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REDENÇÃO

Consumada e Aplicada

JOHN MURRAY
JOHN MURRAY
Professor de Teologia Sistemática
Westminster Theological Seminary
Philadelphia, Pa. Estados Unidos

A Redenção
Consumada e Aplicada
Tradução:
Ivan G. Grahm Ross
e
Valter Graciano Martins

Editora Cultura Cristã


Traduzido do original inglês: Redemption Accomplished and Applied
Direitos cedidos à Editora Cultura Cristã por Wm. B. Eerdmans Publishing
Company para publicação em língua portuguesa. Proibida a reprodução desta
obra sem a devida autorização da ECC.

Diretoria Executiva:
Diretor-Presidente: Addy Félix de Carvalho
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Diretor-Editor: Valter Graciano Martins
Diretor-Administrativo Financeiro: Éber de Aquino

Revisão:
Gecy Soares de Macêdo
Célia Regina Romero Araújo
Gláucia Lima Araújo

Capa:
Jader de Almeida

Composição:
Zenaide Rissato dos Sari

Ia Edição 1993 — 1.000 exemplares

Editora
Cultura fristõ
Rua Miguel Teles Jr., 1^2/394
01540-P
V * n F o n e : (011) 270-7099
MAIINHO RODRIGUES
Conteúdo
PRIMEIRA PARTE
A REDENÇÃO CONSUMADA
1. A Necessidade da Expiação........................................... 11
2. A Natureza da Expiação................................................. 23
3. A Perfeição da Expiação .............................................. 57
4. A Extensão da Expiação .............................................. 65
5. Conclusão....................................................................... 83
SEGUNDA PARTE
A REDENÇÃO APLICADA
1. A Ordem na Aplicação . . . ..................................... ... 89
2. Vocação Eficaz ............................................................. 99
3. Regeneração................................................................... 107
4. Fé e Arrependimento ........................ ........................... 119
5. Justificação .................................................................... 131
6. Adoção .......................................................................... 147
7. Santificação................................................................... 157
8. Perseverança ................................................................ 167
9. União com Cristo ........................................................... 179
10. Glorificação ................................................................ 193
Apresentação
Faltava a esta Editora um manual específico de soteriologia,
que pudesse oferecer aos evangélicos e a todo estudioso da Bíblia
fora de nossos arraiais uma visão estritamente bíblica do mais
insondável dos atos divinos registrados na história humana e
universal. Entender ao máximo o drama da redenção é preciso, a
fim de podermos entender também ao máximo todos os demais
atos divinos dentro da economia do Deus Triúno. São quinze
capítulos, todos preciosos. Primeira parte: A Redenção Consuma­
da-A Necessidade da Expiação; A Natureza da Expiação; A
Perfeição da Expiação; Os Limites da Expiação; Conclusão. Se­
gunda Parte: A Ordem na Aplicação; Vocação Eficaz; Regenera­
ção; Fé e Arrependimento; Justificação; Adoção; Santificação;
Perseverança dos Santos; União com Cristo; Glorificação.

E verdade que o texto em si é muito complexo, trazendo ao


leigo de leitura elementar dificuldade na apreensão do conteúdo
teológico. Isto nos causa pesar, porquanto o nosso maior desejo é
que a igreja seja edificada. Todavia, a nossa esperança é que os
seminaristas, futuros pastores, e os pastores em pleno exercício
traduzam para o povo leigo em geral (porquanto há leigos muitís­
simo doutos na Palavra e nas ciências seculares), o conteúdo tão
precioso e necessário deste compêndio.

Acreditamos que uma igreja que entenda bem a ciência


bíblica do ato divino no Calvário (como centro de vim todo) estará
também solidamente preparada para entender a natureza e sutileza
das seitas heréticas que atormentam a igreja moderna. Há urgência
a que a igreja se reúna com seus mestres para o estudo profundo
da obra divina da redenção do homem. Se for bem observado, é
fácil notar que os inimigos estão atacando o reino de Deus preci­
samente nesta esfera. “O homem não precisa de Cristo, ele pode
resolver os seus próprios problemas”- é o slogan atual. Renegamos
tal conceito como blasfemo, e reafirmamos nossa lealdade a
Cristo!
Que o Senhor e Redentor abençoe sua igreja!

São Paulo, maio de 1993


Valter G. Martins
Editor -ECC
Primeira Parte
A Redenção Consumada
Capítulo 1
A necessidade da expiação

A realização da redenção preocupa-se com aquilo que é


geralmente chamado a expiação. Nenhum estudo da expiação pode
ser devidamente desenvolvido sem reconhecer em primeiro lugar
o livre e soberano amor de Deus. Esta perspectiva se encontra no
texto mais conhecido da Bíblia: “Porque Deus amou ao mundo de
tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo o que nele
crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16). Temos aqui uma
revelação fundamental de Deus, e, portanto, do pensamento huma­
no. Além disso não podemos e nem devemos aventurar-nos ir.
Pelo fato de ser um fundamento do pensamento humano não
exclui, contudo, outras caracterizações desse amor de Deus. A
Escritura nos informa que esse amor de Deus, do qual a expiação
emana, e da qual é a sua expressão, é um amor distinto. Ninguém
gloriava-se nesse amor de Deus mais do que o apóstolo Paulo.
"Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de
ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8).
"Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem
será contra nós? Aquele que não poupou a seu próprio Filho, antes,
por todos nós o entregou, porventura não nos dará graciosamente
com ele todas as coisas?” (Rm 8.31,32). Contudo, é o mesmo
apóstolo que nos delineia o eterno conselho de Deus que fornece
o contexto para tal afirmação e que nos define a órbita dentro da
qual tais pronunciamentos têm sentido e validade. Ele escreve:
“Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou
para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja
o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29). E em outro lugar,
ele se toma talvez ainda mais explícito quando diz: “Assim como
nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos
e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele,
para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o
beneplácito de sua vontade” (Ef 1.4,5). O amor de Deus, do qual
a expiação se origina, não é indiscriminado; é um amor que elege
e predestina! Deus foi servido em colocar o seu amor invencível e
eterno sobre uma multidão inumerável, e é o propósito determi­
nante deste amor que assegura a expiação.
É necessário salientar este conceito de amor soberano. Ver­
dadeiramente, Deus é amor. O amor não é algo à parte de Deus,
não é algo que ele pode escolher ser ou não ser. Deus é necessa­
riamente amor; o amor lhe é inerente e eterno. Da mesma forma
em que Deus é espírito e luz, assim ele é amor. Porém, pertence à *
própria essência do amor eletivo o reconhecimento de que este
amor necessariamente não deve culminar em redenção e adoção
em favor de objetos que são totalmente indesejáveis e merecedores
„ do inferno. Foi do livre e soberano beneplácito de sua vontade, um
beneplácito que emana das profundezas da sua própria bondade,
que ele elegeu um povo para ser herdeiro de Deus e co-herdeiro
com Cristo. A razão reside inteiramente nele mesmo e procede das
determinações que são peculiarmente suas: “Eu Sou o que Sou.”
A expiação não persuade e nem compele o amor de Deus. Pelo
contrário o amor de Deus é que compele à expiação, como o meio
para cumprir o propósito determinante deste mesmo amor.1

1. V. Hug Martin: The Atonement: in its relation to The Covenant, The Priesthood, The
Intercession of our Lord (Edinburgh, 1887), pág. 19.
5 Devemos compreender, portanto, que o amor de Deus é uma
premissa estabelecida, ou seja, este amor é a causa ou a fonte da
expiação. Todavia, isto não resolve o problema quanto à razão ou
necessidade da expiação. Qual é a razão por que o amor de Deus
deve tomar um caminho na realização de seu fim e no cumprimento
de seu propósito? Somos compelidos a indagar’ Por que o sacrifí­
cio do Filho de Deus? Por que o sangue do Senhor da glória?
Anselmo de Canterbury perguntou: “Sabendo que Deus é onipo­
tente, qual foi a necessidade e qual foi a razão para tomar sobre si
a humilhação e enfermidades da natureza humana a fim de realizar
a sua restauração?”2Por que Deus não podia realizar os propósitos
de seu amor para a humanidade pela palavra de seu poder ou pelo
decreto de sua vontade? Se declaramos que ele não podia, estamos
impugnando o seu poder? Se declaramos que ele podia, porém não
quis, estamos impugnando a sua sabedoria? Tais indagações não
são sutilezas escolásticas e nem vã curiosidade. Fugir delas é
perder algo que é central na interpretação da obra redentora de
Cristo e perder a visão de uma parte de sua glória essencial. Por
que Deus se fez homem? E tendo-se tomado homem, por que
morreu? E tendo morrido, por que morreu a morte maldita de cruz?
Esta é a indagação sobre a necessidade da expiação.
Entre as respostas oferecidas para estas perguntas, duas são
mais importantes. Elas são, antes de tudo, o conceito conhecido
como necessidade hipotética, e, segundo, o conceito que podemos
designar como o da necessidade conseqüente e absoluta. O primei­
ro foi defendido por homens eruditos, tais como Agostinho e
Tomás de Aquino.3 O Segundo pode ser considerado como a
posição clássica do protestantismo.

2. V. Cur. Deus Homo, Lib. I, Cap. I “qua necessitate scilicet et ratione Deus, cum sit
omnipotens, humilitatem et infirmitatem humanae naturae pro eius restauratione as-
sumpserit.”
.V V. augustine: On The Trinity, Liv. XIII, Cap. 10; Aquinas: Suma Theologica, Parte III,
Perg. 45, Arts. 2 e 3.
O conceito conhecido como necessidade hipotética assevera
que Deus podia perdoar o pecado e salvar os seus eleitos sem a
expiação ou satisfação — outros meios estavam disponíveis a Deus
a quem todas as coisas são possíveis. Porém, a forma de sacrifício
vicário do Filho de Deus foi simplesmente o meio que Deus, em
sua graça e sabedoria soberanas, escolheu, porque este é o meio
pelo qual o maior número de vantagens concorre, e o meio pelo
qual a graça é mais maravilhosamente revelada. Assim, embora
Deus pudesse salvar sem uma expiação, todavia, de acordo com o
seu decreto soberano, ele de fato não o fez. Sem derramamento de
sangue, realmente não há remissão nem salvação. Contudo, não há
nada inerente à natureza de Deus ou à natureza da remissão do
pecado que faz o derramamento de sangue indispensável.

Chamamos ao outro conceito de necessidade conseqüente e


absoluta. A palavra “conseqüente”, nesta designação, se refere ao
fato de que a vontade de Deus ou o decreto para salvar alguém é
de livre e soberana graça. A salvação de homens perdidos não foi
uma necessidade absoluta, e, sim, a expressão do beneplácito de
Deus. Os termos “necessidade absoluta”, porém, indicam que
— Deus, tendo elegido alguns para a vida eterna, segundo o seu livre
beneplácito, se sentiu na obrigação de cumprir este propósito
através do sacrifício de seu próprio Filho, uma obrigação que
emanou das perfeições da sua própria natureza. Em uma palavra,
embora não fosse inerentemente necessário que Deus salvasse,
todavia, desde que a salvação foi propositada, era necessário
assegurar esta salvação através de uma satisfação que pudesse ser
realizada somente através de um sacrifício substitutivo e uma
redenção adquirida por meio de sangue.4
4. V. Francis Turretin: Institutio Theologiae Elencticae, Loc. XIV, Q. X; James Henlêy
Thorwell: “The Necessity of The Atonement” in Collected Writings, vol. II (richa-
fflond, 1886), págs.205-261; George Stevenson: A Dissertation on The Atonement
(Philadelphia, 1832), págs. 5-98; A. A. Hodge, The Atonement (London, 1868),
págs.217-222.
Pode parecer algo inutilmente especulativo e presunçoso
forçar tal indagação e procurar determinar o que é inerentemente
necessário para Deus. Além disso, pode surgir um texto como:
“sem derramamento de sangue não há remissão”, que a revelação
se limita a dizer que de fato não há remissão sem derramamento
de sangue, e que iríamos além da autoridade da Escritura afirman­
do o que é de fato indispensável para Deus.
Mas não é presunçoso quando dizemos que certas coisas são
inerentemente necessárias ou impossíveis para Deus. Pertence à
nossa fé em Deus confessar que ele não pode mentir e que não pode
negar-se a si mesmo. Os não pode divinos são a sua glória, e para
nós deixar de admitir tais impossíveis seria negar a glória e a
perfeição de Deus.
A realidade da questão é: a Escritura nos fornece evidências
ou considerações pelas quais podemos concluir que esta é uma das
coisas impossíveis ou necessárias para Deus; impossível que ele
snlve pecadores sem sacrifício vicário e inerentemente necessário,
portanto a salvação, livre e soberanamente determinada, seria
realizada somente pelo derramamento do sangue do Senhor da
glória. As seguintes considerações bíblicas nos induzem a dar uma
resposta afirmativa. Quando aduzimos estas considerações, deve­
mos lembrar que elas têm de ser vistas em coordenação e em seu
efeito cumulativo.

1. Existem passagens que criam uma forte conjectura em


favor desta inferência. Por exemplo, em Hb 2.10,17 é afirmado
que Deus, a fim de conduzir muitos filhos à glória, foi servido que
o Comandante da salvação deles fosse aperfeiçoado pelos sofri­
mentos e que em todas as coisas se tomasse semelhante aos irmãos.
A força de tais expressões é dificilmente satisfeita pela noção de
que foi simplesmente consoante com a sabedoria e o amor de Deus
realizar a salvação desta maneira. Os adeptos do conceito da
necessidade hipotética não reconhecem estas dificuldades. Mas
existe muito mais nesse texto. Ele ensina que as exigências do
propósito da graça que os ditames divinos requeriam que a salva­
ção fosse realizada somente através de um Líder supremo da
salvação que seria aperfeiçoado através de sofrimentos, e foi
necessário que este supremo Guia da salvação fosse feito em todas
as coisas semelhante aos homens. Em outras palavras, somos
conduzidos da idéia de consonância com o caráter divino à idéia
dos direitos divinos que tomam indispensável que muitos filhos
sejam conduzidos à glória desta maneira específica. Se este for o
caso, então somos levados a concluir que as exigências divinas são
satisfeitas pelos sofrimentos do Chefe da salvação.
2. Há passagens, como Jo 3.14-16, que de forma clara suge­
rem que a alternativa de oferecer o Filho unigénito de Deus e de
ser ele levantado no madeiro maldito é a perdição eterna dos
perdidos. O perigo eterno a que os perdidos estão expostos é
remediado pela doação do Filho. Porém, dificilmente podemos
escapar da idéia adicional de que não existe outra alternativa.
3. Passagens tais como Hb 1.1-3; 2.9-18; 9.9-14,22-28 ensi­
nam claramente que a eficácia da obra de Cristo é dependente da
constituição única de sua pessoa. Este fato, por si mesmo, não
estabelece o ponto em questão. Porém, considerações contextuais
revelam outras implicações. A ênfase nestes textos tem por base a
finalidade, a perfeição e a eficácia transcendentes do sacrifício de
Cristo. Tal finalidade, perfeição e eficácia são necessárias por
causa da gravidade do pecado, e o pecado tem de ser eficazmente
removido para que a salvação seja realizada. Esta é a consideração
que dá força à necessidade mencionada em Hb 9.23, ao efeito que,
enquanto as figuras das coisas celestiais se purificassem com o
sangue de cabritos e bezerros, as próprias coisas celestiais fossem
purificadas com nenhum outro sangue senão o do Filho. Em outras
palavras, existe uma necessidade que não pode ser expiada senão
pelo sangue de Jesus. Mas o sangue de Jesus é o sangue que tem
a indispensável virtude e eficácia somente naquele que é o Filho,
a refulgência da glória do Pai e a expressa imagem da sua substân­
cia. Ele se tomou participante da carne e sangue, e assim ele foi
qualificado por um único sacrifício a aperfeiçoar todos aqueles que
são santificados. Certamente que não é uma inferência sem base
concluir que a idéia aqui apresentada é que somente esta pessoa,
oferecendo tal sacrifício, pôde resolver o problema do pecado,
removendo-o e fazendo total purificação, garantiu que muitos
filhos seriam trazidos à glória, tendo acesso à santíssima presença
divina. É o mesmo que dizer que o derramamento do sangue de
Jesus foi necessário para os fins propostos e assegurados.
Há também outras considerações que podem ser derivadas
destas passagens, especialmente Hb 9.9-14, 22-28. São considera­
ções que surgem do fato de que o próprio sacrifício de Cristo é o
grande exemplo do qual os sacrifícios levíticos foram figuras. As
vezes pensamos nos sacrifícios levíticos como que fornecendo as
figuras do sacrifício de Cristo. Esta forma de pensar não é incorreta
— os sacrifícios levíticos nos fornecem os elementos em termos
por meio dos quais podemos interpretar o sacrifício de Cristo,
especialmente as categorias da expiação, propiciação e reconcilia­
ção. Porém esta linha de pens-mento não é a característica de Hb
9.°A idéia específica é que os sacrifícios levíticos foram figuras
segundo o modelo celestial — foram “figuras das coisas que se
acham nos céus” (Hb 9.23). Por isso, a necessidade de se oferecer
sangue na economia levítica surgiu do fato de que o modelo, do
qual elas eram figuras, foi uma oferenda de sangue, a oferenda do
sangue transcendente pelo qual as coisas celestiais são purificadas.
A necessidade de derramamento de sangue na ordenança levítica
é simplesmente uma necessidade que surge da necessidade de
derramamento de sangue na mais alta esfera celestial. Ora, a nossa
pergunta é a seguinte: que espécie de necessidade é esta que surgiu
na esfera celestial? Foi meramente hipotética ou foi absoluta? As
seguintes observações indicarão a resposta.
a) A ênfase do contexto é que a eficácia transcendente d
sacrifício de Cristo é requerida pelas exigências oriundas do peca-
do. E estas exigências não são hipotéticas — são absolutas. A
lógica desta ênfase sobre a gravidade intrínseca do pecado e a
necessidade de sua remoção não concordam com a idéia de uma
necessidade hipotética — a realidade e a gravidade do pecado
fazem com que uma expiação efetiva seja indispensável e, portan­
to, absolutamente necessária.
b) A natureza exata da oferta sacerdotal de Cristo e a eficácia
de seu sacrifício estão inseparavelmente ligadas com a constituição
de sua pessoa. Se houvesse a necessidade de tal sacrifício a fim de
remover o pecado, nenhum outro, senão Cristo, poderia oferecer
tal sacrifício. E isso revela a necessidade que tal pessoa ofereça tal
sacrifício.
c) Nesta passagem, as coisas celestiais em conexão com as
quais o sangue de Cristo foi derramado são denominadas verda­
deiras. O contraste subentendido não é verdadeiro em oposição ao
falso ou real, mas em oposição ao fictício. O celestial é contrastado
com o terreno, o eternal com o temporário, o completo com o
parcial, o final com o provisório, o permanente com aquilo que é
efêmero. Quando consideramos o sacrifício de Cristo como uma
oferta em conexão com as coisas correspondentes àquela caracte­
rização — celestial, eterno, completo, final, permanente — é
impossível pensar que este sacrifício foi apenas hipoteticamente
necessário na realização do desígnio de Deus em trazer muitos
filhos à glória. Se o sacrifício de Cristo fosse apenas hipotetica­
mente necessário, então as coisas celestiais em conexão com o que
é relevante e significante, seriam também apenas hipoteticamente
necessárias. E esta é sem dúvida uma hipótese demasiadamente
difícil.
A síntese da questão é que uma necessidade (Hb 9.23) para o
derramamento do sangue de Cristo para a remissão dos pecados
(vv.14, 22, 26) é aqui proposta, e é uma necessidade sem reserva
ou qualificação.
4. A salvação que a eleição da graça envolve em cada conceito
da necessidade da expiação é a salvação do pecado para a santifi­
cação e comunhão com Deus. Mas se pensarmos na salvação assim
concebida em termos que são compatíveis com a santidade e justiça
de Deus, esta salvação deve incluir não apenas o perdão do pecado,
mas também a justificação. E deve ser uma justificação que
reconheça a nossa situação como culpados e condenados. Esta
justificação implica a necessidade de uma justiça que seja adequa­
da à nossa situação. De fato a graça reina, mas uma graça reinante
à parte da justiça não é apenas inverossímel, mas também incon­
cebível. Ora, que justiça é igual à justificação de pecadores? A
única justiça concebível que satisfará as necessidades da nossa
situação como pecadores e que satisfará as exigências de uma plena
e irrevogável justificação é a justiça de Cristo. Esta afirmação
implica a sua obediência e, portanto, a sua encarnação, morte e
ressurreição. Em uma palavra, a necessidade da expiação é inerente
e essencial à justificação. Uma salvação do pecado que é divorcia­
da da justificação é uma impossibilidade,’ e a justificação de
pecadores sem a justiça divina do Redentor é inconcebível. E
difícil fugir da relevância da palavra de Paulo: “Porque se fosse
promulgada uma lei que pudesse dar vida, a justiça, na verdade,
seria procedente de lei.” (G1 3.21). O que Paulo enfatiza é que, se
a justificação fosse possível por qualquer outro método e não pela
fé em Cristo, então esse método teria sido utilizado.
5. A cruz de Cristo é a demonstração suprema do amor de
Deus (Rm 5.8; I Jo 4.10). O caráter supremo da demonstração
reside no extremo custo do sacrifício oferecido. E a respeito deste
elevado custo que Paulo faz referência quando escreve: “Aquele
que não poupou a seu próprio Filho, antes, por todos nós o
entregou” (Rm 8.32).sO custo do sacrifício nos persuade a respeito
da grandeza do amor de Deus e garante a doação de todas as demais
dádivas de forma gratuita.
Contudo, devemos perguntar: a cruz de Cristo seria a mani­
festação suprema do amor de Deus se não houvesse necessidade
' de tal custo? Não é verdade que a única inferência com base na
qual a cruz de Cristo pode nos ser recomendada como a manifes­
tação suprema do amor de Deus, e que as exigências em questão
requereram nada menos que o sacrifício do Filho de Deus? Com
base nesta pressuposição, podemos entender a palavra do apóstolo
João: “Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a
Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como
propiciação pelos nossos pecados” (I Jo 4.10)°. Sem isto somos
despidos dos elementos necessários para compreendermos o sig­
nificado do Calvário e a maravilha de seu supremo amor insupe­
rável para com os homens.
6. Finalmente, há o argumento da justiça vindicatória d
Deus, O pecado é o oposto de Deus; portanto, o Senhor tem de
reagir contra ele com uma santa indignação. É o mesmo que dizer
que o pecado tem de confrontar-se com o juízo divino (vejam-se
Dt 27.26; Na 1.2; Hc 1.13; Rm 1.17; 3.21-26; G1 3.10,13). É esta
santidade inviolável da lei de Deus o ditame imutável da santidade
e a exigência irrevogável da justifiça que faz obrigatória a conclu­
são de que a salvação do pecado sem expiação e propiciação é
inconcebível. Este é o princípio que explica o sacrifício do Senhor
da glória, as agonias do Getsêmaní e o seu abandono no madeiro
maldito. E este o princípio que fundamenta a grande verdade de
que Deus é justo e o justificador daquele que crê em Jesus. Na obra
de Cristo, os ditames da santidade e as exigências da justiça foram
plenamente vindicados! Deus o estabeleceu como a propiciação a
fim de declarar a sua justiça.
Por estas razões somos levados a concluir que o tipo de
necessidade que as considerações bíblicas propõem é aquele que
pode ser compreendido como absoluto ou indispensável. Os pro­
ponentes da necessidade hipotética não reconhecem suficiente­
mente as exigências envolvidas na salvação do pecado para a vida
eterna; eles não consideram convenientemente os aspectos teocên-
tricos da realização de Cristo. Se conservarmos em mente a gravi-
dade do pecado e as exigências oriundas da santidade de Deus que
devem ser encaradas na execução da salvação, então a doutrina da
necessidade indispensável faz que o Calvário seja inteligível e que
a maravilha incompreensível tanto do Calvário como do propósito
soberano do amor de Deus que o Calvário cumpriu sejam exalta­
dos. Na medida em que enfatizarmos as exigências inflexíveis da
justiça e santidade, o amor de Deus e todas as suas providências
se tomarão ainda mais maravilhosos.
Capítulo 2
A natureza da expiação

No tratamento da natureza da expiação, convém tentar des­


cobrir alguma categoria abrangente sob a qual os vários aspectos
do ensino bíblico possam ser agrupados. As categorias mais espe­
cíficas dos termos que a Escritura expõe com referência à obra
expiatória de Cristo são sacrifício, propiciação, reconciliação e
redenção. Porém, podemos indagar com propriedade se não existe
algum título mais inclusivo sob o qual estas categorias mais
específicas possam ser compreendidas.
A Escritura considera a obra de Cristo em termos de obediên­
cia, e emprega este termo ou o conceito que ele envolve com uma
freqüência suficiente para justificar a conclusão de que esta obe­
diência é genérica, e, portanto, bastante abrangente, ao ponto de
ser vista como o princípio que unifica ou integra. Devemos pron­
tamente apreciar a conveniência desta conclusão ao lembrarmos
que o texto singular do Velho Testamento, mais que qualquer
outro, delineia o curso da expiação de Cristo em Isaías 53. Todavia,
perguntamos: qual é o papel da personagem sofredora de Isaías
53? Não é nenhum outro senão o de servo. E com esta designação
que ele é apresentado em Is 52.13: “Eis que o meu servo procederá
com prudência.” E é nesta atribuição que ele colhe o fruto justifi-
cador: “O meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento justificará
a muitos” (Is 53.11). O próprio Senhor, de forma inquestionável,
define o propósito de sua vinda ao mundo, em termos que trans­
mitem precisamente tal conotação: “Porque eu desci do céu não
para fazer a minha própria vontade, e, sim, a vontade daquele que
me enviou” (Jo 6.38). E com referência ao evento culminante que
é decisivo na realização da redenção, a sua morte, ele diz: “Por isso
o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir.
Ninguém a tira de mim, pelo contrário, eu espontaneamente a dou.
Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este
mandato recebi de meu Pai” (Jo 10.17,18). E nada neste sentido
pode ser mais explícito do que as palavras do apóstolo: “Porque,
como pela desobediência de um só homem muitos se tomaram
pecadores, assim também, por meio da obediência de um só,
muitos se tomarão justos” (Rm 5.19). “Antes a si mesmo se
esvaziou, assumindo a forma de servo, tomando-se em semelhança
de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se
humilhou, tomando-se obediente até à morte, e morte de cruz” (Fp
2.7,8; veja-se G1 4.4). E a epístola aos Hebreus também tem a sua
própria maneira de expressar quando diz que o Filho “aprendeu a
obediência pelas coisas que sofreu, e tendo sido aperfeiçoado,
tomou-se o Autor da salvação etema para todos os que lhe obede­
cem” (5.8,9; veja-se 2.10).
Esta obediência tem sido freqüentemente qualificada como
obediência ativa e passiva. Esta fórmula, quando devidamente
interpretada, serve ao bom propósito de destacar os dois aspectos
distintos da obra de obediência de Cristo. Porém, desde o início é
preciso atenuar a fórmula de alguns dos equívocos e maus empre­
gos aos quais ela está sujeita.5
(a) O termo “obediência passiva” não significa que em tud
o que Cristo fez ele foi passivo, a vítima involuntária de uma
obediência imposta sobre ele. É óbvio que tal concepção iria
contradizer o próprio princípio de obediência. E deve ser zelosa­
5. V. T. J. Crawford: The Doctrine of The Holy Scripture Respecting The Atonement
(Edinburgh, 1880), págs. 58, etc., 89, etc.; Hugh Martin: op. cit., Cap. IV, especial­
mente pág. 81; James M’Lagan: Lectures and Sermons (Aberdeen, 1853), págs. 54
etc.; Francis Turren: op. cit., Loc. XIV, Q. XIII.
mente mantido que mesmo nos sofrimentos e morte de nosso
Senhor, ele não foi o recipiente passivo das situações a que ficou
sujeito. Em seus sofrimentos, ele foi gloriosamente ativo, e a
própria morte não caiu sobre ele como cai sobre os demais homens.
"Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a
dou” — são as suas próprias palavras. Paulo nos ensina que ele foi
obediente até à morte. E isso não significa que sua obediência se
estendeu até à proximidade da morte, mas, antes, que Cristo foi
obediente ao ponto de entregar o seu espírito à morte e derramar a
sua vida. No exercício de uma volição auto-consciente e soberana,
sabendo que todas as coisas foram realizadas, e que o momento
certo no tempo para este evento tinha chegado, ele efetuou a
separação do corpo do espírito e entregou este último ao Pai. Ele
entregou o seu espírito e derramou a sua vida. A palavra “passivo”,
pois, não deve ser interpretada como mera passividade no exercício
de sua obediência. Os sofrimentos que ele suportou, e que chega­
ram ao extremo em sua morte sobre o madeiro maldito, foram uma
parte integral de sua obediência e foram suportados no cumpri­
mento da obra que lhe foi confiada a realizar.
b) Não podemos vincular certas fases ou atos na vida de noss
Senhor sobre a terra à obediência ativa e outras fases e atos à
obediência passiva. A distinção entre a obediência passiva e ativa
não é uma distinção de períodos. É a obra total da obediência de
nosso Senhor em cada fase e período que é entendida como ativa
e passiva. Devemos evitar o erro de pensar que a obediência ativa
se aplica à obediência de sua vida e a passiva à obediência de seus
sofrimentos finais e morte.
O verdadeiro uso e propósito da fórmula é para enfatizar os
dois aspectos distintos da obediência vicária de nosso Senhor. Esta
verdade repousa no reconhecimento de que a lei de Deus tem suas
sanções penais como também suas exigências positivas. Ela exige
não apenas o pleno cumprimento de seus preceitos, mas também
a aplicação de uma pena para todas as infrações e falhas. E é esta
dupla exigência da lei de Deus que é levada em conta quando
falamos da obediência ativa e passiva de Cristo. Cristo, como o
substituto de seu povo, assumiu a maldição e condenação que o
pecado trouxe, e cumpriu a lei em todas as suas exigências positi­
vas. Em outras palavras, ele cuidou da culpa do pecado e cumpriu
perfeitamente as exigências da justiça. Ele cumpriu perfeitamente
ambas as exigências da lei de Deus: a penal e a preceptiva. A
obediência passiva se refere à penal, e a obediência ativa à precep­
tiva. A obediência de Cristo foi vicária no sentido de que ele
carregou todo o juízo de Deus derramado sobre o pecado, e foi
vicária no pleno cumprimento das exigências da justiça. A sua
obediência tomou-se a base da remissão do pecado e da verdadeira
justificação.
Não devemos considerar esta obediência em qualquer sentido
artificial ou mecânico. Quando falamos da obediência de Cristo,
não devemos considerá-la como se fosse o simples cumprimento
formal dos mandamentos de Deus. O que a obediência de Cristo
envolveu provavelmente em nenhum outro lugar é mais notavel­
mente expresso do que emHb2.10-18;5.8-10, onde nos é dito que
ele “aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu”, e que foi
aperfeiçoado pelos sofrimentos, e que, “tendo sido aperfeiçoado,
tomou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obede­
cem”. Quando examinamos estes textos, as seguintes lições se
tomam evidentes. (1) Não foi simplesmente pela encarnação que
Cristo realizou a nossa redenção. (2)*Não foi simplesmente pela
morte que a salvação foi consumada. (3)*Não foi simplesmente
pela morte numa cruz que Cristo tomou-se o Autor da salvação.
*(4) A morte na cruz, como exigência culminante do preço da
redenção, foi satisfeita como o ato supremo de obediência; não foi
a morte irresistivelmente infligida, porém a morte na cruz volun­
tária e obedientemente efetuada.
Quando falamos de obediência não estamos pensando em
atos meramente formais de realização, mas também na disposição,
vontade, determinação e volição que estão por trás, e são registra­
dos nestes atos formais.® E quando falamos da morte de nosso
Senhor na cruz como o ato supremo de sua obediência, estamos
pensando não apenas no ato público de morte no madeiro, mas
também na disposição, vontade, e volição determinante que esti­
veram por trás deste ato público. E, além disso, somos levados a
formular a pergunta: donde nosso Senhor obteve a disposição e
santa determinação para entregar a sua vida à morte como o ato
supremo de auto-sacrifício e obediência? Somos compelidos a
fazer esta pergunta porque foi na natureza humana que ele prestou
esta obediência e entregou a sua vida à morte. E os textos na
epístola aos Hebreus confirmam não apenas a propriedade, mas
também a necessidade desta pergunta. Porque nestes textos somos
claramente informados de que ele aprendeu a obediência, e ele a
aprendeu pelas coisas que sofreu. Era indispensável que ele fosse
aperfeiçoado pelos sofrimentos e se tomasse o Autor da salvação
através desse aperfeiçoamento. Naturalmente, não foi um aperfei­
çoamento que requereu a santificação do pecado para a santidade.
Ele foi sempre santo, inculpável, sem mácula e separado dos
pecadores. Mas houve um aperfeiçoamento de desenvolvimento e
crescimento no curso e caminhada de sua obediência — ele apren­
deu a obediência. O coração, a mente e a vontade de nosso Senhor
foram moldados — e por que não dizer fundidos? — na fornalha
da tentação e sofrimento. Foi em virtude daquilo que ele aprendeu
na experiência da tentação e sofrimento que ele conseguiu, no
ponto crucial determinado pela providência de sabedoria infalível
e amor eterno, ser obediente até à morte, e morte de cruz. Foi
somente através da obediência aprendida na caminhada do cum­
primento inerrante e imaculado da vontade do Pai que seu coração,
mente e vontade foram moldados ao ponto de ele ser capacitado
para, livre e voluntariamente, entregar a sua vida à morte no
madeiro maldito. .
Foi através deste curso de obediência e aprendizagem de
obediência que ele foi aperfeiçoado como Salvador, equivale dizer,
lomou-se completamente equipado para que pudesse ser constituí-
do no Salvador perfeito. Foi o equipamento formado através de
todas as experiências de tribulação, tentação e sofrimento que
providenciou os recursos necessários para as exigências culminan­
tes da sua comissão.* Foi aquela obediência, levada à perfeita
consumação na cruz, que o constituiu como o todo-sufíciente e
perfeito Salvador. Em outras palavras: foi esta obediência apren­
dida e praticada ao longo de toda humilhação que o fez perfeito
como o Consumador da salvação. E a obediência aprendida pelo
sofrimento, aperfeiçoada por meio do sofrimento e consumada no
sofrimento da morte na cruz que define a sua obra e cumprimento
como o Autor da salvação. Foi pela obediência que ele garantiu a
nossa salvação, porque foi pela obediência que ele realizou a obra
que a garantiu.
Obediência, pois, não é algo que pode ser concebido de forma
artificial ou abstrata. E a obediência que atraiu todos os recursos
da sua humanidade perfeita, obediência que residia em sua pessoa,
e obediência da qual ele é eternamente a incorporação perfeita. A
obediência encontra nele a sua virtude e eficácia permanentes. E
nós tomamo-nos os beneficiários dela, de fato participantes dela,
em virtude de nossa união com ele. É isto que serve para fazer
conhecida a importância daquilo que é a verdade central de toda a
soteriologia, a saber, união e comunhão com Cristo.
Embora o conceito de obediência nos forneça uma categoria
inclusiva em termos pelos quais a obra expiatória de Cristo pode
ser compreendida e que desde o início estabelece a agência ativa
de Cristo na realização da redenção, todavia devemos agora pro­
ceder a análise daquelas categorias específicas por meio das quais
a Escritura revela a natureza da expiação.
1. Sacrifício. Que a obra de Cristo deva ser interpretada com
um sacrifício6 é o ensino claro do Novo Testamento. E a única
6. V. B.B. Warfield: Biblical doctrines (New York, 1929), “Christ our Sacrifice”,
págs.401-435; W. P. Paterson: A Dictionary of The Bible, ed. James Hastings (New
York, 1902), vol. IV, págs.329-349.
pergunta é esta: qual é a noção de sacrifício que governa o uso
abrangente deste termo em sua aplicação à obra de Cristo? Esta
pergunta só pode ser respondida através do esforço de determinar
a noção de sacrifício adotada pelos proclamadores e escritores do
Novo Testamento. Arraigados como estes estavam na linguagem
e conceitos do Velho Testamento, resta-nos, porém, um recurso
pelo qual podemos descobrir a sua interpretação do significado e
efeito do sacrifício. Qual é o conceito veterotestamentário de
sacrifício? Esta pergunta tem suscitado muita discussão. Mas
podemos ficar tranqüilos e afirmar em confiança que os sacrifícios
veterotestamentários foram basicamente expiatórios. Isto significa
que eles se referiam ao pecado e à culpa. O pecado envolve uma
certa responsabilidade, por um lado, responsabilidade esta surgida
da santidade de Deus, e, por outro lado, da seriedade do pecado
como a oposição àquela santidade. O sacrifício foi a provisão
divinamente instituída por meio da qual o pecado podia ser enco­
berto e a sujeição à maldição e ira divinas removidas. Quando o
adorador veterotestamentário trazia ao altar a sua oferta, a sua
pessoa era substituída por um animal como vítima. Pela imposição
de suas mãos sobre a cabeça da oferta, o ofertante transferia
simbolicamente para a oferta o seu pecado e sua responsabilidade,
liste é o pivô sobre o qual a transação era realizada. A noção em
essência estava no fato de que o pecado do ofertante era imputado
à oferta, e esta recebia a pena de morte como o resultado. Ele era
como que o pára-raio substitutivo da penalidade ou responsabili­
dade que o pecado merecia.

Obviamente, houve uma grande desproporção entre o ofer-


lante e a oferta e uma desproporção correspondente entre a respon­
sabilidade do ofertante e aquela executada sobre a oferta. Estas
ofertas eram apenas sombras e figuras. Contudo, a noção de
expiação é evidente, e esta significação expiatória fornece a base
para a interpretação do sacrifício de Cristo. A obra de Cristo é
expiatória, sem dúvida expiatória com uma transcendente virtude,
eficácia e perfeição que nunca poderia aplicar-se a novilhos e
cabritos, porém expiatória segundo as figuras apresentadas no
sacrifício ritual do Velho Testamento. Para Deus, isto significa que
no grande e imaculado sacrifício que Cristo ofereceu, os pecados
e responsabilidades daqueles em cujo lugar ele se ofereceu foram
transferidos para ele. Pelo motivo desta imputação, ele sofreu e
morreu, o justo pelo injusto, para que pudesse trazer-nos à presença
de Deus*Por um único sacrifício, ele aperfeiçoou para sempre
todos aqueles que são santificados.
Embora os escritores neotestamentários não encontrem no
auto-oferecimento de Cristo um cumprimento literal de todas as
prescrições da lei levítica7 como estas se aplicavam às oferendas
de animais, todavia é muito evidente que eles tenham certas
transações específicas do ritual mosaico dominando os seus pen­
samentos. Um exemplo disso está em Hb 9.6-15. As transações do
grande dia da expiação são mencionadas especificamente, e com
estas, dominando claramente o seu pensamento e sobre a base da
importância simbólica e típica deste ritual, o escritor demonstra a
transcendente eficácia, perfeição e finalidade do sacrifício de
Cristo. “Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos
bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo,
não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de
sangue de bodes e de bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou
no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna
redenção” (vv.l 1 e 12, cf. com vv.23 e 24).
De modo semelhante, em Hb 13.10-13, não podemos deixar
de ver que o escritor apresenta a obra de Cristo e o seu sacrifício
sob a forma daquelas ofertas pelo pecado — a oferta pelo pecado
do sacerdote e a oferta pelo pecado de toda a congregação — cujo
sangue foi trazido para dentro do lugar santo, e cuja carne, pele e
pernas eram queimadas fora do acampamento. Visto que nenhuma
parte da carne de tais ofertas pelo pecado era disponível aos
7. V. James Dcnny: The Death Of Christ (New York, 1903), pägs. 54 etc.
sacerdotes, o escritor aplica este fato a Cristo, certamente não como
o cumprimento literal de todos os detalhes, mas em apreciação de
seu significado parabólico e típico. “Por isso foi que também Jesus,
para santificar o povo, pelo seu próprio sangue, sofreu fora da
porta. Saiamos, pois, a ele, fora do arraial, levando o seu vitupério”
(vv.12 e 13).
Jesus, portanto, ofereceu-se em sacrifício, e de forma muito
particular, sob a forma ou figura fornecida pelas ofertas pelo
pecado na economia levítica. Ao oferecer-se desta maneira, ele
expiou a culpa e removeu o pecado para que pudéssemos aproxi­
mar-nos de Deus em plena certeza de fé e entrar no santo dos santos
pelo sangue de Jesus, tendo os nossos corações purificados de má
consciência e lavados os nossos corpos com água pura.
Nesta conexão, devemos também lembrar do que já observa­
mos até aqui: os sacrifícios levíticos foram figuras de acordo com
o exemplar celestial, segundo o que a epístola aos Hebreus chama
“as coisas celestiais”. As ofertas cruentas do ritual mosaico foram
figuras das grandes ofertas do próprio Cristo pelas quais as coisas
celestiais foram purificadas (Hb 9.23). Este fato serve para confir­
mar a tese de que o que era constitutivo nos sacrifícios levíticos,
deve também ter sido constitutivo no sacrifício de Cristo. Se os
sacrifícios levíticos foram expiatórios, quanto mais expiatória
deve ter sido a oferta arquetípica, e expiatória, lembre-se, não no
nível do temporário, provisório, preparatório e parcial, mas no
nível do eterno, do que é permanentemente verdadeiro, final e
completo. A oferta arquetípica, portanto, foi eficaz de uma forma
' • etn que a ectípica (=cópia) jamais poderia ser. Este é o pensamento
que fica em evidência quando lemos: “Muito mais o sangue de
Cristo que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem
mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas para
servirmos ao Deus vivo” (Hb 9.14). Devemos interpretar o sacri­
fício de Cristo em termos dos padrões levíticos, porque eles
mesmos foram modelados segundo a oferta de Cristo. Porém,
justamente porque os sacrifícios levíticos eram apenas exemplos
é que devemos também reconhecer as limitações que os envolviam
em contraste com o caráter perfeito da própria oferta de Cristo. E
em virtude de tais limitações inerentes nas ofertas levíticas, não
encontramos e nem poderíamos esperar encontrar no sacrifício de
Cristo um cumprimento literal de todos os detalhes dos sacrifícios
levíticos. Foi a desproporção entre o ofertante e a oferta, e entre a
responsabilidade do ofertante e o derramamento do sangue da
oferta segundo o ritual veterotestamentário, que fez necessária a
eliminação de tal desproporção no caso do sacrifício de Cristo. A
ausência desta desproporção no sacrifício do Filho de Deus é
correlativo com a ausência no caso de todos os detalhes da pres­
crição levítica que teriam sido incompatíveis com o caráter único
e transcendental do sacrifício voluntário de Cristo.
O fato de que a obra de Cristo consistia em oferecer-se a si
mesmo como sacrifício pelo pecado implica, contudo, uma verda­
de complementar que é tão freqüentemente negligenciada, ou seja,
se Cristo ofereceu-se a si mesmo como sacrifício, então ele foi
também um sacerdote.8Foi como um sacerdote que ele ofereceu-se
a si mesmo. Ele não foi oferecido por algum outro; ele mesmo se
ofereceu. Isto é algo que não poderia ser exemplificado no ritual
do Velho Testamento. O sacerdote não se oferecia, nem tampouco
a própria oferta se oferecia. Contudo, em Cristo temos esta com­
binação singular que serve para demonstrar a unicidade de seu
sacrifício, o caráter transcendental de seu ofício sacerdotal e a
perfeição inerente em sua oferta sacerdotal. Em virtude de seu
ofício sacerdotal e em conseqüência de sua função sacerdotal é que
ele fez expiação pelo pecado. Ele foi deveras o cordeiro morto,
mas foi também o sacerdote que ofereceu-se a si mesmo como o
Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. É nesta conjuntura
admirável que a união nele tanto do ofício sacerdotal como da
oferta de caráter expiatório se realça. Tudo está implícito na
8. V. Hugn Martin: op. cit., Cap. III.
expressão simples que citamos com tanta freqüência, mas que
raramente compreendemos, “a si mesmo se ofereceu sem mácula
a Deus”. E comprova na mais plena extensão o que temos estudado
até aqui, que no evento máximo que registrou e trouxe à comple-
tação o seu ato sacrificial, ele foi intensamente ativo, e ativo —
seja lembrado — no oferecimento a Deus da oferenda que expiou
o pleno tributo da condenação divina que pairava sobre uma
multidão tão grande de todas as nações, tribos, povos e línguas que
ninguém poderia enumerar.

