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Cristaos Ricos em Tempos de Fome - Ronald Sider - 230703 - 075120
Cristaos Ricos em Tempos de Fome - Ronald Sider - 230703 - 075120
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C Ä - 6 Z . O iU & Ï U A A T . £ U £ 7 .^ T . 'S
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EM TEMPOS DE
FOME
M O V I N G F R O M A F F L U E N C E to G E N E R O S I T Y
(èBQStrâos saeos
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Traduzido e adaptado por
Enio R. Mueller
EDITORA SINODAL
1984
AGRADECIMENTOS DO AUTOR
5
vida em comum, sem a qual este livro nunca teria sido possível, e
pelo seu amor, quero expressar-lhe o meu mais profundo apreço.
Introdução..................................................................................... 15
3. Deus e os Pobres..................................................................... 60
Pontos-Chave da História da Revelação ............................. .... 61
a — 0 Éxodo ..................... .'.................................................. 62
7
b — Destruição e Exílio .......................................................... 63
c — A Encarnação.................................................................... 67
Deus se Identifica com os Pobres................................................. 70
Os Instrumentos Especiais de Deus............................................... 71
Deus — Um Marçista?.................................................................... 74
Os Interesses de Deus e os Nossos................................................. 80
8
0 Dízimo Escalonado..................................................... ..............192
Vida Comunal .............................................................................. 195
Critérios Gerais..............................................................................199
Sugestões Práticas.......................................................................... 199
Critérios Para a C ontribuição.......................................................201
9
PREFACIO
Enio R. Mueller
/ 2 f iv OOO <“0
4 íjfo o . o o o ^
15
soas estão realmente passando fome no mundo de hoje. Quais são os
efeitos da pobreza? Sem querer usar de chavões apelativos: Quão
grande é o abismo entre os ricos e os pobres, hoje? E a que se parece
a nossa opulência quando comparada com a pobreza daqueles? De
pois de buscarmos respostas a essas questões, nos capítulos 1 e 2, es
taremos prontos para, nos capítulos 3 a 6, pesquisar as Escrituras,
com vistas a saber o que diz a Palavra de Deus sobre riqueza e po
breza.
0 objetivo deste livro é desenvolver um posicionamento bíblico
com relação ao assunto. A primeira parte procura nos situar dentro
dele, com uma breve visão geral da pobreza mundial e da riqueza do
Hemisfério Norte. A parte central do nosso estudo é a segunda, "Po
breza e Riqueza em Perspectiva Bíblica". Na terceira parte procura
mos apresentar sugestões concretas para o indivíduo, a igreja e a
sociedade.
16
PARTE I
OS CRISTÃOS RICOS
E LÁZARO, O POBRE
CAPITULO UM
UM B I L H Ã O DE
PRÓ XI MOS F A M I N T O S
As vezes penso: "Se eu morresse não precisava ver meus filhos so
frendo desse je ito ." Âs vezes até chego a pensar em me matar. Quan
tas vezes eu vejo eles chorando, com fome: e fico aí parada, sem um
centavo sequer para poder comprar um pedaço de pão. Penso comi
go mesma: "Meu Deus, eu não agüento! Vou dar um fim na minha
vida. IMão quero mais ver isso!'' (Iracema da Silva, moradora de uma
favela no Brasil)1.
19
Entramos na cozinha. Como os eletrodomésticos já haviam sido
tirados antes, nos voltamos agora para o guarda-louças . . . A caixa
de fósforos pode ficar, um pequeno pote com farinha, algum açúcar
e um pouco de sal. Umas poucas batatas mofadas, que já tinham ido
para o lixo, têm que ser resgatadas depressa, pois representam a ga
rantia do próximo jantar. Deixaremos também um punhado de ce
bolas e uma tigela de feijões ressequidos. Tudo o mais vai fora: a car
ne, as hortaliças frescas, os enlatados, os biscoitos, os doces.
Deixamos a casa quase vazia. 0 banheiro foi desmantelado, fo i
cortada a água encanada, e desligada a rede elétrica. O próximo pas
so agora é levar a própria casa. A família pode se mudar para a gara
gem . . .
Passamos para o setor das comunicações. Nada mais de jornais,
revistas, livros — não farão falta, pois teremos que tirar também de
nossa família a própria capacidade de ler e escrever. Em lugar disso
permitiremos um rádio no barraco. ..
Depois é a vez dos serviços públicos. Nada de correio, nem de
bombeiros. Há uma escola, mas fica a quase cinco quilômetros e
conta com apenas duas salinhas de aula . . . Obviamente não há, nas
proximidades, hospitais ou médicos. 0 posto de saúde mais próximo
está a quinze quilômetros e é atendido por uma parteira. Pode-se
ir até lá de bicicleta — isto, se a família dispuser de uma bicicleta, o
que é pouco provável. . .
Finalmente, o dinheiro. Deixaremos para a família uma reserva
de cinco dólares. Isso evitará que o responsável pelo sustento da fa
mília viva a tragédia de um camponês iraniano que ficou cego por
não conseguir arranjar os 3,94 dólares que ele, equivocadamente,
achava precisar para dar baixa num hospital onde podia ter sido
curado2.
20
do Banco Mundial menciona haver mais de 800 milhões empestado
de indigência4. Um suplemento especial do "Development Forum"
(publicaçãcTdas Nações Unidas), intitulado "Facts on Food" ("Fa
tos sobre Alimentação"), publicado em novamhro de 1974. estima
va que " metade da população mundial. 2 bilhões, está mal alimenta-
da". Usaremos aqui uma cifra bastante conservadora de um bilhão
de pessoas subnutridas, tomando por base um ano normal: pois tal
cifra sobe muito em tempos de escassez mundial de alimentos, como
os anos 1972-74, podendo ser menor quando as colheitas são boas,
especialmente nos países em desenvolvimento, como, graças a Deus,
tem acontecido entre 1975 e 1982.
4 B ra n d i, p. 18.
5J ohn P. Lew is e V aleria n a K atlab teds.J, U.S. Foreign P o licy and tho T h ird W orld:
Agenda 1 9 8 3 (N ov a Io rq u e : Praeger. 1 9 8 3 ). p . 2 1 0 .
21
■ A :ís
/
r ^
América Latina e algumas outras na Asia e na Africa. Alguns des-
ses_países têm experimentado um_crescirnento_econômico conside-
^ rávei. Tragicamente,_isso^rn_geraMem;traz4fjo pouco ou nenhum be-
Ia , inefício para_os_p_obres. (O Brasil e o Méxiaysão exemplos clássicos.
® j ~ No Brasil, uma ditadurêT militar fortemente apoiada pelos Esta
■"v . ,^dos Llnidos (3rornoyeu_um^çxescimento real da economia a uma taxa
de 10% ao ano, entre 1968 e 1974. Um~crescimento em torno de
í S% ao ano continuou até 19806. Mas quem foi beneficiado? O pró
prio Ministro da Fazenda brasileiro admitiu, em 1972, que someote
5% da população havia se beneficiado com o fantástico crescimento
âa economia brasileira. O governo brasileiro não desmentiu um estu
do feito em 1974 que mostrava que o_pod£iiagijjsitivo-real-dos-dois
terços mais pobres da população havia_diminuído em mais da metade
nos_dêz~ãrfos anteriores.'Em'T975, 58% das crianças brasileiras com
menos de 18 anos estavam subnutridas7. Em 1980, 40% da popula
ção total sofria de desnutrição". Em 1972, 60% da população brasi
leira recebia uma parcela em torno de 16% da renda total do país.
Os 10% mais ricos, por outro lado, ficavam com mais de 50% da ren
da do pais. De 1960 a 1972, os 40% mais pobres viram a sua parte
da renda total declinar de 10 para 1%'>. (Infelizmente, informações
j mais recentes sobre distribuição de renda etc., baseadas no censo,
/ de 1980, estão sendo retidas pelo governo brasileiro.10 )
A taxa de mortalidade infantil é um dos indicadores mais sensí
veis para averiguasse uma sociedade vai de encontro às necessidades
22
básicas dos 50% mais pobres da sua população. No Brasil os índices
de mortãfidádê infantil urbana cresceram, de 1961 a 1970, de 103
RaraJ_09_emj:ada mil crianças11.
Provavelmente as coisas deterioraram para os pobres no Brasil
nesta década, à medida que foram mais atingidos pelos problemas da
economia brasileira desde o aumento dos preços do petróleo em
1973. Infelizmente o rápido crescimento econômico brasileiro mui
to pouco contribuiu para melhorar a situação dos que mais necessi
tam dele.
_No_México, onde a renda média per capita cresceu, em termos
reais, em torno de 2,7% ao ano entre 1960 e 1978, os 20% mais ri
cos conseguiram aumentar a sua parte na distribuição da renda de
56,5 para 57,7%. E os pobres, nesse meio tempo, tiveram reduzida
a sua parte. Em 1968, os 40% da base inferior da pirâmide da renda
ficaram com 12,2% do bolo; em 1977, a sua parte era menor que
10%. Os 20% mais pobres viram a sua parte cortada de 3,6 para me-
nosde3%. Isso não quer dizer que os pobres tiveram realmente ren
das mais baixas. As cifras mostram que a renda per capita dos 20%
mais pobres da população permaneceu mais ou menos a mesma, su
bindo de 183 para mais ou menos 187 dólares por ano. Mas os 20%
mais ricos viram ã sua renda aumentada em mais de 850 dólares per
capita, passando de 2.867 para 3.722 dólares anuais. O cidadão po
bre médio teve a sü¥ nriãgra renda aumentada em 4_dójares num pe-
río.do^de_-18-anos, enquanto que o rico médio acrescentou 850 dó-
lares-à-sua no mesmo período12.
A dor e as lágrimas de toda essa gente estão contidas nas pala
vras da sra. Alarin, das Filipinas. A família Alarin (composta de sete
pessoas) vjye_Duma_peça_de_2,5-por 3 metros. De mobília, só pane
las. O sr. Alarin consegue 70 centavos de dólar nos melhores dias,
vendendo sorvete. Várias vezes por mês a sra. Alarin passa a noite
em pé fazendo doce de coco que, depois, sai a vender pelas ruas. Por
uma noite de serviço como essa, tudo que consegue são 40 centavos
de dólar. Fazia um mês que a família não sabia o que era comer car
ne quando foi visitada por Stanley Mooneyham, de "Visão Mun-
JTal". Este conta o seguinte a respeito da sra. Alarin:
UM HISTÓRICO DA SITUAÇÃO
24
Para aumentar a tragédia, dois fatores mais se acrescentaram:
colheitas fracas na América do Norte, Europa, União Soviética e
Japão, e uma venda excepcionalmente elevada de cereais dos Esta
dos Unidos para a União Soviética, fazendo com que o custo do
grão para exportação praticamente triplicasse nesse mesmo curto
período. E quando as nações pobres saíram desesperadas à procura
de cereais para alimentar as suas massas famintas, em 1974, tiveram
que pagar duas e meia vezes a mais do que dois anos antes por cada
tonelada. Para algumas das milhões e milhões de pessoas que já es
tavam gastando 80% do seu salário só em alimentação, restava um
só destino — morrer de fome. Milhões morreram.
Em 1975, voltamos a ter boas colheitas, e até 1983 não têm ha
vido problemas em escala mundial como aqueles do princípio da dé
cada de 70. Mas, a despeito da ausência de crises imediatas, os proble
mas a longo prazo permanecem. John Sewell, do respeitado "Overseas
Development Council", sediado em Washington, observa que "mes
mo que a produção total tenha continuado a crescer em todas as
regiões (desde 1970), a produção de alimentos per capita aumentou
muito pouco nos países em desenvolvimento"16. Mais adiante prè-
coniza que, ' em virtude de que 90% do crescimento da população
mundial até 1990 ocorrerá nos países em desenvolvimento, estas na
ções terão que, pelo menos, dobrar as suas importações para atender
à demanda crescente prevista para 1990, a não ser que haja um avan
ço substancial na sua capacidade de produzir mais alimentos"11. As
crescentes importações de alimentos pelos países pobres representa
rão um dreno muito grande nas suas balanças comerciais, se eles não
forem capazes de aumentar as exportações o suficiente para compen
sar as quantidades de alimentos importados cada vez maiores. E, pelo
menos até o presente, não temos qualquer razão para crer que as
suas exportações darão um grande salto na próxima década.
Sewell está certo. A menos que haja um esforço internacional em
larga escala visando especificamente melhorar a sorte das massas de
trabalhadores rurais nas nações famintas^as perspectivas de talvez um
bilhão de pessoas serão as mesmas em(T99p)como são hoje.
16Jo h n W . Sew ell et a l., T h e U n ite d States and W o rld D evelo p m en t: Agenda 1 9 8 0
(N ova Io rq u e : Praeger. 1 9 8 0 ), p. 6 0 .
25
UMA REDEFINIÇÃO DE "FOME"
Uma das razões pelas quais aqueles que estão bem de vida podem
ignorar tragédias como esta é que ocorreram modificações no próprio
modo como a fome se manifesta. Em períodos anteriores da histó
ria, . . . nações inteiras . . . passavam por duras experiências de fo
me e de morte p o r inanição. Hoje os progressos nos sistemas de distri
buição, tanto nacionais como internacionais, concentraram os efei
tos da escassez de alimentos sobre os pobres do mundo, estejam on
de estiverem18.
26
um e quatro anos de Idade"21.
Carolina Maria de Jesus nos dá uma mostra da realidade do terror
e da angústia enfrentadas por gente pobre numa terra onde poderiam
ter o suficiente para comer. Os sentimentos diariamente registrados
em sobras de papel por esta brilhante semi-analfabeta, que dava duro
para conseguir sobreviver numa favela em São Paulo, foram publica
dos num livro muito tocante intitulado "Quarto de Despejo":
"22 de maio. Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se cho
ro ou saio correndo sem parar até cair inconsciente, ê que hoje
amanheceu chovendo. E eu não saf para arranjar dinheiro [ela cos
tumava sair à cata de papel velho para vender e poder comprar co
mida] . . . Tem uns metais e um pouco de ferro que eu vou vender
no Seu Manuel. Quando o João chegou da escola eu mandei ele ven
der os ferros. Recebeu 13 cruzeiros. Comprou um copo de água mi
neral, 2 cruzeiros. Zanguei com ele. Onde já se viu favelado com es
tas finezas? . . .
Os meninos come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas
quando não tem eles comem pão duro. Duro é o pão que comemos.
Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.
Oh! São Paulo, rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro
que são os arranha-céus. Que veste viludoc seda e calça meias de algo
dão que é a favela.
. . . 0 dinheiro não deu para comprar carne, eu fiz macarrão com
cenoura. Não tinha gordura, ficou horrível. A Vera é a única que re
clama e pede mais. E pede:
— Mamãe, vende eu para a Dona Julita, porque lá tem comida
gostosa"22.
Stanley Mooneyham, da "Visão Mundial", conta de uma visita
que fez à casa de Sebastião e Maria do Nascimento, um pobre casal
brasileiro, e que o deixou muito comovido e impressionado. 0 bar
raco de uma peça era de chão batido e coberto com palha. Uma
banqueta, um fogareiro e quatro camas-de-esteira cobertas com sa
cos parcialmente forrados com palha, era o que havia de mobília.
27
pelados, imóveis, estavam a viver o último ato do seu drama pessoal.
Movidas de compaixão, as cortinas se fechavam para a sua tão curta
existência. 0 bandido da peça chamava-se 'desnutrição'. Ao lado, o
menino de dois anos representa um papel silencioso.Seu cérebro ve
getava, em conseqüência do marasmo, uma forma severa de desnu
trição.
O pai está desempregado. Tanto ele como Maria estão angustia
dos com relação à própria sobrevivência, pois têm orgulho demais pa
ra saírem a mendigar. Ele tenta ganhar alguma coisa como engraxate.
Maria não consegue nem falar sobre a situação em que se encontram.
Ela tenta, mas as palavras não querem sair. O amor dessa mãe pelos
seus filhos é terno e profundo e a lenta deterioração de suas vidas
é mais do que ela pode suportar. O vocabulário de uma alma angus
tiada são as lágrimas23.
A pequena filha de Carolina não precisaria suplicar que a vendes
sem a um vizinho um pouco mais rico. E enquanto os gêmeos de Se
bastião e Maria morriam de fome, havia comida suficiente e em abun
dância no Brasil. Mas ela não era dividida de modo justo. Os "bem-
de-vida'' no Brasil tinham de sobra para comer. Duzentos e dez mi
lhões de americanos consumiam alimento suficiente (em parte por
causa do grande consumo de carne de gado engordado à base de
cereais) para satisfazer as necessidades de um bilhão de pessoas nos
países pobres!
Assim é que a fome tem sido redefinida — ou melhor, redistri
buída! Ela já não consegue mais afetar aos ricos e poderosos. Fere só
osj>0b£gs_fi_impotentes. E uma vez que os pobres geralmente mor
rem sem grande estardalhaço, em relativa obscuridade, os ricos de
todas as partes do mundo sossegadamente fazem de conta que a
fome não existe mais. Contudo — redefinida e redistribuída — ela
está aí, muito presente. Mesmo em tempos "bons", milhões e mi
lhões de pessoas vão dormir famintas. Os cérebros de seus filhos vege
tam e seus corpos sucumbem prematuramente diante de uma doença.
Po breza significa analfabetismo,., atendimento médico inadequa-
do, doença, retardameüto mental.
Só 36% dos 688 milhões de habitantes da Índia sabiam ler, em
1981. Nesse mesmo ano, somente a metade (54%) de todos os
3,4 bilhões de habitantes do mundo em desenvolvimento eram al
fabetizados24 .
2 3 M ooneyham , p. 48.
28
As pessoas no ocidente têm usufruído há tanto tempo dassegu-
ranças oferecidas pela moderna medicina que simplesmente acha
mos que ela deve estar já ao alcance de todos. Todavia, em 1982,
40% de toda a população na América Latina simplesmente não te
ve acesso a serviços de saúde“ . Na África e Ásia, a situação possivel
mente é pior.
2 5 V e r os núm eros para 1 9 8 2 em " H e a lth C o n d itio n s in the A m e ric a s " , S cien tific Pu
b licatio n 4 2 7 , da Organização Pan-am ericana de S aúde (a agência regional da Organização
M u n d ia l d e S aú d e).
2 6 lb id .. p. 1 0 2 .
29
Tabela 1
Suécia 7
Austrália 12
EUA 13
Reino Unido 13
Alemanha Ocidental 19
URSS 36
Chile 38
Guatemala 69
Egito 90
Brasil (1974) 94
Ruanda 127
India 134
Malawi 142
30
nha conseguido gerar um cérebro saudável"27 .
Ninguém sabe quantas crianças pobres sofreram lesões cerebrais
irreversíveis por causa de uma dieta protéica insuficiente durante a
infância. Contudo, como já mencionado, havia 210 milhões de crian
ças subnutridas em 1974 e mais em 1983. Disso pode-se inferir que
o número de deficientes mentais, como Marli, deve chegar a dezenas
de milhões.
Fome^n3lfabetismo,_doença, lesão cerebral, morte — é o que sig
nifica a pobreza. E pelo menos um bilhão de pessoas supõrtãTTTdia-
riãmente o tormento que ela traz.
POPULAÇAO
2 7 M o o n e y h a m , p . 19 1 .
31
Tabela 2
F o n te .L e s te r B ro w n , T h e T w e n ty -N in th D ay (N ova lo rq u e : N o rto n , 1 9 7 8 ), p. 7 4 .
32
Tabela 3
33
0_D0SS0_planeta_p0derá sustentar o atual nível de industrialização?
Qual será o efeito da poluição?~Quando se esgotarão os nossos re-
cúrsos_natura is- (especialmente_conTtíUstíveiS::derõrigémfóssil,como
o carvão e o petróleo)? Em 1972 o Clube de Roma (um grupo inter
nacional de elite, formado por executivos, tecnocratas e cientistas)
chocou o mundo com respostas a perguntas como essas baseadas em
análises feitas com uso de sofisticados computadores.
Tabela 4
Taxa de Popul. em
crescimento meados 1983
(• ) — m ilhões de hab.
35
perspectivas para o futuro?
Ninguém pode afirmar com segurança o que vai acontecer na pró-
xima~~década. Grandes períodos de fome cm nações pobres podem
levar seus líderes à tentação de desencadear guerras de redistribuição,
nüm^êsTõrço desesperado de conseguir ou impor uma distribuição
mais honesta dos recursos do Globo. Tal conjetura não é mera fan
tasia.
O mundialmente famoso economista Prof. Heilbroner preconi-
\zou o terrorismo nuclear e "guerras de redistribuição". Heilbroner
imagina o mundo como "um imenso trem, no qual uns poucos pas
sageiros (quase todos no avançado mundo capitalista) viajam em va
gões de primeira classe, em condições de conforto simplesmente ini
magináveis para a grande multidão espremida nos vagões de gado,
que constituem o grosso da composição"33. Quando a situação che
ga a ponto tal que milhões morrem e dezenas de milhões têm dian
te de si o terrível destino da inanição, um país como a India vê-se
obrigado a procurar uma saída.
3 3 lb id ., p . 3 9 .
3 4 lb id „ p p . 4 2 -4 3 .
36
mudanças fundamentais, guerras de proporções e ferocidade nunca
vistas continuarão perfeitamente dentro do quadro das possibilidades.
Stanley Mooneyham, presidente da "Visão Mundial", notável
entidade evangélica de assistência e desenvolvimento, nos ajuda a
entender o porquê disso:
3 7 CiTado em S tep h en C oats, " H u n g e r, S e c u rity and U .S . Foreign P o lic y '' ( “ Bread for
the W o rld Background P ap er" 5 3 . M a io , 1 9 8 1 ).
injustiça é o único caminho para a paz38.
0 Prof. Georg Borgstrom, especialista internacionalmente conhe
cido em ciências da alimentação e nutrição, teme que "o mundo ri
co está caminhando para um choque direto com os pobres do mun
do . . . Nós não conseguiremos sobreviver atrás da nossa Linha Ma-
ginot de mísseis e bombas"35. Mas provavelmente o tentaríamos. E
as conseqüências inevitáveis seriam guerra e carnificina, repressão e
totalitarismo. O que fariam os cristãos nestas circunstâncias?
Ousaremos continuar insistindo em que o Deus revelado nas Es
crituras está constantemente em ação procurando "pôr em liberda
de os oprimidos" (Lucas 4:18)? Terão os cristãos coragem para lu
tar pela justiça para os pobres, mesmo que isso signifique prisão?
De que lado estaremos, você e eu? Com os que passam fome ou
com os que comem demais? Com Lázaro, o mendigo, ou com o ri
co? A maioria das nações ricas são brancas e nominalmente cristãs.
Que irônica tragédia, a minoria branca, rica, "cristã" continuar acu-
imulando bens enquanto milhoès de pessóaVão redor do mund o
vãô morrendo de fome!
' Uma” revista evangélica bastante popular, de tendência funda-
metalista (com uma circulação de mais de sessenta mil exemplares),
conclamou os cristãos a armazenarem alimentos desidratados. Numa
engenhosa combinação de piedade apocal íptica com refinada promo
ção de vendas, a revista citava várias "autoridades" em estudos bíb li
cos para provar que alguns cristãos sobreviverão à grande tribulação.
A conclusão? Uma vez que ninguém pode estar absolutamente segu
ro sobre onde estarão durante esta tribulação, o negócio é ir com
prando um estoque de alimentos suficientes para sete anos, pela ba
gatela de alguns mil dólares40!
Em tempos de fome como os nossos, muitos cristãos (independen
temente de rótulos teológicos) são fortemente tentados a sucumbir
diante dessa heresia liberal de basear-se mais em valores culturais e
sociais da moda do que na verdade bíblica41. A sociedade terá argu
mentos diaboj jr.amentR convincentes para que fiq uemos usufruindo
da nossa opulência sem nós lembrarmos _do_bilhão de?p rõxTmos f a-
mmtõs^
3 8 G lo b a l 2 0 0 0 R e p o rt to th e President (U .S . G o ve rn m e n t: W ashington, 1 9 8 0 ), p . I V
da in tro d u ç ão .
A MINORIA RICA
A divisão de hoje.
Com uma ou duas exceções, os países ricos se situam no Hemisfé
rio Norte e os pobres no Sul. A América do Norte, Europa, Rússia
e Japão representam uma opulenta aristocracia nortista. Nosso pa
drão de vida, quando comparado com o de um bilhão de pobres
no mundo, é pelo menos tão luxuoso como o da aristocracia medie
val em comparação com o dos seus servos.
40
UM ABISMO CADA VEZ MAIOR
Tabela 5
Suécia 14.500
Estados Unidos 12.530
Japão 9.890
Brasil 2.214
Nigéria 873
Quênia 432
índia 253
Bangladesh 144
41
A tabela 5 mostra que os bens do mundo encontram-se reparti
dos de uma forma assustadoramente desigual. O PNB per capita nos
EUA em 1981, por exemplo, foi de 12.530 dólares; na índia foi de
apenas 235 dólares.
Virtualmente todos os especialistas concordam com que o abis
mo se alargará ainda mais até o ano 2000. O Global 2000 Report to
the President (1980) preconiza o seguinte:
4 G lo b al 2 0 0 0 , p. 1 3.
42
dente a opulência em que v.ivemos. Por causa de uma lista cada vez
maior de "luxos" — grande número de aparelhos e utensílios elé
tricos, automóveis com ar condicionado, arranha-céus e por aí a fo
ra — os norte-americanos consomem duas vezes mais energia por pes
soa que os seus parceiros em países industrializados como a França
e a Inglaterra, e 150 vezes mais que a média das pessoas no Zaire7.
Existem várias formas de tornar evidente a incrível opulência
do Ocidente em relação aos países menos desenvolvidos. Mas, sem
dúvida, a conclusão mais frapante do medir as dimensões do abismo
entre nações ricas e pobres fornece a comparação do consumo nas
necessidades mais elementares — alimentação. Como mostra a Tabe
la 6, os cidadãos norte-americanos consomem quatro vezes mais ce
reais por pessoa do que a média da população nos países em desen
volvimento.
Tabela 6
média média
1969-71 1973-75
7V e ja o C a p ítu lo 6 , p. 1 3 6 .
43
julho de 1983 conversei com George Allen, economista-agrônomo
do Serviço de Pesquisas Econômicas do Departamento da Agricultu
ra dos EUA8. Allen nos disse que um novilho consome na engorda,
para cada quilo de carne que produzirá, treze quilos de cereais! O
New York Times de 28 de novembro de 1974 reportava que na dé
cada de 40 somente um terço do gado destinado para abate era ali
mentado à base de grãos. Em 1970 o índice era de 82%. Allen disse
ainda que, se for considerado o tempo de vida total do animal, cada
quilo de carne representa sete quilos de cereais consumidos. Isso sig
nifica que (fora o pasto, feno e outras forragens) são necessários se
te quilos de grãos para produzir um quilo de carne de gado que com
pramos hoje. Felizmente os índices de conversão para aves e porcos
são menores. A carne de gado-é-o—cadilaaue" dos produtos alimen
tícios9 . Será.que já não_é hora de começarmõTTadenrjips carros
econômicos?
É por causa deste elevado índice de consumo de carne que a mi
noria rica do mundo devora uma parte tão significativa do alimento
disponível. A Tabela 7 mostra que, em 1982, 775 milhões de pessoas
nas nações desenvolvidas consumiram quase tanto cereal (428 mi
lhões de toneladas) como os 2.248 milhões de habitantes das nações
menos desenvolvidas (475 milhões de toneladas). Enquanto come
mos grande parte do cereal indiretamente, via carnc, o povo dos paí
ses pobres se alimenta diretamente com cereal. Dados da ONU revela
ram que os rebanhos nas nações ricas comeram tantos grãos em 1974
quanto as populações somadas da fndia e da China10.
44
Tabela 7
Economias c/
Planejamento
Central 1.413 582 183 31% 399
Nações Menos
Desenvolvidas 2.248 475 75 16% 400
Nações
Desenvolvidas 775 428 279 65% 149
45
Felizmente as tendências nos EUA têm se inclinado para a direção
certa nos anos mais recentes. De 1940 a 1972 o consumo anual de
carne de gado por pessoa saltou de 25 para 53 quilos. Em 1973, en
tretanto, caiu para 50 quilos e em 1982 estava por volta de 36 qui
los15 .
Enquanto a falta de comida mata milhões nos países pobres, o
excessoae comida^fai o mesmo nos países ricosT Segun3cTã pesquisa
mais recente do Uentro Nacional ae Estatísticas sobre a Saúde, dos
EUA, terminada em 1980, 32% dos homens e 36% das mulheres
americanas entre os 20 e os 74 anos têm excesso de peso16.
A porcentagem da renda gasta em alimentação nos diferentes
países fornece outros contrastes: Nos Estados Unidos, são meros
12,7%; na índia, 55,5% e na Nigéria, 63,6%.
16D ados n âo -publicados da pesquisa nacional sobre saúde e n u trição . " N a tio n a l H ealth
and N u tr itio n E x a m in a tio n S u rv e y " (1 9 7 6 -8 0 ), realizada pelo C e n tro N acional de E s ta tís ti
cas sobre Saúde. 3 2 % dos hom ens e 3 6% das m ulheres am ericanas tê m 10% de peso em
excesso, em m éd ia. 1 6 % d e todos os hom ens e 2 4 % d e todas as m ulheres tê m 2 0 % d e excesso.
N ú m e ro s o b tid o s através de c o n ta to pessoal p or te le fo n e , no dia 9 d e agosto de 1 9 8 3 , com
S id n ey A b ra h a m , ch efe d o S e to r de Estatísticas sobre N u triç ã o d o C en tro N acional de E sta
tís tica s sobre Saúde. V e r , além disso, "O verw eig h t A d u lts in th e U n ite d S tates” , A dvanced
D a ta , N r 5 1 , 3 0 A g o sto , 1 9 7 9 .
46
Tabela 8
í
vezes mais privilegiados 0o que -a maioria de nossos irmãos e irmas,
que são pobres. E o hiato se plarga a cada ano que passa.
V
"POBREZA" COM 30.000 DÓLARES POR ANO?
47
r
Tabela 9
48
dólares anuais (pela cotação de 1983) se sentiam como estando à bei
ra da pobreza19.
Para a grande maioria da população mundial, tal afirmação pare
ce incompreensível — ou muito desonesta. Bem, certamente precisa
remos de 30, 40 mil ou mais por ano, se insistirmos em ter dois
carros, uma casa grande e luxuosa em zona residencial, um seguro de
vida de 100.000 dólares, roupas novas a cada mudança de moda, as
últimas novidades em aparelhos práticos para a casa e o jardim ("pa
ra poupar tempo"), três semanas de férias por ano para viajar, etc. e
etc. Muitos norte-americanos são levados a ambicionar exatamente
isso. Mas isso está longe do que se poderia chamar de "lim ite de po
breza".
Avaliados a partir de qualquer critério objetivo, os 5% da popula
ção mundial que vivem nos EUA formam uma aristocracia incrivel
mente rica vivendo no meio de massas de proletariado. Por isso, uma
das coisas mais espantosas, no que diz respeito a essa rica minoria, é
estarmos sinceramente convencidos de que mal temos o suficiente pa
ra sobreviver dentro de um modesto conforto.
A GRANDE MENTIRA
49
nos levam a ver as nossas (perfeitamente adequadas) casas, por com
paração, como se fossem barracos pequenos e em ruínas, a necessitar
urgentemente de uma reforma completa. A exposição dos novos mo
delos para outono e inverno fazem os nossos trajes e blusas dos anos
anteriores parecerem gastos e decididamente ultrapassados.
Em cada esquina, somos bombardeados por uma propaganda so
fisticada e manipuladora. Um adolescente norte-americano médio já
assistiu a 350.000 comerciais de TV antes de terminar o segundo
grau!21 Os americanos gastam mais dinheiro em publicidade do que
em todas as instituições de ensino superior. Em 1981, 61,3 bilhões de
dólares foram gastos em propaganda, "para nos convencer de que Je
sus estava errado no que ensinou sobre a abundância de bens ma
teriais"22 .
Luxos são transformados em necessidades urgentes pelo poder da
propaganda."Nosso carteiro recentèmentelnosTrouxe um bem-acaba-
d^fõnTetlrn, ilustrado com bonitas fotos de casas muito finas. Um
anúncio trazia a sedutora mentira de que a revista "Architéctural Di-
gest" nos ajudaria, enfim, a satisfazer a "ardente necessidade huma
na de beleza e luxo". Supostamente, "necessitamos" de luxo! g
Algumas vezes chega a ser cômico o exagero da propaganda. Uma
livraria evangélica, que costuma oferecer bons descontos em suas ven
das, criou recentemente essa jóia promocional, com um toque de pie
dade: "Você vai ficar com água na boca e com a alma em chamas
quando puser os olhos nas barganhas que providencialmente prepara
mos para o seu benefício durante este mês". (E eu prontamente fiz
uma encomenda de livros no valor de 24 dólares! A minha bibliote
ca é um dos meus quase-ídolos.)
PROMESSAS, PROMESSAS
- 4 N ew sw eek, 2 8 d e O u tu b ro . 1 9 7 4 , p, 6 9 .
51
do padrão de vida sempre mais elevado, promovido por uma cons
tante propaganda, é na realidade uma conseqüência final do llumi-
nismo.
Por volta do século X V III, a sociedade ocidental concluiu que
o método científico é que deveria determinar nosso relacionamento
com a realidade. Uma vez que somente critérios quantitativos de va
lor e de verdade eram aceitáveis, valores menos concretos como co
munhão, confiança e amizade passaram a um plano mais secundário.
O PNB pode ser mensurado, o mesmo não acontecendo com valores
como amizade e justiça. Em conseqüência desses princípios, chega
mos à nossa competitiva economia de crescimento, onde o lucro e o
sucesso econômico (considerados na prática quase a mesma coisa) se
tornam os critérios dominantes26.
Se Kerans tem razão, o resultado disso só pode ser a desintegra
ção social. Se as nossas estruturas sociais básicas estão construídas so
bre as pressuposições heréticas do lluminismo, de que o método cien
tífico é o único caminho para chegar à verdade e aos verdadeiros va
lores, então — se o cristianismo tem razão — parece inevitável o co
lapso da nossa sociedade.
A propaganda contém em si mesma uma contradição fundamen
tal21 . Os cristãos sabem que riqueza não traz felicidade, amor e acei
tação. A propaganda, porém, promete tudo isso àqueles que cobiçam
ter sempre mais posses e contas bancárias mais polpudas. Dada a nos
sa inclinação natural para a idolatria, a propaganda é tão diabolica
mente poderosa e persuasiva que consegue levar tanta gente a per
sistir em seus esforços infrutíferos por satisfazerem a sua sede de
sentido e realização com uma crescente enxurrada de dinheiro e pos
ses.
A conseqüência é: internamente, uma angustiante infelicidade
e insatisfação indefinida; externamente, injustiça social e estrutural.
A nossa riqueza não consegue satisfazer os nossos corações inquie
tos. E além disso ainda ajuda a privar um bilhão de próximos famin
tos dos alimentos e recursos tão necessários para a sua vida. Teremos
nós, cristãos ricos, a coragem e a sinceridade para aprender a não nos
deixarmos determinar pela propaganda sedutora e satânica deste
mundo?
