Você está na página 1de 344

MICHAEL

“Este é, de longe, o melhor livro de Michael Moore!” - The New York Times
n

V
!(0)( 0)1 :;!<j :□
M
Meio século de história e política americanas passado a limpo!
“Um contestador desde a infância”
The New York Times
Dvvight Garner — 13 de setembro de 2011
Declarar que Adoro problemas c de longe o melhor livro de Moore não é
um elogio exagerado. Moore é mais conciso como documentarista; como
todos os seus livros, este é desgrenhado e transbordante.
É a história de um grande bufão, que aprende a unir seu bocão a um
senso de propósito. C) livro convence o leitor a levá-lo a sério, e pertence
à prateleira de autobiografias e obras de não conformistas.
Michael Moore nasceu em Flint, em 1954. Ele tinha amigos, pais que
o amavam e uma infância feliz. No entanto, suas queixas a respeito da
vida sob o jugo do capitalismo moderno começam no nascimento. Ele
fica apoplético com o fato de que os médicos aconselhavam as mulheres,
incluindo sua mãe, a alimentar, por mamadeira, os seus recém-nascidos
com algo semelhante a leite condensado.
Quando menino, numa viagem ao sul dos Estados Unidos, viu um
banheiro com uma placa “só negros”, e, é claro, entrou nele. Quando so­
licitado pelo Elks Club a fazer um discurso sobre Abraham Lincoln, ele
atacou a organização - com seu líder, o Chefe Elk, na platéia - por causa
do racismo dela. Uma estrela brigona nascia.
Moore queria ser padre, mas foi expulso por fazer muitas perguntas.
“Desejo-lhe boa sorte no que quer que o senhor faça na sua vida”, o padre
disse ao lhe dar a notícia, “e rezo por aqueles que têm de suportá-lo”.
O livro é muito divertido e discreto e Moore, frequentemente, dirige
seu olhar para fora.

IS B N 9 7 8 -8 S 6 3 0 6 6 -7 8 -7

LeYa III LI 11
g^ssseaNoeersr11
| leya.com br leya.com br/luadepapel
Os fãs de Michael Moore que se preparem
para a surpresa: uma deliciosa autobiogra­
fia, composta por 24 crônicas ou esquetes.
Podem tranquilizar-se, todavia. Ele nada
perdeu
I da potência de fogo, e continua
indignado. Mestre em desobediência civil,
os atuais indignados mundo afora sabem
que contam com ele em suas fileiras.
Já disparou suas baterias sobre várias
causas. Entre elas, destacam-se: o imperia­
lismo — que instaura guerras em países
alheios e convida atentados em retalia­
ção —, a avidez pelo petróleo, as fraudes
eleitorais que colocaram George W. Bush
na presidência, a poluição industrial, o
desemprego devido à ganância das mul­
tinacionais, a situação desastrosa do ensi­
no e da assistência à saúde, a proliferação
das armas e seu uso sem controle legal, a
crise financeira global que assola os países
ricos. Diga mais uma, e Michael Moore
já esteve lá. Custou para perceberem sua
importância, porque ele costuma envolver
tudo em provocações divertidas.
Seus filmes e livros são documentários
investiga tivos e politicamente engajados.
Recebeu prêmios como o da Mostra In­
ternacional de São Paulo, o César francês
e o Oscar por Tiros ew Colimbine, sobre
os massacres cometidos por garotos; e o
do festival de Carmes por Fahrenheit 9/11,
que analisa o atentado ao World Trade
Center e as ligações entre as famílias Bush
e Bin Laden.
Este livro mostra, na descontinuidade
dos flashes e flagrantes, os episódios cru­
ciais de seu percurso desde a infância. Tudo
é relevante, sobressaindo, o relato da his­
teria coletiva quando este pioneiro de­
nunciou a invasão do Iraque e o conluio
da Casa Branca: ameaça de morte na te­
levisão, planos de plantar bombas em sua
casa, insultos e ataques físicos pessoais. É
bom lembrar hoje quando a unanimida­
de se instalou e todos reconhecem os
culpados, o quanto tais pioneiros arris­
caram. Não percam os outros atos de
protesto de que, sempre à sua maneira
despretensiosa e cheia de humor, o autor
participou; e sobre a saga de sua família
de imigrantes irlandeses. Elas mostram
claramente, a cada passo, que estava sendo
plasmado um grande dissidente.
W A L N IC E N O G U E IR A GALVÃO
Professora Emérita da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas — u s p
ADORO PROBLEMAS
HISTÓRIAS DA MINHA VIDA

MICHAEL
MOORE
Para minha mãe,
que me ensinou a ler e escrever
quando eu tinha quatro anos.
Copyright © 2011 by Michael Moore
Direção editorial: Pascoal Soto
Editor: Pedro Almeida
Produção editorial: Gabriela Ghetti
Marketing: Priscila Brauner
Preparação de texto: Leila dos Santos
Revisão: Veridiana Cunha
Diagratnação: S4 Editorial
Capa: Osmane Garcia Filho
Imagem de capa: Everett Collection/Keystock, extraída do material de divulgação do
filme Sicko, documentário de Michael Moore sobre o sistema de Saúde nos EUA.

D a d o s I n te r n a c io n a is d e C a ta lo g a ç ã o n a P u b lic a ç ã o (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Moore, Michael
Adoro problemas : histórias da minha vida / Michael Moore ; [traduzido
por Carlos Szlak] . - São Paulo : Lua de Papel, 2011.
Título original: Here comes trouble
ISBN 978-85-63066-78-7
1. Cineastas —Autobiografia 2. Memórias autobiográficas 3. Moore,
Michael I.Título.

11-11666 CDD-791.43092
Í n d ic e p a ra c a tá lo g o s is te m á tic o
1. Cineastas : Autobiografia 791.43092

T e x to E d itores L t d a .
[Uma editora do grupo Leya]
Rua Desembargador Paulo Passalácqua, 86
01248-010 - Pacaembu —São Paulo —SP
www.leya.com.br/luadepapel
Twitter: @luadepapel_BRA / @EditoraLeya
Enquanto crescia tudo parecia tão parcial
Opiniões todas arranjadas
O juturo previamente decidido
Alheio e subdividido
Na zona de produção em massa
Em nenhum lugar está o sonhador
Ou o desajustado
Tão solitário...
- Neil Peart/Rush
Nota do autor

Este é um livro de histórias curtas baseado em eventos que


ocorreram nos primeiros anos da minha vida. Muitos dos
nomes e das circunstâncias foram mudados para proteger os
inocentes e, às vezes, os culpados. Dizem qúe a memória pode
ser um parque de diversões estranho e tortuoso, cheio de via­
gens em montanha-russa e salas de espelhos deformadores,
espetáculos de fenômenos anormais assustadores e contor­
cionistas corteses. Este é o primeiro volume dessas histórias.
Eu queria colocá-las no papel enquanto o papel (e as livrarias
e bibliotecas) ainda existe.
SUMÁRIO

Epílogo - A execução de Michael M oore.............. 13

Engatinhando para trás............................................39

Equipe de busca e salvamento...............................51

A canoa.....................................................................65

Pietà...........................................................................74

Tet............................................................................101

Natal de 1943..........................................................113

Uma Quinta-Feira Santa........................................125

O exorcismo............................................................136

Boys State...............................................................151

Zoe...........................................................................165

Carro de fuga..........................................................176

Dois encontros........................................................195

Vinte nomes............................................................207

Milhous em três atos..............................................220

Intervenção em crises............................................233

Uma educação pública..........................................238


Batida policial.........................................................249

Bitburg.................................................................... 263

Uma bênção........................................................... 277

Abu 2 U 2................................................................ 284

Nazista fogosa e bronzeada..................................294

Parnassus................................................................ 307

G ratidão................................................................. 321
SANDYBATES (WOODYALLEN): Será que devo
parar defazer filmes efazer algo que tem importância,
como ajudar pessoas cegas, me tomar um missionário
ou algo assim?
O ALIENÍGENA: Olha, você não faz o gênero mis­
sionário. Você nunca aguentaria. E, por acaso, você
também não é o Super-Homem; você é um comediante.
Você querprestar um serviço de verdade à humanidade?
Conte piadas mais engraçadas.
- Diálogo do filme Memórias
Epílogo

A EXECUÇÃO
DE MICHAEL MOORE

Estou pensando no assassinato de Michael Moore, e me pergunto se eu


mesmo posso matá-lo ou sepreciso contratar alguém para fazer isso... Não,
acho que não. Imagino-o me olhando nos olhos, sabe, e eu o estrangulando.
Isso está errado? Parei de usar minha fitinha “O que Jesusfaria?”,1 e agora j
perdi todo sentido de certo e errado. Costumava dizer: “Sim, eu mataria
Michael Moore”, e então via a fitinha “O que Jesus faria?” e percebia:
“A h, você não mataria Michael Moore. Ou, de qualquer modo, você não o
estrangularia até a morte ”. Bem, sabe, não tenho certeza.
Glenn Beck2, ao vivo, no programa Glenn Beck,
17 de maio de 2005

O desejo pela minha morte precoce parecia estar por toda parte. Sem dúvida,
estava no pensamento de Bill Hemmer, da CNN, numa manhã ensolarada de
julho, em 2004. Ele escutara algo que quis repassar para mim. Assim, segurando

1 Semelhante à nossa fitinha do Bonfim, traz a inscrição "What Would Jesus Do?" (O que Jesus
faria?), frequentemente abreviada para VWVJD. (N. T.) j
2 Escritor, apresentador e comentarista político de rádio e TV (Fox News), conhecido por suas posi­
ções políticas de direita. (N. T.)
14
ADORO PROBLEMAS

um microfone diante do meu rosto, no recinto da Convenção Nacional do Par­


tido Democrata, em 2004, ao vivo pela CNN, perguntou-me se eu sabia o que
o povo americano estava sentindo em relação a Michael Moore:
“Escutei pessoas dizerem que desejam a morte de Michael Moore. É
verdade?”
Tentei me lembrar se já tinha visto algum jornalista fazer essa pergunta para
alguém antes ao vivo na TV. Dan Rather3 não fez essa pergunta para Saddam
Hussein. Também tenho certeza de que Stone Phillips4 não fez essa pergunta a
Jeffery Dahmer, assassino em série e canibal. Talvez Larry King5 tenha feito essa
pergunta a Liza, mas não creio nisso.
Por algum motivo, porém, era perfeitamente possível apresentar essa pos­
sibilidade para mim, um sujeito cujo principal crime era fazer documentários.
Hemmer disse isso como se estivesse simplesmente constatando o óbvio: é claro
que as pessoas querem matá-lo! Ele simplesmente assumiu que seus telespec­
tadores já compreendiam essa verdade incontestável, tão certamente quanto
aceitam que o Sol nasce no Oriente e que o milho vem em uma espiga.
Não sabia como reagir. Tentei minimizar o fato. Contudo, não era capaz de
esquecer o que ele acabara de dizer ao vivo numa rede de TV que alcança 120
países e Utah. Possivelmente, esse “jornalista” tinha plantado uma ideia doentia
em alguma mente perturbada, alguém influenciável e furioso, sentado em casa,
preparando no micro-ondas seu cheeseburger recheado de rosquinhas e bacon,
enquanto a TV da cozinha (um dos cinco aparelhos da casa) está sintonizada
acidentalmente na CNN: “Bem, mais tempofrio no vale do rio Ohio; um gato na
Filadélfia prepara seu próprio sushi; e, a seguir, há pessoas que querem a morte de
Michael Moore!*\
Hemmer não tinha terminado com sua dose de escárnio. Ele quis saber
quem havia me dado as credenciais para estar ali: “O Comitê Nacional do Par­
tido Democrata não o convidou, certo?”. Hemmer perguntou isso como se
fosse algum policial pedindo minha identidade, algo que, sem dúvida, ele não
perguntaria a ninguém mais que acompanhava a convenção naquela semana.

3 Veterano jornalista e apresentador de TV. (N. T.)


4 Repórter e correspondente de TV. (N. T.)
5 Apresentador e entrevistador de TV (N. T.)
EPÍLOGO

“Não”, eu respondi. “O Congressional Black Caucuf* me convidou.” Minha


raiva estava crescendo; então, acrescentei, para impressionar: “Aqueles parla­
mentares negros, sabe?”. A entrevista acabou.
Nos minutos seguintes, fora do ar, fiquei parado ali, fuzilando-o com os
olhos, enquanto outros jornalistas me faziam perguntas. Hemmer se afastou
para ser entrevistado por um blogueiro. Por fim, não consegui mais aguentar.
Aproximei-me dele e disse, com a calma de Dirty Harry, o personagem durão
de Clint Eastwood: “É, sem dúvida, a coisa mais desprezível dita alguma vez para
mim ao vivo na TV”.
Ele mandou eu não interrompê-lo; que eu esperasse até ele terminar sua
conversa com o blogueiro. Claro, cara, eu posso esperar.
E, então, aproveitando uma distração minha, ele escapuliu. Mas não havia
lugar onde ele pudesse se esconder! Ele se refugiou no meio da delegação!de
Arkansas - o refugio de todos os canalhas!-, mas eu o encontrei, e parti direto na
direção dele. j
“Você fez minha morte parecer aceitãvet\ eu disse. “Você disse para jos
telespectadores que seria tudo bem me matar.” j
Ele tentou se afastar, mas eu o impedi. “Quero que você pense a respeito
das suas ações se algo acontecer comigo. Não pense que minha família não vai
atrás de você, porque ela irá.” Ele murmurou algo a respeito do seu direito de me
perguntar o que quisesse, e decidi que não valia a pena quebrar meu histórico de
toda vida de nunca bater em outro ser humano; certamente, não em um char­
latão de um canal de notícias (“Salve isso em Meet the Press/ Mike/*). Hemn^er
se desvencilhou e escapou. Em um ano, ele deixaria a CNN e se mudaria parà a
Fox News, onde ele deveria ter estado desde sempre.
Para ser justo com o senhor Hemmer, eu sabia que meus filmes tinham
irritado muitas pessoas. Não era incomum que os fãs aparecessem ao acaso, me
abraçassem e dissessem: “Estou muito feliz que você ainda está aqui!”. E eles não
queriam dizer no prédio.

6 Comitê de Defesa dos Negros do Congresso. (N. T.)


7 Programa semanal de notícias e entrevistas da rede NBC de muita credibilidade. Está no ar desde
16
ADORO PROBLEMAS

Por que eu ainda estava vivo? Por mais de um ano, houve ameaças, inti­
midações, importunações e até tentativas de assalto em plena luz do dia. Era o
primeiro ano da Guerra do Iraque, e um importante especialista em segurança
(que é frequentemente utilizado pelo governo federal para prevenção de assassi­
natos) me disse que “não há nenhuma outra pessoa nos Estados Unidos, exceto
o presidente Bush, que está mais em perigo do que você”.
Como diabos isso aconteceu? Será que eu causei isso para mim mesmo?
Claro que sim. E me lembro o momento em que tudo começou.
Foi na noite de 23 de março de 2003. Quatro noites antes, George W.
Bush invadira o Iraque, um país soberano, que não só não tinha nos atacado,
mas também era, de fato, beneficiário passado da ajuda militar dos Estados
Unidos. Era uma invasão ilegal, imoral e estúpida; no entanto, não era como os
americanos enxergavam. Mais de 70% da população apoiava a guerra, incluindo
liberais como Al Franken e os 29 senadores democratas, que votaram a favor da
lei de autorização da guerra (entre eles, os senadores Chuck Schumer, Dianne
Feinstein e John Kerry). Entre outros apoiadores liberais da guerra, incluíam-se
Bill Keller, colunista e editor do The New York Times, e David Remnick, editor
da New Yorker, uma revista liberal. Mesmo liberais como Nicholas Kristof,
do The New York Times, aderiram à mentira de que o Iraque possuía armas
de destruição em massa. Kristof elogiou Bush e Colin Powell, então secretário
de Estado, por provarem “com habilidade” que o Iraque tinha armas de des­
truição em massa. Ele escreveu isso após Powell apresentar evidências falsas para
as Nações Unidas. O The New York Times veiculou diversas reportagens de pri­
meira página fictícias a respeito de como Saddam Hussein possuía essas armas.
Posteriormente, o jornal se desculpou por apoiar intensamente aquela guerra.
Mas o dano já havia sido feito. O The New York Times dera a Bush a cobertura
que ele precisava, e o poder de afirmar que, se um jornal liberal como o Times
diz isso, deve ser verdade!

E naquele momento, na quarta noite de uma guerra muito popular, Tiros em


Columbineymeu filme, estava disputando o Oscar de melhor documentário. Fui
para a cerimônia, mas não tinha permissão, assim como nenhum dos indicados,
17
EPÍLOGO

de falar com a imprensa enquanto percorria o tapete vermelho em direção ao


Teatro Kodak, em Hollywood. Havia o temor de que alguém pudesse dizer
alguma coisa; e, em tempo de guerra, temos de estar todos unidos em torno do
esforço de guerra. Certo?
A atriz Diane Lane entrou no palco do Oscar e leu a lista de indicados a
melhor documentário. O envelope foi aberto, e ela anunciou com uma alegria
desenfreada que eu havia ganhado o Oscar. A platéia, lotada de atores, diretores
e roteiristas indicados à estatueta, se levantou e me concedeu uma longa ovação
entusiástica. Pedi para que os indicados dos outros documentários se juntassem
a mim no palco no caso da minha vitória, e eles fizeram isso. Finalmente, a
ovação cessou e, então, eu disse:
Convidei meus colegas indicados ao Oscar de melhor documentário para
subirem ao palco comigo. Eles estão aqui em solidariedade a mim porque
gostamos de não ficção. Gostamos de não ficção, embora vivamos tempos
deficção. Vivemos em um tempo em que temos resultados eleitoraisfictícios j
que elegem um presidentefictício. Vivemos em um tempo em que temos um j
homem nos mandando para uma guerra por motivos fictícios. Quer seja j
a ficção da fita vedante ou a ficção dos alertas laranja: somos contra esta
guerra, senhor Bush. Tome vergonha, senhor Bush. Tome vergonha na cara.
E quando opapa e as Dixie Chicks8ficarem contra o senhor, seu tempo terá
se esgotado. Muito obrigado.
Na metade desse discurso, criou-se um pandemônio. Houve vaias, vaias
muito estridentes, vindas da platéia do piso superior e dos bastidores. (Alguns
- Martin Scorsese, Meryl Streep - tentaram me incentivar das suas poltronas,
mas não foram correspondidos.) O produtor do show, Gil Cates, ordenou que
a orquestra começasse a tocar para abafar minha voz. O microfone começou
a descer na direção do piso. Uma tela gigante com letras vermelhas imensas
começou a piscar na minha frente: “SEU TEMPO ACABOU!”. Foi um alvo­
roço, no mínimo, e eu fui retirado rapidamente do palco.

8 Trio feminino de música country de muito sucesso, formado em 1989, no Texas, de tendência polí­
tica conservadora. (N. T.) !
18
ADORO PROBLEMAS

Um fato pouco conhecido: as primeiras duas palavras que todo ganhador


do Oscar escuta após ganhar a estatueta e deixar o palco vêm de jovens atraentes
em trajes de gala contratados pela Academia para cumprimentá-lo imediata­
mente atrás da cortina.
Assim, enquanto a calamidade e o caos tomavam conta do Kodak, uma
jovem mulher, em seu vestido de grife, alheia ao perigo que corria, disse o
seguinte para mim: “Champanhe?”.
E ela ofereceu uma taça de champanhe.
Então, um jovem rapaz, em seu elegante smoking* parado perto dela, disse
logo depois: “Uma bala?”.
E ofereceu uma bala de menta.
Champanhe e bala são as duas primeiras palavras que todos os ganhadores
do Oscar escutam.
Mas, caramba, eu escutei uma terceira.
Um assistente de palco furioso se aproximou de mim, gritando o mais alto
que pode na minha orelha: “Imbecil!”.
Outro assistente de palco, musculoso e nervoso, veio na minha direção.
Agarrei meu Oscar como uma arma, segurando-o como um xerife tentando
conter uma multidão enfurecida, ou um homem sozinho cercado na mata, com
sua única esperança sendo a tocha que ele está balançando loucamente diante
dos vampiros que se aproximam.
Os seguranças, sempre atentos, viram a briga que estava prestes a acontecer
e, então, rapidamente, pegaram-me pelo braço e me levaram para um lugar mais
seguro. Fiquei chocado, perturbado e, devido à esmagadora reação negativa ao
meu discurso, em vez de aproveitar o momento de uma vida inteira, mergu­
lhei repentinamente num terrível desespero. Tive certeza de que havia estragado
tudo e deixei todos desapontados: meus fãs, meu pai na platéia, os telespecta­
dores, a organização do Oscar, minha equipe, minha mulher, Kathleen - todos
que significavam alguma coisa para mim. Naquele momento, senti que tinha
arruinado a noite deles, que tinha tentado fazer uma simples declaração, mas
havia cometido um erro estúpido. O que não entendi na ocasião - o que náo
podia ter sabido, nem mesmo com mil bolas de cristal - era que isso tinha de
começar em algum lugar, alguém tinha de dizer isso, e, embora não planejasse
ser eu (só queria conhecer Diane Lane e Halle Berry!), essa noite, tempos depois,
seria vista como a primeira pequena manifestação do que se tornaria, ao longo
19
EPÍLOGO

do tempo, uma cacofonia de raiva em relação às ações de George W. Bush. As


vaias, num período de cinco anos, tomariam outra direção, e o país colodaria
de lado seu passado e elegeria um homem que não se parecia com ninguém que
estava me vaiando naquela noite.
Porém, não entendi nada disso em 23 de março de 2003. Tudo o que sabia
era que tinha dito algo que não devia ter dito. Não no auditório do Oscar nem
em qualquer lugar. Vocês sabem do que falo, caros americanos. Vocês se lem­
bram do que aconteceu durante aquela semana, aquele mês, aquele ano, quando
ninguém se atrevia a dizer uma palavra de discordância contra o esforço de
guerra; e, se você ousasse fazê-lo, era um traidor e inimigo dos soldados. Tüdo
isso elevou as advertências de Orwell a um novo nível de perfeição sombria, pois
a verdade eminente era que as únicas pessoas que odiavam os soldados eram
aquelas que os colocaram naquela guerra desnecessária. 1
No entanto, nada disso me importava enquanto me escondiam longe dos
bastidores do Oscar. Naquele momento, tudo o que senti foi abandono, que eu
era nada mais do que uma decepção profunda e total.
Uma hora depois, quando entrei no Governor s Bali, o lugar ficou ime­
diatamente em silêncio, e as pessoas abriram caminho para mim com mejdo
de aparecerem numa foto comigo. Na mesma semana, a Variety escreveria que
“Michael Moore pode ter tido o intervalo de tempo mais breve entre o nível
mais alto e mais baixo da carreira na história da indústria do entretenimento”.
Saul Zaentz (Um estranho no ninho, Amadeus), produtor vencedor do Oscar, o i
citado como tendo dito: “Ele se fez de tolo”.
Assim, ali estava eu, na entrada do Governor s Bali, sozinho com min ha
mulher, evitado pela comunidade de Hollywood. Então, vi a chefe da Para-
mount Pictures, Sherry Lansing, caminhando com determinação no corredor
central, em minha direção. Ah, sim... Era assim como tudo acabaria. Eu estava
prestes a ser repreendido pela pessoa mais poderosa da cidade. Por mais de duas
décadas, a senhorita Lansing dirigiu a Fox e, depois, a Paramount. Preparei-me
para a humilhação pública de ser solicitado a deixar o recinto pela chefe djos
chefes do estúdio. Fiquei parado ali, meus ombros arqueados, minha cabeça
curvada, pronto para minha execução.
Foi quando Sherry Lansing chegou perto de mim e me deu um sonoroj e
generoso beijo no rosto. I
20
ADORO PROBLEMAS

“Obrigada”, ela disse. “Machuca agora. Um dia você vai provar que tinha
razáo. Estou muito orgulhosa de você.” E, então, ela me abraçou, à plena vista
da elite de Hollywood. Declaração feita, Robert Friedman, número dois de
Lansing na Paramount (e que anos atrás ajudou a convencer a Warner Bros. a
comprar meu primeiro filme, Roger & Me), abraçou minha mulher e, depois,
agarrou minha mão e apertou-a com força.
E não passou disso pelo resto da noite. A exibição pública de Sherry Lan­
sing de inesperada solidariedade manteve os inimigos acuados, mas poucas
outras pessoas quiseram correr riscos de associação. Afinal, todos sabiam que a
guerra “acabaria” em poucas semanas, e ninguém queria ser lembrado por estar
do lado errado! Sentamos tranquilamente em nossa mesa e comemos nosso ros­
bife. Decidimos ignorar as festas e voltar para o hotel, onde os amigos e a família
estavam esperando. Ao que se revelou, eles estavam tudo, menos decepcionados.
Sentamos na sala de estar da nossa suíte e todos se revezaram segurando a esta­
tueta e fazendo seus discursos do Oscar. Foi agradável e comovente, e quis que
eles tivessem estado no palco em vez de mim.
Minha mulher foi para a cama, mas eu não consegui dormir; então,
levantei-me e liguei a TV. Durante a hora seguinte, assisti aos canais locais de
TV apresentarem um resumo da noite do Oscar e, ao zapear entre eles, escutei
um expert após o outro questionar minha sanidade, criticar meu discurso e dizer,
repetidamente, em resumo: “Não sei o que deu nele!”; “Sem dúvida, ele não
terá vida fácil nessa cidade depois dessa proeza!”; “Quem ele acha que vai querer
fazer outro filme com ele agora?”; “Ele liquidou a sua carreira!”. Depois de uma
hora disso, desliguei a TV e acessei a internet; ali havia mais do mesmo, mas
pior. de todos os lugares dos Estados Unidos. Comecei a ficar mal. Podia ver as
pichaçóes nos muros: era a morte para mim como cineasta. Comprei tudo que
estava sendo falado a meu respeito. Desliguei o computador, apaguei as luzes
e me sentei na cadeira, no escuro, relembrando repetidas vezes o que eu tinha
feito. Bom trabalho, Mike. Que bons ventos o levem.
Nas próximas vinte e quatro horas, tive de escutar mais vaias: caminhando
pelo saguão do hotel, onde Robert Duvall se queixou para a gerência que minha
presença estava causando perturbação (“Ele não gostou do cheiro de Michael
21
EPlLOGO

Moore pela manhã”,9 alguém da minha equipe brincou depois), e me deslo­


cando pelo aeroporto (onde, além das zombarias, os funcionários da Homeland
Security10 intencionalmente passaram a chave no meu Oscar, arranhando toda a
estatueta). No voo para Detroit, o ódio ocupou uma dúzia de filas, no mínimo.
Ao chegarmos na nossa casa, no norte de Michigan, a comissão de embe­
lezamento local esvaziou três caçambas de esterco de cavalo na frente da nossa
garagem, que alcançou a altura da cintura, para que não fôssemos capazes de
entrar em nossa residência—uma residência que, a propósito, foi decorada recen­
temente com dezenas de mensagens pregadas em nossas árvores: FORA!MUDE
PARA CUBA! COMUNISTA! ESCÓRIA! TRAIDOR! CAI FORA AGORA OÜ,
CASO CONTRÁRIO...
Não tive intenção de partir.

Certo dia, dois anos antes do Oscar e da guerra, num tempo mais tranquilp,
mais inocente - março de 2001 -, recebi um envelope pelo correio. Estaya
endereçado para “Michael Moore”. !
E o remetente? De: “Michael Moore”.
Após fazer uma pequena pausa para considerar o universo ao estilo Escher
do que estava na minha mão, abri a carta. Estava escrito:
Prezado senhor Moore,
Espero que, depois de ver que esta carta não era realmente sua, o senhor
tenha aberto o envelope. Meu nome também é Michael Moore. Nunca
tinha ouvidofalar do senhor até ontem à noite. Estou no corredor da morte,
no Texas, e minha execução está programada para ofim deste mês. Assisti
ao seu filme Canadian Bacon ontem à noite, vi seu nome e vi que temos
o mesmo nome. Nunca vi meu nome num filme antes! Provavelmente, o

9 Alusão à célebre frase dita pelo personagem de Robert Duvall no filme Apocalypse Now, de 1979:
"Eu adoro o cheiro de Napalm pela manhã". (N. T.)
10 Termo abrangente relativo às iniciativas de segurança para proteger os Estados Unidos contra
o terrorismo. O termo surgiu em 2003, depois da reorganização de diversas agências do governe
americano após os ataques de 11 de setembro. (N. T.)
22
ADORO PROBLEMAS

senhor nunca viu seu nome numa manchete “MICHAEL MOORE SERA
EXECUTADO” Espero que o senhorpossa me ajudar. Não quero morrer.
Fiz algo terrível, do qual me arrependo, mas me matar não vai resolver
nada, nem desfazer o quefiz. Não recebi a melhor defesa. Meu advogado,
designado pelo tribunal, adormeceu durante o julgamento. Estou recor­
rendo pela última vez ao Conselho Prisional do Texas. O senhorpode usar
sua influência para me ajudar? Acredito que devo pagar pelo meu crime.
Mas não com minha morte. Abaixo estão os nomes dos meus novos advo­
gados e das pessoas que estão me ajudando. Faça o que o senhor puder. E
gostei do seu filme! Engraçado!
Atenciosamente,
Michael Moore
Ss999126
Sentei e não tirei os olhos daquela carta por muito tempo. Naquela noite, tive
um pesadelo. Eu estava presente na execução de Michael Moore e, eviden­
temente, não queria estar ali. Tentei sair do recinto, mas tinham trancado a
porta. Michael Moore começou a rir. “Ei! Você é o próximo, amigo!”. Gelei, e,
enquanto ministravam a injeção letal, ele não tirava seus olhos agonizantes de
mim, à medida que sua vida expirava.
No dia seguinte, liguei para os advogados contrários à pena de morte que o
estavam ajudando. Me ofereci para fazer o que quer que fosse. Eles me disseram
que as coisas pareciam quase sem esperança —afinal, era o Texas, e ninguém con­
segue uma suspensão ou um perdão do governador dali —, mas, apesar disso, eles
estavam apresentando um último recurso. Eles disseram que eu podia escrever
uma carta para o governador ou para a Corte de Apelações Criminais.
Fiz mais do que isso. Puspara circular uma carta no meu site e pedi ajuda para
meio milhão de pessoas da minha lista de contatos. Falei publicamente contra
a execução de Michael Moore. Contei para as pessoas a história de um jovem,
veterano da Marinha com nove anos de serviço, que foi gravemente assediado
quando criança e nunca se recuperou psicologicamente dessa violência. Agora,
aos trinta anos, ele mantinha uma agenda das garotas da escola do ensino médio
da cidade que ele gostava de seguir furtivamente. Certa noite, ele achou que
entraria sorrateiramente na casa de uma das garotas e roubaria o que fosse pos­
23
EPlLOGO

sível. Ela não estava em casa. Sua mãe estava. Ele tinha bebido, perdeu a cabeça
e a matou. Uma hora depois, parado por uma infração de trânsito, ele disse à
polícia (que não sabia da ocorrência de um assassinato) que tinha acabado de
fazer algo ruim. E assim foi. Ele teve um advogado péssimo (que, num gesto
louvável, admitiu oficialmente que não fez um bom trabalho para Michael) e
um julgamento rápido. Michael Moore foi julgado culpado e recebeu a pena
máxima: morte.
Milhares de pessoas responderam ao meu apelo em favor da interrupção da
execução de Michael Moore. O governador do Texas e o conselho prisional rece­
beram inúmeras cartas e telefonemas de pessoas protestando contra a morte dele.
E, então, algo incomum aconteceu: um dia antes de ele ser executado, a
Corte de Apelações Criminais do Texas concedeu uma suspensão da execução
para Michael Moore. Michael Moore continuaria vivo! No Texas\ Inacreditável.
Realmente, inacreditável.
Não consigo descrever o alívio que senti. Michael Moore me escreveu outra
carta, me agradecendo. No entanto, naquele momento, o trabalho árduo da
apelação real começaria.
E, então, aconteceu o 11 de setembro. Você conhece o clichê “O 11 de
setembro mudou tudo?”. Essa foi uma dessas coisas. A compaixão pelos assas­
sinos deixou de existir. Era tempo de matar nos Estados Unidos, e, se um
homem inocente podia ser morto enquanto comia um pedaço de bolo durante
uma reunião de negócios 106 andares acima de Manhattan, então um assassino
no Texas, sem dúvida, não podia ter a esperança de ser mantido vivo. Matar
ou ser morto era tudo que importava para nós; naquele momento, éramos um
povo pronto para ir à guerra, em qualquer lugar; uma guerra depois da outra,
se fosse necessário. Na realidade, não procurávamos o assassino; só queríamos
matar. Em pouco tempo, seriamos capazes de nos resumir do modo que D.
H. Lawrence fez outrora: “A alma americana essencial é dura, isolada, estoicá e
assassina”.
Os planos para a execução de Michael Moore tiveram rápida tramitação.
Todos os recursos foram rejeitados. Michael me pôs na lista para assistir à sua
execução, se eu decidisse comparecer. Não fui capaz. Não fui capaz de ir ao
Texas e assistir à morte de Michael Moore. Quis estar ali por ele, mas simples­
mente não fui capaz.
24
ADORO PROBLEMAS

Em 17 de janeiro de 2002, às 18h34, Michael Moore tornou-se o primeiro


preso executado do ano no Estado do Texas.
Ah, sim, a manchete dizia: MICHAEL MOORE EXECUTADO.

A correspondência ofensiva após o discurso do Oscar foi tão volumosa que


quase pareceu como se a Hallmark11 tivesse aberto um novo departamento, em
que os redatores de cartões comemorativos tivessem a missão de escrever odes
pela minha morte. (“Para uma pessoa desprezível..”', “Uma rápida recuperação do
seu misterioso acidente de carro!”; “Desejamos um feliz derrame!3)
As chamadas telefônicas para minha casa realmente causavam arrepios. É um
aparelho assustador e totalmente diferente quando uma voz humana está unida
à loucura, e você pensa: Essa pessoa literalmente se arriscou a ser presa ao dizer isso
numa linha telefonicaíNodè. tem de admirar a coragem - ou a insanidade - disso.
No entanto, os piores momentos ocorriam quando as pessoas apareciam
na nossa casa. Naquela época, não tínhamos cerca, nem câmeras infraverme­
lhas, nem cachorros com dentes de titânio, nem dispositivos de eletrocução.
Então, essas pessoas surgiam na frente da garagem, sempre parecendo refugos
do elenco de A noite dos mortos-vivos, nunca se movendo muito rápido, mas
sempre avançando com um propósito único. Poucos deles eram inimigos reais;
a maior parte era constituída por malucos. Nós mantínhamos os auxiliares do
xerife ocupados, até que eles finalmente sugeriram que tivéssemos nossa própria
segurança ou, talvez, nossa própria força policial. O que quisemos.
Encontramos o chefe da principal empresa de segurança do país, uma orga­
nização de elite, que não brincava em serviço e que não contratava ex-policiais
(“Por que eles são 6*-policiais? E isso aí.”), nem “caras durões” ou tipos leões de
chácara. A agência preferia utilizar somente homens que tinham pertencido à
Força de Operações Especiais da Marinha, a Navy Seals, e outras unidades espe­
ciais, como a Army Rangers. Rapazes que eram frios e que podiam liquidar uma
pessoa com um pedaço de fio dental em questão de bilionésimos de segundo.
Eles tinham de passar por um treinamento adicional de nove semanas para tra­

11 Marca muito conhecida de um fabricante de cartões comemorativos. (N. T.)


25
EPÍLOGO

balhar para a empresa. Eles já sabiam como matar rapidamente, em silêncio e


com perfeição; agora eles também tinham de aprender como salvar uma vida;
Inicialmente, a empresa me enviou um dos seus ex-Seals. No final do ano,
devido ao aumento alarmante de ameaças e ataques contra mim, eu tinha nóye
deles ao meu redor, 24 horas por dia. Eles, em sua maioria, eram negros e his­
pânicos (você tinha de ser voluntário para estar no meu destacamento; daí o
grupo demográfico assimétrico, mas muito estimado). Eu os conheci bem e o
suficiente para dizer que, quando você vive com nove ex-Seals extremamente
dedicados, que também por uma casualidade gostam de você e do que você fafc,
você aprende muito a respeito de como “usar fio dental”.
Após o tumulto do Oscar e do status resultante de persona non grata qvie
alcancei como o homem mais odiado dos Estados Unidos, decidi fazer o que
qualquer um na minha posição faria: um filme sugerindo que o presidente dos
Estados Unidos é um criminoso de guerra. Ou seja, por que pegar o caminho
mais fácil? De qualquer jeito, já tinha me ferrado. O estúdio que prometera
financiar meu próximo filme havia me ligado após o discurso do Oscar e dito
que mudara de ideia em relação ao contrato assinado comigo - e, se eu nao
gostasse, poderia plantar batata. Felizmente, outro estúdio topou o projeto, m^s
preveniu que talvez eu devesse ter cuidado para não enfezar o público pagante.
O dono do estúdio tinha apoiado a invasão do Iraque. Eu lhe disse que já tinha
enfezado o público pagante; então, por que não fazer o melhor filme possível,
vindo direto do coração - e, bem, se ninguém gostasse, haveria sempre ao opção
de lançar direto para DVD.
No meio de toda essa confusão, comecei a filmar Fahrenheit 9/11. Minfya
equipe descobriu gravações da Casa Branca de Bush que as redes de TV não vei-
cularam. Eu as surrupiei dos seus departamentos de jornalismo, pois achava que
as pessoas tinham o direito de ver a verdade12. Disse a todos da minha equipe
para agirem como se esse fosse o último emprego que teríamos na indústria do
cinema. Não tinha a intenção de ser um discurso inspirativo —na realidadp,
acreditava que seria, que tínhamos mesmo sorte de estar fazendo Fahrenheit,

12 Ainda estou proscrito de uma dessas redes por liberar suas gravações de Paul Wolfowitz, ex-vide-
-secretário de Defesa, lambendo seu pente de cabelo, e de George W. Bush fazendo caretas e palhja-
çadas poucos segundos antes de entrar ao vivo em rede nacional de TV para anunciar o bombardejio
e a invasão do Iraque.
26
ADORO PROBLEMAS

levando em conta tudo que tinha acontecido comigo. Assim, vamos simples­
mente fazer o filme que queremos fazer e não se preocupar a respeito das nossas
“carreiras”. Seja como for, as carreiras são superestimadas! E, assim, passamos os
onze meses seguintes reunindo nossa denúncia cinematográfica de um governo
e um país enlouquecidos.
Em 2004, o lançamento do filme - um pouco depois do primeiro ani­
versário do início da guerra - ocorreu num momento em que a maioria dos
americanos ainda apoiava a guerra. Ele foi apresentado pela primeira vez no
Festival de Cinema de Cannes, depois da Walt Disney Company ter feito todo o
possível para impedir o seu lançamento (a Miramax Films, nossa distribuidora,
pertencia à Disney). Procuramos o The New York Times com a história de como
a Disney estava tentando silenciar o filme, e o jornal, ainda ferido por causa da
revelação de que seus artigos a respeito da pré-invasão do Iraque eram falsos,
destacou todo o assunto sórdido na primeira página. Isso salvou a nós e ao filme,
e chegamos em Cannes, onde o filme recebeu a ovação entusiástica mais longa
da história do festival. Ganhamos o prêmio principal, a Palma de Ouro, de
um júri internacional presidido por Quentin Tarantino. Foi a primeira vez, em
quase cinqüenta anos, que um documentário ganhou o prêmio13.
A impressionante reação inicial ao Fahrenheit 9/11 amedrontou a Casa
Branca de Bush, convencendo aqueles no comando da sua campanha de ree­
leição que um filme podia ser o ponto de virada para liquidá-los. Eles contra­
taram um instituto de pesquisa para descobrir o efeito que o filme teria sobre os
eleitores. Após projetá-lo para três platéias diferentes, em três cidades distintas,
as notícias que Karl Rove14 recebeu não foram boas.
O filme não só estava dando um impulso muito necessário à base democrata
(que ficou empolgada com ele) como também, estranhamente, estava tendo um
efeito distinto sobre as eleitoras do Partido Republicano.
A pesquisa própria do estúdio já tinha confirmado que espantosos um terço
dos eleitores do Partido Republicano - após assistirem ao filme - afirmaram que

13 Tornou-se o documentário de maior faturamento da história do cinema e o ganhador da Palma de


Ouro com maior faturamento de todos os tempos (uma lista de vencedores que incluía filmes conr.o
Apocalypse Now e Pu/p Fiction).
14 Consultor e estrategista político, é considerado um dos principais responsáveis pelas vitórias
eleitorais de George W. Bush para governador do Texas e presidente dos Estados Unidos. (N. T.)
27
EPÍLOGO

recomendariam o filme para outras pessoas. O filme havia cruzado furtivamente


a linha partidária. No entanto, a pesquisa da Casa Branca revelou algo ainda
mais perigoso: 10% das eleitoras do Partido Republicano disseram que, após
assistir ao Fahrenheit 9/11, tinham decidido votar em John Kerry15 ou simples­
mente ficar em casa.
Em uma eleiçáo que poderia ser decidida por apenas poucos pontos percen­
tuais, era uma notícia devastadora. !
A campanha de Bush foi fortemente orientada a evitar o filme e se certificar
de que sua base nunca pensasse em assisti-lo. “Vocês devem impedi-los de entràr
no cinema. Os republicanos e os independentes não devem ver esse filme.” Pois,
se vissem, uma certa porcentagem deles, pequena, não seria capaz de superar
sua reação “emocional” à morte e destruição que o filme atribuiu a George W.
Bush. Embora a campanha soubesse que a maioria dos republicanos rejeitaria
o ponto de vista do filme não visto, nada poderia ser deixado nas mãos do des­
tino. Um pesquisador sentou-se no fundo dos cinemas e viu pessoalmente o que
denominou “os golpes fatais” que o filme dava, em especial quando chegava na
cena com a mãe de um soldado americano morto. Era muito devastador para
uma parte pequena, mas significativa, da platéia. “Se perdermos a eleição de
novembro”, ele me disse pouco depois do lançamento do filme, “esse filme seitá
um dos três principais motivos”.

Com Fahrenheit 9/11, eu cruzara o Rubicão rumo ao mainstream ameri­


cano. No entanto, agora que eu o tinha cruzado, não percebi que não haveria
retorno à vida de relativa tranqüilidade e quase anonimato. (Eu fora objeto de
um culto intenso, pequeno e respeitoso, que tornara minha vida agradável e
funcional até aquele momento.) Agora, ingressara num território perigoso, é,
embora isso significasse que eu nunca mais teria de me preocupar com minha
subsistência, também significava que minha família e eu pagaríamos um alto
preço por esse “sucesso”.

15 Senador e candidato do Partido Democrata à presidência, em 2004, derrotado por George V(/.
Bush. (N. T.)
28
ADORO PROBLEMAS

Agora, não era mais apenas um pequeno documentário que tínhamos feito - e
eu não era mais visto como alguém “impertinente”, que poderia ser ignorado como
uma praga incômoda. Agora, eu era capa do domínio da revista Time. Agora,
eu estava sentado no camarote presidencial, próximo ao ex-presidente Jimmy
Carter, na Convenção Nacional do Partido Democrata. Haveria um recorde de
quatro aparições, em seis meses, no programa The Tonight Show. O filme estrearia
em primeiro lugar em toda a América do Norte (a primeira vez em todos os
tempos para um documentário). Além disso, para piorar as coisas para a Casa
Branca, estreou em primeiro lugar em todos os cinqüenta estados, mesmo no
Sul Profundo. Mesmo em Wyoming. Sim, mesmo em Idaho. Estreou em pri­
meiro lugar nas cidades com forte presença militar, como na região de Fort
Bragg. Os soldados e suas famílias estavam indo assisti-lo e, por diversos relatos,
tornou-se o principal filme pirata entre as tropas no Iraque. Quebrei o recorde
de bilheteria mantido por longo tempo por O retomo deJedi, da série Guerra nas
estrelas, no maior fim de semana de estreia de todos os tempos para um filme,
em cerca de mil cinemas ou um pouco menos. Foi, na verbosidade da revista
Variety, um sucesso retumbante, um rolo compressor.
E, por causa de tudo isso, tornei-me um alvo. Não só um alvo da direita ou
da imprensa. Naquele momento, aquele filme estava afetando o mandato de um
presidente dos Estados Unidos e suas chances de reeleição.
Assim, o filme - e, em particular, seu diretor - tinha de ser retratado como
tão repulsivamente antiamericano que adquirir um ingresso para ele correspon­
deria a um ato de traição.
Os ataques contra mim eram como obras de ficção malucas, inventadas
com coisas que eu me recusava a responder, pois não queria dignificar o ruído.
Na TV, no rádio, nos editoriais, na internet - em todos os lugares -, sugeria-se
que Michael Moore odeia os Estados Unidos; ele é um mentiroso, um conspi­
rador, come croissants\ A campanha contra mim teve a intenção de impedir que
muitos republicanos assistissem ao filme.
E funcionou. Além disso, Kerry era um candidato fraco, o que também não
ajudou. Bush ganhou a eleição por um único estado: Ohio.
Houve um dano residual por causa de todo discurso de ódio direcionado
contra mim pelos gurus republicanos. Teve o efeito colateral triste e trágico de des-
conjuntar o já ligeiramente desconjuntado. Assim, minha mulher passou a receber
29
EPÍLOGO

desde pequenos bilhetes de ódio (pense neles como anticartas enviadas no Dia dos
Namorados) até tentativas muito rápidas de ataques físicos - e coisas piores.
Os ex-Seals mudaram-se conosco para uma nova casa. Quando eu cami­
nhava por uma calçada, eles tinham literalmente de formar um círculo em
torno de mim. À noite, eles usavam óculos de visão noturna e outros equipa­
mentos especiais, que tenho certeza que poucas pessoas fora de Langley (local
do quartel-general da CIA) viram alguma vez.
A empresa de segurança que me protegia tinha um setor de avaliação de
riscos. Sua tarefa era investigar qualquer pessoa que tivesse feito uma ameaça
crível contra mim. O homem encarregado começou a ler para mim uma lista de
nomes, as ameaças que tinham feito e o nível de ameaça representado por cada
um. Depois da leitura dos primeiros doze nomes, ele parou e perguntou: “p
senhor quer que eu continue? Há 429 outros nomes”. |
Mais 429? Quatrocentas e vinte e nove pessoas que queriam me fazer mal,
até me matar? As pastas com os nomes das pessoas continham detalhes minú-
ciosos sobre a vida delas e do que elas podiam ser capazes. Na realidade, não quis
mais ouvir. Minha irmã se surpreendeu com o número.
“Achei que seriam em torno de cinqüenta”, ela disse, como se “cinqüenta”
fosse um número factível, com que pudéssemos lidar.
Não podia mais sair em público sem a ocorrência de um incidente.
Começou com coisas pequenas, como pessoas em um restaurante pedindo paira
mudar para uma mesa diferente quando eu estava sentado perto delas ou um
motorista de táxi que parava seu carro no meio do trânsito para me xingar. Fre­
quentemente, existiam pessoas que começavam simplesmente a gritar comigõ,
independentemente do lugar: numa estrada, num teatro, num elevador. Fre­
quentemente, os observadores perguntavam para mim: “Isso acontece muito
com você?”, pois ficavam boquiabertos com a intensidade e aleatoriedade dos
ataques. Uma inimiga decidiu me atacar na missa de Natal. “Sério?”, disse pata
ela. “No Natal? Você não pode dar um tempo nem hoje?”
As ofensas verbais logo se converteram em ataques físicos, e, então, os Seals
entraram em alerta máximo. Por motivos de segurança, não vou entrar em
muitos detalhes aqui; por um lado, por recomendação da empresa de segurança,
e, por outro, para não dar a esses criminosos a atenção que estavam procurando.
Em Nashville, um homem com uma faca subiu no palco e começou a vir na
minha direção. O Seal o agarrou por trás, pelos passantes do cinto e pelo cola-
30
ADORO PROBLEMAS

rinho, e o arremessou para fora do palco, no piso de cimento abaixo. Alguém


teve de limpar o sangue depois que os seguranças o tiraram dali.
Em Portland, um rapaz entrou no palco ao ar livre e começou a se apro­
ximar de mim com um objeto grosseiro, que, aparentemente, usaria contra
minha cabeça. Meu assistente impediu seu avanço momentaneamente, e isso
deu aos Seals a oportunidade que precisavam para agarrá-lo e retirá-lo de cena.
Em Fort Lauderdale, um homem com um belo terno me viu na calçada e
enlouqueceu. Ele tirou a tampa do seu café quente, escaldante, e jogou o líquido
no meu rosto. O Seal viu isso acontecendo, mas não teve o meio segundo extra
necessário para agarrar o rapaz. Assim, ele colocou seu próprio rosto na frente
do meu e foi atingido. O café queimou feio seu rosto. Tivemos de levá-lo ao
hospital (ele teve queimaduras de segundo grau), mas não antes do Seal pôr o
rosto do homem de encontro ao piso, posicionando seu joelho nas costas dele
e o algemando.
Em Nova York, enquanto dava uma entrevista coletiva do lado de fora de
um dos cinemas que exibiam Fahrenheit, um transeunte me viu, ficou furioso e
puxou a única arma que tinha no seu bolso: um lápis com a ponta bem afiada.
Quando o homem deu o bote para me apunhalar, o Seal o viu e, na última fração
de segundo, sua mão se ergueu entre mim e o lápis que chegava. O lápis entrou
direto na mão do Seal. Você já viu um Seal ser apunhalado? A expressão dele é
aquela que temos quando descobrimos que o xampu acabou. Provavelmente,
naquele dia, o agressor do lápis se converteu para a sociedade informatizada,
depois do que o Seal fez com ele e seu instrumento de escrita do século XVI.
Em Denver, apareci numa exibição do meu filme. Um segurança desco­
briu um homem carregando uma arma e o retirou do local. Frequentemente,
encontravam-se armas com as pessoas —sempre legais, é claro, graças às novas
leis que permitiam que as pessoas portassem revólveres em eventos públicos.
Mais de uma vez, algum homem branco quis me esmurrar. Certa vez, foi
um grupo de skinheads. Outra vez, foi um corretor de imóveis. Todas as vezes,
os Seals percebiam e colocavam seus corpos entre o meu e o dos agressores. Na
maioria das vezes, não chamávamos a polícia, pois não queríamos tornar pública
a ocorrência, achando que só estimularia os imitadores.
E, então, houve Lee James Headley. Sentado sozinho em sua casa, em
Ohio, Lee tinha grandes planos. O mundo, de acordo com seu diário, era
31
EPlLOGO

um lugar dominado pelos liberais e que estava sendo arruinado por eles. Seus
comentários pareciam temas de discussão de qualquer edição do prograitia
Rush Limbaugh Show.16
E, então, Lee fez uma lista. Era uma lista pequena, mas, apesar disso, uma
lista das pessoas que tinham de morrer. Entre os nomes, incluíam-se a ex-proçu-
radora geral Janet Reno, o senador Tom Harkin, o senador Tom Daschle, Rosie
0 ’Donnell e Sarah Brady. Mas no topo da lista estava seu alvo número um:
“Michael Moore”. Ao lado do meu nome, ele escreveu: “MARCADO” (coiíio
em “Marcado para Morrer”, ele explicaria depois). j
Ao longo da primavera de 2004, Lee acumulou uma grande quantidade jde
fuzis de assalto e munição e diversos materiais para fabricação de bombas. Ele
comprou os livros The anarchist cookbook, com instruções para fabricação de
explosivos, e The tumer diaries, que faz apologia à guerra racial. Seus cadernos
continham projetos de lançadores de foguetes e bombas, e ele escrevia repetida­
mente: “Lutar, lutar, lutar, matar, matar, matar!”. Ele também tinha os desenhos
de diversos prédios do governo federal em Ohio.
No entanto, certa noite, em 2004, ele acidentalmente abriu fogo dentro
de casa com um dos seus fuzis AK-47. Um vizinho escutou os tiros e chamou
a polícia. Os policiais chegaram e encontraram um tesouro de armas, munição
e materiais para fabricação de bombas. E sua lista de alvos a serem eliminados.
Então, ele foi preso.
Alguns dias depois, recebi uma ligação da empresa de segurança.
“Precisamos lhe dizer que a polícia prendeu um homem que estava plame-
jando explodir sua casa. Agora, você não está mais em perigo.”
Não consegui falar. Tentei processar o que tinha acabado de ouvir: Agora,
você... não... está... mais... em perigo.
Para mim, foi a gota-d’água. Sucumbi. Simplesmente, não aguentava mais.
Minha mulher já estava em seu próprio estado de desespero com a perda da vida
que costumávamos ter. Voltei a me perguntar: O que tinha feito para merecer
isso? Um filme? Um filme leva alguém a querer explodir minha casa? O c ue
aconteceria se eu escrevesse uma “carta ao editor”?

16 Programa de rádio de grande audiência, apresentado por Rush Limbaugh, comentarista político
e formador de opinião de tendência conservadora. (N. T.)
32
ADORO PROBLEMAS

Aparentemente, meu crime foi apresentar questões e ideias para uma


audiência de massa (o tipo de coisa que se faz de vez em quando numa demo­
cracia). Não era o fato de que minhas ideias fossem perigosas, mas, sim, o fato
de que milhões de pessoas estavam ávidas para ser expostas a elas. E não só no
cinema. Fui convidado para conversar a respeito dessas ideias no programa The
View. No programa Martha Stewart. No Oprah — quatro vezes! Então, houve
Vanna White, girando as letras do meu nome em seu programa Wheel of Fortune
(Roleta da Sorte). Eu tive a permissão de difundir as ideias de Noam Chomsky,
Howard Zinn, I. F. Stone e dos irmãos Berrigan em todos os lugares. Isso deixou
a direita totalmente desorientada. Não tive a intenção de que isso acontecesse.
Mas aconteceu.
E, assim, o constante rufar dos tambores contra mim ficou mais ruidoso,
com os programas conservadores de TV e rádio me descrevendo como algo
que era sub-humano, uma “coisa” que odiava as forças armadas, a bandeira e
tudo relacionado aos Estados Unidos. Esses epítetos desprezíveis estavam sendo
dados mastigados para um público deficientemente educado, que florescia
numa dieta de ódio e ignorância e que não tinha a menor ideia do que a palavra
epíteto significava. Eis Bill 0 ’Reilly fazendo um comentário para o ex-prefeito
Rudolph Giuliani, ao vivo, em seu programa de TV no canal Fox News, em
fevereiro de 2004:
“Bem, eu quero matar Michael Moore. Tudo bem? Tudo bem. E não acre­
dito em pena de morte - é apenas uma piada sobre Moore”. Ha ha.
À medida que os meses passavam, até mesmo depois da reeleição de Bush, a
campanha para me impedir de me manifestar só se intensificou. Quando Glenn
Beck disse ao vivo, em seu programa de TV, que estava pensando em me matar,
ele não foi nem multado pela Federal Communications Commission (FCC)17,
nem foi preso pelo departamento de polícia de Nova York. Basicamente, ele
estava fazendo um convite para o meu assassinato, e, naquele momento, nin­
guém na mídia relatou isso. Nenhum responsável da FCC condenou isso. Não
havia nenhum problema de falar de mim dessa maneira nas transmissões de
rádio e TV.

17 Órgão regulador da área de telecomunicações e radiodifusão. (N. T.)


33
EPÍLOGO

E então um homem invadiu nossa propriedade e deixou algo fora da janela


do nosso quarto quando eu não estava em casa. Isso aterrorizou minha mulher.
Ele até gravou um vídeo de si mesmo fazendo isso. Quando a polícia inves­
tigou, ele disse que estava fazendo um “documentário”. Ele o intitulou Shooting
Michael Moore (Atirando em Michael Moore). E quando você visita o site dele,
e as palavras Shooting Michael Moore aparecem na tela, o som de um disparo de
arma acontece. A mídia adorou, e ele foi convidado a aparecer em diversos pro­
gramas de TV (como o do Sean Hannity). “A seguir: ele está fazendo Michael
Moore provar do seu próprio remédio! Agora, Moore tem alguém atrás dele!”
(Efeito sonoro: KA-BOOM!) Então, ele apresentou vídeo e mapas não só de
como chegar em nossa casa, mas também de como entrar ilegalmente na pro­
priedade. Ele não mencionou, porém, o que os ex-Seals fariam quando pegassem
o invasor.18

E agora um homem de Ohio tinha elaborado planos e reunido os materiais neces­


sários para fazer em nossa casa o que Timothy McVeigh19 fizera em Oklahoma.
“Ele vai ficar na prisão por muito tempo, Mike”, o chefe da segurança me
tranquilizou. “O motivo pelo qual ele e os outros sempre falham é por causa dos
sistemas que temos.”
“E por que ele tinha um vizinho abelhudo que chamou a polícia”, acrescentei.
“Sim, isso também.” j
Não compartilharei com você o impacto que isso teve, naquele momento,
na minha vida pessoal, mas basta dizer que eu não desejaria isso para ninguém.
i
18 Os interesses empresariais começaram a gastar muito dinheiro para me deter. Quando divulgulei
que meu próximo filme seria a respeito do sistema de saúde dos Estados Unidos, um consórcio cie
empresas de seguro de saúde e laboratórios farmacêuticos constituiu um grupo para processar e
interromper o filme, principalmente por meio do gasto de centenas de milhares de dólares numa
campanha de desinformação, destinada a desacreditar a mim e ao filme. E se o plano não funcio­
nasse, então fariam o que tivessem de fazer para "me empurrar do penhasco". Wendell Potter, vice-
-presidente da Cigna, empresa de seguros, denunciou isso ao jornalista Bill Moyers e em seu próprio
livro, Deadly Spin. j
19 Fanático de extrema direita, detonou um caminhão-bomba em Oklahoma, em 1995, na frente de
um edifício do governo federal, matando 168 pessoas. Foi condenado à morte e executado em 1)1
de junho de 2001. (N. T.) j
34
ADORO PROBLEMAS

Mais de uma vez perguntei a mim mesmo se todo esse trabalho realmente valia
a pena. E, se eu tivesse de fazer tudo de novo, eufaria? E se, na noite do Oscar,
eu não tivesse feito aquele discurso e só tivesse agradecido ao meu agente e ao
estilista do smoking e saído do palco sem dizer mais nada? Se isso significasse que
minha família não teria de se preocupar a respeito de sua segurança e que eu não
estaria vivendo em constante perigo - bem, eu lhe pergunto: o que você faria?
Você sabe o que você faria.

Nos dois anos e meio seguintes, não saí muito de casa. De janeiro de 2005 a
maio de 2007, não apareci em nenhum programa de TV. Parei de participar das
turnês universitárias. Simplesmente, sumi do mapa. Escrevi o blog ocasional no
meu site, e não passou muito disso. Em 2004, falei em mais de cinqüenta uni­
versidades. Nos dois anos seguintes, falei somente em um campus. Fiquei perto
de casa e trabalhei em alguns projetos municipais, em Michigan, onde vivia,
como a reforma e reabertura de um antigo cinema, a criação de um festival de
cinema e a tentativa de dormir à noite.

E, então, para meu resgate, apareceu montado o presidente Bush. Ele disse
algo que ajudou a me tirar dessa situação. Eu tinha o escutado dizer isso antes,
mas, dessa vez, quando o escutei, senti que ele estava falando diretamente para
mim. Ele disse: “Se nós cedermos aos terroristas, os terroristas vencerão”. E ele
tinha razão. Os terroristas dele estavam vencendo! Contra mim! O que eu estava
fazendo sentado dentro de casa? Dane-se!Abri as persianas, deixei de lado o baixo-
-astral e voltei ao trabalho. Fiz três filmes em três anos, batalhei para Barack
Obama ser eleito e ajudei a cassar o mandato de dois parlamentares republi­
canos de Michigan. Criei um site muito apreciado e fui eleito para o conselho
da mesma Academia que me vaiou no palco.
E então Kurt Vonnegut me convidou para jantar uma noite em sua casa.
Seria um dos quatro jantares que teria com ele e sua mulher, no último ano da
vida dele. As conversas foram intensas, divertidas e instigantes - e me ressusci­
35
EPÍLOGO

taram; literalmente me deram um sopro de vida e me trouxeram de volta a um


lugar no mundo.
Ele me revelou que estivera observando, por algum tempo, “a crucifixação”
(como ele denominou) que eu estava vivenciando - e que havia algumas coisas
que queria dizer para mim.
“Os extremos aos quais o pessoal de Bush chegou para agarrar você, eles
associam diretamente a quão eficaz você foi”, ele me disse, certa noite, depois
do seu terceiro cigarro após o jantar. “Você fez mais para detê-los do que você
imagina. Pode ser muito tarde para todos nós, mas tenho de lhe dizer que você
me deu um pouco de esperança em relação a este triste país.”
Certa noite, fui para sua casa, e ele estava sentado na varanda, esperando
por mim. Ele me disse que tinha parado de buscar o “sentido da vida”, pois seu
filho, Mark, tinha finalmente descoberto isso para ele: “Estamos aqui para nos
ajudarmos uns aos outros nessa coisa, o que quer que ela seja”. Era assim simples
para ele. Nos seus últimos anos de vida, Vonnegut passou a escrever obras de
não ficção.
“Foi meu maior desafio”, ele me revelou, “pois a realidade atual parece
muito irreal; é difícil fazer a não ficção parecer verossímil. Mas você é capaz de
fazer isso”.
Saímos para encontrar a mulher dele e alguns amigos para jantar. Perguntei-
-lhe se alguma destas coisas —a literatura, os filmes, a política —valia a pena. j
“Não, não realmente”, ele respondeu, no típico estilo Vonnegut. “Assim,|é
preferível que você pare de se queixar e volte ao trabalho. Você não tem com b
que se preocupar. Nada de mal vai lhe acontecer.” E então, percebendo que eu
podia não estar engolindo a história, ele acrescentou, com entusiasmo e a voz de
Deus: “ASSIM EU FALEI!”. Eu estava ali, na rua 48 Leste, olhando para esse
filho doido de Mark Twain, e comecei a gargalhar. Era tudo que eu realmente
precisava ouvir. Se não a voz de Deus, então, no mínimo, um apelo gentil dle
Billy Pilgrim.20 E assim vai.21 j

20 Personaqem principal do livro mais conhecido de Vonnegut: Slaughterhouse-Five (Matadouro


Cinco). (N. T.) j
21 So it goes, em inglês. As três palavras mais famosas do livro Matadouro Cinco. (N. T.)
36
ADORO PROBLEMAS

Naquela noite, ele me deu um dos seus desenhos com a dedicatória: “Que­
rido Iraque: goste de nós. Depois de 100 anos, deixe seus escravos partir. Depois
de 150, deixe suas mulheres votar. Com amor, Tio Sam”. Ele assinou: “Para
Michael Moore, meu herói - KV”.
Eu voltei vivo. Escolhi não desistir. Quis desistir, muito. Em vez disso, fui
exercitar meu físico. Se você tentar me esmurrar agora, posso lhe assegurar que
três coisas vão acontecer: (1) você quebrará sua mão. Essa é a beleza de dedicar
apenas meia hora do dia à sua estrutura musculoesquelética - ela se transforma
em kryptonita; (2) eu o atacarei. Ainda estou trabalhando nas minhas ques­
tões de equilíbrio e de centro de força do corpo; assim, depois de você me dar
um soco, vou tombá-lo e esmagá-lo. Não será de propósito, e, enquanto você
estiver tentando respirar, saiba que estarei fazendo o melhor possível para sair de
cima de você; (3) meus Seals vão usar gás lacrimogêneo ou seu próprio prepa­
rado feito em casa de pimenta jalapeno diretamente nas suas cavidades oculares
enquanto você estiver no chão. Soube que é extremamente doloroso. Como
pacifista, aceite minhas desculpas antecipadamente - e jamais use de violência
contra mim ou qualquer outra pessoa de novo. (ALERTA DE SERMÃO.)
Só os covardes recorrem à violência. Eles receiam que suas ideias não triun­
farão na arena pública. Eles são fracos e se preocupam com o fato de que as
pessoas enxergarão sua fraqueza. Eles são ameaçados por mulheres, gays e mino­
rias - minorias, pelo amor de Deus! Você sabe por que são chamadas de “mino­
rias”? Porque elas não têm o poder - VOCÊ tem! Eis por que você é chamado
de “maioria”! E, no entanto, você tem medo. Medo de fetos não vingarem ou de
homens beijando homens (ou pior!), medo de alguém tirar sua arma; uma arma
que você tem, para início de conversa, porque você... tem medo! Por favor, por
favor, pela segurança de todos nós: RELAXE! Nós gostamos de você! Caramba,
você é americano!
Certa noite, em Aventura, na Flórida, eu e meu novo corpo sarado, junto
com um amigo, fomos até um shopping na William Lehman Causeway para
ver um filme. Um rapaz com trinta e poucos anos passou por mim e disse:
“Bunda-mole”.
Ele continuou andando. Eu parei e me virei na direção dele.
“Ei! Você! Volte aqui!”
O cara continuou andando.
37
EPÍLOGO

“Ei, não fuja de mim!” Gritei mais alto. “Não seja uma galinha. Volte aqui
e me enfrente!”
“Galinha” não é um prato muito apreciado pelo gênero com testosterona
como fluido. Ele parou de forma brusca, virou-se e caminhou na minha direção.
Quando ele ficou a um metro e meio de mim, eu disse o seguinte, num tom suave:
“Ei, cara, por que você disse uma coisa dessas para mim?”
Ele lançou um olhar de desprezo e se preparou para uma briga. “Porque éu
sei quem você é, e você é um bunda-mole.”
“Aí está você de novo usando essa palavra. Você não tem a menor ideia de
quem eu sou. Você nem mesmo viu um dos meus filmes.”
“Não preciso!”, ele respondeu, confirmando o que sempre desconfio. “Já sei
que você coloca neles um monte de coisas antiamericanas.”
“OK, cara, mas isso não é justo. Você não pode me julgar com base no que
alguma outra pessoa lhe disse a meu respeito. Você parece bem mais inteligente
do que isso. Você parece um cara que tem opiniões próprias. Por favor, assista a
um dos meus filmes. Juro por Deus, você pode não concordar com todas as ideias
políticas, mas posso lhe garantir que (a) você perceberá instantaneamente que
amo profundamente este país, (b) você verá que tenho compaixão e (c) promeito
que você vai rir várias vezes durante o filme. E se você ainda quiser me chamar de
bunda-mole depois disso, tudo bem. Mas não acho que isso vai acontecer.”
Ele se acalmou, e conversamos por, no mínimo, mais cinco minutos. Escutei
suas queixas a respeito do mundo, e lhe disse que, provavelmente, tínhamos
mais com o que concordar do que discordar. Ele relaxou ainda mais e, no fim,
ganhei um sorriso dele. Finalmente, eu disse que tinha de ir; caso contrário,
perderíamos nosso filme.
“Ei, cara”, ele disse, estendendo sua mão para apertar a minha, “desculpe
por ter chamado você daquilo. Você tem razão. Realmente, não sei nada a seu
respeito. Mas o fato de você ter parado e conversado comigo depois de eu ter
chamado você daquilo —bem, isso me faz pensar - realmente, não conheço
você. Por favor, aceite minha desculpa”. j
Eu aceitei, e apertamos as mãos. Não haveria mais nenhum desrespeito ou i
ameaça contra mim - e foi essa atitude que me deixou seguro, ou tão seguro
quanto alguém pode se sentir nesse mundo. De agora em diante, se você mexer
comigo, haverá conseqüências: eu posso fazer você assistir a um dos meus filmes.
38
ADORO PROBLEMAS

Algumas semanas depois, voltei ao The Tonight Show pela primeira vez depois de
um tempo. Quando terminei minha apresentação e estava deixando o palco, o
rapaz que estava operando o microfone com arco me abordou.
“Você provavelmente não se lembra de mim”, ele disse, agitado. “Nunca
achei que veria você de novo ou que teria a oportunidade de conversar com
você. Não posso acreditar que tenho de fazer isso.”
Fazer o quê?, pensei. Preparei-me para a mão prestes a ser quebrada do
homem.
“Nunca achei que teria de pedir desculpas para você”, ele afirmou, enquanto
algumas lágrimas começaram a rolar. “E agora, você está aqui, e eu tenho de
dizer isso: sou o cara que estragou sua noite do Oscar. Sou o cara que gritou
IMBECIL no seu ouvido direito depois que você saiu do palco. Eu... Eu... (ele
tentou se recompor). Achei que você estava atacando o presidente, mas você
tinha razão. Ele mentiu para nós. E eu tive de carregar isso comigo todos esses
anos, o que eu fiz para você na sua grande noite. Eu sinto muito...”
Na mesma hora, ele começou a perder o autocontrole emocional, e tudo
que consegui pensar em fazer foi estender a mão e lhe dar um forte abraço.
“Tudo bem, cara”, disse, com um grande sorriso. “Eu aceito seu pedido de
desculpa. Mas você não precisa pedir desculpas para mim. Você não fez nada de
errado. O que você fez? Você acreditou no seu presidente! Você deve acreditar
no seu presidente! Se não podemos esperar isso como o mínimo de quem estiver
no poder, então, merda, estamos ferrados.”
“Obrigado”, ele disse, aliviado. “Obrigado pela compreensão.”
“Compreensão?”, afirmei. “Não se trata de compreensão. Contei essa his­
tória curiosa durante anos, sobre as duas primeiras palavras que você escuta
quando é ganhador do Oscar - e como tive de escutar uma palavra extra! Cara,
não tire essa história de mim! As pessoas adoram ela!” Ele riu, e eu ri.
“Sim, é verdade, não há muitas boas histórias como essa”, ele afirmou.
ENGATINHANDO PARA TRÁS

O primogênito da minha família nunca nasceu.


E, então, eu apareci. !
Houve outro bebê a caminho, um ano antes de mim, mas, certo dia, minha
mãe sentiu uma dor intensa e, em minutos, Mike, o Primeiro, pensou duas
vezes a respeito da sua estreia prematura na Terra e berrou: “A conta, por favor!”. .
E saiu do átero antes de a platéia decidir com seus aplausos quem era o vencedor
do concurso.
Essa gênese inesperada e infeliz entristeceu muito minha mãe. Assim, paira
consolá-la, minha avó a levou numa peregrinação ao Canadá, para implorar por
misericórdia à Santa Ana, santa padroeira das mulheres que dão à luz, a mãe 4a
própria Virgem Maria. Santa Ana também era a santa padroeira de Quebec, e
um santuário foi construído em sua homenagem na Basílica de Santa Ana de
Beaupré, na província de Quebec. Esse lugar sagrado continha alguns dos ossos
reais da santa, além de outros itens sagrados encaixados nos degraus sagrados,
na base do santuário. Dizem que se você subir esses degraus de joelhos a mãe ck
Virgem Maria ajudará você a fazer o que as virgens não fazem, ou seja, conceber.
E, assim, minha mãe ascendeu cada um dos 28 degraus de joelhos - e, em
semanas, tão certo como Deus é tanto minha testemunha quanto especialista
em fertilidade, fui concebido numa noite quente de julho, primeiro como uma
ideia e depois... bem, o resto deixarei para sua imaginação. Basta dizer que,
em nove meses, o óvulo fertilizado virou um feto, e que, no final das contas,
tornou-se um bebê do sexo masculino, com quatro quilos, que nasceu com o
corpo de um jogador de futebol americano e a cabeça de Thor.
40
ADORO PROBLEMAS

Eles deixaram minha mãe inconsciente e, assim, ela não teve de vivenciar cons­
cientemente o milagre da vida. Eu não tive tanta sorte. Eles cutucaram, espetaram,
pressionaram e, em vez de me dar um tempo para eu ir de um lado para outro,
agarraram-me à força e me puxaram para um mundo de luzes ofuscantes e de
estranhos usando máscaras, obviamente para esconder suas identidades de mim.
E antes de eu poder sentir o amor do recinto, eles me deram um tapa forte
no traseiro, ao estilo da velha escola dos anos 1950. Uau! “UAAAAAAAHHH-
HHHHHH!” Aquilo doeu mesmo. E, em seguida, cortaram meu órgão mais
importante: o maldito tubo de alimentação com minha mãe! Simplesmente me
desligaram dela! Pude ver que esse não era um mundo que acreditava em con­
sentimento prévio ou na minha necessidade de um suprimento contínuo, 24
horas por dia, 7 dias por semana, de alimentação básica.
Depois de me separarem permanentemente da única pessoa que sempre
me amou (uma mulher boa e decente, que estava narcotizada, depois fazia
caretas e ainda estava fria meia hora depois), havia chegado a hora do programa
de humor. A enfermeira brincou, dizendo que achava que eu era “maior que
gêmeos”. Risadas! O obstetra observou que, no mínimo, dois quilos e meio
dos quase quatro estavam na minha cabeça. Gargalhadas sonoras! Sim, aquele
pessoal estava se divertindo!
Admitirei que tenho uma cabeça extraordinariamente grande, ainda que
não fosse incomum para um bebê nascido no Meio-Oeste. Os crânios da nossa
região do país foram projetados para deixar um pequeno espaço adicional para
o cérebro crescer, pois sempre temos a possibilidade de aprender algo fora das
nossas vidas rigídas e insulares. Talvez um dia tenhamos de nos expor a algo
que não entendemos totalmente, como uma língua estrangeira ou uma salada.
Nossa área cranial extra nos protegeria desses contratempos.
No entanto, minha cabeça era diferente das dos outros bebês cabeçudos de
Michigan; não por causa do seu tamanho e peso reais, mas porque não se parecia
com a cabeça (ou rosto) de um bebê! Parecia como se alguém tivesse feito uma
montagem com Photoshop da cabeça de um adulto no corpo de um bebê.
Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da
sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas
que ser “moderna” significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar
era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!
41
ENGATINHANDO PARA TRÁS

Naturalmente, modernas era a palavra errada. Tente más. Convenceram


nossas mães que se um alimento vinha numa garrafa —ou numa lata, caixa òu
saco de celofane -, então ele era de alguma forma melhor para você do que
quando vinha grátis via mãe natureza. Ali estávamos nós, milhões de nós, em
fraldas e mantas e, em vez de ser postos nos seios das nossas mães, mamadeií*as
eram encaixadas nas nossas bocas, onde devíamos sentir algum tipo de prazer de
um mamilo falso de borracha, cuja cor lembrava a de fezes líquidas. Quem eram
essas pessoas? Era, de fato, assim tão fácil enganar nossos pais? Se eles podiám
ser enganados de modo tão fácil a esse respeito, o que mais eles podiam ser
convencidos a testar? Creme de milho em lata? Grama artificial? Um Corvair?22
Toda uma geração nossa foi apresentada, em nossa primeira semana, ao
conceito de que o falso era melhor do que o real, que algo fabricado era mellior
do que algo que estava bem ali, no quarto. (Mais tarde, na vida, isso explicoii a
popularidade de um burrito no café da manhã, dos neoconservadores, das Kjar-
dashians23 e de por que achamos que ler este livro numa tela minúscula, com
uma bateria com duração de três minutos, é agradável.)
Passei toda uma semana na maternidade do St. Joseph Hospital, em Flint,
em Michigan, e quero contar algo para vocês: a partir de algumas conversas que
tive com os outros recém-nascidos, ninguém estava gostando do mamilo falso de
borracha; e isso nos transformou num grupo cínico e infeliz, com a maioria de
nós ansiando pelo dia em que poderíamos conflitar aquela geração, com nossos
cabelos longos, quantidades estapafúrdias de sexo antes do casamento e Mal- !
colm X.24 A mamadeira criou Woodstock, bandeiras em chamas e o PETA.25
Vocês podem me citar.

22 Automóvel produzido pela divisão Chevrolet da GM, entre 1960 e 1969. Foi o único carro ameri­
cano de produção em série com motor traseiro. (N. T.) j
23 Três irmãs que "batem ponto" em tabloides e revistas de celebridades dos Estados Unidos, (jsl. T.)
24 Foi um dos maiores defensores dos direitos dos negros nos Estados Unidos. No entanto, foi| acu­
sado de difundir o racismo, a supremacia negra, o antissemitismo e a violência. Morreu assassinado
em 1965. (N. T.) j
25 People for the Ethical Treatment of Animais (Pessoas em Prol do Tratamento Ético aos Animais,
em português). Fundada em 1980, é uma ONG dedicada à defesa dos direitos dos animais. (NiT)
42
ADORO PROBLEMAS

No dia da minha liberação da maternidade, fui levado para fora pela primeira
vez, e o sol bateu no meu rosto e foi bom. Estava um dia ligeiramente quente
para Michigan, em abril, mas eu não pareci me importar, todo envolvido em
uma manta azul-clara nova e aconchegante, satisfeito de estar nos braços da
minha mãe. Ela e meu pai se sentaram no assento dianteiro do sedã Chevy Bel
Air 1954 de duas cores. Meu pai deu a partida no motor. Minha mãe disse que
estava sentindo “muito calor”. Eu estava bem.
Ela pediu para que ele abrisse as saídas de ar para resfriar o carro. E quando
meu pai obedeceu, toda substância viscosa e repelente que tinha se acumulado
no inverno foi expelida pelas saídas de ar, e uma substância escura e fuliginosa se
espalhou toda sobre mim e minha manta azul-clara. Meu rostinho ficou tingido
de preto, e eu comecei a tossir, ofegar e chorar. Me leve de volta para o hospital!
Minha mãe soltou um gemido de horror, e meu pai rapidamente desligou o
ventilador e começou a ajudar na minha limpeza.
Em vinte minutos, estávamos em minha primeira casa, um apartamento
muito pequeno, de dois quartos, sobre a Kellys Cleaners, uma lavanderia no
centro de Davison, em Michigan. Davison erá uma cidadezinha a nove qui­
lômetros de Flint. A família da minha mãe tinha morado ali, na região de
Davison, desde que Andrew Jackson fora presidente, ou seja, desde muito antes
que qualquer pessoa, exceto os índios. A sua família foi uma das primeiras que
fundou a paróquia católica local. Meu pai, que descendia de uma família irlan­
desa do lado leste de Flint, gostava da natureza tranqüila e simples de Davison,
muito diferente da existência difícil que ele estava acostumado na cidade. Sua
única experiência prévia em Davison foi quando seu time de basquete da St.
Marys High School, de Flint, veio jogar contra o Cardinais, da Davison High
School, e o público começou a zombar dos jogadores com epítetos anticatólicos
(“Ei, comedores de peixe!” era o principal insulto lançado pelos torcedores do
time de Davison). Isso bastou para o padre Soest, sacerdote da St. Marys. Ele se
levantou, declarou o jogo encerrado, tirou seu time do ginásio de esportes e o
levou de volta a Flint. Exceto por isso, meu pai gostava de Davison.
O prédio que abrigava nosso apartamento pertencia ao pai da minha mãe,
meu avô, Doc Wall, que, por meio século, ficou conhecido como o “doutor da
cidade” de Davison. Doc Wall e sua mulher, Bess, viviam numa casa branca de
dois andares, onde minha mãe tinha nascido, apenas a duas portas de distância
43
ENGATINHANDO PARA TRÁS

de nós. Todos os dias, o bom doutor subia vinte e quatro degraus até nosso
apartamento para ver o que seu neto estava fazendo. Acho que ele também ficou
fascinado com o novo aparelho instalado na nossa sala de estar: um televisor
Philco de 21 polegadas, e ele passava uma ou duas horas assistindo à progra­
mação. Minha avó comentou que eu já estava saindo a ele, e meu avô gostou
disso. Ele até tinha seu próprio nome para mim —“Malcolm” —e compunha
músicas e as cantava para mim (“Ele é um amiguinho bacana, um mocinho legal\
e nós arrumamos seu carrinho de bebê com uma linda alm ofadinhaEle morreu
antes do meu terceiro aniversário, e tenho somente duas lembranças vividas e
maravilhosas dele: ele fazendo uma tenda com cobertores na sua sala de estar, e
a música animada que ele tocou para mim em seu violino irlandês enquanto eu
ficava empoleirado precariamente sobre seu joelho saltitante. i
Soube que minhas primeiras horas na minha nova casa foram tranqüilas.
No entanto, à medida que a noite avançou, eu também avancei e, assim, tive um
ataque de choro contínuo, que, apesar das melhores intenções da minha máe
de me confortar, não cessou. Após uma hora disso, aproximadamente, ela ficou
preocupada que algo podia estar errado, e telefonou para seus pais em buscá de
auxílio. A avó Bess logo apareceu e, depois de examinar o bebe chorão com seu
cabeção, perguntou: “Quando foi a última vez que você deu comida para ele?”.
“Na maternidade”, minha mãe respondeu.
“O quê? Isso faz muito tempo! Esse bebê estáfamintoV
Obrigado, vó Bess, por dizer as palavras que ainda não possuía no meu
vocabulário.
Minha mãe achou a bolsa que deram para ela no hospital e olhou dentro
em busca da mamadeira, mas não havia nenhuma a ser encontrada. Nenhuma
mamadeira, nenhum leite em pó. Mas, espere um minuto... não há um peito na
sala? Ora essa!
Minha mãe deve ter me escutado e, assim, ele tentou, seguindo as instru­
ções da sua própria mãe, me amamentar. Mas ou o “encanamento” não escava
funcionando, ou eu já estava viciado na substância hum-hum líquida gorduijosa
semelhante a leite condensado. O choro continuou, e Bess instruiu sua fillja a
acordar meu pai (que já estava dormindo; o primeiro turno na fábrica come­
çava às seis da manhã) e mandá-lo até Flint para comprar leite em pó na única
farmácia 24 horas. !
!
44
ADORO PROBLEMAS

Quanto a mim, convenci-me que aquelas pessoas estavam tentando me matar


defomel E eu não sabia por quê! O choro continuou. Obedientemente, meu pai
vestiu suas roupas e pegou a estrada para Flint para comprar leite em pó e uma
mamadeira. Ele voltou uma hora depois, e eles rapidamente prepararam e me
deram. Agarrei a mamadeira com minhas últimas forças. E bebi tudo de uma
vez só.
Assim, aprendi minha primeira lição de vida: beba num gole só, amigo;
nunca se sabe quando você vai comer de novo!

Por algum motivo, nunca encontrei um caminho que pudesse ser chamado de
“normal”, e foi uma boa coisa que a ciência e o comércio ainda não tivessem
tramado a invenção de maneiras de entorpecer e anular os sentimentos de uma
pequena alma como a minha. É uma das poucas vezes que dou graças a Deus de
ter crescido nas ignorantes e inocentes décadas de 1950 e 1960. Ainda levaria
alguns anos para a comunidade farmacêutica descobrir como dopar um recém-
-nascido como eu, e professores e pais mandarem crianças para a “solitária”.
Frequentemente, imaginei o que os pediatras de hoje teriam feito comigo se
tivessem testemunhado meu comportamento bizarro.
Por exemplo, o modo como eu me movia nos meus primeiros anos. Enga­
tinhar e, em seguida, andar como a maioria dos bebês fazia não era suficiente­
mente bom para mim. Para começar, eu me recusava a engatinhar. Não engati­
nhava para ninguém. Meus pais me colocavam no chão e eu entrava em greve.
Ficava imóvel. “Não vou a lugar nenhum. Vocês podem ficar aí e me olhar o
tempo que quiserem, mas não vou me mexer!”
Depois de algum tempo, senti a decepção deles. Assim, em torno do nono
mês de vida, decidi engatinhar... para trás. Era só me colocar no chão e eu dava
marcha a ré. Nunca para frente, só para trás. Enfim, assim que alcançava o chão,
disparava na direção contrária. Mas nunca colidia com nada. Era estranho,
como se eu tivesse olhos na parte posterior da fralda. De alguma forma, meu
corpinho ficava engatado na marcha a ré, e se você quisesse que eu fosse na sua
direção, teria de me posicionar na direção oposta. Assim, eu conseguia impelir
para trás minha parte posterior na sua direção.
45
ENGATINHANDO PARA TRÁS

Isso se tornou uma fonte de diversão para os adultos —muita diversão, acho,
pois as pessoas paravam só para ver o bebê que engatinhava para trás. Assim,
decidi mudar. Comecei lenta e metodicamente a engatinhar para a frente, tíão
tão bobamente para a frente como a maioria dos bebês. Mas, sim, um para a
frente muito determinado, atento, uma mão na frente da outra - e não sem
antes sentir a textura do piso (um pouco aqui, agora um pouco ali) e, então,
escolher o ponto certo, que era aceitável para meu senso estético e meu gostol E,
em seguida, engatinhava. Se sentisse vontade.
Andar parecia algo que se valorizava em demasia. À medida que observava
as outras crianças pequenas da vizinhança se erguerem e se apoiarem nos móveis
e nas pernas das calças a fim de se firmarem antes de desabarem centenasj de
vezes, preferi adiar essa fase da minha vida. 1
Realmente, tornou-se o impasse da vida doméstica. Já havia outro bebê a
caminho e, mesmo depois que Anne, minha irmã, nasceu e estava pronta pjara
engatinhar, eu ainda não tinha andado. Por quê? Por que eu precisava despender
uma energia inútil? Já era capaz de ver o que envolvia a maior parte da vida: úm
terço dela era deitar numa cama, para dormir. Outro terço dela era ficar parado
num lugar durante o dia inteiro, numa linha de montagem ou sentado numa
escrivaninha. E o terço final do dia era gasto sentado ou numa mesa de jantar
ou num sofá assistindo à TV. E por que um bebê precisava andar, já que exis­
tiam carrinhos de criança, patinetes, andadeiras, andadeiras de saltar, triciclos e
pais para carregá-lo? Me dá um tempo! Além disso, na realidade, eu não tinha
nenhum lugar para ir, nem algum lugar para estar. j
Com essa atitude, não conseguia nenhum elogio dos meus pais. Um garoto
de um ano e meio precisa de amor e adoração, e essas coisas pareciam estar
murchando rapidamente. Assim, certo dia, no meu décimo sétimo mês, achei
melhor me levantar e lhes mostrar do que eu era feito. Dei um salto como
um ginasta da Alemanha Oriental, andei direto como uma flecha na direção
do ventilador e tentei enfiar minha língua nele. Meus pais ficaram eufóricos e
chocados.
“Vocês querem que eu ande? É desse jeito!”
46
ADORO PROBLEMAS

Minha mãe sabia que eu era diferente. Assim, deciciu dividir um segredo comigo
quando fiz quatro anos. Ela me ensinou a ler. Esse tantinho de autonomia só
devia acontecer alguns anos depois, e por um bom motivo: se você fosse capaz
de ler, saberia de coisas que não deveria saber. E saber o que não se devia saber
na década de 1950 era uma receita para se meter em apuros.
Ela começou com o jornal diário. Não um livro infantil (havia muitos na
casa), mas o Flint Journal Ela primeiro me ensinou a ler a previsão do tempo.
Era uma informação útil, e gostei de saber algo que as outras crianças não
sabiam, por exemplo, se iria chover ou nevar amanhã. Eu também era fissurado
em contagem de pólen. Orgulhosamente, contava para quem quer que visse
na rua qual era a contagem de pólen do dia.26 Acho que Davison tornou-se a
localidade mais proficiente em pólen do condado graças a mim. Até hoje, você
vai para Davison, em Michigan, e pergunta para qualquer pessoa “Ei, qual é a
contagem de pólen?”, e ela, com muita alegria, lhe dará a informação, sem hesi­
tação ou prevenção. Eu comecei isso.
Após a previsão do tempo e a contagem de pólen, ela me ensinou a ler
as manchetes da primeira página, e depois disso, o horóscopo e os resultados
esportivos. Minha mãe não me ensinou o abecedário. Ela me ensinou palavras.
Palavras associadas a outras palavras. Palavras que tinham sentido para mim, e
palavras que tinham me desconcertado, mas também tinha me deixado ávido
de aprender o que significavam. Cada palavra na página tornou-se um quebra-
-cabeça para resolver; era divertidol
Em pouco tempo, estávamos indo à biblioteca uma vez por semana, e eu
sempre retirava o limite máximo: dez livros. Frequentemente, tentava enfiar
um décimo primeiro na pilha. Tinha a boa sorte de que as gentis bibliotecárias
eram ou deficientes em matemática ou, mais provavelmente, viam o que eu
estava fazendo, e a última coisa que queriam era desestimular uma criança que
queria ler.
Agora aqui está onde o abuso infantil chegou: meus pais me mandaram
para a escolal Num piscar de olhos, fiquei tremendamente entediado; mas
tive o cuidado de não deixar os outros alunos saberem que já era capaz de ler,

26 Em alguns locais, os jornais publicam a contagem de pólen no ar, o que ajuda os alérgicos a se
protegerem. (N. T.)
47
ENGATINHANDO PARA TRÁS

escrever e fazer contas. Teria sido calamitoso, especialmente com os garotos


que teriam constantemente me batido; por segurança, tentei sentar perto
de garotas inteligentes, como Ellen Carr e Kathy Collins. Se os professores
desconfiassem de alguma coisa, teriam promovido uma Inquisição para des­
cobrir quem estava me ensinando tudo isso FORA DE SERVIÇO.
Assim, eu fingia, e adquiri uma habilidade adicional: representar. Enquanto
as outras crianças cantavam “A-B-C-D-E-F-G”, eu “conflitava” durante o tempo
todo com elas, lendo secretamente um livro do Dr. Seuss27 sob o tampo da
minha carteira. Ah, os lugares que iria, contanto que a irmã Maria não soubesse!
“Onde você conseguiu esse livro?”, a freira cordial me perguntou no dia que
ela me pegou.
“Um menino do terceiro ano me deixou ver as figuras”, disse, com um
expressão tão honesta que Beaver Claver28 sentiria orgulho. I
No entanto, as freiras perceberam e, em vez de me condenarem pelo feto
de ser capaz de ler, fizeram a única coisa razoável e educativa que podiam fazer.
“Michael”, a irmã John Catherine me disse um dia antes do sinal da manjhã
tocar, “decidimos que você já sabe o que estamos ensinando no primeiro ano.
Assim, a partir de amanhã, estamos passando você para o segundo ano”. ,
Êsbugalhei os olhos com a vitória.
“Agora, você sabe, no segundo ano, você não será o garoto mais inteligente
da classe, como você é aqui. Você acha que tudo bem?”
“Isso significa que não terei mais de cantar o ABC5?”
“Correto. Não haverá mais ABC’. Na realidade, em substituição, você terá
de aprender caligrafia cursiva. Tudo bem?”
“Sim, irmã, obrigado!” Era como o carcereiro dizendo ao prisioneiro que
ele estava sendo transferido da solitária para, sei lá, a Disneylândia. Não podia
esperar para chegar em casa e contar a boa notícia aos meus pais.
“Fizeram o quê?\ minha mãe gritou, serenamente, não acreditando no que
eu acabara de dizer para ela.

27 Theodor Seuss Geisel (1904-1991), escritor e humorista americano, conhecido por diversas obras
de literatura infantil. (N. T.) ;
28 Personagem principal de Leave it to Beaver, uma série de TV, que estreou em 1957. Beaver era um
garoto de sete anos, que vivia quase sempre metido em confusões. (N. T.) í
48
ADORO PROBLEMAS

“Me colocaram no segundo ano! Passei o dia inteiro na classe do segundo


ano! Foi bárbaro!”
“Bem, você vai voltar para o primeiro ano!”
“O quê? Não! Por quê?”
“Porque quero que você fique com as crianças da sua idade.”
“Mas elas são só um ano mais velhas!”
“E um ano maiores e um ano na sua frente, e, se você ficar com elas, um
ano da sua educação vai ser roubado.”
Não fui capaz de entender essa lógica. Anos depois, minha irmã Anne
explicou que era porque nossa mãe era uma republicana tradicional, e calculou:
Estou pagando impostos por doze anos completos de ensino; quero que meu filho
tenha os doze anos completos! Mas pagávamos mensalidade para freqüentar a
escola católica. Se, na época, eu soubesse algo a respeito das finanças fami­
liares, teria assinalado que pular um ano significava que ela estaria economi­
zando um ano inteiro de mensalidades! De qualquer maneira, ela não queria
que as crianças mais velhas me batessem.
“Vou ligar para a madre superiora”, ela avisou, tomando a direção do tele­
fone de parede da cozinha.
“Não, mãe. Espere! Não posso ficar no primeiro ano! Já sei tudo que estão
ensinando. A irmã vai lhe dizer!”
E, agora, como carta na manga, minha esperança final:
“A Igreja Católica diz que devo estar no segundo ano! Você tem de obedecer
a Igreja!”
Ela se deteve, deu meia-volta por uma fração de segundo, disparou um
olhar de “você só pode estar brincando comigo” e prosseguiu na direção da
cozinha. Ela tirou o telefone do gancho, pediu educadamente para o vizinho
que estava usando a linha compartilhada para desocupá-la e, então, fechou a
porta de correr e discou para o convento. Eu escutei através da porta enquanto
ela, respeitosa, mas vigorosamente, informava a madre superiora que eu não
devia ser transferido para o segundo ano. Houve longas pausas, durante as quais
a religiosa, sem dúvida, defendia a tese LÚCIDA e CORRETA para minha mãe
quanto ao motivo pelo qual eu estava entediado e me metendo em apuros e por
que eu devia estar no segundo ano (ou até mesmo no terceiro!).
49
ENGATINHANDO PARA TRÁS

Minha mãe respondeu que já tinha tomado a decisão e ponto final. Ela
encerrou a conversa pedindo educadamente para a madre superiora não tomar
qualquer outra decisão “unilateral” no futuro sem consultá-la antes. Não sabia
muito bem o que aquilo significava, mas sabia o que parecia. Ai! Não se fala
daquele jeito com uma madre superiora. Eu pagaria por isso, com certeza.

