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“Este é, de longe, o melhor livro de Michael Moore!” - The New York Times
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Meio século de história e política americanas passado a limpo!
“Um contestador desde a infância”
The New York Times
Dvvight Garner — 13 de setembro de 2011
Declarar que Adoro problemas c de longe o melhor livro de Moore não é
um elogio exagerado. Moore é mais conciso como documentarista; como
todos os seus livros, este é desgrenhado e transbordante.
É a história de um grande bufão, que aprende a unir seu bocão a um
senso de propósito. C) livro convence o leitor a levá-lo a sério, e pertence
à prateleira de autobiografias e obras de não conformistas.
Michael Moore nasceu em Flint, em 1954. Ele tinha amigos, pais que
o amavam e uma infância feliz. No entanto, suas queixas a respeito da
vida sob o jugo do capitalismo moderno começam no nascimento. Ele
fica apoplético com o fato de que os médicos aconselhavam as mulheres,
incluindo sua mãe, a alimentar, por mamadeira, os seus recém-nascidos
com algo semelhante a leite condensado.
Quando menino, numa viagem ao sul dos Estados Unidos, viu um
banheiro com uma placa “só negros”, e, é claro, entrou nele. Quando so
licitado pelo Elks Club a fazer um discurso sobre Abraham Lincoln, ele
atacou a organização - com seu líder, o Chefe Elk, na platéia - por causa
do racismo dela. Uma estrela brigona nascia.
Moore queria ser padre, mas foi expulso por fazer muitas perguntas.
“Desejo-lhe boa sorte no que quer que o senhor faça na sua vida”, o padre
disse ao lhe dar a notícia, “e rezo por aqueles que têm de suportá-lo”.
O livro é muito divertido e discreto e Moore, frequentemente, dirige
seu olhar para fora.
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Os fãs de Michael Moore que se preparem
para a surpresa: uma deliciosa autobiogra
fia, composta por 24 crônicas ou esquetes.
Podem tranquilizar-se, todavia. Ele nada
perdeu
I da potência de fogo, e continua
indignado. Mestre em desobediência civil,
os atuais indignados mundo afora sabem
que contam com ele em suas fileiras.
Já disparou suas baterias sobre várias
causas. Entre elas, destacam-se: o imperia
lismo — que instaura guerras em países
alheios e convida atentados em retalia
ção —, a avidez pelo petróleo, as fraudes
eleitorais que colocaram George W. Bush
na presidência, a poluição industrial, o
desemprego devido à ganância das mul
tinacionais, a situação desastrosa do ensi
no e da assistência à saúde, a proliferação
das armas e seu uso sem controle legal, a
crise financeira global que assola os países
ricos. Diga mais uma, e Michael Moore
já esteve lá. Custou para perceberem sua
importância, porque ele costuma envolver
tudo em provocações divertidas.
Seus filmes e livros são documentários
investiga tivos e politicamente engajados.
Recebeu prêmios como o da Mostra In
ternacional de São Paulo, o César francês
e o Oscar por Tiros ew Colimbine, sobre
os massacres cometidos por garotos; e o
do festival de Carmes por Fahrenheit 9/11,
que analisa o atentado ao World Trade
Center e as ligações entre as famílias Bush
e Bin Laden.
Este livro mostra, na descontinuidade
dos flashes e flagrantes, os episódios cru
ciais de seu percurso desde a infância. Tudo
é relevante, sobressaindo, o relato da his
teria coletiva quando este pioneiro de
nunciou a invasão do Iraque e o conluio
da Casa Branca: ameaça de morte na te
levisão, planos de plantar bombas em sua
casa, insultos e ataques físicos pessoais. É
bom lembrar hoje quando a unanimida
de se instalou e todos reconhecem os
culpados, o quanto tais pioneiros arris
caram. Não percam os outros atos de
protesto de que, sempre à sua maneira
despretensiosa e cheia de humor, o autor
participou; e sobre a saga de sua família
de imigrantes irlandeses. Elas mostram
claramente, a cada passo, que estava sendo
plasmado um grande dissidente.
W A L N IC E N O G U E IR A GALVÃO
Professora Emérita da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas — u s p
ADORO PROBLEMAS
HISTÓRIAS DA MINHA VIDA
MICHAEL
MOORE
Para minha mãe,
que me ensinou a ler e escrever
quando eu tinha quatro anos.
Copyright © 2011 by Michael Moore
Direção editorial: Pascoal Soto
Editor: Pedro Almeida
Produção editorial: Gabriela Ghetti
Marketing: Priscila Brauner
Preparação de texto: Leila dos Santos
Revisão: Veridiana Cunha
Diagratnação: S4 Editorial
Capa: Osmane Garcia Filho
Imagem de capa: Everett Collection/Keystock, extraída do material de divulgação do
filme Sicko, documentário de Michael Moore sobre o sistema de Saúde nos EUA.
D a d o s I n te r n a c io n a is d e C a ta lo g a ç ã o n a P u b lic a ç ã o (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Moore, Michael
Adoro problemas : histórias da minha vida / Michael Moore ; [traduzido
por Carlos Szlak] . - São Paulo : Lua de Papel, 2011.
Título original: Here comes trouble
ISBN 978-85-63066-78-7
1. Cineastas —Autobiografia 2. Memórias autobiográficas 3. Moore,
Michael I.Título.
11-11666 CDD-791.43092
Í n d ic e p a ra c a tá lo g o s is te m á tic o
1. Cineastas : Autobiografia 791.43092
T e x to E d itores L t d a .
[Uma editora do grupo Leya]
Rua Desembargador Paulo Passalácqua, 86
01248-010 - Pacaembu —São Paulo —SP
www.leya.com.br/luadepapel
Twitter: @luadepapel_BRA / @EditoraLeya
Enquanto crescia tudo parecia tão parcial
Opiniões todas arranjadas
O juturo previamente decidido
Alheio e subdividido
Na zona de produção em massa
Em nenhum lugar está o sonhador
Ou o desajustado
Tão solitário...
- Neil Peart/Rush
Nota do autor
A canoa.....................................................................65
Pietà...........................................................................74
Tet............................................................................101
Natal de 1943..........................................................113
O exorcismo............................................................136
Boys State...............................................................151
Zoe...........................................................................165
Carro de fuga..........................................................176
Dois encontros........................................................195
Vinte nomes............................................................207
Intervenção em crises............................................233
Bitburg.................................................................... 263
Parnassus................................................................ 307
G ratidão................................................................. 321
SANDYBATES (WOODYALLEN): Será que devo
parar defazer filmes efazer algo que tem importância,
como ajudar pessoas cegas, me tomar um missionário
ou algo assim?
O ALIENÍGENA: Olha, você não faz o gênero mis
sionário. Você nunca aguentaria. E, por acaso, você
também não é o Super-Homem; você é um comediante.
Você querprestar um serviço de verdade à humanidade?
Conte piadas mais engraçadas.
- Diálogo do filme Memórias
Epílogo
A EXECUÇÃO
DE MICHAEL MOORE
O desejo pela minha morte precoce parecia estar por toda parte. Sem dúvida,
estava no pensamento de Bill Hemmer, da CNN, numa manhã ensolarada de
julho, em 2004. Ele escutara algo que quis repassar para mim. Assim, segurando
1 Semelhante à nossa fitinha do Bonfim, traz a inscrição "What Would Jesus Do?" (O que Jesus
faria?), frequentemente abreviada para VWVJD. (N. T.) j
2 Escritor, apresentador e comentarista político de rádio e TV (Fox News), conhecido por suas posi
ções políticas de direita. (N. T.)
14
ADORO PROBLEMAS
Por que eu ainda estava vivo? Por mais de um ano, houve ameaças, inti
midações, importunações e até tentativas de assalto em plena luz do dia. Era o
primeiro ano da Guerra do Iraque, e um importante especialista em segurança
(que é frequentemente utilizado pelo governo federal para prevenção de assassi
natos) me disse que “não há nenhuma outra pessoa nos Estados Unidos, exceto
o presidente Bush, que está mais em perigo do que você”.
Como diabos isso aconteceu? Será que eu causei isso para mim mesmo?
Claro que sim. E me lembro o momento em que tudo começou.
Foi na noite de 23 de março de 2003. Quatro noites antes, George W.
Bush invadira o Iraque, um país soberano, que não só não tinha nos atacado,
mas também era, de fato, beneficiário passado da ajuda militar dos Estados
Unidos. Era uma invasão ilegal, imoral e estúpida; no entanto, não era como os
americanos enxergavam. Mais de 70% da população apoiava a guerra, incluindo
liberais como Al Franken e os 29 senadores democratas, que votaram a favor da
lei de autorização da guerra (entre eles, os senadores Chuck Schumer, Dianne
Feinstein e John Kerry). Entre outros apoiadores liberais da guerra, incluíam-se
Bill Keller, colunista e editor do The New York Times, e David Remnick, editor
da New Yorker, uma revista liberal. Mesmo liberais como Nicholas Kristof,
do The New York Times, aderiram à mentira de que o Iraque possuía armas
de destruição em massa. Kristof elogiou Bush e Colin Powell, então secretário
de Estado, por provarem “com habilidade” que o Iraque tinha armas de des
truição em massa. Ele escreveu isso após Powell apresentar evidências falsas para
as Nações Unidas. O The New York Times veiculou diversas reportagens de pri
meira página fictícias a respeito de como Saddam Hussein possuía essas armas.
Posteriormente, o jornal se desculpou por apoiar intensamente aquela guerra.
Mas o dano já havia sido feito. O The New York Times dera a Bush a cobertura
que ele precisava, e o poder de afirmar que, se um jornal liberal como o Times
diz isso, deve ser verdade!
8 Trio feminino de música country de muito sucesso, formado em 1989, no Texas, de tendência polí
tica conservadora. (N. T.) !
18
ADORO PROBLEMAS
“Obrigada”, ela disse. “Machuca agora. Um dia você vai provar que tinha
razáo. Estou muito orgulhosa de você.” E, então, ela me abraçou, à plena vista
da elite de Hollywood. Declaração feita, Robert Friedman, número dois de
Lansing na Paramount (e que anos atrás ajudou a convencer a Warner Bros. a
comprar meu primeiro filme, Roger & Me), abraçou minha mulher e, depois,
agarrou minha mão e apertou-a com força.
E não passou disso pelo resto da noite. A exibição pública de Sherry Lan
sing de inesperada solidariedade manteve os inimigos acuados, mas poucas
outras pessoas quiseram correr riscos de associação. Afinal, todos sabiam que a
guerra “acabaria” em poucas semanas, e ninguém queria ser lembrado por estar
do lado errado! Sentamos tranquilamente em nossa mesa e comemos nosso ros
bife. Decidimos ignorar as festas e voltar para o hotel, onde os amigos e a família
estavam esperando. Ao que se revelou, eles estavam tudo, menos decepcionados.
Sentamos na sala de estar da nossa suíte e todos se revezaram segurando a esta
tueta e fazendo seus discursos do Oscar. Foi agradável e comovente, e quis que
eles tivessem estado no palco em vez de mim.
Minha mulher foi para a cama, mas eu não consegui dormir; então,
levantei-me e liguei a TV. Durante a hora seguinte, assisti aos canais locais de
TV apresentarem um resumo da noite do Oscar e, ao zapear entre eles, escutei
um expert após o outro questionar minha sanidade, criticar meu discurso e dizer,
repetidamente, em resumo: “Não sei o que deu nele!”; “Sem dúvida, ele não
terá vida fácil nessa cidade depois dessa proeza!”; “Quem ele acha que vai querer
fazer outro filme com ele agora?”; “Ele liquidou a sua carreira!”. Depois de uma
hora disso, desliguei a TV e acessei a internet; ali havia mais do mesmo, mas
pior. de todos os lugares dos Estados Unidos. Comecei a ficar mal. Podia ver as
pichaçóes nos muros: era a morte para mim como cineasta. Comprei tudo que
estava sendo falado a meu respeito. Desliguei o computador, apaguei as luzes
e me sentei na cadeira, no escuro, relembrando repetidas vezes o que eu tinha
feito. Bom trabalho, Mike. Que bons ventos o levem.
Nas próximas vinte e quatro horas, tive de escutar mais vaias: caminhando
pelo saguão do hotel, onde Robert Duvall se queixou para a gerência que minha
presença estava causando perturbação (“Ele não gostou do cheiro de Michael
21
EPlLOGO
Certo dia, dois anos antes do Oscar e da guerra, num tempo mais tranquilp,
mais inocente - março de 2001 -, recebi um envelope pelo correio. Estaya
endereçado para “Michael Moore”. !
E o remetente? De: “Michael Moore”.
Após fazer uma pequena pausa para considerar o universo ao estilo Escher
do que estava na minha mão, abri a carta. Estava escrito:
Prezado senhor Moore,
Espero que, depois de ver que esta carta não era realmente sua, o senhor
tenha aberto o envelope. Meu nome também é Michael Moore. Nunca
tinha ouvidofalar do senhor até ontem à noite. Estou no corredor da morte,
no Texas, e minha execução está programada para ofim deste mês. Assisti
ao seu filme Canadian Bacon ontem à noite, vi seu nome e vi que temos
o mesmo nome. Nunca vi meu nome num filme antes! Provavelmente, o
9 Alusão à célebre frase dita pelo personagem de Robert Duvall no filme Apocalypse Now, de 1979:
"Eu adoro o cheiro de Napalm pela manhã". (N. T.)
10 Termo abrangente relativo às iniciativas de segurança para proteger os Estados Unidos contra
o terrorismo. O termo surgiu em 2003, depois da reorganização de diversas agências do governe
americano após os ataques de 11 de setembro. (N. T.)
22
ADORO PROBLEMAS
senhor nunca viu seu nome numa manchete “MICHAEL MOORE SERA
EXECUTADO” Espero que o senhorpossa me ajudar. Não quero morrer.
Fiz algo terrível, do qual me arrependo, mas me matar não vai resolver
nada, nem desfazer o quefiz. Não recebi a melhor defesa. Meu advogado,
designado pelo tribunal, adormeceu durante o julgamento. Estou recor
rendo pela última vez ao Conselho Prisional do Texas. O senhorpode usar
sua influência para me ajudar? Acredito que devo pagar pelo meu crime.
Mas não com minha morte. Abaixo estão os nomes dos meus novos advo
gados e das pessoas que estão me ajudando. Faça o que o senhor puder. E
gostei do seu filme! Engraçado!
Atenciosamente,
Michael Moore
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Sentei e não tirei os olhos daquela carta por muito tempo. Naquela noite, tive
um pesadelo. Eu estava presente na execução de Michael Moore e, eviden
temente, não queria estar ali. Tentei sair do recinto, mas tinham trancado a
porta. Michael Moore começou a rir. “Ei! Você é o próximo, amigo!”. Gelei, e,
enquanto ministravam a injeção letal, ele não tirava seus olhos agonizantes de
mim, à medida que sua vida expirava.
No dia seguinte, liguei para os advogados contrários à pena de morte que o
estavam ajudando. Me ofereci para fazer o que quer que fosse. Eles me disseram
que as coisas pareciam quase sem esperança —afinal, era o Texas, e ninguém con
segue uma suspensão ou um perdão do governador dali —, mas, apesar disso, eles
estavam apresentando um último recurso. Eles disseram que eu podia escrever
uma carta para o governador ou para a Corte de Apelações Criminais.
Fiz mais do que isso. Puspara circular uma carta no meu site e pedi ajuda para
meio milhão de pessoas da minha lista de contatos. Falei publicamente contra
a execução de Michael Moore. Contei para as pessoas a história de um jovem,
veterano da Marinha com nove anos de serviço, que foi gravemente assediado
quando criança e nunca se recuperou psicologicamente dessa violência. Agora,
aos trinta anos, ele mantinha uma agenda das garotas da escola do ensino médio
da cidade que ele gostava de seguir furtivamente. Certa noite, ele achou que
entraria sorrateiramente na casa de uma das garotas e roubaria o que fosse pos
23
EPlLOGO
sível. Ela não estava em casa. Sua mãe estava. Ele tinha bebido, perdeu a cabeça
e a matou. Uma hora depois, parado por uma infração de trânsito, ele disse à
polícia (que não sabia da ocorrência de um assassinato) que tinha acabado de
fazer algo ruim. E assim foi. Ele teve um advogado péssimo (que, num gesto
louvável, admitiu oficialmente que não fez um bom trabalho para Michael) e
um julgamento rápido. Michael Moore foi julgado culpado e recebeu a pena
máxima: morte.
Milhares de pessoas responderam ao meu apelo em favor da interrupção da
execução de Michael Moore. O governador do Texas e o conselho prisional rece
beram inúmeras cartas e telefonemas de pessoas protestando contra a morte dele.
E, então, algo incomum aconteceu: um dia antes de ele ser executado, a
Corte de Apelações Criminais do Texas concedeu uma suspensão da execução
para Michael Moore. Michael Moore continuaria vivo! No Texas\ Inacreditável.
Realmente, inacreditável.
Não consigo descrever o alívio que senti. Michael Moore me escreveu outra
carta, me agradecendo. No entanto, naquele momento, o trabalho árduo da
apelação real começaria.
E, então, aconteceu o 11 de setembro. Você conhece o clichê “O 11 de
setembro mudou tudo?”. Essa foi uma dessas coisas. A compaixão pelos assas
sinos deixou de existir. Era tempo de matar nos Estados Unidos, e, se um
homem inocente podia ser morto enquanto comia um pedaço de bolo durante
uma reunião de negócios 106 andares acima de Manhattan, então um assassino
no Texas, sem dúvida, não podia ter a esperança de ser mantido vivo. Matar
ou ser morto era tudo que importava para nós; naquele momento, éramos um
povo pronto para ir à guerra, em qualquer lugar; uma guerra depois da outra,
se fosse necessário. Na realidade, não procurávamos o assassino; só queríamos
matar. Em pouco tempo, seriamos capazes de nos resumir do modo que D.
H. Lawrence fez outrora: “A alma americana essencial é dura, isolada, estoicá e
assassina”.
Os planos para a execução de Michael Moore tiveram rápida tramitação.
Todos os recursos foram rejeitados. Michael me pôs na lista para assistir à sua
execução, se eu decidisse comparecer. Não fui capaz. Não fui capaz de ir ao
Texas e assistir à morte de Michael Moore. Quis estar ali por ele, mas simples
mente não fui capaz.
24
ADORO PROBLEMAS
12 Ainda estou proscrito de uma dessas redes por liberar suas gravações de Paul Wolfowitz, ex-vide-
-secretário de Defesa, lambendo seu pente de cabelo, e de George W. Bush fazendo caretas e palhja-
çadas poucos segundos antes de entrar ao vivo em rede nacional de TV para anunciar o bombardejio
e a invasão do Iraque.
26
ADORO PROBLEMAS
levando em conta tudo que tinha acontecido comigo. Assim, vamos simples
mente fazer o filme que queremos fazer e não se preocupar a respeito das nossas
“carreiras”. Seja como for, as carreiras são superestimadas! E, assim, passamos os
onze meses seguintes reunindo nossa denúncia cinematográfica de um governo
e um país enlouquecidos.
Em 2004, o lançamento do filme - um pouco depois do primeiro ani
versário do início da guerra - ocorreu num momento em que a maioria dos
americanos ainda apoiava a guerra. Ele foi apresentado pela primeira vez no
Festival de Cinema de Cannes, depois da Walt Disney Company ter feito todo o
possível para impedir o seu lançamento (a Miramax Films, nossa distribuidora,
pertencia à Disney). Procuramos o The New York Times com a história de como
a Disney estava tentando silenciar o filme, e o jornal, ainda ferido por causa da
revelação de que seus artigos a respeito da pré-invasão do Iraque eram falsos,
destacou todo o assunto sórdido na primeira página. Isso salvou a nós e ao filme,
e chegamos em Cannes, onde o filme recebeu a ovação entusiástica mais longa
da história do festival. Ganhamos o prêmio principal, a Palma de Ouro, de
um júri internacional presidido por Quentin Tarantino. Foi a primeira vez, em
quase cinqüenta anos, que um documentário ganhou o prêmio13.
A impressionante reação inicial ao Fahrenheit 9/11 amedrontou a Casa
Branca de Bush, convencendo aqueles no comando da sua campanha de ree
leição que um filme podia ser o ponto de virada para liquidá-los. Eles contra
taram um instituto de pesquisa para descobrir o efeito que o filme teria sobre os
eleitores. Após projetá-lo para três platéias diferentes, em três cidades distintas,
as notícias que Karl Rove14 recebeu não foram boas.
O filme não só estava dando um impulso muito necessário à base democrata
(que ficou empolgada com ele) como também, estranhamente, estava tendo um
efeito distinto sobre as eleitoras do Partido Republicano.
A pesquisa própria do estúdio já tinha confirmado que espantosos um terço
dos eleitores do Partido Republicano - após assistirem ao filme - afirmaram que
15 Senador e candidato do Partido Democrata à presidência, em 2004, derrotado por George V(/.
Bush. (N. T.)
28
ADORO PROBLEMAS
Agora, não era mais apenas um pequeno documentário que tínhamos feito - e
eu não era mais visto como alguém “impertinente”, que poderia ser ignorado como
uma praga incômoda. Agora, eu era capa do domínio da revista Time. Agora,
eu estava sentado no camarote presidencial, próximo ao ex-presidente Jimmy
Carter, na Convenção Nacional do Partido Democrata. Haveria um recorde de
quatro aparições, em seis meses, no programa The Tonight Show. O filme estrearia
em primeiro lugar em toda a América do Norte (a primeira vez em todos os
tempos para um documentário). Além disso, para piorar as coisas para a Casa
Branca, estreou em primeiro lugar em todos os cinqüenta estados, mesmo no
Sul Profundo. Mesmo em Wyoming. Sim, mesmo em Idaho. Estreou em pri
meiro lugar nas cidades com forte presença militar, como na região de Fort
Bragg. Os soldados e suas famílias estavam indo assisti-lo e, por diversos relatos,
tornou-se o principal filme pirata entre as tropas no Iraque. Quebrei o recorde
de bilheteria mantido por longo tempo por O retomo deJedi, da série Guerra nas
estrelas, no maior fim de semana de estreia de todos os tempos para um filme,
em cerca de mil cinemas ou um pouco menos. Foi, na verbosidade da revista
Variety, um sucesso retumbante, um rolo compressor.
E, por causa de tudo isso, tornei-me um alvo. Não só um alvo da direita ou
da imprensa. Naquele momento, aquele filme estava afetando o mandato de um
presidente dos Estados Unidos e suas chances de reeleição.
Assim, o filme - e, em particular, seu diretor - tinha de ser retratado como
tão repulsivamente antiamericano que adquirir um ingresso para ele correspon
deria a um ato de traição.
Os ataques contra mim eram como obras de ficção malucas, inventadas
com coisas que eu me recusava a responder, pois não queria dignificar o ruído.
Na TV, no rádio, nos editoriais, na internet - em todos os lugares -, sugeria-se
que Michael Moore odeia os Estados Unidos; ele é um mentiroso, um conspi
rador, come croissants\ A campanha contra mim teve a intenção de impedir que
muitos republicanos assistissem ao filme.
E funcionou. Além disso, Kerry era um candidato fraco, o que também não
ajudou. Bush ganhou a eleição por um único estado: Ohio.
Houve um dano residual por causa de todo discurso de ódio direcionado
contra mim pelos gurus republicanos. Teve o efeito colateral triste e trágico de des-
conjuntar o já ligeiramente desconjuntado. Assim, minha mulher passou a receber
29
EPÍLOGO
desde pequenos bilhetes de ódio (pense neles como anticartas enviadas no Dia dos
Namorados) até tentativas muito rápidas de ataques físicos - e coisas piores.
Os ex-Seals mudaram-se conosco para uma nova casa. Quando eu cami
nhava por uma calçada, eles tinham literalmente de formar um círculo em
torno de mim. À noite, eles usavam óculos de visão noturna e outros equipa
mentos especiais, que tenho certeza que poucas pessoas fora de Langley (local
do quartel-general da CIA) viram alguma vez.
A empresa de segurança que me protegia tinha um setor de avaliação de
riscos. Sua tarefa era investigar qualquer pessoa que tivesse feito uma ameaça
crível contra mim. O homem encarregado começou a ler para mim uma lista de
nomes, as ameaças que tinham feito e o nível de ameaça representado por cada
um. Depois da leitura dos primeiros doze nomes, ele parou e perguntou: “p
senhor quer que eu continue? Há 429 outros nomes”. |
Mais 429? Quatrocentas e vinte e nove pessoas que queriam me fazer mal,
até me matar? As pastas com os nomes das pessoas continham detalhes minú-
ciosos sobre a vida delas e do que elas podiam ser capazes. Na realidade, não quis
mais ouvir. Minha irmã se surpreendeu com o número.
“Achei que seriam em torno de cinqüenta”, ela disse, como se “cinqüenta”
fosse um número factível, com que pudéssemos lidar.
Não podia mais sair em público sem a ocorrência de um incidente.
Começou com coisas pequenas, como pessoas em um restaurante pedindo paira
mudar para uma mesa diferente quando eu estava sentado perto delas ou um
motorista de táxi que parava seu carro no meio do trânsito para me xingar. Fre
quentemente, existiam pessoas que começavam simplesmente a gritar comigõ,
independentemente do lugar: numa estrada, num teatro, num elevador. Fre
quentemente, os observadores perguntavam para mim: “Isso acontece muito
com você?”, pois ficavam boquiabertos com a intensidade e aleatoriedade dos
ataques. Uma inimiga decidiu me atacar na missa de Natal. “Sério?”, disse pata
ela. “No Natal? Você não pode dar um tempo nem hoje?”
As ofensas verbais logo se converteram em ataques físicos, e, então, os Seals
entraram em alerta máximo. Por motivos de segurança, não vou entrar em
muitos detalhes aqui; por um lado, por recomendação da empresa de segurança,
e, por outro, para não dar a esses criminosos a atenção que estavam procurando.
Em Nashville, um homem com uma faca subiu no palco e começou a vir na
minha direção. O Seal o agarrou por trás, pelos passantes do cinto e pelo cola-
30
ADORO PROBLEMAS
um lugar dominado pelos liberais e que estava sendo arruinado por eles. Seus
comentários pareciam temas de discussão de qualquer edição do prograitia
Rush Limbaugh Show.16
E, então, Lee fez uma lista. Era uma lista pequena, mas, apesar disso, uma
lista das pessoas que tinham de morrer. Entre os nomes, incluíam-se a ex-proçu-
radora geral Janet Reno, o senador Tom Harkin, o senador Tom Daschle, Rosie
0 ’Donnell e Sarah Brady. Mas no topo da lista estava seu alvo número um:
“Michael Moore”. Ao lado do meu nome, ele escreveu: “MARCADO” (coiíio
em “Marcado para Morrer”, ele explicaria depois). j
Ao longo da primavera de 2004, Lee acumulou uma grande quantidade jde
fuzis de assalto e munição e diversos materiais para fabricação de bombas. Ele
comprou os livros The anarchist cookbook, com instruções para fabricação de
explosivos, e The tumer diaries, que faz apologia à guerra racial. Seus cadernos
continham projetos de lançadores de foguetes e bombas, e ele escrevia repetida
mente: “Lutar, lutar, lutar, matar, matar, matar!”. Ele também tinha os desenhos
de diversos prédios do governo federal em Ohio.
No entanto, certa noite, em 2004, ele acidentalmente abriu fogo dentro
de casa com um dos seus fuzis AK-47. Um vizinho escutou os tiros e chamou
a polícia. Os policiais chegaram e encontraram um tesouro de armas, munição
e materiais para fabricação de bombas. E sua lista de alvos a serem eliminados.
Então, ele foi preso.
Alguns dias depois, recebi uma ligação da empresa de segurança.
“Precisamos lhe dizer que a polícia prendeu um homem que estava plame-
jando explodir sua casa. Agora, você não está mais em perigo.”
Não consegui falar. Tentei processar o que tinha acabado de ouvir: Agora,
você... não... está... mais... em perigo.
Para mim, foi a gota-d’água. Sucumbi. Simplesmente, não aguentava mais.
Minha mulher já estava em seu próprio estado de desespero com a perda da vida
que costumávamos ter. Voltei a me perguntar: O que tinha feito para merecer
isso? Um filme? Um filme leva alguém a querer explodir minha casa? O c ue
aconteceria se eu escrevesse uma “carta ao editor”?
16 Programa de rádio de grande audiência, apresentado por Rush Limbaugh, comentarista político
e formador de opinião de tendência conservadora. (N. T.)
32
ADORO PROBLEMAS
Mais de uma vez perguntei a mim mesmo se todo esse trabalho realmente valia
a pena. E, se eu tivesse de fazer tudo de novo, eufaria? E se, na noite do Oscar,
eu não tivesse feito aquele discurso e só tivesse agradecido ao meu agente e ao
estilista do smoking e saído do palco sem dizer mais nada? Se isso significasse que
minha família não teria de se preocupar a respeito de sua segurança e que eu não
estaria vivendo em constante perigo - bem, eu lhe pergunto: o que você faria?
Você sabe o que você faria.
Nos dois anos e meio seguintes, não saí muito de casa. De janeiro de 2005 a
maio de 2007, não apareci em nenhum programa de TV. Parei de participar das
turnês universitárias. Simplesmente, sumi do mapa. Escrevi o blog ocasional no
meu site, e não passou muito disso. Em 2004, falei em mais de cinqüenta uni
versidades. Nos dois anos seguintes, falei somente em um campus. Fiquei perto
de casa e trabalhei em alguns projetos municipais, em Michigan, onde vivia,
como a reforma e reabertura de um antigo cinema, a criação de um festival de
cinema e a tentativa de dormir à noite.
E, então, para meu resgate, apareceu montado o presidente Bush. Ele disse
algo que ajudou a me tirar dessa situação. Eu tinha o escutado dizer isso antes,
mas, dessa vez, quando o escutei, senti que ele estava falando diretamente para
mim. Ele disse: “Se nós cedermos aos terroristas, os terroristas vencerão”. E ele
tinha razão. Os terroristas dele estavam vencendo! Contra mim! O que eu estava
fazendo sentado dentro de casa? Dane-se!Abri as persianas, deixei de lado o baixo-
-astral e voltei ao trabalho. Fiz três filmes em três anos, batalhei para Barack
Obama ser eleito e ajudei a cassar o mandato de dois parlamentares republi
canos de Michigan. Criei um site muito apreciado e fui eleito para o conselho
da mesma Academia que me vaiou no palco.
E então Kurt Vonnegut me convidou para jantar uma noite em sua casa.
Seria um dos quatro jantares que teria com ele e sua mulher, no último ano da
vida dele. As conversas foram intensas, divertidas e instigantes - e me ressusci
35
EPÍLOGO
Naquela noite, ele me deu um dos seus desenhos com a dedicatória: “Que
rido Iraque: goste de nós. Depois de 100 anos, deixe seus escravos partir. Depois
de 150, deixe suas mulheres votar. Com amor, Tio Sam”. Ele assinou: “Para
Michael Moore, meu herói - KV”.
Eu voltei vivo. Escolhi não desistir. Quis desistir, muito. Em vez disso, fui
exercitar meu físico. Se você tentar me esmurrar agora, posso lhe assegurar que
três coisas vão acontecer: (1) você quebrará sua mão. Essa é a beleza de dedicar
apenas meia hora do dia à sua estrutura musculoesquelética - ela se transforma
em kryptonita; (2) eu o atacarei. Ainda estou trabalhando nas minhas ques
tões de equilíbrio e de centro de força do corpo; assim, depois de você me dar
um soco, vou tombá-lo e esmagá-lo. Não será de propósito, e, enquanto você
estiver tentando respirar, saiba que estarei fazendo o melhor possível para sair de
cima de você; (3) meus Seals vão usar gás lacrimogêneo ou seu próprio prepa
rado feito em casa de pimenta jalapeno diretamente nas suas cavidades oculares
enquanto você estiver no chão. Soube que é extremamente doloroso. Como
pacifista, aceite minhas desculpas antecipadamente - e jamais use de violência
contra mim ou qualquer outra pessoa de novo. (ALERTA DE SERMÃO.)
Só os covardes recorrem à violência. Eles receiam que suas ideias não triun
farão na arena pública. Eles são fracos e se preocupam com o fato de que as
pessoas enxergarão sua fraqueza. Eles são ameaçados por mulheres, gays e mino
rias - minorias, pelo amor de Deus! Você sabe por que são chamadas de “mino
rias”? Porque elas não têm o poder - VOCÊ tem! Eis por que você é chamado
de “maioria”! E, no entanto, você tem medo. Medo de fetos não vingarem ou de
homens beijando homens (ou pior!), medo de alguém tirar sua arma; uma arma
que você tem, para início de conversa, porque você... tem medo! Por favor, por
favor, pela segurança de todos nós: RELAXE! Nós gostamos de você! Caramba,
você é americano!
Certa noite, em Aventura, na Flórida, eu e meu novo corpo sarado, junto
com um amigo, fomos até um shopping na William Lehman Causeway para
ver um filme. Um rapaz com trinta e poucos anos passou por mim e disse:
“Bunda-mole”.
Ele continuou andando. Eu parei e me virei na direção dele.
“Ei! Você! Volte aqui!”
O cara continuou andando.
37
EPÍLOGO
“Ei, não fuja de mim!” Gritei mais alto. “Não seja uma galinha. Volte aqui
e me enfrente!”
“Galinha” não é um prato muito apreciado pelo gênero com testosterona
como fluido. Ele parou de forma brusca, virou-se e caminhou na minha direção.
Quando ele ficou a um metro e meio de mim, eu disse o seguinte, num tom suave:
“Ei, cara, por que você disse uma coisa dessas para mim?”
Ele lançou um olhar de desprezo e se preparou para uma briga. “Porque éu
sei quem você é, e você é um bunda-mole.”
“Aí está você de novo usando essa palavra. Você não tem a menor ideia de
quem eu sou. Você nem mesmo viu um dos meus filmes.”
“Não preciso!”, ele respondeu, confirmando o que sempre desconfio. “Já sei
que você coloca neles um monte de coisas antiamericanas.”
“OK, cara, mas isso não é justo. Você não pode me julgar com base no que
alguma outra pessoa lhe disse a meu respeito. Você parece bem mais inteligente
do que isso. Você parece um cara que tem opiniões próprias. Por favor, assista a
um dos meus filmes. Juro por Deus, você pode não concordar com todas as ideias
políticas, mas posso lhe garantir que (a) você perceberá instantaneamente que
amo profundamente este país, (b) você verá que tenho compaixão e (c) promeito
que você vai rir várias vezes durante o filme. E se você ainda quiser me chamar de
bunda-mole depois disso, tudo bem. Mas não acho que isso vai acontecer.”
Ele se acalmou, e conversamos por, no mínimo, mais cinco minutos. Escutei
suas queixas a respeito do mundo, e lhe disse que, provavelmente, tínhamos
mais com o que concordar do que discordar. Ele relaxou ainda mais e, no fim,
ganhei um sorriso dele. Finalmente, eu disse que tinha de ir; caso contrário,
perderíamos nosso filme.
“Ei, cara”, ele disse, estendendo sua mão para apertar a minha, “desculpe
por ter chamado você daquilo. Você tem razão. Realmente, não sei nada a seu
respeito. Mas o fato de você ter parado e conversado comigo depois de eu ter
chamado você daquilo —bem, isso me faz pensar - realmente, não conheço
você. Por favor, aceite minha desculpa”. j
Eu aceitei, e apertamos as mãos. Não haveria mais nenhum desrespeito ou i
ameaça contra mim - e foi essa atitude que me deixou seguro, ou tão seguro
quanto alguém pode se sentir nesse mundo. De agora em diante, se você mexer
comigo, haverá conseqüências: eu posso fazer você assistir a um dos meus filmes.
38
ADORO PROBLEMAS
Algumas semanas depois, voltei ao The Tonight Show pela primeira vez depois de
um tempo. Quando terminei minha apresentação e estava deixando o palco, o
rapaz que estava operando o microfone com arco me abordou.
“Você provavelmente não se lembra de mim”, ele disse, agitado. “Nunca
achei que veria você de novo ou que teria a oportunidade de conversar com
você. Não posso acreditar que tenho de fazer isso.”
Fazer o quê?, pensei. Preparei-me para a mão prestes a ser quebrada do
homem.
“Nunca achei que teria de pedir desculpas para você”, ele afirmou, enquanto
algumas lágrimas começaram a rolar. “E agora, você está aqui, e eu tenho de
dizer isso: sou o cara que estragou sua noite do Oscar. Sou o cara que gritou
IMBECIL no seu ouvido direito depois que você saiu do palco. Eu... Eu... (ele
tentou se recompor). Achei que você estava atacando o presidente, mas você
tinha razão. Ele mentiu para nós. E eu tive de carregar isso comigo todos esses
anos, o que eu fiz para você na sua grande noite. Eu sinto muito...”
Na mesma hora, ele começou a perder o autocontrole emocional, e tudo
que consegui pensar em fazer foi estender a mão e lhe dar um forte abraço.
“Tudo bem, cara”, disse, com um grande sorriso. “Eu aceito seu pedido de
desculpa. Mas você não precisa pedir desculpas para mim. Você não fez nada de
errado. O que você fez? Você acreditou no seu presidente! Você deve acreditar
no seu presidente! Se não podemos esperar isso como o mínimo de quem estiver
no poder, então, merda, estamos ferrados.”
“Obrigado”, ele disse, aliviado. “Obrigado pela compreensão.”
“Compreensão?”, afirmei. “Não se trata de compreensão. Contei essa his
tória curiosa durante anos, sobre as duas primeiras palavras que você escuta
quando é ganhador do Oscar - e como tive de escutar uma palavra extra! Cara,
não tire essa história de mim! As pessoas adoram ela!” Ele riu, e eu ri.
“Sim, é verdade, não há muitas boas histórias como essa”, ele afirmou.
ENGATINHANDO PARA TRÁS
Eles deixaram minha mãe inconsciente e, assim, ela não teve de vivenciar cons
cientemente o milagre da vida. Eu não tive tanta sorte. Eles cutucaram, espetaram,
pressionaram e, em vez de me dar um tempo para eu ir de um lado para outro,
agarraram-me à força e me puxaram para um mundo de luzes ofuscantes e de
estranhos usando máscaras, obviamente para esconder suas identidades de mim.
E antes de eu poder sentir o amor do recinto, eles me deram um tapa forte
no traseiro, ao estilo da velha escola dos anos 1950. Uau! “UAAAAAAAHHH-
HHHHHH!” Aquilo doeu mesmo. E, em seguida, cortaram meu órgão mais
importante: o maldito tubo de alimentação com minha mãe! Simplesmente me
desligaram dela! Pude ver que esse não era um mundo que acreditava em con
sentimento prévio ou na minha necessidade de um suprimento contínuo, 24
horas por dia, 7 dias por semana, de alimentação básica.
Depois de me separarem permanentemente da única pessoa que sempre
me amou (uma mulher boa e decente, que estava narcotizada, depois fazia
caretas e ainda estava fria meia hora depois), havia chegado a hora do programa
de humor. A enfermeira brincou, dizendo que achava que eu era “maior que
gêmeos”. Risadas! O obstetra observou que, no mínimo, dois quilos e meio
dos quase quatro estavam na minha cabeça. Gargalhadas sonoras! Sim, aquele
pessoal estava se divertindo!
Admitirei que tenho uma cabeça extraordinariamente grande, ainda que
não fosse incomum para um bebê nascido no Meio-Oeste. Os crânios da nossa
região do país foram projetados para deixar um pequeno espaço adicional para
o cérebro crescer, pois sempre temos a possibilidade de aprender algo fora das
nossas vidas rigídas e insulares. Talvez um dia tenhamos de nos expor a algo
que não entendemos totalmente, como uma língua estrangeira ou uma salada.
Nossa área cranial extra nos protegeria desses contratempos.
No entanto, minha cabeça era diferente das dos outros bebês cabeçudos de
Michigan; não por causa do seu tamanho e peso reais, mas porque não se parecia
com a cabeça (ou rosto) de um bebê! Parecia como se alguém tivesse feito uma
montagem com Photoshop da cabeça de um adulto no corpo de um bebê.
Na década de 1950, os hospitais se consideravam como a vanguarda da
sociedade moderna do pós-guerra. E convenciam as mulheres hospitalizadas
que ser “moderna” significava não dar de mamar ao seu bebê, que amamentar
era antiquado e inútil. As mulheres modernas usavam mamadeira!
41
ENGATINHANDO PARA TRÁS
22 Automóvel produzido pela divisão Chevrolet da GM, entre 1960 e 1969. Foi o único carro ameri
cano de produção em série com motor traseiro. (N. T.) j
23 Três irmãs que "batem ponto" em tabloides e revistas de celebridades dos Estados Unidos, (jsl. T.)
24 Foi um dos maiores defensores dos direitos dos negros nos Estados Unidos. No entanto, foi| acu
sado de difundir o racismo, a supremacia negra, o antissemitismo e a violência. Morreu assassinado
em 1965. (N. T.) j
25 People for the Ethical Treatment of Animais (Pessoas em Prol do Tratamento Ético aos Animais,
em português). Fundada em 1980, é uma ONG dedicada à defesa dos direitos dos animais. (NiT)
42
ADORO PROBLEMAS
No dia da minha liberação da maternidade, fui levado para fora pela primeira
vez, e o sol bateu no meu rosto e foi bom. Estava um dia ligeiramente quente
para Michigan, em abril, mas eu não pareci me importar, todo envolvido em
uma manta azul-clara nova e aconchegante, satisfeito de estar nos braços da
minha mãe. Ela e meu pai se sentaram no assento dianteiro do sedã Chevy Bel
Air 1954 de duas cores. Meu pai deu a partida no motor. Minha mãe disse que
estava sentindo “muito calor”. Eu estava bem.
Ela pediu para que ele abrisse as saídas de ar para resfriar o carro. E quando
meu pai obedeceu, toda substância viscosa e repelente que tinha se acumulado
no inverno foi expelida pelas saídas de ar, e uma substância escura e fuliginosa se
espalhou toda sobre mim e minha manta azul-clara. Meu rostinho ficou tingido
de preto, e eu comecei a tossir, ofegar e chorar. Me leve de volta para o hospital!
Minha mãe soltou um gemido de horror, e meu pai rapidamente desligou o
ventilador e começou a ajudar na minha limpeza.
Em vinte minutos, estávamos em minha primeira casa, um apartamento
muito pequeno, de dois quartos, sobre a Kellys Cleaners, uma lavanderia no
centro de Davison, em Michigan. Davison erá uma cidadezinha a nove qui
lômetros de Flint. A família da minha mãe tinha morado ali, na região de
Davison, desde que Andrew Jackson fora presidente, ou seja, desde muito antes
que qualquer pessoa, exceto os índios. A sua família foi uma das primeiras que
fundou a paróquia católica local. Meu pai, que descendia de uma família irlan
desa do lado leste de Flint, gostava da natureza tranqüila e simples de Davison,
muito diferente da existência difícil que ele estava acostumado na cidade. Sua
única experiência prévia em Davison foi quando seu time de basquete da St.
