Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
urdume
Tricô e
relações
de gênero
s elo
Urdume
Os CADERNOS URDUME nascem como primeiro
projeto do Instituto Urdume, evolução natural do proces-
so de amadurecimento e autoconsciência da equipe da
revista Urdume. Uma nova iniciativa que tem por objeti-
vo partilhar, com aqueles que nos acompanham, ensaios,
esboços e referências de pesquisas que temos realizado e
têm nos acompanhado nos últimos dois anos.
Boa Leitura!
Equipe Urdume
C
omumente o tricô é visto como uma atividade doméstica, fe-
minina e de mulheres idosas, as “aposentadas e vovós”. Ma-
térias jornalísticas com títulos como: Tricô não é só para vovós1
publicada na revista Isto É em 2008, Novas Vovós2, publicada na
revista Folha de São Paulo em 2011 e Crochê não é mais coisa da vovó: jovens cariocas
se reinventam com agulhas e linhas em mãos3 publicada no jornal O Globo em 2019,
comprovam o estigma.
Embora o tricô tenha voltado às mãos dos homens durante a Primeira e Se-
gunda Guerra Mundial, seja mantido como uma atividade exclusivamente
masculina no meio rural do Norte de África5, e o livro mais icônico sobre
a história social do tema tenha sido escrito por um bispo - A History of Hand
Knitting (1987), de Richard Rutt (sem tradução para o português) -, desde a
1 JORDÃO,C. Tricô não é só para vovós. Revista Isto É. Disponível em: https://istoe.com.br/10374_
TRICO+NAO+E+SO+PARA+VOVOS/ Acesso em: 12/09/2020
2 Novas Vovós: Jovens paulistanas transformam o tricô em hobby ‘cool’ e promovem a renovação desse mercado
Revista Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 a 20 de ago. 2011.
3 Porcidonio.G.Crochê não é mais coisa da vovó: jovens cariocas se reinventam com agulhas e linhas em mãos. Jornal
O Globo. Disponível em:https://oglobo.globo.com/rio/croche-nao-mais-coisa-da-vovo-jovens-cariocas-se-reinven-
tam-com-agulhas-linhas-em-maos-1-23838041 Acesso em 14/09/2020
4 PARKER, R. The Creation of Femininity. In: ADAMSON, G. (Org.). The Craft Reader. Berg. 2010
5 HAMILTON-B., L. Myth: Black People Don’t Knit – the importance of art and oral histories for documenting the
experiences of black knitters. 2017
Revolução Industrial o tricô não é mais visto como uma atividade masculina.
Uma meia verdade, dessas que acreditamos quando ouvimos uma história
com um lado só, já que, apesar de ser um fato que no decorrer dos tempos
o tricô passou de uma atividade de prestígio a um passatempo doméstico,
e sendo este espaço um local destinado às mulheres, no Chile, na África,
nos países nórdicos, e mesmo no Brasil e nos Estados Unidos - em classes
menos abastadas - o tricô seguiu sendo uma atividade “lícita” para ambos
os gêneros. Sendo assim, por que o estigma?
Desde já avisamos que não temos a resposta. Este primeiro Caderno Urdume
é uma provocação das questões que pretendemos levantar daqui para frente,
como Instituto, sobre o papel social das manualidades têxteis. Começamos
com o tricô, que já é objeto de estudo do Fio da Conversa, mas também
porque além da questão de gênero, ele nos incita a abordar a temática da
racialização e divisão de classes dentro das artes com fios.
Tricô - a história
O tricô é uma técnica manual, derivada do Nålebinding6, na qual são utili-
zadas duas ou mais agulhas para a produção de tecidos de malha. Por meio
do entrelaçamento de fios são criadas, prioritariamente, peças para vestu-
ário. De origem incerta, acredita-se que o tricô tenha surgido na região do
Oriente Médio - local de registro da peça mais antiga encontrada até hoje
(uma meia de 256 AC) -, chegando até a Europa com as rotas comerciais
do Mediterrâneo no século XI, e, posteriormente, até a América com a
colonização Européia, no século XVI7.
6 Técnica de criação de tecidos anterior ao tricô e ao crochê. Também conhecida em inglês como “rede sem nós”,
“tricô sem nós” ou “tricô com agulha única”.
