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PINHO, Eunice - A Estética de Dufrenne Ou A Procura Da Origem
PINHO, Eunice - A Estética de Dufrenne Ou A Procura Da Origem
EUNICE PINHO
Por outro lado, Dufrenne não coloca totalmente de lado uma reflexão sobre
o gesto criador, antes reconhece a necessidade de que um estudo exaustivo da
experiência estética integre as duas abordagens. Tanto mais que, sendo experiên-
cias distintas, não deixam de ter pontos de contacto entre si. O artista é, frequen-
temente, o primeiro espectador da sua obra e o espectador, pela percepção
estética, deve participar do gesto criador do artista, tornar-se como que um
cocriador da obra - isto é, deverá consentir na sua manifestação. "O espectador
não é somente a testemunha que consagra a obra é, a seu modo, o executante
que a realiza; para aparecer, o objecto estético tem necessidade dele"8.
Em obras posteriores, como por exemplo em Le poétique (1963) dedicará
algumas páginas ao problema da criação artística, centrando-se na temática da
inspiração. Também aí Dufrenne continuará fiel ao seu intento de dessubjectivar
a experiência estética, sublinhando que a vocação do poeta é a de co-responder
a um apelo que lhe vem do exterior. A inspiração toma assim o carácter de um
dom e é simultaneamente apelo da própria obra que há que fazer-se 9.
que diferem pelo facto da noese ser diferente: a obra de arte, enquanto está aí
no mundo pode ser apreendida numa percepção que negligencia a sua quali-
dade estética (...) O objecto estético é, pelo contrário, o objecto esteticamente
percebido, quer dizer, percebido enquanto estético. E isto mede a diferença: o
objecto estético é a obra de arte percebida enquanto obra de arte, a obra de arte
que obtém a percepção que solicita e que merece, e que se realiza na consciência
dócil do espectador, numa palavra, é a obra de arte enquanto percebida" 16. Dir-
-se-ia que a obra de arte ao fazer emergir a percepção estética, que Dufrenne
definirá noutro lugar como a percepção régia ou percepção por excelência 17, é
palco de uma verdadeira conversão: a obra de arte atinge assim a sua glória ou,
segundo as palavras do autor, realiza a sua verdadeira vocação - a de se
transcender para o objecto estético 18.
A diferença entre obra de arte e objecto estético encontra o seu correlato na
distância que separa a percepção vulgar da percepção estética. Na primeira há
uma rasura ou desatenção à qualidade estética do objecto, é como se um especta-
dor estivesse apenas supostamente a assistir a um espectáculo, o seu olhar vogaria
pelas coisas em redor, distante ou indiferente aos movimentos da cena. Só a
segunda saberá "ser sensível" ou fazer justiça a essa qualidade, cumprindo assim
a promessa inscrita em toda a obra de arte - "A diferença entre obra de arte e
objecto estético reside no facto de a obra de arte poder ser considerada como
uma coisa vulgar, quer dizer, o objecto de uma percepção e de uma reflexão que
a distingue das outras coisas, sem lhes atribuir um tratamento especial, mas, ao
mesmo tempo, pode ser objecto de uma percepção estética, a única que lhe faz
justiça" ly.
Veremos assim que para se realizar a transmutação da obra de arte em objec-
to estético é necessário que se opere uma modificação ao nível da percepção -
esta já não é a percepção vulgar ou mundana, que se ergue sobre a base de uma
atitude posicional e movida por considerações utilitárias. Este tema será caro a
Husserl que, em /deen 1, a partir do exemplo da gravura de Dürer "O Cavaleiro,
a Morte e o Diabo", mostrara que a atitude puramente estética implica sempre
uma neutralização do índice de existência, quer, primeiramente, da gravura
enquanto apreendida como um objecto entre outros, quer, em segundo lugar,
daquilo que esta poderia representar, no sentido de se estabelecer uma correspon-
dência com a realidade 20.Por outras palavras, a experiência estética pressupõe
também em Dufrenne uma redução fenomenológica, só esta garante a emergência
do objecto estético, que aqui é identificado com o fenómeno. E é também sob
este mesmo clima da redução, isto é, pressupondo-a, que se poderá compreender
a tese de Dufrenne de que o sentido é imanente ao sensível e ainda que a percep-
16 Ibid., 9.
n Cf. M. DUFRENNE, " Intentionnalité et esthétique " in Esthétique et philo sophie, vol . I. Paris,
Editions Klincksieck , 1976, 54.