Além disso, finalmente, é o reconhecimento da função sacer­


dotal de Cristo que une o sacrifício uma vez oferecido com a
permanente função sacerdotal de Redentor. Ele é um sacerdote
para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque. Ele é um
sacerdote agora, não para oferecer sacrifício, mas como a incorpo­
ração pessoal e permanente de toda eficácia e virtude que advêm
do sacrifício oferecido uma única vez. E nesta função ele continua
para sempre a fim de fazer intercessão em favor de seu povo. A
continuação ininterrupta e a prevalência permanente da sua inter­
cessão são jungidas a este sacrifício único. Mas esta interrelação é
em virtude da sua competência como o grande sumo sacerdote da
nossa confissão, a qual ele aperfeiçoou no sacrifício e continua na
intercessão.

2. Propiciação. A palavra grega que foi traduzida com


propiciação não aparece com freqüência no Novo Testamento.
Este fato pode causar estranheza, especialmente quando conside­
ramos que ela aparece com muita freqüência na tradução grega do
Velho Testamento, e que em nossas versões é a palavra expiação.
Poderíamos pensar que a palavra que é tão comum no grego do
Velho Testamento em conexão com o ritual de expiação teria sido
usada livremente pelos escritores do Novo Testamento. Porém,
este não é o caso.
Contudo, este fato não significa que a obra expiatória de
Cristo não deva ser interpretada em termos de propiciação.9 Exis­
tem textos nos quais a linguagem da propiciação é explicitamente
aplicada à obra de Cristo (Rm 3.25; Hb 2.17; I Jo 2.2; 4.10). Isto
significa, sem qualquer dúvida, que a obra de Cristo deve ser
analisada como propiciação. Mas há também outra consideração:
a freqüência com que este conceito aparece no Velho Testamento
em conexão com o ritual de sacrifícios, o fato de que o Novo
Testamento aplica à obra de Cristo o próprio termo que denotava
este conceito no grego do Velho Testamento, e o fato de que o
Novo Testamento considera o ritual levítico como figura provi­
dencial para o sacrifício de Cristo conduz à conclusão de que esta
é uma categoria em termos dos quais o sacrifício de Cristo não é
apenas devidamente, mas necessariamente, interpretado. Em ou­
tras palavras, a idéia de propiciação é tão intretecida na estrutura
do ritual veterotestamentário que seria impossível entender aquefe
ritual como uma figura do sacrifício de Cristo se a propiciação não
ocupasse um lugar semelhante naquele único e grande sacrifício
oferecido uma vez por todas. Esta é apenas uma outra maneira de
dizer que sacrifício e propiciação permanecem juntos numa rela­
ção estreita e inseparável. A expressa aplicação do termo propi­
ciação à obra de Cristo pelos escritores neotestamentários é a
confirmação desta conclusão.
Porém, qual é o sentido de propiciação? No hebraico do
Velho Testamento, ela se expressava por uma palavra que significa
- cobrir. Em conexão com esta cobertura, existem três fatos especí­
ficos que devem ser observados: (1) é sempre em referência ao
pecado que se dá esta cobertura; (2) o efeito desta cobertura é a
purificação e o perdão; (3) é perante o Senhor que se dá tanto a
9. V. T. J. Crawford: op. cit., págs. 77 etc.; George Smeaton: The Doctrine of The
Atonement as Taught by The Apostles (Edinburgh, 1870), págs. 137 etc.; A. A. Hodge:
The Atonement (Philadelphia, 1867), págs. 39 etc., e 179 etc., mais recentemente, veja
o estudo cuidadoso e detalhado, por Roger R. Nicole: “C. H. Dodd and The Doctrine
of Propitiation” in The Westminster Theological Journal, May 1955, vol. XVII, 2, págs.
117-157.
cobertura como o seu efeito (veja-se especialmente Lv 4.35; 10.17;
16.30). Isto significa que o pecado cria uma situação em relação
ao Senhor, uma situação que faz a cobertura necessária. Esta
referência a Deus em conexão com o pecado, bem como à cober­
tura dele, precisa ser plenamente apreciada. Podemos afirmar que •
o pecado ou, talvez, a pessoa que pecou é coberta perante os olhos
do Senhor. No pensamento do Velho Testamento há uma só
interpretação que podemos dar a esta provisão do ritual de sacrifí­
cios. É o pecado que provoca o santo desprazer ou ira de Deus. A
vingança é a reação da santidade de Deus contra o pecado, e a
cobertura é a providência que remove este santo desprazer provo­
cado pelo pecado. E óbvio que somos conduzidos aos átrios
daquela verdade que é claramente denotada pela tradução grega
em ambos os Testamentos, a saber, a propiciação. Propiciar signi- -
fica aplacar, pacificar, conciliar, acalmar. Este é o pensamento
que é aplicado à expiação realizada por Cristo.
Propiciação pressupõe a ira e o desprazer de Deus, e o
propósito da propriação é a remoção deste desprazer. Em termos
simples, a doutrina da propiciação significa que Cristo propiciou
a ira de Deus e convenceu a Deus a ser propício para com o seu
povo.
Talvez não haja nenhuma outra opinião a respeito da expiação
que tenha sido mais violentamente criticada do que esta.10Ela tem
sido acusada de envolver uma concepção mitológica de Deus,
como que supondo um conflito interno na mente de Deus e entre •
as pessoas da Deidade. Tem-se suscitado a acusação de que esta
doutrina representa o Filho como aquele que persuadiu o Pai
encolerizado a usar de clemência e amor — uma suposição intei­
ramente inconsistente com o fato de que o amor de Deus é a própria
fonte da qual a expiação emana.
10. V. Auguste Sabatier: The Doctrine of The Atonement and its’s Historical Evolution
(Trad. Ing. New York, 1904), págs.29,113,118, etc., F. D. Maurice: The Doctrine of
Sacrifice Deduced from The Scriptures (London, 1893) pág. 15 etc., 157 etc.; D. M.
Baillie: God was inThrist (New York, 1948) pág. 168 etc.; Hastings Rashdall: The Idea
of The Atonement in Christian Teology (London, 1925), págs. 100 etc.
Quando a doutrina da propiciação é apresentada por este
prisma, ela pode ser muito eficazmente criticada e pode ser exposta
como uma caricatura revoltante do evangelho cristão. Mas a
doutrina da propiciação não envolve esta caricatura pela qual ela
tem sido mal conceituada e mal representada. Para dizer o mínimo,
esta forma de crítica deixou de entender e de apreciar algumas
distinções importantes e elementares.
Em primeiro lugar, amar e ser propício não são termos
conversíveis. Não é correto supor que a doutrina da propiciação
considera esta como algo que constrange o amor divino. É um
raciocínio indisciplinado, do tipo mais deplorável, afirmar que a
propiciação da ira divina prejudica ou é incompatível com o mais
pleno reconhecimento de que a expiação é a provisão do amor
divino.
Segundo, a propiciação não é uma conversão da ira de Deus
em amor. A propiciação da ira divina, efetuada na obra expiatória
de Cristo, é a provisão do eterno e imutável amor de Deus, para
que, através da propiciação da sua própria ira, o amor pudesse
realizar seus propósitos de uma maneira que fosse consoante com
e para a glória dos ditames da sua santidade. Uma coisa é dizer que
o Deus irado se fez amoroso, o que é inteiramente errôneo. Outra
coisa é dizer que o Deus irado é amoroso, o que é profundamente
verdadeiro. Porémfé igualmente verdadeiro que a ira, pela qual ele
se fez irado, é propiciada através da cruz. Esta propiciação é o fruto
do amor divino que a providenciou. “Nisto consiste o amor, não
em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e
enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (I Jo
4.10).°A propiciação é a base sobre a qual o amor divino opera, e
o canal pelo qual ela flui para alcançar os seus devidos fins.
Terceiro, a propiciação não prejudica o amor e a misericórdia
de Deus; antes, enaltece a grandeza de seu amor; porque ela revela
o preço que o amor redentor impõe. Deus é amor. Mas o objeto
supremo desse amor é a sua própria pessoa. E em virtude de amar
supremamente a si mesmo, ele não pode tolerar que tudo o que
pertence à integridade de seu caráter e glória seja comprometido
ou prejudicado.®Esta é a razão da propiciação. Deus aplaca a sua
própria ira santa na cruz de Cristo, a fim de que o propósito de seu
amor pelos homens perdidos seja realizado de acordo com e para
a vindicação de todas as perfeições que constituem a sua glória.
“A quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante
a fé, para manifestar a sua justiça... para ele mesmo ser justo e o
justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.25,26).
A antipatia para com a doutrina da propiciação, no sentido de
propiciar a ira divina, contudo, baseia-se na incompreensão do que
seja a expiação. A expiação é aquele ato que satisfaz as exigências
de santidade e justiça. A ira de Deus é a reação inevitável da
santidade divina contra o pecado. Pecado é o oposto da perfeição
de Deus, e ele não pode fazer outra coisa senão repelir aquilo que
contradiz a sua pessoa. Este gesto emana de sua indignação santa.
“A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão
dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18). O juízo
de Deus contra o pecado é essencialmente a sua ira. Se devemos
crer que a expiação é o procedimento vicário de Deus pelo qual
ele julgou o pecado, então é absolutamente necessário crer no
sofrimento vicário daquele sobre quem este juízo é condensado. -
Negar a propiciação é destruir a natureza da expiação como
sofrimento vicário pela pena do pecado. Em uma palavra, é negar
a expiação substitutiva. Gloriar-se na cruz é gloriar-se em Cristo
como o sacrifício propiciatório oferecido uma única vez, como o
propiciatório permanente e como aquele que incorpora em si
mesmo, para todo o sempre, toda a eficácia propiciatória da
propiciação realizada uma vez por todas. “Se todavia alguém
pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo; e ele é
a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos
próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro” (I Jo 2.1,2).
3. Reconciliação. A propiciação focaliza a nossa atenção n
ira de Deus e na provisão divina para a remoção dessa ira. A
reconciliação focaliza o nosso interesse na nossa alienação de Deus
e no método divino para restaurar-nos ao seu favor. Obviamente,
estes dois aspectos da obra de Cristo estão intimamente relaciona­
dos. Porém, a distinção é importante. É somente pela observância
da distinção que podemos descobrir as riquezas da provisão divina
para satisfazer as nossas múltiplas necessidades.
Reconciliação pressupõe interrupção nas relações entre Deus
e o homem. Ela subentende inimizade e alienação. Esta alienação
é dupla: a nossa alienação para com Deus e a alienação de Deus
para conosco. Natualmente que a causa desta alienação é o nosso
pecado, mas a alienação consiste não apenas em nossa inimizade
ímpia contra Deus, mas, também, na santa alienação de Deus para
conosco. “Mas as vossas iniqüidades fazem separação entre vós e
o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós,
para que não vos ouça” (Is 59.2). Se dissociarmos da palavra
inimizade, em referência a Deus, tudo quanto se refira à natureza
de malícia e malignidade, podemos falar com propriedade desta
alienação por parte de Deus como a sua santa inimizade para
conosco. Esta é a alienação que a reconciliação contempla e
remove.
Podemos concluir que a reconciliação se limita não apenas à
santa inimizade de Deus contra nós, senão também à nossa ímpia
inimizade contra ele. A própria palavra poderia gerar esta impres­
são. Além disso, parece que o Novo Testamento dá margem a esta
noção. Nunca se diz em muitas palavras que Deus é reconciliado
conosco, antes nós é que somos reconciliados com Deus (Rm
5.10,11; II Co 5.20). E quando a voz ativa é empregada, é Deus
quem nos reconcilia consigo mesmo (II Co 5.18,19; Ef 2.16; Cl
1.20,21). Isto pareceria confirmar o argumento de que a reconci­
liação termina em nossa inimizade contra Deus e não em sua santa
alienação para conosco. Assim, tem-se asseverado que, quando a
reconciliação é vista como a ação da parte de Deus, é o que Deus
fez para transformar a nossa inimizade em amor; e quando é vista
como resultado, é o afastamento da nossa inimizade contra Deus.
Conseqüentemente, a reconciliação tem sido interpretada como
que consistindo daquilo que Deus fez para que a nossa inimizade
pudesse ser removida. Em uma palavra, o pensamento é focalizado
sobre a nossa inimizade, e a doutrina da reconciliação é formulada
nestes termos.11
Quando examinamos a Escritura mais detalhadamente, des- *
cobrimos que o reverso deve ser o caso. Não é a nossa inimizade
contra Deus que se destaca na reconciliação, e, sim, a alienação de
Deus para conosco. Esta alienação da parte de Deus se origina,
deveras, do nosso pecado; é o nosso pecado que desperta esta
reação de sua santidade. Porém, é a alienação de Deus para conosco
que se destaca na reconciliação, seja ela considerada em termos de
ação ou de resultado.
Neste sentido, é instrutivo examinar algumas das ocasiões nas
quais a palavra reconciliar aparece no Novo Testamento. Estas
ocasiões aplicam o uso da Palavra às relações humanas. A primeira
é Mt 5.23,24:12 “Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te
lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa
perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com o teu
irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta.” Neste texto, o sentido
do imperativo, vai primeiro reconiliar-te com o teu irmão, ocupa,
aqui, o nosso interesse. As seguintes observações precisam ser
mencionadas.
a) Não se supõe ou se sugere que o adorador que traz a s
oferta ao altar nutre em seu coração qualquer malícia ou inimizade
contra o seu irmão com quem ele tem que se reconciliar. Esta
11. V. A. W. Argyle: “The New Testament Interpretation of The Death of Our Lord” em
The Expository Times (June, 1949), págs. 255; G. C. Workman: Ar Onement or
Reconciation with God (New York, 1911), pág. 76 etc.; F. W. Dillistone: The
Significance of The Cross (Philadelphia, 1944), págs. 114 etc.; John B. Champion:
The Heart of The New Testament (Grand Rapids, 1941), págs. 21 etc.)
12. V. T. J. Crawford: op. cit. págs. 69 etc.
possibilidade pode ser aceita ou não. Não há, porém, nenhuma
interferência de tal fator na situação. O fator que é apresentado
como a razão da interrupção no ato de culto é simplesmente que
existe alienação. Alguma coisa penetrou nas relações das duas
pessoas, a qual ofendeu àquele que se chama irmão. O adorador
não ficou ofendido, porém lembrou-se da circunstância que pro­
vocou o rompimento da comunhão entre ambos.
b) Entende-se que neste caso, provavelmente, o adorador
tenha feito alguma coisa para ofender o outro irmão, e que ele é
culpado de uma má conduta ou violação da lei do amor. Contudo,
esta probabilidade não é absolutamente necessária, e, seja isto
verdadeiro ou não, o que temos de reconhecer é o fato de que o
adorador tem de agir, uma atitude que não depende da justiça ou
injustiça do irmão ofendido.
c) O adorador é obrigado a reconciliar-se com o seu irmão. O
mandamento, vai primeiro reconciliar-te, não significa pôr de lado
a sua inimizade ou malícia. Não se pressupõe que ele nutra
qualquer intenção. Além disso, se tal coisa é o que se lhe ordenou
*fazer, então ele não teria necessidade de abandonar o altar a fim
de se corrigir. Ele não poderia estar em melhor lugar do que o
santuário, caso a exigência fosse para arrepender-se e pôr de lado
a sua má vontade. A exigência que o adorador recebe é algo
inteiramente diferente. Exige-se que ele deixe o altar, aproxime-se
de seu irmão ofendido, e então faça alguma coisa. O que é que ele
tem de fazer? Ele tem de remover de seu irmão a causa da
desavença ou alienação. Ele tem de corrigir o problema de taf-
forma que o seu irmão não tenha mais motivo de estar ofendido;
tem de fazer o que é necessário para que se recomecem relações
harmoniosas. A reconciliação como ato consiste na remoção da
causa da desarmonia; a reconciliação como resultado é o reinicio
das relações harmoniosas, entendimento e paz.
E de suma importância, pois, reconhecer que o adorador
considera no ato de reconciliação é a ofensa nutrida pelo irmão; é
a atitude da pessoa com quem ele se reconcilia que deve ser
considerada e não qualquer inimizade que ele mesmo nutre. E se
usarmos a palavra inimizade, é a inimizade por parte do irmão
ofendido que se realça no pensamento e consideração. Em outras
palavras, é o contra nutrido pelo irmão ofendido que a reconcilia­
ção contempla; a reconciliação procede a remoção deste contra.
Esta passagem, pois, nos fornece a mais instrutiva lição sobre
o sentido de ser reconciliado-, ela mostra que esta expressão, pelo
menos neste caso, focaliza o pensamento e consideração, não sobre
a inimizade da pessoa que se declara reconciliada, mas sobre a
alienação na mente da pessoa com quem a reconciliação se pro­
cessa. E se o sentido que se obtém deste texto é aquele que se
mantém em conexão com a nossa reconciliação com Deus por
meio da morte de Cristo, então o que se destaca quando se diz que
somos reconciliados com Deus é a alienação de Deus para conosco,
a santa inimizade para conosco da parte de Deus pela qual somos
alienados dele. A reconciliação como ação seria a remoção da base
da alienação de Deus para conosco; a reconciliação como resulta­
do seria a relação harmoniosa e pacífica estabelecida em virtude
da base da alienação de Deus para conosco ter sido removida.'
Neste ponto, não afirmaríamos que esta é a força precisa da palavra
reconciliação em referência à nossa reconciliação com Deus.
Teremos de derivar a nossa doutrina da reconciliação das passa­
gens que tratam especificamente deste tema. Contudo, Mt 5.23,24
nos mostra que no uso neotestamentário da palavra reconciliar, ela
é usada num sentido bem diferente daquele que à primeira vista
parece ser. Por isso, quando o Novo Testamento fala de nosso ser
sendo reconciliado com Deus por meio da morte de seu Filho, ou
de Deus nos reconciliando consigo mesmo, não podemos pressu­
por que o conceito deva ser formulado em termos de remoção da
nossa inimizade contra Deus. No mínimo, Mt 5.23,24 sugere uma
direção de pensamento bem diferente.
Outra instância onde a palavra reconciliar evidencia a mesma
linha de pensamento é I Co 7.11. Referindo-se à mulher separada
de seu marido, Paulo diz: “que não se case, ou que se reconcilie
com seu marido”. Neste caso, seja qual for a extensão da inimizade
subjetiva por parte da mulher que possa ter contribuído para a causa
da separação conjecturada, é evidente que a ordem, “que se recon­
cilie com seu marido”, não pode consistir em pôr de lado a sua
inimizade ou hostilidade subjetiva. Isto não iria levar a exortação
a bom termo. Antes, a reconciliação contempla o término da
separação e o reinicio do relacionamento matrimonial em harmo­
nia e paz. A reconciliação considerada em termos de ação é para
efetuar o término da separação; e, como efeito, o reinicio das
relações pacíficas no matrimôjjio.
' Em Rm 11.15 temos uma instância do substantivo reconci­
liação. “Porque, se o fato de terem sido eles rejeitados trouxe
reconciliação ao mundo, que será o seu restabelecimento, senão
vida entre os mortos?” E evidente que a reconciliação é contrastada
com a rejeição, e a rejeição contrastada com o restabelecimento.
O restabelecimento é nada menos do que o recebimento de Israel
outra vez no favor divino e a bênção do evangelho. O afastamento
é a rejeição de Israel do favor divino e da graça do evangelho. A
reconciliação dos gentios, que se deu por ocasião da rejeição de
Israel, é, de forma semelhante, o recebimento dos gentios no favor
divino. A reconciliação dos gentios, portanto, não pode ser inter­
pretada em termos de afastamento da inimizade por parte dos
gentios, e, sim, em termos de mudança na economia da graça de
Deus quando a alienação dos gentios chegou ao fim e eles foram
feitos concidadãos dos santos e da família de Deus (veja-se Ef
2.11-22). Seja qual for a extensão da mudança da inimizade para
a fé e o amor nos corações dos gentios, quanto ao efeito da mudança
na economia da graça e do juízo de Deus, graça para os gentios e
juízo sobre Israel, devemos considerar a reconciliação do mundo
como consistindo na mudança de relação que Deus mantinha para
com o mundo gentílico, a mudança da alienação para o favor e
bênção do evangelho. E o relacionamento de Deus para com os
gentios que se destaca neste emprego da palavra reconciliação.
Quando prosseguimos estudando passagens que concernem
diretamente à obra de reconciliação realizada por Cristo, é neces­
sário ter em mente que a reconciliação nessas e noutras instâncias
luto se refere ao afastamento da inimizade subjetiva no coração da
pessoa que se diz reconciliada; antes, refere-se à alienação por
parte da pessoa de quem se diz reconciliada. Veremos como esta
noção se aplica exatamente à reconciliação realizada por Cristo. A
reconciliação trata da alienação de Deus para conosco em virtude
do nosso pecado; pelo afastamento do pecado, a reconciliação
remove a causa desta alienação, e a paz com Deus é o efeito. Os
dois textos que passamos a considerar são Rm 5.8-11 e II Co
5.18-21.
Romanos 5.8-11. A partir do início, a maneira pela qual o
assunto da reconciliação é introduzido nos aponta para a direção
na qual descobriremos o sentido da reconciliação. “Mas Deus
prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo
morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (v.8). A morte de
Cristo pela qual a reconciliação foi consolidada é demonstrada
como a suprema manifestação do amor de Deus para com os
homens. O que gerou a proeminência é o amor de Deus como ele
se expressa numa ação bem definida como a morte de Cristo. A
nossa atenção é, pois, despertada, não para a esfera subjetiva da
at itude do homem para com Deus, senão para a atitude divina como
é demonstrada num evento histórico. Para interpretar a reconcilia­
ção em termos do que ocorre em nossa disposição subjetiva se
chocaria com esta orientação. Mas existem também razões mais
diretamente comprobatórias para pensarmos desta maneira.
a) Paulo nos conta expressamente que fomos reconciliado
com Deus por meio da morte de seu Filho. O tempo do verbo indica
que este é um fato realizado uma vez por todas, quando Cristo
morreu. Podemos ver quão impossível é interpretar a reconciliação
como a remoção da nossa inimizade para com Deus ou o afasta­
mento da inimizade por nosso próprio esforço. E verdade que Deus
fez alguma coisa, uma vez por todas, para garantir que a nossa
inimizade fosse removida e que nós seríamos induzidos a abando­
nar a nossa inimizade. Porém, se fosse apenas isto o que Deus fez
uma vez por todas, não consistiria na remoção da nossa inimizade
nem no afastamento da nossa inimizade. Além disso, o argumento
afortiori que Paulo usa neste texto nos forneceria uma interpreta­
ção incongruente caso tivéssemos de considerar a reconciliação
como a remoção da inimizade por parte de Deus ou o afastamento
dela por nossa parte. O argumento de Paulo teria de ser mais ou
menos assim: “Porque se nós, quando inimigos, abandonamos a
nossa inimizade contra Deus, mediante a morte de seu Filho,
quanto mais, tendo abandonado a nossa inimizade, seremos salvos
por sua vida” (cf. v. 10). A incoerência é evidente, e pode ser
remediada somente através de uma outra interpretação bem dife­
rente da palavra reconciliar.
b) As palavras “reconciliados com Deus mediante a morte do
seu Filho” (v. 10) são paralelas com as palavras “justificados pelo
seu sangue” (v.9). Este paralelismo é pressuposto na seqüência do
argumento. Mas justificação é sempre forense e nunca se refere a
qualquer mudança subjetiva na disposição do homein. Sendo
assim, a expressão paralela, a saber, “reconciliados com Deus”,
deve receber de forma semelhante uma força judicial, o que pode
acontecer somente na esfera objetiva da ação e juízo divinos.
c) A reconciliação é algo recebido — “acabamos agora de
receber a reconciliação” (v. 11). No mínimo, não é muito razoável
tentar ajustar ou acomodar esta noção à idéia de remoção ou
abandono da nossa inimizade. Aqui, o conceito é representado
como algo a nós entregue como uma dádiva gratuita. De fato, é
verdade que é por meio da obra da graça de Deus em nós o que
nos capacita a voltarmos da inimizade contra Deus para a fé,
arrependimento e amor. Porém, na linguagem da Escritura, esta
última obra de graça não é representada em termos tais como são
usados aqui. Podemos detectar a falta de propriedade de tal inter­
pretação se pudéssemos parafrasear tal concepção nas palavras:
"acabamos agora de receber a remoção da nossa inimizade”; ou,
"acabamos agora de receber o abandono da nossa inimizade”. Por
outro lado, se reconhecermos a reconciliação como a livre graça
dc Deus na remoção da alienação de Deus e aceitação em seu favor,
então tudo se toma coerente e significativo. O que temos recebido
c a readmissão no favor de Deus. Quão consistente é afirmar com
os termos do texto e com o regozijo do apóstolo: “Regozijamo-nos
cm Deus por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio
de quem não mais suportamos a alienação de Deus, mas fomos
recebidos no favor e na paz com ele.”
d) Paulo afirma que enquanto ainda éramos inimigos, fomo
reconciliados com Deus mediante a morte de seu Filho (v. 10). E
plenamente razoável considerar que a palavra inimigos, aqui, não
sc refere à nossa inimizade contra Deus, e, sim, refere-se à aliena­
ção de Deus, à qual ficamos sujeitos. A mesma palavra é usada no
lempo passivo em Rm 11.28. Quando esta interpretação é adotada,
a antítese instituída entre inimizade e reconciliação é exatamente
a mesma que existe entre alienação e recepção no favor divino.
Isío corroboraria o argumento anterior quanto ao sentido de recon­
ciliação. Mas, mesmo que a palavra inimigos fosse entendida no
sentido ativo de nossa hostilidade para com Deus, o mesmo sentido
(1creconciliação teria de ser mantido. Como poderia qualquer outra
interpretação compatibilizar-se com o argumento do apóstolo?
Seria muito difícil dizer: “Porque se nós, sendo inimigos ativos de
Deus, a nossa inimizade foi removida pela morte de seu Filho,
quanto mais tendo a nossa inimizade sido removida seremos salvos
por sua vida.”
II Coríntios 5.18-21. Este texto servirá para confirmar o que
encontramos em Rm 5.8-11, para destacar as características salien­
tes do ensino desta passagem.
a) A reconciliação é representada como uma obra de Deus.
I íla inicia-se com Deus e é consumada por ele. “Ora, tudo provém
dc Deus que nos reconciliou consigo mesmo” (v. 18). “Deus estava
cm Cristo, reconciliando consigo o mundo” (v. 19). Esta ênfase
sobre o monergismo divino nos adverte que a reconciliação é uma
obra que, como tal, não comporta, dentro de sua esfera, a ação
humana. Como uma realização, ela não utiliza nem é dependente
da atividade dos homens.
b) A reconciliação é uma obra concluída. Os tempos nos vv.
18, 19 e 21 põem este fato acima de qualquer dúvida. Não é uma
obra que Deus vai realizando continuamente; é algo realizado no
passado. Deus não é apenas o único agente, mas também o agente
de uma ação já aperfeiçoada.
c) Em quê a reconciliação consistiu nos é demonstrado neste
texto. “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós;
para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (v. 21). Esta verdade
aponta claramente para Cristo que carregou vicariamente o pecado,
ele que levou a reconciliação à sua realização. O caráter forense
da reconci liação é demonstrado no v. 19, onde “não imputando aos
homens as suas transgressões” é relacionado à reconciliação do
mundo como a explicação daquilo em quê a reconciliação consiste
ou como a conseqüência da qual ela emerge. De qualquer modo,
a reconciliação tem as suas afinidades com a não imputação das
transgressões, em vez de qualquer operação subjetiva.
d) Esta obra de reconciliação, consumada, é a mensagem
confiada aos mensageiros do evangelho (v. 19). Ela constitui a
substância da mensagem. Mas a mensagem é aquela que deve ser
anunciada como um fato. Deve-se lembrar que a conversão não é
o evangelho. É a exigência da mensagem evangélica e a resposta
adequada ao seu apelo. Qualquer transformação que ocorra em nós
será o efeito daquilo que é proclamado como tendo sido realizado
por Deus. A mudança em nossos corações e mentes pressupõe a
reconciliação.
e) A exortação “que vos reconcilieis com Deus” (v.20) deve
ser interpretada nos termos do que descobrimos ser a concepção
prevalecente na reconciliação. Isto significa: não permaneça mais
num estado de alienação com Deus, mas, ao contrário, entre na
relação de favor e paz estabelecida pela obra reconciliatória de
Cristo. Apodere-se da graça de Deus e entre neste status de paz
com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo.
* A reconciliação que a Escritura proclama, aquela consumada
pela morte de Cristo, visa, pois, à relação de Deus conosco. Ela
pressupõe uma relação alienatória e efetua uma relação de favor e
paz. Esta nova relação é constituída da remoção da causa da
alienação.^A causa é o pecado e a culpa. A remoção é realizada na
obra vicária de Cristo, quando ele foi feito pecado por nós, para
que nele fôssemos feitos justiça de Deus. Cristo tomou sobre si o
pecado e a culpa, a condenação e a maldição daqueles em cujo
lugar morreu. Esta é a síntese do amor e da graça divinos. E a
própria provisão de Deus e a sua própria realização. Deus mesmo,
em seu próprio Filho, removeu a causa da ofensa e agora recebe­
mos a reconciliação. É a mensagem desta realização divina, aper­
feiçoada e consumada, que nos é dirigida no evangelho, e a
exigência de fé é cristalizada no apelo que é anunciado no nome
de Cristo como se Deus exortasse: “que vos reconcilieis com
Deus”. Creia naquela mensagem como um fato, e entre no gozo e
bênção daquilo que Deus realizou. Receba a reconciliação.
4. Redenção.13 O conceito de redenção não deve ser reduzid
à noção geral de libertação.”A linguagem da redenção é a lingua­
gem de aquisição e mais especialmente de resgate. E resgate é
aquisição de um livramento mediante o pagamento de um valor.
A evidência que estabelece este conceito de redenção é muito
copiosa, e não deve ficar nenhuma dúvida de que a redenção
adquirida por Cristo tem de ser interpretada nestes termos. A
palavra de nosso Senhor (Mt 20.28; Mc 10.45) deve estabelecer,
sem sombra de dúvida, três fatos: (1) a obra que ele veio realizar
no mundo é uma obra de resgate; (2) a doação de sua vida foi o
preço do resgate; e (3) este resgate foi substitutivo em sua natureza.
13. V. B. B. Warfield: op. cit., págs. 327, 398; op. cit., págs. 60 etc.
Resgate pressupõe alguma forma de servidão ou cativeiro, e
redenção implica, pois, na existência de um estado do qual o
resgate nos liberta? Assim como o sacrifício é dirigido à necessi­
dade criada por nossa culpa, a propiciação é dirigida à necessidade
que surge da ira de Deus, e a reconciliação é dirigida à necessidade
criada por nossa alienação de Deus, assim a redenção é dirigida à
servidão à qual o nosso pecado nos entregou. Esta servidão,
naturalmente, é multiforme. Conseqüentemente, a redenção como
aquisição ou resgate recebe uma ampla variedade de referência e
aplicação.*"A redenção se aplica a cada aspecto em que somos
escravizados, e ela nos libera para uma liberdade que nada menos
é do que a liberdade da glória dos filhos de Deus.
Naturalmente que não devemos forçar indevidamente a lin­
guagem de aqiiisição ou resgate. Como C. T. Crawford nos
lembra, não podemos “traçar na obra de Cristo uma conformidade
exata a tudo o que é feito nos atos humanos de redenção”.14 As
nossas formulações se tomariam assim muito artificiais e imagi­
nárias. Todavia, que a “nossa salvação é realizada por um processo
de comutação, análogo ao pagamento de um resgate” (ibid., pág.
63), é evidente em todo o Novo Testamento. Portanto, de que
aspectos a Escritura julga a redenção realizada por Cristo? Os mais
destacados destes podem ser compreendidos sob as duas divisões
seguintes.
1. A lei. Quando a Escritura relaciona a redenção com a lei d
Deus, os termos devem ser cuidadosamente observados. Ela não
diz que somos redimidos da lei. Tal coisa não seria uma descrição
exata, e a Escritura não emprega tal expressão. Nós não somos
redimidos da obrigação de amar o Senhor nosso Deus de todo o
nosso coração, alma, força, entendimento e o nosso próximo como
a nós mesmos. A lei está compreendida nestes dois mandamentos
(Mt 22.40), e o amor é o cumprimento da lei (Rm 13.10). Supor
que somos libertados da lei, no sentido de tal obrigação, traria
14. V. Op. cit., pág. 62.
contradição ao propósito da obra de Cristo. Contradiria a própria
natureza de Deus concluir que alguém poderia ser liberto da
necessidade de amar a Deus de todo o coração e de obedecer aos
seus mandamentos. Quando a Escritura relaciona a redenção com
a lei de Deus, ela usa termos que são bem mais específicos.
(a) A maldição da lei. “Cristo nos resgatou da maldição da
lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (G13.13). A
maldição da lei está em sua sanção penal. Esta é essencialmente a
ira ou a maldição de Deus, o desprazer que pousa sobre cada
infração das exigências da lei. “Maldito todo aquele que não
permanece em todas as coisas escritas no livro da lei, para praticá­
-las” (G1 3.10). Sem livramento desta maldição, não haveria sal­
vação. É desta maldição que Cristo redimiu o seu povo, e o preço
da redenção foi que ele mesmo se tomasse em maldição. Ele se
identificou tanto com a maldição que repousava sobre o seu povo,
que ele mesmo assumiu a totalidade dela em toda a sua inexorável
intensidade. Esta foi a maldição que ele suportou, e esta foi a
maldição que ele exauriu. Este foi o preço pago por esta redenção,
e a liberdade garantida a seus beneficiários é que a maldição não
mais existe.
(b) A lei cerimonial. “Vindo, porém, a plenitude do tempo,
Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para
resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a
adoção de filhos” (G1 4.4,5). O que se destaca aqui é a redenção
da servidão tutelar na economia mosaica.15 O povo de Deus sob a
velha dispensação era filho de Deus pela adoção divina da graça.
Mas eles eram filhos menores sob o cuidado de tutores e curadores
até ao tempo predeterminado pelo Pai (G1 4.2). A economia
mosaica foi a ministradora dessa tutela e disciplina pedagógica (G1
3.23,24). Paulo está contrastando este período de tutela sob a lei
mosaica com a plena liberdade concedida a todos os crentes sob o
evangelho, sejam eles judeus ou gentios. Ele denomina esta plena
15. V. John Calvin: ad loc.
liberdade e privilégio de adoção defilhos (G14.5). Cristo veio para
que esta adoção pudesse ser assegurada. A consideração especial­
mente relevante no tocante ao preço pago por esta redenção é o
fato de que Cristo estava sujeito à lei. Ele nasceu sob a lei mosaica;
estava sujeito às suas condições e cumpriu todos os seus termos.
Nele a lei mosaica cumpriu os seus propósitos, e nele o seu
significado recebeu a sua validade e incorporação permanentes.
Conseqüentemente, ele redimiu o seu povo da servidão provisória
e relativa, da qual a economia mosaica foi o instrumento.
O significado desta redenção visa não só aos judeus, ma
também aos gentios. Na economia evangélica, os gentios não
precisam submeter-se à disciplina tutelar à qual os judeus ficaram
sujeitos. “Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordina­
dos ao tutor. Pois todos vós sois filhos de Deus por meio da fé em
Jesus Cristo” (G13.25,26). Esta imensa graça infinita, por meio da
qual todos, sem qualquer distinção ou discriminação, são filhos de
Deus pela fé em Jesus Cristo, é o fruto da redenção adquirida pelo
fato de ter Cristo nascido sob a lei e cumprido todos os seus termos
e propósitos.
(c) A lei das obras. Cristo nos redimiu da obrigatoriedade de
guardar a lei como a condição (sine qua non) de sermos justifica­
dos e aceitos por Deus. Sem esta redenção não existiria justificação
e nem salvação. É a obediência do próprio Cristo que garantiu esta
libertação. Pois é por meio de sua obediência que muitos serão
justificados (Rm 5.19). Em outras palavras, é a obediência ativa e
passiva de Cristo que se constituiu no preço desta redenção,
obediência ativa e passiva em virtude de ter ele nascido sob a lei,
cumprido todas as exigências da retidão e satisfeito todas as
sanções da justiça.

2. O pecado. Que Cristo redimiu o seu povo do pecado


decorre-se de tudo o que foi dito a respeito da lei. A força do pecado
c a lei, e onde não existe lei, também não existe transgressão (I Co
15.56; Rm 4.15). Mas a Escritura também põe a redenção em
relação direta com o pecado. É nesta conexão que o sangue de
Cristo é claramente indicado como o meio pelo qual esta redenção
c adquirida. A redenção do pecado abrange vários aspectos pelos
quais o pecado pode ser considerado. Ela é a redenção do pecado
em todos os seus aspectos e conseqüências. Isto é especialmente
provável de textos tais como Hb 9.12 e Ap 5.9. O caráter inclusivo
da redenção quanto ao pecado e seus males acompanhantes é
demonstrado mais claramente, talvez, pelo fato de que a consuma­
ção escatológica de todo o processo redentivo é visto como a
redenção (cf. Lc 21.28; Rm 8.23; Ef 1.14; 4.30; e, possivelmente,
1Co 1.30). O fato é que o conceito de redenção deve ser usado para
designar a libertação plena e definitiva de todo o mal e a realização
do propósito, para o qual todo o processo da graça redentora age,
revela conspicuamente como a redenção adquirida por Cristo é
inseparavelmente unida à realização da liberdade da glória dos
li lhos de Deus. E revela também que a redenção é importante para
a própria noção de bem-aventurança reservada para o povo de
Deus. Não surpreendente, pois, que a profecia do Velho Testamen­
to use estes termos (veja-se Os 13.14) e que o cântico dos glorifi­
cados seja um cântico da redenção (veja-se Ap 1.5,6; 5.9).

Todavia, nesta discussão estamos contemplando a redenção


que Cristo adquiriu como uma obra consumada. Quando a reden­
ção é considerada no sentido mais restrito, existem dois aspectos
do pecado que se destacam proeminentemente quanto à redenção
realizada por Cristo. Estes são a culpa e o poder do pecado. Os
dois efeitos que emanam desta obra redentiva são, respectivamen­
te: (1) justificação e perdão do pecado e (2) libertação do poder e
da poluição escravizadora do pecado. A redenção, no que se refere
à culpa e que resulta em justificação e remissão, é vista em textos
lais como Rm 3.24; Ef 1.7; Cl 1.14; Hb 9.15. E a redenção quanto
ao seu efeito no poder escravizador e na poluição do pecado é vista
em Tt 2.14; I Pe 1.18; ainda que nestes últimos não podemos
excluir toda implicação forense.