Marys High School, de Flint, veio jogar contra o Cardinais, da Davison High
School, e o público começou a zombar dos jogadores com epítetos anticatólicos
(“Ei, comedores de peixe!” era o principal insulto lançado pelos torcedores do
time de Davison). Isso bastou para o padre Soest, sacerdote da St. Marys. Ele se
levantou, declarou o jogo encerrado, tirou seu time do ginásio de esportes e o
levou de volta a Flint. Exceto por isso, meu pai gostava de Davison.
O prédio que abrigava nosso apartamento pertencia ao pai da minha mãe,
meu avô, Doc Wall, que, por meio século, ficou conhecido como o “doutor da
cidade” de Davison. Doc Wall e sua mulher, Bess, viviam numa casa branca de
dois andares, onde minha mãe tinha nascido, apenas a duas portas de distância
43
ENGATINHANDO PARA TRÁS
de nós. Todos os dias, o bom doutor subia vinte e quatro degraus até nosso
apartamento para ver o que seu neto estava fazendo. Acho que ele também ficou
fascinado com o novo aparelho instalado na nossa sala de estar: um televisor
Philco de 21 polegadas, e ele passava uma ou duas horas assistindo à progra
mação. Minha avó comentou que eu já estava saindo a ele, e meu avô gostou
disso. Ele até tinha seu próprio nome para mim —“Malcolm” —e compunha
músicas e as cantava para mim (“Ele é um amiguinho bacana, um mocinho legal\
e nós arrumamos seu carrinho de bebê com uma linda alm ofadinhaEle morreu
antes do meu terceiro aniversário, e tenho somente duas lembranças vividas e
maravilhosas dele: ele fazendo uma tenda com cobertores na sua sala de estar, e
a música animada que ele tocou para mim em seu violino irlandês enquanto eu
ficava empoleirado precariamente sobre seu joelho saltitante. i
Soube que minhas primeiras horas na minha nova casa foram tranqüilas.
No entanto, à medida que a noite avançou, eu também avancei e, assim, tive um
ataque de choro contínuo, que, apesar das melhores intenções da minha máe
de me confortar, não cessou. Após uma hora disso, aproximadamente, ela ficou
preocupada que algo podia estar errado, e telefonou para seus pais em buscá de
auxílio. A avó Bess logo apareceu e, depois de examinar o bebe chorão com seu
cabeção, perguntou: “Quando foi a última vez que você deu comida para ele?”.
“Na maternidade”, minha mãe respondeu.
“O quê? Isso faz muito tempo! Esse bebê estáfamintoV
Obrigado, vó Bess, por dizer as palavras que ainda não possuía no meu
vocabulário.
Minha mãe achou a bolsa que deram para ela no hospital e olhou dentro
em busca da mamadeira, mas não havia nenhuma a ser encontrada. Nenhuma
mamadeira, nenhum leite em pó. Mas, espere um minuto... não há um peito na
sala? Ora essa!
Minha mãe deve ter me escutado e, assim, ele tentou, seguindo as instru
ções da sua própria mãe, me amamentar. Mas ou o “encanamento” não escava
funcionando, ou eu já estava viciado na substância hum-hum líquida gorduijosa
semelhante a leite condensado. O choro continuou, e Bess instruiu sua fillja a
acordar meu pai (que já estava dormindo; o primeiro turno na fábrica come
çava às seis da manhã) e mandá-lo até Flint para comprar leite em pó na única
farmácia 24 horas. !
!
44
ADORO PROBLEMAS
Por algum motivo, nunca encontrei um caminho que pudesse ser chamado de
“normal”, e foi uma boa coisa que a ciência e o comércio ainda não tivessem
tramado a invenção de maneiras de entorpecer e anular os sentimentos de uma
pequena alma como a minha. É uma das poucas vezes que dou graças a Deus de
ter crescido nas ignorantes e inocentes décadas de 1950 e 1960. Ainda levaria
alguns anos para a comunidade farmacêutica descobrir como dopar um recém-
-nascido como eu, e professores e pais mandarem crianças para a “solitária”.
Frequentemente, imaginei o que os pediatras de hoje teriam feito comigo se
tivessem testemunhado meu comportamento bizarro.
Por exemplo, o modo como eu me movia nos meus primeiros anos. Enga
tinhar e, em seguida, andar como a maioria dos bebês fazia não era suficiente
mente bom para mim. Para começar, eu me recusava a engatinhar. Não engati
nhava para ninguém. Meus pais me colocavam no chão e eu entrava em greve.
Ficava imóvel. “Não vou a lugar nenhum. Vocês podem ficar aí e me olhar o
tempo que quiserem, mas não vou me mexer!”
Depois de algum tempo, senti a decepção deles. Assim, em torno do nono
mês de vida, decidi engatinhar... para trás. Era só me colocar no chão e eu dava
marcha a ré. Nunca para frente, só para trás. Enfim, assim que alcançava o chão,
disparava na direção contrária. Mas nunca colidia com nada. Era estranho,
como se eu tivesse olhos na parte posterior da fralda. De alguma forma, meu
corpinho ficava engatado na marcha a ré, e se você quisesse que eu fosse na sua
direção, teria de me posicionar na direção oposta. Assim, eu conseguia impelir
para trás minha parte posterior na sua direção.
45
ENGATINHANDO PARA TRÁS
Isso se tornou uma fonte de diversão para os adultos —muita diversão, acho,
pois as pessoas paravam só para ver o bebê que engatinhava para trás. Assim,
decidi mudar. Comecei lenta e metodicamente a engatinhar para a frente, tíão
tão bobamente para a frente como a maioria dos bebês. Mas, sim, um para a
frente muito determinado, atento, uma mão na frente da outra - e não sem
antes sentir a textura do piso (um pouco aqui, agora um pouco ali) e, então,
escolher o ponto certo, que era aceitável para meu senso estético e meu gostol E,
em seguida, engatinhava. Se sentisse vontade.
Andar parecia algo que se valorizava em demasia. À medida que observava
as outras crianças pequenas da vizinhança se erguerem e se apoiarem nos móveis
e nas pernas das calças a fim de se firmarem antes de desabarem centenasj de
vezes, preferi adiar essa fase da minha vida. 1
Realmente, tornou-se o impasse da vida doméstica. Já havia outro bebê a
caminho e, mesmo depois que Anne, minha irmã, nasceu e estava pronta pjara
engatinhar, eu ainda não tinha andado. Por quê? Por que eu precisava despender
uma energia inútil? Já era capaz de ver o que envolvia a maior parte da vida: úm
terço dela era deitar numa cama, para dormir. Outro terço dela era ficar parado
num lugar durante o dia inteiro, numa linha de montagem ou sentado numa
escrivaninha. E o terço final do dia era gasto sentado ou numa mesa de jantar
ou num sofá assistindo à TV. E por que um bebê precisava andar, já que exis
tiam carrinhos de criança, patinetes, andadeiras, andadeiras de saltar, triciclos e
pais para carregá-lo? Me dá um tempo! Além disso, na realidade, eu não tinha
nenhum lugar para ir, nem algum lugar para estar. j
Com essa atitude, não conseguia nenhum elogio dos meus pais. Um garoto
de um ano e meio precisa de amor e adoração, e essas coisas pareciam estar
murchando rapidamente. Assim, certo dia, no meu décimo sétimo mês, achei
melhor me levantar e lhes mostrar do que eu era feito. Dei um salto como
um ginasta da Alemanha Oriental, andei direto como uma flecha na direção
do ventilador e tentei enfiar minha língua nele. Meus pais ficaram eufóricos e
chocados.
“Vocês querem que eu ande? É desse jeito!”
46
ADORO PROBLEMAS
Minha mãe sabia que eu era diferente. Assim, deciciu dividir um segredo comigo
quando fiz quatro anos. Ela me ensinou a ler. Esse tantinho de autonomia só
devia acontecer alguns anos depois, e por um bom motivo: se você fosse capaz
de ler, saberia de coisas que não deveria saber. E saber o que não se devia saber
na década de 1950 era uma receita para se meter em apuros.
Ela começou com o jornal diário. Não um livro infantil (havia muitos na
casa), mas o Flint Journal Ela primeiro me ensinou a ler a previsão do tempo.
Era uma informação útil, e gostei de saber algo que as outras crianças não
sabiam, por exemplo, se iria chover ou nevar amanhã. Eu também era fissurado
em contagem de pólen. Orgulhosamente, contava para quem quer que visse
na rua qual era a contagem de pólen do dia.26 Acho que Davison tornou-se a
localidade mais proficiente em pólen do condado graças a mim. Até hoje, você
vai para Davison, em Michigan, e pergunta para qualquer pessoa “Ei, qual é a
contagem de pólen?”, e ela, com muita alegria, lhe dará a informação, sem hesi
tação ou prevenção. Eu comecei isso.
Após a previsão do tempo e a contagem de pólen, ela me ensinou a ler
as manchetes da primeira página, e depois disso, o horóscopo e os resultados
esportivos. Minha mãe não me ensinou o abecedário. Ela me ensinou palavras.
Palavras associadas a outras palavras. Palavras que tinham sentido para mim, e
palavras que tinham me desconcertado, mas também tinha me deixado ávido
de aprender o que significavam. Cada palavra na página tornou-se um quebra-
-cabeça para resolver; era divertidol
Em pouco tempo, estávamos indo à biblioteca uma vez por semana, e eu
sempre retirava o limite máximo: dez livros. Frequentemente, tentava enfiar
um décimo primeiro na pilha. Tinha a boa sorte de que as gentis bibliotecárias
eram ou deficientes em matemática ou, mais provavelmente, viam o que eu
estava fazendo, e a última coisa que queriam era desestimular uma criança que
queria ler.
Agora aqui está onde o abuso infantil chegou: meus pais me mandaram
para a escolal Num piscar de olhos, fiquei tremendamente entediado; mas
tive o cuidado de não deixar os outros alunos saberem que já era capaz de ler,
26 Em alguns locais, os jornais publicam a contagem de pólen no ar, o que ajuda os alérgicos a se
protegerem. (N. T.)
47
ENGATINHANDO PARA TRÁS
27 Theodor Seuss Geisel (1904-1991), escritor e humorista americano, conhecido por diversas obras
de literatura infantil. (N. T.) ;
28 Personagem principal de Leave it to Beaver, uma série de TV, que estreou em 1957. Beaver era um
garoto de sete anos, que vivia quase sempre metido em confusões. (N. T.) í
48
ADORO PROBLEMAS
Minha mãe respondeu que já tinha tomado a decisão e ponto final. Ela
encerrou a conversa pedindo educadamente para a madre superiora não tomar
qualquer outra decisão “unilateral” no futuro sem consultá-la antes. Não sabia
muito bem o que aquilo significava, mas sabia o que parecia. Ai! Não se fala
daquele jeito com uma madre superiora. Eu pagaria por isso, com certeza.
protesto, não cantando a primeira música. Ficamos ali parados, bocas fechadas,
olhando para a frente. Foi uma má ideia, pois fitamos dLireto o olhar furioso
que emanava da madre superiora. Todos nós cantamos a música seguinte, sem
dúvida.
Minha mãe devia ter me deixado pular um ano. Haveria muito menos pro
blemas para todos os envolvidos.
EQUIPE DE BUSCA
E SALVAMENTO
Nos Estados Unidos, poucas ruas são planejadas, de modo que, independente
mente de se virar para a direita ou para a esquerda, acaba-se numa rua sem saída.
Assim era a rua onde morei e cresci: East Hill Street, uma alameda de terra
e cascalho, com um quarteirão de comprimento e duas extremidades sem sáída.
O único jeito de chegar nessa rua era pegando outra alameda de terra com uma
extremidade sem saída conhecida como Lapeer Street. A Lapeer se estendia] dos
trilhos da estrada de ferro, em uma extremidade, até tocar diretamente no centro
da nossa Hill, numa transversal, e, assim, formando nossa própria, pequena e
escondida comunidade. Do outro lado da Lapeer Street havia um campo que
levava ao único cinema da localidade, o Midway. Atrás da Hill Street haviaj um
brejo repleto de aventura e uma mata grande e misteriosa. |
No início da década de 1950, o velho senhor Hill vendeu sua propriedade
agrícola, que se transformou nesse lote de 27 casas, nessas duas ruas majori-
tariamente imperceptíveis e indefinidas. As casas eram basicamente em estilo
Levittown29 do pós-guerra: pequenas, estranhas, necessárias. Eram recheadas
de famílias da nova classe média. Havia esperança e hostilidade nessas estru
turas de 85 metros quadrados. Tinham grandes quintais que, nos primeiros
anos, se misturavam uns aos outros, mas, com o tempo, tiveram de ser Idivi-
29 Comunidade planejada, situada no estado de Nova York, construída entre 1947 e 1951. SeM nome
homenageia o construtor William Levitt, considerado o pai dos subúrbios modernos nos Estados
Unidos. (N. T.) i
52
ADORO PROBLEMAS
didos com cercas de madeira e sebes densas. “Nós” tornou-se “eu” em menos
de uma década, mas, durante um tempo, toda a vizinhança se sentia numa
grande colônia de férias.
Em cada extremidade sem saída da Hill Street, estendia-se um campo
aberto. No campo do lado oeste, tínhamos batalhas de montinhos de terra: o
objetivo era juntar porções de terra compactada e atirar nos olhos dos amigos.
Toda primavera, pegávamos o carrinho cortador de grama do meu pai e
fazíamos um campo de beisebol, onde nos encontrávamos todos os dias do
verão e jogávamos até o pôr do sol. O campo do lado leste da rua era onde
montávamos “acampamento”, com barracas improvisadas com encerados e
cobertores descartados dos nossos pais: quartel-general da vizinhança, onde
todas as coisas delinqüentes eram planejadas.
A mata atrás das nossas casas, na Hill Street, aparentemente era tão grande
que nenhum de nós nunca achou o fim dela, independentemente de quantas
horas andássemos através de seus pinheiros muito altos, aceráceas densas e
bétulas brancas. O “bosque”, como o chamávamos, era um parque de diversões
da natureza, onde podíamos pescar, caçar, fazer armadilhas, acampar, nos perder.
Para alcançar essa mata, tínhamos de atravessar os quintais abertos de quatro
vizinhos, e nenhum deles nunca pareceu se importar. Um grande brejo separava
os quintais da mata, e o próprio brejo exercia fascínio sobre nós. Aprendemos
a saltar de uma árvore caída para outra, para não nos ensoparmos. A água batia
nos joelhos, e não havia criaturas que pudessem nos fazer mal. Havia centenas
de sapos, e fazíamos o máximo para capturá-los, ainda que, geralmente, eles
fossem mais rápidos e mais inteligentes. Havia flores de todos os tipos e uma
quantidade indispensável de mosquitos, que gostavam da nossa presença, como
pequenos bancos de sangue ambulantes, para seu prazer alimentar.
Depois de cruzar o brejo, chegávamos ao pé de uma colina, que, coberta
de gelo no inverno, tornava-se nosso parque infantil para andar de trenó. No
alto da colina, começava a trilha que nos levava às profundezas da mata infinita.
Fazíamos caminhadas durante horas, ainda que ninguém usasse a palavra cami
nhada, pois isso implicava em uma atividade planejada. Nada do que fazíamos
em nosso tempo livre quando crianças jamais era planejado ou organizado.
Acontecia, simplesmente. Uma hora de dever de casa e, em seguida, “sair e tirar
o bolor” eram as ordens dos nossos pais.
53
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO
uma espingarda, de modo que podíamos atirar em faisões. E tínhamos dez anos.
Paraíso. Os adultos nos deixavam sozinhos, e fazíamos muitas expedições nessa
mata, levando almoços de presuntada, que cozinhávamos em nossos “queima
dores amigos”, isto é, latas vazias com uma bola de papelão enfiada dentro e
coberta com a cera que derreteríamos e pingaríamos sobre ela. Mais tarde, acen
díamos nossos queimadores, e o papelão com cera queimava lentamente para
grelhar nossa presuntada. Mais paraíso.
As meninas eram excluídas de todas essas atividades, exceto andar de trenó. Nossos
pais nos obrigavam a levá-las até o alto da colina e descer de trenó com elas. Afinal
de contas, quem, exceto um garoto, era qualificado a realizar a pilotagem?, Na
realidade, gostávamos muito disso, pois éramos capazes de assustar as meninas,
fingindo pilotar o trenó em alta velocidade na direção de uma árvore, mas des
viando no último momento. Frequentemente. Pois, às vezes, ocorriam colisões e
irmãzinhas chorando. No entanto, mesmo isso trazia-nos grande alegria.
Exceto essas memórias envolvendo trenós, não me lembro de alguma
vez ter visto as meninas da vizinhança em algum lugar, e, se for pressionado,
poderei defender a tese de que, de fato, não existiam meninas na vizinhajnça.
Anos depois, acabaríamos descobrindo que elas passavam muito tempo lendo,
tocando instrumentos, fazendo coisas e contando histórias umas às outras e
para a boneca Barbie. Isso seria bem útil para elas, uma vez que deixassem para
trás a infância, mas, por ora, elas eram invisíveis à nossa existência, e suponho
que achávamos que estávamos tanto melhor sem elas. Meninos não serão só
meninos, mas meninos gostam de estar com meninos. E alguns meninos gostam
de estar muito com certos meninos.
Sammy Good era diferente. Em 1965, você podia ser diferente - até certo
ponto - e isso era considerado OK. Por exemplo, você podia ter olhos azuis,
enquanto as outras crianças tinham olhos castanhos. Seu cabelo podia ser cas
tanho, enquanto outros podiam ser ruivos ou pretos. Existiam crianças altas,
54
ADORO PROBLEMAS
30 Pequena cidade situada no estado de Kentucky, que abriga o United States Bullion Depository
(Depósito de Ouro dos Estados Unidos). (N. T.)
55
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO
insignificante, eles viviam no meio uns dos outros e compartilhavam seu conhe
cimento. O professor universitário do quarteirão ensinava matemática para as
crianças da vizinhança e, por sua vez, o mecânico da oficina apareceria “num
segundinho” para consertar o carburador do carro do professor. O dentista
estava acessível para arrancar de emergência o dente da criança do encanador, e
o encanador estava disponível para consertar o vazamento na casa do dentista
num domingo à noite. Era exatamente assim.
E, assim, nas nossas duas ruas de terra, democráticas e igualitárias, esses
eram aqueles que viviam ali, de oeste para leste: pastor presbiteriano, gerente
de loja, operário da linha de montagem de velas de ignição (meu pai), metalúr
gico, agente do correio, vendedor de camisas, o osteopata e sua mãe. Na outra
quadra: motorista de caminhão, casal aposentado, gerente de loja de departa
mentos, professor do ensino médio, zelador, idoso com deficiência física, ejnsa-
cador de supermercado, aposentado, conselheiro municipal, mãe separada çom
filho, bancário. Era a classe média americana. Nenhuma casa custava mais do
que dois ou três anos de salário, e duvido que a diferença nos salários anuais
(exceto em relação ao osteopata) superasse mais do que cinco mil dólares. E
exceto o médico (que fazia atendimento domiciliar), os gerentes de loja, o
pastor, o vendedor e o bancário, todos pertenciam a um sindicato. Isso signi
ficava que tinham uma jornada semanal de quarenta horas, tinham um firti de
semana inteiro de folga (mais duas a quatro semanas de férias pagas no verão),
benefícios médicos amplos e estabilidade no emprego. Em troca de tudo isso, o
país tornou-se o mais produtivo do mundo, e, em nossa pequena comunidade,
significava que seu forno estava sempre funcionando, seus filhos podiam ser
deixados com os vizinhos sem aviso, você podia ir até a porta ao lado a qualquer
momento para pedir emprestado meia dúzia de ovos e as portas de todas as casas
nunca eram trancadas, pois quem precisaria roubar alguma coisa se já tinham
tudo que precisavam?
Mas, caro leitor, antes de você começar a tocar Stephen Foster31 e ‘jThe
Star Spangled Banner”,32 preciso lembrá-lo de que você já deve saber: !essa
existência idílica (tão apropriadamente documentada em programas como
31 Importante compositor do século XIX, Foster (1826-1864) é considerado o pai da música ^meri-
canâ, tendo composto, entre outras canções, a conhecida Oh! Susanna. (N. T.) j
32 A Bandeira Estrelada é o hino nacional dos Estados Unidos. (N. T.) i
56
ADORO PROBLEMAS
Donna Reed e Papai Sabe Tudo) tinha seu lado negro. Além do fato de que as
mulheres ainda estavam a anos de distância de um movimento de liberação e
de que se uma única pessoa negra mudasse para sua vizinhança, as placas de
“vende-se” brotariam como ervas daninhas, havia o fato insuperável de que
você náo podia simplesmente amar quem você amava se quem você amava
possuísse a mesma genitália que a sua. Você nem mesmo existia, para começar;
assim, então, você se transformava num ator muito sereno ou muito zangado,
representando todos os dias no palco heterossexual.
O senhor e a senhora Good tinham três filhos: Sammy, Alice e Jerry. Se
você quisesse embalar uma família e enviá-la para todo o mundo, para que as
pessoas dos outros países pudessem observar a aparência de uma perfeita família
americana, os Good eram essa família. O senhor Good era o gerente da loja
de departamentos local. Sammy era o filho mais velho, quatro anos na minha
frente na escola. Ele fora adotado quando os Good náo sabiam se a cegonha
traria algum filho de concepção própria. Mas depois eles tiveram Alice, que
tinha minha idade, e Jerry, que era três anos mais novo.
Os Good moravam numa casa estilo rancho, revestida de tijolos, com uma
grande varanda telada na parte de trás e um quintal que se estendia por uns bons
45 metros. A renda confortável do senhor Good, um pouco melhor (embora
não muito) do que a do resto da rua, permitia-lhe ter uma empregada, que
vinha uma vez por semana para lavar roupas, passar e limpar a casa. Ela era
negra e pegava o ônibus na extremidade norte de Flint. Sua presença não provo
cava nenhum “desconforto” na vizinhança, exceto o fato de estimular o desejo
das mulheres de também poderem ter uma empregada.
Os Good não eram pessoas ostentosas, e, se havia algum outro sinal de que
eles tinham alguma renda extra, era que, todos os invernos, um homem apa
recia e alagava o quintal para criar uma pista de patinação no gelo, grátis para
a vizinhança, para todos se divertirem, a qualquer hora, dia ou noite. O senhor
Good tinha grandes refletores que iluminavam a pista, e se você perguntasse aos
vizinhos uma das lembranças mais queridas deles da Hill/Lapeer Street, seria
aquela de um homem que cedia seu quintal para que qualquer um pudesse ir
patinar ali durante horas a fio.
O senhor Good sempre tinha um carro novo, geralmente um Buick. Ele era
amigável, mas reservado; um pouco mais baixo que os outros pais da rua. Ele era
57
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO
diferente em duas outras coisas: tinha um bigode preto numa rua desprovidà de
pelos faciais e era judeu. |
Um dia qualquer, por volta do verão de 1964, um som começou a emergir
da normalmente tranqüila casa dos Good. Era um barulho imenso, uma batida
grave, vibrante, que acontecia num ritmo repetitivo, um pouco como a pul
sação de uma música, mas de nenhuma música a qual nós estivéssemos fami
liarizados. BUUM-buum-buum, BUUM-buum-buum, BUUM-buum-buum,
BUUM-buum-buum.
Podia ter sido o senhor Good trabalhando em alguma coisa com suas novas
ferramentas de artesão. Podia ter sido uma nova cozinha que estavam insta
lando. Talvez Hammad, o exterminador local, tivesse sido chamado para eli
minar alguns cupins incômodos ou um gambá que se escondeu no porão da
casa. |
Mas não, não foi nada disso. Era música dos negros. Especificamente, o jlhe
Supremes, um grupo que nenhum de nós tinha ouvido. A música era “Where
Did Our Love Go” (“Aonde Foi Parar Nosso Amor?”), e aonde ele foi? Per
correu três quintais da Lapeer Street, atravessou a janela da nossa sala de estar, e
alcançou a ponta do meu pé.
Sammy Good ganhara um toca-discos no Natal; sim, os Good celebraram
o Natal decorando lindamente a casa, com luzes coloridas e anjos brancos oíiis-
cantes com trombetas. A coisa mais legal de ter um pai trabalhando numa loja
de departamentos era que você tinha os produtos mais novos e mais incríveis
primeiro: a primeira secadora Admirai, com ajustes distintos para roupas aife-
rentes; a primeira geladeirafrostfree Westinghouse e o primeiro gravador de rolo
Silvertone (que foi meu presente do Papai Noel naquele Natal).
Quando as nevascas do inverno se acalmaram, em maio de 1964, Sammy
levou seu toca-discos para a varanda telada, junto com alguns discos de 45 rota
ções. A etiqueta no disco dizia “MOTOWN”. Cada disco tinha uma música na
frente e uma no verso. A Motown possuía diversos selos e artistas, incluindo The
Miracles, The Marvelettes, The Vandellas e Litde Stevie Wonder. Sammy revelou
que eles todos viviam perto de nós, em Detroit, um lugar que conhecíamos por
causa dos jogos de beisebol do Tigers e dos filmes no Music Hall Cinerama.
Olhávamos através dos quintais e víamos Sammy na varanda todos os dias
depois da escola, tocando seus discos da Motown e... dançando. Tínhamos visto
58
ADORO PROBLEMAS
velhos de Davison, que já estavam de olho nele há algum tempo, decidiram que
tinham visto o suficiente. Era a hora de interromper essa festa dançante.
Os garotos de Davison lançaram seu ataque contra Sammy. Ele se tornou
vítima de diversos tapas, socos, surras e banhos de lama ou neve.
Sammy náo aceitava esse tratamento e sempre se defendia, algo que parecia
pegar de surpresa seus colegas de classe. Primeiro, ele ia direto nos olhos deles,
como um gato ensandecido. Ele quase arrancava os olhos deles. Sempre era capaz
de cravar suas unhas mais longas do que o normal nas bochechas deles, arra
nhando e unhando até tirar sangue. E chutava, chutava loucamente, qualquer
parte do corpo que pudesse alcançar. Náo era o estilo de luta de Sonny Liston,33
ao qual esses garotos estavam acostumados. Seus agressores o dominavam
no fim, mas isso tinha um preço. Em pouco tempo, os molestadores da vijzi-
nhança e da escola consideraram muito trabalhoso abatê-lo, não valendo o
esfoço (ou as cicatrizes) para subjugá-lo. Eles também descobriram que não
eram capazes de eliminar à força o comportamento esquisito de Sammy. Sem
dúvida, se um desses gays fosse surrado repetidamente, o homossexualismo,
de alguma forma, seria expelido dele, e ele se tornaria Normal. Mas isso não
estava acontecendo. Assim, os molestadores desistiram, e voltaram à tradição
mais divertida de humilhação mediante zombarias, escárnio e xingamentos
contra Sammy. |
Tudo isso levou Sammy a um lugar escuro. O ódio descomunal contra èle
não o fez, por sua vez, querer amar os outros. E, assim, ele descontou sua raiva
contra nós, os meninos mais novos. Não tínhamos muita certeza em nossa idade
do motivo pelo qual os garotos mais velhos eram tão malvados com ele, mas
logo descobrimos que Sammy nos via apenas como versões menores dos seus
molestadores, e ele nunca perdia a oportunidade de dar em um de nós um bom
e odioso tabefe.
Qualquer coisa podia tirá-lo do sério - nos ver mascando chiclete, calçajs e
camisas que não combinavam, tentativas proibidas de cantar junto músicas cjos
seus discos de 45 rotações —, e ele ficava mais violento conosco, com seus soços
e pontapés. Certo dia, ele amarrou o pequeno Pete Kowalski em uma cadeira
33 Liston (1932-1970) foi um lutador de boxe profissional, tendo conquistado o título de campeão
mundial dos pesos-pesados em 1962, ao nocautear Floyd Patterson no primeiro round. (N. T.) j
60
ADORO PROBLEMAS
por ele “ser mau”, e sua máe teve de libertá-lo (depois de dar uma boa bofetada
em Sammy). Rapidamente paramos de ir à Festa Dançante Vespertina, mas
isso náo detinha Sammy quando via um de nós na rua. Ele nos derrubava no
chão com um empurrão. Sempre que passava, dava-nos um bom soco. Depois
de um tempo, fazíamos o melhor que podíamos para nos afastar dele. Éramos
crianças; não entendíamos a mágoa que ele carregava e por que ele precisava
fingir. Mesmo os adultos pareciam incapazes de captar esse conceito em 1965.
Num sábado à tarde, eu estava andando de bicicleta na calçada da Lapeer
Street, e Sammy veio na minha direção. Tentei atravessar o pedação de gramado
entre a calçada dele e a rua, mas, quando fiz isso, ele gritou para eu “sair do
gramado dele!”. Então, ele pegou o galho que tinha na mão e o jogou nos raios
da minha roda dianteira, fazendo a bicicleta parar de repente e me jogando no
chão da rua. Ele simplesmente ficou parado ali, gritando: “nunca, jamais, olhe
para nosso gramado” e “não quero saber!”. Então, começou a rir loucamente. Eu
me limpei e saí correndo para casa com minha bicicleta.
Quando cheguei em casa, minha tia Cindy e seu marido, tio Jimmy, estavam
ali com seus filhos fazendo uma visita. Eles eram os parentes conhecidos como
os Mulrooneys, e sua prole consistia de três filhos muito fortes, todos muito
mais velhos do que eu. Eles moravam na zona leste de Flint, e tenho certeza de
que esses três rapazes eram muito temidos na sua vizinhança. Eu mesmo morria
de medo deles, e eu era parente deles!
Eu subi os degraus da entrada da nossa casa e entrei, com os cotovelos
machucados e sangrando, e lágrimas correndo pelo meu rosto. Os primos bru-
tamontes quiseram saber o que aconteceu. Contei-lhes, e eles disseram: “Mostre
para nós quem foi”. Olhei pela nossa janela panorâmica e ali estava ele, ainda
parado na rua. “Ele”, eu disse, sabendo muito bem o que iria acontecer a seguir.
Infelizmente, não senti remorso, mas só um senso de justiça. Isto é, até eu ver
como a justiça estava sendo repartida.
Ali, na rua, os três rapazes Mulrooney estavam batendo em Sammy
Good. Primeiro, ele formaram um círculo em torno dele. Sabia que os
instintos de animal aprisionado de Sammy entrariam em ação instanta
neamente. Ele deu o primeiro tapa, e, depois disso, não consegui mais ver
Sammy. Os Mulrooneys o atacaram como piranhas sobre carne crua. Digamos
apenas que os Mulrooneys não eram “esbofeteadores”, e a velocidade e a
61
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO
Cerca de três meses depois, perto das dez da noite, bateram na nossa porta. Era
o senhor Popper, um homem grande, mas de voz suave, que vivia do outro lado
da rua dos Good.
“Frank, o menino dos Good sumiu. Os pais dele acham que ele pode ter
sido seqüestrado. Levado para a mata. Eles chamaram a polícia, mas achamos
que devemos ir à sua procura. Você pode vir?”
“Claro”, meu pai disse, ainda que já tivesse passado da sua hora de dormir.
Ele foi pegar sua lanterna grande e um bastão de beisebol.
Em minutos, a maioria dos homens da vizinhança tinha se reunido no
nosso gramado, todos com lanternas, galhos e paus, e usando o tipo de jaqueta
de caça que se veste no fim do outono em Michigan. Minhas irmãs e eu, já de
pijamas e na cama, fomos até a sala de estar e vimos o desenrolar dessa cena.
O que estava acontecendo? Seqüestro? Ficamos imediatamente assustados. Era
o único crime contra uma criança, exceto assassinato, que significava prisão
naqueles dias. Não havia coisas como “abuso infantil” ou “negligência”, e quase
todas as crianças estavam acostumadas com uma dose saudável de palmadas -
ou pior. Mesmo a escola admitia isso, e os professores tinham permissão de usar
uma grande arma de madeira contra a área conhecida como seu traseiro.
A única coisa que você não podia fazer enquanto adulto era nos roubar.
Se você não fosse o pai ou a mãe ou um parente da família estendida, você não
poderia nos levar sem permissão. Decidia-se firmemente o limite do que era
tolerado, e esse era o limite.
Acreditava-se que Sammy Good fora levado (seduzido?) por alguém que era
“como ele”, mas “mais velho”. Não sabíamos o que isso significava. Realmente,
era difícil imaginar alguém capaz de imobilizar e depois transportar Sammy a
algum lugar, a menos que os olhos dados por Deus não tivessem utilidade.
Determinou-se que, se alguém fosse assediá-lo (“Mãe, o que significa asse
diar?”), provavelmente seria na mata atrás da nossa casa. E assim a equipe de
busca e salvamento partiu. Uma coisa que me impressionou a respeito de todos
aqueles homens - a maioria dos quais provavalmente não apreciava o fato de
que Sammy fosse o vizinho homossexual - era como eles estavam sinceramente
preocupados com a segurança e o bem-estar de Sammy, e como tinham a espe
rança de encontrá-lo são e salvo. As mães também tinham aparecido para con
fortar a senhora Good, que estava parada na rua lutando contra as suas lágrimas.
63
EQUIPE DE BUSCA E SALVAMENTO
Os homens garantiram a ela que trariam seu filho de volta; afinal, ele prova
velmente só fugiu e podia até estar nos observando nesse momento! Disseram
isso enquanto seguravam com firmeza seus paus e bastões de beisebol, prontos
para entrar em ação ou talvez temerosos de entrar nas profundezas da máta
escura. Sim, eles estavam dispostos a correr riscos, e, se pudéssemos resumir o
sentimento coletivo, seria: Bem, ele pode ser uma bicha —mas, droga, ele é a nossa
bicha —eé melhor ninguém tocar num fio do seu cabelo!
Quando os homens partiram, minhas irmãs começaram a chorar,
achando que os seqüestradores também poderiam ferir nosso pai. Nossa mãe
nos mandou voltar para a cama, dizendo que, com mais de doze homehs,
ninguém iria se ferir. Naquele momento, o chefe de polícia se apresentjou
com um dos seus policiais e partiu para alcançar o grupo improvisado.
Fui com minhas irmãs para o quarto delas, que tinha uma vista melhor da
mata. Observamos os pais atravessarem os quintais, cruzarem o brejo e entrarem
na mata, onde as silhuetas dos seus corpos desapareceram, mas o movimeiito
impetuoso das doze lanternas nos permitiu saber exatamente onde eles estavam.
O movimento dessas luzes parecia estranhamente coreografado —Sammy teria
ficado orgulhoso - entrecruzando-se à medida que os homens avançavam para
cima e para baixo através das árvores, como as luzes dos refletores num festíval
de verão ou na liquidação de 4 de julho35 da concessionária Chevrolet. j
Depois do que pareceram horas, os pais voltaram, tristes e de mãos vazias.
“Ele não está ali”, escutamos nosso pai dizer para nossa mãe. “Nem sinal de
onde ele está. Mas ele não está ali.”
Os policiais transmitiram a má notícia para a senhora Good e ela voltou
a se desesperar. Seu marido colocou o braço em torno dela para confortá-la, e
eles caminharam lentamente de volta para a casa deles, como fizeram todas as
outras pessoas.
No dia seguinte, Sammy Good foi localizado perto de Pontiac, em Michigan.
Ele tinha pego uma carona ou um ônibus. Ele vagava pelas ruas, sentia fome e não
queria voltar para casa. Estava cansado dos insultos, dos molestadores, das surijas e
da impossibilidade de aproveitar sua festa dançante em paz. Ele tinha consegiiido
36 Apelido dado à primeira sede da Motown Records, situada em Detroit, no estado de Michigan
(N.T.)
A CANOA
Quando eu era novinho, minha avó materna me sentou para contar a história
da família. Ela tinha um antigo e bolorento caderno de anotações, recortes de
jornal e pilhas de álbuns com fotografias desbotadas. Como eu era o mais velho
dos três filhos, ela quis que eu recebesse essas informações, para que fossem
transmitidas para as gerações futuras. No entanto, para ela, não se tratava! só
de entregar o material que fora entregue a ela. Também se tratava da tradição
irlandesa de sentar as crianças e deixar que elas vissem seu rosto e olhassem
seus olhos, enquanto você lhes contava “as histórias do seu povo”. Minha avó
explicou que essas histórias eram a coisa mais próxima que tínhamos de joias da
família. Eram quem nós éramos, de onde viéramos, como nossas vidas, valores
e crenças se desenvolveram. Nas gerações que nos precederam, elas compreen
diam que a fortuna (ou tragédia) não era apenas uma série de acontecimentos
aleatórios. Era o resultado da maneira pela qual a pessoa se comportava, da
integridade que tinha e de quão cuidadosamente tomava as decisões. j
Essas histórias familiares eram contadas e recontadas sem o recurso de com
putadores e outros aparelhos digitais. A história de alguém era armazenada no
cérebro dessa pessoa. Atualmente, a memória é mantida num pendrive Sony.
Mas como a tecnologia muda todos os anos (ver: Lucro), perdemos as fotos da
família nas diversas transferências ao longo do caminho. O disquete de quinze
anos atrás, aquele que tem a história da família armazenada, é difícil de recu
perar agora. E se você pedir para uma criança ajudá-lo, você dará de cara com
um olhar confuso ou um riso abafado. Se você “armazenou” em 1995, já é his
tória antiga, com os uns e os zeros apagados.
66
ADORO PROBLEMAS
No entanto, muitas das histórias contadas para mim por meus pais e avós
estão perdidas agora, não por causa de um arquivo salvo no lugar errado, mas
porque eu nem sempre estava ouvindo. A TV estava ligada, eu queria uma barra
de chocolate com amendoim, eu queria sair e brincar. O que isso tinha a ver
com as chances do Tigers no campeonato de beisebol? Tudo que importava
estava bem ali, naquele momento: eu.
Portanto, muitas histórias eram, numa única geração, apagadas por
meio da desatenção e da falta de senso de responsabilidade. Anseio por
escutar aquelas histórias agora e lastimo não ter feito isso na minha infância,
respeitando-as pelo poder, pela energia e beleza que tinham. Tentei juntar
os fragmentos de muitas delas por meio das lembranças das minhas irmãs
e primos, mas sei que as histórias nunca voltarão realmente a alcançar sua
inteireza.
No entanto, havia uma história que guardei comigo muito depois da morte
da minha avó. Era a história do avô dela e como ele se tornou um dos primeiros
colonos da região de Flint (Condado de Lapeer, para ser exato). Era uma região,
na época, habitada pelos índios. O pai dela (meu bisavô) foi um dos primeiros
bebês brancos nascidos na comarca conhecida como Elba. Como eu era de uma
dessas primeiras famílias que se estabeleceram nessa região, reconheci que o que
Elba, Davison e Flint se tornaram tinha algo a ver com o que esses primeiros
moradores haviam feito.
Uma pessoa assim foi Silas Moore, o avô da minha avó, um homem que
nasceu em 1814, quando James Madison era presidente. Certo dia, no início da
década de 1830, Silas Moore, na ocasião morando em Bradford, na Pensilvânia,
criou um plano que quis compartilhar com seu sogro, Richard Pemberton
(Silas era casado com Caroline, filha de Richard). Envolvia deixar Bradford e se
mudar para o oeste, nas terras selvagens e quase despovoadas de um lugar cha
mado Michigan. Envolvia viajar primeiro para BufFalo, embarcar num navio,
atravessar o lago Erie e subir o rio até Detroit.
“Podemos levar a família e nossos pertences básicos de carro de boi até
BufFalo, passando por Killbuck e Springville”, Silas explicou ao seu sogro. “Isso
deve levar quase uma semana. Então, vendemos os bois em BufFalo e embar
camos no navio a vapor que nos levará através do lago Erie até Detroit. Em
67
A CANOA
a sorte em locais mais ermos, onde diziam que a terra era plana, o solo fértil e
a água era mais abundante do que em qualquer outro lugar do planeta. Silas e
Caroline Pemberton Moore (a filha de Richard) eram recém-casados, e aquele
parecia um bom momento para fixar nova residência em uma nova terra, para
criar uma nova família em um novo estado.
Assim, os Moore e os Pemberton, com alguns dos seus vizinhos, venderam
suas fazendas, juntaram suas famílias e partiram. Isso incluiu Richard Pem
berton, sua mulher, Amelia, e suas cinco outras filhas. Com seus bois e duas
carroças, começaram a lenta e árdua viagem na primavera de 1836.
Seis dias depois, chegaram na fervilhante metrópole de Buffalo. Havia
pessoas por toda parte e tantas lojas que se podia fazer um estoque de um ano
passando apenas um dia no que já era uma das maiores cidades dos Estados
Unidos. Diante da atividade e agitação, Pemberton encorajou a todos a perma
necer juntos e tomar conta dos pertences. O canal do Erie tinha sido aberto na
década passada, e isso levou muitos colonos e negócios a Buffalo, que era agora
denominada “o portão de entrada dos Grandes Lagos”. O canal, que começava
no rio Hudson, na região leste do estado de Nova York, agora tornava pos
sível transportar pessoas e mercadorias desde o Oceano Atlântico até os rios
do Oeste, incluindo o rio Mississippi. Silas não conseguia acreditar nos apelos
dos cartazes espalhados pela cidade: DEEXE BUFFALO HOJE - CHEGUE
EM DETROIT AMANHA! Os cartazes anunciavam novos navios a vapor de
grande capacidade, que podiam literalmente tirá-lo de Nova York e deixá-lo
nos territórios ocidentais no entardecer do dia seguinte. Isso simplesmente náo
parecia possível.
Os Moore e os Pemberton pagaram oito dólares por pessoa e pegaram o pri
meiro barco da manhã, um dos quatro navios que zarpavam todos os dias entre
abril e novembro. No dia seguinte, chegaram em Detroit. Silas e Richard foram
ao cartório de imóveis para estudar a compra de terras perto de Detroit. Disseram-
-lhe que podiam comprar terras em um local denominado “Grand Circus” por
35 dólares. Mas quando eles foram verificar as terras, consideraram-na panta
nosa e inadequada para agricultura. Em vez disso, compraram, sem vê-lo de
antemão, um grande lote perto de um lago, cerca de 80 quilômetros ao norte
de Detroit - “o ermo distante, distante”, disseram-lhes —, em um local perto de
<cLapeer” (derivado da palavra em francês para “pederneira”).
69
A CANOA
escravatura. Suas fortes tradições quacre, junto com seus irmãos congregaciona-
listas e católicos, levaram Michigan, em 1846, a se tornar o primeiro governo no
mundo de fala inglesa a abolir a pena de morte. Esse era seu estado de espírito.
No início do verão de 1837, Silas e Caroline revelaram que teriam um filho
no fim de novembro. Isso alegrou muito sua família e seus amigos de Bradford,
pois seria um dos primeiros bebês não índios nascido na região.
Silas preparou sua cabana para o filho que chegava. Ele gostaria que hou
vesse vidro para as janelas, mas vidro lapidado era raro, e ninguém tinha che
gado de Pontiac para ele recorrer. Assim, para manter as intempéries do lado
de fora, uma persiana de madeira foi construída. Não era hermética - o vento
entraria pelas fendas —, mas atendia às suas necessidades. Eles sabiam o que era
o inverno, sendo da Pensilvânia e do norte do estado de Nova York.
Em 30 de novembro, Caroline começou a sentir as contrações do parto.
