Você está na página 1de 8

Copyright © 1997, Kalimeros

Organização Geral SUMÁRIO


Consmlo Pereira de Almeida, José Mar cos Moura e
Núcleo de Pesquisa sobre a Psicose (NUPP)
da Escola Brasileira de Psicanálise
(Coordenação - António Quinei) Apresentação 09
António
Conselho Editorial
Maria Anita Carneiro Ribeiro,
A Grécia - parte um
Maria da Gloria Maron e Sônia Alberti
Projeto Gráfico e Preparação Problema XXX,\ 23
Contra Capa Aristóteles

Os clássicos - parte dois


A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão, melancolia /
Kalimeros - Escola Brasileira de Psicanálise - Rio de Janeiro. Consuelo
Melancolia no sentido mais estrito 39
Pereira de Almeida e José Marcos Moura (Orgs.) - Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 1997. W. Griesinger
384 p.; 14 x 2 km Do delírio das negações 77
]uhs Cotará
ISBN 85-8601 1-05-3
Introdução: melancolia 93
I. Psicanálise. 2. Melancolia. I. Almeida, Consuelo Pereira de, org. II.
Moura, José Marcos, org. III. Kalimeros. Escola Brasileira de Psicanálise. Excitação maníaca 105
IV. Título. E. mil Kraepelin
CDD 150.195
A teoria e a clínica - parte três
1997
Todos os direitos desta edição reservados à A clínica do sujeito na depressão: Freud e a melancolia 119
Contra Capa Livraria Ltda António Quinei
<ccapa@easynet.com.br>
Gaio saber e triste verdade 157
Rua Barata Ribeiro 370 - Loja 208
22040-000 - Rio de Janeiro - RJ Serge Cottet
Tel (55 21) 236-1999 Um mais de melancolia 166
Fax (55 21) 250-0526 Colette S o ler
PROBLEMA XXX,1 ]

Aristóteles2

Por que todos os homens que foram excepcionais (peritíoí)3 no 953a 10


que concerne à filosofia, à política, à poesia ou às artes aparecem
como sendo melancólicos, ao ponto de serem tomados pelas enfer-
midades oriundas da bílis negra (apò melaínts cholês)* — como o que se
diz de Hércules nos [mitos] heróicos? Pois aquele parecia ser desta
natureza (têsphyseõsf, e é por este motivo que os antigos designaram
doença sagrada as enfermidades dos epilépticos. A ékstasis'3 para com
seus filhos e a eclosão de úlceras antes da [sua] desaparição no Oeta
tornam isto evidente; pois isto ocorre aos muitos [acometidos] pela
bílis negra (apò melaínSs cholês). Também aconteceu de estas úlceras
acometerem lisandro, o lacedemônio, antes de sua morte. Ainda há
[os mitos] a respeito de Ajax e BeUerofonte: dos quais um tornou-se
completamente ekstátikos, enquanto o outro buscava lugares ermos
(tos ersmías edíõken)1, por isto Homero compôs assim: "Mas, depois
que ele [BeUerofonte] tornou-se odiado por todos os deuses, vagou
sozinho pela plana Aléia, roendo seu coração (tbymóri) e alijando8 o
caminho dos homens"9.
E, dentre os heróis, muitos outros parecem sofrer o mesmo
pâthos (homoiopatheís) que esses. Entre os mais recentes, Empédocles,
Platão e Sócrates10 e muitos outros dentre os ilustres. E, ainda, a
maior parte dos que se ocupam da poesia. Para muitos destes, estas
enfermidades (nosémata) surgem de uma determinada mistura
Amtátelus
A. Dor de Existir

