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JOÃO PEDRO SCHMIDT 

 
 
 
 
 
 
 
 
ENTRE EXPERIMENTALISMO E MERCADO: UMA ANÁLISE DO DISCO JÓIA, DE 
CAETANO VELOSO 
 
 
 
 
 
 
Dissertação  apresentada  ao  Instituto  de  Artes  da 
Universidade  Estadual  de  Campinas  como  parte dos 
requisitos  exigidos  para  a  obtenção  do  título  de 
Mestre  em  Música,  na  área  de  Música:  Teoria, 
Criação e Prática. 
 
 
 
 
 
 
Orientador: Antônio Rafael Carvalho dos Santos. 
 
 
Este  trabalho  corresponde  à  versão  nal  da 
dissertação  defendida  pelo  aluno  João  Pedro 
Schmidt,  e  orientada  pelo  Prof.  Dr.  Antônio  Rafael 
Carvalho dos Santos. 
 
 
 
 
 
CAMPINAS 
2020 
   

 
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Artes
Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Schmidt, João Pedro, 1996-


Sch52e SchEntre experimentalismo e mercado : uma análise do disco Jóia, de Caetano
Veloso / João Pedro Schmidt. – Campinas, SP : [s.n.], 2020.

SchOrientador: Antônio Rafael Carvalho dos Santos.


SchDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Artes.

Sch1. Veloso, Caetano, 1942-. 2. Música popular brasileira. 3. Música


experimental. 4. Música brasileira - História. 5. Anos 1970. I. Santos, Antônio
Rafael Carvalho dos, 1953-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto
de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Between experimentalism and market : an analysis of the album
Jóia, by Caetano Veloso
Palavras-chave em inglês:
Veloso, Caetano, 1942-
Brazilian popular music
Experimental music
Brazilian music - History
Nineteen seventies
Área de concentração: Música: Teoria, Criação e Prática
Titulação: Mestre em Música
Banca examinadora:
Antônio Rafael Carvalho dos Santos [Orientador]
José Roberto Zan
Sergio Augusto Molina
Data de defesa: 30-11-2020
Programa de Pós-Graduação: Música

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-7623-4642
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/9022840509535529

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COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO 
 
 

 
JOÃO PEDRO SCHMIDT 
 

 
 
ORIENTADOR: ANTÔNIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS 

 
 
MEMBROS: 
 
1. PROF. DR. ANTÔNIO RAFAEL CARVALHO DOS SANTOS 
2. PROF. DR. JOSÉ ROBERTO ZAN 

3. PROF. DR. SERGIO AUGUSTO MOLINA 


 
Programa  de  Pós-Graduação  em  Música  do  Instituto  de  Artes  da  Universidade  Estadual  de 
Campinas.  
 
 
A  ata  de  defesa  com  as  respectivas  assinaturas  dos  membros  da  comissão  examinadora  encontra-se 
no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese na Secretaria do Programa da Unidade. 
 
 

DATA DA DEFESA: 30.11.2020 


   

 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Escrever  essa  dissertação  foi  uma  tarefa  incrivelmente  árdua.  Todas  as  pessoas  aqui 
mencionadas  ajudaram,  de  alguma  maneira,  a  tornar  esse  processo  muito  mais  leve. Por isso, foram 

essenciais. Sou profundamente grato a todos vocês. 


Agradeço  ao  meu  professor  orientador,  Rafael  dos  Santos,  por  aceitar  acompanhar  a 
minha  pesquisa  e  por  todo  o  suporte  provido  nesses  quase  três  anos.  Aos professores José Roberto 
Zan  e  Jorge  Schroeder,  que  muito  gentilmente  aceitaram  participar da minha banca de quali cação 
e  forneceram  observações  valiosas  para  minha  dissertação,  e  ao  professor  Sergio  Molina,  que 
contribuiu  imensamente  com  suas falas na minha defesa. Agradeço também a todos os funcionários 
do  Instituto  de  Artes  da  Unicamp,  por  proporcionarem  um  ambiente  propício  para  o 

desenvolvimento  do  meu  trabalho  e  por  se  colocarem  sempre  disponíveis  a  ajudar  nesse  processo. 
Minha gratidão a todas essas pessoas também se dá pelo papel que elas exercem no fortalecimento da 
universidade  pública,  gratuita  e  de  qualidade,  mesmo  (e  especialmente)  em  tempos  sombrios  nos 
quais a pesquisa e o ensino acadêmico sofrem tantos ataques.  
Ao  professor  e  amigo  Allan  de  Paula  Oliveira,  que  me  acompanhou  desde  a  faculdade, 
dispôs-se  a ler minha dissertação, indicou leituras e deu sugestões de grande valor para meu trabalho, 
sempre com um olhar certeiro.  
Durante o mestrado, me dividi entre Campinas, Curitiba e Joinville. Isso foi, talvez, a parte 
mais  difícil  de  todas;  a  saudade  tornou-se  minha  rotina.  Nesse  sentido,  algumas  pessoas  foram 

essenciais  e  me  ajudaram  a  me  sentir  em casa, mesmo quando eu estava tão longe. Agradeço à Belisa 


Ventura,  minha  amiga  do  ensino  médio  que,  para  minha  felicidade,  ofereceu-me  estadia  durante 
todo  o  ano  em  que  precisei  viajar  de  Curitiba  a  Campinas  semanalmente.  Foi  maravilhoso  poder 
contar  com  essa  companhia  em  uma  cidade  totalmente  nova  para  mim  e  com  certeza  ajudou  para 
que  eu  me  sentisse  acolhido.  Agradeço  também  aos  meus  colegas  do  Belas  Artes  Joinville,  que  por 
um  ano  e  meio  trabalharam  comigo  diariamente  e  zeram  meus  dias  em  Santa  Catarina  muito 

felizes.   
Agradeço  a  todos  os  meus  amigos,  em  especial  Agnes  Ignácio,  Clara  Jansson,  Lucas 
Franco,  Kamila  Martins  e  Lilibete  Pereira  de  Deus,  amizades  que  começaram  na  faculdade  e  que 
levo  para  a  vida  toda;  Gabriel  Barth,  que  além  de  ser  meu  grande  amigo  é meu parceiro de diversos 

 
 
 
artigos,  me  acompanhou  nessa  jornada  acadêmica  e  ajudou  a  desenvolver  muitas  re exões;  Larissa 
Oliveira,  Luís  Guilherme  Moreira,  Stela  Gazabine,  Alana  dos  Santos  e  todos  os outros amigos que, 
mesmo na distância, carrego com muito carinho em meu coração. 
Destaco meus agradecimentos mais especiais à minha família. 
Agradeço  aos  meus sogros, Silvana Lunelli de Paula e Sandro Marcos de Paula, assim como 
à  Vó  Lindaura  Lunelli,  por  serem  sempre  incrivelmente  generosos  comigo  e  me  acolherem  em  sua 

família como lho.  


Agradeço  muito  ao  Nathan  Lunelli,  por  ser  uma  pessoa  incrível  e  sempre  trazer  muita 
alegria para os meus dias.  
Agradeço  à  minha  tia  Kátia  Schmidt,  que  me acolheu em sua casa enquanto eu trabalhava 
em Joinville e, com seu cuidado e carinho, garantiu que eu tivesse uma estadia maravilhosa.  
À  minha  irmã  Maria  Isabel  Schmidt,  que  é  uma  das  pessoas  mais  incríveis  desse mundo e 

de  quem  me  orgulho  muito,  e  ao  meu  cunhado Rômulo por fazer parte de nossas vidas. Estou com 


saudades de vocês! 
A  meus  pais,  Rogério  Schmidt  e  Sandra  de  Souza  Schmidt:  palavras  nunca  serão 
su cientes  para  agradecê-los.  Sem  o  apoio  de  vocês,  nada  disso  seria  possível.  Muito,  muito 
obrigado. 
À  minha  avó,  Normelita de Souza (in memoriam), meu avô Pedro Sera m de Souza e meu 
avô João José Schmidt (in memoriam). 

A  toda  a  minha  família,  minhas  tias  e  tios,  primos  e  primas:  amo vocês e sou eternamente 


grato por tudo. 
Ao  meu  amor,  Alessandro Lunelli de Paula, que sempre me deu suporte incondicional em 
todos  os  meus  projetos,  leu  todos  os  rascunhos  dessa  dissertação  e  foi  muito  paciente  todo  esse 
tempo. Por todas as nossas risadas, séries, conversas, passeios e por nossa cumplicidade, toda a minha 
gratidão e amor. 
 

   

 
 
 
RESUMO 
 
Caetano  Veloso  lançou  o LP Jóia em 1975, junto ao disco Qualquer Coisa. Àquela altura, o cantor e 
compositor  atuava  no  cenário  musical  brasileiro  há  quase  dez  anos.  Nesse  período,  sua  imagem 
pública  teve  diversas  mudanças:  passou  de  cantor  de  Bossa  Nova a líder do movimento tropicalista, 
preso político e artista exilado. Em seu retorno, tornou-se um dos principais representantes da MPB. 
No  início  dos  anos  1970,  Caetano  lançou  uma  série  de  discos  com  caráter altamente experimental, 
sendo  o  Jóia  o  último  desses,  que  foi  sucedido  por  uma  maior  aproximação  com  a  canção  pop.  O 
objetivo  desta  dissertação  é  analisar  como  Caetano  responde  musicalmente  ao  contexto  em  que  se 
insere,  elucidando  os  procedimentos  estéticos  e  composicionais  do  disco  Jóia.  Justi co  essa 
abordagem  por  diversos  motivos.  Veloso  é,  até  hoje,  um  dos  compositores  de  maior  renome  da 
MPB,  gênero  que  ocupava  nos  anos  1970  um  lugar  central  na  cultura  brasileira.  O  compositor 
esteve,  por  muitos  momentos,  em  uma  posição  ambígua  naquele  cenário,  ora  apontado  como 
possível  liderança  na  resistência  contra  a  Ditadura  Militar,  ora  visto  como um compositor alienado 
das  questões  políticas  da  época.  Os  trabalhos  acadêmicos  que  colocam  Veloso  em  enfoque  muitas 
vezes  lançam  o  olhar  apenas  sobre  o  período  do  movimento  tropicalista  do  nal  dos  anos  1960. 
Embora  Caetano  tenha  tido,  nos  anos  1970,  uma  de  suas  décadas de maior produtividade artística, 
sua  música  do  período  não  foi  tão  analisada.  Quando  se  torna  objeto  de  pesquisa,  o  enfoque  recai 
sobre  as  letras  da  canções,  deixando  diversos  aspectos  musicais  de  lado.  Minha  abordagem,  nessa 
perspectiva, é uma tentativa de suprir essa lacuna. Para isso, busquei uma análise mais abrangente do 
disco,  que  incluiu  elementos  como  o  projeto  grá co,  os  arranjos,  as  instrumentações,  os  ritmos,  os 
procedimentos  melódicos  e  harmônicos,  os  diferentes  usos  da  voz  e  as  letras  das  canções.  A  partir 
dessas  informações,  identi quei  nas  canções  do  disco  Jóia  diversos  procedimentos  de 
intertextualidade  e  diálogos  com  a  poesia  concreta,  um  uso  extenso  de  procedimentos  modais  nas 
melodias  e  harmonias,  experimentações  e  improvisos  vocais  e  arranjos  construídos  de  forma 
intuitiva  e  com  baixa  densidade  instrumental.  Pude  veri car  também  diálogos  com  a  Bossa  Nova, 
com  gêneros  tradicionais  brasileiros  como  a  toada  e  a  marcha-rancho,  com  cantos  de  religiões 
afro-brasileiras  e  a  música  de  povos  indígenas  brasileiros,  além  de  momentos  de  aproximação  com 
gêneros estrangeiros, como o rock, o blues e o jazz. 
 
Palavras-Chave:  Caetano  Veloso;  Música  Popular  Brasileira;  Música  Experimental;  Música 
Brasileira - História; Anos 1970. 
 
   

 
 
 
ABSTRACT 
 
Caetano  Veloso  released  the LP Jóia in 1975, alongside the album Qualquer Coisa. At that time, the 
singer  and  composer  had  been  active  in  the  Brazilian  music  scene  for  almost  ten  years. During this 
period,  his  public  image  had  several  changes:  he  went  from  a  Bossa  Nova singer to the leader of the 
Tropicalia  movement,  a  political  prisoner  and  an  exiled  artist.  Upon  his  return,  he  became  one  of 
the  main  names  of  Brasilian  Popular  Music  (MPB).  In  the  early  1970s,  Caetano released a series of 
highly  experimental  records.  Jóia was the last one, being succeeded by a closer relationship with pop 
music.  This  dissertation  aims  to  analyze  how  Caetano  musically  responds  to  the  context  in  which 
he  is  inserted,  elucidating  the  aesthetic  and  compositional  procedures  of  the  album  Jóia.  I  justify 
this  approach  for  several  reasons.  Veloso  is,  to  this  day,  one  of  the  most  renowned  composers  of 
MPB,  a  genre  that  occupied  a  central  spot  in  the  Brazilian  culture  in the 1970s. The composer was 
in  an  ambiguous  position  in  the  scenario  in  many  moments,  sometimes  pointed  out  as  a  possible 
leader  in  the  resistance  against  the  Military  Dictatorship,  and  in  other  times  seen  as  a  composer 
alienated  from  political  issues.  The  academic  works  that  study  Veloso  often  focus  only  on  the 
period  of  the  Tropicalia  movement  of  the  late  1960s.  Although  Caetano  had,  in  the  1970s,  one 
decade  of  greatest  artistic  productivity,  the  music  he  made  in  the  period  was  not  much  analyzed  - 
when  it  becomes  the  object  of  research,  the  main  focus  are  the  lyrics  of  the  songs,  leaving  several 
musical  aspects  aside.  My  approach,  in  this  perspective,  is  an  attempt  to  ll  this  gap.  For  that,  I 
sought  a  wider  analysis  of  the  album,  which  included  elements  such  as  the  graphic  design,  the 
arrangements,  the  instruments,  the  rhythms,  the  melodic  and  harmonic  procedures,  the  di erent 
uses  of  the  voice,  besides  the  lyrics  of  the  songs.  With  that  information,  I  identi ed  on  the  album 
Jóia  several  intertextuality  procedures,  dialogues  with  concrete  poetry,  extensive  use  of  modal 
procedures  in  melodies  and  harmonies,  experimentations,  vocal  improvisations  and  arrangements 
built  intuitively  and  with  low  instrumental  density.  I  also  noticed  dialogues  with  Bossa  Nova, with 
traditional  Brazilian  genres  such  as  toada  and  marcha-rancho,  with  songs  from  Afro-Brazilian 
religions  and  the  music  of  Brazilian  indigenous  people,  in  addition  to  moments  of  approach with 
foreign genres, such as rock, blues and jazz. 
 
Keywords:  Caetano  Veloso;  Brazilian  Popular  Music;  Experimental  Music;  Brazilian  music  - 
History; Nineteen seventies. 
 

   

 
 
 
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 
 

Figura 01: Caetano Veloso vestindo um parangolé de Hélio Oiticica.  66 

Figura 02: “Seja marginal, seja herói” - Obra-Poema de Hélio Oiticica.  69 

Figura  03:  Capas  dos  discos  Caetano  Veloso  e  Tropicalia ou Panis et Circencis, ambos de  84 


1968. 

Figura  04:  Capas  dos  discos  Odessey  and  Oracle  (1968)  e  Sgt.  Pepper’s  Lonely  Hearts  84 
Club Band (1967) 

Figura 05: Capas dos discos Caetano Veloso (1969) e The Beatles (1968)  85 

Figura 06: Capa do disco Caetano Veloso (1971)  85 

Figura 07: Capa do disco Transa (1972)  87 

Figura 08: Capa do disco Araçá Azul (1973).  90 

Figura 09: Capa e contracapa do disco Jóia (1975) - Primeira Versão  97 

Figura 10: Quadro A Família (Die Famillie) de Egon Schiele (1918).   98 

Figura  11:  Capa  do  disco  Un nished  Music No. 1: Two Virgins, de John Lennon e Yoko  99 


Ono (1968) 

Figura 12 - Notícia da Revista Veja sobre a capa do disco Jóia, 12/05/1976.  99 

Figura 13: Capa e contracapa do disco Jóia - Segunda Versão  100 

Figura 14: Capa do disco Qualquer Coisa (1975)  101 

Figura 15: Capa do disco Let It Be (1970)  101 

Figura 16: Grá co - “Minha Mulher”  104 

Figura 17: Grá co - “Asa, Asa”  106 

Figura 18: Capa do disco Xingu - Cantos e Ritmos  108 

Figura 19: Grá co - “Tudo Tudo Tudo”  109 

Figura 20: Grá co - “Jóia”  110 

Figura 21: “Escapulário” - Melodia  112 

Figura 22: Grá co - “Escapulário”  112 

 
 
 

Figura  23:  “Pipoca  Moderna”  -  Transcrição  aproximada  das  percussões  (2  claves  115 
superiores), violinos e violoncelo 

Figura 24: Grá co - “Pipoca Moderna”  116 

Figura 25: Grá co - “Guá”  117 

Figura 26: “Guá” - Melodia executada no kissanji  117 

Figura 27: “Guá” - Levada do violão   117 

Figura 28: “Guá” - Vocalização inicial  118 

Figura 29: “Guá” - Melodia com abertura de vozes  118 

Figura 30: Grá co 10 - “Gravidade”  119 

Figura 31: Grá co - “Pelos Olhos”  120 

Figura 32: Grá co - “Lua, Lua, Lua, Lua”  121 

Figura 33: Grá co - “Canto do Povo de um Lugar”  122 

Figura 34: Canto do Povo de um Lugar - 4 sobre 3  123 

Figura 35: Grá co - “Help”  126 

Figura 36: “Help” - Versão original dos Beatles  127 

Figura 37: “Help” - Versão de Caetano Veloso  127 

Figura 38: “Minha Mulher” - Violão de Caetano Veloso, Parte A  129 

Figura 39: “Minha Mulher” - Transcrição aproximada do violão de Gilberto Gil - Parte B  130 

Figura 40: Representação dos “swing eights”  131 

Figura 41: “Asa, Asa” - Melodia  132 

Figura 42: “Canto do Povo de um Lugar” - Melodia  132 

Figura 43: “Gravidade” - Estrutura fraseológica da primeira parte.  133 

Figura 44: “Jóia” - Irregularidade métrica do canto em relação aos outros instrumentos.  134 

Figura 45: “Minha Mulher” – Melodia da Parte A  136 

Figura 46: “Minha Mulher” – Parte A  137 

Figura 47: “Minha Mulher” - Parte B  138 


 
 
 

Figura 48: “Guá” - Melodia Principal  139 

Figura 49: “Gravidade” - Análise da parte A  140 

Figura 50: “Na Asa do Vento” - Análise Melódica  141 

Figura 51: “Na Asa do Vento” - Análise Harmônica  142 

Figura 52: “Na Asa do Vento” - Segunda Parte (Trecho Tonal)  143 

Figura 53: “Tudo Tudo Tudo” - Transcrição  145 

Figura 54: “Pipoca Moderna” - Primeira Vez  147 

Figura 55: “Pipoca Moderna” - Três Vozes  148 

Figura 56: “Jóia” - Melodias das Vozes  149 

Figura 57: “Pelos Olhos” - Parte A  151 

Figura 58: “Pelos Olhos” - Parte B  152 

Figura 59: “Canto do Povo de um Lugar” - Análise Melódica  153 

Figura 60: “Guá” - Sequência de sons cantados ressaltando aspecto polifônico  154 

Figura 61: “Guá” - Bloco Soli a Quatro Vozes  155 

Figura 62: “Asa, Asa” - Trecho exempli cando as aberturas de vozes da canção  155 

Figura 63: Letra da Faixa “Asa” como aparece no encarte de Jóia  158 

Figura 64: Poema “branco…”, de Haroldo de Campos (1958)  159 

Figura  65: Primeiras quatro notas de “Canto do Povo de um Lugar” (esq.) e “Asa Branca”  160 


(dir.) 

Figura 66: Trecho da melodia de “Pipoca Moderna” com saltos  162 

Figura 67: Letra da faixa “Tudo, Tudo, Tudo” como aparece no encarte de Jóia  164 
 

   

 
 
 
SUMÁRIO 
 
1 INTRODUÇÃO 14 
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITOS 24 
3 CAETANO VELOSO E A CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA (1958-1975) 29 
3.1 Canção Popular Urbana no Brasil 29 
3.2 Notas sobre a Bossa Nova 36 
3.3 Vanguarda na Bahia 42 
3.4 Início dos Anos 1960 e a Canção Engajada 47 
3.5 Tropicalismo 55 
3.6 Os Anos 1970 70 

4 O DISCO JÓIA 81 


4.1 O Projeto Grá co 96 
4.2 Arranjos, Texturas e Instrumentação 104 
4.3 Breves Comentários sobre Ritmos, Levadas e Gêneros Musicais 129 
4.4 Os Usos do Modalismo 134 
4.5 Os Diferentes Usos da Voz 153 

4.6 Construções Poéticas 157 


4.7 Comparações entre Jóia e Qualquer Coisa 165 
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 170 
REFERÊNCIAS 175 
APÊNDICES 182 
Apêndice I - Transcrições de algumas canções do disco Jóia 182 

“Minha Mulher” 182 


“Pelos Olhos” 185 
“Asa, Asa” 187 
“Lua, Lua, Lua, Lua” 189 
“Pipoca Moderna” - Vozes 191 
“Jóia” - Vozes 193 

“Gravidade” 194 
 
 
 
“Tudo Tudo Tudo” 197 
“Na Asa do Vento” 200 
ANEXOS 207 

Anexo I - Letras das Canções do Disco Jóia 207 


Anexo II - “Manifestos dos Movimentos Jóia e Qualquer Coisa” 222 
 

 
14 

1 INTRODUÇÃO 
 
A  década  de  1970  foi  marcada  pelo  lançamento  de  diversos  álbuns  essenciais  da  música 
popular  brasileira.  Artistas  que  já  haviam  se  consagrado  na  década  anterior,  como  Tom  Jobim, 
Chico  Buarque,  Paulinho  da  Viola,  Elis  Regina,  Gal  Costa,  Milton  Nascimento,  Maria  Bethânia, 
Gilberto  Gil  e  Os  Mutantes,  desenvolveram  nos anos 1970 alguns de seus discos de maior destaque, 

tanto  entre  o  público,  como  entre  a  crítica  musical.  A  indústria  fonográ ca  brasileira,  que  crescia 
desde os anos 1920, viu naquela década um crescimento sem precedente.  
Nesse  novo  cenário,  os  LPs  (long-playing)  passaram  a  ser  o  produto  principal.  Todos  os 
artistas  da  MPB  investiam  no  lançamento  desses  discos  de  33  ⅓  rotações,  com  aproximadamente 
quarenta  minutos  de  duração.  São  dessa  década  discos  como  Acabou  Chorare,  dos  Novos  Baianos, 
Clube  da  Esquina,  de  Milton  Nascimento  e  Lô  Borges, Construção, de Chico Buarque, A Tábua de 

Esmeralda,  de  Jorge  Ben  e  os  quatro  discos  do  sambista  Cartola,  só  para  citar  alguns.  Todos  esses 
álbuns  são  encontrados  na  lista  publicada  pela  revista  Rolling  Stone  Brasil,  chamada  "Os  100 
maiores  discos  da  música  brasileira”1.  Dos  primeiros  25 discos da lista, 14 foram lançados na década 
de  1970.  Na  lista,  aponta-se  que  os  critérios  de  escolha  dos  discos  foram  o  “valor  intrínseco  e 
importância  histórica”. Esses conceitos seguem na lista sem nenhuma fundamentação cientí ca, por 
não ser esta a proposta da publicação.  
Não  considero  que  os  álbuns  citados  sejam,  necessariamente,  os  melhores  da  música 

brasileira  como  eles  apontam,  mesmo  por  não  acreditar  que  seja possível fazer esse tipo de avaliação 
por  seu  alto  nível  de  subjetividade.  Ainda  assim,  considero  relevante  que  uma  revista  de  alta 
circulação  nacional  como  a  Rolling  Stone  Brasil  aponte  tantos  álbuns  dos  anos  1970  entre  os  que 
ela  elege  como  “os  melhores  discos  brasileiros  de  todos  os  tempos”.  Independente  do  grau  de 
precisão  dessas  colocações  —  que,  a  meu  ver,  são  totalmente  passíveis  de  questionamentos  —, 
publicações  como  essa ajudam na construção de uma narrativa especí ca da historiogra a da música 

popular  brasileira  e  na  formação  de um juízo de valor, que contribui para a eleição de alguns artistas 


e grupos entre os cânones da nossa música. 

1
  OS  100  MAIORES  Discos da Música Brasileira.  Rolling Stone Brasil, Editora Spring, outubro de 2007. Disponível 
em:  <http://rollingstone.uol.com.br/listas/os-100-maiores-discos-da-musica-brasileira/>.  Acesso  em:  30  de  julho  de 
2018. A publicação não foi assinada; por esse motivo, não referenciei o autor. 
 
15 

Caetano  Veloso é, sem dúvida, um dos artistas mais citados nesse universo canônico. Nessa 
mesma  lista,  oito  discos  do  compositor  aparecem,  sendo  seis  deles  dos  anos  1970:  Transa, de 1972, 
Araçá  Azul,  de  1973,  Jóia  e Qualquer Coisa, de 1975, Doces Bárbaros, de 1976 (ao lado de Gil, Gal e 
Bethânia),  e  Cinema  Transcendental,  de  1979.  Se,  por  um  lado,  a  lista  não  tem  um  caráter 
inquestionável,  por  outro  a  presença  de  tantos  discos  daquela  década  é  um  indício  da  relevância 
desses  LPs.  Porém,  apesar  desse  destaque  que  a  obra  de Caetano nos anos 1970 recebe, os trabalhos 

acadêmicos sobre o autor nem sempre acompanharam esse período tão frutífero — a grande maioria 
foca no (rico) período da Tropicália, com resultados quase sempre igualmente riquíssimos2.  
O  que  me  motivou  para  pesquisa  foi  justamente  a  possibilidade  de tomar como objeto de 
análise  a obra de Caetano dos anos 1970 e, mais especi camente, o disco Jóia, de 1975.  Esse período 
é  considerado  de  amadurecimento  para  a  MPB  após  sua  “institucionalização”,  conceito  utilizado 
pelo historiador Marcos Napolitano (2001, p. 13): 
 
O  signi cado  da  “sigla”  MPB  (e  seu  conteúdo  expressivo)  denota  algo  mais  do  que  um 
gênero  musical  determinado,  transformando-se  numa  verdadeira  instituição,  fonte  de 
legitimação  na  hierarquia  sociocultural  brasileira,  com  capacidade  própria  de  absorver 
elementos musicais que lhe são originalmente estranhos, como o rock e o jazz. 
 

Historicamente,  o  termo  MPB  surge  ao  ser  utilizado  para  se  referir à música de um grupo 
seleto  que  segue  as  tendências  que  a  Bossa  Nova  havia  estabelecido  desde  1959,  porém  buscando 
uma  atualização  e  maior  engajamento  político  por  parte  dos  artistas.  A  Tropicália,  como  veremos 
posteriormente,  foi  essencial  para  a  abertura  da  MPB  a  gêneros  estrangeiros  e  certa  mudança  de 
postura  quanto aos diálogos com o mercado fonográ co. O Tropicalismo inicialmente se distanciou 
de  uma  parcela  da  MPB  associada  à  canção  nacionalista  de  protesto,  porém  as  mudanças  trazidas 

pelo  movimento  de  Caetano  e  Gil  acabaram  sendo  adotadas  de  forma  quase  geral  entre  os  artistas 
desse meio. 

2
  Entre  esses  trabalhos  estão  “Tropicália,  Alegoria,  Alegria”,  de  Celso  Favaretto  (1995),  “Brutalidade  Jardim,  de 
Christopher  Dunn  (2009),  “Seguindo  a  Canção”,  de  Marcos  Napolitano  (2001) e “Da Bossa Nova à Tropicália (2001) 
de  Santuza  Cambraia  Naves,  sendo  que  os  dois  últimos  que  não focam apenas no Tropicalismo, mas na MPB dos anos 
1960  como  um  todo.  Além  disso,  mesmo  os  trabalhos  jornalísticos  ou  de  crítica  musical  costumam  focar  no 
movimento,  como  o  livro  “Tropicália:  a  História  de  uma  Revolução  Musical”,  de Carlos Calado (1997) ou o “Balanço 
da  Bossa  e  Outras  Bossas”,  de  Augusto  de  Campos  (1974).  Mesmo  a  autobiogra a  de  Caetano  Veloso  (1997),  o  livro 
“Verdade  Tropical”,  focou  nesse  período.  Alguns  trabalhos  focam na obra inteira de Caetano, como os livros de Wisnik 
(2005)  e  Lucchesi  e  Dieguez  (1993).  Um  dos  poucos  trabalhos  a  focar  na  obra  de  Caetano  especi camente  é  a 
dissertação de Peter Dietrich (2003), que faz uma análise pioneira do disco Araçá Azul. 
 
16 

A  MPB  nos  anos  70,  já  então  institucionalizada,  passou  a  englobar  in uências  externas  à 
música  popular  brasileira  mais  tradicional  (me re ro aqui, principalmente, a gêneros como o samba 
e  o  baião).  Como  exemplo,  cito  as  guitarras  elétricas  nos  álbuns  de  Elis  Regina,  o  surgimento  de 
grupos  como  o  Clube  da  Esquina  e  os Novos Baianos e uma nova safra de compositores, que inclui 
Alceu  Valença,  Geraldo  Azevedo,  João  Bosco,  Aldir  Blanc,  etc.,  todos  unindo,  à  sua  maneira, 
elementos  da música estrangeira à música nacional. Essa união ocorre ora com a inserção de material 
da  música  pop,  ora  com  novos  padrões  de  performance,  ou  ainda  com  novos  padrões  de  arranjo  e 
instrumentação.  
Com  todos  os  elementos  dispostos  acima,  o  problema  de  estudo  delimitado  foi:  de  que 

formas  Caetano  Veloso  responde  musicalmente  a  esse  contexto?  Para  abordar  esse problema, voltei 
meu  olhar  para  o  disco  Jóia,  lançado  em  1975  junto  ao  disco  Qualquer  Coisa.  Esse  olhar  buscou 
analisar  os  procedimentos  composicionais,  as  referências musicais e as sonoridades desses discos, em 
diálogo  com  o  contexto  histórico  e  social  de  suas  produções.  O  objetivo  geral  da  pesquisa  foi 
compreender  o  lugar  de  Caetano  Veloso  na  MPB  na  metade dos anos 70, a partir de uma análise de 
seus  procedimentos  composicionais,  referências  musicais  e  sonoridade  dos  álbuns  do  período, com 

foco no disco Jóia, em diálogo com o contexto histórico e social de sua produção.  
Para  justi car  a  escolha  do  tema,  levanto  alguns  pontos.  Caetano  é  considerado  um  dos 
compositores  mais  populares  e  respeitados  do  Brasil,  tanto  na  questão  de  vendagem  de  discos, 
quanto  pela  crítica  musical.  A  mesma  revista  Rolling  Stone  Brasil  que  apontou  oito  de  seus  discos 
entre  os  melhores  da  música  brasileira  também  colocou  o  compositor  em  4º  lugar  em  sua  lista  dos 
"100  maiores  artistas  da  música  brasileira"3;  o  jornal  The  New  York  Times  publicou,  em  2002, um 
artigo  de  Larry  Rohter  chamado  "A  Revolutionary  Who's  Still On The Move" (Um revolucionário 

que  ainda  está  na  ativa, em tradução livre), que foca no compositor e em sua importância na música 


brasileira, o que mostra seu reconhecimento internacional.4 

3
  OS  100  MAIORES  Artistas  da  Música  Brasileira.  Rolling  Stone  Brasil,  Editora  Spring,  outubro  de  2008. 
Disponível  em:  <http://rollingstone.uol.com.br/listas/os-100-maiores-artistas-da-musica-brasileira/>.  Acesso em: 30 de 
julho de 2018. 
4
  ROHTER,  Larry.  A  Revolutionary  Who's  Still  on  the  Move.  The  New  York  Times,  Nova  Iorque,  17  novembro 
2002. seção Music. Disponível em:  
<http://www.nytimes.com/2002/11/17/books/music-a-revolutionary-who-s-still-on-the-move.html?pagewanted=2>. 
Acesso em: 30 de julho de 2018. 

 
17 

Além  disso,  creio  que  é  importante destacar que a década de 1970, período estudado aqui, 


foi  um  momento  de  grande  tensão  política  no  Brasil,  que  se  encontrava  sob  a  forte  opressão  da 
Ditadura  Militar.  A  música  popular brasileira teve, nesse processo, um papel político muito forte de 

resistência,  luta  contra  a  censura  e  à  repressão  militar,  com  força para unir a população e denunciar 


as  mazelas  sociais,  e  nisso  vejo  a  importância  de entendermos o que se produzia à época. Ao mesmo 
tempo,  a  música  de  Caetano  Veloso  do  período  foi  vista  de  forma  ambígua  pelos  censores  do 
governo  militar,  de  um  lado,  e  por  diversos  artistas,  jornalistas  e  pensadores  de  esquerda,  de  outro. 
Enquanto  os  militares  identi caram  nas  performances  do  tropicalista  uma  postura  irreverente 
perigosa  para  o  regime,  vários setores da esquerda cultural consideravam as letras de Caetano Veloso 

distantes  das  questões  de  engajamento  político  e  resistência  à  ditadura  e, por isso, alienadas. A esses 


artistas  o  cineasta  Cacá  Diegues  chamou  de  “patrulhas  ideológicas”,  termo  que  Caetano  chegou  a 
adotar5.  Enquanto  Veloso  transitou por esse lugar de embate com os dois lados, suas performances e 
suas letras foram vasto campo de estudo, acadêmico ou não.  
Por  outro  lado,  embora  existam  muitas  pesquisas  que  estudem  as  letras  das  canções  do 
período,  principalmente  entre  as  pesquisas  no  campo  de  História  e Literatura, mas também dentro 

da  subárea  de  Semiótica  da  Música,  são  raros  os  trabalhos,  dentro  do  campo  de Estudos de Música 
Popular,  que  tenham  enfoque  na  sonoridade  das  canções.  Ainda  é  possível,  também,  encontrar 
trabalhos de musicologia que apliquem métodos da música erudita para a análise da música popular. 
Richard  Middleton  (1990),  autor  que  escreveu  sobre  a  relação  entre  a  música  popular  e  a 
musicologia  em  seu  livro  “Studying  Popular  Music”,  nos  fala  que  a  música  popular  não  pode  ser 
estudada  à  maneira  da  “música  arte”,  e  que  acadêmicos  que  aplicam  métodos  tradicionais  para  a 
música  popular  acabam  produzindo  resultados  distorcidos.  Esses  resultados  dão  ênfase  apenas  a 
elementos  como  a  harmonia,  a  melodia  e  a  forma,  mas  negligenciam  elementos  que  são,  com 
frequência,  essenciais  na  música  popular,  como  o  timbre  e  a  estrutura  rítmica.  Nesse  sentido,  a 
escolha  pelo  foco  na  sonoridade das canções se dá, também, por entender e compartilhar dessa visão 

de Middleton. 
Jóia  e  Qualquer  Coisa,  como  mencionado  anteriormente,  foram  lançados 
simultaneamente.  Alguns  elementos  desses  discos  revelam  um  campo  de  estudo  bem  amplo  para 

 Para uma discussão ampla sobre o tema, ver o livro: HOLLANDA, Heloisa Buarque de; MESSEDER, Carlos Alberto. 
5

Patrulhas ideológicas. Arte e engajamento no Brasil em debate. São Paulo: Brasiliense, 1983. 
 
18 

esse  trabalho.  Os  dois  discos  trabalham  com  propostas  quase  opostas,  e  isso  aparece  em  diversos 
níveis:  nas  capas  (uma  branca,  bastante  minimalista,  e  a  outra  preta  com  quatro  imagens  de 
Caetano,  fazendo  referência direta ao disco Let It Be, dos Beatles), nos arranjos, nas instrumentações 
e  no  repertório  (quase  inteiramente  autoral  no  disco  Jóia,  e  quase  inteiramente  composto  por 
outros  autores  no  disco  Qualquer  Coisa).  Além  disso,  ambos  os  LPs,  ao  serem  lançados,  tiveram 
como  acompanhamento  um  Manifesto  Jóia  e  um  Manifesto  Qualquer  Coisa,  respectivamente, nos 
quais  Caetano  estabeleceu  poeticamente  os  parâmetros  estéticos  de  cada  disco.  Todos  esses 
elementos  unidos  pintam  um  grande  campo  para  pesquisa  nesses  discos,  seja  na  comparação  entre 
eles,  seja  no  diálogo  com  o  contexto.  Somam-se  a  isso as questões musicais de cada uma das canções 
─  que  incluem  extenso  uso  de  modalismo  no  disco  Jóia,  alternância  entre  sonoridade  de  banda  e 
voz-e-violão  no  disco  Qualquer  Coisa,  abordagem  bossanovista  na  interpretação  dos  Beatles,  entre 
diversos  outros  elementos  mais  especí cos  ─  e  também  a  questão  dos  diálogos  com  a  MPB  e  a 

música  pop  do  período.  Com  todos  esses  itens,  vejo  que  esse  tema  de  pesquisa  não só é possível ─ e 
um  campo  bastante  palpável  ─  como  também  é  necessário, pela variedade de elementos passíveis de 
análise, por um lado, e pela escassez de trabalhos acadêmicos sobre esse objeto, por outro. 
Como  apontei,  grande  parte  da  literatura  acadêmica  existente  sobre  Caetano  Veloso 
apresenta  a  Tropicália  como  foco.  Embora  meu  recorte  temporal  não  inclua  o  movimento,  foi 
essencial  compreender  o  Tropicalismo  e  suas  operações estéticas, pois signi caram um momento de 
transformação  na  canção  brasileira  e,  embora  Caetano  aponte  que  o  movimento  se  encerrou  em 

1969,  muitos  dos  procedimentos  tropicalistas  permaneceram  em  suas  composições  em  toda  a  sua 
carreira.  
Um  dos  primeiros  autores  a  escrever  sobre  o  tema  foi  o  lósofo  já  citado  aqui  Celso 
Favaretto  (1995) com o livro "Tropicália: Alegoria, Alegria", lançado originalmente em 1979, estudo 
que  viria  a  se  tornar  um  clássico  sobre  o  tema.  Restabelecendo os vínculos entre as composições, os 
arranjos  e  as  cenas  que  evidenciam  as  atitudes  típicas  dos  tropicalistas,  o  autor  explica  também  as 

tendências  gerais  do  movimento  e  mostra  como  ele  de niu  uma  nova  estética  para  a  música 
brasileira.  E,  indagando  acerca  da  modernidade,  o  lósofo  ainda  reconhece  uma  escola  de  loso a 
dentro do movimento tropicalista.  
O  autor  traz  suas  interpretações  do  movimento  tropicalista  utilizando  a  ideia  do  carnaval 
como  alegoria.  Ele  coloca  que  o  carnaval  caracteriza-se  pela  inversão de hierarquias, com exageração 
 
19 

grotesca  de  personagens  e  fatos,  além  de  abolir  a distância entre o sagrado e o profano, o cômico e o 


sério,  o  alto  e  o  baixo,  etc.,  relativizando  essas  questões.  No  entendimento  do  autor,  esse  discurso 
carnavalesco  aparece  de  forma  intrínseca  nas  canções  tropicalistas,  nas  quais  prevalece  a  linguagem 
de  mistura,  a  ambivalência,  a  integração  do  grotesco,  o  riso  tragicômico  e  a  mistura  entre  ritmos 
populares e formas eruditas. 
Para  Favaretto,  as  canções  tropicalistas  se  diferenciavam  daquelas  de  protesto  da  época, 

pois,  ao  invés  de  expressarem  a  realidade,  desmontavam  a  ideia  de realidade brasileira pela crítica da 


linguagem  da  canção.  O  Brasil  não  era  tido  como  essência  mítica,  perdida,  como  comumente  era 
visto  pela  canção  engajada.  Pelo  contrário,  ao alegorizar as inconsistências ideológicas e dessacralizar 
suas  imagens-ruínas,  o  Tropicalismo  estilhaça  uma  construção  mítica  do  país  e  opera,  ao  mesmo 
tempo,  criticando  a  canção  tradicional  ─  sem  que  com  isso  a  questão  política  seja  deixada  de  lado. 
Além  desses  pontos,  o  autor  também  discorre  sobre  a  questão  da  arte  ser comercializada e como os 

tropicalistas  encaravam  a  questão,  dizendo  que  eles,  "incorporando  o  lucro  na  atividade  artística, 
eliminaram  o  "persuasor oculto" que, introduzindo-se entre o artista e o consumidor, pretende fazer 
crer que o consumo de arte é neutro” (FAVARETTO, 1995, p. 140).  
Nesse  sentido,  outro  autor  que  contribuiu  à  literatura  acadêmica  sobre  a  Tropicália  foi  o 
americano  Christopher  Dunn  (2009),  com  seu  livro  “Brutalidade  Jardim:  a  Tropicália  e  o 
Surgimento  da  Contracultura  Brasileira”,  resultado  de  uma  extensa  pesquisa  sobre  o  movimento. 
Embora  siga  nas  linhas  narrativas  de  análise  de  outros autores sobre o tema, Dunn traz perspectivas 

novas  ao  dialogar  com  alguns  conceitos  das  ciências  sociais  um pouco mais contemporâneos, como 
o de diáspora e o de hibridismo.  
Um  exemplo  disso  é  a  percepção  do  autor  ao  analisar  a  ideia  de  “som  universal”  dos 
tropicalistas  como  um  movimento  de  hibridização  das  esferas  culturais,  por  sua  união  entre  a 
música  de  vanguarda  europeia,  a  música  pop  americana  e  as  formas  musicais  brasileiras.  Com  essa 
leitura,  o  movimento  tropicalista  é  colocado  num  plano  internacional  de  debate,  algo  que  não 
aparecia  com  destaque  em  outros  textos  do  tema.  Isso  também  ocorre  quando  Dunn  estabelece 
relações  entre  a  Tropicália  o  movimento  de  contracultura  mundial  e  as  tendências  do  rock e do pop 
internacionais.  Ele  ainda  discute  sobre  a  transformação  no  campo  cultural  que  os  tropicalistas 

estabeleceram,  e  estende  suas  análises  para  discos  dos  anos  70,  dando  pistas  de  caminhos  para  o 
entendimento das obras de Caetano daquela década. 
 
20 

Outro  trabalho  que  deu  suporte como importante referência é o livro “Verdade Tropical”, 


do  próprio  Caetano  Veloso  (1997),  no qual o autor discorre sobre sua vida, seu interesse pelas artes, 
sua  formação  musical  e  outras  informações  pessoais,  e  também  apresenta  suas  visões  sobre  fatos 
culturais  marcantes.  O  livro  esclarece  o  ponto  de  vista  do  compositor  sobre  o  movimento 
tropicalista  e  mostra  o  que  levou  ao  surgimento  deste,  além  das  referências  musicais  (e 
extramusicais)  de  Caetano  e  o  que  o  compositor  entendia  que  estava  acontecendo  no  período 
estudado  nesse  trabalho.  Também  mostra  quais  eram  as  questões  políticas  e culturais envolvidas na 
criação de cada álbum. O autor escreve:  
 
O tropicalismo começou em mim dolorosamente. O desenvolvimento de uma consciência 
social,  depois  política  e  econômica,  combinada  com  exigências  existenciais,  estéticas  e 
morais  que  tendiam  a  pôr tudo em questão, me levou a pensar sobre as canções que ouvia 
e fazia. Tudo o que veio a se chamar de tropicalismo se nutriu de violentações de um gosto 
amadurecido com rmeza e defendido com lucidez (VELOSO, 1997, p. 254).  
 
A  dissertação  de  mestrado  de  Peter  Dietrich  (2003),  "Araçá  azul:  uma  análise  semiótica", 
também  contribuiu  para  diálogos  interessantes,  e  discorre  sobre  diversos  pontos  do  álbum  de 
Caetano  Veloso  de  1973,  como  o  projeto  visual  e  as  letras,  por  exemplo.  A pesquisa de Dietrich foi 
um  dos  poucos  trabalhos  encontrados  dentro  da  literatura  musicológica que falam de Caetano sem 
focar  apenas  no  Tropicalismo.  Essa  dissertação,  orientada  por  Luiz  Tatit,  mostra  uma  forma  de 

análise  musical  que  se  baseia na teoria semiótica. O autor dedica um capítulo inteiro de seu trabalho 


com  foco  no  projeto  visual  do  álbum  Araçá  Azul,  analisando  a  falta  de  identi cação  de  autor  na 
capa,  a  imagem  de  Caetano  com  o  corpo  desnudo  e  o  cenário  em  que  se  apresenta,  as  cores 
escolhidas,  o  encarte  central  e  a  escolha  de  fotogra as,  etc.  Todos  esses  elementos  contribuem  para 
traçar  “as  isotopias  da  busca  de  identidade,  dos  elementos  de  origem,  da  identidade  nacional,  da 
arti cialidade,  e  os  temas  do  processo  de  criação  e  da  composição/decomposição,  da  degeneração  e 
da  perda  dos  valores  de  origem”  (DIETRICH,  2003,  p.  50).  O  projeto  visual  é  entendido,  por 
Dietrich,  como  parte  funcional  no  projeto  geral  da  obra.  Além  da  imagem,  o  autor  analisa  cada 
canção do disco a partir da letra e sua relação com o arranjo. 
O  artigo  “O  conceito  de  "MPB"  nos  anos  60”,  do  historiador  Marcos Napolitano (1999), 
fala  sobre  a  história  da  MPB,  seu  surgimento,  como  algo  se  transforma  em  tradição  e  traça  o 
caminho  que  levou  o  gênero  musical  à  consagração  no  Brasil.  Fala  também  sobre  a  questão  do 
 
21 

engajamento  político  e  as  contradições  que  o  gênero  oferece,  como  a  união  do  samba  do  morro,  a 
bossa  nova  da  classe  média  e  elementos  da  música  pop.  O  autor  trabalha  rmemente  a  questão  do 
misto  entre  tradição,  vanguarda  e  indústria  cultural  que  gera  a  MPB,  reforçando  o  conceito  de 

institucionalização, e complementa: 
 
O  vigor  da  instituição  ca  patente  quando  percebemos  que  a  dinâmica  principal  deste 
debate em torno da identidade da MPB quase sempre parte de criadores “legitimados” por 
ela,  como,  por  exemplo,  Caetano  Veloso  e  Gilberto  Gil.  A  entrada  de  novas  tendências 
musicais  no  espectro  da  MPB  não  se  dá  de qualquer forma, mas de uma maneira seletiva, 
na  qual  atuam  a  força  da  instituição  e  os  interesses  da  indústria  fonográ ca  (napolitano, 
1999, p. 27). 
 
Além disso, Napolitano analisa: 
 
A  partir  do  momento  em  que  se  transformou  numa  instituição  cultural,  a  MPB  não  só 
ganhou  um  novo  poder  de  in uência  na  sociedade  como  um  todo,  mas  interferiu  na 
reorganização  da  hierarquia  cultural  e  musical  do  país.  Seus  compositores  mais 
reconhecidos  adquiriram,  ao  longo  dos  anos  ulteriores,  o  prestígio  de  intelectuais  e 
formadores  de  opinião  e  valores  estéticos,  na  medida  em  que  falavam  “em  nome”  da 
instituição (NAPOLITANO, 1999, p. 29). 
 
Sua  observação  é interessante, pois coloca Caetano como uma das partes centrais do que se 

tornou  a  MPB.  Isso  contribui  para  a  ideia  de  uma  transição  em  sua  carreira,  uma  vez  que  o  cantor 
começou  dentro  do  movimento  tropicalista  e  se  tornou,  anos  depois,  representante  do  grupo  que 
inicialmente criticava alguns de seus ideais, como colocado anteriormente.  
Outro  trabalho  de  Marcos  Napolitano  (2010)  que  foi  de  grande  relevância  para  o  meu 
trabalho  é  seu  livro  “Seguindo  a  canção:  engajamento  político  e  indústria  cultural  na  MPB 
(1959-1969)”.  Nesta  pesquisa,  proveniente  de  sua  tese  de  doutorado,  o  historiador  contribuiu  na 

construção  da  narrativa  historiográ ca  do  surgimento  da  MPB.  Tendo  essa  “instituição  cultural” 
como  objeto  de  estudo,  Napolitano  analisou  as  músicas  e  estudou  as  relações  da  MPB  com  a 
indústria  televisiva  e  fonográ ca  nos  anos  60.  Tratando  sobre  os  diversos  processos  pelos quais esse 
gênero  musical  passou  na  década  (com  foco  na  Bossa  Nova,  no  movimento  nacionalista  da  canção 
participante  e  no  Tropicalismo),  o  autor  produziu um dos trabalhos mais completos sobre a música 
popular  brasileira  naquele  período.  Nessa  minha  pesquisa  de  mestrado,  o  trabalho  de  Napolitano 

 
22 

serviu  como  uma  das  fontes  para  a  narrativa  historiográ ca  do  percurso  de  Caetano  Veloso,  que se 
aliou à análise de suas composições. 
Diversos  outros  trabalhos  também  dialogam  com  esse  tema  e  esse  contexto  de  análise,  e 

serviram  como  referências  importantes  na  construção  dessa  pesquisa.  Entre  os  trabalhos  que 
analisam  Caetano Veloso e sua obra, cito aqui o livro de Guilherme Wisnik (2005) intitulado “Folha 
Explica  Caetano”,  além  dos  diversos  textos  de  José  Miguel  Wisnik  (2004)  sobre  o  compositor  e  as 
relações  entre  música  popular  brasileira,  literatura,  política  e  sociedade  ─  textos  encontrados  na 
coletânea  “Sem  Receita”.  Outros  livros  que ampliam o debate sobre música popular brasileira e que 
certamente  enriquecem  essa  construção  narrativa  são,  entre  outros,  os  trabalhos  de  Gilberto 
Vasconcellos (1977) A onso Romano de Sant’Anna (1986). Incluo ainda o trabalho de Rita Morelli 
(2009),  que  analisa  esse  contexto  na  relação  com  a  indústria  fonográ ca  e  fornece  novas  e 
importantes perspectivas sobre o assunto. 

A  pesquisa  realizada  foi  qualitativa,  categoria  que trabalha com o universo de signi cados, 


motivos,  aspirações,  crenças,  valores  e  atitudes,  o  que  corresponde  a  um  espaço  mais  profundo  das 
relações,  dos  processos  e  dos  fenômenos  que  não  podem  ser  reduzidos  à  operacionalização  de 
variáveis  (MINAYO,  2001).  O  trabalho  também  foi  documental,  de  acordo  com  a  de nição  de 
Antônio Carlos Gil (2008, p. 50-51): 
 
A  pesquisa  documental  assemelha-se  muito  à  pesquisa  bibliográ ca.  A  única  diferença 
entre  ambas  está  na  natureza  das  fontes.  Enquanto  a  pesquisa  bibliográ ca  se  utiliza 
fundamentalmente  da  contribuição  dos  diversos  autores  sobre  determinado  assunto,  a 
pesquisa  documental  vale-se  de  materiais  que  não  receberam  ainda  um  tratamento 
analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa. 
 

Foi  escolhido  o  tipo  de  pesquisa  documental  porque  trabalhei  principalmente  com  a 
análise  dos  discos  de  Caetano  Veloso.  Nesse  sentido,  esse  tipo  de  pesquisa  possui  vantagens;  ela 
“possibilita  o  conhecimento do passado, possibilita a investigação dos processos de mudança social e 
cultural,  permite  a  obtenção  de  com  menor  custo  e  favorece  a  obtenção  de  dados  sem  o 
constrangimento dos sujeitos” (GIL, 2008, p. 53-54). 
Os  principais  documentos  utilizados  para  essa  pesquisa  ─  minha principal fonte de dados 
─  foram  os  álbuns  de  estúdio  lançados  por  Caetano  Veloso  em  1975:  Jóia  e  Qualquer  Coisa,  com 
foco  no  primeiro.  Foi  feita  audição  analítica  dos  álbuns  para  identi cação  de  elementos  como  a 
 
23 

instrumentação  e os timbres presentes na obra de Caetano do período. Os dados obtidos nessa parte 
dialogam  com  a  literatura  já  existente  sobre  o  assunto  e  com  o  ponto  de  vista  do  próprio  Caetano 
Veloso, explicitado em entrevistas, publicações, e em seus próprios livros. 
Além  da  audição  analítica  dos  discos  e  do  diálogo  com  a  bibliogra a  existente,  utilizei  a 
transcrição de trechos musicais como ferramenta de análise. Esta contribuiu para o entendimento de 
elementos  harmônicos  e  melódicos  das  composições  de  Caetano  Veloso,  além  de  ter  permitido 

novas  perspectivas  quanto  aos  arranjos  utilizados.  A  análise  desses  elementos  citados  baseou-se  nos 
métodos  de  harmonia  de  Ian  Guest  (2006)  e  na  dissertação  de  Sérgio  Paulo  Ribeiro  de  Freitas 
(1995)  que  propõem  um  enfoque  nas  composições  populares  e  sistematizam  as  ferramentas 
necessárias  para  isso.  Além  disso,  outra  pesquisa  de  Freitas  (2010),  sua tese de doutorado intitulada 
"Que  acorde  ponho  aqui?",  forneceu  ferramentas  para  a  análise  que  ajudaram  a  localizar 
temporalmente  e  espacialmente  o  uso  de  determinados  elementos  musicais  associados  à  música 

tonal  e  modal.  Destaco  também  o  trabalho  de  Vicente  Ribeiro  (2020),  que  forneceu  ferramentas 
essenciais  para  as  análises  de  procedimentos  modais  no  disco  Jóia,  uma  das  dimensões  de  maior 
destaque no disco. 
No  capítulo  2,  farei  uma  breve  apresentação  dos  conceitos  que  utilizarei  ao  longo  do 
trabalho  e  que  serão  essenciais  para  a  efetividade  das minhas análises. O capítulo 3 consiste em uma 
contextualização  mais  detalhada  da  MPB,  abarcando  sua  história  e  buscando  relacioná-la  ao 
desenvolvimento  artístico  de  Caetano,  passando  pelo  surgimento  da  Bossa  Nova,  o 

desenvolvimento  da  canção  de  protesto,  os  festivais  televisivos,  o  Tropicalismo  e  o  período  de 
estabilidade  desse  gênero  no  mercado  musical  brasileiro,  nos  anos  1970.  Essa  narrativa  se  insere 
aqui,  pois  para  entendermos  o  valor  de  Caetano  Veloso  naquele  meio  e  seus  signi cados  e 
sonoridades,  é  preciso  mapear  o  que  existia  na  música  popular  que  o  cercava  até  aquele  momento, 
não porque história explica a obra de Caetano, mas porque esta dialoga com seu contexto. 
O  capítulo  nal  é  inteiramente  dedicado  à  análise  do  disco  Jóia  com  o  objetivo  de 
compreender  os  procedimentos  composicionais  de  Caetano  naquele  período  e  como  estes  se 
relacionam  com  campo  da  MPB  no  qual  se  inserem.  Analisarei  as  canções  do  disco  em  diversas 
categorias,  entre  elas  os  arranjos,  as  formações  instrumentais,  os  gêneros  musicais,  as  letras,  as 
melodias,  as  harmonias,  os  diferentes  usos  da  voz  e  os  pontos  de  aproximação  e afastamento com o 
disco Qualquer Coisa.    
 
24 

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E CONCEITOS 


 
Para  a  análise  musical,  observei  a  conceito  de  atenção  a  valores  como  modo  de  análise, 
proposto  por  Robert  Walser  (2003).  O  autor  sugere  que  o  analista  de  música  popular  busque 
identi car  os  elementos  de  maior  destaque  dentro  de  cada  canção,  aqueles  que  a  tornam  “única”, 
seja  no  âmbito  da  harmonia,  da  melodia,  do  ritmo,  da  letra,  dos  timbres  utilizados,  do  arranjo  ou 

ainda  na  forma  que  esses  elementos  se relacionam. Como uma maneira de fazer essa identi cação, o 


autor  propõe  também  o  conceito  de  bifocalidade  de  perspectiva,  o  qual  também  considero 
importante  na  forma  que  desenvolvi  minha  pesquisa.  Ele  explica  que  a  análise  “requer  uma 
bifocalidade  de  perspectiva:  conhecimento  e  empatia  de  um  insider  para  entender  o  poder  da 
música  e  posição  crítica  e  perspectiva  histórica  de  um  outsider  para  localizar e explicar aquele poder 
dentro  de  um  contexto  maior  (WALSER,  2003,  p.  38)6.  De  forma  bastante  similar,  a  musicóloga 
Martha  Tupinambá  de  Ulhôa  (1998,  p.  67)  aponta  que  "é  necessário  rede nir  e  delimitar  as 
categorias  'êmicas'  [o  que  é  valorizado  pelos  ouvintes  quali cados:  especialistas,  entusiastas  e fãs do 
gênero  a  ser  estudado]  como  categorias  'éticas'  [os  elementos  musicais  correspondentes]  para  que 

possam então servir como ferramentas analíticas". 


Em  outro  texto,  Ulhôa  (2000,  p.  50)  traz  o  conceito  de  pertinência,  de  Luis  Prieto, 
adaptado  para  o  estudo  de  música  popular. Originalmente desenvolvido na fonologia, esse conceito 
é  utilizado  para  classi car  o  que  é  importante  para  os  falantes  de  uma  língua,  ou  seja,  “os  traços  e 
contrastes  válidos,  aspectos  que  são  levados  em  consideração  e  signi cam  alguma  coisa  para  os 
sujeitos, em oposição a aspectos ignorados”. Adaptando para o campo musical, essa pertinência seria 
“a  identidade  sob  a  qual  um  membro  de  um  grupo  sonoro  conhece  um  fato  musical”.  Ela  aponta 

que  é  necessário  “identi car  os  critérios  de  avaliação  utilizados  pelos  usuários  de  cada  gênero”.  O 
contexto  da  MPB  no  qual  Caetano  está  inserido  valoriza  aspectos  diferentes  dos  que  são  buscados 
no  rock  ou  no  sertanejo,  por  exemplo.  Nesse  sentido,  minha  análise  do  disco  Jóia  buscou,  num 
primeiro  momento,  identi car  quais  podem  ser  esses  valores  especí cos,  para  então sistematizá-los, 
de forma a jogar luz sobre os aspectos que tivessem mais relevância à MPB. 

6
Tradução  livre.  Original:  “Analysis  requires  a  bifocality  of  perspective:  enough  insider’s  knowledge  and  empathy  to 
understand  a  music’s  power,  and  enough  outsider’s  critical  stance  and  historical  perspective  to  locate  and explain that 
power within a larger context”. 
 