As mentes ociosas são ou obra do demônio ou criadas da revolução. Embora eu


fosse amado por todas minhas professoras religiosas e seculares, elas seriam as
primeiras a dizer que eu também era uma criança um pouco difícil de lidar. IEu
tinha minhas próprias ideias a respeito do que a escola devia estar fazendo e| de
como isso devia ser feito. Eu contava piadas na classe e fazia travessuras quando
necessário. Como coroinha, fazia caretas para as pessoas durante a comunhão,
enquanto segurava o prato dourado sob o queixo delas, para que não deixassem
o Senhor cair no chão. Certa vez, o padre Tomascheski me pegou fazendo isso,
interrompeu a comunhão e me disse em voz alta, para toda congregação ouvir:
“Tire esse sorriso afetado da sua face!”. Foi a primeira vez que escutei a expressão
sorriso afetado.
Eu tinha meu próprio programa de TV imaginário na escola (completo,
com música tema) e envolvia as outras crianças nele como personagens (dizia-
-lhes que câmeras ocultas estavam gravando o programa). Criei meu próprio
jornal e escrevi poemas e peças. No oitavo ano, ofereci-me para escrever a peça
de Natal para o espetáculo cívico da escola. Quando as autoridades viraml o
ensaio geral, decidiu-se que o show não deveria continuar. Na cena principal da
peça, todos os roedores do país vinham para a escola St. Johns, em Davisonj e
realizavam sua convenção anual em nosso velho salão paroquial. A situação com
os roedores era tão ruim nesse lugar que, no segundo ano, um camundon^o
entrou no hábito da irmã Ann Joseph, fazendo-a pular de sua cadeira e dançàr
a fim de se livrar do roedor. Assim, achei que seria engraçado escrever a respeito
disso. No ato final, o salão paroquial desaba e mata todos os ratos. Os alunos e
as freiras exultam. Deus triunfa sobre os roedores. O júbilo reina em todo o paíjs.
Em vez disso, o padre sugeriu que o oitavo ano só ia cantar músicas natíi-
linas no palco. Consegui que a maioria dos meninos se juntasse a mim em
50
ADORO PROBLEMAS

protesto, não cantando a primeira música. Ficamos ali parados, bocas fechadas,
olhando para a frente. Foi uma má ideia, pois fitamos dLireto o olhar furioso
que emanava da madre superiora. Todos nós cantamos a música seguinte, sem
dúvida.
Minha mãe devia ter me deixado pular um ano. Haveria muito menos pro­
blemas para todos os envolvidos.
EQUIPE DE BUSCA
E SALVAMENTO

Nos Estados Unidos, poucas ruas são planejadas, de modo que, independente­
mente de se virar para a direita ou para a esquerda, acaba-se numa rua sem saída.
Assim era a rua onde morei e cresci: East Hill Street, uma alameda de terra
e cascalho, com um quarteirão de comprimento e duas extremidades sem sáída.
O único jeito de chegar nessa rua era pegando outra alameda de terra com uma
extremidade sem saída conhecida como Lapeer Street. A Lapeer se estendia] dos
trilhos da estrada de ferro, em uma extremidade, até tocar diretamente no centro
da nossa Hill, numa transversal, e, assim, formando nossa própria, pequena e
escondida comunidade. Do outro lado da Lapeer Street havia um campo que
levava ao único cinema da localidade, o Midway. Atrás da Hill Street haviaj um
brejo repleto de aventura e uma mata grande e misteriosa. |
No início da década de 1950, o velho senhor Hill vendeu sua propriedade
agrícola, que se transformou nesse lote de 27 casas, nessas duas ruas majori-
tariamente imperceptíveis e indefinidas. As casas eram basicamente em estilo
Levittown29 do pós-guerra: pequenas, estranhas, necessárias. Eram recheadas
de famílias da nova classe média. Havia esperança e hostilidade nessas estru­
turas de 85 metros quadrados. Tinham grandes quintais que, nos primeiros
anos, se misturavam uns aos outros, mas, com o tempo, tiveram de ser Idivi-

29 Comunidade planejada, situada no estado de Nova York, construída entre 1947 e 1951. SeM nome
homenageia o construtor William Levitt, considerado o pai dos subúrbios modernos nos Estados
Unidos. (N. T.) i
52
ADORO PROBLEMAS

didos com cercas de madeira e sebes densas. “Nós” tornou-se “eu” em menos
de uma década, mas, durante um tempo, toda a vizinhança se sentia numa
grande colônia de férias.
Em cada extremidade sem saída da Hill Street, estendia-se um campo
aberto. No campo do lado oeste, tínhamos batalhas de montinhos de terra: o
objetivo era juntar porções de terra compactada e atirar nos olhos dos amigos.
Toda primavera, pegávamos o carrinho cortador de grama do meu pai e
fazíamos um campo de beisebol, onde nos encontrávamos todos os dias do
verão e jogávamos até o pôr do sol. O campo do lado leste da rua era onde
montávamos “acampamento”, com barracas improvisadas com encerados e
cobertores descartados dos nossos pais: quartel-general da vizinhança, onde
todas as coisas delinqüentes eram planejadas.
A mata atrás das nossas casas, na Hill Street, aparentemente era tão grande
que nenhum de nós nunca achou o fim dela, independentemente de quantas
horas andássemos através de seus pinheiros muito altos, aceráceas densas e
bétulas brancas. O “bosque”, como o chamávamos, era um parque de diversões
da natureza, onde podíamos pescar, caçar, fazer armadilhas, acampar, nos perder.
Para alcançar essa mata, tínhamos de atravessar os quintais abertos de quatro
vizinhos, e nenhum deles nunca pareceu se importar. Um grande brejo separava
os quintais da mata, e o próprio brejo exercia fascínio sobre nós. Aprendemos
a saltar de uma árvore caída para outra, para não nos ensoparmos. A água batia
nos joelhos, e não havia criaturas que pudessem nos fazer mal. Havia centenas
de sapos, e fazíamos o máximo para capturá-los, ainda que, geralmente, eles
fossem mais rápidos e mais inteligentes. Havia flores de todos os tipos e uma
quantidade indispensável de mosquitos, que gostavam da nossa presença, como
pequenos bancos de sangue ambulantes, para seu prazer alimentar.
Depois de cruzar o brejo, chegávamos ao pé de uma colina, que, coberta
de gelo no inverno, tornava-se nosso parque infantil para andar de trenó. No
alto da colina, começava a trilha que nos levava às profundezas da mata infinita.
Fazíamos caminhadas durante horas, ainda que ninguém usasse a palavra cami­
nhada, pois isso implicava em uma atividade planejada. Nada do que fazíamos
em nosso tempo livre quando crianças jamais era planejado ou organizado.
Acontecia, simplesmente. Uma hora de dever de casa e, em seguida, “sair e tirar
o bolor” eram as ordens dos nossos pais.
53
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO

Perseguíamos gazelas, coelhos e guaxinins; tínhamos pistolas de ar compri-


mido, arcos e flechas, e, de vez em quando, os meninos da casa ao lado traziàm
j

uma espingarda, de modo que podíamos atirar em faisões. E tínhamos dez anos.
Paraíso. Os adultos nos deixavam sozinhos, e fazíamos muitas expedições nessa
mata, levando almoços de presuntada, que cozinhávamos em nossos “queima­
dores amigos”, isto é, latas vazias com uma bola de papelão enfiada dentro e
coberta com a cera que derreteríamos e pingaríamos sobre ela. Mais tarde, acen­
díamos nossos queimadores, e o papelão com cera queimava lentamente para
grelhar nossa presuntada. Mais paraíso.

As meninas eram excluídas de todas essas atividades, exceto andar de trenó. Nossos
pais nos obrigavam a levá-las até o alto da colina e descer de trenó com elas. Afinal
de contas, quem, exceto um garoto, era qualificado a realizar a pilotagem?, Na
realidade, gostávamos muito disso, pois éramos capazes de assustar as meninas,
fingindo pilotar o trenó em alta velocidade na direção de uma árvore, mas des­
viando no último momento. Frequentemente. Pois, às vezes, ocorriam colisões e
irmãzinhas chorando. No entanto, mesmo isso trazia-nos grande alegria.
Exceto essas memórias envolvendo trenós, não me lembro de alguma
vez ter visto as meninas da vizinhança em algum lugar, e, se for pressionado,
poderei defender a tese de que, de fato, não existiam meninas na vizinhajnça.
Anos depois, acabaríamos descobrindo que elas passavam muito tempo lendo,
tocando instrumentos, fazendo coisas e contando histórias umas às outras e
para a boneca Barbie. Isso seria bem útil para elas, uma vez que deixassem para
trás a infância, mas, por ora, elas eram invisíveis à nossa existência, e suponho
que achávamos que estávamos tanto melhor sem elas. Meninos não serão só
meninos, mas meninos gostam de estar com meninos. E alguns meninos gostam
de estar muito com certos meninos.
Sammy Good era diferente. Em 1965, você podia ser diferente - até certo
ponto - e isso era considerado OK. Por exemplo, você podia ter olhos azuis,
enquanto as outras crianças tinham olhos castanhos. Seu cabelo podia ser cas­
tanho, enquanto outros podiam ser ruivos ou pretos. Existiam crianças altas,
54
ADORO PROBLEMAS

crianças baixas, crianças que andavam de bicicleta, crianças gordas, crianças


magras, até crianças com catapora (e, sim, todas gostavam de cachorro-quente).
Será que não existiam meninos que se apaixonavam por outros meninos?
Claro que existiam esses meninos, mas não sabíamos disso no quinto ano.
Não que alguém se opusesse à homossexualidade; é que não havia nenhuma
necessidade de se opor porque simplesmente isso não existia! Seria como se opor
a unicórnios, Adântida ou homens sem mamilos; quer dizer, você não poderia
odiar o que não é real.
Isso era ainda mais grave se você fosse um menino que gostasse de meninos
(ou uma menina que gostasse de meninas), pois você tinha de guardar aquele
segredo como se fosse seu Fort Knox30 pessoal, hermeticamente fechado e impe­
netrável. Você tinha de se comportar sabendo que era um alienígena que veio
de outro planeta, mas em forma humana. Ninguém sabia que você era um alie­
nígena, e se alguma vez descobrissem que você era realmente, eles o aniquila­
riam. O conhecimento de que você não era “como os outros” era tão assustador
que, se você encontrasse outro alienígena que gostasse de meninos, não poderia
deixar transparecer para aquele homossexal quem você realmente era.
Porém, é claro, o outro alienígena saberia. Contudo, vocês não ousavam fazer
contato um com o outro, pois, se fossem pegos pelas Pessoas Normais, elas pode­
riam arruiná-los. Às vezes, você tinha de dedurar um dos seus só para provar que
não era um “deles”. Era uma existência frequentemente devastadora ser gay nas
décadas de 1950 e 1960 (e nas de 1970, 1980 e...), e, às vezes, obrigava você a
fazer coisas muito cruéis e desnecessárias para você mesmo e para os outros.
Esse era o caso do menino que morava a três portas da nossa casa, na Lapeer
Street. A família Good parecia constituída de pessoas educadas, o que imedia­
tamente a destacava. Havia muitos pais da vizinhança sem educação superior,
e alguns nem mesmo tinham acabado o ensino médio. No entanto, naqueles
tempos, ser educado ou inteligente não era considerado um defeito. Era algo
admirado, respeitado, até ambicionado.
Também naquele tempo, a classe instruída e profissional não vivia separada
dos assalariados modestos e dos servos fabris. Como a diferença de renda era

30 Pequena cidade situada no estado de Kentucky, que abriga o United States Bullion Depository
(Depósito de Ouro dos Estados Unidos). (N. T.)
55
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO

insignificante, eles viviam no meio uns dos outros e compartilhavam seu conhe­
cimento. O professor universitário do quarteirão ensinava matemática para as
crianças da vizinhança e, por sua vez, o mecânico da oficina apareceria “num
segundinho” para consertar o carburador do carro do professor. O dentista
estava acessível para arrancar de emergência o dente da criança do encanador, e
o encanador estava disponível para consertar o vazamento na casa do dentista
num domingo à noite. Era exatamente assim.
E, assim, nas nossas duas ruas de terra, democráticas e igualitárias, esses
eram aqueles que viviam ali, de oeste para leste: pastor presbiteriano, gerente
de loja, operário da linha de montagem de velas de ignição (meu pai), metalúr­
gico, agente do correio, vendedor de camisas, o osteopata e sua mãe. Na outra
quadra: motorista de caminhão, casal aposentado, gerente de loja de departa­
mentos, professor do ensino médio, zelador, idoso com deficiência física, ejnsa-
cador de supermercado, aposentado, conselheiro municipal, mãe separada çom
filho, bancário. Era a classe média americana. Nenhuma casa custava mais do
que dois ou três anos de salário, e duvido que a diferença nos salários anuais
(exceto em relação ao osteopata) superasse mais do que cinco mil dólares. E
exceto o médico (que fazia atendimento domiciliar), os gerentes de loja, o
pastor, o vendedor e o bancário, todos pertenciam a um sindicato. Isso signi­
ficava que tinham uma jornada semanal de quarenta horas, tinham um firti de
semana inteiro de folga (mais duas a quatro semanas de férias pagas no verão),
benefícios médicos amplos e estabilidade no emprego. Em troca de tudo isso, o
país tornou-se o mais produtivo do mundo, e, em nossa pequena comunidade,
significava que seu forno estava sempre funcionando, seus filhos podiam ser
deixados com os vizinhos sem aviso, você podia ir até a porta ao lado a qualquer
momento para pedir emprestado meia dúzia de ovos e as portas de todas as casas
nunca eram trancadas, pois quem precisaria roubar alguma coisa se já tinham
tudo que precisavam?
Mas, caro leitor, antes de você começar a tocar Stephen Foster31 e ‘jThe
Star Spangled Banner”,32 preciso lembrá-lo de que você já deve saber: !essa
existência idílica (tão apropriadamente documentada em programas como

31 Importante compositor do século XIX, Foster (1826-1864) é considerado o pai da música ^meri-
canâ, tendo composto, entre outras canções, a conhecida Oh! Susanna. (N. T.) j
32 A Bandeira Estrelada é o hino nacional dos Estados Unidos. (N. T.) i
56
ADORO PROBLEMAS

Donna Reed e Papai Sabe Tudo) tinha seu lado negro. Além do fato de que as
mulheres ainda estavam a anos de distância de um movimento de liberação e
de que se uma única pessoa negra mudasse para sua vizinhança, as placas de
“vende-se” brotariam como ervas daninhas, havia o fato insuperável de que
você náo podia simplesmente amar quem você amava se quem você amava
possuísse a mesma genitália que a sua. Você nem mesmo existia, para começar;
assim, então, você se transformava num ator muito sereno ou muito zangado,
representando todos os dias no palco heterossexual.
O senhor e a senhora Good tinham três filhos: Sammy, Alice e Jerry. Se
você quisesse embalar uma família e enviá-la para todo o mundo, para que as
pessoas dos outros países pudessem observar a aparência de uma perfeita família
americana, os Good eram essa família. O senhor Good era o gerente da loja
de departamentos local. Sammy era o filho mais velho, quatro anos na minha
frente na escola. Ele fora adotado quando os Good náo sabiam se a cegonha
traria algum filho de concepção própria. Mas depois eles tiveram Alice, que
tinha minha idade, e Jerry, que era três anos mais novo.
Os Good moravam numa casa estilo rancho, revestida de tijolos, com uma
grande varanda telada na parte de trás e um quintal que se estendia por uns bons
45 metros. A renda confortável do senhor Good, um pouco melhor (embora
não muito) do que a do resto da rua, permitia-lhe ter uma empregada, que
vinha uma vez por semana para lavar roupas, passar e limpar a casa. Ela era
negra e pegava o ônibus na extremidade norte de Flint. Sua presença não provo­
cava nenhum “desconforto” na vizinhança, exceto o fato de estimular o desejo
das mulheres de também poderem ter uma empregada.
Os Good não eram pessoas ostentosas, e, se havia algum outro sinal de que
eles tinham alguma renda extra, era que, todos os invernos, um homem apa­
recia e alagava o quintal para criar uma pista de patinação no gelo, grátis para
a vizinhança, para todos se divertirem, a qualquer hora, dia ou noite. O senhor
Good tinha grandes refletores que iluminavam a pista, e se você perguntasse aos
vizinhos uma das lembranças mais queridas deles da Hill/Lapeer Street, seria
aquela de um homem que cedia seu quintal para que qualquer um pudesse ir
patinar ali durante horas a fio.
O senhor Good sempre tinha um carro novo, geralmente um Buick. Ele era
amigável, mas reservado; um pouco mais baixo que os outros pais da rua. Ele era
57
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO

diferente em duas outras coisas: tinha um bigode preto numa rua desprovidà de
pelos faciais e era judeu. |
Um dia qualquer, por volta do verão de 1964, um som começou a emergir
da normalmente tranqüila casa dos Good. Era um barulho imenso, uma batida
grave, vibrante, que acontecia num ritmo repetitivo, um pouco como a pul­
sação de uma música, mas de nenhuma música a qual nós estivéssemos fami­
liarizados. BUUM-buum-buum, BUUM-buum-buum, BUUM-buum-buum,
BUUM-buum-buum.
Podia ter sido o senhor Good trabalhando em alguma coisa com suas novas
ferramentas de artesão. Podia ter sido uma nova cozinha que estavam insta­
lando. Talvez Hammad, o exterminador local, tivesse sido chamado para eli­
minar alguns cupins incômodos ou um gambá que se escondeu no porão da
casa. |
Mas não, não foi nada disso. Era música dos negros. Especificamente, o jlhe
Supremes, um grupo que nenhum de nós tinha ouvido. A música era “Where
Did Our Love Go” (“Aonde Foi Parar Nosso Amor?”), e aonde ele foi? Per­
correu três quintais da Lapeer Street, atravessou a janela da nossa sala de estar, e
alcançou a ponta do meu pé.
Sammy Good ganhara um toca-discos no Natal; sim, os Good celebraram
o Natal decorando lindamente a casa, com luzes coloridas e anjos brancos oíiis-
cantes com trombetas. A coisa mais legal de ter um pai trabalhando numa loja
de departamentos era que você tinha os produtos mais novos e mais incríveis
primeiro: a primeira secadora Admirai, com ajustes distintos para roupas aife-
rentes; a primeira geladeirafrostfree Westinghouse e o primeiro gravador de rolo
Silvertone (que foi meu presente do Papai Noel naquele Natal).
Quando as nevascas do inverno se acalmaram, em maio de 1964, Sammy
levou seu toca-discos para a varanda telada, junto com alguns discos de 45 rota­
ções. A etiqueta no disco dizia “MOTOWN”. Cada disco tinha uma música na
frente e uma no verso. A Motown possuía diversos selos e artistas, incluindo The
Miracles, The Marvelettes, The Vandellas e Litde Stevie Wonder. Sammy revelou
que eles todos viviam perto de nós, em Detroit, um lugar que conhecíamos por
causa dos jogos de beisebol do Tigers e dos filmes no Music Hall Cinerama.
Olhávamos através dos quintais e víamos Sammy na varanda todos os dias
depois da escola, tocando seus discos da Motown e... dançando. Tínhamos visto
58
ADORO PROBLEMAS

esse tipo de dança na TV, em American Bandstand e Shindig. No entanto,


nunca tínhamos visto pessoalmente. E ali ele estava, dançando com muita
energia, em um mundo próprio, na Festa Dançante Vespertina de Sammy
Good, ao vivo da Lapeer Street.
Isso criou bastante curiosidade entre o resto de nós, meninos da vizinhança,
que ia até lá para ver e ouvir. A música era interessante, mas parecia exótica,
quase... alienígena.
E, assim, as músicas da Motown e seus grupos femininos “desmascararam”
Sammy para os meninos mais velhos, que sabiam exatamente qual era o negócio
dele. Em pouco tempo, ele começou a sentir os ocasionais empurrões, pancadas
ou obstruções no corredor da escola. E isso só se intensificou. No entanto, a
festa dançante de Sammy continuou. Um nariz sangrando não iria detê-lo em
nome do amor.
Certo dia, Sammy nos convidou; algo que não esperávamos. Os meninos
mais velhos, da faixa etária dele, alunos do sétimo e oitavo anos, geralmente não
queriam fazer nada conosco, a menos que fôssemos necessários para completar
dois times para um jogo de beisebol. Sammy nos mostrou sua pilha de discos
e algumas revistas que tinham fotos dos cantores e dos grupos. Era um mundo
estranho para nós, meninos mais novos, mas para Sammy era a terra dos sonhos.
Enquanto ele nos falava a respeito dessa Terra de Oz chamada “Motown”, suas
mãos faziam movimentos exagerados, como se estivessem capturando ar e tre­
mulando como bandeiras ao vento, para que entendêssemos não só sua impor­
tância, mas também sua beleza. E se não entendêssemos, éramos despedidos
com um meneio rápido da mão, como se seu pulso tivesse entrado em catatonia
instantânea. “Xô, xô, fedelhos”, ele dizia quando éramos muito estúpidos para
entender o que ele estava conduzindo. Ele tentou nos ensinar sobre o que tudo
significava, como tudo consistia em “a batida”, “o look” e “o estilo”, e por que
tudo era “fabuloso” para ele.
Assim, sempre que escutávamos a música, corríamos para ser parte dessa
festa dançante. Nenhuma garota tinha permissão para aparecer, o que era muito
bom para nós. Em pouco tempo, estávamos dançando com ele e uns com os
outros. Provavelmente ao redor da época em que ele usou o ruge e o delineador
da mãe dele para nos mostrar como podíamos “nos embelezar”, os garotos mais
59
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO

velhos de Davison, que já estavam de olho nele há algum tempo, decidiram que
tinham visto o suficiente. Era a hora de interromper essa festa dançante.
Os garotos de Davison lançaram seu ataque contra Sammy. Ele se tornou
vítima de diversos tapas, socos, surras e banhos de lama ou neve.
Sammy náo aceitava esse tratamento e sempre se defendia, algo que parecia
pegar de surpresa seus colegas de classe. Primeiro, ele ia direto nos olhos deles,
como um gato ensandecido. Ele quase arrancava os olhos deles. Sempre era capaz
de cravar suas unhas mais longas do que o normal nas bochechas deles, arra­
nhando e unhando até tirar sangue. E chutava, chutava loucamente, qualquer
parte do corpo que pudesse alcançar. Náo era o estilo de luta de Sonny Liston,33
ao qual esses garotos estavam acostumados. Seus agressores o dominavam
no fim, mas isso tinha um preço. Em pouco tempo, os molestadores da vijzi-
nhança e da escola consideraram muito trabalhoso abatê-lo, não valendo o
esfoço (ou as cicatrizes) para subjugá-lo. Eles também descobriram que não
eram capazes de eliminar à força o comportamento esquisito de Sammy. Sem
dúvida, se um desses gays fosse surrado repetidamente, o homossexualismo,
de alguma forma, seria expelido dele, e ele se tornaria Normal. Mas isso não
estava acontecendo. Assim, os molestadores desistiram, e voltaram à tradição
mais divertida de humilhação mediante zombarias, escárnio e xingamentos
contra Sammy. |
Tudo isso levou Sammy a um lugar escuro. O ódio descomunal contra èle
não o fez, por sua vez, querer amar os outros. E, assim, ele descontou sua raiva
contra nós, os meninos mais novos. Não tínhamos muita certeza em nossa idade
do motivo pelo qual os garotos mais velhos eram tão malvados com ele, mas
logo descobrimos que Sammy nos via apenas como versões menores dos seus
molestadores, e ele nunca perdia a oportunidade de dar em um de nós um bom
e odioso tabefe.
Qualquer coisa podia tirá-lo do sério - nos ver mascando chiclete, calçajs e
camisas que não combinavam, tentativas proibidas de cantar junto músicas cjos
seus discos de 45 rotações —, e ele ficava mais violento conosco, com seus soços
e pontapés. Certo dia, ele amarrou o pequeno Pete Kowalski em uma cadeira

33 Liston (1932-1970) foi um lutador de boxe profissional, tendo conquistado o título de campeão
mundial dos pesos-pesados em 1962, ao nocautear Floyd Patterson no primeiro round. (N. T.) j
60
ADORO PROBLEMAS

por ele “ser mau”, e sua máe teve de libertá-lo (depois de dar uma boa bofetada
em Sammy). Rapidamente paramos de ir à Festa Dançante Vespertina, mas
isso náo detinha Sammy quando via um de nós na rua. Ele nos derrubava no
chão com um empurrão. Sempre que passava, dava-nos um bom soco. Depois
de um tempo, fazíamos o melhor que podíamos para nos afastar dele. Éramos
crianças; não entendíamos a mágoa que ele carregava e por que ele precisava
fingir. Mesmo os adultos pareciam incapazes de captar esse conceito em 1965.
Num sábado à tarde, eu estava andando de bicicleta na calçada da Lapeer
Street, e Sammy veio na minha direção. Tentei atravessar o pedação de gramado
entre a calçada dele e a rua, mas, quando fiz isso, ele gritou para eu “sair do
gramado dele!”. Então, ele pegou o galho que tinha na mão e o jogou nos raios
da minha roda dianteira, fazendo a bicicleta parar de repente e me jogando no
chão da rua. Ele simplesmente ficou parado ali, gritando: “nunca, jamais, olhe
para nosso gramado” e “não quero saber!”. Então, começou a rir loucamente. Eu
me limpei e saí correndo para casa com minha bicicleta.
Quando cheguei em casa, minha tia Cindy e seu marido, tio Jimmy, estavam
ali com seus filhos fazendo uma visita. Eles eram os parentes conhecidos como
os Mulrooneys, e sua prole consistia de três filhos muito fortes, todos muito
mais velhos do que eu. Eles moravam na zona leste de Flint, e tenho certeza de
que esses três rapazes eram muito temidos na sua vizinhança. Eu mesmo morria
de medo deles, e eu era parente deles!
Eu subi os degraus da entrada da nossa casa e entrei, com os cotovelos
machucados e sangrando, e lágrimas correndo pelo meu rosto. Os primos bru-
tamontes quiseram saber o que aconteceu. Contei-lhes, e eles disseram: “Mostre
para nós quem foi”. Olhei pela nossa janela panorâmica e ali estava ele, ainda
parado na rua. “Ele”, eu disse, sabendo muito bem o que iria acontecer a seguir.
Infelizmente, não senti remorso, mas só um senso de justiça. Isto é, até eu ver
como a justiça estava sendo repartida.
Ali, na rua, os três rapazes Mulrooney estavam batendo em Sammy
Good. Primeiro, ele formaram um círculo em torno dele. Sabia que os
instintos de animal aprisionado de Sammy entrariam em ação instanta­
neamente. Ele deu o primeiro tapa, e, depois disso, não consegui mais ver
Sammy. Os Mulrooneys o atacaram como piranhas sobre carne crua. Digamos
apenas que os Mulrooneys não eram “esbofeteadores”, e a velocidade e a
61
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO

ferocidade dos seus punhos subindo no ar e depois caindo sobre Sammy


era uma visão brutal, algo aparentado a um especial da National Geographic.
Podíamos escutar os gritos de Sammy por ajuda, e, enquanto meu tio Jimmy
Mulrooney sentia prazer diante daquela cena, meu pai, talvez mais tarde do
que ele quis, abriu a porta de tela e gritou para meus primos: “Parem com
isso!”. Mais ou menos naquele momento, o senhor Dietering, que morava na
casa ao lado da dos Good, também saiu para serenar os ânimos. Os Mulrooneys
deram ainda mais alguns pontapés e, então, viraram-se em triunfo e vieram em
nossa direção. Sammy estava caído na rua, todo amarrotado, chorando. j
“Sissy!”, “Você briga como uma menina!”, “Vai pôr seu vestido!”, foram as
coisas que eles disseram para Sammy, enquanto o senhor Dietering o ajudava
se levantar. Sammy não queria nenhuma ajuda. Ele voltou mancando para sua
casa. Fiquei satisfeito que meus primos tivessem tomado conta de mim. j
Meu pai não ficou tão feliz. “Você não pode usar seus primos paraj se
defender. Você precisa aprender a lutar. Você vai ter aulas de boxe na Associação
Cristã de Moços.”
O quê? Não! Meu Deus, prefiro levar minhas irmãs para andar de trenp...
em julho!34 Por que estou sendo castigado? Me mandar para o centro de Flijnt,
para que os garotos de Flint, como os Mulrooneys, possam me bater... legal­
mente? Implorei para minha mãe interceder.
“O que quer que seu pai ache é melhor”, foi tudo o que ela conseguiu dizer.
Posso jurar que nunca tinha escutado ela pronunciar essas palavras antes, pois,
em nossa casa, era sempre o que ela achava que era melhor, e meu pai concor­
dava com essa linha de comando.
Tudo isso porque fiii obrigado a voltar para casa chorando! Porque eú vi
o carro dos Mulrooneys ali! Queria vingança. Sabia o que eles fariam. A única
coisa que me deixaria ainda mais feliz é se eles também tivessem quebrado todos
os discos do The Supremes da coleção dele.

34 O mês de julho é o auge do verão no Hemisfério Norte. (N. T.)


62
ADORO PROBLEMAS

Cerca de três meses depois, perto das dez da noite, bateram na nossa porta. Era
o senhor Popper, um homem grande, mas de voz suave, que vivia do outro lado
da rua dos Good.
“Frank, o menino dos Good sumiu. Os pais dele acham que ele pode ter
sido seqüestrado. Levado para a mata. Eles chamaram a polícia, mas achamos
que devemos ir à sua procura. Você pode vir?”
“Claro”, meu pai disse, ainda que já tivesse passado da sua hora de dormir.
Ele foi pegar sua lanterna grande e um bastão de beisebol.
Em minutos, a maioria dos homens da vizinhança tinha se reunido no
nosso gramado, todos com lanternas, galhos e paus, e usando o tipo de jaqueta
de caça que se veste no fim do outono em Michigan. Minhas irmãs e eu, já de
pijamas e na cama, fomos até a sala de estar e vimos o desenrolar dessa cena.
O que estava acontecendo? Seqüestro? Ficamos imediatamente assustados. Era
o único crime contra uma criança, exceto assassinato, que significava prisão
naqueles dias. Não havia coisas como “abuso infantil” ou “negligência”, e quase
todas as crianças estavam acostumadas com uma dose saudável de palmadas -
ou pior. Mesmo a escola admitia isso, e os professores tinham permissão de usar
uma grande arma de madeira contra a área conhecida como seu traseiro.
A única coisa que você não podia fazer enquanto adulto era nos roubar.
Se você não fosse o pai ou a mãe ou um parente da família estendida, você não
poderia nos levar sem permissão. Decidia-se firmemente o limite do que era
tolerado, e esse era o limite.
Acreditava-se que Sammy Good fora levado (seduzido?) por alguém que era
“como ele”, mas “mais velho”. Não sabíamos o que isso significava. Realmente,
era difícil imaginar alguém capaz de imobilizar e depois transportar Sammy a
algum lugar, a menos que os olhos dados por Deus não tivessem utilidade.
Determinou-se que, se alguém fosse assediá-lo (“Mãe, o que significa asse­
diar?”), provavelmente seria na mata atrás da nossa casa. E assim a equipe de
busca e salvamento partiu. Uma coisa que me impressionou a respeito de todos
aqueles homens - a maioria dos quais provavalmente não apreciava o fato de
que Sammy fosse o vizinho homossexual - era como eles estavam sinceramente
preocupados com a segurança e o bem-estar de Sammy, e como tinham a espe­
rança de encontrá-lo são e salvo. As mães também tinham aparecido para con­
fortar a senhora Good, que estava parada na rua lutando contra as suas lágrimas.
63
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO

Os homens garantiram a ela que trariam seu filho de volta; afinal, ele prova­
velmente só fugiu e podia até estar nos observando nesse momento! Disseram
isso enquanto seguravam com firmeza seus paus e bastões de beisebol, prontos
para entrar em ação ou talvez temerosos de entrar nas profundezas da máta
escura. Sim, eles estavam dispostos a correr riscos, e, se pudéssemos resumir o
sentimento coletivo, seria: Bem, ele pode ser uma bicha —mas, droga, ele é a nossa
bicha —eé melhor ninguém tocar num fio do seu cabelo!
Quando os homens partiram, minhas irmãs começaram a chorar,
achando que os seqüestradores também poderiam ferir nosso pai. Nossa mãe
nos mandou voltar para a cama, dizendo que, com mais de doze homehs,
ninguém iria se ferir. Naquele momento, o chefe de polícia se apresentjou
com um dos seus policiais e partiu para alcançar o grupo improvisado.
Fui com minhas irmãs para o quarto delas, que tinha uma vista melhor da
mata. Observamos os pais atravessarem os quintais, cruzarem o brejo e entrarem
na mata, onde as silhuetas dos seus corpos desapareceram, mas o movimeiito
impetuoso das doze lanternas nos permitiu saber exatamente onde eles estavam.
O movimento dessas luzes parecia estranhamente coreografado —Sammy teria
ficado orgulhoso - entrecruzando-se à medida que os homens avançavam para
cima e para baixo através das árvores, como as luzes dos refletores num festíval
de verão ou na liquidação de 4 de julho35 da concessionária Chevrolet. j
Depois do que pareceram horas, os pais voltaram, tristes e de mãos vazias.
“Ele não está ali”, escutamos nosso pai dizer para nossa mãe. “Nem sinal de
onde ele está. Mas ele não está ali.”
Os policiais transmitiram a má notícia para a senhora Good e ela voltou
a se desesperar. Seu marido colocou o braço em torno dela para confortá-la, e
eles caminharam lentamente de volta para a casa deles, como fizeram todas as
outras pessoas.
No dia seguinte, Sammy Good foi localizado perto de Pontiac, em Michigan.
Ele tinha pego uma carona ou um ônibus. Ele vagava pelas ruas, sentia fome e não
queria voltar para casa. Estava cansado dos insultos, dos molestadores, das surijas e
da impossibilidade de aproveitar sua festa dançante em paz. Ele tinha consegiiido

35 Dia da independência dos Estados Unidos. (N.T.)


64
ADORO PROBLEMAS

percorrer mais da metade do caminho para Hitsville U.S.A.,36 e disseram poste­


riormente, após ele voltar a fugir, que ele queria conhecer o The Supremes e
ter ajudado suas integrantes no styling. Tenho certeza de que ele podia ter dado
uma contribuição significativa e também de que um lugar mais aberto e diver­
sificado, como Detroit, podia ter combinado melhor com ele.
Nós nunca mais voltamos a ver Sammy. Ele foi viver com uma tia, e esse
era o final com que qualquer um queria encerrar o assunto. Um mês antes da
sua formatura no ensino médio, Sammy partiu para Nova York, talvez um lugar
mais tolerante e indulgente, e foi onde, certa noite, ele saiu para um passeio e se
jogou no rio Hudson.

36 Apelido dado à primeira sede da Motown Records, situada em Detroit, no estado de Michigan
(N.T.)
A CANOA

Quando eu era novinho, minha avó materna me sentou para contar a história
da família. Ela tinha um antigo e bolorento caderno de anotações, recortes de
jornal e pilhas de álbuns com fotografias desbotadas. Como eu era o mais velho
dos três filhos, ela quis que eu recebesse essas informações, para que fossem
transmitidas para as gerações futuras. No entanto, para ela, não se tratava! só
de entregar o material que fora entregue a ela. Também se tratava da tradição
irlandesa de sentar as crianças e deixar que elas vissem seu rosto e olhassem
seus olhos, enquanto você lhes contava “as histórias do seu povo”. Minha avó
explicou que essas histórias eram a coisa mais próxima que tínhamos de joias da
família. Eram quem nós éramos, de onde viéramos, como nossas vidas, valores
e crenças se desenvolveram. Nas gerações que nos precederam, elas compreen­
diam que a fortuna (ou tragédia) não era apenas uma série de acontecimentos
aleatórios. Era o resultado da maneira pela qual a pessoa se comportava, da
integridade que tinha e de quão cuidadosamente tomava as decisões. j
Essas histórias familiares eram contadas e recontadas sem o recurso de com­
putadores e outros aparelhos digitais. A história de alguém era armazenada no
cérebro dessa pessoa. Atualmente, a memória é mantida num pendrive Sony.
Mas como a tecnologia muda todos os anos (ver: Lucro), perdemos as fotos da
família nas diversas transferências ao longo do caminho. O disquete de quinze
anos atrás, aquele que tem a história da família armazenada, é difícil de recu­
perar agora. E se você pedir para uma criança ajudá-lo, você dará de cara com
um olhar confuso ou um riso abafado. Se você “armazenou” em 1995, já é his­
tória antiga, com os uns e os zeros apagados.
66
ADORO PROBLEMAS

No entanto, muitas das histórias contadas para mim por meus pais e avós
estão perdidas agora, não por causa de um arquivo salvo no lugar errado, mas
porque eu nem sempre estava ouvindo. A TV estava ligada, eu queria uma barra
de chocolate com amendoim, eu queria sair e brincar. O que isso tinha a ver
com as chances do Tigers no campeonato de beisebol? Tudo que importava
estava bem ali, naquele momento: eu.
Portanto, muitas histórias eram, numa única geração, apagadas por
meio da desatenção e da falta de senso de responsabilidade. Anseio por
escutar aquelas histórias agora e lastimo não ter feito isso na minha infância,
respeitando-as pelo poder, pela energia e beleza que tinham. Tentei juntar
os fragmentos de muitas delas por meio das lembranças das minhas irmãs
e primos, mas sei que as histórias nunca voltarão realmente a alcançar sua
inteireza.
No entanto, havia uma história que guardei comigo muito depois da morte
da minha avó. Era a história do avô dela e como ele se tornou um dos primeiros
colonos da região de Flint (Condado de Lapeer, para ser exato). Era uma região,
na época, habitada pelos índios. O pai dela (meu bisavô) foi um dos primeiros
bebês brancos nascidos na comarca conhecida como Elba. Como eu era de uma
dessas primeiras famílias que se estabeleceram nessa região, reconheci que o que
Elba, Davison e Flint se tornaram tinha algo a ver com o que esses primeiros
moradores haviam feito.
Uma pessoa assim foi Silas Moore, o avô da minha avó, um homem que
nasceu em 1814, quando James Madison era presidente. Certo dia, no início da
década de 1830, Silas Moore, na ocasião morando em Bradford, na Pensilvânia,
criou um plano que quis compartilhar com seu sogro, Richard Pemberton
(Silas era casado com Caroline, filha de Richard). Envolvia deixar Bradford e se
mudar para o oeste, nas terras selvagens e quase despovoadas de um lugar cha­
mado Michigan. Envolvia viajar primeiro para BufFalo, embarcar num navio,
atravessar o lago Erie e subir o rio até Detroit.
“Podemos levar a família e nossos pertences básicos de carro de boi até
BufFalo, passando por Killbuck e Springville”, Silas explicou ao seu sogro. “Isso
deve levar quase uma semana. Então, vendemos os bois em BufFalo e embar­
camos no navio a vapor que nos levará através do lago Erie até Detroit. Em
67
A CANOA

Detroit, podemos ir ao cartório dç imóveis e comprar terras por 1 dólar e 25


centavos o acre.”
“Um dólar e vinte e cinco centavos?”, Pemberton perguntou. “É um preço
muito alto por terra não vista. E se não houver mais quando chegarmos? Ouvi
falar que Detroit está transbordando de gente.”
“Sim”, Silas respondeu. “Mas é um lugar muito grande. Parece que tem
dois mil habitantes.”
“Dois mil?” Pemberton exclamou, transtornado.
“É um território imenso”, Moore o tranquilizou. “Há um monte de terra
para todos. Não somos os únicos de Bradford que querem ir. Podemos todos
nos ajudar uns aos outros.”
A informação de que o território de Michigan estava aberto para colonosj e
logo seria admitido pela União se espalhou por Bradford (um vilarejo na divisa
do estado de Nova York), como por toda região oeste do estado de Nova York. Á
terra era barata no “oeste” e, em geral, despovoada, e para aqueles com a comi­
chão do desbravador parecia uma ideia muito atraente. !
Os Pemberton e os Moore tinham passado os cem anos anteriores como
imigrantes em movimento para o oeste, desembarcando na América vindos da
Irlanda e Inglaterra e se estabelecendo em Hartford, em Connecticut, e em
Pawtucket, em Rhode Island. Um parente de Pemberton tornou-se um dòs
primeiros governadores coloniais de Connecticut. O pai de Silas Moore lutclu
com a brigada Vermont na Guerra de 1812. Seu avô lutou na Guerra da Inde­
pendência dos Estados Unidos, primeiro com Ethan Allen, na batalha de Fort
Ticonderoga, e depois com George Washington, em Valley Forge.
Depois da independência, os Moore e os Pemberton continuaram se
movendo para o oeste; primeiro para Albany, depois para Elmira e, finalmentje,
através da divisa da Pensilvânia, para os condados de Tioga e Bradford, nás
montanhas Allegheny. Eles ajudaram a consolidar povoações e se tornaram
ativos politicamente, mas, em geral, cultivaram a terra. Acreditavam na coopje-
ração com os índios, e dizem que eles sentiam orgulho de “nunca ter levantado
a mão ou apontado uma arma contra eles”.
Tanto Richard Pemberton (que gostava de assinalar que nascera no mesmo
ano em que George Washington se tornou presidente) como Silas Moore estavam
ficando cansados da agricultura nas montanhas Allegheny. Eles queriam tentar
68
ADORO PROBLEMAS

a sorte em locais mais ermos, onde diziam que a terra era plana, o solo fértil e
a água era mais abundante do que em qualquer outro lugar do planeta. Silas e
Caroline Pemberton Moore (a filha de Richard) eram recém-casados, e aquele
parecia um bom momento para fixar nova residência em uma nova terra, para
criar uma nova família em um novo estado.
Assim, os Moore e os Pemberton, com alguns dos seus vizinhos, venderam
suas fazendas, juntaram suas famílias e partiram. Isso incluiu Richard Pem­
berton, sua mulher, Amelia, e suas cinco outras filhas. Com seus bois e duas
carroças, começaram a lenta e árdua viagem na primavera de 1836.
Seis dias depois, chegaram na fervilhante metrópole de Buffalo. Havia
pessoas por toda parte e tantas lojas que se podia fazer um estoque de um ano
passando apenas um dia no que já era uma das maiores cidades dos Estados
Unidos. Diante da atividade e agitação, Pemberton encorajou a todos a perma­
necer juntos e tomar conta dos pertences. O canal do Erie tinha sido aberto na
década passada, e isso levou muitos colonos e negócios a Buffalo, que era agora
denominada “o portão de entrada dos Grandes Lagos”. O canal, que começava
no rio Hudson, na região leste do estado de Nova York, agora tornava pos­
sível transportar pessoas e mercadorias desde o Oceano Atlântico até os rios
do Oeste, incluindo o rio Mississippi. Silas não conseguia acreditar nos apelos
dos cartazes espalhados pela cidade: DEEXE BUFFALO HOJE - CHEGUE
EM DETROIT AMANHA! Os cartazes anunciavam novos navios a vapor de
grande capacidade, que podiam literalmente tirá-lo de Nova York e deixá-lo
nos territórios ocidentais no entardecer do dia seguinte. Isso simplesmente náo
parecia possível.
Os Moore e os Pemberton pagaram oito dólares por pessoa e pegaram o pri­
meiro barco da manhã, um dos quatro navios que zarpavam todos os dias entre
abril e novembro. No dia seguinte, chegaram em Detroit. Silas e Richard foram
ao cartório de imóveis para estudar a compra de terras perto de Detroit. Disseram-
-lhe que podiam comprar terras em um local denominado “Grand Circus” por
35 dólares. Mas quando eles foram verificar as terras, consideraram-na panta­
nosa e inadequada para agricultura. Em vez disso, compraram, sem vê-lo de
antemão, um grande lote perto de um lago, cerca de 80 quilômetros ao norte
de Detroit - “o ermo distante, distante”, disseram-lhes —, em um local perto de
<cLapeer” (derivado da palavra em francês para “pederneira”).
69
A CANOA

Os Moore e os Pemberton pegaram uma diligência para Pontiac, onde


compraram bois e continuaram até o Condado de Lapeer. Menos de oito anos
antes, não havia brancos na região. Naquele momento, já havia algumas cen­
tenas, mas não muitos na área perto da terra comprada por Silas Moore. Nb
mínimo, havia três centenas de índios vivendo perto. Quando Silas chegou, foi
saudado pelo chefe da tribo Neppessing dos índios Chippewa. Silas explicou
que havia comprado uma terra a alguns quilômetros de distância. O chefe e seus
homens, familiarizados com os homens brancos e seu conceito de “ser donos
da terra”, mostrou-lhe o lugar que ele estava procurando: o lago Neppessing.
O chefe e sua tribo moravam no lado oeste do lago. Ali, ele levou Silas ao seu
pedaço de terra. O chefe, então, levou Moore à sua aldeia para lhe dar as boas-
-vindas. Depois de um tempo, Silas decidiu se mudar para a extremidade leste
do lago Neppessing. Aparentemente, a ideia de viver na outra margem do lagõ
em relação a trezentos índios não preocupou os Moore.
Esses primeiros colonos decidiram chamar de Elba seu vilarejo, por causa
da ilha no Mediterrâneo, na costa da Itália, onde Napoleão fora exilado cerca
de vinte anos antes. No entanto, esses colonos, que valorizavam o conheci­
mento e a educação e que liam os clássicos, também conheciam Elba como
a ilha na mitologia grega que fora visitada pelos argonautas em sua busca por
Circe (Medeia tinha os enviado nessa jornada). Tomar como referência clássicos
como esse não era incomum para pessoas dos estados da Nova Inglaterra, onde
a educação era considerada uma necessidade. A ignorância era desaprovada, je
chegar num novo território que não tinha uma escola parecia muito aterrador
para eles (nem os franceses, nem os britânicos consideraram necessário cons­
truir escolas em Detroit ou no resto do território). No entanto, após a abertura
do canal do Erie, os nova-iorquinos começaram a chegar em Michigan (onde
deram os nomes de Rochester, Troy e Utica aos seus povoados por causa de suas
amadas cidades natais no estado de Nova York) e trouxeram certas sensibilidades
da Nova Inglaterra com eles: democracia municipal, forte ética de trabalho e a
crença de que a “educação liberal” era essencial para uma sociedade civilizada.
As carroças e os baús não continham somente panelas, frigideiras e relíquias
familiares, mas também livros, muitos livros. Nas décadas de 1830 e 1840,
outras ideais radicais de “Nova York” começaram a impregnar Michigan graças
aos novos colonos; ideias como o conceito do voto feminino e da abolição da
70
ADORO PROBLEMAS

escravatura. Suas fortes tradições quacre, junto com seus irmãos congregaciona-
listas e católicos, levaram Michigan, em 1846, a se tornar o primeiro governo no
mundo de fala inglesa a abolir a pena de morte. Esse era seu estado de espírito.
No início do verão de 1837, Silas e Caroline revelaram que teriam um filho
no fim de novembro. Isso alegrou muito sua família e seus amigos de Bradford,
pois seria um dos primeiros bebês não índios nascido na região.
Silas preparou sua cabana para o filho que chegava. Ele gostaria que hou­
vesse vidro para as janelas, mas vidro lapidado era raro, e ninguém tinha che­
gado de Pontiac para ele recorrer. Assim, para manter as intempéries do lado
de fora, uma persiana de madeira foi construída. Não era hermética - o vento
entraria pelas fendas —, mas atendia às suas necessidades. Eles sabiam o que era
o inverno, sendo da Pensilvânia e do norte do estado de Nova York.
Em 30 de novembro, Caroline começou a sentir as contrações do parto.
Como Lapeer agora tinha um médico, Silas decidiu ir para lá para buscá-lo,
a fim de ajudar no parto. A mãe e as irmãs de Caroline ficariam com ela até
o regresso de Silas com o médico. Era de tarde, e a viagem noturna podia ser
muito difícil. No entanto, Silas não quis correr riscos com seu primeiro filho e,
assim, pegou o caminho de Lapeer.
Os índios perceberam que Silas estava deixando para trás sua mulher no
final da gravidez. Os Chippewa se interessaram muito pela gravidez de Caroline
e, frequentemente, paravam para oferecer mantas, ervas ou contas de colar espe­
ciais, que, explicaram, manteriam longe os espíritos maus.
O trabalho de parto dela estava mais rápido do que o esperado e, no pôr do
sol, seus gritos puderam ser ouvidos pelos índios. Em minutos, um grupo deles
surgiu na porta da casa de Caroline.
“Por favor”, a irmã de Caroline disse, exasperada com o fato de que ela
poderia ter de realizar o parto. “Tudo está bem. Não precisamos de ajuda.”
“Lobos”, um dos índios disse, no seu inglês muito mal falado. “Lobos.”
“Sim, lobos. Sabemos que há lobos na mata. Estamos bem.”
“Os lobos sentem o cheiro de sangue. Eles chegam aqui”, ele disse, indi­
cando a janela sem vidros. “Cheiro de sangue. Nada bom.”
Então disse algo para seus dois amigos, e eles saíram. Em minutos, voltaram
com mantas.
“Coloco mantas aqui para você. Assim, lobos não sentem o cheiro.”
71
A CANOA

Ele afixou as mantas firmemente em torno da janela e da porta; assim, os


lobos não sentiriam o cheiro de sangue. j
“Nós”, ele disse, apontando o ar livre enquanto saíam. “Fora.”
Os três Chippewa então saíram e ficaram de guarda na frente da cabana,
para assegurar que os lobos ficariam longe.
Em uma hora, Silas voltou e viu os índios em torno de uma fogueira que
tinham feito fora da cabana. Ele ficou preocupado que algo tinha dado errado.
Ele e o médico entraram rapidamente na cabana, no momento exato do nasci­
mento do bebê. Eles o chamaram de Martin Pemberton Moore. Ele foi o pai
da minha avó.
Caroline contou a Silas como os Chippewa ficaram de guarda e colocaram
as mantas na janela e na porta para que não houvesse nenhum ataque de lobos.
No dia seguinte, Silas visitou o chefe e agradeceu a ele e aos membros da
tribo pela proteção à sua mulher e ao seu filho recém-nascido. O chefe disse que
era seu dever proteger todas as vidas da região. Ele deu a Silas uma escultura de
madeira em homenagem ao nascimento do seu filho. Silas ficou grato e, nova­
mente, agradeceu ao chefe e aos seus homens.
Nem todos os brancos da região mantinham as mesmas relações amistosas
com os índios como Silas Moore mantinha. Alguns sentiam medo deles e não
queriam nada com as “bestas vermelhas”. Outros pensavam em quão melhor
Elba seria sem eles. Silas não gostava de escutar isso e ficava enfezado com eí se
tipo de conversa. Isso, por sua vez, fazia alguns suspeitarem de Silas, e, quando
as primeiras eleições foram realizadas em Elba no ano seguinte, Silas estava do
lado derrotado.
No outono seguinte, os índios do lado oeste do lago Neppessing contraíram
sarampo. Se havia uma ameaça em relação a qual os índios tinham pouca defesa
eram as doenças que os brancos traziam com eles. Sarampo, caxumba, catapora,
gripe, tuberculose, varíola matavam brancos e índios sem piedade, mas, no
século XIX, os europeus desenvolveram certas imunidades em seus organismos,
de modo que muitos podiam resistir a uma onda de gripe ou sarampo.
Mas não os índios americanos. Na falta de séculos para criar essa imuni­
dade, os índios morriam rapidamente quando um vírus se espalhava pela si
comunidade. Quando os britânicos, que tinham o desejo de livrar a nova terra
dos índios, viram o quão facilmente os índios adoeciam, não foi uma violação
72
ADORO PROBLEMAS

do seu código moral introduzir mantas ou água com essas doenças para exter­
minar as aldeias indígenas.
Quando a notícia de que os Chippewa tinham sarampo se espalhou por
Elba, os colonos estabeleceram uma quarentena imediata e proibiram qualquer
branco de ter contato com os índios. Silas não gostou disso.
Os índios enviaram mensageiros até a divisa da área da quarentena para
pedir ajuda. Seu povo estava morrendo. Eles precisavam de comida e remédios.
Os colonos brancos de Elba disseram que não havia nada que pudessem fazer,
exceto rezar por eles.
Silas acreditava em orações, mas não só. Desobedecendo a ordem, ele levou
sua canoa até o meio do lago Neppessing. Uma vez ali, ele acenou e gritou para
os índios na outra margem. Aqueles que ainda não estavam doentes saíram de
suas tendas e acenaram de volta. Ele gesticulou para eles virem até o lago para
encontrá-lo. Dois Chippewa, um dos quais era o chefe, embarcaram na canoa e
remaram na direção de Silas. À medida que se aproximaram, ele fez sinais para
que ele mantivesse certa distância.
“Estou aqui para ajudar”, Silas disse em voz alta, para que eles pudessem
escutá-lo. “Estou aqui para ajudar. Quantos de vocês estão doentes?”
“Muitos”, revelou o chefe. “Alguns morrem. O resto precisa de comida e
suprimentos.”
“Verei o que posso fazer. Me encontrem aqui amanhã, nesse horário.”
Silas voltou para sua margem do lago. Ele contou para Caroline a respeito
da situação difícil vivida pelos índios.
“Vou ver o que posso conseguir com as outras pessoas”, ele disse.
Silas visitou as famílias na região de Elba para coletar alimentos e provisões
para os índios. A maioria contribuiu, mesmo aqueles que tinham falado mal
da tribo antes. Houve aqueles que acharam que Silas estava se arriscando des­
necessariamente, e o advertiram que, se achassem que ele estava ficando com
sarampo, mandariam-no para a área de quarentena para viver com os índios.
No dia seguinte, Silas remou até o meio do lago Neppessing. Atrás dele,
rebocava outra canoa cheia de comida e suprimentos. O chefe e outros seis
índios já estavam esperando no lago.
“Deixarei isso aqui. Peguem tudo.” Os índios remaram até a canoa cheia de
provisões e as descarregaram nas suas canoas.
73
A CANOA

“Em dois dias, trarei mais comida. Nosso médico também está trazendo
alguns dos nossos remédios para vocês. Vocês podem testar.”
Dois dias depois, Silas encheu uma canoa com o que conseguiu e voltou
para se encontrar com os Chippewa, que tinham trazido novamente a canoa
vazia para o meio do lago. Quando Silas alcançou a canoa vazia, entre ele e os
índios, tomou muito cuidado para não tocá-la, para não contrair a doença.
O compartilhamento dessa canoa prosseguiu por algumas semanas. Os
vizinhos de Silas ajudaram na sua fazenda para que ele não tivesse prejuízo, e
a maioria continuou a contribuir com seus esforços para salvar os índios. Mas
ninguém se juntou a ele nas suas viagens através do lago.
A maioria dos Chippewa se recuperou, e, durante anos, eles nunca esque­
ceram a generosidade de Silas Moore. Quando seu filho, Martin, estava na idajde
escolar, em vez de mandá-lo para a escola de Elba (que era mais longe), Silas o
enviou para a escola indígena que a municipalidade tinha criado perto da sua
casa. Nos anos seguintes, Silas insistiu para que Martin e seus quatro outros
filhos cursassem o ensino médio em Lapeer. Martin foi cursar faculdade e depois
voltou para abrir um armazém em Elba. Ele ocupou muitas funções eleitas na
comunidade —escrivão, tesoureiro, supervisor —, mas disseram que nenhuma
foi mais importante para ele do que a função de “supervisor dos pobres”. Ele
contou a história dos índios e do seu pai, Silas, para sua filha, Bess, e ela contòu
para sua filha, minha mãe. 1
E minha mãe contou para mim. !
PIETÀ

Eu estava perdido.
Tinha parado talvez por muito tempo para examinar as estátuas no cor­
redor e na rotunda, versões em bronze e mármore de um grupo estranho de
grandes e não tão grandes americanos: Will Rogers, Daniel Webster, George
Washington, Robert La Follette, Robert E. Lee, Jefferson Davis, Brigham
Young, Andrew Jackson.
E, então, ali estava a estátua de Zachariah Chandler. Desconhecido fora
do estado de Michigan (e também desconhecido ali), ele foi um senador com
quatro mandatos em meados do século XIX. Os historiadores que sentem afi­
nidade com a Confederação37 creditam-lhe o início da Guerra Civil. Em 11 de
fevereiro de 1861, dois meses antes dos rebeldes atacarem o Fort Sumter, Chan­
dler fez um discurso exaltado no Senado, onde convocou uma “sangria” para
purificar o país dos seus sentimentos a favor da escravidão. Em outras palavras,
assim que matarmos alguns desses senhores de escravos, eles entenderão a men­
sagem de que a escravidão acabou. Os sulistas consideraram essa uma declaração
não oficial de guerra e continuaram a se preparar para a sangria que iniciariam.
Chandler também é reconhecido como fundador do Partido Republicano.
Em 6 de julho de 1854, ele tomou a primeira iniciativa no país para consti­
tuir um partido abolicionista estadual. Ele convocou todos os abolicionistas a
encontrá-lo sob um gigantesco carvalho, em Jackson, em Michigan e, apenas

37 Também denominada Estados Confederados da América, foi a unidade política criada em 1861
por seis estados do sul agrário e escravagista: Alabama, Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Louisiana
e Mississippi. (N. T.)
75
PIETÀ

seis anos depois, viram o candidato republicano, Abraham Lincoln, conquistar


a Casa Branca.

Aos onze anos, eu era fascinado por história e política. Por esse fato, junto com
aquelas aulas de leitura precoces, responsabilizo minha mãe. O pai dela (meu
avô) foi líder do Partido Republicano em nossa cidade de Davison durante a
primeira metade do século XX. Como imigrante do Canadá, o doutor William
J. Wall trouxe com ele o bom-senso canadense e um interesse ávido pelas ações
governamentais. Ele também acreditava que os livros e as músicas eram compa­
nheiros necessários na busca da felicidade.
Nascido e criado em uma fazenda entre Sarnia e London, em Ontário,
Will foi um dos onze filhos. Ao alcançar a maioridade, adquiriu uma pequena
fazenda, perto da fazenda do seu irmão Chris, e juntos eles cultivavam a terra de
dia e tocavam violino irlandês à noite. Os irmãos Wall e seus violinos tornaram-se
muito solicitados para os bailes e festas locais. Mesmo durante o intervalo do
meio-dia da atividade agrícola, eles se reuniam e tocavam seus violinos.
Com o passar do tempo, Will, que era muito respeitado pelas pessoas do
vilarejo, foi convidado a ensinar na escola rural durante os meses de inverno.
Ele aceitou a oferta e, em pouco tempo, começou a gostar tanto de ensinar que
vendeu sua fazenda para o irmão.
Depois de alguns anos como professor, Will decidiu que queria ser médico.
A escola de Medicina mais próxima ficava do outro lado do rio St. Clair, no
estado de Michigan. Em 1898, o curso de Medicina levava um ano, pois esse era
todo o tempo necessário para ensinar tudo que era conhecido então a respeito
da cura do corpo humano. Após terminar o curso de Medicina em Saginaw, ele
viajou através do “polegar” de Michigan e apareceu no seu caminho um vilarejo
chamado Elba, a cerca de 18 quilômetros a leste de Flint. Ele gostou das pessoas
de Michigan e dos americanos e, ainda que continuasse sentindo orgulho das j
suas raízes canadenses, viu os Estados Unidos como um lugar repleto de pessoas j
e ideias curiosas, inventivas e progressistas. Ele decidiu se estabelecer em Elba. j
Em setembro de 1901, o doutor Wall viajou para Ontário para visitar sua j
família e, no último minuto, decidiu pegar o trem para Buffalo para ver a muito í
76
ADORO PROBLEMAS

aguardada Exposição Pan-Americana. Essa Exposição, com sua Cidade da Luz,


era o assunto do país, pois seria uma das primeiras vezes que uma área tão
grande seria iluminada por luz elétrica. Havia atrações incríveis, incluindo o pri­
meiro aparelho de raios X e diversas outras invenções da virada do século, que
enchiam o público de assombro e empolgação. Havia até um percurso simu­
lando a primeira viagem à Lua.
A Exposição também proporcionou uma oportunidade para o doutor Wall
ver o presidente dos Estados Unidos. E foi ali, às quatro da tarde, em 6 de
setembro de 1901, quando meu avô Wall esperava para ver de relance o presi­
dente William McKinley, que um tiro ecoou no Templo da Música. Um anar­
quista de Detroit (nascido em Alpena, em Michigan), Leon Czolgosz, disparou
dois tiros nas costelas e no abdome do presidente McKinley. Posteriormente, o
segurança de McKinley admitiu (num dos primeiros e trágicos casos de carac­
terização racial) que se distraiu ao ficar de olho num negro forte parado atrás
de Czolgosz. Foi esse negro musculoso, James Parker, que realmente impediu
Czolgosz de efetuar mais disparos depois de derrubá-lo no chão.
Will, sendo médico, tentou atravessar a multidão, que havia descido para
o Templo vindo do parque de diversões quando os tiros ecoaram. Uma ambu­
lância apareceu em minutos, e ainda que Will avisasse que era médico e poderia
ajudar, já tinham colocado o presidente na ambulância e o estavam levando
para o hospital temporário que era parte da Exposição. Embora existissem luzes
elétricas em toda a feira, nenhuma foi colocada na sala de emergência do hos­
pital provisório. Os cirurgiões tiveram de operar o presidente com as enfer­
meiras segurando bandejas metálicas na direção das janelas para ricochetear
suficiente luz nos ferimentos de McKinley. Incapazes de localizar uma das balas,
os médicos decidiram fechar as incisões.
O interessante é que, como é frequentemente o caso após uma cirurgia, o
presidente McKinley se recuperou rapidamente e parecia de bom humor. Ele foi
transferido para a residência do presidente da Exposição para poder repousar.
No entanto, em seis dias, McKinley estava morto por causa da gangrena e do
seroma. Apesar de a Exposição anunciar novas invenções, como o aspirador de
pó elétrico, o telégrafo sem fio, o ketchup em frasco e o aparelho de raios X,
não se tinha muito conhecimento a respeito de infecções e de como impedir sua
disseminação.
77
PIETÀ

O doutor Wall voltou para Michigan. A violência que ele testemunhou


(nenhum primeiro-ministro canadense jamais fora assassinado; aquele havia
sido o terceiro assassinato de um presidente americano em 35 anos) não o dis­
suadiu de se tornar cidadão americano. Como McKinley, ele também se tornou
republicano. Ele conheceu sua mulher, minha avó, quando passou na loja do
pai dela para cuidar de alugar um espaço para montar seu consultório. Martin
Moore ficou feliz de prestar um favor, pois Elba precisava do seu próprio médico.
Ele convidou Will para jantar na sua casa, e quando Will entrou, ele viu a filha
de Martin, Bess, tocando piano. Ele perguntou se ela poderia tocar junto se ele
trouxesse seu violino. Ela respondeu afirmativamente. Em dois anos, os dois se
casaram e se mudaram para Davison, cidade vizinha. j
As paredes da casa deles eram forradas de livros em vez de papel de
parede. Nem mesmo tenho certeza se tinha paredes. Um piano ficava na sala
de visitas, e o consultório do doutor Will ficava no fundo da casa com umà
entrada própria. Na década de 1920, um grande rádio ficava sobre o piso dàl
sala de estar, e era ali que os Wall escutavam as músicas de Caruso e Rudy
Vallée, noticiários, jogos de beisebol e O cavaleiro solitário?* Como não havia
imagens, eles tinham de inventá-las em suas mentes. O doutor Wall adorava imaj
ginar as ruas de Nova York, o Green Hornet39ou os desfiladeiros percorridos pelo
Cavaleiro Solitário e Tonto. Do outro lado da rua em relação à casa dos Wall
ficava o cinema local, onde a atração principal mudava duas ou três vezes por
semana. O médico do vilarejo nunca perdia uma, e ele se sentava ali sempre
esperando que os recém-nascidos fossem gentis o bastante para esperar um
tempo até os créditos finais.
Meu avô gostava de se envolver com política, e os republicanos locais se j
reuniam em sua casa para planejar as campanhas. Sua filha mais nova, Verônica,!
minha mãe, ficou viciada em política para sempre. E, dessa forma, foi em nossa
garagem, no outono de 1960, onde eu, como novo aluno do primeiro ano, i
escutei meus pais terem sua primeira briga. j

38 Famoso caubói fictício do rádio, do cinema e da TV, que, no Brasil, ficou conhecido durante j
muitos anos como Zorro. (N. T.) i
39 Detetive mascarado criado na década de 1930. (N. T.) |
78
ADORO PROBLEMAS

“Presidente Eisenhower”, minha mãe disse, enquanto entregava uma caixa


de roupas velhas para guardar no sótão, “ele ganhou a guerra e, apesar do fato de
ele não estar fazendo campanha para ele, Eisenhower apoia Nixon. O que você
precisa além disso?”.
“Sim”, meu pai respondeu. “Eu gosto de Ike.40Mas Kennedy- nossoprimeiro
presidente católicoP Isso foi o suficiente para mim. Mas não para minha mãe.
“Ele é muito novo. É inexperiente e é democratar
“Isso é uma vantagem! Nós, os Moore, votamos nos candidatos democratas
desde Roosevelt!”
“Ah! Que saco!”
Que saco? Sim, minha mãe dizia muito “que saco”. E “refrigerador” (nunca
“geladeira”). E “valise” (em vez de “maleta”). A Bíblia em sua estante, do lado
materno da família, era da década de 1840. A obra completa de Shakespeare,
também dos anos 1800, era do seu pai. Sua linguagem e maneirismos também
eram do século XIX. E, sem dúvida, sua visão do Partido Republicano também
estava hospedada em um lugar perdido no tempo. Meu pai sempre gostava
de lembrá-la do partido que estava no poder quando o país caiu na Grande
Depressão. Ela ignorava essas desfeitas, pois eram irrelevantes para ela. Na
Depressão, seu pai, sendo o médico do vilarejo, era pago com galinhas, ovos e
leite, sem falar em uma máquina de costura usada aqui ou uma troca de óleo
ali. Meu pai, por outro lado, tinha lembranças de um tempo muito mais difícil,
e se havia uma coisa da qual ele tinha certeza era que seria democrata até o dia
da sua morte.
E, assim, ao longo de setembro e outubro de 1960, escutaria essa disputa
parental durante a grande eleição presidencial entre Nixon e Kennedy. Minhas
irmãs e eu estávamos do lado do meu pai (minha irmã mais nova só tinha
três anos e meio e, assim, ela só fazia que sim com a cabeça quando falávamos
com ela). Sentia-me mal por causa de minha mãe, pois ela enfrentava não só
nós quatro, mas também Deus, já que a Igreja Católica era a Única Igreja de
Verdade. As freiras e os padres mal podiam conter seu entusiasmo com o fato
de que 170 anos de intolerância anticatólica estavam prestes a acabar. Fazíamos

40 Apelido de Dwight David Eisenhower, o trigésimo quarto presidente dos Estados Unidos, de 1953
a 1961. (N. T.)
79
PIETÀ

orações diárias, segurávamos rosários, realizávamos novenas e fazíamos tudo que


podíamos rogando a Deus para colocar o católico na Casa Branca. No fim> o
valor da súplica católica demonstrou ser bastante poderoso, e Kennedy “mila­
grosamente” tornou-se presidente. Levariam outros vinte anos antes da minha
máe finalmente lançar os republicanos ao mar. “Meu pai não reconheceria esses
republicanos/”, ela diria (tenho de agradecer a Ronald Reagan por isso).
O amor de minha mãe pelo país, seu governo e suas instituições políticas
foi sempre evidente. Ela considerava isso como parte de sua responsabilidade
parental, para nos ensinar os valores de uma república democrática, especifica­
mente essa: os Estados Unidos da América.
i
i
Quando terminei o quinto ano, no verão de 1965, minha mãe colocou
minhas irmãs e eu no nosso Buick e nos levou à capital do nosso país para nossas
férias de verão. Enquanto as outras crianças da vizinhança iam para o norte, para
o acampamento de escoteiros ou para parques infantis, éramos obrigados a ir vei­
os documentos originais dos Pais Fundadores,41 a primeira bandeira costurada
por Betsy Ross,42 o avião que Charles Lindbèrgh usou para cruzar o Atlântico.
Visitamos o FBI, no Departamento de Justiça; tiramos nossa foto na frente
da estátua de Iwo Jima;43 e ajoelhamos e rezamos em Arlington no túmulo;
do nosso presidente católico assassinado. Flanamos de um extremidade à outra!
da Pennsylvania Avenue, subimos todos os 896 degraus do monumento de
Washington e visitamos nosso parlamentar para apertarmos sua mão e avisá-lo
que seriamos eleitores algum dia.
E foi enquanto eu estava ali, dentro do prédio do Capitólio, sede do Legis­
lativo americano, que me perdi da minha mãe, irmãs e nossa prima Patricia.
Estávamos indo nos sentar na galeria do Senado para assistir ao debate dos j

41 Líderes políticos que assinaram a Declaração de Independência, participaram da Revolução Ame- !


ricana como líderes ou da redação da Constituição americana. (N. T.) . j
42 Acredita-se que Betsy Ross (1752-1836) foi a primeira mulher dos Estados Unidos a confeccionar
a bandeira do seu país. (N. T.)
43 Memorial em homenagem a uma importante batalha travada entre Estados Unidos e Japão, na
Segunda Guerra Mundial, entre fevereiro e março de 1945. (N. T.)
80
ADORO PROBLEMAS

senadores de um projeto de lei que proporcionaria assistência médica gratuita


para todas as pessoas de idade dos Estados Unidos. No entanto, me distrai com
as estátuas contando a vida de Zachariah Chandler para quem quisesse ouvir.
Finalmente, comecei a perceber que estava sozinho. Minha máe e irmãs
não estavam em nenhum lugar à vista. Comecei a entrar em pânico. Onde elas
foram? Por que me deixaram ali? Talvez tivesse achado que eu era uma criança
esperta, mas não fazia a mínima ideia de onde estava, de onde elas estavam ou
de como as encontraria. Aos onze anos, a rotunda do Capitólio parecia outro
planeta para mim ou, pior, um turbilhão gigante de mármore branco girando
loucamente e sugando tudo. Tentei tomar fôlego e comecei a caminhar rapida­
mente na direção do que parecia a saída.
De alguma forma, acabei no lado do Senado do prédio e desci uma esca­
daria, buscando de modo frenético qualquer sinal da minha família. Ao per­
ceber que não estava chegando a lugar nenhum, atravessei um par de portas de
elevador exatamente quando estavam fechando.
Dentro do elevador, comecei a chorar. Havia um homem no canto pos­
terior, apoiado contra a balaustrada, seu rosto coberto pelo jornal que estava
lendo. Ele escutou minha fungada e abaixou o jornal para ver o que era aquela
comoção.
Como eu tinha sido devidamente educado em todas as coisas políticas e
católicas, imediatamente reconheci aquele homem. Ele era Robert Francis Ken-
nedy, senador de Nova York.
“O que houve, jovem?”, ele perguntou, num tom que foi bastante confor­
tante para interromper as lágrimas. Afinal de contas, ninguém nunca tinha me
chamado de jovem antes.
“Me perdi da minha mãe”, disse, com timidez.
“Bem, isso não pode ser bom. Vamos ver se podemos encontrá-la.”
“Obrigado”, eu disse.
“De onde você é?”
“Michigan. Perto de Flint.”
“Ah, sim. Meu irmão adorava aquela parada do Dia do Trabalho. Grande
parada.”
As portas do elevador se abriram, e ele pôs seu braço sobre meu ombro e me
escoltou até o guarda do Capitólio mais próximo.
81
PIETÀ

“Esse jovem de Michigan...” Ele se virou para mim: “Qual é o seu nome,
filho?”
“Michael. Moore.”
“Michael se perdeu da sua mãe, e talvez possamos ajudá-lo.”
“Sim, senador. Tomaremos conta dele.” O guarda disse ao senador que ele
cuidaria do assunto dali em diante, para que o senador pudesse prosseguir com
seus deveres muito mais importantes.
“Bem, ficarei aqui por um minuto ou dois para me certificar de que ele está
bem.”
Fiquei ali pensando o quão estúpido fui para me perder, e agora eu estava
segurando Bobby Kennedy e os trabalhos do Senado dos Estados Unidos para que
todos pudessem ir procurar minha mãe. Mãe do céu, eu estava envergonhado.
“Quantos anos você tem, Mike... posso chamá-lo de Mike?”, Kennedy
perguntou.
“Tenho onze anos. É minha primeira vez no Capitólio”, disse, esperandò
parecer menos idiota.
“Bem, você fez seu primeiro passeio no elevador do Senado. Isso quase ô
torna um senador!” O irlandês nele tinha agora se manifestado, e ele fez brotar
aquele sorriso dos Kennedy. Também sorri, e tomei a iniciativa. |
“Nunca se sabe!”, disse; então quis rapidamente desdizer essa observaçãò
sabichona. j
“Bem, já temos dois bons democratas por Michigan, os senadores McNaj
mara e...”
“... Hart!”, intervim, como se fosse um programa de perguntas e respostasi
“Você conhece seus senadores. Muito bom! E promissor”, Kennedy acres-?
centou, com um piscar dos olhos do guarda. !
“Achamos a mãe dele”, uma voz disse no rádio que o policial estava segu-j
rando. “Fique aí. Ela está chegando. ” j
“Bem, parece que tudo deu certo”, declarou o senador de Nova York. “Boaj
sorte, jovem, e nunca perca o contato com sua mãe!”
E com isso ele se foi, antes mesmo de eu ter a oportunidade de agradecê-lo,
desejar a ele tudo de bom ou recitar para ele meus trechos favoritos do discursoj
de posse do seu irmão John na presidência. j
82
ADORO PROBLEMAS

Em minutos, minha mãe, minhas irmâs e minha prima apareceram, e,


após um olhar severo e uma palavra ou duas, estávamos sentados na galeria do
Senado, escutando 98 homens e duas mulheres debaterem a aprovação de uma
nova lei que pagaria as contas dos médicos de todos os idosos; uma ideia radical,
sem dúvida. Chamaram isso de “Medicare”, e a ideia pareceu boa para a filha do
médico na galeria. A maioria dos senadores também pareceu gostar do projeto
de lei, ainda que alguns dissessem que era o primeiro passo para algo designado
como “socialismo”. Minhas irmâs e eu náo tínhamos a menor ideia do que era
aquilo; só sabíamos que era uma palavra ruim.
“Essa lei também ajudará os pobres”, nossa mãe acrescentou, e embora nós
não fôssemos, pelos princípios da Igreja era considerada uma boa coisa, mesmo
se conflitasse com os princípios do Partido Republicano da minha mãe. O pro­
jeto de lei foi aprovado, e um senador afirmou que os idosos nunca mais teriam
de se preocupar de novo a respeito de falir por causa das contas dos médicos.
Alguns dias depois, quando voltamos para sentar na galeria da Câmara dos
Deputados, um novo projeto de lei estava em discussão: a Voting Rights Act (Lei
de Direitos de Voto), de 1965. De assistir ao telejornal noturno e ler o jornal
diário, sabia que as “pessoas de cor” estavam sendo tratadas injustamente, até
mesríio assassinadas. Alguns meses antes, em março de 1965, uma dona de casa
branca de Detroit, Viola Liuzzo, perturbada com o que via na TV com respeito ao
tratamento brutal dado aos negros, decidiu tomar o rumo de Selma, no Alabama,
para participar de uma manifestação com o reverendo Martin Luther King. Eu
sabia que King era o homem negro responsável pelo movimento dos direitos civis,
e na cidade em que eu morava seu nome era raramente mencionado; e quando
era, geralmente tinha outras palavras associadas, nenhuma agradável.
A senhora Liuzzo, mãe de cinco filhos, foi brutalmente assassinada pela
Ku Klux Klan44 enquanto trabalhava como motorista voluntária no traslado
ida e volta de manifestantes para Selma. Foi um choque para a maior parte
de Michigan. E quando escutei isso sendo discutido por Jesse, o barbeiro, ele
informou a aqueles que estavam cortando o cabelo que, naquele dia, ela foi
encontrada com “um crioulo” no carro - uma mulher casada fazendo algo
errado e “metendo-se onde não devia!”. A barbearia de Jesse era o lugar onde

44 Organização racista norte-americana que defende a supremacia branca e o protestantismo. (N. T.)
83
PIETÀ

você ia para saber das coisas em Davison, e o lugar estava sempre cheio. Jesse
era um homem baixo, com cabelo curto, e sempre tinha um par de tesouras ou
uma longa navalha na sua mão. Isso era problemático, pois ele usava óculos de
lentes fundo de garrafa, o tipo de óculos de cego, e isso me assustava quando eu
sentava na sua cadeira, enquanto ele era cortejado por seus bajuladores e usava
seus instrumentos afiados para fazer diversos sinais de pontuação no ar.
Durante muitas noites após o assassinato da senhora Liuzzo não consegui
dormir, e quando conseguia, tinha pesadelos de que era minha mãe que havià
sido encontrada morta no carro na estrada do Alabama. Contei isso para meus
pais, e eles sugeriram que eu deixasse de ver o noticiário por algum tempo, mas
continuei a sintonizar Walter Cronkite45 todas as noites.
Era confuso para mim e minhas irmãs, sentados na galeria da Câmara dos
Deputados, escutar um homem falando que “não é assunto do governo federal5!
quem tem o direito de voto.
“Por que eles não querem que as pessoas votem?”, perguntei para minha
mãe.
“Algumas pessoas não querem que algumas pessoas votem”, ela respondeu,j
tentando me proteger do fato de que mesmo parlamentares dos Estados Unidos
podiam pensar como os homens que mataram Viola Liuzzo.
No dia seguinte, fizemos uma viagem de carro muito longa e terrivelmente
quente até Monticello, o lar de Thomas Jefferson. O local histórico, situado j
a cerca de duas horas ao sudoeste de Washington, bem no interior do estado j
de Virgínia, nos levou ao começo do “Sul real”, como nossa mãe chamava, j
O passeio para Monticello não foi muito memorável, exceto pelas passagens!
muito baixas das portas, o que indicava que as pessoas, há duzentos anos, não
eram muito altas, e pela omissão gritante de qualquer menção dos escravos de
Jefferson.
No caminho de volta para Washington, paramos para colocar gasolina e j
para usar o banheiro. Caminhei com minha mãe até os fundos do posto, onde j
havia duas portas. Uma estava sinalizada com a palavra WHITE (branco) e a j
outra com COLORED (negro) (ainda que parecesse que alguém tivesse tentado j

45 Cronkite (1916-2009) foi jornalista e apresentador de TV, durante muito tempo foi considerado o :
homem com mais credibilidade nos Estados Unidos. (N. T.)
84
ADORO PROBLEMAS

raspar essa última palavra, mas sem sucesso). Parei e náo tirei os olhos dessas
placas, e, embora soubesse o que significa, quis escutar a explicação da minha
mãe a esse respeito.
“O que é isso?”, perguntei.
Ela observou as placas e ficou em silêncio por um momento.
“Você sabe o que é”, ela disse, laconicamente. “Apenas entre, faça o que
você precisa fazer e saia.” Entrei no banheiro para negros e ela entrou no para
brancos. Quando saímos, ela me levou de volta para o carro.
“Entre e fique com suas irmãs.”
Então ela caminhou na direção do escritório do posto com o tipo de marcha
que nós, três crianças, sabíamos querer dizer que cabeças rolariam. Colocamos
nossas cabeças para fora das janelas do carro, esperando escutar o que ela estava
dizendo para o homem no balcão, mas tudo que esteve ao nosso alcance foi a
expressão de lábios cerrados e os poucos movimentos feitos por ela com o dedo
indicador. O homem também fez alguns gestos, incluindo um gesto de indife­
rença com os ombros. Ela voltou para o carro, entrou e ficou calada.
“O que você fez?”, perguntei.
“Não é da sua conta”, ela disse, me cortando. “E tranquem suas portas.”
(Essa seria a única vez na minha vida que escutaria esse pedido quando está-
vamos nas proximidades de brancos.) Nunca soubemos o que ela falou para
o homem ou o que ele falou a ela; anos depois, gostava de pensar que ela o
criticara furiosamente pelo fato de seus filhos terem de testemunhar essa imora­
lidade nos Estados Unidos que ela amava. Ele pode ter dito a ela que ele apenas
ainda não tivera tempo de tirar aquilo, ou tinha tentado (a Lei dos Direitos
Civis declarando ilegais essas coisas fora aprovada doze meses antes), ou talvez
disse a ela para sair dali, levando junto seu amor pelos negros. Ou talvez ela só
reclamou que o banheiro feminino estava sem papel higiênico. Sempre pensei
em perguntar, mas não perguntei. Ela não era Viola Liuzzo e, por isso, penso,
fico grato, pois gostaria que minha mãe estivesse viva.

Essa viagem até Washington para ensinar como nosso governo funcionava estava
chegando ao fim, mas nossa mãe tinha programado uma “segunda parte” para
85
PIETÀ

nossa viagem de verão: estávamos indo para Nova York e para a Feira Mundial
de Nova York! Quando ela tinha dezoito anos, seus pais a levaram para a Feira
Mundial de Nova York de 1939, e foi ali que ela viu pela primeira vez inven­
ções como a televisão e vislumbrou o “Mundo do Amanhã”. Nós teríamos um
vislumbre do nosso futuro por meio dessa nova Feira. Cinco horas depois, che­
gamos na casa de nossa tia, em Staten Island.
A Feira Mundial de Nova York de 1964-65 foi uma experiência estonteante.
Situada em 260 hectares no distrito de Queens, a Feira incluiu mais de 140
pavilhões e estandes de todo o mundo. A maior parte disso, para nossos olhos
juvenis, era uma visão excitante do que os adultos daquele tempo achavam que
o mundo pareceria no século XXI. O pavilhão da IBM apresentou-nos o que
os computadores poderiam fazer por nós, e, embora nunca fosse sugerido que
teríamos nossos próprios computadores, estimulava a imaginação e criava um
entusiasmo com o mundo audacioso do futuro novo milênio.
No pavilhão da Pepsi, assistimos a um espetáculo muito divertido, inti- j
tulado “Its a Small World” (“Este é Um Mundo Pequeno”), um precursor da
vibração “We Are the World” da década de 1980, ainda que a Pepsi estivesse
mais preocupada em derrotar a Coca-Cola do que com a fome na África.
Mas não havia nada que chegasse perto do gigantesco edifício patrocinado
pela General Motors. Chamava-se Futurama, e por sermos todos da cidade natal
da empresa, ficamos muito orgulhosos de atravessar suas portas. Colocaram- j
-nos em cadeiras, e, de repente, essas cadeiras começaram a se mover. Elas nos
levaram a um passeio através do futuro: carros voadores, cidades sob os oceanos,
colônias na Lua e pessoas felizes em todos os lugares. Era um mundo em paz,
onde todos tinham um bom emprego, e não havia pobreza, poluição ou algo
que pudesse nos preocupar. Isso era bacana. Recomeçamos o passeio e, dessa
vez, tomei notas. A GM estava fazendo uma promessa muito generosa e queria
ser capaz de contar aos meninos da vizinhança a esse respeito.
Muitos estados e países também tinham seus próprios pavilhões. O estado
de Nova York tinha três torres nas quais se podia ver a área metropolitana da
grande Nova York, incluindo subúrbios e cidades satélites. A mais alta tinha um
saguão enorme, com um mapa de Nova York de um milhão de dólares feito com
ladrilhos exóticos (e uma estrela no local de cada posto Texaco no estado). No
topo da torre havia um restaurante giratório. O novo estado do Alasca tinha um
86
ADORO PROBLEMAS

estande, assim como Wisconsin (amostras grátis de queijo!), e a Grã-Bretanha, a


França, o Canadá e dezenas de outros países estavam bem representados.
Mas as maiores filas estavam reservadas para o pavilhão da Cidade do Vati­
cano. O motivo estava dentro desse edifício: uma obra de arte da Basílica de São
Pedro que o papa enviou ao exterior pela primeira vez na história. No entanto,
não era uma obra de arte qualquer. Era uma das mais famosas esculturas da
História do mundo: a Pietà, de Michelangelo.
A Pietà representava a Virgem Maria, a mãe de Jesus, segurando o corpo
do seu filho morto após ser tirado da cruz. Tinha aproximadamente 1,80 metro
de altura e 1,80 metro de largura, e era somente a terceira escultura de Miche­
langelo, artista de 24 anos e de certa forma desconhecido de Florença, na Itália.
Para ver a Pietà, você tinha de esperar numa longa fila e, uma vez dentro,
você pegava uma esteira rolante, na qual observava a escultura numa velocidade
de dois quilômetros por hora. Nenhuma foto era permitida, e o silêncio e a
reverência eram sempre esperados.
Na minha passagem pela Pietà, fiquei paralisado de admiração. Nunca
tinha visto nada parecido. De repente, todos os estandes descrevendo o futuro
eram uma memória distante, pois essa peça de mármore de quatrocentos anos
atrás me petrificou de espanto. A esteira rolante movia-se muito rápido para
mim, e, enquanto passava ao lado da estátua, estiquei meu pescoço o máximo
possível, até ser despejado do lado de fora do recinto.
“Quero voltar!”, disse para minha mãe.
“Sério? Ah, ok. Meninas, vamos voltar para a fila.”
Voltamos para a fila e, uma hora depois, estávamos de novo na esteira
rolante.
Dessa vez, coloquei meus olhos em câmara lenta e captei cada centímetro
da Pietà. Ali estava Maria segurando seu filho único —seu filho morto —, mas
ela não estava triste! Sua expressão era jovem, serena e... contente. Há algum
momento pior na vida de alguém do que a perda de um filho? E isso acontecer
de modo tão violento, cruel - e você, a mãe, ter sido obrigada a ver todo o nau­
seante martírio? E, no entanto, não havia nenhum sinal de violência na Pietà;
apenas uma mãe observando seu filho deitado nos seus braços. E aquela era a
aparência de Jesus: adormecido serenamente nos braços dela. Nenhum sangue
da coroa de espinhos, nenhum orifício no seu corpo como resultado das lanças
87
PIETÀ

romanas. E como se ele fosse acordar a qualquer momento; e Maria sabia disso.
Havia morte, mas também havia vida.
Não podia entender muito mais do que isso - enfim, eu tinha onze anos! -,
mas era profunda e fez minha cabeça girar —e eu queria ver de novo!
“Não, temos de seguir adiante”, minha mãe respondeu aos meus pedidos.
Minhas irmãs também não aguentavam mais, pois queriam voltar para as atrar
ções mais divertidas da Feira.
“Mas eu quero tirar uma foto! Temos de mostrar para o papai!”
Isso venceu a discussão: algo para o papai, de volta à casa, trabalhando na
fábrica. E, felizmente, minha mãe não tinha visto os avisos de PROIBIDÒ
TIRAR FOTOS. Assim, voltamos pela terceira vez; minha mãe com a filmadorá
Bell & Howell de 8 mm, eu com a Kodak Brownie na mão.
Na terceira passagem - em que fomos punidos por causa das câmeras (isso
perturbou minha mãe, que não gostava de receber ordens de ninguém) -, fiquei
completamente concentrado no rosto da Virgem Maria. Em certo momento,
afastei-me um pouco para observar o rosto da minha mãe, e decidi que,
a semelhança era suficiente para garantir melhor tratamento dela nas próximas |
semanas. j
Antes de sair do pavilhão da Cidade do Vaticano, aproximei-me de umj
grupo de monsenhores com paramentos parados perto da Guarda Suíça. Queria ,
fazer duas perguntas. Um padre de aparência amigável e pronúncia irlandesa, j
com um nariz bem vermelho, ofereceu sua ajuda. j
“Havia algo escrito entalhado nas vestes de Maria”, disse, inocentemente.
“O senhor sabe o que diz?”
“Diz MICHAEL. ANGELUS. BONAROTUS. FLORENTIN. FACIEBAR.
Michelangelo Buonarroti de Florença Criou Isso. Ele entalhou isso ali, pois quando
apresentou a escultura, ouviu as pessoas darem crédito a outro famoso escultor |
da época, que disseram ‘fulano deve ter feito isso!\ Isso perturbou Michelangelo. í
Assim, naquela noite, ele entrou na Basílica de São Pedro e entalhou essa inscrição í
através da faixa de Maria. No entanto, quando ele voltou no dia seguinte, viu o |
que tinha feito e ficou envergonhado e angustiado que tivesse desfigurado sua j
própria obra de arte por causa do seu orgulho e vaidade. Naquele momento, ele j
jurou, como sua penitência, nunca assinar outra escultura sua de novo. E nunca i
mais assinou.” I
88
ADORO PROBLEMAS

Fiquei calado para entender aquilo, e pareceu uma boa lição para ouvir.
Minha outra pergunta era mais simples: “O que significa PietàV'
“É italiano”, o padre afirmou.
“Significa piedade’55.

“Quero ver onde ficavam as Torres Gêmeas”, ela disse, e não me deixaria
convencê-la do contrário. Não queria levar minha mãe até o sul de Manhattan.
Não gostaria que essa fosse a última possível recordação da cidade que ela ado­
rava, um lugar que era tanto parte da sua imaginação e lembrança, quanto fonte
de toda vida de alegria quando ela pisava nessa ilha. O lugar mágico ainda
estava queimando, as chamas subterrâneas ainda ardendo, cerca de dez semanas
após o ataque. Tinha cheiro de morte, e o progresso de vasculhar através dos
220 andares de aço retorcido e concreto pulverizado, na busca dos mortos, era
terrivelmente lento.
«r?Eu quero ver.”
Alguns dias antes, fui ao aeroporto de LaGuardia, em nosso Fusca, para
pegar meus pais, que tinham vindo para passar conosco o fim de semana do
feriado do Dia de Ação de Graças. Parado atrás da zona de segurança recém-
reforçada do aeroporto, pude ver os dois se aproximando pelo corredor do ter­
minal da Northwest Airlines. Minha mãe não estava bem, e sua saúde piorava
a cada mês. No entanto, ali estava ela, caminhando três passos à frente do meu
pai, como se fosse vinte anos mais nova; o tipo de ritmo em seu passo que só
Nova York era capaz de lhe dar. Ela também me viu muito antes do meu pai e
começou a acenar com entusiasmo. Acenei de volta.
Toda e qualquer “desaceleração” que ela sentiu na casa dela não se mani­
festou assim que ela se instalou firmemente em Manhattan. Não mais obrigada
a pegar o barco e o ônibus para chegar na cidade a partir da casa da irmã dela
em Staten Island, ela agora estava “bem de vida”, como meu pai disse, em nosso
apartamento do West Side. Ele caminharia dentro do meu condomínio e, sem
dúvida, comentaria que eu estava “levando uma vida abastada e confortável”.
Isso estava muito além do que ele podia ter imaginado no chão de fábrica da
89
PIETÀ

divisão AC Spark Plug, e, enquanto desfrutava das comodidades e da vista da


cidade, mantinha-se apropriadamente cético para um homem dos seus meios.
Na noite anterior ao Dia de Ação de Graças, minha mulher e eu levaníos
meus pais até a rua 81 Oeste e ao longo da Central Park West, para que
pudessem ver os balões sendo inflados para a Parada da Macy s do dia seguinte.
Estava frio, e os agasalhamos o máximo possível, e, por pouco tempo, eles
gostaram de estar com milhares de nova-iorquinos admirando um Snoopy
esvaziado e um Bart Simpson um pouco inflado estendido no chão (embora
não tivessem a menor ideia de quem era aquele último). Era uma espiada nos
bastidores, uma das muitas que eles deram, devido à minha Vida Depois de
Flint - uma viagem ao Festival de Cinema de Cannes, com a subida da esca­
daria do Palais; assentos no Prêmio Emmy perto de Sid Caesar na noite que
ele ganhou; a possibilidade de conhecer pessoas como Rob Reiner,46 que disse
a eles que “o filme do seu filho tem o impacto de uma Cabana do Pai Tomás ’
—só aquilo valeria o preço do ingresso se você fosse um dos pais, ligeiramente
embaraçoso se você fosse o filho.
No entanto, agora minha mãe queria ver o Marco Zero, o local do recentie
massacre de 2.752 pessoas. Concordei e, achando que estaria menos lotado por
causa do Dia de Ação de Graças, coloquei-os no Fusca e peguei a West Sidje
Highway.
Em meados de novembro de 2001, as autoridades tinham aberto mais
ruas em Tribeca para o trânsito, e era possível chegar direto no perímetro da
ex-localização do World Trade Center. O lugar era, em cada pedaço, a área de
calamidade que tinha sido nos últimos dois meses, e a fumaça ainda podia ser
vista flutuando sobre as ruínas.
Desacelerei o carro para que eles pudessem ver melhor. Espiei minha mãe,
que estava sentada no assento dianteiro ao meu lado. Havia lágrimas nos seus
olhos, e teria de remontar à morte da irmã dela para me lembrar de tal expressão
de tristeza. Era como se os músculos faciais dela tivessem acabado de desabar
por sua própria conta. Ela olhou para baixo e depois para longe. Então, voltou

46 Ator, diretor, produtor, roteirista e ativista político (N. T.)


90
ADORO PROBLEMAS

a olhar para a destruição. Não era a Nova York de Ed Sullivan,47 do Rainbow


Room48 ou da Broadway.
Era o futuro não prometido, o mundo do amanhã, e tive pena de ela ver isso.

