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ESTUDOS

A ESTÉTICA DE DUFRENNE OU A PROCURA DA ORIGEM

EUNICE PINHO

Obra de arte e objecto estético: fenomenologia e percepção estética

A reflexão em torno da experiência estética empreendida por Mikel Dufrenne


na sua obra Phénoménologie de l'expérience esthétique (1953) desenha-se em
três momentos ou níveis diferenciados, cuja articulação permite uma compreen-
são do fenómeno estético.
O percurso, que é também um programa, apresentado na introdução da refe-
rida obra 1 compreende uma etapa de descrição a que se segue a análise trans-
cendental e a dilucidação do significado metafísico. Ao proceder previamente a
um trabalho de descrição, Dufrenne pretende traçar a especificidade da experiên-
cia estética face a outros modos de relação do homem ao mundo. Relativamente
aos dois últimos momentos, que designa por crítica da experiência estética, toda
a sua obra posterior não deixará de a eles voltar e de os enriquecer com novos
conteúdos 2. Dir-se-ia que o remarcar daquilo que constitui a singularidade da
experiência estética é indissociável da procura de um fundo último onde esta
radica e que constitui a possibilidade, mas também o limite, para a pensar.
A filosofia de Dufrenne e, mais particularmente, a sua estética insere-se numa
linha de pensamento que encontra a sua raiz na fenomenologia de inspiração
husserliana, mas já modificada pela tradição francesa: "Não nos limitaremos a
seguir a letra de Husserl. Entendemos fenomenologia no sentido em que Sartre
e Merleau-Ponty aclimataram este termo em França: descrição que visa uma

1 Cf. M. DUFRENNE, Phénoménologie de l'expérience esthétique, vol. 1. Paris, P.U.F.,


1953, 1.
2 Veja-se por exemplo:
M. DUFRENNE, La notion d'A Priori. Paris, P.U.F., 1959.
M. DUFRENNE, Le Poétique. Paris , P.U.F., 1963.
M. DUFRENNE, L'inventaire des A Priori, Recherche de Coriginaire. Paris, Christian Bourgois
Editeur, 1981.

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essência , esta mesma definida como significação imanente ao fenómeno e dada


com ele" 3.
Todo o intento de Dufrenne será pois o de apreender a essência da experiên-
cia estética e, neste sentido, a sua estética ergue - se sobre a base de uma eidética.
Há que partir da realidade empírica das obras de arte, mais precisamente, há que
partir do modo como estas se dão à percepção - o fenómeno - pois este é o
lugar mesmo onde o sentido advém, ( e Dufrenne é aqui fiel ao apelo de Husserl
de ida às coisas mesmas) e apreender a especificidade da experiência estética,
para além da diversidade de que as diferentes artes se revestem 4.
A experiência em torno da qual Dufrenne se propõe reflectir, não será a do
artista no momento da criação - em Phénoménologie de l'expérience esthétique
não se trata de proceder a "um exame do fazer artístico" 5 - mas a do espectador:
"Pois se é verdade que a arte supõe a iniciativa do artista, é também verdade
que espera a consagração de um público" 6.
É com o espectador que a obra de arte acede ao seu verdadeiro ser (ser esté-
tico), isto é, é pelo espectador que a obra de arte deixa de ser coisa entre coisas
do mundo para se metamorfosear em objecto estético, sendo este o correlato da
percepção estética. Neste sentido, Dufrenne dirá mesmo que só a percepção
estética (à exclusão da percepção mundana, sobre a qual se operou a redução
fenomenológica) poderá fazer justiça à obra de arte.
A opção pelo estudo da experiência estética do espectador encerra em si não
uma reivindicação de exclusividade , mas parece, em certa medida, constituir um
gesto de demarcação face à ameaça do "psicologismo". É que, não obstante cons-
tituir uma das vias de acesso à estética , a reflexão sobre a criação artística corre
o risco de se ver assimilada a uma psicologia da criação: "O estudo do fazer
[artístico] constitui uma boa introdução à estética: faz plenamente justiça à
realidade da obra e coloca de imediato os problemas importantes relativos às
relações da técnica e da arte. Contudo, não está isenta de perigo: por um lado,
com efeito, não oferece uma garantia absoluta contra a cilada do psicologismo;
pode perder-se na evocação da conjuntura histórica ou das circunstâncias psicoló-
gicas da criação. Por outro lado, atribuindo a experiência estética ao artista, tende
a denunciar certos traços desta experiência e, por exemplo, a exaltar uma espécie
de vontade de poder em detrimento do recolhimento que, pelo contrário , sugere
a contemplação estética" 7.
Seria contudo simplismo acreditar que a "rasura " do tema da criação evitaria
por si só a edificação de uma estética subjectivista - também uma análise da
experiência do espectador poderia conduzir a ver na obra de arte uma mera pro-
jecção ou exteriorização das vivências subjectivas daquele. Estaríamos assim face
a uma "psicologia da recepção".

3 Ibid., 4-5, nota 1.


4 Cf. Ibid., 14.
S Cf. Ibid., 1.
6 Ibid., 2.
1 Ibid., 2 sublinhado nosso.

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Por outro lado, Dufrenne não coloca totalmente de lado uma reflexão sobre
o gesto criador, antes reconhece a necessidade de que um estudo exaustivo da
experiência estética integre as duas abordagens. Tanto mais que, sendo experiên-
cias distintas, não deixam de ter pontos de contacto entre si. O artista é, frequen-
temente, o primeiro espectador da sua obra e o espectador, pela percepção
estética, deve participar do gesto criador do artista, tornar-se como que um
cocriador da obra - isto é, deverá consentir na sua manifestação. "O espectador
não é somente a testemunha que consagra a obra é, a seu modo, o executante
que a realiza; para aparecer, o objecto estético tem necessidade dele"8.
Em obras posteriores, como por exemplo em Le poétique (1963) dedicará
algumas páginas ao problema da criação artística, centrando-se na temática da
inspiração. Também aí Dufrenne continuará fiel ao seu intento de dessubjectivar
a experiência estética, sublinhando que a vocação do poeta é a de co-responder
a um apelo que lhe vem do exterior. A inspiração toma assim o carácter de um
dom e é simultaneamente apelo da própria obra que há que fazer-se 9.

O privilégio outorgado à experiência estética do espectador enraíza numa das


teses mais originais da estética dufrenniana: a distinção entre obra de arte e
objecto estético, constituindo esta o verdadeiro ponto de ancoragem que orienta
toda a sua reflexão.
Esta distinção conduz-nos de imediato ao problema das relações sujeito-
-objecto que preside e marca o próprio estilo da estética dufrenniana. Teremos
assim que perguntar pelas consequências de uma estética que permanece pensada
a partir de uma concepção de experiência ainda gizada por um esquema dualista.
Mas veremos que o próprio Dufrenne procurará exceder esse modo de pensar.
A este tema voltaremos mais tarde.
A experiência estética encontra o seu correlato não na obra de arte, por-
quanto esta é identificada como "produto" da actividade do artista, mas no
objecto estético - só este constitui de facto o polo de reciprocidade da experiên-
cia estética: "Será preciso definir o objecto estético pela experiência estética e
a experiência estética pelo objecto estético" 10. Há assim uma "estrutura de
reenvio" a ligar ambos ou, melhor dizendo, há uma solidariedade entre sujeito
e objecto, que será explicitada pela noção de intencionalidade. Este conceito,
retomado da fenomenologia husserliana, e corrigido da sua interpretação de
cariz mais idealista, permitirá pensar que sujeito e objecto são simultanea-
mente irredutíveis e correlativos.Dufrenne falará mesmo de afinidade e de pacto
intencional:"a relação entre sujeito e objecto que denota esta noção pressupõe
não somente que o sujeito se abre ao objecto ou se transcende para este, mas
ainda que qualquer coisa do objecto esteja presente no sujeito, antes de toda a
experiência, e que, em contrapartida, qualquer coisa do sujeito pertença à

R M. DUFRENNE, " Intentionnalité et esthétique" in Esthélique et Philosophie, vol. 1. Paris,


Editions Klincksieck, 1976, 56.
Cf. M. DUFRENNE, Le Poètique. Paris, P.U.F., 1973, 167-169.
10 M. DUFRENNE, P.E.E., 4.

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estrutura do objecto , anteriormente a todo o projecto do sujeito" 11. Assim, a


experiência estética - leia-se a experiência estética do espectador - oferecer-
- se-à como o lugar privilegiado para repensar o sentido da intencionalidade.
Dirse - ia que o pacto entre o homem e o mundo se pronuncia aí de um modo
inequívoco 12.
Mas atentemos na distinção, já atrás referida , que Dufrenne opera entre obra
de arte e objecto estético.
Se o correlato da experiência estética é o objecto estético este , contudo, só
se define a partir da obra de arte. A obra de arte, embora mantendo-se numa
"exterioridade" relativamente à experiência estética , terá a função/força de a
solicitar - como a estátua escondida de A. Giacometti: "Dei com a mais bela
estátua de Giacometti - há três anos - sob a mesa , ao abaixar-me para apanhar
uma beata. Cheia de pó, escondida, o pé de alguém poderia tê-la quebrado inad-
vertidamente...
(...) - se ela tiver força, acabará por mostrar-se, mesmo que a esconda" 13.
São essencialmente duas as razões que Dufrenne aponta para interditar a
identificação da obra de arte com o objecto estético: "Primeiramente, por uma
razão de facto: a obra de arte não preenche todo o campo dos objectos estéticos;
apenas define um sector privilegiado mas restrito. Mas também por uma razão
de direito: o objecto estético não pode definir-se senão em referência, pelo menos
implícita, à experiência estética, enquanto a obra de arte define-se fora desta
experiência como o que a provoca" 14.
Importa sublinhar que a diferença entre obra de arte e objecto estético não
pode ser pensada/solucionada a partir de uma oposição do tipo real/ideal ou
mesmo realidade/aparência. Dir-se-ia que se trata de uma exigência da própria
ideia de intencionalidade, que se define como sendo o traço constitutivo da
consciência.
A consciência não é nem uma interioridade, à maneira de um "reservatório",
nem uma superfície polida ou um espelho. Por conseguinte, o objecto estético
não pode ser entendido como um mero conteúdo, nem como um reflexo ou
imagem na consciência da obra de arte. "Os dois [objecto estético e obra de arte]
são idênticos na medida em que a experiência estética visa e atinge precisamente
o objecto que a provoca; e em nenhum caso se deve colocar entre eles a diferença
de uma coisa ideal a uma coisa real, sob pena de regressar ao psicologismo
recusado pela teoria da intencionalidade: o objecto estético está na consciência
como não estando aí, e, inversamente, a obra de arte não está fora da consciência,
coisa entre coisas, senão como referida ainda a uma consciência" 15. Ambos são
apreendidos pela consciência, a "matéria" intencional é a mesma - "Há contudo
uma nuance que os separa (...): são noemas que têm o mesmo conteúdo, mas

11 M. DUFRENNE, " lntentionnalité et esthétique 2 in Esthétique et Philosophie , volt. Paris,


Éditions Klincksieck, 1976, 60.
11 Cf. Ibid., 53.
11 1. GENET. O estúdio de Alberto Giacometti . Lisboa, Assírio e Alvim, 1988. 42.
14 M. DUFRENNE, P.E.E., 9.
15 Ibid, 9.

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que diferem pelo facto da noese ser diferente: a obra de arte, enquanto está aí
no mundo pode ser apreendida numa percepção que negligencia a sua quali-
dade estética (...) O objecto estético é, pelo contrário, o objecto esteticamente
percebido, quer dizer, percebido enquanto estético. E isto mede a diferença: o
objecto estético é a obra de arte percebida enquanto obra de arte, a obra de arte
que obtém a percepção que solicita e que merece, e que se realiza na consciência
dócil do espectador, numa palavra, é a obra de arte enquanto percebida" 16. Dir-
-se-ia que a obra de arte ao fazer emergir a percepção estética, que Dufrenne
definirá noutro lugar como a percepção régia ou percepção por excelência 17, é
palco de uma verdadeira conversão: a obra de arte atinge assim a sua glória ou,
segundo as palavras do autor, realiza a sua verdadeira vocação - a de se
transcender para o objecto estético 18.
A diferença entre obra de arte e objecto estético encontra o seu correlato na
distância que separa a percepção vulgar da percepção estética. Na primeira há
uma rasura ou desatenção à qualidade estética do objecto, é como se um especta-
dor estivesse apenas supostamente a assistir a um espectáculo, o seu olhar vogaria
pelas coisas em redor, distante ou indiferente aos movimentos da cena. Só a
segunda saberá "ser sensível" ou fazer justiça a essa qualidade, cumprindo assim
a promessa inscrita em toda a obra de arte - "A diferença entre obra de arte e
objecto estético reside no facto de a obra de arte poder ser considerada como
uma coisa vulgar, quer dizer, o objecto de uma percepção e de uma reflexão que
a distingue das outras coisas, sem lhes atribuir um tratamento especial, mas, ao
mesmo tempo, pode ser objecto de uma percepção estética, a única que lhe faz
justiça" ly.
Veremos assim que para se realizar a transmutação da obra de arte em objec-
to estético é necessário que se opere uma modificação ao nível da percepção -
esta já não é a percepção vulgar ou mundana, que se ergue sobre a base de uma
atitude posicional e movida por considerações utilitárias. Este tema será caro a
Husserl que, em /deen 1, a partir do exemplo da gravura de Dürer "O Cavaleiro,
a Morte e o Diabo", mostrara que a atitude puramente estética implica sempre
uma neutralização do índice de existência, quer, primeiramente, da gravura
enquanto apreendida como um objecto entre outros, quer, em segundo lugar,
daquilo que esta poderia representar, no sentido de se estabelecer uma correspon-
dência com a realidade 20.Por outras palavras, a experiência estética pressupõe
também em Dufrenne uma redução fenomenológica, só esta garante a emergência
do objecto estético, que aqui é identificado com o fenómeno. E é também sob
este mesmo clima da redução, isto é, pressupondo-a, que se poderá compreender
a tese de Dufrenne de que o sentido é imanente ao sensível e ainda que a percep-

16 Ibid., 9.
n Cf. M. DUFRENNE, " Intentionnalité et esthétique " in Esthétique et philo sophie, vol . I. Paris,
Editions Klincksieck , 1976, 54.
18 Cf. M . DUFRENNE , P.E.E., 33.
1' M. DUFRENNE , P.E.E., 26.
20 Cf. E. HUSSERL , Idées directrices pour une phénoménologie et une philo s ophie
phénoménologique pures . Paris, Gallimard , 1985, 373-374.

