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ISSN on-line: 1982-2014
Doi: 10.17058/signo.v48i92.18224
Recebido em 07 de Março de 2023 Aceito em 24 de Maio de 2023 Autor para contato: denis-dp10@hotmail.com
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 48, n. 92, p. 19-27, mai/ago. 2023.
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Relendo cicatrizes, recolhendo rastros: memória fraturada em três narrativas de João Carlos Deodé
A primeira possibilidade das raízes do identidade que compreende e expressa um etos, uma
Batuque pauta-se na semelhança com o Xangô de filosofia e um modo de vida específicos, que se
Recife, há, contudo, uma discrepância em relação aos refletem na vivência do cotidiano.” (CORRÊA, 2016, p.
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QUADROS, D. M. de
marca um período e uma época do Batuque mais construções, mas também está na origem
das ruínas – e das cicatrizes. A arte da
próximas à sua origem, bem como a citação de memória, assim como a literatura de
baluartes das nações, em especial, da sua bacia testemunho, é uma arte da leitura de
cicatrizes. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.
religiosa na casa da Yalorixá Jovita de Xangô Agodô. 56)
Contudo, ao tornar letra a tradição oral do
Batuque opera como o faz Mãe Beata de Yemonjá Contudo, essa memória, que nunca será
(1931-2017) que busca rastros mnemônicos da cultura apagada ou esquecida, necessita ser, devido ao grau
fundamentos religiosos. Paul Ricœur (2007) nos faz transcrita. Esses relatos exigem uma força de vida
refletir acerca desses rastros ao afirmar que: “Ao muito grande de quem as rememora, pois, rememorar
substituir a escuta da palavra dos “velhos”, a leitura uma lembrança dolorosa acentua a cicatriz por ela
dá, ao mesmo tempo, uma dimensão pública e íntima deixada. Mesmo não revivendo, as memórias evocam
à noção dos rastros do passado.” (RICŒUR, 2007, p. feridas, dores e sofrimentos que podem ou não ser
406, grifo do autor). Na verdade, não há uma sublimados através da escrita. E é o que fica
substituição total da oralidade pela escrita, o que há evidenciado em “Yemanjá quer falar contigo”.
gerações, ou seja, o que é registrado são as memórias enumeração das estratégias de tortura iniciando pelo
coletivas da geração do autor. uso de um “guia telefônico” coloca nas costas dos
acerca da memória traumática que engendra novas e velhas feridas se entrelaçam no corpo
narrativas impossíveis e necessárias e sobre essas franzino do narrador que, não suficientes os castigos
narrativas Deodé (2020) ao ser questionado sobre o físicos também é privado de alimentação e água ao
trauma afirma, no conto “O que Yemanjá queria falar afirmar que: “(...) estou há dois dias sem comer, mas
comigo”, que: “Não posso, ainda não estou preparado não tenho fome, tenho sede.”. A referência da sede
para contar, mas quando eu começar, primeiro também entrevê a continuidade da narrativa que evoca
contarei sobre o que a Mãe Yemanjá queria falar Yemanjá, orixá das águas salgadas, dona de todas as
comigo” (DEODÉ, 2020, p. 60). Não é possível contar, cabeças e mãe de todos os Orixás.