“Mike! MikeF
Eu estava sentando na sala de estar da casa dos meus pais, no norte de
Michigan, planejando o filme que reuniria a família na próxima meia hora. A
opção ficou entre Homens de Preto II ou Divinos Segredos. Era o fim de semana
de 4 de julho de 2002, e minha irmã Verônica tinha vindo da Califórnia com
seus filhos para ficar com minha mulher e filha e nossos pais. Era sábado, no
começo da noite, e tínhamos passado o dia no lago, onde as crianças brincaram
com uma câmara de ar e meus pais deram uma volta de barco. Minha mãe
segurou seu chapéu, riu e me advertiu para diminuir a velocidade, enquanto as
crianças na câmara de ar gritavam para eu acelerar.
Mais tarde, antes do jantar, sentei minha mãe numa cadeira adirondack no
alto de uma pequena colina perto do lago. Ela dobrou para cima suas calças para
pegar sol nas pernas e fechou os olhos; podíamos ver que isso a fazia se sentir bem.
Nas últimas três semanas, tirei uma folga do trabalho e vim para Davison
para ficar com eles. Levei-os para celebrar o aniversário de casamento com um
jantar, e fizemos passeios de carro para todos os lugares dos seus anos de cresci­
mento na região de Flint. Visitamos os túmulos de todos os ancestrais, alguns
com datas de nascimento remontando ao final do século XVIIL Plantamos
flores, visitamos o UAW49 em busca de assistência jurídica gratuita (eles que­
riam atualizar seus testamentos), e fomos ao jogo do Tigers em Detroit. Foi,
sem nenhuma dúvida, três das melhores semanas que passei com eles. Ainda que
minha mãe estivesse perdendo a energia, ela participou de tudo. Mas percebi
que o tempo que ela passava no banheiro estava ficando cada vez maior. Meu

47 Sullivan (1901-1974) foi um célebre apresentador de TV, principalmente nas décadas de 1950 e
1960. (N. T.)
48 Era um restaurante e clube noturno luxuoso, no sexagésimo quinto andar do Edifício GE, no
Rockefeller Center, em Nova York. (N. T.)
49 United Auto Workers, sindicato de trabalhadores de diversos setores industriais. (N. T.)
91
PIETÀ

pai reclamava a esse respeito, e concordei que devíamos levá-la ao médico para
um exame minucioso. i

“Mike! Mike!”Era a voz da minha mãe, mas não estava vindo do interior da casa,
onde o resto de nós estava. Estava vindo do terraço da parte de trás. Saí para ver
o que ela queria.
Quando atravessei a porta, ficou evidente que ela estava muito doente. j
“Preciso ir ao banheiro...” Naquele momento, ela vomitou, e o que ela
vomitou foi uma substância viscosa muito escura. Meu pai, naquele momento,
tinha aparecido para ver qual era o problema, e ele e eu ajudamos minha mãé a
se levantar, e a levamos para dentro da casa. Minha mulher ligou para o hospital
local para ver o que sugeriam.
“Pepto Bismol”, minha mulher disse, retransmitindo a mensagem. Isso não
parecia tarefa para um líquido rosa. Minha mãe continuou a vomitar. “Acho que
devemos levá-la ao hospital”, eu disse. Não quis chamar uma ambulância, pois
levaria muito tempo (a mais próxima estava, no mínimo, a 13 quilômetros de
distância).
Levamos minha mãe lentamente para o Ford do meu pai, e minha mulher
e minha irmã a acomodaram no assento traseiro. Assumi a direção e peguei ò
longo caminho da casa até a estrada. A casa ficava no meio do nada (em 2002,
a estrada ainda não tinha sido cabeada para TV a cabo).
Quando cheguei ao fim do caminho da entrada para carros, tive de tomar
uma decisão rápida: levá-la ao hospital mais próximo ou levá-la a um hospital
melhor?O hospital mais próximo ficava numa pequena cidade a 37 quilômetros
ao norte. O melhor hospital do norte de Michigan ficava na direção oposta, a
72 quilômetros, duás vezes a distância. Assim, esse era o dilema. Sua mãe está
gravemente doente, você não sabe o motivo, mas não parece nada bom. Você á
leva para um socorro imediato ou, se ela estiver num estado muito pior do qué
você imagina, você percorre uma distância maior e chega num conjunto melhor
de médicos e recursos?
O que você faria? Você a levaria para o hospital mais perto, certo? Certo? Foi
o que fiz. Escolhi o hospital mais próximo.
92
ADORO PROBLEMAS

Cheguei ali em tempo recorde - menos de vinte minutos - e a levamos para


dentro, relatamos o problema, e a encaminharam imediatamente. Havia apenas
um médico em serviço, mas não demorou muito para ele aparecer.
“Aparentemente, o trato intestinal dela está bloqueado. Vamos fazer alguns
raios X.” E, de fato, os raios X confirmaram as suspeitas do médico.
Deram-lhe líquidos que disseram que deveriam ajudar. Não ajudaram. Deram
uma injeção e disseram que deveria chegar ao resultado desejado. Não chegou.
“Tudo bem”, disse o médico, finalmente. “Eis o que nós vamos fazer. Vamos
realizar uma série de quatro ou cinco enemas e mantê-la aqui durante a noite.
Isso deve funcionar, e ela deve ser capaz de ir para casa amanhã.”
Fomos com ela para o quarto e esperamos até que a equipe estivesse pronta
para iniciar os procedimentos do enema. Nesse ponto, a enfermeira sugeriu:
“São quase três da manhã. Por que vocês não vão dormir um pouco e voltam
de manhã?”.
Nossa mãe concordou. “Leve seu pai para casa, para ele descansar um
pouco. Eu estarei bem. Verei vocês de manhã.”
Por motivos que nunca pudemos explicar depois para nós mesmos, acei­
tamos seu conselho e, surpreendente e chocantemente, a deixamos sozinha
naquele hospital minúsculo. Fomos para casa e desabamos rapidamente; e tão
rápido quanto acordamos algumas horas depois.
“Michael Moore está?”, perguntou a voz, no telefone. “Aqui é o doutor
Calkins, o cirurgião do hospital. Os enemas não funcionaram na sua mãe, e ela
piorou. Precisamos operar. Em quanto tempo você pode estar aqui?”
Em menos de vinte minutos estávamos ali. Minha mãe parecia constran­
gida e desgostosa por estar incomodando a todos pelo transtorno que estava
causando. “Vocês dormiram?”, era sua preocupação máxima.
“Não se preocupe conosco”, eu disse. “Como você está?”, perguntei.
“Bem, nada parece estar funcionando. Eles querem operar”, ela afirmou,
com a voz fraca.
Levei o médico para fora do quarto e pedi para que ele explicasse para mim
o que estava acontecendo.
“Os intestinos da sua mãe estão arruinados”, ele disse sem rodeios. “É muito
provável que teremos de tirar um pedaço dele.”
“O senhor tem certeza de que isso é necessário?”
93
PIETÀ

“Se não operarmos, ela poderá entrar em choque séptico. A bactéria presa
ali pode já ter se infiltrado na mucosa do intestino dela. É um procedimento
comum. Fiz muitos deles. Não deve levar mais do que uma hora ou duas. Ela
vai ficar bem.”
“Bem? Quantos desses procedimentos o senhor disse ter feito?”
“Faço um ou dois por ano. E faço isso há trinta e poucos anos. Agora,
nessas circunstâncias, sou tudo que você tem, pois sou o único aqui, e acho que
devemos começar.”
Voltamos para o quarto e a enfermeira trouxe uma papelada para meu
pai assinar. Em seguida, ela pediu para minha mãe assinar o formulário de
consentimento.
“Você assinaria por mim, Frank?”, minha mãe pediu para meu pai.
Ele pegou a prancheta e assinou, lentamente. Nós apertamos a mão de
minha mãe e lhe dissemos que tudo daria certo. Ela nos garantiu que tudo aca­
baria bem. Consegui não chorar. A equipe a levou, e fomos para a sala de espera
para aguardar uma hora ou duas.
Quatro horas depois, o cirurgião não tinha aparecido, e uma atmosfera
sombria caiu sobre a sala. Qualquer que fosse a notícia, não seria boa. !
Finalmente, o médico apareceu.
“Acho que foi tudo bem”, ele disse. “Ela está se recuperando bem agora.
Tivemos de retirar cerca de trinta centímetros do intestino dela. Diria que as
chances de uma recuperação total são de cerca de 90%.”
Uau! Você sabe quantas vezes você viu aquele médico atravessar aquelas
portas - mil vezes - nas séries da TV e nos filmes, e raramente é uma boa notícia.,i
Ele nos explicou que ela provavelmente teria de ficar no hospital durante o resto
da semana. Ele não vira nenhuma infiltração na mucosa intestinal, e os sinais;
vitais dela estavam todos bons. De fato, poderíamos vê-la em algumas horas, j
assim que ela acordasse. j
Agradecemos o cirurgião e, com uma sensação de alívio, caminhamos na j
direção da unidade de tratamento intensivo. Bem, não havia nenhuma “uni­
dade”, ou ala, naquele hospital. Ele tinha uma pequena UTI com dois quartos.
Tudo bem. Ela estava bem!
94
ADORO PROBLEMAS

Quando entramos no quarto da nossa mãe, ela estava ligada a todos os


monitores padrão e tubos intravenosos, mas estava acordada e alerta, e muito
feliz de nos ver.
“Aqui estou”, ela disse, percebendo o óbvio. Gostei de ouvir isso: primeira
pessoa, tempo presente.
“Bem, o médico diz que você passou com louvor!”, disse a ela, enquanto
puxava uma cadeira para perto da cama. Minha irmã, minha mulher e meu pai
também demonstraram otimismo em suas avaliações a respeito da condição dela.
“Você vai ficar boa, mamãe”, Verônica afirmou, dando-lhe um beijo na
testa. “Realmente, você parece bem saudável!”
Nossa única preocupação até aquele momento fora o efeito de colocar uma
pessoa tão idosa sob sedação. Alguns amigos tinham nos contado histórias nada
boas do que acontecera com seus pais depois de nocauteados com anestesia. Às
vezes, nem toda a memória deles voltava, ao menos não de imediato. Decidi
aplicar um teste em minha mãe.
“Ei, mãe, você sabe que dia é hoje?”
“Claro”, ela respondeu. “É domingo.”
“Onde foi a sua lua de mel com o papai?”
“Nova York. Boston. Albany.” (Eu sei. Albany. Não pergunte.)
E agora a pergunta final. Era uma família que adorava ver filmes.
“Onde você viu pela primeira vez Matar ou MorrerF
“Cheboygan, em Michigan. Em 1952!”, ela respondeu sem pestanejar.
Uau! Crise evitada. Passe os créditos!
Todos conseguiram uma cadeira, e passamos as horas seguintes conversando
a respeito dos bons tempos, da criação dos filhos, e do doutor Wall e da vez que
ele ficou “obstruído” pouco antes do seu casamento e de como ele também teve
de ir para o hospital e quase não saiu vivo. Nunca as discussões sobre enemas
foram tão encorajadoras.
Ocasionalmente, o médico e as enfermeiras de plantão passavam para vê-la,
para mudar as bolsas para administração intravenosa, para verificar a região
onde a cirurgia ocorreu. Ela cochilava de vez em quando, com o corpo querendo
se restabelecer após o trauma da cirurgia.
Às nove da noite, decidimos que adotaríamos turnos e ficaríamos com ela
durante todo o tempo da internação. Ofereci-me para o primeiro turno, até
95
PIETÀ

de manhã. Verônica e minha mulher levaram meu pai e as crianças para casa.
Acomodei-me com um livro e o meu sempre presente bloco de anotações, esbo­
çando os ajustes finais que queria fazer no meu filme antes do seu lançamento
no outono.
De vez em quando, minha mãe acordava, e nós conversávamos.
“Tenho muita sorte em ter a família que tenho”, ela afirmou.
“Nós temos muita sorte de ter você”, disse-lhe, passando uma toalha morna
no rosto dela, exatamente como ela fazia conosco muitos anos atrás.
“Estou com sede”, ela afirmou. Ela não tinha permissão de ingerir alimentos
ou líquidos, nem mesmo água, durante aquelas primeiras 24 horas. Tudo que
podia fazer era deixá-la sugar um cotonete que tinha uma minúscula esponjà
úmida na ponta. Segurei um na boca dela, e ela sugou com certo desespero.
“Estou crestada.” Sorri. Ninguém dizia “crestada” neste século ou no
passado.
“Deixe-me fazer isso”, disse, enquanto pegava outro cotonete e esfregava em
torno da boca dela. Como uma criancinha olhando para o mamilo da mãe, ela
agarrou o pequeno cotonete com a boca, a língua, o dente, querendo mais, maisj
“Sedenta.”
“Acho que é tudo que podemos fazer por ora, mãe. Sentarei aqui com você
e faremos isso de novo daqui a pouco.”
Sentei na cadeira perto da cama dela e me acomodei.
“Pegue um dos meus travesseiros”, ela disse, enquanto erguia a cabeça e
tentava pegar um deles.
Não acreditei... No estado dela, minha mãe estava preocupada com o fato|
de eu não ter um travesseiro. Mesmo no seu pior sofrimento, os instintos dela
eram ainda de ser mãe, de cuidar do seu filho, de assegurar que ele estivesse bem,j
de permitir que ele dormisse em paz e com aconchego. Sobre o travesseiro dela.í
“Tudo bem, mãe”, disse com um sorriso, tentando conter uma gargalhada.
“Não preciso de um travesseiro. Fique com ele.” Recoloquei o travesseiro no
lugar, e a cabeça dela, naquele momento, acomodou-se de maneira confortável.
“Adoro minhas crianças. Tenho bons filhos”, ela disse, com um sorriso doce
e tímido.
Pus minha mão sobre o rosto dela e penteei delicadamente seu cabelo com
meus dedos.
96
ADORO PROBLEMAS

“Nós também amamos você”, disse. Senti-me afortunado de tê-la como


minha mãe.
Pouco depois, a enfermeira da noite entrou com uma auxiliar e disse que
precisava pôr potássio na bolsa de remédios da minha mãe e trocar o lençol da
cama. A favor do recato e privacidade da minha mãe, ela sugeriu que talvez eu
pudesse “sair do quarto por alguns minutos”. A enfermeira tinha uma longa
trança, que se estendia por suas costas, do tipo que, suponho, podemos ver
numa comunidade religiosa. Seus óculos eram como algo do final da década de
1970, e emolduravam um rosto que parecia congelado no tempo.
Saí do quarto e fiquei esperando no corredor. Pouco depois, escutei um
pânico humano absoluto.
“Não... Mude ela de lugar. Aí! Pare! Temos um problema!”
Voltei correndo para o quarto, e vi minha mãe ser vítima de, no que depois
soube, uma parada cardíaca. A enfermeira entrou em pânico, e sugeri que cha­
mássemos o médico imediatamente.
“Sim, certo.” Ela pegou o interfone e chamou o único médico na sala de
emergência.
Minha mãe estava lutando para respirar... arfando, arfando, arfando, seus
olhos fixos nos meus, como dizendo: Porfavor, me ajude!
“Tudo vai dar certo, mãe. Um pouco de paciência!”
Virei-me para a enfermeira e exigi ação. “Precisamos do médico aqui agora!
Será que terei de ir buscá-lo?”
O médico entrou e, imediatamente, percebeu o problema. “Ela precisa res­
pirar! Onde está o respirador?”
Naquele momento, a pequena UTI, daquele hospital de cidade pequena,
não tinha um respirador mecânico.
“Pegue o portátilF , o médico gritou. A enfermeira obedeceu, pegou um
pequeno dispositivo de plástico, que tirou de um saco plástico, e, então, inseriu
na boca da minha mãe. Ela o colocou de cabeça para baixo.
“Ei, dê para mim!”, o médico ordenou. Ele tirou dela, inseriu na boca da
minha mãe, colocando o tubo diretamente na garganta dela. “Assim, bombeie
dessejeito!”
Meu Deus, que diabo estava acontecendo? Ele estava tendo de mostrar para
a enfermeira como levar ar aospulmões da paciente? Aquilo era uma loucura. Quis
97
PIETÀ

intervir, ajudar, fazer alguma coisa, fazer reanimação cardiopulmonar, algo,


QUALQUER COISA... Deus, isso não está acontecendo!
Enquanto a enfermeira bombeava, o médico mandou a auxiliar descer até a
sala de emergência e trazer o único respirador mecânico do hospital. O médico
continuou cuidando da minha mãe, deu uma injeção de alguma coisa, massa-
geou algo, e a única boa notícia naquele momento era que o monitor cardíaco
nunca mostrou falta de atividade cardíaca. O coração ainda estava batendo; o
oxigênio estava sendo levado ao sangue.
Peguei meu celular e liguei para casa. Minha irmã atendeu.
“Acho melhor vocês virem para cá agora”, disse, tentando disfarçar meu
pânico. “Algo aconteceu. Não se matem para chegar aqui. Ela está viva. Mas
nada bem. Venham agora!”
O respirador chegou com outra enfermeira, e o médico não perdeu tempo,
escorregando o tubo direto na garganta da minha mãe. Os olhos dela não estavam
mais fixos nos meus. Estavam abertos, paralisados, olhando direto para cimaje
aparentemente alheios ao que estava acontecendo com ela. Naquele momento,
um relâmpago iluminou o quarto do hospital. Não percebera que, nos últimos
quinze minutos, um temporal havia começado, e, naquele momento, estaya
no auge. Os trovões eram ensurdecedores e os relâmpagos continuavam ilumi­
nando a UTI. Olhei para o relógio: meia-noite e quarenta e cinco minutos. Por
algum motivo, com tudo que estava acontecendo, lembrei-me de que nascera
ao meio-dia e quarenta e cinco minutos.50 Como sabia disso? Em todos os ani­
versários da minha vida adulta, independentemente de onde estivesse, exata­
mente ao meio-dia e quarenta e cinco minutos, minha mãe ligava para dizer
que aquele era o momento em que tinha me dado à luz. Agora, aqui estava eú,
desmoronando por dentro, inerme, perdido, chocado, inútil e impotente, nesse
momento crítico, onde eu era responsável por dar vida a ela ou, no mínimo,
salvá-la. A voz dentro da minha cabeça continuava percuciente: VOCÊ tomou
a decisão errada! Sim, havia escolhido o hospital mais perto e não o melhor
hospital, onde tinha certeza que não testemunharia uma versão Mack Sennett:>1

50 No original, 12h45 a.m. e 12h45 p.m. (N. T.) !


51 Sennett (1880-1960) foi diretor de cinema, conhecido como inovador das comédias de pancadaria.
(N.T)
98
ADORO PROBLEMAS

de tratamento intensivo, em que os Keystone Cops52 finalmente encontram o


único respirador mecânico no armário de material de limpeza e o tiram, pergun­
tando uns aos outros se sabem como esse moderno aparelho funciona. Eu estava
enjoado, enjoado, e queria vomitar.
Aproximei-me da minha mãe e coloquei minhas mãos sobre ela. Sussurrei
no seu ouvido: “Estou aqui. Você está bem. Tudo acabará bem. Fique comigo.
Não me deixe. Papai e Verônica estão a caminho!”.
Curvei minha cabeça, fiz uma oração e pedi a Deus para poupá-la, não
levá-la, deixá-la viver. Não era a hora dela! Pedi para Ele tirar tudo de mim, tudo
que tinha, todos meus bens, minha carreira - qualquer coisa\ entregaria tudo
naquele momento para que ela pudesse viver. Era um pedido maluco, ilógico e
desnecessário. Deus —ou a natureza ou a minha própria mãe - decidiriam se o
corpo dela conseguiria continuar vivo. No entanto, pensei nisso, e me sentiria
muito feliz se minha oferta fosse aceita.
Meu pai, minha irmã e minha mulher chegaram, um pouco abalados por
causa, eles disseram, da pior tempestade que já tinham enfrentado dentro de
um carro. Eles foram até o lado da minha mãe e falaram com ela, e, ainda que
houvesse uma contração ocasional nos olhos dela, não havia garantia de que ela
ouvia alguma coisa.
O coração dela bateu durante a noite e a manhã. Nossa outra irmã, Anne, se
apressou em pegar um voo noturno de Sacramento, e, em pouco tempo, chegaria
para estar conosco. Cada hora, os sinais vitais da nossa mãe se estabilizavam e,
depois, caíam um pouco. A enfermeira do turno da noite, com a longa trança, saiu
calada, e uma nova enfermeira, do turno do dia, chegou. Ela se deteve quando
me viu, e não tentou muito disfarçar “aquele olhar” que eu tinha visto milhares
de vezes daqueles que preferiam não me ver. Naturalmente, o restante da equipe
—enfermeiras e médicos - mais do que compensou a atitude dela, e deu o melhor
de si para deixar minha mãe confortável e manter calmos os restantes de nós. O
médico em serviço admitiu que, se minha mãe estivesse em melhores condições,
ele gostaria de transferi-la para outro hospital, com recursos que seriam melhores
para ela. Mas esse tipo de traslado seria perigoso naquele momento, ele disse.
Teríamos de lidar com o que tínhamos nas mãos.

52 Atuavam em comédias do cinema mudo, representando um grupo de policiais totalmente incom­


petentes. Os filmes eram produzidos por Mack Sennett. (N. T.)
99
PIETÀ

Às duas da tarde (vinte e quatro horas desde a cirurgia), o estado dela con­
tinuava a se agravar de forma constante. A pressão arterial era de 6 por 3,5.
Liguei para Jack Stanzler, um médico amigo meu, em Ann Arbor, para pedir
algum conselho. Ele, por sua vez, ligou para um médico amigo dele, no norte
de Michigan, para ver se havia alguma coisa que ele poderia fazer. Os olhos da
minha mãe continuavam bem abertos com pouco ou nenhum movimento. Nós
todos continuávamos murmurando coisas encorajadoras para ela, esperando
que isso ajudasse.
Decidi espairecer por um momento e fiii até o posto de enfermagem, onde
encontrei a enfermeira que não tinha ficado feliz de me ver. Ela olhou direto
para mim, e com um tom de asco que não teve a decência de esconder, disse o
seguinte:
“Por que você não repete isso lá? Sua mãe está morta. E ninguém tém
coragem de lhe dizer isso. Ela morreu e nada do que você está fazendo yai
trazê-la de volta.” E, em seguida, ela se afastou.
Senti-me asfixiado. Era como se a mão da enfermeira estivesse agora na
minha garganta, estrangulando-me até a morte.
“Espere um minuto!” Gritei, quando recuperei a respiração. “Quem é você?
Por que você diz uma coisa dessas? Você é doente. Doente!” |!
Sucumbi. As pessoas do quarto me escutaram, e minha mulher surgiu.
Chorando, contei-lhe o que a enfermeira tinha acabado de dizer. ;
“Sua mãe não está morta. Aqueles monitores não mentem. Não sei por que
ela disse isso. Volte para o quarto.”
Em vez disso, peguei o celular e liguei para o cirurgião. Contei-lhe o que
tinha acabado de acontecer. Ele pediu para eu não dar atenção à enfermeira,
e disse que o médico em serviço estava cuidando das coisas, e isso era o que
importava. “E sua mãe continua viva.”
Na hora seguinte, todos nós nos alternamos passando alguns momentos
íntimos com minha mãe, falando as coisas que cada um de nós queria dizjer
particularmente. Às quatro da tarde, aproximadamente, todos nos reunimos no
quarto em um círculo em torno da cama dela, e cada um de nós ofereceu uma
oração, uma lembrança ou um agradecimento a aquela mulher que nos trouxe
ao mundo, nos criou, cuidou de nós e nos encorajou a abraçar o conhecimento,
a bondade e a benevolência, e a nunca recuar se achássemos que era aquilo que
100
ADORO PROBLEMAS

nossa consciência estava dizendo para fazer. Ninguém conseguiu chegar ao final
do que estava falando sem sucumbir.
Trinta segundos depois das quatro e meia da tarde, em 8 de julho de 2002,
minha mãe partiu deste mundo. Houve um pesar intenso, profundo, no quarto,
e muitas lágrimas para contar. Choramos na maior parte da meia hora seguinte,
e, um por um, após um longo silêncio, pegamos nossas coisas para sair. Fui o
último a sair do quarto. Aproximei-me da minha mãe e a segurei. Os olhos dela
tinham sido fechados pelo médico. Eu a beijei na cabeça e, ao recuar, percebi
um longo fio de cabelo grisalho dela na minha camisa. Peguei delicadamente o
fio de cabelo - o cabelo que para mim ainda estava vivo, ainda cheio do DNA
dela, os 23 cromossomos que a tornavam quem ela era, que me ajudou a me
tornar quem eu sou, uma parte dela (ainda que fosse somente um simples fio de
cabelo). Enfiei o cabelo no bolso da minha camisa, olhei para ela uma última
vez e saí.

Até hoje, aquele último fio de cabelo grisalho ainda está naquele mesmo bolso
de camisa, que está dobrada dentro de uma pequena sacola, no meu antigo
quarto, na casa em que cresci, escondido, intacto, no alto da estante de livros,
perto de uma pequena estátua de plástico que ela me deu na Feira Mundial de
Nova York da Pietà de Michelangelo.
TET

Não consigo me lembrar muito bem de quando me voltei contra a ideia de


guerra, mas tenho certeza de que tinha algo a ver com o fato de que eu não
queria morrer. Desde o sexto ano, era firmemente, solidamente, contra morjrer.
No entanto, desde então, passei muitos anos morrendo com entusiasmo
em nossa vizinhança. Na nossa rua, o jogo favorito era War. Ganhava de longe
de Bloody Murder porque tinha armas. Realmente, Bloody Murder era apenas
um jogo de esconde-esconde (quando você encontrava a pessoa escondida, você
gritava “Bloody murder!”, e todos tentavam chegar a tempo de tocar o postç da
casa antes que aquele que estava escondido pudesse pegá-lo).
War era a curtição - e as meninas não podiam jogar. As regras eram simpjles.
Um grupo de meninos, de quatro a dez anos, era dividido em dois grupos: os
americanos e os alemães. Cada grupo tinha seu próprio conjunto de metrajha-
doras, rifles e bazucas de brinquedo. Eu era muito admirado pelo meu belo
estoque de granadas de mão, que vinham completas, com o pino que você podia
arrancar antes de arremessá-la, gesto acompanhado por uma “explosão” muito
alta que saía da minha boca.
Nenhum de nós se importava se éramos escolhidos para ser um alemão
ou um americano - já sabíamos quem iria ganhar. A questão era mepos
ganhar e mais propor modos criativos e divertidos de matar e morrer. Ejtu-
dávamos as séries Combat e Rat Patrol na TV. Pedíamos ideias aos nossos
pais, mas nenhum de nós obtinha muita ajuda, pois eles não pareciam
querer falar a respeito de suas experiências de guerra. Todos nós imaginá­
vamos nossos pais como heróis de guerra condecorados, e se assumia que,
102
ADORO PROBLEMAS

se tivéssemos alguma vez de ir à guerra, seriamos os bravos defensores da


liberdade que eles foram.
Eu era especialmente bom em morrer, e os outros meninos gostavam de
me metralhar. Especialmente se eu estivesse representando um soldado alemão.
Ficava de pé o máximo de tempo possível, levando o máximo de balas possível,
e, muito tempo antes de Sam Peckinpah53entrar em cena, caía em câmera lenta,
agonizante, o que dava a todos os outros meninos o “barato” de visualizar minha
miserável bunda nazista. E, quando eu atingia o chão, rolava algumas vezes e,
depois de um ataque de espasmos, morria. Enquanto ficava ali, deitado, olhos
abertos, imóvel, sentia a sensação estranha de satisfação de desempenhar um
papel importante de ver mais um asqueroso nazista morrer.
No entanto, quando interpretava um americano, tentava ficar vivo o máximo
de tempo possível. Achava alguma maneira de me infiltrar nas linhas inimigas,
me esconder atrás de uma árvore e, então, matar a maior quantidade possível de
alemães. Em especial, adorava atirar as granadas de uma posição mais elevada;
era muito perturbador para os meninos “nazistas”, que não conseguiam desco­
brir de onde todas aquelas pequenas bombas estavam vindo. Sempre deixava
um ou dois vivos, para poderem atirar em mim. Assim, eu tinha uma morte de
herói, uma vida ceifada na flor da juventude, talvez levando um último “nazista”
comigo, puxando o pino da minha última granada e explodindo nós dois em
pedaços quando caíamos no chão.
No entanto, em 1966, quando as imagens no telejornal noturno não se
pareciam nada com aquilo que estávamos representando em nossa pequena rua
de terra, “brincar” de guerra ficou cada vez menos divertido. Aqueles soldados
na TV estavam realmente mortos: ensangüentados e mortos, cobertos com
lama e, depois, cobertos com lona; nenhuma atitude melodramática em câmera
lenta fornecida. Os soldados que continuavam vivos pareciam todos assustados,
desgrenhados e perplexos. Fumavam cigarros e nenhum deles parecia estar se
divertindo. Um por um, os meninos da vizinhança abandonaram suas armas
de brinquedo. Ninguém disse nada. Simplesmente paramos. Havia dever de
casa e serviços a fazer, e as meninas pareciam distantemente interessantes. Os

53 Peckinpah (1925-1984) foi diretor, produtor e roteirista de cinema norte-americano. Caracterizava-se


por filmar em câmera lenta as cenas mais violentas. (N. T.)
103
TET

americanos ganharam a grande guerra que contou, ou seja, a Segunda Guerra


Mundial, e isso foi suficiente.

No verão, depois do sétimo ano, nossa família saiu da rua de terra e se mudou
para uma pavimentada - a mesma rua que vivíamos quando eu nasci. Comecei
a pensar muito a respeito da Guerra do Vietnã naquele verão, e a maior parte do
meu pensamento não era boa. Fiz as contas e percebi que só faltavam cinco anos
para eu atingir a idade do serviço militar obrigatório. E estava ficando claro que
aquela guerra não acabaria num futuro próximo.
No oitavo ano, a senhora Beachum era nossa professora da tarde. Como nossa
freira também era a madre superiora da escola, ela nos dava aula somente na parte
da manhã. Suas tardes eram dedicadas às funções administrativas e à distribuição
das medidas disciplinares necessárias aos “caídos em batalha” entre nós. j
A senhora Beachum era negra. Em toda escola, ela era a única professora
negra e, além disso, só havia dois alunos negros - e talvez porque eles se cha­
mavam Juan e Rico, de alguma forma nos convencemos de que eles não eram real­
mente negros; provavelmente cubanos ou portoriquenhos. Eles eram populares, e
seus pais participavam de todos os eventos, ajudando da melhor maneira possível.
Mas a senhora Beachum era definitivamente negra. Não havia dúvidá. A
pele dela era quase tão escura quanto carvão, e ela falava num dialeto sulista
com o qual nenhum de nós estava familiarizado. Não passava um dia sem ique
ela não dissesse para um de nós, com seu inconfundível sotaque negro sulista:
“Não seja faceto, garoto!”. Não tínhamos a menor ideia do que aquilo signi­
ficava, mas adorávamos o som. O corpo dela não era coberto por um hábito
de freira. Assim, não me surpreenderia se, em 1967, eu não fosse o único
menino da nossa classe cujo “sonho” teve a sorte de ter a senhora Beachjum
como protagonista.
No entanto, em nossas horas diurnas não a sexualizávamos, pois nenKum
de nós queria lidar com aquilo no confessionário. Além disso, a madre superiora
tomava conta de modo rígido e vigilante da nossa puberdade e do seu progresso,
e ela se dedicava a lembrar a cada gênero na classe o quanto podia confiar no
outro gênero - o que, em suma, não era muito. Desde o quinto ano, os dois
í
|
104
ADORO PROBLEMAS

gêneros da nossa classe faziam o máximo para humilhar ou ridicularizar um ao


outro, e, na época que tínhamos treze ou quatorze anos, tínhamos desenvolvido
vocabulário e maldade suficientes para decompor e analisar o lado contrário
com razoável satisfação. As meninas gostavam mais de destacar os meninos
que tinham problemas de higiene, e elas deixavam anonimamente um tubo de
desodorante no armário do menino ofendido para todos verem. Os meninos já
tinham captado a sensibilidade das meninas em relação aos seus seios em cres­
cimento (ou não tanto em crescimento). Um garoto surrupiou os seios postiços
da irmã mais velha, e eles eram deixados nas carteiras daquelas meninas que não
tinham conseguido desabrochar rápido o suficiente para se igualarem a aqueles
seios que víamos nas Playboys de Mike Mclntosh.
Assim era como passávamos nossas manhãs no oitavo ano, lutando contra
a excitação sexual com alguma crueldade serena sancionada pela Igreja - tudo
feito com boa intenção, tenho certeza, para nos manter livre de encrencas e do
sexo fora do casamento.
Após o almoço, no entanto, era só alegria.
A senhora Beachum não ligava para essa coisa de “meninos versus meninas”.
Ela acreditava no “amor” e “em estar apaixonada”, e ainda que não pudéssemos
saber com exatidão, anos depois soubemos que ela também era a única profes­
sora da escola que fazia amor (ou assim queríamos acreditar). Quando ela nos
ensinava história, ela fazia os personagens ganharem vida.
“O que vocês sabem do caso Teapot Dome?”,54 ela dizia, nunca se refe­
rindo a isso como uma pergunta. Não tínhamos a menor ideia a respeito do
caso Teapot Dome, mas sabíamos que íamos escutar uma história sem papas na
língua.
“Warren G. Harding... Sim! Com certeza, ele era uma peça! Escândalo?
Céus, ele até escreveu um livro sobre isso!”
Todas as aulas eram assim.
“Quero ouvir alguma poesia maravilhosa hoje, crianças! Quem escreveu
um poema só para mim?” Ah, acredite-me, todos nós estávamos escrevendo
poemas. Ela tinha nos feito escrever versos e ela nos ensinou ritmos e, às vezes,

54 Foi um escândalo de suborno que ocorreu entre 1922 e 1923, durante o governo do presidente
Warren G. Harding. (N. T.)
105
TET

ela pegava nossos poemas e os recitava para nós. De vez em quando, a madre
superiora aparecia para ver o que estava acontecendo. Ela náo fazia objeçóes,
desde que os meninos ainda estivessem sentados em um lado da classe e as
meninas do outro. Sua aprovação tácita dos métodos da senhora Beachum nos
deixava menos preocupados a respeito dela, e isso relaxava a turma, a ponto de,
no dia que a senhora Beachum propôs sua Grande Ideia, por incrível que pareça
haver pouca objeção entre nós.
“Acho que chegou o momento de ensiná-los um pouco de boas maneiras!
Vocês já ouviram falar de etiqueta?”
Tínhamos ouvido, mas, sem dúvida, nunca fomos praticantes.
“Bem, meninos e meninas, acho que é hora de todos nós sairmos juntos
para jantar e aprendermos como as pessoas corretas fazem as coisas. Meninos,
quero que cada um escolha uma menina para ser sua companheira de jantar. Nas
próximas três semanas, todos nós aprenderemos boas maneiras à mesa. Quando
estivermos prontos, iremos ao Frankenmuth para um daqueles famosos jantares
de galinha frita.”
Naturalmente, o que ela tinha em mente não era “ensinar boas maneiras”
ou “etiqueta”. Ela estava nos ensinando a como namorar. Tenho certeza de que
ela teve de vender essa ideia para as autoridades sem dizer a palavra namorar, e
suponho que não viram nada de errado no fato de que soubéssemos qual era o
garfo para salada e entendêssemos que soltar gases tóxicos durante uma refeição
não era como Deus esperava que desfrutássemos os frutos da sua terra.
Os vinte e sete de nós da turma da senhora Beachum tinham acabadò de
saber que as portas da natureza podiam agora ser abertas. Por alguns minutos,
demos risos nervosos e ficamos tensos, mas, caramba, gostamos dessa ideia! Foi
incrível o quão rapidamente nós entendemos esse conceito de “sair” com alguém
da classe que não tinha nossos órgãos genitais específicos. (Nos anos seguintes,
quis saber o que isso deve ter significado para os não heterossexuais da turma
- finalmente, uma oportunidade de admitir sentimentos sexuais - mas, dwga,
com o gênero errado! Acho que para eles foi uma lição precoce de fingimentò.)
A ordem perfeita do mundo caiu no lugar certo quando cada menino da
classe correu para convidar a menina que era “apropriada” para ele. O astrò do
basquete convidou a prodígio do softball O pianista convidou a bailarina. O
escritor convidou a atriz. O menino do estacionamento de trailers convfdou

i
106
ADORO PROBLEMAS

a menina do estacionamento de trailers. O menino com problema de higiene


convidou a menina com problemas de higiene.
E eu convidei Kathy Root. Não tenho absoluta certeza de como explicar a
união, mas talvez o modo mais fácil seja dizer que ela era a menina mais alta da
classe e eu era o menino mais alto. Quanto a mim, não me importei muito a
respeito da nossa altura; eu não tinha tirado os olhos dela nos últimos três anos.
Kathy tinha pernas compridas bronzeadas, sorria sempre e era muito legal com
todos. Além disso, era brilhante. Kathy era a garota que a maioria dos outros
meninos teria medo de convidar - eu, inclusive. Assim, ela facilitou para mim:
atravessou a sala e parou na minha frente. Fiquei paralisado e petrificado na
minha carteira.
“Bem, acho que é você e eu”, ela disse suavemente, para que eu não sofresse
um colapso.
“Claro”, eu respondi. “Sim. De verdade. Será legal.”
E assim foi. Atraí a atenção de toda classe. A menina que na escola do
ensino médio seria eleita nossa Rainha do Baile seria meu “par” no nosso jantar
de teste de “etiqueta”.
Naquela tarde, no entanto, a tragédia bateu às portas.
“Michael”, a senhora Beachum me chamou no corredor depois do almoço.
“Posso falar com você um minuto?”
Ela me levou para um canto, para que ninguém pudesse nos ouvir.
“Quero que você saiba que você é provavelmente o único menino da classe
para quem posso pedir esse favor.”
Ela tinha a expressão mais encorajadora. Seu cabelo a fazia parecer a quarta
Supreme.55 Sua boca... Bem, não sabia muito a respeito de bocas aos treze anos,
mas o que sabia, agora estando mais perto dela do que já tinha estado alguma
vez, confirmou-me que não existia boca mais atraente do que aquela da senhora
Beachum.
Sua boca se abriu, e ela começou a falar.
“Já conversei com seu par, Kathy Root, e ela me disse que não teria pro­
blema para ela se não tivesse para você.”

55 The Supremes foi um grupo musical feminino de Motown, atuante entre 1959 e 1977, formado por
Mary Wilson, Diana Ross e Florence Ballard. (N. T.)
107
TET

Sim, continue, por favor. Não deixei a contração do lado esquerdo do meu
rosto distraí-la.
“Há treze meninos e quatorze meninas na turma. Assim, todas as meninas
têm um par, exceto Lydia.”
“Lydia” era Lydia Scanlon. “Lydia, a idiota” era o nome pelo qual a maioria
dos meninos da classe a chamava. Lydia era a nulidade da turma. Ninguém sen­
tava perto dela e ninguém sabia nada a seu respeito. Ela nunca falava, mesmo
quando solicitada, e ela não fora solicitada desde o quinto ano. Há sempre
aquele aluno em relação ao qual o professor tem de decidir se cuida ou descuida;
há um número limitado de minutos no dia letivo, e, se o aluno não quer falar,
o professor tem de ensinar aos outros alunos. Aparentemente, cinco anos de
trabalho para ela participar foram o suficiente, e, assim, a maioria de nós nem
mesmo sabia que ela ainda estava na nossa classe, embora ela estivesse ali todos|
os dias, na última carteira, na fila mais longe da nossa realidade. |
O uniforme escolar de Lydia caía mal, provavelmente resultado de ter sido
usado pelas duas ou três outras meninas da família antes dela. Dizia-se que sua
higiene pessoal era pior que a dos meninos, e seu cabelo era cortado... Bem, pelo
menos ela tinha acesso a um espelho enquanto o cortava.
Previsivelmente, nenhum menino foi convidá-la para ser seu par.
“Preciso que você peça para Lydia ser seu par no jantar”, a senhora Bea­
chum afirmou.
“Uuh?”, foi tudo que fui capaz de murmurar. Senti um nó instantâneo
na garganta porque ela estava me pedindo para DESISTIR DA FUTURA
RAINHA DO BAILE DE PERNAS COMPRIDAS BRONZEADAS COMO
MEU PAR! Eu tinha ganho a medalha de ouro e, agora, estava sendo solicitado
a devolvê-la! Exatamente como Jim Thorpe!56Você não pode fazer isso!
Sem dizer nada do mencionado acima, a senhora Beachum conseguiu ler
isso na minha expressão. j
“Veja, querido, eu sei que você gostaria de ir com Kathy, mas sei que yocê
sabe que ninguém vai convidar a menina, e isso não está certo. Lydia é uma

56 Atleta norte-americano da primeira metade do século XX. Thorpe (1887-1953) foi campeão jolím-
pico de pentatlo e decatlo em 1912, em Estocolmo, mas teve de devolver suas medalhas ao se
descobrir que ele não era mais um atleta amador. (N. T.) j
108
ADORO PROBLEMAS

garota legal. Só um pouco lenta. Algumas pessoas são rápidas, outras são lentas.
Todos são filhos de Deus. Todos. Especialmente Lydia. Você sabe disso, não?55
“Sim, senhora Beachum.55 Sim, eu sei, e, na realidade, até acredito nisso.
Mas as pernas bronzeadas mais longas da escola também náo eram algo que valia
a pena acreditar?
“Sabia que essa seria sua resposta55, ela disse, orgulhosamente. A senhora
não podia pedir isso para os outros meninos? Não, senhor. Só para você. Obrigado,
menino.
Argh! Por que não? Por que não pedir para eles? Por que eu?
“Além disso, como você está pensando em ir para o seminário no próximo
ano, você realmente não precisará dessas ‘boas maneiras5 que estou lhe ensi­
nando, não?55
Aparentemente, a madre superiora tinha revelado minha ideia a respeito de
me tornar padre para a senhora Beachum. E, é claro, que uso o sexo tem para
um padre? Muito menos “boas maneiras55, muito menos essa boca inchada rosa
e negra que você está usando para me dar a pior notícia da minha vida.
“Claro. Tudo bem. Mas e Kathy?55, perguntei. Sim, e Kathy? A senhora não
está levando em conta a dor que ela vai sentir não sendo capaz de ser meu par!
“Como disse, já falei com ela. Ela ficou muito feliz de fazer essa coisa espe­
cial para Lydia. Disse que você também ficaria.55
Decidi dar uma última cartada. “Mas, mas, então Kathy ficará sozinha no
jantar!55
“Não, filho, eis o que faremos. Lydia se sentará à sua frente. Kathy se sen­
tará com vocês dois, perto de Lydia. Assim, de certa maneira, Kathy ainda estará
ali um pouco como seu par.55
Um pouco. (Isso se tornaria a história da minha vida de encontros amo­
rosos. Mais a esse respeito ainda neste livro.)
“Mas, formalmente, você estará ali com Lydia. Você puxará a cadeira para
ela, fará o pedido para ela, falará com ela, e fará ela sentir que ela, que ela... é...”
Algumas lágrimas começaram a surgir nos olhos da senhora Beachum, mas
ela piscou bastante rápido para capturá-las e devolvê-las as suas cavidades ocu­
lares, e terminou sua frase.
“Que ela é querida. Você pode fazer isso, Michael?55
109
TET

Isso foi subitamente elevado além de uma lição de etiqueta, além de um


encontro, tornando-se um apelo por compaixão e possível santidade... Bem, era
tudo que eu precisava ouvir.
“Sim, posso fazer isso. Quero fazer isso. A senhora pode contar comigo! A
senhora tem razão. Não terei qualquer uso para as meninas depois desse ano!”
Exatamente! Senhora Beachum, a senhora está simplesmente desperdiçando
todas essas lições comigo. Estou de saída para ser um monge para sempre!
Sentia uma dor na boca do estômago.
Entrei na sala de aula e pedi para Lydia ser meu par. Ainda que tentasse
dizer isso o mais baixo possível, para que nenhum dos outros meninos escutasse,
não demorou muito para se espalhar a notícia de que eu tinha trocado o prêmio
principal por Lydia, a Perdedora. E aqueles homenzinhos, com suas calças de
cintura alta, passaram muito tempo no pátio do recreio coçando seus cortes
escovinha tentando entender o que exatamente tinha acontecido comigo. í
“Não faz sentido, Mike”, Pete afirmou, balançando a cabeça negativamerite.
“Como você ainda vai suportar isso, estando perto dela?”
“Não sei”, foi tudo que fui capaz de murmurar. Como eu ia sentar perto
dela? Sei lá. j
A grande noite de ir ao Frankenmuth chegou, e Lydia estava toda banhada
de forma refrescante, e seu vestido era simples, mas bonito. Abri a porta para
ela, deixei ela pegar meu braço, puxei a cadeira para ela e, num ato momentâneo
de rebelião contra meu iminente celibato para toda vida, também arranquei
Kathy dela. Kathy conversou com Lydia, então conversei com Lydia, e Lydia
conversou conosco. Escutamos a história de como seu irmão morreu e de como
seu pai estava trabalhando em dois empregos porque sua mãe tinha problemas
de saúde e como ela passava seu tempo no quarto escrevendo poemas. Lydia era
tímida, mas não uma nulidade. Ela era engraçada e tinha um sorriso nervoso,
mas que, pouco depois, ficava simpático e interessante. Os outros colegas da
classe olhavam para nossa mesa para ver o que nós três estávamos tramando, e
dois meninos se uniram a nós para conversar com a recém-interessante Lydia.
Isso deu uma chance para Kathy e eu conversarmos, também uma coisa nova
para mim, pois até então ela tinha sido apenas um objeto para observação tão
freqüente e intensamente quanto possível. !
“Você foi um bom rapaz, Mike, de fazer isso”, ela sussurrou para mim
110
ADORO PROBLEMAS

“Sério? Ah, bem, você sabe que estou indo para o seminário?”
“Claro. Escutei isso.”
<£Ou seja, essa turma não era realmente para mim.”
“Bem, foi divertido, você não acha?”
“Claro. Posso pegar sua torta se você não vai comê-la”

Depois do Primeiro Encontro Noturno da classe, no Frankenmuth Bavarian


Chicken House, a Guerra dos Sexos não foi retomada. Graças à senhora Bea­
chum, todos descobrimos que gostávamos muito uns dos outros. E enquanto
os outros consideravam seus próximos movimentos na vida dos encontros, eu
tinha tempo de refletir a respeito de coisas como o tipo de problema que a
senhora Beachum tinha se metido por ter subvertido a Política de Retarda­
mento da Puberdade que a Igreja havia implementado. Os meninos pararam de
azucrinar as meninas, e as meninas pararam de rir dos meninos. Ajudávamos
uns aos outros com o dever de casa. Deixávamos as meninas jogar basquete.
Tudo parecia melhor, e estávamos gratos à senhora Beachum pelo seu entu­
siasmo e sua vontade de nos ensinar mais do que apenas as capitais de todos
os cinqüenta estados do país. Esperávamos avidamente nossas tardes com ela;
a melhor parte de todos os dias para nós. Assim, quando voltamos do almoço
para nossa tarde com a senhora Beachum, em 5 de fevereiro de 1968, ficamos
surpresos de descobrir que ela não havia aparecido na escola. Ela também não
apareceu no dia seguinte. Nem no próximo. Disseram-nos que ninguém sabia
onde ela estava, que ela tinha sumido. Inicialmente, esperávamos que talvez ela
tivesse dormido além da conta, não comparecendo ao trabalho por alguns dias.
A madre superiora a substituiu. No entanto, à medida que a semana avançava, a
expressão de aflição e preocupação da madre superiora era evidente, e suas tenta­
tivas de seguir os planos de aula da senhora Beachum eram desastradas, pois ela
estava certamente perturbada. Ela não deu nenhuma informação, e, no quinto
dia da ausência da senhora Beachum, alguns de nós nos queixamos com nossos
pais, e pedimos para que eles descobrissem o que estava acontecendo.
Naquela semana, as notícias noturnas da TV foram terríveis. Era o ano-novo
vietnamita (o Tet) de 1968, e embora fosse a primeira vez que qualquer um
de nós tomava conhecimento de que os vietnamitas celebravam um segundo
111
TET

ano-novo, o único motivo pelo qual soubemos disso foi com o objetivo de Chet
Huntley57 e David Brinkley 58 explicarem para nós por que os vietcongues e os
norte-vietnamitas tinham lançado sua maior ofensiva da guerra. A NBC News
era especialmente ilustrativa (naqueles dias, a TV mostrava a guerra sem cen­
sura). A câmera captava um general sul-vietnamita agarrando um vietcongue
suspeito na rua, colocando sua arma na têmpora do homem e estourando seus
miolos, literalmente. Aquilo fazia o prato pronto do jantar descer mais fácil.
A Ofensiva do Tet de 1968 assombrou o público americano, pois, ao con­
trário de tudo que nos disseram acerca dos Estados Unidos “ganharem” a guerra
em pouco tempo —“Nós podemos ver a luz no fim do túnel” -, na realidadei o
Tet mostrou como o outro lado era poderoso e como estávamos perdendo. Os
vietcongues estavam em toda Saigon, até mesmo na porta da embaixada ame­
ricana. Não estávamos perto de ganhar qualquer coisa. Aquela guerra iria ficar
conosco por muito tempo. Eu não tirava os olhos da TV, e me sentia feliz jde
estar indo para o seminário no próximo ano. Se você estivesse no seminário, eles
não poderiam recrutá-lo para o exército. Um motivo a mais para não precisar cio
serviço de encontros amorosos da senhora Beachum.
Finalmente, os pais receberam informações de que a senhora Beachum
havia realmente desaparecido. Não houve nenhum comunicado oficial da paró­
quia, mas isso foi dito:
“O marido da senhora Beachum está desaparecido no Vietnã e é dado cortio
morto. Ninguém sabe onde a senhora Beachum está, mas ela provavelmente
partiu para ficar com sua família”. j
Nunca mais ouvimos nada a respeito da senhora Beachum. Ninguçm
ouviu. Alguns disseram que ela estava muito perturbada para falar com alguém
da St. Johns e, se ela falasse, ninguém teria sabido o que dizer para ela. Outros
disseram que ela teve um esgotamento nervoso total quando ouviu a notícia a
respeito do seu marido, e partiu para muito longe, para ficar sozinha, evitanclo
este mundo cruel. Um paroquiano afirmou que ela se suicidou, mas nenhum
de nós acreditou nisso, pois, se existia uma pessoa que sentia entusiasmo jde

57 Huntley (1911-1974) apresentou durante quatorze anos, desde 1956, o telejornal noturno [The
Huntley-Brinkley Report, na rede NBC. (N. T.) j
58 Brinkley (1920-2003) apresentou telejornais nas redes NBC e ABC, com uma carreira que dijrou
de 1943 a 1997. (N.T.)
112
ADORO PROBLEMAS

estar viva, era a senhora Beachum. Terminamos o ano letivo com um professor
substituto do período vespertino, que deu o melhor de si, mas nunca nos pediu
para recitar um poema para ele.

Foi então, na primavera de 1968, após as mortes no Vietnã do sargento Bea­


chum e de um garoto da escola do ensino médio, além dos assassinatos de
Martin Luther King e do homem amável do elevador do Senado que me ajudou
a encontrar minha mãe, que tomei a decisão: sob nenhuma circunstância,
independentemente do tamanho da coerção, ameaça ou tortura contra mim,
nunca, jamais, pegarei uma arma e deixarei meu país me mandar para matar
vietnamitas.
E se alguém perguntasse para mim por que me senti dessa maneira, apenas
olharia para essa pessoa e diria: “Não seja faceto, garoto”.

Quem sabe a senhora Beachum esteja lendo isso. Em caso afirmativo, quero
dizer: sinto muito por aquilo que aconteceu que a tirou do nosso convívio.
Sinto muito por nunca ter tido a oportunidade de dizer adeus. E sinto muito
por nunca ter podido agradecê-la por me ensinar todas aquelas boas maneiras
maravilhosas.
NATAL DE 1943

Por alguns anos, meu pai reparou que eu náo queria mais usar armas. Ele per­
cebera quando nós, os meninos da vizinhança, paramos de brincar de guerra.
Não sabia muito a respeito do seu tempo como fuzileiro naval no Pacífico Sul
durante a Segunda Guerra Mundial. Os únicos indícios que minhas irmãs e eu
obtínhamos era quando ele dava nome aos nossos cachorros de acordo com jas
batalhas que ele participou: Peleliu, Tarawa etc. Em nosso sótão, ele conservava
algumas lembranças da guerra: uma bandeira japonesa, uma espada e a arma
que ele capturou de um soldado japonês. Um dia, sem explicação, meu pai
decidiu que não queria mais esses souvenirs em nossa casa. Serenamente, éle
foi até a garagem e pegou uma pá, reuniu os espólios de guerra japoneses e se
dirigiu até o grande salgueiro-chorão em nosso quintal. Ele cavou um buraço
- um buraco bem profundo - e enterrou a arma, a espada e a bandeira sobí a
sombra daquela árvore. Depois de tudo feito e a terra recolocada, ele ficou de pé
ali sozinho, com a cabeça inclinada para baixo, entregue aos pensamentos ou| a
uma reza ou sabe-se lá o quê. Eu o observei da janela do meu quarto.
“Quero contar a você uma história da guerra”, ele me disse certo dia.
“Quero que você saiba por que todos os dias são preciosos e por que sou grato
todos os dias por estar aqui.”
i
í

Meu pai foi um dos sete filhos, e eles moraram em doze casas num períodlo
de dezoito anos. Eles andaram muito por aí, esquivando-se de senhorios que
vinham cobrar o aluguel que eles não podiam pagar. A Grande Depressão nãjo
114
ADORO PROBLEMAS

foi particularmente generosa para a família Moore da Kansas Avenue/Franklin


Avenue/Kensington Avenue/Bennett Street/Kentucky Street/Illinois Street/Cal-
dwell Avenue/Jane Street e outras ruas da zona leste de Flint, em Michigan.
Francis (ou Frank, como ele era conhecido) era o quarto filho da família, e
naquele momento, de repente, aos 22 anos, toda sua vida - caindo pela canaleta
de abastecimento de carvão aos dois anos, correndo risco de vida aos quatro anos
preso no estribo do carro do seu pai, sendo cortado do time de basquete da escola
do ensino médio um jogo antes da final do campeonato estadualpara que o técnico
pudesse abrir espaço para um jogador maisjovem, sendo despedido no primeiro dia
da função de motorista do caminhão de entrega da Coca-Cola porque admitiu que
“não gostava muito do sabor da Coca", sendo colocado por sua mãe aos dez anos em
um orfanato junto com seu irmão porque ela simplesmente não conseguia bancar as
despesas de sete crianças —passou pela sua mente quando ficou exposto no alto
da Colina 250, em uma ilha de merda no Pacífico Sul, observando as rajadas de
balas traçantes saírem do avião acima, disparadas diretamente contra ele e seus
companheiros fuzileiros no Natal de 1943. No entanto, os aviões, assim como
ele, eram americanos.

O modo pelo qual Frank chegou até a Colina 250, na ilha de New Bri-
tain, fazia quase tanto sentido para ele como o fato de que seu próprio lado
estava naquele momento tentando matá-lo com aquela tranqüilidade. Em pri­
meiro lugar, ninguém lhe explicou por que aquelas colinas receberam aqueles
nomes; não existiam outras 249 colinas que ele tinha de escalar para chegar na
Colina 250. De fato, mesmo chamá-las de “colinas” parecia alguma ideia para
uma piada de um cartógrafo do Departamento de Guerra. Talvez chamá-las de
colinas fariam um fuzileiro naval americano se sentir como se ele estivesse na
terra natal —e que, se ele fosse morrer por aquela colina, bem, ao menos ele sen­
tiria que estava morrendo pela... terra natal. A terra natal tinha colinas. Colinas
com árvores e flores silvestres, com nomes como cipriprédios, arisaemas e dode-
cáteons. Colinas com trilhas agradáveis. Colinas para se esconder. Colinas para
colher amoras. Colinas onde desempregados podem achar um repouso noturno
tranqüilo. Colinas onde você e sua amada podem achar um canto silencioso para
fazer uma fogueira e fazer amor ao lado dela.
115
NATAL DE 1943

O que levou Frank a essa colina específica foi uma guerra mundial que não
tinha nada a ver em particular com seu mundo. Seu mundo era aquele do tra­
balho duro, dos esportes, das noites de sábado no salão de baile Knickerbocker.
Embora vivessem a pobreza comum de muitos nos piores dias da Depressão,
os irmãos Moore —Bill, Frank, Lornie e Herbie —tomavam cuidado extra para
sempre terem um terno limpo e bem passado, um corte de cabelo elegante
e moedas suficientes nos bolsos para pagar o primeiro drinque a uma garota
bonita, ou mesmo o segundo.
Eles freqüentaram aulas de dança pouco depois de saírem do ensino médio,
de algum modo entendendo que o gênero mais belo gostava de sair para dançar.
Como os outros jovens da cidade eram menos competentes em detectar isso,
os rapazes Moore eram sempre os primeiros a entrar na pista de dança, e isso
impressionava as moças. No mínimo, mostrava às garotas que eles eram des­
temidos, e isso em si mesmo era muito atraente. Lornie, dezesseis meses mais
novo que Frank, ficou conhecido como o rei da pista de dança e, em pouco
tempo, começou a ensinar dança numa escola de dança do centro da cidade.
Ele começou a entender que estava, de fato, ajudando o inimigo ensinando aos
outros homens como dançar um jitterbug maneiro, mas Lornie tinha uma alma
delicada e um espírito generoso, e ficava feliz de ver mais pessoas dançando aò
longo da noite. |
Em 1941, as coisas pareciam melhores em Flint. As políticas de Roosevelt
de pôr todos de volta para trabalhar, além do início da produção industrial na
expectativa do envolvimento americano numa guerra que começara dois anojs
antes na Europa e no Extremo Oriente, eram suficientes para impedir uma
cidade industrial como Flint, em Michigan, de sofrer um colapso total. Bili
Frank e Lornie conseguiram empregos através da WPA59 logo depois do téry
mino do ensino médio (um fato que procuravam ocultar quando falavam con*
as garotas). No verão de 1941, Frank já tinha passado por diversos empregos;
desde distribuir folhetos para uma quitanda local, dirigir um caminhão carre­
gado de ovos e dirigir (brevemente) um caminhão cheio de garrafinhas esver­
deadas de Coca-Cola. No fim, todos os rapazes Moore acabaram num cobiçadõ

59 A Works Progress Administration foi a maior agência do governo americano durante a Grande
Depressão, empregando milhões de trabalhadores não qualificados para realizar obras públicas.!
(N. T.) !
116
ADORO PROBLEMAS

emprego na linha de montagem da General Motors. Frank, não ansiando a


monotonia e repetição de posicionar 4,8 mil vezes por dia o mesmo nódulo
numa vela de ignição da divisão AC Spark Plug, passou a freqüentar uma aula
noturna de datilografia, esperando conseguir um emprego administrativo no
escritório da fábrica. No entanto, ele não conseguiu datilografar tão rápido
quanto as garotas e, assim, foi relegado à Planta 7, linha 2, inserção do pino da
vela de ignição.
No fim, seus três irmãos viram um mundo maior no futuro e saíram da
fábrica (“Vendas, Frank... É onde o dinheiro está!”), e, em 1941, suas rendas
somadas eram suficientes para pagar o aluguel da casa da mãe deles, e cessar
a constante sublevação de estar dois passos à frente do senhorio e do seu bom
amigo, o xerife do condado.
E, mesmo depois do pagamento do aluguel, da comida e do carvão, havia
sobra suficiente para uma viagem de ônibus ao Knickerbocker. Ou, se fosse
um fim de semana especial, ao auditório da Industrial Mutual Association,
onde assemelhados de Tommy Dorsey e Frank Sinatra se apresentavam pas­
sando pelo Meio-Oeste. Para jovens trabalhadores, era uma versão - uma
versão —do paraíso.
Assim, causou certa decepção o fato de o Imperador60 decidir interferir em
suas vidas na manhã de 7 de dezembro de 1941. O ataque, a eliminação de quase
toda frota do Pacífico, chocou o país. No dia seguinte, ao mesmo tempo em
que o presidente Roosevelt lançava seu chamado às armas, os jovens afluíam aos
centros de recrutamento como aquele de Flint, em Michigan, que foi montado
apressadamente numa grande escola primária, na zona leste da cidade. Os irmãos
Moore, porém, não estavam entre aqueles que se alistaram naquele dia, nem no
dia seguinte, nem na semana seguinte, nem no mês seguinte, nem um, dois, três
ou seis meses depois desse. Não que não estivessem em desacordo com Hirohito,
fossem menos patriotas ou estivessem menos ansiosos de ir chutar a bunda de
algum nazista. Afinal, não eram conhecidos em St. Marys High School como
“dançarinos”. Eles eram irlandeses, e nunca se esquivaram de uma luta.
É que essa nova guerra estava, bem, fora dos planos. Bill tinha acabado de
se casar, e Frank estava apaixonado por uma garota que foi a oradora da sua

60 O autor refere-se ao imperador Hirohito, que reinou no Japão de 1926 a 1989. (N. T.)
117
NATAL DE 1943

turma na Flint Northern High School. Ela planejava ir para Ann Arbor, para a
Universidade de Michigan, para estudar Medicina, que, naquela época, signifi­
cava que ela se tornaria uma enfermeira. Frank tinha alguma ambiçáo por mais
educação, mas as recentes vitórias sindicais na GM significavam que ele estava
ganhando um bom dinheiro, e Ann Arbor tinha uma boa chance de ir para o
espaço. No entanto, a oradora parecia valer a perseguição; assim, aquela guerra
não era bem-vinda, na melhor das hipóteses.
Na Primeira Guerra Mundial, o pai de Frank tinha servido nos fuzileiros
navais, e seu tio Tom foi soldado nas trincheiras francesas durante aquela mesma
guerra. Tendo sido envenenado por gás tóxico pelos alemães, Tom era doente e,
assim, vivia com Frank e a família em Flint. Frank conseguia ver bem de perto ò
efeito que aquela guerra suja teve sobre aqueles dois bons homens. Nenhum dos
dois foi capaz de explicar a Frank por que os Estados Unidos tinham entrado
na guerra em 1917, e, assim, quando os tambores começaram a rufar de novel,
Frank quis saber exatamente o que era aquela nova guerra. Sim, era suficiente o
fato de que o país foi atacado, mas havia outra coisa que devíamos saber? Qual­
quer coisa? Alguma coisa? Tudo bem, aqueles bastardos destruindo nossã frota
era, sem dúvida, bom o bastante para Frank. Ele estava pronto para ir lutar. !
Ele esperou até o último minuto, até os avisos de alistamento obrigatóriò
começarem a chegar, em julho de 1942. Ele decidiu que não queria servir nò
Exército - “cada um por si naquela operação”, ele dizia - e, assim, em l 9 dé
agosto de 1942, Frank se dirigiu ao centro de recrutamento na grande escola
primária e se alistou para ser um fuzileiro naval. Um fuzileiro naval? “Os fuzi­
leiros navais lutam como uma equipe”, ele disse para seus amigos. “Eles cuidam
uns dos outros.” No entanto, seus irmãos (em pouco tempo, todos se alistaram:
Bill, na Força Aérea, Herbie, na Marinha, e Lornie, nos paraquedistas, onde
morreria vítima de uma bala de um francoatirador nos últimos meses da guerra)!
lhe disseram: “Os fuzileiros navais são enviados para as piores situações. Você vai
morrer nos fuzileiros navais”. j
“Talvez”, afirmou Frank, “mas os fuzileiros nunca deixam um homem paraj
trás”. Depois de treze anos de Depressão tirânica, Frank já tinha tido o sufi-j
ciente em relação a ser deixado para trás. j
O funcionário da junta de alistamento perguntou-lhe quando ele podia!
estar pronto para embarcar. j
118
ADORO PROBLEMAS

“Qual é a última data possível que eu tenho?”, Frank perguntou.


“31 de agosto”, o recrutador respondeu.
“Embarcarei nesse dia.”
Frank passou aquele último mês aproveitando a vida que tinha: traba­
lhando, indo ao Knickerbocker, ajudando sua mãe. No dia marcado, arrumou
sua bolsa militar de lona, saiu em silêncio e foi sozinho para a estação rodoviária.
Ao chegar ali, encontrou outros quinze recrutas dos fuzileiros navais esperando
num banco. Um fotógrafo do Flint Journal tirou uma foto deles e colocou a
seguinte legenda: “PREPARADOS!”. A expressão de Frank na foto era tudo
menos PREPARADO! e, aparentemente, isso não foi percebido pelo revisor
da matéria, que deixou a legenda irônica passar e ser impressa no jornal do dia
seguinte. Naquele momento, Frank estava num trem, a caminho do seu treina­
mento básico nas cercanias de San Diego, na Califórnia.
A demora em se alistar não só trouxe a Frank alguns meses a mais de paz, mas
evitou sua participação no primeiro grande desembarque anfíbio dos fuzileiros
navais da guerra: na ilha de Guadalcanal. Mais de 7 mil fuzileiros e soldados foram
mortos, incluindo o afundamento de 29 navios e a perda de incríveis 615 avióes.
Frank só chegaria no Pacífico Sul no final da campanha de Guadalcanal, e, assim,
ele escapou de um dos piores massacres da guerra. No entanto, existiram diversas
outras oportunidades para morrer nos três anos seguintes.

“Soldado Moore”, o sargento murmurou. “O capitão o chama.”


Eram onze da noite, aproximadamente, do dia 24 de dezembro de 1943.
Frank Moore não tinha certeza se era véspera de Natal ou dia de Natal, e ele não
se importava muito com essa coisa chamada linha internacional de mudança de
data; ou seja, ele sempre estava um dia adiante da sua vida, a vida que ele deixou
na terra natal. Em vez de tentar fazer contas, ele simplesmente decidiu se manter
no “horário de Flint”. Mais fácil. Mais amigável.
Desde cedo naquela noite, ele e milhares de outros fuzileiros navais ocu­
pavam seus beliches no navio de transporte militar, rumo à batalha de New
Britain, uma ilha que era parte de Papua-Nova Guiné, algumas centenas de
quilômetros da costa da Austrália. Não havia muitas celebrações de Natal acon-
119
NATAL DE 1943

tecendo, ainda que houvesse, sem dúvida, muitas orações sendo feitas. Pois, às
sete da manhã, embarcariam em veículos de assalto anfíbio e seriam baixados no
Oceano Pacífico, apenas a 1,6 quilômetro da costa de Cape Gloucester, em New
Britain. No entanto, por ora, o capitão Moyer queria ver Frank.
“Soube que você é capaz de datilografar”, Moyer disse ao jovem soldado.
“Sim, senhor, um pouco”, Frank respondeu, não entendendo bem o que
datilografia tinha a ver com matar japoneses ou Natal.
“Quero que você fique na retaguarda, aqui no navio”, Moyer afirmou. “Pre­
ciso de alguém capaz de datilografar os relatórios de baixas.”
“Mas, senhor...”
“Veja, isso é importante. Precisamos ser precisos e precisamos ser responsá^
veis. No mínimo, para o centro de operações, ao menos para as famílias desses
homens.”
Era, Frank entendeu, um passe do tipo “escape de morrer” sendo oferecido
a ele. Ficar na retaguarda, no barco. Não morrer na chuva de balas e morteiros
que atingirá os peitos, os pescoços e as cabeças dos seus amigos e companheiros
fuzileiros navais. Viver para o outro dia. No entanto, não havia garantias de;
|
viver nos dias ou semanas à frente. j
Nos meses anteriores à batalha de Nova Guiné, ele tinha entendido quej
o teatro de operações do Pacífico Sul era um matadouro. Ele se perguntou: se
tivesse se alistado no Exército em vez de nos fuzileiros navais, estaria em algum
lugar do Mediterrâneo neste exato momento? Ele considerou que os italianos e
alemães de nenhuma maneira estariam lutando com unhas e dentes como esses
japoneses. Claro que o inimigo na Europa queria vencer a guerra, mas não à
custa da morte de todos soldados da sua unidade. Afinal de contas, qual será
a razão da vitória se todos morrerem? Ele gostaria de fazer essa pergunta a um
soldado japonês, mas nunca teve a oportunidade, pois nenhum deles foi captu­
rado, ou pior, se rendeu. j
A proposta do capitão Moyer pareceu muito tentadora, mas Frank sabia I
que ficar na retaguarda, no navio, só estava protelando o inevitável. Se o seu j
tempo acabou, melhor morrer no dia do aniversário de Cristo. !
“Capitão, prefiro ficar com meu batalhão. Se estiver tudo bem para o j
senhor, quero ficar com meus companheiros.” |
120
ADORO PROBLEMAS

Moyer ficou impressionado com o soldado Moore, e como ele tinha se


oferecido para ajudar o capelão durante a missa, atuando como seu “coroinha”.
Embora Moyer fosse episcopaliano, ele muitas vezes freqüentava às missas
católicas e observava o quão respeitosamente Moore tratava toda a cerimônia,
mesmo se fosse sobre um tronco de um coqueiro caído. Ele achou que deu a
Moore a chance de viver outro dia, mas o menino não foi perspicaz.
“Tudo bem”, ele disse ao soldado. “Você está liberado. Vá dormir um
pouco.”
“Obrigado, senhor.” Frank voltou ao seu beliche e, pela primeira vez depois
de muito tempo, não teve problema para adormecer.
Às cinco da manhã, os estrondos das armas de artilharia dos contratorpe­
deiros americanos próximos fizeram Frank parar e se perguntar se ele não tinha
cometido um erro de não aceitar a proposta do capitão. Alguém mencionou
que Moyer e um grupo de reconhecimento tinham partido para a baía duas
horas antes, com a intenção de desembarcar antes da invasão, sob a cobertura da
escuridão, a fim de descobrir exatamente o que a Primeira Divisão de Fuzileiros
Navais estava prestes a enfrentar.
Bem enfiado em seu veículo anfíbio, com cerca de outros trinta fuzileiros,
Frank fez uma oração final antes de a porta abaixar e descarregar todos eles na
agitação da água salgada que batia no peito. Eles não passavam de peixes num
barril japonês de tiro ao alvo. A primeira coisa que Frank percebeu foi que era
quase impossível andar, que era impossível disparar seu fuzil, e, embora fosse
um alvo humano para os atiradores japoneses com necessidade de alguma prá­
tica de tiro ao alvo de manhã cedo, o foco de Frank estava em alguns objetivos
de curtíssimo prazo: um passo à frente, agora o outro pé. Manter o fuzil acima
da cabeça para não molhá-lo. Agora, mais um passo à frente. Isso pareceu levar
uma hora ou mais (levou menos de cinco minutos), e Frank ficou surpreso de
ainda estar vivo. Dumbroski, um sargento que fora o grande valentão da uni­
dade até aquele momento, estava paralisado, chorando. Continue se movendo.
Perna. Pé. Fuzil. Seco.
E, então, subitamente, ele chegou na praia. Uma praia de areia vulcânica
preta. O sangue vermelho na areia preta criava uma mistura bizarra; os dois
capturavam a luz solar matinal e brilhavam com mais vida do que mereciam.
O matagal da selva estava apenas a poucos metros, e parecia oferecer a melhor
121
NATAL DE 1943

proteçáo contra os obuses sendo lançados de um penhasco situado a cerca de


1,6 quilômetro. Em poucas horas, a maioria dos fuzileiros navais tinha desem­
barcado e as baixas foram menores do que a expectativa. Os japoneses decidiram
não lutar essa batalha na praia, talvez porque os fuzileiros navais detonavam
muitas bombas de fumaça para que o inimigo tivesse dificuldade de ver os inva­
sores americanos.

O batalhão de Frank deslocou-se para o flanco esquerdo, na direção do terreno


mais elevado, enquanto os outros batalhões prosseguiram direto através da selva.
Frank e seus homens voltaram a ficar surpresos com a falta de tiros ou resistência
dos japoneses. Em um hora, movendo-se com rapidez, eles começaram a escalar
a Colina 250. Parecia muito fácil.
Eles tinham razão. I{
Por algum motivo, o batalhão de Frank tinha achado uma abertura mágica
na linha de frente dos japoneses e, sem perceber, atravessou-a sem ninguérji
notar. Naquele momento, eles estavam em território japonês, centenas dje
metros à frente do que todos acreditavam ser a linha de frente do Corpo djs
Fuzileiros Navais dos Estados Unidos da América.
O mapa deles indicava o que talvez fosse a Colina 250. Geralmentç,
recomenda-se que, durante uma batalha, o melhor a fazer é ficar no alto dâ
colina do que na base dela. Você não precisa ser um graduado de West Point para
entender isso. Assim, Frank e os outros homens começaram a escalar a colina.
Os japoneses no alto da colina não queriam nenhuma companhia naquele dia
e, assim, atiraram tudo que tinham contra o batalhão perdido. Então, do nada,
uma chuva de monção irrompeu, impossibilitando ver mais do que alguns
metros à frente. Isso deu aos fuzileiros navais a cobertura e a vantagem que
precisavam. Rapidamente, seguiram em frente, para o alto da Colina 250. Comj
granadas, metralhadoras de 37 mm e simples força de vontade, capturaram ai
colina. Os japoneses no alto da colina não tinham como saber que era apenasj
uma pequena unidade de fuzileiros navais; eles supuseram que estavam enfren-j
tando uma horda invasora de centenas, ou mesmo milhares, de americanos, j
122
ADORO PROBLEMAS

Assim, eles bateram em retirada, descendo pelo outro lado da colina, onde uma
força maior do exército japonês se concentrava.
Quando os fuzileiros navais alcançaram o topo, a chuva parou. Essa pri­
meira vitória pareceu boa —náo exatamente boa de fincar uma bandeira (eles
mal tinham avançado na ilha de 480 quilômetros de comprimento), mas bas­
tante boa - e, extraordinariamente, náo houve baixas.
Então, eles escutaram o som dos aviões. Era um som bem-vindo, como
era o zunido agradável de um motor Wright Cyclone de um B-25, o som que
dizia: Aqui estamos nós, rapazes!A Cavalaria para o resgate! Os fuzileiros no solo
tinham limpado a colina e, naquele momento, era a hora dos aviões mergu­
lharem e capturarem o vale!
Mas quando Frank deu uma olhada nos aviões iluminados por trás pelo sol
tropical (causticante naquele momento), ele viu uma nuvem de fumaça saindo
de um deles. O avião fora atingido. Como isso era possível? Eles estavam vindo
do território controlado pelos americanos; quem teria atirado num avião ame-
ricano pela retaguarda?
De fato, foram fuzileiros navais na cabeça de ponte da praia que metra-
lharam os aviões americanos, achando (por engano) que eram aviões bombar­
deiros japoneses. Os aviadores americanos, por sua vez, acharam que os japoneses
tinham os atingido (dois B-25 caíram em chamas) e, assim, quando olharam
para baixo, na direção da Colina 250, e viram os “japoneses” que acharam que
tinham atirado contra os aviões, bem, era a hora da revanche.
No entanto, é claro, aqueles não eram japoneses na Colina 250; aqueles
eram os homens da unidade do meu pai.
Mergulhando até quase o nível da copa das árvores, os B-25s metralharam
a Colina 50 com suas balas. Frank e os homens não tiveram tempo de sinalizar
que estavam do mesmo lado. Não havia nenhum lugar para buscar abrigo. Eles
se jogaram no chão e rezaram pelo melhor. Frank conseguiu ver as rajadas de
balas traçantes vindo dos aviões direto na direção deles. Ele admitiu que isso era
o fim da sua vida, e fechou os olhos, enquanto aquela vida, com todas suas cenas
de alegria, pobreza e família, passou em sua mente num instante. Ele sabia que
o próximo instante seria seu último.
Quando Frank abriu os olhos, sua vida não tinha acabado. Mas a cena
diante dele era uma que nunca teve vontade de ver. Deitado ao seu lado,
123
NATAL DE 1943

estava um dos seus amigos. Seu rosto tinha desaparecido. Frank levantou os
olhos, além do corpo, e viu cerca de uma dúzia dos homens da sua unidade
caídos, perfurados com balas, muitos gritando por ajuda, alguns vivos, alguns
talvez mortos, seus uniformes começando a ficar completamente manchados
de sangue, que estava escorrendo dos diversos ferimentos. No total, quatorze
fuzileiros navais foram atingidos e um estava morto. Somente Frank não fora
ferido. Por um momento, ele se convenceu que também devia estar morto,
pois não era possível sobreviver a tantas balas disparadas de tão baixa altitude,
balas que não só penetraram nos corpos dos seus companheiros, mas também
destruíram a rocha vulcânica em torno dele. Como isso era possível? Por que
ele não foi atingido? E por que, em nome de Deus, esse bom fuzileiro ao lado
dele morreu nas mãos de outros americanos? j
Frank não se lembrava muito do que aconteceu depois. Aparentemente,
os fuzileiros navais na linha de frente atrás dele testemunharam todo o impres­
sionante incidente. Eles alcançaram Frank e os outros fuzileiros quando Frank
estava tentando prestar os primeiros socorros aos seus companheiros. Médicos
e macas foram providenciados, e, depois que os feridos foram atendidos, Frarík
foi levado de volta para o ponto de desembarque na praia. !

“Eu estou bem”, Frank disse, após algumas horas de repouso. “Estou prontp
para voltar.”
“Será noite em breve”, um cabo lhe disse. “Acho que tudo bem se você ficar
aqui conosco.”
Frank achou que talvez alguém quisesse falar com ele, para apresentar um
relatório ou algo assim. Mas havia uma guerra, uma guerra real, em andamento!,
e, depois de perguntar a um tenente por que aquele erro trágico havia aconf
tecido, soube que aquilo acontece na guerra o tempo todo. “Você só tem de
avançar e ganhar.” Depois disso, Frank nunca mais voltou a fazer perguntas i
esse respeito. j
!|
124
ADORO PROBLEMAS

No dia seguinte, Frank soube que o capitáo Moyer e os cincos homens com ele
foram mortos na missão de reconhecimento. Ele percebeu que esse era o modo
pelo qual as coisas se desenrolariam. Mortes e mais mortes. Logo, outro capitão da
linha de frente apareceu com dois soldados rasos que tinham “rachado” sob pressão.
“Esses sujeitos são meus responsáveis pelos fios”, ele disse ao oficial em
comando. “Eles não servem para mim. Troque-me esses dois por um dos seus.”
O tenente olhou para Frank.
“Esse sujeito é um metralhador. Pode ficar com ele.”
“Não preciso de um metralhador, preciso de um responsável pelos fios.
Alguém capaz de carregar carretéis de fios de rádio, correr rápido e se safar.”
“Esse sujeito sabe como se safar. Me acredite.”
“Instalador de fio?”, Frank perguntou. “Carregar e desenrolar o fio de rádio
da linha de frente até o posto de comando?”
c>im.
“Não metralhar mais?”
“Não! Você não pode metralhar e carregar o fio ao mesmo tempo. Mas eles
atirarão em você. Eles primeiro procuram os caras do rádio, para não podermos
falar com o posto de comando. Nesse serviço, é bom ter alguma coragem e saber
alguns passos especiais de dança para driblar os japoneses.”
Coragem? Passos de dança? Por que ele não falou isso logo de cara?

“Fui o homem dos fios pelo resto da guerra”, meu pai disse quando terminou
sua história. “Nunca mais voltei a carregar uma metralhadora. Levei tiros repe­
tidas vezes, mas não podia atirar de volta porque tinha de carregar o carretei de
fio. Foi uma decisão maluca.”
Agradeci-lhe por me contar tudo isso, mas eu tinha 13 anos e, no fim disso,
estava inquieto e olhando para o relógio. Queria sair de casa e me encontrar com os
amigos. Meu pai não percebeu nada disso, pois sua mente ainda estava em 1943.
“Todo Natal penso a respeito daquele dia. Eu tinha de viver, de alguma
forma... com sorte, acho...,” ele disse, com a voz diminuindo.
“Pai, posso ir agora? Talvez o senhor possa me contar outra história da
guerra mais tarde?”
Passariam anos até eu voltar a escutar outra história.
UMA QUINTA-FEIRA SANTA

“Não fique parado aí, os pretos estão chegando!”


Walter tinha doze anos, e ele só estava tentando ser prestativo.
“O que você quer dizer?”, perguntei, parado na entrada de carros da càsa
dele, com minha luva de beisebol e um bastão, esperando por um jogo antes fio
pôr do sol. i
“Os pretos em Detroit estão arrumando confusão! Meu pai disse que eles
estão vindo para cá! Nós estamos indo para o norte!”
i
E, de fato, eles estavam. Eles não estavam perdendo tempo, apinhando
apressadamente a caminhonete deles com comida, suprimentos e espingardas.
Dorothy, mãe de Walter, gritando, dava ordens para os seis filhos a respeito
do que levar e do que deixar para trás. Eu fiquei parado ali, admirando a pre­
cisão daquela operação. Era como se eles tivessem realizado esse treino muitis
vezes antes. Algumas casas adiante, notei outra família fazendo a mesma coisa.
Comecei a ficar com medo.
“Walter, não entendo. Por que vocês estão fazendo isso? Vocês vão voltar?”
“Não sei. Só quando der. Meu pai disse que os pretos de Detroit estão
vindo para cá e vão chegar aqui a qualquer minuto.”
Vindo para cá? Aqui? Eles estão vindo para a H ill Street?
“Walter, acho que Detroit é bem longe daqui.”
“Não é não! Meu pai disse que eles podem chegar aqui rapidinho!” Walteií,
então, estalou os dedos, como se, ao fazer isso, pudesse magicamente fazer uni
negro aparecer para demonstrar seu ponto de vista para mim. “Eles vão se juntai
com os pretos de Flint e, depois, vão vir aqui nos matar!” j
126
ADORO PROBLEMAS

Embora nunca tivesse escutado nada tão ilógico assim antes, estava familia­
rizado com as atitudes da cidade de Davison quando o assunto eram pessoas de
cor. Os negros —pretos, como muitos saudosamente os chamavam —eram sim­
plesmente não bem-vindos. Ao meu conhecimento, não havia um único negro
vivendo entre os 5,9 mil habitantes da cidade de Davison. Considerando que
estávamos nas proximidades de Flint, uma cidade com 50 mil negros, isso não
era um acaso. Ao longo dos anos, os corretores de imóveis sabiam o que fazer
quando algum negro os consultava a respeito de mudar de Flint para Davison.
E o acordo não escrito, embora nem sempre não dito, entre os moradores da
cidade era nunca vender sua casa para uma família negra. Isso manteve as coisas
agradáveis, pacatas e brancas por décadas.
Essa atitude não existia um século antes. Nas décadas de 1850 e 1860,
Davison era uma parada da Underground Railroad, uma série de destinos
secretos que se estendia do vale do rio Ohio na direção norte, através de Indiana
e Ohio, rumo a Michigan e até a fronteira canadense, onde os escravos negros
fugitivos encontravam sua liberdade. Havia mais de duzentas paradas secretas
ao longo da ferrovia no estado de Michigan; Os membros do Partido Republi­
cano, em Michigan, trabalhavam muito na Underground Railroad, ajudando os
escravos fugitivos, dando-lhes passagem segura e os escondendo em suas casas.
No entanto, os caçadores de recompensas do sul dos Estados Unidos
tinham permissão da lei federal de entrar em estados como Michigan e seqües­
trar legalmente os escravos que encontrassem, levando-os de volta para seus
senhores. Esse foi um dos muitos compromissos que os estados do norte tiveram
de assumir ao longo dos anos para manter os estados escravagistas felizes e na
União. Portanto, um escravo não era livre fugindo simplesmente para um estado
livre; ele ou ela tinham de se refugiar no Canadá.
Assim, foi com algum risco que centenas de residentes de Michigan se dedi­
caram a proteger as vítimas desse sistema cruel e bárbaro. Uma dessas pessoas
era dona da casa na esquina da Main Street e Third Street, em Davison, a apenas
95 quilômetros da fronteira canadense. Anos depois, disseram que a família
dessa casa tinha um esconderijo no porão e que os moradores das cidades não
revelavam esse segredo aos caçadores de recompensas. (No fim, essa casa se tor­
naria o lar dos meus avós.)
Em Davison, tornou-se motivo de orgulho que o vilarejo estivesse parti­
cipando de algo importante, algo histórico. Muitos dos rapazes da região logo
127
UMA QUINTA-FEIRA SANTA

partiriam para participar da Guerra de Secessão, e quando a escravidão acabou,


o povo de Davison sentiu orgulho do pequeno papel que desempenhou em
fazer isso acontecer.

Esse não era o estado de espírito num dia abafado de agosto, no verão de 1924,
quando 20 mil pessoas se reuniram no hipódromo Rosemore, em Davispn,
para participar de um comício dos cavaleiros benevolentes da Ku Klux Klan.
Olhando as fotos daquele dia, com milhares de cidadãos em túnicas brancas,
alguém se pergunta o calor que eles deviam estar sentindo, especialmente còm
aqueles capuzes pontiagudos. Muitas pessoas, porém, não usavam os capuzes,
pois, na realidade, não tinham motivo para ocultar suas identidades, porque
parecia que todos e seu primo de terceiro grau eram membros dessa organizarão
gentil, dedicada a aterrorizar e linchar negros. |
No entanto, no verão de 1924, em Flint, o problema não era tanto os
negros (a maioria deles tinha aprendido a conhecer seu lugar e ficar quieta).
Não, naquela tarde de domingo, o problema da Klan eram os “papistas”, istojé,
os católicos. Os católicos, pelo jeito, tinham começado a se candidatar em eki-
ções. Eles estavam se mudando para bairros considerados protestantes brancps,
e isso não parecia ser a ordem natural das coisas. Os católicos também tinhajm
começado a se casar com pessoas de outras religiões, algo que criou um senti­
mento ruim entre os fiéis reunidos. O casamento, como era necessário saber, era
para ser entre um homem protestante e uma mulher protestante (e, sim, podia
ser entre um homem católico e uma mulher católica, mas não entre católicos e
protestantes).
O pai da minha mãe (meu avô Wall) não entendeu essa regra (e ele tinlia
de ser perdoado, pois era, afinal, do Canadá). Em 1904, ele, um anglicano,
casou com minha avó, católica apostólica romana. Para seu transtorno, a Klan
queimou uma cruz no seu quintal, em Davison.
“Não era exatamente uma cruz”, minha avó comentou, posteriormente.
“Achamos que merecíamos mais do que uma cruz de um metro e vinte de altura”
Ao longo das décadas de 1920 e 1930, Davison e outras regiões de Michigan
eram caldeirões de intolerância empolgada. Desde Father Charles Coughlin ata­
128
ADORO PROBLEMAS

cando os judeus todos os domingos em seu programa de rádio para todo o país,
a partir de Royal Oak, até os comícios dominicais da Klan, em Davison (e no
Kearsley Park, em Flint), havia o suficiente para se envergonhar e o suficiente
para se surpreender a respeito de quáo longe o estado tinha mudado desde os
dias de humanidade amorosa do recém-criado Partido Republicano, um par­
tido que não só ajudou a acabar com a escravidão, mas também com a pena de
morte, e procurou conceder às mulheres o direito de voto. Naquele momento,
o que tínhamos eram cenas como Henry Ford recebendo medalhas de Hitler.

Era a última semana de julho de 1967, e tudo que estava na minha mente era
que, em breve, mudaríamos para uma rua pavimentada distante seis quarteirões.
No entanto, em Detroit, distante cerca de 95 quilômetros, a cidade estava, de
fato, em chamas. Apareceu no noticiário da noite anterior. Do que consegui
entender, a polícia havia tentado prender todos os negros em um clube noturno
onde estava tendo uma festa para dois veteranos que tinham voltado do Vietnã.
Isso irritou a vizinhança e desencadeou protestos imediatos, que, em seguida,
descambaram para a violência. A Guarda Nacional foi chamada, e muitos da
região sudeste de Michigan se convenceram de que os tumultos raciais que
irromperam em Watts dois anos antes - e em Newark, apenas duas semanas
antes - estavam agora em florescência plena em nosso estado.
Na época, o que não se entendeu, de fato, era que aquilo era uma revolta
dos pobres de Detroit - e aqueles pobres notaram a polícia e a Guarda ficando
furiosas e atirando contra qualquer pessoa suspeita de cor negra.
Em Flint, porém, as coisas eram diferentes. No ano anterior, a cidade tinha
eleito o primeiro prefeito negro do país: Floyd McCree. McCree era amado em
Flint, uma cidade que ainda era quase 80% branca. Em pouco tempo, os eleitores
de Flint também aprovariam a primeira lei do país de habitação aberta, tornando
ilegal a discriminação no aluguel e venda de imóveis. Embora, de modo geral,
os bairros de Flint ainda fossem segregados, aparentemente havia algum tipo de
desejo de “consertar as coisas” quando o assunto era a questão racial.
O que fez a família de Walter e sua fuga desvairada parecerem ainda mais
absurdas para mim enquanto permanecia parado na entrada de carros da casa
129
UMA QUINTA-FEIRA SANTA

dele. Flint não ia explodir, e os negros não iam me matar. Nem mesmo precisava
perguntar aos meus pais para confirmar isso. Na realidade, meu maior medo era
que minha mãe pudesse ter escutado Walter dizendo “preto”, uma palavra que
nunca era dita e era proibida em nossa casa. Sofreria algum constrangimento se ela
gritasse para eu voltar para casa, mas não havia nada com o que se preocupar, pois
ela e meu pai estavam atarefados planejando nossa mudança para a Main Street.
A caminhonete estava totalmente cheia de suprimentos e paranóia e, assim,
a família de Walter partiu, com os pneus espalhando o cascalho na fuga para a
segurança.
Flint não se sublevou, mas Detroit ardeu durante uma semana. Toda noite,
no telejornal local, as cenas de guerra do Vietnã eram substituídas por cenas
de guerra de Detroit. Chocaram todo o estado. Detroit, essa bela e generosa
cidade, nunca mais seria a mesma. Nos anos seguintes, seria difícil para qual­
quer um entender o que aquilo significou, mas aqueles de nós que cresceram a
uma distância curta viam Detroit como a cidade da Esmeralda,61 um lugar cheio
de vida, com calçadas cheias de gente, com lojas que causavam inveja em todo
o Meio-Oeste, com universidades, parques, jardins e o museu de arte (com seu
mural de Diego Rivera); a Detroit de Aretha Franklin, Iggy Pop, Bob Segerje
MC5, da Belle Isle e da Boblo, e do décimo segundo andar da Hudsons, onde
o Papai Noel real sentava no seu trono e nos prometia um futuro embalado
para presente de possibilidades infinitas e alegria eterna sobre as renas Cometa,
Cupido, Trovão, Relâmpago e... num piscar de olho, se acabou. Tudo se acabou.
Não que não soubéssemos onde foi ou que não conseguíssemos nos lembrar
por que aconteceu. Sabíamos quando aconteceu; sabíamos o momento exato
quando aconteceu. Explodiu na Woodward Avenue e na Twelfth Street, na
Grand River Avenue e perto do estádio do Tigers, e não parou até tirar nossa
última parcela de otimismo. E, então, corremos, para escapar deles, para deixá-
-los para trás, para deixá-los sofrer e chafurdar na miséria, da qual eles nunca
realmente saíram desde que nós, os residentes de Michigan, lideramos o ônus
de libertá-los. O presidente Johnson enviou a 82- divisão aerotransportada para
Detroit no quarto dia, com tanques e metralhadoras; finalmente, a Guerra do
Vietnã chegara em casa. Quando terminou, 43 pessoas haviam morrido e 2 mi^

61 Cidade do livro O Maravilhoso Mágico de Oz, de L. Frank Baum. (N. T.)


130
ADORO PROBLEMAS

prédios tinham vindo abaixo ou sido incendiados, e nosso espírito foi enterrado
bem fundo sob os escombros.

Nesse pano de fundo, meu pai levou a família a um jogo do Tigers, em Detroit,
apenas algumas semanas depois. Os ingressos foram adquiridos no início do
verão, e, embora minha mãe expressasse sua preocupação a respeito do bom-
-senso de uma “viagem” para Detroit nessa ocasião, suponho que eles decidiram
que jogar fora os ingressos que tinham pago era um crime pior e, assim, fomos
para lá.
Era uma noite de quinta-feira, um horário incomum para irmos a Detroit
para assistir a um jogo de beisebol. Meu pai preferia dirigir para lá durante o
dia; todas as idas anteriores foram feitas para jogos diurnos nos sábados ou
domingos. Mas aquele era um jogo contra o Chicago White Sox, que, naquele
ano, contava com Tommy John e Hoyt Wilhelm como arremessadores e com
Rocky Colavito, ex-Tigers, no outfield (campo externo). Meu pai achou que
seria um bom jogo, já que os dois times estavam numa disputa ferrenha pelo
título do campeonato.
Não foi. Os Tigers perderam por 2 a 1. Mas foi meu primeiro jogo noturno,
e isso pode não me fazer parecer muito um aficionado de esportes, mas foi, real­
mente, um momento mágico para mim, ver aquele campo mágico, banhado
com aquela luz brilhante, como se viesse do céu ou, no mínimo, da usina
nuclear Fermi, situada nas proximidades.
Quando o jogo acabou, houve uma tensão no público à medida que as
pessoas saíam na região que fazia divisa com a área do tumulto. Era a marcha
dos brancos amedrontados, um tipo de caminhar-correr que as pessoas adotam
quando escutam o som de uma sirene de tornado. Caminhe, não corra; mas
corra! Corra para salvar sua vida!
Chegamos no nosso carro, um Chevy Bel Air 1967, que meu pai tinha
estacionado em uni estacionamento pago, em vez de na usual ruela gratuita.
Economizar dinheiro para estacionar naquele mês pós-tumulto não estava na
mente de ninguém. Sair vivo estava.
Saímos do estacionamento da Cochrane Street, seguimos pela Michigan
Avenue, até viramos à direita para pegar a Fisher Freeway, na direção norte.
131
UMA QUINTA-FEIRA SANTA

Quando nos aproximamos da via de acesso da via expressa, um vapor começou


a sair do capô do nosso carro. Achando que poderia haver um posto de gasolina
no outro lado da via de acesso, meu pai continuou sobre a ponte, seguindo para
território desconhecido. Ali, o Chevy simplesmente morreu. Levantei os olhos
e vi a placa da rua. Estávamos na Twelfth Street, o marco zero dos tumultos.
Mostrei isso para meu pai, e ele ficou agitado de um modo que raramente vi.
“Todos fiquem calmos”, ele disse, num tom que nada lembrava calma.
“Travem asportas!”
Obedecemos imediatamente, mas nosso pai viu o terror crescente nas
nossas expressões, e considerou isso uma falta de fé na sua capacidade de nos
tirar daquela confusão.
“Droga! Não sei como viemos parar aqui. Ninguém estava prestanSdo
atenção?”
Que ele pudesse ser tanto filosófico a respeito de por que estávamos em
Detroit, quanto acusatório sobre uma quebra acidental dos fluidos do motor foi
impressionante, pensei. j
Minha mãe e minhas irmãs ficaram muito quietas. Tive certeza de conse­
guir escutar a batida dos nossos corações, mas a batida real estava sendo provo­
cada por um negro batendo na janela do carro.
“Vocês precisam de ajuda?”, ele perguntou, com o pânico tomando conta
do interior do Chevy:
“Sim”, meu pai perguntou. ;
“Bem, vamos ver qual é o problema”, o negro sugeriu.
“Fiquem aqui dentro”, meu pai afirmou. “Eu vou cuidar disso.” Ele não se
parecia com o homem que queria cuidar disso.
Olhei pela janela traseira e percebi que o carro do homem estava estacio­
nado atrás do nosso. E, no carro, estavam uma mulher e duas ou três criança^.
“Vocês estavam no jogo?”, ele perguntou ao meu pai, quando se encon­
traram perto do capô fumegante. i
ter*. w
Sim.
“Nós também. Viemos de Pontiac. Realmente, foi um jogo doído.” j
Os dois pais levantaram o capô, procuraram o problema e logo o
descobriram.
132
ADORO PROBLEMAS

“A mangueira do radiador furou”, meu pai gritou para nós. O negro voltou
para seu carro e abriu o porta-malas. Ele trouxe um recipiente com água e deu
ao meu pai para despejar no radiador.
“Isso deve dar para andar alguns quarteirões e chegar no posto de gasolina”,
o estranho disse. “Mas eu voltaria, para pegar o outro sentido.”
Meu pai agradeceu-lhe pela gentileza e se ofereceu para lhe pagar alguma
coisa, mas o homem não quis.
“Fico satisfeito de poder ajudar”, o negro afirmou. “Espero que alguém faça
isso por mim se eu precisar. Você quer me seguir?”
Meu pai, provavelmente ainda se perguntando se teria parado para o homem
se ele se metesse em apuros, disse não, que nós estávamos bem, que voltaríamos
para a Michigan Avenue, onde, sem dúvida, algum posto estaria aberto.
E um estava. O frentista do posto trocou a mangueira do radiador, encheu
o radiador, e pegamos a estrada.
“Tivemos sorte”, meu pai disse, em algum lugar perto de Clarkston.
“Aquele que encontramos era um bom homem. E esse foi o último jogo
noturno que fomos.”

Oito meses depois, e apenas seis dias antes do Dia de Abertura62 da nova tem­
porada do Detroit Tigers (uma em que o time iria conquistar a World Series63),
a Semana Santa estava se aproximando. Era tempo de Páscoa, e, naquele ano, as
• freiras acharam que seria uma boa ideia vermos de onde veio a original “Última
Ceia” da Quinta-Feira Santa.
“Os apóstolos e Jesus eram judeus”, a irmã Mary Rene nos disse. “Eles
não eram cristãos nem católicos. Eles eram judeus e observavam as tradições
judaicas. E, assim, durante aquela semana, Jesus foi para Jerusalém para celebrar
o Pessach, a Páscoa judaica, que festeja o momento em que os judeus receberam
a ordem de Deus para espalhar sangue de cordeiro nas ombreiras das portas no

62 Opening Day, em inglês. Marca o início de uma nova temporada da MLB, principal liga de bei­
sebol, que ocorre no começo de abril. (N. T.)
63 São as finais do campeonato de beisebol da MLB. (N. T.)
133
UMA QUINTA-FEIRA SANTA

Egito. Isso foi feito para que, quando o anjo da morte estivesse circulando para
matar todos os primogênitos dos egípcios, ele soubesse onde ficavam as casas
dos judeus e, assim, ele podia poupá-las. Esse foi o modo de Deus de enviar umá
mensagem ao faraó: deixe Moisés e o povo hebreu partirem, ou eu vou daná-lo64
ainda mais.”
Bem, uau, essa era uma história e tanto, e, como eu era o primogênito
na minha família, achei bem interessante, ou mesmo arrepiante. Deus, nó
Antigo Testamento, parecia ter algum tipo de suscetibilidade. Constantemente,
ele estava açoitando tribos inteiras ou jogando homens dentro das barrigas dé
baleias. Problema real de atitude, costumava pensar. E por que seu anjo da
morte não era bastante esperto para saber quais eram as casas dos egípcios e
quais eram as casas do judeus sem ter de sujar as portas judaicas com manchais
de sangue difíceis de remover? Ele não podia apenas diferenciá-las a partir dos
estilos diferentes de arquitetura que cada grupo empregava; os egípcios corii
seu estilo colonial de vários planos e os judeus com suas cabanas de escravo de
acabamento precário? Além disso, aquele sangue na porta não tornaria os judeus
menos seguros? Especialmente considerando a manhã seguinte. Todos os egíp­
cios acordariam e encontrariam uma criança morta na casa. Então, falariam:
“Vamos matar os judeus!”. No entanto, alguém diria: “Como vamos encontrá-
-los?”. Então, outra pessoa responderia: “Ei, todos passaram sangue nas portas!
Vamos incendiar as cabanas com sangue de cordeiro!”. j
A irmã Rene, como a irmã Raymond e as outras freiras, esforçaram-se áo
máximo para nos informar que, ao contrário do que podíamos ter ouvido, ps
judeus não mataram nosso Senhor e Salvador. Os romanos mataram. Jesus
era judeu, nasceu judeu e morreu judeu, e ficaria muito angustiado se soubesse que
culpamos seu próprio povo por sua morte; o que devia acontecer de qualquer jeito,
para que ele pudesse ressuscitar e começar nossa religião! Sim!
As freiras entraram em contato com uma das três sinagogas de Flint, e
perguntaram se poderiam levar alguns alunos do sétimo e oitavo ano para um
jantar de Pessach, para que pudessem aprender a tradição judaica dessa época do
ano. O rabino ficou mais do que feliz de poder ajudar, e passamos uma semana
aprendendo a cantar Hava Nagila com uma espécie de agradecimento a ele.