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ção estética é a própria exaltação e consagração do sensível: "o que é real, o


que «me prende », é justamente o «fenómeno », que a redução fenomenológica
pretende atingir : o objecto estético dado na presença e reduzido ao sensível, aqui
a sonoridade do verbo combinada com os gestos dos actores e o encanto do
décor, a que a atenção se entrega totalmente para preservar a pureza e a integri-
dade, sem jamais evocar a dualidade do percebido e do real; o objecto estético
é apreendido como real sem reenviar ao real , quer dizer , a uma causa do seu
aparecer , ao quadro como tela, à música como barulho de instrumentos, ao corpo
do bailarino como organismo : não é outra coisa senão o sensível na sua glória,
cuja forma , que o constitui , manifesta a plenitude e a necessidade , que traz em
si e dá de imediato o sentido que o anima"".
Insistindo de novo no papel do espectador veremos que este se define jus-
tamente como aquele que, em face da obra de arte, realiza um acto de estetização,
ou, se quisermos , adopta uma atitude estética . Dufrenne precisará o sentido deste
termo , distinguindo -o quer do estetismo, quer da sua assimilação a um gesto
soberano e arbitrário.
A estetização não é nem o privilégio de uma elite de pretensos possuidores
de um gosto refinado , nem tão pouco se trata aqui de um sujeito que se assumiria
como constituinte do objecto , numa atitude de idealismo exacerbado: "a percep-
ção, estética ou não, não cria um objecto novo' '2222. O sujeito estetizante é, antes
de mais, aquele mesmo que se mostra disponível para se deixar solicitar pelo
estetizável - "A estetização não é o privilégio de conhecedores, é o acto de uma
percepção que se alia ao aparecer do objecto e o aprecia como sensível" 23
Em vez do clássico movimento de fuga ao sensível, como condição ou
garante da inteligibilidade das coisas, encontramos aqui a afirmação de que o
sensível é o lugar mesmo onde já o sentido cintila e se estreita a solidariedade
com a percepção que o acolhe e de que a experiência estética é testemunha
privilegiada:'Tangível, audível, visível, é sempre sob as espécies do sensível que
o mundo me é presente. Jamais como um em- si intocável , jamais ainda como
aquilo a que o saber o reduzirá: as qualidades primeiras não se dão senão através
das qualidades segundas. Tudo começa com o sensível. Tanto pior para uma
certa filosofia que se interdita de falar do começo!" 24. Por isso, a revalorização
do sensível é solidária de um retorno à percepção, sendo esta entendida, à
maneira de Merleau -Ponty , como a própria âncora do conhecimento - "A per-
cepção não é uma ciência do mundo , não é um acto, uma tomada de posição
deliberada, ela é o fundo sobre o qual todos os actos se destacam e é pressuposta
por eles" 25.
O objecto estético tem, em Dufrenne, uma essência percepcionável: "o objec-
to estético é essencialmente percebido: para a sua epifania, a execução por vezes,

21 ibid. 55.
22 M. DUFRENNE, P.E.E. 6.
23 M. DUFRENNE, "Le champ de l'esthétisable"
in Esthétique et philosophie , vol. III. Paris
Editions Klincksieck , 1981, 86.
21 M. DUFRENNE, L'txil et l' oreille . Paris, Editions
Jean - Michel Place , 1991, 70.
25 M. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie
de Ia perception . Paris, Gallimard , 1987, V.

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a testemunha ou o público sempre, são necessários; ele manifesta o sensível na


sua glória" 26.
Mas definir o objecto estético pelo seu carácter percepcionável levanta-nos
um problema acerca do seu estatuto - se, por um lado, temos a afirmação de
que o fenómeno (aqui o objecto estético) não comporta dimensões obscuras que
se subtraíam à mostração, afirmar, por outro lado, a sua dependência face à per-
cepção não será ressuscitar a velha fórmula berkeleyana de que esse est percipi?
Não estaremos de imediato a reduzir o fenómeno ao ser subjectivo de uma
representação?
Dufrenne responde a esta questão afirmando uma dualidade inscrita no pró-
prio objecto estético: este é simultaneamente um em si e um para nós 27. Há no
objecto estético uma espécie de força anímica, um querer ser, como que uma
exigência dirigida a uma percepção e que constitui a prova mesma do seu ser e
a sua irredutibilidade à consciência que o apreende: "O objecto estético não é
exterior ou transcendente às suas aparições, pois não se realiza senão nelas,
diferentemente do objecto vulgar para o qual é indiferente ser bem ou mal per-
cebido (...); Não se deixa reduzir às suas aparências , pois pode, por si mesmo,
denunciá-las, pois o próprio quadro nos adverte que a iluminação é deficiente
ou a nossa percepção desfavorável, a música que o movimento está mal regulado
ou que não estamos em forma para escutar e o próprio monumento que o meio
circundante o trai ou que o tempo manchou a pedra (...). O objecto estético não
é senão aparência, mas na aparência é mais do que aparência: seu ser é o de apa-
recer, mas algo se revela no aparecer que é a verdade e que obriga o espectador
a prestar-se à revelação" 28. Esta verdade é o mundo singular que o objecto
estético traz em si e para o qual nos remete incansavelmente - o que sugere a
própria infinitude do "trabalho da percepção".

O império da percepção

E no plano da presença, enquanto primeiro momento da percepção que a


experiência estética celebra a vivência da plenitude do sensível, o mútuo envolvi-
mento "daquele que sente" e do "sentido", num estado em que a consciência faz
corpo com o mundo, em que sujeito e objecto se encontrem entrelaçados sem
vislumbre de cisão: "É nele [no sensível] que se faz a prova da presença, mas
de uma presença ainda sem distância, onde o contacto é impelido à fusão (...).
Este imediato não suporta nenhuma mediação, ou, se se preferir, nenhuma
diferença. Situação-limite, porque, de facto, a separação do sujeito e do objecto
está já sempre iniciada. Só a experiência estética (...) nos pode aproximar dela
e talvez despertar a nostalgia" 29.

26 M. DUFRENNE, P.E.E., 286.


27 Cf. Ibid., 287 e " Intentionnalité et esthétique " in Esthétique ei philosophie, vol. 1. Paris,
Editions Klincksieck , 1976, 56.
28 Ibid., 288-289.
29 M. DUFRENNE, L'oeil et l' oreille . Paris, Editions Jean-Michel Place, 1991, 71.

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Dufrenne apela aqui para uma zona originária (anterior ao pensamento


objectivante), à qual a experiência estética simultaneamente abre o acesso, mas
também só a partir dela pode ser pensada. Por isso ela terá sempre o carácter
de um retorno ao originário: "E é o que a estética vai meditar: considerando
uma experiência originária, reconduz o pensamento e talvez a consciência à
origem. Aí reside o seu principal contributo para a filosofia" 30.
Fundada, ela é também fundante, reconduzindo a esse "plano" onde se joga
a relação mais íntima, mais profunda do homem com o mundo, anuncia e
denuncia também aquilo mesmo sobre o qual se ergue, rasurando-o, o próprio
pensamento conceptual , mormente a ciência.
Não se trata - e Dufrenne adverte-o - de propôr uni "mergulho na noite
dos tempos", de fazer a apologia do irracional, antes da própria possibilidade de
pensar a emergência do sentido. Este só parece ser pensável na sua radicalidade
a partir daquela zona onde a razão não opera ainda soberanamente e que Merleau-
-Ponty define pelo conceito de pré-reflexivo: "É na experiência da coisa que se
fundará o ideal reflexivo do pensamento tético. A reflexão não apreende ela
mesma o seu sentido pleno senão na condição de mencionar o fundo irreflectido
que pressupõe, a partir do qual se desenvolve e que constitui para ela como que
um passado original, um passado que nunca foi presente"". Toda a questão será
a de saber como trazer à presença esse passado jamais presente, uma vez que
a adesão primordial ao mundo está já sempre cindida - "Poderei eu ainda
concebê-lo, pensar um sentir que não seja pensamento de sentir, pensar «a per-
cepção como impercepção»?" 32
A marca do originário ficará para sempre gravada quer no sujeito, quer
no objecto e, nessa medida, a co-naturalidade não terá sido nunca totalmente
perdida... Certas experiências trazem consigo esse privilégio de manifestar o
lastro, que as edifica.
A experiência perceptiva (e estamos ainda no plano da presença), ao permitir
que, de imediato, um sentido possa ser captado, manifesta essa mesma conivência
do corpo e do mundo, que retira a opacidade das coisas e as dota de transpa-
rência, pois "elas são da mesma raça que nós" 33. Dufrenne retoma aqui uma
expressão cara a Merleau-Ponty: "O meu corpo é a textura comum de todos os
objectos e é, pelo menos em relação ao mundo percebido, o instrumento geral
da minha «compreensão»" 34. O corpo é assim o lugar de cognoscibilidade das
próprias coisas, é a ele que tudo se mostra e se oferece.
Trata-se, pois, a este nível de uma intelecção, que é ainda corporal, de um
sentido que é sobretudo vivido, ou, se quisermos, trata-se de sublinhar a raiz
corpórea do próprio sentido: "O sentido não é, primeiramente, qualquer coisa
que penso com distanciamento, mas algo que me concerne e determina, que ecoa

30 M. DUFRENNE, "L'apport de I'esthétique à Ia philosophie" in Esdtétique et philosophie,


vol. 1. Paris, Editions Klincksieck, 1976, 9.
3i M. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie
de Ia perception. Paris, Gallimard, 1987, 279-280.
3z M. DUFRENNE, L'oeil et l'oreille. Paris,
Editions Jean-Michel Place, 1991, 71.
33 Cf. M. DUFRENNE, P.E.E.,1I, 423.
34 M. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie
de Ia perception. Paris, Gallimard, 1987, 272.

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em mim e me comove; a significação que contemplo sem a ela aderir será anteci-
pada sobre esta significação primitiva, que me convence porque me envolve,
onde o sentido é uma somatização à qual respondo com o meu corpo" 35
O trânsito do vivido, da presença, para um outro plano de inteligibilidade -
designadamente o da representação - só será possível devolvendo ao corpo
vivencial (não o corpo que é objecto do conhecimento científico) o carácter
transcendental, que o intelectualismo atribui ao espírito 36
A intenção de Dufrenne não é a de simplesmente operar uma inversão na
hierarquia corpo/espírito, real/irreal que atravessa todo o pensamento ocidental,
trata-se sim de mostrar a não pertinência deste pensamento de tipo dualizante.
A propósito da metáfora obsidiante "visão das ideias" ou ainda "olhos do espí-
rito", que povoa o próprio discurso racionalista, sublinhará que "os olhos do
espírito são os olhos de que o espírito tem necessidade para o seu advento, os
olhos do corpo. Se a metaforização é uma sublimação, é no sentido em que a
entende Adorno: uma sublimação que conserva o que ela ultrapassa. Mas se os
olhos do espírito são ainda os olhos do corpo, em contrapartida, os olhos do corpo
não são simplesmente máquinas registadoras, o corpo não é simplesmente uma
coisa entre as coisas, ele é o órgão do pensamento. Dito de outro modo, quando
se invoca o espírito e quando se lhe atribui qualquer operação, o corpo está
sempre implicado. O que a filosofia contemporânea diz naturalmente da lingua-
gem, que o pensamento a habita e permanece nela, é preciso dizê-lo, a partir de
agora, do corpo, deste corpo que fala e que é também um corpo que vê e (...),
um corpo que escuta" 37.
A experiência estética será o lugar de eleição, onde se manifesta essa pro-
ximidade/familiaridade do corpo com o objecto estético: é primeiramente ao
corpo que o objecto estético se anuncia e oferece, exercendo sobre ele como que
um poder de sedução 38. Tal como já ao nível da própria criação artística é
preciso que o corpo se ofereça à obra de arte para que esta possa fazer a sua
aparição: "Com efeito, não vemos como seria possível a um Espírito pintar.
E emprestando o seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em
pintura" 39.
Por outro lado, será também pelo corpo que a unidade do objecto estético
se realiza, em virtude dessa "operação concordante", desse entrelaçamento na per-
cepção, dos sentidos. Porque o corpo não é um somatório de órgãos e de funções
justapostas, mas um sistema sinérgico em que os sentidos se intercomunicam,
do mesmo modo que os dois olhos colaboram na visão 40 -,,É pelo corpo que
há uma unidade do objecto estético, e particularmente nas obras compósitas como
a ópera ou o ballet, que fazem apelo a diversos sentidos ao mesmo tempo.

35 M. DUFRENNE, P.E.E.,422.
36 Cf. Ibid.,424.
37 M. DUFRENNE, L'oeil et l'oreille. Paris, Editions Jean-Michel Place, 1991, 45-46.
38 Cf. M. DUFRENNE, P.E.E., 426.
39 M. MERLEAU-PONTY, L'oeil et l'esprit. Paris, Gallimard, 1964, 16.
40 Cf. M. MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de Ia perception. Paris, Gallimard, 1987, 270
e Romero, Sergio Rabade, Experiencia, cuerpo y conocimiento. Madrid, C.S.1.C., 1985, 276-282.