18 Cf. M . DUFRENNE , P.E.E., 33.
1' M. DUFRENNE , P.E.E., 26.
20 Cf. E. HUSSERL , Idées directrices pour une phénoménologie et une philo s ophie
phénoménologique pures . Paris, Gallimard , 1985, 373-374.
21 ibid. 55.
22 M. DUFRENNE, P.E.E. 6.
23 M. DUFRENNE, "Le champ de l'esthétisable"
in Esthétique et philosophie , vol. III. Paris
Editions Klincksieck , 1981, 86.
21 M. DUFRENNE, L'txil et l' oreille . Paris, Editions
Jean - Michel Place , 1991, 70.
25 M. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie
de Ia perception . Paris, Gallimard , 1987, V.
O império da percepção
em mim e me comove; a significação que contemplo sem a ela aderir será anteci-
pada sobre esta significação primitiva, que me convence porque me envolve,
onde o sentido é uma somatização à qual respondo com o meu corpo" 35
O trânsito do vivido, da presença, para um outro plano de inteligibilidade -
designadamente o da representação - só será possível devolvendo ao corpo
vivencial (não o corpo que é objecto do conhecimento científico) o carácter
transcendental, que o intelectualismo atribui ao espírito 36
A intenção de Dufrenne não é a de simplesmente operar uma inversão na
hierarquia corpo/espírito, real/irreal que atravessa todo o pensamento ocidental,
trata-se sim de mostrar a não pertinência deste pensamento de tipo dualizante.
A propósito da metáfora obsidiante "visão das ideias" ou ainda "olhos do espí-
rito", que povoa o próprio discurso racionalista, sublinhará que "os olhos do
espírito são os olhos de que o espírito tem necessidade para o seu advento, os
olhos do corpo. Se a metaforização é uma sublimação, é no sentido em que a
entende Adorno: uma sublimação que conserva o que ela ultrapassa. Mas se os
olhos do espírito são ainda os olhos do corpo, em contrapartida, os olhos do corpo
não são simplesmente máquinas registadoras, o corpo não é simplesmente uma
coisa entre as coisas, ele é o órgão do pensamento. Dito de outro modo, quando
se invoca o espírito e quando se lhe atribui qualquer operação, o corpo está
sempre implicado. O que a filosofia contemporânea diz naturalmente da lingua-
gem, que o pensamento a habita e permanece nela, é preciso dizê-lo, a partir de
agora, do corpo, deste corpo que fala e que é também um corpo que vê e (...),
um corpo que escuta" 37.
A experiência estética será o lugar de eleição, onde se manifesta essa pro-
ximidade/familiaridade do corpo com o objecto estético: é primeiramente ao
corpo que o objecto estético se anuncia e oferece, exercendo sobre ele como que
um poder de sedução 38. Tal como já ao nível da própria criação artística é
preciso que o corpo se ofereça à obra de arte para que esta possa fazer a sua
aparição: "Com efeito, não vemos como seria possível a um Espírito pintar.
E emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em
pintura" 39.
Por outro lado, será também pelo corpo que a unidade do objecto estético
se realiza, em virtude dessa "operação concordante", desse entrelaçamento na per-
cepção, dos sentidos. Porque o corpo não é um somatório de órgãos e de funções
justapostas, mas um sistema sinérgico em que os sentidos se intercomunicam,
do mesmo modo que os dois olhos colaboram na visão 40 -,,É pelo corpo que
há uma unidade do objecto estético, e particularmente nas obras compósitas como
a ópera ou o ballet, que fazem apelo a diversos sentidos ao mesmo tempo.