Como Lapeer agora tinha um médico, Silas decidiu ir para lá para buscá-lo,
a fim de ajudar no parto. A mãe e as irmãs de Caroline ficariam com ela até
o regresso de Silas com o médico. Era de tarde, e a viagem noturna podia ser
muito difícil. No entanto, Silas não quis correr riscos com seu primeiro filho e,
assim, pegou o caminho de Lapeer.
Os índios perceberam que Silas estava deixando para trás sua mulher no
final da gravidez. Os Chippewa se interessaram muito pela gravidez de Caroline
e, frequentemente, paravam para oferecer mantas, ervas ou contas de colar espe
ciais, que, explicaram, manteriam longe os espíritos maus.
O trabalho de parto dela estava mais rápido do que o esperado e, no pôr do
sol, seus gritos puderam ser ouvidos pelos índios. Em minutos, um grupo deles
surgiu na porta da casa de Caroline.
“Por favor”, a irmã de Caroline disse, exasperada com o fato de que ela
poderia ter de realizar o parto. “Tudo está bem. Não precisamos de ajuda.”
“Lobos”, um dos índios disse, no seu inglês muito mal falado. “Lobos.”
“Sim, lobos. Sabemos que há lobos na mata. Estamos bem.”
“Os lobos sentem o cheiro de sangue. Eles chegam aqui”, ele disse, indi
cando a janela sem vidros. “Cheiro de sangue. Nada bom.”
Então disse algo para seus dois amigos, e eles saíram. Em minutos, voltaram
com mantas.
“Coloco mantas aqui para você. Assim, lobos não sentem o cheiro.”
71
A CANOA
do seu código moral introduzir mantas ou água com essas doenças para exter
minar as aldeias indígenas.
Quando a notícia de que os Chippewa tinham sarampo se espalhou por
Elba, os colonos estabeleceram uma quarentena imediata e proibiram qualquer
branco de ter contato com os índios. Silas não gostou disso.
Os índios enviaram mensageiros até a divisa da área da quarentena para
pedir ajuda. Seu povo estava morrendo. Eles precisavam de comida e remédios.
Os colonos brancos de Elba disseram que não havia nada que pudessem fazer,
exceto rezar por eles.
Silas acreditava em orações, mas não só. Desobedecendo a ordem, ele levou
sua canoa até o meio do lago Neppessing. Uma vez ali, ele acenou e gritou para
os índios na outra margem. Aqueles que ainda não estavam doentes saíram de
suas tendas e acenaram de volta. Ele gesticulou para eles virem até o lago para
encontrá-lo. Dois Chippewa, um dos quais era o chefe, embarcaram na canoa e
remaram na direção de Silas. À medida que se aproximaram, ele fez sinais para
que ele mantivesse certa distância.
“Estou aqui para ajudar”, Silas disse em voz alta, para que eles pudessem
escutá-lo. “Estou aqui para ajudar. Quantos de vocês estão doentes?”
“Muitos”, revelou o chefe. “Alguns morrem. O resto precisa de comida e
suprimentos.”
“Verei o que posso fazer. Me encontrem aqui amanhã, nesse horário.”
Silas voltou para sua margem do lago. Ele contou para Caroline a respeito
da situação difícil vivida pelos índios.
“Vou ver o que posso conseguir com as outras pessoas”, ele disse.
Silas visitou as famílias na região de Elba para coletar alimentos e provisões
para os índios. A maioria contribuiu, mesmo aqueles que tinham falado mal
da tribo antes. Houve aqueles que acharam que Silas estava se arriscando des
necessariamente, e o advertiram que, se achassem que ele estava ficando com
sarampo, mandariam-no para a área de quarentena para viver com os índios.
No dia seguinte, Silas remou até o meio do lago Neppessing. Atrás dele,
rebocava outra canoa cheia de comida e suprimentos. O chefe e outros seis
índios já estavam esperando no lago.
“Deixarei isso aqui. Peguem tudo.” Os índios remaram até a canoa cheia de
provisões e as descarregaram nas suas canoas.
73
A CANOA
“Em dois dias, trarei mais comida. Nosso médico também está trazendo
alguns dos nossos remédios para vocês. Vocês podem testar.”
Dois dias depois, Silas encheu uma canoa com o que conseguiu e voltou
para se encontrar com os Chippewa, que tinham trazido novamente a canoa
vazia para o meio do lago. Quando Silas alcançou a canoa vazia, entre ele e os
índios, tomou muito cuidado para não tocá-la, para não contrair a doença.
O compartilhamento dessa canoa prosseguiu por algumas semanas. Os
vizinhos de Silas ajudaram na sua fazenda para que ele não tivesse prejuízo, e
a maioria continuou a contribuir com seus esforços para salvar os índios. Mas
ninguém se juntou a ele nas suas viagens através do lago.
A maioria dos Chippewa se recuperou, e, durante anos, eles nunca esque
ceram a generosidade de Silas Moore. Quando seu filho, Martin, estava na idajde
escolar, em vez de mandá-lo para a escola de Elba (que era mais longe), Silas o
enviou para a escola indígena que a municipalidade tinha criado perto da sua
casa. Nos anos seguintes, Silas insistiu para que Martin e seus quatro outros
filhos cursassem o ensino médio em Lapeer. Martin foi cursar faculdade e depois
voltou para abrir um armazém em Elba. Ele ocupou muitas funções eleitas na
comunidade —escrivão, tesoureiro, supervisor —, mas disseram que nenhuma
foi mais importante para ele do que a função de “supervisor dos pobres”. Ele
contou a história dos índios e do seu pai, Silas, para sua filha, Bess, e ela contòu
para sua filha, minha mãe. 1
E minha mãe contou para mim. !
PIETÀ
Eu estava perdido.
Tinha parado talvez por muito tempo para examinar as estátuas no cor
redor e na rotunda, versões em bronze e mármore de um grupo estranho de
grandes e não tão grandes americanos: Will Rogers, Daniel Webster, George
Washington, Robert La Follette, Robert E. Lee, Jefferson Davis, Brigham
Young, Andrew Jackson.
E, então, ali estava a estátua de Zachariah Chandler. Desconhecido fora
do estado de Michigan (e também desconhecido ali), ele foi um senador com
quatro mandatos em meados do século XIX. Os historiadores que sentem afi
nidade com a Confederação37 creditam-lhe o início da Guerra Civil. Em 11 de
fevereiro de 1861, dois meses antes dos rebeldes atacarem o Fort Sumter, Chan
dler fez um discurso exaltado no Senado, onde convocou uma “sangria” para
purificar o país dos seus sentimentos a favor da escravidão. Em outras palavras,
assim que matarmos alguns desses senhores de escravos, eles entenderão a men
sagem de que a escravidão acabou. Os sulistas consideraram essa uma declaração
não oficial de guerra e continuaram a se preparar para a sangria que iniciariam.
Chandler também é reconhecido como fundador do Partido Republicano.
Em 6 de julho de 1854, ele tomou a primeira iniciativa no país para consti
tuir um partido abolicionista estadual. Ele convocou todos os abolicionistas a
encontrá-lo sob um gigantesco carvalho, em Jackson, em Michigan e, apenas
37 Também denominada Estados Confederados da América, foi a unidade política criada em 1861
por seis estados do sul agrário e escravagista: Alabama, Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Louisiana
e Mississippi. (N. T.)
75
PIETÀ
Aos onze anos, eu era fascinado por história e política. Por esse fato, junto com
aquelas aulas de leitura precoces, responsabilizo minha mãe. O pai dela (meu
avô) foi líder do Partido Republicano em nossa cidade de Davison durante a
primeira metade do século XX. Como imigrante do Canadá, o doutor William
J. Wall trouxe com ele o bom-senso canadense e um interesse ávido pelas ações
governamentais. Ele também acreditava que os livros e as músicas eram compa
nheiros necessários na busca da felicidade.
Nascido e criado em uma fazenda entre Sarnia e London, em Ontário,
Will foi um dos onze filhos. Ao alcançar a maioridade, adquiriu uma pequena
fazenda, perto da fazenda do seu irmão Chris, e juntos eles cultivavam a terra de
dia e tocavam violino irlandês à noite. Os irmãos Wall e seus violinos tornaram-se
muito solicitados para os bailes e festas locais. Mesmo durante o intervalo do
meio-dia da atividade agrícola, eles se reuniam e tocavam seus violinos.
Com o passar do tempo, Will, que era muito respeitado pelas pessoas do
vilarejo, foi convidado a ensinar na escola rural durante os meses de inverno.
Ele aceitou a oferta e, em pouco tempo, começou a gostar tanto de ensinar que
vendeu sua fazenda para o irmão.
Depois de alguns anos como professor, Will decidiu que queria ser médico.
A escola de Medicina mais próxima ficava do outro lado do rio St. Clair, no
estado de Michigan. Em 1898, o curso de Medicina levava um ano, pois esse era
todo o tempo necessário para ensinar tudo que era conhecido então a respeito
da cura do corpo humano. Após terminar o curso de Medicina em Saginaw, ele
viajou através do “polegar” de Michigan e apareceu no seu caminho um vilarejo
chamado Elba, a cerca de 18 quilômetros a leste de Flint. Ele gostou das pessoas
de Michigan e dos americanos e, ainda que continuasse sentindo orgulho das j
suas raízes canadenses, viu os Estados Unidos como um lugar repleto de pessoas j
e ideias curiosas, inventivas e progressistas. Ele decidiu se estabelecer em Elba. j
Em setembro de 1901, o doutor Wall viajou para Ontário para visitar sua j
família e, no último minuto, decidiu pegar o trem para Buffalo para ver a muito í
76
ADORO PROBLEMAS
38 Famoso caubói fictício do rádio, do cinema e da TV, que, no Brasil, ficou conhecido durante j
muitos anos como Zorro. (N. T.) i
39 Detetive mascarado criado na década de 1930. (N. T.) |
78
ADORO PROBLEMAS
40 Apelido de Dwight David Eisenhower, o trigésimo quarto presidente dos Estados Unidos, de 1953
a 1961. (N. T.)
79
PIETÀ
“Esse jovem de Michigan...” Ele se virou para mim: “Qual é o seu nome,
filho?”
“Michael. Moore.”
“Michael se perdeu da sua mãe, e talvez possamos ajudá-lo.”
“Sim, senador. Tomaremos conta dele.” O guarda disse ao senador que ele
cuidaria do assunto dali em diante, para que o senador pudesse prosseguir com
seus deveres muito mais importantes.
“Bem, ficarei aqui por um minuto ou dois para me certificar de que ele está
bem.”
Fiquei ali pensando o quão estúpido fui para me perder, e agora eu estava
segurando Bobby Kennedy e os trabalhos do Senado dos Estados Unidos para que
todos pudessem ir procurar minha mãe. Mãe do céu, eu estava envergonhado.
“Quantos anos você tem, Mike... posso chamá-lo de Mike?”, Kennedy
perguntou.
“Tenho onze anos. É minha primeira vez no Capitólio”, disse, esperandò
parecer menos idiota.
“Bem, você fez seu primeiro passeio no elevador do Senado. Isso quase ô
torna um senador!” O irlandês nele tinha agora se manifestado, e ele fez brotar
aquele sorriso dos Kennedy. Também sorri, e tomei a iniciativa. |
“Nunca se sabe!”, disse; então quis rapidamente desdizer essa observaçãò
sabichona. j
“Bem, já temos dois bons democratas por Michigan, os senadores McNaj
mara e...”
“... Hart!”, intervim, como se fosse um programa de perguntas e respostasi
“Você conhece seus senadores. Muito bom! E promissor”, Kennedy acres-?
centou, com um piscar dos olhos do guarda. !
“Achamos a mãe dele”, uma voz disse no rádio que o policial estava segu-j
rando. “Fique aí. Ela está chegando. ” j
“Bem, parece que tudo deu certo”, declarou o senador de Nova York. “Boaj
sorte, jovem, e nunca perca o contato com sua mãe!”
E com isso ele se foi, antes mesmo de eu ter a oportunidade de agradecê-lo,
desejar a ele tudo de bom ou recitar para ele meus trechos favoritos do discursoj
de posse do seu irmão John na presidência. j
82
ADORO PROBLEMAS
44 Organização racista norte-americana que defende a supremacia branca e o protestantismo. (N. T.)
83
PIETÀ
você ia para saber das coisas em Davison, e o lugar estava sempre cheio. Jesse
era um homem baixo, com cabelo curto, e sempre tinha um par de tesouras ou
uma longa navalha na sua mão. Isso era problemático, pois ele usava óculos de
lentes fundo de garrafa, o tipo de óculos de cego, e isso me assustava quando eu
sentava na sua cadeira, enquanto ele era cortejado por seus bajuladores e usava
seus instrumentos afiados para fazer diversos sinais de pontuação no ar.
Durante muitas noites após o assassinato da senhora Liuzzo não consegui
dormir, e quando conseguia, tinha pesadelos de que era minha mãe que havià
sido encontrada morta no carro na estrada do Alabama. Contei isso para meus
pais, e eles sugeriram que eu deixasse de ver o noticiário por algum tempo, mas
continuei a sintonizar Walter Cronkite45 todas as noites.
Era confuso para mim e minhas irmãs, sentados na galeria da Câmara dos
Deputados, escutar um homem falando que “não é assunto do governo federal5!
quem tem o direito de voto.
“Por que eles não querem que as pessoas votem?”, perguntei para minha
mãe.
“Algumas pessoas não querem que algumas pessoas votem”, ela respondeu,j
tentando me proteger do fato de que mesmo parlamentares dos Estados Unidos
podiam pensar como os homens que mataram Viola Liuzzo.
No dia seguinte, fizemos uma viagem de carro muito longa e terrivelmente
quente até Monticello, o lar de Thomas Jefferson. O local histórico, situado j
a cerca de duas horas ao sudoeste de Washington, bem no interior do estado j
de Virgínia, nos levou ao começo do “Sul real”, como nossa mãe chamava, j
O passeio para Monticello não foi muito memorável, exceto pelas passagens!
muito baixas das portas, o que indicava que as pessoas, há duzentos anos, não
eram muito altas, e pela omissão gritante de qualquer menção dos escravos de
Jefferson.
No caminho de volta para Washington, paramos para colocar gasolina e j
para usar o banheiro. Caminhei com minha mãe até os fundos do posto, onde j
havia duas portas. Uma estava sinalizada com a palavra WHITE (branco) e a j
outra com COLORED (negro) (ainda que parecesse que alguém tivesse tentado j
45 Cronkite (1916-2009) foi jornalista e apresentador de TV, durante muito tempo foi considerado o :
homem com mais credibilidade nos Estados Unidos. (N. T.)
84
ADORO PROBLEMAS
raspar essa última palavra, mas sem sucesso). Parei e náo tirei os olhos dessas
placas, e, embora soubesse o que significa, quis escutar a explicação da minha
mãe a esse respeito.
“O que é isso?”, perguntei.
Ela observou as placas e ficou em silêncio por um momento.
“Você sabe o que é”, ela disse, laconicamente. “Apenas entre, faça o que
você precisa fazer e saia.” Entrei no banheiro para negros e ela entrou no para
brancos. Quando saímos, ela me levou de volta para o carro.
“Entre e fique com suas irmãs.”
Então ela caminhou na direção do escritório do posto com o tipo de marcha
que nós, três crianças, sabíamos querer dizer que cabeças rolariam. Colocamos
nossas cabeças para fora das janelas do carro, esperando escutar o que ela estava
dizendo para o homem no balcão, mas tudo que esteve ao nosso alcance foi a
expressão de lábios cerrados e os poucos movimentos feitos por ela com o dedo
indicador. O homem também fez alguns gestos, incluindo um gesto de indife
rença com os ombros. Ela voltou para o carro, entrou e ficou calada.
“O que você fez?”, perguntei.
“Não é da sua conta”, ela disse, me cortando. “E tranquem suas portas.”
(Essa seria a única vez na minha vida que escutaria esse pedido quando está-
vamos nas proximidades de brancos.) Nunca soubemos o que ela falou para
o homem ou o que ele falou a ela; anos depois, gostava de pensar que ela o
criticara furiosamente pelo fato de seus filhos terem de testemunhar essa imora
lidade nos Estados Unidos que ela amava. Ele pode ter dito a ela que ele apenas
ainda não tivera tempo de tirar aquilo, ou tinha tentado (a Lei dos Direitos
Civis declarando ilegais essas coisas fora aprovada doze meses antes), ou talvez
disse a ela para sair dali, levando junto seu amor pelos negros. Ou talvez ela só
reclamou que o banheiro feminino estava sem papel higiênico. Sempre pensei
em perguntar, mas não perguntei. Ela não era Viola Liuzzo e, por isso, penso,
fico grato, pois gostaria que minha mãe estivesse viva.
Essa viagem até Washington para ensinar como nosso governo funcionava estava
chegando ao fim, mas nossa mãe tinha programado uma “segunda parte” para
85
PIETÀ
nossa viagem de verão: estávamos indo para Nova York e para a Feira Mundial
de Nova York! Quando ela tinha dezoito anos, seus pais a levaram para a Feira
Mundial de Nova York de 1939, e foi ali que ela viu pela primeira vez inven
ções como a televisão e vislumbrou o “Mundo do Amanhã”. Nós teríamos um
vislumbre do nosso futuro por meio dessa nova Feira. Cinco horas depois, che
gamos na casa de nossa tia, em Staten Island.
A Feira Mundial de Nova York de 1964-65 foi uma experiência estonteante.
Situada em 260 hectares no distrito de Queens, a Feira incluiu mais de 140
pavilhões e estandes de todo o mundo. A maior parte disso, para nossos olhos
juvenis, era uma visão excitante do que os adultos daquele tempo achavam que
o mundo pareceria no século XXI. O pavilhão da IBM apresentou-nos o que
os computadores poderiam fazer por nós, e, embora nunca fosse sugerido que
teríamos nossos próprios computadores, estimulava a imaginação e criava um
entusiasmo com o mundo audacioso do futuro novo milênio.
No pavilhão da Pepsi, assistimos a um espetáculo muito divertido, inti- j
tulado “Its a Small World” (“Este é Um Mundo Pequeno”), um precursor da
vibração “We Are the World” da década de 1980, ainda que a Pepsi estivesse
mais preocupada em derrotar a Coca-Cola do que com a fome na África.
Mas não havia nada que chegasse perto do gigantesco edifício patrocinado
pela General Motors. Chamava-se Futurama, e por sermos todos da cidade natal
da empresa, ficamos muito orgulhosos de atravessar suas portas. Colocaram- j
-nos em cadeiras, e, de repente, essas cadeiras começaram a se mover. Elas nos
levaram a um passeio através do futuro: carros voadores, cidades sob os oceanos,
colônias na Lua e pessoas felizes em todos os lugares. Era um mundo em paz,
onde todos tinham um bom emprego, e não havia pobreza, poluição ou algo
que pudesse nos preocupar. Isso era bacana. Recomeçamos o passeio e, dessa
vez, tomei notas. A GM estava fazendo uma promessa muito generosa e queria
ser capaz de contar aos meninos da vizinhança a esse respeito.
Muitos estados e países também tinham seus próprios pavilhões. O estado
de Nova York tinha três torres nas quais se podia ver a área metropolitana da
grande Nova York, incluindo subúrbios e cidades satélites. A mais alta tinha um
saguão enorme, com um mapa de Nova York de um milhão de dólares feito com
ladrilhos exóticos (e uma estrela no local de cada posto Texaco no estado). No
topo da torre havia um restaurante giratório. O novo estado do Alasca tinha um
86
ADORO PROBLEMAS
romanas. E como se ele fosse acordar a qualquer momento; e Maria sabia disso.
Havia morte, mas também havia vida.
Não podia entender muito mais do que isso - enfim, eu tinha onze anos! -,
mas era profunda e fez minha cabeça girar —e eu queria ver de novo!
“Não, temos de seguir adiante”, minha mãe respondeu aos meus pedidos.
Minhas irmãs também não aguentavam mais, pois queriam voltar para as atrar
ções mais divertidas da Feira.
“Mas eu quero tirar uma foto! Temos de mostrar para o papai!”
Isso venceu a discussão: algo para o papai, de volta à casa, trabalhando na
fábrica. E, felizmente, minha mãe não tinha visto os avisos de PROIBIDÒ
TIRAR FOTOS. Assim, voltamos pela terceira vez; minha mãe com a filmadorá
Bell & Howell de 8 mm, eu com a Kodak Brownie na mão.
Na terceira passagem - em que fomos punidos por causa das câmeras (isso
perturbou minha mãe, que não gostava de receber ordens de ninguém) -, fiquei
completamente concentrado no rosto da Virgem Maria. Em certo momento,
afastei-me um pouco para observar o rosto da minha mãe, e decidi que,
a semelhança era suficiente para garantir melhor tratamento dela nas próximas |
semanas. j
Antes de sair do pavilhão da Cidade do Vaticano, aproximei-me de umj
grupo de monsenhores com paramentos parados perto da Guarda Suíça. Queria ,
fazer duas perguntas. Um padre de aparência amigável e pronúncia irlandesa, j
com um nariz bem vermelho, ofereceu sua ajuda. j
“Havia algo escrito entalhado nas vestes de Maria”, disse, inocentemente.
“O senhor sabe o que diz?”
“Diz MICHAEL. ANGELUS. BONAROTUS. FLORENTIN. FACIEBAR.
Michelangelo Buonarroti de Florença Criou Isso. Ele entalhou isso ali, pois quando
apresentou a escultura, ouviu as pessoas darem crédito a outro famoso escultor |
da época, que disseram ‘fulano deve ter feito isso!\ Isso perturbou Michelangelo. í
Assim, naquela noite, ele entrou na Basílica de São Pedro e entalhou essa inscrição í
através da faixa de Maria. No entanto, quando ele voltou no dia seguinte, viu o |
que tinha feito e ficou envergonhado e angustiado que tivesse desfigurado sua j
própria obra de arte por causa do seu orgulho e vaidade. Naquele momento, ele j
jurou, como sua penitência, nunca assinar outra escultura sua de novo. E nunca i
mais assinou.” I
88
ADORO PROBLEMAS
Fiquei calado para entender aquilo, e pareceu uma boa lição para ouvir.
Minha outra pergunta era mais simples: “O que significa PietàV'
“É italiano”, o padre afirmou.
“Significa piedade’55.
“Quero ver onde ficavam as Torres Gêmeas”, ela disse, e não me deixaria
convencê-la do contrário. Não queria levar minha mãe até o sul de Manhattan.
Não gostaria que essa fosse a última possível recordação da cidade que ela ado
rava, um lugar que era tanto parte da sua imaginação e lembrança, quanto fonte
de toda vida de alegria quando ela pisava nessa ilha. O lugar mágico ainda
estava queimando, as chamas subterrâneas ainda ardendo, cerca de dez semanas
após o ataque. Tinha cheiro de morte, e o progresso de vasculhar através dos
220 andares de aço retorcido e concreto pulverizado, na busca dos mortos, era
terrivelmente lento.
«r?Eu quero ver.”
Alguns dias antes, fui ao aeroporto de LaGuardia, em nosso Fusca, para
pegar meus pais, que tinham vindo para passar conosco o fim de semana do
feriado do Dia de Ação de Graças. Parado atrás da zona de segurança recém-
reforçada do aeroporto, pude ver os dois se aproximando pelo corredor do ter
minal da Northwest Airlines. Minha mãe não estava bem, e sua saúde piorava
a cada mês. No entanto, ali estava ela, caminhando três passos à frente do meu
pai, como se fosse vinte anos mais nova; o tipo de ritmo em seu passo que só
Nova York era capaz de lhe dar. Ela também me viu muito antes do meu pai e
começou a acenar com entusiasmo. Acenei de volta.
Toda e qualquer “desaceleração” que ela sentiu na casa dela não se mani
festou assim que ela se instalou firmemente em Manhattan. Não mais obrigada
a pegar o barco e o ônibus para chegar na cidade a partir da casa da irmã dela
em Staten Island, ela agora estava “bem de vida”, como meu pai disse, em nosso
apartamento do West Side. Ele caminharia dentro do meu condomínio e, sem
dúvida, comentaria que eu estava “levando uma vida abastada e confortável”.
Isso estava muito além do que ele podia ter imaginado no chão de fábrica da
89
PIETÀ
“Mike! MikeF
Eu estava sentando na sala de estar da casa dos meus pais, no norte de
Michigan, planejando o filme que reuniria a família na próxima meia hora. A
opção ficou entre Homens de Preto II ou Divinos Segredos. Era o fim de semana
de 4 de julho de 2002, e minha irmã Verônica tinha vindo da Califórnia com
seus filhos para ficar com minha mulher e filha e nossos pais. Era sábado, no
começo da noite, e tínhamos passado o dia no lago, onde as crianças brincaram
com uma câmara de ar e meus pais deram uma volta de barco. Minha mãe
segurou seu chapéu, riu e me advertiu para diminuir a velocidade, enquanto as
crianças na câmara de ar gritavam para eu acelerar.
Mais tarde, antes do jantar, sentei minha mãe numa cadeira adirondack no
alto de uma pequena colina perto do lago. Ela dobrou para cima suas calças para
pegar sol nas pernas e fechou os olhos; podíamos ver que isso a fazia se sentir bem.
Nas últimas três semanas, tirei uma folga do trabalho e vim para Davison
para ficar com eles. Levei-os para celebrar o aniversário de casamento com um
jantar, e fizemos passeios de carro para todos os lugares dos seus anos de cresci
mento na região de Flint. Visitamos os túmulos de todos os ancestrais, alguns
com datas de nascimento remontando ao final do século XVIIL Plantamos
flores, visitamos o UAW49 em busca de assistência jurídica gratuita (eles que
riam atualizar seus testamentos), e fomos ao jogo do Tigers em Detroit. Foi,
sem nenhuma dúvida, três das melhores semanas que passei com eles. Ainda que
minha mãe estivesse perdendo a energia, ela participou de tudo. Mas percebi
que o tempo que ela passava no banheiro estava ficando cada vez maior. Meu
47 Sullivan (1901-1974) foi um célebre apresentador de TV, principalmente nas décadas de 1950 e
1960. (N. T.)
48 Era um restaurante e clube noturno luxuoso, no sexagésimo quinto andar do Edifício GE, no
Rockefeller Center, em Nova York. (N. T.)
49 United Auto Workers, sindicato de trabalhadores de diversos setores industriais. (N. T.)
91
PIETÀ
pai reclamava a esse respeito, e concordei que devíamos levá-la ao médico para
um exame minucioso. i
“Mike! Mike!”Era a voz da minha mãe, mas não estava vindo do interior da casa,
onde o resto de nós estava. Estava vindo do terraço da parte de trás. Saí para ver
o que ela queria.
Quando atravessei a porta, ficou evidente que ela estava muito doente. j
“Preciso ir ao banheiro...” Naquele momento, ela vomitou, e o que ela
vomitou foi uma substância viscosa muito escura. Meu pai, naquele momento,
tinha aparecido para ver qual era o problema, e ele e eu ajudamos minha mãé a
se levantar, e a levamos para dentro da casa. Minha mulher ligou para o hospital
local para ver o que sugeriam.
“Pepto Bismol”, minha mulher disse, retransmitindo a mensagem. Isso não
parecia tarefa para um líquido rosa. Minha mãe continuou a vomitar. “Acho que
devemos levá-la ao hospital”, eu disse. Não quis chamar uma ambulância, pois
levaria muito tempo (a mais próxima estava, no mínimo, a 13 quilômetros de
distância).
Levamos minha mãe lentamente para o Ford do meu pai, e minha mulher
e minha irmã a acomodaram no assento traseiro. Assumi a direção e peguei ò
longo caminho da casa até a estrada. A casa ficava no meio do nada (em 2002,
a estrada ainda não tinha sido cabeada para TV a cabo).
Quando cheguei ao fim do caminho da entrada para carros, tive de tomar
uma decisão rápida: levá-la ao hospital mais próximo ou levá-la a um hospital
melhor?O hospital mais próximo ficava numa pequena cidade a 37 quilômetros
ao norte. O melhor hospital do norte de Michigan ficava na direção oposta, a
72 quilômetros, duás vezes a distância. Assim, esse era o dilema. Sua mãe está
gravemente doente, você não sabe o motivo, mas não parece nada bom. Você á
leva para um socorro imediato ou, se ela estiver num estado muito pior do qué
você imagina, você percorre uma distância maior e chega num conjunto melhor
de médicos e recursos?
O que você faria? Você a levaria para o hospital mais perto, certo? Certo? Foi
o que fiz. Escolhi o hospital mais próximo.
92
ADORO PROBLEMAS
“Se não operarmos, ela poderá entrar em choque séptico. A bactéria presa
ali pode já ter se infiltrado na mucosa do intestino dela. É um procedimento
comum. Fiz muitos deles. Não deve levar mais do que uma hora ou duas. Ela
vai ficar bem.”
“Bem? Quantos desses procedimentos o senhor disse ter feito?”
“Faço um ou dois por ano. E faço isso há trinta e poucos anos. Agora,
nessas circunstâncias, sou tudo que você tem, pois sou o único aqui, e acho que
devemos começar.”
Voltamos para o quarto e a enfermeira trouxe uma papelada para meu
pai assinar. Em seguida, ela pediu para minha mãe assinar o formulário de
consentimento.
“Você assinaria por mim, Frank?”, minha mãe pediu para meu pai.
Ele pegou a prancheta e assinou, lentamente. Nós apertamos a mão de
minha mãe e lhe dissemos que tudo daria certo. Ela nos garantiu que tudo aca
baria bem. Consegui não chorar. A equipe a levou, e fomos para a sala de espera
para aguardar uma hora ou duas.
Quatro horas depois, o cirurgião não tinha aparecido, e uma atmosfera
sombria caiu sobre a sala. Qualquer que fosse a notícia, não seria boa. !
Finalmente, o médico apareceu.
“Acho que foi tudo bem”, ele disse. “Ela está se recuperando bem agora.
Tivemos de retirar cerca de trinta centímetros do intestino dela. Diria que as
chances de uma recuperação total são de cerca de 90%.”
Uau! Você sabe quantas vezes você viu aquele médico atravessar aquelas
portas - mil vezes - nas séries da TV e nos filmes, e raramente é uma boa notícia.,i
Ele nos explicou que ela provavelmente teria de ficar no hospital durante o resto
da semana. Ele não vira nenhuma infiltração na mucosa intestinal, e os sinais;
vitais dela estavam todos bons. De fato, poderíamos vê-la em algumas horas, j
assim que ela acordasse. j
Agradecemos o cirurgião e, com uma sensação de alívio, caminhamos na j
direção da unidade de tratamento intensivo. Bem, não havia nenhuma “uni
dade”, ou ala, naquele hospital. Ele tinha uma pequena UTI com dois quartos.
Tudo bem. Ela estava bem!
94
ADORO PROBLEMAS
de manhã. Verônica e minha mulher levaram meu pai e as crianças para casa.
Acomodei-me com um livro e o meu sempre presente bloco de anotações, esbo
çando os ajustes finais que queria fazer no meu filme antes do seu lançamento
no outono.
De vez em quando, minha mãe acordava, e nós conversávamos.
“Tenho muita sorte em ter a família que tenho”, ela afirmou.
“Nós temos muita sorte de ter você”, disse-lhe, passando uma toalha morna
no rosto dela, exatamente como ela fazia conosco muitos anos atrás.
“Estou com sede”, ela afirmou. Ela não tinha permissão de ingerir alimentos
ou líquidos, nem mesmo água, durante aquelas primeiras 24 horas. Tudo que
podia fazer era deixá-la sugar um cotonete que tinha uma minúscula esponjà
úmida na ponta. Segurei um na boca dela, e ela sugou com certo desespero.
“Estou crestada.” Sorri. Ninguém dizia “crestada” neste século ou no
passado.
“Deixe-me fazer isso”, disse, enquanto pegava outro cotonete e esfregava em
torno da boca dela. Como uma criancinha olhando para o mamilo da mãe, ela
agarrou o pequeno cotonete com a boca, a língua, o dente, querendo mais, maisj
“Sedenta.”
“Acho que é tudo que podemos fazer por ora, mãe. Sentarei aqui com você
e faremos isso de novo daqui a pouco.”
Sentei na cadeira perto da cama dela e me acomodei.
“Pegue um dos meus travesseiros”, ela disse, enquanto erguia a cabeça e
tentava pegar um deles.
Não acreditei... No estado dela, minha mãe estava preocupada com o fato|
de eu não ter um travesseiro. Mesmo no seu pior sofrimento, os instintos dela
eram ainda de ser mãe, de cuidar do seu filho, de assegurar que ele estivesse bem,j
de permitir que ele dormisse em paz e com aconchego. Sobre o travesseiro dela.í
“Tudo bem, mãe”, disse com um sorriso, tentando conter uma gargalhada.
“Não preciso de um travesseiro. Fique com ele.” Recoloquei o travesseiro no
lugar, e a cabeça dela, naquele momento, acomodou-se de maneira confortável.
“Adoro minhas crianças. Tenho bons filhos”, ela disse, com um sorriso doce
e tímido.
Pus minha mão sobre o rosto dela e penteei delicadamente seu cabelo com
meus dedos.
96
ADORO PROBLEMAS
Às duas da tarde (vinte e quatro horas desde a cirurgia), o estado dela con
tinuava a se agravar de forma constante. A pressão arterial era de 6 por 3,5.
Liguei para Jack Stanzler, um médico amigo meu, em Ann Arbor, para pedir
algum conselho. Ele, por sua vez, ligou para um médico amigo dele, no norte
de Michigan, para ver se havia alguma coisa que ele poderia fazer. Os olhos da
minha mãe continuavam bem abertos com pouco ou nenhum movimento. Nós
todos continuávamos murmurando coisas encorajadoras para ela, esperando
que isso ajudasse.
Decidi espairecer por um momento e fiii até o posto de enfermagem, onde
encontrei a enfermeira que não tinha ficado feliz de me ver. Ela olhou direto
para mim, e com um tom de asco que não teve a decência de esconder, disse o
seguinte:
“Por que você não repete isso lá? Sua mãe está morta. E ninguém tém
coragem de lhe dizer isso. Ela morreu e nada do que você está fazendo yai
trazê-la de volta.” E, em seguida, ela se afastou.
Senti-me asfixiado. Era como se a mão da enfermeira estivesse agora na
minha garganta, estrangulando-me até a morte.
“Espere um minuto!” Gritei, quando recuperei a respiração. “Quem é você?
Por que você diz uma coisa dessas? Você é doente. Doente!” |!
Sucumbi. As pessoas do quarto me escutaram, e minha mulher surgiu.
Chorando, contei-lhe o que a enfermeira tinha acabado de dizer. ;
“Sua mãe não está morta. Aqueles monitores não mentem. Não sei por que
ela disse isso. Volte para o quarto.”
Em vez disso, peguei o celular e liguei para o cirurgião. Contei-lhe o que
tinha acabado de acontecer. Ele pediu para eu não dar atenção à enfermeira,
e disse que o médico em serviço estava cuidando das coisas, e isso era o que
importava. “E sua mãe continua viva.”
Na hora seguinte, todos nós nos alternamos passando alguns momentos
íntimos com minha mãe, falando as coisas que cada um de nós queria dizjer
particularmente. Às quatro da tarde, aproximadamente, todos nos reunimos no
quarto em um círculo em torno da cama dela, e cada um de nós ofereceu uma
oração, uma lembrança ou um agradecimento a aquela mulher que nos trouxe
ao mundo, nos criou, cuidou de nós e nos encorajou a abraçar o conhecimento,
a bondade e a benevolência, e a nunca recuar se achássemos que era aquilo que
100
ADORO PROBLEMAS
nossa consciência estava dizendo para fazer. Ninguém conseguiu chegar ao final
do que estava falando sem sucumbir.
Trinta segundos depois das quatro e meia da tarde, em 8 de julho de 2002,
minha mãe partiu deste mundo. Houve um pesar intenso, profundo, no quarto,
e muitas lágrimas para contar. Choramos na maior parte da meia hora seguinte,
e, um por um, após um longo silêncio, pegamos nossas coisas para sair. Fui o
último a sair do quarto. Aproximei-me da minha mãe e a segurei. Os olhos dela
tinham sido fechados pelo médico. Eu a beijei na cabeça e, ao recuar, percebi
um longo fio de cabelo grisalho dela na minha camisa. Peguei delicadamente o
fio de cabelo - o cabelo que para mim ainda estava vivo, ainda cheio do DNA
dela, os 23 cromossomos que a tornavam quem ela era, que me ajudou a me
tornar quem eu sou, uma parte dela (ainda que fosse somente um simples fio de
cabelo). Enfiei o cabelo no bolso da minha camisa, olhei para ela uma última
vez e saí.
Até hoje, aquele último fio de cabelo grisalho ainda está naquele mesmo bolso
de camisa, que está dobrada dentro de uma pequena sacola, no meu antigo
quarto, na casa em que cresci, escondido, intacto, no alto da estante de livros,
perto de uma pequena estátua de plástico que ela me deu na Feira Mundial de
Nova York da Pietà de Michelangelo.
TET
No verão, depois do sétimo ano, nossa família saiu da rua de terra e se mudou
para uma pavimentada - a mesma rua que vivíamos quando eu nasci. Comecei
a pensar muito a respeito da Guerra do Vietnã naquele verão, e a maior parte do
meu pensamento não era boa. Fiz as contas e percebi que só faltavam cinco anos
para eu atingir a idade do serviço militar obrigatório. E estava ficando claro que
aquela guerra não acabaria num futuro próximo.
No oitavo ano, a senhora Beachum era nossa professora da tarde. Como nossa
freira também era a madre superiora da escola, ela nos dava aula somente na parte
da manhã. Suas tardes eram dedicadas às funções administrativas e à distribuição
das medidas disciplinares necessárias aos “caídos em batalha” entre nós. j
A senhora Beachum era negra. Em toda escola, ela era a única professora
negra e, além disso, só havia dois alunos negros - e talvez porque eles se cha
mavam Juan e Rico, de alguma forma nos convencemos de que eles não eram real
mente negros; provavelmente cubanos ou portoriquenhos. Eles eram populares, e
seus pais participavam de todos os eventos, ajudando da melhor maneira possível.
Mas a senhora Beachum era definitivamente negra. Não havia dúvidá. A
pele dela era quase tão escura quanto carvão, e ela falava num dialeto sulista
com o qual nenhum de nós estava familiarizado. Não passava um dia sem ique
ela não dissesse para um de nós, com seu inconfundível sotaque negro sulista:
“Não seja faceto, garoto!”. Não tínhamos a menor ideia do que aquilo signi
ficava, mas adorávamos o som. O corpo dela não era coberto por um hábito
de freira. Assim, não me surpreenderia se, em 1967, eu não fosse o único
menino da nossa classe cujo “sonho” teve a sorte de ter a senhora Beachjum
como protagonista.
No entanto, em nossas horas diurnas não a sexualizávamos, pois nenKum
de nós queria lidar com aquilo no confessionário. Além disso, a madre superiora
tomava conta de modo rígido e vigilante da nossa puberdade e do seu progresso,
e ela se dedicava a lembrar a cada gênero na classe o quanto podia confiar no
outro gênero - o que, em suma, não era muito. Desde o quinto ano, os dois
í
|
104
ADORO PROBLEMAS
54 Foi um escândalo de suborno que ocorreu entre 1922 e 1923, durante o governo do presidente
Warren G. Harding. (N. T.)
105
TET
ela pegava nossos poemas e os recitava para nós. De vez em quando, a madre
superiora aparecia para ver o que estava acontecendo. Ela náo fazia objeçóes,
desde que os meninos ainda estivessem sentados em um lado da classe e as
meninas do outro. Sua aprovação tácita dos métodos da senhora Beachum nos
deixava menos preocupados a respeito dela, e isso relaxava a turma, a ponto de,
no dia que a senhora Beachum propôs sua Grande Ideia, por incrível que pareça
haver pouca objeção entre nós.
“Acho que chegou o momento de ensiná-los um pouco de boas maneiras!
Vocês já ouviram falar de etiqueta?”
Tínhamos ouvido, mas, sem dúvida, nunca fomos praticantes.
“Bem, meninos e meninas, acho que é hora de todos nós sairmos juntos
para jantar e aprendermos como as pessoas corretas fazem as coisas. Meninos,
quero que cada um escolha uma menina para ser sua companheira de jantar. Nas
próximas três semanas, todos nós aprenderemos boas maneiras à mesa. Quando
estivermos prontos, iremos ao Frankenmuth para um daqueles famosos jantares
de galinha frita.”
Naturalmente, o que ela tinha em mente não era “ensinar boas maneiras”
ou “etiqueta”. Ela estava nos ensinando a como namorar. Tenho certeza de que
ela teve de vender essa ideia para as autoridades sem dizer a palavra namorar, e
suponho que não viram nada de errado no fato de que soubéssemos qual era o
garfo para salada e entendêssemos que soltar gases tóxicos durante uma refeição
não era como Deus esperava que desfrutássemos os frutos da sua terra.
Os vinte e sete de nós da turma da senhora Beachum tinham acabadò de
saber que as portas da natureza podiam agora ser abertas. Por alguns minutos,
demos risos nervosos e ficamos tensos, mas, caramba, gostamos dessa ideia! Foi
incrível o quão rapidamente nós entendemos esse conceito de “sair” com alguém
da classe que não tinha nossos órgãos genitais específicos. (Nos anos seguintes,
quis saber o que isso deve ter significado para os não heterossexuais da turma
- finalmente, uma oportunidade de admitir sentimentos sexuais - mas, dwga,
com o gênero errado! Acho que para eles foi uma lição precoce de fingimentò.)
A ordem perfeita do mundo caiu no lugar certo quando cada menino da
classe correu para convidar a menina que era “apropriada” para ele. O astrò do
basquete convidou a prodígio do softball O pianista convidou a bailarina. O
escritor convidou a atriz. O menino do estacionamento de trailers convfdou
i
106
ADORO PROBLEMAS
55 The Supremes foi um grupo musical feminino de Motown, atuante entre 1959 e 1977, formado por
Mary Wilson, Diana Ross e Florence Ballard. (N. T.)
107
TET
Sim, continue, por favor. Não deixei a contração do lado esquerdo do meu
rosto distraí-la.
“Há treze meninos e quatorze meninas na turma. Assim, todas as meninas
têm um par, exceto Lydia.”
“Lydia” era Lydia Scanlon. “Lydia, a idiota” era o nome pelo qual a maioria
dos meninos da classe a chamava. Lydia era a nulidade da turma. Ninguém sen
tava perto dela e ninguém sabia nada a seu respeito. Ela nunca falava, mesmo
quando solicitada, e ela não fora solicitada desde o quinto ano. Há sempre
aquele aluno em relação ao qual o professor tem de decidir se cuida ou descuida;
há um número limitado de minutos no dia letivo, e, se o aluno não quer falar,
o professor tem de ensinar aos outros alunos. Aparentemente, cinco anos de
trabalho para ela participar foram o suficiente, e, assim, a maioria de nós nem
mesmo sabia que ela ainda estava na nossa classe, embora ela estivesse ali todos|
os dias, na última carteira, na fila mais longe da nossa realidade. |
O uniforme escolar de Lydia caía mal, provavelmente resultado de ter sido
usado pelas duas ou três outras meninas da família antes dela. Dizia-se que sua
higiene pessoal era pior que a dos meninos, e seu cabelo era cortado... Bem, pelo
menos ela tinha acesso a um espelho enquanto o cortava.