64 A irmã não usou a palavra iniciada com F. Só achei que seria bacana se ela usasse.
134
ADORO PROBLEMAS

Não me lembro muito a respeito desse jantar que os judeus chamam de


seder, a não ser que alguém fez quatro perguntas65 e não pudemos colocar o bolo
de chocolate sobre o prato que usamos para a carne66.

Faltava uma semana para a Quinta-Feira Santa de 1968, a quinta-feira antes do


Domingo de Ramos, o dia que Jesus entrou em Jerusalém e se preparou para
o que seria seu último Pessach na quinta-feira seguinte. Na St. Johns, durante
a quaresma, havia um serviço ou missa quaresmal em cada noite da semana.
Pediram para eu ser o coroinha naquela quinta-feira específica. Havia leituras do
evangelho, a comunhão e a consagração do altar com incenso.
Recebi o incensório de prata, que continha a brasa sobre a qual se colo­
cava o incenso, e, depois, era balançado ao redor do altar e em toda a igreja.
Tinha todas as minhas atividades favoritas combinadas: fogo, fumaça e
emissão de um odor estranho.
No final da missa, um dos meus deveres era levar o incensório para fora
da igreja e jogar o incenso queimado e o carvão no chão, apagando-os com
meu pé.
Era um anoitecer frio dessa noite do início de abril, e o manto negro que
eu usava sobre minhas roupas não era suficiente para me proteger do vento
que estava soprando, fazendo-me querer voltar para dentro da igreja o mais
rápido possível. Esvaziei os restos do incenso sobre o chão ainda coberto de
gelo e os esfreguei, pressionando forte com o salto do meu sapato, até eles se
apagarem. Foi então que um homem, no estacionamento, um paroquiano
que havia saído antes para seu carro, para se aquecer, escutou uma notícia no
rádio. Agitado, ele quis dividir a notícia com todos que estavam saindo da
igreja. Com a porta do carro aberta, ele ficou de pé sobre o assoalho, e, assim,
todos que saíam da missa puderam escutar seu aviso efusivo:
“Kingfoi baleado! Atiraram em King! Martin Luther Kxng!”

65 Constituem o Ma Nishtana: quatro perguntas feitas durante o seder. Para mais detalhes: http-//
www.webjudaica.com.br/musicas/verDetalhe.jsp?musicalD=111. (N. T.)
66 Na tradição kosher, ou seja, de alimentos preparados segundo os preceitos religiosos judaicos,
não se mistura carne com leite. (N. T.)
135
UM A QUINTA-FEIRA SANTA

Naquele momento —do qual me lembrarei pelo resto da minha vida


como uma das coisas mais deprimentes que alguma vez testemunhei - excla­
mações de entusiasmo emergiram da multidáo. Não de todas as pessoas, nem
mesmo da maioria. Mas de uma quantidade considerável, um ruído de ale­
gria espontâneo saiu das bocas que tinham acabado de comungar o corpo
de Cristo na hóstia. Um oba, um grito, um berro e um hurra. Ainda estava
processando a notícia atordoante e trágica a respeito do reverendo King que
acabara de ouvir; ouvir de um homem que disse isso com tanta certeza que
todos ficariam bem agora; esse negro, esse preto, esse terrorista não ia mais
nos incomodar. Aleluia!
Andei na direção da porta da igreja para ver quem, em nome de Deus,
estava celebrando esse momento. Algumas pessoas sorriam. No entanto, a
maioria estava aturdida. Alguns permaneciam em silêncio, enquanto outrojs
corriam para seus carros para poderem ligar seus rádios e escutar por si
mesmos que aquele encrenqueiro não estava mais conosco. Uma mulher
começou a chorar. As pessoas transmitiam as notícias para o interior da igreja,
para aqueles que ainda não tinham saído. Havia muita comoção, e tudo quje
consegui pensar a respeito foi naquele estúpido anjo da morte; e quem diabos
esqueceu de usar o sangue de cordeiro naquela noite em Memphis?67 Não
haveria nenhum Pessach, isto é, nenhuma passagem, nenhuma libertação...
O que diferencia essa noite das outras? Em todas as Páscoas, dali em diante
e pelo resto da minha vida, saberia a resposta amarga. I

67 Cidade onde Martin Luther King foi assassinado, em 4 de abril de 1968. (N. T.)
O EXORCISMO

“Vamos quebrar tudo, filhos da puta”6* gritei na escadaria. 0 5Malley, meu com­
panheiro de quarto valentão, me deu uma bofetada na cara.
“Cala a maldita boca! O padre Waczeski está aqui!”
Virei-me rápido para ver se o padre tinha me ouvido, mas não havia nenhum
padre à vista. 0 ’Malley, que era um ano mais velho do que eu, só quis me esbo­
fetear. Ele deu sua risada sinistra habitual, e voltou a me dar uma bofetada.
“Pare”, eu disse. “Só estou cantando a nova música do MC5.”
“Então, cante a versão limpa, aquela que toca no rádio: ‘Vamos quebrar
tudo, irmãos e irmãs. ”’69
Que diabos ele se importava com uma versão “limpa”? 0 JMalley era o
oposto de qualquer coisa limpa. Ele era mais uma versão do pesadelo de toda
mãe. O que um brutamontes como ele estava fazendo no seminário?
Quando fiz quatorze anos, decidi que era hora de sair de casa. Geralmente
entediado com a escola desde o primeiro ano, mas educadamente oferecendo
meu tempo para manter todos felizes, percebi que poderia fazer mais bem para
mim mesmo e para o mundo (onde quer que fosse) se me tornasse um padre
católico. Não tenho certeza do dia em que recebi “o chamado”, mas posso
garantir que não houve visões ou vozes de cima, nem sarça ardente ou visão da
Virgem. Provavelmente, eu só estava assistindo ao telejornal, e provavelmente vi

68 Kick out the jams, motherfuckers! Primeira frase da faixa título do disco Kick Out the Jams, LP de
estreia da banda MC5, de Detroit, em 1969, um dos grupos musicais mais importantes do final da
década de 1960. (N. T.)
69 Kick out the jams, brothers and sisters. (N. T.)
137
O EXORCISMO

um dos irmãos Berrigan, ou os dois, os padres católicos radicais, invadindo uma


junta de alistamento e destruindo os registros dos jovens que estavam para ser
enviados ao Vietnã, e eu disse a mim mesmo: “Bem, isso é o que eu quero fazer
quando crescer!”. Gostei da ideia do padre herói em ação, e achei que poderia
fazer isso. Gostava de ver os padres marchando com o reverendo King e sendo
presos. Gostava dos padres ajudando César Chávez70 a organizar os trabalha­
dores rurais. Não tinha certeza absoluta do que tudo isso significava; apenas
parecia uma coisa decente a fazer. Era bem básico: você tinha a responsabi­
lidade de ajudar aqueles em piores condições do que você. Nunca iria jogar
para os Pistons ou para os Red Wings; assim, o sacerdócio pareceu uma boa
segunda alternativa.
Mas primeiro tinha de convencer meus pais a me deixar sair de casa. Eles
não gostaram dessa ideia. Eram as pessoas que não me deixaram pular o primeiro
ano, e estavam claramente menos inclinados a me deixar ir embora. No entanto]
eu lhes disse que recebi “um chamado”, e, se você fosse um católico devoto
naqueles dias e seu filho dissesse que recebeu “um chamado”, seria melhor não
arriscar ficar entre o Espírito Santo e seu único filho dado. Eles consentiram]
com relutância.
A formação do seminário levaria doze anos antes de eu poder ser ordenado
padre. Quatro anos de ensino médio, quatro anos de ensino superior e quatrò
anos de formação teológica. A escola do ensino médio era opcional, mas para
aqueles que receberam o chamado, havia dois seminários em Michigan para
alunos do ensino médio: o Sacred Heart, em Detroit, e o St. Paul s, em Saginaw*
Fazia menos de um ano desde os tumultos em Detroit. Assim, o Sacred Heart
estava fora de cogitação para meus pais. Então, fui para o St. Paul s.
Em setembro de 1968, na primeira noite depois que minha mãe e meu pai
me deixaram no seminário, comecei imediatamente a questionar a sabedoria
da minha decisão. Minhas dúvidas não eram condicionadas pelas regras rígidas
que eu tinha de seguir: levantar às cinco da manhã para orações, longos períodos
de silêncio forçado, impedimento de entrar no seu quarto das oito da manhã
às oito da noite, estudos difíceis (nove semanas dissecando apenas uma única

70 Chávez (1927-1993) foi ativista americano pelos direitos civis e cofundador da National Farm
Workers Association. (N. T.)
138
ADORO PROBLEMAS

peça de Shakespeare), trabalho duro e castigo severo por violar alguma regra.
Os calouros eram proibidos de assistir à TV ou escutar rádio durante um ano.
Você ficava totalmente confinado no seminário, com exceçáo das duas às quatro
da tarde nos sábados, quando você podia andar três quilômetros até o pequeno
centro comercial, comprar um hambúrguer e voltar correndo.
No entanto, para mim, tudo bem em relação a tudo isso. Meu problema
não era com o sistema (ao menos, não no início). Era sim com os dois com­
panheiros com quem fui designado a dividir o quarto. Mickey Bader e Dickie
0 ’Malley. Mickey e Dickie. Os “Ickies”,71 como eu os chamava (mas só para
mim mesmo). O problema de eles estarem ali, no seminário, era que nenhum
deles queria ser padre. De nenhuma maneira. Eles eram ligados em garotas,
bebidas e cigarros, e escapavam do seminário sempre que podiam. E gos­
tavam de me caçoar. Eles eram o que os adultos chamavam de “delinqüentes
juvenis”. Eram garotos ricos, filhos de homens importantes em suas comu­
nidades, e, aparentemente, Dickie, ao menos, já tinha diversos problemas
com a lei. Seus pais decidiram que talvez o seminário pudesse endireitá-los,
e como os dois chegaram ao final do intenso processo de entrevistas que
eu tive de atravessar para ser admitido naquele lugar, estava além da minha
compreensão. Cheguei a conclusão que, provavelmente, seus pais tinham
comprado a admissão, e os padres estavam obviamente com necessidade de
qualquer “caridade”, onde quer que pudessem encontrá-la.
Não gostei de descobrir que aquilo era tanto um seminário como um
reformatório, e ficou claro para mim que teria de suportar o assédio constante
de Mickey e Dickie se quisesse ser padre. Quando eles descobriram que eu
realmente acreditava em toda essa “baboseira de religião”, eram implacáveis
em me ridicularizar enquanto fazia minhas orações, realizava meus afazeres
e praticava meu latim. Eles passavam molho de maçã sobre meus lençóis,
colocavam pôsteres de garotas da Playboy sobre a tampa do vaso sanitário e
se entretinham usando uma tesoura para alterar o comprimento das minhas
calças. Embora eu fosse maior do que eles, não queria recorrer à violência a
fim de ter alguma paz e sossego. Assim, mantinha distância deles.

71 Nojentos, em português. (N. T.)


139
O EXORCISMO

Havia duas regras que decidi desde o início que não poderia seguir no semi­
nário, e sabia que Deus me perdoaria. Em outubro de 1968, o Detroit Tigers
caminhava na direção da World Series, e como parte da nossa penitência de ser
calouro, não tínhamos permissão de assistir ou ouvir os jogos. Convenci-me de
que esse edito não vinha do Todo-Poderoso, e, assim, infiltrei um rádio portátil
no meu quarto e o escondi dentro da minha fronha. À noite, deitava na cama
e escutava os jogos, com o som abafado, através das penas de ganso. Eu perdia
os jogos diurnos.
A outra regra era que você não podia ter nenhuma comida no seu quarto,
Como eles estavam mais interessados em alimentar nossas almas do que nossos
corpos, decidi tomar conta deste último. Naquele ano, a ciência tinha inventado
o Pop-Tart72 congelado (“Prova da existência de Deus”, eu diria). Eu contrai
bandeava caixas desses itens celestiais e os torrava colocando uma folha dé
papel sobre o topo da minha luminária e pousando o Pop-Tart sobre elal
Finalmente, fui descoberto por um padre, que sentiu o cheiro do recheio de
morango queimado no corredor. Tive de realizar tarefas extras na cozinha por
uma semana e perdi o direito de saída no sábado à tarde por um mês.
A outra coisa que gostava de fazer era andar com os garotos veteranos. Eles
tinham um talento especial para pregar peças engenhosas, que adoravam aplicar
sobre a hierarquia sagrada. Minha contribuição para esse clube era produzir
um pó que substituía o incenso da capela. Era chamado de “bomba de fedor”,
Quando o coroinha colocava um punhado desse “incenso” nas brasas do incen­
sório, ele soltava um fedor medonho; uma combinação de cheiro de ovo podre
e bolor de vestiário. Esvaziava a igreja em minutos.
A outra travessura pela qual fiquei famoso (mas somente como “anônimo”,
pois nunca fui descoberto) envolveu minha “entrada” na feira de Ciências anual
da escola. Naturalmente, eu não tinha interesse em ciência (a não ser que a
ciência conseguisse fazer um Pop-Tart com calda de chocolate, o que, com o
tempo, fez), mas eu tinha interesse em sempre realizar o melhor truque. |
Cerca de uma hora antes da feira de ciências do seminário abrir as portas
para o público, eu entrei calmamente na sala de exposição e coloquei meu “proj-

72 Marca de um folhado retangular pré-assado, com recheio doce de diversos sabores, fabricadp
pela Kellogg Company. (N. T.) !
140
ADORO PROBLEMAS

jeto de ciências” sobre uma das mesas. Era um tubo de ensaio simples, que
continha um líquido claro (na realidade, óleo de cozinha). Eu o posicionei no
seu estande e pus um cartaz na frente dele. Estava escrito:

Nitroglicerina:
Não Toque ou Explodirá.

Faltavam cinco minutos antes da abertura, e eu me escondi próximo ao


local, para que pudesse observar as expressões das pessoas ao perceber o tubo
de ensaio do perigo. Naquele momento, a professora de Ciências, uma freira
baixinha, com óculos de lentes grossas, na faixa dos setenta anos, entrou para
fazer uma vistoria final na feira, verificando se tudo estava no lugar e pronto
para começar. Ela achou minha contribuição para a feira, e ficou surpresa de
ver algo sobre a mesa que não tinha colocado ali. Ela tirou o óculos e limpou as
lentes, sem ter certeza absoluta do que era aquilo que estava vendo. Quando se
inclinou para ler o cartaz, ela soltou um grito e se encaminhou rapidamente
até a caixa de alarme de incêndio, quebrou o vidro e puxou a alavanca.
Fiquei aflito.73 Aquilo tinha ido longe demais. Saí dali o mais rápido
que pude, e quando os caminhões do corpo de bombeiros chegaram, vi os
bombeiros entrarem e recuperarem o tubo de ensaio, dizendo que aquilo
dentro dele não era nitroglicerina. As freiras e os padres pediram desculpas e
emitiram um fatwaJAsobre aquele que foi responsável por aquilo. Eles nunca
acharam o culpado.

Há dois tipos de medo: medos normais, que são primais (medo da dor, medo da
morte), e, então, há o medo do padre Ogg.
Ogg ensinava latim e alemão no seminário. A Igreja também lhe concedeu
poderes especiais, e ele era o único padre no seminário que tinha esses poderes.

73 Sim, no futuro mais violento que estava à nossa frente, esse tipo de coisa teria resultado na minha
expulsão e prisão. Porém, em 1969, era apenas divertido.
74 No Islã, pronunciamento legal emitido por um especialista em lei religiosa sobre um assunto
específico. (N. T.)
141
O EXORCISMO

Certa noite, ele reuniu alguns de nós, garotos, e nos perguntou se gostaríamos
de ver como esses poderes podiam ser usados. Já sentíamos medo do padre Ogg,
mas ninguém iria admitir isso, e, assim, todos concordamos em deixar ele nos
mostrar.
Ele nos levou para as “catacumbas” do seminário (um série de túneis sob
o prédio), para realizar uma cerimônia que só ele tinha permissão de fazer. Era
chamada de rito do exorcismo.
O padre Ogg era um exorcista.
Levariam ainda três anos para Hollywood fazer a cabeça de Linda Blair
girar no filme de William Friedkin. Assim, tudo que sabíamos a respeito dê
exorcismo era que era uma seqüência de orações e rituais realizados sobre o
corpo de uma pessoa a quem o diabo tinha possuído. O diabo era expulso^
e a vítima era salva. O padre Ogg nos revelou que ele tinha um “histórico de
sucessos de mil por cento” no confronto contra Lúcifer.
“Eu sempre ganho”, ele disse.
Ele nos falou que nos mostraria a cerimônia, mas seria só um “faz de conta’:,
pois nenhum de nós tinha revelado sinais de estar sendo dominado pelo mal.
Sim, mas não seria melhor, pensei, se houvesse alguém ali no St. Paul s quje
fosse de fato mau? Claro que seria! E, naturalmente, havia. I
“Padre”, disse com sinceridade falsa, “antes de o senhor começar, acho que
Dickie 0 ’Malley ficaria realmente perturbado se nós o deixássemos fora disso.
Ele fica dizendo que não acredita que o senhor é um exorcista. Ele gostaria de
ver o senhor tentar exorcizá-lo. Posso chamá-lo?”
“Claro”, Ogg afirmou, ofendido que alguém questionasse seus poderes de
expulsão do diabo. “Mas faça isso rápido.” i
Subi as escadas correndo e encontrei Dickie onde achei que ele estaria: do
lado de fora do ginásio de esportes, fumando um cigarro.
“Dickie!”
“Sim, seu babaca, o que você quer?” |
“O padre Ogg disse que quer vê-lo agora mesmo.” j
“Sim, bem, diga a ele que você não conseguiu me encontrar.”
“Ele disse que viu você sair para fumar, e que, se você voltar agora, ele não
vai dedurá-lo.”
142
ADORO PROBLEMAS

Dickie considerou a proposta de clemência atentamente, deu as últimas


tragadas, me deu uma tapa no rosto, e me seguiu até as catacumbas.
“Bem-vindo, Dickie”, o padre Ogg afirmou com um sorriso malicioso.
“Obrigado por se voluntariar.”
Dickie olhou para ele com surpresa presunçosa, mas sentindo que não se
meteria em apuros se cooperasse, aproximou-se, alheio ao que aconteceria em
seguida. Minha expectativa era que, em cerca de vinte minutos, nasceria um
novo Dickie.
O padre Ogg trouxera um agourento saco de lona preta com um brasão
vermelho sobre ele, e palavras estampadas em latim que eu não entendia. Ele
estendeu o braço e tirou um recipiente cheio de água benta, um frasco de óleo
sagrado, cerca de meia dúzia de ramòs de oliveira secos e, uau!, uma corda de
couro.
“Agora, normalmente, Dickie, eu o amarraria. Assim, você não seria capaz
de me machucar”, o padre Ogg disse, diante do riso abafado dos presentes.
“Eu não vou machucá-lo, padre”, Dickie protestou. “E o senhor não vai me
amarrar. Eu só estava fumando.”
“Sim, fumaça às vezes escapa do possuído”, Ogg revelou. “Alguns pegaram
fogo. Mas não acho que você tem de se preocupar com isso esta noite.”
Então, o exorcista se lançou em uma série de rituais sem sentido, profe­
rindo palavras e línguas que eu nunca tinha escutado. Ver esse palavrório sair da
sua boca numa velocidade de cem quilômetros por hora me deu arrepios. Essa
era a coisa! Também assustou Dickie, e ele, parado ali, ficou atônito diante do
que estava testemunhando.
*Exorcizo te, omnis spiritus immunde, in nomine Dei Patris omnipotentis, et
in noimine Jesu Christi Filili ejus, Domini et Judieis nostri, et in virtute Spiritus
Sancti, ut descedas ab hocplasmate Dei Dickie 0'Malley, quod Dominus noster ad
templu, sanctum suum vocare dignatus est!”, o padre Ogg prosseguiu, borrifando
água benta sobre Dickie. Dickie não gostou disso.
“Por favor, padre! O que é isso?”
“Fique quieto. Estou expulsando o diabo de você!”
Achei que, com isso, Dickie fugiria. Padre ou não padre, ele não ia ficar
parado ali, na frente de um grupo de outros alunos, e ser humilhado. Caso con­
trário, ficava implícito que ele estava em conluio com o diabo.
143
O EXORCISMO

Em vez disso, Dickie não se moveu. Ele ficou intrigado com a possibili­
dade de que seu cúmplice fosse a mãe de todos rapazes desordeiros: belzebu em
pessoa. Um sorriso sinistro tomou conta do seu rosto.
O padre Ogg tirou a tampa do frasco de óleo sagrado e untou a testa, o
rosto e o queixo de Dickie. Em seguida, pegou a cabeça de Dickie, colocou-a
entre suas duas mãos e a comprimiu, como se estivesse em uma morsa.
“Aaaiii!”, Dickie gritou. “Isso dói.”
Era agradável ver Dickie sentindo dor.
“Silêncio!”, berrou Ogg, numa voz que jurei que não fosse humana.
“Ephpheta, quod est, Adaperire, In odorem suavitatis. Tu autem effugare, dia-
bole; appropinquabit enimjudicium Dei!”, ele continuou numa língua antiga, ou
talvez, em nenhuma língua. De jeito nenhum, devia estar compartilhando isso
com você, e pôr essas palavras por escrito no papel me obriga a me levantar e
verificar a fechadura da minha porta (eu já volto). !
Era a hora dos ramos de oliveira. Cada um de nós recebeu um e fomos
solicitados a segurá-los sobre Dickie, mas sem tocá-lo. Então, Ogg pegou seu
ramo e começou a açoitar o pobre Dickie com cuidado, em nenhum lugar que
pudesse machucá-lo.
“Christo Sancti!” Ogg gritou, fazendo Dickie se virar para mim —aquele
que o trouxe para isso —,e berrar: “Seu idiota, desgraçado!”. Eu vou matá-lo!”
“Não me faça ter de amarrá-lo!”, Ogg voltou a gritar. “Abrenuntias Satanae?
Et omnibus operibus ejus!”
E, nesse momento, Dickie começou a chorar. O padre Ogg, algo surpreso,
parou.
“Ei, ei, tudo bem”, o exorcista disse, num tom confortante. “Isso não é real.
Foi só uma demonstração. Você não tem o diabo em você.”
Ao menos, por enquanto, eu pensei. Rezei para que esse exorcismo, embora
uma “demonstração”, tivesse um efeito real sobre aquele molestador desgraçado.
Mas, infelizmente, esse não foi o caso. No dia seguinte, meu rádio portátjl
estava dentro do vaso sanitário, e toda minha roupa de baixo havia desapare­
cido. Mais tarde, naquela noite, uma freira a encontraria em sua gaveta, corji
as palavras, escritas com pincel atômico, em cada cós: Propriedade de Michael
Moore. Não quis levar o castigo por delatar Dickie. Em vez disso, assumi ja
tarefa de cuidar da limpeza durante uma semana a mais, e fiquei calado. Franca­
144
ADORO PROBLEMAS

mente, valeu a pena ter o tempo extra para mim. Assim, pude repetir na minha
mente Dickie sendo açoitado com um ramo de oliveira, com azeite de oliva
pingando do seu rosto desgraçado, e o diabo partindo do seu corpo desgraçado.

No seminário, eu não gastava todo tempo sobre meus joelhos, observando rituais
estranhos ou pregando peças. Na realidade, tive os melhores e mais desafiadores
anos de educação da minha vida. Os padres e as freiras adoravam ensinar lite­
ratura, história e línguas estrangeiras. Para mim, a aula mais difícil era religião.
Eu tinha muitas perguntas.
“Por que as mulheres não podem ser padres?”, perguntei um dia, uma das
muitas vezes que todos da classe se viravam e me olhavam como se eu fosse
algum esquisitão.
“Você não vê nenhuma mulher entre os apóstolos, vê?”, o padre Jenkins
respondeu.
“Bem, parece que sempre existiram mulheres por perto: Maria Madalena,
Maria, a mãe de Jesus, e a prima dele, qual é o nome dela mesmo?”
“Simplesmente não é permitido!”, era a resposta final que ele dava para as
minhas perguntas, que, entre outras, foram:
“Jesus nunca disse que estava aqui para criar a Igreja Católica, mas, sim,
que seu trabalho era levar o judaísmo a uma nova era. Então, de onde tiramos a
ideia da Igreja Católica?”
“A única vez que Jesus perde a paciência é quando ele vê todos aqueles
rapazes emprestando dinheiro no templo, e acaba com a festa deles. Que lição
tiramos disso?”
“O senhor acha que Jesus enviaria soldados para o Vietnã se estivesse aqui
nesse momento?”
“Na Bíblia, não há menção de Jesus entre as idades de doze e trinta anos.
Onde o senhor acha que ele foi? Eu tenho algumas teorias...”

No primeiro dia da aula de literatura inglesa, o padre Ferrer avisou que


passaria nove semanas dissecando Romeu e Julieta, palavra por palavra, linha
por linha, e nos prometeu que, no fim disso, entenderíamos a estrutura e a lin­
145
O EXORCISMO

guagem de Shakespeare tão bem que durante o resto de nossas vidas seriamos
capazes de apreciar o gênio de todas as suas obras (uma promessa que se trans­
formou em realidade). j
Em retrospecto, tenho de afirmar que a escolha de uma história de amor
heterossexual, com personagens que eram da nossa idade e que estavam tendo
relações sexuais foi uma medida ousada desse bom padre. Ou foi sadismo. Pois,
se fôssemos virar padres, não haveria nenhuma Julieta (ou Romeu) permitida
em nossas vidas.
Devorei cada linha de Romeu e Julieta, e isso fez minha cabeça e meus
hormônios girarem em assombrosa excitação. Infelizmente, não tinha lido o
manual de regras antes de entrar no seminário, e eis o que ele dizia:

VOCÊ NUNCA PODE MANTER RELAÇÕES SEXUAIS, NEM


MESMO UMA VEZ NA VIDA. ESPECIALMENTE COM UMA
MULHER.

Agora, se eu tivesse lido aquilo no oitavo ano, não tenho certeza se teria
entendido todas as ramificações de concordar com essa proibição. Na ocasião
em que foi explicado para mim, no nono ano do seminário, algo pareceu extrar
ordinariamente errado com essa regra. Podem me chamar de louco, mas eu
escutava vozes interiores:
Mmmmmm ... garotas... booooom... pênis... feeeeliz.
As vozes se intensificavam nas tardes de terça-feira e quinta-feira. Erà
quando transportavam em ônibus alguns de nós, seminaristas, que tocavariji
um instrumento musical para a escola católica do ensino médio, na localidade
vizinha de Bay City, para tocar com a banda daquela escola. Não havia umá
quantidade suficiente de alunos para constituir a própria orquestra do semif
nário, e os padres, que apreciavam cultura e artes, e que, frequentemente, man­
tinham conversas uns com os outros em italiano, não queriam que aqueles de
nós que eram musicalmente inclinados perdessem nossos “outros chamados”.
Fui colocado na seção das clarinetas, ao lado de uma garota chamada Lynni.
Mencionei que ela era uma garota? No seminário, passava 166 horas de cadá
semana somente com garotos. No entanto, naquelas duas gloriosas horas, eü
ficava nas proximidades do outro gênero. Os dedos longos e hábeis de Lynn,
146
ADORO PROBLEMAS

que ela usava na sua clarineta, eram uma beleza a se contemplar (como eram
seus seios, pernas e sorriso - mas só escrevi sorriso para o caso de um dos padres
ainda estar vivo e ler essa história, pois, verdade seja dita, embora seu sorriso
fosse agradável, náo tenho lembrança dele, já que foi obscurecido por seus seios,
suas pernas e qualquer coisa que não se assemelhasse a um seminarista). Estar
numa banda mista de escolas católicas do ensino médio literalmente me deixou
maluco.
Fiz o máximo para pensar a respeito de A Regra e para oferecer esse desejo
como penitência por até querer saber o que podia existir sob o uniforme da
aluna da escola. Mas realmente há muita penitência que um garoto agora de
quinze anos pode fazer, e, um dia, perguntei a outro seminarista no ônibus da
banda: “Quem diabos inventou essa regra?”. Ele respondeu que não sabia e que
“foi Deus, provavelmente”. Certo.
Num fim de semana, reli todos os quatro livros do Novo Testamento e em
nenhum lugar - nenhum lugar!- afirma-se que os apóstolos não podiam manter
relações sexuais, casar, ou se alegrar com seus pênis. Como minha tarefa após
as aulas era trabalhar como assistente na biblioteca, fiz minha própria pesquisa.
E eis o que descobri: nos primeiros mil anos, os padres da Igreja Católica eram
casados. Eles mantinham relações sexuais. Pedro, escolhido por Jesus para ser
o primeiro papa, era casado, assim como a maioria dos apóstolos. Assim como
foram 39 papas.
Mas então um papa, no século XI, meteu na sua cabeça que o sexo era uma
droga, e que as mulheres eram uma droga pior. Assim, ele proibiu os padres de
se casarem ou manterem relações sexuais. Isso faz você querer saber como todas
as outras grandes ideias excêntricas ao longo da história surgiram (por exemplo,
quem criou o bridgeh]). Eles também podiam ter transformado em pecado o feto
de você se arranhar quando sente uma coceira.
Comecei a passar muito tempo no trabalho na biblioteca, indo até o porão,
onde todas as antigas revistas eram guardadas. Os padres cultos assinavam a
revista Paris Match, e digamos que, na França, em 1960, as mulheres tendiam a
“ficar frias” no verão. Todos os meus primeiros amores podiam ser encontrados
bem ali, nos arquivos de revistas do St. Paul s Seminary.
147
O EXORCISMO

Quando nos aproximamos do final do nosso estudo de Romeu eJulieta, o padre


Ferrer avisou que havia um novo filme nos cinemas baseado na peça, e que faríamos
uma excursão escolar para assisti-lo. Essa versão era de Franco Zeffirelli, diretor
italiano, e, de maneira nenhuma, o padre sabia (ou ele sabia?) que aquele grupo
de garotos de quinze anos seria exposto pela primeira vez a seios de quinze anos,
a saber, aqueles no corpo de Olivia Hussey, a atriz que interpretava Julieta.
Naquela noite, após assistirem Romeu e Julieta, os gemidos oscilantes dos
calouros no corredor pareciam um produto híbrido entre um coiote perdido e
um coro tentando se harmonizar. Só direi que, naquela noite, tornei-me um fã
agradecido da senhorita Hussey... e um ex-seminarista da Igreja Católica. Obri­
gado, Shakespeare. Obrigado, padre Ferrer.
Para crédito de Dickie e Mickey, eles não tinham interesse em usar Shakes­
peare para inspirar seus hormônios masculinos, pois eles já estavam “em campo?.
Eles tinham pouco interesse em desperdiçar suas sementes num lençol barato de
um seminário. Não quando havia tantas garotas disponíveis na região das três
cidades próximas: Saginaw, Bay City e Midland. !
Não tenho certeza de quando eles começaram a sair sorrateiramente à noite
ou de quando achavam tempo para introduzir-se sorrateiramente nas garotas,
mas esses dois Montéquios, sem dúvida, eram muito solicitados. Pelo ladlo
positivo, isso deu o quarto para mim em diversas ocasiões. Pelo lado negativo,
sempre que os padres ficavam atentos a eles, achavam que eu também estava
no ringue do sexo. Quão pouco eles me conheciam! Eu estava longe, muito
ocupado tentando manter meu foco nas horas canônicas e no Vietnã, em vez de
em Lynn, a clarinetista, que estava fazendo as coisas comigo num estado imagi­
nário; nós dois fazendo travessuras na Cote d’Azur.
Naquela noite específica, decidi seguir a sugestão do colega seminarista
Fred Orr e usar um pouco de creme para pele para ajudar a me livrar de algumas
espinhas da adolescência. Passei o creme branco em todo meu rosto e fiii dormir
encarando a parede, sem querer que Mickey e Dickie me vissem com o rosto
coberto por aquela coisa de garota. j

“ACORDE! EU DISSE, ACORDE7" o padre Jenkins gritou, forçando-me


a dizer para Lynn, no meu sonho, que voltaria logo. Acordei daquele sono
agradável e vi dois padres, Jenkins e Shank, apontando lanternas do tamanhjo
daquelas usadas pela polícia diretamente nos meus olhos. I
148
ADORO PROBLEMAS

"ONDE ELES ESTÃO?”


Sem dúvida, era uma batida policial, um ataque de surpresa contra os dois
pênis ativos e públicos do meu andar.
Examinei suas camas e vi que estavam arrumadas para parecer que alguém
estava dormindo nelas. Evidentemente, nenhum dos Ickies estava em casa.
“Ah, não sei”, respondi, tentando parecer acordado.
“Quando eles saíram?”, o padre Shank perguntou.
“Há quanto tempo eles saíram?”, o padre Jenkins acrescentou.
“Não sei”, repeti.
“Tem certeza?”, Jenkins perguntou, incisivamente. “Não serve para nada
você protegê-los.”
“A última coisa que eu faria seria proteger esses dois bandidinhos”, eu disse,
surpreso com minha linguagem própria de um anticristão.
“Você nunca saiu daqui com eles?”, Jenkins prosseguiu com sua investigação.
“Não. Não sei o que eles fazem. Suponho que eles não vão ao Burger King.”
“Quantas vezes você diria que eles fizeram isso?”
“Padre, não pretendo ser desrespeitoso, mas, se os senhores estão fazendo
uma batida aqui hoje à noite pela primeira vez, evidentemente os senhores não
têm a menor ideia do que estava acontecendo.”
“Não gosto do seu tom”, Jenkins respondeu.
“Sinto muito. E o meu tom do meio da noite.”
“O que em nome de Deus é essa coisa no seu rosto?”
Droga! “Algo que a enfermeira me disse para eu experimentar.”
“Onde você acha que eles estão?”, o padre Jenkins perguntou.
“Os senhores podem seguir a pista deles até o lugar mais próximo onde se
sabe que existem garotas.”
Usar essa linguagem atrevida com os padres não foi sábio, mas não me
importei. Eu também havia descoberto as garotas, e, naquele momento, havia
uma parte de mim que admirava Mickey e Dickie por agirem de acordo com
seus sentimentos bastante normais. Ainda que sentisse pena das garotas que
estavam com eles.
Naquele momento, os padres tinham desligado suas lanternas - e aquela
ação acabaria fazendo os Ickies entrar. Incapazes de ver do corredor que eu
recebia visitas, os garotos abriram a porta do nosso quarto e ficaram instanta­
149
O EXORCISMO

neamente surpresos, não só pela visão dos padres, mas pela grande quantidade
de grude branco cobrindo todo meu rosto. Eles tentaram fugir, mas os padres
rapidamente os agarraram e os arrastaram para o vestíbulo, tirando-os da minha
vida para sempre. !
Na manhã seguinte, os pais dos meus dois companheiros de quarto
entraram no quarto e levaram os pertences dos seus filhos. Naquela noite,
ao voltar, tive o privilégio que só um veterano tinha: meu próprio quarto! Fal­
tava apenas um mês para o fim do ano letivo, mas foi sublime. Eu dei festas.
Comecei a deixar meu cabelo crescer pela primeira vez. Comprei um símbolo
de paz e coloquei na minha porta. Tinha tomado a decisão de que o seminário
não era para mim, embora tivesse aprendido muito do que permaneceria
comigo por muito tempo. |
Três dias antes de o semestre terminar, tinha uma entrevista marcada com
o diretor, o padre Duewicke. Assim, podia lhe falar a respeito da minha decisão
de não buscar o sacerdócio.
Entrei na sala e me sentei numa cadeira na frente da mesa dele. I
“Entãooo”, o padre Duewicke disse, num tom estranho, sarcástico.
“Michael Moore. Tenho uma notícia desagradável para você. Decidimos lhe
pedir para não voltar para seu segundo ano.”
Desculpe? Ele acabou de dizer o que achei que ele disse? Ele acabou de dizer
que eles estavam... me chutando para fora?
“Espere um minuto”, eu disse, agitado e perturbado. “Eu vim aqui paraj
dizer ao senhor que eu estou indo embora!”
“Bem, ótimo”, ele disse com um tom adulador. “Então, estamos de acordo.”
“O senhor não pode me expulsar daqui! Eu vou embora! Por isso quis con-j
versar com o senhor.”
“Bem, de qualquer jeito, você não vai nos honrar com sua presença no
outono.” í
“Não entendo”, eu disse, ainda ferido pela puxada de tapete. “Por que oj
senhor está me pedindo para não voltar? Tirei notas “A” direto, cumpri todos j
meus deveres, não tive nenhum problema sério e fui obrigado a morar numj
quarto com aqueles dois delinqüentes na maior parte desse ano. Que motivos o
senhor tem para me expulsar?”
150
ADORO PROBLEMAS

“Ah, isso é simples”, o padre Duewicke respondeu. “Nós não o queremos


aqui porque você perturba os outros meninos fazendo muitas perguntas.”
“Muitas perguntas a respeito do quê? O que isso significa? Como o senhor
pode dizer uma coisa dessas?”
“São três perguntas em menos de cinco segundos, provando meu argu­
mento”, ele disse, enquanto lançava um olhar simulado no seu relógio inexis­
tente. “Você não aceita as regras ou os ensinamentos da nossa instituição em
base da fé. Você sempre tem uma pergunta. Por que isso? Para que é isso? Quem
disse? Depois de um tempo, senhor Moore, isso cansa. Você tem de aceitar as
coisas ou não. Não há meio termo.”
“Então, o senhor está dizendo - e, desculpe, estou fazendo outra pergunta,
mas não conheço outro modo de dizer isso - que, de alguma forma, sou um
incômodo porque quero saber alguma coisa?”
“Michael, escute, isso nunca vai funcionar para você, ser um padre...”
“Não quero ser um padre.”
“Bem, se você quisesse ser um padre, você causaria muitos problemas tanto
para você como para qualquer igreja a qual você fosse designado. Nós temos
maneiras de fazer coisas que remontam a dois mil anos. E não temos de res­
ponder a ninguém a respeito de nada, certamente não .a você.”
Sentei-me e o fuzilei com os olhos. Estava indignado e muito magoado. Isso
deve ser o que se sente quando se é excomungado, pensei. Abandonado pelas
próprias pessoas que estão aqui, na Terra, representando Jesus Cristo e dizendo
para mim que Jesus não queria nada comigo. Por que eufazia algumasperguntas
estúpidas? Como a que estava passando pela minha mente, suplantando o pen­
samento passageiro de sufocar a presunção do padre Duewicke.
“O senhor se refere a perguntas como: por que essa instituição odeia as
mulheres e não deixa elas serem padres?”
“Siiimmm!” O padre Duewicke respondeu com um sorriso cortante. “Como
essa! Bom dia, senhor Moore. Desejo-lhe boa sorte no que quer que o senhor
faça na sua vida, e rezo por aqueles que têm de suportá-lo.”
Ele se levantou, e eu me levantei. Dei-lhe as costas e percorri o longo caminho
de volta ao meu quarto. Fechei a porta, deitei na cama, e pensei a respeito da
minha vida. No momento em que isso se tornou sem sentido, estendi o braço sob
a cama e me consolei na hora seguinte com a última edição da Paris Match.
BOYS STATE

Eu não fazia a mínima ideia de por que o diretor estava me mandando para o
Boys State.75 Náo tinha violado nenhuma regra, e não era um problema disci­
plinar de nenhum tipo. Embora estivesse no terceiro ano do ensino médio, era
só meu segundo ano numa escola pública do ensino médio, depois de nove anos
de educação católica, e ainda estava me acostumando a não ter freiras e padres
cuidando da minha educação. Mas achava que tinha me adaptado bastante bem
na Davison High School. No meu primeiro dia do meu segundo ano, Russell
Boone, um garoto forte e legal, que se tornaria um dos meus melhores amigoi,
fechou o punho e socou os livros que estavam em minhas mãos, atirando-os
longe, enquanto eu caminhava no vestíbulo, entre a terceira e quarta aulas. j
“Não é assim que você segura eles”, ele gritou para mim. “Você está segu­
rando eles como uma garota.”
Eu apanhei três ou quatro livros e observei ao redor para ver se alguém
tinha parado para rir de um garoto que carregava seus livros como uma menina.
O terreno pareceu limpo.
“Como devo carregá-los?”, perguntei.
Boone pegou os livros de mim e os segurou na mão com o braço comple­
tamente estendido na direção do chão, deixando os livros pender ao seu lado. j
“Desse jeito”, ele disse, enquanto dava uma caminhada máscula pelo
corredor.

75 É um programa de liderança e cidadania realizado nas férias escolares de verão, patrocinado pe


American Legion (a maior organização de veteranos de guerra dos Estados Unidos) e pela America
Legion Auxiliary (ONG de serviços voluntários para mulheres), para alunos dos dois últimos anos d
ensino médio. (N. T.)
152
ADORO PROBLEMAS

“Como eu estava segurando?”, perguntei.


“Assim”, ele vociferou, enquanto me ridicularizava, segurando meus livros
junto ao peito, como se estivesse acariciando seios.
“As garotas fazem desse jeito?”, perguntei, envergonhado com o fato de
que, na primeira metade do meu primeiro dia na escola pública, todos tinham
me visto andar por ali como um maricas.
“Sim. Não faça isso de novo. Você nunca sobreviverá aqui.”
Ticado. Pois é, metade do dia personificando uma garota. O que mais eu
tinha feito para merecer o Boys State?
Bem, houve aquela vez, alguns meses depois, no ônibus da banda. Boone
tinha adormecido de meias e sem sapatos. Sinceramente, não posso dizer que
ele tinha meias. Mas ali estava ele, descalço, sua perna apoiada no encosto para
o braço do assento na frente dele. Larry Kopasz tinha seus cigarros com ele, e
decidido a solucionar o enigma de “quanto tempo um cigarro leva para queimar
inteiro se fumado por um pé?”, acendeu um e o posicionou entre os dedos do
pé de Boone para descobrir. (Resposta: sete minutos e meio.) Boone soltou um
berro quando as cinzas quentes do Lucky Strike alcançaram seus dedos, e não
perdeu um minuto do seu sono para jogar Kopasz no chão do ônibus, o que
chamou a atenção do motorista. (Naqueles dias, como a maioria dos adultos e
motoristas de ônibus fumava o tempo todo, os estudantes que fumavam pas­
savam muitas vezes despercebidos, pois a fumaça deles simplesmente se mis­
turava no mesmo ar esfumaçado que todos nós respirávamos.) De alguma
forma, fiquei comprometido nessa briga, já que Boone responsabilizou todos
nós coletivamente. (Na mesma viagem da banda, entramos sorrateiramente no
quarto de Boone para realizar outra experiência científica: “Pôr a mão de uma
pessoa adormecida numa tigela de água quente a faz urinar?” Resposta: sim. E,
daquela vez, levamos uma Polaroid. Assim, tínhamos uma prova contra Boone,
o tocador de tuba com incontinência urinária, se ele nos dedurasse.
Mas foi tudo. Sério. Tirei boas notas, estava na equipe de debates, nunca
fugi da escola e exceto um esquete que escrevi para a Comedy Week a respeito
do diretor levando uma vida secreta como Picles, o Palhaço, não tinha nenhuma
mancha no meu boletim.
Ao que se revelou, o Boys State não era um reformatório de verão para
desordeiros e descontentes. Era uma distinção especial ser selecionado para par-
153
BOYS STATE

ticipar. Cada mês de junho, após o término do ano letivo, cada escola do ensino
médio do estado enviava dois ou quatro meninos para o Capitólio Estadual paira
“brincar de governo” por uma semana. Você era escolhido se tivesse mostrado
liderança e boa cidadania. Eu mostrei a capacidade de inventar algumas peças
muito engraçadas para pregar em Boone.
A sede do Boys State de Michigan ficava a cinco quilômetros do prédio
do Capitólio, no campus da Universidade do Estado de Michigan (as meninas
participavam de um evento similar, denominado Girls State, no outro lado dò
campus). Duzentos garotos foram reunidos para eleger nosso próprio governador
imaginário de Michigan, um legislativo estadual falso e uma suprema corte esta­
dual fictícia. A ideia era nós, os meninos, nos dividirmos em partidos e concorrer a
diversos cargos, a fim de aprender as belezas de fazer campanha e governar. Se você
já fosse um daqueles garotos que concorria ao cargo de representante da classe é
gostava de ser do conselho discente, aquele lugar seria uma curtição.
No entanto, como aluno do primeiro ano, depois de participar da cam­
panha de Nixon para o Prêmio Nobel da Paz, desenvolvi uma alergia precocé
em relação aos políticos, e a última coisa que queria era ser um. Cheguei nos
dormitórios da universidade, indicaram meu quarto, e, após uma “reunião
governamental”, onde um garoto chamado Ralston não parou de falar para
mim por que ele devia ser o secretário do Tesouro, decidi que minha melhor
linha de ação era me esconder no meu quarto por uma semana e nunca sair,
exceto nos horários das refeições.
Recebi um pequeno quarto individual, que pertencia ao zelador do andar.
Aparentemente, ele não tinha tirado todas suas coisas. Achei um toca-discos e
alguns LPs perto do peitoril da janela. Eu trouxe alguns livros, e também um
bloco de papel e uma caneta. Era tudo que precisava para passar a semana.
Assim, basicamente desertei do Boys State e me asilei nesse quarto bem estocado
do quinto andar do Kellogg Dorms. Entre os LPs do meu quarto, incluíam-se
Sweet Baby James, de James Taylor, Let It Be, dos Beatles, American Woman, J
do The Guess Who, e algo dos Sly and the Family Stone. Havia uma enorme j
máquina de venda automática de petiscos operada por moedas no final do hall. |
Assim, eu tinha tudo que precisava para a semana. j
Entre escutar os discos e escrever poemas para me distrair (chamava-os de
“letras de música” para fazê-los parecer um esforço compensador), apaixonei-me I
154
ADORO PROBLEMAS

por uma nova marca de batatinhas fritas, que, até aquele momento, nunca tinha
encontrado. A máquina automática oferecia pacotes de algo chamado “Ruffles”
(“Ondulações”). Fiquei surpreso com a capacidade deles de colocar colinas e
vales numa simples batatinha. Por algum motivo, essas “colinas” me davam a
impressão de que eu estava obtendo mais batatinha por batatinha do que uma
batatinha normal. Gostei muito disso.
No quarto dia dentro do meu bunker PROIBIDA A ENTRADA DE
POLÍTICOS/FIRE AND RAIN,76 fiquei totalmente desprovido de Ruffles e
corri até o hall em busca de mais pacotes. Ao lado da máquina automática,
havia um quadro de avisos, onde percebi que alguém tinha afixado um folheto.
Estava escrito:

GAROTOS DO BOYS STATE!


CONCURSO DE DISCURSOS
sobre a vida de
ABRAHAM LINCOLN
Escreva um discurso sobre a vida de Abe Lincoln
e ganhe um PRÊMIO!
Concursopatrocinado pelo
ELKS CLUB

Parei e olhèi fixamente para aquele cartaz por algum tempo. Esqueci-me
das batatinhas fritas Ruffles. Não conseguia me refazer do que estava lendo.
No mês anterior, meu pai tinha ido ao Elks Club local para se associar. O
clube tinha um campo de golfe a poucos quilômetros de onde morávamos, e ele
e seus colegas de linha de montagem adoravam jogar golfe. Geralmente, o golfe,
o esporte dos mais ricos, não era jogado pela classe trabalhadora em lugares
como Flint. Mas, há muito tempo, os mandachuvas da GM tinham imaginado
modos de acalmar os inquietos trabalhadores, fazendo-os acreditar que o sonho
americano também era deles. Depois de algum tempo, eles entenderam que
não podiam simplesmente esmagar os sindicatos; as pessoas sempre tentariam

76 Fogo e chuva; música de folk/rock de grande sucesso, com composição e interpretação de James
Taylor, lançada em fevereiro de 1970. (N. T.)
155
BOYS STATE

criar sindicatos simplesmente por causa da natureza opressiva do seu trabalho.


Assim, os executivos da GM que comandavam as fábricas de Flint sabiam que
a melhor maneira de sufocar a rebelião era deixar os proletários terem alguns
dos ornamentos da riqueza; fazê-los pensar que estavam levando uma vida de
prosperidade e satisfação; fazê-los acreditar que, através do trabalho duro, eles
também poderiam ser ricos algum dia!
Dessa maneira, construíram campos de golfe públicos perto das fábricas de
Flint. Se você trabalhava na divisão AC Spark Plug, você jogava nos campos de
golfe de I.M.A. ou Pierce. Se você trabalhava na divisão Buick, você se encami­
nhava para o campo de Kearsley. Se você trabalhava na fábrica da Hammerberg
Road, você jogava em Swartz Creek. Se você trabalhava no “The Hole”, voçê
jogava no campo de Mott.
Quando o apito da fábrica tocava às duas e meia da tarde, todos os dias
nossos pais pegavam seus sacos de golfe no carro e começavam a arremessar
com força as bolas (eles completavam nove buracos e voltavam para casa às
cinco para o jantar). Eles gostavam disso. Em pouco tempo, a classe trabalha­
dora virou “classe média”. Havia tempo e dinheiro para férias familiares de um
mês, casas nos subúrbios, e uma poupança para pagar a faculdade dos filhos.
No entanto, à medida que os anos passavam, as reuniões mensais no salão dò
sindicato eram cada vez menos freqüentadas. Quando a empresa começou á
pedir ao sindicato abonos e concessões, e quando a empresa pediu aos operários
para produzir carros inferiores, que os consumidores logo não iam mais querer,
a empresa constatou que tinha um parceiro receptivo em sua morte.
No entanto, nos anos 1970, pensamentos como esse o colocariam nurrí
hospício. Aqueles eram os verdes anos da juventude (embora tenho certeza de
que era ilegal oferecer uma salada verde em qualquer lugar num raio de oitenta
quilômetros de Flint). E os rapazes da fábrica cresciam acreditando que o golfe;
era o jogo deles.
O Elks Club possuía um belo campo de golfe, que não era tão cheio quanto
os campos de golfe públicos de Flint, mas você tinha de ser sócio. Assim, foi í
com certa decepção que meu pai, ao chegar no Elks Club para se associar, j
confrontou-se com uma linha impressa no alto do formulário de inscrição:

SOMENTE CAUCASIANOS
156
ADORO PROBLEMAS

Sendo um caucasiano, ou seja, branco de pele, isso não deveria ter sido um
problema para Frank Moore. Sendo um homem de certa consciência, porém,
ele decidiu pensar. Ele trouxe o formulário para casa e me mostrou.
“O que você acha disso?”, ele me perguntou.
Li aquilo e tive dois pensamentos:
Estamos no Sul? (Quão mais ao norte você pode chegar do que Michigan?)
Isso não é ilegal?
Meu pai ficou evidentemente confuso a respeito da situação. “Bem, acho
que não posso assinar esse papel”, ele disse.
“Não, você não pode”, eu disse. “Não se preocupe. Podemos ainda jogar
golfe no I.M.A.”
De vez em quando, ele ia ao campo de golfe do Elks se convidado pelos amigos,
mas não ficou sócio. Ele não era um ativista pelos direitos civis. Geralmente, não
votava porque não queria ser convocado para algum júri. Ele tinha todas “preo­
cupações” raciais equivocadas que as pessoas brancas da sua geração tinham. No
entanto, também tinha um senso muito básico de certo e errado e de dar um
exemplo para seus filhos. E como o sindicato exigira a integração racial nas fábricas
já na década de 1940, trabalhou com homens e mulheres de todas as raças e, como
é o resultado dessa engenharia social, cresceu considerando todas as pessoas iguais
(ou, ao menos, “iguais” como em “todas iguais aos olhos de Deus”).
Naquele momento., ali eu estava, parado na frente daquele cartaz do Elks
Club, perto da máquina de venda automática. A melhor maneira de descrever
meus sentimentos naquele momento é que eu tinha dezessete anos. O que
você faz aos dezessete anos quando percebe a hipocrisia ou se depara com uma
injustiça? E se são a mesma coisa? Seja um clube local de mulheres recusando
a entrada de uma mulher negra como sócia, ou um clube segregacionista de
homens como o Elks, que tem a ousadia de patrocinar um concurso sobre a
vida do Grande Emancipador,77 quando você tem dezessete anos, você não tem
tolerância para esse tipo de crime. O inferno não teve uma indignação como
aquela, de um adolescente que se esqueceu que sua missão principal era buscar
um pacote de batatinhas fritas Ruffles.

77 Apelido dado a Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos que aboliu a escravatura, em
1863. (N.T.)
157
BOYS STATE

“Eles querem um discurso?”, pensei, um sorriso bobalhão tomando conta


do meu rosto. “Acho que vou escrever um discurso.”
Voltei rapidamente para meu quarto, sem os pacotes de Ruffles, peguei meu
bloco de papel, minha confiável caneta Bic e toda furia que consegui reunir.
“Como o Elks Club se atreve a denegrir o admirável nome de Abraham Lincoln
patrocinando um concurso como esse”, iniciei, começando com sutileza e deixando
a boa notícia para depois. “Vocês não têm vergonha? Como uma organização que
não permite negros em seu clubefaz parte do Boys State, difundindo sua intole­
rância sob opretexto defazer algo bom? Que tipo de exemplo está sendo dado para
osjovens aqui presentes? Quem permitiu isso? Se o Boys State existepara endossar
qualquer forma de segregação, então, sem dúvida, deixa estar a segregação que
diferencia esses racistas do resto de nós, que acredita no Estilo Americano! Como
eles ousam entrar nessas terras1” |
Continuei com a história do meu pai querendo se associar ao Elks e se
recusando a fazer isso. Citei Lincoln (naquele momento, as paradas cons­
tantes de minha mãe em Gettysburg78 sempre que íamos para Nova York
compensariam). E terminei dizendo: “Tenho a esperança sincera que Elks
mude suaspolíticas segregacionistas e que o Boys State nunca maisfaça nenhum
convite ao clube” j
Pulei o jantar, pondo os toques finais no discurso, reescrevendo-o duas
vezes no bloco e, depois, adormeci ouvindo Sly Stone.
Na manhã seguinte, todos os concorrentes do concurso foram instruídos
a se apresentar numa sala de aula da School of Social Work e fazer seu dis­
curso. Eram menos do que uma dúzia de nós na sala e, para minha sur­
presa (e alívio), não havia nenhum representante do Elks Club. Em vez disso,
os discursos seriam julgados por um único professor de oratória do ensino
médio de Lansing. Sentei-me no fundo da sala e escutei os garotos que dis­
cursaram antes de mim. Eles falaram em tons laudatórios a respeito dos feitos j
de Lincoln e da sua humanidade, mas, principalmente, do modo pelo qual j
ele venceu a Guerra da Secessão. Era o tipo de coisa que o prefeito dizia no j
piquenique da cidade no 4 de Julho. Açucarado. Simples. Sem polêmicas.

78 Cidade no sul da Pensilvânia, lugar onde ocorreu a Batalha de Gettysburg, a maior da Guerra da
Secessão. (N. T.)
158
ADORO PROBLEMAS

Poucos na sala estavam preparados para o bombardeio de insultos prestes


a ser lançado contra o Elks Club. Pegue William Jennings Bryan,79 adicione
um tanto de Jimmy Stewart,80e inclua como bônus uma saudável dose de Don
Rickles,81 e estou supondo que eu assumia a aparência e expressão de todos eles
juntos à medida que proferia minha denúncia disfarçada como discurso.
Na metade da minha arenga, olhei na direção do professor/juiz. Ele
estava sentado sem expressão ou emoção. Senti meu coração disparar, pois
não estava acostumado a ficar em apuros, e a última coisa que queria era
que meus pais tivessem de vir até East Lansing e me levar para casa. De vez
em quando, olhava de relance para os outros meninos do Boys State na sala,
para ver como aquilo estava se desenrolando. Alguns olhavam para mim com
medo, outros tinham aquela expressão “cara, ele vai receber o merecido”, e o
menino negro na sala... bem, o que eu posso dizer, ele era o único negro na
sala. Ele estava tentando encobrir o sorriso no rosto com a mão.
Quando os discursos acabaram, o professor/juiz se dirigiu para frente da
sala para dar o veredicto. Refugiei-me na minha carteira, esperando que ele sim­
plesmente anunciasse o ganhador e não fizesse nenhuma censura.
“Obrigado a todos por seus discursos elaborados com cuidado e muito bem
redigidos”, ele começou. “Fiquei impressionado com cada um de vocês. O ven­
cedor do concurso deste ano é... Michael Moore! Parabéns, Michael. Foi cora­
joso da sua parte. E você tem razão. Obrigado.”
Não atinei de imediato, mas o professor já estava apertando minha mão,
como estavam cerca de um terço dos outros garotos.
“Obrigado”, disse algo timidamente. “Mas eu realmente não quis ganhar
nada. Só quis dizer alguma coisa.”
“Bem, você, sem dúvida, disse alguma coisa”, o professor respondeu. “Você
receberá seu prêmio amanhã, na cerimônia de encerramento, na presença de
todos os dois mil rapazes.”

79 Bryan (1860-1925) foi um político conhecido por sua firme oposição ao ensino da teoria evolucio-
nista nas escolas. (N. T.)
80 Stewart (1908-1997) foi ator de teatro, cinema e televisão. Também foi coronel brigadeiro da Força
Aérea Americana durante a Segunda Guerra Mundial. (N. T.)
81 Ator e comediante do gênero stand up, tornou-se mais conhecido como comediante de insulto.
(N.T.)
159
BOYS STATE

“Ah... E você fará seu discurso para eles.”


O quê? Fazer o quê, para quem?
“É a tradição. O vencedor do concurso do Elks Club faz seu discurso na
cerimônia de encerramento, onde também anunciam os resultados das eleições
e entregam todos os prêmios.”
“Ah, não, não quero fazer isso”, disse, aflito, esperando que o professor
tivesse pena de mim. “O senhor não quer que eu faça esse discurso, quer?”
“Ah, quero sim. Mas não é para mim. Você tem de fazer. É a regra.”
Ele também me disse que, para meu próprio bem, não mencionaria para
ninguém o conteúdo do discurso antes da cerimônia. Ah, sim, dessejeito é muito
melhor, pensei. Deixe que todos sejam atingidos por sua originalidade, como
uma grande surpresa; do tipo em que o orador sai correndo do grande salão,
para salvar sua pele.
Após vencer o concurso, minha noite transcorreu da seguinte maneirai
“Fire and Rain”, banheiro. “Across the Universe”,82 banheiro. “Hot Fun in the
Summertime”,83 banheiro. E quando você tem dezessete anos, não tem um
carro, não tende a andar longas distâncias - e vive num estado em que o trans­
porte público é declarado ilegal - , há uma sensação de confinamento. É isso aí: j
eu estava na Prisão Boys State! De manhã, fiz minhas orações finais e uma pro­
messa para mim mesmo de que, se saísse daquilo com vida, nunca mais causaria
um problema como aquele de novo.
A hora chegou, e milhares de participantes do Boys State entraram no j
auditório da universidade. No palco, estavam presentes diversas autoridades,
incluindo, acredito, o governador de verdade de Michigan. Escolhi um assento
perto da frente do recinto, na lateral, e rapidamente examinei o local em busca
de rapazes que gostavam de ser brancos. Em 1971, ali, quase não se viam cabelos j
compridos, e, bem, muitos deles tinham aquela aparência alinhada, disciplinada
e agressiva, que, provavelmente, lhes ajudaria muito depois de um ou dois anos
no Hanoi Hilton,84 ou mesmo no Congresso americano. j

82 Através do universo; música dos Beatles. (N. T.)


83 Diversão quente no verão; música de Sly Stone. (N. T.) j
84 Prisão de Hoa Lo, conhecida sarcasticamente pelos prisioneiros de guerra americanos durante a j
Guerra do Vietnã como Hanoi Hilton. (N. T.) j
160
ADORO PROBLEMAS

Vocês terão de me perdoar pela ordem do que vem a seguir, pois o evento
tornou-se um borrão. Meus instintos de sobrevivência básicos tinham entrado
em ação, e aquilo era tudo que importava. Alguém foi eleito vice-governador ou
procurador-geral ou Provavelmente Será Pego no Banheiro do Senado Algum
Dia. Em algum lugar no meio desses anúncios, escutei meu nome. Levantei-me
da cadeira (contra o melhor conselho do meu sistema excretório) e segui para o
palco. Os poucos garotos que fiz contato visual apresentavam aquela expressão
entediada de “Ah, merda, outro discurso”. Por um instante, senti que, em breve,
estaria prestando-lhes um grande favor. Sem dúvida, não se pareceria com nada
que eles estavam acostumados na aula de educação cívica. Isso eu sabia.
Subi no palco e passei pelos dignitários instalados em suas cadeiras recliná-
veis. Quando os observei, um por um, percebi um homem que estava usando
chifres galhados. Um chapéu cotn chifres. Não era o Bullwinkle,85 e não era
Halloween. Aquele homem era o Chefe Elk, o diretor de todos os Elks, e segu­
rava em seu colo o troféu destinado ao autor do melhor discurso do concurso.
Ele tinha um sorriso largo, um sorriso mais apropriado para um kiwani86 ou um
rotariano, com mais dentes do que eu imaginava humanamente possível, e ficou
muito orgulhoso de me ver subir no palanque. Ah, não, pensei, esse homem está
prestes a ter um dia muito ruim. Esperei que fizessem uma revista.
Desenrolando minhas folhas, perscrutei a massa de testosterona recém-
-criada. Garotos de dezesseis e dezessete anos, que deviam estar fazendo qual­
quer coisa naquele momento - atirando argolas, beijando garotas, destripando
trutas —,tudo menos estar sentados ali me escutando. Respirei fundo e comecei
o discurso.
“Como o Elks Club se atreve...” Lembro-me que foi em algum lugar por
volta desse ponto que pude sentir um ruído de tensão no auditório; centenas
de pessoas murmurando, rindo baixinho. Deus, por favor, pensei, será que um
adulto responsávelpode subir nopalanque imediatamente epôr umfim nisso?
Ninguém apareceu. Segui em frente, e perto do fim, conseguia ouvir a
cadência da minha voz, e achei que não seria mal se eu estivesse cantando numa

85 Bullwinkle é um personagem de um desenho animado da década de 1960. Ele é um alce não


muito inteligente. (N. T.)
86 Membro do Kiwanis International, uma organização fundada em 1915, presente em 80 países,
dedicada à assistência de crianças. (N. T.)
161
BOYS STATE

banda de rock. Terminei com meu apelo para que o Elks mudasse seus hábitos,
e, quando virei minha cabeça para ver a maré vermelha que tomava conta
naquele momento do rosto do Chefe Elk, com seus dentes se assemelhando a
uma motoserra pronta para retalhar meu pobre eu, deixei escapar: “E o senhor
pode ficar com seu troféu nojento!”.
O recinto enloqueceu. Quase dois mil garotos se levantaram de um salto
dos seus lugares, e berraram, gritaram e me aplaudiram. A gritaria não parou e
a ordem teve de ser restabelecida. Eu saltei para fora do palco e tentei cair foía
dali, com minha rota de fuga já planejada antecipadamente. Mas muitos dos
garotos queriam apertar minha mão ou dar um tapinha nas minhas costas, ai)
estilo vestiário, e isso reduziu minha velocidade. Um jornalista começou a vir
na minha direção, com o bloco de anotações na mão. Ele se apresentou, disse
que estava atônito com o que tinha acabado de ver, que ia escrever alguma coisa
e transmitir a notícia. Ele me fez algumas perguntas a respeito de onde eu era
e outras coisas que não quis responder. Eu consegui escapar dele e me dirigi
rapidamente para uma porta lateral. Mantendo a cabeça abaixada e evitando
o caminho principal do campus, voltei ao Kellogg Dorms, procurei um pacote
de Ruffles na máquina automática, corri para o meu quarto e tranquei a portai
A máquina estava desabastecida de Ruffles, mas havia o Guess Who, e colof
quei para tocar. Assim, podia ter algum tempo para entender o que tinha aca­
bado de fazer.
No mínimo, duas horas se passaram, e, aparentemente, eu era inocentei
Nenhuma autoridade veio me levar, nem a milícia do Elks veio se vingar. Tudcj
parecia de volta ao normal.
Até a batida na porta.
“Ei”, a voz anônima vociferou. “Há uma ligação para você.” i
Os quartos do dormitório não tinham telefones. j
“Onde fica o telefone?”, perguntei sem abrir a porta. j
“No andar debaixo, no fim do hall.” I
Argh! Era uma longa caminhada. Mas eu precisava de Ruffles, e talvez;
tivessem reabastecido a máquina. Abri a porta, desci e percorri o longo corredoij
até o único telefone público. O fone pendia pendurado em seu fio, como urrí
homem morto balançando na forca. O que eu não sabia era que, no outro lado!
da linha, estava o resto da minha vida. ■
162
ADORO PROBLEMAS

“Alô?”, disse, nervosamente, querendo saber quem sabia onde eu estava ou


como me encontrar.
“Alô, é Michael Moore?”, a voz na linha perguntou.
tt r» •
oim.>J
“Sou produtor do programa CBS Evening News, apresentado por Waker
Cronkite, em Nova York. Recebemos uma notícia, que veio pelo telex, a respeito
do que você fez hoje. Gostaríamos de mandar uma equipe para entrevistá-lo
para o programa desta noite.”
“Hein?” O que ele estavafalando?
“Estamos preparando uma matéria sobre seu discurso expondo o Elks Club
e sua política racial. Queremos que você apareça na TV.”
Aparecer na TV? Não havia creme antiacne suficiente no mundo capaz de
conseguir que eu fizesse isso.
“Não, obrigado. Tenho de voltar para meu quarto. Tchau.”
Desliguei o telefone, corri de volta para o quarto e tranquei a porta de novo.
Mas não importava. Essa se tornou minha primeira lição a respeito da mídia:
Eu não tenho permissão para decidir o que vai sair no jornal matutino ou no
noticiário noturno. Naquela noite, fui apresentado ao mundo.
“E, hoje, em Lansing, no estado de Michigan, um garoto de dezessete anos
fez um discurso que confrontou o Elks Club e suas práticas segregacionistas,
elucidando o fato de que ainda é legítimo para clubes particulares neste país
discriminar com base na raça...”
No dia seguinte, o telefone do dormitório não parou de tocar, mesmo
quando eu estava fazendo a mala para ir embora. Não respondi nenhuma das
chamadas, mas escutei dos outros garotos que eram ligações de jornalistas da
Associated Press, de duas redes de TV, da NAACP,87 de um jornal de Nova
York e outro de Chicago. A menos que a oferta deles envolvesse comida grátis
ou uma apresentação a uma garota que poderia gostar de mim, não queria ser
incomodado.
Meus pais estavam esperando do lado de fora, no carro, para me levar de
volta para casa. Isso eu direi: meus pais não estavam tristes com minhas ações.

87 National Association for the Advancement of Colored People (Associação Nacional para o Avanço
das Pessoas de Cor); associação cujo objetivo é promover assuntos de interesse da comunidade
afro-americana. (N. T.)
163
BOYS STATE

Quando cheguei em casa, o telefone continuou a tocar. Finalmente, uma


ligação veio do escritório de Phil Hart, senador de Michigan. Ele queria con­
versar comigo a respeito de eu ir para Washington. O assessor afirmou que era
algo a respeito de um projeto de lei que seria apresentado; um projeto de lei para
declarar ilegal a discriminação por entidades privadas. Um congressista ligaria
para mim a respeito de testemunhar diante de uma comissão do congresso. Eu
estaria disposto a fazer isso?
Não!! Por que eles estavam me incomodando? Eu já não tinha feito o sufi­
ciente? Não tive a intenção de provocar esse tumulto.
Agradeci-lhe e disse que discutiria aquilo com meus pais (no entanto]
nunca falei para eles; eles teriam desejado que eu fosse!). Saí para o quintal para
cortar a grama. Morávamos na Main Street, numa esquina, do outro lado da ruai
em relação ao quartel do corpo de bombeiros da cidade, e na diagonal da pista
de boliche da cidade. Acima do zunido do motor do cortador de grama, mal
consegui escutar o som da buzina de um carro.
“Ei, Mike!”, gritou Jan Kitde, do carro que tinha acabado de parar no meio-
-fio. Com ela, estava outra garota da nossa classe. Conhecia Jan desde o quinto
ano da escola católica. No ano anterior, ela e eu fomos parceiros na equipe de
debate. Eu a amava. Ela era inteligente, bonita e muito divertida. Eu acenei.
“Ei, vem cá! Escutamos a respeito do que você fez no Boys State!”, ela disse*
com agitação. “Cara, foi um barato! Você mandou brasa! Estou muito orgulhosa
1
de voce.A »
Eu estava mal equipado para lidar com a variação de sentimentos e tem­
peratura corporal que estava vivenciando. Não sabia o que responder, a não ser
gaguejar um “obrigado”. Elas saíram do carro, e Jan me pediu para contar toda
a história, completa, com o quase tumulto que eu causei, o que resultou em um
monte de “bacanas!” e “joias!”, e, sim, um grande abraço pela minha iniciativa.
Elas estavam indo viajar e tinham de ir andando, mas, antes disso, Jan disse que
esperava me ver de novo naquele verão. j
“Você e eu vamos tirar de letra o debate deste ano”, ela afirmou, enquanto
eu dava uma olhada, com alívio, para a ambulância parada na frente do corpo
de bombeiros. “Será legal.”
Elas partiram e eu terminei de cortar a grama. Comecei a perceber que fazer
algo político tinha me trazido muito desgosto, mas também uma garota què
164
ADORO PROBLEMAS

parou para me ver. Talvez tenha sido muito hostil com os tipos que povoaram
o Boys State com seu amor tipo obcecado em relaçáo a todas as coisas políticas.
Quem sabe eles conhecessem certo segredo. Ou talvez todos eles cresceriam para
povoar o Congresso com seus egos ardilosos, bajuladores, vendendo os restantes
de nós sem hesitação. Talvez.
O ano seguinte não foi um bom ano para o Elks Club. Muitos estados
cancelaram suas licenças para vender bebidas alcoólicas (o corte mais indelicado
de todos). As doações e os financiamentos ficaram escassos. Diversos projetos
de lei no Congresso para impedir eles e outros clubes particulares de manterem
suas práticas segregacionistas foram debatidos. E, então, a Justiça Federal, em
Washington, aplicou-lhe uma sentença de morte, acabando com os privilégios
da isenção fiscal. Diante do colapso total e do escárnio da maioria do país, o Elks
Club votou para eliminar sua política de Somente Caucasianos. Outros clubes
particulares fizeram o mesmo. O efeito em cascata disso foi que, a partir daquele
momento, a discriminação racial em qualquer lugar dos Estados Unidos, quer
fosse público ou privado, era proibida.
De vez em quando, meu discurso era citado como uma faísca a favor dessa
marcha à frente no ajuste de contas racial, na grande experiência americana, mas
houve outros discursos muito mais eloqüentes do que o meu. O mais impor­
tante para mim é que aprendi uma lição valiosa: a mudança pode acontecer, e
pode acontecer em qtutlquer lugar, com até mesmo as pessoas mais simples e
com as intenções mais loucas, e que criar a mudança nem sempre requer ter de
dedicar todas suas horas a isso, com comícios monstro, organizações, protestos
e aparições na TV com Walter Cronkite.
Às vezes, a mudança pode acontecer porque tudo o que você queria era um
pacote de batatinhas fritas.
ZOE

O namorado dela me ligou do hospital.


“O aborto, Mike. Fizeram mal feito. Não fomos para Nova York.”

Em 1971, o aborto era ilegal, um crime, em Michigan, como era na maioria


dos estados. Se a garota engravidasse, nove meses depois ela teria um bebê. E |
ponto final.
Eu era mais próximo de Zoe do que era, talvez, em relação a qualquer outra j
garota da escola do ensino médio. Ela era o que se poderia chamar de a melhor
amiga. Ela tinha cabelo crespo, volumoso, em estilo afro, que pousava onde
quer que lhes aprouvessem. Tocava violão, mas também era um prodígio no j
violino; que só tocava descalça. Fumava maconha de vez em quando, na casa j
dos pais dela, e, em ocasiões extraordinárias, tomava LSD, “para me libertar do
policial fascista dentro de mim”. Zoe era um espírito livre, muito culta e sem
medo de dizer o que pensava. Eu achava que algum dia ela mudaria este mundo.
O que tornava a sua escolha por Tucker como namorado ainda mais enig- j
mática. Tucker era um imbecil completo, e parecia que ficaria mais feliz cravando j
uma lâmina entre as costelas de alguém ou pilotando um dragster. Ele era da j
“região violenta” da cidade (no sentido que isso assumia em Davison). Seu pas- j
satempo favorito era começar uma briga, e, ainda que Zoe procurasse corrigi-lo, j
o amor dele por brigas de socos mantinha seu boletim cheio de suspensões. Ele i
tratava o senso comum básico como se fosse uma “frescura”, e conhecia pouco j
166
ADORO PROBLEMAS

do mundo fora do seu estacionamento de trailerr, eu me surpreenderia se ele já


tivesse se afastado a mais de oito quilômetros da sua casa em sua vida.
No entanto, Tucker tinha o sorriso de Sundance Kid e os olhos de James
Dean, e Zoe o amava loucamente. Ele usava coturnos de couro e tinha uma cor­
rente presa no passante do cinto da calça, mas sem nada na outra extremidade,
pois ele era muito duro para arcar com a despesa de uma carteira e ainda mais
duro para ter algo para colocar nela. Um cigarro estava sempre pendurado no
canto da sua boca, e ele tinha o dom misterioso de aspirar e expirar a fumaça
sem nunca tocar o Camel.
Tucker fazia tudo por Zoe, e ela, em troca, era generosa com seu corpo. Isso
deu a Tucker a alcunha, por parte da maioria dos rapazes, de o Cara Mais Sor­
tudo da Davison High School, e ele ainda era um aluno do primeiro ano. Mas
não exatamente um calouro qualquer: ele tinha 1,90 metro de altura e pesava
80 quilos. Zoe era aluna do quarto ano do ensino médio, como eu, e eu estava
loucamente apaixonado por ela.
Eu não deixava que Zoe percebesse o sinal mais leve dos meus sentimentos
por ela. E se Tucker suspeitasse deles, eu, sem dúvida, veria a ponta afiada do
seu canivete sendo atirada na minha direção. No entanto, ele não fazia a mínima
ideia. Ou eu era um bom ator, ou era somente pateticamente inverossímil que
alguém como eu pensasse em ter quaisquer planos em relação a Zoe. E era ainda
mais implausível que ela alguma vez me visse como algo parecido com um bom
namorado. Afinal, eu vinha do grupo de rapazes que, em geral, era visto em fuga
das meninas que se aproximavam. Eu não era James Dean; eu estava mais para
Jimmy Dean,88 o rei da salsicha. Um dia, quando ela estava organizando um
“recital de protesto” do lado de fora da junta de alistamento militar, em Flint,
contei-lhe, para impressioná-la, que tocava violoncelo (o quão difícil podia
ser: só tinha quatro cordas!). Pedi emprestado um violoncelo e usei o arco para
tocá-lo de um lado para outro de modo aleatório, e ela olhou para mim, riu,
e depois me acusou de comer todos os bolos de maconha.
Tucker não tinha nada com o que se preocupar comigo, e Zoe gostava
de ter um garoto da escola que não avançava nela. Não queria desapontá-la, e

88 Dean (1928-2010) foi cantor de música country, apresentador de TV, ator e empresário. Atual­
mente, é mais conhecido como criador da marca de salsicha Jimmy Dean. (N. T.)
167
ZOE

havia algo nobre a respeito de ser diferente (melhor?) do que os outros garotos
na opinião dela. Claro que não havia nada de nobre em negar seus sentimentos,
sexuais ou outros, mas quem iria compartilhar isso com você? Ann Landers?89 A
moça da lanchonete?
Tendo, nesse momento, admitido possuir tal desejo, também admitirei que
ter uma amiga como Zoe era uma bênção, uma bênção maior do que alguém
podia esperar, na tentativa de sobreviver à aflição da adolescência. Podia ligar
para ela a qualquer hora, dia ou noite, e, se ela não estivesse transando com
Tucker, teria liberdade para falar com ela todo tempo que quisesse. Eu morava
na cidade e, assim, podia ir caminhando facilmente até a casa dela sempre que
queria; e eu a visitava muito mais do que Tucker, pois ele vivia no campo e não I
tinha carteira de motorista.
Zoe e eu crescemos muito próximos e dividíamos tudo, da maneira que
fazemos com aquele amigo especial da escola quando estamos juntos no quarto I
durante todas horas do dia ou da noite, falando sobre todos assuntos imaginá-j
veis: quem estava transando com quem, que turmas eram horríveis, maneiras de'
enganar os pais, como ajudar o garoto da rua que estava apanhando do pai todas
as noites, como tirar Nixon do poder, tocar o novo disco do Moody Blues, con­
seguir entrar num filme proibido para menores (Perdidos na noite), revezar-se
escrevendo versos de poemas que virariam letras de canções que ela comporia a j
música e cantaria para mim. Eis o quão íntimos nós éramos: certo dia, ela me I
disse que os lábios da sua vulva eram diferentes dos da maioria das mulheres,
pois seus pequenos lábios eram maiores que seus grandes lábios, fazendo com j
que seus lábios internos dobrassem sobre o topo dos seus lábios externos. Ela í
me revelou isso como se estivesse me lendo a programação da TV, e a minha
expressão transmitiu nada mais do que meu desejo de assistir a outra reprise de
Mayberry, RFD.90
Havia aquelas vezes em que ela e Tucker “davam um tempo” por dias
seguidos - e, momentaneamente, eu encarava com interesse a oportunidade
que se apresentava para mim. E, numa noite dessas, cheia de lágrimas, por
um segundo (ou, talvez, a noite inteira), ela também “encarou com interesse”. |

89 Pseudônimo de Esther Lederer (1918-2002) foi uma jornalista de grande popularidade, com uma
coluna veiculada em diversos jornais americanos durante 56 anos. (N. T.)
90 Seriado de TV, apresentado entre 1968 e 1971. (N. T.)
168
ADORO PROBLEMAS

Nunca falamos a respeito disso de novo.


Tucker voltava e a estranha saga deles continuava: o casal que não tinha
nada em comum, a não ser a perfeição dos seus próprios corpos.
Num domingo à noite, Zoe me ligou e disse que precisava se encontrar
comigo em algum lugar. Passei na casa dela de carro e fomos dar uma volta na
montanha Hogbacks.
“Estou grávida”, ela disse, assim que fechou a porta do carro. Com cuidado,
dei marcha a ré na entrada para carros da casa dela, com meu coração disparado,
e ela começou a chorar. “Não posso acreditar como fui tão estúpida. Não posso
ter um bebê.” Então, ela caiu sobre meu ombro.
“Sinto muito”, eu disse, da maneira que um melhor amigo diria tal coisa. E,
então, fiz uma pausa para tomar fôlego, e fiz contas. Parecia OK.
“Não se martirize”, eu disse. “Isso acontece. Até para pessoas inteligentes.”
Seu choro continuou. Procurei manter meus olhos na estrada. “Ei, não
chore. Estou aqui.”
Ela continuou a chorar e, assim, desviei o carro para o acostamento, parei,
e a segurei firme, da maneira que um melhor amigo a seguraria firme.
“Tenho de acabar com isso”, ela disse, descarregando as palavras.
Acabar o quê?, pensei. Tucker? A vida,... dela? Por favor, Deus.
“Você quer dizer a gravidez”, disse, num tom que não parecia uma pergunta.
“Sim”, ela disse. “Mas como vou acabar com isso?” Ela levantou os olhos
para mim; aqueles olhos... “Como?”
Ela me disse que, quando pegou o teste de gravidez na Planned Parenthood,91
explicaram-lhe que o aborto, ao menos em nosso estado, era ilegal.
“Talvez seus pais conheçam um médico que possa...”
“Não posso contar para eles! Não posso desapontá-los desse jeito.”
“Seus pais, mais do que quaisquer outros, entenderiam.”
“Não. Isso acabaria com eles. Tenho de cuidar disso sozinha.”
“Você pode tentar abortar o feto sozinha”, eu disse.
“Não faria isso”, ela afirmou.
“Sabe”, eu disse, “o aborto é legal no estado de Nova York”.

91 Organização sem fins lucrativos, que oferece serviços relacionados à planejamento familia; gra­
videz, aborto, cuidados pré-natais, educação sexual etc. (N. T.)
169
ZOE

Náo tive nenhum conflito moral em dar essa sugestão. Sabia que um zigoto
não era um ser humano.92
“Eu vou ajudá-la se é isso o que você quer fazer”, eu disse.
“Obrigada, Mike”, ela afirmou, secando os olhos.
“Podemos ir para Buffalo”, eu falei. “Não é tão longe assim.”
« r». jj
òim.
“Ou podemos ir para Nova York. Conheço a cidade muito bem.”

Naturalmente, eu estava apresentando propostas que não tinha a menor


ideia se poderia cumprir. Por exemplo, como eu poderia ir para Nova York e ;
não avisar meus pais? Isso nunca iria acontecer.
Mas Buffalo era possível. Comecei a tramar isso na minha cabeça. Podia
ir para a escola às sete da manhã e poderíamos estar em Buffalo ao meio-dia.
Quanto tempo levaria o procedimento? Nem mesmo sabia exatamente qual
seria o “procedimento”; mas digamos três horas de intervenção, então outras
cinco horas para voltar - podia estar em casa às oito da noite - tarde para o !
jantar, sem dúvida, mas não mereceria mais do que uma ou duas palavras duras í
e severas.
“Tenho de conversar com Tucker”, ela disse, enquanto a campainha da Má
Ideia soava na minha cabeça.
“Sim. Claro. Ele tem de saber.”
Levei Zoe para o trailer de Tucker e esperei do lado de fora, enquanto ela
entrava para dar a notícia. Quinze minutos depois, eles saíram do trailer, de
braços dados, e eu suspirei. Eles se sentaram no banco dianteiro comigo, com
Zoe no meio.

92 Eu era católico praticante, que ia à missa todos os domingos. Mas isso é o que eu acreditava: j
a vida humana começa quando o feto consegue sobreviver fora do útero. Até então, é uma forma de j
vida, mas não um ser humano. Um espermatozoide é vida (afinal, não está nadando com uma bateria j
recarregável nas costas), um óvulo é vida, um zigoto é vida, um feto é vida - mas nenhum deles é um |
ser humano, nenhum deles é vida humana - da mesma forma que uma semente ou um caule não é |
uma flor. Quando você nasce, você é um ser humano. Eis por que sua carteira de motorista registra j
seu aniversário como o dia que você saiu do útero da sua mãe e não o dia que você foi concebido, j
Algumas pessoas, suponho, gostam de ser a polícia do útero; mulheres extremamente controladoras j
dos órgãos reprodutores femininos. E isso sempre me pareceu realmente estranho. |
170
ADORO PROBLEMAS

“Obrigado, meu chapa, por se oferecer para ajudar”, Tucker disse, esten­
dendo seu braço e colocando-o sobre meu ombro.
“Ei, tudo bem. Tenho certeza que vocês fariam a mesma coisa por mim se
eu engravidasse.” Zoe riu.
Tucker continuou: “Estava pensando se não deveríamos ter o bebê”, disse o
calouro do ensino médio, sem carteira de motorista, amando a fanfarronice e a
ideia que teve de realmente produzir alguma coisa em sua vida.
“Sim, bem, isso não vai acontecer”, Zoe afirmou, calando-o, e me aliviando.
Fomos ao A&W para beber cerveja preta e comer batatas fritas e também
para planejar como acabar com a gravidez não planejada.

Nos dias seguintes, fiz uma pesquisa e achei as clínicas de aborto mais respeitá­
veis de Nova York. Planejei toda a viagem; que deveria ter a permissão dos meus
pais, ainda que não soubessem nada a respeito do aborto. Ficaríamos na casa
da minha tia, em Staten Island. Disse para minha mãe que queria ir para Nova
York para passar o fim de semana, pois estava pensando em fazer a faculdade ali.
“Não temos condições financeiras para isso”, ela respondeu sem vergonha.
“Eu procurei bolsas de estudos e acho que posso ter uma boa chance. Inves­
tiguei na Fordham.93 Jesuítas. Ótima universidade!”
Ali estava eu, embaralhando as cartas do catolicismo de novo, e isso sempre
funcionava. A irmã dela era casada com um homem que tinha cursado a For­
dham, e eu disse para mim mãe que ele facilitaria o ingresso para mim. Prometi
que iria só para passar o fim de semana e não perderia nenhuma aula na escola.
“E você vai ficar com a tia Lois?”
“Com certeza.”
Meus pais gostavam de Zoe e, como o radar deles não detectava nenhum
rastro carnal em uma ou outra direção, eles não a consideravam uma ameaça.
Zoe e Tucker ficaram animados a respeito dos momentos de diversão que
poderíamos ter em Nova York. Pensar-se-ia que estávamos indo para lá para
arrancar um dente - e, depois, ir a Times Square para ver Hair e ao Village para

93 Universidade católica criada em 1841 nas proximidades de Nova York. (N. T.)
171
ZOE

escutar Joni Mitchell. Talvez eu até pudesse conseguir alguns ingressos para o
programa Dick Cavett,94
Mas meus pais passaram muito tempo pensando a respeito dessa viagem
estranha, e, com o passar dos dias, puseram fim nela. Eu tramei uma briga;
mas não houve nenhuma forma de vencê-la. E quem era esse Tucker?

“Ei, não fique mal”, Zoe disse. “Você tentou. Talvez devêssemos voltar aq
plano de Buffalo.”
“Claro”, afirmei, um tanto derrotado. “Parece uma boa ideia.”
Nesse momento, Zoe e Tucker começaram a perceber que, em relação a
um aborto, dois é bom, três é demais, e, assim, disseram-me que assumiriam ò
controle daquele ponto em diante.
Eu teria dito algo para eles a respeito de um cordão umbilical sendo cor­
tado, mas não havia tempo para maus jogos de palavras, embora, sem dúvida,
fosse o jeito que me sentia. Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser
aceitar a situação. Tucker estava sendo muito bom para ela, e Zoe havia se tran­
qüilizado, e, naquele momento, estava aceitando bem a ideia da viagem delesi
Emprestei-lhes todo o dinheiro que tinha - cinqüenta dólares - para acrescentar
ao montante que eles estavam filando juntos para pagar as despesas. .
No dia que eu sabia que eles estavam indo, fui para a escola como se fossè
um dia normal. Mas minha mente estava em outro lugar. Normalmente, o penf
samento de uma pessoa não se dirige a Buffalo, mas não podia fazer muito mais
naquele dia, a não ser me preocupar com a segurança e bem-estar da minha
melhor amiga.

Depois do jantar, o telefone tocou. Minha irmã atendeu. |


“Mike, é Tucker”, ela disse. !
Fui ao telefone, sabendo que eles deviam ter voltado a essa altura.
“Alô.” I

94 Cavett apresentou um programa de entrevistas na TV durante cinco décadas, desde os anos 1960
até os anos 2000. (N. T.) í
172
ADORO PROBLEMAS

“O aborto \ ele disse, murmurante, ofegante e, se não fosse Tucker, diria


que estava chorando.
“Fizeram mal feito. Não fomos para Nova York. Não fomos para Buffalo.
Estamos em Detroit.”
“Merda!”, eu disse, um pouco alto demais. “O que vocês estão fazendo em
Detroit? Como ela está?”
“Não está... não está bem”, ele disse, agora claramente em lágrimas. “Mike,
me ajude! Ela está sangrando muito. Não sei o que fazer.”
“Onde vocês estão?”, perguntei, tentando não gritar, nem chorar.
“Levei Zoe para um hospital... em algum lugar aqui em Detroit. Estava
muito mal. Mal. Meu Deus... Não quero perdê-la!”
Não conseguia acreditar. Senti um sufoco asfixiante. Tampei o bocal do
telefone com a mão e estendi o fio espiralado da sala de jantar para a cozinha,
para que ninguém pudesse me ouvir ou me ver. Tentei raciocinar a respeito do
que eu precisava fazer.
“O que os médicos dizem?”
“Dizem que ela perdeu muito sangue. A situação é instável. Eles não me
deixam entrar. Tenho quinze anos e tenho certeza que já chamaram a polícia.
Não sei o que fazer!” Ele sucumbiu de maneira incontrolável.
“Tudo bem, escute! Controle-se! Estou entrando no carro nesse momento.
Estarei aí em menos de uma hora. Se a polícia aparecer, não diga nada. Diga
que você quer um advogado e não pare de repetir isso. E, se eles deixarem você
entrar, segure a mão dela e diga que ela não está sozinha... E diga que eu estou
chegando.”
“Tudo bem. Tudo bem. Sinto muito. Foi minha ideia. Não tínhamos
dinheiro para Buffalo. Alguém nos falou a respeito de um lugar seguro em
Detroit. Barato. Foi ruim desde o minuto que entramos. Eu devia ter tirado
Zoe dali. Sinto muito. Me perdoe.”
Naquele momento, nada disso importava. Gritei para meus pais, que
estavam no segundo andar, que eu estava saindo para me encontrar com Tucker
e Zoe e que voltaria em duas horas.
“De volta às dez”, minha mãe berrou.
“Sim. Às dez. Tchau!”
173
ZOE

Peguei a M-15 até Clarkston, entrei na 1-75 e pisei fundo. Às vezes, o velo­
címetro marcava 140 quilômetros por hora. O motor V-8 do Impala me leyou
para Detroit em 52 minutos. Segui as placas até o hospital, estacionei o carro no
estacionamento para casos de emergência e entrei correndo. Tucker estava ali,
com os olhos vermelhos.
“Tudo bem, tudo bem”, disse para ele, abraçando-o. Perguntei para a
enfermeira se podia ir ver Zoe, e ela disse que não. Perguntei a respeitoí da
condição dela.
“Você é parente?”, ela perguntou.
“Sou irmão dela”, respondi, sem pensar.
“E onde estão seus pais?”
“E onde estão os seus?”, retruquei, percebendo de imediato que isso não
teria muita valia para mim. Mudei de tom imediatamente.
“Olha, sinto muito. Estou preocupado. Tenho dezenove anos, ela tem
dezoito, e não queremos envolver ou angustiar nossos pais com isso. Espero que
você entenda.” A cascata fluiu sem percalços, mas as lágrimas que se formaram
nos meus olhos eram reais.
“Está certo”, ela disse, arquivando meu insulto para desforra posterior.
“Sentem-se ali, e vou ver se um médico pode vir aqui para falar com vocês.”
Esperamos quase uma hora antes de um médico residente aparecer. j
“Qual de vocês é o familiar?” !
“Eu”, respondi. j
i
“Tudo bem. Só quero dizer que foi a coisa mais estúpida que se podia ter
feito. Esses açougueiros não são médicos. Não têm formação médica nenhuma,
e fazem isso só para ganhar dinheiro e se aproveitar de pessoas como vocês.”
“Foi tudo que pudemos bancar”, Tucker interveio desnecessariamente. O
médico fez uma pausa, avaliando quem era exatamente aquele desordeiro. I
“É ilegal”, ele disse, destacando cada palavra como se estivesse golpeando
o rosto de Tucker. “Você podia ter a matado. Mas você não a matou. Ela vai se
restabelecer. Vocês correram um risco enorme.” j
“Qual é exatamente a condição dela nesse momento?”, perguntei, espe­
rando encerrar a palestra.
“Ela teve lesões internas: o útero e o colo do útero. Também parece que
usaram alguma forma de amônia. Assim, aparentemente, também existem quei-
174
ADORO PROBLEMAS

maduras ali. Interrompemos a hemorragia e estamos cuidando das mucosas da


parede interna. Ela está um pouco em estado de choque. Agora ela está descan­
sando e sedada, e está tendo a atenção que precisa. Os pais dela estão vindo?”
“Sim”, menti. “Daqui a pouco, eles devem estar aqui.”
O médico lançou outro olhar para Tucker. “Você está preocupado em saber
se ela ainda está com o bebê?”, ele disse, sem acrescentar a palavra implícita
“criminoso” no fim da pergunta.
“Sim, é claro”, Tucker afirmou, sem olhar para o médico.
“O bebê morreu”, ele revelou, usando a palavra “bebê” pela segunda vez,
para impressionar, para ferir Tucker. Me feriu.
“Não é um bebê”, eu disse, em voz baixa. “Ela estava na décima semana
de gravidez. Era um feto. Se Michigan não fosse tão retrógrada, ela não estaria
nessa situação. Isso dá raiva. Obrigado por ajudá-la.”
Ele não levou em consideração minha crítica e simplesmente deu as costas
e voltou para a sala de emergência.
“Os pais dela estão vindo mesmo?”, Tucker perguntou, entrando em pânico.
“Não. Mas temos de ligar para eles. No mínimo, ela vai passar a noite aqui,
e eles vão ficar apavorados se ela não voltar para casa. Eu vou ligar para eles. E
tentarei ajudar quando eles chegarem aqui.”
Fui ao telefone público e fiz uma ligação a cobrar para os pais de Zoe.
Disse-lhes para não se preocuparem; Zoe estava bem, mas estava num hospital
em Detroit, pois teve de vir para terminar uma gravidez. Houve gritos e prague-
jamentos, e eu lhes disse que sentia muito, que não sabia, que achava que Tucker
tinha ligado para eles, que tinha ido ao hospital assim que Tucker me avisou.
Além disso, disse que ficaria com Zoe até a chegada deles.
Quando os pais de Zoe chegaram, fiquei entre eles e Tucker, para repelir
qualquer violência, e pedi a todos para tentarem se concentrar em Zoe, pois
podíamos gritar uns com os outros mais tarde. A mãe dela conversou com a
enfermeira, depois com o médico, e ela e o marido tiveram permissão para ver
a filha. Poucos minutos depois, eles mandaram buscar o “irmão” dela. Olhei
para Tucker, que parecia perdido e com necessidade de uma babá ou da sua
mãe naquele momento. Segui a enfermeira para o quarto, e ela abriu a cortina
revelando Zoe, sonolenta na cama, com a mão sendo segurada pela mãe, com
o pai ainda olhando de relance na minha direção, querendo esmurrar alguém.
“Oi, Zoe”, eu disse, e fui para o outro lado dela e peguei sua outra mão.
175
ZOE

“Sinto... muito”, ela murmurou. “Nós... cometemos... um... erro.”