35 M. DUFRENNE, P.E.E.,422.
36 Cf. Ibid.,424.
37 M. DUFRENNE, L'oeil et l'oreille. Paris, Editions Jean-Michel Place, 1991, 45-46.
38 Cf. M. DUFRENNE, P.E.E., 426.
39 M. MERLEAU-PONTY, L'oeil et l'esprit. Paris, Gallimard, 1964, 16.
40 Cf. M. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de Ia perception. Paris, Gallimard, 1987, 270
e Romero, Sergio Rabade, Experiencia, cuerpo y conocimiento. Madrid, C.S.1.C., 1985, 276-282.
A unidade do objecto estético e que é (...) a unidade da sua expressão não poderá
ser compreendida senão sob a condição de que a diversidade do sensível esteja
primeiramente unida num sensorium commune: é o corpo que é o sistema sempre
já formado de equivalências e transposições intersensoriais , é por ele que há uma
unidade antes da diversidade" 41.
Merleau - Ponty sublinhará mesmo que na percepção uma coisa nunca é
dada a um único sentido - um vento violento é também aquele que se faz visí-
vel na desordem da paisagem . Neste sentido "Cézanne dizia que um quadro
contém em si mesmo até o odor da paisagem. Queria dizer que o arranjo da cor
sobre a coisa (...) significa por si mesmo todas as respostas que ela daria à
interrogação dos outros sentidos, que uma coisa não teria esta cor se não tivesse
também esta forma, estas propriedades tácteis, esta sonoridade, este odor e que
a coisa é a plenitude absoluta, que a minha existência indivisa projecta face a si
mesma" 42.
Contudo, se , já o sabemos , é o corpo que primeiramente abre o acesso à inti-
midade do objecto estético, o sentido captado permanece um sentido para o
corpo. Sem renunciar a este nível da presença, mas pressupondo-o enquanto
fundante , será preciso considerar os outros planos da percepção - "Não podemos
fazer permanecer toda a percepção sensível ao nível do pré-reflexivo . E preciso
passar do vivido ao pensado, da presença à representação- 43.
Esta passagem revestirá , no entanto ( e no caso especial da experiência
estética) o carácter de uma oscilação perpétua, sem que se dê efectivamente
o trânsito definitivo de um plano a outro, que abriria assim o lugar a uma
instalação.
Situando-nos no plano da representação, já não é tanto ao corpo (enquanto
poder de "ser-com") que compete o papel de transcendental, mas este é agora
outorgado à imaginação, entendida como poder de ver. A imagem fica assim
situada a meio termo entre a presença bruta em que o objecto é experimentado
e o pensamento onde se forma a ideia - o objecto está presente não já na sua
carnalidade , embora a experiência desta, longe de a apagar , seja a herança que
entretece a representação.
Dufrenne verá na imaginação a própria possibilidade de ligação entre o corpo
e o espírito 44, cabendo- lhe assim o papel de intermediário, que, de resto, a tradi-
ção do pensamento ocidental maioritariamente lhe atribuiu. Esta posição será
criticada por E. Casey, que denuncia a íntima conexão entre o privilégio da
presença, isto é, a possibilidade do encontro/contacto directo e imediato do
sujeito com o objecto, e a tentativa de camuflar a hierarquia das "operações
psíquicas", que procedem ou antecedem o momento do contacto: "esta hierarquia
impõe-se se for preciso ir da sensação ao entendimento e vice-versa, logo, de
uma evidência à outra: este momento deve passar por estados intermediários.
45 E. CASEY, " L'imagination comme intermédiaire " in Vários, Vers une esthétique sans
entrave , Mélanges , Mikel Dufrenne . Paris , U.G.E., 1975, 94.
46 Ibid., 447.
47 Ibid., 448.
48 Ibid., 448.
-lo aí mesmo, sob o pano de fundo que é o mundo a partir do qual emerge e
ganha sentido. Há como que uma indigência neste objecto vulgar, um reenviar
de coisa em coisa para assim poder significar ou ganhar sentido - numa palavra,
há nele a falta congénita de uma luminosidade interior de que só o objecto
estético será detentor 49. A sua opacidade de coisa é fracturada por uma luz que
jorra a partir de si - por isso Dufrenne dirá que o ser do objecto estético, porque
ele mesmo se exprime , é um "quase-sujeito" 50.