Previsivelmente, nenhum menino foi convidá-la para ser seu par.
“Preciso que você peça para Lydia ser seu par no jantar”, a senhora Bea
chum afirmou.
“Uuh?”, foi tudo que fui capaz de murmurar. Senti um nó instantâneo
na garganta porque ela estava me pedindo para DESISTIR DA FUTURA
RAINHA DO BAILE DE PERNAS COMPRIDAS BRONZEADAS COMO
MEU PAR! Eu tinha ganho a medalha de ouro e, agora, estava sendo solicitado
a devolvê-la! Exatamente como Jim Thorpe!56Você não pode fazer isso!
Sem dizer nada do mencionado acima, a senhora Beachum conseguiu ler
isso na minha expressão. j
“Veja, querido, eu sei que você gostaria de ir com Kathy, mas sei que yocê
sabe que ninguém vai convidar a menina, e isso não está certo. Lydia é uma
56 Atleta norte-americano da primeira metade do século XX. Thorpe (1887-1953) foi campeão jolím-
pico de pentatlo e decatlo em 1912, em Estocolmo, mas teve de devolver suas medalhas ao se
descobrir que ele não era mais um atleta amador. (N. T.) j
108
ADORO PROBLEMAS
garota legal. Só um pouco lenta. Algumas pessoas são rápidas, outras são lentas.
Todos são filhos de Deus. Todos. Especialmente Lydia. Você sabe disso, não?55
“Sim, senhora Beachum.55 Sim, eu sei, e, na realidade, até acredito nisso.
Mas as pernas bronzeadas mais longas da escola também náo eram algo que valia
a pena acreditar?
“Sabia que essa seria sua resposta55, ela disse, orgulhosamente. A senhora
não podia pedir isso para os outros meninos? Não, senhor. Só para você. Obrigado,
menino.
Argh! Por que não? Por que não pedir para eles? Por que eu?
“Além disso, como você está pensando em ir para o seminário no próximo
ano, você realmente não precisará dessas ‘boas maneiras5 que estou lhe ensi
nando, não?55
Aparentemente, a madre superiora tinha revelado minha ideia a respeito de
me tornar padre para a senhora Beachum. E, é claro, que uso o sexo tem para
um padre? Muito menos “boas maneiras55, muito menos essa boca inchada rosa
e negra que você está usando para me dar a pior notícia da minha vida.
“Claro. Tudo bem. Mas e Kathy?55, perguntei. Sim, e Kathy? A senhora não
está levando em conta a dor que ela vai sentir não sendo capaz de ser meu par!
“Como disse, já falei com ela. Ela ficou muito feliz de fazer essa coisa espe
cial para Lydia. Disse que você também ficaria.55
Decidi dar uma última cartada. “Mas, mas, então Kathy ficará sozinha no
jantar!55
“Não, filho, eis o que faremos. Lydia se sentará à sua frente. Kathy se sen
tará com vocês dois, perto de Lydia. Assim, de certa maneira, Kathy ainda estará
ali um pouco como seu par.55
Um pouco. (Isso se tornaria a história da minha vida de encontros amo
rosos. Mais a esse respeito ainda neste livro.)
“Mas, formalmente, você estará ali com Lydia. Você puxará a cadeira para
ela, fará o pedido para ela, falará com ela, e fará ela sentir que ela, que ela... é...”
Algumas lágrimas começaram a surgir nos olhos da senhora Beachum, mas
ela piscou bastante rápido para capturá-las e devolvê-las as suas cavidades ocu
lares, e terminou sua frase.
“Que ela é querida. Você pode fazer isso, Michael?55
109
TET
“Sério? Ah, bem, você sabe que estou indo para o seminário?”
“Claro. Escutei isso.”
<£Ou seja, essa turma não era realmente para mim.”
“Bem, foi divertido, você não acha?”
“Claro. Posso pegar sua torta se você não vai comê-la”
ano-novo, o único motivo pelo qual soubemos disso foi com o objetivo de Chet
Huntley57 e David Brinkley 58 explicarem para nós por que os vietcongues e os
norte-vietnamitas tinham lançado sua maior ofensiva da guerra. A NBC News
era especialmente ilustrativa (naqueles dias, a TV mostrava a guerra sem cen
sura). A câmera captava um general sul-vietnamita agarrando um vietcongue
suspeito na rua, colocando sua arma na têmpora do homem e estourando seus
miolos, literalmente. Aquilo fazia o prato pronto do jantar descer mais fácil.
A Ofensiva do Tet de 1968 assombrou o público americano, pois, ao con
trário de tudo que nos disseram acerca dos Estados Unidos “ganharem” a guerra
em pouco tempo —“Nós podemos ver a luz no fim do túnel” -, na realidadei o
Tet mostrou como o outro lado era poderoso e como estávamos perdendo. Os
vietcongues estavam em toda Saigon, até mesmo na porta da embaixada ame
ricana. Não estávamos perto de ganhar qualquer coisa. Aquela guerra iria ficar
conosco por muito tempo. Eu não tirava os olhos da TV, e me sentia feliz jde
estar indo para o seminário no próximo ano. Se você estivesse no seminário, eles
não poderiam recrutá-lo para o exército. Um motivo a mais para não precisar cio
serviço de encontros amorosos da senhora Beachum.
Finalmente, os pais receberam informações de que a senhora Beachum
havia realmente desaparecido. Não houve nenhum comunicado oficial da paró
quia, mas isso foi dito:
“O marido da senhora Beachum está desaparecido no Vietnã e é dado cortio
morto. Ninguém sabe onde a senhora Beachum está, mas ela provavelmente
partiu para ficar com sua família”. j
Nunca mais ouvimos nada a respeito da senhora Beachum. Ninguçm
ouviu. Alguns disseram que ela estava muito perturbada para falar com alguém
da St. Johns e, se ela falasse, ninguém teria sabido o que dizer para ela. Outros
disseram que ela teve um esgotamento nervoso total quando ouviu a notícia a
respeito do seu marido, e partiu para muito longe, para ficar sozinha, evitanclo
este mundo cruel. Um paroquiano afirmou que ela se suicidou, mas nenhum
de nós acreditou nisso, pois, se existia uma pessoa que sentia entusiasmo jde
57 Huntley (1911-1974) apresentou durante quatorze anos, desde 1956, o telejornal noturno [The
Huntley-Brinkley Report, na rede NBC. (N. T.) j
58 Brinkley (1920-2003) apresentou telejornais nas redes NBC e ABC, com uma carreira que dijrou
de 1943 a 1997. (N.T.)
112
ADORO PROBLEMAS
estar viva, era a senhora Beachum. Terminamos o ano letivo com um professor
substituto do período vespertino, que deu o melhor de si, mas nunca nos pediu
para recitar um poema para ele.
Quem sabe a senhora Beachum esteja lendo isso. Em caso afirmativo, quero
dizer: sinto muito por aquilo que aconteceu que a tirou do nosso convívio.
Sinto muito por nunca ter tido a oportunidade de dizer adeus. E sinto muito
por nunca ter podido agradecê-la por me ensinar todas aquelas boas maneiras
maravilhosas.
NATAL DE 1943
Por alguns anos, meu pai reparou que eu náo queria mais usar armas. Ele per
cebera quando nós, os meninos da vizinhança, paramos de brincar de guerra.
Não sabia muito a respeito do seu tempo como fuzileiro naval no Pacífico Sul
durante a Segunda Guerra Mundial. Os únicos indícios que minhas irmãs e eu
obtínhamos era quando ele dava nome aos nossos cachorros de acordo com jas
batalhas que ele participou: Peleliu, Tarawa etc. Em nosso sótão, ele conservava
algumas lembranças da guerra: uma bandeira japonesa, uma espada e a arma
que ele capturou de um soldado japonês. Um dia, sem explicação, meu pai
decidiu que não queria mais esses souvenirs em nossa casa. Serenamente, éle
foi até a garagem e pegou uma pá, reuniu os espólios de guerra japoneses e se
dirigiu até o grande salgueiro-chorão em nosso quintal. Ele cavou um buraço
- um buraco bem profundo - e enterrou a arma, a espada e a bandeira sobí a
sombra daquela árvore. Depois de tudo feito e a terra recolocada, ele ficou de pé
ali sozinho, com a cabeça inclinada para baixo, entregue aos pensamentos ou| a
uma reza ou sabe-se lá o quê. Eu o observei da janela do meu quarto.
“Quero contar a você uma história da guerra”, ele me disse certo dia.
“Quero que você saiba por que todos os dias são preciosos e por que sou grato
todos os dias por estar aqui.”
i
í
Meu pai foi um dos sete filhos, e eles moraram em doze casas num períodlo
de dezoito anos. Eles andaram muito por aí, esquivando-se de senhorios que
vinham cobrar o aluguel que eles não podiam pagar. A Grande Depressão nãjo
114
ADORO PROBLEMAS
O modo pelo qual Frank chegou até a Colina 250, na ilha de New Bri-
tain, fazia quase tanto sentido para ele como o fato de que seu próprio lado
estava naquele momento tentando matá-lo com aquela tranqüilidade. Em pri
meiro lugar, ninguém lhe explicou por que aquelas colinas receberam aqueles
nomes; não existiam outras 249 colinas que ele tinha de escalar para chegar na
Colina 250. De fato, mesmo chamá-las de “colinas” parecia alguma ideia para
uma piada de um cartógrafo do Departamento de Guerra. Talvez chamá-las de
colinas fariam um fuzileiro naval americano se sentir como se ele estivesse na
terra natal —e que, se ele fosse morrer por aquela colina, bem, ao menos ele sen
tiria que estava morrendo pela... terra natal. A terra natal tinha colinas. Colinas
com árvores e flores silvestres, com nomes como cipriprédios, arisaemas e dode-
cáteons. Colinas com trilhas agradáveis. Colinas para se esconder. Colinas para
colher amoras. Colinas onde desempregados podem achar um repouso noturno
tranqüilo. Colinas onde você e sua amada podem achar um canto silencioso para
fazer uma fogueira e fazer amor ao lado dela.
115
NATAL DE 1943
O que levou Frank a essa colina específica foi uma guerra mundial que não
tinha nada a ver em particular com seu mundo. Seu mundo era aquele do tra
balho duro, dos esportes, das noites de sábado no salão de baile Knickerbocker.
Embora vivessem a pobreza comum de muitos nos piores dias da Depressão,
os irmãos Moore —Bill, Frank, Lornie e Herbie —tomavam cuidado extra para
sempre terem um terno limpo e bem passado, um corte de cabelo elegante
e moedas suficientes nos bolsos para pagar o primeiro drinque a uma garota
bonita, ou mesmo o segundo.
Eles freqüentaram aulas de dança pouco depois de saírem do ensino médio,
de algum modo entendendo que o gênero mais belo gostava de sair para dançar.
Como os outros jovens da cidade eram menos competentes em detectar isso,
os rapazes Moore eram sempre os primeiros a entrar na pista de dança, e isso
impressionava as moças. No mínimo, mostrava às garotas que eles eram des
temidos, e isso em si mesmo era muito atraente. Lornie, dezesseis meses mais
novo que Frank, ficou conhecido como o rei da pista de dança e, em pouco
tempo, começou a ensinar dança numa escola de dança do centro da cidade.
Ele começou a entender que estava, de fato, ajudando o inimigo ensinando aos
outros homens como dançar um jitterbug maneiro, mas Lornie tinha uma alma
delicada e um espírito generoso, e ficava feliz de ver mais pessoas dançando aò
longo da noite. |
Em 1941, as coisas pareciam melhores em Flint. As políticas de Roosevelt
de pôr todos de volta para trabalhar, além do início da produção industrial na
expectativa do envolvimento americano numa guerra que começara dois anojs
antes na Europa e no Extremo Oriente, eram suficientes para impedir uma
cidade industrial como Flint, em Michigan, de sofrer um colapso total. Bili
Frank e Lornie conseguiram empregos através da WPA59 logo depois do téry
mino do ensino médio (um fato que procuravam ocultar quando falavam con*
as garotas). No verão de 1941, Frank já tinha passado por diversos empregos;
desde distribuir folhetos para uma quitanda local, dirigir um caminhão carre
gado de ovos e dirigir (brevemente) um caminhão cheio de garrafinhas esver
deadas de Coca-Cola. No fim, todos os rapazes Moore acabaram num cobiçadõ
59 A Works Progress Administration foi a maior agência do governo americano durante a Grande
Depressão, empregando milhões de trabalhadores não qualificados para realizar obras públicas.!
(N. T.) !
116
ADORO PROBLEMAS
60 O autor refere-se ao imperador Hirohito, que reinou no Japão de 1926 a 1989. (N. T.)
117
NATAL DE 1943
turma na Flint Northern High School. Ela planejava ir para Ann Arbor, para a
Universidade de Michigan, para estudar Medicina, que, naquela época, signifi
cava que ela se tornaria uma enfermeira. Frank tinha alguma ambiçáo por mais
educação, mas as recentes vitórias sindicais na GM significavam que ele estava
ganhando um bom dinheiro, e Ann Arbor tinha uma boa chance de ir para o
espaço. No entanto, a oradora parecia valer a perseguição; assim, aquela guerra
não era bem-vinda, na melhor das hipóteses.
Na Primeira Guerra Mundial, o pai de Frank tinha servido nos fuzileiros
navais, e seu tio Tom foi soldado nas trincheiras francesas durante aquela mesma
guerra. Tendo sido envenenado por gás tóxico pelos alemães, Tom era doente e,
assim, vivia com Frank e a família em Flint. Frank conseguia ver bem de perto ò
efeito que aquela guerra suja teve sobre aqueles dois bons homens. Nenhum dos
dois foi capaz de explicar a Frank por que os Estados Unidos tinham entrado
na guerra em 1917, e, assim, quando os tambores começaram a rufar de novel,
Frank quis saber exatamente o que era aquela nova guerra. Sim, era suficiente o
fato de que o país foi atacado, mas havia outra coisa que devíamos saber? Qual
quer coisa? Alguma coisa? Tudo bem, aqueles bastardos destruindo nossã frota
era, sem dúvida, bom o bastante para Frank. Ele estava pronto para ir lutar. !
Ele esperou até o último minuto, até os avisos de alistamento obrigatóriò
começarem a chegar, em julho de 1942. Ele decidiu que não queria servir nò
Exército - “cada um por si naquela operação”, ele dizia - e, assim, em l 9 dé
agosto de 1942, Frank se dirigiu ao centro de recrutamento na grande escola
primária e se alistou para ser um fuzileiro naval. Um fuzileiro naval? “Os fuzi
leiros navais lutam como uma equipe”, ele disse para seus amigos. “Eles cuidam
uns dos outros.” No entanto, seus irmãos (em pouco tempo, todos se alistaram:
Bill, na Força Aérea, Herbie, na Marinha, e Lornie, nos paraquedistas, onde
morreria vítima de uma bala de um francoatirador nos últimos meses da guerra)!
lhe disseram: “Os fuzileiros navais são enviados para as piores situações. Você vai
morrer nos fuzileiros navais”. j
“Talvez”, afirmou Frank, “mas os fuzileiros nunca deixam um homem paraj
trás”. Depois de treze anos de Depressão tirânica, Frank já tinha tido o sufi-j
ciente em relação a ser deixado para trás. j
O funcionário da junta de alistamento perguntou-lhe quando ele podia!
estar pronto para embarcar. j
118
ADORO PROBLEMAS
tecendo, ainda que houvesse, sem dúvida, muitas orações sendo feitas. Pois, às
sete da manhã, embarcariam em veículos de assalto anfíbio e seriam baixados no
Oceano Pacífico, apenas a 1,6 quilômetro da costa de Cape Gloucester, em New
Britain. No entanto, por ora, o capitão Moyer queria ver Frank.
“Soube que você é capaz de datilografar”, Moyer disse ao jovem soldado.
“Sim, senhor, um pouco”, Frank respondeu, não entendendo bem o que
datilografia tinha a ver com matar japoneses ou Natal.
“Quero que você fique na retaguarda, aqui no navio”, Moyer afirmou. “Pre
ciso de alguém capaz de datilografar os relatórios de baixas.”
“Mas, senhor...”
“Veja, isso é importante. Precisamos ser precisos e precisamos ser responsá^
veis. No mínimo, para o centro de operações, ao menos para as famílias desses
homens.”
Era, Frank entendeu, um passe do tipo “escape de morrer” sendo oferecido
a ele. Ficar na retaguarda, no barco. Não morrer na chuva de balas e morteiros
que atingirá os peitos, os pescoços e as cabeças dos seus amigos e companheiros
fuzileiros navais. Viver para o outro dia. No entanto, não havia garantias de;
|
viver nos dias ou semanas à frente. j
Nos meses anteriores à batalha de Nova Guiné, ele tinha entendido quej
o teatro de operações do Pacífico Sul era um matadouro. Ele se perguntou: se
tivesse se alistado no Exército em vez de nos fuzileiros navais, estaria em algum
lugar do Mediterrâneo neste exato momento? Ele considerou que os italianos e
alemães de nenhuma maneira estariam lutando com unhas e dentes como esses
japoneses. Claro que o inimigo na Europa queria vencer a guerra, mas não à
custa da morte de todos soldados da sua unidade. Afinal de contas, qual será
a razão da vitória se todos morrerem? Ele gostaria de fazer essa pergunta a um
soldado japonês, mas nunca teve a oportunidade, pois nenhum deles foi captu
rado, ou pior, se rendeu. j
A proposta do capitão Moyer pareceu muito tentadora, mas Frank sabia I
que ficar na retaguarda, no navio, só estava protelando o inevitável. Se o seu j
tempo acabou, melhor morrer no dia do aniversário de Cristo. !
“Capitão, prefiro ficar com meu batalhão. Se estiver tudo bem para o j
senhor, quero ficar com meus companheiros.” |
120
ADORO PROBLEMAS
Assim, eles bateram em retirada, descendo pelo outro lado da colina, onde uma
força maior do exército japonês se concentrava.
Quando os fuzileiros navais alcançaram o topo, a chuva parou. Essa pri
meira vitória pareceu boa —náo exatamente boa de fincar uma bandeira (eles
mal tinham avançado na ilha de 480 quilômetros de comprimento), mas bas
tante boa - e, extraordinariamente, náo houve baixas.
Então, eles escutaram o som dos aviões. Era um som bem-vindo, como
era o zunido agradável de um motor Wright Cyclone de um B-25, o som que
dizia: Aqui estamos nós, rapazes!A Cavalaria para o resgate! Os fuzileiros no solo
tinham limpado a colina e, naquele momento, era a hora dos aviões mergu
lharem e capturarem o vale!
Mas quando Frank deu uma olhada nos aviões iluminados por trás pelo sol
tropical (causticante naquele momento), ele viu uma nuvem de fumaça saindo
de um deles. O avião fora atingido. Como isso era possível? Eles estavam vindo
do território controlado pelos americanos; quem teria atirado num avião ame-
ricano pela retaguarda?
De fato, foram fuzileiros navais na cabeça de ponte da praia que metra-
lharam os aviões americanos, achando (por engano) que eram aviões bombar
deiros japoneses. Os aviadores americanos, por sua vez, acharam que os japoneses
tinham os atingido (dois B-25 caíram em chamas) e, assim, quando olharam
para baixo, na direção da Colina 250, e viram os “japoneses” que acharam que
tinham atirado contra os aviões, bem, era a hora da revanche.
No entanto, é claro, aqueles não eram japoneses na Colina 250; aqueles
eram os homens da unidade do meu pai.
Mergulhando até quase o nível da copa das árvores, os B-25s metralharam
a Colina 50 com suas balas. Frank e os homens não tiveram tempo de sinalizar
que estavam do mesmo lado. Não havia nenhum lugar para buscar abrigo. Eles
se jogaram no chão e rezaram pelo melhor. Frank conseguiu ver as rajadas de
balas traçantes vindo dos aviões direto na direção deles. Ele admitiu que isso era
o fim da sua vida, e fechou os olhos, enquanto aquela vida, com todas suas cenas
de alegria, pobreza e família, passou em sua mente num instante. Ele sabia que
o próximo instante seria seu último.
Quando Frank abriu os olhos, sua vida não tinha acabado. Mas a cena
diante dele era uma que nunca teve vontade de ver. Deitado ao seu lado,
123
NATAL DE 1943
estava um dos seus amigos. Seu rosto tinha desaparecido. Frank levantou os
olhos, além do corpo, e viu cerca de uma dúzia dos homens da sua unidade
caídos, perfurados com balas, muitos gritando por ajuda, alguns vivos, alguns
talvez mortos, seus uniformes começando a ficar completamente manchados
de sangue, que estava escorrendo dos diversos ferimentos. No total, quatorze
fuzileiros navais foram atingidos e um estava morto. Somente Frank não fora
ferido. Por um momento, ele se convenceu que também devia estar morto,
pois não era possível sobreviver a tantas balas disparadas de tão baixa altitude,
balas que não só penetraram nos corpos dos seus companheiros, mas também
destruíram a rocha vulcânica em torno dele. Como isso era possível? Por que
ele não foi atingido? E por que, em nome de Deus, esse bom fuzileiro ao lado
dele morreu nas mãos de outros americanos? j
Frank não se lembrava muito do que aconteceu depois. Aparentemente,
os fuzileiros navais na linha de frente atrás dele testemunharam todo o impres
sionante incidente. Eles alcançaram Frank e os outros fuzileiros quando Frank
estava tentando prestar os primeiros socorros aos seus companheiros. Médicos
e macas foram providenciados, e, depois que os feridos foram atendidos, Frarík
foi levado de volta para o ponto de desembarque na praia. !
“Eu estou bem”, Frank disse, após algumas horas de repouso. “Estou prontp
para voltar.”
“Será noite em breve”, um cabo lhe disse. “Acho que tudo bem se você ficar
aqui conosco.”
Frank achou que talvez alguém quisesse falar com ele, para apresentar um
relatório ou algo assim. Mas havia uma guerra, uma guerra real, em andamento!,
e, depois de perguntar a um tenente por que aquele erro trágico havia aconf
tecido, soube que aquilo acontece na guerra o tempo todo. “Você só tem de
avançar e ganhar.” Depois disso, Frank nunca mais voltou a fazer perguntas i
esse respeito. j
!|
124
ADORO PROBLEMAS
No dia seguinte, Frank soube que o capitáo Moyer e os cincos homens com ele
foram mortos na missão de reconhecimento. Ele percebeu que esse era o modo
pelo qual as coisas se desenrolariam. Mortes e mais mortes. Logo, outro capitão da
linha de frente apareceu com dois soldados rasos que tinham “rachado” sob pressão.
“Esses sujeitos são meus responsáveis pelos fios”, ele disse ao oficial em
comando. “Eles não servem para mim. Troque-me esses dois por um dos seus.”
O tenente olhou para Frank.
“Esse sujeito é um metralhador. Pode ficar com ele.”
“Não preciso de um metralhador, preciso de um responsável pelos fios.
Alguém capaz de carregar carretéis de fios de rádio, correr rápido e se safar.”
“Esse sujeito sabe como se safar. Me acredite.”
“Instalador de fio?”, Frank perguntou. “Carregar e desenrolar o fio de rádio
da linha de frente até o posto de comando?”
c>im.
“Não metralhar mais?”
“Não! Você não pode metralhar e carregar o fio ao mesmo tempo. Mas eles
atirarão em você. Eles primeiro procuram os caras do rádio, para não podermos
falar com o posto de comando. Nesse serviço, é bom ter alguma coragem e saber
alguns passos especiais de dança para driblar os japoneses.”
Coragem? Passos de dança? Por que ele não falou isso logo de cara?
“Fui o homem dos fios pelo resto da guerra”, meu pai disse quando terminou
sua história. “Nunca mais voltei a carregar uma metralhadora. Levei tiros repe
tidas vezes, mas não podia atirar de volta porque tinha de carregar o carretei de
fio. Foi uma decisão maluca.”
Agradeci-lhe por me contar tudo isso, mas eu tinha 13 anos e, no fim disso,
estava inquieto e olhando para o relógio. Queria sair de casa e me encontrar com os
amigos. Meu pai não percebeu nada disso, pois sua mente ainda estava em 1943.
“Todo Natal penso a respeito daquele dia. Eu tinha de viver, de alguma
forma... com sorte, acho...,” ele disse, com a voz diminuindo.
“Pai, posso ir agora? Talvez o senhor possa me contar outra história da
guerra mais tarde?”
Passariam anos até eu voltar a escutar outra história.
UMA QUINTA-FEIRA SANTA
Embora nunca tivesse escutado nada tão ilógico assim antes, estava familia
rizado com as atitudes da cidade de Davison quando o assunto eram pessoas de
cor. Os negros —pretos, como muitos saudosamente os chamavam —eram sim
plesmente não bem-vindos. Ao meu conhecimento, não havia um único negro
vivendo entre os 5,9 mil habitantes da cidade de Davison. Considerando que
estávamos nas proximidades de Flint, uma cidade com 50 mil negros, isso não
era um acaso. Ao longo dos anos, os corretores de imóveis sabiam o que fazer
quando algum negro os consultava a respeito de mudar de Flint para Davison.
E o acordo não escrito, embora nem sempre não dito, entre os moradores da
cidade era nunca vender sua casa para uma família negra. Isso manteve as coisas
agradáveis, pacatas e brancas por décadas.
Essa atitude não existia um século antes. Nas décadas de 1850 e 1860,
Davison era uma parada da Underground Railroad, uma série de destinos
secretos que se estendia do vale do rio Ohio na direção norte, através de Indiana
e Ohio, rumo a Michigan e até a fronteira canadense, onde os escravos negros
fugitivos encontravam sua liberdade. Havia mais de duzentas paradas secretas
ao longo da ferrovia no estado de Michigan; Os membros do Partido Republi
cano, em Michigan, trabalhavam muito na Underground Railroad, ajudando os
escravos fugitivos, dando-lhes passagem segura e os escondendo em suas casas.
No entanto, os caçadores de recompensas do sul dos Estados Unidos
tinham permissão da lei federal de entrar em estados como Michigan e seqües
trar legalmente os escravos que encontrassem, levando-os de volta para seus
senhores. Esse foi um dos muitos compromissos que os estados do norte tiveram
de assumir ao longo dos anos para manter os estados escravagistas felizes e na
União. Portanto, um escravo não era livre fugindo simplesmente para um estado
livre; ele ou ela tinham de se refugiar no Canadá.
Assim, foi com algum risco que centenas de residentes de Michigan se dedi
caram a proteger as vítimas desse sistema cruel e bárbaro. Uma dessas pessoas
era dona da casa na esquina da Main Street e Third Street, em Davison, a apenas
95 quilômetros da fronteira canadense. Anos depois, disseram que a família
dessa casa tinha um esconderijo no porão e que os moradores das cidades não
revelavam esse segredo aos caçadores de recompensas. (No fim, essa casa se tor
naria o lar dos meus avós.)
Em Davison, tornou-se motivo de orgulho que o vilarejo estivesse parti
cipando de algo importante, algo histórico. Muitos dos rapazes da região logo
127
UMA QUINTA-FEIRA SANTA
Esse não era o estado de espírito num dia abafado de agosto, no verão de 1924,
quando 20 mil pessoas se reuniram no hipódromo Rosemore, em Davispn,
para participar de um comício dos cavaleiros benevolentes da Ku Klux Klan.
Olhando as fotos daquele dia, com milhares de cidadãos em túnicas brancas,
alguém se pergunta o calor que eles deviam estar sentindo, especialmente còm
aqueles capuzes pontiagudos. Muitas pessoas, porém, não usavam os capuzes,
pois, na realidade, não tinham motivo para ocultar suas identidades, porque
parecia que todos e seu primo de terceiro grau eram membros dessa organizarão
gentil, dedicada a aterrorizar e linchar negros. |
No entanto, no verão de 1924, em Flint, o problema não era tanto os
negros (a maioria deles tinha aprendido a conhecer seu lugar e ficar quieta).
Não, naquela tarde de domingo, o problema da Klan eram os “papistas”, istojé,
os católicos. Os católicos, pelo jeito, tinham começado a se candidatar em eki-
ções. Eles estavam se mudando para bairros considerados protestantes brancps,
e isso não parecia ser a ordem natural das coisas. Os católicos também tinhajm
começado a se casar com pessoas de outras religiões, algo que criou um senti
mento ruim entre os fiéis reunidos. O casamento, como era necessário saber, era
para ser entre um homem protestante e uma mulher protestante (e, sim, podia
ser entre um homem católico e uma mulher católica, mas não entre católicos e
protestantes).
O pai da minha mãe (meu avô Wall) não entendeu essa regra (e ele tinlia
de ser perdoado, pois era, afinal, do Canadá). Em 1904, ele, um anglicano,
casou com minha avó, católica apostólica romana. Para seu transtorno, a Klan
queimou uma cruz no seu quintal, em Davison.
“Não era exatamente uma cruz”, minha avó comentou, posteriormente.
“Achamos que merecíamos mais do que uma cruz de um metro e vinte de altura”
Ao longo das décadas de 1920 e 1930, Davison e outras regiões de Michigan
eram caldeirões de intolerância empolgada. Desde Father Charles Coughlin ata
128
ADORO PROBLEMAS
cando os judeus todos os domingos em seu programa de rádio para todo o país,
a partir de Royal Oak, até os comícios dominicais da Klan, em Davison (e no
Kearsley Park, em Flint), havia o suficiente para se envergonhar e o suficiente
para se surpreender a respeito de quáo longe o estado tinha mudado desde os
dias de humanidade amorosa do recém-criado Partido Republicano, um par
tido que não só ajudou a acabar com a escravidão, mas também com a pena de
morte, e procurou conceder às mulheres o direito de voto. Naquele momento,
o que tínhamos eram cenas como Henry Ford recebendo medalhas de Hitler.
Era a última semana de julho de 1967, e tudo que estava na minha mente era
que, em breve, mudaríamos para uma rua pavimentada distante seis quarteirões.
No entanto, em Detroit, distante cerca de 95 quilômetros, a cidade estava, de
fato, em chamas. Apareceu no noticiário da noite anterior. Do que consegui
entender, a polícia havia tentado prender todos os negros em um clube noturno
onde estava tendo uma festa para dois veteranos que tinham voltado do Vietnã.
Isso irritou a vizinhança e desencadeou protestos imediatos, que, em seguida,
descambaram para a violência. A Guarda Nacional foi chamada, e muitos da
região sudeste de Michigan se convenceram de que os tumultos raciais que
irromperam em Watts dois anos antes - e em Newark, apenas duas semanas
antes - estavam agora em florescência plena em nosso estado.
Na época, o que não se entendeu, de fato, era que aquilo era uma revolta
dos pobres de Detroit - e aqueles pobres notaram a polícia e a Guarda ficando
furiosas e atirando contra qualquer pessoa suspeita de cor negra.
Em Flint, porém, as coisas eram diferentes. No ano anterior, a cidade tinha
eleito o primeiro prefeito negro do país: Floyd McCree. McCree era amado em
Flint, uma cidade que ainda era quase 80% branca. Em pouco tempo, os eleitores
de Flint também aprovariam a primeira lei do país de habitação aberta, tornando
ilegal a discriminação no aluguel e venda de imóveis. Embora, de modo geral,
os bairros de Flint ainda fossem segregados, aparentemente havia algum tipo de
desejo de “consertar as coisas” quando o assunto era a questão racial.
O que fez a família de Walter e sua fuga desvairada parecerem ainda mais
absurdas para mim enquanto permanecia parado na entrada de carros da casa
129
UMA QUINTA-FEIRA SANTA
dele. Flint não ia explodir, e os negros não iam me matar. Nem mesmo precisava
perguntar aos meus pais para confirmar isso. Na realidade, meu maior medo era
que minha mãe pudesse ter escutado Walter dizendo “preto”, uma palavra que
nunca era dita e era proibida em nossa casa. Sofreria algum constrangimento se ela
gritasse para eu voltar para casa, mas não havia nada com o que se preocupar, pois
ela e meu pai estavam atarefados planejando nossa mudança para a Main Street.
A caminhonete estava totalmente cheia de suprimentos e paranóia e, assim,
a família de Walter partiu, com os pneus espalhando o cascalho na fuga para a
segurança.
Flint não se sublevou, mas Detroit ardeu durante uma semana. Toda noite,
no telejornal local, as cenas de guerra do Vietnã eram substituídas por cenas
de guerra de Detroit. Chocaram todo o estado. Detroit, essa bela e generosa
cidade, nunca mais seria a mesma. Nos anos seguintes, seria difícil para qual
quer um entender o que aquilo significou, mas aqueles de nós que cresceram a
uma distância curta viam Detroit como a cidade da Esmeralda,61 um lugar cheio
de vida, com calçadas cheias de gente, com lojas que causavam inveja em todo
o Meio-Oeste, com universidades, parques, jardins e o museu de arte (com seu
mural de Diego Rivera); a Detroit de Aretha Franklin, Iggy Pop, Bob Segerje
MC5, da Belle Isle e da Boblo, e do décimo segundo andar da Hudsons, onde
o Papai Noel real sentava no seu trono e nos prometia um futuro embalado
para presente de possibilidades infinitas e alegria eterna sobre as renas Cometa,
Cupido, Trovão, Relâmpago e... num piscar de olho, se acabou. Tudo se acabou.
Não que não soubéssemos onde foi ou que não conseguíssemos nos lembrar
por que aconteceu. Sabíamos quando aconteceu; sabíamos o momento exato
quando aconteceu. Explodiu na Woodward Avenue e na Twelfth Street, na
Grand River Avenue e perto do estádio do Tigers, e não parou até tirar nossa
última parcela de otimismo. E, então, corremos, para escapar deles, para deixá-
-los para trás, para deixá-los sofrer e chafurdar na miséria, da qual eles nunca
realmente saíram desde que nós, os residentes de Michigan, lideramos o ônus
de libertá-los. O presidente Johnson enviou a 82- divisão aerotransportada para
Detroit no quarto dia, com tanques e metralhadoras; finalmente, a Guerra do
Vietnã chegara em casa. Quando terminou, 43 pessoas haviam morrido e 2 mi^
prédios tinham vindo abaixo ou sido incendiados, e nosso espírito foi enterrado
bem fundo sob os escombros.
Nesse pano de fundo, meu pai levou a família a um jogo do Tigers, em Detroit,
apenas algumas semanas depois. Os ingressos foram adquiridos no início do
verão, e, embora minha mãe expressasse sua preocupação a respeito do bom-
-senso de uma “viagem” para Detroit nessa ocasião, suponho que eles decidiram
que jogar fora os ingressos que tinham pago era um crime pior e, assim, fomos
para lá.
Era uma noite de quinta-feira, um horário incomum para irmos a Detroit
para assistir a um jogo de beisebol. Meu pai preferia dirigir para lá durante o
dia; todas as idas anteriores foram feitas para jogos diurnos nos sábados ou
domingos. Mas aquele era um jogo contra o Chicago White Sox, que, naquele
ano, contava com Tommy John e Hoyt Wilhelm como arremessadores e com
Rocky Colavito, ex-Tigers, no outfield (campo externo). Meu pai achou que
seria um bom jogo, já que os dois times estavam numa disputa ferrenha pelo
título do campeonato.
Não foi. Os Tigers perderam por 2 a 1. Mas foi meu primeiro jogo noturno,
e isso pode não me fazer parecer muito um aficionado de esportes, mas foi, real
mente, um momento mágico para mim, ver aquele campo mágico, banhado
com aquela luz brilhante, como se viesse do céu ou, no mínimo, da usina
nuclear Fermi, situada nas proximidades.
Quando o jogo acabou, houve uma tensão no público à medida que as
pessoas saíam na região que fazia divisa com a área do tumulto. Era a marcha
dos brancos amedrontados, um tipo de caminhar-correr que as pessoas adotam
quando escutam o som de uma sirene de tornado. Caminhe, não corra; mas
corra! Corra para salvar sua vida!
Chegamos no nosso carro, um Chevy Bel Air 1967, que meu pai tinha
estacionado em uni estacionamento pago, em vez de na usual ruela gratuita.
Economizar dinheiro para estacionar naquele mês pós-tumulto não estava na
mente de ninguém. Sair vivo estava.
Saímos do estacionamento da Cochrane Street, seguimos pela Michigan
Avenue, até viramos à direita para pegar a Fisher Freeway, na direção norte.
131
UMA QUINTA-FEIRA SANTA
“A mangueira do radiador furou”, meu pai gritou para nós. O negro voltou
para seu carro e abriu o porta-malas. Ele trouxe um recipiente com água e deu
ao meu pai para despejar no radiador.
“Isso deve dar para andar alguns quarteirões e chegar no posto de gasolina”,
o estranho disse. “Mas eu voltaria, para pegar o outro sentido.”
Meu pai agradeceu-lhe pela gentileza e se ofereceu para lhe pagar alguma
coisa, mas o homem não quis.
“Fico satisfeito de poder ajudar”, o negro afirmou. “Espero que alguém faça
isso por mim se eu precisar. Você quer me seguir?”
Meu pai, provavelmente ainda se perguntando se teria parado para o homem
se ele se metesse em apuros, disse não, que nós estávamos bem, que voltaríamos
para a Michigan Avenue, onde, sem dúvida, algum posto estaria aberto.
E um estava. O frentista do posto trocou a mangueira do radiador, encheu
o radiador, e pegamos a estrada.
“Tivemos sorte”, meu pai disse, em algum lugar perto de Clarkston.
“Aquele que encontramos era um bom homem. E esse foi o último jogo
noturno que fomos.”
Oito meses depois, e apenas seis dias antes do Dia de Abertura62 da nova tem
porada do Detroit Tigers (uma em que o time iria conquistar a World Series63),
a Semana Santa estava se aproximando. Era tempo de Páscoa, e, naquele ano, as
• freiras acharam que seria uma boa ideia vermos de onde veio a original “Última
Ceia” da Quinta-Feira Santa.
“Os apóstolos e Jesus eram judeus”, a irmã Mary Rene nos disse. “Eles
não eram cristãos nem católicos. Eles eram judeus e observavam as tradições
judaicas. E, assim, durante aquela semana, Jesus foi para Jerusalém para celebrar
o Pessach, a Páscoa judaica, que festeja o momento em que os judeus receberam
a ordem de Deus para espalhar sangue de cordeiro nas ombreiras das portas no
62 Opening Day, em inglês. Marca o início de uma nova temporada da MLB, principal liga de bei
sebol, que ocorre no começo de abril. (N. T.)
63 São as finais do campeonato de beisebol da MLB. (N. T.)
133
UMA QUINTA-FEIRA SANTA
Egito. Isso foi feito para que, quando o anjo da morte estivesse circulando para
matar todos os primogênitos dos egípcios, ele soubesse onde ficavam as casas
dos judeus e, assim, ele podia poupá-las. Esse foi o modo de Deus de enviar umá
mensagem ao faraó: deixe Moisés e o povo hebreu partirem, ou eu vou daná-lo64
ainda mais.”
Bem, uau, essa era uma história e tanto, e, como eu era o primogênito
na minha família, achei bem interessante, ou mesmo arrepiante. Deus, nó
Antigo Testamento, parecia ter algum tipo de suscetibilidade. Constantemente,
ele estava açoitando tribos inteiras ou jogando homens dentro das barrigas dé
baleias. Problema real de atitude, costumava pensar. E por que seu anjo da
morte não era bastante esperto para saber quais eram as casas dos egípcios e
quais eram as casas do judeus sem ter de sujar as portas judaicas com manchais
de sangue difíceis de remover? Ele não podia apenas diferenciá-las a partir dos
estilos diferentes de arquitetura que cada grupo empregava; os egípcios corii
seu estilo colonial de vários planos e os judeus com suas cabanas de escravo de
acabamento precário? Além disso, aquele sangue na porta não tornaria os judeus
menos seguros? Especialmente considerando a manhã seguinte. Todos os egíp
cios acordariam e encontrariam uma criança morta na casa. Então, falariam:
“Vamos matar os judeus!”. No entanto, alguém diria: “Como vamos encontrá-
-los?”. Então, outra pessoa responderia: “Ei, todos passaram sangue nas portas!
Vamos incendiar as cabanas com sangue de cordeiro!”. j
A irmã Rene, como a irmã Raymond e as outras freiras, esforçaram-se áo
máximo para nos informar que, ao contrário do que podíamos ter ouvido, ps
judeus não mataram nosso Senhor e Salvador. Os romanos mataram. Jesus
era judeu, nasceu judeu e morreu judeu, e ficaria muito angustiado se soubesse que
culpamos seu próprio povo por sua morte; o que devia acontecer de qualquer jeito,
para que ele pudesse ressuscitar e começar nossa religião! Sim!
As freiras entraram em contato com uma das três sinagogas de Flint, e
perguntaram se poderiam levar alguns alunos do sétimo e oitavo ano para um
jantar de Pessach, para que pudessem aprender a tradição judaica dessa época do
ano. O rabino ficou mais do que feliz de poder ajudar, e passamos uma semana
aprendendo a cantar Hava Nagila com uma espécie de agradecimento a ele.
64 A irmã não usou a palavra iniciada com F. Só achei que seria bacana se ela usasse.
134
ADORO PROBLEMAS
65 Constituem o Ma Nishtana: quatro perguntas feitas durante o seder. Para mais detalhes: http-//
www.webjudaica.com.br/musicas/verDetalhe.jsp?musicalD=111. (N. T.)
66 Na tradição kosher, ou seja, de alimentos preparados segundo os preceitos religiosos judaicos,
não se mistura carne com leite. (N. T.)
135
UM A QUINTA-FEIRA SANTA
67 Cidade onde Martin Luther King foi assassinado, em 4 de abril de 1968. (N. T.)
O EXORCISMO
“Vamos quebrar tudo, filhos da puta”6* gritei na escadaria. 0 5Malley, meu com
panheiro de quarto valentão, me deu uma bofetada na cara.
“Cala a maldita boca! O padre Waczeski está aqui!”
Virei-me rápido para ver se o padre tinha me ouvido, mas não havia nenhum
padre à vista. 0 ’Malley, que era um ano mais velho do que eu, só quis me esbo
fetear. Ele deu sua risada sinistra habitual, e voltou a me dar uma bofetada.
“Pare”, eu disse. “Só estou cantando a nova música do MC5.”
“Então, cante a versão limpa, aquela que toca no rádio: ‘Vamos quebrar
tudo, irmãos e irmãs. ”’69
Que diabos ele se importava com uma versão “limpa”? 0 JMalley era o
oposto de qualquer coisa limpa. Ele era mais uma versão do pesadelo de toda
mãe. O que um brutamontes como ele estava fazendo no seminário?
Quando fiz quatorze anos, decidi que era hora de sair de casa. Geralmente
entediado com a escola desde o primeiro ano, mas educadamente oferecendo
meu tempo para manter todos felizes, percebi que poderia fazer mais bem para
mim mesmo e para o mundo (onde quer que fosse) se me tornasse um padre
católico. Não tenho certeza do dia em que recebi “o chamado”, mas posso
garantir que não houve visões ou vozes de cima, nem sarça ardente ou visão da
Virgem. Provavelmente, eu só estava assistindo ao telejornal, e provavelmente vi
68 Kick out the jams, motherfuckers! Primeira frase da faixa título do disco Kick Out the Jams, LP de
estreia da banda MC5, de Detroit, em 1969, um dos grupos musicais mais importantes do final da
década de 1960. (N. T.)