2 6 P a tric k Kerans, S in fu l Social Stru ctu res (N ova Io rq u e :P a u lis t Press, 1 9 7 4 ), pp. 8 0 -8 1 .
52
PRETEXTOS PARA A NOSSA RIQUEZA
53
tas, no setor educacional, o crescimento populacional tende a decair
rapidamente. Lester Brown nos oferece um resumo de recentes des
cobertas nesse campo:
54
rica consome mais cereal do que um quarto de toda a população
mundial, é absurdo e imoral falar em necessidade de deixar gente
morrer de fome em determinados países. O barco em que naveqam
psricos não é um bote salva-vidas. precariamente eqüTpãgõ. £ um lu
xuoso transatlântico carregando uma sociedade esbanjadora. ~~
A proposta de Hardin é também não-realista. Nações famintas
deixadas ao léu para morrerem de fome não iriam desaparecer pas
sivamente, em silêncio e submissão. A índia, por exemplo, é uma das
nações mais freqüentemente lembradas a ser honrada com tal desti
no. Só que, como já foi frisado, um país possuidor de armamento
nuclear não toleraria assim no mais tal decisão a seu respeito!33
Uma segunda espécie de justificação vem acompanhada de um
toque de santidade. Será que o mandato evangelístico de testemu- i
nhar o evangelho a pessoas importantes exige que alguns cristãos /
adotem um estilo-de-vida condizente com a posição dessas pessoas? (
Talvez.
Mas é tão fácil achar justificativas! A igreja Garden Grove Com-
munity, na Califórnia, dispõe de um luxuoso complexo de instalações,
inclusive com uma série de chafarizes que começam a jorrar água
quando o pregador aciona um botão no púlpito. Tudo isso custou
milhões de dólares, ü pastor, Robert Schuller, justifica as suas ins
talações luxuosas dizendo:
Estamos tentando causar uma boa impressão para o americano
rico e não-religioso que viaja por esta movimentada rodovia. É cla
ro que não estamos tentando impressionar os cristãos'. . . . Supo
nhamos que tivéssemos dado o dinheiro para alimentar aos pobres:
que teríamos hoje? Teríamos ainda outra gente pobre e faminta
por aí, e Deus não teria essa tremenda base de operações, a qual ele
está usando para inspirar pessoas a se torriarem mais bem sucedidas,
mais ricas, mais generosas, mais genuinamente despojadas de si no
ato de dar3* .
Onde afinal terminam as justificativas válidas e começam os sub
terfúgios? É claro que precisamos evitar um legalismo simplista. Cer
tamente os cristãos podem morar onde quiserem, no subúrbio ou
no centro. Contudo, os que defendem um padrão-de-vida mais eleva-
___________ (
3 3 Para um a c rític a bem resum ida com relação á seleção e ética salva-vidas, ver Lester
B ro w n , Th e Po litics and R esponsability o f th e N o rth -A m e ric a n Breadbasket, p. 3 6 ; bem
com o Bread fo r th e W o rld N e w slette r, Ju lh o , 1 9 7 6 .
55
do com base num chamado a testemunhar aos ricos devem confron
tar-se com perguntas incômodas como estas: Üuanto do meu eleva
do padrão-de-vida está diretamente relacionado com o meu testemu
nho a vizinhos ricos? A quanto daquilo eu poderia renunciar em fa
vor dos irmãos pobres de Cristo, podendo ainda assim continuar
dando um testemunho eficiente? Falando sem rodeios: A quanto de
vo renunciar para poder proclamar com credibilidade o Cristo bíbli
co, que ensinou de maneira muito clara que deixar de alimentar os
pobres implica em condenação eterna (Mateus 25.45-46)?
As respostas dos principais governantes norte-americanos a re
centes propostas feitas pelas nações em desenvolvimento nos mos
tram como as tentativas de justificação podem degenerar em incoe
rência. Em 1974 houve um encontro histórico nas Nações Unidas.
Os países em desenvolvimento apresentaram um documento reivin
dicando uma nova ordem econômica internacional. Insistiam em
preços mais elevados para as suas matérias-primas e outras mudan
ças nos padrões comerciais, bem como acordos monetários inter
nacionais que acreditavam que facilitariam o seu desenvolvimen
to. 0 Secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, junto
com outros dirigentes americanos, acusou aquela grande coalisão
de países de estar "usando" os Estados Unidos. Alguns chegaram a
afirmar que essa "tirania da maioria" poderia até justificar a saída
dos EUA da ONU. Não é o princípio democrático da lei da maio
ria o nosso princípio? Não é um papo incoerente e desonesto falar
de tirania quando acontece que a maioria faz uso dos seus núme
ros para exigir justiça? Seria irônico, sem dúvida, depreciarmos os
princípios democráticos a fim de defender a nossa riqueza!
Nas próximas décadas serão legiões as justificativas que inven
taremos para defender a nossa opulência. Serão populares e persua
sivas. "Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no
reino dos céus" (Mateus 19.23). Mas para Deus tudo é possível —
se nos dispusermos a ouvir e obedecer à sua palavra. Se há alguma
faísca de esperança para o futuro, ela reside na possibilidade de que
sempre mais cristãos ricos permitam que a Bíblia determine sua re
lação para com um bilhão de filhos e filhas do pobre Lázaro.
Por isso, nos próximos quatro capítulos, procuraremos desen
volver uma perspectiva bíblica com relação à pobreza e riqueza.
56
PARTE II
POBREZA E RIQUEZA
EM PERSPECTIVA BÍBLICA
i
V. i i t í h • -■ í
Martim Lutero disse certa vez que "se você proclama o evangelho em
todos os sentidos, com exceção dos assuntos que tra ta m especifica
mente do seu tempo, você não está pregando evangelho algum". A
observação de Lutero vai no sentido das conclusões de um recente
estudo. Cientistas sociais têm examinado os fatores que determinam
o comportamento dos americanos em assuntos relacionados ao desen
volvimento das nações pobres. Constataram que a religião nem ao me
nos se encontra entre eles! As pessoas com profundas convicções re
ligiosas não estavam preocupadas em maior escala com a assistên
cia aos pobres e com o seu desenvolvimento do que as pessoas com
pouca ou nenhuma vivência religiosa1.
Os cristãos americanos e os cristãos economicamente bem suce
didos de quase todo o mundo têm falhado em mostrar a perspecti
va de Deus com respeito à situação difícil de um bilhão de próxi
mos que passam fome — seguramente uma das questões mais pre
mentes de nossos dias.
Contudo, recuso-me a crer que estamos inevitavelmente condi
cionados a persistir nessa omissão. Estou convicto de que hoje há
milhões de cristãos para os quais Jesus é mais importante do que
58
tudo. Há milhões que estão dispostos a correr qualquer risco, fazer
qualquer sacrifício, renunciar a qualquer tesouro, uma vez que vis
sem claramente que a Palavra de Deus o requer. Essa é a razão por
que a 2? parte, "Pobreza e Riqueza em Perspectiva Bíblica", é a
mais importante deste livro.
Nesta 2? parte há muitas citações bíblicas. Mesmo assim, repre
senta só uma pequena seleção da grande quantidade de material
bíblico que fala sobre o assurrto. Cry Justice contém quase duzen-
tas páginas de textos bíblicos diretamente relacionados ao tema da
Parte II2.
59
CAPITULO 3
DEUS E OS POBRES
60
muita freqüência preferir atuar por meio dos pobres e oprimidos?
4) Que quer dizer a Bíblia quando sempre de novo diz que Deus des-
trói o rico e exalta o pobre? 5) Ordenou Deus ao seu povo que tives
se uma preocupação especial pelos pobres?
Antes de examinarmos estas questões, temos que parar um pou
co e perguntar: Quem são os "pobres" na Bíblia?
As palavras hebraicas que designam o pobre são 'àni, ‘ànàw;
'ebyôn, dal e rás. 'A ni (e ‘ànàw, que originalmente tinham mais ou
menos o mesmo significado) denota alguém "injustamente empobre
cido ou despojado"2. 'Ebyôn se refere a um mendigo implorando ca
ridade. Dai designa uma pessoa franzina, fraca, p.ex., um camponês
empobrecido e sem recursos3. Divergindo dos outros termos, ras é
essencialmente neutro. Na sua persistente polêmica contra a opres
são dos pobres, os profetas usaram os termos ’ebyôn, ‘’àni e dai. As
sim, a conotação primária de "pobres" nas Escrituras é econômica.
Em geral, também, uma calamidade ou alguma forma de opressão
são pressupostas como a causa da pobreza.
Com isso não queremos passar por cima de um fato importan
te que as Escrituras também ensinam, ou seja, que algumas pessoas
são pobres por serem vadias e preguiçosas (cf., p.ex., Provérbios
6.6-11; 19.15; 20.13; 21.25; 24.30-34). A Bíblia também conhece
a pobreza voluntária por causa do Reino. Todavia, a conotação bí
blica mais comum de "os pobres" designa aqueles que estão econo
micamente empobrecidos por causa de alguma calamidade ou explo
ração4 . É com este sentido do termo que queremos operar neste
capítulo.
61
natureza e vontade. Deus também interveio para libertar pobres e j
oprimidos.
a. O Exodo. Deus mostrou seu poder no êxodo com o propó
sito de libertar escravos oprimidos! Quando chamou Moisés na sarça
ardente, a intenção de Deus era a de pôr fim a uma situação de so
frimento e injustiça: "V i a aflição do meu povo, que está no Egito,
e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores. Conheço-lhe ò so
frimento, por isso desci a fim de livrá-lo da mão dos egípcios" j
(Êxodo 3.7, 8). Não podemos afirmar que este texto constitui j
uma passagem isolada dentro do grande evento do êxodo. Ano j
após ano, durante a festa da colheita, os israelitas repetem uma j
confissão litúrgica que celebra o modo como Deus agiu para libertar
um povo pobre e oprimido.
Arameu, prestes a perecer, foi meu pai, e desceu para o Egito,
e ati viveu como estrangeiro . . . Mas os egípcios nos maltrataram e
afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao SENHOR,
Deus de nossos pais; e ele ouviu a nossa voz, e atentou para a nossa
angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e nos tirou
do Egito com poderosa mão . . . (Deuteronômio 26.5-8).
62
Ainda ouvi o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios
escravizam, e me lembrei da minha aliança [com Abraão, Isaque e
Jacó ] . . . Vos tirarei de debaixo das cargas do Egito, vos livrarei da
sua servidão, e vos resgatarei com braço estendido e com grandes
manifestações de julgamento. Tomar-vos-ei por meu povo, e serei
vosso Deus; e sabereis que eu sou o SENHOR vosso Deus, que vos
tiro de debaixo das cargas do Egito (Êxodo 6.5-7).
Javé queria que seu povo o conhecesse como aquele que os li
bertou da escravidão e da opressão.
0 preâmbulo aos Dez Mandamentos, provavelmente a parte mais
importante de toda a Lei israelita, começa com essa mesma verda
de revolucionária. Antes de dar as duas tábuas da Lei, Javé se identi
fica: "Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirei da terra do Egito,
da casa da servidão" (Deuteronômio 5.6; Êxodo 20.2). Javé é aque
le que liberta da servidão. 0 Deus da Bíblia quer ser conhecido como
o libertador dos oprimidos.
O êxodo do Egito foi certamente o evento decisivo na criação do
povo escolhido. E se não virmos, nesse ponto-chave da história, o
Senhor do universo em ação punindo a opressão e libertando os po
bres, estamos distorcendo a interpretação bíblica desse momentoso
acontecimento.
63
desde os tempos de Salomão6 . Mas foi exatamente nessa época que
Deus enviou seu profeta Amós para anunciar a má notícia: Israel, o
reino do norte, seria destruído. Por trás da fachada de prosperidade
geral e do fantástico crescimento econômico, Amós viu uma terrível
opressão dos pobres. Viu o rico "esmagando sobre o pó da terra a
cabeça dos fracos" (2.7 — BJ). Viu que o opulento padrão de vida
dos ricos havia sido construído na base da opressão dos pobres
(6.1-7). Denunciou as mulheres ricas ("vacas" foi o termo que
usou!), "que oprimem os pobres, que esmagam os necessitados e
dizem aos seus maridos: dai cá, e bebamos" (4.1). Mesmo nos tribu
nais o pobre não tinha esperança de obter o seu direito, porque os
ricos subornavam os juizes (5.10-15).
Os arqueólogos confirmaram este quadro de contrastes extremos
de riqueza e de pobreza apresentado por Amós7. Nos primeiros tem
pos do estabelecimento de Israel em Canaã, a terra havia sido distri
buída de maneira igual entre as famílias e tribos. Todos os israelitas
gozavam de um padrão de vida mais ou menos igual. Os arqueólogos
confirmaram que, ainda lá pelo décimo século a.C., as casas todas
tinham aproximadamente o mesmo tamanho. Entretanto, ao tempo
de Amós, dois séculos mais tarde, a situação já era diferente. As es
cavações mostram casas maiores e melhor construídas numa área, e
casas mais pobres amontoadas em outros setores8. Portanto, não
é de se admirar a advertência de Amós aos ricos: "Não habitareis
nas casas de pedras lavradas que tendes edificado" (5.11).
A palavra de Deus, dada por intermédio de Amós, era de que
o reino do norte seria destruído e o povo levado ao exílio (7.11, 17).
7 lb id .
8 R o la n d de V a u x , A n c ie n t Israel (N o va Io rq u e : M c G ra w H ill, 1 9 3 5 ), I I , p p . 7 2 -7 3 .
64
elas se cumpriram, exatamente como Deus havia dito. Os assírios
conquistaram o reino do norte, levando milhares ao cativeiro. Por
causa dos maus tratos contra os pobres. Deus destruiu o reino de Is
rael — para sempre.
Como no caso do êxodo, não podemos ignorar um outro fator
importante. O profeta Oséias (contemporâneo de Amós) aponta
para o fato de que a idolatria da nação foi outra das causas da des
truição. Por haverem trocado Javé pelos ídolos, a nação teria que ser
destruída (Oséias 8.1-6; 9.1-3)9 . Conforme os profetas, então, o rei
no do norte caiu tanto por causa da idolatria como da exploração
econômica contra os pobres.
Deus mandou outros profetas a anunciarem o mesmo destino para
o reino do sul, Judá. Isaías, por exemplo, advertiu que uma catás
trofe similar estava por desabar sobre Judá, por causa do mau trata
mento dispensado aos pobres:
Mesmo nesse tempo avançado Jeremias ainda pôde prometer que ha
veria esperança se o povo deixasse tanto a injustiça como a idola
tria.
67
mente mencionado como destinatários da mensagem de Jesus. Cer
tamente o evangelho por ele proclamado era para todos, porém
mostrava-se particularmente interessado em que os pobres com
preendessem que suas boas novas eram para eles.
Alguns tentam desviar-se do sentido claro deste pronuncia
mento de Jesus, espiritualizando as suas palavras. Não há dúvidas de
que, como mostram outros textos, ele veio para abrir os nossos cora
ções cegos, para morrer pelos nossos pecados e para nos libertar da
opressão do pecado. Mas não é isso que ele quer dizer aqui. As pala
vras sobre libertação de cativos e oprimidos provêm de Isaías (61.
1, 2). E, em seu contexto original, no Antigo Testamento, inquestio
navelmente referem-se à opressão e cativeiro físicos.
Em Lucas 7.18-23, que contém uma lista semelhante à de Lucas
4.18-19, fica mais do que claro que Jesus está se referindo a proble
mas materiais, físicos11.
O ministério de Jesus, de fato, correspondeu precisamente a es
tas palavras de Lucas 4. A maior parte do seu tempo esteve ele não
entre os ricos e poderosos em Jerusalém, mas entre os pobres, na Ga-
liléia, cultural e economicamente marginalizada. Curou os doentes
e os cegos. Alimentou os famintos. E advertiu os seus seguidores
com palavras as mais fortes possíveis de que aqueles que não dessem
alimento aos que estivessem com fome, que deixassem de vestir os
que estivessem nus e que esquecessem de visitar os que se encontras
sem prisioneiros estariam sujeitos à condenação eterna (Mateus
25.3146).
No momento supremo da história, em que Deus se revestiu de um
corpo humano, o Deus de Israel continuava libertando os pobres e
oprimidos e conclamando seu povo a fazer o mesmo. Esta é a razão
central da preocupação cristã para com os pobres.
Entretanto, não é só no êxodo, exílio e encarnação que constata
mos o cuidado de Deus para com os pobres, fracos e oprimidos. A
Bíblia está cheia de passagens que falam disso. Duas ilustrações dos
Salmos são típicas de uma série de textos sobre o assunto.
O Salmo 10 começa com desespero. Parece que Deus se encontra
distante e oculto, enquanto os maus prosperam, oprimindo os po
bres (versículos 2 e 9). Porém o salmista conclui com esperança:
C o m isso náo querem os negar que u m uso " e s p iritu a l" d o te rm o " p o b r e " tenha
surgido no p e rfo d o in te rtestam entário . Mas m e sm o então o fu n d a m e n to m aterial e e con ô
m ico nunca esteve ausente. V e r o m eu a rtig o " A n Evangelical Th e o lo g y o f L ib e ra tio n ", e m :
K e n n eth S . K a n tz e r e S ta n le y N . G u n d r y (e d s.), Perspectives o n Evangelical Th e o lo g y
(G ra n d R a p id s: Baker, 1 9 7 9 ), p p. 1 2 2 -2 4 .
68
A t i se entrega o desamparado;
tu tens sido o defensor do órfão . . .
Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos humildes;
tu lhes fortalecerás o coração,
e lhes acudirás,
para fazeres justiça ao órfão e ao oprimido (Salmo 10.14, 17,18).
Aleluia'.
Louva, ó minha alma, ao SENHOR.
Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio,
cuja esperança está no SENHOR seu Deus,
que fez os céus e a terra,
o mar e tudo o que neles há,
e mantém para sempre a sua fidelidade.
Que faz justiça aos oprimidos,
e dá pão aos que têm fome.
O SENHOR liberta os encarcerados,
o SENHOR abre os olhos aos cegos,
o SENHOR levanta os abatidos,
o SENHOR ama os justos.
0 SENHOR guarda o peregrino,
amapara o órfão e a viúva,
porém transtorna o caminho dos ímpios (Salmo 146.1, 5-9).
69
DEUS SE IDENTIFICA COM OS POBRES
13 Lucas 2 .2 4 . C f . L e v ftic o 1 2 .6 -8 .
14 R ic h a rd B a te y , Jesus a nd the P o o r (N o va lo rq u e : H a rp e r, 1 9 7 2 ), p . 7.
70
reivindicação messiânica. Sua preocupação com os pobres e despri-
vilegiados contrastava fortemente com o estilo de seus contemporâ
neos. Seria esta, talvez, a causa de ter ele acrescentado ainda uma pa
lavra a mais para ser levada a João: "Bem-aventurado é aquele que
não achar em mim motivo de tropeço" (Mateus 11.6)?
Somente à medida que sentimos a presença do Deus encarnado
na figura de um pobre galileu começamos a entender as suas palavras:
Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber...
estava nu e me vestistes. . . Em verdade vos afirmo que sempre que o
fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. (.Ma
teus 25.35-40).
0 que significa alimentar e vestir o Criador de tudo que existe?
Não podemos saber. Só podemos olhar para os pobres e oprimidos
com novos olhos e resolver curar suas feridas e ajudar a pôr fim à
sua opressão.
Se o dito de Jesus em Mateus 25.40 é surpreendente, seu parale
lo é assustador: "Em verdade vos digo que sempre que o deixastes de
fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer" (v.
45). O que quer dizer isso num mundo em que milhões de semelhan
tes morrem de fome a cada ano, enquanto cristãos abastados, indife
rentes, ficam a desfrutar suas riquezas? O que significa ver o Senhor
do universo deitado na calçada morrendo de fome e preferir passar
lá do outro lado da rua? Não podemos saber. Só podemos nos com
prometer, em temor e tremor, a não matá-lo novamente.
71
Num livro recente, no qual apresenta uma síntese da história social
do cristianismo primitivo, Martin Hengel destaca o fato de que as
primitivas comunidades gentílico-cristãs "eram predominantemente
pobres"ls . Paulo assombrava-se com o tipo de gente que Deus cha
mou para a sua igreja:
72
não trabalhou exclusivamente por intermédio de gente empobrecida
e oprimida. Todavia, podemos observar um agudo contraste entre a
sua maneira de proceder e a nossa. Quando nós queremos transfor
mar alguma coisa, quase sempre procuramos fazer contato com pes
soas influentes, dotadas de prestígio e poder. Quando Deus quis sal
var o mundo, escolheu escravos, prostitutas e outros representantes
das classes marginalizadas.
Mais uma vez a encarnação é o exemplo mais significativo. Em
nenhum outro lugar o contraste entre os caminhos de Deus e os nos
sos é mais claro do que aqui. Deus poderia ter entrado na história
como um poderoso imperador romano, ou ao menos como um in
fluente saduceu, ocupando um cargo importante no Sinédrio. Em vez
disso, veio e viveu como um pobre carpinteiro, na modestíssima al
deia de Nazaré, insignificante demais para ser mencionada no Antigo
Testamento ou nos escritos de Josefo, o historiador judeu do 1?
século16. Esta foi, todavia, a maneira escolhida por Deus para efe
tuar a nossa salvação.
Quando Jesus escolheu seus discípulos, aqueles que haveriam de
levar adiante a sua missão, todos, à exceção de Mateus, eram pesca
dores ou outra gente provinda do povo simples da terra. Aqueles que
pensam que somente os ricos e poderosos é que transformam a histó
ria continuam tendo dificuldades de aceitar a preocupação de Jesus
para com os fracos e pobres.
De novo devemos opor-nos ao ponto-de-vista contrário, de que
Deus nunca usa pessoas ricas e poderosas como seus instrumentos
escolhidos. Ele o fez e faz. Nós, porém, sempre escolhemos tais pes
soas. Deus, por sua parte, freqüentemente escolhe os pobres para se
desincumbirem das suas tarefas mais importantes. Ele vê potencial
onde nós não vemos. E quando a missão está cumprida, os pobres
e fracos são menos suscetíveis de se vangloriarem de merecimentos.
O fato de Deus escolher pessoas humildes para serem mensageiros
da salvação para o mundo é uma notável evidência da atenção espe
cial que lhes devota. E sua encarnação na pessoa de um pobre gali-
leu nos sugere que o seu freqüente uso dos pobres como seus ins
trumentos não é uma trivialidade histórica insignificante, mas, pelo
contrário, aponta para algo bastante significativo na própria natu
reza de Deus.
73
DEUS: UM MARXISTA?
74
"Atendei agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas des-
. venturas, que vos sobrevirão" (Tiago 5.1), é um tema constante na
revelação bfblica.
Por que razão a Escritura declara que Deus regularmente rever
te a boa sorte do rico? Está Deus engajado numa luta de classes?
Na verdade, os textos que estamos usando nunca afirmam que Deus
ama mais aos pobres que aos ricos. Porém, estão constantemente fa
zendo menção ao fato de que Deus reabilita ao pobre e desprivilegia-
do. Persistentemente nos asseguram de que Deus derruba os ricos e
poderosos — exatamente por terem chegado a esta posição por meio
da opressão aos pobres e por terem deixado de alimentar aos famin
tos.
Por que teria Tiago dito aos ricos que chorassem e se lamentas
sem por causa da miséria que lhes estava por sobrevir? Por terem lo
grado os seus empregados:
Tesouros acumulastes nos últimos dias. Eis que o salário dos trabalha
dores que ceifaram os vossos campos, e que por vós foi retido com
fraude, está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até
aos ouvidos do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente
sobre a terra. Tendes vivido nos prazeres. Tendes engordado os vos
sos corações, em dia de matança (Tiago 5.3-5).
Deus não tem classes especi'ficas por inimigos. Porém ele odeia
e pune a injustiça e negligência com relação aos pobres. E os ricos,
se aceitamos as repetidas advertências das Escrituras, são freqüente
mente culpados de ambos18.
Muito antes da época de Tiago, o salmista já sabia que os ricos
muitas vezes eram ricos por causa da opressão. Mas ele tomou alento
na confiança de que Deus puniria tais malfeitores.
75
Levanta-te, SENHOR'. 0 Deus, ergue a tua mão\
não te esqueças dos pobres . . .
Quebranta o braço do perverso e do malvado . . .
Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos humildes;
tu lhes fortalecerás o coração, e lhes acudirás,
para fazeres justiça ao órfão e ao oprimido . . . (Salmo 10).
76
Reinarás tu,
só porque rivalizas com outro em cedro?
Acaso teu pai não comeu e bebeu,
e não exercitou o juízo e a justiça?
Por isso tudo lhe sucedeu bem.
Julgou a causa do aflito e do necessitado;
por isso tudo lhe ia bem.
Porventura não é isso conhecer-me?
diz o SENHOR. '
Mas os teus olhos e o teu coração
não atentam senão para a tua ganância,
e para derramar o sangue inocente,
e para levar a efeito a violência e a extorsão . . .
Portanto assim diz o SENHOR acerca de Jeoaquim . . .
Como se sepulta um jumento assim o sepultarão;
arrastá-lo-ão e o lançarão para bem longe,
para fora das portas de Jerusalém (Jeremias 22.13-19).
Segundo os historiadores Jeoaquim foi assassinado19 .
Deus destrói tanto nações inteiras como indivíduos ricos por
causa da opressão aos pobres. Já examinamos alguns dos textos mais
expressivos quanto a isso no início deste capítulo20. Ainda outro
se destaca pela sua importância. Por meio de Isaías Deus declarou
que os governantes de Judá eram ricos por terem logrado os pobres.
Cegadas pela riqueza, as mulheres ricas exibiam-se com vaidade e
malícia, completamente indiferentes ao sofrimento dos oprimidos.
A conseqüência, Deus disse, seria destruição.
19 B rig h t, H is to ry o f Israel, p . 3 0 6 . Para u m e vento sim ilar, ver D a n iel 4 (especialm en-
te o v. 2 7 ).
77
e andam de pescoço emproado,
de olhares impudentes,
andam a passos curtos,
fazendo tinir os ornamentos de seus pés,
o SENHOR fará tinhosa
a cabeça das filhas de Sião. . .
Naquele dia tirará o SENHOR
o enfeite dos anéis dos artelhos,
e as toucas e os ornamentos. . .
Será que em lugar de perfume haverá podridão,
e por cinta, corda,
em lugar de encrespadura de cabelos, calvície,
? em lugar de veste suntuosa, cilício,
è marca de fogo em lugar de formosura.
Os teus homens cairão à espada,
e os teus valentes na guerra (Isaías 3.14-25).
Pelo fato de os ricos estarem oprimindo os pobres e fracos, o Senhor
da história está em ação, demolindo e arrasando suas casas e reinos.
As vezes a Escritura não acusa os ricos de uma opressáfo di
reta ao pobre. Simplesmente os acusa de omissão no compartilhar
das suas riquezas com os necessitados. Mas o resultado é o mesmo.
Na história do rico e de Lázaro (Lucas 16), Jesus não disse que
o rico estava explorando o pobre mendigo. Ele apenas mostra que
o tal homem simplesmente não se importava com o mendigo doente
que jazia diante do seu portão. "Vestido de púrpura e de linho finís
simo", o rico "se regalava esplendidamente todos os dias" (Lucas
16.19). Lázaro, por seu turno, "desejava alimentar-se das migalhas
que caíam da mesa do rico" (16.21). Será que o homem lhe negava
até as migalhas? Talvez não. Mas fica claro que não mostrava real
preocupação com ele. Tal negligência pecaminosa para com os neces
sitados enche de fúria o Deus dos pobres. Quando Lázaro morreu.
Deus lhe deu conforto no seio de Abraão. Quando o rico morreu,
foi colocado em tormento21. 0 sentido do nome Lázaro, "alguém
ajudado por Deus"22, sublinha o ponto básico dessa história. Deus
ajuda ao pobre, mas ao rico manda embora de mãos vazias.
22 Ib id ., p . 2 9 0 .
78
Clark Pinnock certamente tem razão quando observa que "uma
história como a do rico e Lázaro deveria explodir nas nossas mãos
quando a lemos comodamente sentados diante de nossas mesas far
tas, enquanto o Terceiro Mundo está ali fora"23. Não apenas a Lei e
os Profetas, mas o próprio Senhor Jesus proclama esta aterradora pa
lavra de que Deus destrói o rico quando deixa de prestar assistência
ao pobre.
A explanação bíblica da destruição de Sodoma fornece outra ilus
tração desta terrível verdade. Se perguntados pelas causas da destrui
ção de Sodoma, virtualmente todos os cristãos apontariam para a
brutal perversão sexual dos moradores da cidade. Mas tal resposta é
bastante parcial, sendo apenas parte do que diz a Bíblia. Ezequiel
mostra que uma importante razão pela qual Deus destruiu Sodoma
foi por recusar-se obstinadamente a compartilhar seus bens com os
pobres!
2 4 C f. ta m b é m Isafas 1 .1 0 -1 7 .
79
OS INTERESSES DE DEUS E OS NOSSOS
Uma vez que Deus zela tanto pelos pobres, não é de causar sur
presa que queira ver o seu povo fazendo o mesmo. 0 mandamento
de Deus aos crentes, de dar especial importância aos pobres, fracos
e marginalizados é o quinto tema da literatura bíblica sobre riqueza
e pobreza que queremos enfocar.
Justiça igual nos tribunais, tanto para pobres como para ricos,
é um tema constante das Escrituras. A Lei o ordena (Êxodo 23.6).
O salmista invoca a assistência divina ao rei para que ele possa cum-
pri-la (Salmo 72.1-4). Os profetas anunciaram destruição porque
os governantes obstinadamente subvertiam a justiça (Amós 5.10-
15).
Viúvas, órfãos e estrangeiros também, com muita freqüência,
recebem particular atenção.
2 6 V e r ta m b é m Hebreus 1 3 .1 -3 .
80
Obviamente Jesus usou de uma hipérbole, uma técnica típica da
literatura hebraica quando se quer enfatizar alguma coisa. Sua in
tenção não era a de proibir festinhas com amigos e parentes. Certa
mente, porém, teve a intenção de nos dizer que deveríamos convi
dar os pobres e menos favorecidos (que não têm condições de retri
buir o convite) ao menos tantas vezes — e possivelmente com maior
freqüência — quanto os nossos amigos, parentes e gente "bem suce
dida". Você conhece algum cristão que esta' levando Jesus a sério
nesta questão?
A Bíblia ordena especificamente aos crentes que imitem a Deus
na preocupação especial que ele mostra pelos pobres e oprimidos.
No Antigo Testamento, Javé freqüentemente relembra aos israelitas
a sua anterior condição de opressão no Egito, ao ordenar que zelem
pelos pobres. O imerecido zelo de Deus pelos escravos hebreus no
cativeiro egípcio é o modelo a ser imitado (Êxodo 22.21-24; Deute-
ronômio 15.13-15).
Jesus ensinou os seus seguidores a imitarem a bondade de Deus
inclusive no que diz respeito a empréstimos!
Se fizerdes o bem aos que t/os fazem o bem, qual é a vossa recom
pensa? . . . E se emprestais àqueles de quem esperais receber, qual é
a vossa recompensa? . . . emprestai, sem esperar nenhuma paga; se
rá grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo. Pois ele
é benigno até para com os ingratos e maus. Sede misericordiosos, co
mo também é misericordioso vosso Pai {Lucas 6.33-36).
Por que emprestar sem esperar devolução? Porque esse é o modo
como o Pai o faz. Os seguidores de Jesus são chamados a inverter os
padrões normais dos homens exatamente pelo fato de serem filhos
de Deus e quererem refletir a Sua natureza.
Quando Paulo estava levantando a coleta para os pobres em Je
rusalém, propositalmente lembrava os coríntios de que o Senhor
Jesus se fez pobre para que eles se tornassem ricos (2 Coríntios
8.9). Quando o autor de 1 João conclamou os cristãos a comparti
lharem com os necessitados, primeiramente mencionou o exemplo
de Cristo: "Nisto conhecemos o amor, em que Cristo deu a sua vida
por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos" (1 João 3.16). En
tão, logo no versículo seguinte, instou com os cristãos a que dessem
generosamente aos necessitados, é o maravilhoso auto-sacrifício de
Cristo que os cristãos são chamados a imitar no seu relacionamento
com os pobres e oprimidos.
Temos visto que a Palavra de Deus instrui os crentes a zelarem
81
pelos pobres. Com efeito, a Bíblia sublinha o mandamento com o
ensino de que quando o povo de Deus zela pelos pobres está imitan
do o próprio Deus. Mas isso ainda não é tudo. A Palavra ensina que
aqueles que tratam com negligência os pobres e oprimidos não são
realmente povo de Deus — não importando a quantidade de seus ri
tos religiosos nem a ortodoxia de seus credos e confissões.
Sempre de novo Deus fala trovejando por meio dos seus profe
tas que o culto num contexto de abuso dos pobres e menos favo
recidos é ultraje. Isaías denunciou a Israel (chamando-o de Sodoma
e Gomorra!) porque queria prestar culto a Javé e ao mesmo tempo
oprimir os fracos:
V e r J . A . M o ty e r, T h e D a y o f the L io n : T h e Message o f A m o s {D o w n e rs G ro v e :
In te rV a rs ity, 1 9 7 4 ), p p . 1 2 9 -3 7 , para um a boa exegese destes versículos. (T ra d u ç ã o p o r tu
guesa deste livro está sendo anunciada pela A B U E d ito ra .) V e r ta m b é m M iquéias 6 .6 -8 ;
T ia g o 2 .1 4 -1 7 .
2 8 C o m isso não quere m os d ize r que Deus não esteja interessado na verdadeira a d o
ração. N e m A m ó s 5 .2 1 -2 4 q uer significar: " E u não qu e ro que vocés d e fendam os meus
d ireitos, reais ou im aginários; q u e ro q ue lu tem e gastem as suas energias no progresso da
causa dos pobres e o p r im id o s " (G a tti, R ich C h u r c h — P o o r C h u rc h ? , p . 1 7 ). T a l d ico to m ia
ignora o ataque p ro fé tico à id olatria, tão central na mensagem dos profetas. Deus quer
am bos, adoração e justiça. Trag ica m e n te , alguns hoje se co nce n tra m em u m , o u tro s em
o u tro aspecto. Poucos estão buscando am bas as coisas sim ultaneam ente.
83
viúvas e, para o justificar, fazem longas orações" (Marcos 12.38-40).
Suas vestes, que lhes davam um ar de piedade, suas freqüentes visi
tas à sinagoga, era tudo fingimento. Jesus foi um profeta dentro da
tradição de Amós e Isaías. Como eles, anunciou que Deus rejeita
os que' tentam misturar práticas piedosas com o tratar mal aos
pobres.
A palavra profética contra os hipócritas religiosos levanta uma
questão extremamente delicada: É o povo de Deus verdadeiramente
povo de Deus, se oprime o pobre? É a igreja verdadeiramente igreja,
se não faz nada para libertar os oprimidos?