Em conexão com a redenção da culpa do pecado, o sangue de


Cristo como resgate substitutivo e como preço do resgate de nossa
libertação é claramente apresentado. Os ensinos de nosso Senhor
sobre o resgate (Mt 20.28; Mc 10.45) revelam, sem sombra de
dúvida, que ele interpretou o propósito de sua vinda ao mundo em
termos de resgate substitutivo, e que este resgate foi nada menos
que a doação de sua própria vida. E, na linguagem do Novo
Testamento, a doação de sua vida é sinônimo de derramamento de
seu sangue. A redenção, pois, no conceito de nosso Senhor,
consistia do derramamento de sangue substitutivo ou o derrama­
mento de sangue no lugar de muitos, com o propósito de adquirir
para si mesmo os muitos pelos quais ele deu a sua vida como
resgate. Esta mesma noção é reproduzida no ensino apostólico.
Embora a terminologia não seja precisamente aquela da redenção,
não podemos confundir a significação redentiva da palavra de
Paulo em sua exortação dirigida aos presbíteros em Efeso quando
ele se refere à “igreja de Deus, a qual ele comprou com seu próprio
sangue” (At 20.28). O pensamento que Paulo expressa aqui é
claramente a linguagem de redenção ou resgate que expressou em
outro lugar, quando fala de Jesus Cristo como “aquele que a si
mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade e
purificar para si mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de
boas obras” (Tt 2.14). Ou, ainda, quando Paulo diz que no Amado
“temos a redenção, pelo seu sangue, a remissão dos pecados” (Ef
1.7; G1 1.14), é plenamente óbvio que ele entende o perdão dos
pecados como a bem-aventurança que surge da redenção por meio
do sangue. E embora Hb 9.15 seja difícil de se analisar, contudo é
claro que a morte de Cristo é o meio de redenção em referência aos
pecados praticados sob o antigo concerto: a morte de Cristo é
redentivamente eficaz em referência ao pecado.
Não podemos separar artificialmente a redenção como um
resgate da culpa do pecado das demais categorias nas quais a obra
de Cristo deva ser interpretada. Estas categorias outra coisa não
são senão aspectos dos quais a obra de Cristo, realizada uma vez
por todas, deve ser entendidas; portanto, podemos dizer que eles
se interpermeiam. Este fato, em sua aplicação à redenção, aparece,
por exemplo, em Rm 3.24-26. Paulo diz: “Sendo justificados
gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo
Jesus; a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação...
tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente,
para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em
Jesus.”Aqui, redenção e propiciação não são apenas dispostas, mas
existe uma combinação de conceitos que aponta para o propósito
e efeito da obra de Cristo, e isto revela como os vários conceitos
são intimamente interrelacionados. Este texto exemplifica e con­
firma o que outras considerações estabelecem, a saber, que a
redenção da culpa do pecado deve ser formulada em termos
forenses, análogos àqueles que devem ser aplicados à expiação,
propiciação e reconciliação.
A redenção do poder do pecado pode ser chamada o aspecto
triunfal da redenção. Em sua obra consumada, Cristo fez uma
coisa, uma vez por todas, a respeito do poder do pecado, e é em
virtude desta vitória que ele garantiu que o poder do pecado é
interrompido em todos aqueles que se unem a ele. É neste sentido
que o fio do ensino neotestamentário deve ser apreciado, mas que
é freqüentemente negligenciado. Não é apenas o fato que considera
Cristo morrendo em favor do pecador, mas também o que consi­
dera o crente morrendo em Cristo e ressurgindo com ele para a
novidade de vida. Este é o resultado da união com Cristo. Por meio
desta união, Cristo não é apenas unido àqueles que lhe foram
confiados, mas eles também são unidos com Cristo. Assim, não é
apenas Cristo quem morreu por eles, mas também eles morreram
e ressuscitaram com Cristo (vejam-se Rm 6.1-10; II Co 5.14,15;
Ef 2.1-7; Cl 3.1-4; I Pe 4.1-2). É o fato de ter morrido com Cristo
na eficácia de sua morte e de ter ressuscitado com ele no poder de
sua ressurreição que garante a todo o povo de Deus a libertação do
domínio do pecado. Este fato fornece a base da exortação: “Assim
também vós, considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para
Deus em Cristo Jesus” (Rm 6.11), e gera força para a certeza
inabalável: “Porque o pecado não terá domínio sobre vós” (Rm
6.14). É o fato de ter morrido e ressuscitado com Cristo, visto como
uma implicação da morte e ressurreição de Cristo, realizadas uma
vez por todas, que fornece a base do processo santificador. E é
constantemente apresentado como impulso e incentivo à santifica­
ção na vida prática do crente.
Outrossim, é aqui que podemos refletir convenientemente
sobre a redenção em termos de pagamento a Satanás. E ao aspecto
triunfal da redenção que isto deve ser relacionado. Os primeiros
pais da Igreja cristã deram lugar proeminente a este aspecto da
redenção, e o elaboraram em termos de um resgate pago ao diabo.
Este conceito tomou-se fantasioso e um ludíbrio. A sua falsidade
foi eficientemente impugnada por Anselmo em sua obra célebre
Cur Deus Homo. Todavia, em reação contra esta formulação
fantasiosa, somos também propensos a desacreditar a grande ver­
dade que esses pais procuraram elucidar. Esta verdade conecta a
obra redentora de Cristo com o poder e atividade de Satanás e com
as forças espirituais do mal nas regiões celestes (Ef 6.12). Nesta
conexão é muito importante lembrar que a primeira promessa da
graça redentora, o primeiro raio de luz redentora que brilhou sobre
os nossos primeiros pais caídos, estava nos termos da destruição
do tentador. E esta mesma ênfase está engastada no Novo Testa­
mento. Quando nosso Senhor se aproximava do Calvário, e como
ele lembrara uma vez mais, em virtude do pedido dos gregos, da
significação mundial da obra que estava prestes a realizar, ele se
valeu da oportunidade para referir-se à vitória sobre o seu arqui
-inimigo, dizendo: “Chegou o momento de ser julgado este mundo,
e agora o seu príncipe será expulso” (Jo 12.31). E para o apóstolo
Paulo, a glória que refulgia da cruz de Cristo era uma glória
irradiada pelo fato de que ele, “despojando os principados e as
potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles
na cruz” (Cl 2.15). Embora nós, tão amiúde, deixamos de reconhe­
cer a realidade cruel da morte, e ficamos conformados em sua
presença, não em virtude da fé, e, sim, em virtude da insensibili­
dade recrudescida, assim não acontecia no fervor da fé neotesta-
mentária. Com um profundo significado, o escritor da epístola aos
Hebreus registrou que Jesus participou da carne e sangue, “para
que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a
saber, o diabo, e livrasse a todos que, pelo pavor da morte, estavam
sujeitos à escravidão por toda a vida” (Hb 2.14,15). Foi unicamente
aquele triunfo que livrou os crentes da servidão do medo e que
inspirou a confiança e serenidade da fé. Porém, este triunfo era
muito importante para eles, porquanto a sua consciência estava
condicionada pela percepção do caráter e atividade de Satanás, e
a confiança e serenidade entraram em seus corações porque sabiam
que o triunfo de Cristo desfechou-se sobre o agente sinistro que
detinha o poder da morte.
Assim entendemos que a redenção [do homem das garras] do
pecado não pode ser devidamente compreendida ou formulada a
não ser que inclua a vitória que Cristo alcançou uma vez por todas
sobre aquele que é o deus deste mundo, o príncipe das forças do
ar, o espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Deve­
mos visualizar o pecado e o mal em suas proporções maiores como
um reino que compreende a sutileza, duplicidade, ingenuidade,
poder e atividade incansável de Satanás e suas legiões — “os
principados e potestades, os dominadores deste mundo tenebroso,
as hostes espirituais do mal nas regiões celestes” (Ef 6.12). E é
impossível falar em termos de redenção do poder do pecado, a não
ser que esteja ao alcance desta realização redentora a destruição do
poder das trevas. E assim que podemos nutrir um entendimento
mais inteligente do que Cristo encontrou quando ele disse: “Esta,
porém, é a vossa hora, e o poder das trevas” (Lc 22.53), e do que
o Senhor da glória realizou quando ele expulsou “o príncipe deste
mundo” (Jo 12.31).
Capítulo 3
A perfeição da expiação
Nas polêmicas protestantes, este aspecto da obra expiatória
de Cristo tem sido orientado contra o conceito romanista, de que
a obra de satisfação realizada por Cristo não livra os fiéis da
necessidade de fazer satisfação pelos pecados que eles têm prati­
cado. Segundo a teologia romanista, todos os pecados do passado,
no que respeita ao seu castigo temporal e eterno, são apagados no
batismo, bem assim o castigo eterno dos pecados futuros dos fiéis.
Mas, a respeito do castigo temporal dos pecados, depois do batis­
mo, o fiel tem de fazer satisfação, ou nesta vida ou no purgatório.
Em oposição a toda e qualquer noção de satisfação humana, os
protestantes combatem corretamente, afirmando que a satisfação
de Cristo é a única oferecida pelo pecado, e que esta é tão perfeita
c final, que não deixa nenhuma obrigação penal por qualquer
pecado do crente. É verdade que nesta vida os crentes são castiga­
dos por seus pecados, e que tal castigo é corretivo e santificador
— “produz fruto pacífico aos que têm sido por ela [=disciplina]
exercitados, fruto de justiça” (Hb 12.11). E este castigo é doloroso.
Contudo, assemelhar este castigo com a satisfação pelo pecado é
impingir não só a perfeição da obra de Cristo, mas também a
natureza da satisfação de Cristo. “Agora, pois, já nenhuma conde­
nação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Não pode
haver nenhum abrandamento na polêmica protestante contra esta
perversão do evangelho de Cristo. Se permitirmos a entrada,
mesmo que seja de uma noção mínima de satisfação humana, em
nossa formulação de justificação ou santificação, então teremos
poluído o rio cujas correntes alegram a cidade de Deus. E a mais
grave perversão que ela impõe é que rouba do Redentor a glória
da sua perfeita realização. Ele mesmo fez a purificação dos nossos
pecados e assentou-se à direita da majestade nas alturas (Hb 1.3).
Contudo, a situação na qual nos achamos com referência ao debate
sobre o tema da expiação, requer de nós que consideremos outros
meios pelos quais a doutrina da perfeição da expiação tem sido
prejudicada, e é necessário que incluamos neste título outras
características da obra consumada de Cristo.
1. A objetividade histórica. Na expiação, algo foi realizad
uma vez por todas, sem qualquer participação ou contribuição de
nossa parte. Uma obra foi aperfeiçoada, a qual antecede a todo e
qualquer reconhecimento ou resposta por parte daqueles que são
os seus beneficiários. Qualquer redução deste fato no interesse do
que se supõe ser uma interpretação mais ética, ou no interesse de
interpretar a expiação segundo os termos dos efeitos éticos que se
calculam produzir em nós, é eviscerar a verdade da expiação. A
expiação é objetiva para nós, realizada independentemente de nós,
e os efeitos subjetivos que se acumulam dela pressupõem a sua
realização. Os efeitos subjetivos exercidos sobre o nosso entendi­
mento e vontade podem seguir somente na medida em que reco­
nhecermos, pela fé, o significado do fato objetivo.
Há ainda outra implicação de sua objetividade histórica que
precisa ser enfatizada. É o caráter estritamente histórico daquilo
que foi realizado. A expiação não é supra-histórica nem contem­
porânea. E verdade que a pessoa que expiou em relação ao pecado
está acima da história quanto à sua divindade e filiação eternas.
Como tal, ele é eterno e transcende a todas as condições e circuns­
tâncias do tempo. Ele é, com o Pai e com o Espírito, o Deus da
história. E também verdade que, como o Filho encarnado, exaltado
à mão direita de Deus, ele é, num sentido verdadeiro, contempo-
râneo. Ele vive para sempre e, como o vivente que esteve morto,
ele está vivo outra vez e é a sempre-presente e a sempre-ativa
incorporação da eficácia, virtude e poder que emanam da expiação.
Mas a expiação foi efetuada na natureza humana e numa ocasião
específica no passado, foi consumada no calendário dos eventos.
Poderia alguma coisa apontar mais claramente para a verdade e a
significação dela, do que a palavra do apóstolo: “Vindo, porém, a
plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher,
nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei”? (G1
4.4,5). Independentemente da nossa interpretação de “a plenitude
do tempo” como a medida plena do tempo designado por Deus, o
período que tinha de seguir o curso antes que Deus enviasse o seu
Filho ou como o tempo que consume o tempo e concede ao tempo
a sua plena completação, devemos reconhecer a significação de
tempo para a missão que é registrada em e designada pela encar­
nação do Filho de Deus. A encarnação ocorreu num ponto especí­
fico marcado pela chegada da plenitude do tempo; ela não ocorreu
antes disso e, embora a encarnação seja um estado permanente, ela
não ocorreu outra vez. A história, com os seus encontros determi­
nados e períodos bem definidos, tem profundo significado no
drama da realização divina. O condicionamento histórico e a
localização dos eventos no tempo não podem ser erradicados nem
a sua significação subestimada. E o que é verdadeiro quanto ao
evento da encarnação é também verdadeiro quanto à redenção
realizada. Ambas são localizadas historicamente e nenhuma das
duas é supra-histórica ou contemporânea.
2. A finalidade. Nas polêmicas históricas, esta característic
da expiação tem sido realçada em oposição à doutrina romanista
do sacrifício da missa. Esta polêmica contra a blasfêmia romanista
é tão necessária em nossos dias como o foi no período da Reforma.
A expiação é uma obra consumada, nunca mais repetida; ela é
irrepetível. Em nosso contexto moderno, contudo, é necessário
insistir neste princípio, não apenas em oposição a Roma, mas
também em oposição a 'um conceito prevalecente dentro dos
círculos protestantes. Este conceito diz que o ato divino em levar
o pecado não pode limitar-se ao evento histórico do sacrifício de
Jesus; antes, deve ser considerado como eterno, assim como a obra
da expiação, encarnada na paixão de Jesus Cristo, é eterna nos céus,
na própria vida de Deus, “uma obra eterna de expiação, supra-tem­
poral à semelhança da vida de Deus... continuando enquanto os
pecados continuam a ser cometidos e existem pecadores a ser
reconciliados”.16
De fato, é sumamente necessário reconhecer a atividade
contínua do sumo sacerdócio de Cristo no céu. E necessário
lembrar que ele incorpora eternamente em si mesmo a eficácia que
emanou deste sacrifício realizado aqui na terra, e que pela virtude
desta eficácia ele exerce o seu ministério celestial como o grande
Sumo Sacerdote de nossa confissão. E sobre este princípio que ele
intercede em favor de seu povo. E é em razão desta compaixão,
derivada de suas tentações terrenas, que ele pode ser tocado de
sentimento pelas nossas enfermidades. Esta afirmação significa
que a unidade do ofício sacerdotal de Cristo e a sua atividade
devem ser plenamente apreciadas. Mas o fato de não devermos
interromper a unidade de suas funções sacerdotais não significa
que temos a liberdade para confundir as fases e ações distintas de
seu ofício sacerdotal. Devemos fazer distinção entre a oferta do
sacrifício e a subseqüente atividade do sumo sacerdote. O que o
Novo Testamento enfatiza é a unidade definitiva e histórica do
sacrifício que expiou a culpa e fez reconciliação com Deus (veja-se
Hb 1.3; 9.12, 25-28). Deixar de apreciar a finalidade desta defini­
ção leva à incompreensão do verdadeiro sentido da expiação. Na
formulação bíblica, a expiação não pode ser concebida à parte das
condições sob as quais ela foi realizada. Pelo menos duas condi­
ções são indispensáveis, a saber, humilhação e obediência, e estas
são condicionadas mutuamente uma pela outra. Seria uma contra­
dição ao teor de toda a Escritura, transferir a expiação para uma
16. V. D. M. Baillie: op. cit., pág. 194, n. I.
esfera onde nos seria impossível acreditarmos que estas condições
existem.
Além do mais, se pensarmos na fórmula: “expiação etema no
coração de Deus”, devemos, mais uma vez, fazer distinções. É
verdade que a expiação fluiu e foi a provisão do amor etemo do
coração de Deus. Contudo, conceber a expiação como etema é
confundir o etemo com o temporal. O testemunho da Escritura é
inconfundível a respeito da significação que Deus dá à realização
temporal. Ela se refere à expiação e o faz de forma definida e
decisiva. A nossa definição de expiação deve-se derivar da expia­
ção revelada pela Escritura. E a expiação da qual a Escritura fala
é a obediência vicária, expiação, propiciação, reconciliação e
redenção efetuadas pelo Senhor da glória quando ele, uma vez por
todas, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à
direita da Majestade nas alturas.
3. A unicidade. Horace Bushnell nos forneceu o que
provavelmente, a mais eloqüente exposição e defesa do conceito
de que o sacrifício de Cristo é a ilustração suprema e a vindicação
do princípio de auto-sacrifício, o qual opera no coração de cada
ser que é santo e amoroso, quando este é confrontado com o mal
e o pecado. “O amor é um princípio essencialmente vicário em sua
própria natureza, identificando o sujeito com outros, a fim de sofrer
as adversidades e as suas dores e tomar sobre si mesmo o peso de
seus males.”17 “Há um Getsêmani oculto em todo amor” (ibid.,
pág. 47). “Quando sustentamos o conceito de sacrifício vicário,
descobrimos que ele pertence à natureza essencial de todas as
virtudes santas. Somos também constrangidos a prosseguir e mos­
trar como ele pertence a todos os outros seres bons, tão verdadei­
ramente como o próprio Cristo na came — como o Pai etemo antes
de Cristo, e a vinda posterior do Espírito Santo, e os anjos bons,
tanto antes como depois, todos igualmente carregaram os proble­
mas, lutaram nas dores de seus sentimentos vicários em favor dos
17. V. The Vicarious Sacriifice (New York, 1891, pág. 42).
homens; e então, finalmente, como a cristandade trouxe a lume, ao
nascer dentro de nós o mesmo amor vicário que reina em todos os
seres bons e glorificados do reino celestial; reunindo-nos de acordo
com Cristo, o nosso Mestre, tendo aprendido a carregar a sua cruz
e a estar com ele em sua paixão” (Ibid., pág. 53).
Distinguir a verdade do erro e elucidar as falsidades nestas
citações nos levaria para muito além dos nossos limites. E verdade
que o sacrifício de Cristo é a revelação suprema do amor de Deus.
É verdade que a vida, sofrimento e morte de Cristo nos dão um
exemplo supremo de virtude. E verdade que as aflições da Igreja
preenchem o que resta das aflições de Cristo, e que através destas
aflições dos crentes a obra expiatória de Cristo cumpre o seu
propósito. Mas afirmar que temos parte naquilo que constituiu o
sacrifício vicário de Cristo é algo completamente diferente. É
indefensável e perverso impor sobre os termos vicário e sacrifício
uma conotação diluída que reduza o sacrifício vicário de Cristo a
uma denominação que o destitui do caráter único e distintivo que
a ele é aplicado pela Escritura. De fato, Cristo nos deu um exemplo
a fim de seguirmos os seus passos. Porém, nunca foi proposto que
esta emulação de nossa parte fosse acrescentada à obra de expia­
ção, propiciação, reconciliação e redenção, realizada por ele. Ao
definirmos a expiação segundo os termos da Escritura, percebemos
facilmente que ela foi feita exclusivamente por Cristo.
E não apenas isto. Por qual autoridade ou por qual raciocínio
podemos inferir que o que é constitutivo de, ou é exemplificado
no sacrifício vicário de Cristo é aquilo que se aplica a todo amor
santo como ele contempla o mal e o pecado? É somente através de
uma confusão fatal de categorias que tais inferências podem se
tomar plausíveis. A representação bíblica é que o Filho encarnado
de Deus, e somente ele, à exclusão do Pai e do Espírito na esfera
do divino, à exclusão de anjos e homens na ordem criada, deu-se
a si mesmo em sacrifício para redimir-nos para Deus por meio de
seu sangue. Seja qual for o ângulo pelo qual contemplemos este
sacrifício, descobrimos que a sua unicidade é tão inviolável como
a unicidade de sua pessoa, de sua missão e de seu ofício. Quem é
o Deus-homem senão unicamente ele? Quem derramou sangue tão
vicário, senão unicamente ele? Quem é o grande sumo sacerdote
para oferecer tal sacrifício, senão unicamente ele? Quem entrou
uma vez por todas no Santo dos Santos, tendo obtido a redenção
eterna, senão unicamente ele? Podemos citar com proveito as
palavras de Hugh Martin. Elas são extraídas de sua magistral
polêmica contra a posição teológica de F. W. Robertson de que o
“sacrifício vicário é a lei da vida”. Com referência a esta posição,
Martin diz: “Um pronunciamento de um soberbo oráculo! Não é
necessário dizer que refutamos com uma negação direta. O sacri­
fício vicário não somente não é a lei da vida, ele não é lei alguma.
Ele é uma transação divina, incomparável e solitária — nunca se
repetirá, jamais será equiparado e jamais será assemelhado. Foi o
expediente da divina sabedoria, esplêndido e inesperado, que em
sua manifestação as mentes dos anjos se inundaram do conheci­
mento de Deus! Foi o livre conselho do beneplácito da vontade de
Deus. Foi a soberana determinação de sua graça e amor. Somos
destituídos do soberano amor de Deus ante a noção de que o
sacrifício vicário é a “lei da vida”.18
4. A eficácia intrínseca. Nas polêmicas da teologia históric
este aspecto da expiação tem sido realçado a fim de combater a
doutrina remonstrante que ensina que Cristo fez algo que Deus
graciosamente aceita no lugar da plena satisfação da justiça. A
declaração da Confissão de Fé de Westminster é admiravelmente
formulada em distinção à posição remonstrante. “O Senhor Jesus,
pela sua perfeita obediência e pelo sacrifício de si mesmo, sacrifí­
cio que, pelo Eterno Espírito, ele ofereceu a Deus uma só vez,
satisfez plenamente à justiça do Pai, e, para todos aqueles que o
Pai lhe deu, adquiriu não só a reconciliação, como também uma
lierança perdurável no reino dos céus” (VIII, V).
1X. Op. cit., págs. 241 etc.
E preciso ter em mente e formular corretamente a relação
entre a graça de Deus e a obra expiatória de Cristo. Foi pela graça
de Deus que Cristo foi dado por nós. Foi por sua própria graça que
ele deu-se a si mesmo. Seria inteiramente errôneo imaginar que a
obra de Cristo pudesse induzir o Pai a sentir-se constrangido a ser
bondoso e gracioso. “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por
causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos
em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo” (Ef 2.4,5;
cf. I Jo 4.9). A expiação é a provisão do amor e graça do Pai. Há,
todavia, igual necessidade de lembrar que a obra realizada por
Cristo foi em si mesma intrinsecamente adequada para satisfazer
todas as necessidades criadas pelos nossos pecados e todas as
exigências da santidade e justiça de Deus. Cristo pagou a dívida
do pecado. Ele levou os nossos pecados e os purificou. Ele não fez
um pagamento simbólico que Deus aceitasse como se fosse tudo.
As nossas dívidas não foram canceladas; elas foram liquidadas.
Cristo adquiriu a redenção, e, portanto, a garantiu. Ele tomou sobre
si e absorveu a medida total do juízo e condenação divinos contra
o pecado. Ele operou a justiça que é a única base da completa
justificação e o título para a vida eterna. Assim, a graça reina
através da justiça para a vida eterna por intermédio de nosso
Senhor Jesus Cristo (cf. Rm 5.19,21). Ele expiou a culpa e “com
uma única oferta aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo
santificados” (Hb 10.14). “E, tendo sido aperfeiçoado, tomou-se
o Autor (=a causa) da salvação eterna para todos os que lhe
obedecem” (Hb 5.9). Em uma palavra, Jesus cumpriu todas as
exigências oriundas do nosso pecado e adquiriu todos os benefí­
cios que conduzem à liberdade e são consumados na liberdade da
glória dos filhos de Deus.
Capítulo 4
A extensão da expiação
A questão que envolve a extensão da expiação é simplesmen­
te esta: Por quem Cristo fez expiação? Ou, numa linguagem mais
simples: Por quem Cristo morreu? À primeira vista, parece que a
resposta bíblica é inequívoca no sentido de que Cristo morreu por
todos os homens. Pois nós lemos: “Todos nós andávamos desgar­
rados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o
Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53.6). Seria
fácil argumentar que a designação todos na última cláusula é tão
extensiva como o número daqueles que andavam desgarrados e se
desviavam pelo seu próprio caminho. Se assim fosse, a conclusão
seria que o Senhor fez cair sobre o seu Filho a iniqüidade de todos
os homens, e que ele fez uma oferta pelo pecado de todos. Lemos
noutro lugar: “Vemos, todavia, aquele que, por um pouco, tendo
sido feito menor que os anjos, Jesus, por causa do sofrimento da
morte, foi coroado de glória e de honra, para que, pela graça de
Deus, provasse a morte por todo homem” (Hb 2.9). E pode-se dizer
que João coloca a questão fora de qualquer debate quando diz: “E
ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos
nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro” (I Jo 2.2).
Não convém, porém, pensar que a citação de alguns poucos
textos como estes, e alguns outros que podiam ser citados, deter­
mine a questão. Desde o princípio até ao fim, a Bíblia emprega
expressões que são universais em sua forma, contudo não podem
ser interpretadas como que incluindo todos os homens, distributiva
e inclusivamente. Palavras tais como mundo e todos, e expressões
tais como cada um e todos os homens, na Escritura, nem sempre
significam cada membro da raça humana. Por exemplo, quando o
apóstolo Paulo se refere à incredulidade de Israel, e diz: “Ora, se
a transgressão deles redundou em riqueza para o mundo... quanto
mais a sua plenitude” (Rm 11.12), somos obrigados a supor que
ele quis dizer que a transgressão de Israel trouxe as referidas
riquezas para cada pessoa que já existiu, existe e há de existir no
mundo? Uma interpretação tal seria um absurdo. A palavra mundo,
pois, é apenas para incluir Israel que é contrastado aqui com o
mundo. Não é verdade que cada membro da raça humana foi
enriquecido pela queda de Israel. Quando Paulo usou aqui a
palavra mundo, ele quis dizer o mundo gentílico contrastado com
Israel. O contexto toma isto sobejamente claro. Assim, temos um
exemplo da palavra mundo usada num sentido restrito e que não
inclui todos os homens de forma distributiva. Mais uma vez,
~ quando Paulo diz: “Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo
sobre todos os homens para condenação, assim também por um só
ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para a justificação
que dá vida” (Rm 5.18), somos forçados a concluir que a justifi­
cação veio sobre toda a raça humana, sobre todos os homens
distributiva e inclusivamente? Isto não pode ser o que Paulo quis
dizer. Ele está falando da justificação real, a justificação que está
em Cristo e é para a vida eterna (cf. vv.l,16,17,21).E não podemos
concluir que tal justificação veio sobre cada membro da raça
humana, a não ser que creiamos que todos os homens serão
finalmente salvos, algo que é contrário ao restante dos ensinos de
Paulo e do ensino da Escritura em geral. Conseqüentemente, ainda
que Paulo use a expressão todos os homens na primeira parte do
versículo no sentido de todos os homens do universo, todavia ele
deve estar usando a mesma expressão na segunda parte do versí­
culo num sentido muito mais restrito, a saber, todos aqueles que
hão de ser realmente justificados. Lançando mão de outro exem-
pio, quando Paulo diz: “Todas as coisas me são lícitas” (I Co 6.12;
10.23), ele não quis dizer que todas as coisas existentes lhe eram
lícitas. Não lhe foi lícito transgredir os mandamentos de Deus.
Essas todas as coisas de que ele fala são definidas e limitadas pelo
contexto. Outros e numerosos exemplos poderiam ser usados e
citados para mostrar que expressões semelhantes a estas, ainda que
universais em sua forma, com freqüência são de caráter restrito e
não incluem cada pessoa da raça humana.
Assim, pois, não é suficiente citar alguns textos da Bíblia nos
quais palavras tais como mundo e todos aparecem em conexão com
a morte de Cristo e concluir peremptoriamente que a questão já
está resolvida em favor de umá expiação universal.
Podemos facilmente mostrar a falácia deste procedimento em
relação a um texto como Hb 2.9.0 que é que fornece a designação
de todo homem na cláusula em pauta? É sem dúvida alguma ò
contexto. Ele está falando dos muitos filhos a serem conduzidos à
glória (v. 10), dos santificados que, juntamente com o santificador,
são todos irmãos (v.l 1), daqueles que são chamados os irmãos de
Cristo (v.12) e dos filhos que Deus lhe deu (v.13). E isto que nos
fornece o escopo e a referência de todo homem por quem Cristo
sofreu a morte. De fato, Cristo sofreu a morte em favor de cada
filho que deverá ser conduzido à glória e em favor de todos os
filhos que Deus lhe deu. Porém, não há a menor base neste texto
para estender a referência da morte vicária de Cristo além daqueles
que são mui expressamente mencionados no contexto. Estes textos
mostram como uma citação impensada pode ser plausível, porém
em tal apelo sem base para apoiar a doutrina da expiação universal.
Prosseguindo na análise desta doutrina, é preciso ser especí­
fico sobre o que a questão não é. A questão não é se os homens
usufruem os muitos benefícios da justificação e da salvação que
emanam da morte de Cristo. Os incrédulos e réprobos deste mundo
gozam de numerosos benefícios que emanam do fato de que Cristo
morreu e ressuscitou. O domínio mediatório de Cristo é universal.
Cristo é o Cabeça sobre todas as coisas e recebeu toda a autoridade
no céu e na terra. É dentro deste domínio mediatório que todas as
bênçãos que os homens usufruem são distribuídas. A base deste
domínio exercido por Cristo é o galardão da sua obra redentora
consumada — “a si mesmo se humilhou, tomando-se obediente
até à morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou
sobremaneira e lhe deu um nome que está acima de todo nome”
(Fp 2.8,9). Conseqüentemente, desde que todos os benefícios e
bênçãos estão dentro da esfera do domínio de Cristo, e desde que
este domínio repousa em sua obra de expiação consumada, os
inumeráveis benefícios que são usufruídos por todos os homens,
indiscriminadamente, são relacionados com a morte de Cristo e,
pode-se dizer, emanam dela de uma forma ou de outra. Se tais
benefícios fluem assim da morte de Cristo, é porque eles foram
ordenados para que assim fluíssem. É correto, pois, dizer que o
desfrutar de certos benefícios, mesmo pelos não-eleitos e réprobos,
corre dentro do propósito da morte de Cristo. Negar a expiação
universal não implica em negar qualquer relação entre os benefí­
cios que todos os homens desfrutam e a eficácia da obra consumada
pela morte de Cristo. A questão real é algo bem diferente.
, A questão é: Em favor de quem Cristo se ofereceu em
sacrifício? Em favor de quem ele propiciou a ira de Deus? A quem
ele reconciliou com Deus no corpo de sua carne mediante sua
morte? A quem ele redimiu da maldição da lei, da culpa e do poder
do pecado e do tenaz poder e servidão de Satanás? Em lugar de
quem e em favor de quem ele foi obediente até à morte, e morte
de cruz? São precisamente estas as perguntas que têm de ser feitas
e corajosamente encaradas se quisermos entender corretamente o
problema da extensão da expiação. A questão não é a relação da
morte de Cristo com os numerosos benefícios que aqueles que
finalmente perecerão podem receber nesta vida, e, sim, a impor­
tância que esta questão tem em si mesma e em seu devido lugar.
A questão é precisamente a referência à morte de Cristo quando
esta é considerada como vicária, isto é, como uma obediência
vicária, como um sacrifício substitutivo e uma expiação como
propiciação eficaz, reconciliação e redenção. Em uma palavra,
devemos terem mente a conotação correta e estrita da frase morreu
por. Quando Paulo diz que Cristo “morreu por nós” (I Ts 5.10) ou
que “Cristo morreu pelos nossos pecados” (I Co 15.3), ele não está
dizendo que algumas bênçãos podem provir da morte de Cristo, e
que um dia podemos ser privados delas ou que poderão ser
desfeitas. Ele está pensando na estupenda verdade de que Cristo o
amou e a si mesmo se entregou por ele (G12.20), que Cristo morreu
por ele e em seu lugar, e que, portanto, temos a redenção por meio
do sangue de Cristo.
Se nos concentrarmos na idéia de redenção, então seremos
provavelmente capazes de sentir mais prontamente a impossibili­
dade de se universalizar a expiação. O que a redenção significa?
Ela não significa a possibilidade de libertação, que estamos postos
numa posição de possível libertação. Ela significa que Cristo
comprou e adquiriu a nossa liberdade. Esta é a nota triunfante do
Novo Testamento, toda vez que ele tange a corda redentora. Com
o seu sangue, Cristo nos redimiu para Deus (Ap 5.9). Ele adquiriu
eterna redenção (Hb 9.12). “O qual a si mesmo se deu por nós, a
fim de remir-nos de toda iniqüidade, e purificar para si mesmo um
povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tt 2.14). Despir
o conceito de redenção como uma obtenção eficaz de livramento
por preço e por poder é fazer dela algo insuficiente para garantir a
salvação de seus objetos. Cristo não veio colocar os homens numa
posição de possível redenção; antes, ele veio redimir um povo para
si mesmo. Chegamos ao mesmo resultado quando analisamos
corretamente o sentido de expiação, propiciação e reconciliação.
Cristo não veio tomar os pecados expiáveis. Ele veio expiar os
pecados — e tendo “feito a purificação dos pecados, assentou-se
à direita da Majestade nas alturas” (Hb 1.3). Cristo não veio fazer
Deus reconciliável. Ele reconciliou-nos com Deus por meio de seu
próprio sangue.
A própria natureza da missão e realização de Cristo está
envolvida nesta questão. Cristo veio para tornar possível a salvação
de todos os homens, remover os obstáculos que obstruíam o
caminho da salvação e meramente fazer provisão para a salvação?
Ou veio realmente salvar o seu povo? Ele veio simplesmente
colocar todos os homens num estado salvável? Ou veio realmente
garantir a salvação de todos aqueles que são ordenados para a vida
eterna? Ele veio fazer os homens redimíveis? Ou ele veio para
redimir eficaz e infalivelmente? A doutrina da expiação deve ser
radicalmente reformulada se, como expiação, ela se aplica tanto
aos que perecem finalmente como aos que são herdeiros da vida
eterna. Neste caso, teríamos de enfraquecer as grandes categorias
em termos dos quais a Escritura define a expiação e despojá-las de
sua mais preciosa importância e glória. E isto não podemos fazer.
A eficácia salvadora da expiação, propiciação, reconciliação e
redenção está demasiadamente embutida nestes conceitos, e não
nos atrevemos a eliminar esta eficácia. Fazemos bem em ponderar
sobre as palavras de nosso Senhor mesmo: “Porque eu desci do
céu não para fazer a minha própria vontade, e, sim, a vontade
daquele que me enviou. E a vontade de quem me enviou é esta:
Que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu
o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.38,39). A segurança é inerente
à realização redentora de Cristo. Isto significa que, com referência
às pessoas contempladas, o desígnio, a realização e o resultado
final têm todos a mesma extensão.
Esta verdade tem sido designada como a doutrina da expiação
limitada. Esta denominação pode ser ou não a melhor ou mais feliz.
Porém, não é o termo empregado que é importante; é o que ela
denota que é importante. É muito fácil prejudicar uma doutrina
identificando-a com um apelido que traz opróbrio e mal-entendido.
Seja qual for o mérito do nome, expiação limitada, devemos
encarar o fato de que se nós não queremos crer na restauração final
de todos os homens, teremos de aceitar uma expiação limitada. Se
nós universalizarmos a extensão, limitaremos a eficácia. Se alguns
daqueles por quem a expiação foi efetuada e a redenção efetivada
pudessem perecer eternamente, então a expiação não seria em si
mesma eficaz. Esta é a alternativa que os proponentes da expiação
universal têm de encarar. Eles têm uma expiação limitada, e
limitada no sentido de que impingem o seu caráter essencial. Não
* queremos nada disto. A doutrina da expiação limitada, a qual .
sustentamos, é a doutrina que limita a expiação àqueles que são
herdeiros da vida eterna, aos eleitos. Esta limitação garante a sua
eficácia e conserva o seu caráter essencial como uma redenção
eficiente e efetiva.
É com freqüência que se faz objeção no sentido de que esta
doutrina é inconsistente para com a livre e plena oferta de Cristo
no evangelho. Esta é uma grave incompreensão e distorção. A
verdade, indubitavelmente, é que unicamente sobre a base desta
doutrina podemos fazer uma livre e plena oferta de Cristo aos
homens perdidos. O que é oferecido aos homens no evangelho? *
Não é a possibilidade de salvação e nem simplesmente a oportu­
nidade de salvação. O que é oferecido é a salvação mesma. Para
sermos mais específicos, é o próprio Cristo em toda a glória de sua
pessoa e em toda a perfeição de sua obra consumada que é
oferecido. E ele é oferecido como aquele que fez expiação pelo
pecado e efetuou a redenção. Mas ele não poderia ser oferecido
nesta capacidade ou caráter se não tivesse assegurado a salvação
e consumado a redenção. Ele não poderia ser oferecido como
Salvador e como aquele que incorpora em si mesmo a salvação,
plena e livre, se ele tivesse simplesmente tomado a salvação de
todos os homens uma possibilidade ou tivesse meramente feito a
provisão para a salvação de todos. Esta é a mesma doutrina de que
Cristo obteve e assegurou a redenção e que reveste a livre oferta
do evangelho de riqueza e poder. É unicamente esta doutrina que
permite uma apresentação de Cristo que é digna da glória de sua
realização e de sua pessoa. É pelo fato de ter Cristo adquirido e
garantido a redenção que o faz um Salvador todo-suficiente e
oportuno. E como tal que ele é oferecido, e a fé que esta oferta
exige é a fé de uma consagração pessoal a ele dedicada, como
aquele que é a incorporação eterna da eficácia que provém da
obediência aperfeiçoada e da redenção adquirida.
Porém, é oportuno que o inquiridor faça a seguinte pergunta:
não há também uma evidência mais direta fornecida pela Escritura
para revelar a extensão definida ou limitada da expiação? De fato
existem muitos argumentos bíblicos. Limitar-nos-emos à exposi­
ção de dois, não porque existem apenas dois, mas porque estes são
exemplos da evidência que a Escritura mesma oferece para mostrar
a necessidade desta doutrina.
1. O primeiro é extraído de Rm 8.31-39. Não há dúvid
alguma de que neste texto há referências explícitas a respeito da
morte de Cristo — “Aquele que não poupou a seu próprio Filho,
antes, por todos nós o entregou” (v.32) e “É Cristo Jesus quem
morreu, ou, antes, quem ressuscitou” (v.34). Assim, qualquer
indicação dada nesta passagem a respeito da extensão seria perti­
nente à questão da extensão da expiação.
No v.31 Paulo faz a seguinte pergunta: “Que diremos, pois,
à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós?”
Somos compelidos a formular a pergunta: De quem Paulo está
falando? Em outras palavras, qual é a significação das expressões
por nós e contra nós? A resposta é que a significação não pode ser
outra senão aquela fornecida pelo contexto precedente, a saber, os
vv.28-30. Seria impossível universalizar a significação do v.31 se
queremos pensar biblicamente, e seria uma aberração exegética
interromper a continuidade do pensamento de Paulo e estender a
referência do v.31 além do escopo daqueles mencionados no v.30.
Portanto, isto significa que a indicação diante das palavras por nós
e contra nós, no v.31, é restrita, e restrita nos termos do v.30.
Ao continuarmos até ao v.32, descobrimos que Paulo usa
novamente a expressão por nós e acrescenta a palavra todos —
“Aquele que não poupou a seu próprio Filho, antes por todos nós
o entregou.” Aqui Paulo está falando expressamente daqueles em
cujo favor o Pai entregou o Filho. A questão é: qual é o alcance da
expressão por todos nós? Seria absurdo insistir que a presença da
palavra todos tem o efeito de universalizar o seu alcance. Este todos
não é mais abrangente do que nós. Paulo está dizendo que a ação
do Pai foi em favor de todos nós e a questão é simplesmente a
esfera do nós. A única resposta razoável a esta questão é que o nós,
no v. 32, é o mesmo nós no v.31. Seria fazer violência à regra mais
elementar de interpretação presumir que no v.32 Paulo ampliou o
alcance daqueles de quem está falando e incluiu muito mais do que
ele incluiu na asseveração do v.31. Na verdade, Paulo está prosse­
guindo na sua asseveração, dizendo que Deus não é somente por
nós, mas também nos dará graciosamente todas as coisas. E a
garantia desta verdade reside no fato de que o Pai deu o seu Filho
em nosso favor. A fim de evitar qualquer dúvida a respeito da
significação restrita das palavras por todos nós, no v.32, convém
lembrar que a doação de seu Filho é correlativa com a doação
graciosa de todas as boas dádivas. Não podemos estender a esfera
do sacrifício do Filho além da esfera de todas as demais dádivas
graciosas — cada pessoa a favor de quem o Pai entregou o Filho
toma-se o beneficiário de todas as demais dádivas da graça. Posto
resumidamente, aqueles que são contemplados no sacrifício de
Cristo são também os participantes das demais dádivas da graça
salvadora — “porventura não nos dará graciosamente com ele
todas as coisas?”
Ao continuarmos até ao v. 33, a esfera restritiva se toma
inquestionavelmente patente. Pois Paulo diz: “Quem intentará
acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica:
quem os condenará?” O pensamento se move estritamente dentro
cia órbita definida pela eleição e justificação, e a referência à
eleição e justificação volta aos vv. 28 a 30 onde a predestinação e
a justificação são coextensivas.
No v.34, Paulo refere uma vez mais à morte de Cristo. E ele
o faz de uma maneira que é significativa para o nosso interesse
atual em dois sentidos. O seu apelo à morte de Cristo é coordenado
com o fato de que é Deus quem justifica. E ele faz isto com o
propósito de defender os eleitos de Deus contra qualquer acusação
que possa ser assacada contra eles, e para apoiar o seu desafio:
“Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?” São os
eleitos e os justificados que Paulo tem em mente aqui em seu apelo
à morte de Cristo, e não há razão para fugir da significação
fornecida pela eleição e justificação quando queremos descobrir a
extensão da morte sacrificial de Cristo. O segundo aspecto no qual
a sua referência à morte de Cristo é significante é que ele apela
para a morte de Cristo no contexto do que se seguiu, a saber, a
ressurreição, a posição à mão direita de Deus e a intercessão em
nosso favor. Uma vez mais Paulo usa esta expressão por nós, e a
usa agora em conexão com a intercessão — “e também intercede
por nós”. Duas observações lançam luz diretamente sobre a nossa
questão. Primeira, a expressão por nós, neste caso, deve receber
uma significação restritiva que já descobrimos no v.31. É impos­
sível fazer uma universalização dela, não apenas em virtude do
alcance restrito do contexto inteiro, mas também em virtude da
própria natureza da intercessão como algo proveitoso e eficaz.
Segunda, em virtude da maneira pela qual a morte, ressurreição e
intercessão de Cristo são coordenadas nesta passagem, seria intei­
ramente arbitrária dar à morte de Cristo uma referência mais
abrangente do que é dado à sua intercessão. Quando Paulo diz aqui:
“É Cristo Jesus quem morreu”, certamente ele quer dizer que
“Cristo morreu por nós”, assim como no v.32 ele diz que o Pai “o
entregou por todos nós”. Não podemos dar um alcance mais amplo
ao por nós implícito na cláusula: “É Cristo Jesus quem morreu”
do que o “por nós” expressamente formulado na cláusula: “e
também intercede por nós”. Assim, enfrentamos suposições im­
possíveis quando tentamos universalizar a significação daqueles
mencionados nestes textos.
Finalmente, temos a mais convincente consideração de todas.
“Quem nos separará do amor de Cristo?......Porque eu estou bem
certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados,
nem coisas do presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura,
nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos
do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm
8.35-39). Paulo, aqui, está afirmando da maneira mais enfática,
numa das conclusões mais retóricas de suas epístolas, a segurança
daqueles de quem ele esteve se referindo até aqui. A garantia desta
segurança é o amor de Deus que está em Cristo Jesus. E o amor de
Deus que é mencionado aqui é sem dúvida alguma o amor de Deus
para com aqueles que estão incluídos nele. Ora, a inferência
inevitável é que este amor do qual é impossível ser separado e o
qual garante a felicidade daqueles que estão incluídos nele é o
mesmo amor que deve estar mencionado anteriormente no texto,
quando Paulo diz: “Aquele que não poupou a seu próprio Filho,
antes, por todos nós o entregou, porventura não nos dará graciosa­
mente com ele todas as coisas?” (v.32). Certamente que este é o
mesmo amor que no v. 39 é chamado “o amor de Deus que está
em Cristo Jesus nosso Senhor”, que compeliu o Pai a entregar o
seu próprio Filho. Isto significa que o amor implícito no v. 32, o
amor de dar o Filho, não pode receber uma referência mais ampla
do que o amor que, de acordo com os vv. 35-39, garante a
segurança eterna de todos aqueles que são o seu objeto. Se todos
os homens não desfrutam desta segurança, como pode aquele que
é a fonte desta segurança e a garantia de sua possessão incluir
aqueles que não desfrutam de tal segurança? Vemos, pois, que a
segurança da qual Paulo fala aqui é uma segurança restringida
àqueles que são os objetos do amor que foi exibido no madeiro
maldito do Calvário, e portanto o amor exibido no Calvário é, em
si mesmo, um amor que faz distinção e não um amor que é
indiscriminadamente universal. Éum amor que garante a seguran­
ça eterna daqueles que são os seus objetos, e o próprio Calvário é
o que lhes garante a retidão justificadora pela qual a vida eterna
reina. E esta é a mesma coisa que confessar que a expiação que o
Calvário consumou não é universal em si mesma.
2. O segundo argumento bíblico que podemos aduzir em
apoio à doutrina da expiação definida surge do fato de que aqueles
por quem Cristo morreu também eles mesmos morreram com
- Cristo. No Novo Testamento, a maneira mais comum de repre­
sentar a relação dos crentes com a morte de Cristo é dizer que Cristo
morreu por eles. Porém, existe também os elos do ensino acerca
dos que morreram com Cristo (cf. Rm 6.3-11; II Co 5.14,15; Ef
2.4-7; Cl 3.3). Não há nenhuma dúvida quanto à proposição de que
todos aqueles por quem Cristo morreu também morreram com
Cristo. Pois Paulo diz explicitamente: “um morreu por todos, logo
todos morreram” (II Co 5.14) — eis uma equação significativa.
A característica significativa deste ensino do apóstolo que
chama a nossa atenção no momento é, contudo, que todos os que
morreram com Cristo também ressuscitaram com ele. Isto também
Paulo afirma de forma explícita. “Ora, se já morremos com Cristo,
cremos que também com ele viveremos; sabedores de que havendo
Cristo ressuscitado dentre os mortos já não morre: a morte já não
tem domínio sobre ele” (Rm 6.8,9). Exatamente como Cristo
morreu e ressuscitou, assim todos os que morreram com ele
ressuscitaram com ele. E quando fazemos a pergunta, o que esta
ressurreição com Cristo envolve, Paulo não nos deixa com dúvidas
— é uma ressurreição para a novidade de vida. “Fomos, pois,
sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo
foi ressuscitado dentre os mortos para a glória do Pai, assim
também andemos nós em novidade de vida. Porque se fomos
unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente o seremos
também na semelhança da sua ressurreição” (Rm 6.4,5). “Pois o
amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por
todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os
que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que
por eles morreu e ressuscitou” (II Co 5.14,15). “Porque morrestes,
e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus” (Cl
3.3).
Temos, portanto, a seguinte seqüência de proposições, esta­
belecida pelas declarações explícitas do apóstolo. Todos por quem
Cristo morreu também morreram com Cristo. Todos os que mor­
reram com Cristo também ressuscitaram com Cristo. Esta ressur­
reição com Cristo é uma ressurreição para uma nova vida, à
semelhança da ressurreição de Cristo. Morrer com Cristo, pois, é
morrer para o pecado e ressuscitatar com ele para a vida de nova
obediência, não um viver para nós mesmos, mas para aquele que
morreu por nós e ressurgiu dos mortos. A inferência é inevitável:
aqueles por quem Cristo morreu são aqueles, e somente aqueles,
que morreram para o pecado e vivem para a justiça. Ora, é evidente
que nem todos morreram para o pecado e vivem em novidade de
vida. Daí, não podemos dizer que todos os homens morreram
distributivamente com Cristo. E nem podemos dizer que Cristo
morreu por todos os homens, pela simples razão de que todos
aqueles por quem Cristo morreu também morreram com Cristo. Se
não podemos afirmar que Cristo morreu por todos os homens, nem
podemos dizer que a expiação é universal — é a morte de Cristo
pelos homens que especificamente constitui a expiação. A conclu­
são é evidente — a morte de Cristo em seu caráter específico como
expiação foi por aqueles, e somente aqueles, que no devido tempo
são participantes daquela nova vida da qual a ressurreição de Cristo
é o modelo e a garantia. Esta é outra advertência de que a morte e
a ressurreição de Cristo são inseparáveis. Aqueles por quem Cristo
morreu são aqueles por quem ele ressuscitou, e a sua atividade
salvadora no céu é de igual extensão com as suas realizações
redentoras que se deram uma vez por todas.
Concluindo a nossa discussão sobre o alcance da expiação,
convém refletir sobre um ou dois textos que têm sido usados com
freqüência para confirmar a questão em favor de uma expiação
universal. Um destes é II Co 5.14,15. Por duas vezes neste texto
Paulo afirma que Cristo “morreu por todos”. Mas que esta expres­
são não deve ser entendida como distributivamente universal pode
ser demonstrado pelos termos do próprio texto, quando este é
interpretado à luz do ensino de Paulo. Mas já descobrimos que, de
acordo com o ensino de Paulo, todos por quem Cristo morreu
também morreram com Cristo. Ele afirma esta verdade de forma
enfática— “Um morreu por todos, logo todos morreram”. Porém,
em outro lugar ele mostra claramente que aqueles que morreram
com Cristo também ressuscitaram com ele (Rm 6.8). Apesar de
esta última verdade não ser tão explícita nesta passagem, contudo
é implícita nas palavras: “E ele (Cristo) morreu por todos, para que
os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele
que por eles morreu e ressuscitou”. Se presumíssemos que a
expressão aqueles que vivem é restritiva e não tem a mesma
extensão de todos por quem Cristo morreu, entraríamos em con­
flito com as afirmações explícitas de Paulo em Rm 6.5,8, de que
aqueles que foram plantados na semelhança de sua morte certa­
mente o serão também na semelhança de sua ressurreição, e que
aqueles que morreram com ele também viverão com ele. A analo­
gia do ensino de Paulo em Rm 6.4-8 deve ser aplicada a II Co
5.14,15. Daí, os referidos como “aqueles que vivem" devem ter a
mesma extensão daqueles incluídos na cláusula precedente — “ele
(Cristo) morreu por todos". E desde que “aqueles que vivem" não
incluem toda a raça humana, assim o todo na cláusula “ele morreu
por todos" não pode incluir toda a família humana. A corroboração
é derivada das últimas palavras do v. 15 — “mas para aquele que
por eles morreu e ressuscitou”. Aqui, mais uma vez a morte e a
ressurreição de Cristo são inseparáveis e a analogia do ensino de
Paulo, em textos semelhantes, conclui que aqueles que são os
beneficiários da morte de Cristo o são também da sua ressurreição,
e, portanto, da sua vida ressurreta. Assim, quando Paulo diz:
“aquele que por eles morreu e ressuscitou”, a implicação é que
aqueles por quem ele morreu são aqueles por quem ele ressuscitou,
e aqueles por quem ele ressuscitou são aqueles que vivem em
novidade de vida. Portanto, nos termos do ensino de Paulo, e,
especificamente, nos termos da importância deste texto, não pode­
mos interpretar o por todos de II Co 5.14,15 como distributiva­
mente universal. Em vez de apoiar a doutrina de uma expiação
universal, este texto faz exatamente o oposto.
Talvez nenhum texto da Escritura apresente um apoio mais
plausível em favor da doutrina da expiação universal do que I Jo
2.2. “E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro.” A
extensão da propiciação ao mundo inteiro parece não admitir outra
interpretação senão que a propiciação pelos pecados envolve os
pecados do mundo inteiro. Deve-se dizer ainda que a linguagem
que João emprega aqui combinaria perfeitamente com a doutrina
da expiação universal se o restante da Escritura demonstrasse que
ela é a doutrina bíblica. E deve-se afirmar também que esta
expressão por si mesma não ofereceria nenhuma prova de apoio à
doutrina da expiação limitada. Contudo, a questão é a seguinte:
este texto prova que a expiação é universal? Em outras palavras,
o caso é de tal forma que se nós oferecermos uma interpretação
compatível com a doutrina da expiação limitada estaremos violan­
do os cânones da interpretação? Visto que existem tantas razões
bíblicas para a doutrina de uma extensão limitada da expiação,
somos forçados a fazer esta pergunta, e quando procuramos res­
pondê-la, podemos encontrar várias razões que justificam a expres­
são de João, “pelos do mundo inteiro”, sem de modo algum
implicar que sua intenção era ensinar o que pretendem os propo­
nentes da expiação universal. Existe uma boa razão para justificar
a expressão do apóstolo, “pelos do mundo inteiro”, sem qualquer
implicação na expiação universal.
1. Era necessário que João demonstrasse a esfera da propicia
ção de Jesus — não era limitada em sua virtude e eficácia ao círculo
imediato dos discípulos que realmente viram, ouviram e tocaram
o Senhor durante os dias de sua peregrinação sobre a terra (cf. I Jo
1.1-3), nem ao círculo de crentes que estiveram diretamente sob a
influência do testemunho apostólico (cf. I Jo 1.3,4). A propiciação,
que é o próprio Jesus, se estende em sua virtude, eficácia e
propósito a todos em cada nação que, pelo testemunho apostólico,
entraram em comunhão com o Pai e com o Filho (cf. I Jo 1.5-7).
Neste sentido, cada nação e tribo e povo e língua é incluída na
propiciação. Foi muitíssimo necessário que João, à semelhança dos
demais escritores do Novo Testamento, e à semelhança do próprio
Senhor, enfatizasse o universalismo étnico do evangelho e, por­
tanto, a propiciação de Jesus como a mensagem central desse
evangelho. A fim de proclamar este universalismo da graça do
evangelho, era necessário que João acrescentasse: “e não somente
pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro”.
2. Era necessário que João enfatizasse a exclusividade de
Jesus como a propiciação. Esta propiciação é singular e a única
especifica para a remissão do pecado. No contexto, João estava
sublinhando a gravidade do pecado e a necessidade de evitar-se o
enlace da complacência com referência a ele. Neste sentido, po­
rém, foi imperativo que ele fizesse lembrar aos crentes que não há
outro purificador do pecado senão a propiciação de Jesus — não
há outro sacrifício pelo pecado. A totalidade da necessidade hu­
mana e a totalidade da graça divina não conhecem nenhuma outra
propiciação — ela é para o mundo todo.
3. Era necessário que João lembrasse os seus leitores da
perpetuidade da propiciação de Jesus. Esta é a propiciação que
permanece como tal ao longo de todos os tempos — a sua eficácia
nunca diminui e ela nunca perde nada de sua virtude. E ela não é
apenas eterna em sua eficácia, mas é a perpétua propiciação pelos
pecados dos crentes que sempre voltam e sempre prosseguem —
eles não apelam para outra propiciação pelos pecados que conti­
nuam a cometer e nem para outro Advogado junto ao Pai pelas
dívidas que seus contínuos pecados acumulam.
Daí, a esfera, a exclusividade e a perpetuidade da expiação
fornecem uma razão suficiente para João afirmar: “e não somente
pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro”. E nem
precisamos pressupor que João estivesse aqui enunciando uma
doutrina de propiciação que é destributivamente universal em sua
extensão. Se não há necessidade de descobrir uma doutrina de
expiação universal em I Jo 2.2, então este texto não estabelece a
expiação universal, e o sentido e propósito dele podem ser harmo­
nizados com aquilo que descobrimos ser a doutrina requerida por
outras considerações bíblicas.

