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JOÃO PEDRO SCHMIDT
ENTRE EXPERIMENTALISMO E MERCADO: UMA ANÁLISE DO DISCO JÓIA, DE
CAETANO VELOSO
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas como parte dos
requisitos exigidos para a obtenção do título de
Mestre em Música, na área de Música: Teoria,
Criação e Prática.
Orientador: Antônio Rafael Carvalho dos Santos.
Este trabalho corresponde à versão nal da
dissertação defendida pelo aluno João Pedro
Schmidt, e orientada pelo Prof. Dr. Antônio Rafael
Carvalho dos Santos.
CAMPINAS
2020
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180
Título em outro idioma: Between experimentalism and market : an analysis of the album
Jóia, by Caetano Veloso
Palavras-chave em inglês:
Veloso, Caetano, 1942-
Brazilian popular music
Experimental music
Brazilian music - History
Nineteen seventies
Área de concentração: Música: Teoria, Criação e Prática
Titulação: Mestre em Música
Banca examinadora:
Antônio Rafael Carvalho dos Santos [Orientador]
José Roberto Zan
Sergio Augusto Molina
Data de defesa: 30-11-2020
Programa de Pós-Graduação: Música
JOÃO PEDRO SCHMIDT
ORIENTADOR: ANTÔNIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS
MEMBROS:
1. PROF. DR. ANTÔNIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS
2. PROF. DR. JOSÉ ROBERTO ZAN
AGRADECIMENTOS
Escrever essa dissertação foi uma tarefa incrivelmente árdua. Todas as pessoas aqui
mencionadas ajudaram, de alguma maneira, a tornar esse processo muito mais leve. Por isso, foram
desenvolvimento do meu trabalho e por se colocarem sempre disponíveis a ajudar nesse processo.
Minha gratidão a todas essas pessoas também se dá pelo papel que elas exercem no fortalecimento da
universidade pública, gratuita e de qualidade, mesmo (e especialmente) em tempos sombrios nos
quais a pesquisa e o ensino acadêmico sofrem tantos ataques.
Ao professor e amigo Allan de Paula Oliveira, que me acompanhou desde a faculdade,
dispôs-se a ler minha dissertação, indicou leituras e deu sugestões de grande valor para meu trabalho,
sempre com um olhar certeiro.
Durante o mestrado, me dividi entre Campinas, Curitiba e Joinville. Isso foi, talvez, a parte
mais difícil de todas; a saudade tornou-se minha rotina. Nesse sentido, algumas pessoas foram
felizes.
Agradeço a todos os meus amigos, em especial Agnes Ignácio, Clara Jansson, Lucas
Franco, Kamila Martins e Lilibete Pereira de Deus, amizades que começaram na faculdade e que
levo para a vida toda; Gabriel Barth, que além de ser meu grande amigo é meu parceiro de diversos
artigos, me acompanhou nessa jornada acadêmica e ajudou a desenvolver muitas re exões; Larissa
Oliveira, Luís Guilherme Moreira, Stela Gazabine, Alana dos Santos e todos os outros amigos que,
mesmo na distância, carrego com muito carinho em meu coração.
Destaco meus agradecimentos mais especiais à minha família.
Agradeço aos meus sogros, Silvana Lunelli de Paula e Sandro Marcos de Paula, assim como
à Vó Lindaura Lunelli, por serem sempre incrivelmente generosos comigo e me acolherem em sua
RESUMO
Caetano Veloso lançou o LP Jóia em 1975, junto ao disco Qualquer Coisa. Àquela altura, o cantor e
compositor atuava no cenário musical brasileiro há quase dez anos. Nesse período, sua imagem
pública teve diversas mudanças: passou de cantor de Bossa Nova a líder do movimento tropicalista,
preso político e artista exilado. Em seu retorno, tornou-se um dos principais representantes da MPB.
No início dos anos 1970, Caetano lançou uma série de discos com caráter altamente experimental,
sendo o Jóia o último desses, que foi sucedido por uma maior aproximação com a canção pop. O
objetivo desta dissertação é analisar como Caetano responde musicalmente ao contexto em que se
insere, elucidando os procedimentos estéticos e composicionais do disco Jóia. Justi co essa
abordagem por diversos motivos. Veloso é, até hoje, um dos compositores de maior renome da
MPB, gênero que ocupava nos anos 1970 um lugar central na cultura brasileira. O compositor
esteve, por muitos momentos, em uma posição ambígua naquele cenário, ora apontado como
possível liderança na resistência contra a Ditadura Militar, ora visto como um compositor alienado
das questões políticas da época. Os trabalhos acadêmicos que colocam Veloso em enfoque muitas
vezes lançam o olhar apenas sobre o período do movimento tropicalista do nal dos anos 1960.
Embora Caetano tenha tido, nos anos 1970, uma de suas décadas de maior produtividade artística,
sua música do período não foi tão analisada. Quando se torna objeto de pesquisa, o enfoque recai
sobre as letras da canções, deixando diversos aspectos musicais de lado. Minha abordagem, nessa
perspectiva, é uma tentativa de suprir essa lacuna. Para isso, busquei uma análise mais abrangente do
disco, que incluiu elementos como o projeto grá co, os arranjos, as instrumentações, os ritmos, os
procedimentos melódicos e harmônicos, os diferentes usos da voz e as letras das canções. A partir
dessas informações, identi quei nas canções do disco Jóia diversos procedimentos de
intertextualidade e diálogos com a poesia concreta, um uso extenso de procedimentos modais nas
melodias e harmonias, experimentações e improvisos vocais e arranjos construídos de forma
intuitiva e com baixa densidade instrumental. Pude veri car também diálogos com a Bossa Nova,
com gêneros tradicionais brasileiros como a toada e a marcha-rancho, com cantos de religiões
afro-brasileiras e a música de povos indígenas brasileiros, além de momentos de aproximação com
gêneros estrangeiros, como o rock, o blues e o jazz.
Palavras-Chave: Caetano Veloso; Música Popular Brasileira; Música Experimental; Música
Brasileira - História; Anos 1970.
ABSTRACT
Caetano Veloso released the LP Jóia in 1975, alongside the album Qualquer Coisa. At that time, the
singer and composer had been active in the Brazilian music scene for almost ten years. During this
period, his public image had several changes: he went from a Bossa Nova singer to the leader of the
Tropicalia movement, a political prisoner and an exiled artist. Upon his return, he became one of
the main names of Brasilian Popular Music (MPB). In the early 1970s, Caetano released a series of
highly experimental records. Jóia was the last one, being succeeded by a closer relationship with pop
music. This dissertation aims to analyze how Caetano musically responds to the context in which
he is inserted, elucidating the aesthetic and compositional procedures of the album Jóia. I justify
this approach for several reasons. Veloso is, to this day, one of the most renowned composers of
MPB, a genre that occupied a central spot in the Brazilian culture in the 1970s. The composer was
in an ambiguous position in the scenario in many moments, sometimes pointed out as a possible
leader in the resistance against the Military Dictatorship, and in other times seen as a composer
alienated from political issues. The academic works that study Veloso often focus only on the
period of the Tropicalia movement of the late 1960s. Although Caetano had, in the 1970s, one
decade of greatest artistic productivity, the music he made in the period was not much analyzed -
when it becomes the object of research, the main focus are the lyrics of the songs, leaving several
musical aspects aside. My approach, in this perspective, is an attempt to ll this gap. For that, I
sought a wider analysis of the album, which included elements such as the graphic design, the
arrangements, the instruments, the rhythms, the melodic and harmonic procedures, the di erent
uses of the voice, besides the lyrics of the songs. With that information, I identi ed on the album
Jóia several intertextuality procedures, dialogues with concrete poetry, extensive use of modal
procedures in melodies and harmonies, experimentations, vocal improvisations and arrangements
built intuitively and with low instrumental density. I also noticed dialogues with Bossa Nova, with
traditional Brazilian genres such as toada and marcha-rancho, with songs from Afro-Brazilian
religions and the music of Brazilian indigenous people, in addition to moments of approach with
foreign genres, such as rock, blues and jazz.
Keywords: Caetano Veloso; Brazilian Popular Music; Experimental Music; Brazilian music -
History; Nineteen seventies.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 02: “Seja marginal, seja herói” - Obra-Poema de Hélio Oiticica. 69
Figura 04: Capas dos discos Odessey and Oracle (1968) e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts 84
Club Band (1967)
Figura 05: Capas dos discos Caetano Veloso (1969) e The Beatles (1968) 85
Figura 09: Capa e contracapa do disco Jóia (1975) - Primeira Versão 97
Figura 10: Quadro A Família (Die Famillie) de Egon Schiele (1918). 98
Figura 12 - Notícia da Revista Veja sobre a capa do disco Jóia, 12/05/1976. 99
Figura 23: “Pipoca Moderna” - Transcrição aproximada das percussões (2 claves 115
superiores), violinos e violoncelo
Figura 39: “Minha Mulher” - Transcrição aproximada do violão de Gilberto Gil - Parte B 130
Figura 44: “Jóia” - Irregularidade métrica do canto em relação aos outros instrumentos. 134
Figura 52: “Na Asa do Vento” - Segunda Parte (Trecho Tonal) 143
Figura 60: “Guá” - Sequência de sons cantados ressaltando aspecto polifônico 154
Figura 62: “Asa, Asa” - Trecho exempli cando as aberturas de vozes da canção 155
Figura 63: Letra da Faixa “Asa” como aparece no encarte de Jóia 158
Figura 67: Letra da faixa “Tudo, Tudo, Tudo” como aparece no encarte de Jóia 164
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 14
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITOS 24
3 CAETANO VELOSO E A CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA (1958-1975) 29
3.1 Canção Popular Urbana no Brasil 29
3.2 Notas sobre a Bossa Nova 36
3.3 Vanguarda na Bahia 42
3.4 Início dos Anos 1960 e a Canção Engajada 47
3.5 Tropicalismo 55
3.6 Os Anos 1970 70
“Gravidade” 194
“Tudo Tudo Tudo” 197
“Na Asa do Vento” 200
ANEXOS 207
14
1 INTRODUÇÃO
A década de 1970 foi marcada pelo lançamento de diversos álbuns essenciais da música
popular brasileira. Artistas que já haviam se consagrado na década anterior, como Tom Jobim,
Chico Buarque, Paulinho da Viola, Elis Regina, Gal Costa, Milton Nascimento, Maria Bethânia,
Gilberto Gil e Os Mutantes, desenvolveram nos anos 1970 alguns de seus discos de maior destaque,
tanto entre o público, como entre a crítica musical. A indústria fonográ ca brasileira, que crescia
desde os anos 1920, viu naquela década um crescimento sem precedente.
Nesse novo cenário, os LPs (long-playing) passaram a ser o produto principal. Todos os
artistas da MPB investiam no lançamento desses discos de 33 ⅓ rotações, com aproximadamente
quarenta minutos de duração. São dessa década discos como Acabou Chorare, dos Novos Baianos,
Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, Construção, de Chico Buarque, A Tábua de
Esmeralda, de Jorge Ben e os quatro discos do sambista Cartola, só para citar alguns. Todos esses
álbuns são encontrados na lista publicada pela revista Rolling Stone Brasil, chamada "Os 100
maiores discos da música brasileira”1. Dos primeiros 25 discos da lista, 14 foram lançados na década
de 1970. Na lista, aponta-se que os critérios de escolha dos discos foram o “valor intrínseco e
importância histórica”. Esses conceitos seguem na lista sem nenhuma fundamentação cientí ca, por
não ser esta a proposta da publicação.
Não considero que os álbuns citados sejam, necessariamente, os melhores da música
brasileira como eles apontam, mesmo por não acreditar que seja possível fazer esse tipo de avaliação
por seu alto nível de subjetividade. Ainda assim, considero relevante que uma revista de alta
circulação nacional como a Rolling Stone Brasil aponte tantos álbuns dos anos 1970 entre os que
ela elege como “os melhores discos brasileiros de todos os tempos”. Independente do grau de
precisão dessas colocações — que, a meu ver, são totalmente passíveis de questionamentos —,
publicações como essa ajudam na construção de uma narrativa especí ca da historiogra a da música
1
OS 100 MAIORES Discos da Música Brasileira. Rolling Stone Brasil, Editora Spring, outubro de 2007. Disponível
em: <http://rollingstone.uol.com.br/listas/os-100-maiores-discos-da-musica-brasileira/>. Acesso em: 30 de julho de
2018. A publicação não foi assinada; por esse motivo, não referenciei o autor.
15
Caetano Veloso é, sem dúvida, um dos artistas mais citados nesse universo canônico. Nessa
mesma lista, oito discos do compositor aparecem, sendo seis deles dos anos 1970: Transa, de 1972,
Araçá Azul, de 1973, Jóia e Qualquer Coisa, de 1975, Doces Bárbaros, de 1976 (ao lado de Gil, Gal e
Bethânia), e Cinema Transcendental, de 1979. Se, por um lado, a lista não tem um caráter
inquestionável, por outro a presença de tantos discos daquela década é um indício da relevância
desses LPs. Porém, apesar desse destaque que a obra de Caetano nos anos 1970 recebe, os trabalhos
acadêmicos sobre o autor nem sempre acompanharam esse período tão frutífero — a grande maioria
foca no (rico) período da Tropicália, com resultados quase sempre igualmente riquíssimos2.
O que me motivou para pesquisa foi justamente a possibilidade de tomar como objeto de
análise a obra de Caetano dos anos 1970 e, mais especi camente, o disco Jóia, de 1975. Esse período
é considerado de amadurecimento para a MPB após sua “institucionalização”, conceito utilizado
pelo historiador Marcos Napolitano (2001, p. 13):
O signi cado da “sigla” MPB (e seu conteúdo expressivo) denota algo mais do que um
gênero musical determinado, transformando-se numa verdadeira instituição, fonte de
legitimação na hierarquia sociocultural brasileira, com capacidade própria de absorver
elementos musicais que lhe são originalmente estranhos, como o rock e o jazz.
Historicamente, o termo MPB surge ao ser utilizado para se referir à música de um grupo
seleto que segue as tendências que a Bossa Nova havia estabelecido desde 1959, porém buscando
uma atualização e maior engajamento político por parte dos artistas. A Tropicália, como veremos
posteriormente, foi essencial para a abertura da MPB a gêneros estrangeiros e certa mudança de
postura quanto aos diálogos com o mercado fonográ co. O Tropicalismo inicialmente se distanciou
de uma parcela da MPB associada à canção nacionalista de protesto, porém as mudanças trazidas
pelo movimento de Caetano e Gil acabaram sendo adotadas de forma quase geral entre os artistas
desse meio.
2
Entre esses trabalhos estão “Tropicália, Alegoria, Alegria”, de Celso Favaretto (1995), “Brutalidade Jardim, de
Christopher Dunn (2009), “Seguindo a Canção”, de Marcos Napolitano (2001) e “Da Bossa Nova à Tropicália (2001)
de Santuza Cambraia Naves, sendo que os dois últimos que não focam apenas no Tropicalismo, mas na MPB dos anos
1960 como um todo. Além disso, mesmo os trabalhos jornalísticos ou de crítica musical costumam focar no
movimento, como o livro “Tropicália: a História de uma Revolução Musical”, de Carlos Calado (1997) ou o “Balanço
da Bossa e Outras Bossas”, de Augusto de Campos (1974). Mesmo a autobiogra a de Caetano Veloso (1997), o livro
“Verdade Tropical”, focou nesse período. Alguns trabalhos focam na obra inteira de Caetano, como os livros de Wisnik
(2005) e Lucchesi e Dieguez (1993). Um dos poucos trabalhos a focar na obra de Caetano especi camente é a
dissertação de Peter Dietrich (2003), que faz uma análise pioneira do disco Araçá Azul.
16
A MPB nos anos 70, já então institucionalizada, passou a englobar in uências externas à
música popular brasileira mais tradicional (me re ro aqui, principalmente, a gêneros como o samba
e o baião). Como exemplo, cito as guitarras elétricas nos álbuns de Elis Regina, o surgimento de
grupos como o Clube da Esquina e os Novos Baianos e uma nova safra de compositores, que inclui
Alceu Valença, Geraldo Azevedo, João Bosco, Aldir Blanc, etc., todos unindo, à sua maneira,
elementos da música estrangeira à música nacional. Essa união ocorre ora com a inserção de material
da música pop, ora com novos padrões de performance, ou ainda com novos padrões de arranjo e
instrumentação.
Com todos os elementos dispostos acima, o problema de estudo delimitado foi: de que
formas Caetano Veloso responde musicalmente a esse contexto? Para abordar esse problema, voltei
meu olhar para o disco Jóia, lançado em 1975 junto ao disco Qualquer Coisa. Esse olhar buscou
analisar os procedimentos composicionais, as referências musicais e as sonoridades desses discos, em
diálogo com o contexto histórico e social de suas produções. O objetivo geral da pesquisa foi
compreender o lugar de Caetano Veloso na MPB na metade dos anos 70, a partir de uma análise de
seus procedimentos composicionais, referências musicais e sonoridade dos álbuns do período, com
foco no disco Jóia, em diálogo com o contexto histórico e social de sua produção.
Para justi car a escolha do tema, levanto alguns pontos. Caetano é considerado um dos
compositores mais populares e respeitados do Brasil, tanto na questão de vendagem de discos,
quanto pela crítica musical. A mesma revista Rolling Stone Brasil que apontou oito de seus discos
entre os melhores da música brasileira também colocou o compositor em 4º lugar em sua lista dos
"100 maiores artistas da música brasileira"3; o jornal The New York Times publicou, em 2002, um
artigo de Larry Rohter chamado "A Revolutionary Who's Still On The Move" (Um revolucionário
3
OS 100 MAIORES Artistas da Música Brasileira. Rolling Stone Brasil, Editora Spring, outubro de 2008.
Disponível em: <http://rollingstone.uol.com.br/listas/os-100-maiores-artistas-da-musica-brasileira/>. Acesso em: 30 de
julho de 2018.
4
ROHTER, Larry. A Revolutionary Who's Still on the Move. The New York Times, Nova Iorque, 17 novembro
2002. seção Music. Disponível em:
<http://www.nytimes.com/2002/11/17/books/music-a-revolutionary-who-s-still-on-the-move.html?pagewanted=2>.
Acesso em: 30 de julho de 2018.
17
da subárea de Semiótica da Música, são raros os trabalhos, dentro do campo de Estudos de Música
Popular, que tenham enfoque na sonoridade das canções. Ainda é possível, também, encontrar
trabalhos de musicologia que apliquem métodos da música erudita para a análise da música popular.
Richard Middleton (1990), autor que escreveu sobre a relação entre a música popular e a
musicologia em seu livro “Studying Popular Music”, nos fala que a música popular não pode ser
estudada à maneira da “música arte”, e que acadêmicos que aplicam métodos tradicionais para a
música popular acabam produzindo resultados distorcidos. Esses resultados dão ênfase apenas a
elementos como a harmonia, a melodia e a forma, mas negligenciam elementos que são, com
frequência, essenciais na música popular, como o timbre e a estrutura rítmica. Nesse sentido, a
escolha pelo foco na sonoridade das canções se dá, também, por entender e compartilhar dessa visão
de Middleton.
Jóia e Qualquer Coisa, como mencionado anteriormente, foram lançados
simultaneamente. Alguns elementos desses discos revelam um campo de estudo bem amplo para
Para uma discussão ampla sobre o tema, ver o livro: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; MESSEDER, Carlos Alberto.
5
Patrulhas ideológicas. Arte e engajamento no Brasil em debate. São Paulo: Brasiliense, 1983.
18
esse trabalho. Os dois discos trabalham com propostas quase opostas, e isso aparece em diversos
níveis: nas capas (uma branca, bastante minimalista, e a outra preta com quatro imagens de
Caetano, fazendo referência direta ao disco Let It Be, dos Beatles), nos arranjos, nas instrumentações
e no repertório (quase inteiramente autoral no disco Jóia, e quase inteiramente composto por
outros autores no disco Qualquer Coisa). Além disso, ambos os LPs, ao serem lançados, tiveram
como acompanhamento um Manifesto Jóia e um Manifesto Qualquer Coisa, respectivamente, nos
quais Caetano estabeleceu poeticamente os parâmetros estéticos de cada disco. Todos esses
elementos unidos pintam um grande campo para pesquisa nesses discos, seja na comparação entre
eles, seja no diálogo com o contexto. Somam-se a isso as questões musicais de cada uma das canções
─ que incluem extenso uso de modalismo no disco Jóia, alternância entre sonoridade de banda e
voz-e-violão no disco Qualquer Coisa, abordagem bossanovista na interpretação dos Beatles, entre
diversos outros elementos mais especí cos ─ e também a questão dos diálogos com a MPB e a
música pop do período. Com todos esses itens, vejo que esse tema de pesquisa não só é possível ─ e
um campo bastante palpável ─ como também é necessário, pela variedade de elementos passíveis de
análise, por um lado, e pela escassez de trabalhos acadêmicos sobre esse objeto, por outro.
Como apontei, grande parte da literatura acadêmica existente sobre Caetano Veloso
apresenta a Tropicália como foco. Embora meu recorte temporal não inclua o movimento, foi
essencial compreender o Tropicalismo e suas operações estéticas, pois signi caram um momento de
transformação na canção brasileira e, embora Caetano aponte que o movimento se encerrou em
1969, muitos dos procedimentos tropicalistas permaneceram em suas composições em toda a sua
carreira.
Um dos primeiros autores a escrever sobre o tema foi o lósofo já citado aqui Celso
Favaretto (1995) com o livro "Tropicália: Alegoria, Alegria", lançado originalmente em 1979, estudo
que viria a se tornar um clássico sobre o tema. Restabelecendo os vínculos entre as composições, os
arranjos e as cenas que evidenciam as atitudes típicas dos tropicalistas, o autor explica também as
tendências gerais do movimento e mostra como ele de niu uma nova estética para a música
brasileira. E, indagando acerca da modernidade, o lósofo ainda reconhece uma escola de loso a
dentro do movimento tropicalista.
O autor traz suas interpretações do movimento tropicalista utilizando a ideia do carnaval
como alegoria. Ele coloca que o carnaval caracteriza-se pela inversão de hierarquias, com exageração
19
tropicalistas encaravam a questão, dizendo que eles, "incorporando o lucro na atividade artística,
eliminaram o "persuasor oculto" que, introduzindo-se entre o artista e o consumidor, pretende fazer
crer que o consumo de arte é neutro” (FAVARETTO, 1995, p. 140).
Nesse sentido, outro autor que contribuiu à literatura acadêmica sobre a Tropicália foi o
americano Christopher Dunn (2009), com seu livro “Brutalidade Jardim: a Tropicália e o
Surgimento da Contracultura Brasileira”, resultado de uma extensa pesquisa sobre o movimento.
Embora siga nas linhas narrativas de análise de outros autores sobre o tema, Dunn traz perspectivas
novas ao dialogar com alguns conceitos das ciências sociais um pouco mais contemporâneos, como
o de diáspora e o de hibridismo.
Um exemplo disso é a percepção do autor ao analisar a ideia de “som universal” dos
tropicalistas como um movimento de hibridização das esferas culturais, por sua união entre a
música de vanguarda europeia, a música pop americana e as formas musicais brasileiras. Com essa
leitura, o movimento tropicalista é colocado num plano internacional de debate, algo que não
aparecia com destaque em outros textos do tema. Isso também ocorre quando Dunn estabelece
relações entre a Tropicália o movimento de contracultura mundial e as tendências do rock e do pop
internacionais. Ele ainda discute sobre a transformação no campo cultural que os tropicalistas
estabeleceram, e estende suas análises para discos dos anos 70, dando pistas de caminhos para o
entendimento das obras de Caetano daquela década.
20
engajamento político e as contradições que o gênero oferece, como a união do samba do morro, a
bossa nova da classe média e elementos da música pop. O autor trabalha rmemente a questão do
misto entre tradição, vanguarda e indústria cultural que gera a MPB, reforçando o conceito de
institucionalização, e complementa:
O vigor da instituição ca patente quando percebemos que a dinâmica principal deste
debate em torno da identidade da MPB quase sempre parte de criadores “legitimados” por
ela, como, por exemplo, Caetano Veloso e Gilberto Gil. A entrada de novas tendências
musicais no espectro da MPB não se dá de qualquer forma, mas de uma maneira seletiva,
na qual atuam a força da instituição e os interesses da indústria fonográ ca (napolitano,
1999, p. 27).
Além disso, Napolitano analisa:
A partir do momento em que se transformou numa instituição cultural, a MPB não só
ganhou um novo poder de in uência na sociedade como um todo, mas interferiu na
reorganização da hierarquia cultural e musical do país. Seus compositores mais
reconhecidos adquiriram, ao longo dos anos ulteriores, o prestígio de intelectuais e
formadores de opinião e valores estéticos, na medida em que falavam “em nome” da
instituição (NAPOLITANO, 1999, p. 29).
Sua observação é interessante, pois coloca Caetano como uma das partes centrais do que se
tornou a MPB. Isso contribui para a ideia de uma transição em sua carreira, uma vez que o cantor
começou dentro do movimento tropicalista e se tornou, anos depois, representante do grupo que
inicialmente criticava alguns de seus ideais, como colocado anteriormente.
Outro trabalho de Marcos Napolitano (2010) que foi de grande relevância para o meu
trabalho é seu livro “Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB
(1959-1969)”. Nesta pesquisa, proveniente de sua tese de doutorado, o historiador contribuiu na
construção da narrativa historiográ ca do surgimento da MPB. Tendo essa “instituição cultural”
como objeto de estudo, Napolitano analisou as músicas e estudou as relações da MPB com a
indústria televisiva e fonográ ca nos anos 60. Tratando sobre os diversos processos pelos quais esse
gênero musical passou na década (com foco na Bossa Nova, no movimento nacionalista da canção
participante e no Tropicalismo), o autor produziu um dos trabalhos mais completos sobre a música
popular brasileira naquele período. Nessa minha pesquisa de mestrado, o trabalho de Napolitano
22
serviu como uma das fontes para a narrativa historiográ ca do percurso de Caetano Veloso, que se
aliou à análise de suas composições.
Diversos outros trabalhos também dialogam com esse tema e esse contexto de análise, e
serviram como referências importantes na construção dessa pesquisa. Entre os trabalhos que
analisam Caetano Veloso e sua obra, cito aqui o livro de Guilherme Wisnik (2005) intitulado “Folha
Explica Caetano”, além dos diversos textos de José Miguel Wisnik (2004) sobre o compositor e as
relações entre música popular brasileira, literatura, política e sociedade ─ textos encontrados na
coletânea “Sem Receita”. Outros livros que ampliam o debate sobre música popular brasileira e que
certamente enriquecem essa construção narrativa são, entre outros, os trabalhos de Gilberto
Vasconcellos (1977) A onso Romano de Sant’Anna (1986). Incluo ainda o trabalho de Rita Morelli
(2009), que analisa esse contexto na relação com a indústria fonográ ca e fornece novas e
importantes perspectivas sobre o assunto.
Foi escolhido o tipo de pesquisa documental porque trabalhei principalmente com a
análise dos discos de Caetano Veloso. Nesse sentido, esse tipo de pesquisa possui vantagens; ela
“possibilita o conhecimento do passado, possibilita a investigação dos processos de mudança social e
cultural, permite a obtenção de com menor custo e favorece a obtenção de dados sem o
constrangimento dos sujeitos” (GIL, 2008, p. 53-54).
Os principais documentos utilizados para essa pesquisa ─ minha principal fonte de dados
─ foram os álbuns de estúdio lançados por Caetano Veloso em 1975: Jóia e Qualquer Coisa, com
foco no primeiro. Foi feita audição analítica dos álbuns para identi cação de elementos como a
23
instrumentação e os timbres presentes na obra de Caetano do período. Os dados obtidos nessa parte
dialogam com a literatura já existente sobre o assunto e com o ponto de vista do próprio Caetano
Veloso, explicitado em entrevistas, publicações, e em seus próprios livros.
Além da audição analítica dos discos e do diálogo com a bibliogra a existente, utilizei a
transcrição de trechos musicais como ferramenta de análise. Esta contribuiu para o entendimento de
elementos harmônicos e melódicos das composições de Caetano Veloso, além de ter permitido
novas perspectivas quanto aos arranjos utilizados. A análise desses elementos citados baseou-se nos
métodos de harmonia de Ian Guest (2006) e na dissertação de Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas
(1995) que propõem um enfoque nas composições populares e sistematizam as ferramentas
necessárias para isso. Além disso, outra pesquisa de Freitas (2010), sua tese de doutorado intitulada
"Que acorde ponho aqui?", forneceu ferramentas para a análise que ajudaram a localizar
temporalmente e espacialmente o uso de determinados elementos musicais associados à música
tonal e modal. Destaco também o trabalho de Vicente Ribeiro (2020), que forneceu ferramentas
essenciais para as análises de procedimentos modais no disco Jóia, uma das dimensões de maior
destaque no disco.
No capítulo 2, farei uma breve apresentação dos conceitos que utilizarei ao longo do
trabalho e que serão essenciais para a efetividade das minhas análises. O capítulo 3 consiste em uma
contextualização mais detalhada da MPB, abarcando sua história e buscando relacioná-la ao
desenvolvimento artístico de Caetano, passando pelo surgimento da Bossa Nova, o
desenvolvimento da canção de protesto, os festivais televisivos, o Tropicalismo e o período de
estabilidade desse gênero no mercado musical brasileiro, nos anos 1970. Essa narrativa se insere
aqui, pois para entendermos o valor de Caetano Veloso naquele meio e seus signi cados e
sonoridades, é preciso mapear o que existia na música popular que o cercava até aquele momento,
não porque história explica a obra de Caetano, mas porque esta dialoga com seu contexto.
O capítulo nal é inteiramente dedicado à análise do disco Jóia com o objetivo de
compreender os procedimentos composicionais de Caetano naquele período e como estes se
relacionam com campo da MPB no qual se inserem. Analisarei as canções do disco em diversas
categorias, entre elas os arranjos, as formações instrumentais, os gêneros musicais, as letras, as
melodias, as harmonias, os diferentes usos da voz e os pontos de aproximação e afastamento com o
disco Qualquer Coisa.
24
que é necessário “identi car os critérios de avaliação utilizados pelos usuários de cada gênero”. O
contexto da MPB no qual Caetano está inserido valoriza aspectos diferentes dos que são buscados
no rock ou no sertanejo, por exemplo. Nesse sentido, minha análise do disco Jóia buscou, num
primeiro momento, identi car quais podem ser esses valores especí cos, para então sistematizá-los,
de forma a jogar luz sobre os aspectos que tivessem mais relevância à MPB.
6
Tradução livre. Original: “Analysis requires a bifocality of perspective: enough insider’s knowledge and empathy to
understand a music’s power, and enough outsider’s critical stance and historical perspective to locate and explain that
power within a larger context”.
25
Dentro dessa mesma perspectiva, Walser (2003, p. 38) também propõe que é necessário
“historicizar” todas as músicas e levar em consideração, para cada caso, os prazeres particulares que
elas oferecem e, com isso, os valores nos quais dependem e para os quais elas apelam. Ele diz que não
música popular em relação ao contexto na qual se insere e nas relações que ela estabelece com a
indústria fonográ ca:
Música popular não pode ser analisada usando somente as ferramentas tradicionais da
musicologia porque música popular, de maneira diferente da música de arte, é (1)
concebida para distribuição em massa para grandes e frequentemente heterogêneos
grupos de ouvintes; (2) armazenada e distribuída de forma não escrita; (3) só é possível
em uma economia monetária industrial onde se torna uma mercadoria; e (4) na sociedade
capitalista, sujeita às leis do ‘livre’ mercado, de acordo com as quais o ideal seria vender o
mais possível o pouco o possível para os muitos possíveis (TAGG, 1982, p. 4)..
Ruth Finnegan (2008), importante autora irlandesa que vem das ciências sociais
estudando música, de certa forma dialoga com esse entendimento da música popular dentro de
paradigmas diferentes da “música de concerto”, e avança a discussão trazendo o foco
especi camente para a canção. Ao trabalhar com os discos de Caetano Veloso, entendo que a obra
desse compositor está dentro de um recorte da música popular brasileira de grande destaque, que é
o das canções ─ lugar de contato direto entre música e poesia ou literatura, além de contato indireto
com diversos outros campos da arte.
Finnegan explicita que, historicamente, o meio acadêmico analisou canções de duas
perspectivas distintas: de um lado, a teoria literária, tratando apenas do aspecto “textual” da canção,
e do outro, a musicologia convencional, entendendo a canção apenas como obra musical, presa a
uma partitura. A autora aponta para a performance como lugar de encontro entre música e letra, e
que é nesse “emaranhado” que o pesquisador terá uma análise mais completa, “no reconhecimento
da materialidade encenada e performatizada da palavra cantada atualizada pela voz” (FINNEGAN,
26
2008, p. 40). Por analisar um disco especí co, minha análise de performance voltar-se-á à
interpretação de Caetano no fonograma.
A historiadora Virgínia Bessa (2005, p. 47), por sua vez, sugere um olhar voltado para o
estudos dos arranjos “como uma forma de (re)construção do sentido na canção popular”. Ela
exempli ca falando da Bossa Nova, gênero muitas vezes lido como “moderno e arrojado”; ela
aponta que esse sentido “se efetiva não apenas no âmbito da harmonia, mas também da
instrumentação, da rítmica (identi cada à famosa ‘batida de violão’ de João Gilberto), da busca de
um timbre convincente, etc”. Ao m, ela ressalta a “necessidade de cada pesquisador, em função das
características de seu objeto, criar um método próprio de análise”. Nesse sentido, além de analisar o
aspecto textual das canções, de um lado, e os elementos melódicos e harmônicos, de outro, voltarei
meu olhar aos arranjos, texturas, instrumentações, ritmos e diferentes usos da voz e interações entre
esta e a melodia cantada.