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A unidade do objecto estético e que é (...) a unidade da sua expressão não poderá
ser compreendida senão sob a condição de que a diversidade do sensível esteja
primeiramente unida num sensorium commune: é o corpo que é o sistema sempre
já formado de equivalências e transposições intersensoriais , é por ele que há uma
unidade antes da diversidade" 41.
Merleau - Ponty sublinhará mesmo que na percepção uma coisa nunca é
dada a um único sentido - um vento violento é também aquele que se faz visí-
vel na desordem da paisagem . Neste sentido "Cézanne dizia que um quadro
contém em si mesmo até o odor da paisagem. Queria dizer que o arranjo da cor
sobre a coisa (...) significa por si mesmo todas as respostas que ela daria à
interrogação dos outros sentidos, que uma coisa não teria esta cor se não tivesse
também esta forma, estas propriedades tácteis, esta sonoridade, este odor e que
a coisa é a plenitude absoluta, que a minha existência indivisa projecta face a si
mesma" 42.
Contudo, se , já o sabemos , é o corpo que primeiramente abre o acesso à inti-
midade do objecto estético, o sentido captado permanece um sentido para o
corpo. Sem renunciar a este nível da presença, mas pressupondo-o enquanto
fundante , será preciso considerar os outros planos da percepção - "Não podemos
fazer permanecer toda a percepção sensível ao nível do pré-reflexivo . E preciso
passar do vivido ao pensado, da presença à representação- 43.
Esta passagem revestirá , no entanto ( e no caso especial da experiência
estética) o carácter de uma oscilação perpétua, sem que se dê efectivamente
o trânsito definitivo de um plano a outro, que abriria assim o lugar a uma
instalação.
Situando-nos no plano da representação, já não é tanto ao corpo (enquanto
poder de "ser-com") que compete o papel de transcendental, mas este é agora
outorgado à imaginação, entendida como poder de ver. A imagem fica assim
situada a meio termo entre a presença bruta em que o objecto é experimentado
e o pensamento onde se forma a ideia - o objecto está presente não já na sua
carnalidade , embora a experiência desta, longe de a apagar , seja a herança que
entretece a representação.
Dufrenne verá na imaginação a própria possibilidade de ligação entre o corpo
e o espírito 44, cabendo- lhe assim o papel de intermediário, que, de resto, a tradi-
ção do pensamento ocidental maioritariamente lhe atribuiu. Esta posição será
criticada por E. Casey, que denuncia a íntima conexão entre o privilégio da
presença, isto é, a possibilidade do encontro/contacto directo e imediato do
sujeito com o objecto, e a tentativa de camuflar a hierarquia das "operações
psíquicas", que procedem ou antecedem o momento do contacto: "esta hierarquia
impõe-se se for preciso ir da sensação ao entendimento e vice-versa, logo, de
uma evidência à outra: este momento deve passar por estados intermediários.

41 M. DUFRENNE , P.E.E., 426.


42 M. MERLEAU -PONTY, Phénoménologie de Ia perception . Paris, Gallimard , 1987, 368.
41 M. DUFRENNE , P.E.E., 432.
44 Cf. Ibid., 432.

pp. 361 - 396 Revista Filosófica de Coimbra - n." 6 (1994)


A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 371

Encontramos, na verdade estes intermediários, sob um ou outro disfarce, nas


epistemologias ocidentais desde Platão" 45
A concepção de imaginação defendida por Dufrenne está modelada pelo
primado da percepção. É sempre seguindo o rastro das experiências anteriores,
feitas pelo corpo, no plano da presença, que a imaginação opera, transmutando
o adquirido em representado. Desse modo, apenas a imaginação na sua vertente
transcendental assume um papel relevante na experiência estética, o seu lado
empírico é recusado pela própria autosuficiência do objecto e percepção estéticos.
Ao nível da percepção estética (diferentemente da percepção vulgar) o papel
da imaginação é menos enfatizado por Dufrenne. Apenas a imaginação na sua
vertente transcendental é tida em consideração, enquanto o seu lado empírico é
recusado pela própria autosuficiência do objecto e percepção estéticos.
Enquanto transcendental, a imaginação é requerida pelo seu poder de esca-
var uma distância em relação ao objecto estético: "O próprio objecto estético,
ele sobretudo, deve ser percebido à distância do objecto e não simplesmente
vivido na proximidade da presença" 46. - O objecto estético deverá pois ser para
nós espectáculo.
Proximidade e distanciação, participação e reserva de si - eis a postura que
o espectador deve ostentar. Dufrenne descrevê-la-à mesmo como ficando a meio
termo entre o comportamento do crente e o comportamento do não crente perante
uma cerimónia religiosa: "O espectador deve interessar-se o suficiente pelo
espectáculo para o seguir, mas não em demasia para ser enganado; o suficiente
para simpatizar com as personagens, mas não para se identificar com elas; o
suficiente para ficar suspenso pela acção, mas não tanto de modo a intervir nele
como se fosse real (...) a percepção estética requer um certo desprendimento que
o corpo pode viver, de que a sensorialidade pode ser o órgão, mas cujo princípio
está sem dúvida na imaginação, enquanto poder transcendental de tomar as suas
distâncias" 47.
Quanto à imaginação empírica, o seu poder de vivificar e completar a per-
cepção vulgar revela-se desnecessário na percepção estética - "o espectáculo
dado pelo objecto estético é suficiente em si mesmo e não tem necessidade
de ser reforçado; a imaginação pode suscitar a percepção, mas não tem que
enriquecê-la" 48.
O objecto estético não remete para um sentido que existiria à distância, fora
de si, nem tão pouco solicita da nossa parte qualquer acção, a que caberia à
imaginação traçar direcções possíveis. Há nele como que uma «necessidade
interior» que é a de ser um puro aparecer e, nesse mesmo aparecer, se joga/
acontece a sua realização.
Na percepção vulgar, para apreender um objecto é preciso atentar nos outros
objectos por entre os quais circula, integrá-lo num contexto, quer dizer, apreendê-

45 E. CASEY, " L'imagination comme intermédiaire " in Vários, Vers une esthétique sans
entrave , Mélanges , Mikel Dufrenne . Paris , U.G.E., 1975, 94.
46 Ibid., 447.
47 Ibid., 448.
48 Ibid., 448.

Revista Filosofica de Coimbra - n." 6 (1994 ) pp. 361-396


372 Eunice Pinho

-lo aí mesmo, sob o pano de fundo que é o mundo a partir do qual emerge e
ganha sentido. Há como que uma indigência neste objecto vulgar, um reenviar
de coisa em coisa para assim poder significar ou ganhar sentido - numa palavra,
há nele a falta congénita de uma luminosidade interior de que só o objecto
estético será detentor 49. A sua opacidade de coisa é fracturada por uma luz que
jorra a partir de si - por isso Dufrenne dirá que o ser do objecto estético, porque
ele mesmo se exprime , é um "quase-sujeito" 50.
Por outro lado, mesmo na impossibilidade de uni olhar abarcador da totali-
dade do objecto, mesmo pressupondo o carácter de novidade, sempre transbor-
dante, oceânico, do objecto estético, não há quaisquer dimensões na sombra,
escondidas, laterais a que caberia à imaginação suprir. Mesmo na parte, o que
se dá é sempre o todo - o monumento é apreendido como imediata e totalmente
dado em cada percepção 51. E, nesse sentido, não há que interpretar as aparências,
que nos são oferecidas, buscando um suposto objecto real, que estaria por detrás
delas. "Se Cézanne coloca a garrafa obliquamente, não temos de a endireitar, se
Renoir faz «desaparecer» os cabelos de uma mulher no fundo do quadro, a ponto
de as fronteiras se tornarem indiscerníveis, não temos de as traçar, como se
tivéssemos de pintar o retrato. (...) Toda a tarefa da imaginação é então de apre-
ender este objecto na aparência, mas sem lhe substituir um objecto imaginário
mais verdadeiro, de que seria o analogon" 52.
Nesta recusa de uma participação mais "efectiva" da imaginação na percep-
ção estética está imbricada a crítica a uma concepção de arte como representação
ou mimética da realidade.
Em obras posteriores, designadamente em Language and philosophy e em
Le Poétique vemos o tema da imaginação ressurgir. Mas trata-se aí de uma
outra concepção de imaginação, pois esta já não é uma "faculdade" do espírito
humano. Subtraído o seu carácter subjectivo, a imaginação torna-se pertença
de uma natureza pensada em termos metafísicos de Natureza naturante que se
revela ao poeta através das "grandes imagens". A este assunto voltaremos mais
à frente.
Em Phénoménologie de I'expérience esthétique, de que temos procurado
seguir o traçado, a imaginação conserva o lugar de "intermediário" na topologia
do espírito humano. Tratada deste modo, a imaginação carece de um estatuto
independente e de um papel relevante na experiência estética.
Vejamos agora como se opera a passagem do plano da representação para a
reflexão.
O entendimento, ao disciplinar a imaginação e ao garantir o rigor e objectivi-
dade do dado, possibilita assim o avançar do conhecimento ou da percepção,
permanecendo este marcado por uma finitude inexorável, que é a necessidade
de mergulhar sempre na experiência da presença 53

49 Cf. Ibid. 1, 195-196.


Cf. Ibid. 1, 197.
Cf. Ibid., 454.
sz Ibid., 458.
53 Cf. Ibid., 464.

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A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 373

Dufrenne retoma aqui a letra de Kant, mais especificamente o momento


em que este, na Crítica da Faculdade do Juízo põe em cena os juízos reflexivos.
Dir-se-ia que a sua consideração abre uma via para pensar a experiência estética:
"Segundo o juízo reflexivo, estabeleço com o objecto uma relação mais íntima
do que no juízo determinante: não me contento em ordenar as aparências ou em
registar as significações que me são propostas pela imaginação, verifico este
«acordo da natureza com a nossa faculdade de conhecer», que Kant exprime pelo
princípio da finalidade. Esta afinidade, que se manifesta entre a natureza e o eu,
não é somente compreendida por reflexão, é experienciada, particularmente na
experiência estética, numa espécie de comunhão entre o objecto e eu" 54.
Esta relação profunda, esta consubstancialidade entre sujeito e objecto, de
que o encontro com a obra de arte (objecto estético) será a testemunha privile-
giada, conduz-nos directamente ao tema do sentimento, que é considerado o
ponto de culminância da experiência estética.
A importância outorgada por Dufrenne ao sentimento não pode ser vista
como uma cedênciá a uma estética subjectivista. Este não se define por um
"estado de alma" ou um modo de ser do sujeito, que determinaria uma atitude
de ensimesmamento ou a clausura do sujeito na sua própria interioridade; tão
pouco pode ser assimilado a uma mera reacção epidérmica. O sentimento é "um
modo de ser do sujeito, que responde a um modo de ser do objecto, é em mim
o correlato de uma certa qualidade do objecto, pelo qual o objecto manifesta a
sua intimidade" 5S. E não deixa de ser significativo que Dufrenne mostre, ainda
que o faça entre parêntesis, uma certa desconfiança face ao termo "correlato" -
pela sua conotação idealista- e o pretenda substituir por ressonância. É que a
relação que se estabelece entre sujeito e objecto é algo diverso de uma relação
de domínio do primeiro relativamente ao segundo; o sujeito da experiência esté-
tica não é o sujeito constituinte da fenomenologia na sua vertente idealista -
"A linguagem da intencionalidade aplicada ao sentimento enfraquece talvez o
que precisamente há nele de sofrido" 56
Ora, colocada nestes termos, encontrando a sua realização no sentimento, a
experiência estética parece ter algo em comum com o modo como Heidegger e
Gadamer concebem a experiência em geral. Dir-se-ia existir nela um "pathos"
constitutivo, ou seja, o estigma da própria finitude do conhecer. Repare-se que
Dufrenne fala na existência de algo de sofrido, como que de um submeter-se ao
nível do sentimento; estaremos aqui em face da fórmula, de Esquilo, de que
aprender é sofrer?
É já célebre o passo da primeira das três conferências, intituladas Le déploie-
ment de la parole, em que Heidegger explica, de um modo belo mas algo dramá-
tico, o que entende por experiência: "Fazer uma experiência com o que quer que
seja, uma coisa, um ser humano, um deus, isso quer dizer: o deixar vir até nós,
deixar que nos atinja, nos sobrevenha, nos derrube e nos transforme. Nesta

54 Ibid., 468.
55 Ibid., 469.
56 Ibid., 470.

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374 Eunice Pinho

acepção «fazer » não significa precisamente que nós efectuamos por nós mesmos
a experiência , fazer quer dizer aqui, (...), passar por, sofrer até ao extremo , supor-
tar, acolher o que nos atinge , submetendo - nos" 57.
Por outro lado, também para Gadamer a marca da historicidade , incrustada
em toda a experiência , o leva a afirmar que "a verdadeira experiência é aquela
em que o homem se torna consciente da sua finitude . Nela encontram o seu limite
o poder fazer e a autoconsciência de uma razão planificadora" 58.
O sentimento , longe de constituir , como atrás referimos , um estado subjec-
tivo, implica da parte do sujeito unia disponibilidade e abertura à quilo que do
ser advém e que estilhaça e excede qualquer tentativa de previsão e domínio.
No sentimento , "o ser aparece como outro do que ele é, e inesgotável, não
somente porque , corno a imaginação advertiu , eu posso sempre substituir ou
juntar uma representação a outra, mas porque qualquer coisa nele me é dada, que
rejeita toda a representação e toda a acção" 59
O sentimento , considerado deste modo, desvia a experiência estética do pri-
mado do ter e leva o sujeito a colocar-se a si mesmo em questão . Trata-se de
saber , reflectindo , se se é ou não capaz de escutar essa mensagem de que o
objecto estético é portador 60 e que escapa a toda a apropriação , porque a sua
voz é a do silêncio.

Para Dufrenne, o sentimento é uma outra via na qual a percepção se pode


comprometer, evitando "o campo das significações puramente objectivas que con-
sagram o nosso poder e a nossa indiferença" 61. Por outro lado, essa experiência
gizada pela abertura do "fundo de nós mesmos" a uma realidade sobre a qual
não temos jurisdição, reveste-se, para Dufrenne, de um carácter ontológico. Para
uma melhor dilucidação daquilo em que consiste o sentimento será importante
atender-se à distinção, que Dufrenne opera, entre eu superficial e eu profundo
ou, o que se equivale, entre emoção e sentimento. Enquanto a emoção tem um
carácter contingente e transitório, não exigindo de nós próprios um verdadeiro
envolvimento/consentimento; o sentimento tem o carácter de uma revelação na
qual o eu profundo se deve encontrar comprometido - "Assim a emoção do
medo não é o sentimento do horrível: é uma certa forma de reagir ao horrível
(...). Tal como a alegria não é o sentimento do cómico, mas a forma como pene-
tramos no mundo do cómico e o usamos (...) Medo, alegria, piedade designam
movimentos do sujeito, num sentido alargado de emoções, se entendermos por
isso não somente desregulações mas, em primeiro lugar, empreendimentos,
pontos de partida de acção, qualquer que seja o destino desta acção. Enquanto
o sentimento é conhecimento (...) E este conhecimento, reciprocamente, é senti-
mento (...) porque supõe uma certa disponibilidade para acolher o afectivo"62.

