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Caderno #01

urdume

Tricô e
relações
de gênero

s elo
Urdume
Os CADERNOS URDUME nascem como primeiro
projeto do Instituto Urdume, evolução natural do proces-
so de amadurecimento e autoconsciência da equipe da
revista Urdume. Uma nova iniciativa que tem por objeti-
vo partilhar, com aqueles que nos acompanham, ensaios,
esboços e referências de pesquisas que temos realizado e
têm nos acompanhado nos últimos dois anos.

Sempre com foco em um tema específico, os Cadernos


chegam para complementar o conteúdo plural que pro-
duzimos para a revista, porém com mais argumentação
histórica e questionamentos que esbarram nas lacunas
existentes na produção teórica na área. Convidamos
você, estimado leitor, a adentrar os cadernos e tramá-los
conosco.

Boa Leitura!

Equipe Urdume
C
omumente o tricô é visto como uma atividade doméstica, fe-
minina e de mulheres idosas, as “aposentadas e vovós”. Ma-
térias jornalísticas com títulos como: Tricô não é só para vovós1
publicada na revista Isto É em 2008, Novas Vovós2, publicada na
revista Folha de São Paulo em 2011 e Crochê não é mais coisa da vovó: jovens cariocas
se reinventam com agulhas e linhas em mãos3 publicada no jornal O Globo em 2019,
comprovam o estigma.

Um imaginário construído desde o século XIX, quando, com a chegada


da industrialização, e divisão do trabalho - doméstico para as mulheres e
público para os homens - o tricô, ao lado de outras artes manuais têxteis,
tornou-se o passatempo ideal para mulheres de classe média e classe mé-
dia alta. A atividade, de movimentos lentos e delicados, atendia aos ideais
de feminilidade e domesticação da época. A partir daquele momento, a
técnica, que tinha tido seu auge de reconhecimento por meio dos homens
medievais, passou a ser banalizada econômica e artisticamente4.

Embora o tricô tenha voltado às mãos dos homens durante a Primeira e Se-
gunda Guerra Mundial, seja mantido como uma atividade exclusivamente
masculina no meio rural do Norte de África5, e o livro mais icônico sobre
a história social do tema tenha sido escrito por um bispo - A History of Hand
Knitting (1987), de Richard Rutt (sem tradução para o português) -, desde a

1 JORDÃO,C. Tricô não é só para vovós. Revista Isto É. Disponível em: https://istoe.com.br/10374_
TRICO+NAO+E+SO+PARA+VOVOS/ Acesso em: 12/09/2020
2 Novas Vovós: Jovens paulistanas transformam o tricô em hobby ‘cool’ e promovem a renovação desse mercado
Revista Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 a 20 de ago. 2011.
3 Porcidonio.G.Crochê não é mais coisa da vovó: jovens cariocas se reinventam com agulhas e linhas em mãos. Jornal
O Globo. Disponível em:https://oglobo.globo.com/rio/croche-nao-mais-coisa-da-vovo-jovens-cariocas-se-reinven-
tam-com-agulhas-linhas-em-maos-1-23838041 Acesso em 14/09/2020
4 PARKER, R. The Creation of Femininity. In: ADAMSON, G. (Org.). The Craft Reader. Berg. 2010
5 HAMILTON-B., L. Myth: Black People Don’t Knit – the importance of art and oral histories for documenting the
experiences of black knitters. 2017


Revolução Industrial o tricô não é mais visto como uma atividade masculina.
Uma meia verdade, dessas que acreditamos quando ouvimos uma história
com um lado só, já que, apesar de ser um fato que no decorrer dos tempos
o tricô passou de uma atividade de prestígio a um passatempo doméstico,
e sendo este espaço um local destinado às mulheres, no Chile, na África,
nos países nórdicos, e mesmo no Brasil e nos Estados Unidos - em classes
menos abastadas - o tricô seguiu sendo uma atividade “lícita” para ambos
os gêneros. Sendo assim, por que o estigma?