“Não pense nisso agora. O médico disse que você vai ficar boa. Você só
precisa descansar. E sua mãe e seu pai estão aqui, e tudo vai acabar bem.”
“Muito... obrigada”, ela sussurrou, com a voz gutural. “Você é... meu...” Ela
desabou em lágrimas. Não houve nenhuma palavra real com a qual terminar
essa frase, nenhuma que descrevesse adequadamente nossa relação - ou se exis­
tisse, não poderia ser dita naquele quarto. Eu a ajudei a concluir a frase.
“Amigo”, eu disse, sorrindo.
« C1• C M
oim. oempre.

Em pouco tempo, Zoe terminou o namoro com Tucker. Depois que nós ijios
formamos no ensino médio, fiquei absorvido pelo meu primeiro ano da facul­
dade e todas as coisas da política, mas Zoe e eu ainda nos encontrávamos muito,
ainda escutávamos música e dividíamos nossos sentimentos mais íntimos um
com o outro. Ela se matriculou numa faculdade comunitária, mas, no meio do
segundo semestre, ela desistiu, e Zoe e sua família se mudaram para o Oeste.
Ficamos em contato por meio de cartas, mas ela se meteu em aventuras e peram-
bulaçóes com amigos hippies que encontrou ao longo do caminho. Logo, per­
demos o contato, e a vida continuou. í
!

Vi Zoe pela última vez há mais de uma década. Ela estava tocando num recital
em Chicago e me contou como conseguia trabalho eventual tocando em diversas
orquestras e sinfônicas (eles a fazem usar sapatos). Ela tinha morado em lios
Angeles por um tempo e tocou em seções de corda de estúdios de gravação
de discos de rock e música pop. Foi bom pôr a conversa em dia e lembrar djos
velhos tempos. O homem com quem ela estava pareceu legal, mas de poucas
palavras. Percebi que ele tinha a mesma corrente que Tucker costumava usir,
pendendo do passante. Saí do nosso encontro sentindo-me bem a respeito àe
Zoe e da vida que ela conquistou, e fiquei um tanto aliviado quando vi que
a corrente do seu namorado estava claramente conectada a algo substancial no
seu bolso. I
CARRO DE FUGA

Naquele momento, a guerra já estava no seu sexto ano, e meu tempo estava
se esgotando. Tinha acabado de fazer dezessete anos, e a possibilidade de ser
recrutado parecia o bafo quente de alguém sobre a parte de trás do meu pescoço.
Nove garotos da minha escola do ensino médio - nove —já tinham voltado do
Vietnã em caixões cobertos com a bandeira. Naquele tempo, a melhor coisa
que você podia dizer a respeito disso era: ao menos, o caixão era feito nos
Estados Unidos.
Há muito tempo, tinha deixado de me pôr de pé para o hino nacional na
partida de futebol de sexta-feira à noite e na partida de basquete de terça-feira
à noite. Felizmente, não estava sozinho nesse protesto. No outono de 1971, a
militância hippie tinha crescido consideravelmente na Davison High School, e
os fortões que queriam muito nos arremessar da ponte da Main Street no riacho
Black Creek estavam, naquele momento, em inferioridade numérica. Mas eles
ainda podiam quebrar qualquer um de nós em dois, como um palito de fós­
foro, se pusessem suas mãos sobre nós. Assim, nós andávamos em grupo. Se
um fortão ou um matuto quisesse fazer justiça com as próprias mãos contra
um hippie, seria forçado a armar uma emboscada e pegar um de nós voltando
sozinho para casa depois de ficar até tarde na escola de francês ou no coro.
Dois dos rapazes da escola que morreram no Vietnã moravam na minha
rua. Estatisticamente, essa tinha de ser uma porcentagem chocante, conside­
rando que a parte residencial da minha rua se estendia por somente quatro
quarteirões. Se toda rua de quatro quarteirões nos Estados Unidos fosse solici­
tada a entregar dois jovens para O Sacrifício, então quantos de nós, em todo o
país, estariam mortos a aquela altura? Milhões, certo? Fiquei convencido que
177
CARRO DE FUGA

minha rua, a South Main Street, era um bulevar marcado, escolhido por Nixon
ou por aquele sinistro Anjo da Morte por algum motivo que não conseguia
compreender totalmente. Ficou decidido que minha casa não faria nenhuma
oferenda em favor da causa deles.
Voltemos à manhã de 5 de maio de 1970, dia em que perdi o controle
emocional. Mais cedo naquele ano, tinha convencido minha orientadora ame
deixar freqüentar o curso de sistemas de governo enquanto aluno do segundo
ano do ensino médio, um crédito obrigatório geralmente reservado aos alunos
do quarto ano. Principalmente, queria cair fora da aula de ginástica. Dois anos
de ginástica eram obrigatórios para se formar, mas menti: disse à minha orien­
tadora que, no seminário católico, fazia duas aulas de ginástica por dia, e, assim,
já tinha, de fato, feito meus dois anos de ginástica. Ela aprovou meu pedido para
poder freqüentar o curso de sistemas de governo.
Em 4 de maio, homens da Guarda Nacional, na Universidade de Kent, em
Ohio, fizeram pontaria e mataram quatro estudantes e feriram outros nove. jsso
me deixou preocupado. “Tudo bem, deixe-me entender isso direito: não preciso
mais ir ao Vietnã para ser morto; posso ser morto aqui mesmo, em casa?” j
No dia seguinte, nosso professor muito maneiro de sistemas de governo,
o senhor Trepus, deixou de lado a aula programada, para podermos discutir o
que tinha acontecido em Ohio. Muitos dos alunos da classe concordaram que
o futuro parecia muito ferrado. Alguns estavam bastante furiosos, e um déles
sugeriu uma manifestação. Como eu era dois anos mais novo que o restante da
turma, mantive minha cabeça abaixada, rabiscando uma folha de papel. Em
uma folha de papel para fichário, comecei a desenhar pequenas cruzes sobre os
túmulos, do tipo que havia visto no Cemitério de Arlington, nada além de filas
e filas de cruzes; tantas cruzes que se perdiam no horizonte.
Num papel tamanho carta, desenhei 260 cruzes em 26 linhas.
“O que você está fazendo?”, perguntou Bob Bell, o rapaz de cabelo com­
prido e mocassim, que sentava perto de mim. ;
“Só estava querendo saber quanto tempo levaria para desenhar uma cruz
dessas para cada túmulo de cada soldado que morreu no Vietnã.” j
“Não são muitos?” |
“Acho que o senhor Trepus disse que são quase cinqüenta mil mortos.”
“Uau. Gostaria de ver isso”, ele disse, com um sorriso curioso. |
178
ADORO PROBLEMAS

E, assim, eu comecei. Eu tinha cerca de cem folhas no meu fichário. Uma


por uma, desenhava as pequenas cruzes. Em certo momento, o senhor Trepus
percebeu que eu estava fazendo alguma coisa e veio até minha carteira para ver
o que era.
“Quero ver como cinqüenta mil mortos parecem no papel”, disse-lhe, espe­
rando não me meter em apuros.
Ele pensou a respeito disso por um minuto. “Ótimo. Também quero
ver isso.”
Dediquei boa parte dos dois dias seguintes para concluir meu projeto.
Quando terminei tinha 49.193 cruzes desenhadas em filas alinhadas sobre
118,5 folhas de papel de fichário com três furos. A notícia que tinha feito isso
se espalhou, e muitos queriam ver. Outros acharam que era melhor eu almoçar
sozinho na lanchonete (“esquisitão!”). Aqueles que quiseram espiar viram eu
mover rapidamente as páginas, uma por uma, diante dos seus olhos, como um
zootrópio. As cruzes não dançavam nem se moviam; era mais como ver milhares
de cruzes se empilhando sobre o topo de milhares de outras. Isso fez uma garota
da classe chorar.
“Não quero acabar sob uma dessas cruzes”, disse-lhe.

No ano seguinte, terceiro ano do ensino médio, a guerra ainda intensa, o cabelo
um pouco mais comprido, a raiva crescendo. Naquele momento, com a loteria
do recrutamento para mim a menos de doze meses de distância, era tempo de
uma ação decisiva.
Escutei histórias de caras que fizeram coisas na noite anterior ao exame
físico do recrutamento, como beber quase quatro litros de café para aumentar
a pressão arterial ou disparar um projétil na virilha. Este último gesto pareceu
algo dramático e doloroso. Outros forjavam atestados médicos, alguns tentavam
agir como retardados mentais.
Como verifiquei, eu tinha só três escolhas:

Declarar-me como objetor de consciência. Isso exigiria que eu não só con­


denasse todas as guerras passadas e presentes, mas também prometesse que não
179
CARRO DE FUGA

faria nada se minha avó fosse estuprada e assassinada. Se ficassem convencidos


da minha sinceridade de que não reagiria com violência enquanto uma senhora
de noventa anos estava sendo exterminada, seria designado para um trabalho de
período integral em hospital durante dois anos.
Ir para a cadeia. Isso não fazia sentido. “Assim, se eu não for para o Vietnã,
se não for usar uma vassoura num hospital, teria o cabo da vassoura cutucando
minha bunda.” Não, obrigado.
Fugir para o Canadá. O governo canadense tinha concordado em dar
aos desertores americanos um lugar seguro. Foi um gesto incrível de um país
que passava a maior parte do seu tempo tentando ser nosso vizinho polido.
Tínhamos muitas coisas em comum, os canadenses e nós, mas nossa divergência
parecia estar no negócio de invadir os outros países. Por algum motivo, os cajna-
denses tinham pouco interesse em impor seus egos serenos sobre os outros. Por
que um tanto do nosso orgulho arrogante não passou para eles era um mistério
para mim, mas os canadenses não queriam saber de matar pessoas a 16 mil qui­
lômetros de distância, e muito menos uns aos outros.
t

Ainda que eu vivesse somente a uma hora da fronteira, sabia pouco ido
Canadá. Não fiai lá nenhuma vez quando criança. O meu avô materno era caha-
dense, mas trocou o Canadá por Michigan na juventude, e, assim, nosso con­
tato com sua terra natal era limitado. j
Nossos parentes canadenses faziam viagens ocasionais de poucos dias para
nos ver, e nós íamos para lá menos. Talvez nossos pais ficassem preocupados que
não estávamos prontos para viagens internacionais. Talvez o Canadá ainda não
tivesse instalações sanitárias internas. Não sei. Era uma terra distante, era “exte­
rior”, e a Rainha da Inglaterra estampava o dinheiro deles. Além disso, nunca
pensamos em outra coisa. j
Como as fronteiras não podiam deter as ondas aéreas (a programação da TV
costumava ser transmitida gratuitamente através do ar), conseguíamos assisjtir
a muita TV canadense, na CKLW-TV, canal 9, de Windsor, em Ontário.í A
maior parte da programação desse canal incluía documentários sobre a natureza
e comédias em preto e branco com um humor irônico que não entendíamos.
Víamos membros da Polícia Montada, lenhadores e muitas imagens de prada­
rias. A emissora apresentava grandes clássicos do cinema no domingo à tarde] o
emocionante Hockey Night in Canada no sábado à noite e noticiários. j
180
ADORO PROBLEMAS

E foi ali, numa noite da minha juventude, que topei com a verdade. Parei
no canal 9 ao virar o seletor, e o noticiário estava no ar. Estavam cobrindo a
Guerra do Vietnã, mas havia algo errado com o que eles estavam exibindo.
Estavam transmitindo imagens não do Vietnã do Sul, mas do Vietnã do
Norte! O inimigo! Por que eles estavam fazendo isso? Estavam mostrando a
destruição causada pelo nosso bombardeio de vilarejos habitados por civis.
Uma velha chorava mostrando sua cabana, que “os aviões americanos tinham
bombardeado”. Não, não tínhamos! Parem de dizer isso! Nós somos os moci­
nhos! Eles são os alemães!
Mas não naquela noite. E eu não consegui mais tirar meus olhos daquela
emissora depois daquilo. E não fui o único. Se você morasse a uma distância
de até 100 quilômetros da fronteira canadense e tivesse uma antena externa
decente ou uma antena interna em V, poderia obter A Verdade a respeito
da Guerra do Vietnã dos canadenses desde o início. Isso me confundiu um
pouco, pois eu não tinha a menor ideia de que nosso próprio governo mentia
para nós. Quer dizer, aquilo tinha sido antiamericano. E, no entanto, ali
estava nosso vizinho chato, amigável, sussurrado através da cerca, todas as
noites, que estávamos fazendo uma coisa muito ruim. Senti-me como quando
descobri que Papai Noel era meu próprio pai ou quando soube que Cheez
Whiz95 não era realmente queijo, mas, ao menos, essas duas coisas ainda
trouxeram alegria à minha infância. Essas revelações não eram nada perto da
revelação sobre o Vietnã. Foi um tapa no meu sensível rosto de dezesseis anos,
e não gostei nem um pouco.
Graças ao canal canadense, passei a ter medo e odiar aquela guerra. Achei
que era o único na vizinhança que tinha descoberto a chave secreta, o tesouro
enterrado, e, dali em diante, fiquei viciado em nunca acreditar no que via na
televisão americana, mesmo se ainda sonhasse com Jeannie é um Gênio ou tor­
cesse para que o Fugitivo escapasse.

95 É a marca de uma pasta de queijo processado. (N. T.)


181
CARRO DE FUGA

No verão de 1971, antes do meu quarto ano do ensino médio, minha decisão
estava tomada: se convocado, fugiria para o Canadá.
Porém, fugir para outro país e pedir asilo não era ensinado na aula de sis­
temas de governo. Mas eu tinha acabado de alcançar o último nível na hie­
rarquia do escotismo, ou seja, tinha o conhecimento de diversas técnicas de
sobrevivência, com insígnias de mérito em monitoramento, rastreamento de
pistas, espreita de animais, tiro ao alvo, fabricação de cestos, consertos hidráu­
licos, reconhecimento de impressões digitais, criação de abelhas, encadernação,
sinalização, metalurgia, alvenaria, arte do arco e flecha, cultivo de frutas e nozes,
e irmandade mundial. Com uma base como essa, sem dúvida, poderia atravessar
qualquer fronteira, mantendo-me vivo com um arco e flecha, uma colmeia e
algumas bandeirolas de sinalização.

Conheci Joey, Ralph e Jacko numa manifestação antiguerra que participei logo
depois de receber minha carteira de motorista. O confronto da Universidade
de Kent estava vivo na mente de todos, e o Willson Park, no centro de Fl^nt,
era o local de encontro hippie dos rebeldes, dos descontentes e das queimas
mensais dos cartões de alistamento militar. Joey era de Burton Township, ojide
os brancos pobres moravam; suficiente dizer que você não encontrava muitos
deles nas orgias dos pacifistas. Embora, tenho certeza, forneciam mais budhas
de canhão do que qualquer outra região do Condado de Genesee (exceto o
extremo norte majoritariamente negro de Flint). Eles apoiavam a Guerra, do
Vietnã e o presidente Nixon (ainda que fosse a segunda opção deles para pre­
sidente, depois de George Wallace,96 governador do Alabama). A maior pàrte
de Burton Township era habitada por famílias que tinham vindo dos estados
sulistas para trabalhar nas fábricas de automóveis de Flint. A mudança para o
norte não os dissuadiu das suas ideias raciais, e, se você não fosse branco, era
melhor não se aventurar na zona sul de Burton após o anoitecer.
De alguma forma, Joey tinha escapado da maioria das deficiências atitudi-
nais da sua vizinhança, mas tinha conservado um agradável encanto simplório

96 Wallace (1919-1998) foi governador do estado do Alabama, conhecido por suas posições racistas,
se opôs a integração racial nas escolas. (N. T.) j
182
ADORO PROBLEMAS

da roça, que as garotas urbanas de Flint pareciam gostar. Ele não tinha nenhuma
tendência política específica; ele só sentia que a guerra era estúpida, e não tinha
o desejo de ver o mundo além dos limites da Maple Road.
Ralph morava no bairro hispânico, no lado leste do centro de Flint. Seus
pais eram do México, onde ele também tinha nascido. Ele chegou criança de
colo nos Estados Unidos, quando sua mãe e seu pai vieram fazer a colheita de
verão de beterrabas-brancas e mirtilos.
De nós quatro, Ralph era o mais intenso. Revoltou-se numa idade pre­
coce, a partir do testemunho do tratamento que seus pais recebiam em uma
área urbana quase toda branca e negra, sem nenhum reconhecimento real que
os morenos desempenhavam um papel na paleta de cores. Ralph também era
o mais forte de nós, e, ainda que também fosse o mais baixo, ninguém nunca
pensou em se meter com ele. Supúnhamos que ele carregava algum tipo de
arma, como uma faca, mas nenhum de nós realmente quis perguntar.
Jacko - nunca soubemos qual era seu nome de batismo —vinha de uma
família rica, que vivia numa área em volta da faculdade comunitária e do
campus de Flint da Universidade de Michigan. Ele tinha o cabelo do Blue Boy,97
mas Jacko era esperto e imprudente, e não tinha dificuldade em se meter em
confusão com a polícia local de vez em quando (confusão que seu pai, um
advogado, não tinha dificuldade em “apagar”). Se você apresentasse uma ideia
maluca, Jacko acharia um jeito de materializá-la; e para melhorá-la, a tornaria
ainda mais maluca.
E foi uma dessas ideias que propus a eles, num domingo à tarde, no começo
do outono de 1971, para a qual Jacko era meu perfeito coconspirador. Chama­
ríamos nossa ideia de “A Grande Escapada pela Blue Water Bridge”.98
“Estava pensando”, eu disse, bebendo uma cerveja preta A&W, que estava
colocada sobre uma bandeja pendurada na janela do Impala 69 do meu pai. “Se
eu for recrutado, não vou me apresentar.”
“Eu também não”, afirmou Joey. “De jeito nenhum.”

97 É o nome da mais conhecida pintura a óleo de Thomas Gainsborough, pintor inglês. Criada em
1770, aproximadamente, está exposta atualmente na Huntington Library, em San Marino, na Cali
fórnia. (N. T.)
98 É uma ponte internacional sobre o rio St. Clair, entre Port Huron, em Michigan, nos EUA, e Sarnia,
em Ontário, no Canadá. (N. T.)
183
CARRO DE FUGA

“Bem”, acrescentou Ralph, “eles nunca me acharão. Passarei para a


clandestinidade.”
“Nós não vamos para a clandestinidade”, Jacko interveio. “E nós não vamos
para a cadeia. Eu já vi esse filme. Nada a ver.”
“Podemos nos declarar como objetores de consciência”, sugeri.
“O que é isso?”, perguntou Joey.
Ralph interveio. “Significa que você tem de assinar um papel dizendo que
você é um maricas. Nenhum de nós vai fazer isso.”
“Sim eu também não quero fazer isso”, acrescentei de imediato, ainda que
não excluindo totalmente a possibilidade na minha mente. “Ser um objetor de
consciência significa dar ao Tio Sam dois anos da sua vida fazendo algo para ele
que não exige uma arma.”
Fiz uma pausa. “E se fugirmos para o Canadá?”
*FugirV\ Ralph disse, com surpresa.
“‘Fugir’, não”, afirmou Jacko. “Mais como Steve McQueen, em Fugindo
do Inferno. Passar a perna nos bastardos. Pular a cerca para o Canadá. Vivér
como reis!”
“Não existe uma cerca entre nós e o Canadá”, eu lembrei. “É tudo água.”
Não tinha certeza de exatamente quanta água, e não quis corrigir Jacko a
respeito de Steve McQueen (cuja tentativa de fuga naquela moto não foi bem-
-sucedida), pois sabia que o plano canadense era o “canal”. !
Jacko falou: “Podemos investigar. O que temos a perder?”. i
Fizemos um plano para o sábado seguinte, qual seja, passar de carro pela
fronteira e avaliar quais seriam nossas chances de entrar no Canadá. Fiquei resr
ponsável pela logística. Ralph cuidaria do que pode ser chamado de segurançá
(“Nenhum canadense quer criar problemas com um mexicano”, ele nos tran-i
quilizou). Jacko conseguiria algum dinheiro com seu pai para o que fosse neces­
sário. E Joey traria o barco. j
“O barco?”, Ralph exclamou. “Para que o barco?” j
“Mike disse que é tudo água”, Joey respondeu. “Meu pai e eu temos um*
bote de pesca, que prendemos na traseira do nosso carro para ir pescar. Está doj
lado da garagem. Pego ele quando eu quiser.” j

Jacko estava todo sorridente. “Gostei dessa história do barco! Já posso ver aj
gente atravessando o lago Huron como James Bond!”
184
ADORO PROBLEMAS

Ralph não era afeito a barcos, mas pôde perceber que era voto vencido a
esse respeito. Supus que sua oposição era porque ele não sabia nadar e que a
ideia de lidar com qualquer água não era agradável para ele.
No sábado seguinte, Joey chegou na minha casa. Disse aos meus pais
que ia ao cinema, e, felizmente, eles nunca olhavam através da janela, o que
poderia tê-los levado a perguntar por que precisávamos de um barco para ir ao
cinema. Pegamos a M-21 na direção leste, passando por Elba, Lapeer, Imala
City e a igreja em Capac, cujo campanário foi construído pelo meu tio-avô.
Frequentemente, mostrava esses pontos históricos para meus amigos da escola
de Davison, que, com humor, toleravam minha atitude “me desculpe por ser
tão inteligente”. Aqueles caras de Flint eu, na realidade, não conhecia tão bem,
o que tornava aquela aventura mais perigosa e atraente.
Em pouco mais de uma hora, estávamos em Port Huron, em Michigan. Port
Huron, aprendera na preparação para a fuga, era uma das três únicas passagens de
fronteira de Michigan para o Canadá; as duas outras eram Detroit (que tinha um
túnel e uma ponte) e Sault Sainte Marie, na Península Superior (Upper Penín­
sula). Aparentemente, também existia uma passagem de barco no rio Detroit, na
zona sul da cidade, com um posto da alfândega no lado canadense.
Port Huron era uma cidadezinha, desconhecida para muitos naqueles
dias, mas todo os alunos de Michigan sabiam que era o lugar onde Thomas
Edison cresceu. Aqueles de nós que acompanhavam manifestações antiguerra
conheciam Port Huron como o lugar onde um grupo de estudantes da Uni­
versidade de Michigan, liderados por Tom Hayden," escreveu o manifesto do
movimento Students for a Democratic Society (SDS - Estudantes por uma
Sociedade Democrática), intitulado Port Huron Statement (Declaração de Port
Huron). Na realidade, nenhum de nós havia lido a declaração, mas sabíamos
que só a menção do acrônimo SDS deixava nossos pais irritados; assim, nós nos
considerávamos membros espontâneos e fixávamos cópias da declaração (que
eram adquiridas na loja que vendia equipamentos para o consumo de maconha)
num lugar em que os pais ou um diretor assistente da escola podiam vê-las e
empalidecer.

99 Político e ativista social, conhecido por seu envolvimento com os movimentos contra guerra e
pelos direitos civis da década de 1960. Foi casado com a atriz Jane Fonda. (N. T.)
185
CARRO DE FUGA

Eu escolhera Port Huron como nosso local de fuga não por causa do seu
significado histórico, mas porque parecia ter a menor distância de água entre
os dois países. O rio Saint Clair só tinha cerca de 800 metros de largura, e, no
lado canadense, ficava a cidade de Sarnia, em Ontário. Mas quando chegamos
em Port Huron e pusemos os olhos em Sarnia, era realmente um lugar hor­
rível. Ocupando o que parecia ser toda a margem do rio havia uma refinaria de
petróleo ou uma indústria química (o imenso letreiro DOW,100 que podia ser
visto na outra margem do rio, talvez foi a revelação involuntária).
Havia um local no caminho para Port Huron em que Jacko achou que
podíamos atravessar a nado para o Canadá (acho que ele disse isso para encher
a paciência de Ralph). Mas olhar para o rio Saint Clair eliminava qualquer ideia
de tentar isso, se, de fato, era uma ideia. Aparentemente, se você jogasse um
fósforo aceso no rio Saint Clair, iluminaria como Cleveland.
Havia uma única maneira de passar de carro para o Canadá, e era através da
Blue Water Bridge. Debaixo da ponte, podíamos ver o que pareciam ser postos
de controle vivamente iluminados nas duas extremidades da travessia. Não paref
ciam receptivos. Decidimos que a ponte não era uma boa ideia. Em vez dissoj,
usaríamos o barco de Joey. j
Nossa tarefa, então, era achar um lugar no rio para lançar o barco que pare­
cesse bastante desolado para não sermos descobertos. Um pouco ao norte dá
ponte começava o lago Huron, e ele se alargava tão rápido que, numa distância
de apenas sessenta metros, já havia, no mínimo oito quilômetros de lago entre
os dois países. Ao sul de Port Huron, havia uma cidadezinha chamada Marys-
ville. Fomos para lá e achamos um parque municipal com um atracadouro para
barcos no rio. Não havia polícia nem pessoal da imigração por perto. Ainda
havia muita sujeira com aparência industrial na margem canadense do rio, mas
um pouco ao norte parecia haver um longo trecho de campos e matas. Aquela
parecia ser nossa melhor aposta.
Joey deu marcha a ré no seu carro, rumo ao atracadouro, na beira da água.
Ralph estava nervoso com a possibilidade de sermos pegos, e mantive meus
olhos fixos na outra margem do rio, procurando canadenses. Não via nenhum,

100 Refere-se à empresa Dow Chemical, corporação americana, uma das maiores fabricantes de
produtos químicos e plásticos do mundo. Foi fundada em 1897 por Herbert Henry Dow, químico e i
industrial. (N. T.)
186
ADORO PROBLEMAS

e, o sol do fim da tarde, do oeste, iluminando a margem canadense, revelava


absolutamente nenhuma atividade. Não havia policiais de fronteira com binó­
culos nos espreitando, nem barcos de patrulha protegendo sua soberania. Sim­
plesmente 800 metros de rio marulhavam na nossa terra do mesmo jeito que
marulhavam na terra deles. Embora aquilo fosse um ensaio, havia uma parte de
mim que queria meramente pegar o barco naquele momento, atravessar o Saint
Clair, e não voltar.
Isso não iria acontecer. Joey soltou um sonoro “Merda! Droga! Merda!”, e
fui ver qual era o problema.
“O motor de popa não veio! Meu pai tirou! Droga!”
“Que diabos, Joey?” Ralph chutou o reboque do barco algumas vezes, mas
nenhum chute fez o motor de popa aparecer. “Como você pode ser tão idiota?”
O escoteiro com insígnias de mérito em remo ergueu a voz: “Ei, são alguns
metros de rio. Somos em quatro. Vamos remar!”.
“Não temos nenhum remo”, Joey afirmou, calmamente, envergonhado
de ter arruinado nossa Grande Fuga. “Meu pai deve ter tirado o motor para
limpá-lo. Nós o usamos na semana passada. Não posso acreditar que não dei
pela falta dele quando saí.”
“Incrível. Realmente, incrível.” Ralph ainda estava irritado. “Vocês sabem
que não sei nadar.” Sabíamos.
“Não vamos nadar”, Jacko interveio. “Vamos comer um hambúrguer e dar
um tempo por aqui. E eu trouxe a sobremesa’”. Ele estava segurando um baseado
enorme, mas perfeitamente enrolado, em sua mão. Isso pareceu melhorar um
pouco a situação, e, se havia uma coisa que você podia contar com Jacko era a
melhor e mais cara maconha de terras longínquas.
Voltamos para Port Huron, achamos uma lanchonete e pegamos o que
precisávamos para nosso piquenique no parque da cidade, na margem do rio.
Havia uma grande pedra com uma placa homenageando Thomas Edison. Sen­
tamos ali, com nossos hambúrgueres, olhando fixamente para a placa e ten­
tando elaborar uma lista das coisas que ele inventou: lâmpada incandescente,
toca-discos, projetor de cinema. Havia mais coisas, mas isso era suficiente para
ele ser considerado um sujeito legal.
“Meu”, acrescentei, passando acidentalmente para o modo sabe-tudo,
“muitos inventores são do nosso estado: Edison. Henry Ford. Kellogg. Dow.
Nada mau para apenas um único estado.”
187
CARRO DE FUGA

“Bem, dane-se a Dow”, Ralph interveio.


“Sim, dane-se a Dow!”, Jacko repetiu.
“Sim, dane-se a Dow! Dane-se mesmo!”, acrescentei, no caso de necessi­
dade de ênfase.
“Edison disse que, de todas suas invenções, ele mais se orgulhava do fato
de que nunca inventou uma arma, nunca inventou nada para guerra”, Jacko
afirmou. Ficamos impressionados que ele soubesse algo tão sério, quer fosse
verdade ou não.
Ergui os olhos, para a ponte acima de nós. O anoitecer tinha chegado,
e embora essa aventura fosse, apesar do contratempo do motor, a coisa mais
divertida que tinha feito até então no meu último ano do ensino médio, aincia
estava obcecado com não deixar a zona da fronteira sem um plano de fuga para
o Canadá. Tinha de manter essa missão no caminho certo. Naturalmente, a
capacidade de fazer os outros três enfocarem novamente o motivo pelo qual
estávamos ali era um pouco mais difícil naquele momento, pois eles já tinham
fumado metade do superbaseado.
“Vamos, meu, experimente”, Jack implorou para mim. “Só uma vez.” i
Eu ainda era virgem quando o assunto era, bem, quando o assunto era
tudo; mas, nesse caso, eu era o único cara de dezessete anos que sabia que não
tinha, no mínimo, experimentado maconha ou outras substâncias controladas.
Não era por causa de qualquer motivo legal ou moral; e não estava preocupado
que meu primeiro baseado me levaria a me picar com heroína. Na realidade;
percebia que todos se tornavam mais legais e mais divertidos quando ficavam
“doidões”, e que, sem dúvida, não havia nada de errado com aquilo. Meu medo
era esse: para mim, eu já parecia bastante drogado/doidão/maluco. Ou, ao
menos, achava que parecia. Estava convencido que meu estado alterado natural
e cotidiano não precisava de nenhum aprimoramento. Realmente acreditava
que, se eu fumasse um baseado ou tomasse um ácido, eu poderia nunca mais
voltar da “viagem”. Estava bem do que jeito que eu era, pensando em coisas
como fugir para o Canadá num barco sem motor. í
“Sempre podemos atravessar a ponte correndo”, sugeri, sabendo que,
naquele momento, com o baseado consumido, eles estariam abertos a quase
qualquer coisa.
“O que quer dizer atravessar correndo’?”, Ralph perguntou num tom que
indicava um momento raro de cabeça aberta. ;
188
ADORO PROBLEMAS

“Você não quer dizer dar nopé, não é?”, Joey quis saber.
“Não, não quero dizer literalmente atravessar a ponte correndo”, expliquei.
“Quer dizer, vamos entrar no carro e fazer de conta que estamos indo visitar
nossos primos canadenses. Eu consigo falar um pouco de canadense. Tudo o que
você precisa fazer é falar mais devagar e pôr um cu extra em algumas palavras.”
“Achei que eles falassem francês”, Ralph interveio.
“Eles falam”, eu disse. “É a língua secreta deles, que usam quando não
querem que os americanos saibam o que eles estão falando. Já tive dois anos de
francês e, assim, estarei pronto se eles tentarem usar esse truque.”
“Joia”, Joey disse.
“Mas não precisamos nos preocupar de não saber francês no posto de con­
trole americano”, assegurei-lhes. “Direi aos policiais de fronteira que vamos
pescar com nossos parentes canadenses. Então, vamos pisar fundo e alcançar
o lado canadense antes de descobrirem que nenhum de nós parece muito
aparentado.”
“Cara, não sei”, Jacko afirmou, sem pensar muito. “E se eles sacarem as
armas e começarem a atirar? E se eles nos caçarem com algum caminhão do
exército ou algo assim? Droga, não sei.”
“Além disso, não se esqueçam, estamos rebocando o barco do meu pai”,
Joey acrescentou.
“Podemos deixar o barco nesse lado e colocar um aviso sobre ele”, sugeri.
“Lembrem-se, não estamos indo lá hoje à noite para sempre. Estamos indo só
para ver se, quando precisarmos fugir, seremos capazes de fazer isso.”
“Bem, se não for de verdade, então prefiro manter o barco conosco”, Joey
respondeu.
“Faz mais sentido ter o barco”, afirmou Ralph. “Vai parecer que estamos
indo para uma pescaria ou algo assim.”
“Tudo bem. Vamos levar o barco”, eu disse, achando que estava falando com
Cheech e Chong.101 “Mas vocês vão me deixar dirigir. Você não tem a menor
condição de estar no volante. E Jacko, veja se você não tem mais nenhuma
droga com você. Vamos nos meter numa enrascada se formos parados.”

101 Dupla humorística americana, muito famosa nas décadas de 1970 e 1980, participou de diversos
filmes cuja temática envolvia hippies, a geração paz e amor e, principalmente, o uso da maconha.
(N.T.)
189
CARRO DE FUGA

“Estou limpo, senhor”, Jacko respondeu, gargalhando.


“Digamos que passemos pelos guardas americanos”, Ralph disse. “E consi­
gamos atravessar a ponte. Quando chegarmos no lado canadense, o que vamos
dizer?”
“Acho que temos de dizer o que vamos dizer no dia real do ano que vem,
quando tivermos de fazer isso. Temos de dizer-lhes que somos desertores, e que
estamos ali para pedir asilo num país amante da paz.”
“Então, eles sacam suas pistolas canadenses e atiram em nós”, Jacko sugeriu.
“Quatro malditos americanos a menos! Belo trabalho, guardas!”, ele disse, com
sua melhor pronúncia flintiana/britânica.
“Eles não vão atirar em nós, e eles não são britânicos”, lembrei-o. “Eles só
acham que são. Acho que eles nem mesmo usam armas. Mas eles podem nos
levar para interrogatório. Assim, direi que só estávamos nos divertindo, qu!e
estamos no ensino médio e temos de voltar para casa hoje à noite, porque temos
de acordar cedo e ir na igreja.”
“Não exagere, Mike”, Jacko preveniu. “Não parecemos coroinhas nesse
carro.”
“Olha, acho que devemos tentar”, implorei. “Estamos aqui. Precisamos
saber o que estamos enfrentando, e, supondo que passemos pelos guardas ame*-
ricanos, acho que as coisas darão certo.”
Houve um pouco mais de resmungos a respeito de não querer levar tiros
ou do carro se desgovernar sobre a ponte, mas, após alguns minutos, convenci
meus amigos de que aquilo era a melhor coisa a fazer. Sentei no assento do
motorista, Ralph veio na frente comigo, e Joey e Jack se sentaram atrás, ten­
tando ficar sóbrios.
A Blue Water Bridge, ainda que cruzasse somente 800 metros de água,j
era uma estrutura imponente. Pairava a 45 metros de altura, bem acima do rio
Saint Clair. Isso permitia a passagem dos grandes barcos que navegavam pelos
Grandes Lagos.102 Era a entrada para o lago Huron, e para ingressar na ponte,
era necessário percorrer uma longa via de acesso que saía de um antigo bairro,
de Port Huron, que, antigamente, abrigou os imigrantes irlandeses do lado j
paterno da minha família. Quando o carro entrou na via de acesso da ponte, j

102 Conjunto de cinco lagos situados entre o Canadá e os Estados Unidos: lago Superior, lago
Michigan, lago Huron, lago Erie e lago Ontário. (N. T.)
190
ADORO PROBLEMAS

meu coraçáo começou a bater mais rápido. Todos fizeram seus ajustes finais na
aparência pessoal quando o posto de controle americano ficou à vista. Havia
uma série de cabines para cada faixa de tráfego, algumas com luzes vermelhas,
outras com verdes, e achei melhor pegar a faixa com luz verde. Havia refle­
tores potentes, e podíamos ver homens uniformizados dentro de cada cabine.
Quando chegamos perto de uma cabine, lancei uma advertência final.
“Tudo bem, fiquem frios, deixem que eu fale, e, se houver algum problema,
eu tomo a palavra. Mantenham suas cabeças abaixadas no caso de eles come­
çarem a atirar.” Pausa. “Estou brincando. Ninguém vai atirar em nós.” Ou,
assim, eu supunha.
O guarda da cabine acenou para eu avançar. Quando fiquei ao lado da sua
cabine, a janela estava aberta, mas ele não era um guarda. Ele parecia mais um
voluntário que ajuda na travessia dos pedestres na frente das escolas.
“São 25 centavos, por favor.”
“Hein?”
“Vinte e cinco centavos.”
Não entendi.
“Só uma moeda de 25 centavos, filho.”
Ele queria dinheiro de nós.
“Claro”, respondi. Procurei no meu bolso. “Aqui está.”
Eu lhe entreguei a moeda.
“Obrigado.”
Era só isso?
“É só isso?”, perguntei ao homem.
“Bem, geralmente as pessoas acham que isso é muito! Vivem falando em
aumentar mais 25 centavos. Acho que não vai cair bem.”
“Não, quer dizer, podemos ir para o Canadá agora? Você não tem de nos
fazer nenhuma pergunta ou nos revistar?”
“Ah, não, por Deus!”, ele riu. “Sòu apenas o cobrador do pedágio. Vão fazer
algumas perguntas quando vocês chegarem ali”, ele acrescentou, apontando
para o Canadá.
“Então, qualquer um pode sair dos Estados Unidos, assim à toa, sem ter de
responder a nenhuma pergunta?”
“Bem, assim espero. É um país livre. Há algum motivo pelo qual vocês não
deviam estar de saída? Seus pais sabem que vocês estão aqui?”
191
CARRO DE FUGA

“Ah, não, quer dizer, sim, não; só estava perguntando. Nossos pais foramna
frente. Eles estão nos esperando lá.” j

“Bem, então, é melhor vocês se porem em movimento. Vocês estão segu­


rando o trânsito!”
Pisei suavemente no acelerador, ou, ao menos achei que pisei, e o carro
deu um tranco para frente. No mesmo instante, ouvi um apito. Pisei no freio.
Estava tão confuso e assustado que não sabia o que fazer. Jacko dizia “Acelera!”?,
Ralph dizia “Não! Pare!”Não consigo me lembrar completamente o que fiz, ou
o que fiz errado, ou por que alguém estava soprando um apito, mas pude ver no
espelho retrovisor lateral que um idoso saiu da cabine e estava se aproximando
da minha porta. Sabia que tinha sido uma armadilha! Preparei-me para o que
quer que fosse acontecer. Olhei para Ralph. Ele tirou sua faca.
“Meu Deus, coloque isso...”
O idoso estava na minha janela.
“Desculpa, filho”, ele disse, educadamente, e um pouco ofegante. “Não vi
o barco que você estava rebocando.”
O barco! O barco! O maldito barco ia nosferrar! O que estávamos fazendo
com um barco? Ah, droga, por que entrei nessa?
“São mais 25 centavos pelo barco.”
Ainda bem. Ufa!
Mas, naquele momento, Jacko, aparentemente não escutando o simples
pedido do homem por uma moeda a mais, abriu sua porta, saiu do carro e
começou a correr pela Blue Water Bridge.
Quando entreguei a moeda de 25 centavos para o homem, ele gritou para
Jacko.
“Filho, volte para o carro! Não há tráfego de pedestres nessa ponte!”
“Eu vou alcançá-lo”, afirmei, rapidamente. “Não se preocupe. Sinto muito!’-
Pisei fundo e alcancei Jacko em questão de segundos. i
“Entre aqui ou vamos todos ser presos por sua causa!”, Ralph gritou parai
ele. Eu estacionei e Ralph agarrou o braço de Jacko. Jacko recuperou o juízo e
entrou no carro.
“Meu Deus!”, afirmei. “Isso foi muito estúpido.”
“Ei”, ele disse. “Não quis me arriscar.”
“Jacko”, Joey disse. “Aquele homem não ia fazer nada com a gente. Ele era
um velho\ Tinha uns cinqüenta anos, mais ou menos!”
192
ADORO PROBLEMAS

As coisas se acalmaram, e começamos a atravessar o rio Saint Clair, dei­


xando os Estados Unidos para trás. Na metade do percurso, havia uma grande
placa que dizia BEM-VINDO AO CANADÁ, e todos nós soltamos um grito
de alegria.
No entanto, naquele momento, tínhamos de passar pelo posto de controle
canadense. Parei o carro na cabine canadense. Dessa vez, não era um guarda que
ajuda a travessia dos pedestres na frente das escolas. Aquele canadense parecia
um agente policial, como um daqueles integrantes da Polícia Montada, mas não
era um deles. Ele acenou para que eu me aproximasse.
“Cidadania?”
Foi a única palavra que ele disse. Uau, pensei, eles eram bem objetivos ali.
“Sim”, respondi. “Obrigado.”
“Cidadania?”
“Sim”, repeti. “Nós gostaríamos.” Não podia acreditar o quão generosos
eram os canadenses, para, logo de cara, oferecerem sua cidadania!
O canadense olhou para mim. Severamente.
“Não tenho tempo para brincadeiras. Qual é sua cidadania e local de
nascimento?”
Ah.
“Michigan. Americano.”
“E onde você nasceu?”
“Flint, Michigan.”
“E vocês?”
“Americano.”
“Americano.”
“Americano.”
“E onde vocês nasceram?”
“Flint.”
“Flint.”
“México.”
Ó!
“Você é cidadão do México ou dos Estados Unidos?”
“Tenho dupla cidadania”, Ralph respondeu.
“Qual é o motivo da visita de vocês ao Canadá?”
193
CARRO DE FUGA

“Só queríamos passar pela ponte. Nós nunca estivemos aqui”, eu disse.
“Para que o barco?”
“Ah, é de Joey. O pai dele o mantém preso ao carro”, respondi, pensando
rápido.
“Quantos anos vocês têm, garotos?”
“Dezessete.” “Dezessete.” “Dezesseis.” “Dezessete.”
“Tudo bem, estacione o carro naquela vaga ali.”
Dirigi o carro até um pequeno estacionamento, na frente de um prédio com
pessoas com aparência de autoridade nele. Um homem com um uniforme saiu.
“Por favor, saiam do carro, soltem a carreta e entrem no prédio.”
Saímos e entramos no prédio com o membro da Polícia Montada (ou o que
quer que ele fosse). Dois outros agentes policiais começaram a revistar o carro.
“Vocês dois parecem estar de barato”, ele disse, olhando para Jacko e Ralph.
“Vocês têm outras drogas?”
“Não, senhor”, Jacko afirmou, educadamente. “E nós não estamos de
barato, senhor. Só estamos felizes de estar no Canadá.”
Ah, não.
“O que exatamente vocês estão tramando, garotos? Vocês sabem que o
barco não tem motor?”
“Sim, senhor”, eu disse. “São o carro e o barco do pai de Joey, e ele não
queria que usássemos o barco. Assim, sem o motor, ele disse que podíamos
trazê-lo conosco.”
“Sei”, o canadense respondeu.
“Mas há algo que gostaria de perguntar ao senhor”, eu disse, decidindò
tomar a iniciativa. “Digamos que fôssemos desertores e que quiséssemos mudar
para o Canadá, poderíamos fazer isso?”
Ele me olhou de alto a baixo, e gritou para o balcão: “Revista de todos os
orifícios!”.
O quê?
“Por aqui, por favor”, disse outro agente do comitê de boas-vindas. E, então, j
ele parou, e os pseudomembros da Polícia Montada começaram a gargalhar.
“Estamos só brincando. Não somos como os guardas de fronteira ameri-1
canos. Vocês não precisam abaixar suas calças para nós. Só vamos ligar para eles j
e dizer que vocês vão voltar.” Mais risadas. Eu estava familiarizado com esse i
194
ADORO PROBLEMAS

estranho senso de humor pelo fato de assistir a TV canadense. Ela precisava


neutralizar todos aqueles documentários terríveis de alces e castores.
Eles nos levaram de volta para o carro, onde, felizmente, não acharam nada
além de um barco sem motor.
“Vocês podem dar meia-volta e seguir para os Estados Unidos”, o cana­
dense mais importante disse.
Arriscando a sorte, voltei a lhe perguntar: “Mas, senhor... E se não qui­
sermos servir ao exército algum dia. Podemos vir para cá ou não?”
“Sim. Se você ficar aqui, de forma legítima, como um opositor à guerra,
o governo canadense lhe concederá asilo. Vocês foram convocados? Algum de
vocês está nas forças armadas?”
“Não.”
“Então tenham uma boa noite. E vão com Deus.”
Voltamos para o carro de Joey e atravessamos a Blue Water Bridge na direção
de Michigan. No lado americano, os guardas da fronteira estavam, felizmente,
apressados. Assim, fizeram as mesmas perguntas formuladas pelos canadenses e
nos mandaram seguir adiante. Naquela noite, não houve verificação de orifícios.
No restante do caminho para casa, não falamos muito; só analisamos o que
tínhamos aprendido: o Canadá nos aceitaria em caso de necessidade, mas sem a
necessidade de suportarmos o senso de humor canadense.
Um acordo justo, em todos os aspectos.

Em fevereiro, meu dia de nascimento foi a 279- data convocada pelo sorteio
do recrutamento, e no ano seguinte foi a 115“ data. As duas ficaram além do
número limite, significando minha dispensa. Recebi a classificação 1-F no meu
cartão de alistamento e, assim, não tive de aprender francês, o sistema métrico
ou como comer minhas batatas fritas com queijo coalho.
No entanto, permaneceria fã do Canadá por muito tempo.
DOIS ENCONTROS

Havia Linda Limatta e sua irmã, Sue, e também Mary Powers, Mareia Nasde
e Luanne Turner. Havia Barb Gilliam, Lisa Dean, Debbie Johnson; é tudo ver­
dade. Denise Hopkins, Cheryl Hopkins, Karen Hopkins, qualquer Hopkins
serviria! Havia Kathy Minto, Kathy Collins, Kathy Root e Cathy 0 ’Rourke;
sim, se seu nome fosse Kathy, isso talvez servisse. Havia Mary Sue Johnson,
Mary Jo Madore, Mary Lou Noe e Maribeth Beach. Jill Williams, Diane Peter,
Lora Hitchcock, Wendy Carrell, Jeanie Malin, Madeline Peroni, Louise Prine,
Suzanne Flynn e Susie Hicks; e não havia nenhuma delas, nem uma única delas,
que tive coragem de abordar e simplesmente perguntar se gostaria de ir ao
cinema comigo na sexta à noite. j

Bem, havia Susie Hicks. Eu estava atravessando o hall com ela entre a
quinta e a sexta aula, no caminho para a reunião do grêmio estudantil. No meu
último ano do ensino médio, concorri ao grêmio. Venci com base numa plata­
forma que prometia o fim do concurso da rainha do baile. Imediatamente, isso
me eliminou da lista de todas as garotas bonitas da escola. Mas não me importei;
nunca tivera chance com elas.
Mas Susie Hicks era a única exceção. Ela era a vice-presidente da sua turma,
atuava no grêmio estudantil comigo, cantava no coro da escola e também era
adeta. Ela sempre ria das minhas piadas e eu, claro, de alguma forma interpre­
tava mal isso, como se ela estivesse dando bola para mim como um possível bojm
namorado. Evidentemente, não entendia que só porque uma garota gosta ae
você não significa que ela o deseja. j

Susie e eu tínhamos três longos corredores a percorrer antes de alcançarj o


grêmio, dando-me bastante tempo para fazer minha proposta. Naquela manhã,
196
ADORO PROBLEMAS

tinha ensaiado minha conversa na frente do espelho. Fique frio, não faça parecer
que você está pedindo que ela saia para um encontro, tenho um plano B para
encobrir a dor e rejeição se ela não aceitar. Com uma perspectiva otimista como
çssa, tinha certeza de conseguir algo.
Percorri todo o primeiro corredor tentando me acalmar e fazer meu coração
bater em intervalos regulares, em vez de observá-lo se manifestar através da
minha camisa. O segundo corredor percorri tentando lembrar meu texto; eu
tinha esquecido o que dizer, o que perguntar (mas não a quem perguntar; eu
sabia a quem perguntar; eu estava caminhando com ela!). Fizemos a curva para
pegar o terceiro e último corredor e, com o último pouquinho de oxigênio que
me restava, abri minha boca.
“Su-Susie”, eu gaguejei, “Eu-eu estava pensando...”
E, naquele momento, um morteiro na forma de Nick West, capitão do
time de basquete, presidente da classe e dono de um rosto roubado de Robert
Redford, caiu entre nós.
“Oi, Susie!”, ele disse, dedicando um tempo para um rápido beijo. “Vejo
você depois do grêmio!”
• Na verdade, fiquei grato pela interrupção de Nick. Não tinha a menor ideia
de que eles estavam juntos, e eu teria sofrido a pior forma de humilhação se
tivesse sido capaz de fazer a proposta. Suspirei de alívio. Não senti remorso que
o mundo fosse um lugar injusto. Pelo contrário, fiquei feliz de ser lembrado que
não fui enviado para a Terra para sair com rainhas do baile. Ou, pelo menos isso
pareceu bastante bom para eu atravessar a próxima hora. (Sim, Susie tornou-se
a rainha do baile. Admito: eu amava desesperadamente todas rainhas do baile,
cada uma delas.)
Confissão: Quando o assunto é interação social, sou tímido. Sim, eu. No
ensino médio, minha ideia de uma noite de sábado empolgante era ficar em
casa e assistir Mannix e Missão Impossível>na CBS (na sexta à noite, assistia Cha­
parral e Nanny and the Professor). De vez em quando, saía com meus amigos,
e quando parecia que a atividade noturna planejada não envolvia violar leis
estaduais ou federais ou andar de carro com um motorista bêbado de dezesseis
anos, eu deixava sacos de cocô de cachorro nas varandas das casas, depois tocava
a campainha e saía correndo feito louco.
197
DOIS ENCONTROS

No entanto, garotas eram muito assustadoras para abordar, e era melhor


i
assim. Eu tinha trabalhos para fazer, livros para ler, e... e... esqueci, mas|era
importante! Era confortado somente pelas estatísticas e probabilidades: se exis­
tiam 1,5 bilhão de mulheres no planeta, a possibilidade de ao menos uma delas
querer ficar comigo era algo como... 100 por cento! Assim, ela estava por aí. Em
algum lugar. Talvez entre Bay City e Sterling Heights, por favor? Se, por acaso,
meu único e verdadeiro amor estivesse (por engano) na Eslovênia, então acho
que tudo que poderia fazer era relaxar e esperar que a CBS apresentasse Mannix
durante outra temporada.
i
Prim eiro encontro
Estava no terceiro ano do ensino médio quando os deuses, talvez ente-
diados das suas mentes oniscientes serem tão perfeitas e divinas o tempo todo,
decidiram pregar uma peça em mim, só para ver meu colapso num poço de
miséria. Do nada, eles me enviaram Linda Milks, uma aluna do último ano j—e
chefe de torcida!-, até perto do meu armário, no último dia do ano letivo.
“Oi, eu estava pensando... Você não quer sair comigo?”
Supus que ela estava falando com outra pessoa, do outro lado da porta: do
armário; assim, continuei atrapalhado com a combinação do meu cadeado.
“Ei, você!”, ela disse, batendo gentilmente no meu ombro. “Você não quer
sair comigo?”
Fiquei paralisado de medo e sem voz. O medo rapidamente se converteu
em constrangimento, enquanto olhava ao redor para ver quem a mandou pjara
pregar essa peça malévola em mim. Mas não havia ninguém por perto no cor­
redor. Apenas Linda, olhando para mim com aqueles lindos olhos castanhos,
cabelo preto comprido e um corpo (um corpo de garota!) que estava coberto por
uma beca de formatura marrom e dourada.
«/ ^ v
Quem, eu? !
“Sim, você! Vamos, vai ser legal. Você gosta de mim, não?” |
“Ah, sim. Sim, olha, você é a... Linda!” j
Finalmente, fui capaz de pronunciar uma palavra com duas sílabas: “Lin-dja.”
“Onde está seu anuário? Quero escrever algumas palavras.” j
198
ADORO PROBLEMAS

Remexi no meu armário procurando-o e o entreguei para ela. Ela escreveu


perto da foto dela: “Sua amiga é a resposta das suas carências. Ver a página 200.
Com amor, Linda. ”
Ela então foi para a página 200 do anuário e escreveu uma carta de página
inteira para mim a respeito do quanto eu significava para ela e como ela me
ajudaria quando eu precisasse. Ela assinou novamente com “amor”.
Fiquei ali parado lendo, sem ideia do que dizer ou fàzer. Finalmente, olhei
para ela, a chefe de torcida, e ela estava toda sentimental e cheia de sorrisos.
Senti vontade de lhe perguntar se ela estava de barato ou tinha me confundido
com alguém da aula de oficina.
“Obrigado. É muito legal. As pessoas náo costumam escrever esse tipo de
coisa no meu anuário. Você tem certeza que não quer apagar alguma coisa?”
“Hahahaha! Bobo! Por isso que eu amo você. Bem, aqui está o meu
número”, ela disse, escrevendo numa página que arrancou da agenda dela. “Me
liga nesse verão. Vamos sair e fazer alguma coisa.”
“Tudo bem. Eu te ligo. Obrigado.”
“Não me agradeça ainda\ E não se esqueça de ligar!”

Ainda não acreditando que era real, fiz uma verificação para ver se eu ainda
estava vivo: cabelo despenteado? Ticado. Nariz com sinusite? Ticado. Banhas?
Ticado. Espinhas na testa? Ticado. Sim, estava tudo ali. Ainda era eu.
E foi isso que a chefe de torcida acabou de convidar para sair?
Linda Milks era um ano mais velha do que eu. Ela decidiu fazer aula de
oratória em seu último ano e se juntar a equipe de debates, uma ação incomum
para uma chefe de torcida. Ela não estava muito interessada nos tópicos abor­
dados, mas estava interessada no que eu dizia na aula; principalmente, se eu fazia
minha imitação de Nixon. Ela ria com aquilo, e, frequentemente, se virava e me
dava um sorriso que dizia... dizia o quê? Não fazia a mínima ideia! Ela era aluna
do último ano, chefe de torcida e estava sorrindo para mim. Isso bastava.
Quando ela me pedia ajuda numa tarefa, eu dava de boa vontade. Mas eu
também fazia isso em relação ao garoto da roça nos meus descartes de coisas
velhas ou ao desordeiro que ficava me dizendo que queria ver se o punho dele
podia talvez ajudar a reorganizar meu rosto, para eu ter “uma melhor chance
199
DOIS ENCONTROS

com as mulheres”. Mas Linda disse que estava cursando oratória para ganhar
alguma “autoconfiança” e, assim, eu a ajudava com diversas maneiras e métódos
para realizar um discurso eficaz. Duas vezes ela parou na minha casa para con­
versar, mas só quando li sua carta no meu anuário que percebi que ela estava
disposta a algo mais. Ela realmente queria fazer amizade. Eu era tolo. Só achava
que estava tendo a oportunidade de praticar retórica com uma garota do último
ano, o que era uma façanha importante em si mesma. Admitirei que gostava
quando ela usava seu uniforme de chefe de torcida nos dias de jogo. Tornava a
aula de oratória cheia de vida.
Depois das férias de verão, esperei um mês inteiro antes de ter coragem
de discar o número dela, e só depois de treinar a discagem uma dúzia de vezes.
Finalmente, disquei de verdade, e ela atendeu. Respirei fundo e, em seguida,
fiz minha proposta: iríamos assistir à matinê de um novo filme intitulado
A fantástica fábrica de chocolate e, depois, iríamos fazer um piquenique no
Richfield Park.
Todas as atividades inocentes, seguras e diurnas. Ela adorou a ideia e pediu
para pegá-la no sábado ao meio-dia.
A parte mais importante disso era que meus pais não tinham a menor ideia
de que eu estava saindo para um encontro. Se eles descobrissem, seria ikma
inquisição, da qual imaginei que não sobreviveria.

Quem é ela?
O quê? Ela é mais velha que você?
Ela não é católica?
Ela é chefe de torcida?
Você tem certeza que ela não confundiu você com outro Mike?
Nós não a conhecemos.
Onde ela mora?
Quem são ospais dela?
Como nós nunca ouvimosfalar dela?
Que tipo de notas ela tirou?
Ela não vai para a faculdade?
Espere, me dê seu anuário. Essa é ela?Ah, não senhor, você não vai em nenhum
lugar com ela!
200
ADORO PROBLEMAS

Algo assim, mas com mais perguntas.


Assim, o truque era conseguir o carro para a tarde sem despertar nenhuma
suspeita. Disse aos meus pais que ia pegar dois amigos e iríamos jogar 27 buracos
no campo de golfe do Flint Park. Era muito golfe, especialmente para mim. Mas
sem dúvida eles ficaram felizes de escutar que eu estava fazendo algum tipo de
exercício; assim, me deram a chave do carro e saí para a Terra Prometida.
O assento de controle de natalidade (quer dizer, o assento individual) ainda
não tinha sido produzido em massa; assim, os assentos dos carros eram apenas
um único e longo banco. E quando Linda entrou no carro, ela deslizou para
perto de mim; eu não tinha a menor ideia de como seria capaz de dirigir depois
daquilo. Mencionei que ela era uma chefe de torcida? Falei a respeito do sorriso
perfeito, da pele branca angelical e da maneira que suas pernas cruzavam como
duas vigas projetadas para resistir ao pior dos terremotos? Acho que não.
Fomos ao cinema do shopping Dort, um da primeira geração de cinemas
de shopping que foram projetados para “conforto extra”, e, nesse caso, isso sig­
nificava que tinham assentos com encosto reclinável, para que você se sentisse
mais “relaxado”. Ao menos um de nós relaxou durante o filme. E não fui eu.
Não me lembro muito do filme, pois não conseguia parar de pensar no almoço
do piquenique que deixei no meu carro. Tinha posto um balde de frango frito
do Kentucky Fried Chicken no porta-malas e era um dia de 32 graus de tem­
peratura. Minha outra preocupação era: O que eu estavafazendo numfilme para
crianças no meu primeiro encontro? No entanto, Linda achou que era meigo, e
me disse que a maioria dos garotos não a levaria para um filme como aquele.
Não considerei aquilo um elogio. Queria ser como a maioria dos garotos.
A segunda parte do encontro foi melhor. Primeiro, não morremos de into­
xicação alimentar. Depois de acharmos um lugar agradável no parque, tirei o
balde com frango e uma limonada quente do porta-malas e estendi uma manta
sobre a grama, e sentamos e conversamos sobre o Vietnã, a aula de educação
artística da senhora Corning e a série Galeria do Terror, estrelada por Rod Ser-
ling. Ela me disse como eu fazia bem a ela, e eu a observei e tentei entender o
que ela quis dizer. Então, chegou a hora de ir embora (eu tinha de devolver o
carro). Jogamos os restos no cesto de lixo, dobramos a manta e entramos no
carro. Levei-a para casa. Ficamos um tempo na entrada para carros.
“Obrigado pelo programa.” “Imagina! Foi um prazer.”
“Foi seu primeiro encontro?”, ela perguntou, de modo simpático.
201
DOIS ENCONTROS

“Hein? O que você quer dizer? Não, já tive outros. Muitos.”


Ela sorriu, se inclinou e me beijou no rosto.
“Vamos sair de novo”, ela disse.
De novo? Quer dizer, passar por tudo isso de novo? Eu estava morto de
cansaço.
“Claro”, respondi. “Será legal.”
Ela saiu do carro, deu outro dos seus sorrisos meigos e eu nunca mais a vi.

Segundo encontro
Karen Humphrey era a vice-presidente do grêmio estudantil. Frequente­
mente, discordávamos e votávamos em lados opostos a respeito das questões.
Não era fácil ter um bom relacionamento com ela e achar um “denominador
comum”. Na época em que fui aluno do último ano, quis organizar greves, boi­
cotes à lanchonete e revoltas na sala de estudos. Ela odiava hippies, mas tocava
violão no coro e regia a escola em “Where Have Ali the Flowers Gone”103 no
show de talentos da primavera. Ela achava que o grêmio devia organizar espe­
táculos de dança e realizar “dias de diversão” orientados por temas. Eu achava
que o grêmio devia perguntar por que não tínhamos professores negros. Ela
expressava aborrecimento com os olhos e discordava com a cabeça.
Ela era o encontro perfeito. j

Passaram-se quase quatro meses desde o meu primeiro e único encontro


e, sendo um adolescente, eu estava ficando um pouco insano. E qual a melhor
maneira de mé colocar à beira do abismo do que sentir fixação por uma garota
que me achava levemente censurável?
O congressista local, Don Riegle, um republicano liberal na época (poste­
riormente, ele mudou de partido), pediu um encontro com dois representantes
estudantis de cada uma das escolas de ensino médio do condado em seu escri­
tório, em Flint. Karen e eu fomos os escolhidos da Davison High. Ofereci-me
para dirigir, e lhe disse que a pegaria.
No sábado logo cedo, parei na entrada de carros da casa dela. Buzinei para
avisá-la que estava ali (sair do carro e bater na porta me pareceu muito ousado;
tinha de manter a cabeça fria). Não houve resposta e, assim, buzinei pela

103 Música folclórica americana, composta por Pete Seeger e Joe Hickerson, em 1961. (N. T.)
202
ADORO PROBLEMAS

segunda vez. Naquele momento, ela apareceu na janela do quarto do segundo


andar. Karen estava usando apenas um sutiã.
“Controle-se!”, ela gritou para mim. “Ouvi sua primeira buzinada!”
Simplesmente querer que Karen tivesse mais coisas para dizer para mim,
para ela poder ficar ali um pouco mais com sua roupa íntima, não funcionou.
Ela fechou a janela abruptamente. Meu olhar ficou congelado naquela janela, e
eu esperei ansiosamente pelo bis.
No entanto, quando eu a vi em seguida, ela estava saindo pela porta da
frente; dessa vez, inteiramente vestida.
“Vamos”, ela ordenou. “E pare de olhar para o meu peito.”
“Como assim? Você mostrou seu peito para mim!”
Aquilo era o melhor que eu podia fazer? Fingir estar transtornado? Como
se estivesse louco, e tivesse de ver (um pouco) seus peitos? Meu Deus, eu podia
ter pensado em algo legal para dizer, podia ter feito um elogio ou dado um
sinal de que ela parecia atraente, podia até ter entendido que ela apareceu na
janela daquele jeito porque gostava de mim. Mas essa possibilidade não podia
ser encontrada na piscina rasa que tinha sido minha total experiência de vida
com o sexo feminino.
Chegamos atrasados para o encontro com o congressista. E daí? Eu tinha
de ver Karen Humphrey de sutiã! Eu era incapaz de escutar qualquer coisa que o
congressista tinha a dizer, pois estava tentando me lembrar e armazenar todos
aqueles quatro segundos na janela dela.104*
Quando chegou a hora de mandar embora os alunos das escolas,
aproximei-me do senhor Riegle para pedir um favor.
“Excelência”, eu disse, “gostaria de saber se o senhor poderia vir em nossa
escola e falar sobre a guerra?”
“Se for possível encaixar na minha agenda, com toda certeza. Verifique com
meu assessor e vamos ver ser podemos marcar uma data.”
Levei Karen de volta para a casa dela. Ela não ficou feliz com o meu pedido
ao congressista, pois ele era famoso por ser um dos dois republicanos no Con­
gresso que se opunham à reeleição de Nixon por causa da questão da guerra.

104’ Era numa época anterior à repetição instantânea, ao gravador digital de vídeo e a outros apare­
lhos que conservam as memórias para você. Em 1971, você era obrigado a utilizar a massa cerebral e
manter o prazer armazenado por longos períodos de tempo.
203
DOIS ENCONTROS

Karen sentiu que meu convite a Riegle era obviamente para perturbar o diretor
da nossa escola.
“O que o senhor Sconfield vai dizer quando o congressista ligar e dizer que
pode falar na escola?”, ela perguntou, preocupada. “Você acha que ele será capaz
de dizer não a um congressista? É claro que não!”
“Fico contente que você está comigo nisso”, disse, com um sorriso largo.
“Você quer ir ao cinema um dia desses?”
Uau! Eu consegui. Falei. E tudo que precisei foi ver um sutiã em uso.
Mas espere! Ah, não... aí vem a rejeição.
“Claro. Que tal na sexta à noite?”
“Claro.”
“Vejo você no grêmio na segunda.”
E, na segunda, estávamos ali, com ela votando com a maioria para der­
rubar minha última proposta de declarar a “Noite da Igreja” inconstitucional
(nenhuma atividade extracurricular era permitida nas noites de quarta rias
escolas públicas de Davison, pois era a noite na qual as igrejas protestantes da
cidade realizavam seus cultos religiosos do meio da semana).
Na sexta, escolhi o filme para levá-la, algo que já tinha visto no verão, mas
queria muito rever: Billy Jack. Esse filme, eu acreditava, converteria Karen à
minha visão de mundo. Um ex-boina verde105 é agora um indígena americano
zen que confronta os matutos e conservadores de uma cidadezinha quando eles
tentam fechar uma “escola grátis” hippie. E havia seios no filme!
Numa noite fria de outono, parei o Impala do meu pai na entrada para
carros da casa dela. Daquela vez, saí do carro e fui até a porta. O pai dUa
atendeu e me cumprimentou com a suspeição justificável que era requerida
naqueles tempos. Depois que ele fez um exame rápido nos meus olhos, digamos
que não gostou do que viu. Karen apareceu usando um suéter simples, mas
decotado o suficiente para confirmar a avaliação do pai dela do que nós dlois
estávamos tramando.
“Quando você planeja trazê-la de volta para sua casa?”, ele perguntou.

105 Boinas verdes é o nome popular das United States Army Special Forces. Essa força especiál foi
criada em 1952, e teve grande participação na Guerra do Vietnã. (N. T.) !
204
ADORO PROBLEMAS

“Assim que o filme acabar, senhor Humphrey”, respondi, esmerando-me na


minha imitação de Eddie Haskell.106 “Apenas duas horas, senhor.”
“Tudo bem. Não passe das onze e meia.”
Tudo bem. Onze e meia. Perfeito. Isso nos daria bons vinte minutos de
namoro, o que quer que ele fosse.
Entramos no Impala e fechamos as portas. Pus a chave no contato e a girei.
Nada. Voltei a girar. Nada de novo. Morto. Felizmente, estava bastante escuro
para ocultar o rubor do meu rosto.
“Uau! Sinto muito”, disse. “Acontece isso de vez em quando. Precisa de
uma nova bateria, eu acho.”
“Então, o que nós vamos fazer?”, Karen perguntou, com um tom gracioso.
“Acho que podíamos pedir uma ajuda ao seu pai.”
“Sim, podíamos fazer isso. Mas acho que é uma má ideia.”
“Então, o que você sugere?”
“Podemos ficar aqui e conversar.”
“Claro”, eu disse. “Mas ele não vai nos ver aqui fora?”
“Você não consegue enxergar nada aqui fora lá de dentro à noite. Ele nunca
olhará para cá até perto das onze e meia. Além disso, ele acha que nós já saímos.”
Sei. Tudo bem. Parecia um plano. E, assim, começamos a conversar.
Conversamos a respeito dos professores que gostávamos e não gostávamos,
conversamos a respeito de ter irmãos, conversamos a respeito do time de futebol
americano e do coro e de onde cada um de nós estava pensando em fazer facul­
dade. Até conversamos a respeito das nossas batalhas no grêmio estudantil.
Ao mesmo tempo, continuava querendo saber quando a coisa de “sexo”
rolaria. Não tinha a menor ideia por onde começar. Assim, supus que ela assu­
miria o comando —achei que podia supor isso quando a pessoa em questão
aparece na janela e o cumprimenta de sutiã - e, dessa maneira, fugi do trabalho
através de mais conversas sobre Tudo em Família, Peter, Paul & Mary, a nova
autoestrada através de Flint, dardos, Jesus, Bob s da zona residencial versus Bob s
da zona central, como escapei da aula de ginástica no décimo ano, a recente
morte de Jim Morrison, a inauguração do Walt Disney World no mês que vem,

106 Personagem do seriado cômico de TV Leave It to Beaver, veiculado entre 1957 e 1963. O per­
sonagem tornou-se uma referência cultural, identificado como o arquétipo dos puxa-sacos falsos
(N. T.)
205
DOIS ENCONTROS

a nova calça boca de sino dela, a recente missão Apoio 15, o Concerto para
Bangladesh, onde ficava Attica, uma nova loja de tecidos que ela descobriu no
shopping, jovens de dezoito anos obtendo o direito de voto - tudo menos sexo.
Tendo esgotado todos os tópicos de discussão, arrisquei.
“Nunca falamos a respeito de você na janela na semana passada”, eu disse,
como se estivesse passando simplesmente para a próxima notícia.
“Ah, você quer dizer esses?”, ela afirmou, puxando seu suéter um pouco
para baixo, para revelar um pouco mais da fenda.
“Sim, esses. Onde você os conseguiu?”
Ela riu da piada, deslizou sobre o assento e pôs a cabeça sobre meu ombro.
“Achei que você merecia uma espiada”, ela revelou. “Nada mais.”
“Você quer dizer nada mais então, ou nada mais agora?” !
“Quer dizer, você viu o que viu; agora, vamos aproveitar esse momento.”
Fiz o máximo para aproveitar. O cabelo dela cheirava fruta tropical, mas
não tinha a menor ideia de que fruta realmente era, a menos que bananas con­
tassem. Passei meus dedos pelo cabelo de Karen, para tirá-lo do rosto dela. Ela
se acomodou melhor no assento.
“Meu Deus, olhe o que fizemos nas janelas!”
Quejanelas?,, teria sido uma boa pergunta, pois eu não podia ver as janelas,
ou, no mínimo, não podia ver através delas. Cada centímetro delas estava emba­
çado após duas horas de papo e dois minutos de eu achar que “alguma coisa” íria
acontecer. Não conseguíamos mais ver a casa e, sem dúvida, ninguém conseguia
ver o interior daquele carro. Se aquele era para ser o momento, então era hora
de agir.
“Uau!”, ela prosseguiu, “parece que ficamos embaçando aqui toda a noite”.
“Então, vamos justificar o embaço!”, sugeri de forma grosseira.
“Acho melhor eu entrar antes do meu pai nos ver.”
E imediatamente depois disso, ela abriu a porta do carro.
“Vamos, precisamos ver se ele consegue dar a partida no seu carro”,j ela
disse.
Saí do carro e fui com ela até a porta da casa. Entramos e ali estavamj sua
mãe, seu pai e seu irmão mais novo, todos sentados na sala de estar.
“Como foi o filme?”, a mãe quis saber.
206
ADORO PROBLEMAS

“Muito bom”, Karen respondeu de maneira convincente. “Pai, o carro do


Mike morreu na entrada da garagem. O senhor podia dar uma olhada?”
O senhor Humphrey, como a maioria dos pais de uma cidade dominada
pelos automóveis, ficou mais do que feliz ao ser solicitado a exibir seus talentos
mecânicos. “Claro, vamos ver qual é o problema.”
Saímos da casa e pegamos a entrada de carros. Ao nos aproximarmos do
Impala, as janelas ainda estavam meio embaçadas. Comecei a preparar minha
defesa.
“Mike, por que você não tenta dar a partida?”, ele disse, desatento à umi­
dade da boca da sua filha que alterou a aparência do meu carro.
Rapidamente, entrei e abaixei os vidros a fim de ajudar a dissipar a translu­
cidez do para-brisa. Também girei a chave da ignição e nada aconteceu.
“Tudo bem, vamos fazer uma chupeta e ver se dá certo.”
Ele foi para a garagem e trouxe seu carro para perto do meu. Tirou os cabos
para chupeta e conectou a bateria dele na bateria sob meu capô.
“Tente de novo”, ele gritou.
Girei a chave e o motor ligou instantaneamente. Finalmente, algo fun­
cionou naquela noite.
“É isso aí”, ele disse, olhando através do para-brisa pela primeira vez, todo
transparente e fácil de ver através dele. “Você precisa testar a bateria.”
Eu o agradeci e me despedi de Karen.
“Vejo você na segunda”, eu disse, tentando ocídtar o tom do fim da minha
carreira de encontros no ensino médio.
“Vejo você na segunda”, ela disse.
VINTE NOMES

“Moore, sua camisa estáfora da calça!”


Era a voz do senhor Ryan, o diretor assistente de disciplina da minha estola
do ensino médio, e ele estava bem nas minhas costas. Não de modo figurado.
Ele estava literalmente nelas.
“Vire-se!”
Obedeci.
“Você conhece as regras. As camisas são para ficar dentro da calça.”
Obedeci.
«/o »
Curve-se.
Ele estava carregando “O Remo”, uma versão reduzida de um taco de crí­
quete, mas com buracos furados nele para alcançar velocidade máxima.
“Espera aí, isso não está certo”, protestei. “É uma camisa.” I
“Curve-se. Não faça eu repetir.”
Obedeci. Enquanto estava curvado, guardei a data no meu calencjário
mental como sendo a última vez que faria o que era ordenado a fazer.
BUMBA!
Senti a pancada intensamente. A tábua de madeira rija contra meu traseiro,
e o retardo de dois segundos antes da dor começar. j

BUMBA! j
Ele bateu de novo. Agora realmente doeu. Já pude sentir o calor da minha
pele através da minha calça, e quis pegar aquele remo e batê-lo na cabeça dele.
BUMBA!
208
ADORO PROBLEMAS

Naquele momento, a maior dor tornou-se a humilhação que eu estava sen­


tindo em virtude do olhar da quantidade cada vez maior de pessoas que parou
na lanchonete para ver o que estava acontecendo no corredor.
“É isso o que vou fazer”, o sádico dizia. “Não quero ver você com a camisa
fora da calça de novo.”
E, depois disso, ele se afastou. Ele não fazia a mínima ideia de quão pro­
fundamente ele acabara de mudar minha vida - e a dele. Ele tinha, nesse ato
de castigo corporal, criado seu próprio fim. Quantas vezes aquele homem bateu
numa criança em sua carreira? Mil vezes? Dez mil vezes? Qualquer que fosse o
número, aquele seria o último.
E engraçado, não? Num momento, você está andando pelo corredor com
sua camisa para fora da calça, está pensando em garotas ou num jogo de bei­
sebol, ou está mascando seu último chiclete, e, no momento seguinte, você
toma uma decisão que afetará todas as decisões que você toma para o resto da
sua vida. Tão casual, tão não planejado. De fato, isso sobrepuja toda a ideia de
fazer planos para sua vida, e você percebe que, na realidade, está perdendo seu
tempo se está tentando pensar numa especialização profissional, em quantos
filhos ter, ou onde quer estar em dez anos. Um dia, estava pensando a res­
peito de cursar Direito, e, na semana seguinte, tinha comprometido todos meus
escassos recursos e energia adolescentes para tirar de um adulto qualquer poder
que ele acha que exerce com aquele grande remo.
Eu me aprumei, ruborizado, para todos verem na lanchonete. Havia muitos
risos contidos e gargalhadas, mas, predominantemente, era aquela expressão que
as pessoas têm quando acabam de ver algo que nunca viram antes. Eu era conhe­
cido como bom aluno. Era conhecido como alguém que nunca tinha apanhado
de remo. Ninguém nunca esperava me ver apanhando do diretor assistente. Não
era o tipo de aluno que recebia a ordem de “curvar-se”. E isso era o que era tão
divertido a respeito daquela surra específica para a multidão reunida.
Não que o diretor assistente de disciplina Dennis Ryan não tivesse pegado
no meu pé no passado, ou que eu não tivesse feito nada para merecer sua furia.
Tinha feito muita coisa. No momento em que estava no meio do meu último
ano, havia organizado meus próprios miniprotestos contra quase todas as pres­
crições que Ryan e o diretor, o senhor Scofield, tinham estabelecido. A última
dessas revoltas envolveu convencer nove dos dezoito alunos da aula de Shakes-
peare a abandonar a matéria.
209
VINTE NOMES

O professor tinha devolvido para mim meu trabalho de vinte páginas sobre
Hamlet com um “0” gigante em vermelho no alto da primeira página. Aquela
era minha nota: Zero. Nada. Fiquei de pé. !
“O senhor não pode me tratar dessa maneira”, disse-lhe, educadamente.
“E estou oficialmente desligando-me dessa matéria.” Virei-me para os outros
alunos.
“Alguém quer se juntar a mim?”
Metade da turma se juntou.
A nota zero abaixaria minha média geral de notas para 3,3 no fim do ano.
Não dei a mínima.
Aquela não foi minha primeira discussão com um professor. O professor
que dava a aula a respeito de grêmio estudantil também me reprovou. Nunca
perdi um dia daquela aula. Fiz mais moções e participei em mais debates do que
talvez qualquer outro aluno da turma. E isso é que incomodou o professor que
era o conselheiro do grêmio estudantil.
“Como o senhor pode me reprovar?”, confrontei-o.
“Estou o reprovando porque você cria muitos problemas”, ele respondeu,
presunçosamente. “Eu gosto de um grêmio estudantil tranqüilo, pacífico. Você
tornou esse ano muito difícil para mim.”
Tudo isso pesou na minha mente na caminhada para casa, naquele dia da
minha surra pública pelo diretor assistente. Qual seria minha vingança? A res­
posta não tardou: estava num jornal que li naquela noite.
Um exemplar do Flint Journal forrava a lata de lixo que eu estava esva­
ziando em nossa garagem. Olhei para baixo e, entre as manchas de maionese e
refrigerante, notei um artigo que me lembrou a respeito de como a idade para
votar nos Estados Unidos tinha recentemente sido reduzida para dezoito anos.
Nossa, voufazer dezoito anos empoucas semanas, pensei. I
Entrei em casa e, uma hora depois, peguei o semanário da cidade, o Daúison
Index. Ali, na primeira página, provocando-me, desafiando-me, meu futuro me
chamando: Oi, Mike. Leia isso!A manchete?
ELEIÇÃO DO CONSELHO ESCOLAR, 12 DE JUNHO, DUAS
CADEIRAS EM DISPUTA. !
“Uuh! Voupoder votarpara 0 conselho escolar em alguns meses. Legal.
Espere.
210
ADORO PROBLEMAS

Espere um minuto! Se eu posso votar... posso concorrer? Posso concorrer a


uma cadeira no Conselho Escolar? Isso não me tornaria um dos chefes do diretor
e do diretor assistente? Sim? Sim? Viva!
No dia seguinte, liguei para o escritório do secretário do condado, a pessoa
responsável pelas eleições.
“Ah, sim”, gaguejei no telefone, não acreditando totalmente que estava
fazendo aquela chamada. “Ah, eu estava querendo saber, agora que pessoas com
dezoito anos podem votar, elas também podem se candidatar a cargos?”
“Não. Não a todos os cargos. Qual cargo o senhor gostaria de concorrer?”
“Conselheiro escolar.”
“Espere, deixe-me verificar.” Depois de um minuto, ele estava de volta ao
telefone.
“Sim. A idade obrigatória para candidatos ao conselho escolar é dezoito
anos.”
UAU! Não podia acreditar. Mas o pânico se manifestou. Como eu podia
bancar uma coisa dessas? Eles deviam cobrar um monte de dinheiro de você
para pôr seu nome na cédula.
“Quanto custa pôr o nome na cédula?”, perguntei ao homem.
“Preço? Nada. É grátis.”
Grátis? Isso continuava melhorando. Até ele acrescentar o seguinte:
“Claro que o senhor tem de obter a quantidade obrigatória de assinaturas
numa petição, a fim de ter seu nome inscrito na cédula.”
Droga! Sabia que havia uma armadilha. Havia 20 mil habitantes no distrito
escolar de Davison, abarcando o município de Davison e os distritos de Davison
e Richfield. Percorrer todo o distrito escolar para coletar só Deus sabe quantas
assinaturas era uma tarefa quase impossível. Quer dizer, eu ainda tinha muitos
deveres de casa de álgebra para fazer.
“Quantos nomes eu preciso nessa petição?”, perguntei com resignação.
“Vinte.”
"Vinte??*
“Vinte.”
“O senhor disse vinteT
“Sim. Vinte. O senhor precisa de vinte assinaturas numa petição que o
senhor pode pegar nos escritórios do conselho escolar.”
211
VINTE NOMES

Não podia crer que só precisava de vinte nomes numa petição; e, em


seguida, repentinamente, eu seria um candidato oficial! Quer dizer, vinte nomes
não era nada. Eu conhecia pelo menos vinte lançadores de pedras que assina­
riam qualquer coisa que eu pusesse na frente deles.
Agradeci ao homem e, no dia seguinte, fui ao escritório do superintendente
para pegar a petição. A secretária perguntou se eu estava pegando a petição para
meu pai ou minha mãe.
“Não”, respondi. E em vez de acrescentar: “A senhora gostaria de ver os ver-
gões nas minhas nádegas ou preferiria que eu chamasse o Juizado de Menores?”,
eu simplesmente disse: “É para mim”.
Ela tirou o telefone do gancho e fez uma ligação.
“Estou com um rapaz aqui que diz que quer concorrer ao conselho escòlar.
Qual é o requisito de idade atualmente? Sim. Claro. Obrigado.”
Ela desligou o telefone e denotou irritação.
“Quantos anos você tem?”, perguntou.
“Dezessete”, respondi.
“Ah, bem, então, você não pode concorrer. Você precisa ter dezoito.”
“Mas eu vou ter dezoito no dia da eleição”, falei impulsivamente.
“Um minuto”, ela disse, recorrendo novamente ao telefone.
“Um rapaz de dezessete anos pode concorrer se ele tiver dezoito no dia da
I
eleição? Sim. Compreendo. Sim. Obrigado.” j
“Aparentemente, você pode concorrer”, ela disse, alcançando o arquivo de
aço e tirando a petição. “Certifique-se de que cada assinatura seja a de um eleitor
registrado, que viva dentro dos limites do distrito escolar. Se você não conseguir
vinte nomes válidos, seu nome não será colocado na cédula.” j
Consegui os nomes em uma hora. Quando os vinte signatários me pergun­
taram por que eu estava concorrendo, apenas disse: “Para demitir o diretorj e o
diretor assistente”. Aquela era toda minha plataforma, no Dia Um, e pareceu
cair bem, ao menos para vinte cidadãos.
“E a faculdade?”, minha mãe perguntou, perplexa quando lhe contei que
tinha decidido concorrer ao conselho escolar. “Como você pode atuar no con­
selho escolar e ir para a Universidade de Detroit?”
“Acho que, se eu ganhar, vou para a Universidade de Michigan, em Fl}nt.”
Ela gostou de escutar aquilo. Se eu ganhasse, eu não sairia de casa. Meus pais
212
ADORO PROBLEMAS

não eram do tipo que expulsam o filho de casa aos dezoito anos (embora tenha
sido a idade que minhas irmãs saíram). Eles não gostavam de nos ver partir.
No dia seguinte, voltei ao escritório do conselho escolar e entreguei minha
petição. A notícia logo se espalhou pela cidade de que “um hippie” tinha se
qualificado para estar na cédula eleitoral, em junho. Fixei o objetivo de bater
em cada porta do distrito escolar. Entregava aos eleitores um folheto que havia
escrito descrevendo meus sentimentos a respeito da educação e, especificamente,
a respeito das escolas de Davison. Falei para as pessoas que os administradores
da escola do ensino médio tinham de partir. Estava achando que isso assustava
a maioria dos pais.
No entanto, havia algumas pessoas na cidade que estavam empolgadas com
a ideia de um jovem no conselho escolar. Tudo bem, todos tinham menos de
25 anos.
E, então, havia a maioria, aqueles que notaram que eu usava cabelo com­
prido. Na semana que iniciei a campanha, George C. Wallace, governador
racista do Alabama, venceu a eleição primária democrata para presidente em
Michigan. Não era um bom sinal para mim e para minhas chances. (Também
era minha primeira eleição. Dei meu primeiro voto como cidadão para a con­
gressista Shirley Chisholm para presidente.)
Os tipos da câmara de comércio da cidade estavam consternados quando
pensavam a meu respeito, um garoto, ganhando, assim como estavam diversos
pastores protestantes, os matutos locais e o grupo a favor da guerra (que era
constituído de todos os mencionados).
O problema era que os reacionários da cidade tinham uma estratégia real­
mente ruim para me deter. Seis deles foram até o escritório do conselho escolar e
retiraram suas petições para concorrer contra mim. Seis contra um. Sem dúvida,
eles perderam alguns dias de aula de educação cívica quando jovens. Você não
ganha concorrendo com muitos candidatos; você divide os votos e seu adversário
ganha com a pluralidade, ou seja, o maior número de votos. Tinha a sorte de que
eles não conheciam a palavrapluralidade e eu conhecia. Eu os ridicularizei e incitei
mais republicanos a pegar petições para ver se conseguiam me vencer.
Foi quando senti o gosto do meu próprio veneno. Além dos seis adultos
conservadores que se oporiam a mim, uma garota de dezoito anos também
decidiu concorrer contra mim, dividindo, assim, a já pequena votação jovem/
liberal que eu ia ter. A outra candidata de dezoito anos era nada menos que a
213
VINTE NOMES

vice-presidente do grêmio escolar, Karen Humphrey; a garota que foi um dos


meus dois únicos encontros da escola do ensino médio.
“Por que você está concorrendo?”, perguntei para ela, um pouco irritado
com o fato de que ela estava roubando minha ideia.
“Não sei, achei que seria perfeito. Nós dois podemos estar no conselho
escolar.” (Duas cadeiras estavam em disputa no conselho, e a ideia dela era que
nós dois podíamos ganhar a eleição e atuar juntos.)
Por que ela ainda me atormentava? Primeiro, o grêmio, depois, o sutiã, em
seguida, as janelas embaçadas, e, naquele momento, ela ia dividir o voto jovem
e afundar a mínima chance que eu podia ter tido de ser eleito.
Uma semana antes da eleição, recebi minha primeira correspondência
ofensiva anônima. Era endereçada aos dois candidatos de dezoito anos. Estava
escrito:

Karen Humphrey
Michael F. Moore ,

Que idiota falou para vocês, dois pirralhos, apresentarem suas candida­
turas ao conselho escolar?
Moore, vocêfala a respeito do seu vasto conhecimento acerca de todos os
assuntos. Onde e quando você os adquiriu? Você não tem nem mesmo j
miolos suficientespara fazer um corte de cabelo. |
Você, pedindo para os cidadãos de Davison votarem em vocêpara o con­
selho escolar, está realmente insultando a inteligência deles.
Meu conselho para vocês dois: depois das vossas boas mães tirarem suas
fraldas, achem um emprego ou freqüentem a faculdade, para adquirir
algo da sabedoria só obtida através da experiência e da adversidade e, em
seguida, pensem melhor e se candidatem a cargos. Porque, até agora, vocês j
ainda não começaram a viver i
í
Karen: pelo menos você é uma garota bonita e merece sorte melhor do que j
ser eleita para um conselho escolar, que é realmente um trabalho ingrato. j
j
Alguém que sabe do que estáfalando.
214
ADORO PROBLEMAS

Sim, Karen, você é uma garota bonita, ao contrário desse idiota cabeludo.
À medida que a correspondência odiosa prospera, essa foi uma das mais requin­
tadas que já recebi.
Na manhã do dia da eleição, acordei, comi meu Choco Krispis, e fui para a
escola. Ainda faltavam cinco dias para a formatura, e eu tinha provas finais para
fazer. Os anuários foram entregues, contendo os resultados de outra eleição: a
turma do último ano tinha me eleito o “Cômico da Turma”.
Quando a escola saiu para o intervalo, à uma e meia da tarde, fui votar em
mim. Concentrei toda minha campanha em conseguir o voto de todos os elei­
tores entre 18 e 25 anos. Havia quase duzentos eleitores aptos apenas na minha
turma do último ano. Gastei menos de cem dólares na campanha. Pintamos
cartazes de propaganda por meio de estêncil no porão da casa dos meus pais.
Não havia anúncios; apenas um folheto de uma página que eu entregava de
porta em porta.
Houve um grande comparecimento às urnas, e quando elas se fecharam, às
oito da noite, a contagem das cédulas de papel começou. Menos de duas horas
depois, os resultados foram anunciados.
“Senhoras e senhores”, o superintendente assistente do distrito anunciou,
“temos os resultados. Em primeiro lugar... Michael Moore.”
Fiquei boquiaberto. O grupo de estudantes hippie, que tinha se reunido
para observar a contagem dos votos, enlouqueceu de alegria. Um repórter de
uma estação local me perguntou como me sentia derrotando sete “adultos”.
“Bem, também sou adulto. E me sinto ótimo”, eu disse.
“Bem, parabéns”, o repórter desejou. “Você é a pessoa mais jovem a ser
eleita para um cargo público no estado de Michigan em todos os tempos.”
“É sério?”
“Sim, é. Você bateu o recorde anterior em três anos.”
No ginásio onde os votos foram contados, pude ver a decepção estampada
nos rostos dos corretores de imóveis, dos corretores de seguro, das mulheres do
clube de campo. No dia seguinte, um repórter de Detroit me ligou para dizer
que eu era o candidato mais jovem eleito em todo o país (não havia ninguém
com menos de dezoito anos que tinha um cargo público). “Posso ter um comen­
tário a esse respeito?”
“Uau!”
215
VINTE NOMES

O que mais eu podia dizer? Estava muito mergulhado no meu próprio tur­
bilhão a respeito do que tinha acabado de acontecer com a minha vida. Naquele
momento, eu seria uma das sete pessoas responsáveis pelo distrito escolar, e
o chefe do diretor e, mais importante, do diretor assistente, Ryan. Naquele
momento, tinha condições de tirar aquele maldito taco de críquete da mão dele.
Na manhã seguinte, fui para a escola como fizera nos últimos doze anos.
Atravessando o hall rumo à aula de escrita criativa do senhor Hardy, vi o diretor
assistente Dennis Ryan vindo na minha direção. Engraçado, não havia nada na
sua mão.
“Bom dia, senhor Moore.”
Senhor Moore? Esse foi um primeiro. Mas, afinal, como você se dirigiria ao
seu novo chefe? No entanto, eu ainda era um aluno à sombra dele. Estranho. Ele
continuou em seu caminho e eu fiz o mesmo.
Virou uma semana de saudações e apertos de mão ao estilo blackpower (eu
sei, eu sei, aquilo era Davison) entre os estudantes; muitos dos quais saboreandò
o estrago que eu podia causar. Recebi diversas sugestões dos meus eleitores:
obrigar os fortões a freqüentarem as aulas; colocar uma máquina de venda dt
cigarros na lanchonete; instituir o “dia escolar de quatro horas”; eliminar o leite
e servir só chocolate; descobrir qual é a “Surpresa de Quinta-Feira” no almoço è
matar a pessoa que a inventou.
Cinco noites depois, em 17 de junho de 1972 (alerta falacioso: ao mesmo
tempo, arrombadores, a 800 quilômetros de distância, estavam invadindo uni
lugar chamado Watergate), eu me alinhei no interior da Davison High Schooj
com meus quase quatrocentos colegas de formatura, todos nós com nossas becas
e nossos capelos marrons e dourados. As regras do código de vestimenta ainda
estavam em vigor, mas alguns estudantes decidiram secretamente não usar calças
ou saias. Eles só não deixaram que a área na parte superior da beca não tivesse
a blusa, camisa e gravata requeridas, pois podia ser vista pelas autoridades. A
exposição relâmpago das regiões inferiores aconteceria depois, no campo de!
futebol americano, no fim das cerimônias. Os balões cheios de água tambémj
estavam bem escondidos. j
Cinco minutos antes da cerimônia, o senhor Ryan percorreu a fila inspe- j
cionando cada um dos estudantes, principalmente para se certificar de que não
existiam instrumentos projéteis nas mãos das pessoas e para ter certeza que cada;
garoto estava usando uma gravata. j
216
ADORO PROBLEMAS

Foi então que Ryan achou Billy Spitz. Billy era um garoto de uma família
de poucos recursos. A ideia dele de uma gravata era o que se denomina “gravata
de caubói”: dois cordões longos pendendo de um nó ou grampo no pescoço.
Para muitas pessoas que vinham do sul do país para trabalhar nas fábricas de
Flint, usar uma gravata de caubói era chamado de “vestir-se com elegância”. Era
o que se usava em um baile ou na igreja. Era uma gravata.
Mas não para Ryan.
“Saia da fila!”, ele gritou para Billy. “O que é isso?”, ele continuou, puxando
a gravata de caubói para fora da beca de Billy.
“É minha gravata, senhor”, Billy respondeu, com timidez.
“Isso não é uma gravata!”, Ryan replicou, para todos ouvirem. “Fora daqui.
Vamos. Fora! Você não vai receber o diploma.”
“Mas, senhor Ryan...”
“Você me escutou?” Ryan perdeu o controle emocional, agarrando Billy,
afastando-o do restante de nós e mostrando-lhe a porta. Uma onda de choque
atravessou a fila de estudantes. Mesmo no minuto final do ensino médio,
tínhamos de testemunhar um último ato de crueldade.
E nenhum de nós disse algo. Nem o cara durão atrás de Billy, nem a garota
cristã na frente dele. E nem eu. Embora, naquele momento, eu fosse oficialmente
um dos sete responsáveis pelas escolas, permaneci calado. Talvez fiquei muito
atordoado para falar. Quem sabe não quis causar confusão antes de chegarmos
no campo de futebol, já que estava planejando causar muita ali (fiú escolhido
pelos alunos para fazer o discurso da turma). Pode ser que o senhor Ryan ainda
me intimidasse e seria necessário mais do que uma eleição para eu confrontá-lo.
Porventura fiquei apenas feliz porque não era comigo. Na realidade, não conhecia
Billy e, assim, como os outros quatrocentos, não meti o nariz.
Quando chegou minha vez de falar no palco da formatura, só proferi três
frases do que tinha escrito. Eu tinha sete folhas de papel amarelo de carta enro­
ladas em minhas mãos, parecendo que tinha preparado o discurso típico de
formatura. Na realidade, tinha outra coisa em minha mente para dizer.
Soube que um dos nossos colegas de turma, Gene Ford, não receberia os
cordões de distinção dourados da National Honor Society,107pois, devido à sua

107 Criada em 1921, é uma organização que se dedica a reconhecer os estudantes que se destacam
no ensino médio. (N. T.)
217
VINTE NOMES

séria deficiência física, teve de ser educado em casa. Ainda que suas notas fossem
altas, ninguém criou disposições para levar em conta suas notas domésticas, o
que o teria qualificado definitivamente para a Honor Society.
Com menos de um minuto do meu discurso, fiz uma interrupção abrupta
e disse para a platéia que o estudante sentado na cadeira de rodas na primeira
fila ficou sem seus cordões de distinção porque não era “normal” como o res­
tante de nós. E se, sugeri, nós fôssemos os anormais? Alguns de nós, alunos do
último ano, assinalei, decidiram não usar seus cordões de distinção, pois não
quiseram separar-se daqueles que, por qualquer motivo, não tiraram as mesmàs
notas. Continuei com uma arenga improvisada a respeito do caráter opressivo
da escola e da falta de direitos em nossa própria educação. Então, disse que goá-
taria de oferecer meus cordões de distinção para Gene.
E, assim, deixei o palco e fiz exatamente isso. E os membros do conselho
escolar que estavam presentes? Bem, eles só tiveram um trailer do filme quie
estavam prestes a estrelar comigo nos próximos quatro anos.

