nosso Criador, de sermos co-criadores com ele, como para evitar
o totalitarismo que flu i de modo praticamente inevitável de um po­
der econômico centralizado. Mas, uma vez que só Deus é o único
proprietário absoluto, o nosso direito à aquisição e ao uso da pro­
priedade é definitivamente limitado. O direito do homem aos recur­
sos necessários para ganhar uma vida justa se sobrepõe à qualquer
noção de propriedade privada absoluta.
Esse último princípio se relaciona de forma direta com o que va­
mos tratar neste capítulo. Alguns países, como os Estados Unidos,
a União Soviética e a Austrália (e também o Brasil!) possuem uma
reserva muito rica de recursos naturais dentro das suas fronteiras na­
cionais. Teriam eles um direito absoluto de usar estes recursos da for­
ma que mais lhes convém, visando somente o benefício dos seus pró­
prios cidadãos? Não, de acordo com a Bíblia! Se cremos no que di­
zem as Escrituras, temos que concluir que o direito de todas as pes­
soas humanas a meios de ganhar o próprio sustento de forma justa
se sobrepõe ao direito das nações de usar os seus recursos naturais
só em proveito próprio. Somos só mordomos, e não proprietários
absolutos. Deus é o proprietário absoluto, e ele insiste em que os
recursos da terra sejam compartilhados.
Antes de esboçar alguns passos específicos para a aplicação des­
ses princípios, devemos registrar aqui um aviso e um esclarecimento.
Temos que lembrar-nos constantemente da grande distância que
existe entre os princípios revelados nas Escrituras e a sua aplicação
contemporânea. Existem muitas maneiras válidas de se aplicar os
princípios bíblicos. A aplicação deles aos problemas sócio-econômicos
de hoje deixa espaço para criatividade e até para um honesto desa­
cordo entre cristãos bíblicos. Ter reservas ou objeções contra a nos­
sa aplicação da ética bíblica à sociedade contemporânea, conforme
exposta neste livro, não significa o mesmo que rejeição dos princí­
pios bíblicos. Com isso também não estamos dizendo, por outro la­
do, que todas as aplicações são igualmente válidas; significa, isso sim,
que é imperativa uma atitude de humildade e tolerância. Podemos
221
e devemos ajudar uns aos outros a ver onde estamos sendo infiéis
à revelação bíblica, e preconceituados e condicionados pelas nossas
próprias vantagens econômicas. As Escrituras é que devem ser a
norma, como sempre.
O esclarecimento é o seguinte: Insistir em que cristãos devam
atuar politicamente para tentar mudar aqueles setores das nossas
estruturas econômicas que são injustos, não é conclamar a uma
revolução violenta que imporia, pela força, uma sociedade centrali­
zada e estatista. Cremos firmemente que o caminho de Jesus é o
do amor não-violento, inclusive para com os inimigos. Rejeitamos,
por isso, o uso de violência3. O exercício da influência política
numa sociedade democrática envolve, sem dúvida, o uso de meca­
nismos de pressão (ou de força) não-letais. Quando legislamos pena­
lidades para motoristas embriagados, estamos usando um tipo apro­
priado de "força" não-letal. E o mesmo é verdade quando se trata
de legislação sobre mudanças na política interna e externa, visando
um padrão de vida mais justo para os pobres, ou padrões de comér­
cio menos injustos, ou uma redução do opressivo poder das m ulti­
nacionais. Em uma sociedade democrática tais meios são válidos, e
o cristão deve fazer uso deles, no propósito de ser um mordomo
mais fiel de Deus neste mundo.
Um elemento muito importante na busca por corrigir estruturas
econômicas injustas é a constante promoção de um poder de deci­
são e de controle descentralizado. Tanto o totalitarismo marxista
como as grandes corporações multinacionais centralizam o poder nas
mãos de um pequeno grupo. E muitas vezes as opções dessas pode­
rosas elites refletem não a busca do que representaria o melhor para
a maioria, e sim os seus próprios interesses. Deveríamos lutar tanto
por uma descentralização do poder econômico como por uma eco­
nomia mais justa, construída sobre a afirmação bíblica fundamental
de que Deus quer justiça para os pobres e oprimidos.
Vejamos alguns passos concretos que podemos tomar.

QUEM SERA BENEFICIADO?

Temos que encarar logo no início uma questão muito complexa:


dada a presente situação nos países menos desenvolvidos, quem sairia

Veja o meu livro N u clear H o lo caust and C hristian H o p e (D o w n e rs G ro v e : In te r-


V a r s ity , 1 9 8 2 ), e m co-a u to ria co m R ich a rd K . T a y lo r ; e, a n te rio rm e n te , o m eu C hrist
and V io le n c e (S co ttda le: Herald Press, 1 9 7 8 ).

