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No mundo de Sophia
21/06/2009 - 00:00

Cinco anos depois da morte de Sophia de Mello


Breyner, o P2 visitou o seu espólio e revela
diários, poemas e cartas, entre histórias
contadas por dois dos filhos, Maria e Miguel
Sousa Tavares. Por Alexandra Lucas Coelho
(texto) e Daniel Rocha (fotos)

1. Chegada à Grécia
É Verão, de manhã, num barco entre Itália e
Grécia.
Sentada em cima de um molho de cabos, Sophia
de Mello Breyner Andresen escreve na primeira
página de um caderno escolar: "11 de Setembro
de 1963. Navegamos sem um balanço. Mar azul,
céu azul, ilhas azuis enevoadas." E então vê a
ilha de Ulisses à sua frente: "Ítaca aparece, vai-se
desenhando: verde, até ao mar, despovoada,
quase sempre."
É a sua primeira vez na Grécia.
"Piso às quatro e meia a terra grega. Entrada
maravilhosa à saída de Patras. Vamos rente ao
mar entre oliveiras e ciprestes e montanhas
azuladas. Calor leve, ar perfumado. As
montanhas ligam a terra ao Olimpo. Paramos e
vou molhar os pés, as mãos, os braços e a cara no
mar. A água é maravilhosa, transparente e
fresca. Bebo-a. É muito salgada. É a paisagem
mais maravilhosa que vi na minha vida."
Sophia tem 43 anos. Já leu a Grécia em Homero,
nas tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes,
na História de Arte - mas agora está lá. Pode
tocar-lhe, comê-la à beira da estrada com queijo
de cabra, tomate, pepino e azeitonas. Bebê-la no
vinho branco de resina. Entrar na pedra como no
mar: "De manhã voltei à Acrópole sozinha.
Escrevi Sophia, Setembro de 1963, numa parede
do Parténon, na frontaria, à direita, numa

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reentrância. Coisa bárbara e selvagem mas que


tive de fazer."
Este caderno pautado, comprado em Itália, é um
diário de viagem, um dos muitos que Sophia
escreveu, esquecendo uns, enchendo outros com
poemas e anotações. Cinco anos depois da sua
morte, o P2 folheia-os numa sala do Centro
Nacional de Cultura (CNC), em Lisboa.
A casa da Travessa das Mónicas, à Graça, onde a
poeta viveu com Francisco Sousa Tavares e os
cinco filhos durante décadas, foi vendida em
2006. Cadernos, cartas e outros papéis ficaram à
guarda da filha mais velha, Maria, também poeta
e professora da Faculdade de Letras, até serem
ordenados para doação à Biblioteca Nacional
(BN).
É isso que agora está a ser feito no CNC.
Em três visitas ao espólio, o P2 leu diários, cartas
e poemas nunca mostrados. E a partir de alguns
fragmentos ouviu histórias contadas por dois dos
filhos, Maria, no CNC, e Miguel Sousa Tavares,
fora do espólio.
2. Da Índia à Líbia
Outro barco, desta vez entre Goa e Pangim.
Miguel Sousa Tavares vai a caminho de Goa. "E
de repente, em sentido contrário, vejo um barco
cheio de indianos e a minha mãe sentada à ré,
com um ar completamente feliz. Só tive tempo
de gritar: 'Mãe!' E tirei-lhe uma fotografia linda,
linda."
Isto aconteceu em 1992. Sophia estava na Índia
como convidada de Mário Soares, então
Presidente da República. Miguel acompanhava a
comitiva como jornalista. "Quando chegámos a
Deli, descobri que o avião ia direito para Goa."
Em vez de continuar por terra até Jaipur - onde
Soares se passeou de elefante - decidiu continuar
de avião até Goa. "Quando me fui despedir da
minha mãe, ela decidiu vir comigo, mais o
Alçada Baptista, a Maria Elisa..." Instalaram-se