No dia seguinte, o telefone tocou e minha mãe disse que era a mãe de Billjr
Spitz. Peguei o telefone. Ela estava lutando contra as lágrimas. j
“Meu marido, eu, e a avó de Bill estávamos sentados nas arquibancadas
esperando Bill entrar no palco, esperando seu nome ser chamado. Eles cha^
maram toda a turma e nunca chamaram o nome de Billy. Não pudemos ver elé
sentado com o resto de vocês. Não entendemos. Ficamos confusos. E, então,
ficamos preocupados. Onde ele estava,? Levantamos e o procuramos por toda
parte. Fomos ao estacionamento e ao nosso carro. E foi onde nós o encontramos.”
Ela começou a chorar.
“Ali, no assento traseiro, estava Billy, todo encolhido, e chorando. Ele nos
contou o que o senhor Ryan tinha feito. Não pudemos crer que isso aconteceu.
Ele estava mando uma gravata! Por que isso aconteceu?” j
“Não sei, senhora Spitz”, eu disse, tranquilamente.
“Você estava ali?”, ela me perguntou.
CC p . »
bim.
“Você viu o senhor Ryan fazer isso?”
218
ADORO PROBLEMAS

« c•
oim. »
“E você náo fez nada?”
“Eu ainda era um estudante.” E um covarde.
“Você também é um membro do conselho escolar! Você não pode fazer
nada a esse respeito?”
Naturalmente, não havia nada que eu pudesse fazer. Eles não iriam cancelar
a formatura para corrigir essa injustiça. Tive a chance, talvez, de fazer algo na
noite anterior. Mas não fiz. Nunca me esqueceria desse pequeno, mas poderoso
momento de silêncio e negligência. Prometi-lhe que não deixaria o assunto pra
lá e que, como disse quando concorri, trabalharia para a demissão do senhor
Ryan.
Dois dias depois, fui convocado para ir à casa da secretária do conselho
escolar para prestar juramento. Pedalei minha bicicleta até lá com os pés des­
calços e prestei juramento desse jeito. “Onde estão seus sapatos?”, ela perguntou.
“Não estou usando”, respondi. Ela apenas olhou ferozmente para meus pés.
Ergui minha mão direita, e quando chegou a hora de dizer as palavras a res­
peito de “defender a Constituição contra todos inimigos, externos e internos”,
acrescentei: “especialmente internos”. Ela olhou para mim, expressando aborreci­
mento. Ela tinha dado aulas para minha mãe no ensino médio. “Ela talvez foi a
pior professora que tive”, minha mãe me disse depois. Ela também me disse que
eu deveria ter usado sapatos.

O período de lua de mel no meu primeiro ano no conselho escolar foi mais
longo do que qualquer um de nós havia esperado. A maioria das moções que
apresentei para melhorar as escolas - incluindo o estabelecimento de alguns
direitos estudantis —foi aprovada. O conselho escutou aquilo que eu tinha
a dizer a respeito de como a escola do ensino médio estava sendo dirigida, e
como o diretor assistente estaria melhor na força policial (do Chile). Falei que
o diretor não era um pensador progressista; ele reprimia a discordância e criava
um clima onde as novas ideias não eram estimuladas. No meu primeiro ano,
tornei-me um canal, no conselho, para estudantes, professores e pais, para que
suas vozes pudessem ser ouvidas.
219
VINTE NOMES

Certa noite de segunda-feira, cerca de oito meses depois da minha posse,


o superintendente apresentou as “cartas de renúncia” do diretor da escola e do
diretor assistente de disciplina, Dennis Ryan. Fiquei atordoado. Não podia acre­
ditar que, apenas dez meses depois de eu ser atacado com uma tábua de madeira
de alta velocidade, a missão que me fez concorrer ao conselho escolar tinha real­
mente sido cumprida. Pegou-me de surpresa, pois não achava que iriam fazer
alguma coisa a respeito desse problema. Realmente, não iriam demiti-los publi­
camente. Deixaram eles renunciar, para salvar as aparências. Salvar as aparências
não era ainda algo que eu estivesse interessado, pois não tinha idade suficiente
para ter a compaixão e piedade necessárias por dois homens que estavam sim­
plesmente no trabalho errado; e tinham o direito de ser tratados com dignidade
e respeito, mesmo se um deles não tivesse concordado comigo, com Billy Spitz e
com outros estudantes. Assim, para piorar um pouco mais a situação, ha
audiência pública, perguntei ao superintendente se o diretor e o diretor assis­
tente tomaram aquela decisão por conta própria, ou se ele, o superintende,
pediu aquelas cartas? Ele concordou com um movimento suave de cabeça e disse
simplesmente: “A segunda alternativa”.
No dia seguinte, os alunos da escola não conseguiam acreditar que um dos
seus pares realmente pôde dizer “Vocês estão demitidosf para o diretor e o diretor
assistente. Começamos a pensar: o que mais podemos fazer? j
Aquele era um pensamento perigoso.
MILHOUS EM TRÊS ATOS

PRIMEIRO ATO: Nixoris the One


Todo bom católico culpou Lyndon Johnson pela morte de Kennedy. Não que
ele tivesse algo a ver com o assassinato (ainda que houvesse aqueles que acredi­
tassem que ele tinha). Mas todos nós sabíamos que ele odiava Kennedy, e Ken­
nedy também não gostava muito dele. Kennedy foi forçado a colocar Johnson
na chapa eleitoral a fim de obter os votos dos estados racistas do Sul; estados que
eram muito tolos para entender que Johnson não compartilhava o ódio deles
pelos negros e, de fato, enfiou goela deles abaixo a mais importante legislação de
direitos civis desde a Guerra da Secessão no momento em que virou presidente.
O que não podíamos aceitar era o fato de que Kennedy foi assassinado no
estado deJohnson, o Texas, e se alguém devia ter prevenido essa tragédia devia ser
Lyndon Baines Johnson. Se houvesse uma anotação mental tomada por todos
os católicos depois de novembro de 1963,108 seria de que nós nunca tiraríamos
férias em Dallas.
Johnson, nove meses depois da morte de JFK, ampliou a Guerra do Vietnã
por meio de uma mentira. Em 4 de agosto de 1964, anunciou que, naquele
dia, logo cedo, os norte-vietnamitas atacaram um navio americano no Golfo de
Tonkin. Isso não aconteceu. Depois, Johnson presidiu um massacre de propor­
ções épicas, e qualquer outro benefício pelo qual ele poderia ter sido lembrado,
com as leis de direitos civis ou seu combate contra a pobreza, foi jogado fora.

108 Mês do assassinato de John Kennedy. (N. T.)


221
MILHOUS EM TRÊS ATOS

Em março de 1968, Johnson declarou que não tentaria a reeleição. Ainda


que tivesse somente quatorze anos, acompanhei tudo isso e depositei minhas
esperanças na vitória de Eugene McCarthy ou Bobby Kennedy na indicação
do Partido Democrata para concorrer à presidência. O que era inaceitável para
mim era a indicação do vice-presidente, Hubert Horatio Humphrey, para con­
correr à Casa Branca. Ele tinha apoiado lealmente Johnson naquela guerra e,
assim, para mim, levando isso em conta, Humphrey estava fora.
À noite, estava assistindo o Joey Bishop Show, quando Joey recebeu tim
bilhete que o fez engasgar. Ele informou que Robert E Kennedy, que, na noite
anterior, fora baleado após vencer a primária presidencial da Califórnia, tinha
acabado de morrer. Eu gritei, e meus pais, que já estavam na cama, apareceram
na sala de estar.
“Por que você está vendo TV?”, minha mãe perguntou.
“Bobby morreu!”
“Não!”, minha mãe disse, agarrando seu peito e se sentando. “Meu Deus!
Meu Deus!”

“Pendure bem ali, na sua porta”, Salt disse, me orientando onde colocar o pôster
de “Nixon s the One” (“Nixon é o Número Um”). “Aí! Perfeito.” |
Thomas Salt era aluno do último ano do ensino médio e responsável pelo
clube Students for Nixon (Estudantes com Nixon), e, embora eu fosse apenas
um aluno do primeiro ano, já tinha sido promovido a número dois resppn-
sável por tudo que ele não queria fazer. Nós éramos alunos do St. Pauis Semi-
nary, em Saginaw, Michigan, e, sem dúvida, estávamos em minoria quando o
assunto era apoio ao patife Richard Milhous Nixon. Morávamos num refugio
de democratas (evidentemente, todos eram católicos, e Nixon era o satã que
fora derrotado pelo nosso único presidente católico).109Todo o seminário estava
apoiando cegamente Humphrey, exceto Salt, eu e alguns outros corajosos. I^ós

109 Refere-se à eleição presidencial de 1960, realizada em 8 de novembro, quando o democrata


John Kennedy derrotou o republicano Richard Nixon. (N. T.) í
222
ADORO PROBLEMAS

náo apoiávamos fomentadores de guerra, ponto, independentemente da afi-


liação partidária.
Bem, não tenho tanta certeza a respeito do nós da afirmação acima, pois
os outros quatro eram filhos de republicanos ricos, cujos pais eram advogados
empresariais ou executivos da Dow Chemical ou das empresas automobilísticas.
Provavelmente, gostavam de Nixon porque estavam condicionados a isso. Eu
havia me juntado a eles porque me recusei a apoiar Humphrey em bases pura­
mente morais - e embora possa parecer estranho usar a palavra moral dando
apoio a Richard Nixon, do jeito que enxergava isso, eu não tinha alternativa.
Ah, me desculpem; havia uma alternativa. Era George Wallace, concor­
rendo como “klandidato”110 independente para presidente (ele venceria em
cinco estados sulistas). Don Riegle, meu parlamentar de Flint, disse que Nixon
lhe revelou que tinha um ‘plano secreto para terminar a guerra”. Ele prometeu
que a Guerra do Vietnã terminaria seis meses depois da sua eleição. (E ele cum­
priu. Mas seis meses depois da sua segunda eleição, em 1972.)
Mas, naquele momento, Nixon era o “candidato da paz”, e isso era tudo
que precisávamos ouvir. Ele também era a favor de reduzir a idade mínima do
direito de voto para dezoito anos. Disse que criaria uma agência de proteção
ambiental (a EPA). Afirmou que tornaria ilegal o tratamento diferente entre
garotas e garotos nas escolas (Tide IX).111 Também era um caráter duvidoso,
matreiro, e, intuitivamente, sabia-se que não se podia apostar mais nele do que
em seu cachorro, Checkers. Mas ele disse que acabaria a guerra.
Além da nossa campanha na escola do ensino médio, passávamos as tardes
de sábado batendo nas portas de Saginaw, uma cidade de operários, que não
tinha muita utilidade para os republicanos. Não obstante, militamos, e fizemos
o máximo para o homem que todos chamavam de Tricky Dick.112
Eu era aluno do primeiro ano do ensino médio e, assim, precisava ter per­
missão especial para fazer campanha na escola por Nixon. Essa permissão foi

110 Ironia do autor, aludindo ao apoio dado a Wallace pela Ku Klux Klan. (N. T.)
111 Title IX of the Education Amendments of 1972 é uma lei, promulgada em 23 de junho de 1972,
que declara que nenhuma pessoa nos Estados Unidos, com base no sexo, será excluída de partici­
pação, terá benefícios negados ou ficará sujeita à discriminação relativamente a qualquer prograrr a
ou atividade educacional que recebe apoio financeiro federal. (N. T.)
112 Apelido depreciativo usado para referir-se a Richard Nixon, significa Dick, o Trapaceiro. Dick é
uma abreviação de Richard. (N. T.)
223
MILHOUS EM TRÊS ATOS

concedida, assim que concordei em fazer alguns serviços extras na casa do bispo
auxiliar da diocese (e ex-reitor do seminário), James Hickey.
Era o início de outubro de 1968, e meu trabalho era ajudar a esvaziar e
limpar a piscina ao ar livre do bispo. O bispo Hickey permaneceu ligado às
ocorrências do seminário que ajudou a fundar na década anterior, e, assim, isso
significou que sabia a respeito das nossas iniciativas em favor de Richard Nixon.
“Soube que você está interessado em política”, ele disse para mim, enquanto
eu limpava o interior da piscina.
“Sim, bispo. Minha família sempre prestou atenção no governo e em outras
atividades.”
“Claro. Mas por que Nixon?”
Eu estava bastante nervoso porque não tinha a menor ideia de como limiar
uma piscina. Tive receio de dar a resposta incorreta, e isso significaria “adeus,
sacerdócio”.
“A guerra é um erro. Matar pessoas é um erro. Ele vai terminar a guerra.”
“Agora?”, o bispo disse, olhando para mim diretamente, por cima do seu
óculos de armação de arame fino.
“Bem, é o que ele diz. Seis meses e fim da guerra.”
“Você sabe que esse homem tem - como posso dizer? - um histórico de não
falar a verdade.”
Naquele momento, eu estava numa grande enrascada. A próxima coisa
que esperava ouvir era que eu estava cometendo um pecado mortal ajudando
Richard Nixon.
“Lembro-me quando ele concorreu pela primeira vez ao Senado, na Câli-
fórnia”, o bispo continuou. “Inventou muitas coisas a respeito da mulher que
era sua adversária que não eram verdade. Coisas terríveis. As pessoas só desco­
briram depois. Mas era muito tarde. Ele já era senador.”
Não tinha a menor ideia do que ele estava falando. A temperatura em
outubro estava caindo, e a água da mangueira que respingava em mim estava
fria e desagradável. Não queria escutar esse sermão. Além disso, o que um bispo
faz com sua própria piscina?
“Não sabia disso”, disse, respeitosamente. “Não o apoiei em 1960”, acres­
centei, esperando que isso me desse alguma escusa. j

“Em que ano da escola você estava em 1960?” j


224
ADORO PROBLEMAS

“Primeiro ano. Até memorizei o discurso de posse do presidente Kennedy.”


“Você pode recitá-lo?”
“Claro que sim. Repeti o discurso para as freiras durante anos para crédito
extra.”
“Bem, deixe-me escutá-lo um pouco.”
Então me posicionei, pano de chão e rodo na mão, e recitei minha parte
favorita:
“O mundo está muito diferente agora. O homem possui em suas mãos mortais
o poder de abolir todas as formas de pobreza humana e todas as formas de vida
humana. Ao mesmo tempo, as mesmas convicções revolucionárias pelas quais nossos
antepassados lutaram ainda estão em debate em todo o mundo: a crença de que os
direitos humanos não provêm da generosidade do estado, mas da mão de Deus.
Ele gostou disso. Assim, achei que devia continuar com outro trecho, dessa
vez com a pronúncia de Kennedy:
“Àquelaspessoas nos casebres e vilarejos de todo o mundo, lutando para romper
os grilhões da miséria, prometemos nosso máximo esforço para ajudá-los a se aju­
darem, pelo tempo quefor necessário; nãoporque os comunistaspodem estarfazendo
isso, não porque estamos em busca de seus votos, mas porque éjusto. Se uma socie­
dade livre não puder ajudar os muitos que são pobres, não poderá salvar ospoucos
que são ricos. ”
“Impressionante!”, ele disse, com um sorriso de aprovação. “São palavras
importantes. Nunca as esqueça.”
Ele fez uma pausa.
“E, naturalmente, não estou dizendo para você como votar, mas se quiser,
faça-me um favor, e reflita a respeito dessas palavras que você acabou de me recitar.”

A guerra, é claro,, não terminou seis meses depois da posse de Nixon. Ficou
maior. Invadimos outro país (o Camboja), grupos e jornalistas contrários
à guerra foram espionados, e, para celebrar o Natal de 1972, jogamos mais
bombas sobre o Vietnã do Norte do que jogamos em qualquer campanha na
Alemanha durante toda a Segunda Guerra Mundial. Ao todo, matamos mais
de 3 milhões de habitantes do Sudeste Asiático, e mais de 58 mil dos nossos
soldados nunca voltaram vivos para casa. O bispo sabia disso, e, tempos depois,
225
MILHOUS EM TRÊS ATOS

compreenderia que ele me convocou não para limpar uma piscina, mas para
limpar minha cabeça. Na primavera seguinte, o bispo Hickey foi enviado para
Roma e, então, tempos depois, tornou-se bispo de Cleveland e, finalmente,
cardeal da arquidiocese de Washington, D.C. Duas missionárias que ele enviou
para El Salvador foram brutalmente assassinadas, junto com duas outras reli­
giosas, pelo governo dali, apoiado pelos americanos. Ele expressava abertamente
suas opiniões em Washington, opondo-se a interferência militar americana na
Nicarágua e El Salvador.
Um ano depois, após eu sair do seminário, fiz um pacto comigo mesmo de
nunca revelar a ninguém que tinha feito campanha por Richard Milhous Nixon.

SEGUNDO ATO: Cavalos na Eílipse


“Você não vai levar sua irmã para Washington”, meu pai disse, sentado na mesa
de jantar. “Não, você não vai”, minha mãe reforçou.
Eu tinha dezoito anos, era adulto e podia fazer o que quisesse, mas minha
irmã Anne tinha dezessete e ainda estava no ensino médio. Comuniquei que
estava indo com amigos para Washington, D.C, para participar de uma grandeí
manifestação contra guerra no dia da posse dç Nixon para seu segundo man- i
dato. No carro, iriam eu; os líderes jovens da nossa igreja, Gary Wood e Phyllis
Valdez, e o amigo deles, Peter Case; meu colega Jeff Gibbs; e minha irmã, Anne.
A briga na mesa de jantar por causa de Anne ficou mais intensa. Naquele
momento, todos os assuntos foram postos em debate: a guerra, os cabeludos,
a missa com guitarra elétrica, John Sinclair113 (que cresceu na rua de baixo), a
assembleia dos Weathermen114 em Flint, os símbolos de paz que pintamos nas
paredes do porão, o efeito que tudo isso estava tendo sobre nossa irmã mais j
nova, Verônica, etc., etc.
No fim, Anne disse que vinha conosco e ponto final. Silêncio. Fim do
jantar.

113 Poeta nascido em Flint, no ano de 1941. Foi empresário da banda M C5 e líder do Partido das !
Panteras Brancas, um grupo contracultural antirracista. (N. T.)
114 Organização de esquerda radical que surgiu, em 1969, como facção da Students for a Dem o-
cratic Society. (N. T.)
226
ADORO PROBLEMAS

Chegamos na casa da minha prima Pat perto de Washington antes da meia-


-noite. Desabamos ali, e quando acordamos, fizemos nossos planos para o dia.
Haveria uma série de debates, e Leonard Bernstein ia reger um “Concerto como
um Pedido pela Paz”, na Catedral Nacional, com os senadores Edward Kennedy
e Eugene McCarthy discursando.
Quando chegamos na catedral no começo da noite do dia seguinte, ficamos
espantados com o tamanho da multidão que estava tentando entrar. A fila se
estendia pelo que parecia um quilômetro e meio. Não havia jeito de conse­
guirmos entrar, mas Peter disse que tinha uma ideia.
“Fiquem de olho em mim”, ele disse. “E, um por um, aproximem-se e
juntem-se a mim.”
Peter abriu um pacote de amendoins, rumou para o começo da fila, achou
um rapaz com cara de simpático, e lhe ofereceu alguns dos seus amendoins.
Uma conversa animada teve início, fazendo parecer que Peter conhecia o
rapaz que estava “obviamente” guardando um lugar na fila para ele. Naquele
momento, mais cinco de nós tiveram de repetir essa ação, fazendo-a parecer
bastante casual. E, um por um, conseguimos. Aparentemente, aquilo foi demais
para um sujeito da fila, que observou o progresso de todo ardil. Ele deixou seu
lugar na fila e caminhou até nós.
“Quero saber como a consciência de vocês está lidando com isso nesse exato
momento”, ele disse, num tom que pareceu muito semelhante à minha cons­
ciência. “Vocês acham certo furar a fila e negar as pessoas que estavam aqui antes
de vocês a oportunidade de entrar?”
Nenhum de nós disse nada. Ninguém fez contato visual com ele. Foi como
se ele não estivesse ali. Mas ele estava.
“Incrível”, ele observou, balançando a cabeça negativamente. “Nada a
dizer? E, pior, numa igreja!”
Nenhum de nós se sentiu muito bem. O que tínhamos feito era errado.
Mas também tínhamos andado quase mil quilômetros, e não demos impor­
tância. Ou pelo menos tentamos fingir que não demos. Todos ao nosso redor
ouviram a bronca e todos os olhares estavam sobre nós. Mal podíamos esperar
para entrar na catedral e ser tirados da cruz.
O concerto foi diferente de tudo que já tinha visto. Bernstein regeu os
músicos da National Symphony e de outras orquestras em “Missa em Tempo de
Guerra”, de Haydn. Era uma bela e pungente obra de música clássica, e notei a
227
MILHOUS EM TRÊS ATOS

tristeza na expressão de muitas pessoas ao meu redor. Houve leituras e poemas,


comovendo profundamente as 2,5 mil pessoas presentes (outras 2,5 mil escu­
taram pelos alto-falantes colocados no gramado da catedral).
No dia da posse, chegamos cedo ao local, para tentarmos vislumbrar a
limusine de Nixon antes de ela seguir para a colina do Capitólio. A segurança
era muito rígida, mas chegamos bem perto para ver o carro blindado, caçoar
dele, e mostrar nossos cartazes para Nixon. Quando ele passou, acenou, e nós
acenamos de volta, ainda que não com a mão inteira. Foi um longo caminho
desde o seminário.
A manifestação na Ellipse, perto do Monumento a Washington, não foi
tão grande quanto as manifestações contra guerras anteriores, mas ainda teve a
participação de mais de 75 mil pessoas. Foi a maior multidão que já tinha visto,
e era intensa e raivosa. As pessoas estavam fartas de Nixon e dos seus costumes
sanguinários. Ficamos no alto da colina, na base do Monumento a Washington,
observando a manifestação e a Casa Branca, esperando que Nixon já estivesse
ali, olhando através da janela.
Depois de cerca de duas horas, alguns dos manifestantes decidiram que
chegara o momento de uma ação mais agressiva. O Monumento a Washingtbn
é circundado por cinqüenta bandeiras dos Estados Unidos. Um grupo de estu­
dantes achou que as bandeiras ficariam melhores se tremulassem de cabeça pára
baixo. E foi isso que fizeram. A polícia estava em inferioridade numérica e pediu
reforços. Em minutos, chegou a cavalaria. Dezenas de policiais montados sobre
cavalos subiram a colina rumo ao Monumento. Como não estávamos parti­
cipando daquela manifestação paralela, não ficamos preocupados de que algo
poderia acontecer conosco. Suposição incorreta. Os policiais a cavalo come­
çaram a atacar qualquer pessoa à vista com seus cassetetes. Saímos correndo,
como a maior parte da multidão, descendo a colina. A polícia decidiu nos pér-
seguir. Não sabia que era humanamente possível correr mais rápido que um
cavalo, mas, de certo modo, disparamos colina abaixo como balas. Pude ouvir
um cavalo bem atrás de mim, e, naquele momento, imaginei que podia faier
algo instantaneamente que um cavalo não podia.
Parar. j

Quando parei de repente, o cavalo simplesmente continuou galopandio.


Havia muitos outros manifestantes para perseguir. Gritei aos outros do nosso
grupo para me seguir, e fomos para o lado direito da multidão, onde não havjia
228
ADORO PROBLEMAS

polícia. Ofegantes, todos concordamos que tínhamos escapado por um triz


e decidimos que já tínhamos feito o suficiente para que nossas vozes fossem
ouvidas. Pela última vez, mostramos nossos dedos médios em riste para a Casa
Branca (“Você viu ele na janela?” “Sim, acho que vi!”), e voltamos para Michigan.

TERCEIRO ATO: Bad Axe


Eu tinha trabalhado para ele, eu tinha protestado contra ele. E, naquele
momento, eu queria encerrar os debates. Queria dizer adeus.
Era claro que Nixon não estava almejando a Casa Branca. No final da
primavera de 1974, após o arrombamento dos escritórios do Partido Demo­
crata no complexo de edifícios Watergate, após as audiências no Senado sobre
Watergate e as revelações de John Dean, após Alexander Butterfield admitir que
Nixon gravou todas as conversas no Salão Oval, após a Casa Branca autorizar
o arrombamento do consultório do psiquiatra de Daniel Ellsberg, após Nixon
perder na Suprema Corte e os Papéis do Pentágono serem publicados, e após ele
tentar esconder tudo isso, o presidente Richard Milhous Nixon estava pendu­
rado por um fio quando decidiu visitar três cidadezinhas ao nordeste de Flint,
em Michigan.
Ele ficara escondido na Casa Branca, bebendo, falando com os quadros
antigos pendurados nas paredes, receoso de sair e estar com o povo, a maioria
do qual, naquele momento, querendo que ele saísse da presidência por vontade
própria ou como primeiro presidente a ser deposto. Ele não queria nenhuma
das duas coisas. Nixon era um lutador. Nunca desistia, mesmo quando estava
numa situação difícil, como muitas vezes antes. Ele era Dick Nixon, de Yorba
Linda, na Califórnia, e não ia a lugar algum, exceto onde o destino pretendia
que ele estivesse.
Forçado a ter de dizer “Eu não sou um escroque” numa entrevista coletiva
(o mantra dos escroques de todas as partes), Nixon estava procurando um modo
de passar por cima da imprensa - “o inimigo”, “os judeus” - e falar diretamente
com as pessoas, sua “maioria silenciosa”, que ele sabia que o amava.
A oportunidade chegou quando ele nomeou James Harvey, congressista
republicano, como juiz da corte distrital do Distrito de Michigan, em janeiro
de 1974. Isso criou a necessidade de uma eleição especial para preencher sua
cadeira na Câmara dos Representantes, e Nixon decidiu que a área do “polegar”
229
MILHOUS EM TRÊS ATOS

solidamente republicana de Michigan era o lugar perfeito para ir para o estí­


mulo que ele precisava.
Também foi quando decidi que finalmente encontraria o homem e pediria
para ele deixar a presidência. Em 10 de abril de 1974, meu amigo Jeff, minha
irmã Verônica, e eu entramos no carro e fomos para Bad Axe, em Michigan, a
cidadezinha onde Nixon faria o que se tornaria a última aparição pública da sua
presidência.
Bad Axe era a sede do governo municipal do Condado de Huron, em
Michigan. Tinha um tribunal de justiça, um cinema e era cercada por hectares
e hectares de campos agrícolas. (Foi numa dessas fazendas, no sul de Bad Axe,
i

que Timothy McVeigh e Terry Nichols115 ficaram com o irmão de Nichols arites
do atentado em Oklahoma). !
A região era parte de uma península cercada pelo lago Huron em três
lados, e estava repleta de algumas das pessoas mais conservadoras do estado de
Michigan. O quão conservadoras? Provavelmente, o liberal mais próximo vivia
na outra margem do lago, no Canadá.
Bad Axe nunca tinha recebido a visita de um presidente antes. Assim, toda a
cidade se enfeitou de vermelho, branco e azul para saudar o Primeiro Criminoso
da nação. Uma parada para Nixon foi programada, e estávamos preparados para
nos juntar à recepção de boas-vindas.
Felizmente, ao chegarmos em Bad Axe, não éramos os únicos que achá­
vamos que Nixon tinha de cair fora. Havia, no mínimo, trezentos outros mani­
festantes entre alguns milhares de felizes moradores de Bad Axe que estavam
esperando ansiosamente a chegada de Nixon.
Achei um bom lugar, bem na calçada da rua principal da cidade. Trouxe
um cartaz que dizia em letras grandes e em negrito: NIXON’S A CROOK
(Nixon é um Escroque). Meus amigos, Al e Rod, tinham cartazes que diziam
IMPEACHMENT NOW (Impeachment Já) e WAR CRIMINAL (Criminoso
de Guerra). O básico, uma coisa direta. Nenhuma ambigüidade nem sutileza.
Bastante curto para ele ler ao passar por nós.

115 Em 1994 e 1995, conspirou com McVeigh no planejamento e preparação do atentado em


Oklahoma. Foi condenado à prisão perpétua. (N. T.) \

i
230
ADORO PROBLEMAS

Os moradores locais, parados ao nosso redor, tentaram bloquear nossos


cartazes. Mas com trezentos companheiros ali conosco, era impossível nos
expulsar. As pessoas gritavam para nós: “Forasteiros, voltem para casa!” e
“Hippies, queimem no inferno!”. Bem direto. Nenhuma ambigüidade. Mas
sem violência.
Depois de quase uma hora, a parada/carreata começou a percorrer a Huron
Avenue. Havia carros de bombeiro, carros da polícia, uma banda marcial, chefes
de torcida, os escoteiros e os Future Farmers of America (Futuros Fazendeiros da
América). No carro conversível, estavam o prefeito e o candidato republicano à
Câmara dos Representantes, James “Ninguém Nunca Ouviu Falar de Mim” Spar-
ling, acenando para a multidão eufórica. Se era aquilo que Nixon estava esperando
- uma efusão emocional de apoio -, ele estava prestes a conseguir em Bad Axe.
Finalmente, a limusine presidencial apareceu. Nixon estava de pé,
projetando-se para fora do teto solar e acenando como um palhaço de mola
desesperado. Ele abriu seu famoso sorriso Nixon, estendendo suas mãos com
o sinal do “V da Vitória” que fazia com seus dedos indicador e médio. Eu não
estava a mais do que três metros dele e segurei meu cartaz no nível da visão para
que ele pudesse vê-lo claramente.
E ele viu. A limusine estava andando a menos de 10 quilômetros por hora.
Ao passar por mim, olhei diretamente nos seus olhos, e ele nos meus. Naquele
instante, pareceu que tudo ficou em câmara lenta. Ele olhou para mim parado
ali com meu macacão jeans e cabelo comprido. Eu olhei para ele. O pancake
nele estava tão exagerado, tão denso e empastado que seu rosto parecia uma fatia
grossa de laranja petrificada, e suas tentativas de sorrir estavam de alguma forma
sendo impedidas pelo reboco que foi colocado sobre sua cara. Ele parecia doente.
Muito doente. Não esperava ver aquilo. Por motivos que terei de explicar depois
na porta de São Pedro,116 senti uma tristeza imediata por ele. Ele era como um
defunto que fora usado muitas vezes para estimular as pessoas, fazendo-as votar
num homem que nem ele mesmo conhecia. Ainda que o povo da cidadezinha
estivesse animado e feliz de vê-lo, ele, na realidade, não estava feliz de vê-los.
Você sabe quando vai a uma peça ou a um filme, e é capaz de perceber a repre­

116 Na cultura popular, São Pedro frequentemente é retratado como o guardião do céu, controlando
suas portas. (N. T.)
231
MILHOUS EM TRÊS ATOS

sentação, perceber o ator dizendo suas falas, sem intenção verdadeira, e, naquele
momento, a interpretação escapa de você, acaba e não pode ser recuperada.
Aquele era Nixon em Bad Axe. O homem que foi deputado, senador, vice-
-presidente e, na ocasião, presidente; o homem que havia se encontrado com os
líderes mundiais e uma vez considerou a possibilidade de jogar a bomba atômica
sobre o Vietnã do Norte; o homem que escalou seu caminho para o topo mais
de uma vez; e, naquele momento, ali estava ele, em um lugar que ele nunca viu,
reduzido a participar de uma parada de imagens posadas; um elemento interes­
sante para o telejornal noturno, mas que não enganava ninguém: aquele não era
o Nixon na China. Aquele era o Nixon em Bad Axe. Esmagado e humilhado de
modo irrevogável. Foi tudo que ele tinha deixado.
Quando os olhos dele relancearam meu cartaz NIXON’S A CROOK, ele
fez o máximo para desviar o olhar e fingir que estava feliz, mas havia o pró­
ximo cartaz depois do meu, e o seguinte, e os 297 depois deste. Quando vi ^ua
reação triste ao meu cartaz, instintivamente o abaixei, envergonhado de estar
chutando um homem que era um cachorro morto; um homem cruel, despre­
zível, mas, não obstante, um homem envergonhado e sozinho. Um homem no
seu caminho de volta para o condado de Orange117 ou para a prisão. Ele podia
estar cercado por milhares de pessoas ali em Bad Axe, mas o único machado*18
que importava naquele momento era aquele que estava a poucas semanas de
ser baixado sobre sua cabeça. William Milliken, o governador republicano de
Michigan, recusou-se a participar da parada com o presidente. Milhous era ujm
pária, ele sabia disso, e, na realidade, qual era o sentido naquela altura? !
Eu direi a você qual era. Ele disse que terminaria a guerra - ele nos disse
que terminaria a guerra! —e, em vez disso, ele mandou mais vinte mil garotos
americanos para a morte. Ele despejou tantas bombas sobre a população civil
do Vietnã, Laos e Camboja, que, até hoje, ninguém é capaz de fornecer uma
contagem exata dos mortos. (São 2 milhões? 3 milhões? 4 milhões? Nesse níveil,
estamos falando de números de Holocausto, e, se você, cidadão americano,
pagou seus impostos, então, você apoiou isso, você é culpado, você sabe disso, e
você só quer vomitar.) Ele cometeu crimes de guerra tão hediondos, que ainda

117 Nixon nasceu em Yorba Linda, no Condado de Orange, na Califórnia. (N. T.)
118 Jogo de palavras intraduzível. Em inglês, machado é axe. (N. T.)
232
ADORO PROBLEMAS

vivemos com o legado de suas ações até hoje. Nós perdemos nossa moral com
ele e nunca a recuperamos. Não sabemos mais quando somos os mocinhos e
quando somos os terroristas. A história já escreveu nosso fim, e a história dirá
que começou com o Vietnã e com Nixon. Antes do Vietnã havia muita espe­
rança. Desde Nixon, só conhecemos a Guerra Permanente.
Por algum motivo, não sabendo então o que aconteceria com nosso país,
ergui meu cartaz de novo. Não pedia nada nele e nada de Nixon.
Caminhamos até onde ele ia fazer seu discurso, mas a polícia garantiu que
ninguém chegasse a qualquer lugar próximo dele. Ele pegou um megafone e
se vangloriou dos subsídios aos fazendeiros locais. Perguntou à multidão se
o médico “devia trabalhar para seus pacientes ou para o governo?” E, então,
dirigiu-se aos jovens que estavam ali.
“Eu trouxe a vocês uma paz duradoura”, ele disse. “Vocês serão a primeira
geração deste século que não conhecerá a guerra. E aos jovens aqui presentes:
vocês serão o primeiro grupo de dezoito anos não convocado para o exército em
mais de 25 anos!”
A multidão aplaudiu. Nixon, o presidente da paz. Nós vaiamos o
mais alto possível. Era mais como um uivo. Nixon não faria outra aparição
pública antes de renunciar à presidência alguns meses depois. Estávamos ali
para a última. Se ao menos pudéssemos dizer o mesmo a respeito de aquela
ser a última guerra.
INTERVENÇÃO EM CRISES

Ele entrou pela porta da frente, segurando uma espingarda de caça. ,


No meu treino para intervenção em crises, meus professores avisaram
que esse dia acabaria chegando. Eles chamavam isso de “suicídio em público”.
“É isso aí, seusfilhos da puta!”, ele gritou, após entrar no centro de atendi­
mento onde eu trabalhava. “E o adeus, e quero que todos vocês sefodam!”
“Espera aí”, eu disse, calmamente, saindo da sala onde ficavam as linhas
telefônicas de atendimento para apoio emocional. “Espera aí. Fale comigo.”
Há diversas situações na vida que um cidadão comum procura evitar:; (1)
um cavalo mecânico vindo na sua pista; (2) flutuar no rio Niágara a 60 metros
das cataratas; (3) um homem perturbado com uma espingarda de caça de cano
duplo gritando no seu corredor.
Infelizmente para mim, eu era a única pessoa ali, fazendo o turno da noite.
Merda, por que tinha de ser comigo?
“Vamos”, eu continuei, tentando ocultar o tremor da minha voz. “Vai|I dar
tudo certo. Estamos aqui para você.”
Com a palavra você, os movimentos dispersos dos olhos dele pararam e se
fixaram em mim. E, então, ele começou a soluçar, mas sem lágrimas.
“Vamos, irmão, está tudo bem. Desabafa.”
E com isso os soluços pararam.
“Foi você que falou comigo pelo telefone?”, ele perguntou.
“Acho que não”, respondi. “Você deve ter falado com Craig. O turno dele
acabou faz pouco e ele não está mais aqui. Mas eu vou conversar com você. Que
tal você abaixar sua arma primeiro?” |
E logo depois disso, ele pôs seu dedo no gatilho. j
234
ADORO PROBLEMAS

Senti falta de ar e o coração quase sair pela boca. Tinha meio segundo para
pensar no que fazer. Gorrer? Atacá-lo? Pedir para ele me deixar viver? Tentar
ficar calmo e parecer forte, para fortalecê-lo? Fazer minha última oração?
“Espere!”, disse vigorosamente, sem gritar. “Essa não é uma opção.”
Ele olhou para mim como um cachorro que não queria obedecer a ordem
do seu dono, mas, por algum motivo, o cérebro dele sabia que devia.
“O que você quer dizer com não é uma opção?”, ele gritou de volta para mim.
“Porque”, eu disse firmemente, com o olhar mais severo que consegui fazer
no meio do meu pavor e medo. “Porque. Eu. Sim. Então.”
Uma lembrança do meu treino assomou minha mente: chamam isso de
suicídio em público porque o suicídio precisa de um público. Ele me mata e não
há público. Eu sabia que ele não ia me matar. Ele ia se matar. E me deixar com
a imagem daquilo pelo resto da minha vida. Eu era o plantonista para o pai ou
máe violento, para a esposa enganada, para o amigo desleal, para o bastardo de
um chefe, para a voz na sua cabeça. Eu tinha de ser castigado do mesmo modo
que “eles” tinham o maltratado em toda sua vida; ou, talvez, só na semana
passada.
Com o dedo no gatilho, ele posicionou o cano da espingarda sob o queixo,
e se preparou para atirar.
“Não estou impressionado”, falei impulsivamente. “Você está me escutando?
Nesse exato momento, você está me deixando enfezado porque não tem ideia
de quanto eu me preocupo com você, e, nesse exato momento, eu sou tudo
que você tem, e, droga!, se você abaixar essa arma e conversar comigo, você vai
descobrir que tem um amigo aqui - eu—exatamente aqui, e, dane-se, eu mereço
ao menos alguns minutos do seu tempo!”
Não tinha a menor ideia do que tinha acabado de dizer. Pareceu-me tudo
errado. Bem diferente do “treino de emparia” que os funcionários do condado
nos deram quando dei a ideia de abrir esse lugar. Na ocasião, eu tinha deze­
nove anos, e não via nenhuma organização adulta prestando ajuda de boa qua­
lidade aos jovens. Um adolescente fugia e era encontrado, e, em vez de alguém
escutá-lo para descobrir por que ele fugiu —talvez ele tivesse um motivo para
fugir —ele era simplesmente mandado de volta para casa, frequentemente para
outra surra ou assédio. A experiência que tive com uma amiga que precisou de
um aborto, mas não pode fazê-lo, porque era ilegal em Michigan, além de um
colega de classe que sofreu uma overdose e um outro colega da minha antiga
235
INTERVENÇÃO EM CRISES

turma de escoteiros que se enforcou, foi o suficiente para eu iniciar esse centro
de atendimento. Minhas regras: seria comandado por jovens, para jovens* Se
precisar de um lugar para desabar, você o encontrou. Se você precisar de jum
teste de gravidez, nós o fazemos para você. Você está chapado? Entre, sente-se e
espere o barato passar. Nunca chamaremos a polícia, e seus pais nunca saberão.
O caráter disso estava espantando muitos adultos da região, embora alguns,
como os rotarianos e os integrantes da organização dos veteranos de guerra,
assinaram cheques para nós, pois enxergavam o bom trabalho que estávamos
fazendo, mesmo que fosse um tanto heterodoxo. Mas os resultados foram que os
fugitivos não continuaram fugindo, as garotas de dezesseis anos não eram obri­
gadas a ter bebês que não podiam cuidar, promovíamos o controle de natalidade
gratuito, e nossas linhas telefônicas funcionavam das três da tarde até meia-noite
(até às duas da manhã, nos fins de semana), sete dias por semana.
Naquele momento, era 1975, e eu tinha 21 anos. Foi meu primeiro con­
fronto com uma arma carregada. Meu único objetivo era manter as balas nos
canos daquela arma. O som seguinte que ouvi não foi o de um estampido de
espingarda de caça.
“Não grite comigo/”, ele berrou de volta.
Uau! Ele decidiu travar combate comigo, em vez de puxar o gatilho. |
“Desculpe-me, não tive a intenção de gritar”, eu disse, com a voz tremendo.
“E que tive um dia difícil, e ele não pode acabar assim, com você se matando.”
O ato de conseguir “sair dessa” em relação a mim realmente o desarmou.
“Ei, cara”, ele disse, abaixando a arma. “Você está bem?”
Tudo bem. Naquele momento, tinha desconcertado o maluco. Isso podia
prosseguir de diversas maneiras. Decidi tentar um esforço conjunto.
“Sinto muito”, disse. “Não foi muito profissional da minha parte.”
“Não consigo continuar”, ele disse, acalmando-se um pouco. “Nada na
minha vida deu certo. Não quero que você me detenha. Só quero que você me
deixe partir desse mundo e...”
“Ei, você é que tem a arma.” (Na realidade, não precisava lembrá-lo.) “Yocê
tem o direito e o poder de deixar esse mundo quando quiser. Tudo o que estou
pedindo são alguns minutos do seu tempo. Por favor, você pode me dar issd)?”
Os músculos dele relaxaram um pouco mais, e ele, aparentemente, se
esqueceu de que ainda tinha uma arma pronta para atirar em suas mãos. j
“Sim, posso fazer isso.” |
236
ADORO PROBLEMAS

“O que você acha de deixar eu ficar com a arma enquanto conversamos.


Quando terminarmos, eu a devolvo para você. Ainda carregada. Então, você
pode tomar sua decisão.”
Houve uma longa pausa e um olhar fixo mais longo para mim, e ele consi­
derou minha proposta.
“Vamos. Dê-me a espingarda”, eu disse, com um sorriso tênue. “A última
coisa que você e eu precisamos neste momento é de uma arma.”
Depois de dizer isso, sorri nervosamente, e ele deu um sorriso largo tênue.
A esta altura, tinha chegado mais perto dele e estava estendendo minha mão.
Ele me entregou a arma. Peguei-a com minha mão trêmula, abri a espingarda e
retirei as balas.
“Proteção”, assegurei-lhe. “Vamos entrar e conversar.”
Nas duas horas seguintes, escutei a história da sua vida. Como eu era o único
ali, podia escutar os telefones tocando na outra sala e as ligações caindo automa­
ticamente na secretária eletrônica. Ele me falou a respeito da expulsão de uma
escola técnica e da perda de diversos empregos por causa da bebida. Sua mulher
o tinha deixado e voltado duas vezes, mas, naquele momento, ela tinha come­
çado a ter um caso com um rapaz do mesmo condomínio. Ele não tinha filhos,
mas queria alguns, e seus pais achavam que ele não passava de um perdedor.
Pude perceber quão para baixo ele estava, e comecei a me perguntar se havia
um ponto de não retorno, além do qual uma pessoa não conseguia escapar do
f seu poço de desespero. Depois de um tempo, ele se cansou e me perguntou se
tínhamos alguma bebida alcoólica ali. Disse-lhe que não era permitido, a menos
que fosse para ocasiões especiais, como quando algum cara quer estourar seus
miolos. Ele deu uma boa risada e, então, decidiu “virar a mesa” sobre mim.
“Então, quais são seus problemas?”, ele me perguntou. “Todo mundo tem
problemas. Quais são os seus?”
Não quis deprimi-lo ainda mais. Disse-lhe que os meus eram os mesmos de
todos os rapazes: garotas.
“É isso aí, cara. Elas pegam nosso telefone. E depois não dão trégua.”
“Sim, mas elas têm seus pontos positivos”, eu disse.
“É isso aí, cara!”, ele disse, naquele código especial dito somente entre
rapazes.
237
INTERVENÇÃO EM CRISES

“Temos só que persistir e achar a garota certa”, continuei. “Ela está por aí.
A sua está por aí. A minha está por aí. Existem muitas mulheres neste planeta
para náo existir a certa para nós por aí. Só temos de continuar a fazer o que
sempre fizemos.”
“Sim, vamos nessa!”
Estávamos metidos quase completamente entre expressões de meados da
década de 1970 quando, de repente, ele caiu em si e percebeu que os telefoiíes
estavam tocando sem parar.
“Cara, você é a única pessoa aqui?”
òim.
“Ah, não, cara, eu não deixei você trabalhar. Melhor você voltar ao tra­
balho.” Ele fez uma pausa e pensou por um instante. “A menos que você precise
que eu fique por aqui e dê uma mão para você nos telefones.”
“Não, está tudo bem. Vou encerrar o turno da noite depois de fazer meu
relatório. Você está bem agora?”
“Acho que sim. Você vai devolver minha arma?”
“Sim. Esse foi o trato. Sua vida está em suas mãos. Só pedirei para você rião
acabar com ela nesta semana. Por que você não tenta uma reunião nos Alcoó­
licos Anônimos? Divirta-se com seus amigos sóbrios. Você pode fazer isso?”
“Claro. Posso tentar.” j
Entreguei-lhe a espingarda. j
“E as balas?” j
“Ah, acho que vou ficar com elas. Uma lembrança desta noite. Legal?” I
“Legal”, ele disse, concordando com um movimento de cabeça.
Quando ele partiu com seu caminhão, pude ouvir seu rádio tocando “Fly
by Night”, do Rush. Enquanto o observava trafegar pela Coldwater Road, até o
cruzamento da M-15, percebi que ele obedecera respeitosamente todos os sinais
de trânsito e os limites de velocidade, pequenas indicações dadas por aquble
que, ao menos, por enquanto, naquela noite de verão agradável, quis viver. j
I!
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA

Não tenho muita certeza do momento em que a lua de mel acabou.


Mas meus dias como a novidade de ser o agente público eleito mais
jovem estavam quase chegando ao fim. E foi Deus quem me matou.
Era uma reunião mensal corriqueira do Conselho Escolar de Davison, muito
parecida com qualquer outra reunião mensal. Identificação dos visitantes. OK.
Um pedido de licença-maternidade. Aprovado. Uma moção para pagar algumas
contas. Aprovada. Então, apresentei uma moção para que nossas escolas públicas
abrissem nas noites de quarta-feira para atividades extracurriculares, da mesma
forma que existiam nas outras noites da semana. Como aquela era a “noite da
igreja” (a noite em que as igrejas Protestantes faziam seus cultos do meio da
semana), as escolas públicas sempre ficavam fechadas. Sugeri ao conselho escolar
que aquilo era ilegal. Vim acompanhado de um advogado da ACLU119 para a
reunião para defender a ideia. Parecia que eu o tinha trazido de Moscou. Eles
olharam para o homem da ACLU como um intruso, que não tinha nada a ver
com aquilo. Toda a questão foi posta de lado para futura apreciação.
Na reunião seguinte, a comissão encarregada de analisar se mantinha ou
não a proibição das atividades extracurriculares na quarta-feira à noite apre­
sentou sua conclusão: a probição devia ser abolida. Amém.
O superintendente também mencionou que negar o acesso às nossas escolas
aos estudantes que não iam à igreja à noite podia ser uma violação da Consti­
tuição. E isso provavelmente não prevaleceria num tribunal.

119 American Civil Liberties Union (União Americana pelas Liberdades Civis) é uma organização ae
defesa dos direitos do indivíduo, como liberdade de expressão, combate à discriminação etc. (N. T.)
239
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA

Eu não tinha ameaçado qualquer ação legal, mas acho que foi o que
eles pensaram quando viram o advogado da ACLU sentado na primeira fila.
Voltei a apresentar a moção, um dos dois outros católicos do conselho a
apoiou, e o conselho votou de modo unânime para fazer a coisa certa. Mas
foi uma votação relutante, pois os outros membros do conselho não gos­
taram de assumir a posição de votar contra os desejos dos evangélicos recém-
-convertidos da cidade.
Naquele momento, as igrejas Metodista Livre e Batista, em Davison, come­
çaram a ficar de olho em mim. Eles não se esqueceriam do que eu tinha feito
para desafiar sua influência e poder na cidade. E só fazer algumas orações pela
minha alma não seria tudo o que eles fariam.
A prudência teria imposto que talvez eu relaxasse, quem sabe recuasse um
pouco, tentasse recuperar as boas graças deles, para que eu ainda pudesse ter
alguma eficácia no conselho. Por um tempo, foi o que fiz. Mas estava perto dos
vinte anos, a vida estava caminhando rápido demais, e eu estava envelhecendo.
A ‘ sabedoria” ainda não tinha se manifestado.
“Senhor presidente”, eu disse, “gostaria de apresentar uma moção em que
endossamos a diretiva de Lansing na qual publicamente reafirmamos que nossas
escolas possuem uma política de não discriminação e que acreditamos que as
escolas integradas racialmente proporcionam a melhor educação”.
E, então - por que não? - para piorar a situação: (
“E que convidamos pessoas de todas as raças para virem para Davison,
transformando a cidade em seu lar.
Uma pausa muito longa. j
“Isso é ridículo”, Russell Alger, presidente do conselho finalmente disse,
exasperado. “Não discriminamos ninguém em Davison, e isso não é necessário.
Próximo item da pauta.”
“O senhor não perguntou se alguém apoiava minha moção.”
“Por que você está fazendo isso? Qualquer um pode se mudar para Davison
e freqüentar nossas escolas”, o dentista do conselho afirmou.
“Então por que, entre seis mil estudantes, há apenas quinze que são negros?”
“Tudo bem”, ele disse. “Eu apoio a moção.” Uma chamada de votação foi
realizada e todos votaram contra. j
“Há outras moções?” j
240
ADORO PROBLEMAS

“Sim”, eu disse, ainda não abatido pela contagem. “Gostaria de propor


que mudássemos o nome de Central Elementary School para Martin Luther
King Jr. Elementary School. Acho que transmitiria uma mensagem positiva
para os estudantes e para o restante do Condado de Genesse de que Davison
é, de fato, o lugar que o senhor acabou de descrever.”
“Michael”, disse Patrick McAvinchey, membro do conselho, o único que
ainda se mostrava simpático a mim, “você não tem de continuar provando sua
ideia. Todos já entenderam. Vamos seguir adiante.”
Não houve apoio para aquela moção. O jornal local tratou minha ideia
de uma maneira que irritou os moradores locais. Decidi que precisava ter um
registro do que eu realmente dizia nessas reuniões.
Na reunião seguinte, coloquei meu gravador portátil Sears Silvertone sobre
a mesa.
A senhora Ude, a secretária do conselho, me perguntou o que significava
aquilo.
“É para eu poder gravar nossa reunião pública. Só para meu uso.” Então,
pressionei o botão de gravação.
Ela olhou para o presidente Alger com uma expressão Faça-o parar, POR
FAVOR de horror. Alger se levantou, estendeu o braço, e desligou meu gra­
vador, da maneira que um pai desligaria a TV se você se recusasse a ir para a
cama. Estendi meu dedo e pressionei novamente o botão de gravação. Naquele
momento, o dentista do conselho, o doutor McArthur, estendeu o braço através
da mesa e desligou o aparelho.
“Você não vai gravar as reuniões”, ele disse. “Não faça a gente tirá-lo de
A ,,
voce.
Tinha visto gangues na rua e, sem dúvida, elas parecem ameaçadoras de vez
em quando. Ter uma gangue de agentes públicos eleitos - adultos que eram,
no mínimo, trinta anos mais velhos do que você - ameaçando-o daquele jeito,
bem, isso levou um minuto para processar.
“Escutem”, eu disse, “os senhores deviam considerar isso por aquilo que é:
uma oportunidade para eu ter um registro do que é dito aqui, especialmente o
que eu falo. Isso é uma reunião pública. Não devia ser um problema.”
“Senhor presidente”, o senhor Greiner afirmou, “gostaria de apresentar
uma moção para proibir aparelhos de gravação de qualquer tipo de ser usados
durante nossas reuniões.”
241
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA

“Apoiado”, afirmou o doutor McArthur.


“Todos a favor?”, o presidente perguntou.
A votação foi 6 a 1. Fui convidado a desligar o gravador, ou eles encerrariam
a reunião.
Pedi para que o “funcionário responsável pela lei e ordem” desligasse. Como
eles não tinham esse funcionário, o dentista desligou o aparelho.
No dia seguinte, o repórter do FlintJournal que esteve na reunião, escreveu
um artigo a respeito da ocorrência. Aquilo provocou um alvoroço entre os jor­
nalistas da região e, é claro, entre o pessoal da ACLU. Na reunião seguinte, eles,
e alguns cidadãos, apareceram e colocaram seus gravadores sobre a mesa do con­
selho escolar. Percebi que o conselho estava deixando as pessoas gravar sekn
terem de pedir permissão. Perguntei-lhe se eles fariam cumprir sua diretiva.
“Não vamos permitir nenhuma gravação dessas reuniões”, o presidente
Alger berrou. “Desliguem todos gravadores agora e os tirem da nossa mesa.”
“O senhor deve entender que Michigan aprovou a lei de reuniões abertas
ao público”, o repórter do FlintJournal gritou.
“O senhor está fora de serviço. Retire seu aparelho.”
Ninguém se mexeu. Todos os membros do conselho olharam para mim:
VOCÊ causou isso! VOCÊ ESTÁ LIQUIDADO!
A reunião foi abruptamente encerrada. Vozes exasperadas encheram j o
recinto.
No dia seguinte, liguei para Robert Leonard, promotor público do con­
dado, para ver se ele podia me ajudar. Para um promotor, Leonard era um caira
bastante liberal. Ele tinha criado o primeiro escritório de Proteção do Con­
sumidor do estado. Certo dia, no palco, enquanto falava numa manifestação
contra guerra, apontou para o público o agente secreto do FBI presente entre
os manifestantes.
“Ali está ele, nos espionando por exercermos nossos direitos constitucio­
nais!”, Leonard gritou no microfone. Isso não o tornou benquisto no FBI. j
O promotor Leonard ficou mais do que feliz de me ajudar. Ele mandou
o promotor assistente informar ao conselho que estavam violando a lei ao njio
permitir que o público ou a imprensa gravasse as reuniões. Para esse grupo bem-
-apessoado de agentes públicos eleitos, adeptos da lei e da ordem, ser repreen­
dido de modo público para que cumprissem a lei era uma humilhação que foi
além, tenho certeza, de tudo que já tinham vivenciado. Não seria arriscado dizer
242
ADORO PROBLEMAS

que esse grupo nunca viu uma multa por estacionamento em local proibido em
suas vidas. Se pudessem me enviar para o meu quarto e me prender lá por um
ano, teriam feito isso naquele mesmo instante.
Também movi um processo contra o conselho. Eles náo podiam acre­
ditar no que estava acontecendo. Na reuniáo seguinte, recuaram e desistiram
em voz baixa da regra de proibir aparelhos de gravação.
Na aprovação da moção, eu pressionei o botão de gravação. Eles queriam
me matar.
A partir daquele momento, quase todos os membros do conselho mante­
riam suas cadeiras giratórias viradas para o lado que eu não estava. Evitavam
contato visual ou qualquer conversa comigo. Eu era o dedo-duro, e eles tinham
alcançado o ponto de ebulição.
As reuniões seguintes ocorreram com pouco ou nenhum alarde, e as ques­
tões eram decididas rapidamente e sem percalços, sem muita discussão. Foram
tranqüilas. Muito tranqüilas. Algo não parecia estar certo.
Mais ou menos nessa época, um dos membros do conselho se referiu a algo
que um dos outros membros havia dito na “reunião anterior”. Mas eu estava na
reunião anterior - e graças às maravilhas da fita cassete, não havia nada pare­
cido dito na última reunião. Após a reunião, abordei o único membro do con­
selho amigável, que ainda estava falando comigo. Perguntei-lhe qual era aquele
assunto que eles discutiram.
Ele suspirou. “Estamos tendo reuniões sem comunicar a você”, ele disse,
em tom de desculpa. “Não está certo e não vou mais participar de nenhuma
delas. Já disse a eles que devemos parar com isso.”
Fiquei atrapalhado. Reuniões secretas do conselho escolar estavam sendo
realizadas pelas minhas costas? Ele revelou que se encontravam na casa do presi­
dente, para que ninguém soubesse.
Voltei para casa, bem confuso. Naqueles dias, não havia internet e, assim,
eu não tinha jeito de pesquisar “Como realizar a prisão de um cidadão”. No dia
seguinte, fui ao escritório do promotor e lhe contei o que estava acontecendo.
Ele perdeu a compostura.
“Esses malditos filhos da mãe! Eles vão ver. Vou colocar todos eles na
cadeia!”
243
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA

Considerei perguntar-lhe se ele poderia dizer aquilo mais uma vez, só para
meu próprio prazer.
“Kenny”, ele gritou, chamando o promotor assistente, “chame as rádios e
as TVs. Nós vamos entrar com acusações criminais coiltra os membros do Con­
selho Escolar de Davison!”
Ele quis dizer isso. E fez isso. Era só um delito leve, mas, contudo, ele disse
à mídia que estava emitindo mandados de prisão. No caso de eles decidirem
trabalhar comigo no período do encarceramento, ele também moveu uma ação
para assegurar que eles cumpririam a lei estadual exigindo reuniões abertas. O
promotor Leonard decidiu tudo isso com base em diversas violações da sepa­
ração entre Igreja e Estado, na proibição de gravadores em reuniões, e, naquele
momento, naquilo.
“Eles são reincidentes”, o promotor disse para a rádio local. “Eles conti­
nuam violando a lei, e não sei outra maneira de chamar a atenção deles.”
A notícia abalou a pequena cidade republicana; e o presidente do consel HO
escolar transgressor da lei reuniu-se imediatamente com o promotor e assinou
um acordo para nunca mais fazer aquilo de novo.
“Você provocou isso”, a impenitente senhora Ude me disse antes da pró­
xima reunião. “Foi seu comportamento que nos forçou a fazer reuniões sem
você. O que faz você achar que o queremos em nossas reuniões?” j
“Não são suas reuniões”, respondi para ela. “Essas reuniões pertencem aos
cidadãos deste distrito! E eles me elegeram para representá-los. E quando vocês
fazem reuniões secretas e não me informam, vocês tiram o direito daquelas
pessoas de estar aqui.”
“Ah, você!” Foi tudo o que ela conseguir dizer e se afastou.
Alguns meses depois, percebi que o distrito escolar estava firmando con­
tratos de serviços e construção sem a realização de concorrências.
“Isso é ilegal”, disse, usando a palavra com “i” favorita deles. “As leis esta­
duais exigem de nós a realização de concorrências justas para todos os interes­
sados e que consigam o melhor preço para o distrito escolar.” Sentei-me e me
perguntei por que tinha de dar uma aula a pessoas que diziam que amavam
o capitalismo e a livre iniciativa a respeito do mercado competitivo ser uma
boa ideia para todos. Mas eles me ignoraram, dizendo que era impraticáve e
desnecessário. !
244
ADORO PROBLEMAS

Alguns dias depois, agendei uma reunião na promotoria geral do estado


e fui para Lansing para falar com o promotor-geral assistente a respeito dessa
prática ilegal.
O promotor-geral assistente observou os papéis que levei para ele e con­
cordou: o Conselho Escolar de Davison estava violando a lei.
“Por que o senhor não conta para eles?”, sugeri. “Acho que eles estão can­
sados de ouvir isso de mim.”
“Pretendo fazer exatamente isso.”
A notícia se espalhou pela cidade, qual seja, de que, naquele momento, um
órgão superior, a promotoria geral do estado de Michigan, estava investigando o
conselho escolar de Davison. E, como era de se esperar, na reunião seguinte, foi
comunicado que um processo de concorrência estava sendo instituído. Fomos
também comunicados, contrariados, que “ser forçado a aceitar o menor preço não
garantirá a melhor obra, e isso pode acabar nos custando mais no longo prazo.”

Assim, o que fazemos quando estamos tentando diminuir o nível de hostili­


dade? Escrevemos uma peça de um ato nas horas vagas e a inscrevemos no show
de talentos anual do distrito escolar a ser realizado na escola do ensino médio. E
qual seria a temática dessa peça? Ah, digamos, uma pecinha de vanguarda a res­
peito da crucificação de Jesus. No último minuto no calvário, Jesus, pregado na
cruz embrulhado em papel alumínio, decide que não quer morrer crucificado.
“Aqui é onde as pessoas me querem?”, Jesus perguntava para a platéia na noite
de estreia do show de talentos. “Pregado numa cruz? Assim, vocês não têm mais
de me ouvir a respeito de cuidar dos pobres, dos enfermos ou dos oprimidos?
Assim, vocês podem pendurar pequenas réplicas de mim nas paredes das suas
casas, enquanto eu fico pendurado nessa cruz, sofrendo? Bem, eu digo NÃO!”
E, logo depois disso, Jesus puxava suas mãos com força dos pregos e caía
da cruz.
Eu tinha um grupo de amigos pronto na platéia e, com a queda de Jesus da
cruz como deixa, eles, ao acaso, ficavam de pé e começavam a gritar com Jesus.
“Volte para a cruz!”
“Não queremos você vivo, queremos você morto!”
245
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA

£íVolte para a cruz!” “Volte para a cruz!”


Então, todos eles começavam a invadir o palco. Um figurante sacava uma
“arma” e “atirava” em Jesus. O Filho de Deus, agora morto de novo, era arrastado
até sua cruz e deixado ali. Em seguida, os atores saíam do palco animadamente.
A eleição para me cassar e tirar do conselho escolar foi marcada para a
primeira sexta-feira de dezembro. Haveria só uma única pergunta na cédula:
Michael Moore deve ser coberto com alcatrão e penas e exilado da cidade? Na
realidade, acredito que as palavras oficiais foram: “Michael Moore deve ser afas­
tado do cargo de membro do Conselho Escolar de Davison?”
Foi isso. Apenas uma única pergunta em toda cédula; e toda a cidade devia
comparecer e votar com base nessa pergunta. Sem dúvida, não exatamente um
estimulante de confiança.
Para meu crédito, não foi fácil para a comissão de cassação - que incluía
os empresários e amigos dos membros do conselho escolar - reunir as assi­
naturas necessárias no prazo de tempo obrigatório para inserir a pergunta na
cédula. De fato, quando o prazo final chegou, faltavam centenas de assinatura^.
Assim, o conselho escolar deu ao grupo mais dez dias. Depois dos dez dias,
ainda faltavam algumas assinaturas. Então, o conselho concedeu outra prorrop
gação de dez dias (ilegal). E quando esses dez dias se passaram, adivinhem o que
aconteceu? Ainda não havia uma quantidade suficiente de pessoas querendo
me cassar! Desse modo, inacreditavelmente, o conselho concedeu uma terceira
prorrogação de dez dias.
Eu me constituí no meu próprio advogado. No final da terceira prorro­
gação de dez dias, eles finalmente tinham as assinaturas que precisavam. Ou
não? Quando examinei os nomes nas petições, encontrei ao menos seis pessoas
que já tinham morrido e diversas pessoas que tinha assinado seus nomes em
duplicidade. E havia o caso de Jesse, o barbeiro. Ele assinara três vezes! Sem
dúvida, ele queria meu afastamento.
Apelei no tribunal do condado para anular todo esse circo. O juiz, que
raspava sua cabeça todas as manhãs para transmitir uma aparência de Kojak,12(f
expediu o seguinte veredito: j

120 Personagem de uma série de TV homônima, exibida, nos EUA, entre 1973 e 1978. Kojak era urrj
detetive da polícia de Nova York, que, entre outras particularidades, tinha uma careca lustrosa e
chupava pirulitos. (N. T.) j

í
I
i
246
ADORO PROBLEMAS

“Parece que tanto a comissão de cassação quanto o conselho escolar


cometeram diversas irregularidades e possíveis violações da lei. Mas tenho
a impressão de que a população de Davison quer seu dia de votação a seu
respeito, senhor Moore. Assim, vou deixar a eleição acontecer. Se a votação
for contra o senhor, então o senhor poderá voltar aqui para buscar socorro
nesse tribunal.”
Senti-me confuso. O juiz tinha acabado de apontar diversos exemplos de
violação da lei, mas ainda assim iria deixar a eleição acontecer. Perdi as esperanças.
Marcar a eleição numa sexta-feira durante os feriados do fim do ano foi uma
jogada genial do conselho escolar. Você já foi votar numa sexta-feira alguma vez?
Com certeza, não. Então, quem saberia quando essa sexta-feira chegasse que era
o “dia da eleição”? Os inimigos que queriam minha saída, sem dúvida.
Cada lado tinha de escrever alguma coisa na cédula oficial. Os favoráveis à
minha cassação tinham direito a cem palavras para descrever meus “crimes”. E
eu tinha cem palavras para responder às suas acusações. Decidi que não valia a
pena perder meu tempo. Escrevi, simplesmente: “A pergunta que está posta para
você nesta cédula é uma questão moral que deve ser decidida entre você e sua
consciência. Sinceramente, confio que você tomará a melhor decisão possível
para você e seus filhos. Com amor, Mike”. Além de ser o agente público eleito
mais jovem, devo ter sido a primeira pessoa a escrever a palavra amor numa
cédula eleitoral.
No dia da eleição, estava de volta ao mesmo ginásio onde tinha ganho
o cargo dois anos e meio antes. Ao chegar, às sete da manhã, a comissão de
cassação já estava em ação. O secretário do conselho escolar permitiu que a
comissão sentasse na mesa onde os eleitores se registravam e verificasse quem
comparecia e quem não. Cada meia hora, mais ou menos, a comissão examinava
a lista de comparecimento e ia chamar aqueles que ainda não tinham vindo
votar. Era uma operação de vigilância, e, de novo, fui trapaceado (e vítima de
abuso econômico). Nas semanas anteriores à eleição, fiz o que havia feito antes
para vencer. Escrevi uma “Carta à população de Davison” e bati em cada porta
do distrito.
A fila serpenteava ao longo do comprimento do ginásio, passava pela porta
e pelo corredor, chegando até a frente da escola. Na hora que as urnas foram
fechadas, treze horas depois, ficou claro que houve um imenso comparecimento.
247
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA

No meio do ginásio, instalaram quatro mesas compridas da lanchonete


para formar um quadrado, sobre as quais depositaram as cédulas de papel. Ã
contagem começou com os votos “SIM” sobre uma mesa e os votos “NÃO”
empilhados sobre outra. Na uma hora e meia seguinte, a pilha mais alta de votós
se alternou entre as duas alternativas. O mais alto possível, lado a lado, as pilhas
subiam. E, então, algo aconteceu. A pilha de votos “NÃO” continuou subindo:
cem cédulas mais alta. Duzentas mais alta. Trezentas mais alta. A cédula final foi
colocada sobre a pilha que me favorecia, e o secretário declarou que a cassação
do meu mandato havia fracassado e eu tinha ganho.
Na arquibancada de torcedores do lado sul do ginásio, onde cerca de cem
estudantes que me apoiavam estavam sentados, houve o grito de alguém e, em
seguida, novos gritos. Uma festa espontânea irrompeu e houve pulos e dançás
em todo o piso do ginásio. Eu apenas senti alívio. As câmeras de TV estavam
ali para registrar o evento, e eu entrei ao vivo com o apresentador às onze dia
noite. Agradeci à população de Davison, declarei morto o Partido Republi­
cano local, e prometi continuar sendo quem eu era. Também pedi desculpas
aos meus pais por colocá-los naquela situação. Foi especialmente difícil para
minha mãe. A comissão de cassação era constituída por pessoas que ela tinha
convivido durante toda sua vida em Davison. Meu pai foi técnico do chefe da
comissão na equipe de futebol americano no ensino fundamental. As cópias das
petições pela cassação que fiii capaz de obter no tribunal revelaram os nomes
de muitas pessoas que achávamos que eram amigas da família. O rapaz que
meu pai introduziu na igreja assinou. A amiga da minha mãe do ensino médio
assinou. A garota que sentava perto na banda de música também. Todos eles
estavam ali. Até hoje, se você perguntar ao meu pai (atualmente com noventa
anos) se “fulano” assinou a petição, ele será capaz de lhe dizer em um instante.
Chamam isso de “Alzheimer irlandês”: você se esquece de tudo, exceto de
guardar rancor. ,
Eu cumpri o resto do meu mandato, sempre votando do jeito que queria*
mas cansado de toda experiência. Fui solicitado a falar para os alunos do ensino
médio, e aproveitei a oportunidade para ler um poema que escrevi cheio de
imprecaçóes a respeito do genocídio dos índios americanos. Isso resultou no meti
banimento da escola do ensino médio para sempre (até hoje, nunca retornei), j
248
ADORO PROBLEMAS

Não fui reeleito e me aposentei de um cargo público aos 22 anos, para


buscar uma vida mais tranqüila. Lembrei-me que tive o consentimento de
apenas vinte pessoas para começar a trilhar esse caminho. Percebi que aquele era
o grande segredo da democracia: a mudança pode acontecer começando com
apenas poucas pessoas fazendo alguma coisa. Não se precisa de um movimento
total ou mesmo de todo um distrito escolar. Pode começar com apenas vinte
pessoas. Até mesmo vinte apedrejadores. Era uma lição boa, mas perigosa, de
aprender numa idade tão precoce. A coisa intimidante a respeito da democracia
é que ela parece muito impossível, muito ingovernável, muito fora do alcance
da pessoa comum. Aos 22 anos, soube que isso era um mito. E fiquei grato a
Davison por me ensinar o quão notável são os Estados Unidos.
Mas nunca mais voltei a cortar meu cabelo na barbearia de Jesse.
BATIDA POLICIAL

Tornei-me jornalista aos nove anos. A St. John the Evangelist Catholic Grade
School não tinha um jornal escolar e, assim, decidi criar um. Não pedi per­
missão para as freiras. Por que teria? Só queria veicular informações sobre nossas
equipes de esporte, principalmente. Também quis escrever a respeito do que
aconteceu durante a aula de ciências naquela última sexta-feira. A senhora
LaCombe trouxera para a classe o único aparelho de TV da escola sobre uma
mesa com rodinhas e, assim, pudemos assistir uma aula de Ciências no N.E.T.
(National Educational Television), um canal dedicado ao uso em salas de aula
de todo o país (posteriormente, o N.E.T. se tornaria o PBS121)- j
Gostava daqueles dias especiais, quando assistíamos TV na escola. Parecia
que estávamos aprontando alguma coisa e não sendo punidos por aquilo. E êu
gostava dos programas de ciências, em especial quando explodiam algo num
tubo de ensaio.
Quando estávamos assistindo a aula, a imagem na tela foi abruptamente
interrompida e, de repente, Chet Huntley, o âncora do NBC News, apareceu
com uma notícia extraordinária.
“Acabamos de ser informados de que o presidente Kennedy foi baleado ém
Dallas...” !
A senhora LaCombe soltou um grito sufocado e saiu para buscar a madre
superiora. Ela entrou e assistiu à notícia conosco. Quando disseram que Kejn-
nedy ainda estava vivo e fora levado ao hospital, fomos todos instruídos - e as

121 Rede de TV sem fins lucrativos financiada por fundos públicos e governamentais e dedicada a
programas educativos e culturais. (N. T.)
250
ADORO PROBLEMAS

outras salas de aula foram alertadas - a tomar o rumo da igreja, ficar de joelhos
e rezar, rezar, rezar pela vida dele.
Provando novamente que Deus tem um grande plano misterioso que
nenhum de nós pode alterar, ou que, de fato, Ele, ocasionalmente, tira um
dia de folga, Kennedy morreu. Fomos todos mandados para casa mais cedo.
Quando meu pai chegou em casa vindo da fábrica, minha mãe saiu para o
lado de fora para recebê-lo. Estava chovendo. Naquela noite, comemos peixe
em silêncio.
Dois dias depois, quando estava sentado no chão da sala de estar assistindo
uma transmissão ao vivo da polícia de Dallas transferindo o suposto assassino,
Lee Oswald, vi Jack Ruby colocar uma arma na barriga de Oswald e atirar.
Minha mãe estava passando o aspirador de pó.
“Desligue o aspirador”, gritei para ela. “Atiraram em Oswald!”
Ela não conseguiu me ouvir e continuou passando o aspirador. Estendi o
braço e tirei o aspirador da tomada.
“Atiraram em Oswald! Acabei de ver.”
Nem todas as crianças de nove anos veem uma pessoa real sendo assassinada
ao vivo na TV. No fim de semana, decidi que queria escrever a esse respeito.
Perguntei ao meu pai se eu podia fazer um jornal.
“De que jeito exatamente você quer fazer isso?”, ele me perguntou. Éramos
uma família cujo pai vivia com um salário da GM. Não fundávamos jornais.
“Estava pensando em escrever num pedaço de papel. Você disse que tem
uma nova máquina em que você trabalha que imprime páginas de papel.
Assim, se eu escrever algo em dois pedaços de papel, você poderia fazer trinta
cópias disso?”
Ele pensou a esse respeito por um minuto.
“Bem, a máquina se chama mimeógrafo. Está no escritório do supervisor.
Tenho de datilografar para você e obter permissão. Vamos ver.”
Na segunda-feira seguinte, meu pai chegou em casa e disse que podia
fazer 25 cópias do meu jornal de duas páginas. Excitado com a possibilidade,
sentei-me, peguei meu lápis e escrevi a página um: minhas reflexões a respeito
de por que não tínhamos mais um time de futebol americano do sétimo e oitavo
anos e das perspectivas da nossa próxima temporada de basquete, e minhas esta­
tísticas favoritas do verso das figurinhas de beisebol do chiclete Topps.
251
BATIDA POLICIAL

A página dois tratava de como me senti a respeito da morte de Kennedy e


de ver Oswald ser baleado.
No dia seguinte, meu pai fez 25 cópias do St. John Eagle, na AC Spark
Plug, e as trouxe do trabalho para casa. Ele sozinho datilografou, imprimiu e
grampeou cada exemplar. Foi como um presente antecipado de Natal, e pude
perceber que isso deixou meu pai feliz, de me ver tão feliz de ter em minhas
mãos meu primeiro jornal.
Na manhã seguinte, levei o St. John Eagle para minha classe do quarto
ano e entreguei os exemplares para os colegas de classe que achava que leriam.
A senhora LaCombe viu isso e pediu um exemplar. Um sorriso amplo tomou
conta do seu rosto.
“Ah, vejam só!”, ela disse. “Parece muito bom.”
Que bom se a madre superiora tivesse achado o mesmo. Quando a senhora
LaCombe mostrou-lhe meu jornal, a madre superiora pediu minha presença na
sua sala.
“Você pode me dizer o que é isso?”, ela perguntou, diretamente.
“É o nosso jornal escolar: o St. John Eagle? , disse, com orgulho, não espe­
rando nenhum tiro pela culatra.
“Não temos jornal escolar, Michael”, ela disse. “E não precisamos de um.
Isso não está autorizado, e não podemos aprová-lo. Assim, você terá de recolher
todos os exemplares que distribuiu e entregá-los para mim.”
Fiquei arrasado. Não fazia sentido para mim. O que eu fiz de errado? Mas
não tive coragem de discordar e, assim, disse um “Sim, madre”, e voltei pjira
minha classe para recolher o contrabando.

No ano seguinte, ainda querendo publicar um jornal, criei um novo, denomi­


nado H ill St. News, não concebido para a escola, mas para nosso bairro. Nova­
mente meu pai fez as cópias para mim no trabalho, na GM, e esse jornal durou
um total de três números, até uma mãe da vizinhança ligar paia minha mae,
furiosa que eu tinha posto sua casa para vender na minha seção de anúncios
classificados.
252
ADORO PROBLEMAS

“Mas há uma placa de VENDE-SE no quintal da casa dela”, me defendi.


“Só estava querendo ajudar.”
Claro que não tinha ideia do preço de uma casa e, assim, anunciei por um
preço de venda de um mil e duzentos dólares, o que, para um garoto de dez
anos, era uma montanha de dinheiro. Não importa; o H ill St. News foi fechado.
Tentaria criar um jornal escolar na St. Johns outras duas vezes; no sexto e
no oitavo anos. Nenhuma das vezes deu certo. Captei a mensagem e me afastei
do ramo jornalístico pelos nove anos seguintes.

Quando você mora numa cidade como Flint, com uma única empresa, quase
toda a mídia é comprada, paga e controlada por aquela empresa ou por seus
lacaios (vulgos os representantes locais eleitos). No caso de nosso único jornal
diário, o Flint Journal>ele provia a subsistência de uma situação especialmente
patética. O Journal gostava tanto da General Motors que nunca dedicava um
olhar crítico a suas operações. Era um jornal chapa-branca: a empresa nãofazia
nada de errado! Os trabalhadores da região de Flint odiavam aquele lixo, mas era
nosso único jornal, e assim, nós o liamos. Todos o chamavam de “O mictório
de Flint”. Editorialmente, o jornal tinha ficado historicamente no lado errado
de todas as principais questões sociais e políticas do século XX; o “lado errado”
significando: qualquer que fosse o lado que o sindicato de trabalhadores estivesse,
o Mictório assumia a posição contrária. Nos primeiros anos, atacou o prefeito
socialista que os eleitores de Flint elegeram. Atacou a criação do UAW e a grande
greve de 1936-37, que obrigou a General Motors a firmar seu primeiro contrato
de trabalho com o sindicato. Apoiava o candidato republicano à presidência,
enquanto os operários votavam no democrata. Defendeu a Guerra do Vietnã. E
se tornaria um defensor indesculpável da especulação imobiliária do centro da
cidade que deixaria Flint devastada.
Em 1976, meus amigos e eu nos queixávamos tanto a respeito da situação do
jornal de Flint que decidimos criar um por nossa conta. Inicialmente, quisemos
chamá-lo de Free to Be, mas pareceu um nome muito hippie. Assim, mudamos
para Flint Voice, em homenagem a um grande semanário alternativo, que rece­
bíamos pelo correio toda semana de Nova York, o Village Voice. Sete de nós, entre
253
BATIDA POLICIAL

19 e 25 anos, criamos o Voice, mas apenas três tinham alguma experiência jorna­
lística: Doug Cunningham, que tinha um jornal underground no ensino médio,
o Mt. Morris Voice; Alan Hirvela, que ajudou a dirigir um jornal alternativo no
campus da Central Michigan University; e eu, com meu histórico de quatro jor­
nais sem sucesso no ensino fundamental. Somente Al tinha curso superior.
Nossos primeiros números criticavam diretamente a ordem estabelecida em
Flint. Havia artigos a respeito do juiz linha-dura de Flint que dava sentenças
mais severas para os pretos do que para os brancos; dos representantes do con­
dado que espoliavam o tesouro; da Buick122 falsificando os carros de teste que
enviava para a agência de proteção ambiental (a EPA), a fim de demonstrar um
menor consumo de combustível; e de algumas outras questões que eram fami­
liares para mim: outro conselho escolar de Flint tendo reuniões secretas; estu­
dantes de Flint sendo punidos com violência 8.264 vezes num único ano letivo;
e uma pesquisa revelando que a maioria dos católicos não mais acreditava |no
inferno. Também havia artigos que pareciam à frente do seu tempo: um artigo
opinativo de um palestino local intitulado “Onde é Minha Terra Prometida”;
um artigo a respeito de como o açúcar refinado era um veneno (com uma receita
concomitante de uma guloseima de “comida natural”); e uma advertência de
que a GM, então empregando oitenta mil pessoas em Flint, tinha um plano
mestre de abandonar a cidade. Esse último artigo firmou meu nome como o
maluco local.
Rapidamente, o jornal tornou-se leitura obrigatória para aqueles que pres­
tavam atenção à política de Flint. O Flint Voice era um jornal de escândalos
reais, que não se importava com quem incomodava. Não trazíamos artigos
sobre as “Dez Melhores Sorveterias da Cidade” ou “Viagens de 20 Dias que
Você Vai Querer Fazer”. Nosso jornalismo era intransigente e implacável.
Demos flagrantes em estabelecimentos comerciais que não contratavam fun­
cionários negros. Mostramos como a General Motors estava obtendo benefícios
fiscais para construir fábricas no México. Certa noite, pegamos a desmontagem
literal de toda uma linha de montagem da GM, seu carregamento num trem,
e seu envio para embarque num navio para um lugar chamado China. Muitas
pessoas podiam não acreditar num artigo como esse: “O que a China faria cop

122 Uma divisão da General Motors que fabrica carros da marca Buick. (N. T.)
254
ADORO PROBLEMAS

uma linha de montagem de carros? Michael Moore está doido!”. Sofri muitos
escárnios por expor essas safadezas.
Também oferecemos um espaço no qual escritores brilhantes de Michigan
puderam encontrar abrigo. Muitos, tais como Ben Hamper, Alex Kodowitz,
James Hynes e o cartunista Lloyd Dangle se tornariam autores consagrados e
jornalistas profissionais. Nunca perdemos uma oportunidade de ir no encalço
do Flint Journal, e, em 1985, redigi um artigo investigativo sobre esse depri­
mente jornal diário para a revista ColumbiaJoumalism Review.

Além do plano da General Motors de destruir Flint (uma história que só abor­
daríamos no final da década de 1970 e no início da década de 1980), nada
consumiu mais nossa atençáo do que o prefeito de Flint, James P. Rutherford.
Ele também era o ex-chefe de polícia de Flint. Ele deixou para trás diversos
policiais irritados, que ficaram mais do que felizes de nos ceder documentos e
provas de suas atividades duvidosas. Uma das nossas primeiras reportagens de
primeira página sobre ele recebeu o título de “O prefeito Rutherford recebeu
um presente’ de 30 mil dólares de um apostador condenado?”. Nós “furá­
vamos” o FlintJournal sem parar (não que fosse muito difícil), mas, certo dia,
cansados de levar furo de nós, um dos seus colunistas simplesmente roubou
nossa matéria investigativa e a publicou, como se tivesse feito a coleta de dados
por si mesmo. Quando coisas como essa aconteciam, tínhamos modos de lidar
com elas. Como não éramos instruídos e não freqüentávamos os círculos da
alta sociedade, não tolerávamos muito bem as ações de ladrões, especialmente
se o gatuno fosse o FlintJournal. No dia seguinte ao plágio, visitamos a redação
deles. Trouxemos conosco uma torta para dar ao editor. Não, não éramos arre-
messadores de tortas; éramos mais como pessoas que devolviam presentes. A
torta estava recheada com cocô de cachorro. No alto da pilha de cocô fume-
gante, havia um grande símbolo de direitos autorais feito de chantili artificial.
O editor não estava e, assim, esperamos a volta dele por um tempo. Alguém
deve tê-lo avisado, pois ele nunca apareceu. Porém, no fim, ficamos entediados
de esperar, deixamos o “presente” sobre sua mesa e fomos embora. No dia
255
BATIDA POLIC IA L

seguinte, o FlintJournal publicou uma nota de correção/reconhecimento de que


o artigo que tinha publicado era originalmente nosso.
Não demos trégua ao prefeito e suas transações com as incorporadoras de
imóveis, a General Motors, a Câmara de Comércio ou a Fundação Charles
Stewart Mott. Em setembro de 1979, publicamos uma matéria de primeira
página descrevendo como o prefeito tinha coagido funcionários pagos com
dinheiro do governo federal da CETA123 para contribuir com sua campanha de
reeleição e para cabalar votos de porta em porta para ele no horário de trabalho
dos funcionários municipais.
O prefeito ficou furioso e ameaçou nos processar por difamação. Ele não fez
isso. Nós persistimos. Ele não ficou feliz.
O ombudsman municipal pegou nossas descobertas e fez sua própria investi­
gação a respeito do prefeito. A lei municipal exigia que ele apresentasse seus resul­
tados ao prefeito quatro dias antes de divulgar seu conteúdo ao público. Nossas
fontes obtiveram uma cópia do relatório confidencial —que constatou que todias
nossas acusações contra o prefeito estavam corretas —,e publicamos a matéria rio
Flint Voice, afirmando que o ombudsman tinha respaldado nosso artigo.
O prefeito acusou o ombudsman de violar a lei municipal e pediu para
a polícia investigar como nós, do Voice, tínhamos obtido acesso ao relatório.
Nós nos recusamos a cooperar e continuamos a publicar matérias a respeito do
assunto à medida que ingressávamos no ano novo de 1980.
Em maio de 1978, a Suprema Corte dos Estados Unidos tinha decidido que
tudo bem a polícia fazer uma batida numa redação e retirar materiais dela, com
certas restrições. O caso Zurcher versus Stanford Daily envolveu o jornal escolar,
o Stanford Daily, e as fotografias que tirou de uma manifestação estudantil em
que nove policiais ficaram feridos quando os estudantes ocuparam o hospital do
campus. A polícia queria ver todas as fotos que o Daily tinha tirado a fim de
ajudá-la a identificar os estudantes envolvidos no tumulto. Os estudantes moveraijn
uma ação judicial, alegando que seus direitos constitucionais foram violados. A
Suprema Corte discordou e afirmou que a polícia tinha o direito de realizar essa
investigação, já que não estava indo ali plantar verde para colher maduro.

123 Comprehensive Employment and Training Act, lei federal para treinar mão de obra e ofereceria
ela empregos no serviço público. (N. T.)
256
ADORO PROBLEMAS

O veredicto do tribunal foi saudado tanto pela polícia como pelos inimigos
da imprensa de todos os lugares. Os jornalistas se estarreceram e se preveniram
de que haveriam abusos. Assinalaram que as fontes receariam confiar nos jornais
se soubessem que a polícia poderia vasculhar arquivos cheios de informações
confidenciais.
Dois anos se passaram, e não houve mais nenhuma batida policial nas reda­
ções dos Estados Unidos.
Até a manhã de 15 de maio de 1980.
Às nove e cinco da manhã, a polícia de Flint, tendo obtido um mandado
de busca do juiz Michael Dionise, fez uma batida nos escritórios do jornal onde
o Flint Voice era impresso e apreendeu todos os materiais relativos ao assunto
de novembro de 1979, que continham o relatório crítico a respeito da suposta
transgressão da lei do prefeito, incluindo os próprios clichês utilizados nas
impressoras para imprimir o Voice.
O Flint Voice era impresso na gráfica do Lapeer County Press (um semanário
do condado que foi fundado, em parte, por minha família, na década de 1830).
Aquela não foi a primeira visita da polícia de Flint ao nosso impressor. Ela tinha
ligado em novembro pedindo para que a County Press entregasse tudo que tinha
a nosso respeito. O impressor, citando a Primeira Emenda,124 recusou-se. Seis
meses depois, os policiais apareceram pessoalmente. O impressor perguntou se
eles tinham um mandado de busca. Não, disseram os policiais. Então, vocês não
podem entrar, afirmou o editor.
Alguns dias depois, eles voltaram com o mandado em mãos e levaram tudo
relacionado ao Flint Voice. Disseram ao impressor para não revelar que estiveram
ali. O impressor obedeceu.
Cinco dias depois, em 20 de maio, o telefone tocou na redação do Voice.
“Senhor Moore, aqui é a polícia de Flint”, a voz no telefone disse.
O sargento não me informou - e eu não sabia —de que, cinco dias antes,
eles tinham feito uma batida nos escritórios do meu impressor. Ele me disse que
sabiam “exatamente” a hora e o dia que receberam o relatório do ombudsman - e
que, aparentemente, um crime tinha sido cometido. Ele perguntou se o ombu-

124 A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos impede o Congresso de estabelecer
uma religião oficial, proibir o livre-exercício da religião e limitar a liberdade de imprensa, a liberdade
de expressão, o direito de livre-associação pacífica e o direito de fazer petições ao governo. (N. T.)
257
BATIDA POLICIAL

dsman era a fonte. Disse-lhe que não era da sua conta. Ele sugeriu que eu lhe
contasse a verdade, pois ele descobriria mais cedo ou mais tarde, e que as coisas
seriam mais fáceis se eu cooperasse.
Agradeci-lhe pela sugestão e desliguei. Quatro horas depois, recebi Uma
ligação do Lapeer County Press, que se sentiu ‘ obrigado” a me dizer que uma
busca foi realizada ali e todas as coisas relacionadas ao Flint Voice foram apreen­
didas pela polícia de Flint. Senti um frio na espinha. Será que a polícia já estava
vindo para a nossa redação para fazer a mesma coisa?
Liguei de volta para a polícia de Flint. Disse que tinha acabado de ser infor­
mado a respeito da batida. Eles estavam planejando fazer a mesma coisa aqui?
Ah, não, não vamos fazer uma batida aí! No outro lado da linha, o sargento
disse que isso, provavelmente, causaria muito desgosto para ele... e para mim.
Por que para mim?
Avisei ao sargento que, se ele aparecesse, as emissoras de TVs estariam| ali
em questão de minutos.
“Escute”, ele disse, diretamente, “se quiséssemos investigá-lo, você acha que
contaríamos para você? Você não saberia, da mesma forma que você não soube
a respeito da nossa busca na sua gráfica, em Lapeer.”
Liguei para um fonte minha na polícia de Flint e lhe pedi para descobrir
alguma coisa. Depois de uma hora, ele me retornou.
“Ah, sim, eles estão planejando fazer uma batida aí. Eles já têm o atestado
para o juiz redigir.”
Imediatamente, liguei para as emissoras de TV locais e para a Associatjed
Press. “Preciso da ajuda de vocês”, disse para cada um deles. “Os policiais pre­
tendem fazer uma batida no nosso jornal. Eles já fizeram uma batida na gráfica
onde o Voice é impresso. Você podem vir para cá o mais rápido possível?”
Para crédito deles, chegaram em nossa redação, na esquina da Lapeer com
a Genesse, em minutos. Todos, exceto o FlintJournal j
As reportagens foram arquivadas. A polícia negou que estivesse planejando
uma busca e apreensão em nossa redação. Mas não conseguiu explicar por que
apreenderam todos os materiais do jornal que estavam no nosso impressor. A
batida teve a intenção de nos intimidar? Passei a noite tirando todos nossos
arquivos e documentos do prédio e os guardando seguramente, onde a políçia
não poderia encontrá-los.
258
ADORO PROBLEMAS

Em 24 horas, a CBS tinha enviado uma equipe de Chicago, e o The New


York Times estava fazendo a cobertura. Era, afinal, a primeira batida policial em
um jornal desde a decisão da Suprema Corte que permitiu isso. Mais jornalistas
chegaram de Detroit e Chicago. A ACLU entrou em contato, assim como o
Reporters Committee for Freedom of the Press (Comissão de Jornalistas pela
Liberdade de Imprensa). Seu diretor, Jack Landau, ofereceu a assistência legal
que precisássemos. “Vocês são os primeiros, mas não serão os últimos”, ele disse.
“Precisamos cortar isso pela raiz.”
Movemos uma ação na vara cível para obter uma medida cautelar proi­
bindo a polícia de fazer uma batida em nossa redação. O juiz concedeu a medida
liminar e obteve uma promessa da polícia de não realizar nenhuma ação até ele
poder tomar conhecimento do caso.
Os jornais de todo o estado, desde Detroit até Battle Creek, publicaram
editoriais criticando a polícia de Flint por suas ações e incentivando o juiz a
tomar uma posição em relação à primeira e quarta emendas da Constituição. A
imprensa de todo o país tratou do caso, e o foco sobre Flint não foi agradável.
Não dormi muito e fiquei preocupado a respeito do que mais a polícia poderia
estar tramando. Incentivei todas as pessoas do jornal a não trazerem nada para a
redação que as tornassem suspeitamente alegres e muito famintas.
Duas semanas depois, estávamos de volta ao tribunal. Após escutar os argu­
mentos, o juiz decidiu em nosso favor, dizendo à polícia que, se eles, depois,
decidissem ter razões para uma batida, teriam de procurá-lo primeiro. A alegria
tomou conta dos nossos partidários na sala de audiência. Foi uma rara vitória
contra aquele prefeito e sua polícia.
O incidente ressuscitou um projeto de lei adormecido no Congresso (apre­
sentado pouco depois da decisão da Suprema Corte no caso Stanforàf), impe­
dindo batidas policiais em redações de jornais. Depois de uma semana do vere­
dicto do juiz em Flint, a comissão de Justiça do Senado convocou audiências
sobre a legislação. Jack Landau, o diretor do Reporters Committee, me ligou e
perguntou se eu poderia ir até Washington.
“Depois do que aconteceu a você em Flint, consideramos que o momento
é perfeito para a aprovação desse projeto de lei. Você pode vir a Washington e
nos ajudar?”
259
BATIDA POLICIAL

“Quando eu tinha dezessete anos, me fizeram esse pedido, para ir a


Washington e testemunhar”, eu disse a ele, o que pareceu muito estranho para
explicar; assim, não expliquei. “Acho que não sou bom para esse tipo de coisa.
Além do que, os republicanos estão vindo para cá dentro de algumas semanas para
a Convenção Nacional Republicana. Preciso estar preparado para isso. Reagan
vai convidar Jerry Ford125 para ser seu vice-presidente.” (Algumas horas antes da
votação da convenção, o ex-presidente Ford, natural de Michigan, insistiu que
Reagan também prometesse trazer de volta Henry Kissinger.126 Então, Reagan
mudou de ideia no último minuto e surpreendeu ao escolher George Bush127
como vice na sua chapa. O futuro do declínio americano se desdobrou dessa
decisão. Não tenho tempo de tratar do que aconteceu nos trinta anos seguintes.
Há outros livros nas bibliotecas em que você pode ler a esse respeito.)
Em 20 de junho de 1980, a comissão do Senado votou a favor da Privacy Pro-
tection Act (Lei de Proteção à Privacidade), também conhecida como “Newsropm
Shield Law” (“Lei de Blindagem de Redações”); um projeto de lei que proibija a
polícia de entrar numa redação, a menos que um crime real, como um roubo ou
assassinato, tivesse ocorrido no local. Mas então o projeto de lei ficou parado e
não foi programado para votação do Congresso. Os grupos de defesa da Primeira
Emenda se perguntavam se o projeto seria aprovado algum dia.
Um mês depois, a polícia de Boise, em Idaho, fez uma batida na redação
da afiliada da CBS, em Boise, e apreendeu fitas de vídeo de um protesto, pára
poder descobrir as identidades daqueles que tinham participado. A estação de
TV moveu uma ação e obteve sua própria medida cautelar contra a polícia de
Idaho. A mídia do país cobriu a história, e os políticos de Washington exigiram
novamente que uma medida fosse tomada em relação ao projeto de lei proposto.
Eu escrevi cartas para os membros do Congresso e fiz entrevistas.
Então, certo dia, eu atendi o telefone.
“Alô”, a voz com sotaque britânico (ou irlandês?) disse. “Estou querendo
falar com Michael Moore.” I

125 Apelido de Gerald Ford (1913-2006), 38g presidente dos Estados Unidos. (N. T.) j
126 Secretário de Estado durante a presidência de Richard Nixon. Ganhou o Prêmio N obel da Paz,
em 1973. (N. T.) j
127 Foi vice nos oito anos do governo Reagan, e depois se tornou o 41° presidente dos Estados
Unidos (1989-1993). É pai de George W. Bush, 43° presidente dos Estados Unidos (2001-2009). (N. T.)
260
ADORO PROBLEMAS

“Aqui é Michael Moore”, eu disse.