Outro conceito que guiou o pensamento cientí co nesse trabalho é o de sonoridade,
proposto pelo professor Felipe Trotta em seu artigo “Gêneros musicais e sonoridade: construindo
uma ferramenta de análise”, no qual o autor de ne:
A sonoridade pode ser entendida como o resultado acústico dos timbres de uma
performance, seja ela congelada em gravações (sonoras ou audiovisuais) ou executada “ao
vivo”. Trata-se, portanto, de uma combinação de instrumentos (e vozes) que, por sua
recorrência em uma determinada prática musical, se transforma em elemento
identi cador (TROTTA, 2008, p. 3-4).
No mesmo artigo, Trotta (2008, p. 6) dialoga com outros autores que também utilizo
como referencial teórico, como Philip Tagg. O primeiro coloca que os “musemas” (unidade mínima
27
em seu livro “Música de Montagem: A Composição de Música Popular no pós-1967”, articula o
conceito de sonoridade, proposto por Didier Guigue para a análise de repertório erudito, dentro do
contexto de música popular, brasileira e internacional, com suas especi cidades. Molina inclusive
analisa a sonoridade de álbuns da MPB na década de 1970, como Minas, lançado por Milton
Nascimento em 1975. Sua análise, extremamente rica, serve como um guia importante para as
possibilidades analíticas da ideia da sonoridade para além do universo da chamada “música erudita”
contemporânea. O uso do conceito de sonoridade, aqui, se atém aos arranjos, entendidos como
combinação de timbres especí cos, e à rede de signi cados propostos por Trotta.
Antônio Rafael Carvalho dos Santos contribui aqui para o entendimento de como a
música popular pode ser analisada e compreendida:
Do ponto de vista musical, esses repertórios e gêneros apresentam em suas estruturas
níveis diferentes de complexidade e diversos graus de hibridismo. Elas compartilham
elementos musicais entre si e também com outros repertórios, tais como o da música de
concerto europeia e da música africana, por exemplo. Esta complexidade oferece uma
gama muito grande de questões e problemas para a pesquisa e o ensino (SANTOS, 2012,
p. 46).
Ao mesmo tempo, o autor reforça a ideia de que a análise de música popular deve estar
associada ao contexto em que esta se insere. Ao falar sobre a dissertação de mestrado de Maria
Beatriz Cyrino Moreira, que desenvolveu estudo sobre o grupo brasileiro Som Imaginário, ele
coloca:
Uma análise puramente descritiva, onde se procurasse apenas identi car e relacionar os
diferentes elementos presentes nessa obra musical cheia de hibridismos seria insu ciente
para entendê-la. Seria também preciso conhecer os fatores culturais, sociais, econômicos e
políticos pelos quais passava o país no período e procurar entender como a produção do
grupo se relaciona com esse contexto (SANTOS, 2012, p. 49).
28
discurso: um conjunto de dimensões que se repete com certa regularidade, conferindo estabilidade
ao gênero e, ao mesmo tempo, a presença de pontos de fuga capazes de criar tensão e reinvenção em
si mesmo. Como veremos, Caetano constantemente joga com essas fronteiras, tensionando os
limites da MPB e, com isso, permitindo também a aglutinação de elementos externos a ela.
Além disso, outro ponto de destaque que tomo de Bakhtin (1986, p. 123) é que esses
gêneros se constituem a partir de diálogos entre enunciados; ele então dá gênese à ideia de
Novo, o da Poesia Concreta, o das artes plásticas e o da literatura modernista. O estudo desses
diálogos de Caetano faz-se essencial para uma compreensão mais aprofundada de sua obra.
Nessa perspectiva, no próximo capítulo farei uma extensa contextualização fundamentada
em diversos autores da história da música. Minha visão, porém, terá como foco as relações que
Caetano estabelece com cada um dos fatos históricos identi cados. Não pretendo com isso supor
que o contexto histórico isoladamente é capaz de explicar a obra do compositor, mas sim, explicitar
os pontos de diálogo que Caetano estabelece com esse meio, assim como seus movimentos de
aproximação e afastamento.
29
tango argentino, a habanera cubana, a rumba e o bolero caribenhos e o samba brasileiro tiveram
internacionalmente, a música popular aparece muitas vezes associada ao continente americano, o
“Novo Mundo”, em “oposição” à música de concerto de origem europeia. É claro que essa
separação possui limitações imensas e é passível de diversas problematizações — desconsidera a
presença anterior de música entendida como “popular” na Europa, a forte presença da musicalidade
africana em todos os gêneros musicais citados anteriormente e ainda esconde um imenso universo
públicos.
O historiador Marcos Napolitano (2002, p. 17) coloca que, num primeiro momento, a
música popular nas Américas incorporou diversos valores das formas musicais européias (o que
corrobora o argumento de que a oposição apresentada anteriormente é uma categorização muito
frágil). O autor coloca que “o bel canto, a sonoridade homofônica das cordas, as consonâncias
harmônicas ‘agradáveis’, o ritmo suave”, elementos característicos da música de concerto, tiveram
forte presença na música popular inicial. Ele complementa apontando as diferenças que se
30
comunicação direta com diversas castas da sociedade. O autor reforça com isso a importância de
observarmos as canções como fontes históricas, por serem elas capazes de revelar “zonas obscuras das
histórias do cotidiano dos segmentos subalternos”, contar histórias que a História não conta. Ou
em outra perspectiva, as canções podem ser lidas como índices, como entendidos por Carlo
Ginzburg (1989): pequenos indícios ou sintomas capazes de evidenciar fenômenos mais gerais
daqueles grupos sociais envolvidos ou daquele contexto especí co; um ponto de vista
epistemológico que considera que o individual, o “trivial” e o cotidiano podem revelar fenômenos
coletivos e profundos.
Diversos autores buscaram identi car o que caracteriza a canção como gênero, e no Brasil
o trabalho de Luiz Tatit se destaca nessa área. Em seu livro O Cancionista, lançado originalmente
em 1996, o pesquisador propôs a hipótese de que o cerne das canções se encontra na interação entre
melodia e letra, e que sua e cácia depende de quão bem articulados estão esses dois elementos. Ele
reforça ainda que na canção urbana brasileira existe a gura dos cancionistas, compositores e
7
Contatos sempre muito complexos, que não devem ser entendidos como uma simples mistura de elementos musicais
europeus com informações das músicas indígenas ou de grupos negros, uma vez que diversas relações de poder estão
envolvidas nessas construções historiográ cas mais simplistas. Cf. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente.
Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./ Ed. UFRJ, 2001. Nesse
livro, o autor problematiza a questão das “origens”, focando no samba.
31
“regimes de integração de melodia e letra”. Nesses regimes, as melodias basicamente podem
apresentar caráter mais passional — com saltos, grande tessitura, andamento lento e letras que
tematizam dor, saudade, etc. — e temáticas — com muita recorrência de motivos, pouca extensão
melódica, andamento acelerado e letras frequentemente tratando de temas celebrativos, nas quais o
sujeito do texto está em harmonia com o objeto enaltecido. O trabalho de Tatit, que já é
desenvolvido com bastante rigor há décadas, propõe que toda canção popular, em maior ou menor
grau, passa por esses processos.
Moraes (2000) parece concordar com o pressuposto de que o binômio melodia-texto é a
estrutura que dá sentido à canção popular. O autor, porém, aponta:
Mas isso não basta, é preciso perceber a capacidade sonora dessa estrutura incorporada
aos movimentos históricos e culturais. Na verdade, deve-se perceber como se instituem
as relações culturais e sociais em que se acomodam elementos de gestação de uma dada
música/canção urbana e da vida do autor, pois, como já vimos anteriormente, elas
produziram e escolheram uma série de sons e sonoridades que constituem uma trilha
sonora peculiar de uma dada realidade histórica (MORAES, 2000, p. 216, grifo meu).
Nesse sentido, somente a análise musicológica “tradicional” não seria su ciente para
entendermos os signi cados das canções. Em seu entendimento, o qual compartilho, faz-se
necessária uma análise do contexto histórico e social na qual a música esteve inserida. Partindo de
uma visão bakhtiniana, cada obra possui uma atitude responsiva aos múltiplos contextos em que é
apresentada; nunca estará em isolamento, e por isso não deve ser analisada como se não dialogasse
com uma rede de outros enunciados.
Outra dimensão importante de se considerar ao pensar em canção popular é a sua inserção
na indústria fonográ ca. Os lósofos da escola de Frankfurt já apontavam, na década de 1930 do
século XX, para os riscos que a reprodutibilidade em massa oferecia à qualidade musical. Adorno
(1996) especi camente vê essa indústria de forma bastante negativa. Para ele, em um contexto de
massi cação de produção artística não há liberdade de escolha, pois os meios de comunicação
impõem gêneros e criam gostos, resultando em uma regressão da audição.
Essas colocações de Adorno têm passado por diversas críticas nas últimas décadas,
principalmente vindas de autores do campo dos Estudos Culturais e pesquisadores de música
32
popular8, que questionam sua abordagem normativa e por vezes elitista. Moraes (2000), por
exemplo, coloca em xeque a visão de que a indústria fonográ ca promove apenas uma regressão da
audição das massas, apontando o papel que ela ocupou na divulgação de repertórios regionais a
públicos mais amplos:
Parece que de forma um pouco diversa do que imaginou o lósofo alemão e de certo
modo saltando fora de seus cerrados esquemas interpretativos, os meios de comunicação
também abriram espaços para que gêneros e estilos regionais urbanos originários
nas camadas mais pobres emergissem para um quadro cultural mais amplo e
pluralizado, como ocorreu, por exemplo, na Europa com amenco, fado, rebetika e as
canções napolitanas e francesas, e, sobretudo na América, com o jazz , blues, sambas,
choros, tangos, fruto de misturas as mais variadas da música européia, africana e
americana. Esse fato notável permitiu a diversi cação e o alargamento das possibilidades
de escolha dos artistas e dos ouvintes, certamente ampliando e desenvolvendo seu
universo de escuta ao invés de simples e unicamente regredi-lo (MORAES, 2000, p.
217, grifos meus).
A antropóloga Rita Morelli, por sua vez, refuta a visão adorniana de uma situação social de
alienação das “massas operárias” que, segundo o autor, não teriam autonomia dentro desse sistema
de comoditização da arte:
Rejeita-se a ideia de uma sociedade totalmente dominada pelo fetichismo da mercadoria,
bem como o pressuposto da existência nessa sociedade de uma massa como fenômeno
empírico, uma vez que, antropologicamente falando, a cultura se mantém como atributo
dos homens mesmo quando estes são excluídos das formas mais institucionalizadas do
saber através da divisão social do trabalho, mantendo-se também como instância a partir
da qual os objetos adquirem para eles outros signi cados que não o mero valor de troca
(MORELLI, 2009, p. 39).
Con rmando o que Morelli apontou, a música popular brasileira (e, especi camente, a
canção) se orientou a partir de elementos intuitivos, muitas vezes por artistas que não tiveram
contato com o ensino formal de música9; a gura já mencionada do cancionista traduz esse cenário.
A canção, nesse sentido, não se pauta necessariamente nos mesmos valores da música erudita. Como
aponta Tatit, "a interpretação, em nosso país, jamais se reduziu a um timbre de voz atraente nem à
8
Cf. NAPOLITANO, Marcos. História & Música: História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte: Autêntica,
2002, especialmente o capítulo 1, no qual o autor apresenta as principais colocações de Adorno sobre a música popular
e diversos autores que propuseram contrapontos a suas teorias.
9
Claramente há diversas exceções; guras como Tom Jobim, Edu Lobo e Egberto Gismonti, apenas para citar alguns,
tiveram formação musical erudita “tradicional” e trouxeram muitos dos elementos desse universo a suas composições.
33
capacidade técnica do virtuose. Sempre esteve associada à revelação de conteúdos cifrados pela
composição" (TATIT apud MACHADO, 2011, p. 14), ou seja, codi cados na interação entre
melodia e letra.
Por outro lado, a canção popular não existe no vácuo; embora tenha rompido com
diversos elementos da música erudita em sua abordagem intuitiva, manteve muitos outros. A
cantora e pesquisadora Regina Machado (2011, p. 24) reforça que “herdamos do canto lírico
referências para a realização vocal, como a noção de potência, beleza e capacidade dramática que são
constituintes do chamado belcanto".
A primeira transmissão de rádio no Brasil ocorreu em 1922, mas foi nos anos 1930 que o
veículo ganhou lugar central na cultura do país. Num primeiro momento, o rádio era produto de
segmentos mais abastados da população e sua programação tinha uma ambição de “levar alta
cultura” à população”, como aponta Napolitano (2007). Posteriormente, principalmente depois da
Segunda Guerra Mundial, a proposta das rádios voltou-se às classes mais baixas devido à
popularização do meio de comunicação e passou a ter abordagens mais sensacionalistas,
melodramáticas e apelativas.
Foi nas décadas de 1920 e 1930 que o samba passou por sua consolidação no mercado
musical10. Napolitano (2007, p. 27) aponta a importância dos mediadores, agentes socioculturais
que atuaram na construção de pontes entre “a herança étnica e comunitária do samba e a identidade
regional (carioca) e, depois, nacional da música popular brasileira”. Esses agentes promoveram o
“encontro das elites, em processo de a rmação de valores nacionalistas, com as classes populares, em
busca de reconhecimento cultural e ascensão social”. Pessoas como Noel Rosa, Almirante, Mário
Reis e Francisco Alves mediaram a entrada do samba no mundo do disco e do rádio; muitos dos
10
Consolidação associada a diversos fatores: expansão das rádios, novas tecnologias de gravação que permitiam maiores
nuances, o surgimento de artistas de grande destaque nacional (e por vezes internacional, como é o caso do sucesso
estrondoso de Carmen Miranda) e o apoio estatal, principalmente durante o Estado Novo de Vargas, no qual o samba
passou a ser reconhecido como símbolo e tesouro nacional. Diversos autores estudam essa questão com bastante
aprofundamento. Entre outros trabalhos, cf. VIANA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1995, além do já citado “Feitiço Decente” de Carlos Sandroni (2001).
34
A referência estética para a realização vocal passou a utilizar mais acentuadamente os
parâmetros da fala, produzindo uma emissão vocal mais coloquial e com menos utilização
de vibrato, valorizando a articulação rítmica e a execução do fraseado musical em
detrimento da potência e da dramaticidade, características da seresta e em que se
observavam mais claramente as in uências do belcanto sobre a canção popular11
(MACHADO, 2011, p. 32).
É na década de 1930 que surgem no cenário musical brasileiro diversos artistas que se
encaixam nesses novos parâmetros do canto popular, como Mário Reis, Carmen e Aurora Miranda,
Orlando Silva e Noel Rosa, cada um com maior ou menor ruptura em relação à estética do
belcanto12.
relações amorosas nas letras e utilização de regiões mais graves da tessitura vocal. Como coloca
11
Reforço, porém, que o belcanto não era a única referência estética desses cantores, e que as construções vocais na
música brasileira se relacionam com diversos universos musicais, sendo quase impossível traçar uma genealogia dessa
estética.
12
Ao longo deste trabalho, indicarei pequenas playlists com o repertório ao qual eu estiver me referindo, como forma de
auxiliar o leitor a entender as descrições feitas de cada período. Aqui estão algumas canções de sucesso dessa “Época de
Ouro” (anos 1930):
https://open.spotify.com/playlist/5duwFh1W6k20ZP7vxiL6V4?si=8E708PYjRMCk6fmby4DywQ .
13
Reforço, especi camente, o sucesso mercadológico que Luiz Gonzaga teve no período, sendo-lhe conferido o peso de
representante do forró e o baião, gêneros que cada vez mais ganhavam espaço fora do Nordeste.
35
Farney, Lúcio Alves, Nora Ney, Dolores Duran, Maysa e Sylvia Telles14. Se por um lado houve um
distanciamento do padrão entoativo do samba desenvolvido até então, por outro criaram-se novos
paradigmas de interpretação vocal: “os cantores passaram a buscar um aprimoramento técnico,
ainda que intuitivo, no sentido de encontrar referenciais de beleza que obtivessem resposta junto ao
público” (MACHADO, 2011, p. 35). Entre esses novos referenciais, a autora cita: “maior rigor
quanto à a nação, à realização do fraseado, à consciência timbrística e à capacidade expressiva”.
É nesse período que começa a se desenvolver uma crítica voltada para a música popular. A
crítica musical no início do século XX analisava, a priori, música de concerto, e se pautava em
preceitos do legado clássico romântico ou, posteriormente, em postulados do modernismo, como as
críticas de Mário de Andrade. A pesquisadora de música popular Santuza Cambraia Naves (2010)
explica que o surgimento de uma crítica de música popular se pautou na ideia de brasilidade,
negando in uências externas, especi camente aquelas vindas da música americana e do jazz.
Napolitano (2007) reforça que o radialista Almirante, por exemplo, teve papel importante nesse
meio, atuando em defesa da música brasileira dos anos 1920 e 1930 (entendidas como Época de
Ouro) e negando as obras mais recentes das décadas de 1940 e 1950 pelas in uências estrangeiras
inseridas no samba e pelo peso que a música internacional tinha, naquele período, nas rádios.
Quando a Bossa Nova surge no nal dos anos 1950, divide opiniões de críticos e músicos
por sua nova sonoridade e nova abordagem composicional. Regina Machado (2011) aponta que, no
canto, o gênero
retoma o caminho delineado pelo samba, acrescido de um apuro técnico-vocal e musical
no qual o elemento rítmico e os aspectos entoativos originado na fala, o rigor absoluto na
a nação, a não-utilização de vibrato, a exploração da sonoridade das palavras como mais
um elemento de execução rítmica construíram uma aparente simpli cação do cantar
(MACHADO, 2011, p. 35).
14
Alguns exemplos desses sambas-canção do período estão nesta playlist:
https://open.spotify.com/playlist/2SkCJYXgDc4VEcOVAHTTqA?si=QRJSrfU5QlaV2iuXZIjvOg .
36
Nos anos 1960, a televisão começa a ganhar espaço como meio de comunicação e aos
poucos se torna um dos principais veículos da música popular, principalmente com os festivais
televisivos e os programas de auditório. É sobre esse período que discorrerei a seguir, no qual a Bossa
Nova passa por diversas mudanças, a sigla MPB aparece pela primeira vez e a canção brasileira se
expande de formas não vistas até então.
musical signi cou, para ele, um novo mundo de possibilidades para a canção brasileira.
Muito já se disse sobre o lugar de importância que a Bossa Nova ganhou no panteão da
música popular brasileira (CAMPOS, 1974; NAPOLITANO, 2001; TATIT, 2004; NAVES, 2010,
entre tantos outros), tornando-se até mesmo lugar comum falar do surgimento desse movimento
em qualquer trabalho com foco em música popular urbana no Brasil. Dito isso, deve-se considerar
que suas inovações estéticas — independente das possíveis críticas quanto ao grau de originalidade
que o movimento de fato teve, as quais faz Tinhorão (1998), por exemplo — in uenciaram
fortemente grande parte da geração de artistas associada à MPB surgida nos anos 1960. Se essa
in uência nem sempre aparece de forma direta através de suas falas, como no caso de Caetano, ela
ca implícita nos procedimentos composicionais dos cancionistas desse meio. Com isso em mente,
considero que minha contextualização estaria no mínimo incompleta se não levasse em conta o
papel que a Bossa Nova exerceu na construção da(s) sonoridade(s) da MPB, ainda mais por estar
analisando uma obra de Caetano Veloso, artista que, com maior ou menor grau, teve esse gênero
como referência ao longo de toda a sua carreira.
Caetano sintetiza quais foram, para ele, os elementos inovadores que a Bossa Nova propôs
à canção brasileira e que, consequentemente, chamaram-lhe a atenção, principalmente através da
interpretação de João Gilberto:
37
[João Gilberto] catalisou os elementos de agradores de uma revolução que (...) deu
sentido às buscas de músicos talentosos que, desde os anos 40, vinham tentando uma
modernização através da imitação da música americana — Dick Farney, Lúcio Alves,
Johnny Alf, o conjunto vocal Os Cariocas —, revalorizando a qualidade de suas criações e
a legitimidade de suas pretensões (mas também driblando-os a todos com uma
demonstração de domínio dos procedimentos do cool jazz, então a ponta-de-lança da
invenção nos Estados Unidos, dos quais ele fazia um uso que lhe permitiu melhor
religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira: o canto de Orlando Silva e Ciro
Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo
Pereira, as iluminações de Assis Valente, em suma, todo um mundo de que aqueles
modernizadores se queriam desmembrar em seu apego a estilos americanos já meio
envelhecidos) (VELOSO, 1997, p. 36).
Brasil Rocha Brito (1974, p. 31) aponta que os gêneros musicais “mais cultivados no
populário brasileiro” nos anos 1940 e 1950 foram “o samba ‘marcado’ (ou ‘rasgado’), o
samba-canção, a marchinha e a valsa”. Foi nesse período que, como mencionado anteriormente,
surgiu uma tendência crítica que ajudou a criar uma tradição da música popular brasileira. Essa
crítica musical teve em Almirante um de seus principais representantes, que fez extenso trabalho de
valorização do samba e do choro dos anos 1920 e 1930, instituídos como “época de ouro” da canção
relacionadas à voz no canto, a qual ganha, nas interpretações de João Gilberto, o caráter de nitivo
do movimento. Esses cantores romperam com a estética do belcanto, tão presente na música popular
daquela década, que tinha como características as grandiloquências, muitas dinâmicas e efeitos
contrastantes e exploração de regiões extremas da voz, tanto no agudo quanto no grave. Em texto
publicado originalmente em 1960, Brasil Rocha Brito (1974, p. 35) já notava os elementos da “nova
voz” que a Bossa Nova propunha:
15
Recomendo a audição das nove primeiras faixas dessa playlist:
https://open.spotify.com/playlist/3U1Gq2FSIWh1UhjAPCxTyA?si=47cI6XFOTrKeJItAsDbknQ. Selecionei algumas
gravações de Os Cariocas, Dick Farney, Lucio Alves e Johnny Alf e, para comparação, incluí também algumas canções
gravadas por Bing Crosby e Frank Sinatra naquela década.
38
Cantar sem procura de efeitos contrastantes, sem arroubos melodramáticos, sem
demonstrações de afetado virtuosismo, sem malabarismos. O cool coíbe o personalismo
em favor de uma real integração do canto na obra musical. O que está de acordo com a
posição estética do movimento. A ‘voz cheia’, o ‘dó de peito’, a ‘lágrima na voz’, o ‘canto
soluçado’ etc., são rejeitados pela BN [bossa-nova].
Essas características da voz da Bossa Nova realmente poderiam ser comparadas àquelas
presentes no cool jazz americano. Há, porém, diversas diferenças em abordagem, as quais Lorenzo
Mammí (1992) ressalta: para ele, o centro da Bossa Nova é o canto, como já era para o samba, e o
objetivo não é transformar a voz em um instrumento, como muitas vezes nota-se no jazz. Pelo
contrário, o autor ressalta que o foco está em aproximar a voz da fala, trazendo uma espécie de
espontaneidade na qual a melodia ressalta a palavra cantada. O trabalho que João Gilberto faz,
Mammí aponta, é de encontrar a in exão exata de cada sílaba para trazê-la ao ponto exato entre a
melodia e a fala. Ou, como resume Napolitano (2007), a voz se reduz ao mínimo de potência, sem se
aventurar em ornamentos desnecessários, e se articula ao violão e aos outros instrumentos num todo
funcional e sem excessos, à base de legato que valoriza as melodias, sem se sobrepor ao ritmo16.
Mammí também coloca que, diferente da abordagem jazzística, a harmonia da Bossa Nova,
embora próxima daquela do jazz na utilização de dissonâncias, possui função diferente. Ele aponta
que, no jazz, “compor signi ca encontrar uma estrutura harmônica capaz de in nitas variações
melódicas” enquanto que, na Bossa Nova, “é encontrar uma melodia que não pode ser variada, já
que ela é que é o centro estrutural da composição, mas pode ser colorida por in nitas nuances
harmônicas” (MAMMÍ, 1992, p. 64-65).
Outro ponto muitas vezes levantado entre as características da Bossa Nova está
relacionado à levada do violão. Napolitano (2007) citou algumas das novidades trazidas pela
abordagem violonística de João Gilberto; entre elas, o autor menciona o fato de que João mudou a
função comum do violão, dando a ele caráter rítmico-harmônico, quando até então era mais
utilizado para acompanhamento e contraponto melódico na tradição da música popular brasileira.
O historiador aponta que João Gilberto incorporou a bateria das escolas de samba em sua “batida”:
o polegar da mão direita realizando o papel do surdo, enquanto os três dedos médios batucam as
cordas inferiores como um tamborim. Nesse sentido, é possível notar um jogo entre negação e
Da mesma playlist citada, recomendo a audição dos clássicos “Desa nado”, “Samba de uma Nota Só” e “Chega de
16
continuidade dessa tradição especí ca: a estrutura rítmica continua, porém de forma reduzida,
passada por uma “triagem”. Além disso, embora haja, nas interpretações de João Gilberto, uma
espécie de padrão de levada de Bossa Nova, esse é um gênero que comporta diversos ritmos, o que já
17
Alguns exemplos disso (cf. playlist) são as gravações de João Gilberto das canções “Ho-Ba-La-Lá” (beguine), “Bim
Bom” (baião) e “Trevo de Quatro Folhas” (marcha).
18
As canções “Lobo Bobo” e “Barquinho” são bons exemplos das temáticas descompromissadas das letras da Bossa
Nova nessa primeira fase (cf. playlist).
40
vermos a ampla entrada desse gênero no mercado americano, por exemplo. Quando,
posteriormente, Caetano entra em contato com os textos de Oswald de Andrade e a ideia de
antropofagia, a “música de exportação” guia-o na construção do Tropicalismo que, a seu ver, retoma
a “linha evolutiva” da Bossa Nova na música popular brasileira.
Marcos Napolitano (2001, p. 18) menciona ainda outros pontos de destaque que a Bossa
Nova trouxe e que tiveram bastante força nos anos 1960:
O momento inicial da Bossa Nova foi o prenúncio dos elementos da revolução musical
dos anos 60: predomínio do Long Playing, como veículo fonográ co (e conceitual);
autonomia do compositor, acumulando muitas vezes a condição de intérprete;
consolidação de uma faixa de ouvintes jovens, de classe média intelectualizada;
procedimento re exivo, de não só cantar a canção mas assumir a canção como veículo de
re exão sobre o próprio ofício de cancionista (este ponto não é inaugurado pela BN, mas
foi potencializado por ela) (NAPOLITANO, 2001, p. 18).
Dentre esses elementos destacados por Napolitano, reforço a importância que o
predomínio do Long Playing (LP) teve para essa geração da Bossa Nova e para as seguintes na MPB.
Esse novo formato — os discos de longa duração só foram lançados nos Estados Unidos em 1948 —
permitiu uma nova forma de organização de repertórios musicais. O LP pode servir como uma
coletânea de faixas individuais, como se fossem vários discos de 78rpm em um só, e vários artistas,
num primeiro momento, tratam-no dessa maneira. Porém, já nos anos 1950 alguns artistas passaram
a explorar outras possibilidades que o disco de 33 ⁄ rpm permitia, dedicando esforços em organizar
as músicas em uma sequência lógica e, por vezes, buscando uma unidade temática entre faixas.
“Uma série de obras distintas se tornou uma só”, como coloca Mammí (2014, p. 7), que cita como
exemplos os discos do jazzista Miles Davis e também o LP Canções Praieiras, de Dorival Caymmi,
41
Geraldo Pereira19. “A Bossa Nova foi o ltro pelo qual antigos paradigmas de composição e
interpretação foram assimilados pelo mercado musical renovado dos anos 60”, coloca Napolitano
(2001, p. 16). Isso ocorre mesmo com artistas que, a princípio, não haviam passado pela triagem dos
bossanovistas. O autor menciona alguns exemplos: “através de elementos estéticos oriundos da
Bossa Nova, Elis Regina assimilou estilo de Ângela Maria, sua inspiradora. Foi também através da
BN que Chico Buarque ouviu e incorporou a obra de Noel Rosa em seu estilo de composição”.
A Bossa Nova teve, logo após seu surgimento, um período de grande sucesso no mercado
estrangeiro. Primeiramente, com o premiado lme ítalo-franco-brasileiro Orfeu Negro, baseado na
peça Orfeu da Conceição de Vinicius de Moraes, que contou com trilha sonora assinada por Tom
Jobim e Luiz Bonfá. Após esse primeiro contato com a Bossa Nova, diversos artistas estrangeiros
Recomendo a audição das faixas “Bolinha de Papel” (Geraldo Pereira), “É Luxo Só” (Ary Barroso/Luiz Peixoto) e
19
standards do jazz ao ser interpretado por artistas de imenso sucesso, como Sarah Vaughan, Ella
Fitzgerald e Frank Sinatra20.
Com a entrada da Bossa Nova no mercado estrangeiro começa a ocorrer, no Brasil, uma
espécie de divisão entre dois segmentos desse gênero: o da BN “jazzística” e o da BN “nacionalista”.
Como aponta Napolitano (2001), essas fronteiras eram, muitas vezes, postiças, mas passaram a guiar
o pensamento de diversos artistas contrários ao que consideraram como uma postura
“anti-nacional”:
No nal de 1962, em 21 de novembro, a Bossa Nova foi a atração principal de um evento
que acirrou ainda mais as polêmicas em torno do caráter nacionalista ou "entreguista" do
novo gênero, (...)o polêmico show de Bossa Nova, no Carnegie Hall, em Nova York. (...)
Para João Gilberto e Tom Jobim, o show marcou a entrada triunfal dos dois no mercado
norte-americano. (...) Mas este aspecto também trazia consigo uma situação paradoxal: os
dois fundadores da BN acabaram, em certa medida, entrando para o index dos artistas e
intelectuais mais nacionalistas como exemplo de Bossa Nova "anti-popular" e
“entreguista” (NAPOLITANO, 2001, p. 23-24).
Foram esses artistas da linha nacionalista os que passaram a rever as formas de utilizar os
procedimentos herdados pela Bossa Nova. Alguns nomes que já estavam presentes na Bossa Nova
da primeira fase, como Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo, associados a artistas novos,
como Edu Lobo e os poetas Gianfrancesco Guarnieri e José Carlos Capinam, passaram a incorporar
temáticas engajadas em suas letras, mantendo, porém, a Bossa Nova como referencial harmônico e
melódico. Essas novas propostas acabam se tornando, posteriormente, as bases para o surgimento da
MPB.
3.3 Vanguarda na Bahia
Antes de avançar para os desenvolvimentos da música brasileira no eixo Rio-São Paulo, no
qual a MPB centra-se nos anos 1960, gostaria de deslocar o olhar para a Bahia e as movimentações
musicais que ocorriam em Salvador desde a metade dos anos 1950, mais especi camente na
20
Conferir na playlist alguns exemplos dessas gravações nas faixas “The Girl From Ipanema”, na gravação de Stan Getz e
João Gilberto, “O Morro Não Tem Vez”, em versão instrumental lançada no disco de Jobim, “Dindi” gravada por Sarah
Vaughan, “Quiet Nights of Quiet Stars (Corcovado)” cantada por Ella Fitzgerald e “How Insensitive (Insensatez)” na
interpretação de Frank Sinatra com Tom Jobim.
43
De 1946 a 1962, a Universidade da Bahia esteve sob o comando do reitor Edgard Santos,
que exerceu papel fundamental no desenvolvimento das ciências humanas daquele centro
acadêmico, principalmente na área das artes. O reitor acreditava que a universidade “deveria assumir
um papel de liderança na modernização da Bahia, tanto no desenvolvimento urbano-industrial
quanto na ‘desprovincialização cultural’ do estado” (DUNN, 2009, p. 71). Para isso, Edgard
recrutou artistas da Europa e de outras regiões do Brasil e os incubiu a responsabilidade de liderarem
dentro do campo da 'cultura superior', ele não se movia como um tradicionalista. Muito
pelo contrário. Antes que um empertigado e supercilioso guardião de normas
estético-intelectuais consagradas, estrati cadas, o reitor revelou, em sua atuação pública,
uma louvável e excepcional abertura para a invenção, os novos códigos, o
experimentalismo (RISÉRIO, 1995, p. 47-48).
Desde 1938, o Brasil getulista vivia um período de grande nacionalismo, que chegou a
ertar com o fascismo que crescia mundialmente. Risério (1995) acrescenta que essa postura do
reitor é ainda mais importante considerando esse contexto. Foi nesse período que diversos artistas
vanguardistas vieram ao Brasil, seja para escapar da projeção do nazi-fascismo que empolgou parte
considerável do mundo europeu, seja para sair do domínio da ditadura de Stalin, que impunha as
regras no domínio da produção artístico-cultural soviética.
Quando se refere à Vanguarda, o autor deixa claro que esta designa “um grupo
autoconsciente, programaticamente empenhado na renovação sistemática dos procedimentos
Vanguarda estética como sinônimo de ação grupal empenhada na negação do passado
estético imediato, mergulhada num processo de autoquestionamento permanente (o que
signi ca conferir relevo à 'metalinguagem') e em busca programática do novo no contexto
da cultura urbano-industrial, sob os signos da pressão das massas e da efetiva
planetarização do planeta. A própria época em que surgem as vanguardas é vista, por seus
agentes sociais, como radicalmente distinta de tudo o que aconteceu antes (RISÉRIO,
1995, p. 71).