Por outro lado, mesmo na impossibilidade de uni olhar abarcador da totali-
dade do objecto, mesmo pressupondo o carácter de novidade, sempre transbor-
dante, oceânico, do objecto estético, não há quaisquer dimensões na sombra,
escondidas, laterais a que caberia à imaginação suprir. Mesmo na parte, o que
se dá é sempre o todo - o monumento é apreendido como imediata e totalmente
dado em cada percepção 51. E, nesse sentido, não há que interpretar as aparências,
que nos são oferecidas, buscando um suposto objecto real, que estaria por detrás
delas. "Se Cézanne coloca a garrafa obliquamente, não temos de a endireitar, se
Renoir faz «desaparecer» os cabelos de uma mulher no fundo do quadro, a ponto
de as fronteiras se tornarem indiscerníveis, não temos de as traçar, como se
tivéssemos de pintar o retrato. (...) Toda a tarefa da imaginação é então de apre-
ender este objecto na aparência, mas sem lhe substituir um objecto imaginário
mais verdadeiro, de que seria o analogon" 52.
Nesta recusa de uma participação mais "efectiva" da imaginação na percep-
ção estética está imbricada a crítica a uma concepção de arte como representação
ou mimética da realidade.
Em obras posteriores, designadamente em Language and philosophy e em
Le Poétique vemos o tema da imaginação ressurgir. Mas trata-se aí de uma
outra concepção de imaginação, pois esta já não é uma "faculdade" do espírito
humano. Subtraído o seu carácter subjectivo, a imaginação torna-se pertença
de uma natureza pensada em termos metafísicos de Natureza naturante que se
revela ao poeta através das "grandes imagens". A este assunto voltaremos mais
à frente.
Em Phénoménologie de I'expérience esthétique, de que temos procurado
seguir o traçado, a imaginação conserva o lugar de "intermediário" na topologia
do espírito humano. Tratada deste modo, a imaginação carece de um estatuto
independente e de um papel relevante na experiência estética.
Vejamos agora como se opera a passagem do plano da representação para a
reflexão.
O entendimento, ao disciplinar a imaginação e ao garantir o rigor e objectivi-
dade do dado, possibilita assim o avançar do conhecimento ou da percepção,
permanecendo este marcado por uma finitude inexorável, que é a necessidade
de mergulhar sempre na experiência da presença 53
54 Ibid., 468.
55 Ibid., 469.
56 Ibid., 470.
acepção «fazer » não significa precisamente que nós efectuamos por nós mesmos
a experiência , fazer quer dizer aqui, (...), passar por, sofrer até ao extremo , supor-
tar, acolher o que nos atinge , submetendo - nos" 57.
Por outro lado, também para Gadamer a marca da historicidade , incrustada
em toda a experiência , o leva a afirmar que "a verdadeira experiência é aquela
em que o homem se torna consciente da sua finitude . Nela encontram o seu limite
o poder fazer e a autoconsciência de uma razão planificadora" 58.
O sentimento , longe de constituir , como atrás referimos , um estado subjec-
tivo, implica da parte do sujeito unia disponibilidade e abertura à quilo que do
ser advém e que estilhaça e excede qualquer tentativa de previsão e domínio.
No sentimento , "o ser aparece como outro do que ele é, e inesgotável, não
somente porque , corno a imaginação advertiu , eu posso sempre substituir ou
juntar uma representação a outra, mas porque qualquer coisa nele me é dada, que
rejeita toda a representação e toda a acção" 59
O sentimento , considerado deste modo, desvia a experiência estética do pri-
mado do ter e leva o sujeito a colocar-se a si mesmo em questão . Trata-se de
saber , reflectindo , se se é ou não capaz de escutar essa mensagem de que o
objecto estético é portador 60 e que escapa a toda a apropriação , porque a sua
voz é a do silêncio.
77 Ibid., 478.
78 Cf. M. DUFRENNE , Le poétique . Paris, P.U.F., 1973, 96.
79 H. HELDER , " As magias " in Poesia Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, 466.
xo Cf. M. DUFRENNE , P.E.E., 11, 495-504.
xl Porque o prefixo ex designa a saída de algo que vem até nós e, desse modo, não fica retido,
enclausurado em si mesmo . Algo desse interior se dá e espera acolhimento.