(kráseõs)u no corpo; para outros, sua natureza inclina-se visivelmen- tém-no] sempre (aet), enquanto existir. Por natureza, tornam-se co-
te para estespátke12. Todos são, então, para falar simples, tal qual sua rajosos, silenciosos, piedosos ou covardes. De modo que é evidente
natureza, conforme foi dito. que é pelo mesmo [motivo] que tanto o vinho quanto a natureza
criam o êtbos de cada um: pois tudo se efetua sendo administrado
Quem começar o exame [desta questão] deve tomar primei-
pelo calor. O humor (chymósf*1 e a mistura da bílis negra são pneumá-
ramente a causa a partir de um exemplo já disponível. Pois o vinho
ticos^1. E é por isso que os médicos dizem serem melancólicas as
excessivo parece realmente dispor [as pessoas] tais quais dizemos
afecções pneumatóides (pneumatôde pâthe) e as hipocondríacas
serem os melancólicos e aquele que [o] bebe [parece] desenvolver
(bypochondriakâ}. E o vinho é, quanto à suzéjiftamzsn, pneumatóide. E
muitos éthí^ como, por exemplo, os írascíveis, filantropos, piedo-
bem por isto que o vinho e a mistura são de natureza semelhante. O
sos, audaciosos; mas não [aquele que bebe] o mel, nem o leite, nem
que mostra que o vinho é pneumatóide, é a espuma (aphrós)^; pois,
a água, nem nada análogo. Pode-se ver que [o vinho] torna [as pesso-
se o azeite sendo aquecido não faz espuma, o vinho, por sua vez,
as] completamente diferentes, observando que ele muda gradual-
[faz] muita, e o [vinho] negro mais ainda do que o [vinho] branco,
mente os que o bebem. Apossando-se, então, daqueles que foram
porque ele é mais quente (thermóteros] e mais encorpado (sõmatodésteros).
resfriados e silenciosos na abstinência; se bebem um pouco mais, 953 b
Por isso o vinho incita aos prazeres afrodisíacos (apbroáisiastíkoúsf*
tocna-os mais tagarelas (laBstérous) e, ainda mais, retóricos (rbvtorikoús}
e diz-se corretamente estarem juntos Dionlso e Afrodite21 e que a
e corajosos, ávidos para o agir; um pouco mais sendo bebido, [tor-
maior parte dos melancólicos são lascivos. Pois o aphrodmasmós é.
na-os] desmedidos (hybristás), depois maníacos (mamkoás)u; uma ex-
pneumatóide. Do que é sinal a parte pudenda (to aídoionf1, pelo modo
trema quantidade os relaxa e os torna embotados, como os que são
como de pequeno, rapidamente, produz o aumento por meio do
epilépticos desde criança ou, também, como os que são tomados
enchimento [de ar]. E, ainda antes de poder emitir esperma, advém
por fortes melancolias. Assim como, então, o homem modifica seu
algum prazer naqueles que são ainda crianças quando, próximos de
êíbos bebendo e utilizando uma determinada quantidade de vinho,
serem púberes, alisam desordenadamente as partes pudendas: tor-
assim também há homens [que correspondem] a cada um dos ttbos.
na-se, poís, evidente que isto ocorre por meio do pneuma que per-
Pois como está agora [um homem] embriagado, um outro [homem]
corre os canais através dos quais, mais tarde, o líquido será conduzi-
é assim por natureza, um tagarela, outro agitado, outro choroso. Pois
do. O derrame do esperma nas relações íntimas (en tais homílíais] e a 954 a
[o vinho] transforma uns e outros, e por isso Homero compôs: "Di-
ejaculação têm sua origem evidente no pneuma projetado (hypò tou
zem que navego em lágrimas, tomado que estou pelo vinho"15.
pneúmatos). De modo que, dentre os alimentos e bebidas, são segura-
Por vezes se tornam piedosos, rudes e silenciosos; alguns, mente afrodisíacos os que tornam pneumático o local em torno das
então, se calam, e sobretudo dentre os melancólicos os que são partes pudendas. Por isso, o vinho negro, mais que tudo, torna [as
ekstatikói. O vinho, por outro lado, os torna amorosos (phihtikoús}. pessoas] pneumáticas, tal qual são os melancólicos. O que torna-se
Sinal disto é que o bebedor é incitado a beijar (phileíri) na boca quem, evidente a partir de certas conformações: a maior parte dos melan-
em sobriedade, não beijaria, quer em função da aparência, quer em cólicos, com efeito, são secos (skleróíf2 e as [suas] veias são salientes.
função da idade. O vinho, então, torna [alguém] excepcional (periitéti) E a causa disto não [é] a grande quantidade de sangue, mas de
não por muito tempo, mas por pouco; a natureza, por sua vez, [man- pneuma; porque nem todos os melancólicos são secos ou negros,