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no forte-pousada de Goa. "Estava tudo


animadíssimo, mas eu tinha que trabalhar e fui
para Pangim. Ao fim de dois dias, como não
conseguia falar com a minha mãe, apanhei o
barco de volta." Foi então que se cruzaram no
rio. Sophia decidira ir sozinha a Pangim. "O
barco atulhado de hindus e ela." Feliz. Tinha 73
anos.
"A minha mãe adorava viajar", diz Miguel.
"Transmudava-se. Eu entendia-me muito
melhor em viagem com ela do que no
quotidiano."
Antes da Índia, viajaram juntos duas vezes. "A
primeira foi quando eu tinha 18 anos, a Madrid e
a Toledo, também com o meu pai. A segunda foi
a Roma, só com a minha mãe. Fomos à Piazza
Navona, que era a favorita, e ela ficou a beber
chá e a fumar, imenso tempo. Eu a certa altura
queria ir-me embora, ver outras coisas, e ela
disse: 'Miguel, viajar é olhar.'"
Quando o filho começou a ir ao deserto, Sophia
dizia que tinha inveja. Até que teve um convite
para ir à Líbia. "E levaram-na 30 quilómetros
dentro do deserto, à tenda do Kadhafi. Ela voltou
fascinada. Que era um homem azul, um homem
lindo."
É este fervor, por vezes desconcertante, que se lê
no diário da Grécia, sempre em busca da ligação
entre os homens e os deuses. A viagem é uma
forma intensa do real, e o real liberta Sophia.
"Escrever é uma aliança com a realidade."
Portuguesa, inequivocamente cristã, é a poeta de
um mundo pagão.
3. O contraponto Agustina
Na primeira viagem à Grécia, Agustina Bessa-
Luís e o marido, Alberto Luís, são os
companheiros de Sophia. Miguel Sousa Tavares
lembra-se "de a ver partir da Granja no
Volkswagen preto da Agustina".
A par da correspondência com Jorge de Sena, já

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publicada, as cartas de Agustina são talvez o


conjunto mais extenso no espólio de Sophia. "A
minha mãe tinha uma grande admiração
literária pela Agustina. Gostava do seu lado
visionário." Foram amigas quase contra-natura,
como espécies humanas distintas, e essa tensão
atravessa o diário grego. Vinte dias juntas, de
carro e de barco. Toda uma revelação do mundo
por contraponto.
Logo em San Sebastian, a 3 de Setembro, Sophia
escreve: "Homem que vendia alpercatas a 9
escudos. Magro, alto, pálido, cansado, doente.
Eu disse: 'Tem cara de fome.' E pensei: 'É o
Cristo.' A Agustina disse: 'Coitado, é delicado.
Não gosta de gabanços e deve ter uma paixão
pela Lolobrigida.' E riu e riu."
No museu egípcio de Turim, Sophia encanta-se
com os "maravilhosos papiros", mas não com as
"horríveis múmias de pessoas e gatos". De Milão,
gosta da Catedral "sobretudo por dentro". Toma
banho de mar em Rimini. Acha que visto de
Tremoli o mar "tem um ar de pirataria" e sente-
se "no fim do mundo". E na primeira manhã em
Atenas, deixa Agustina e o marido que dormem e
vai ver as ruínas.
Na cidade moderna ateniense, detesta a fancaria,
"a arquitectura aflitiva". Ao contrário de Itália,
não vê continuidade entre presente e passado. É
o que hoje chamaríamos politicamente
incorrecta: "Em vez da obra dos gregos vê-se a
obra do comerciante turco e levantino,
apressado, sórdido, sem amor, ganancioso." Mas
no mercado, já com Agustina e o marido, acha
fruta belíssima.
Por vezes fazem os três o mesmo, mas nem
sempre. Só Sophia toma banhos de mar e bebe
vinho de resina. E quer ajudar as pessoas, como
um jovem turista americano que precisa de uma
boleia, porque "o amor cristão é prático e
concreto, como na parábola do samaritano".