Desde já avisamos que não temos a resposta. Este primeiro Caderno Urdume
é uma provocação das questões que pretendemos levantar daqui para frente,
como Instituto, sobre o papel social das manualidades têxteis. Começamos
com o tricô, que já é objeto de estudo do Fio da Conversa, mas também
porque além da questão de gênero, ele nos incita a abordar a temática da
racialização e divisão de classes dentro das artes com fios.

Tricô - a história
O tricô é uma técnica manual, derivada do Nålebinding6, na qual são utili-
zadas duas ou mais agulhas para a produção de tecidos de malha. Por meio
do entrelaçamento de fios são criadas, prioritariamente, peças para vestu-
ário. De origem incerta, acredita-se que o tricô tenha surgido na região do
Oriente Médio - local de registro da peça mais antiga encontrada até hoje
(uma meia de 256 AC) -, chegando até a Europa com as rotas comerciais
do Mediterrâneo no século XI, e, posteriormente, até a América com a
colonização Européia, no século XVI7.

6 Técnica de criação de tecidos anterior ao tricô e ao crochê. Também conhecida em inglês como “rede sem nós”,
“tricô sem nós” ou “tricô com agulha única”.
7 BRAUN, S. M. A. H. Intervenção Urbana com fios: o tricô e o crochê na arte contemporânea em uma perspectiva
educativa. P. 54. Monografia Graduação em Artes Visuais – Licenciatura à Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, RS. 2013
Durante a Idade Média, na Eu-
ropa, a técnica foi amplamente
praticada e aperfeiçoada, ga-
nhando gradativamente reco-
nhecimento e valor comercial
com a ampliação do setor têxtil
na região - luvas e meias de tricô
feitas de fios de seda ou de me-
tal, foram encontradas em tú-

Foto: Holy Family, de 1345, de Ambrogio Lorenzetti


mulos de reis e bispos do século
XII. A técnica também aparece
representada em pinturas em
contextos históricos e religiosos,
como no quadro Holy Family, de
1345, de Ambrogio Lorenzet-
ti (Meermanno Museum, The
Hague, Netherlands), onde Vir-
gem Maria é retratada tricotan-
do ao lado do menino Jesus8.

Já nos séculos XV e XVI, com a crescente demanda por artefatos de tricô


(especialmente pelas classes mais ricas, que almejavam se adequar aos pa-
drões estéticos da época) a técnica passou de uma prática doméstica para
uma indústria artesanal, com o surgimento e expansão das guildas, corpo-
rações de ofício organizadas e compostas exclusivamente por homens, que
tinham como intuito regulamentar as profissões artesanais, além de contro-
lar o processo produtivo e o mercado nas cidades9. A busca por desenvolver
produtos de malha de luxo estimulou a competição e as exigências para que

8 RUTT, Richard. A History of Hand Knitting. Loveland. CO: Interweave Press. 1987.
9 ZENG, L., CHEN, Z., RAHMAN, O., The Social Interpretation of Knitwear. J Textile Sci & Fashion Tech. 2019.
um artesão se tornasse aprendiz
e mestre em uma guilda (eram
necessários seis anos de estudos e
prática, além de rigorosos testes
de aptidão)10. É importante lem-
brar que a distinção entre artista

Foto: Tapete de lã tricotado à mão, de 1781,


e artesão surge apenas no final

Strasbourg - França. Autor desconhecido


do século XVIII, com o conceito
de “belas-artes”, e que dizia res-
peito apenas à arquitetura, pin-
tura, desenho e escultura, e va-
lorizava o artista pelo intelecto e
criação, considerando o artesão
como um hábil executor, sem
grandes dotes intelectuais11.

Apesar da criação da primeira máquina de fazer malha e o início do proces-


so de mecanização dos fazeres manuais têxteis em 1589, o tricô continuou
sendo uma prática artesanal até o final do século XVIII, quando a Revolu-
ção Industrial e o aumento na produção e barateamento de produtos, levou
ao colapso a indústria têxtil tradicional. Momento em que o tricô manual
perde seu status e, com o surgimento da classe média e a divisão familiar do
trabalho durante o século XIX, passa de um ofício ou atividade reconhe-
cida e exercida em sua maioria por homens, para um passatempo amador,
popular entre as mulheres.