57 M. HEIDEGGER, Acheminement vers Ia parole. Paris, Gallimard, 1990, 143.


sx H.-G. GADAMER, Verdad y Metodo. Salamanca, Ediciones Sígueme, 1984, 433.
sv M. DUFRENNE, P.E.E. 11, 470.
R0 Cf. Ibid., 470.
fi' Ibid., 471.
fiz Ibid., 471-472.

pp. 361-396 Revista Filosófica de Coimbra - n.' 6 (1994)


A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 375

O traço decisivamente distintivo entre emoção e sentimento é-lhe conferido


por aquilo que Dufrenne designa por função noética do sentimento: enquanto
a emoção é apenas comentadora de um mundo já dado, o sentimento revela
mundo 63. Não o mundo familiar, povoado de objectos e utensílios, no qual nos
situamos segundo coordenadas espacio-temporais precisas. Não o mundo que
seria o duplo, a cópia daquele que cada um de nós, o artista inclusivé, habita.
Mas também não se trata ainda de uma simples moldura meramente imaginada
e acrescentada à soma das coisas presentes 64
O mundo, que a obra de arte institui, é um mundo auroral, inobjectivável,
impossível de dimensionar, não susceptível de ser dito na linguagem comum, mas
capaz de fazer despertar um sentimento - "indefinido [como] uma potência, que
nenhuma actualização esgota. É possibilidade indefinida de objectos ligados,
unidos por uma qualidade comum, como um som é pleno de harmonias, em rigor,
inumeráveis. É por isso que tem as dimensões de um mundo, dimensões que
desafiam a medida, não porque há sempre mais a medir, mas porque não se pode
ainda medir: este mundo não está povoado de objectos, ele precede-os, é como
a aurora onde eles se revelam e onde se revelam todos os que são sensíveis a
esta luz, todos os que podem desabrochar nesta atmosfera" ó5
É, pois, pelo sentimento que se estabelece a aliança com o conteúdo expres-
sivo da obra, com esse "rosto afectivo", que o objecto estético estende para nós
e que constitui uma " atmosfera de mundo" 66
Aquilo que na obra se diz, não é o já aí, a dita realidade que se patenteia
claramente aos nossos olhos, ao cruzar a esquina. O que a obra nos revela e que
apreendemos pelo sentimento é aquilo que da realidade não é directamente visí-
vel - como o rumor suave das espigas de Van Gogh , a balançarem-se ao sabor
da brisa 67. Por isso a arte dita figurativa é um logro. Representar será sempre
transfigurar, recriar um sentido, porque a expressão detém a primazia: "O mundo
exprimido é a alma do mundo representado. (...) Exprimir é transcender - se para
um sentido, e a luz deste sentido - a qualidade da atmosfera - faz surgir um
rosto novo do objecto" 68.
O que a obra mostra, não é o mundo já dado, mas a emergência do real, não
a aparência, mas o aparecer 69. A obra de arte é assim paixão da origem, desejo
de a dizer e, contudo, mera alusão: "O que eu tento traduzir-vos, é mais miste-
rioso, confunde-se com as raízes mesmas do ser, com a fonte impalpável das
sensações" 70.

63 Cf. Ibid., 472.


64 M. HEIDEGGER, A origem da obra de arte . Lisboa, Edições 70, 1989, 35.
65 M. DUFRENNE, P.E.E., 1, 240.
66 Cf. Ibid., 235 e M. DUFRENNE, Le poétique. Paris, P .U.F., 1973, 92-93.
67 V. GOGH, Carta a Gauguin cit. por Bonafoux , P., Van Gogh a luz e a cor. Lisboa, Livraria
Civilização/Círculo de Leitores , 1991, 141.
68 M. DUFRENNE, P.E.E., 1, 247-248.
69 Cf. M. DUFRENNE, " La profondeur comme dimension de I'objet esthétique " in Esthétique
et Philosophie, III. Paris, Editions Klincksieck , 1981, 145.
70 J. GASQUET, Cézanne cit. por M. MERLEAU-PONTY, L'oeil et l'esprit . Paris, Gallimard,
1964, 7, sublinhados nossos.

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376 Eunice Pinho

O que o sentimento, na sua função noética, apreende do objecto estético, está


para além da aparência do mesmo - esse será o terreno, onde o entendimento
opera para o interpretar. O sentimento é, antes de mais, encontro com, modo de
responder à expressão, que da obra emana. Expressão, que, para Dufrenne é,
simultaneamente , a condição e o modo originário de significação 71. Não ainda
as ideias depuradas, claras e distintas que o pensamento cartesiano valoriza, mas
o sentido na sua emergência.
Ilá uma diferença essencial a separar a aparência da expressão. Enquanto a
aparência nos dá acesso ao conhecimento de unia coisa, a expressão revela-nos
uni sujeito ou uni quase-sujeito. Nesse sentido, o objecto estético, ao ter o poder
de se expressar por si mesmo, assume-se como sendo um quase-sujeito 72.
Entre o homem e o objecto estético há, pois, algo em comum: a capacidade
de expressão - e que os torna irredutíveis às coisas.
A coisa é aquilo que é, sem segredos. Não comporta em si partes intencio-
nalmente escondidas. Mesmo que o objecto se não exiba na sua completude e a
nossa visão seja sempre perspectivística, a sua opacidade está sempre fendida
pelo anunciar dessa mesma zona de obscuridade. Dufrenne dirá mesmo que, se
se pode falar em mistério, a propósito das coisas, esse mistério é ainda visível 73.
A coisa existe na sua pura exterioridade, sem emitir quaisquer sinais de um
possível interior a pulsar dentro de si. Por isso, a coisa pode sempre ser objec-
tivada. De aparência em aparência, o saber vai-se rectificando e progredindo.
Contudo, o que aqui está em jogo, é o tipo de relação que se instaura entre
um sujeito e aquilo que o aparecer manifesta - o objecto a ser conhecido e que
é o correlato de uma percepção: "a passagem da aparência ao objecto é
certamente um acto meu, e o percebido é com certeza o correlato da minha
percepção—` -E, no caso da estética, entre o sujeito e aquilo mesmo que se
exprime e, nessa medida, se metamorfoseia em quase sujeito. Numa palavra,
temos no primeiro caso, uma relação de tipo objectivante; no segundo, um diá-
logo entre um eu e um tu ,um encontro de alteridades e que é, por isso mesmo,
irredutível à tematização e ao conceito.
A linguagem, que entretece a relação com a coisa, é a linguagem na sua
dimensão empobrecida, degradada; em que as palavras são meros instrumentos,
que servem para designar as coisas - a palavra é a veste exterior, que reveste
um real mudo, desnudado de linguagem 75. - "E é por isso que nomear não é
mais, como na palavra originária, fazer eco do objecto e ser possuído por ele, é
possui-lo. A palavra é o instrumento e o signo do domínio, ela confirma que
detenho a chave da aparência" 76.
Pelo contrário, o sentimento, não assumindo para Dufrenne a acepção de uma
disposição ou reacção subjectiva, surge como resposta ao apelo que pela expressi-

71 Cf. M. DUFRENNE , Le poétique . Paris , P.U.F., 1973, 87.


72 Cf. M. DUFRENNE, P.E.E., II, 473.
Cf. Ibid., 473.
74 M. DUFRENNE, P.E.E., II, 478.
75 Cf. M. B. PEREIRA , " Compreensão e alteridade ". Biblos, LII , 1976, 91.
7' M. DUFRENNE, P.E.E., II, 478.

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A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 377

vidade da obra advém. O sentimento é leitura da expressão: "Eu já não decifro


mais uma aparência, já não reconstituo o que foi constituído pelo corpo, não
exploro mais um capital. Sem dúvida, não posso ler senão na condição de que
os signos sejam signos para mim, quer dizer, que eles despertem algum eco no
meu corpo. (...) O que me aparece é o sentido mesmo ao qual acedo directamente
por uma clarividência natural"77. Pelo sentimento, há assim uma adesão imediata
ao sentido, ou, se se quiser, ao mundo em direcção ao qual o objecto estético
aponta, e que nenhum aparelho conceptual poderá traduzir ou dominar. Só a
linguagem autêntica, a linguagem poética, porque mantém em si o eco das
experiências primordiais 78, pode entretecer esta relação. O sentido não é mais
aquilo que eu posso dominar, mas é algo que me chega sob o modo de uma
oferta - "O poema veio de longe assim, tranquilo, com os seus gestos, a sua
vida, para nos reencontrar" 79.

Dufrenne concebe a experiência estética como um encontro no qual a obra


nos toca profundamente - porque a profundidade é uma dimensão essencial e
comum ao objecto e ao sentimento estéticos.
Este carácter de ser profundo não pode ser identificado com qualquer parti-
cularidade do objecto estético, como, por exemplo, o seu exotismo ou antigui-
dade. Por outro lado, da parte do sujeito não indica qualquer marca de um
passado remoto ou de uma instância desconhecida ou mesmo o inconsciente a
operar nele 80.
O ser profundo, é antes de mais, a própria intensidade da presença em que
se realiza esse encontro/comunhão . Para "apreender" essa dimensão constitutiva
do objecto estético, isto é, para co-responder a essa interioridade, que se exterio-
riza, expressando- se, 81 - sem contudo se esvaziar, mas pelo contrário, asse-
gurando o seu estatuto mesmo de interioridade - é preciso que o sujeito revele
também a sua profundidade. Esta não é mais do que a capacidade de abertura, a
generosidade e confiança com que deixa ecoar em si a voz da obra 82.
Neste sentido, a experiência estética é eminentemente experiência do outro,
que vem até nós, pelo silenciamento da nossa subjectividade. Dufrenne dirá
mesmo que será necessário reencontrar a inocência do olhar ou do escutar 83.
Não que o passado do sujeito, a sua dimensão de pertença a uma situação possa
ser abolida - não há nunca uma "superfície lisa" de acolhimento. Não existe
nada antes do saber, dirá Deleuze.

77 Ibid., 478.
78 Cf. M. DUFRENNE , Le poétique . Paris, P.U.F., 1973, 96.
79 H. HELDER , " As magias " in Poesia Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, 466.
xo Cf. M. DUFRENNE , P.E.E., 11, 495-504.
xl Porque o prefixo ex designa a saída de algo que vem até nós e, desse modo, não fica retido,
enclausurado em si mesmo . Algo desse interior se dá e espera acolhimento.
82 Cf. M. DUFRENNE , P.E.E., 11, 503.
83 Cf. M. DUFRENNE , " La profondeur comme dimension de I'objet esthétique" in Esthéiique
et philosophie , 111. Paris, Editions Klincksieck , 1981, 142.

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378 Eunice Pinho

Mas mesmo assim, o património de saberes ou, numa perspectiva herme-


nêutica, a dimensão "pré-compreensiva", longe de ofuscar ou de constituir um
obstáculo ao novo, será a sua condição mesma de possibilidade: "Não posso
renegar os saberes ou os habitus que adquiri e que em mim dão oportunidade à
obra. E nesta condição que a presença se realiza na intimidade, que, pela minha
parte, longe de ser passivo, penetro no inundo desta obra que me penetra, até
me perder nela" 84.
E Dufrenne retoma o tema da reflexão procurando articulá-lo com o senti-
mento. A reflexão assunte agora um novo rosto, a sua relação com a obra deixa
de ser a de um encontro de exterioridades, ela torna-se reflexão simpática; porque
está agora imbuída do próprio sentimento. Se o seu papel se definiu primeira-
mente pela tarefa de preparar e clarificar o sentimento, libertando-o assim da
queda no irreflectido, numa segunda fase, o percurso como que se inflecte, a
reflexão é dirigida pelo próprio sentimento, abrindo o espaço a uma experiên-
cia mais íntima do objecto estético 85.

A promessa de saber

A reflexão dufrenniana em torno da experiência estética abandona agora o


seu momento descritivo e prossegue num traçado transcendental, em que se trata
de perguntar pelas condições de possibilidade dessa mesma experiência estética,
que é, aliás, paradigma da experiência em geral.
Se a experiência estética se cumpre num sentimento suscitado pela leitura
da expressão emanada do objecto estético, é preciso compreender que liames
fundam esse vínculo estrito entre o homem e a arte, ou, se se quiser, o que torna
possível essa co-presença gizada pela escuta de uma palavra esteticamente profe-
rida, a que só podemos dizer, sem ordenar, - vem; "e as palavras (...) reencon-
tram no fundo de nós a sua própria imagem, como sobrevoando um grande lago
quieto" 86.
Há pois aqui um ineludível desejo de encontrar um fundamento último, uma
"anterioridade radical" que seja a raiz deste pacto entre o sujeito e o objecto esté-
tico ou, formulado em termos mais gerais, entre o homem e o mundo. Dufrenne
responderá a esta questão fazendo entrar de novo na cena filosófica uma certa
forma de apriorismo, que entronca directamente na Modernidade.
Peça matriz da filosofia kantiana, a noção de a priori será retomada e acres-
cida de um sentido novo. Em Phénoménologie de l'expérience esthétique,
Dufrenne afirmará explicitamente que a experiência estética radica num novo tipo
de a priori. são os a priori da afectividade. Estes deverão ser entendidos "no
sentido mesmo em que Kant fala de a priori da sensibilidade e do entendimento;
Tal como os a priori kantianos são as condições segundo as quais um objecto é

84 ibid., 142.
xs Cf. Ibid., 524-526.
16 H. HELDER, "Magias" in Poesia toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, 466.