“Aqui é John Lennon.”
Como eu era conhecido a aquela altura como um brincalhão habilidoso,
também era frequentemente vítima das brincadeiras de outras pessoas que
estavam querendo se vingar.
“Tudo bem, Garry, realmente muito engraçado”, eu disse. E, então,
desliguei.
Vinte minutos depois, o telefone voltou a tocar. Era Joe Dupcza, a ombu-
dsman da cidade de Flint.
“Você acabou de desligar o telefone na cara de John Lennon”, ele disse, com
severidade. “Por que você fez isso?”
“Qual é, Joe”, afirmei, “você está nessa também?”
“Não estou em coisa alguma”, ele disse, ficando irritado. “Lennon me ligou
a duas horas atrás. A princípio, também não acreditei. Assim, não o culpo.
Estamos todos um pouco nervosos depois dessa merda.”
“Ah, sim”, eu disse. “Obrigado por descobrir a América. Mas como você
sabe com certeza que era John Lennon?”
“Peguei o número dele e lhe disse que ligaria de volta. Então, processei.”
“Processar” é um jargão policial para pegar um número de telefone ou a
placa de um carro e processá-lo no computador central da polícia para inves­
tigar. Joe Dupcza era um policial de Flint antes de ser ombudsman. O número
de telefone de John Lennon era, sem dúvida, conhecido do FBI e do seu com­
putador. A agência tinha dedicado a maior parte da década criando um arquivo
sobre ele e tentando sua deportação.
“Eu processei... e investiguei! Quer dizer, puta merda, era oJohn Lennon reaÜ”
Fiquei imediatamente aborrecido de ter desligado o telefone na cara de um
Beade. Meu Deus, estou tão confuso por causa do que aconteceu que não acredito
em ninguém agora, pensei. Nada bom.
“Conversamos por algum tempo”, Dupcza continuou. “Ele leu a respeito
do nosso caso no jornal, acompanhou a história, achou terrível, e queria saber o
que ele podia fazer para ajudar. Então, ele me pediu seu telefone.”
Dupcza me deu o número de Lennon, para eu poder ligar para ele em Nova
York, mas, assim que desliguei, o telefone tocou de novo. Dessa vez, consegui
identificar a pronúncia. Liverpool.
261
BATIDA POLICIAL

“Oi, aqui é John Lennon de novo”, ele disse, tentando me tranqüilizar.


“Eu sei! Eu sei!”, afirmei, em tom de desculpa. “Acabei de falar com o
ombudsman. Sinto muito. Muito mesmo. Me perdoe. Estou um pouco assus­
tado aqui.”
“Claro, eu entendo”, ele disse, ainda tentando me acalmar. “Sei um pouco
a respeito de vigilância policial transformando sua vida num inferno.”
Eu ri. “Sim. Voce sabe.”
“Bem”, ele prosseguiu, “acompanhei o que você passou, e essa possível
lei do Congresso, e estou ligando para ver se há alguma maneira de eu poder
ajudar. Talvez eu possa fazer um favor ou algo assim em relação à sua verba legal
ou para seu jornal.”
“Sério? Uau, não sei o que dizer.”
“Bem, você não precisa dizer nada nesse momento. Estou um pouco ocu­
pado trabalhando num novo disco. Assim, não terei tempo até o ano-novo.”
“Uau, que grande notícia!”\ interrompi, com minha voz subindo meia
oitava, no nível de uma colegial em vertigem. “Um novo disco!”
“Bem, fiquei um tanto silencioso por um tempo, sendo pai e tudo o mais.
Mas estou pronto para recomeçar, e, agora, que sou legalmente um residente
do seu agradável país, pretendo me envolver mais e [usando a pronúncia de
um americano] exercer meus direitos constitucionais. E, assim, se houver algo que
você precise, você poderá me ligar se quiser.”
Ao escutar essa oferta incrível, da voz de um homem que tinha significado
tanto para tantos de nós, não sabia o que dizer. Então, eu tentei.
“Você podia dar um show no Shea Stadium de novo?”128
Ele riu. “Meu Deus, não! Uma vez ali foi o suficiente! Ei, eií participei
daquele concerto em Ann Arbor...”129
“Para John Sinclair. Eu estava lá. ‘Ten for Two!’130 Ele foi na minha escola.”
“Não diga! Mundo pequeno. Bem, tenho de desligar...”

128 Refere-se a um famoso show dos Beatles realizado no estádio de beisebol Shea Stadium, errí
Nova York, em 15 de agosto de 1965, com cerca de 55 mil espectadores. (N. T.) I
129 Refere-se a um concerto realizado em Ann Arbor, em dezembro de 1971, em apoio ao poeta
John Sinclair, que estava preso por porte de maconha. (N. T.)
130 Literalmente, "Dez por Dois". Refere-se à prisão de Sinclar pelo porte de dois cigarros de
maconha, em 1969. Por causa disso, ele foi condenado a dez anos de prisão. (N. T.)
262
ADORO PROBLEMAS

“John, eu, ah, hum, muito obrigado! Foram meses de muita loucura por
aqui. Eu ligarei. Mesmo. Muito obrigado. Isso significará muito para todos aqui.”
“Mantenham o espírito elevado, amigo”, ele concluiu. “Eu estarei
disponível.”

Em 29 de setembro, o Senado aprovou a Privacy Protection Act, de 1980, por


meio de votação oral. Dois dias depois, a Câmara dos Representantes aprovou
por 357 votos a favor e 2 contra. Em 13 de outubro de 1980, o presidente san­
cionou a lei. Era como as coisas funcionavam naqueles tempos; os dois partidos
votando de modo unânime na defesa da privacidade dos seus cidadãos e dos
direitos da Primeira Emenda. E também no apoio à necessidade da imprensa
para atuar sem ameaças ou intimidações.
E tudo que precisou acontecer para pôr em movimento a Public Act 96-440
e transformar esse documento público em lei nacional foi a batida policial na
gráfica de uma pequeno jornal underground, num lugar distante chamado Flint,
em Michigan. Xeque. E, depois, uma repetição disso em Boise. Mate.

Nunca consegui ligar de novo para John Lennon. Oito semanas depois, ele
morreu. No mês seguinte a isso, Ronald Reagan e George H. W. Bush assu­
miram as rédeas do país pelos doze anos seguintes. Uma Idade das Trevas tinha
começado. Poucos perceberam a princípio.
BITBURG

Na realidade, Gary Boren não tinha problemas com os alemães, ao menos mão
com os vivos. Na década de 1970, durante o ensino médio, ele fez um inter­
câmbio escolar em Bremen, na Alemanha Ocidental, vivendo com uma família
alemã por um ano. Assim, Gary estava familiarizado com a geração alemã mais
jovem e do pós-guerra e sabia que não eram de modo algum como seus paisi

Era primeiro de maio de 1985, festa da primavera. Minha conversa com Gary
foi mais ou menos assim:
Gary: “Bitburg.”
Eu: “Pittsburgh?” j
Gary: “Bitburg.” j
Eu: “Por que você quer ir para Pittsbugh?”
Gary: “Não quero ir para Pittsburgh. Quero ir para Bitburg.”
Eu: “Ah!”
Gary cresceu em Flint. Não o conheci quando eu era mais jovem, mias,
naquele momento, como adulto, ele era, entre outras coisas, o advogado gra­
tuito do meu jornal (e meu pessoal sempre que precisava me livrar de uma
multa de trânsito ou escapar de um litígio com um locador).
“Mike, você pode acreditar nessa história da ida de Reagan para Bitburgj?”,
ele perguntou, esperando que eu compartilhasse sua incredulidade; o que
compartilhei.
264
ADORO PROBLEMAS

“Eu quero ir lá e informá-lo como eu me sinto. Você quer vir?”


Na primavera de 1985, as sete maiores economias do mundo (que, depois,
seriam conhecidas como G-7, depois G-8, depois G-20, e assim por diante)
decidiram realizar uma conferência sobre a economia mundial em Bonn, na
Alemanha Ocidental. O presidente Ronald Reagan compareceria, represen­
tando os Estados Unidos.
Em algum momento, alguém do seu governo achou que seria uma boa
ideia, enquanto Reagan estivesse na pátria alemã, depositar coroas de flores nos
túmulos de alguns soldados nazistas. Quando diversos grupos judaicos e de
direitos humanos protestaram, Reagan resistiu e se recusou a cancelar a ceri­
mônia. De fato, só para demonstrar sua teimosia e personalidade, ele aumentou
a aposta e disse que depositaria coroas de flores nos túmulos não só de nazistas
comuns, mas também nas campas dos psicopatas da SS.
A cerimônia aconteceria na cidadezinha de Bitburg, perto da fronteira com
Luxemburgo. E Gary queria ir para Bitburg.
Gary não era um ativista político. Ele não tendia a agir impulsivamente.
Ele era o tipo de sujeito cujo padrão de atividades diárias - comer, exercitar-se,
dormir - é do tipo que você pode acertar seu relógio. Assim, a raiva na sua voz
e a ânsia de agir política e publicamente foi um choque agradável para minha
tarde.
Gary era único em outro aspecto. Seu pai e sua mãe eram sobreviventes dos
campos de concentração de Auschwitz e Bergen-Belsen. Mais de um milhão de
pessoas morreram em Auschwitz e cinqüenta mil em Bergen-Belsen. Seus pais
sobreviveram. Eles eram de uma cidade da Polônia chamada Kielce. Em 1940,
Kielce tinha uma população de duzentos mil habitantes, com cerca de vinte mil
cidadãos judeus. Em 1941, os alemães e os poloneses criaram o gueto judeu,
mas, em agosto de 1942, o gueto foi destruído e a maioria dos sobreviventes
foi enviada para o campo de concentração de Treblinka. Somente dois mil
não foram removidos, para realizar trabalhos forçados (isto é, trabalhar como
escravos). Os pais de Gary, Bella e Benny, estavam entre os escravos. Cada um
deles era casado com seus respectivos cônjuges, mas nenhum daqueles cônjuges
sobreviveu à guerra.
Em 1944, eles foram enviados para Auschwitz, onde sobreviveram ao
processo de “seleção” (eles foram considerados aptos para realizar o trabalho
265
BITBURG

escravo). Em 1945, quando os russos estavam próximos de Auschwitz, os ale­


mães pegaram aqueles que eles ainda precisavam para o trabalho escravo e mar­
charam com eles, no auge do inverno, até uma estação ferroviária em Gliwice,
na Polônia, a 30 quilômetros de distância. Muitos morreram. Aqueles que
sobreviveram, incluindo os pais de Gary, foram embarcados em vagões para
transporte de gado e levados para Bergen-Belsen, onde os britânicos os liber­
taram, em 15 de abril de 1945.
Em Munique, no ano seguinte, no campo de refugiados, eles se conheceram
e se casaram. Eles tinham um tio que havia emigrado para Flint, em Michigan,
vinte anos antes, para trabalhar nas fábricas da General Motors. Por causa desse
vínculo, eles puderam vir para os Estados Unidos e para Flint, onde foram bem
recebidos e onde prosperaram.
A provação de Bella e Benny Boren teve conseqüências não só sobre çles,
mas, nos anos vindouros, também sobre seus filhos: Gary e seus três irmkos.
Quase todos os familiares deles na Europa - avós, tias, tios, primos - foram
assassinados no Holocausto.
A viagem para Bitburg, ele me disse, seria sua declaração pessoal contra
aqueles que fizeram aquilo para seus pais - e, talvez, mais importante, seu ato
solitário de desafio contra seu próprio presidente, que era insensível, estúpido e
cruel. Era imperdoável qualquer que fosse o caso.
E qual era exatamente o propósito da minha ida?
“Você saberá como introduzir a gente sorrateiramente no cemitério”, Gary
afirmou, sem rodeios. Em seguida, Gary fez um sumário dos meus principais
feitos como penetra: ficar no recinto da convençãodemocrata de 1984, em San
Francisco, sem credencial de imprensa; entrar na Nicarágua pela fronteira hon­
durenha sem documentos ou vistos adequados; infiltrar-se nos bastidore^ de
concertos para conhecer Joan Baez ou Pete Seeger.
“Quando Reagan está indo para lá?”, perguntei.
“Neste domingo.” |
“Neste domingo?”
“Sim. Vamos. Eu cuidarei das passagens aéreas.”
266
ADORO PROBLEMAS

Náo precisava de nenhum convencimento. Estava disponível para a aven­


tura e estava pronto para qualquer coisa que aporrinhasse o Trapaceiro. Se
Bonzo131 estava indo para Bitburg, eu também ia.
Quarenta e oito horas depois, Gary e eu estávamos voando de Detroit
para Hamburgo, na Alemanha Ocidental. Chegamos em Bonn, capital da
Alemanha Ocidental, no fim da tarde de sexta-feira.
Nossa primeira missão após desembarcar do avião era convencer as auto­
ridades alemãs a nos conceder as credenciais de imprensa necessárias que
precisávamos para acompanhar Reagan em Bitburg. Não ia ser fácil, conside­
rando que a data final para solicitar aquelas credenciais fora um mês antes, e
a conferência sobre economia mundial em Bonn já estava terminando.
Havia milhares de jornalistas em Bonn, todos ali para cobrir um não
evento importante, conduzido pelos líderes da França, Alemanha, Itália,
Grã-Bretanha, Estados Unidos, Canadá e Japão. No final da conferência, os
líderes posaram para fotos e divulgaram uma declaração conjunta dizendo
que persistiriam no curso (não disseram que curso estava obtendo o trata­
mento de “persistência”). Eles também disseram que se opunham à inflação.
Tudo bem.
Mas a grande notícia da conferência sobre economia —além da revelação
que Reagan estava se hospedando num castelo pertencente a um sujeito cujo
padrinho foi Adolf Hider - foi o primeiro ato de Reagan quando ele desceu do
avião em Bonn. Ao contrário do resto de nós que corre para protocolar recla­
mações de bagagem perdida, Reagan expediu um decreto do Poder Executivo
banindo todo comércio com a Nicarágua. Os outros líderes mundiais ficaram
perplexos com essa medida—náo tinha nada a ver com a conferência sobre eco­
nomia —, e, rapidamente, procuraram colocar o máximo de distância possível
entre eles e Reagan. Nenhum dos líderes - nem mesmo seus colegas de direita,
Margaret Thatcher, do Reino Unido, ou Brian Mulroney, do Canadá - apoiou
o embargo de Reagan ao que ele chamou de “regime comunista”.

131 Refere-se a um filme intitulado Bedtime for Bonzo, de 1951, estrelado por Ronald Reagan, cujo
personagem, um professor, tenta ensinar ética para um chimpanzé (Bonzo). Em 1986, esse filme foi
usado como referência, em ligação com Reagan, na canção "My Brain is Hanging Upside Down
(Bonzo Goes to Bitburg)", da banda Ramones. (N; T.)
267
BITBURG

Fomos ao escritório de imprensa da conferência e recebemos a informação


da assessoria de imprensa da Casa Branca de que devíamos falar com “Herr
Peters, no Centro de Imprensa dos Estados Unidos, perto do Bundestag”132 a
respeito das credenciais.
“Sinto muito, mas acho que vocês estão um pouco atrasados”, Peters
nos disse, quando finalmente o encontramos. “Não há mais credenciais a ser
emitidas.” I
Insistimos que nos tinham garantido as credenciais e que ele devia cuidar
de nós.
“Receio que, infelizmente, tudo que vocês podem fazer, nesse momento, é
falar com Frau Schmidt.” !
Ah, incrível. O antigo golpe de transferir a responsabilidade para “Frau
Schmidt”.
Nós, porém, encontramos Frau Schmidt. Ela estava arrumando a trouxa
para ir para casa quando chegamos na sua mesa.
“Sinto muito, vocês não estão na lista”, ela disse, depois de folhear um
fichário.
“Mas nós devemos estar na lista”, eu disse. “Falei com a Casa Brandi na
semana passada e nos garantiram as credenciais: ‘Procurem Frau Schmidt
quando chegarem em Bonn, me disseram. Então, agora, depois de uma longa
viagem até aqui, com grandes despesas para nosso jornal, e por causa de alguma
confusão, não há credenciais para nós!”
A possibilidade de poder ter havido uma “confusão”, um erro cometido
i
por meio de descuido, talvez vagabundagem, era uma ideia revoltante para uma
alemã mais velha, uma ideia extremamente insultante. Ela se afastou - e, dejpois
de dez minutos, voltou, entregando-nos nossos crachás oficiais PRESIDENT
REAGAN STATE VTSIT, com cordões de cortesia adornados com as cores da
bandeira da República Federal da Alemanha. j
Em Bonn, não tínhamos muito uso para os crachás, exceto que eles í nos
possibilitaram nossa primeira refeição de verdade em trinta horas. O governo
alemão tinha tornado acessível o prédio do parlamento para alimentar gratui-

132 Parlamento da Alemanha. (N. T.)


268
ADORO PROBLEMAS

tamente a imprensa com todas as comidas e bebidas possíveis. A extensão de


comida disponível atingia facilmente o comprimento de dois quarteirões.
“Você sabe o que eles dizem”, Gary observou com um sorriso, enquanto
devorava seu quinto canapé de caviar. “Uma imprensa bem alimentada sempre
diz a verdade.”
Fomos para Bitburg de manhã. Situada a cerca de 160 quilômetros ao sul
de Bonn, Bitburg era uma cidade de 24 mil habitantes —12 mil alemães e
12 mil soldados americanos, suas mulheres e seus dependentes de uma base
da Força Aérea nas proximidades. Arrasada pelos Estados Unidos num ataque
aéreo na noite de 24 de dezembro de 1944 (Bitburg era uma área de concen­
tração de tropas e depósitos de suprimentos para as tropas nazistas na Batalha
das Ardenas), naquele momento era uma cidadezinha curiosa, aninhada nas
colinas da Renânia.
Tínhamos deixado o ônibus há cinco minutos quando fomos abordados
pelo comitê de recepção local, que foi criado para a imprensa visitante. Ali, em
Bitburg, nada de correr de escritório em escritório implorando credenciais de
imprensa: aquelas pessoas tinham desenrolado o tapete vermelho para qualquer
um com uma câmera, um bloco de anotações ou um lápis apontado. Bernd
Quirin, o tesoureiro municipal e chefe dos reservistas locais do exército alemão,
identificou-nos como americanos, e se ofereceu para nos acompanhar em um
passeio por Bitburg, incluindo o cemitério.
Nós aceitamos o convite, e ele nos transportou em seu Audi nas duas horas
seguintes. Escutamos a história completa de Bitburg, como seu pai se feriu
no front russo, e o quanto ele e todos os moradores de Bitburg gostavam dos
Estados Unidos e de Ronald Reagan. Os doze mil soldados americanos nunca
causaram problemas na cidade, e não houve conflitos a respeito da visita de
Reagan aos túmulos daqueles SS; afinal, ele explicou, aqueles SS eram “apenas
meninos forçados a servir o exército nazista”.
Então Bernd nos levou ao cemitério. Claro que ele não tinha ideia de
que estava participando de uma missão de reconhecimento, ajudando um
judeu e um jornalista que planejavam fazer barulho no dia seguinte. Nós nos
sentimos mal com o fato de que, após nossa prisão, ele, provavelmente, seria
conduzido a um interrogatório quanto a por que ele foi “o motorista” para
aqueles anarquistas.
269
BITBURG

À primeira vista, o que uma pessoa repara a respeito do cemitério de Bit­


burg é o quão pequeno ele é. Se você tiver imagens de Arlington ou da Nor-
mandia em sua mente, elas ficarão rapidamente desapontadas com aquele ter­
reno de apenas dois mil metros quadrados de túmulos planos com seis cruzes de
cimento e uma capela que mais parece um crematório.
Naquele dia, os alemães da cidade estavam ocupados colocando flores sobre
todos os túmulos e os limpando para a visita do presidente. A imprensa também
estava ali, fotografando os túmulos dos SS de todos os ângulos imagináveis, e
entrevistando os moradores de Bitburg a respeito de suas ligações com a SS.
Uma mulher de idade alemã estava tirando as flores dos túmulos dos hão
nazistas e colocando-as em abundância sobre os túmulos dos SS. Ela resmungava
grosserias em alemão enquanto empreendia sua cruzada solitária “não enche meu
saco” acompanhada pelas câmeras da imprensa. A presença dela estava deixando
os funcionários municipais de Bitburg um pouco nervosos. “Por que vocês estão
filmando ela?”, o vice-prefeito de Bitburg perguntou à equipe da ABC-TV.
“Só tente ficar fora do nosso caminho, se possível” foi a resposta de um
produtor da ABC, enquanto a equipe afastava o vice-prefeito.
Humilhado por aquele tratamento, ele se virou para mim e disse: “Vocês,
americanos. Vocês não escutam. Vocês publicam o que querem para ajustar suas
ideias a respeito de o que é e do que não é”. Então, ele mostrou duas capas da
revista Newsweek. Uma era a edição americana, a outra, a internacional. As duas
tinham a mesma capa de um túmulo SS, mas a edição americana tinha duas
bandeiras da Alemanha Ocidental fincadas no túmulo nazista.
“A Newsweek adulterou essa foto”, ele disse, “para insinuar que, nós, ale­
mães, hoje em dia, reverenciamos os nazistas. Vocês leram A honra perdida de
Katharina Blurrit133 É isso o que vocês, americanos, querem: tirar nossa digni­
dade e nossa honra.”
Acordamos no domingo de manhã para o grande dia e começamos a imple­
mentar nosso plano. Sob seu suéter, Gary enrolou em torno do seu tronco uma
faixa de quase quatro metros quadrados que nossos amigos Jack e Laurie pin­
taram para nós em Ann Arbor. Estava escrito:

133 Romance publicado em 1974, de Heinrich Bóll (1917-1985), autor alemão, laureado com o N obel
de Literatura de 1972. (N. T.) I
270
ADORO PROBLEMAS

Nós viemos de Michigan, nos Estados Unidos, para lembrá-los:


Eles assassinaram minhafamília
Com os crachás de imprensa tão reais quanto falsos em torno dos nossos
pescoços e as bolsas com as câmeras nas mãos, começamos nossa caminhada de
três quilômetros para o cemitério.
O que descobrimos foi que, da noite para o dia, Bitburg tinha se convertido
em um estado policial, em que 17 mil soldados do exército alemão, agentes de
segurança e policiais de todas posições sociais tinham cercado a cidade e mon­
tado diversos postos de controle, tornando quase impossível acessar o cemitério.
Uma coisa os alemães estavam se certificando: ninguém chegaria perto do cemi­
tério de Bitburg sem ter provado que fosse Walter Cronkite ou David Brinkley.
E, ali, no caminho que levava ao cemitério, a cerca de mil metros de distância,
a polícia alemã nos parou.
“Aqui é o mais longe que vocês vão”, os agentes vociferaram para nós, em
alemão. Gary, que é fluente em alemão, disse-lhes que, com toda certeza, nossa
presença era permitida no cemitério.
“Vocês terão de discutir isso com o chefe da polícia”, o agente disse e, em
seguida, fez um sinal para nós para começarmos a voltar para a cidade.
Voltamos para a cidade e fomos à prefeitura, onde achamos o chefe da
polícia cercado por outros jornalistas que, aparentemente, tinham tido o mesmo
dèstino nosso. Ao avaliarmos a situação, tivemos a impressão que os jornalistas
da Knight-Ridder134estavam tendo a melhor sorte com o chefe; assim, nos apro­
ximamos e paramos perto deles, como se fizéssemos parte da equipe. Final­
mente, o chefe pegou o telefone e ligou para o posto de comando do caminho
do cemitério, autorizando a entrada daquele grupo de jornalistas. Assim, nós
nos unimos a ele, parecendo que éramos seus fotógrafos.
De volta ao posto de controle, o policial vociferante nos deixou passar.
Nossa alegria com esse sucesso logo arrefeceu, pois nos informaram que aquele
era só o primeiro de sete postos de controle que teríamos de passar.
Os dois postos de controle seguintes foram superados com razoável faci­
lidade, com muitos Guten Morgens e Olá! Como vai! O quarto posto fez uma
revista, mas não dos nossos corpos; assim, a faixa de Gary passou despercebida.

134 Empresa de mídia, chegou a ser o segundo maior grupo editorial dos Estados Unidos. Foi adqui­
rida pela The McCIatchy Company, em 2006. (N. T.)
BITBURG

No quinto posto de controle, os policiais - naquele momento, parecendo


menos policiais e mais um grupo musculoso de rangers loiros com uma estranha
vibe homoerótica —foram um pouco mais mal-humorados, porque nossas cre­
denciais não eram as oficiais da Casa Branca, que eram para o seleto grupo de
trinta jornalistas do pool de imprensa pré-aprovado, que tinham permissão de
estar no cemitério e ficar a apenas alguns metros do presidente. Mas como Qary
falava um alemão perfeito - e eu falava um papo-furado perfeito —fomos| de
alguma forma, capazes de superar o penúltimo posto de controle. !
Naquele momento, o cemitério estava à vista. Ficamos surpresos com nosso
sucesso e decidimos que, naquele momento, um movimento destemido s^ria
necessário para ultrapassar a porta final que nos levaria à Terra Prometida. Do
nada, apareceu repentinamente um caminhão com o equipamento de TV da
CBS News. Os rapazes do caminhão começaram a descarregar as caixas e engra-
dados metálicos. Aproximei-me deles e lhes perguntei se precisavam de ajuda.
“Claro!”, disse um membro da equipe, rispidamente. “Agarre duas dessas.”
Assim, caros leitores, isso se tornou uma das poucas vezes da minha vida
que parecer um roadie se transformou numa vantagem. Ergui a caixa, Gary
caminhou bem perto de mim, e, antes de você poder dizer “Deutschland über
alies”,105 estávamos dentro do cemitério de Bitburg, livres para perambular
segundo nossa vontade.
Os chefes das sucursais de Boon da Newsweek e da Associated Press, que
tínhamos conhecido em Bonn (onde confiamos em segredo para eles quais
eram nossos planos reais), nos reconheceram e se aproximaram rápido parajnos
cumprimentar.
“Como vocês conseguiram fazer isso?”, perguntou Ken Jones, da AP, com
um grande sorriso.
“Quer dizer, todos eles (os alemães) falaram durante dois meses”, acres­
centou Andrew Nagarski, da Newsweek, “a respeito de como desenvolveram o
arranjo de segurança mais sofisticado para essa viagem; e vocês aparecem na
cidade e, simplesmente, entram aqui.” Nós demos o sorriso daqueles que alfcan-
çaram um grande sucesso. Eles prometeram não revelar nosso segredo. j

135 Literalmente, Alemanha acima de tudo. Esse verso, escrito por August von Fallersleben, que
integra a Das Lied der Deutschen [A canção dos alemães), já fez parte do hino nacional alemqo. (N.
272
ADORO PROBLEMAS

Cerca de uma hora antes da chegada de Reagan, o serviço secreto americano


apareceu em duas vans pretas para “um pente-fino no cemitério”, significando
que eles fariam uma varredura final do lugar em busca de bombas e verificariam
novamente as credenciais de todos.
Todos nós fomos agrupados do lado de fora do cemitério, para que a polícia
pudesse “vasculhá-lo”. Todo aquele trabalho e, naquele momento, não está-
vamos mais no cemitério! Eles nos colocaram numa área ao lado do cemitério e
nos prometeram que voltaríamos para ele assim que a varredura estivesse termi­
nada. Quando o cemitério foi considerado seguro, eles montaram um detector
de metal, ao estilo dos aeroportos, e nos colocaram em fila para atravessá-lo.
Dez, quinze minutos se passaram, e o serviço secreto não conseguia fazer o
detector de metais funcionar. (Isso fez um dos policiais alemães comentar, em
inglês: “Americanos estúpidos; eles conseguem pôr um homem na lua, mas não
conseguir fazer uma coisa simples como essa funcionar!”)
Os secretas finalmente desistiram do aparelho, pegaram seus detectores de
metal de mão e começaram a passá-lo pelo corpo de todas as pessoas da fila,
uma por uma. Eles também estavam fazendo revistas manuais, do tipo que
descobriria a faixa imensa enrolada no tronco de Gary. Parecia que a aventura
tinha chegaado ao fim.
Éramos cerca de vinte na fila, e as coisas estavam andando muito devagar.
Então, quando a pessoa na frente de Gary se adiantou para ser revistada, o chefe do
serviço secreto apareceu e disse: “Estamos atrasados. Ignorem as revistas corporais
e só usem os detectores”. Uau! Gary e eu passamos pelo detector sem problemas.
No entanto, naquele momento, tínhamos de voltar ao cemitério, e, para
voltar, teríamos de voltar a provar que éramos parte do pool de imprensa. Droga!
Não tínhamos aqueles crachás de imprensa azuis da Casa Branca, e percebemos
a polícia afastando algumas pessoas que também não os tinham. Elas estavam
sendo mandadas para longe do cemitério. Aquilo era inaceitável para Gary e
eu. Decidimos que, em vez de ser mandados para longe do cemitério, nossa
melhor aposta era circular diante da porta do cemitério, mas ainda bem no
meio de toda a ação. Ficamos ao lado do caminho que a limusine de Reagan
teria de passar para atravessar a porta do cemitério. O local era perfeito. Não
havia jeito de Reagan escapar de nós. Não precisávamos mais ficar com o pool,
pois os jornalistas dele continuavam a ser conduzidos para os locais oficialmente
273
BITBURG

aprovados. Nenhum desses jornalistas ficaria no alcance da audição de Reagan,


a fim de fazer qualquer pergunta. Ademais, no lugar em que estávamos naquele
momento, estávamos cercados de jornalistas reais, que não tinham nenhuma
obrigação de seguir as regras.
Faltavam poucos minutos para a chegada de Reagan. Assim, pegamos nosso
lugar no caminho e nos preparamos para tirar a faixa. Estávamos numa área
que estava cheia de policiais alemães, jornalistas da imprensa internacional e
algumas famílias que tinham a má sorte de morar nas vizinhanças.
A notícia se espalhou que o comboio estava chegando. Gary e eu —princi­
palmente eu - estávamos ficando cada vez mais nervosos. De repente, senti um
frio na espinha. Que diabos nós estávamosfazendo? Sabia que no momento que
puséssemos o braço dentro dos nossos casacos para tirar alguma coisa, íamos ser
atacados, ou coisa pior. Aquilo era uma maluquice, decidi. Os rostos de todos
policiais e soldados alemães pareciam muito sérios. E nós estávamos prestes a
nos tornar assunto da seriedade deles; um assunto sangrento.
No meu pânico, localizei o correspondente da ABC, Pierre Salinger (ex-secre­
tário de imprensa do presidente Kennedy), e, de imediato, tive uma ideia que
poderia nos proteger de sermos atacados. Fui até Salinger para conversar.
“Senhor Salinger”, eu disse, nervosamente. “Meu amigo e eu estamos aqui,
e não somos parte da imprensa. Estamos aqui para realizar uma ação quando
Reagan chegar; uma ação sem violência. Os pais do meu amigo são sobrevi­
ventes do Holocausto.”
“Como vocês entraram aqui?”, ele perguntou, confuso.
“Temos algumas credenciais e somos de Flint”, eu disse, achando que soou
idiota.
“Tudo bem, não vou revelar o segredo de vocês”, ele prometeu.
“O senhor pode fazer outra coisa por nós?”, disse. “Achamos que eles vão
nos machucar. Quando tirarmos nossa faixa, o senhor pode nos focalizar com
sua câmera, para que eles vejam que a imagem está aparecendo ao vivo na
TV? Tenho a impressão que a última coisa que os alemães querem hoje é uma
imagem deles espancando um judeu no cemitério de Bitburg.”
Salinger riu às gargalhadas daquilo. “Não, eles não querem isso”, ele disse,
ainda rindo. “Eu gosto disso. Eu gosto disso. Tudo bem, você tem minha palavra
que vamos focalizá-los com a câmera para protegê-los.”
“Obrigado”, eu disse. “Obrigado.”
274
ADORO PROBLEMAS

Na rua, a certa distância de nós, pudemos começar a ouvir gritos e aplausos da


multidão. O comboio estava à vista. A hora chegou. Gary pôs sua mão calma­
mente sob o casaco. Ele estava tentando escolher o momento oportuno para que
tivesse tempo de tirar a faixa, me passar uma extremidade e pegar a outra; e isso
tinha de acontecer exatamente quando Reagan passasse por nós. Se isso fosse
feito antes do momento adequado, os policiais nos tirariam dali antes mesmo da
limusine alcançar a porta do cemitério. Feito depois, perderíamos nossa opor­
tunidade. No que ele acreditou ser o momento exato - aquele homem de Flint,
que era tão analmente organizado e mais pontual do que qualquer pessoa que eu
conhecia —tirou a faixa, estendeu uma extremidade para mim e, rapidamente,
a desenrolou, antes que alguém percebesse o que estava acontecendo. Naquele
momento, com Reagan a apenas três metros de distância, estendemos a faixa
na direção da limusine, a centímetros das janelas onde pudemos ver claramente
as expressões de Ronald e Nancy Reagan. O presidente risonho leu a faixa, e sua
expressão mudou num instante, para o que pode ser mais bem descrito como
perplexidade. Nancy não ficou perplexa, mas nos encarou com asco.
Os policiais nos cercaram imediatamente, assim como o operador de
câmera da ABC News. Os policiais viram a câmera e tomaram a decisão rápida
de não bater em nós ao vivo. Tínhamos os humilhado com aquela violação
da segurança; e, sem dúvida, eles queriam nos punir naquele momento. Mas
aquela era a Nova Alemanha, e a violência foi evitada. Enquanto os Reagans
tinham atravessado a porta e estavam saindo do carro, nós ficamos em nosso
lugar. As autoridades pediram para recolhermos a faixa e, não querendo abusar
da nossa sorte, nós obedecemos.
A cerimônia de colocação de coroas de flores nos túmulos durou no total
oito minutos. Mal tivemos tempo de respirar, e os Reagans estavam voltando!
Desobedecendo as ordens, desenrolamos a faixa de novo; uma última oportuni­
dade para o presidente pensar a respeito do que tinha acabado de fazer. “ELES
ASSASSINARAM MINHA FAMÍLIA.”
Com a limusine de Reagan saindo do cemitério a toda velocidade e
entrando nos livros de História, a loucura real começou. Naquele momento,
os moradores locais, que foram suprimidos da reduzida cerimônia presidencial,
275
BITBURG

tiveram permissão para ir ao cemitério de Bitburg e realizar seu próprio gesto


de colocação de coroas de flores. Eles deram o chute inicial com um velhaco
alemão de idade gritando ao acaso: “Judeus, voltem para casa!”. (Ele foi rapida­
mente silenciado, já que, bem, nenhum judeu sobrou em Bitburg que tivesse
uma casa para voltar.) Ficou claro que ele estava se referindo a Gary e a mim,
transtornado conosco por termos aberto a faixa. Ele não tinha nada com o que
se preocupar. Não tínhamos interesse em ficar em Bitburg.
Com as barreiras removidas, um fluxo constante de moradores de Bitburg
apinhou o caminho para o cemitério. Às centenas, eles vinham para lograr seu
intento: depositar coroas de flores e flores sobre os túmulos dos nazistas mortos.
O ponto culminante dessa “colocação de coroas pelo povo” foi quando
Gerard Murphy, representante dos veteranos de guerra americanos, e seu colega
alemão, do grupo de veteranos nazistas, depositaram uma coroa conjuntamente
sobre os túmulos dos SS e declararam a Segunda Guerra Mundial encerrada -
de novo.
“Precisamos nos esquecer da guerra e do Holocausto”, Murphy disse em
seu discurso no cemitério. “Não é bom nos lembrarmos do passado. A situação
atual exige que nos juntemos para combater nosso inimigo comum: o comu­
nismo.” A multidão vibrou. Nós fomos embora.
Para sairmos da cidade, pegamos uma carona com uma mulher alemã que
ia para Hanover e na direção que precisávamos para pegar o avião para casa.
Ela parou no posto de gasolina de Bitburg para abastecer antes de pegarmos a
estrada.
“A senhora sabe”, eu disse, “esse posto de gasolina está onde ficava a sina­
goga antes da guerra. Um homem da cidade nos disse que ela foi queimada
na Kristallnacht (a noite, em 1938, em que os nazistas em toda a Alemanha
destruíram lojas, casas e sinagogas dos judeus). Algumas pessoas querem colocar
uma placa ali.”
Ela disse que não sabia nada daquilo e que tínhamos uma viagem tranqüila
para o norte; exceto pelo fato de ela querer saber mais a respeito do extermínio
dos índios americanos. Ohyeah, baby, todos têm seu holocausto.
Quando chegamos perto de Hanover, Gary sugeriu que fôssemos até o
campo de concentração de Bergen-Belsen, no qual seus pais foram libertados
em 1945. A mulher disse que não sabia onde aquilo ficava - ou o que era.
276
ADORO PROBLEMAS

Agradecemos a gentileza dela, descemos em Hanover e pegamos um táxi até


Bergen-Belsen.

Chegamos em Bergen-Belsen com o Sol se pondo sobre os diversos montes


cobertos de ervas daninhas, que eram as sepulturas coletivas. Os montes ocul­
tavam os 50 mil corpos que foram empilhados debaixo. Nenhuma lápide,
nenhuma Estrela de David, nenhum nome. Apenas terra empilhada e relva cres­
cendo sobre o topo. Ninguém mais estava ali além de nós.
Gary disse que queria ficar sozinho por um tempo. Eu me afastei, sentei
num banco e escrevi essa história.
UMA BÊNÇÃO

Meu padre tinha uma confissão que queria fazer para mim.
“Tenho muito sangue em minhas mãos, Michael”, o padre Zabelka disse,
baixinho. “Eu quero que você saiba.”
O padre George Zabelka e eu estávamos sentados na varanda da redação do
jornal. Ele era o ex-pastor da Igreja Sagrado Coração de Flint (a igreja em que,
tempos depois, eu casaria). Naquele momento, o padre Zabelka estava aposen­
tado, mas ainda trabalhava, executando diversos projetos na região de Flint,
incluindo sua ajuda como voluntário no Flint Voice.
Vivendo no centro de Flint, eu tinha parado de ir à missa cerca de seis
anos antes, e, assim, o “padre George” era a coisa mais próxima que eu tinha de
um padre. Ainda acreditava muito nos princípios básicos da religião: amar um
ao outro, amar seu inimigo, fazer aos outros o que você gostaria que fizessem
a você. Concordava que a pessoa tinha a responsabilidade pessoal de ajudar
os pobres, os enfermos, os presos e os humilhados. Mas eu não era muito a
favor de muitos editos da Igreja a respeito de certas questões, geralmente aqueles
que magoavam as pessoas (gays), tornavam cidadãos de segunda classe algumas
pessoas (mulheres) e usavam o fogo do inferno para assustar pessoas a respeito
do sexo.
Eu apreciava meus encontros semanais ou mensais com o padre Zabelka, e
até freqüentava cultos que ele realizava nas igrejas no Condado de Genesee. De
fato, ele se tornou meu pastor.
Mas, naquele momento, ele queria me dizer alguma coisa. Naquela altura,
eu só o conhecia há poucos meses, e, assim, a conversa de “sangue em minhas
mãos” foi algo surpreendente, e eu, imediatamente, me senti perturbado.
278
ADORO PROBLEMAS

Ele puxou uma foto antiga e apontou para ela. No centro da foto, estava
um avião, e, na frente do avião, havia um grupo de militares da força aérea ameri­
cana. No meio da tripulação, havia um capelão, um padre.
“Esse sou eu”, ele disse, apontando para uma versão mais jovem de si. “Esse
sou eu.”
Ele olhou para mim como se eu soubesse alguma coisa ou quisesse dizer
alguma coisa. Eu olhei para ele, confuso, tentando entender o que era que eu
devia entender. Então, ocorreu-me que ele, como meu pai, carregava em si todas
as cicatrizes daquela guerra. Somente pelo fato de ter estado lá, aquele bom padre
ainda devia sentir que foi parte de muitas mortes e agonias. Eu compreendo.
“Então, o senhor esteve na Segunda Guerra Mundial”, eu disse, de modo
simpático. “O meu pai também esteve. Muita morte e destruição. Deve ter sido
horrível testemunhar. Onde o senhor esteve?”
Ele continuou a olhar para mim como se eu não estivesse entendendo.
“O que está escrito no avião?”, ele perguntou.
Olhei com atenção para ver o que estava escrito no nariz do avião.
Ah!
“Enola Gay?
“Certo”, o padre Zabelka afirmou. “Eu era o capelão do 509ô Grupamento
Aéreo, na ilha de Tinian. Eu era o padre.”
E, então, ele acrescentou: “Em 6 de agosto de 1945, abençoei a bomba
lançada sobre Hiroshima”.
Respirei fundo, olhei fixamente para a foto, desviei o olhar e, por fim, olhei
para ele. Seus olhos negros pareciam ainda mais negros.
“Eu era o capelão do Enola Gay. Rezei a missa para a tripulação em 5 de
agosto de 1945 e, na manhã seguinte, os abençoei quando saíram para sua
missão de massacrar 200 mil pessoas. Com minha bênção. Com a bênção de
Jesus Cristo e da Igreja. Eu fiz isso.”
Não sabia o que dizer.
Ele continuou:
“Três dias depois, abençoei a tripulação e o avião que lançou a bomba sobre
Nagasaki. Nagasaki era uma cidade católica, a única cidade com maioria cristã
no Japão. O piloto do avião era católico. E nós destruímos a vida de 40 mil
irmãos católicos, 73 mil pessoas no total”.
279
UMA BÊNÇÃO

Naquele momento, havia uma névoa em seus olhos, enquanto ele me con­
tava a respeito desse horror.
“Havia três ordens de freiras no Japão, todas baseadas em Nagasaki. Todas
as freiras foram reduzidas a pó. Nenhuma única freira, de nenhuma das três
ordens, sobreviveu. E eu abençoei isso.”
Não sabia o que dizer. Estendi meu braço e pus minha mão sobre seu
ombro.
“George, você não jogou a bomba atômica. Você não planejou a destruição
daquelas cidades. Você estava ali para fazer seu trabalho, para cuidar das neces­
sidades daqueles jovens.”
“Não”, ele insistiu. “Não é assim tão fácil. Eu era parte daquilo. Eu não disse
nada. Queria que nós ganhássemos. Eu era parte do esforço.Todos tinham uma
função a desempenhar. Minha função era fechar os olhos em nome de Cristo.”
Ele explicou que, longe de sentir repulso quando escutou a notícia a res­
peito de Hiroshima mais tarde naquele dia, ele sentiu o que a maioria dos ame­
ricanos sentiu: alívio. Aquilo, talvez, acabaria com a guerra.
“Eu não me afastei por causa daquilo”, ele disse, de modo enfático. “Continuei
como capelão, mesmo depois da guerra, na reserva das Forças Armadas, e na
Guarda Nacional. Por 22 anos. Quando me aposentei, era tenente-coronel.
Poucos capelães alcançam essa patente.”
Então, ele relatou como, um mês após o lançamento das duas bombas, ele
se juntou às forças americanas que desembarcaram no Japão após a rendição
japonesa. Ele acabou em Nagasaki, e viu pessoalmente as pessoas que sobre­
viveram e o sofrimento delas. Ele achou a sede, em ruínas, de uma das ordens
das freiras. Na catedral, ele desenterrou o incensório, com a metade superior
totalmente intacta. Ele participou do esforço de socorro. Fez sua consciência
“sentir-se melhor”.
“Mas o senhor sabia que, na manhã de 6 de agosto, o Enola Gay ia jogar
aquela bomba? O senhor sabia o que era aquela bomba?”
“Não, não sabíamos”, Zabelka disse. “Tudo o que sabíamos era que era uma
bomba especial5. Dizíamos que tinha um “truque”. Ninguém tinha ideia de que
tinha a capacidade de fazer o que fez. A tripulação recebeu instruções especiais:
de não olhar e cair fora o mais rápido possível.”
“Então, se o senhor não sabia, o senhor não é responsável.”
280
ADORO PROBLEMAS

“Não é verdade!”, ele disse, com firmeza. “Não é verdade! É responsabili­


dade de todo ser humano conhecer suas ações e as conseqüências das suas ações,
e fazer perguntas e questionar as coisas quando são erradas.”
“Mas, George, era uma guerra. Ninguém tem permissão de fazer perguntas.”
“E é exatamente esse tipo de atitude que continua a nos colocar em mais
guerras; ninguém fazendo perguntas, especialmente nas forças armadas. Obe­
diência cega; não deixamos os alemães escapar impunes com essa desculpa,
deixamos?”
“Mas, George, a diferença era que nós éramos os mocinhos, nós fomos os
que foram atacados.”
“Tudo verdade. E a história é escrita pelos vencedores. Uma questão inte­
ressante poderia ser levantada se os japoneses já tivessem decidido se render. Nós
quisemos jogar aquelas bombas. Quisemos enviar uma mensagem para os russos.”
Ele olhou direto para mim.
“Você pode dizer que eu não sabia nada antes de Hiroshima, a respeito
do que aquela bomba faria. Mas e três dias depois? Eu sabia então. Eu sabia o
que aconteceria para a cidade seguinte, que seria Nagasaki. E, no entanto, eu
abençoei... Eu abençoei a bomba. Eu abençoei a tripulação. Eu abençoei o mor­
ticínio de 73 mil pessoas. Que Deus tenha piedade de mim.”
George me revelou como, entre 1965 e 1970, ele teve seu “momento de São
Paulo”, quando “caiu do seu cavalo”,136e entendeu que os homens no poder não
fazem o bem e que sempre são os pobres que sofrem. Ele decidiu dedicar sua
vida ao pacifismo total e se tornou um crítico sem rodeios da Guerra do Vietnã
nos seus sermões dominicais. Envolveu-se no movimento dos direitos civis em
Flint. Era a própria definição de um padre radical. Apoiou o SDS, e quando
os Weathermen tiveram suas deploráveis reuniões do Conselho de Guerra,137
em Flint, em 1969, ele abriu as portas da sua igreja para os participantes (que,
certamente, eram todos não pacifistas), para que tivessem um lugar para dormir.
Ficou conhecido como o padre que não recuava, que não cedia em questões

136 Refere-se ao episódio de quando Saulo de Tarso (depois chamado Paulo de Tarso) cai do cavalo
na estrada para Damasco e recebe a visita do próprio Cristo, convertendo-se ao Cristianismo. (N. T.).
137 Reuniões que ocorreram de 27 a 31 de dezembro de 1969, nas quais decidiram que os W ea­
thermen deveriam entrar para a clandestinidade, declarar uma guerra de guerrilhas contra o governo
americano e abolir a SDS. (N. T.)
281
UMA BÊNÇÃO

de guerra, raça e classe social. Eu tinha ouvido falar do padre Zabelka durante
todos aqueles anos. Nunca soube por que ele era do jeito que era. Agora eu
sabia. E, independentemente de quanto ele trabalhasse em favor da paz, ele
nunca poderia não ser o padre que “abençoou a bomba atômica”.
“Eu terei muito que responder quando encontrar São Pedro naquelas
portas”, ele disse.“Tenho a esperança que ele terá misericórdia de mim.”
Fiquei agradecido com o fato de ele ter me contado sua história, e escrevi
a respeito no meu jornal. Ele continuou a ajudar o Voice, realizando as tarefas
humildes que precisavam ser feitas, como jogar fora pilhas de papel em depó­
sitos na extremidade norte de Flint.

Quatro anos depois, o padre Zabelka decidiu que era hora de realizar mais uma
penitência - e difundir sua mensagem de paz. Ele começou uma caminhada que
começou nos Estados Unidos e terminou na Terra Santa —uma caminhada literal
de Seatde a Nova York, depois uma viagem aérea sobre o oceano (ele não tinha
aperfeiçoado o ato de andar sobre a água) e, em seguida, uma nova caminhada até
Belém.Um total de quase treze mil quilômetros. E ele fez isso em apenas dois anos
e pouco. Nas paradas ao longo do caminho, ele contava a história de sua transfor­
mação de capelão a favor da guerra em pacifista radical.
Depois que ele voltou, passou no Voice certo dia, dizendo que queria me ver.
“Michael, estive pensando durante algum tempo e me perguntando por
que você deixou o seminário, por que você não se tornou um padre.”
“Bem, por diversos motivos”, eu disse. “Eu só tinha quatorze anos quando
entrei. Aos quinze, os hormônios entraram em operação. Além disso, eu não me
preocupava, e nem me preoçupo, com a instituição e sua hierarquia. E o que a
instituição diz representar tem pouco a ver, hoje em dia, com os ensinamentos
de Jesus Cristo.”
“Ah, e eles também me pediram para não voltar.”
Zabelka pode ter sido um “padre radical”, mas ainda era um padre e ainda
muito fiel à Igreja Católica.
“Estive lendo alguns dos seus comentários a respeito da Igreja e do papa no
Voice, e estou preocupado com você. E com sua alma.”
282
ADORO PROBLEMAS

Eu ri. “George, você não precisa se preocupar comigo e com minha alma.
Eu estou bem.”
“Mas parece que você deixou a Igreja.”
“Digamos simplesmente que sou um católico em recuperação.”
Essa afirmação não foi bem recebida.
“Você poderia me fazer um favor e rezar comigo neste exato momento?”
“O senhor está falando sério?”
“Sim. Só quero me certificar que você vai ficar bem.”
“Eu vou ficar bem. E eu rezo quando preciso.”
“Só diga o Pai Nosso comigo agora.” Ele começou: “Pai Nosso, que estais no
céu, santificado seja o vosso nome... ”
“George: pare. Isso não é necessário.”
"... Venha a nós o vosso Reino, sejafeita a vossa vontade, assim na terra... ”
“George! Pare! Isso está me incomodando!”
“Não diga isso a respeito do Pai Nosso, Michael”, ele disse, interrompendo
a reza. “Acho que você precisa disso.”
“Não preciso disso. Não quero isso. E não sei o que está havendo com o
senhor.”
Ele ficou calado. Olhou para mim. Não disse nada. Eu não sabia o que
dizer. O silêncio era torturante.
“É importante você levar adiante”, ele disse, quando finalmente falou. “É
importante fazer o que você faz. Mas você não pode fazer isso sem a Igreja. Você
precisa da Igreja e a Igreja precisa de você. Você precisa voltar a freqüentar a
missa. Você precisa encontrar um lugar dentro da Igreja onde você possa achar
a paz.»
Entendi que ele estava falando a respeito dele mesmo. Entendi que ele
ainda se culpava pelo que aconteceu na ilha de Tinian, e que, se não fosse a
Igreja, a fé dele, quem sabe o que aconteceria com ele. Para cada flagelação que
ele se aplicou por causa de Hiroshima e Nagasaki, ele teve a Igreja Católica para
lhe dar uma possibilidade de se redimir. Ele ainda era um padre. Ele ainda podia
fazer o bem com isso, e, talvez, em sua mente, se ele fizesse o bem em quanti­
dade suficiente, ele seria perdoado no dia do juízo final. Olhei para aquele velho
homem e entendi os demônios que ele ainda carregava consigo. Fiquei ofendido
283
UMA BÊNÇÃO

que ele achasse que eu precisava de algum tipo de “salvação”. Era uma coisa fácil
perdoá-lo.
Eu falei:
“Opão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-
-nos do mal. Amém. ”
Ele sorriu. “Ora! Não foi tão difícil, foi?”
“Não, George”, eu disse, gentilmente. “Não foi.”
“Ótimo! Agora, o que você quer que eu faça com o papel da próxima
semana?”
ABU 2 U 2m

Abu Nidal tinha um presente de Natal para mim. Ele ia me matar.


Não que ele quisesse me matar especificamente. Era mais como uma loteria
de nomes. Ou talvez ele só estivesse planejando um jogo doentio de amigo
secreto.
Mas ele e eu, para o bem ou para o mal, tivemos um encontro não plane­
jado certa manhã, na semana do Natal de 1985, no aeroporto de Viena.
E eu sobrevivi para contar esta história.
Abu Nidal era o terrorista mais temido do mundo em meados da década de
1980; o Osama bin Laden do seu tempo. Ele era temido até por Yasser Arafat
e a OLP, a Organização para Libertação da Palestina. Depois de romper com
Arafat uma década antes, Nidal criou o Conselho Revolucionário do Fatah,
ou, como ele preferia chamar: Organização Abu Nidal. Nidal acreditava que
Arafat estava sendo muito brando em relação a Israel. Ele se opunha a quaisquer
concessões e acreditava que o ataque a alvos militares era uma perda de tempo;
achava que todos os esforços deviam ser direcionados contra civis. Ele só queria
matar judeus, e algum palestino que quisesse sentar e negociar com os judeus.
Ele era desse jeito.
O que levou Nidal a essa trajetória pareceu evidente em sua infância. Seu
verdadeiro nome era Sabri al-Banna, e seu pai, Khalil al-Banna, era um dos
homens mais ricos da Palestina, possuindo milhares de hectares de pomares e

138 Abu para você também. (N. T.)


285
ABU 2 U 2

exportando frutas para a Europa. Diziam que 10% das frutas cítricas que iam
da Palestina para a Europa vinham das árvores frutíferas da família al-Banna.
A partilha (que palavra educada) britânica da Palestina e a subsequente
criação do estado israelense - e das várias guerras que se seguiram —deixaram os
al-Banna quase sem nada. Como Sabri era o décimo segundo filho de uma das
muitas mulheres de Khalil, não restou muita coisa para ele. De fato, quando seu
pai morreu, sua mãe foi expulsa da família, e Sabri foi marginalizado e deixado
a se defender por si mesmo. Isso resultou em diversas situações abusivas, que o
tornaram um garoto muito revoltado; que, depois, virou um rapaz muito revol­
tado, que queria a devolução de uma árvore frutífera ou duas.
Ele escolheu o nome Ábu Nidal (“pai da luta”) e foi ficando cada vez mais
impaciente com a OLP. Um dos primeiros trabalhos depois que ele criou seu
próprio grupo dissidente foi começar a assassinar a liderança da OLP. Ele odiava
aqueles líderes mais do que odiava os israelenses, mas ele também dedicava um
tempo a matar israelenses. Num período de vinte anos, ele coordenou ações
terroristas em mais de vinte países, matando, no mínimo, novecentas pessoas.
Ele era bom no que fazia.
Em outubro de 1985, apenas dois meses antes de eu cruzar caminho com
Nidal, um outro grupo dissidente rival, a Frente de Libertação da Palestina,
liderada pelo igualmente temido Abu Abbas, sequestrou um navio de cruzeiro,
o Achille Lauro, na costa do Egito, e matou um idoso americano chamado Leon
Klinghoffer. Os terroristas deram um tiro na cabeça de Leon enquanto ele estava
sentado na sua cadeira de rodas, e depois jogaram ele e sua cadeira direto no mar
Mediterrâneo.
Esse ato chocou a maior parte do mundo, e era justo dizer que os palestinos,
os muçulmanos e os árabes estavam criando um problema de relações públicas.
Eu vivia numa região dos Estados Unidos - sudeste de Michigan - que
tinha (e ainda tem) mais árabes-americanos e pessoas de descendência árabe
per capita que qualquer outra parte do mundo não árabe. Cresci com pales­
tinos, libaneses, sírios, iraquianos, egípcios. Mas principalmente palestinos, a
quem chamávamos de árabes, mas que considerávamos brancos, do modo que
costumávamos considerar os hispânicos como brancos (sem dúvida, eles eram
morenos, mas também eram católicos; assim, ganhavam meio ponto).
286
ADORO PROBLEMAS

Os árabes em Flint eram donos dos empórios, do cinema, da loja de depar­


tamentos, da imobiliária e de diversos postos de gasolina. Dizer que as pessoas
de Flint gostavam dos árabes seria como dizer que elas gostavam de si mesmas.
Um homem nascido na Palestina era mais propenso a ter feito o seu parto na
maternidade do que explodir um avião com você dentro. Muito mais. Simples­
mente, não tínhamos a visão deles como “terroristas” e, assim, quando a palavra
árabe ou palestino virou um palavrão, não virou para a maioria de nós. Pergunte
para qualquer pessoa em Flint que comprava comestíveis no Hamady s, adquiria
suas roupas escolares no Yankees, comia no restaurante American ou dançava
no Mighty Mighty Mikatam, e ela não saberá do que você está falando quando
disser a ela que os donos desses estabelecimentos tiveram suas terras invadidas
ou tiradas deles pelos israelenses, no outro lado do mundo.
Esse não era um sentimento muito difundido no resto dos Estados Unidos.
Um árabe tinha praticamente virado sinônimo de “pessoa má”, e entre a OPEP
subindo o preço do petróleo e provocando “escassez de petróleo”, as duas guerras
recentes com Israel (1967 e 1973), e o assassinato dos adetas israelenses nos
Jogos Olímpicos de Munique, os americanos já tinham visto o suficiente para
chegar à conclusão que a última pessoa que queriam ver na sua vizinhança ou
num voo para Fargo era um árabe.
Uma fundação árabe-americana decidiu que também tinha visto o sufi­
ciente, e abriu um escritório de informação e educação em Washington. Essa
fundação enviava comunicados à imprensa para reagir aos artigos sobre terro­
rismo na mídia, divulgando notícias a respeito do que os árabes-americanos
estavam fazendo em favor dos Estados Unidos. Enviava conferencistas para
palestras com estudantes nas universidades. Também patrocinava viagens de
estudo de grupos de escritores e jornalistas ao mundo árabe, para lhes mostrar
pessoalmente como a maioria dos árabes vivia e se comportava.
No verão de 1985, candidatei-me a uma dessas viagens. Os assuntos refe­
rentes aos árabes eram uma preocupação para os leitores do meu jornal, o
Flint Voice (que já era, naquele ano, o Michigan Voice), muitos dos quais eram
árabes-americanos de Flint e Detroit. Eu nunca tinha estado naquela região do
mundo, e a fundação prometeu pleno acesso a tudo que quiséssemos ver nos
países que visitaríamos, incluindo entrevistas com os líderes daqueles países. Em
287
ABU 2 U 2

novembro, soube que fora selecionado para uma das viagens, e que ela come­
çaria no dia seguinte do Natal.
No anoitecer de 26 de dezembro, viajei de Flint para o Aeroporto John
F. Kennedy, em Nova York, para pegar o voo da Royal Jordanian Airlines que
levaria nosso grupo ao Oriente Médio. Fomos instruídos a nos encontrar no
check-in, e, ali, fomos apresentados ao pessoal de Washington que lideraria a
visita de duas semanas, e também aos outros jornalistas do grupo; cerca de doze
caras que vinham principalmente do mundo dos semanários alternativos ou das
revistas de esquerda. Não havia ninguém da grande mídia e ninguém cuja publi­
cação atingisse mais do que alguns milhares de pessoas. A melhoria da imagem
dos árabes tinha de começar em algum lugar.
Embarcamos no voo noturno da Royal Jordanian de Nova York para Ama,
na Jordânia. O voo ia fazer uma escala em Viena, onde faríamos uma troca de
avião, para outro voo da Royal Jordanian, que então nos levaria para Amã.
Dormi a maior parte da travessia do Atlântico, num Jumbo repleto de pas­
sageiros árabes, em sua maioria. Estudei e li artigos a respeito dos países que visi­
taríamos: Jordânia, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita (depois
tirado do itinerário). Também visitaríamos os territórios ocupados por Israel:
Cisjordânia e Faixa de Gaza.
Quando alcançamos a costa da Europa, o Sol já havia nascido, e, em
uma hora ou duas, começamos nossa descida para Viena. O comandante nos
informou que estávamos cerca de vinte minutos atrasados.
O avião pousou com segurança e começou a taxiar na direção do terminal
de passageiros. Ao nos aproximarmos do terminal, pude ver um avião da El
Al, companhia aérea israelense, parado próximo do portão pelo qual iríamos
desembarcar. Soltei meu cinto de segurança e comecei a juntar meus pertences
para o desembarque, quando, de repente, o piloto pisou firme nos freios. A
força daquilo foi tão grande que minha cabeça bateu no assento da frente.
Não estávamos a mais de dez a doze metros do portão. Olhei através da
minha janela, e, em poucos segundos, veículos militares cercaram nosso avião
e o avião da El Al. Havia alguns jipes com soldados e policiais antidistúrbios,
e um veículo maior que não reconheci, mas que tinha uma grande arma presa
288
ADORO PROBLEMAS

nele. Náo era a família Von Trapp139 nos recebendo na Áustria com uma apre­
sentação de “Edelweiss”.140 Isso pareceu, a princípio, estranho, em seguida,
hollywoodiano e, por fim, assustador.
“Senhores e senhoras”, uma voz nos alto-falantes disse. “Vamos ficar
parados aqui por algum tempo. Permaneçam em seus assentos. Vamos mantê-
-los informados.”
Não mantiveram. A cabine de comando ficou em silêncio. Uma hora se
passou. Ninguém disse nada; ainda que a consciência coletiva nesse avião da
Royal Jordanian fosse ardente e cheia de imaginação:
Fomos seqüestrados? Os seqüestradores estavam na cabine?
Havia uma bomba a bordo?
Havia terroristas que foram identificados como passageiros nesse avião?
O avião da El Al foi seqüestrado? Havia uma bomba a bordo do avião da
El Al?
Havia um incidente dentro do aeroporto, talvez no portão da El Al, perto
do nosso?
Era um treino militar? E por que nós éramos as cobaias?
Não entendia por que não recebíamos nenhuma informação, e os comis­
sários de bordo estavam começando a se sentir da mesma forma. Escolhi um
método simples de descobrir a verdade. Levantei-me do meu assento, fixi até a
cabine de comando e bati na porta. Um comissário de bordo mandou eu me
sentar. A porta da cabine se abriu. Era o copiloto. A hipótese de “seqüestro”
podia ser eliminada da lista.
“Desculpe-me incomodá-lo”, disse, educadamente. “Mas as pessoas
estão ficando assustadas com toda essa atividade e ninguém sabe o que está
acontecendo.”
“Já íamos informá-los. Houve tiros e granadas no saguão de desembarque,
bem aqui, na nossa frente. Há mortos. Estão nos segurando aqui. Isso é tudo
que sabemos. E quero que você volte para o seu assento.”

139 Nome de uma família de cantores austríacos que se apresentou na Europa e nos Estados Unioos
na primeira metade do século XX. A história da família, retratada em livro pela matriarca Maria von
Trapp, inspirou o musical e o filme A Noviça Rebelde. (N. T.)
140 Nome de uma flor encontrada nos Alpes austríacos. Canção-tema composta por Rodgers e
Hammerstein para o musical A Noviça Rebelde, de 1959. Também foi usada na versão cinematográ­
fica. (N. T.)
289
ABU 2 U 2

Fiquei sem fala. De fato, não era a resposta que estava esperando. Estava
esperando que a rampa móvel, a ponte de desembarque, tivesse tido um pro­
blema, ou algo assim. Naturalmente, isso não explicaria a presença dos militares
austríacos.
“Por que o senhor não disse nada?”, perguntei.
“Como disse, íamos informá-los nesse momento. Por favor, volte para o
seu assento.”
Senti-me um pouco nauseado enquanto percorria o corredor do avião.
Uma das pessoas que viajava comigo me perguntou se eu estava bem.
“Não”, respondi. “Não estamos bem.”
Naquele momento, escutamos a voz do comandante nos alto-falantes.
“Infelizmente, tenho uma má notícia, e desejo que todos permaneçam
calmos, pois estamos todos bem”, ele começou. “Houve um incidente no ter­
minal que provocou o fechamento do aeroporto. Parece ter sido um ataque
terrorista contra os passageiros do voo da El Al próximo de nós. O ataque parece
ter terminado, e não estamos em perigo. Pedimos para que permaneçam nos
seus assentos, e daremos novas informações quando as tivermos. Obrigado.”
Então, você está dentro de um avião cheio de árabes e muçulmanos, e recebe
uma notícia amiga como essa. E você não está dentro de qualquer avião; você
está dentro de um avião jordaniano, ao lado do alvo planejado, o avião israelense.
Qual é o estado de ânimo no seu avião? Todos continuam folheando a revista
de bordo Better Homes and Jordarü Os comissários de bordo se desculpam pela
inconveni ência e avisam que os fones de ouvido para o filme serão grátis? Suco
de maçã e amendoins doces torrados de cortesia? Coletes à prova de balas para a
primeira classe e pés pra que te quero para o restante dos passageiros?
Não. O avião se transformou numa zona de pânico. Não numa zona tur­
bulenta, mas numa apreensiva, silenciosa, onde os passageiros alcançaram uma
sensação c e quase sufocamento. Eles sabiam que eram todos —todos —suspeitos
imediatos Aqueles de nós que não éramos árabes evitamos contato visual e
ficamos mudos em nossos assentos. Estar num voo cheio de árabes, numa com­
panhia aéifea árabe, ajudava a nos lembrar que essas coisas geralmente acabavam
mal; e geralmente acabavam bem ali, naquele lugar, numa pista de aeroporto,
exatamente onde estávamos sentados. Os atletas de Munique e seus seqüestra­
dores foram mortos na pista. Assim como um soldado americano num avião
290
ADORO PROBLEMAS

seqüestrado, espancado brutalmente até a morte e jogado pela porta do avião


para a pista. Incursão em Entebbe? Os israelenses chegaram atirando no aero­
porto de Uganda. E então havia o avião da Air France. Eles simplesmente avan­
çaram e mandaram pelos ares aquela coisa. Na pista.

Mais uma hora se passou, e houve uma batida na porta do avião. Funcionários do
aeroporto tinham encostado uma escada de metal naquela porta. Ela foi aberta, e
homens uniformizados e armados entraram. Não era o pessoal do catering.
“Senhoras e senhores, um minuto da sua atenção. Os policiais austríacos
embarcaram no avião e gostariam de ver os passaportes de todos os passageiros.
Agradecemos antecipadamente a cooperação de todos. Não deve demorar.”
Por causa da cor da minha pele e da falta de qualquer xale decorativo em
mim, eu era uma aposta segura e provavelmente não era quem eles estavam pro­
curando. Mas quem eles estão procurando? Achei que o ataque tinha “terminado”.
Eles ESTAO procurando alguém nesse avião!
Nada disso parecia bom, e não importava que eu não fosse um árabe.
Olhei para nossos líderes do grupo com uma expressão indagativa: Que diabos?
Obrigado por me trazerem nessa viagem para melhorar a imagem dos árabes!
Estamos tendo um começo maravilhoso! Mal podia esperar pela próxima escala
da viagem! Passeio com cenários deslumbrantes num ponto de ônibus lotado
de Jerusalém na hora do rush e um “ei, alguém deixou a bolsa aqui... BOOM!”.
Eu morava em Flint. Morava perto de Detroit. Em 1985, os índices de
homicídio nas duas cidades competiam entre si pela liderança dos índices do
país. Eu não estava desacostumado com o perigo ou com atos sem sentido de
ver você no mundo vindouro. Mas aquilo era outra coisa. Eu estava no meio de
um ataque terrorista, em que me disseram que pessoas dentro daquele terminal
tinham morrido.
Eles não nos contaram toda a verdade: que um total de 42 pessoas foram
atingidas por balas e estilhaços de granada. Pior ainda, eles não nos contaram
que, no mesmo momento que o ataque ocorreu a poucos passos de nós, ali
em Viena, outro grupo, da mesma organização terrorista, abriu fogo dentro do
291
ABU 2 U 2

aeroporto internacional de Roma. Dezesseis pessoas morreram ali, e outras 29


ficaram feridas.
Como esses ataques foram planejados para acontecer na mesma hora, a
polícia acreditava que os ataques da manhã não tinham acabado, e que talvez
outros ocorressem. Será que havia terroristas a bordo do nosso avião da Jor-
danian Airlines que tinham planejado se juntar ao ataque quando desembar­
cássemos para a troca de aviões, talvez bem naquele lugar, no portão ao lado
do avião da El Al? Mas não conseguiram porque o nosso voo teve um atraso de
vinte minutos? Se chegássemos no horário, estaríamos no terminal durante o
atentado. Nunca fiquei tão feliz por causa do atraso de um voo (e nunca, desde
aquele dia, reclamei quando um voo está atrasado).
A polícia não queria se arriscar. Queria ver quem estava a bordo do nosso
avião. E estavam preparados para agir.
O processo “Passaporte, por favor” caminhou com bastante tranqüilidade.
Todos os passageiros se comportaram da melhor maneira possível, e havia tanto
silêncio que até os bebês sabiam que não era para chorar ou balbuciar. Após
cerca de 45 minutos sem incidentes, os policiais deixaram o avião. Então, está­
vamos de volta à espera no buraco negro da não informação.
Em certo momento, talvez depois de quatro horas de provação, o piloto
voltou a falar pelos alto-falantes.
“Tudo bem”, ele disse, com um suspiro. “Eis o que nós vamos fazer. Os
austríacos não querem que ninguém a bordo desse avião desembarque e entre
na Áustria. Como a maioria dos passageiros deste voo está indo para Amã,
vamos simplesmente reabastecer e levar todos para Amã, sem troca de aeronave.
Aqueles poucos passageiros que fariam conexão aqui em Viena para pegar outro
voo para o Oriente Médio, deverão fazer isso em Amã. Os passageiros que são
cidadãos austríacos poderão desembarcar agora do avião. Os demais passageiros
permaneçam sentados. Partiremos de Viena em vinte minutos.”
Aqui estávamos nós, a apenas alguns metros do nosso portão, mas os aus­
tríacos não queriam se arriscar. Melhor tirar todos os árabes fora daqui o mais
rápido possível e despejá-los no seu deserto patético. O caminhão-tanque apa­
receu, prendeu suas mangueiras, e abasteceu nossas asas de petróleo árabe para
nosso voo para a Jordânia.
292
ADORO PROBLEMAS

Vinte minutos depois, como prometido, os veículos militares se afastaram,


e nosso avião começou a se mover. Taxiou até a pista e decolou. Menos de três
horas depois, aterrissamos em Amã. Os líderes do grupo deram o melhor de
si para contextualizar o dia, e não havia ninguém entre nós que precisava de
qualquer toque a respeito do equívoco de considerar todos os árabes farinhas
do mesmo saco. Estávamos bem, estávamos seguros, e ainda não sabíamos tudo
o que havia acontecido. Nosso motorista nos levou para Amã, e foi uma linda
vista a chegada pelas colinas sobre a cidade. Achei que talvez Roma fosse assim
antes da sua modernização.
Estava escuro no momento em que chegamos no hotel e fizemos o check-in.
Fui para o meu quarto e deitei na cama, ligando a TV. Estávamos no melhor
hotel de Amã (estavam querendo causar uma boa impressão!). Assim, havia um
canal conhecido como Cable News Network.141 Deitado na cama, assisti ao
horror. Tudo que não soube a respeito dos eventos do dia em Roma e Viena,
fiquei sabendo naquele momento pela primeira vez, com imagens e comentários
em cores. Os 42 corpos espalhados pelo piso do terminal em Viena, e os 115,
em Roma.
A obra de Abu Nidal. Abu tinha escolhido aquele dia, aquele momento,
para um assassinato em massa. Eu simplesmente devia ser um figurante em seu
filme snuff,}42 representado no palco do mundo que ele tinha tomado à força.
Ele não me conhecia nem conhecia qualquer outra pessoa naquele avião ou
naquele terminal. Éramos apenas os sem face, os anônimos, que existiam para
ser atingidos pelas balas da sua metralhadora ou por sua granada, ou pelas duas,
e, então, dependendo da sorte, sangrar até a morte na frente de uma loja duty-
-free. Claro que não éramos sem nome, anônimos e sem terra, pois, se você for
um sem terra, não haverá lojas duty-free nos campos de refugiados, nem suco da
Jamba Juice143 feito com laranjas que eram suas antigamente. Você foi largado
a uma vida em que sangraria até morrer (ainda que de modo mais lento), exa­
tamente como você queria para mim, pois você foi reduzido pelos israelenses
e pelo mundo a uma condição de insignificância, uma chateação que devia

141 CNN, canal de TV especializado em jornalismo. (N. T.)


142 Filmes que mostram mortes ou assassinatos reais, sem o uso de efeitos especiais. (N. T.)
143 Nome de uma cadeia de lanchonetes. (N. T.)
293
ABU 2 U 2

simplesmente sumir. Eu odiava tudo isso e odiava esse mundo que não fui auto­
rizado a viver. Todos são punidos.
O apresentador do telejornai contou a história do que aconteceu em Viena
e Roma com um começo, um meio e um fim - e, ainda que eu tivesse estado
ali, era como se não tivesse. Alguém que verdadeiramente não esteve ali - aquele
âncora em Atlanta, na Geórgia —sabia mais do que eu! E, naquele momento,
tornei-me parte do seleto grupo de pessoas do final do século XX que esteve
presente num ato de terrorismo. Sentei-me na cama e me senti do jeito que
a maioria das pessoas disse que se sentiu sobre a colina relvada144 em Dallas
naquele dia, cerca de duas décadas antes. Você sabia que algo ruim tinha aconte­
cido, você achava que vira algo horrível, mas não podia ser aquilo, simplesmente
não podia ser aquilo! E tudo terminara tão rápido que seu cérebro não conseguiu
captar as imagens bastante rápidas das córneas e processá-las numa explicação
razoável a respeito do que acabara de acontecer. E não havia transmissão radio­
fônica na Dealey Plaza ou no aeroporto de Viena, não havia ninguém ali para
ser seu narrador, seu guia; sjua voz calma, reconfortante, que podia ver como
aconteceu para você. E para confortá-lo. Mas você não pode ser confortado.
Porque você não assiste isso numa tela de 25 polegadas em um bar, em Boulder;
você esteve ali. E você não é seu próprio narrador porque não é uma “história”
para você\ é um momento real de “Vou sobreviver?” E que diabos está acon­
tecendo ali? A TV explicava tudo para mim. No avião, mais cedo, eu estava
relativamente calmo: confuso, sim; preocupado, certamente. Mas não perdi o
controle de mim mesmo, assim como todos os demais passageiros. Sabíamos
que pessoas haviam morrido. Mas também precisávamos ir ao banheiro.
Naquele momento, pela primeira vez no dia, com os olhos fixos na CNN,
comecei a tremer e, depois, chorei. Muito. A notícia na TV era mais real do que
o real que eu tinha estado tão perto. Pensei a respeito daqueles vinte minutos
de atraso do avião. Peguei o telefone e liguei para minha mulher nos Estados
Unidos. Ela estivera ligando para todos os lugares tentando me encontrar. Eu
fiquei em silêncio. E, então, comecei a chorar de novo.

1 4 4 Refere-se a uma pequena colina situada na Dealey Plaza, uma praça no centro de Dallas, no
Texas, famosa por ser o local do assassinato de John F. Kennedy, em 22 de novembro de 1963. (N. T.)
NAZISTA FOGOSA
E BRONZEADA

Sim, ela era fogosa. Sim, era bronzeada. Tinha cabelo loiro e comprido e um
sorriso amável. O que ela estava fazendo ali? Aproximei-me para fazer essa per­
gunta, mas, naquele momento, seu namorado nazista interveio (não, não quero
dizer que seu namorado estava representando um “nazista”; quero dizer que ele
era um nazista real, em um uniforme preto da tropa de assalto). Ele a pegou
pelo braço e a levou para a van Ford Econoline dele, abriu a porta deslizante e
a embarcou na parte de trás, para que eles pudessem, acho, fazer amor, meigo e
nazista, numa tarde ensolarada de abril.

C/S

Algumas semanas antes, eu tinha recebido uma ligação de James Ridgeway, colu­
nista político do Village Voice, em Nova York. Ele queria fazer um documentário
sobre a ascensão da extrema direita no Meio-Oeste, na esteira da recessão eco­
nômica do governo Reagan. A economia estava em má situação nos lugares em
que predominava o setor industrial, e, em Flint, em Michigan, a situação era
particularmente dramática. Os diversos movimentos de extrema direita enxer­
gavam naqueles operários desempregados da indústria automobilística possí­
veis recrutas para seus movimentos de supremacia ariana. Aqueles movimentos
tinham uma resposta simples quanto a por que Flint estava começando a se
desintegrar: “São os pretos e os judeus!”. Isso não funcionava com a maioria das
pessoas, mas atraía uma quantidade suficiente de desesperados, que levavam em
consideração os ensinamentos e as pregações daquela gente.
295
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA

Robert Miles era o ex-chefe da Ku Klux Klan, em Michigan. Ele nasceu em


Washington Heights, um bairro de Manhattan, e, se você o visse, nunca ima­
ginaria que ele era um dos mais notórios grão-mestres da KKK. Ele era amável,
inteligente, esclarecido, e tinha aquele sotaque afável de Nova York, que o fazia
parecer mais um padre em um filme de Bing Crosby do que um racista confesso,
que passou sete anos na prisão por incendiar dez ônibus escolares em Pontiac,
em Michigan; sua contribuição para tentar interromper o plano de integração
racial do distrito.
Miles acreditava na violência e na separação racial. Ele queria que o governo
americano criasse áreas “só para brancos”, onde os brancos poderiam viver em
paz: Montana, Idaho, Wyoming, Oregon e o estado de Washington. Ele daria
Arizona e o Novo México para os hispânicos, e os negros podiam ficar com os
estados do Sul Profundo.
A fim de levar a cabo essa revolução, ele precisava unir os grupos distintos
que constituíam o movimento de supremacia branca, e fazê-los concordar em
trabalhar juntos. Assim, convocou um encontro de racistas a ser realizado num
fim de semana de abril, na primavera de 1986, em sua fazenda no sul de Flint.
Todos pervertidos e brancos, independentemente das suas diferenças, foram
convidados: os diversos grupos da KKK, a Aryan Nations,145 o Partido Nazista
Americano, a Christian Identity,146 os conclaves dos White Powers; todas as
siglas, se fossem racistas e malucas, iriam estar ali presentes.
Ridgeway me ligou para ver se eu seria capaz de convencer o grão-dragão
Miles a deixar ele e sua equipe filmarem o encontro. Ele tinha certeza que a
resposta seria não, mas quis que eu tentasse convencê-lo.
Eu apresentava um programa semanal na emissora de rock de Flint cha­
mado Radio Free Flint. Trouxe o senhor Miles em meu programa duas vezes. Eu
era exatamente o tipo de gentalha que ele e seu pessoal queriam livrar da Terra,
mas ele foi muito legal e educado quando visitou meu programa.
Assim, achei que poderia convencê-lo. Entendia que, se a mente de uma
pessoa apresenta um desvio psicótico, é difícil reverter. Evidentemente, nesse

145 Organização religiosa de extrema direita, criada por Richard Butler, na década de 1970, que
defende a supremacia branca. (N. T.)
146 É um rótulo aplicado a diversas igrejas vagamente associadas com uma teologia racial. (N. T.)
296
ADORO PROBLEMAS

caso, a prisão não reverteu. Ele tinha suas crenças bem arraigadas: enxergava os
brancos como o povo escolhido, e todos os demais estavam aqui para servi-los.
Não seria um mau arranjo se você fosse branco, não?
Liguei para Bob e perguntei se podia ir até sua fazenda pedir-lhe um favor.
Ele ficou feliz de me ouvir e me convidou para almoçar na sexta-feira. Sua
esposa, uma mulher sociável e de bom coração, preparou uma panela de enso­
pado irlandês, biscoitos caseiros e chá gelado. Ele se sentou e me contou a res­
peito dos seus primeiros anos em Nova York. Como adolescente, uniu-se a um
grupo juvenil, cuja principal atividade era ir nos fins de semana na Union Square
e brigar com socialistas e comunistas. Ele frequentou a George Washington
High School, na qual Henry Kissinger estava um ano na frente dele.
Depois do ataque a Pearl Harbor, Miles se alistou na Marinha e lutou
durante toda a guerra. Quando saiu da Marinha, ele e sua mulher se mudaram
para Michigan, onde ele se tornou corretor de seguros. Miles acabaria se tor­
nando o presidente da Michigan Association of Insurance Executives. Naqueles
dias, os corretores de seguro batiam de porta em porta para convencer as pessoas
a respeito da necessidade de um seguro de vida e de um seguro residencial. Era
um trabalho duro, já que aquele novo grupo demográfico conhecido como wa
classe média” não estava familiarizado com o conceito de dar para alguém o
dinheiro suado dela, para algo que talvez ela nunca usasse. Naqueles tempos,
para ter sucesso no ramo de seguros, você tinha de ser um conversador nato,
mas também tinha de ser capaz de possuir a voz da razão... e do medo. Você
tinha de fazer uma família temer todos os possíveis “e se”: e se minha casa
pegasse fogo, e se meu filho ficasse doente, e se eu morresse antes da hora e dei­
xasse minha família sem um tostão furado. Não foi muito tempo antes de quase
todos terem alguém ao qual se referiam como seu próprio “homem do seguro”.
Bob Miles deve ter sido bom nisso e, assim que passou a fazer parte da
KKK, tornou-se o recrutador perfeito para a Aryan Nations: seu corretor de
seguros amigo vendendo-lhe uma apólice simples para protegê-lo dos não
brancos malucos, que estavam vindo incendiar sua casa, roubar suas filhas e tirar
sua vida. A conversa dele era afável e parecia razoável. Ele tinha uma habilidade
que os jecas comuns não tinham e a usou para converter a KKK, em Michigan,
num dos grupos racistas mais poderosos do país.
297
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA

No entanto, naquela sexta-feira à tarde, enquanto outro bule de chá estava


sendo preparado, Miles disse que estava mais do que feliz em deixar meus amigos
de “Hollywood” virem à sua fazenda e filmar ele e seu encontro de racistas.
“Sei que vocês não acreditam no que estamos fazendo”, Miles disse, enquanto
limpava o fundo do prato de ensopado com seu biscoito de farinha branca, “mas,
acho, que, se vocês chegaram a nos conhecer melhor, verão que não temos chifres
nem rabos. Tudo que pedimos é que vocês mostrem honestamente o que vocês
verem ali, deixando as pessoas no cinema decidirem por elas mesmas.”
Disse-lhe que James Ridgeway estava levando dois codiretores com ele: uma
mulher, Anne Bohlen, que tinha recebido uma indicação para o Oscar por um
curta-metragem a respeito da Flint Sit-Down Strike,147e Kevin Rafferty, que tinha
realizado diversos documentários. Contei-lhe que eles não editorializavam seus
filmes, que não usavam um narrador, que eles apenas observavam discretamente
a situação e deixavam as câmeras rodar. Miles gostou de tudo aquilo e deu sua
aprovação para que seu encontro de grupos de ódio fosse exibido num filme.
Ridgeway, Bohlen e Rafferty chegaram um dia antes do encontro, para
poderem me encontrar e elaborar um plano. Era a primeira vez que eu ficava pró­
ximo de uma equipe de filmagem ou algo assim. Eu prestava a máxima atenção.
“OK”, disse Kevin Rafferty, que era evidentemente o líder do grupo. “Mike,
eles confiam em você. Assim, você permanece fiel a nós. Não precisa dizer nada;
nós vamos coordenar as perguntas. Jim fez toda a pesquisa. Só fique por perto,
no caso de precisarmos de você.”
“Claro”, eu disse, excitado pelo fato de integrar uma equipe de filmagem, o
que quer que isso significasse. “O que você precisar.”
“Eu ficarei na câmera principal, Robert será o segundo câmera [Robert Stone,
o aclamado diretor do documentário Radio Bikini], e Anne [Bohlen] cuidará do
som com Charlie e Mo [dois estudantes de cinema]. Somos uma equipe bem
grande. Assim, tentaremos nos camuflar e não nos meter no caminho deles.”

147 Greve dos trabalhadores da General Motors, que começou em Flint, no final de 1936, e durou 44
dias, com a ocupação das fábricas pelos operários. Consolidou o United Auto Workers como grande
sindicato de trabalhadores da indústria, que passou de 30 mil para 500 mil associados em um curto
período de tempo. (N. T.)
298
ADORO PROBLEMAS

“Camuflar-se” não era possível. Quando chegamos na fazenda de Miles, algumas


centenas de sólidos cidadãos americanos nos saudaram, adornados com uni­
formes nazistas, agasalhos esportivos elegantes enfeitados com diversas versões
da suástica, roupas para atividades ao ar livre da KKK, broches e distintivos da
Aryan Nations, faixas que proclamavam o poder branco e a superioridade cristã,
juntamente com diversos rapazes e moças que pareciam que não tinham seguido
as normas de advertência do National Institutes of Health148 com respeito ao
aspecto negativo da procriação dentro de uma única família.
Eles nos viram com desconfiança, mas quase todos estavam dispostos
a ser filmados. Todos, exceto dois gurus do mesmo nível de Miles: Robert
Buder, chefe da Aryan Nations em Hayden Lake, em Idaho, e William Pierce,
chefe da National Alliance (os descendentes do Partido Nazista Americano),
e autor de The Tumer Diaries, um romance a respeito dos Estados Unidos
sendo dominado pelos judeus, o que acarreta uma guerra racial em que os
judeus e os não brancos são exterminados.149
Evidentemente, Pierce e Buder eram bastante espertos para saber que nós
estávamos fazendo algo ruim, e não compartilhavam a atitude de Bob Miles
de não ter nada a esconder. Miles era tratado como o estadista mais velho
do evento e, como era sua fazenda, todos os outros acatavam suas decisões,
mesmo de um modo algo relutante. Recebemos permissão para ficar.
Começamos a gastar nosso tempo com alguns participantes. Não eram
tímidos conosco.
“Quem são vocês?”, um homem perguntou para nós, com muita furia. “De
onde vocês são?” Vocês são agentes do FBI?”
“Somos de Nova York”, Anne respondeu, tentando ocultar ao máximo seu
nervosismo.
“Um bando de judeus!”, ele rosnou. “Sou um antissemita violento! Odeio
todos eles”, ele disse, começando a se afastar.
“Nenhum de nós é judeu”, Kevin disse, tentando relaxar o homem, para ele
continuar falando. Captei a insinuação dele.

148 Órgão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos responsável por
pesquisa biomédica e relacionada à saúde. (N. T.)
149 Menos de uma década depois, esse livro se tornaria uma inspiração para um jovem e seu cami­
nhão cheio de explosivos à base de fertilizante em Oklahoma.
299
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA

“Eu não sou de Nova York”, afirmei. “Sou daqui de perto.”


Como eu não era conhecido naquela época - e, realmente, parecia muito
com a maioria deles —, o homem se virou, me avaliou e prosseguiu, falando
apenas comigo.
“Você não parece um traidor da raça. Você é branco e este é seu país. Foi
tirado de nós por um bando de traidores da raça. Não descansarei até todos
serem eliminados.”
Ocultei a expressão de traidor da raça da melhor maneira possível. Havia
seis de nós e duzentos deles. Nós tínhamos câmeras, e eles tinham armas. Muitas
delas, presumi. Era como se fôssemos patos numa barraca de tiro ao alvo, mas,
em vez de nos deslocarmos de um lado para outro, a uma distância de dez
metros, estávamos andando entre as pessoas mais vis, odiosas e assustadoras
que se pode evocar nos Estados Unidos. Realmente, é uma estupidez estar nessa
fazenda, no meio do nada, pensei.
Não estava pensando assim sozinho. Kevin e Jim sugeriram que voltás­
semos para a van e nos reagrupássemos. Quando saímos do alcance da audição
dos partidários da supremacia, Jim expressou o sentimento coletivo do grupo.
“Não quero ficar na frente da câmera”, ele disse para Kevin. “Acho que
nenhum de nós deve ficar na câmera. É muito perigoso.”
“A última coisa que quero é que eles saibam quem eu sou ou onde eu moro
quando esse filme sair”, Anne acrescentou.
“Acho que isso é uma coisa inteligente”, afirmou Kevin, concordando com
a sensatez expressa. Então, ele se dirigiu para o menos sensato do grupo.
“E você, Mike? Tudo bem? Gostei de como você interagiu com aquele cara.
Você tem vontade de continuar fazendo isso?”
Kevin, o diretor, estava, naquele momento, escalando o elenco; e estava me
escalando como o cordeiro sacrificial! Não tinha ideia de por que você teria de
se preocupar com pessoas que o odiariam uma vez que o vissem em um filme
zombando deles.
“Claro, farei o que for preciso. Não me importo de entrevistar essas pessoas.”
“Você se incomoda de ficar na frente da câmera?”, Kevin perguntou, che­
cando duas vezes.
“Bem, não posso suportar ver um filme de mim mesmo, com toda certeza”,
respondi, honestamente. “Mas ficarei na frente da câmera e me misturarei com
300
ADORO PROBLEMAS

eles se for isso que você quer. Realmente, não tenho medo desses o que quer que
eles sejam. Vivo perto deles. Bando de brancos furiosos.”
Contei-lhe a história da Ku Klux Klan queimando uma cruz no quintal dos
meus avós porque ela era católica e ele era protestante.
“Faço com alegria o que você quiser que eu faça”, disse.
“Você deve pensar a respeito disso antes de concordar”, Anne afirmou.
“Quando o filme estiver passando, eles podem não gostar. Você tem de viver aqui.”
Lembrei-lhes que, por causa da recessão econômica, tinha decidido fechar
meu jornal. Aceitara um emprego em San Francisco; assim, não continuaria
morando em Flint.
“Tudo ficará bem”, tranquilizei-os. “Acho que Flint e eu vimos nosso fim
mútuo.”
“Muito bem”, Kevin disse. “Confie na sua intuição, e seremos capazes de
captar o que você faz com eles. Vamos todos sair daqui vivos.”
Assim, começou minha incursão na indústria cinematográfica. Ao menos,
por aquele fim de semana. Parecia que seria divertido, e rapidamente entrei em
sintonia com meus colegas cristãos brancos.
“Estamos aqui para destruir o ZOG!”, um homem me explicou. Recorri
rapidamente a minha memória, achando que ele estava se referindo a um deus
do filme Zardoz.15°
“O que é ZOG?”, perguntei.
“O Governo Ocupado por Sionistas!”,151 ele respondeu. “Isso é o que
temos agora: um governo ocupado por judeus e traidores da raça.”
Dentro de seu celeiro, Miles tinha instalado um palco, um palanque e
cadeiras para diversas reuniões plenárias. Sem dúvida, foi o mais divertido dos
eventos do fim de semana, quando cada palestrante tentava ser mais excêntrico
do que o palestrante anterior. Um homem disse que seu grupo do poder branco
não aceitava membros de nenhum lugar ao sul de Milão, na Itália.
“Não aceitaremos ninguém em nosso clã abaixo de Milano\ ele disse, reve­
lando seu domínio tanto da geografia europeia como do italiano. “Se forem

150 É um filme britânico de ficção científica, de 1974, dirigido por John Boorman. (N. T.)
151 Zionist Occupied Government, no original. Teoria de conspiração antissemita que afirma que os
judeus controlam secretamente determinado país. (N. T.)
301
NAZISTA FOG OSA E BRONZEADA

abaixo dali, não são nosso povo. Não queremos ninguém abaixo da fronteira
entre França e Espanha. De jeito nenhum.”
“Somos mais nazistas que os nazistas”, ele concluiu.
O palestrante seguinte falou a respeito da vez que ele marchou com seu
grupo de arianos numa rua central da Carolina do Norte.
“Gritei: ‘Acho que temos alguns crioulos por aqui. Onde eles estão?’ E
andamos mais dois quarteirões, e eu vi onde eles estavam. Eles estavam parados
em cada lado da rua, e marchamos no meio deles. Mas não tivemos nenhum
problema, pois eles não atacaram ninguém. Eles só pulavam para cima e para
baixo na calçada. Se você já viu macacos quando ficam excitados, como eles
pulam para cima e para baixo, era o que parecia.”
Um amigo de Miles subiu no palco com sua apresentação de slides mos­
trando numa tela como os brancos dominariam a região do Noroeste Pacífico,
e as outras raças receberiam outras regiões dos Estados Unidos depois da revo­
lução. Isso irritou um homem na platéia.
“Quero dizer que essa é a proposta mais estúpida e ridícula que já ouvi na
minha vida”, ele gritou da sua cadeira. “Se somos guerreiros arianos que con­
quistaram o mundo, por que diabos devemos nos contentar com algum canto
do país? Não me importo de quão belo ele seja.”
Isso perturbou o homem no palco, mas ele seguiu adiante e pediu para sua
mulher entregar os mapas para a platéia. Sem dúvida, as coisas tinham sofrido
uma reviravolta, pois, naquele momento, a platéia ficou do lado do homem que
tinha se oposto a “mudar para algum canto”.
“Moro aqui em Michigan”, outro homem gritou. “Não vou me mudar para
lugar nenhum.”
As coisas se acalmaram quando William Pierce pisou no palco. Ele era a
coisa mais próxima de um deus do rock ali.
Pierce falava como um intelectual, e longe de chatear aquela massa louca­
mente inculta, ele a impressionava com seu vocabulário e sua paixão. Devia ser
bom ter alguém assim tão inteligente (e que não era judeu!) ao seu lado. Ele se
formou em Física na Rice University, e fez mestrado na Cal Tech e doutorado
na Universidade do Colorado. Na década de 1950, trabalhou nos laboratórios
de Los Alamos. Depois, tornou-se professor adjunto da Universidade do Estado
de Oregon.
302
ADORO PROBLEMAS

Pierce falava de modo eloqüente a respeito da necessidade do seu movi­


mento utilizar obras eruditas e até “revistas em quadrinhos com orientação
racial” para alcançar um novo público. Também havia uma nova tecnologia que
podia ajudar.
“A maioria dos lares americanos vai ter esses aparelhos videocassete que
permitem a reprodução de fitas de vídeo”, Don Black, ex-líder da KKK, disse.
“O que devemos ter é nossa própria rede privada de programação de vídeos.”
Durante dois dias, os palestrantes falaram monotonamente, e, exatamente
quando pensávamos que já tínhamos escutado tudo, um novo palestrante apre­
sentou sua teoria a respeito de como a 4mistura racial está ocorrendo atualmente
só pelo fato de trabalharmos e respirarmos muito perto dos negros”; a prova
científica de que um esperma negro fertiliza um óvulo branco não é mais a única
maneira de se ter “sangue crioulo” no seu corpo.
“Os estudos mostraram que você pode assimilar células negras apenas por
estar na proximidade delas.”
“Você não vê um peru se acasalando com uma galinha, vê?”, um idoso
me perguntou num intervalo ao ar livre. “Ou um cachorro com uma gata? Os
animais se acasalam entre si. Nós somos iguais. Qualquer outro jeito, não é
natural.”
Naquele momento, um pastor alemão excitado montou sobre outro
cachorro. Gostei do sincronismo daquele ato, e percebi que Kevin estava a
postos em sua câmera. De fato, notei que Kevin filmava com um olho na ocular
e com o outro aberto, procurando o que mais podia estar acontecendo fora da
visão periférica da sua câmera.
Mas os cães copuladores logo deixaram de ser uma fonte de diversão e se
transformaram num grande problema.
“Ei!”, disse um homem. “O clarinho é uma fêmea?” Ele percebeu que,
na realidade, os dois cães eram machos. Naquele momento, ele estava na pre­
sença de cachorros gays copuladores. Ele estava testemunhando seu primeiro
ato homossexual, e eu senti orgulho de ser capaz de compartilhar aquela visão
com ele.
Os outros homens nas proximidadades não acharam nada daquilo engra­
çado. Até mesmo insinuar que os cães dos nazistas eram homossexuais era
demais para eles.
303
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA

“Pare de filmar isso!”, um deles disse. Prontamente, Kevin pediu desculpas


e afastou a câmera do seu rosto; mas ela continuou filmando tudo. Foi preciso
coragem para manter a câmera ligada, pensei.
Fomos para outra área, e comecei a me envolver com outros participantes.
Perguntei para alguns jovens no que eles trabalhavam. Um trabalhava numa loja
de discos, outro, na indústria automobilística, um terceiro estava desempregado.
O líder deles falou ansiosamente de um tempo em que eles dariam seu passo.
“E quando isso vai acontecer?”, perguntei.
“Assim que os negros decidirem dar o passo deles, e essa economia que os
judeus construíram degringolar. Em cerca de 25 anos.”
Parada perto dele estava sua namorada. Ela também usava o mesmo uni­
forme preto nazista dos demais, mas lhe dera um pouco de estilo, incluindo um
xale azul-claro e um brinco reluzente. Usava sua camisa sem gravata, e tinha
desabotoado um botão ou dois (ou três). Tinha cabelo loiro comprido ondu­
lado e um chapéu sem suástica. Falava com uma voz alta, suave, sexy; seus
olhos estavam realçados com delineador anil, e ela estava bronzeada dos pés à
cabeça. Esperei meio dia para dar meu passo. “Ei, podemos conversar por um
segundo?”, perguntei para ela depois do almoço.
“Claro”, ela respondeu, de modo ardente.
Eu abaixei o volume da minha voz. “O que você está fazendo aqui?”
Ela sorriu.
“Você não parece uma nazista típica. Sabe, aquelas que estamos acostu­
mados a ver nos filmes”, eu disse, surpreso com o tom paquerador vindo de
alguém que, aos 32 anos, ainda não sabia como “dar uma cantada”. “Você podia
estar num comercial de Coppertone!”
Ela deu uma risadinha. “Ahhh”, sussurrou, num tom autodepreciativo,
que era um cruzamento entre Marilyn Monroe e Os Gatões.152 “Sou contra os
judeus. E os pretos.”
Ela piscou os olhos. “Sabe, o poder branco.” Outro sorriso enorme. Sim, o
poder branco. Quente.