É digno de nota que neste texto João fala de Jesus como a


propiciação — “e ele é a propiciação pelos nossos pecados”. É bem
provável que esta forma de declaração se refira à frase anterior
“Jesus Cristo, o Justo”, como aquele que não só fez propiciação,
uma vez por todas, por meio de seu sacrifício na cruz, mas também
como aquele que é a incorporação permanente da virtude propi­
ciatória emanando de sua consumação uma vez por todas, e
também como aquele que se oferece a todos os que confiam nele
como um propiciatório sempre disponível. Este tríplice aspecto
pelo qual a propiciação pode ser entendida é de uma significação
profunda para a consolação do povo de Deus, quando ele considera
que, acima de tudo mais, é a sujeição criada por seus pecados, a
saber, o desagrado de Deus. Cristo é o propiciatório permanente
para que eles possam aproximar-se em plena certeza de fé, sabendo
que a propiciação que Cristo ofereceu e o propiciatório que ele
sempre continua a ser constituem a garantia de que eles serão
salvos da ira que seus pecados merecem. Este complexo de idéias
nos cria dificuldade quando queremos colocar este texto na estru­
tura da propiciação universal. Existe aqui, como em tantas outras
instâncias, uma certa concatenação por meio da qual a eficácia que
flui da expiação é unida à própria expiação. E quando levamos em
conta o pensamento do versículo anterior, de que Jesus Cristo é o
nosso Advogado junto ao Pai, é preciso apreciar a advocatura que
Jesus apresenta e a propiciação que ele é como complementos. Em
virtude de Jesus ter feito propiciação e ser ele o propiciatório
permanente é que ele é o Advogado junto ao Pai. Se damos à
propiciação uma extensão além da de sua advocatura, injetamos
algo que dificilmente seria compatível com esta complementação.
Portanto, podemos prontamente ver que, embora os termos
universais são às vezes empregados em conexão com a expiação,
estes termos não podem ser manipulados para estabelecer a dou­
trina da expiação universal. Em certos casos, como já descobrimos,
pode-se demonstrar que um universalismo todo-inclusivo é excluí­
do pelas considerações do contexto imediato. Noutros casos exis­
tem razões adequadas por que os termos universais seriam usados
sem a implicação de uma extensão distributivamente universal. Por
isso, nenhum apoio conclusivo à doutrina da expiação universal
pode ser derivado de expressões universalistas. A questão deve ser
determinada com base em outras evidências. Temos procurado
apresentar tais evidências. É fácil para os proponentes da expiação
universal apelarem impensadamente para alguns poucos textos.
Mas este método não é digno do pesquisador sério da Escritura. É
preciso descobrirmos o que a redenção ou expiação realmente
significa. E quando examinamos a Escritura, descobrimos que a
glória da cruz de Cristo é inseparável da eficácia de sua realização.
Cristo nos redimiu para Deus por meio de seu sangue, ele deu a si
mesmo em resgate para que pudesse livrar-nos de toda iniqüidade.
A expiação é uma substituição eficaz.
Capítulo 5
Conclusão

Existe unicamente uma fonte pela qual podemos extrair um


conceito apropriado da obra expiatória de Cristo. E essa fonte é a
Bíblia. Existe unicamente uma norma pela qual nossas interpreta­
ções e formulações devem ser testadas. E essa norma é a Bíblia. A
tentação sempre nos espreita de perto a fim de provar se somos
fiéis a este único critério. Nenhuma tentação é mais sutil e plausível
do que a tendência para a formulação da expiação segundo a nossa
experiência humana, e assim fazer de nossa experiência a norma.
Ela nem sempre aparece em sua forma disfarçada. Mas é a mesma
tendência em que subjaz o intento de impor à obra de Cristo uma
interpretação que a aproxime ao máximo da experiência e realiza­
ção humanas, o intento de acomodar a nossa interpretação e
aplicação do sofrimento de nosso Senhor e de sua obediência até
à morte, conforme a medida, ou pelo menos conforme a analogia
de nossa experiência. Existem duas direções nas quais podemos
fazer isso. Podemos intensificar o significado de nossa experiência
e prática até à medida de nosso Senhor, ou podemos rebaixar o
significado da experiência e prática de nosso Senhor até à nossa
medida. O rumo e o resultado final são os mesmos. Agarramos o
significado da obra expiatória de Cristo e a esvaziamos de sua
unicidade e glória distintiva. Esta é uma iniqüidade das mais
abjetas. Que experiência humana pode reproduzir aquilo que so­
mente o Senhor da glória, o Filho encarnado de Deus, suportou e
consumou?
É verdade que levamos o castigo dos nossos pecados e que
podemos experimentar algo de sua amargura. Estamos sujeitos à
ira de Deus, e o remorso de uma culpa não perdoada pode refletir
a terrível severidade do desprazer divino. Os nossos pecados nos
* separaram de Deus, e podemos experimentar a vacuidade sombria
de viver sem Deus e sem esperança no mundo. Existe ainda mais
do que podemos experimentar da amargura do pecado e da morte.
Os que vivem em perdição terão de levar eternamente o inexorável
juízo devido aos seus pecados, sem alívio e sem trégua; terão de
sofrer eternamente a cobrança das exigências da justiça. Porém,
houve tão-somente um, e não há necessidade de outro, o qual
carregou as conseqüências plenárias do juízo divino sobre o peca­
do, e o carregou com o propósito de extirpá-lo. Os perdidos
sofrerão eternamente na satisfação da justiça. Porém, esta jamais
será satisfeita. Cristo satisfez a justiça. “Mas o Senhor fez cair sobre
ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53.6). Ele foi feito pecado e foi
feito maldição. Ele carregou as nossas iniqüidades. Ele carregou a
condenação do pecado, a qual não podia ser aliviada, e ele a
consumou. Este é o espetáculo que nos confronta no Getsêmani e
no Calvário. Esta é a explicação do Getsêmani com seu suor
sangrento e seu clamor agonizante: “Meu Pai, se possível passa de
mim este cálice” (Mt 26.39). E esta é a explicação daquele brado
misterioso que subiu da terra ao céu: “Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste?” Pereça a idéia de que “existe um Getsê­
mani escondido em todo amor”. E pereça a presunção que se atreve
a falar de nossos Getsêmanis e Calvários! Seria zombar do espe­
táculo mais solene de toda a história, um espetáculo sem paralelo,
único, jamais repetido e impossível de se repetir. Aproximar este
espetáculo da analogia de nossa experiência humana é revelar um
estado de insensibilidade espiritual e emocional diante do alfabeto
da cristandade. Aqui somos os espectadores de uma espantosa
maravilha cuja exaltação e glória a eternidade jamais apagará. É o
Senhor da glória, o Filho encarnado de Deus, o Deus-homem a
beber o cálice que o Pai Eterno lhe deu, o cálice de dor e de
indescritível agonia. Quase hesitamos em falar desta maneira.
Entretanto deve ser dito. É Deus em nossa natureza desamparada
de Deus. O clamor do madeiro maldito evidencia nada menos que
o abandono que é o salário do pecado. E foi este abandono
suportado vicariamente, porque ele carregou os nossos pecados em
seu próprio corpo no madeiro. Não existe qualquer analogia. Ele
mesmo carregou os nossos pecados e os do povo, e não houve
ninguém que o auxiliasse. Não existe reprodução ou paralelo na
experiência de arcanjos ou dos maiores santos. O mais frágil
paralelo esmagaria os homens mais santos e os mais poderosos do
exército angelical.
Quem dirá que o sofrimento vicário do inexorável juízo de
Deus sobre o pecado impede a iniciativa e o caráter do amor
eterno? É o espetáculo do Getsêmani e do Calvário, quando
devidamente interpretado, que nos revela as dimensões do amor
inefável. O Pai não poupou seu próprio Filho. Ele não poupou nada
que os decretos da inexorável retidão exigiram. E esta é a propen­
são secreta da aquiescência do Filho que ouvimos quando ele diz:
“Contudo, não se faça a minha vontade, e, sim, a tua” (Lc’22.42).
Mas, por quê? Para que o amor eterno e invencível pudesse
descobrir a plena realização de sua motivação e propósito na
redenção por preço e por poderf O espírito do Calvário é o amor
eterno; e a sua base, a justiça eterna. E o mesmo amor manifestado
no ministério da agonia do Getsêmani e do madeiro maldito do
Calvário que reveste o povo de Deus de segurança eterna. “Aquele
que não poupou a seu próprio Filho, antes por todos nós o entregou,
porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?”
(Rm 8.32). “Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribula­
ção, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo,
ou espada?” (Rm 8.35). “Porque eu estou bem certo de que nem
morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do
presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundi­
dade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de
Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rm 8.38,39). Esta
é a segurança que uma expiação perfeita garante, e é a perfeição
da expiação que o garante.
Segunda Parte
A Redenção Aplicada
Capítulo 1
A Ordem na Aplicação

A provisão que em sua providência Deus fez para a manuten­


ção dos homens e dos animais não é frugal e nem mesquinha. Ele
criou a terra com exuberância e as coisas boas a fim de satisfazer
as necessidades do homem e dos animais e os seus variados gostos
e apetites. O Salmo 104 é o cântico inspirado de exaltação e
admiração. “Todos esperam de ti que lhes dês de comer a seu
tempo... se abres a mão, eles se fartam de bens” (vv.27,28). “O
vinho que alegra o coração do homem, o azeite que lhe dá brilho
ao rosto e o pão que lhe sustém as forças” (v.15). E o salmista
exclama: “Que variedade, Senhor, nas tuas obras! todas com
sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas” (v.24).
A provisão que Deus fez para a salvação dos homens é ainda
mais surpreendentemente abundante. Pois esta provisão tem em
vista a multiplicidade das necessidades do homem e exibe a
abundância transbordante da bondade, sabedoria, graça e amor de
Deus. Esta superabundância aparece no eterno conselho de Deus
com referência à salvação; ela aparece na realização histórica da
redenção por meio da obra de Cristo, efetuada uma vez por todas;
e ela aparece contínua e progressivamente na aplicação da reden­
ção até que alcance a sua consumação na liberdade da glória dos
filhos de Deus.
Quando meditamos na aplicação da redenção, não devemos
considerá-la como um só ato, simples e indivisível. Ela se compõe
de uma série de atos e processos. Para mencionar alguns, temos a
vocação, a regeneração, a justificação, a adoção, a santificação e
a glorificação. Todas estas são distintas, e nenhuma delas pode ser
definida nos termos da outra. Cada uma tem o seu próprio signifi­
cado distinto, sua função e seu propósito na ação e na graça de
Deus.
Deus não é autor de confusão; ele é, sim, o autor da ordem.
Existem boas e conclusivas razões para concluir-se que as várias
ações na aplicação da redenção, algumas das quais já foram
mencionadas, tomam lugar dentro de uma certa seqüência, e esta
seqüência foi estabelecida pela determinação, sabedoria e graça de
Deus. É plenamente evidente a todos que seria impossível começar
com a glorificação, porquanto ela está no final do processo como
sua finalização e consumação, e é igualmente evidente que a
regeneração tem de preceder a santificação. E evidente que a
pessoa tem de nascer de novo antes de ser progressivamente
santificada. A regeneração é o ponto de partida da santidade, e a
santificação é o seu prosseguimento. Assim, não há necessidade
de conhecimento, além do rudimentar, destes vários termos a fim
de se perceber que não podemos desfazer a seqüência segundo as
nossas próprias conveniências. Porém, devemos examinar alguns
poucos textos da Escritura a fim de demonstrar que existe uma
seqüência ou ordem claramente implícita nos vários passos da
aplicação da redenção.
Em primeiro lugar, examinemos o texto tão conhecido de Jo
3.3-5. Nosso Senhor informou a Nicodemos que, a não ser que o
homem nasça de novo, ele não pode ver o reino de Deus, e quem
não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus.
Obviamente, ver e entrar no reino de Deus pertence à aplicação da
redenção, e nosso Senhor indica que sem o novo nascimento, a
regeneração, não existe possibilidade de alguém ver ou entrar no
reino de Deus. Segue-se, pois, que a regeneração é prioritária, e
v. que seria claramente impossível inverter a seqüência e dizer que o
homem é regenerado por meio de ver e entrar no reino de Deus.
Não, um homem entra no reino de Deus através da regeneração.
Como Jesus repete (Jo 3.6): “o que é nascido do Espírito é espírito”.
Podemos examinar também outro texto relacionado, I Jo 3.9:
"Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do pecado;
pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode
viver pecando, porque é nascido de Deus.” Sem dúvida alguma,
João está falando aqui da libertação do poder reinante do pecado.
Esta libertação é parte do processo de aplicação da redenção. Mas
o texto demonstra que a razão por que uma pessoa fica livre do
poder reinante do pecado é que ela é nascida de Deus, e a razão
para continuar nesta libertação do poder reinante e conducente do
pecado é que a divina semente permanece nela. Temos aqui,,
claramente, a ordem de causalidade e explicação. O novo nasci­
mento causa e explica o estado de libertação do domínio do pecado,
é é, portanto, anterior a esta libertação. O homem regenerado não
comete o pecado que é para morte (I Jo 5.16), e a razão está no fato
de que ele é nascido de Deus, e a divina semente está sempre nele,
guardando-o daquele grave e irreparável pecado.

Prosseguindo, examinemos Jo 1.12. Podemos focalizar a


nossa atenção nos dois assuntos tratados por este texto, a saber, a
recepção de Cristo e a concessão de autoridade para tomar-se filho
de Deus. Os dois pontos podem ser convenientemente designados
como fé e adoção. O texto afirma claramente que “a todos quantos
o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus”. A
concessão desta autoridade, a qual podemos, para o nosso presente
propósito, equacionar com a adoção, pressupõe a recepção de
Cristo, a saber, fé em seu nome. Isto equivale dizer que a adoção
pressupõe a fé e, portanto, a fé antecede a adoção. Temos a seguir
n seguinte seqüência: fé e adoção.
Finalmente, podemos passar os olhos no texto de Paulo, Ef
1.13: “Em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da
verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido,
fostes selados com o Santo Espírito da promessa.” O selar com o
Espírito Santo segue o ouvir e o crer na palavra da verdade.
Portanto, o ouvir e o crer antecedem na ordem, e não podem ser
invertidos para seguir o selar com o Espírito.
Estes poucos textos foram usados com o simples propósito
de demonstrar que existe uma ordem que deve ser mantida, e que
não pode ser invertida sem violar o importante plano destes textos.
Estes provam o fato da ordem e revelam que não é uma lógica vazia
para confirmar uma seqüência divina na aplicação da redenção. Há
uma lógica divina nesta questão, e a ordem que insistimos em
apresentar não pode ser mais ou menos o que a Escritura revela
como o arranjo divino.
Estes textos, porém, não nos ajudam muito a descobrir que
há ordem no arranjo em conexão com muitas das ações que são
incluídas na aplicação da redenção. Estabelecemos umas poucas
coisas, sem dúvida, mas somente umas poucas. Quando apresen­
tamos uma enumeração mais completa dos vários passos ou aspec­
tos — vocação, regeneração, conversão, fé, arrependimento,
justificação, adoção, santificação, perseverança, glorificação —,
percebemos que várias questões permanecem indeterminadas. O
que antecede a vocação ou a justificação? Será que a fé antecede
a justificação ou vice-versal Será que a regeneração vem antes da
vocação?
Existe uma passagem na Escritura que projeta uma forte luz
sobre esta questão. É Rm 8.30: “E aos que predestinou, a esses
também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e
aos que justificou, a esses também glorificou.'’ Temos aqui três
atos na aplicação da redenção — vocação, justificação e glorifica­
ção. Eles aparecem neste texto nessa ordem. E surge a pergunta:
esta seqüência pretendia estabelecer a ordem de aplicação e ocor­
rência? Ou a seqüência no texto é simplesmente uma conveniência,
e que Paulo poderia ter adotado outra ordem?
Como prefácio, uma coisa deve ser observada, ou seja, mes­
mo que a seqüência fosse diferente, a justificação antes e depois a
vocação, a idéia principal do texto não seria interrompida. A idéia
principal é a invariável combinação e seqüência destes atos divinos
e sua indissolúvel conexão com o propósito eterno de presciência
e predestinação de Deus. Temos aqui uma corrente de elos inque­
bráveis, começando com a presciência e terminando com a glori­
ficação.
Mas existem razões preponderantes para entender-se que a
ordem que Paulo segue no v.30 — vocação, justificação, glorifi­
cação — é a ordem de seqüência conforme o arranjo divino. Estas
razões não são difíceis de se encontrar. Há tanta insinuação de
ordem nesta passagem como um todo que não podemos senão
concluir que há uma ordem de seqüência lógica pretendida por toda
parte.
1. No v.28 há uma insinuação de ordem na expressão: cha­
mados segundo o seu propósito. Isto significa que o propósito
fornece o modelo ou plano, segundo o qual a vocação tem lugar.
Portanto, o propósito antecede a vocação, e, neste caso, sem
dúvida, eternamente antecedente. O propósito não é outro senão
aquele que é desenvolvido no v.29, consistindo da presciência e
da predestinação. Assim, temos uma clara indicação de ordem no
v.28.

2. Sucede o mesmo no v.29. Não é o nosso interesse no


momento expor o significado da expressão: “de antemão", e nem
a sua relação com o verbo predestinar. Tudo quanto é necessário
observar no momento é que há progressão de pensamento, de
presciência para predestinação. Mais uma vez temos uma indica-
ção de ordem que não nos permitirá inverter os elementos envol­
vidos.
3. Nos vv. 29 e 30 temos uma corrente de eventos que
encontra o seu começo na presciência e seu término na glorifica­
ção. É impossível inverter estes dois elementos. Não há somente
- antecedência e conseqüência, mas também um tipo particular de
tal ordem, a saber, a presciência como a fonte última e a glorifica­
ção como o fim último.
4. O mesmo se aplica à presciência e à predestinação em
relação aos três atos mencionados no v. 30. A presciência e a
predestinação antecedem a vocação, justificação e glorificação, e
antecedem eternamente a estas. Uma inversão é inconcebível.
5. Mesmo dentro dos atos mencionados no v. 30, atos que
entram na esfera da aplicação da redenção e que são, portanto,
temporais como distintos daqueles do eterno conselho de Deus
mencionados no v.29, somos forçados a descobrir uma ordem de
prioridade. A glorificação não poderia anteceder a vocação e a
justificação; ela deve ser posterior a ambas. Daí, o que quer que
possa ser verdade com referência à ordem de vocação e justificação
em relação uma à outra, a glorificação deve vir depois das duas.
Portanto, a única questão que permanece é: ou a vocação antecede
a justificação, ou se dá o inverso.
Teremos de concluir que, visto que há tantas indicações de
ordem pretendida nesta passagem, como um todo, a ordem que
Paulo segue em referência à vocação e justificação deve ser
pretendida como a ordem de arranjo e progressão lógicos. Seria
uma violação de todas as considerações relevantes raciocinar de
outro modo. Conseqüentemente, devemos inferir que Rm 8.30 nos
oferece um esboço amplo da ordem na aplicação da redenção, e
que esta ordem é: vocação, justificação, glorificação. Temos,
então, a resposta a uma pergunta que ainda não foi formulada, a
saber, que a vocação precede a justificação na ordem da aplicação
a redenção. E talvez não teríamos chegado a esta conclusão se
tivéssemos usado os nossos próprios raciocínios lógicos.
A próxima questão que devemos discutir é a relação entre fé
e justificação. Há diferença de opinião quanto a esta questão entre •
os teólogos ortodoxos; alguns asseveram que a justificação vem
antes, outros que vem depois. Deve-se entender que não estamos
lidando aqui com o eterno decreto de Deus de justificar. Este, sem
dúvida alguma, antecede a fé, e se nós a designássemos como
justificação eterna (abuso de termos), então ela seria antes da fé,
assim como o propósito de Deus sempre antecede cada fase da -
aplicação da redenção. Além do mais, se usarmos o termo justifi­
cação como sinônimo propriamente dito de reconciliação (como
pode ser em Rm 5.9), então tal justificação antecede a fé, assim
como a consumação da redenção é sempre anterior à aplicação
dela. Mas, no momento, não estamos lidando com o eterno decreto
de justificar nem com a base da justificação na obra que Cristo
realizou uma vez por todas, mas com a justificação real que entrou
na órbita da aplicação da redenção. Com referência a esta justifi­
cação, a Escritura sem dúvida alguma declara que somos justifica­
dos por fé, através da fé e na fé (Rm 1.17; 3.22,26,28, 30; 5.1; G1
2.26; 3.24; Fp 3.9). Parece impossível evitar a conclusão de que a
justificação é no evento da fé, ou mediante a instrumentalidade da
fé. Deus justifica os ímpios que crêem em Jesus, numa palavra, os
crentes. E isto simplesmente significa que a fé é pressuposta na
justificação, é a pré-condição da justificação, não porque somos
justificados com base na fé ou pela razão de que somos justificados
em virtude da fé, mas unicamente pela razão de que a fé é o
instrumento designado por Deus pelo qual ele dispensa esta graça.
Existe outra razão pela qual devemos crer que a fé antecede
a justificação. Já descobrimos que a vocação antecede a justifica­
ção. E a fé está conectada com a vocação. Ela não constitui a
vocação. Ela é a resposta inevitável de nosso coração e mente e
vontade ao chamado divino. Neste sentido, o chamado e a resposta
coincidem. Por esta razão, devemos esperar que assim como o
chamamento antecede a justificação, também a fé. Esta inferência
é confirmada pela declaração expressa de que somos justificados
pela fé.
Estamos agora em condições de apresentar o seguinte esboço,
um pouco ampliado, da ordem na aplicação da redenção — voca­
ção, fé, justificação, glorificação.
Se pensarmos nos termos bíblicos, não é difícil inserir mais
um passo. É o da regeneração. Esta, por sua vez, deve anteceder a
fé. Esta questão resolve muita controvérsia, mas não há necessida­
de de abordar todos os aspectos dela. Além do mais, não será
possível, neste capítulo, fornecer todas as evidências que estabe­
lecem a precedência da regeneração. Uma boa parte dessa evidên­
cia será apresentada mais tarde. O suficiente, no momento, é
lembrar que, como pecadores, estamos mortos em nossos delitos
e pecados. Fé é um ato que envolve a totalidade de nossa alma
numa confiança amorosa e auto-comprometimento. E disso somos
inteiramente incapazes até que sejamos vivificados pelo Espírito
Santo. Foi a respeito deste ponto que nosso Senhor testificou,
dizendo: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o
trouxer” (Jo 6.44,65). E, novamente, devemos lembrar “que se
alguém não nascer de novo não pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3).
Com certeza, ver o reino de Deus é um ato de fé, e, sendo assim,
tal fé é impossível sem a regeneração. Daí, a regeneração deve
anteceder a fé. Fundamentados sobre estes fatos, podemos afirmar
que a ordem é: regeneração, fé, justificação.
Mas a questão no tocante à ordem da vocação e regeneração
ainda não está resolvida. Será que a regeneração antecede a voca­
ção eficaz, ou é o inverso? Existem argumentos que poderiam ser
evocados em favor da antecedência da regeneração. Não haveria
grande problema em adotarmos a ordem: regeneração, vocação,
fé, justificação, glorificação. Há, porém, uma consideração impor-
tante (uma consideração que será desenvolvida mais tarde), a
saber, que no ensino da Escritura é a vocação que recebe uma
ênfase distinta e proeminente como um ato de Deus pelo qual os
pecadores são transportados das trevas para a luz e introduzidos
na comunhão de Cristo. Esta característica do ensino do Novo
Testamento gera a impressão distinta de que a posse real da
salvação tem o seu ponto de partida numa convocação eficaz da
parte de Deus, e esta convocação, que vem de Deus, leva em seu
âmago toda a eficácia operante pela qual ela se toma eficaz. É a
vocação e não a regeneração a que possui este caráter. Por isso,
muito mais pode ser dito em favor da prioridade da vocação.
Se temos os seguintes elementos, na seguinte ordem: voca­
ção, regeneração, fé, justificação e glorificação, então temos real­
mente resolvido tudo o que é de importância básica na questão. As
outras medidas podem ser facilmente tomadas e colocadas em seu
devido lugar. O arrependimento é irmão gêmeo da fé — não
podemos imaginar um sem o outro, e assim o arrependimento está
intimamente ligado à fé. Conversão é simplesmente outro nome
para arrependimento e fé associados, portanto está encerrada no
arrependimento e fé. A adoção, obviamente, segue a justificação
— é difícil imaginar alguém sendo adotado na família de Deus sem
antes ser aceito por Deus e feito herdeiro da vida eterna. A
santificação é um processo que começa, por assim dizer, na rege­
neração, encontra sua base na justificação, e deriva a sua graça
energizante da união com Cristo, a qual é produzida na vocação
eficaz. Sendo um processo contínuo, antes que um ato momentâ­
neo, como na vocação, regeneração, justificação e adoção, a san­
tificação deve ser colocada depois da adoção na seqüência da
aplicação. A perseverança é concomitante e complementar do
processo santificador e pode ser convenientemente inserida antes
ou depois da santificação.
Com todas estas considerações diante dos olhos, concluímos
que a seqüência na aplicação da redenção é a seguinte: vocação,
regeneração, fé e arrependimento, justificação, adoção, santifica­
ção, perseverança, glorificação. Quando esta ordem é cuidadosa­
mente avaliada, descobrimos que há uma lógica que demonstra e
traz à luz o princípio governante da salvação em todos os seus
aspectos, a graça de Deus em sua soberania e eficácia. A salvação
é do Senhor, tanto em sua aplicação como em sua concepção e
realização.
Capítulo 2
Vocação Eficaz
No capítulo anterior ficou expresso que existem boas razões
para se crer que a aplicação da redenção começa com a vocação
eficaz que se estende a pecadores que estão mortos em seus delitos
e pecados. Foi admitido que as considerações em favor da coloca­
ção da regeneração antes podem ser defendidas, e que não haveria
grave problema se tal fosse feito. As razões para colocar o chama­
mento de Deus em primeiro lugar se tomarão mais evidentes à
medida que se estabelecer o ensino bíblico sobre a vocação eficaz.
Podemos falar com propriedade de uma vocação que não é
eficaz em si mesma. Esta é, com freqüência, expressa como o
chamamento universal do evangelho. Os convites da graça no
evangelho, dirigidos a todos os homens sem distinção, são mui
verdadeiros, e devemos sustentar esta doutrina com todas as suas
implicações para a graça de Deus, por um lado, e a responsabili­
dade e privilégio para o homem, por outro lado. Não é apropriado
referir a esse convite universal como um chamamento universal.
É muitíssimo provável que este chamamento seja aquele mencio­
nado em Mt 22.14: “Porque muitos são chamados, mas poucos
escolhidos.” E existem diversos textos no Velho Testamento que
poderiam ser evocados para corroborarem esta conclusão.
Porém, é notável que os termos para vocação, no Novo
Testamento, quando usados especificamente com referência à
salvação, são quase uniformemente aplicados, não ao chamamento
universal do evangelho, mas ao chamamento que conduz os ho­
mens ao estado de salvação, e, portanto, eficaz. Quase não existe
um caso onde os termos são usados para designar o convite
indiscriminado da graça no evangelho de Cristo. Assim, o signifi­
cado quase uniforme é aquele estabelecido pelos textos bem co­
nhecidos como Rm 8.30: “E aos que predestinou, a esses também
chamou.” I Co 1.9: “Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à
comunhão de seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor.” II Pe 1.10:
“Por isso, irmãos, procurai, com diligência cada vez maior, con­
firmar a vossa vocação e eleição” (cf. Rm 1.6,7; I Co 1.26). Esta
é a razão por que geralmente falamos deste chamamento como
eficaz. Com escassa exceção, o uso neotestamentário das palavras
chamar, chamado, chamamento [ou vocação] significam nada
menos que o chamamento que é eficaz para a salvação.
O autor. Em conexão com o assunto deste capítulo, há
particularmente duas coisas a serem observadas.
1. Deus é o autor. “Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados
comunhão de seu Filho Jesus Cristo nosso Senhor” (I Co 1.9).
“Participa comigo dos sofrimentos, a favor do evangelho, segundo
o poder de Deus, que nos salvou e nos chamou com santa vocação”
(II Tm 1.8,9). Neste sentido, a vocação é um ato da graça e do
poder de Deus, assim como a regeneração, a justificação e a adoção
também o são. Não chamamos a nós mesmos, não nos separamos
a nós mesmos por volição soberana, e não somos regenerados,
justificados e adotados por nós mesmos. A vocação é um ato de
Deus, e tão-somente de Deus. Este fato deve fazer-nos agudamente
conscientes de quão dependentes somos da soberana graça de Deus
na aplicação da redenção. Se a vocação é o primeiro passo no ato
de nos tomarmos realmente participantes da salvação, o fato de
que Deus é o seu autor forçosamente nos lembra que a soberania
absoluta da obra de Deus no tocante à salvação não ficou suspensa
no ponto da aplicação, assim como não ficou interrompida no
ponto de seu desígnio e realização objetiva. Talvez não apreciemos
tal doutrina. Mas, se este é o caso, é em virtude da aversão que
nutrimos pela graça de Deus e o desejo de arrogar para nós mesmos
a prerrogativa que pertence a Deus. E sabemos donde surgiu tal
disposição.
2. Deus o Pai é o agente específico na vocação eficaz. Somo
demasiadamente propensos a negligenciar este aspecto do ensino
bíblico. Consideramos o Pai como a pessoa da trindade que plane­
jou a salvação e como o agente específico na eleição. E fazemos
bem quando o consideramos assim. Porém, falhamos em discernir
outras ênfases da Escritura e praticamos uma desonra contra o Pai
quando o consideramos um mero planejador da salvação e reden­
ção. O Pai não é afastado da realização daquilo que ele mesmo
designou em seu eterno conselho e consumou na morte de seu
Filho; ele entra na mais íntima relação com o seu povo na aplicação
da redenção como o ator específico e particular no início de tal
aplicação.
A evidência em apoio do acima exposto é copiosa e conclu­
siva. Quando Paulo diz: “E aos que predestinou, a esses também
chamou” (Rm 8.30), é óbvio que o autor da predestinação é o autor
da vocação. E no versículo anterior, o autor da predestinação é
distinguido da pessoa que é chamada “seu Filho” — “aos que de
antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes
a imagem de seu Filho”. Somente com referência ao Pai pode-se
dizer que predestinou para ser conforme a imagem de seu Filho
pela simples razão de que somente em respeito ao Pai o Filho é o
Filho. De forma semelhante, quando Paulo diz em I Co 1.9: “Fiel
é Deus, pelo qual fostes chamados à comunhão de seu Filho”, a
mesma inferência permanece, porque a pessoa que chama é distinta
da pessoa em cuja comunhão os chamados são introduzidos, e a
pessoa assim distinguida é a pessoa que tem para com o Pai a
relação de Filho. A pessoa aqui mencionada não pode ser nenhuma
outra senão a primeira pessoa da Deidade, como ocorre freqüen­
temente no Novo Testamento pelo nome pessoal Deus. Outros
textos são igualmente claros nesta conexão (vejam-se G11.15; Ef
1.17,18; II Tm 1.9). É oportuno nesta conexão lembrar I Jo 3.1:
“Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de
sermos chamados filhos de Deus.” É bem provável que a palavra
“chamados” signifique mais do que meramente “nomeados”, e se
refira à ação executiva de Deus o Pai pela qual somos chamados
para sermos filhos de Deus.
É Deus o Pai, específica e eminentemente, quem chama
eficazmente por meio de sua graça.