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Os turistas correm. Sophia quer ver. Sente que


Agustina não precisa de ver porque espreita o
mundo por uma frecha e imagina o resto, podia
até escrever numa prisão. A arte para Agustina
seria um desejo de posse. "E não uma busca de
salvação, como para mim."
4. Este grande amor
No começo da viagem, ainda em Verona, Sophia
acorda cedo e escreve um poema. Risca, emenda,
termina com o verso: "Ouço nos altos corredores
o tilintar dos ferros." Verona, claro, é a terra de
Romeu e Julieta, que são uma criação de
Shakespeare, e portanto muito reais para
Sophia: "Túmulo de Julieta. Entrei, estava vazio
com uma rosa vermelha. Toquei nele a minha
aliança e escrevi SF no degrau de pedra e deixei
ao pé da rosa uma flor."
Quase meio-século depois, a filha Maria lê e
comove-se: "SF, Sophia e Francisco."
O amor de Sophia pelo homem com quem se
casou quase 20 anos antes recorta-se nítido ao
longo do diário. Depois de Veneza sob chuva, do
deslumbramento em São Marcos, de ver
Carpaccio e deslizar no Grande Canal, ela
escreve: "Custa-me todas estas coisas sem o
Francisco. Espero não voltar a viajar sem ele."
Antes, em Pádua, escreveu: "Toquei a minha
aliança no túmulo de Santo António, comprei
uma vela e rezei pelo Francisco, filhos e pela
minha mãe." Depois, em Atenas, escreverá: "Ao
fim da tarde fomos à Acrópole. Beleza
inigualável, leve brisa, mar brilhando ao longe.
Maravilhoso o enquadramento na paisagem.
Mar de pedras à roda do Parténon. Tirei muitas
fotografias. Mas tal como o Ulisses estou sempre
a pensar na minha casa."
Sozinha no teatro de Epidauro, diz palavras
gregas. E aí nasce um dos seus poemas breves
mais fortes: Oiço a voz subir os últimos
degraus / Oiço a palavra alada impessoal / Que

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reconheço por não ser já minha.


Pagã-cristã, poeta e mulher de família, tudo nela
parece coexistir com verdade. E isso pode ler-se
no espólio, incluindo o cartão que a Rainha D.
Amélia escreveu a Tomás de Mello Breyner pelo
nascimento da sua neta Sophia.
Sophia é a aristocrata que casa por amor com um
homem que lhe deu consciência social e política,
que nunca foi comunista mas defendeu
comunistas.
"O meu pai é que levou a minha mãe para a
oposição, o que uma parte da família Mello
Breyner nunca lhe perdoou", diz Maria. Sendo a
filha mais velha, cresceu com o primeiro
quotidiano desse amor: "Os meus pais estava
muito ocupados um com o outro. Tinham uma
relação muito turbulenta e apaixonada,
incluindo maçãs a voar. Isso levava-lhes boa
parte da energia. O que me salvou foi serem
contraditórios. Se não fossem, seriam
esmagadores por serem tão afirmativos. Naquele
mundo de afirmações comecei a encontrar
contradições."
5. Em família
Sophia era uma mãe distraída. Conta Maria:
"Dançava imenso sozinha, falava sozinha na rua,
e nós dizíamos: 'Ó mãe, as pessoas estão a ouvir.'
E ela: 'Têm imensa sorte.' Uma vez esqueceu-se
do Miguel numa loja e sentaram-no no balcão
para ela o ver quando passasse."
Não era a mãe "dos banhos, da comida, das
birras", essa parte ficava para a Luísa, a
empregada minhota que esteve com a família
mais de 40 anos. "Era uma mãe mágica", resume
Maria. Mas no espólio, quem abra o manuscrito
da sua peça Os Gracos vai encontrar um papel
com instruções para a vacina anti-tetânica dos
filhos. "Não nos largava se estávamos doentes.
Quando tive escarlatina, aos sete ou oito anos,
ela inventou a história da Menina do Mar. Eu