222
beneficiado por mudanças tais como uma maior ajuda econômica por
parte dos países mais ricos ou padrões mais justos do comércio inter­
nacional? A ajuda econômica e o livre comércio não beneficiariam
necessariamente à parte mais pobre da população nos países em de­
senvolvimento, talvez nem um pingo sequer. Os americanos e os eu­
ropeus não são os únicos culpados pela pobreza que existe no mun­
do. 0 pecado não é tão somente fenômeno europeu ou americano.
Muitos dos países menos desenvolvidos são governados por peque­
nas e ricas elites, muitas das quais não estão dando a mínima aten­
ção para o sofrimento das massas dentro dos seus próprios territó­
rios. Freqüentemente está em suas mãos uma grande parte das ter­
ras mais férteis, nas quais se plantam safras para exportação, visan­
do obter os recursos necessários para um comércio exterior pelo qual
adquirem primariamente bens de luxo do mundo desenvolvido. En­
quanto isso, os 30 a 70% mais pobres da população se defrontam
com uma pobreza absurda.
Mudanças na ajuda econômica e nos padrões comerciais, então,
poderiam simplesmente capacitar as elites detentoras do poder a
fortalecer ainda mais os seus regimes opressivos. Isso, porém, não
elimina a culpa dos americanos e dos europeus. Em muitos casos tais
elites continuam no poder porque recebem apoio militar maciço,
bem como suporte diplomático por parte dos EUA e de outras
nações industriais4 . Os Estados Unidos treinaram um grande nú­
mero de policiais que têm torturado milhares de pessoas que tra­
balham por justiça social em países como o Brasil e o Chile5. Mul­
tinacionais sediadas no mundo desenvolvido trabalham de forma
mais estreita com os governos repressivos. Acontecimentos como os
verificados no Brasil, Chile, El Salvador e nas Filipinas mostram
que os Estados Unidos continuarão a apoiar ditaduras que fazem
uso de tortura e que se interessarh muito pouco, em termos concre­
tos, pela parte mais pobre da ^população, enquanto tais regimes fo­
rem receptivos aos investimentos e aos interesses da política exter­
na americana.

4 Ve ja p o r e x e m p lo C arl O gie s b y e R ich a rd S h a u ll, C o n ta in m e n t and C hange (N o va


Io rq u e : M a c m illa n , 1 9 6 7 ), p p . 7 2 -1 1 1 .

s V e r A n is tia In te rn a cion a l, R ep o rt on T o rtu re (N o va Io rq u e : Fa rra r, S traus & G ir o u x ,


1 9 7 5 ), especialm ente o relatório especial sobre o C hile nas p p . 243ss. V e r ta m b é m F re d B .
M o rris , "S ustain e d b y F a ith U n d e r B razilian T o r t u r e " , C h ristia n C e n t u r y , 2 2 de Ja n e iro,
1 9 7 5 , p p . 5 6 -6 0 ; L a tin A m e ric a n and E m p ire R e p o rt, 1 0 , n? 1 (Ja n e iro , 1 9 7 6 ); e ainda
os Bread fo r the W o rld B a ckg ro u n d Papers n9 5 4 (J u n h o , 1 9 8 1 ), sobre E l Salvador, e
n ? 6 0 (J u n h o , 1 9 8 2 ) sobre " A ju d a M ilita r, os Pobres d o M u n d o e a Segurança dos E U A " .

223
MUDANÇAS NA POLÍTICA6

O que podemos fazer? Podemos lutar, com todos os meios


pacíficos disponíveis, por uma drástica reorientação, tanto em ter­
mos de política externa como interna, lutar por uma política que,
de forma inequívoca, busca os direitos dos mais pobres. Se real­
mente cremos que todas as pessoas são criadas iguais para uma vida
digna de filhos de Deus, então a nossa política deve ser reorienta-
da para promover os interesses de todos, e não só dos que já são
os mais privilegiados. Deve se opor a ditaduras que flagrantemente
violam os direitos humanos, e que aparentemente governam só para
5% ou menos da população. Isso vale para todo tipo de repressão,
totalitarismo e violação de direitos, tanto de direita como de esquer­
da.
Controles éticos sobre as operações das multinacionais em nos­
sos países deveriam ser outro aspecto significativo de tal atuação
política. Isso é extremamente difícil, sem dúvida, precisamente
pelo fato de as multinacionais serem muito poderosas e não estarem
restritas, em termos absolutos, à legislação de qualquer país. O seu
caráter internacional não oculta, no entanto, o fato de que os EUA
e a Grã-Bretanha serem os países de origem de 75% delas7. Essas
duas nações, então, têm uma responsabilidade particular em cuidar
para que o impacto das multinacionais sobre as nações pobres seja
mais positivo do que negativo. Infelizmente, porém, muitas vezes
os governos destes países têm defendido mais os interesses das suas
empresas do que os dos pobres nos outros lugares. Em maio de
1981, por exemplo, os EUA foram o único país, entre 119, a vo­
tar contra uma proposta de controle da propaganda e do marketing
de receitas infantis promovidos por multinacionais no Terceiro Mun­
do, numa reunião da Organização Mundial de Saúde. A despeito de
farta e ampla documentação demonstrando os efeitos perniciosos
das atividades de marketing da Nestlé e de outras multinacionais8,
a administração Reagan votou contra, argumentando que tais nor­

Os p ró x im o s q u a tro s u b -ca p ítulos fo ra m ligeiram ente adaptados à nossa realidade.


0 ú ltim o parágrafo d o terceiro sub -ca p ítu lo fo i tra ba lha d o aqui m e sm o , sub stituin d o
m aterial q u e , p o r ser irrelevante para a situação brasileira, fo i co rta d o da edição brasilei­
ra. (N o ta d o T r a d u t o r ).