7 BRAUN, S. M. A. H. Intervenção Urbana com fios: o tricô e o crochê na arte contemporânea em uma perspectiva
educativa. P. 54. Monografia Graduação em Artes Visuais – Licenciatura à Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, RS. 2013
Durante a Idade Média, na Eu-
ropa, a técnica foi amplamente
praticada e aperfeiçoada, ga-
nhando gradativamente reco-
nhecimento e valor comercial
com a ampliação do setor têxtil
na região - luvas e meias de tricô
feitas de fios de seda ou de me-
tal, foram encontradas em tú-
8 RUTT, Richard. A History of Hand Knitting. Loveland. CO: Interweave Press. 1987.
9 ZENG, L., CHEN, Z., RAHMAN, O., The Social Interpretation of Knitwear. J Textile Sci & Fashion Tech. 2019.
um artesão se tornasse aprendiz
e mestre em uma guilda (eram
necessários seis anos de estudos e
prática, além de rigorosos testes
de aptidão)10. É importante lem-
brar que a distinção entre artista
As questões de gênero
O século XX foi um período de liberta-
ção social, econômica e política para as
mulheres, o que foi fundamental para a
retomada e o reconhecimento das roupas
Foto: Traje de banho de lã tricotada à máquina, feita por Neyret, Paris, 1937
de tricô na sociedade. Na moda, as roupas
feitas de tricô se tornaram vanguarda nos
anos 20, e seguiram se adequando às no-
vas condições das mulheres. Os maiôs de
tricô foram desenvolvidos para nadadoras
e rapidamente se tornaram populares não
só entre as esportistas; o tricô manual tam-
bém renasceu e ganhou prestígio social ao
se tornar ferramenta política com cam-
panhas patrióticas de governos durante a
Primeira e Segunda Guerra Mundial, es-
timulando mulheres, homens e crianças a
produzirem peças de malha para aquece-
rem os soldados em campos de batalha13.
Labor x Trabalho
Em “A Condição Humana”, livro
de 1958, Hannah Arendt descreve
as três atividades que, em suas pa-
lavras, condicionam a vida humana:
labor, trabalho e ação. Ao realizar a
genealogia dessas atividades - dife-
renciando, em especial, o labor do
corpo, sujeito às necessidades de
manutenção da vida, do trabalho
das mãos - responsáveis pelos arti-
14 CRESTO, J. L. “Colocando a mão na massa”: tecnologias de gênero na decoração de interiores no blog Homens
da casa. Tese (Doutorado) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná. 2019
O labor, atividade de caráter privativo, e feito para a manutenção da vida, em
oposição ao trabalho, atividade que alcança reconhecimento social, ao menos
entre seus pares, explica de certa forma o modo como o tricô performa na
mão de homens e mulheres. Enquanto no gênero masculino o tricô se apre-
sentou sempre como trabalho qualificado ou expressão artística - a exemplo
das guildas ou da arte contemporânea15, no gênero feminino o tricô apresen-
ta-se de forma continuada como labor, ao longo da história, mesmo quando
seu papel político se faz imprescindível. Estes são os casos do tricô nos exem-
plos que mostraremos a seguir nas guerras mundiais e norte-americanas.
Revolução Americana
Quase dois séculos antes do boicote
indiano - estimulado por Mahatma
Gandhi - à indústria têxtil da Grã
-Bretania16, mulheres da então co-
“As senhoras se reuniram na casa do ministro às 5:00 da manhã e fiaram até a noite,
mais tarde, saíram da casa para o jardim e continuaram seu trabalho até as sete. 'A
jovem que se destacou na roda de fiar, fiou 70 novelos’ (...) 'entre as matronas havia
uma que fazia o trabalho matinal de uma grande família, fazia seu queijo, etc., e depois
cavalgava quilômetros, carregava sua própria roda de fiar e sentava-se para girar das
nove da manhã às sete da noite e voltava para casa para ordenhar. (...) Enquanto os
“Filhos da Liberdade” da Nova Inglaterra se entregavam ao rum, à retórica e ao porco
assado, suas Filhas trabalharam de sol a sol para provar seu compromisso com 'a causa
da liberdade e da indústria'.17
A espiã
Duas mulheres que ficaram
17 https://www.amrevmuseum.org/read-the-revolution/history/age-homespun
Guerra Civil
Norte-Americana
(1861-1865): divisões de raça
e classe no tricô
Se a Revolução Americana foi marca-
da primordialmente pela questão de