24 25
A Dor de Existir

melhor poeta quando estava em êxtase. Mas, naqueles em que o


mas, sobretudo, aqueles mal-humorados (kakóchymoi), é uma outra calor excessivo se combina para um mediano, estes são melancóli-
questão (logos}. Mas, retornemos sobre aquilo que, desde o princípio, cos porém mais sensatos (phronimôteroi) e menos excêntricos (éktopoty, 954b
tomamos para discorrei:, que na natureza tal humor — o melancólico são distintos dos outros em muitas coisas, uns quanto à formação,
— se mistura diretamente; pois é uma mistura do quente e do frio, e outros quanto às artes, outros quanto aos assuntos dzpó/is. Tal esta-
a natureza se compõe destes dois. Por isso, também, a bílis negra se do (béxisf6 faz, às vezes, grande diferença diante do perigo: pois a
torna tanto muitíssimo quente quanto muitíssimo fria. Porque o maior parte dos homens é anómala29 quanto aos temores. Assim, se
mesmo se afetou naturalmente de ambos, como, por exemplo, a por acaso têm o corpo propenso a tal mistura, eles diferem de si
água que é fria e que, se for suficientemente aquecida até a fervura, mesmos. Tal como a mistura melancólica produz anómalos nas en-
é mais quente do que a própria chama; e a pedra e o ferro que, fermidades, assim também ela própria é anómala; pois ela é tanto
transformados através do fogo, tornam-se mais quentes do que o fria, como a água, quanto quente. Logo, quando algo temível (pboberón)
carvão [ardente], embora sejam de natureza fria. Falou-se mais cla- é anunciado, se por acaso a mistura estiver fria, [ela] produz covar-
ramente acerca destas coisas na [obra] sobre o fogo24. dia; pois ela preparou as vias do temor e o temor gela (katapsjcbei).
A bílis, negra, que é fria por natureza e não sendo superficial e, Demonstram [isto] os temerosos (pmphoboí}: pois eles tremem. Se,
estando assim como se disse, se superabunda no corpo, produz por outro lado, [a mistura] estiver mais quente, o temor se reduz à
apoplexias (apoplexías), ou torpor (nárkas) ou atimias (athymtaff* ou justa medida (to métríon), e [permanecerá] nele próprio e não-afetado.
temores (phoboús); se está superaquecida, [produz] eutimias acompa- (apathê). Igualmente [acontece] com as atimias diárias pois,
nhadas de cantos (oidês euthymías), êxtases (ekstáseis), erupções de úl- frequentemente, encontr amo-no s assim entristecidos e, a propósito
ceras (ekd^éseis e/kân)2fl e outras [coisas] semelhantes. Então, para do que, não poderíamos falar; às vezes, por outro lado, somos
muitos, [a bílis negra] que se origina da alimentação diária, não pro- eutímicos, sem razão aparente. Tais pâihe, certamente aqueles que
duz nenhum êfhos, com relação aos diferentes, mas resulta apenas são ditos mais superficiais30, surgem uni pouco em todos; pois, em
em alguma enfermidade melancólica. Aqueles que possuem em sua todos misturou-se algo desta dynamis-, mas, naqueles em que isto se
natureza uma tal mistura, estes tornam-se imediatamente variados, deu mais profundamente, estes já são de determinado tipo de éthe.
no que diz respeito aos éfbe, diferentes segundo cada mistura. Por Pois, assim como [os homens] tornam-se outros pela aparência, e
exemplo, naqueles em que a [mistura] é abundante e fria, tornam-se não por ter rosto, mas por ter tal ou tal [rosto]: tendo uns beleza,
estes pesarosos e embotados; naqueles em que ela é mais abundante outros feiúra, outros não tendo nada excepáonal (perittófí), estes [sen-
e quente, maníacos (manikót), bem dotados (euphyeis) e eróticos do] de natureza mediana; assim, aqueles que têm uma pequena par-
(erotikói) e facilmente levados às emoções (prós toús thymoús) e aos ticipação nesta mistura são medianos, enquanto os que têm muita
desejos (epithymías); alguns tornam-se também mais tagarelas. Mui- são diversos da maior parte. Pois se este estado for exacerbado, eles
tos são tomados por enfermidades devido a este calor estar próxi- são demasiado melancólicos, mas se é de algum modo atenuado,
mo do topospetiszrit&(noeriyútópous), são tomados pelas enfermidades excepcionais. São inclinados, se se descuidarem , para as enfermidades
maníacas (manikoií} ou de entusiasmos (entbousiastikoítf1, daí surgem melancólicas, outros [podem ter afetada] outra parte do corpo; em
Síbylas e Bákides e todos os possessos (éntheoi) no caso de não adviiem alguns surgem enfermidades epilépticas, em outros, enfermidades
de enfermidade, mas de mistura natural. Marakós, o siracusano, era
27
26
A Dor de Existir