Em resposta à mecanização e industrialização em massa, ainda no século


XIX nasceu o movimento Arts and Crafts, que defendia a valorização do

10 FOUGNER, D.H. The Manly Art of Knitting. Gingko Press. 2014.


11 CHAUI, M. Filosofiaː ensino médio, volume único. Ática. 2005.
artesanato tradicional, e embora não tenha sido capaz de manter o seu
valor econônmico, despertou a consciência sobre sua importância estética,
abrindo caminho para seu renascimento12.

As questões de gênero
O século XX foi um período de liberta-
ção social, econômica e política para as
mulheres, o que foi fundamental para a
retomada e o reconhecimento das roupas

Foto: Traje de banho de lã tricotada à máquina, feita por Neyret, Paris, 1937
de tricô na sociedade. Na moda, as roupas
feitas de tricô se tornaram vanguarda nos
anos 20, e seguiram se adequando às no-
vas condições das mulheres. Os maiôs de
tricô foram desenvolvidos para nadadoras
e rapidamente se tornaram populares não
só entre as esportistas; o tricô manual tam-
bém renasceu e ganhou prestígio social ao
se tornar ferramenta política com cam-
panhas patrióticas de governos durante a
Primeira e Segunda Guerra Mundial, es-
timulando mulheres, homens e crianças a
produzirem peças de malha para aquece-
rem os soldados em campos de batalha13.

Ao longo da história, vemos que o tricô manual esteve presente em diversos


momentos da sociedade, se moldando a contextos históricos e adquirindo dis-
tintas características conforme o período e o local, além de ter sido praticado
12 ADAMSON, G. The Craft Reader. Berg. 2010.
13 Idem 9
tanto por homens quanto por mulheres. Contemporaneamente, apesar do
tricô ainda ser associado às mulheres idosas, a prática tem ganhado populari-
dade com a democratização da técnica e práticas de personalização do it your-
self (DIY), ou “faça você mesmo”, pelas redes sociais digitais14, sendo exercida
por pessoas de todas as idades, artistas, artesãos e designers, para geração de
renda, como hobby ou mesmo ativismo pela equidade de gênero.

Labor x Trabalho
Em “A Condição Humana”, livro
de 1958, Hannah Arendt descreve
as três atividades que, em suas pa-
lavras, condicionam a vida humana:
labor, trabalho e ação. Ao realizar a
genealogia dessas atividades - dife-
renciando, em especial, o labor do
corpo, sujeito às necessidades de
manutenção da vida, do trabalho
das mãos - responsáveis pelos arti-

Foto: Eva Elijas - Pexels


fícios do mundo humano, Arendt
nos dá elementos para compreensão
da não politização do labor, desde
a Grécia Antiga até os dias de hoje.
Segundo a teórica, o desprezo pelo labor é resultado da acirrada luta do ho-
mem contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação
a todo esforço que não deixasse qualquer vestígio.

14 CRESTO, J. L. “Colocando a mão na massa”: tecnologias de gênero na decoração de interiores no blog Homens
da casa. Tese (Doutorado) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná. 2019
O labor, atividade de caráter privativo, e feito para a manutenção da vida, em
oposição ao trabalho, atividade que alcança reconhecimento social, ao menos
entre seus pares, explica de certa forma o modo como o tricô performa na
mão de homens e mulheres. Enquanto no gênero masculino o tricô se apre-
sentou sempre como trabalho qualificado ou expressão artística - a exemplo
das guildas ou da arte contemporânea15, no gênero feminino o tricô apresen-
ta-se de forma continuada como labor, ao longo da história, mesmo quando
seu papel político se faz imprescindível. Estes são os casos do tricô nos exem-
plos que mostraremos a seguir nas guerras mundiais e norte-americanas.