69 Kick out the jams, brothers and sisters. (N. T.)
137
O EXORCISMO
70 Chávez (1927-1993) foi ativista americano pelos direitos civis e cofundador da National Farm
Workers Association. (N. T.)
138
ADORO PROBLEMAS
peça de Shakespeare), trabalho duro e castigo severo por violar alguma regra.
Os calouros eram proibidos de assistir à TV ou escutar rádio durante um ano.
Você ficava totalmente confinado no seminário, com exceçáo das duas às quatro
da tarde nos sábados, quando você podia andar três quilômetros até o pequeno
centro comercial, comprar um hambúrguer e voltar correndo.
No entanto, para mim, tudo bem em relação a tudo isso. Meu problema
não era com o sistema (ao menos, não no início). Era sim com os dois com
panheiros com quem fui designado a dividir o quarto. Mickey Bader e Dickie
0 ’Malley. Mickey e Dickie. Os “Ickies”,71 como eu os chamava (mas só para
mim mesmo). O problema de eles estarem ali, no seminário, era que nenhum
deles queria ser padre. De nenhuma maneira. Eles eram ligados em garotas,
bebidas e cigarros, e escapavam do seminário sempre que podiam. E gos
tavam de me caçoar. Eles eram o que os adultos chamavam de “delinqüentes
juvenis”. Eram garotos ricos, filhos de homens importantes em suas comu
nidades, e, aparentemente, Dickie, ao menos, já tinha diversos problemas
com a lei. Seus pais decidiram que talvez o seminário pudesse endireitá-los,
e como os dois chegaram ao final do intenso processo de entrevistas que
eu tive de atravessar para ser admitido naquele lugar, estava além da minha
compreensão. Cheguei a conclusão que, provavelmente, seus pais tinham
comprado a admissão, e os padres estavam obviamente com necessidade de
qualquer “caridade”, onde quer que pudessem encontrá-la.
Não gostei de descobrir que aquilo era tanto um seminário como um
reformatório, e ficou claro para mim que teria de suportar o assédio constante
de Mickey e Dickie se quisesse ser padre. Quando eles descobriram que eu
realmente acreditava em toda essa “baboseira de religião”, eram implacáveis
em me ridicularizar enquanto fazia minhas orações, realizava meus afazeres
e praticava meu latim. Eles passavam molho de maçã sobre meus lençóis,
colocavam pôsteres de garotas da Playboy sobre a tampa do vaso sanitário e
se entretinham usando uma tesoura para alterar o comprimento das minhas
calças. Embora eu fosse maior do que eles, não queria recorrer à violência a
fim de ter alguma paz e sossego. Assim, mantinha distância deles.
Havia duas regras que decidi desde o início que não poderia seguir no semi
nário, e sabia que Deus me perdoaria. Em outubro de 1968, o Detroit Tigers
caminhava na direção da World Series, e como parte da nossa penitência de ser
calouro, não tínhamos permissão de assistir ou ouvir os jogos. Convenci-me de
que esse edito não vinha do Todo-Poderoso, e, assim, infiltrei um rádio portátil
no meu quarto e o escondi dentro da minha fronha. À noite, deitava na cama
e escutava os jogos, com o som abafado, através das penas de ganso. Eu perdia
os jogos diurnos.
A outra regra era que você não podia ter nenhuma comida no seu quarto,
Como eles estavam mais interessados em alimentar nossas almas do que nossos
corpos, decidi tomar conta deste último. Naquele ano, a ciência tinha inventado
o Pop-Tart72 congelado (“Prova da existência de Deus”, eu diria). Eu contrai
bandeava caixas desses itens celestiais e os torrava colocando uma folha dé
papel sobre o topo da minha luminária e pousando o Pop-Tart sobre elal
Finalmente, fui descoberto por um padre, que sentiu o cheiro do recheio de
morango queimado no corredor. Tive de realizar tarefas extras na cozinha por
uma semana e perdi o direito de saída no sábado à tarde por um mês.
A outra coisa que gostava de fazer era andar com os garotos veteranos. Eles
tinham um talento especial para pregar peças engenhosas, que adoravam aplicar
sobre a hierarquia sagrada. Minha contribuição para esse clube era produzir
um pó que substituía o incenso da capela. Era chamado de “bomba de fedor”,
Quando o coroinha colocava um punhado desse “incenso” nas brasas do incen
sório, ele soltava um fedor medonho; uma combinação de cheiro de ovo podre
e bolor de vestiário. Esvaziava a igreja em minutos.
A outra travessura pela qual fiquei famoso (mas somente como “anônimo”,
pois nunca fui descoberto) envolveu minha “entrada” na feira de Ciências anual
da escola. Naturalmente, eu não tinha interesse em ciência (a não ser que a
ciência conseguisse fazer um Pop-Tart com calda de chocolate, o que, com o
tempo, fez), mas eu tinha interesse em sempre realizar o melhor truque. |
Cerca de uma hora antes da feira de ciências do seminário abrir as portas
para o público, eu entrei calmamente na sala de exposição e coloquei meu “proj-
72 Marca de um folhado retangular pré-assado, com recheio doce de diversos sabores, fabricadp
pela Kellogg Company. (N. T.) !
140
ADORO PROBLEMAS
jeto de ciências” sobre uma das mesas. Era um tubo de ensaio simples, que
continha um líquido claro (na realidade, óleo de cozinha). Eu o posicionei no
seu estande e pus um cartaz na frente dele. Estava escrito:
Nitroglicerina:
Não Toque ou Explodirá.
Há dois tipos de medo: medos normais, que são primais (medo da dor, medo da
morte), e, então, há o medo do padre Ogg.
Ogg ensinava latim e alemão no seminário. A Igreja também lhe concedeu
poderes especiais, e ele era o único padre no seminário que tinha esses poderes.
73 Sim, no futuro mais violento que estava à nossa frente, esse tipo de coisa teria resultado na minha
expulsão e prisão. Porém, em 1969, era apenas divertido.
74 No Islã, pronunciamento legal emitido por um especialista em lei religiosa sobre um assunto
específico. (N. T.)
141
O EXORCISMO
Certa noite, ele reuniu alguns de nós, garotos, e nos perguntou se gostaríamos
de ver como esses poderes podiam ser usados. Já sentíamos medo do padre Ogg,
mas ninguém iria admitir isso, e, assim, todos concordamos em deixar ele nos
mostrar.
Ele nos levou para as “catacumbas” do seminário (um série de túneis sob
o prédio), para realizar uma cerimônia que só ele tinha permissão de fazer. Era
chamada de rito do exorcismo.
O padre Ogg era um exorcista.
Levariam ainda três anos para Hollywood fazer a cabeça de Linda Blair
girar no filme de William Friedkin. Assim, tudo que sabíamos a respeito dê
exorcismo era que era uma seqüência de orações e rituais realizados sobre o
corpo de uma pessoa a quem o diabo tinha possuído. O diabo era expulso^
e a vítima era salva. O padre Ogg nos revelou que ele tinha um “histórico de
sucessos de mil por cento” no confronto contra Lúcifer.
“Eu sempre ganho”, ele disse.
Ele nos falou que nos mostraria a cerimônia, mas seria só um “faz de conta’:,
pois nenhum de nós tinha revelado sinais de estar sendo dominado pelo mal.
Sim, mas não seria melhor, pensei, se houvesse alguém ali no St. Paul s quje
fosse de fato mau? Claro que seria! E, naturalmente, havia. I
“Padre”, disse com sinceridade falsa, “antes de o senhor começar, acho que
Dickie 0 ’Malley ficaria realmente perturbado se nós o deixássemos fora disso.
Ele fica dizendo que não acredita que o senhor é um exorcista. Ele gostaria de
ver o senhor tentar exorcizá-lo. Posso chamá-lo?”
“Claro”, Ogg afirmou, ofendido que alguém questionasse seus poderes de
expulsão do diabo. “Mas faça isso rápido.” i
Subi as escadas correndo e encontrei Dickie onde achei que ele estaria: do
lado de fora do ginásio de esportes, fumando um cigarro.
“Dickie!”
“Sim, seu babaca, o que você quer?” |
“O padre Ogg disse que quer vê-lo agora mesmo.” j
“Sim, bem, diga a ele que você não conseguiu me encontrar.”
“Ele disse que viu você sair para fumar, e que, se você voltar agora, ele não
vai dedurá-lo.”
142
ADORO PROBLEMAS
Em vez disso, Dickie não se moveu. Ele ficou intrigado com a possibili
dade de que seu cúmplice fosse a mãe de todos rapazes desordeiros: belzebu em
pessoa. Um sorriso sinistro tomou conta do seu rosto.
O padre Ogg tirou a tampa do frasco de óleo sagrado e untou a testa, o
rosto e o queixo de Dickie. Em seguida, pegou a cabeça de Dickie, colocou-a
entre suas duas mãos e a comprimiu, como se estivesse em uma morsa.
“Aaaiii!”, Dickie gritou. “Isso dói.”
Era agradável ver Dickie sentindo dor.
“Silêncio!”, berrou Ogg, numa voz que jurei que não fosse humana.
“Ephpheta, quod est, Adaperire, In odorem suavitatis. Tu autem effugare, dia-
bole; appropinquabit enimjudicium Dei!”, ele continuou numa língua antiga, ou
talvez, em nenhuma língua. De jeito nenhum, devia estar compartilhando isso
com você, e pôr essas palavras por escrito no papel me obriga a me levantar e
verificar a fechadura da minha porta (eu já volto). !
Era a hora dos ramos de oliveira. Cada um de nós recebeu um e fomos
solicitados a segurá-los sobre Dickie, mas sem tocá-lo. Então, Ogg pegou seu
ramo e começou a açoitar o pobre Dickie com cuidado, em nenhum lugar que
pudesse machucá-lo.
“Christo Sancti!” Ogg gritou, fazendo Dickie se virar para mim —aquele
que o trouxe para isso —,e berrar: “Seu idiota, desgraçado!”. Eu vou matá-lo!”
“Não me faça ter de amarrá-lo!”, Ogg voltou a gritar. “Abrenuntias Satanae?
Et omnibus operibus ejus!”
E, nesse momento, Dickie começou a chorar. O padre Ogg, algo surpreso,
parou.
“Ei, ei, tudo bem”, o exorcista disse, num tom confortante. “Isso não é real.
Foi só uma demonstração. Você não tem o diabo em você.”
Ao menos, por enquanto, eu pensei. Rezei para que esse exorcismo, embora
uma “demonstração”, tivesse um efeito real sobre aquele molestador desgraçado.
Mas, infelizmente, esse não foi o caso. No dia seguinte, meu rádio portátjl
estava dentro do vaso sanitário, e toda minha roupa de baixo havia desapare
cido. Mais tarde, naquela noite, uma freira a encontraria em sua gaveta, corji
as palavras, escritas com pincel atômico, em cada cós: Propriedade de Michael
Moore. Não quis levar o castigo por delatar Dickie. Em vez disso, assumi ja
tarefa de cuidar da limpeza durante uma semana a mais, e fiquei calado. Franca
144
ADORO PROBLEMAS
mente, valeu a pena ter o tempo extra para mim. Assim, pude repetir na minha
mente Dickie sendo açoitado com um ramo de oliveira, com azeite de oliva
pingando do seu rosto desgraçado, e o diabo partindo do seu corpo desgraçado.
No seminário, eu não gastava todo tempo sobre meus joelhos, observando rituais
estranhos ou pregando peças. Na realidade, tive os melhores e mais desafiadores
anos de educação da minha vida. Os padres e as freiras adoravam ensinar lite
ratura, história e línguas estrangeiras. Para mim, a aula mais difícil era religião.
Eu tinha muitas perguntas.
“Por que as mulheres não podem ser padres?”, perguntei um dia, uma das
muitas vezes que todos da classe se viravam e me olhavam como se eu fosse
algum esquisitão.
“Você não vê nenhuma mulher entre os apóstolos, vê?”, o padre Jenkins
respondeu.
“Bem, parece que sempre existiram mulheres por perto: Maria Madalena,
Maria, a mãe de Jesus, e a prima dele, qual é o nome dela mesmo?”
“Simplesmente não é permitido!”, era a resposta final que ele dava para as
minhas perguntas, que, entre outras, foram:
“Jesus nunca disse que estava aqui para criar a Igreja Católica, mas, sim,
que seu trabalho era levar o judaísmo a uma nova era. Então, de onde tiramos a
ideia da Igreja Católica?”
“A única vez que Jesus perde a paciência é quando ele vê todos aqueles
rapazes emprestando dinheiro no templo, e acaba com a festa deles. Que lição
tiramos disso?”
“O senhor acha que Jesus enviaria soldados para o Vietnã se estivesse aqui
nesse momento?”
“Na Bíblia, não há menção de Jesus entre as idades de doze e trinta anos.
Onde o senhor acha que ele foi? Eu tenho algumas teorias...”
guagem de Shakespeare tão bem que durante o resto de nossas vidas seriamos
capazes de apreciar o gênio de todas as suas obras (uma promessa que se trans
formou em realidade). j
Em retrospecto, tenho de afirmar que a escolha de uma história de amor
heterossexual, com personagens que eram da nossa idade e que estavam tendo
relações sexuais foi uma medida ousada desse bom padre. Ou foi sadismo. Pois,
se fôssemos virar padres, não haveria nenhuma Julieta (ou Romeu) permitida
em nossas vidas.
Devorei cada linha de Romeu e Julieta, e isso fez minha cabeça e meus
hormônios girarem em assombrosa excitação. Infelizmente, não tinha lido o
manual de regras antes de entrar no seminário, e eis o que ele dizia:
Agora, se eu tivesse lido aquilo no oitavo ano, não tenho certeza se teria
entendido todas as ramificações de concordar com essa proibição. Na ocasião
em que foi explicado para mim, no nono ano do seminário, algo pareceu extrar
ordinariamente errado com essa regra. Podem me chamar de louco, mas eu
escutava vozes interiores:
Mmmmmm ... garotas... booooom... pênis... feeeeliz.
As vozes se intensificavam nas tardes de terça-feira e quinta-feira. Erà
quando transportavam em ônibus alguns de nós, seminaristas, que tocavariji
um instrumento musical para a escola católica do ensino médio, na localidade
vizinha de Bay City, para tocar com a banda daquela escola. Não havia umá
quantidade suficiente de alunos para constituir a própria orquestra do semif
nário, e os padres, que apreciavam cultura e artes, e que, frequentemente, man
tinham conversas uns com os outros em italiano, não queriam que aqueles de
nós que eram musicalmente inclinados perdessem nossos “outros chamados”.
Fui colocado na seção das clarinetas, ao lado de uma garota chamada Lynni.
Mencionei que ela era uma garota? No seminário, passava 166 horas de cadá
semana somente com garotos. No entanto, naquelas duas gloriosas horas, eü
ficava nas proximidades do outro gênero. Os dedos longos e hábeis de Lynn,
146
ADORO PROBLEMAS
que ela usava na sua clarineta, eram uma beleza a se contemplar (como eram
seus seios, pernas e sorriso - mas só escrevi sorriso para o caso de um dos padres
ainda estar vivo e ler essa história, pois, verdade seja dita, embora seu sorriso
fosse agradável, náo tenho lembrança dele, já que foi obscurecido por seus seios,
suas pernas e qualquer coisa que não se assemelhasse a um seminarista). Estar
numa banda mista de escolas católicas do ensino médio literalmente me deixou
maluco.
Fiz o máximo para pensar a respeito de A Regra e para oferecer esse desejo
como penitência por até querer saber o que podia existir sob o uniforme da
aluna da escola. Mas realmente há muita penitência que um garoto agora de
quinze anos pode fazer, e, um dia, perguntei a outro seminarista no ônibus da
banda: “Quem diabos inventou essa regra?”. Ele respondeu que não sabia e que
“foi Deus, provavelmente”. Certo.
Num fim de semana, reli todos os quatro livros do Novo Testamento e em
nenhum lugar - nenhum lugar!- afirma-se que os apóstolos não podiam manter
relações sexuais, casar, ou se alegrar com seus pênis. Como minha tarefa após
as aulas era trabalhar como assistente na biblioteca, fiz minha própria pesquisa.
E eis o que descobri: nos primeiros mil anos, os padres da Igreja Católica eram
casados. Eles mantinham relações sexuais. Pedro, escolhido por Jesus para ser
o primeiro papa, era casado, assim como a maioria dos apóstolos. Assim como
foram 39 papas.
Mas então um papa, no século XI, meteu na sua cabeça que o sexo era uma
droga, e que as mulheres eram uma droga pior. Assim, ele proibiu os padres de
se casarem ou manterem relações sexuais. Isso faz você querer saber como todas
as outras grandes ideias excêntricas ao longo da história surgiram (por exemplo,
quem criou o bridgeh]). Eles também podiam ter transformado em pecado o feto
de você se arranhar quando sente uma coceira.
Comecei a passar muito tempo no trabalho na biblioteca, indo até o porão,
onde todas as antigas revistas eram guardadas. Os padres cultos assinavam a
revista Paris Match, e digamos que, na França, em 1960, as mulheres tendiam a
“ficar frias” no verão. Todos os meus primeiros amores podiam ser encontrados
bem ali, nos arquivos de revistas do St. Paul s Seminary.
147
O EXORCISMO
neamente surpresos, não só pela visão dos padres, mas pela grande quantidade
de grude branco cobrindo todo meu rosto. Eles tentaram fugir, mas os padres
rapidamente os agarraram e os arrastaram para o vestíbulo, tirando-os da minha
vida para sempre. !
Na manhã seguinte, os pais dos meus dois companheiros de quarto
entraram no quarto e levaram os pertences dos seus filhos. Naquela noite,
ao voltar, tive o privilégio que só um veterano tinha: meu próprio quarto! Fal
tava apenas um mês para o fim do ano letivo, mas foi sublime. Eu dei festas.
Comecei a deixar meu cabelo crescer pela primeira vez. Comprei um símbolo
de paz e coloquei na minha porta. Tinha tomado a decisão de que o seminário
não era para mim, embora tivesse aprendido muito do que permaneceria
comigo por muito tempo. |
Três dias antes de o semestre terminar, tinha uma entrevista marcada com
o diretor, o padre Duewicke. Assim, podia lhe falar a respeito da minha decisão
de não buscar o sacerdócio.
Entrei na sala e me sentei numa cadeira na frente da mesa dele. I
“Entãooo”, o padre Duewicke disse, num tom estranho, sarcástico.
“Michael Moore. Tenho uma notícia desagradável para você. Decidimos lhe
pedir para não voltar para seu segundo ano.”
Desculpe? Ele acabou de dizer o que achei que ele disse? Ele acabou de dizer
que eles estavam... me chutando para fora?
“Espere um minuto”, eu disse, agitado e perturbado. “Eu vim aqui paraj
dizer ao senhor que eu estou indo embora!”
“Bem, ótimo”, ele disse com um tom adulador. “Então, estamos de acordo.”
“O senhor não pode me expulsar daqui! Eu vou embora! Por isso quis con-j
versar com o senhor.”
“Bem, de qualquer jeito, você não vai nos honrar com sua presença no
outono.” í
“Não entendo”, eu disse, ainda ferido pela puxada de tapete. “Por que oj
senhor está me pedindo para não voltar? Tirei notas “A” direto, cumpri todos j
meus deveres, não tive nenhum problema sério e fui obrigado a morar numj
quarto com aqueles dois delinqüentes na maior parte desse ano. Que motivos o
senhor tem para me expulsar?”
150
ADORO PROBLEMAS
Eu não fazia a mínima ideia de por que o diretor estava me mandando para o
Boys State.75 Náo tinha violado nenhuma regra, e não era um problema disci
plinar de nenhum tipo. Embora estivesse no terceiro ano do ensino médio, era
só meu segundo ano numa escola pública do ensino médio, depois de nove anos
de educação católica, e ainda estava me acostumando a não ter freiras e padres
cuidando da minha educação. Mas achava que tinha me adaptado bastante bem
na Davison High School. No meu primeiro dia do meu segundo ano, Russell
Boone, um garoto forte e legal, que se tornaria um dos meus melhores amigoi,
fechou o punho e socou os livros que estavam em minhas mãos, atirando-os
longe, enquanto eu caminhava no vestíbulo, entre a terceira e quarta aulas. j
“Não é assim que você segura eles”, ele gritou para mim. “Você está segu
rando eles como uma garota.”
Eu apanhei três ou quatro livros e observei ao redor para ver se alguém
tinha parado para rir de um garoto que carregava seus livros como uma menina.
O terreno pareceu limpo.
“Como devo carregá-los?”, perguntei.
Boone pegou os livros de mim e os segurou na mão com o braço comple
tamente estendido na direção do chão, deixando os livros pender ao seu lado. j
“Desse jeito”, ele disse, enquanto dava uma caminhada máscula pelo
corredor.
ticipar. Cada mês de junho, após o término do ano letivo, cada escola do ensino
médio do estado enviava dois ou quatro meninos para o Capitólio Estadual paira
“brincar de governo” por uma semana. Você era escolhido se tivesse mostrado
liderança e boa cidadania. Eu mostrei a capacidade de inventar algumas peças
muito engraçadas para pregar em Boone.
A sede do Boys State de Michigan ficava a cinco quilômetros do prédio
do Capitólio, no campus da Universidade do Estado de Michigan (as meninas
participavam de um evento similar, denominado Girls State, no outro lado dò
campus). Duzentos garotos foram reunidos para eleger nosso próprio governador
imaginário de Michigan, um legislativo estadual falso e uma suprema corte esta
dual fictícia. A ideia era nós, os meninos, nos dividirmos em partidos e concorrer a
diversos cargos, a fim de aprender as belezas de fazer campanha e governar. Se você
já fosse um daqueles garotos que concorria ao cargo de representante da classe é
gostava de ser do conselho discente, aquele lugar seria uma curtição.
No entanto, como aluno do primeiro ano, depois de participar da cam
panha de Nixon para o Prêmio Nobel da Paz, desenvolvi uma alergia precocé
em relação aos políticos, e a última coisa que queria era ser um. Cheguei nos
dormitórios da universidade, indicaram meu quarto, e, após uma “reunião
governamental”, onde um garoto chamado Ralston não parou de falar para
mim por que ele devia ser o secretário do Tesouro, decidi que minha melhor
linha de ação era me esconder no meu quarto por uma semana e nunca sair,
exceto nos horários das refeições.
Recebi um pequeno quarto individual, que pertencia ao zelador do andar.
Aparentemente, ele não tinha tirado todas suas coisas. Achei um toca-discos e
alguns LPs perto do peitoril da janela. Eu trouxe alguns livros, e também um
bloco de papel e uma caneta. Era tudo que precisava para passar a semana.
Assim, basicamente desertei do Boys State e me asilei nesse quarto bem estocado
do quinto andar do Kellogg Dorms. Entre os LPs do meu quarto, incluíam-se
Sweet Baby James, de James Taylor, Let It Be, dos Beatles, American Woman, J
do The Guess Who, e algo dos Sly and the Family Stone. Havia uma enorme j
máquina de venda automática de petiscos operada por moedas no final do hall. |
Assim, eu tinha tudo que precisava para a semana. j
Entre escutar os discos e escrever poemas para me distrair (chamava-os de
“letras de música” para fazê-los parecer um esforço compensador), apaixonei-me I
154
ADORO PROBLEMAS
por uma nova marca de batatinhas fritas, que, até aquele momento, nunca tinha
encontrado. A máquina automática oferecia pacotes de algo chamado “Ruffles”
(“Ondulações”). Fiquei surpreso com a capacidade deles de colocar colinas e
vales numa simples batatinha. Por algum motivo, essas “colinas” me davam a
impressão de que eu estava obtendo mais batatinha por batatinha do que uma
batatinha normal. Gostei muito disso.
No quarto dia dentro do meu bunker PROIBIDA A ENTRADA DE
POLÍTICOS/FIRE AND RAIN,76 fiquei totalmente desprovido de Ruffles e
corri até o hall em busca de mais pacotes. Ao lado da máquina automática,
havia um quadro de avisos, onde percebi que alguém tinha afixado um folheto.
Estava escrito:
Parei e olhèi fixamente para aquele cartaz por algum tempo. Esqueci-me
das batatinhas fritas Ruffles. Não conseguia me refazer do que estava lendo.
No mês anterior, meu pai tinha ido ao Elks Club local para se associar. O
clube tinha um campo de golfe a poucos quilômetros de onde morávamos, e ele
e seus colegas de linha de montagem adoravam jogar golfe. Geralmente, o golfe,
o esporte dos mais ricos, não era jogado pela classe trabalhadora em lugares
como Flint. Mas, há muito tempo, os mandachuvas da GM tinham imaginado
modos de acalmar os inquietos trabalhadores, fazendo-os acreditar que o sonho
americano também era deles. Depois de algum tempo, eles entenderam que
não podiam simplesmente esmagar os sindicatos; as pessoas sempre tentariam
76 Fogo e chuva; música de folk/rock de grande sucesso, com composição e interpretação de James
Taylor, lançada em fevereiro de 1970. (N. T.)
155
BOYS STATE
SOMENTE CAUCASIANOS
156
ADORO PROBLEMAS
Sendo um caucasiano, ou seja, branco de pele, isso não deveria ter sido um
problema para Frank Moore. Sendo um homem de certa consciência, porém,
ele decidiu pensar. Ele trouxe o formulário para casa e me mostrou.
“O que você acha disso?”, ele me perguntou.
Li aquilo e tive dois pensamentos:
Estamos no Sul? (Quão mais ao norte você pode chegar do que Michigan?)
Isso não é ilegal?
Meu pai ficou evidentemente confuso a respeito da situação. “Bem, acho
que não posso assinar esse papel”, ele disse.
“Não, você não pode”, eu disse. “Não se preocupe. Podemos ainda jogar
golfe no I.M.A.”
De vez em quando, ele ia ao campo de golfe do Elks se convidado pelos amigos,
mas não ficou sócio. Ele não era um ativista pelos direitos civis. Geralmente, não
votava porque não queria ser convocado para algum júri. Ele tinha todas “preo
cupações” raciais equivocadas que as pessoas brancas da sua geração tinham. No
entanto, também tinha um senso muito básico de certo e errado e de dar um
exemplo para seus filhos. E como o sindicato exigira a integração racial nas fábricas
já na década de 1940, trabalhou com homens e mulheres de todas as raças e, como
é o resultado dessa engenharia social, cresceu considerando todas as pessoas iguais
(ou, ao menos, “iguais” como em “todas iguais aos olhos de Deus”).
Naquele momento., ali eu estava, parado na frente daquele cartaz do Elks
Club, perto da máquina de venda automática. A melhor maneira de descrever
meus sentimentos naquele momento é que eu tinha dezessete anos. O que
você faz aos dezessete anos quando percebe a hipocrisia ou se depara com uma
injustiça? E se são a mesma coisa? Seja um clube local de mulheres recusando
a entrada de uma mulher negra como sócia, ou um clube segregacionista de
homens como o Elks, que tem a ousadia de patrocinar um concurso sobre a
vida do Grande Emancipador,77 quando você tem dezessete anos, você não tem
tolerância para esse tipo de crime. O inferno não teve uma indignação como
aquela, de um adolescente que se esqueceu que sua missão principal era buscar
um pacote de batatinhas fritas Ruffles.
77 Apelido dado a Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos que aboliu a escravatura, em
1863. (N.T.)
157
BOYS STATE
78 Cidade no sul da Pensilvânia, lugar onde ocorreu a Batalha de Gettysburg, a maior da Guerra da
Secessão. (N. T.)
158
ADORO PROBLEMAS
79 Bryan (1860-1925) foi um político conhecido por sua firme oposição ao ensino da teoria evolucio-
nista nas escolas. (N. T.)
80 Stewart (1908-1997) foi ator de teatro, cinema e televisão. Também foi coronel brigadeiro da Força
Aérea Americana durante a Segunda Guerra Mundial. (N. T.)
81 Ator e comediante do gênero stand up, tornou-se mais conhecido como comediante de insulto.
(N.T.)
159
BOYS STATE
Vocês terão de me perdoar pela ordem do que vem a seguir, pois o evento
tornou-se um borrão. Meus instintos de sobrevivência básicos tinham entrado
em ação, e aquilo era tudo que importava. Alguém foi eleito vice-governador ou
procurador-geral ou Provavelmente Será Pego no Banheiro do Senado Algum
Dia. Em algum lugar no meio desses anúncios, escutei meu nome. Levantei-me
da cadeira (contra o melhor conselho do meu sistema excretório) e segui para o
palco. Os poucos garotos que fiz contato visual apresentavam aquela expressão
entediada de “Ah, merda, outro discurso”. Por um instante, senti que, em breve,
estaria prestando-lhes um grande favor. Sem dúvida, não se pareceria com nada
que eles estavam acostumados na aula de educação cívica. Isso eu sabia.
Subi no palco e passei pelos dignitários instalados em suas cadeiras recliná-
veis. Quando os observei, um por um, percebi um homem que estava usando
chifres galhados. Um chapéu cotn chifres. Não era o Bullwinkle,85 e não era
Halloween. Aquele homem era o Chefe Elk, o diretor de todos os Elks, e segu
rava em seu colo o troféu destinado ao autor do melhor discurso do concurso.
Ele tinha um sorriso largo, um sorriso mais apropriado para um kiwani86 ou um
rotariano, com mais dentes do que eu imaginava humanamente possível, e ficou
muito orgulhoso de me ver subir no palanque. Ah, não, pensei, esse homem está
prestes a ter um dia muito ruim. Esperei que fizessem uma revista.
Desenrolando minhas folhas, perscrutei a massa de testosterona recém-
-criada. Garotos de dezesseis e dezessete anos, que deviam estar fazendo qual
quer coisa naquele momento - atirando argolas, beijando garotas, destripando
trutas —,tudo menos estar sentados ali me escutando. Respirei fundo e comecei
o discurso.
“Como o Elks Club se atreve...” Lembro-me que foi em algum lugar por
volta desse ponto que pude sentir um ruído de tensão no auditório; centenas
de pessoas murmurando, rindo baixinho. Deus, por favor, pensei, será que um
adulto responsávelpode subir nopalanque imediatamente epôr umfim nisso?
Ninguém apareceu. Segui em frente, e perto do fim, conseguia ouvir a
cadência da minha voz, e achei que não seria mal se eu estivesse cantando numa
banda de rock. Terminei com meu apelo para que o Elks mudasse seus hábitos,
e, quando virei minha cabeça para ver a maré vermelha que tomava conta
naquele momento do rosto do Chefe Elk, com seus dentes se assemelhando a
uma motoserra pronta para retalhar meu pobre eu, deixei escapar: “E o senhor
pode ficar com seu troféu nojento!”.
O recinto enloqueceu. Quase dois mil garotos se levantaram de um salto
dos seus lugares, e berraram, gritaram e me aplaudiram. A gritaria não parou e
a ordem teve de ser restabelecida. Eu saltei para fora do palco e tentei cair foía
dali, com minha rota de fuga já planejada antecipadamente. Mas muitos dos
garotos queriam apertar minha mão ou dar um tapinha nas minhas costas, ai)
estilo vestiário, e isso reduziu minha velocidade. Um jornalista começou a vir
na minha direção, com o bloco de anotações na mão. Ele se apresentou, disse
que estava atônito com o que tinha acabado de ver, que ia escrever alguma coisa
e transmitir a notícia. Ele me fez algumas perguntas a respeito de onde eu era
e outras coisas que não quis responder. Eu consegui escapar dele e me dirigi
rapidamente para uma porta lateral. Mantendo a cabeça abaixada e evitando
o caminho principal do campus, voltei ao Kellogg Dorms, procurei um pacote
de Ruffles na máquina automática, corri para o meu quarto e tranquei a portai
A máquina estava desabastecida de Ruffles, mas havia o Guess Who, e colof
quei para tocar. Assim, podia ter algum tempo para entender o que tinha aca
bado de fazer.
No mínimo, duas horas se passaram, e, aparentemente, eu era inocentei
Nenhuma autoridade veio me levar, nem a milícia do Elks veio se vingar. Tudcj
parecia de volta ao normal.
Até a batida na porta.
“Ei”, a voz anônima vociferou. “Há uma ligação para você.” i
Os quartos do dormitório não tinham telefones. j
“Onde fica o telefone?”, perguntei sem abrir a porta. j
“No andar debaixo, no fim do hall.” I
Argh! Era uma longa caminhada. Mas eu precisava de Ruffles, e talvez;
tivessem reabastecido a máquina. Abri a porta, desci e percorri o longo corredoij
até o único telefone público. O fone pendia pendurado em seu fio, como urrí
homem morto balançando na forca. O que eu não sabia era que, no outro lado!
da linha, estava o resto da minha vida. ■
162
ADORO PROBLEMAS
87 National Association for the Advancement of Colored People (Associação Nacional para o Avanço
das Pessoas de Cor); associação cujo objetivo é promover assuntos de interesse da comunidade
afro-americana. (N. T.)
163
BOYS STATE
parou para me ver. Talvez tenha sido muito hostil com os tipos que povoaram
o Boys State com seu amor tipo obcecado em relaçáo a todas as coisas políticas.
Quem sabe eles conhecessem certo segredo. Ou talvez todos eles cresceriam para
povoar o Congresso com seus egos ardilosos, bajuladores, vendendo os restantes
de nós sem hesitação. Talvez.
O ano seguinte não foi um bom ano para o Elks Club. Muitos estados
cancelaram suas licenças para vender bebidas alcoólicas (o corte mais indelicado
de todos). As doações e os financiamentos ficaram escassos. Diversos projetos
de lei no Congresso para impedir eles e outros clubes particulares de manterem
suas práticas segregacionistas foram debatidos. E, então, a Justiça Federal, em
Washington, aplicou-lhe uma sentença de morte, acabando com os privilégios
da isenção fiscal. Diante do colapso total e do escárnio da maioria do país, o Elks
Club votou para eliminar sua política de Somente Caucasianos. Outros clubes
particulares fizeram o mesmo. O efeito em cascata disso foi que, a partir daquele
momento, a discriminação racial em qualquer lugar dos Estados Unidos, quer
fosse público ou privado, era proibida.
De vez em quando, meu discurso era citado como uma faísca a favor dessa
marcha à frente no ajuste de contas racial, na grande experiência americana, mas
houve outros discursos muito mais eloqüentes do que o meu. O mais impor
tante para mim é que aprendi uma lição valiosa: a mudança pode acontecer, e
pode acontecer em qtutlquer lugar, com até mesmo as pessoas mais simples e
com as intenções mais loucas, e que criar a mudança nem sempre requer ter de
dedicar todas suas horas a isso, com comícios monstro, organizações, protestos
e aparições na TV com Walter Cronkite.
Às vezes, a mudança pode acontecer porque tudo o que você queria era um
pacote de batatinhas fritas.
ZOE
88 Dean (1928-2010) foi cantor de música country, apresentador de TV, ator e empresário. Atual
mente, é mais conhecido como criador da marca de salsicha Jimmy Dean. (N. T.)
167
ZOE
havia algo nobre a respeito de ser diferente (melhor?) do que os outros garotos
na opinião dela. Claro que não havia nada de nobre em negar seus sentimentos,
sexuais ou outros, mas quem iria compartilhar isso com você? Ann Landers?89 A
moça da lanchonete?
Tendo, nesse momento, admitido possuir tal desejo, também admitirei que
ter uma amiga como Zoe era uma bênção, uma bênção maior do que alguém
podia esperar, na tentativa de sobreviver à aflição da adolescência. Podia ligar
para ela a qualquer hora, dia ou noite, e, se ela não estivesse transando com
Tucker, teria liberdade para falar com ela todo tempo que quisesse. Eu morava
na cidade e, assim, podia ir caminhando facilmente até a casa dela sempre que
queria; e eu a visitava muito mais do que Tucker, pois ele vivia no campo e não I
tinha carteira de motorista.
Zoe e eu crescemos muito próximos e dividíamos tudo, da maneira que
fazemos com aquele amigo especial da escola quando estamos juntos no quarto I
durante todas horas do dia ou da noite, falando sobre todos assuntos imaginá-j
veis: quem estava transando com quem, que turmas eram horríveis, maneiras de'
enganar os pais, como ajudar o garoto da rua que estava apanhando do pai todas
as noites, como tirar Nixon do poder, tocar o novo disco do Moody Blues, con
seguir entrar num filme proibido para menores (Perdidos na noite), revezar-se
escrevendo versos de poemas que virariam letras de canções que ela comporia a j
música e cantaria para mim. Eis o quão íntimos nós éramos: certo dia, ela me I
disse que os lábios da sua vulva eram diferentes dos da maioria das mulheres,
pois seus pequenos lábios eram maiores que seus grandes lábios, fazendo com j
que seus lábios internos dobrassem sobre o topo dos seus lábios externos. Ela í
me revelou isso como se estivesse me lendo a programação da TV, e a minha
expressão transmitiu nada mais do que meu desejo de assistir a outra reprise de
Mayberry, RFD.90
Havia aquelas vezes em que ela e Tucker “davam um tempo” por dias
seguidos - e, momentaneamente, eu encarava com interesse a oportunidade
que se apresentava para mim. E, numa noite dessas, cheia de lágrimas, por
um segundo (ou, talvez, a noite inteira), ela também “encarou com interesse”. |
89 Pseudônimo de Esther Lederer (1918-2002) foi uma jornalista de grande popularidade, com uma
coluna veiculada em diversos jornais americanos durante 56 anos. (N. T.)
90 Seriado de TV, apresentado entre 1968 e 1971. (N. T.)
168
ADORO PROBLEMAS
91 Organização sem fins lucrativos, que oferece serviços relacionados à planejamento familia; gra
videz, aborto, cuidados pré-natais, educação sexual etc. (N. T.)
169
ZOE
Náo tive nenhum conflito moral em dar essa sugestão. Sabia que um zigoto
não era um ser humano.92
“Eu vou ajudá-la se é isso o que você quer fazer”, eu disse.
“Obrigada, Mike”, ela afirmou, secando os olhos.
“Podemos ir para Buffalo”, eu falei. “Não é tão longe assim.”
« r». jj
òim.
“Ou podemos ir para Nova York. Conheço a cidade muito bem.”
92 Eu era católico praticante, que ia à missa todos os domingos. Mas isso é o que eu acreditava: j
a vida humana começa quando o feto consegue sobreviver fora do útero. Até então, é uma forma de j
vida, mas não um ser humano. Um espermatozoide é vida (afinal, não está nadando com uma bateria j
recarregável nas costas), um óvulo é vida, um zigoto é vida, um feto é vida - mas nenhum deles é um |
ser humano, nenhum deles é vida humana - da mesma forma que uma semente ou um caule não é |
uma flor. Quando você nasce, você é um ser humano. Eis por que sua carteira de motorista registra j
seu aniversário como o dia que você saiu do útero da sua mãe e não o dia que você foi concebido, j
Algumas pessoas, suponho, gostam de ser a polícia do útero; mulheres extremamente controladoras j
dos órgãos reprodutores femininos. E isso sempre me pareceu realmente estranho. |
170
ADORO PROBLEMAS
“Obrigado, meu chapa, por se oferecer para ajudar”, Tucker disse, esten
dendo seu braço e colocando-o sobre meu ombro.
“Ei, tudo bem. Tenho certeza que vocês fariam a mesma coisa por mim se
eu engravidasse.” Zoe riu.
Tucker continuou: “Estava pensando se não deveríamos ter o bebê”, disse o
calouro do ensino médio, sem carteira de motorista, amando a fanfarronice e a
ideia que teve de realmente produzir alguma coisa em sua vida.
“Sim, bem, isso não vai acontecer”, Zoe afirmou, calando-o, e me aliviando.
Fomos ao A&W para beber cerveja preta e comer batatas fritas e também
para planejar como acabar com a gravidez não planejada.
Nos dias seguintes, fiz uma pesquisa e achei as clínicas de aborto mais respeitá
veis de Nova York. Planejei toda a viagem; que deveria ter a permissão dos meus
pais, ainda que não soubessem nada a respeito do aborto. Ficaríamos na casa
da minha tia, em Staten Island. Disse para minha mãe que queria ir para Nova
York para passar o fim de semana, pois estava pensando em fazer a faculdade ali.
“Não temos condições financeiras para isso”, ela respondeu sem vergonha.
“Eu procurei bolsas de estudos e acho que posso ter uma boa chance. Inves
tiguei na Fordham.93 Jesuítas. Ótima universidade!”
Ali estava eu, embaralhando as cartas do catolicismo de novo, e isso sempre
funcionava. A irmã dela era casada com um homem que tinha cursado a For
dham, e eu disse para mim mãe que ele facilitaria o ingresso para mim. Prometi
que iria só para passar o fim de semana e não perderia nenhuma aula na escola.
“E você vai ficar com a tia Lois?”
“Com certeza.”
Meus pais gostavam de Zoe e, como o radar deles não detectava nenhum
rastro carnal em uma ou outra direção, eles não a consideravam uma ameaça.
Zoe e Tucker ficaram animados a respeito dos momentos de diversão que
poderíamos ter em Nova York. Pensar-se-ia que estávamos indo para lá para
arrancar um dente - e, depois, ir a Times Square para ver Hair e ao Village para
93 Universidade católica criada em 1841 nas proximidades de Nova York. (N. T.)
171
ZOE
escutar Joni Mitchell. Talvez eu até pudesse conseguir alguns ingressos para o
programa Dick Cavett,94
Mas meus pais passaram muito tempo pensando a respeito dessa viagem
estranha, e, com o passar dos dias, puseram fim nela. Eu tramei uma briga;
mas não houve nenhuma forma de vencê-la. E quem era esse Tucker?
“Ei, não fique mal”, Zoe disse. “Você tentou. Talvez devêssemos voltar aq
plano de Buffalo.”
“Claro”, afirmei, um tanto derrotado. “Parece uma boa ideia.”
Nesse momento, Zoe e Tucker começaram a perceber que, em relação a
um aborto, dois é bom, três é demais, e, assim, disseram-me que assumiriam ò
controle daquele ponto em diante.
Eu teria dito algo para eles a respeito de um cordão umbilical sendo cor
tado, mas não havia tempo para maus jogos de palavras, embora, sem dúvida,
fosse o jeito que me sentia. Não havia nada que eu pudesse fazer, a não ser
aceitar a situação. Tucker estava sendo muito bom para ela, e Zoe havia se tran
qüilizado, e, naquele momento, estava aceitando bem a ideia da viagem delesi
Emprestei-lhes todo o dinheiro que tinha - cinqüenta dólares - para acrescentar
ao montante que eles estavam filando juntos para pagar as despesas. .
No dia que eu sabia que eles estavam indo, fui para a escola como se fossè
um dia normal. Mas minha mente estava em outro lugar. Normalmente, o penf
samento de uma pessoa não se dirige a Buffalo, mas não podia fazer muito mais
naquele dia, a não ser me preocupar com a segurança e bem-estar da minha
melhor amiga.
94 Cavett apresentou um programa de entrevistas na TV durante cinco décadas, desde os anos 1960
até os anos 2000. (N. T.) í
172
ADORO PROBLEMAS
Peguei a M-15 até Clarkston, entrei na 1-75 e pisei fundo. Às vezes, o velo
címetro marcava 140 quilômetros por hora. O motor V-8 do Impala me leyou
para Detroit em 52 minutos. Segui as placas até o hospital, estacionei o carro no
estacionamento para casos de emergência e entrei correndo. Tucker estava ali,
com os olhos vermelhos.