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estava num quarto separado dos outros e era a


minha mãe que cuidava de mim, enquanto a
Luísa cuidava dos outros. Inventava histórias, foi
maravilhoso."
Depois, milhões de crianças as leram, mas no
princípio as histórias de Sophia foram para
Maria, Miguel, Sofia, Isabel e Xavier, os cinco
filhos. "E a minha mãe adorava o Natal. Enchia
tudo de estrelas, enfeitava a casa, o presépio, a
árvore."
De uma viagem ao Brasil, em 1966, trouxe a mais
irrepetível das prendas, um caderno cheio de
poemas para Maria. Abrimos e aparecem Carlos
Drummond de Andrade, Manuel Bandeira já
com a letra a tremer, Murillo Mendes, Vinicius
de Moraes (Difícil é escrever para você, Sophia /
Porque você é menina / Porque você é poeta /
Porque você vem de longe, de tão longe / Que a
sua luz não pára nunca de chegar-nos).
O do Vinicius foi escrito em Lisboa, explica
Maria. "Ele foi uma noite lá a casa e eu convidei
os meus amigos da faculdade, o Luís Miguel e o
Diniz Cintra, o Nuno Júdice, o Jorge Silva
Melo..."
E também há portugueses: Ruy Cinatti (Sophia,
maga florida), Alexandre O'Neill , Lindley Cintra.
Há Vieira da Silva numa aguarela verde.
Cargaleiro a lápis de cera. Um desenho de José
Escada. Uma pauta de Fernando Lopes Graça
para um poema de Sophia. Resume Maria: "É o
livro das duas." Mãe e filha.
Anos antes, tinha havido aquela noite em que
toda a família se viu numa aventura.
"O meu pai participou na Revolta da Sé. E a
minha mãe disse: "Hoje vamos fazer uma
brincadeira muito engraçada." Era irem dormir
para a cave de uma amiga. "Então a cave estava
cheia de colchões, porque nessa noite ia rebentar
a revolta e podiam ir a nossa casa à procura do
meu pai. Vi o meu pai de uniforme! Os civis que

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aderiam também deviam estar de uniforme para


entrarem nos quartéis. O meu pai era
extraordinário. Era um cavaleiro andante. E a
minha mãe era uma pasionária despertada por
ele. 'Sou casada com o Dom Quixote', escreveu
ela ao Jorge de Sena. E a Luísa lá na cave: 'Ó
menina, os seus pais são doidos varridos. O que
é que a gente está aqui a fazer?"
Não era só político nem afectivo, o carrossel
familiar. Também houve tempos com dinheiro e
tempos sem dinheiro, lembra Maria. "O meu pai
foi jogador toda a vida."
6. Algarve era Marrocos
Um dos poemas inéditos de Sophia está num
papelinho escrito a tinta permanente azul.
Chama-se Inocência e possibilidade: As imagens
eram próximas / Como coladas sobre os olhos /
O que nos dava um rosto justo e liso / Os gestos
circulavam sem choque nem ruído / As estrelas
eram maduras como frutos / E os homens eram
bons sem dar por isso. Foi escrito na Granja, a 31
de Agosto de 1943, quando os verões ainda se
passavam no Norte.
A memória que Miguel Sousa Tavares tem da
Granja é de "água gelada e nevoeiro", de "uma
praia tão má que se tomava banho na piscina",
tinha ele 10 ou 11 anos. "Mas depois, em 1961,
fomos para o Algarve. Na praia D. Ana havia
uma pensão e três casas. Uma delas era de uma
prima que não ia lá e a alugou à minha mãe. Foi
uma espécie de aventura, passámos dois dias a
matar bichos. A minha avó ficou horrorizada
quando a minha mãe disse que ia para o Algarve,
achava que não havia electricidade nem comida,
que era uma espécie de Marrocos."
A verdade é esta: "Ninguém ia para o Algarve. Os
alentejanos iam para o Sotavento, mas ali havia
umas três pessoas." Ali, ou seja, na zona de
Lagos. Miguel aprendeu a fazer esqui aquático,
caça submarina e ia caçar lulas à noite. "A minha