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A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 379

dado ou pensado , são aqui as condições, sob as quais um mundo pode ser sentido,
de modo algum condições do sujeito impessoal ao qual Kant se refere (...) mas
de um sujeito concreto , capaz de entretecer uma relação viva com o mundo" 87.
O afastamento relativamente a Kant é assim desde logo sublinhado: o a priori
será definido por Dufrenne como o elo comum que consagra o acordo fundamen-
tal entre homem e mundo, afastando qualquer possibilidade de pensar uma
espécie de poder demiúrgico da consciência. De notar que quando se fala aqui
de poder demiúrgico, este deve ser entendido segundo a letra de kantiana: o a
priori funda a experiência, isto é, torna-a possível para um sujeito, confere-lhe
sentido, eleva-a à intelectualidade, como dirá Ricoeur, mas não significa funda-
ção, isto é, não é, em rigor, a causa, a origem da própria experiência 88.
O que a crítica de Dufrenne visa sobretudo, é a concepção unilateral e empo-
brecedora desta noção, enquanto mero poder conferido ao sujeito ( um sujeito que
é ainda pensado como correlato impessoal de um conhecimento puro) de dar
sentido ao diverso sensível: "O a priori é a forma, que o processo do conheci-
mento imprime ao conhecido , o reflexo no objecto dos actos transcendentais do
sujeito" 89.
Trata-se assim de propôr um a priori, que deixe de ser o privilégio exclusivo
de uma subjectividade e possa também ser constitutivo do objecto: "Distingui-
remos então num mesmo a priori o aspecto objectivo e o aspecto subjectivo.
É precisamente essa, a nosso ver , a primeira razão para manter a noção de a
priori: há um acordo do homem e do mundo , que se realiza no conhecimento
(...) e que se manifesta menos como um poder do homem sobre o mundo, ou
também , numa perspectiva naturalista , como um poder do mundo sobre o homem,
mas antes como uma familiaridade , consubstancialidade do homem e do mundo;
pois este conhecimento não é possível senão na condição de que o mundo esteja
aberto ao homem e o homem aberto ao mundo. Esta abertura recíproca, é o a
priori que o exprime , é o sentido presente e dado ao mesmo tempo no objecto e
no sujeito , assegurando a comunicação , e mantendo igualmente a diferença" 90.
Em L'inventaire des a priori , obra posterior em que este tema será reto-
mado, Dufrenne sublinha, talvez de um modo mais explícito este duplo rosto do
a priori , mostrando que a possibilidade da experiência e da consciência estão,
na verdade, imbricadas. Para que o dado possa aparecer à consciência, é previa-
mente necessário que, ele mesmo, seja já portador de um sentido. Por outro lado,
da parte da consciência, é-lhe exigido que esteja apta e disponível para recolher
esse sentido. Ora, esta aptidão da consciência, este estar preparado para o
que ainda não chegou, pressupõe como que uma antecipação da experiência.
A consciência possui já, de algum modo, um saber, uma pré-compreensão do sen-
tido ainda por vir mas já aí. Como afirma Levinas "Nem reflexo, nem criador
das estruturas a priori que constituem o mundo, o sujeito conhece-as por um

87 M. DUFRENNE, P.E.E., 11. 539, sublinhado nosso.


as Cf. M. DUFRENNE, La notion d"'A priori". Paris, P.U.F., 1959, 4-5.
89 Ibid., 17.
x° Ibid., 53-54.

Revista Filosófica de Coimbra -nP 6 (1994) pp. 361-396


380 Eunice Pinho

conhecimento virtual, o qual não é o resíduo de uma experiência passada" 91.


Trata-se de um saber que é saber de uma experiência por acontecer , mas que é
também a sua própria condição . "Certamente , ela [a consciência ] tem tudo para
aprender , mas não aprende senão porque previamente compreende ; a experiência
que adquire supõe uma experiência , que não é adquirida, um saber virtual que
funda toda a experiência" 92.
Por outro lado, este saber , como que em estado de latência , que é apenas
promessa do a vir, postula o próprio movimento do mundo, que vem fazer
despertar esse sentido. "É preciso que em seguida, para que este sentido não
permaneça entorpecido e a consciência na noite , que o inundo se preste a esta
compreensão pré-dada: que se dê o que a consciência estava pronta para receber.
E preciso que o sentido habite o objecto, que informe a matéria sensível: na sua
falta, esta matéria permaneceria impermeável e não seria percebida"°3.
No entanto , a noção de a priori parece comportar em si um paradoxo funda-
mental , pois, como explicar que aquilo que antecede radicalmente a experiência,
não seja por ela "contaminado " ao revelar - se apenas nela, isto é, a posteriori?
Como delimitar então o próprio campo dos a priori?
O próprio filósofo admite que, ao pretender evitar a interpretação idealista
do kantismo, segundo a qual é postulada a imposição da actividade do espírito
à experiência (o a priori é apenas princípio formal de conhecimentos) e ao
defender que o a priori se dá na própria experiência , se corre o risco de um
regresso ao empirismo. Ora, a posição empirista plasmada no princípio de que
a experiência é a única fonte de conhecimento , marca o próprio eclipse do a
priori, isto é, a sua dissolução no a posteriori 94.
Contra o empirismo, Dufrenne reafirmará a anterioridade e irredutibilidade
de um princípio de inteligibilidade que, ao fundar a experiência , a elege simul-
taneamente como palco da sua revelação e explicitação. Por outro lado, a defesa
de um apriorismo configura uma das teses centrais da própria filosofia dufrennia-
na: o homem e o mundo são contemporâneos - "O homem não é somente parte
do dado e produto do dado, mas correlato do dado (...) vem ao mundo como igual
ao mundo" 95.
Se a experiência nos permite adquirir conhecimentos, nem tudo no conheci-
mento nos é por ela ensinado : "qualquer coisa é sempre já conhecida, não há
génese total do sentido , o a priori é precisamente aquilo de que não há génese" 96.
A verdadeira génese não poderá ser, de modo nenhum, aquela que se atém
a um dos polos da relação, dotando-o do princípio da anterioridade, a que depois
se seguiria o outro . "A verdadeira génese - dirá Dufrenne - seria precisamente

91 E. LEVINAS, " A priori et subjectivité " in En découvrant I'existence avec Husserl ei


Heidegger. Paris, J. Vrin, 1988, 181.
92 M. DUFRENNE, L'inventaire des A priori: Recherche de l'originaire. Paris, Christian
Bourgois Editeur , 1981, 8.
91 Ibid., 8-9 e cf. M. DUFRENNE, Jalons. La Haye, Martinus Nijhoff, 1966, 18-19.
94 Cf. M. DUFRENNE, La notion d"'A priori". Paris, P.U.F., 1959, 54.
95 M. DUFRENNE, L'inventaire des A priori: Recherche de l'originaire. Paris, Christian
Bourgois Editeur , 1981, 10.

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A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 381

uma génese do transcendental, que faria aparecer ao mesmo tempo o mundo


como campo transcendental e o sujeito transcendental como correlato deste
mundo" 97.
Deste modo, só a noção de a priori, tornada de novo fecunda na filosofia
de Dufrenne, poderá oferecer- nos um vislumbre - em acto - daquilo que nos
antecede, mas também simultaneamente nos constitui: estamos abertos ao mundo;
o mundo tem um sentido próprio que podemos apreender porque, virtualmente,
ele está já em nós e requer essa mesma abertura de que falámos.
O a priori dá-nos conta dessa "harmonia pré-estabelecida", desse entrelaça-
mento entre nós e o mundo, ou se quisermos, (usando a terminologia de Merleau-
-Ponty), de que nós e o mundo somos da mesma carne.
A questão será a de como pensar este a priori sem fazer dele um poder
nosso, exclusivo e, por outro lado, como pensá-lo também ali, no mundo, nas
coisas, quase indiferente a nós conservando-se na sua espessura e densidade? -
E, no entanto, paradoxalmente, o sentido como que do alto da sua auto-sufi-
ciência, "aguarda-nos" para que possa ser conhecido. Será talvez necessário
referir aqui que a palavra sentido na sua raíz "designa originariamente o «pro-
cesso de ir até junto de algo», donde provém a característica fundamental do
«sentido»: a dualidade dos relata e a relação entre eles. Daí a tríplice dimensão
de sentido: o sujeito que vai ou se dirige, o processo de ida e o outro, termos
do movimento e sua primeira e mais importante condição" 98. Ora, será este
movimento de ida até ao outro, pelo qual se dá o encontro entre sujeito e objecto
que a noção de a priori procura dar conta.
A este propósito, Levinas denunciará um dos traços mais marcantes da filo-
sofia contemporânea que, apesar do seu ` ontologismo", é incapaz de esquecer
Kant - "A manifestação do ser, e não o juízo do pensador, define, com efeito,
para Heidegger - como já para Husserl - o fenómeno original da verdade.
A forma como o Ser do sendo se mostra ou se dissimula, comanda pensamento,
cultura e história; é o ser que dá que pensar. Mas o pensador ou o sujeito ou o
homem é necessário ao Ser que resplandece. A filosofia contemporânea é ao
mesmo tempo anti-idealista e cuidadosa do lugar e da missão únicas do homem
na economia geral do Ser" 99.
Por outro lado, como pensar esta simultaneidade do homem e do mundo, a
que o a priori nos convida, senão a partir de uma deiscência sempre já em curso?
Ganha assim sentido o gesto de Dufrenne de restaurar e vivificar a noção
de a priori, dotando-o de uma dupla face -o a priori renasce na filosofia
contemporânea como tentativa de suturação da ferida.

16 M. DUFRENNE, La notion d"'A priori". Paris, P.U.F., 1959, 62.


(Nas próximas referências esta obra aparecerá designada do seguinte modo: La notion)
97 M. DUFRENNE, L'inventaire des A priori: Recherche de l'originaire. Paris , Christian
Bourgois Editeur , 1981, 10.
(Nas próximas referências esta obra aparecerá designada do seguinte modo: L'inventaire)
96 M. B. PEREIRA, " Experiência e sentido ". Biblos, LV, 1979, 294.
E. LEVINAS, art° cit., 179-180.

Revista Filosój'ica de Coimbra - n.° 6 (1994 ) pp. 361-396


382 Eunice Pinho

Atentemos um pouco mais pormenorizadamente no sentido desta noção, sem


dúvida complexa, mas peça chave no pensamento de Dufrenne. Não obstante
reconhecer a sua dívida para com Kant, será sobretudo de Husserl e Scheler que
irá receber a noção de a priori material. material.
O a priori no sentido material, tal como o define Dufrenne, é insubmisso
aos critérios kantianos de universalidade e necessidade, apenas aplicáveis aos
juízos e que determinam a sua clausura no formalismo: "Mesmo quando o campo
do a priori se estenderá à moral ou à estética, é sempre em juízos a priori que
se exprimirá e por critérios lógicos que será determinado" 100.
Ora, se o a priori material não se submete aos critérios kantianos, é agora o
seu carácter relativo e histórico que vem ao de cima e que importa sublinhar.
Por isso, Levinas, referindo-se a La notion d'«a priori», apresentará o projecto
dufrenniano pelas seguintes palavras: "Afirmar que existe uma função irredutível
do sujeito transcendental, sem recusar desdenhosamente, como faz o idealismo
tradicional, as motivações que conduzem a um certo materialismo, historicismo
e sociologismo - tal é o projecto deste livro sobre a noção de a priori" 101.
A sua obra posterior: L'inventaire des a priori: Recherche de 1'originaire manter-
-se-à fiel a este intento.
O a priori, considerado na sua parte subjectiva, é definido por Dufrenne
como a marca inengendrada de um saber virtual, de que não podemos situar o
seu começo histórico. Contudo e como que paradoxalmente, esse saber só encon-
tra a sua actualização e realização no tempo - "se o a priori é experimentado
por uma consciência que deve ser singular para o experimentar, ele não é mais
universal, é histórico" 102.
Qualquer coisa no homem traz, pois, os traços de uma origem sem tempo,
imemorial, mas é ainda enquanto ser histórico que essa "anterioridade radical"
se diz. A sua abertura ao outro, ao novo que chega, encontra o seu fundamento
no a priori, tem apenas como "lugar" de realização a própria história - não há,
pois, experiência, no sentido autêntico, que possa ser subtraída ao tempo e que
não mergulhe as suas raízes no mundo da vida. Só o empírico é condição de
revelação do a priori.
Por outro lado, Dufrenne considera ainda que este saber virtual, esta pré-
-compreensão do sentido que antecede e prepara a consciência para acolher certos
aspectos do mundo, encontra-se não só a nível individual, no corpo próprio, como
pode ainda - sem nela se dissolver - sedimentar-se numa cultura.
Dufrenne classificará de ruinosa esta economia da noção de a priori: "Aí
onde a génese pode ser seguida, não há lugar para invocar o inengendrável (...).
Não podemos reduzir o a priori ao passado individual ou social, e não podemos
compreender o passado sem dar lugar ao a priori. Por outro lado, o a priori como
virtual não pode identificar-se à recordação depositada na memória; as minhas

10 M. DUFRENNE, La notion, 68.


101 E. LEVINAS, "A priori et subjectivité" in En découvrant t'existence avec Husserl et
Heidegger. Paris, J. Vrin, 1988, 179.
112 M. DUFRENNE, L'inventaire, 23.

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A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 383

recordações foram adquiridas, trazem uma data e a minha memória é o recolhi-


mento da minha experiência. Pelo contrário, o a priori em mim, histórico sem
ter uma história, não é portador de uma data, é a possibilidade da minha expe-
riência e da minha memória" 103
Se o a priori se diz apenas na e pela história, não se deve pensar que o sen-
tido se mantenha inalterável, intacto e dito de uma vez por todas na sua totali-
dade - o sentido que leva a marca do tempo é sempre parcial e o a priori está
sempre por explicitar 104
Esta tese de Dufrenne pode, à primeira vista, parecer contraditória com a
afirmação sempre retomada da imediatidade do sentido. Não esqueçamos contudo
que a palavra "sentido" na sua raiz alemã (derivada do termo sinn) significa
caminho 105. Ora, pensar o sentido como caminho é aceitar o adiamento inexorá-
vel da sua conclusividade; é também pressupor que o novo pode sempre irromper,
é, por isso, aceitar a inexistência de uma perspectiva privilegiada, fora do tempo
e do espaço, que mostrasse o caminho na sua inteireza.
Procurando dar sentido à tese de que há um a priori de ordem afectiva a
marcar a especificidade da experiência estética, Dufrenne fará notar que a
afectividade não constitui um simples meio através do qual o a priori se revelaria.
Mas o afectivo pertence à sua natureza mesma - tal como o a priori do enten-
dimento tem uma natureza racional 106. Contudo, sendo o afectivo o traço
específico destes a priori, não há aqui lugar para se pensar numa estética
identificável a uma experiência puramente subjectiva e individual, nem tão pouco
para uma estética "objectivista", - "O que chamamos sentimento, e que é irre-
dutível ao desejo, é somente uma certa forma ainda desinteressada, apesar do
tipo de participação que ela supõe, de conhecer uma qualidade afectiva como
estrutura de um objecto (...) sentir é experimentar um sentimento, não como um
estado do meu ser, mas enquanto propriedade do objecto. O afectivo não é em
mim senão a resposta a uma certa estrutura afectiva do objecto. E, inversamente,
esta estrutura confirma que o objecto é para um sujeito, não sendo pois redutível
às dimensões da objectividade, que o tornariam objecto para ninguém: há nele
qualquer coisa que não pode ser conhecida senão por uma espécie de simpatia
e na condição de que o sujeito se abra a ele" 107. Além disso, as qualidades
afectivas, que emanam do objecto estético, ao serem designadas antropo-
morficamente espelham a complementaridade constitutiva da experiência estética:
"O horrível de Bosch, a alegria de Mozart, o trágico de Macbeth, o irrisório de
Faulkner designam tanto a atitude do sujeito como uma certa estrutura do
objecto' 108. O a priori afectivo reveste-se, assim, de um carácter singular uma
vez que designa a estrutura de um objecto estético específico e concreto e ainda
porque o sujeito susceptível de experimentar em si um sentimento, não é o sujeito

103 Ibid., 44, sublinhados nossos.


11a Cf. M. DUFRENNE, La notion, 257.
105 Cf. M. B. PEREIRA, "Experiência e sentido". Biblos, LV, 1979, 294.
106 Cf. Ibid., 542.
107 Ibid., 544.
'°R Ibid., 544.