7 Firm a s am ericanas de tõ m 5 5 % dos ativos das m u ltin a cion a is, e as b ritânicas 2 0 % .


C o n fo rm e H a y , “ T h e In te rn a tio na l S o c io -E c o n o m ic O r d e r " , e m : S id e r (e d .). Lifes tyle
in the Eigh ties, p . 1 1 1.

8 V e r , mais recentem ente. G ra n t, T h e State o f th e W o rld 's C h ild re n , 1 9 8 2 -8 3 , p p . 3 -4 .

224
mas poderiam prejudicar a "livre empresa"9 .
Uma política que visa a justiça bíblica para os pobres lutará
para estabelecer controles éticos para as operações das multinacio­
nais, contra os próprios interesses delas, dos seus acionistas no ex­
terior e dos governantes corruptos que, motivados por benefícios
pessoais, são coniventes com operações que representarão ainda
maior sufoco e pobreza para o grosso da população. Seja através de
atividade política ou de boicotes organizados, os cidadãos cristãos
podem colaborar para a redução do impacto negativo das multina­
cionais sobre os pobres na terra.10 A nossa proposta política deve
encorajar a justiça, e não a injustiça. Só assim as mudanças desejadas
a nível de política internacional ajudarão realmente a melhorar o
padrão de vida de um bilhão de pessoas que nem sequer podem
falar em "padrão de vida".

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E CONVERSÃO

Uma mudança fundamental se torna imperativa nas relações polí­


ticas, especialmente entre nações desenvolvidas e as não-desenvolvi-
das. Mas isso não é suficiente. As massas pobres nos países em desen­
volvimento devem ser encorajadas no sentido de exigirem transfor­
mações estruturais de profundo alcance em seus próprios países. De­
vemos promover ativamente movimentos não-violentos, trabalhando
para mudar governos repressivos e injustos.
Tais mudanças, contudo, só podem acontecer se ocorrer uma
fundamental transformação de valores. Em um recente e erudito
livro sobre posse de terras na fndia, o Professor Robert Frykenberg,
da Universidade de Wisconsin, lamentou a crescente distância entre
ricos e pobres. "Nenhuma quantidade de ajuda, de ciência e/ou de
tecnologia", conclui ele, "pode alterar a direção dos processos cor­
rentes sem a ocorrência de um 'despertamento' ou 'conversão' de ca­
ráter mais fundamental entre um grupo cada vez maior e mais signi­
ficativo de pessoas . . . Mudanças de caráter revolucionário são re­
queridas, mudanças que só podem começar no coração e na mente

9 " T h e Breast vs. the B o t tle " , N ew sw eek, 1? de J u n h o , 1 9 81 , p . 5 4 .

10C o m isso não estam os d ize n d o que o im p acto total das m u ltin a cion a is ó negativo.
Para in form ação sobre o b o ico te à Nestlé e análises d o im p acto qu e causou, pode-se escre­
ve r pa ra : In te rfa ith C e n te r o n C o rp o ra te Re spo n sa b ility, 4 7 5 Riverside D riv e , N Y , N Y ;
ou pa ra : In fa n t F o rm u la A c t io n C o a litio n ( I N F A C T ) , 1701 U n iv . A v e ., S .E . M in n e a p olis,
M N , 55414, E U A .

225
de cada indivíduo"11
É precisamente nesse ponto que a igreja cristí pode representar
um papel crucial. Duas coisas são importantes para ela: primeiro,
evangelismo, e, segundo, a mensagem total das Escrituras. A evangeli­
zação é central para a transformação social. Não há nada que trans­
forme a identidade própria, a auto-estima e a iniciativa de uma oes-
soa pobre e oprimida como um relacionamento vivo e pessoal com
Deus, em Cristo. A descoberta de que o Criador do mundo vive nele
" d í i í r n novo valor e energia a pessoas psicologicamente abaladas por
séculos de opressão.
O segundo componente importante é compartilhar a perspecti­
va bíblica em seu todo. As cosmovisões de algumas religiões tendem
a criar uma atitude fatalista em relação à pobreza. 0 hindu ísmo, por
exemplo, ensina que os que pertencem às castas inferiores (e que
usualmente são os mais pobres) estão ali por causa de opções pecami­
nosas em encarnações anteriores. E só agüentando pacientemente a
sua sorte presente é que eles podem ter esperança de uma vida me­
lhor em encarnações futuras. Além disso, as religiões orientais mini­
mizam a importância da história e da realidade material, que seriam
ilusões das quais se deve escapar.
A fé bíblica, por outro lado, afirma que o mundo material que
Deus criou é bom, e ensina que o Criador e Senhor da história re­
quer justiça para os pobres da terra aqui e agora. Compartilhando
essa mensagem bíblica mais ampla, missionários e cristãos podem
dar uma profunda contribuição na batalha contra a fome, a pobre­
za e a injustiça12. Os missionários, é claro, não podem participar
diretamente de atividades políticas em outros países. Mas todos po­
dem e devem ensinar toda a Palavra para toda a pessoa. Por que os
missionários, por exemplo, têm tantas vezes ensinado Romanos,
mas não Amós, aos novos convertidos em terras pobres? Se é verda­
de, como pudemos ver na segunda parte deste livro, que as Escritu­
ras constantemente declaram que Deus está do lado dos pobres,
então deveríamos fazer desse tema bíblico uma parte central do nos­
so ensino. Se aceitamos a Grande Comissão do nosso Senhor, de en­
sinar "tudo que vos tenho ensinado", então não deveríamos om itir
ou diminuir a importância da mensagem bíblica de justiça para os

11 R o b e rt E . F ry k e n b e rg (e d .). L a n d T e n u re and Peasant in S o u th A s ia : A n A n t h o t o -


g y o f R e cent Research (M a d is o n , W iscon sin : L a n d Te n u re C e n te r, 1 9 7 6 ), p . 1 4.