25 

Dentro  dessa  mesma  perspectiva,  Walser  (2003,  p.  38)  também  propõe  que  é  necessário 
“historicizar”  todas  as  músicas  e  levar  em  consideração,  para  cada  caso,  os  prazeres  particulares que 
elas  oferecem  e, com isso, os valores nos quais dependem e para os quais elas apelam. Ele diz que não 

é  a  ideia  abandonar  julgamento  de  valor numa busca por uma objetividade neutra, mas sim “incluir 


valores  como  aspectos  cruciais de análise e reabilitar o conceito de objetividade como a consideração 
principal da intersubjetividade”.  
Embora  dialogue  com  os  conceitos  de  Walser  e  Ulhôa  para  a  análise,  também  terei  como 
linha  de  pensamento  o  raciocínio  estabelecido  por  Phillip  Tagg,  em  seu  artigo  “Analysing  Popular 
Music:  Theory,  Method  and  Practice”.  Neste  texto,  ele  ressalta  a  importância  de  pensarmos  na 

música  popular  em  relação  ao  contexto  na  qual  se  insere  e  nas  relações  que  ela  estabelece  com  a 
indústria fonográ ca: 
 
Música  popular  não  pode  ser  analisada  usando  somente  as  ferramentas  tradicionais  da 
musicologia  porque  música  popular,  de  maneira  diferente  da  música  de  arte,  é  (1) 
concebida  para  distribuição  em  massa  para  grandes  e  frequentemente  heterogêneos 
grupos  de  ouvintes;  (2)  armazenada  e  distribuída  de  forma  não  escrita;  (3)  só  é  possível 
em  uma economia monetária industrial onde se torna uma mercadoria; e (4) na  sociedade 
capitalista,  sujeita  às  leis  do  ‘livre’  mercado,  de  acordo  com  as  quais o ideal seria vender o 
mais possível o pouco o possível para os muitos possíveis (TAGG, 1982, p. 4).. 
 

Ruth  Finnegan  (2008),  importante  autora  irlandesa  que  vem  das  ciências  sociais 
estudando  música,  de  certa  forma  dialoga  com  esse  entendimento  da  música  popular  dentro  de 
paradigmas  diferentes  da  “música  de  concerto”,  e  avança  a  discussão  trazendo  o  foco 
especi camente  para  a  canção.  Ao  trabalhar  com  os  discos  de  Caetano  Veloso,  entendo  que  a  obra 
desse  compositor  está  dentro  de  um  recorte  da  música  popular  brasileira  de grande destaque, que é 
o  das  canções ─ lugar de contato direto entre música e poesia ou literatura, além de contato indireto 
com diversos outros campos da arte. 
Finnegan  explicita  que,  historicamente,  o  meio  acadêmico  analisou  canções  de  duas 
perspectivas  distintas:  de  um  lado,  a  teoria literária, tratando apenas do aspecto “textual” da canção, 

e  do  outro,  a  musicologia  convencional,  entendendo  a  canção  apenas  como  obra  musical,  presa  a 
uma  partitura.  A  autora  aponta  para  a  performance  como  lugar  de  encontro  entre  música e letra, e 
que  é  nesse  “emaranhado”  que  o  pesquisador  terá  uma  análise mais completa, “no reconhecimento 
da  materialidade  encenada  e  performatizada  da  palavra  cantada  atualizada pela voz” (FINNEGAN, 
 
26 

2008,  p.  40).  Por  analisar  um  disco  especí co,  minha  análise  de  performance  voltar-se-á  à 
interpretação de Caetano no fonograma.  
A  historiadora  Virgínia  Bessa  (2005,  p.  47),  por  sua  vez,  sugere  um  olhar  voltado  para  o 

estudos  dos  arranjos  “como  uma  forma  de  (re)construção  do  sentido  na  canção  popular”.  Ela 
exempli ca  falando  da  Bossa  Nova,  gênero  muitas  vezes  lido  como  “moderno  e  arrojado”;  ela 
aponta  que  esse  sentido  “se  efetiva  não  apenas  no  âmbito  da  harmonia,  mas  também  da 
instrumentação,  da  rítmica  (identi cada  à  famosa  ‘batida  de  violão’  de  João  Gilberto),  da  busca  de 
um  timbre  convincente,  etc”. Ao  m, ela ressalta a “necessidade de cada pesquisador, em função das 
características  de  seu  objeto,  criar  um  método  próprio  de análise”. Nesse sentido, além de analisar o 

aspecto  textual  das  canções,  de  um  lado,  e  os  elementos  melódicos  e  harmônicos,  de outro, voltarei 
meu  olhar  aos  arranjos,  texturas,  instrumentações,  ritmos  e diferentes usos da voz e interações entre 
esta e a melodia cantada. 
Outro  conceito  que  guiou  o  pensamento  cientí co  nesse  trabalho  é  o  de  sonoridade, 
proposto  pelo  professor  Felipe  Trotta  em  seu  artigo  “Gêneros  musicais  e  sonoridade:  construindo 
uma ferramenta de análise”, no qual o autor de ne: 
 
A  sonoridade  pode  ser  entendida  como  o  resultado  acústico  dos  timbres  de  uma 
performance,  seja  ela  congelada  em  gravações  (sonoras  ou  audiovisuais) ou executada “ao 
vivo”.  Trata-se,  portanto,  de  uma  combinação  de  instrumentos  (e  vozes)  que,  por  sua 
recorrência  em  uma  determinada  prática  musical,  se  transforma  em  elemento 
identi cador (TROTTA, 2008, p. 3-4). 
 
No  mesmo  artigo,  Trotta  (2008,  p.  6)  dialoga  com  outros  autores  que  também  utilizo 
como  referencial  teórico,  como Philip Tagg. O primeiro coloca que os “musemas” (unidade mínima 

de  signi cação  musical),  conceito  criado por Tagg, se relacionam com a própria ideia de sonoridade, 


e  que  esta  é  “capaz  de  estabelecer  associações  entre  uma  música  recém-ouvida  e  as  simbologias  e 
categorias  musicais  compartilhadas  pelos  indivíduos  e  grupos  sociais”.  Ainda  sobre  o  conceito, 
Trotta  adiciona  um  apontamento  importante  para  a  compreensão  do  que  ele  entende  por 
sonoridade: 
 
Em  sua  teoria  semiológica,  o  ouvinte  “descobre” anafonias entre a música recém-ouvida e 
sua  bagagem  musical  anterior  (culturalmente  apreendida)  e,  deste  encontro,  elabora seus 
signi cados  e  identi cações.  De  fato,  ao  ouvir  uma  música  pela  primeira  vez, 

 
27 

inevitavelmente  buscamos  semelhanças  entre  alguns  de  seus  elementos  e  outros 


previamente  conhecidos.  (...)  Vale  ressaltar  que  tais  anafonias  não  estabelecem  ligações 
exclusivas  ao  componente  sonoro  de  uma  prática  musical,  mas  também  a  toda  uma 
extensa  gama  de  relações  não  musicais,  associadas  a  atitudes,  pensamentos,  visões  de 
mundo,  sentimentos,  modos  de  ser  e  vivenciar  o  cotidiano,  as  experiências,  en m,  a 
própria vida (TROTTA, 2008, p. 4). 
 
Outro autor que trouxe contribuições importantes nesse tema é Sergio Molina (2017), que 

em  seu  livro  “Música  de  Montagem:  A  Composição  de  Música  Popular  no  pós-1967”,  articula  o 
conceito  de  sonoridade,  proposto  por  Didier Guigue para a análise de repertório erudito, dentro do 
contexto  de  música  popular,  brasileira  e  internacional,  com  suas  especi cidades.  Molina  inclusive 
analisa  a  sonoridade  de  álbuns  da  MPB  na  década  de  1970,  como  Minas,  lançado  por  Milton 
Nascimento  em  1975.  Sua  análise,  extremamente  rica,  serve  como  um  guia  importante  para  as 
possibilidades  analíticas  da  ideia  da  sonoridade  para além do universo da chamada “música erudita” 

contemporânea.  O  uso  do  conceito  de  sonoridade,  aqui,  se  atém  aos  arranjos,  entendidos  como 
combinação de timbres especí cos, e à rede de signi cados propostos por Trotta. 
Antônio  Rafael  Carvalho  dos  Santos  contribui  aqui  para  o  entendimento  de  como  a 
música popular pode ser analisada e compreendida: 
 
Do  ponto  de  vista  musical,  esses  repertórios  e  gêneros  apresentam  em  suas  estruturas 
níveis  diferentes  de  complexidade  e  diversos  graus  de  hibridismo.  Elas  compartilham 
elementos  musicais  entre  si  e  também  com  outros  repertórios,  tais  como  o  da  música  de 
concerto  europeia  e  da  música  africana,  por  exemplo.  Esta  complexidade  oferece  uma 
gama  muito  grande  de  questões  e  problemas para a pesquisa e o ensino (SANTOS, 2012, 
p. 46). 
 
Ao  mesmo  tempo,  o  autor  reforça  a  ideia  de  que  a  análise  de  música  popular  deve  estar 
associada  ao  contexto  em  que  esta  se  insere.  Ao  falar  sobre  a  dissertação  de  mestrado  de  Maria 
Beatriz  Cyrino  Moreira,  que  desenvolveu  estudo  sobre  o  grupo  brasileiro  Som  Imaginário,  ele 
coloca: 
 
Uma  análise  puramente  descritiva,  onde  se  procurasse  apenas  identi car  e  relacionar  os 
diferentes  elementos  presentes  nessa  obra  musical  cheia  de  hibridismos  seria  insu ciente 
para  entendê-la.  Seria  também  preciso  conhecer os fatores culturais, sociais, econômicos e 
políticos  pelos  quais  passava  o  país  no  período  e  procurar  entender  como  a produção do 
grupo se relaciona com esse contexto (SANTOS, 2012, p. 49). 
 

 
28 

Por  m, acrescento também a visão de Mikhail Bakhtin (1997, p. 280)  estabelecida em seu 


texto  “Os  gêneros  do  discurso”.  Ele  propõe  que  “qualquer  enunciado  considerado  isoladamente  é, 
claro,  individual,  mas  cada  esfera  de  utilização  da  língua  elabora seus tipos relativamente estáveis de 
enunciados,  sendo  isso  que  denominamos  gêneros  do  discurso”.  Ao  pensar  na  ideia  de 
institucionalização  da MPB, além do trabalho de Marcos Napolitano (1999), tenho como referência 
as  relações  de  unidade  e  diversidade  que  Bakhtin  propõe  nesse texto para determinar um gênero do 

discurso:  um  conjunto  de  dimensões  que  se  repete  com  certa  regularidade,  conferindo estabilidade 
ao  gênero  e,  ao  mesmo  tempo,  a  presença de pontos de fuga capazes de criar tensão e reinvenção em 
si  mesmo.  Como  veremos,  Caetano  constantemente  joga  com  essas  fronteiras,  tensionando  os 
limites da MPB e, com isso, permitindo também a aglutinação de elementos externos a ela. 
Além  disso,  outro  ponto  de  destaque  que  tomo  de  Bakhtin  (1986,  p.  123)  é  que  esses 
gêneros  se  constituem  a  partir  de  diálogos  entre  enunciados;  ele  então  dá  gênese  à  ideia  de 

dialogismo  como  noção  epistêmica,  que  é  entendido  como  condição  do sentido do discurso. Para o 


autor,  “a  verdadeira  substância  da  língua  é  constituída  justamente  nas relações sociais, via interação 
verbal,  realizada  por  meio  da  enunciação  ou  das  enunciações”.  O  discurso,  então,  não  é individual, 
porque  se  constrói  a  partir  do  diálogo  de  diferentes  interlocutores,  e  cada  enunciado  mantém 
relações com os discursos que o precederam — e também com os subsequentes. 
Em  outras  palavras,  para  que seja possível entender os sentidos da obra de Caetano Veloso, 
dentro  dessa  epistemologia  bakhtiniana,  é  preciso  observá-la  dentro  de  seu(s)  contexto(s)  e 
compreender  que  tipos  de  diálogos  e  relações  o  compositor  estabelece  com  o  universo  que  o  cerca. 
Esses  universos  com  os  quais  Caetano  dialoga  são  diversos:  o da MPB, o da música pop, o do rock, o 
da  música  de vanguarda europeia, além de outros “externos” ao mundo musical, como o do Cinema 

Novo,  o  da  Poesia  Concreta,  o  das  artes  plásticas  e  o  da  literatura  modernista.  O  estudo  desses 
diálogos de Caetano faz-se essencial para uma compreensão mais aprofundada de sua obra.  
Nessa  perspectiva,  no  próximo  capítulo farei uma extensa contextualização fundamentada 
em  diversos  autores  da  história  da  música.  Minha  visão,  porém,  terá  como  foco  as  relações  que 
Caetano  estabelece  com  cada  um  dos  fatos  históricos  identi cados.  Não  pretendo  com  isso  supor 
que  o  contexto  histórico  isoladamente  é  capaz  de  explicar  a obra do compositor, mas sim, explicitar 

os  pontos  de  diálogo  que  Caetano  estabelece  com  esse  meio,  assim  como  seus  movimentos  de 
aproximação e afastamento.  
 
29 

3 CAETANO VELOSO E A CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA (1958-1975) 


 
3.1 Canção Popular Urbana no Brasil 
 
A  música  popular  urbana  no  Brasil  dá  seus  primeiros  passos  no  século  XVIII,  mas  é  no 
século  XX  que  ela,  ao  passar  por  diversas  transformações,  ganha  espaço  de nitivo  como  uma  das 
fortes  representantes  da  cultura  nacional.  De  forma  simultânea  e  dialética,  esse  tipo  de  expressão 
musical se desenvolveu no mundo todo, com maior ou menor intensidade e relevância.  
Talvez  pelo  forte  impacto  que  gêneros  musicais  como  o  jazz  e  o  blues  estadunidenses,  o 

tango  argentino,  a  habanera  cubana,  a  rumba  e  o  bolero  caribenhos  e  o  samba  brasileiro  tiveram 
internacionalmente,  a  música  popular  aparece  muitas  vezes  associada  ao  continente  americano,  o 
“Novo  Mundo”,  em  “oposição”  à  música  de  concerto  de  origem  europeia.  É  claro  que  essa 
separação  possui  limitações  imensas  e  é  passível  de  diversas  problematizações  —  desconsidera  a 
presença  anterior  de música entendida como “popular” na Europa, a forte presença da musicalidade 
africana  em  todos  os  gêneros  musicais  citados  anteriormente  e  ainda  esconde  um  imenso  universo 

de música não-ocidental que não necessariamente se encaixa nessas categorizações.  


Dito  isso,  há  de  se  observar  que existe uma con uência de expressões musicais que surgem 
naquela  virada  do  século  XIX  para  o  XX  com  forte  poder de comunicação e que ganham força nas 
Américas.  No  cenário  artístico  brasileiro,  especi camente,  o  século  XX  se  estabelece,  da  forma que 
Luiz  Tatit  (2004)  coloca,  como  século  da  canção.  De  fato,  esse  gênero  de  composição,  sustentado 
pelo  surgimento  de  tecnologias  de  gravação  e  o  desenvolvimento  de  uma  indústria  fonográ ca e de 
veículos  de  reprodução  musical,  tornou-se  parte  do  cotidiano  e  do  universo  aural  de  grandes 

públicos. 
O  historiador  Marcos  Napolitano  (2002,  p.  17)  coloca  que,  num  primeiro  momento,  a 
música  popular  nas  Américas  incorporou  diversos  valores  das  formas  musicais  européias  (o  que 
corrobora  o  argumento  de  que  a  oposição  apresentada  anteriormente  é  uma  categorização  muito 
frágil).  O  autor  coloca  que  “o  bel  canto,  a  sonoridade  homofônica  das  cordas,  as  consonâncias 
harmônicas  ‘agradáveis’,  o  ritmo  suave”,  elementos  característicos  da  música  de  concerto,  tiveram 

forte  presença  na  música  popular  inicial.  Ele  complementa  apontando  as  diferenças  que  se 

 
30 

desenvolvem  nesses  estilos  musicais  quando  colocados em contato com as músicas de outros grupos 


étnicos7: 
 
Na  medida  em  que  a  constituição  das  novas  camadas  urbanas,  sobretudo os seus estratos 
mais  populares,  não  obedecia  a  um  padrão étnico unicamente de origem européia (com a 
grande  descendência  de  grupos  negros  e  indígenas),  novas  formas  musicais  foram 
desenvolvidas,  muitas  vezes  criadas  a  partir  da  tradição  de  povos  não-europeus” 
(NAPOLITANO, 2002, p. 17). 
 
O  historiador  José  Geraldo  Vinci  de  Moraes  (2000)  aponta  que,  quando  ocorre a difusão 
dessa  forma  de  expressão  artística  nos  centros  urbanos,  no  início  do  século XX, a canção estabelece 

comunicação  direta  com  diversas  castas  da  sociedade.  O  autor  reforça  com  isso  a  importância  de 
observarmos  as canções como fontes históricas, por serem elas capazes de revelar “zonas obscuras das 
histórias  do  cotidiano  dos  segmentos  subalternos”,  contar  histórias  que  a  História  não  conta.  Ou 
em  outra  perspectiva,  as  canções  podem  ser  lidas  como  índices,  como  entendidos  por  Carlo 
Ginzburg  (1989):  pequenos  indícios  ou  sintomas  capazes  de  evidenciar  fenômenos  mais  gerais 
daqueles  grupos  sociais  envolvidos  ou  daquele  contexto  especí co;  um  ponto  de  vista 

epistemológico  que  considera  que  o  individual,  o  “trivial”  e  o  cotidiano  podem  revelar  fenômenos 
coletivos e profundos. 
Diversos  autores  buscaram  identi car  o  que  caracteriza  a  canção  como  gênero, e no Brasil 
o  trabalho  de  Luiz  Tatit  se  destaca  nessa  área.  Em  seu  livro  O  Cancionista,  lançado  originalmente 
em  1996,  o  pesquisador propôs a hipótese de que o cerne das canções se encontra na interação entre 
melodia  e  letra,  e  que  sua  e cácia  depende  de  quão  bem  articulados  estão  esses  dois  elementos. Ele 
reforça  ainda  que  na  canção  urbana  brasileira  existe  a  gura  dos  cancionistas,  compositores  e 

intérpretes  de  suas  próprias  canções, geralmente sem treinamento formal em música, cada qual com 


uma  dicção  própria,  uma  forma  de  “equilibrar  melodia  no  texto  e  texto  na  melodia”.  Para  Tatit 
(1996),  toda  canção  popular  brota de um processo entoativo (re etido em movimentos melódicos e 
articulações  próximas da fala, o que ele chama de  gurativização) e passa pelo que o autor nomeia de 

7
  Contatos  sempre  muito  complexos,  que  não  devem  ser  entendidos  como uma simples mistura de elementos musicais 
europeus  com  informações  das  músicas  indígenas  ou  de  grupos  negros,  uma  vez  que  diversas  relações  de  poder  estão 
envolvidas  nessas  construções  historiográ cas  mais  simplistas.  Cf.  SANDRONI,  Carlos.  Feitiço  decente. 
Transformações  do  samba  no  Rio  de  Janeiro  (1917-1933).  Rio  de  Janeiro:  Jorge  Zahar  Ed./  Ed.  UFRJ,  2001.  Nesse 
livro, o autor problematiza a questão das “origens”, focando no samba. 
 
 
31 

“regimes  de  integração  de  melodia  e  letra”.  Nesses  regimes,  as  melodias  basicamente  podem 
apresentar  caráter  mais  passional  —  com  saltos,  grande  tessitura,  andamento  lento  e  letras  que 
tematizam  dor,  saudade,  etc.  —  e  temáticas  —  com  muita  recorrência  de  motivos,  pouca  extensão 
melódica,  andamento  acelerado  e  letras  frequentemente  tratando  de  temas celebrativos, nas quais o 
sujeito  do  texto  está  em  harmonia  com  o  objeto  enaltecido.  O  trabalho  de  Tatit,  que  já  é 
desenvolvido  com  bastante  rigor  há  décadas,  propõe  que  toda  canção popular, em maior ou menor 
grau, passa por esses processos. 
Moraes  (2000)  parece  concordar  com  o  pressuposto  de  que  o  binômio  melodia-texto  é  a 
estrutura que dá sentido à canção popular. O autor, porém, aponta: 
 
Mas  isso  não  basta,  é  preciso  perceber  a  capacidade  sonora  dessa  estrutura  incorporada 
aos movimentos históricos e culturais. Na verdade, deve-se perceber como se instituem 
as  relações  culturais  e  sociais  em  que  se  acomodam  elementos  de  gestação  de  uma  dada 
música/canção  urbana  e  da  vida  do  autor,  pois,  como  já  vimos  anteriormente,  elas 
produziram  e  escolheram  uma  série  de  sons  e  sonoridades  que  constituem  uma  trilha 
sonora peculiar de uma dada realidade histórica (MORAES, 2000, p. 216, grifo meu). 
 
Nesse  sentido,  somente  a  análise  musicológica  “tradicional”  não  seria  su ciente  para 
entendermos  os  signi cados  das  canções.  Em  seu  entendimento,  o  qual  compartilho,  faz-se 
necessária  uma  análise  do  contexto  histórico  e  social  na  qual  a  música  esteve  inserida.  Partindo  de 

uma  visão  bakhtiniana,  cada  obra  possui  uma  atitude  responsiva  aos  múltiplos  contextos  em  que é 
apresentada;  nunca  estará  em  isolamento,  e  por  isso  não  deve  ser  analisada  como  se  não  dialogasse 
com uma rede de outros enunciados. 
Outra  dimensão  importante  de se considerar ao pensar em canção popular é a sua inserção 
na  indústria  fonográ ca.  Os  lósofos  da  escola  de  Frankfurt  já  apontavam,  na  década  de  1930  do 
século  XX,  para  os  riscos  que  a  reprodutibilidade  em  massa  oferecia  à  qualidade  musical.  Adorno 
(1996)  especi camente  vê  essa  indústria  de  forma  bastante  negativa.  Para  ele,  em  um  contexto  de 
massi cação  de  produção  artística  não  há  liberdade  de  escolha,  pois  os  meios  de  comunicação 
impõem gêneros e criam gostos, resultando em uma regressão da audição. 
Essas  colocações  de  Adorno  têm  passado  por  diversas  críticas  nas  últimas  décadas, 
principalmente  vindas  de  autores  do  campo  dos  Estudos  Culturais  e  pesquisadores  de  música 

 
32 

popular8,  que  questionam  sua  abordagem  normativa  e  por  vezes  elitista.  Moraes  (2000),  por 
exemplo,  coloca  em  xeque  a  visão  de  que  a  indústria  fonográ ca  promove  apenas  uma regressão da 
audição  das  massas,  apontando  o  papel  que  ela  ocupou  na  divulgação  de  repertórios  regionais  a 
públicos mais amplos: 
 
Parece  que  de  forma  um  pouco  diversa  do  que  imaginou  o  lósofo  alemão  e  de  certo 
modo  saltando  fora  de  seus  cerrados  esquemas  interpretativos,  os  meios  de comunicação 
também  abriram  espaços  para  que  gêneros  e  estilos  regionais  urbanos  originários 
nas  camadas  mais  pobres  emergissem  para  um  quadro  cultural  mais  amplo  e 
pluralizado,  como  ocorreu,  por  exemplo,  na  Europa  com  amenco,  fado,  rebetika  e  as 
canções  napolitanas  e  francesas,  e,  sobretudo  na  América,  com  o  jazz  ,  blues,  sambas, 
choros,  tangos,  fruto  de  misturas  as  mais  variadas  da  música  européia,  africana  e 
americana.  Esse  fato  notável  permitiu  a  diversi cação  e  o  alargamento  das  possibilidades 
de  escolha  dos  artistas  e  dos  ouvintes,  certamente  ampliando  e  desenvolvendo  seu 
universo  de  escuta  ao  invés de simples e unicamente regredi-lo (MORAES, 2000, p. 
217, grifos meus). 
 
A antropóloga Rita Morelli, por sua vez, refuta a visão adorniana de uma situação social de 
alienação  das  “massas  operárias”  que,  segundo  o  autor,  não  teriam  autonomia dentro desse sistema 
de comoditização da arte: 
 
Rejeita-se  a  ideia  de  uma  sociedade  totalmente  dominada  pelo fetichismo da mercadoria, 
bem  como  o  pressuposto  da  existência  nessa  sociedade  de  uma  massa  como  fenômeno 
empírico,  uma  vez  que,  antropologicamente  falando,  a  cultura se mantém como atributo 
dos  homens  mesmo  quando  estes  são  excluídos  das  formas  mais  institucionalizadas  do 
saber  através  da  divisão  social  do  trabalho,  mantendo-se  também  como  instância  a partir 
da  qual  os  objetos  adquirem  para  eles  outros  signi cados  que  não  o  mero  valor  de  troca 
(MORELLI, 2009, p. 39). 
 
Con rmando  o  que  Morelli  apontou,  a  música  popular  brasileira  (e,  especi camente,  a 
canção)  se  orientou  a  partir  de  elementos  intuitivos,  muitas  vezes  por  artistas  que  não  tiveram 
contato  com  o  ensino  formal  de  música9;  a  gura já mencionada do cancionista traduz esse cenário. 
A  canção, nesse sentido, não se pauta necessariamente nos mesmos valores da música erudita. Como 
aponta  Tatit,  "a  interpretação,  em  nosso  país,  jamais  se  reduziu  a  um  timbre  de  voz  atraente  nem à 

8
  Cf.  NAPOLITANO,  Marcos. História & Música: História Cultural da Música Popular. Belo Horizonte: Autêntica, 
2002,  especialmente  o  capítulo  1,  no  qual  o autor apresenta as principais colocações de Adorno sobre a música popular 
e diversos autores que propuseram contrapontos a suas teorias. 
9
  Claramente  há  diversas  exceções;  guras  como  Tom  Jobim,  Edu  Lobo  e  Egberto  Gismonti,  apenas  para  citar alguns, 
tiveram formação musical erudita “tradicional” e trouxeram muitos dos elementos desse universo a suas composições. 
 
33 

capacidade  técnica  do  virtuose.  Sempre  esteve  associada  à  revelação  de  conteúdos  cifrados  pela 
composição"  (TATIT  apud  MACHADO,  2011,  p.  14),  ou  seja,  codi cados  na  interação  entre 
melodia e letra. 
Por  outro  lado,  a  canção  popular  não  existe  no  vácuo;  embora  tenha  rompido  com 
diversos  elementos  da  música  erudita  em  sua  abordagem  intuitiva,  manteve  muitos  outros.  A 
cantora  e  pesquisadora  Regina  Machado  (2011,  p.  24)  reforça  que  “herdamos  do  canto  lírico 
referências  para  a  realização  vocal,  como a noção de potência, beleza e capacidade dramática que são 
constituintes do chamado belcanto". 
A  primeira  transmissão  de  rádio  no  Brasil  ocorreu  em  1922,  mas  foi  nos  anos 1930 que o 

veículo  ganhou  lugar  central  na  cultura  do  país.  Num  primeiro  momento,  o  rádio  era  produto  de 
segmentos  mais  abastados  da  população  e  sua  programação  tinha  uma  ambição  de  “levar  alta 
cultura”  à  população”,  como  aponta  Napolitano (2007). Posteriormente, principalmente depois da 
Segunda  Guerra  Mundial,  a  proposta  das  rádios  voltou-se  às  classes  mais  baixas  devido  à 
popularização  do  meio  de  comunicação  e  passou  a  ter  abordagens  mais  sensacionalistas, 
melodramáticas e apelativas. 

Foi  nas  décadas  de  1920  e  1930  que  o  samba  passou  por  sua  consolidação  no  mercado 
musical10.  Napolitano  (2007,  p.  27)  aponta  a  importância  dos  mediadores,  agentes  socioculturais 
que  atuaram  na construção de pontes entre “a herança étnica e comunitária do samba e a identidade 
regional  (carioca)  e,  depois,  nacional  da  música  popular  brasileira”.  Esses  agentes  promoveram  o 
“encontro  das  elites,  em processo de a rmação de valores nacionalistas, com as classes populares, em 
busca  de  reconhecimento  cultural  e  ascensão  social”.  Pessoas  como  Noel  Rosa,  Almirante,  Mário 
Reis  e  Francisco  Alves  mediaram  a  entrada  do  samba  no  mundo  do  disco  e  do  rádio;  muitos  dos 

mediadores eram os próprios sambistas e os jornalistas ligados à cultura popular carioca.  


A  forte  entrada  do  samba  no  rádio  trouxe  também  novas  abordagens  sonoras  que,  entre 
outras coisas, re etiram em novas formas de cantar: 
 

10
  Consolidação  associada  a  diversos  fatores:  expansão  das  rádios,  novas tecnologias de gravação que permitiam maiores 
nuances,  o  surgimento  de  artistas  de  grande  destaque  nacional  (e  por  vezes  internacional,  como  é  o  caso  do  sucesso 
estrondoso  de  Carmen  Miranda)  e  o  apoio  estatal,  principalmente  durante  o  Estado  Novo de Vargas, no qual o samba 
passou  a  ser  reconhecido  como  símbolo  e  tesouro  nacional.  Diversos  autores  estudam  essa  questão  com  bastante 
aprofundamento.  Entre  outros  trabalhos,  cf.  VIANA,  Hermano.  O  mistério  do  samba.  Rio  de  Janeiro:  Jorge  Zahar 
Ed., 1995, além do já citado “Feitiço Decente” de Carlos Sandroni (2001). 
 
34 

A  referência  estética  para  a  realização  vocal  passou  a  utilizar  mais  acentuadamente  os 
parâmetros  da  fala,  produzindo uma emissão vocal mais coloquial e com menos utilização 
de  vibrato,  valorizando  a  articulação  rítmica  e  a  execução  do  fraseado  musical  em 
detrimento  da  potência  e  da  dramaticidade,  características  da  seresta  e  em  que  se 
observavam  mais  claramente  as  in uências  do  belcanto  sobre  a  canção  popular11 
(MACHADO, 2011, p. 32). 
 
É  na  década  de  1930  que  surgem  no  cenário  musical  brasileiro  diversos  artistas  que  se 
encaixam  nesses  novos  parâmetros do canto popular, como Mário Reis, Carmen e Aurora Miranda, 
Orlando  Silva  e  Noel  Rosa,  cada  um  com  maior  ou  menor  ruptura  em  relação  à  estética  do 
belcanto12.  

Entre  1945  e  1955,  surge  uma  linha  do samba que Brian McCann, citado por Napolitano 


(2007),  chama  de  samba  crítico,  que  aparece  em  aproximação  com  as  alas  da  esquerda  política.  O 
autor  conta  que  a  UGES,  União  Geral  das  Escolas  de  Samba,  estabeleceu  próximo  contato  com  o 
PCB (Partido Comunista Brasileiro), até a extinção deste em 1947, quando passou a ser considerado 
ilegal.  Em  uma  reação  anticomunista,  a  prefeitura  do  Rio  de  Janeiro  fechou  a  UGES  por  um 
período  e  estabeleceu  a  Federação  Brasileira  das  Escolas  de  Samba.  Napolitano  conta  que  por  um 
tempo  houve  des le  das  duas  entidades,  mas  que  ao  m  do  Estado  Novo, elas voltaram a convergir 
e,  àquela  altura,  o  samba  estava  consagrado  como  gênero  nacional  por  excelência,  “ora  visto  como 
expressão  da  ‘autêntica  alma  nacional’,  ora  como  o  veículo  da  ‘consciência  de  classe’” 

(NAPOLITANO, 2007, p. 57). 


Nos  anos  50,  o  samba  ganhou  competição  no  mainstream,  com  destaque  para  gêneros 
internacionais  como  o  jazz,  gêneros  caribenhos  como  o  mambo  e  a  conga,  o  bolero,  e  os  gêneros 
regionais,  como  o  baião,  o  coco,  a  guarânia,  o  xaxado  e  a  moda  de  viola13.  Desenvolve-se,  nesse 
período,  uma  centralidade  mercadológica  do  samba  canção,  in uenciada  pelo  bolero  e  pelo  tango. 
Esse  estilo  possui  como  características  um  uso  mais  acentuado  de  tensões  na  melodia,  temáticas  de 

relações  amorosas  nas  letras  e  utilização  de  regiões  mais  graves  da  tessitura  vocal.  Como  coloca 

11
  Reforço,  porém,  que  o  belcanto  não  era  a  única  referência  estética  desses  cantores,  e  que  as  construções  vocais  na 
música  brasileira  se  relacionam  com  diversos  universos  musicais,  sendo  quase  impossível  traçar  uma  genealogia  dessa 
estética. 
12
  Ao  longo  deste trabalho, indicarei pequenas playlists com o repertório ao qual eu estiver me referindo, como forma de 
auxiliar  o  leitor  a  entender  as  descrições  feitas  de  cada  período.  Aqui  estão algumas canções de sucesso dessa “Época de 
Ouro” (anos 1930):  
https://open.spotify.com/playlist/5duwFh1W6k20ZP7vxiL6V4?si=8E708PYjRMCk6fmby4DywQ . 
13
  Reforço,  especi camente,  o  sucesso  mercadológico  que Luiz Gonzaga teve no período, sendo-lhe conferido o peso de 
representante do forró e o baião, gêneros que cada vez mais ganhavam espaço fora do Nordeste. 
 
35 

Machado  (2011),  esse  estilo  assimilou  muitas in uências do bolero mexicano e isso se re ete na voz, 


que “se sexualiza, tornando o cantor objeto de desejo e sedução”.  
Alguns  dos  cantores  que  mais  se  destacaram  no  período  dentro  desse  estilo  foram  Dick 

Farney,  Lúcio  Alves,  Nora  Ney,  Dolores  Duran,  Maysa  e  Sylvia  Telles14.  Se  por  um  lado houve um 
distanciamento  do  padrão  entoativo  do  samba  desenvolvido  até  então,  por  outro  criaram-se  novos 
paradigmas  de  interpretação  vocal:  “os  cantores  passaram  a  buscar  um  aprimoramento  técnico, 
ainda  que  intuitivo,  no  sentido  de encontrar referenciais de beleza que obtivessem resposta junto ao 
público”  (MACHADO,  2011,  p.  35).  Entre  esses  novos  referenciais,  a  autora  cita:  “maior  rigor 
quanto à a nação, à realização do fraseado, à consciência timbrística e à capacidade expressiva”. 
É  nesse  período  que  começa  a  se  desenvolver  uma crítica voltada para a música popular. A 
crítica  musical  no  início  do  século  XX  analisava,  a  priori,  música  de  concerto,  e  se  pautava  em 
preceitos  do  legado clássico romântico ou, posteriormente, em postulados do modernismo, como as 

críticas  de  Mário  de  Andrade.  A  pesquisadora  de  música  popular  Santuza  Cambraia  Naves  (2010) 
explica  que  o  surgimento  de  uma  crítica  de  música  popular  se  pautou  na  ideia  de  brasilidade, 
negando  in uências  externas,  especi camente  aquelas  vindas  da  música  americana  e  do  jazz. 
Napolitano  (2007)  reforça  que  o  radialista  Almirante,  por  exemplo,  teve  papel  importante  nesse 
meio,  atuando  em  defesa  da  música  brasileira  dos  anos  1920  e  1930  (entendidas  como  Época  de 
Ouro)  e  negando  as  obras  mais  recentes  das  décadas  de  1940  e  1950  pelas  in uências  estrangeiras 
inseridas no samba e pelo peso que a música internacional tinha, naquele período, nas rádios. 

Quando  a  Bossa  Nova  surge  no  nal  dos  anos  1950,  divide  opiniões  de críticos e músicos 
por  sua nova sonoridade e nova abordagem composicional. Regina Machado (2011) aponta que, no 
canto, o gênero  
 
retoma  o  caminho  delineado  pelo  samba,  acrescido  de  um  apuro  técnico-vocal  e musical 
no  qual  o  elemento  rítmico  e  os aspectos entoativos originado na fala, o rigor absoluto na 
a nação,  a  não-utilização  de  vibrato,  a  exploração  da  sonoridade  das  palavras  como  mais 
um  elemento  de  execução  rítmica  construíram  uma  aparente  simpli cação  do  cantar 
(MACHADO, 2011, p. 35). 
 

 
14
Alguns  exemplos  desses  sambas-canção  do  período  estão  nesta  playlist: 
https://open.spotify.com/playlist/2SkCJYXgDc4VEcOVAHTTqA?si=QRJSrfU5QlaV2iuXZIjvOg . 
 
36 

Nos  anos  1960,  a  televisão  começa  a  ganhar  espaço  como  meio  de  comunicação  e  aos 
poucos  se  torna  um  dos  principais  veículos  da  música  popular,  principalmente  com  os  festivais 
televisivos  e os programas de auditório. É sobre esse período que discorrerei a seguir, no qual a Bossa 
Nova  passa  por  diversas  mudanças,  a  sigla  MPB  aparece  pela  primeira  vez  e  a  canção  brasileira  se 
expande de formas não vistas até então. 
 

3.2 Notas sobre a Bossa Nova  


 
Caetano  Veloso  (1997)  conta,  em  seu  livro  Verdade  Tropical,  que  teve  seu  primeiro 
contato  com  a  Bossa  Nova  aos  dezessete  anos,  por  recomendação  de  um  amigo  que  julgou  que  as 
gravações  de  João  Gilberto  lhe  interessariam  por  sua  “estranheza”.  Ele  discorre  em  diversos 
momentos  no  livro  sobre  o  quanto  aquela  escuta  o  impactou,  colocando  que  aquele  novo  gênero 

musical signi cou, para ele, um novo mundo de possibilidades para a canção brasileira.  
Muito  já  se  disse  sobre  o  lugar  de  importância  que  a  Bossa  Nova  ganhou  no  panteão  da 
música  popular  brasileira  (CAMPOS,  1974;  NAPOLITANO,  2001; TATIT, 2004; NAVES, 2010, 
entre  tantos  outros),  tornando-se  até  mesmo  lugar  comum  falar  do  surgimento  desse  movimento 
em  qualquer  trabalho  com  foco  em  música  popular  urbana  no  Brasil.  Dito  isso,  deve-se  considerar 
que  suas  inovações  estéticas  —  independente  das  possíveis  críticas  quanto ao grau de originalidade 
que  o  movimento  de  fato  teve,  as  quais  faz  Tinhorão  (1998),  por  exemplo  —  in uenciaram 

fortemente  grande  parte  da  geração  de  artistas  associada  à  MPB  surgida  nos  anos  1960.  Se  essa 
in uência  nem  sempre  aparece  de  forma  direta  através  de  suas  falas,  como  no  caso  de  Caetano,  ela 
ca  implícita  nos  procedimentos  composicionais  dos  cancionistas  desse  meio.  Com  isso em mente, 
considero  que  minha  contextualização  estaria  no  mínimo  incompleta  se  não  levasse  em  conta  o 
papel  que  a  Bossa  Nova  exerceu  na  construção  da(s)  sonoridade(s)  da  MPB,  ainda  mais  por  estar 
analisando  uma  obra  de  Caetano  Veloso,  artista  que,  com  maior  ou  menor  grau,  teve  esse  gênero 
como referência ao longo de toda a sua carreira. 
Caetano  sintetiza  quais  foram,  para ele, os elementos inovadores que a Bossa Nova propôs 
à  canção  brasileira  e  que,  consequentemente,  chamaram-lhe  a  atenção,  principalmente  através  da 
interpretação de João Gilberto: 
 
 
37 

[João  Gilberto]  catalisou  os  elementos  de agradores  de  uma  revolução  que  (...)  deu 
sentido  às  buscas  de  músicos  talentosos  que,  desde  os  anos  40,  vinham  tentando  uma 
modernização  através  da  imitação  da  música  americana  —  Dick  Farney,  Lúcio  Alves, 
Johnny  Alf,  o  conjunto  vocal Os Cariocas —, revalorizando a qualidade de suas criações e 
a  legitimidade  de  suas  pretensões  (mas  também  driblando-os  a  todos  com  uma 
demonstração  de  domínio  dos  procedimentos  do  cool  jazz,  então  a  ponta-de-lança  da 
invenção  nos  Estados  Unidos,  dos  quais  ele  fazia  um  uso  que  lhe  permitiu  melhor 
religar-se  ao  que  sabia  ser  grande  na  tradição  brasileira:  o  canto  de  Orlando  Silva  e  Ciro 
Monteiro,  a  composição  de  Ary  Barroso  e  Dorival  Caymmi,  de Wilson Batista e Geraldo 
Pereira,  as  iluminações  de  Assis  Valente,  em  suma,  todo  um  mundo  de  que  aqueles 
modernizadores  se  queriam  desmembrar  em  seu  apego  a  estilos  americanos  já  meio 
envelhecidos) (VELOSO, 1997, p. 36). 
 
Brasil  Rocha  Brito  (1974,  p.  31)  aponta  que  os  gêneros  musicais  “mais  cultivados  no 
populário  brasileiro”  nos  anos  1940  e  1950  foram  “o  samba  ‘marcado’  (ou  ‘rasgado’),  o 
samba-canção,  a  marchinha  e  a  valsa”.  Foi  nesse  período  que,  como  mencionado  anteriormente, 
surgiu  uma  tendência  crítica  que  ajudou  a  criar  uma  tradição  da  música  popular  brasileira.  Essa 
crítica  musical  teve  em  Almirante  um  de  seus  principais representantes, que fez extenso trabalho de 
valorização  do  samba e do choro dos anos 1920 e 1930, instituídos como “época de ouro” da canção 

brasileira.  Ao  mesmo  tempo,  sua  atuação  junto  a  outros jornalistas criticava a in uência estrangeira 


no  samba  e  no  rádio  de  forma  geral,  destacando  negativamente  “aqueles  que  queriam  imitar  Bing 
Crosby  ou  Frank  Sinatra”  (NAPOLITANO,  2010,  p.  63).  São  esses  os  mesmos  mencionados  por 
Caetano  Veloso:  Dick  Farney,  Lúcio  Alves  e  Johnny  Alf,  que,  de  certa  forma,  já  traziam  elementos 
da Bossa Nova ao inserirem “toques” de cool jazz no samba dos anos 195015. 
As  principais  aproximações  com  a  Bossa  Nova  que  aqueles  cantores  já  traziam  estão 

relacionadas  à  voz  no  canto,  a  qual  ganha,  nas  interpretações  de  João  Gilberto,  o caráter de nitivo 
do  movimento. Esses cantores romperam com a estética do belcanto, tão presente na música popular 
daquela  década,  que  tinha  como  características  as  grandiloquências,  muitas  dinâmicas  e  efeitos 
contrastantes  e  exploração  de  regiões  extremas  da  voz,  tanto  no  agudo  quanto  no  grave.  Em  texto 
publicado  originalmente  em  1960, Brasil Rocha Brito (1974, p. 35) já notava os elementos da “nova 
voz” que a Bossa Nova propunha: 
 

15
Recomendo a audição das nove primeiras faixas dessa playlist:  
https://open.spotify.com/playlist/3U1Gq2FSIWh1UhjAPCxTyA?si=47cI6XFOTrKeJItAsDbknQ. Selecionei algumas 
gravações  de  Os  Cariocas,  Dick  Farney,  Lucio  Alves  e  Johnny  Alf  e,  para  comparação,  incluí também algumas canções 
gravadas por Bing Crosby e Frank Sinatra naquela década. 
 
38 

Cantar  sem  procura  de  efeitos  contrastantes,  sem  arroubos  melodramáticos,  sem 
demonstrações  de  afetado  virtuosismo,  sem  malabarismos.  O  cool  coíbe  o  personalismo 
em  favor  de  uma  real  integração  do  canto  na  obra  musical.  O  que  está  de  acordo  com  a 
posição  estética  do  movimento.  A  ‘voz  cheia’,  o  ‘dó  de  peito’,  a  ‘lágrima na voz’, o ‘canto 
soluçado’ etc., são rejeitados pela BN [bossa-nova]. 
 
Essas  características  da  voz  da  Bossa  Nova  realmente  poderiam  ser  comparadas  àquelas 
presentes  no  cool  jazz  americano.  Há,  porém,  diversas  diferenças  em  abordagem,  as  quais  Lorenzo 

Mammí  (1992)  ressalta:  para  ele,  o  centro  da  Bossa  Nova  é  o  canto,  como  já  era  para  o  samba,  e  o 
objetivo  não  é  transformar  a  voz  em  um  instrumento,  como  muitas  vezes  nota-se  no  jazz.  Pelo 
contrário,  o  autor  ressalta  que  o  foco  está  em  aproximar  a  voz  da  fala,  trazendo  uma  espécie  de 
espontaneidade  na  qual  a  melodia  ressalta  a  palavra  cantada.  O  trabalho  que  João  Gilberto  faz, 
Mammí  aponta,  é  de  encontrar  a  in exão  exata  de  cada  sílaba  para  trazê-la  ao  ponto  exato  entre  a 
melodia  e a fala. Ou, como resume Napolitano (2007), a voz se reduz ao mínimo de potência, sem se 
aventurar em ornamentos desnecessários, e se articula ao violão e aos outros instrumentos num todo 
funcional e sem excessos, à base de legato que valoriza as melodias, sem se sobrepor ao ritmo16. 
Mammí também coloca que, diferente da abordagem jazzística, a harmonia da Bossa Nova, 
embora  próxima  daquela  do  jazz  na  utilização  de  dissonâncias,  possui função diferente. Ele aponta 
que,  no  jazz,  “compor  signi ca  encontrar  uma  estrutura  harmônica  capaz  de  in nitas  variações 
melódicas”  enquanto  que,  na  Bossa  Nova,  “é  encontrar  uma  melodia  que  não  pode  ser  variada,  já 
que  ela  é  que  é  o  centro  estrutural  da  composição,  mas  pode  ser  colorida  por  in nitas  nuances 
harmônicas” (MAMMÍ, 1992, p. 64-65). 
Outro  ponto  muitas  vezes  levantado  entre  as  características  da  Bossa  Nova  está 
relacionado  à  levada  do  violão.  Napolitano  (2007)  citou  algumas  das  novidades  trazidas  pela 

abordagem  violonística  de  João  Gilberto;  entre  elas,  o  autor  menciona  o  fato  de que João mudou a 
função  comum  do  violão,  dando  a  ele  caráter  rítmico-harmônico,  quando  até  então  era  mais 
utilizado  para  acompanhamento  e  contraponto  melódico  na  tradição  da  música  popular  brasileira. 
O  historiador  aponta  que  João  Gilberto  incorporou  a  bateria das escolas de samba em sua “batida”: 
o  polegar  da  mão  direita  realizando  o  papel  do  surdo,  enquanto  os  três  dedos  médios  batucam  as 
cordas  inferiores  como  um  tamborim.  Nesse  sentido,  é  possível  notar  um  jogo  entre  negação  e 

  Da  mesma  playlist  citada,  recomendo  a  audição  dos  clássicos  “Desa nado”,  “Samba  de  uma  Nota  Só”  e  “Chega  de 
16

Saudade” na interpretação de João Gilberto. 


 
39 

continuidade  dessa  tradição  especí ca:  a  estrutura  rítmica  continua,  porém  de  forma  reduzida, 
passada  por  uma  “triagem”.  Além  disso,  embora  haja,  nas  interpretações  de  João  Gilberto,  uma 
espécie  de  padrão  de levada de Bossa Nova, esse é um gênero que comporta diversos ritmos, o que já 

apontava  Brito  (1974,  p.  32)  à  época:  “sambas,  marchas, valsas, serestas, beguines”, todos puderam 


entrar na estética bossanovista17. 
Foi  com  a  Bossa  Nova  também  que  os  compositores  passaram  a  ocupar  espaços  de 
destaque  com  o  público.  Até  então,  havia  a  gura  dos  grandes  intérpretes,  que  atuavam  como 
interlocutores  entre  o  compositor  e  o  público,  e  eram  poucos  os  casos  em  que  os  cantores  eram  os 
próprios  compositores.  Napolitano (2001, p. 18) aponta que isso se transformou em tendência com 

o  surgimento  da  MPB,  principalmente  no  período  dos  festivais da canção, nos quais “o compositor 


e o performer muitas vezes se fundiram na mesma pessoa”: o cancionista. 
Nos  primeiros  anos  da  década  de  1960,  a  Bossa  Nova  recebeu  diversas  críticas  de  grupos 
politizados  por  suas  letras,  consideradas  alienadas,  dissociadas  da  realidade  social  da  maior  parte da 
população  brasileira.  Porém,  deve-se  lembrar  que  só  o  fato  das temáticas leves entrarem nas letras já 
foi  uma  quebra  com  os  padrões  de composição dos anos 1950. Napolitano (2001, p. 17) coloca esse 
fato  como  uma  das  grandes  contribuições  da  Bossa  Nova para as letras da MPB, “o rompimento do 
império  das  narrativas  sobre  os  estados  passionais  extremos,  como  no  bolero”.  De  certa  forma,  a 
Bossa  Nova  permitiu  que  as  letras  tematizassem  situações  cotidianas  e  assuntos  mais  leves  e  se 
abrissem  “para comunicar as impressões dos sentimentos que se impregnavam em representações do 

mundo exterior ao artista”18. 


Ainda,  um  dos  ganhos  da  Bossa  Nova  que  Caetano  Veloso  mais  destaca  é  sua  entrada  no 
mercado cultural internacional com um produto nacional “pronto”. A Bossa Nova foi fundamental 
no  que  Napolitano  (2001,  p.  11)  chamou  de  “processo  de  ‘substituição  de  importações’ do campo 
do  consumo  cultural”.  Se  pensarmos  nas  propostas  do  movimento  modernista  da  década  de  1920, 
principalmente do ponto de vista de Oswald de Andrade, já havia como objetivo: 

17
  Alguns  exemplos  disso  (cf.  playlist)  são  as  gravações  de  João  Gilberto  das  canções  “Ho-Ba-La-Lá”  (beguine),  “Bim 
Bom” (baião) e “Trevo de Quatro Folhas” (marcha). 
18
  As  canções  “Lobo  Bobo”  e  “Barquinho”  são  bons  exemplos  das  temáticas  descompromissadas  das  letras  da  Bossa 
Nova nessa primeira fase (cf. playlist). 
 
40 

Renovação  estética  das  artes  e  letras  brasileiras com a articulação de uma cultura nacional 


ao  mesmo  tempo original (i.e., enraizada nas culturas populares do Brasil) e moderna (i.e., 
com  base  nas  tendências  literárias  contemporâneas  internacionais).  A  síntese  da 
originalidade  nativa  e  da  técnica  cosmopolita  criaria,  como  propôs  Oswald  de  Andrade, 
uma  ‘poesia  de  exportação’,  capaz  de  causar  impacto  internacional.  O  Brasil  deixaria  de 
apenas  importar  e  passivamente  consumir  a  cultura  dos  países  dominantes;  passaria  a ser 
um exportador de cultura (DUNN, 2009, p. 29). 
 
De  certa  forma,  é  o  que  a  Bossa  Nova  faz  nos  anos  1950  e  1960:  cria  uma  música  de 
exportação,  com  originalidade  nativa  (samba)  e  técnica  cosmopolita  (informações  do  jazz  e  da 
música  de  concerto),  “capaz  de  causar  impacto  internacional”  —  o  que se pode notar facilmente ao 

vermos  a  ampla  entrada  desse  gênero  no  mercado  americano,  por  exemplo.  Quando, 
posteriormente,  Caetano  entra  em  contato  com  os  textos  de  Oswald  de  Andrade  e  a  ideia  de 
antropofagia, a “música de exportação” guia-o na construção do Tropicalismo que, a seu ver, retoma 
a “linha evolutiva” da Bossa Nova na música popular brasileira. 
Marcos  Napolitano  (2001,  p.  18)  menciona  ainda  outros  pontos  de  destaque  que  a  Bossa 
Nova trouxe e que tiveram bastante força nos anos 1960: 

 
O  momento  inicial  da  Bossa  Nova  foi  o  prenúncio  dos  elementos  da  revolução  musical 
dos  anos  60:  predomínio  do  Long  Playing,  como  veículo  fonográ co  (e  conceitual); 
autonomia  do  compositor,  acumulando  muitas  vezes  a  condição  de  intérprete; 
consolidação  de  uma  faixa  de  ouvintes  jovens,  de  classe  média  intelectualizada; 
procedimento  re exivo,  de  não  só  cantar  a  canção  mas  assumir  a canção como veículo de 
re exão  sobre  o  próprio  ofício  de cancionista (este ponto não é inaugurado pela BN, mas 
foi potencializado por ela) (NAPOLITANO, 2001, p. 18). 
 
Dentre  esses  elementos  destacados  por  Napolitano,  reforço  a  importância  que  o 
predomínio  do  Long  Playing  (LP) teve para essa geração da Bossa Nova e para as seguintes na MPB. 
Esse  novo formato — os discos de longa duração só foram lançados nos Estados Unidos em 1948 — 
permitiu  uma  nova  forma  de  organização  de  repertórios  musicais.  O  LP  pode  servir  como  uma 
coletânea  de  faixas  individuais,  como  se  fossem  vários  discos  de  78rpm  em  um  só,  e  vários  artistas, 

num primeiro momento, tratam-no dessa maneira. Porém, já nos anos 1950 alguns artistas passaram 
a  explorar  outras  possibilidades  que  o  disco  de 33  ⁄  rpm permitia, dedicando esforços em organizar 
as  músicas  em  uma  sequência  lógica  e,  por  vezes,  buscando  uma  unidade  temática  entre  faixas. 
“Uma  série  de  obras  distintas  se  tornou  uma  só”,  como  coloca  Mammí  (2014,  p. 7), que cita como 
exemplos  os  discos  do  jazzista  Miles  Davis  e  também  o  LP  Canções  Praieiras,  de  Dorival  Caymmi, 
 
41 

lançado  em  1954. Os três primeiros discos de João Gilberto — Chega de Saudade (1959), O Amor, o 


Sorriso  e  a  Flor  (1960)  e  João  Gilberto  (1961)  são  bons  exemplos  dessa  nova  abordagem.  O  cantor 
integra canções de diferentes compositores e diferentes períodos a partir de uma estética uni cadora, 
presente  nos  arranjos,  timbres  instrumentais  e  emissão  vocal.  Nos  anos  1960,  diversos  artistas 
internacionais  (com  destaque  para os Beatles) passaram a explorar ainda mais o conceito de LP como 
unidade, o que também in uenciou o mercado brasileiro, o que veremos posteriormente. 

Embora  a  Bossa  Nova  tenha  trazido  diversos  nomes  novos entre seus compositores, como 


Carlos  Lyra,  Ronaldo Bôscoli, Newton Mendonça e Roberto Menescal, além, é claro, da parceria de 
Tom  Jobim  e  Vinicius  de  Moraes,  é  importante  ressaltar  também  que  o  repertório  não  era  feito 
apenas  de  novas  composições,  mas  também  da  releitura  de  diversas  canções  da  tradição  brasileira. 
Nesse  movimento  os  músicos  da  Bossa  Nova  atuaram  também  na  ressigni cação  de  diversos 
compositores  dentro  de  uma  perspectiva  “moderna”,  entre  eles:  Dorival  Caymmi,  Ary  Barroso  e 

Geraldo  Pereira19.  “A  Bossa  Nova  foi  o  ltro  pelo  qual  antigos  paradigmas  de  composição  e 
interpretação  foram  assimilados  pelo  mercado  musical  renovado  dos  anos  60”,  coloca  Napolitano 
(2001,  p.  16).  Isso ocorre mesmo com artistas que, a princípio, não haviam passado pela triagem dos 
bossanovistas.  O  autor  menciona  alguns  exemplos:  “através  de  elementos  estéticos  oriundos  da 
Bossa  Nova,  Elis  Regina  assimilou  estilo  de  Ângela  Maria,  sua  inspiradora.  Foi  também  através  da 
BN que Chico Buarque ouviu e incorporou a obra de Noel Rosa em seu estilo de composição”. 
A  Bossa  Nova  teve,  logo  após  seu  surgimento,  um  período  de  grande sucesso no mercado 
estrangeiro.  Primeiramente,  com  o  premiado  lme  ítalo-franco-brasileiro  Orfeu  Negro,  baseado  na 
peça  Orfeu  da  Conceição  de  Vinicius  de  Moraes,  que  contou  com  trilha  sonora  assinada  por  Tom 
Jobim  e  Luiz  Bonfá.  Após  esse  primeiro  contato  com  a  Bossa  Nova,  diversos  artistas  estrangeiros 

passaram  a  gravar  composições  do  gênero, muitas vezes em parceria com artistas brasileiros. Jazzistas 


de  renome  como  Charlie  Byrd  e  Stan  Getz  gravam  com  artistas  como  João  Gilberto  e  Luiz  Bonfá, 
enquanto  Tom  Jobim  lança,  em  1963,  seu  trabalho  de  estreia  no  mercado  americano,  o  disco  The 
Composer  of Desafinado Plays. Posteriormente, o repertório da Bossa Nova entra para o conjunto de 

  Recomendo  a  audição  das  faixas  “Bolinha  de  Papel”  (Geraldo  Pereira),  “É  Luxo  Só”  (Ary  Barroso/Luiz  Peixoto)  e 
19

“Samba da Minha Terra” (Dorival Caymmi) na playlist anteriormente citada. 


 
42 

standards  do  jazz  ao  ser  interpretado  por  artistas  de  imenso  sucesso,  como  Sarah  Vaughan,  Ella 
Fitzgerald e Frank Sinatra20. 
Com  a  entrada  da  Bossa  Nova  no  mercado  estrangeiro  começa  a  ocorrer,  no  Brasil,  uma 
espécie  de  divisão  entre  dois  segmentos  desse  gênero:  o da BN “jazzística” e o da BN “nacionalista”. 
Como aponta Napolitano (2001), essas fronteiras eram, muitas vezes, postiças, mas passaram a guiar 
o  pensamento  de  diversos  artistas  contrários  ao  que  consideraram  como  uma  postura 
“anti-nacional”: 
 
No  nal  de  1962,  em  21  de novembro, a Bossa Nova foi a atração principal de um evento 
que  acirrou  ainda  mais  as  polêmicas  em  torno  do caráter nacionalista ou "entreguista" do 
novo  gênero,  (...)o  polêmico  show  de  Bossa  Nova,  no  Carnegie  Hall,  em Nova York. (...) 
Para  João  Gilberto  e  Tom  Jobim,  o  show  marcou  a  entrada triunfal dos dois no mercado 
norte-americano.  (...)  Mas  este  aspecto  também  trazia consigo uma situação paradoxal: os 
dois  fundadores  da  BN  acabaram,  em  certa  medida,  entrando  para  o  index  dos  artistas  e 
intelectuais  mais  nacionalistas  como  exemplo  de  Bossa  Nova  "anti-popular"  e 
“entreguista” (NAPOLITANO, 2001, p. 23-24). 
 