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 6 (1994) pp. 361-396


384 Eunice Pinho

impessoal kantiano, mas um sujeito irredutivelmente singular; em suma, um


ser-no-mundo.
A experiência estética assume em Dufrenne um carácter verdadeiramente
existencial: "A experiência de que este a priori funda a possibilidade é uma
experiência a que devemos chamar existencial e os objectos desta experiência
compõem um mundo apenas acessível ao sentimento" 109. Não se trata pois de
um mundo susceptível de um conhecimento universalmente válido. A relação ao
inundo, própria da experiência estética, está para além de uma simples relação
cognitiva entre uni sujeito e um objecto radicalmente distintos e indiferentes,
mas o sujeito deve ele mesmo reconhecer-se e exprimir-se no mundo do objecto
estético.
Artista e espectador encontram-se assim unidos numa mesma experiência
gizada não pelo fazer, pelo criar, propriamente dito, mas por uma mesma
afinidade assumida com o objecto estético.
O mundo do objecto estético é assim, segundo a expressão de Dufrenne,
simultaneamente acto e destino do sujeito 110. É "acto" de um sujeito enquanto
o mundo do objecto estético precisa de um sujeito (uma testemunha) para o dizer,
mas é também "destino", no sentido em que, é na condição de dizer esse mundo
e de o explicitar que o sujeito é e se diz a si mesmo. O sujeito, em lugar de
simplesmente se projectar a si mesmo no objecto, recebe do objecto estético um
(novo) modo de ser. Autocompreende-se, deixando-se conduzir na direcção de
sentido, ou na atmosfera de mundo, que o objecto estético propõe.
Entre o a priori cosmológico e o a priori existencial não há assim qualquer
oposição ou distância - "Mozart é a serenidade, Beethoven a violência patética";
"O a priori afectivo constitui um mundo consistente e coerente porque reside
naquilo que há de mais profundo num sujeito, como é também o que há de mais
profundo no objecto estético" 111
Ora será justamente esta afirmação de que o cosmológico e o existencial não
são senão as duas faces do mesmo a priori, ou, se quisermos, da mesma
qualidade afectiva, que conduzirá Dufrenne a efectuar a passagem/"salto" do
plano transcendental para o plano ontológico - "A condição de possibilidade
torna-se uma propriedade do ser: o a priori não pode ser ao mesmo tempo uma
determinação do objecto e uma determinação do sujeito senão porque é uma
propriedade do ser, simultaneamente anterior ao sujeito e ao objecto e que torna
possível a afinidade do sujeito e do objecto" 112.

O encontro com o inencontrável : a Natureza naturante

Na sua obra Phénoménologie de I'expérience esthétique Dufrenne mostra-


-se já sensível ao problema que a noção de a priori coloca. Não obstante permitir

111`1 Ibid., 552.


Cf. Ibid., 553.
Ibid., 552 e 554.
112 Ibid., 561.

pp. 361-396 Revista Filosófica de Coimbra - n." 6 (1994)


A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 385

vislumbrar a concordância fundamental entre o sujeito e o objecto, a experiência


configurada por esta noção de dupla face, permanece pensada em termos de um
bipolarismo que enfraquece o seu alcance. Assim se explica o sentido do seu
percurso, claramente direccionado, na última parte da referida obra, para uma
reflexão de cariz ontológico - há que remontar a uma instância anterior à própria
cisão entre o sujeito e o objecto: ao ser. Por outro lado, em La Notion d'«A
Priori», Dufrenne, verificando que é sempre a partir de um dualismo que a filo-
sofia transcendental concebe o a priori, 113 e que, propor, explicitamente, a sua
divisão em objectivo e subjectivo, não é mais do que corroborar esse mesmo
dualismo, supõe atenuar essa dificuldade insistindo numa "conveniência recí-
proca" ou afinidade entre o homem e o mundo: "Que concluir, senão que a
reflexão não pode, sem se perder, ir para além deste ponto em que descobre,
simbolizada pelos dois aspectos do a priori, a dualidade do homem e do mundo
e a sua afinidade? Há aí um facto que é um fundamento, pois, ele estabelece que
o homem pode conhecer e habitar o mundo, mas este fundamento não pode ser,
por seu lado, fundado" 114. Caberá assim não já à filosofia (enquanto discurso
conceptualizador), mas antes à poesia falar da experiência de um fundo emi-
nentemente radical. Em Le Poétique este tema será amplamente retomado e
desenvolvido, não só concedendo, de facto, um privilégio inalienável à linguagem
poética, como ainda esboçando uma "filosofia " da Natureza, sendo esta conce-
bida em termos de uma Natureza naturante, que é, ela mesma, poética e fonte
de onde jorram todos os a priori.
O problema será ainda retomado noutros trabalhos do autor, designadamente
em Jalons, cuja introdução pretende explicitar o seu percurso teórico e numa sua
obra mais recente: L'inventaire des A priori: Recherche de i'originaire. Neste
livro Dufrenne, ao pretender responder à crítica de Ricoeur (Esprit, mars, 1961)
acerca da legitimidade da sua concepção de a priori que, em última análise se
poderá traduzir numa incomunicabilidade do "em-si" dos a priori objectivos e
do "para-si" dos a priori subjectivos 115, sublinhará que a pertinência do pro-
blema colocado não deverá conduzir ao abandono desta noção, mas antes ao seu
aprofundamento.
No repensar desta questão que, sem dúvida alguma, corresponde a um desejo
de fundação última, a uma procura das origens que daria lugar a uma recons-
trução ordenadora (ambição de toda a filosofia como metafísica), o encontro com
o pensamento de Espinosa e também com a filosofia romântica, designadamente
com Schelling, será decisivo. Há com efeito aí uma busca de um princípio
primeiro, de um incondicionado, que realizaria a unificação dos saberes. Por
outro lado, a "Naturphilosophie" de Schelling, ao conceber uma natureza que se
auto-desenvolve e auto-organiza, sem a intervenção da consciência, mas sendo

113 A filosofia kantiana , ao atribuir ao sujeito uma actividade constituinte, não tem necessidade
de inscrever o a priori também no objecto. Contudo, o a priori exerce igualmente um papel mediador
entre o sujeito e o objecto e, nesse sentido , é também em termos de um dualismo que esta noção é
concebida. Cf. M. DUFRENNE, La notion, 227.
114 Ibid., 284.
''5 Cf. M. DUFRENNE, L'inventaire, 11-12.

Revista Filosófica de Coimbra - ti.11 6 (1994) pp. 361-396


386 Eunice Pinho

o "lugar" mesmo de onde esta brota, como produto da sua evolução incons-
ciente 116, permite a Dufrenne entrever uma possível resposta à interrogação
colocada por Ricoeur . Essa resposta , o autor admite-o, permanecerá sempre no
horizonte , não sendo , por isso, explicitável na sua totalidade : " A filosofia da
Natureza é sempre indicada e sempre impossível, não pode ser esboçada senão
sob o modo do como se" 117.
E, contudo , é o próprio pensamento que procura ir mais além do fundamento,
para o ponto em que não é j á deste que se trata, mas do fundo . Dufrenne falará
assim , de um salto do transcendental para o transcendente . Dir-se - ia, num registo
kantiano, que o pensamento transgride os limites impostos ao próprio conheci-
mento : " Enquanto examinamos a correlação intencional do homem e do mundo,
permanecemos ao nível do transcendental . A partir do momento em que procura-
mos uma origem ou uma causa desta correlação , saltamos do transcendental ao
transcendente" 118.
A diferença entre fundamento e fundo giza - se assim na radicalidade do pró-
prio perguntar . Uma vez aceite , como facto ôntico , a afinidade entre o homem
e o mundo instituída pelo a priori , trata-se de perguntar ainda pela causa dessa
mesma afinidade: "A causa, quer dizer , o que precede e o que inicia, o que
começa, não como um acto livre começa , pois situamo - nos aquém da liberdade,
antes aquilo com o qual tudo começa, o que é o lugar dos começos , sem ser
começo em si mesmo . Não o fundamento , porque o fundamento limita-nos a
uma perspectiva humana; muito menos um princípio lógico a partir do qual
o real poderia ser deduzido , como os teoremas de um sistema de axiomas.
Procuramos o que é primeiro , e cuja prioridade se deve inscrever e manifestar
no real" 111.
Esta questão seria pelos positivistas reduzida a um problema científico.
Também a ciência , ao pretender explicar o real, encontra uma natureza que
precede ou é anterior ao homem . Por seu lado, a posição idealista sublinharia
que esta natureza sem o homem é ainda uma natureza para o homem, isto é, trata-
-se de uma natureza que não pode ser dita ou explicada senão numa linguagem
eminentemente humana. A questão será, assim, a de como falar do fundo, sem
se partir de uma linguagem entendida como pertença do homem: "Para falar do
fundo, seria preciso encontrar uma linguagem que não fosse a do homem, seria
preciso que a Natureza se anunciasse a si mesma" 120. Pois, como diz o poeta
(H. Helder) "Todas as palavras da linguagem normativa ( a linguagem das teses
e antíteses , a linguagem das análises , dos juízos e proclamações solenes) [são]
unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria" 121.

116 Cf. V. JANKÉLÉVICH, "Preface du traducteur" in F. Schelling, Essais. Paris, Editions


Montaigne , 1946, 17-19.
117 M. DUFRENNE, L'inventaire, 13, sublinhados nossos.
lis M. DUFRENNE, Le Poétique. Paris, P.U.F., 19731, 205.
(Nas próximas referências esta obra será designada unicamente pelo título).
119 M. DUFRENNE, Le Poétique, 205.
120 Ibid., 205.
121 H. HELDER, "As magias" in Poesia Toda. Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, 465.

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A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 387

Ou, voltando de novo a Dufrenne, é preciso pressupor que, na própria lin-


guagem que falamos, algo se diz que não é já nosso, mas aponta para além do
dito, desapropriando-nos: "Só há discurso quando há alguém que fala, mas este
discurso pode enviar para além daquilo que se diz. A arqueologia é uma
construção, mas é a arché que ela revela, quer dizer, o princípio, a potência muda
de uma Natureza que se revela através das formas e dos seres de que o universo
está povoado, potência das potências" 122. Neste sentido, não se trata aqui de
negar a validade do discurso científico, antes de apontar a sua insuficiência. Há
algo que nele se imiscui e anuncia, sem se mostrar claramente, escapando aos
seus critérios de clareza e distinção.
A ciência, dirá ainda Dufrenne, sendo obra da consciência, não pode
compreender a génese senão pelo seu produto e, nessa medida: "Não pode dizer
a força obscura do possível que joga nos começos. (...) O evolucionismo apenas
pode dar aqui uma indicação, que deve inspirar um pensamento mais radical, um
pensamento anterior ao pensamento" 123.
Mas, se a ciência não é o discurso mais adequado para nos dar conta de uma
Natureza, entendida como suporte do fundamento, também não será à teologia
que caberá desempenhar tal missão. A Natureza não é o outro nome de Deus,
se se entender por este "a potência soberana", o grande relojoeiro do universo
ou a Providência a que nada pode escapar: "Deus não pode ser o fundo porque
se distanciou: é o Pai e não a Mãe, aquela que traz em si, dá à luz e alimenta; é
o Verbo que fala do alto e que tudo decidiu" 124. A este propósito M. Brisson
dirá que Dufrenne "é profundamente pagão" pois evoca uma Terra-Mãe e não
um Deus-Pai 125.
A Natureza, tal como Dufrenne a concebe, aproxima-se assim das grandes
imagens que nos chegam dos mitos antigos: "A Terra-mãe abissal e fecunda",
"A grande mãe nutridora e universal" 126. Mas também o mito é já uma pré-
ciência e, como tal, deixa escapar aquilo que é em si desejo de tematização 127.
Toda a dificuldade em falar desta Natureza reside no facto do homem não
estar nela inscrito como seu correlato. Aliás, é isso mesmo que o "N" maiúsculo
significa: "Indica não somente a exterioridade, mas a anterioridade do mundo
em relação ao sujeito, e significa também a energia do ser" 128. A Natureza ergue-
-se assim, no pensamento de Dufrenne, como uma ideia limite: "Porque ela
exprime o que se situa aquém de toda a correlação com um olhar ou um acto
humano, o que escapa a todo o discurso: o mundo que não é ainda o Eu, nem a

122 M. DUFRENNE, Le Poétique, 206.


123 M. DUFRENNE, Jalons. La Haye, Martinus Nijhoff, 1966, 25.
124 M. DUFRENNE, Le Poétique. Paris, P.U.F., 19732, 207.
(Nas próximas referências esta obra aparecerá designada do seguinte modo: M. DUFRENNE,
Le Poétique)
125 Cf. M. BRISSON "De Ia perception sauvage à I'utopie" in Vários, Vers une e s thétique sans
entrave , Mélanges, Mikel Dufrenne. Paris, U.G.E., 1975, 34.
126 Cf. M. DUFRENNE, Le Poétique, 2 e 7.
127 Cf. M. DUFRENNE, "Vers l'originaire" in Esthétique et philosophie, vol. 11. Paris, Editions
Klincksieck, 1976, 88.
129 M. DUFRENNE, L'inventaire, 164.