1 2 V e r o interessante estudo d e caso in d ia n o : S ari K . C h a tte rji, R eligious V alues and


E c o n o m ic D e ve lo p m e n t: A Case S tu d y (S o cia l Research Series, n ? 5 ; B a ngalore: T h e C h ris ­
tian In stitu te fo r th e S tu d y o f R e ligio n and S o c ie ty , 1 9 6 7 ).

226
oprimidos, mesmo que ela ofenda as elites governantes ou quem
quer que esteja no poder.
Devemos expor de forma cuidadosa e completa para os novos
convertidos a explosiva mensagem bíblica de que Deus está do lado
dos pobres e oprimidos. Os pobres aprenderão logo a aplicar princí­
pios às suas estruturas sociais, relacionando-os à sua situação con­
creta e buscando formas de modificá-la.
Até aqui analisamos duas coisas: primeiro, uma mudança funda­
mental na política, e, segundo, um movimento de massa visando
mudanças sociais, enraizado em novos valores religiosos. Os cris­
tãos deveriam promover ambos, porque ajudariam a reduzir a po­
breza mundial.
0 que mais precisa acontecer?

DESENVOLVIMENTO VOLTADO PARA


AS NECESSIDADES BÁSICAS

A solução estrutural mais óbvia para a tragédia da fome mundial


é o impulso para um rápido desenvolvimento econômico do Tercei­
ro Mundo. As nações do Terceiro Mundo teriam, assim, condições
ou de produzir todo o seu alimento e necessidades básicas, ou de
comprá-los no mercado mundial.
Durante os anos cinqüenta, sessenta e uma boa parte dos seten­
ta, esse era o foco central para as pessoas preocupadas com a con­
dição dos países menos desenvolvidos. Muitos economistas advoga­
ram e muitos governantes do Terceiro Mundo implementaram pro­
gramas econômicos projetados para produzirem crescimento econô­
mico, o que por esse tempo se pensava ser sinônimo de desenvolvi­
mento econômico. A medida que o PNB de um país crescia, espera­
va-se que os benefícios eventualmente "escorressem" para as mas­
sas pobres, de modo que toda a sociedade seria, então, beneficiada.
Os pobres teriam trabalho numa economia em crescimento, e a po­
breza desapareceria.
Com o passar dos anos, todavia, tornou-se evidente que, mesmo
melhorando o PNB, as condições do povo pobre não melhoravam
automaticamente13. Em vez disso, muitas vezes ficou maior o abis­
mo entre ricos e pobres, continuando estes a passar fome. À luz da
experiência das últimas décadas, é hoje amplamente reconhecido que

1 3 V e r , p o r e x e m p lo , a n ota 7 d o c a p ítu lo u m e a p g. 2 2 , acim a.

227
esta promoção de desenvolvimento que visa ao mero crescimento do
bolo do PNB beneficia as classes média e alta, mas faz muito pouco,
se é que faz alguma coisa, para ajudar os pobres14.
Mahbud UI Haq, economista ligado ao Banco Mundial, sumariza
assim o crescente consenso quanto a isso:

O crescimento do PNB muitas vezes não passa pelo filtro, fican­


do na parte de cima. O que é necessário é um ataque direto à pobre­
za das massas1s.

fjor isso, na última década, tem surgido uma nova forma de abor­
dar ò problema do desenvolvimento do Terceiro Mundo, é chamada
muitas vezes de "crescimento com eqüidade". O desenvolvimento
certamente inclui o crescimento econômico, que é necessário. Mas
este tem que acontecer de tal modo que haja uma distribuição
equânime dos seus benefícios. Em outras palavras, os pobres devem
participar do progresso econômico. .
Existem várias variantes dessa abordagem, mas a mais popular
e mais consistente com os princípios cristãos é designada por "De­
senvolvimento Voltado para as Necessidades Básicas" ("Basic Needs
Development"). O foco se concentra na situação dos pobres. Susten­
ta-se que há determinadas necessidades básicas que todas as pessoas
têm cm comum, sendo que a maior prioridade de qualquer programa
econômico deve ser o atendimento dessas necessidades básicas para
todos. Denis Goulet, um autor cristão, com vários livros escritos
sobre desenvolvimento e ética do desenvolvimento, apresenta as se­
guintes necessidades como sendo básicas: (1) sustentação da vida;
(2) auto-estima, e (3) liberdade para escolher os próprios rumos 16.
Realmente não é surpresa que nas necessidades básicas estejam in­
cluídos mais do que os elemenos puramente físicos, como alimenta­
ção, vestuário, moradia e saúde. Estes, no caso, poderiam ser gene­
rosamente supridos por algum agente externo, num estilo paterna­
lista. Mas, porquanto ajudas a curto prazo são necessárias e boas
em algumas situações de necessidade desesperada (p.ex., em caso de
secas, guerras, etc.), uma dependência de tais ajudas a longo prazo

14 V e r , p o r e x e m p lo , N o rm a n Fa ra m e lli, " T r a d e Barriers to D e ve lo p m e n t in P o o r N a -


tio n s ", e m : W illia m B y ro n (e d .), T h e Causes o f W o rld H u n g e r (N o va lo rq u e : Paulist Press,
1 9 8 2 ), cap. 9 .

l s C ita d o e m Ern est Lo e ve n sohn , " G e t tin g A id to th e P o o r" , Bread fo r th e W o rld


Ba ckgrou n d Paper 59 (A b r il, 1 9 8 1 ), p . 2.