“Tudo bem, tudo bem”, disse para ele, abraçando-o. Perguntei para a
enfermeira se podia ir ver Zoe, e ela disse que não. Perguntei a respeitoí da
condição dela.
“Você é parente?”, ela perguntou.
“Sou irmão dela”, respondi, sem pensar.
“E onde estão seus pais?”
“E onde estão os seus?”, retruquei, percebendo de imediato que isso não
teria muita valia para mim. Mudei de tom imediatamente.
“Olha, sinto muito. Estou preocupado. Tenho dezenove anos, ela tem
dezoito, e não queremos envolver ou angustiar nossos pais com isso. Espero que
você entenda.” A cascata fluiu sem percalços, mas as lágrimas que se formaram
nos meus olhos eram reais.
“Está certo”, ela disse, arquivando meu insulto para desforra posterior.
“Sentem-se ali, e vou ver se um médico pode vir aqui para falar com vocês.”
Esperamos quase uma hora antes de um médico residente aparecer. j
“Qual de vocês é o familiar?” !
“Eu”, respondi. j
i
“Tudo bem. Só quero dizer que foi a coisa mais estúpida que se podia ter
feito. Esses açougueiros não são médicos. Não têm formação médica nenhuma,
e fazem isso só para ganhar dinheiro e se aproveitar de pessoas como vocês.”
“Foi tudo que pudemos bancar”, Tucker interveio desnecessariamente. O
médico fez uma pausa, avaliando quem era exatamente aquele desordeiro. I
“É ilegal”, ele disse, destacando cada palavra como se estivesse golpeando
o rosto de Tucker. “Você podia ter a matado. Mas você não a matou. Ela vai se
restabelecer. Vocês correram um risco enorme.” j
“Qual é exatamente a condição dela nesse momento?”, perguntei, espe
rando encerrar a palestra.
“Ela teve lesões internas: o útero e o colo do útero. Também parece que
usaram alguma forma de amônia. Assim, aparentemente, também existem quei-
174
ADORO PROBLEMAS
Em pouco tempo, Zoe terminou o namoro com Tucker. Depois que nós ijios
formamos no ensino médio, fiquei absorvido pelo meu primeiro ano da facul
dade e todas as coisas da política, mas Zoe e eu ainda nos encontrávamos muito,
ainda escutávamos música e dividíamos nossos sentimentos mais íntimos um
com o outro. Ela se matriculou numa faculdade comunitária, mas, no meio do
segundo semestre, ela desistiu, e Zoe e sua família se mudaram para o Oeste.
Ficamos em contato por meio de cartas, mas ela se meteu em aventuras e peram-
bulaçóes com amigos hippies que encontrou ao longo do caminho. Logo, per
demos o contato, e a vida continuou. í
!
Vi Zoe pela última vez há mais de uma década. Ela estava tocando num recital
em Chicago e me contou como conseguia trabalho eventual tocando em diversas
orquestras e sinfônicas (eles a fazem usar sapatos). Ela tinha morado em lios
Angeles por um tempo e tocou em seções de corda de estúdios de gravação
de discos de rock e música pop. Foi bom pôr a conversa em dia e lembrar djos
velhos tempos. O homem com quem ela estava pareceu legal, mas de poucas
palavras. Percebi que ele tinha a mesma corrente que Tucker costumava usir,
pendendo do passante. Saí do nosso encontro sentindo-me bem a respeito àe
Zoe e da vida que ela conquistou, e fiquei um tanto aliviado quando vi que
a corrente do seu namorado estava claramente conectada a algo substancial no
seu bolso. I
CARRO DE FUGA
Naquele momento, a guerra já estava no seu sexto ano, e meu tempo estava
se esgotando. Tinha acabado de fazer dezessete anos, e a possibilidade de ser
recrutado parecia o bafo quente de alguém sobre a parte de trás do meu pescoço.
Nove garotos da minha escola do ensino médio - nove —já tinham voltado do
Vietnã em caixões cobertos com a bandeira. Naquele tempo, a melhor coisa
que você podia dizer a respeito disso era: ao menos, o caixão era feito nos
Estados Unidos.
Há muito tempo, tinha deixado de me pôr de pé para o hino nacional na
partida de futebol de sexta-feira à noite e na partida de basquete de terça-feira
à noite. Felizmente, não estava sozinho nesse protesto. No outono de 1971, a
militância hippie tinha crescido consideravelmente na Davison High School, e
os fortões que queriam muito nos arremessar da ponte da Main Street no riacho
Black Creek estavam, naquele momento, em inferioridade numérica. Mas eles
ainda podiam quebrar qualquer um de nós em dois, como um palito de fós
foro, se pusessem suas mãos sobre nós. Assim, nós andávamos em grupo. Se
um fortão ou um matuto quisesse fazer justiça com as próprias mãos contra
um hippie, seria forçado a armar uma emboscada e pegar um de nós voltando
sozinho para casa depois de ficar até tarde na escola de francês ou no coro.
Dois dos rapazes da escola que morreram no Vietnã moravam na minha
rua. Estatisticamente, essa tinha de ser uma porcentagem chocante, conside
rando que a parte residencial da minha rua se estendia por somente quatro
quarteirões. Se toda rua de quatro quarteirões nos Estados Unidos fosse solici
tada a entregar dois jovens para O Sacrifício, então quantos de nós, em todo o
país, estariam mortos a aquela altura? Milhões, certo? Fiquei convencido que
177
CARRO DE FUGA
minha rua, a South Main Street, era um bulevar marcado, escolhido por Nixon
ou por aquele sinistro Anjo da Morte por algum motivo que não conseguia
compreender totalmente. Ficou decidido que minha casa não faria nenhuma
oferenda em favor da causa deles.
Voltemos à manhã de 5 de maio de 1970, dia em que perdi o controle
emocional. Mais cedo naquele ano, tinha convencido minha orientadora ame
deixar freqüentar o curso de sistemas de governo enquanto aluno do segundo
ano do ensino médio, um crédito obrigatório geralmente reservado aos alunos
do quarto ano. Principalmente, queria cair fora da aula de ginástica. Dois anos
de ginástica eram obrigatórios para se formar, mas menti: disse à minha orien
tadora que, no seminário católico, fazia duas aulas de ginástica por dia, e, assim,
já tinha, de fato, feito meus dois anos de ginástica. Ela aprovou meu pedido para
poder freqüentar o curso de sistemas de governo.
Em 4 de maio, homens da Guarda Nacional, na Universidade de Kent, em
Ohio, fizeram pontaria e mataram quatro estudantes e feriram outros nove. jsso
me deixou preocupado. “Tudo bem, deixe-me entender isso direito: não preciso
mais ir ao Vietnã para ser morto; posso ser morto aqui mesmo, em casa?” j
No dia seguinte, nosso professor muito maneiro de sistemas de governo,
o senhor Trepus, deixou de lado a aula programada, para podermos discutir o
que tinha acontecido em Ohio. Muitos dos alunos da classe concordaram que
o futuro parecia muito ferrado. Alguns estavam bastante furiosos, e um déles
sugeriu uma manifestação. Como eu era dois anos mais novo que o restante da
turma, mantive minha cabeça abaixada, rabiscando uma folha de papel. Em
uma folha de papel para fichário, comecei a desenhar pequenas cruzes sobre os
túmulos, do tipo que havia visto no Cemitério de Arlington, nada além de filas
e filas de cruzes; tantas cruzes que se perdiam no horizonte.
Num papel tamanho carta, desenhei 260 cruzes em 26 linhas.
“O que você está fazendo?”, perguntou Bob Bell, o rapaz de cabelo com
prido e mocassim, que sentava perto de mim. ;
“Só estava querendo saber quanto tempo levaria para desenhar uma cruz
dessas para cada túmulo de cada soldado que morreu no Vietnã.” j
“Não são muitos?” |
“Acho que o senhor Trepus disse que são quase cinqüenta mil mortos.”
“Uau. Gostaria de ver isso”, ele disse, com um sorriso curioso. |
178
ADORO PROBLEMAS
No ano seguinte, terceiro ano do ensino médio, a guerra ainda intensa, o cabelo
um pouco mais comprido, a raiva crescendo. Naquele momento, com a loteria
do recrutamento para mim a menos de doze meses de distância, era tempo de
uma ação decisiva.
Escutei histórias de caras que fizeram coisas na noite anterior ao exame
físico do recrutamento, como beber quase quatro litros de café para aumentar
a pressão arterial ou disparar um projétil na virilha. Este último gesto pareceu
algo dramático e doloroso. Outros forjavam atestados médicos, alguns tentavam
agir como retardados mentais.
Como verifiquei, eu tinha só três escolhas:
Ainda que eu vivesse somente a uma hora da fronteira, sabia pouco ido
Canadá. Não fiai lá nenhuma vez quando criança. O meu avô materno era caha-
dense, mas trocou o Canadá por Michigan na juventude, e, assim, nosso con
tato com sua terra natal era limitado. j
Nossos parentes canadenses faziam viagens ocasionais de poucos dias para
nos ver, e nós íamos para lá menos. Talvez nossos pais ficassem preocupados que
não estávamos prontos para viagens internacionais. Talvez o Canadá ainda não
tivesse instalações sanitárias internas. Não sei. Era uma terra distante, era “exte
rior”, e a Rainha da Inglaterra estampava o dinheiro deles. Além disso, nunca
pensamos em outra coisa. j
Como as fronteiras não podiam deter as ondas aéreas (a programação da TV
costumava ser transmitida gratuitamente através do ar), conseguíamos assisjtir
a muita TV canadense, na CKLW-TV, canal 9, de Windsor, em Ontário.í A
maior parte da programação desse canal incluía documentários sobre a natureza
e comédias em preto e branco com um humor irônico que não entendíamos.
Víamos membros da Polícia Montada, lenhadores e muitas imagens de prada
rias. A emissora apresentava grandes clássicos do cinema no domingo à tarde] o
emocionante Hockey Night in Canada no sábado à noite e noticiários. j
180
ADORO PROBLEMAS
E foi ali, numa noite da minha juventude, que topei com a verdade. Parei
no canal 9 ao virar o seletor, e o noticiário estava no ar. Estavam cobrindo a
Guerra do Vietnã, mas havia algo errado com o que eles estavam exibindo.
Estavam transmitindo imagens não do Vietnã do Sul, mas do Vietnã do
Norte! O inimigo! Por que eles estavam fazendo isso? Estavam mostrando a
destruição causada pelo nosso bombardeio de vilarejos habitados por civis.
Uma velha chorava mostrando sua cabana, que “os aviões americanos tinham
bombardeado”. Não, não tínhamos! Parem de dizer isso! Nós somos os moci
nhos! Eles são os alemães!
Mas não naquela noite. E eu não consegui mais tirar meus olhos daquela
emissora depois daquilo. E não fui o único. Se você morasse a uma distância
de até 100 quilômetros da fronteira canadense e tivesse uma antena externa
decente ou uma antena interna em V, poderia obter A Verdade a respeito
da Guerra do Vietnã dos canadenses desde o início. Isso me confundiu um
pouco, pois eu não tinha a menor ideia de que nosso próprio governo mentia
para nós. Quer dizer, aquilo tinha sido antiamericano. E, no entanto, ali
estava nosso vizinho chato, amigável, sussurrado através da cerca, todas as
noites, que estávamos fazendo uma coisa muito ruim. Senti-me como quando
descobri que Papai Noel era meu próprio pai ou quando soube que Cheez
Whiz95 não era realmente queijo, mas, ao menos, essas duas coisas ainda
trouxeram alegria à minha infância. Essas revelações não eram nada perto da
revelação sobre o Vietnã. Foi um tapa no meu sensível rosto de dezesseis anos,
e não gostei nem um pouco.
Graças ao canal canadense, passei a ter medo e odiar aquela guerra. Achei
que era o único na vizinhança que tinha descoberto a chave secreta, o tesouro
enterrado, e, dali em diante, fiquei viciado em nunca acreditar no que via na
televisão americana, mesmo se ainda sonhasse com Jeannie é um Gênio ou tor
cesse para que o Fugitivo escapasse.
No verão de 1971, antes do meu quarto ano do ensino médio, minha decisão
estava tomada: se convocado, fugiria para o Canadá.
Porém, fugir para outro país e pedir asilo não era ensinado na aula de sis
temas de governo. Mas eu tinha acabado de alcançar o último nível na hie
rarquia do escotismo, ou seja, tinha o conhecimento de diversas técnicas de
sobrevivência, com insígnias de mérito em monitoramento, rastreamento de
pistas, espreita de animais, tiro ao alvo, fabricação de cestos, consertos hidráu
licos, reconhecimento de impressões digitais, criação de abelhas, encadernação,
sinalização, metalurgia, alvenaria, arte do arco e flecha, cultivo de frutas e nozes,
e irmandade mundial. Com uma base como essa, sem dúvida, poderia atravessar
qualquer fronteira, mantendo-me vivo com um arco e flecha, uma colmeia e
algumas bandeirolas de sinalização.
Conheci Joey, Ralph e Jacko numa manifestação antiguerra que participei logo
depois de receber minha carteira de motorista. O confronto da Universidade
de Kent estava vivo na mente de todos, e o Willson Park, no centro de Fl^nt,
era o local de encontro hippie dos rebeldes, dos descontentes e das queimas
mensais dos cartões de alistamento militar. Joey era de Burton Township, ojide
os brancos pobres moravam; suficiente dizer que você não encontrava muitos
deles nas orgias dos pacifistas. Embora, tenho certeza, forneciam mais budhas
de canhão do que qualquer outra região do Condado de Genesee (exceto o
extremo norte majoritariamente negro de Flint). Eles apoiavam a Guerra, do
Vietnã e o presidente Nixon (ainda que fosse a segunda opção deles para pre
sidente, depois de George Wallace,96 governador do Alabama). A maior pàrte
de Burton Township era habitada por famílias que tinham vindo dos estados
sulistas para trabalhar nas fábricas de automóveis de Flint. A mudança para o
norte não os dissuadiu das suas ideias raciais, e, se você não fosse branco, era
melhor não se aventurar na zona sul de Burton após o anoitecer.
De alguma forma, Joey tinha escapado da maioria das deficiências atitudi-
nais da sua vizinhança, mas tinha conservado um agradável encanto simplório
96 Wallace (1919-1998) foi governador do estado do Alabama, conhecido por suas posições racistas,
se opôs a integração racial nas escolas. (N. T.) j
182
ADORO PROBLEMAS
da roça, que as garotas urbanas de Flint pareciam gostar. Ele não tinha nenhuma
tendência política específica; ele só sentia que a guerra era estúpida, e não tinha
o desejo de ver o mundo além dos limites da Maple Road.
Ralph morava no bairro hispânico, no lado leste do centro de Flint. Seus
pais eram do México, onde ele também tinha nascido. Ele chegou criança de
colo nos Estados Unidos, quando sua mãe e seu pai vieram fazer a colheita de
verão de beterrabas-brancas e mirtilos.
De nós quatro, Ralph era o mais intenso. Revoltou-se numa idade pre
coce, a partir do testemunho do tratamento que seus pais recebiam em uma
área urbana quase toda branca e negra, sem nenhum reconhecimento real que
os morenos desempenhavam um papel na paleta de cores. Ralph também era
o mais forte de nós, e, ainda que também fosse o mais baixo, ninguém nunca
pensou em se meter com ele. Supúnhamos que ele carregava algum tipo de
arma, como uma faca, mas nenhum de nós realmente quis perguntar.
Jacko - nunca soubemos qual era seu nome de batismo —vinha de uma
família rica, que vivia numa área em volta da faculdade comunitária e do
campus de Flint da Universidade de Michigan. Ele tinha o cabelo do Blue Boy,97
mas Jacko era esperto e imprudente, e não tinha dificuldade em se meter em
confusão com a polícia local de vez em quando (confusão que seu pai, um
advogado, não tinha dificuldade em “apagar”). Se você apresentasse uma ideia
maluca, Jacko acharia um jeito de materializá-la; e para melhorá-la, a tornaria
ainda mais maluca.
E foi uma dessas ideias que propus a eles, num domingo à tarde, no começo
do outono de 1971, para a qual Jacko era meu perfeito coconspirador. Chama
ríamos nossa ideia de “A Grande Escapada pela Blue Water Bridge”.98
“Estava pensando”, eu disse, bebendo uma cerveja preta A&W, que estava
colocada sobre uma bandeja pendurada na janela do Impala 69 do meu pai. “Se
eu for recrutado, não vou me apresentar.”
“Eu também não”, afirmou Joey. “De jeito nenhum.”
97 É o nome da mais conhecida pintura a óleo de Thomas Gainsborough, pintor inglês. Criada em
1770, aproximadamente, está exposta atualmente na Huntington Library, em San Marino, na Cali
fórnia. (N. T.)
98 É uma ponte internacional sobre o rio St. Clair, entre Port Huron, em Michigan, nos EUA, e Sarnia,
em Ontário, no Canadá. (N. T.)
183
CARRO DE FUGA
Jacko estava todo sorridente. “Gostei dessa história do barco! Já posso ver aj
gente atravessando o lago Huron como James Bond!”
184
ADORO PROBLEMAS
Ralph não era afeito a barcos, mas pôde perceber que era voto vencido a
esse respeito. Supus que sua oposição era porque ele não sabia nadar e que a
ideia de lidar com qualquer água não era agradável para ele.
No sábado seguinte, Joey chegou na minha casa. Disse aos meus pais
que ia ao cinema, e, felizmente, eles nunca olhavam através da janela, o que
poderia tê-los levado a perguntar por que precisávamos de um barco para ir ao
cinema. Pegamos a M-21 na direção leste, passando por Elba, Lapeer, Imala
City e a igreja em Capac, cujo campanário foi construído pelo meu tio-avô.
Frequentemente, mostrava esses pontos históricos para meus amigos da escola
de Davison, que, com humor, toleravam minha atitude “me desculpe por ser
tão inteligente”. Aqueles caras de Flint eu, na realidade, não conhecia tão bem,
o que tornava aquela aventura mais perigosa e atraente.
Em pouco mais de uma hora, estávamos em Port Huron, em Michigan. Port
Huron, aprendera na preparação para a fuga, era uma das três únicas passagens de
fronteira de Michigan para o Canadá; as duas outras eram Detroit (que tinha um
túnel e uma ponte) e Sault Sainte Marie, na Península Superior (Upper Penín
sula). Aparentemente, também existia uma passagem de barco no rio Detroit, na
zona sul da cidade, com um posto da alfândega no lado canadense.
Port Huron era uma cidadezinha, desconhecida para muitos naqueles
dias, mas todo os alunos de Michigan sabiam que era o lugar onde Thomas
Edison cresceu. Aqueles de nós que acompanhavam manifestações antiguerra
conheciam Port Huron como o lugar onde um grupo de estudantes da Uni
versidade de Michigan, liderados por Tom Hayden," escreveu o manifesto do
movimento Students for a Democratic Society (SDS - Estudantes por uma
Sociedade Democrática), intitulado Port Huron Statement (Declaração de Port
Huron). Na realidade, nenhum de nós havia lido a declaração, mas sabíamos
que só a menção do acrônimo SDS deixava nossos pais irritados; assim, nós nos
considerávamos membros espontâneos e fixávamos cópias da declaração (que
eram adquiridas na loja que vendia equipamentos para o consumo de maconha)
num lugar em que os pais ou um diretor assistente da escola podiam vê-las e
empalidecer.
99 Político e ativista social, conhecido por seu envolvimento com os movimentos contra guerra e
pelos direitos civis da década de 1960. Foi casado com a atriz Jane Fonda. (N. T.)
185
CARRO DE FUGA
Eu escolhera Port Huron como nosso local de fuga não por causa do seu
significado histórico, mas porque parecia ter a menor distância de água entre
os dois países. O rio Saint Clair só tinha cerca de 800 metros de largura, e, no
lado canadense, ficava a cidade de Sarnia, em Ontário. Mas quando chegamos
em Port Huron e pusemos os olhos em Sarnia, era realmente um lugar hor
rível. Ocupando o que parecia ser toda a margem do rio havia uma refinaria de
petróleo ou uma indústria química (o imenso letreiro DOW,100 que podia ser
visto na outra margem do rio, talvez foi a revelação involuntária).
Havia um local no caminho para Port Huron em que Jacko achou que
podíamos atravessar a nado para o Canadá (acho que ele disse isso para encher
a paciência de Ralph). Mas olhar para o rio Saint Clair eliminava qualquer ideia
de tentar isso, se, de fato, era uma ideia. Aparentemente, se você jogasse um
fósforo aceso no rio Saint Clair, iluminaria como Cleveland.
Havia uma única maneira de passar de carro para o Canadá, e era através da
Blue Water Bridge. Debaixo da ponte, podíamos ver o que pareciam ser postos
de controle vivamente iluminados nas duas extremidades da travessia. Não paref
ciam receptivos. Decidimos que a ponte não era uma boa ideia. Em vez dissoj,
usaríamos o barco de Joey. j
Nossa tarefa, então, era achar um lugar no rio para lançar o barco que pare
cesse bastante desolado para não sermos descobertos. Um pouco ao norte dá
ponte começava o lago Huron, e ele se alargava tão rápido que, numa distância
de apenas sessenta metros, já havia, no mínimo oito quilômetros de lago entre
os dois países. Ao sul de Port Huron, havia uma cidadezinha chamada Marys-
ville. Fomos para lá e achamos um parque municipal com um atracadouro para
barcos no rio. Não havia polícia nem pessoal da imigração por perto. Ainda
havia muita sujeira com aparência industrial na margem canadense do rio, mas
um pouco ao norte parecia haver um longo trecho de campos e matas. Aquela
parecia ser nossa melhor aposta.
Joey deu marcha a ré no seu carro, rumo ao atracadouro, na beira da água.
Ralph estava nervoso com a possibilidade de sermos pegos, e mantive meus
olhos fixos na outra margem do rio, procurando canadenses. Não via nenhum,
100 Refere-se à empresa Dow Chemical, corporação americana, uma das maiores fabricantes de
produtos químicos e plásticos do mundo. Foi fundada em 1897 por Herbert Henry Dow, químico e i
industrial. (N. T.)
186
ADORO PROBLEMAS
“Você não quer dizer dar nopé, não é?”, Joey quis saber.
“Não, não quero dizer literalmente atravessar a ponte correndo”, expliquei.
“Quer dizer, vamos entrar no carro e fazer de conta que estamos indo visitar
nossos primos canadenses. Eu consigo falar um pouco de canadense. Tudo o que
você precisa fazer é falar mais devagar e pôr um cu extra em algumas palavras.”
“Achei que eles falassem francês”, Ralph interveio.
“Eles falam”, eu disse. “É a língua secreta deles, que usam quando não
querem que os americanos saibam o que eles estão falando. Já tive dois anos de
francês e, assim, estarei pronto se eles tentarem usar esse truque.”
“Joia”, Joey disse.
“Mas não precisamos nos preocupar de não saber francês no posto de con
trole americano”, assegurei-lhes. “Direi aos policiais de fronteira que vamos
pescar com nossos parentes canadenses. Então, vamos pisar fundo e alcançar
o lado canadense antes de descobrirem que nenhum de nós parece muito
aparentado.”
“Cara, não sei”, Jacko afirmou, sem pensar muito. “E se eles sacarem as
armas e começarem a atirar? E se eles nos caçarem com algum caminhão do
exército ou algo assim? Droga, não sei.”
“Além disso, não se esqueçam, estamos rebocando o barco do meu pai”,
Joey acrescentou.
“Podemos deixar o barco nesse lado e colocar um aviso sobre ele”, sugeri.
“Lembrem-se, não estamos indo lá hoje à noite para sempre. Estamos indo só
para ver se, quando precisarmos fugir, seremos capazes de fazer isso.”
“Bem, se não for de verdade, então prefiro manter o barco conosco”, Joey
respondeu.
“Faz mais sentido ter o barco”, afirmou Ralph. “Vai parecer que estamos
indo para uma pescaria ou algo assim.”
“Tudo bem. Vamos levar o barco”, eu disse, achando que estava falando com
Cheech e Chong.101 “Mas vocês vão me deixar dirigir. Você não tem a menor
condição de estar no volante. E Jacko, veja se você não tem mais nenhuma
droga com você. Vamos nos meter numa enrascada se formos parados.”
101 Dupla humorística americana, muito famosa nas décadas de 1970 e 1980, participou de diversos
filmes cuja temática envolvia hippies, a geração paz e amor e, principalmente, o uso da maconha.
(N.T.)
189
CARRO DE FUGA
102 Conjunto de cinco lagos situados entre o Canadá e os Estados Unidos: lago Superior, lago
Michigan, lago Huron, lago Erie e lago Ontário. (N. T.)
190
ADORO PROBLEMAS
meu coraçáo começou a bater mais rápido. Todos fizeram seus ajustes finais na
aparência pessoal quando o posto de controle americano ficou à vista. Havia
uma série de cabines para cada faixa de tráfego, algumas com luzes vermelhas,
outras com verdes, e achei melhor pegar a faixa com luz verde. Havia refle
tores potentes, e podíamos ver homens uniformizados dentro de cada cabine.
Quando chegamos perto de uma cabine, lancei uma advertência final.
“Tudo bem, fiquem frios, deixem que eu fale, e, se houver algum problema,
eu tomo a palavra. Mantenham suas cabeças abaixadas no caso de eles come
çarem a atirar.” Pausa. “Estou brincando. Ninguém vai atirar em nós.” Ou,
assim, eu supunha.
O guarda da cabine acenou para eu avançar. Quando fiquei ao lado da sua
cabine, a janela estava aberta, mas ele não era um guarda. Ele parecia mais um
voluntário que ajuda na travessia dos pedestres na frente das escolas.
“São 25 centavos, por favor.”
“Hein?”
“Vinte e cinco centavos.”
Não entendi.
“Só uma moeda de 25 centavos, filho.”
Ele queria dinheiro de nós.
“Claro”, respondi. Procurei no meu bolso. “Aqui está.”
Eu lhe entreguei a moeda.
“Obrigado.”
Era só isso?
“É só isso?”, perguntei ao homem.
“Bem, geralmente as pessoas acham que isso é muito! Vivem falando em
aumentar mais 25 centavos. Acho que não vai cair bem.”
“Não, quer dizer, podemos ir para o Canadá agora? Você não tem de nos
fazer nenhuma pergunta ou nos revistar?”
“Ah, não, por Deus!”, ele riu. “Sòu apenas o cobrador do pedágio. Vão fazer
algumas perguntas quando vocês chegarem ali”, ele acrescentou, apontando
para o Canadá.
“Então, qualquer um pode sair dos Estados Unidos, assim à toa, sem ter de
responder a nenhuma pergunta?”
“Bem, assim espero. É um país livre. Há algum motivo pelo qual vocês não
deviam estar de saída? Seus pais sabem que vocês estão aqui?”
191
CARRO DE FUGA
“Ah, não, quer dizer, sim, não; só estava perguntando. Nossos pais foramna
frente. Eles estão nos esperando lá.” j
“Só queríamos passar pela ponte. Nós nunca estivemos aqui”, eu disse.
“Para que o barco?”
“Ah, é de Joey. O pai dele o mantém preso ao carro”, respondi, pensando
rápido.
“Quantos anos vocês têm, garotos?”
“Dezessete.” “Dezessete.” “Dezesseis.” “Dezessete.”
“Tudo bem, estacione o carro naquela vaga ali.”
Dirigi o carro até um pequeno estacionamento, na frente de um prédio com
pessoas com aparência de autoridade nele. Um homem com um uniforme saiu.
“Por favor, saiam do carro, soltem a carreta e entrem no prédio.”
Saímos e entramos no prédio com o membro da Polícia Montada (ou o que
quer que ele fosse). Dois outros agentes policiais começaram a revistar o carro.
“Vocês dois parecem estar de barato”, ele disse, olhando para Jacko e Ralph.
“Vocês têm outras drogas?”
“Não, senhor”, Jacko afirmou, educadamente. “E nós não estamos de
barato, senhor. Só estamos felizes de estar no Canadá.”
Ah, não.
“O que exatamente vocês estão tramando, garotos? Vocês sabem que o
barco não tem motor?”
“Sim, senhor”, eu disse. “São o carro e o barco do pai de Joey, e ele não
queria que usássemos o barco. Assim, sem o motor, ele disse que podíamos
trazê-lo conosco.”
“Sei”, o canadense respondeu.
“Mas há algo que gostaria de perguntar ao senhor”, eu disse, decidindò
tomar a iniciativa. “Digamos que fôssemos desertores e que quiséssemos mudar
para o Canadá, poderíamos fazer isso?”
Ele me olhou de alto a baixo, e gritou para o balcão: “Revista de todos os
orifícios!”.
O quê?
“Por aqui, por favor”, disse outro agente do comitê de boas-vindas. E, então, j
ele parou, e os pseudomembros da Polícia Montada começaram a gargalhar.
“Estamos só brincando. Não somos como os guardas de fronteira ameri-1
canos. Vocês não precisam abaixar suas calças para nós. Só vamos ligar para eles j
e dizer que vocês vão voltar.” Mais risadas. Eu estava familiarizado com esse i
194
ADORO PROBLEMAS
Em fevereiro, meu dia de nascimento foi a 279- data convocada pelo sorteio
do recrutamento, e no ano seguinte foi a 115“ data. As duas ficaram além do
número limite, significando minha dispensa. Recebi a classificação 1-F no meu
cartão de alistamento e, assim, não tive de aprender francês, o sistema métrico
ou como comer minhas batatas fritas com queijo coalho.
No entanto, permaneceria fã do Canadá por muito tempo.
DOIS ENCONTROS
Havia Linda Limatta e sua irmã, Sue, e também Mary Powers, Mareia Nasde
e Luanne Turner. Havia Barb Gilliam, Lisa Dean, Debbie Johnson; é tudo ver
dade. Denise Hopkins, Cheryl Hopkins, Karen Hopkins, qualquer Hopkins
serviria! Havia Kathy Minto, Kathy Collins, Kathy Root e Cathy 0 ’Rourke;
sim, se seu nome fosse Kathy, isso talvez servisse. Havia Mary Sue Johnson,
Mary Jo Madore, Mary Lou Noe e Maribeth Beach. Jill Williams, Diane Peter,
Lora Hitchcock, Wendy Carrell, Jeanie Malin, Madeline Peroni, Louise Prine,
Suzanne Flynn e Susie Hicks; e não havia nenhuma delas, nem uma única delas,
que tive coragem de abordar e simplesmente perguntar se gostaria de ir ao
cinema comigo na sexta à noite. j
Bem, havia Susie Hicks. Eu estava atravessando o hall com ela entre a
quinta e a sexta aula, no caminho para a reunião do grêmio estudantil. No meu
último ano do ensino médio, concorri ao grêmio. Venci com base numa plata
forma que prometia o fim do concurso da rainha do baile. Imediatamente, isso
me eliminou da lista de todas as garotas bonitas da escola. Mas não me importei;
nunca tivera chance com elas.
Mas Susie Hicks era a única exceção. Ela era a vice-presidente da sua turma,
atuava no grêmio estudantil comigo, cantava no coro da escola e também era
adeta. Ela sempre ria das minhas piadas e eu, claro, de alguma forma interpre
tava mal isso, como se ela estivesse dando bola para mim como um possível bojm
namorado. Evidentemente, não entendia que só porque uma garota gosta ae
você não significa que ela o deseja. j
tinha ensaiado minha conversa na frente do espelho. Fique frio, não faça parecer
que você está pedindo que ela saia para um encontro, tenho um plano B para
encobrir a dor e rejeição se ela não aceitar. Com uma perspectiva otimista como
çssa, tinha certeza de conseguir algo.
Percorri todo o primeiro corredor tentando me acalmar e fazer meu coração
bater em intervalos regulares, em vez de observá-lo se manifestar através da
minha camisa. O segundo corredor percorri tentando lembrar meu texto; eu
tinha esquecido o que dizer, o que perguntar (mas não a quem perguntar; eu
sabia a quem perguntar; eu estava caminhando com ela!). Fizemos a curva para
pegar o terceiro e último corredor e, com o último pouquinho de oxigênio que
me restava, abri minha boca.
“Su-Susie”, eu gaguejei, “Eu-eu estava pensando...”
E, naquele momento, um morteiro na forma de Nick West, capitão do
time de basquete, presidente da classe e dono de um rosto roubado de Robert
Redford, caiu entre nós.
“Oi, Susie!”, ele disse, dedicando um tempo para um rápido beijo. “Vejo
você depois do grêmio!”
• Na verdade, fiquei grato pela interrupção de Nick. Não tinha a menor ideia
de que eles estavam juntos, e eu teria sofrido a pior forma de humilhação se
tivesse sido capaz de fazer a proposta. Suspirei de alívio. Não senti remorso que
o mundo fosse um lugar injusto. Pelo contrário, fiquei feliz de ser lembrado que
não fui enviado para a Terra para sair com rainhas do baile. Ou, pelo menos isso
pareceu bastante bom para eu atravessar a próxima hora. (Sim, Susie tornou-se
a rainha do baile. Admito: eu amava desesperadamente todas rainhas do baile,
cada uma delas.)
Confissão: Quando o assunto é interação social, sou tímido. Sim, eu. No
ensino médio, minha ideia de uma noite de sábado empolgante era ficar em
casa e assistir Mannix e Missão Impossível>na CBS (na sexta à noite, assistia Cha
parral e Nanny and the Professor). De vez em quando, saía com meus amigos,
e quando parecia que a atividade noturna planejada não envolvia violar leis
estaduais ou federais ou andar de carro com um motorista bêbado de dezesseis
anos, eu deixava sacos de cocô de cachorro nas varandas das casas, depois tocava
a campainha e saía correndo feito louco.
197
DOIS ENCONTROS
Ainda não acreditando que era real, fiz uma verificação para ver se eu ainda
estava vivo: cabelo despenteado? Ticado. Nariz com sinusite? Ticado. Banhas?
Ticado. Espinhas na testa? Ticado. Sim, estava tudo ali. Ainda era eu.
E foi isso que a chefe de torcida acabou de convidar para sair?
Linda Milks era um ano mais velha do que eu. Ela decidiu fazer aula de
oratória em seu último ano e se juntar a equipe de debates, uma ação incomum
para uma chefe de torcida. Ela não estava muito interessada nos tópicos abor
dados, mas estava interessada no que eu dizia na aula; principalmente, se eu fazia
minha imitação de Nixon. Ela ria com aquilo, e, frequentemente, se virava e me
dava um sorriso que dizia... dizia o quê? Não fazia a mínima ideia! Ela era aluna
do último ano, chefe de torcida e estava sorrindo para mim. Isso bastava.
Quando ela me pedia ajuda numa tarefa, eu dava de boa vontade. Mas eu
também fazia isso em relação ao garoto da roça nos meus descartes de coisas
velhas ou ao desordeiro que ficava me dizendo que queria ver se o punho dele
podia talvez ajudar a reorganizar meu rosto, para eu ter “uma melhor chance
199
DOIS ENCONTROS
com as mulheres”. Mas Linda disse que estava cursando oratória para ganhar
alguma “autoconfiança” e, assim, eu a ajudava com diversas maneiras e métódos
para realizar um discurso eficaz. Duas vezes ela parou na minha casa para con
versar, mas só quando li sua carta no meu anuário que percebi que ela estava
disposta a algo mais. Ela realmente queria fazer amizade. Eu era tolo. Só achava
que estava tendo a oportunidade de praticar retórica com uma garota do último
ano, o que era uma façanha importante em si mesma. Admitirei que gostava
quando ela usava seu uniforme de chefe de torcida nos dias de jogo. Tornava a
aula de oratória cheia de vida.
Depois das férias de verão, esperei um mês inteiro antes de ter coragem
de discar o número dela, e só depois de treinar a discagem uma dúzia de vezes.
Finalmente, disquei de verdade, e ela atendeu. Respirei fundo e, em seguida,
fiz minha proposta: iríamos assistir à matinê de um novo filme intitulado
A fantástica fábrica de chocolate e, depois, iríamos fazer um piquenique no
Richfield Park.
Todas as atividades inocentes, seguras e diurnas. Ela adorou a ideia e pediu
para pegá-la no sábado ao meio-dia.
A parte mais importante disso era que meus pais não tinham a menor ideia
de que eu estava saindo para um encontro. Se eles descobrissem, seria ikma
inquisição, da qual imaginei que não sobreviveria.
Quem é ela?
O quê? Ela é mais velha que você?
Ela não é católica?
Ela é chefe de torcida?
Você tem certeza que ela não confundiu você com outro Mike?
Nós não a conhecemos.
Onde ela mora?
Quem são ospais dela?
Como nós nunca ouvimosfalar dela?
Que tipo de notas ela tirou?
Ela não vai para a faculdade?
Espere, me dê seu anuário. Essa é ela?Ah, não senhor, você não vai em nenhum
lugar com ela!
200
ADORO PROBLEMAS
Segundo encontro
Karen Humphrey era a vice-presidente do grêmio estudantil. Frequente
mente, discordávamos e votávamos em lados opostos a respeito das questões.
Não era fácil ter um bom relacionamento com ela e achar um “denominador
comum”. Na época em que fui aluno do último ano, quis organizar greves, boi
cotes à lanchonete e revoltas na sala de estudos. Ela odiava hippies, mas tocava
violão no coro e regia a escola em “Where Have Ali the Flowers Gone”103 no
show de talentos da primavera. Ela achava que o grêmio devia organizar espe
táculos de dança e realizar “dias de diversão” orientados por temas. Eu achava
que o grêmio devia perguntar por que não tínhamos professores negros. Ela
expressava aborrecimento com os olhos e discordava com a cabeça.
Ela era o encontro perfeito. j
103 Música folclórica americana, composta por Pete Seeger e Joe Hickerson, em 1961. (N. T.)
202
ADORO PROBLEMAS
104’ Era numa época anterior à repetição instantânea, ao gravador digital de vídeo e a outros apare
lhos que conservam as memórias para você. Em 1971, você era obrigado a utilizar a massa cerebral e
manter o prazer armazenado por longos períodos de tempo.
203
DOIS ENCONTROS
Karen sentiu que meu convite a Riegle era obviamente para perturbar o diretor
da nossa escola.
“O que o senhor Sconfield vai dizer quando o congressista ligar e dizer que
pode falar na escola?”, ela perguntou, preocupada. “Você acha que ele será capaz
de dizer não a um congressista? É claro que não!”
“Fico contente que você está comigo nisso”, disse, com um sorriso largo.
“Você quer ir ao cinema um dia desses?”
Uau! Eu consegui. Falei. E tudo que precisei foi ver um sutiã em uso.
Mas espere! Ah, não... aí vem a rejeição.
“Claro. Que tal na sexta à noite?”
“Claro.”
“Vejo você no grêmio na segunda.”
E, na segunda, estávamos ali, com ela votando com a maioria para der
rubar minha última proposta de declarar a “Noite da Igreja” inconstitucional
(nenhuma atividade extracurricular era permitida nas noites de quarta rias
escolas públicas de Davison, pois era a noite na qual as igrejas protestantes da
cidade realizavam seus cultos religiosos do meio da semana).
Na sexta, escolhi o filme para levá-la, algo que já tinha visto no verão, mas
queria muito rever: Billy Jack. Esse filme, eu acreditava, converteria Karen à
minha visão de mundo. Um ex-boina verde105 é agora um indígena americano
zen que confronta os matutos e conservadores de uma cidadezinha quando eles
tentam fechar uma “escola grátis” hippie. E havia seios no filme!
Numa noite fria de outono, parei o Impala do meu pai na entrada para
carros da casa dela. Daquela vez, saí do carro e fui até a porta. O pai dUa
atendeu e me cumprimentou com a suspeição justificável que era requerida
naqueles tempos. Depois que ele fez um exame rápido nos meus olhos, digamos
que não gostou do que viu. Karen apareceu usando um suéter simples, mas
decotado o suficiente para confirmar a avaliação do pai dela do que nós dlois
estávamos tramando.
“Quando você planeja trazê-la de volta para sua casa?”, ele perguntou.
105 Boinas verdes é o nome popular das United States Army Special Forces. Essa força especiál foi
criada em 1952, e teve grande participação na Guerra do Vietnã. (N. T.) !
204
ADORO PROBLEMAS
106 Personagem do seriado cômico de TV Leave It to Beaver, veiculado entre 1957 e 1963. O per
sonagem tornou-se uma referência cultural, identificado como o arquétipo dos puxa-sacos falsos
(N. T.)
205
DOIS ENCONTROS
a nova calça boca de sino dela, a recente missão Apoio 15, o Concerto para
Bangladesh, onde ficava Attica, uma nova loja de tecidos que ela descobriu no
shopping, jovens de dezoito anos obtendo o direito de voto - tudo menos sexo.
Tendo esgotado todos os tópicos de discussão, arrisquei.
“Nunca falamos a respeito de você na janela na semana passada”, eu disse,
como se estivesse passando simplesmente para a próxima notícia.
“Ah, você quer dizer esses?”, ela afirmou, puxando seu suéter um pouco
para baixo, para revelar um pouco mais da fenda.
“Sim, esses. Onde você os conseguiu?”
Ela riu da piada, deslizou sobre o assento e pôs a cabeça sobre meu ombro.
“Achei que você merecia uma espiada”, ela revelou. “Nada mais.”
“Você quer dizer nada mais então, ou nada mais agora?” !
“Quer dizer, você viu o que viu; agora, vamos aproveitar esse momento.”
Fiz o máximo para aproveitar. O cabelo dela cheirava fruta tropical, mas
não tinha a menor ideia de que fruta realmente era, a menos que bananas con
tassem. Passei meus dedos pelo cabelo de Karen, para tirá-lo do rosto dela. Ela
se acomodou melhor no assento.
“Meu Deus, olhe o que fizemos nas janelas!”
Quejanelas?,, teria sido uma boa pergunta, pois eu não podia ver as janelas,
ou, no mínimo, não podia ver através delas. Cada centímetro delas estava emba
çado após duas horas de papo e dois minutos de eu achar que “alguma coisa” íria
acontecer. Não conseguíamos mais ver a casa e, sem dúvida, ninguém conseguia
ver o interior daquele carro. Se aquele era para ser o momento, então era hora
de agir.
“Uau!”, ela prosseguiu, “parece que ficamos embaçando aqui toda a noite”.
“Então, vamos justificar o embaço!”, sugeri de forma grosseira.
“Acho melhor eu entrar antes do meu pai nos ver.”
E imediatamente depois disso, ela abriu a porta do carro.
“Vamos, precisamos ver se ele consegue dar a partida no seu carro”,j ela
disse.
Saí do carro e fui com ela até a porta da casa. Entramos e ali estavamj sua
mãe, seu pai e seu irmão mais novo, todos sentados na sala de estar.
“Como foi o filme?”, a mãe quis saber.
206
ADORO PROBLEMAS
BUMBA! j
Ele bateu de novo. Agora realmente doeu. Já pude sentir o calor da minha
pele através da minha calça, e quis pegar aquele remo e batê-lo na cabeça dele.
BUMBA!