Hans-Joachim Koellreutter, Lina Bo Bardi e Agostinho da Silva são alguns dos principais
nomes associados a esse novo momento da Universidade da Bahia, que atuaram na música, na
arquitetura e artes visuais, e no teatro, respectivamente. Posteriormente, os suíços Ernst Widmer e
Walter Smetak também foram professores nos Seminários Livres de Música.
O alemão Koellreutter já estava no Brasil anos antes de trabalhar em Salvador. No nal dos
anos 1930, conheceu Heitor Villa-Lobos e Mário de Andrade e começou a lecionar no
Conservatório Brasileiro de Música no Rio de Janeiro. Durante esse período na cidade, foi professor
de piano e harmonia de Tom Jobim, quando este tinha 13 anos. No nal dos anos 1930,
Koellreutter fundou o grupo Música Viva21, “que contou com a participação de músicos já
conhecidos do cenário musical brasileiro, como o pianista Egídio de Castro e Silva, os professores e
compositores Luiz Heitor, Brasílio Itiberê, Luiz Cosme e Otávio Bevilácqua” (RAMOS, 2011, p.
11). Koellreutter trouxe consigo da Alemanha os ensinamentos de seu mestre, o regente Hermann
Scherchen, que ajudava a divulgar as técnicas mais recentes de música contemporânea, entre elas a
música dodecafônica de Arnold Schoenberg.
Posteriormente, o grupo agregou também alunos de Koellreutter, como os compositores
Cláudio Santoro e César Guerra-Peixe. Com os Manifestos Música Viva lançados em 1944 e 1946,
as bases do movimento foram estabelecidas22, ressaltando, entre outros aspectos:
a defesa da representação na música da realidade social; a procura do ajuste da música à
realidade; a refutação da arte acadêmica, não sendo aceitas as tendências nacionalistas;
a escolha da revolução contra a reação; a constatação da impossibilidade de uma arte sem
ideologia; o apoio na técnica de composição dependente da “técnica da produção
21
Não confundir com o grupo Música Nova, fundado nos anos 1960 por Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira,
Rogério Duprat e Júlio Medaglia — o qual também teve contato próximo com Caetano Veloso.
22
Os manifestos podem ser encontrados na Internet nos links:
https://www.latinoamerica-musica.net/historia/manifestos/1-po.html e
https://www.latinoamerica-musica.net/historia/manifestos/2-po.html .
45
material”; a substituição do ensino técnico musical por um ensino cientí co
fundamentado nas pesquisas eletroacústicas; o abandono do conceito de beleza e a
preocupação com uma arte-ação, na qual a escrita musical passa a ser decodi cada
universalmente, contribuindo para a união entre os povos; a refutação do falso
nacionalismo; o enaltecimento da função socializadora da música e a valorização da
música popular sob os aspectos artísticos e sociais (CONTIER, 1975 apud RAMOS,
2011, p. 13, grifo meu).
Quando Koellreutter passou a trabalhar na Universidade da Bahia, o Grupo Música Viva
já havia se desfeito, porém o compositor levou consigo muitas das propostas presentes nos
manifestos citados. Ao falar daquele contexto baiano, Risério (1995) discorre sobre como,
o processo cultural baiano daquele período produziu “modi cações notáveis no espaço
estético-intelectual brasileiro, deixando marcas visíveis (e, provavelmente, invisíveis) no corpo
cultural do país".
Aqui chego no ponto que mais interessa à minha pesquisa: Caetano formou-se
intelectualmente nesse ambiente baiano da época de Edgard Santos, no início dos anos 1960. Como
coloca Risério (1995, p. 26), sua obra se con gura principalmente sob o impacto da revolução
bossa-novista, “que vai desde uma concepção cool da função instrumental do canto à batida
rigorosamente nova do violão de João Gilberto”. Não obstante, mestres como Lina Bo Bardi,
Agostinho da Silva e Hans Joachim Koellreutter foram “formadores de mentalidades e de
sensibilidades, faróis da liberdade de pesquisa e da aventura criadora, em suma: encarnações de uma
pedagogia da inquietude” , ainda que não exatamente “inspiradores diretos de estratégias de
construção e/ou de procedimentos estéticos especí cos" (RISÉRIO, 1995, p. 26). Caetano não faz
46
referências a Smetak e a orquestração de Duprat, e a tradição, representada aqui pela música dos
repentes, num jogo entre arcaico e moderno que é constante na obra do compositor.
Em 1974, Caetano Veloso, ao lado de Roberto Santana, produziu um LP de Walter,
intitulado Smetak24. Todas as faixas do disco trabalham com temas atonais e instrumentos
não-convencionais. O autista Tuzé de Abreu (que participa do disco Jóia de Caetano nas faixas
“Pipoca Moderna” e “Gravidade”) também toca no álbum, e Gilberto Gil participou, ao lado de
Caetano, na organização das faixas do LP.
As aproximações de Caetano Veloso com as vanguardas artísticas não se deram apenas em
Salvador. No início do movimento tropicalista, o compositor trabalhou com os músicos associados
ao grupo Música Nova, formado nos anos 1960 em São Paulo, principalmente Rogério Duprat e
Júlio Medaglia, que participaram de diversas gravações de Caetano como arranjadores. Como coloca
Souza (2011, p. 93), o grupo muitas vezes é visto como “um desdobramento do movimento Música
23
Caetano fala brevemente sobre Smetak neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=eYltBsre9Ak.
O disco não consta nas plataformas de streaming, mas pode ser ouvido na íntegra nessa playlist do Youtube:
24
https://www.youtube.com/playlist?list=PLtWEQ4Ip3sVcqEvgQzzMgiq4UswXC-EaZ
47
procedimentos da música eletroacústica, por in uência do alemão Karlheinz Stockhausen (que
inclusive foi professor de Duprat), e a aproximação com a Poesia Concreta dos irmãos Augusto e
Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que àquela altura já ganhava projeção internacional.
No disco Jóia, veremos que Caetano estabelece diálogo direto com a Poesia Concreta. As
propostas das vanguardas baiana e paulista, por sua vez, aparecem em sua obra com frequência,
principalmente entre 1968 e 1975, como nas faixas “Acrilirico” (1969), “Não Identi cado (1969),
Ao introduzir seu estudo sobre o Avant-Garde na Bahia, Antonio Risério traz uma
constatação do jornalista e historiador Otto Maria Carpeaux, quando de sua chegada no Brasil. Este
notou que:
Aqui em nossos trópicos quase 'todo mundo' era de esquerda. As rachaduras nesse espaço
cultural monolítico — vale dizer, as iniciativas que não se colocavam a si mesmas na
'direita', nem aceitavam o jugo stalinista — eram poucas, a exemplo do tumultuado
'movimento antropofágico' de Oswald de Andrade e Oswaldo Costa e, mais tarde, da
vanguarda poética concretista, reunida no grupo noigandres. Por isso mesmo, costumo
dizer que, ainda na década de 60, a esquerda tradicional representava para a juventude não
só o desvio da norma, como também a norma do desvio (RISÉRIO, 1995, p. 19).
O crítico literário Roberto Schwarz (2008), em seu texto clássico intitulado “Cultura e
Política, 1964-1969, escrito entre 1969 e 1970, con rma o que Carpeaux indicava. "Antes de 1964,
o socialismo que se difundia no Brasil era forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e
25
O Manifesto Música Nova pode ser lido no seguinte link:
https://www.latinoamerica-musica.net/historia/manifestos/3-po.html.
26
Alguns exemplos dessa abordagem experimentalista de Caetano estão nesta playlist:
https://open.spotify.com/playlist/7bRPZR57DLsIoXLClOotRM?si=6P7_xJsoTcGg_DZIcULUpw .
48
Na virada da década de 1950 para 1960, Brasília, a Bossa Nova e a Poesia Concreta
tornam-se supersignos culturais da gestão de Kubitschek e do clima desenvolvimentista daquele
período. Esse três elementos representam uma "inversão do uxo cultural metrópole/colônia" —
assimilação do estrangeiro e, em seguida, a criação, o retorno ao internacional com um produto
novo (RISÉRIO, 1995).
Com a consolidação da Bossa Nova, o "samba moderno" desta passou a ser visto como
antítese de um "samba quadrado" anterior, principalmente aquele representado pelo samba-canção
dos anos 1950. Porém, como já foi visto, dentro da Bossa Nova já surgiam outras linhas que a
levaram a uma postura mais politizada — a canção engajada. Napolitano (2007) aponta que essa
nova tendência já apareceu no início da década de 1960, com canções como “Zelão”, de Sérgio
Ricardo, e “Quem Quiser Encontrar o Amor”, de Carlos Lyra e Geraldo Vandré27. As duas canções
mantêm o paradigma de emissão vocal de João Gilberto, assim como o material harmônico de Tom
Jobim; outros aspectos, porém, já começam a se diferenciar. Em “Zelão”, o instrumental já ganha
caráter mais contrastante que as orquestrações de Tom Jobim para a Bossa Nova da primeira fase;
metais, madeiras e percussão aparecem com maiores dinâmicas, além da presença do coro responsivo
no refrão, repetindo o verso cantado por Sérgio Ricardo. Na canção de Carlos Lyra e Geraldo
acompanhou morro abaixo a canção/ Das coisas todas que a chuva levou/ Pedaços tristes do seu
coração”. Já em “Quem Quiser Encontrar o Amor”, já aparece o tema da “esperança no dia que
virá”, algo que se torna muito comum nas canções de protesto dos anos seguintes; a espera de um
27
As faixas podem ser ouvidas na playlist:
https://open.spotify.com/playlist/7GAdd0ZPOGxYO7Zb2NvJOK?si=u18JpCeSSlOWj9k_TQCcLw.
49
amanhã melhor, no qual as mazelas sociais não serão mais um problema. No caso dessa canção, a
esperança é por um amor que “Há de chegar/ Pra gente que acredita/ E não se cansa de esperar/
Feliz então sorrindo/ Minha gente vai cantar/ Tristeza vai ter m/ Felicidade vai car”.
Alguns eventos do ano de 1962 ajudaram a intensi car as discussões dentro da Bossa
Nova. Em novembro daquele ano, diversos músicos brasileiros apresentaram o repertório desse
gênero no Carnegie Hall, importante sala de concertos de Nova York. Entre eles estavam João
Gilberto, Tom Jobim, Luiz Bonfá, Sérgio Ricardo, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Oscar Castro
Neves, Sérgio Mendes, Chico Feitosa, Milton Banana, Caetano Zama, Normando Santos, Dom
Um Romão e Agostinho dos Santos. Foi um momento que consagrou a entrada da Bossa Nova no
mercado americano, mas que, por outro lado, gerou posições contrárias entre músicos brasileiros.
Como aponta Napolitano (2007), ocorreu uma divisão (muitas vezes postiça) entre o lado
“nacionalista” e o lado “jazzístico” ou “entreguista” — que “se rendeu” ao imperialismo americano.
Foi ainda em 1962 que o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes
(CPC da UNE) lançou um manifesto que traçou dois objetivos básicos para a música popular: em
um posicionamento alinhado à esquerda, buscaram uma conscientização ideológica e "elevação" do
gosto médio das massas. Diversos músicos da Bossa Nova estavam alinhados a essas novas propostas.
O que se priorizava na obra, com essas novas diretrizes, não era necessariamente sua qualidade
estética, mas a construção de um veículo ideológico adequado ao conteúdo nacionalista em questão.
Napolitano (2007) aponta alguns procedimentos básicos propostos: a) adaptação aos “defeitos” da
fala do povo nas letras; b) submissão aos imperativos ideológicos populares; c) entendimento da
linguagem como meio e não como m (nesse sentido totalmente contrária às bases convencionais da
Bossa Nova); e d) entendimento da arte como socialmente limitada, parte de uma superestrutura
maior.
Como o autor também ressalta, o Manifesto do CPC propunha uma coisa, mas os artistas
muitas vezes zeram outra. Os músicos buscavam uma canção engajada, porém moderna e
so sticada, capaz de reeducar a elite e elevar o gosto das classes populares, ao mesmo tempo em que
as conscientizava. Os álbuns de Carlos Lyra e Sérgio Ricardo lançados à época re etem isso (como já
apontavam as canções analisadas anteriormente). Mantendo essa so sticação estética, as letras dessa
Bossa engajada tinham em comum: “romantização da solidariedade popular, a crença no poder da
canção e do ato de cantar para mudar o mundo, a denúncia e o lamento de um presente opressivo e
50
a crença na esperança de um futuro libertador” (NAPOLITANO, 2007, p. 73). Ou seja, a Bossa
Nova da primeira fase continuou sendo um referencial fundamental principalmente nos elementos
musicais, mas passou a ser criticada por suas letras “alienadas”.
São os artistas dessa segunda fase da Bossa Nova os primeiros nomes da chamada canção de
protesto brasileira. Esse novo estilo de composição representava “uma possível intervenção política
do artista na realidade social do país, contribuindo assim para a transformação desta numa
28
Contier (1998) aponta que nas canções de Edu Lobo, os temas, em geral, giram em torno dos excluídos sociais:
sertanejos ou pescadores (ouvir faixas como “Ponteio”, “Arrastão” e “Reza”), enquanto em Carlos Lyra as letras
costumam tematizar os excluídos dos centros urbanos (ouvir “Choro de Breque, “O Morro (Feio Não É Bonito) e
“In uência do Jazz”). Playlist:
https://open.spotify.com/playlist/7GAdd0ZPOGxYO7Zb2NvJOK?si=u18JpCeSSlOWj9k_TQCcLw.
51
principalmente no Teatro Paramount. Foi nesse período que surgiram diversos espetáculos
musicais/teatrais que tematizam diversos problemas sociais, entre eles: Arena Conta Zumbi, de
Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal; Morte e Vida Severina, obra de João Cabral de Melo
Neto musicada por Chico Buarque; Rosa de Ouro, espetáculo produzido por Hermínio Bello de
Carvalho que tematiza a história do samba e “redescobriu” Clementina de Jesus; Arena Canta
Bahia, dirigido por Augusto Boal e que contou com diversos dos tropicalistas no elenco, antes
mesmo desse movimento ser lançado; entre muitos outros29.
Um dos espetáculos de maior destaque foi o Show Opinião, estrelado por Nara Leão
(posteriormente substituída por Maria Bethânia), João do Vale e Zé Keti, que representavam,
respectivamente, a Bossa Nova, o baião e o samba do morro. A união desses três gêneros passou a ser
uma espécie de “mito fundador” da MPB. De fato, esse espetáculo tornou-se paradigmático de uma
nova estética e “representou uma das vertentes da institucionalização e a rmação da nova Música
Popular Brasileira que a partir de 1965 tornava-se uma sigla ideologicamente reconhecível”
(NAPOLITANO, 2001, p. 53).
Com esses espetáculos, novas propostas de interpretação vocal apareciam30. Muitos dos
cantores, trazendo características da emissão vocal típica do teatro, romperam com a proposta de
leveza no canto que João Gilberto trazia. Júlio Medaglia, em texto publicado originalmente em
1966, comenta sobre essas mudanças:
No que toca à interpretação, se as canções do tipo ‘amor-sorriso- or’ oferecem ao cantor
maior liberdade, por se basearem mais na subjetividade afetiva de cada um, as canções que
cantam a aridez, o marasmo, o abandono e o tipo vegetativo de sobrevivência de toda uma
coletividade, exigiriam do cantor uma interpretação correlata. Uma interpretação ainda
mais impessoal, ainda menos `expressiva', sem o menor perfeccionismo vocal e não raro
com muita dureza. Assim se explica, por exemplo, a ascensão rápida da cantora Maria
Bethânia, que, ao substituir Nara no show 'Opinião', teve sucesso imediato31. Possuindo
uma voz ainda mais primitiva e rude, sua interpretação conferiu a impostação exata e
ainda maior autenticidade ao conteúdo daqueles textos — particularmente o Carcará32
(MEDAGLIA, 1974, p. 90).
29
Ouvir faixas “Upa Neguinho”, do Arena Conta Zumbi e “Funeral de um Lavrador”, de Morte e Vida Severina:
https://open.spotify.com/playlist/7GAdd0ZPOGxYO7Zb2NvJOK?si=u18JpCeSSlOWj9k_TQCcLw
30
Ouvir faixas “Opinião” e “Carcará” na mesma playlist.
31
Nesse ponto, concordo com a dureza atribuída pelo autor à Maria Bethânia, principalmente no Show Opinião. Não
acredito, entretanto, que este seja um sinal de impessoalidade. As obras da artista nas décadas seguintes reforçam ainda
mais um caráter passional das suas interpretações.
32
“Carcará” trata-se de uma das canções de maior sucesso do Show Opinião, composta por João do Vale e cantada por
Nara Leão, originalmente, e por Maria Bethânia, com bastante repercussão nas mídias da época.
52
Nesse contexto, o violão se torna, mais do nunca, um representante da nova musicalidade
brasileira — e também, como Napolitano (2001) aponta, da Nueva Canción que começava a ganhar
força em diversos países latino-americanos. Em 1963, foi lançado o Manifiesto del Nuevo
Cancionero, concebido na Argentina, mas que também in uenciou tendências estéticas no Chile e
no Uruguai. Esse manifesto ditou alguns princípios sobre os novos movimentos musicais e, em
alguns aspectos, era similar às propostas do CPC no Brasil. Dentre esses princípios, podem ser
identi cados alguns de destaque, como a exaltação da cultura nacional, que aparece na forma de: a)
reação à cultura estrangeira recentemente inserida; b) concepção da nova canção não como um
gênero especí co ou genuinamente popular, mas como uma música renovada de características
nativas; c) intercâmbio com artistas e expoentes de movimentos similares pela América Latina. A
“pedagógicas”, com o intuito de trazer “alta cultura” à população, o que não permanece quando
esse veículo começa a se popularizar (NAPOLITANO, 2007). A TV Record surge em 1953, mas só
ganhou grande popularidade a partir de 1965, quando passou a investir na nova música popular
brasileira. Foi nessa metade da década de 1960 que as redes televisivas dedicaram-se a diversos
33
Ouvir as faixas “La Zafrera”, “Volver a los Diecisiete” e “Los Hermanos” na playlist.
34
As canções de Geraldo Vandré nos últimos anos daquela década são, talvez, as que mais se aproximam da estética da
Nueva Canción: “harmonias consonantes básicas, melodias pungentes, timbres acústicos, predomínio de gêneros rurais,
temas poéticos portadores de uma mensagem política mais 'explícita' na qual os motes poéticos funcionam como
verdadeiras palavras de ordem, e não como desenvolvimento de narrativas sutis, líricas e impressionistas"
(NAPOLITANO, 2007, p. 129). Ouvir faixas “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores” e “Terra Plana”.
53
assim, esse esforço de planejamento “se dava em meio a um estágio de produção na TV em que o
improviso ainda tinha espaço”. Neste sentido, por ser um veículo de comunicação novo, a televisão
também foi laboratório de novos produtos e linguagens, o que dava certa liberdade também às
criações musicais. Havia, porém, uma necessidade de grandiloquência, de uma espécie de
carnavalização da experiência televisiva, como forma de manter o interesse do telespectador. Isso
in uencia diretamente a forma de cantar dos artistas desse meio:
A TV exigia certa teatralização, sob medida, e uma maior passionalização por parte do
intérprete, na medida em que o público do outro lado do aparelho receptor precisava ser
permanentemente cativado, numa luta incessante contra sua tendência ao tédio e ao
desinteresse. A proposição de continuar a desenvolver o legado, basicamente intimista e
impressionista, da Bossa Nova, assumida até no nome do programa - Fino da Bossa –
chocava-se com as exigências da linguagem e as demandas da audiência televisiva
(NAPOLITANO, 2001, p. 68).
Se por um lado os espetáculos teatrais começaram a modi car as maneiras de interpretação
da canção popular brasileira, por outro a televisão certamente ajudou a consolidar essas propostas. A
canção de protesto passou a exigir intérpretes capazes de transmitir as intensidades que as letras
retratavam. Foi o período de destaque de cantores como Elis Regina, Nara Leão, Maria Bethânia,
Jair Rodrigues e Marília Medalha (CONTIER, 1998).
Esse estilo vocal não passou sem críticas, principalmente de artistas que defendiam as
conquistas da Bossa Nova da primeira fase, como o poeta Augusto de Campos, que publicou em
1966 um artigo no qual discorria sobre o assunto, apontando que a nova técnica vocal utilizada se
aproximava daquela do belcanto “de que a BN parecia nos ter livrado para sempre” (CAMPOS,
1974, p. 56). Grande crítico da interpretação teatral e altamente gesticulada que Elis Regina e Jair
Rodrigues tinham no programa O Fino da Bossa, Campos encontrou um segmento do canto
Esse estilo de interpretação "teatral" quase nada mais tem a ver com o estilo de canto típico
da BN. Enquanto isso, jovem-guardistas como Roberto ou Erasmo Carlos cantam
descontraídos, com uma espantosa naturalidade, um à vontade total. Não se entregam a
expressionismos interpretativos; ao contrário, seu estilo é claro, despojado. (...) Estão os
dois Carlos, como padrão de uso da voz, mais próximos da interpretação de João Gilberto
do que Elis e muitos outros cantores de música nacional moderna, por mais que isso possa
parecer paradoxal (CAMPOS, 1974, p. 55).
Paradoxal justamente porque os artistas do Fino da Bossa, mesmo no nome,
apresentavam-se como sucessores da linhagem da Bossa Nova, enquanto os “jovem-guardistas” eram
tidos como alienados por seu descompromisso com temáticas de protesto nas letras e pela
aproximação com gêneros musicais americanos. Se por um lado a esquerda nacionalista do CPC
condenava esse tipo de proposta, Campos (1974, p. 56) via nesses cantores do iê-iê-iê uma
conciliação do “mass-appeal com um uso funcional e moderno da voz”.
Além das mudanças nos estilos vocais, a canção engajada passou a englobar elementos
rítmicos externos à Bossa Nova, como já começara a acontecer nos espetáculos teatrais. “O material
folclórico nordestino de Edu Lobo, o Samba-jazz de Elis Regina, o Samba urbano tradicional de
Chico Buarque, a canções épicas a base de moda-de-viola e a guaraña de Geraldo Vandré”35
(NAPOLITANO, 2001, p. 38), todos foram incluídos na sigla MPB que, naquela metade dos anos
que, ao menos àquela altura (início dos anos 2000), o que os pesquisadores franceses entendiam
como música popular é o que comumente chamamos de música folclórica. Ele ressalta, porém, que
já houve um entendimento similar ao francês no Brasil. Mário de Andrade, por exemplo, classi cava
como popular a música que hoje entendemos como folclórica, e como popularesca a que hoje
chamamos de popular. Foi apenas nos anos 1950 que surgiram autores como Alexandre Gonçalves
Pinto, Vagalume, Almirante e Ary Barroso, que passaram a realizar produções intelectuais sobre a
35
Ouvir como exemplo as faixas “Menino das Laranjas”, “Pedro Pedreiro” e “Disparada” na playlist.
55
música popular urbana, que passa a ganhar essa nomenclatura de forma mais frequente. Foi nos
anos 1960 que a sigla MPB passou a evocar um conjunto bastante especí co de signi cados:
A concepção de uma 'música-popular-brasileira', marcada ideologicamente e cristalizada
na sigla 'MPB', liga-se, a meu ver, a um momento da história da República em que a ideia
de 'povo brasileiro' — e de um povo, acreditava-se, cada vez mais urbano — esteve no
centro de muitos debates, nos quais o papel desempenhado pela música não foi dos
menores. (...) É nesse momento que gostar de MPB, reconhecer-se na MPB passa a ser, ao
mesmo tempo, acreditar em certa concepção de 'povo brasileiro', em certa concepção,
portanto, dos ideais republicanos (SANDRONI, 2004, p. 29).
A MPB está associada à categoria de “canção crítica” que Santuza Cambraia Naves (2010)
utiliza — um tipo de canção que se tornou o locus por excelência dos debates estéticos e culturais de
sua época. Os compositores populares passaram a comentar sobre todos os aspectos da vida e se
instituição cultural, como coloca Napolitano (2001). Se num primeiro momento ela parecia ter
limites estéticos bem de nidos pelas propostas da canção engajada, com a Tropicália (como
veremos) esses limites cam borrados. “A sigla MPB se tornou sinônimo que vai além do que um
gênero musical determinado, transformando-se numa verdadeira instituição, fonte de legitimação
na hierarquia sócio-cultural brasileira, com capacidade própria de absorver elementos que lhe são
originalmente estranhos” (NAPOLITANO, 2001, p. 7).
3.5 Tropicalismo
Caetano Veloso lançou seu primeiro LP, Domingo, em 1967, em parceria com a cantora
Gal Costa, também estreante. A faixa “Coração Vagabundo” destaca-se como um dos primeiros
sucessos dos dois. Caetano, porém, já atuava no mercado musical do eixo Rio-São Paulo há pelo
menos dois anos, quando ele se mudou para o Rio com sua irmã, Maria Bethânia, que fora
56
convidada a participar do Show Opinião. À época ela alcançou bastante sucesso com a gravação de
“Carcará”, e o compacto simples dessa faixa teve como lado B a canção “De Manhã”, composta por
Caetano. O compositor já havia participado também do espetáculo Arena Canta Bahia, dirigido
por Augusto Boal, e duas canções suas já haviam sido selecionadas para festivais televisivos: “Boa
Palavra” e “Um Dia”36, interpretadas pela cantora Maria Odette na TV Excelsior e na TV Record,
respectivamente37.
Quase todas as canções do disco Domingo foram composta por Caetano, com exceção de
duas canções de Gilberto Gil em parceria com Torquato Neto (“Minha Senhora” e "Zabelê”), uma
de Edu Lobo (“Candeias”) e uma de Sidney Miller (“Maria Joana”). Embora tenha sido lançado em
um período no qual a canção de protesto se estabeleceu como padrão de composição da MPB, o
disco aproxima-se muito mais da sonoridade da Bossa Nova da primeira fase. De fato, Veloso (1997)
conta que Gal Costa e ele eram foram profundamente in uenciados pelos três primeiros LPs de
João Gilberto, e essa referência aparece com muita clareza em Domingo, tanto na emissão vocal dos
dois cantores, como nos arranjos e timbres, muito distintos das tendências da MPB do período — e
também da estética das obras seguintes de Caetano.
Na contracapa do LP Domingo, que teve direção musical de Dori Caymmi, Caetano
menciona essa mudança: “Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha
inspiração agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos que segui até aqui”. Ele ainda
coloca: “a minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos e lugares, ao
contrário, quer incorporar essa saudade em um projeto de futuro” (VELOSO, 2005, p. 203).
Quando o LP foi lançado, Caetano já iniciava a desenvolver as propostas tropicalistas, ainda que não
tivessem essa nomenclatura à época. De fato, o LP foi lançado em julho e, já em outubro o cantor
participou do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record cantando “Alegria, Alegria”,
36
Ouvir as faixas “Coração Vagabundo”, “De Manhã”, “Boa Palavra”, “Um Dia” e “Avarandado” na playlist:
https://open.spotify.com/playlist/5vcSIlPfjkruI9UcyS6BqP?si=tx7fkR1tS5uoOVj5Rz-X-w.
37
A TV Excelsior teve os Festivais de Música Popular de 1965 e 1966: o primeiro consagrou Elis Regina interpretando a
canção “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes; o segundo, teve a vitória de Geraldo Vandré com a canção
“Porta-Estandarte”. Já a TV Record teve seu primeiro festival já em 1960, inspirado pelo festivais italianos de San Remo.
Essa primeira edição se chamou I Festa da Música Popular Brasileira e teve como vencedor o intérprete Roberto Amaral,
com a “Canção do Pescador” (Newton Mendonça). A segunda edição ocorreu apenas em 1966 e com muito mais
sucesso, principalmente pelo impacto que as canções vencedoras “A Banda” (Chico Buarque) e “Disparada” (Geraldo
Vandré, interpretada por Jair Rodrigues) tiveram. Para mais dados sobre os festivais da canção, cf. MELLO, Zuza
Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.
57
canção que, ao lado de “Domingo no Parque”, deu o “pontapé” inicial para o Tropicalismo, que,
entre outras coisas, abriu a MPB para a sonoridade do rock38.
O rock é um gênero presente no Brasil desde o nal dos anos 1950; as primeiras
composições do gênero no país datam de 1957. Em 1959, a cantora Celly Campello lançou alguns
de seus maiores sucessos, ajudando a divulgar o estilo nacionalmente. O repertório de rock era
marcado por “letras ingênuas, românticas, às vezes com certo humor adolescente” (ZAN, 2013, p.
104). Alguns anos depois, em 1965, a TV Record criou um programa voltado para jovens para
preencher o horário de domingo à tarde e o chamou de Jovem Guarda. Era liderado por Roberto
Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, além de contar com a participação de diversos outros artistas,
como Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Ronnie Von e a banda Renato e seus Blue Caps39.
Associados à sonoridade do rock inglês e do pop italiano, esse grupo de artistas liderou o
gênero musical que cou conhecido como iê-iê-iê (proveniente dos yeah-yeah-yeahs comuns nas
canções da primeira fase dos Beatles). Na Jovem Guarda, era muito comum que grupos musicais
zessem versões em português de canções internacionais: muitas canções dos Beatles, por exemplo,
foram traduzidas e interpretadas pelo conjunto Renato e seus Blue Caps. A formação instrumental
dos grupos era basicamente a de bandas de rock, com contrabaixo, bateria, órgão e a guitarra elétrica
(tão criticada, à época, por uma vertente da MPB nacionalista). Os grupos ainda podiam contar
com naipes de metais e orquestrações que remetiam à sonoridade da Motown, gravadora americana
reconhecida como berço do gênero soul. A in uência da música internacional no iê-iê-iê apareceu
também em outros elementos, como nas harmonias vocais no estilo de grupos americanos e
britânicos dos anos 60.
Caetano Veloso já tinha se familiarizado com o rock anteriormente. Ele conta que, em sua
juventude, assistiu a lmes como Rebelde Sem Causa e Rock Around the Clock, além dos lmes de
Elvis Presley, que o colocaram em contato com a música jovem americana (VELOSO, 1997). Esta
não lhe chamou a atenção, ele aponta, uma vez que, no mesmo período, conheceu a Bossa Nova,
38
Ouvir as faixas “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque” na mesma playlist citada anteriormente.
Ouvir os exemplos de canções da Jovem Guarda na playlist (“Quero que Vá Tudo pro Inferno”, “Festa de Arromba”,
39
“Feche os Olhos (All My Loving)” e “Menina Linda (I Should Have Known Better)”).
58
Enquanto os músicos da Jovem Guarda pareceram absorver muitas in uências da sonoridade dos Beatles da “Primeira
40
Fase” (Primeiros discos até o LP Help), as canções que Gil apresenta para Caetano (VELOSO, 1997) são todas da
Segunda Fase (depois do lançamento do disco Rubber Soul, em 1965). Ouvir exemplos na playlist (“Eleanor Rigby”,
“Tomorrow Never Knows” e “Strawberry Fields Forever”).
59
Ele conta que ao ver Terra em Transe, de Glauber Rocha, teve uma espécie de insight
(VELOSO, 1997). As alegorias que Rocha propõe como forma de crítica à situação brasileira
naquele período e, principalmente, a descrença na "energia libertadora do povo", que era a base do
pensamento de esquerda até então, pareceram profundamente radicais a Caetano e lhe direcionaram
para um posicionamento similar na música. De forma similar, a obra de Oswald de Andrade
causou-lhe grande impacto, principalmente a montagem de “O Rei da Vela”, dirigida por José Celso
Martinez Corrêa. Foi ali que Caetano teve o primeiro contato com a proposta antropofágica de
Oswald, que se tornou base para os experimentos tropicalistas.
A antropofagia propunha assimilar sob espécie brasileira a experiência estrangeira
(deglutí-la) e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais ineludíveis que dariam ao
produto resultante um caráter autônomo e confeririam, em princípio, a possibilidade de passar a
funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação.
Renovação estética das artes e letras brasileiras com a articulação de uma cultura nacional
ao mesmo tempo original (i.e., enraizada nas culturas populares do Brasil) e moderna (i.e.,
com base nas tendências literárias contemporâneas internacionais). A síntese da
originalidade nativa e da técnica cosmopolita criaria, como propôs Oswald de
Andrade, uma ‘poesia de exportação’, capaz de causar impacto internacional. O Brasil
deixaria de apenas importar e passivamente consumir a cultura dos países dominantes;
passaria a ser um exportador de cultura (DUNN, 2009, p. 29, grifos meus).
Para Caetano, a antropofagia oswaldiana era o oposto de "escolher o próprio coquetel de
referências"; havia muito rigor nas escolhas (VELOSO, 2012). Caetano enxerga claramente em João
Gilberto a atitude antropofágica, tanto na seleção de repertório como na utilização de informações
estéticas estrangeiras (a absorção de elementos do cool jazz, por exemplo). “As culturas colonizadoras
não deveriam ser submissamente imitadas nem xenofobicamente rejeitadas, mas simplesmente
‘devoradas’, visando elaborar um projeto cultural autônomo no Brasil” (DUNN, 2009, p. 36).