gênero, a Guerra Civil norte-ameri-
cana - conflito armado travado entre
os estados do Sul e do Norte dos Es-
tados Unidos, em especial pelas opi-
Na época, nas classes mais altas, o tricô era reduzido a um trabalho de carida-
de por mulheres abastadas e com tempo excedente. Esse era o caso de muitas
mulheres do Sul, favoráveis a escravização, que passaram a tricotar para os
soldados, como demonstra o poema de 1863 “Socks for the Soldiers”, da
poetisa confederada nascida na Geórgia, Carrie Bell Sinclair: “Oh mulheres do
ensolarado Sul / Queremos vocês no campo; / Não com uniforme de soldado, / Nem espada,
nem lança, nem escudo; / Mas com uma arma mais afiada - / A agulha de tricô brilhante
- / E as mãos dispostas a tricotar por aqueles / Que por nosso país lutam.”18
18 Craftivismo
Já para os Estados do Norte, favoráveis à abolição da escravatura, o papel
mais importante do tricô era na geração de renda, em especial para ex-es-
cravizados libertos. Em 1864, por exemplo, a abolicionista afro-americana
e ativista dos direitos das mulheres Sojourner Truth, conhecida por seu dis-
curso “Eu não sou uma mulher?” viajou ensinando tricô, costura e culinária
em campos escravizados refugiados, como forma de ajudá-los a se sustentar
financeiramente19. Aliás, outra curiosidade sobre Sojourner Truth era o uso
que ela fazia do tricô como um elemento de feminilidade. Enquanto mu-
lheres brancas que lutavam pelo sufrágio feminino nos EUA rejeitavam as
tarefas tradicionalmente "femininas", Sojourner Truth - que não era “con-
siderada uma mulher” utilizou o tricô como elemento de desconstrução da
dessexualização das mulheres negras, como é possível ver nos cartes-de-viste,
que a ativista vendia para arrecadação de fundos em suas aparições públi-
cas. Segundo Minister (2012)20, eles “retratam Truth segurando agulhas de
tricô e usando um vestido quaker simples, ao lado de uma mesa com flores.
(...) invocando o culto da verdadeira feminilidade.”
19 https://digitalcommons.unl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1695&context=tsaconf
20 Female, Black, and Able: Representations of Sojourner Truth and Theories of Embodiment https://dsq-sds.org/
article/view/3030/3057
Motoristas de ambulância francesa durante a
Segunda Guerra Mundial (Itália 1944).
Em 1941, a capa da
Revista Life de novem-
bro estampava a foto
de uma mulher aparen-
temente aprendendo
tricô, com a legenda
“Como tricotar”. Na
matéria de capa, a res-
posta para a grande
questão americana da
época: 'O que posso
fazer para ajudar no es-
forço de guerra?', tinha
como resposta: “tricotar
para aquecer os nossos
soldados.” Era uma
mulher e suas agulhas
estampando - em tempos de guerra - a capa de umas das revistas mais rele-
vantes do país no século XX.
Como ação de impacto social, o tricô teve seu último suspiro nos anos de
1960 e 1970 com os movimentos de contracultura hippie e punk, que usavam
o artesanato como uma ferramenta na luta contra a massificação social da
indústria cultural, que passou a vender identidades prêt-à-porter21. Desde
então, fortaleceu-se o lema “do it yourself ”, que pelo menos até o advento
da internet contrariava todos os valores de mercado.
22 https://www.loopknitlounge.com/2019/11/hidden-in-plain-sight-in-honour-of-black-history-
month/#more-12995
23 https://www.loopknitlounge.com/2019/11/hidden-in-plain-sight-in-honour-of-black-history-
month/#more-12995
Visibilidade é o que também Projeto “Knitting While Black”,
de Darci Kern, busca visibilidade.
busca Darci Kern com o projeto
“Knitting While Black”, que tem
como objetivo revelar o obscure-
cimento deliberado dos negros
nas das histórias do mundo da
fibra. Em suas palavras, embora
a experiência de negros america-
nos esteja extremamente ligada à
história dos fios, isso não se tra-
duz em registros, em especial no
campo das artes.
Sendo assim, apesar de não termos a pretensão de esgotar o tema, nosso intuito
é, a partir deste primeiro caderno, aprofundarmos essa pesquisa, apresentando
perspectivas diversas e complementares sobre a história social do tricô.
REALIZAÇÃO
I N S T I T UTO
Urdume
www.urdume.com.br
@urdumeinstituto