Foram  esses  artistas  da  linha  nacionalista  os  que  passaram  a  rever  as  formas  de  utilizar  os 
procedimentos  herdados  pela  Bossa  Nova.  Alguns  nomes  que  já  estavam  presentes  na  Bossa  Nova 
da primeira fase, como Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e Sérgio Ricardo, associados a artistas novos, 
como  Edu  Lobo e os poetas Gianfrancesco Guarnieri e José Carlos Capinam, passaram a incorporar 
temáticas  engajadas  em  suas  letras,  mantendo,  porém,  a  Bossa  Nova  como  referencial  harmônico  e 
melódico.  Essas  novas propostas acabam se tornando, posteriormente, as bases para o surgimento da 

MPB. 
 
3.3 Vanguarda na Bahia 
 
Antes  de  avançar  para  os  desenvolvimentos  da música brasileira no eixo Rio-São Paulo, no 
qual  a  MPB  centra-se  nos  anos  1960,  gostaria  de  deslocar  o  olhar  para  a  Bahia  e  as  movimentações 

musicais  que  ocorriam  em  Salvador  desde  a  metade  dos  anos  1950,  mais  especi camente  na 

20
  Conferir  na  playlist alguns exemplos dessas gravações nas faixas “The Girl From Ipanema”, na gravação de Stan Getz e 
João  Gilberto,  “O Morro Não Tem Vez”, em versão instrumental lançada no disco de Jobim, “Dindi” gravada por Sarah 
Vaughan,  “Quiet  Nights  of  Quiet  Stars  (Corcovado)”  cantada  por  Ella  Fitzgerald  e  “How  Insensitive  (Insensatez)” na 
interpretação de Frank Sinatra com Tom Jobim. 
 
43 

Universidade  da  Bahia.  Creio  que  esse  pequeno desvio de rota será importante, pois Caetano esteve 


nesse  ambiente  naquele  período  e  as  informações  culturais  daquele  contexto,  até  certo  ponto, 
aparecem em sua obra.  

De  1946  a  1962,  a  Universidade  da  Bahia  esteve  sob  o  comando  do  reitor  Edgard Santos, 
que  exerceu  papel  fundamental  no  desenvolvimento  das  ciências  humanas  daquele  centro 
acadêmico,  principalmente  na  área das artes. O reitor acreditava que a universidade “deveria assumir 
um  papel  de  liderança  na  modernização  da  Bahia,  tanto  no  desenvolvimento  urbano-industrial 
quanto  na  ‘desprovincialização  cultural’  do  estado”  (DUNN,  2009,  p.  71).  Para  isso,  Edgard 
recrutou artistas da Europa e de outras regiões do Brasil e os incubiu a responsabilidade de liderarem 

os cursos de artes visuais, dança, música e teatro.  


O  antropólogo  e  historiador  Antonio  Risério  (1995)  escreveu  sobre  os  impactos  do 
período  de  reitoria  de  Edgard  Santos  sobre  a  cultura  baiana  em seu livro Avant-Garde na Bahia. O 
autor  aponta  uma  certa  ignorância,  por  parte  do  reitor,  quanto  a  arte  de  forma  geral.  Para  Risério, 
Santos  possuía  uma  visão  tradicional  de  cultura,  que  se  refere  ao  espaço  delimitado  pelas  formas 
canonizadas do modelo ocidental-europeu de cultura superior. Apesar disso,  

 
dentro  do  campo  da  'cultura  superior',  ele  não  se  movia  como um tradicionalista. Muito 
pelo  contrário.  Antes  que  um  empertigado  e  supercilioso  guardião  de  normas 
estético-intelectuais  consagradas,  estrati cadas,  o  reitor  revelou,  em  sua  atuação  pública, 
uma  louvável  e  excepcional  abertura  para  a  invenção,  os  novos  códigos,  o 
experimentalismo (RISÉRIO, 1995, p. 47-48). 
 
Desde  1938,  o  Brasil  getulista  vivia  um  período  de  grande  nacionalismo,  que  chegou  a 
ertar  com  o  fascismo  que  crescia  mundialmente.  Risério  (1995)  acrescenta  que  essa  postura  do 

reitor  é  ainda  mais  importante  considerando  esse  contexto.  Foi  nesse  período  que  diversos  artistas 
vanguardistas  vieram  ao  Brasil,  seja  para  escapar  da  projeção  do  nazi-fascismo  que  empolgou  parte 
considerável  do  mundo  europeu,  seja  para  sair  do  domínio  da  ditadura  de  Stalin,  que  impunha  as 
regras no domínio da produção artístico-cultural soviética. 
Quando  se  refere  à  Vanguarda,  o  autor  deixa  claro  que  esta  designa  “um  grupo 
autoconsciente,  programaticamente  empenhado  na  renovação  sistemática  dos  procedimentos 

estéticos"  (RISÉRIO,  1995, p. 69). O termo Vanguarda, quanto utilizado para se referir às artes, está 


historicamente localizado e é característico da modernidade: 
 
44 

 
Vanguarda  estética  como  sinônimo  de  ação  grupal  empenhada  na  negação  do  passado 
estético  imediato,  mergulhada  num  processo  de  autoquestionamento permanente (o que 
signi ca  conferir  relevo  à 'metalinguagem') e em busca programática do novo no contexto 
da  cultura  urbano-industrial,  sob  os  signos  da  pressão  das  massas  e  da  efetiva 
planetarização  do  planeta.  A  própria  época em que surgem as vanguardas é vista, por seus 
agentes  sociais,  como  radicalmente  distinta  de  tudo  o  que  aconteceu  antes  (RISÉRIO, 
1995, p. 71). 
 
Hans-Joachim  Koellreutter,  Lina  Bo  Bardi  e  Agostinho  da  Silva  são  alguns  dos principais 
nomes  associados  a  esse  novo  momento  da  Universidade  da  Bahia,  que  atuaram  na  música,  na 

arquitetura  e  artes  visuais,  e  no  teatro,  respectivamente.  Posteriormente,  os  suíços  Ernst  Widmer  e 
Walter Smetak também foram professores nos Seminários Livres de Música. 
O  alemão  Koellreutter já estava no Brasil anos antes de trabalhar em Salvador. No  nal dos 
anos  1930,  conheceu  Heitor  Villa-Lobos  e  Mário  de  Andrade  e  começou  a  lecionar  no 
Conservatório  Brasileiro de Música no Rio de Janeiro. Durante esse período na cidade, foi professor 
de  piano  e  harmonia  de  Tom  Jobim,  quando  este  tinha  13  anos.  No  nal  dos  anos  1930, 

Koellreutter  fundou  o  grupo  Música  Viva21,  “que  contou  com  a  participação  de  músicos  já 
conhecidos  do  cenário  musical  brasileiro,  como  o  pianista  Egídio  de  Castro  e Silva, os professores e 
compositores  Luiz  Heitor,  Brasílio  Itiberê,  Luiz  Cosme  e  Otávio  Bevilácqua”  (RAMOS,  2011,  p. 
11).  Koellreutter  trouxe  consigo  da  Alemanha  os  ensinamentos  de  seu  mestre,  o  regente  Hermann 
Scherchen,  que  ajudava  a  divulgar  as  técnicas  mais  recentes  de  música  contemporânea,  entre  elas  a 
música dodecafônica de Arnold Schoenberg.  

Posteriormente,  o  grupo  agregou  também  alunos  de  Koellreutter,  como  os  compositores 
Cláudio  Santoro  e  César  Guerra-Peixe.  Com  os  Manifestos  Música Viva lançados em 1944 e 1946, 
as bases do movimento foram estabelecidas22, ressaltando, entre outros aspectos: 
 
a  defesa  da  representação  na  música  da  realidade  social;  a  procura  do  ajuste  da  música  à 
realidade;  a  refutação da arte acadêmica, não sendo aceitas as tendências nacionalistas; 
a  escolha  da  revolução  contra  a  reação;  a  constatação  da  impossibilidade de uma arte sem 
ideologia;  o  apoio  na  técnica  de  composição  dependente  da  “técnica  da  produção 

21
  Não  confundir  com  o  grupo  Música  Nova,  fundado  nos  anos  1960  por  Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira, 
Rogério Duprat e Júlio Medaglia — o qual também teve contato próximo com Caetano Veloso. 
22
Os manifestos podem ser encontrados na Internet nos links:  
https://www.latinoamerica-musica.net/historia/manifestos/1-po.html e  
https://www.latinoamerica-musica.net/historia/manifestos/2-po.html . 
 
45 

material”;  a  substituição  do  ensino  técnico  musical  por  um  ensino  cientí co 
fundamentado  nas  pesquisas  eletroacústicas;  o  abandono  do  conceito  de  beleza  e  a 
preocupação  com  uma  arte-ação,  na  qual  a  escrita  musical  passa  a  ser  decodi cada 
universalmente,  contribuindo  para  a  união  entre  os  povos;  a  refutação  do  falso 
nacionalismo;  o  enaltecimento  da  função  socializadora  da  música  e  a  valorização  da 
música  popular  sob  os  aspectos  artísticos  e  sociais  (CONTIER,  1975  apud  RAMOS, 
2011, p. 13, grifo meu). 
 
Quando  Koellreutter  passou  a  trabalhar  na  Universidade  da  Bahia,  o  Grupo  Música Viva 
já  havia  se  desfeito,  porém  o  compositor  levou  consigo  muitas  das  propostas  presentes  nos 
manifestos  citados.  Ao  falar  daquele  contexto  baiano,  Risério  (1995)  discorre  sobre  como, 

atipicamente  na  situação  brasileira,  a  universidade  estava  integrada  à cidade, em relação muito forte 


de diálogo com a cultura local.  
 
A  avant-garde  não  cruzou  incólume  as  terras  baianas. Transfêz-se. Pessoal e textualmente. 
O  olhar  que  contemplava  o  outro  retornou  trans gurado  para  incidir  em  cheio  sobre  o 
mesmo.  Reverberação  antropológica,  intercultural,  criando  e  estabelecendo  os  nexos 
orgânicos  de  um  circuito  transformador.  E  é  justamente  neste rebatimento sígnico, neste 
reenvio  permanente  do  olhar,  com  os  jogos  metamór co  e  as  novas  texturas  daí 
decorrentes,  que  vamos  agrar  toda  a  riqueza  —  diálogo  e  dialética  —  de  um  encontro 
(RISÉRIO, 1995, p. 124). 
 
Os  elementos  das  vanguardas  européias  misturaram-se a características próprias da cultura 
baiana  e  geraram,  com  isso,  produtos  artísticos inovadores. Risério (1995, p. 144) ainda ressalta que 

o  processo  cultural  baiano  daquele  período  produziu  “modi cações  notáveis  no  espaço 
estético-intelectual  brasileiro,  deixando  marcas  visíveis  (e,  provavelmente,  invisíveis)  no  corpo 
cultural do país". 
Aqui  chego  no  ponto  que  mais  interessa  à  minha  pesquisa:  Caetano  formou-se 
intelectualmente  nesse  ambiente baiano da época de Edgard Santos, no início dos anos 1960. Como 
coloca  Risério  (1995,  p.  26),  sua  obra  se  con gura  principalmente  sob  o  impacto  da  revolução 
bossa-novista,  “que  vai  desde  uma  concepção  cool  da  função  instrumental  do  canto  à  batida 

rigorosamente  nova  do  violão  de  João  Gilberto”.  Não  obstante,  mestres  como  Lina  Bo  Bardi, 
Agostinho  da  Silva  e  Hans  Joachim  Koellreutter  foram  “formadores  de  mentalidades  e  de 
sensibilidades,  faróis  da  liberdade  de  pesquisa  e da aventura criadora, em suma: encarnações de uma 
pedagogia  da  inquietude”  ,  ainda  que  não  exatamente  “inspiradores  diretos  de  estratégias  de 
construção  e/ou  de  procedimentos  estéticos  especí cos"  (RISÉRIO,  1995,  p.  26).  Caetano  não  faz 
 
46 

uso  dos  procedimentos  dodecafônicos  em  sua  obra,  por  exemplo, mas alimenta-se de um espírito de 


modernidade trazido por aquele ambiente. 
Caetano  Veloso  também  entrou  em  contato  com  Walter  Smetak  no  nal  dos  anos  1960, 
no  período  em  que  voltou  a  viver  em  Salvador  em  regime de con namento após sua prisão no  nal 
de  196823.  O  suíço  atuava  como  violoncelista  e,  além  disso,  inventava  e  construía  novos 
instrumentos  para  conseguir  sons  livres  das  sonoridades  tradicionais  e,  por  esse  motivo,  cou 
conhecido como “Alquimista dos Sons”. 
Na  música  “Épico” do disco experimental Araçá Azul, Caetano faz menção ao compositor 
no  trecho em que canta “Smetak, Smetak e Musak e Smetak/e Musak e Smetak, e Musak e razão”. A 
faixa, que conta com arranjos de Rogério Duprat, intercala uma orquestra, com grande destaque aos 
tímpanos  e  metais,  com  ruídos  de  buzinas  e  carros gravados pelo próprio Caetano, além de diversos 
objetos  sendo  utilizados  como  instrumentos  de  percussão  e  a  melodia  cantada  pelo  cantor.  Essa 
melodia,  como  ressalta  Dietrich  (2003,  p.  168),  é  típica  do  repente e “remete para a escala Lídio ♭7, 
cuja  maior característica é o intervalo #11 (décima-primeira aumentada), que propicia o típico sabor 
nordestino”.  Com  isso,  Caetano  justapõe  elementos  da  vanguarda  musical,  representada  pelas 

referências  a  Smetak  e  a  orquestração  de  Duprat,  e  a  tradição,  representada  aqui  pela  música  dos 
repentes, num jogo entre arcaico e moderno que é constante na obra do compositor. 
Em  1974,  Caetano  Veloso,  ao  lado  de  Roberto  Santana,  produziu  um  LP  de  Walter, 
intitulado  Smetak24.  Todas  as  faixas  do  disco  trabalham  com  temas  atonais  e  instrumentos 
não-convencionais.  O  autista  Tuzé  de  Abreu  (que  participa  do  disco  Jóia  de  Caetano  nas  faixas 
“Pipoca  Moderna”  e  “Gravidade”)  também  toca  no  álbum,  e  Gilberto  Gil  participou,  ao  lado  de 
Caetano, na organização das faixas do LP.  

As  aproximações  de  Caetano  Veloso  com  as  vanguardas  artísticas  não se deram apenas em 
Salvador.  No  início  do  movimento  tropicalista,  o  compositor trabalhou com os músicos associados 
ao  grupo  Música  Nova,  formado  nos  anos  1960  em  São  Paulo,  principalmente  Rogério  Duprat  e 
Júlio  Medaglia, que participaram de diversas gravações de Caetano como arranjadores. Como coloca 
Souza  (2011,  p.  93),  o grupo muitas vezes é visto como “um desdobramento do movimento Música 

23
Caetano fala brevemente sobre Smetak neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=eYltBsre9Ak.  
  O  disco  não  consta  nas  plataformas  de  streaming,  mas  pode  ser  ouvido  na  íntegra  nessa  playlist  do  Youtube: 
24

https://www.youtube.com/playlist?list=PLtWEQ4Ip3sVcqEvgQzzMgiq4UswXC-EaZ  
 
47 

Viva”,  cuja  proposta  foi  “responsável  por  atualizar  algumas propostas de Koellreutter no cenário da 


música erudita brasileira”25.  
Algumas  das  atualizações  que  esse  grupo  trouxe  foram  a  proposta  de  utilização  de 

procedimentos  da  música  eletroacústica,  por  in uência  do  alemão  Karlheinz  Stockhausen  (que 
inclusive  foi  professor  de  Duprat),  e  a  aproximação  com  a  Poesia  Concreta  dos  irmãos  Augusto  e 
Haroldo de Campos e Décio Pignatari, que àquela altura já ganhava projeção internacional.  
No  disco  Jóia,  veremos  que  Caetano  estabelece  diálogo  direto  com  a  Poesia  Concreta.  As 
propostas  das  vanguardas  baiana  e  paulista,  por  sua  vez,  aparecem  em  sua  obra  com  frequência, 
principalmente  entre  1968  e  1975,  como  nas  faixas  “Acrilirico”  (1969),  “Não  Identi cado  (1969), 

“Neolithic  Man”  ou  praticamente  todas as gravações do disco Araçá Azul. Nessas músicas, Caetano 


quase  nunca  se  atém  apenas  aos  elementos  da  vanguarda,  preferindo  mesclá-los  a formas da canção 
tradicional26.  
 
3.4 Início dos Anos 1960 e a Canção Engajada 
 

Ao  introduzir  seu  estudo  sobre  o  Avant-Garde  na  Bahia,  Antonio  Risério  traz  uma 
constatação  do  jornalista  e historiador Otto Maria Carpeaux, quando de sua chegada no Brasil. Este 
notou que: 
 
Aqui  em  nossos trópicos quase 'todo mundo' era de esquerda. As rachaduras nesse espaço 
cultural  monolítico  —  vale  dizer,  as  iniciativas  que  não  se  colocavam  a  si  mesmas  na 
'direita',  nem  aceitavam  o  jugo  stalinista  —  eram  poucas,  a  exemplo  do  tumultuado 
'movimento  antropofágico'  de  Oswald  de  Andrade  e  Oswaldo  Costa  e,  mais  tarde,  da 
vanguarda  poética  concretista,  reunida  no  grupo  noigandres.  Por  isso  mesmo,  costumo 
dizer  que, ainda na década de 60, a esquerda tradicional representava para a juventude não 
só o desvio da norma, como também a norma do desvio (RISÉRIO, 1995, p. 19). 
 
O  crítico  literário  Roberto  Schwarz  (2008),  em  seu  texto  clássico  intitulado  “Cultura  e 
Política,  1964-1969,  escrito  entre  1969  e  1970,  con rma  o  que  Carpeaux indicava. "Antes de 1964, 

o  socialismo  que  se  difundia  no  Brasil  era  forte  em  anti-imperialismo  e  fraco  na  propaganda  e 

25
O Manifesto Música Nova pode ser lido no seguinte link:  
https://www.latinoamerica-musica.net/historia/manifestos/3-po.html.  
26
  Alguns  exemplos  dessa  abordagem  experimentalista  de  Caetano  estão  nesta  playlist: 
https://open.spotify.com/playlist/7bRPZR57DLsIoXLClOotRM?si=6P7_xJsoTcGg_DZIcULUpw .  
 
48 

organização  da  luta de classes", ele coloca (SCHWARZ, 2008, p. 72). Mesmo após o golpe de 1964 e 


a  ditadura  militar  de  direita,  há  relativa  hegemonia  cultural  da  esquerda  no  país.  Havia  nessa 
esquerda, ele aponta, um caráter nacionalista e um aspecto conciliatório com a burguesia popular. 

Na  virada  da  década  de  1950  para  1960,  Brasília,  a  Bossa  Nova  e  a  Poesia  Concreta 
tornam-se  supersignos  culturais  da  gestão  de  Kubitschek  e  do  clima  desenvolvimentista  daquele 
período.  Esse  três  elementos  representam  uma  "inversão  do  uxo  cultural  metrópole/colônia"  — 
assimilação  do  estrangeiro  e,  em  seguida,  a  criação,  o  retorno  ao  internacional  com  um  produto 
novo (RISÉRIO, 1995).  
Com  a  consolidação  da  Bossa  Nova,  o  "samba  moderno"  desta  passou  a  ser  visto  como 
antítese  de  um  "samba  quadrado"  anterior,  principalmente  aquele  representado pelo samba-canção 
dos  anos  1950.  Porém,  como  já  foi  visto,  dentro  da  Bossa  Nova  já  surgiam  outras  linhas  que  a 
levaram  a  uma  postura  mais  politizada  —  a  canção  engajada.  Napolitano  (2007)  aponta  que  essa 

nova  tendência  já  apareceu  no  início  da  década  de  1960,  com  canções  como  “Zelão”,  de  Sérgio 
Ricardo,  e  “Quem  Quiser  Encontrar  o  Amor”,  de  Carlos Lyra e Geraldo Vandré27. As duas canções 
mantêm  o  paradigma  de  emissão  vocal  de  João  Gilberto, assim como o material harmônico de Tom 
Jobim;  outros  aspectos,  porém,  já  começam  a  se  diferenciar.  Em  “Zelão”,  o  instrumental  já  ganha 
caráter  mais  contrastante  que  as  orquestrações  de  Tom  Jobim  para  a  Bossa  Nova  da  primeira  fase; 
metais, madeiras e percussão aparecem com maiores dinâmicas, além da presença do coro responsivo 
no  refrão,  repetindo  o  verso  cantado  por  Sérgio  Ricardo.  Na  canção  de  Carlos  Lyra  e  Geraldo 

Vandré,  elementos  semelhantes:  maior  peso  nos metais, percussão mais próxima daquela das escolas 


de  samba  e  momentos  de  contraste  estabelecidos  pelos  “breques”  (pausas de todos os instrumentos 
subitamente).  
Além  disso,  ambas  as  canções  trazem  novas  temáticas  nas  letras  para  o  âmbito  da  Bossa 
Nova:  “Zelão”  trata  das  di culdades  da  vida  no  morro  e  de  problemas  habitacionais  em  trechos 
como  “Choveu,  choveu/  E  a chuva botou seu barraco no chão/ Nem foi possível salvar violão/ Que 

acompanhou  morro  abaixo  a  canção/  Das  coisas  todas  que  a  chuva  levou/  Pedaços  tristes  do  seu 
coração”.  Já  em  “Quem  Quiser  Encontrar  o  Amor”,  já  aparece  o  tema  da  “esperança  no  dia  que 
virá”,  algo  que  se  torna  muito  comum  nas  canções  de  protesto  dos  anos  seguintes;  a  espera  de  um 

27
As faixas podem ser ouvidas na playlist:  
https://open.spotify.com/playlist/7GAdd0ZPOGxYO7Zb2NvJOK?si=u18JpCeSSlOWj9k_TQCcLw.  
 
49 

amanhã  melhor,  no  qual  as  mazelas  sociais  não  serão  mais  um  problema.  No  caso  dessa  canção,  a 
esperança  é  por  um  amor  que  “Há  de  chegar/  Pra  gente  que  acredita/  E  não  se  cansa  de  esperar/ 
Feliz então sorrindo/ Minha gente vai cantar/ Tristeza vai ter m/ Felicidade vai car”. 
Alguns  eventos  do  ano  de  1962  ajudaram  a  intensi car  as  discussões  dentro  da  Bossa 
Nova.  Em  novembro  daquele  ano,  diversos  músicos  brasileiros  apresentaram  o  repertório  desse 
gênero  no  Carnegie  Hall,  importante  sala  de  concertos  de  Nova  York.  Entre  eles  estavam  João 

Gilberto,  Tom  Jobim,  Luiz  Bonfá,  Sérgio  Ricardo,  Roberto  Menescal,  Carlos  Lyra,  Oscar  Castro 
Neves,  Sérgio  Mendes,  Chico  Feitosa,  Milton  Banana,  Caetano  Zama,  Normando  Santos,  Dom 
Um  Romão  e  Agostinho  dos  Santos.  Foi  um  momento  que consagrou a entrada da Bossa Nova no 
mercado  americano,  mas  que,  por  outro  lado,  gerou  posições  contrárias  entre  músicos  brasileiros. 
Como  aponta  Napolitano  (2007),  ocorreu  uma  divisão  (muitas  vezes  postiça)  entre  o  lado 
“nacionalista” e o lado “jazzístico” ou “entreguista” — que “se rendeu” ao imperialismo americano. 

Foi  ainda  em  1962  que  o  Centro  Popular  de  Cultura  da  União  Nacional  dos  Estudantes 
(CPC  da  UNE)  lançou  um  manifesto  que  traçou  dois  objetivos  básicos  para  a  música popular: em 
um  posicionamento  alinhado  à  esquerda,  buscaram  uma  conscientização ideológica e "elevação" do 
gosto  médio das massas. Diversos músicos da Bossa Nova estavam alinhados a essas novas propostas. 
O  que  se  priorizava  na  obra,  com  essas  novas  diretrizes,  não  era  necessariamente  sua  qualidade 
estética,  mas  a construção de um veículo ideológico adequado ao conteúdo nacionalista em questão. 
Napolitano  (2007)  aponta  alguns  procedimentos  básicos  propostos:  a)  adaptação  aos  “defeitos”  da 

fala  do  povo  nas  letras;  b)  submissão  aos  imperativos  ideológicos  populares;  c)  entendimento  da 
linguagem  como meio e não como  m (nesse sentido totalmente contrária às bases convencionais da 
Bossa  Nova);  e  d)  entendimento  da  arte  como  socialmente  limitada,  parte  de  uma  superestrutura 
maior. 
Como  o  autor  também  ressalta,  o Manifesto do CPC propunha uma coisa, mas os artistas 
muitas  vezes  zeram  outra.  Os  músicos  buscavam  uma  canção  engajada,  porém  moderna  e 
so sticada,  capaz  de  reeducar  a  elite  e  elevar  o  gosto das classes populares, ao mesmo tempo em que 
as  conscientizava.  Os álbuns de Carlos Lyra e Sérgio Ricardo lançados à época re etem isso (como já 
apontavam  as  canções  analisadas  anteriormente).  Mantendo  essa  so sticação  estética, as letras dessa 
Bossa  engajada  tinham  em  comum:  “romantização  da  solidariedade  popular,  a  crença  no  poder  da 
canção  e  do  ato  de  cantar  para  mudar  o mundo, a denúncia e o lamento de um presente opressivo e 
 
50 

a  crença  na  esperança  de  um  futuro  libertador”  (NAPOLITANO,  2007,  p.  73).  Ou  seja,  a  Bossa 
Nova  da  primeira  fase  continuou  sendo  um  referencial fundamental principalmente nos elementos 
musicais, mas passou a ser criticada por suas letras “alienadas”.  
São os artistas dessa segunda fase da Bossa Nova os primeiros nomes da chamada canção de 
protesto  brasileira.  Esse  novo  estilo  de  composição  representava  “uma  possível  intervenção  política 
do  artista  na  realidade  social  do  país,  contribuindo  assim  para  a  transformação  desta  numa 

sociedade  mais  justa”  (CONTIER,  1998,  p. 2). Os compositores buscaram, através de suas canções, 


representar  um  entendimento  de  um  Brasil  “genuíno”,  através  de  signos  como  “violão,  frevo, 
urucungo,  moda-viola”.  Esses  instrumentos,  formas  e  ritmos  foram  associados  a  práticas 
revolucionárias a partir das letras: 
 
Os  temas  amorosos,  de  colorações  românticas  e  presentes  nas  canções  bossanovistas  — 
Tom  Jobim,  Vinicius  de  Moraes,  Ronaldo  Bôscoli,  Carlos  Lyra,  Sérgio  Ricardo  — 
trans guraram-se  na  canção  de  combate  social  —  Edu  Lobo,  Vinicius  de  Moraes, 
Gianfrancesco  Guarnieri,  Capinam,  Carlos  Lyra,  Sérgio  Ricardo  —  em  novos  temas 
amorosos,  que  substituíram  a  exaltação  da  mulher,  da  paisagem  carioca  pelo 
enaltecimento afetivo do povo brasileiro (CONTIER, 1998, p. 2, grifo meu). 
 
Os  pescadores,  a  população  das  favelas  e  os  sertanejos  se  tornaram  os  principais  grupos 
tematizados  pelas  canções  de  protesto,  que  buscavam  denunciar  a  situação  destes  e  conscientizar  o 
povo brasileiro28. As contribuições de letristas como Gianfrancesco Guarnieri, Ruy Guerra, Vinicius 
de  Moraes  e  Oduvaldo  Vianna  Filho,  entre  outros,  seguiam  critérios  de  clareza,  simplicidade  e 
objetividade  política  e  tinham  temas  sociais  inspirados  no  folclore.  Enquanto  isso,  a  parte  musical 

trazia  elementos  do  impressionismo  neo-romântico  e  do  neoclassicismo,  com o uso de dissonâncias 


e ritmos sincopados. Esses foram os traços essenciais da canção participante (CONTIER, 1998). 
Quando  os  militares  tomaram  o  poder  executivo  em  1964,  ocorreu  uma  movimentação 
ainda  maior  por  parte  dos  artistas  engajados  no  sentido  de  produção  de  arte  de  protesto.  Como 
aponta  Napolitano  (2007),  o  circuito  universitário  ganha  força  nesse  período  e  ocorre  um 
deslocamento  do  centro  de  resistência  e  de  arte  engajada,  do  Rio  de  Janeiro  para  São  Paulo, 

28
  Contier  (1998)  aponta  que  nas  canções  de  Edu  Lobo,  os  temas,  em  geral,  giram  em  torno  dos  excluídos  sociais: 
sertanejos  ou  pescadores  (ouvir  faixas  como  “Ponteio”,  “Arrastão”  e  “Reza”),  enquanto  em  Carlos  Lyra  as  letras 
costumam  tematizar  os  excluídos  dos  centros  urbanos  (ouvir  “Choro  de  Breque,  “O  Morro  (Feio  Não  É  Bonito)  e 
“In uência do Jazz”). Playlist:  
https://open.spotify.com/playlist/7GAdd0ZPOGxYO7Zb2NvJOK?si=u18JpCeSSlOWj9k_TQCcLw.  
 
51 

principalmente  no  Teatro  Paramount.  Foi  nesse  período  que  surgiram  diversos  espetáculos 
musicais/teatrais  que  tematizam  diversos  problemas  sociais,  entre  eles:  Arena  Conta  Zumbi,  de 
Gianfrancesco  Guarnieri  e  Augusto  Boal;  Morte  e  Vida  Severina,  obra  de  João  Cabral  de  Melo 

Neto  musicada  por  Chico  Buarque;  Rosa  de  Ouro,  espetáculo  produzido  por  Hermínio  Bello  de 
Carvalho  que  tematiza  a  história  do  samba  e  “redescobriu”  Clementina  de  Jesus;  Arena  Canta 
Bahia,  dirigido  por  Augusto  Boal  e  que  contou  com  diversos  dos  tropicalistas  no  elenco,  antes 
mesmo desse movimento ser lançado; entre muitos outros29. 
Um  dos  espetáculos  de  maior  destaque  foi  o  Show  Opinião,  estrelado  por  Nara  Leão 
(posteriormente  substituída  por  Maria  Bethânia),  João  do  Vale  e  Zé  Keti,  que  representavam, 

respectivamente,  a Bossa Nova, o baião e o samba do morro. A união desses três gêneros passou a ser 
uma  espécie  de  “mito  fundador” da MPB. De fato, esse espetáculo tornou-se paradigmático de uma 
nova  estética  e  “representou  uma  das  vertentes  da  institucionalização  e  a rmação  da  nova  Música 
Popular  Brasileira  que  a  partir  de  1965  tornava-se  uma  sigla  ideologicamente  reconhecível” 
(NAPOLITANO, 2001, p. 53).  
Com  esses  espetáculos,  novas  propostas  de  interpretação  vocal  apareciam30.  Muitos  dos 

cantores,  trazendo  características  da  emissão  vocal  típica  do  teatro,  romperam  com  a  proposta  de 
leveza  no  canto  que  João  Gilberto  trazia.  Júlio  Medaglia,  em  texto  publicado  originalmente  em 
1966, comenta sobre essas mudanças: 
 
No  que  toca  à  interpretação,  se  as  canções  do  tipo  ‘amor-sorriso- or’ oferecem ao cantor 
maior  liberdade,  por  se basearem mais na subjetividade afetiva de cada um, as canções que 
cantam  a  aridez, o marasmo, o abandono e o tipo vegetativo de sobrevivência de toda uma 
coletividade,  exigiriam  do  cantor  uma  interpretação  correlata.  Uma  interpretação  ainda 
mais  impessoal,  ainda  menos  `expressiva',  sem  o  menor  perfeccionismo  vocal  e  não  raro 
com  muita  dureza.  Assim  se  explica,  por  exemplo,  a  ascensão  rápida  da  cantora  Maria 
Bethânia,  que,  ao  substituir  Nara  no  show  'Opinião',  teve  sucesso  imediato31.  Possuindo 
uma  voz  ainda  mais  primitiva  e  rude,  sua  interpretação  conferiu  a  impostação  exata  e 
ainda  maior  autenticidade  ao  conteúdo  daqueles  textos  —  particularmente  o  Carcará32 
(MEDAGLIA, 1974, p. 90). 

29
  Ouvir  faixas  “Upa  Neguinho”,  do  Arena  Conta  Zumbi  e  “Funeral  de  um  Lavrador”,  de  Morte  e  Vida  Severina: 
https://open.spotify.com/playlist/7GAdd0ZPOGxYO7Zb2NvJOK?si=u18JpCeSSlOWj9k_TQCcLw  
30
Ouvir faixas “Opinião” e “Carcará” na mesma playlist.  
31
  Nesse  ponto,  concordo  com  a  dureza  atribuída  pelo  autor  à  Maria Bethânia, principalmente no Show Opinião. Não 
acredito,  entretanto,  que  este  seja  um  sinal  de  impessoalidade.  As  obras  da  artista nas décadas seguintes reforçam ainda 
mais um caráter passional das suas interpretações. 
32
  “Carcará”  trata-se  de  uma  das  canções  de  maior  sucesso  do  Show  Opinião,  composta  por  João  do Vale e cantada por 
Nara Leão, originalmente, e por Maria Bethânia, com bastante repercussão nas mídias da época.  
 
52 

 
 
Nesse  contexto,  o  violão  se  torna,  mais  do  nunca,  um representante da nova musicalidade 
brasileira  —  e  também, como Napolitano (2001) aponta, da Nueva Canción que começava a ganhar 
força  em  diversos  países  latino-americanos.  Em  1963,  foi  lançado  o  Manifiesto  del  Nuevo 
Cancionero,  concebido  na  Argentina,  mas  que  também  in uenciou  tendências  estéticas  no  Chile  e 

no  Uruguai.  Esse  manifesto  ditou  alguns  princípios  sobre  os  novos  movimentos  musicais  e,  em 
alguns  aspectos,  era  similar  às  propostas  do  CPC  no  Brasil.  Dentre  esses  princípios,  podem  ser 
identi cados  alguns  de  destaque,  como  a  exaltação  da  cultura nacional, que aparece na forma de: a) 
reação  à  cultura  estrangeira  recentemente  inserida;  b)  concepção  da  nova  canção  não  como  um 
gênero  especí co  ou  genuinamente  popular,  mas  como  uma  música  renovada  de  características 
nativas;  c)  intercâmbio  com  artistas  e  expoentes  de  movimentos  similares  pela  América  Latina.  A 

partir  dele,  surge a demanda de renovação musical com ampliação do conteúdo, mas mantendo suas 


raízes  autóctones.  O  violão  passa a ser também, então, muito utilizado nesses países, principalmente 
nas  releituras  de  temas  folclóricos,  como  fazem  Mercedes  Sosa,  Oscar  Matus  e  Tito  Francia,  por 
exemplo,  in uenciados  por  compositores  como  Violeta  Parra  e  Atahualpa  Yupanqui33.  Por  outro 
lado,  diversas  vertentes  da  canção  engajada  brasileira  destoam  dessa  proposta  argentina  por  terem 
maior  aproximação  com  procedimentos  estéticos  do  jazz,  o  que  ca  bastante  claro  na  vertente 
televisiva desse cancioneiro nacional34. 
A  televisão  chegou  no Brasil nos anos 1950, com bastante crescimento na década seguinte. 
Assim  como  aconteceu  com  o  rádio,  a  televisão  inicialmente  era  utilizada  com  funções 

“pedagógicas”,  com  o  intuito  de  trazer  “alta  cultura”  à  população,  o  que  não  permanece  quando 
esse  veículo  começa  a se popularizar (NAPOLITANO, 2007). A TV Record surge em 1953, mas só 
ganhou  grande  popularidade  a  partir  de  1965,  quando  passou  a  investir  na  nova  música  popular 
brasileira.  Foi  nessa  metade  da  década  de  1960  que  as  redes  televisivas  dedicaram-se  a  diversos 

33
Ouvir as faixas “La Zafrera”, “Volver a los Diecisiete” e “Los Hermanos” na playlist. 
34
  As  canções  de  Geraldo  Vandré  nos  últimos  anos  daquela  década  são,  talvez,  as  que  mais  se aproximam da estética da 
Nueva  Canción:  “harmonias  consonantes  básicas, melodias pungentes, timbres acústicos, predomínio de gêneros rurais, 
temas  poéticos  portadores  de  uma  mensagem  política  mais  'explícita'  na  qual  os  motes  poéticos  funcionam  como 
verdadeiras  palavras  de  ordem,  e  não  como  desenvolvimento  de  narrativas  sutis,  líricas  e  impressionistas" 
(NAPOLITANO, 2007, p. 129). Ouvir faixas “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores” e “Terra Plana”.  
 
 
 
53 

programas  musicais,  dos  quais  se  destacam  os  festivais  da canção. Nesse cenário, Napolitano (2007) 


nota,  há  uma  aparente  resolução  dos  impasses  entre  comunicabilidade  e  popularidade:  a  música 
popular  engajada  ganha  uma  hegemonia  de  mercado,  que  só  se  desestabiliza  com  o  surgimento  da 
Jovem Guarda, algum tempo depois. 
Esses  programas  musicais  surgem  em  um  período  inicial  de  “racionalização”  na  televisão, 
com  o  objetivo  de criar um padrão de produção. Napolitano (2001, p. 59) porém aponta que, ainda 

assim,  esse  esforço  de  planejamento  “se  dava  em  meio  a  um  estágio  de  produção  na  TV  em  que  o 
improviso  ainda  tinha  espaço”.  Neste  sentido,  por  ser  um  veículo de comunicação novo, a televisão 
também  foi  laboratório  de  novos  produtos  e  linguagens,  o  que  dava  certa  liberdade  também  às 
criações  musicais.  Havia,  porém,  uma  necessidade  de  grandiloquência,  de  uma  espécie  de 
carnavalização  da  experiência  televisiva,  como  forma  de  manter  o  interesse  do  telespectador.  Isso 
in uencia diretamente a forma de cantar dos artistas desse meio: 

 
A  TV  exigia  certa  teatralização,  sob  medida,  e  uma  maior  passionalização  por  parte  do 
intérprete,  na  medida  em  que  o  público  do  outro  lado  do aparelho receptor precisava ser 
permanentemente  cativado,  numa  luta  incessante  contra  sua  tendência  ao  tédio  e  ao 
desinteresse.  A  proposição  de  continuar  a  desenvolver  o  legado,  basicamente  intimista  e 
impressionista,  da  Bossa  Nova,  assumida  até  no  nome  do  programa  -  Fino  da  Bossa  – 
chocava-se  com  as  exigências  da  linguagem  e  as  demandas  da  audiência  televisiva 
(NAPOLITANO, 2001, p. 68). 
 
Se  por  um lado os espetáculos teatrais começaram a modi car as maneiras de interpretação 
da canção popular brasileira, por outro a televisão certamente ajudou a consolidar essas propostas. A 

canção  de  protesto  passou  a  exigir  intérpretes  capazes  de  transmitir  as  intensidades  que  as  letras 
retratavam.  Foi  o  período  de  destaque  de  cantores  como  Elis  Regina,  Nara  Leão,  Maria  Bethânia, 
Jair Rodrigues e Marília Medalha (CONTIER, 1998). 
Esse  estilo  vocal  não  passou  sem  críticas,  principalmente  de  artistas  que  defendiam  as 
conquistas  da  Bossa  Nova  da  primeira  fase,  como  o  poeta  Augusto  de  Campos,  que  publicou  em 
1966  um  artigo  no  qual  discorria  sobre  o  assunto,  apontando  que  a  nova  técnica  vocal  utilizada  se 
aproximava  daquela  do  belcanto  “de  que  a  BN  parecia  nos  ter  livrado  para  sempre”  (CAMPOS, 
1974,  p.  56).  Grande  crítico  da  interpretação  teatral  e  altamente  gesticulada  que  Elis  Regina  e  Jair 
Rodrigues  tinham  no  programa  O  Fino  da  Bossa,  Campos  encontrou  um  segmento  do  canto 

despojado de João Gilberto justamente no programa concorrente, o da Jovem Guarda: 


 
54 

 
Esse estilo de interpretação "teatral" quase nada mais tem a ver com o estilo de canto típico 
da  BN.  Enquanto  isso,  jovem-guardistas  como  Roberto  ou  Erasmo  Carlos  cantam 
descontraídos,  com  uma  espantosa  naturalidade,  um  à  vontade  total.  Não  se  entregam  a 
expressionismos  interpretativos;  ao  contrário,  seu  estilo  é  claro,  despojado.  (...)  Estão  os 
dois  Carlos,  como  padrão  de uso da voz, mais próximos da interpretação de João Gilberto 
do que Elis e muitos outros cantores de música nacional moderna, por mais que isso possa 
parecer paradoxal (CAMPOS, 1974, p. 55). 
 
Paradoxal  justamente  porque  os  artistas  do  Fino  da  Bossa,  mesmo  no  nome, 
apresentavam-se como sucessores da linhagem da Bossa Nova, enquanto os “jovem-guardistas” eram 
tidos  como  alienados  por  seu  descompromisso  com  temáticas  de  protesto  nas  letras  e  pela 
aproximação  com  gêneros  musicais  americanos.  Se  por  um  lado  a  esquerda  nacionalista  do  CPC 
condenava  esse  tipo  de  proposta,  Campos  (1974,  p.  56)  via  nesses  cantores  do  iê-iê-iê  uma 
conciliação do “mass-appeal com um uso funcional e moderno da voz”. 
Além  das  mudanças  nos  estilos  vocais,  a  canção  engajada  passou  a  englobar  elementos 
rítmicos  externos  à  Bossa  Nova,  como  já  começara  a  acontecer nos espetáculos teatrais. “O material 
folclórico  nordestino  de  Edu  Lobo,  o  Samba-jazz  de  Elis  Regina,  o  Samba  urbano  tradicional  de 
Chico  Buarque,  a  canções  épicas  a  base  de  moda-de-viola  e  a  guaraña  de  Geraldo  Vandré”35 
(NAPOLITANO,  2001,  p.  38),  todos  foram  incluídos  na sigla MPB que, naquela metade dos anos 

1960, começa a se tornar um gênero mercadológico.  


 
Por  considerar  a  formação  da  sigla  MPB  um  processo  importante  para  meu  trabalho, 
gostaria  de  dedicar  alguns  parágrafos  para  re exão  sobre  esse  tema.  O  etnomusicólogo  Carlos 
Sandroni  (2004),  que  desenvolveu  diversas  pesquisas  na  França,  apontou  em  seu  artigo  “Adeus  à 
MPB”  as  diferenças  que  o termo música popular possui naquele país em relação ao Brasil. Ele coloca 

que,  ao  menos  àquela  altura  (início  dos  anos  2000),  o  que  os  pesquisadores  franceses  entendiam 
como  música  popular  é  o  que  comumente  chamamos de música folclórica. Ele ressalta, porém, que 
já  houve  um entendimento similar ao francês no Brasil. Mário de Andrade, por exemplo, classi cava 
como  popular  a  música  que  hoje  entendemos  como  folclórica,  e  como  popularesca  a  que  hoje 
chamamos  de  popular.  Foi  apenas  nos  anos  1950  que  surgiram autores como Alexandre Gonçalves 
Pinto,  Vagalume,  Almirante  e  Ary  Barroso,  que  passaram  a  realizar  produções  intelectuais  sobre  a 

35
Ouvir como exemplo as faixas “Menino das Laranjas”, “Pedro Pedreiro” e “Disparada” na playlist.  
 
55 

música  popular  urbana,  que  passa  a  ganhar  essa  nomenclatura  de  forma  mais  frequente.  Foi  nos 
anos 1960 que a sigla MPB passou a evocar um conjunto bastante especí co de signi cados: 
 
A  concepção  de  uma  'música-popular-brasileira',  marcada  ideologicamente  e  cristalizada 
na  sigla  'MPB',  liga-se,  a  meu  ver, a um momento da história da República em que a ideia 
de  'povo  brasileiro'  —  e  de  um  povo,  acreditava-se,  cada  vez  mais  urbano  —  esteve  no 
centro  de  muitos  debates,  nos  quais  o  papel  desempenhado  pela  música  não  foi  dos 
menores.  (...)  É  nesse  momento  que gostar de MPB, reconhecer-se na MPB passa a ser, ao 
mesmo  tempo,  acreditar  em  certa  concepção  de  'povo  brasileiro',  em  certa  concepção, 
portanto, dos ideais republicanos (SANDRONI, 2004, p. 29). 
 
A  MPB  está  associada  à  categoria  de  “canção  crítica” que Santuza Cambraia Naves (2010) 
utiliza  —  um  tipo  de  canção que se tornou o locus por excelência dos debates estéticos e culturais de 
sua  época.  Os  compositores  populares  passaram  a  comentar  sobre  todos  os  aspectos  da  vida  e  se 

tornaram  formadores  de  opinião  e  o  artista moderno ocupou também o papel de crítico da cultura. 


Da  mesma  maneira,  o  público  consumidor  desse  tipo  de  canção  associava-se  a  ela  estética  e 
politicamente.  Como  aponta  Sandroni (2004, p. 30), “gostar de ouvir Chico Buarque, gostar de sua 
estética  implicava  eleger  certo  universo de valores e referências que traziam embutidas as concepções 
republicanas cristalizadas na 'MPB', mesmo nos casos em que a letra passava longe da política”.  
Mais  do  que  um  gênero  musical  ou  movimento  artístico,  a  MPB  a rmou-se  como  uma 

instituição  cultural,  como  coloca  Napolitano  (2001).  Se  num  primeiro  momento  ela  parecia  ter 
limites  estéticos  bem  de nidos  pelas  propostas  da  canção  engajada,  com  a  Tropicália  (como 
veremos)  esses  limites  cam  borrados.  “A  sigla  MPB  se  tornou  sinônimo  que  vai  além  do  que  um 
gênero  musical  determinado,  transformando-se  numa  verdadeira  instituição,  fonte  de  legitimação 
na  hierarquia  sócio-cultural  brasileira,  com  capacidade  própria  de  absorver  elementos  que  lhe  são 
originalmente estranhos” (NAPOLITANO, 2001, p. 7). 

 
3.5 Tropicalismo 
 
Caetano  Veloso  lançou  seu  primeiro  LP,  Domingo,  em  1967,  em  parceria  com  a  cantora 
Gal  Costa,  também  estreante.  A  faixa  “Coração  Vagabundo”  destaca-se  como  um  dos  primeiros 
sucessos  dos  dois.  Caetano,  porém,  já  atuava  no  mercado  musical  do  eixo  Rio-São  Paulo  há  pelo 
menos  dois  anos,  quando  ele  se  mudou  para  o  Rio  com  sua  irmã,  Maria  Bethânia,  que  fora 
 
56 

convidada  a  participar  do  Show  Opinião.  À  época  ela  alcançou  bastante  sucesso  com  a  gravação  de 
“Carcará”,  e  o  compacto  simples  dessa  faixa  teve  como lado B a canção “De Manhã”, composta por 
Caetano.  O  compositor  já  havia  participado  também  do  espetáculo  Arena  Canta  Bahia,  dirigido 

por  Augusto  Boal,  e  duas  canções  suas  já  haviam  sido  selecionadas  para  festivais  televisivos:  “Boa 
Palavra”  e  “Um  Dia”36,  interpretadas  pela  cantora  Maria  Odette  na  TV  Excelsior  e  na  TV  Record, 
respectivamente37.  
Quase  todas  as  canções  do  disco  Domingo  foram  composta  por  Caetano,  com  exceção  de 
duas  canções  de  Gilberto  Gil  em  parceria  com  Torquato  Neto  (“Minha  Senhora” e "Zabelê”), uma 
de  Edu  Lobo  (“Candeias”)  e  uma de Sidney Miller (“Maria Joana”). Embora tenha sido lançado em 

um  período  no  qual  a  canção  de  protesto  se  estabeleceu  como  padrão  de  composição  da  MPB,  o 
disco  aproxima-se  muito  mais da sonoridade da Bossa Nova da primeira fase. De fato, Veloso (1997) 
conta  que  Gal  Costa  e  ele  eram  foram  profundamente  in uenciados  pelos  três  primeiros  LPs  de 
João  Gilberto,  e  essa  referência  aparece  com  muita  clareza  em  Domingo,  tanto na emissão vocal dos 
dois  cantores,  como  nos  arranjos  e timbres, muito distintos das tendências da MPB do período — e 
também da estética das obras seguintes de Caetano. 

Na  contracapa  do  LP  Domingo,  que  teve  direção  musical  de  Dori  Caymmi,  Caetano 
menciona  essa  mudança:  “Acho  que  cheguei  a  gostar  de  cantar  essas  músicas  porque  minha 
inspiração  agora  está  tendendo  para  caminhos  muito  diferentes  dos  que  segui  até  aqui”.  Ele  ainda 
coloca:  “a  minha  inspiração  não  quer  mais  viver  apenas  da  nostalgia  de  tempos  e  lugares,  ao 
contrário,  quer  incorporar  essa  saudade  em  um  projeto  de  futuro”  (VELOSO,  2005,  p.  203). 
Quando  o LP foi lançado, Caetano já iniciava a desenvolver as propostas tropicalistas, ainda que não 
tivessem  essa  nomenclatura  à  época.  De  fato,  o  LP  foi  lançado  em  julho  e,  já  em  outubro  o  cantor 
participou  do  III  Festival  de  Música  Popular  Brasileira  da  TV  Record  cantando  “Alegria,  Alegria”, 

36
  Ouvir  as  faixas  “Coração  Vagabundo”,  “De  Manhã”,  “Boa  Palavra”,  “Um  Dia”  e  “Avarandado”  na  playlist: 
https://open.spotify.com/playlist/5vcSIlPfjkruI9UcyS6BqP?si=tx7fkR1tS5uoOVj5Rz-X-w.  
37
A  TV  Excelsior  teve  os  Festivais de Música Popular de 1965 e 1966: o primeiro consagrou Elis Regina interpretando a 
canção  “Arrastão”,  de  Edu  Lobo  e  Vinicius  de  Moraes;  o  segundo,  teve  a  vitória  de  Geraldo  Vandré  com  a  canção 
“Porta-Estandarte”. Já a TV Record teve seu primeiro festival já em 1960, inspirado pelo festivais italianos de San Remo. 
Essa  primeira edição se chamou I Festa da Música Popular Brasileira e teve como vencedor o intérprete Roberto Amaral, 
com  a  “Canção  do  Pescador”  (Newton  Mendonça).  A  segunda  edição  ocorreu  apenas  em  1966  e  com  muito  mais 
sucesso,  principalmente  pelo  impacto  que  as  canções  vencedoras  “A  Banda”  (Chico  Buarque)  e  “Disparada”  (Geraldo 
Vandré,  interpretada  por  Jair  Rodrigues)  tiveram.  Para  mais  dados  sobre  os  festivais  da  canção,  cf.  MELLO,  Zuza 
Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003. 
 
57 

canção  que,  ao  lado  de  “Domingo  no  Parque”,  deu  o  “pontapé”  inicial  para  o  Tropicalismo,  que, 
entre outras coisas, abriu a MPB para a sonoridade do rock38. 
O  rock  é  um  gênero  presente  no  Brasil  desde  o  nal  dos  anos  1950;  as  primeiras 
composições  do  gênero  no  país  datam  de  1957.  Em  1959,  a  cantora  Celly  Campello lançou alguns 
de  seus  maiores  sucessos,  ajudando  a  divulgar  o  estilo  nacionalmente.  O  repertório  de  rock  era 
marcado  por  “letras  ingênuas,  românticas,  às  vezes  com  certo  humor  adolescente”  (ZAN, 2013, p. 
104).  Alguns  anos  depois,  em  1965,  a  TV  Record  criou  um  programa  voltado  para  jovens  para 
preencher  o  horário  de  domingo  à  tarde  e  o  chamou  de  Jovem  Guarda.  Era  liderado  por  Roberto 
Carlos,  Erasmo  Carlos  e  Wanderléa,  além  de  contar  com  a  participação  de  diversos  outros  artistas, 
como Wanderley Cardoso, Jerry Adriani, Ronnie Von e a banda Renato e seus Blue Caps39.  
Associados  à  sonoridade  do  rock  inglês  e  do  pop  italiano,  esse  grupo  de  artistas  liderou  o 
gênero  musical  que  cou  conhecido  como  iê-iê-iê  (proveniente  dos  yeah-yeah-yeahs  comuns  nas 

canções  da  primeira  fase  dos  Beatles).  Na  Jovem  Guarda,  era  muito  comum  que  grupos  musicais 
zessem  versões  em  português  de  canções  internacionais:  muitas  canções  dos  Beatles,  por exemplo, 
foram  traduzidas  e  interpretadas  pelo  conjunto  Renato  e  seus Blue Caps. A formação instrumental 
dos  grupos  era  basicamente  a de bandas de rock, com contrabaixo, bateria, órgão e a guitarra elétrica 
(tão  criticada,  à  época,  por  uma  vertente  da  MPB  nacionalista).  Os  grupos  ainda  podiam  contar 
com  naipes  de  metais  e  orquestrações  que remetiam à sonoridade da Motown, gravadora americana 
reconhecida  como  berço  do  gênero  soul.  A  in uência  da  música  internacional  no  iê-iê-iê  apareceu 

também  em  outros  elementos,  como  nas  harmonias  vocais  no  estilo  de  grupos  americanos  e 
britânicos dos anos 60. 
Caetano  Veloso  já  tinha  se  familiarizado  com  o  rock  anteriormente.  Ele conta que, em sua 
juventude,  assistiu  a  lmes  como  Rebelde  Sem  Causa  e  Rock  Around  the  Clock,  além  dos  lmes  de 
Elvis  Presley,  que  o  colocaram  em  contato  com  a  música  jovem  americana  (VELOSO,  1997).  Esta 
não  lhe  chamou  a  atenção,  ele  aponta,  uma  vez  que,  no  mesmo  período,  conheceu  a  Bossa  Nova, 

que  lhe  pareceu  muito  mais  so sticada  que  o rock. Foi só na metade dos anos 1960, quando já havia 


saído  da  Bahia,  que  o  cantor  passou  a  apreciar  o  gênero  com maior profundidade, e isso ocorre por 

38
Ouvir as faixas “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque” na mesma playlist citada anteriormente. 
  Ouvir  os  exemplos  de  canções  da  Jovem Guarda na playlist (“Quero que Vá Tudo pro Inferno”, “Festa de Arromba”, 
39

“Feche os Olhos (All My Loving)” e “Menina Linda (I Should Have Known Better)”). 
 
58 

recomendações  de  pessoas  a  seu  redor  —  Bethânia  apontou-lhe  a  “modernidade”  da sonoridade da 


Jovem Guarda e Gilberto Gil fez-lhe notar a riqueza das composições dos Beatles40.  
Ao  mesmo  tempo, Caetano ia de encontro com o nacionalismo vigente na canção popular 
daquele período. Schwarz (2012, p. 58) analisa o lugar que o cantor ocupava naquela situação: 
 
Desde  o  começo  a  posição  de  Caetano  é  diferenciada,  fugindo  às  limitações  do 
nacionalismo  simplista.  A  imitação  das  novidades  americanas  não  lhe  parece  inautêntica 
em  si, pois pode ser portadora de inconformismo, quando então adquire autenticidade. O 
que  conta  não  é  a  procedência  dos  modelos  culturais,  mas  a  sua  funcionalidade  para  a 
rebeldia,  está sim indispensável ao país atrasado. (...) O autêntico se de ne por oposição 
ao  conformismo,  e  não  à  cópia  ou  ao  estrangeiro  (SCHWARZ,  2012,  p.  58,  grifo 
meu). 
 
Enquanto  Caetano  fazia  diversos  questionamentos  relacionados  ao  rumo  da  música 
popular  brasileira,  artistas  ligados  à  vanguarda,  como  Augusto  de  Campos,  Júlio  Medaglia  e 
Gilberto  Mendes,  passaram  a publicar artigos em defesa da Bossa Nova da primeira fase, do estilo de 
cantar  de  Roberto  e  Erasmo  Carlos  e  das primeiras canções de Caetano. De certa forma, as posições 
de  Augusto  de  Campos  e  de  Caetano  Veloso  cruzaram-se  e  tiveram  diversos  pontos  em  comum. 
Napolitano  aponta  que  ambos  percebiam  o  paradigma  estético  d’O  Fino  da  Bossa  de  Elis  Regina e 
Jair  Rodrigues  como  um  retrocesso.  Há,  porém,  uma  diferença  fundamental  entre  suas  posições, 
que está relacionada à aproximação com o mercado: 
 
Campos  explicava esse 'retrocesso' em função da vontade de popularização da MPB, o que 
o  deslocava  em  relação  ao  efetivo  debate  musical.  Caetano  não  negava  a  necessidade  de 
ampliação  de público, mas enfatizava a necessidade do criador de dominar os elementos da 
tradição  de  maneira  crítica,  para  não  ser  guiado  pelas  vicissitudes  do  mercado 
(NAPOLITANO, 2007, p. 105). 
 
O  Tropicalismo  surge  em  Caetano  como  solução  para  esses  problemas  colocados  pela 
MPB  nacionalista.  Para  chegar  em  um  projeto  claro,  porém,  o  compositor  passou  por  outras 
experiências  marcantes  de  contato  com  outras  artes,  principalmente  o  cinema  e  a  poesia, 

representados, naquele momento, nas guras de Glauber Rocha e Oswald de Andrade.  

  Enquanto os músicos da Jovem Guarda pareceram absorver muitas in uências da sonoridade dos Beatles da “Primeira 
40

Fase”  (Primeiros  discos  até  o  LP  Help),  as  canções  que  Gil  apresenta  para  Caetano  (VELOSO,  1997)  são  todas  da 
Segunda  Fase  (depois  do  lançamento  do  disco  Rubber  Soul,  em  1965).  Ouvir  exemplos  na  playlist  (“Eleanor  Rigby”, 
“Tomorrow Never Knows” e “Strawberry Fields Forever”). 
 
59 

Ele  conta  que  ao  ver  Terra  em  Transe,  de  Glauber  Rocha,  teve  uma  espécie  de  insight 
(VELOSO,  1997).  As  alegorias  que  Rocha  propõe  como  forma  de  crítica  à  situação  brasileira 
naquele  período  e,  principalmente,  a  descrença  na  "energia  libertadora  do  povo",  que  era  a  base do 
pensamento de esquerda até então, pareceram profundamente radicais a Caetano e lhe direcionaram 
para  um  posicionamento  similar  na  música.  De  forma  similar,  a  obra  de  Oswald  de  Andrade 
causou-lhe  grande impacto, principalmente a montagem de “O Rei da Vela”, dirigida por José Celso 
Martinez  Corrêa.  Foi  ali  que  Caetano  teve  o  primeiro  contato  com  a  proposta  antropofágica  de 
Oswald, que se tornou base para os experimentos tropicalistas.  
A  antropofagia  propunha  assimilar  sob  espécie  brasileira  a  experiência  estrangeira 
(deglutí-la)  e  reinventá-la  em  termos  nossos,  com  qualidades  locais  ineludíveis  que  dariam  ao 
produto  resultante  um  caráter  autônomo  e  confeririam,  em  princípio,  a  possibilidade  de  passar  a 
funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação.  
 