1 6 V e r Denis G o u le t, T h e C ru o l C h o ic e (N o v a lo rq u e : A th e n e u : 1 9 7 1 ), p p . 123*152.

228
reduz a auto-estima e a motivação. De modo similar, uma socieda­
de totalitária, que atenda a todas as necessidades físicas ainda não
traduz a vontade de Deus para nós. As pessoas devem ser livres para
moldarem elas próprias a sua vida e as suas sociedades.
Segundo Paul Streeten, editor do prestigioso jornal World Deve­
lopment, as necessidades básicas incluem não apenas a necessidade
de bens materiais, mas também:

a necessidade de autodeterminação, autoconfiança, Uberdade p o lí­


tica e segurança, participação na tomada de decisões que afetam
aos trabalhadores e cidadãos, identidade nacional e cultural, e um
senso de propósito na vida e no trabalho17.

As categorias de Goulet, mencionadas como auto-estima e liber­


dade, movem-se na mesma direção.
Por causa desse novo tipo de abordagem do desenvolvimento,
em vários círculos, nos anos recentes, a nova senha é auto-desenvol-
vimento ("self-reliant development")18. Isso significa basicamente
que cada país deve ser, num nível significativo, economicamente
independente, de modo que o seu povo possa prover as suas pró­
prias necessidades. Segundo McGinnis, auto-desenvolvimento é

um modelo de desenvolvimento que enfatiza o atendimento das neces­


sidades básicas da população em determinado país, através de estra­
tégias adaptadas aos recursos humanos e naturais, valores e tradições
particulares da própria região, e através de estratégias que valorizam
ao máximo os esforços coletivos do povo dentro de cada país e en­
tre os países do Terceiro Mundo19.

Auto-desenvolvimento não significa fechamento de fronteiras,


com a recusa de negociar com outros países, e um isolamento do

1 7Paul S tre e te n , " A Basic-Needs A p p ro a c h to E c o n o m ic D e v e lo p m e n t", e m : K e n n e th


P. Jam eson e Charles K . W ilb e r (e d s.), D ire ctio n s in E c o n o m ic D e ve lop m e n t (N o tre D a ­
m e : N o tre D a m e Press, 1 9 7 9 ), p . 7 4 .

1 8 In fe lizm e n te , p o ré m , não na a d m inistração Reagan. A s ações da adm inistração


Reagan d e ix a m claro q u e os seus interesses p rim á rio s são os interesses dos obje tivos c o m e r­
ciais e m ilitares am ericanos, e não o conce ito de De sen volvim e n to V o lta d o para as N eces­
sidades Básicas. N a verdade circu la u m b oa to de q u e q u a lq u e r u m q u e na U .S . A g e n c y fo r
In te rn a tio na l D e ve lo p m e n t m e n cio n a r o co nce ito de De sen volvim e n to V o lta d o para as
Necessidades Básicas (p o p u la r nos anos C a rte r) co rre o risco de p erder o em p re go.

1 9M c G in n is , Bread and Ju s tice , p . 2 6 1 . É claro que na extensão e m q u e os valores


tra dicionais de u m a nação im p ed e m o d e se n vo lvim e nto , os cristãos vão q u e re r c o m p a rti­
lhar os valores b íb lic o s , de u m a fo rm a não-paterna lista, mas franca e d ire ta .

229
resto do mundo. Pelo contrário, significa

ser tão autoconfiante como nação, para poder basear o nosso desen­
volvimento nos nossos próprios valores culturais. Autoconfiança é
um conceito muito abrangente, que perpassa tudo que se relaciona
com a vida. Implica não só a nossa confiança em nossa própria in­
dústria ou agricultura, nos nossos recursos domésticos ou na nossa
tecnologia. É confiar no nosso próprio pensamento e nos nossos
próprios sistemas de valores, sem ser defensivo ou apologético20.