Inspirada pelas propostas de Oswald, a Tropicália propôs uma releitura da cultura brasileira que
“criticava as premissas nacionalistas e populistas” comuns ao universo da canção de protesto
brasileira (DUNN, 2009, p. 142). Por esse posicionamento, muitas vezes o Tropicalismo recebeu
críticas que consideravam o movimento “anti-nacional” ou “imperialista”, justamente pela abertura
a in uências externas.
60
Como apontou Napolitano (2007), criou-se uma suposta dicotomia entre “vanguardistas”
e “nacionalistas” — os primeiros representados pelos artistas da Tropicália (Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa) e os segundos associados à MPB “tradicional” (Edu
Lobo, Geraldo Vandré, Chico Buarque, ainda que cada um desses tivesse uma abordagem
inteiramente diferente). Nessa visão generalizada, os nacionalistas defendiam “a estilização
técnico-musical dos materiais que acreditavam ser 'populares', bem como a própria tematização
poética do ato de ‘cantar-para-o-povo’”, enquanto os vanguardistas almejavam “a revisão dos
códigos musicais e poéticos da 'moderna' MPB nacionalista, tachada de conservadora no plano
estético” (NAPOLITANO, 2007, p. 108).
Um dos primeiros trabalhos acadêmicos sobre a Tropicália foi feito em 1979 pelo lósofo
Celso Favaretto (1995), intitulado Tropicália: Alegoria, Alegria. Nesse trabalho, o autor analisa a
construção da estética tropicalista através do entendimento de seus procedimentos, entre os quais
ele menciona: carnavalização, alegoria do Brasil, crítica da musicalidade brasileira, crítica social,
cafonice, justaposição do arcaico e do moderno, união do lírico e do épico, paródia e transformação
do mau gosto em símbolo de contestação através do deboche.
Celestino ganha outras dimensões de interpretação quando é justaposta ao arranjo de Rogério
Duprat e o canto de Caetano, que trazem uma camada tragicômica ao primeiro plano da canção.
Quanto à justaposição de antigo e novo no interior do conteúdo, esse procedimento ca muito
claro no plano da letra da canção “Geléia Geral”42, de Gilberto Gil e Torquato Neto, que une
citações de Oswald de Andrade (“a alegria é a prova dos nove” frase do Manifesto Antropófago),
41
Ouvir as duas versões da canção na playlist.
42
A canção não está disponível na plataforma Spotify, mas pode ser ouvida no Youtube:
https://www.youtube.com/watch?v=dg594OQENew.
61
bumba-meu-boi, as escolas de samba Mangueira e Portela, “um LP de Sinatra” e uma paródia do
Hino à Bandeira Nacional (“Salve o lindo pendão dos seus olhos”).
Essa proposta tropicalista pode ser entendida como uma forma de explicitação das
crítica seja mantida, mesmo que com outras perspectivas. Ela ressalta que "é impossível entender a
canção tropicalista somente a partir dos seus elementos poéticos-musicais, pois esta recorre a
procedimentos intertextuais e dialoga “com a literatura, as artes plásticas, o cinema e o teatro"
(NAVES, 2010, p. 97). Além desse diálogo com outras artes, os diversos elementos internos da
música estão em correspondência estreita — melodia, letra, arranjos, capas de discos, cenários das
performances, gurinos, entre outros. Vejamos, por exemplo, a canção “Enquanto Seu Lobo Não
Vem”43, de Caetano Veloso. O título isoladamente já traz uma referência, no caso, ao clássico conto
de fadas Chapeuzinho Vermelho, e o Lobo Mau aparece na canção como alegoria para um inimigo à
espreita. A canção traz, entre outras citações, um trecho da canção “Dora”, de Dorival Caymmi (“os
clarins da banda militar”), cantado por Gal Costa. Esse trecho, tirado do contexto original, faz
alusão à repressão militar pela qual o Brasil passava no período. Diversos outros elementos sugerem
essa intertextualidade na canção, contribuindo para que esta tenha diversas camadas de
entendimento44.
43
Canção disponível na playlist do Spotify, assim como “Dora” de Dorival Caymmi, mencionada a seguir.
Conferir o interessante artigo de Eduardo Larson (2005), no qual ele analisa todos os elementos de intertextualidade
44
dessa canção.
62
quem os problemas da nação não se resolveriam numa perspectiva nacional-popular”, como nota
Santos (2015, p. 73).
Diversos autores já notaram também o uso de alegorias nas canções tropicalistas
(FAVARETTO, 1995; NAPOLITANO, 2001; DUNN, 2009). Como aponta este último, “na
de nição grega clássica, a alegoria denota qualquer representação verbal ou visual que ‘diz outra
coisa’, muitas vezes gerando obliquamente o signi cado por meio de abstrações gurativas”
(DUNN, 2009, p. 109). Como o autor também aponta:
A utilização da alegoria é frequentemente identi cada com expressões artísticas de derrota
política ou desilusão. Enquanto o símbolo constrói imagens de totalidade orgânica, a rma
[Walter] Benjamin, a alegoria representa a história como um conjunto heterogêneo de
fragmentos: ‘as alegorias estão para o reino do pensamento como as ruínas estão para o
reino das coisas (DUNN, 2009, p. 109-110).
“A Voz do Morto” (em gravações de Aracy de Almeida e de Caetano Veloso com os Mutantes) e “A Voz do Morro”
45
Favaretto (1995, p. 147-148) aponta como o Tropicalismo atua no plano da forma da
canção sem perder o cuidado com o conteúdo que acompanha:
Ao invés de expressar a realidade, desmonta, pela crítica da linguagem da canção, a ideia
mesma de realidade brasileira, e a de tipos característicos — mesmo porque nele não há
sujeito. O Brasil não é tratado como essência mítica, perdida — espécie de paraíso
devastado. Pela alegorização das inconsistências ideológicas, e pela desmontagem de suas
imagens-ruínas colecionadas no imaginário, estilhaça-se o Brasil. A prática que dessacraliza
essas imagens coincide com a que critica a canção tradicional: a atividade tropicalista
opera, portanto, na linguagem da canção, sem que com isso seja recalcado o político.
Tomemos como exemplo a canção “Tropicália”, de Caetano Veloso46. Na letra desta, a
cidade de Brasília é construída, primeiramente, como símbolo utópico do progresso nacional, onde
o cantor “inaugura o movimento”, passando a alegoria antiutópica do fracasso de uma
modernidade democrática no Brasil (FAVARETTO, 1995). Quando canta que “o monumento é de
papel crepom e prata”, o autor coloca o metal valioso ao lado do material descartável, numa
justaposição de contradições. Procedimento similar aparece na menção da criança “sorridente, feia e
morta” e os urubus que “passeiam a tarde inteira entre os girassóis”. A cidade utópica passou a
conviver com populações periféricas que viviam em pobreza; além disso, o símbolo da modernidade
de JK tornou-se moradia dos militares durante a ditadura. Contradições como essas são tematizadas
nas canções tropicalistas.
46
Ouvir a faixa na playlist.
47
Ouvir essas faixas na playlist.
64
Oiticica (autor da obra intitulada “Tropicália” que in uenciou a escolha do nome do movimento
musical), Rubens Gerchman (cujo quadro “Lindonéia” inspirou a composição tropicalista de
mesmo nome) e Lygia Clark (cuja obra “Pedra e Ar” in uenciou a composição de “If You Hold a
Stone”, de 1971).
Porém, como aponta Napolitano (2001, p. 187), “ao contrário de outras áreas da cultura
(e, sobretudo, da vanguarda) que rejeitavam o gosto médio, o Tropicalismo acabou por assumi-lo
como parte dos seus procedimentos criativos básicos”. Guilherme Araujo Freire (2015), ao analisar a
trajetória de Tom Zé no movimento tropicalista, utiliza o termo “vanguarda popular” como o
pesquisador José Adriano Fenerick o faz para se referir ao Tropicalismo, e aponta:
Deste modo, o autor [Fenerick] a rma como um dos mais claros exemplos de vanguarda
popular no Brasil o movimento da Tropicália, que gerou intenso debate cultural no
período e fomentou outras iniciativas experimentais no campo da música popular nas
décadas seguintes. No entanto, talvez pela decisão do grupo tropicalista por incorporar o
elemento pop e atuar na faixa de consumo de massa, sem abrir mão de explorar as
ambiguidades implícitas entre crítica e mercado, o Tropicalismo questionou desta
maneira a própria ideia de movimento. Assim como destacou Favaretto, por acolher os
produtos da indústria cultural e os justapor à tradição da canção popular brasileira, a
Tropicália foi contra ideia de ruptura, que sublinhou grande parte, senão a totalidade, das
manifestações “convencionais” das vanguardas, algo que pode ser interpretado como um
aspecto paradoxal de sua atividade (FREIRE, 2015, p. 5-6).
Os artistas da Tropicália assumiram uma estética pop, mesmo que com diversos elementos
experimentais. Como bem lembra Christopher Dunn (2009, p. 91),“essa utilização do termo ‘pop’
estava alinhada com a utilização de ‘popular’ na língua inglesa para denotar o apelo às massas e a
e cácia comunicativa, o que implicava uma mudança signi cativa em relação ao signi cado da
palavra ‘popular’ como fora empregada no Brasil até então”. Nesse apelo às massas, os tropicalistas
incorporam o lucro na atividade artística e colocam o aspecto estético e o aspecto mercadoria no
mesmo plano, como parte de um processo de dessacralização da obra artística e de enfrentamento
do maniqueísmo cultural daquele período que, quer de esquerda, quer de direita, condenava o
envolvimento comercial da arte (FAVARETTO, 1995). Aspectos da cultura brasileira massi cada
entraram para a estética tropicalista, como a gura do apresentador Chacrinha ou da cantora
Carmen Miranda.
65
Gostaria de destacar a relação do Tropicalismo com esta última. A cantora, além de ser
citada em canções como “Tropicália” e “A Little More Blue”, de Caetano Veloso, é mencionada por
este em diversos momentos (VELOSO, 1977; 1997; 2005) como musa do movimento, cujos
trejeitos Caetano constantemente imitou em palco. Gottardi e Carvalho (2020) identi cam em
Carmen Miranda um vestígio de performance art, termo que só se populariza nos anos 1960 e 1970.
Refere-se a uma expressão artística na qual o corpo é suporte e geralmente diversas áreas entram em
con uência — artes visuais, dança, teatro, música, etc.
Ao observar imagens e o corpo de Miranda é possível caracterizá-la como uma performer,
pois sua presença nos parece criar uma dimensão cênica entre o seu corpo como obra do
acontecimento e o público. De expressiva presença no cenário nacional e internacional da
década de 1930, o corpo de Miranda transcende os acessórios, em um conjunto vocal e
corporal (GOTTARDI; CARVALHO, 2020, p. 31).
Não só de Carmen Miranda, porém, que o estilo performático tropicalista recebe
in uências. Na performance art, as produções poéticas baseadas na ação são chamadas de
happenings, ações planejadas pelos autores nas quais o público não sabe o que vai acontecer —
sempre incluem um nível de imprevisibilidade. Em sua abordagem cartográ ca, Gottardi e Carvalho
(2020) perpassam quatro momentos especí cos da arte brasileira nos quais as ideias de novas
relações entre artista, obra e público já se faziam presentes: Semana de Arte Moderna de 1922,
Movimento Antropofágico, Movimento Neoconcreto — três momentos que in uenciaram
diretamente a obra de Caetano —, além do próprio Tropicalismo.
Em livro sobre Caetano Veloso, Guilherme Wisnik (2005, p. 67) comenta sobre o
Movimento Neoconcreto:
A inclusão do público na experiência cognitiva do trabalho de arte é uma conquista desse
mesmo movimento. No Brasil, o deslocamento do foco artístico do plano da obra para o
do receptor foi conduzido principalmente por Lygia Clark e Hélio Oiticica, com suas
obras sensoriais e ambientais, em que a tensão está posta tanto no compartilhamento de
'autoria' com o espectador-atuante quanto na demonstração de que a existência da obra
de arte se dá unicamente na experiência presente, no momento em que ela é penetrada,
manipulada ou vestida pelo público.
Como já foi mencionado anteriormente, Hélio Oiticica foi o criador da obra “Tropicália”
antes mesmo do movimento musical receber esse nome. A obra do artista performático tratava-se de
66
Figura 01: Caetano Veloso vestindo um parangolé de Hélio Oiticica.
Foto: Projeto Hélio Oiticica, 1968.
Naquele ano, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Tom Zé e Gal Costa
participaram novamente de festivais televisivos — os dois primeiros no III Festival Internacional da
Canção da Rede Globo, os dois últimos no IV Festival de MPB da TV Record, e os Mutantes em
ambos48. No festival da Record, os tropicalistas tiveram bastante sucesso com as canções “São São
Paulo, Meu Amor”, “2001” e “Divino Maravilhoso”, que alcançaram a 1ª, a 3ª e a 4ª colocação com
Além disso, o Tropicalismo esteve presente em diversos novos lançamentos em 1968, entre eles os discos Caetano
48
Veloso, Gilberto Gil, Nara Leão, Tom Zé e Os Mutantes, cada um de seu artista homônimo, e A Banda Tropicalista do
Duprat, de Rogério Duprat. O principal lançamento do movimento naquele ano, porém, foi o disco-manifesto
Tropicália ou Panis et Circencis, que, capitaneado por Caetano e Gil, uniu o trabalho de todos estes citados, além de
outros como Gal Costa, Torquato Neto e José Carlos Capinam. Com esse disco, aqueles procedimentos tropicalistas
que apareceram em "Alegria, Alegria" e em "Domingo no Parque" ganharam espaço e se expandiram.
67
esmagadora da plateia voltou-se de costas ao palco quando os Mutantes iniciaram a introdução da
música, movimento que foi prontamente imitado por essa banda, que passou a tocar de costas para
o público. Caetano, então, iniciou um discurso icônico para a plateia que, ao ouví-lo, voltou o olhar
ao palco com vaias e gritos. Apresento trechos da fala do cantor aqui:
Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês tem coragem de
aplaudir este ano uma música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado; a
mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu
ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. (...) Eu hoje
vim dizer aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura do festival, não com o medo
que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve essa coragem de
assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui eu. (...) Gilberto Gil está
comigo pra acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil.
Acabar com isso tudo de uma vez! Nós só entramos em festival pra isso, não é Gil? Não
ngimos, não ngimos que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me
ouviu falar assim. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos a coragem de entrar em todas as
estruturas e sair de todas, e vocês? E vocês? Se vocês em política forem como são em
estética, estamos feitos! (VELOSO, “É Proibido Proibir - Ambiente de Festival”, 1968).
Novamente, Caetano incorporou o happening como procedimento das performances
tropicalistas. Ainda em 1968, Veloso, Gil, Gal Costa, Tom Zé e Os Mutantes conquistaram um
49
As cinco faixas estão disponíveis para audição na playlist. A gravação da canção de Caetano é a que foi feita durante a
nal do festival, na qual o cantor faz um discurso acalorado para a platéia.
68
espaço televisivo com o programa Divino Maravilhoso, na TV Tupi. Caetano conta alguns dos
acontecimentos do programa, que durou apenas dois meses:
Fizemos um atrás de grades e dentro de gaiolas (o proscênio era tomado por uma grade de
madeira imitando ferro; outras jaulas menores, dentro da grande jaula que era o palco,
guardavam os Mutantes, Gal, Tom Zé etc.; Jorge Ben cantava dentro de uma jaula que
pendia do teto): no nal, eu vinha do fundo do palco berrando o sucesso de Roberto
Carlos "Um leão está solto nas ruas" e quebrava as grades, convidando todo o elenco de
participantes a colaborar comigo nessa destruição. A plateia de jovens identi cados com
nossa onda respondia com entusiasmo. Num outro programa, nos distribuímos um
pouco à maneira de Cristo e os apóstolos na Santa Ceia - lembrando o Buñuel de
Viridiana -, mas sobre a mesa havia apenas bananas. Cantávamos e comíamos bananas. Os
Mutantes zeram o "enterro" do Tropicalismo (VELOSO, 1997, p. 342).
Paralelamente, nos meses nais de 1968, Caetano fez uma série de apresentações na Boate
Sucata, no Rio de Janeiro, acompanhado de Gilberto Gil e dos Mutantes50. Ele conta (VELOSO,
1997) que a série de shows foi, possivelmente, a mais bem-sucedida peça do Tropicalismo, onde
puderam expor seus interesses estéticos ao máximo de suas capacidades. Não há vídeos dessas
apresentações, porém, o cantor descreve alguns dados desses shows:
Eu usava o mesmo traje plástico verde e negro das apresentações do TUCA — creio que
Gil e os Mutantes também mantinham o gurino — e levava às últimas consequências o
comportamento de palco esboçado desde “Alegria, Alegria”, estirando-me deitado no
chão, plantando bananeira e enriquecendo o rebolado cubano-baiano do “É Proibido
Proibir”. Mas o mais forte do espetáculo era o que Gil e os Mutantes faziam musicalmente
com o material escolhido. (...) O que ele e os Mutantes apresentavam nesse show tinha a
soltura e a independência daquilo que se impõe como fato novo, valendo por si, sem a
ansiedade nem a letargia provincianas (VELOSO, 1997, p. 309-310).
Nessas apresentações, novamente o contato com Hélio Oiticica do “grupo neoconcreto”.
Algumas gravações desses shows foram lançadas em um compacto duplo, que pode ser ouvido neste link:
50
https://www.youtube.com/watch?v=Z83vUxUoa0w.
69
Figura 02: “Seja marginal, seja herói” - Obra-Poema de Hélio Oiticica.
Foto: Projeto Hélio Oiticica, 1968.
Com todos esses exemplos, ca claro que o aspecto performático foi muito importante
para o Tropicalismo51. Dialogando com movimentos artísticos diversos, os tropicalistas colocaram a
corporalidade em primeiro plano dentro de sua estética: gestos, movimentos, gurinos e cenários
ganham o mesmo peso dos elementos estritamente musicais, como melodia, ritmo e harmonia. “A
exposição destabuizada do corpo, da presença carnal, aludindo a uma sexualidade múltipla e
andrógina, que se expõe à devoração coletiva" — essa é a característica do Tropicalismo que
Guilherme Wisnik (2005, p. 66) destaca como sua veia mais subversiva.
Ficam claras as diversas dimensões nas quais o Tropicalismo diferenciou-se da MPB
anterior a ele. Se de um lado a produção cultural brasileira dos anos 60 buscava a "dimensão coral", o
canto em uníssono de cantor e povo, uma frente única de resistência, os tropicalistas buscavam
sublinhar as disparidades, provocar cisões; trabalhavam com uma multiplicidade descontínua de
dicções e substituiam o compromisso nacional pela articulação do local com o global (NAVES,
2010). Os tropicalistas não deixaram de ter uma perspectiva nacionalista, no sentido de valorização
51
Foquei nas performances de Caetano no período devido ao escopo de meu trabalho. Não obstante, todos os
tropicalistas tiveram abordagens muito interessantes e especí cas no que diz respeito à performance. Para maior
aprofundamento na temática, recomendo o seguinte artigo, que aborda a corporalidade de Gal Costa nos anos 1970:
NOLETO, Rafael da Silva. “Eu Sou uma Fruta ‘Gogóia’, Eu Sou Uma Moça”: Gal Costa e o Tropicalismo no
Feminino. Per Musi, Belo Horizonte, n.30, p.64-75, 2014.
70
de material musical nacional. Porém, se o nacionalismo de Edu Lobo, por exemplo, “tentava
desenvolver, inicialmente, uma 'estilização' do material cultural 'arcaico' como base para encontrar a
consciência nacional adormecida”, o Tropicalismo queria “explicitar o choque do 'arcaico' com o
'moderno' como de nidor da historicidade brasileira" (NAPOLITANO, 2007, p. 117). A partir de
suas experimentações, os tropicalistas buscaram um “som universal” que, ao mesmo tempo, por
utilizar informações culturais muito locais, tornar-se-ia único.
3.6 Os Anos 1970
Diversos autores (ZAN, 1997; TATIT, 2004; NAPOLITANO, 2007) identi cam na
Bossa Nova e no Tropicalismo momentos-chave para o entendimento do conceito de MPB. A
passagem da década de 1960 para a de 1970 marcou o que o último autor chamou de
institucionalização da MPB, processo que se iniciou em 1959 com as primeiras gravações de Bossa
Nova e teve seu fechamento em 1968, quando o Tropicalismo encerra-se como movimento na
prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil52. Há, porém, uma diferença fundamental entre os dois
movimentos:
Essa diferença diz respeito à forma diferenciada pela qual ambos incorporam o problema
da tradição e da modernidade: na bossa nova 'modernidade' e 'progresso' (social, cultural e
econômico) parecem se confundir, apontando para a mesma utopia histórica. No
tropicalismo os procedimentos das vanguardas modernas são utilizados justamente para
separar, criticamente, as duas categorias (NAPOLITANO, 2007, p. 139).
A institucionalização da MPB, como aponta Napolitano (2007), ocorre devido ao
processo de rede nição sociocultural pelo qual esse “gênero” passou entre os dois movimentos
supracitados, o qual associou a MPB a uma cultura de protesto e resistência que, ao mesmo tempo,
gerava produtos altamente valorizados do ponto de vista econômico e sociocultural. Enquanto
“instituição”, a MPB “desenvolveu meios de difusão próprios, critérios especí cos de julgamento de
valor, um panteão de gênios criadores e um cânon próprio de canções paradigmáticas"
Essa é a visão que Veloso (1997) apresenta, embora possa-se argumentar que os procedimentos tropicalistas
52
permaneceram nos dois compositores (e nos outros envolvidos no movimento) ao longo de suas carreiras.
71
(NAPOLITANO, 2007, p. 140). As referências estéticas vinham de diversas vertentes, as quais
tiveram a MPB como ponto de convergência:
(...) do “rigor técnico” da Bossa Nova, das “utopias” do nacional-popular (canção
engajada, samba participante), das vanguardas formalistas (Musica Nova, Tropicalismo),
da tradição musical marcada pelos gêneros de consumo popular (samba, baião, marcha,
etc). Estas vertentes acabaram por formar um conjunto de criação tenso e dinâmico. A
sigla MPB não só indicava um gênero musical especí co, mas um conjunto de valores
estéticos e ideológicos e uma hierarquia de apreciação e julgamento exível, porém
reconhecível (NAPOLITANO, 2001, p. 268).
Em 1968, a opção pela guerrilha já era uma realidade política de diversos grupos de
resistência à Ditadura Militar. Na música, começam a surgir as críticas, feitas por alas da esquerda,
principalmente aquelas dos movimentos estudantis, às letras que tematizavam o "dia que virá"53. O
compositor Geraldo Vandré pareceu absorver essas críticas, que se re etiram em músicas como “Pra
Não Dizer que Não Falei das Flores (Caminhando)”, que traz versos como “Vem vamos embora que
esperar não é saber/Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, trazendo a atitude de protesto para
o presente e questionando os que acreditam “nas ores vencendo o canhão”. Porém, letras como
essa de Vandré, que “convocavam” à luta contra o governo, perderam espaço com a emissão do AI-5,
em dezembro de 1968, que acirrou a censura e deu poder aos militares de cortar direitos políticos de
qualquer cidadão considerado “subversivo”. Os compositores da MPB, nos anos 1970, atuaram de
formas distintas em relação a esse novo contexto que a eles se apresentava, o que veremos a seguir.
O “brasilianista” americano Christopher Dunn (2009) nota que já no Festival de MPB da
TV Record era visível a extensão da intervenção tropicalista na cultura nacional. Naquele evento,
participaram não só membros do grupo tropicalista original, como Gal Costa, Os Mutantes e Tom
Zé, como também diversos novos grupos inspirados pelo movimento. Para o autor, “os tropicalistas
53
Ouvir os exemplos “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas” (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes) e “A Estrada e o Violeiro”,
que trazem essa temática em versos como “A tristeza que a gente tem/ Qualquer dia vai se acabar/ Todos vão sorrir/
Voltou a esperança/ É o povo que dança/ Contente da vida/ Feliz a cantar” ou “Eu também quero um dia poder levar/
Toda gente que virá/ Caminhando procurando/ Na certeza de encontrar”. Ver a playlist:
https://open.spotify.com/playlist/0KsF0een0CR5q1clpxsdKK?si=i8zgvgyhS2KZkYtG9cwsMw.
72
tinham transformado o 'campo da produção cultural', mais especi camente o campo da música
popular brasileira" (DUNN, 2009, p. 163). Dunn também considera esse como o último festival
televisivo de grande impacto, marcando o “início do m” desse formato. Alguns fatores
contribuíram para isso, dentre os quais ele menciona: a) o fato de que as canções agora deveriam ser
submetidas à interferência dos censores do governo; b) a ausência, devido ao exílio, de muitos
músicos que haviam obtido sucesso em festivais anteriores, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e
Chico Buarque; c) a estrutura de concurso musical, que parecia cada vez mais obsoleta a alguns
artistas e críticos. De fato, sobre essa última questão, Dunn (2009, p. 167) cita uma fala de Gilberto
Gil, que observava: “Não gosto dos festivais. Preferiria que existisse uma coisa mais livre no Brasil,
uma grande feira de música, num lugar grande… ar livre, cada um cantando o que quisesse — como
os festivais de jazz de Newport nos Estados Unidos”. A visão de Gil propunha aproximações com a
contracultura americana, a qual foi incorporada, em diversos aspectos, na estética tropicalista.
A ideia de contracultura surge em São Francisco, nos Estados Unidos, por volta de 1967.
De acordo com Paulo Henriques Britto (2003), não se desenvolve como um movimento uni cado,
por haverem interesses muitos distintos. Apesar disso, alguns temas principais aproximavam os
jovens da contracultura: as discussões sobre uso de drogas, liberdade sexual e crítica ao sistema
político americano, principalmente relacionada à Guerra do Vietnã. “Aderir a uma comuna budista,
vegetariana e paci sta, tomar drogas ou entrar para um grupo que utilizava táticas de guerrilha
urbana eram maneiras alternativas de rejeitar um sistema que enviava jovens para lutar uma guerra
inexplicável na Indochina” (BRITTO, 2003, p. 192).
A Tropicália já sugeria alguns elementos da contracultura, entre eles uma preocupação
com o “aqui e agora” e a necessidade de revolução do corpo e do comportamento, o que aparece
com bastante destaque, como já vimos, nas performances tropicalistas. Como Heloísa Buarque de
Hollanda (2004) ressalta, o exílio de Caetano e Gil ocorreu justamente devido a esse aspecto da
crítica comportamental e do “deboche diante das atitudes ‘bem comportadas’”.
São então esses elementos de crítica sugeridos pelo Tropicalismo que serão intensi cados
nos anos seguintes, onde as preocupações com a modernidade e a descon ança em relação
à esquerda ortodoxa e à direita são aprofundadas, dando lugar a uma radicalização da
crítica comportamental e a um novo tipo de atuação, já presente na Tropicália, que
privilegia a intervenção múltipla, 'guerrilheira', diversi cada e de tom anarquista nos
canais do sistema (HOLLANDA, 2004, p. 71).
73
Nos anos 1970, no período que diversos autores chamam de pós-tropicalista, ocorre uma
intensi cação dos elementos da contracultura no Brasil, que teve diversas características análogas às
que não dissimula sua parcialidade e leva em conta abertamente a impressão e a subjetividade"
(HOLLANDA, 2004, p. 72). Esses jornais ajudaram a divulgar pensamentos contraculturais no
Brasil.
Como visto, a ideologia contracultural norte-americana continha uma proposta utópica
de sociedade, utilizava as experimentações no rock para representar sonoramente a psicodelia
provinda do uso de alucinógenos e tematizava, nas letras, a liberdade individual em todos os
O que Heloísa Buarque de Hollanda (2004) também ressalta é o fato de que a
contracultura veio acompanhada de um progressivo desinteresse pela política, que era tema central
das canções dos anos 1960. Ao mesmo tempo, ela aponta que, se por um lado as leituras marxistas já
não interessavam uma parte da juventude na nova década, por outro é possível visualizar uma
74
dimensão política no comportamento desviante desses grupos. O que ocorre, a seu ver, é uma
“mudança de foco nas preocupações, uma alteração na direção dos interesses, de certa forma, um
remapeamento da realidade” (HOLLANDA, 2004, p. 75).
Ainda assim, essa postura despolitizada é lida muitas vezes como “anti-intelectualista”, o
que se traduz em uma “rarefação do discurso” nas letras das canções. Por um lado, argumenta-se de
forma corrente que essa postura está ligada à censura. De fato, Gilberto Vasconcellos (1977, p. 39) já
apontava, à época, que a presença da censura “não age apenas enquanto ingerência exterior à
produção musical; ela interfere na sintaxe mesma do discurso da canção". Bozzetti (2007, p. 137) vai
além dessa explicação:
Com o m do tropicalismo e o silêncio imposto pelo exílio a Caetano e Gil, não havia
mais ‘como falar’; mas isso, creio que é apenas metade da verdade: a outra é que foi tão
avassaladora a seqüência desnorteadora do aluvião de propostas do tropicalismo e tão
frontalmente se chocou tal seqüência com os hábitos e modelos ‘explicativos’ anteriores da
intelectualidade brasileira, que a própria atividade intelectual, re exiva, foi posta em
dúvida (BOZZETTI, 2007, p. 137).
Britto (2003) discorre sobre diversas características dessa canção pós-tropicalista associada
à contracultura. Ele menciona: a) atmosfera de medo (presente em canções como “Para Nóia” de
Raul Seixas e “Filme de Terror” de Sérgio Sampaio; b) a tematização dos outsiders, os
marginalizados, como em “Nostalgia”, de Caetano Veloso, “Let’s Play That” de Jards Macalé e
“Charles Anjo 45” de Jorge Ben; c) a ausência e o exílio, em canções como “A Little More Blue” e
“London, London”, de Caetano, além de “Cantor de Mambo”, dos Mutantes; d) a solidão e o vazio
existencial (como nas canções “Caminhante Noturno”, dos Mutantes, “Movimento dos Barcos” e
“Hotel das Estrelas” de Jards Macalé e “One o’clock last morning, 20th april, 1970” de Gilberto
Gil); e) o m da utopia e do sonho, como nas canções “O sonho acabou”, de Gil, e “San Vicente”,
“Um Gosto de Sol” e “Pelo Amor de Deus”, presentes no disco Clube da Esquina, de Milton
Nascimento e Lô Borges; f) a loucura, como nas canções “Sociedade Alternativa” de Raul Seixas,
“Pobre Meu Pai”, de Sérgio Sampaio e “Balada do Louco” dos Mutantes; e g) exaustão, desânimo e
incerteza, presente em canções como “Vapor Barato” de Jards Macalé e Waly Salomão, e “Como
Dois e Dois” de Caetano Veloso54.
54
Todas essas faixas estão disponíveis para audição na playlist supracitada:
https://open.spotify.com/playlist/0KsF0een0CR5q1clpxsdKK?si=i8zgvgyhS2KZkYtG9cwsMw.
75
Fica claro que as temáticas elencadas por Britto estão todas relacionadas a algum tipo de
negatividade. Bozzetti (2007, p. 138-139) faz uma colocação importante sobre esses temas:
Acontece que essa negatividade não teria como se sustentar por muito tempo na série da
canção mediatizada, uma vez que justo nesses anos a indústria fonográ ca se organiza pra
valer em moldes propriamente capitalistas. Esse dilaceramento terá importantes
conseqüências para se entender os caminhos pós-tropicalistas dos anos 70 até nossos dias
(BOZZETTI, 2007, p. 138-139).
O autor aponta três categorias principais de canção na MPB nos anos 1970, as quais são
estabelecidas a partir de suas relações com o contexto de censura: canções de confronto, canções de
esgar e canções de fresta (termo que ele empresta de Gilberto Vasconcellos). As canções de
confronto tinham como característica, como coloca Bozzetti (2007, p. 140), a “pletora” do discurso;
a princípio não incorporavam elementos da contracultura, mas sim tinham a “crença persistente no
‘poder revolucionário da cultura’”; além disso, os compositores desse tipo de canção eram, em geral,
aqueles que estiveram associados à canção de protesto nos anos 1960. As canções de confronto
serviram para “desnudar o arbítrio e a violência do tempo, mas seu efeito mais imediato foi silenciar
os cancionistas”, como aponta Bozzetti, devido à forte censura.
Se a explicitação do confronto fosse muito evidente, em geral caía fácil nas malhas da
censura, sendo raras as exceções (“Pesadelo”, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro,
gravada pelo MPB-4, por exemplo, escapou), podando praticamente toda a safra do que
seriam os primeiros LPs de Gonzaguinha e de Sirlan55 (BOZZETTI, 2007, p. 141).
Aquelas canções associadas à contracultura que tematizavam a solidão, a paranóia, o medo
e a noite e possuíam um “discurso rarefeito” são as que Bozzetti chama de canções de esgar. O autor
inclui nessa categoria os discos Ou Não, de Walter Franco, Araçá Azul e o disco de 1969 de Caetano,
os LPs de Jards Macalé, Milagre dos Peixes de Milton Nascimento e Todos os Olhos e Estudando o
Samba, de Tom Zé56. Na relação entre melodia e texto dessas composições
55
A faixa “Pesadelo”, presente na playlist, contém versos como “Quando o muro separa uma ponte une/ Se a vingança
encara o remorso pune” e “Você corta um verso, eu escrevo outro/ Você me prende vivo, eu escapo morto”.
56
Todos esses discos com grande carga experimental e muitos deles associados aos compositores que receberam o título
de “malditos”, como Jards Macalé, Walter Franco e Tom Zé, por suas experimentações pouco acolhidas pela indústria
fonográ ca. Ouvir faixas como “Cabeça”, “De Conversa/ Cravo e Canela”, “Cadê” e “Um oh! E um ah!” presentes na
playlist.