apoplétícas, em outros, fortes atimias ou temores, em outros, confi- vinho é trazido de fora; quando [ele] é apagado, sobrevem o pathos.
ança excessiva, como o que ocorreu a Aírquelau, o rei da Macedônia. E depois dos prazeres amorosos (tá aphrodísia] a maior parte se torna
A mistura é a causa de tal djnamis, conforme seja de mais atímica e aqueles que emitem o excesso (períttõmáf* acompa-
resfriamento ou de aquecimento. Pois estando mais fria, em mo- nhado do esperma, estes [se sentem] mais eutímicos; pois eles se
mento oportuno (kairós)^, produz distimías sem razão; é por isto aliviam do que é excesso, do pneuma e do calor exagerado. Aqueles,
que os enforcamentos se encontram, sobretudo, entre os jovens, muitas vezes, [permanecem] mais atímicos: eles se resfriam, pois,
algumas vezes também [entre os] velhos. Muitos destroem a si pró- tendo-se entregado aos prazeres afrodisíacos, por suprimirem algo
prios depois da embriaguez. Alguns dos melancólicos mantêm-se que lhes convém; o que mostra isto é o não grande fluxo emitido.
atímicos depois de terem bebido. Pois o aquecimento do vinho apa- Então, para dizer o que é capital, pelo fato da djnamis da bílis negra
ga o aquecimento natural. O calor, próximo do topos onde pensamos 955 « ser anómala, anómalos são os melancólicos; pois ela pode se tornar
e temos esperança, torna-nos eutímicos. E é por isto que todos têm muito fria e muito quente. E pelo fato de ela ser criadora-de-ethos
o desejo de beber até a embriaguez, pois o vinho, excessivo, torna- (ethopoiós} (pois, do que está em nós, principalmente o quente e o
nos, a todos, esperançosos, como a juventude aos meninos: pois, se frio criam-ethos), como o vinho que, sendo misturado em maior ou
a velhice é desesperançada, a juventude é, por sua vez, plena de menor [quantidade] no corpo, torna-nos de determinado tipo quan-
esperança. Existem alguns poucos aos quais as distimias os tomam to ao êthos. Ambos [são] pneumáticos, o vinho e a bílis negra. Posto
enquanto bebem, pela mesma causa [que tomam] a alguns depois da que é possível ser a anomalia bem governada (eúkraton] e se apresen-
bebida. Então, naqueles em que o calor é extinto, surgem atimias e tar de uma boa forma, em que a disposição (dfátbesitif* deve estar
eles se enforcam mais. E por isso que tanto os jovens quanto32 os mais quente e novamente fria, ou více-versa, de acordo com a extre-
velhos mais se enforcam. Pois, se por um lado, a velhice extingue o midade apresentada: excepdonais (perittoi), então, são todos os melan-
calor, por outro, opátbos, que é natural, o é também o próprio calor cólicos, não por enfermidade (nóson), mas pot natureza.
extinto33.Pois aqueles em que se apaga subitamente (exaípbnes), a maior
parte se mata, de modo a espantarem-se todos, por não se dar um
sinal prévio. NOTAS DO TRADUTOR