82 Cf. M. DUFRENNE , P.E.E., 11, 503.
83 Cf. M. DUFRENNE , " La profondeur comme dimension de I'objet esthétique" in Esthéiique
et philosophie , 111. Paris, Editions Klincksieck , 1981, 142.
A promessa de saber
84 ibid., 142.
xs Cf. Ibid., 524-526.
16 H. HELDER, "Magias" in Poesia toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, 466.
dado ou pensado , são aqui as condições, sob as quais um mundo pode ser sentido,
de modo algum condições do sujeito impessoal ao qual Kant se refere (...) mas
de um sujeito concreto , capaz de entretecer uma relação viva com o mundo" 87.
O afastamento relativamente a Kant é assim desde logo sublinhado: o a priori
será definido por Dufrenne como o elo comum que consagra o acordo fundamen-
tal entre homem e mundo, afastando qualquer possibilidade de pensar uma
espécie de poder demiúrgico da consciência. De notar que quando se fala aqui
de poder demiúrgico, este deve ser entendido segundo a letra de kantiana: o a
priori funda a experiência, isto é, torna-a possível para um sujeito, confere-lhe
sentido, eleva-a à intelectualidade, como dirá Ricoeur, mas não significa funda-
ção, isto é, não é, em rigor, a causa, a origem da própria experiência 88.
O que a crítica de Dufrenne visa sobretudo, é a concepção unilateral e empo-
brecedora desta noção, enquanto mero poder conferido ao sujeito ( um sujeito que
é ainda pensado como correlato impessoal de um conhecimento puro) de dar
sentido ao diverso sensível: "O a priori é a forma, que o processo do conheci-
mento imprime ao conhecido , o reflexo no objecto dos actos transcendentais do
sujeito" 89.
Trata-se assim de propôr um a priori, que deixe de ser o privilégio exclusivo
de uma subjectividade e possa também ser constitutivo do objecto: "Distingui-
remos então num mesmo a priori o aspecto objectivo e o aspecto subjectivo.
É precisamente essa, a nosso ver , a primeira razão para manter a noção de a
priori: há um acordo do homem e do mundo , que se realiza no conhecimento
(...) e que se manifesta menos como um poder do homem sobre o mundo, ou
também , numa perspectiva naturalista , como um poder do mundo sobre o homem,
mas antes como uma familiaridade , consubstancialidade do homem e do mundo;
pois este conhecimento não é possível senão na condição de que o mundo esteja
aberto ao homem e o homem aberto ao mundo. Esta abertura recíproca, é o a
priori que o exprime , é o sentido presente e dado ao mesmo tempo no objecto e
no sujeito , assegurando a comunicação , e mantendo igualmente a diferença" 90.
Em L'inventaire des a priori , obra posterior em que este tema será reto-
mado, Dufrenne sublinha, talvez de um modo mais explícito este duplo rosto do
a priori , mostrando que a possibilidade da experiência e da consciência estão,
na verdade, imbricadas. Para que o dado possa aparecer à consciência, é previa-
mente necessário que, ele mesmo, seja já portador de um sentido. Por outro lado,
da parte da consciência, é-lhe exigido que esteja apta e disponível para recolher
esse sentido. Ora, esta aptidão da consciência, este estar preparado para o
que ainda não chegou, pressupõe como que uma antecipação da experiência.
A consciência possui já, de algum modo, um saber, uma pré-compreensão do sen-
tido ainda por vir mas já aí. Como afirma Levinas "Nem reflexo, nem criador
das estruturas a priori que constituem o mundo, o sujeito conhece-as por um
113 A filosofia kantiana , ao atribuir ao sujeito uma actividade constituinte, não tem necessidade
de inscrever o a priori também no objecto. Contudo, o a priori exerce igualmente um papel mediador
entre o sujeito e o objecto e, nesse sentido , é também em termos de um dualismo que esta noção é
concebida. Cf. M. DUFRENNE, La notion, 227.