76
o perene cede ao precário, a continuidade melódica choca-se com a descontinuidade da
fala e mesmo esta não se dá exatamente como tal, mas namora o grito, o silêncio, o esgar.
Isso se dá às vezes num verdadeiro embate interno, como se o que ali se dizia só pudesse ser
dito e só devesse ser percebido em frangalhos, como se a di culdade de dizer se
incorporasse ao próprio tecido da canção, como se aquilo que dissesse, sendo tão
fundamental e óbvio, tivesse que ser oculto, atirado à face de quem “não está entendendo
nada”. (...) É como se a “canção de esgar” buscasse ostensiva e agressivamente, em
quase desdém pelo receptor, o “feio”: a lírica lidando com sua negatividade
(BOZZETTI, 2007, p. 138, grifo meu).
O autor ainda nota alguns momentos de aproximação entre as canções de confronto e as
de esgar, citando músicas como “Calabouço”, de Sérgio Ricardo, e “Cálice”, de Gilberto Gil e Chico
Buarque57. Em ambas, há uma tematização da “urgência de dizer a verdade”, característica do
confronto, e a “impotência do dizer”, que se transforma em esgar.
Quanto à última categoria, a da canção de fresta, essa fazia uso de uma certa
“malandragem”, a “linguagem da fresta” que permitia que os compositores transmitissem
mensagens de protesto de forma codi cada. Para isso, diversos recursos eram acionados, como “a
elipse, a metáfora, a alegoria, con gurando muitas vezes um todo paródico” (BOZZETTI, 2007, p.
143). Esse tipo de composição surge quando as canções de confronto passam a enfrentar
di culdades, de forma sistemática, de entrada no mercado; a solução encontrada por diversos
compositores foi a escrita oblíqua como forma de ludibriar os censores e fazer suas músicas
chegarem ao público. Chico Buarque, por exemplo, fez uso da “linguagem da fresta” na canção
“Apesar de Você”, que passou pela censura e chegou a vender mais de 100 mil cópias, quando então
veio a ordem de proibição do governo, que ordenou o recolhimento de todos os compactos
impressos dessa faixa. Canções de confronto, esgar ou fresta — independente da abordagem
adotada por cada compositor, a MPB teve que lidar com o olhar de suspeita sob o qual foi colocada
1/3 rotações por minuto, determinou o mercado”. Foi uma década marcada pela força dos discos
57
Faixas presentes na playlist.
77
como unidade: em cada novo lançamento, os artistas da MPB buscavam apresentar uma
sonoridade, que se estabelecia no contexto do álbum. Para o autor, a crescente preferência pelo LP
“representou a personalização da criação e performance musical, reforçada pela Bossa Nova, e ligada
à necessidade de rotular as músicas na forma de “movimentos culturais”, visando uma realização
mais segura com o público consumidor” (NAPOLITANO, 2001, p. 63). Se nos antigos compactos
de 78rpm a única informação era a de qual gênero a canção pertencia, nos long-plays era preciso
associar a gravação a um compositor que, por sua vez, estava vinculado a um movimento cultural
especí co. Além disso, os discos de 33 e ½ rpm acompanhavam diversos elementos extramusicais
que ganharam importância:
Capa, encarte, textos de acompanhamento, estratégia de lançamento, roupa e penteado
dos músicos: tudo passou a ser relevante. As capas em particular, com seu formato
quadrado de 30 por 30 centímetros, foram um campo especialmente favorável a uma
diagramação criativa. O disco já não era mais um som: era um mundo para o qual
concorriam diferentes linguagens, um sistema de códigos, um modelo de vida (MAMMÍ,
2014, p. 8).
Na década de 1960, Chico Buarque e Geraldo Vandré foram colocados, por parte da
mídia, na posição de representantes da canção engajada e de uma retomada de gêneros
convencionais de raiz (Chico trazendo a marcha e o samba de Noel Rosa, e Vandré aproximando-se
da toada e da guarânia). Porém, enquanto o primeiro era pintado como um rapaz tímido e sensível,
o segundo era lido como o cantador agressivo e indignado, como aponta Napolitano (2007). Nos
anos 1970, Chico, ao contrário de Vandré, teve maior exibilidade temática e musical em seu
repertório para continuar em destaque na indústria musical, não se atendo apenas à temática de
protesto. Essa vertente, segundo Napolitano (2007, p. 127) “não chegou a se con rmar como parte
do setor mais dinâmico do mercado fonográ co”, uma vez que a MPB dos anos 1970 “mesclava
tradição lírica com protesto sutil, o que a afastava da tradição dos hinos revolucionários mais
explícitos, marca mais forte na nueva canción latino-americana"58. Aquela divisão entre
engajamento e alienação, no meio artístico, “não era mais capaz de descrever o novo campo de forças
que se desenhava" (WISNIK, 2005, p. 80). Este autor ainda comenta a questão do m dos festivais
televisivos e como isso re etiu uma mudança no cenário artístico:
Ouvir, por exemplo, canções de protesto icônicas como “Hermano Dáme Tu Mano”, de Mercedes Sosa, e
58
O declínio dos festivais nos anos 70 acompanha uma situação em que os grandes
acontecimentos musicais já não se dão mais na arena de eventos excepcionais e explosivos,
onde a canção procurava explicitar formal e tematicamente a sua função crítica. Bem
sedimentada no solo da indústria de consumo, que ampli cou signi cativamente o seu
alcance, a canção se distende e penetra no tecido social em registros novos, menos
evidentes porém mais pregnantes do que na 'era dos festivais'. Há, nessa passagem, como
diz José Miguel Wisnik, uma 'superação mitopoética dos antagonismos' (WISNIK, 2005,
p. 83).
eles destacam-se Ivan Lins e os parceiros de composição João Bosco e Aldir Blanc.
Gal Costa, após a repercussão de sua apresentação da canção “Divino, Maravilhoso” no IV
Festival de MPB da Record, de 1968, gravou, em 1969, dois discos que apostaram na sonoridade
tropicalista e no psicodelismo associado a esta. Em 1971, realizou no Brasil o show Fa-Tal, que cou
registrado no disco Fa-tal/Gal a Todo Vapor. Neste, um dos primeiros discos duplos da história da
MPB, a cantora adentra a sonoridade do rock com performances explosivas e catárticas, cantando
canções de Jards Macalé, Waly Salomão, Caetano Veloso e Jorge Ben, todas associadas àquele cenário
contracultural mencionado anteriormente. Maria Bethânia, que mesmo sendo irmã de Caetano
nunca realmente se associou ao Tropicalismo, desenvolveu uma carreira de bastante sucesso nos
anos 1970, tornando-se uma das maiores vendedoras de discos no Brasil de todos os tempos. Suas
apresentações tinham grande caráter teatral, incorporando também declamações de poesias entre as
canções e grande peso cênico.
79
Chico Buarque, que fora consagrado nos festivais dos anos 1960, autoexilou-se na Itália,
em 1969, frente às ameaças da Ditadura Militar. No retorno ao Brasil, apresentou, por um lado,
repertório crítico ao regime e às condições sociais no país e, por outro, canções de cunho bastante
intimista, o que aparece com expressão no renomado disco Construção, de 1971. Este inclui faixas
como “Deus Lhe Pague” e “Cordão”, que se adequam à primeira categoria, e “Valsinha” e “Minha
História”, mais condizentes com a segunda. Sua sonoridade ainda é fortemente calcada no samba,
embora agregue também cada vez mais elementos externos a este. Paulinho da Viola, que
timidamente havia aparecido em festivais no m da década de 1960, aparece com força nos anos
1970 como representante da tradição sambista, que, ao mesmo tempo, agrega elementos modernos
a essa música. Há também, nessa década, uma forte retomada de “sambistas esquecidos”,
principalmente pela ação da gravadora Marcus Pereira, a qual lançou discos de artistas como
Cartola, Dona Ivone Lara e Donga, além de coletâneas dedicadas ao repertório de escolas de samba
Esmeralda, de 1974; o segundo, deixando de lado o psicodelismo e adentrando o meio do rock
progressivo. Foi nesse contexto também que Rita Lee deixou o grupo e começou uma carreira solo
de sucesso, dentro da sonoridade do pop rock.
Novos grupos de MPB se associam ao rock de diferentes maneiras; alguns exemplos são
Novos Baianos, o Secos e Molhados e os artistas associados ao Clube da Esquina. O primeiro,
traçando uma nova relação entre o rock, o baião, o choro e a Bossa Nova; o segundo, unindo a MPB
ao glam rock, com a provocativa e andrógina performance de Ney Matogrosso — fortemente
inspirada em Caetano Veloso; e o terceiro, aliando o gênero ao jazz, à música latino-americana, à
música regional mineira e a diversas experimentações sonoras que tiveram grande aclamação por
parte de público e crítica. É ainda nessa primeira metade da década de 1970 que ganham destaque
alguns artistas cearenses, como Fagner, Belchior e Ednardo, os paraibanos Alceu Valença e Geraldo
80
Azevedo, que com suas experimentações musicais uniam o rock ao baião e ao frevo, e o roqueiro
baiano Raul Seixas.
A antropóloga Rita Morelli (2009) que analisou a indústria fonográ ca do período dando
destaque à posição de Belchior e Fagner na mídia, apontou que a crítica musical dos anos 1970
manteve uma certa preferência pelos músicos da Bossa Nova e do Tropicalismo, surgidos nos anos
1960, sendo mais negativas em relação aos músicos novos. A autora sugeriu alguns motivos para
Nova e o Tropicalismo, e que os novos nomes surgiam como cópias das propostas estéticas de
Caetano Veloso e Gilberto Gil. Por esse motivo, muitos cancionistas novos preferiram apresentar-se
antes como contestadores do Tropicalismo, “numa estratégia de ocupação do mercado de resto
bastante esperada, dado o predomínio dos baianos no campo da MPB ao qual esses novos artistas
buscavam ter acesso" (MORELLI, 2009, p. 79).
Como se pode notar, a MPB tornou-se espaço bastante disputado. Ela passou por diversas
transformações nos anos 1970, e Caetano Veloso muitas vezes esteve no centro delas. Levando em
consideração esse cenário artístico dos anos 1970, no próximo capítulo, analisarei as formas que esse
cancionista respondeu ao contexto, focando na investigação aprofundada dos procedimentos
composicionais e estéticos utilizados na criação do disco Jóia, lançado em 1975. Essa análise terá
4 O DISCO JÓIA
Caetano Veloso teve, nos anos 1970, uma de suas décadas de maior atividade artística. O
compositor lançou oito discos de estúdio — Caetano Veloso (1971), Transa (1972), Araçá Azul
(1973), Jóia (1975), Qualquer Coisa (1975), Bicho (1977), Muito - Dentro da Estrela Azulada
(1978) e Cinema Transcendental (1979) —, cinco álbuns ao vivo — Barra 69 - Caetano e Gil Ao
Vivo (1972), Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo (1972), Temporada de Verão - Ao Vivo na Bahia
(1974), Doces Bárbaros (1976) e Maria Bethânia e Caetano Veloso Ao Vivo (1978) —, e a coletânea
Muitos Carnavais (1977), com diversas composições carnavalescas, além ter lançado diversos
compactos simples e duplos. Grande parte desses discos esteve acompanhada de temporadas de
espetáculos pelo país, como o Show Transa, em 1972, que estreou no TUCA (SP) e percorreu
grandes cidades do país; as apresentações com os Doces Bárbaros, ao lado de Gilberto Gil, Maria
Bethânia e Gal Costa, que também geraram um documentário; shows do disco Bicho, ao lado da
Banda Black Rio, e do disco Muito, em 1978 e 1979; shows com Gal Costa em Roma, Milão,
Genebra e Paris, em 1978, só para citar alguns.
Caetano também participou de festivais importantes. Destaco o Festival Phono 73,
promovido por sua gravadora, Phonogram, com diversos artistas de destaque da música brasileira, e
o 2° Festival Mundial de Arte e Cultura Negra, em Lagos, na Nigéria, do qual participou em 1977,
ao lado de Gilberto Gil. A obra de Caetano Veloso também entrou no meio audiovisual, com
diversas participações em trilhas de novelas — como Sem Lenço e Sem Documento e Gina, da TV
Globo, e Salário Mínimo, da TV Tupi — e lmes, com destaque para a trilha composta para o
lme São Bernardo, de Leon Hirszman (1972). Nesta, Caetano grava apenas com a voz como
instrumento, fazendo diversas experimentações que, de forma similar, apareceriam posteriormente
nos discos Araçá Azul e Jóia.
Como escritor, Caetano foi colunista do jornal alternativo O Pasquim enquanto estava
exilado em Londres, e lançou seu primeiro livro, Alegria Alegria, em 1977, uma compilação de
diversos ensaios e artigos escritos por ele e reunidos por Waly Salomão. Além disso, Caetano
produziu diversos discos de outros artistas, entre os quais destaco os álbuns Drama - Anjo
82
Exterminado (1972) e Pássaro Proibido (1976), de Maria Bethânia, Cantar (1974), de Gal Costa, e
Smetak (1974), de Walter Smetak59.
Como se pode notar, foi uma década de grande fertilidade artística para Caetano Veloso.
Guilherme Wisnik (2005, p. 76) comenta que as canções do compositor no período estão
“profundamente marcadas pelas re exões sobre 'o ser e o tempo', e sobre 'o ser e o nada'. Quer dizer,
sobre questões importantes postas pelo existencialismo sartriano, tais como a responsabilidade da
ação individual em meio à coletividade e a condenação à liberdade". Tendo identi cado esses pontos
em comum nas canções de Caetano daquela década, é preciso dizer que todos os seus discos
lançados no período são muito diferentes entre si, tanto em abordagem quanto em execução. Para
entender as especi cidades do disco Jóia, traço alguns comentários sobre os discos anteriores do
compositor nos anos 1970.
Durante o exílio londrino, Caetano Veloso lançou dois álbuns de estúdio: Caetano Veloso
(1971) e Transa (1972). Ele comenta que esse período foi essencial para o estabelecimento de novos
procedimentos em sua obra. Até então, Caetano havia apenas atuado como cantor nas gravações de
seus discos; a partir dos discos de Londres, ele passa a gravar também as partes de violão:
A maior contribuição da Inglaterra para a minha formação musical, no entanto, foi a
aceitação, por parte de produtores e ouvintes, do meu modo de tocar violão. Mostrei
‘London, London’ a Lou Reisner dizendo-lhe que, para o disco, pediríamos a Gil ou a
algum guitarrista inglês que me acompanhasse. Ele reagiu com veemência, argumentando
que um bom músico de estúdio tiraria toda a graça especial da canção: ‘Ele pode tocar
bem, mas não tocará como você. E quem lhe disse que você toca mal?’. Quando eu tocava
bossa nova, o despreparo do ouvido inglês (e americano) para julgar trabalhava a meu
favor. O resultado é que me desembaracei e, embora saiba que não toco bem, posso hoje
orientar grandes músicos a partir do que esboço no violão, coisa que jamais sonharia em
fazer antes de Londres (VELOSO, 1997, p. 439).
Nos dois discos, a maioria das canções registradas compostas pelo cantor possuía letras em
inglês, o que também é uma novidade em sua discogra a60. Em ambos, os únicos trechos cantados
em português são citações de outros compositores da MPB ou de canções tradicionais. O disco de
1971 é marcado por grande melancolia, que se apresenta nas letras, melodias e arranjos. Esse disco,
59
Todas essas informações podem ser encontradas na biogra a disponibilizada no site do cantor:
http://www.caetanoveloso.com.br/biogra a/.
60
Em seu disco de 1969, Caetano gravou as composições “The Empty Boat” e “Lost in the Paradise”. São duas exceções
em sua obra, embora possamos entendê-las como uma prévia dos procedimentos dos discos seguintes, nos quais a língua
inglesa ganha lugar central, o que ocorre, principalmente, pelo contexto geográ co no qual Caetano estava inserido.
83
assim como o Transa, pode ser associado às “temáticas noturnas” mencionadas no capítulo anterior,
que tiveram bastante espaço na contracultura brasileira. O Caetano Veloso de 1971 não surge
sozinho; ele responde a um contexto que contava com gravações de Jards Macalé, Gal Costa, Sérgio
Sampaio, Os Mutantes e Raul Seixas que já traziam esse elemento de tristeza, melancolia e solidão.
Ao mesmo tempo, o disco de Caetano, especi camente, tematiza essas questões do ponto de vista
do cantor exilado e, com isso, traz perspectivas únicas a esse meio.
O LP conta com sete faixas, as quais são seis composições de Caetano Veloso (“A Little
More Blue”, “London, London”, “Maria Bethânia”, “If You Hold A Stone”, “Shoot Me Dead” e
“In the Hot Sun of a Christmas Day”, todas cantadas em inglês) e uma versão de “Asa Branca”, de
Luiz Gonzaga61. Esse disco marca uma mudança grande nos arranjos das músicas do cantor. Até o
disco de 1969 a maioria das gravações possuía um acompanhamento orquestral, seja dentro da
estética bossanovista dos arranjos de Dori Caymmi para o disco Domingo, seja nos discos
muito vivas, que reforçavam certo elemento psicodélico ou parodiavam imagens da cultura
brasileira. As capas dos LPs Caetano Veloso (1968) e Tropicalia ou Panis et Circencis demonstram
isso:
61
O álbum está disponível para audição na plataforma Spotify:
https://open.spotify.com/album/0lq9Ise0K45Nh8mZ5OERzk?si=lWxJtL-wS9O5St2tyxXfPw.
84
Figura 03: Capas dos discos Caetano Veloso e Tropicalia ou Panis et Circencis, ambos de 1968.
Noto também nessas capas certas referências a outras de discos de bandas de rock inglês,
como os LPs Odessey and Oracle, de The Zombies (principalmente nas cores, nos elementos da
natureza e na fonte do texto do disco Caetano Veloso) e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos
Beatles (o qual, assim como no Tropicalia ou Panis et Circencis, conta com diversas pessoas
Figura 04: Capas dos discos Odessey and Oracle (1968) e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967)
O disco seguinte, Caetano Veloso (1969), parece direcioná-lo em sentido totalmente
oposto. Se as capas dos dois primeiros discos tropicalistas reforçam a extravagância, o colorido, a
paródia e a psicodelia, o disco de 1969 conta com uma capa totalmente branca, com apenas a
85
assinatura de Caetano no centro. Aqui é possível traçar outro paralelo com os Beatles, agora com
relação ao disco The Beatles, de 1968, o qual, de forma muito similar, tem a capa branca e apenas o
nome da banda no canto direito. Ambos, inclusive, passam ser referidos como “O Álbum Branco”
de cada autor.
Figura 05: Capas dos discos Caetano Veloso (1969) e The Beatles (1968)
A capa do disco de 1971 não segue nem a linha extravagante dos primeiros LPs, nem o
minimalismo da capa de 1969. Esse possui uma foto de Caetano com cabelo e barba longos, no frio
londrino, com semblante que re ete a melancolia do exílio:
Figura 06: Capa do disco Caetano Veloso (1971)
86
buscava e esses procedimentos, por sua vez, inspiram diversas experimentações presentes no disco
Araçá Azul.
Se no disco de 1971 Caetano fez sua estréia tocando violão, no Transa seu instrumento
tornou-se a base de todas as canções, sobre a qual os arranjos foram construídos de forma coletiva63.
62
Aquelas nas quais, em vez de ocorrer o movimento de um acorde de função dominante para outro de função tônica, o
que é a estrutura básica de sistemas tonais, o acorde que precede a tônica possui função subdominante. Esse tipo de
cadência tornou-se muito comum em canções de rock.
63
Para ouvir o disco Transa, ver:
https://open.spotify.com/album/4NIGwEvudtT3KZrYPymOmz?si=ptxGk9ErTnK7yfo35SibVQ.
87
Figura 07: Capa do disco Transa (1972)
Em um artigo que escrevi ao lado do professor Allan de Paula Oliveira (2018, p. 123),
indicamos que o disco Transa pode ser ouvido como “um índice de consolidação da MPB enquanto
gênero musical – em um processo que abarca, aproximadamente, o período entre 1965 e 1975”.
Notamos também que:
Transa representa o momento onde as apropriações feitas pela MPB começavam a ser
estáveis (reconhecidas por um público). Três anos antes, em 1969, Caetano Veloso era
ouvido, por muitos, como um artista oposto à ideia de MPB, e Transa representa um
momento onde se pode ouvir o englobamento, por parte da MPB, de sonoridades que, até
então, eram ouvidas como excluídas da sua de nição. De certa forma, em 1969 o rótulo
MPB ainda estava em processo de estabilização, sendo que “o que era” e o “que não era
MPB” ainda era motivo de extremos debates” (OLIVEIRA; SCHMIDT, 2018, p. 136).
O disco Transa é quase totalmente construído com base em citações musicais e
extramusicais de diferentes contextos: a canção de protesto dos anos 1960, a Bossa Nova, o pop, o
São elas: “You Don’t Know Me”, “Nine Out of Ten”, “Triste Bahia”, “It’s a Long Way”, “Mora na Filoso a” (de
64
Monsueto de Menezes e Arnaldo Passos), “Neolithic Man” e “Nostalgia (That’s What Rock’n’Roll Is All About)”.
88
universo cultural baiano (representado pela poesia de Gregório de Matos, as canções de Dorival
Caymmi e cantos de capoeira e samba de roda), o baião, o folk e o blues, todos entram no universo
sonoro desse disco. Embora as citações já apareçam nos discos tropicalistas, há, no disco Transa,
uma diferença em seu uso.
Nos discos tropicalistas, as citações são estendidas, na forma de regravações inteiras de
canções de outros compositores. o caso de Coração Materno, Três Caravelas e do Hino ao
Nosso Senhor do Bon m, no disco Panis et Circensis (1968); e Cambalache, Carolina e
Chuvas de Verão, no disco de 1969. A versão destas canções na íntegra é, de certa forma,
um procedimento citacional. Mas ele opera com intenções e procedimentos distintos. O
primeiro deles é o humor e a paródia, com intenções satíricas, central na escuta de uma
canção como Coração Materno e Três Caravelas. (...) O segundo deles – e muito
importante aqui – é o fato de que estes procedimentos citacionais, nestes discos
tropicalistas, estão muito vinculados à questão dos arranjos. Neste ponto, a gura de
Rogério Duprat – arranjador que trabalhou nos dois discos de 1968 e no disco de 1969 –
é central. Esse uso tropicalista das citações aparecem em Transa na versão de Mora na
Filoso a, samba de Monsueto Menezes e Arnaldo Passos. No entanto, nesta versão o
sentido humorístico já não existe, nem na interpretação, nem no arranjo. (OLIVEIRA;
SCHMIDT, 2018, p. 129).
Essas citações articulam tradição e modernidade no plano interno das canções, como já
ocorria no Tropicalismo. No Transa, porém, não há o sentido de expor o absurdo de choque e as
contradições que ele gera, mas sim de colocá-los num mesmo plano de gosto musical. Com exceção
da canção “Mora na Filoso a”, as citações no disco assumem as formas de vinhetas, em um “jogo de
justaposição de elementos que dá às citações um caráter mais explícito. Enquanto nos discos
tropicalistas elas são, muitas vezes, sub-reptícias, exigindo do ouvinte uma ‘competência linguística’
especí ca na escuta dos arranjos, em Transa elas se tornam mais explicitadas” (OLIVEIRA;
SCHMIDT, 2018, p. 129). Através de repetições — de versos, progressões harmônicas e temas
melódicos — que se tornam estratégia de signi cação (LUCCHESI, DIEGUEZ, 1993), Caetano
une elementos que, em um primeiro momento, seriam díspares, como a canção “The Long and
Winding Road” dos Beatles, versos do paraibano Zé do Norte e o afro-samba “Consolação”, de
89
Antes, o pessoal da esquerda não entendia o Tropicalismo e, depois, porque a gente foi
para a prisão e o exílio, viramos um pouco heróis, um tanto mártires. E isso causou
problemas quando a gente voltou da Europa, porque aí se esperava de nós um
esquerdismo que nunca tinha sido o nosso, que eles próprios tinham reconhecido,
agressivamente, que não era o nosso (Revista do CD, maio de 1992) (LUCCHESI;
DIEGUEZ, 1993, p. 251).
Como conta Ana Maria Bahiana (1980), havia certa expectativa de público e crítica que
novos movimentos surgissem nos anos 1970, com os artistas na liderança da resistência contra a
ditadura. Em sua coletânea de entrevistas, ca claro que, em algum momento, esperou-se que
Caetano ocupasse essa posição, assim como Chico Buarque, Gilberto Gil e Milton Nascimento65.
Transa o compositor utilizou a formação de banda em todo o álbum, conferindo uma unidade ao
disco, no Araçá Azul a sonoridade varia em cada faixa, e a experimentação é priorizada. Esse caráter
experimental já aparece na capa, na qual não há nenhuma inscrição verbal que identi que o autor
ou título do disco, apenas a imagem de Caetano, com o corpo desnudo, de frente a um espelho em
posição oblíqua:
Figura 08: Capa do disco Araçá Azul (1973).
Lucchesi e Dieguez (1993, p. 98) fazem uma interpretação interessante da imagem
retratada:
Para Lacan, deparar com o corpo re etido no espelho origina a consciência da imagem de
si, manifestação do narcisismo primário. É, portanto, através do espelho que se conquista
o sentido do corpo, redundando na con guração do ego. (...) Araçá Azul, como símbolo
de um retorno às origens, pode representar um exercício de criação lítero-musical movido
por um impulso de regressão narcísica, pulsão positiva própria de quem superou o corte
mortal do exílio e das situações dolorosas que o antecederam. Ao momento do sujeito
para retomar a si o corpo, que, durante a prisão, fora objeto do sadismo do outro. O
mesmo princípio teria continuidade na capa do LP Jóia, não fosse atitude interventora da
censura a impedí-lo.
Mais além, esses autores entendem o LP como metáfora do renascimento — no qual há
descoberta do som, das sílabas, da formação de palavras e, por m, a conversa. A primeira ocorre em
faixas como “De Conversa/Cravo e Canela”, na qual Caetano passa quase cinco minutos utilizando
91
a voz de maneiras não-convencionais: com grunhidos, sons guturais, assovios, gritos e murmúrios,
os quais formam, em alguns momentos, melodias incidentais. Caetano leva ao extremo os limites
entre fala e canção e as fronteiras entre música e ruídos. As descobertas de sílabas e palavras podem
ser identi cadas em faixas como “Gilberto Misterioso” e “De Palavra em Palavra”, enquanto a
“conversa” é aos poucos construída em “Júlia/Moreno”, cuja letra acrescenta, em cada verso, uma
nova palavra que confere sentido à frase.
Se no disco Transa a sonoridade de banda conferia certa unidade estética ao álbum, no
Araçá Azul a formação instrumental é bastante diversa, incluindo: voz e prato, superposição de
vozes, arranjos orquestrais, banda de rock, e voz e violão. A unidade, neste disco, está nos processos
de montagens que implicam na exacerbação dos contrastes de sonoridades justapostas. Isso reforça
uma postura de experimentalismo, que é priorizada em todas as faixas — nos usos da voz, nas
progressões harmônicas, nas (des)construções melódicas, nas letras, nos timbres e nos arranjos.
Caetano comenta sobre as gravações desse disco, que ocorreram no nal de 1972:
Hospedei-me num hotel colado ao estudo Eldorado — o único do Brasil que, então, tinha
oito canais — e comecei a improvisar peças muito livremente concebidas. André Midani,
o presidente da PolyGram Brasil, sempre inacreditavelmente inteligente (e chique) para
um homem na sua função, concordara em deixar-me sozinho com o técnico e seu
assistente, sem nem sequer receber visitas de quem quer que fosse da gravadora
(VELOSO, 1997, p. 485).
O depoimento do cantor re ete, de um lado, o prestígio que ele tinha entre os executivos
da Polygram e, de outro, a abertura que a gravadora dava para procedimentos experimentais. Em
1973, houve uma crise mundial do petróleo, matéria-prima dos discos de vinil, o que gerou, no
Brasil, um aumento nos preços dos discos, retração nas vendas e consequente queda dos preços no
mesmo ano. É interessante notar como essas novas questões in uenciaram os procedimentos das
gravadoras:
De fato, em 1974, falando sobre as mudanças que fatores conjunturais como a crise do
petróleo e a in ação haviam provocado na forma de atuação de sua companhia no Brasil, o
ainda então diretor da Philips-Phonogram, André Midani, dizia que tinha sido
provisoriamente abandonada a antiga preocupação da gravadora com novas contratações e
com a descoberta de novas vanguardas, preocupação essa que teria sido intensa na fase dos
festivais da televisão" (MORELLI, 2009, p. 99).
92
Entre 1974 e 1975, Jards Macalé, Sérgio Sampaio e Luiz Melodia foram demitidos do
elenco da Philips-Phonogram, justamente por não terem um número alto de vendas de discos. O
mesmo André Midani que havia dado “carta branca” para Caetano gravar o que quisesse em estúdio
precisou, um ano depois, abrir mão de artistas com abordagens mais experimentais, devido às novas
circunstâncias — o que me leva a crer, caso tivesse sido gravado um ano depois, o Araçá Azul
poderia não ter sido lançado.
Toda a produção de Caetano Veloso no início dos anos 1970 tem algum nível de
experimentalismo, que, como vimos, aparece nos usos da voz em “Asa Branca”, do álbum de 1971,
nas colagens de citações no Transa, no Araçá Azul como um todo e em diversas propostas do disco
Jóia. Há, dessa maneira, uma aproximação da canção popular com a vanguarda artística, no sentido
de que toda vanguarda rompe com padrões estéticos canônicos, é polêmica e atua de forma a
“desorganizar” o campo artístico. A vanguarda como movimento, porém, pressupõe um forte
diálogo com o contexto no qual se insere; é um fenômeno que requer condições especí cas, um
ambiente no qual diversos campos da arte dialoguem e construam, coletivamente, novas propostas
de ruptura. Se no nal dos anos 1960 as propostas estéticas do Tropicalismo podem ser entendidas
como um movimento de vanguarda, isso é porque elas se re etiram não só na música popular, mas
também no teatro, no cinema, nas artes visuais e na poesia. Já quando Caetano lança o disco Araçá
Azul, em 1973, esse ambiente de vanguarda já havia se esgotado, e o disco não tem o mesmo efeito
que a Tropicália teve. Resta a ele o experimentalismo não como movimento, mas como
procedimento individualizado, que, apesar disso, segue não sendo isolado de um contexto maior.
Umberto Eco (2016, p. 224) aponta que, na música, “é experimental o comportamento de
debruçar-se sobre o mundo dos sons para estudá-lo e estabelecer possibilidades até então
desconhecidas". A atitude experimentalista permite que o artista “regule seus passos de acordo com
a natureza do percurso e não segundo a lei de certo número de referências xas" — o artista tem
liberdade de inventar a regra de sua obra no processo de composição. Isso difere, segundo o autor,
de procedimentos da música dita “tradicional”, a qual “entregava ao músico uma série de relações
sonoras já esclerosadas pela tradição e não-repudiáveis, obrigando-o de nitivamente a alguns modos
de formar já pré-formados antes mesmo que ele começasse a formar" (ECO, 2016, p. 225). Nas
ciências da natureza o método experimental tem como essência o questionamento de tudo que se
sabe sobre um objeto, mudando inclusive suas abordagens para adequá-las a o que se estuda.
93
Colocando esse método na arte, o autor compara os procedimentos de músicos tradicionais e
artistas contemporâneos:
O músico tradicional que compunha entre os séculos XVII e XIX, por exemplo, podia
tentar as mais ousadas e inéditas inovações formais, mas não colocava em dúvida alguns
princípios basilares que fundamentavam a própria possibilidade da comunicação musical,
como o princípio da tonalidade, por exemplo. (...) como a atitude, se me permitem um
paralelo político, do reformista e do conservador iluminado e não do revolucionário. O
artista contemporâneo comporta-se, ao contrário, como o revolucionário: destrói
completamente a ordem que lhe foi entregue e propõe outra (ECO, 2016, p. 226).
Observo todas essas características no disco Araçá Azul, principalmente uma atitude de
questionamento das estruturas musicais tradicionais, relacionadas a a nações temperadas,
construções melódicas, o sistema tonal e os instrumentos musicais convencionais. Com isso,
Caetano ganha novas possibilidades composicionais; estas não são descartadas no disco Jóia, mas
incorporadas a estruturas de canção: o experimentalismo não é a base do álbum, mas uma
ferramenta entre tantas outras que o compositor utiliza.
Iniciando minha análise desse disco67, tomei nota de aspectos que me chamaram a atenção
em cada uma das faixas, levando em consideração o conceito de “atenção a valores” proposto por
c) Ritmos, Levadas e Gêneros Musicais, d) Versões e Covers; e)Usos (Incomuns) da Voz; f)
Arranjos, Texturas e Instrumentações; g) Construções Poéticas; h) Diálogos com o disco Qualquer
Coisa.
São 13 faixas presentes no disco: “Minha Mulher”, “Pelos Olhos”, “Asa, Asa”, “Lua, Lua,
Lua, Lua”, “Canto do Povo de um Lugar”, “Tudo, Tudo, Tudo”, “Jóia” e “Gravidade”, compostas
67
O disco está disponível para audição em diversas plataformas, como o Spotify:
https://open.spotify.com/album/1As0JHxpH3pj1eGeY1XK35?si=i3sgqwXLSMW1GbkHYfC8qA. Recomendo a
audição para melhor compreensão das análises que farei.