Renovação  estética  das  artes  e  letras  brasileiras com a articulação de uma cultura nacional 
ao  mesmo  tempo original (i.e., enraizada nas culturas populares do Brasil) e moderna (i.e., 
com  base  nas  tendências  literárias  contemporâneas  internacionais).  A  síntese  da 
originalidade  nativa  e  da  técnica  cosmopolita  criaria,  como  propôs  Oswald  de 
Andrade,  uma  ‘poesia  de  exportação’,  capaz  de  causar  impacto  internacional.  O  Brasil 
deixaria  de  apenas  importar  e  passivamente  consumir  a  cultura  dos  países  dominantes; 
passaria a ser um exportador de cultura (DUNN, 2009, p. 29, grifos meus). 
 
Para  Caetano,  a  antropofagia  oswaldiana  era  o  oposto  de  "escolher  o  próprio  coquetel  de 
referências";  havia  muito  rigor  nas  escolhas (VELOSO, 2012). Caetano enxerga claramente em João 
Gilberto  a  atitude  antropofágica,  tanto  na  seleção  de  repertório  como  na  utilização de informações 
estéticas  estrangeiras (a absorção de elementos do cool jazz, por exemplo). “As culturas colonizadoras 
não  deveriam  ser  submissamente  imitadas  nem  xenofobicamente  rejeitadas,  mas  simplesmente 

‘devoradas’,  visando  elaborar  um  projeto  cultural  autônomo  no  Brasil”  (DUNN,  2009,  p.  36). 
Inspirada  pelas  propostas  de  Oswald,  a  Tropicália  propôs  uma  releitura  da  cultura  brasileira  que 
“criticava  as  premissas  nacionalistas  e  populistas”  comuns  ao  universo  da  canção  de  protesto 
brasileira  (DUNN,  2009,  p.  142).  Por  esse  posicionamento,  muitas  vezes  o  Tropicalismo  recebeu 
críticas  que  consideravam  o  movimento “anti-nacional” ou “imperialista”, justamente pela abertura 
a in uências externas.  

 
60 

Como  apontou Napolitano (2007), criou-se uma suposta dicotomia entre “vanguardistas” 
e  “nacionalistas”  —  os  primeiros  representados  pelos  artistas  da  Tropicália  (Caetano  Veloso, 
Gilberto  Gil,  Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa) e os segundos associados à MPB “tradicional” (Edu 

Lobo,  Geraldo  Vandré,  Chico  Buarque,  ainda  que  cada  um  desses  tivesse  uma  abordagem 
inteiramente  diferente).  Nessa  visão  generalizada,  os  nacionalistas  defendiam  “a  estilização 
técnico-musical  dos  materiais  que  acreditavam  ser  'populares',  bem  como  a  própria  tematização 
poética  do  ato  de  ‘cantar-para-o-povo’”,  enquanto  os  vanguardistas  almejavam  “a  revisão  dos 
códigos  musicais  e  poéticos  da  'moderna'  MPB  nacionalista,  tachada  de  conservadora  no  plano 
estético” (NAPOLITANO, 2007, p. 108). 

Um  dos  primeiros  trabalhos  acadêmicos  sobre  a  Tropicália  foi  feito  em 1979 pelo  lósofo 
Celso  Favaretto  (1995),  intitulado  Tropicália:  Alegoria,  Alegria.  Nesse  trabalho,  o  autor  analisa  a 
construção  da  estética  tropicalista  através  do  entendimento  de  seus  procedimentos,  entre  os  quais 
ele  menciona:  carnavalização,  alegoria  do  Brasil,  crítica  da  musicalidade  brasileira,  crítica  social, 
cafonice,  justaposição  do  arcaico  e  do  moderno,  união do lírico e do épico, paródia e transformação 
do mau gosto em símbolo de contestação através do deboche.  

Como  aponta  Roberto  Schwarz (2008), a justaposição de antigo e novo ocorre tanto entre 


conteúdo  e  técnica,  como  no  interior  do  conteúdo.  Como  exemplo  do  primeiro  procedimento, 
podemos  pensar  na  canção  “Alegria,  Alegria”,  cujo  ritmo  remete a uma marcha, gênero tradicional, 
mas  a  letra  traz  elementos  da  modernidade,  como  Coca-Cola,  Brigitte  Bardot  e  televisão  e,  ao 
mesmo  tempo,  a  instrumentação  da  banda  de  rock  Beat  Boys  estabelece  esse  diálogo  com  a  música 
americana.  Outro  exemplo  é  a  interpretação,  por  Caetano,  da  canção  “Coração  Materno”,  de 
Vicente  Celestino,  que  aparece  no  disco  Tropicália  ou  Panis et Circensis41. A letra melodramática de 

Celestino  ganha  outras  dimensões  de  interpretação  quando  é  justaposta  ao  arranjo  de  Rogério 
Duprat  e  o  canto  de  Caetano,  que  trazem  uma  camada  tragicômica  ao  primeiro  plano  da  canção. 
Quanto  à  justaposição  de  antigo  e  novo  no  interior  do  conteúdo,  esse  procedimento  ca  muito 
claro  no  plano  da  letra  da  canção  “Geléia  Geral”42,  de  Gilberto  Gil  e  Torquato  Neto,  que  une 
citações  de  Oswald  de  Andrade  (“a  alegria  é  a  prova  dos  nove”  frase  do  Manifesto  Antropófago), 

41
Ouvir as duas versões da canção na playlist. 
42
A canção não está disponível na plataforma Spotify, mas pode ser ouvida no Youtube:  
https://www.youtube.com/watch?v=dg594OQENew.  
 
61 

bumba-meu-boi,  as  escolas  de  samba  Mangueira  e  Portela,  “um  LP  de  Sinatra”  e  uma  paródia  do 
Hino à Bandeira Nacional (“Salve o lindo pendão dos seus olhos”).  
Essa  proposta  tropicalista  pode  ser  entendida  como  uma  forma  de  explicitação  das 

contradições  daquele  contexto  do  nal dos anos 1960. A visão de Schwarz sobre esse procedimento, 


porém, era crítica: 
 
Para  a  imagem  tropicalista,  é  essencial  que  a  justaposição  de  antigo  e  novo  —  seja  entre 
conteúdo  e  técnica,  seja  no  interior  do  conteúdo  —  componha  um  absurdo,  esteja  em 
forma  de  aberração,  a  que  se  referem  a  melancolia  e  o  humor  deste  estilo.  Noutras 
palavras,  para  obter  o  seu  efeito  artístico  e  crítico  o  Tropicalismo  trabalha  com  a 
conjunção  esdrúxula  de  arcaico  e  moderno  que  a  contra-revolução  cristalizou,  ou  por 
outra  ainda,  com  o  resultado  da  anterior  tentativas  fracassado  de  modernização nacional 
(SCHWARZ, 2008, p. 90). 
 
Uma  questão  diretamente  associada  a  esse  procedimento  de  justaposição  do  arcaico  e  do 
moderno  é  um  novo  nível  de  intertextualidade  que  a  canção  tropicalista  propõe.  Como  coloca 
Naves  (2010),  ocorre  uma  desconstrução  da  canção popular que existia até então, embora a posição 

crítica  seja  mantida,  mesmo  que  com  outras  perspectivas.  Ela  ressalta  que  "é  impossível  entender  a 
canção  tropicalista  somente  a  partir  dos  seus  elementos  poéticos-musicais,  pois  esta  recorre  a 
procedimentos  intertextuais  e  dialoga  “com  a  literatura,  as  artes  plásticas,  o  cinema  e  o  teatro" 
(NAVES,  2010,  p.  97).  Além  desse  diálogo  com  outras  artes,  os  diversos  elementos  internos  da 
música  estão  em  correspondência  estreita  —  melodia,  letra,  arranjos,  capas  de  discos,  cenários  das 
performances,  gurinos,  entre  outros.  Vejamos,  por  exemplo,  a  canção  “Enquanto  Seu  Lobo  Não 

Vem”43,  de  Caetano  Veloso.  O  título  isoladamente  já  traz  uma  referência, no caso, ao clássico conto 
de  fadas  Chapeuzinho  Vermelho,  e  o  Lobo  Mau  aparece  na canção como alegoria para um inimigo à 
espreita.  A  canção  traz,  entre outras citações, um trecho da canção “Dora”, de Dorival Caymmi (“os 
clarins  da  banda  militar”),  cantado  por  Gal  Costa.  Esse  trecho,  tirado  do  contexto  original,  faz 
alusão  à  repressão  militar  pela  qual  o  Brasil  passava no período. Diversos outros elementos sugerem 
essa  intertextualidade  na  canção,  contribuindo  para  que  esta  tenha  diversas  camadas  de 

entendimento44.  

43
Canção disponível na playlist do Spotify, assim como “Dora” de Dorival Caymmi, mencionada a seguir. 
  Conferir  o  interessante  artigo  de  Eduardo  Larson  (2005),  no  qual ele analisa todos os elementos de intertextualidade 
44

dessa canção.  
 
62 

A  paródia  é  outro  procedimento  de  intertextualidade  utilizado  nas  canções  tropicalistas, 


que  não  visava  necessariamente  desconstruir  e  denegar  a  tradição  da  MPB, mas ampliá-la para além 
dos  limites  convencionais  (NAPOLITANO,  2007).  A  composição  funcionava  como  paródia 
modernista da tradição: 
 
A  paródia  era  uma  forma  de  incorporar  materiais  culturais  das  tradições  nacionais 
populares  num  duplo  sentido:  a)  como  percepção  de  que  esses  materiais  eram  cada  vez 
mais  diluídos  na  modernização  industrial  e urbana, cuja dinâmica era dada mais no plano 
internacional  do  que  no  plano  nacional;  b)  Como  portadora  de  uma  nostalgia  da 
identidade  nacional  perdida,  ou  talvez  nunca  encontrada. Esse paradoxo, oscilando entre 
humor  e  a  melancolia,  podia  ser  visto  como  o  combustível  da crítica tropicalista contra 
as  guras de linguagem centrais da cultura engajada da esquerda nacionalista: a mimese e a 
hipérbole (NAPOLITANO, 2007, p. 132-133, grifo meu). 
 
Um exemplo do uso da paródia no Tropicalismo é a canção “A Voz do Morto”, de Caetano 
Veloso.  que  a  pesquisadora  Daniela  Vieira  dos  Santos  (2015)  analisa.  A  canção  faz  uma  paródia  de 
“A  Voz  do  Morro”,  de  Zé  Keti45,  e  “reavalia  a tradição da música popular brasileira, especialmente a 
tradição  do  samba,  propondo  outro  tipo  de  canção  ao  país”  (SANTOS,  2015,  p.  68).  Com  a  letra 
dessa canção, Caetano critica a posição de uma linha de esquerda nacionalista que buscava “salvar” o 
samba  e,  dessa  forma,  cristalizá-lo. Nesse sentido, evidencia-se o projeto tropicalista de Veloso, “para 

quem  os  problemas  da  nação  não  se  resolveriam  numa  perspectiva  nacional-popular”,  como  nota 
Santos (2015, p. 73). 
Diversos  autores  já  notaram  também  o  uso  de  alegorias  nas  canções  tropicalistas 
(FAVARETTO,  1995;  NAPOLITANO,  2001;  DUNN,  2009).  Como  aponta  este  último,  “na 
de nição  grega  clássica,  a  alegoria  denota  qualquer  representação  verbal  ou  visual  que  ‘diz  outra 
coisa’,  muitas  vezes  gerando  obliquamente  o  signi cado  por  meio  de  abstrações  gurativas” 
(DUNN, 2009, p. 109). Como o autor também aponta: 
 
A  utilização  da alegoria é frequentemente identi cada com expressões artísticas de derrota 
política ou desilusão. Enquanto o símbolo constrói imagens de totalidade orgânica, a rma 
[Walter]  Benjamin,  a  alegoria  representa  a  história  como  um  conjunto  heterogêneo  de 
fragmentos:  ‘as  alegorias  estão  para  o  reino  do  pensamento  como  as  ruínas  estão  para  o 
reino das coisas (DUNN, 2009, p. 109-110). 
 

  “A  Voz  do  Morto”  (em  gravações  de  Aracy  de  Almeida  e  de  Caetano  Veloso  com  os  Mutantes)  e “A Voz do Morro” 
45

(Zé Kéti) estão disponíveis na playlist. 


 
63 

Favaretto  (1995,  p.  147-148)  aponta  como  o  Tropicalismo  atua  no  plano  da  forma  da 
canção sem perder o cuidado com o conteúdo que acompanha: 
 
Ao  invés  de  expressar  a  realidade,  desmonta,  pela  crítica  da  linguagem  da  canção,  a  ideia 
mesma  de  realidade  brasileira,  e  a  de  tipos  característicos  —  mesmo  porque  nele  não  há 
sujeito.  O  Brasil  não  é  tratado  como  essência  mítica,  perdida  —  espécie  de  paraíso 
devastado.  Pela  alegorização  das  inconsistências  ideológicas,  e  pela  desmontagem  de  suas 
imagens-ruínas colecionadas no imaginário, estilhaça-se o Brasil. A prática que dessacraliza 
essas  imagens  coincide  com  a  que  critica  a  canção  tradicional:  a  atividade  tropicalista 
opera, portanto, na linguagem da canção, sem que com isso seja recalcado o político. 
 

Tomemos  como  exemplo  a  canção  “Tropicália”,  de  Caetano  Veloso46.  Na  letra  desta,  a 
cidade  de  Brasília  é  construída,  primeiramente,  como  símbolo utópico do progresso nacional, onde 
o  cantor  “inaugura  o  movimento”,  passando  a  alegoria  antiutópica  do  fracasso  de  uma 
modernidade  democrática  no  Brasil  (FAVARETTO, 1995). Quando canta que “o monumento é de 
papel  crepom  e  prata”,  o  autor  coloca  o  metal  valioso  ao  lado  do  material  descartável,  numa 
justaposição  de  contradições.  Procedimento  similar  aparece na menção da criança “sorridente, feia e 
morta”  e  os  urubus  que  “passeiam  a  tarde  inteira  entre  os  girassóis”.  A  cidade  utópica  passou  a 
conviver  com  populações  periféricas  que viviam em pobreza; além disso, o símbolo da modernidade 
de  JK  tornou-se  moradia  dos militares durante a ditadura. Contradições como essas são tematizadas 
nas canções tropicalistas. 

Outro  fator  importante  ao  pensarmos  no Tropicalismo é a relação que este estabelece com 


a  indústria  cultural.  Por  um  lado,  o  movimento  teve  contato  próximo  com  diversas  vanguardas 
artísticas:  a)  o  grupo  Música  Nova,  formado  por  Rogério  Duprat,  Damiano  Cozzella,  Júlio 
Medaglia  e  Gilberto Mendes, in uenciado pelas músicas de Stockhausen, Pierre Boulez e John Cage 
e que atuou em muitos arranjos de canções tropicalistas; b) os poetas concretos, que tiveram contato 
próximo  com  Caetano  e  cujos  procedimentos  in uenciaram  a  composição  de  canções  como  “Bat 

Macumba”,  “Acrilírico”  e  diversas faixas de discos posteriores47 (PERRONE, 1985); c) os artistas do 


Cinema  Novo,  que  são  sempre  mencionados  por  Caetano  entre  suas  in uências;  d)  a  companhia 
Teatro  Oficina,  de  Zé  Celso  Corrêa,  que  aproximou  o  cantor  da  obra  de  Oswald  com a montagem 
da  peça  “O Rei da Vela” e e) o movimento Neoconcretista nas artes visuais, com artistas como Hélio 

46
Ouvir a faixa na playlist. 
47
Ouvir essas faixas na playlist. 
 
64 

Oiticica  (autor  da  obra  intitulada  “Tropicália”  que  in uenciou  a  escolha  do  nome  do  movimento 
musical),  Rubens  Gerchman  (cujo  quadro  “Lindonéia”  inspirou  a  composição  tropicalista  de 
mesmo  nome)  e  Lygia  Clark  (cuja  obra  “Pedra  e  Ar”  in uenciou  a  composição  de  “If  You  Hold  a 

Stone”, de 1971).  
Porém,  como  aponta  Napolitano  (2001,  p.  187),  “ao  contrário  de  outras  áreas  da  cultura 
(e,  sobretudo,  da  vanguarda)  que  rejeitavam  o  gosto  médio,  o  Tropicalismo  acabou  por  assumi-lo 
como  parte dos seus procedimentos criativos básicos”. Guilherme Araujo Freire (2015), ao analisar a 
trajetória  de  Tom  Zé  no  movimento  tropicalista,  utiliza  o  termo  “vanguarda  popular”  como  o 
pesquisador José Adriano Fenerick o faz para se referir ao Tropicalismo, e aponta: 

 
Deste  modo,  o  autor  [Fenerick]  a rma  como  um  dos  mais  claros exemplos de vanguarda 
popular  no  Brasil  o  movimento  da  Tropicália,  que  gerou  intenso  debate  cultural  no 
período  e  fomentou  outras  iniciativas  experimentais  no  campo  da  música  popular  nas 
décadas  seguintes.  No  entanto,  talvez  pela  decisão  do  grupo  tropicalista por incorporar o 
elemento  pop  e  atuar  na  faixa  de  consumo  de  massa,  sem  abrir  mão  de  explorar  as 
ambiguidades  implícitas  entre  crítica  e  mercado,  o  Tropicalismo  questionou  desta 
maneira  a  própria  ideia  de  movimento.  Assim  como  destacou  Favaretto,  por  acolher  os 
produtos  da  indústria  cultural  e  os  justapor  à  tradição  da  canção  popular  brasileira,  a 
Tropicália  foi  contra  ideia  de ruptura, que sublinhou grande parte, senão a totalidade, das 
manifestações  “convencionais”  das  vanguardas,  algo  que  pode  ser  interpretado  como um 
aspecto paradoxal de sua atividade (FREIRE, 2015, p. 5-6). 
 
Os  artistas  da  Tropicália  assumiram  uma  estética  pop,  mesmo que com diversos elementos 
experimentais.  Como  bem  lembra  Christopher  Dunn  (2009,  p.  91),“essa  utilização do termo ‘pop’ 
estava  alinhada  com  a  utilização  de  ‘popular’  na  língua  inglesa  para  denotar  o  apelo  às  massas  e  a 

e cácia  comunicativa,  o  que  implicava  uma  mudança  signi cativa  em  relação  ao  signi cado  da 
palavra  ‘popular’  como  fora  empregada  no  Brasil  até  então”.  Nesse  apelo  às  massas, os tropicalistas 
incorporam  o  lucro  na  atividade  artística  e  colocam  o  aspecto  estético  e  o  aspecto  mercadoria  no 
mesmo  plano,  como  parte  de  um  processo  de  dessacralização  da  obra  artística  e  de  enfrentamento 
do  maniqueísmo  cultural  daquele  período  que,  quer  de  esquerda,  quer  de  direita,  condenava  o 
envolvimento  comercial  da  arte  (FAVARETTO,  1995).  Aspectos  da  cultura  brasileira  massi cada 

entraram  para  a  estética  tropicalista,  como  a  gura  do  apresentador  Chacrinha  ou  da  cantora 
Carmen Miranda. 

 
65 

Gostaria  de  destacar  a  relação  do  Tropicalismo  com  esta  última.  A  cantora,  além  de  ser 
citada  em  canções  como  “Tropicália”  e  “A Little More Blue”, de Caetano Veloso, é mencionada por 
este  em  diversos  momentos  (VELOSO,  1977;  1997;  2005)  como  musa  do  movimento,  cujos 

trejeitos  Caetano  constantemente  imitou  em  palco.  Gottardi  e  Carvalho  (2020)  identi cam  em 
Carmen  Miranda  um vestígio de performance art, termo que só se populariza nos anos 1960 e 1970. 
Refere-se  a  uma  expressão  artística  na  qual  o  corpo é suporte e geralmente diversas áreas entram em 
con uência — artes visuais, dança, teatro, música, etc.  
 
Ao  observar  imagens  e  o  corpo de Miranda é possível caracterizá-la como uma performer, 
pois  sua  presença  nos  parece  criar  uma  dimensão  cênica  entre  o  seu  corpo como obra do 
acontecimento  e  o  público.  De  expressiva presença no cenário nacional e internacional da 
década  de  1930,  o  corpo  de  Miranda  transcende  os  acessórios,  em  um  conjunto  vocal  e 
corporal (GOTTARDI; CARVALHO, 2020, p. 31). 
 
Não  só  de  Carmen  Miranda,  porém,  que  o  estilo  performático  tropicalista  recebe 
in uências.  Na  performance  art,  as  produções  poéticas  baseadas  na  ação  são  chamadas  de 
happenings,  ações  planejadas  pelos  autores  nas  quais  o  público  não  sabe  o  que  vai  acontecer  — 

sempre incluem um nível de imprevisibilidade. Em sua abordagem cartográ ca, Gottardi e Carvalho 
(2020)  perpassam  quatro  momentos  especí cos  da  arte  brasileira  nos  quais  as  ideias  de  novas 
relações  entre  artista,  obra  e  público  já  se  faziam  presentes:  Semana  de  Arte  Moderna  de  1922, 
Movimento  Antropofágico,  Movimento  Neoconcreto  —  três  momentos  que  in uenciaram 
diretamente a obra de Caetano —, além do próprio Tropicalismo.  
Em  livro  sobre  Caetano  Veloso,  Guilherme  Wisnik  (2005,  p.  67)  comenta  sobre  o 
Movimento Neoconcreto: 

 
A  inclusão  do  público  na  experiência  cognitiva do trabalho de arte é uma conquista desse 
mesmo  movimento.  No  Brasil,  o  deslocamento  do  foco  artístico  do  plano da obra para o 
do  receptor  foi  conduzido  principalmente  por  Lygia  Clark  e  Hélio  Oiticica,  com  suas 
obras  sensoriais  e  ambientais,  em  que  a  tensão  está  posta  tanto  no  compartilhamento  de 
'autoria'  com  o  espectador-atuante  quanto  na  demonstração  de  que  a  existência  da  obra 
de  arte  se  dá  unicamente  na  experiência  presente,  no  momento  em  que  ela  é  penetrada, 
manipulada ou vestida pelo público. 
 
Como  já  foi  mencionado  anteriormente,  Hélio  Oiticica  foi  o criador da obra “Tropicália” 
antes  mesmo  do movimento musical receber esse nome. A obra do artista performático tratava-se de 

 
66 

um  ambiente  labiríntico  no  qual  o  público  poderia  “penetrar” e experienciar a arte através de todos 


os  seus  sentidos.  Ele  também  foi  o  criador  dos  “Parangolés”,  uma  espécie  de  arte  vestível,  que 
“ultrapassa  a  linha  do  bidimensional  para  o  tridimensional  ao  propor  que  o  público  vista  suas 
estruturas,  convidando-o  a  usar  seus  corpos  junto  à  obra  de  arte”  (GOTTARDI;  CARVALHO, 
2020, p. 33), a qual Caetano incorporou em performances de 1968. 
 

 
Figura 01: Caetano Veloso vestindo um parangolé de Hélio Oiticica. 
Foto: Projeto Hélio Oiticica, 1968. 
 
Naquele  ano,  Caetano  Veloso,  Gilberto  Gil,  Os  Mutantes,  Tom  Zé  e  Gal  Costa 
participaram  novamente  de  festivais  televisivos  —  os  dois  primeiros no III Festival Internacional da 
Canção  da  Rede  Globo,  os  dois  últimos  no  IV  Festival  de  MPB  da  TV  Record,  e  os  Mutantes  em 
ambos48.  No  festival  da  Record,  os  tropicalistas  tiveram  bastante  sucesso  com  as  canções  “São  São 
Paulo,  Meu  Amor”,  “2001”  e  “Divino  Maravilhoso”, que alcançaram a 1ª, a 3ª e a 4ª colocação com 

  Além  disso,  o  Tropicalismo  esteve  presente  em  diversos  novos  lançamentos  em  1968,  entre  eles  os  discos  Caetano 
48

Veloso,  Gilberto  Gil,  Nara  Leão,  Tom  Zé  e  Os  Mutantes,  cada  um  de  seu  artista  homônimo,  e  A Banda Tropicalista do 
Duprat,  de  Rogério  Duprat.  O  principal  lançamento  do  movimento  naquele  ano,  porém,  foi  o  disco-manifesto 
Tropicália  ou  Panis  et  Circencis,  que,  capitaneado  por  Caetano  e  Gil,  uniu  o  trabalho  de  todos  estes  citados,  além  de 
outros  como  Gal  Costa,  Torquato  Neto  e  José  Carlos  Capinam.  Com  esse  disco,  aqueles  procedimentos  tropicalistas 
que apareceram em "Alegria, Alegria" e em "Domingo no Parque" ganharam espaço e se expandiram. 
 
67 

o  Júri  Especial.  Por  outro lado, as canções que Caetano e Gil levaram ao FIC da Globo, “É Proibido 


Proibir”  e  “Questão  de  Ordem”,  não  obtiveram  tanto  sucesso,  possivelmente  por  seu  caráter 
consideravelmente  mais  experimental  que  suas  obras  anteriores.  A  última,  canção  de  Gil,  foi 
desclassi cada, porém “É Proibido Proibir”49, de Caetano, chegou à nal.  
Na  primeira  apresentação  dessa  canção, durante a primeira fase do festival, houve mais um 
exemplo  da  performance  art  no  movimento  tropicalista.  Caetano  promoveu  um  happening  no 

festival,  levando  ao  palco  o  americano  Johnny Dandurand que, no meio da canção, começou cantar 


no  microfone  fazendo  grunhidos  e  barulhos.  Enquanto  isso,  Caetano  intercalava trechos da canção 
com  efeitos  sonoros  d’Os  Mutantes,  que  o  acompanhavam,  e  declamações  de  versos  de  Fernando 
Pessoa, enquanto mexia seus quadris sugerindo movimentos sexuais (VELOSO, 1997).  
Esse  happening  foi  recebido  de  forma  muito  negativa  pelo  público  do  teatro,  o  que  se 
repetiu  quando  Caetano  cantou  a  canção  na  nal  do  festival.  O  cantor  conta  que  a  maioria 

esmagadora  da  plateia  voltou-se  de  costas  ao  palco  quando  os  Mutantes  iniciaram  a  introdução  da 
música,  movimento  que  foi  prontamente  imitado  por  essa  banda, que passou a tocar de costas para 
o  público.  Caetano,  então,  iniciou  um discurso icônico para a plateia que, ao ouví-lo, voltou o olhar 
ao palco com vaias e gritos. Apresento trechos da fala do cantor aqui: 
 
Mas  é  isso  que  é  a  juventude  que  diz  que  quer  tomar  o  poder?  Vocês  tem  coragem  de 
aplaudir este ano uma música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado; a 
mesma  juventude  que  vai  sempre,  sempre,  matar  amanhã  o  velhote  inimigo  que  morreu 
ontem!  Vocês  não  estão  entendendo  nada,  nada,  nada,  absolutamente  nada.  (...)  Eu  hoje 
vim  dizer  aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura do festival, não com o medo 
que  o  senhor  Chico  de  Assis  pediu,  mas  com  a  coragem,  quem  teve  essa  coragem  de 
assumir  essa  estrutura  e  fazê-la  explodir  foi  Gilberto  Gil  e  fui  eu.  (...)  Gilberto  Gil  está 
comigo  pra  acabarmos  com  o  festival  e  com  toda  a  imbecilidade  que  reina  no  Brasil. 
Acabar  com  isso  tudo  de  uma  vez!  Nós  só  entramos  em  festival  pra  isso,  não  é  Gil?  Não 
ngimos,  não  ngimos  que  desconhecemos  o  que  seja  festival,  não.  Ninguém  nunca  me 
ouviu  falar  assim.  Sabe  como  é?  Nós,  eu  e  ele,  tivemos  a  coragem  de  entrar  em  todas  as 
estruturas  e  sair  de  todas,  e  vocês?  E  vocês?  Se  vocês  em  política  forem  como  são  em 
estética, estamos feitos! (VELOSO, “É Proibido Proibir - Ambiente de Festival”, 1968). 
 
Novamente,  Caetano  incorporou  o  happening  como  procedimento  das  performances 
tropicalistas.  Ainda  em  1968,  Veloso,  Gil,  Gal  Costa,  Tom  Zé  e  Os  Mutantes  conquistaram  um 

49
  As  cinco  faixas  estão  disponíveis  para  audição  na  playlist. A gravação da canção de Caetano é a que foi feita durante a 
nal do festival, na qual o cantor faz um discurso acalorado para a platéia. 
 
68 

espaço  televisivo  com  o  programa  Divino  Maravilhoso,  na  TV  Tupi.  Caetano  conta  alguns  dos 
acontecimentos do programa, que durou apenas dois meses: 
 
Fizemos  um  atrás  de  grades e dentro de gaiolas (o proscênio era tomado por uma grade de 
madeira  imitando  ferro;  outras  jaulas  menores,  dentro  da  grande  jaula  que  era  o  palco, 
guardavam  os  Mutantes,  Gal,  Tom  Zé  etc.;  Jorge  Ben  cantava  dentro  de  uma  jaula  que 
pendia  do  teto):  no  nal,  eu  vinha  do  fundo  do  palco  berrando  o  sucesso  de  Roberto 
Carlos  "Um  leão  está  solto  nas  ruas"  e  quebrava  as  grades,  convidando  todo  o  elenco  de 
participantes  a  colaborar  comigo  nessa  destruição.  A  plateia  de  jovens  identi cados  com 
nossa  onda  respondia  com  entusiasmo.  Num  outro  programa,  nos  distribuímos  um 
pouco  à  maneira  de  Cristo  e  os  apóstolos  na  Santa  Ceia  -  lembrando  o  Buñuel  de 
Viridiana  -,  mas  sobre a mesa havia apenas bananas. Cantávamos e comíamos bananas. Os 
Mutantes zeram o "enterro" do Tropicalismo (VELOSO, 1997, p. 342). 
 
Paralelamente,  nos  meses  nais  de  1968,  Caetano  fez  uma  série de apresentações na Boate 
Sucata,  no  Rio  de  Janeiro,  acompanhado  de  Gilberto  Gil  e  dos  Mutantes50.  Ele  conta  (VELOSO, 

1997)  que  a  série  de  shows  foi,  possivelmente,  a  mais  bem-sucedida  peça  do  Tropicalismo,  onde 
puderam  expor  seus  interesses  estéticos  ao  máximo  de  suas  capacidades.  Não  há  vídeos  dessas 
apresentações, porém, o cantor descreve alguns dados desses shows: 
 
Eu  usava  o  mesmo  traje  plástico  verde  e  negro  das  apresentações  do  TUCA  — creio que 
Gil  e  os  Mutantes  também  mantinham  o  gurino  —  e  levava às últimas consequências o 
comportamento  de  palco  esboçado  desde  “Alegria,  Alegria”,  estirando-me  deitado  no 
chão,  plantando  bananeira  e  enriquecendo  o  rebolado  cubano-baiano  do  “É  Proibido 
Proibir”. Mas o mais forte do espetáculo era o que Gil e os Mutantes faziam musicalmente 
com  o  material  escolhido.  (...)  O  que  ele  e  os  Mutantes  apresentavam  nesse  show tinha a 
soltura  e  a  independência  daquilo  que  se  impõe  como  fato  novo,  valendo  por  si,  sem  a 
ansiedade nem a letargia provincianas (VELOSO, 1997, p. 309-310). 
 
Nessas  apresentações,  novamente  o  contato  com  Hélio  Oiticica  do  “grupo  neoconcreto”. 

O  artista  esteve  presente  naquele evento com uma obra exposta perto do palco, a qual homenageava 


Cara  de  Cavalo,  alcunha  de  um  famoso  criminoso  da  época que fora morto a tiros pela polícia. Sob 
a  reprodução  da  fotogra a  de  seu  corpo,  havia  a  inscrição  “Seja  Marginal,  Seja  Herói”  (ver  gura 
abaixo).  Veloso  (1997)  conta  que  a  presença  dessa  obra,  por  diversos  mal-entendidos,  esteve 
relacionada à sua prisão e à de Gilberto Gil. 
 

  Algumas  gravações  desses  shows  foram  lançadas  em  um  compacto  duplo,  que  pode  ser  ouvido  neste  link: 
50

https://www.youtube.com/watch?v=Z83vUxUoa0w.  
 
69 

 
Figura 02: “Seja marginal, seja herói” - Obra-Poema de Hélio Oiticica. 
Foto: Projeto Hélio Oiticica, 1968. 
 
Com  todos  esses  exemplos,  ca  claro  que  o  aspecto  performático  foi  muito  importante 
para  o  Tropicalismo51.  Dialogando  com  movimentos  artísticos diversos, os tropicalistas colocaram a 
corporalidade  em  primeiro  plano  dentro  de  sua  estética:  gestos,  movimentos,  gurinos  e  cenários 
ganham  o  mesmo  peso  dos  elementos  estritamente  musicais,  como  melodia,  ritmo  e  harmonia.  “A 
exposição  destabuizada  do  corpo,  da  presença  carnal,  aludindo  a  uma  sexualidade  múltipla  e 

andrógina,  que  se  expõe  à  devoração  coletiva"  —  essa  é  a  característica  do  Tropicalismo  que 
Guilherme Wisnik (2005, p. 66) destaca como sua veia mais subversiva. 
Ficam  claras  as  diversas  dimensões  nas  quais  o  Tropicalismo  diferenciou-se  da  MPB 
anterior a ele. Se de um lado a produção cultural brasileira dos anos 60 buscava a "dimensão coral", o 
canto  em  uníssono  de  cantor  e  povo,  uma  frente  única  de  resistência,  os  tropicalistas  buscavam 
sublinhar  as  disparidades,  provocar  cisões;  trabalhavam  com  uma  multiplicidade  descontínua  de 
dicções  e  substituiam  o  compromisso  nacional  pela  articulação  do  local  com  o  global  (NAVES, 
2010).  Os  tropicalistas  não  deixaram  de  ter  uma  perspectiva  nacionalista,  no sentido de valorização 

51
  Foquei  nas  performances  de  Caetano  no  período  devido  ao  escopo  de  meu  trabalho.  Não  obstante,  todos  os 
tropicalistas  tiveram  abordagens  muito  interessantes  e  especí cas  no  que  diz  respeito  à  performance.  Para  maior 
aprofundamento  na  temática,  recomendo  o  seguinte  artigo,  que  aborda  a  corporalidade  de  Gal  Costa  nos  anos  1970: 
NOLETO,  Rafael  da  Silva.  “Eu  Sou  uma  Fruta  ‘Gogóia’,  Eu  Sou  Uma  Moça”:  Gal  Costa  e  o  Tropicalismo  no 
Feminino. Per Musi, Belo Horizonte, n.30, p.64-75, 2014. 
 
70 

de  material  musical  nacional.  Porém,  se  o  nacionalismo  de  Edu  Lobo,  por  exemplo,  “tentava 
desenvolver,  inicialmente,  uma  'estilização'  do material cultural 'arcaico' como base para encontrar a 
consciência  nacional  adormecida”,  o  Tropicalismo  queria  “explicitar  o  choque  do  'arcaico'  com  o 
'moderno'  como  de nidor  da  historicidade  brasileira"  (NAPOLITANO,  2007,  p. 117). A partir de 
suas  experimentações,  os  tropicalistas  buscaram  um  “som  universal”  que,  ao  mesmo  tempo,  por 
utilizar informações culturais muito locais, tornar-se-ia único.  
 
3.6 Os Anos 1970 
 
Diversos  autores  (ZAN,  1997;  TATIT,  2004;  NAPOLITANO,  2007)  identi cam  na 
Bossa  Nova  e  no  Tropicalismo  momentos-chave  para  o  entendimento  do  conceito  de  MPB.  A 
passagem  da  década  de  1960  para  a  de  1970  marcou  o  que  o  último  autor  chamou  de 

institucionalização  da  MPB,  processo  que  se  iniciou  em  1959  com  as  primeiras  gravações  de  Bossa 
Nova  e  teve  seu  fechamento  em  1968,  quando  o  Tropicalismo  encerra-se  como  movimento  na 
prisão  de  Caetano  Veloso  e  Gilberto  Gil52.  Há,  porém,  uma  diferença  fundamental  entre  os  dois 
movimentos: 
 
Essa  diferença  diz  respeito  à  forma  diferenciada  pela  qual ambos incorporam o problema 
da tradição e da modernidade: na bossa nova 'modernidade' e 'progresso' (social, cultural e 
econômico)  parecem  se  confundir,  apontando  para  a  mesma  utopia  histórica.  No 
tropicalismo  os  procedimentos  das  vanguardas  modernas  são  utilizados  justamente  para 
separar, criticamente, as duas categorias (NAPOLITANO, 2007, p. 139). 
 
A  institucionalização  da  MPB,  como  aponta  Napolitano  (2007),  ocorre  devido  ao 
processo  de  rede nição  sociocultural  pelo  qual  esse  “gênero”  passou  entre  os  dois  movimentos 
supracitados,  o  qual  associou  a  MPB  a  uma cultura de protesto e resistência que, ao mesmo tempo, 
gerava  produtos  altamente  valorizados  do  ponto  de  vista  econômico  e  sociocultural.  Enquanto 
“instituição”,  a  MPB  “desenvolveu  meios de difusão próprios, critérios especí cos de julgamento de 
valor,  um  panteão  de  gênios  criadores  e  um  cânon  próprio  de  canções  paradigmáticas" 

  Essa  é  a  visão  que  Veloso  (1997)  apresenta,  embora  possa-se  argumentar  que  os  procedimentos  tropicalistas 
52

permaneceram nos dois compositores (e nos outros envolvidos no movimento) ao longo de suas carreiras. 
 
71 

(NAPOLITANO,  2007,  p.  140).  As  referências  estéticas  vinham  de  diversas  vertentes,  as  quais 
tiveram a MPB como ponto de convergência: 
 
(...)  do  “rigor  técnico”  da  Bossa  Nova,  das  “utopias”  do  nacional-popular  (canção 
engajada,  samba  participante),  das  vanguardas  formalistas  (Musica  Nova,  Tropicalismo), 
da  tradição  musical  marcada  pelos  gêneros  de  consumo  popular  (samba,  baião,  marcha, 
etc).  Estas  vertentes  acabaram  por  formar  um  conjunto  de  criação  tenso  e  dinâmico.  A 
sigla  MPB  não  só  indicava  um  gênero  musical  especí co,  mas  um  conjunto  de  valores 
estéticos  e  ideológicos  e  uma  hierarquia  de  apreciação  e  julgamento  exível,  porém 
reconhecível (NAPOLITANO, 2001, p. 268). 
 

Em  1968,  a  opção  pela  guerrilha  já  era  uma  realidade  política  de  diversos  grupos  de 
resistência  à  Ditadura  Militar.  Na  música,  começam  a  surgir  as  críticas,  feitas  por  alas  da  esquerda, 
principalmente  aquelas  dos  movimentos  estudantis,  às  letras  que  tematizavam  o  "dia  que virá"53. O 
compositor  Geraldo  Vandré  pareceu  absorver  essas críticas, que se re etiram em músicas como “Pra 
Não Dizer que Não Falei das Flores (Caminhando)”, que traz versos como “Vem vamos embora que 
esperar não é saber/Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, trazendo a atitude de protesto para 
o  presente  e  questionando  os  que  acreditam  “nas  ores  vencendo  o  canhão”.  Porém,  letras  como 
essa  de  Vandré, que “convocavam” à luta contra o governo, perderam espaço com a emissão do AI-5, 
em  dezembro  de  1968, que acirrou a censura e deu poder aos militares de cortar direitos políticos de 
qualquer  cidadão  considerado  “subversivo”.  Os  compositores  da  MPB,  nos  anos  1970, atuaram de 
formas distintas em relação a esse novo contexto que a eles se apresentava, o que veremos a seguir. 
 
 
O  “brasilianista”  americano  Christopher  Dunn  (2009)  nota  que  já no Festival de MPB da 
TV  Record  era  visível  a  extensão  da  intervenção  tropicalista  na  cultura  nacional.  Naquele  evento, 

participaram  não  só  membros  do  grupo  tropicalista  original,  como  Gal Costa, Os Mutantes e Tom 
Zé,  como  também  diversos  novos  grupos inspirados pelo movimento. Para o autor, “os tropicalistas 

53
  Ouvir  os exemplos “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas” (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes) e “A Estrada e o Violeiro”, 
que  trazem  essa  temática  em  versos  como  “A  tristeza  que  a  gente  tem/  Qualquer  dia  vai  se  acabar/  Todos  vão  sorrir/ 
Voltou  a  esperança/  É  o  povo  que  dança/  Contente  da vida/ Feliz a cantar” ou “Eu também quero um dia poder levar/ 
Toda gente que virá/ Caminhando procurando/ Na certeza de encontrar”. Ver a playlist:  
https://open.spotify.com/playlist/0KsF0een0CR5q1clpxsdKK?si=i8zgvgyhS2KZkYtG9cwsMw.  
 
 
 
72 

tinham  transformado  o  'campo  da  produção  cultural',  mais  especi camente  o  campo  da  música 
popular  brasileira"  (DUNN,  2009,  p.  163).  Dunn  também  considera  esse  como  o  último  festival 
televisivo  de  grande  impacto,  marcando  o  “início  do  m”  desse  formato.  Alguns  fatores 
contribuíram  para  isso,  dentre  os  quais  ele  menciona: a) o fato de que as canções agora deveriam ser 
submetidas  à  interferência  dos  censores  do  governo;  b)  a  ausência,  devido  ao  exílio,  de  muitos 
músicos  que  haviam  obtido  sucesso  em  festivais  anteriores,  como  Caetano  Veloso,  Gilberto  Gil  e 
Chico  Buarque;  c)  a  estrutura  de  concurso  musical,  que  parecia  cada  vez  mais  obsoleta  a  alguns 
artistas  e  críticos.  De  fato,  sobre  essa  última  questão, Dunn (2009, p. 167) cita uma fala de Gilberto 
Gil,  que  observava:  “Não  gosto  dos  festivais.  Preferiria  que  existisse  uma  coisa  mais  livre  no  Brasil, 
uma  grande  feira  de  música,  num lugar grande… ar livre, cada um cantando o que quisesse — como 
os  festivais  de  jazz  de  Newport  nos  Estados  Unidos”.  A  visão de Gil propunha aproximações com a 
contracultura americana, a qual foi incorporada, em diversos aspectos, na estética tropicalista. 
A  ideia  de  contracultura  surge  em  São  Francisco,  nos  Estados  Unidos,  por  volta  de  1967. 
De  acordo  com  Paulo  Henriques  Britto  (2003),  não  se desenvolve como um movimento uni cado, 
por  haverem  interesses  muitos  distintos.  Apesar  disso,  alguns  temas  principais  aproximavam  os 

jovens  da  contracultura:  as  discussões  sobre  uso  de  drogas,  liberdade  sexual  e  crítica  ao  sistema 
político  americano,  principalmente  relacionada à Guerra do Vietnã. “Aderir a uma comuna budista, 
vegetariana  e  paci sta,  tomar  drogas  ou  entrar  para  um  grupo  que  utilizava  táticas  de  guerrilha 
urbana  eram  maneiras  alternativas  de  rejeitar  um  sistema  que  enviava  jovens  para  lutar  uma  guerra 
inexplicável na Indochina” (BRITTO, 2003, p. 192).  
A  Tropicália  já  sugeria  alguns  elementos  da  contracultura,  entre  eles  uma  preocupação 
com  o  “aqui  e  agora”  e  a  necessidade  de  revolução  do  corpo  e  do  comportamento,  o  que  aparece 

com  bastante  destaque,  como  já  vimos,  nas  performances  tropicalistas.  Como  Heloísa  Buarque  de 
Hollanda  (2004)  ressalta,  o  exílio  de  Caetano  e  Gil  ocorreu  justamente  devido  a  esse  aspecto  da 
crítica comportamental e do “deboche diante das atitudes ‘bem comportadas’”.  
 
São  então  esses  elementos  de  crítica  sugeridos  pelo  Tropicalismo  que serão intensi cados 
nos  anos  seguintes,  onde as preocupações com a modernidade e a descon ança em relação 
à  esquerda  ortodoxa  e  à  direita  são  aprofundadas,  dando  lugar  a  uma  radicalização  da 
crítica  comportamental  e  a  um  novo  tipo  de  atuação,  já  presente  na  Tropicália,  que 
privilegia  a  intervenção  múltipla,  'guerrilheira',  diversi cada  e  de  tom  anarquista  nos 
canais do sistema (HOLLANDA, 2004, p. 71). 

 
73 

 
Nos  anos  1970,  no  período  que  diversos  autores  chamam  de  pós-tropicalista,  ocorre uma 
intensi cação  dos  elementos  da  contracultura  no  Brasil,  que  teve diversas características análogas às 

da  original  californiana,  entre  elas  “as  posturas  em  relação à política, sexualidade e drogas, as roupas 


e  cabelos,  o  misticismo  oriental,  e  também  a  importância  do  rock  como  linguagem  musical” 
(BRITTO,  2003,  p.  192).  É  desse  período  o  surgimento  de  diversos  veículos  de  imprensa 
alternativa,  como  o  Pasquim  (para  o  qual  Caetano  escreveu  diversos  artigos  enquanto  estava  em 
Londres),  Flor  do  Mal,  Bondinho,  A  Pomba,  entre outros. São jornais que “deixam de buscar o tom 
'objetivo'  e  a  suposta  neutralidade  da  linguagem  da  imprensa  tradicional  em  favor  de  um  discurso 

que  não  dissimula  sua  parcialidade  e  leva  em  conta  abertamente  a  impressão  e  a  subjetividade" 
(HOLLANDA,  2004,  p.  72).  Esses  jornais  ajudaram  a  divulgar  pensamentos  contraculturais  no 
Brasil. 
Como  visto,  a  ideologia  contracultural  norte-americana  continha  uma  proposta  utópica 
de  sociedade,  utilizava  as  experimentações  no  rock  para  representar  sonoramente  a  psicodelia 
provinda  do  uso  de  alucinógenos  e  tematizava,  nas  letras,  a  liberdade  individual  em  todos  os 

âmbitos  da  vida.  No  Brasil,  porém,  a  contracultura não seguiu, necessariamente, esses temas. Britto 


(2003,  p.  192) aponta que aqui “o som das guitarras serviu de pano de fundo para letras que falavam 
de  desespero,  fracasso,  solidão  e loucura. Nada poderia ser mais distante do ‘verão do amor’ de 1967 
que  a  ressaca  instalada  do  Brasil  após  a  alegria  esfuziante  do  momento  tropicalista”.  É  um  período 
no qual a temática noturna faz-se bastante presente nas canções da MPB e do rock.  
 
O  absurdo  cerceamento  da  liberdade  de  manifestação  de pensamento no período acabou 
por  atingir,  óbvio,  o  comportamento,  a  atitude.  E  como  a  palavra  cantada vem entre nós 
sempre  banhada  pela  vivência  cotidiana,  entre  os  cancionistas  da  ‘instituição  MPB’ 
(jovens  a  desempenharem  o  papel  de  intelectuais,  ainda  mais  portadores  em  geral  da 
vivência  politizada  nas  efervescentes  discussões  da  década  anterior)  e  seus  imediatos 
seguidores  surge  a  abordagem  da  derrota,  da  loucura,  do fracasso, da solidão exasperante, 
da noite, e, claro, da morte (BOZZETTI, 2007, p. 137). 
 

O  que  Heloísa  Buarque  de  Hollanda  (2004)  também  ressalta  é  o  fato  de  que  a 
contracultura  veio  acompanhada  de  um  progressivo  desinteresse  pela  política,  que  era  tema central 
das  canções  dos anos 1960. Ao mesmo tempo, ela aponta que, se por um lado as leituras marxistas já 
não  interessavam  uma  parte  da  juventude  na  nova  década,  por  outro  é  possível  visualizar  uma 
 
74 

dimensão  política  no  comportamento  desviante  desses  grupos.  O  que  ocorre,  a  seu  ver,  é  uma 
“mudança  de  foco  nas  preocupações,  uma  alteração  na  direção  dos  interesses,  de  certa  forma,  um 
remapeamento da realidade” (HOLLANDA, 2004, p. 75).  

Ainda  assim,  essa  postura  despolitizada  é  lida  muitas  vezes  como  “anti-intelectualista”,  o 
que  se  traduz  em  uma  “rarefação  do  discurso”  nas  letras das canções. Por um lado, argumenta-se de 
forma  corrente  que essa postura está ligada à censura. De fato, Gilberto Vasconcellos (1977, p. 39) já 
apontava,  à  época,  que  a  presença  da  censura  “não  age  apenas  enquanto  ingerência  exterior  à 
produção  musical;  ela  interfere na sintaxe mesma do discurso da canção". Bozzetti (2007, p. 137) vai 
além dessa explicação: 
 
Com  o  m  do  tropicalismo  e  o  silêncio  imposto  pelo  exílio  a  Caetano  e  Gil,  não  havia 
mais  ‘como  falar’;  mas  isso,  creio  que  é  apenas  metade  da  verdade:  a  outra  é  que  foi  tão 
avassaladora  a  seqüência  desnorteadora  do  aluvião  de  propostas  do  tropicalismo  e  tão 
frontalmente se chocou tal seqüência com os hábitos e modelos ‘explicativos’ anteriores da 
intelectualidade  brasileira,  que  a  própria  atividade  intelectual,  re exiva,  foi  posta  em 
dúvida (BOZZETTI, 2007, p. 137). 
 
Britto  (2003)  discorre  sobre  diversas  características  dessa  canção  pós-tropicalista associada 
à  contracultura.  Ele  menciona:  a)  atmosfera  de  medo  (presente  em  canções  como  “Para  Nóia”  de 
Raul  Seixas  e  “Filme  de  Terror”  de  Sérgio  Sampaio;  b)  a  tematização  dos  outsiders,  os 

marginalizados,  como  em  “Nostalgia”,  de  Caetano  Veloso,  “Let’s  Play  That”  de  Jards  Macalé  e 
“Charles  Anjo  45”  de  Jorge  Ben;  c)  a  ausência  e  o  exílio,  em  canções  como  “A  Little  More  Blue”  e 
“London,  London”,  de  Caetano, além de “Cantor de Mambo”, dos Mutantes; d) a solidão e o vazio 
existencial  (como  nas  canções  “Caminhante  Noturno”,  dos  Mutantes,  “Movimento  dos Barcos” e 
“Hotel  das  Estrelas”  de  Jards  Macalé  e  “One  o’clock  last  morning,  20th  april,  1970”  de  Gilberto 
Gil);  e)  o  m  da  utopia  e  do  sonho,  como  nas  canções  “O  sonho  acabou”,  de  Gil, e “San Vicente”, 

“Um  Gosto  de  Sol”  e  “Pelo  Amor  de  Deus”,  presentes  no  disco  Clube  da  Esquina,  de  Milton 
Nascimento  e  Lô  Borges;  f)  a  loucura,  como  nas  canções  “Sociedade  Alternativa”  de  Raul  Seixas, 
“Pobre  Meu  Pai”,  de  Sérgio  Sampaio  e  “Balada  do  Louco”  dos Mutantes; e g) exaustão, desânimo e 
incerteza,  presente  em  canções  como  “Vapor  Barato”  de  Jards  Macalé  e  Waly  Salomão,  e  “Como 
Dois e Dois” de Caetano Veloso54.  
54
Todas essas faixas estão disponíveis para audição na playlist supracitada:  
https://open.spotify.com/playlist/0KsF0een0CR5q1clpxsdKK?si=i8zgvgyhS2KZkYtG9cwsMw.  
 
75 

Fica  claro  que  as  temáticas  elencadas  por  Britto  estão  todas  relacionadas  a  algum  tipo  de 
negatividade. Bozzetti (2007, p. 138-139) faz uma colocação importante sobre esses temas: 
 
Acontece  que  essa  negatividade  não  teria  como  se  sustentar  por  muito  tempo na série da 
canção  mediatizada,  uma  vez  que  justo  nesses anos a indústria fonográ ca se organiza pra 
valer  em  moldes  propriamente  capitalistas.  Esse  dilaceramento  terá  importantes 
conseqüências  para  se  entender  os  caminhos  pós-tropicalistas  dos  anos  70 até nossos dias 
(BOZZETTI, 2007, p. 138-139). 
 
O  autor  aponta  três  categorias  principais  de  canção  na  MPB  nos  anos  1970,  as  quais  são 
estabelecidas  a  partir  de  suas  relações  com  o  contexto  de  censura:  canções  de  confronto,  canções  de 

esgar  e  canções  de  fresta  (termo  que  ele  empresta  de  Gilberto  Vasconcellos).  As  canções  de 
confronto  tinham  como característica, como coloca Bozzetti (2007, p. 140), a “pletora” do discurso; 
a  princípio  não  incorporavam  elementos  da  contracultura, mas sim tinham a “crença persistente no 
‘poder  revolucionário  da  cultura’”;  além disso, os compositores desse tipo de canção eram, em geral, 
aqueles  que  estiveram  associados  à  canção  de  protesto  nos  anos  1960.  As  canções  de  confronto 
serviram  para  “desnudar  o  arbítrio  e  a  violência do tempo, mas seu efeito mais imediato foi silenciar 
os cancionistas”, como aponta Bozzetti, devido à forte censura.  
 
Se  a  explicitação  do  confronto  fosse  muito  evidente,  em  geral  caía  fácil  nas  malhas  da 
censura,  sendo  raras  as  exceções  (“Pesadelo”, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, 
gravada  pelo  MPB-4,  por  exemplo,  escapou),  podando  praticamente  toda  a  safra  do  que 
seriam os primeiros LPs de Gonzaguinha e de Sirlan55 (BOZZETTI, 2007, p. 141). 
 
Aquelas  canções  associadas  à  contracultura que tematizavam a solidão, a paranóia, o medo 
e  a  noite  e  possuíam  um “discurso rarefeito” são as que Bozzetti chama de canções de esgar. O autor 
inclui  nessa  categoria os discos Ou Não, de Walter Franco, Araçá Azul e o disco de 1969 de Caetano, 
os  LPs  de  Jards  Macalé,  Milagre  dos  Peixes  de  Milton  Nascimento  e  Todos  os  Olhos  e  Estudando  o 
Samba, de Tom Zé56. Na relação entre melodia e texto dessas composições 

55
  A  faixa  “Pesadelo”,  presente  na  playlist,  contém  versos  como  “Quando o muro separa uma ponte une/ Se a vingança 
encara o remorso pune” e “Você corta um verso, eu escrevo outro/ Você me prende vivo, eu escapo morto”.  
56
  Todos  esses  discos  com  grande  carga  experimental  e  muitos deles associados aos compositores que receberam o título 
de  “malditos”,  como  Jards  Macalé,  Walter  Franco  e  Tom  Zé,  por  suas  experimentações  pouco  acolhidas  pela  indústria 
fonográ ca.  Ouvir  faixas  como  “Cabeça”,  “De  Conversa/  Cravo  e  Canela”,  “Cadê”  e  “Um  oh! E um ah!” presentes na 
playlist.  
 
76 

o  perene  cede  ao  precário,  a  continuidade  melódica  choca-se  com  a  descontinuidade  da 
fala  e  mesmo  esta  não  se  dá  exatamente  como  tal,  mas  namora o grito, o silêncio, o esgar. 
Isso se dá às vezes num verdadeiro embate interno, como se o que ali se dizia só pudesse ser 
dito  e  só  devesse  ser  percebido  em  frangalhos,  como  se  a  di culdade  de  dizer  se 
incorporasse  ao  próprio  tecido  da  canção,  como  se  aquilo  que  dissesse,  sendo  tão 
fundamental  e  óbvio,  tivesse  que  ser oculto, atirado à face de quem “não está entendendo 
nada”.  (...)  É  como  se  a  “canção  de  esgar”  buscasse  ostensiva  e  agressivamente,  em 
quase  desdém  pelo  receptor,  o  “feio”:  a  lírica  lidando  com  sua  negatividade 
(BOZZETTI, 2007, p. 138, grifo meu). 
 

O  autor  ainda  nota  alguns  momentos  de  aproximação  entre  as  canções  de  confronto  e  as 
de esgar, citando músicas como “Calabouço”, de Sérgio Ricardo, e “Cálice”, de Gilberto Gil e Chico 
Buarque57.  Em  ambas,  há  uma  tematização  da  “urgência  de  dizer  a  verdade”,  característica  do 
confronto, e a “impotência do dizer”, que se transforma em esgar.  
Quanto  à  última  categoria,  a  da  canção  de  fresta,  essa  fazia  uso  de  uma  certa 
“malandragem”,  a  “linguagem  da  fresta”  que  permitia  que  os  compositores  transmitissem 
mensagens  de  protesto  de  forma  codi cada.  Para  isso,  diversos  recursos  eram  acionados,  como  “a 
elipse,  a  metáfora,  a  alegoria,  con gurando  muitas  vezes  um todo paródico” (BOZZETTI, 2007, p. 
143).  Esse  tipo  de  composição  surge  quando  as  canções  de  confronto  passam  a  enfrentar 

di culdades,  de  forma  sistemática,  de  entrada  no  mercado;  a  solução  encontrada  por  diversos 
compositores  foi  a  escrita  oblíqua  como  forma  de  ludibriar  os  censores  e  fazer  suas  músicas 
chegarem  ao  público.  Chico  Buarque,  por  exemplo,  fez  uso  da  “linguagem  da  fresta”  na  canção 
“Apesar  de  Você”,  que  passou  pela  censura  e chegou a vender mais de 100 mil cópias, quando então 
veio  a  ordem  de  proibição  do  governo,  que  ordenou  o  recolhimento  de  todos  os  compactos 
impressos  dessa  faixa.  Canções  de  confronto,  esgar  ou  fresta  —  independente  da  abordagem 
adotada  por  cada  compositor,  a  MPB  teve  que lidar com o olhar de suspeita sob o qual foi colocada 

nos anos 1970. 


 
 
Nesse  novo  contexto  rmado,  o  LP  ganhou  ainda  mais  força  em  comparação  com  os 
compactos.  Marcos  Napolitano  (2001, p. 62) coloca que “até os anos 50, o disco/fonograma era um 
subproduto  da  atividade  dos  músicos.  A  partir  dos  anos  70,  o  long  playing  de  12  polegadas,  de  33 

1/3  rotações  por  minuto,  determinou  o  mercado”.  Foi  uma  década  marcada  pela  força  dos  discos 
57
Faixas presentes na playlist. 
 