208
ADORO PROBLEMAS
O professor tinha devolvido para mim meu trabalho de vinte páginas sobre
Hamlet com um “0” gigante em vermelho no alto da primeira página. Aquela
era minha nota: Zero. Nada. Fiquei de pé. !
“O senhor não pode me tratar dessa maneira”, disse-lhe, educadamente.
“E estou oficialmente desligando-me dessa matéria.” Virei-me para os outros
alunos.
“Alguém quer se juntar a mim?”
Metade da turma se juntou.
A nota zero abaixaria minha média geral de notas para 3,3 no fim do ano.
Não dei a mínima.
Aquela não foi minha primeira discussão com um professor. O professor
que dava a aula a respeito de grêmio estudantil também me reprovou. Nunca
perdi um dia daquela aula. Fiz mais moções e participei em mais debates do que
talvez qualquer outro aluno da turma. E isso é que incomodou o professor que
era o conselheiro do grêmio estudantil.
“Como o senhor pode me reprovar?”, confrontei-o.
“Estou o reprovando porque você cria muitos problemas”, ele respondeu,
presunçosamente. “Eu gosto de um grêmio estudantil tranqüilo, pacífico. Você
tornou esse ano muito difícil para mim.”
Tudo isso pesou na minha mente na caminhada para casa, naquele dia da
minha surra pública pelo diretor assistente. Qual seria minha vingança? A res
posta não tardou: estava num jornal que li naquela noite.
Um exemplar do Flint Journal forrava a lata de lixo que eu estava esva
ziando em nossa garagem. Olhei para baixo e, entre as manchas de maionese e
refrigerante, notei um artigo que me lembrou a respeito de como a idade para
votar nos Estados Unidos tinha recentemente sido reduzida para dezoito anos.
Nossa, voufazer dezoito anos empoucas semanas, pensei. I
Entrei em casa e, uma hora depois, peguei o semanário da cidade, o Daúison
Index. Ali, na primeira página, provocando-me, desafiando-me, meu futuro me
chamando: Oi, Mike. Leia isso!A manchete?
ELEIÇÃO DO CONSELHO ESCOLAR, 12 DE JUNHO, DUAS
CADEIRAS EM DISPUTA. !
“Uuh! Voupoder votarpara 0 conselho escolar em alguns meses. Legal.
Espere.
210
ADORO PROBLEMAS
não eram do tipo que expulsam o filho de casa aos dezoito anos (embora tenha
sido a idade que minhas irmãs saíram). Eles não gostavam de nos ver partir.
No dia seguinte, voltei ao escritório do conselho escolar e entreguei minha
petição. A notícia logo se espalhou pela cidade de que “um hippie” tinha se
qualificado para estar na cédula eleitoral, em junho. Fixei o objetivo de bater
em cada porta do distrito escolar. Entregava aos eleitores um folheto que havia
escrito descrevendo meus sentimentos a respeito da educação e, especificamente,
a respeito das escolas de Davison. Falei para as pessoas que os administradores
da escola do ensino médio tinham de partir. Estava achando que isso assustava
a maioria dos pais.
No entanto, havia algumas pessoas na cidade que estavam empolgadas com
a ideia de um jovem no conselho escolar. Tudo bem, todos tinham menos de
25 anos.
E, então, havia a maioria, aqueles que notaram que eu usava cabelo com
prido. Na semana que iniciei a campanha, George C. Wallace, governador
racista do Alabama, venceu a eleição primária democrata para presidente em
Michigan. Não era um bom sinal para mim e para minhas chances. (Também
era minha primeira eleição. Dei meu primeiro voto como cidadão para a con
gressista Shirley Chisholm para presidente.)
Os tipos da câmara de comércio da cidade estavam consternados quando
pensavam a meu respeito, um garoto, ganhando, assim como estavam diversos
pastores protestantes, os matutos locais e o grupo a favor da guerra (que era
constituído de todos os mencionados).
O problema era que os reacionários da cidade tinham uma estratégia real
mente ruim para me deter. Seis deles foram até o escritório do conselho escolar e
retiraram suas petições para concorrer contra mim. Seis contra um. Sem dúvida,
eles perderam alguns dias de aula de educação cívica quando jovens. Você não
ganha concorrendo com muitos candidatos; você divide os votos e seu adversário
ganha com a pluralidade, ou seja, o maior número de votos. Tinha a sorte de que
eles não conheciam a palavrapluralidade e eu conhecia. Eu os ridicularizei e incitei
mais republicanos a pegar petições para ver se conseguiam me vencer.
Foi quando senti o gosto do meu próprio veneno. Além dos seis adultos
conservadores que se oporiam a mim, uma garota de dezoito anos também
decidiu concorrer contra mim, dividindo, assim, a já pequena votação jovem/
liberal que eu ia ter. A outra candidata de dezoito anos era nada menos que a
213
VINTE NOMES
Karen Humphrey
Michael F. Moore ,
Que idiota falou para vocês, dois pirralhos, apresentarem suas candida
turas ao conselho escolar?
Moore, vocêfala a respeito do seu vasto conhecimento acerca de todos os
assuntos. Onde e quando você os adquiriu? Você não tem nem mesmo j
miolos suficientespara fazer um corte de cabelo. |
Você, pedindo para os cidadãos de Davison votarem em vocêpara o con
selho escolar, está realmente insultando a inteligência deles.
Meu conselho para vocês dois: depois das vossas boas mães tirarem suas
fraldas, achem um emprego ou freqüentem a faculdade, para adquirir
algo da sabedoria só obtida através da experiência e da adversidade e, em
seguida, pensem melhor e se candidatem a cargos. Porque, até agora, vocês j
ainda não começaram a viver i
í
Karen: pelo menos você é uma garota bonita e merece sorte melhor do que j
ser eleita para um conselho escolar, que é realmente um trabalho ingrato. j
j
Alguém que sabe do que estáfalando.
214
ADORO PROBLEMAS
Sim, Karen, você é uma garota bonita, ao contrário desse idiota cabeludo.
À medida que a correspondência odiosa prospera, essa foi uma das mais requin
tadas que já recebi.
Na manhã do dia da eleição, acordei, comi meu Choco Krispis, e fui para a
escola. Ainda faltavam cinco dias para a formatura, e eu tinha provas finais para
fazer. Os anuários foram entregues, contendo os resultados de outra eleição: a
turma do último ano tinha me eleito o “Cômico da Turma”.
Quando a escola saiu para o intervalo, à uma e meia da tarde, fui votar em
mim. Concentrei toda minha campanha em conseguir o voto de todos os elei
tores entre 18 e 25 anos. Havia quase duzentos eleitores aptos apenas na minha
turma do último ano. Gastei menos de cem dólares na campanha. Pintamos
cartazes de propaganda por meio de estêncil no porão da casa dos meus pais.
Não havia anúncios; apenas um folheto de uma página que eu entregava de
porta em porta.
Houve um grande comparecimento às urnas, e quando elas se fecharam, às
oito da noite, a contagem das cédulas de papel começou. Menos de duas horas
depois, os resultados foram anunciados.
“Senhoras e senhores”, o superintendente assistente do distrito anunciou,
“temos os resultados. Em primeiro lugar... Michael Moore.”
Fiquei boquiaberto. O grupo de estudantes hippie, que tinha se reunido
para observar a contagem dos votos, enlouqueceu de alegria. Um repórter de
uma estação local me perguntou como me sentia derrotando sete “adultos”.
“Bem, também sou adulto. E me sinto ótimo”, eu disse.
“Bem, parabéns”, o repórter desejou. “Você é a pessoa mais jovem a ser
eleita para um cargo público no estado de Michigan em todos os tempos.”
“É sério?”
“Sim, é. Você bateu o recorde anterior em três anos.”
No ginásio onde os votos foram contados, pude ver a decepção estampada
nos rostos dos corretores de imóveis, dos corretores de seguro, das mulheres do
clube de campo. No dia seguinte, um repórter de Detroit me ligou para dizer
que eu era o candidato mais jovem eleito em todo o país (não havia ninguém
com menos de dezoito anos que tinha um cargo público). “Posso ter um comen
tário a esse respeito?”
“Uau!”
215
VINTE NOMES
O que mais eu podia dizer? Estava muito mergulhado no meu próprio tur
bilhão a respeito do que tinha acabado de acontecer com a minha vida. Naquele
momento, eu seria uma das sete pessoas responsáveis pelo distrito escolar, e
o chefe do diretor e, mais importante, do diretor assistente, Ryan. Naquele
momento, tinha condições de tirar aquele maldito taco de críquete da mão dele.
Na manhã seguinte, fui para a escola como fizera nos últimos doze anos.
Atravessando o hall rumo à aula de escrita criativa do senhor Hardy, vi o diretor
assistente Dennis Ryan vindo na minha direção. Engraçado, não havia nada na
sua mão.
“Bom dia, senhor Moore.”
Senhor Moore? Esse foi um primeiro. Mas, afinal, como você se dirigiria ao
seu novo chefe? No entanto, eu ainda era um aluno à sombra dele. Estranho. Ele
continuou em seu caminho e eu fiz o mesmo.
Virou uma semana de saudações e apertos de mão ao estilo blackpower (eu
sei, eu sei, aquilo era Davison) entre os estudantes; muitos dos quais saboreandò
o estrago que eu podia causar. Recebi diversas sugestões dos meus eleitores:
obrigar os fortões a freqüentarem as aulas; colocar uma máquina de venda dt
cigarros na lanchonete; instituir o “dia escolar de quatro horas”; eliminar o leite
e servir só chocolate; descobrir qual é a “Surpresa de Quinta-Feira” no almoço è
matar a pessoa que a inventou.
Cinco noites depois, em 17 de junho de 1972 (alerta falacioso: ao mesmo
tempo, arrombadores, a 800 quilômetros de distância, estavam invadindo uni
lugar chamado Watergate), eu me alinhei no interior da Davison High Schooj
com meus quase quatrocentos colegas de formatura, todos nós com nossas becas
e nossos capelos marrons e dourados. As regras do código de vestimenta ainda
estavam em vigor, mas alguns estudantes decidiram secretamente não usar calças
ou saias. Eles só não deixaram que a área na parte superior da beca não tivesse
a blusa, camisa e gravata requeridas, pois podia ser vista pelas autoridades. A
exposição relâmpago das regiões inferiores aconteceria depois, no campo de!
futebol americano, no fim das cerimônias. Os balões cheios de água tambémj
estavam bem escondidos. j
Cinco minutos antes da cerimônia, o senhor Ryan percorreu a fila inspe- j
cionando cada um dos estudantes, principalmente para se certificar de que não
existiam instrumentos projéteis nas mãos das pessoas e para ter certeza que cada;
garoto estava usando uma gravata. j
216
ADORO PROBLEMAS
Foi então que Ryan achou Billy Spitz. Billy era um garoto de uma família
de poucos recursos. A ideia dele de uma gravata era o que se denomina “gravata
de caubói”: dois cordões longos pendendo de um nó ou grampo no pescoço.
Para muitas pessoas que vinham do sul do país para trabalhar nas fábricas de
Flint, usar uma gravata de caubói era chamado de “vestir-se com elegância”. Era
o que se usava em um baile ou na igreja. Era uma gravata.
Mas não para Ryan.
“Saia da fila!”, ele gritou para Billy. “O que é isso?”, ele continuou, puxando
a gravata de caubói para fora da beca de Billy.
“É minha gravata, senhor”, Billy respondeu, com timidez.
“Isso não é uma gravata!”, Ryan replicou, para todos ouvirem. “Fora daqui.
Vamos. Fora! Você não vai receber o diploma.”
“Mas, senhor Ryan...”
“Você me escutou?” Ryan perdeu o controle emocional, agarrando Billy,
afastando-o do restante de nós e mostrando-lhe a porta. Uma onda de choque
atravessou a fila de estudantes. Mesmo no minuto final do ensino médio,
tínhamos de testemunhar um último ato de crueldade.
E nenhum de nós disse algo. Nem o cara durão atrás de Billy, nem a garota
cristã na frente dele. E nem eu. Embora, naquele momento, eu fosse oficialmente
um dos sete responsáveis pelas escolas, permaneci calado. Talvez fiquei muito
atordoado para falar. Quem sabe não quis causar confusão antes de chegarmos
no campo de futebol, já que estava planejando causar muita ali (fiú escolhido
pelos alunos para fazer o discurso da turma). Pode ser que o senhor Ryan ainda
me intimidasse e seria necessário mais do que uma eleição para eu confrontá-lo.
Porventura fiquei apenas feliz porque não era comigo. Na realidade, não conhecia
Billy e, assim, como os outros quatrocentos, não meti o nariz.
Quando chegou minha vez de falar no palco da formatura, só proferi três
frases do que tinha escrito. Eu tinha sete folhas de papel amarelo de carta enro
ladas em minhas mãos, parecendo que tinha preparado o discurso típico de
formatura. Na realidade, tinha outra coisa em minha mente para dizer.
Soube que um dos nossos colegas de turma, Gene Ford, não receberia os
cordões de distinção dourados da National Honor Society,107pois, devido à sua
107 Criada em 1921, é uma organização que se dedica a reconhecer os estudantes que se destacam
no ensino médio. (N. T.)
217
VINTE NOMES
séria deficiência física, teve de ser educado em casa. Ainda que suas notas fossem
altas, ninguém criou disposições para levar em conta suas notas domésticas, o
que o teria qualificado definitivamente para a Honor Society.
Com menos de um minuto do meu discurso, fiz uma interrupção abrupta
e disse para a platéia que o estudante sentado na cadeira de rodas na primeira
fila ficou sem seus cordões de distinção porque não era “normal” como o res
tante de nós. E se, sugeri, nós fôssemos os anormais? Alguns de nós, alunos do
último ano, assinalei, decidiram não usar seus cordões de distinção, pois não
quiseram separar-se daqueles que, por qualquer motivo, não tiraram as mesmàs
notas. Continuei com uma arenga improvisada a respeito do caráter opressivo
da escola e da falta de direitos em nossa própria educação. Então, disse que goá-
taria de oferecer meus cordões de distinção para Gene.
E, assim, deixei o palco e fiz exatamente isso. E os membros do conselho
escolar que estavam presentes? Bem, eles só tiveram um trailer do filme quie
estavam prestes a estrelar comigo nos próximos quatro anos.
No dia seguinte, o telefone tocou e minha mãe disse que era a mãe de Billjr
Spitz. Peguei o telefone. Ela estava lutando contra as lágrimas. j
“Meu marido, eu, e a avó de Bill estávamos sentados nas arquibancadas
esperando Bill entrar no palco, esperando seu nome ser chamado. Eles cha^
maram toda a turma e nunca chamaram o nome de Billy. Não pudemos ver elé
sentado com o resto de vocês. Não entendemos. Ficamos confusos. E, então,
ficamos preocupados. Onde ele estava,? Levantamos e o procuramos por toda
parte. Fomos ao estacionamento e ao nosso carro. E foi onde nós o encontramos.”
Ela começou a chorar.
“Ali, no assento traseiro, estava Billy, todo encolhido, e chorando. Ele nos
contou o que o senhor Ryan tinha feito. Não pudemos crer que isso aconteceu.
Ele estava mando uma gravata! Por que isso aconteceu?” j
“Não sei, senhora Spitz”, eu disse, tranquilamente.
“Você estava ali?”, ela me perguntou.
CC p . »
bim.
“Você viu o senhor Ryan fazer isso?”
218
ADORO PROBLEMAS
« c•
oim. »
“E você náo fez nada?”
“Eu ainda era um estudante.” E um covarde.
“Você também é um membro do conselho escolar! Você não pode fazer
nada a esse respeito?”
Naturalmente, não havia nada que eu pudesse fazer. Eles não iriam cancelar
a formatura para corrigir essa injustiça. Tive a chance, talvez, de fazer algo na
noite anterior. Mas não fiz. Nunca me esqueceria desse pequeno, mas poderoso
momento de silêncio e negligência. Prometi-lhe que não deixaria o assunto pra
lá e que, como disse quando concorri, trabalharia para a demissão do senhor
Ryan.
Dois dias depois, fui convocado para ir à casa da secretária do conselho
escolar para prestar juramento. Pedalei minha bicicleta até lá com os pés des
calços e prestei juramento desse jeito. “Onde estão seus sapatos?”, ela perguntou.
“Não estou usando”, respondi. Ela apenas olhou ferozmente para meus pés.
Ergui minha mão direita, e quando chegou a hora de dizer as palavras a res
peito de “defender a Constituição contra todos inimigos, externos e internos”,
acrescentei: “especialmente internos”. Ela olhou para mim, expressando aborreci
mento. Ela tinha dado aulas para minha mãe no ensino médio. “Ela talvez foi a
pior professora que tive”, minha mãe me disse depois. Ela também me disse que
eu deveria ter usado sapatos.
O período de lua de mel no meu primeiro ano no conselho escolar foi mais
longo do que qualquer um de nós havia esperado. A maioria das moções que
apresentei para melhorar as escolas - incluindo o estabelecimento de alguns
direitos estudantis —foi aprovada. O conselho escutou aquilo que eu tinha
a dizer a respeito de como a escola do ensino médio estava sendo dirigida, e
como o diretor assistente estaria melhor na força policial (do Chile). Falei que
o diretor não era um pensador progressista; ele reprimia a discordância e criava
um clima onde as novas ideias não eram estimuladas. No meu primeiro ano,
tornei-me um canal, no conselho, para estudantes, professores e pais, para que
suas vozes pudessem ser ouvidas.
219
VINTE NOMES
“Pendure bem ali, na sua porta”, Salt disse, me orientando onde colocar o pôster
de “Nixon s the One” (“Nixon é o Número Um”). “Aí! Perfeito.” |
Thomas Salt era aluno do último ano do ensino médio e responsável pelo
clube Students for Nixon (Estudantes com Nixon), e, embora eu fosse apenas
um aluno do primeiro ano, já tinha sido promovido a número dois resppn-
sável por tudo que ele não queria fazer. Nós éramos alunos do St. Pauis Semi-
nary, em Saginaw, Michigan, e, sem dúvida, estávamos em minoria quando o
assunto era apoio ao patife Richard Milhous Nixon. Morávamos num refugio
de democratas (evidentemente, todos eram católicos, e Nixon era o satã que
fora derrotado pelo nosso único presidente católico).109Todo o seminário estava
apoiando cegamente Humphrey, exceto Salt, eu e alguns outros corajosos. I^ós
110 Ironia do autor, aludindo ao apoio dado a Wallace pela Ku Klux Klan. (N. T.)
111 Title IX of the Education Amendments of 1972 é uma lei, promulgada em 23 de junho de 1972,
que declara que nenhuma pessoa nos Estados Unidos, com base no sexo, será excluída de partici
pação, terá benefícios negados ou ficará sujeita à discriminação relativamente a qualquer prograrr a
ou atividade educacional que recebe apoio financeiro federal. (N. T.)
112 Apelido depreciativo usado para referir-se a Richard Nixon, significa Dick, o Trapaceiro. Dick é
uma abreviação de Richard. (N. T.)
223
MILHOUS EM TRÊS ATOS
concedida, assim que concordei em fazer alguns serviços extras na casa do bispo
auxiliar da diocese (e ex-reitor do seminário), James Hickey.
Era o início de outubro de 1968, e meu trabalho era ajudar a esvaziar e
limpar a piscina ao ar livre do bispo. O bispo Hickey permaneceu ligado às
ocorrências do seminário que ajudou a fundar na década anterior, e, assim, isso
significou que sabia a respeito das nossas iniciativas em favor de Richard Nixon.
“Soube que você está interessado em política”, ele disse para mim, enquanto
eu limpava o interior da piscina.
“Sim, bispo. Minha família sempre prestou atenção no governo e em outras
atividades.”
“Claro. Mas por que Nixon?”
Eu estava bastante nervoso porque não tinha a menor ideia de como limiar
uma piscina. Tive receio de dar a resposta incorreta, e isso significaria “adeus,
sacerdócio”.
“A guerra é um erro. Matar pessoas é um erro. Ele vai terminar a guerra.”
“Agora?”, o bispo disse, olhando para mim diretamente, por cima do seu
óculos de armação de arame fino.
“Bem, é o que ele diz. Seis meses e fim da guerra.”
“Você sabe que esse homem tem - como posso dizer? - um histórico de não
falar a verdade.”
Naquele momento, eu estava numa grande enrascada. A próxima coisa
que esperava ouvir era que eu estava cometendo um pecado mortal ajudando
Richard Nixon.
“Lembro-me quando ele concorreu pela primeira vez ao Senado, na Câli-
fórnia”, o bispo continuou. “Inventou muitas coisas a respeito da mulher que
era sua adversária que não eram verdade. Coisas terríveis. As pessoas só desco
briram depois. Mas era muito tarde. Ele já era senador.”
Não tinha a menor ideia do que ele estava falando. A temperatura em
outubro estava caindo, e a água da mangueira que respingava em mim estava
fria e desagradável. Não queria escutar esse sermão. Além disso, o que um bispo
faz com sua própria piscina?
“Não sabia disso”, disse, respeitosamente. “Não o apoiei em 1960”, acres
centei, esperando que isso me desse alguma escusa. j
A guerra, é claro,, não terminou seis meses depois da posse de Nixon. Ficou
maior. Invadimos outro país (o Camboja), grupos e jornalistas contrários
à guerra foram espionados, e, para celebrar o Natal de 1972, jogamos mais
bombas sobre o Vietnã do Norte do que jogamos em qualquer campanha na
Alemanha durante toda a Segunda Guerra Mundial. Ao todo, matamos mais
de 3 milhões de habitantes do Sudeste Asiático, e mais de 58 mil dos nossos
soldados nunca voltaram vivos para casa. O bispo sabia disso, e, tempos depois,
225
MILHOUS EM TRÊS ATOS
compreenderia que ele me convocou não para limpar uma piscina, mas para
limpar minha cabeça. Na primavera seguinte, o bispo Hickey foi enviado para
Roma e, então, tempos depois, tornou-se bispo de Cleveland e, finalmente,
cardeal da arquidiocese de Washington, D.C. Duas missionárias que ele enviou
para El Salvador foram brutalmente assassinadas, junto com duas outras reli
giosas, pelo governo dali, apoiado pelos americanos. Ele expressava abertamente
suas opiniões em Washington, opondo-se a interferência militar americana na
Nicarágua e El Salvador.
Um ano depois, após eu sair do seminário, fiz um pacto comigo mesmo de
nunca revelar a ninguém que tinha feito campanha por Richard Milhous Nixon.
113 Poeta nascido em Flint, no ano de 1941. Foi empresário da banda M C5 e líder do Partido das !
Panteras Brancas, um grupo contracultural antirracista. (N. T.)
114 Organização de esquerda radical que surgiu, em 1969, como facção da Students for a Dem o-
cratic Society. (N. T.)
226
ADORO PROBLEMAS
que Timothy McVeigh e Terry Nichols115 ficaram com o irmão de Nichols arites
do atentado em Oklahoma). !
A região era parte de uma península cercada pelo lago Huron em três
lados, e estava repleta de algumas das pessoas mais conservadoras do estado de
Michigan. O quão conservadoras? Provavelmente, o liberal mais próximo vivia
na outra margem do lago, no Canadá.
Bad Axe nunca tinha recebido a visita de um presidente antes. Assim, toda a
cidade se enfeitou de vermelho, branco e azul para saudar o Primeiro Criminoso
da nação. Uma parada para Nixon foi programada, e estávamos preparados para
nos juntar à recepção de boas-vindas.
Felizmente, ao chegarmos em Bad Axe, não éramos os únicos que achá
vamos que Nixon tinha de cair fora. Havia, no mínimo, trezentos outros mani
festantes entre alguns milhares de felizes moradores de Bad Axe que estavam
esperando ansiosamente a chegada de Nixon.
Achei um bom lugar, bem na calçada da rua principal da cidade. Trouxe
um cartaz que dizia em letras grandes e em negrito: NIXON’S A CROOK
(Nixon é um Escroque). Meus amigos, Al e Rod, tinham cartazes que diziam
IMPEACHMENT NOW (Impeachment Já) e WAR CRIMINAL (Criminoso
de Guerra). O básico, uma coisa direta. Nenhuma ambigüidade nem sutileza.
Bastante curto para ele ler ao passar por nós.
i
230
ADORO PROBLEMAS
116 Na cultura popular, São Pedro frequentemente é retratado como o guardião do céu, controlando
suas portas. (N. T.)
231
MILHOUS EM TRÊS ATOS
sentação, perceber o ator dizendo suas falas, sem intenção verdadeira, e, naquele
momento, a interpretação escapa de você, acaba e não pode ser recuperada.
Aquele era Nixon em Bad Axe. O homem que foi deputado, senador, vice-
-presidente e, na ocasião, presidente; o homem que havia se encontrado com os
líderes mundiais e uma vez considerou a possibilidade de jogar a bomba atômica
sobre o Vietnã do Norte; o homem que escalou seu caminho para o topo mais
de uma vez; e, naquele momento, ali estava ele, em um lugar que ele nunca viu,
reduzido a participar de uma parada de imagens posadas; um elemento interes
sante para o telejornal noturno, mas que não enganava ninguém: aquele não era
o Nixon na China. Aquele era o Nixon em Bad Axe. Esmagado e humilhado de
modo irrevogável. Foi tudo que ele tinha deixado.
Quando os olhos dele relancearam meu cartaz NIXON’S A CROOK, ele
fez o máximo para desviar o olhar e fingir que estava feliz, mas havia o pró
ximo cartaz depois do meu, e o seguinte, e os 297 depois deste. Quando vi ^ua
reação triste ao meu cartaz, instintivamente o abaixei, envergonhado de estar
chutando um homem que era um cachorro morto; um homem cruel, despre
zível, mas, não obstante, um homem envergonhado e sozinho. Um homem no
seu caminho de volta para o condado de Orange117 ou para a prisão. Ele podia
estar cercado por milhares de pessoas ali em Bad Axe, mas o único machado*18
que importava naquele momento era aquele que estava a poucas semanas de
ser baixado sobre sua cabeça. William Milliken, o governador republicano de
Michigan, recusou-se a participar da parada com o presidente. Milhous era ujm
pária, ele sabia disso, e, na realidade, qual era o sentido naquela altura? !
Eu direi a você qual era. Ele disse que terminaria a guerra - ele nos disse
que terminaria a guerra! —e, em vez disso, ele mandou mais vinte mil garotos
americanos para a morte. Ele despejou tantas bombas sobre a população civil
do Vietnã, Laos e Camboja, que, até hoje, ninguém é capaz de fornecer uma
contagem exata dos mortos. (São 2 milhões? 3 milhões? 4 milhões? Nesse níveil,
estamos falando de números de Holocausto, e, se você, cidadão americano,
pagou seus impostos, então, você apoiou isso, você é culpado, você sabe disso, e
você só quer vomitar.) Ele cometeu crimes de guerra tão hediondos, que ainda
117 Nixon nasceu em Yorba Linda, no Condado de Orange, na Califórnia. (N. T.)
118 Jogo de palavras intraduzível. Em inglês, machado é axe. (N. T.)
232
ADORO PROBLEMAS
vivemos com o legado de suas ações até hoje. Nós perdemos nossa moral com
ele e nunca a recuperamos. Não sabemos mais quando somos os mocinhos e
quando somos os terroristas. A história já escreveu nosso fim, e a história dirá
que começou com o Vietnã e com Nixon. Antes do Vietnã havia muita espe
rança. Desde Nixon, só conhecemos a Guerra Permanente.
Por algum motivo, não sabendo então o que aconteceria com nosso país,
ergui meu cartaz de novo. Não pedia nada nele e nada de Nixon.
Caminhamos até onde ele ia fazer seu discurso, mas a polícia garantiu que
ninguém chegasse a qualquer lugar próximo dele. Ele pegou um megafone e
se vangloriou dos subsídios aos fazendeiros locais. Perguntou à multidão se
o médico “devia trabalhar para seus pacientes ou para o governo?” E, então,
dirigiu-se aos jovens que estavam ali.
“Eu trouxe a vocês uma paz duradoura”, ele disse. “Vocês serão a primeira
geração deste século que não conhecerá a guerra. E aos jovens aqui presentes:
vocês serão o primeiro grupo de dezoito anos não convocado para o exército em
mais de 25 anos!”
A multidão aplaudiu. Nixon, o presidente da paz. Nós vaiamos o
mais alto possível. Era mais como um uivo. Nixon não faria outra aparição
pública antes de renunciar à presidência alguns meses depois. Estávamos ali
para a última. Se ao menos pudéssemos dizer o mesmo a respeito de aquela
ser a última guerra.
INTERVENÇÃO EM CRISES
Senti falta de ar e o coração quase sair pela boca. Tinha meio segundo para
pensar no que fazer. Gorrer? Atacá-lo? Pedir para ele me deixar viver? Tentar
ficar calmo e parecer forte, para fortalecê-lo? Fazer minha última oração?
“Espere!”, disse vigorosamente, sem gritar. “Essa não é uma opção.”
Ele olhou para mim como um cachorro que não queria obedecer a ordem
do seu dono, mas, por algum motivo, o cérebro dele sabia que devia.
“O que você quer dizer com não é uma opção?”, ele gritou de volta para mim.
“Porque”, eu disse firmemente, com o olhar mais severo que consegui fazer
no meio do meu pavor e medo. “Porque. Eu. Sim. Então.”
Uma lembrança do meu treino assomou minha mente: chamam isso de
suicídio em público porque o suicídio precisa de um público. Ele me mata e não
há público. Eu sabia que ele não ia me matar. Ele ia se matar. E me deixar com
a imagem daquilo pelo resto da minha vida. Eu era o plantonista para o pai ou
máe violento, para a esposa enganada, para o amigo desleal, para o bastardo de
um chefe, para a voz na sua cabeça. Eu tinha de ser castigado do mesmo modo
que “eles” tinham o maltratado em toda sua vida; ou, talvez, só na semana
passada.
Com o dedo no gatilho, ele posicionou o cano da espingarda sob o queixo,
e se preparou para atirar.
“Não estou impressionado”, falei impulsivamente. “Você está me escutando?
Nesse exato momento, você está me deixando enfezado porque não tem ideia
de quanto eu me preocupo com você, e, nesse exato momento, eu sou tudo
que você tem, e, droga!, se você abaixar essa arma e conversar comigo, você vai
descobrir que tem um amigo aqui - eu—exatamente aqui, e, dane-se, eu mereço
ao menos alguns minutos do seu tempo!”
Não tinha a menor ideia do que tinha acabado de dizer. Pareceu-me tudo
errado. Bem diferente do “treino de emparia” que os funcionários do condado
nos deram quando dei a ideia de abrir esse lugar. Na ocasião, eu tinha deze
nove anos, e não via nenhuma organização adulta prestando ajuda de boa qua
lidade aos jovens. Um adolescente fugia e era encontrado, e, em vez de alguém
escutá-lo para descobrir por que ele fugiu —talvez ele tivesse um motivo para
fugir —ele era simplesmente mandado de volta para casa, frequentemente para
outra surra ou assédio. A experiência que tive com uma amiga que precisou de
um aborto, mas não pode fazê-lo, porque era ilegal em Michigan, além de um
colega de classe que sofreu uma overdose e um outro colega da minha antiga
235
INTERVENÇÃO EM CRISES
turma de escoteiros que se enforcou, foi o suficiente para eu iniciar esse centro
de atendimento. Minhas regras: seria comandado por jovens, para jovens* Se
precisar de um lugar para desabar, você o encontrou. Se você precisar de jum
teste de gravidez, nós o fazemos para você. Você está chapado? Entre, sente-se e
espere o barato passar. Nunca chamaremos a polícia, e seus pais nunca saberão.
O caráter disso estava espantando muitos adultos da região, embora alguns,
como os rotarianos e os integrantes da organização dos veteranos de guerra,
assinaram cheques para nós, pois enxergavam o bom trabalho que estávamos
fazendo, mesmo que fosse um tanto heterodoxo. Mas os resultados foram que os
fugitivos não continuaram fugindo, as garotas de dezesseis anos não eram obri
gadas a ter bebês que não podiam cuidar, promovíamos o controle de natalidade
gratuito, e nossas linhas telefônicas funcionavam das três da tarde até meia-noite
(até às duas da manhã, nos fins de semana), sete dias por semana.
Naquele momento, era 1975, e eu tinha 21 anos. Foi meu primeiro con
fronto com uma arma carregada. Meu único objetivo era manter as balas nos
canos daquela arma. O som seguinte que ouvi não foi o de um estampido de
espingarda de caça.
“Não grite comigo/”, ele berrou de volta.
Uau! Ele decidiu travar combate comigo, em vez de puxar o gatilho. |
“Desculpe-me, não tive a intenção de gritar”, eu disse, com a voz tremendo.
“E que tive um dia difícil, e ele não pode acabar assim, com você se matando.”
O ato de conseguir “sair dessa” em relação a mim realmente o desarmou.
“Ei, cara”, ele disse, abaixando a arma. “Você está bem?”
Tudo bem. Naquele momento, tinha desconcertado o maluco. Isso podia
prosseguir de diversas maneiras. Decidi tentar um esforço conjunto.
“Sinto muito”, disse. “Não foi muito profissional da minha parte.”
“Não consigo continuar”, ele disse, acalmando-se um pouco. “Nada na
minha vida deu certo. Não quero que você me detenha. Só quero que você me
deixe partir desse mundo e...”
“Ei, você é que tem a arma.” (Na realidade, não precisava lembrá-lo.) “Yocê
tem o direito e o poder de deixar esse mundo quando quiser. Tudo o que estou
pedindo são alguns minutos do seu tempo. Por favor, você pode me dar issd)?”
Os músculos dele relaxaram um pouco mais, e ele, aparentemente, se
esqueceu de que ainda tinha uma arma pronta para atirar em suas mãos. j
“Sim, posso fazer isso.” |
236
ADORO PROBLEMAS
“Temos só que persistir e achar a garota certa”, continuei. “Ela está por aí.
A sua está por aí. A minha está por aí. Existem muitas mulheres neste planeta
para náo existir a certa para nós por aí. Só temos de continuar a fazer o que
sempre fizemos.”
“Sim, vamos nessa!”
Estávamos metidos quase completamente entre expressões de meados da
década de 1970 quando, de repente, ele caiu em si e percebeu que os telefoiíes
estavam tocando sem parar.
“Cara, você é a única pessoa aqui?”
òim.
“Ah, não, cara, eu não deixei você trabalhar. Melhor você voltar ao tra
balho.” Ele fez uma pausa e pensou por um instante. “A menos que você precise
que eu fique por aqui e dê uma mão para você nos telefones.”
“Não, está tudo bem. Vou encerrar o turno da noite depois de fazer meu
relatório. Você está bem agora?”
“Acho que sim. Você vai devolver minha arma?”
“Sim. Esse foi o trato. Sua vida está em suas mãos. Só pedirei para você rião
acabar com ela nesta semana. Por que você não tenta uma reunião nos Alcoó
licos Anônimos? Divirta-se com seus amigos sóbrios. Você pode fazer isso?”
“Claro. Posso tentar.” j
Entreguei-lhe a espingarda. j
“E as balas?” j
“Ah, acho que vou ficar com elas. Uma lembrança desta noite. Legal?” I
“Legal”, ele disse, concordando com um movimento de cabeça.
Quando ele partiu com seu caminhão, pude ouvir seu rádio tocando “Fly
by Night”, do Rush. Enquanto o observava trafegar pela Coldwater Road, até o
cruzamento da M-15, percebi que ele obedecera respeitosamente todos os sinais
de trânsito e os limites de velocidade, pequenas indicações dadas por aquble
que, ao menos, por enquanto, naquela noite de verão agradável, quis viver. j
I!
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA
119 American Civil Liberties Union (União Americana pelas Liberdades Civis) é uma organização ae
defesa dos direitos do indivíduo, como liberdade de expressão, combate à discriminação etc. (N. T.)
239
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA
Eu não tinha ameaçado qualquer ação legal, mas acho que foi o que
eles pensaram quando viram o advogado da ACLU sentado na primeira fila.
Voltei a apresentar a moção, um dos dois outros católicos do conselho a
apoiou, e o conselho votou de modo unânime para fazer a coisa certa. Mas
foi uma votação relutante, pois os outros membros do conselho não gos
taram de assumir a posição de votar contra os desejos dos evangélicos recém-
-convertidos da cidade.
Naquele momento, as igrejas Metodista Livre e Batista, em Davison, come
çaram a ficar de olho em mim. Eles não se esqueceriam do que eu tinha feito
para desafiar sua influência e poder na cidade. E só fazer algumas orações pela
minha alma não seria tudo o que eles fariam.
A prudência teria imposto que talvez eu relaxasse, quem sabe recuasse um
pouco, tentasse recuperar as boas graças deles, para que eu ainda pudesse ter
alguma eficácia no conselho. Por um tempo, foi o que fiz. Mas estava perto dos
vinte anos, a vida estava caminhando rápido demais, e eu estava envelhecendo.
A ‘ sabedoria” ainda não tinha se manifestado.
“Senhor presidente”, eu disse, “gostaria de apresentar uma moção em que
endossamos a diretiva de Lansing na qual publicamente reafirmamos que nossas
escolas possuem uma política de não discriminação e que acreditamos que as
escolas integradas racialmente proporcionam a melhor educação”.
E, então - por que não? - para piorar a situação: (
“E que convidamos pessoas de todas as raças para virem para Davison,
transformando a cidade em seu lar.
Uma pausa muito longa. j
“Isso é ridículo”, Russell Alger, presidente do conselho finalmente disse,
exasperado. “Não discriminamos ninguém em Davison, e isso não é necessário.
Próximo item da pauta.”
“O senhor não perguntou se alguém apoiava minha moção.”
“Por que você está fazendo isso? Qualquer um pode se mudar para Davison
e freqüentar nossas escolas”, o dentista do conselho afirmou.
“Então por que, entre seis mil estudantes, há apenas quinze que são negros?”
“Tudo bem”, ele disse. “Eu apoio a moção.” Uma chamada de votação foi
realizada e todos votaram contra. j
“Há outras moções?” j
240
ADORO PROBLEMAS
que esse grupo nunca viu uma multa por estacionamento em local proibido em
suas vidas. Se pudessem me enviar para o meu quarto e me prender lá por um
ano, teriam feito isso naquele mesmo instante.
Também movi um processo contra o conselho. Eles náo podiam acre
ditar no que estava acontecendo. Na reuniáo seguinte, recuaram e desistiram
em voz baixa da regra de proibir aparelhos de gravação.
Na aprovação da moção, eu pressionei o botão de gravação. Eles queriam
me matar.
A partir daquele momento, quase todos os membros do conselho mante
riam suas cadeiras giratórias viradas para o lado que eu não estava. Evitavam
contato visual ou qualquer conversa comigo. Eu era o dedo-duro, e eles tinham
alcançado o ponto de ebulição.
As reuniões seguintes ocorreram com pouco ou nenhum alarde, e as ques
tões eram decididas rapidamente e sem percalços, sem muita discussão. Foram
tranqüilas. Muito tranqüilas. Algo não parecia estar certo.
Mais ou menos nessa época, um dos membros do conselho se referiu a algo
que um dos outros membros havia dito na “reunião anterior”. Mas eu estava na
reunião anterior - e graças às maravilhas da fita cassete, não havia nada pare
cido dito na última reunião. Após a reunião, abordei o único membro do con
selho amigável, que ainda estava falando comigo. Perguntei-lhe qual era aquele
assunto que eles discutiram.
Ele suspirou. “Estamos tendo reuniões sem comunicar a você”, ele disse,
em tom de desculpa. “Não está certo e não vou mais participar de nenhuma
delas. Já disse a eles que devemos parar com isso.”
Fiquei atrapalhado. Reuniões secretas do conselho escolar estavam sendo
realizadas pelas minhas costas? Ele revelou que se encontravam na casa do presi
dente, para que ninguém soubesse.
Voltei para casa, bem confuso. Naqueles dias, não havia internet e, assim,
eu não tinha jeito de pesquisar “Como realizar a prisão de um cidadão”. No dia
seguinte, fui ao escritório do promotor e lhe contei o que estava acontecendo.
Ele perdeu a compostura.
“Esses malditos filhos da mãe! Eles vão ver. Vou colocar todos eles na
cadeia!”
243
UMA EDUCAÇÃO PÚBLICA
Considerei perguntar-lhe se ele poderia dizer aquilo mais uma vez, só para
meu próprio prazer.
“Kenny”, ele gritou, chamando o promotor assistente, “chame as rádios e
as TVs. Nós vamos entrar com acusações criminais coiltra os membros do Con
selho Escolar de Davison!”
Ele quis dizer isso. E fez isso. Era só um delito leve, mas, contudo, ele disse
à mídia que estava emitindo mandados de prisão. No caso de eles decidirem
trabalhar comigo no período do encarceramento, ele também moveu uma ação
para assegurar que eles cumpririam a lei estadual exigindo reuniões abertas. O
promotor Leonard decidiu tudo isso com base em diversas violações da sepa
ração entre Igreja e Estado, na proibição de gravadores em reuniões, e, naquele
momento, naquilo.
“Eles são reincidentes”, o promotor disse para a rádio local. “Eles conti
nuam violando a lei, e não sei outra maneira de chamar a atenção deles.”
A notícia abalou a pequena cidade republicana; e o presidente do consel HO
escolar transgressor da lei reuniu-se imediatamente com o promotor e assinou
um acordo para nunca mais fazer aquilo de novo.
“Você provocou isso”, a impenitente senhora Ude me disse antes da pró
xima reunião. “Foi seu comportamento que nos forçou a fazer reuniões sem
você. O que faz você achar que o queremos em nossas reuniões?” j
“Não são suas reuniões”, respondi para ela. “Essas reuniões pertencem aos
cidadãos deste distrito! E eles me elegeram para representá-los. E quando vocês
fazem reuniões secretas e não me informam, vocês tiram o direito daquelas
pessoas de estar aqui.”
“Ah, você!” Foi tudo o que ela conseguir dizer e se afastou.
Alguns meses depois, percebi que o distrito escolar estava firmando con
tratos de serviços e construção sem a realização de concorrências.
“Isso é ilegal”, disse, usando a palavra com “i” favorita deles. “As leis esta
duais exigem de nós a realização de concorrências justas para todos os interes
sados e que consigam o melhor preço para o distrito escolar.” Sentei-me e me
perguntei por que tinha de dar uma aula a pessoas que diziam que amavam
o capitalismo e a livre iniciativa a respeito do mercado competitivo ser uma
boa ideia para todos. Mas eles me ignoraram, dizendo que era impraticáve e
desnecessário. !
244
ADORO PROBLEMAS
120 Personagem de uma série de TV homônima, exibida, nos EUA, entre 1973 e 1978. Kojak era urrj
detetive da polícia de Nova York, que, entre outras particularidades, tinha uma careca lustrosa e
chupava pirulitos. (N. T.) j
í
I
i
246
ADORO PROBLEMAS
Tornei-me jornalista aos nove anos. A St. John the Evangelist Catholic Grade
School não tinha um jornal escolar e, assim, decidi criar um. Não pedi per
missão para as freiras. Por que teria? Só queria veicular informações sobre nossas
equipes de esporte, principalmente. Também quis escrever a respeito do que
aconteceu durante a aula de ciências naquela última sexta-feira. A senhora
LaCombe trouxera para a classe o único aparelho de TV da escola sobre uma
mesa com rodinhas e, assim, pudemos assistir uma aula de Ciências no N.E.T.