94
inteiramente por Caetano; “Guá”, composta em parceria com Perinho Albuquerque68; “Pipoca
Moderna”, composta originalmente por Sebastião Biano e letrada por Caetano Veloso;
“Escapulário” que teve o processo inverso ー Caetano musicou um poema de Oswald de Andrade;
além de “Help”, compostas por John Lennon e Paul McCartney, e “Na Asa do Vento”, de autoria
de João do Vale e Luiz Vieira. O disco teve produção de Caetano Veloso e Perinho Albuquerque. A
tabela abaixo contém as informações lançadas na cha técnica do disco:
01 Minha Mulher 04:52 Caetano Veloso Caetano Veloso (voz e violão) e Gilberto
Gil (violão).
03 Pelos Olhos 02:35 Caetano Veloso Caetano Veloso (voz e violão), Altamiro
Carrilho, Celso Woltzenlogel, Franklin
Corrêa da Silva e Jorge Ferreira da Silva
( autas), Perinho Albuquerque
(arranjo).
04 Asa, Asa 01:38 Caetano Veloso Caetano Veloso (vozes) e Djalma Corrêa
(percussão).
05 Lua, Lua, Lua, 04:02 Caetano Veloso Caetano Veloso (voz) e Antônio Adolfo
Lua (órgão). Percussão não identi cada na
cha.
06 Canto do Povo 04:12 Caetano Veloso Caetano Veloso (voz) e Grupo Bendengó
de um Lugar (diversos)69.
07 Pipoca Moderna 03:12 Sebastião Biano e Caetano Veloso (vozes), Bira da Silva e
Caetano Veloso Enéas Costa (percussão), Tuzé de Abreu
( auta) e Antônio Perna Fróes (arranjo).
Cordas friccionadas não mencionadas na
cha técnica.
68
Irmão do contrabaixista Moacir Albuquerque, com quem Caetano trabalhara no disco Transa.
69
O Bendengó foi um grupo vocal e instrumental, fundado pelo compositor Gereba, que misturava a sonoridade de
ritmos nordestinos ao rock e a música psicodélica. A cha técnica não especi ca os instrumentos que eles executam, mas
é possível identi car, na gravação, um violão de aço, um contrabaixo elétrico, possivelmente uma viola caipira e um
órgão.
95
09 Help 02:31 John Lennon e Paul Caetano Veloso (voz e violão)
McCartney
10 Gravidade 02:56 Caetano Veloso Caetano Veloso (voz e violão), Bira da
Silva (percussão), Enéas Costa (bateria),
Moacyr Albuquerque (contrabaixo
elétrico), Perinho Albuquerque
(guitarra), Tuzé de Abreu ( auta)
11 Tudo Tudo 02:01 Caetano Veloso Caetano Veloso (vozes, palmas), Antônio
Tudo Perna Fróes (arranjo)
12 Na Asa do Vento 04:08 João do Vale e Luiz Caetano Veloso (voz e violão)
Vieira
13 Escapulário 02:17 Caetano Veloso e Caetano Veloso (voz), As Gatas (coro),
Oswald de Andrade Cream Crackers (percussão) e Tutty
Moreno (bateria)
Após o lançamento do disco Araçá Azul em 1973, Caetano demorou dois anos para lançar
outro álbum de estúdio. No meio tempo, em 1974, lançou o disco ao vivo Temporada de Verão, que
é a gravação do show apresentado por Gilberto Gil, Gal Costa e ele no Teatro Vila Velha, em
Salvador. Quando Caetano lançou, em 1975, os discos Jóia e Qualquer Coisa, o cantor já estava com
bastante material acumulado daqueles anos.
Demorei a fazer os próximos discos que foram Jóia e Qualquer Coisa, porque eu queria
fazer canção, mas queria que fosse canção pós Araçá Azul. Jóia é muito assim, e o
Qualquer Coisa eu z justamente as duas coisas porque não tem esse critério, é canção
mesmo. Joia era uma coisa de canções pós Araçá Azul, eu gosto de canção. Eu queria
voltar à canção, demorei por isso (VELOSO, 2010, s/p, grifo meu).
Ao falar de “canção pós Araçá Azul”, Caetano está se referindo à grande carga de experimentalismo
presente neste disco, que também se transfere para o Jóia, mas dentro de estruturas musicais mais
tradicionais. Antes, porém, de analisar essas estruturas, volto meu olhar para a primeira dimensão
com a qual o ouvinte do disco entra em contato: o projeto grá co, incluindo capa, contracapa e
96
4.1 O Projeto Grá co
Os discos Jóia e Qualquer Coisa foram os primeiros discos gravados por Caetano Veloso no
Rio de Janeiro desde seu disco de estreia, Domingo — todos os outros foram gravados ou em São
Paulo, ou em Londres, com exceção do álbum branco de 1969, gravado em Salvador. Em entrevista
com Ana Maria Bahiana (1980), Caetano diz que nenhum critério de ne com clareza as escolhas de
que canção iria para cada álbum; apesar disso, os dois discos possuem sonoridades e características
distintas e, por vezes, até mesmo opostas, que são notadas em diversos pontos. Primeiramente, é
possível observar esse contraste nas capas dos LPs. A capa original do Jóia era uma foto da família
(Caetano, sua esposa Dedé e o lho Moreno) “repintada” pelo próprio Caetano. Na foto, todos
apareciam nus. Essa versão da capa, porém, recebeu alterações, e foram incluídas pombas cobrindo
97
Figura 09: Capa e contracapa do disco Jóia (1975) - Primeira Versão
Quando Lucchesi e Dieguez (1993, p. 98) analisaram a capa do disco Araçá Azul, eles
identi caram a foto no espelho como um símbolo de retorno às origens, e o disco como “exercício
de criação lítero-musical movido por um impulso de regressão narcísica, pulsão positiva própria de
quem superou o corte mortal do exílio e das situações dolorosas que o antecederam”. Ou seja, eles
apontam o peso da prisão e do exílio sobre Caetano e identi cam, no Araçá Azul, um movimento
de retomada do corpo para si, corpo este que esteve sujeito ao sadismo do outro. Eles veem a capa do
Jóia, por sua vez, como um natural desdobramento desses signos con gurados na capa do Araçá
Azul. O corpo (na versão não-censurada) estaria livre de qualquer amarra à qual o outro poderia
sujeitá-lo.
A imagem assume um caráter de autorretrato quando Caetano decide pintar sobre a
fotogra a. Esse estilo de pintura tem como característica básica o ver-se e deixar-se ver: há um
movimento, do cantor, de voltar-se para si e devolver essa visão a seu público, expondo o que ele
consegue identi car (e deseja mostrar) como sua parte mais íntima — e a nudez, aqui, funciona
como símbolo disso. Nesse “pintar sobre a foto” há também uma arti cialidade que confere certa
sensibilidade camp à obra. Susan Sontag (1987), em seu texto clássico “Notas sobre Camp”, aponta
que esse estilo é caracterizado “por coisas que são o que não são”, que todos os objetos e pessoas
camp contêm um grande componente de artifício, e ainda que a atitude camp tipicamente
transforma uma coisa em outra. Se a apreciação do camp já aparecia em Caetano Veloso ao
98
incorporar, com “sentimento terno” (como coloca Sontag), Carmen Miranda e Chacrinha na
estética tropicalista, no Jóia essa sensibilidade é retomada.
A capa do Jóia pode ser vista também como uma recriação do quadro “A Família” (ver
gura a seguir), do pintor austríaco Egon Schiele (1890-1918). Este, lembrado por seu realismo cru
e erotismo evidente, trazia o m da repressão sexual como tema central em boa parte de sua obra.
Figura 10: Quadro A Família (Die Famillie) de Egon Schiele (1918).
Fonte: Portal Wahooart, s.d.
Ao mesmo tempo, a capa também remete àquela do disco Unfinished Music No. 1: Two
Virgins, de 1968, o qual retratou os artistas John Lennon e Yoko Ono nus na capa desse álbum de
Figura 11: Capa do disco Unfinished Music No. 1: Two Virgins, de John Lennon e Yoko Ono (1968)
99
Porém, nem mesmo a versão da capa do Jóia com os pássaros durou muito tempo. Como
Caetano conta (LUCCHESI; DIEGUEZ, 1993), os censores da época baniram a imagem por
Figura 12 - Notícia da Revista Veja sobre a capa do disco Jóia, 12/05/1976.
Fonte: Site Caetano en Detalle70
Pouco depois do início das vendas do disco, todas as cópias com a imagem da família foram
retiradas das lojas e substituídas por uma segunda (na realidade, terceira) versão, retratando apenas
os pássaros, os quais aparecem como tema em diversas das canções do álbum, como veremos
posteriormente.
70
Disponível em: http://caetanoendetalle.blogspot.com/2012/11/1975-joia-outra-metade-e-qualquer-coisa.html.
100
Figura 13: Capa e contracapa do disco Jóia - Segunda Versão
Essa capa bastante minimalista contrasta bastante com a do outro disco que Caetano
lançou com o Jóia, o disco Qualquer Coisa:
101
Figura 14: Capa do disco Qualquer Coisa (1975)
Essa capa faz clara referência àquela do disco Let It Be, dos Beatles (1970), na disposição
das imagens e na fonte utilizada no título do LP. É no Qualquer Coisa também que Caetano faz suas
próprias versões a três canções da banda britânica: “For No One”, “Lady Madonna” e “Eleanor
Rigby”.
Figura 15: Capa do disco Let It Be (1970)
102
Junto com cada um dos discos, Caetano lançou, em 1975, dois textos complementares: o
“Manifesto do Movimento Jóia” e o “Manifesto do Movimento Qualquer Coisa”71. Em entrevista a
Ana Maria Bahiana (1980, p. 45), o cantor comenta sobre esses textos:
Esses manifestos não são manifestos de nada, você entendeu? (Ri). É inclusive um pouco
de piada, um pouco feito como uma brincadeira com essa coisa de liderança. Muita gente
que me entrevista, muita, muita gente mesmo me diz assim que não há movimento na
música brasileira, nem linha, nem nada. (...) Então eu falei assim pro Gil... aproveitando as
duas palavras ‘jóia’ e ‘qualquer coisa’, duas palavras que têm até uma tensão poética entre
elas... eu vou fazer o ‘Movimento Jóia’ (riso despregado) que é um movimento que é uma
total maluquice... depois caram dois discos, e tinha a música ‘Qualquer Coisa’, aí eu
resolvi fazer dois manifestos, meio imitação daqueles manifestos do Oswald de Andrade,
mas também não é.
Enquanto Caetano aponta que os manifestos feitos por ele deveriam ser entendidos como
piada, vejo subentendido na fala dele o fato de que o público e a crítica de certa forma esperavam
que ele assumisse a liderança de algum movimento na MPB, como ele havia feito com o
Tropicalismo nos anos 1960. É interessante, pois isso dá algumas direções sobre o lugar que Caetano
Veloso ocupava naquele contexto da MPB dos anos 1970. Por causa dos manifestos, a Revista Veja,
à época, anunciava justamente isso: que Caetano estaria inaugurando um movimento. O texto dos
manifestos era, na realidade, uma crítica à crítica que acusava a MPB de estar em um marasmo
criativo, o que serviu para alimentar, segundo Lucchesi e Dieguez (1993), o comportamento
persecutório de alguns críticos em relação à gura de Caetano.
Relacionado a isso, surgiu, nos anos 1970, o termo “patrulhas ideológicas”, que é creditado
a Cacá Diegues em uma entrevista da época. Tratava-se de certa exigência, por parte de alas da
esquerda, que os artistas utilizassem suas obras como forma de posicionamento político e resistência
ao governo ditatorial. Pereira e Hollanda (1980) coletaram falas de diversos artistas e suas
considerações sobre essa questão. Diegues aponta que havia um “sistema de pressão, abstrato, um
sistema de cobrança. É uma tentativa de codi car toda manifestação cultural brasileira. Tudo que
escapa a essa codi cação será necessariamente patrulhado" (DIEGUES apud PEREIRA;
HOLLANDA, 1980, p. 18). O cineasta Glauber Rocha apontou, em sua fala, quem eram os
“patrulheiros”:
71
Os textos dos movimentos podem ser lidos no Anexo II.
103
Diferente do que se propagava, a patrulha não estava sendo feita pelos membros do (ilegal)
Partido Comunista. Estes, como coloca Glauber, "se corromperam inteiramente. Por
exemplo, a maioria de atores, diretores, argumentistas etc. foram trabalhar na Globo, no
auge da ditadura do General Medici. (...) Desta forma, a intelectualidade ligada ao Partido
estava na jogada da extrema direita e precisava ser patrulhada, não estava patrulhando
ninguém. Quem estava exercendo o patrulhamento da o grupo do CEBRAP, do jornal
Opinião, ou seja, a social-democracia, o MDB [chamada por ele de
esquerda-liberal-kenediana], sem o auxílio do Partido Comunista" (ROCHA apud
PEREIRA; HOLLANDA, 1980, p. 27).
Caetano, por sua vez, comenta seu posicionamento quanto ao uso da arte como forma de
protesto social: "não dá para você não ter ansiedade em relação à solução dos problemas da justiça
social. Só que eu acho que, no caso da arte, o engajamento não se dá por essa via (...) Se dá, eu acho,
104
Figura 16: Grá co - “Minha Mulher”
Fonte: o autor
105
2. 00:16 - Entra a primeira estrofe [“Quem vê assim pensa…”]repetindo a harmonia da
introdução.
3. 00:36 - Repetição da estrofe com mesma letra, melodia e intensidade.
4. 00:56 - Entrada do refrão [“Meu bichinho bonito…”], no qual se nota um aumento de
intensidade, visível no grá co.
5. 01:15 - Retorno para a estrofe com repetição da letra inicial [“Quem vê assim pensa…”].
sonoro árabe.
12. 03:27 - Repetição disso com improvisações, seguindo até o nal (04:52) com leve fade out nos
últimos segundos.
O arranjo da canção é aberto, isto é, muito provavelmente não teve partes escritas na
partitura, o que permitiu bastante liberdade criativa para Gil e Caetano em estúdio. O violão
executado por este último se mantém dentro de um padrão de execução da harmonia com levada
constante por toda a canção. Já o violão executado por Gil tem caráter bem mais melódico e agrega
mais elementos de improviso. Possivelmente a única dimensão de nida em arranjo foi a forma,
embora o improviso nal possa indicar que mesmo esta possui certa exibilidade, dada a sua
duração.
106
parte nal, principalmente, o violão de Caetano ca em segundo plano, executando o
acompanhamento harmônico, enquanto a voz e o violão de Gil executam improvisos melódicos.
Quanto à forma, a gravação estabelece as partes ABA, possivelmente a forma mais
tradicional em canções. Apenas introdução de seis compassos parece trazer certa irregularidade a essa
estrutura. As variações aparecem no A', quando ocorre mudança de letra com mesma melodia e
harmonia, assim como no A", no qual há maior repetição do trecho com improvisos melódicos.
A canção “Asa, Asa” é outro exemplo entre os momentos do disco Jóia nos quais a
densidade da instrumentação é mínima. Não há qualquer instrumento harmônico na gravação e, na
maior parte da canção, há apenas a melodia principal acompanhada de percussão, que marca os
tempos fortes. O arranjo da canção provavelmente foi concebido de forma semiaberta (com a
estrutura melódica de nida anteriormente, mas com arranjo vocal criado de forma intuitiva). No
grá co abaixo é possível identi car as seções e os momentos de contraste da faixa:
Figura 17: Grá co - “Asa, Asa”
Fonte: o autor
Outras canções no disco que seguem a estética de voz e violão são “Help” e “Na Asa do Vento”, justamente as duas
72
1. 00:00 - Uma percussão quase metronômica faz marcações secas contando o tempo. Em alguns
momentos, outra percussão com timbre diferente surge fazendo ataques nos contratempos.
Em 00:04, entra a voz de Caetano [“Pássaro um…”].
2. 00:18 - No intervalo entre o m da primeira estrofe e a volta da voz de Caetano, as percussões
são atacadas de forma intercalada intermitentemente (uma na cabeça do tempo, outra no
contratempo).
3. 00:23 - Volta a voz de Caetano [“Pássaro som…”], porém na quarta vez em que canta a palavra
"pássaro", aparece também a sua voz uma oitava acima imitando a melodia e outra oitava
abaixo apenas reforçando certas sílabas.
4. 00:37 - Novamente alguns compassos nos quais as percussões são executadas nos tempos
fortes e fracos.
5. 00:41 - Caetano apenas canta "Pássaro par", seguido de dois compassos inteiros apenas com
percussão.
6. 00:47 - Volta da estrofe [“Pássaro um…”], seguida da outra [“Pássaro som…”].
7. 01:23 - Três vozes de Caetano cantam "Pássaro par", em três oitavas distintas, e ao m disso a
percussão para. Em 01:26, entram autas que seguem para o fade-out (lembrando inclusive
canções dos Beatles como “Strawberry Fields Forever”, que nalizam com autas de
sonoridade similar — essa canção especi camente conta também com orquestra nessa
nalização).
É mais provável, porém, relacionar essas autas do nal da canção àquelas executadas por
grupos xinguanos. Caetano Veloso (1997) conta que, no início dos anos 1970, ouviu um disco
chamado Xingu - Cantos e Ritmos, de 1972, lançado pela gravadora Philips a partir de material
coletado pelos irmãos Villas-Boas73.
73
Infelizmente o disco encontra-se indisponível para audição completa nas plataformas virtuais. Há, porém, algumas
faixas disponíveis no site Cantos da Floresta, como a faixa 8, “Cerimonial Para Afugentar Maus Espíritos (Taquará)”.
Ver: http://www.cantosda oresta.com.br/audios/taquara-taratararu/.
108
Figura 18: Capa do disco Xingu - Cantos e Ritmos
O disco inteiro foi gravado com poucos instrumentos, utilizando basicamente a voz, as
mãos, os pés, chocalhos e autas74. A faixa 22, especi camente, intitulada “Flauta Juruna - Duende”
e executada pelos músicos do povo indígena do Baixo Xingu, hoje denominado Yudja, impactou o
cantor. Ele conta em entrevista75 que a linha executada pelas autas lembrava in exões melódicas de
jazz e que basicamente colocou uma letra sobre aquela melodia. As autas no nal da canção, dessa
74
Acredito que não só a faixa “Asa, Asa” recebeu in uências dessas gravações, mas o disco como um todo em sua
instrumentação enxuta e destaque para a relação entre vozes, autas e percussão.
75
Encontrei diversas menções a uma entrevista que Caetano Veloso fez em 2004, a qual foi escrita por Valdir Zwetsch e
publicada no site Radiola Urbana, na seção “Arco da Velha”. A entrevista, infelizmente, não está mais disponível no site.
Porém, diversos trechos desta foram comentados em diversos outros sites, e a informação de que Caetano teve esse
contato e in uência da música do Baixo Xingu está presente em todos eles. Ver: Quilombos News:
quilombosnews.blogspot.com/2006/11/de-como-um-duende-do-xingu-foi-bater.html. Povos Indígenas no Brasil:
https://pib.socioambiental.org/en/Not%C3%ADcias?id=16152. e também
https://www.indios.org.br/en/Not%C3%ADcias?id=35834 , assim como o site francês La Musique Brasilienne
https://la-musique-bresilienne.fr/2015/05/31/caetano-veloso-joia/.
109
Outra canção com arranjo similar, no qual não há nenhum instrumento harmônico, é
“Tudo Tudo Tudo”. Os únicos timbres presentes na canção são os das palmas e das vozes
sobrepostas de Caetano Veloso. O arranjo vocal foi provavelmente construído de forma intuitiva,
aberta76. A meu ver, a abertura de vozes não foi feita pensando em acordes (em um "pensamento
vertical"), mas sim, em melodias sobrepostas ("pensamento horizontal"), que acabam sugerindo
harmonias — que, por isso, muitas vezes saem do campo harmônico diatônico maior. A canção
conta apenas com uma única parte, repetida diversas vezes com os mesmos versos. O que muda é
que a cada repetição, as palavras ganham mais clareza na articulação de Caetano.
Figura 19: Grá co - “Tudo Tudo Tudo”
Fonte: o autor
1. 00:00 - Começam as palmas marcando os tempos 2 e 4 do compasso quaternário.
2. 00:05 - Entram vozes abertas sobrepostas de Caetano, cantando a melodia com a boca
fechada, como em “bocca chiusa”, tornando clara apenas a palavra "mar" ao nal do ciclo.
3. 00:24 - Repetição desse tema, agora apresentando outras sílabas de boca aberta no meio (mer
7. 01:44 - Mais uma repetição, agora com aumento da intensidade, até que em 01:49 as pausas
param e Caetano naliza a frase apenas com as 3 vozes.
Há ainda, no disco, outras duas canções nas quais não há instrumento harmônico
executando o acompanhamento: “Jóia” e “Escapulário”. O arranjo da primeira canção traz as vozes
acompanhadas de diferentes tipos de percussão, mas sem um instrumento executando harmonias,
apenas uma linha de baixo pedal. A seção percussiva da canção é sua parte mais densa
instrumentalmente. Caetano fala sobre a composição:
‘Joia’ tem um fascínio pela coisa primitiva. Mas é uma coisa muito estranha (...). É, é em
quartas paralelas, mas no meio tem um trítono muito estranho (...). E essa hora é tanto
mais estranha porque como ‘Jóia’ é feita um pouco como se fosse assim uma melodia
oriental, ou africana, porque está cantada em quartas, e também um pouco índia, sei
lá... como ela parece assim um pastiche de melodia primitiva, então de repente,
quando aparece esse trítono então é um negócio que ca ainda mais estranho, porque
não é da família dessas melodias. Agora essas músicas todas revelam assim um lado do
meu trabalho, essa necessidade de encontrar uma coisa assim... fresca, sem estar
carregada do que a gente sabe. Mas também não é a ideia do ‘novo’, do negócio
colocado como novidade. É realmente participar de um clima livre do habitual
(VELOSO apud BAHIANA, 1980, p. 43-44, grifo meu).
As observações de Caetano aproximam essa canção de “Asa, Asa” na tentativa de emular
sonoridades de músicas não-ocidentais. A forma de “Jóia” é a seguinte:
Figura 20: Grá co - “Jóia”
Fonte: o autor
1. 00:00 - Introdução com as percussões e o baixo em ostinato repetindo a nota mi. Enquanto
uma das percussões marca o tempo em 4/4, outra faz marcações como um compasso
composto 12/8.
2. 00:23 - Entram as vozes de Caetano Veloso em quartas [“Beira de mar…”].
3. 00:43 - A percussão retorna isolada.
111
112
Figura 21: “Escapulário” - Melodia
Fonte: o autor
Esse estilo de samba sem acompanhamento harmônico, apenas percussões e vozes, remete
às gravações de Monsueto Menezes. Caetano já havia gravado, anteriormente, duas canções desse
compositor: “Mora na Filoso a”, no disco Transa, e “Eu Quero Essa Mulher”, no disco Araçá Azul.
Nas gravações de Monsueto, é muito comum a presença de um coro responsivo, assim como o que
aparece em “Escapulário”77. Como se pode ver no grá co a seguir, quase não há contrastes de
intensidade nas diversas repetições da melodia na gravação.
Figura 22: Grá co - “Escapulário”
Fonte: o autor
Por outro lado, os contrastes se estabelecem no âmbito timbrístico, pois a cada repetição da
coro feminino canta; 6ª vez: Caetano canta sozinho; 7ª vez: todos cantam juntos; 8ª todos cantam
juntos, mas ocorre a nalização da canção em fade out.
Recomendo a audição das faixas citadas nas gravações originais de Monsueto: “Eu Quero Essa Mulher”
77
Em diversos sentidos, “Escapulário” contrasta também com a sonoridade das outras
canções, seja no andamento, no gênero musical e no tipo de arranjo, e soa quase como uma
“brincadeira” ao m do álbum. É também a única faixa do disco que conta com bateria embora
Caetano já tenha dito em entrevistas que gosta do disco Jóia justamente por não ter esse
instrumento — o que pode ser mais um indicativo de que se trata de uma canção post scriptum.
Algo similar a isso aparece no nal do disco Transa de Caetano, de 1972, que é nalizado com a
canção "Nostalgia (That's What Rock'n'Roll Is All About)", totalmente distinta do resto do álbum
em sonoridade. É possível também compará-la à canção “Her Majesty”, última faixa do disco Abbey
Road dos Beatles. Com apenas 23 segundos, aparece como um apêndice do álbum que, para todos
Gil gravou tas-cassete do grupo em Pernambuco e mostrou-as ao grupo tropicalista. Entre elas,
estava a música “Pipoca Moderna”, que, de acordo com Caetano, tocou-os profundamente e “ cou
na cabeça” daqueles músicos. Essa música da Banda de Pífanos foi elemento central dentro das
propostas do movimento de Caetano e Gil, sendo que esse último propôs na época que zessem um
“som universal” juntando os Beatles à música daquele grupo pernambucano (VELOSO, 1997).
Gilberto Gil inseriu a música “Pipoca Moderna”, creditada a Sebastião Biano, em 1972,
em seu disco Expresso 2222. Nessa gravação, quem toca é a própria Banda de Pífanos de Caruaru,
versão totalmente instrumental. É no disco Jóia que essa música ganha letra. Essa gravação é um
exemplo de canção pós-Araçá Azul: enquanto mantém uma estrutura formal de canção, ela também
passou por níveis de desconstrução, tanto na letra, como nas construções melódicas, harmônicas,
nos improvisos e nas experimentações de estúdio.
114
A seguir podemos ver uma transcrição aproximada do que as percussões (primeiro
sistema) e as cordas friccionadas (segundo sistema) executam. É possível notar que estas, embora não
estejam necessariamente tocando acordes, deixam implícitos os movimentos harmônicos através de
polifonias, utilizando contracantos melódicos e arpejos.
115
Figura 23: “Pipoca Moderna” - Transcrição aproximada das percussões (2 claves superiores), violinos e violoncelo
Fonte: o autor
116
Figura 24: Grá co - “Pipoca Moderna”
Fonte: o autor
1. 00:00 - É possível ouvir apenas a voz de Caetano e percussão [“E era nada de nem noite e
negro não...”].
2. 00:12 - Entra um violoncelo executando um contracanto melódico em registro grave (ver
compassos 6 a 10 da partitura) [“E era noite de nê nunca…”].
3. 00:21 - Outras cordas friccionadas aparecem em registro mais agudo. Aqui a percussão
acompanha as in exões rítmicas da voz (ver compassos 11 a 14 da partitura).
4. 00:49 - Repetição do tema, porém agora há duas vozes de Caetano Veloso, separadas por
intervalos de terças.
5. 01:37 - Terceiro momento, no qual entra Caetano fazendo uma terceira voz, criando
dissonâncias entre as melodias.
6. 02:24 - Quarto momento, agora sem as vozes, no qual duas melodias paralelas são tocadas na
auta, de forma similar à versão gravada no disco Expresso 2222 de Gilberto Gil, porém em
andamento mais lento. Aparece como citação direta àquela gravação.
As outras canções do disco Jóia contam com pelo menos um instrumento harmônico
(violão, piano ou órgão). Contudo, a ideia de temas melódicos curtos e instrumentação enxuta
mantém-se. A formação instrumental de “Guá”, por exemplo, está dentro dessa proposta, com
apenas o violão, a percussão tocada por Djalma Corrêa, o kissanji (um idiofone melódico de origem
angolana) tocado por Perinho Albuquerque, e as vozes de Caetano Veloso e do grupo vocal
Quarteto em Cy. Em entrevista com Ana Maria Bahiana, Caetano fala sobre o processo de criação
dessa canção:
118
2. 00:30 - Entrada do vocalize de Caetano executando notas bastante separadas entre si (saltando
do bem agudo para o grave) que, por essa distância, chegam a dissolver a ideia de melodia.
Figura 28: “Guá” - Vocalização inicial
Fonte: o autor
3. 00:44 - Caetano canta o tema principal da canção (água guamá Iguape ibualama).
4. 00:54 - Repetição desse tema, agora com as vozes femininas acompanhando Caetano, que se
abrem em bloco nas últimas notas ("bualama").
Figura 29: “Guá” - Melodia com abertura de vozes
Fonte: o autor
5. 01:04 - Repetição disso.
6. 01:15 - Repetição.
7. 01:25 - Repetição.
8. 01:36 - Volta o vocalize inicial de Caetano.
9. 01:46 - Refrão novamente, agora com a voz feminina no registro grave e abertura de vozes no
nal. O violão também segue para um registro grave, com o kissanji repetindo o ostinato.
10. 02:05 - O kissanji continua o ostinato, mas o violão só faz ataques nas cabeças dos compassos
119
12. 02:45 - O violão volta a fazer a levada do início (3-3-3-3-4), para então, logo em seguida, ir
para um registro mais grave quando as vozes voltam cantando o refrão [água guamá iguape
ibualama], com pequena variação das vozes no nal, que repetem a palavra ibualama até o
nal em fade out em 03:14.
“Gravidade” é outro exemplo de canção construída sobre frases melódicas curtas. Nesse
caso, o arranjo explora essas frases que se repetem e cria diversos momentos de contraste, como se
pode notar no grá co a seguir, que são estabelecidos, principalmente, pelas mudanças de
instrumentação. Nos momentos em que Caetano canta a palavra “asa”, ele está apenas
acompanhado pelo violão, re etindo certa leveza no arranjo. Quando, porém, ele canta versos como
“pedras no fundo do azul”, “seixo rolando no leito” e “brasa debaixo da cinza”, a voz aparece
acompanhada pela banda, com maior intensidade da bateria. Acredito que aqui o arranjo re ita o
sentido das palavras cantadas: a menor intensidade aparece associada à leveza e à palavra “asa”,
simbolizando vôo. O peso da instrumentação nos outros versos, por outro lado, re ete também o
movimento de “puxada ao chão” da gravidade do título, e a ideia de queda está presente nas palavras
“fundo”, “debaixo”, rolando” que são cantadas.
Figura 30: Grá co 10 - “Gravidade”
Fonte: o autor
1. 00:00 - Caetano executa ao violão o acorde de B7(9), marcando o compasso ternário e
de nindo o centro modal em Si Mixolídio. A melodia, por outro lado, tem divisão binária,
mas com mesmo pulso (semínima igual a semínima).
2. 00:14 - Todos os instrumentos atacam as notas junto com a voz, que, por sua vez, o faz em
semínimas.
3. 01:21 - Pequena mudança em que a segunda frase é repetida diversas vezes com letras
diferentes.
120
4. 02:07 - A canção parece se nalizar no acorde de C#7 [“seixo rolando no leito de um rio”],
ca alguns segundos em silêncio, e volta em 02:16 [“seixo, seixo…”].
5. 02:19 - Repete quatro vezes a frase ["destino do destino”], a última com um ralentando para
nalizar.
A canção "Pelos Olhos", por sua vez, seja com a proposta de instrumentação reduzida, mas
tem, na parte A, um arranjo fechado, o que não aparece com frequência no disco Jóia, que tende a
ter arranjos mais abertos em formas menos xas. O que se destaca no trecho é o conjunto de autas,
tocadas por Altamiro Carrilho, Celso Woltzenlogel, Franklin Corrêa da Silva (Franklin da Flauta) e
Jorge Ferreira da Silva (Jorginho da Flauta), músicos de grande destaque nesse instrumento no
cenário nacional. O arranjo foi escrito por Perinho Albuquerque79. As autas executam a harmonia
do trecho, que não conta com instrumentos harmônicos até a entrada do violão, na parte B.
Executando notas de longa duração, elas funcionam como cama harmônica para a melodia cantada
por Caetano, e nos momentos de pausa da voz, fazem alguns contracantos melódicos.
A canção segue a forma usual ABA, embora as partes separadas não estejam dentro da
quadratura tradicional. A parte A da música tem 28 compassos, divididos em uma seção com 15 e
outra de repetição sem os últimos dois compassos, ou seja, com 13. A parte B, por sua vez, aparece
com 10 compassos.
Figura 31: Grá co - “Pelos Olhos”
Fonte: o autor
1. 00:00 - Entrada da voz com as autas em bloco executando notas longas [“O Deus que
mora…”].
2. 00:15 - Flautas em movimento polifônico, até voltar o bloco com notas longas em 00:28.
Essas informações estão presentes na cha técnica publicada no site Discos do Brasil, organizado por Maria Luiza
79
3. 00:40 - Caetano canta "de minha amiguinha" com apenas uma auta fazendo uma melodia
como contracanto, contrastando com a primeira parte. Em seguida, cerca de 3 ou 4 segundos
se passam em completo silêncio, e então, em 00:46, repetição de tudo que havia aparecido até
A canção “Lua, Lua, Lua, Lua” é estruturada com um arranjo semiaberto, que inclui uma
seção nal com improvisos vocais — os quais também aparecem em “Minha Mulher” — e dos
instrumentos. Os instrumentos presentes na gravação são o órgão, que no disco aparece apenas aqui
e na faixa “Canto do Povo de um Lugar”, executado com notas de longa duração por Antônio
Adolfo (pianista compositor de sucessos da música brasileira, como as canções "Sá Marina" e
"BR-3"), e a percussão, que não aparece na cha técnica da canção no disco. Quanto à forma da
composição, há apenas a parte A (e uma seção de improviso ao m). O contraste rítmico aparece na
última seção, principalmente pela execução da percussão em quiálteras; não há, porém, grandes
contrastes de intensidade (exceto em momentos especí cos de silêncio), como se pode notar no
grá co a seguir:
Figura 32: Grá co - “Lua, Lua, Lua, Lua”
Fonte: o autor
1. 00:00 Entrada conjunta de voz, órgão e percussão. O órgão se estabelece em notas longas,
a executar os ataques de forma “tercinada”, ocorrendo uma polirritmia (aqui no caso a
percussão é tocada em um compasso 6/8, enquanto os outros instrumentos estão em 4/4).