77 

como  unidade:  em  cada  novo  lançamento,  os  artistas  da  MPB  buscavam  apresentar  uma 
sonoridade,  que  se  estabelecia  no  contexto  do  álbum.  Para  o  autor,  a  crescente  preferência pelo LP 
“representou  a  personalização  da criação e performance musical, reforçada pela Bossa Nova, e ligada 

à  necessidade  de  rotular  as  músicas  na  forma  de  “movimentos  culturais”,  visando  uma  realização 
mais  segura  com  o  público  consumidor”  (NAPOLITANO,  2001, p. 63). Se nos antigos compactos 
de  78rpm  a  única  informação  era  a  de  qual  gênero  a  canção  pertencia,  nos  long-plays  era  preciso 
associar  a  gravação  a  um  compositor  que,  por  sua  vez,  estava  vinculado  a  um  movimento  cultural 
especí co.  Além  disso,  os  discos  de  33  e  ½  rpm  acompanhavam  diversos  elementos  extramusicais 
que ganharam importância: 

 
Capa,  encarte,  textos  de  acompanhamento,  estratégia  de  lançamento,  roupa  e  penteado 
dos  músicos:  tudo  passou  a  ser  relevante.  As  capas  em  particular,  com  seu  formato 
quadrado  de  30  por  30  centímetros,  foram  um  campo  especialmente  favorável  a  uma 
diagramação  criativa.  O  disco  já  não  era  mais  um  som:  era  um  mundo  para  o  qual 
concorriam  diferentes  linguagens,  um  sistema  de códigos, um modelo de vida (MAMMÍ, 
2014, p. 8). 
 

Na  década  de  1960,  Chico  Buarque  e  Geraldo  Vandré  foram  colocados,  por  parte  da 
mídia,  na  posição  de  representantes  da  canção  engajada  e  de  uma  retomada  de  gêneros 
convencionais  de  raiz  (Chico  trazendo  a  marcha  e  o samba de Noel Rosa, e Vandré aproximando-se 
da  toada  e  da  guarânia).  Porém,  enquanto  o  primeiro  era pintado como um rapaz tímido e sensível, 
o  segundo  era  lido  como  o  cantador  agressivo  e  indignado,  como  aponta  Napolitano  (2007).  Nos 
anos  1970,  Chico,  ao  contrário  de  Vandré,  teve  maior  exibilidade  temática  e  musical  em  seu 
repertório  para  continuar  em  destaque  na  indústria  musical,  não  se  atendo  apenas  à  temática  de 
protesto.  Essa  vertente,  segundo  Napolitano  (2007,  p.  127)  “não chegou a se con rmar como parte 
do  setor  mais  dinâmico  do  mercado  fonográ co”,  uma  vez  que  a  MPB  dos  anos  1970  “mesclava 

tradição  lírica  com  protesto  sutil,  o  que  a  afastava  da  tradição  dos  hinos  revolucionários  mais 
explícitos,  marca  mais  forte  na  nueva  canción  latino-americana"58.  Aquela  divisão  entre 
engajamento  e  alienação,  no meio artístico, “não era mais capaz de descrever o novo campo de forças 
que  se  desenhava"  (WISNIK,  2005,  p.  80).  Este  autor  ainda  comenta  a  questão  do  m dos festivais 
televisivos e como isso re etiu uma mudança no cenário artístico: 

  Ouvir,  por  exemplo,  canções  de  protesto  icônicas  como  “Hermano  Dáme  Tu  Mano”,  de  Mercedes  Sosa,  e 
58

“Mani esto” de Victor Jara, ambas de 1973. 


 
78 

 
O  declínio  dos  festivais  nos  anos  70  acompanha  uma  situação  em  que  os  grandes 
acontecimentos  musicais  já  não  se  dão mais na arena de eventos excepcionais e explosivos, 
onde  a  canção  procurava  explicitar  formal  e  tematicamente  a  sua  função  crítica.  Bem 
sedimentada  no  solo  da  indústria  de  consumo,  que  ampli cou  signi cativamente  o  seu 
alcance,  a  canção  se  distende  e  penetra  no  tecido  social  em  registros  novos,  menos 
evidentes  porém  mais  pregnantes  do  que  na  'era  dos  festivais'. Há, nessa passagem, como 
diz  José  Miguel  Wisnik,  uma  'superação mitopoética dos antagonismos' (WISNIK, 2005, 
p. 83). 
 

Se  nos  anos 1960 a televisão já foi o veículo que atuou como fator de crescimento da venda 


de  discos  através  dos  festivais,  nos  anos  1970  ela  ocupou  papel  similar,  porém  agora  através  das 
trilhas  sonoras  de  novelas,  as  quais  ajudaram  a  revelar  novos nomes e consagrar antigos. Nessa nova 
década,  algumas  guras  permaneceram  constantemente  em  destaque.  Elis  Regina,  que  não 
participou  de  forma  tão  ativa  nos  últimos  festivais  dos  anos  1960,  ressurge  com  sonoridade 
renovada.  A  cantora  que,  em  1967,  participou  da  Passeata  Contra  a  Guitarra  Elétrica,  nos  anos 
1970  agregou  em  sua  música  alguns  dos  novos  paradigmas  da  MPB  pós-Tropicalismo,  incluindo 
também  o  instrumento  citado.  Ela  ainda  se  associa  a  César  Camargo  Mariano,  com  o  qual  se 
aproxima  de  outras  vertentes  do  jazz  e inicia sua investida em uma carreira internacional. A cantora 
também,  nesse  período,  ajudou  a  lançar  diversos  compositores  novos  ao  gravar  suas  canções,  entre 

eles destacam-se Ivan Lins e os parceiros de composição João Bosco e Aldir Blanc. 
Gal  Costa,  após a repercussão de sua apresentação da canção “Divino, Maravilhoso” no IV 
Festival  de  MPB  da  Record,  de  1968,  gravou,  em  1969,  dois  discos  que  apostaram  na  sonoridade 
tropicalista  e  no  psicodelismo  associado  a esta. Em 1971, realizou no Brasil o show Fa-Tal, que  cou 
registrado  no  disco  Fa-tal/Gal  a  Todo  Vapor.  Neste,  um  dos  primeiros  discos  duplos  da  história  da 
MPB,  a  cantora  adentra  a  sonoridade  do  rock  com  performances  explosivas  e  catárticas,  cantando 

canções de Jards Macalé, Waly Salomão, Caetano Veloso e Jorge Ben, todas associadas àquele cenário 
contracultural  mencionado  anteriormente.  Maria  Bethânia,  que  mesmo  sendo  irmã  de  Caetano 
nunca  realmente  se  associou  ao  Tropicalismo,  desenvolveu  uma  carreira  de  bastante  sucesso  nos 
anos  1970,  tornando-se  uma  das  maiores  vendedoras  de  discos  no  Brasil  de  todos  os  tempos.  Suas 
apresentações  tinham  grande  caráter  teatral,  incorporando  também declamações de poesias entre as 
canções e grande peso cênico. 

 
79 

Chico  Buarque,  que  fora  consagrado  nos  festivais  dos  anos  1960,  autoexilou-se  na  Itália, 
em  1969,  frente  às  ameaças  da  Ditadura  Militar.  No  retorno  ao  Brasil,  apresentou,  por  um  lado, 
repertório  crítico  ao  regime  e  às  condições  sociais  no  país  e,  por  outro,  canções  de  cunho  bastante 
intimista,  o  que  aparece  com  expressão  no  renomado  disco  Construção,  de  1971.  Este  inclui  faixas 
como  “Deus  Lhe  Pague”  e  “Cordão”,  que  se  adequam  à  primeira categoria, e “Valsinha” e “Minha 
História”,  mais  condizentes  com  a  segunda.  Sua  sonoridade  ainda  é  fortemente  calcada  no  samba, 

embora  agregue  também  cada  vez  mais  elementos  externos  a  este.  Paulinho  da  Viola,  que 
timidamente  havia  aparecido  em  festivais  no  m  da  década  de  1960,  aparece  com  força  nos  anos 
1970  como  representante  da  tradição  sambista,  que,  ao  mesmo tempo, agrega elementos modernos 
a  essa  música.  Há  também,  nessa  década,  uma  forte  retomada  de  “sambistas  esquecidos”, 
principalmente  pela  ação  da  gravadora  Marcus  Pereira,  a  qual  lançou  discos  de  artistas  como 
Cartola,  Dona  Ivone  Lara  e  Donga,  além  de  coletâneas  dedicadas  ao  repertório de escolas de samba 

como Mangueira, Portela, Império Serrano e Salgueiro.  


Roberto  Carlos,  de  roqueiro  da  Jovem  Guarda,  passa  a  compor  e  cantar  canções 
românticas,  com  enorme  repercussão  nacional e sucesso em vendas. Do trabalho do cantor, “mescla 
de  Jovem  Guarda  com  a  tradição  melódica  e  interpretativa  do  Bolero,  nascia  a  música  “brega”” 
(NAPOLITANO,  2001,  p.  269).  Outros  nomes  que  já  se  destacavam  nos  anos  1960,  como  Jorge 
Ben  e  Os  Mutantes,  abriram-se  a  novas  possibilidades  nos  anos  1970:  o  primeiro,  expandindo  seu 
samba-rock  aliando-o  a  maior  experimentalismo  e  esoterismo,  como  se  nota  no  disco  A  Tábua  de 

Esmeralda,  de  1974;  o  segundo,  deixando  de  lado  o  psicodelismo  e  adentrando  o  meio  do  rock 
progressivo.  Foi  nesse  contexto  também  que  Rita  Lee  deixou  o  grupo  e  começou  uma carreira solo 
de sucesso, dentro da sonoridade do pop rock. 
Novos  grupos  de  MPB  se  associam  ao  rock  de  diferentes  maneiras;  alguns  exemplos  são 
Novos  Baianos,  o  Secos  e  Molhados  e  os  artistas  associados  ao  Clube  da  Esquina.  O  primeiro, 
traçando  uma  nova  relação  entre  o rock, o baião, o choro e a Bossa Nova; o segundo, unindo a MPB 

ao  glam  rock,  com  a  provocativa  e  andrógina  performance  de  Ney  Matogrosso  —  fortemente 
inspirada  em  Caetano  Veloso;  e  o  terceiro,  aliando  o  gênero  ao  jazz,  à  música  latino-americana,  à 
música  regional  mineira  e  a  diversas  experimentações  sonoras  que  tiveram  grande  aclamação  por 
parte  de  público  e  crítica.  É  ainda  nessa  primeira  metade  da  década  de  1970  que  ganham  destaque 
alguns  artistas  cearenses,  como  Fagner,  Belchior  e  Ednardo,  os  paraibanos  Alceu  Valença e Geraldo 
 
80 

Azevedo,  que  com  suas  experimentações  musicais  uniam  o  rock  ao  baião  e  ao  frevo,  e  o  roqueiro 
baiano Raul Seixas. 
A  antropóloga  Rita  Morelli  (2009)  que analisou a indústria fonográ ca do período dando 
destaque  à  posição  de  Belchior  e  Fagner  na  mídia,  apontou  que  a  crítica  musical  dos  anos  1970 
manteve  uma  certa  preferência  pelos  músicos  da  Bossa  Nova  e  do  Tropicalismo,  surgidos  nos  anos 
1960,  sendo  mais  negativas  em  relação  aos  músicos  novos.  A  autora  sugeriu  alguns  motivos  para 

isso,  entre  eles:  o fato dos artistas dos anos 60 terem surgido em meios supostamente "alternativos" à 


indústria  fonográ ca,  como  os  festivais televisivos; o exílio de muitos desses artistas, o que se re etiu 
em  uma  solidariedade por parte dessa crítica; e uma visão de que os músicos novos "se aproveitaram" 
do  vazio  deixado  pelos  exilados  para,  de  mãos  dadas  com  a  indústria  fonográ ca,  conquistarem 
espaço.  Segundo  Morelli  (2009),  a  MPB  em  1972  e  1973  era  colocada  como  "estagnada"  por 
diversos  artistas  e  críticos;  estes  apontavam  que  não  havia  nela  novos  movimentos  como  a  Bossa 

Nova  e  o  Tropicalismo,  e  que  os  novos  nomes  surgiam  como  cópias  das  propostas  estéticas  de 
Caetano  Veloso  e  Gilberto  Gil.  Por  esse motivo, muitos cancionistas novos preferiram apresentar-se 
antes  como  contestadores  do  Tropicalismo,  “numa  estratégia  de  ocupação  do  mercado  de  resto 
bastante  esperada,  dado  o  predomínio  dos  baianos  no  campo  da  MPB  ao  qual  esses  novos  artistas 
buscavam ter acesso" (MORELLI, 2009, p. 79). 
Como  se  pode  notar,  a  MPB tornou-se espaço bastante disputado. Ela passou por diversas 
transformações  nos  anos  1970,  e  Caetano  Veloso  muitas  vezes  esteve  no  centro  delas.  Levando  em 
consideração  esse  cenário  artístico  dos anos 1970, no próximo capítulo, analisarei as formas que esse 
cancionista  respondeu  ao  contexto,  focando  na  investigação  aprofundada  dos  procedimentos 
composicionais  e  estéticos  utilizados  na  criação  do  disco  Jóia,  lançado  em  1975.  Essa  análise  terá 

como  objetivo  identi car  o  lugar  que  esse disco ocupa no conjunto da obra de Caetano e no campo 


da MPB como um todo.  
 
 
 
 
 
 
 
81 

4 O DISCO JÓIA  
 
Caetano  Veloso  teve,  nos  anos  1970,  uma  de  suas  décadas  de  maior  atividade  artística.  O 
compositor  lançou  oito  discos  de  estúdio  —  Caetano  Veloso  (1971),  Transa  (1972),  Araçá  Azul 
(1973),  Jóia  (1975),  Qualquer  Coisa  (1975),  Bicho  (1977),  Muito  -  Dentro  da  Estrela  Azulada 
(1978)  e  Cinema  Transcendental  (1979)  —,  cinco  álbuns  ao  vivo  —  Barra  69  -  Caetano  e  Gil  Ao 
Vivo  (1972),  Caetano  e  Chico  Juntos  e  Ao  Vivo  (1972),  Temporada  de  Verão  -  Ao  Vivo  na  Bahia 
(1974),  Doces  Bárbaros  (1976)  e  Maria  Bethânia  e  Caetano  Veloso  Ao  Vivo  (1978)  —,  e a coletânea 
Muitos  Carnavais  (1977),  com  diversas  composições  carnavalescas,  além  ter  lançado  diversos 

compactos  simples  e  duplos.  Grande  parte  desses  discos  esteve  acompanhada  de  temporadas  de 
espetáculos  pelo  país,  como  o  Show  Transa,  em  1972,  que  estreou  no  TUCA  (SP)  e  percorreu 
grandes  cidades  do  país;  as  apresentações  com  os  Doces  Bárbaros,  ao  lado  de  Gilberto  Gil,  Maria 
Bethânia  e  Gal  Costa,  que  também  geraram  um  documentário;  shows  do  disco  Bicho,  ao  lado  da 
Banda  Black  Rio,  e  do  disco  Muito,  em  1978  e  1979;  shows  com  Gal  Costa  em  Roma,  Milão, 
Genebra e Paris, em 1978, só para citar alguns.  

Caetano  também  participou  de  festivais  importantes.  Destaco  o  Festival  Phono  73, 
promovido  por  sua  gravadora,  Phonogram,  com  diversos artistas de destaque da música brasileira, e 
o  2°  Festival  Mundial  de  Arte  e  Cultura  Negra,  em Lagos, na Nigéria, do qual participou em 1977, 
ao  lado  de  Gilberto  Gil.  A  obra  de  Caetano  Veloso  também  entrou  no  meio  audiovisual,  com 
diversas  participações  em  trilhas  de  novelas  —  como  Sem  Lenço  e  Sem  Documento  e  Gina,  da  TV 
Globo,  e  Salário  Mínimo,  da  TV  Tupi  —  e  lmes,  com  destaque  para  a  trilha  composta  para  o 
lme  São  Bernardo,  de  Leon  Hirszman  (1972).  Nesta,  Caetano  grava  apenas  com  a  voz  como 

instrumento,  fazendo  diversas  experimentações  que,  de  forma  similar,  apareceriam  posteriormente 
nos discos Araçá Azul e Jóia.  
Como  escritor,  Caetano  foi  colunista  do  jornal  alternativo  O  Pasquim  enquanto  estava 
exilado  em  Londres,  e  lançou  seu  primeiro  livro,  Alegria  Alegria,  em  1977,  uma  compilação  de 
diversos  ensaios  e  artigos  escritos  por  ele  e  reunidos  por  Waly  Salomão.  Além  disso,  Caetano 
produziu  diversos  discos  de  outros  artistas,  entre  os  quais  destaco  os  álbuns  Drama  -  Anjo 

 
82 

Exterminado  (1972)  e  Pássaro  Proibido  (1976),  de  Maria  Bethânia,  Cantar  (1974),  de  Gal Costa, e 
Smetak (1974), de Walter Smetak59. 
Como  se  pode  notar,  foi  uma  década  de  grande  fertilidade  artística  para  Caetano  Veloso. 

Guilherme  Wisnik  (2005,  p.  76)  comenta  que  as  canções  do  compositor  no  período  estão 
“profundamente  marcadas pelas re exões sobre 'o ser e o tempo', e sobre 'o ser e o nada'. Quer dizer, 
sobre  questões  importantes  postas  pelo  existencialismo  sartriano,  tais  como  a  responsabilidade  da 
ação  individual  em meio à coletividade e a condenação à liberdade". Tendo identi cado esses pontos 
em  comum  nas  canções  de  Caetano  daquela  década,  é  preciso  dizer  que  todos  os  seus  discos 
lançados  no  período  são  muito  diferentes  entre  si,  tanto  em  abordagem  quanto  em  execução.  Para 

entender  as  especi cidades  do  disco  Jóia,  traço  alguns  comentários  sobre  os  discos  anteriores  do 
compositor nos anos 1970. 
Durante  o  exílio  londrino,  Caetano  Veloso  lançou  dois  álbuns  de  estúdio:  Caetano  Veloso 
(1971)  e  Transa  (1972).  Ele  comenta  que esse período foi essencial para o estabelecimento de novos 
procedimentos  em  sua  obra.  Até  então,  Caetano  havia apenas atuado como cantor nas gravações de 
seus discos; a partir dos discos de Londres, ele passa a gravar também as partes de violão: 

 
A  maior  contribuição  da  Inglaterra  para  a  minha  formação  musical,  no  entanto,  foi  a 
aceitação,  por  parte  de  produtores  e  ouvintes,  do  meu  modo  de  tocar  violão.  Mostrei 
‘London,  London’  a  Lou  Reisner  dizendo-lhe  que,  para  o  disco,  pediríamos  a  Gil  ou  a 
algum  guitarrista  inglês  que  me acompanhasse. Ele reagiu com veemência, argumentando 
que  um  bom  músico  de  estúdio  tiraria  toda  a  graça  especial  da  canção:  ‘Ele  pode  tocar 
bem,  mas  não  tocará  como você. E quem lhe disse que você toca mal?’. Quando eu tocava 
bossa  nova,  o  despreparo  do  ouvido  inglês  (e  americano)  para  julgar  trabalhava  a  meu 
favor.  O  resultado  é  que  me  desembaracei  e,  embora  saiba  que  não  toco bem, posso hoje 
orientar  grandes  músicos  a  partir  do  que  esboço  no  violão,  coisa  que  jamais  sonharia em 
fazer antes de Londres (VELOSO, 1997, p. 439). 
 
Nos  dois  discos,  a  maioria  das canções registradas compostas pelo cantor possuía letras em 
inglês,  o  que  também  é  uma  novidade  em  sua  discogra a60.  Em  ambos,  os  únicos  trechos cantados 
em  português  são  citações  de  outros  compositores  da  MPB  ou  de  canções  tradicionais.  O  disco  de 
1971  é  marcado  por  grande  melancolia,  que  se  apresenta  nas  letras,  melodias  e  arranjos.  Esse disco, 

59
Todas essas informações podem ser encontradas na biogra a disponibilizada no site do cantor:  
http://www.caetanoveloso.com.br/biogra a/.  
60
  Em  seu  disco  de  1969,  Caetano gravou as composições “The Empty Boat” e “Lost in the Paradise”. São duas exceções 
em sua obra, embora possamos entendê-las como uma prévia dos procedimentos dos discos seguintes, nos quais a língua 
inglesa ganha lugar central, o que ocorre, principalmente, pelo contexto geográ co no qual Caetano estava inserido. 
 
83 

assim  como o Transa, pode ser associado às “temáticas noturnas” mencionadas no capítulo anterior, 
que  tiveram  bastante  espaço  na  contracultura  brasileira.  O  Caetano  Veloso  de  1971  não  surge 
sozinho;  ele  responde  a  um  contexto  que  contava  com gravações de Jards Macalé, Gal Costa, Sérgio 
Sampaio,  Os  Mutantes  e  Raul  Seixas  que  já  traziam  esse  elemento  de  tristeza,  melancolia  e  solidão. 
Ao  mesmo  tempo,  o  disco  de  Caetano,  especi camente,  tematiza  essas  questões  do  ponto  de  vista 
do cantor exilado e, com isso, traz perspectivas únicas a esse meio. 
O  LP  conta  com  sete  faixas,  as  quais  são  seis  composições  de  Caetano  Veloso  (“A  Little 
More  Blue”,  “London,  London”,  “Maria  Bethânia”,  “If  You  Hold  A  Stone”,  “Shoot  Me  Dead”  e 
“In  the  Hot  Sun  of  a  Christmas  Day”,  todas  cantadas  em  inglês)  e  uma  versão  de  “Asa Branca”, de 
Luiz  Gonzaga61.  Esse  disco  marca  uma  mudança  grande  nos  arranjos  das  músicas  do  cantor.  Até  o 
disco  de  1969  a  maioria  das  gravações  possuía  um  acompanhamento  orquestral,  seja  dentro  da 
estética  bossanovista  dos  arranjos  de  Dori  Caymmi  para  o  disco  Domingo,  seja  nos  discos 

tropicalistas,  com  o  trabalho  de  músicos  como  Rogério  Duprat,  Júlio Medaglia, Damiano Cozzella 


e  Sandino  Hohagen.  Já  o  LP  Caetano  Veloso  de  1971  passa  a  incluir  arranjos  próximos  daqueles  de 
bandas  de  rock,  com  o  violão,  a  guitarra,  o  contrabaixo  elétrico  e  a  bateria  como  instrumentos 
principais.  Essa  formação  de  banda  começa  a  aparecer  nesse  disco  e  se  consolida  no  seguinte,  o 
Transa. 
Outra  mudança  notável  está  no  projeto  grá co,  principalmente  na  capa  do  disco.  Os 
primeiros  discos  tropicalistas,  cujas  capas  eram  feitas  por  Rogério  Duarte,  contavam  com  cores 

muito  vivas,  que  reforçavam  certo  elemento  psicodélico  ou  parodiavam  imagens  da  cultura 
brasileira.  As  capas  dos  LPs  Caetano  Veloso  (1968)  e  Tropicalia  ou  Panis  et  Circencis  demonstram 
isso:  

61
O álbum está disponível para audição na plataforma Spotify:  
https://open.spotify.com/album/0lq9Ise0K45Nh8mZ5OERzk?si=lWxJtL-wS9O5St2tyxXfPw.  
 
84 

 
Figura 03: Capas dos discos Caetano Veloso e Tropicalia ou Panis et Circencis, ambos de 1968. 
 
Noto  também  nessas  capas  certas  referências  a  outras  de  discos  de  bandas  de  rock  inglês, 
como  os  LPs  Odessey  and  Oracle,  de  The  Zombies  (principalmente  nas  cores,  nos  elementos  da 
natureza  e  na  fonte  do  texto  do  disco  Caetano  Veloso)  e  Sgt.  Pepper’s  Lonely  Hearts  Club Band, dos 
Beatles  (o  qual,  assim  como  no  Tropicalia  ou  Panis  et  Circencis,  conta  com  diversas  pessoas 

“posando”  para  uma  fotogra a  e  outras  que são “coladas” à imagem”). Se por um lado Caetano cita 


diversas  vezes  a  in uência  dos  Beatles  em  sua  obra,  não  há  comprovações  de  que  ele  conhecesse  o 
disco  dos  Zombies  à  época.  Ainda  assim,  as  capas  estão  dentro  de  um  universo  imagético  muito 
próximo, que liga o pop e o rock psicodélico anglo-saxão à Tropicália. 
 

 
Figura 04: Capas dos discos Odessey and Oracle (1968) e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) 
 
O  disco  seguinte,  Caetano  Veloso  (1969),  parece  direcioná-lo  em  sentido  totalmente 
oposto.  Se  as  capas  dos  dois  primeiros  discos  tropicalistas  reforçam  a  extravagância,  o  colorido,  a 
paródia  e  a  psicodelia,  o  disco  de  1969  conta  com  uma  capa  totalmente  branca,  com  apenas  a 
 
85 

assinatura  de  Caetano  no  centro.  Aqui  é  possível  traçar  outro  paralelo  com  os  Beatles,  agora  com 
relação  ao  disco  The  Beatles,  de  1968,  o  qual,  de  forma  muito  similar,  tem a capa branca e apenas o 
nome  da  banda  no  canto  direito.  Ambos,  inclusive,  passam  ser  referidos  como  “O Álbum Branco” 
de cada autor.  
 

 
Figura 05: Capas dos discos Caetano Veloso (1969) e The Beatles (1968) 

 
A  capa  do  disco  de  1971  não  segue  nem  a  linha  extravagante  dos  primeiros  LPs,  nem  o 
minimalismo  da  capa  de  1969.  Esse  possui  uma foto de Caetano com cabelo e barba longos, no frio 
londrino, com semblante que re ete a melancolia do exílio: 

 
Figura 06: Capa do disco Caetano Veloso (1971) 

 
 
86 

A  canção  “A  Little  More  Blue”,  que  abre o disco, é um bom exemplo da melancolia a qual 


me  re ro.  Na  letra  desta,  Caetano  enumera diversos momentos de tristeza durante a vida (entre elas 
o  dia  de  sua  prisão,  o  exílio  do  Brasil  e  a  morte  de  Carmen  Miranda),  e  os  contrapõe  dizendo  que, 

naquele  momento  se  sentia “um pouco mais triste”. Em “London, London”, Caetano canta sobre a 


solidão  em  que  se  encontrava  naquele  momento  de  exílio  e  em  “Maria  Bethânia”,  o  cantor 
homenageia  sua  irmã  e  canta  sobre  a  necessidade  de  saber  que  a  “situação  está  melhor”  no  Brasil: 
“Maria Bethânia/ Please send me a letter/ I wish to know things are getting better”.  
As  músicas  desse  disco  contam,  geralmente,  com  um  violão  que  executa  harmonias 
triádicas,  contrabaixo,  percussão  ou  bateria.  Algumas  incluem  instrumentos  de  sopro,  como  a 

auta,  executando  contracantos  melódicos  e,  em  “In  the Hot Sun of a Christmas Day” traz um dos 


poucos  momentos  do  álbum  com  acompanhamento  orquestral.  Canções  como  “If  You  Hold  a 
Stone”  remetem  à  sonoridade  de  algumas  músicas  dos  Beatles  e  do  pop  rock  inglês  de  forma  geral, 
com  a  presença  da  bateria,  que  até  então  não  havia  tido  forte  presença  no  álbum,  e  com  as 
progressões  harmônicas  plagais62  típicas  desse  tipo  de  canção.  Além  disso,  a  gravação  de  “Asa 
Branca”  se  destaca  no  disco,  não  só  por  sua  duração  de  mais  de  sete  minutos,  mas  pelas  escolhas 

estéticas  de  Caetano  ao  interpretá-la.  Se  a  gravação  de Luiz Gonzaga tinha a formação instrumental 


típica  do baião (acordeom, triângulo e zabumba), a de Caetano contava apenas com sua voz e violão. 
Além  de  cantar  a  melodia,  o  cantor  utiliza  sua  voz  para  a  criação  de  efeitos  sonoros  na  forma  de 
grunhidos  e  sons  de  mastigação,  criando  imagens  associadas  ao  ruminar  de  gado.  Veloso  (1997) 
conta que essa gravação foi o que inspirou o diretor Leon Hirszman a convidar o cantor para realizar 
a  trilha  sonora  de  seu  lme  São  Bernardo,  inspirado  no  livro  homônimo  de  Graciliano  Ramos. 
Aqui,  Caetano  superpôs  diversas  gravações  de  sua  voz  para  criar  a  ambientação  que  o  diretor 

buscava  e  esses  procedimentos,  por  sua  vez,  inspiram  diversas  experimentações  presentes  no  disco 
Araçá Azul. 
Se  no  disco  de  1971  Caetano  fez  sua  estréia  tocando  violão,  no  Transa  seu  instrumento 
tornou-se  a  base  de  todas  as  canções,  sobre a qual os arranjos foram construídos de forma coletiva63. 

62
  Aquelas nas quais, em vez de ocorrer o movimento de um acorde de função dominante para outro de função tônica, o 
que  é  a  estrutura  básica  de  sistemas  tonais,  o  acorde  que  precede  a  tônica  possui  função  subdominante.  Esse  tipo  de 
cadência tornou-se muito comum em canções de rock. 
63
Para ouvir o disco Transa, ver:  
https://open.spotify.com/album/4NIGwEvudtT3KZrYPymOmz?si=ptxGk9ErTnK7yfo35SibVQ.  
 
87 

Embora  com  a produção do inglês Ralph Mace, não há aqui a  gura de um arranjador especí co;  as 


canções64  foram  trabalhadas  em  conjunto  pelo  guitarrista  Jards  Macalé,  o  baixista  Moacyr  de 
Albuquerque, o percussionista Áureo de Souza, o baterista Tutti Moreno e o próprio Caetano.  

 
Figura 07: Capa do disco Transa (1972) 

Em  um  artigo  que  escrevi  ao  lado  do  professor  Allan  de  Paula  Oliveira  (2018,  p.  123), 
indicamos que o disco Transa pode ser ouvido como “um índice de consolidação da MPB enquanto 
gênero  musical  –  em  um  processo  que  abarca,  aproximadamente,  o  período  entre  1965  e  1975”. 
Notamos também que: 
 
Transa  representa  o  momento  onde  as  apropriações  feitas  pela  MPB  começavam  a  ser 
estáveis  (reconhecidas  por  um  público).  Três  anos  antes,  em  1969,  Caetano  Veloso  era 
ouvido,  por  muitos,  como  um  artista  oposto  à  ideia  de  MPB,  e  Transa  representa  um 
momento onde se pode ouvir o englobamento, por parte da MPB, de sonoridades que, até 
então,  eram  ouvidas  como  excluídas  da  sua  de nição.  De  certa  forma,  em  1969  o  rótulo 
MPB  ainda  estava  em  processo  de  estabilização,  sendo  que  “o  que  era”  e  o  “que  não  era 
MPB” ainda era motivo de extremos debates” (OLIVEIRA; SCHMIDT, 2018, p. 136). 
 
O  disco  Transa  é  quase  totalmente  construído  com  base  em  citações  musicais  e 
extramusicais  de  diferentes  contextos:  a  canção  de  protesto  dos  anos  1960,  a  Bossa  Nova,  o  pop,  o 

  São  elas:  “You  Don’t  Know  Me”,  “Nine  Out  of  Ten”,  “Triste  Bahia”,  “It’s  a  Long  Way”,  “Mora  na  Filoso a”  (de 
64

Monsueto de Menezes e Arnaldo Passos), “Neolithic Man” e “Nostalgia (That’s What Rock’n’Roll Is All About)”.  
 
88 

universo  cultural  baiano  (representado  pela  poesia  de  Gregório  de  Matos,  as  canções  de  Dorival 
Caymmi  e  cantos  de  capoeira  e  samba  de  roda),  o  baião,  o  folk  e  o  blues,  todos entram no universo 
sonoro  desse  disco.  Embora  as  citações  já  apareçam  nos  discos  tropicalistas,  há,  no  disco  Transa, 
uma diferença em seu uso. 
 
Nos  discos  tropicalistas,  as  citações  são  estendidas,  na  forma  de  regravações  inteiras  de 
canções  de  outros  compositores. o caso de Coração Materno, Três Caravelas e do Hino ao 
Nosso  Senhor  do  Bon m,  no  disco  Panis  et  Circensis  (1968);  e  Cambalache,  Carolina  e 
Chuvas  de  Verão,  no  disco  de  1969.  A  versão  destas  canções  na  íntegra é, de certa forma, 
um  procedimento  citacional.  Mas  ele  opera  com  intenções  e  procedimentos  distintos.  O 
primeiro  deles  é  o  humor  e  a  paródia,  com  intenções  satíricas, central na escuta de uma 
canção  como  Coração  Materno  e  Três  Caravelas.  (...)  O  segundo  deles  –  e  muito 
importante  aqui  –  é  o  fato  de  que  estes  procedimentos  citacionais,  nestes  discos 
tropicalistas,  estão  muito  vinculados  à  questão  dos  arranjos.  Neste  ponto,  a  gura  de 
Rogério  Duprat  –  arranjador  que  trabalhou  nos dois discos de 1968 e no disco de 1969 – 
é  central.  Esse  uso  tropicalista  das  citações  aparecem  em  Transa  na  versão  de  Mora  na 
Filoso a,  samba  de  Monsueto  Menezes  e  Arnaldo  Passos.  No  entanto,  nesta  versão  o 
sentido humorístico já não existe, nem na interpretação, nem no arranjo. (OLIVEIRA; 
SCHMIDT, 2018, p. 129). 
 
Essas  citações  articulam  tradição  e  modernidade  no  plano  interno  das  canções,  como  já 
ocorria  no  Tropicalismo.  No  Transa,  porém,  não  há  o  sentido  de  expor  o  absurdo  de  choque  e  as 
contradições  que  ele  gera,  mas  sim  de  colocá-los  num  mesmo plano de gosto musical. Com exceção 
da  canção  “Mora  na  Filoso a”,  as citações no disco assumem as formas de vinhetas, em um “jogo de 

justaposição  de  elementos  que  dá  às  citações  um  caráter  mais  explícito.  Enquanto  nos  discos 
tropicalistas  elas  são,  muitas  vezes,  sub-reptícias,  exigindo  do ouvinte uma ‘competência linguística’ 
especí ca  na  escuta  dos  arranjos,  em  Transa  elas  se  tornam  mais  explicitadas”  (OLIVEIRA; 
SCHMIDT,  2018,  p.  129).  Através  de  repetições  —  de  versos,  progressões  harmônicas  e  temas 
melódicos  —  que  se  tornam  estratégia  de  signi cação  (LUCCHESI,  DIEGUEZ,  1993),  Caetano 
une  elementos  que,  em  um  primeiro  momento,  seriam  díspares,  como  a  canção  “The  Long  and 
Winding  Road”  dos  Beatles,  versos  do  paraibano  Zé  do  Norte  e  o  afro-samba  “Consolação”,  de 

Baden Powell e Vinícius de Moraes.  


Pouco  antes  do  lançamento  do  disco  Transa,  Caetano  Veloso  e  Gilberto  Gil  voltaram  ao 
Brasil. Caetano conta sobre sua recepção no país entre os artistas e público de esquerda: 
 

 
89 

Antes,  o  pessoal  da  esquerda  não  entendia  o  Tropicalismo  e,  depois,  porque  a  gente  foi 
para  a  prisão  e  o  exílio,  viramos  um  pouco  heróis,  um  tanto  mártires.  E  isso  causou 
problemas  quando  a  gente  voltou  da  Europa,  porque  aí  se  esperava  de  nós  um 
esquerdismo  que  nunca  tinha  sido  o  nosso,  que  eles  próprios  tinham  reconhecido, 
agressivamente,  que  não  era  o  nosso  (Revista  do  CD,  maio  de  1992)  (LUCCHESI; 
DIEGUEZ, 1993, p. 251). 
 
Como  conta  Ana  Maria  Bahiana  (1980),  havia  certa  expectativa  de  público  e  crítica  que 
novos  movimentos  surgissem  nos  anos  1970,  com  os  artistas  na  liderança  da  resistência  contra  a 
ditadura.  Em  sua  coletânea  de  entrevistas,  ca  claro  que,  em  algum  momento,  esperou-se  que 
Caetano  ocupasse  essa  posição,  assim  como  Chico  Buarque,  Gilberto  Gil  e  Milton  Nascimento65. 

Quando,  em  1972,  Caetano  lança  um  disco ao vivo com Chico Buarque, no qual um canta canções 


do  outro,  por  um  momento  pareceu  ao  olhar  público  que  essa  nova  liderança  estava  se  formando. 
Os  dois  compositores  haviam  sido  colocados  pela  mídia  televisiva  e  impressa,  nos  anos  1960,  em 
pólos  distintos  da  MPB,  quase  como  “inimigos”  —  inimizade  que  Caetano  nega  com  veemência 
(VELOSO, 1997). De qualquer maneira, a reunião dos dois artistas foi muito representativa; parecia 
simbolizar  que  as  diferenças  entre  “tropicalistas”  e  “nacionalistas”  tinham  se  resolvido  em  prol  de 

uma luta comum.  


E  então  Caetano  Veloso  lança  o  disco  Araçá  Azul66.  Neste,  o  cantor  aumenta  o  diálogo 
com  a  Poesia  Concreta,  une  sambas  do  recôncavo  baiano  à  música  eletrônica  na  linha  de 
Stockhausen,  desconstrói  canções  tradicionais  e  rompe  com  diversos  paradigmas  presentes  em  sua 
obra  no  que  diz  respeito  à  harmonia,  melodia,  letra  e  forma.  É  considerado  o  seu  disco  mais 
experimental,  tanto  pela  crítica,  como  pelo  público  —  o  disco  bateu  recordes  de  devolução  —,  e 

também pelo próprio Caetano.  


O  disco  possui  dez  faixas:  “Viola,  Meu  Bem”,  de  compositor  anônimo,  com  participação 
de  Dona  Edith  do  Prato,  “De  Conversa  -  Cravo  e  Canela”,  composição  de Caetano com citação da 
canção  de  Milton  Nascimento  e  Ronaldo  Bastos,  “Tu  Me  Acostumbraste”,  do  cubano  Frank 
Rodriguez,  “Gilberto  Misterioso”  e  “Sugar  Cane  Fields  Forever”,  compostas  sobre  versos  do  poeta 
romântico  Sousândrade,  “De  Palavra  em  Palavra”,  “De Cara - Eu Quero Essa Mulher”, com citação 
da  canção  de  Monsueto  Menezes,  “Júlia/Moreno”,  “Épico”  e  “Araçá  Azul”.  Enquanto  no  LP 
65
O  título  da  entrevista  com  Milton  já  dá  essa  dica:  “Querem  que  Milton  seja  herói.  Ele  não:  prefere  a  margem,  a 
sombra, a música” (BAHIANA, 1980, p. 47).  
66
Disponível para audição no seguinte link:  
https://open.spotify.com/album/0RbdAMsAipIgzQYPikwBZA?si=VGwEUKDTSMCopZQ839aNdQ.  
 
90 

Transa  o  compositor  utilizou  a  formação  de  banda  em  todo  o  álbum,  conferindo  uma  unidade  ao 
disco,  no  Araçá  Azul  a  sonoridade  varia  em  cada  faixa,  e  a experimentação é priorizada. Esse caráter 
experimental  já  aparece  na  capa,  na  qual  não  há  nenhuma  inscrição  verbal  que  identi que  o  autor 

ou  título  do  disco,  apenas  a  imagem  de  Caetano,  com  o  corpo  desnudo, de frente a um espelho em 
posição oblíqua: 
 

 
Figura 08: Capa do disco Araçá Azul (1973). 

 
Lucchesi  e  Dieguez  (1993,  p.  98)  fazem  uma  interpretação  interessante  da  imagem 

retratada: 
 
Para  Lacan,  deparar  com  o  corpo  re etido no espelho origina a consciência da imagem de 
si,  manifestação  do  narcisismo  primário.  É,  portanto,  através do espelho que se conquista 
o  sentido  do  corpo,  redundando  na  con guração  do  ego.  (...)  Araçá Azul, como símbolo 
de  um  retorno  às  origens, pode representar um exercício de criação lítero-musical movido 
por  um  impulso  de  regressão  narcísica,  pulsão  positiva  própria  de  quem  superou o corte 
mortal  do  exílio  e  das  situações  dolorosas  que  o  antecederam.  Ao  momento  do  sujeito 
para  retomar  a  si  o  corpo,  que,  durante  a  prisão,  fora  objeto  do  sadismo  do  outro.  O 
mesmo  princípio  teria  continuidade  na  capa do LP Jóia, não fosse atitude interventora da 
censura a impedí-lo. 
 
Mais  além,  esses  autores  entendem  o  LP  como  metáfora  do  renascimento  —  no  qual  há 
descoberta  do  som,  das  sílabas,  da formação de palavras e, por  m, a conversa. A primeira ocorre em 
faixas  como  “De  Conversa/Cravo  e  Canela”, na qual Caetano passa quase cinco minutos utilizando 
 
91 

a  voz  de  maneiras  não-convencionais:  com  grunhidos,  sons  guturais,  assovios,  gritos  e  murmúrios, 
os  quais  formam,  em  alguns  momentos,  melodias  incidentais.  Caetano  leva  ao  extremo  os  limites 
entre  fala  e  canção  e  as  fronteiras  entre  música  e  ruídos.  As  descobertas  de sílabas e palavras podem 

ser  identi cadas  em  faixas  como  “Gilberto  Misterioso”  e  “De  Palavra  em  Palavra”,  enquanto  a 
“conversa”  é  aos  poucos  construída  em  “Júlia/Moreno”,  cuja  letra  acrescenta,  em  cada  verso,  uma 
nova palavra que confere sentido à frase.  
Se  no  disco  Transa  a  sonoridade  de  banda  conferia  certa  unidade  estética  ao  álbum,  no 
Araçá  Azul  a  formação  instrumental  é  bastante  diversa,  incluindo:  voz  e  prato,  superposição  de 
vozes,  arranjos  orquestrais,  banda  de  rock,  e  voz  e  violão.  A  unidade, neste disco,  está nos processos 

de  montagens  que  implicam  na  exacerbação  dos  contrastes  de  sonoridades  justapostas.  Isso  reforça 
uma  postura  de  experimentalismo,  que  é  priorizada  em  todas  as  faixas  —  nos  usos  da  voz,  nas 
progressões  harmônicas,  nas  (des)construções  melódicas,  nas  letras,  nos  timbres  e  nos  arranjos. 
Caetano comenta sobre as gravações desse disco, que ocorreram no nal de 1972: 
 
Hospedei-me  num hotel colado ao estudo Eldorado — o único do Brasil que, então, tinha 
oito  canais  —  e  comecei  a  improvisar  peças muito livremente concebidas. André Midani, 
o  presidente  da  PolyGram  Brasil,  sempre  inacreditavelmente  inteligente  (e  chique)  para 
um  homem  na  sua  função,  concordara  em  deixar-me  sozinho  com  o  técnico  e  seu 
assistente,  sem  nem  sequer  receber  visitas  de  quem  quer  que  fosse  da  gravadora 
(VELOSO, 1997, p. 485). 
 
O  depoimento  do  cantor  re ete,  de  um  lado,  o  prestígio  que  ele  tinha  entre os executivos 
da  Polygram  e,  de  outro,  a  abertura  que  a  gravadora  dava  para  procedimentos  experimentais.  Em 
1973,  houve  uma  crise  mundial  do  petróleo,  matéria-prima  dos  discos  de  vinil,  o  que  gerou,  no 
Brasil,  um  aumento  nos  preços  dos  discos,  retração  nas  vendas  e  consequente  queda  dos  preços no 
mesmo  ano.  É  interessante  notar  como  essas  novas  questões  in uenciaram  os  procedimentos  das 

gravadoras: 
 
De  fato,  em  1974,  falando  sobre  as  mudanças  que  fatores  conjunturais  como  a  crise  do 
petróleo e a in ação haviam provocado na forma de atuação de sua companhia no Brasil, o 
ainda  então  diretor  da  Philips-Phonogram,  André  Midani,  dizia  que  tinha  sido 
provisoriamente abandonada a antiga preocupação da gravadora com novas contratações e 
com  a  descoberta de novas vanguardas, preocupação essa que teria sido intensa na fase dos 
festivais da televisão" (MORELLI, 2009, p. 99). 
 

 
92 

Entre  1974  e  1975,  Jards  Macalé,  Sérgio  Sampaio  e  Luiz  Melodia  foram  demitidos  do 
elenco  da  Philips-Phonogram,  justamente  por  não  terem  um  número  alto  de  vendas  de  discos.  O 
mesmo  André  Midani que havia dado “carta branca” para Caetano gravar o que quisesse em estúdio 
precisou,  um  ano  depois,  abrir  mão de artistas com abordagens mais experimentais, devido às novas 
circunstâncias  —  o  que  me  leva  a  crer,  caso  tivesse  sido  gravado  um  ano  depois,  o  Araçá  Azul 
poderia não ter sido lançado.  

Toda  a  produção  de  Caetano  Veloso  no  início  dos  anos  1970  tem  algum  nível  de 
experimentalismo,  que,  como  vimos,  aparece  nos  usos  da  voz  em  “Asa  Branca”,  do  álbum de 1971, 
nas  colagens  de  citações  no  Transa,  no  Araçá  Azul  como  um todo e em diversas propostas do disco 
Jóia.  Há,  dessa  maneira,  uma  aproximação  da  canção popular com a vanguarda artística, no sentido 
de  que  toda  vanguarda  rompe  com  padrões  estéticos  canônicos,  é  polêmica  e  atua  de  forma  a 
“desorganizar”  o  campo  artístico.  A  vanguarda  como  movimento,  porém,  pressupõe  um  forte 

diálogo  com  o  contexto  no  qual  se  insere;  é  um  fenômeno  que  requer  condições  especí cas,  um 
ambiente  no  qual  diversos  campos  da  arte  dialoguem  e  construam,  coletivamente,  novas propostas 
de  ruptura.  Se  no  nal  dos  anos  1960  as  propostas  estéticas  do Tropicalismo podem ser entendidas 
como  um  movimento  de  vanguarda,  isso  é porque elas se re etiram não só na música popular, mas 
também  no  teatro,  no  cinema,  nas  artes  visuais  e  na  poesia. Já quando Caetano lança o disco Araçá 
Azul,  em  1973,  esse  ambiente  de  vanguarda  já  havia  se  esgotado,  e  o  disco  não  tem o mesmo efeito 
que  a  Tropicália  teve.  Resta  a  ele  o  experimentalismo  não  como  movimento,  mas  como 

procedimento individualizado, que, apesar disso, segue não sendo isolado de um contexto maior.  
Umberto  Eco  (2016,  p. 224) aponta que, na música, “é experimental o comportamento de 
debruçar-se  sobre  o  mundo  dos  sons  para  estudá-lo  e  estabelecer  possibilidades  até  então 
desconhecidas".  A  atitude  experimentalista  permite  que  o  artista  “regule seus passos de acordo com 
a  natureza  do  percurso  e  não  segundo  a  lei  de  certo  número  de  referências  xas"  —  o  artista  tem 
liberdade  de  inventar  a  regra  de  sua  obra  no  processo  de  composição.  Isso  difere,  segundo  o  autor, 

de  procedimentos  da  música  dita  “tradicional”,  a  qual  “entregava  ao  músico  uma  série  de  relações 
sonoras  já  esclerosadas pela tradição e não-repudiáveis, obrigando-o de nitivamente a alguns modos 
de  formar  já  pré-formados  antes  mesmo  que  ele  começasse  a  formar"  (ECO,  2016,  p.  225).  Nas 
ciências  da  natureza  o  método  experimental  tem  como  essência  o  questionamento  de  tudo  que  se 
sabe  sobre  um  objeto,  mudando  inclusive  suas  abordagens  para  adequá-las  a  o  que  se  estuda. 
 
93 

Colocando  esse  método  na  arte,  o  autor  compara  os  procedimentos  de  músicos  tradicionais  e 
artistas contemporâneos: 
 
O  músico  tradicional  que  compunha  entre  os  séculos  XVII  e  XIX,  por  exemplo,  podia 
tentar  as  mais  ousadas  e  inéditas  inovações  formais,  mas  não  colocava  em  dúvida  alguns 
princípios  basilares  que  fundamentavam a própria possibilidade da comunicação musical, 
como  o  princípio  da  tonalidade,  por  exemplo.  (...)  como  a  atitude,  se  me  permitem  um 
paralelo  político,  do  reformista  e  do  conservador  iluminado  e  não  do  revolucionário.  O 
artista  contemporâneo  comporta-se,  ao  contrário,  como  o  revolucionário:  destrói 
completamente a ordem que lhe foi entregue e propõe outra (ECO, 2016, p. 226). 
 

Observo  todas  essas  características  no  disco  Araçá  Azul,  principalmente  uma  atitude  de 
questionamento  das  estruturas  musicais  tradicionais,  relacionadas  a  a nações  temperadas, 
construções  melódicas,  o  sistema  tonal  e  os  instrumentos  musicais  convencionais.  Com  isso, 
Caetano  ganha  novas  possibilidades  composicionais;  estas  não  são  descartadas  no  disco  Jóia,  mas 
incorporadas  a  estruturas  de  canção:  o  experimentalismo  não  é  a  base  do  álbum,  mas  uma 
ferramenta entre tantas outras que o compositor utiliza. 
 
Iniciando  minha  análise  desse  disco67, tomei nota de aspectos que me chamaram a atenção 
em  cada  uma  das  faixas,  levando  em  consideração  o  conceito  de  “atenção  a  valores”  proposto  por 

Walser  (2003).  Esses  aspectos  estão  relacionados  a  instrumentação, texturas, tonalidades, títulos das 


canções,  letras,  seções  contrastantes,  construções  melódicas  e  harmônicas.  A  partir  dessa  primeira 
análise,  busquei  correlacionar  as  informações  obtidas  de  cada  canção,  como  forma  de  identi car 
padrões  e  procedimentos  especí cos  desse  disco.  Dessa  forma,  organizei  essas  dimensões  em 
categorias  de  análise,  as quais se fazem presentes nos subtópicos deste capítulo: a) Projeto Grá co (o 
qual  é  independente  das  análises  individuais  das  canções);  b)  Modalismo  e  Procedimentos Modais; 

c)  Ritmos,  Levadas  e  Gêneros  Musicais,  d)  Versões  e  Covers;  e)Usos  (Incomuns)  da  Voz;  f) 
Arranjos,  Texturas  e  Instrumentações;  g)  Construções  Poéticas;  h)  Diálogos  com  o  disco Qualquer 
Coisa.  
São  13  faixas  presentes  no  disco:  “Minha  Mulher”,  “Pelos  Olhos”,  “Asa,  Asa”, “Lua, Lua, 
Lua,  Lua”,  “Canto  do  Povo  de  um  Lugar”, “Tudo, Tudo, Tudo”, “Jóia” e “Gravidade”, compostas 
67
O disco está disponível para audição em diversas plataformas, como o Spotify:  
https://open.spotify.com/album/1As0JHxpH3pj1eGeY1XK35?si=i3sgqwXLSMW1GbkHYfC8qA.  Recomendo  a 
audição para melhor compreensão das análises que farei. 
 
94 

inteiramente  por  Caetano;  “Guá”,  composta  em  parceria  com  Perinho  Albuquerque68;  “Pipoca 
Moderna”,  composta  originalmente  por  Sebastião  Biano  e  letrada  por  Caetano  Veloso; 
“Escapulário”  que  teve  o  processo  inverso  ー  Caetano  musicou  um  poema de Oswald de Andrade; 
além  de  “Help”,  compostas  por  John  Lennon  e  Paul  McCartney,  e  “Na  Asa  do  Vento”,  de autoria 
de  João  do  Vale  e  Luiz  Vieira.  O  disco teve produção de Caetano Veloso e Perinho Albuquerque. A 
tabela abaixo contém as informações lançadas na cha técnica do disco: 

Nº  Título  Dur.(min)  Autores  Músicos 

01  Minha Mulher  04:52  Caetano Veloso  Caetano Veloso (voz e violão) e Gilberto 
Gil (violão). 

02  Guá  03:14  Perinho  Caetano Veloso (voz e violão), Perinho 


Albuquerque e  Albuquerque (kissanji), Quarteto em Cy 
Caetano Veloso  (vozes), Djalma Corrêa (congas). 

03  Pelos Olhos  02:35  Caetano Veloso  Caetano Veloso (voz e violão), Altamiro 
Carrilho, Celso Woltzenlogel, Franklin 
Corrêa da Silva e Jorge Ferreira da Silva 
( autas), Perinho Albuquerque 
(arranjo). 

04  Asa, Asa  01:38  Caetano Veloso  Caetano Veloso (vozes) e Djalma Corrêa 
(percussão). 

05  Lua, Lua, Lua,  04:02  Caetano Veloso  Caetano Veloso (voz) e Antônio Adolfo 
Lua  (órgão). Percussão não identi cada na 
cha. 

06  Canto do Povo  04:12  Caetano Veloso  Caetano Veloso (voz) e Grupo Bendengó 
de um Lugar  (diversos)69. 

07  Pipoca Moderna  03:12  Sebastião Biano e  Caetano Veloso (vozes), Bira da Silva e 
Caetano Veloso  Enéas Costa (percussão), Tuzé de Abreu 
( auta) e Antônio Perna Fróes (arranjo). 
Cordas friccionadas não mencionadas na 
cha técnica. 

08  Jóia  01:28  Caetano Veloso  Caetano Veloso (vozes e percussão), 


Perinho Albuquerque (percussão). 

68
Irmão do contrabaixista Moacir Albuquerque, com quem Caetano trabalhara no disco Transa. 
69
  O  Bendengó  foi  um  grupo  vocal  e  instrumental,  fundado  pelo  compositor  Gereba,  que  misturava  a  sonoridade  de 
ritmos  nordestinos  ao  rock  e a música psicodélica. A  cha técnica não especi ca os instrumentos que eles executam, mas 
é  possível  identi car,  na  gravação,  um  violão  de  aço,  um  contrabaixo  elétrico,  possivelmente  uma  viola  caipira  e  um 
órgão. 
 
95 

Contrabaixo não identi cado na cha. 

09  Help  02:31  John Lennon e Paul  Caetano Veloso (voz e violão) 
McCartney 

10  Gravidade  02:56  Caetano Veloso  Caetano Veloso (voz e violão), Bira da 
Silva (percussão), Enéas Costa (bateria), 
Moacyr Albuquerque (contrabaixo 
elétrico), Perinho Albuquerque 
(guitarra), Tuzé de Abreu ( auta) 

11  Tudo Tudo  02:01  Caetano Veloso  Caetano Veloso (vozes, palmas), Antônio 
Tudo  Perna Fróes (arranjo) 

12  Na Asa do Vento  04:08  João do Vale e Luiz  Caetano Veloso (voz e violão) 
Vieira 

13  Escapulário  02:17  Caetano Veloso e  Caetano Veloso (voz), As Gatas (coro), 
Oswald de Andrade  Cream Crackers (percussão) e Tutty 
Moreno (bateria) 
 
Após  o lançamento do disco Araçá Azul em 1973, Caetano demorou dois anos para lançar 
outro  álbum  de estúdio. No meio tempo, em 1974, lançou o disco ao vivo Temporada de Verão, que 
é  a  gravação  do  show  apresentado  por  Gilberto  Gil,  Gal  Costa  e  ele  no  Teatro  Vila  Velha,  em 
Salvador.  Quando  Caetano lançou, em 1975, os discos Jóia e Qualquer Coisa, o cantor já estava com 
bastante material acumulado daqueles anos.  

 
Demorei  a  fazer  os  próximos  discos  que  foram  Jóia  e  Qualquer  Coisa,  porque  eu  queria 
fazer  canção,  mas  queria  que  fosse  canção  pós  Araçá  Azul.  Jóia  é  muito  assim,  e  o 
Qualquer  Coisa  eu  z  justamente  as  duas  coisas  porque  não  tem  esse  critério,  é  canção 
mesmo.  Joia  era  uma  coisa  de  canções  pós  Araçá  Azul,  eu  gosto  de  canção.  Eu  queria 
voltar à canção, demorei por isso (VELOSO, 2010, s/p, grifo meu). 
 
Ao  falar  de  “canção  pós  Araçá  Azul”,  Caetano está se referindo à grande carga de experimentalismo 

presente  neste  disco,  que  também  se  transfere  para  o  Jóia,  mas  dentro  de  estruturas  musicais  mais 
tradicionais.  Antes,  porém,  de  analisar  essas  estruturas,  volto  meu  olhar  para  a  primeira  dimensão 
com  a  qual  o  ouvinte  do  disco  entra  em  contato:  o  projeto  grá co,  incluindo  capa,  contracapa  e 

outros materiais anexados ao LP. 

 
96 

 
4.1 O Projeto Grá co 
 
Os discos Jóia e Qualquer Coisa foram os primeiros discos gravados por Caetano Veloso no 
Rio  de  Janeiro  desde  seu  disco  de  estreia,  Domingo  —  todos  os  outros  foram  gravados  ou  em  São 
Paulo,  ou  em  Londres,  com  exceção  do  álbum  branco de 1969, gravado em Salvador. Em entrevista 
com  Ana  Maria  Bahiana  (1980),  Caetano diz que nenhum critério de ne com clareza as escolhas de 
que  canção  iria  para  cada  álbum;  apesar  disso,  os  dois  discos  possuem  sonoridades  e  características 
distintas  e,  por  vezes,  até  mesmo  opostas,  que  são  notadas  em  diversos  pontos.  Primeiramente,  é 
possível  observar  esse  contraste  nas  capas  dos  LPs.  A  capa  original  do  Jóia  era  uma  foto  da  família 
(Caetano,  sua  esposa  Dedé  e  o  lho  Moreno)  “repintada”  pelo  próprio  Caetano.  Na  foto,  todos 
apareciam  nus.  Essa  versão  da  capa,  porém,  recebeu  alterações,  e  foram  incluídas  pombas cobrindo 

os órgãos genitais do cantor: 


 

 
97 

 
Figura 09: Capa e contracapa do disco Jóia (1975) - Primeira Versão 
 
Quando  Lucchesi  e  Dieguez  (1993,  p.  98)  analisaram  a  capa  do  disco  Araçá  Azul,  eles 
identi caram  a  foto  no  espelho  como  um  símbolo  de  retorno  às  origens,  e  o  disco  como “exercício 
de  criação  lítero-musical  movido  por  um  impulso  de  regressão  narcísica,  pulsão  positiva  própria de 

quem  superou  o  corte  mortal  do  exílio  e  das  situações  dolorosas  que  o  antecederam”.  Ou  seja,  eles 
apontam  o  peso  da  prisão  e  do  exílio  sobre  Caetano  e  identi cam,  no  Araçá  Azul,  um movimento 
de  retomada  do  corpo  para si, corpo este que esteve sujeito ao sadismo do outro. Eles veem a capa do 
Jóia,  por  sua  vez,  como  um  natural  desdobramento  desses  signos  con gurados  na  capa  do  Araçá 
Azul.  O  corpo  (na  versão  não-censurada)  estaria  livre  de  qualquer  amarra  à  qual  o  outro  poderia 
sujeitá-lo.  