Revolução Americana
Quase dois séculos antes do boicote
indiano - estimulado por Mahatma
Gandhi - à indústria têxtil da Grã
-Bretania16, mulheres da então co-

Foto: Martha Washington tricotando ao lado do marido


lônia norte-americana, que ficaram
conhecidas como “Filhas da Liber-
dade”, praticaram desobediência ci-
vil através da fiação e do tricô.

Em meados da década de 1760, com


o lema “Economize seu dinheiro e
salve seu país!”, mulheres da elite
colonial norte americana - respon-
sáveis pela economia de seus lares
15 Pesquisas apontam que homens que fazem tricô apresentam-se majoritariamente como artistas, ao contrário das
mulheres. Ver pesquisa Fio da Conversa - Urdume 4. 2019);

16 Ver matéria “O Fio da Vida” - Urdume 5. 2019


- formaram um grupo político exclusivamente feminino como uma resposta
à tributação britânica imposta aos colonos. Este grupo decidiu boicotar pro-
dutos de fabricação britânica, ações que tiveram um grande impacto sobre
os comerciantes britânicos e, portanto, nos eventos da Revolução Americana.

Os colonos eram proibidos de vender lãs, fios de lã ou tecidos de lã fora da


colônia onde eram produzidos e as importações eram restringidas apenas à
lã britânica, cujos impostos eram altíssimos. Imposições que passaram a ser
ainda mais restritivas quando o rei George II começou a taxar pesadamente
as colônias para pagar os custos da guerra francesa e indiana. Em dois anos
(1764 - 1765) o parlamento britânico aprovou a tributação para o açúcar,
proibiu as moedas coloniais e passou a tributar os documentos com a Lei do
Selo. As mulheres decidiram então renunciar a todos os produtos britânicos
e fiar, tecer e tricotar todas as roupas de suas famílias e, mais tarde, dos sol-
dados norte-americanos.

Muitos jornais da época noticiaram o movimento dessas mulheres pela in-


dependência norte-americana, entretanto poucos deles as chamavam como
elas se denominavam, “Filhas da Liberdade”, em acordo com o movimento
dos homens “Filhos da Liberdade”. Na maioria das vezes elas eram cha-
madas de ninfas e jovens abençoadas. O registro abaixo, de um jornal de
Massachusetts, é uma das poucas exceções, segundo Laurel Thatcher Ulri-
ch’s em “The Age of Homespun”(2001), (sem tradução para o português):

“As senhoras se reuniram na casa do ministro às 5:00 da manhã e fiaram até a noite,
mais tarde, saíram da casa para o jardim e continuaram seu trabalho até as sete. 'A
jovem que se destacou na roda de fiar, fiou 70 novelos’ (...) 'entre as matronas havia
uma que fazia o trabalho matinal de uma grande família, fazia seu queijo, etc., e depois
cavalgava quilômetros, carregava sua própria roda de fiar e sentava-se para girar das
nove da manhã às sete da noite e voltava para casa para ordenhar. (...) Enquanto os
“Filhos da Liberdade” da Nova Inglaterra se entregavam ao rum, à retórica e ao porco
assado, suas Filhas trabalharam de sol a sol para provar seu compromisso com 'a causa
da liberdade e da indústria'.17

A espiã
Duas mulheres que ficaram

Foto: Crystal Lake Herald, Outubro de 1776


muito conhecidas na época
foram Martha Washington,
a primeira-dama norte-a-
mericana, que organizou
diversas rodas de produção
têxtil das “Filhas da Liber-
dade” e Molly “Old Mom”
Rinker, dona de uma ta-
verna na Filadélfia que re-
gistrava informações sobre a tropa britânica que frequentava seu
estabelecimento, enrolava em novelos de lã e entregava à tropa dos
colonos, enquanto fingia tricotar em uma rocha por onde as tropas
do general George Washington passavam.