Tal conceito de desenvolvimento, contudo, é necessariamente


muito amplo. Por sua própria natureza é impossível prescrever me­
didas específicas de desenvolvimento que sejam aplicáveis em todos
os lugares e a qualquer tempo. Uma estratégia de Desenvolvimento
Voltado para as Necessidades Básicas para qualquer país precisa levar
em conta o contexto singular do próprio país21. Por isso muito do
que precisa ser feito para implementar tal estratégia só pode vir do
povo mesmo, em seus respectivos países. Grande parte da carga; en­
tão, fica sobre os ombros do povo do Terceiro Mundo. E é assim que
deve ser. Auto-estima e liberdade não virão através de especialistas
em desenvolvimento do Primeiro Mundo ou de figurões políticos que
digam os líderes dos países menos desenvolvidos exatamente o que
fazer e como fazê-lo.
O mundo desenvolvido pode ajudar mudando a direção básica
da sua política externa e promovendo valores básicos que levem a
transformações sociais, tornando o comércio internacional mais
leal, desenvolvendo uma nova atitude com relação ao seu próprio
crescimento econômico e ao uso de recursos naturais, mudando a
sua política no setor de alimentos, tendo a disposição de ajudar di­
retamente na prevenção da fome durante emergências e, finalmen­
te, possibilitando aos pobres ganharem a sua própria vida.
Todos estes elementos são importantes. Temos falado deles ao
longo do livro até aqui. Urge que comecemos a lutar para colocá-
los em prática, cada povo de cada nação tendo e assumindo a sua

“^ P a la v ra s de M a h b u b u l H a q , co n fo rm e citadas em M c G in n is , p . 2 6 2 . V e r ta m b é m
a discussão sobre autoco n fia n ça e m Ja c k A . N e lson , H u n g e r fo r Ju s tice : T h e Polrtics o f
F o o d a nd F a ith (N o va Io rq u e : O rb is , 1 9 8 0 ), especialm ente as p p . 159ss.

2 E x e m p lo s de Program as volta d os para as Necessidades Básicas qu e ob tive ra m suces­


so são o p ro gra m a de saúde no estado de Kerala, In d ia , c o n fo rm e expo sto p o r S treeten no
a rtig o m e n cio n a do acim a (n . 1 7 ), p p . 1 0 9 -1 1 4 ; o abrangente pro gra m a realizado no v ila re ­
jo de P atti K a lya n a , c o n fo rm e relatado p o r M c G in n is (n . 1 9 ), p p . 2 6 5 -2 7 7 ; e o M o v im e n to
S a rvo d a y a Shra m a d an a , em S ri L a n k a , d iscu tid o n o W o rld D e ve lo p m e n t R e p o rt 1 9 8 0 ,
p. 75.

230
parte de responsabilidade nestas mudanças. Se do Primeiro ou do
Terceiro Mundo, procuramos aqui extamente delinear a situação
presente e indicar a parte de responsabilidade que toca a cada um.
O Deus dos pobres espera e conclama os cristãos e as pessoas de
boa vontade em todo lugar a lutarem por uma ordem mais justa e
que espelhe com mais clareza o bom propósito que, como Criador
e Senhor de toda a terra, Ele tem para com toda a sua criação.

CONCLUSÃO

As proposições feitas até aqui têm em vista a reforma das atuais


estruturas econômicas. Existem, sem dúvida, questões fundamentais
de extrema importância que não foram discutidas. Muitos cristãos
têm criticado duramente o capitalismo22, e alguns têm se posicio­
nado em favor de um socialismo democrático23. Outros têm defendi­
do o capitalismo de forma bem articulada24. Um exame criterioso
deste crescente debate, contudo, foge dos objetivos deste livro e da
nossa competência25.

2 2 P or e x e m p lo , D o n a ld A . H a y . A C h ristia n C ritiq u e o f C apitalism (" G r o v e B o o k le t on


E t h ic s " , N P 5 ; S ra m c o te , N o ttin g h a m , 1 9 7 5 ); e B o b G o u d z w a a rd , C ap ita lism and Progress:
A Diagnosis o f W estern S o c ie ty (G ra n d R a p id s: Ee rd m a n s , 1 9 7 9 ).

2 3 M u ito s teólogos da libertação sustentam algum a fo rm a de socialism o. V e ja , p o r e x e m ­


p lo , José M íg u e z B o n in o , C hristians and M arxists (G ra n d R a p id s: Ee rd m a n s , 1 9 7 6 ) e Jo h n
Eagleson, e d ., C hristians and S ocia lism : D o c u m e n ta tio n o f the Christian s f o r Socialism M o ­
vem e n t in L a tin A m e ric a , (M a ry k n o ll: O rb is , 1 9 7 5 ). *

2 4 R o b e rt B e nn e , T h e E th ic o f D e m o cra tic C a p ita lis m : A M o ra l Reassessment (P hila­


de lphia: Frotress, 1 9 8 1 ); e M ichael N o v a k , T h e S p irit o f D e m o cra tic C apitalism (N e w
Y o r k : S im o n and S chu ster, 1 9 8 2 ); M ichae l N o v a k , ' T h e E c o n o m ic S yste m : T h e Evange­
lical Basis o f a S ocia l M arke t E c o n o m y '', T h e R e vie w o f P olitics, V o l. 4 3 , N ? 3 (J u lh o ,
1 9 8 1 ), 3 5 5 -3 8 0 .