A  imagem  assume  um  caráter  de  autorretrato  quando  Caetano  decide  pintar  sobre  a 
fotogra a.  Esse  estilo  de  pintura  tem  como  característica  básica  o  ver-se  e  deixar-se  ver:  há  um 
movimento,  do  cantor,  de  voltar-se  para  si  e  devolver  essa  visão  a  seu  público,  expondo  o  que  ele 
consegue  identi car  (e  deseja  mostrar)  como  sua  parte  mais  íntima  —  e  a  nudez,  aqui,  funciona 
como  símbolo  disso.  Nesse  “pintar  sobre  a  foto”  há  também  uma  arti cialidade  que  confere  certa 
sensibilidade  camp  à  obra.  Susan  Sontag  (1987), em seu texto clássico “Notas sobre Camp”, aponta 
que  esse  estilo  é  caracterizado  “por  coisas  que  são  o  que  não  são”,  que  todos  os  objetos  e  pessoas 

camp  contêm  um  grande  componente  de  artifício,  e  ainda  que  a  atitude  camp  tipicamente 
transforma  uma  coisa  em  outra.  Se  a  apreciação  do  camp  já  aparecia  em  Caetano  Veloso  ao 
 
98 

incorporar,  com  “sentimento  terno”  (como  coloca  Sontag),  Carmen  Miranda  e  Chacrinha  na 
estética tropicalista, no Jóia essa sensibilidade é retomada. 
A  capa  do  Jóia  pode  ser  vista  também  como  uma  recriação  do  quadro  “A  Família”  (ver 
gura  a  seguir),  do  pintor  austríaco  Egon  Schiele  (1890-1918). Este, lembrado por seu realismo cru 
e erotismo evidente, trazia o m da repressão sexual como tema central em boa parte de sua obra.  

 
Figura 10: Quadro A Família (Die Famillie) de Egon Schiele (1918).  
Fonte: Portal Wahooart, s.d. 

Ao  mesmo  tempo,  a  capa  também  remete  àquela  do  disco  Unfinished  Music  No.  1:  Two 
Virgins,  de  1968,  o  qual  retratou  os  artistas  John  Lennon  e  Yoko  Ono  nus  na  capa  desse álbum de 

caráter bastante experimental. 

 
Figura 11: Capa do disco Unfinished Music No. 1: Two Virgins, de John Lennon e Yoko Ono (1968) 
 
99 

 
Porém,  nem  mesmo  a  versão  da  capa  do  Jóia  com  os  pássaros durou muito tempo. Como 
Caetano  conta  (LUCCHESI;  DIEGUEZ,  1993),  os  censores  da  época  baniram  a  imagem  por 

considerá-la  "atentatória  à  moral  e  aos  tradicionais  'bons  costumes'".  Vejamos  este comentário feito 


na Revista Veja, publicação de 12 de maio de 1976, o qual explicita a reação da época à capa: 
 

 
Figura 12 - Notícia da Revista Veja sobre a capa do disco Jóia, 12/05/1976. 
Fonte: Site Caetano en Detalle70 
 
Pouco depois do início das vendas do disco, todas as cópias com a imagem da família foram 
retiradas  das  lojas  e  substituídas  por  uma  segunda  (na  realidade,  terceira)  versão,  retratando apenas 
os  pássaros,  os  quais  aparecem  como  tema  em  diversas  das  canções  do  álbum,  como  veremos 
posteriormente. 

70
Disponível em: http://caetanoendetalle.blogspot.com/2012/11/1975-joia-outra-metade-e-qualquer-coisa.html.  
 
100 

 
Figura 13: Capa e contracapa do disco Jóia - Segunda Versão 
 
Essa  capa  bastante  minimalista  contrasta  bastante  com  a  do  outro  disco  que  Caetano 
lançou com o Jóia, o disco Qualquer Coisa: 
 

 
101 

 
Figura 14: Capa do disco Qualquer Coisa (1975) 
 
Essa  capa  faz  clara  referência  àquela  do  disco  Let  It  Be,  dos  Beatles  (1970),  na  disposição 

das imagens e na fonte utilizada no título do LP. É no Qualquer Coisa também que Caetano faz suas 
próprias  versões  a  três  canções  da  banda  britânica:  “For  No  One”,  “Lady  Madonna”  e  “Eleanor 
Rigby”.  
 

 
Figura 15: Capa do disco Let It Be (1970) 
 

 
102 

Junto  com  cada  um  dos  discos,  Caetano  lançou,  em  1975,  dois  textos  complementares: o 
“Manifesto  do  Movimento  Jóia”  e o “Manifesto do Movimento Qualquer Coisa”71. Em entrevista a 
Ana Maria Bahiana (1980, p. 45), o cantor comenta sobre esses textos: 
 
Esses  manifestos  não  são  manifestos  de  nada,  você  entendeu? (Ri). É inclusive um pouco 
de  piada,  um  pouco  feito  como  uma brincadeira com essa coisa de liderança. Muita gente 
que  me  entrevista,  muita,  muita  gente  mesmo  me  diz  assim  que  não  há  movimento  na 
música  brasileira, nem linha, nem nada. (...) Então eu falei assim pro Gil... aproveitando as 
duas  palavras  ‘jóia’  e  ‘qualquer  coisa’,  duas  palavras  que têm até uma tensão poética entre 
elas...  eu  vou  fazer  o  ‘Movimento Jóia’ (riso despregado) que é um movimento que é uma 
total  maluquice...  depois  caram  dois  discos,  e  tinha  a  música  ‘Qualquer  Coisa’,  aí  eu 
resolvi  fazer  dois  manifestos,  meio  imitação  daqueles  manifestos  do  Oswald  de Andrade, 
mas também não é. 
 
Enquanto  Caetano  aponta  que  os  manifestos  feitos por ele deveriam ser entendidos como 
piada,  vejo  subentendido  na  fala  dele  o  fato  de  que  o  público  e  a  crítica  de  certa  forma  esperavam 
que  ele  assumisse  a  liderança  de  algum  movimento  na  MPB,  como  ele  havia  feito  com  o 
Tropicalismo nos anos 1960. É interessante, pois isso dá algumas direções sobre o lugar que Caetano 
Veloso  ocupava  naquele  contexto  da  MPB  dos  anos  1970.  Por causa dos manifestos, a Revista Veja, 

à  época,  anunciava  justamente  isso:  que  Caetano  estaria  inaugurando  um  movimento.  O texto dos 
manifestos  era,  na  realidade,  uma  crítica  à  crítica  que  acusava  a  MPB  de  estar  em  um  marasmo 
criativo,  o  que  serviu  para  alimentar,  segundo  Lucchesi  e  Dieguez  (1993),  o  comportamento 
persecutório de alguns críticos em relação à gura de Caetano.  
Relacionado a isso, surgiu, nos anos 1970, o termo “patrulhas ideológicas”, que é creditado 
a  Cacá  Diegues  em  uma  entrevista  da  época.  Tratava-se  de  certa  exigência,  por  parte  de  alas  da 
esquerda,  que  os artistas utilizassem suas obras como forma de posicionamento político e resistência 

ao  governo  ditatorial.  Pereira  e  Hollanda  (1980)  coletaram  falas  de  diversos  artistas  e  suas 
considerações  sobre  essa  questão.  Diegues  aponta  que  havia  um  “sistema  de  pressão,  abstrato,  um 
sistema  de  cobrança.  É  uma  tentativa  de  codi car  toda  manifestação  cultural  brasileira.  Tudo  que 
escapa  a  essa  codi cação  será  necessariamente  patrulhado"  (DIEGUES  apud  PEREIRA; 
HOLLANDA,  1980,  p.  18).  O  cineasta  Glauber  Rocha  apontou,  em  sua  fala,  quem  eram  os 
“patrulheiros”:  

 
71
Os textos dos movimentos podem ser lidos no Anexo II.  
 
103 

Diferente do que se propagava, a patrulha não estava sendo feita pelos membros do (ilegal) 
Partido  Comunista.  Estes,  como  coloca  Glauber,  "se  corromperam  inteiramente.  Por 
exemplo,  a  maioria  de  atores,  diretores,  argumentistas  etc.  foram  trabalhar  na  Globo,  no 
auge  da  ditadura  do General Medici. (...) Desta forma, a intelectualidade ligada ao Partido 
estava  na  jogada  da  extrema  direita  e  precisava  ser  patrulhada,  não  estava  patrulhando 
ninguém.  Quem  estava  exercendo  o  patrulhamento  da  o  grupo  do  CEBRAP,  do  jornal 
Opinião,  ou  seja,  a  social-democracia,  o  MDB  [chamada  por  ele  de 
esquerda-liberal-kenediana],  sem  o  auxílio  do  Partido  Comunista"  (ROCHA  apud 
PEREIRA; HOLLANDA, 1980, p. 27). 
 
Caetano,  por  sua  vez,  comenta  seu  posicionamento  quanto  ao  uso da arte como forma de 
protesto  social:  "não  dá  para  você  não  ter  ansiedade  em  relação  à  solução  dos  problemas  da  justiça 
social.  Só  que  eu  acho  que,  no  caso  da arte, o engajamento não se dá por essa via (...) Se dá, eu acho, 

pela  via  do  seu  engajamento  com  aquilo que você faz” (VELOSO apud PEREIRA; HOLLANDA, 


1980,  p.  108).  Para  ele,  o  comprometimento  com  o  desenvolvimento  artístico  era,  em  si,  um  ato 
político.  Na mesma entrevista, o autor aponta que àquela altura já não tinha mais tanto interesse em 
ter  uma  atitude  combativa  por  ter  se  assustado  com  as  complicações  geradas  por  essa  postura 
anteriormente,  entre  elas  a  sua  prisão.  A  maior  crítica  das  “patrulhas  ideológicas”  para  Caetano 
ocorreu  no  período  em  que  o  cantor  lançou  o  disco  Bicho,  em  1977.  Este  foi  criticado 

principalmente  pela  canção  “Odara”,  que  incorporou  elementos  da disco music e tinha versos como 


“deixa  eu  dançar  pro  meu  corpo  car  odara”,  os  quais  foram  lidos  como  totalmente  alienados  do 
cenário  político  da  época.  Porém,  Caetano  conta  na  entrevista  que  esse  embate  já  vinha  desde  os 
anos  1960,  que  tinha  o  CPC  como  gura  central  dessa  “patrulha”.  Os  manifestos  Jóia  e  Qualquer 
Coisa  respondiam  a  esse  cenário.  Aqui  estão  algumas  das  principais  ideias  contidas  nesses  dois 
textos: 
 
"a.  A  defesa  da  credibilidade  e  do  respeito  à  MPB,  quanto  ao  potencial  de  sua  expressão 
criativa  e  múltipla;  b.  A  insubordinação  dos  processos  de  criação  a  esquemas 
político-partidários  ou  a  modelos  propostos  por  cartilhas  de  intelectuais;  c.  Rea rmação 
da  estética  da  inclusão,  traçada  nas  origens  do  Tropicalismo;  d.  Mescla  de  tendências  e 
estilos,  capaz  de  afugentar os sectarismos; e. A substituição do pessimismo pela alegria (no 
sentido  oswaldiano  —  'a  alegria  é  a  prova  dos  nove');  f.  O  ato  de  criação  como 
transgressão,  sempre  direcionado  para  o  aperfeiçoamento  da  expressão  estética" 
(LUCCHESI; DIEGUEZ, 1993, p. 116). 
 
Como  os  autores  apontam,  a  alegria,  mencionada  no  Manifesto  do  Movimento  Jóia, 
dialoga  com  os  manifestos  de  Oswald  de  Andrade.  No  Manifesto  Qualquer  Coisa,  a  menção 

 
104 

constante  da  expressão  “sob  o  sol”  pode fazer referência ao trecho "Filhos do Sol, mãe dos viventes", 


também do Manifesto Antropófago, e a própria estrutura do texto (a enumeração dos elementos em 
frases  curtas)  lembra  o  mesmo  texto  de  Oswald. Os manifestos de Caetano inserem-se em uma rede 

discursos  desse  gênero,  na  qual  estão  os  Manifestos Dada, Futurista, Surrealista e da Arte Concreta, 


no  meio  artístico,  e  o  Manifesto  do  Partido  Comunista,  no  meio  político  —  além  dos  textos  já 
citados  de  Oswald  de  Andrade,  o  Manifesto  Antropófago  e  o  Manifesto  da  Poesia  Pau-Brasil. 
Caetano joga com essas referências; se em “Tropicália” ele cantava: “eu organizo o movimento”, aqui 
ele faz uso do humor como forma de satirizar uma postura de liderança, a qual lhe era proposta. 
 

4.2 Arranjos, Texturas e Instrumentação 


 
Tendo  analisado  esses  aspectos  do  projeto  grá co  do  Jóia,  volto  meu  olhar  às  canções  — 
especi camente,  a  sonoridade  construída  no  disco.  Para  isso,  me  atentarei,  primeiramente,  aos 
arranjos  e  timbres  utilizados  como  índices  da  estética  que  Caetano  construiu  neste  disco.  Baseado 
nas  análises  propostas  por  Sérgio  Molina  (2017),  utilizarei  grá cos  como  forma  alternativa  de 
visualizar  as  canções. O autor propõe a utilização destes como forma de entender a canção em seções 
distintas  que  compõem  o  que  ele  chama  de  “música  de  montagem”.  No  eixo  horizontal o tempo é 
apresentado  em  minutos  e  segundos,  enquanto o eixo vertical indica a amplitude de onda, referente 
à intensidade. A gura a seguir apresenta a canção “Minha Mulher”: 
 

 
Figura 16: Grá co - “Minha Mulher” 
Fonte: o autor 

Segue breve explicação das seções visualizadas no grá co: 


1. 00:00  -  Compassos  introdutórios;  nesta  faixa,  Gilberto  Gil  aparece  tocando  violão  junto  a 
Caetano  Veloso,  e  esses  são  os  únicos  instrumentos  da  gravação.  A  harmonia  estabelece  o 
ambiente modal da canção com os acordes F7(9) e Eb7(9). 

 
105 

2. 00:16  -  Entra  a  primeira  estrofe  [“Quem  vê  assim  pensa…”]repetindo  a  harmonia  da 
introdução.  
3. 00:36 - Repetição da estrofe com mesma letra, melodia e intensidade. 
4. 00:56  -  Entrada  do  refrão  [“Meu  bichinho  bonito…”],  no  qual  se  nota  um  aumento  de 
intensidade, visível no grá co.  
5. 01:15  -  Retorno  para  a  estrofe  com  repetição  da  letra  inicial  [“Quem  vê  assim  pensa…”]. 

Nota-se  pelo  grá co  que,  como  forma de contraste com o refrão, essa estrofe é executada com 


intensidade ainda menor. 
6. 01:34 - Repetição da estrofe [“Quem vê assim pensa…”]. 
7. 01:54  -  Retorno  para  o  refrão,  novamente  com  contraste  de  intensidade  [“Meu  bichinho 
bonito…”]. 
8. 02:12 - Retorno para a estrofe, agora com variação na letra [“Quando eu for velho…”]. 
9. 02:32 - Repetição dessa estrofe. 
10. 02:50 - Refrão que, assim como nas seções 4 e 7, traz um aumento na intensidade.  
11. 03:09  -  Repetição  da  harmonia  da estrofe, agora sem letra, com improvisos vocais de Caetano 
remetendo a uma sonoridade “árabe”, principalmente na exploração que o cantor faz de notas 
com  a nações  não  necessariamente  temperadas.  O  violão  tocado  por  Caetano  Veloso  segue 
fazendo  a  base  harmônica  e  outro,  tocado  por  Gilberto  Gil,  realiza  improvisos  melódicos  e 
efeitos  sonoros  como  “slides”,  os  quais  também  podem  ser  associados  àquele  imaginário 

sonoro árabe. 
12. 03:27  -  Repetição  disso com improvisações, seguindo até o  nal (04:52) com leve fade out nos 
últimos segundos. 
 
O  arranjo  da  canção  é  aberto,  isto  é,  muito  provavelmente  não  teve  partes  escritas  na 
partitura,  o  que  permitiu  bastante  liberdade  criativa  para  Gil  e  Caetano  em  estúdio.  O  violão 

executado  por  este  último  se  mantém  dentro  de  um  padrão  de  execução  da  harmonia  com  levada 
constante  por  toda  a  canção.  Já  o  violão  executado  por  Gil  tem caráter bem mais melódico e agrega 
mais  elementos  de  improviso.  Possivelmente  a  única  dimensão  de nida  em  arranjo  foi  a  forma, 
embora  o  improviso  nal  possa  indicar  que  mesmo  esta  possui  certa  exibilidade,  dada  a  sua 
duração. 
 
106 

Na  densidade  da  instrumentação é visível um elemento importante para o disco Jóia como 


um  todo:  a  densidade  é  baixa,  ou  seja,  são  poucos  instrumentos  utilizados  na  faixa  (no  caso apenas 
os  violões  executados  por  Caetano  e  Gil,  que  acompanham a voz do primeiro72). Como foi visto no 
grá co,  há  momentos  de  contraste  —  este  não  se  dá  pela  entrada  de  novos  instrumentos,  mas pelo 
nível  de  intensidade.  Por  não  haver  tantos  instrumentos,  a  gravação permite que, mesmo com a voz 
em  primeiro  plano,  seja  possível  ouvir  com  clareza  o  que  está  sendo  executado  em  cada  violão.  Na 

parte  nal,  principalmente,  o  violão  de  Caetano  ca  em  segundo  plano,  executando  o 
acompanhamento harmônico, enquanto a voz e o violão de Gil executam improvisos melódicos. 
Quanto  à  forma,  a  gravação  estabelece  as  partes  ABA,  possivelmente  a  forma  mais 
tradicional em canções. Apenas introdução de seis compassos parece trazer certa irregularidade a essa 
estrutura.  As  variações  aparecem  no  A',  quando  ocorre  mudança  de  letra  com  mesma  melodia  e 
harmonia, assim como no A", no qual há maior repetição do trecho com improvisos melódicos.  
 

Parte  Intro  A  B  A  B  A’  B  A’’(improviso) 

Nº de Compassos  6  16  8  16  8  16  8  40 


Forma da canção “Minha Mulher” 

 
A  canção  “Asa,  Asa”  é  outro  exemplo  entre  os  momentos  do  disco  Jóia  nos  quais  a 
densidade  da  instrumentação é mínima. Não há qualquer instrumento harmônico na gravação e, na 
maior  parte  da  canção,  há  apenas  a  melodia  principal  acompanhada  de  percussão,  que  marca  os 

tempos  fortes.  O  arranjo  da  canção  provavelmente  foi  concebido  de  forma  semiaberta  (com  a 
estrutura  melódica  de nida  anteriormente,  mas  com  arranjo  vocal  criado  de  forma  intuitiva).  No 
grá co abaixo é possível identi car as seções e os momentos de contraste da faixa: 

  
Figura 17: Grá co - “Asa, Asa” 
Fonte: o autor 

  Outras  canções  no  disco  que  seguem  a  estética  de  voz  e  violão  são  “Help”  e  “Na  Asa  do  Vento”, justamente as duas 
72

composições de outros artistas. 


 
107 

1. 00:00 - Uma percussão quase metronômica faz marcações secas contando o tempo. Em alguns 
momentos,  outra  percussão  com  timbre  diferente  surge  fazendo  ataques  nos  contratempos. 
Em 00:04, entra a voz de Caetano [“Pássaro um…”]. 
2. 00:18  -  No  intervalo  entre  o  m da primeira estrofe e a volta da voz de Caetano, as percussões 
são  atacadas  de  forma  intercalada  intermitentemente  (uma  na  cabeça  do  tempo,  outra  no 
contratempo). 
3. 00:23  -  Volta a voz de Caetano [“Pássaro som…”], porém na quarta vez em que canta a palavra 
"pássaro",  aparece  também  a  sua  voz  uma  oitava  acima  imitando  a  melodia  e  outra  oitava 
abaixo apenas reforçando certas sílabas.  

4. 00:37  -  Novamente  alguns  compassos  nos  quais  as  percussões  são  executadas  nos  tempos 
fortes e fracos. 
5. 00:41  -  Caetano  apenas  canta  "Pássaro  par",  seguido  de  dois  compassos  inteiros  apenas  com 
percussão.  
6. 00:47 - Volta da estrofe [“Pássaro um…”], seguida da outra [“Pássaro som…”].  
7. 01:23  -  Três  vozes  de  Caetano  cantam  "Pássaro  par",  em  três  oitavas distintas, e ao  m disso a 

percussão  para.  Em  01:26,  entram  autas  que  seguem  para  o  fade-out  (lembrando  inclusive 
canções  dos  Beatles  como  “Strawberry  Fields  Forever”,  que  nalizam  com  autas  de 
sonoridade  similar  —  essa  canção  especi camente  conta  também  com  orquestra  nessa 
nalização).  
 
É  mais  provável,  porém,  relacionar  essas  autas  do  nal  da  canção  àquelas  executadas por 
grupos  xinguanos.  Caetano  Veloso  (1997)  conta  que,  no  início  dos  anos  1970,  ouviu  um  disco 

chamado  Xingu  -  Cantos  e  Ritmos,  de  1972,  lançado  pela  gravadora  Philips  a  partir  de  material 
coletado pelos irmãos Villas-Boas73.  
 

73
  Infelizmente  o  disco  encontra-se  indisponível  para  audição  completa  nas  plataformas  virtuais.  Há,  porém,  algumas 
faixas  disponíveis  no  site  Cantos  da  Floresta,  como  a  faixa  8,  “Cerimonial  Para  Afugentar  Maus  Espíritos  (Taquará)”. 
Ver: http://www.cantosda oresta.com.br/audios/taquara-taratararu/.  
 
108 

 
Figura 18: Capa do disco Xingu - Cantos e Ritmos 
 
O  disco  inteiro  foi  gravado  com  poucos  instrumentos,  utilizando  basicamente  a  voz,  as 
mãos,  os  pés,  chocalhos e  autas74. A faixa 22, especi camente, intitulada “Flauta Juruna - Duende” 
e  executada  pelos  músicos  do  povo  indígena  do  Baixo  Xingu,  hoje  denominado Yudja, impactou o 
cantor.  Ele  conta  em  entrevista75  que a linha executada pelas  autas lembrava in exões melódicas de 
jazz  e  que  basicamente  colocou  uma  letra  sobre  aquela melodia. As  autas no  nal da canção, dessa 

forma, são uma menção a essa in uência. 

74
  Acredito  que  não  só  a  faixa  “Asa,  Asa”  recebeu  in uências  dessas  gravações,  mas  o  disco  como  um  todo  em  sua 
instrumentação enxuta e destaque para a relação entre vozes, autas e percussão. 
75
  Encontrei  diversas  menções  a  uma  entrevista  que  Caetano Veloso fez em 2004, a qual foi escrita por Valdir Zwetsch e 
publicada  no  site  Radiola Urbana, na seção “Arco da Velha”. A entrevista, infelizmente, não está mais disponível no site. 
Porém,  diversos  trechos  desta  foram  comentados  em  diversos  outros  sites,  e  a  informação  de  que  Caetano  teve  esse 
contato  e  in uência  da  música  do  Baixo  Xingu  está  presente  em  todos  eles.  Ver:  Quilombos  News: 
quilombosnews.blogspot.com/2006/11/de-como-um-duende-do-xingu-foi-bater.html.  Povos  Indígenas  no  Brasil: 
https://pib.socioambiental.org/en/Not%C3%ADcias?id=16152. e também  
https://www.indios.org.br/en/Not%C3%ADcias?id=35834  ,  assim  como  o  site  francês  La  Musique  Brasilienne 
https://la-musique-bresilienne.fr/2015/05/31/caetano-veloso-joia/.  
 
109 

Outra  canção  com  arranjo  similar,  no  qual  não  há  nenhum  instrumento  harmônico,  é 
“Tudo  Tudo  Tudo”.  Os  únicos  timbres  presentes  na  canção  são  os  das  palmas  e  das  vozes 
sobrepostas  de  Caetano  Veloso.  O  arranjo  vocal  foi  provavelmente  construído  de  forma  intuitiva, 

aberta76.  A  meu  ver,  a  abertura  de  vozes  não  foi  feita  pensando  em  acordes  (em  um  "pensamento 
vertical"),  mas  sim,  em  melodias  sobrepostas  ("pensamento  horizontal"),  que  acabam  sugerindo 
harmonias  —  que,  por  isso,  muitas  vezes  saem  do  campo  harmônico  diatônico  maior.  A  canção 
conta  apenas  com  uma  única  parte,  repetida  diversas  vezes  com  os  mesmos  versos.  O  que  muda  é 
que a cada repetição, as palavras ganham mais clareza na articulação de Caetano. 
 

 
Figura 19: Grá co - “Tudo Tudo Tudo” 
Fonte: o autor 
  
1. 00:00 - Começam as palmas marcando os tempos 2 e 4 do compasso quaternário. 
2. 00:05  -  Entram  vozes  abertas  sobrepostas  de  Caetano,  cantando  a  melodia  com  a  boca 
fechada, como em “bocca chiusa”, tornando clara apenas a palavra "mar" ao nal do ciclo. 
3. 00:24  -  Repetição  desse  tema,  agora  apresentando  outras sílabas de boca aberta no meio (mer 

e mir, além de mar que já estava anteriormente). 


4. 00:44  -  Repetição  novamente  do  tema,  agora  as  palavras  começam  a  ganhar  um  pouco  mais 
de  clareza,  mas  ainda  sem  a  articulação  de  boca  aberta,  apenas  nas  sílabas  citadas 
anteriormente. 
5. 01:04 - A letra vai cando clara aqui "Tudo comer, tudo dormir, tudo no fundo do mar". 
6. 01:24 - Agora sim, articulando as palavras, Caetano canta e deixa esse texto claro. 

7. 01:44  -  Mais  uma  repetição,  agora  com  aumento  da  intensidade,  até  que  em  01:49  as  pausas 
param e Caetano naliza a frase apenas com as 3 vozes. 

A  cha  técnica  da  canção  aponta  o  músico  Antônio  Perna Fróes (tecladista e arranjador que estudou, como Caetano, 


76

no  Seminário  Livre  de  Música  da Universidade da Bahia) como responsável pelo arranjo, sendo ele quem possivelmente 


de niu as melodias das aberturas de vozes. 
 
110 

 
Há  ainda,  no  disco,  outras  duas  canções  nas  quais  não  há  instrumento  harmônico 
executando  o  acompanhamento:  “Jóia”  e  “Escapulário”.  O  arranjo  da  primeira  canção traz as vozes 
acompanhadas  de  diferentes  tipos  de  percussão,  mas  sem  um  instrumento  executando  harmonias, 
apenas  uma  linha  de  baixo  pedal.  A  seção  percussiva  da  canção  é  sua  parte  mais  densa 
instrumentalmente. Caetano fala sobre a composição: 

 
‘Joia’  tem  um  fascínio pela coisa primitiva. Mas é uma coisa muito estranha (...). É, é em 
quartas  paralelas,  mas  no  meio  tem  um  trítono  muito estranho (...). E essa hora é tanto 
mais  estranha  porque  como  ‘Jóia’  é  feita  um  pouco  como  se  fosse  assim  uma  melodia 
oriental,  ou  africana,  porque  está  cantada  em  quartas,  e  também  um  pouco  índia,  sei 
lá...  como  ela  parece  assim  um  pastiche  de  melodia  primitiva,  então  de  repente, 
quando  aparece  esse  trítono  então  é  um  negócio  que  ca  ainda  mais  estranho,  porque 
não  é  da  família  dessas  melodias.  Agora  essas  músicas  todas  revelam  assim  um  lado  do 
meu  trabalho,  essa  necessidade  de  encontrar  uma  coisa  assim...  fresca,  sem  estar 
carregada  do  que  a  gente  sabe.  Mas  também  não  é  a  ideia  do  ‘novo’,  do  negócio 
colocado  como  novidade.  É  realmente  participar  de  um  clima  livre  do  habitual 
(VELOSO apud BAHIANA, 1980, p. 43-44, grifo meu). 
 
As  observações  de  Caetano  aproximam  essa  canção  de  “Asa,  Asa”  na  tentativa  de  emular 
sonoridades de músicas não-ocidentais. A forma de “Jóia” é a seguinte: 
 

 
Figura 20: Grá co - “Jóia” 
Fonte: o autor 
  
1. 00:00  -  Introdução  com  as  percussões  e  o  baixo  em  ostinato  repetindo  a  nota  mi.  Enquanto 
uma  das  percussões  marca  o  tempo  em  4/4,  outra  faz  marcações  como  um  compasso 
composto 12/8.  
2. 00:23 - Entram as vozes de Caetano Veloso em quartas [“Beira de mar…”].  
3. 00:43 - A percussão retorna isolada. 

 
111 

4. 00:54  -  Repetição  das  vozes  com outra letra [“Copacabana...]. A música termina em fade-out, 


comum  nas  canções  modais  de  Caetano  no  álbum.  Ela  soa  quase  como  uma  "vinheta"  no 
contexto do álbum, por sua curta duração e por não ter repetições. 
 
Quanto  à  forma  da  canção,  assim  como  em  outras  do  disco  Jóia  há  apenas  uma  parte  A, 
que  se  repete  com variação de letra. Segreto (2014, p. 169) também comenta sobre o uso do fade out 
e o que isso representa nessa faixa: 
 
As  duas  estrofes  são  entoadas  exatamente  com  a  mesma  melodia  e  a  canção  inicia  e 
termina  em  fade  in  e  fade  out,  como  se  sempre  existisse  ou  fosse  in nita.  Como  se 
fôssemos  nós  que  nos  aproximássemos  dela,  ela  que  sempre  esteve ali (mais um elemento 
que  ajuda  a  construir  um  sentido  especial  para  o  tempo).  É  evidente,  desde  a  primeira 
escuta,  uma  forte  referência à música não ocidental: não temos aqui a presença fundadora 
da  tonalidade  com  uma  melodia  construída  sobre  um  caminho  harmônico  de  acordes 
progredindo através de tensões e relaxamentos. Ao contrário, temos a impressão de algo de 
certa  maneira  estático,  uma  música  elaborada  a  partir  da  sobreposição  de  ritmos  e  vozes 
sem um pensamento harmônico tonal. 
 
O  autor  ainda  faz  considerações  importantes  sobre  questões  relacionadas  ao  arranjo  da 

canção que reforçam esse sentido de “in nitude” mencionado anteriormente: 


 
Em  Jóia,  o  paralelismo  na  sobreposição  das  vozes  e  a  escolha  intervalar  (além,  é  claro,  de 
outros  aspectos  como  o  ritmo  e  a  melodia  já citados anteriormente) contribuem para um 
efeito  de  certa  “estaticidade  harmônica”,  se pensarmos na ausência das funções tonais que 
fariam  “progredir”  o  discurso.  Esta  estaticidade  é um elemento que condiz com a ideia de 
circularidade  já  mencionada  anteriormente.  Algo  que  se  movimenta  de  maneira  circular 
voltando  sempre  ao  mesmo  ponto.  Fato que nos remete novamente ao sentido da letra de 
unir os dois espaços, os dois momentos (SEGRETO, 2014, p. 173). 
 
Já  na  canção  “Escapulário”,  último exemplo de canções sem acompanhamento harmônico 

no  disco  Jóia,  a  sonoridade  e  o  arranjo  não  buscam uma “musicalidade primitiva não-ocidental”. A 


versão  musicada de Caetano transformou o poema de Oswald de Andrade num samba, dessa forma, 
inserindo  a  canção  num  ambiente  urbano,  carioca.  O  acompanhamento  da  canção  inclui  apenas  a 
percussão  desse  gênero  e  o coro do grupo As Gatas — conjunto vocal feminino que surgiu em 1967 
e  cantava  extenso  repertório  de  samba  carnavalesco.  A  canção  possui  apenas  três  versos  que  se 
repetem diversas vezes: 

 
 
112 

 
Figura 21: “Escapulário” - Melodia 
Fonte: o autor 
 
Esse  estilo  de  samba  sem  acompanhamento  harmônico,  apenas  percussões  e vozes, remete 
às  gravações  de  Monsueto  Menezes.  Caetano  já  havia  gravado,  anteriormente,  duas  canções  desse 
compositor:  “Mora na Filoso a”, no disco Transa, e “Eu Quero Essa Mulher”, no disco Araçá Azul. 

Nas  gravações  de  Monsueto,  é  muito  comum  a  presença  de  um  coro responsivo, assim como o que 
aparece  em  “Escapulário”77.  Como  se  pode  ver  no  grá co  a  seguir,  quase  não  há  contrastes  de 
intensidade nas diversas repetições da melodia na gravação.  

 
Figura 22: Grá co - “Escapulário” 
Fonte: o autor 
 
Por outro lado, os contrastes se estabelecem no âmbito timbrístico, pois a cada repetição da 

letra  há  mudanças na formação: 1ª vez: Caetano canta sozinho; 2ª vez: Caetano começa sozinho mas 


recebe  acompanhamento  de  voz  feminina  a  partir  da  metade;  3ª  vez:  Caetano  e  vozes  femininas 
cantam  juntos; 4ª vez:  começam todos juntos, mas Caetano para de cantar no meio; 5ª vez: apenas o 

coro  feminino  canta;  6ª  vez:  Caetano  canta  sozinho;  7ª  vez:  todos  cantam  juntos;  8ª todos cantam 
juntos, mas ocorre a nalização da canção em fade out.  

  Recomendo  a  audição  das  faixas  citadas  nas  gravações  originais  de  Monsueto:  “Eu  Quero  Essa  Mulher” 
77

https://www.youtube.com/watch?v=bLS9XmAtxCg e “Mora na Filoso a”  


https://www.youtube.com/watch?v=ssfwerdOqVk.  
 
113 

Em  diversos  sentidos,  “Escapulário”  contrasta  também  com  a  sonoridade  das  outras 
canções,  seja  no  andamento,  no  gênero  musical  e  no  tipo  de  arranjo,  e  soa  quase  como  uma 
“brincadeira”  ao  m  do  álbum.  É  também  a  única  faixa  do  disco  que  conta  com  bateria  embora 

Caetano  já  tenha  dito  em  entrevistas  que  gosta  do  disco  Jóia  justamente  por  não  ter  esse 
instrumento  —  o  que  pode  ser  mais  um  indicativo  de  que  se  trata  de  uma  canção  post  scriptum. 
Algo  similar  a  isso  aparece  no  nal  do  disco  Transa  de  Caetano,  de  1972,  que  é  nalizado  com  a 
canção  "Nostalgia  (That's  What  Rock'n'Roll  Is  All About)", totalmente distinta do resto do álbum 
em  sonoridade.  É  possível  também  compará-la  à canção “Her Majesty”, última faixa do disco Abbey 
Road  dos  Beatles.  Com  apenas  23  segundos,  aparece  como  um  apêndice  do álbum que, para todos 

os efeitos, já havia se encerrado na faixa anterior, intitulada “The End”.  


 
A  faixa  7  do  disco  Jóia,  “Pipoca  Moderna”,  também  não  conta  com  um  instrumento 
harmônico,  como  violão  ou  piano,  executando  sua  harmonia.  Há,  porém,  instrumentos  de  cordas 
de  arco  que  fazem  intervenções  que dão as cores da harmonia, assim como a  auta tocada por Tuzé 
de  Abreu,  com  pequenos  contornos  melódicos.  Gostaria  de  comentar  brevemente  sobre  a  entrada 
dessa canção no disco. 
A  Banda  de  Pífanos  de  Caruaru  (Pernambuco)  já  tinha  mais  de  40  anos  de  atividade 
quando  Gilberto  Gil  a  conheceu  em  1967,  em  viagem  ao  Recife.  É  um grupo formado por pífanos 
(instrumento  similar  à  auta  transversal)  e  percussão.  Caetano  Veloso  (1977)  conta  que,  na  época, 

Gil  gravou  tas-cassete  do  grupo  em  Pernambuco  e  mostrou-as  ao  grupo  tropicalista.  Entre  elas, 
estava  a  música  “Pipoca  Moderna”,  que, de acordo com Caetano, tocou-os profundamente e “ cou 
na  cabeça”  daqueles  músicos.  Essa  música  da  Banda  de  Pífanos  foi  elemento  central  dentro  das 
propostas  do movimento de Caetano e Gil, sendo que esse último propôs na época que  zessem um 
“som universal” juntando os Beatles à música daquele grupo pernambucano (VELOSO, 1997). 
Gilberto  Gil  inseriu  a  música  “Pipoca  Moderna”,  creditada  a  Sebastião  Biano,  em  1972, 

em  seu  disco  Expresso  2222.  Nessa  gravação,  quem  toca  é  a  própria  Banda  de  Pífanos  de  Caruaru, 
versão  totalmente  instrumental.  É  no  disco  Jóia  que  essa  música  ganha  letra.  Essa  gravação  é  um 
exemplo de canção pós-Araçá Azul: enquanto mantém uma estrutura formal de canção, ela também 
passou  por  níveis  de  desconstrução,  tanto  na  letra,  como  nas  construções  melódicas,  harmônicas, 
nos improvisos e nas experimentações de estúdio.   
 
114 

A  seguir  podemos  ver  uma  transcrição  aproximada  do  que  as  percussões  (primeiro 
sistema) e as cordas friccionadas (segundo sistema) executam. É possível notar que estas, embora não 
estejam  necessariamente  tocando  acordes,  deixam  implícitos  os  movimentos  harmônicos  através de 
polifonias, utilizando contracantos melódicos e arpejos.  
 

 
115 

 
Figura 23: “Pipoca Moderna” - Transcrição aproximada das percussões (2 claves superiores), violinos e violoncelo 
Fonte: o autor 
 

 
116 

Com  o  grá co  abaixo, podemos identi car as diferentes seções da canção e os contrastes de 


intensidade gerados nessas divisões: 

  
Figura 24: Grá co - “Pipoca Moderna” 
Fonte: o autor 
  
1. 00:00  -  É  possível  ouvir  apenas  a  voz  de  Caetano  e  percussão  [“E  era  nada  de  nem  noite  e 
negro não...”]. 
2. 00:12  -  Entra  um  violoncelo  executando  um  contracanto  melódico  em  registro  grave  (ver 
compassos 6 a 10 da partitura) [“E era noite de nê nunca…”]. 

3. 00:21  -  Outras  cordas  friccionadas  aparecem  em  registro  mais  agudo.  Aqui  a  percussão 
acompanha as in exões rítmicas da voz (ver compassos 11 a 14 da partitura). 
4. 00:49  -  Repetição  do  tema,  porém  agora  há  duas  vozes  de  Caetano  Veloso,  separadas  por 
intervalos de terças. 
5. 01:37  -  Terceiro  momento,  no  qual  entra  Caetano  fazendo  uma  terceira  voz,  criando 
dissonâncias entre as melodias. 
6. 02:24  -  Quarto  momento,  agora  sem  as  vozes,  no  qual  duas melodias paralelas são tocadas na 

auta,  de  forma  similar  à  versão  gravada  no  disco  Expresso  2222  de  Gilberto  Gil,  porém  em 
andamento mais lento. Aparece como citação direta àquela gravação. 
 
As  outras  canções  do  disco  Jóia  contam  com  pelo  menos  um  instrumento  harmônico 
(violão,  piano  ou  órgão).  Contudo,  a  ideia  de  temas  melódicos  curtos  e  instrumentação  enxuta 
mantém-se.  A  formação  instrumental  de  “Guá”,  por  exemplo,  está  dentro  dessa  proposta,  com 
apenas  o  violão,  a  percussão  tocada  por Djalma Corrêa, o kissanji (um idiofone melódico de origem 
angolana)  tocado  por  Perinho  Albuquerque,  e  as  vozes  de  Caetano  Veloso  e  do  grupo  vocal 
Quarteto  em  Cy.  Em  entrevista  com  Ana  Maria  Bahiana,  Caetano  fala  sobre  o  processo  de  criação 

dessa canção: 
  
 
118 

2. 00:30  - Entrada do vocalize de Caetano executando notas bastante separadas entre si (saltando 
do bem agudo para o grave) que, por essa distância, chegam a dissolver a ideia de melodia. 
 

 
Figura 28: “Guá” - Vocalização inicial 
Fonte: o autor 

 
3. 00:44 - Caetano canta o tema principal da canção (água guamá Iguape ibualama). 

4. 00:54  -  Repetição  desse  tema,  agora  com  as  vozes  femininas  acompanhando  Caetano,  que se 
abrem em bloco nas últimas notas ("bualama"). 
 

 
Figura 29: “Guá” - Melodia com abertura de vozes 
Fonte: o autor 
 
5. 01:04 - Repetição disso. 

6. 01:15 - Repetição. 
7. 01:25 - Repetição.  
8. 01:36 - Volta o vocalize inicial de Caetano.  
9. 01:46  -  Refrão  novamente,  agora  com  a  voz  feminina no registro grave e abertura de vozes no 
nal. O violão também segue para um registro grave, com o kissanji repetindo o ostinato. 
10. 02:05  -  O  kissanji  continua  o  ostinato,  mas  o  violão só faz ataques nas cabeças dos compassos 

(agora de volta no agudo), acompanhado de uma percussão.  


11. 02:28 - Caetano volta cantando o vocalize do início. 

 
119 

12. 02:45  -  O  violão  volta  a  fazer  a  levada  do  início  (3-3-3-3-4),  para  então,  logo  em  seguida,  ir 
para  um  registro  mais  grave  quando  as  vozes  voltam  cantando  o  refrão  [água  guamá  iguape 
ibualama],  com  pequena  variação  das  vozes  no  nal,  que  repetem  a  palavra  ibualama  até  o 
nal em fade out em 03:14. 
 
“Gravidade”  é  outro  exemplo  de  canção  construída  sobre  frases  melódicas  curtas.  Nesse 

caso,  o  arranjo  explora  essas  frases  que  se  repetem  e  cria  diversos  momentos  de  contraste,  como  se 
pode  notar  no  grá co  a  seguir,  que  são  estabelecidos,  principalmente,  pelas  mudanças  de 
instrumentação.  Nos  momentos  em  que  Caetano  canta  a  palavra  “asa”,  ele  está  apenas 
acompanhado  pelo  violão,  re etindo  certa leveza no arranjo. Quando, porém, ele canta versos como 
“pedras  no  fundo  do  azul”,  “seixo  rolando  no  leito”  e  “brasa  debaixo  da  cinza”,  a  voz  aparece 
acompanhada  pela  banda,  com  maior  intensidade  da  bateria.  Acredito  que  aqui  o  arranjo  re ita  o 

sentido  das  palavras  cantadas:  a  menor  intensidade  aparece  associada  à  leveza  e  à  palavra  “asa”, 
simbolizando  vôo.  O  peso  da  instrumentação  nos  outros  versos,  por  outro  lado,  re ete  também  o 
movimento  de  “puxada ao chão” da gravidade do título, e a ideia de queda está presente nas palavras 
“fundo”, “debaixo”, rolando” que são cantadas. 
 

 
Figura 30: Grá co 10 - “Gravidade” 
Fonte: o autor 
  
1. 00:00  -  Caetano  executa  ao  violão  o  acorde  de  B7(9),  marcando  o  compasso  ternário  e 
de nindo  o  centro  modal  em  Si  Mixolídio.  A  melodia,  por  outro  lado,  tem  divisão  binária, 
mas com mesmo pulso (semínima igual a semínima). 
2. 00:14  -  Todos  os  instrumentos  atacam  as  notas  junto  com  a  voz,  que,  por  sua  vez,  o  faz  em 
semínimas. 

3. 01:21  -  Pequena  mudança  em  que  a  segunda  frase  é  repetida  diversas  vezes  com  letras 
diferentes.  

 
120 

4. 02:07  -  A  canção  parece  se  nalizar  no  acorde  de  C#7  [“seixo  rolando  no  leito  de  um  rio”], 
ca alguns segundos em silêncio, e volta em 02:16 [“seixo, seixo…”]. 
5. 02:19  -  Repete  quatro  vezes  a  frase  ["destino  do  destino”],  a  última com um ralentando para 
nalizar. 
 
A  canção  "Pelos  Olhos",  por sua vez, seja com a proposta de instrumentação reduzida, mas 
tem,  na  parte  A,  um  arranjo  fechado,  o  que  não  aparece  com frequência no disco Jóia, que tende a 
ter  arranjos  mais  abertos  em  formas menos  xas. O que se destaca no trecho é o conjunto de  autas, 
tocadas  por  Altamiro  Carrilho,  Celso  Woltzenlogel,  Franklin  Corrêa  da Silva (Franklin da Flauta) e 

Jorge  Ferreira  da  Silva  (Jorginho  da  Flauta),  músicos  de  grande  destaque  nesse  instrumento  no 
cenário  nacional.  O  arranjo  foi  escrito  por Perinho Albuquerque79. As  autas executam a harmonia 
do  trecho,  que  não  conta  com  instrumentos  harmônicos  até  a  entrada  do  violão,  na  parte  B. 
Executando  notas  de  longa  duração,  elas  funcionam  como  cama harmônica para a melodia cantada 
por Caetano, e nos momentos de pausa da voz, fazem alguns contracantos melódicos. 
A  canção  segue  a  forma  usual  ABA,  embora  as  partes  separadas  não  estejam  dentro  da 

quadratura  tradicional.  A  parte  A  da  música  tem  28  compassos,  divididos  em  uma  seção  com  15  e 
outra  de  repetição  sem  os  últimos  dois  compassos,  ou  seja,  com  13.  A  parte  B,  por  sua vez, aparece 
com 10 compassos.  
 

 
Figura 31: Grá co - “Pelos Olhos” 
Fonte: o autor 
  
1. 00:00  -  Entrada  da  voz  com  as  autas  em  bloco  executando  notas  longas  [“O  Deus  que 
mora…”]. 
2. 00:15 - Flautas em movimento polifônico, até voltar o bloco com notas longas em 00:28. 

Essas  informações  estão  presentes  na  cha  técnica  publicada  no  site  Discos  do  Brasil,  organizado  por  Maria  Luiza 
79

Kfouri. Disponível em: http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI00664. 


 
121 

3. 00:40  -  Caetano  canta  "de  minha  amiguinha"  com  apenas  uma  auta  fazendo  uma  melodia 
como  contracanto,  contrastando  com  a  primeira  parte.  Em seguida, cerca de 3 ou 4 segundos 
se  passam  em  completo  silêncio,  e  então,  em 00:46, repetição de tudo que havia aparecido até 

então, com mudança na letra.  


4. 01:26  -  Aqui  o  contraste  aparece  novamente  quando  Caetano  canta  "de  minha  amiguinha", 
agora com a saída das autas e o aparecimento do violão, numa levada de bossa-nova. 
5. 01:53  -  Ocorre  a  volta da estrofe inicial [“O Deus que mora…”], sem o violão e com as  autas, 
e  nalização da canção em 02:35, após Caetano cantar novamente "de minha amiguinha" com 
uma auta fazendo um contracanto. 

  
A  canção  “Lua,  Lua,  Lua,  Lua”  é estruturada com um arranjo semiaberto, que inclui uma 
seção  nal  com  improvisos  vocais  —  os  quais  também  aparecem  em  “Minha  Mulher”  —  e  dos 
instrumentos.  Os  instrumentos  presentes na gravação são o órgão, que no disco aparece apenas aqui 
e  na  faixa  “Canto  do  Povo  de  um  Lugar”,  executado  com  notas  de  longa  duração  por  Antônio 
Adolfo  (pianista  compositor  de  sucessos  da  música  brasileira,  como  as  canções  "Sá  Marina"  e 

"BR-3"),  e  a  percussão,  que  não  aparece  na  cha  técnica  da  canção  no  disco.  Quanto  à  forma  da 
composição,  há  apenas  a  parte  A  (e  uma  seção de improviso ao  m). O contraste rítmico aparece na 
última  seção,  principalmente  pela  execução  da  percussão  em  quiálteras;  não  há,  porém,  grandes 
contrastes  de  intensidade  (exceto  em  momentos  especí cos  de  silêncio),  como  se  pode  notar  no 
grá co a seguir: 
 

  
Figura 32: Grá co - “Lua, Lua, Lua, Lua” 
Fonte: o autor 
  
1. 00:00  Entrada  conjunta  de  voz,  órgão  e  percussão.  O  órgão  se  estabelece  em  notas  longas, 

enquanto a percussão faz ataques rápidos, mas discretos. 


2. Em momentos como 00:29, quando Caetano canta a palavra "estanca", ocorre silêncio total. 
 
122 

3. Mesmo silêncio em 01:20. 


4. Mesmo silêncio em 02:10. 
5. 02:34  -  Nesse  momento,  Caetano  começa  a  repetir  o verso "lua lua lua lua", a percussão passa 

a  executar  os  ataques  de  forma  “tercinada”,  ocorrendo  uma  polirritmia  (aqui  no  caso  a 
percussão  é  tocada  em  um  compasso  6/8,  enquanto  os  outros  instrumentos  estão  em  4/4). 
Em  seguida,  ocorrem  vocalizes  improvisados  de  Caetano  sobre  o  órgão  e  a  percussão,  algo 
similar  na  voz  ao  que  já  acontece  no  nal  da  canção  "Minha  Mulher":  uma  improvisação 
modal  sobre  os  acordes  de  A7M  e  Aº  e  que,  nesse  contexto,  soa  quase de forma ritualística, e 
que segue até o nal em fade out. 
 
Uma  das  poucas  canções  na  qual  é  possível  identi car  o  uso de contrastes como elemento 
estrutural  do  arranjo  é  “Canto  do  Povo  de  um  Lugar”. Nessa faixa, é possível notar com clareza um 

aumento  progressivo  na  intensidade  a  partir  de  momentos  distintos  dentro  da  canção:  uma  parte 
acapella,  outra  com  voz  e  instrumentos,  outra  na  qual Caetano passa a cantar a melodia uma oitava 
acima  do  que  estava  cantando  anteriormente,  e  assim  por  diante.  Isso  se  re ete  também  no  grá co 
da canção: 
  

  
Figura 33: Grá co - “Canto do Povo de um Lugar” 
Fonte: o autor 
  
1. 00:00  -  Caetano  inicia  cantando  acapella  [“Todo  dia…”].  Aqui  também  o  silêncio  é 
explorado,  uma  vez  que  entre  o  m  da  frase  de  Caetano  e o início da próxima, ocorrem cerca 

de quatro segundos de silêncio (00:10-00:14). 


2. 00:15 - Entrada dos instrumentos com a voz, dividindo os compassos em três tempos. 
3. 00:44  -  Ocorre  crescimento  na  dinâmica:  mais  instrumentos  aparecem,  a  voz  é  dobrada,  e há 
uma  levada  próxima  do  rasqueado  no  violão.  É  possível  notar  uma  intenção  rítmica  de  4 

 
123 

colcheias  pontuadas  no  compasso  de  três  tempos  -  isso  aparece  em  um  dos  instrumentos  de 
cordas em registro mais agudo. 
  

 
Figura 34: Canto do Povo de um Lugar - 4 sobre 3 
Fonte: o autor 
  

4. 01:40  -  A  voz  de  Caetano  vai  para  a  oitava  de  cima,  dobrada  novamente,  com mais aumento 
de  intensidade,  até  haver  uma  redução  drástica  de  intensidade  em  02:09,  voltando  para  a 
oitava  inferior,  exatamente  quando Caetano canta "lua mansa", re etindo uma relação entre a 
letra e o arranjo. 
5. 02:20  -  Início  de  um  outro  momento  dentro  da  música:  solo  de  viola  em  terças remetendo a 
uma  sonoridade  sertaneja,  que  ao  mesmo  tempo  "entra  em  con ito"  com  os  improvisos  que 
ocorrem no órgão ao mesmo tempo, mais associados a uma estética de rock psicodélico. 

6. 03:28  -  Vozes  de  Caetano  em  movimentos  paralelos  num  acorde  diminuto,  em  um  tipo  de 
arranjo  vocal  que  remete  a  bandas  britânicas  como  os  Beatles80;  os  instrumentos  seguem  um 
crescendo de intensidade com a tensão do acorde. 
7. 03:46  -  Resolução  da  tensão  voltando  para  o  tema  principal  apenas  uma vez, seguindo para a 
nalização com os instrumentos saindo do plano principal. 
 
A  seção  5,  especi camente,  traz  elementos  que  considero  importantes.  Nesse  trecho,  é 
ressaltado  o  contraste  entre  signos  de  tradição  e  de  modernidade.  Inicialmente,  a  viola  executando 
uma  melodia  em  terças,  procedimento  comum  em  canções  sertanejas.  Quando  o  órgão  executado 
pelo  tecladista  Vermelho,  do  Grupo  Bendengó,  aparece  na  canção,  traz também consigo referências 
do  universo  sonoro  do  blues  e  do  jazz,  principalmente  pela  presença  das  blue  notes,  "bemolizações" 
de  algumas  notas  da  escala  musical.  A  justaposição  desses  elementos  regionais  e  estrangeiros  é  algo 

80
Minha principal referência ao apontar essa semelhança é a canção “Because”, do álbum Abbey Road. 
 
124 

constante  na  obra  de  Caetano  Veloso  e  aparece,  de  diferentes  maneiras,  nos  álbuns  do  período 
tropicalista, nos discos de Londres e no seu disco experimental, Araçá Azul81.  
Destaco,  também,  no  disco,  os  arranjos  feitos  para  canções  de  outros  compositores.  Da 
dupla Jóia e Qualquer Coisa, este é muitas vezes lido como um disco de “versões”, enquanto aquele é 
visto  como  um  disco  de  canções  originais, inclusive pelo próprio Caetano (BAHIANA, 1980). Isso 
porque  das  doze  faixas  de  Qualquer  Coisa,  apenas  quatro  são  composições  dele,  e  destas,  somente 
duas  (“Qualquer  Coisa”  e  “Nicinha”)  eram  totalmente  novas,  já  que  as  outras  (“Da  Maior 
Importância”  e  “A  Tua  Presença Morena”) já haviam sido lançadas por Gal Costa e Maria Bethânia, 
respectivamente.  Há,  porém,  pelo  menos  duas  canções  do  disco  Jóia  que não foram compostas por 
Caetano:  “Help”,  de  John  Lennon  e  Paul  McCartney,  e  “Na  Asa  do  Vento”,  de  Luiz  Vieira  e  João 
do  Vale.  Além  disso,  outras  composições  do  disco  tomam  elementos  de  obras  anteriores,  como 
“Pipoca  Moderna”,  música  de  Sebastião  Biano para a qual Caetano compôs a letra, e “Escapulário”, 
música do compositor sobre um poema de Oswald de Andrade.  
A  obra  de  Caetano  Veloso  é  repleta  de  momentos  de  intertextualidade  —  trechos  e 
fragmentos  musicais  que  fazem referência ou podem ser relacionados a outras obras dele e de outros 

autores.  O  musicólogo  mexicano  Rubén Lopez-Cano (2007) complementa dizendo que a noção de 


intertextualidade  não  se  refere  somente  à  relação  de  uma  obra  com  outras  anteriores,  mas  também 
inclui  as  relações  que  estabelece  com  algumas  posteriores.  Ele  também  aponta  que,  no  campo 
musical,  podemos  distinguir  pelo  menos  cinco  tipos  de  intertextualidade:  citação,  paródia,  tópico, 
alusão e transformação de um original.  
A  citação  ocorre  quando  um  autor  faz  referência  a  outra  obra,  seja  dele  mesmo  ou  de 
outro  compositor.  A  citação  geralmente  contrasta  com  o  resto  da  música,  é  feita  de  forma 

intencional  e  reconhecida  e  ocorre  com  certa  “literalidade”,  porque  uma  transformação  mais  forte 
da  obra  citada  já  con gura  outro  tipo  de  intertextualidade  (LÓPEZ-CANO,  2007).  Pensando  na 
obra  de  Caetano  Veloso,  identi co  o  disco  Transa  como  o  ápice  do  uso  de  citações.  Em  canções 
como  “You  Don’t  Know  Me”,  por exemplo, Caetano cita “Maria Moita” (Carlos Lyra e Vinicius de 
Moraes),  “Reza”  (Edu  Lobo  e  Ruy  Guerra),  “Hora  do  Adeus”  (Luiz  Queiroga  e  Onildo  de 

  A  canção  “2001”,  de  Tom  Zé  e  Rita  Lee,  coloca  lado  a  lado  o  “caipira”  e  a  modernidade  representada,  à época, pela 
81

corrida  espacial.  Nesta  canção,  porém,  o  humor  é  parte  estrutural,  o  que  já  não  ocorre  em  “Canto  do  Povo  de  um 
Lugar”. 
 
125 

Almeida)  e  “Saudosismo”,  sua  composição  de  1968.  Esse  tipo  de  procedimento  aparece  em  quase 
todas as canções daquele disco.  
Quanto  à  paródia,  refere-se  à  “utilização  de  um  tema,  fragmento,  ou  ideia  de  uma  obra 

especí ca  como  ponto  de  partida  para  a  composição  de  outra  obra  diferente”,  como  aponta 
López-Cano  (2007,  p.  32).  O  autor  também  ressalta  que,  embora  o  termo  paródia  seja  utilizado 
com  o  sentido  de  imitação  satírica  ou  zombeteira,  em  sua  acepção  original  refere-se  basicamente  à 
reelaboração  de  um  material  original.  Noto  esse  procedimento  em  canções  tropicalistas  como 
“Saudosismo”,  que  utiliza  a  melodia  de  “Fotogra a”,  de  Tom  Jobim, como forma de homenagear a 
Bossa  Nova  e,  ao  mesmo  tempo,  apontar  para  mudanças  estéticas  necessárias  naquele  período. 

Outro  exemplo  é  a  canção  “Alegria,  Alegria”,  que  Veloso  (1997)  conta  que  foi  composta  em  ritmo 
de marcha como referência e paródia da canção “A Banda”, de Chico Buarque.  
A  intertextualidade  por  “alusão”  ocorre  por  “referências  vagas,  possíveis  ou  latentes  a 
estruturas,  sistemas  ou  procedimentos  gerais  que  uma  obra  faz  do  estilo  geral  de  um  autor, tipo de 
música  ou  mesmo  uma  cultura  musical”.  Já  a  intertextualidade  por  “tópico”,  de  acordo  com  “é  a 
remissão  de  uma  obra  escrita  em  determinado  estilo  a  um  estilo,  gênero  tipo  ou  classe  de  música 

diferente.  Aqui,  a  remissão  não  se realiza para uma obra especí ca e reconhecível como tal, mas para 


amplas  áreas  gerais  sem  paternidade  autoral  especí ca”  (LÓPEZ-CANO,  2007,  p.  35-36)82.  Noto 
esta  última  em  canções  como  “Triste  Bahia”,  também  do  álbum  Transa,  que  inclui  diversos 
elementos  de  canções  de  roda  de capoeira naquele contexto de MPB e música pop no qual o disco se 
insere. 
No  caso  das  canções  “Help”  e  “Na  Asa  do  Vento”,  o  procedimento  intertextual  que  se 
destaca  é  o  de  transformação  de  um  original83. López-Cano (2007, p. 33-34) identi ca dois tipos 

principais desse procedimento: 


 
Por  diversas  razões  uma  obra  pode  ser  revisada,  arranjada,  receber  versão  ou  ser  reescrita 
por  seu  autor  ou  outro  compositor.  (...)  As  transformações  em  uma  obra  pode  ser 

82
  Tradução  minha.  Original:  “es  la  remisión  desde  una  obra  escrita  en  determinado  estilo,  a  un  estilo,  género,  tipo  o 
clase  de  música  diferente.  Aquí  la  remisión  no se realiza hacia una obra especí ca y reconocible como tal, sino a amplias 
áreas genéricas sin paternidad autoral especí ca”.  
83
  Identi co  também  esse  procedimento  nas  versões  que  Caetano  faz  de  “Carolina”  (Chico  Buarque),  “Coração 
Materno”  (Vicente  Celestino) — embora haja o sentido de sátira nessas gravações, o que não aparece nas canções do Jóia 
—,  “Mora  na  Filoso a”, “Tu Me Acostumbraste” e as versões de Beatles, Jorge Ben e Chico Buarque no disco Qualquer 
Coisa. 
 