Vimos como Deus declarou que o povo de Israel era, na realida
de, Sodoma e Gomorra, e não povo de Deus (Isaías 1.10). Deus sim
plesmente não podia mais tolerar a exploração a que submetiam os
pobres e desprivilegiados. Oséias chegou a anunciar solenemente que,
por causa dos seus pecados, Israel já não era mais o povo de Deus e
que ele já não era mais o seu Deus (Oséias 1.8-9). E o fato foi que
Deus os destruiu. Jesus foi ainda mais duro e contundente. Aos
que deixarem de alimentar os pobres, vestir os que estão nus e visi
tar os prisioneiros, ele proferirá uma terrível sentença por ocasião
do juízo final: "Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno,
preparado para o diabo e seus anjos" (Mateus 25.41). O sentido
aqui é claro e não deixa lugar a dúvidas. Jesus quer que os seus dis
cípulos o imitem no zelo especial que demonstrou para com os po
bres e necessitados. Os que desobedecerem, sofrerão a condenação
eterna.
Talvez, porém, tenhamos interpretado mal o texto de Mateus
25. Alguns pensam que "estes mais pequeninos" (v. 45) e "estes
meus pequeninos irmãos" (v. 40) se refere somente a cristãos. A exe
gese dessa passagem é controvertida. Mas, mesmo que estas palavras se
refiram, primeiramente, a crentes pobres, outros aspectos do ensino
de Jesus não só permitem como exigem que ampliemos o sentido
de Mateus 25, englobando tanto a crentes como descrentes pobres e
oprimidos. A história do bom samaritano (Lucas 10.29ss) ensina que
qualquer um que estiver passando necessidade é nosso próximo. Ma
teus 5.43ss é ainda mais explícito:
84
0 ideal na Comunidade de Qumran (conhecida através dos Rolos
do Mar Morto) era, de fato, "amar todos os filhos da luz" e "odiar
todos os filhos das trevas" ("A Regra da Comunidade", 1 QS 1:9-
10). Até mesmo no Antigo Testamento, aos israelitas havia sido or
denado que amassem o vizinho que era filho do seu próprio povo, e
que não buscassem a prosperidade dos amonitas e moabitas (Leví-
tico 19.17-18; Deuteronômio 23.3-6). Jesus, porém, proíbe explici
tamente aos seusseguidores limitarem o amor ao próximo que é mem
bro do seu próprio grupo étnico ou religioso. O seu mandamento pa
ra eles é que imitem a Deus, que faz o bem a todos, em toda parte.
Como disse George Ladd: "Jesus redefine o sentido do amor ao
próximo; ele significa amor a toda pessoa necessitada"29. A luz da
parábola do bom samaritano e do ensino claro de Mateus 5.43ss,
somos compelidos a dizer que parte do ensino mais amplo de Ma
teus 25 é que aqueles que deixam de atender aos pobres e oprimi
dos (sejam crentes ou não) simplesmente não são povo de Deus.
Para que não esqueçamos a advertência. Deus a repete em 1 João
3.17-18: "Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu
irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode
permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra,
nem de boca, mas de fato e de verdade". (Veja também Tiago 2.14-
17 .) Aqui de novo as palavras são claras. Que significam elas para
cristãos ocidentais que ambicionam sempre maior bem-estar material,
enquanto cristãos no Terceiro Mundo estão subnutridos, tendo cor
pos e mentes deformados — inclusive chegando a morrer de fome?
O texto afirma claramente que, se deixamos de ajudar ao necessita
do, não temos o amor de Deus —digamos o que quisermos. O que se
faz é o que conta, e não a piedade sobre a qual se fala e prega. A
despeito do que façamos ou digamos no domingo de manhã, gente
rica que negligencia os pobres não é povo de Deus.
Persiste, contudo, o problema. Deixam de ser cristãos os crentes
professos por causa de constante pecado? é claro que não. O cristão
sabe que o egocentrismo pecaminoso é algo que continua a atormen
tar até os mais santos. A salvação é pela graça somente, e não por
obras de justiça. Somos membros do povo de Deus, não por nossa
| justiça própria, mas unicamente em virtude da morte de Cristo
por nós.
G . E . L a d d , A T h e o lo g y o f th e N e w Te s ta m e n t (G ra n d R apids: Ee rd m a n s , 1 9 7 4 ),
p . 1 3 3. Para toda essa questão, se M ateus 2 5 , 1 Jo ã o 3 , e tc ., devem ser lim ita d o s em sua
aplicação a cristãos, ver a magistral discussão de S te p h e n C . M o t t, B ib lica l E th ics and S o
cial Change (N o v a lo rq u e : O x f o r d , 1 9 8 2 ), p p . 3 4 -3 6 .
85
Esta resposta é verdadeira — mas incompleta. Mateus 25 e 1 João
3 com certeza querem dizer mais do que simplesmente que o povo de
Deus é desobediente (e ainda justificado ao mesmo tempo) quando
trata o pobre com negligência. Estas passagens afirmam expressa
mente que há pessoas que desobedecem a Deus de tal modo que de
fato não são seu povo, a despeito de sua piedosa profissão de fé. E
a negligência em relação aos pobres é um dos freqüentemente repe
tidos sinais bíblicos de tal desobediência. Certamente nenhum de nós
diria que cumprimos à risca as palavras de Mateus 25. E todos nos
apegamos à esperança do perdão. Mas a coisa chega a um ponto (e,
graças a Deus, só ele sabe qual é!) em que a negligência para com o
pobre não é perdoada. E punida. Eternamente.
Não seria possível que muitos dos "cristãos" ocidentais já tenham
chegado a este ponto? Nós, norte-americanos, ganhamos 14 vezes
mais que as pessoas na índia; contudo, damos só uma pequena parte
disso à igreja. E a maioria das igrejas ainda gastam essa ninharia que
lhes damos consigo mesmas. Podemos dizer que estamos sendo obe
dientes ao mandamento bíblico de zelar pelos pobres? Podemos ho
nestamente dizer que estamos sendo imitadores de Deus no que diz
respeito à preocupação pelos pobres e oprimidos? Podemos seria
mente ter esperança de experimentar o amor eterno, e não a separa
ção eterna do Deus dos pobres?
Como a Bíblia claramente nos ensina, Javé tem um cuidado espe
cial pelos pobres e oprimidos. Significaria isto, porém, como alguns
afirmam atualmente, que Deus é parcial em favor dos pobres? Certa
mente, não. As Escrituras explicitamente nos proíbem de ser parciais.
"Não farás injustiça no juízo: nem favorecendo o pobre, nem com
prazendo ao grande: com justiça julgarás o teu próximo" (Levítico
19.15; também Deuteronômio 1.17). Êxodo 23.3 diz exatamente a
mesma coisa: "não serás parcial com o pobre na sua demanda". Deus
instrui seu povo a ser imparcial, porque ele mesmo não tem precon-,
ceito nem para um lado nem para outro.
O ponto crucial para nós, no entanto, não é a imparcialidade de
Deus, e sim a conseqüência dessa sua atitude de não pender para
nenhum lado. O texto declara a imparcialidade de Javé e, logo a se
guir, mostra o terno cuidado de Deus para com os pobres e despri-
vilegiados.
E nem Deus deseja a salvaçffo dos pobres mais d o que a dos ricos. D is co rd o e n fa ti-
cam ente da afirm a çã o de G a t ti: "E le s [os pobres e o p rim id o s ] s5o aqueles qu e tém o m a ior
dire ito a esta palavra; sao eles os privilegiados destinatários d o e va n ge lho" (R ic h C h u rc h —
Poo r C h u rc h ? , p . 4 3 ). Deus deseja q ue to dos — opressores e o p rim id o s igualm ente — sejam
salvos. N in g u é m te m " d i r e i t o " a lgum de o u v ir a palavra de Deus. To d o s m erecem os a m o r
te. E m contraste co m a pecam inosa perversidade dos cristSos que preferem pregar nos b a ir
ros residenciais em vez de ir às favelas, Jesus e Paulo parecem tendenciosos ern fa vor da p re
gação aos pobres.
87
Deus da Bíblia está do lado dos pobres justamente por não ser ten
dencioso, por ser um Deus de justiça imparcial.
Os ricos negligenciam ou até se opõem à justiça, porque esta exi
ge que acabem com sua opressão e compartilhem com os pobres.
Por isso Deus se opõe ativamente aos ricos. Mas isso não significa
de modo algum que ele ame menos aos ricos que aos pobres. Deus
anseia pela salvação tanto de um como de outro. Ele deseja realiza
ção, alegria e felicidade para todas as suas criaturas. Isto, entretan
to, não está em contradição com o fato de que ele se posiciona ao
lado do pobre. 0 arrependimento e a conversão genuinamente bí
blicos levam as pessoas a se afastar de todo pecado — incluindo o da
opressão econômica32. Salvação, para os ricos, certamente incluirá
libertação da sua injustiça. Assim, o anseio de Deus pela salvação e
realização dos ricos está em total harmonia com o ensino bíblico
de que Deus está do lado do pobre.
O zelo de Deus pelos pobres é surpreendente e ilimitado. Nos
pontos-chave da história da revelação vemos Javé em ação libertan
do os oprimidos. Podemos ter uma pequena idéia da profundidade
desta sua identificação com os fracos pelo que nos foi revelado na
Encarnação. Freqüentemente os pobres são os seus instrumentos,
especialmente escolhidos, de revelação e salvação. Sua paixão pela
justiça o compele a destruir sociedades e indivíduos ricos que opri
mem o pobre e negligenciam o necessitado. Conseqüentemente, o
povo de Deus — se de fato o é — segue nas pisadas do Deus dos
pobres.
À luz desse claro ensino bíblico, quão bíblica é a nossa teologia
evangélica? Penso que devemos confessar que os cristãos estão mui
to mais do lado dos opressores ricos do que dos pobres oprimidos.
Imaginem o que aconteceria se todas as nossas instituições eclesiás
ticas — nossas organizações de jovens, nossas publicações, nossas fa
culdades e seminários, nossas congregações e as cúpulas das deno
minações — se arriscassem a empreender, durante dois anos, uma
ampla avaliação de todo o seu programa e suas atividades, buscando
responder a seguinte pergunta: Está havendo o mesmo equilíbrio
em nossos programas, a mesma ênfase na justiça para os pobres e
oprimidos que encontramos nas Escrituras? Inclino-me a predizer
que, se o fizéssemos com uma disposição incondicional de mudar
tudo que não corresponda à revelação bíblica sobre o cuidado espe
cial de Deus pelos pobres e oprimidos, desencadearíamos um novo
32 V e ja c a p itu lo 6 . p p . 1 3 6 -1 4 2 .
88
movimento de preocupação social bíblica que haveria de mudar o
curso da história moderna.
Mas o nosso problema não é primariamente de ética. Não se tra
ta tanto de que tenhamos deixado de viver o que os nossos mestres
nos ensinaram. A nossa própria teologia tem sido não-bíblica. Por
ignorar em grande parte o ensino bíblico central de que Deus está do
lado dos pobres, a nossa teologia tem sido profundamente não-orto-
doxa. A Bíblia tem tanto a dizer sobre esta doutrina como sobre a
ressurreição de Jesus. Nós, todavia, insistimos na ressurreição como
um critério de ortodoxia, e quase que ignoramos o importante en
sino bíblico de igual importância de que Deus está do lado do pobre
e do oprimido.
Agora, por favor, não me entendam mal. Não estou querendo di
zer que a ressurreição não é importante. A ressurreição corporal de
Jesus de Nazaré é de central importância para a fé cristã, e quem
quer que a negue ou diga que ela não é importante caiu em here
sia33 . Mas se é que o embasamento nas Escrituras representa um
critério de importância doutrinal, então o ensino bíblico de que
Deus está do lado dos pobres deve ser uma doutrina extremamente
importante dos cristãos.
Temo que aqueles cristãos que se têm considerado como os
mais ortodoxos tenham caído em liberalismo teológico. Geralmen
te pensamos num liberalismo teológico em termos dos liberais clás
sicos do século dezenove, que negaram a divindade, a expiação e a
ressurreição corporal de Jesus, nosso Senhor. E está certo. Pessoas
que abandonam estas doutrinas centrais caíram em terrível heresia.
Mas observem bem qual é a essência do liberalismo teológico — é
permitir que o nosso pensamento e a nossa vida sejam moldados pe
los valores e pelos pontos-de-vista da sociedade que nos rodeia, e
não pela revelação bíblica. Os teólogos liberais pensavam que a cren
ça na divindade de Jesus Cristo e na sua ressurreição corporal era in
compatível com uma visão de mundo moderna e científica. Assim,
seguiram os ditames da sociedade científica que os rodeava, ao invés
de seguirem as Escrituras.
Os cristãos ortodoxos, com razão, alertaram contra essa heresia
— para entâfo, tragicamente, fazer exatamente a mesma coisa em ou
tra área. Temos permitido que os valores da nossa opulenta socieda
de materialista moldem o nosso pensar e agir com relação aos pobres.
é bem mais fácil hoje, em círculos teologicamente conservadores, in
sistir em uma cristologia ortodoxa do que insistir no ensino bíblico
89
de que Deus está do lado dos pobres. Temos permitido que a nossa
teologia fosse moldada por preferências econômicas dos nossos con
temporâneos materialistas, e não pelas Escrituras. E isso é cair em
liberalismo teológico. Não temos sido tão ortodoxos como pensa
mos.
Falhas passadas, contudo, não são razão para desespero. Penso
que é isso que queremos dizer quando cantamos "para mim mais va
le ter a Jesus do que casas e terras". Penso que é isso que queremos
dizer quando escrevemos e afirmamos formulações doutrinais que co
rajosamente declaram que não somente queremos crer mas também
viver conforme tudo que as Escrituras nos ensinam. Mas se é isso
que queremos dizer, então temos que ensinar e viver, num mundo
cheio de injustiça e de fome, a importante doutrina bíblica de que
Deus e o seu povo crente estão do lado dos pobres e dos oprimidos.
A menos que reformulemos drasticamente tanto a nossa teologia
como toda a nossa vida institucional como igreja, de modo que o fa
to de que Deus está do lado dos pobres e dos oprimidos se torne tão
central para nossa teologiaeosnossosprogramasoficiaiscomooépara
as Escrituras, estaremos demonstrando ao mundo que o nosso com
prometimento verbal com o sola scriptura é um suporte ideológico
desonesto para um status quu injusto e materialista.
Espero e quero crer que na próxima década milhões de cristãos
vão permitir que o ensino bíblico do Deus dos pobres e oprimidos
reformule por completo a nossa teologia culturalmente determina
da bem como os nossos programas e as nossas instituições, que são
antibiblicamente unilaterais. Se isso acontecer, forjaremos uma no
va teologia da libertação, verdadeiramente bíblica, que transforma
rá o curso da história moderna.
90
CAPITULO 4
R E L A Ç Õ E S E CONÔMI CA S
E N T R E O POVO DE DEUS
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entre os seus membros, poderá apontar de modo convincente para
o reino que está por vir. E — como se isso não bastasse —a amorosa
unidade entre os cristãos deve se tornar tão visível e concreta que
convence o mundo de que Jesus veio do Pai (João 17.20-23).
O PRINCÍPIO DÓ JUBILEU
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para com a terra e os recursos econômicos em geral2.
Antes e depois do ano do Jubileu, a terra podia ser comprada e
vendida. Porém, o que o comprador adquiria, na realidade, não era a
terra em si mas um número específico de colheitas que ela daria (Le-
vítico 25.16). E ai daquele que tentasse enriquecer sob a alegação de
um mercado em baixa, recusando-se a pagar o preço justo até o pró
ximo Jubileu! "Sendo muitos os anos, aumentarás o preço, e sendo
poucos, abaixarás o preço; porque ele te vende o número das messes.
Não oprimais ao vosso próximo; cada um, porém, tema a seu Deus;
porque eu sou o SENHOR vosso Deus" (Levítico 25.16, 17). Javé
é Senhor — até sobre a economia! Não encontramos aqui o menor
sinal de alguma sagrada lei de oferta e demanda totalmente indepen
dente da ética bíblica e do senhorio de Javé. 0 povo de Deus se sub
mete a ele, e ele exige que impere a justiça nas relações econômicas
entre o seu povo.
E da maior significação o fato de que esta passagem prescreve
justiça, e não alguma casual distribuição de comida por abastados
filantropos. O ano do Jubileu visava uma estrutura institucionaliza
da, que afetava a todos os israelitas automaticamente. A pessoa po
bre tinha o direito de receber de volta a sua herança ao tempo do
Jubileu. Devolver a terra não era uma cortesia caridosa que os ricos
podiam se dar ao luxo de fazer se quisessem.3.
O princípio do Jubileu igualmente provê chances no sentido de
auto-sustento e auto-desenvolvimento. Tendo de volta a sua terra,
a pessoa pobre novamente tem meios de ganhar a sua vida. 0 concei
to bíblico do Jubileu sublinha a importância de mecanismos e estru
turas institucionalizadas que promovam justiça.
é interessante como essa passagem referente ao Jubileu desafia
tanto ao capitalismo como ao comunismo de um modo igualmente
fundamental. Só Deus é proprietário absoluto. Além do mais, o di
reito de cada pessoa, de ter os meios com os quais garantir a sua sub
sistência, assume prioridade sobre os "direitos de propriedade" de
um comprador ou sobre uma economia de mercado totalmente li
vre. Ao mesmo tempo, esse texto afirma claramente não apenas o
direito, mas a importância da propriedade privada dirigida por fa
mílias que compreendem que são mordomos, administradores res
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ponsáveis diante de Deus. Deus quer que cada família tenha os re
cursos necessários para produzir o seu próprio sustento — para
fortalecer a família, para dar às pessoas a liberdade para serem cria
doras e participantes responsáveis da história, para evitar a centrali
zação do poder e o totalitarismo que quase sempre acompanha a pos
se centralizada da terra ou do capital, seja pelo estado ou por peque
nas elites.
Finalizando, chamamos a atenção a mais um aspecto notável de
Levftico 25. Certamente é mais que mera coincidência que o toque
de trombeta que anunciava o início do Jubileu ressoava exatamente
no dia da expiação (Levítico 25.8)! Reconciliação com Deus é a
pré-condição para a reconciliação com os irmãos e irmãs4 . E, vice-
versa, uma genuína reconciliação com Deus conduz inevitavelmente
a uma transformação em todos os outros setores de relacionamento.
Reconciliados com Deus, por meio do sacrifício do dia da expiação,
os israelitas mais prósperos eram chamados a, por sua vez, libertar
os pobres, colocando em liberdade escravos hebreus e devolvendo
as terras aos seus proprietários originais5.
Não sabemos, infelizmente, se o povo de Israel chegou a pôr em
prática o ano do Jubileu. A ausência de referências a isso nos livros
históricos pode sugerir que ele nunca tenha sido efetivamente implan
tado6. Não obstante a sua antigüidade e sua realização ou não na
história de Israel, Levítico 25 permanece sendo parte da palavra de
Deus que exige obediência. Por desaprovar extremos de riqueza en
tre seu povo. Deus ordena mecanismos de nivelação e redistribuição,
como o ano do Jubileu.
S Para o sen tido da palavra "lib e rd a d e " , e m L e v ftic o 2 5 .1 0 , ver M a rtin N o t h , Leviticus
(F ila d é lfia : W e stm inster, 1 9 6 5 ), p . 1 8 7 : " d e ró r, u m a 'libe rta çã o ' . . . é u m a palavra feudal,
d erivada d o acadiano (a n )d u rá ru ~ 'liv ra r de cargas'."
94
O ANO SABÁTICO
' De V a u x , A n c ie n t Israel, I , 1 7 3 -1 7 5 .
9 V e r Jerem ias 3 4 , para u m relato fascinante da ira de Deus para co m Israel p o r causa
da sua negligência em obedecer a este m a n d am e n to .
95
vas, que visam sempre o seu proveito pessoal: é pecado recusar um
empréstimo a um pobre só porque já é o sexto ano e, conseqüente
mente, o dinheiro pode ser considerado perdido dentro de doze
meses.
Guarda-te, que não haja pensamento vil no teu coração, nem di
gas: Está próximo o ano sétimo, o ano da remissão, de sorte que os
teus olhos sejam malignos para com teu irmão pobre, e não lhe dês
nada; e ele clame contra ti ao SENHOR, e haja em ti pecado. Livre
mente lhe darás, e não seja maligno o teu coração, quando lhe de
res; pois por isso te abençoará o SENHOR teu Deus em toda a tua
obra, em tudo o que empreenderes (Deuteronômio 15.9-10)'°.
1 2V e r ta m b é m De V a u x , A n c ie n t Israel, 1, 165.
97
MODELOS A SEGUIR, MODELOS A SEREM EVITADOS
1 4 De V a u x . A n c ie n t Israel, 1 , 17 1.
V e r De V a u x , o p . c it., p . 1 7 0; e T a y l o r , E n o u g h is E n o u g h , p p . 5 6 -6 0 .
98
da série "International Criticai Commentary", sugere que essa legis
lação reflete uma época em que a maioria dos empréstimos eram fei
tos por amizade e não com fins comerciais. Empréstimos comerciais,
para o estabelecimento ou ampliação de um negócio, não eram co
muns. A maior parte constituía-se de empréstimos caritativos, de que
tivesse necessidade uma pessoa pobre ou alguém que enfrentava uma
situação de emergência temporária16. Fica bem claro que o bem-estar
dos pobres é um propósito central nos textos que falam sobre juros.
"Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo,
não te haverás com ele como credor que impõe juros" (Êxodo 22.25).
A legislação sobre juros é parte de um extensivo complexo de leis
designadas para proteger os pobres e evitar grandes extremos de ri
queza e pobreza no seio do povo de Deus.
Deixando de compreender isso, a igreja cristã tem tentado apli
car os textos sobre juros de maneira legalista. Vários concílios ecle
siásticos debateram este assunto. Por fim , todo juro sobre emprésti
mos foi proibido em 1179 (39 Concílio Laterano). As conseqüên
cias, porém, foram trágicas. Monarcas medievais convidaram judeus
(que não estavam sujeitos ao ensino da igreja) para dentro dos seus
domínios, com o fim de servirem como prestamistas; o que deu ori
gem, mais tarde, a uma horrível'onda de anti-semitismo. Cada vez
mais os teólogos começaram a desenvolver esquemas casuísticos vi
sando contornar a proibição17. Tragicamente, a errônea preocupa
ção com a letra da lei e a conseqüente adoção de aplicações impra
ticáveis e legalistas contribuíram para fazer cair no descrédito ou, pe
lo menos, obscurecer o importante ensinamento bíblico de que o
Deus do pobre é o Senhor da economia —Senhor, inclusive, sobre as
taxas de juros. Uma utilização legalista dos textos referentes a juros
colaborou, assim, para a criação da mentalidade moderna, que vê as
questões de juros, operações bancárias, sim, podemos dizer, todo o
campo das relações econômicas, como um universo completamente
auônomo e independente. Do ponto-de-vista da fé revelada, todavia,
tal mentalidade é herética. Ela tem suas origens no secularismo mo
derno, não na Bíblia18.
1 6 D riv e r, D e u te ro n o m y , p . 1 7 8.
99
Este exemplo deve servir-nos de avertência contra uma aplicação
seca da palavra de Deus. Por outro lado, também não quer levar-nos
a uma atitude tímida e omissa. Estes textos inquestionavelmente en
sinam que, para o emprestador cristão, é decisiva a necessidade
daquele que lhe pede emprestado, e não um meticuloso cálculo do
que a operação lhe poderá render. (Neste sentido, empréstimos com
baixa taxa ou até sem juros, oferecidos por organizações cristãs a
cristãos do Terceiro Mundo, com o objetivo de promover desenvolvi
mento, são um exemplo de uma significativa aplicação contemporâ
nea do que diz a Palavra sobre a questão dos juros.)
Ao aplicar o ensinamento bíblico a respeito do Jubileu, do ano sa
bático, das sobras nas colheitas e do dízimo devemos descobrir os
princípios subjacentes em cada caso. A partir daí podemos, então,
pensar em estratégias contemporâneas para dar corpo a esses princí
pios básicos. Os textos que examinamos demonstraram claramente
que Deus quer justiça, e não mera caridade. Por isso os cristãos de
veriam se empenhar em projetar e instituir novas estruturas que pos
sam efetivamente eliminar a indigência entre os crentes, bem como
reduzir drasticamente os escandalosos extremos de riqueza e pobre
za entre membros ricos e pobres do corpo uno do Jesus ressurreto.
100
A essência das boas novas proclamadas por Jesus era de que o
esperado reino messiânico havia chegado19. é certo que o reino anun
ciado por Jesus desapontou as expectativas populares judaicas.
Jesus não recrutou um exército para expulsar os romanos. Não ten
tou estabelecer um estado judeu livre. Mas também não permaneceu
sozinho, como um profeta isolado e individualista. Ele chamou e
treinou discípulos. Estabeleceu uma comunidade visível de discípu
los, unidos pela submissão a ele como o Senhor. Sua nova comunida
de começou a viver os valores do reino prometido que já havia, efeti
vamente, irrompido no presente. Em conseqüência, todos os tipos
de relacionamento, inclusive os econômicos, experimentaram uma
profunda transformação na comunidade dos seguidores de Jesus.
Eles tinham uma caixa comum (João 12.6)20 . Judas era o admi
nistrador deste fundo, comprando provisões ou dando aos pobres,
conforme as instruções do Mestre (João 13.29). E esta nova comu
nidade de bens não se restringiu a Jesus e os doze. Incluía várias mu
lheres, as quais ele havia curado. As mulheres viajavam com eles,
compartilhando seus recursos financeiros (Lucas 8.1-3; veja também
Marcos 15.40-41 )21. Vistas sob esta perspectiva, algumas palavras de
Jesus ganham um novo sentido e um novo poder. Pense, por exem
plo, no seu conselho ao jovem rico.
Quando Jesus pediu ao jovem rico que vendesse os seus bens e
desse aos pobres, ele não disse: "Torna-te desamparado e sem ami
gos". Não, ele disse: 'Vem e segue-me' (Mateus 19.21). Em outras pa
lavras, convidou-o a se integrar em uma nova comunidade de comu
nhão de bens e de amor, onde a sua segurança não estaria baseada
na posse de propriedades pessoais e sim em abertura para o Espíri
to e no amoroso cuidado dispensado pelos novos irmãos e irmãs ali
encontrados22. Jesus convidou o jovem rico a compartilhar de uma
alegre vida em comum, característica do seu novo reino.
As palavras de Jesus em Marcos 10.29-30 por muito tempo me
2 1 V e r ta m b é m B a te y, Jesus and th e P o o r (N o v a lo rq u e : H a rp e r, 1 9 7 2 ), p . 8 .
2 2T a y l o r , E co n o m ics and th e G o s p e l, p . 2 1 .
101
deixaram perplexo: "Em verdade vos digo que ninguém que tenha
deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou cam
pos, por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já
no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e cam
pos, com perseguições; e no mundo por vir a vida eterna." Mateus 6
contém um dito similar. Todos estamos bem —eu diria, embaraçado-
ramente — familiarizados com a maneira pela qual Jesus instava com
seus seguidores a viverem livres de preocupações, sem ficar ansiosos
quanto a comida, roupas e bens materiais (Mateus 6.25-33). Porém
ele termina a sua exortação com uma promessa boa demais para ser
verdade: "Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça
e todas essas coisas [isto é, comida, roupas, etc.] vos serão acrescen
tadas." Estas promessas costumavam me parecer no mínimo um tan
to ingênuas. Mas as suas palavras começaram a se encher de significa
do quando as li dentro do contexto da nova comunidade dos seguido
res de Jesus. Jesus deu início a uma nova ordem social, um novo rei
no de fiéis seguidores, que deveriam estar completamente à disposi
ção uns dos outros.
A caixa comum entre os discípulos de Jesus simbolizava essa ili
mitada disponibilidade e dependência mútua. Nessa nova comunida
de haveria genuína segurança econômica. Cada um teria, com efeito,
bem mais irmãos e irmãs do que antes. Os recursos econômicos à dis
posição em tempos difíceis seriam, de fato, cem vezes maiores, ou
até mais. Os recursos da comunidade inteira dos discípulos obedien
tes estariam disponíveis a qualquer um que estivesse em necessidade.
Não tenho dúvidas, tal estilo-de-vida desprendido e disposto a com
partilhar desafiaria tão incisivamente a sociedade ao redor que have
ria perseguições. Mas mesmo nos dias mais desesperadores, a promes
sa não seria vã. Mesmo que perseguições levassem à morte, os filhos
de pais martirizados receberiam novas mães e pais na comunidade
dos crentes. Na comunidade dos redimidos, todos os tipos de relacio
namento são transformados. Jesus e os seus primeiros seguidores de
ram uma demonstração vívida de que o modelo das relações econô
micas entre o povo de Deus, tal como o encontramos no Antigo Tes
tamento, deve ter continuidade e ser inclusive aprofundado.
O MODELO DE JERUSALÉM
Por mais embaraçoso que isso possa parecer para alguns, o fato de
que a primeira comunidade cristã vivia num sistema econômico de
comunhão integrada de bens é indiscutível. "Da multidão dos que
102
creram era um o coração e alma. Ninguém considerava exclusivamen
te sua nem uma das cousas que possuía; tudo, porém, lhes era co
mum" (Atos 4.32). Por toda parte, nos primeiros capítulos de Atos,
temos abundantes e inquestionáveis evidências disso (Atos 2.43-47;
4.32-37; 5.1-11; 6.1-7). A igreja primitiva deu continuidade ao mo
delo de partilha econômica praticado por Jesus.
A comunhão de bens na igreja de Jerusalém existia desde os pri
meiros tempos. Imediatamente após a narração da conversão dos três
mil em Pentecostes, o livro de Atos traz a observação de que "todos
os que creram estavam juntos, e tinham tudo em comum" (2.44).
Sempre que alguém se encontrasse em necessidade, eles comparti
lhavam do que tinham. Dar as sobras do ordenado a irmãos neces
sitados não era suficiente. Com freqüência eles iam mais longe, até
as suas reservas de capital; vendiam propriedades para atender aos ne
cessitados. Barnabé vendeu um campo que era seu (Atos 4.36, 37).
Ananias e Safira venderam uma propriedade, embora tivessem menti
do quanto ao preço. A promessa de Deus a Israel (Deuteronômio
15.4)23, de que uma fiel obediência eliminaria a pobreza do meio
do seu povo, tornou-se realidade! "Nenhum necessitado havia entre
eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, as vendiam . . . c se
distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade"
(Atos 4.34-35).
Dois milênios depois, os textos ainda refletem a alegria e excita
ção daquela comunidade. Os crentes faziam refeições juntos "com
alegria e singeleza de coração" (Atos 2.46). Experimentavam uma em
polgante unidade, sentindo todos que "eram um coração e uma al
ma" (Atos 4.32). Não eram indivíduos isolados lutando sozinhos pa
ra seguirem a Jesus. Uma nova comunidade, na qual todas as áreas da
vida (incluindo a econômica) estavam sendo transformadas, ia-se to r
nando vibrante realidade.
O impacto evangelístico dessa demonstração de unidade foi es
pantoso. Reiteradas vezes, os textos combinam as novas relações eco
nômicas dentro da igreja de Jerusalém c.om um fenomenal sucesso
evangel ístico. "Diariamente perseveravam unânimes no templo, par
tiam pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e
singeleza de coração, louvando a Deus, e contando com a simpatia
de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a
dia, os que iam sendo salvos" (Atos 2.46-47). A alegria e o amor
que mostravam em seu dia-a-dia era coníagiante! Já ríiencionei
2 3V e r acim a, p p . 95s.
103
antes que, em Atos 4, o autor registra que eles tinham todas as coi
sas em comum, ao invés de cada um se apegar às suas posses parti
culares. No versículo imediatamente seguinte ele acrescenta: "E
com grande poder os apóstolos davam testemunho da ressurreição
do Senhor Jesus'' (v. 33). A oração de Jesus, no sentido de que a
amorosa unidade entre os seus seguidores fosse tão marcante a pon
to de convencer o mundo de que Ele realmente tinha vindo do Pai,
foi respondida — ao menos uma vez! Assim aconteceu na igreja de
Jerusalém. A qualidade incomum de sua vida em comunhão deu po
der â pregação apostólica.
A narrativa de Atos 6 é muito instrutiva neste particular. Apa
rentemente havia uma pequena mas significativa minoria de hele-
nistas na comunidade de Jerusalém. (Helenistas eram judeus de
língua grega, talvez até gregos convertidos ao judaísmo.) Aconte
ceu que, de alguma maneira, a maioria de língua aramaica negligen
ciou as necessidades das viúvas helenistas, até que estas reclamassem
de tal injustiça. A reação da igreja foi surpreendente. Os sete ho
mens escolhidos para cuidarem dessa questão eram todos do grupo
minoritário! Os nomes de todos eles são gregos24. A igreja colocou
todo o seu programa e os fundos para viúvas necessitadas nas mãos
do grupo minoritário, que havia sido discriminado. E qual foi a con
seqüência desta nova atitude de solidariedade financeira? "Crescia
a palavra de Deus e, em Jerusalém, se multiplicava o número de dis
cípulos" (Atos 6.7).
Relações econômicas "redimidas" na igreja primitiva resulta
ram em um crescimento da Palavra de Deus. Que declaração desa
fiante! Será que ocorre o mesmo hoje? Será que transformações
econômicas similares não produziriam um dramático aumento do
número de crentes hoje? Provavelmente! Será que aqueles que tão
eloqüentemente falam da importância da evangelização estão prepa
rados para pagar este preço?
Mas qual é, afinal, o preço a ser pago? Em que consiste exata
mente a natureza dessa rica "koinonia" da igreja de Jerusalém? A
comunidade não insistia em uma absoluta nivelação econômica.
Nem tampouco foi abolida a propriedade privada. Pedro lembrou
a Ananias que ele não tinha obrigação de vender a sua propriedade
ou de doar o valor à igreja (Atos 5.4). 0 compartilhar dos bens era
algo voluntário, não compulsório“ . Mas o amor pelos irmãos e ir-
Í S T W N T , I I I , 7 9 6.
104
mãs era tão grande que muitos espontaneamente desistiam do legí
timo direito de terem propriedades privadas. "Ninguém considera
va exclusivamente sua nem uma das cousas que possuía" (Atos
4.32). Isso não quer dizer que todo mundo doou tudo que tinha.
Mais tarde podemos ver que Maria, mãe de João Marcos, continua
va tendo a sua própria casa (Atos 12.12). Outros também, sem dú
vida, retiveram alguma propriedade pessoal.
O tempo dos verbos gregos confirma esta interpretação. Tanto
em Atos 2.45 como em 4.34, os verbos estão no imperfeito. Na lín
gua grega, o imperfeito indica uma ação continuada e repetida por
um prolongado período. Assim, o sentido é o seguinte: "eles muitas
vezes vendiam propriedades . . ou "tinham o hábito de, regular
mente, trazer o que ganhavam com as vendas"26. O texto não diz
que a comunidade tenha decidido abolir toda propriedade privada,
nem que todos no mesmo instante tenham vendido tudo que tinham.
Antes, sugere que, ao longo de um determinado tempo, sempre que
houvesse necessidade, os crentes vendiam terras e casas para ajudar
os necessitados.