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388 Eunice Pinho

fortiori, para Mim, o mundo antes do homem que produz o homem em vez de
ser constituído por ele" 129.
Poderíamos assim perguntar pela pertinência desta ideia de uma Natureza
primitiva, sobre a qual o discurso parece tropeçar e diluir-se, numa espécie de
incapacidade congénita.
Ora, o gesto de Dufrenne não será o de fazer apelo a uma teologia nega-
tiva - a qual , ao dizer apenas pela negativa, pertenceria ainda ao espaço predica-
tivo ou judicativo do discurso. A Natureza dá-se primeira e fundamentalmente
numa experiência e esta experiência não é a do nada ou da pura ausência, antes
a de uma plenitude inesgotável. Certas experiências, mormente a experiência
estética, suscitam em nós um sentimento que deixa entrever o fundo ou se se
quiser, esse "fundo sem fundo", transbordante, sem limites. Sentimento de um
ser selvagem, retomando as palavras de Merlcau-Ponty. "De uma força sem lei
e, contudo, generosa". Sentimento também de se ser produzido e fazer parte da
Natureza, tal como a experiência estética das coisas naturais nos parece, de um
modo mais explícito (mas não mais exclusivo) mostrar: "Ser parte da Natureza
não é ser coisa entre coisas no universo do positivismo, menos ainda, ser no
mundo como o correlato transcendental do mundo; é estar enraízado no real.
A experiência estética de uma paisagem faz-nos experimentar a nossa conatu-
ralidade com a natureza: a segurança tranquila ou exaltante de uma intimidade
umbilical com a montanha que subimos, a luz que nos penetra, o vento que nos
acaricia, o pio do pássaro que nos trespassa" 130.

Este sentimento de fazer parte da Natureza é encontrado, por Dufrenne, na


filosofia de Espinosa, quando, por exemplo, no Breve Tratado "exprime numa
linguagem quase mística que, saber-se eterno é saber-se unido à Natureza
naturante" 131. A ideia verdadeira de Deus que, segundo aquele filósofo, cada um
de nós possui como fonte e modelo da verdade seria, assim, na sua forma mais
imediata, e a partir da interpretação de Dufrenne, o sentimento da Natureza 132.
De notar que em Espinosa os termos Deus e Natureza têm rigorosamente o
mesmo significado: "Deus sive Natura".
Ora, não deixa de não ser, de algum modo, enigmático que Dufrenne adira
à posição de Espinosa, não obstante ter feito todo um esforço para se demarcar
de uma interpretação teologizante da Natureza. Contudo, será preciso não esque-
cer que o pensamento espinosiano se insere já num horizonte de secularização,

129 Ibid., 165.


130 M. DUFRENNE, Le Poétiyue, 208.
131 M. DUFRENNE, Jalons. La Haye, Martinus Nijhoff, 1966, 25-26.
(Nas próximas referências esta obra aparecerá designada do seguinte modo: M. DUFRENNE,
Jalons)
132 Cf. M. DUFRENNE, Le Poétique, 206-207.
Quanto à expressão " Natura Naturans" utilizada por Espinoza, saliente-se que é originária do
vocabulário medieval e, segundo refere Miguel B. Pereira "designa a Actividade Suprema, que se
manifesta no visível , penetrando no máximo e no mínimo , como princípio criador da natura naturata,
a que é imanente como determinação, que não é determinada". M. B. PEREIRA, Modernidade e
Secularização. Coimbra, Livraria Almedina, 1990, 90.

pp. 361-396 Revista Filosófica de Coimbra - n." 6 (1994)


A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 389

a que não é, certamente, alheio a própria conceptualidade e exposição geométrica


que presidem à apresentação da sua obra 133
Por outro lado, o Deus a que Dufrenne faz equivaler o termo Natureza não
pertence já a um discurso de tipo teológico, antes constitui a própria tradução
da excessividade do fundo. Deus seria assim o próprio "sem fundo" desse fundo.
Mas a adesão ao pensamento de Espinosa está também marcada por um certo
distanciamento, que pode ler-se nas "substituições" que propõe operar e que
traçam a originalidade do seu caminho de pensamento: "Ousarei dizer que tentei
seguir Espinosa a meu modo, substituindo o conhecimento do terceiro género
pela experiência estética e a consciência de estar unido a Deus, na clareza de
um pensamento lógico, pela consciência, como diz Hõlderlin, de habitar poetica-
mente o mundo?" 134
Trata-se assim de procurar saber o significado deste conhecimento do terceiro
género, que é, para Espinosa, o nível mais elevado de conhecimento. É no livro
II da Ética (prop. XL, esc. II) e retomando as ideias já expressas no Tratado da
reforma do entendimento 135 (embora na Ética as duas primeiras formas de
conhecimento sejam congregadas no primeiro género do conhecimento), que
Espinosa expõe os diferentes níveis gnoseológicos. Acerca do conhecimento do
primeiro género, podemos dizer, de um modo algo breve e condensado, que se
trata do conhecimento baseado em "experiências vagas" e por "ouvir dizer", será,
portanto, a opinião ou imaginação. Quanto ao conhecimento do segundo género,
estamos já em face de um conhecimento racional, de tipo discursivo e que é um
conhecimento verdadeiro, ao qual pertencem ideias adequadas 136.
Há contudo algo de insuficiente neste nível de saber e que leva Espinosa a
postular um género superior de conhecimento: "Além destes dois géneros de
conhecimento, há ainda um terceiro (...), a que chamaremos ciência intuitiva. Este
género de conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de cer-
tos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas" 137.
O modo como se dá o trânsito do nível de conhecimento dedutivo para o
nível da intuição permanece por explicitar, pelo menos no Livro II da Ética. Se
nos questionarmos sobre o significado deste tipo de conhecimento, a resposta de
Espinosa parecer-nos-à lacunar e insuficiente. Como se, ele próprio, escapasse
ao "geometrismo" que preside à exposição do pensamento espinosiano, não
obstante o exemplo retirado da matemática, com que pretende traçar a especi-
ficidade de cada nível gnoseológico.

133 Cf. M. B. PEREIRA, Modernidade e Secularização . Coimbra, Livraria Almedina, 1990, 65-
-107.
134 M. DUFRENNE, Jalons, 26.
135 Obra em que Espinosa apresenta uma reflexão sobre o nosso poder de conhecer.
Veja-se a este propósito os parágrafos 18 a 29.
Note-se ainda que se utilizaram as traduções em português das obras referidas:
B.ESPINOSA, Tratado sobre a reforma do entendimento. Lisboa, Livros Horizonte, 1971.
E. ESPINOSA, Ética. Lisboa, Relógio d'Água, 1992.
136 Cf. Ética II, prop. XL, esc. II, prop. XLI, demonstração e prop. XLII.
13^ Ibid., 11, prop. XL, esc. 11.

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390 Eunice Pinho

Será necessário esperar pelo Livro V para encontrarmos o seu sentido. Aí,
Espinosa afirmará que "Do terceiro género de conhecimento nasce necessaria-
mente o amor intelectual de Deus" 138. Seria talvez aqui que poderíamos filiar a
posição de Dufrenne que, como referimos já, pretende substituir o conhecimento
do terceiro género pela experiência estética. Desse modo, haveria, assim, como
que uma fractura no racionalismo espinosiano - o conhecimento intelectual de
Deus estaria para além dos limites da estrita racionalidade. Dir-se-ía existir a
presença de uma "dimensão estética" na gnoseologia espinosiana.
Mas o próprio Dufrenne se ergue contra esta interpretação, ao afirmar que
o conhecimento do terceiro género nos instala no plano da fé - mas, trata-se
de uma "fé filosófica" 139: "É precisamente a originalidade de Espinosa conceber
a fé corno ponto culminante da racionalidade. Todas as exegeses românticas são-
-lhes infiéis a partir do momento em que recusem a homogeneidade da intuição
e do saber (...) longe de apreender o ser por uma revelação afectiva, estética ou
mística, ou pelo coração, como disse Pascal, Espinosa apreende o ser numa
intuição supremamente inteligível" 140
A filiação, assumida por Dufrenne, no pensamento de Espinosa e que lhe
permite optar por um percurso desviante, em direcção a uma experiência estética
e ao habitar o mundo poeticamente, encontra ainda a sua inspiração no próprio
monismo substancialista espinosiano, segundo o qual a alma pode ler Deus ao
apreender as coisas singulares: "O que o conhecimento do terceiro género atinge
é, mais do que o carácter constrangedor de uma verdade lógica, o carácter
«transbordante» do ser. A plenitude não extensiva, mas intensiva, do ser é reunida
na coisa singular que o espírito conhece. A intuição inicial: o ser é, encontramo-
la sobre esta coisa singular, experimentamos nela a densidade e a força absoluta
do ser (...). Compreendemos que a imanência de Deus é a apoteose do
mundo" 141.
Não há pois, para Espinosa, outro modo de acesso a Deus, senão a via da
estrita racionalidade - como dirá Joubert só "a sabedoria é repouso na luz" 142.
Em Dufrenne será a experiência estética a via de acesso ao carácter
transbordante do fundo. O habitar poeticamente o mundo será assim a atenção
dispensada à polifonia do fundo.
Aliás, será justamente essa ideia de totalidade e plenitude, que perpassa a
concepção de Natureza em Espinosa, de que Dufrenne se crê profundamente
devedor 143
Contudo, Espinosa parece ter esquecido uma dimensão fundamental na
Natureza ao pensá-la unicamente sob o signo da eternidade. Para Dufrenne pensar
a Natureza como naturante ou como força produtora implica necessariamente
uma restituição da temporalidade.

131 Ibid., V, prop. XXX11, corolário.


1311 M. DUFRENNE, Jalons, 61. Ver também nota 3 na mesma página.
140 Ibíd., 61.
141 Ibid., 60.
141 JOUBERT cit. por Blanchot , M., O livro por vir. Lisboa, Relógio d'Água , 1984, 68.
143 Cf. M. DUFRENNE, Le Poétique, 220.

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A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 391

Será na tradição romântica , mais particularmente em Schelling , que Dufrenne


procurará as bases que lhe permitam configurar uma Natureza que, mantendo o
seu carácter de plenitude e de força jorrante , não se subtraia ao tempo.
Ora, intimamente ligado à ideia de devir , ou se quisermos, à temporalidade,
está o conceito de Grund, que Dufrenne considera de importância fundamental
para a edificação de uma filosofia da Natureza.
Sendo traduzido por fundo (embora alguns autores utilizem antes o termo
fundamento ), este conceito , de difícil explicitação , assume o sentido de uma
vontade obscura , de uma força propulsiva ou dinâmica que conduz à manifes-
tação de algo, incluindo Deus. Trata- se, segundo as palavras de Jankélévitch do
próprio "suporte do processo de devir " e, nessa medida, significa também a
"persistência do passado no presente ", ou seja, que "o passado não é jamais
anulado" 144.
A Natureza em Dufrenne assumirá justamente esse sentido do Grund
schellingiano : "Este ser que tem o ser em potência, é claramente ainda o Grund,
a Natureza antes da Existência , razão de ser da Existência , promessa de luz nas
trevas. É deste não-Deus, que é já Deus, que Deus tem necessidade para se
manifestar como espírito. E desta Natureza que a consciência tem necessidade
para surgir" 145
Pensar a Natureza como temporal é, no fundo , reafirmar o seu carácter de
potência criadora e inesgotável , é considerá- la como o "lugar" de todos os possí-
veis e, mais do que isso, como a própria actualização desses possíveis. Só de
uma Natureza pensada em termos de devir se pode afirmar que ela é "Primavera
do mundo" 146
Por outro lado, é ainda de olhos postos no carácter temporal da Natureza que
Dufrenne afirmará nela a existência de uma polarização para o homem, isto
é, para a consciência que irá acolher e lançar luz sobre a própria Natureza.
"A potência é cega sem o homem e o fundo permanece abismo. No homem a
Natureza vem à consciência : as coisas tornam - se imagens (...) e estas imagens
falam - nos. Porque o homem fala? Certamente , mas na medida em que a vocação
do ser é a de aparecer, em que a potência é, em última análise , potência de
desvelamento , é a Natureza que traz em si este homem falante" 147.
O homem terá assim o estranho estatuto de correlato e de parte ou elemento
da Natureza . Se é com o homem que o dualismo se instala é também nele que o
dualismo se ultrapassa : "A Natureza torna- se mundo pelo homem , como o tempo
se torna história , mas ela detém a iniciativa desta metamorfose , no sentido em
que suscita o homem pelo qual ela se realiza" 148. A filosofia da consciência
terá assim de dar lugar a uma filosofia da Natureza - o que, já o sabemos, é
impossível.

144 Cf. V. JANKÉLÉVICH, "Préface du traducteur" in F. Schelling , Essais. Paris, Editions


Montaigne , 1946, 40.
145 M. DUFRENNE, Le Poétique, 211.
146 Cf. Ibid., 215.
147 Ibid., 219.
14s Ibid., 224.

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392 Eunice Pinho

A Natureza será pois a " pátria" dos a priori ou, como Dufrenne também
afirma , o a priori dos a priori . Não um a priori entre outros , mas o lugar mesmo
da sua emergência 149.
A explicitação da ideia de Natureza é, assim , uma paixão inútil, porque está
para além de toda a correlação com um olhar humano, porque o homem, quando
chega , é já demasiado tarde - o homem apenas pode ser o correlato do mundo -
"Contudo , esta ideia impossível é Itambémj um a priori, talvez mesmo o a priori
tipo: um saber que nos assedia , implícito e virtual e que não poderá jamais ser
explicitado senão de forma precária e, de algum modo, mítica. A ideia de inundo
explicita-se no discurso lógico, a ideia de Natureza diz-se na linguagem dos
poetas, ou dos filósofos que se instruem na proximidade dos poetas" 150

O Poético

É a Natureza que, por uma força inerente a si mesma, dirige ao homem o


apelo da palavra , para que o silêncio se quebre e o poema surja . Pelo poema,
testemunho da fidelidade ao chamamento escutado , a Natureza sofre uma meta-
morfose e devém mundo . A sua força de naturante pode agora ler-se, ainda que
em filigrana 151.
O poeta é assim aquele que co-responde a um apelo que lhe chega do
exterior ; a palavra não é propriedade sua, mas oferta do ser mesmo que pugna
para ser dito. De tal modo , que é o próprio fundo que se diz no dizer do poeta:
"No poema (...) ressoa a voz muda do fundo ; celebrando o mundo, a palavra
poética diz a Natureza inefável. Pelo poeta, a Natureza vem à consciência como
o outro da consciência ; e é por isso que ela quer o poeta e que o poeta se quer
como poeta" 152. O estatuto do poeta vem - lhe justamente dessa disponibilidade
para acolher o dom da palavra, desse "sim " àquilo que da Natureza chega.
Dufrenne demarca-se de uma concepção antropocêntrica , psicologista e
instrumentalista da palavra , pretendendo assim restituir plenos privilégios à
palavra poética - É a Natureza que sendo ela mesma poética fala: "ela fala ao
poeta que há em nós . E a nossa linguagem é a sua" 153
A linguagem não é pois pertença do homem , mas precede- o inexoravelmente.
Por outro lado, se outra voz se imiscui na voz humana, se a voz do poeta é
sempre uma voz pítica, as palavras não são mais o veículo de exteriorização de
um interior ou de uma subjectividade , nem podem ser manipuladas como se
fossem utensílios ou signos vazios, de que nos serviríamos para nomear as coisas.
A palavra é , antes de mais, a luz que vinda do fundo se projecta sobre o mesmo,
mostrando - o. Mas, para tal, o homem é sempre requerido.