126 

corretivas-substitutivas  ou  cumulativas.  Nas  transformações  corretivas-substitutivas  o 


autor  ou  arranjador pretende arrumar os ‘erros’ das versões anteriores de tal maneira que a 
nova  versão  deve  substituí-las.  (...)  As  transformações  cumulativas  se  originam  quando  a 
nova  versão  soma-se  às  anteriores  sem  negá-las,  ampli cando  as  possibilidades  de 
manifestação da mesma obra84.  
 
Acredito  que  esta  última  —  transformação  cumulativa  —  é  a  mais  adequada  para 
descrever  as versões daquelas canções no disco. Em outro artigo, López-Cano (2012) coloca também 
que,  entre  os  tipos  de  versões,  existem  as  que:  1)  pretendem  ser  o  mais  parecidas  possível  com  o 
original;  2)  transformam  a  música  em  maior  ou  menor  medida,  geralmente  para  adaptá-la  ao estilo 
do  cantor  ou  banda;  e  3)  manipulam  tanto a estrutura original que a nova versão luta para se tornar 

um tema independente.  
Considero  as  gravações  de  “Help”  e  “Na  Asa  do  Vento” como exemplos do segundo caso. 
A  primeira,  de  Lennon  e  McCartney  (gravada  pelos  Beatles  e  lançada  originalmente  em  1965  no 
disco  Help),  é  interpretada  aqui  apenas  com  voz  e  violão  —  instrumentação  que  é  explorada  por 
Caetano  nesse  álbum  mais  do  que  em  qualquer  outro  dele  até  aquele  momento.  A  versão  de 
Caetano  para  a  canção  dos  Beatles  é  tocada  num  andamento  bem  mais  lento  que  o  da  gravação 

original,  e  o  cantor  confere  à  música,  com  sua  interpretação,  uma  melancolia  que  não estava visível 
na versão da banda britânica. Vejamos a estrutura dessa faixa: 
 

 
Figura 35: Grá co - “Help” 
Fonte: o autor 
 
1. 00:00  -  Entrada  da  voz  com  o  violão  [“Help,  I  need  somebody…”].  Notar  que  o  andamento 

está  mais  lento  que  o  dos  Beatles,  e  que  Caetano  faz  diferentes  divisões  rítmicas das cantadas 

84
Original:  “por  diversas  razones  una  obra  puede  ser  revisada,  arreglada,  versionada  o  incluso  reescrita  por  su  autor  u 
otro  compositor.  (…)  Las  transformaciones  a  una  obra  pueden  ser  correctivas-sustitutivas  o  acumulativas.  En  las 
transformaciones correctivas-sustitutivas el autor o arreglista pretende emendar los ‘errores’ de las versiones anteriores de 
tal  suerte  que  la  nueva  versión  debe  sustituirlas.  (…)  Las  transformaciones  acumulativas  se  originan  cuando  la  nueva 
versión se suma a las anteriores sin negarlas, ampli cando las posibilidades de manifestación de la misma obra”.  
 
127 

por  Lennon,  principalmente  deslocando  o  ataque  da  palavra  “Help”,  que  na  gravação  dos 
Beatles  ocorre  sempre  no  primeiro  tempo  do  compasso, e na versão de Caetano surge sempre 
um  pouco  “atrasada”.  Nesse  trecho  inicial,  também,  a  versão  de  Caetano  quebra  com  a 

métrica estabelecida pela gravação original e torna o compasso ternário nessa parte da canção. 
 

 
Figura 36: “Help” - Versão original dos Beatles 
Fonte: o autor 
 

 
Figura 37: “Help” - Versão de Caetano Veloso 
Fonte: o autor 
 
2. 00:14 - Caetano canta apenas tocando os baixos nessa primeira parte da estrofe. 
3. 00:31  -  Subdivisão  desse  momento,  no  qual  acordes  bossanovistas  entram  acompanhando  a 

voz de Caetano.  
4. 00:47 - Volta o trecho em que Caetano canta: “Help me if you can…”. 
5. 01:22 - Volta a estrofe novamente [And now my life has changed...]. 

6. 01:54  -  [“Help me if you can…”]. Não se estabelece uma levada especí ca, o violão geralmente 


acompanha  os primeiros tempos de cada compasso. A canção termina sem voltar para o refrão 
do início, apenas naliza na tônica. 

 
Na  versão  original  dos  Beatles,  a  canção  é  estabelecida  dentro  do  estilo  pop  rock.  Na 
gravação  de  Caetano,  por  sua  vez,  há  elementos  de  blues  na  levada e na interpretação, que se alterna 
 
128 

com  um  ritmo  pop  e  de  bossa-nova.  Esta  última  é  reforçada  por  harmonias  tetrádicas,  que  não 
aparecem  na  gravação  da  banda  britânica.  Em  alguns  momentos,  o  canto  de  Caetano  adota 
elementos  recitativos,  explicitando  ritmos especí cos da fala e realizando in exões que reforçam esse 
caráter85.  
A  outra  canção,  “Na  Asa  do  Vento”,  de  João  do  Vale  e  Luiz  Vieira,  foi  lançada  pela 
primeira  vez  por  Dolores  Duran  em  um  compacto  de  1956.  Na  gravação  dela,  a  instrumentação 

típica  do  xote  está  presente:  o  triângulo,  a  zabumba  e  o  acordeão.  As  gravações  posteriores  feitas 
pelos  compositores,  assim  como  a  versão  de Fagner, também se aproximam dessa de Dolores Duran 
tanto  no  aspecto  rítmico,  como  na  instrumentação  e  nas  in exões melódicas86. Na interpretação de 
Caetano,  como  na  versão que ele fez para “Help”, a instrumentação passa a ser somente voz e violão, 
dentro  da  estética  contida  e  minimalista  do  disco  Jóia.  Essas  interações  da  voz  com  o  violão  são 
justamente  os  pontos  de  destaque  dessa  gravação.  Há  certa  independência rítmica entre a levada do 
instrumento  e o canto: o acompanhamento é contínuo e em alguns pontos defasado com a melodia. 
A  levada  de  Caetano  assemelha-se  a  uma  toada,  mas  a  acentuação  que  ele  dá  aos  versos  lembra  um 
baião.  

Assim  como  na  versão  de  “Help”,  em  “Na  Asa  do  Vento”  Caetano  adota  uma  harmonia 
tetrádica,  com  sextas,  sétimas  maiores  e  menores  e  nonas,  enquanto  outras  versões,  como a de Luiz 
Vieira  e  a  de  João  do  Vale,  mantêm  uma  harmonia  triádica.  De  certa  forma, isso também aproxima 
essa  versão  à  estética  da  Bossa  Nova.  Essa  aproximação  também  ocorre  no  âmbito  do  arranjo:  no 
disco  Jóia,  as  canções  de  outros  compositores passam pela triagem da estética bossanovista ― são 
“enxugadas” e abordadas de forma minimalista. 
Essa  primeira  abordagem  do  arranjo  das  canções  teve  caráter  um  pouco  mais  descritivo 

para  justamente  explicitar  os  elementos  dispostos  na  gravação.  Nos  próximos  tópicos,  analisarei  as 
especi cidades  de  cada  procedimento  e  as  possíveis  intenções  envolvidas  em  cada  escolha  estética, 

85
  Para  identi cação  desse  elemento,  basta  comparar  a  forma que Caetano Veloso e John Lennon cantam os versos “not 
just  anybody”,  “I  know  that  I just need you like I’ve never done before”, por exemplo. Caetano faz divisões rítmicas que 
valorizam cadências próprias da fala.  
86
Ouvir essas versões na seguinte playlist:  
https://open.spotify.com/playlist/0SfLIMKSdHAME4u6gxLHT3?si=1yEbm24kRWKRqLeXW7jj2A.  Acrescentei  à 
lista  uma  versão  feita  pelo  cantor  Ednardo,  que  foge  da  estética  que  outras  gravações  propuseram. Na dele, incluem-se 
elementos  de  gêneros  muito  distintos,  como  o  ijexá  e  o  fado  português,  que  contribuem  para  uma  escuta  bastante 
interessante. 
 
129 

seja no âmbito dos ritmos, das melodias, das harmonias ou dos timbres, buscando identi car pontos 
em comum nas faixas. 
 

4.3 Breves Comentários sobre Ritmos, Levadas e Gêneros Musicais 


 
Há  uma  miríade  de  ritmos  e  levadas  presentes  no  disco  Jóia,  e  todos  passam  pelo  ltro 
estético  intimista do álbum, re etido principalmente no arranjo, que faz com que haja certa unidade 
mesmo  com  tanta  diversidade.  Vejamos  alguns  exemplos  especí cos,  como  a  canção  “Minha 
Mulher”.  Embora,  nesta,  a  levada  no  violão  não  necessariamente  represente  um  ritmo  especí co,  a 

presença  do  tresillo  no  violão  de  Caetano  (note  a  voz  mais  grave  na  partitura  a  seguir)  tem  sentido 
ambíguo,  podendo remeter a gêneros brasileiros como o baião, assim como a gêneros latinos como o 
bolero  e  a  habanera87.  Há  também  grande  aproximação  com  a  levada  de  toada.  Aciona-se  aqui  um 
signo  que,  à  primeira  audição,  já  remete  a  ritmos  latinos  de  in uência  africana  e,  por  outro  lado,  à 
cultura caipira na qual a toada se faz presente. 
 

 
Figura 38: “Minha Mulher” - Violão de Caetano Veloso, Parte A 
Fonte: o autor 
 

  Como  aponta  Sandroni  (2002),  o  tresillo  já  recebeu  o  nome  de  “síncope  característica”  ou  “ritmo  da  habanera”. 
87

Trata-se,  basicamente,  de  um  conceito  segundo  o  qual  haveria,  em  um  compasso,  oito  subdivisões,  as  quais  são 
agrupadas  da  forma  3-3-2.  Dessa  forma,  acentua-se  a  primeira,  a quarta e a sétima dessas subdivisões. Em um compasso 
2/4, o tresillo pode ser simpli cado com duas colcheias pontuadas e uma colcheia regular.  
 
130 

Já  na  parte  B,  a  levada  do  violão  de  Gilberto  Gil  remete,  de  certa  forma,  à  sonoridade  do 
funk  americano,  com  as  síncopes  características  do  estilo.  Aqui,  porém,  reduzidas  ao  violão,  sem  a 
formação  instrumental  de  baixo,  guitarra  e  bateria,  que  costumam  aparecer  nas  gravações  desse 

gênero.  Essa  mistura  de  funk  e  toada  faz  parte  de  um  procedimento  geral  no  disco,  que  é  o  de 
integrar elementos locais a outros estrangeiros.  
 

 
Figura 39: “Minha Mulher” - Transcrição aproximada do violão de Gilberto Gil - Parte B 
Fonte: o autor 
 

Quanto  ao  andamento,  a  música  possui  oscilações, com leve aumento em trechos da parte 


B.  Isso  pode  indicar  que  a  canção  foi  gravada  ao  vivo  em  estúdio,  sem  utilização  de  metrônomo. 
Nesse  sentido,  é  um  tipo  de  composição  que  possivelmente  se  completou  (tomou  sua  forma  nal) 
em  estúdio  —  com  uma  estrutura  melódico-harmônica  de nida  anteriormente,  mas  com seções de 
improviso. 
Já  a  canção  “Guá”  evoca  diversos  signos  associados  à  música  de  origem  africana.  Além do 
uso  do kissanji, instrumento de origem angolana, as percussões da gravação remetem diretamente ao 

ambiente  do  candomblé.  Como  Risério  (2007)  aponta,  as  células  rítmicas  executadas  pelas  congas 
sugerem  o  “agueré  de  Oxóssi”,  toque  especial  de  tambor  para  essa  divindade.  “Guá”  entraria,  na 
visão  do  autor,  no  grupo  de  músicas  religiosas  negras.  Este,  diferente  da  Black  Religious  Music 
americana,  que  geralmente  é  associada  ao  hinário  protestante  com  gêneros  como  o  spiritual  e  o 
gospel,  trata-se  de  música sacra de origem africana tal como as praticadas nos terreiros de Umbanda e 
Candomblé.  

 
131 

Para  Risério,  Caetano criou, em “Guá”, um neo-agueré. Ao mesmo tempo, o autor aponta 


certa  retomada  de  um  mito  das  três  raças  na  letra  da  canção,  a  qual  traz  as  palavras  “água”, 
portuguesa,  “Guamá”  e  “Iguape”,  do  tupi,  referentes  ao  Rio  Guamá  e  o  Lagamar  de  Iguape,  e 
“Ibualama”, de origem yorubá, refere-se a um orixá-nagô e signi ca “água profunda”.  
Se  em  “Guá”  a  aproximação  com  uma  cultura  indígena  se  dá  pela  letra,  em  “Asa, Asa” ela 
ocorre  na  melodia,  que,  como  vimos  anteriormente,  foi  muito  in uenciada  pela  música dos Yudja, 

do  Baixo  Xingu,  cuja  língua,  Juruna,  é parte do tronco tupi. Porém, é possível também associar essa 


canção  ao  universo  sonoro  do  blues  e  do  jazz,  por  dois  motivos  principais.  O  primeiro  se  refere  ao 
ritmo  da  melodia,  que  é  construído  no estilo "swing eights", que se contrapõe aos "straight eights" da 
percussão.  De  forma  bastante  simpli cada,  "swing  eights"  refere-se  a  uma  divisão  rítmica  na  qual 
duas  colcheias  são  executadas  como  uma  semínima  e  uma  colcheia  em  quiáltera,  conferindo  o 
“swing” característico desses gêneros musicais.  

 
Figura 40: Representação dos “swing eights” 
Fonte: o autor 
 
O  segundo  elemento  da  canção  que  remete  a  esse  universo  sonoro  é  a  presença  das  blue 

notes  — algumas notas da escala são "bemolizadas", executadas um semitom abaixo do que seriam na 
escala  diatônica.  As  blue  notes  aparecem  aqui  no  terceiro  e  no  quinto  grau  da  escala:  a  nota  dó 
aparece,  em  um  momento,  no  lugar  da  nota  dó  sustenido  (III  grau  da  escala  de Lá Maior), e a nota 
mi bemol aparece no lugar da nota mi natural (V grau da escala). 
 

 
132 

 
Figura 41: “Asa, Asa” - Melodia 
Fonte: o autor 
 
Quanto  às  outras  canções  do  disco,  cada  uma  apresenta  ritmos  distintos.  O  que 
encontraremos  em  quase  todas  é  algum  nível  de  desconstrução  das  levadas  características  de  cada 
ritmo.  Canções  como  “Pelos  Olhos”  e  “Lua,  Lua,  Lua,  Lua”  dissolvem  os  ritmos  através  de 
acompanhamentos  harmônicos  que  utilizam  notas  longas,  que  duram  todo  o  compasso.  Apesar 
disso,  é  possível  identi car  na  primeira  uma  variação  da  levada  de  bossa-nova  quando  o  violão 
aparece,  na  parte  nal.  A  con rmação  desse  gênero  também  ocorre  ao  observarmos  a  progressão 

harmônica  do  trecho  e  os  acordes  alterados,  característicos  desse  estilo.  Já  “Lua,  Lua,  Lua,  Lua” 
parece  sugerir  o  ritmo  de  um  bolero,  o  que  é  reforçado  pelas  percussões,  que  fazem  intervenções 
irregulares  em  alguns  momentos.  A  partir  de  02:33,  o  ritmo  muda  para  uma  subdivisão  ternária, 
marcada com clareza pela percussão enquanto a harmonia sustenta um baixo pedal.  
“Canto  do  Povo  de  um  Lugar”,  por  sua  vez,  traz  uma  levada  próxima  de  uma 
marcha-rancho,  mas  explora  uma  métrica  irregular,  formada  por  compassos  binários  e  ternários, 
como  se  pode  notar  na  gura  a  seguir.  Essa  alternância  entre  compassos  binários e ternários é parte 

estrutural  da  canção,  haja  vista  que  o  trecho  acima  representa  toda  a  melodia  da  canção,  que  é 
repetida com variações nos versos. 
 

 
Figura 42: “Canto do Povo de um Lugar” - Melodia 
Fonte: o autor 
 

 
133 

Já  a  canção  “Escapulário”  trata-se  de um samba sem acompanhamento harmônico, apenas 


com  vozes  e  percussão,  enquanto  “Pipoca  Moderna”  muito  provavelmente  se  trata  de  um 
samba-de-matuto.  A  historiadora  Cristina  Eira  Velha  (2008)  desenvolveu  um  trabalho 
especi camente  sobre  a  Banda  de  Pífanos  de Caruaru e identi cou essa canção, composta pelo líder 
do  grupo  Sebastião  Biano,  como  representante  desse  ritmo.  Ela  coloca  também  que  o 
samba-de-matuto  é um ritmo tradicional do interior nordestino que tem características do samba de 
roda.  Ao  conversar  com o professor Rafael dos Santos, notamos certa proximidade com o maracatu, 
principalmente  pelo  ritmo executado no tamborim. A autora, de certa forma, con rma essa visão ao 
apontar  que  “no  Dicionário  musical  brasileiro,  de  Mário  de  Andrade,  está  de nido  da  seguinte 

maneira: Verbete: ‘Samba do matuto: forma dançada e cantada da zona rural do Nordeste, originada 
do maracatu’” (VELHA, 2008, p. 212).  
Na  canção “Gravidade”, o compasso ternário e a levada do violão indicam o ritmo de valsa. 
Porém,  como  Ribeiro  (2020)  já  havia  notado,  a  melodia  parece  ser  construída,  em  trechos,  em 
compasso  binário,  o  que  sugere  uma  polimetria  (ver  gura  a  seguir).  Isso  ca  evidente  ao 
localizarmos  os  acentos  propostos  pela  linha  melódica  em  interação  com  a  palavra  cantada:  a  cada 

repetição da palavra “asa”, há maior acentuação. 


 

 
Figura 43: “Gravidade” - Estrutura fraseológica da primeira parte. 
Fonte: Ribeiro (2020, p. 292). 
 

 
134 

A  polimetria  também  aparece  na  faixa  “Jóia”.  Esta  é  uma  canção  na  qual,  como  aponta 
Segreto  (2014),  há  um  claro  interesse  na  parte  rítmica,  que  ganha  prioridade  sobre  a  parte 
harmônica.  Ele  coloca  que  em  “Jóia”  é  muito  evidente a sobreposição de  guras rítmicas irregulares 

sobre  um  pulso  xo,  o  que  Wisnik  (1989)  aponta  como  característica  rítmica  das  músicas 
não-europeias.  Há,  na  gravação,  uma  nota  mi  atuando  como  pedal,  pulso  xo,  sobre  a  qual  as 
percussões  farão  diferentes  divisões  rítmicas.  “As  vozes  e  o  pandeiro/platinelas predominantemente 
dividem  a  pulsação  binariamente  através  de  colcheias.  Já  o  atabaque  divide  o  pulso  em  tercinas  e  o 
bongô  divide  de  forma  ternária  o  espaço  equivalente  a  duas  pulsações”  (SEGRETO, 2014, p. 170). 
Além  disso,  há  uma  irregularidade  rítmica  entre  a  voz  e  os  instrumentos,  como  também  vimos  em 

“Gravidade”.  Como  podemos  ver  na  gura  a  seguir,  devido  ao  tamanho  dos  versos,  os  acentos  da 
melodia vocal cam deslocados e as frases melódicas seguem tamanhos irregulares. 
 

 
Figura 44: “Jóia” - Irregularidade métrica do canto em relação aos outros instrumentos. 
Fonte: Segreto (2014, p. 170). 
 
4.4 Os Usos do Modalismo 
 
Uma  dimensão  muito  importante do disco Jóia é o uso de procedimentos modais. Ribeiro 
(2020,  p.  291)  comenta  que  a  “perspectiva  universalista,  atemporal  e  minimalista  de Joia resultaria, 

naturalmente,  em  uma  signi cativa  abordagem  do  modalismo:  das  treze  canções  que  compõem  o 
 
135 

álbum,  oito  são  modais”.  Alguns dos exemplos de modalismo no disco Jóia se situam num contexto 


de  “Modalismo  Pós-Tonal”;  Ribeiro  (2020)  explica  que,  nesse  caso,  os modos estão, de certa forma, 
subordinados  à  harmonia  tonal,  ou  seja,  aos  procedimentos  provenientes  desta,  como  os 

encadeamento  de  acordes.  É dessa forma que procedimentos como Intercâmbio Modal, Modulação 


Modal  e  Polimodalidade  e  Hibridismo  Modal-Tonal  são  utilizados88.  Em  algumas  faixas  do  disco, 
como  “Jóia”  e  “Tudo  Tudo  Tudo”,  porém,  podem-se  notar  elementos  característicos  do 
Modalismo  Pré-Tonal,  cuja  base  não  está  nos  encadeamentos  harmônicos,  mas  nas  construções 
melódicas polifônicas sobre estruturas rítmicas xas. 
  
Se  Qualquer  Coisa  se  baseava  na  improvisação  e  no  'vale-tudo', com generosas pitadas de 
música  pop,  Jóia,  por  sua  vez,  reunia  pequenas  peças  cuidadosamente  arranjadas,  de 
caráter  minimalista.  Segundo  Veloso,  'cada  faixa  era  uma  jóia'.  Os  releases  distribuídos  à 
imprensa,  escritos  pelo  próprio compositor em forma de manifesto, de niam as intenções 
de  cada  álbum:  a  abordagem  livre  e  relaxada  de  Qualquer  Coisa  era  justi cada  pela 
premissa  bíblica  de  que  não  há  'nada  de  novo  sob  o  sol',  enquanto  Jóia  revelava  uma 
aspiração à universalidade e à atemporalidade (RIBEIRO, 2020, p. 291). 
  

Uma  das  canções  modais  do  LP  Jóia  é  “Minha  Mulher”,  na  qual  prevalece  o  modo  eólio, 
com  centro  tonal  em  fá.  Isso  ca  claro  com  a  presença  do  terceiro,  sexto  e  sétimo  graus 
"bemolizados" (formando intervalos menores em relação à fundamental). A presença do sétimo grau 
não  como sensível, mas como subtônica, reforça o caráter não-tonal da canção, assim como o fato de 
que  esse  grau  só  aparece  na  canção  de  forma  descendente,  tirando  qualquer  sensação  de 
"tensão-buscando-resolução" que essa nota poderia gerar. 

88
São  todos  conceitos  que  Ribeiro  (2020)  aborda.  Intercâmbio  modal  (também  chamado  de  Permutabilidade  Modal) 
refere-se a momentos nos quais, em uma música, ocorre mudança de modo sem mudança de centro tonal. Ex: mudança, 
em determinado trecho de uma peça, de Lá Dórico para Lá Eólio. Modulação modal refere-se à mudança de centro tonal 
em  uma  música.  Polimodalidade  ocorre  quando  há  dois  modos  sendo  executados  ao  mesmo  tempo (ex: a melodia está 
em  Mi  Lídio  e  a  harmonia  em  Mi  Jônico).  Hibridismo  Tonal-Modal  caracteriza-se  pela  incorporação  de  elementos 
tonais (como cadências, progressões de dominante para tônica) em peças modais. 
 
 
136 

  
Figura 45: “Minha Mulher” – Melodia da Parte A 
Fonte: o autor 
  

Além  da  construção  melódica,  a  canção  ganha  outro  nível  de  interesse  ao  analisarmos  a 
construção  harmônica  que  a acompanha, devido ao uso incomum das estruturas modais. Enquanto 
a  melodia  da  parte  A  está  construída  no  modo  eólio,  a  harmonia  situa  a  canção,  em  um  primeiro 
momento,  no  modo  mixolídio,  utilizando  o  acorde  maior  com  sétima  menor  e  nona  sobre  o 
primeiro  grau  —  ocorrendo  aqui  a  polimodalidade.  Quando,  porém,  ocorre  a  mudança  de  acorde 
do  F7(9)  para  o  E♭7(9),  este  último  desloca  a  harmonia  para o modo eólio, o mesmo da melodia — 
haja  vista  que  o  acorde  montado  sobre  o  sétimo  grau,  no  modo  mixolídio,  teria  a  sétima  maior,  e 
não menor como aparece na canção. 
Esses  dois  acordes  —  F7(9)  e  E♭7(9)  —  se  repetem  ao  longo de toda a parte A, ocorrendo 
aqui  o  processo  de  permutabilidade  ou  intercâmbio modal, que se refere, justamente, à utilização de 
material harmônico proveniente de diferentes modos sobre um mesmo centro tonal. 
 

 
137 

  
Figura 46: “Minha Mulher” – Parte A 
Fonte: o autor 
  
Na  parte B da canção, Caetano executa o acorde D7(9), que não pertence a nenhum modo 
de  fá.  Dentre  as  diversas  possibilidades  de  análise,  considerei mais plausível apontar o ré como novo 
centro  tonal,  e  o  acorde  maior  com  sétima  menor  construído  sobre  o  primeiro  grau  indica, 

consequentemente,  que  esse  trecho  encontra-se  no  modo  mixolídio.  No  compasso  17,  quando  o 
acorde  F7(9)  retorna,  a  nota  fá  se  estabelece  como  centro  tonal  novamente,  no  modo  mixolídio. 
Dessa  vez,  porém,  sem  a  polimodalidade da parte A; a melodia se estabelece dentro desse modo com 
um  arpejo  do  acorde  executado  (7-5-3-1),  movimento  melódico  que  é  bastante  característico  do 
modo  mixolídio,  por  reforçar  o  sétimo  grau  como  subtônica  ao  movimentá-lo  de  forma 
descendente.  Como  Ribeiro  (2020)  nota, muitas vezes os compositores recorrem a esse modo como 
índice  de  nordestinidade,  especi camente  um  imaginário  coletivo  associado  ao  sertão, representado 

muitas vezes no repertório de Luiz Gonzaga e Dominguinhos, por exemplo. 


Ocorre,  nos  compassos  seguintes,  o  uso  de  permutabilidade  modal,  com  a  entrada  dos 
acordes  B♭7(9)  e  E♭7(9),  dos  modos  dórico  e  eólio,  respectivamente. A progressão em intervalos de 
quartas,  de  certo  maneira,  suaviza  os  intercâmbios  modais:  os acordes assumem função dominante, 
embora  não  haja  o  sentido  de  resolução,  pois  os  acordes  em  sequência  não  são  de  estrutura  estável 
(possuem  também  o  trítono).  O  mesmo  ocorre  nos  últimos  compassos  dessa  parte,  com  o  acorde 

C7(9)  —  como  ocorre  sempre  um  retorno  à  parte  A,  há  uma  "resolução"  tonal  quando  o  acorde 
montado  sobre  a  nota  fá  é  executado  novamente.  Essa  resolução,  porém,  como  no  caso  anterior, 
dissolve  o  sentido  de  tonalidade  ao encontrar outra estrutura instável — o acorde maior com sétima 
menor e nona. 
 
138 

 
Figura 47: “Minha Mulher” - Parte B 
Fonte: o autor 
 

 
139 

A  canção  “Guá”  também  traz  o  modo  mixolídio  (com  centro  em  Dó),  mas  nesse  caso  o 
compositor  permanece  estritamente  nesse  modo.  Vicente  Ribeiro  (2020)  já  fez  uma  rica  análise  do 
uso  de  modalismo  nessa  faixa  (e  também  em  “Gravidade”)  e,  por  esse  motivo,  utilizarei-o  como 

referência  principal.  A  melodia  é  inteiramente  construída  nesse  modo  (caracterizado  pelo  sétimo 
grau  abaixado)  e  a  harmonia  centra-se  em  um  único  acorde:  C7(9),  o  primeiro  grau  do modo. Um 
dos  pontos  de  destaque  que  Ribeiro aponta é a superposição e a justaposição de elementos musicais 
provenientes  de  matrizes  distintas.  Ele  nota  que,  se  por  um  lado  a  base  em  mixolídio  remete  à 
musicalidade  nordestina,  por  outro  a  canção  “sustenta  uma  linha  melódica  em  que  é  empregado  o 
movimento  1-7-1,  característico  da  afro-brasilidades  na  in exão  do  nome  da  divindade  Ibualama, 
de  origem  iorubana"  (RIBEIRO,  2020,  p. 333). Embora essas matrizes (nordestina e afro-brasileira) 
não  sejam  auto-excludentes,  existem  diferenças  nas  temáticas  e  nos  procedimentos  harmônicos  e 
melódicos89. 
 

 
Figura 48: “Guá” - Melodia Principal 
Fonte: o autor 
 
Na  canção  “Gravidade”, o modo mixolídio também aparece, porém de modo diferente das 
duas  canções  citadas.  Como  coloca  Ribeiro  (2020),  a  melodia  da  canção  conta  com  o  IV  grau 
elevado  (característico  do  modo  lídio),  o  que  con gura  o  modo  híbrido  mixolídio  (#4).  No  plano 
harmônico,  são  utilizados  tanto  acordes  do modo mixolídio  — I7(9), bVII e IV  — como do modo 
lídio  —  II7  e  V.  Ribeiro  também  aponta  que  há  grande  ênfase  nas  relações  plagais nas progressões 
harmônicas  (movimentos  de subdominante para tônica). Ver, por exemplo, as sequências de acordes 

A  >  E  >  B.  Aqui,  o  acorde  de  lá  maior,  que  seria  o  acorde  perfeito  sobre  o  sétimo  grau  abaixado 
(bVII),  funciona  como  subdominante  da  subdominante  (o  acorde  de  mi  maior).  Por  m,  Ribeiro 
(2020)  nota  que  essa  música  traz  também  um  clichê  melódico  do  modo  mixolídio  que  reforça  o 
acento nordestino da canção: a sequência 7-6-5. 

  Ver  o  capítulo  4  de  Ribeiro  (2020),  no  qual  o  autor  analisa  diversas  canções  dessas  duas  matrizes  e  explicita  esses 
89

procedimentos.  
 
140 

 
Figura 49: “Gravidade” - Análise da parte A 
Fonte: o autor 
 
Se  as  canções  mencionadas  até  aqui  faziam  alusão  a  uma  sonoridade  nordestina,  a  canção 
“Na  Asa  do  Vento”  é,  de  fato,  uma representante dessa matriz. Composta por Luiz Vieira e João do 
Vale,  essa  música  é  quase  inteiramente  construída  dentro  do  modo  mixolídio.  Em  alguns  trechos, 
porém,  há  certo  hibridismo  modal-tonal,  o  que  é  muito  comum  nas  composições  dessa  matriz 
nordestina.  Ribeiro  (2020,  p.  349)  coloca  que  esse  procedimento, em artistas como Luiz Gonzaga e 

o  próprio  João  do  Vale,  está  relacionado  a  uma  estilização  urbanizante  dos  gêneros  tradicionais, 
como  o  baião  e  o  forró.  Ele  entende  que  essa  forma  de  hibridismo  “advém  da  autonomia  entre 
melodia  e  harmonia”,  o  que  acontece  regularmente  em  todos  as  matrizes  e  vertentes  pelas  quais  a 
música modal permeia no Brasil.  
 
141 

Nos  primeiros  sete  compassos  da  canção,  a  melodia  se  estabelece  dentro  da  escala 
pentatônica  de  Mi  maior  (o  IV e o VII graus não estão presentes). É apenas no oitava compasso que 
o  sétimo  grau  aparece  —  abaixado  —  explicitando  que  a  música  está  no  modo  mixolídio.  Alguns 
clichês  melódicos  característicos  desse  modo  (de  acordo  com  Ribeiro,  2020)  aparecem  na  canção  e 
reforçam essa sonoridade, como as sequências 5-4-3-1 e 6-1-1 (ver gura abaixo). 
 

 
Figura 50: “Na Asa do Vento” - Análise Melódica 
Fonte: o autor 

 
Os acordes executados, por sua vez, não deixam claro, num primeiro momento, se a canção 
está  no modo mixolídio ou no modo maior (jônico). É apenas quando aparece o acorde de Ré maior 
(bVII) que o primeiro modo se con rma.  

 
142 

 
Figura 51: “Na Asa do Vento” - Análise Harmônica 
Fonte: o autor 
 

 
143 

O  hibridismo  modal-tonal  aparece  na  segunda  parte  da  canção.  Nesta,  con rma-se  o 
caráter  tonal  quando o sétimo grau natural (sensível) aparece na melodia e quando a harmonia passa 
por diversas cadências que evidenciam o movimento da dominante para a tônica.  

 
Figura 52: “Na Asa do Vento” - Segunda Parte (Trecho Tonal) 
Fonte: o autor 
 
 
 
144 

Há  ainda  mais  uma  canção  no  disco  que  utiliza  elementos  do  modo  mixolídio:  “Tudo 
Tudo  Tudo”.  Esta,  porém,  aborda  o  modalismo  de  forma  um  pouco  diferente  das  canções 
anteriores:  é  executada  sem  o  acompanhamento  de  instrumentos,  apenas  as  palmas  que  ditam  o 
ritmo e algumas aberturas de vozes que sugerem harmonias.  
Essa canção foi composta como acalanto para seu  lho mais velho, Moreno, de acordo com 
depoimento de Caetano presente em seu livro Alegria, Alegria, de 1977. Ele conta que o número de 

repetições  da  canção  era  o  que  fosse  necessário  para  fazer  o  lho  dormir.  Nesse  sentido,  o  caráter 
cíclico e modal da canção ca claro e se encaixa na proposta estética do disco Jóia.  
Em  um  sistema  tonal,  a  narrativa  da  canção  é  normalmente  construída  a  partir  de 
estruturas  harmônicas  que  trazem  uma  sequência  usual  de  acontecimentos: 
introdução-desenvolvimento-clímax-desfecho  (ou,  ainda,  início-movimento-tensão-resolução).  Em 
composições  modais,  essa  estrutura  narrativa  não  é  o foco; pelo contrário, é possível construir peças 

inteiras  sobre  um  único  acorde,  por  exemplo.  Nesse  caso,  o  sentido  narrativo  não  vem  de  uma 
sequência  de  acordes  de  função  subdominante,  dominante  ou  tônica,  mas  da  exploração  das 
possibilidades rítmicas e melódicas que essa (sensação de) estaticidade permite. 
Embora  não haja instrumentos harmônicos na gravação, o arranjo vocal sugere progressões 
harmônicas  que  situam  a  música  em  um  contexto  modal.  Inicialmente,  a  música  tem  centro  tonal 
em  dó  jônico. Em um breve momento no quinto compasso, há um intercâmbio modal — a melodia 
central  passa  pela  nota  si  bemol,  que  é  o  sétimo  grau  característico  do  modo  mixolídio.  No  nono 

compasso,  o  acorde  de  mi  maior  se  forma  na  sobreposição  de  vozes,  con gurando  um  breve 
momento  de  modulação  (mudança  de  centro  tonal),  seguido  pelo  retorno  ao  centro  em  dó jônico, 
quando a forma se repete. 
 

 
145 

 
Figura 53: “Tudo Tudo Tudo” - Transcrição   90

Fonte: o autor 
 
Nessas  cinco  canções  do  Jóia,  Caetano  utilizou  o  modo  mixolídio,  em  diferentes  níveis  e 
partindo  de  processos  diferentes:  desde  o  uso  “puro”  do  modo  em  “Guá”,  passando  pela 
polimodalidade  em  “Minha  Mulher”,  hibridismo modal-tonal em “Na Asa do Vento”, intercâmbio 
modal em “Tudo Tudo Tudo” e uso do modo com o IV grau aumentado em “Gravidade”.  

Há,  porém,  outros  modos em uso no disco, como o dórico em “Pipoca Moderna” e o lídio 


em  “Jóia”.  A  primeira  é,  originalmente,  uma  composição  instrumental  de  Sebastião  Biano  para  a 
Banda  de  Pífanos  de  Caruaru,  sobre  a  qual  Caetano  pôs  uma  letra.  Esses  tipos  de  banda  são 
“formações  musicais  que  utilizam  instrumentos  de  sopro  e  percussão,  cuja  origem  é  remota.  São 
encontradas  em  quase  todos  os  estados  do  Nordeste  e  durante  muitos  anos  constituíram  parte 
importante das manifestações musicais das comunidades da região” (PEDRASSE, 2002, p. 15).  

  As  cifras  presentes  na  partitura  são  apenas  sugestões  de  análise  da  harmonia  a  partir  das  melodias  sobrepostas;  os 
90

acordes não são executados por nenhum instrumento na gravação. 


 
146 

O  grupo  de  Caruaru,  especi camente,  foi  formado  pela família Biano, e passou as décadas 


de  1950  e  1960  tocando  em  eventos  religiosos,  feiras,  forrós,  lojas  e  restaurantes.  Pedrasse  (2002) 
conta  que  Gilberto  Gil  assistiu  ao  grupo  tocar  em  1972  e,  muito  impressionado  com  o  que  ouviu, 
convidou-os  a  gravar  a  música  “Pipoca  Moderna”  em  seu  disco  Expresso  2222.  Isso  fez  com  que  o 
grupo  ganhasse  destaque  em  meio  à  imprensa  especializada  do  eixo  Rio-São  Paulo  e  levou  a Banda 
de  Pífanos  de  Caruaru  a  assinar  contrato  com  a  gravadora  CBS,  pela  qual  lançou  dois  discos.  Foi 
também  com essa gravação no disco de Gil que Caetano  cou fascinado pela sonoridade dos pífanos 
acompanhados de zabumba e caixa clara.  
Originalmente,  a  música  conta  com  duas  linhas  melódicas  (executadas  pelos  pífanos). 

Caetano,  em  sua  versão,  acrescentou  uma  terceira  melodia,  a  qual  conferiu  mais  dissonâncias  ao 
arranjo  e  de  certa  forma  “desestabilizou”  a  sonoridade  do modo dórico. A gravação de Caetano não 
conta  com  o  acompanhamento  de  instrumentos  harmônicos;  a  harmonia  se  dá através da polifonia 
das  vozes,  auta  e  cordas  friccionadas.  Nesse  sentido,  a  canção  se  aproxima  da  abordagem  do 
modalismo  pré-tonal.  Na  primeira  vez  que  a  melodia  é  cantada,  o  modo  dórico  estabelece-se 
claramente,  com  centro  em  fá  sustenido,  pela  presença  do  VI  grau  elevado  (no  caso,  a  nota  ré 

sustenido).  Em  apenas  dois  momentos  a  nota  ré  natural  aparece  (destacados  na  imagem), 
deslocando  a  melodia  para  o  modo  eólio.  É  possível  também  identi car  na  melodia  clichês 
melódicos  característicos  do  modo  dórico,  como  os  movimentos  6-1  e  1-b3-5-7,  e  do  modo  eólio 
no trecho 4-5-b6-5. 
 

 
147 

 
Figura 54: “Pipoca Moderna” - Primeira Vez 
Fonte: o autor 
 
Quando  Caetano  adiciona  a  segunda  voz  uma  terça  acima  da  melodia  original,  a  nota  mi 
sustenido  é  cantada,  situando  os  trechos  em  que  ela aparece dentro da escala de fá menor melódico. 
Na  terceira  melodia,  a  nota  mi  aparece  sem alteração novamente, o que gera a polimodalidade entre 
as  vozes. Quando Caetano canta o verso “de pê, de pé, de pão”, a nota mi sustenido torna a aparecer, 
para  então  voltar  a  seu  estado  natural  no  verso  “e  era  não  de  nada  nem”.  Essas  melodias  foram, 

muito  provavelmente,  construídas  de forma intuitiva, o que possibilitou essa  uidez entre os modos 


que possivelmente não apareceria se o arranjo tivesse sido totalmente escrito.  
 

 
148 

  

 
Figura 55: “Pipoca Moderna” - Três Vozes 
Fonte: o autor 
 
Há  certa  similaridade  entre  os  procedimentos  modais  de  “Pipoca  Moderna”  e  a  canção 
“Jóia”.  Nesta  também  a  melodia  é  construída  sem  acompanhamento  harmônico, apenas com vozes 

paralelas.  Estas,  porém,  estão  separadas  por  intervalos  de  quartas,  algo  pouco  usual  no  universo 
sonoro-musical  ocidental  contemporâneo,  no  qual as combinações de vozes costumam ocorrer com 
intervalos  de  terças  e  sextas,  que  são  a  base  para  a  construção  de  acordes  e,  consequentemente,  do 
sistema  tonal  como  um  todo.  Ao  escolher  os  intervalos quartais, Caetano rompe com este contexto 
sonoro,  associando-se  ao  modalismo  pré-tonal,  presente,  por  exemplo,  no  canto  gregoriano  e  na 
música de sociedades não-ocidentais.  
O  arranjo  instrumental  da  canção  também  a  situa  nesse  universo  sonoro.  O  baixo  pedal 

(executando  apenas  uma  nota)  mantém-se constante também ritmicamente, acentuando o pulso da 


música. Wisnik (1989, p. 80) fala sobre esses procedimentos no modalismo: 
 
A  tônica  xa  é  um  princípio  muito  geral  em  toda  a  música  pré-tonal:  explícita  ou 
implícita,  declarada  ou  não,  pode-se  aprender  a  ouvi  -la,  pois  ela  está  lá,  como  a  terra,  a 
unidade  indivisa,  a  montanha  que  não  se  move,  o  eixo  harmônico  contínuo,  soando 
através  (ou noutra dimensão) do tempo. É a tonalidade que moverá esse eixo, tirando-o do 
lugar  e  fazendo  do movimento progressivo, da sucessão encerrada de tensões e repousos, o 
seu movimento (WISNIK, 1989, p. 80). 
 
Esse  baixo  pedal  gera  uma  ideia  de  estaticidade,  e  também  de  que  a  canção  não  possui 
início  nem  m.  Há  circularidade  temporal  nas  músicas  modais,  o  que  na  gravação  também  é 

 
149 

indicado  pelo  uso  de  fade  in  e  fade  out,  o  que  provoca a sensação, ao ouvinte, de estar entrando em 
um  ritual  em  pleno  desenvolvimento.  Esse  baixo  que  se  repete  estabelece  o  centro  tonal  da  canção, 
deixando  claro  que  se  trata  de  uma  composição  em  Mi  lídio.  A  nota  característica  do  modo  (o  IV 
grau  elevado,  no  caso,  o  lá  sustenido)  aparece  na  voz  mais  grave  nas  palavras  braço,  caju,  contente  e 
boca.  Na  voz  superior,  porém,  a  nota  “lá”  aparece  sem  alteração,  sendo  justamente  isso  o  que  gera 
um contraste no momento em que o sustenido aparece na voz inferior91. 

 
Figura 56: “Jóia” - Melodias das Vozes 
Fonte: o autor 
 

91
  Recomendo  a  leitura  do  artigo  “A  Construção  Não  Tonal  da  Canção  Jóia,  de  Caetano  Veloso”,  de  Marcelo  Segreto 
(2014), no qual o autor analisa profundamente as formas pelas quais Caetano estabelece o modalismo nessa canção.  
 
150 

Mesmo  as  canções  predominantemente  tonais  do  disco  Jóia  trazem  em  si  elementos 
modais.  “Lua,  Lua, Lua, Lua”, por exemplo, é totalmente estruturada no sistema tonal de Lá Maior, 
mas  em  sua  coda,  na  qual  se  repetem  os  acordes  A7M  e  Aº,  Caetano  realiza  improvisos  que 
misturam  a  escala  maior  e  a  diminuta  (passando  por  notas  como  ré  sustenido  e  dó  natural).  A 
melodia  da  canção  “Escapulário”  também  aponta  para  o  tonalismo,  com  centro  em  Ré  bemol 
Maior.  Todavia,  por  não  ter  acompanhamento  harmônico,  apenas  percussão,  sugere-se  certa 
ambientação  modal,  principalmente  por  ser  uma  canção  de  melodia  curta  e  que  se  repete  ad 
infinitum (a gravação termina em fade-out). 
Vejamos  também  a  canção  "Pelos  Olhos",  cuja  harmonia  traz  diversas  progressões 
interessantes.  Embora  possua  momentos que indiquem caráter tonal da canção, como as sequências 
subdominante-dominante  representadas  pelos  acordes  nos  graus  IIm  e  V7,  em  nenhum  momento 
ocorre  uma  resolução  direta  do  acorde  de  sétima  da  dominante  no  acorde  montado  sobre  o 
primeiro grau. Em vez disso, onde aparece o acorde F#7, segue-se a ele o acorde C, antes da resolução 
em  B7M.  Esse  acorde  de  dó  maior  aparece  como  empréstimo  modal,  especi camente  do  modo 
frígio.  Além  de trazer esse "colorido" modal ao trecho, dilui a ideia de tensão e resolução, tão caras ao 

sistema tonal. 
  

 
151 

 
Figura 57: “Pelos Olhos” - Parte A 
Fonte: o autor 
  
Na  parte  B  da  canção,  esse  aspecto  modal  ganha  mais  peso.  Apenas  dois  acordes  são 
executados,  o  B6  e  o  E7(9).  Este  último  pode  ser  entendido  como  empréstimo  do  modo  dórico,  e 
como  não  há  encadeamentos  tonais  no  trecho,  representa um momento de permutabilidade modal 
na canção — uma vez que a parte anterior estaria no modo jônico. 
  

 
152 

 
Figura 58: “Pelos Olhos” - Parte B 
Fonte: o autor 
 

Outro  exemplo  é  a  canção  “Canto  do  Povo  de um Lugar”. Como coloca Wisnik (1989, p. 


266),  “pode-se  dizer  que  esta  é  uma  canção  tonal  sobre  o  mundo  modal”.  A  harmonia  da  canção 
reforça  o  caráter  tonal:  todos  os  acordes  pertencem  ao  campo  harmônico  de  Dó  maior,  e  a  frase 
melódica  encerra-se  com  a  progressão  F  >  G  >  C,  cujas  funções  são  Subdominante,  Dominante  e 
Tônica,  respectivamente.  A  melodia,  porém,  é  construída  sobre  a  escala  hexatônica  (maior  sem  o 
sétimo  grau).  A  sensação  de  resolução  no  movimento  da  sensível  para  a  tônica  da  escala  é,  talvez,  a 

principal  característica de estruturas tonais; como essa nota não aparece, a sensação de tonalismo (na 
melodia  de  forma  isolada)  se  dissolve.  Além  disso,  alguns  clichês  melódicos  do  modo  hexacordal 
estão  presentes, como os movimentos 6-1 e 5-4-3-1, os quais, como aponta Ribeiro (2020), evocam 
certa sonoridade associada a uma imagem do nordeste.  
 

 
153 

 
Figura 59: “Canto do Povo de um Lugar” - Análise Melódica 
Fonte: o autor 
 
4.5 Os Diferentes Usos da Voz 
 
No  Jóia,  Caetano  retoma  diversos  procedimentos  experimentais  de  apareceram  em  seus 

discos  anteriores  no âmbito da voz e integra-os a suas novas canções, gerando, em alguns momentos, 


algumas  fricções  entre  estilos  tradicionais  e  novos.  Neste  tópico  falarei  sobre  algumas  canções 
especí cas do disco que podem exempli car esses procedimentos.  
A  voz  em  “Minha  Mulher”  aparece  com  emissão "bossanovista" na maior parte do tempo: 
uso  de  legatos,  uso  da  voz  "pequena",  sem  grande  expansividade.  Um  pequeno  contraste  ocorre  na 
entrada  da  parte  B  (refrão),  quando  a  voz  de  Caetano  ganha  um  pouco  mais  de  projeção, 
possivelmente  como  forma  de  diferenciação  entre  as  partes  da  música.  Em  “Pelos  Olhos”,  uma 

emissão  similar.  A  melodia  da  canção  possui uma tessitura de grande extensão — uma oitava e nove 


semitons.  A  interpretação  vocal  de  Caetano,  apesar  disso,  mantém-se  dentro  da  estética 
bossanovista,  principalmente  aquela  que  passa  pelo  prisma  interpretativo  de  João  Gilberto,  com  o 
uso  de  legatos  e  poucos  contrastes.  Em  "Pelos  Olhos",  Caetano  preza  pela  economia  no  que  diz 
respeito à vocalidade. 
No  nal  de  “Minha  Mulher”,  assim  como  no  de  “Lua  Lua  Lua  Lua”,  Caetano  realiza 

improvisos  vocais  que  lembram  vagamente  as  experimentações  com  as  sílabas  que  o  cantor  fez  em 
faixas  de  Araçá  Azul,  embora  no  Jóia  o  procedimento  seja  diferente:  Caetano  adiciona  esses 
elementos a canções mais convencionais. 

 
154 

O  improviso  vocal  é  uma  característica  forte  do  jazz  americano, no qual ganha o nome de 


scat  singing,  procedimento  muito utilizado por cantores como Ella Fitzgerald e Louis Armstrong. A 
abordagem  improvisacional  de  Caetano,  porém,  se  difere  daquela  jazzística.  Se  na  abordagem  de 
Fitzgerald  e  Armstrong  a  voz  emula  a  sonoridade  de  um  instrumento  de  sopro,  até  mesmo  com 
imitações  de  timbre  através  de  ltros  de  emissão  vocal,  a  abordagem  de  Caetano  não  tem  essa 
intenção  e  atua  dentro  de  outro  universo  sonoro.  O  tratamento  que  Caetano  dá  a  esse  trecho  se 

aproxima  mais  das  experimentações  que  ele  mesmo  já  havia  feito  anteriormente  no  disco  Araçá 
Azul,  na  gravação  da  faixa  “Asa  Branca”  em  seu  álbum  de  1971  e  na  trilha  sonora  do  lme  São 
Bernardo, de Leon Hirszman92. 
Outro  uso  distinto  da  voz  em  Jóia  é  o  de  dissolução  de  linhas  melódicas, como ocorre em 
“Guá”.  Vimos  anteriormente  que,  para  compor  a  canção “Asa, Asa”, Caetano fez referência direta à 
música  dos  Yudja.  Porém,  este  não  é  o  único  exemplo  dessa  aproximação  estética  com  as  músicas 
indígenas.  Em  entrevista  com  Ana  Maria Bahiana (1980, p. 43), Caetano, ao ser perguntado sobre a 
canção  “Guá”,  conta:  “esse  lado  aí  da  minha  produção,  que  tem  ‘Jóia’,  que  tem  ‘Gravidade’,  foi 
depois  que  eu  ouvi  um  disco  do  Xingu,  um  disco  da  Philips  que  tem  coisas  dos  índios  do  Xingu, 

que  tem  coisas  lindas,  cada  coisa  espetacular”.  Essa  referência à música dos índios do Xingu aparece 


logo  no  início.  Nesse  trecho,  Caetano  canta  três  notas  bastante  distantes  uma  da  outra  (dó  4,  si 
bemol 1, mi 2), pronunciando os fonemas ih, hum e hem. Essa distância entre as notas faz com que a 
ideia  de  melodia  se  dissolva:  as  notas  não  soam  como  linha  melódica,  mas  sim como uma polifonia 
(RIBEIRO, 2020). 
 

  
Figura 60: “Guá” - Sequência de sons cantados ressaltando aspecto polifônico 
Fonte: o autor 

  É possível ter uma noção do tipo de experimentação vocal que Caetano desempenhou na trilha do  lme São Bernardo 
92

no seguinte vídeo (ver, especialmente, de 00:40 a 02:40): https://www.youtube.com/watch?v=VUd90fLiO0w.  


 
156 

Em  “Tudo  Tudo  Tudo”,  as  três  melodias  estão  em  registros  bastante  separados  (grave, 
médio  e  agudo)  e  a  mixagem  da  gravação  foi  feita  de forma a separar as três faixas: ao ouvir a canção 
com  fones  de  ouvido,  percebe-se  que  a  melodia  grave  foi  direcionada  para  o  canal  esquerdo,  e  a 

melodia  aguda  para  o  direito.  Dessa  forma, o ouvinte consegue diferenciá-las com relativa facilidade 


e  a  ideia  polifônica  é  reforçada.  Nesse  caso,  porém,  as  vozes  cantam  notas  distintas  (não  estão 
“oitavadas” como em “Asa, Asa”). 
Percebe-se  também  que  as  notas  cantadas  não  estão  dentro  da  referência  de  a nação 
ocidental  (que  considera  a  nota  lá3  com  a frequência de 440Hz) o que corrobora para o argumento 
de  que o arranjo foi construído intuitivamente. Caetano provavelmente não tomou como referência 

as  notas  de  um  instrumento  musical  no  momento  de  gravação.  Em  vez  disso,  gravou  uma  melodia 
principal e cantou as outras duas vozes utilizando a primeira faixa como referência de a nação. 
Essa  é  uma  das  canções  na  qual  Caetano  segue  com  as  experimentações  vocais.  Aqui,  as 
palavras  surgem  aos  poucos,  na  repetição  da  melodia.  Noto  nessa  faixa  algumas  aproximações  com 
as  experimentações  do  disco  Araçá  Azul.  Como  Lucchesi  e  Dieguez  (1993,  p.  126)  apontaram,  o 
canto  de  Caetano  nesta  canção,  “por meio da emissão repetitiva de sons guturais, lembra o processo 
infantil  de  aprendizagem  da  fala  e,  por  que  não, a expressão do gozo”. Eles também relacionam essa 
experiência  àquelas  da  canção  “Asa  Branca”  do  disco  de  1971  e  da  trilha  sonora  de  São  Bernardo: 
“são  sons  ruminados,  típicos  da  mastigação  e  próprios  do  contexto  nordestino,  já  associados  por 
Augusto  de  Campos  à  noção  de  fome",  o  que  faz  ainda  mais  sentido  se  pensarmos  que  um  dos 
versos cantados aqui diz: “tudo comer”. 
Quando  Caetano  gravou  a  canção  “De  Palavra  em  Palavra”,  no  disco  Araçá  Azul,  ele 
explorou  diversas  formas  de  retratar,  através  do  canto,  os  sentidos  das  palavras  cantadas.  Quando, 
naquela  música, ele cantava a palavra “mar”, ele o fazia explorando a explosividade da consoante M e 
deixando  o  som  da  letra  R  se  prolongar,  de  forma  que,  ao  ouvinte,  o  resultado  sonoro  fosse,  de 
alguma  maneira,  similar  ao  do  movimento  de  ondas.  Vejo  certa  similaridade  entre  esse  trecho  e  a 

forma  que  Caetano  canta  a  palavra  “mar”  em  “Tudo  Tudo  Tudo”:  há  uma  intenção  de  criar 
imagens através do som.  
Outros  arranjos  vocais  estão  presentes  em  “Jóia”  e  “Pipoca  Moderna”.  Na  primeira, 
Caetano  canta  duas  melodias  separadas  por  intervalos  de  quartas  como  forma  de  emular  uma 
sonoridade  especí ca  não-ocidental.  Já  na  segunda,  a  letra  é repetida três vezes e, em cada repetição, 
 
157 

uma  nova  melodia  é  cantada  em  sobreposição.  Essas  melodias  parecem  ter  sido,  em  algum  nível, 
improvisadas  por  Caetano,  apresentando  variações  de  momentos  de  maior  dissonância  e 
consonância  entre  elas.  O  canto  de  Caetano  busca,  novamente,  potencializar  os  versos  que,  nesse 
caso, são construídos com diversas aliterações que ganham uidez na voz: 
 
A  estranheza  da  combinação  das  autas  com  a percussão assim como o arranjo vocal para 
três  vozes  explorando  intervalos  dissonantes  parecem  inspirar  a  composição  de  uma letra 
também  aparentemente  estranha,  em  que  elementos  díspares  são  conjugados,  a  começar 
pelos  termos  que  compõem o título: ‘pipoca’ e ‘moderna’. O que é uma pipoca moderna? 
E uma ‘noite de negro não’? E os ‘golpes de p’?” (MEDEIROS, 2001, p. 129). 
  

Medeiros  (2001)  nota  na  letra  um  “pano  de  fundo  construído  sobre  a letra N” nos versos 
“e  era  nada  de  nem  noite  de  negro  não/  e era nê de nunca mais”, uma situação é rompida “a golpes 
de  p”,  literalmente,  nos versos “porém parece que há golpes de pê, de pé, de pão, de parecer poder”. 
O  canto  de  Caetano  representa  esses  momentos  distintos através de uso maior de legato nos trechos 
de  N  e  stacatto  nos  “golpes  de  P”.  Assim,  uma  letra  que, num primeiro momento, não tem sentido 
claro,  ganha  outros  níveis  de  signi cado  na  articulação  do cantor. Como já comecei a fazer aqui, no 

próximo  tópico  voltarei  meu  olhar  às  letras  das  canções,  pensando  em  quais  sentidos  estas, 
associadas às melodias, apresentam. 
 
4.6 Construções Poéticas 
  
As  letras  das  canções  do  disco Jóia, no geral, fogem de narrativas tradicionais e lineares94. É 
nesse  disco  que  Caetano  adota  diversas  construções  poéticas que dialogam com a Poesia Concreta e 
têm como temas principais a natureza (de diversas formas), a liberdade e certo misticismo panteísta.  
Lucchesi  e  Dieguez  (1993)  indicam  a  presença  de  alguns  signos  que  apontam  para  uma  "vocação 
libertária"  em  músicas  como  “Asa,  Asa”,  “Lua,  Lua,  Lua,  Lua”,  “Canto  do  Povo  de  um  Lugar”, 

“Gravidade” e “Na Asa do Vento”. 


A  imagem  do  “pássaro”,  central  na  capa  do  disco,  aparece  nas  letras  como  símbolo  dessa 
vocação  libertária.  "Parece-nos  ser o pássaro a chave simbólica do LP, capaz de desencadear as demais 
canções,  numa  espécie  de  jogo  de  'palavra-puxa-palavra'"  (LUCCHESI,  DIEGUEZ,  1993,  p.  123). 