Em seguida, ocorrem vocalizes improvisados de Caetano sobre o órgão e a percussão, algo
similar na voz ao que já acontece no nal da canção "Minha Mulher": uma improvisação
modal sobre os acordes de A7M e Aº e que, nesse contexto, soa quase de forma ritualística, e
que segue até o nal em fade out.
Uma das poucas canções na qual é possível identi car o uso de contrastes como elemento
estrutural do arranjo é “Canto do Povo de um Lugar”. Nessa faixa, é possível notar com clareza um
aumento progressivo na intensidade a partir de momentos distintos dentro da canção: uma parte
acapella, outra com voz e instrumentos, outra na qual Caetano passa a cantar a melodia uma oitava
acima do que estava cantando anteriormente, e assim por diante. Isso se re ete também no grá co
da canção:
Figura 33: Grá co - “Canto do Povo de um Lugar”
Fonte: o autor
1. 00:00 - Caetano inicia cantando acapella [“Todo dia…”]. Aqui também o silêncio é
explorado, uma vez que entre o m da frase de Caetano e o início da próxima, ocorrem cerca
123
colcheias pontuadas no compasso de três tempos - isso aparece em um dos instrumentos de
cordas em registro mais agudo.
Figura 34: Canto do Povo de um Lugar - 4 sobre 3
Fonte: o autor
4. 01:40 - A voz de Caetano vai para a oitava de cima, dobrada novamente, com mais aumento
de intensidade, até haver uma redução drástica de intensidade em 02:09, voltando para a
oitava inferior, exatamente quando Caetano canta "lua mansa", re etindo uma relação entre a
letra e o arranjo.
5. 02:20 - Início de um outro momento dentro da música: solo de viola em terças remetendo a
uma sonoridade sertaneja, que ao mesmo tempo "entra em con ito" com os improvisos que
ocorrem no órgão ao mesmo tempo, mais associados a uma estética de rock psicodélico.
6. 03:28 - Vozes de Caetano em movimentos paralelos num acorde diminuto, em um tipo de
arranjo vocal que remete a bandas britânicas como os Beatles80; os instrumentos seguem um
crescendo de intensidade com a tensão do acorde.
7. 03:46 - Resolução da tensão voltando para o tema principal apenas uma vez, seguindo para a
nalização com os instrumentos saindo do plano principal.
A seção 5, especi camente, traz elementos que considero importantes. Nesse trecho, é
ressaltado o contraste entre signos de tradição e de modernidade. Inicialmente, a viola executando
uma melodia em terças, procedimento comum em canções sertanejas. Quando o órgão executado
pelo tecladista Vermelho, do Grupo Bendengó, aparece na canção, traz também consigo referências
do universo sonoro do blues e do jazz, principalmente pela presença das blue notes, "bemolizações"
de algumas notas da escala musical. A justaposição desses elementos regionais e estrangeiros é algo
80
Minha principal referência ao apontar essa semelhança é a canção “Because”, do álbum Abbey Road.
124
constante na obra de Caetano Veloso e aparece, de diferentes maneiras, nos álbuns do período
tropicalista, nos discos de Londres e no seu disco experimental, Araçá Azul81.
Destaco, também, no disco, os arranjos feitos para canções de outros compositores. Da
dupla Jóia e Qualquer Coisa, este é muitas vezes lido como um disco de “versões”, enquanto aquele é
visto como um disco de canções originais, inclusive pelo próprio Caetano (BAHIANA, 1980). Isso
porque das doze faixas de Qualquer Coisa, apenas quatro são composições dele, e destas, somente
duas (“Qualquer Coisa” e “Nicinha”) eram totalmente novas, já que as outras (“Da Maior
Importância” e “A Tua Presença Morena”) já haviam sido lançadas por Gal Costa e Maria Bethânia,
respectivamente. Há, porém, pelo menos duas canções do disco Jóia que não foram compostas por
Caetano: “Help”, de John Lennon e Paul McCartney, e “Na Asa do Vento”, de Luiz Vieira e João
do Vale. Além disso, outras composições do disco tomam elementos de obras anteriores, como
“Pipoca Moderna”, música de Sebastião Biano para a qual Caetano compôs a letra, e “Escapulário”,
música do compositor sobre um poema de Oswald de Andrade.
A obra de Caetano Veloso é repleta de momentos de intertextualidade — trechos e
fragmentos musicais que fazem referência ou podem ser relacionados a outras obras dele e de outros
intencional e reconhecida e ocorre com certa “literalidade”, porque uma transformação mais forte
da obra citada já con gura outro tipo de intertextualidade (LÓPEZ-CANO, 2007). Pensando na
obra de Caetano Veloso, identi co o disco Transa como o ápice do uso de citações. Em canções
como “You Don’t Know Me”, por exemplo, Caetano cita “Maria Moita” (Carlos Lyra e Vinicius de
Moraes), “Reza” (Edu Lobo e Ruy Guerra), “Hora do Adeus” (Luiz Queiroga e Onildo de
A canção “2001”, de Tom Zé e Rita Lee, coloca lado a lado o “caipira” e a modernidade representada, à época, pela
81
corrida espacial. Nesta canção, porém, o humor é parte estrutural, o que já não ocorre em “Canto do Povo de um
Lugar”.
125
Almeida) e “Saudosismo”, sua composição de 1968. Esse tipo de procedimento aparece em quase
todas as canções daquele disco.
Quanto à paródia, refere-se à “utilização de um tema, fragmento, ou ideia de uma obra
especí ca como ponto de partida para a composição de outra obra diferente”, como aponta
López-Cano (2007, p. 32). O autor também ressalta que, embora o termo paródia seja utilizado
com o sentido de imitação satírica ou zombeteira, em sua acepção original refere-se basicamente à
reelaboração de um material original. Noto esse procedimento em canções tropicalistas como
“Saudosismo”, que utiliza a melodia de “Fotogra a”, de Tom Jobim, como forma de homenagear a
Bossa Nova e, ao mesmo tempo, apontar para mudanças estéticas necessárias naquele período.
Outro exemplo é a canção “Alegria, Alegria”, que Veloso (1997) conta que foi composta em ritmo
de marcha como referência e paródia da canção “A Banda”, de Chico Buarque.
A intertextualidade por “alusão” ocorre por “referências vagas, possíveis ou latentes a
estruturas, sistemas ou procedimentos gerais que uma obra faz do estilo geral de um autor, tipo de
música ou mesmo uma cultura musical”. Já a intertextualidade por “tópico”, de acordo com “é a
remissão de uma obra escrita em determinado estilo a um estilo, gênero tipo ou classe de música
82
Tradução minha. Original: “es la remisión desde una obra escrita en determinado estilo, a un estilo, género, tipo o
clase de música diferente. Aquí la remisión no se realiza hacia una obra especí ca y reconocible como tal, sino a amplias
áreas genéricas sin paternidad autoral especí ca”.
83
Identi co também esse procedimento nas versões que Caetano faz de “Carolina” (Chico Buarque), “Coração
Materno” (Vicente Celestino) — embora haja o sentido de sátira nessas gravações, o que não aparece nas canções do Jóia
—, “Mora na Filoso a”, “Tu Me Acostumbraste” e as versões de Beatles, Jorge Ben e Chico Buarque no disco Qualquer
Coisa.
126
um tema independente.
Considero as gravações de “Help” e “Na Asa do Vento” como exemplos do segundo caso.
A primeira, de Lennon e McCartney (gravada pelos Beatles e lançada originalmente em 1965 no
disco Help), é interpretada aqui apenas com voz e violão — instrumentação que é explorada por
Caetano nesse álbum mais do que em qualquer outro dele até aquele momento. A versão de
Caetano para a canção dos Beatles é tocada num andamento bem mais lento que o da gravação
original, e o cantor confere à música, com sua interpretação, uma melancolia que não estava visível
na versão da banda britânica. Vejamos a estrutura dessa faixa:
Figura 35: Grá co - “Help”
Fonte: o autor
1. 00:00 - Entrada da voz com o violão [“Help, I need somebody…”]. Notar que o andamento
está mais lento que o dos Beatles, e que Caetano faz diferentes divisões rítmicas das cantadas
84
Original: “por diversas razones una obra puede ser revisada, arreglada, versionada o incluso reescrita por su autor u
otro compositor. (…) Las transformaciones a una obra pueden ser correctivas-sustitutivas o acumulativas. En las
transformaciones correctivas-sustitutivas el autor o arreglista pretende emendar los ‘errores’ de las versiones anteriores de
tal suerte que la nueva versión debe sustituirlas. (…) Las transformaciones acumulativas se originan cuando la nueva
versión se suma a las anteriores sin negarlas, ampli cando las posibilidades de manifestación de la misma obra”.
127
por Lennon, principalmente deslocando o ataque da palavra “Help”, que na gravação dos
Beatles ocorre sempre no primeiro tempo do compasso, e na versão de Caetano surge sempre
um pouco “atrasada”. Nesse trecho inicial, também, a versão de Caetano quebra com a
métrica estabelecida pela gravação original e torna o compasso ternário nessa parte da canção.
Figura 36: “Help” - Versão original dos Beatles
Fonte: o autor
Figura 37: “Help” - Versão de Caetano Veloso
Fonte: o autor
2. 00:14 - Caetano canta apenas tocando os baixos nessa primeira parte da estrofe.
3. 00:31 - Subdivisão desse momento, no qual acordes bossanovistas entram acompanhando a
voz de Caetano.
4. 00:47 - Volta o trecho em que Caetano canta: “Help me if you can…”.
5. 01:22 - Volta a estrofe novamente [And now my life has changed...].
Na versão original dos Beatles, a canção é estabelecida dentro do estilo pop rock. Na
gravação de Caetano, por sua vez, há elementos de blues na levada e na interpretação, que se alterna
128
com um ritmo pop e de bossa-nova. Esta última é reforçada por harmonias tetrádicas, que não
aparecem na gravação da banda britânica. Em alguns momentos, o canto de Caetano adota
elementos recitativos, explicitando ritmos especí cos da fala e realizando in exões que reforçam esse
caráter85.
A outra canção, “Na Asa do Vento”, de João do Vale e Luiz Vieira, foi lançada pela
primeira vez por Dolores Duran em um compacto de 1956. Na gravação dela, a instrumentação
típica do xote está presente: o triângulo, a zabumba e o acordeão. As gravações posteriores feitas
pelos compositores, assim como a versão de Fagner, também se aproximam dessa de Dolores Duran
tanto no aspecto rítmico, como na instrumentação e nas in exões melódicas86. Na interpretação de
Caetano, como na versão que ele fez para “Help”, a instrumentação passa a ser somente voz e violão,
dentro da estética contida e minimalista do disco Jóia. Essas interações da voz com o violão são
justamente os pontos de destaque dessa gravação. Há certa independência rítmica entre a levada do
instrumento e o canto: o acompanhamento é contínuo e em alguns pontos defasado com a melodia.
A levada de Caetano assemelha-se a uma toada, mas a acentuação que ele dá aos versos lembra um
baião.
Assim como na versão de “Help”, em “Na Asa do Vento” Caetano adota uma harmonia
tetrádica, com sextas, sétimas maiores e menores e nonas, enquanto outras versões, como a de Luiz
Vieira e a de João do Vale, mantêm uma harmonia triádica. De certa forma, isso também aproxima
essa versão à estética da Bossa Nova. Essa aproximação também ocorre no âmbito do arranjo: no
disco Jóia, as canções de outros compositores passam pela triagem da estética bossanovista ― são
“enxugadas” e abordadas de forma minimalista.
Essa primeira abordagem do arranjo das canções teve caráter um pouco mais descritivo
para justamente explicitar os elementos dispostos na gravação. Nos próximos tópicos, analisarei as
especi cidades de cada procedimento e as possíveis intenções envolvidas em cada escolha estética,
85
Para identi cação desse elemento, basta comparar a forma que Caetano Veloso e John Lennon cantam os versos “not
just anybody”, “I know that I just need you like I’ve never done before”, por exemplo. Caetano faz divisões rítmicas que
valorizam cadências próprias da fala.
86
Ouvir essas versões na seguinte playlist:
https://open.spotify.com/playlist/0SfLIMKSdHAME4u6gxLHT3?si=1yEbm24kRWKRqLeXW7jj2A. Acrescentei à
lista uma versão feita pelo cantor Ednardo, que foge da estética que outras gravações propuseram. Na dele, incluem-se
elementos de gêneros muito distintos, como o ijexá e o fado português, que contribuem para uma escuta bastante
interessante.
129
seja no âmbito dos ritmos, das melodias, das harmonias ou dos timbres, buscando identi car pontos
em comum nas faixas.
presença do tresillo no violão de Caetano (note a voz mais grave na partitura a seguir) tem sentido
ambíguo, podendo remeter a gêneros brasileiros como o baião, assim como a gêneros latinos como o
bolero e a habanera87. Há também grande aproximação com a levada de toada. Aciona-se aqui um
signo que, à primeira audição, já remete a ritmos latinos de in uência africana e, por outro lado, à
cultura caipira na qual a toada se faz presente.
Figura 38: “Minha Mulher” - Violão de Caetano Veloso, Parte A
Fonte: o autor
Como aponta Sandroni (2002), o tresillo já recebeu o nome de “síncope característica” ou “ritmo da habanera”.
87
Trata-se, basicamente, de um conceito segundo o qual haveria, em um compasso, oito subdivisões, as quais são
agrupadas da forma 3-3-2. Dessa forma, acentua-se a primeira, a quarta e a sétima dessas subdivisões. Em um compasso
2/4, o tresillo pode ser simpli cado com duas colcheias pontuadas e uma colcheia regular.
130
Já na parte B, a levada do violão de Gilberto Gil remete, de certa forma, à sonoridade do
funk americano, com as síncopes características do estilo. Aqui, porém, reduzidas ao violão, sem a
formação instrumental de baixo, guitarra e bateria, que costumam aparecer nas gravações desse
gênero. Essa mistura de funk e toada faz parte de um procedimento geral no disco, que é o de
integrar elementos locais a outros estrangeiros.
Figura 39: “Minha Mulher” - Transcrição aproximada do violão de Gilberto Gil - Parte B
Fonte: o autor
ambiente do candomblé. Como Risério (2007) aponta, as células rítmicas executadas pelas congas
sugerem o “agueré de Oxóssi”, toque especial de tambor para essa divindade. “Guá” entraria, na
visão do autor, no grupo de músicas religiosas negras. Este, diferente da Black Religious Music
americana, que geralmente é associada ao hinário protestante com gêneros como o spiritual e o
gospel, trata-se de música sacra de origem africana tal como as praticadas nos terreiros de Umbanda e
Candomblé.
131
Figura 40: Representação dos “swing eights”
Fonte: o autor
O segundo elemento da canção que remete a esse universo sonoro é a presença das blue
notes — algumas notas da escala são "bemolizadas", executadas um semitom abaixo do que seriam na
escala diatônica. As blue notes aparecem aqui no terceiro e no quinto grau da escala: a nota dó
aparece, em um momento, no lugar da nota dó sustenido (III grau da escala de Lá Maior), e a nota
mi bemol aparece no lugar da nota mi natural (V grau da escala).
132
Figura 41: “Asa, Asa” - Melodia
Fonte: o autor
Quanto às outras canções do disco, cada uma apresenta ritmos distintos. O que
encontraremos em quase todas é algum nível de desconstrução das levadas características de cada
ritmo. Canções como “Pelos Olhos” e “Lua, Lua, Lua, Lua” dissolvem os ritmos através de
acompanhamentos harmônicos que utilizam notas longas, que duram todo o compasso. Apesar
disso, é possível identi car na primeira uma variação da levada de bossa-nova quando o violão
aparece, na parte nal. A con rmação desse gênero também ocorre ao observarmos a progressão
harmônica do trecho e os acordes alterados, característicos desse estilo. Já “Lua, Lua, Lua, Lua”
parece sugerir o ritmo de um bolero, o que é reforçado pelas percussões, que fazem intervenções
irregulares em alguns momentos. A partir de 02:33, o ritmo muda para uma subdivisão ternária,
marcada com clareza pela percussão enquanto a harmonia sustenta um baixo pedal.
“Canto do Povo de um Lugar”, por sua vez, traz uma levada próxima de uma
marcha-rancho, mas explora uma métrica irregular, formada por compassos binários e ternários,
como se pode notar na gura a seguir. Essa alternância entre compassos binários e ternários é parte
estrutural da canção, haja vista que o trecho acima representa toda a melodia da canção, que é
repetida com variações nos versos.
Figura 42: “Canto do Povo de um Lugar” - Melodia
Fonte: o autor
133
maneira: Verbete: ‘Samba do matuto: forma dançada e cantada da zona rural do Nordeste, originada
do maracatu’” (VELHA, 2008, p. 212).
Na canção “Gravidade”, o compasso ternário e a levada do violão indicam o ritmo de valsa.
Porém, como Ribeiro (2020) já havia notado, a melodia parece ser construída, em trechos, em
compasso binário, o que sugere uma polimetria (ver gura a seguir). Isso ca evidente ao
localizarmos os acentos propostos pela linha melódica em interação com a palavra cantada: a cada
Figura 43: “Gravidade” - Estrutura fraseológica da primeira parte.
Fonte: Ribeiro (2020, p. 292).
134
A polimetria também aparece na faixa “Jóia”. Esta é uma canção na qual, como aponta
Segreto (2014), há um claro interesse na parte rítmica, que ganha prioridade sobre a parte
harmônica. Ele coloca que em “Jóia” é muito evidente a sobreposição de guras rítmicas irregulares
sobre um pulso xo, o que Wisnik (1989) aponta como característica rítmica das músicas
não-europeias. Há, na gravação, uma nota mi atuando como pedal, pulso xo, sobre a qual as
percussões farão diferentes divisões rítmicas. “As vozes e o pandeiro/platinelas predominantemente
dividem a pulsação binariamente através de colcheias. Já o atabaque divide o pulso em tercinas e o
bongô divide de forma ternária o espaço equivalente a duas pulsações” (SEGRETO, 2014, p. 170).
Além disso, há uma irregularidade rítmica entre a voz e os instrumentos, como também vimos em
“Gravidade”. Como podemos ver na gura a seguir, devido ao tamanho dos versos, os acentos da
melodia vocal cam deslocados e as frases melódicas seguem tamanhos irregulares.
Figura 44: “Jóia” - Irregularidade métrica do canto em relação aos outros instrumentos.
Fonte: Segreto (2014, p. 170).
4.4 Os Usos do Modalismo
Uma dimensão muito importante do disco Jóia é o uso de procedimentos modais. Ribeiro
(2020, p. 291) comenta que a “perspectiva universalista, atemporal e minimalista de Joia resultaria,
naturalmente, em uma signi cativa abordagem do modalismo: das treze canções que compõem o
135
Uma das canções modais do LP Jóia é “Minha Mulher”, na qual prevalece o modo eólio,
com centro tonal em fá. Isso ca claro com a presença do terceiro, sexto e sétimo graus
"bemolizados" (formando intervalos menores em relação à fundamental). A presença do sétimo grau
não como sensível, mas como subtônica, reforça o caráter não-tonal da canção, assim como o fato de
que esse grau só aparece na canção de forma descendente, tirando qualquer sensação de
"tensão-buscando-resolução" que essa nota poderia gerar.
88
São todos conceitos que Ribeiro (2020) aborda. Intercâmbio modal (também chamado de Permutabilidade Modal)
refere-se a momentos nos quais, em uma música, ocorre mudança de modo sem mudança de centro tonal. Ex: mudança,
em determinado trecho de uma peça, de Lá Dórico para Lá Eólio. Modulação modal refere-se à mudança de centro tonal
em uma música. Polimodalidade ocorre quando há dois modos sendo executados ao mesmo tempo (ex: a melodia está
em Mi Lídio e a harmonia em Mi Jônico). Hibridismo Tonal-Modal caracteriza-se pela incorporação de elementos
tonais (como cadências, progressões de dominante para tônica) em peças modais.
136
Figura 45: “Minha Mulher” – Melodia da Parte A
Fonte: o autor
Além da construção melódica, a canção ganha outro nível de interesse ao analisarmos a
construção harmônica que a acompanha, devido ao uso incomum das estruturas modais. Enquanto
a melodia da parte A está construída no modo eólio, a harmonia situa a canção, em um primeiro
momento, no modo mixolídio, utilizando o acorde maior com sétima menor e nona sobre o
primeiro grau — ocorrendo aqui a polimodalidade. Quando, porém, ocorre a mudança de acorde
do F7(9) para o E♭7(9), este último desloca a harmonia para o modo eólio, o mesmo da melodia —
haja vista que o acorde montado sobre o sétimo grau, no modo mixolídio, teria a sétima maior, e
não menor como aparece na canção.
Esses dois acordes — F7(9) e E♭7(9) — se repetem ao longo de toda a parte A, ocorrendo
aqui o processo de permutabilidade ou intercâmbio modal, que se refere, justamente, à utilização de
material harmônico proveniente de diferentes modos sobre um mesmo centro tonal.
137
Figura 46: “Minha Mulher” – Parte A
Fonte: o autor
Na parte B da canção, Caetano executa o acorde D7(9), que não pertence a nenhum modo
de fá. Dentre as diversas possibilidades de análise, considerei mais plausível apontar o ré como novo
centro tonal, e o acorde maior com sétima menor construído sobre o primeiro grau indica,
consequentemente, que esse trecho encontra-se no modo mixolídio. No compasso 17, quando o
acorde F7(9) retorna, a nota fá se estabelece como centro tonal novamente, no modo mixolídio.
Dessa vez, porém, sem a polimodalidade da parte A; a melodia se estabelece dentro desse modo com
um arpejo do acorde executado (7-5-3-1), movimento melódico que é bastante característico do
modo mixolídio, por reforçar o sétimo grau como subtônica ao movimentá-lo de forma
descendente. Como Ribeiro (2020) nota, muitas vezes os compositores recorrem a esse modo como
índice de nordestinidade, especi camente um imaginário coletivo associado ao sertão, representado
C7(9) — como ocorre sempre um retorno à parte A, há uma "resolução" tonal quando o acorde
montado sobre a nota fá é executado novamente. Essa resolução, porém, como no caso anterior,
dissolve o sentido de tonalidade ao encontrar outra estrutura instável — o acorde maior com sétima
menor e nona.
138
Figura 47: “Minha Mulher” - Parte B
Fonte: o autor
139
A canção “Guá” também traz o modo mixolídio (com centro em Dó), mas nesse caso o
compositor permanece estritamente nesse modo. Vicente Ribeiro (2020) já fez uma rica análise do
uso de modalismo nessa faixa (e também em “Gravidade”) e, por esse motivo, utilizarei-o como
referência principal. A melodia é inteiramente construída nesse modo (caracterizado pelo sétimo
grau abaixado) e a harmonia centra-se em um único acorde: C7(9), o primeiro grau do modo. Um
dos pontos de destaque que Ribeiro aponta é a superposição e a justaposição de elementos musicais
provenientes de matrizes distintas. Ele nota que, se por um lado a base em mixolídio remete à
musicalidade nordestina, por outro a canção “sustenta uma linha melódica em que é empregado o
movimento 1-7-1, característico da afro-brasilidades na in exão do nome da divindade Ibualama,
de origem iorubana" (RIBEIRO, 2020, p. 333). Embora essas matrizes (nordestina e afro-brasileira)
não sejam auto-excludentes, existem diferenças nas temáticas e nos procedimentos harmônicos e
melódicos89.
Figura 48: “Guá” - Melodia Principal
Fonte: o autor
Na canção “Gravidade”, o modo mixolídio também aparece, porém de modo diferente das
duas canções citadas. Como coloca Ribeiro (2020), a melodia da canção conta com o IV grau
elevado (característico do modo lídio), o que con gura o modo híbrido mixolídio (#4). No plano
harmônico, são utilizados tanto acordes do modo mixolídio — I7(9), bVII e IV — como do modo
lídio — II7 e V. Ribeiro também aponta que há grande ênfase nas relações plagais nas progressões
harmônicas (movimentos de subdominante para tônica). Ver, por exemplo, as sequências de acordes
A > E > B. Aqui, o acorde de lá maior, que seria o acorde perfeito sobre o sétimo grau abaixado
(bVII), funciona como subdominante da subdominante (o acorde de mi maior). Por m, Ribeiro
(2020) nota que essa música traz também um clichê melódico do modo mixolídio que reforça o
acento nordestino da canção: a sequência 7-6-5.
Ver o capítulo 4 de Ribeiro (2020), no qual o autor analisa diversas canções dessas duas matrizes e explicita esses
89
procedimentos.
140
Figura 49: “Gravidade” - Análise da parte A
Fonte: o autor
Se as canções mencionadas até aqui faziam alusão a uma sonoridade nordestina, a canção
“Na Asa do Vento” é, de fato, uma representante dessa matriz. Composta por Luiz Vieira e João do
Vale, essa música é quase inteiramente construída dentro do modo mixolídio. Em alguns trechos,
porém, há certo hibridismo modal-tonal, o que é muito comum nas composições dessa matriz
nordestina. Ribeiro (2020, p. 349) coloca que esse procedimento, em artistas como Luiz Gonzaga e
o próprio João do Vale, está relacionado a uma estilização urbanizante dos gêneros tradicionais,
como o baião e o forró. Ele entende que essa forma de hibridismo “advém da autonomia entre
melodia e harmonia”, o que acontece regularmente em todos as matrizes e vertentes pelas quais a
música modal permeia no Brasil.
141
Nos primeiros sete compassos da canção, a melodia se estabelece dentro da escala
pentatônica de Mi maior (o IV e o VII graus não estão presentes). É apenas no oitava compasso que
o sétimo grau aparece — abaixado — explicitando que a música está no modo mixolídio. Alguns
clichês melódicos característicos desse modo (de acordo com Ribeiro, 2020) aparecem na canção e
reforçam essa sonoridade, como as sequências 5-4-3-1 e 6-1-1 (ver gura abaixo).
Figura 50: “Na Asa do Vento” - Análise Melódica
Fonte: o autor
Os acordes executados, por sua vez, não deixam claro, num primeiro momento, se a canção
está no modo mixolídio ou no modo maior (jônico). É apenas quando aparece o acorde de Ré maior
(bVII) que o primeiro modo se con rma.
142
Figura 51: “Na Asa do Vento” - Análise Harmônica
Fonte: o autor
143
O hibridismo modal-tonal aparece na segunda parte da canção. Nesta, con rma-se o
caráter tonal quando o sétimo grau natural (sensível) aparece na melodia e quando a harmonia passa
por diversas cadências que evidenciam o movimento da dominante para a tônica.
Figura 52: “Na Asa do Vento” - Segunda Parte (Trecho Tonal)
Fonte: o autor
144
Há ainda mais uma canção no disco que utiliza elementos do modo mixolídio: “Tudo
Tudo Tudo”. Esta, porém, aborda o modalismo de forma um pouco diferente das canções
anteriores: é executada sem o acompanhamento de instrumentos, apenas as palmas que ditam o
ritmo e algumas aberturas de vozes que sugerem harmonias.
Essa canção foi composta como acalanto para seu lho mais velho, Moreno, de acordo com
depoimento de Caetano presente em seu livro Alegria, Alegria, de 1977. Ele conta que o número de
repetições da canção era o que fosse necessário para fazer o lho dormir. Nesse sentido, o caráter
cíclico e modal da canção ca claro e se encaixa na proposta estética do disco Jóia.
Em um sistema tonal, a narrativa da canção é normalmente construída a partir de
estruturas harmônicas que trazem uma sequência usual de acontecimentos:
introdução-desenvolvimento-clímax-desfecho (ou, ainda, início-movimento-tensão-resolução). Em
composições modais, essa estrutura narrativa não é o foco; pelo contrário, é possível construir peças
inteiras sobre um único acorde, por exemplo. Nesse caso, o sentido narrativo não vem de uma
sequência de acordes de função subdominante, dominante ou tônica, mas da exploração das
possibilidades rítmicas e melódicas que essa (sensação de) estaticidade permite.
Embora não haja instrumentos harmônicos na gravação, o arranjo vocal sugere progressões
harmônicas que situam a música em um contexto modal. Inicialmente, a música tem centro tonal
em dó jônico. Em um breve momento no quinto compasso, há um intercâmbio modal — a melodia
central passa pela nota si bemol, que é o sétimo grau característico do modo mixolídio. No nono
compasso, o acorde de mi maior se forma na sobreposição de vozes, con gurando um breve
momento de modulação (mudança de centro tonal), seguido pelo retorno ao centro em dó jônico,
quando a forma se repete.
145
Figura 53: “Tudo Tudo Tudo” - Transcrição 90
Fonte: o autor
Nessas cinco canções do Jóia, Caetano utilizou o modo mixolídio, em diferentes níveis e
partindo de processos diferentes: desde o uso “puro” do modo em “Guá”, passando pela
polimodalidade em “Minha Mulher”, hibridismo modal-tonal em “Na Asa do Vento”, intercâmbio
modal em “Tudo Tudo Tudo” e uso do modo com o IV grau aumentado em “Gravidade”.
As cifras presentes na partitura são apenas sugestões de análise da harmonia a partir das melodias sobrepostas; os
90
Caetano, em sua versão, acrescentou uma terceira melodia, a qual conferiu mais dissonâncias ao
arranjo e de certa forma “desestabilizou” a sonoridade do modo dórico. A gravação de Caetano não
conta com o acompanhamento de instrumentos harmônicos; a harmonia se dá através da polifonia
das vozes, auta e cordas friccionadas. Nesse sentido, a canção se aproxima da abordagem do
modalismo pré-tonal. Na primeira vez que a melodia é cantada, o modo dórico estabelece-se
claramente, com centro em fá sustenido, pela presença do VI grau elevado (no caso, a nota ré
sustenido). Em apenas dois momentos a nota ré natural aparece (destacados na imagem),
deslocando a melodia para o modo eólio. É possível também identi car na melodia clichês
melódicos característicos do modo dórico, como os movimentos 6-1 e 1-b3-5-7, e do modo eólio
no trecho 4-5-b6-5.
147
Figura 54: “Pipoca Moderna” - Primeira Vez
Fonte: o autor
Quando Caetano adiciona a segunda voz uma terça acima da melodia original, a nota mi
sustenido é cantada, situando os trechos em que ela aparece dentro da escala de fá menor melódico.
Na terceira melodia, a nota mi aparece sem alteração novamente, o que gera a polimodalidade entre
as vozes. Quando Caetano canta o verso “de pê, de pé, de pão”, a nota mi sustenido torna a aparecer,
para então voltar a seu estado natural no verso “e era não de nada nem”. Essas melodias foram,
148
Figura 55: “Pipoca Moderna” - Três Vozes
Fonte: o autor
Há certa similaridade entre os procedimentos modais de “Pipoca Moderna” e a canção
“Jóia”. Nesta também a melodia é construída sem acompanhamento harmônico, apenas com vozes
paralelas. Estas, porém, estão separadas por intervalos de quartas, algo pouco usual no universo
sonoro-musical ocidental contemporâneo, no qual as combinações de vozes costumam ocorrer com
intervalos de terças e sextas, que são a base para a construção de acordes e, consequentemente, do
sistema tonal como um todo. Ao escolher os intervalos quartais, Caetano rompe com este contexto
sonoro, associando-se ao modalismo pré-tonal, presente, por exemplo, no canto gregoriano e na
música de sociedades não-ocidentais.
O arranjo instrumental da canção também a situa nesse universo sonoro. O baixo pedal
149
indicado pelo uso de fade in e fade out, o que provoca a sensação, ao ouvinte, de estar entrando em
um ritual em pleno desenvolvimento. Esse baixo que se repete estabelece o centro tonal da canção,
deixando claro que se trata de uma composição em Mi lídio. A nota característica do modo (o IV
grau elevado, no caso, o lá sustenido) aparece na voz mais grave nas palavras braço, caju, contente e
boca. Na voz superior, porém, a nota “lá” aparece sem alteração, sendo justamente isso o que gera
um contraste no momento em que o sustenido aparece na voz inferior91.
Figura 56: “Jóia” - Melodias das Vozes
Fonte: o autor
91
Recomendo a leitura do artigo “A Construção Não Tonal da Canção Jóia, de Caetano Veloso”, de Marcelo Segreto
(2014), no qual o autor analisa profundamente as formas pelas quais Caetano estabelece o modalismo nessa canção.
150
Mesmo as canções predominantemente tonais do disco Jóia trazem em si elementos
modais. “Lua, Lua, Lua, Lua”, por exemplo, é totalmente estruturada no sistema tonal de Lá Maior,
mas em sua coda, na qual se repetem os acordes A7M e Aº, Caetano realiza improvisos que
misturam a escala maior e a diminuta (passando por notas como ré sustenido e dó natural). A
melodia da canção “Escapulário” também aponta para o tonalismo, com centro em Ré bemol
Maior. Todavia, por não ter acompanhamento harmônico, apenas percussão, sugere-se certa
ambientação modal, principalmente por ser uma canção de melodia curta e que se repete ad
infinitum (a gravação termina em fade-out).