oralizar uma memória que gera feridas, mas, tempos Deodé descreve, ainda relata o espaço sem
depois, a escrita se faz necessária e cada chaga sol, escuro que dificulta a compreensão da passagem
expele a dor dos eventos traumáticos e desumanos. É do tempo. A abertura dos portões e o amontoamento
plausível o narrador-personagem querer esquecer e de mais resistentes desvela dois fatos: a resistência
Deodé, frente ao mar, reflete esse medo: “Suas ondas pungente contra as ordens injustas do Estado que,
têm uma magia, exercem sobre mim tensão e como repressão, aposta na tortura que engendra o
ansiedade, o barulho das ondas (...) o som do vento medo e uma espécie de obediência coletiva, ou
que vem do mar traz recordações de um passado que melhor, obediência coercitiva; a morte, pela tortura ou
quero esquecer.” (DEODÉ, 2020, p. 60). por inanição, dos que ali estavam aproximava-se a
Sobre esse desejo de esquecimento, desvela cada novo lote de prisioneiros. Ainda, a tortura mental
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Relendo cicatrizes, recolhendo rastros: memória fraturada em três narrativas de João Carlos Deodé
Algo acontece na manhã de sábado. Levado mãos que torturam pertencem, também, à comunidade
para mais um interrogatório permeado de tortura, batuqueira que opera socialmente com prestígio,
Deodé é reconhecido por um dos soldados: Chicão de mesmo que aparentemente pouco, capaz de libertar
Bará Lodê que, talvez sem querer, revela para ele o pelas redes de apoio o narrador.
dia e as notícias externas. Segundo o narrador, as Os rastros deixados por Deodé de forma
torturas diminuíam no fim de semana, afinal: “(...) escrita para as novas gerações encontram na escritura
sabe-se que torturador também tem família” (DEODÉ, da palavra oralizada uma forma de imortalizarem os
2020, p. única). Todavia, a segunda-feira demandava feitos dos Orixás, de um poder social da religião.
o esvaziamento dos porões e isso significava morte Assim, Ricœur (2007) acerca dos “rastros” destaca
em massa. dois tipos: os documentais e os corticais. Escrever é
A noite de segunda-feira é marcada pela volta uma forma de documentar essa memória, contudo,
dos guardas com mais ferocidade. Deodé compara-os ainda é uma prática recente e pouco explorada sendo
a cães selvagens. Comboios de prisioneiros são até mesmo desaprovada pelos Terreiros mais
levados até a praia. O que temos de informação é que tradicionais. Mas, as inscrições corticais permanecem
a água é salinizada, pois arde nas feridas de Deodé. O e Deodé afirma, em “O que Yemanjá queria falar
trajeto feito pelos torturadores foi mais longo, não comigo” que: “Durante três dias não conseguia ter um
permitindo às vítimas saber com exatidão onde sono conciliador, passava por sobressaltos e
estavam. Na continuação da narrativa, “O que acordava-me aos gritos, suando e vendo meu corpo
Yemanjá queria falar comigo” temos a informação de franzino tremendo e não era de frio, era de medo.”
uma ilha afastada da capital, então o trajeto era de, (DEODÉ, 1999, p. 60).
talvez, uma ou duas horas. Em uma ilha distante, com o corpo dolorido e
À beira mar, as dores nos pulmões marcado pelas feridas das torturas, Deodé aguarda
(coincidência ou não o órgão do corpo humano para retornar à capital. Os gritos permanecem em sua
designado ao Orixá Odé), machucados da tortura com mente, das feridas recebe unguento do Babalorixá
o guia telefônico são atenuadas pelo frescor do mar. Marião de Oxalá que lhe concede um pouco de
Colocado em uma das celas percebe que um dos tranquilidade: “Pela primeira vez em seis meses, dormi
soldados deixa cair uma sacola contendo: “(...) uma como que esquecido do mundo” (DEODÉ, 1999, p.
guia de Xangô, outra de Bará e a minha guia de Odé” 60). Contudo, a memória traumática deixa rastros
(DEODÉ, 2020, p. única). Interessante notar que corticais e: “Ao que parece, as feridas dos
esses pormenores desvelam os rastros do que Jeanne sobreviventes continuam abertas, não podem ser
Marie Gangnebin (2006) chama de “(...) lembrança de curadas nem por encantações nem por narrativas. A
uma presença que não existe mais e que sempre corre ferida não cicatriza” (GANGNEBIN, 2006, p. 110) e as
o risco de se apagar definitivamente.” (GANGNEBIN, lembranças irrompem:
2006, p. 27), essa relação entre o rastro constitui uma
relação inseparável entre memória, escrita e morte, No meio da noite, não sei por que, me deu
um desespero louco, uma vontade de sair
pois é na fuga desta que se escreve. correndo, impossibilitado me pus a chorar,
Ainda, a presença das guias, colares de um choro convulsivo e, por mais que
tentasse abafar, piorava. Meus soluços o
contas de vidros na cor dos Orixás correspondestes acordaram e ele veio ter comigo. Chegou
que recebem achorô (sangue sacrificial), fortalecem o de mansinho e como uma sombra abraçou-
me e falou: “Meu filho, não chores, já
narrador que é levada aos chutes no último jipe. passou. Agora terás de continuar tua luta.