Então, a mistura oriunda da bílis negra tornada mais fria, 1. O presente texto constitui-se numa versão da primeira parte (parágrafos
como se disse, produz atimias de todo tipo; sendo mais quente, por 953a 10 - 955b 40) do Problema XXX, atribuído a Aristóteles ou a Pseudo-
sua vez, eutimias. Por isso que as crianças são mais eutímícas, ao Aristóteles (ver nota 2). Para nosso trabalho utilizamos o texto grego estabe-
passo que os velhos são mais distímicos. Pois [aqueles] são quentes lecido por Ruelle (1922), consultando também as edições de J. Pigeaud (1988,
e [estes] frios: pois a velhice é um resfriamento. Mas ocorre de [o p. 82-106) e de R. Klibansky (1979, p. 51-75). Quanto às controvérsias do
calor] se apagar subitamente, devido a causas exteriores, como [o estabelecimento do texto, concordamos corn J. Pigeaud (l988, p. 82)-c£ nota 32
que ocorre] contra a natureza com [as coisas] inflamadas, por exem- - e com Forster (1927) - cf. nota 30 - , aceita tanto por J. Pigeaud como por
R. Klibansky. A versão de um texto clássico configura-se como uma tarefa
plo, quando se verte água sobre o carvão [ardente]. Por isso alguns
das mais complexas. O desuso de uma língua que se não morta - devido ao
se matam ao sair da embriaguez; pois o aquecimento oriundo do
fato de ressoar no berço de nosso próprio léxico - impõe ao tradutor o desafio,