114 Ibid., 284.
''5 Cf. M. DUFRENNE, L'inventaire, 11-12.
o "lugar" mesmo de onde esta brota, como produto da sua evolução incons-
ciente 116, permite a Dufrenne entrever uma possível resposta à interrogação
colocada por Ricoeur . Essa resposta , o autor admite-o, permanecerá sempre no
horizonte , não sendo , por isso, explicitável na sua totalidade : " A filosofia da
Natureza é sempre indicada e sempre impossível, não pode ser esboçada senão
sob o modo do como se" 117.
E, contudo , é o próprio pensamento que procura ir mais além do fundamento,
para o ponto em que não é j á deste que se trata, mas do fundo . Dufrenne falará
assim , de um salto do transcendental para o transcendente . Dir-se - ia, num registo
kantiano, que o pensamento transgride os limites impostos ao próprio conheci-
mento : " Enquanto examinamos a correlação intencional do homem e do mundo,
permanecemos ao nível do transcendental . A partir do momento em que procura-
mos uma origem ou uma causa desta correlação , saltamos do transcendental ao
transcendente" 118.
A diferença entre fundamento e fundo giza - se assim na radicalidade do pró-
prio perguntar . Uma vez aceite , como facto ôntico , a afinidade entre o homem
e o mundo instituída pelo a priori , trata-se de perguntar ainda pela causa dessa
mesma afinidade: "A causa, quer dizer , o que precede e o que inicia, o que
começa, não como um acto livre começa , pois situamo - nos aquém da liberdade,
antes aquilo com o qual tudo começa, o que é o lugar dos começos , sem ser
começo em si mesmo . Não o fundamento , porque o fundamento limita-nos a
uma perspectiva humana; muito menos um princípio lógico a partir do qual
o real poderia ser deduzido , como os teoremas de um sistema de axiomas.
Procuramos o que é primeiro , e cuja prioridade se deve inscrever e manifestar
no real" 111.
Esta questão seria pelos positivistas reduzida a um problema científico.
Também a ciência , ao pretender explicar o real, encontra uma natureza que
precede ou é anterior ao homem . Por seu lado, a posição idealista sublinharia
que esta natureza sem o homem é ainda uma natureza para o homem, isto é, trata-
-se de uma natureza que não pode ser dita ou explicada senão numa linguagem
eminentemente humana. A questão será, assim, a de como falar do fundo, sem
se partir de uma linguagem entendida como pertença do homem: "Para falar do
fundo, seria preciso encontrar uma linguagem que não fosse a do homem, seria
preciso que a Natureza se anunciasse a si mesma" 120. Pois, como diz o poeta
(H. Helder) "Todas as palavras da linguagem normativa ( a linguagem das teses
e antíteses , a linguagem das análises , dos juízos e proclamações solenes) [são]
unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria" 121.
fortiori, para Mim, o mundo antes do homem que produz o homem em vez de
ser constituído por ele" 129.
Poderíamos assim perguntar pela pertinência desta ideia de uma Natureza
primitiva, sobre a qual o discurso parece tropeçar e diluir-se, numa espécie de
incapacidade congénita.
Ora, o gesto de Dufrenne não será o de fazer apelo a uma teologia nega-
tiva - a qual , ao dizer apenas pela negativa, pertenceria ainda ao espaço predica-
tivo ou judicativo do discurso. A Natureza dá-se primeira e fundamentalmente
numa experiência e esta experiência não é a do nada ou da pura ausência, antes
a de uma plenitude inesgotável. Certas experiências, mormente a experiência
estética, suscitam em nós um sentimento que deixa entrever o fundo ou se se
quiser, esse "fundo sem fundo", transbordante, sem limites. Sentimento de um
ser selvagem, retomando as palavras de Merlcau-Ponty. "De uma força sem lei
e, contudo, generosa". Sentimento também de se ser produzido e fazer parte da
Natureza, tal como a experiência estética das coisas naturais nos parece, de um
modo mais explícito (mas não mais exclusivo) mostrar: "Ser parte da Natureza
não é ser coisa entre coisas no universo do positivismo, menos ainda, ser no
mundo como o correlato transcendental do mundo; é estar enraízado no real.