Em que consistia, então, a essência das novas relações econômi
cas na comunidade de Jerusalém? A melhor maneira de descrever
o que lá acontecia é dizer que havia uma ilimitada sensibilidade pa
ra com as necessidades dos outro? e uma total disponibilidade dos
irmãos entre si. 0 seu compartilhar não era superficial e ocasional.
Regular e repetidamente "vendiam as suas propriedades e bens e
distribu íam a todos, à medida que alguém tinha necessidade". Se a
necessidade era maior do que as reservas em caixa, eles vendiam pro
priedades. Simplesmente davam até que as necessidades fossem su
pridas. Estas é que eram decisivas, e não os direitos legais de proprie
dade ou a segurança financeira para o futuro. Eles colocaram os seus
recursos incondicionalmente à disposição uns dos outros. Ser um em
Cristo significava para a comunidade cristã primitiva um compromis
so ilimitado e uma total disponibilidade financeira para com os ou
tros membros do corpo de Cristo.
Infelizmente a maioria dos cristãos não dá atenção ao exemplo da
comunidade de Jerusalém. Talvez seja por causa do egocentrismo
econômico dos cristãos ricos. De qualquer forma soubemos desen
volver um esquema lógico no sentido de relegar o padrão da igreja
de Jerusalém ao empoeirado arquivo de trivialidades históricas ir
relevantes. Por que teve Paulo que fazer uma coleta para a comunida
105
de de Jerusalém algumas décadas depois? Um livro recente oferece a
familiar resposta:
2 8 B a te y, Jesus and th e P o o r, p p . 3 6 ,9 6 .
29lbid., p. 36.
106
rável número de mestres religiosos em Jerusalém engrossava as fileiras
dos necessitados30.
E isso não era tudo. Várias calamidades naturais tiveram lugar por
volta dos meados do primeiro século. Os historiadores romanos Sue-
tônio e Tácito dão noticias de seguidos períodos de fome e falta de
alimentos durante o reinado do imperador Cláudio (41-54 a.D.).
Josefo fala de tais períodos de escassez na Palestina entre 44 e 48
a.D.31. A fome na Palestina foi tão severa em determinada época
que a igreja de Antioquia enviou auxílios de emergência (Atos
11.27-30).
Havia ainda razões especiais para uma pobreza incomum dentro
da própria igreja primitiva. O zelo especial de Jesus para com os po
bres e oprimidos provavelmente atraiu para a igreja um número des
proporcionalmente elevado de pessoas empobrecidas. Perseguições
também devem ter causado graves quebras na renda normal dos cris
tãos. O livro de Atos registra uma perseguição aberta de consideráveis
proporções (8.1-3; 9.29; 12.1-5; 23.12-15). Sem dúvida os cristãos
também experimentaram formas sutis de discriminação em muitos se
tores, incluindo o desemprego32. Afinal os Doze devem ter abando
nado seu ganha-pão quando se transferiram de sua terra natal da Gali-
léia para Jerusalém. Assim a sua manutenção mediante auxílios im
plicava em maiores compromissos financeiros para a igreja de Jerusa
lém.
Estas são algumas das muitas razões por que a primeira comuni
dade cristã enfrentou dificuldades financeiras nos meados do primei
ro século. Dificilmente podemos dizer que uma generosidade insensa
ta tenha sido um fator significativo no processo. Na verdade é prová
vel que justamente o número incomum de pobres em seu meio tenha
tornado essa dramática partilha de bens uma imperiosa necessidade.
O fato de os ricos entre eles terem contribuído com grande genero
sidade para remediar uma desesperadora necessidade no corpo de
Cristo não é sinal de um idealismo ingênuo, mas, muito antes, de um
discipulado incondicional.
A sacrificial partilha de bens da primeira igreja constitui um
constante desafio para os cristãos de todas as épocas. Eles procura
3 0 Ib id ., p p . 3 6 ,9 6 -9 7 .
107
ram dar expressão concreta e visível à unidade dos crentes. Na nova
comunidade messiânica dos primeiros seguidores de Jesus, depois
de Pentecostes, Deus estava em ação redimindo todas as relações
existentes. A conseqüência foi um comprometimento incondicional
e uma total disponibilidade financeira de cada um para com todos
os outros irmãos e irmãs em Cristo.
Apesar da.beleza e do atrativo de tal exemplo, não terá ele sido
uma mera visão, que rapidamente se desvanece? A maioria das pes
soas crê que de fato assim foi. A experiência da igreja primitiva, no
entanto, é uma prova para o contrário.
KOINONIA ECONÔMICA
108
torna-se uma preocupação central na segunda carta a essa mesma igre
ja (2 Coríntios 7 a 9). Além disso houve conversas e combinações
a este respeito nas igrejas da Macedônia, Galácia, Êfeso e provavel
mente ainda em outros lugares34 .
Paulo sabia estar correndo até perigo de vida. Apesar disso in
sistiu em levar pessoalmente a oferta. Foi quando entregava essa as
sistência financeira que ele foi preso pela última vez. Sua carta aos
romanos mostra que estava consciente do perigo (15.31). Va'rias ve
zes amigos e profetas advertiram-no quando, juntamente com repre
sentantes das igrejas contribuintes, dirigia-se a Jerusalém (Atos 21.4,
10-14). Tinha, porém, uma profunda convicção de que esta colabo
ração financeira, como símbolo da unidade cristã, era extremamente
importante, mais até que a sua própria vida. "Que fazeis chorando
e quebrantando-me o coração?", respondia ele em tom de repreensão
aos amigos que lhe imploravam que não acompanhasse a comitiva a
Jerusalém; "pois estou pronto não só para ser preso, mas até para
morrer em Jerusalém, pelo nome do Senhor Jesus" (Atos 21.13).
E continuou sua jornada. Seu apaixonado empenho pelo comparti
lhamento econômico com irmãos e irmãs levou finalmente à sua pri
são e posterior m artírio (ver Atos 24.17).
Por que razão estava Paulo tão preocupado com os problemas f i
nanceiros da igreja de Jerusalém? Por causa da sua compreensão de
"comunhão". Koinonia é um conceito extremamente importante na
teologia paulina, e constitui um termo-chave na sua discussão a res
peito da coleta.
A palavra grega koinonia significa "comunhão com alguém" ou
"participação em alguma coisa". Os crentes gozam de comunhão com
o Senhor Jesus (1 Coríntios 1.9)3S. Experimentar a koinonia de Je
sus significa ter a sua justiça imputada a nós. Também implica em
compartilhar da vida de sacrifício e auto-negação que ele viveu (Fi-
lipenses 3.8-10). Em parte alguma a comunhão do cristão com
Cristo é experimentada de maneira mais poderosa que na Eucaristia
(Santa Ceia). Tomar parte na Ceia do Senho leva o crente a uma par
ticipação no mistério da cruz: "porventura o cálice da bênção
que abençoamos não é a comunhão (koinonia) do sangue de Jesus?
O pão que partimos, não é a comunhão (koinonia) do corpo de
Cristo?" (1 Coríntios 10.16).
3 4 V e r N ic k le , T h e C o lle c tio n , p p . 6 8 -6 9
109
A inferência imediata de Paulo é que a koinonia de Cristo ine
vitavelmente envolve koinonia com todos os membros de seu corpo.
"Porque nós, embora muitos, somos unicamente um pão, um só cor
po, porque todos participamos do único pão" (1 Coríntios 10.17;
veja também 1 João 1.3-4). Como se pode ver em Efésios 2, a morte
de Cristo pelo judeu e pelo gentio, homem e mulher, derrubou todas
as barreiras étnicas, sexuais e culturais. Em Cristo há uma nova pes
soa, um novo corpo de crentes. Quando os irmãos e irmãs comparti
lham de um pão e de um cálice corrfum a todos, na Ceia do Senhor,
simbolizam e tornam real a sua participação no corpo uno de Cristo.
Essa é a razão por que as divisões de classe em Corinto tanto es
candalizavam a Paulo. Aparentemente cristãos ricos festejavam por
ocasião da celebração eucarística, enquanto crentes pobres passavam
fome. Paulo, irritado, negou inclusive a pretensão de que aquilo pu
desse ser Ceia do Senhor (1 Coríntios 11.20-22). Na realidade eles es
tavam profanando o corpo do Senhor e seu sangue, por não discerni
rem o seu corpo (11.27-29).
Que quis o apóstolo dizer quando os acusou de não discernirem
o corpo do Senhor? Discernir o corpo do Senhor é compreender e vi
ver a verdade de que comunhão com Cristo é algo inseparável do ser
membro de seu corpo, onde o nosso ser-um em Cristo transcende em
muito as nossas diferenças de raça ou classe social. Discernimento
deste singular corpo de crentes nos leva a uma disponibilidade
mútua sem restrições e um senso de responsabilidade pelos outros
irmãos e irmãs. Discernimento deste corpo nos move a chorar com os
que choram e nos alegrar com os que estão alegres. Discernimento
deste corpo é algo totalmente incompatível com festejar enquanto
outros membros passam fome. Aqueles que, na prática, vivem uma
negação da unidade e comunhão em Cristo, insiste Paulo, comem e
bebem juízo para si mesmos quando vão à mesa do Senhor. Na verda
de eles de fato não participam da Ceia do Senhor.
Uma vez que compreendemos as implicações do ensino de Paulo
quanto ao discernir o corpo na Ceia do Senhor, não podemos mais
dormir em paz enquanto o escândalo que representa cristãos morren
do de fome não for removido. Enquanto algum cristão em algum lu
gar do mundo passar fome, a celebração ecuarística do resto dos cris
tãos em todos os lugares é imperfeita.
Para Paulo, a íntima comunhão no corpo de Cristo traz consigo
implicações econômicas concretas; ele usa exatamente essa mesma
palavra, koinonia, para designar o compartilhamento financeiro entre
os crentes. No início do seu ministério, os líderes da igreja de Jeru
110
salém, depois de dramático debate, deram endosso à sua missão entre
os gentios. Quando lhe estenderam a "destra de comunhão" (koino-
nia), recomendaram-lhe apenas uma expressão concreta dessa comu
nhão. E Paulo prometeu assistência financeira aos seus irmãos cris
tãos em Jerusalém (Gálatas 2.9-10)36.
Paulo freqüentemente usa o termo koinonia até como sinônimo
de "coleta". Ele fala da liberalidade da "contribuição" (koinonia)
referindo-se às generosas ofertas dos coríntios (2 Coríntios 9.13; ve
ja também 8.4)37. A mesma linguagem é por ele empregada para se
referir à oferta dos cristãos macedônios para os de Jerusalém. "Por
que aprouve à Macedônia e à Acaia levantar uma coleta (koinonia)
em benefício dos pobres dentre os santos que vivem em Jerusalém"
(Romanos 15.26). De fato esta comunhão financeira era apenas par
te de uma comunhão mais ampla e completa. Os cristãos gentílicos
se tornaram comungantes (ele usa uma forma verbal de koinonia)
dos valores espirituais dos judeus. Por isso era conveniente que eles,
por sua vez, compartilhassem com estes os seus bens materiais (Ro
manos 15.27). Para Paulo, compartilhar os recursos econômicos era
uma parte óbvia e fundamental da comunhão cristã38 .
A primeira instrução do Paulo no tocante à contribuição finan
ceira dentro do corpo de crentes era de caráter geral: dê o quanto
você pode. Cada um deveria dar "conforme a sua prosperidade" (1
Coríntios 16.2). Mas isto não significa uma pequena doação, que não
custa nada. Paulo elogiou os macedônios porque deram "na medida
de suas posses e mesmo acima delas" (2 Coríntios 8.3). Os macedô
nios eram gente muito pobre. Aparentemente estavam passando por
grandes dificuldades financeiras quando Paulo solicitou-lhes uma ge
nerosa oferta (2 Coríntios 8.2). Mas deram até ãlém das suas possi
bilidades! Não encontramos aqui o menor sinal de uma fórmula me
cânica igual de 10% para pobres e milionários. Dar quanto puder —
este é o padrão de Paulo.
Em segundo lugar, dar era um ato voluntário (2 Coríntios 8.3).
3 7 V e r T W N T . I I I . 8 0 7 -8 .
111
Paulo fez questão de especificar que não estava deixando um manda
mento para os coríntios (2 Coríntios 8.8). Legalismo não é a solu
ção.
A terceira recomendação de Paulo é a mais surpreendente. A nor
ma, sugere ele, seria algo que se aproxima a um nivelamento econô
mico entre o povo de Deus. "Porque não é para que os outros tenham
alívio, e vós, sobrecarga; mas para que haja igualdade." Em apoio ao
seu princípio faz uma citação tirada do contexto da história bíblica
do maná: "como está escrito: O que muito colheu, não teve demais;
e o que pouco, não teve falta" (2 Coríntios 8.13-15).
Conforme o relato de Êxodo, quando Deus começou a mandar o
maná de cada dia aos israelitas no deserto, Moisés ordenou ao povo
que recolhesse somente a quantidade necessária para o dia (Êxodo
16.13-21). Um ômer (mais ou menos dois litros) por pessoa seria su
ficiente, disse Moisés. Alguns gananciosos, contudo, tentaram juntar
mais do que podiam. Porém, quando foram pesar o que haviam re
colhido, descobriram que todos tinham apenas e tão somente um
ômer por pessoa. "Não sobejava ao que colhera muito, nem faltava
ao que colhera pouco" (Êxodo 16.18).
Paulo cita o relato bíblico do maná como suporte para a sua ins
trução sobre a partilha econômica. Assim como Deus insistiu em por
ções iguais de maná para todo o seu povo no deserto, assim os corín
tios devem dar agora, para que "haja igualdade" no corpo de Cristo.
Isso pode ser motivo de alarme e inquietação para cristãos ricos.
Mas o texto bíblico mostra claramente que Paulo coloca o princí
pio da igualdade econômica entre o povo de Deus como orientação
para os coríntios, para quando fossem dar a sua contribuição. "£
uma questão de igualdade. No momento, o que vocês têm em exces
so satisfaz a necessidade deles, mas pode ser que um dia a necessida
de de vocês seja satisfeita com o que for excesso para eles. O alvo é
igualdade" (2 Coríntios 8.14, conforme a versão em inglês da "New
English Bible")39.
É excitante ver como o ensino bíblico a respeito de novas rela
ções econômicas no seio do povo de Deus criou na igreja prim iti
va um zelo pelo pobre que era algo simplesmente singular na época.
112
Escrevendo por volta do ano 125 a.D., o filósofo cristão Aristides
mostra o seguinte quadro ao descrever o compartilhamento econô
mico na igreja:
41 Ib id ., p p . 42^14.
4 2 E p . 8 4 ; cita d o e m ib id ., p . 4 5 .
113
1
115
de nós que os membros da nossa própria congregação45 ?
A presente divisão no corpo de Cristo, entre os que têm e os que
não têm, é um grande obstáculo à evangelização do mundo. Gente
que passa fome, no Terceiro e Quarto Mundos, acha difícil aceitar um
Cristo proclamado por gente que é sempre um símbolo da sociedade
mais rica da terra (e que muitas vezes até defende esse "status"
econômico).
Oportunidades perdidas e pecado passado ou presente, contudo,
não devem nos impedir de ver o potencial que hoje temos. 0 mundo
em que vivemos está perigosamente dividido entre ricos e pobres. Se
ao menos uma pequena fração dos cristãos ricos começasse a aplicar
princípios bíblicos de compartilhamento econômico entre o povo de
Deus espalhado pela face da terra, o mundo ficaria embasbacado.
Provavelmente nenhuma outra medida teria hoje um impacto evan-
gelístico tão poderoso. Será que não poderia acontecer que milhões
e milhões de descrentes assim chagassem a confessar a Cristo como
Senhor? A oração de Jesus seria atendida. O amor mútuo e a unidade
dentro do corpo de Cristo convenceriam o mundo de que Jesus de
fato veio do Pai (João 17.20-23).
A igreja é o organismo mais universal do mundo de hoje. Ela tem
a oportunidade de viver um novo modelo de comunhão, num mo
mento crucial da história mundial. Devido à sua preocupação pelos
pobres, a igreja no passado tem sido pioneira no desenvolvimento
de escolas e hospitais. Mais tarde governos secularizados institucio
nalizaram os novos modelos que ela instituiu. Nos fins do século vin
te, um mundo perigosamente dividido espera por um novo modelo
de partilha econômica.
A Bíblia ensina com clareza que Deus deseja relações econômicas
fundamentalmente transformadas entre o seu povo. Temos nós a fé
e a obediência para começar a viver de acordo com a visão bíblica?
116
CAPITULO 5
P OSI ÇÃ O B Í BL I C A
COM R E L A Ç Ã O À R I QUE ZA E
P O S S E DE B E N S M A T E R I A I S
PROPRIEDADE PRIVADA
117
rentemente pressupunha de igual modo a legitimidade da proprieda
de privada. Seu discípulo, Simão Pedro, tinha uma casa, a qual Je
sus freqüentava (Marcos 1.29). Aos seus seguidores ele ordenou que
dessem ao pobres (Mateus 6.2-4) e emprestassem dinheiro mesmo
quando não houvesse esperança de retribuição (Mateus 5.42; Lucas
6.34, 35). Conselhos como esses não teriam razão de ser se Jesus não
tivesse concordado com a legitimidade da posse de propriedades e de
dinheiro. Como vimos no capítulo anterior, nem mesmo o intenso
compartilhamento econômico na igreja de Jerusalém implicava na re
jeição da propriedade privada. A afirmação da sua legitimidade se
encontra ao longo de toda a revelação bíblica2.
Mas o direito à propriedade privada não é absoluto.Na perspecti
va da revelação bíblica, os donos de propriedades não são livres para
buscar o proveito próprio sem consideração para com as necessidades
do próximo. Tal ponto-de-vista não é derivado das Escrituras, e sim
de um conceito econômico secular, baseado no princípio da não-
intervenção primeiramente formulado pelo deísta Adam Smith.
Smith publicou um livro, em 1776, que exerceu profunda influên
cia na sociedade ocidental nos últimos dois séculos3. (Desde a revo
lução keynesiana, é claro, a influência das idéias de Smith é menor
do que antes; contudo, a sua perspectiva fundamental, ainda que em
forma um tanto revisada, ainda hoje permanece como a base da es
trutura ideológica de muitos norte-americanos.) Smith sustentava que
uma mão invisível garantiria o bem de todos, se cada pessoa buscas
se os seus próprios interesses econômicos no contexto de uma socie
dade competitiva. A oferta e procura de bens e serviços deveria ser o
único fator determinante de preços e de salários. Se reinar a lei da
oferta e procura e se todos buscarem as suas próprias vantagens den
tro de uma economia abertamente competitiva e não-monopolística,
o bem comum da sociedade será o resultado. Proprietários de terras e
de capital, por isso, têm não apenas o direito mas inclusive a obriga
ção de tirar deles o maior proveito possível.
Tal ponto-de-vista pode ser extremamente atrativo para cidadãos
norte-americanos bem sucedidos. Com efeito, o princípio da não-
intervenção econômica foi desposado por alguns como sendo o prin
118
cípio econômico cristão. Na verdade, contudo, ele é um produto do
lluminismo4. Reflete uma perspectiva moderna e secularizada, não a
perspectiva bíblica.
É interessante observar o evidente paralelo que existe entre o
princípio da não-intervenção e a posição da Roma pagã dos primei
ros séculos em relação à propriedade privada. Cari F. H. Henry, ex-
editor da revista "Christianity Today", acertadamente contrasta a
posição bíblica com a romana: " 0 ponto-de-vista romano ou justi-
niano deriva o direito à propriedade do direito natural, e o define
como o poder exclusivo e incondicional do indivíduo sobre a pro
priedade. Uma implicação disso é o direito do dono de usar a pro
priedade como lhe agrada . . . independente do que pensem os ou
tros." E Henry reconhece que essa visão pagã "ainda permanece
sendo a silenciosa pressuposição de uma boa parte do sistema do
mundo livre de hoje"5.
Segundo a fé bíblica Javé é o Senhor sobre tudo. Ele é o sobera
no Senhor da história. A economia não é uma esfera secular neutra,
independente do seu senhorio. Pelo contrário, a atividade econômica,
como qualquer outra área da vida, deve estar sujeita à sua vontade, de
acordo com a sua revelação nas Escrituras.
Qual é a modificação que a visão bíblica de Javé como Senhor
de tudo que existe requer em relação à crença comum de que o di
reito à propriedade privada é absoluto e inviolável? A Bíblia insiste
em que somente Deus tem direito absoluto à propriedade. Mais ain
da, ela ensina que este Dono Absoluto impõe significativas restrições
ao modo pelo qual as pessoas podem adquirir e usar a sua proprieda
de.
0 salmista sumariza a visao bíblica de Javé como o Proprietário
Absoluto: "A o SENHOR pertence a terra e tudo o que nela se con
tém, o mundo e os que nele habitam" (Salmo 24.1). " 0 que está de
baixo de todos os céus é meu", diz Deus a Jó (Jo 41.11; veja ainda
Salmo 50.12; Deuteronômio 26.10; Êxodo 19.5). No último capí
tulo examinamos a questão do Jubileu, ê exatamente por ser a pro
priedade absoluta da terra um atributo exclusivo de Javé e não
dos colonos israelitas, que ele tinha o direito de dar ordens no sen
tido de uma redistribuição da terra a cada 50 anos: "A terra não se
venderá em perpetuidade, porque a terra é minha: pois vós sois para
mim estrangeiros e peregrinos" (Levítico 25.23; veja também Deute-
119
ronômio 10.14). Pelo fato de ser o Criador e Sustentador de toda a
criação. Deus é o único que tem direito absoluto de propriedade.
Como proprietário absoluto. Deus impõe limitações à aquisição
e uso de propriedades. Segundo o Antigo Testamento, “ o direito à
propriedade era, em princípio, subordinado à obrigação de cuidar
dos membros mais fracos da sociedade''6. Esta é a clara implicação da
legislação, discutida no capítulo anterior, sobre o Jubileu, o ano
sabático, as colheitas e os juros. Os donos dos campos não tinham
o direito de colher tudo. Tinham que deixar alguma coisa para os
pobres. Quando um colono israelita comprava uma terra, na realida
de o que estava comprando era o direito do uso da terra até o próxi
mo Jubileu (Levítico 25.15-17). Na verdade, mesmo o direito de
usar a terra nesse meio tempo não era absoluto. Se aparecesse um pa
rente da pessoa que a tinha vendido, com condições de comprá-la de
volta, o comprador teria que vendê-la logo. Ou ainda se a própria
pessoa que a vendera conseguisse de novo se recuperar financeira
mente, teria direito a comprar de volta a terra assim que quisesse ou
pudesse (Levítico 25.25-28). O direito de propriedade do comprador
estava subordinado ao direito do proprietário original de ter meios
com que ganhar sua subsistência.
A Deus interessava evitar extremos de riqueza e pobreza entre seu
povo. Seu desejo era que cada família tivesse os seus próprios meios
de subsistência. Estes direitos humanos, inclusive os do menos privi
legiado, que sempre de novo ficava para trás daqueles mais ativos e
mais prósperos, eram mais importantes do que os direitos de pro
priedade da pessoa que tinha condições de pagar pela terra o preço
estabelecido pelo mercado imobiliário. Assim os direitos dos pobres
e desprivilegiados, de possuir meios que lhes possibilitassem uma justa
subsistência, tinham precedência sobre os direitos ao lucro por parte
dos mais prósperos7.
Ao mesmo tempo os princípios bíblicos de modo algum apóiam
um sistema econômico comunista. Eles apontam, isso sim, na dire
ção de uma posse privada descentralizada, que permite às famílias
controlarem o seu destino econômico. Como mordomos da terra e
de outros recursos econômicos que pertencem, em última instância,
a Deus, elas têm a responsabilidade e o privilégio de obter o seu pró
prio sustento, e de compartilhar seus bens generosamente com outros
à medida que houver necessidade. Esse tipo de sistema econômico
120
descentralizado torna todas as pessoas capazes de serem co-criado-
ras com Deus. E também protege a todos contra o poder econômico
centralizado (como ocorre tanto quando o estado tem a posse dos
meios de produção, como nas grandes empresas multinacionais
controladas por pequenas elites). Tal poder centralizado representa
uma ameaça à liberdade e promove o totalitarismo.
Essa posição do Antigo Testamento com relação à propriedade
tem suas raízes no alto conceito em que a pessoa humana era tida
em Israel. Especialistas no Antigo Testamento têm destacado que
Israel, em contraste com outras civilizações antigas como a Babilô
nia, Assíria e o Egito, considerava todos os cidadãos iguais perante
a lei. Em outras sociedades o "status" social do réu (oficial do reino,
homem pobre, sacerdote) determinava o modo pelo qual seu crime
era julgado e punido. Em Israel todos eram iguais perante a lei. Por
causa deste alto conceito das pessoas, a propriedade, na comparação
entre ambos, parecia menos significante.
9 Ib id ., p . 2 7 1 .
121
NÃO ANDEIS ANSIOSOS .
Jesus chama seus seguidores para uma vida alegre e livre de preo
cupações com relação a posses materiais:
Por isso eu vos advirto: não andeis ansiosos pela vossa vida, quan
to ao que haveis de comer, nem pelo vosso corpo, quanto ao que ha
veis de vestir. Porque a vida é mais do que o alimento, e o corpo mais
do que as vestes. Observai os corvos, os quais não semeiam nem cei
fam, não têm despensa nem celeiros; todavia Deus os sustenta. Quan
to mais valeis do que as aves'. Qual de vós, por ansioso que esteja, po
de acrescentar um côvado ao curso de sua vida? Se, portanto, nada
podeis fazer quanto às cousas mínimas, por que andais ansiosos pelas
outras?
Observai os lírios: eles não fiam nem tecem. Eu, contudo, vos
afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qual
quer deles. Ora, se Deus veste assim a erva que hoje está no campo
e amanhã é lançada no forno, quanto mais tratando-se de vós,
homens de pequena fé. Não andeis, pois, a indagar o que haveis de
comer ou beber, e não vos entregueis a inquietações. Porque os gen
tios de todo o mundo é que procuram estas cousas; mas vosso Pai sa
be que necessitais delas. Buscai, antes de tudo, o seu reino e a sua jus
tiça, e estas cousas vos serão acrescentadas. (Lucas 12.22-31; vejam
também 2 Coríntios 9.8-11.)
122
meiro: muita gente se agarra ao que tem, em vez de compartilhá-lo,
por temerem o futuro. Mas tal atitude, em última análise, não cons
titu i incredulidade? Se realmente cremos que Deusé quem Jesus dis
se que ele é, podemos começar a viver despreocupados quanto ao fu
turo. Jesus disse que Deus é o nosso Pai amoroso. A palavra que ele
usou, "Abba" (Marcos 14.36), é uma expressão íntima e carinhosa
como "papai". Se realmente cremos que o todo-poderoso Criador e
sustentador do cosmo é o nosso amoroso papai, podemos começar
a deixar de lado a preocupação com relação a bens materiais.
Em segundo lugar, uma vida assim, livre de ansiedades, é fruto de
um comprometimento incondicional com Jesus como Senhor. Deve
mos realmente querer buscar em primeiro lugar o reino dos céus. Je
sus deixou a coisa bem clara. Não podemos servir a Deus e às rique
zas. "Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborre
cer-se de um, e amar ao outro; ou se devotará a um e desprezará ao
outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas" (Mateus 6.24). "R i
quezas" aqui é tradução da palavra mamon. Mamon não é algum mis
terioso deus pagão. O termo representa simplesmente a translitera-
ção grega de uma palavra aramaica que significa "riqueza" ou "pro
priedade"11 . Tal como o jovem rico e como Zaqueu, temos que de
cidir entre Jesus e as riquezas. Como o negociante na parábola, te
mos que decidir entre o reino dos céus e a nossa prosperidade econô
mica: "O reino dos céus é também semelhante a um que negocia e
procura boas pérolas; e tendo achado uma pérola de grande valor,
vendeu tudo o que possuía, e a comprou" (Mateus 13.45, 46; veja
também o v. 44). Ou Jesus e o seu reino são tão importantes que es
tamos dispostos a sacrificar tudo o mais, inclusive nossas riquezas, ou
não somos sinceros com relação a Deus.
Se ele é realmente o Senhor, e se confiamos num amoroso Pai
celestial, podemos ter a coragem de viver sem preocupações com
bens materiais. Cumpre dizer, todavia, que esse tipo de vida despreo
cupada com riquezas não representa meramente algo interior, espiri
tual. Ela envolve ação concreta. Imediatamente após o comovente
pronunciamento de Jesus sobre a despreocupação mostrada pelos
corvos e pelos lírios, ele continua: "Vendei os vossos bens e dai esmo
la; fazei para vós outros bolsas que não desgastem, tesouro inextin-
güível nos céus, onde não chega o ladrão nem a traça consome, por
que onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração"
(Lucas 12.33-34).
123
Se existe gente pobre, que necessita de assistência, o despreocu
pado discípulo de Jesus os ajudará — mesmo se isso significar a venda
de alguns bens. Pessoas são muito mais importantes do que coisas.
“ Fazer um tesouro nos céus" significa exatamente isso. "Na litera
tura judaica, as boas obras de uma pessoa religiosa são muitas vezes
descritas como tesouros guardados no céu"12. Uma pessoa faz para
si um tesouro no céu praticando a justiça na terra. E ajudar aos po
bres é um dos atos de justiça mais fundamentais. Jesus não quer di
zer, é claro, que conquistamos a salvação por assistir ao necessitado.
Ele quer, isso sim, instar com seus seguidores a que —por gratidão para
com a graça perdoadora de Deus — sejam tão livres de preocupação em
relação a propriedades que a qualquer momento possam, se for o ca
so, se desfazer delas para ajudar ao pobre e oprimido. Tal prontidão é
parte integral de uma vida alegre e saudavelmente despreocupada
com as riquezas.
Mas fica ainda em aberto uma questão bastante difícil. Queria
Jesus dizer que deveríamos vender tudo que temos? Quão literal
mente devemos interpretar o que ele disse em Lucas 6.30: "dá a todo
o que te pede; e se alguém levar o que é teu, não entres em deman
da"? Jesus várias vezes usou de hipérboles para dar ênfase a algo im
portante, um modo de proceder que é tipicamente judaico, como já
vimos acima. Pur exemplo, dificilmente ele queria dizer, em Lucas
14.26, que alguém deve realmente odiar a seu pai e sua mãe para po
der ser seu discípulo. O problema é que nós nos tornamos tão fami
liarizados com as suas palavras, e tão acostumados a deixar por me
nos o seu chamado para um discipulado radical e um comprometi
mento incondicional, que obscurecemos a sua real intenção. O que
99% de nós necessitamos ouvir em 99% dos casos é: "dá a todo o que
te pede" e "vende os teus bens", ê certamente verdade que os segui
dores de Jesus continuaram a ter alguma propriedade privada. Mas ele
ensinou de maneira bem clara que o tipo de compartilhamento subs
tancial que queria ver entre eles envolveria, sem dúvida, venda de
bens. Os seus primeiros seguidores em Jerusalém levaram-no muito a
sério. E os cristãos ricos, hoje, que quiserem conhecer por experiên
cia própria essa libertadora despreocupação que Jesus mostrou, de
verão fazer o mesmo.
Outras partes do Novo Testamento retomam este tema. Bispos
não devem ser pessoas que amam o dinheiro ("avarentos", 1 Timó
teo 3.3, Tito 1.7). Diáconos, igualmente, não sejam "cobiçosos de
124
sórdida ganância" (1 Timóteo 3.8). Em muitas igrejas hoje, "suces
so" nos negócios é um dos critérios mais importantes na escolha do
presbitério. Não representa isso uma flagrante inversão do ensino bí
blico? Os que são ricos inclusive devem ter cuidado de não coloca
rem suas esperanças na "instabilidade da riqueza". Pelo contrário,
confiem em Deus e sejam "generosos em dar e prontos a repartir"
(1 Timóteo 6.17-19). "Seja a vossa vida sem avareza. Contentai-
vos com as cousas que tendes; porque ele tem dito: De maneira algu
ma te deixarei, nunca jamais te abandonarei" (Hebreus 13.5). Nosso
futuro está assegurado, não porque contamos com recursos à nossa
disposição, e sim por estarmos nas mãos de um Pai amoroso e onipo
tente. Se realmente confiamos nele e estamos incondicionalmente
submetidos ao seu senhorio, podemos ter a mesma atitude de Jesus,
livres de preocupação e sem grandes interesses por posses e bens ma
teriais.
125
O sexto capítulo de 1 Timóteo sublinha e reforça o ensino de
Jesus. Os cristãos devem ficar contentes tendo o necessário para co
mer e vestir (1 Timóteo 6.8). Por quê?
1 3H e ld e r C âm a ra , R o vo lu tio n T h r o u g h Peace (N o va Io rq u e : H a rp e r, 1 9 7 1 ), p p . 1 4 2 -4 3 .
I 4 T W N T , V I , 2 7 1 . T a y l o r (E n o u g h Is E n o u g h , p . 4 5 ) acha qu e a palavra te m a co n o ta -
ç5o de "e x ce ss o " ou "q u e re r mais e m a is".
127
é rico para com Deus (Lucas 12.16-21).
129
Deus, são todas muito boas (Gênesis 1).
A fé bíblica não conhece as idéias ascéticas de que se abster de
comida, posses ou sexo é algo virtuoso por si só. Na verdade todas
essas coisas boas da criação são, como disse Agostinho, apenas alian
ças dadas a nós pelo nosso Noivo Amado. Não são o próprio Noivo.
Às vezes circunstâncias particulares — tais como uma missão urgen
te ou a necessidade dos pobres — podem exigir uma renúncia a elas.
São e permanecem, entretanto, parte da boa criação de Deus, como
as alianças dadas pelo Amado, são símbolos do seu amor por nós.
Se as valorizamos como provas da afeição que ele nos devota, em
vez de as confundirmos com ele próprio, são presentes maravilho
sos, que enriquecem as nossas vidas.
A prescrição que Deus deu a Israel no tocante ao uso do dízimo
representa bem a perspectiva bíblica sobre o assunto (Deuteronô-
mio 14.22-27). A cada três anos, como já vimos, o dízimo era dado
aos pobres. Nos outros anos, entretanto, o povo devia ir ao lugar de
culto e fazer uma grande festa. Era para ser uma grande celebração,
cheia de alegria! "E, perante o SENHOR teu Deus, no lugar que es
colher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu
cereal, do teu vinho e do teu azeite, e os primogênitos das tuas va
cas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer ao SENHOR teu
Deus todos os dias" (Deuteronômio 14.23). Aqueles que moravam
longe do santuário podiam vender o dízimo da sua produção e levar
o dinheiro. Prestem atenção nas instruções de Deus para os partici-
pates dessa festa: "Esse dinheiro dá-lo-ás por tudo o que deseja a
tua alma, por vacas, ou ovelhas, ou vinho, ou bebida forte, ou qual
quer coisa que te pedir a tua alma; come-o ali perante o SENHOR
teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa" (14.26). Deus quer que o seu
povo celebre a gloriosa excelência da sua criação.