149 Cf. M. DUFRENNE , L'inventaire, 164.


1S1 Ibid., 165.
lsl Cf. M. DUFRENNE, Le Poétique , 226-227.
152 Ibid., 229.
151 Ibid., 234.

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A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 393

Ora, cremos ver nesta posição de Dufrenne algumas semelhanças com o


pensamento de Heidegger 15d. Também este filósofo proclama que: "O homem
não fala senão na medida em que corresponde à palavra. A palavra é falante.
O seu falar fala para nós lá onde foi falado: [no poema]" 155
Esta afirmação, de certo modo enigmática, de que "a palavra é falante"
contraria justamente a ideia de que a linguagem é uma actividade específica e
naturalmente humana, situada assim ao nível das performances executadas pelo
sujeito: "Não sendo uma tautologia intransitiva condutora ao hipostasiar da lín-
gua, a afirmação "Die Sprache spricht" refere, por um lado, não ser a palavra-
-língua (Sprache) o instrumento ou a expressão de um sujeito falante, por outro
lado, não poder a sua essência aparecer sob nenhuma outra instância, que não
seja a própria palavra (Sprache), que a diz e a dá a pensar.
A palavra- língua fala e o próprio do homem na sua relação à palavra
(Sprache) consiste, para Heidegger, em «deixar-se abordar pela palavra»" 156
Todo o falar enraíza assim numa escuta prévia e numa co-resposta a uni
apelo, que, sendo simultaneamente pedido e doação, rasura a propriedade daquilo
mesmo que se diz.
Teremos, contudo, que nos questionar acerca desse privilégio concedido à
poesia - dir-se-ia estarmos perante uni gesto de consubstancialização da palavra
à palavra poética. Para Heidegger é no poema que encontramos a perfeição da
fala: "O falado, no seu estado puro é o Poema " 157. Por seu lado, Dufrenne procla-
mará: "A Poesia é a primeira linguagem , aquela que no homem responde à
linguagem da Natureza, ou melhor, que faz aparecer a Natureza como lingua-
gem" 151 . Ainda em Language and philosophy dirá de um modo mais explícito:
"A poesia é a linguagem original , linguagem considerada como verdade. (...) Esta
linguagem é verdadeira porque comporta um sentido que não pode ser dito de
outro modo; é o próprio mundo que fala. Neste sentido, e independentemente
de todos os motivos que os linguistas possam vir a descobrir, os signos não são
arbitrários, mesmo se diferem de uma língua para outra" 159. Daí que Dufrenne
identifique linguagem natural e poesia.
Mas este privilégio outorgado à poesia remete ainda para aquilo a que cham-
aremos a "plasticidade" da palavra poética e a sua insubmissão a todo o controlo
e previsão, a transgressão da ordem que lhe é inerente. Em oposição aos "dis-

154 De notar, contudo, que noutros aspectos , Dufrenne critica vivamente Heidegger, como se
pode ver, por exemplo, na sua obra Le Poétique, pp. 204, nota 1.
'S5 Die Sprache significa em alemão A Língua. O tradutor francês adverte que, embora, tenha
optado pela expressão A Palavra (La Parole), não se deve perder de vista o sentido fiel ao alemão
e ao espírito da letra de Heidegger: a palavra, designa aqui a palavra tal como é falada no seio de
uma língua.
M. HEIDEGGER, "La parole" in Acheminement vers Ia parole. Paris, Gallimard, 1990, 37.
156 F. BERNARDO, "O limite da questão no pensamento de Heidegger". Biblo.s, LXVII, 1992.
157 M. HEIDEGGER, "La parole " in Acheminement vens la parole. Paris, Gallimard, 1990, 18.
15' M. DUFRENNE, Le Poétique, 229.
111 M. DUFRENNE, Language and philosophy. New York, Greenwood Press, Publishers,
1968, 98.

Revista Filosófica de Coimbra - n." 6 (1994) pp. 361-396


394 Eunice Pinho

cursos da instalação ", reificadores, a palavra poética, sendo plural, contém em


si uma superabundância , um excesso de ser que tece nela a abertura a novas
possibilidades de sentido . " A poesia é uma desorganização da realidade prática
que alcança , por um outro caminho , que não o do pensamento dominador, um
acordo do homem e do mundo, da palavra e do silêncio" 160. Sendo assim, se
quisermos encontrar a essência do poético é numa experiência e não na gramática
que a teremos de procurar 161
A poesia procura devolver à linguagem a sua vivacidade . A sua vocação é
a de restaurar a linguagens que foi banalizada e degradada pela usura . Ora, será
justamente e também contra esta linguagem - instrumento de dominação que
Michaux proporá a criação de uma nova língua e que Artaud proclamará : " II faut
briser le langage pour trouver Ia vie " - o que, em última análise, implicaria (de
acordo com o pensamento deste autor ) uma passagem do verbo ao grito.
Em Dufrenne , como já referimos , é a própria poesia que deve reconduzir a
linguagem às suas origens . Parafraseando Heidegger , só com a poesia a palavra
volta a ser palavra.
Dir-se-ia que a poesia conserva em si a voz da origem, do tempo em que a
linguagem estava ainda demasiado rente à própria poesia que nomeava os deuses
e as potências . Se a linguagem se mantinha aí na sua autenticidade , subtraída à
ameaça de uma entropia semântica "é sem dúvida porque ainda tinha toda a seiva
e conservava em si o eco das experiências primordiais em que o homem se
revela" 162.
Ora, ainda hoje a poesia parece conservar e trazer até nós a voz dessa origem.
O seu poder de transfiguração da linguagem advém - lhe justamente dessa espécie
de convivência com o fundo : "A poesia restitui a linguagem ao seu estado de
natureza : pois a linguagem (...) reencontra , para ser expressiva , a densidade e o
brilho das coisas naturais e o seu movimento tem a espontaneidade da vida; é
nesta condição que traz em si, como um fruto, uma significação que exalta um
mundo; é, talvez também , nesta condição que a Natureza , pelo poeta , fala através
dele. Por outro lado, também o leitor é devolvido ao estado de natureza: à
imediatidade , à inocência do sentimento ; é, talvez ainda , nesta condição que é
sensibilizado à palavra da Natureza ou que comunica com a Natureza como
palavra" 163 . Dito de outro modo, a poesia, tal como qualquer outro objecto esté-
tico, induz o leitor ao estado poético. Por esta esta expressão, adverte Dufrenne,
não devemos entender , à maneira de Valéry, um qualquer estado subjectivo.
A noção de poético deve ser liberta de qualquer interpretação psicologista: a
poesia exprime um mundo, não uma emoção - "O estado poético arranca o
poeta a si mesmo e une-o a algo de exterior e de estranho , põe-no em contacto
e ao serviço da Natureza" 164

1611 J. SOJCHER, La démarche poétique . Paris, U .G.E., 1976, 11.


161 Cf. M. DUFRENNE , " La poésie : Oú et pourquoi ?" in Esthétique et Philosophie , vol.
11.
Paris, Editions Klincksieck , 1976, 235.
162 Ibid., 96.
163 Ibid., 145.
164 Ibid., 167.

pp. 361-396 Revista Filosófica de Coimbra - n. 6 (1994)


A Estética de Dufrenne ou a Procura da Origem 395

O poético, mais do que uma simples categoria estética presente em toda a


arte, adquire assim um significado ontológico.
A experiência da inspiração assume um carácter paradigmático para a com-
preensão do estado poético. Diz-nos Dufrenne: "de qualquer modo que a entenda-
mos, quer seja um vento que arrasta o poeta ou uma voz que lhe sopra o poema,
é a exterioridade deste apelo ou desta força, que deveremos sublinhar" 165
Em Artaud essa experiência será vivida de um modo dramático: a inspiração
torna-se sinónimo de alienação, é uma lição de impoder e, mais do que isso, é
sentida como roubo. Esse impoder, tantas vezes evocado por Artaud nas célebres
cartas ao editor J. Rivière 166 não é, como afirma Derrida "a simples impotência,
a esterilidade do «nada a dizer» ou a falta de inspiração. Pelo contrário, é a
própria inspiração (...) Desde logo, aquilo a que chamamos sujeito falante, não
é mais esse mesmo ou aquele que sozinho fala. Ele descobre-se numa irredutível
secundaridade" 167.
Mas para Dufrenne esta experiência pode também ser jubilosa: "A cons-
ciência inspirada (...) é talvez a consciência por excelência: não somente aberta,
mas disponível. Na actividade estética, a esta disponibilidade, quando produz
frutos gloriosos, chama-se inspiração" 168. Nesta disponibilidade-hospitalidade se
cumpre, afinal, o ser poético.
As imagens evocadas pelo poeta, não podem pois ser concebidas como frutos
de uma faculdade sonhadora, em deriva de si, mas brotam desse mesmo chão
originário que é a Natureza. A imaginação tal como é concebida por Dufrenne
assemelha-se assim ao conceito bachelardiano de "rêverie": "a palavra rêverie
está aqui fundamentalmente desviada das suas conotações habituais e do seu
sentido romântico de actividade (ou de estado) de espírito emigrando do mundo
material para as esferas da recordação ou da imagem, para designar, pelo
contrário, um retorno (...) do espírito à matéria e à vida. A rêverie não é vaga-
bundagem da consciência nas regiões do difuso e do impalpável: é, ao invés, o
seu defrontar activo, dinâmico, insistente, penetrante, lúcido, do mundo das
coisas" 169
Será importante notar aqui que: "A Natureza que inspira não é a Natureza
naturada tal como a percebemos; as imagens pelas quais ela inspira não são
exactamente as coisas percebidas, mas o que através destas coisas se revela" 170.
Imagens como o céu, a água viva, a árvore, a jovem, o Caos, a Terra (potências
nomeadas por Hesíodo), trazem em si algo de enigmático, como que uma sobre-
carga de sentido; imagens simultaneamente indecisas e prementes, ininteligíveis

165 Ibid., 167.


166 Cf.A. ARTAUD, "Correspondance avec Jacques Rivière" in Oeuvres complètes, vol. 1. Paris,
Gallimard, 1974.
167 J. DERRIDA, "La parole soufflée" in L'écriture et Ia différence. Paris, Editions du Seuil,
1967, 263 e 265.
168 M. DUFRENNE, Le Poétique, 178.
169 R. JEAN, "Lieu de Ia rêverie bachelardienne" in Vários Bachelard. Paris, Librairie
Duponcelle, 1990, 77.
170 M. DUFRENNE, Le Poétiyue, 182.

Revista Filosófica de Coimbra - n.° 6 (1994 ) pp. 361-396


396 Eunice Pinho

e grávidas de sentido 171. Numa palavra, elas trazem consigo a grandeza e a força
inefável da própria Natureza.
Por isso Dufrenne denuncia a falsa interpretação da frase de Aristóteles,
que manda imitar a natureza: "Aristóteles (...) não disse, como se acreditou:
mimeisthai ta physica onta, mas ten physin; ele não propõe então que se copie
um objecto, mas que se siga um modelo que é a natureza: mostrar a mesma ener-
gia que a poiésis natural, produzir objectos que, ainda que tenham o seu princípio
na poiésis humana, manifestem a mesma potência de existir que aqueles que têm
o seu princípio em si mesmos" 172
A palavra poético, inúmeras vezes proferida por Dufrenne e que dá título,
como já vimos, a urna das suas obras fundamentais, não deve deixar entrever
um privilégio da poesia face à prosa, ou mesmo em relação à arte em geral.
Embora já o tivéssemos tornado patente acima, convém agora sublinhar que o
sentido grego da palavra poético, que aponta para a ideia de "produção" ou do
"produzir", é conservado no texto de Dufrenne, referindo-se quer à Natureza,
quer à arte, quer ainda ao artista e ao espectador. Contudo, será a Natureza
naturante (conceito que julgamos se poder consubstanciar com a physis grega,
tal como era vista pela filosofia pré-socrática: força produtora, mas também
generosa e doadora), que será o referente primeiro e último do próprio poético.
E sempre para dizer o poético da Natureza que a arte é poética, como é também
para a "criar", a partir de um sentimento da Natureza, que o artista ou o especta-
dor, são convocados ao estado poético. O poético está pois sempre relacionado
com a própria expressão, com o trazer, do dizível ao dito, o poiein da Natureza.
Por outro lado, o seu ser poético advém-lhe não só pelo facto de exercer e
exprimir o seu poiein, mas também por ser a própria instância criadora do
homem, ou seja, daquele que dirá sim ao sim já antecipadamente dito pela
Natureza - "Se queremos especificar o poético como categoria estética, é a
humanidade do aparecer que é preciso então invocar: o poético reside,
simultaneamente, na generosidade e benevolência do sensível" 173.
A arte situar-se-á sempre nessa dimensão de excesso... que até um deus deve
ignorar.

Cf. Ibid., 186.


172 M. DUFRENNE, "Aujourd' hui encore , Ia création" in E.cthétique et philosophie,
vol. III.
Paris, Editions Klincksieck , 1981, 67.
173 M. DUFRENNE, Le Poétique, 254.

pp. 361-396 Revista Filosófica de Coimbra - n.° 6 (1994)

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