A experiência estética de uma paisagem faz-nos experimentar a nossa conatu-
ralidade com a natureza: a segurança tranquila ou exaltante de uma intimidade
umbilical com a montanha que subimos, a luz que nos penetra, o vento que nos
acaricia, o pio do pássaro que nos trespassa" 130.
133 Cf. M. B. PEREIRA, Modernidade e Secularização . Coimbra, Livraria Almedina, 1990, 65-
-107.
134 M. DUFRENNE, Jalons, 26.
135 Obra em que Espinosa apresenta uma reflexão sobre o nosso poder de conhecer.
Veja-se a este propósito os parágrafos 18 a 29.
Note-se ainda que se utilizaram as traduções em português das obras referidas:
B.ESPINOSA, Tratado sobre a reforma do entendimento. Lisboa, Livros Horizonte, 1971.
E. ESPINOSA, Ética. Lisboa, Relógio d'Água, 1992.
136 Cf. Ética II, prop. XL, esc. II, prop. XLI, demonstração e prop. XLII.
13^ Ibid., 11, prop. XL, esc. 11.
Será necessário esperar pelo Livro V para encontrarmos o seu sentido. Aí,
Espinosa afirmará que "Do terceiro género de conhecimento nasce necessaria-
mente o amor intelectual de Deus" 138. Seria talvez aqui que poderíamos filiar a
posição de Dufrenne que, como referimos já, pretende substituir o conhecimento
do terceiro género pela experiência estética. Desse modo, haveria, assim, como
que uma fractura no racionalismo espinosiano - o conhecimento intelectual de
Deus estaria para além dos limites da estrita racionalidade. Dir-se-ía existir a
presença de uma "dimensão estética" na gnoseologia espinosiana.
Mas o próprio Dufrenne se ergue contra esta interpretação, ao afirmar que
o conhecimento do terceiro género nos instala no plano da fé - mas, trata-se
de uma "fé filosófica" 139: "É precisamente a originalidade de Espinosa conceber
a fé corno ponto culminante da racionalidade. Todas as exegeses românticas são-
-lhes infiéis a partir do momento em que recusem a homogeneidade da intuição
e do saber (...) longe de apreender o ser por uma revelação afectiva, estética ou
mística, ou pelo coração, como disse Pascal, Espinosa apreende o ser numa
intuição supremamente inteligível" 140
A filiação, assumida por Dufrenne, no pensamento de Espinosa e que lhe
permite optar por um percurso desviante, em direcção a uma experiência estética
e ao habitar o mundo poeticamente, encontra ainda a sua inspiração no próprio
monismo substancialista espinosiano, segundo o qual a alma pode ler Deus ao
apreender as coisas singulares: "O que o conhecimento do terceiro género atinge
é, mais do que o carácter constrangedor de uma verdade lógica, o carácter
«transbordante» do ser. A plenitude não extensiva, mas intensiva, do ser é reunida
na coisa singular que o espírito conhece. A intuição inicial: o ser é, encontramo-
la sobre esta coisa singular, experimentamos nela a densidade e a força absoluta
do ser (...). Compreendemos que a imanência de Deus é a apoteose do
mundo" 141.
Não há pois, para Espinosa, outro modo de acesso a Deus, senão a via da
estrita racionalidade - como dirá Joubert só "a sabedoria é repouso na luz" 142.
Em Dufrenne será a experiência estética a via de acesso ao carácter
transbordante do fundo. O habitar poeticamente o mundo será assim a atenção
dispensada à polifonia do fundo.
Aliás, será justamente essa ideia de totalidade e plenitude, que perpassa a
concepção de Natureza em Espinosa, de que Dufrenne se crê profundamente
devedor 143
Contudo, Espinosa parece ter esquecido uma dimensão fundamental na
Natureza ao pensá-la unicamente sob o signo da eternidade. Para Dufrenne pensar
a Natureza como naturante ou como força produtora implica necessariamente
uma restituição da temporalidade.