O exemplo de Jesus encaixa perfeitamente na visão do Antigo
Testamento. E certo que ele falou um bocado sobre o perigo que re
presenta ter bens materiais. Todavia não foi um asceta. Participou
com prazer de festas de casamento, e inclusive colaborou com a be
bida (João 2.1-11). Jantou com pessoas abastadas. Aparentemente
ele era ligado o suficiente a festas e celebrações para que seus inim i
gos pudessem espalhar o boato de que era um glutão e beberrão
(Mateus 11.19). O ascetismo cristão tem uma longa história; contu
do a vida de Jesus solapa as suas pressuposições básicas.
Uma breve passagem na primeira carta a Timóteo resume bem o
ponto-de-vista bíblico. Nos últimos dias vai haver gente proibindo o
casamento e pleiteando abstinência de alimentos. Mas isso não é
certo, "pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de
130
r
131
de bênção (Deuteronômio 6.14-15; 28.15-68; 8.11-20). Como vi
mos nos últimos dois capítulos, um dos mandamentos mais freqüen
tes de Deus para o seu povo era que alimentassem os famintos e fi
zessem com que houvesse justiça para o pobre e oprimido. Por ter
sempre de novo ignorado este mandamento, Israel sofreu a maldi
ção de Deus. A prosperidade nacional nos dias de Amós e Isaías não
era resultado da bênção divina. Era fruto de pecaminosa opressão
aos pobres. Em conseqüência. Deus destruiu a nação.
Achamos com maior freqüência textos bíblicos que advertem
sobre a punição de Deus para os ricos e poderosos, por causa da sua
negligência ou opressão para com os pobres, do que textos que di
zem resultar a abundância material da obediência” . As duas coi
sas, no entanto, não são mutuamente contraditórias. Ambas são ver
dade. O que precisamos é do equilíbrio bíblico.
A Bíblia realmente ensina que Deus recompensa a obediência
com prosperidade. Mas nega o inverso. É uma heresia, particular
mente em voga no Ocidente, pensar que riqueza e prosperidade
são sempre um sinal seguro de virtudes. Podem ser resultantes de
pecado e opressão, como no caso de Israel18. O teste decisivo é
se as pessoas prósperas estão obedecendo o mandamento de Deus
de fazer justiça ao oprimido” . Se não o fazem, estão vivendo em
condenável desobediência a Deus. Por isso, em bases bíblicas, pode-
se ter certeza de que a prosperidade, num contexto de injustiça, re
sulta de opressão, e não de obediência, não sendo, conseqüentemen
te, um sinal de justiça.
A estreita relação entre justiça, prosperidade e zelo pelos pobres
é explicitamente ensinada nas Escrituras. A descrição da "mulher
virtuosa", em Provérbios 31, oferece uma bela ilustração disso.
Essa mulher é uma aplicada negociante que compra campos e está
envolvida no comércio (versículos 14, 16 e 18). É uma pessoa justa,
que teme ao Senhor (v. 30). Sua obediência e diligência claramente
lhe trazem prosperidade. Porém, posses materiais não endurecem
seu coração contra os pobres: "abre a mão ao aflito; estende-a ao
necessitado" (v. 20).
18 V e r a c im a, p p . 6 3 -6 7 , 7 4 -7 9 .
132
0 Salmo 112 é igualmente explícito.
2 0 J o h n V . T a y lo r , E n o u g h is E n o u g h (L o n d re s : S C M Press, 1 9 7 5 ), c a p ítu lo 3 .
133
1
134
r
E inclui aí casas e terras, parte da boa criação que Deus fez para
que dela usufruíssemos. Na mesma frase, contudo, prometeu também
perseguição! Às vezes —talvez a maior parte das vezes —os maus, po
derosos e ricos haverão de perseguir àqueles que se arriscarem a seguir
incondicionalmente o ensino de Jesus. Daí resultam freqüentemen
te fome e pobreza. E em circunstâncias tais o discípulo pobre e fa
minto é de fato abençoado.
Temo que estejamos no limiar de tempos como esse. Pode chegar
o dia, e talvez não demore muito, em que aqueles que se aventura
rem a pregar e viver o que a Bíblia ensina sobre os pobres e os bens
materiais terá que enfrentar uma terrível perseguição. Em algumas
regiões, com efeito, isso já se faz sentir. Muitos cristãos na América
Latina têm sido torturados, alguns inclusive mortos, por causa da
sua identificação com os pobres. Se as guerras de redistribuição
preconizadas por Heilbroner” se tornarem realidade, se nações ricas
forem à guerra para proteger a sua desproporcional fatia dos re
cursos e alimentos de que o mundo dispõe, então inevitavelmente
ocorrerão perseguições nesses países.
Em tais circunstâncias os cristãos fiéis continuarão a manter o
seu ponto dc vista do que os direitos de propriedade não são abso
lutos. Corajosamente insistirão em que o direito de indivíduos e na
ções de usar terras e recursos como bem entenderem é subordinado
ao direito que têm todas as pessoas a recursos e meios justos de sub
sistência. Certamente eles compreenderão, então, de modo mais
profundo a despreocupação e a desimportância com que Jesus enca
rava os bens materiais. Ao verem outros membros da igreja optarem
por segurança e boa vida em lugar de fidelidade e perseguição, se da
rão conta de quão perigosos são, de fato, as posses materiais e a ri
queza. Certamente não haverão de desprezar as boas dádivas da cria
ção. Mas, quando forçados a escolher entre as posses e o Reino, de
* 3 V e r a c im a, p . 3 6 .
135
CAPITULO 6
A FOME MUN DI AL
E 0 PECADO " E S T R U T U R A L "
Atendei agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desven
turas, que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão corruptas e as vos
sas roupagens comidas de traça, o vosso ouro e a vossa prata foram
gastos de ferrugens e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra
vós mesmos, e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros
acumulastes nos últimos dias. Eis que o salário dos trabalhadores que
ceifaram os vossos campos, e que por vós foi retido com fraude, es
tá clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos
do Senhor dos Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra.
Tendes vivido nos prazeres. Tendes engordado os vossos corações,
em dia de matança (Tiago 5.1-5).
Li há algum tempo que Upton Sinclair, o escritor, leu essa passa
gem (Tiago 5.1-5) . . . para um grupo de pastores. Atribuiu, então,
a autoria dessas palavras a Emma Goldman, na época uma agitadora
anarquista. Houve grande indignação entre os pastores, que respon
deram: "Essa mulher deve ser deportada imediatamente"! |De um
sermão não-publicado, proferido a 1P de junho de 1975 pelo dr.
Paul E. Toms, ex-presidente da "National Association o f Evangeli-
cals", dos Estados Unidos],
136
A BIBLIA E O "PECADO ESTRUTURAL"
137
legal para a "condenação do necessitado por um par de sandálias"2.
Maltratar os pobres era legal'.
Deus condena tanto os desvios sexuais como a opressão legaliza
da, dos pobres. Pecados sexuais e injustiça econômica são abominá
veis a Deus em escala de igualdade.
Algo semelhante nos é dito através do profeta Isaías:
138
o meio-ambiente (inflingindo pesados danos a terceiros) e ficar cala
do é algo tão errado como destruir seus próprios pulmões com ta
baco.
Deus revela o seu desagrado com referência a instituições injus
tas de maneira muito clara em Amós 5.10-15: (Para compreender
essa passagem é importante lembrar que as sessões do tribunal em
Israel tinham lugar ao lado do portão da cidade.) "Eles odeiam aque
le que repreende à porta . . . Eu conheço os vossos inúmeros delitos
e os vossos enormes pecados . . . Aceitam suborno e repelem os indi
gentes à porta . . . Odiai o mal e amai o bem, estabelecei o direito
à porta" (BJ). "Que o direito corra como a água e a justiça como um
rio caudaloso" (5.24 — BJ), não é uma verbalização abstrata. O pro
feta quer dizer, com isso, que haja justiça no sistema legal (legislati
vo e judiciário). Ele quer dizer: Acabem com este sistema legal cor
rupto que permite aos ricos comprarem a sua absolvição enquanto
onera os pobres com longas penas de prisão.
Também não se trata apenas de serem condenados os indivíduos
desonestos e corruptos dentro do sistema legal. As próprias leis são,
às vezes, uma abominação para Deus, conforme ele tem claramente
dito:
140
I
3C f . ta m b é m Isaías 3 .1 3 -1 7 .
141
w
SM o o n e yh a m , H u n g ry W o r ld , p p . 1 2 8 , 117.
142
examinarmos as evidências que levam a uma tal avaliação.
Cito esses dados perturbadores, que vêm a serguir, não com sá
dico prazer de uma chance para açoitar os abastados, nem com o
desejo de criar sentimentos de culpa insolúvel. Mas creio firmen-
te que o Deus dos pobres quer que todos nós sintamos uma pro
funda dor pela agonia e angústia que atormentam os pobres. E tam
bém creio que devemos chamar o pecado pelo seu nome bíblico.
Todas as nações desenvolvidas estão diretamente envolvidas.
Também o estão as poderosas elites nos países pobres. Padrões sociais
antigos, valores herdados e perspectivas filosóficas acalentadas nos
países em desenvolvimento também contribuem com parcela es
sencial para a presente situação de pobreza6. Seria ingênuo tentar sim
plificar realidades complexas e isolar um bode expiatório. Mas cer
tamente a nossa responsabilidade primária é a de tirar a trave do
nosso próprio olho. A nossa necessidade mais urgente é compreender
e mudar aquilo que estamos fazendo de errado.
De que modo, então, somos nós parte de estruturas injustas que
contribuem para a fome mundial? Faremos inicialmente uma breve
investigação sobre as origens históricas do problema que enfrenta
mos hoje, passando a seguir a examinar quatro questões correntes:
comércio internacional, consumo de recursos naturais, consumo e
importação de alimentos, e corporações multinacionais no Terceiro
Mundo.
ORIGENS E CRESCIMENTO
143
Como chegamos a essa situação? Parte da resposta — só parte —
pode ser encontrada na história do colonialismo8.
Quão diferentes as coisas teriam sido se as nações ocidentais t i
vessem seguido princípios econômicos bíblicos nestes últimos sécu
los. Mas quando as nações européias em expansão econômica come
çaram a explorar e conquistar os continentes da Ásia, África e das
Américas, fidelidade aos princípios econômicos da Bíblia muito di
ficilmente era algo central em suas cabeças.
Na maioria dos casos os países colonizadores tinham o objetivo
de usar as suas colônias para projetar o seu próprio status nacional
na comunidade mundial. Assim eram as coisas na era mercantilista.
A pompa das nações poderosas se tornou o objetivo último, e o con
trole sobre terras e riquezas ao redor do mundo era a chave para o
poder9. A criação de colônias, então, era algo extremamente provei
toso. Preocupados com o status da pátria-mãe, os colonizadores rara
mente mostraram consideração pelas condições econômicas, sociais
e culturais dos povos indígenas.
É um fato geralmente reconhecido hoje pelos historiadores que as
civilizações que a Europa descobriu não eram menos desenvolvidas
ou subdesenvolvidas em nenhum sentido (à parte da ausência da fé
144
cristã, por um lado, e, por outro, da tecnologia militar superior do
Ocidente) quando os europeus travaram o primeiro contato com elas.
Certo, as civilizações da Ásia, África e das Américas eram muito dife
rentes das da Europa. Mas em quase nenhum sentido eram subdesen
volvidas. O fato de muitos estudiosos verem o colonialismo europeu
como uma das principais causas da fome e da pobreza hoje tão alas
tradas leva a uma dolorosa reflexão sobre a capacidade da sociedade
cristã européia de transmitir o seu cristianismo.
Num dos clássicos da literatura sobre desenvolvimento, O Drama
Asiático, de Gunnar Myrdal, o autor lança boa parte da responsabili
dade pela estagnação econômica do Sudeste Asiático sobre os coloni
zadores europeus. Ele diz, por exemplo, que "em geral os regimes
coloniais no Sul da Ásia eram inimigos do desenvolvimento das indús
trias manufaturadoras nas colônias. Isso se tornou ainda mais verda
deiro quando começaram gradualmente a abandonar, depois de
1850 e 1870, as políticas cruamente exploradoras da primeira fase
do colonialismo, passando a encorajar os investimentos e a produ
ção. Foi predominante ou exclusivamente a produção de matéria-
prima para exportação que foi encorajada." Outro altamente res
peitado economista do desenvolvimento, Mahbub ul Haq, que por
vários anos foi um dos principais economistas do Banco Mundial,
escreve que "as razões básicas para a (presente) desigualdade entre
as nações hoje desenvolvidas e as em desenvolvimento se encontram
profundamente arraigadas em sua história. Na maior parte do Tercei
ro Mundo séculos de domínio colonial deixaram o seu legado de de
pendência. A independência política não conseguiu eliminar nem a
dependência econômica nem a escravidão intelectual".
Em seu livro Bread and Justice, James B. McGinnis cita o exem
plo da cidade de Potosi, na Bolívia. Potosi era um próspero aglome
rado urbano no século dezessete, quando os espanhóis vieram para
explorar o ouro e a prata existentes na região.
145
^1
je, tem as suas raízes na história das conquistas militares. Países sub
desenvolvidos hoje estão cheios de cidades-fantasmas como Potosi,
e quase todos foram um dia colônias européias.
A chegada dos europeus na Ásia, África e América Latina — o
que é conhecido hoje como Terceiro Mundo — alterou fundamen
talmente os processos de desenvolvimento existentes na época.
Em alguns casos estas sociedades eram mais avançadas do que ou
tras; e todas, sem dúvida, tinham problemas a superar. Mas os po
vos nessas terras estavam construindo sociedades que, embora não
industrializadas, eram muitas vezes altamente sofisticadas e com
plexas. Eles eram capazes de atender às suas necessidades físicas e
psicológicas através das suas próprias instituições. A conquista m ili
tar do Terceiro Mundo levou ao saque e à destruição de algumas das
maiores civilizações do mundo10.
146
vezes acabaram com antigos males sociais, como o sistema de casta
na India. Que tragédia, por outro lado, que o impacto do Ocidente
cristão sobre as estruturas políticas e econômicas em desenvolvimen
to nas colônias foi determinado em tão grande escala pelo interesse-
próprio econômico, e não pelos princípios bíblicos de justiça, é mui
to possível que, se a mensagem bíblica total tivesse sido compartilha
da e vivida no âmbito social e econômico, haveria bem menos misé
ria hoje no Terceiro Mundo. Se atitudes cristãs face às posses e às
riquezas tivessem guiado as ações dos colonizadores, se os princípios
do Jubileu, do ano sabático e do contínuo apoio aos pobres tivessem
sido uma integrante da aventura colonial e das atividades econômicas
internacionais desde então, provavelmente não haveria necessidade
de escrever este livro hoje.
Infelizmente, não foram. Nem houve maior esforço por parte das
nações desenvolvidas, desde então, no sentido de restaurar ou insti
tu ir relações econômicas justas entre o Primeiro e o Terceiro Mun
dos. As nações ricas continuam atreladas aos seus próprios interésses,
demonstrando interesse marginal para com o progresso (ou retroces
so) econômico das nações pobres12.
Em conseqüência, o legado permanece. O que começou como
uma relação colonial, desleal, entre os países ricos e os pobres, cres
ceu e se desenvolveu, chegando à cadeia estrutural que rege a ordem
econômica internacional de hoje. E não surpreende que muitas das
injustiças perpetradas antes no colonialismo vieram a se consolidar
nas instituições que governam a atividade econômica contemporâ
nea.
é verdade que muitos economistas de hoje, armados de uma teo
ria econômica nascida e criada no mundo ocidental desenvolvido,
argumentam que as presentes relações econômicas entre países ricos
e pobres são perfeitamente apropriadas. Os padrões correntes do co
mércio, das finanças internacionais e dos investimentos estrangeiros
lhes causam pouca preocupapão. Tais relações, porém, parecem mui
to diferentes quando vistas da perspectiva da evidente injustiça da
era colonial13
147
ê aqui que reside o fator insidioso da injustiça estrutural. As in
justiças iniciais, a menos que sejam corrigidas, rapidamente prolife
ram. E por quanto mais esse processo se prolonga, mais sérios e in
solúveis se tornam os problemas. £ como uma pequena mentira que
é obrigada a crescer e se multiplicar muitas vezes para proteger a
primeira "pequena" mentira.
ê muito mais confortável acreditar que a pobreza do Terceiro
Mundo é inteiramente ou pelo menos em grande parte produto da
preguiça, da falta de inteligência, da prodigalidade em procriar e da
corrupção do seu próprio povo. Mas isso significa ignorar os dados
históricos dos séculos de colonialismo. Nem todos os problemas con
temporâneos, é claro, têm a sua causa no passado. As atuais estrutu
ras econômicas internacionais também são desleais.
COMÉRCIO INTERNACIONAL
148
dai', padrões de comércio internacional favoráveis são algo vital
para as nações do Terceiro Mundo.
Os países industrializados também continuaram impondo tari
fas restritivas e quotas de importação, para manter longe muitos
dos bens produzidos nos países menos desenvolvidos16. As estrutu
ras tarifárias e as quotas de importação que afetam aos países do
bloco menos desenvolvido são realmente um aspecto fundamental
da injustiça presente nas atuais estruturas de comércio internacional.
Uma vez que a maior parte desses países é tão dependente do comér
cio, tais restrições resultam muito prejudiciais. A sua remoção, por
outro lado, seria algo estremamente valioso. Mas o mundo desen
volvido sempre de novo tem se recusado a efetivar tais medidas.
Nos primeiros anos da década de 60, só para dar um exemplo, a ro
dada de negociações sobre tarifas promovida por Kennedy baixou
as taxas sobre bens comercializados entre as ricas nações industriais
em cerca de 50%. Mas fez muito pouco para baixar as tarifas sobre
os bens dos países mais pobres. A posição relativa destes na realida
de foi se tornando cada vez pior17.
Tradicionalmente os países desenvolvidos permitiram que mui
tos produtos agrícolas e outros produtos primários (minerais, cacau,
borracha, sisal, etc.) entrem relativamente livres de taxações. Toda
via, com bens manufaturados eles têm sido menos indulgentes.
Quanto mais industrializado e processado for o produto, mais alta
é a tarifa. A taxa sobre chocolates e bombons, por exemplo, é cinco
vezes superior à do cacau bruto18 .
As razões para a imposição de tais restrições comerciais são fá
ceis de serem percebidas. Nos tempos coloniais elas existiam para lim i
tar a competição com os novos empreendimentos industriais da pró
pria pátria-mãe, bem como facilitar a importação dos produtos pri
mários que estas necessitavam. Hoje as restrições são mantidas prin
cipalmente porque a sua remoção ameaçaria os interesses de certos
grupos bem organizados e politicamente influentes. Tanto os sindica
tos e trabalhadores como o empresariado nos países desenvolvidos
149
se unem no propósito de continuar comprando matéria-prima barata
para lucrar com o seu processamento e manufaturação.
Mais recentemente se tornaram praxe as quotas "voluntárias"
sobre bens industrializados das nações pobres. Os Estados Unidos
publicam ameaças de novas barreiras alfandegárias sobre determina
dos produtos manufaturados exportados pelos países pobres, a me
nos que estes "voluntariamente" limitem o seu volume de exporta
ção. O resultado é: falta de trabalho em países famintos e um saldo
menor nas exportações.
A tentativa do Brasil, de desenvolver uma indústria de processa
mento de café, fornece uma ilustração para isso. 0 café representava
para o Brasil, na época, a metade do volume total de suas exporta
ções. As exportações brasileiras de café tiveram um aumento de 90%
entre 1953 e 1961. A renda total daí obtida, contudo, caiu em cerca
de 35%. Em 1966 o governo brasileiro decidiu começar a processar
dentro do país a sua produção cafeeira, objetivando assim novos em
pregos e maior renda para o seu povo. O café processado no Brasil
conquistou rapidamente o mercado americano, chegando a represen
tar, em determinada época, 14% do total do consumo interno nos
EUA. A reação das grandes processadoras de café (Tenco, General
Foods, Standard Brands e outras) foi a de acusar os brasileiros de
"competição desleal": Qual foi a atitude tomada pelo governo
americano? Prontamente ameaçou cortar os auxílios que vinha dan
do ao Brasil, advertindo ainda que não renovaria o Acordo Interna
cional do Café (que mantém mais ou menos estáveis os preços do
produto no mercado internacional). E o que aconteceu? O governo
brasileiro foi obrigado a consentir em impor uma taxa de exporta
ção, e a sua jovem e incipiente indústria foi seriamente prejudica
da19 .
Dando outro exemplo: o mundo desenvolvido impôs quotas res
tritivas sobre os têxteis. Estes poderiam ser oferecidos a baixo custo
por vários países em desenvolvimento, como a India. E está havendo
uma grande pressão para que essas quotas sejam reduzidas ainda mais,
para ajudar com isso as indústrias domésticas abaladas nos países
desenvolvidos.
Num texto sobre Desenvolvimento Econômico o Prof. Theodore
Morgan faz o seguinte resumo da situação:
151
industrialização. Investindo maciçamente em café e bananas, os co
lombianos se sairiam da melhor forma possível. Porquanto essa teo
ria possa ser inteligente, também pode ser míope. Em particular,
ela não presta atenção aos efeitos a longo prazo de tal especializa
ção. A verdade é que os padrões de comércio que são estabelecidos
criam problemas sérios e específicos para os exportadores de produ
tos primários.
Em primeiro lugar, muitos economistas do Terceiro Mundo
reclamaram porque a limitação dos países menos desenvolvidos aos
produtos primários os tem destinado a sofrer condições relativas de
comércio continuamente declinantes. As evidências citadas são tais
como a capacidade do Brasil, em 1954, de comprar um jipe america
no por catorze sacas de café, enquanto que em 1968 o mesmo jipe
custaria o equivalente a 45 sacas23. Em outro caso semelhante, a
Tanzânia conseguia comprar um trator, em 1963, com cinco tonela
das de sisal; em 1970, o trator já custava dez toneladas24. O 1982
World Development Report mostra como Sri Lanka (que tem sido
dependente, nas suas exportações, de chá, borracha e coco) sofreu
severas perdas no comércio durante os últimos trinta anos25.
Alguns dos casos são extremos e cercados por circunstâncias
especiais, mas entre os economistas é geralmente reconhecido que
durante os últimos trinta anos a baixa renda dos países menos de
senvolvidos sofreu uin sério declínio nos preços relativos dos produ
tos agrícolas26. Por outro lado países de renda média, com ten
dência a exportar mais minerais (inclusive petróleo) do que pro
dutos agrícolas, foram mais afortunados. Os preços sobre estes artigos
não mostram a mesma tendência acentuada para baixo27. Algumas
vezes certos produtos agrícolas experimentam pequenas oscilações
nos preços, como o café em 1977 ou o açúcar periodicamente. Mas
em geral a tendência declinante é clara. Hans Singer, há anos um eco
nomista altamente respeitado das Nações Unidas, diz que "trata-se
2 3 G h e d d o , W h y is the T h ir d W o rld P o o r? , p . 8 3 .
2 4 N e w In te rn a tio na list. A g o s to 1 9 7 5 , p . 1.
25W o rld D e ve lo p m e n t R e p o rt 1 9 82 , p . 2 8 .
152
de um fato histórico, que já desde os anos 70 [1870] a tendência
dos preços tem sido fortemente contra os que vendem alimentos
e matéria-prima, sendo bem mais favorável aos vendedores de arti
gos manufaturados. As estatísticas são passíveis de dúvidas e obje-
ções nos detalhes, mas a história geral que elas contam é inequí
voca"28 .
Um segundo problema é que a violenta flutuação dos preços
dos produtos primários exportados pelos países em desenvolvimen
to é muito prejudicial às suas economias. Ela torna quase impos
sível um planejamento, uma vez que eles dependem dos saldos nas
exportações para poderem importar bens essenciais. Há casos de paí
ses que dependem tão somente de um único produto para virtual
mente todas as suas exportações. Bangladesh depende da juta e Zâm
bia, do cobre. Assim, as suas economias flutuam violentamente, jun
to com o preço mundial do produto que exportam. E como viver
perpetuamente em cima de uma grande montanha-russa, num
momento usufruindo dos benefícios de preços altos e no momento
seguinte tendo que agüentar uma angustiante queda nas valas dos pre
ços baixos.
Temos analisado brevemente vários aspectos dos atuais padrões
de comércio internacional que estão em vigor trazendo desvanta
gens âs nações em desenvolvimento: altas taxas alfandegárias e
quotas reduzidas de exportação (especialmente sobre bens manufatu
rados) impostas pelas nações industrializadas; um período de trinta
anos de declinantes termos relativos de comércio; e flutuações in-
controláveis nos preços das mercadorias primárias exportadas.
Qual foi a reação dos países menos desenvolvidos?
Há décadas eles vêm protestando contra esses padrões injustos
de comércio internacional. Na Conferência Afro-Asiática de Ban-
dung, em 1955, e na Conferência das Nações Unidas sobre Comér
cio e Desenvolvimento, em 1964, eles pressionaram as nações ricas no
sentido de apoiar padrões de comércio que não fossem tão prejudi
ciais aos países pobres. Mas os abastados se fizeram de surdos. Em
1972, o jornal americano Journal of Commerce reportava que Was
hington estava simplesmente ignorando todas as reformas propostas
pelos países menos desenvolvidos. E concluiu: "Em outras palavras,
uma a uma das mais importantes proposições lançadas com o intuito
de proteger as nações menos desenvolvidas de serem ainda mais
arruinadas em termos comerciais, estão provocando uma reação ne
153
1
gativa em Washington"29.
Em 1973, todavia, os Estados Unidos e outros países desenvolvi
dos começaram a notar que não podiam ignorar as demandas do Ter
ceiro Mundo assim tão simplesmente. Naquele ano a OPEP conse
guiu fotmar um poderoso cartel internacional de petróleo. Desde
então, tem aumentado o preço do barril de petróleo em cerca de
600% (em dólares, e levando-se em conta a inflação).
Atualmente há um sentimento geral de que a OPEP se desinte
grou, ou está prestes a tanto. A combinação de recessão mundial
com medidas de racionamento nos países importadores levou a um
decréscimo na demanda pelo petróleo da OPEP, o que por seu turno
tem gerado desavenças nas fileiras dos líderes do cartel. As conse
qüências de tudo isso, para o momento, são preços ligeiramente
mais baixos e que, embora relativamente estáveis, provavelmente
não deverão subir acentuadamente num futuro próximo, a menos
que a recessão acabe de forma dramática e que a demanda mundial
de petróleo cresça rapidamente. Com isso, porém, não estamos
querendo dizer que a OPEP morreu. Muito pelo contrário. O petró
leo ainda é vendido a um preço significativamente mais elevado do
que o seria se não existisse a OPEP. Por causa da recessão, o seu po
der diminuiu um pouco, mas não permanente nem significativamen
te. A OPEP continua sendo uma das principais forças nas questões
econômicas mundiais.
Quando ficou claro que a empreitada da OPEP não foi apenas
um truque que casualmente deu certo (como os países industrializa
dos esperavam que fosse), lentamente foi surgindo um novo res
peito pelo poder do Terceiro Mundo. Ambos os lados começaram
a se dar conta de que as nações industrializadas eram tão dependen
tes dos países pobres como estes dos ricos. De fato muita matéria-
prima vital e necessária para a produção industrial era e é na maior
parte importada dos países menos desenvolvidos.
154
Tabela 10
Alumínio Jamaica 36 82 77
Bauxita Guiné 22
Cobalto Zaire 27 45 41
Colúmbio Brasil 84 91,7 91,7
(Nióbio) Nigéria 7
Cobre Chile 23 50,9 7
Zâmbia 12
Peru 10
Grafite México 57 88,6 88,6
Brasil 10
China 10
Minério de Venezuela 14 30,8 8
Ferro Brasil 8
Estanho Malásia 44 97,3 78
Tailândia 20
Bolívia 17
Tungsténio China 18 70,7 37
Tailândia 9
155
mente. Além do mais, deviam ser ligados diretamente aos preços
dos produtos manufaturados que as nações pobres têm que impor
tar das ricas.
Um fundo comum devia ser estabelecido, o qual seria usado para
financiar estoques-tampões de vinte ou trinta mercadorias-chave,
de modo que as violentas flutuações nos preços pudessem ser conti
das.
2. Tarifas e outras barreiras ao comércio. Os países desenvolvi
dos deviam remover as tarifas e outras barreiras comerciais aos pro
dutos das nações em desenvolvimento.
3. Soberania nacional sobre os recursos nacionais. Isso inclui o
"d ireito " de nacionalizar grupos estrangeiros com justa compensa
ção.
4. Auxílios estrangeiros. As nações ricas deviam aumentar tanto
os auxílios de alimentação de emergência como os subsídios para
desenvolvimento a longo-prazo. 0 índice-meta previsto pela ONU
para assistência oficial ao desenvolvimento, por parte dos países
desenvolvidos, que é de 0,7% do PNB, devia ser posto em prática.
5. O mundo em desenvolvimento devia poder aumentar a sua
parte na produção mundial de bens manufaturados, de mais ou me-
no 10% em 1975 para 25% até o ano 2000.
6. A dívida externa devia ser renegociada no caso de muitos
países em desenvolvimento, e para os mais pobres devia ser cance
lada. (Muitos dos países em desenvolvimento gastam uma grande
proporção do auxílio que recebem atualmente no pagamento de ju-'
ros e amortização de capital dos "auxílios" prévios.)
7. Deviam se fazer acordos para a transferência de tecnologia dos
países desenvolvidos para os em desenvolvimento de outras formas,
que não através de companhias multinacionais. Estas (compreensi-
velmente, à luz de algumas experiências recentes) despertam suspei
tas por parte dos países em desenvolvimento.
8. Organizações monetárias internacionais. As nações pobres
queriam uma participação maior no Fundo Monetário Internacional
e outras instituições monetárias internacionais que afetam o comér
cio e o desenvolvimento. Com o fim de promover o comércio e aju
dar a países com problemas em sua balança de pagamentos, o FMI
criara originalmente os Direitos Especiais de Saque (DES), no va
lor de mais ou menos 3 bilhões de dólares por ano. Porém James P.
Grant, presidente do Overseas Development Council, mostra quão
desigualmente são distribuídos os recursos disponíveis: "Pela fór
mula de distribuição adotada, entretanto, três-quartos destes re
cursos eram colocados à disposição, virtualmente sem custos, dos
156
países ricos; uma vez que de novo foram estes que instituíram o
sistema e que determinaram como seriam alocados os DES"31.
Estas propostas não deveriam ser aceitas simplesmente pelo fa
to de que foram dirigentes do Terceiro Mundo que as lançaram.
Algumas críticas válidas têm sido feitas32. Contudo, como tem
defendido o economista de Oxford, Donald Hay, as propostas me
recem uma consideração cuidadosa e simpática33.
Infelizmente muito pouco de concreto aconteceu depois. Ne
nhuma das propostas mencionadas foi implantada. De início os paí
ses desenvolvidos fizeram com que parecesse que fariam realmente
algumas concessões. Na prática, entretanto, eles têm sido extrema
mente renitentes para qualquer coisa que não medidas meramente
paliativas.
Algumas das proposições foram testadas como que fazendo de
conta, sem muito interesse (o fundo das mercadorias, por exemplo).
Mas a maior parte foi ou ignorada até cair no esquecimento, ou "ne
gociada" até morrer34.
Considere-se o item 7. Uma das maneiras de transferir tecnolo
gia e compartilhar recursos deveria ser através de acordos concer
nentes à Lei do Mar. No fundo do mar existe uma grande quantida
de de recursos que "não têm dono". Nenhuma nação pode, com
justiça, exigir direitos de propriedade sobre os oceanos. Assim a
riqueza do solo oceânico ainda não explorada oferecia ao Tercei
ro Mundo uma chance de ganhos sem sacrifício para as nações ri
3 2 V e r, p o r e x e m p lo , W . M . C o rd e n , T h e N I E O P roposals: A C o o l L o o k (" T h a m e s
Es s a y" N ? 2 1 ; Lo n d re s: T r a d e P o licy Research C e n tre , 1 9 7 9 ), e H e rb e rt G . G ru b e l, " T h e
Case Again st the N e w In te rn a tio n a l E c o n o m ic O r d e r " , e m : J o h n A d a m s (e d .). T h e C o n
te m p o ra ry Inte rn a tio na l E c o n o m y (N o v a lo rq u e : S t. M a rtin ’s Press, 1 9 7 9 ). G ru b e l argu
m enta no sentido de q u e , p o rq u a n to a N o v a O r d e m E c o n ó m ic a in te rn a cion a l possa pare
cer p o litica m e n te interessante para os p e quenos parses pob re s, ela lhes seria e co n o m ica
m ente p re jud icia l. E le não acre d ita n e m q u e os países desenvolvidos e n e m q u e as c o rp o ra
ções m u ltin a cion a is possuam a lg u m p o d e r de m ercado excessivo. A sua sugestão 6 q u e ,
em vez de in stitu ir a lg um n o v o e e n orm e sistema b u ro crá tico , os pafses pobres d e veriam
p ro m o v e r u m am b ie n te e c o n ó m ico in te rn a cion a l mais c o m p e titiv o , co m as suas p ró pria s
p olfticas de pre ço internas o u c o m ações coletivas na O N U .
157
cas. O leito do mar foi então descrito como uma "herança comum da
humanidade", cujas riquezas deveriam beneficiar a todos. No entan
to os pafses menos desenvolvidos naturalmente não possuem a sofis
ticada tecnologia necessária para a exploração destes recursos.
As negociações nesse sentido começaram em 1973, e continua
ram regularmente até 1981. Então, na última hora, quando estavam
para ser acertados os detalhes finais e assinado o tratado por todas
as nações participantes, os Estados Unidos, por orientação do presi
dente Ronald Reagan, pularam fora. A razão dada foi que a admi
nistração temia que a transferência de tecnologia fosse comprome
ter o desempenho econômico de companhias de mineração sediadas
nos EUA. A Lei do Mar, mecanismo que possivelmente poderia ser
de grande benefício para os países pobres, assim foi efetivamente
posta a pique35.
Um destino semelhante decerto aguarda o relatório de 1980
da Comissão Brandt. Esta, uma comissão internacional de dirigentes
tanto de países desenvolvidos como de menos desenvolvidos, publi
cou, em 1980, um importante relatório, intitulado NorthSouth:
A Program for Survival ("Norte-Sul: Um Programa para a Sobrevi
vência")36. O objetivo do relatório era o de reabrir os canais de co
municação entre as nações ricas do Hemisfério Norte e as nações po
bres do Sul. Uma das suas tônicas era a interdependência mútua en
tre todas as nações do globo. Enfatizava que os países ricos não po
diam esperar relações internacionais pacíficas enquanto mais da
metade do mundo se debate com a pobreza. Por outro lado, o re
latório também enfatizava que os países pobres não poderiam espe
rar um desenvolvimento sem o suporte dos seus parceiros ricos. Em
síntese o relatório encorajava a cooperação em lugar da confronta
ção. Fez recomendações bastante significativas, que tratavam de
questões como o controle das multinacionais, o encorajamento do
desenvolvimento local nos países menos desenvolvidos, a solução da
crise de energia que afeta o globo, a instituição de uma nova ordem
monetária mundial e o estabelecimento de novas relações comer
ciais. As proposições refletem muito do pensamento da Nova Ordem
3S_
ra ra u m sum ário o b je tiv o d o s detalhes d o quase fin a liza d o a co rd o , ver S . P. Ja go ta ,
"D e v e lo p m e n ts in th e U N C o n fe re n ce o n the L a w o f the S e a " . T h ir d W o rld Q u a rte rly , V o l.