94
Todas as letras das canções do disco Jóia podem ser lidas no Anexo I.  
 
158 

Esses  autores  identi cam  o  uso  dessa  palavra  na  canção  “Asa,  Asa”  como  uma  referência  da relação 
entre  espaço  e  liberdade  —  o  pássaro  é  o  ser  livre  por  poder  viver  no  ar.  Essa  também  é  uma  das 
canções que se aproximam dos procedimentos da Poesia Concreta. 
Perrone  (1990)  aponta  que  esses  procedimentos  aparecem  na  obra  de  Caetano  desde  o 
período tropicalista (efetivamente em canções como “Bat Macumba” e “Acrilírico”), assim como nas 
experimentações  presentes  no  Araçá  Azul.  Músicas  como  “De  Palavra  em  Palavra”  e 

“Júlia/Moreno” adotavam as construções visuais, nas letras, dessa vanguarda literária.  


 
"Voltando  à  impressão  que  a  poesia  concreta  deixou  na  área  da  composição,  é  preciso 
considerar  o  LP  Jóia  de  Caetano  Veloso.  Ali  há  quatro  composições  que  manifestam  a 
constância  das a nidades estéticas entre o trabalho dele e o grupo concreto. A canção ‘Asa’ 
se  constrói  sobre  a  reiteração  da  palavra  'pássaro',  apoiada  por  uma  pulsação  rítmica 
inalterada.  Desta  forma  é  associação  a poema concretos que se regem por uma só unidade 
vocabular,  caso  de  'terra'  de  Décio  Pignatari  ou  'forma'  de  José  Lino  Grünewald.  Por 
outro  lado,  o  jogo  fonético-semântico  de  ‘Asa’  é característico da poesia concreta, como o 
é a estrutura não discursiva" (PERRONE, 1990, p. 61). 
 
O  uso  da  palavra “pássaro” como unidade vocabular estruturante  ca claro na forma que a 
letra foi impressa no encarte do disco, como podemos visualizar na gura a seguir: 

  
Figura 63: Letra da Faixa “Asa” como aparece no encarte de Jóia 
 
159 

Dentre  as  canções  com  “vocação  libertária”,  Lucchesi  e  Dieguez  também  mencionam 
“Gravidade”.  Nesta,  a  cada  repetição  do  verso  “asa,  asa, asa, asa” algum dos elementos da natureza é 
mencionado:  “rio  in nito  no  leito  de  um  rio”,  “brasa  debaixo  da  cinza”,  “o vento entra pela casa” e 
“Anjo  no  peito  da  terra”  fazem  referência  direta  à  água, ao fogo, ao vento e à terra, respectivamente. 
No disco como um todo há uma forte presença da natureza como tema.  
Seguindo  nas  intenções  libertárias,  temos  a  canção  “Lua,  Lua,  Lua,  Lua”.  A  lua  aparece 
muitas  vezes  nas  canções  do  período  como  símbolo  contracultural,  é  só  lembrarmos  da  temática 
noturna  presente  em  diversas  canções  do  rock  pós-tropicalista  (BRITTO,  2003).  Nessa  música, 
porém,  de  acordo  com  Lucchesi  e  Dieguez  (1993),  não se trata (apenas) do satélite da Terra, mas de 

Luiz  Gonzaga,  cujo  apelido  era  Lua.  Se “Asa, Asa” tomava um elemento de Asa Branca, aqui tem-se 


o  verso  "branca  branca  branca  branca"  como  alusão  à  assimilação  de  tudo  -  no  branco  reúnem-se 
todas  as  cores.  No  caminho  do  pássaro  que  aparece  nas  outras  letras,  esta  canção  representa  uma 
"breve  parada  do  voo:  o  pouso  do  pássaro  que  contempla  a paisagem. Uma espécie de tempo para a 
re exão  que  alimentará  outro  voo"  (LUCCHESI, DIEGUEZ, 1993, p. 124). E outro elemento que 
aproxima  essa  canção  de  “Asa, Asa” é a aproximação com a Poesia Concreta. Aqui, Caetano faz uma 

alusão  ao  poema  “branco…”,  de  Haroldo  de  Campos  (ver  gura  a  seguir)  nos  versos:  “e  mesmo  o 
vento/ canta-se compacto no tempo/ estanca/ branca, branca, branca, branca…”.  
 

 
Figura 64: Poema “branco…”, de Haroldo de Campos (1958) 
Fonte: Haroldo de Campos, em "Noigandres 4" - 1958 (iconogra a) 
 

 
161 

"entre  avencas  verde-brisa"  da  canção  “Um  Dia”,  um  dos  primeiros  sucessos  de  Caetano.  Aparece 
também,  em  “Pelos  Olhos”,  o  misticismo  panteísta  de  identi cação  de  Deus  na  natureza:  o  Deus 
dos fetos, das plantas pequenas é a luz saindo pelos olhos de sua “amiguinha”.  

Caetano  apresenta  neste  disco  uma  multiplicidade  de  pontos  de  vista,  capaz  de  abordar 
diversos  temas  e  relacionar-se com diversas sonoridades. Nesse sentido, destaca-se a ausência do “eu” 
em  diversas  faixas,  como  “Guá”,  “Pelos  Olhos”,  “Asa,  Asa”,  “Lua,  Lua,  Lua,  Lua”,  “Pipoca 
Moderna”,  “Gravidade”  e  “Na  Asa  do  Vento”,  e  a  troca  do  “eu”  pelo  “nós”,  representando  uma 
visão de coletividade, em faixas como “Canto do Povo de um Lugar” e “Escapulário”. 
Na  canção  “Guá”,  a  multiplicidade  do  eu  destina uma de suas faces à cultura nagô a partir 
do  cruzamento,  sincretismo  das  raças,  culturas  e  religiões  (LUCCHESI,  DIEGUEZ,  1993).  Há 
também  aqui  um  diálogo  com  a  Poesia  Concreta.  A  letra  só  possui  quatro  palavras  que  são 
repetidas:  “água  /  guamá  /  iguape  /  ibualama”.  Ao  cantar,  Caetano  une  uma  palavra  à  outra 

sustentando as sílabas nais. Charles Perrone comenta: 


  
A  execução  uida do texto sobre um fundo musical simples e repetitivo que evoca a queda 
d’água  sugere  ainda  mais  a  conexão entre os elementos léxicos afro-brasileiros por meio de 
uma  sinalefa96  acentuada.  A  dialética  semântico-visual operada na Poesia Concreta escrita 
é aqui realizada de forma semântico-auditiva (PERRONE, 1985, p. 73) . 
  
Na  letra  dessa  canção,  Caetano  cita  o  orixá  Ibualama,  cultuado  pelo candomblé da Bahia. 
O  termo  “ibualama”  signi ca  água  profunda,  água  que  também  é  mencionada  na  letra  da  canção. 
Em seu livro “Alegria, Alegria”, Caetano Veloso fala sobre outros signi cados dessa letra: 
  
A  pessoa  que  sabe  me  disse  que  o  meu  orixá  é  ibu-alama.  A  pessoa  que  sabe  é  muito 
bonita.  Essa  sílaba  ‘gua’  surgiu  tantas  vezes  seguidas  e  de  tal  modo  se  comportou  como 
núcleo  desse  átomo  que  eu  pensei  que  ela  era  o  jeito  de  se  expressar  o  que  eu  não  sei 
explicar  da  relação  mítica  entre  ibu-alama  e  a  água,  as  águas.  Os  lugares  que  eu  amo  - 
guamá-belém,  iguape-pedrinho-baía  de  todos  os  santos,  recôncavo  de  santo  amaro,  -  são 
elementos  qualquer  coisa  íntimos,  desses  que  só  eu  sei  e  tudo é ritmo, tudo é inútil e não 
deveríamos temer coisa alguma (VELOSO, 1977, p. 161-162). 
 
A  letra  da  música  “Pipoca  Moderna”  explora  a  oposição  entre  sons  surdos  (n)  e  sonoros 
(p)  através  de  aliterações,  sem  construir  uma  narrativa  linear.  Há  um  jogo  entre  tradição  — 

96
Sinalefa é a queda da vogal nal de uma palavra, quando a palavra seguinte começa por vogal.  
 
163 

tropicalista  “Superbacana”,  e  "beira  de  maré  na  América  do Sul” lembra a menção ao continente na 


canção “Baby”, com o verso “vivemos na melhor cidade da América do Sul”.  
A  letra  dessa  canção  é  composta  por duas estrofes que possuem uma clara simetria. Como 
coloca  Segreto  (2014,  p.  168),  “elas  expõem  duas  cenas  contrastantes  e  similares  ao  mesmo  tempo. 
Ao  colocá-las  em  diálogo  no  espaço  da  canção,  a  letra  explora  este  jogo  de semelhanças e diferenças 
que,  ao  nal,  revela  um  sentido  comum  aos  dois  momentos  retratados”.  De  um  lado,  signos 

relacionados  a  uma  imagem  do  “primitivo”:  “selvagem”,  “caju”,  “América  do  Sul”,  além da própria 
melodia  em  quartas  remetendo  à  músicas  de  sociedades  não-ocidentais.  Do  outro,  imagens  da 
“modernidade”:  “Copacabana”,  “coca-cola”.  Guilherme  Wisnik  (2005,  p.  110-111)  faz  uma  análise 
muito interessante desses signos: 
 
[“Jóia”]  descreve  dois  momentos  equivalentes  na  praia  de  Copacabana:  o  instante 
inaugural  do  contato  entre  índios  e  europeus,  em  que  o selvagem oferece o fruto da terra 
(um  caju)  ao  estrangeiro,  'num  gesto  de  nítida  benevolência  e  disposição  à  troca',  e, aqui 
também,  uma  cena  atual,  em  que  uma  'menina  muito  contente  toca  a  Coca-Cola  na 
boca'.  Nesse  caso, o nome que designa o lugar, e que se tornou um símbolo do Brasil, e do 
cosmopolitismo  do  Rio  de  Janeiro,  é originário dos índios da Bolívia, passando pelo  ltro 
do cristianismo — a Virgem de Copacabana, uma das santas mais importantes da América 
espanhola.  E  a  Coca-Cola,  tomada  com  amor  pela  menina,  mostra-se  como  um presente 
da  civilização  aos  nativos,  numa  reconstrução  poética  da  colonização  que  quer 
voluntariamente celebrar suas conquistas na imagem de uma América mestiça e potente: o 
braço  levantado  com  o  caju  e  a  tocha  na  mão,  a  maçã  que se morde e a Coca-Cola que se 
bebe, num 'momento de puro amor'" (WISNIK, 2005, p. 110-111). 
 
Marcelo  Segreto  (2014,  p.  168)  con rma  essa  visão  e  aponta  ainda outras interpretações à 
letra: 
 
O  levantar  do  braço  do  selvagem  para  colher  a  fruta  na  árvore,  diretamente  da  natureza, 
nos  sugere  um  gesto  de  certa  forma  sagrado.  Como  uma  homenagem  ao  divino, 
estendendo  os  braços  e  tocando  a  fruta  que  vem  do  alto.  Sentimos  esta  personagem  em 
harmonia  absoluta  com  seu  ambiente.  A menina, por sua vez, caracterizada como “muito 
contente”,  também  entra  em  consonância  com  seu  espaço  cujo  clima  é  de  euforia  geral. 
“Louca  total  e  completamente  louca”  é  a  Copacabana  retratada  na  canção.  Sua  ligação 
com  o  ambiente,  entretanto,  já  não  se  faz  através  de  um  contato  direto  com  a  natureza 
propriamente  dita  (o  caju  como  fruto  nativo  do  Brasil),  mas  sim  com  um  objeto 
industrializado  e  símbolo  da  cultura  norte-americana  presente  em  todo  o  globo 
(SEGRETO, 2014, p. 168). 
 

 
164 

Vejamos  também  a  canção  “Tudo  Tudo  Tudo”  que,  assim  como  “Canto  do  Povo de um 
Lugar”,  começou  na  mente  de  Caetano  como  uma  canção  para  ninar  Moreno,  seu  lho. No canto 
de  Caetano,  a  palavra  “tudo”  do título quase não é articulada, soando como um “m” na maioria das 

vezes,  até  ganhar  clareza  nas  repetições  nais.  A  letra  da  canção  aparece  no  encarte  da  seguinte 
forma: 
  

 
Figura 67: Letra da faixa “Tudo, Tudo, Tudo” como aparece no encarte de Jóia 

 
Nota-se  aqui  outro  exemplo  da  relação  entre  a  obra  de  Caetano  Veloso  e  a  Poesia 
Concreta.  Como  aponta  Charles  Perrone  (1990, p. 62), "o impacto de ‘Tudo Tudo Tudo’ também 
depende  de  xidez  rítmica  [como  acontece  em  “Asa,  Asa”],  aqui  palmas. As unidades do ‘mar’ e do 
'tudo'  contrastam  com  os in nitivos para criar uma justaposição abstrata e estranha de vida e morte, 

parecida com a do poema ‘nascemorre’ de Haroldo de Campos”.  


Finalizando  o  álbum  está  a  faixa  “Escapulário”,  que  marca  mais  um  encontro  entre 
Caetano  Veloso  e  os  versos  de  Oswald  de  Andrade.  O  autor  modernista  havia  in uenciado 
profundamente  a  obra  tropicalista,  seja  pelo  impacto  que  sua  peça  “O  Rei  da  Vela”  exerceu  sobre 
Caetano,  seja  pelas  propostas  antropofágicas  que  se  tornaram  procedimentos  básicos da Tropicália. 
Como  também  vimos  anteriormente,  o  disco  Jóia  foi  lançado  com  um  manifesto  próprio  que,  em 
algum  nível,  fazia  alusão  àqueles  lançados  por  Oswald  —  os  Manifestos  Antropófago  e  do 

Pau-Brasil.  Esse  uso  do  poema  de  Oswald  em  seu  disco  aparece  como  prova de que Caetano nunca 
se afastou inteiramente do ideário tropicalista. 

 
165 

 
4.7 Comparações entre Jóia e Qualquer Coisa 
 

Quando  questionado  em  entrevista  sobre  os  critérios  de  divisão  das  canções  entre  um 
disco  e  outro,  Caetano  comenta  (BAHIANA,  1980)  que  as  escolhas  foram  muito  pessoais  e  sutis. 
Desde  a  gravação  de  Araçá  Azul  o  cantor  tinha bastante material gravado e inicialmente pensou em 
lançá-lo  num  álbum  duplo,  ideia  que  foi  descartada  posteriormente.  Ele  conta  que partiu do título 
das duas canções, “Jóia” e “Qualquer Coisa”, para fazer as escolhas. Jóia, a princípio, era fundado em 
suas  canções  mais  novas  (embora  tivesse  também  “Help”  e  “Na  Asa  do  Vento”,  de  outros 
compositores)  e  Qualquer  Coisa  é  uma  espécie  de  coletânea  de  canções  que  Caetano  gostava  de 
cantar97. Pouco depois na mesma entrevista, o cantor complementa os critérios: 
 
É  como  se  no  Jóia  fosse  um  negócio  de  eu-com-o-meu-trabalho,  quer  dizer,  são  coisas 
assim  feitas  num  momento  de  clareza,  de  certeza,  num  momento de escolher o que fazer, 
escolher  espontaneamente,  mas  escolher.  E  no  Qualquer  Coisa  seria  mais  assim  uma 
relação  com  tudo  o  que  tem por aí de um modo acrítico, sabe como é? Tudo o que me dá 
vontade,  sem  ser aquilo que  cou especialmente escolhido, sabe como é? Se bem que nada 
de ne  muito  bem  a  seleção,  não  é?  Só  mesmo  ouvindo  os  discos  (VELOSO  apud 
BAHIANA, 1980, p. 42). 
 
É  possível  também  interpretar  as  seleções  como  resultado  dos  desejos  incontidos  de  um 
“eu  em  incompletude”.  Como  apontam Lucchesi e Dieguez (1993), esse eu “tanto se identi ca com 
o  sentido  da  harmonia  e  do  equilíbrio  (concepção  apolínea),  quanto  se  vê  atraído  e  seduzido  pela 

ruptura  (expressão  dionisíaca)".  Nesse  sentido,  esses  autores  identi cam  a  marca  apolínea  no  disco 
Jóia,  no  qual  Caetano  busca  a  pureza  do  som  original  “liberto  da  bateria”  em  trânsito  na  esfera  do 
sublime,  e  a  predominância  dionisíaca  em  Qualquer  Coisa,  no  qual  o  cantor  assimila,  de  forma 
antropofágica,  múltiplas  vertentes  musicais,  circulando  no  espaço  do  “cotidiano  profano”.  O 
próprio  Caetano  (LUCCHESI;  DIEGUEZ,  1993,  p.  122).  aponta  essa  dualidade,  mas  em  outros 
termos:  "A polaridade parece um caminho para entender meu trabalho. O movimento Bossa Nova é 

um  movimento  Jóia  e  o  Tropicalismo  é  um  movimento  Qualquer  Coisa.  Em  ambos,  o  dado  mais 
importante é um respeito contrito à ideia de inspiração". 

97
Disco disponível para audição em diversas plataformas, como o Spotify:  
https://open.spotify.com/album/1EggMJbrddGeSyNjDzDRMI?si=NPtYszU9TFypUv4LyYiu1A.   
 
166 

 
Se  Araçá  Azul  é  um  disco-síntese  de  um  percurso,  Jóia  e  Qualquer  Coisa  são  discos 
resumitivos  de  um  processo.  Aquele  conta  uma  história,  estes  revelam  a  estrutura  que,  a 
cada  investida  do  ato  criador,  incorpora  e  retoma  elementos  originários  para  dar 
prosseguimento  à  viagem  estético-existencial.  Compõe-se, assim, uma estética da inclusão 
em  espiral.  Como  o  eu  se  multiplica  nos  variados  espaços,  torna-se impossível reduzi-lo a 
um  modelo,  o  que  faz  de  Caetano  um  artista  esquivo,  escorregadio  e irredutível a esta ou 
àquela tendência (LUCCHESI; DIEGUEZ, 1993, p. 120-121). 
 
Dentre  as  faixas  do  disco,  temos  “Da  Maior  Importância’,  “Samba  e  Amor”  (Chico 
Buarque)  e  “Madrugada  e  Amor”  (José  Messias),  cujas instrumentações incluem apenas o violão de 

Caetano  e  sua  voz.  Lucchesi  e  Dieguez  (1993)  notam  que  a  letra da primeira aparece como possível 


contraposição  à  faixa  título;  ambas  falam  de  uma  relação  de  amor,  mas  esta  insinua  a  tentativa  de 
conquista  (“Não  se  avexe  não,  baião  de  dois/  Deixe  de  manha,  deixe  de manha” e “Quero que você 
ganhe,  que  você  me  apanhe/  Sou  o  seu  bezerro  gritando  mamãe”),  enquanto  em  “Da  Maior 
Importância” há a con ssão do absoluto fracasso (“Teria sido na praia o medo/ Vai ser um erro, uma 
palavra/  A  palavra  errada”  e “Mas você não teve pique e agora/ Não sou eu quem vai/ Lhe dizer que 

que”).  
Em  outras  canções  do  disco,  há  uma  grande  variação  nos  tipos  de  arranjos  e  timbres.  Na 
versão  de  “Jorge  de  Capadócia”,  de  Jorge  Ben,  o  cantor  faz  uso  de  um  grupo  instrumental  mais 
extenso,  que  inclui  dois  violões  (Caetano  Veloso  e  Fredera),  bateria  (Enéas  Costa),  baixo  elétrico 
(Fernando  Leporace),  percussão  (Hermes  Contesini),  piano  (Perinho  Albuquerque)  e  as  vozes  do 
grupo vocal Quarteto em Cy (que também participou em “Guá”, do disco Jóia).  
Se  no  disco  Jóia  Caetano  trouxe  a  referência  aos  Beatles  com  a  gravação  de  “Help”,  em 
Qualquer  Coisa  esse  diálogo  é  muito  maior.  Além  da  capa  do  disco  que  faz  referência direta àquela 
de  Let  It  Be  da  banda  britânica,  Caetano  também  interpretou  três  canções  deles:  “For  No  One”, 
“Eleanor  Rigby”  e  “Lady  Madonna”.  A  interpretação  de  “For  No  One”  traz  a  canção  dos  Beatles 
para  um  contexto  mais  próximo  de  uma  bossa-nova  eletri cada,  com  guitarra,  bateria  e  baixo 
elétrico,  além  dos  tradicionais  instrumentos  do  gênero,  como  piano,  auta  e  percussão. 
Procedimento  similar  ocorre  em  “Lady  Madonna”,  e  nessa,  assim  como  em  “Help”,  ocorre  uma 
signi cativa diminuição do andamento com relação à gravação original.  
Dessas  versões,  porém,  creio  que a versão de “Eleanor Rigby” se destaca. A canção de John 

Lennon  e  Paul  McCartney  foi  originalmente lançada no disco Revolver, dos Beatles, de 1966. Nessa 


 
167 

gravação  original,  a  voz  de  Paul  McCartney  é  acompanhada  por  um  octeto  de  cordas.  Essa 
composição  e  esse  disco  como  um  todo  foram  decisivos  na  transição  da  sonoridade  tradicional dos 
Beatles  associada  ao  pop  e ao rock’n’roll para uma estética mais voltada a experimentações de estúdio. 
Aqui,  o  octeto  reforça  o  caráter  dramático  da  letra,  que  conta  a  história  de  três  pessoas  solitárias 
(“lonely  people”).  Mesmo  entre  os  músicos  da  MPB  nacionalista  dos  anos  60  ela teve um impacto; 
Veloso  (1997)  conta  que,  embora  muitos  daqueles  músicos  da  canção  engajada  considerassem  os 

discos  anteriores dos Beatles como sendo de pouco valor, estes encontraram elogios a Eleanor Rigby, 
e  ainda  mencionou  a  fala  da  cantora  Marilia  Medalha,  que  comentou  sobre  a  beleza  da  canção. 
Quando  Caetano  gravou  essa  música em seu disco Qualquer Coisa, oito anos depois do lançamento 
pelos  Beatles,  a  proposta  sonora  foi  bastante  distinta.  A  versão  do  cantor  conta  com  violão  base 
(Caetano),  violão  solo  (Perinho  Albuquerque),  contrabaixo  (não  creditado)  e  percussão  (Djalma 
Corrêa),  além  da  voz.  Essa  formação  instrumental,  de  certa  forma,  se  assemelha  àquela  presente no 
disco  Transa. Diferente da gravação original, a versão de Caetano repete a letra e insere uma seção de 
improviso,  feito  pelo  violão.  Enquanto  este  improvisa,  o  outro  violão  executa  uma  levada  de 
bossa-nova, novo ritmo que essa canção assume nas mãos de Caetano. 
Essa  interpretação  de  “Eleanor  Rigby”  (mas  também  as  de  “Lady  Madonna”  e  “For  No 
One”)  ajudou  na  incorporação  de nitiva  do  pop  e  do  rock  pela  MPB.  Quando  a  MPB 
institucionaliza-se  (NAPOLITANO,  2001)  e  passa  a  ocupar um lugar hegemônico no mercado, ela 
ganha estabilidade e, com isso, a capacidade de incorporar elementos externos a ela sem que com isso 
se  descaracterize.  Essa  estabilidade  também  permite  que  Caetano  incorpore  à  MPB  a  canção 
folclórica  peruana  na  valsa  “La  Flor  de  la  Canela”,  da  cantora  e  compositora  Chabuca  Granda, 
interpretada  com  violão  e  viola,  e  a  música  cubana  com  “Drume  Negrinha”,  versão  de  “Drume 

Negrita” de Ernesto Grenet Sanchez, tocada no violão (Caetano) e no piano (João Donato).  
É  a  faixa-título “Qualquer Coisa”, porém, que dá todos os indicativos da sonoridade que o 
disco  desenvolveria  e  que  contrastam  com  aquela  do  Jóia.  Nessa  gravação,  a  sonoridade  de  música 
pop  faz-se  onipresente,  e  a  formação  instrumental  inclui  a  bateria  de Enéas Costa (instrumento que 
não aparece em praticamente nenhum momento no disco Jóia), o piano de João Donato, o violão de 
Perinho  Albuquerque,  o  baixo  elétrico  de  Sérgio  Barrozo,  além  de  autas  e  naipes  de  metais  cujos 

músicos não foram creditados na cha técnica. 

 
168 

A  melodia  da  canção,  a  instrumentação  (principalmente  algumas  linhas  melódicas  feitas 


por  instrumentos  de  sopro)  e  as  alusões  geográ cas  da  letra  conferem  uma  ambientação 
simultaneamente  ibérica,  persa  e  arábica  à  canção.  As  menções  feitas  são  à  Espanha  e  às  cidades  de 

Teerã,  capital do Irã, e Marrakesh (ou Marraquexe), cidade de Marrocos. Na melodia e na harmonia, 
é  evocada  a  sonoridade  da  música  amenca.  Isso  ocorre  pelo  uso  de  acordes  do  modo  frígio  em 
trechos  especí cos,  no  movimento  do  acorde  Bb  (bII)  para  A  (I).  Esse  modo  é  muito  comumente 
utilizado  na  música  amenca  e  em  outros  gêneros  da  música  ibérica,  e  a  melodia  executada  pelo 
trompete  nesse  momento  reforça  esses  elementos  frígios. Aqui, embora Caetano esteja trabalhando 
dentro  de  uma  sonoridade  assumidamente  pop,  o  caráter  experimental  ainda  ganha  certo  espaço  e 

muitos  diálogos  se  estabelecem  com  diferentes  universos.  No  âmbito  da letra, por exemplo, há uma 
narrativa  fragmentada  que,  além  de  citar  aqueles  lugares  mencionados,  faz  referências  ao  cinema 
marginal de Rogério Sganzerla (“Sem Essa, Aranha”).   
O  equilíbrio  entre  os  dois  discos,  Jóia  e  Qualquer  Coisa,  mostram  que  Caetano  não  se 
deixou  prender  por  tendências  especí cas.  Como  coloca  Bosco  (2004),  o  lugar  que  o  compositor 
ocupa  é  o  da  multiplicidade:  não  é  “MPB  ou rock” ou ainda “tradição ou modernidade”; é MPB e 

pop e rock e samba e tradição e experimentalismo e modernidade.  


 
O  valor  maior  a  ser  preservado,  re etido  em todos momentos de sua trajetória, é o direito 
inalienável  de  experimentar  tudo  em  todas  as  direções,  sempre  regido  por  um  estado  de 
autêntica  vontade,  e  a  esta  atrelada  a  defesa  inquestionável  da  liberdade:  o  permanente 
exercício  do direito ao sim ou não, ao sabor do que é ditado pelo desejo, pulsão reguladora 
da vontade, da liberdade, da expressão autêntica (LUCCHESI; DIEGUEZ, 1993, p. 121). 
 
Em  outras  palavras,  Bosco  (2004,  p.  106)  sintetiza  o que essa multiplicidade representa na 

obra de Caetano: 
 
O  'passe-livre'  da  pluralidade  pode  simplesmente  evocar  uma  variada  tipologia 
semiológica:  há  signos  para  se  re etir,  há  signos  para  se  distrair;  há  canções  para  dançar, 
outras  para  ouvir;  há  lmes  para  lembrar,  novelas  para  esquecer.  Por  que,  a nal,  a 
monocultura semiológica? Certamente, a cultura de massas privilegia os signos distrativos, 
o  regime  generalizado  do  fait-divers,  mas  não se deve jogar fora o bebê junto da água suja: 
nem  sempre  se  quer  o  denso,  nem  sempre  o  raso;  nem  sempre  o  sério,  nem  sempre  o 
engraçado;  nem  sempre  o  afeto,  nem  sempre  a  razão; nem sempre a crítica, nem sempre a 
distração (BOSCO, 2004, p. 106). 
 

 
169 

De  certa  forma,  Jóia  e  Qualquer  Coisa  sintetizam  Caetano  Veloso  em  toda a sua trajetória 
musical.  O  primeiro,  representando  sua  veia  de  experimento;  o  segundo,  sua  abertura  ao  mercado. 
E,  por  estar  nesse  lugar  da  multiplicidade,  suas  obras  mais  experimentais  ainda  possuem  uma 

acentuação  pop,  e  suas  canções  mais  comerciais,  por  outro  lado,  sempre  trazem  algum  nível  de 
inovação estética.    

 
170 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
Ao  iniciar  esse  trabalho,  de ni  como  objetivo  analisar  as  formas  pelas  quais  Caetano 
Veloso,  em  atitude  responsiva,  dialoga  com  o  contexto  em  que  esteve  inserido  nos  anos  1970.  Para 
abordar  esse  problema,  z  um  recorte  focado  principalmente  no  disco  Jóia,  que  fora  lançado,  ao 
lado do disco Qualquer Coisa, em 1975.  

No  capítulo  3,  z  uma  vasta  contextualização  histórica  focada  na  canção  popular 
brasileira,  elucidando os processos pelos quais ela passou e as interações que sempre ocorreram entre 
elementos  nacionais  e  estrangeiros  em  sua  formação.  A  canção  brasileira,  fortemente  vinculada  aos 
meios  de  comunicação,  teve  momentos  de  grande  crescimento  com os surgimentos progressivos do 
disco  de  vinil,  do  rádio  e  da  televisão  e  esses  veículos  e  as  tecnologias  associadas  a  eles  também 
in uenciaram, de alguma forma, o próprio fazer musical.  

No  nal  dos anos 1950, a Bossa Nova surge no Rio de Janeiro e traz diversas contribuições 


importantes  à  linguagem  cancional  brasileira,  entre elas: a emissão vocal contida, sem a utilização de 
vibratos  e  grande  intensidade;  a  incorporação  de nitiva  de  elementos  harmônicos  provenientes  do 
jazz  e  da  música  impressionista;  a  construção  de  melodias  apoiadas  sobre  notas  de  tensão  dos 
acordes;  e  a  levada  de  violão  característica,  uma  estilização  da  levada  de  samba.  É  também  nesse 
período  que  o  LP  começa  a  ganhar  espaço  no  mercado  musical  brasileiro,  em  oposição  aos  discos 
compactos.  As letras desse movimento também trouxeram inovações por tirarem o foco dos grandes 

temas  passionais,  muito  presentes  no  samba-canção  e  no  bolero  dos  anos  1950,  e  tematizarem 
situações leves e cotidianas.  
Foi  nesse  período  que  Caetano,  paralelamente,  entrou  em contato com as movimentações 
culturais  que  se  desenvolviam  na  Universidade  da  Bahia,  em  Salvador.  Lá, o compositor entrou em 
contato  com  diversos  artistas  estrangeiros,  que  trouxeram  ao  Brasil  alguns  dos  procedimentos 
musicais  mais  recentes  das  vanguardas  europeias.  Todas  elas  buscavam  a  criação  de  novos  códigos 

musicais  e  novas  formas  de  expressão  que  rompessem  com  o  sistema  tonal,  o  que  certamente  foi 
absorvido por Caetano Veloso.  
Enquanto  isso,  em  São  Paulo  e  no  Rio  de  Janeiro,  a  Bossa Nova passava a incluir, em suas 
letras,  outras  temáticas,  com  caráter  mais  social  e  de  protesto,  o  que  se  intensi cou  quando  se 
instaurou  a  Ditadura  Militar  em  1964,  e  foi  nesse  contexto  que  Caetano  entrou  nesse  cenário 
 
171 

artístico.  Paralela  e  em  oposição  à  canção  engajada,  a  Jovem  Guarda  nasceu  com  grande  apelo 
popular,  letras  descompromissadas  e  sonoridade  amplamente  rmada  no  pop  rock  de  in uência 
britânica,  americana  e  italiana.  Nos  festivais  televisivos,  Caetano  identi cou  a  oportunidade  de 
lançar  o  movimento  tropicalista,  sua  proposta  de  “som  universal”  que,  vindo  da  MPB,  tivesse 
capacidade  de  deglutir,  no  sentido  antropofágico  de  Oswald de Andrade, os melhores elementos da 
música  estrangeira,  para  então  criar  uma  música  brasileira  de  exportação,  capaz  de  estabelecer 

diálogos  globais.  Mesmo  com  diversos  embates  com  os  “emepebistas  tradicionais”,  os  tropicalistas 
tiveram grande impacto no cenário cultural da época e atuaram amplamente na mídia até a prisão de 
seus  líderes,  Caetano  Veloso  e  Gilberto  Gil,  em  1969,  seguida  pelo  exílio  dos  dois  em  Londres.  O 
estabelecimento  dos  Anos  de  Chumbo  da  Ditadura  Militar  teve  impacto  direto  sobre  as 
composições  da  MPB,  que  tiveram que enfrentar forte censura. Seguiu-se a isso um período em que 
a  contracultura  ganhou  força  no  Brasil,  e  muitas  das  canções  assumiram  temáticas  noturnas,  que 

falavam  sobre  desespero,  depressão  e paranóia. Nesse contexto, Caetano lançou discos como Transa 


e  Araçá  Azul  que,  embora  com  sonoridades  muito  distintas,  tiveram  o  experimentalismo  como  o 
condutor. 
É  nesse  contexto  que  Caetano  lança  os  discos  Jóia  e  Qualquer  Coisa.  Meu  trabalho  foca 
principalmente no primeiro e, em minhas análises, busquei uma compreensão globalizante do disco, 
que  envolvesse  um  olhar  aprofundado  para  os  procedimentos  composicionais,  as  referências 
musicais  e as sonoridades presentes. Depois de um primeiro momento de análise baseada na audição 
atenta  de  todas  as  canções  do  disco,  selecionei  sete  categorias  de  análise:  o  projeto  grá co;  os 
arranjos, texturas e instrumentações; os ritmos, levadas e gêneros musicais; os usos do modalismo; os 
diferentes  usos  da  voz;  as  construções  poéticas;  e  os  pontos  de  comparação  entre  os  discos  Jóia  e 
Qualquer Coisa.  
O  estudo  do  projeto  grá co indicou a continuação de um processo que começara no disco 
Araçá  Azul:  um  movimento  de  retomada  do  corpo  para  si,  corpo  este  que  esteve  preso  e  exilado, 
sujeito  ao  domínio do outro. A capa do disco, que representa o cantor e sua família nus, já apresenta 
esse  movimento:  a  nudez  é simbólica da liberdade que Caetano buscava de qualquer amarra, seja no 
sentido  literal,  seja  no  âmbito  estético  e  artístico.  Os  manifestos  lançados  juntamente  aos  discos 

apontam  também  para  esse  movimento  libertário.  Veloso  via-se  em  uma  posição  imposta  de 
liderança  a  qual  não  mais  lhe  interessava  —  principalmente  no  sentido  de  adotar  uma  postura 
 
172 

combativa  em  suas  letras.  Aqui,  a  liberdade  não  só  aparece no sentido de poder ser, mas também no 


de poder não ser. 
Os  arranjos  do  disco  Jóia  eram,  em  sua  maioria,  abertos:  davam  muitas  liberdades 
interpretativas  a  Caetano  por  não  haver  grande  xação  de  formas.  Em  todo  o  disco  encontramos 
instrumentações  reduzidas;  há  um  grande  destaque  para  a  voz,  que  aparece  acapella  ou 
acompanhada  de  violão,  percussão  (sem  bateria)  e  autas.  O  aspecto  rítmico  ganha  bastante 
destaque. Como geralmente ocorre em canções modais, muitas das gravações do álbum contam com 
algum  instrumento  realizando  um  “bordão”,  marcações  em  tempo  xo,  sobre  o qual a voz e outros 
instrumentos  adotam  subdivisões  rítmicas  irregulares.  Isso  ocorre,  no disco, dentro de uma miríade 

de  gêneros  musicais  e  ritmos,  entre  eles  a  toada,  o  agueré,  a  bossa-nova,  o  blues,  o  funk,  o  bolero,  a 
marcha-rancho, o samba, o samba-de-matuto, a valsa, o xote e o baião. 
Como  mencionado,  o  modalismo  faz-se  presente  ao  longo  de  todo  o  disco.  Os  modos 
utilizados  —  eólio,  dórico,  mixolídio,  jônico  e  lídio  —  revelam  in uências  de  diversas  matrizes 
musicais,  entre  elas  a  das  músicas  nordestinas  e  a  musicalidade  afro-brasileira.  Nessas  canções 
modais  aparecem  diversos  procedimentos  característicos  do  Modalismo  Pós-Tonal  do  século  XX, 

como  o  uso  de  polimodalidade,  permutabilidade  modal  e  hibridismo  modal-tonal.  Ademais, 


mesmo  as  canções  tonais  do  Jóia  incluem  certos  elementos  modais,  como  a  dissolução  da  ideia  de 
tensão  e  resolução  na  melodia  ou  a  incorporação  de  acordes  provenientes  de  campos  harmônicos 
modais.  
O  disco  anterior,  Araçá  Azul,  é  marcado  por  diversos  usos  experimentais da voz: Caetano 
utiliza  grunhidos,  gritos,  sussurros  e  onomatopéias  como  formas  de  expansão  dos  limites  da voz na 
música.  Em  Jóia, o cantor retorna à estrutura de canção e, com isso, a principal função da voz volta a 

ser  a  integração  entre  letra  e  melodia.  Sua  emissão  vocal  no  disco  tem  grande  in uência 
bossanovista,  principalmente  de  João  Gilberto  no  uso  de  legatos  e  poucos  contrastes.  Apesar  disso, 
há  também  espaço  no  disco  para  diferentes  tipos  vocais,  o que aparece principalmente em seções de 
improvisos,  que  se  estabelecem  geralmente  em  contextos  modais,  com  liberdade  de  duração  e 
experimentação  da  sonoridade  das  sílabas.  A ideia de desconstrução da melodia também aparece em 
canções  como  “Guá”,  na  qual  o  cantor  canta  notas  em  registros  extremos  graves  e  agudos  como 

forma  de  romper  com  uma  linearidade  melódica.  Em  seguida,  porém,  há  um  retorno  para  uma 

 
173 

construção  melódica  mais  tradicional.  Esse  tipo  de  interação  entre  estruturas  tradicionais  e 
experimentalismo aparece com frequência no disco. 
Também  podemos identi car esse movimento entre tradição e modernidade, por exemplo, 

na  mistura  de  gêneros  musicais  da  canção “Minha Mulher”, que traz a levada da toada (tradição) ao 


lado  do  funk  americano  (modernidade).  Em  “Asa,  Asa”,  uma  melodia  aproveitada  de  cantos 
indígenas  ganha  contornos  de  jazz  e  letra  como  poema  concreto.  Já “Canto do Povo de um Lugar” 
traz,  lado  a  lado,  a  sonoridade da música “caipira” e o órgão utilizado em bandas de rock psicodélico, 
enquanto  “Pipoca  Moderna”  une  a  melodia  da  Banda  de  Pífanos  de  Caruaru  a  um  arranjo  vocal  e 
uma instrumentação dissonantes e arrojados.  

Aparecem  nas  canções  diversas  formas  de  intertextualidade.  Nas  gravações  de  “Help”  e 
“Na  Asa  do  Vento”,  o  cantor  busca  fazer  uma  “transformação  dos  originais”  dos  Beatles  e  de  João 
do  Vale  e  Luiz  Vieira.  Sua  abordagem  inclui  um  processo  de  triagem,  que busca o essencial de cada 
canção  muitas  vezes  na  interação  entre  melodia e letra. Partindo desse lugar, Caetano acrescenta seu 
olhar  particular.  A  “Help”,  são  acrescentados  elementos  de  blues,  pop  e  bossa-nova,  tanto na levada 
quanto  nas  in exões  melódicas.  A  “Na  Asa  do Vento”, o cantor joga com a defasagem rítmica entre 

violão e voz e desconstrói o xote original dos compositores nordestinos.  


As  letras  estabelecem  diálogos  interessantes  com  a  poesia  concreta, adotando muitas vezes 
suas  narrativas  líricas  não-lineares,  como  nas  canções  “Guá”,  “Tudo  Tudo  Tudo”,  “Pipoca 
Moderna”  e  “Asa,  Asa”.  Há  uma  grande  tematização  de  elementos  da  natureza,  principalmente 
relacionando  guras  de  divindade  a  elementos  naturais,  como  acontece  em  “Pelos Olhos” e “Guá”. 
Outro  tema  constante  no  disco  é  a  ideia  de  vôo,  que  simbolicamente  representa  a  liberdade  e  a 
abertura  para  novas  possibilidades  sonoras.  Se  a presença de imagens como a da “lua” estabelece um 
diálogo  com  a  contracultura  brasileira,  há  também,  ao  mesmo  tempo,  uma abertura para temáticas 
“solares”. No disco Transa a questão do exílio ainda ocupava lugar central nas letras e havia forte uso 
de citações diretas; em Araçá Azul, as canções de “esgar”, com discurso rarefeito, feitas justamente de 
forma  a  “alienar”  seu  público.  Já  no  Jóia,  o  experimentalismo  faz-se  “acessível”:  está  dentro  da 
canção. 
Na  comparação  com o disco Qualquer Coisa encontramos diversos pontos interessantes. É 
possível,  num  primeiro  momento,  identi car  o  Jóia  como  um  disco  de  canções  autorais  e  o 
Qualquer  Coisa  uma  coletânea  de  canções  de  outros  artistas.  Isso  desconsidera,  claro,  a presença de 
 
174 

canções  como  “Help”  e “Na Asa do Vento” no primeiro e as autorais “Qualquer Coisa”, “Da Maior 


Importância”,  “A  Tua  Presença  Morena”  e  “Nicinha”  no  segundo.  Ainda  assim,  essa  grande 
presença de “covers” no disco Qualquer Coisa contribui também para uma sonoridade fragmentada: 

não  há,  necessariamente,  uma  estética  uni cadora  no  álbum.  No  Jóia,  em  contrapartida,  é  possível 
identi car  na  contenção  e  na  frugalidade  uma  espécie  de  guia  para  a sonoridade do disco como um 
todo.  
Enquanto  as  letras  do  Jóia  trabalham  temas  “universais”  como  a  natureza,  a  liberdade  e 
certo  misticismo,  as  composições  presentes  no  Qualquer  Coisa  tematizam  questões  cotidianas. 
Também  neste  disco  há  uma  grande  presença  de  instrumentos  eletri cados  e  bateria.  Se  há  grande 
mistura  de  gêneros  no  Jóia,  estes  aparecem  sob  a  triagem  de  uma  mesma  estética.  Nesse  sentido,  é 
possível  traçar  um  paralelo  entre  esses  discos  e  os  movimentos  da  Bossa  Nova e do Tropicalismo. A 
primeira,  como  o  disco  Jóia,  representa  um  momento  de  triagem,  escolha  cuidadosa,  contenção;  o 

segundo,  como  o  Qualquer  Coisa,  representa  a  abertura  e  a  política  da  inclusão.  Ambos  são  frutos 
de um eu plural, que comporta em si tanto a concepção apolínea quanto a expressão dionisíaca.  
Os  dois  discos  funcionam  como  metáfora  para  a  obra  de  Caetano  que  equilibra 
experimentalismo  e  mercadoria.  Trabalhos  futuros  podem  avançar  essa  pesquisa  indicando  como 
esses  procedimentos  aparecem  nos  outros  discos  de  Caetano  daquela  década  e  como  estes  se 
relacionam  com  o  contexto  no  qual  se  inserem.  Algo  que  também  não  pôde  ser  realizado  nesta 
dissertação,  mas  que  pode  render  bons  frutos,  é  uma pesquisa voltada para a análise comparativa de 

diversos  artistas  daquele  contexto.  A década de 1970 é, ao meu ver, uma das mais ricas para a música 


brasileira,  e  uma  maior  compreensão  das  obras  desse  período  é  fundamental  para  o  avanço  do 
campo de Estudos de Música Popular no nosso país. 
 
   

 
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182 

APÊNDICES 
 
Apêndice I - Transcrições de algumas canções do disco Jóia 
 
“Minha Mulher” 

 
183 

 
184 

 
185 

“Pelos Olhos” 
 

 
186 

 
 
187 

“Asa, Asa” 

 
188 

 
189 

“Lua, Lua, Lua, Lua” 


 

 
 
190 

 
191 

“Pipoca Moderna” - Vozes 


 

 
 
192 

 
193 

“Jóia” - Vozes 
 

 
194 

“Gravidade” 
 

 
195 

 
196 

 
197 

“Tudo Tudo Tudo” 


 

 
198 

 
199 

 
200 

“Na Asa do Vento” 


 

 
 
201 

 
202 

 
203 

 
204 

 
205 

 
206 

 
 
 
   

 
207 

ANEXOS 
 
Anexo I - Letras das Canções do Disco Jóia 
 
“Minha Mulher” (Caetano Veloso) 
 
Quem vê assim pensa que você é muito minha lha 
Mas na verdade você é bem mais minha mãe 
Quem vê assim pensa que você é muito minha lha 

Mas na verdade você é bem mais minha mãe 


 
Meu bichinho bonito 
Meu bichinho bonito 
Meu bichinho bonito 
 

Tudo é mesmo muito grande assim 


Porque Deus quer 
Minha mulher 
Minha mulher 
Minha mulher 
 
Quem vê assim pensa que você é muito minha lha 

Mas na verdade você é bem mais minha mãe 


Quem vê assim pensa que você é muito minha lha 
Mas na verdade você é bem mais minha mãe 
 
Meu bichinho bonito 
Meu bichinho bonito 

 
Tudo é mesmo muito grande assim 
 
208 

Porque Deus quer 


Minha mulher 
Minha mulher 

Minha mulher 
 
Quando eu for velho 
Quando eu for velhinho 
Bem velhinho 
Como seremos 

Como serei 
Como será? 
 
Quando eu for velho 
Quando eu for velhinho 
Bem velhinho 
Como seremos 
Como serei 
Como será? 
 
Meu bichinho bonito 
Meu bichinho bonito 
Meu bichinho bonito 
 
Tudo é mesmo muito grande assim 
Porque Deus quer 

Minha mulher 
Minha mulher 
Minha mulher 
   

 
209 

“Guá” (Perinho Albuquerque e Caetano Veloso) 


 
Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 
Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 
Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 
Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 

Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 


 
Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 

Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 


 
Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 

Água, Guamá, Iguapé, Ibualama 


Ibualama, Ibualama, Ibualama, Ibualama   

 
210 

“Pelos Olhos” (Caetano Veloso) 


 
O Deus que mora na proximidade do haver avencas 
 
Esse Deus das avencas 
É a luz 

Saindo pelos olhos 


De minha amiguinha 
 
O Deus que mora na proximidade do haver avencas 
Esse Deus dos fetos 
Das plantas pequenas é a luz 

 
Saindo pelos olhos 
De minha amiguinha linda 
De minha amiguinha 
De minha amiguinha 
 
De minha amiguinha linda 
De minha amiguinha 
De minha amiguinha 
De minha amiguinha linda 
 
O Deus que mora na proximidade do haver avencas 
Esse Deus das avencas 
É a luz 
Saindo pelos olhos 
De minha amiguinha   

 
211 

 
“Asa, Asa” (Caetano Veloso) 
 
 
Pássaro um  Pássaro um 
Pássaro pairando  Pássaro pairando 

Pássaro momento  Pássaro momento 


Pássaro ar  Pássaro ar 
Pássaro ímpar  Pássaro ímpar 

Parou pousar  Parou pousar 


Parou repousar  Parou repousar 
Pássaro som  Pássaro som 

Pássaro parado  Pássaro parado 


Pássaro silêncio  Pássaro silêncio 
Pássaro ir  Pássaro ir 

Pássaro ritmo  Pássaro ritmo 


Passar voou  Passar voou 
Passar avoou  Passar avoou 
Pássaro par  Pássaro par 
 
 
   

 
212 

“Lua, Lua, Lua, Lua” (Caetano Veloso) 


 
 

Lua, lua, lua, lua  E mesmo o vento 


Por um momento  Canta-se compacto no tempo 
Meu canto contigo compactua  Estanca 
   
E mesmo o vento  Branca, branca, branca, branca 
Canta-se compacto no tempo  A minha, a nossa voz, atua sendo silêncio 
Estanca  Meu canto não tem nada a ver com a lua 
   
Branca, branca, branca, branca  Lua, lua, lua, lua 
A minha, a nossa voz, atua sendo silêncio  Lua, lua, lua, lua 
Meu canto não tem nada a ver com a lua  Lua, lua, lua, lua 
   
Lua, lua, lua, lua 
Por um momento 
Meu canto contigo compactua 
 
E mesmo o vento 
Canta-se compacto no tempo 
Estanca 
 
Branca, branca, branca, branca 
A minha, a nossa voz, atua sendo silêncio 
Meu canto não tem nada a ver com a lua 
 
Lua, lua, lua, lua 
Por um momento 
Meu canto contigo compactua 
 
213 

“Canto do Povo de um Lugar” (Caetano Veloso) 


 
 

Todo dia o sol levanta  Quando a noite a lua amansa 


E a gente canta ao sol de todo dia  E a gente dança venerando a noite 
   

Fim da tarde a terra cora  Todo dia o sol levanta 


E a gente chora porque nda a tarde  E a gente canta ao sol de todo dia 
   

Quando a noite a lua amansa  Fim da tarde a terra cora 


E a gente dança venerando a noite  E a gente chora porque nda a tarde 
   

Todo dia o sol levanta  Quando a noite a lua amansa 


E a gente canta ao sol de todo dia  E a gente dança venerando a noite 
   

Fim da tarde a terra cora  Todo dia o sol levanta 


E a gente chora porque nda a tarde  E a gente canta ao sol de todo dia 
   

 
214 

“Pipoca Moderna” (Sebastião Biano e Caetano Veloso) 


 
 
E era nada de nem noite de negro não  E era não de nada nem 
E era nê de nunca mais   
E era noite de nê nunca de nada mais  Pipoca ali, aqui, pipoca além 
E era nem de negro não  Desanoitece, amanhã tudo mudou 
Porém parece que há golpes de pê, de pé, de  Pipoca ali, aqui, pipoca além 
pão  Desanoitece, amanhã tudo mudou 
De parecer poder   
E era não de nada nem  E era nada de nem noite de negro não 
  E era nê de nunca mais 
Pipoca ali, aqui, pipoca além  E era noite de nê nunca de nada mais 
Desanoitece, amanhã tudo mudou  E era nem de negro não 
Pipoca ali, aqui, pipoca além  Porém parece que há golpes de pê, de pé, de 
Desanoitece, amanhã tudo mudou  pão 
  De parecer poder 
E era nada de nem noite de negro não  E era não de nada nem 
E era nê de nunca mais   
E era noite de nê nunca de nada mais  Pipoca ali, aqui, pipoca além 
E era nem de negro não  Desanoitece, amanhã tudo mudou 
Porém parece que há golpes de pê, de pé, de  Pipoca ali, aqui, pipoca além 
pão  Desanoitece, amanhã tudo mudou 
De parecer poder 
   

 
215 

“Jóia” (Caetano Veloso) 


 
Beira de mar 
Beira de mar 
Beira de maré na América do Sul 
Um selvagem levanta o braço 

Abre a mão e tira um caju 


Um momento de grande amor 
De grande amor 
 
Copacabana 
Copacabana 
Louca total e completamente louca 
A menina muito contente 
Toca a coca-cola na boca 

Um momento de puro amor 


De puro amor 
   

 
216 

“Help” (John Lennon e Paul McCartney) 


 
 

Help I need somebody  But every now and then I feel so insecure 
Help not just anybody  I know that I just need you like I've never 
Help you know I need someone help  done before 
   
When I was younger so much younger than  Help me if you can I'm feeling down 
today  And I do appreciate you being round 
I never needed anybody's help in any way  Help me get my feet back on the ground 
But now these days are gone I'm not so self  Won't you please please help me 
assured   
Now I nd I've changed my mind and  When I was younger so much younger than 
opened up the doors  today 
  I never needed anybody's help in any way 
Help me if you can I'm feeling down  But now these days are gone I'm not so self 
And I do appreciate you being round  assured 
Help me get my feet back on the ground  Now I nd I've changed my mind and 
Won't you please please help me  opened up the doors 
   
And now my life has changed in oh so many  Help me if you can I'm feeling down 
ways  And I do appreciate you being round 
My independence seems to vanish in the haze  Help me get my feet back on the ground 
Won't you please please help me  
   

 
217 

“Gravidade” (Caetano Veloso) 


 
Asa asa asa asa 

Não ter asa 


Pedras no fundo azul 
 
Água água água água 
Barbatana 
Seixo rolando no leito 
 
Chama chama chama chama 
Nada nada 
Sonho afogado no ar 
 
Asa asa asa asa 
O vento entra pela casa 
Pedra de sono na cama 
 
Sonho no fundo do leito 

Brasa debaixo da cinza 


Anjo no peito da terra 
Asa no fundo do sonho 
 
Asa asa asa asa 
Rio in nito no leito de um rio 

 
Seixo seixo seixo seixo 
Destino do destino (4x) 
   

 
218 

“Tudo Tudo Tudo” (Caetano Veloso) 


 
mmmmmmmmmm 
mmmmmmmmmm 
mmmmmmmmar 
 

Tudo comer 
Tudo dormir 
Tudo no fundo do mar 
   

 
219 

“Na Asa do Vento” (João do Vale e Luiz Vieira) 


 
 
Deu meia noite, a lua faz o claro  É o mar um grande espelho onde os dois vão 
Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste  se mirar 
A aranha tece puxando o o da teia  Rosa amarela quando murcha perde o cheiro 
A ciência da abeia, da aranha e a minha  O amor é bandoleiro, pode inté custar 
Muita gente desconhece  dinheiro 
  É fulô que não tem cheiro e todo mundo 
Muita gente desconhece, olará, viu?  quer cheirar 
Muita gente desconhece   
Muita gente desconhece, olará, tá?  Todo mundo quer cheirar, olará, viu? 
Muita gente desconhece  Todo mundo quer cheirar 
Muita gente desconhece, olará, viu?  Todo mundo quer cheirar, olará, tá? 
Muita gente desconhece  Todo mundo quer cheirar 
Muita gente desconhece, olará, tá?  Todo mundo quer cheirar olará, viu? 
Muita gente desconhece  Todo mundo quer cheirar 
   
Deu meia noite, a lua faz o claro  Deu meia noite, a lua faz o claro 
Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste  Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste 
A aranha tece puxando o o da teia  A aranha tece puxando o o da teia 
A ciência da abeia, da aranha e a minha  A ciência da abeia, da aranha e a minha 
Muita gente desconhece  Muita gente desconhece 
   
Muita gente desconhece, olará, viu?  Muita gente desconhece, olará, viu? 
Muita gente desconhece  Muita gente desconhece 
Muita gente desconhece, olará, tá?  Muita gente desconhece, olará, tá? 
Muita gente desconhece  Muita gente desconhece 
  Muita gente desconhece, olará, viu? 
A lua é clara, o sol tem rastro vermelho  Muita gente desconhece 
 
220 

A lua é clara, o sol tem rastro vermelho  Todo mundo quer cheirar 
É o mar um grande espelho onde os dois vão   
se mirar  Deu meia noite, a lua faz o claro 

Rosa amarela quando murcha perde o cheiro  Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste 
O amor é bandoleiro, pode inté custar  A aranha tece puxando o o da teia 
dinheiro  A ciência da abeia, da aranha e a minha 

É fulô que não tem cheiro e todo mundo  Muita gente desconhece 
quer cheirar   
  Muita gente desconhece, olará, viu? 

Todo mundo quer cheirar, olará, viu?  Muita gente desconhece 


Todo mundo quer cheirar  Muita gente desconhece, olará, tá? 
Todo mundo quer cheirar, olará, tá?  Muita gente desconhece 

Todo mundo quer cheirar  Muita gente desconhece, olará, viu? 


Todo mundo quer cheirar olará, viu?  Muita gente desconhece 
Todo mundo quer cheirar  Muita gente desconhece, olará, tá? 

Todo mundo quer cheirar, olará, tá?  Muita gente desconhece 


   

 
221 

“Escapulário” (Caetano Veloso e Oswald de Andrade) 


 
No pão de açúcar 

De cada dia 
Dai-nos, Senhor 
A poesia de cada dia 
(No pão de açúcar) 
 
No pão de açúcar 

De cada dia 
Dai-nos, Senhor 
A poesia de cada dia 
(No pão de açúcar) 
 
No pão de açúcar 
De cada dia 
Dai-nos, Senhor 
A poesia de cada dia 
(No pão de açúcar...)   

 
222 

Anexo II - “Manifestos dos Movimentos Jóia e Qualquer Coisa” 


 
Manifesto do Movimento Jóia 
 
respeito  contrito  à  ideia  de  inspiração.  alegria.  saber  a  calma  para  ir  perder  a  pressa  para  estar. 
inspiração  quer  dizer:  todo  esforço  em  direção  a  esforço  nenhum,  nenhum  esforço  em  direção  a 

todo  esforço  em  direção  a  esforço  nenhum. todo esforço em direção a nenhum esforço em direção a 


todo  esforço  em  direção  a  nenhum.  todo  esforço  em  direção  a  nenhum  esforço  em  direção  a  todo 
esforço em direção a nenhum esforço em direção ao todo. 
 
nenhum  círculo  é  vicioso  a  ponto  de  impossibilitar  o  verde,  o  aparecimento  do  verde,  a  esperança 
do aparecimento do verde, escrevo livre da insensatez azul e do equilíbrio amarelo. 

 
respeito  contrito  à  ideia  de  inspiração.  jóia.  meu  carro  é  vermelho.  inspiração  quer  dizer:  estar 
cuidadosamente  entregue  ao  projeto  de  uma  música  posta  contra  aqueles  que  falam  em  termos  de 
década e esquecem o minuto e o milênio. 
 
inspiração: águas de março. 
 

o sexo dos anjos. e não fazemos por menos. 


   

 
223 

Manifesto do Movimento Qualquer Coisa 


 
I nada de novo sob a sol. mas sob o sol. 
II evitar qualquer coisa que não seja qualquer coisa. 
III cantar muito 
IV soltar os demônios contra o sexo dos anjos 

V a subliteratura. a subliteratura e a superliteratura. e até mesmo a literatura. 


VI por que não. 
VII jazz carioca. samba paulista. rock baiano. baião mineiro. 
VIII  jazz  carioca  feito  por  mineiros.  samba  paulista  feito  por  baianos.  baião  mineiro  feito  por 
cariocas. rock baiano feito por paulistas. 
IX e até mesmo a música, por que não. 

X mas sob o sol. 


XI a década e a eternidade, o século e o momento, o minuto e a história. 
XII  exemplos:  a  obra  de  jorge  mautner.  a  pessoa  de  donato,  o  papo  de  gil,  o  signi cante  em  maria 
bethânia. o signi cado em elis regina. baiano e os novos caetanos etc. 
XIII fama e cama. sempre de novo deitar e criar. 
XIV salvador dali no fantástico. 
XV o show da vida. 
XVI bob dylan live. 
XVII  qualquer  coisa  é  radicalmente contra os radicalismos e, paradoxalmente, considera ridículo tal 
paradoxo,  ridiculamente  não  vê  nenhum  paradoxo  nisso.  decididamente  a  favor  do  advérbio  de 
modo. 
XVIII a televisão está melhor do que o carnaval. insistir no carnaval. 
XIX e de novo sob o sol. e sempre. 
 

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