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mãe ficava muito assustada, acendia uma vela no


terraço até eu voltar de manhã. Fomos uns 10
anos para essa casa. Depois para Vale de Lobo e
para Vilamoura, mas deu-nos nostalgia de
Lagos." Então, Francisco Sousa Tavares
comprou uma casa na Meia-Praia, onde Miguel,
irmãos e filhos continuam a passar férias. "Está
rodeada de barbaridades, mas antes está
rodeada de pinheiros mansos."
Ainda na praia D. Ana, Sophia um dia disse:
"Telefonou-me um senhor a dizer que quer fazer
um filme sobre mim e vai aparecer para a
semana." Isto foi, lembra Maria, no Verão de
1968. "Passada uma semana, estávamos na praia
e o Miguel vem a correr e diz: 'Venham ver um
homem muito magro que diz que vem fazer um
filme sobre a mãe!' E fomos todos a correr
porque era uma coisa extraordinária, como
quando se dizia: 'Venham ver os robertos!' E
então, era o João César Monteiro, todo vestido,
com um chapéu de palha, uma cigarrilha na
boca, água até aos joelhos. Foi nesse dia que a
minha mãe o conheceu, e gostaram imenso um
do outro. A minha mãe disse: 'Vamos alugar um
barquinho e ver as grutas da Ponta da Piedade.'"
É destas grutas que Sophia fala no Livro Sexto
(As anémonas rodeiam a grande sala de água
onde os meus dedos tocam a areia rosada do
fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e
verde onde rápidos, rápidos, fogem de mim os
peixes.)
No filme, ela desliza no barco com os filhos. O
que não se vê é isto: "O César Monteiro ia num
barco ao lado a filmar", conta Miguel. "Ele estava
todo vestido, com um panamá, e para nos fazer
rir atirou-se à água. E o nosso barqueiro, o José
Afonso, disse: 'Ele está-se a afogar!' E realmente,
o César esqueceu-se que não sabia nadar e o José
Afonso teve de o ir buscar. A minha mãe achou
engraçadíssimo."

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Mas João César Monteiro não ficou por aí. "Na


outra fimagem, em Lisboa, apareceu o Jorge
Silva Melo", conta Maria. "O João César
combinou com a minha irmã Sofia ela pôr uma
'rockada' alta e a minha mãe deu um pulo. Ela
não se deixava filmar, sempre que se virava para
a câmara ficava hirta, e o João César andava
desesperado para ver se ela se desmanchava."
Nem por isso. "Ele resignou-se a ter esse silêncio
e fez disso uma coisa poética. Filmou a luta,
corpo-a-corpo, essa recusa."
7. Cartas de A a V
Além das de Sena e de Agustina, as cartas para
Sophia enchem duas caixas de arquivo no
espólio.
De Eugénio de Andrade há cartas, postais,
poemas e textos, como aquele que diz: "De
repente ouvia-se uma voz: Onde está a Sophia?
Não havia Sophia, mas o ar era fresco como se
atravessássemos uma alameda de tílias."
Seguem-se, entre outros, John Banville, Mário
Cláudio, Ruy Cinatti, Maria Velho da Costa,
Ángel Crespo, Fernando Lopes Graça, Ernesto
Melo e Castro. As muitas cartas de Alberto de
Lacerda estão entre as favoritas de Maria.
Uma carta enviada de Santarém a 5 Junho de
1962 termina assim: "Nunca lhe contei? Uma
tarde na ilha da Madeira, tinha eu a idade
maravilhosa que já não sei, descobri numa
livraria o seu Poesia. E foi um dos mais belos
encontros da minha vida. Não há aqui literatura.
Tudo isto é verdadeiro. Seu muito admirador.
Herberto Helder."
José Tolentino Mendonça em 1986, quando
ainda não publicara o primeiro livro: "As suas
palavras são para mim como gestos, gestos de
coragem e de liberdade."
João Cabral de Melo Neto, em 1963: "Muito
obrigado pelo seu livro de contos. Creio que é a
prosa mais cristalina que a nossa língua deu nos

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últimos anos. Gostaria de falar mais nele e