3 , N . 2 , A b r il, 1 9 81 , p p . 2 8 6 -3 1 9 . E ta m b é m " S e a -L a w C on fe re n ce Begins F in a l P ha se",
U N C h ro n ic le . V o l. X V I I I , M a io . 1 9 8 1 ; e N e w sw e ek , 2 3 de M a rço , 1 9 8 1 .
158
Econômica Internacional, sendo porém amplamente reconhecidas
como realísticas e praticáveis. Tragicamente, entretanto, o relatório
não chegou a gerar nenhuma reação significativa por parte dos gran
des países desenvolvidos, à exceção da Inglaterra.
O Relatório Brandt levou a uma potencialmente significativa reu
nião de cúpula entre 22 dirigentes mundiais em Cancun, México, no
mês de outubro de 1981. Muitos esperavam que ali ocorressem pro
gressos com relação às proposições do Relatório. Porém, uma sema
na antes de viajar a Cancun, o presidente Ronald Reagan enfureceu
os participantes do Terceiro Mundo com um agressivo discurso, no
qual rejeitava implicitamente todas as principais recomendações da
Comissão Brandt.
Em Cancun, a Primeira-ministra britânica Margaret Thatcher pa
receu impressionada com um provérbio indiano usado pela Primei
ra-ministra da índia, Indira Ghandi: "Eu me lamentava por não ter
sapatos, até que encontrei um homem que não tinha pés"37. Con
tudo as nações industrializadas virtualmente não fizeram concessões.
0 presidente Reeagan se recusou a assumir quaisquer compromis
sos específicos, limitando-se a concordar "em princípio" com algum
tipo de negociações globais. Seis meses depois um editorial no The
Third World Quarterly, um jornal desenvolvimentista que reflete as
opiniões do Terceiro Mundo, lamentava:
159
América Central cuja renda nacional depende grandemente das ex
portações de café.
Ele e três das suas cinco filhas passam longos e estafantes dias nas
plantações de café em Montenango. Em dias bons, Juan consegue
colher uma quantidade suficiente para lhe garantir 1,44 dólares;
suas filhas juntas fazem um total de 3,35 dólares. Com 1,24 Juan e
sua esposa Paula conseguem suprir as necessidades alimentares da
família por um dia. Em tempos maus, contudo, ele e as filhas conse
guem juntos num dia nada mais que 0,56 dólares — menos que a
metade do que precisam só para comer.
Quando terminam as seis semanas da colheita do café, Juan
faz biscates, o que aparecer, pelos arredores da fazenda — isso se
houver algo para ser feito. Assim consegue juntar 0,90 dólares em
oito horas de trabalho. Paula complementa a renda do marido traba
lhando no mercado. Quando o povo tem dinheiro para poder com
prar os tomates, repolhos e outras hortaliças que ela venda, pode con
seguir em tomo de 0,40 dólares num dia.
A fazenda oferece uma casinha simples para a família, mas sem \
as facilidades modernas. A luz é na base de lampiões, a água é tirada
de um poço e a mobília consiste em pouco mais do que uma mesa
e algumas cadeiras. Além de um vestido e calçados para cada uma
das meninas durante a temporada do café, a família não conseguiu
comprar muita coisa mais nos últimos cinco anos. Todo o dinheiro
que sobra, que não é gasto em comida, fica para consultas no posto
de saúde (0,40 dólares cada consulta), os juros, bastante altos, nas
contas do armazém da companhia, despesas escolares das crianças
e para imprevistos como o enterro do pai de Juan, que faleceu no
ano passado.
"Sabe, estou lutando para que as minhas filhas possam ter uma
vida melhor", diz Juan. " O meu sonho é que, se for possível — isto
é, se eu conseguir chegar lá — as minhas filhas não precisem seguir
nas minhas pisadas, que elas consigam sair de algum jeito dessa vi
da terrível que aqui levamos. Mas os problemas financeiros que en
frentamos cada dia fazem desvanecer os sonhos. Me sinto mal, ner
voso, não durmo noites inteiras, me preocupando em como arran
ja r alguma coisa pra elas comerem. Penso e penso, e não acho ne
nhuma saída. Trabalho duro, minha mulher e minhas filhas tam- '
bém. Todos damos duro. Mas ainda assim sofremos. Por quêP"39.
3 9 M o o n e y h a m , H u n g ry W o rld , p p . 117-18..,
160
Uma das grandes razões é porque os atuais padrões de comér
cio internacional são fundamentalmente injustos. A sua gênese se
encontra no período colonial, quando as colônias começaram a sua
jornada rumo ao subdesenvolvimento. Os países menos desenvolvi
dos ainda hoje estão sendo afligidos pelas relações comerciais que
foram construídas desde então. Nos capítulos sete a nove queremos
analisar propostas para uma mudança construtiva — nos nossos esti-
los-de-vida pessoais, na igreja e na sociedade como um todo. Para o
momento é suficiente que vejamos que os padrões comerciais cor
rentes fazem com que seja impossível viver no Ocidente abastado
sem estar envolvido em estruturas sociais que contêm sérias injus
tiças e que ajudam a manter famintas milhões de pessoas.
161
Tabela 11
C o l. 1 C o l. 2 C o l. 3 C o l. 4 C o l. 5 C o l. 6 C o l. 7
EUA Re in o A le m a C anadá A u s trá lia , M .C . E . , E u ro p a
U n id o nha O c id . N ova Escand. A m . N o r-
Ze lândia A m . N o r - te, U R S S
te , A u s tr a -J a p a o ,
lásia A u s tra -
lásia
% do consumo mundial
total de recursos
F o n te s : " W o rld M etal S ta tis tic s ", p ub licad o pelo W o rld B ureau o f M etal S tatistics, BP
Statistical R e vie w o f th e W o rld O il In d u s try — 1 976
N ew sw eek, 10 de D e ze m b ro , 1 9 7 9 , p . 9 8 .
162
Tabela 12
1970 1980
163
Já vimos que as nações ricas consomem uma porcentagem muito
elevada dos recursos não-renováveis gastos a cada ano. Mas não seria
tão somente o resultado da nossa industrialização e da abundância
material por ela criada? Os dados acima não causam realmente grande
surpresa, uma vez que o consumo de recursos naturais está estreita
mente ligado ao processo de industrialização. De fato, se os países
menos desenvolvidos progredirem materialmente, como devem, tam
bém eles passarão a gastar quantidades maiores de recursos não-re-
nováveis. Conseqüentemente não são os simples dados estatísticos
sobre o consumo de recursos que nos interessam. Eles meramente
destacam a bem conhecida disparidade entre estados relativos de de
senvolvimento (bem como o esbanjamento dos norteamericanos).
Antes, há duas questões mais profundas que devem ser levantadas.
Primeiro, o gasto extravagante de recursos naturais pelo mundo de
senvolvido melhora ou atrapalha as perspectivas de desenvolvimento
do Terceiro Mundo? Segundo, existem realmente limites para o cres
cimento, e, se houver, quais são?
Em relação à primeira pergunta, os peritos discordam. Muitos
observadores profissionais do mundo insistem em que o Terceiro
Mundo não pode esperar um desenvolvimento a menos que o mun
do industrializado continue a comprar dele um grande volume de re
cursos naturais. Com isso concorda a Comissão Brandt. Por outro
lado, alguns argumentam que foi em grande parte o contato entre
o Primeiro e o Terceiro Mundos que levou, num primeiro momen
to, ao subdesenvolvimento das nações pobres do mundo. Essas pes
soas são muito céticas com relação a esquemas de desenvolvimento
que dependem em elevado grau do Primeiro Mundo. E o seu argu
mento é de que as nações desenvolvidas saqueiam o Terceiro Mundo.
Do mesmo modo-que os espanhóis levaram embora metais preciosos
da América Latina, assim também os países desenvolvidos continuam
a extorquir matéria-prima dos seus vizinhos mais fracos. Isso conse
guem primariamente via acordos barganhados de forma desonesta
entre as companhias multinacionais de mineração e extração e os
governos desses países. Conforme este segundo ponto-de-vista os
países menos desenvolvidos estão vendendo o seu direito de primo-
genitura sobre os recursos naturais aos países ricos, e isso ao preço
de alguns poucos bens de luxo para as suas elites ricas.
Ambos os lados estão parcialmente certos. Dado o presente es
tado de coisas, o Terceiro Mundo deve voltar os olhos para o mun
do desenvolvido em busca de mercados para vender os seus produ
tos (esperamos que com padrões de comércio mais favoráveis) bem
164
como de tecnologia de que têm necessidade. Por outro lado um
maior comércio com as nações industrializadas só lhes trará bene
fício se estas mudarem significativamente. Em vez de tranqüilamen
te fechar os olhos a negócios que são contraproducentes para os
países menos desenvolvidos, os governos das nações ricas poderiam
começar a insistir em acordos mais eqüitativos de comercialização
de recursos. As nações do Ocidente poderiam encorajar o desenvol
vimento das economias do Terceiro Mundo, de modo que as nações
pobres pudessem começar a fazer melhor uso dos recursos naturais.
Ao mesmo tempo, o Primeiro Mundo poderia mostrar menos preo
cupação com o seu próprio consumo, sempre crescente.
A segunda pergunta é ainda mais difícil de se responder com
segurança, por causa da natureza especulativa dessa tarefa. Freqüen
temente ouvimos admoestações contra a excessiva preocupação em
torno do declínio da disponibilidade de recursos. A tecnologia vence
rá, nos garantem confiantemente os otimistas. O progresso tecnoló
gico vai criar alternativas para os recursos naturais que no presente
são essenciais mas cada vez mais escassos.
Por outro lado somos muitas vezes confrontados com adver
tências no sentido de que estejamos sendo muito esbanjadores em
um mundo com recursos escassos. Lester Brown, especialista em
desenvolvimento internacional, por exemplo, argumenta nos seguin
tes termos:
41 B ro w n , In the H u m a n In te re st, p . 9 2 ,
Alguns dados novos sobre esta questão apareceram com o The
Global 2000 Report to the President, que foi publicado em 19804J.
Este estudo fez uma tentativa de projetar as condições que haveria
no ano 2000 se as atuais tendências tivessem continuidade. As con
clusões não sao otimistas. Num dos parágrafos introdutórios o rela
tório afirma:
Os estresses ambientais, populacionais e dos recursos naturais ,
estão se intensificando, e cada vez mais haverão de determinar a
qualidade da vida humana em nosso planeta.
Estes estresses são já agora suficientemente severos para negar
a milhões de pessoas as necessidades básicas de alimentação, mora
dia, saúde, trabalho e quaisquer esperanças de que as coisas melho- |
rem. Ao mesmo tempo a capacidade de- sustentação da terra — 1
a capacidade dos sistemas biológicos de prover recursos para as ne
cessidades humanas — está erodindo. As tendências que se refletem
no estudo Global 2000 sugerem fortemente uma progressiva degra
dação e empobrecimento da base de recursos naturais da terra.*3
0 relatório não vê nenhuma séria ameaça de grave escasseamen-
to de metais de uso comum, ao contrário do afirmado por Brown,
nem prevê quaisquer deficiências sérias no suprimento energético44
(pressupondo que grande parte das novas demandas serão satisfeitas
pela energia nuclear!).
Diversos problemas, contudo, estão assumindo proporções cada
vez maiores. Os perigos surgem não tanto pelo fato de metais e re
cursos energéticos vitais estarem desaparecendo, mas pelo fato de
o sempre crescente uso destes materiais ameaçar a capacidade de sus
tentação do meio ambiente. Por exemplo, à medida em que a econo
mia americana cresce, aumenta a demanda de energia. Um dos pla
nos correntemente propostos para atender a esta nova demanda se
concentra no aumento do número de usinas termoelétricas. Entretan
to, quando o carvão é queimado, grandes quantidades de enxofre e
óxidos de nitrogênio são lançados ao ar45. Uma das conseqüências
Este estudo fo i a uto riz a d o p elo presidente C a rte r, em 19 77 . O seu p ro p ó s ito era o
de ja z e r u m le va nta m en to in tegrado de transform ações am bientais a lo ngo p ra zo , co m vistas
a ajustam entos d e estratégias e program as à lu z de descobertas q u e fossem significativas.
3G lo b a l 2 0 0 0 , p . iii d o V o l. I.
44. , .
A qui o re latório c o m b in a c o m o u tro sim ilar fe ito pela In te rfutures. Este ú ltim o re-
1*979*0 6 m A rC TH e re P hvsical L im its to G r o w t h ? " , O E C D Ob sorve r, N ? 1 0 0 , S e te m b ro .
4 SG lo b a l 2 0 0 0 , p . 3 6 d o V o l. I .
166
são as chuvas ácidas, que já causaram grandes prejuízos a muitos la
gos, florestas e plantações no nordeste dos Estados Unidos. Outro
efeito potencialmente perigoso do aumento do consumo de energia
é o nível crescente de dióxido de carbono (CO ) na atmosfera. Os
efeitos últimos disso ainda não são bem conhecidos, mas muitos
cientistas temem uma tendência para um aquecimento geral na tem
peratura global, que teria um significante impacto negativo sobre a
agricultura mundial e sobre a estabilidade ambiental como um todo.
A atividade industrial e os altos índices de consumo de recursos
naturais, portanto, afetam adversamente os nossos mais preciosos
recursos: o ar, a água e a terra cultivável. Segundo o relatório, se as
tendências do presente não se modificarem, as conseqüências futuras
serão a poluição atmosférica, uma base agrícola em deterioração e
uma sempre maior poluição da água associada a escasseamentos
mais freqüentes de água potável.
Todas essas deformações ecológicas resultam da industrialização,
da afluência e do crescimento populacional. Quanto mais bens pro
duzimos, mais energia consumimos; quanto mais produtos agríco
las desenvolvemos, maior o perigo de um cataclisma iminente. No
presente, os que mais contribuem para estes problemas são as nações
afluentes. Como afirma sem rodeios E. F. Schumacher:
167
sociais47.
Nos tempos passados ninguém realmente suspeitava de que eco
nomias em crescimento pudessem representar uma ameaça à qualida
de de vida das gerações futuras. Hoje, entretanto, temos boas razões
para crer que um contínuo crescimento econômico material no mun
do desenvolvido não pode ser justificado, tendo em vista o fato de
que os países altamente industrializados já contribuem mais para a
erosão da capacidade de sustentação da terra do que para o seu
aprimoramento.
0 nosso uso dos recursos naturais do planeta representa, portan
to, o tipo mais problemático de injustiça estrutural. Se paramos de
crescer, a nossa sociedade é ameaçada; e, por outro lado, promover
o crescimento material coloca cada vez mais em perigo uma frágil
biosfera, e com isso as oportunidades de desenvolvimento dos paí
ses pobres. Estamos gastando mais do que restituímos. Teremos que
usar toda a nossa cabeça e mais um pouco para conseguir sair desse
problema. A tecnologia, embora útil, não dará sozinha a resposta.
0 nosso ponto de partida terá que ser um retorno aos princípios bí
blicos.
168
do globo. Numa fascinante palestra apresentada em 1974 ele afirma
que, contados tanto os rebanhos como as pessoas, se constata que já
em 1974 a terra não tinha quatro, e sim 19 bilhões de habitantes, is
to é, "equivalentes populacionais". Borgstrom transforma os reba
nhos em "equivalentes populacionais" computando a quantidade de
proteína exigida por eles, e calculando então quantas pessoas essas
proteínas alimentariam“18. A "carga alimentar" dos Estados Unidos,
então, não era de 210 milhões em 1974, mas, "em termos biológicos,
era, conseqüentemente, de 1,6 bilhões"49. Embora a India tivesse
três vezes mais habitantes que os Estados Unidos, tinha um rebanho
muito menor. Contando este junto, a fndia tinha apenas 1,2 bilhões
de "equivalentes populacionais". Quem, então, é que tem as vacas
sagradas?
Outra indicação de que alguma coisa está errada resulta de um
exame das estatísticas comerciais. Os países ricos têm regularmente
importado mais alimentos das nações pobres do que exportado para
elas. Nações pobres, menos desenvolvidas, estão alimentando a mi
noria afluente. A Tabela 13 mostra que em 1979 as nações desenvol
vidas exportaram o equivalente a US$ 22.259.000.000,00 em ali
mentos para as nações pobres; mas importaram o equivalente a
US$ 32.810.000.000,00. Em 1980 e 1981 o quadro se modificou
um pouco, com o saldo negativo caindo para 2 bilhões e 720 mi
lhões em 1980, e chegando a um superávit de 2 bilhões e 100 mi
lhões de dólares em 1981. Pode haver aqui motivo de otimismo, mas
também há razão para cautela. A razão da mudança é a recessão
mundial. Enquanto que a comida importada pelos países ricos ten
de a ser constituída por alimentos de luxo (p.ex., frutas exóticas,
castanhas ou carne de primeira), a comida importada pelos países
pobres é bem mais vital em termos de alimentação (p.ex., cereais
básicos). Em tempos de recessão não é muito difícil para os países
ricos diminuir um pouco o seu consumo de alimentos de luxo, en
quanto que alimentos básicos continuam tão importantes como
sempre, é provável, portanto, que à medida em que o mundo desen-
voldido for saindo da recessão, volte a aparecer um saldo negativo
para os países pobres.
Dados sobre a produção pesqueira mundial repetem a mesma
história. Em 1973 a produção mundial foi de 65,7 milhões de tone-
4 9 lb id „ p . 3 .
169
Tabela 13
C o l. 1 C o l.2 C o l. 3 C o l. 4 C o l. 5 C o l. 6
Ano T o d o s os sa os T o d o s os S ó os (C o l. 4 —
pafses EUA países EUA C o l.2)
desenv. desenv.
ladas. Tivesse esse produto sido dividido de forma justa, cada pes
soa no mundo teria recebido mais ou menos 15,5 kg.50 Mas não chega
a causar surpresa que não foi. As nações desenvolvidas, com um quar
to da população mundial, pegaram para si em torno de três quartos
da produção. O Peru, país muito pobre, tem a maior produção de
pescado de anchovas do mundo. Porém, uma quantia não suficiente
das proteínas da anchova fica para alimentar os milhões de pobres
daquele país. Em vez disso, a maior parte serve para engordar os re
banhos nos EUA e na Europa.
A pesca do atum nos oferece um exemplo muito interessante. 0
5 0 „.
b im o n , Bioad f o r th e W o rk ), p p . 1 9 -2 0 .
170
prof. Borgstrom observou que dois terços da produção mundial de
atum acabam nos Estados Unidos. Dessa quantia, um terço vai para
a alimentação de gatos!S1 Obviamente os americanos não importam
tantos alimentos porque precisam deles, mas porque querem e porque
têm dinheiro suficiente para pagá-los.
Por que países com um suprimento alimentar abaixo do adequa
do para a sua própria população nos mandam, de livre e espontânea
vontade, mais comida do que ganham de volta? A resposta óbvia é
que as exportações de alimentos por parte desses países servem para
pagar as suas importações de alta tecnologia, petróleo e bens de luxo.
A gente pobre, todavia, está menos interessada nessas coisas do que
em ter comida na mesa para as suas famílias. Ficamos, assim, tendo
que responder à pergunta: Por que alimentos que são necessários pa
ra terminar com a inanição e a desnutrição nos países pobres são ex
portados por estes mesmos países?
A resposta tem dois lados. Um é o lado puramente econômico.
Muitos dos alimentos cultivados nos países menos desenvolvidos não
estão ao alcance dos pobres destes países, simplesmente porque estes
não podem pagar por eles. Eles não têm terra para fazerem a sua pró
pria colheita e vendê-la. E nem conseguem encontrar um trabalho
produtivo nas cidades esquálidas e superpovoadas.
0 segundo lado da resposta é histórico, e conta por que alguns
povos pobres não têm nada hoje para oferecer em troca. Mais uma
vez as raízes se encontram nos tempos coloniais” . Naquela época,
as safras para exportação eram ativamente promovidas, em detri
mento da produção de alimentos para consumo interno. As planta
ções eram programadas para a produção de safras para exportação.
A população local freqüentemente era desapossada das suas terras
e transformada em escravos ou em mão-de-obra barata. Aqueles que
ficavam com alguma terra eram "encorajados" a produzir os gêne
ros alimentícios que eram desejados nas pátrias-mães.
Produzir alimentos para a pátria-mãe era encarado como a maior
prioridade da colônia. John Stuart Mill, respeitado economista britâ
nico do século dezoito, "raciocinava no sentido de que as colonias
não deviam ser vistas como civilizações ou mesmo países, e sirn esta
belecimentos agrícolas' cujo único propósito era o de suprir a comu
nidade maior à qual pertencem' " 53.
51 B o rgs tro m , "P re se nt F o o d P ro d u c t io n ", p . 12.
5 2 Para u m sum ário de lo d o esse p ro c e s s o ve r a parte III de Fran cis M o o re Lappé &
Jo sep h C o llin s , F o o d F irs t (B o s to n : H o u g h to n M ifflin C o m p a n y , 1 9 7 7 ).
171
Os tempos coloniais, em sua maior parte, terminaram, mas os ves
tígios permanecem. As plantações criadas não foram devolvidas
aos descendentes dos seus proprietários originais. Novos proprietários
(elites locais ou corporações multinacionais) dos mesmos latifúndios
continuam de olhos voltados para os países industrializados como
seus parceiros de comércio, uma vez que a pobre comunidade de
camponeses desapropriados tem pouco a oferecer que corresponda
aos desejos do proprietário da terra. Donos de grandes latifúndios
poderiam plantar feijão, milho ou arroz para a população local, mas
a gente nativa não possui recursos para produzir qualquer coisa de
valor comercial. Assim os proprietários das terras voltam seus olhos
para um país como os Estados Unidos. Exportam algodão, carne, ca
fé, bananas ou outros produtos agrícolas, e recebem em troca o que
desejam. À medida que o tempo vai passando, eles e outras pessoas
de posses se voltam cada vez mais para o mundo desenvolvido à pro
cura de parceiros econômicos. Além de negar a terra à comunidade
camponesa, essa vinculação com o exterior ainda leva à introdução
da lavoura mecanizada, que diminui a oferta de trabalho. São pre
cisos, então, menos trabalhadores, ficando muita gente desempre
gada e sem ter para onde ir. As estruturas econômicas resultantes
favorecem os ricos e oprimem os pobres.
Talvez num contexto desses é que se compreende melhor a divi
na sabedoria do princípio do Jubileu. 0 princípio econômico por
trás do Jubileu é a redistribuição periódica dos bens de produção de
uma sociedade. Quando membros de uma sociedade perdem os seus
bens de produção, não importa porque razões, se torna muito d ifí
cil para eles a participação na atividade econômica. Pessoas sem re
cursos não podem produzir. E sem bens para negociarem, não pode
rão comprar o suficiente para as suas necessidades.
Já faz muitos anos que começou, em quase todos os países hoje
menos desenvolvidos, o processo de afastar as pessoas da terra, e ele
continua até o presente. Pouquíssimas vezes ocorreram processos
que correspondessem aos princípios do Jubileu, e assim os problemas
têm só aumentado, dificultando soluções.
Por que estamos tão perplexos diante da fome e da pobreza de
hoje? Será isso realmente de causar admiração? As pessoas foram em
pobrecidas há muito tempo atrás, e nunca foram tomadas medidas
no sentido de corrigir as injustiças iniciais ou de restaurar para os
pobres as possibilidades de produção. Eis a razão por que hoje nós
importamos mais comida dos países pobres do que mandamos para
eles. A injustiça chegou a se incrustar profundamente na vida eco
nômica e social tanto nacional como internacional.
172
Mudanças profundas, tanto econômicas como políticas, fazem-
se necessárias. No capítulo 9 vamos analisar algumas das formas pelas
quais podemos promover tais mudanças. O meu propósito aqui é
mostrar que os nossos padrões de alimentação estão relacionados
com estruturas sociais e econômicas destrutivas, que deixam milhões
passando fome.
173
para 44 bilhões55. Infelizmente problemas sérios podem surgir quan
do uma grande empresa, tecnologicamente avançada e com nível
sofisticado de administração, cujo propósito é criar lucro para os
acionistas nos seus países de origem, se estabelece num país menos
desenvolvido, materialmente pobre, administrativamente pouco so
fisticado e economicamente dependente.
Antes de se tornar conhecido o lado negativo das multinacionais,
todavia, elas erarri promovidas como sendo dos principais instrumen
tos para o desenvolvimento e o crescimento econômico nos países
menos desenvolvidos. Pensava-se que podiam contribuir de várias
maneiras: (1) permitindo o acesso aos escassos recursos de capital;
(2) aumentando o fluxo do comércio exterior nesses países; (3) pro
vendo aos governos negócios com boa base financeira, dos quais se
poderia receber, via impostos, a receita necessária para os projetos
de desenvolvimento; (4) trazendo tecnologia para dentro do país e
treinando trabalhadores nas artes técnicas e administrativas56. No
papel, as possibilidades pareciam promissoras. Se os países menos
desenvolvidos tivessem sido parceiros políticos e comerciais igual
mente poderosos, tudo podia estar indo bem. Mas não demorou pa
ra ficar claro que as multinacionais não viriam a ser os salvadores do
mundo menos desenvolvido. Pelo contrário, surgiram evidências
cada vez mais claras de que, até certo ponto, elas haveriam de se
tornar contra-producentes em termos de verdadeiro progresso e de
senvolvimento destes países. Retrospectivamente, isso realmente
não deveria causar surpresa a pessoas com uma visão bíblica de pe
cado. Os poderosos regularmente dominam e tirarin vantagem dos
mais fracos. Interessados primariamente, se não exclusivamente,
nos seus próprios lucros, as multinacionais tiraram vantagem dos
países menos desenvolvidos que cortejaram.
Afinál, o que há de tão errado com as multinacionais? Richard
Barnet responde assim a esta pergunta:
56T o d a r o , p p . 3 2 8 -3 2 9 .
174
negativa57.
Em se considerando a asseveração de Barnet, existem três dimen
sões que devem ser ressaltadas: efeitos puramente econômicos, efei
to políticos e efeitos ideológicos.
Em primeiro lugar, os efeitos econômicos. O prof. Hay, um eco
nomista cristão que é professor em Oxford, apontou três problemas
com relação a esta questão, em sua palestra apresentada na Consul
ta Internacional sobre Vida Simples, promovida pela World Evangeli-
cal Fellowship e pelo Comitê de Lausanne para a Evangelização Mun
dial. Primeiro, as multinacionais não contribuem realmente com a
quantidade de capital que em geral prom_etemS8. Ao invés, tomam
grandes empréstimos nos bancos dos países em que se instalam, re
duzindo com isso os fundos disponíveis para empresário^ locais, e
diminuindo o volume de participação nos negócios por parte da po
pulação autóctone. Segundo, as multinacionais naturalmente estão
mais preocupadas com os seus próprios lucros do que com o bem-
estar dos países hospedeiros. Isso resulta às vezes, para dar um exem
plo, na paralisação das atividades de toda uma subsidiária, com um
impacto devastador sobre a economia local, embora afetando só do
leve a própria empresa. As multinacionais podem ta m b é m m u d a r
artificialmente o quadro dos seus lucros ao vender os seus produtos
às matrizes por preços abaixo da tabela, livrando-se assim de tributa
ções locais. Um terceiro problema que Hay aponta é que as multina
cionais freqüentemente promovem "o tipo errado de desenvolvimen
to ". Ele diz que elas em geral produzem produtos altamente qualifi
cados para os que têm poder aquisitivo, em vez de produzir aquilo
que é necéssário para a maioria pobre. E ao procederem dessa forma
consolidam as estruturas de contraste, que mantêm a maioria na po
breza e uma elite minoritária vinculada às economias do mundo de
senvolvido3*
No lado político, Barnet expõe que as multinacionais lutam por
garantir a estabilidade política, mesmo que uma mudança seja essen-
^ D o n a l d H a y , o p . c it. a cim a. p . 8 4 .
175
ciai para promover um desenvolvimento social e econômico de maior
envergadura. As multinacionais, sustenta ele, não estão interessadas
nas necessidades básicas dos pobres, mas em assegurar mercados es
táveis, para que os seus lucros não sejam postos em risco60. Em con
seqüência, vezes sem conta acabam apoiando com seus recursos re
gimes militares extremamente opressivos, que não estão de fato in
teressados em atender às necessidades básicas dos pobres. De quebra,
as multinacionais ficaram com um grande poder de barganha, porque
com o passar do tempo os países menos desenvolvidos têm se torna
do cada vez mais dependentes da sua presença. (Muitas delas possuem
um volume de vendas anual superiores aos PNBs de um bom número
destes países.) Ameaçando ir embora, e com isso lançando no caos
uma economia dependente, essas empresas conseguem freqüentemen
te arrancar acordos unilaterais em questões como concessões tributá
rias, limites de remessa de lucros, treinamento de mão-de-obra autóc
tone, etc. Uma vez estabelecida a empresa, ela se torna um grupo
de pressão, capaz de influenciar determinados órgãos para conse
guir tratamento preferencial para firmas estrangeiras. Barnet diz que
assim as multinacionais conseguem fazer os governos deixarem de
investir em projetos de desenvolvimento, que beneficiariam os po
bres, passando a aplicar o seu dinheiro em "estradas, portos [e] sub
sídios para alta tecnologia, para desenvolver a infraestrutura de apoio
para um investimento privado lucrativo"61.
Enquanto os problemas econômicos e políticos poderiam obvia
mente ser resolvidos por uma comunidade internacional inteligente
e sensata, a solução das questões ideológicas já fica mais duvidosa.
Por infelicidade, as empresas multinacionais vieram a estar exata
mente no ponto de contato do Primeiro Mundo com a população
do Terceiro Mundo. Assim comunicam a um mundo marcado pela
pobreza como é a vida nas nações afluentes. Mas não só inculcam
nos pobres a maneira como vivem os ocidentais. Também os inci
tam, através de pródigas campanhas de propaganda, a tentarem viver
da mesma forma.
0 resultado é que muita gente pobre é seduzida a gastar uma par
te desproporcional da sua renda em bens que não lhes fazem nenhum
bem. Os refrigerantes são um exemplo de coissas desnecessárias mas
176
freqüentemente compradas62. Talvez o caso mais conhecido e mais
pernicioso seja o do Grupo Nestlé, com a sua persistência num "mar
keting" agressivo de receitas infantis para mães do Terceiro Mundo,
que ganhariam muito mais se amamentassem os seus filhos. A prática
de vestir representantes da companhia como se fossem enfermeiras,
para então recomendarem às mães que alimentem os seus filhos com
os produtos da empresa, se constitui num dos tipos mais desonestos
de promoção de produtos.
A publicidade agressiva feita por grandes corporações ocidentais
que promoveram a alimentação via mamadeira tem reduzido drasti
camente a porcentagem de bebês amamentados pelas mães no Tercei
ro Mundo. Em seu Relatório para 1982-83, a UNICEF observou que
a porcentagem de crianças amamentadas ao natural no Brasil dimi
nuiu de 96% em 1940 para 40% em 1974. No Chile, decaiu de 95%
em 1955 para 20% hoje. (Felizmente os piores abusos têm sido res
tringidos mais recentemente — em parte por causa de um boicote
internacional aos produtos Nestlé.) A UNICEF estima que um mi
lhão de crianças por ano poderiam ser salvas dentro de uma década,
se a aleitação materna de novo substituísse as receitas infantis comer
cializadas por grandes multinacionais do Ocidente63.
Num momento de sinceridade incomum, H. H. Walter, presiden
te do conselho da International Flavors and Fragrances, colocou a
coisa sem rodeios:
Quantas vezes podemos observar nos países em desenvolvimento
que, quanto mais pobre a perspectiva econômica, mais importância
se dá a pequenos luxos como refrigerantes com sabores ou cigarros
aromatizados . . . Para desalento de muitos que gostariam de fazer
alguma coisa por eles, constata-se que, quanto mais pobres e miserá
veis eles são, mais facilmente estarão propensos a gastar uma quanti
dade desproporcional do que tiverem em algum luxo, em vez de com
prar o de que têm mais necessidade. . . Observem, estudem e apren
dam (como vender em sociedades rurais em rápida transformação).
Nós estamos tentando fazê-lo aqui na IFF. E parece que está dando
certo. Talvez também dê certo para vocês64 .
6 4 H . W a lte r, "M a rk e tin g in D e ve lop in g C o u n trie s ", C olum bia Jo u rn al o f W orld Busi
ness, In ve rn o , 1 9 7 4 . C ita d o em Lappé e C o llin s , F o o d F irs t, p . 3 0 9 .
177
Todaro resume assim o argumento ideológico:
T o d a ro , Eco n o m ic D e vo lo p m en t, p . 3 3 0 .
66 n
d H a V - " T h e In te rn a tio n a l S o c io -E c o n o m ic P o litica l O rd e r and O u r L ife s ty -
le . R o na ld S id e r (e d .), L ife s ty le in th e Eighties, p. 12 3 .
178
ral. Mas também não podemos deduzir que as economias do mundo
desenvolvido seriam arrasadas se tais injustiças fossem corrigidas. A
conclusão mais própria é que de fato a injustiça ficou profundamen
te arraigada em algumas das nossas instituições econômicas básicas.
Os cristãos bíblicos — precisamente à medida em que forem fiéis às
Escrituras — não hesitarão em chamar tais estruturas de pecaminosas.
O leitor não formado em economia provavelmente desejaria que
a economia internacional fosse menos complexa, ou que o discipulado
fiel nos nossos dias tivesse menos que ver com um assunto tão com
plicado. Mas o ex-secretário geral da ONU, Dag Hammarskjold, tinha
razão ao dizer que "em nossa época, o caminho da santificação ne
cessariamente passa pelo mundo da ação"67. Dar o copo de água fria
de um modo efetivo nestes tempos de fome freqüentemente requer
que se entenda um pouco de economia internacional e de estruturas
políticas. O caso das bananas vai ajudar a tornar essas questões um
pouco mais claras.
6 7 M arkin gs (N o v a Io rq u e : K n o p f , 1 9 6 4 ), p . X X I .
179
tantemente. Em conseqüência, o poder aquisitivo real da receita de
exportação das bananas havia diminuído em cerca de 60%. E preci
samos levar em conta que pelo menos a metade da renda de expor
tações de países como Honduras e Panamá provém das bananas. Não
é de se admirar que eles sejam pobres. (Como já pudemos ver ante
riormente, um terço da população de Honduras ganha menos de 100
dólares por ano.)
Qual foi a reação das companhias americanas quando os países
exportadores passaram a exigir a tal taxa de um dólar? Simplesmente
se recusaram a pagar. E, uma vez que somente três grandes empresas
(United Brands, Castle and Cooke, e Del Monte) controlavam 90% do
comércio e distribuição de bananas, tinham um grande poder de bar
ganha. No Panamá pararam, de um hora para outra, de colher as ba
nanas. Em Honduras deixaram 145 mil caixas apodrecer no cais do
porto. E assim, um após outro, aqueles países pobres foram capitu
lando. A Costa Rica acabou, afinal, estabelecendo uma taxa de 25
cents por caixa. O Panamá, 35 cents. Honduras, graças aos subornos
de que antes falamos, concordou finalmente com uma taxa de 30
cents.65
Pode-se compreender facilmente por que uma comissão de inqué
rito das Nações Unidas chegou à seguinte conclusão: "Os países pro
dutores de bananas, todos de baixa renda, estão subsidiando o consu
mo dessa fruta e, por conseguinte, o desenvolvimento dos países mais
industrializados"70.