Vejamos também a canção "Pelos Olhos", cuja harmonia traz diversas progressões
interessantes. Embora possua momentos que indiquem caráter tonal da canção, como as sequências
subdominante-dominante representadas pelos acordes nos graus IIm e V7, em nenhum momento
ocorre uma resolução direta do acorde de sétima da dominante no acorde montado sobre o
primeiro grau. Em vez disso, onde aparece o acorde F#7, segue-se a ele o acorde C, antes da resolução
em B7M. Esse acorde de dó maior aparece como empréstimo modal, especi camente do modo
frígio. Além de trazer esse "colorido" modal ao trecho, dilui a ideia de tensão e resolução, tão caras ao
sistema tonal.
151
Figura 57: “Pelos Olhos” - Parte A
Fonte: o autor
Na parte B da canção, esse aspecto modal ganha mais peso. Apenas dois acordes são
executados, o B6 e o E7(9). Este último pode ser entendido como empréstimo do modo dórico, e
como não há encadeamentos tonais no trecho, representa um momento de permutabilidade modal
na canção — uma vez que a parte anterior estaria no modo jônico.
152
Figura 58: “Pelos Olhos” - Parte B
Fonte: o autor
principal característica de estruturas tonais; como essa nota não aparece, a sensação de tonalismo (na
melodia de forma isolada) se dissolve. Além disso, alguns clichês melódicos do modo hexacordal
estão presentes, como os movimentos 6-1 e 5-4-3-1, os quais, como aponta Ribeiro (2020), evocam
certa sonoridade associada a uma imagem do nordeste.
153
Figura 59: “Canto do Povo de um Lugar” - Análise Melódica
Fonte: o autor
4.5 Os Diferentes Usos da Voz
No Jóia, Caetano retoma diversos procedimentos experimentais de apareceram em seus
improvisos vocais que lembram vagamente as experimentações com as sílabas que o cantor fez em
faixas de Araçá Azul, embora no Jóia o procedimento seja diferente: Caetano adiciona esses
elementos a canções mais convencionais.
154
aproxima mais das experimentações que ele mesmo já havia feito anteriormente no disco Araçá
Azul, na gravação da faixa “Asa Branca” em seu álbum de 1971 e na trilha sonora do lme São
Bernardo, de Leon Hirszman92.
Outro uso distinto da voz em Jóia é o de dissolução de linhas melódicas, como ocorre em
“Guá”. Vimos anteriormente que, para compor a canção “Asa, Asa”, Caetano fez referência direta à
música dos Yudja. Porém, este não é o único exemplo dessa aproximação estética com as músicas
indígenas. Em entrevista com Ana Maria Bahiana (1980, p. 43), Caetano, ao ser perguntado sobre a
canção “Guá”, conta: “esse lado aí da minha produção, que tem ‘Jóia’, que tem ‘Gravidade’, foi
depois que eu ouvi um disco do Xingu, um disco da Philips que tem coisas dos índios do Xingu,
Figura 60: “Guá” - Sequência de sons cantados ressaltando aspecto polifônico
Fonte: o autor
É possível ter uma noção do tipo de experimentação vocal que Caetano desempenhou na trilha do lme São Bernardo
92
Em “Tudo Tudo Tudo”, as três melodias estão em registros bastante separados (grave,
médio e agudo) e a mixagem da gravação foi feita de forma a separar as três faixas: ao ouvir a canção
com fones de ouvido, percebe-se que a melodia grave foi direcionada para o canal esquerdo, e a
as notas de um instrumento musical no momento de gravação. Em vez disso, gravou uma melodia
principal e cantou as outras duas vozes utilizando a primeira faixa como referência de a nação.
Essa é uma das canções na qual Caetano segue com as experimentações vocais. Aqui, as
palavras surgem aos poucos, na repetição da melodia. Noto nessa faixa algumas aproximações com
as experimentações do disco Araçá Azul. Como Lucchesi e Dieguez (1993, p. 126) apontaram, o
canto de Caetano nesta canção, “por meio da emissão repetitiva de sons guturais, lembra o processo
infantil de aprendizagem da fala e, por que não, a expressão do gozo”. Eles também relacionam essa
experiência àquelas da canção “Asa Branca” do disco de 1971 e da trilha sonora de São Bernardo:
“são sons ruminados, típicos da mastigação e próprios do contexto nordestino, já associados por
Augusto de Campos à noção de fome", o que faz ainda mais sentido se pensarmos que um dos
versos cantados aqui diz: “tudo comer”.
Quando Caetano gravou a canção “De Palavra em Palavra”, no disco Araçá Azul, ele
explorou diversas formas de retratar, através do canto, os sentidos das palavras cantadas. Quando,
naquela música, ele cantava a palavra “mar”, ele o fazia explorando a explosividade da consoante M e
deixando o som da letra R se prolongar, de forma que, ao ouvinte, o resultado sonoro fosse, de
alguma maneira, similar ao do movimento de ondas. Vejo certa similaridade entre esse trecho e a
forma que Caetano canta a palavra “mar” em “Tudo Tudo Tudo”: há uma intenção de criar
imagens através do som.
Outros arranjos vocais estão presentes em “Jóia” e “Pipoca Moderna”. Na primeira,
Caetano canta duas melodias separadas por intervalos de quartas como forma de emular uma
sonoridade especí ca não-ocidental. Já na segunda, a letra é repetida três vezes e, em cada repetição,
157
uma nova melodia é cantada em sobreposição. Essas melodias parecem ter sido, em algum nível,
improvisadas por Caetano, apresentando variações de momentos de maior dissonância e
consonância entre elas. O canto de Caetano busca, novamente, potencializar os versos que, nesse
caso, são construídos com diversas aliterações que ganham uidez na voz:
A estranheza da combinação das autas com a percussão assim como o arranjo vocal para
três vozes explorando intervalos dissonantes parecem inspirar a composição de uma letra
também aparentemente estranha, em que elementos díspares são conjugados, a começar
pelos termos que compõem o título: ‘pipoca’ e ‘moderna’. O que é uma pipoca moderna?
E uma ‘noite de negro não’? E os ‘golpes de p’?” (MEDEIROS, 2001, p. 129).
Medeiros (2001) nota na letra um “pano de fundo construído sobre a letra N” nos versos
“e era nada de nem noite de negro não/ e era nê de nunca mais”, uma situação é rompida “a golpes
de p”, literalmente, nos versos “porém parece que há golpes de pê, de pé, de pão, de parecer poder”.
O canto de Caetano representa esses momentos distintos através de uso maior de legato nos trechos
de N e stacatto nos “golpes de P”. Assim, uma letra que, num primeiro momento, não tem sentido
claro, ganha outros níveis de signi cado na articulação do cantor. Como já comecei a fazer aqui, no
próximo tópico voltarei meu olhar às letras das canções, pensando em quais sentidos estas,
associadas às melodias, apresentam.
4.6 Construções Poéticas
As letras das canções do disco Jóia, no geral, fogem de narrativas tradicionais e lineares94. É
nesse disco que Caetano adota diversas construções poéticas que dialogam com a Poesia Concreta e
têm como temas principais a natureza (de diversas formas), a liberdade e certo misticismo panteísta.
Lucchesi e Dieguez (1993) indicam a presença de alguns signos que apontam para uma "vocação
libertária" em músicas como “Asa, Asa”, “Lua, Lua, Lua, Lua”, “Canto do Povo de um Lugar”,
94
Todas as letras das canções do disco Jóia podem ser lidas no Anexo I.
158
Esses autores identi cam o uso dessa palavra na canção “Asa, Asa” como uma referência da relação
entre espaço e liberdade — o pássaro é o ser livre por poder viver no ar. Essa também é uma das
canções que se aproximam dos procedimentos da Poesia Concreta.
Perrone (1990) aponta que esses procedimentos aparecem na obra de Caetano desde o
período tropicalista (efetivamente em canções como “Bat Macumba” e “Acrilírico”), assim como nas
experimentações presentes no Araçá Azul. Músicas como “De Palavra em Palavra” e
Figura 63: Letra da Faixa “Asa” como aparece no encarte de Jóia
159
Dentre as canções com “vocação libertária”, Lucchesi e Dieguez também mencionam
“Gravidade”. Nesta, a cada repetição do verso “asa, asa, asa, asa” algum dos elementos da natureza é
mencionado: “rio in nito no leito de um rio”, “brasa debaixo da cinza”, “o vento entra pela casa” e
“Anjo no peito da terra” fazem referência direta à água, ao fogo, ao vento e à terra, respectivamente.
No disco como um todo há uma forte presença da natureza como tema.
Seguindo nas intenções libertárias, temos a canção “Lua, Lua, Lua, Lua”. A lua aparece
muitas vezes nas canções do período como símbolo contracultural, é só lembrarmos da temática
noturna presente em diversas canções do rock pós-tropicalista (BRITTO, 2003). Nessa música,
porém, de acordo com Lucchesi e Dieguez (1993), não se trata (apenas) do satélite da Terra, mas de
alusão ao poema “branco…”, de Haroldo de Campos (ver gura a seguir) nos versos: “e mesmo o
vento/ canta-se compacto no tempo/ estanca/ branca, branca, branca, branca…”.
Figura 64: Poema “branco…”, de Haroldo de Campos (1958)
Fonte: Haroldo de Campos, em "Noigandres 4" - 1958 (iconogra a)
161
"entre avencas verde-brisa" da canção “Um Dia”, um dos primeiros sucessos de Caetano. Aparece
também, em “Pelos Olhos”, o misticismo panteísta de identi cação de Deus na natureza: o Deus
dos fetos, das plantas pequenas é a luz saindo pelos olhos de sua “amiguinha”.
Caetano apresenta neste disco uma multiplicidade de pontos de vista, capaz de abordar
diversos temas e relacionar-se com diversas sonoridades. Nesse sentido, destaca-se a ausência do “eu”
em diversas faixas, como “Guá”, “Pelos Olhos”, “Asa, Asa”, “Lua, Lua, Lua, Lua”, “Pipoca
Moderna”, “Gravidade” e “Na Asa do Vento”, e a troca do “eu” pelo “nós”, representando uma
visão de coletividade, em faixas como “Canto do Povo de um Lugar” e “Escapulário”.
Na canção “Guá”, a multiplicidade do eu destina uma de suas faces à cultura nagô a partir
do cruzamento, sincretismo das raças, culturas e religiões (LUCCHESI, DIEGUEZ, 1993). Há
também aqui um diálogo com a Poesia Concreta. A letra só possui quatro palavras que são
repetidas: “água / guamá / iguape / ibualama”. Ao cantar, Caetano une uma palavra à outra
96
Sinalefa é a queda da vogal nal de uma palavra, quando a palavra seguinte começa por vogal.
163
relacionados a uma imagem do “primitivo”: “selvagem”, “caju”, “América do Sul”, além da própria
melodia em quartas remetendo à músicas de sociedades não-ocidentais. Do outro, imagens da
“modernidade”: “Copacabana”, “coca-cola”. Guilherme Wisnik (2005, p. 110-111) faz uma análise
muito interessante desses signos:
[“Jóia”] descreve dois momentos equivalentes na praia de Copacabana: o instante
inaugural do contato entre índios e europeus, em que o selvagem oferece o fruto da terra
(um caju) ao estrangeiro, 'num gesto de nítida benevolência e disposição à troca', e, aqui
também, uma cena atual, em que uma 'menina muito contente toca a Coca-Cola na
boca'. Nesse caso, o nome que designa o lugar, e que se tornou um símbolo do Brasil, e do
cosmopolitismo do Rio de Janeiro, é originário dos índios da Bolívia, passando pelo ltro
do cristianismo — a Virgem de Copacabana, uma das santas mais importantes da América
espanhola. E a Coca-Cola, tomada com amor pela menina, mostra-se como um presente
da civilização aos nativos, numa reconstrução poética da colonização que quer
voluntariamente celebrar suas conquistas na imagem de uma América mestiça e potente: o
braço levantado com o caju e a tocha na mão, a maçã que se morde e a Coca-Cola que se
bebe, num 'momento de puro amor'" (WISNIK, 2005, p. 110-111).
Marcelo Segreto (2014, p. 168) con rma essa visão e aponta ainda outras interpretações à
letra:
O levantar do braço do selvagem para colher a fruta na árvore, diretamente da natureza,
nos sugere um gesto de certa forma sagrado. Como uma homenagem ao divino,
estendendo os braços e tocando a fruta que vem do alto. Sentimos esta personagem em
harmonia absoluta com seu ambiente. A menina, por sua vez, caracterizada como “muito
contente”, também entra em consonância com seu espaço cujo clima é de euforia geral.
“Louca total e completamente louca” é a Copacabana retratada na canção. Sua ligação
com o ambiente, entretanto, já não se faz através de um contato direto com a natureza
propriamente dita (o caju como fruto nativo do Brasil), mas sim com um objeto
industrializado e símbolo da cultura norte-americana presente em todo o globo
(SEGRETO, 2014, p. 168).
164
Vejamos também a canção “Tudo Tudo Tudo” que, assim como “Canto do Povo de um
Lugar”, começou na mente de Caetano como uma canção para ninar Moreno, seu lho. No canto
de Caetano, a palavra “tudo” do título quase não é articulada, soando como um “m” na maioria das
vezes, até ganhar clareza nas repetições nais. A letra da canção aparece no encarte da seguinte
forma:
Figura 67: Letra da faixa “Tudo, Tudo, Tudo” como aparece no encarte de Jóia
Nota-se aqui outro exemplo da relação entre a obra de Caetano Veloso e a Poesia
Concreta. Como aponta Charles Perrone (1990, p. 62), "o impacto de ‘Tudo Tudo Tudo’ também
depende de xidez rítmica [como acontece em “Asa, Asa”], aqui palmas. As unidades do ‘mar’ e do
'tudo' contrastam com os in nitivos para criar uma justaposição abstrata e estranha de vida e morte,
Pau-Brasil. Esse uso do poema de Oswald em seu disco aparece como prova de que Caetano nunca
se afastou inteiramente do ideário tropicalista.
165
4.7 Comparações entre Jóia e Qualquer Coisa
Quando questionado em entrevista sobre os critérios de divisão das canções entre um
disco e outro, Caetano comenta (BAHIANA, 1980) que as escolhas foram muito pessoais e sutis.
Desde a gravação de Araçá Azul o cantor tinha bastante material gravado e inicialmente pensou em
lançá-lo num álbum duplo, ideia que foi descartada posteriormente. Ele conta que partiu do título
das duas canções, “Jóia” e “Qualquer Coisa”, para fazer as escolhas. Jóia, a princípio, era fundado em
suas canções mais novas (embora tivesse também “Help” e “Na Asa do Vento”, de outros
compositores) e Qualquer Coisa é uma espécie de coletânea de canções que Caetano gostava de
cantar97. Pouco depois na mesma entrevista, o cantor complementa os critérios:
É como se no Jóia fosse um negócio de eu-com-o-meu-trabalho, quer dizer, são coisas
assim feitas num momento de clareza, de certeza, num momento de escolher o que fazer,
escolher espontaneamente, mas escolher. E no Qualquer Coisa seria mais assim uma
relação com tudo o que tem por aí de um modo acrítico, sabe como é? Tudo o que me dá
vontade, sem ser aquilo que cou especialmente escolhido, sabe como é? Se bem que nada
de ne muito bem a seleção, não é? Só mesmo ouvindo os discos (VELOSO apud
BAHIANA, 1980, p. 42).
É possível também interpretar as seleções como resultado dos desejos incontidos de um
“eu em incompletude”. Como apontam Lucchesi e Dieguez (1993), esse eu “tanto se identi ca com
o sentido da harmonia e do equilíbrio (concepção apolínea), quanto se vê atraído e seduzido pela
ruptura (expressão dionisíaca)". Nesse sentido, esses autores identi cam a marca apolínea no disco
Jóia, no qual Caetano busca a pureza do som original “liberto da bateria” em trânsito na esfera do
sublime, e a predominância dionisíaca em Qualquer Coisa, no qual o cantor assimila, de forma
antropofágica, múltiplas vertentes musicais, circulando no espaço do “cotidiano profano”. O
próprio Caetano (LUCCHESI; DIEGUEZ, 1993, p. 122). aponta essa dualidade, mas em outros
termos: "A polaridade parece um caminho para entender meu trabalho. O movimento Bossa Nova é
um movimento Jóia e o Tropicalismo é um movimento Qualquer Coisa. Em ambos, o dado mais
importante é um respeito contrito à ideia de inspiração".
97
Disco disponível para audição em diversas plataformas, como o Spotify:
https://open.spotify.com/album/1EggMJbrddGeSyNjDzDRMI?si=NPtYszU9TFypUv4LyYiu1A.
166
Se Araçá Azul é um disco-síntese de um percurso, Jóia e Qualquer Coisa são discos
resumitivos de um processo. Aquele conta uma história, estes revelam a estrutura que, a
cada investida do ato criador, incorpora e retoma elementos originários para dar
prosseguimento à viagem estético-existencial. Compõe-se, assim, uma estética da inclusão
em espiral. Como o eu se multiplica nos variados espaços, torna-se impossível reduzi-lo a
um modelo, o que faz de Caetano um artista esquivo, escorregadio e irredutível a esta ou
àquela tendência (LUCCHESI; DIEGUEZ, 1993, p. 120-121).
Dentre as faixas do disco, temos “Da Maior Importância’, “Samba e Amor” (Chico
Buarque) e “Madrugada e Amor” (José Messias), cujas instrumentações incluem apenas o violão de
que”).
Em outras canções do disco, há uma grande variação nos tipos de arranjos e timbres. Na
versão de “Jorge de Capadócia”, de Jorge Ben, o cantor faz uso de um grupo instrumental mais
extenso, que inclui dois violões (Caetano Veloso e Fredera), bateria (Enéas Costa), baixo elétrico
(Fernando Leporace), percussão (Hermes Contesini), piano (Perinho Albuquerque) e as vozes do
grupo vocal Quarteto em Cy (que também participou em “Guá”, do disco Jóia).
Se no disco Jóia Caetano trouxe a referência aos Beatles com a gravação de “Help”, em
Qualquer Coisa esse diálogo é muito maior. Além da capa do disco que faz referência direta àquela
de Let It Be da banda britânica, Caetano também interpretou três canções deles: “For No One”,
“Eleanor Rigby” e “Lady Madonna”. A interpretação de “For No One” traz a canção dos Beatles
para um contexto mais próximo de uma bossa-nova eletri cada, com guitarra, bateria e baixo
elétrico, além dos tradicionais instrumentos do gênero, como piano, auta e percussão.
Procedimento similar ocorre em “Lady Madonna”, e nessa, assim como em “Help”, ocorre uma
signi cativa diminuição do andamento com relação à gravação original.
Dessas versões, porém, creio que a versão de “Eleanor Rigby” se destaca. A canção de John
gravação original, a voz de Paul McCartney é acompanhada por um octeto de cordas. Essa
composição e esse disco como um todo foram decisivos na transição da sonoridade tradicional dos
Beatles associada ao pop e ao rock’n’roll para uma estética mais voltada a experimentações de estúdio.
Aqui, o octeto reforça o caráter dramático da letra, que conta a história de três pessoas solitárias
(“lonely people”). Mesmo entre os músicos da MPB nacionalista dos anos 60 ela teve um impacto;
Veloso (1997) conta que, embora muitos daqueles músicos da canção engajada considerassem os
discos anteriores dos Beatles como sendo de pouco valor, estes encontraram elogios a Eleanor Rigby,
e ainda mencionou a fala da cantora Marilia Medalha, que comentou sobre a beleza da canção.
Quando Caetano gravou essa música em seu disco Qualquer Coisa, oito anos depois do lançamento
pelos Beatles, a proposta sonora foi bastante distinta. A versão do cantor conta com violão base
(Caetano), violão solo (Perinho Albuquerque), contrabaixo (não creditado) e percussão (Djalma
Corrêa), além da voz. Essa formação instrumental, de certa forma, se assemelha àquela presente no
disco Transa. Diferente da gravação original, a versão de Caetano repete a letra e insere uma seção de
improviso, feito pelo violão. Enquanto este improvisa, o outro violão executa uma levada de
bossa-nova, novo ritmo que essa canção assume nas mãos de Caetano.
Essa interpretação de “Eleanor Rigby” (mas também as de “Lady Madonna” e “For No
One”) ajudou na incorporação de nitiva do pop e do rock pela MPB. Quando a MPB
institucionaliza-se (NAPOLITANO, 2001) e passa a ocupar um lugar hegemônico no mercado, ela
ganha estabilidade e, com isso, a capacidade de incorporar elementos externos a ela sem que com isso
se descaracterize. Essa estabilidade também permite que Caetano incorpore à MPB a canção
folclórica peruana na valsa “La Flor de la Canela”, da cantora e compositora Chabuca Granda,
interpretada com violão e viola, e a música cubana com “Drume Negrinha”, versão de “Drume
Negrita” de Ernesto Grenet Sanchez, tocada no violão (Caetano) e no piano (João Donato).
É a faixa-título “Qualquer Coisa”, porém, que dá todos os indicativos da sonoridade que o
disco desenvolveria e que contrastam com aquela do Jóia. Nessa gravação, a sonoridade de música
pop faz-se onipresente, e a formação instrumental inclui a bateria de Enéas Costa (instrumento que
não aparece em praticamente nenhum momento no disco Jóia), o piano de João Donato, o violão de
Perinho Albuquerque, o baixo elétrico de Sérgio Barrozo, além de autas e naipes de metais cujos
168
Teerã, capital do Irã, e Marrakesh (ou Marraquexe), cidade de Marrocos. Na melodia e na harmonia,
é evocada a sonoridade da música amenca. Isso ocorre pelo uso de acordes do modo frígio em
trechos especí cos, no movimento do acorde Bb (bII) para A (I). Esse modo é muito comumente
utilizado na música amenca e em outros gêneros da música ibérica, e a melodia executada pelo
trompete nesse momento reforça esses elementos frígios. Aqui, embora Caetano esteja trabalhando
dentro de uma sonoridade assumidamente pop, o caráter experimental ainda ganha certo espaço e
muitos diálogos se estabelecem com diferentes universos. No âmbito da letra, por exemplo, há uma
narrativa fragmentada que, além de citar aqueles lugares mencionados, faz referências ao cinema
marginal de Rogério Sganzerla (“Sem Essa, Aranha”).
O equilíbrio entre os dois discos, Jóia e Qualquer Coisa, mostram que Caetano não se
deixou prender por tendências especí cas. Como coloca Bosco (2004), o lugar que o compositor
ocupa é o da multiplicidade: não é “MPB ou rock” ou ainda “tradição ou modernidade”; é MPB e
obra de Caetano:
O 'passe-livre' da pluralidade pode simplesmente evocar uma variada tipologia
semiológica: há signos para se re etir, há signos para se distrair; há canções para dançar,
outras para ouvir; há lmes para lembrar, novelas para esquecer. Por que, a nal, a
monocultura semiológica? Certamente, a cultura de massas privilegia os signos distrativos,
o regime generalizado do fait-divers, mas não se deve jogar fora o bebê junto da água suja:
nem sempre se quer o denso, nem sempre o raso; nem sempre o sério, nem sempre o
engraçado; nem sempre o afeto, nem sempre a razão; nem sempre a crítica, nem sempre a
distração (BOSCO, 2004, p. 106).
169
De certa forma, Jóia e Qualquer Coisa sintetizam Caetano Veloso em toda a sua trajetória
musical. O primeiro, representando sua veia de experimento; o segundo, sua abertura ao mercado.
E, por estar nesse lugar da multiplicidade, suas obras mais experimentais ainda possuem uma
acentuação pop, e suas canções mais comerciais, por outro lado, sempre trazem algum nível de
inovação estética.
170
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao iniciar esse trabalho, de ni como objetivo analisar as formas pelas quais Caetano
Veloso, em atitude responsiva, dialoga com o contexto em que esteve inserido nos anos 1970. Para
abordar esse problema, z um recorte focado principalmente no disco Jóia, que fora lançado, ao
lado do disco Qualquer Coisa, em 1975.
No capítulo 3, z uma vasta contextualização histórica focada na canção popular
brasileira, elucidando os processos pelos quais ela passou e as interações que sempre ocorreram entre
elementos nacionais e estrangeiros em sua formação. A canção brasileira, fortemente vinculada aos
meios de comunicação, teve momentos de grande crescimento com os surgimentos progressivos do
disco de vinil, do rádio e da televisão e esses veículos e as tecnologias associadas a eles também
in uenciaram, de alguma forma, o próprio fazer musical.
temas passionais, muito presentes no samba-canção e no bolero dos anos 1950, e tematizarem
situações leves e cotidianas.
Foi nesse período que Caetano, paralelamente, entrou em contato com as movimentações
culturais que se desenvolviam na Universidade da Bahia, em Salvador. Lá, o compositor entrou em
contato com diversos artistas estrangeiros, que trouxeram ao Brasil alguns dos procedimentos
musicais mais recentes das vanguardas europeias. Todas elas buscavam a criação de novos códigos
musicais e novas formas de expressão que rompessem com o sistema tonal, o que certamente foi
absorvido por Caetano Veloso.
Enquanto isso, em São Paulo e no Rio de Janeiro, a Bossa Nova passava a incluir, em suas
letras, outras temáticas, com caráter mais social e de protesto, o que se intensi cou quando se
instaurou a Ditadura Militar em 1964, e foi nesse contexto que Caetano entrou nesse cenário
171
artístico. Paralela e em oposição à canção engajada, a Jovem Guarda nasceu com grande apelo
popular, letras descompromissadas e sonoridade amplamente rmada no pop rock de in uência
britânica, americana e italiana. Nos festivais televisivos, Caetano identi cou a oportunidade de
lançar o movimento tropicalista, sua proposta de “som universal” que, vindo da MPB, tivesse
capacidade de deglutir, no sentido antropofágico de Oswald de Andrade, os melhores elementos da
música estrangeira, para então criar uma música brasileira de exportação, capaz de estabelecer
diálogos globais. Mesmo com diversos embates com os “emepebistas tradicionais”, os tropicalistas
tiveram grande impacto no cenário cultural da época e atuaram amplamente na mídia até a prisão de
seus líderes, Caetano Veloso e Gilberto Gil, em 1969, seguida pelo exílio dos dois em Londres. O
estabelecimento dos Anos de Chumbo da Ditadura Militar teve impacto direto sobre as
composições da MPB, que tiveram que enfrentar forte censura. Seguiu-se a isso um período em que
a contracultura ganhou força no Brasil, e muitas das canções assumiram temáticas noturnas, que
apontam também para esse movimento libertário. Veloso via-se em uma posição imposta de
liderança a qual não mais lhe interessava — principalmente no sentido de adotar uma postura
172
de gêneros musicais e ritmos, entre eles a toada, o agueré, a bossa-nova, o blues, o funk, o bolero, a
marcha-rancho, o samba, o samba-de-matuto, a valsa, o xote e o baião.
Como mencionado, o modalismo faz-se presente ao longo de todo o disco. Os modos
utilizados — eólio, dórico, mixolídio, jônico e lídio — revelam in uências de diversas matrizes
musicais, entre elas a das músicas nordestinas e a musicalidade afro-brasileira. Nessas canções
modais aparecem diversos procedimentos característicos do Modalismo Pós-Tonal do século XX,
ser a integração entre letra e melodia. Sua emissão vocal no disco tem grande in uência
bossanovista, principalmente de João Gilberto no uso de legatos e poucos contrastes. Apesar disso,
há também espaço no disco para diferentes tipos vocais, o que aparece principalmente em seções de
improvisos, que se estabelecem geralmente em contextos modais, com liberdade de duração e
experimentação da sonoridade das sílabas. A ideia de desconstrução da melodia também aparece em
canções como “Guá”, na qual o cantor canta notas em registros extremos graves e agudos como
forma de romper com uma linearidade melódica. Em seguida, porém, há um retorno para uma
173
construção melódica mais tradicional. Esse tipo de interação entre estruturas tradicionais e
experimentalismo aparece com frequência no disco.
Também podemos identi car esse movimento entre tradição e modernidade, por exemplo,
Aparecem nas canções diversas formas de intertextualidade. Nas gravações de “Help” e
“Na Asa do Vento”, o cantor busca fazer uma “transformação dos originais” dos Beatles e de João
do Vale e Luiz Vieira. Sua abordagem inclui um processo de triagem, que busca o essencial de cada
canção muitas vezes na interação entre melodia e letra. Partindo desse lugar, Caetano acrescenta seu
olhar particular. A “Help”, são acrescentados elementos de blues, pop e bossa-nova, tanto na levada
quanto nas in exões melódicas. A “Na Asa do Vento”, o cantor joga com a defasagem rítmica entre
não há, necessariamente, uma estética uni cadora no álbum. No Jóia, em contrapartida, é possível
identi car na contenção e na frugalidade uma espécie de guia para a sonoridade do disco como um
todo.
Enquanto as letras do Jóia trabalham temas “universais” como a natureza, a liberdade e
certo misticismo, as composições presentes no Qualquer Coisa tematizam questões cotidianas.
Também neste disco há uma grande presença de instrumentos eletri cados e bateria. Se há grande
mistura de gêneros no Jóia, estes aparecem sob a triagem de uma mesma estética. Nesse sentido, é
possível traçar um paralelo entre esses discos e os movimentos da Bossa Nova e do Tropicalismo. A
primeira, como o disco Jóia, representa um momento de triagem, escolha cuidadosa, contenção; o
segundo, como o Qualquer Coisa, representa a abertura e a política da inclusão. Ambos são frutos
de um eu plural, que comporta em si tanto a concepção apolínea quanto a expressão dionisíaca.
Os dois discos funcionam como metáfora para a obra de Caetano que equilibra
experimentalismo e mercadoria. Trabalhos futuros podem avançar essa pesquisa indicando como
esses procedimentos aparecem nos outros discos de Caetano daquela década e como estes se
relacionam com o contexto no qual se inserem. Algo que também não pôde ser realizado nesta
dissertação, mas que pode render bons frutos, é uma pesquisa voltada para a análise comparativa de
175
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APÊNDICES
Apêndice I - Transcrições de algumas canções do disco Jóia
“Minha Mulher”
183
184
185
“Pelos Olhos”
186
187
“Asa, Asa”
188
189
190
191
192
193
“Jóia” - Vozes
194
“Gravidade”
195
196
197
198
199
200
201
202
203
204
205
206
207
ANEXOS
Anexo I - Letras das Canções do Disco Jóia
“Minha Mulher” (Caetano Veloso)
Quem vê assim pensa que você é muito minha lha
Mas na verdade você é bem mais minha mãe
Quem vê assim pensa que você é muito minha lha
Tudo é mesmo muito grande assim
208
Minha mulher
Quando eu for velho
Quando eu for velhinho
Bem velhinho
Como seremos
Como serei
Como será?
Quando eu for velho
Quando eu for velhinho
Bem velhinho
Como seremos
Como serei
Como será?
Meu bichinho bonito
Meu bichinho bonito
Meu bichinho bonito
Tudo é mesmo muito grande assim
Porque Deus quer
Minha mulher
Minha mulher
Minha mulher
209
210
Saindo pelos olhos
De minha amiguinha linda
De minha amiguinha
De minha amiguinha
De minha amiguinha linda
De minha amiguinha
De minha amiguinha
De minha amiguinha linda
O Deus que mora na proximidade do haver avencas
Esse Deus das avencas
É a luz
Saindo pelos olhos
De minha amiguinha
211
“Asa, Asa” (Caetano Veloso)
Pássaro um Pássaro um
Pássaro pairando Pássaro pairando
212
214
215
216
Help I need somebody But every now and then I feel so insecure
Help not just anybody I know that I just need you like I've never
Help you know I need someone help done before
When I was younger so much younger than Help me if you can I'm feeling down
today And I do appreciate you being round
I never needed anybody's help in any way Help me get my feet back on the ground
But now these days are gone I'm not so self Won't you please please help me
assured
Now I nd I've changed my mind and When I was younger so much younger than
opened up the doors today
I never needed anybody's help in any way
Help me if you can I'm feeling down But now these days are gone I'm not so self
And I do appreciate you being round assured
Help me get my feet back on the ground Now I nd I've changed my mind and
Won't you please please help me opened up the doors
And now my life has changed in oh so many Help me if you can I'm feeling down
ways And I do appreciate you being round
My independence seems to vanish in the haze Help me get my feet back on the ground
Won't you please please help me
217
Seixo seixo seixo seixo
Destino do destino (4x)
218
Tudo comer
Tudo dormir
Tudo no fundo do mar
219
A lua é clara, o sol tem rastro vermelho Todo mundo quer cheirar
É o mar um grande espelho onde os dois vão
se mirar Deu meia noite, a lua faz o claro
Rosa amarela quando murcha perde o cheiro Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste
O amor é bandoleiro, pode inté custar A aranha tece puxando o o da teia
dinheiro A ciência da abeia, da aranha e a minha
É fulô que não tem cheiro e todo mundo Muita gente desconhece
quer cheirar
Muita gente desconhece, olará, viu?
221
De cada dia
Dai-nos, Senhor
A poesia de cada dia
(No pão de açúcar)
No pão de açúcar
De cada dia
Dai-nos, Senhor
A poesia de cada dia
(No pão de açúcar)
No pão de açúcar
De cada dia
Dai-nos, Senhor
A poesia de cada dia
(No pão de açúcar...)
222
respeito contrito à ideia de inspiração. jóia. meu carro é vermelho. inspiração quer dizer: estar
cuidadosamente entregue ao projeto de uma música posta contra aqueles que falam em termos de
década e esquecem o minuto e o milênio.
inspiração: águas de março.
223