2 5 M eu p ró p rio p alpite de leigo 6 de que a direção ce n a p o r on d e se devem buscar


novas soluções vai no sentido de m odificaçõ es na e con o m ia de m e rca d o e da " p ro p rie d a ­
d e '' p rivada. C re io q ue está claro de q u e a agricu ltura co letiva é u m desastre. C o n v é m lem ­
brar que a ce ntralização da p ro priedade e dos m eios de p ro d u çã o nas mãos d o Estad o leva
a u m p o d e r ce n tra liza d o tão grande que o to ta lita rism o esta praticam ente ga ra n tid o . A o
m esm o te m p o , m u ltin a cion a is "ca p ita lista s'' co nce n tra ra m ta m a n h o p o d e r que um a de m o­
cracia p o lític a está ameaçada em suas bases e aos operários restam poucas chances de p a rti­
cipação nas decisões que afetam as suas vidas.
O ano d o Ju b ile u e ou tros ensinos b íb lic o s a p on ta m para u m sistema de propriedade
descentralizado, o u m e lh o r, para u m a m o rd o m ia responsável perante Deus, o ú n ico p ro p rie ­
tá rio a b so lu to . A g ricu lto re s norm alm e n te deveriam possuir a sua p ró pria terra. A s empresas
m enores deveriam ser incentivadas. O p e rá rios da in dú stria deveriam ter a possibilidade de
p a rticip ar nas decisões que os afetam d ire ta m e n te . (Isso pode acontecer de j/árias form as:
Com issões de gerência/em pregados; cooperativas; e tc.) Para pa rticip ar da ação cria d ora de
Deus na história, em liberdade responsável, é im p re scin d íve l um a a dm inistração descentra­
lizada dos recursos da terra, em co ntraposição à tendência ce n tralizadora d o Estado ou das
m ultin a cion a is.

231
Está ficando cada vez mais claro, entretanto, que é tempo de ree­
xaminar as ortodoxias econômicas de todos os pontos-de-vista ideo­
lógicos. Temos uma necessidade enorme de economistas profunda­
mente imersos na fé bíblica, que se dêem ao trabalho de repensar
fundamentalmente toda a economia, partindo do pressuposto de que
a gente pobre também é importante. Temos somente uma idéia
muito parcial do que seria uma versão moderna do ano do Jubileu.
Mas bem no centro da conclamação de Deus para o Jubileu está a
demanda divina por uma regular e fundamental redistribuição dos
meios de produção de riqueza, de modo que todos possam ganhar
e viver' do seu próprio sustento. Temos que descobrir modelos novos
e concretos de aplicação deste princípio bíblico em nosso mundo ca­
da vez mais interdependente. Esperamos e oramos por uma nova ge­
ração de economistas e cientistas políticosquedevotem suas vidas
a formular, desenvolver e implementar um modelo contemporâ­
neo do Jubileu.
0 Sino da Liberdade, que se encontra na parte histórica da
cidade de Filadélfia, poderia vir a ser um poderoso símbolo para
todos os cristãos e cidadãos que trabalham pelo compartilhamento
dos nossos recursos com os pobres do mundo. A inscrição sobre o
Sino, "Proclamai libertação em toda a terra", vem da passagem bí­
blica sobre o Jubileu (Levítico 25.10)! Estas palavras prometiam
liberdade e terra para ganharem a sua vida aos hebreus escraviza­
dos pelas suas dívidas. Hoje a pobreza escraviza centenas de mi­
lhões. O Deus da Bíblia ainda requer mecanismos institucionaliza­
dos que possibilitem a todos um viver digno e justo. A inscrição do
Jubileu sobre o Sino da Liberdade faz ressoar uma conclamação pa­
ra a justiça econômica internacional.
Terão os cristãos coragem para exigir e implementar as transfor­
mações estruturais necessárias para tornar esta antiga inscrição uma
realidade no mundo de hoje?
EPÍLOGO

Vivemos hoje num dos grandes pontos decisivos na história. A


atual distribuição de recursos mundiais talvez não vá longe. Ou al­
guns corajosos pioneiros haverão de persuadir as nações relutantes
a compartilharem da abundância da boa terra, ou entraremos numa
era de catastrófico conflito.
Os cristãos deviam estar na vanguarda. A igreja de Jesus Cristo
é a mais universal das organizações no mundo de hoje. Tudo que te­
mos a fazer é obedecer em verdade àquele a quem com justiça ado­
ramos. Mas obedecer significará seguir. E ele vive entre os pobres
e oprimidos, buscando justiça para aqueles que estão em agonia.
Em nossos tempos, seguir os seus passos significa adotar estilos-de-
vl3ã*‘ simples. Significa igrejas transformãdãsT com uma vida comu­
nitária coerente com a adoração do Deus dos pobres. Significa um
comprometimento disposto a pagar o preço com mudanças estru­
turais na sociedade secular.
Terão os cristãos hoje tal tipo de fé e de coragem? Seremos nós
pioneiros de novos modelos de compartilhamento para o nosso mun­
do, sempre mais interdependente? Ousaremos tornar-nos a vanguar­
da na luta por mudanças estruturais?1
Temos que confessar com tristeza que a maioria dos "cristãos"
afluentes, de todas as rotulações teológicas, têm dobrado os joe­
lhos diante de Mamon. Se forçados a uma escolha entre defender o