Mas por que, então, as massas pobres não exigem mudanças? Eles
o fazem, mas têm pouco poder. Acontece que vários países da Amé
rica Latina são governados por ditaduras que representam elites pe
quenas e poderosas, que operam em estreita relação com os interes
ses comerciais americanos.
O caso da Guatemala, país vizinho de Honduras, igualmente um
produtor de bananas para a companhia United Brands, mostra por
que é tão difícil mudar as coisas. Em 1954 a CIA ajudou a derrubar
um governo democraticamente eleito na Guatemala. Por quê? Porque
este havia iniciado um modesto programa de reforma agrária, que
aparentemente representava uma ameaça a terras não cultivadas de
propriedade da United Fruit Company (antigo nome de United
Brands). O Secretário de Estado americano, em 1954, era John Fos-
ter Dulles. A sua firma de jurisprudência é que havia redigido os con-
180
tratos da companhia com o governo guatemalteco, em 1930 e 1936.
O diretor da CIA era Allen Dulles (seu irmão), que já havia sido
presidente da United Fruit Company. O Secretário de Estado assis
tente era um dos maiores acionistas da United71. Na Guatemala, ou
em qualquer outro lugar, as mudanças são difíceis porque as empre
sas americanas trabalham em estreita ligação com poderosas elites
locais, para protegerem os seus interesses econômicos mútuos.
No passado a maioria dos americanos sabia muito pouco sobre as
injustiças na América Central. Isso começou a mudar no começo da
década de 80. Com grandes movimentos radicais de guerrilha ganhan
do chão em El Salvador e na Guatemala, o presidente Reagan em
preendeu uma reação m ilitar vigorosa, com ajudas militares bem
maiores do que as normais. Manchetes sobre a situação na América
Central têm se tornado coisa comum nos jornais americanos. Em
1981 Reagan autorizou uma verba de 19 milhões de dólares para
apoio m ilitar secreto da CIA a guerrilhas de extrema direita que
combatiam o novo governo socialista da Nicarágua. A finalidade
alegada era a de fazer parar supostos carregamentos de armas da União
Sociética e de Cuba, através da Nicarágua, para as guerrilhas em El
Salvador. O objetivo real, todavia, era, pelo menos, a intimidação
e a desestabilização do governo de esquerda nicaraguense (e prova
velmente inclusive a sua derrubada)72. Em agosto de 1983, quan
do Reagan despachou uma grande flotilha naval para patrulhar a
costa da Nicarágua, parecia bem possível que um conflito de gran
des proporções se deflagrasse na América Central.
As guerras civis que espoucam hoje na América Central têm,
sem dúdiva, raízes as mais diversas. Certamente o fato de alguns
movimentos de guerrilha, no desespero, se terem voltado para
países de governo marxista em busca de apoio e de suprimentos
complica o problema. O tráfico de armas soviético deve ser condena
do. Mas a tentativa do governo Reagan de resolver os problemas ape
lando basicamente a uma reação militar é ao mesmo tempo imoral
e insensata. A causa principal da violência e da guerra é a injustiça
econômica que existe já de há muito e a desesperadora miséria das
181
massas de pobres daquela região. Quando a metade dos seus filhos
morre de desnutrição antes dos seis anos, você não precisa de marxis-
tas-leninistas para lhe dizerem que alguma coisa precisa mudar.
Tragicamente sempre haverá aqueles ansiosos por arrumarem jus
tificativas plausíveis. Andrew M. Greeley, destacado sociólogo ame
ricano, da Universidade de Chicago, zombou daqueles que tentam
fazer com que os americanos "se sintam culpados" com respeito às
suas relações econômicas com o Terceiro Mundo:
182
terra. Tendes vivido nos prazeres. Tendes engordado os vossos co
rações, em dia de matança (Tiago 5.1-5).
O ARREPENDIMENTO DE ZAQUEU
Qual deverá ser a nossa resposta, irmãos e irmãs? Para cristãos bí
blicos, a única reação possível ao pecado é o arrependimento. Sem
nos darmos conta, pelo menos até certo pnntn, fnmnc
dados em uma complexa trama de pecado institucionalizado. Graças
a Deus, podemos nos arrepender. Deus é misericordioso. Ele perdoa.
Mas só se nos arrependermos. E o arrependimento .bíblico ..implica
mais do que algumaslágrimas casuais e uma oração de confissão uma
vez por semana. 0 arrependimento bíblico envolve conversão. Envol
ve todo um novo estilo-de-vida. Aquele que está pronto a nos perdoar
pelo pecaminoso envolvimento em terríveis injustiças econômicas nos
oferece a sua graça para começarmos a viver um estilo-de-vida radical
mente novo, marcado por uma identificação com os pobres e opri-
7 4 V e r os com en tário s sobre isso em P a trick K e rans, S in fu l So cial Stru ctu res (N o va
Io rq u e : Paulist Press, 1 9 7 4 ), p p . 4 7 -5 1 .
183
ritual. Não é murmurar uma confissão litúrgica. Tudo isso pode aju
dar. Mas não pode substituir aquela profunda angústia interior que
leva para uma nova maneira de viver.
O arrependimento bíblico traz consigo necessariamente uma con
versão. Essa palavra significa literalmente "dar meia-volta". A palavra
areaa metanoia significa, como Lutero insistiu tão vigorosamente,
uma total mudança de mentalidade. O Novo Testamento vincula o
arrependimento com um estilo-de-vida transformado. Sentindo a hi
pocrisia dos fariseus que vieram a ele procurando o batismo, João
Batista denunciou-os como sendo uma raça de víboras. "Produzi
frutos dignos de arrependimento", exigiu ele (Mateus 3.8). Paulo
disse ao rei Agripa que, em todo lugar que pregava, chamava as pes
soas a que "se arrependessem e se convertessem a Deus, praticando
obras dignas de arrependimento" (Atos 26.20).
Zaqueu devia ser o nosso modelo. Como um ganancioso coletor
de impostos do Império Romano, Zaqueu estava emaranhado em es
truturas econômicas pecaminosas. Mas sabia que não poderia vir a
Jesus e continuar usufruindo todos os benefícios econômicos dessa
injustiça sistêmica. V ir a Jesus significou, para ele, arrepender-se da
sua cumplicidade em injustiças sociais. Significou fazer devoluções
e indenizações, publicamente. E significou todo um novo estilo-de-
vida.
O que poderia significar hoje um arrependimento genuíno, bí
blico, para cristãos afluentes, envolvidos nas estruturas pecamino
sas da sua sociedade? Essa é a questão que queremos analisar na
terceira parte.
184
PARTE III
IMPLEMENTAÇÃO
Onde teríamos que mudar?
Um proeminente centro de estudos de Washington reuniu uma
vez um grande grupo representativo de líderes religiosos para discutir
os problemas da fome no mundo. Os participantes dessa conferência
expressaram uma profunda preocupação. Fizeram apelos no sentido
de que ocorressem transformações estruturais realmente significati
vas. Mas todas aquelas palavras soaram no vazio. 0 lugar em que esta
vam se reunindo era um centro de conferências muito caro e exclu
sivo, em Colorado! Temos necessidade de estilos-de-vida pessoais
mais simples.
Mas as mudanças de caráter pessoal não são suficientes. Tenho
um amigo que trocou a cidade por uma comunidade rural. Ele mes
mo planta quase tudo que come, e vive de modo muito simples; sem
dúvida, atrapalha muito pouco a vida dos pobres do mundo. Esse
meu amigo tem talento para falar e escrever, com o que poderia
promover transformações na igreja e na sociedade; mas infelizmen
te não o está usando como poderia. ,
Precisamos hoje de mudanças em três níveis/Um estilo -d e -v id p
pessoal mais simples é_algo essencial para simbolizar, avalizar eJacili-
tar a nossa preocupação por aqueles que passam fome. A igreja, por
sua vez, também deve mudar, e de um modo tal que a' sua vida co
mum possa servir como um novo modelo para um mundo dividido.
^Finalmente, as estruturas da sociedade secular, tanto nos países ri
cos como nos pobres, carecem de uma revisão.
187
CAPITULO 7
188
Ouvi uma vez um senador da Pensilvânia afirmando que o seu
eleitorado estava tão próximo da pobreza, que simplesmente não
agüentariam pagar sequer um centavo a mais de imposto. E fez uma
citação de uma carta de um eleitor irritado, para provar o que dizia.
Essa boa alma lhe havia escrito informando que sua família possivel
mente não teria condições para pagar mais impostos do que já pagava.
Porque, dizia, já tinham que pagar o imposto de renda, os impostos
sobre mercadorias e além disso estavam ainda pagando os seus
dois carros, o seu "trailer", o seu "houseboat" (casa flutuante)
e o seu barco a motor!
Isso ilustra bem o problema que temos nós, cidadãos abastados
do Ocidente^Êstamos realmente convencidos de que mal e mal con
seguimos viver com os vinte, vinte e cinco ou trinta mil dóalres que
ganhamos por ano. Estamos numa corrida de competição incrível.
Quando o nosso salário aumenta, nós nos convencemos a nós-mes:
4 N e w Y o r k T im es, 14 de J u n h o . 1 9 7 3 .
189
("Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra . . .")5 ■ Os
cristãos, segundo ele, deviam passar adiante tudo. exceto_Q-'-lnecfiS-
sárío para_____
a vida" —-isto_é. comida sir saudável, roupas assea-
'Üãs~e o suficiente para o seu trabalho. A Pessoa pode e deveria se es-
|fR5rçãr por ganhar bem, de forma iusta e honesta. 0 capital não pre-
ri<á <»r Harin adiante. Porém. Weslev achava que toda a renda deve-
~ j’iã~g§r3ãda aos polãrêl, depois que as necessidades básicas estivessem
"satisfeitas. Infelizmente ele descobriu que não se encontra um entre
'"quinhentos em qualquer "cidade cristã" que obedece ao mandamen
to de Jesus. Isso simplesmente demonstra que a maiod^ dos cristãflS
professos são "homens vivos, mas cristãos mortos" ./Todo "cristão"
foue retém para si alão mais do auq n "ppr.eSãrín para a vjtfc", jnsjs- I
ytia Weslev. "vive em negação o rnpctantp para com o Senhor", j
| Essa pessoa "alcançou riquezas e o f oao do-inferno! ,,6i
Wesley vivia de acordo com o que proclamava. As vendas dos
seus livros lhe proporcionavam muitas vezes uma renda de 1400 li
bras por ano, mas dessa quantia ele gastava só trinta libras para si
mesmo. O resto era passado adiante. As roupas que usava eram sem
pre modestas, e a sua comida era simples. "Se eu deixar paraJxás
uma herança de 10 lihras". escreveu ele certa vez, 'lM-0.cê__e_10.da- 3
humanidade são testemunhas de que vivi e morri como um gatuno,
^ürn.iadrão^
Não precisamos necessariamente concordar com cada palavra
de Wesley, mas fica claro que ele estava lutando para seguir o chama
do bíblico para compartilhar com os necessitados. Quanto devemos
dar? No capítulo 4 discutimos o mandamento bíblico referente ao
Jubileu e a coleta de Paulo em favor da igreja empobrecida de Jeru
salém. Vimos que Deus desaprovava grandes extremos de riqueza e
de pobreza. Devemos dar até que as nossas vidas reflitam verdadei
ramente os princípios de Levítico 25 e 2 Coríntios 8. Certamente a
exortação de Paulo aos coríntios se aplica muito bem aos cristãos
abastados de hoje: "Porque não é para que os outros tenham alí
vio, e vós sobrecarga; mas para que haja igualdade, suprindo a vos
sa abundância no presente a falta daqueles . . . e assim haja igual
5 Este fo i u m da série de sermCes que co nstitu iram as dou trina s-pa d rõ e s dos p rim eiros
m etodistas. V e r T h e W o rk s o f J o h n W esley (L o n d re s : W esleyan C on fe re n ce O ffic e , 1 8 7 2 ),
V , 361 ss.
190
dade" (2 Coríntios 8.13-14, grifos meus).
191
a honestidade temos que perguntar-nos: Podemos ficar olhando a
moda, quando isso significa uma redução da nossa capacidade de aju
dar os nossos vizinhos famintos? É lícito que nos preocupemos mais
em obter segurança econômica para a nossa família do que com um
estilo-de-vida efetivamente cristão?
Não acho que dar respostas honestas a tais perguntas seja coisa
fácil. Nem sempre fica claro qual seja a nossa responsabilidade. Uma
vez, num sábado de manhã, quando eu estava começando a preparar
uma palestra (sobre pobreza!), um homem pobre entrou no meu
escritório e me pediu cinco dólares. Ele estava bêbado. Não tinha co
mida, nem emprego, nem lar. O Cristo dos pobres se confrontou co
migo naquele homem. Mas eu lhe disse que eu não tinha tempo. T i
nha que preparar uma palestra sobre a visão da pobreza. Para ser
mais preciso, dei-lhe alguns dólares; mas não era disso que ele pre
cisava. Ele precisava de alguérçn com quem conversar, alguém que o
amasse. Precisava do meu tempo. Precisava de mim. Mas eu estava
ocupado demais. "Sempre que o deixastes de fazer a um destes mais
pequeninos, a mim o deixastes de fazer".
Nós, cristãos, temos que tomar atitudes concretas e resolutas
para escapar do materialismo que se infiltra na nossa cabeça através
dos constantes e diabolicamente bem feitos comerciais de rádio e
TV. Temos passado por lavagens cerebrais para acreditar que casas
maiores, negócios mais prósperos e mais coisas de luxo são objetivos
pelos quais vale a pena viver. Por conseguinte ficamos presos em uma
espiral absurda, materialista. Quanto mais ganhamos, mais achamos
que precisamos para poder viver de forma decente e respeitável. Te
mos que descobrir uma maneira de romper com esse círculo vicio
so, porque ele faz com que pequemos contra os nossos irmãos e ir
mãs necessitados e, assim, contra Deus.
O DÍZIMO ESCALONADO8
192
Temos consciência de se tratar apenas de um modesto começo na
busca por maior coerência com os princípios bíblicos de justiça.
Nos Estados Unidos existe o chamado "lim ite de pobreza", a
partir do qual a pessoa pode ser considerada "pobre". Para o ano
de 1982, calculado em termos de família média de quatro pessoas,
o limite ficou em 9.862 dólares/ano. No Brasil é difícil fazer-se uma
estimativa que seja correta, levando em conta vários fatores. Se fôs
semos considerar o salário mínimo como limite de pobreza, certa
mente esse não seria um bom cálculo, por se saber que o salário m í
nimo brasileiro ficou muito defasado. Julgando-se a partir de análi
ses feitas por diversas entidades, e considerando-se os últimos decre-
tos-leis sobre a questão salarial, poderíamos tomar como base o valor
de três salários mínimos. Abaixo disso, considerando-se a renda lí
quida de uma família média de quatro pessoas, teríamos a classifica--
ção de "pobreza".
Partindo desse valor (três salários-mínimos), poderia-se fazer uma
escala gradual de aumento de contribuição proporcional ao aumento
da renda. A Tabela 14 nos mostra como ficaria o quadro dando-se o
dízimo de três salários e aplicando um aumento de 5% para cada salá
rio adicional. Essa escala permite uma diferenciação na renda, não
equalizando-a (numa proporção que ficaria em mais ou menos 1:4),
ficando o limite máximo de renda familiar no limite de 10,35 salá
rios mínimos, para um salário real de 20 salários. Acima disso, a con
tribuição passaria a ser integral.
194
sincera, contudo, deve levar em conta que ha' despesas numa casa
que não dependem do número de filhos, por exemplo. Essas pode
riam ser abstraídas no caso de uma família com mais de dois filhos,
e levadas em conta no caso de menos de dois. Na verdade o melhor
seria que cada família desenvolvesse o seu próprio sistema de contro
le de finanças. Só não podemos mais continuar contemporizando,
mas urge partir para modelos concretos e que espelhem o nosso anún
cio e a nossa denúncia diante dos nossos semelhantes.
As seguintes sugestões podem ser úteis para aqueles que deseja
rem desenvolver a sua própria versão de contribuição proporcional.
Primeiro, discuta a idéia com toda a família. Todos devem compre
ender as razões que o levam a isso, chegando-se assim a uma decisão
familiar. Segundo, ponha no papel o seu plano, no princípio de ca
da ano. é relativamente fácil, excitante inclusive, desenvolver o pla
no teoricamente. Uma vez que houver comprometimento com os
números colocados no papel, vai doer menos separar a quantia cor
respondente a cada mês! Terceiro, discuta a sua proposta com um
amigo ou casal de amigos cristãos que compratilham da sua preocu
pação pela justiça. Quarto, discuta despesas maiores com estas pes
soas. £ mais fácil para um observador um pouco mais distanciado
perceber evasivas. (E eles também podem ter sugestões interessantes
sobre como viver de modo mais simples.) Quinto, tente reduzir a ca
da ano a quantia da renda que fica com você bem como as despesas
totais. Isso não significa que não haja compreensão para a necessida
de de investimentos de capital para aumentar a produtividade. Sig
nifica simplesmente que você pode dar mais, através de organizações
cristãs, para investimento de capital entre os pobres.
Como o leitor compreensivo deve ter notado, esta proposta de
contribuição proporcional é, na realidade, extremamente modesta.
De fato, tão modesta que poderia chegar a ser vista como infideli
dade ao ensino de Paulo. Mas é também suficientemente radical
de modo que a sua implementação poderia significar uma revolu
ção no ministério e na vida da igreja! .
Muitos cristãos estão ensaiando modelos bem mais radicais no
propósito de vencer o apelo de um mundo materialista e de ser um
pouco mais coerentes com a posição bíblica em relação aos pobres
e necessitados.
VIDA COMUNAL
197
senvolver um novo tipo de missionário-agricultor, que visa tanto
compartilhar o evangelho como ajudar a população pobre do Tercei
ro Mundo a desenvolver uma dieta alimentar mais rica a partir de
produtos da própria terra. Graham e sua esposa, Treena, vivem uma
vida muito simples —mas não por serem ascetas. Vivem de forma sim
ples porque querem contribuir com o máximo possível para a evan
gelização e para a redução da pobreza12.
Cristãos bíblicos estão fazendo experiências com uma variedade
de estilos-de-vida simples. Tempos de fome demandam mudanças
drásticas. Mas temos que ser extremamente cuidadosos para evitar o
legalismo e o orgulho da justiça própria. "Temos que cuidar para não
cair no extremo oposto, numa esnobação de desprendimento espi
ritu a l''13.
Nenhum modelo representa a vontade de Deus para todos. O
nosso Deus aprecia a variedade e a diversidade. Mas significaria isso
que deveríamos voltar a cair no típico individualismo ocidental, on
de cada pessoa ou família faz aquilo que parece bom aos seus pró
prios olhos?
De jeito nenhum. Aqui duas coisas podem ajudar. Temos neces
sidade da ajuda de outros irmãos e irmãs — em nossa congregação
local, cm nossa cidade e ao redor do mundo. Precisamos desenvolver
um processo de discussão do nosso estilo-de-vida econômico com
amigos cristãos achegados. Precisamos também de novas maneiras
de dialogar com cristãos pobres sobre como seria um estilo-de-vida
coerente14.
Em segundo lugar penso haver alguns critérios que podem servir
de auxílio. Oferecemos aqui seis deles, como sugestões, não como
normas ou leis1’ .
15E x t ra íd o de Ib id ., p p . 3 5 -6 .
198
CRITÉRIOS GERAIS
SUGESTÕES PRATICAS
199
bebidas alcoólicas (os EUA utilizam anualmente, na produ
ção de bebidas alcoólicas, uma quantidade de cereal — 5,2
milhões de toneladas — suficiente para alimentar 26 mi
lhões de pessoas num país como a 1’ndia);16
■ éstabelecendo um orçamento mensal, e se atendo a ele.
2. Questione o seu próprio estilo-de-vida, não o do vizinho.
3. Reduza o consumo de energia:
■ dando apoio aos transportes públicos, com os seus pés e seu
voto;
■ utilizando-se de bicicleta e, para distâncias menores, cami
nhando;
■ fazendo da hora de lavar a louça um tempo em família, em
vez de comprar uma máquina de lavar;
■ comprando um ventilador em vez de um condicionador de
ar.
4. Resista ao consumismo:
■ rindo na hora dos comerciais de TV; talvez desenvolvendo
slogans familiares, como "acha que tá conseguindo me ta
pear?" ou "pode ficar você mesmo com isso!";
■ fazendo uma lista de propagandas desonestas, e boicotan
do aqueles produtos;
■ usando os envelopes dos cartões de resposta comercial, com
selo pago, para escrever protestando contra a propaganda
inescrupulosa.
5. Reduza o seu consumo de recursos naturais não-renováveis:
■ resistindo ao supérfluo;
■ compartilhando aparelhos, ferramentas, equipamentos es
portivos, livros e mesmo carros;
■ organizando em sua igreja uma espécie de depósito com coi
sas usadas só ocasionalmente — afiadores, cortadores de gra
ma, camas de campanha para hóspedes inesperados, equipa
mento de camping, escada.
6. Tenha um ou dois filhos próprios, e depois adote;
7. Veja quanto do que você gasta é para manter o status, e então
elimine tais despesas.
8. Recuse-se a acompanhar a moda. ( ê bem provável que poucos
leitores deste livro tenham necessidade de comprar qualquer
peça de roupa — exceto, talvez, sapatos — por um espaço de
200
dois ou três anos.)
9. Aproveite o que é de graça.
10. Dê a seus filhos mais amor e dedicação em vez de mais coisas.
202
CAPITULO 8
Z E L A N D O UNS
P E L O S O UT RO S COM AMOR
203
conformismo em relação à sociedade que os cerca, marcada que está
pela obsessão do materialismo, sexo, sucesso econômico e poderio
militar. Nela as coisas são mais importantes do que as pessoas.
Estabilidade no emprego e um salário o quanto mais alto possível
valem mais que crianças, a morrer de fome e trabalhadores oprim i
dos. A advertência de Paulo aos romanos tem uma pertinência toda
especial para nós hoje: "Não vos conformeis com o presente século
(BJ: "com este m undo")" (Romanos 12.2). A revelação bíblica nos
convoca a desafiar muitos dos valores básicos de nossa sociedade ma
terialista e adúltera.
Mas isso é impossível! Se pensarmos em termos de indivíduos,
sim. Dificilmente crentes isolados poderão oferecer resistência aos
valores anti-cristãos que jorram de nossos aparelhos de rádio, de TV,
dos cartazes de propaganda. Os valores da sociedade em que vive
mos penetram lenta e sorrateiramente em nossos corações e men
tes. A única maneira de desafiá-los é mergulhar a fundo numa vi
vência de comunidade cristã, de tal modo que Deus possa remode
lar os fundamentos de todo o nosso pensamento à medida em que
vamos encontrando a nossa identidade primária com outros irmãos
e irmãs também comprometidos incondicionalmente com os valores
bíblicos.
Que a obediência fiel só é possível dentro do contcxto de uma
profunda comunhão cristã não deveria ser motivo de surpresa para
nós. A igreja primitiva foi capaz de desafiar os decadentes valores
da civilização romana precisamente por ter experimentado de manei
ra poderosa a realidade da comunhão cristã. Para os primeiros cris
tãos koinonia não era a artificial e enfeitada "comunhão" de festi-
nhas entre os membros. Não era um chazinho com bolachas e con
versa à toa no saguão de entrada, após o culto. Era um compartilhar,
sem reservas, de suas vidas, com os outros membros do corpo de
Cristo.
Comunhão cristã significava estar em disponibilidade incondicio
nal para os outros irmãos e irmãs, ser sensível às suas necessidades
— emocional, financeira e espiritualmente. Quando um membro so
fria, todos sofriam. Quando um estava alegre, todos se alegravam com
ele (1 Coríntios 12.26). Quando alguém ou alguma igreja passava por
dificuldades financeiras, os outros prontamente compartilhavam da
quilo de que dispunham2. E quando um irmão ou irmã caía em pe
cado, os outros ajudavam-no, com amor, a se levantar de novo (Ma
teus 18.15-17; 1 Coríntios 5; 2 Coríntios 2.5-11; Gálatas 6.1-3).
2 V e r a c im a, c a p ftu lo 4 , p p . 91 ss.
204
Os irmãos estavam disponíveis uns para os outros; de fato, podia-se
contar com o outro para qualquer coisa3.
E claro que a igreja primitiva nem sempre correspondeu e viveu
plenamente conforme a visão do corpo de Cristo que encontramos no
Novo Testamento. Havia falhas até bastante grandes. Mas é certo
que aquela rede de pequenas igrejas domésticas espalhadas pelo Im
pério Romano da época teve experiências tão vívidas do seu ser um
em Cristo que isso os tornou capazes de desafiar e, a seu tempo, con
quistar uma poderosa civilização pagã.
Os primeiros grupos dos metodistas de John Wesley captaram e
experimentaram alguma coisa do espírito da igreja primitiva. Reu-
niam-se semalmente em casas, como gente "unida com o propósito
de orar juntos, receber uma palavra de exortação e exercer mútua
vigilância em amor, para poderem se ajudar uns aos outros a desen
volver a sua salvação"4 . A grande maioria das igrejas de hoje, con
tudo, não provêem este contexto em que irmãos e irmãs possam se
encorajar, admoestar e crescer mutuamente no discipulado. Temos
uma desesperadora necessidade de novas estruturas e de novos con
textos que possibilitem sermos zelosos e nos preocuparmos uns pe
los outros em amor.
205
sa mudança é que os "outros significativos", que antes proviam um
suporte para as suas idéias e valores, já não se encontram mais ao
seu lado.
A complexa rede de interações sociais em que uma pessoa desen
volve- e mantém a sua .visão da realidade é chamada de "estrutura
de plausibilidade". Esta consiste__de um diálogo_ continuo com
"outros significativos", bem como de costumes específicos, rituais e
meios de legitimação destinados a provéTsuporte para a validade de
certas idéias. Enquanto tais processos sociais.lêm continuidade, a
nossa tendência é a de aceitar as crencas correspondentes como
"verdadeiras ou plausíveis. Desaparecendo, porém, as estruturas de
apoio, começam a surgir as dúvidas e incertezas.
Daí a dificuldade que sempre enfrenta uma "minoria cognitiva".
"Minoria cognitiva" é um pequeno grupo de pessoas que sustenta
um conjunto de crenças que difere acentuadamente do da maioria
em seu meio social. Por estarem em constante contato com gente que
desafia as suas idéiasfundamentais, os membros de uma minoria cogni
tiva sempre encontram grandes dificuldades para manter as suas cren
ças distintivas. Conforme o conhecido sociólogo Peter Berger, ela só
vai conseguir manter em pé as suas idéias impopulares se contar com
uma estrutura comunitária sólida:
A não ser que nosso teólogo tenha a força interior de um santo
do deserto, ele só terá um remédio eficaz contra a ameaça de colapso
cognitivo diante destas pressões: juntar-se com colegas separatistas
que pensam como ele — e ficarem bem pertinhos um do outro. So
mente numa contracomunidade de considerável força é que o sepa
ratismo cognitivo tem chance de se manter. A contra-comunidade
fornece contínua terapia contra a dúvida subliminar de, no final de
contas, a gente talvez não ter razão, mas a maioria ter. Para poder
desempenhar sua função de dar apoio ao corpo divergente de "co
nhecimento", a contracomunidade deve manter uma forte consciên
cia de solidariedade entre seus membros7.
206
é pertinente de uma forma clara também ao problema de como viver
a ética do reino de Jesus em meio a um mundo que segue padrões di
ferentes. A maioria dos nossos contemporâneos —tanto dentro como
fora das igrejas — aceita os valores dominantes da nossa cultura mate-
rilista, orientada para o consumo. Os cristãos genuínos, por outro
lado, estão comprometidos com as normas reveladas nas Escrituras,
que são de natureza muito diferente. Não deveria ser motivo de sur
presa para ninguém que só um remanescente fiel continua ainda se
apegando a esses valores. Mas o fato de que tais cristãos constituem
uma minoria cognitiva nos deve alertar para a necessidade de uma
sólida comunidade cristã.
Isso não significa que os cristãos devam imitar os Amish e se re
tirar para a solidão de um isolamento rural. Temos que permanecer
no centro da sociedade contemporânea, para podermos desafíá-la,
testemunhar contra ela e, queira Deus, até mesmo transformá-la.
Mas é exatamente quando estamos no mundo, não sendo dele, que
a pressão para que troquemos os padrões bíblicos pelos valores con
temporâneos se torna mais intensa. Daí a necessidade, hoje, de no
vas formas de comunidade cristã.
A velha expressão católica, extra ecclesiam nulla salus ("fora
da igreja não há salvação") contém em si uma significante verdade
sociológica. Certamente não é impossível para cristãos, individual
mente, manter as suas convicções mesmo quando uma maioria dis
corda delas. Se a igreja, porém, deve consistir de comunidades de
amoroso desafio em meio a um mundo pecaminoso, então ela cer
tamente deve prestar mais atenção à qualidade da sua comunhão.
Como poderiam ser os modelos promissores de comunidade
cristã para o nosso tempo?
207
bíblica de forma significativa. Como já foi mencionado, a essência
da comunidade cristã é uma responsabilidade ilimitada e um com
promisso incondicional entre irmãos e irmãs dentro do corpo de
Cristo. Isso significa que o nosso tempo, o nosso dinheiro e todo
o nosso ser estão disponíveis para os irmãos.
Tal comunhão dificilmente ocorre em congregações maiores,
com cem ou mais membros. Ela requer pequenas comunidades
de crentes, como as igreja domésticas do cristianismo primitivo.
O movimento que conquistou o Império Romano consistiu de uma
extensa rede de pequenas igrejas, que se reuniam nas casas de algum
dos seus membros. Paulo fala com freqüência da "igreja que se reú
ne em casa de . . (Romanos 16.5, 23;. 1 Coríntios 16.19; Colos-
senses 4.15; Filemom 2; ver também Atos 2.46, 2.12, 20.7-12). Foi
somente pelos fins do terceiro século que as igrejas começaram a cons
truir templos. A estrutura da igreja primitiva promovia uma estrei
ta interação e comunhão entre os seus membros8.
E o que acontece quando Deus concede o dom da genuína co
munhão cristã? A típica conversa polida do domingo de manhã
começa a ser substituída por um compartilhar profundo e alegre.
Irmãos e irmãs começam a falar sobre aquilo que de fato é impor-
tate para eles. Compartilham os seus receios e temores mais íntimos,
as suas experiências nas áreas em que mais freqüentemente são tenta
dos, as suas alegrias mais profundas. E começam a se desafiar mutua
mente, ajudando uns aos outros a crescer no discipulado, conforme
Mateus 18.15-17 e Gálatas 6.1-3.
é num contexto desses — e talvez só ali — que a igreja de hoje
será capaz de forjar um estilo-de-vida fiel e coerente para os cristãos
nesses tempos de fome. Num ambiente como o das pequenas igre
jas domésticas irmãos e irmãs podem desafiar-se no que toca, por
exemplo, ao estilo-de-vida opulento que vivem. Podem discutir a
situação financeira fartiiliar e avaliar reciprocamente os seus orça
mentos. Despesas maiores (como casas, carros e longas tempora
das de férias) podem ser sinceramente avaliadas, em termos da neces
sidade tanto das pessoas envolvidas como dos pobres de Deus ao re
dor do mundo. Sugestões quanto a uma vida mais simples podem ser
compartilhadas. A opção certa, pensando em termos de libertação
para os pobres, empregos ecologicamente coerentes, doações carido
sas que promovam a auto-suficiência entre os oprimidos — estes e
208
muitos outros assuntos podem ser discutidos aberta e honestamente
entre pessoas que se empenharam e se comprometeram mutua
mente como irmãos e irmãs em Cristo.
Quais são os modelos de igreja que promovem esse tipo de co
munhão cristã?
COMUNIDADES DOMÉSTICAS
209
mo passaram a acontecer primariamente nas casas. Um dos resulta
dos foi que a congregação começou a crescer com rapidez. Quando
passava de 25 o número de pessoas que se reunia numa casa, o grupo
era dividido em dois.
Em 1974 o crescimento já havia forçado a realização de dois cul
tos dominicais. Em 1976 entre 1300 e 1400 pessoas assistiam regular
mente aos cultos. Havia 50 núcleos nas casas e quatro cultos por fim-
de-semana.
Destas quatro reuniões congregacionais, só uma ainda é realizada
no domingo de manhã no templo original. Para as outras a comuni
dade aluga as instalações de outras igrejas, fazendo os cultos no sá
bado ou domingo à noite. Com isso evitou dispendiosos programas
de construções, deixando os recursos financeiros disponíveis para
coisas mais importantes.
Essa drástica reestruturação teve como resultado o surgimento de
uma genuína comunhão cristã. Por causa das pequenas reuniões nas
casas, os pastores podem assegurar confiantes que todos os oitocen
tos membros da sua igreja recebem um atendimento pastoral persona
lizado. Os fardos e problemas de cada um são conhecidos no peque
no grupo de que fazem parte.
Compartilhamento financeiro era algo que não fazia parte da
visão original, mas começou a acontecer, e de modo bastante signifi
cativo. Membros dos grupos meteram a mão no bolso, tocando na
sua poupança ou vendendo ações, para fazerem um empréstimo, sem
juros, a duas famílias que estavam morando em trailers por não te
rem como pagar uma casa. Quando alguns outros se apresentaram pa
ra assinar os papéis necessários para o resgate da hipoteca de uma ou
tra família da igreja, as pessoas que estavam ali à volta ficaram com
pletamente perplexas ao verem que o negócio seria feito sem juros!
Hoje, quando um membro de um dos grupos precisa de uma peque
na ajuda financeira (50 ou 100 dólares), os próprios participantes
do grupo resolvem o problema. Para necessidades maiores há um fun
do mantido pela congregação. Estão sendo desenvolvidos planos de
cooperativas de alimentos e de um depósito de roupas e móveis usa
dos. Uma parte relativamente grande (30% num dos últimos anos)
das ofertas totais da comunidade é usada para esse compartilhamen
to nos casos de necessidade.
A Palavra Viva começou a desenvolver uma ampla preocupação
pela justiça social e pelos pobres. Os pastores pregam sobre o tema.
A igreja compartilha de forma substancial com uma congregação
negra da cidade. 10% da renda bruta da igreja são destinados ao alí
vio da pobreza no mundo. Uma área de atuação bem especial tem si
210
do o atendimento a refugiados do Sudeste Asiático. Já existem pla
nos bem adiantados no sentido de desenvolver um centro de saúde
holístico10 no centro da cidade. Há necessidade ainda de um com
prometimento mais firme com estilos-de-vida simples, e uma maior
compreensão no que diz respeito à injustiça nas estruturas econô
micas. Mas creio que aos poucos isso também está começando a
acontecer. A revolução criativa dos últimos quinze anos produziu
maior flexibilidade e abertura para novas direções no discipulado.