152 The Dukes o f Hazzard (Os Gatões, no Brasil) foi uma série de TV exibida nos Estados Unidos
entre 1979 e 1984. (N. T.)
304
ADORO PROBLEMAS

No dia final do encontro do ódio, sentei na sala de estar da casa da fazenda com
alguns “pastores” do movimento Christian Identity. Eles lideravam “igrejas” em
suas comunidades, pregando a mensagem da superioridade branca, não porque
acreditassem que eram melhores que os negros, mas porque Deus disse que eles
eram melhores que os negros.
“Sinto mais desprezo pelos líderes que se dizem cristãos do que pelos
negros”, afirmou Allen Poe, pastor de Grand Rapids, em Michigan. “Os [Billy]
Graham,153 os Falwell”;154 e, então, baixinho, ele murmurou de modo zombe­
teiro: “Schwartz\,J155 (Aquela foi a maneira de ele demonstrar que não acreditava
que “Jerry Falwell” fosse um nome real e que, na realidade, devia ser um judeu.)
“Se, realmente, quiséssemos tomar este país pela forma, deveríamos empilhar
essas pessoas e silenciá-las.”
“Não você ou eu, mas alguma outra pessoa”, levantou-se uma voz no outro
lado do recinto, consciente da presença das câmeras.
“Estamos nos computadores agora”, o reverendo de Grand Rapids conti­
nuou. “Nós estamos fazendo listas. Listas dos brancos que não estão conosco,
listas dos que não estão do lado da sua própria raça. Estamos trocando essas listas
de traidores da reação entre nós. Assim, quando chegar o dia da revolução, sabe­
remos com quem temos de lidar.”
Em certo instante, ele me olhou direto nos olhos.
“Se eles nos reprimirem, onde vamos procurar você? Sob o mesmo rolo
compressor?”
Ele estava me ameaçando? Olhei para Kevin. Não conhecia o protocolo
correto do documentário para lidar com um momento como aquele. Kevin
olhou para mim com seu olho livre, e sorriu.
“Você nunca verá esse dia que quer ver chegar neste país”, eu disse, fria­
mente. “Você não será capaz de fazer nada a respeito disso.”
Uau! Não podia acreditar que tinha acabado de falar aquilo. Todos no
recinto sentiram que eu tinha dito algo temerário: nosso lado, o lado deles, até

153 William Franklin Graham Jr. é pastor batista e televangelista muito popular. Foi conselheiro espi­
ritual de diversos presidentes americanos. (N. T.)
154 Jerry Falwell (1933-2007) foi pastor cristão e televangelista. Tornou-se conhecido internacional­
mente ao denunciar que um dos personagens do Teletubbies era um símbolo gay. (N. T.)
155 Sobrenome judeu, que, em alemão, significa negro. (N. T.)
305
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA

o cão gay deitado no canto. Minhas palavras desencadearam uma explosão do


reverendo Poe, dando a impressão que ele estava prestes a me atacar. Ele me
fuzilava com o olhar.
“Nós não vamos perder, meu senhor!”, ele gritou. “Não me importarei se
dez dos nossos desistirem. Nós vamos vencer!”
Então ele apontou para o teto. “Ele diz isso.”
Preparei-me para um possível ataque. Poe olhou para a câmera e, então, per­
cebeu que bater em mim não o transformaria no herói daquele filme. Afinal,
quem era eu? Apenas um humilde assistente de produção, num pequeno docu­
mentário, que ficou altercado ao fazer algumas perguntas. Mas eu já tinha escu­
tado o suficiente de “Preto isso” e “Preto aquilo” durante todo o fim de semana, e
se ele tentasse qualquer coisa contra mim, meus princípios de não violência teriam
de dar uma volta e regressar em meia hora. Ele voltou a se sentar na sua cadeira.
Sem dúvida, estava chegando a hora de nós fazermos as malas e irmos
embora.
Fomos nos despedir do grão-dragão Miles em seu celeiro. Uma vez ali
dentro, Kevin tinha algo que queria entender.
“Por que o senhor nos deixou vir aqui?”, ele perguntou para Miles. “Prova­
velmente, o senhor sabe que não compartilhamos das mesmas crenças. Então,
por que o senhor permitiu?”
“Convidamos vocês para usarmos vocês da mesma maneira que vocês nos
usaram”, Miles respondeu, calmamente. “Mas o que vocês não sabem é como
nós usamos vocês. Usamos vocês para difundir nossa mensagem a um público
maior. De fato, de cada cem pessoas que virem esse filme, noventa e nove vão
nos odiar; mas uma vai nos amar. E é dessa maneira que vamos construir nosso
movimento. Um aqui, um ali, um de cada vez. Vocês só garantam que vão mos­
trar esse filme a maior quantidade possível de pessoas. Só estamos procurando
aquela única alma em cada platéia. E vocês farão isso acontecer para nós.”
Eram palavras amargas e difíceis de aceitar aquelas ditas por Bob Miles.
Sabíamos que aquilo que ele estava dizendo era verdade. Assim, qual seria nossa
responsabilidade em tudo aquilo? E melhor nunca filmar pessoas ou eventos
como o Aryan Nations, para ignorá-los? Ou é melhor expô-los sem rodeios,
esperando que seja nossa melhor defesa contra eles?
306
ADORO PROBLEMAS

Paramos no posto de gasolina no nosso caminho para a cidade. Havia um cartaz


numa janela que dizia: FILMES PARA VIDEOCASSETE AQUI!
“Uau!”, eu exclamei. “Vejam só. Podemos alugar um filme num posto de
gasolina. É isso o que nos espera? Filmes agora são vendidos como um pacote
de Doritos?”
“Acho que o futuro está ali”, Anne afirmou, indicando uma enorme antena
parabólica no quintal de alguém. “E tenho certeza de que nossos amigos arianos
vão achar uma maneira de fazer bom uso disso.”
“Foi uma boa filmagem”, Kevin observou. “Obrigado por nos ajudar”, ele
disse para mim. “Você teve muito jeito com aqueles sujeitos. Você devia pensar
em fazer mais disso.”
“Divertir-me com nazistas furiosos?”, perguntei.
“Sim, isso”, ele respondeu, dando um sorriso largo.
Entrei e pedi café e lanches para todos.
PARNASSUS

Em 1986, testemunhei um plano de assassinato. Eu estava ali, no recinto,


quando os responsáveis elaboraram seu plano de liquidar a classe média ame­
ricana. Ocorreu numa cobertura de um exclusivo resort de Acapulco, num
encontro privado organizado por altos funcionários do governo Reagan. Entrei
sorrateiramente e vi, escutei tudo e saí vivo, para poder contar uma história que,
infelizmente, ninguém naquela época quis escutar ou acreditar. “A morte da
classe média? Planejada pelo nosso próprio governo? HAHAHAHAHAHAHA.”
Mas, me desculpe: acho que me adiantei um pouco.
Deixe-me começar de novo:
Costumava achar que liberais e esquerdistas eram iguais: bons corações,
boas políticas. Tive um despertar real na capital do liberalismo, San Francisco,
ao perceber que existem diversas formas de “liberais”, e aquele que nunca tinha
encontrado em Flint era o Liberal Rico Que Amava a Humanidade, Mas Odiava
as Pessoas. Ele é o liberal cuja consciência é mitigada pela generosidade do seu
talão de cheques - desde que você, o destinatário da benesse dele, não queira
saber como ele chegou a fazer aquele dinheiro.
Mas me adiantei de novo...

Por quase dez anos, editei e publiquei o Flint Voice (que, em 1983, virou
o Michigan Voice), e nunca ganhei mais do que 15 mil dólares por ano. Em
duas ocasiões diferentes, o Voice ficou tão sem dinheiro que tive de dar um
tempo. Não era incomum eu ter de atrasar o pagamento mensal de 200
308
ADORO PROBLEMAS

dólares do meu aluguel. Não havia muitas empresas interessadas em anunciar


num jornal de denúncias, que ficava constantemente revolvendo a sujeira das
próprias empresas que eram convidadas a anunciar.
Um bom exemplo: o hotel local da rede Howard Johnson. O estabeleci­
mento tinha uma política de não contratar negros e de se recusar a hospedar
afro-americanos. Como eu sabia disso? Um funcionário que trabalhava ali me
contou. Uma coisa que aprendi como jornalista é que há, no mínimo, uma
pessoa insatisfeita em cada lugar de trabalho nos Estados Unidos; e, no mínimo,
o dobro desse número com alguma consciência. Por mais que tentem, simples­
mente não conseguem se omitir diante de uma injustiça.
Esse foi o caso de Carole Jurkiewicz, a chefe da recepção do Howard
Johnsons Motor Inn, na Miller Road, em Flint. Certo dia, ela veio ao meu
escritório e me trouxe diversos formulários preenchidos por pessoas que procu­
ravam emprego no hotel. Muitos dos formulários tinham um asterisco anotado
com caneta no alto.
“Esses são os formulários dos candidatos brancos”, Jurkiewicz revelou. “A
administração me pediu para marcar com um asterisco os formulários de quem
era branco. Depois, o gerente rasgava os formulários de quem era negro.” Dos
130 funcionários, apenas sete eram afro-americanos (naquela cidade de maioria
negra, naquele momento), e quatro deles eram parentes.
Em diversas ocasiões, o gerente disse para Jurkiewicz que: “Os negros não se
importam de ser chamados de crioulos... Eles têm carros grandes... São pregui­
çosos... Geralmente, arrumam confusão... São respondões, não têm respeito...
São todos iguais”.
Era a década de 1980, e essa história pareceu muito podre para ser real. Não
era o sul da década de 1950. Era Michigan, um estado que faz fronteira com o
Canadá. E era a Howard Johnson, uma respeitada rede nacional de restaurantes
e hotéis, e não a lojinha de um matuto. Perguntei a Carole se ela assinaria uma
declaração juramentada confirmando aqueles fatos, e ela e outro funcionário
fizeram isso.
Para verificar com mais atenção, decidi ver o que aconteceria se um amigo
negro meu fosse ao Howard Johnsons procurar um emprego. Lamont entrou,
preencheu um formulário e saiu. Então, Dan, um rapaz branco, entrou meia
hora depois para também procurar um emprego.
309
PARNASSUS

No dia seguinte, Carole me trouxe as cópias dos dois formulários, e, como


era de se esperar, o candidato branco tinha um grande asterisco vermelho no
alto do seu formulário. O de Lamont, porém, não tinha nenhum.
Então, era o momento da segunda parte do flagrante. George Moss, pro­
fessor afro-americano da Beecher High School, de Flint, entrou no Howard
Johnsons na noite seguinte e pediu um quarto. Do lado de fora, no gramado,
deitei-me sobre a grama, de modo que ninguém do lado de dentro pudesse
me ver. Rastejei para mais perto da janela, onde tinha, com minha teleobjetiva
da câmera de 35 mm, uma visão clara da recepção. E, de fato, enquanto eu
tirava fotos, George foi mandado embora após ser informado de que não havia
quartos disponíveis.
Dez minutos depois, fiz um sinal para Mark, um rapaz branco, para entrar
e tentar conseguir um quarto. “Sem problemas”, o homem da recepção disse, e
ofereceu-lhe um quarto de solteiro com cama de casal; tudo isso, captado pela
minha câmera.
Publiquei tudo no Flint Voice, e não demorou muito para a comissão de
direitos civis responsabilizar o Howard Johnsons (o hotel foi condenado a pagar
uma multa de 30 mil dólares para uma das mulheres negras que se candidatou a
um emprego e foi rejeitada). Naquele momento, haveria uma empresa a menos
que discriminaria em Flint - e uma empresa a menos para anunciar no Flint Voice.
Publicar artigos como esse todos os meses, durante dez anos, teve a capa­
cidade incomum de esgotar a receita de propaganda, e comecei a perceber por
que a grande mídia detesta dizer a verdade ao público a respeito de qualquer
coisa que possa lhes custar receitas. Em pouco tempo, o Voice era o pária não só
da comunidade empresarial em Flint mas também da sua elite política (que era
pertencente à comunidade empresarial) e da mídia local (também dependente
da mesma receita de propaganda).
No final de 1985, com o desemprego em Flint bem acima de 20%, havia
cada vez menos maneiras disponíveis de bancar o Voice. Nosso principal ben­
feitor fora Harry Chapin, o maravilhoso cantor de música folk. Anos antes, em
Grand Rapids, entrara sorrateiramente nos bastidores de um show dele. Um
segurança agarrou-me quando me aproximei da porta do camarim de Harry.
“Onde você acha que vai?”, ele gritou comigo.
“Ah, eu só quero falar com o Harry”, disse, sem rodeios.
310
ADORO PROBLEMAS

“Nem pensar”, ele disse, começando a me puxar pelo colarinho. A comoção


foi grande, fazendo Harry abrir a porta do camarim.
“O que está acontecendo aqui?”, Harry perguntou.
“Esse cara disse que queria falar com você”, o segurança respondeu.
“Então, deixe ele falar comigo!”
Com relutância, o segurança me soltou e entrei no camarim de Harry,
incerto de como aquilo aconteceu.
“Então, você queria falar comigo?”, Harry perguntou, sorrindo.
“Ah, sim, me desculpe por causar esse tumulto. Só queria lhe pedir um
favor.”
“Fale.”
“Bem, um grupo nosso de Flint deseja criar um jornal alternativo, e gos­
taríamos de saber se você pode nos ajudar, vindo a Flint e dando um show
beneficente.”
Depois de dizer aquelas palavras, não consegui acreditar o quão presun­
çosas e absurdas elas pareceram. “Ei, estrela do rock—você não tem nada melhor
a fazer - venha para Flint e faça um show para nós!” Meu Deus!
“Fale-me a respeito do jornal de vocês”, Harry pediu. E, assim, eu comecei
a falar. Contei-lhe a respeito de como o jornal local estava a serviço da General
Motors, e que nós queríamos publicar as notícias que não estavam sendo cobertas.
“Parece uma iniciativa respeitável”, Harry afirmou. “Aqui está o telefone do
meu empresário. Ligue para ele, e eu verei o que posso fazer.”
Atônito, deixei os bastidores na Nuvem Sete (por algum motivo, meu
eterno pessimismo sempre me impediu de subir de nível). Voltei a Flint para
contar ao pessoal o que tinha acabado de acontecer. Poucos meses depois, em
Flint, Harry Chapin cantou num show com ingressos esgotados, e, naquele
momento, tínhamos o dinheiro para bancar nosso jornal.
E, nos cinco anos seguintes, até que um trágico acidente na Long Island
Expressway tirasse sua vida, em julho de 1981, Harry Chapin veio a Flint todos
os anos, fazendo um total de onze shows beneficentes para o Flint Voice. Esse
dinheiro nos mantinha à tona, e, depois da morte de Harry, os irmãos dele, Tom
è Steve, e a banda dele, continuariam a tradição de realizar o show anual em Flint.
Mas, em 1985, isso não era suficiente para manter o jornal, e a luta para
continuar sua publicação estava piorando.
311
PARNASSUS

Naquela época, recebi uma ligação de um homem de São Francisco. Era


Adam Hochschild, o liberal multimilionário, que dirigia a fundação que era
dona da revista MotherJones, a maior publicação em circulação da esquerda. Ele
revelou que tinha acompanhado a trajetória do Flint Voice e gostou do que vira,
e quis saber se eu estaria interessado em fazer o que eu estava fazendo em Flint
numa escala nacional.
A proposta pareceu muito boa; e era. Fechei meu amado Voice, vendi tudo
que tinha, e mudei para a Parnassus Avenue, no distrito de Upper Haight, em
São Francisco. Porém, não demorou muito até eu perceber o grande erro que
tinha cometido. Quis transformar a Mother Jones numa revista para a classe tra­
balhadora (a homônima da revista, afinal de contas, Mary “Mother” Jones era
uma sindicalista radical do século XIX). Hochschild (cuja fortuna e herança de
família vinham, em parte, das minas da África do Sul, na época sob o regime
do apartheid) queria uma revista erudita e “sublime” de críticas e reportagens
que rivalizaria com a New Yorker ou Atlantic. De fato, sua segunda opção como
novo editor fora Hendrik Hertzberg, uma intuição que Hochschild deveria ter
seguido. (Tempos depois, Hertzberg se tornaria editor executivo da New Yorker.)
Eu era um verdadeiro peixe fora d’água em San Francisco. Não entendia a
maneira pela qual as coisas eram feitas naquela revista, e minhas iniciativas de
promover mudanças encontravam muita resistência. Eles queriam Paul Berman,
o neochato, cobrindo os sandinistas, na Nicarágua. Eu queria Alexander Cock-
burn. Eles queriam fazer uma reportagem investigativa sobre chás de ervas; eu
queria oferecer uma coluna mensal para um operário da indústria automobilís­
tica de uma linha de montagem de Flint. Eles eram de Marte e eu era de Plutão.
No dia seguinte ao Dia do Trabalho,156 após apenas quatro meses no emprego,
Hochschild me demitiu. Ele disse que nós não tivemos “um bom entrosa-
mento”. Ele tinha razão. Movi uma ação por quebra de contrato e ganhei 60
mil dólares.
Naquele momento, não havia nenhum jornal para mim ao voltar para
Flint, e todas as tentativas de procurar emprego em outras publicações liberais/
esquerdistas tanto na Costa Leste como Oeste foram recebidas como se eu fosse
um leproso. Ninguém da esquerda queria perturbar a Mother Jones. Ninguém

156 Nos Estados Unidos, é celebrado na primeira segunda-feira de setembro. (N. T.)
312
ADORO PROBLEMAS

queria aquele cara de Flint. Exceto o pessoal que trabalhava no escritório de


Ralph Nader,157 em Washington, ninguém me ofereceu trabalho.
E aquela, meus amigos, seria supostamente a última vez que vocês ouvi­
riam falar de mim. Meus quinze minutos de fama nacional tinham se esgotado.
Depois de um mês deitado na cama e lamentando meu destino, levantei-me
e fui a uma livraria. Ali, enquanto passava os olhos pelas prateleiras de revistas,
depard-me com uma publicação de negócios que chamou minha atenção. Dizia:

“EXPO MAQUILA ’8 6”158


PRESENTEDBY
UNITED STATES DEPT. OF COMMERCE
AND
THE AMERICAN CHAMBER OF COMMERCE IN MEXICO
DISCOVER HOW TO USE MEXICO
TO BETTER YOUR BUSINESS
‘M OVING PRODUCTION HERE SAVESJOBSATHOMEV
BYINVITATION ONLYCONTACT USDOC159

Uuh! Queria saber o que era aquilo. Entrei em contato com o Departa­
mento de Comércio para descobrir.
“É uma conferência de três dias em Acapulco para ajudar as empresas ame­
ricanas e contribuir para o crescimento delas”, a voz feminina do Departamento
de Comércio, no telefone, disse. “Destina-se somente a donos e executivos de
empresas. Não é para o grande público nem para a imprensa.”

157 Nascido em 1934, Nader é advogado de renome, que se celebrizou por suas campanhas a favo'
dos direitos dos consumidores na década de 1960. É crítico ferrenho da política externa dos Estados
Unidos, considerando-a imperialista e contrária aos direitos humanos e aos valores democráticos
(N.T.)
158 Maquila ou maquiladora é um conceito que se refere a uma operação que envolve a fabricação
em um país que não é o cliente final e, dessa maneira, oferece um tratamento fiscal e alfandegário
diferenciado. Os principais exemplos desse tipo de operação ocorrem na América Latina. Atual
mente, cerca de 1,3 milhão de mexicanos trabalham em maquiladoras. (N. T.)
159 "Expo Maquila, 86"/Apresentada pelo Departamento do Comércio dos Estados Unidos e pela
Câmara de Comércio Americana do México / Descubra como usar o México para melhorar seus
negócios / 'Mudar a produção para lá protege os empregos em casa!' / Só mediante convite / Entre
em contato com o Departamento de Comércio
313
PARNASSUS

“Claro. Tenho uma pequena indústria de autopeças em Michigan”, eu


disse, falando antes de saber o que eu estava fazendo. “Como posso obter mais
informações?”
A mulher me disse que me enviaria material com informações.
Não sabia o que faria com o material, mas pareceu interessante. Eu estava
em conversas com o pessoal do escritório de Ralph Nader a respeito de ir para
Washington para fazer algum trabalho para eles. Eles tinham duas dúzias de
projetos de interesse público em andamento, incluindo uma revista chamada
Multinational Monitor, que fazia praticamente o que seu nome indicava: moni­
torar as atividades das empresas multinacionais. Contei-lhe a respeito daquela
conferência maluca que ia acontecer no México, que tinha de ser algum tipo
de piada, pois por que o nosso próprio Departamento de Comércio estaria aju­
dando a eliminar empregos nos Estados Unidos, transferindo-os para o México?
“O governo Reagan”, disse John Richard, chefe do pessoal de Nader. “Eles
têm estado ocupados em fazer isso desde que assumiram.”
“Sim, eu sei. Mas isso parece realmente passar do limite, não?”
Tinha tratado desse assunto em Michigan: como a GM estava usando bene­
fícios fiscais para transferir empregos para o exterior, mas, naqueles tempos, não
fui capaz de fazer ninguém me escutar.
“Mandaremos você para Acapulco se você quiser dar uma sondada e nos
dizer o que eles estão planejando fazer”, Richard disse. “Depois, quem sabe
escrever algo para a Multinational Monitor. ”
Uau! Uma missão internacional, eu disfarçado, a intriga! Um trabalho
remunerado! Minha mulher me levou a uma loja de roupas usadas e esco­
lheu para mim as peças de vestuário apropriadas para um resort. Comprei
duas camisas polo, algumas calças de linho, uma camisa havaiana e um terno
barato de tecido listrado amarelado. Equivaleu ao cheque do seguro desem­
prego de toda uma semana. Ela cortou meu cabelo ao estilo corporativo e me
deu seu gel capilar. Comprei um pequeno broche de lapela da bandeira ame­
ricana. Coloquei algumas bijuterias masculinas que comprei numa esquina
de Tenderloin, em San Francisco. Eu não parecia eu.
Registrei-me como presidente de uma pequena indústria (“menos de cin­
qüenta funcionários”) e fui ao México descobrir como despedir todos eles.
314
ADORO PROBLEMAS

Estaria mentindo se não admitisse o quão nervoso e assustado estava


quando cheguei em Acapulco com meu terno de tecido listrado. Não queria ser
descoberto. As pessoas desaparecem no México. Os corpos não são encontrados.
Subi até o andar da cobertura do Excelaris Resort, bem acima das belas
praias de Acapulco. O cartaz na porta dizia: WORK MAKES EVERYTHING
POSSIBLE (O TRABALHO TORNA TUDO POSSÍVEL).
Ouvi sem querer dois homens falando a respeito de como o Departamento
de Comércio tinha de ser “não tão público” em seu apoio a aquele fim de
semana, pois, aparentemente, alguns democratas do Congresso, simpatizantes
dos sindicatos, descobriram uma cláusula, numa “lei ridícula”, sustentando que
seria ilegal - ilegal! - dinheiro dos impostos americanos serem destinados a
algo que promovesse a transferência de empregos para o exterior. Portanto, o
Departamento de Comércio estava ali, não oficialmente, deixando a Câmara
de Comércio e a empresa mexicana Saatchi & Saatchi Montenegro encarre­
gadas de administrar os negócios. O recinto estava cheio de banqueiros, exe­
cutivos, empreendedores e consultores: todos estavam preparados para ajudar
aqueles de nós que tinham vindo a Acapulco aprender como fechar uma
fábrica nos Estados Unidos e transferir suas operações para o sul da fronteira.
Fiz o máximo para me camuflar, e, no primeiro dia, ninguém suspeitou de
nada quando me viu. Esqueci-me que ser um branco bem-vestido era o que
a maioria daqueles sujeitos simplesmente denominava “um cara que chama
a atenção”.
No final de 1986, muitas empresas americanas tinham começado a se trans­
ferir discretamente para o México. Não tanto, porém, que alguém tenha repa­
rado realmente. A General Motors tinha somente treze mil funcionários mexi­
canos (uma gota no oceano em relação à força de trabalho americana da GM,
que perfazia mais de quinhentos mil funcionários); a General Electric tinha oito
mil funcionários no México. As empresas americanas tinham montado fábricas
em cerca de doze cidades da fronteira; do lado mexicano da fronteira. Algumas
dessas instalações ficavam a uma distância de apenas cento e cinqüenta metros
dos Estados Unidos. Era exatamente como estar em casa; exceto que você pagava
aos seus trabalhadores quarenta centavos de dólar a hora, fazia-os trabalhar dez
horas por dia, e assegurava que eles não tivessem direitos trabalhistas. Nessas
fábricas, setenta por cento da mão de obra mexicana eram mulheres, muitas
315
PARNASSUS

delas com menos de 21 anos e, às vezes, com não mais do que 13 ou 14. As
empresas americanas não queriam contratar arrimos de família do sexo mascu­
lino, pois eles tinham mais probabilidade de se sindicalizar e exigir um intervalo
para o banheiro. As mulheres jovens eram mais flexíveis. O único problema real
com elas era que, como jovens de todos os lugares, elas tendiam a ficar grávidas.
Também sofriam de desnutrição e sentiam muita fome. Assim, a GM e outras
empresas fizeram algo interessante: ofereceram controle de natalidade gratuito
para impedir o alto índice de rotatividade e forneceram almoço grátis (pois o
desmaio na linha de montagem causava coisas como deixar o para-brisas passar
na frente do carro).
Al Cisneros, da Comissão do Desenvolvimento Econômico do Texas, falou
ardorosamente para mim a respeito dos planos da General Motors tornar-se a
“maior empregadora do México”.
“A GM vai ter um total de 29 fábricas no México”, ele me contou. “Vai
abrir doze só no próximo ano.”
Ele me disse que o presidente do conselho da General Motors, um homem
chamado Roger Smith, tinha recentemente afirmado que “a mudança para o
México é uma questão de sobrevivência”.
Pensei a respeito disso por um instante e perguntei a mim mesmo: de que
planeta vinha esse sujeito chamado Smith? “Sobrevivência?”No ano anterior, em
1985, a General Motors tinha contabilizado um lucro apenas “acanhado” de 4
bilhões de dólares. Em 1984, a empresa quebrou o recorde de todos os tempos,
com um lucro de 4,5 bilhões de dólares. Ela era a empresa número um do
mundo. E, no entanto, seus dirigentes, constantemente, falavam a respeito de
como a empresa estava “lutando” para sobreviver. Era um truque para convencer
a opinião pública de que, se eles não transferissem parte de sua produção para
o México, a GM poderia afundar - e, então, a economia entraria em colapso
junto. Era uma Grande Mentira, mas, de qualquer modo, o governo Reagan a
engoliu e estava ali a vendendo. Estava vendendo-a porque Reagan, ex-líder
sindical, queria esmagar os sindicatos. Ele ganhou a presidência obtendo muitos
votos dos trabalhadores brancos sindicalizados. Apelando para os seus medos —
em relação à crise dos reféns no Irã, aos negros, ao governo —, ele surfou sobre
uma onda que acabou afogando as próprias pessoas que o elegeram.
316
ADORO PROBLEMAS

Naturalmente, não podia dizer nada disso ao senhor Cisneros; em parte,


porque não conhecia o futuro naquele momento; e, principalmente, porque
revelaria minha identidade. Preocupava-me que minha expressão era tal que
cada palavra do último parágrafo estava estampada no meu rosto.
“Sem dúvida”, respondi. “A GM tem de permanecer competitiva. Se não
cortar as despesas, ela... ela...” Eu lutava para encontrar o final daquela frase.
Devia ter praticado mais minha fala. “Bem, tudo vai se separar.”
“De fato”, o senhor Cisneros concordou (com o que, eu não tenho certeza).
Cisneros tinha outra preocupação: o comunismo. Ele estava angustiado
que, se a América corporativa não desse toda a atenção ao México e estabelecesse
uma cabeça de ponte capitalista, o México poderia facilmente seguir o caminho
de Castro ou dos sandinistas.
“A livre iniciativa é a única coisa que pode salvar o México da revolução
comunista”, ele sustentou. “Se não ajudarmos no desenvolvimento do México,
teremos outra Nicarágua na soleira da nossa porta.”
Ah! Claro. Que mais os partidários de Reagan poderiam usar para explicar
e vender a exportação de empregos para o México? Temos de salvar o México
dos comunas! Ao elevar o padrão de vida dos mexicanos, fazendo-os trabalhar
para nós, eles não vão querer o socialismo, pois desfrutarão do estilo de vida da
classe média.
“Minha expectativa é que, em menos de quinze anos, essas cidades mexi­
canas da fronteira vão se parecer com os subúrbios americanos”, Cisneros acres­
centou. Isso, bem, nunca aconteceu. Com seu alto grau de violência ligada ao
tráfico de drogas, elas começaram a lembrar as áreas decadentes dos centros das
cidades americanas.
Paul D. Taylor, subsecretário assistente do Departamento de Estado para
Assuntos Interamericanos de Reagan, mais cedo naquele ano, afirmou que, se
começarmos a construir fábricas americanas no México, isso poderia ajudar a
deter a maré vermelha na nossa fronteira sul. As fábricas americanas poderiam
ajudar o México a “reorientar” sua economia de suas tendências socialistas para
o nirvana capitalista do seu vizinho do norte.
“Estamos fazendo história aqui”, um dos palestrantes anunciou. “Aqueles
de vocês aqui hoje à noite serão lembrados como os pioneiros, os heróis, que
ajudaram a mudar os Estados Unidos de uma economia baseada na indústria
317
PARNASSUS

para uma economia de serviços, uma economia de alta tecnologia. E vocês serão
capazes de dizer que estiveram aqui quando tudo começou!” Ele parou um pouco
antes de; comparar aquele momento histórico com a Conferência de Wannsee160
ou com os encontros dos chefes de família com Don Corleone. Mas a impe­
tuosidade do momento —a importância de quem eles eram e o que estavam
tramando —não foi perdida por ninguém naquele recinto em Acapulco.

Descobri que havia executivos de, no mínimo, dez empresas de Michigan na


conferência, incluindo altos funcionários da Iroquois Die & Manufacturing,
Deco Grand e Dynacast. Achei sensato evitá-los, pois eles saberiam que eu não
estava no comando de uma empresa de autopeças em Flint. Mas não pude me
conter. Precisava saber por que aqueles vira-casacas estavam planejando demitir
seus semelhantes de Michigan. Queria olhar nos olhos deles, queria saber se eles
iam para o estado de Ohio.
Tirei meu crachá e me sentei na mesa onde alguns deles estavam reunidos.
Arthur Goodsel era o presidente da Huron Plastics. Ele tinha dez fábricas em
Michigan e nos Estados Unidos. Ele me disse que a transferência para o México
que estava levando em consideração não era voluntária.
“Os fabricantes de automóveis estão se mudando para cá; não há dúvida
a esse respeito”, ele disse, com um tom de resignação. “Eles não admitirão isso
publicamente, mas é isso que eles estão fazendo. E eles estão dizendo a fornece­
dores como eu que, se você quiser fazer negócios conosco, será melhor se mudar
para cá também, para estar perto de nós. Caso contrário, tchau! Então, o que
eu devo fazer?”
Essa era a história que escutava de todas as empresas menores. Elas estavam
sendo coagidas e extorquidas a fazer essa mudança. A partir da expressão dos
seus donos, podia ver uma arma invisível sendo apontada para a cabeça deles.
Eles não pareciam que estavam ali de férias.

160 Realizada no sudoeste de Berlim em 20 de janeiro de 1942, no palacete de Wannsee, essa con­
ferência promoveu discussões acerca da "solução final da questão judaica europeia" que levariam
ao Holocausto. (N. T.)
318
ADORO PROBLEMAS

“Sim, eu também”, disse. “Você não acha que quando as pessoas de


Michigan, quando elas descobrirem isso, elas não vão nos castigar e nos expulsar
da cidade?”
“Ah, não sei como vou dar a péssima notícia para meus funcionários”, um
homem chamado “Bill” disse, com tristeza. “Alguns deles estão comigo há vinte
anos. Eles têm famílias. Mas espero que encontrem outros empregos. Há sufi­
cientes para todos em Michigan.”
“Assim espero”, acrescentei.

Abstendo-me do parasailingt dos jetskis, acompanhei todas as palestras e apre­


sentações. Eram hipnotizadoras. Numa tela, mostravam como essa ou aquela
agência governamental americana ajudaria a lubrificar “sua mudança para o
México!”. Pouco tempo era gasto para tentar justificar isso (“Pense a respeito de
todos os empregos de expedição e transporte rodoviário que serão criados nos
Estados Unidos!”). Um palestrante após o outro falou dos campos de ouro que
esperavam pelos empresários no sul da fronteira. E se não entrassem naquela
corrida do ouro, bem, ficariam para trás, exatamente como os fabricantes de
chicotes usados por condutores de charretes ficaram no início do século XX
quando fizeram pouco caso das novas “carruagens sem cavalo”.
Uma bela característica das apresentações foi o racismo. E a generosa men­
talidade colonial que expressavam. Todos os palestrantes usavam o nome gené­
rico “Pancho” sempre que se referiam ao hipotético trabalhador mexicano que
estavam loucos para explorar.
“Pancho fará isso para você! Pancho fará aquilo para você!”
“Pancho não se associará a nenhum sindicato.”
“Pancho é um trabalhador obediente.”
Pancho, é claro, não estava presente no encontro, a não ser aqueles Panchos
que nos serviam filés-mignons e os típicos sorvetes fritos flambados.
No terceiro dia, notavelmente, não tinha sido pego. Fiquei um pouco desa­
pontado que parecesse tão verossímil no papel de CEO. Mas conhecia meu
papel de fabricante de autopeças muito bem para falar de forma convincente
e sabia todos os jargões apropriados para denegrir os sindicatos e os insaciáveis
PARNASSUS

operários. Um sujeito disse que nunca tinha ouvido falar da minha empresa e
ficou me pressionando por mais informações, até eu finalmente lhe dizer que
“minha empresa acabou de inventar um dispositivo revolucionário, e a Chrysler
me proibiu de dizer qualquer coisa”. Então ele parou. Pude perceber que o
alegrou o fato de ele se ver dizendo, em seis meses, que conheceu aquele rapaz
quando aquela invenção era supersecreta!

O jantar de encerramento foi realizado ao ar livre, onde um porco inteiro foi


assado num espeto para nós. O palestrante foi Jim Kolbe, congressista repu­
blicano do Arizona. Kolbe era o grande apoiador da mudança das empresas
americanas para o México, pois, como ele assinalou, “70% dos salários que esses
mexicanos ganham, gastam depois de atravessar a fronteira, em El Paso e Yuma;
assim, é um ganho mútuo para nós!”.
Naquele momento, todos estavam usando adesivos WORK MAKES
EVERYTHING POSSIBLE sobre as roupas. E o ponto principal de Kolbe?
“Essas fábricas americanas no México não eliminam empregos nos Estados
Unidos”, ele disse, com a expressão séria (mas, no fundo, sentia vontade de rir).
“Elas protegem os empregos!”
Kolbe afirmou que “um país livre tem de permitir que as empresas ame­
ricanas funcionem livremente”. Além disso, ele acrescentou, se não for fácil
para a América corporativa atuar no México, “então esses carros e outros itens
serão fabricados na Ásia”. A multidão deu um riso abafado. Ah! Americanos
comprando carros asiáticos! Por favor! E me passe um pouco mais desse porco.
Quando Kolbe terminou, a autoridade mexicana, que era o mestre de ceri­
mônias da noite, fez uma “moção” para “indicar o congressista Kolbe para presi­
dente dos Estados Unidos!”. Em 2010, Barack Obama nomeou Jim Kolbe para
sua Comissão Consultiva de Política e Negociações Comerciais. O leitor pode
tirar suas próprias conclusões. A platéia reagiu com aplausos frenéticos. Sim, é
como nós fazemos nos Estados Unidos: um grupo de executivos empresariais
sentados num recinto e indicando o presidente. O banqueiro japonês sentado
na minha mesa, que, anteriormente, tinha se ressentido um pouco do comen­
tário “asiático”, recebeu tudo com diversão imparcial.
320
ADORO PROBLEMAS

“O que você vê aqui”, ele disse para mim, “é apenas o começo. A GM


fechará aquelas nove fábricas nos Estados Unidos no próximo ano e muitas mais
nos anos vindouros. Esse é o futuro; e algumas pessoas vão se dar muito bem.”
Olhei para a turma que estava exultante com a ideia de que ela ia empacotar
os Estados Unidos (ou, no mínimo, seu recurso nacional mais precioso: seus
empregos) e mudar para o ensolarado México.
O escopo do que eu tinha testemunhado naquele fim de semana era tanto
nauseante como de tirar o fôlego. Uma máquina bem azeitada já estava posta
em movimento para extinguir a classe média americana. E “ninguém sabe disso!’\
eu pensei. Ali estava eu, bebendo vinho e jantando entre os conspiradores.
Nos anos seguintes, eu testemunharia a destruição maciça de cidades como
Flint em todo o país e, pensaria, Eu estava ali! Eu vi o assassinato sendo plane­
jado! O plano para matar o Sonho Americano foi planejado e posto em prática
bem diante dos meus olhos. Uma testemunha de uma execução iminente; e o
executado ainda não tinha ideia de que a arma fora disparada e a bala estava
bem no seu caminho.
No avião, na viagem de volta, com o terno de tecido listrado impecavel­
mente dobrado no bagageiro, pensei muito a respeito de tudo isso e do que eu
estava planejando fazer.
GRATIDÃO

Não sabia nada a respeito de fazer um filme e adoraria contar uma história legal
a respeito de como comecei a filmar quando tinha seis anos com a câmera Bell
& Howell de 8 mm do meu pai, ou de quando freqüentei a escola de cinema da
Universidade de Nova York com Spike Lee, ou de que Martin Scorsese foi meu
professor. Tudo o que sabia, tudo o que fiz, foi ir ao cinema. E, quer dizer, ir.
Numa boa semana, procurava assistir, no mínimo, de quatro a cinco filmes no
multiplex local (em outras palavras, tudo que estreou naquele fim de semana).
Se tivesse sorte, pegaria o carro emprestado e iria para Ann Arbor, para um dos
seis cineclubes que exibiam um clássico ou um filme estrangeiro todas as noites.
Uma sexta-feira realmente especial significava uma viagem para o Detroit Film
Theater, no Detroit Institute of Arts. Numa ocasião rara, fazia uma viagem mais
longa, até Chicago, pois não era capaz de esperar um mês ou dois para o filme
estrear em Michigan.
E, então, havia a loucura, a piração, o impulso de “Pegar o carro... Recuso-me
a ver Apocalypse Notu em Flint, pois não tem o recém-inventado som surround e
o final que Coppola queria”. Um momento. O estúdio exibia aquela versão só
em Nova York, Los Angeles e Toronto. E, assim, eu percorria quase 500 quilô­
metros de estrada até Toronto, para poder ver o final alternativo.
Eu adorava ir ao cinema.
Sempre gostei. Como a maioria das crianças do meu tempô, meus pri­
meiros filmes foram Bambi, Old Yeller, A família Robinson e Álamo. Mas o pri­
meiro filme que me lembro que me causou um forte impacto foi PT-109 (JFK
—O herói do 109), a história de John F. Kennedy, na Segunda Guerra Mundial.
Tinha tudo que um menino de oito anos podia querer: ação, suspense - mas,
322
ADORO PROBLEMAS

naquele caso, a história de um heroi que, inicialmente, fez besteira e levou seu
barco na direção de um destróier japonês. No entanto, ele não deixou esse erro
derrotá-lo. Ele salvou sua tripulação e achou um jeito de trazê-los de volta são
e salvos. Era um rapaz rico e, provavelmente, poderia ter escapado de estar na
linha de frente, mas não era esse tipo de americano. Mesmo aos oito anos, eu
entendia isso.
Tornei-me adolescente quando os grandes filmes do final da década de
1960 e começo da década de 1970 apareceram na tela. Out eram os filmes
caros, feitos segundo as fórmulas do envelhecido studio system,161 como Hello,
Dolly e O fabuloso doutor Dolittle. In eram Sem destino, A primeira noite de
um homem. Perdidos na noite, A última sessão de cinema, Amargo pesadelo, Taxi
driver, Nashville e Ensina-me a viver.
Aos dezessete anos, assisti ao Laranja mecânica, de Stanley Kubrick,
e, então, assisti a todos os outros filmes de Kubrick, e, depois disso, não vi
mais nada dele em retrospectiva. Fui capturado pelo potencial e pelo poder
do cinema. Freqüentei dois cursos de Introdução ao Cinema como calouro na
faculdade, e o professor, o doutor Gene Parola, nos exibiu todos os grandes clás­
sicos, começando com M —O vampiro de Dusseldorfe Metrópolis, e terminando
com Blow-Up e Quem tem medo de Virgínia Woolfi Meu amigo, Jeff Gibbs, fez
os dois cursos comigo, e passávamos horas depois dissecando cada nuance desses
filmes. Dois anos depois, abri meu próprio “cinema de arte” em Flint, onde, em
apenas duas noites por semana, exibia tudo de Truffaut, Bergman, Fassbinder,
Kurosawa, Herzog, Scorsese, Woody Allen, Bunuel, Fellini, Kubrick e todos os
mestres do cinema. Cada filme era exibido quatro vezes, e eu passava as noites
de sexta e sábado assistindo todas as quatro sessões. Na primeira sessão, sentava
perto da tela e apreciava a experiência. Nas três sessões seguintes, sentava no
fundo da sala e estudava os filmes, às vezes anotando. Tornou-se minha escola
de cinema, com uma única sala e com um único aluno.
Eu não gostava de documentários e, assim, raramente ia ver algum. Os
documentários pareciam remédios, como óleo de rícino; algo que eu devia ver
porque eram bons para mim. Mas a maioria dos documentários eram chatos e

161 Refere-se ao conjunto de práticas de produção e distribuição cinematográfica empreendidas


pelos grandes estúdios em Hollywood desde o início da década de 1920 até a década de 1950. (N. T)
323
GRATIDÃO

previsíveis, mesmo quando eu concordava com sua orientação política. Se eu


quisesse escutar um discurso político, por que eu iria ao cinema? Eu iria a um
comício ou a um debate de candidatos. Se eu quisesse escutar um sermão, eu
iria a uma igreja. Quando eu ia ao cinema, queria ser surpreendido, elevado,
triturado; queria rir às gargalhadas e queria chorar; e quando saía do cinema,
queria deslizar na rua como se estivesse no “sétimo céu”. Queria me sentir esti­
mulado. Queria que todas minhas suposições fossem desafiadas. Queria ir para
algum lugar em que nunca tinha estado antes, e não queria que o filme acabasse
porque não queria voltar para onde eu estava. Queria sexo sem amor e amor sem
sexo, e se obtivesse os dois juntos, então queria acreditar que também teria isso,
e para sempre. Queria balançar e ser balançado, e, cinco dias depois, queria que
o filme ricocheteasse na minha cabeça tão loucamente que tinha de ir vê-lo de
novo, imediatamente, naquela noite, sem nada mais importar.
E não sentia nada disso quando ia ver um documentário. Naturalmente,
era muito raro que um documentário passasse em um cinema de Flint, e menos
ainda em qualquer outro lugar do estado. Mas quando isso acontecia, e se o
filme fosse elaborado primeiro como cinema e depois como documentário, isso
me entusiasmava de uma maneira que nenhuma obra de ficção seria capaz.
Sentava no Flint Cinema, na Dort Highway, e assistia Corações e mentes, o docu­
mentário devastador sobre o Vietnã; e, até hoje, não vi filme de não ficção mais
incrível. Outra vez, fui para Ann Arbor e assisti algo que não sabia que era
possível: The Atomic Cafe, um filme cômico sobre um assunto deprimente. Em
Detroit, no Art Institute, vi os clássicos do cinema verdade: Dorit Look Back,
de D. A. Pennebaker; Primaryy de Richard Leacock e Robert Drew; e Point of
Order, a obra radical de Emile d’Antonio. Tempos depois, vi os filmes de Errol
Morris ( The Thin Blue Line), Ross McElwee (Shermans March) e um filme de
não ficção escandalosamente experimental com bonecas Barbie, de um jovem
Tucker Haynes, intitulado Superstar: The Karen Carpenter Story. E certo dia, sem
o uso de qualquer substância, muito depois de eu ter abandonado a faculdade,
enquanto recebia 98 dólares por semana de seguro-desemprego depois de ser
demitido durante o Dia do Trabalho por um rico liberal, e tendo acabado de
passar o fim de semana mais assustador da minha vida em Acapulco - minha
mente reuniu todos esse filmes e cineastas e me deu uma ideia diferente de
qualquer coisa que tinha visto antes, um filme que começou a ser projetado na
324
ADORO PROBLEMAS

minha cabeça e simplesmente começou a se projetar na tela imaginária do meu


lobo frontal. Eu estava duro, deprimido, proscrito e a 5 mil quilômetros de casa.
Estava em Monte Parnassus, em San Francisco, vivendo sob uma gigantesca
torre de telecomunicações de micro-ondas, e queria sair dali, voltar para casa e
fazer um filme! Era loucura, eu sabia, mas o ônibus já tinha saído da rodoviária
e não havia retorno, não havia volta. Não fiz nenhum dia de escola de cinema
e muito menos qualquer educação superior. Não me importava. Tinha minha
ideia. E tinha um novo amigo. Seu nome era Kevin Rafferty.
Kevin era documentarista. Ele fez The Atomic Cafe, um filme inteligente,
divertido, no início da década de 1980. Ele e Pierce, seu irmão, e Jayne Loader,
um amigo, reuniram noventa minutos de cenas e clipes dos arquivos do governo
americano, dos fornecedores de material bélico e das redes de TV do período
da Guerra Fria. Sem narração, eles montaram o filme de uma maneira que fez
a corrida armamentista e o medo da ameaça comunista parecerem exatamente a
demência que eram. Cenas mostrando como se podia sobreviver a um ataque atô­
mico no porão de casa ou na escola (abaixar a cabeça e a cobrir com as mãos sob
uma mesa) diziam mais a respeito da estupidez das duas superpotências do que
qualquer discurso político ou artigo opinativo. O efeito era tanto hilariante quanto
debilitante - e quando você saía do cinema, você tinha certeza de duas coisas: (1)
jamais acredite sem maior análise em algo que o governo ou uma empresa diz a
você; e (2) os irmãos Rafferty não são só grandes cineastas, mas provaram para
mim que um documentário pode ser tanto divertido quanto profundo.
Ronald Reagan era presidente há apenas um ano quando The Atomic Cafe
foi lançado. Os povos americano e russo estavam cansados do gasto de bilhões na
Guerra Fria, e aquele filme tocou naquela ferida. Tornou-se um grande sucesso
entre o público universitário e entre aqueles que gostavam de bons filmes.
Quando a história política de uma época é escrita, os registradores honestos
daquela história escreverão a respeito do impacto que a cultura teve sobre as
mudanças políticas que ocorreram e como ela moldou a época. (Não é possível
contar a história da época dos Direitos Civis e do Vietnã sem mencionar o
impacto de Bob Dylan, Joan Baez ou Harry Belafonte.) Nesse momento, gos­
taria de dizer, só para lembrar, que para cada “Senhor Gorbachev, derrube esse
325
GRATIDÃO

muro!”,162 houve também um “Born in the U.S.A.”163 e umAtomic Cafe. A arte


possui um impacto marcante de mil maneiras despercebidas. Esse trabalho de
Kevin, seu irmão e amigos teve esse tipo de impacto sobre mim.

Flint era a Cidade Esquecida da década de 1980. Outrora uma área metropolitana
vibrante, próspera, que foi o lugar de nascimento da maior e mais rica empresa
do mundo, a General Motors, era, naquele momento, uma experiência cientí­
fica diabólica dos ricos. Pergunta: podemos aumentar nossos lucros eliminando os
empregos das pessoas que não só produzem nossos carros, mas também os compram?
A resposta era sim; se você mantivesse o resto das pessoas do país trabalhando,
elas poderiam comprar seus carros. O que os cientistas malucos não imaginavam
era que aqueles operários da indústria automobilística não só parariam de com­
prar carros tão logo ficassem desempregados, mas também parariam de comprar
TVs, máquinas de lavar louça, rádios relógios e sapatos. Isso, por sua vez, causaria
a ruína das empresas que fabricavam aqueles produtos, ou elas os fabricariam
em outros países. No fim, aqueles que ficassem com os empregos remanescentes
teriam de comprar as coisas mais baratas possíveis com seus salários drasticamente
reduzidos, e, para os fabricantes manterem aquelas coisas baratas, elas teriam de
ser produzidas por crianças de quinze anos na China.
Poucos previram que a retirada de apenas um pequenino fio do tecido da
classe média descosturaria toda tapeçaria em pouco tempo, deixando todos
lutando numa existência em que um come o outro, uma batalha semanal para se
manter à tona. Em certo nível, era pura genialidade política, pois o eleitorado,
tão absorvido em sua sobrevivência pessoal, nunca seria capaz de achar tempo
ou energia para organizar politicamente o local de trabalho, a vizinhança ou a
cidade, para se revoltar contra os cientistas e políticos malucos que projetaram
sua morte.

162 "Mr. Gorbachev, tear down this w all!" foi a última frase de um discurso proferido pelo presidente
Ronald Reagan, em 12 de junho de 1987, no Portão de Brandenburgo, em Berlim, por ocasião do
750- aniversário da cidade. (N. T.)
163 Título de uma canção de 1984, criada e interpretada por Bruce Springsteen. (N. T.)
326
ADORO PROBLEMAS

Na década de 1980, porém, era apenas aquele primeiro fiozinho que estava
sendo removido; mas aquilo estava acontecendo no lugar em que eu vivia: Flint,
em Michigan. O índice de desemprego oficial alcançou 29%. Devia ter sido
uma advertência precoce do perigo. Em vez disso, poucos perceberam. Sem
dúvida, houve alguns que se preocuparam a respeito do nosso apuro e procu­
raram contar a história. Houve uma matéria densa da BBC a respeito de Flint
ser a capital dos desempregados dos Estados Unidos e, depois, houve uma...
ah... ah... hum... Bem, OK, foi isso. A matéria da BBC. De 8 mil quilômetros
de distância. Flint não recebeu a visita de muitos outros para contar nossa his­
tória. Eles estavam muito atarefados falando a respeito da revolução de Reagan,
e de como algumas pessoas estavam prosperando com a economia de corte de
impostos para os ricos e para as grandes empresas. E eles tinham razão. Aqueles
que se deram bem na década de 1989 se deram muito bem; e, realmente, não
existiam muitos lugares que se pareciam com Flint. Exceto as cidades do aço
do vale do rio Ohio, que tiveram sua punição merecida alguns anos antes, e
as fábricas têxteis do nordeste, alguns anos antes de Ohio. O país ainda estava
se dando muito bem, a classe média ainda existia, e ninguém prestava muita
atenção para as cidades sujas e corajosas que produziam seus carros. Os bri­
tânicos sabiam a partir da BBC com o que se parecia uma cidade de joelhos,
e o DNA deles permitia-lhes falar sem rodeios a respeito do motivo pelo qual
aquilo estava acontecendo, quando fizeram sua matéria em Flint. Mas quem
assistiu aquilo? Longe dos olhos, longe do coração. Se você vivesse em Tampa,
em Denver, em Houston, em Seattle, em Las Vegas, em Charlotte, em Orange
County, em New York, o destino de Flint nunca seria o seu. Vocês estavam
dando certo, e continuariam dando certo. Sim, é claro, pobre Flint. Pobre,
pobre, Flint. Pena. Mau.

Certo dia, em 1984, estava sentado na minha mesa, no Flint Voice, e ouvi uma
batida na porta. Dois homens que não pareciam das nossas bandas estavam
parados na varanda, olhando através da porta de tela para ver se havia alguém
em casa.
“Ei, vocês aí”, eu disse. “Posso ajudá-los?”
327
GRATIDÃO

“Claro”, disse o mais alto, com sotaque. “Aqui é o Flint Voice?'


“Claro que sim”, eu disse. “Entrem.”
Os dois entraram.
“Meu nome é Ron Shelton”, o americano se apresentou. “Sou roteirista.
Escrevi Under Fire. Foi exibido no ano passado.”
Apertamos as mãos. “Ah, sim, eu adorei o filme”, disse, um pouco surpreso,
pensando: Esse cara está perdido?
“E eu sou Roger Donaldson”, o australiano se apresentou.
Eu também o conhecia. “Ah, você não fez Smash PalaceV\ perguntei.
“Não passaram aqui, passaram?”, ele perguntou, espantado com o fato
de que havia alguém em Flint que tinha assistido um filme independente
neozelandês.
“Não, vou muito para Ann Arbor”, respondi.
Eu estava tentando me recompor. O que aqueles caras estavam fazendo no
meu escritório?164*Em Flint? Não era Hollywood. Eu estava um tanto boquia­
berto, mas tentando ficar calmo.
“Bem, provavelmente você está querendo saber o que estamos fazendj) no
Flint Voice”, Donaldson disse. !
“De fato, não”, respondi, com uma expressão séria, mas, no fundo, tom
vontade de rir. “Roteiristas e diretores passam por aqui sempre. Na semana pas­
sada, Costa-Gavras fez uma visita com Klaus Kinski.” Ele riu. Ofereci-lhe duas
cadeiras, e eles se sentaram.
“Estou escrevendo um roteiro”, Shelton disse. “Uma espécie de versão con­
temporânea de As vinhas da ira. Soubemos dos tempos difíceis que Flint está
atravessando, acerca das muitas pessoas que perderam seus empregos e tiveram
de fazer as malas e partir do estado. Assim, a história acompanha a vida de uma
família que perdeu tudo aqui em Flint, coloca o pouco que sobrou num cami­
nhão e parte para o Texas em busca de trabalho.” j
“E quando eles chegam no Texas”, Donaldson acrescentou, “são tratados da
mesma maneira que os Joad165foram tratados quando chegaram na Califórnia.”

164’ Ron Shelton seria o roteirista e diretor de Sorte no am ore White men can't jump, e Roger Donal­
dson dirigiria o remake de O grande motim (Rebelião em alto-mar) e Sem saída, o filme de ação e
suspense com Kevin Costner.
165 Nome da família que protagoniza o romance As vinhas da ira, de John Steinbeck, escrito em
1939. (N. T.) !
328
ADORO PROBLEMAS

Sentei-me e olhei para eles... Caramba, queria me levantar e abraçá-los


naquele exato momento... Alguém - de Hollywood - queria contar nossa his­
tória! Achei que tínhamos sido ignorados, esquecidos. Não.
“Assim, o motivo pelo qual paramos para vê-lo é que estamos coletando
informações, histórias e dados, e alguém mencionou que você seria uma boa
pessoa para conversar. E que seu jornal era realmente o único jornal da cidade
cobrindo essa história dò ponto de vista dos trabalhadores.”
“Bem, não sei o que dizer”, afirmei, tentando, ao mesmo tempo, achar as
palavras certas ç,ficar calmo. “Em primeiro lugar, obrigado. Não posso acreditar
que vocês estão realmente aqui e interessados. Isso significa muitíssimo.”
“Nós estamos interessados”, Donaldson afirmou. “Achamos que, de fato,
uma mudança está acontecendo na América, onde aqueles com dinheiro
querem tentar voltar ao passado, para um tempo em que todas as outras pessoas
tinham de ralar, brigar e viver de esmolas. E achamos que isso resultará num
filme poderoso.”
Eles conversaram comigo durante uma hora, pedindo para eu lhes contar
algumas histórias a respeito da vida em Flint, e o que eu faria se fosse eles para
manter a história “autêntica”. Eu falava a cem por hora, dividindo tudo que con­
seguia pensar e dando-lhes meus conselhos a respeito do que eu achava que con­
tribuiria para um bom filme. Eles tomavam notas e pareciam bastante satisfeitos.
“Gostaríamos de levar um pacote de números antigos do seu jornal”,
Shelton disse, quando estávamos encerrando o encontro. “E também gostarí­
amos de fazer uma assinatura. Posso pagar a assinatura?”
(Emoldurei aquela ficha da assinatura e a pendurei na minha parede.)
“Ficaremos em contato se precisarmos de mais alguma coisa”, Donaldson
afirmou. “Vamos de carro de Flint para o Texas, examinando ao longo do
caminho. Obrigado pelo seu tempo. Ficaremos em contato.”
Foram embora como chegaram, e eu peguei o telefone e liguei para todas
as pessoas que conhecia. “Hollywood acabou de passar por aqui!”, berrei no
telefone diversas vezes naquele dia. Não podia crer na aleatoriedade daquele
encontro e no fato de que Flint estrelaria um filme, um filme real!
Naquela mesma ocasião, aproximadamente, Nina Rosemblum, documen-
tarista de Nova York, veio a Flint algumas vezes. Ela também decidiu que Flint
era um tema importante para um filme; e, no caso dela, um documentário. Eu
329
GRATIDÃO

e outras pessoas despendemos muito tempo com ela, e ela parecia pronta para
transformar nossa história num filme. Era estimulante; estávamos contentes que
não íamos mais ser ignorados. O pessoal do çinema tinha dado as caras!
Por qualquer motivo, nenhum dos dois filmes foi realizado, e, como quis
o destino, eu logo iria embora de Flint. Depois de um mês da minha mudança
para a Califórnia, para o emprego dos sonhos de uma vida, estava sentando em
San Francisco, tanto sem sonho nem emprego como vivendo do seguro-deáem-
prego. Deprimido, voltei para Flint, para pensar a respeito de que curso minha
vida deveria seguir. Deveria tentar recomeçar o Flint Voicéi Deveria ser candi­
dato em uma eleição, para, quem sabe, prefeito de Flint? Talvez pudesse tentar
um emprego... bem, não havia onde conseguir um emprego.

Naqueles dias de desemprego, no final de 1986, quando queria ficar sozinho,


ia para o centro de Flint, que era como uma cidade fantasma dentro de uma
cidade fantasma. Levava um jornal, um livro ou um bloco de anotações para
a Windmill Place, um projeto de renovação urbana fracassado, elaborado Ipelo
pessoal que construiu a South Street Seaport, em Nova York. Eles prometeram
fazer por Flint o que tinham feito pelo Lower East Side, em Nova York. Mas,
infelizmente, o rio Flint não era o rio East, e algumas outras coisas também
estavam ausentes. No entanto, meia dúzia de restaurantes lutavam para per­
manecer abertos dentro da praça de alimentação, que ficava vazia durante a
maior parte do dia. Minha vizinha de infância da casa ao lado trabalhava atrás
do balcão da padaria, na Windmill Place. Eu entrava ali, e ela esquentava um
croissant de chocolate para mim. O restaurante chinês, a alguns balcões jdali,
preparava um moo goo gai pan (pedaços de frango com cogumelo) de segunda
categoria, e era isso o que eu estava saboreando alguns minutos antes do n^eio-
-dia, na quinta-feira, 6 de novembro de 1986, quando, na tela da TV suspensa
daquela praça de alimentação desolada, o programa regularmente marcado foi
interrompido por uma transmissão ao vivo da sede mundial da General Motors
Corporation, em Detroit. Roger B. Smith, o presidente da General Motors,
estava parado diante de um pódio, e tinha uma importante declaração a fazer:
330
ADORO PROBLEMAS

“Hoje, nós estamos anunciando o fechamento de onze das nossas fabricas


mais antigas. Eliminaremos quase 30 mil empregos, sendo que os maiores
cortes ocorrerão em nossas instalações de Flint, onde quase 10 mil desses 30 mil
empregos serão eliminados.”
Olhei para aquele homem na tela da TV e pensei: Seu desgraçado, filho de
uma mãe. Você é um terrorista maldito. Você vai eliminar outros 10 mil empregos
aqui, depois de já ter eliminado 20 mil outros em Flint? Sério? SÉRIO?
Eu tinha me esquecido do meu moo goo gai pan. Acalmei-me e pensei:
Precisofazer alguma coisa. Agora. O que eu podia fazer? Eu tinha um cheque do
seguro-desemprego no meu bolso. Tinha um diploma do ensino médio. Tinha
cerca de um quarto de tanque de gasolina no carro.
E, então, tive uma ideia.
Fui até o único telefone público que funcionava e liguei para Ben Hamper,
meu amigo. Ben era o trabalhador da indústria automobilística e escritor que eu
tinha colocado na capa da Mother Jones antes de ser demitido.
“Você acabou de ver Roger Smith na TV?”, perguntei.
“Sim. Mais do mesmo”, Ben respondeu.
“Não consigo mais aceitar isso. Tenho de fazer alguma coisa. Vou fazer um
filme.”
“Um filme?”, Ben perguntou, um tanto surpreso. “Você quer dizer um
vídeo caseiro ou algo parecido com o que fizemos na sua festa de despedida?”
“Não. Um filme de verdade. Um documentário. A respeito de como eles
destruíram Flint.”
“Por que simplesmente não escrever um artigo a respeito disso em algum
lugar, como numa revista ou algo assim? Não sei.”
“Estou cansado de revistas e jornais. Preciso dar um tempo. De qualquer
jeito, eles não me querem. Um filme parece melhor.”
“Mas como você vai fazer um filme se você não sabe como fazer um filme?”
“Já vi muitos filmes.”
“Sim, você já viu muitos filmes.”
“Já vi tudo.”
“Ninguém discute isso. Não conheço ninguém que vai mais ao cinema do
que você. O que você viu ontem à noite?”
331
GRATIDÃO

“Salve-me quem puder. Não, espere; esse eu vi anteontem à noite. Foi Uma
escola muito louca. ”
“Meu Deus, por que você perde seu tempo com essa porcaria?”
“Você está desencaminhando a discussão. Acho que já vi muitos filmes para
saber como se faz um. E eu posso fazer esse filme. E conheço uma pessoa que
pode me ajudar.”

Minha ligação seguinte foi para Kevin Rafferty.


“Gostaria de ir para Nova York e conversar com você.”
“Você não pode falar pelo telefone?”
“Não, quero falar pessoalmente. Você está disponível nesta semana?”
“Claro.”
“Tudo bem. Posso estar aí amanhã à noite.”
Pedi emprestado o carro dos meus pais e dirigi durante doze horas até Nova
York. Encontrei Kevin num bar, em Greenwich Village.
“Quero fazer um filme”, disse para ele, sem rodeios. “Quero fazer um docu­
mentário sobre Flint e a GM. Mas não sei a primeira coisa a respeito de como
fazer isso. E quero saber se você pode me ajudar.” |
Pedir ajuda para Kevin Rafferty foi um gesto maluco; sim, ele era um dbcu-
mentarista premiado, mas estava evidentemente falido. Era como eu pedir para
um morador de rua desenterrar uma moeda de 25 cents do bolso porquje eu
queria um café expresso. Não tinha ideia da situação financeira de Kevin, mas
basta dizer que parecia que eu estava usando roupas da Saks Fifth Avenüe,166
em comparação com Kevin. Ele sempre usava a mesma camiseta preta rasgada,
a mesma camisa xadrez sobre ela, e o mesmo mocassim puído. Fazer documen­
tário não dá dinheiro para ninguém, mesmo se você fizer grandes documentá­
rios como Kevin. Seu punhado de cabelo ruivo parecia que ele o cortava, por
própria conta. Compreensível, considerando sua profissão mal remunerada!. Ele
era alto e magricela; esta última uma condição que supus ser o resultado dd não

166 Rede de lojas de moda de luxo, cujo nome alude à loja localizada na Quinta Avenida, em! Nova
York. (N. T.) j
332
ADORO PROBLEMAS

ter dinheiro para fazer três refeições por dia. Alegrei-me em levá-lo para comer
fora, mesmo sendo num bar que eu não podia arcar com as despesas. Seu único
luxo parecia ser o constante fluxo de cigarros que ele fumava; a marca não era
familiar para mim.
“Bem, isso parece uma grande ideia”, ele respondeu, tornando essa a pri­
meira vez que alguém disse que gostava do meu plano chocante. “O que você
quer que eu faça?”
Hum, tudo?
“Bem, para começar”, disse, timidamente, “você podia me mostrar como
funciona uma câmera de 16 mm.”
“Posso ir para Flint e filmar alguma coisa para você”, Kevin disse, do nada.
Eu queria que ele repetisse aquilo, mas receei que, se ele repetisse, poderia se
revelar que ele realmente disse: “Quero outra Heineken, porfavor, da torneirinha.
uS é r i o perguntei, com os dedos cruzados.
“Claro. Posso levar meu equipamento, e talvez alguém da minha equipe
possa ir. Acho que até Anne Bohlen [sua codiretora em Blood in the Face, o
documentário deles sobre os nazistas americanos] poderá vir.”
Isso era muito além do que eu estava esperando e, verdade seja dita, eu,
realmente, estava achando que um “boa sorte” e “até mais” seria tudo o que eu
conseguiria.
“Uau!”, eu exclamei, ruborizado. “Isso seria incrível. Nossa, eu não estava
esperando isso, mas...”
“Não, seria legal. E eu posso mostrar para você o que você precisa saber.
Posso lhe dar uma semana do meu tempo.”
Uma semana inteira? Em Flint?
“Kevin, ficarei feliz com o que quer que você possa fazer. Você acha que
pode me ensinar essa coisa em uma semana?”
“Não demora muito para saber como o equipamento funciona. A parte
mais importante a respeito de fazer um filme é o que está na sua cabeça, suas
ideias, e, depois, as pulsações e ritmos em ação. Saber como dizer mais com
menos. Ter um olhar aguçado. Escutar as coisas que acontecem nas entrelinhas.
Ter alguma coragem. Eu o observei quando estivemos em Michigan. Você vai
se sair bem.”
333
GRATIDÃO

Em certo momento, comecei a compreender que teria de pagá-lo por


seu tempo e também por sua equipe e equipamento. Eu estava vivendo do
seguro-desemprego e, assim, estava esperando um pouco de compaixão.
“É claro, você sabe, eu o pagarei por isso”, eu disse. “Talvez possamos pensar
em alguma coisa?”
“Não é necessário”, ele respondeu. “Você fez um grande favor para nós, no
nosso filme, e não pagamos nada para você. Assim, nós vamos retribuir o fayor.
Você não tem de nos pagar nada.” j
Fiquei de queixo caído.
“Uau, não sei o que dizer. Obrigado. Muito obrigado. Não consegui nada
nos últimos dois meses, a não ser uma porta após a outra fechada na minha cara.
Realmente, isso é demais. Não sei como agradecer.”
Queria ter um colapso ali mesmo, mas estava em Nova York, sentado numa
mesa, no Village, com um cineasta importante, e quis agir do modo mais frio
possível. Assim, eu sorri. Um grande sorriso.
Kevin me levou ao seu “escritório”, que ficava (e, nesse caso, serei cortês)
num beco que você tinha de atravessar correndo. Era num porão, na MacDoUgal
Street. O lugar parecia o tipo de espaço no qual um restaurante chinês barato
depositava seu lixo ou talvez um cadáver. Não, esqueça isso; ninguém faria isso
para o morto, não ali, independentemente de quão vil ele fosse ou para quem
ele devesse dinheiro. j
Ele percebeu a minha expressão e disse que o dono do prédio fez um trato
com ele, de modo que não lhe custava muito colocar sua moviola Steenbeck no
porão. Além da Steenbeck, havia o que ele chamava de “mesa de rebobinar”,
algumas “caixas de equipamento”, e pilhas e pilhas de filme revelado. Ele ligou
a moviola e me mostrou algumas cenas do filme sobre os nazistas que ele estava
editando. Era legal ver coisas que ele tinha filmado em Michigan, e ainda mais
estranho era escutar minha voz e ver minha cara naquele telinha. A não ser nos
filmes caseiros dos meus pais, foi a primeira vez que me vi num filme. Amei e
odiei.
“Você tornou muito disso possível”, Kevin disse. “Todas suas melhores
coisas estarão no filme.” j
i
334
ADORO PROBLEMAS

Voltei para Flint e comecei a pensar a respeito do que eu filmaria. Eu tinha de


voltar para San Francisco onde minha mulher estava cuidando da nossa mudança
para Washington, D.C., onde nós dois tínhamos encontrado emprego. Em janeiro
de 1987, chegamos em Washington, e, embora me sentisse contente de ter um
trabalho e uma renda, meus pensamentos estavam no filme que queria fazer.
Soube que o UAW, em Flint, estava convocando um comício em 11 de
fevereiro, para assinalar o quinquagésimo aniversário da grande Flint Sit-Down
Strike. Achei que aquele poderia ser um bom momento para começar a fil­
magem. Liguei para Kevin para -saber o que ele achava.
“Bom plano”, ele disse. “Vou reunir todo mundo, levarei todo o equipa­
mento conosco, vou comprar o filme e colocar a despesa no meu cartão de
crédito. Você pode me pagar quando nos encontrarmos em Flint.”
Tive vontade de dizer: Você tem um cartão de créditot\ mas não quis ofendê-lo.
Fiquei contente que ele tivesse um.
“Obrigado”, eu disse.
“Um rolo de dez minutos de Kodak custa cerca de 200 dólares. Levarei
sessenta rolos, aproximadamente. Vai dar 12 mil dólares, mais ou menos. Você
tem condições de bancar?”
“Ah, sim”, eu disse, mentindo.
“Ótimo. Você não precisa revelar o filme imediatamente, mas será melhor
se você fizer isso. Vai custar mais 12 mil dólares, aproximadamente, para a reve­
lação e a transferência de som.”
Engoli em seco.
Eu tinha economizado algum dinheiro do meu trabalho de quatro meses
em San Francisco, mas não seria o suficiente. Teria de vender o imóvel que era
o escritório do Flint Voice. Era uma casa de quatro quartos com jardim, numa
boa região da cidade. A economia deprimida de Flint me daria colossais 27 mil
dólares por ela. Eu estava pronto.
Kevin, Anne e os outros chegaram de Nova York um dia antes do início das
filmagens. Um amigo me ofereceu sua casa para hospedá-los. Naquela noite,
nós nos reunimos na casa dele e convidamos alguns moradores de Flint para dis­
cutir ideias para o filme. Todos tinham uma boa ideia a respeito do que aquele
filme devia ser. Eu estava ficando um pouco acabrunhado, e Kevin fez um sinal
335
GRATIDÃO

para mim, para sairmos um pouco da casa, para ele poder fumar... e ter uma
conversa comigo.
“Os filmes são, sem dúvida, um processo colaborativo”, ele disse para mim,
do lado de fora da casa, no frio. “Mas não são uma democracia. Esse é o seu
filme. Você não tem de realizar reuniões e ter discussões. Nós filmamos suas
ideias. Só precisamos estar ali amanhã e começar a filmar.”
A filosofia de Kevin era simplesmente filmar tudo que acontecesse; estilo
cinema-verdade.
“Tenho um esboço das coisas que gostaria de fazer”, eu disse, tirando a lista
do meu bolso.
“Eu não uso listas de planos de filmagem”, ele disse. “Eu simplesmente
filmo. Mas esse é seu filme. Assim, nós o faremos do seu jeito.” Ele não gostou
da minha ideia de ter uma lista, mas estava disposto a cooperar. “Vamos j ter­
minar essa reunião, dormir um pouco e ir trabalhar de manhã”, ele disse, apa­
gando seu cigarro.
“Roger”, eu disse, o que me lembrou do título que eu tinha criado p$ra o
filme. Decidi esperar por outro momento para lhe contar. Imaginei que ele não
pensaria muito a respeito do título antes de saber o que se teria.
Mas eu sabia o que eu tinha. Eu vivia aquilo por trinta anos, o tempo todo
fazendo anotações mentais. Havia escrito sobre Flint e a GM por mais de uma
década. Eu já estava funcionando em 24 quadros por segundo, embora ainda
não tivesse encontrado a mulher que criava coelhos para vender como “aniinais
de estimação ou carne”, ou um subxerife que despejava as pessoas das suas casas
na véspera do Natal, ou a futura Miss América desfilando num carro aberto
na rua principal de Flint e acenando para lojas com as vitrines tapadas por
tábuas, ou a elite de Flint vestida em uma festa tal como o descrito em O grande
Gatsby167e sem perceber a ironia, ou um programa de turismo após o outro para
convencer as pessoas a passar suas férias em Flint. E eu ainda tinha de encontrar
um homem chamado Roger Smith.
Eu não sabia nada disso quando o primeiro rolo de filme foi colocado na
câmera Aaton de 16 mm de Kevin, num dia frio de fevereiro de 1987. Filmámos

167 Título do romance escrito por F. Scott Fitzgerald e publicado em 1925. Retratando a vida dos
ricos na próspera década de 1920, o autor critica o sonho americano e o materialismo desenfreado.
(N.T.)
336
ADORO PROBLEMAS

a recordação da Sit-Down Strike, e filmamos outras trinta cenas nos sete dias
seguintes. O posto de transfusão onde os desempregados vendiam seu sangue,
a fila do queijo grátis, o porta-voz da GM que dizia que a GM só estava no
negócio para ganhar dinheiro e não para ajudar sua cidade natal. Nós filmamos
do nascer do sol até bem depois do pôr do sol.
Eu observava o que Kevin e Anne faziam, enquanto mostravam coisas para
mim a respeito de como, às vezes, são os pequenos momentos que você capta
com sua câmera ou microfone que contam a história maior. Eles falavam a
respeito de como, com somente dez minutos de filme na câmera (depois dos
quais você teria de parar e recarregar, impedindo, assim, a filmagem por alguns
minutos), você tinha de agir como uma espécie de montador no set e fazer
tudo na sua cabeça. Essa disciplina não só o impedia de desperdiçar filme, mas
também o forçava a pensar a respeito do que era exatamente aquela história que
você estava tentando contar. Eles não consideravam a restrição dos dez minutos
como um obstáculo; consideravam, sim, um beneficio criativo.
“Imagine se tivéssemos um filme de uma hora na câmera e o filme fosse
tão barato quanto papel”, alguém da equipe observou. “Ficaríamos preguiçosos
e filmaríamos tudo. Não teríamos de pensar enquanto filmássemos. Nós nos
preocuparíamos a respeito disso depois!”
“Quero ir até a sede da GM e ver se Roger Smith fala conosco”, disse para
Kevin. “Você está a fim?”
“Você está brincando?”, ele disse, com seu típico tom sarcástico, engraçado.
“Estava querendo saber quando as coisas iam ficar interessantes.”
Assim, fomos para Detroit e entramos no saguão da General Motors. Fui
direto para o elevador e apertei o botão. As portas se abriram, e nós entramos.
Pressionei o botão para o décimo quarto andar, onde ficava o escritório de Smith.
O botão não se iluminou. Continuei pressionando, mas nada aconteceu. As
portas não fechavam. Foi quando um segurança apareceu e pediu para sairmos.
Ele era um homem mais velho, educado, e pediu para esperarmos enquanto ele
ligava para alguém. Ele voltou e disse que precisávamos marcar uma reunião, e
que voltássemos depois que tivéssemos feito isso.
Nos dois anos seguintes, tentei marcar aquele encontro. E, enquanto não
conseguia, fiz diversas viagens para Detroit, apenas para dar as caras e ver o que
aconteceria. A tentativa de achar Roger, para fazê-lo vir para Flint, para que eu
337
GRATIDÃO

pudesse lhe mostrar o estrago que suas decisões causaram, tornou-se o fio con­
dutor do filme. Mas a missão real do filme não tinha nada a ver com Smith, a
GM ou mesmo Flint. Eu queria fazer uma comédia triste, furiosa, a respeito de
um sistema econômico que eu considerava injusto. E não democrático. Eu tinha
a expectativa de que cumpriria meu dever.
A semana com Kevin chegou ao fim. Agradeci-lhe muito por tudo que
ele, Anne e os outros fizeram para eu poder dar minha arrancada. Ele me disse
que me ajudaria de qualquer maneira; bastava ligar para ele. Mostrei-lhe uma
ficha de inscrição que tinha recebido para requerer uma subvenção do Michigan
Council for Arts. Perguntei-lhe se ele poderia me ajudar a preencher a ficha,
pois supus que era algo que ele tinha de fazer o tempo todo.
“O que eu ponho aqui?”, perguntei-lhe, apontando para a linha que per­
guntava minha “profissão”.
“Cineasta”, ele disse, sem pestanejar.
“Não sou um cineasta”, respondi. “Não fiz nenhum filme.”
“Desculpe-me”, ele replicou, sumariamente. “Você escreve que é cineasta.
Você tornou-se cineasta no momento em que o filme começou a rodar nessa
câmera.” j

Assim, escrevi “cineasta’. Nos próximos dois anos e meio, fiz um filjme.
Teria mais de uma dúzia de outras filmagens. Kevin me pôs em contato eom
seus amigos documentaristas; de modo mais importante, com um casal de San
Francisco, Chris Beaver e Judy Irving. Eles também vieram a Flint e filmaram
comigo durante uma semana. O resto do tempo era somente eu, minha mulher
e alguns amigos (mais um cameraman ou dois de Detroit) tropeçando no equi­
pamento, dando o máximo para fazer um filme. No carro, nunca havia mais
de quatro de nós quando íamos de filmagem em filmagem. Deixados por nossa
própria conta, constantemente danificávamos a câmera e o gravador de som;
na realidade, muitas vezes, tanto que, no final da filmagem, em 1989, somente
cerca de 10% do que filmamos era aproveitável.
Eu estava tendo tempos difíceis, sofrendo dificuldades financeiras, e, assim, o
DuArt, laboratório de filmes de Nova York, disse que eu podia adiar o pagamento
até a estreia do filme. O laboratório era dirigido por um velho esquerdista, e ele
gostou de ver o material quando eu o enviei. Soube de um evento em Nova York
em que os distribuidores e os investidores reuniam-se para assistir os filmes em exe­
338
ADORO PROBLEMAS

cução. Se você lhes pagasse uma taxa, você poderia mostrar-lhes quinze minutos
do que você tinha. Mas nada do meu material fora editado junto, porque, bem...
eu não sabia como editar. Novamente, Kevin teve de me salvar.
“Eu vou editar um carretei para você”, ele disse. “Quando você pode vir
para Nova York?”
“Quando você quiser”, eu respondi.
Três semanas depois, visitei novamente a “suíte” de edição de Kevin, no
Village. Sentei-me e assisti quinze minutos do meu filme que ele tinha mon­
tado. Fiquei boquiaberto. Parecia um filme! Ele me mostrou como a Steenbeck
funcionava. Mostrou-me seu sistema de montagem e como podia criar minha
própria montagem. Passei horas o observando na montagem do seu filme sobre
os nazistas, como ele tomava decisões, como ele sabia o tempo que devia manter
uma cena e quando tinha de cortar. Ele não acreditava em narração, ou nele
mesmo ficando na câmera ou usando música.
Certo dia, na sala de montagem, perguntei-lhe como ele aprendera a fazer
tudo aquilo.
“Bem, tenho formação superior em cinema.”
“Por qual escola?”
“Na realidade, não freqüentei uma escola de cinema”, ele respondeu.
“Então, onde você se formou?”
Ele fez uma pausa. “Harvard.”
“Harvard?”, perguntei, pasmado.
“Sim, Harvard”, ele respondeu, a contragosto.
“Merda! Quer dizer, uau! Legal.”
Como aquele cara foi admitido em Harvard? Não queria me meter em
assuntos alheios, especialmente em questões a respeito de como ele podia bancar
seus estudos ali. Afinal de contas, Harvard também tem bolsa de estudos. Nem
todos que vão para lá são ricos. Não seja intolerante! Uma coisa era óbvia: o cara
era inteligente, muito inteligente, e, assim, aquele era, sem dúvida, seu bilhete
de ingresso.
Instalei uma sala de montagem em Washington, e contratei um amigo íntimo
de Flint e uma mulher local, do subúrbio de Maryland, para serem meus monta­
dores, ainda que nenhum deles tivesse montado um filme alguma vez. Assim, nós
três nos ensinamos a nós mesmos, com a orientação de Kevin, a como montar um
339
GRATIDÃO

filme. Nossa sala de montagem era bem superior à atmosfera da de Kevin, mas nós
tínhamos nosso problema de baratas e roedores. A sala ficava no nono andar de
um prédio arruinado, na esquina da Pennsylvania e Twenty -First Street, a cerca de
quatro quadras da Casa Branca. Do lado do prédio, havia uma lanchonete da rede
Roy Rogers, que servia hambúrgueres, e o exaustor expelia fumaça na nossa sala
de montagem diariamente (só esse fato deveria ter convertido nós três em veganos
imediatamente, se essa coisa existisse naqueles dias).
Pouco a pouco, entendemos como montar um filme. Meus dois amigos
se tornaram montadores incríveis. O filme era engraçado e era triste. Paramos
de fazer um “documentário” e decidimos fazer um filme no qual levaríamos a
namorada numa sexta-feira à noite. O filme tinha um ponto de vista, mas não o
ponto de vista da esquerda petrificada, sem graça. Não senti necessidade de fal­
sificar o tipo de “objetividade” que outros jornalistas escondem de modo frau­
dulento. Podia me sentar ali, na nossa sala de montagem apertada, e ver úma
platéia imaginária, num grande cinema, gritando, torcendo, vaiando e deixando
o cinema pronta para fazer barulho.
Estávamos trabalhando dia e noite na sala de montagem, tentando acabar o
filme antes que os credores decretassem minha falência. Então, numa fria manhã
de janeiro de 1989, um novo presidente assumiria o cargo ao meio-dia daquele
dia. Seu nome era George H. W. Bush, o vice-presidente de Ronald Reagan.

Não consegui pensar em nenhuma maneira melhor de passar o dia, e, assim,


nós nos agasalhamos e fomos para o National Mall, onde qualquer pessoa podia
assistir o juramento de posse do presidente Bush e do vice-presidente J. Dan-
forth Quayle. Não estava muito cheio, e encontrei uma maneira de chegar mais
perto dos degraus do Capitólio do que achava que seria possível. Levantando
os olhos na direção do palco, para todas as pessoas importantes e arrogantes
sentadas atrás do novo presidente, foi ali que vi Kevin Rafferty.
“Meu Deus”, pensei, um tanto abalado. “Acho que Kevin está ali no ajto!”
De fato, a pessoa se parecia com ele; mas aquele rapaz estava usando térno,
gravata e um belo sobretudo de inverno. Não podia ser ele de nenhuma maneira.
Ou, st fosse ele, bem, ele teria um belo show naquele dia, filmando uma pjosse!
Mas não vi nenhum equipamento.
340
ADORO PROBLEMAS

Alguns dias depois da posse do velho Bush como presidente dos Estados Unidos,
achei Kevin em casa. Eu tinha de saber se era ele.
“Kevin”, eu disse, no telefone, “outro dia, eu estava na posse de Bush e
posso jurar que vi você no palanque. Era você?”
Silêncio.
“Você estava Zí?”, pressionei.
Mais silêncio, então uma tragada no cigarro, depois a fumaça sendo expi­
rada. “Sim, eu estava lá.”
“No palco?”
Outra tragada. “Sim.”
“Nossa! Que legal! O que diabos você estava fazendo lá no alto? Como você
entrou?”
Um suspiro. “Meu tio é o presidente dos Estados Unidos.”
“Hahaha. Essa é boa. Meu tio é Dan Quayle!”
“Não. Não estou brincando”, ele interrompeu. “Meu tio é George Bush, o
presidente. Minha mãe e Barbara Bush são irmãs. Seus quatro filhos e sua filha
são meus primos de primeiro grau. Sou um membro da família. Por isso que eu
estava ali.”
Escutei muitas coisas ao longo dos anos: coisas pessoais, coisas chocantes,
as coisas que todos escutam de alguém em algum momento ou outro - *Sou
gay\ “Estou deixando você” “Apenas cidadãos austríacos podem desembarcar desse
avião” -, mas nada na minha vida tinha me preparado para essa notícia. O
que Kevin estava me dizendo era que ele tinha trabalhado comigo por quase
três anos, primeiro eu o ajudando no filme dele, depois ele me ajudando na
filmagem do meu filme e, por fim, ele montando a primeira parte do meu filme
—,mas, o mais importante, sendo meu mentor, meu único professor, uma escola
de cinema de um homem miseravelmente vestido —e, naquele momento, ele
estava me dizendo que seu tio era o presidente do Maldito Estados Unidos da
América??????????????????????????????????????????
Senti-me confuso.
“Escute”, ele disse, “sei que você deve estar chateado comigo por não
ter contado para você. Mas tente considerar isso da minha posição favorável.
341
GRATIDÃO

Sempre que alguém descobre quem eu sou, imediatamente começa a agir de


modo diferente, tratando-me de modo diferente, julgando-me, querendo algo
de mim; é um peso que tenho de carregar. E, sinceramente, achei que voèê
sabia. Achei que tinha lhe dito, ou tentado lhe dizer. Mas você não acreditaria.
Achei que Anne pudesse ter lhe dito, ou alguma outra pessoa, ou que você
tivesse descoberto; mas quando ficou claro para mim que você não sabia, bem,
eu gostei do fato. Porque, neste momento, agora que você sabe, você está sen­
tado pensando: Ele é um desses malditos Bush/”.
Eu me levantei de um salto: “Não, não, nada disso! Não faço esses julgja-
mentos. Mas Kevin - caramba, cara! Você podia ter me contado.”
“Sim, bem, acho que sim.”
“Quer dizer, durante todo esse tempo, seu tio era o vice-presidente e, agora,
ele é o presidente. O que você pensava quando eu dizia algo negativo a respeito
dele ou de Reagan?”
“Nada. Eu concordava com você. Não compartilho da política dele. E, para
ser sincero, a coisa de família é complicada. Pessoal. E não quero falar a esse
respeito.”168**
“Claro, entendo. Isso ainda está me incomodando um pouco. Só estou
sendo honesto. Um membro da família Bushfoi parte importante não só na reali­
zação dessefilme, mas também na educação de como me tornar um cineasta. Uau!
Dane-se. Quer dizer, realmente, dane-se!”
“Bem, é isso aí. Faça com isso o que você quiser.”
“Isso não muda nada, Kevin. Não se preocupe. Alegro-me que você final­
mente me contou.”

168" Quando o filme foi lançado, a Casa Branca ligou para o escritório da produção e perguntou
se uma cópia do filme podia ser enviada para Camp David no fim de semana, pois o presidente
queria exibir para a família o filme no qual Kev trabalhou. Tentei ser convidado para isso, masinão
consegui. Tempos depois, perguntei para Kevin se ele tinha escutado alguma coisa. "Acho queleles
gostaram do meu trabalho com a câmera", ele disse, de modo típico. "Fora isso, acho que hcj>uve
um belo silêncio." Contei-lhe que, alguém do estúdio, soube que houve um membro da famíliajque
realmente adorou o filme e ficou gritando histericamente durante a projeção. "Aparentementé era
um dos filhos de Bush, ele disse. E, ao que tudo indica, precisou de algum socorro farmacêutico.
Acredite-me, ele não significa muito, com certeza." Eu disse para o representante do estúdio: i"Ser
filho do presidente é não significar muito?" |
342
ADORO PROBLEMAS

Sete meses depois, terminei o filme. Havia mostrado uma edição dele para
as comissões de seleçáo de três festivais de cinema: Telluride, Toronto e Nova
York. Todas as comissões gostaram e concordaram que o filme fosse exibido
em todos os festivais, em setembro de 1989. Também mostrei uma versão pre­
liminar do filme para minhas duas irmãs. Elas se sentaram comigo na casa dos
nossos pais e assistiram. Elas disseram coisas legais para mim, estimulando-me
a continuar trabalhando nele. O que elas não me disseram (até anos depois) foi
que ficaram aflitas a respeito de quão deficientemente o filme estava montado.
Elas falaram baixinho uma para outra: “O que devemos falar para ele? Como
não decepcioná-lo?” -, mas elas não conseguiram achar uma maneira. Elas não
queriam me desapontar, pois eu parecia muito empolgado a respeito da versão
final do filme. Assim, não disseram nada. No entanto, fizeram um pacto mútuo
de estar na primeira exibição do festival de cinema, para que eu não estivesse
sozinho no meu momento de humilhação pública.
O primeiro festival foi em Telluride, no Colorado, no fim de semana pro­
longado do Dia do Trabalho. O festival pagou minhas despesas (pois, naquele
momento, eu estava realmente falido). Algumas pessoas da minha equipe via­
jaram para lá com o dinheiro que conseguiram vendendo camisetas e broches
do logotipo do filme nas ruas de Telluride.
Na semana anterior ao festival, entrei em pânico, achando que tinha esco­
lhido o título errado para o filme. Liguei para Bill Pence, o organizador do
festival, e lhe disse que estava mudando o título do filme para Bad Day in Buick
City (Dia Ruim na Cidade do Buick).
“Não, você não vai mudar \ ele disse, de modo bastante convincente. “O
nome desse filme é o que você deu - Roger e E u - t é o nome perfeito. Você não
vai mudá-lo. Além disso, já mandamos o programa do festival para a gráfica.”
Fiquei desapontado, mas receoso de dizer mais alguma coisa. Desliguei o telefone.
Quando cheguei em Telluride e recebi o programa, percebi algo terrível: o
festival havia decidido programar minha estreia junto com a exibição do grande
filme da noite de abertura, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, do
diretor britânico Peter Greenway. O filme da abertura de gala seria exibido na
histórica Casa de Ópera da cidade. Meu filme teria sua “première mundial” no
salão da Maçonaria, na outra extremidade da cidade. Salão da Maçonaria! Devia
me sentir bem a esse respeito? Ser grato por não ser na sede do Kiwanis? Ou,
343
GRATIDÃO

Deus me livre!, no Elks Lodge? Procurei ver todos os aspectos positivos naquilo.
Bem, quer dizer, afinal, quem era eu? Ninguém ali me conhecia, nunca tinha
feito um filme, e, sejamos honestos: era um documentário! Assim, entendi por
que sua estreia estava sendo enterrada. Droga.
Antes da Telluride Opening Night Gala, a cidade fechou a rua principal
e promoveu uma festa para todos os cineastas e freqüentadores do festival.
Minhas irmãs e seus maridos e filhos vieram de San Diego; elas estavam man­
tendo a promessa mútua de estar ali, em Telluride, para me amparar na minha
queda. Minha equipe e eu chegamos cedo na festa e aproveitamos a comida
grátis (enquanto vendíamos mais broches e camisetas). Foi quando reconheci o
crítico de cinema Roger Ebert, que, junto com Gene Siskel (com quem apresen­
tava um programa de TV), eram os críticos de cinema mais conhecidos do país.
Decidi me aproximar dele e convidá-lo para meu filme.
“Olá”, eu disse. “Meu nome é Michael Moore. Sou de Flint, em Michigan,
e tenho um filme aqui no festival. Chama-se Roger e Eu. E gostaria muito que
você o visse.” |
“Eu vou vê-lo. Amanhã, ao meio-dia, no cinema Nugget”, Ebert respondeu,
enquanto estendia a mão para pegar outro canapé. Fiquei impressionado que ele
já me conhecesse. í
“Bem, o filme vai fazer sua estreia mundial hoje à noite, daqui uma hora,
mais ou menos, no salão da Maçonaria. Seria incrível contar com sua presençja.”
“Obrigado, mas tenho ingressos para a noite de abertura, na Casa de Ópera.”
“Foi o que imaginei, mas acho que você devia estar na primeira exibição |do
meu filme. Acho que você realmente vai gostar. E você vai poder dizer que o viu
aqui primeiro!”
“Como disse, tenho ingressos para a abertura. Já gastei algo como 800
dólares por eles.” “Mas Roger”, eu implorei, usando seu primeiro nome, como
se nós nos conhecêssemos; algo que ele evidentemente não gostou. “Sei que
você vai querer estar na estreia dele. Você não viu nada parecido. Trata do Meio-
-Oeste, de onde nós dois viemos. Ele...” j
Ele me interrompeu:
“Escute”, ele disse enfaticamente, “eu disse que iria ver amanhã e vou ver] e é
isso. E, agora, se você me permite.” E depois disso, ele se afastou de mim, pertur­
bado, nervoso, talvez até irritado: Quem era esse idiota de Flint me enchendo o saco?
344
ADORO PROBLEMAS

Senti-me um idiota. No entanto, teria sorte se ele aparecesse no dia seguinte,


sem falar se ele acabasse gostando do filme. Por que eu tinha de usar esse tom de
caçador? Ah, o desespero que se manifestava como um outdoor na minha face!
Um dos amigos que trabalhou no filme, Rod Birleson, tentou me consolar.
“Não se preocupe, Mike. Ele disse que vem amanhã, e ele vai vir. Provavel­
mente, ele gostou do seu entusiasmo.”
“Sim”, eu disse. “O entusiasmo de um assassino em série.”
A festa de rua estava chegando ao fim, e os abastados estavam se encami­
nhando para a Casa de Ópera para a noite de gala. O restante de nós caminhou
até o fim da rua principal, onde ficava a Ordem Maçônica, para a exibição da
nossa obra-prima.
Notavelmente, quando chegamos no “cinema”, ainda que estivéssemos
concorrendo com o grande filme da noite de abertura, o lugar estava lotado.
Cerca de cinco minutos antes da exibição, olhei através da janela do salão e
vi uma figura solitária, um homem corpulento, caminhando pela rua na direção
da Ordem Maçônica. Era ninguém menos do que Roger Ebert. Ele atravessou a
porta e viu seu caçador parado ali.
“Não diga nada”, ele ordenou, erguendo a mão e evitando me olhar. “Estou
aqui. Isso é tudo que precisa ser dito.”
“Mas...”, eu disse, desobedecendo-o e sendo interrompido por ele no
mesmo instante.
“Só estou aqui porque havia aquela expressão estranha nos seus olhos, uma
expressão que dizia para mim que talvez fosse melhor eu estar aqui. Assim, aqui
estou eu.” Ele entrou no cinema e pegou o último assento disponível, a três filas
do fundo da sala. Sem pressão naquele momento.
Entrei e peguei meu assenta na última fila. Minhas irmãs se posicionaram
uma em cada lado do meu assento, para que pudessem ficar perto de mim, para
me confortar em sua função de boas irmãs que eram (e são), para estar ali no
meu momento de constrangimento e fracasso iminentes. As luzes do salão da
Maçonaria começaram a baixar, e, quando o cinema ficou no escuro, minhas
irmãs, Anne e Verônica, pegaram minhas mãos e as seguraram com força. Tudo
daria certo, não importa o quê.
Naquele momento, a música começou, e o título do filme apareceu na tela...

Você também pode gostar