A natureza. Muitas vezes deixamos de apreciar o rico signi­


ficado dos termos bíblicos porque, em uso comum, as mesmas
palavras têm sofrido uma grande dose de desgaste. Isto é verdade
com respeito à palavra '“’chamar". Se percebemos a força desta
palavra, como usada nesta conexão, devemos, então, usar a palavra
“convocar". A ação pela qual Deus faz seu povo participante da
redenção é a da convocação. E sendo esta uma convocação de
Deus, então ela é uma convocação eficaz.
Ordinariamente, não associamos a palavra convocação com
a eficácia que é requisito para concordar com essa convocação.
Uma convocação emitida por um tribunal, por si mesma, não nos
autoriza a comparecer no tribunal. Ela nos dá uma ordem para
comparecermos, e exige que compareçamos, porém realmente não
nos traz ao tribunal. Fazer isto depende de nossa força de vontade.
Ou, possivelmente, depende da força aplicada pelos oficiais exe­
cutivos, caso sejamos apreendidos e obrigados a comparecer.
Dá-se completamente o contrário com a convocação de Deus. A
convocação é invertida com a eficácia pela qual somos libertados
da pretendida destinação — somos eficazmente introduzidos na
comunhão de Cristo. Existe algo que determina a vocação de Deus;
pelo seu poder e graça soberanos ela não pode deixar de se realizar.
Deus chama à existência as coisas que não existiam (cf. Rm 4.17).
Em harmonia com este fato está a verdade de sua imutabili­
dade. “Porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis” (Rm
11.29). Não há nada que solidifique mais fortemente o argumento
em favor desta característica da vocação do que o ensino de Rm
8.28-30, onde a vocação é determinada segundo o propósito de
Deus e encontra o seu lugar no centro daquela ininterrupta seqüên­
cia de eventos que tem o seu início na presciência divina e a sua
consumação na glorificação. É o mesmo que dizer que a vocação
eficaz garante a perseverança, porquanto ela está fundamentada na
imutabilidade do propósito e da graça de Deus.
Esta vocação é também sublime, santa e celestial (Fp 3.14; II
Tm 1.9; Hb 3.1). Ela é sublime, santa e celestial em sua origem e
em seu destino. Mas, provavelmente o caráter da vocação é o que
é especificamente enfatizado. A vida na qual o povo de Deus é
introduzido é algo que o separa da comunhão com este atual mundo
maligno e lhe transmite um caráter consoante com essa consagra­
ção. Se nos sentimos em casa estando no meio da impiedade,
concupiscência e impureza deste mundo, isto prova que não fomos
chamados eficazmente pela graça de Deus. Os chamados são
“chamados para serdes de Jesus Cristo” (Rm 1.6), chamados para
ser sua propriedade e possessão exclusiva, e, portanto, são “cha­
mados para serdes santos” (Rm 1.7). Os chamados devem exem­
plificar em sua conduta a vocação pela qual foram chamados com
o fim de não terem comunhão com as obras infrutíferas das trevas.
Temos aqui uma série de considerações que revelam as obrigações
que são intrínsecas da vocação de Deus. A soberania e eficácia da
vocação não anulam a responsabilidade humana, antes fundamenta
e confirma essa responsabilidade. A magnitude da graça enaltece
a obrigação. Esta é a razão da exortação de Paulo: “Rogo-vos, pois,
eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno da vocação
a que fostes chamados” (Ef 4.1).
O modelo. Quando fazemos algo com inteligência e sabedo­
ria, nós o fazemos com desígnio e segundo um plano. Construímos
uma casa de acordo com a planta arquitetural. Fazemos um temo
segundo o modelo. Quão preeminentemente verdadeiro em se
referindo a Deus! Com Deus, a execução é o perfeito cumprimento
de um plano preestabelecido. E este plano é “conforme a sua
própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus
antes dos tempos eternos” (II Tm 1.9; cf. Rm 8.28). As seguintes
características deste plano precisam ser observadas.
1.Eo plano de propósito determinado. Quando Deus chama
homens e mulheres, não é uma decisão impensada, arbitrária ou
repentina. O pensamento de Deus esteve ocupado com este evento
desde os tempos eternos. Por isso, o momento e todas as circuns­
tâncias são predeterminados por seu próprio conselho e vontade.
2. E eterno. Temos meditado suficientemente sobre a mara­
vilha que o pensamento, o interesse e o propósito de Deus foram
ocupados desde a eternidade com a graça que verdadeiramente é
outorgada no tempo? Não podemos pensar em termos de eternida­
de; não temos um pensamento eterno. Somente o pensamento de
Deus tem este atributo, porquanto só ele é etemo. Quando tentamos
pensar em termos de eternidade, descobrimos os limites de nosso
entendimento e lembramos que a eternidade está fora de nossa
compreensão. Porém, devemos pensar em termos de eternidade, e
ponderar sobre ela de tal forma, que quanto mais nos conscienti-
zamos dos limites de nosso entendimento, mais enaltecida se toma
a nossa apreciação da maravilha do etemo propósito e graça de
Deus.
3. O plano foi delineado em Cristo. “Conforme a sua própria
determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus” (II Tm
1.9). Sob um título anterior, foi enfatizada a verdade de que Deus
o Pai, a propósito de sua eminência, é o agente na vocação eficaz.
Não devemos conjecturar que o Pai foi afastado do povo de Deus
na aplicação da redenção — ele é o agente específico em seu início.
Contudo, devemos lembrar também que o chamamento nunca é à
parte de Cristo. Nada chama a nossa atenção mais claramente do
que o fato de que o conselho do Pai a respeito da vocação, desde
os tempos eternos, foi concebido e delineado em Cristo. O povo
de Deus não é contemplado, mesmo no propósito da graça, fora de
Cristo (cf. Rm 8.29; Ef 1.4). Temos aqui um índice da perfeita
harmonia e união das pessoas da Deidade naquelas operações que
são compreendidas na economia da salvação. E a harmonia que
volta à fonte da salvação.
A prioridade. Como já foi dito, nenhum problema grave
conseqüência teológica ou exegética iria acontecer se a i |
ção fosse considerada como logicamente anterior à voca
tudo, existem razões para se crer que a vocação é o pnmèife^asso
na aplicação da redenção. q
1. A vocação é representada na E^i^^c& tíí^aquele ato de
Deus pelo qual somos verdadeiramerm^mtlos a Cristo (cf. I Co
1.9). Certamente que a uni Qn£íõ e aquela que nos une à
operação interior da graça dfe^DeuSr-Á regeneração é o início da
K
operação interior (k ça- s ífica.
2. A vocaçà^(é\mnt^ato soberano do Deus único, .
devemos de^ní-laNètíi termos de resposta que é arrancada do
e não
coração, e da vontade da pessoa chamada. Quando este
fato é^tónsid^Pado, é mais razoável analisar a regeneração como
>e operado interiormente pela graça de Deus a fim de
ta] nos a dar a necessária e apropriada resposta à vocação
) s. Neste caso, o novo nascimento seguiria o chamamento e
antec: ^ ria a res, i de nossí p __ : j ____ o ________
chamamento e a resposta por parte da pessoa chamada.
3. Não significa de forma alguma que Paulo, em Rm 8.28-30,
estabelece o esboço da seqüência seguida na aplicação da redenção
que iniciaria aquela enumeração com um ato de Deus que não fosse
outro senão o primeiro na ordem. Em outras palavras, é mais
provável que ele iniciaria com o primeiro e terminaria com o
último. Este raciocínio é fortalecido pela consideração de que ele
traça a salvação até à sua fonte última na eleição de Deus. Certa­
mente que ele traça a aplicação da redenção ao seu início quando
ele diz: “E aos que predestinou, a esses também chamou.” Portan­
to, o chamamento seria o ato inicial da aplicação.
4. Todos os aspectos na aplicação da redenção encontram
sua explicação no propósito eterno da graça de Deus — todos estão
em plena harmonia com o propósito eterno de Deus. Porém, no
Novo Testamento, ênfase particular é dada ao fato de que a
vocação está em concordância com este propósito eterno (cf. Rm
8.28-30; II Tm 1.9). É oportuno inferir que esta ênfase aparece pela
razão específica de que a dependência de todo o processo da
aplicação está no propósito eterno, e este não poderia ser demons­
trado mais claramente pelo fato de que o ato inicial da aplicação
procede do propósito eterno da graça.
Por razões como estas há uma boa justificativa para se con­
cluir que a aplicação da redenção inicia-se com a convocação
soberana e eficaz, pela qual o povo de Deus é introduzido na
comunhão de Cristo e na união com ele para que eles possam ser
participantes de toda a graça e virtude que residem nele como
Redentor, Salvador e Senhor.
Capítulo 3
Regeneração
Descobrimos que a aplicação da redenção inicia-se com a
vocação eficaz por meio da qual Deus o Pai introduz os homens
na comunhão de seu Filho. Contudo, uma vocação eficaz deve
levar consigo a resposta apropriada por parte da pessoa chamada.
E Deus quem chama, porém não é Deus quem responde ao
chamado, e, sim, a pessoa a quem o chamado é dirigido. E esta
resposta deve incluir o exercício do coração, da mente e da vontade
da pessoa envolvida. É neste ponto que somos compelidos a
formular a pergunta: como pode uma pessoa que está morta em
delitos e pecados, cuja mente está inimizada contra Deus, e que
não pode fazer o que quer que seja para agradar a Deus, atender
ao chamado para a comunhão de Cristo? A comunhão nunca pode
ser unilateral; ela é sempre recíproca. Por isso, a comunhão de
Cristo deve envolver a aceitação de Cristo em fé e amor. E como
pode uma pessoa cujo coração é depravado e cuja mente é inimiga
de Deus aceitar aquele que é a suprema manifestação da glória de
Deus? A resposta a esta pergunta é que a resposta crente e amável
que o chamado exige é uma impossibilidade moral e espiritual por
parte daquele que está morto em delitos e pecados. “Os que estão
na carne não podem agradar a Deus” (Rm 8.8). E quanto a esta
impossibilidade, nosso Salvador mesmo se expressou de forma
inequívoca quando disse: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que
me enviou não o trouxer”; “Ninguém poderá vir a mim, se pelo
Pai não lhe for concedido” (Jo 6.44,65). O fato é que existe uma
completa incongruência entre a glória e a virtude às quais os
pecadores são chamados, por um lado, e a condição moral e
espiritual dos chamados, por outro. Como pode esta incongruência
ser resolvida e a impossibilidade vencida?
É a glória do evangelho da graça de Deus que toma providên­
cia para eliminar esta incongruência. A vocação de Deus, visto ser
eficaz, leva consigo a graça operante pela qual a pessoa chamada
é capacitada a responder ao chamado e a aceitar a Jesus Cristo
como ele é oferecido gratuitamente no evangelho. A graça de Deus
alcança as necessidades mais profundas de nossas necessidades e
satisfaz todas as exigências da impossibilidade moral e espiritual
que é inerente à nossa depravação e incapacidade. E esta graça é a
graça da regeneração. Quando levamos em consideração a graça e
o poder recriadores de Deus é que a contradição entre a vocação
de Deus e a condição pecaminosa daquele que é chamado são
resolvidas. “Dar-vos-ei coração novo, e porei dentro em vós espí­
rito novo” (Ez 36.26). Deus efetua uma mudança que é radical e
toda-difusa, uma mudança que não pode ser explicada em termos
de qualquer combinação, permuta ou acúmulo de recursos huma­
nos, uma mudança que nada é senão uma nova criação por meio
daquele que chama à existência as coisas que não existiam, que
falou e tudo se fez, que ordenou e tudo se estabeleceu. Esta é, numa
palavra, a regeneração.
Não há na Escritura uma passagem mais relevante do que as
palavras que nosso Senhor dirigiu a Nicodemos. São palavras
familiares, porém quão freqüentemente os seus mais cristalinos
significados são ignorados ou distorcidos. O modo da regeneração
é realmente um mistério, e a isto Jesus se refere nesta passagem
quando diz: “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não
sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido
do Espírito” (Jo 3.8). Porém, existem lições claras no tocante à
j necessidade e ao caráter do novo nascimento que jazem na super­
fície do ensino de Jesus, aqui.
Quando nosso Senhor diz que o nascimento supernatural aqui
expresso é indispensável ao ato de ver e entrar no reino de Deus,
certamente que este ver significa o discernimento espiritual que
Paulo menciona em I Co 2.14, e que este entrar em se refere àquilo
por meio do quê nos tomamos membros reais do reino de Deus e,
portanto, participantes das bênçãos que a membresia vincula.
Podemos focalizar a nossa atenção sobre o v. 5: “Quem não nascer
da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus.”
Uma considerável diferença de opinião se transformou na
pergunta: o que Jesus quis dizer por água neste texto? Alguns
pensam que Jesus se referiu ao batismo cristão como o banho da
regeneração, e aqueles que crêem na regeneração batismal costu­
mam apelar para este texto em apoio dessa doutrina.
De início, dever-se-ia notar que Jesus não fala de batismo; ele
fala de água. Não devemos concluir que ele está falando de batismo
a menos que haja alguma razão que nos leve à conclusão que, ao
usar a palavra água, ele estava se referindo à água do batismo.
Porém, não há neste texto nenhuma necessidade para considerar-se
a palavra água como se referindo ao rito do batismo, e há boas
razões para pensar-se que ela tem uma outra importância e refe­
rência. Devemos ter em vista a situação na qual Jesus pronunciou
estas palavras. Ele estava empenhado num diálogo com Nicode­
mos sobre uma questão intensamente religiosa. Segundo os termos
desta conversa, não há nada mais razoável e natural do que
pressupor que Jesus quis transmitir a Nicodemos uma idéia de
importância religiosa que seria diretamente relevante para o assun­
to em pauta. Ora, qual seria a idéia religiosa transmitida à mente
de Nicodemos pelo uso da palavra água? Naturalmente, a idéia
associada com o uso religioso de água naquela tradição e prática
religiosas que forneceu o próprio contexto da vida e profissão de
Nicodemos. É bom lembrarmos da importância religiosa da água
no Velho Testamento, nos ritos do judaísmo e na prática contem­
porânea. Ao dizermos isto, só há uma resposta. O uso religioso de
água, ou seja, o significado religiosamente simbólico de água,
apontava para uma só direção, e esta direção é a purificação. Todas
as considerações relevantes concorreriam para comunicar essa
mensagem a Nicodemos. E essa mensagem focalizaria em sua
mente uma idéia central, a necessidade indispensável de purifica­
ção para a entrada no reino de Deus.
Era característica do ensino de Jesus pôr o seu dedo direta­
mente no pecado e necessidade característicos daqueles com quem
ele tratava. O pecado característico dos fariseus era a auto-presun-
ção e a auto-justiça. O de que eles precisavam era de se convencer
de sua própria corrupção e da necessidade de uma purificação
radical. Esta é a lição que a expressão, “nascido da água”, teria
comunicado de forma eficaz. A entrada no reino de Deus poderia
ser assegurada somente através da purificação da imundícia do
pecado. A água da purificação é como se fosse o ventre materno,
do qual deve emergir aquela nova vida que dá entrada e prepara
para a membresia de Deus. Este é o aspecto purificador da rege­
neração. Esta deve repudiar o passado bem como reestruturar para
o futuro. Ela deve purificar do pecado bem como recriar em justiça.
Não pode haver dúvida de que a expressão: “nascido do
Espírito" se refere ao nascimento do Espírito Santo (cf. v.8 e Jo
1.13; I Jo 2.29; 3.9; 4.7; 5.1,4,18). Portanto, este nascimento é de
um caráter divino e supernatural. E é assim em virtude de o Espírito
Santo ser a fonte e o agente dele.
Precisa-se observar especialmente o que está implícito nesta
expressão familiar, “nascido do Espírito". Não é plenamente certo
se o significado exato da palavra traduzida “nascido” é aquele do
gerar ou dar à luz. Segundo o seu uso no Novo Testamento, poderia
ser ambos. Se for o primeiro, então a idéia é exemplificada na ação
do pai na procriação humana — o homem gera. Se for o último,
então a idéia é exemplificada na ação da mãe — a mulher dá à luz,
a criança é nascida da mãe. Não podemos ter certeza qual destes
significados é mais preciso e está em vista aqui. Porém, não há
nenhuma diferença essencial à verdade expressa. Seja gerado do
Espírito ou nascido do Espírito, uma coisa é certa — somos
instruídos por nosso Senhor de que a entrada no reino de Deus
depende inteiramente da ação do Espírito Santo, uma ação que é
comparada àquela por parte de nossos pais pela qual nascemos
neste mundo. Somos tão dependentes do Espírito Santo quanto o
somos da ação de nossos pais em conexão com o nosso nascimento
natural. Não fomos gerados por nosso pai porque assim decidimos. -
E não nascemos de nossa mãe porque assim decidimos. Fomos
simplesmente gerados e nascemos. O nosso nascimento não foi um
ato de nossa livre vontade. Esta verdade aqui ensinada por nosso
Senhor é tão simples, porém freqüentemente tão negligenciada.
Não temos percepção espiritual do reino de Deus e nem entramos
nele porque foi da nossa vontade ou da nossa escolha. Se este
privilégio é nosso, é pelo simples fato de que foi da vontade do
Espírito Santo, e aqui tudo repousa sobre a decisão e ação do
Espírito Santo. Ele gera ou dá à luz quando e onde lhe apraz. Não
é esta a ênfase do v. 8? Jesus, nesta referência, compara a ação do
Espírito à ação do vento. O vento sopra — isto serve para ilustrar
a realidade, a certeza, a eficácia da ação do Espírito. O vento sopra
onde quer — isto põe em relevo a soberania da ação do Espírito.
Assim como o vento não atende ao nosso aceno e chamado, assim
também a operação regeneradora do Espírito. “Não sabes donde
vem, nem para onde vai” — a obra do Espírito é misteriosa. Tudo
isto realça a soberania, eficácia e inescrutabilidade da obra do
Espírito Santo na regeneração.
E o Espírito Santo quem efetua esta mudança. Ele a efetua
em virtude de ser ele a fonte dela. Ele a efetua pelo exemplo da
geração. E visto que a efetua desta maneira, ele é o seu único autor
e agente ativo.

Tem-se afirmado várias vezes que somos passivos na regene­


ração. Esta é uma declaração apropriada e verdadeira, mas é
simplesmente precipitar o que nosso Senhor nos ensinou aqui.
Talvez não gostemos da idéia. Podemos recuar dela. Talvez ela
não caiba em nosso modo de pensar, ou não esteja de acordo com
as expressões populares que são os chavões de nosso evangelismo
moderno. Porém, se recuarmos diante dela, convém lembrar que
este recuo é um ato contra Cristo. E qual será a nossa resposta
quando comparecermos diante dele, cuja verdade foi rejeitada e
cujo evangelho foi adulterado? Porém, bendito seja Deus porque
o evangelho de Cristo é uma regeneração irresistível, soberana e
eficaz. Se não fosse o caso de na regeneração sermos passivos, os
objetos de uma ação da qual unicamente Deus é o agente, não
existiria nenhum evangelho. Pois, a não ser que Deus, pela graça
operante e soberana, transforme a nossa inimizade em amor, e a
nossa incredulidade em fé, jamais daremos uma resposta de fé e
amor.
João 3.5 revela os dois aspectos dos quais o novo nascimento
deve ser apreciado — ele expurga a imundícia dos nossos corações
e cria uma nova vida. Os dois elementos deste texto — “nascido
da água" e “nascido do Espírito" — correspondem aos dois
elementos do Velho Testamento: “Então aspergirei água pura
sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e
de todos os vossos ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei coração novo,
e porei dentro em vós espírito novo; tirarei de vós o coração de
pedra e vos darei coração de carne” (Ez 36.25,26). Podemos
considerar esta passagem, com toda propriedade, como o paralelo
veterotestamentário de Jo 3.5, e não há nenhuma razão e nem
justificativa para impor qualquer outra interpretação sobre: “nas­
cido da água” além daquela de Ez 36.25: “Então aspergirei água
pura sobre vós, e ficareis purificados.” Estes elementos, o purifi­
cador e o renovador, não devem ser considerados como eventos
separáveis. Eles são simplesmente os aspectos constitutivos desta
mudança total por meio da qual os chamados por Deus são trans­
feridos da morte para a vida e do reino de Satanás para o reino de
Deus, uma mudança que satisfaz todas as exigências da nossa
condição anterior e as exigências da nova vida em Cristo, uma
mudança que remove a contradição do pecado e adequa para a
comunhão do Filho de Deus.
Foi o apóstolo João quem registrou para nós este discurso
dirigido a Nicodemos. João aprendera bem a lição, especialmente
a lição de que a regeneração é um ato de Deus, e unicamente de
Deus, ou seja, que os homens são nascidos de novo, não “'do
sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas
de Deus" (Jo 1.13). Ele gravou indelevelmente este ensino também
na sua primeira epístola. Uma referência explícita à regeneração
aparece várias vezes naquela epístola (I Jo 2.29; 3.9; 4.7; 5.1,4,18).
A ênfase principal nestes textos repousa sobre o fato de que existe
uma concomitância invariável ou coordenação da regeneração e
outros frutos da graça. Em 2.29, é a concomitância ^simultanei­
dade) da geração divina e a prática da justiça; em 3.9, por um lado,
é geração divina, e, por outro, o não cometer pecado e a incapaci­
dade de pecar; em 4.7, é a geração divina e o amor; em 5.1, a
geração divina e o crer que Jesus é o Cristo; em 5.4, é a geração
divina e a vitória sobre o mundo; em 5.18, é a geração divina e o
não pecar e não ser tocado pelo maligno. Como veremos mais
adiante, esta ênfase é muito significtiva e nos adverte contra
qualquer conceito de regeneração que a afaste dos outros elemen­
tos da aplicação da redenção.
Na maioria destas passagens, tudo o que e expressamente
declarado é a verdade da concomitância da regeneração e estas
outras bênçãos da graça. Porém, em 3.9 somos expressamente
informados de algo mais, ou seja, a relação que a regeneração
mantem com as outras graças particulares mencionadas neste
texto: “Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do
pecado, pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse
não pode viver pecando, porque é nascido de Deus.” Não só é
declarado que a pessoa nascida de novo não peca, mas ainda somos
informados da razão por que ela não peca. Ela não peca porque a
semente de Deus permanece nela. Ora, esta semente permanente
se refere claramente à comunicação divina que ocorre na geração
divina. Esta geração divina, com a sua conseqüência permanente,
é a causa do não pecar. Assim, a regeneração é lógica e causativa-
mente anterior ao não pecar. E, outra vez, João nos informa que o
nascido de novo “não pode viver pecando, porque é nascido
[=gerado] de Deus”, uma expressa declaração de que a regeneração
é a causa por que essa pessoa não pode pecar. Assim, a razão por
que uma pessoa não pode pecar é porque ela está regenerada — a
ordem não pode ser invertida. Portanto, neste versículo somos
informados de que a regeneração é a fonte e a explicação do
rompimento com o pecado que é o característico de toda pessoa
regenerada.
Assim, em I Jo 3.9 descobrimos um princípio que deve ser
aplicado aos outros textos citados nesta epístola, mesmo que o
princípio não esteja expressamente mencionado nestes outros tex­
tos. A inferência é confirmada quando comparamos 3.9 com 5.18.
Transcrevemos a última. “Sabemos que todo aquele que é nascido
de Deus não vive em pecado; antes, Aquele que nasceu de Deus o
guarda, e o maligno não lhe toca.” A idéia aqui é muito semelhante
àquela que está em 3.9. De fato, em parte é idêntica, com uma
pequena variação de termos. Se o que temos observado como a
verdade em 3.9 se aplica ao que está ensinado em 3.9, então o
mesmo deve aplicar-se ao que está ensinado em 5.18. E isto
significa que a razão por que uma pessoa não peca é porque ela é
nascida de Deus, e a razão por que o maligno não lhe toca é porque
ela é nascida de Deus. A regeneração é a explicação lógica e causal
da abstenção do pecado e da isenção do toque do maligno.
No momento não é nosso propósito determinar o significado
preciso desta abstenção do pecado, desta incapacidade de pecar e
desta imunidade contra a invasão do maligno. Todo o nosso
interesse no momento se limita ao estabelecimento da relação que
a regeneração mantém com estes característicos da pessoa regene­
rada.
Portanto, somos forçados a concluir, sobre a base de 3.9 e
5.18, que a relação estabelecida nestes dois textos se aplica também
aos demais. Em 2.29, devemos inferir que a razão que explica a
prática da justiça é porque a pessoa é nascida de Deus. E seme­
lhantemente nos demais. Em 4.7, a regeneração deve ser conside­
rada como a causa do amor; em 5.1, a causa da fé em que Jesus é
o Cristo; em 5.4, a causa da vitória sobre o mundo. Temos,
portanto, todo um catálogo de virtudes — fé em que Jesus é o
Cristo, vitória sobre o muíido, abstenção do pecado, domínio
próprio, incapacidade de pecar, isenção do toque do maligno, a
prática da justiça, amor a Deus e ao próximo. E estes são todos
frutos da regeneração. Devemos observar quão abrangente e rep­
resentativo é este catálogo. Ele cobre uma ampla extensão da
virtude exigida pela vocação sublime de Deus em Cristo Jesus. Na
ordem em que as virtudes foram acima enumeradas, Bengel, em
outra conexão, disse: a fé dirige a orquestra e o amor vem na
retaguarda.
Deve-se notar especialmente que mesmo a fé em que Jesus é
o Cristo é produto da regeneração. Naturalmente que esta é uma
implicação clara de Jo 3.3-8. Mas, aqui, João, o apóstolo, se esforça
por esclarecer este fato. A regeneração é o princípio de toda a graça
salvífica em nós, e toda a graça salvífica em exercício, de nossa
parte, procede da fonte da regeneração. Não nascemos de novo
pela fé ou pelo arrependimento ou pela conversão; nós arrepende­
mo-nos e cremos porque fomos regenerados. Ninguém pode afir­
mar genuinamente que Jesus é o Cristo senão pela regeneração do
Espírito, que é um dos meios pelos quais o Espírito Santo glorifica
a Cristo. Seguir a Cristo pela fé é a primeira evidência da regene­
ração, e somente assim podemos saber que fomos regenerados.
A prioridade da regeneração pode dar a impressão de que uma
pessoa poderia ser regenerada e ao mesmo tempo não convertida.
Os textos em I João devem corrigir qualquer mal-entendido.
Precisamos lembrar novamente de que a ênfase principal nestes
textos é a concomitância invariável da regeneração e as demais
graças mencionadas. “Todo aquele que é nascido de Deus não vive
na prática do pecado; pois o que permanece nele é a divina
semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de
Deus” (3.9). “Porque tudo o que é nascido de Deus vence o mundo;
e esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé” (5.4). “Sabemos
que todo aquele que é nascido de Deus não vive em pecado; antes,
Aquele que nasceu de Deus o guarda, e o maligno não lhe toca”
(5.8). Quando reunimos estes textos, eles declaram expressamente
que toda pessoa regenerada foi libertada do poder do pecado, vence
o mundo pela fé em Cristo e exerce o domínio próprio, por meio
do quê ela não é mais escrava do pecado e do maligno. Quando
reduzido a seus termos mais simples, significa que a pessoa
regenerada é convertida e exerce fé e arrependimento. Não deve­
mos considerar a regeneração como algo que pode ser separado
dos exercícios salvíficos que são os seus efeitos. Assim, teremos
de concluir que nas demais passagens (2.29; 4.7; 5.1) os frutos
mencionados — prática da justiça, o amor e o conhecimento de
Deus, crer que Jesus é o Cristo — são tão necessariamente os
acompanhantes da regeneração como aqueles mencionados em
3.9; 5.4,18. Isto simplesmente significa que todas as graças men­
cionadas nestas passagens são as conseqüências da regeneração, e
não apenas as conseqüências que mais cedo ou mais tarde seguem
a regeneração, mas os frutos que são inseparáveis da regeneração.
Portanto, somos advertidos e aconselhados de que embora a rege­
neração é a ação de Deus, e unicamente de Deus, jamais devemos
conceber esta ação como algo separável das atividades da graça
salvadora, de nossa parte, que são os efeitos necessários e apro­
priados da graça de Deus em nós. O apóstolo João aprendera de
seu Senhor, e o que ele ensina nesta epístola é, em outros termos,
exatamente o que Jesus ensinou em seu discurso a Nicodemos. Se
é verdade que ninguém pode entrar no reino de Deus senão por
meio da regeneração (Jo 3.3,5), é igualmente verdade que todos os
que nascem de novo entram no reino de Deus. Se a regeneração é
a porta de entrada, então os regenerados entraram, e, tendo entrado,
eles vêem o reino de Deus e são seus membros. Esta é novamente
a lição destacada por Jesus em Jo 3.6: “O que é nascido do Espírito,
é espírito”, isto quer dizer, a pessoa nascida do Espírito Santo é
habitada e dirigida por ele. O homem regenerado não pode viver
em pecado e sem conversão. E muito menos pode ele continuar
vivendo numa abstração neutra. Ele se toma imediatamente um
membro do reino de Deus, ele é espírito, suas ações e sua conduta
devem ser consoantes com a sua nova cidadania. Na linguagem do
apóstolo Paulo: “E assim, se alguém está em Cristo, é nova
criatura: as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas”
(II Co 5.17). Existe grande número de outras considerações deri­
vadas da Escritura que confirmam esta verdade estupenda de que
a regeneração é uma transformação tão radical, difusa e eficaz, que
ela imediatamente se registra na atividade consciente da pessoa
envolvida no exercício da fé e arrependimento e obediência reno­
vados. Com muita freqüência, a concepção popular de regeneração
é demasiadamente superficial, mesquinha e completamente falha
para apreciar a mudança momentosa da qual a conversão é o fruto.
E a noção total do que é envolvido na aplicação da redenção se
toma tão atenuada que tem pouco ou nenhuma semelhança com
aquilo que o evangelho ensina. A regeneração é a base de toda
mudança no coração e na vida. É uma mudança estupenda porque
é um ato criativo de Deus. Um evangelismo barato e superficial
tende a despir o evangelho que ele proclama daquele poder inven­
cível que é a glória do evangelho da soberana graça. Que a Igreja
volte novamente a pensar e a viver nos termos do evangelho que
é o poder de Deus para a salvação.
Capítulo 4
Fé e Arrependimento

A regeneração é inseparável de seus efeitos, e um destes


efeitos é a fé. Sem a fegeneração é moral e espiritualmente impos­
sível que o homem creia em Cristo, porém, quando ele é regene­
rado, é moral e espiritualmente impossível que ele não creia. Jesus
disse: “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim” (Jo 6.37),
e certamente neste caso ele estava se referindo à doação e à atração
eficaz do Pai mencionadas no mesmo contexto (Jo 6.44,65). A
regeneração é a renovação do coração e da mente, e o coração e a
mente renovados devem agir de acordo com a sua natureza.
A Fé
A regeneração é um ato de Deus, e unicamente de Deus. A
fé, porém, não é um ato de Deus; não é Deus quem crê em Cristo
para a salvação, e, sim, o pecador. É peia graça de Deus que o
homem é capacitado para crer, porém a fé é uma atividade por parte
do homem, e unicamente dele. Pela fé nós recebemos e descansa­
mos unicamente em Cristo para a salvação.
Pode-se dizer: esta é uma estranha mistura. Somente Deus é
quem regenera. Somente nós é que cremos. E cremos unicamente
em Cristo para a salvação. Porém, este é precisamente o caminho
do evangelho. Convém que apreciemos tudo o que está implícito
na combinação, porque este é o caminho de Deus para a salvação,
e ela expressa a sua suprema sabedoria e graça. Na salvação Deus
não lida conosco como se fôssemos máquinas; ele nos trata como
pessoas, e, portanto, a salvação traz consigo a extensão total de
nossa atividade dentro de seu alcance. Pela graça somos salvos,
mediante a fé (cf. Ef 2.8).
Para termos uma melhor compreensão do sentido de fé, é
preciso examiná-la quanto à sua garantia e quanto à sua natureza.
A garantia. Fé, como veremos mais tarde, envolve a totalida­
de da alma num movimento de auto-rendição a Cristo para a
salvação tanto do pecado como de suas conseqüências. Não é inútil
fazer, as seguintes perguntas: que garantia tem o pecador perdido
em entregar-se a Cristo? Como pode ele saber se será aceito ou
não? Como pode ele saber se Cristo é capaz para salvá-lo? Como
pode ele saber se a sua confiança não é infundada? Como pode ele
saber se Cristo tem disposição para salvá-lo? Estas são perguntas
urgentes, talvez não urgentes para a pessoa que não tem uma
verdadeira concepção das conseqüências ou da gravidade de sua
condição perdida, porém são excessivamente urgentes e pertinen­
tes para a pessoa convencida de pecado e em cujo coração arde a
realidade e consciência da ira de Deus contra o pecado. Enumera­
mos os seguintes fatos que constituem a garantia da fé.

1. A oferta universal do evangelho. Esta oferta pode s


considerada de vários ângulos. Pode ser considerada como um
convite, uma exigência, uma promessa e uma oferta. Porém, seja
qual for o ângulo pelo qual o evangelho é visto, ele é pleno,
gracioso e irrestrito. Os apelos do evangelho cobrem o campo todo
da prerrogativa divina e do interesse humano. Deus roga, convida,
ordena, chama, apresenta a oferta de misericórdia e graça e ele faz
tudo isto sem qualquer distinção ou discriminação.
Podemos ficar surpresos de que esta oferta universal receba
tanta proeminência no Velho Testamento. Sob o Velho Testamen­
to, a revelação da graça salvadora de Deus foi dada ao povo eleito,
e a eles foram confiados os oráculos de Deus. O salmista pôde
cantar: “Conhecido é Deus em Judá; grande o seu nome em Israel.
Em Salém está o seu tabernáculo, e em Sião a sua morada” (SI
76.1,2). E Jesus podia dizer desse período veterotestamentário: “A
salvação vem dos judeus” (Jo 4.22). Houve um muro divisório
entre judeu e gentio. Porém, é no Velho Testamento que encontra­
mos um apelo como este: “... pois não há outro Deus senão eu,
Deus justo e Salvador não há além de mim. Olhai para mim, e sede
salvos, vós, todos os termos da terra; porque eu sou Deus, e não
há outro” (Is 45.21,22). Lemos em outro lugar: “Dizei-lhes: Tão
certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte
do perverso, mas em que o perverso se converta do seu caminho,
e viva. Convertei-vós, convertei-vos dos vossos maus caminhos;
pois, por que haveis de morrer, ó casa de Israel?” (Ez 33.11; cf.
18.23,32). Eis aqui uma negação muito enfática — “Não tenho
prazer na morte do perverso”; uma afirmação — “mas em que o
perverso se converta do seu caminho, e viva”; uma asseveração —
“Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus”; uma exortação —
“Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos”; um
protesto — “Pois, por que haveis de morrer?”
Se há universalidade de exortação e de apelo quando a aliança
da graça de Deus foi concentrada em Israel, quão mais evidente
deve ser esta quando não há mais judeu e nem gentio, e o muro
divisório é derrubado, quando o evangelho é proclamado nos
termos da comissão de Jesus: “Ide, portanto, fazei discípulos de
todas as nações” (Mt 28.19). As palavras de Jesus estão impreg­
nadas deste convite indiscriminado: “Vinde a mim todos os que
estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28);
“e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora” (Jo 6.37).
E as palavras do apóstolo são inconfundivelmente claras: “Ora,
não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém,
notifica aos homens que todos em toda parte se arrependam;
porquanto estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com
justiça por meio de um varão que destinou e acreditou diante de
todos, ressuscitando-o dentre os mortos” (At 17.30,31). Não sim­
plesmente que Deus roga aos homens em toda parte que se
arrependam, ele ordem que assim façam. É uma ordem investida
com a autoridade e majestade de sua soberania como o Senhor de
todos. O imperativo soberano de Deus é realçado no convite da
graça. E isso encerra toda e qualquer contenda. De sua ordem
ninguém é excluído.

2. A suficiência plena e a adequação do Salvador apresenta


do. Cristo apresentou-se a si mesmo na glória de sua pessoa e na
suficiência de seu ofício como Salvador, quando disse: “Vinde a
mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos
aliviarei” (Mt 11.28), e ainda: “e o que vem a mim, de modo
nenhum o lançarei fora” (Jo 6.37). Esta é a verdade que é enunciada
em Hb 7.25: “Por isso também pode salvar totalmente os que por
ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles.”
A suficiência de seu ofício como Salvador repousa sobre a obra
que ele efetuou uma vez por todas, quando morreu na cruz e
ressuscitou com poder triunfante. Mas ela reside na eficácia e
perfeição de sua atividade contínua à destra de Deus. É em virtude
de sua continuidade ininterrupta e o seu sacerdócio imutável que
ele pode salvar os que vão a ele e dar-lhes a vida eterna. Quando
Cristo é apresentado aos homens perdidos pela proclamação do
evangelho, é no papel de Salvador que ele é apresentado, como
aquele que continua sendo, ininterruptamente, a incorporação da
salvação que ele realizou uma vez por todas. Não é a possibilidade
de salvação que é oferecida aos homens perdidos, é o próprio
Salvador, e, portanto, a salvação, plena e perfeita. Não há nenhuma
imperfeição na salvação oferecida, e não há nenhuma restrição em
seu convite — é pleno, gracioso e irrestrito. E esta é a garantia
da fé.
A fé de que estamos falando aqui não é a crença de que fomos
salvos, e, sim, é a confiança em Cristo a fim de sermos salvos. E
é de suma importância que saibamos que Cristo é apresentado a
todos, sem distinção, para que possam entregar-se a ele para a
salvação. A oferta do evangelho não se restringe aos eleitos ou
àqueles por quem Cristo morreu. E a garantia de fé não é a
convicção de que somos eleitos ou que estamos entre aqueles por
quem, estritamente falando, Cristo morreu, mas o fato de que
Cristo, na glória de sua pessoa, na perfeição de sua obra consumada
e na eficácia de sua atividade exaltada como Rei e Salvador, nos
é oferecido na oferta do evangelho pleno, gracioso e irrestrito. Não
é como pessoas convencidas de sua eleição, nem como pessoas
convencidas de que são os objetos especiais do amor de Deus que
nos confiamos a ele, mas é como pecadores perdidos. Confiamo­
-nos a ele não porque cremos que somos salvos, e, sim, como
pecadores perdidos a fim de podermos ser salvos. É para nós, em
nossa condição perdida, que a garantia de fé é dada, e esta garantia
não se restringiu nem de forma alguma se circunscreveu. Na
garantia de fé, a rica misericórdia de Deus é oferecida aos perdidos
e a promessa da graça é certificada pela veracidade e fidelidade de
Deus. Esta é a base a sobre qual o pecador perdido se entrega a
Cristo na plena certeza de que ele será salvo. E nenhum pecador a
quem o evangelho alcança é excluído da garantia divina por tal
confiança.
A natureza. Há três verdades que precisam ser mencionadas
acerca da natureza da fé. Fé é conhecimento, convicção e
confiança.

1. Conhecimento. Pode parecer algo confuso dizer que fé


conhecimento. Pois conhecer não é uma coisa e crer outra coisa?
Isto é parcialmente verdadeiro. As vezes devemos distinguir entre
fé e conhecimento, e colocá-los em contraste um com o outro.
Porém, existe um conhecimento que é indispensável à fé. Em
nossas relações humanas ordinárias costumamos confiar numa
pessoa sobre quem nada sabemos. Especialmente quando aquele
em quem confiamos é de suma importância para nós, devemos
conhecer uma boa parte a respeito de seu caráter e identidade.
Quanto mais deve ser no tocante à fé que é dirigida a Cristo;
porquanto é a fé contra todas as conseqüências de vida e de morte,
de tempo e de eternidade. Devemos conhecer a Cristo, quem ele
é, o que ele tem feito e o que ele é capaz de fazer. Do contrário, a
fé seria uma conjectura cega, no melhor, e uma zombaria insensata,
no pior. Deve existir apreensão da verdade referente a Cristo.
As vezes a medida da verdade apreendida pela pessoa que crê
é realmente muito pequena, e temos de apreciar o fato de que a fé
de alguns em suas fases iniciais é bastante elementar. Mas a fé não
pode começar num vácuo de conhecimento. Paulo nos lembra isto
de forma muito simples quando escreveu: “E assim, a fé vem pela
pregação e a pregação pela palavra de Cristo” (Rm 10.17).
2. Convicção. Fé é assentimento. Devemos não soment
conhecer a verdade acerca de Cristo, mas também devemos crer
que ele é a verdade. Certamente que é possível compreendermos
a importância de certas proposições da verdade, e todavia não
crermos nelas. Toda incredulidade tem este caráter, e à medida que
a importância das verdades envolvidas são compreendidas, as mais
fortes podem ser as rejeitadas. Uma pessoa que rejeita o nascimen­
to virginal pode entender perfeitamente o que a doutrina é, e por
esta mesma razão rejeitá-la. Mas, no momento, não estamos lidan­
do com a incredulidade ou descrença, e, sim, com a fé, e esta
obviamente implica que as verdades conhecidas são também rece­
bidas como verdadeiras.
A convicção que entra na fé não é apenas um assentimento à
verdade acerca de Cristo, mas também o reconhecimento da exata
correspondência que existe entre a verdade de Cristo e os nossos
feitos como pecadores perdidos. O que Cristo é como Salvador se
encaixa perfeitamente às nossas profundas e mais extremas neces­
sidades. É o mesmo que dizer que a suficiência de Cristo, como
Salvador, satisfaz o desespero e desesperança de nossa miséria e
pecado. É a convicção, portanto, que ocupa o nosso interesse maior
e que registra o veredito: Cristo se adequa perfeitamente a tudo o
que eu sou em meu pecado e miséria e a tudo o que aspiraria ser
pela graça de Deus. Cristo se ajusta perfeitamente à totalidade de
nossa situação como pecadores, culpados, miseráveis e infelizes.
3. Confiança. A fé é o conhecimento passando para a convic
ção, e é a convicção passando para a confiança. A fé não pode
impedir uma breve auto-rendição a Cristo, uma transferência de
dependência de nós mesmos e de todos os recursos humanos para
uma dependência unicamente de Cristo para a salvação. É uma
recepção e descanso nele. É aqui que o ato mais característico da
fé aparece; é um acordo entre duas pessoas, um acordo entre o
pecador perdido e a pessoa do Salvador pronto e desejoso para
salvar. A fé, finalmente, não é a crença em proposições da verdade
acerca do Salvador, embora a inclusão delas em nossa crença seja
um ingrediente essencial à fé. Fé é confiança numa pessoa, a pessoa
de Cristo, o Filho de Deus e Salvador dos perdidos. É a confiança
de nós mesmos a ele. Não é simplesmente crê-lo; é crer sobre ele.

Os reformadores puseram ênfase especial sobre este elemento


da fé. Eles se opunham ao ponto de vista romanista de que a fé é
assentimento. É bem consistente com a religião romanista afirmar
que a fé é assentimento. É o gênio da concepção romanista de
salvação introduzir sorrateiramente mediadores entre a alma e o
Salvador —■ a Igreja, a virgem, os sacramentos. Ao contrário, é a
glória do evangelho da graça de Deus a existência de um só
mediador entre Deus e o homem, o homem Cristo Jesus. E esta foi
a glória de nossa Reforma Protestante, descobrir novamente a
pureza do evangelho. Os reformadores reconheceram que a essên­
cia da fé salvífica é conduzir o pecador, perdido e morto em delitos
e pecados, a um contato direto e pessoal com o próprio Salvador,
contato este que nada menos é do que uma auto-entrega a ele em
toda a glória de sua pessoa e perfeição de sua obra, como ele é
graciosa e plenamente oferecido no evangelho.
Deve-se lembrar que a eficácia da fé não reside em si mesma.
Fé não é algo que merece o favor de Deus. Toda a eficácia da
salvação reside no Salvador. Como alguém apropriada e correta­
mente declarou: Não é a fé que salva, e, sim, a fé em Jesus Cristo;
estritamente falando, não é nem mesmo a fé em Jesus Cristo que
salva, e, sim, é Cristo mesmo quem salva através da fé. A fé nos
une a Cristo pelos laços de ligação e confiança permanentes, e esta
é a união que garante que a virtude, a graça e o poder salvíficos do
Salvador se tomem operantes naqueles que crêem. O caráter
específico da fé é aquele que olha para fora de si mesmo e encontra
todo o seu interesse e objetivo em Cristo. Ele é a preocupação
absorvente da fé.