sobretudo no seu artigo Arte Poética. Cortei-o e
o tenho comigo. Releio-o a cada dia. Devo dizer
que me modificou completamente a ideia de
artesania poética. Um dia, quando passe de vez
minha actual crise neurótica (que me dá uma
misantropia até epistolar), conversarei
demoradamente com você."
Teixeira de Pascoaes, em 1944: "O seu livro deu-
me um frisson nouveau. Esta frase é de Victor
Hugo, ao acabar de ler As Flores do Mal, de
Baudelaire. As páginas, 13, 21, 24 [Pascoaes
enumera mais 30] revelam um temperamento
raríssimo de poetisa, uma estranheza e
originalidade surpreendentes. Há tudo a esperar
do seu génio poético, perante a Dádiva que tão
gentilmente me ofereceu. Mil graças!"
José Régio, Júlio Resende, António Ramos Rosa,
José Saramago, Agostinho da Silva.
Muitas cartas de Miguel Torga. Em 1957: "Não
há dúvida que os deuses gostam de si, pelo
menos tanto como os mortais."
E muitas cartas de Vieira da Silva. Em 1968: "O
seu artigo é exactamente o que eu quero ser e
não sei se sou. Mas se a Sophia o diz deve ser
verdade."
8. Do CNC para a BN
Foi "um dever de gratidão", que levou o
presidente do CNC, Guilherme de Oliveira
Martins, a ceder um espaço para a inventariação
do espólio e a pedir financiamento à Gulbenkian,
em nome do centro, para esse trabalho. Porque
"Sophia foi presidente do CNC nos anos 60 e
uma das suas grandes impulsionadoras".
Ao todo, são 70 caixas de arquivo, com poesia e
prosa (éditos e inéditos), agendas, cadernos,
correspondência, folhetos, livros com notas.
Juntamente com a parte do espólio de Francisco
Sousa Tavares que foi possível recolher.
"Tudo isto estava em dois escritórios da Travessa

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das Mónicas, um que só tinha estantes e outro


onde a minha mãe escrevia", diz Maria. A
biblioteca de Sophia está na garagem do filho
mais novo, Xavier, e vai ficar para o filho mais
velho, Miguel. "Mas quando há um livro com um
poema à mão tem que ficar no espólio. A minha
mãe escrevia muito nas contracapas e dentro dos
livros, e muito a lápis já está apagado."
Sophia, diz Maria, não tinha o culto da
biblioteca. "Dava e desfazia-se de muitos livros,
porque queria reduzi-los ao essencial." Qual é
então o essencial de Sophia? "Muita coisa sobre
a Grécia. Várias traduções da Ilíada e da Odisseia
em francês e português - e ela teria adorado as
traduções de Frederico Lourenço. Muito teatro
grego, Platão, muita história de Roma. Depois,
romance russo, Tolstoi, Tchekhov, em francês.
Shakespeare todo no original. Cesário. Fernando
Pessoa foi uma época. Cecília Meireles. João
Cabral, de quem ela gostava imenso, era o seu
grande poeta. Depois, gostava muito de poesia
espanhola, Lorca, Antonio Machado, Alberti.
Poesia medieval francesa que deve ter lido muito
nova. A lírica de Camões. Byron. Várias
biografias. Hölderlin, nas traduções de Paulo
Quintela e em francês. Os simbolistas franceses
mas sobretudo o Rimbaud. Sabia de cor imensa
coisa de São João da Cruz. Adorava Teixeira de
Pascoaes. Jorge de Sena, tudo."
O espólio será doado à BN até Abril de 2010, na
sequência de conversas com o director, Jorge
Couto, pensa Maria Sousa Tavares. "Por essa
altura queria fazer um colóquio internacional."
É Maria, como representante da família, quem
dirige o projecto do espólio. Luísa Sarsfield
Cabral colabora na classificação e Manuela
Vasconcelos, que trabalhou 10 anos no Arquivo
de Cultura Portuguesa Contemporânea da
Biblioteca Nacional, coordena o trabalho de
inventariação: "Entre Setembro e Dezembro vou

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começar a descrever os materiais e a fazer um


guia preliminar." Além de ser um espólio
literário, sublinha, é "rico para a história política,
com circulares, folhetos, intervenções". Corria lá
fora a campanha para as europeias de 2009,
quando Manuela deu com esta frase no espólio:
"A política ou é um capítulo da moral ou é uma
porcaria." Há toda uma Sophia cidadã.
Os cinco anos sobre a sua morte cumprem-se dia
2 de Julho. Nesse dia, numa iniciativa da
Câmara de Lisboa organizada por Manuela
Júdice, o Miradouro da Graça passará a chamar-
se Miradouro Sophia de Mello Breyner
Andresen, com um arranjo de Gonçalo Ribeiro
Telles.

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