E a pequena comunidade doméstica é, sem dúvida, um contexto
ideal para o forjamento de estilos-de-vida novos em termos econô
micos.
A Palavra Viva demonstrou que é possível transformar uma co
munidade tradicional em um conjunto de comunidades domésticas.
E a conseqüência tem sido não uma cisão destrutiva, mas um cres
cimento — no discipulado, na comunhão e nos números.
A Igreja do Salvador, em Washington, foi a pioneira do mode
lo dos pequenos grupos, começando logo após o fim da II Guerra
Mundial11. Todos os seus membros teriam que participar em um
dos seus vários grupos de missão. Os candidatos a membro da igre
ja tinham que passar por cinco cursos, durante um período de dois
anos. Um pacto, renovado a cada ano, compromete cada membro
a quatro disciplinas: oração diária, estudo bíblico diário, culto
semanal e contribuição proporcional (começando com o dízimo
da renda bruta).
Tendo de cinco a doze pessoas, os grupos de missão são a peça-
chave da Igreja do Salvador. Não são meramente células de oração,
reuniões de estudo bíblico ou grupos de encontro ou de ação social
(embora tudo isso ocorra). Gordon Cosby, o pastor, sublinha o fato
de que é nesses grupos que os membros vivenciam a realidade do cor
po de Cristo: "O grupo de missão incorpora as várias dimensões da
igreja. Ele é total em seu escopo. Atua tanto para dentro como
para fora e requer que estejamos à disposição de Cristo e uns dos
outros com tudo que isso possa implicar. Ele parte do princípio de
que compartilhamos uma irrestrita responsabilidade uns pelos ou
211
tros"l í . Verbalmente ou por escrito os membros dos grupos com
partilham, cada semana, os seus fracassos e sucessos no seguimento
das disciplinas constantes no pacto, as lições que aprendem nas Es
crituras, os problemas e alegrias que experimentam durante a se
mana.
No compromisso que cada membro assume o aspecto econômi
co é bastante significativo. Uma parte do pacto diz o seguinte:
14 Ib id ., p . 1 4 0 .
212
giados tailandeses. Agora esse grupo, juntamente com o Central Ame
rican Peace Institute", o "Dayspring Refugee Mission" e o "World
Peacemakers", está providenciando auxilio direto aos refugiados da
América Central, que por causa da violência nos seus países são leva
dos a buscar refúgio em países vizinhos e nos Estados Unidos. Ao
mesmo tempo esses grupos estão lutando por mudanças na política
externa norte-americana, que exacerba grandemente o problema dos
refugiados da América Central.
O conceito dos "grupos Dunamis" surgiu em um desses grupos
de missão. Diferentes grupos de trabalho selecionam questões espe
cíficas da política pública e articulam relacionamentos de amor,
oração, preocupação pastoral e testemunho profético para com
senadores e congressistas. Em 1983 Henri Nouwen viajou por todo
o país promovendo "grupos Dunamis" locais, que passaram a se con
centrar na questão da política americana na América Central. A abor
dagem do tipo Dunamis, formando um relacionamento pastoral/
profético com pessoas que estão desempenhando funções na polí
tica, também poderia ser aplicada nos níveis municipais e estaduais15.
Por volta de 1976 o constante crescimento parecia ameaçar a
genuína vida em comunhão naquela comunidade. Por causa disso
a igreja hoje se encontra dividida em sete comunidades-irmãs, todas
completamente autônomas. A expectativa de üordon Cosby era a
de que as novas comunidades tivessem um espectro econômico mais
amplo, de modo que o compartilhamento pudesse ser ainda maior,
e mais consciente a busca de uma vida simples. Tal como a Palavra
Viva, em Filadélfia, a Igreja do Salvador prefere se subdividir em
congregações menores a correr o risco de diluir a sua vida comuni
tária.
Milhares de igrejas hoje contam com pequenos grupos — grupos
de encontro, grupos de comunhão, grupos de recreação, células de
oração e uma infinita variedade de grupos de ação que igualmente
visam a comunhão. Mas será que tais grupos conseguem alcançar
os mesmos objetivos que as reuniões domésticas da Palavra Viva, ou
os grupos de missão da Igreja do Salvador? Dificilmente.
Embora os numerosos pequenos grupos que florescem nas igre
jas de hoje sejam úteis e tenham o seu valor, poucas vezes eles avan
çam o suficiente. Os seus participantes podem concordar em com
partilhar até de modo profundo em uma ou duas áreas da vida, mas
não assumem uma responsabilidade pelo crescimento dos outros ir-
213
mãos em direção à maturidade cristã em todas as áreas da sua vida.
Alguns nem sonham que ser verdadeiramente irmãs e irmãos em
Cristo significa uma comprometida preocupação pelas condições
econômicas uns dos outros, ou responsabilidade pelo estilo-de-vida
econômico dos outros! A questão fundamental é a seguinte: Têm
os participantes do grupo se comprometido a serem irmão ou irmã
um para o outro, em escala tão elevada que existem disponibilida
de e responsabilidade quase totais de uns para com os outros? Em
geral os pequenos grupos têm a tendência de se dissolver num espa
ço de seis meses a dois anos. E então a vida continuará como antes.
São grupos de "responsabilidade limitada". Têm a sua genuína im
portância, isso não se pode negar. Mas o que as pessoas precisam
desesperadamente hoje é ter uma igreja. E, a partir da perspectiva
bíblica, ser igreja significa aceitar uma condição de dedicação quase
incondicional e de inteira disponibilidade e responsabilidade pelos
outros membros locais do corpo de Cristo.
COMUNIDADES DE VIZINHANÇA
214
relacionamentos abertos, que promovem uma sincera busca recípro
ca por padrões de vida menos injustos.
A COMUNA CRISTÃ
18 Ib id ., p . 1 8 3.
215
Quando este o convidou a aceitar a Cristo e participar da comunida
de dos crentes, o homem ficou todo sem jeito e depressa fez ques
tão de insistir em que só queria dinheiro para uma passagem de ôni
bus a Cleveland!
"O .K .", disse Virgil, " nós podemos lhe dar esse tipo de ajuda
também, se é mesmo só isso que deseja." Ficou quieto por um mo
mento, e depois balançou a cabeça. "Sabe de uma coisa?" disse, fi
tando-o nos olhos, " você acabou de me tirar do anzol. Sim, porque
se você tivesse optado por um novo modo de vida no reino de Deus,
então como irmão eu estaria na obrigação de me colocar com tudo
que tenho à sua disposição, dispor-lhe toda a minha vida. Essa casa,
meu tempo, todo o meu dinheiro, tudo que você precisasse para
as suas necessidades estaria totalmente à sua disposição pelo resto
da sua vida. Mas, como tudo que você quer é dinheiro para uma pas
sagem de ônibus . . . " 0 homem ficou tão espantado que se levan
tou e fo i embora, inclusive esquecendo de pegar o dinheiro. No
próximo domingo ele estava sentado ao lado de Virgil, no culto
dominical19.
Embora sendo uma coisa que não é para todos, a Reba Place e
outras comunas cristãs propiciam um contexto em que uma ampla
dedicação e responsabilidade mútua entre irmãos e irmãs pode se
tornar realidade20.
A Bfolia e o jornal de hoje nos conclamam para a mesma coisa:
pessoas fiéis, nesses tempos de fome, devem adotar estilos-de-vida
mais simples e mudar estruturas econômicas injustas. Mas esse não
é um caminho muito popular dentro de uma sociedade afluente. Por
isso, a menos que os cristãos estejam firmemente ancorados em ge
nuínas comunidades cristãs, serão incapazes de viver o não-confor-
mismo radical ordenado pelas Escrituras e tão essencial para os nos
sos dias. A nossa única esperança é um retorno à visão do corpo de
Cristo que encontramos no Novo Testamento. Acontecendo isso, o
Senhor da igreja poderá de novo criar comunidades onde haja amor e
desafio, comunidades capazes de resistir e conquistar poderosas civi
lizações pagãs do Oriente e do Ocidente, que adoram no santuário
de Mamon.
1 9 lb id .,p .6 5 .
216
CAPITULO 9
TR ANSFORMAÇÕES ESTRUTURAIS
1 De u m a rtigo em O u r H o p e . 1 0 , n ? 2 (A g o s to , 1 Ô 0 3 Í, p p . 7 6 -7 7 .
217
sacrificavam fielmente parte do seu tempo para que a ambulância
pudesse estar à disposição, para ser usada a qualquer hora do dia ou
da noite. Chegaram a salvar muita vidas, mesmo que várias das v íti
mas tenham ficado aleijadas pelo resto da vida.
Certo dia, então, chegou um visitante para a cidade. Perplexo,
perguntou por que não fechavam a estrada e construíam, ao invés,
um túnel através da montanha. Inicialmente surpresos, os voluntá
rios da ambulância logo se puseram a explicar que tal solução (em
bora tecnicamente viável) não era realista e nem mesmo aconselhá
vel. Afinal a estradinha da montanha já estava ali há muito tempo.
E além disso o prefeito iria se opor fortemente à idéia (ele era
proprietário de um grande restaurante e posto de serviços localiza
do mais ou menos no meio da subida.)
O visitante ficou chocado com o fato de aqueles cristãos se im
portarem mais com os interesses econômicos do prefeito do que com
as numerosas vítimas dos acidentes. Um tanto hesitante, sugeriu que
talvez representantes das igrejas fossem falar com o prefeito. Afinal, o
prefeito mesmo era presbítero da igreja mais antiga do lugar. Talvez
devessem até eleger um novo prefeito, se este se mostrasse inflexí
vel e indiferente em relação ao problema. Agora os cristãos é que
ficaram chocados. Com grande indignação, e com a convicção dos
justos, informaram ao jovem radical que a igreja não devia se meter
em política. A igreja é chamada a pregar o evangelho e dar um copo
de água fria. Sua missão não consiste em se envolver em questões
mundanas como estruturas sociais e políticas.
Perplexo e entristecido, o visitante foi embora. Enquanto saía,
uma pergunta martelava a sua mente abalada pelo que vira. E real
mente mais espiritual cuidar das ambulâncias que carregam as ensan
güentadas vítimas de estruturas sociais destrutivas, do que tentar
transformaras próprias estruturas?
Tempos de fome exigem de nós uma compaixão mostrada em
atitudes concretas e simplicidade no viver. Mas compaixão e vida sim
ples sem transformações estruturais podem significar não muito mais
do que um irrelevante domínio-próprio ou uma orgulhosa busca por
pureza pessoal.
Comer menos carne, ou mesmo tornar-se vegetariano, não ajuda
rá necessariamente a alimentar uma criança desnutrida. Mesmo que
milhões de pessoas afluentes ao redor do mundo reduzissem o seu
consumo de carne, se não atuarem politicamente, no sentido de
procurar transformar a política ofieial com relação à questão, o resul
tado não será automaticamente menos fome no Terceiro Mundo. Se
o dinheiro assim economizado for entregue a organizações privadas
218
que visam a promoção de desenvolvimento rural em nações pobres,
então sim. Contudo, a menos que a política governamental também
seja mudada, o efeito primário de uma mera redução no consumo
de carne poderá simplesmente ser o de permitir que os russos com
prem mais cereal por preços menores no ano que vem, ou de persua
dir os agricultores a plantarem menos trigo. O que precisamos é de
uma transformação na política pública. Os nossos tempos de fome
exigem mudanças estruturais.
Imediatemente surgem várias perguntas. Certo, alguma mudan
ça nas estruturas se faz necessário; mas, é o nosso atual sistema
econômico basicamente justo, ou deveriam os cristãos lutar por uma
reestruturação fundamental? E quais seriam, especificamente, as mu
danças estruturais coerentes com os princípios bíblicos? E seriam
estes princípios pertinentes mesmo à sociedade secular? Israel, afi
nal, era uma teocracia. Podemos nós realmente esperar que descren
tes vivam conforme a ética bíblica?
A Bíblia não responde diretamente a estas perguntas. Não encon
tramos nas Escrituras um projeto, amplo e abrangente, para uma no
va ordem econômica, embora a revelação bíblica nos diga que Deus e
o povo que lhe é fiel estão sempre procurando libertar os oprimidos,
e nos apresente alguns princípios referentes à justiça social.
Certamente que a aplicação primária da verdade bíblica sobre re
lações justas entre o povo de Deus diz respeito à igreja. Como o novo
povo de Deus2, a igreja deveria ser uma nova sociedade que encarna
em sua vida diária os princípios bíblicos relacionados com a justiça
social. De fato, somente se a igreja for ela mesma um modelo visível
de relações sócio-econômicas transformadas, ela terá a integridade
necessária para tornar eficaz qualquer apelo ao governo. Muita ação
social recente por parte dos cristãos tem sido ineficaz porque líde
res cristãos tentam pressionar o governo a fazer leis que eles próprios
não conseguem aplicar entre os membros das suas igrejas.
Todavia, de forma secundária mas não menos importante, os
princípios bíblicos também são aplicáveis a sociedades seculares.
Deus não ditou arbitrariamente algumas normas sociais para o seu
povo. O Criador revelou certos princípios e padrões sociais por saber
que poderiam conduzir a uma paz e felicidade duradouras para as
suas criaturas. Seguir os princípios bíblicos sobre a justiça na socie
dade é o único caminho para uma paz duradoura e a harmonia so
cial,e isso vale para todas as sociedades humanas.
2 Gálatas 6 .1 6 ; 3 ,6 -9 ; 1 Pe d ro 2 . 9 , 1 0 .
219
A visão bíblica do reino que está por vir sugere o tipo de ordem
social que Deus deseja. E a igreja deveria se constituir já agora num
modelo vivo (imperfeito, sem dúvida) daquilo que será o futuro rei
no de justiça e paz. Isso significa que, quanto mais perto uma socie
dade secular chegar das normas bíblicas de relações justas entre o po
vo de Deus, mais paz, felicidade e harmonia tal sociedade poderá ex
perimentar. Obviamente indivíduos e sociedades pecaminosas nunca
passarão de uma aproximação muitíssimo imperfeita. Mas as estrutu
ras sociais exercem uma poderosa influência não só sobre o santo,
mas também sobre o pecador. Por isso os cristãos deveriam procurar
exercer influência política para implementar mudanças na sociedade
como um todo.
O fato de os autores bíblicos não hesitarem em aplicar normas
reveladas a pessoas e sociedades que não faziam parte do povo de
Deus só apóia essa tese. Amós anunciou o castigo divino sobre as
nações vizinhas de Israel, como conseqüência de sua maldade e in
justiça (Amós 1 e 2). Isaías denunciou a Assíria pela sua arrogância
e injustiça (Isaías 10.12-19). O livro de Daniel mostra que Deus
removeu reis pagãos, como Nabucodonosor, pelas mesmas razões pe
las quais destruíra os governantes de Israel, quando negligenciaram
os oprimidos (Daniel 4.27). Deus acabou com Sodoma e Gomorra,
do mesmo modo que fez com Israel e Judá, por terem deixado de
ajudar os pobres e alimentar os famintos (Ezequiel 16.49). Como
Senhor do universo, Javé aplica os mesmos padrões de justiça social
a todas as nações.
Quais seriam, então, os princípios bíblicos fundamentais que pre
cisamos ter sempre em mente quando pensamos em transformações
estruturais na sociedade? Os pressupostos teológicos mais básicos
são dois: Primeiro, Deus nos fez mordomos da criação, responsáveis
diante dele no que diz respeito aos cuidados para com a terra. Segun
do, o soberano Senhor deste universo está sempre em ação, visando
libertar os pobres e oprimidos, e destruindo os ricos e poderosos que
são injustos (Lucas 1.52, 53). Deus está do lado dos pobres (confor
me pudemos ver no capítulo 3). Ao tornar-se o povo de Deus
co-agente nessa tarefa de libertação, os princípios revelados nas Es
crituras acerca da justiça na sociedade deverão moldar o seu pensa
mento e a sua ação.
Na Parte 2, examinamos a perspectiva bíblica sobre o pobre e
sobre as riquezas. Uma breve recapitulação dos princípios que lá
pudemos detectar será útil nesse ponto: O Deus da Bíblia se desagra
da de extremos de riqueza e de pobreza; Javé quer estruturas institu
cionalizadas (e não mera caridade), que de forma sistemática e regu
220
lar reduzam os grandes abismos existentes entre ricos e pobres. Con
quanto não sugiram um equalitarismo seco e legalista, todos os pa
drões bíblicos de compartilhamento econômico (por exemplo, o
Jubileu e a coleta levantada por Paulo) tendem muito mais a uma
igualdade econômica do que as nossas sociedades pecaminosas nor
malmente admitem.
Pessoas são tremendamente mais importantes do que proprieda
des. A propriedade privada descentralizada é não só legítima, mas im
portante — tanto para que tenhamos meios de cumprir o mandado
do nosso Criador, de sermos co-criadores com ele, como para evitar
o totalitarismo que flu i de modo praticamente inevitável de um po
der econômico centralizado. Mas, uma vez que só Deus é o único
proprietário absoluto, o nosso direito à aquisição e ao uso da pro
priedade é definitivamente limitado. O direito do homem aos recur
sos necessários para ganhar uma vida justa se sobrepõe à qualquer
noção de propriedade privada absoluta.
Esse último princípio se relaciona de forma direta com o que va
mos tratar neste capítulo. Alguns países, como os Estados Unidos,
a União Soviética e a Austrália (e também o Brasil!) possuem uma
reserva muito rica de recursos naturais dentro das suas fronteiras na
cionais. Teriam eles um direito absoluto de usar estes recursos da for
ma que mais lhes convém, visando somente o benefício dos seus pró
prios cidadãos? Não, de acordo com a Bíblia! Se cremos no que di
zem as Escrituras, temos que concluir que o direito de todas as pes
soas humanas a meios de ganhar o próprio sustento de forma justa
se sobrepõe ao direito das nações de usar os seus recursos naturais
só em proveito próprio. Somos só mordomos, e não proprietários
absolutos. Deus é o proprietário absoluto, e ele insiste em que os
recursos da terra sejam compartilhados.
Antes de esboçar alguns passos específicos para a aplicação des
ses princípios, devemos registrar aqui um aviso e um esclarecimento.
Temos que lembrar-nos constantemente da grande distância que
existe entre os princípios revelados nas Escrituras e a sua aplicação
contemporânea. Existem muitas maneiras válidas de se aplicar os
princípios bíblicos. A aplicação deles aos problemas sócio-econômicos
de hoje deixa espaço para criatividade e até para um honesto desa
cordo entre cristãos bíblicos. Ter reservas ou objeções contra a nos
sa aplicação da ética bíblica à sociedade contemporânea, conforme
exposta neste livro, não significa o mesmo que rejeição dos princí
pios bíblicos. Com isso também não estamos dizendo, por outro la
do, que todas as aplicações são igualmente válidas; significa, isso sim,
que é imperativa uma atitude de humildade e tolerância. Podemos
221
e devemos ajudar uns aos outros a ver onde estamos sendo infiéis
à revelação bíblica, e preconceituados e condicionados pelas nossas
próprias vantagens econômicas. As Escrituras é que devem ser a
norma, como sempre.
O esclarecimento é o seguinte: Insistir em que cristãos devam
atuar politicamente para tentar mudar aqueles setores das nossas
estruturas econômicas que são injustos, não é conclamar a uma
revolução violenta que imporia, pela força, uma sociedade centrali
zada e estatista. Cremos firmemente que o caminho de Jesus é o
do amor não-violento, inclusive para com os inimigos. Rejeitamos,
por isso, o uso de violência3. O exercício da influência política
numa sociedade democrática envolve, sem dúvida, o uso de meca
nismos de pressão (ou de força) não-letais. Quando legislamos pena
lidades para motoristas embriagados, estamos usando um tipo apro
priado de "força" não-letal. E o mesmo é verdade quando se trata
de legislação sobre mudanças na política interna e externa, visando
um padrão de vida mais justo para os pobres, ou padrões de comér
cio menos injustos, ou uma redução do opressivo poder das m ulti
nacionais. Em uma sociedade democrática tais meios são válidos, e
o cristão deve fazer uso deles, no propósito de ser um mordomo
mais fiel de Deus neste mundo.
Um elemento muito importante na busca por corrigir estruturas
econômicas injustas é a constante promoção de um poder de deci
são e de controle descentralizado. Tanto o totalitarismo marxista
como as grandes corporações multinacionais centralizam o poder nas
mãos de um pequeno grupo. E muitas vezes as opções dessas pode
rosas elites refletem não a busca do que representaria o melhor para
a maioria, e sim os seus próprios interesses. Deveríamos lutar tanto
por uma descentralização do poder econômico como por uma eco
nomia mais justa, construída sobre a afirmação bíblica fundamental
de que Deus quer justiça para os pobres e oprimidos.
Vejamos alguns passos concretos que podemos tomar.
222
beneficiado por mudanças tais como uma maior ajuda econômica por
parte dos países mais ricos ou padrões mais justos do comércio inter
nacional? A ajuda econômica e o livre comércio não beneficiariam
necessariamente à parte mais pobre da população nos países em de
senvolvimento, talvez nem um pingo sequer. Os americanos e os eu
ropeus não são os únicos culpados pela pobreza que existe no mun
do. 0 pecado não é tão somente fenômeno europeu ou americano.
Muitos dos países menos desenvolvidos são governados por peque
nas e ricas elites, muitas das quais não estão dando a mínima aten
ção para o sofrimento das massas dentro dos seus próprios territó
rios. Freqüentemente está em suas mãos uma grande parte das ter
ras mais férteis, nas quais se plantam safras para exportação, visan
do obter os recursos necessários para um comércio exterior pelo qual
adquirem primariamente bens de luxo do mundo desenvolvido. En
quanto isso, os 30 a 70% mais pobres da população se defrontam
com uma pobreza absurda.
Mudanças na ajuda econômica e nos padrões comerciais, então,
poderiam simplesmente capacitar as elites detentoras do poder a
fortalecer ainda mais os seus regimes opressivos. Isso, porém, não
elimina a culpa dos americanos e dos europeus. Em muitos casos tais
elites continuam no poder porque recebem apoio militar maciço,
bem como suporte diplomático por parte dos EUA e de outras
nações industriais4 . Os Estados Unidos treinaram um grande nú
mero de policiais que têm torturado milhares de pessoas que tra
balham por justiça social em países como o Brasil e o Chile5. Mul
tinacionais sediadas no mundo desenvolvido trabalham de forma
mais estreita com os governos repressivos. Acontecimentos como os
verificados no Brasil, Chile, El Salvador e nas Filipinas mostram
que os Estados Unidos continuarão a apoiar ditaduras que fazem
uso de tortura e que se interessarh muito pouco, em termos concre
tos, pela parte mais pobre da ^população, enquanto tais regimes fo
rem receptivos aos investimentos e aos interesses da política exter
na americana.
223
MUDANÇAS NA POLÍTICA6
224
mas poderiam prejudicar a "livre empresa"9 .
Uma política que visa a justiça bíblica para os pobres lutará
para estabelecer controles éticos para as operações das multinacio
nais, contra os próprios interesses delas, dos seus acionistas no ex
terior e dos governantes corruptos que, motivados por benefícios
pessoais, são coniventes com operações que representarão ainda
maior sufoco e pobreza para o grosso da população. Seja através de
atividade política ou de boicotes organizados, os cidadãos cristãos
podem colaborar para a redução do impacto negativo das multina
cionais sobre os pobres na terra.10 A nossa proposta política deve
encorajar a justiça, e não a injustiça. Só assim as mudanças desejadas
a nível de política internacional ajudarão realmente a melhorar o
padrão de vida de um bilhão de pessoas que nem sequer podem
falar em "padrão de vida".
10C o m isso não estam os d ize n d o que o im p acto total das m u ltin a cion a is ó negativo.
Para in form ação sobre o b o ico te à Nestlé e análises d o im p acto qu e causou, pode-se escre
ve r pa ra : In te rfa ith C e n te r o n C o rp o ra te Re spo n sa b ility, 4 7 5 Riverside D riv e , N Y , N Y ;
ou pa ra : In fa n t F o rm u la A c t io n C o a litio n ( I N F A C T ) , 1701 U n iv . A v e ., S .E . M in n e a p olis,
M N , 55414, E U A .
225
de cada indivíduo"11
É precisamente nesse ponto que a igreja cristí pode representar
um papel crucial. Duas coisas são importantes para ela: primeiro,
evangelismo, e, segundo, a mensagem total das Escrituras. A evangeli
zação é central para a transformação social. Não há nada que trans
forme a identidade própria, a auto-estima e a iniciativa de uma oes-
soa pobre e oprimida como um relacionamento vivo e pessoal com
Deus, em Cristo. A descoberta de que o Criador do mundo vive nele
" d í i í r n novo valor e energia a pessoas psicologicamente abaladas por
séculos de opressão.
O segundo componente importante é compartilhar a perspecti
va bíblica em seu todo. As cosmovisões de algumas religiões tendem
a criar uma atitude fatalista em relação à pobreza. 0 hindu ísmo, por
exemplo, ensina que os que pertencem às castas inferiores (e que
usualmente são os mais pobres) estão ali por causa de opções pecami
nosas em encarnações anteriores. E só agüentando pacientemente a
sua sorte presente é que eles podem ter esperança de uma vida me
lhor em encarnações futuras. Além disso, as religiões orientais mini
mizam a importância da história e da realidade material, que seriam
ilusões das quais se deve escapar.
A fé bíblica, por outro lado, afirma que o mundo material que
Deus criou é bom, e ensina que o Criador e Senhor da história re
quer justiça para os pobres da terra aqui e agora. Compartilhando
essa mensagem bíblica mais ampla, missionários e cristãos podem
dar uma profunda contribuição na batalha contra a fome, a pobre
za e a injustiça12. Os missionários, é claro, não podem participar
diretamente de atividades políticas em outros países. Mas todos po
dem e devem ensinar toda a Palavra para toda a pessoa. Por que os
missionários, por exemplo, têm tantas vezes ensinado Romanos,
mas não Amós, aos novos convertidos em terras pobres? Se é verda
de, como pudemos ver na segunda parte deste livro, que as Escritu
ras constantemente declaram que Deus está do lado dos pobres,
então deveríamos fazer desse tema bíblico uma parte central do nos
so ensino. Se aceitamos a Grande Comissão do nosso Senhor, de en
sinar "tudo que vos tenho ensinado", então não deveríamos om itir
ou diminuir a importância da mensagem bíblica de justiça para os
226
oprimidos, mesmo que ela ofenda as elites governantes ou quem
quer que esteja no poder.
Devemos expor de forma cuidadosa e completa para os novos
convertidos a explosiva mensagem bíblica de que Deus está do lado
dos pobres e oprimidos. Os pobres aprenderão logo a aplicar princí
pios às suas estruturas sociais, relacionando-os à sua situação con
creta e buscando formas de modificá-la.
Até aqui analisamos duas coisas: primeiro, uma mudança funda
mental na política, e, segundo, um movimento de massa visando
mudanças sociais, enraizado em novos valores religiosos. Os cris
tãos deveriam promover ambos, porque ajudariam a reduzir a po
breza mundial.
0 que mais precisa acontecer?
227
esta promoção de desenvolvimento que visa ao mero crescimento do
bolo do PNB beneficia as classes média e alta, mas faz muito pouco,
se é que faz alguma coisa, para ajudar os pobres14.
Mahbud UI Haq, economista ligado ao Banco Mundial, sumariza
assim o crescente consenso quanto a isso:
fjor isso, na última década, tem surgido uma nova forma de abor
dar ò problema do desenvolvimento do Terceiro Mundo, é chamada
muitas vezes de "crescimento com eqüidade". O desenvolvimento
certamente inclui o crescimento econômico, que é necessário. Mas
este tem que acontecer de tal modo que haja uma distribuição
equânime dos seus benefícios. Em outras palavras, os pobres devem
participar do progresso econômico. .
Existem várias variantes dessa abordagem, mas a mais popular
e mais consistente com os princípios cristãos é designada por "De
senvolvimento Voltado para as Necessidades Básicas" ("Basic Needs
Development"). O foco se concentra na situação dos pobres. Susten
ta-se que há determinadas necessidades básicas que todas as pessoas
têm cm comum, sendo que a maior prioridade de qualquer programa
econômico deve ser o atendimento dessas necessidades básicas para
todos. Denis Goulet, um autor cristão, com vários livros escritos
sobre desenvolvimento e ética do desenvolvimento, apresenta as se
guintes necessidades como sendo básicas: (1) sustentação da vida;
(2) auto-estima, e (3) liberdade para escolher os próprios rumos 16.
Realmente não é surpresa que nas necessidades básicas estejam in
cluídos mais do que os elemenos puramente físicos, como alimenta
ção, vestuário, moradia e saúde. Estes, no caso, poderiam ser gene
rosamente supridos por algum agente externo, num estilo paterna
lista. Mas, porquanto ajudas a curto prazo são necessárias e boas
em algumas situações de necessidade desesperada (p.ex., em caso de
secas, guerras, etc.), uma dependência de tais ajudas a longo prazo
1 6 V e r Denis G o u le t, T h e C ru o l C h o ic e (N o v a lo rq u e : A th e n e u : 1 9 7 1 ), p p . 123*152.
228
reduz a auto-estima e a motivação. De modo similar, uma socieda
de totalitária, que atenda a todas as necessidades físicas ainda não
traduz a vontade de Deus para nós. As pessoas devem ser livres para
moldarem elas próprias a sua vida e as suas sociedades.
Segundo Paul Streeten, editor do prestigioso jornal World Deve
lopment, as necessidades básicas incluem não apenas a necessidade
de bens materiais, mas também:
229
resto do mundo. Pelo contrário, significa
ser tão autoconfiante como nação, para poder basear o nosso desen
volvimento nos nossos próprios valores culturais. Autoconfiança é
um conceito muito abrangente, que perpassa tudo que se relaciona
com a vida. Implica não só a nossa confiança em nossa própria in
dústria ou agricultura, nos nossos recursos domésticos ou na nossa
tecnologia. É confiar no nosso próprio pensamento e nos nossos
próprios sistemas de valores, sem ser defensivo ou apologético20.
“^ P a la v ra s de M a h b u b u l H a q , co n fo rm e citadas em M c G in n is , p . 2 6 2 . V e r ta m b é m
a discussão sobre autoco n fia n ça e m Ja c k A . N e lson , H u n g e r fo r Ju s tice : T h e Polrtics o f
F o o d a nd F a ith (N o va Io rq u e : O rb is , 1 9 8 0 ), especialm ente as p p . 159ss.
230
parte de responsabilidade nestas mudanças. Se do Primeiro ou do
Terceiro Mundo, procuramos aqui extamente delinear a situação
presente e indicar a parte de responsabilidade que toca a cada um.
O Deus dos pobres espera e conclama os cristãos e as pessoas de
boa vontade em todo lugar a lutarem por uma ordem mais justa e
que espelhe com mais clareza o bom propósito que, como Criador
e Senhor de toda a terra, Ele tem para com toda a sua criação.
CONCLUSÃO
231
Está ficando cada vez mais claro, entretanto, que é tempo de ree
xaminar as ortodoxias econômicas de todos os pontos-de-vista ideo
lógicos. Temos uma necessidade enorme de economistas profunda
mente imersos na fé bíblica, que se dêem ao trabalho de repensar
fundamentalmente toda a economia, partindo do pressuposto de que
a gente pobre também é importante. Temos somente uma idéia
muito parcial do que seria uma versão moderna do ano do Jubileu.
Mas bem no centro da conclamação de Deus para o Jubileu está a
demanda divina por uma regular e fundamental redistribuição dos
meios de produção de riqueza, de modo que todos possam ganhar
e viver' do seu próprio sustento. Temos que descobrir modelos novos
e concretos de aplicação deste princípio bíblico em nosso mundo ca
da vez mais interdependente. Esperamos e oramos por uma nova ge
ração de economistas e cientistas políticosquedevotem suas vidas
a formular, desenvolver e implementar um modelo contemporâ
neo do Jubileu.
0 Sino da Liberdade, que se encontra na parte histórica da
cidade de Filadélfia, poderia vir a ser um poderoso símbolo para
todos os cristãos e cidadãos que trabalham pelo compartilhamento
dos nossos recursos com os pobres do mundo. A inscrição sobre o
Sino, "Proclamai libertação em toda a terra", vem da passagem bí
blica sobre o Jubileu (Levítico 25.10)! Estas palavras prometiam
liberdade e terra para ganharem a sua vida aos hebreus escraviza
dos pelas suas dívidas. Hoje a pobreza escraviza centenas de mi
lhões. O Deus da Bíblia ainda requer mecanismos institucionaliza
dos que possibilitem a todos um viver digno e justo. A inscrição do
Jubileu sobre o Sino da Liberdade faz ressoar uma conclamação pa
ra a justiça econômica internacional.
Terão os cristãos coragem para exigir e implementar as transfor
mações estruturais necessárias para tornar esta antiga inscrição uma
realidade no mundo de hoje?
EPÍLOGO
234
ALGUMAS ENTIDADES QUE DESENVOLVEM TRABALHO SOCIAL
Esta relação, obviamente, é incompleta. Pede-se que entidades não conside
radas (devido ao prazo muito exíguo para o acabamento do livro) enviem seus
históricos e endereços à Editora Sinodal.
Ação Comunitária Batista
Criada pelas Igrejas Batistas de Cotia e Itapevi, mantém Clube de Engraxates,
Fazenda de Assistência ao Menor, Clube de Mães e outros projetos.
(Endereço: Rua das Flores, 3; Bairro do Portão, 06700 Cotia/SP)
Amparo ao Menor Carente (AMENCAR)
Entidade interconfessional que atende mais que 14 mil crianças em 146 lares e
instituições, em 13 Estados brasileiros, atra vás do sistema de apadrinhamento e
convênios, sendo que a grande maioria dos recursos provêm da instituição alemã
“Kindernothilfe” , que atua em 30 países. Mais que mero distribuidor de verbas
para manutenção, o AMENCAR presta orientação pedagógica, psicológica e de
formação profissional através de cursos e centros de treinamento, onde se abran
gem os colaboradores e as famílias.
(End.: R. Epifãnio Fogaça, 467, Tel. (0512)92-1505, 93 000 São Leopoldo/RS)
X
Associação Beneficente Evangélica da Floresta Imperial (ABEFI)
Mantém cursos de treinamento profissional para pessoas procedentes do interior
em escolas-fábrica de calçados, formando aproximadamente 80 por ano; Escola
Evangélica da Paz, de 1° grau completo, também de caráter beneficente, com
gabinete médico e dentário; creche, com acompanhamento dos estudos e traba
lho intensivo junto às famílias carentes. Pela Ação Encontro promove trabalho
nas periferias. Na área de Taquara mantém o Lar Padilha como internato-escola,
paia menores de ambos os sexos, com produção de horti-fruti-granjeiros e cria
ção de bovinos, suínos, aves e peixes.
(Endereço: Av. Pedro Adams F°, 1974, Caixa Postal 412,
Tel. (0512)95-2468, 93 300 Novo Hamburgo/RS)
Associação Beneficente Luterana de Pelotas
Serviços de saúde em atendimento ambulatorial (700 por mês), creche e jardim
de infância.
(Endereço: Rua Marcüio Dias, 1052, Caixa Postal 244,
Tel. (0532)22- 7008, 96100 Pelotas/RS)
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