E no ponto da fé em Cristo que a nossa responsabilidade se


compromete na mais plena extensão, assim como é no exercício
da fé que os nossos corações e mentes e vontade são ativos no mais
alto grau. Não é responsabilidade nossa regenerar-nos a nós mes­
mos. A regeneração é a ação de Deus, e tão-somente de Deus. É
responsabilidade nossa viver o que a regeneração efetua. É respon­
sabilidade nossa ser santos. Mas o ato de regeneração não entra na
esfera de nossas ações responsáveis. A fé entra. E jamais nos
libertamos da obrigação de crer em Cristo para a salvação de nossas
almas. O fato de que a regeneração é o pré-requisito da fé de forma
alguma nos livra da responsabilidade de crer nem elimina de nós
o privilégio inestimável que é nosso, como Cristo e suas reivindi­
cações são impostos sobre nós através da plena e gratuita oferta de
sua graça. A nossa incapacidade não é desculpa para a nossa
incredulidade nem nos propicia razão qualquer para não crermos.
Quando Cristo nos é apresentado no evangelho, não há motivo
algum para rejeição de incredulidade, antes toda razão exige o
consentimento da fé.
O Arrependimento
A questão foi discutida: o que vem primeiro, a fé ou o
arrependimento? É uma questão desnecessária, e a insistência de
que um antecede o outro é fútil. Não há prioridade. A fé que é para
a salvação é uma fé penitente, e o arrependimento que é para a vida
é um arrependimento crente. O arrependimento é admiravelmente
definido no Breve Catecismo. “Arrependimento para a vida é uma
graça salvadora, pela qual o pecador, tendo uma verdadeira cons­
ciência de seu pecado e percepção da misericórdia de Deus em
Cristo, se enche de tristeza e de aversão pelos seus pecados, os
abandona e volta para Deus, inteiramente resolvido a prestar-lhe
nova obediência” (Resp.87). A interdependência da fé e do arre­
pendimento é facilmente percebida quando nos lembramos de que
a fé é fé em Cristo para a salvação do pecado. Porém, se a fé é
dirigida para a salvação do pecado, deve haver ódio pelo pecado e
o desejo de ser salvo dele. Tal ódio pelo pecado envolve o
arrependimento que consiste essencialmente em voltar-se do pe­
cado para Deus. Repetindo, se nos lembramos que o arrependi­
mento é voltar-se do pecado para Deus, este voltar-se para Deus
subentende fé na misericórdia de Deus como revelada em Cristo.
É impossível desvencilhar a fé do arrependimento. A fé salvadora
é permeada com o arrependimento, e o arrependimento é permeado
com a fé. A regeneração se verbaliza em nossas mentes através do
exercício da fé e do arrependimento.
O arrependimento consiste essencialmente de uma mudança
de coração, mente e vontade. A mudança de coração, mente e
vontade se refere, principalmente, a quatro coisas: é uma mudança
de mente acerca de Deus, acerca de nós mesmos, acerca do pecado
e acerca da justiça. Sem a regeneração o nosso conceito de Deus,
de nós mesmos, do pecado e da justiça é radicalmente pervertido.
A regeneração muda os nossos corações e mentes; ela os renova
radicalmente. Daí, ocorre uma mudança radical em nosso pensa­
mento e sentimento. As coisas antigas passaram, e todas as coisas
se fizeram novas. É muito importante observar que a fé que é para
a salvação é a fé que é acompanhada por essa mudança de pensa­
mento e atitude. Mui freqüentemente, nos círculos evangélicos e
especificamente no evangeüsmo popular, a mudança momentânea
que a fé assinaliza não é compreendida e apreciada. Existem duas
falácias. Uma põe a fé fora do único contexto que lhe dá sentido,
e a outra considera a fé em termos de simples decisão, e, infeliz­
mente, uma decisão desvirtuada. Estas falácias se relacionam e
condicionam uma à outra. A ênfase sobre o arrependimento e a
profunda mudança de pensamento e sentimento que ela envolve é
precisamente o que é necessário para corrigir este empobrecido e
mortífero conceito de fé. A natureza do arrependimento serve para
acentuar a urgência dos resultados em jogo na exigência do evan­
gelho, a separação do pecado que a aceitação do evangelho impõe,
e a perspectiva totalmente nova que a fé do evangelho comunica.
Não devemos conceituar o arrependimento como que consis­
tindo simplesmente de uma mudança geral de mente; ela é mui
particular e concreta. E visto que esta é uma mudança mental com
respeito ao pecado, ela é tuna mudança mental com respeito a
pecados particulares, pecados que em toda a sua particularidade e
individualidade pertencem aos nossos pecados. É-nos tão fácil
falar de pecado, ser denunciantes do pecado, e denunciantes dos
pecados particulares de outras pessoas, porém não conseguimos
ser penitentes acerca de nossos próprios pecados particulares. A
prova de arrependimento está no fato de nosso arrependimento ser
genuíno e resoluto no tocante aos nossos próprios pecados, peca­
dos caracterizados pelas agravações que são peculiares a nós
próprios. No caso dos tessalonicenses, o arrependimento manifes­
tou-se no fato de terem eles deixado os ídolos a fim de servir ao
Deus vivo e verdadeiro. Foi a sua idolatria que particularmente
evidenciou a sua alienação de Deus, e foi o arrependimento em
relação ao pecado que provou a genuinidade de sua fé e de sua
esperança (ITs 1.9,10).
O evangelho não é apenas o fato de que pela graça somos
salvos por meio da fé, mas ele é também um evangelho de
arrependimento. Quando Jesus, após sua ressurreição, abriu o
entendimento dos discípulos para que pudessem entender a Escri­
tura, ele lhes disse: “Assim está escrito que o Cristo havia de
padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia, e que em seu
nome se pregasse arrependimento para a remissão de pecados, a
todas as nações” (Lc 24.46,47). Quando Pedro pregou à multidão
por ocasião do Pentecoste e os ouvintes foram constrangidos a
peguntar: “Que faremos, irmãos?”, Pedro respondeu: “Arrepen­
dei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo
para remissão dos vossos pecados” (At 2.37,38). Mais tarde, de
uma forma semelhante, Pedro interpretou a exaltação de Cristo
como exaltação à posição de “Príncipe e Salvador, a fim de
conceder a Israel o arrependimento e a remissão de pecados” (At
5.31). Pode-se comprovar mais claramente que este é o evangelho
de arrependimento pelo fato de o ministério celestial de Jesus como
Salvador ser aquele de conceder o arrependimento e a remissão de
pecados? Assim Paulo, ao dar relatório de seu próprio ministério
aos presbíteros de Éfeso, declarou que testificava “tanto a judeus
como a gregos o arrependimento para com Deus e a fé em nosso
Senhor Jesus Cristo” (At 20.21). O escritor da epístola aos Hebreus
indica que o “arrependimento de obras mortas” é um dos primeiros
princípios da doutrina de Cristo (Hb 6.1). Não poderia ser de outra
forma. A nova vida em Jesus Cristo significa que as algemas que
nos prendiam ao domínio do pecado são quebradas. O crente está
morto para o pecado pelo corpo de Cristo, o velho homem foi
crucificado, para que o corpo do pecado seja destruído e não sirva
mais ao pecado (Rm 6.2,6). Este rompimento com o passado
registra-se em sua consciência, pelo abandono do pecado a fim de
servir a Deus “com o pleno propósito de praticar uma nova
obediência”.
Vemos, pois, qüe a ênfase que a Escritura dá à fé como
condição de salvação não pode ser interpretada como se a fé fosse
a única condição. Os vários exercícios ou respostas do nosso
espírito têm a sua própria função particular. O arrependimento é
aquele que descreve a decisão de abandonar o pecado e viver para
Deus. Este é o seu caráter específico, assim como o caráter espe­
cífico da fé é receber e descansar somente em Cristo para a
salvação. O arrependimento nos faz lembrar de que se a fé que
professamos é aquela que nos permite andar nos caminhos deste
mundo maligno, na concupiscência da carne, na concupiscência
dos olhos e na soberba da vida, na comunhão com as obras das
trevas, então a nossa fé é antes uma zombaria e decepção. A fé
verdadeira se mistura com o quebrantamento. E assim como a fé
não é apenas um ato momentâneo, antes é uma atitude contínua de
dependência e confiança direcionadas para o Salvador, assim o
arrependimento resulta em constante contrição. O espírito que­
brantado e o coração contrito são as marcas permanentes da alma
crente. Enquanto o pecado permanecer, deve haver consciência
dele, e esta convicção de nossa própria pecaminosidade nos conduz
à auto-repugnância, confissão e súplica por perdão e purificação.
O sangue de Cristo é a fonte da purificação inicial, e também a
fonte na qual o crente deve renovar-se continuamente. O arrepen­
dimento tem o seu início na cruz de Cristo; e é ao pé da cruz que
ele continua derramando o seu coração em lágrimas de confissão
e tristeza. O caminho da santificação é o caminho da tristeza pelo
pecado do passado e do presente. O Senhor perdoa os nossos
pecados, e este perdão é selado pela luz de seu semblante. Porém,
não somos perdoados por nós mesmos.
Capítulo 5
Justificação
A questão religiosa básica é aquela de nossa relação com
Deus. Como pode o homem ser justo para com Deus? Como pode
ser ele reto para com aquele que é Santo? Porém, em nossa
situação, a questão é muito mais grave. Não é simplesmente como
pode o homem ser justo para com Deus, e, sim, como pode o
homem pecador ser justo para com Deus? Em última análise, o
pecado é sempre contra Deus, e a essência do pecado é ser ele
contra Deus. A pessoa que é contra Deus não pode ser reta diante
de Deus. Porquanto, se somos contra Deus, então Deus é contra
nós. Não pode ser de outra forma. Deus não pode ser indiferente
ou ser complacente para com aquele que é a contradição de si
mesmo. A sua própria perfeição requer a reação de justa indigna­
ção. E esta é a ira de Deus. “A ira de Deus se revela do céu contra
toda impiedade e perversão dos homens” (Rtn 1.18). Esta é a nossa
situação, e esta é a nossa relação para com Deus; como podemos
ser justos aos olhos de Deus?
A resposta, naturalmente, é que não podemos ser justos para
com ele; somos completamente antagônicos em relação a ele. E
todos nós estamos neste estado diante dele em virtude de que todos
pecamos e estamos destituídos da glória de Deus. Tão freqüente­
mente deixamos de encarar a gravidade deste fato. Por conseguin­
te, a realidade de nosso pecado e a realidade da ita de Deus que
recai sobre nós em virtude de nosso estado pecaminoso não fazem
parte de nossas cogitações. Esta é a razão por que o grande assunto
da justificação não toca os sininhos nos recônditos mais profundos
do nosso espírito. E esta é a razão por que o evangelho da
justificação, em boa medida, é um som sem sentido no mundo e
na Igreja do século vinte [e vinte e um?!]. Não estamos imbuídos
do profundo senso da realidade de Deus, de sua majetade e
santidade. O pecado, quando reconhecido, não passa da idéia de
mero infortúnio ou mau ajustamento.
Se temos de apreciar aquilo que é central no evangelho, se a
trombeta de júbilo encontra novamente a sua ressonância em
nossos corações, então o nosso pensamento terá de ser revolucio­
nado pelo realismo da ira de Deus, pela realidade e gravidade de
nossa culpa e da condenação divina. Então, e somente então, é que
o nosso pensamento e sentimento serão reabilitados para a com­
preensão da graça de Deus na justificação do ímpio. A pergunta,
na realidade, não é tanto: como pode o homem ser justo para com
Deus; e, sim, como pode o homem pecador tomar-se justo para
com Deus. A pergunta formulada desta maneira se dirige para a
necessidade de uma completa inversão de nossa relação com Deus.
A justificação é a resposta, e esta justificação é o ato da livre graça
de Deus. “É Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (Rm
8.33,34).
Esta verdade de que é Deus quem justifica precisa ser subli­
nhada. Não justificamos a nós mesmos. Ajustificação não é a nossa
apologia nem o efeito em nós de um processo de escusa pessoal.
Ela nem ainda é a nossa confissão nem a agradável sensação de
que pode ser produzida em nós pela confissão. A justificação não
é algum exercício religioso em que nos empenhamos; ainda que
ela seja um exercício nobre e louvável. Se queremos entender a
justificação e apoderar-nos de sua graça, devemos dirigir o nosso
pensamento para a ação de Deus em justificar o ímpio. A livre
graça de Deus não se manifesta em nenhum outro ponto mais
claramente do que em seu ato justificador — “sendo justificados
gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo
Jesus” (Rm 3.24).
A verdade da justificação tem sofrido nas mãos da perversão
humana mais do que qualquer outra doutrina da Escritura. Uma
das formas nas quais ela tem sido pervertida é na falta de reconhe­
cimento do significado do termo. Justificação não significa tomar­
-se justo, bom, santo ou reto. É perfeitamente correto dizer que, na
aplicação da redenção, Deus faz o seu povo santo e reto. Ele os
renova segundo a sua própria imagem. Esta obra ele a inicia na
regeneração, prossegue na obra de santificação e a aperfeiçoará na
glorificação. Porém, a justificação não se refere a esta graça
renovadora e santificadora de Deus. É um dos erros primordiais da
igreja romana considerar a justificação como a infusão da graça,
como a renovação e santificação, por meio das quais nos tomamos
santos. E a seriedade do erro romanista não é tanto por ela confun­
dir justificação com renovação, e, sim, por ela confundir estes dois
atos distintos da graça de Deus e eliminar da mensagem do
evangelho a grande verdade da livre e plena justificação por meio
da graça. Por esta razão foi que Lutero suportou tamanha angústia
em sua alma durante o tempo em que foi dominado por esta
distorção romanista. E a razão pela qual chegou a desfrutar de tão
exultante alegria e certeza inabalável foi em virtude da emancipa­
ção das algemas pelas quais Roma o escravizou. Ele descobriu a
grande verdade de que a justificação é algo completamente dife­
rente daquilo que lhe foi ensinado pela igreja de Roma.
Que a justificação não significa tomar-se santo ou reto pode­
-se provar pelo evidente uso comum da palavra. Quando justifica­
mos uma pessoa, não a tomamos santa ou reta. Quando um juiz
justifica uma pessoa acusada, ele não toma aquela pessoa um ser
reto. Ele simplesmente declara que, segundo o seu parecer, aquela
pessoa não é culpada da acusação, antes é reta nos termos da lei
relativa ao caso. Em outras palavras, justificação é simplesmente
uma declaração ou pronunciamento quanto à relação da pessoa à
luz da lei que ele, o juiz, tem por obrigação administrar. É possível
que o nosso uso comum não seja o mesmo que é empregado na
Escritura. Esta deve ser a sua própria intérprete. Eis a pergunta: O
uso bíblico está de acordo com o uso comum? Esta pergunta é
facilmente respondida. A resposta é que a Escritura usa o termo na
mesma forma. Há várias considerações que provam esta
conclusão.
1. Em ambos os Testamentos há numerosas passagens on
o termo justificar não admite nenhuma outra interpretação senão
o ato de declarar alguém justo. Por exemplo: “Em havendo con­
tenda entre alguns, e vierem a juízo, os juizes os julgarão, justifi­
cando aojusto e condenando ao culpado” (Dt 25.1). Não era função
dos juizes tomar o povo justo. O significado é simples e unicamen­
te que os juizes tinham de pronunciar um julgamento justo e,
portanto, tinham de declarar o inocente justo, assim como tinham
de declarar o culpado injusto. Outra vez, lemos: “O que justifica o
perverso e o que condena o justo, abominação são para o Senhor,
tanto um como o outro” (Pv 17.15). Ora, não seria abominação
para o Senhor tomar o ímpio justo. Seria algo extremamente
recomendável se pudéssemos converter um ímpio e tomá-lo justo.
É isto que Deus faz quando regenera um homem. O sentido é mais
do que óbvio; justificar o ímpio não é tomá-lo justo, mas simples­
mente declará-lo justo quando ele não o é. A abominação consiste
em dar um julgamento contrário à verdade do fato. Daí, a justifi­
cação, neste caso, se refere somente ao julgamento proferido. Ele
é declarativo. No Novo Testamento, de forma semelhante, temos
a mesma idéia. “Todo o povo que o ouviu, e até os publicanos,
reconheceram a justiça de Deus” (Lc 7.29). Será que o povo e os
publicanos tomaram Deus justo ou reto? A idéia seria blasfêmia.
Significa que eles declararam que Deus é justo; uma ação perfei­
tamente adequada. Eles declararam que Deus era justo; uma ação
perfeitamente louvável. Declararam a justiça de Deus; eles o
justificaram. Muitas outras passagens em ambos os Testamentos
têm o mesmo efeito. Porém, estas são suficientes para provar que
justificar não significa tomar alguém reto.
2. A justificação é contrastada com a condenação (cf. Dt 25.1;
Pv 17.15; Rin 8.33,34). Condenar jamais significa tomar alguém
ímpio; e, assim, justificar não pode significar tomar alguém bom
ou reto.
3. Há passagens nas quais a idéia de julgar nos fornece o
sentido no qual podemos compreender a palavra justificação.
“Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem
os justifica” (Rm 8.33). A idéia não é a de fazer algo interiormente
no eleito de Deus. O que está em questão é a acusação que um
adversário possa apresentar contra o eleito de Deus, e o que é
asseverado é que o tribunal e o julgamento de Deus são finais. É
o juízo de Deus que está em questão quando o texto diz: “É Deus
quem os justifica.”
Romanos 8.33,34 é importante noutro aspecto. O termo jus­
tificar não é apenas para ser claramente demonstrado, isto é, que
ele é judicial em sua significação, mas o texto mostra também que
é este sentido judicial que prevalece quando Deus justifica o ímpio.
Certamente, Paulo está usando a palavrajustificar, aqui, no mesmo
sentido em que ele o faz na primeira parte da epístola. A epístola
aos Romanos preocupa-se com este mesmo tema — a justificação
dos pecadores. Este é o grande tema especialmente dos primeiros
cinco capítulos. Romanos 8.33,34 mostra conclusivamente que o
significado é aquele que é contrastado com a palavra condenar e
aquilo que está relacionado com o ato de refutar uma acusação
judicial. Portanto, o significado da palavra justificar, na epístola
aos Romanos, e, portanto, na epístola que mais do que qualquer
outro livro da Bíblia desenvolve a doutrina, é declarar alguém
justo. O seu significado é completamente removido da idéia de
tornar alguém reto ou santo, bom ou justo.
É este o significado quando insistimos que a justificação é
forense. Ela tem a ver com um julgamento dado, declarado,
pronunciado; é judicial ou jurídica ou forense. O ponto principal
de tais termos é distinguir entre o tipo de ação que envolve a
justificação e o tipo de ação envolvida na regeneração. Regenera­
ção é um ato de Deus em nós; justificação é um julgamento de
Deus a respeito de nós. A distinção é semelhante àquela entre o
ato do cirurgião e o ato do juiz. O cirurgião, quando ele remove
um câncer interno, faz algo em nós. Não é assim que procede um
juiz — ele declara o veredito a respeito de nosso estado judicial.
Se somos inocentes, ele declara concordemente.
A pureza do evangelho é circunscrita pelo reconhecimento
desta distinção. Se a justificação é confundida com a regeneração
ou a santificação, a porta se abre para a perversão do evangelho
em seu centro. A justificação continua sendo o artigo pelo qual a
Igreja permanece de pé ou cai.
A justificação significa declarar ou pronunciar alguém como
sendo justo. Quando a eqüidade é mantida, esta declaração ou
pronunciamento implica que a posição ou estado justo é pressu­
posto na declaração. Por exemplo, quando um juiz declara justa
uma pessoa nos termos da lei a que está administrando, o juiz
simplesmente declara o que ele descobriu no caso; ele não confere
à pessoa um estado justo. Por esta razão os juizes devem justificar
o inocente e condenar o culpado (Dt 25.1). Neste caso, a justifica­
ção simplesmente leva em conta o caráter e a conduta da pessoa
em questão, e o juiz dá o seu veredito concordemente. Ele justifica
aqueles que são justos. A declaração pressupõe o fato que é para
ser declarado.
Entretanto, a justificação que ora nos interessa é aquela pela
qual Deus justifica o ímpio. Não é a justificação de pessoas que
são justas, mas a justificação de pessoas que são ímpias; portanto,
de pessoas que já estão sob a condenação e maldição de Deus.
Como pode ser isto? O juízo de Deus é sempre de acordo com a
verdade; não é somente de eqüidade, mas de perfeita eqüidade.
Como, pois, pode ele justificar àqueles que são injustos, sim,
totalmente injustos?
Neste ponto focalizamos algo completamente singular. Não
se pode negar que Deus justifica o ímpio (Rm 4.5; cf. Rm 3.19-24).
Se o homem fizesse isto, seria uma abominação aos olhos de Deus.
O homem deve condenar o ímpio e podejustificar somente o justo.
Deus justifica o ímpio e faz aquilo que nenhum homem pode fazer.
Todavia, Deus não é injusto. Ele é justo quando justifica o ímpio
(Rm 3.26). O que é que lhe permite ser justo ao justificar os
pecadores?
E neste ponto que a mera noção de declarar ser alguém justo
se revela inadequada em si mesma para expressar a plenitude do
que está envolvido quando Deus justifica o ímpio. Muito mais está
envolvido do que denota a nossa expressão portuguesa declarar
justo. Na justificação do pecador que Deus efetua há um fator
inteiramente novo que não existe nos outros casos de justificação.
E este novo fator surge de uma situação totalmente diferente,
contemplada no fato de Deus justificar o pecador, e das maravi­
lhosas provisões da graça e da justiça de Deus que satisfazem tal
situação. Deus faz o que nenhum outro poderia fazer, e ele faz aqui
o que não faz em nenhum outro lugar. O que é este algo único e
incomparável?
Quando Deus justifica o pecador, não há nenhum desvio da
regra de que o que se declara ser pressupõe-se que é. O juízo de
Deus é segundo a verdade, tanto aqui como alhures. A peculiari­
dade da ação de Deus consiste do fato de que ele é a causa do estado
ou relação justa que se declara ser. Devemos lembrar que a
justificação é sempre forense ou judicial. Portanto, o que Deus faz
neste caso é que ele constitui a nova e justa relação judicial, bem
como declara que esta nova relação existe. Ele constitui o ímpio
em justo, e conseqüentemente pode declarar que ele é justo. Na
justificação do pecador existe um ato constitutivo bem como um
declarativo. Ou, se preferirmos, podemos dizer que o ato declara­
tivo de Deus na justificação do ímpio é constitutivo. Nisto consiste
o seu caráter incomparável.
Esta conclusão de que a justificação é constitutiva não é
apenas uma inferência deduzida das considerações da verdade e
da eqüidade de Deus; ela é expressamente confirmada na própria
Escritura. Paulo está tratando do tema da justificação, quando diz:
“Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se
tomaram [=foram constituídos] pecadores, assim também por
meio da obediência de um só muitos se tomaram [=foram consti­
tuídos] justos” (Rm 5.19). As expressões paralelas que Paulo
emprega neste capítulo têm o mesmo efeito. Em Rm 5.17, ele fala
daqueles que recebem “o dom gratuito da justiça"; e no v. 18, do
juízo que sobrevêm a todos os homens para a justificação que
confere vida, “por um só ato de justiça". É evidente que a justifi­
cação que confere a vida eterna, segundo Paulo, consiste em
sermos constituídos justos, em recebermos a justiça como dom
gratuito, e esta justiça não é outra senão aquela justiça do homem
Jesus Cristo; é a justiça de sua obediência. Por conseguinte, a graça
reina por meio da justiça que confere a vida etema através de Jesus
Cristo nosso Senhor (Rm 5.21). Esta é a verdade que tem sido
expressa como a imputação da justiça de Cristo a nós. Portanto,
justificação é um ato constitutivo pelo qual a justiça de Cristo é
imputada à nossa conta, e conseqüentemente somos aceitos como
justos aos olhos de Deus. Quando meditamos sobre este ato da
graça de Deus, então temos a resposta à nossa pergunta: como pode
Deus justificar o ímpio? A justiça de Cristo é a justiça da sua
perfeita obebiência, uma justiça imaculada e imaculável, uma
justiça que não somente garante a justificação do ímpio, mas
também aquela que necessariamente suscita e compele tal justifi­
cação. Deus não pode senão receber em seu favor aos que são
vestidos da justiça de seu próprio Filho. Embora a ira de Deus seja
revelada do céu contra toda impiedade e perversão dos homens
ímpios, o seu beneplácito é também revelado do céu sobre a justiça
de seu Bem-amado e Unigénito Filho. Os justificados, com toda
razão, podem regozijar-se nas palavras do profeta: “Tão-somente
no Senhor há justiça e força;... Mas no Senhor será justificada toda
a descendência de Israel, e nele se gloriará” (Is 45.24,25). “Rego­
zijar-me-ei muito no Senhor, a minha alma se alegra no meu Deus;
porque me cobriu de vestes de salvação, e me envolveu com o
manto de justiça, como noivo que se adorna de turbante, como
noiva que se enfeita com as suas jóias” (Is 61.10). “Toda arma
foqada contra ti não prosperará; toda língua que ousar contra ti em
juízo tu a condenarás; esta é a herança dos servos do Senhor, e o
seu direito [=a sua justiça] que de mim procede, diz o Senhor” (Is
54.17). E o protesto do apóstolo se toma mais significativo: “quem
intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os
justifica” (Rm 8.33).
A justificação é tanto um ato declarativo e constitutivo como
um ato da livre graça de Deus. É constitutivo para que possa ser
verdadeiramente declarativo. Deus deve constituir a nova relação
como também declarar que ela existe. O ato constitutivo consiste
na imputação da obediência e justiça de Cristo feita a nós. Portanto,
a obediência de Cristo deve ser considerada como a base da
justificação; é a justiça que Deus não somente leva em conta, mas
também credita à nossa conta quando ele justifica o ímpio. Contu­
do, esta doutrina precisa ser melhor examinada se a sua base bíblica
deve tomar-se mais evidente.
Em Gn 15.6 é dito de Abraão que ele creu no Senhor, e isso
lhe foi computado para justiça. Este texto é citado várias vezes no
Novo Testamento (Rm 4.3,9,22; G1 3.6; Tg 2.23) e pode parecer
que foi a fé de Abraão que lhe foi computada como justiça e esta
serviu de base na qual ele foi justificado, que a própria fé foi aceita
por Deus como o cumprimento das exigências necessárias à sua
plena e perfeita justificação. Se este foi o caso, então Abraão e
todos os demais crentes são justificados sobre a base da fé e em
virtude da fé. E importante observar nesta conexão que a Escritura
nunca usa tais termos. Ela sempre fala que somos justificados pela
fé, através da fé ou sobre a fé; porém, jamais fala de sermos
justificados por causa da fé ou em virtude da fé. Se fôssemos
justificados na base da fé, a expressão que expressaria com mais
precisão tal idéia seria que somos justificados por causa da fé. O
fato de que a Escritura, e especialmente o apóstolo Paulo, se abstém
de usar tais termos, deve ser suficiente a fim de sermos cuidadosos
em pensar ou falar de maneira que seja sugerido tal conceito de
justificação. Mas há também muitas outras considerações que
revelam que a fé não é em si mesma a justiça, como também revela
que a justiça da justificação não é nada realizado em nós ou feito
por nós. Há vários argumentos que podem ser apresentados.
1. Uma justiça operada em nós, ainda que fosse perfeita e
eliminasse todo pecado futuro, não estaria à altura das exigências
da justificação plena e irrevogável que a Escritura apresenta. Tal
justiça não eliminaria o pecado e a injustiça do passado, nem a
condenação do passado que paira sobre nós. Porém, a justificação
inclui a remissão de todo pecado e condenação. Conseqüentemen­
te, a justiça que é a base desta justificação deve ser aquela que
cuidará do pecado do passado, tanto quanto fará provisão para o
futuro. Uma justiça fabricada não está à altura desta necessidade.
E devemos lembrar também que a justiça operada em nós pela
regeneração e santificação nunca é perfeita nesta vida. Por conse­
guinte, ela não pode, em qualquer sentido, satisfazer o tipo de
justiça requerida. Somente uma justiça perfeita pode fornecer a
base para uma justificação plena, perfeita e irreversível. Além do
mais, a justificação confere um título para e garante a vida eterna
(Rm 5.17,18,21). Uma justiça operada em nós pode equipar-nos
para o desfruto da vida eterna, porém não pode ser a base de tal
recompensa.
2. A justificação não é pela justiça que conquistamos; ela não
provém das obras (Rm 3.20; 4.2; 10.3,4; G1 2.16; 3.11; 5.4; Fp
3.9). A Escritura insiste tanto sobre este ponto, que é só por meio
de cegueira espiritual e distorção da pior espécie que uma justifi­
cação por meio das obras poderia ser adotada ou proposta em
qualquer forma ou grau. A doutrina romanista possui a patente
carimbada de tal distorção.
3. Somos justificados pela graça. Não é recompensa por alg
existente em nós ou realizado por nós, mas aquela que procede do
favor livre e imerecido de Deus (Rm 3.24ss; 5.15-21).
Portanto, se quisermos descobrir a justiça que fornece, e as
bases da justificação plena e perfeita que Deus confere aos ímpios,
não podemos descobri-la em algo que resida em nós, nem em algo
que Deus faça em nós e nem em algo que nós realizemos. Precisa­
mos desviar-nos de nós mesmos e direcionar-nos em direção
inteiramente diferente e para algo inteiramente diferente. E qual é
a direção indicada pela Escritura?
1. É em Cristo que somos justificados (At 13.39; Rm 8.1; I
Co 6.11; G1 2.17). Desde o início estamos sendo avisados de que
é por meio da união com Cristo e por meio de alguma relação
específica para com ele envolvida nessa união que podemos ser
justificados.
2. E por intermédio da obra redentiva e sacrificial de Cristo
(Rm 3.24; 5.9; 8.33,34). Somos justificados no sangue de Jesus. A
significação especial desta verdade, nesta conexão, é que a reali­
zação redentiva de Cristo, uma vez por todas, é conduzida ao centro
das atenções quando pensamos na justificação. Portanto, é algo
objetivo para nós mesmos e não a obra da graça de Deus em nossos
corações, mentes e vidas.

3. E pela justiça de Deus que somos justificados (Rm 1.17;


3.21,22; 10.3; Fp 3.9). Em outras palavras, a justiça de nossa
justificação é a justiça de Deus. Nada demonstra de forma mais
conclusiva que ela não é uma justiça nossa. A justiça operada em
nós ou por nós, ainda que provenha totalmente da graça de Deus,
e ainda que seja perfeita em seu caráter, não é a justiça de Deus.
Ela é acima de tudo uma justiça humana. Mas a insistência domi­
nante da Escritura é que, na justificação, é a justiça de Deus que é
revelada de fé em fé, e, portanto, uma justiça que é contrastada não
somente com a injustiça humana, porém com a própria justiça
humana. Ela é uma justiça que é divina em qualidade. Não é,
naturalmente, o atributo divino de justiça ou retidão, porém, nada
obstante, é uma justiça com atributos ou qualidades divinas, e,
portanto, uma justiça que é de propriedade divina.
4. A justiça da justificação é a justiça e obediência de Cristo
(Rm 5.17-19). Eis aqui a última consideração que confirma todas
as considerações anteriores e as focaliza de forma clara. Esta é a
razão final por que tiramos de nós os olhos e os pomos em Cristo
e em sua obra consumada. E esta é a razão por que a justiça da
justificação é a justiça de Deus. E a justiça de Cristo operada por
ele na natureza humana, a justiça de sua obediência até à morte, e
morte de cruz. Porém, como tal, é a justiça do Deus-homem, uma
justiça que corresponde às exigências de nossa situação pecami­
nosa e amaldiçoada pelo pecado, uma justiça que satisfaz todas as
exigências de uma justificação plena e irrevogável e uma justiça
que cumpre todas as exigências, porque ela é uma justiça de caráter
e propriedade divinos, uma justiça imaculada e inviolável. A graça
reina através da justiça para a vida eterna por intermédio de nosso
Senhor Jesus Cristo (Rm 5.21). “Bem-aventurado o povo que
conhece os vivas de júbilo, que anda, ó Senhor, na luz da tua
presença. Em teu nome de contínuo se alegra, e na tua justiça se
exalta” (SI 89.15,16).
A justificação é um ato que procede da livre graça de Deus.
É um ato de Deus e de Deus somente. E a justiça que fornece o seu
fundamento ou base é a justiça de Deus. Pode parecer que esta
ênfase posta na ação divina fá-la-ia não apenas inapropriada, mas
também inconsistente por qualquer atividade da qual somos os
agentes para determinar qualquer instrumentalidade ou eficiência
em conexão com a justificação. Mas a Escritura é bem clara, dando
por parte do recipiente o seu próprio lugar em relação a este ato da
graça de Deus. A atividade que pertence ao recipiente é a da fé, e
fé é somente aquela que é introduzida nesta relação com a justifi-
cação. Somos justificados pela fé, ou através da fé, ou sobre a fé
(cf. Rm 1.17; 3.22,25-28,30; 4.3,5,16,24; 5.1; G12.16; 3.8,9; 5.4,5;
Fp 3.9). /
Tem existido bons protestantes que sustentam que esta fé não
é o antecendente da justificação, e, sim, o conseqüente, que não
cremos a fim de sermos justificados, mas cremos porque fomos
justificados, e que a referida fé é a fé de que fomos justificados. O
testemunho da Escritura parece não oferecer apoio a este ponto de
vista da relação da fé com a justificação. Naturalmente, é verdade
que há uma fé que é conseqüência da justificação. Não podemos
crer que fomos justificados sem que antes sejamos justificados.
Porém, existe boa razão para insistirmos que este reflexo ou ato
secundário da fé não é a fé considerada quando se diz que somos
justificados pela fé, e que esta fé pela qual somos justificados é o
ato primário e inicial da fé em Jesus Cristo pelo qual, em nossa
vocação eficaz, somos unidos a Cristo e revestidos de sua justiça
para a nossa aceitação diante de Deus e a justificação por ele.
Há diversas considerações que favorecem este ponto de vista
do ensino bíblico. Mencionarei apenas duas.
1. À luz da ênfase coristante da Escritura é completamente
antinatural e forçado considerar a justificação pela fé de outra
maneira. Quando a Escritura fala de justificação nestes casos, ela
não se refere à nossa consciência ou certeza da justificação, mas
ao ato divino pelo qual somos verdadeiramente justificados. A
justificação não consiste daquilo que é refletido em nossa cons­
ciência; ela consiste do ato divino de absolvição e aceitação. E é
precisamente isto que se diz ser pela fé.
2. Há uma passagem em Paulo bastante esclarecedora neste
sentido. É G1 2.16: “Sabendo, contudo, que o homem não é
justificado por obra da lei, e, sim, mediante a fé em Cristo Jesus,
também nós temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos
justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois por obras
da lei ninguém será justificado.” Paulo está afirmando que temos
crido em Cristo Jesus, a fim de que pudéssemos ser justifidados
pela fé em Cristo. Em outras palavras, a finalidade da fé em Cristo
é a nossa justificação, e, portanto, deve ser considerada como
anterior a ela (cf. também Rm 4.23,24).
Podemos concluir que a Escritura ensina que o ato justificador
de Deus sobrepõe ao ato de fé, que Deus justifica aqueles que
crêem em Jesus e sobre o evento da fé. Porém a fé, deve-se lembrar,
é um ato ou exercício da parte do homem. Não é Deus quem crê
em Jesus Cristo, e, sim, o pecador que está sendo justificado. Fé,
portanto, é um instrumento indispensável em conexão com a
justificação. Somos justificados por fé, e fé é o pré-requisito. E
somente a fé é incluída na relação com a justificação. Por que é
este o caso?
Poderia ser-nos suficiente saber que nos desígnios divinos é
assim. Com muita freqüência, na revelação do conselho de Deus,
isto é tudo quanto podemos dizer e tudo quanto precisamos dizer.
Mas, neste caso, somos autorizados a dizer um pouco mais. Há
razões óbvias por que a justificação é pela fé e pela fé somente.
Primeiro, está totalmente em consonância com o fato de que é pela
graça. “Esta é a razão por que provém da fé, para que seja segundo
a graça” (Rm 4.16). Fé e graça são inteiramente complementares.
Segundo a fé, é inteiramente congruente com o fato de que a base
da justificação é a justiça de Cristo. A qualidade específica da fé é
que ela recebe e repousa sobre outro; neste caso, Cristo e a sua
justiça. Nenhuma outra graça, seja qual for a sua importância em
conexão com a salvação, como um todo, tem esta como a sua
qualidade específica e distintiva. Somos, portanto, justificados
pela fé. Terceiro, a justificação pela fé, e pela fé somente, exem­
plifica a gratuidade e a riqueza do evangelho da graça. Se fôssemos
justificados por obras, em qualquer grau ou extensão, então não
haveria evangelho algum. Porquanto, que obras de justiça pode um
pecador condenado, culpado e depravado, oferecer a Deus? Que
somos justificados pela fé é a proclamação do grande artigo do
evangelho da graça de que não somos justificados por obras da lei.
A fé é posta em oposição às obras; não pode haver nenhum
amálgama destes dois elementos (cf, Gl 5.4). O fato de sermos
justificados pela fé é o que gera esperança no coração convencido
do pecador. Ele sabe que não possui nada para oferecer. E esta
verdade lhe assegura que ele não precisa oferecer coisa alguma,
antes, ela lhe garante que seria uma abominação para Deus tentar
apresentar tal oferenda. Somos justificados pela fé, e, portanto, em
toda a nossa confiança em nós mesmos, em toda a nossa sombria
desesperança, entregamo-nos ao Salvador cuja justiça é imaculada
e imaculável. A justificação somente pela fé é o coração do
evangelho e o artigo que faz o coxo saltar como a corça e faz cantar
a língua do mudo. A justificação é o fator pelo qual a graça reina
através da justiça para a vida eterna; ela é somente para o crente,
e para o crente somente pela fé. É a justiça de Deus, de fé em fé
(Rm 1.17; cf. 3.22).
Uma velha objeção, bastante gasta pelo tempo, afirma que
esta doutrina facilita a Hcene, . "-idade e a frouxidão. Somente
aqueles que desconhecem o poder do evangelho poderão advogar
uma concepção tão errônea. A justificação é somente peia fé,
porém não por uma fé sozinha. A justificação não é tudo quanto
se recebe no evangelho da graça redentora. Cristo é um Salvador
completo, e não é somente a justificação que o pecador crente
possui nele. E a fé não é a única resposta do coração daquele que
se entregou a Cristo para a salvação. Somente a fé justifica, mas
uma pessoa justificada, tendo somente a fé, seria uma monstruo­
sidade que nunca existe no reino da graça. A fé atua através do
amor (Gl 5.6). E fé sem obras é morta (cf. Tg 2.17-20). É a fé viva
que justifica, e a fé viva nos une a Cristo, tanto na virtude de sua
morte como também no poder da sua ressurreição. Aquele que se
entrega a Cristo a fim de ser liberto da culpa do pecado também se
entrega a ele a fim de libertar-se do poder do pecado. “Que
diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça
mais abundante? De modo nenhum. Como viveremos ainda no
pecado, nós os que para ele morremos?” (Rm 6.1,2).
Capítulo ó
Adoção
A adoção é um ato da graça de Deus distinto de e adicionado
aos outros atos da graça envolvidos na aplicação da redenção. Pode
parecer totalmente desnecessário dizer isto. O termo em si mesmo
e o seu significado específico não subentendem claramente a sua
distinção? Todavia, não é supérfluo enfatizar o fato de que a
adoção é um ato distinto, levando consigo os seus próprios privi­
légios peculiares. É particularmente importante lembrar que a
adoção não é a mesma coisa que justificação ou regeneração. Com
muita freqüência ela tem sido considerada como simplesmente um
aspecto da justificação ou, expressando de outra forma, o privilé­
gio conferido pela regeneração. Ela é muito mais &' que cada ou
ambos estes atos da graça.
Justificação significa que Deus nos aceita como justos e a
concessão do título para a vida eterna. Regeneração é a renovação
dos nossos corações segundo a imagem de Deus. Mas estas bên­
çãos em si mesmas, por mais preciosas que elas sejam, não indicam
o que é conferido pelo ato de adoção. Por meio da adoção >s
redimidos se tomam filhos e filhas do Senhor Deus Todo-podero-
so; eles são introduzidos em e lhes são conferidos os privilégios
da família de Deus. Nem a justificação nem a regeneração expres­
sam com precisão esta verdade. Um texto que revela o caráter
especial de adoção é Jo 1.12: "Mas, a todos quantos o receberam,
deu-lhes o poder [=autoridade] de serem feitos filhos de Deus; a
saber: aos que crêem em seu nome.” Tomamo-nos filhos de Deus
por meio da concessão de um direito ou por meio do conferimento
de autoridade, e isto é concedido aos que crêem no nome de Jesus.
Contudo, há umas poucas coisas a dizer sobre a relação da
adoção com os outros atos da graça. (1) Embora a adoção seja
distinta, ela nunca é separada da justificação e regeneração. A
pessoa justificada é sempre o recipiente da filiação. E aqueles a
quem é dado o poder de se tomarem filhos de Deus são aqueles
que, nas palavras de João: “não nasceram do sangue, nem da
vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo
1.13). (2) A adoção é, como a justificação, um ato judicial. Em
outras palavras, é a concessão de um status ou posição; não é a
geração dentro de nós de uma nova natureza ou caráter. Ela se
refere à relação e não à atitude ou disposição que nos habilita a
reconhecer e cultivar essa relação. (3) Aqueles que são adotados
na família de Deus recebem também o Espírito de adoção pelo qual
são habilitados a reconhecer a sua filiação e exercer os privilégios
que a acompanham. “E, porque vós sois filhos, enviou Deus aos
nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai” (G1
4.6; cf. Rm 8.15,16). O Espírito de adoção é a conseqüência, porém
este fato, por si mesmo, não constitui a adoção. (4) Há uma íntima
relação entre adoção e regeneração. Tão íntima é esta conexão que
alguns diriam que somos filhos de Deus tanto pela participação da
natureza como pelo ato de adoção. Há uma evidência bíblica que
pode apoiar esta inferência. Existem duas formas pelas quais
podemos tomar-nos membros da família humana — podemos
entrar nela pelo nascimento e pela adoção. A primeira é por geração
natural, e a segunda por um ato legal. Pode ser que a Escritura nos
descreva como que entrando na família de Deus por meio de ambas
— por geração e por adoção. Contudo, isto não parece ser conclu­
sivo. De qualquer forma, há uma interdependência estreita entre o
ato gerativo da graça de Deus (=regeneração) e o adotivo. Quando
Deus adota homens e mulheres em sua família, ele garante não
somente que podem ter os direitos e privilégios de filhos e filhas,
mas também a natureza ou disposição consoante com tal status.
Isto ele faz por meio da regeneração — ele os renova segundo a
sua imagem e conhecimento, justiça e santidade. Deus nunca tem
em sua família aqueles que são estranhos ao seu ambiente, espírito
e posição. A regeneração é o pré-requisito da adoção. O Espírito
Santo é quem regenera, quem também é enviado aos corações dos
adotados, clamando: Aba, Pai. Mas a mesma adoção não é sim­
plesmente regeneração nem o Espírito de adoção — uma é pré-
requisito, a outra é conseqüência.
A adoção, como o termo claramente implica, é o ato de
transferir de uma família estranha para a família do próprio Deus.
Certamente que é o ápice da graça e privilégio. Não teríamos
ousadia de conceber uma graça tamanha, muito menos reivindicá­
-la da parte de Deus se não fosse a revelação e a promessa de Deus
mesmo. A nossa imaginação fica atônita em virtude de sua espan­
tosa condescendência e amor. Somente o Espírito poderia ser o
selo dela em nossos corações. “Nem olhos viram, nem ouvidos
ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus
tem preparado para aqueles que o amam. Mas Deus no-lo revelou
pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até
mesmo as profundezas de Deus” (I Co 2.9,10). É somente através
da associação do testemunho da revelação e do testemunho interior
do Espírito em nossos corações que somos habilitados a escalar
este pináculo da fé e dizer com confiança e amor filial: Aba, Pai!
A adoção se preocupa com a paternidade de Deus em relação
aos homens. Quando meditamos sobre a paternidade de Deus, é
preciso fazer certas distinções. Antes de tudo há a paternidade de
Deus que é exclusivamente trinitária, a paternidade do Pai, a
primeira pessoa da trindade, em relação ao Filho, a segunda pessoa.
Isto se aplica somente a Deus o Pai em sua eterna e necessária
relação com o Filho, e com o Filho somente. E única e exclusiva.
Nenhum outro, nem mesmo o Espírito Santo, é Filho neste sentido.
Ela não se aplica aos homens e nem aos anjos. Na teologia
moderna, é às vezes dito que os homens, por meio da adoção,
participam da filiação de Cristo e assim entram na vida divina da
trindade. Esta é uma grave confusão e erro. O eterno Filho de Deus
é o unigénito e ninguém participa de sua filiação, assim como Deus
o Pai não é o Pai de nenhum outro no sentido de que ele é o Pai do
Filho unigénito e eterno.
Em relação aos homens, há o que às vezes tem sido chamado
de a paternidade universal de Deus. É verdade que há um sentido
em que Deus pode ser tido como o Pai de todos os homens. Pela
criação e pela providência ele concede a todos os homens vida,
fôlego e todas as coisas. Nele todos vivem, se movem e existem.
Esta relação é mencionada em textos tais como: At 17.25-29; Hb
12.9; Tg 1.18. Visto que somos geração de Deus, visto que ele é o
Pai dos espíritos e o Pai das luzes, pode ser bíblico falar desta
relação que Deus mantém com todos os homens na criação e
providência como uma paternidade, e, portanto, uma paternidade
universal. Há outras passagens na Escritura que, à primeira vista,
falam ainda mais explicitamente desta relação em termos de pater­
nidade, porém quando se examina cuidadosamente algumas delas,
pode-se demonstrar que algumas não se referem a esta paternidade,
enquanto que outras provavelmente se refiram a uma paternidade
muito mais específica e restrita. Em Ml 2.10, por exemplo: “Não
temos nós todos o mesmo Pai? Não nos criou o mesmo Deus?”,
não é conclusivo que a alusão seja à criação original e a Deus como
Pai de todos os homens em virtude da criação. De qualquer forma,
o que precisa ser observado é que em relativamente poucas oca­
siões na Escritura é a relação que Deus mantém com a criação e a
providência geral expressa em termos de paternidade de Deus. O
termo Pai, quando aplicado a Deus, e o títulofilho de Deus, quando
aplicado aos homens, são quase uniformemente na Escritura reser­
vados para aquela relação particular que é constituída pela reden­
ção e adoção. Esta verdade nos ensina a lição de que a grande
mensagem da Escritura a respeito da paternidade de Deus, a
mensagem sumariada em texto como: “Porque não recebestes o
Espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas
recebestes o Espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba,
Pai” (Rm 8.15), ou, na oração que Jesus ensinou aos seus discípu­
los: “Pai nosso que estás nos céus” (Mt 6.9), não é aquela da
paternidade universal de Deus, e, sim, a mensagem daquela relação
mais específica e íntima que Deus estabelece com aqueles que
crêem no nome de Jesus. Substituir a mensagem da paternidade
universal de Deus por aquela que é constituída pela redenção e
adoção é anular o evangelho; significa a degradação destas subli­
mes e ricas relações ao nível daquela relação que todos os homens
mantêm com Deus por meio da criação. Sumariando, é destituir o
evangelho do seu sentido redentivo. E ela encoraja os homens à
ilusão de que a nossa humanidade é a garantia de nossa adoção na
família de Deus.
A grande verdade da paternidade de Deus e da filiação que
Deus confere aos homens é que ela pertence à aplicação da
redenção. E a verdade a respeito de todos os homens que são
eficazmente chamados, regenerados e justificados. Deus se toma
o Pai de seu próprio povo pelo ato de adoção. E a grandeza desta
graça que constrangeu o apóstolo a exclamar: “Vede que grande
amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos chamados filhos
de Deus” (I Jo 3.1). E para convencer a seus leitores deste privilé­
gio como uma possessão presente e não simplesmente uma espe­
rança futura, o apóstolo acrescenta, logo em seguida: “...e de fato
somos filhos de Deus”. Para indicar a divisão que este status institui
entre os homens, ele prossegue: “Por essa razão o mundo não nos
conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo.” E para que não
houvesse qualquer dúvida com referência à realidade da filiação
autorgada, ele insiste: “Amados, agora somos filhos de Deus”
(v.2). João ponderara e aprendera bem as palavras do próprio
Senhor quando ele disse: “Aquele que me ama, será amado por
meu Pai... Se alguém me ama, guardará a minha palavra; e meu
Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada” (Jo
14.21,23). E agora, ao escrever sua primeira epístola, seu coração
transborda, maravilhado pela dádiva do amor do Pai: “Vede que
grande amor nos tem concedido o Pai”. É especificamente o ato
da graça do Pai. João não podia passar por sobre isto, o que ele
jamais fez. A eternidade jamais esgotará esta maravilha.
Deus se toma o Pai de seu próprio povo pelo ato de adoção.
E especificamente Deus o Pai, o agente deste ato da graça. “Vede
que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos
chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus” (I Jo
3.1). Surge uma pergunta: Quem deve ser considerado o Pai
daqueles que são adotados na família de Deus? É Deus visto como
as três pessoas da trindade ou, especificamente, é Deus o Pai? E
quando o povo de Deus se dirige a Deus como Pai, a quem ele está
se dirigindo? É à Deidade — Pai, Filho e Espírito Santo — ou é
ao Pai, a primeira pessoa da Deidade? É nestas perguntas que
devemos agora concentrar nossa atenção.
Há diversas considerações extraídas da Escritura que indicam
que é Deus o Pai quem é Pai, e que, por meio da adoção, o povo
de Deus se toma filho da primeira pessoa da trindade. Pelo menos
a Escritura indica que quando a paternidade de Deus em relação
aos homens é contemplada, é especificamente o Pai quem entra
nesta relação com eles.
1. O título Pai é o nome distintivo da primeira pessoa da
trindade. Acima de tudo, este título pertence a ele em virtude das
relações das pessoas da Deidade, uma com as outras, só ele é Pai,
no mesmo sentido que só a segunda pessoa é Filho, e só a terceira
pessoa é Espírito Santo. Quando nosso Senhor falou do Pai e se
dirigiu ao Pai, foi sempre a primeira pessoa da trindade a quem ele
tinha em vista. É só a primeira pessoa que é Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo.
2. Em Jo 20.17, nosso Senhor pronunciou uma palavra muito
instrutiva. João registra que Jesus disse a Maria Madalena: “Não
me detenhas; porque ainda não subi para meu Pai, mas vai ter com
os meus irmãos, e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, para
meu Deus e vosso Deus.” E evidente que quando Jesus disse:
“ainda não subi para meu Pai”, não poderia ser nenhuma outra
senão a primeira pessoa da trindade, o Pai. E quando ele prosse­
guiu: “Subo para meu Pai”, não poderia ser nenhuma outra senão
a primeira pessoa, porque somente o Pai poderia ser chamado por
Jesus “meu Pai”. Mas a importante observação para o nosso
presente propósito é que a mesma pessoa a quem Jesus chama
“meu Pai” é também o Pai dos discípulos; o Pai para quem Jesus
estava prestes a subir não era apenas o seu Pai, mas também o Pai
dos discípulos. É a mesma pessoa do Pai, embora a sua relação
distinta com ele tenha sido cuidadosamente guardada por nosso
Senhor. Ele não disse: “Subo para o nosso Pai”, e, sim: “Subo para
meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus”.
3. Com certa freqüência Jesus chama o Pai, a primeira pessoa
da trindade: “meu Pai que está nos céus”. A forma da expressão
tem pequenas variações, porém o seu efeito é sempre o mesmo. E
falando também a seus discípulos, ele usa o mesmo tipo de
expressão: “vosso Pai que está nos céus”. Quando Jesus fala de seu
próprio Pai nos céus, ele não pode estar se referindo a nenhum
outro senão ao Pai. Por conseguinte, a similaridade da expressão
no título: “vosso Pai que está nos céus” nos levaria à conclusão de
que a mesma pessoa está em pauta, e que é o Pai quem é conside­
rado como o Pai dos discípulos.
4. No Novo Testamento em geral o título: “o Pai” é sem
dúvida alguma o nome pessoal da primeira pessoa da trindade. Nas
epístolas de Paulo, com certa freqüência, o título “Deus” é também
o nome pessoal da primeira pessoa da trindade em distinção ao
Filho e ao Espírito Santo. Em várias passagens, também, a primeira
pessoa é chamada “o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”
(Rm 15.6; II Co 1.3; 11.31; Ef 1.3; Cl 1.3; I Pe 1.3). Não pode
haver nenhuma dúvida de que este é o Pai em distinção ao Filho e
ao Espírito Santo. A mesma verdade prevalece no título: “Deus o
Pai”, ou o seu equivalente próximo (Gl 1.1; Ef 6.23; Fp 2.11; I Ts
1.1; H Ts 1.2; I Tm 1.2; H Tm 1.2; Tt 1.4; I Pe 1.2; II Pe 1.17; H
Jo 3; Jd 1; Ap 1.6). Em quase todas estas passagens Deus o Pai é
distinguido do Filho, e em I Pe 1.2, do Espírito Santo. Ora, a
observação importante para o nosso presente interesse é que,
quando Deus é chamado o Pai dos crentes, temos aí uma estreita
similaridade de expressão àquela que encontramos nos casos cita­
dos onde não pode haver nenhuma dúvida de que a pessoa em
questão, na trindade, é o Pai, a primeira pessoa. Em Rm 1.7, temos
a saudação: “Graça a vós outros e paz da parte de Deus nosso Pai
e do Senhor Jesus Cristo” (vejam-se também: I Co 1.3; II Co 1.2;
Gl 1.3; Ef 1.2; Fp 1.2; Fm 3; cf. Gl 1.4; Fp 4.20; Cl 1.2; I Ts 1.3;
3.11,13; ITs 1.1,2). Em passagens como estas, há uma similarida­
de de expressão não apenas nos títulos: “Deus Pai” e “o Deus e Pai
de nosso Senhor Jesus Cristo”, mas também na pessoa denominada
“Deus nosso Pai” é distinta de “o Senhor Jesus Cristo”. E isto
significa simplesmente que a pessoa que é chamada “nosso Pai” é
distinta do Senhor Jesus Cristo. É equivalente dizer que é o Pai
quem é nosso Pai. Nesta mesma conexão, II Ts 2.16 é uma boa
ilustração da distinção da primeira pessoa, como a pessoa em vista
na relação paternal que Deus mantém com os homens. “Ora, nosso
Senhor Jesus Cristo mesmo, e Deus nosso Pai que nos amou e nos
deu eterna consolação e boa esperança, pela graça, console os
vossos corações e os confirme em toda boa obra e boa palavra.”