Outros homens te esperam e tuas palavras
“Surpreendi-me ao ouvir uma reza do Batuque”
vão conduzir um rebanho, tens que ser
(DEODÉ, 2020, p. única), reza-cântico essa que forte e pensar que os Orixás nunca põem
uma pedra em nosso caminho que não
significa a dança de Yemanjá tendo ao colo seu filho possamos ultrapassar. Tu tens uma grande
Odé cantada pelos soldados, despontando que as missão em tua vida e não será aqui que ela
vai acabar.” (DEODÉ, 1999, p. 62)
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QUADROS, D. M. de
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Relendo cicatrizes, recolhendo rastros: memória fraturada em três narrativas de João Carlos Deodé
exigir esquecimento, apagamento, fragmentação, mas tempo em que fora perseguido, preso e torturado.
a resistência e a necessidade de lutar contra a Essas memórias, de um período ditatorial, segundo
repressão forçam que essas lutas e marcas não sejam Ricœur (2006) criam feridas reais (o corpo marcado) e
esquecidas. simbólicas (o trauma). Deodé é testemunha porque
Essas lembranças traumáticas são, por sua conta, escreve, passa por um trabalho de memória e
natureza, fragmentárias e Deodé utiliza-se de fatos precisa ser ouvido, fato que retoma o conceito de
históricos como, por exemplo, o tricampeonato da “testemunha” em que Jeanne Marie Gangnebin (2006)
seleção, para resgatar essas memórias. Além da afirma que testemunha também é aquela capaz de
tanga do Gabeira, exposta na revista que opera como ouvir o relato indizível de dor, que é capaz, talvez, de
quebra da narrativa, fragmento que, ao mesmo tempo, ver a ferida aberta e percebê-la também sua.
cola e descola a perseguição que impele as memórias O Batuque do Rio Grande do Sul, religião de
da tortura. matriz africana ainda pouco explorada no campo
acadêmico se comparada ao Candomblé, opera no
O aspecto fragmentário do discurso de estado gaúcho uma relação social de poder, prestígio
memória, mais que uma qualidade a se
afirmar como destino de toda obra de e, talvez, medo que tornara possível a sobrevivência
rememoração, é um reconhecimento exato de João Carlos Deodé ao regime ditatorial brasileiro.
de que a rememoração opera sobre algo
que não está presente, para produzi-lo Além disso, Jacqueline Pólvora (1996) revela o espaço
como presença discursiva com conquistado pela religião no estado, fato ratificado pelo
instrumentos que não são específicos do
trabalho de memória, mas de muitos documentário Cavalo de santo (2021) dos diretores
trabalhos de reconstituição do passado: em
José Carlos Caramez e Mirian Fichtner que, baseada
especial, a história oral e aquela que se
apoia em registros fotográficos e na pesquisa de Mirian Fichtner, desvela que o Rio
cinematográficos. (SARLO, 2007, p. 99)
Grande do Sul é o estado brasileiro com mais terreiros
irrepresentável, o que são restos de rastros e rastros de um passado conflituoso, caracteriza-se pelo
apagamento dos documentos destruídos pelos resistência, contudo ora quer esquecer todas as dores,
nazistas, no Brasil, os documentos da ditadura de ora quer fazer-se presente, testemunha. Ainda, toma
1964 também tiveram o mesmo fim e, ainda, é preciso para si o papel a que Gangnebin (2006) propõe aos
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