17 https://www.amrevmuseum.org/read-the-revolution/history/age-homespun
Guerra Civil
Norte-Americana
(1861-1865): divisões de raça
e classe no tricô
Se a Revolução Americana foi marca-
da primordialmente pela questão de
gênero, a Guerra Civil norte-ameri-
cana - conflito armado travado entre
os estados do Sul e do Norte dos Es-
tados Unidos, em especial pelas opi-

Foto: Retrato da abolicionista Sojourner Truth, 1864


niões contrárias sobre a escravização
de pessoas negras - destacou as divi-
sões raciais e de classe existentes entre
as mulheres. Enquanto as mulheres
brancas, ricas e de classe média eram
livres para praticar o tricô como for-
ma de distração, as mulheres de baixa
renda ou marginalizadas recorriam a
ele em busca de renda e sobrevivência.

Na época, nas classes mais altas, o tricô era reduzido a um trabalho de carida-
de por mulheres abastadas e com tempo excedente. Esse era o caso de muitas
mulheres do Sul, favoráveis a escravização, que passaram a tricotar para os
soldados, como demonstra o poema de 1863 “Socks for the Soldiers”, da
poetisa confederada nascida na Geórgia, Carrie Bell Sinclair: “Oh mulheres do
ensolarado Sul / Queremos vocês no campo; / Não com uniforme de soldado, / Nem espada,
nem lança, nem escudo; / Mas com uma arma mais afiada - / A agulha de tricô brilhante
- / E as mãos dispostas a tricotar por aqueles / Que por nosso país lutam.”18

18 Craftivismo
Já para os Estados do Norte, favoráveis à abolição da escravatura, o papel
mais importante do tricô era na geração de renda, em especial para ex-es-
cravizados libertos. Em 1864, por exemplo, a abolicionista afro-americana
e ativista dos direitos das mulheres Sojourner Truth, conhecida por seu dis-
curso “Eu não sou uma mulher?” viajou ensinando tricô, costura e culinária
em campos escravizados refugiados, como forma de ajudá-los a se sustentar
financeiramente19. Aliás, outra curiosidade sobre Sojourner Truth era o uso
que ela fazia do tricô como um elemento de feminilidade. Enquanto mu-
lheres brancas que lutavam pelo sufrágio feminino nos EUA rejeitavam as
tarefas tradicionalmente "femininas", Sojourner Truth - que não era “con-
siderada uma mulher” utilizou o tricô como elemento de desconstrução da
dessexualização das mulheres negras, como é possível ver nos cartes-de-viste,
que a ativista vendia para arrecadação de fundos em suas aparições públi-
cas. Segundo Minister (2012)20, eles “retratam Truth segurando agulhas de
tricô e usando um vestido quaker simples, ao lado de uma mesa com flores.
(...) invocando o culto da verdadeira feminilidade.”

O tricô sem gênero


Se em períodos de guerra o tricô foi testemunha das discrepâncias entre gê-
neros, racialização e classes sociais, foi também durante períodos como esses
que ele alcançou seu status mais igualitário. Durante as duas Guerras Mun-
diais, mas em especial durante a segunda, homens e mulheres foram vistos
ocupando as mãos com fios e agulhas, assim como com armas e suprimentos
de enfermagem, embora a história não mostre tão claramente esse cenário.

19 https://digitalcommons.unl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1695&context=tsaconf

20 Female, Black, and Able: Representations of Sojourner Truth and Theories of Embodiment https://dsq-sds.org/
article/view/3030/3057
Motoristas de ambulância francesa durante a
Segunda Guerra Mundial (Itália 1944).

Em 1941, a capa da
Revista Life de novem-
bro estampava a foto
de uma mulher aparen-
temente aprendendo
tricô, com a legenda
“Como tricotar”. Na
matéria de capa, a res-
posta para a grande
questão americana da
época: 'O que posso
fazer para ajudar no es-
forço de guerra?', tinha
como resposta: “tricotar
para aquecer os nossos
soldados.” Era uma
mulher e suas agulhas
estampando - em tempos de guerra - a capa de umas das revistas mais rele-
vantes do país no século XX.