28
29
A Dor de Existir
Aristóteles

por vezes profano, de rasgar o véu dos sentidos vigentes, acessíveis, na tenta- i i n-.ctn (955a-24) que evoca o sentido de "excesso, resíduo", utilizando um
tiva romântica, talvez, de trazer à Juz o frescor originário da Jetra grega. Opta-
i - m n > derivado deste (períttOmã}. Escolhemos, portanto, traduzi-lo pelo termo
mos, destarte, pela sintaxe tortuosa, peJa simples transJiteraçao quando, por
• i • |'riona!, por este evocar, de algum modo, os dois campos semânticos
nossa herança greco-latina, a língua portuguesa nos oferece esta via. A sinta-
. 1 » . ntns.
xe, por vezes dura, recheada de partículas (pois a pontuação grega difere da
•l i ) icrrno melancolia origina-se da composição de dois termos: mélaina (ne-
nossa) podem, para além de questão de estilo, evidenciar também nosso des-
C E I , I ) c fhtilê (bílis). Melancolia significa, literalmente, bílis negra,
conhecimento acerca do pensamento do autor. Dificílima é portanto a tarefa
de traduzir um texto da Antiguidade Clássica, e a consulta a diferentes edi- B 1'liysi.t - este termo grego, traduzimos, como se faz correntemente, por "na-
ções/traduções nem sempre é esclarecedora. Trata-se sempre de uma versão, innv,;i". Cabe, entretanto, ressaltar que, para os gregos, este termo não tinha,
no sentido que este termo comporta de criação e de se voltar para. Como uma • it.imente, o sentido que modernamente lhe atribuímos. Originalmente, jft&JÍKr
versão, esboça uma tentativa primeira de acercarmo-nos deste texto, elemen- indicava, por meio do sufixo sis, a ação do verbo phyõ: "impulsionar, fazer
tar e originário, para o que, agora, é nosso objeto de discussão. Somos especi- n.r.ciT, fazer crescer, engendrar". M. Heidegger (1993, p. 484) comentou:
almente agradecidos a Henrique Fortuna Cairus, professor de Língua e Lite- "/V/y.rir, os Romanos a traduziram por natura; natura, de nasci, nascer, provir
ratura Grega da UFRJ, pela paciência e disponibilidade com que revisou nos- 1 1 - 1 , «-m grego: gen-; natura: o que deixa provir de si".
so primeiro exercício de versão clássica. fi, ékstasis- termo composto da preposição sk (fora, para fora) e pelo substan-
2. Ao que tudo indica não havia na Antiguidade dúvidas quanto à autoria do tivo sítisis (ação de pôr, estabilidade, posição, postura). Designa, portanto,
Problema XXX, que encontra-se editado juntamente com os demais Problemas "n ação de se deslocar, deslocamento, desvio ou, a ação de estar fora de si".
escritos por AristóteJes. Diógenes Laércio (1995, V, 23), embora não explicite Alguns comentadores, como J, Pigeaud (1988,p.38ss), consideram como in-
o teor de cada um destes, relaciona entre a vasta obra do filósofo os Problemas. i l i s l i n t o o emprego dos termos ékstasis ç. mania, traduzindo ambos pelo termo
Cícero, em Tusculanes; Sêneca, em De t-ranquillitaie animi (cf. Pigeaud, 1988, "loucura". Talvez ele tenha razão. Outrossim, desejamos proporcionar ao lei-
p.54) e Plutarco, em Vida dos filósofos ilustres (vol. IV), fazem referência ao lor a possibilidade de uma interpretação pessoal, ao verificar que em momen-
texto, citando-o como de Aristóteles. Mais tardiamente surge a hipótese do los precisos, ou não, o autor emprega cada um deles. Optamos, então, por
Problema XXX ser de autoria de Teofrasto, ou algum outro discípulo de imnter o decalque com o texto grego original. Platão discorre extensamente
Aristóteles. Contribui para esta hipótese o fato do próprio Diógenes Laércio iicerca da mania no diálogo intitulado Fedro. Neste, Sócrates distingue: "Mas,
(1995,V,44) relacionar, entre as obras de Teofrasto, um testo sobre melancolia lia duas espécies de mania; a produzida por doenças (nosemàton) humanas e a
(Períme/andwl/af), bem como um tratado sobre o fogo (Perípyrós), mencionado que por uma revulsão divina nos tira dos hábitos cotidianos(...) Na mania divi-
no próprio Problema XXX. De qualquer modo, trata-se, indubitavelmente, de na distinguimos quatro partes, referentes a quatro divindades: a Apoio atribu-
um texto que se encontra no âmbito do pensamento aristotélico, bem como ímos a inspiração mântica; a Dionísio, a teléstica [ou de iniciação nos mistéri-
situado de modo congruente com a visível herança de um tema platónico os]; às Musas, a poética; e a quarta, a erótica, considerada a melhor de todas,
(desenvolvido, principalmente, em o Fedro), juntamente com o Corpos n Afrodite e a Eros..." (265 a-b)
hippocraticum e toda tradição médica grega. 7. ias ersmas edisken - literalmente: "buscou as eremias". Este último termo
3. perittós/perissós - termo fundamental do Problema XXXc de difícil tradução. tlcsigna tanto lugares desérticos, ermos, quanto a solidão. Daí, ermitão em
Indica, originalmente, "o que ultrapassa a medida, o limite", (conformeyto?>w- português.
tros em português). Deste sentido primeiro advém: "extraordinário, o que se 8. Há, nesta passagem homérica, um jogo poético, difícil de manter, entre o
distingue etc." Pode designar, também, "o supérfluo, o resto", como, por exem- nome da planície - AUia - e aleeínõn - "evitar, esquivar, escapar".
plo, "o excesso de contingente militar". Há, no próprio Problema XXX, urna 9. Homero, ilíada, VI, 200-202.