A Natureza será pois a " pátria" dos a priori ou, como Dufrenne também
afirma , o a priori dos a priori . Não um a priori entre outros , mas o lugar mesmo
da sua emergência 149.
A explicitação da ideia de Natureza é, assim , uma paixão inútil, porque está
para além de toda a correlação com um olhar humano, porque o homem, quando
chega , é já demasiado tarde - o homem apenas pode ser o correlato do mundo -
"Contudo , esta ideia impossível é Itambémj um a priori, talvez mesmo o a priori
tipo: um saber que nos assedia , implícito e virtual e que não poderá jamais ser
explicitado senão de forma precária e, de algum modo, mítica. A ideia de inundo
explicita-se no discurso lógico, a ideia de Natureza diz-se na linguagem dos
poetas, ou dos filósofos que se instruem na proximidade dos poetas" 150
O Poético
154 De notar, contudo, que noutros aspectos , Dufrenne critica vivamente Heidegger, como se
pode ver, por exemplo, na sua obra Le Poétique, pp. 204, nota 1.
'S5 Die Sprache significa em alemão A Língua. O tradutor francês adverte que, embora, tenha
optado pela expressão A Palavra (La Parole), não se deve perder de vista o sentido fiel ao alemão
e ao espírito da letra de Heidegger: a palavra, designa aqui a palavra tal como é falada no seio de
uma língua.
M. HEIDEGGER, "La parole" in Acheminement vers Ia parole. Paris, Gallimard, 1990, 37.
156 F. BERNARDO, "O limite da questão no pensamento de Heidegger". Biblo.s, LXVII, 1992.
157 M. HEIDEGGER, "La parole " in Acheminement vens la parole. Paris, Gallimard, 1990, 18.
15' M. DUFRENNE, Le Poétique, 229.
111 M. DUFRENNE, Language and philosophy. New York, Greenwood Press, Publishers,
1968, 98.
e grávidas de sentido 171. Numa palavra, elas trazem consigo a grandeza e a força
inefável da própria Natureza.
Por isso Dufrenne denuncia a falsa interpretação da frase de Aristóteles,
que manda imitar a natureza: "Aristóteles (...) não disse, como se acreditou:
mimeisthai ta physica onta, mas ten physin; ele não propõe então que se copie
um objecto, mas que se siga um modelo que é a natureza: mostrar a mesma ener-
gia que a poiésis natural, produzir objectos que, ainda que tenham o seu princípio
na poiésis humana, manifestem a mesma potência de existir que aqueles que têm
o seu princípio em si mesmos" 172
A palavra poético, inúmeras vezes proferida por Dufrenne e que dá título,
como já vimos, a urna das suas obras fundamentais, não deve deixar entrever
um privilégio da poesia face à prosa, ou mesmo em relação à arte em geral.
Embora já o tivéssemos tornado patente acima, convém agora sublinhar que o
sentido grego da palavra poético, que aponta para a ideia de "produção" ou do
"produzir", é conservado no texto de Dufrenne, referindo-se quer à Natureza,
quer à arte, quer ainda ao artista e ao espectador. Contudo, será a Natureza
naturante (conceito que julgamos se poder consubstanciar com a physis grega,
tal como era vista pela filosofia pré-socrática: força produtora, mas também
generosa e doadora), que será o referente primeiro e último do próprio poético.
E sempre para dizer o poético da Natureza que a arte é poética, como é também
para a "criar", a partir de um sentimento da Natureza, que o artista ou o especta-
dor, são convocados ao estado poético. O poético está pois sempre relacionado
com a própria expressão, com o trazer, do dizível ao dito, o poiein da Natureza.
Por outro lado, o seu ser poético advém-lhe não só pelo facto de exercer e
exprimir o seu poiein, mas também por ser a própria instância criadora do
homem, ou seja, daquele que dirá sim ao sim já antecipadamente dito pela
Natureza - "Se queremos especificar o poético como categoria estética, é a
humanidade do aparecer que é preciso então invocar: o poético reside,
simultaneamente, na generosidade e benevolência do sensível" 173.
A arte situar-se-á sempre nessa dimensão de excesso... que até um deus deve
ignorar.