1 R o b e rt Bellah d iz q u e ?a qualidade de u m a cu ltura pode ser m ud ad a q u a n d o dois


ce n to do sou p ovo te m u rra nova visao. " C iv i l R e lig io n " , P s ych o lo g y T o d a y ,
seu luxo e seguir a Jesus entre os oprimidos, tememos que imitem
aquele jovem rico.
Mesmo assim não somos pessimistas! Deus realiza fielmente a
sua vontade por meio defiéis remanescentes2. Mesmo em nações
afluentes, existem milhões e milhões de cristãos que amam ao seu
Senhor Jesus mais do que ouro e bens. Mais e mais cristãos estão
começando a se conscientizar de que o seu Senhor os chama para
alimentar os famintos e buscar justiça para os oprimidos.
Se neste momento da história alguns milhões de cristãos ousa­
rem estender suas mãos aos pobres ao redor do mundo, poderemos
influenciar decisivamente o curso da história mundial. Juntos temos
que nos esforçar para ser um povo bíblico, pronto para seguir as
Escrituras para qualquer lugar a que nos guiarem. Temos que orar
para ter coragem para suportar qualquer cruz, sofrer qualquer pre­
juízo e alegremente fazer qualquer sacrifício que a fé bíblica exigir
em tempos como os nossos. Tempos de Fome.
Sabemos que o nosso Senhor Jesus vive! Sabemos que a vitória
decisiva sobre o pecado e a morte já aconteceu. Sabemos que o So­
berano do universo quer terminar com a fome, injustiça e opres-
são. A ressurreição de Jesus é a nossa garantia de que, a despeito
da tremenda maldade nue às vp7rs gna<a> nnc upnrg, a vitoria finai
virá com certeza2. Seguros sobre essa sólida rocha, mergulharemos
neste mundo injusto, mudando ia agora turio n que estrf _ao nosso
alcance e saEéndooue o Rei Jiessurreto completará a vitória quan­
do do seu glorioso retorno.

V e r os m eus artigos " T h e Ressurrection a nd Radical Discip leship ” , R ig h t O n , A b r il ,


1 9 7 6 , p p . 5ss, e " A case f o r E a s te r", H I S , A b r il, 1 9 7 2 , p p . 2 7 -3 1 . Para u m a discussáb mais
e xtensiva, v e r ta m b é m alguns o u tro s artigos q u e escrevi, ''T h e H is to ria n , the M ira culou s and
P o s t-N e w to n ia n M a n " , S co ttis h Jo u rn a l o f T h e o lo g y , X X V (1 9 7 2 ), 3 0 9 -1 9 ; ' T h e Pauline
C o n c e p tio n o f the R e ssurrection B o d y in 1 C o r. 1 5 .3 5 -5 4 " , N e w Te s ta m e n t Stu d ie s, X X I
(1 9 7 5 ), 4 2 8 -3 9 ; " S t . Paul's U n d e rs ta n d in g o f the N a tu re a nd S ig n ifica n ce o f the Ressur­
re ctio n in 1 C o r . 15.119*', N o v u m T e s ta m e n tu m , X I X (1 9 7 7 ), 1 -1 8 ; e "Je s u s' Ressurrection
a nd the S earch fo r Peace and Ju s tic e ", C h ristia n C e n t u r y , 3 de N o v e m b r o , 1 9 8 2 , p p . 1 1 0 3 -0 8 .

234
ALGUMAS ENTIDADES QUE DESENVOLVEM TRABALHO SOCIAL
Esta relação, obviamente, é incompleta. Pede-se que entidades não conside­
radas (devido ao prazo muito exíguo para o acabamento do livro) enviem seus
históricos e endereços à Editora Sinodal.
Ação Comunitária Batista
Criada pelas Igrejas Batistas de Cotia e Itapevi, mantém Clube de Engraxates,
Fazenda de Assistência ao Menor, Clube de Mães e outros projetos.
(Endereço: Rua das Flores, 3; Bairro do Portão, 06700 Cotia/SP)
Amparo ao Menor Carente (AMENCAR)
Entidade interconfessional que atende mais que 14 mil crianças em 146 lares e
instituições, em 13 Estados brasileiros, atra vás do sistema de apadrinhamento e
convênios, sendo que a grande maioria dos recursos provêm da instituição alemã
“Kindernothilfe” , que atua em 30 países. Mais que mero distribuidor de verbas
para manutenção, o AMENCAR presta orientação pedagógica, psicológica e de
formação profissional através de cursos e centros de treinamento, onde se abran­
gem os colaboradores e as famílias.
(End.: R. Epifãnio Fogaça, 467, Tel. (0512)92-1505, 93 000 São Leopoldo/RS)
X
Associação Beneficente Evangélica da Floresta Imperial (ABEFI)
Mantém cursos de treinamento profissional para pessoas procedentes do interior
em escolas-fábrica de calçados, formando aproximadamente 80 por ano; Escola
Evangélica da Paz, de 1° grau completo, também de caráter beneficente, com
gabinete médico e dentário; creche, com acompanhamento dos estudos e traba­
lho intensivo junto às famílias carentes. Pela Ação Encontro promove trabalho
nas periferias. Na área de Taquara mantém o Lar Padilha como internato-escola,
paia menores de ambos os sexos, com produção de horti-fruti-granjeiros e cria­
ção de bovinos, suínos, aves e peixes.
(Endereço: Av. Pedro Adams F°, 1974, Caixa Postal 412,
Tel. (0512)95-2468, 93 300 Novo Hamburgo/RS)
Associação Beneficente Luterana de Pelotas
Serviços de saúde em atendimento ambulatorial (700 por mês), creche e jardim
de infância.
(Endereço: Rua Marcüio Dias, 1052, Caixa Postal 244,
Tel. (0532)22- 7008, 96100 Pelotas/RS)
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