30
31
A Dor de Existir
Amtóteks

10. É curioso observarmos a referência a estes filósofos, notadamente a Platão l H tlynamis - "potência, poder, força, propriedade".
e Sócrates. De Empédocles, é conhecida a história de seu suicídio: teria se
l l f . ,i/>/jrós- "espuma". Inicia-se neste trecho todo um encadeamento semãnti-
atirado no vulcão Etna. Alguns comentadores (cf. Pigeaud) pensam que
Sócrates se encontra aí referido por causa de seu daímon. 1 1 1 , por via significante, que tentamos preservar. Assim, aporás é o termo/fato
<|m comporá o nome de Afrodite, deusa do arnor e da beleza, que, segundo
11. krásis - "ação de misturar; objeto resultante de uma mistura".
l Icsiodo, (Teogonia vs. 195-196), é a "...deusa nascida de espuma"; surgida no
\2.pátbs- forma neutra plural â&páíhos, que originalmente significa "o que se n i . i i , cm torno do pênis castrado de Chronos, por seu filho Zeus. Compõe
prova, o que se experimenta; o que afeta o corpo ou a alma; eventos ou mu- [C trecho do Problema XXX a sequência de termos: aphrón, Apbrodite,
danças que se produzem nas coisas (por oposição ao que se faz 'ativamente1)". .i/ihrwlisiastíkom, aphrodisiasmós.
O próprio Aristóteles dá-nos uma definição de páthos (Metafísica VI, 1022, 15-16): 20, Cf. notalS.
"Páthos se chama, em um sentido, a qualidade segundo íi qual cabe alterar-se,
21. idem,
como o branco c o negro, o doce e o amargo, o peso e a ligeireza, e as demais
coisas tais; em outro, os atos e inclusive as alterações destas qualidades. Ade- .','. lá nidoion - termo que designa "pénis" e aparece também na forma plural
mais, entre estas, principalmente as alterações e movimentos daninhos, e so- {/,/ nitloía). Apresenta relação com o adjetivo atdós, que designava tanto o "sen-
bretudo os danos penosos. Ainda, se chamam afecções (páthè) os infortúnios e timento de honra", quanto de "vergonha, pudor".
penas graves". 23. íkkrói - também significa "magros".
13. éthe- forma plural de éthos. Étbos/êihos - os dois termos que aparecem ao 24. Cf. notai.
longo do texto guardam uma diferença sutil. Ethos indicaria, primordialmen- 25. O texto apresenta uma vasta lista de termos compostos a partir de tbymós
te, o sentido de "hábito", ao passo que /tèos, "uma maneira de ser habitual, (nfíjymia, prothymos, euthymía, epitbymia, disthytaía, entre outros), que é uma pala-
um comportamento" (cf. Pigeaud, pp. 25-26). Deste último, deriva o subs- vra de significação bastante complexa, que abrange: "sopro; alma; princípio
tantivo sihikós. E também frequente a tradução deste termo por "caráter". ilc vida; princípio da vontade, da inteligência, dos sentimentos e das paixões.
Como entendemos que esta palavra está atrelada a sentidos outros, e estes Vontade, desejo". Em Homero, segundo B. Snell (1960, p. 18-ss), fhymós é o
termos são caros ao pensamento aristotélico, optamos por manter a simples "órgão da emoção e a sede da dor",
transliteração.
26. E interessante observarmos a quantidade de palavras iniciadas pela pre-
14. Cf. nota 5.
pnsição ek (fora, para fora): ékstasis, ékphysis, eklúei, êkcbysis, exéchs, ekd^éseis,
15. Homero, Odisseia, XIX, 121-122. íktopoi, exaiphnSs, o que parece anunciar uma insistência semântica, talvez a de
16. chymós - "qualidade do que é líquido ou em fusão; suco natural, serosidade que os diferentes páthos oriundos da melancolia têm, sempre, implicados (no
dos humores do corpo, supuração de uma ferida; suco preparado". próprio nome) a ideia de "estar fora, movimento para fora".

17. pneumâtikalpmúma - "que concerne ao sopro, à respiração, sopro vital; que 27. eiifhotisiastikós/éniheos - "o que é animado por urn transporte divino, inspi-
concerne ao ar que tem vento, flatuoso". Não deve ser confundido com o ar rado pelos deuses" (en + theos),
(aér), um dos quatro elementos. Este sentido de pneuma evoca-nos o sentido 2H. héxis - "ação de possuir, possessão, maneira de ser, estado ou hábito do
primeiro (homérico) de psycbê que designava, exatamente, o sopro. O verbo - corpo, temperamento, estado ou hábito do espírito ou da alma, faculdade".
psjchs - indica a ação de soprar, respirar. Anaxímenes (cf. Kirk, 1994, p. 161), Para Aristóteles (Metafísica, V, 1022b, 4-8): "Héxis se chama, em um sentido,
por exemplo, desenvolve a ideia de equivalência tntse. pneíivza e^jjv^falma). por exemplo, certo ato do que tem e do que é tido, como certa ação ou
O termo frio, central no Problema XXX, parece originado do mesmo campo movimento (pois quando um faz e outro é feito, está no meio o ato fazedor;
semântico. Frio èpsychrós, cuja etimologia remonta, provavelmente (cf. Bailly) nssim também no meio do que tem um vestido e do vestido tido está o
ao verbo psycbõ (soprar). 'hábito' (héxis)".