Sobre a base desta evidência, somos levados à conclusão de


que quando Deus é imaginado em termos de adoção como “nosso
Pai celeste” ou “nosso Pai”, é a primeira pessoa da trindade, a
pessoa que é especificamente o Pai, a quem contemplamos. O povo
de Deus são os filhos de Deus o Pai e ele mantém para com eles o
mais sublime e o mais íntimo dos relacionamentos. Este fato exalta
a maravilha do relacionamento estabelecido por meio da adoção.
A primeira pessoa da Deidade não é apenas o Deus e Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, mas também o Deus e Pai daqueles que crêem
no nome de Jesus. Naturalmente que a relação que existe entre
Deus como Pai com seu Filho não deve ser equiparada à relação
que Deus como Pai mantém com os homens. A eterna geração não
deve ser equiparada com a adoção. Nosso Senhor mesmo guardava
esta distinção. Ele nunca incluiu os discípulos consigo mesmo, e
em comunidade com eles nunca chama o Pai de “nosso Pai”. Ele
disse a seus discípulos: “Portanto, vós orareis assim: Pai nosso que
estás nos céus” (Mt 6.9). Como matéria de fato, ele não podia orar
com eles a oração que lhes ensinou a fazer. E ele disse a Maria
Madalena: “Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso
Deus” (Jo 20.17). Porém, ainda que a relação de paternidade seja
diferente, é a mesma pessoa que é o Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo no mistério inefável da trindade que é o Pai dos crentes no
mistério de sua graça adotante. Deus o Pai não é apenas o agente
específico no ato de adoção; ele também constitui aqueles que
crêem no nome de Jesus como seus próprios filhos. Poderia alguma
coisa revelar a maravilha da adoção ou certificar a segurança de
sua possessão e privilégio mais eficazmente que o fato de que o
próprio Pai, por causa de quem e através de quem são todas as
coisas, que aperfeiçoou o Líder supremo da Salvação perfeita por
meio de sofrimentos, se toma pelos atos da graça o Pai dos muitos
filhos a quem ele conduzirá à glória? E esta é a razão por que o
próprio Líder supremo da Salvação não se envergonha de chamá­
-los irmãos, e pode exultar com alegria indizível: “Eis aqui estou
eu, e os filhos que Deus me deu” (Hb 2.13).
Capítulo 7
Santificação
As pressuposições
A santificação é um dos aspectos da aplicação da redenção.
Na aplicação da redenção há ordem, e a ordem é de progressão até
alcançar a sua culminância na liberdade da glória dos filhos de
Deus (Rm 8.21,30). A santificação não é o primeiro passo na
aplicação da redenção; ela pressupõe outros passos, tais como
vocação eficaz, regeneração, justificação e adoção. Todos estes
produzem intimamente a santificação. Os dois passos ou aspectos
que são particularmente relevantes para a santificação são a voca­
ção e a regeneração. A santificação é uma obra de Deus em nós, a
vocação e a regeneração são atos de Deus que têm seus efeitos
imediatos em nós. A vocação se dirige à nossa consciência e extrai
uma resposta de nossa consciência. A regeneração é a renovação
que se registra em nossa consciência no exercício da fé, arrepen­
dimento, amor e obediência. Há também outras considerações que
mostram a particular relevância da vocação e da regeneração no
processo de santificação. É por meio da vocação que somos unidos
a Cristo, e é esta união com Cristo que liga o povo de Deus à
eficácia e virtude por meio das quais eles são santificados. A
regeneração é operada pelo Espírito Santo (Jo 3.3,5,6,8) e por este
ato o Espírito Santo passa a habitar no povo de Deus; e nos termos
do Novo Testamento, eles se tomam “espirituais”. A santificação
é especificamente a obra do Espírito Santo que habita e dirige.
Uma consideração de suma importância, derivada da priori­
dade da vocação e da regeneração, é que o pecado é destronizado
em cada pessoa que é eficazmente chamada e regenerada. A
vocação une a Cristo (I Co 1.9), e se a pessoa chamada é unida a
Cristo, ela é unida a ele na virtude de sua morte e no poder de sua
ressurreição; ela é morta para o pecado, o velho homem foi
crucificado, o corpo do pecado foi destruído, o pecado não tem
mais domínio (Rm 6.2-6,14). Em Rm 6.14, Paulo não está sim­
plesmente fazendo uma exortação. Ele está fazendo uma declara­
ção irrefutável acerca do fato de que o pecado não terá domínio
sobre a pessoa que está debaixo da graça. Ele exorta em linguagem
semelhante no contexto, mas neste versículo ele está fazendo uma
negação enfática — “o pecado não terá domínio”. Se examinarmos
a questão do ponto de vista da regeneração, chegamos à mesma
conclusão. O Espírito Santo é o Agente controlador e diretor em
cada pessoa regenerada. Por conseguinte, o princípio fundamental,
a disposição governante, o caráter prevalecente de cada pessoa
regenerada é a santidade — ela é “espiritual” e se deleita na lei do
Senhor segundo o homem interior (I Co 2.14,15; Rm 7.22). Este
deve ser o sentido quando João fala da pessoa regenerada como
aquela que “não vive na prática do pecado” e “não vive em pecado”
(I Jo 3.9; 5.18). Não é que ela seja impecável (cf. I Jo 1.8; 2.1).
Certamente que o que João está enfatizando é o fato de que a pessoa
regenerada não pode cometer o pecado que é para morte (I Jo 5.16),
não pode negar que Jesus é o Filho de Deus e que ele veio na carne
(I Jo 4.1-4), não pode entregar-se novamente à iniqüidade, ela
guarda a si mesma e o maligno não lhe toca. Maior é aquele que
está no crente do que aquele que está no mundo (I Jo 4.4).
Devemos apreciar este ensino da Escritura. Todos os que são
eficazmente chamados por Deus e regenerados pelo Espírito têm
garantida a vitória nos termos de Rm 6.14; I Jo 3.9; 5.4,18. E esta
vitória, ou é real ou não é coisa alguma. E uma reflexão sobre e
uma deflexão do penetrante testemunho do Novo Testamento a
falar desta vitória como meramente latente ou ideal. É tão real e
prática como os demais valores compreendidos na aplicação da
redenção.
No que diz respeito a esta libertação do domínio do pecado,
esta vitória sobre o poder do pecado deve-se igualmente reconhe­
cer que ela não é realizada por um processo, nem pelos nossos
esforços ou atividades para esse fim. Ela é conquistada uma vez
por todas por meio da união com Cristo e da graça regeneradora
do Espírito Santo. Os perfeccionistas têm razão quando insistem
que esta vitória não é alcançada por nós pelas atividades, pelos
esforços ou pelas lutas; eles têm razão quando insistem que a
vitória é um ato momentâneo, realizado por meio da fé. Porém,
eles também cometem três equívocos radicais, equívocos estes que
distorcem toda a sua doutrina da santificação.
(1) Eles deixam de reconhecer que esta vitória é a possessã
de todos os que são nascidos de novo e eficazmente chamados. (2)
Eles constróem a vitória como uma bênção separada do estado de
justificação. (3) Eles a representam como algo muito diferente do
modo como a Escritura a representa — eles a retratam como
libertação da prática do pecado ou libertação da consciência do
pecado. E errôneo usar estes textos para apoiar qualquer outro
ponto de vista da vitória requerida além daquele ensinado na
Escritura, ou seja, ruptura radical com o poder e com o amor do
pecado que é necessariamente a possessão de cada pessoa que se
uniu a Cristo. A união com Cristo é a união com ele na eficácia da
sua morte e na virtude da sua ressurreição — aquele que assim
morreu e ressuscitou com Cristo é liberto do pecado, e o pecado
não exercerá o seu domínio.
A preocupação da santificação
J3sta libertação do poder do pecado, garantida pela união com
Cristo, e da contaminação do pecado, garantida pela regeneração,
não elimina todo o pecado do coração e da vida do crente. Existe
ainda pecado em nosso interior (cf. Rm 6.20; 7.14-25; I Jo 1.8;
2.1). O crente ainda não é tão conforme à imagem de Cristo para
que ele seja santo, inculpável, sem mácula e separado dos pecado­
res. A santificação se preocupa precisamente com este fato, e ela
tem como seu alvo a eliminação de todo pecado e a completa
conformidade com a imagem do próprio Filho de Deus, para ser
santo como o Senhor é santo. Se levamos a sério o conceito de total
santificação, ficamos fechados para a conclusão de que ela não será
concluída até que este corpo de humilhação seja transformado na
semelhança do corpo da glória de Cristo, quando o corruptível se
revestirá da incorruptibilidade, e o mortal se revestirá da imortali­
dade (Fp 3.21; I Co 15.54).
Devemos apreciar a gravidade daquilo que é a preocupação
da santificação. Há diversos aspectos pelos quais isto deve ser
considerado.
1) Todo pecado no crente é o oposto da santidade de Deus.
pecado não muda o seu caráter como tal ein virtude de a pessoa
em quem ele habita e por quem ele é praticado ser um crente. É
verdade que o crente mantém uma nova relação com Deus. Não
há nenhuma condenação judicial contra ele, e a ira judicial de Deus
não repousa sobre ele (Rm 8.1). Deus é o seu Pai e ele é filho de
Deus. O Espírito Santo habita nele e é o seu Advogado. Cristo é o
Advogado do crente junto ao Pai. Porém, o pecado que habita no
crente e o qual ele comete é de tal caráter que merece a ira de Deus,
e o desagrado paternal de Deus é evocado por esse pecado. O
restante, a permanência do pecado é, portanto, o oposto de tudo o
que crente é como pessoa regenerada e filha de Deus. É o oposto
de Deus mesmo em cuja imagem ele foi recriado. Sentimos o
tremor da solicitude do apóstolo quando diz: “Filhinhos meus,
estas coisas vos escrevo para que não pequeis” (I Jo 2.1). Para que
não haja qualquer disposição de o pecador ficar satisfeito com o
status quo, deliciar-se com o pecado ou transformar a graça de
Deus em licenciosidade, João é zeloso em conclamar os crentes a
terem em mente que todos os que têm esperança em Deus “a si
mesmos se purificam... assim como ele é puro” (I Jo 3.3), e que
tudo quanto está no mundo, “a concupiscência da carne, a concu­
piscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas
procede do mundo” (I Jo 2.16).
2) A presença do pecado no crente envolve conflito em s
coração e vida. Se há resquícios e há insistência do pecado, deve
permanecer o conflito de que Paulo fala em Rm 7.14-25. É uma
futilidade argüir que este conflito não é normal. Se ainda resta em
qualquer grau pecado naquele que é habitado pelo Espírito Santo,
então haverá tensões, sim, contradição no .oração dessa pessoa.
Deveras, quanto mais santificada é a pessoa, quanto mais confor­
mada à imagem de seu Salvador ela é, muito mais deve ela
retroceder contra toda falta de conformidade com a santidade de
Deus. Quanto mais profunda é a sua percepção da majestade de
Deus, maior será a intensidade de seu amor a Deus; quanto maior
a sua persistência na busca de alcançar o prêmio da sublime
vocação de Deus em Cristo, maior será a sua consciência da
seriedade do pecado que permanece nela, e mais penetrante será
sua repugnância por ele. Quanto mais íntima ela se faz do mais
santo de todos, e mais ela entende a sua pecaminosidade, então
deve clamar: “Desventurado homem que sou! ” (Rm 7.24). Não foi
este o efeito em todo o povo de Deus quando se aproximou mais
da revelação da santidade de Deus? “Ai de mim! Estou perdido!
porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo
de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos
Exércitos” (Is 6.5). “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus
olhos te vêem. Por isso me abomino, e me arrependo no pó e na
cinza” (Jó 4.2.5,6). A verdadeira santificação bíblica não tem
nenhuma afinidade com a permissividade que ignora ou deixa de
levar em conta a pecaminosidade de toda falta de conformidade
com a imagem daquele que é santo, inculpável e sem mácula.
“Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste”
(Mt 5.48).
3) Deve haver uma constante e crescente apreciação de qu
embora o pecado ainda permaneça, ele não tem o domínio. Há uma
total diferença entre o pecado sobrevivente e o pecado reinante, o
regenerado em conflito com o pecado e o não-regenerado tolerante
para com o pecado. Uma coisa é o pecado viver em nós; outra bem
diferente é vivermos no pecado. Uma coisa é o inimigo ocupar a
capital; outra bem diferente é suas milícias derrotadas molestarem
os soldados do reino. É de suma importância para o cristão e para
os interesses de sua santificação, que ele saiba que o pecado não
tem domínio sobre ele, que as forças da graça redentiva, regenera­
dora e santificadora têm sido produzidas para gerar nele aquilo que
é central em seu ser moral e espiritual, ou seja, o templo de Deus
através do Espírito, e que Cristo foi formado nele como a esperança
da glória. Isto equivale dizer que ele deve considerar-se morto para
o pecado, porém vivo para Deus em Cristo Jesus seu Senhor. E a
fé neste fato que fornece a base e o incentivo para cumprir a
exortação: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal,
de maneira que obedeçais às vossas paixões, nem ofereçais cada
um os membros do seu corpo ao pecado como instrumento de
iniqüidade; mas oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os
mortos, e os vossos membros a Deus como instrumentos de
justiça” (Rm 6.12,13). Nesta matéria o indicativo está na base do
imperativo e a nossa fé de fato é indispensável para a execução do
dever. A fé de que o pecado não terá domínio é a dinâmica em
servir à justiça e a Deus para que possamos produzir fruto para a
santidade e por fim a vida eterna (Rm 6.17,22). A preocupação da
santificação é que o pecado seja mais e mais mortificado e que a
santidade seja auto-existente e cultivada.

O agente da santificação
E preciso ter na lembrança que em última análise não santi­
ficamos a nós mesmos. É Deus quem nos santifica (I Ts 5.23).
Especificamente, o Espírito Santo é o agente da santificação. Nesta
conexão, certas observações precisam ser feitas.
1) O modo pelo qual o Espírito opera na santificação é
cercado de mistério. Não conhecemos como o Espírito habita nem
o seu modo de operar eficazmente nos corações, mentes e vontades
do povo de Deus pelo que eles são progressivamente purificados
da imundícia do pecado e transfigurados mais e mais segundo a
imagem de Cristo. Embora não devamos preconceber o fato de que
a obra do Espírito em nossos corações se reflete em nossas percep­
ções e consciências; embora não devamos relegar a santificação
ao reino do subconsciente e deixar de reconhecer que a santificação
atrai para dentro de sua órbita o campo todo de nossa atividade
consciente, todavia devemos apreciar também o fato de que há uma
agência da parte do Espírito Santo que ultrapassa a análise ou a
introspecção de nossa parte. Os efeitos desta constante e ininter­
rupta agência manifestam-se dentro da área de nossa consciência
em termos de entendimento, sentimento e vontade. Porém, não
devemos supor que a medida de nosso entendimento ou experiên­
cia seja a medida das operações do Espírito. Em cada expressão
distinta e particular do crente, em termos de santidade, há uma
atividade energizante por parte do Espírito Santo, e quando tenta­
mos descobrir qual o modo daquele exercício de sua graça e poder
é que compreendemos quão longe estamos de ser capazes de
diagnosticar as operações secreias do Espírito.
2) É imperativo que entendamos a nossa completa dependên­
cia do Espírito Santo. Naturalmente, não devemos esquecer que a
nossa atividade é incluída, em toda a sua extensão, no processo de
santificação. Mas não devemos confiar em nossa própria força de
resolução ou propósito. Porque quando somos fracos, então é que
somos fortes. É pela graça que estamos sendo salvos, tão certo
como é pela graça quefomos salvos. Se não formos aguçadam ente
sensibilizados acerca de nossa própria necessidade, então podemos
fazer uso dos meios de santificação para desenvolver a auto-justiça
e o orgulho espiritual, e assim frustrar o propósito da santificação.
Devemos confiar, não nos meios de santificação, e, sim, no Deus
de toda graça. Um moralismo auto-confiante promove o orgulho,
mas a santificação promove a humildade e a contrição.
3) É como o Espírito de Cristo e como o Espírito daquele q
ressuscitou Cristo dentre os mortos que o Espírito Santo santifica.
Não podemos imaginar o Espírito operando em nós à parte do
Cristo ressurreto e glorificado. O processo de santificação não é
apenas dependente da morte e ressurreição de Cristo em sua
iniciação; é também dependente da morte e ressurreição de Cristo
em seu prosseguimento. É pela eficácia e virtude que procedem do
Senhor exaltado que a santificação prossegue, e esta virtude per­
tence ao Senhor exaltado em virtude de sua morte e ressurreição.
E esta virtude é comunicada pelo Espírito. Talvez o texto mais
importante nesta conexão seja II Co 3.17,18, onde Paulo diz que
o Senhor é o Espírito, e logo em seguida indica que o processo
transformador pelo qual somos transformados na imagem do Se­
nhor é pelo “o Espírito do Senhor”, ou, talvez mais corretamente:
“o Senhor do Espírito”. Seja como for, podemos interpretar a
expressão no fim do v. 18, ficando evidente que a obra santificadora
do Espírito consiste não apenas na conformação progressiva da
imagem de Cristo, mas também é dependente da atividade do
Senhor exaltado (cf. I Co 15.45). É prerrogativa peculiar e função
do Espírito Santo glorificar a Cristo, ao falar das coisas de Cristo
e anunciá-las ao povo de Deus (cf. Jo 16.14,16; II Co 3.17,18). É
como Espírito habitante e como Advogado dos crentes que ele
realiza esta obra (Jo 14.16,17).
Os meios de santificação
Embora sermos constantemente dependentes da agência su­
pernatural do Espírito Santo, devemos também levar em conta o
fato de que a santificação é um processo que atrai para dentro de
sua órbita a vida consciente daquele que crê. Os santificados não
são passivos ou inativos neste processo. Nada mostra isto mais
claramente do que a exortação do apóstolo: “Desenvolvei a vossa
salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós
tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp
2.12,13). A salvação aqui referida não é aquela que já possuímos,
e, sim, a salvação escatológica (cf. I Ts 5.8,9; I Pe 1.5,9; 2.2). E
nenhum outro texto demonstra mais suscinta e claramente a rela­
ção entre a obra de Deus e a nossa participação. A obra de Deus
em nós não é suspensa em virtude da nossa atividade e nem a nossa
atividade é suspensa em virtude da atividade de Deus. Tampouco
é a relação estritamente uma cooperação como se fizesse Deus sua
parte e nós o resto, para que a combinação ou coordenação de
ambos produza o desejado resultado. Deus opera em nós e nós
também operamos. Porém, a relação é baseada no fato de que
porque Deus opera nós operamos. Toda e qualquer operação da
salvação, de nossa parte, é o efeito da operação de Deus em nós;
não o querer excluindo o fazer e nem o fazer excluindo o querer,
e, sim, ambos, tanto o querer como o fazer. E esta operação de
Deus é dirigida com o fim de capacitar-nos a querer e fazer aquilo
que lhe é bom e agradável. Temos aqui não somente a explicação
de toda atividade aceitável de nossa parte, mas também o incentivo
para o nosso querer e fazer. O que o apóstolo está frisando é a
necessidade de desenvolver a nossa própria salvação, e o encora­
jamento que ele oferece é a certeza de que é o próprio Deus quem
opera em nós. Quanto mais persistentemente ativos somos em agir,
mais persuadidos podemos ser de que toda a graça e o poder
energizantes vêm de Deus.
A Escritura está impregnada de exortações que impelem à
ação e têm a grande finalidade de fazer-nos lembrar de que a
totalidade de nosso ser é intensamente ativa nesse processo que
tem por alvo o propósito predestinador de Deus de levar-nos à
conformidade com a imagem de seu Filho (Rm 8.29). Paulo
escreveu aos Filipenses: “E também faço esta oração: que o vosso
amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda percep­
ção, para aprovardes as coisas excelentes e serdes sinceros e
inculpáveis para o dia de Cristo, cheios do fruto de justiça, o qual
é mediante Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus” (Fp
1.9-11). E Pedro, de forma semelhante: “Por isso mesmo, vós,
reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude;
com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio
próprio; com o domínio próprio, a perseverança; com a perseve­
rança, a piedade; com a piedade, a fraternidade; com a fraternidade,
o amor. Porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentan­
do, fazem com que não sejais nem inativos, nem infrutuosos no
pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo” (II Pe 1.5-8).
E desnecessário multiplicar as citações. O Novo Testamento está
juncado com esta ênfase (cf. Rm 12.1-3; 9.21; 13.7-14; II Co 7.1;
G1 5.13-16,25,26; Ef 4.17-32; Fp 3.10-17; 4.4-9; Cl 3.1-25; I Ts
5.8-22; Hb 12.14-16; 13.1-9; Tg 1.19-27; 2.14-26; 3.13-18; I Pe
1.13-25; 2.11-13,17; H Pe 3.14-18; I Jo 2.3-11; 3.17-24). A santi­
ficação envolve a concentração do pensamento, do interesse, do
coração, mente, vontade e propósito, em direção à soberana voca­
ção de Deus em Cristo Jesus e ao desempenho da totalidade de
nosso ser no uso daqueles meios que Deus instituiu com o fim de
atingir essa destinação. A santificação é a santificação de pessoas,
e pessoas não são máquinas; é a santificação de pessoas renovadas
segundo a imagem de Deus em conhecimento, justiça e santidade.
O prospecto que ela oferece é que conheçamos como nós somos
conhecidos e que sejamos santos como Deus é santo. “E a si mesmo
se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é
puro” (I Jo 3.3).
C apítulo 8
Perseverança
A experiência, a observação, a história bíblica e certas passa­
gens da Escritura, à primeira vista, parecem provar que existem
argumentos fortes contra a doutrina que tem sido denominada: A
Perseverança dos Santos. Não é o registro bíblico, bem como a
história da Igreja saturados com exemplos daqueles que naufraga­
ram na fé? E não lemos também que: “É impossível, pois, que
aqueles que uma vez foram iluminados e provaram o dom celestial
e se tomaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa
palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim,
é impossível outra vez renová-los para arrependimento”? (Hb
6.4-6). E o Senhor mesmo não disse: “Eu sou a videira verdadeira,
e o meu Pai é o agricultor. Todo ramo que, estando em mim, não
der fruto, ele o corta... Se alguém não permanecer em mim, será
lançado fora à semelhança do ramo, e secará”? (Jo 15.1,2,6). Sim,
à luz dos fatos da história e de passagens bíblicas como aquelas
citadas, devemos afirmar que a interpretação da Escritura acerca
de questões como estas não é uma tarefa para indolentes. O que
significa apostasia? O que a Escritura quer significar pela expres­
são: caíram?
A fim de expor a doutrina da perseverança à clara luz,
precisamos saber o que ela não é. Não significa que todos aqueles
que professam fé em Cristo e que são aceitos como crentes na
comunhão dos santos estão seguros para a eternidade e podem
nutrir a certeza da salvação eterna. Nos dias de sua carne, nosso
Senhor mesmo advertiu os seus seguidores quando disse aos
judeus que creram nele: “Se vós permanecerdes na minha palavra,
sois verdadeiramente os meus discípulos; e conhecereis a verdade
e a verdade vos libertará” (Jo 8.31,32). Ele estabeleceu um critério
pelo qual os verdadeiros discípulos poderiam ser identificados, e
este critério é permanente na palavra de Jesus. E é justamente o
que descobrimos noutra parte quando Jesus disse: “Aquele, porém,
que perseverar até ao fim, esse será salvo” (Mt 10.22). Este é o
critério aplicado também na epístola aos Hebreus quando o escritor
disse: “Porque nos temos tomado participantes de Cristo, se de fato
guardarmos firmes até ao fim a confiança que desde o princípio
tivemos” (Hb 3.14). Esta mesma lição é a enfatizada no ensino de
Jesus em João 15 em conexão com a parábola da videira e seus
ramos. “Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora à
semelhança do ramo, e secará” (Jo 15.6). A prova crucial de fé
verdadeira é perseverar até ao fim, permanecendo em Cristo e se
conservando em sua palavra.
Esta ênfase da Escritura deve ensinar-nos duas verdades. (1)
Ela nos fornece a interpretação da palavra “caíram”, da apostasia.
E possível oferecer todos os sinais exteriores de fé em Cristo e
obediência a ele, testemunhar por algum tempo a boa confissão e
mostrar grande zelo por Cristo e seu reino e, depois, perder todo o
interesse e tomar-se indiferente, se não hostil, às reivindicações de
Cristo e seu reino. E a lição da semente que caiu em solo rochoso
— a semente nasceu e cresceu, porém, em saindo o sol, ela ficou
queimada e não produziu nenhum fruto para a perfeição (cf. Mc
4.5,6,16,17). Há, naturalmente, uma grande porção de variação
dentro desta classe de pessoas. Alguns aparentam convertidos, por
pouco tempo se agitam com entusiasmo, e, de repente, se esfriam.
Desaparecem da comunhão dos santos. Outros não revelam o
mesmo entusiasmo, a sua identificação com a fé de Cristo nunca
teve um caráter acentuado. Porém, no decorrer do tempo, a sua fé
se toma precariamente enfraquecida e, finalmente, é completa­
mente extinta — eles não mais andam no caminho dos justos. (2)
Devemos apreciar a altitude e a longitude a que uma fé temporária
pode levar aqueles que a têm. Este fato desperta a nossa atenção,
em certa medida, para a parábola do semeador. Aqueles que são
comparados à semente que caiu no solo rochoso receberam a
palavra com alegria e prosseguiram nessa experiência alegre por
algum tempo. Nos termos da similitude, existiu a erva e às vezes
a espiga. Não há somente germinação; há também crescimento. O
único defeito é que não existe o grão cheio na espiga. Para maiores
detalhes, este fato é destacado na linguagem da epístola aos
Hebreus onde fala daqueles “que uma vez foram iluminados e
provaram o dom celestial e se tomaram participantes do Espírito
Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo
vindouro” (Hb 6.4,5). Sentimo-nos pasmos ante a vista dos termos
desta descrição aplicável àqueles que podem cair. Todavia, tal
descrição nos adverte quanto às forças que são operantes no reino
de Deus e à influência que essas forças podem exercer sobre
aqueles que finalmente demonstram que nunca foram radical e
salvificamente tocados por elas. É acerca desse mesmo fato de
apostasia da fé que Pedro trata em II Pe 2.20-22. Não pode haver
dúvida de que Pedro tinha em vista as pessoas que adquiriram
conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo, que tinham
conhecimento do caminho da justiça e que por meio dele escapa­
ram das contaminações do mundo, porém voltaram a enredar-se
novamente nessas contaminações e apartaram-se do santo manda­
mento que lhes fora dado. “Com eles aconteceu o que diz certo
adágio verdadeiro: O cão voltou ao seu próprio vômito; e: a porca
lavada voltou a revolver-se no lamaçal.” Portanto, a Escritura
mesma nos conduz à conclusão de que é possível ter-se a experiên­
cia sublime, enobrecedora, reformadora e exultante do poder e da
verdade do evangelho, entrar em estreito contato com as forças
supernaturais que operam no reino da graça de Deus, essas forças
produzem tal efeito em nós que, aos olhos humanos, são dificil­
mente distinguidas daquelas produzidas pela graça regeneradora e
santificadora de Deus, e ainda não ser participante de Cristo e
herdeiro da vida eterna. Uma doutrina da perseverança que deixe
de reconhecer tal possibilidade e a realidade em certos casos é
distorcida e promove uma indolência que fere os interesses da
perseverança. Na verdade, isto não é nenhuma doutrina da perse­
verança.

Isto nos conduz a uma melhor compreensão da adequação e


expressividade da designação: A Perseverança dos Santos. Não é
melhor para os interesses da doutrina envolvida substituir a desig­
nação por: A Segurança do Crente, não porque este último seja
errôneo em si mesmo, mas porque a primeira fórmula é muito mais
cuidadosa e inclusivamente estruturada. A própria expressão: A
Perseverança dos Santos se protege contra toda e qualquer noção
ou sugestão no sentido de que o crente está seguro, quer dizer,
seguro quanto à sua salvação eterna, independentemente da exten­
são em que possa cair em pecado e apostatar da fé e santidade. Ela
impede qualquer artimanha que possa descrever o status do crente,
pois essa maneira de expressar a doutrina pode ser perniciosa e
perversa. Não é verdade que o crente está seguro, por mais insig­
nificante que venha a ser sua queda em pecado e infidelidade. Por
que isto não é verdade? Não é verdade porque ela estabelece uma
combinação impossível. É verdade que o crente peca; ele pode cair
em pecado grave e afastar-se por longo tempo. Contudo, é também
verdade que o crente não pode entregar-se ao pecado; ele não pode
permanecer sob o domínio do pecado; ele não pode ser culpado de
certos tipos de infidelidade. Portanto, é completamente errôneo
afirmar que um crente está seguro, independentemente de sua vida
subseqüente de pecado e infidelidade. A verdade é que a fé em
Jesus Cristo é sempre respectiva à vida de santidade e fidelidade.
Por isso, não é apropriado imaginar um crente sem levar em conta
o contexto dos frutos de fé e santidade. Afirmar que o crente está
seguro, qualquer que seja a extensão de sua entrega ao domínio do
pecado em sua vida subseqüente, é abstrair a fé em Cristo da sua
própria definição e introduzir aquele abuso que transforma a graça
de Deus em libertinagem. A doutrina da perseverança é a doutrina
de que os crentes perseveram; deve-se enfatizar insistentemente
que ela é a perseverança dos santos. E isto significa que os santos,
aqueles que são unidos a Cristo por meio do chamamento eficaz
do Pai e que são habitados pelo Espírito Santo, hão de perseverar
até ao fim. Se eles perseveram, eles sofrem com paciência, eles
prosseguem. Ela não ensina que serão salvos independentemente
de sua perseverança ou de seu prosseguimento, mas que eles
seguramente hão de perseverar. Conseqüentemente, a segurança
que é sua é inseparável da sua perseverança. Não foi isso o que
Jesus disse? “Aquele, porém, que perseverar até ao fim, esse será
salvo” (Mt 24.13).