Além da Revista Life, a Cruz Vermelha e a Primeira-dama Eleanor Roo-


Foto: Robert Capa. - Shutterstock
sevelt também foram grandes incentivadoras dos mutirões para produção
de peças de tricô. Apesar de na época já existirem máquinas para isso, as
rodas para tricotar - que envolviam mulheres, idosos e jovens - ajudavam a
manter unidos os cidadãos norte-americanos em torno da causa dos solda-
dos, que no campo, também faziam tricô, tanto por seu fator terapêutico,
quanto para se aquecer.
Por último, na Segunda Guerra Mundial, o tricô, assim como a costura,
seguiu sendo utilizado como forma de espionagem. A prática de ocultar
mensagens em malhas de tricô, comum em séculos passados, é retratada em
romances como no livro “Um Conto de Duas Cidades”, 1837, do escritor
inglês Charles Dickens, no qual a personagem Madame Defarge tricota
uma lista de nomes da classe alta condenada a morrer, enquanto assiste à
decapitações na Revolução Francesa, e “Tempos entre Costuras”, de Maria
Dueñas, no qual a personagem Sira Quiroga, uma costureira de luxo, serve
como espiã durante a Guerra Civil Espanhola e Segunda Guerra Mundial.

O último suspiro do tricô no século XX:


Movimentos de contracultura
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, e a introdução da tecnologia de
guerra no cotidiano da sociedade, o consumo de massa da população au-
mentou e a produção manual caiu. A partir daí até o final do século XX,
o tricô ficaria cada vez mais restrito aos círculos femininos e de mulheres
idosas. E se por algum tempo esses saberes ainda passaram de avós para
netas, nas últimas décadas do século passado fazer tricô já não era um dote
esperado nem da população feminina.

Como ação de impacto social, o tricô teve seu último suspiro nos anos de
1960 e 1970 com os movimentos de contracultura hippie e punk, que usavam
o artesanato como uma ferramenta na luta contra a massificação social da
indústria cultural, que passou a vender identidades prêt-à-porter21. Desde
então, fortaleceu-se o lema “do it yourself ”, que pelo menos até o advento
da internet contrariava todos os valores de mercado.

21 Rolnik, S.Toxicômanos de identidade subjetividade em tempo de globalização - https://www.pucsp.br/nucleode-


subjetividade/Textos/SUELY/Toxicoidentid.pdf
História social do tricô
No entanto, se no final do século XX o tricô estava longe de ser um afazer
masculino em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, em muitos países
do norte europeu o hábito permaneceu intacto para ambos os gêneros. Por
isso, não é estranho que tenha sido um homem, apesar de bispo, o autor do
mais famoso e completo livro sobre a história social do tricô até os dias de hoje.
Apesar de atualmente enfrentar críticas por certas falhas, é inegável que o livro
“A history of hand knitting”, lançando por Richard Rutt em 1987, tenha sido
um marco na reconstituição histórica da prática.

Rutt era um estudioso e possuía uma biblioteca admirável de livros, jornais,


revistas e receitas de tricô do século XIX, incluindo publicações da década de
1830. Foram os livros precursores das revistas de receitas contemporâneas, que
seguem sendo publicados mais de 180 anos depois. Além disso, sua biblioteca
inclui uma edição abrangente da revista de tricô Stitchcraft, datada dos anos
1930 aos anos 1980, que ilustra a mudança da imagem gráfica e do layout dos
padrões de tricô ao longo das décadas do século XX. Com a morte de Rutt,
sua biblioteca foi doada para a Universidade de Southampton e hoje é possível
acessar parte de sua coleção e outros materiais de referência digitalizados na
“The Knitting Reference Library”, da Universidade de Sothampton.

O Mito: Pessoas negras não tricotam


Por fim, não poderíamos abordar as relações de gênero no tricô sem tocar
na racialização e elitização da técnica dentro do próprio gênero feminino.
Uma das grandes vozes sobre o tema no mundo é a britânica Lorna Hamil-
ton-Brown - uma artista negra cuja principal técnica de trabalho é o tricô.
Ela é autora também da dissertação “Myth − Black People Don't Knit: the
importance of art and oral histories for documenting the experiences of
black knitters” [Mito - os negros não fazem tricô: a importância da arte e das histórias
orais para documentar as experiências dos tricoteiros negros] e atuante na desconstru-
ção dos mitos que cercam os praticantes de tricô.