32
33
A Dor de Existir
Aristóteles

29. anómalos - termo formado pelo prefixo de negação an, e do advérbio homálós
("de um modo unido, de um modo igual"). Então, anómalos designa: "não l ' \ l n >N ilc URBINAJ. M.Diccionáriomanualgriego-espanol. Barcelona, Biblograf,
unido, não igual; Inconstante, irregular; que falta equilíbrio". |9fi7
r i \ l 'u N. Phèdre. Trad. par Luc Brisson. Paris, Flammarion, 1989.
30. Há na edição original dos textos gregos uma controvérsia. Forster (um dos
<&aiSpoç. AGrjva, AcaSaXoç
editores que estabeleceu o texto grego) optou pelo termo epipólaios, superfície.
l l K l-,,(i.S. et alli. Anaximenes de Mileto. Os filósofos pré-socráticos. Trad. C. A. L.
O termo constante na edição de Ruelle é tápalaiá, antigas.
i oníei •". Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
31. kairós - momento oportuno. Conceito de tempo propriamente grego. Di-
l l IHANSKY, R. et alli. Saturne et Ia Mélancolie. Paris Gallimard, 1979.
fere do tempo cronológico (sucessão) e do eterno (a e i). Na medicina, indica-
l ' l ' ! H AU D, J. Aristote - 1'homme degénie et Ia mélancolie. Paris, Rivages, 1988.
va, por exemplo, o tempo crítico de uma doença, no qual a intervenção do
l'l l l ' l'A IÍ.CO. Vidas dos Homens Ilustres. Vai. 4. Trad. do grego por Amyot. S.
médico poderia salvar ou matar o paciente.
1 ' i n l i . , lúl. das Américas, s/d.
32. ê kat- Há edições que excluem a conjunção í, modificação por nós utilizada
na presente tradução.

33. Frase enigmática, mesmo no texto original e para os comentadores. * VrrsíU) do grego: Elisabete Thamer, membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise
34. Cf. nota 2. *RcvÍs8o da tradução: Henrique Fortuna Cairus

35. diátbesis - "ação de dispor, arranjar (a disposição do que tem partes),


ordenância". Para Aristóteles (Metafísica, V, 1022, 1-3) "Diáthesis se chama a
ordenação, segundo o lugar, ou segundo a potência, ou segundo a espécie, do
que tem partes; é preciso, com efeito, que haja alguma posição (thêsilt)\ como
inclusive o manifesta o nome 'disposição'".

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES, Metafisici. Ed. trilingue por V G. Yebra. Madrid, Credos, 1990.


Probkmataphjsica. Ed. Ruelle, Knoellinger, Klek. Leipzig, 1922.
BAILLY, A. Dictionnaire Grec-Français. Paris, Hachette, .
DIOGENES LAERTIUS. LJves of eminent philosophers. VoL1. Trad. por
R.D.HÍcks. London, Loeb Classical Library, 1995,
FORSTER, E. S. "Problemata". Em: The mrh of Aristotk. Voi Vil Oxford,
1927.
HE1DEGGER, M. Ce qu'est et comment se determine Ia OYEK (. Em :
Questions I et II. Paris, Gallimard, 1993.
HESIODO. Teogonia. Trad. J. Torrano. São Paulo, Iluminuras, 1992.
HOMERO, iKiaç. Tomos protos. HeMaô, Flcm-upoç, 1975.
. OÔva&eKxç. Tomos deuteros. HeXXaS, Ilcarupoç, 1975.

34
35

Você também pode gostar