É neste mesmo sentido que Pedro escreve sobre aqueles que


têm uma viva esperança “para uma herança incorruptível, sem
mácula, imarcescível, reservada nos céus”. São aqueles que são
“guardados pelo poder de Deus, mediante a fé para a salvação
preparada para revelar-se no último tempo” (I Pe 1.4,5). Há três
verdades que merecem destaque especial: (1) eles são guardados;
(2) eles são guardados mediante, a fc; (3) eles são .guardados até à
consumação final, para a salvação preparada para revelar-se no
último tempo. Eles não são guardados por pouco tempo, e, sim,
até ao fim; e não são guardados independentemente de sua fé, e,
sim, mediante a fé. Portanto, não nos refugiemos na indolência
nem nos encorajemos à permissividade da arbitrária doutrina da
segurança do crente. Antes, apreciemos a doutrina da perseverança
dos santos e reconheçamos que podemos nutrir a fé de nossa
segurança em Cristo somente na medida em que perseveramos na
fé e santidade até ao fim. Outra coisa Paulo não tinha em mente
senão o alvada ressurreição para a vida e glória, quando escreveu:
“Irmãos, quantCLa mim^JLão julgo havê-lo alcançado; mas, uma
coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avan-
çando para as que diante de mim estão, prgssigo„para o alvo, para.
o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Fp
3.13,14). ......
A. perseverança dos santos nos lembra mui forçosamente de
que somente aqueles que perseveram até .ao fim é que são os
verdadeiros santos. Não alcançamos o prêmio da soberana vocação
de Deus em Cristo Jesus automaticamente. A perseverança signi­
fica o empenho de nossa pessoa na mais intensa e concentrada
devoção aos meios que Deus ordenou para a realização de seu
propósito salvífico. A doutrina bíblica da perseverança não tem
nenhuma afinidade com o quietismo e antinomianismo que são tão
prevalecentes nos círculos evangélicos.
Porém, embora seja verdade que somente aqueles que perse­
veram são santos, uma interrogação permanece: os santos hão de
perseverar mesmo? É ordenado e providenciado por Deus que
aqueles que verdadeiramente crêem em Cristo hão de perseverar
até ao fim? A resposta a estas perguntas é um sim enfático. Neste
ponto, éâgualmente importante que neguemos o conceito arminia­
no de_quejQS santos podem “cair da graça”, e que reajamos contra
a pretensão e libertinagem do antinomianismo.
É certamente verdade que a expressão “da graça decaístes”
encontra-se na Escritura (G1 5.4). Porém, Paulo, aqui, não está
lidando com a questão se o crente pode ou não cair do favor da
graça de Deus e por fim perecer; antes, ele trata da apostasia da
pura doutrina da justificação pela graça em oposição à justificação
pelas obras da lei. O que Paulo, na realidade, está falando, é que
se buscarmos a justificação pelas obras da lei, seja qual for o grau
ou forma, então teremos abandonado ou caído completamente da
justificação pela graça. Não podemos admitir uma mistura de graça
e obra na justificação; é uma ou outra. Se injetarmos obra em
qualquer grau, então teremos abandonado a graça e somos obriga­
dos a praticar toda a lei (cf. G1 5.3). Este ensino de Paulo é
pertinente à questão da perseverança como um todo. Pois, não há
nenhum outro artigo de nossa fé mais importante na promoção da
perseverança do que a doutrina da justificação somente pela graça
através da fé somente. Porém, Paulo não está lidando aqui coin os
crentes que caem da graça de Deus. Isto seria inconsistente com
os claros ensinos do próprio Paulo nas demais epístolas. Deveras,
é nos próprios ensinos do apóstolo onde procuramos antes de tudo
estabelecer a posição de que os santos hão de perseverar.
Quem são os “santos” segundo os termos do Novo Testamen­
to? São aqueles que são chamados para serem santos, para serem
de Jesus Cristo (Rm 1.6,7). É absolutamente impossível separar o
que no Novo Testamento significa santidade da vocação eficaz,
por meio da qual os pecadores são introduzidos na comunhão de
Jesus Cristo (I Co 1.9). Perguntemos agora: No ensino de Paulo,
quais são as relações deste chamamento que constituem um peca­
dor em santo? Ele nos dá a resposta em Rm 8.28-30. Temos aqui
uma corrente inquebrável de eventos procedentes do propósito
eterno de Deus na presciência e presdestinação para a glorificação
do povo de Deus. É impossível remover a vocação deste contexto.
Os chamados o são segundo o propósito (v.28); o propósito
antecede a vocação. E isso é o que Paulo repete nos vv. 29 e 30,
onde ele expõe o propósito de Deus em termos de presciência e
predestinação — “Aos que de antemão conheceu, também os
predestinou... e aos que predestinou, a esses também chamou”.
Ainda mais, assim como a vocação tem os seus antecedentes na
presciência e predestinação, também tem os seus conseqüentes na
justificação e glorificação — “E aos que chamou, a esses também
justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou” (v.30).
Em conexão com o assunto em pauta, não podemos esquivar-nos
da importância deste texto. Aqueles que agora ocupam a nossa
atenção são os santos, os chamados para serem de Jesus Cristo;
aqueles que são justificados pela fé em Jesus Cristo. O verdadeiro
cristão não pode ser definido em termos inferiores aos daqueles
que foram chamados e justificados. E, portanto, a pergunta é esta:
pode alguém que foi chamado e justificado cair e não alcançar a
salvação eterna? A resposta de Paulo é inevitável — os chamados
e justificados hão de ser glorificados. Semelhantemente, se pros­
seguirmos noutra direção, obteremos o mesmo resultado. Os cha­
mados são aqueles que foram predestinados para serem
conformados à imagem do Filho de Deus (v.29). É possível
conceber que os propósitos da predestinação de Deus sejam frus­
trados? Nem mesmo um arminiano ousaria tanto. Pois ele crê que
Deus predestina para a salvação eterna àquele a quem ele prevê
que perseverará e finalmente será salvo.
Precisamos apreciar o que está em jogo nesta controvérsia.
Se os santos podem cair e ser finalmente perdidos, então os
chamados e justificados podem cair e ser perdidos. Porém, isto é
o que o apóstolo inspirado diz que não acontecerá e nem pode
acontecer — aos que Deus chama e justifica, a esses também
glorifica. E esta glorificação nada menos é do que a conformidade
com a imagem do próprio Filho de Deus. Isto é aquilo de que Paulo
fala quando afirma que Deus “transformará o nosso corpo de
humilhação, para ser igual ao corpo da sua glória [=de Cristo]” (Fp
3.21), e o que ele chama em Rm 8.23 “a adoção de filhos, a
redenção do nosso corpo”. A negação da perseverança dos santos
destrói a importância implícita do ensino do apóstolo.
O argumento em favor da perseverança dos santos poderia ter
por base este único texto. Porém, a Escritura nos fornece confir­
mação adicional. Convém lembrar as palavras daquele que falou
como nenhum outro homem; que desceu do céu a fim de fazer a
vontade daquele que o enviou, e que nenhum daqueles que o Pai
lhe deu se perderá, senão que todos serão ressuscitados no último
dia (Jo 6.39). Certamente que não haverá ninguém que negue que
o santo, segundo os termos do Novo Testamento, é aquele que crê
em Cristo. Um santo é um crente. E o que é que Jesus diz a respeito
de um crente? “De fato, a vontade de meu Pai é que todo homem
que vir o Filho e nele crer tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei
no último dia” (Jo 6.40). Podemos nutrir ainda que a mais remota
suspeita de que a vontade do Pai pode ser frustrada? Jesus aqui nos
assegura que não haverá nenhuma possibilidade. Ele mesmo nos
define a conseqüência. Ele não diz apenas que é da vontade do Pai
que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna, mas também que
ele o ressuscitará no último dia. E para que não haja dúvida quanto
ao caráter desta ressurreição no último dia, ele nos informa no
versículo anterior que a ressurreição no último dia é contrastada
com a perda de tudo o que o Pai lhe deu. Em outras palavras, a
ressurreição no último dia, da qual Jesus está aqui falando, é a
ressurreição que é associada à garantia de que ele não perderá
nenhum dos que o Pai lhe deu — “E a vontade de quem me enviou
é esta: Que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo
contrário, eu o ressuscitarei no último dia” (v.39). E Jesus não nos
dá uma garantia muito direta, no sentido de que o crente não pode
perecer, quando disse: “E o que vem a miin, de modo nenhum o
lançarei fora”? (v.37). Vir a Jesus é simplesmente crer nele. E a
segurança que Jesus prevê e garante continua até à ressurreição
para a vida no último dia.
Porém, isto não é tudo. É necessário que examinemos mais
de perto estes discursos de Jesus que se encontram no Evangelho
segundo João. Jesus também disse: “Todo aquele que o Pai me dá,
esse virá a mim” (Jo 6.37). Sempre que há uma doação da parte do
Pai, há uma conseqüência ou concomitância inevitável do vir a
Cristo, isto é, de crer nele. Porém, é igualmente verdadeiro que
sempre que há o vir a Cristo, há também a doação da parte do Pai,
pois Jesus também diz que ninguém pode vir a ele, se o Pai não o
trouxer (6.44) e se não for dado pelo Pai (Jo 6.65). Neste discurso
temos de considerar a doação de homens a Cristo e o ato de trazer
homens a Cristo por parte do Pai como dois aspectos do mesmo
evento, duas maneiras em que o mesmo evento pode ser conside­
rado. Este ato de o Pai trazer mostra o evento como uma ação
exercida sobre os homens, o ato de dar a Cristo como doação do
Pai ao Filho. É impossível pensar nelas separadamente. Em resu­
mo, ninguém pode vir a Cristo senão pela doação do Pai ao Filho.
Já descobrimos nas palavras expressas por Jesus que cada um dos
doados vem a Cristo e crê nele. Por conseguinte, dar pelo Pai e vir
a Cristo por parte dos homens são inseparáveis — um não pode
existir sem o outro, e onde quer que um esteja o outro também está.
Ora, se examinarmos Jo 10, descobriremos, neste contexto, a
confirmação conclusiva da verdade de que os crentes não podem
perecer. Jesus outra vez está falando daqueles que lhe foram dados
pelo Pai. Não podemos dissociar a doação mencionada aqui da­
quela mencionada em Jo 6, ainda que Jesus introduz uma nova
designação para caracterizar as pessoas em questão, ou seja, que
elas são as suas ovelhas. O que é que Jesus diz? “Aquilo que meu
Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode
arrebatar. Eu e o Pai somos um” (Jo 10.29-30). Quando indagamos
a respeito da força desta afirmação de que ninguém pode arrebatar
da mão do Pai, descobrimos nas palavras precedentes de Jesus:
“Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, eternamente, e
ninguém as arrebatará da minha mão” (10.28). Obviamente, o que
Jesus está ensinando é a segurança infalível daqueles que lhe foram
dados pelo Pai — “jamais perecerão”. E a mesma segurança é
garantida pelo fato de que ninguém as arrebatará da sua mão. É
para confirmar esta verdade que ele acrescenta: “Aquilo que meu
Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode
arrebatar.” A garantia da preservação infalível é que as pessoas
dadas ao Filho estão na mão do Filho, e ainda que dadas ao Filho,
continuam misteriosamente na mão do Pai. Da mão de ambos
ninguém pode arrebatá-las. Esta é a herança daqueles que foram
dados pelo Pai.
Mas devemos ainda lembrar de que todos aqueles que foram
dados a Cristo pelo Pai vêm a Cristo, isto é, crêem nele, e todos os
que crêem nele são aqueles que lhe foram dados. Portanto, não é
simplesmente aqueles que foram dados a Cristo pelo Pai que são
mencionados em Jo 10.28,29; ele está também falando dos crentes.
Descobrimos pelas passagens de Jo 6 que aqueles que foram dados
são crentes, e os crentes são aqueles que foram dados. Por conse­
guinte, de todos os crentes, isto é, de todos os que vêm a Cristo
nos termos de Jo 6.37,44,45,65, pode-se dizer com toda a autori­
dade daquele que é a verdade, o verdadeiro Deus e a vida eterna,
que os crentes no nome de Jesus jamais perecerão — eles ressus­
citarão no último dia para a vida de bem-aventurança. Na lingua­
gem de Paulo, hão de “alcançar a ressurreição dentre os mortos”
(Fp 3.11).
Não encontramos nesta verdade uma razão nova para mara­
vilhar-nos da graça de Deus e da imutabilidade de seu amor? Ela
é a indissolubilidade do elo da aliança oa graça de Deus que
sustenta este artigo precioso de nossa fé. “Porque os montes se
retirarão, e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia
não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida,
diz o Senhor, que se compadece de ti” (Is 54.10).
Capítulo 9
União com Cristo
Nestes estudos estamos tratando da aplicação da redenção.
Os leitores inteligentes podem estar perguntando por que não se
discutiu até aqui sobre a união com Cristo. Obviamente, é um
aspecto importante da aplicação da redenção, e se não o levásse­
mos em conta, não somente a nossa apresentação da aplicação da
redenção seria deficitária, mas também o nosso conceito de vida
cristã seria gravemente distorcido. Não há nada mais central ou
básico do que a união e comunhão com Cristo.
Porém, há uma boa razão por que o tema da união com Cristo
não deve ser coordenado com as outras fases da aplicação da
redenção as quais discutimos até aqui. Essa razão está no fato de
que a união com Cristo é em si mesma um assunto muito amplo e
abrangente. Não é simplesmente um passo na aplicação da reden­
ção; quando examinada à luz do ensino da Escritura, em seus
aspectos mais amplos, ela sublinha cada passo da aplicação da
redenção. Na realidade, a união com Cristo é a verdade central de
toda a doutrina da salvação, não somente em sua aplicação, mas
também em sua realização uma vez por todas na obra consumada
de Cristo. Deveras, todo o processo da salvação tem a sua origein
em uma fase da união com Cristo, e a salvação tem em vista a
realização das outras fases da união com Cristo. Isto pode ser
facilmente visto se lembrarmos daquela breve expressão que é tão
comum no Novo Testamento, a saber, em Cristo. Esta é a frase que
temos em mente quando falamos da “união com Cristo”. É intei­
ramente evidente que a Escritura aplica a expressão “em Cristo” a
muito mais do que somente à aplicação da redenção. Um certo
aspecto da união com Cristo de fato pertence estritamente à apli­
cação da redenção. Sobre isto falaremos mais tarde. Porém, o
assunto da união com Cristo não seria devidamente compreendido
se não fosse, além de tudo, apresentado em seu sentido mais amplo.
Não teríamos condições de apreciar aquilo que compõe a aplicação
da redenção se não o relacionássemos com o sentido mais amplo.
A amplitude da união com Cristo pode ser compreendida
quando examinamos o ensino bíblico a seu respeito. Fazendo
assim, veremos tanto as suas origens como a sua culminação.
A fonte da salvação mesma na eleição eterna do Pai está “em
Cristo”. Paulo diz: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual
nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu [=ele-
geu] nele antes da fundação do mundo” (Ef 1.3,4). O Pai elegeu
desde a eternidade, porém ele elegeu em Cristo. Não somos
capazes de compreender tudo quanto está envolvido, porém o fato
é bastante claro de que não houve eleição da parte do Pai, na
eternidade, fora de Cristo. E isto significa que aqueles que hão de
ser salvos nem mesmo foram contemplados pelo Pai no conselho
irrevogável de seu amor predestinador fora da união com Cristo
— eles foram escolhidos em Cristo. Tanto quanto conseguimos
traçar a salvação até à sua fonte, encontramos a “união com Cristo”
não como algo acrescentado; estava lá desde o princípio.
E também pelo fato de que o povo de Deus estava em Cristo
quando ele deu sua vida em resgate e redimiu por meio de seu
sangue que a salvação lhes foi assegurada; eles são representados
como unidos a Cristo em sua morte, ressurreição e exaltação no
céu (Rm 6.2-11; Ef 2.4-6; Cl 3.3,4). “No Amado”, afirmou Paulo,
“temos a redenção, pelo seu sangue” (Ef 1.7). Por conseguinte,
jamais podemos imaginar a obra da redenção, operada por Cristo
uma vez por todas, fora da união com o seu povo que foi efetuada
na eleição feita pelo Pai antes da fundação do mundo. Em outras
palavras, jamais podemos imaginar a redenção à parte das combi­
nações misteriosas do amor, da sabedoria e da graça de Deus, pelos
quais Cristo foi unido a seu povo, e seu povo foi unido a ele quando
morreu na cruz maldita e ressurgiu dos mortos. Esta é outra
maneira de dizer que a igreja é o corpo de Cristo e “Cristo amou a
igreja, e a si mesmo se entregou por ela” (Ef 5.25).
É em Cristo que o povo de Deus é de novo criado. “Pois somos
feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras” (Ef 2.10).
Paulo aqui está insistindo na grande verdade de que é pela graça,
e não pelas obras, que somos salvos. A salvação tem o seu início
na graça de Deus. E isto é certificado pelo fato de sermos salvos
através de uma nova criação em Cristo. Não deveríamos ficar
surpresos com o fato de que o princípio da salvação em sua
verdadeira posse está na união com Cristo, porquanto já descobri­
mos que é em Cristo que a salvação teve a sua origem na eterna
eleição feita pelo Pai, e que é em Cristo que a salvação foi garantida
uma vez por todas pelo sangue remidor de Jesus. Não podemos
imaginar que esta união com Cristo seja suspensa quando o povo
de Deus se toma participante real da redenção — ele é de novo
criado em Cristo.
Mas a nova vida não somente inicia-se em Cristo; ela também
prossegue em virtude da mesma relação com ele. E em Cristo que
a vida cristã e o seu procedimento são conduzidos (Rm 6.4; I Co
1.4,5; cf. I Co 6.15-17). A nova vida possuída pelos crentes, eles
a vivem na comunhão da ressurreição de Jesus; em tudo eles se
tomam ricos nele, em toda expressão e em todo conhecimento.
É em Cristo que os crentes morrem. Eles dormem em Cristo
ou através de Cristo, e eles morrem em Cristo (I Ts 4.14,16).
Poderia haver melhor ilustração para a indissolubilidade desta
união com Cristo do que o fato de esta união não ser destruída nem
mesmo na morte? Certamente, a morte é real — o espírito e o corpo
são separados. Todavia, os elementos separados da pessoa conti­
nuam unidos a Cristo. “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos
seus santos” (SI 116.15).
Finalmente, é em Cristo que o povo de Deus há de ressuscitar
e ser glorificado. E em Cristo que eles estarão vivos novamente,
quando a última trombeta soar e os mortos ressuscitarem incorrup­
tíveis (I Co 15.22). É em Cristo que eles serão glorificados (Rm
8.17).
Dessa forma, entendemos que a união com Cristo tem a sua
fonte na eleição de Deus o Pai, antes da fundação do mundo, e tem
a sua fruição última na glorificação dos filhos de Deus. A perspec­
tiva do povo de Deus não é limitada; é ampla e de longo alcance.
Não se confina ao espaço e ao tempo; ela tem a sua expansão na
eternidade. A sua órbita é bifocal, uma se focaliza no amor eletivo
de Deus o Pai nos conselhos da eternidade, e a outra se focaliza na
glorificação com Cristo na manifestação de sua glória. A primeira
não tem princípio, e a última não tem fim. A glorificação com
Cristo em sua vinda será apenas o início da consumação que
abarcará os séculos dos séculos. “E assim estaremos para sempre
com o Senhor” (I Ts 4.17). E uma perspectiva com o passado e
com o futuro, porém nem o passado e nem o futuro se limitam pelo
que entendemos como nossa história temporal. E porque a história
temporal está incluída nesta perspectiva, ela tem significação e
esperança. O que é que encadeia o passado, o presente e o futuro
juntos na vida de fé e na esperança da glória? Por que o crente nutre
a idéia de determinar o conselho de Deus com tamanha alegria?
Por que pode ele ter paciência nas perplexidades e adversidades
do presente? Por que pode ele ter certeza confiante com referência
ao futuro e regozijar-se na esperança da glória de Deus? É porque
não pode pensar em termos de passado, presente ou porvir fora da
união com Cristo. É a união com Cristo agora na virtude de sua
morte e no poder de sua ressurreição que lhe garante a realidade
de sua eleição em Cristo antes da fundação do mundo — ele é
abençoado pelo Pai com todas as bênçãos espirituais nas regiões
celestiais em Cristo, no mesmo sentido que foi eleito em Cristo
desde a fundação do mundo (cf. Ef 1.3,4). E ele tem o selo de uma
herança eterna porque está em Cristo e está selado com o Espírito
Santo da promessa, o qual é o penhor da sua herança até ao resgate
de sua propriedade (cf. Ef 1.13,14). Fora da união com Cristo não
podemos vislumbrar o passado, o presente ou o futuro com outra
atitude senão com desespero e morte sem Cristo. Por meio da união
com Cristo todo o complexo de tempo e de eternidade é transfor­
mado para que o povo de Deus possa exultar com alegria indizível
e cheia de glória.
A união com Cristo é um tema muito abrangente. Ela abrange
a duração total da salvação, desde a sua fonte última na eterna
eleição de Deus até à sua fruição final na glorificação dos eleitos.
Não é simplesmente uma fase da aplicação da redenção; ela é o
alicerce de cada aspecto da redenção, tanto na sua realização como
na sua aplicação. A união com Cristo une todos e garante a todos
por quem Cristo adquiriu esta redenção a comunicação e aplicação
eficaz da mesma.
Porém, a união com Cristo é uma parte importante na aplica­
ção da redenção. Não nos tomamos verdadeiramente participantes
de Cristo até que a redenção seja eficazmente aplicada. Paulo, ao
escrever aos cristãos em Efeso, lembra-os de que foram eleitos em
Cristo antes da fundação do mundo, e também lembra-os de que
houve um tempo quando eles estavam “sem Cristo, separados da
comunidade de Israel, e estranhos às alianças da promessa, não
tendo esperança, e sem Deus no mundo” (Ef 2.12), e eram “por
natureza filhos da ira, como também os demais” (Ef 2.3). Embora
tivessem sido eleitos em Cristo antes dos tempos eternos, todavia
estavam sem Cristo até que foram eficazmente chamados à comu­
nhão do Filho de Deus (I Co 1.9). Por conseguinte, é pelo chama­
mento eficaz de Deus o Pai que os homens são feitos participantes
de Cristo e entram no gozo das bênçãos da redenção. É somente
então que eles experimentam a comunhão de Cristo.
Qual é a natureza desta união com Cristo que é efetuada pelo
chamamento de Deus? Há diversas coisas que devem ser ditas em
resposta a esta pergunta.
1. Ela é espiritual. Poucas palavras no Novo Testamento tê
sofrido mais distorção do que a palavra espiritual. Freqüentemente
é usada para expressar pouco mais que um vago sentimentalismo.
No Novo Testamento, espiritual se refere àquilo que é do Espírito
Santo. O homem espiritual é aquele que é habitado e controlado
pelo Espírito Santo, e uma disposição espiritual é um estado mental
produzido e mantido pelo Espírito Santo. Por conseguinte, quando
dizemos que a união com Cristo é espiritual, queremos dizer, em
primeiro lugar, que o vínculo desta união é o próprio Espírito
Santo. “Pois, em um só Espírito todos nós fomos batizados em um
corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a
todos nós foi dado beber de um só Espírito” (I Co 12.13; cf. I Co
6.17,19; Rm 8.9-11; I Jo 3.24; 4.13). Precisamos valorizar muito
mais do que estamos habituados a fazer a estreita interdependência
de Cristo e o Espírito Santo nas operações da graça salvadora. O
Espírito Santo é o Espírito de Cristo; o Espírito é o Espírito do
Senhor, e Cristo é o Senhor do Espírito (cf. Rm 8.9; II Co 3.18; I
Pe 1.11). Cristo habita em nós se o seu Espírito habita em nós, e
ele habita em nós por meio do Espírito. A união com Cristo é um
grande mistério. O fato de o Espírito Santo ser o vínculo desta
união não suaviza o mistério, porém esta verdade derrama muita
luz sobre o mistério e o protege também contra noções sensualistas,
por um lado, e puro sentimentalismo, por outro.
Isto nos leva, em segundo lugar, a observar que a união com
Cristo é espiritual em virtude de ela ser uma relação espiritual. Ela
não é a mesma espécie de união que existe na Deidade — três
pessoas em um só Deus. Não é a espécie de união que existe na
pessoa de Cristo — duas naturezas em uma só pessoa. Não é a
espécie de união que existe no homem — corpo e alma constituem
um ser humano. Nem é simplesmente a união de sentimento, afeto,
entendimento, mente, coração, vontade e propósito. Aqui temos a
união a que somos incapazes de definir especificamente. Porém,
ela é uma união de caráter intensamente espiritual, consoante com
a natureza e obra do Espírito Santo, e de uma forma real ultrapassa
a nossa capacidade de análise o fato de que Cristo habita em seu
povo e o seu povo habita nele.

2. Ela é mística. Quando empregamos a palavra mística nest


conexão, convém iniciar o nosso ponto de partida com a palavra
mistério tal como usada na Escritura. Somos propensos a empregar
a palavra para designar algo que é completamente ininteligível e
do qual não temos nenhuma compreensão. A Escritura não com­
porta este sentido. Em Rm 16.25,26, o apóstolo estabelece as
diretrizes para a compreensão deste termo. Paulo fala da “revela­
ção do mistério guardado em silêncio nos tempos eternos, e que
agora se tomou manifesto, e foi dado a conhecer por meio das
Escrituras proféticas, segundo o mandamento do Deus eterno para
a obediência por fé, entre todas as nações". Existem quatro coisas
a serem observadas a respeito deste mistério. (1) Ele foi guardado
em segredo nos tempos eternos — era algo oculto na mente e no
conselho de Deus. (2) Ele não continuou oculto — foi manifestado
e feito conhecido de acordo com a vontade e mandamento de Deus.
(3) Esta revelação da parte de Deus foi mediada por e depositada
na Escritura — foi revelado a todas as nações, e não é mais um
segredo. (4) Esta revelação se dirige a todas as nações para que
venham à obediência da fé. Um mistério é, portanto, algo que nem
olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em
coração humano, mas Deus no-lo revelou pelo Espírito, e que pela
revelação e pela fé venha a ser conhecido e apropriado pelos
homens.
É evidente que esta união com Cristo é um mistério. Ao falar
da união com Cristo, e em seguida compará-la com a união que
existe entre marido e esposa, Paulo acrescenta: “Grande é este
mistério, mas eu me refiro a Cristo e à Igreja” (Ef 5.32). E noutro
lugar Paulo fala da “riqueza da glória deste mistério entre os
gentios, isto é, Cristo em vós, a esperança da glória”, e a descreve
como “o mistério que estivera oculto dos séculos e das gerações;
agora, todavia, se manifestou aos seus santos” (Cl 1.26,27). A
união com Cristo é mística porque ela é um mistério. O fato de ser
ela um mistério reforça a sua preciosidade e a intimidade da relação
que ela envolve.
A extensão da similitude usada na Escritura para ilustrar a
união com Cristo é notável. No mais elevado nível da existência,
ela é comparada à união que existe entre as pessoas da trindade na
Deidade. Isto é espantoso, porém é um fato (Jo 14.23; 17.21-23).
Em um nível muito mais inferior, ela é comparada à relação que
existe entre as pedras de um edifício e a principal pedra angular
(Ef 2.19-22; I Pe 2.4,5). Entre estes dois limites há uma variedade
de similitude extraída dos níveis diferentes de existência e relação.
Ela é comparada à união que existia entre Adão e sua posteridade
(Rm 5.12-19; I Co 15.19-49). É comparada à união que existe entre
marido e esposa (Ef5.22,33; cf. Jo 3.29). É comparada à união que
existe entre a cabeça e os demais membros do corpo humano (Ef
4.15,16). É comparada à relação da videira e seus ramos (Jo 15).
Por conseguinte, temos a analogia extraída das várias camadas da
existência, ascendendo da esfera inanimada à própria vida das
pessoas da Deidade.
Isto deve ensinar-nos um grande princípio. É óbvio que não
devemos reduzir a natureza e o modo desta união com Cristo à
medida daquela espécie de união que existe entre a pedra angular
e as demais pedras do edifício, nem à medida daquela espécie de
união que existe entre a videira e os seus ramos, nem àquela da
cabeça e os demais membros do corpo, e nem ainda àquela do
marido e esposa. O modo, a natureza e o tipo de união difere dos
diferentes casos. Há uma similitude, porém não uma identidade.
Porém, assim como não se pode reduzir a união entre Cristo e o
seu povo ao nível da união que existe nessas outras camadas da
existência, igualmente não devemos elevá-la ao nível da união que
existe na Deidade. Repetindo, simitude não significa identidade.
* uniã Cristo não significa : 1 :J~
da Deidade. Esta é uma das distorções a que esta grande
tem-se sujeitado. Porém, o processo de pensamento pelo
conceito foi adotado negligencia um dos princípios
que devem sempre guiar o nosso pensamento, istc 6,- _ _
não significa identidade. Quando fazemos <Bohíparação, não
estamos fazendo uma equação. De d jde união ou
unidade que existem para as cri aturas^. ur iiiò dos crentes com
Cristo é a mais sublime. O maior mistém^^xistência é o mistério
da trindade — três pessoas e^rOímáâ^o Deus. O grande mistério
da piedade é o mistério da encarnação, em que o Filho de Deus
tomou-se homem e se rnanifi tc na came (I Tm 3.16). Mas o
maior mistério humanas é a união do povo de Deus
com Cristo^E oam ^riò dela é atestado por nada menos do que
isto: ela é cômparaàa à união que existe entre o Pai e o Filho na
umdad^mWejaade.
v \ vNKm^se usado costumeiramente a palavra místico para ex-
\feresgar o misticismo que entra no exercício da fé. É-nos necessário
c' ;cer que há um misticismo inteligente na vida de fé. Os
crentes sao cnamaaos a comunnao cie cristo, e isto sigmnca
comunicação. A vida de fé é um viver em união e comunhão com
o Redentor exaltado e onipresente. A fé se dirige não somente ao
Redentor como aquele que veio e completou uma vez por todas a
obra de redenção. Ela se lhe dirige não meramente como aquele
que morreu, mas como aquele que ressuscitou e que vive para
sempre como o nosso grande Sumo Sacerdote e Advogado. E
porque a fé se lhe dirige como o Salvador e Senhor vivo, a
comunhão alcança o zénite de seu exercício. Não existe uma
comunhão entre os homens comparável à comunhão com Cristo
— ele comunga com o seu povo e este comunga com ele num amor
consciente e recíproco. O apóstolo Pedro escreve: “A quem, náo
havendo visto, amais; no qual, não vendo agora, mas crendo,
exultais com alegria indizível e cheia de glória” (I Pe 1.8). A vida
de fé é a vida de amor, e a vida de amor é a vida de comunhão ou
vivência mística com aquele que vive para sempre a fim de fazer
intercessão por seu povo e que pode ser tocado pelas sensações de
nossas enfermidades. E comunhão com aquele que tem uma reser­
va inexaurível de compaixão para com as tentações, aflições e
enfermidades de seu povo, em virtude de ele mesmo ter sido
tentado em todas as áreas, à nossa semelhança, porém sem pecado.
A vida de fé verdadeira não pode ser aquela de assentimento frio
e metálico. Ela deve ter a paixão e o calor do amor e da comunhão,
porquanto a comunhão com Deus é a coroa e o ápice da verdadeira
religião. “Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus
Cristo” (IJo 1.3).
A união com Cristo é a verdade central de toda a doutrina da
salvação. Toda a razão por que o povo de Deus foi predestinado
na eterna eleição divina, tudo o que foi garantido e adquirido para
ele na realização plenária e permanente da redenção, tudo o que
eles se tomarão como participantes da redenção, e tudo o que eles
se tomarão pela graça de Deus no estado de bem-aventurança
consumada está incluído na esfera da união e comunhão com
Cristo. Como já observamos nos estudos anteriores, é a adoção na
família de Deus como filhos e filhas do Senhor Deus Todo-pode-
roso que confere ao povo de Deus o ápice da bênção e privilégio.
Porém, não podemos imaginar a adoção sem a união com Cristo.
E significante que a eleição em Cristo antes da fundação do mundo
é a eleição para a adoção de filhos. Quando Paulo diz que o Pai
elegeu um povo em Cristo antes da fundação do mundo, para que
fosse santo, ele também acrescenta que em amor ele os predestinou
para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo (Ef 1.4,5).
Evidentemente, a eleição para a santidade é paralela com a predes-
tinação para a adoção — são duas maneiras para expressar a mesma
grande verdade. Elas nos revelam as diferentes facetas que perten­
cem à eleição divina. Por conseguinte, a união com Cristo e a
adoção são aspectos complementares desta espantosa graça. A
união com Cristo atinge o seu zénite na adoção, e a adoção tem a
sua órbita na união com Cristo. O povo de Deus são “herdeiros de
Deus e co-herdeiros com Cristo” (Rm 8.17). “Seja a vida, seja a
morte, sejam as coisas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso, e
vós de Cristo, e Cristo de Deus” (I Co 3.22,23). Estão unidos
Aquele em quem habitam todos os tesouros da sabedoria e conhe­
cimento e estão completos naquele que é o cabeça de todo princi­
pado e potestade.
E da plenitude imensurável da graça e da verdade, da sabe­
doria e do poder, da bondade e do amor, da justiça e da fidelidade
que reside naquele em quem o povo de Deus extrai os recursos
para todas as suas necesidades desta vida e esperanças para a vida
vindoura. Portanto, não há nenhuma outra verdade mais própria
para comunicar confiança e força, conforto e alegria no Senhor do
que esta da união com Cristo. Ela também promove a santificação,
não somente porque toda a graça santifícadora é derivada de Cristo
como o Redentor crucificado e exaltado, mas também porque o
reconhecimento da comunhão com Cristo e do privilégio sublime
que esta impõe, incita à gratidão, à obediência e à devoção. A união
significa também comunhão, e a comunhão impele à humildade,
à reverência e ao andar amoroso com aquele que morreu e ressus­
citou para ser o nosso Senhor. “Aquele, entretanto, que guarda a
sua palavra, nele verdadeiramente tem sido aperfeiçoado o amor
de Deus. Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que
permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou”
(I Jo 2.5,6). “Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós.
Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não
permanecer na videira, assim nem vós o podeis dar, se não perma­
necerdes em mim” (Jo 15.4).
Há outra fase do tema da união com Cristo que não deve ser
omitida. Se fosse negligenciada, haveria um sério defeito em nossa
compreensão e análise das implicações desta união. Estas são as
implicações que surgem das relações de Cristo com as outras
pessoas da trindade e das nossas relações com as outras pessoas da
trindade em virtude de nossa união com Cristo. Jesus mesmo disse:
“Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). Podemos esperar, portanto, que
a união com Cristo nos conduza a uma relação semelhante com o
Pai. E exatamente isto que o Senhor mesmo nos ensina. “Se alguém
me ama, guardará a minha palavra; e meu Pai o amará, e viremos
para ele e faremos nele morada” (Jo 14.23). A idéia é transcenden­
te, porém inevitável — tanto o Pai como Cristo vêm e fazem a sua
morada no crente. Talvez não haja uma palavra mais notável do
que aquela de Jesus: “Não rogo somente por estes, mas também
por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da tua
palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim
e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que
tu me enviaste. Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado,
para que sejam um, como nós o somos; eu neles e tu em mim, a
fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo
conheça que tu me enviaste, e os amaste como também amaste a
mim” (Jo 17.20-23). E não é somente o Pai que está unido com os
crentes e que mora neles. De forma semelhante, Jesus fala da
habitação do Espírito Santo. “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará
outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o
Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o
vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e
estará em vós” (Jo 14.16,17). Portanto, é a união com o Pai e com
o Filho e com o Espírito Santo que envolve a união com Cristo. É
este testemunho do próprio Jesus que os apóstolos se referem
quando João afirma: “Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com
seu Filho Jesus Cristo” (I Jo 1.3); e Paulo: “E se alguém não tem
o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9). A concepção
da união com Cristo é excessivamente estreita e, portanto, distor­
cida se limitarmos esta relação do povo de Deus somente a Cristo.
Aqui temos deveras um misticismo do mais elevado nível.
Não é o misticismo de sentimento ou êxtase vago e ininteligível.
E o misticismo da comunhão com o único Deus vivo e verdadeiro,
e é comunhão com este Deus porque é comunhão com as três
pessoas distintas da Deidade na estrita particularidade que pertence
a cada pessoa na grande economia de relação salvífica conosco.
Os crentes conhecem o Pai e têm comunhão com ele em seu próprio
caráter e operação distintos de Pai. Eles conhecem o Filho e têm
comunhão com ele em seu próprio caráter e operação distintos de
Filho, de Salvador, de Redentor, de Senhor exaltado. Eles conhe­
cem e têm comunhão com o Espírito Santo em seu próprio caráter
e operação distintos de Espírito, de Advogado, de Consolador, de
Santificador. Não é a confusão ofuscante de ênfase arrebatadora.
É fé fundamentada solidamente na revelação depositada para nós
na Escritura, e é fé recebendo ativamente essa revelação por meio
do testemunho interior que vem do Espírito Santo. Mas é também
fé que agita as fontes mais profundas da emoção no êxtase de um
santo amor e alegria. Os crentes entram no Santo dos Santos da
comunhão com o Deus Triúno, e eles assim o fazem porque foram
ressuscitados juntamente e assentaram juntamente com Cristo nos
lugares celestiais (Ef 2.6). A sua vida está oculta juntamente com
Cristo em Deus (Cl 3.3). Eles se aproximam em plena certeza de
fé, tendo os corações purificados de má consciência, e lavado o
corpo com água pura, porque Cristo não entrou em santuário feito
por mãos, porém no mesmo céu, para comparecer, agora, por nós,
diante de Deus (Hb 9.24).
Capítulo 10
Glorificação
Glorificação é a fase final da aplicação da redenção. Ela é a
fase que completa o processo que tem como ponto de partida a
vocação eficaz. Deveras, ela é a completação de todo o processo
de redenção. Pois a glorificação significa o cumprimento do pro­
pósito para o qual os eleitos de Deus foram predestinados segundo
os desígnios eternos do Pai, e ela envolve a consumação da
redenção garantida e adquirida pela obra vicária de Cristo. Porém,
quando a glorificação terá lugar?
E aqui que precisamos avaliar o que a glorificação realmente
significa e como ela se realizará. A glorificação não se refere à
bem-aventurança que os espíritos dos crentes recebem na hora da
morte. E verdade que os santos, com respeito aos seus espíritos
desincorporados, são aperfeiçoados em santidade e entram imedia­
tamente na presença do Senhor Cristo. Ausentar-se do corpo é
entrar na presença do Senhor (cf. II Co 5.8). O ato de entrar na
presença de Cristo em seu estado de glória não pode consistir de
qualquer contaminação de pecado — os espíritos dos santos fale­
cidos são os “espíritos dos justos aperfeiçoados” (Hb 12.23). O
Breve Catecismo resume esta verdade quando diz: “As almas dos
crentes, na hora da morte, são aperfeiçoadas em santidade, e
imediatamente entram na glória; e seus corpos, estando ainda
unidos a Cristo, descansam na sepultura até à ressurreição” (Resp.
37). Todavia, por mais gloriosa que seja a transformação do povo
de Deus na hora da morte, e por mais que muitos possam dizer
como o apóstolo Paulo que partir e estar com Cristo é incompara­
velmente melhor (Fp 1.23), esta não é a sua glorificação. Ela não
é o alvo da esperança e expectação do crente. A redenção que
Cristo adquiriu para o seu povo é uma redenção não somente do
pecado, mas também de todas as suas conseqüências. A morte é o
salário do pecado, e a morte dos crentes não os livra da morte. O
último inimigo, a morte, ainda não foi destruído; ela não foi ainda
tragada pela vitória. Por conseguinte, a glorificação tem em vista
a destruição da própria morte. Desonrar a Cristo e enfraquecer a
natureza da esperança cristã é substituir a bem-aventurança que os
crentes recebem na hora da morte com a glória que há de se revelar
quando este corpo curruptível se revestir da incorruptibilidade e o
que é mortal se revestir da imortalidade (I Co 15.54). A preocupa­
ção com o evento da morte indica uma deflexão da fé, do amor e
da esperança. O apóstolo Paulo nos lembra que somos as primícias
do Espírito, “gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de
filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.23). Esta é a glorificação.
É a redenção completa e final da pessoa toda quando, na integração
do corpo e espírito, o povo de Deus será conforme a imagem do
Redentor ressuscitado, exaltado e glorificado, quando o próprio
corpo de sua humilhação será conforme o corpo da glória de Cristo
(cf. Fp 3.21). Deus não é o Deus de mortos, e, sim, de vivos, e,
portanto, nada menos que a ressurreição para o pleno gozo de Deus
pode constituir a glória para a qual o Deus vivo conduzirá os seus
redimidos. Cristo é o primogênito dentre os mortos, as primícias
daqueles que dormiram; é o primogênito dentre muitos irmãos.
Esta verdade de que a glorificação deve aguardar a ressurrei­
ção do corpo nos adverte que a glorificação é algo que todo o povo
de Deus receberá junto no mesmo ponto idêntico de tempo. Não
há nenhuma prioridade, ninguém precederá a ninguém. Neste
ponto ela difere radicalmente da morte e da glória com Cristo que
os santos recebem naquele evento. Cada santo de Deus que morre
tem o seu próprio tempo marcado e, portanto, o seu próprio tempo
tem o seu próprio tempo marcado e, portanto, o seu próprio tempo
para partir e estar com Cristo. Podemos notar que este evento é
sublimemente individualizado. Porém, não é assim com a glorifi­
cação. Ninguém terá alguma precedência sobre o outro — todos
juntos serão glorificados com Cristo.
O Novo Testamento põe ênfase especial sobre este fato.
Talvez julguemos que seja uma ênfase desnecessária. Talvez di­
gamos: A verdade importante é que todos serão glorificados e tudo
mais é de pouca importância. Não é assim. O apóstolo Paulo achou
necessário informar, ou talvez relembrar aos crentes tessalonicen-
ses de que mesmo aqueles que não experimentarão a morte, os que
estiverem vivos na vinda do Senhor, não terão qualquer vantagem
sobre aqueles que morreram: “Porquanto o Senhor mesmo, dada
a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a
trombeta de Deus, descerá dos céus e os mortos em Cristo ressus­
citarão primeiro.” E assim os vivos e os mortos ressurretos que
morreram em Cristo serão arrebatados juntos para o encontro do
Senhor nos ares (I Ts 4.16,17). Outra vez, o apóstolo Paulo diz:
“Eis que vos digo um mistério: Nem todos dormiremos, mas
transformados seremos todos, num momento, num abrir e fechar
dolhos, ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos
ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados” (I Co
15.51,52). Portanto, a glorificação é a mudança instantânea que
toda a multidão dos redimidos experimentará quando Cristo vier
pela segunda vez, sem pecado, e descerá do céu com um brado de
triunfo sobre o último inimigo. “Então se cumprirá a palavra que
está escrita: Tragada foi a morte pela vitória. Onde está, ó morte,
a tua vitória? onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (I Co 15.54,55).
Há muito para a nossa instrução no fato de que o ato final da
aplicação da redenção atinge a todos da mesma forma e no mesmo
momento de tempo na realização final do propósito redentivo de
Deus. E como um só corpo que toda a multidão dos redimidos será
glorificada. Isto está sublimemente consoante com tudo o que
precedeu do qual a glorificação é a consumação. É a união com
Cristo que reúne todas as fases do amor e da graça redentora. O
povo de Deus foi eleito em Cristo antes da fundação do mundo.
Em Cristo eles foram redimidos por meio de seu sangue — ele
amou a Igreja e deu-se a si mesmo por ela. O povo de Deus foi
vivificado juntamente com Cristo, e juntos ressuscitaram, e juntos
se assentaram com Cristo nos lugares celestiais (cf. Ef 5.25; 2.5,6).
Cristo operou a redenção com o propósito de “apresentar a si
mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa seme­
lhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.27). Quando os decretos
celestiais atingirem o seu grande final, Cristo virá outra vez na
glória de seu Pai. Ele virá também em sua própria glória — será
“a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo
Jesus” (Tt 2.13). Mas também será “a revelação dos filhos de
Deus” (Rm 8.19). Haverá uma perfeita coincidência da revelação
da glória do Pai, da revelação da glória de Cristo e da liberdade da
glória dos filhos de Deus. A glorificação dos eleitos coincidirá com
o ato final do Pai na exaltação e glorificação do Filho. “Ora, se
somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-
herdeiros com Cristo: se com ele sofrermos, para que também com
ele sejamos glorificados” (Rm 8.17). Temos aqui uma harmonia
celestial, uma harmonia que exemplifica a grandeza do amor, da
sabedoria e do poder divinos, e também vindica a glória de Deus.
“Só o Senhor será exaltado naquele dia” (Is 2.11).
A glorificação é um evento que afetará todo o povo de Deus
juntamente, no mesmo ponto do tempo na realização do propósito
redentivo de Deus. Trará à fruição final o propósito e a graça que
foram dados em Cristo Jesus antes dos tempos eternos (cf. II Tm
1.9). Estas verdades sobre a glorificação do povo de Deus são
complementares às demais doutrinas da esperança cristã.
1. A glorificação é associada e identificada com a vinda d
Cristo em glória. O advento de Cristo visível, pública e gloriosa­
mente não atrai o interesse do grande número de pessoas que
professam o nome de Cristo. Tal evento parece-lhes como algo
excessivamente ingênuo para a perspectiva mais desenvolvida e
madura dos cristãos modernos. Esta atitude é bem semelhante
àquela em que Pedro adverte os seus leitores: “nos últimos dias
virão escamecedores com os seus escámios, andando segundo as
próprias paixões, e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda?
Porque desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem
como desde o princípio da criação” (ELPe 3.3,4). É o mesmo tipo
de incredulidade que nutre dúvidas a respeito do nascimento
virginal de nosso Senhor, ou que nega a expiação substitutiva, ou
que despreza a idéia de uma ressurreição corpórea e física de nosso
Senhor e que pode ser indiferente para com o advento glorioso de
nosso Senhor nas nuvens do céu. E esta incredulidade se toma
peculiarmente agravada quando ela despreza a própria idéia da
vinda corpórea, visível e pública do Senhor. Se essa convicção e
esperança não permanecerem no centro de nossa perspectiva para
o futuro, é porque o esboço mínimo da estrutura de nosso pensa­
mento está destituído de caráter cristão. A esperança do crente é
centrada na vinda do Salvador segunda vez, sem pecado, para a
salvação. Paulo fala desta verdade como “a bendita esperança e a
manifestação da glória de nosso grande Deus e Salvador Cristo
Jesus” (Tt 2.13). O crente que sabe em quem tem crido e ama
aquele a quem nunca viu, diz: “Amém. Vem Senhor Jesus” (Ap
22.20). A vinda do Senhor é tão indispensável para a esperança da
glória, que a glorificação para o crente nada significa sem a
manifestação da glória de Cristo. A glorificação é glorificação com
Cristo. Quando a última é removida, a glorificação dos crentes é
roubada da única verdade que os capacita a olhar para este evento
com confiança, com alegria indizível e cheia de glória. Pedro
escreve: “Pelo contrário, alegrai-vos na medida em que sois
co-participantes dos sofrimentos de Cristo, para que também na
revelação de sua glória vos alegreis exultando” (I Pe 4.13).
2. A glorificação dos crentes está associada e identificada com
a renovação da criação. Não são somente os crentes que serão
libertados do cativeiro da corrupção, mas também a própria cria­
ção. “Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente,
mas por causa daquele que a sujeitou” (Rm 8.20). Mas “a própria
criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade
da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21). E quando esta glória da
criação será consumada? Paulo não nos deixa em dúvidas. Ele nos
ensina expressamente que o término do gemido e da angústia da
criação, gemido e angústia em virtude do cativeiro da corrupção,
acontecerá na “adoção de filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm
8.23). Isto é o mesmo que dizer que não são somente os crentes
que aguardam a ressurreição como aquilo que trará a liberdade de
sua glória, mas a própria criação também aguarda este mesmo
evento. E aquilo pelo qual ela aguarda é aquilo do qual ela
participará, ou seja, “a liberdade da glória dos filhos de Deus”. Esta
é a maneira de Paulo expressar a mesma verdade que noutro lugar
é vista como os novos céus e a nova terra. Nas palavras de Pedro:
“Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e
nova terra, nos quais habita justiça” (II Pe 3.13). E Pedro associa
essa regeneração cósmica com aquela que os crentes esperam e
apressam, “a vinda do dia de Deus, por causa da qual os céus
incendiados serão desfeitos e os elementos abrasados se derrete­
rão” (D Pe 3.12).
Quando meditamos sobre a glorificação, o que nutrimos não
é uma perspectiva estreita. Ela engloba um cosmo renovado, os
novos céus e a nova terra, a que devemos contemplar como o
contexto da glória dos crentes, um cosmo liberto de todas as
conseqüências do pecado, no qual não restará maldição alguma,
porém nele a justiça terá domínio total e a habitação não será
perturbada. “Nela nunca jamais penetrará coisa alguma contami­
nada, nem o que pratica abominação e mentira, mas somente os
inscritos no livro da vida do Cordeiro” (Ap 21.27). “Nunca mais
haverá qualquer maldição. Nela estará o trono de Deus e do
Cordeiro. Os seus servos o servirão, contemplarão a sua face, e nas
suas frontes está o nome dele” (Ap 22.3,4).
Uma das heresias que têm afligido a Igreja Cristã e têm tido
bom sucesso na poluição das fontes do pensamento cristão, desde
o primeiro século da nossa era até aos dias atuais, é a heresia que
considera a matéria, ou seja, a substância material como a fonte do
mal. Ela tem-se apresentado em diversas formas. Os apóstolos
tiveram de combatê-la em seus dias, e a evidência disto aparece
bem nítida no Novo Testamento, especialmente nas epístolas.
João, por exemplo, teve de combatê-la em sua forma peculiarmen­
te grave ao negar a realidade do corpo de Cristo como sendo de
carne. Então ele escreve: “Muitos profetas têm saído pelo mundo
fora. Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que
confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito
que não confessa a Jesus não procede de Deus” (I Jo 4.1-3). O
significado disto é que a confissão de Jesus Cristo é uma confissão
no sentido de que ele veio em carne, e a negação deste fato é
categoricamente a negação de Jesus. Com referência a essa heresia,
o teste de ortodoxia era confessar a carne de Jesus, ou seja, que ele
veio com um corpo material e de carne real.
Outra forma desta heresia é a de considerar que a salvação é
a emancipação da alma ou do espírito do homem dos impedimen­
tos e dos enredos que são associados com o corpo. A salvação e a
santidade progridem na medida em que a alma imaterial vence as
influências degradantes que emanam da carne e da matéria. Esta
concepção pode parecer muito bela e “espiritual”, porém é apenas
um “paganismo enfeitado”. E um golpe direto contra a doutrina
bíblica de que Deus criou o homem com corpo e alma e que isto
lhe pareceu muito bom. É também dirigido contra a doutrina
bíblica do pecado que ensina que este tem sua origem e base no
espírito do homem e não na carne e matéria.
Esta heresia tem se apresentado numa forma muito sutil em
conexão com o assunto da glorificação. O curso que ela seguiu
neste caso foi o de enfatizar a imortalidade da alma. À primeira
vista parece ser algo muito inocente e uma ênfase correta, e de fato
há alguma verdade na discussão de que a alma é imortal. Porém,
sempre que o foco de interesse e ênfase é dirigido para a imortali­
dade da alma, então surge uma deflexão grave da doutrina bíblica
da vida imortal e abençoada. A doutrina bíblica da “imortalidade”,
se pudéssemos usar este termo, é a doutrina da glorificação. E
glorificação é ressurrreição. Sem a ressurreição do corpo deixando
o túmulo e a restauração da natureza humana em sua integridade,
segundo o padrão da ressurreição de Cristo no terceiro dia, e
segundo a semelhança da natureza humana glorificada na qual ele
há de manifestar-se nas nuvens do céu com grande poder e glória,
não haverá nenhuma glorificação. Este não é o vago sentimento e
idealismo tão característicos daqueles cujo interesse é meramente
a imortalidade da alma. Aqui temos a solidez e o realismo da
esperança cristã sumariados na ressurreição para a vida eterna e
assinalada pela descida de Cristo dos céus com a voz do arcanjo e
a trombeta de Deus.
De forma semelhante, a esperança do cristão não é indiferente
ao universo material que nos rodeia, o cosmo da criação de Deus.
Ela ficou sujeita à vaidade, não voluntariamente; foi amaldiçoada
em virtude do pecado humano; foi maculada pela apostasia huma­
na. Porém, ela será libertada do cativeiro e corrupção, e o seu
livramento coincidirá com a consumação da redenção do povo de
Deus. As duas não são apenas coincidentes como eventos, mas são
correlativas na esperança. A glorificação tem proporções cósmi­
cas. “Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus
e nova terra, nos quais habita justiça” (II Pe 3.13). “E então virá o
fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai... para que Deus
seja tudo em todos” (I Co 15.24,28).

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