Em um texto escrito para o site Loop Knit Lounge22, Hamilton-Brown conta


que passou a falar sobre o tema após se cansar de escutar que pessoas negras
não tricotam e encontrar pouquíssimas pessoas negras em revistas de tricô,
quando muito modelos, mas nunca designers ou representantes de marcas.
Uma questão que ela atribui à invisibilidade da história de pessoas da diáspo-
ra africana ao longo da história do tricô. Se já temos dificuldade em encon-
trar registros sobre a história do tricô por seu caráter feminino e doméstico, a
busca se torna ainda mais difícil se estamos falando de pessoas negras.

"Você não pode ser o que não pode ver"23


Sendo assim, a pesquisadora tem trabalhado para recuperar e registrar a
história oculta das tricoteiras negras, em especial na arte e na literatura,
validando a existência e a relevância de seus papéis representativos. São
exemplos o romance ‘Small Island’, de Andrea Levy, e as pinturas de Harry
Herman Roseland (1868 - 1950), centradas em afro-americanos do começo
do século XX, que narram a história cotidiana de mulheres negras que
tinham o tricô como profissão.

22 https://www.loopknitlounge.com/2019/11/hidden-in-plain-sight-in-honour-of-black-history-
month/#more-12995
23 https://www.loopknitlounge.com/2019/11/hidden-in-plain-sight-in-honour-of-black-history-
month/#more-12995
Visibilidade é o que também Projeto “Knitting While Black”,
de Darci Kern, busca visibilidade.
busca Darci Kern com o projeto
“Knitting While Black”, que tem
como objetivo revelar o obscure-
cimento deliberado dos negros
nas das histórias do mundo da
fibra. Em suas palavras, embora
a experiência de negros america-
nos esteja extremamente ligada à
história dos fios, isso não se tra-
duz em registros, em especial no
campo das artes.

Fotos: Darci Kern


“Durante séculos, os escravizados cui-
daram de rebanhos de ovelhas, tosaram
e fiaram fios para serem vendidos - en-
tre eles, muitos fundadores dos Estados
Unidos. Meus ancestrais trabalharam
nos campos de algodão do Mississippi
para produzir a fibra que colocaria os
Estados Unidos no mapa da economia
mundial. Sem nós e nosso trabalho não
haveria Estados Unidos”, afirma
Kern.

Após pesquisar as 1400 listagens


do Google Arts and Culture com a
palavra-chave "tricô" e encon-
trar apenas duas imagens
de pessoas negras, decidiu
recriar pinturas e foto-
grafias de mulheres bran-
cas tricotando, fazendo
crochê, fiando e fazendo
trabalhos colocando-se
como protagonista, com-
partilhando alguns aspec-

Foto: Darci Kern


tos da história do artista
reproduzido e local onde
fotografou a recriação.

Neste caderno apresentamos uma primeira leitura sobre a história social do


tricô, no qual buscamos abordar fatos relevantes, mitos e questões relaciona-
das à técnica. A pesquisa foi realizada durante a quarentena decorrente da
pandemia mundial causada pela Covid 19, o que impossibilitou qualquer
consulta a conteúdos de bibliotecas físicas, exceto os livros e materiais da bi-
blioteca Urdume, razão pela qual nos baseamos em informações existentes
em sites e arquivos virtuais. Neste cenário, tivemos dificuldade em encontrar
dados e registros históricos sobre o tricô na América Latina, na África e no
Oriente, continentes onde sabidamente se pratica o tricô em larga escala.

Sendo assim, apesar de não termos a pretensão de esgotar o tema, nosso intuito
é, a partir deste primeiro caderno, aprofundarmos essa pesquisa, apresentando
perspectivas diversas e complementares sobre a história social do tricô.
REALIZAÇÃO

I N S T I T UTO

Urdume

Redação: Estefania Lima e Gustavo Seraphim

Revisão: Paula Melech

Diagramação: Nathália Abdalla

Ilustração da Capa: Gustavo Seraphim

www.urdume.com.br
@urdumeinstituto

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