(National Educational Television), um canal dedicado ao uso em salas de aula
de todo o país (posteriormente, o N.E.T. se tornaria o PBS121)- j
Gostava daqueles dias especiais, quando assistíamos TV na escola. Parecia
que estávamos aprontando alguma coisa e não sendo punidos por aquilo. E êu
gostava dos programas de ciências, em especial quando explodiam algo num
tubo de ensaio.
Quando estávamos assistindo a aula, a imagem na tela foi abruptamente
interrompida e, de repente, Chet Huntley, o âncora do NBC News, apareceu
com uma notícia extraordinária.
“Acabamos de ser informados de que o presidente Kennedy foi baleado ém
Dallas...” !
A senhora LaCombe soltou um grito sufocado e saiu para buscar a madre
superiora. Ela entrou e assistiu à notícia conosco. Quando disseram que Kejn-
nedy ainda estava vivo e fora levado ao hospital, fomos todos instruídos - e as
121 Rede de TV sem fins lucrativos financiada por fundos públicos e governamentais e dedicada a
programas educativos e culturais. (N. T.)
250
ADORO PROBLEMAS
outras salas de aula foram alertadas - a tomar o rumo da igreja, ficar de joelhos
e rezar, rezar, rezar pela vida dele.
Provando novamente que Deus tem um grande plano misterioso que
nenhum de nós pode alterar, ou que, de fato, Ele, ocasionalmente, tira um
dia de folga, Kennedy morreu. Fomos todos mandados para casa mais cedo.
Quando meu pai chegou em casa vindo da fábrica, minha mãe saiu para o
lado de fora para recebê-lo. Estava chovendo. Naquela noite, comemos peixe
em silêncio.
Dois dias depois, quando estava sentado no chão da sala de estar assistindo
uma transmissão ao vivo da polícia de Dallas transferindo o suposto assassino,
Lee Oswald, vi Jack Ruby colocar uma arma na barriga de Oswald e atirar.
Minha mãe estava passando o aspirador de pó.
“Desligue o aspirador”, gritei para ela. “Atiraram em Oswald!”
Ela não conseguiu me ouvir e continuou passando o aspirador. Estendi o
braço e tirei o aspirador da tomada.
“Atiraram em Oswald! Acabei de ver.”
Nem todas as crianças de nove anos veem uma pessoa real sendo assassinada
ao vivo na TV. No fim de semana, decidi que queria escrever a esse respeito.
Perguntei ao meu pai se eu podia fazer um jornal.
“De que jeito exatamente você quer fazer isso?”, ele me perguntou. Éramos
uma família cujo pai vivia com um salário da GM. Não fundávamos jornais.
“Estava pensando em escrever num pedaço de papel. Você disse que tem
uma nova máquina em que você trabalha que imprime páginas de papel.
Assim, se eu escrever algo em dois pedaços de papel, você poderia fazer trinta
cópias disso?”
Ele pensou a esse respeito por um minuto.
“Bem, a máquina se chama mimeógrafo. Está no escritório do supervisor.
Tenho de datilografar para você e obter permissão. Vamos ver.”
Na segunda-feira seguinte, meu pai chegou em casa e disse que podia
fazer 25 cópias do meu jornal de duas páginas. Excitado com a possibilidade,
sentei-me, peguei meu lápis e escrevi a página um: minhas reflexões a respeito
de por que não tínhamos mais um time de futebol americano do sétimo e oitavo
anos e das perspectivas da nossa próxima temporada de basquete, e minhas esta
tísticas favoritas do verso das figurinhas de beisebol do chiclete Topps.
251
BATIDA POLICIAL
Quando você mora numa cidade como Flint, com uma única empresa, quase
toda a mídia é comprada, paga e controlada por aquela empresa ou por seus
lacaios (vulgos os representantes locais eleitos). No caso de nosso único jornal
diário, o Flint Journal>ele provia a subsistência de uma situação especialmente
patética. O Journal gostava tanto da General Motors que nunca dedicava um
olhar crítico a suas operações. Era um jornal chapa-branca: a empresa nãofazia
nada de errado! Os trabalhadores da região de Flint odiavam aquele lixo, mas era
nosso único jornal, e assim, nós o liamos. Todos o chamavam de “O mictório
de Flint”. Editorialmente, o jornal tinha ficado historicamente no lado errado
de todas as principais questões sociais e políticas do século XX; o “lado errado”
significando: qualquer que fosse o lado que o sindicato de trabalhadores estivesse,
o Mictório assumia a posição contrária. Nos primeiros anos, atacou o prefeito
socialista que os eleitores de Flint elegeram. Atacou a criação do UAW e a grande
greve de 1936-37, que obrigou a General Motors a firmar seu primeiro contrato
de trabalho com o sindicato. Apoiava o candidato republicano à presidência,
enquanto os operários votavam no democrata. Defendeu a Guerra do Vietnã. E
se tornaria um defensor indesculpável da especulação imobiliária do centro da
cidade que deixaria Flint devastada.
Em 1976, meus amigos e eu nos queixávamos tanto a respeito da situação do
jornal de Flint que decidimos criar um por nossa conta. Inicialmente, quisemos
chamá-lo de Free to Be, mas pareceu um nome muito hippie. Assim, mudamos
para Flint Voice, em homenagem a um grande semanário alternativo, que rece
bíamos pelo correio toda semana de Nova York, o Village Voice. Sete de nós, entre
253
BATIDA POLICIAL
19 e 25 anos, criamos o Voice, mas apenas três tinham alguma experiência jorna
lística: Doug Cunningham, que tinha um jornal underground no ensino médio,
o Mt. Morris Voice; Alan Hirvela, que ajudou a dirigir um jornal alternativo no
campus da Central Michigan University; e eu, com meu histórico de quatro jor
nais sem sucesso no ensino fundamental. Somente Al tinha curso superior.
Nossos primeiros números criticavam diretamente a ordem estabelecida em
Flint. Havia artigos a respeito do juiz linha-dura de Flint que dava sentenças
mais severas para os pretos do que para os brancos; dos representantes do con
dado que espoliavam o tesouro; da Buick122 falsificando os carros de teste que
enviava para a agência de proteção ambiental (a EPA), a fim de demonstrar um
menor consumo de combustível; e de algumas outras questões que eram fami
liares para mim: outro conselho escolar de Flint tendo reuniões secretas; estu
dantes de Flint sendo punidos com violência 8.264 vezes num único ano letivo;
e uma pesquisa revelando que a maioria dos católicos não mais acreditava |no
inferno. Também havia artigos que pareciam à frente do seu tempo: um artigo
opinativo de um palestino local intitulado “Onde é Minha Terra Prometida”;
um artigo a respeito de como o açúcar refinado era um veneno (com uma receita
concomitante de uma guloseima de “comida natural”); e uma advertência de
que a GM, então empregando oitenta mil pessoas em Flint, tinha um plano
mestre de abandonar a cidade. Esse último artigo firmou meu nome como o
maluco local.
Rapidamente, o jornal tornou-se leitura obrigatória para aqueles que pres
tavam atenção à política de Flint. O Flint Voice era um jornal de escândalos
reais, que não se importava com quem incomodava. Não trazíamos artigos
sobre as “Dez Melhores Sorveterias da Cidade” ou “Viagens de 20 Dias que
Você Vai Querer Fazer”. Nosso jornalismo era intransigente e implacável.
Demos flagrantes em estabelecimentos comerciais que não contratavam fun
cionários negros. Mostramos como a General Motors estava obtendo benefícios
fiscais para construir fábricas no México. Certa noite, pegamos a desmontagem
literal de toda uma linha de montagem da GM, seu carregamento num trem,
e seu envio para embarque num navio para um lugar chamado China. Muitas
pessoas podiam não acreditar num artigo como esse: “O que a China faria cop
122 Uma divisão da General Motors que fabrica carros da marca Buick. (N. T.)
254
ADORO PROBLEMAS
uma linha de montagem de carros? Michael Moore está doido!”. Sofri muitos
escárnios por expor essas safadezas.
Também oferecemos um espaço no qual escritores brilhantes de Michigan
puderam encontrar abrigo. Muitos, tais como Ben Hamper, Alex Kodowitz,
James Hynes e o cartunista Lloyd Dangle se tornariam autores consagrados e
jornalistas profissionais. Nunca perdemos uma oportunidade de ir no encalço
do Flint Journal, e, em 1985, redigi um artigo investigativo sobre esse depri
mente jornal diário para a revista ColumbiaJoumalism Review.
Além do plano da General Motors de destruir Flint (uma história que só abor
daríamos no final da década de 1970 e no início da década de 1980), nada
consumiu mais nossa atençáo do que o prefeito de Flint, James P. Rutherford.
Ele também era o ex-chefe de polícia de Flint. Ele deixou para trás diversos
policiais irritados, que ficaram mais do que felizes de nos ceder documentos e
provas de suas atividades duvidosas. Uma das nossas primeiras reportagens de
primeira página sobre ele recebeu o título de “O prefeito Rutherford recebeu
um presente’ de 30 mil dólares de um apostador condenado?”. Nós “furá
vamos” o FlintJournal sem parar (não que fosse muito difícil), mas, certo dia,
cansados de levar furo de nós, um dos seus colunistas simplesmente roubou
nossa matéria investigativa e a publicou, como se tivesse feito a coleta de dados
por si mesmo. Quando coisas como essa aconteciam, tínhamos modos de lidar
com elas. Como não éramos instruídos e não freqüentávamos os círculos da
alta sociedade, não tolerávamos muito bem as ações de ladrões, especialmente
se o gatuno fosse o FlintJournal. No dia seguinte ao plágio, visitamos a redação
deles. Trouxemos conosco uma torta para dar ao editor. Não, não éramos arre-
messadores de tortas; éramos mais como pessoas que devolviam presentes. A
torta estava recheada com cocô de cachorro. No alto da pilha de cocô fume-
gante, havia um grande símbolo de direitos autorais feito de chantili artificial.
O editor não estava e, assim, esperamos a volta dele por um tempo. Alguém
deve tê-lo avisado, pois ele nunca apareceu. Porém, no fim, ficamos entediados
de esperar, deixamos o “presente” sobre sua mesa e fomos embora. No dia
255
BATIDA POLIC IA L
123 Comprehensive Employment and Training Act, lei federal para treinar mão de obra e ofereceria
ela empregos no serviço público. (N. T.)
256
ADORO PROBLEMAS
O veredicto do tribunal foi saudado tanto pela polícia como pelos inimigos
da imprensa de todos os lugares. Os jornalistas se estarreceram e se preveniram
de que haveriam abusos. Assinalaram que as fontes receariam confiar nos jornais
se soubessem que a polícia poderia vasculhar arquivos cheios de informações
confidenciais.
Dois anos se passaram, e não houve mais nenhuma batida policial nas reda
ções dos Estados Unidos.
Até a manhã de 15 de maio de 1980.
Às nove e cinco da manhã, a polícia de Flint, tendo obtido um mandado
de busca do juiz Michael Dionise, fez uma batida nos escritórios do jornal onde
o Flint Voice era impresso e apreendeu todos os materiais relativos ao assunto
de novembro de 1979, que continham o relatório crítico a respeito da suposta
transgressão da lei do prefeito, incluindo os próprios clichês utilizados nas
impressoras para imprimir o Voice.
O Flint Voice era impresso na gráfica do Lapeer County Press (um semanário
do condado que foi fundado, em parte, por minha família, na década de 1830).
Aquela não foi a primeira visita da polícia de Flint ao nosso impressor. Ela tinha
ligado em novembro pedindo para que a County Press entregasse tudo que tinha
a nosso respeito. O impressor, citando a Primeira Emenda,124 recusou-se. Seis
meses depois, os policiais apareceram pessoalmente. O impressor perguntou se
eles tinham um mandado de busca. Não, disseram os policiais. Então, vocês não
podem entrar, afirmou o editor.
Alguns dias depois, eles voltaram com o mandado em mãos e levaram tudo
relacionado ao Flint Voice. Disseram ao impressor para não revelar que estiveram
ali. O impressor obedeceu.
Cinco dias depois, em 20 de maio, o telefone tocou na redação do Voice.
“Senhor Moore, aqui é a polícia de Flint”, a voz no telefone disse.
O sargento não me informou - e eu não sabia —de que, cinco dias antes,
eles tinham feito uma batida nos escritórios do meu impressor. Ele me disse que
sabiam “exatamente” a hora e o dia que receberam o relatório do ombudsman - e
que, aparentemente, um crime tinha sido cometido. Ele perguntou se o ombu-
124 A Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos impede o Congresso de estabelecer
uma religião oficial, proibir o livre-exercício da religião e limitar a liberdade de imprensa, a liberdade
de expressão, o direito de livre-associação pacífica e o direito de fazer petições ao governo. (N. T.)
257
BATIDA POLICIAL
dsman era a fonte. Disse-lhe que não era da sua conta. Ele sugeriu que eu lhe
contasse a verdade, pois ele descobriria mais cedo ou mais tarde, e que as coisas
seriam mais fáceis se eu cooperasse.
Agradeci-lhe pela sugestão e desliguei. Quatro horas depois, recebi Uma
ligação do Lapeer County Press, que se sentiu ‘ obrigado” a me dizer que uma
busca foi realizada ali e todas as coisas relacionadas ao Flint Voice foram apreen
didas pela polícia de Flint. Senti um frio na espinha. Será que a polícia já estava
vindo para a nossa redação para fazer a mesma coisa?
Liguei de volta para a polícia de Flint. Disse que tinha acabado de ser infor
mado a respeito da batida. Eles estavam planejando fazer a mesma coisa aqui?
Ah, não, não vamos fazer uma batida aí! No outro lado da linha, o sargento
disse que isso, provavelmente, causaria muito desgosto para ele... e para mim.
Por que para mim?
Avisei ao sargento que, se ele aparecesse, as emissoras de TVs estariam| ali
em questão de minutos.
“Escute”, ele disse, diretamente, “se quiséssemos investigá-lo, você acha que
contaríamos para você? Você não saberia, da mesma forma que você não soube
a respeito da nossa busca na sua gráfica, em Lapeer.”
Liguei para um fonte minha na polícia de Flint e lhe pedi para descobrir
alguma coisa. Depois de uma hora, ele me retornou.
“Ah, sim, eles estão planejando fazer uma batida aí. Eles já têm o atestado
para o juiz redigir.”
Imediatamente, liguei para as emissoras de TV locais e para a Associatjed
Press. “Preciso da ajuda de vocês”, disse para cada um deles. “Os policiais pre
tendem fazer uma batida no nosso jornal. Eles já fizeram uma batida na gráfica
onde o Voice é impresso. Você podem vir para cá o mais rápido possível?”
Para crédito deles, chegaram em nossa redação, na esquina da Lapeer com
a Genesse, em minutos. Todos, exceto o FlintJournal j
As reportagens foram arquivadas. A polícia negou que estivesse planejando
uma busca e apreensão em nossa redação. Mas não conseguiu explicar por que
apreenderam todos os materiais do jornal que estavam no nosso impressor. A
batida teve a intenção de nos intimidar? Passei a noite tirando todos nossos
arquivos e documentos do prédio e os guardando seguramente, onde a políçia
não poderia encontrá-los.
258
ADORO PROBLEMAS
125 Apelido de Gerald Ford (1913-2006), 38g presidente dos Estados Unidos. (N. T.) j
126 Secretário de Estado durante a presidência de Richard Nixon. Ganhou o Prêmio N obel da Paz,
em 1973. (N. T.) j
127 Foi vice nos oito anos do governo Reagan, e depois se tornou o 41° presidente dos Estados
Unidos (1989-1993). É pai de George W. Bush, 43° presidente dos Estados Unidos (2001-2009). (N. T.)
260
ADORO PROBLEMAS
128 Refere-se a um famoso show dos Beatles realizado no estádio de beisebol Shea Stadium, errí
Nova York, em 15 de agosto de 1965, com cerca de 55 mil espectadores. (N. T.) I
129 Refere-se a um concerto realizado em Ann Arbor, em dezembro de 1971, em apoio ao poeta
John Sinclair, que estava preso por porte de maconha. (N. T.)
130 Literalmente, "Dez por Dois". Refere-se à prisão de Sinclar pelo porte de dois cigarros de
maconha, em 1969. Por causa disso, ele foi condenado a dez anos de prisão. (N. T.)
262
ADORO PROBLEMAS
“John, eu, ah, hum, muito obrigado! Foram meses de muita loucura por
aqui. Eu ligarei. Mesmo. Muito obrigado. Isso significará muito para todos aqui.”
“Mantenham o espírito elevado, amigo”, ele concluiu. “Eu estarei
disponível.”
Nunca consegui ligar de novo para John Lennon. Oito semanas depois, ele
morreu. No mês seguinte a isso, Ronald Reagan e George H. W. Bush assu
miram as rédeas do país pelos doze anos seguintes. Uma Idade das Trevas tinha
começado. Poucos perceberam a princípio.
BITBURG
Na realidade, Gary Boren não tinha problemas com os alemães, ao menos mão
com os vivos. Na década de 1970, durante o ensino médio, ele fez um inter
câmbio escolar em Bremen, na Alemanha Ocidental, vivendo com uma família
alemã por um ano. Assim, Gary estava familiarizado com a geração alemã mais
jovem e do pós-guerra e sabia que não eram de modo algum como seus paisi
Era primeiro de maio de 1985, festa da primavera. Minha conversa com Gary
foi mais ou menos assim:
Gary: “Bitburg.”
Eu: “Pittsburgh?” j
Gary: “Bitburg.” j
Eu: “Por que você quer ir para Pittsbugh?”
Gary: “Não quero ir para Pittsburgh. Quero ir para Bitburg.”
Eu: “Ah!”
Gary cresceu em Flint. Não o conheci quando eu era mais jovem, mias,
naquele momento, como adulto, ele era, entre outras coisas, o advogado gra
tuito do meu jornal (e meu pessoal sempre que precisava me livrar de uma
multa de trânsito ou escapar de um litígio com um locador).
“Mike, você pode acreditar nessa história da ida de Reagan para Bitburgj?”,
ele perguntou, esperando que eu compartilhasse sua incredulidade; o que
compartilhei.
264
ADORO PROBLEMAS
131 Refere-se a um filme intitulado Bedtime for Bonzo, de 1951, estrelado por Ronald Reagan, cujo
personagem, um professor, tenta ensinar ética para um chimpanzé (Bonzo). Em 1986, esse filme foi
usado como referência, em ligação com Reagan, na canção "My Brain is Hanging Upside Down
(Bonzo Goes to Bitburg)", da banda Ramones. (N; T.)
267
BITBURG
133 Romance publicado em 1974, de Heinrich Bóll (1917-1985), autor alemão, laureado com o N obel
de Literatura de 1972. (N. T.) I
270
ADORO PROBLEMAS
134 Empresa de mídia, chegou a ser o segundo maior grupo editorial dos Estados Unidos. Foi adqui
rida pela The McCIatchy Company, em 2006. (N. T.)
BITBURG
135 Literalmente, Alemanha acima de tudo. Esse verso, escrito por August von Fallersleben, que
integra a Das Lied der Deutschen [A canção dos alemães), já fez parte do hino nacional alemqo. (N.
272
ADORO PROBLEMAS
Meu padre tinha uma confissão que queria fazer para mim.
“Tenho muito sangue em minhas mãos, Michael”, o padre Zabelka disse,
baixinho. “Eu quero que você saiba.”
O padre George Zabelka e eu estávamos sentados na varanda da redação do
jornal. Ele era o ex-pastor da Igreja Sagrado Coração de Flint (a igreja em que,
tempos depois, eu casaria). Naquele momento, o padre Zabelka estava aposen
tado, mas ainda trabalhava, executando diversos projetos na região de Flint,
incluindo sua ajuda como voluntário no Flint Voice.
Vivendo no centro de Flint, eu tinha parado de ir à missa cerca de seis
anos antes, e, assim, o “padre George” era a coisa mais próxima que eu tinha de
um padre. Ainda acreditava muito nos princípios básicos da religião: amar um
ao outro, amar seu inimigo, fazer aos outros o que você gostaria que fizessem
a você. Concordava que a pessoa tinha a responsabilidade pessoal de ajudar
os pobres, os enfermos, os presos e os humilhados. Mas eu não era muito a
favor de muitos editos da Igreja a respeito de certas questões, geralmente aqueles
que magoavam as pessoas (gays), tornavam cidadãos de segunda classe algumas
pessoas (mulheres) e usavam o fogo do inferno para assustar pessoas a respeito
do sexo.
Eu apreciava meus encontros semanais ou mensais com o padre Zabelka, e
até freqüentava cultos que ele realizava nas igrejas no Condado de Genesee. De
fato, ele se tornou meu pastor.
Mas, naquele momento, ele queria me dizer alguma coisa. Naquela altura,
eu só o conhecia há poucos meses, e, assim, a conversa de “sangue em minhas
mãos” foi algo surpreendente, e eu, imediatamente, me senti perturbado.
278
ADORO PROBLEMAS
Ele puxou uma foto antiga e apontou para ela. No centro da foto, estava
um avião, e, na frente do avião, havia um grupo de militares da força aérea ameri
cana. No meio da tripulação, havia um capelão, um padre.
“Esse sou eu”, ele disse, apontando para uma versão mais jovem de si. “Esse
sou eu.”
Ele olhou para mim como se eu soubesse alguma coisa ou quisesse dizer
alguma coisa. Eu olhei para ele, confuso, tentando entender o que era que eu
devia entender. Então, ocorreu-me que ele, como meu pai, carregava em si todas
as cicatrizes daquela guerra. Somente pelo fato de ter estado lá, aquele bom padre
ainda devia sentir que foi parte de muitas mortes e agonias. Eu compreendo.
“Então, o senhor esteve na Segunda Guerra Mundial”, eu disse, de modo
simpático. “O meu pai também esteve. Muita morte e destruição. Deve ter sido
horrível testemunhar. Onde o senhor esteve?”
Ele continuou a olhar para mim como se eu não estivesse entendendo.
“O que está escrito no avião?”, ele perguntou.
Olhei com atenção para ver o que estava escrito no nariz do avião.
Ah!
“Enola Gay?
“Certo”, o padre Zabelka afirmou. “Eu era o capelão do 509ô Grupamento
Aéreo, na ilha de Tinian. Eu era o padre.”
E, então, ele acrescentou: “Em 6 de agosto de 1945, abençoei a bomba
lançada sobre Hiroshima”.
Respirei fundo, olhei fixamente para a foto, desviei o olhar e, por fim, olhei
para ele. Seus olhos negros pareciam ainda mais negros.
“Eu era o capelão do Enola Gay. Rezei a missa para a tripulação em 5 de
agosto de 1945 e, na manhã seguinte, os abençoei quando saíram para sua
missão de massacrar 200 mil pessoas. Com minha bênção. Com a bênção de
Jesus Cristo e da Igreja. Eu fiz isso.”
Não sabia o que dizer.
Ele continuou:
“Três dias depois, abençoei a tripulação e o avião que lançou a bomba sobre
Nagasaki. Nagasaki era uma cidade católica, a única cidade com maioria cristã
no Japão. O piloto do avião era católico. E nós destruímos a vida de 40 mil
irmãos católicos, 73 mil pessoas no total”.
279
UMA BÊNÇÃO
Naquele momento, havia uma névoa em seus olhos, enquanto ele me con
tava a respeito desse horror.
“Havia três ordens de freiras no Japão, todas baseadas em Nagasaki. Todas
as freiras foram reduzidas a pó. Nenhuma única freira, de nenhuma das três
ordens, sobreviveu. E eu abençoei isso.”
Não sabia o que dizer. Estendi meu braço e pus minha mão sobre seu
ombro.
“George, você não jogou a bomba atômica. Você não planejou a destruição
daquelas cidades. Você estava ali para fazer seu trabalho, para cuidar das neces
sidades daqueles jovens.”
“Não”, ele insistiu. “Não é assim tão fácil. Eu era parte daquilo. Eu não disse
nada. Queria que nós ganhássemos. Eu era parte do esforço.Todos tinham uma
função a desempenhar. Minha função era fechar os olhos em nome de Cristo.”
Ele explicou que, longe de sentir repulso quando escutou a notícia a res
peito de Hiroshima mais tarde naquele dia, ele sentiu o que a maioria dos ame
ricanos sentiu: alívio. Aquilo, talvez, acabaria com a guerra.
“Eu não me afastei por causa daquilo”, ele disse, de modo enfático. “Continuei
como capelão, mesmo depois da guerra, na reserva das Forças Armadas, e na
Guarda Nacional. Por 22 anos. Quando me aposentei, era tenente-coronel.
Poucos capelães alcançam essa patente.”
Então, ele relatou como, um mês após o lançamento das duas bombas, ele
se juntou às forças americanas que desembarcaram no Japão após a rendição
japonesa. Ele acabou em Nagasaki, e viu pessoalmente as pessoas que sobre
viveram e o sofrimento delas. Ele achou a sede, em ruínas, de uma das ordens
das freiras. Na catedral, ele desenterrou o incensório, com a metade superior
totalmente intacta. Ele participou do esforço de socorro. Fez sua consciência
“sentir-se melhor”.
“Mas o senhor sabia que, na manhã de 6 de agosto, o Enola Gay ia jogar
aquela bomba? O senhor sabia o que era aquela bomba?”
“Não, não sabíamos”, Zabelka disse. “Tudo o que sabíamos era que era uma
bomba especial5. Dizíamos que tinha um “truque”. Ninguém tinha ideia de que
tinha a capacidade de fazer o que fez. A tripulação recebeu instruções especiais:
de não olhar e cair fora o mais rápido possível.”
“Então, se o senhor não sabia, o senhor não é responsável.”
280
ADORO PROBLEMAS
136 Refere-se ao episódio de quando Saulo de Tarso (depois chamado Paulo de Tarso) cai do cavalo
na estrada para Damasco e recebe a visita do próprio Cristo, convertendo-se ao Cristianismo. (N. T.).
137 Reuniões que ocorreram de 27 a 31 de dezembro de 1969, nas quais decidiram que os W ea
thermen deveriam entrar para a clandestinidade, declarar uma guerra de guerrilhas contra o governo
americano e abolir a SDS. (N. T.)
281
UMA BÊNÇÃO
de guerra, raça e classe social. Eu tinha ouvido falar do padre Zabelka durante
todos aqueles anos. Nunca soube por que ele era do jeito que era. Agora eu
sabia. E, independentemente de quanto ele trabalhasse em favor da paz, ele
nunca poderia não ser o padre que “abençoou a bomba atômica”.
“Eu terei muito que responder quando encontrar São Pedro naquelas
portas”, ele disse.“Tenho a esperança que ele terá misericórdia de mim.”
Fiquei agradecido com o fato de ele ter me contado sua história, e escrevi
a respeito no meu jornal. Ele continuou a ajudar o Voice, realizando as tarefas
humildes que precisavam ser feitas, como jogar fora pilhas de papel em depó
sitos na extremidade norte de Flint.
Quatro anos depois, o padre Zabelka decidiu que era hora de realizar mais uma
penitência - e difundir sua mensagem de paz. Ele começou uma caminhada que
começou nos Estados Unidos e terminou na Terra Santa —uma caminhada literal
de Seatde a Nova York, depois uma viagem aérea sobre o oceano (ele não tinha
aperfeiçoado o ato de andar sobre a água) e, em seguida, uma nova caminhada até
Belém.Um total de quase treze mil quilômetros. E ele fez isso em apenas dois anos
e pouco. Nas paradas ao longo do caminho, ele contava a história de sua transfor
mação de capelão a favor da guerra em pacifista radical.
Depois que ele voltou, passou no Voice certo dia, dizendo que queria me ver.
“Michael, estive pensando durante algum tempo e me perguntando por
que você deixou o seminário, por que você não se tornou um padre.”
“Bem, por diversos motivos”, eu disse. “Eu só tinha quatorze anos quando
entrei. Aos quinze, os hormônios entraram em operação. Além disso, eu não me
preocupava, e nem me preoçupo, com a instituição e sua hierarquia. E o que a
instituição diz representar tem pouco a ver, hoje em dia, com os ensinamentos
de Jesus Cristo.”
“Ah, e eles também me pediram para não voltar.”
Zabelka pode ter sido um “padre radical”, mas ainda era um padre e ainda
muito fiel à Igreja Católica.
“Estive lendo alguns dos seus comentários a respeito da Igreja e do papa no
Voice, e estou preocupado com você. E com sua alma.”
282
ADORO PROBLEMAS
Eu ri. “George, você não precisa se preocupar comigo e com minha alma.
Eu estou bem.”
“Mas parece que você deixou a Igreja.”
“Digamos simplesmente que sou um católico em recuperação.”
Essa afirmação não foi bem recebida.
“Você poderia me fazer um favor e rezar comigo neste exato momento?”
“O senhor está falando sério?”
“Sim. Só quero me certificar que você vai ficar bem.”
“Eu vou ficar bem. E eu rezo quando preciso.”
“Só diga o Pai Nosso comigo agora.” Ele começou: “Pai Nosso, que estais no
céu, santificado seja o vosso nome... ”
“George: pare. Isso não é necessário.”
"... Venha a nós o vosso Reino, sejafeita a vossa vontade, assim na terra... ”
“George! Pare! Isso está me incomodando!”
“Não diga isso a respeito do Pai Nosso, Michael”, ele disse, interrompendo
a reza. “Acho que você precisa disso.”
“Não preciso disso. Não quero isso. E não sei o que está havendo com o
senhor.”
Ele ficou calado. Olhou para mim. Não disse nada. Eu não sabia o que
dizer. O silêncio era torturante.
“É importante você levar adiante”, ele disse, quando finalmente falou. “É
importante fazer o que você faz. Mas você não pode fazer isso sem a Igreja. Você
precisa da Igreja e a Igreja precisa de você. Você precisa voltar a freqüentar a
missa. Você precisa encontrar um lugar dentro da Igreja onde você possa achar
a paz.»
Entendi que ele estava falando a respeito dele mesmo. Entendi que ele
ainda se culpava pelo que aconteceu na ilha de Tinian, e que, se não fosse a
Igreja, a fé dele, quem sabe o que aconteceria com ele. Para cada flagelação que
ele se aplicou por causa de Hiroshima e Nagasaki, ele teve a Igreja Católica para
lhe dar uma possibilidade de se redimir. Ele ainda era um padre. Ele ainda podia
fazer o bem com isso, e, talvez, em sua mente, se ele fizesse o bem em quanti
dade suficiente, ele seria perdoado no dia do juízo final. Olhei para aquele velho
homem e entendi os demônios que ele ainda carregava consigo. Fiquei ofendido
283
UMA BÊNÇÃO
que ele achasse que eu precisava de algum tipo de “salvação”. Era uma coisa fácil
perdoá-lo.
Eu falei:
“Opão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas assim como nós
perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-
-nos do mal. Amém. ”
Ele sorriu. “Ora! Não foi tão difícil, foi?”
“Não, George”, eu disse, gentilmente. “Não foi.”
“Ótimo! Agora, o que você quer que eu faça com o papel da próxima
semana?”
ABU 2 U 2m
exportando frutas para a Europa. Diziam que 10% das frutas cítricas que iam
da Palestina para a Europa vinham das árvores frutíferas da família al-Banna.
A partilha (que palavra educada) britânica da Palestina e a subsequente
criação do estado israelense - e das várias guerras que se seguiram —deixaram os
al-Banna quase sem nada. Como Sabri era o décimo segundo filho de uma das
muitas mulheres de Khalil, não restou muita coisa para ele. De fato, quando seu
pai morreu, sua mãe foi expulsa da família, e Sabri foi marginalizado e deixado
a se defender por si mesmo. Isso resultou em diversas situações abusivas, que o
tornaram um garoto muito revoltado; que, depois, virou um rapaz muito revol
tado, que queria a devolução de uma árvore frutífera ou duas.
Ele escolheu o nome Ábu Nidal (“pai da luta”) e foi ficando cada vez mais
impaciente com a OLP. Um dos primeiros trabalhos depois que ele criou seu
próprio grupo dissidente foi começar a assassinar a liderança da OLP. Ele odiava
aqueles líderes mais do que odiava os israelenses, mas ele também dedicava um
tempo a matar israelenses. Num período de vinte anos, ele coordenou ações
terroristas em mais de vinte países, matando, no mínimo, novecentas pessoas.
Ele era bom no que fazia.
Em outubro de 1985, apenas dois meses antes de eu cruzar caminho com
Nidal, um outro grupo dissidente rival, a Frente de Libertação da Palestina,
liderada pelo igualmente temido Abu Abbas, sequestrou um navio de cruzeiro,
o Achille Lauro, na costa do Egito, e matou um idoso americano chamado Leon
Klinghoffer. Os terroristas deram um tiro na cabeça de Leon enquanto ele estava
sentado na sua cadeira de rodas, e depois jogaram ele e sua cadeira direto no mar
Mediterrâneo.
Esse ato chocou a maior parte do mundo, e era justo dizer que os palestinos,
os muçulmanos e os árabes estavam criando um problema de relações públicas.
Eu vivia numa região dos Estados Unidos - sudeste de Michigan - que
tinha (e ainda tem) mais árabes-americanos e pessoas de descendência árabe
per capita que qualquer outra parte do mundo não árabe. Cresci com pales
tinos, libaneses, sírios, iraquianos, egípcios. Mas principalmente palestinos, a
quem chamávamos de árabes, mas que considerávamos brancos, do modo que
costumávamos considerar os hispânicos como brancos (sem dúvida, eles eram
morenos, mas também eram católicos; assim, ganhavam meio ponto).
286
ADORO PROBLEMAS
novembro, soube que fora selecionado para uma das viagens, e que ela come
çaria no dia seguinte do Natal.
No anoitecer de 26 de dezembro, viajei de Flint para o Aeroporto John
F. Kennedy, em Nova York, para pegar o voo da Royal Jordanian Airlines que
levaria nosso grupo ao Oriente Médio. Fomos instruídos a nos encontrar no
check-in, e, ali, fomos apresentados ao pessoal de Washington que lideraria a
visita de duas semanas, e também aos outros jornalistas do grupo; cerca de doze
caras que vinham principalmente do mundo dos semanários alternativos ou das
revistas de esquerda. Não havia ninguém da grande mídia e ninguém cuja publi
cação atingisse mais do que alguns milhares de pessoas. A melhoria da imagem
dos árabes tinha de começar em algum lugar.
Embarcamos no voo noturno da Royal Jordanian de Nova York para Ama,
na Jordânia. O voo ia fazer uma escala em Viena, onde faríamos uma troca de
avião, para outro voo da Royal Jordanian, que então nos levaria para Amã.
Dormi a maior parte da travessia do Atlântico, num Jumbo repleto de pas
sageiros árabes, em sua maioria. Estudei e li artigos a respeito dos países que visi
taríamos: Jordânia, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita (depois
tirado do itinerário). Também visitaríamos os territórios ocupados por Israel:
Cisjordânia e Faixa de Gaza.
Quando alcançamos a costa da Europa, o Sol já havia nascido, e, em
uma hora ou duas, começamos nossa descida para Viena. O comandante nos
informou que estávamos cerca de vinte minutos atrasados.
O avião pousou com segurança e começou a taxiar na direção do terminal
de passageiros. Ao nos aproximarmos do terminal, pude ver um avião da El
Al, companhia aérea israelense, parado próximo do portão pelo qual iríamos
desembarcar. Soltei meu cinto de segurança e comecei a juntar meus pertences
para o desembarque, quando, de repente, o piloto pisou firme nos freios. A
força daquilo foi tão grande que minha cabeça bateu no assento da frente.
Não estávamos a mais de dez a doze metros do portão. Olhei através da
minha janela, e, em poucos segundos, veículos militares cercaram nosso avião
e o avião da El Al. Havia alguns jipes com soldados e policiais antidistúrbios,
e um veículo maior que não reconheci, mas que tinha uma grande arma presa
288
ADORO PROBLEMAS
nele. Náo era a família Von Trapp139 nos recebendo na Áustria com uma apre
sentação de “Edelweiss”.140 Isso pareceu, a princípio, estranho, em seguida,
hollywoodiano e, por fim, assustador.
“Senhores e senhoras”, uma voz nos alto-falantes disse. “Vamos ficar
parados aqui por algum tempo. Permaneçam em seus assentos. Vamos mantê-
-los informados.”
Não mantiveram. A cabine de comando ficou em silêncio. Uma hora se
passou. Ninguém disse nada; ainda que a consciência coletiva nesse avião da
Royal Jordanian fosse ardente e cheia de imaginação:
Fomos seqüestrados? Os seqüestradores estavam na cabine?
Havia uma bomba a bordo?
Havia terroristas que foram identificados como passageiros nesse avião?
O avião da El Al foi seqüestrado? Havia uma bomba a bordo do avião da
El Al?
Havia um incidente dentro do aeroporto, talvez no portão da El Al, perto
do nosso?
Era um treino militar? E por que nós éramos as cobaias?
Não entendia por que não recebíamos nenhuma informação, e os comis
sários de bordo estavam começando a se sentir da mesma forma. Escolhi um
método simples de descobrir a verdade. Levantei-me do meu assento, fixi até a
cabine de comando e bati na porta. Um comissário de bordo mandou eu me
sentar. A porta da cabine se abriu. Era o copiloto. A hipótese de “seqüestro”
podia ser eliminada da lista.
“Desculpe-me incomodá-lo”, disse, educadamente. “Mas as pessoas
estão ficando assustadas com toda essa atividade e ninguém sabe o que está
acontecendo.”
“Já íamos informá-los. Houve tiros e granadas no saguão de desembarque,
bem aqui, na nossa frente. Há mortos. Estão nos segurando aqui. Isso é tudo
que sabemos. E quero que você volte para o seu assento.”
139 Nome de uma família de cantores austríacos que se apresentou na Europa e nos Estados Unioos
na primeira metade do século XX. A história da família, retratada em livro pela matriarca Maria von
Trapp, inspirou o musical e o filme A Noviça Rebelde. (N. T.)
140 Nome de uma flor encontrada nos Alpes austríacos. Canção-tema composta por Rodgers e
Hammerstein para o musical A Noviça Rebelde, de 1959. Também foi usada na versão cinematográ
fica. (N. T.)
289
ABU 2 U 2
Fiquei sem fala. De fato, não era a resposta que estava esperando. Estava
esperando que a rampa móvel, a ponte de desembarque, tivesse tido um pro
blema, ou algo assim. Naturalmente, isso não explicaria a presença dos militares
austríacos.
“Por que o senhor não disse nada?”, perguntei.
“Como disse, íamos informá-los nesse momento. Por favor, volte para o
seu assento.”
Senti-me um pouco nauseado enquanto percorria o corredor do avião.
Uma das pessoas que viajava comigo me perguntou se eu estava bem.
“Não”, respondi. “Não estamos bem.”
Naquele momento, escutamos a voz do comandante nos alto-falantes.
“Infelizmente, tenho uma má notícia, e desejo que todos permaneçam
calmos, pois estamos todos bem”, ele começou. “Houve um incidente no ter
minal que provocou o fechamento do aeroporto. Parece ter sido um ataque
terrorista contra os passageiros do voo da El Al próximo de nós. O ataque parece
ter terminado, e não estamos em perigo. Pedimos para que permaneçam nos
seus assentos, e daremos novas informações quando as tivermos. Obrigado.”
Então, você está dentro de um avião cheio de árabes e muçulmanos, e recebe
uma notícia amiga como essa. E você não está dentro de qualquer avião; você
está dentro de um avião jordaniano, ao lado do alvo planejado, o avião israelense.
Qual é o estado de ânimo no seu avião? Todos continuam folheando a revista
de bordo Better Homes and Jordarü Os comissários de bordo se desculpam pela
inconveni ência e avisam que os fones de ouvido para o filme serão grátis? Suco
de maçã e amendoins doces torrados de cortesia? Coletes à prova de balas para a
primeira classe e pés pra que te quero para o restante dos passageiros?
Não. O avião se transformou numa zona de pânico. Não numa zona tur
bulenta, mas numa apreensiva, silenciosa, onde os passageiros alcançaram uma
sensação c e quase sufocamento. Eles sabiam que eram todos —todos —suspeitos
imediatos Aqueles de nós que não éramos árabes evitamos contato visual e
ficamos mudos em nossos assentos. Estar num voo cheio de árabes, numa com
panhia aéifea árabe, ajudava a nos lembrar que essas coisas geralmente acabavam
mal; e geralmente acabavam bem ali, naquele lugar, numa pista de aeroporto,
exatamente onde estávamos sentados. Os atletas de Munique e seus seqüestra
dores foram mortos na pista. Assim como um soldado americano num avião
290
ADORO PROBLEMAS
Mais uma hora se passou, e houve uma batida na porta do avião. Funcionários do
aeroporto tinham encostado uma escada de metal naquela porta. Ela foi aberta, e
homens uniformizados e armados entraram. Não era o pessoal do catering.
“Senhoras e senhores, um minuto da sua atenção. Os policiais austríacos
embarcaram no avião e gostariam de ver os passaportes de todos os passageiros.
Agradecemos antecipadamente a cooperação de todos. Não deve demorar.”
Por causa da cor da minha pele e da falta de qualquer xale decorativo em
mim, eu era uma aposta segura e provavelmente não era quem eles estavam pro
curando. Mas quem eles estão procurando? Achei que o ataque tinha “terminado”.
Eles ESTAO procurando alguém nesse avião!
Nada disso parecia bom, e não importava que eu não fosse um árabe.
Olhei para nossos líderes do grupo com uma expressão indagativa: Que diabos?
Obrigado por me trazerem nessa viagem para melhorar a imagem dos árabes!
Estamos tendo um começo maravilhoso! Mal podia esperar pela próxima escala
da viagem! Passeio com cenários deslumbrantes num ponto de ônibus lotado
de Jerusalém na hora do rush e um “ei, alguém deixou a bolsa aqui... BOOM!”.
Eu morava em Flint. Morava perto de Detroit. Em 1985, os índices de
homicídio nas duas cidades competiam entre si pela liderança dos índices do
país. Eu não estava desacostumado com o perigo ou com atos sem sentido de
ver você no mundo vindouro. Mas aquilo era outra coisa. Eu estava no meio de
um ataque terrorista, em que me disseram que pessoas dentro daquele terminal
tinham morrido.
Eles não nos contaram toda a verdade: que um total de 42 pessoas foram
atingidas por balas e estilhaços de granada. Pior ainda, eles não nos contaram
que, no mesmo momento que o ataque ocorreu a poucos passos de nós, ali
em Viena, outro grupo, da mesma organização terrorista, abriu fogo dentro do
291
ABU 2 U 2
simplesmente sumir. Eu odiava tudo isso e odiava esse mundo que não fui auto
rizado a viver. Todos são punidos.
O apresentador do telejornai contou a história do que aconteceu em Viena
e Roma com um começo, um meio e um fim - e, ainda que eu tivesse estado
ali, era como se não tivesse. Alguém que verdadeiramente não esteve ali - aquele
âncora em Atlanta, na Geórgia —sabia mais do que eu! E, naquele momento,
tornei-me parte do seleto grupo de pessoas do final do século XX que esteve
presente num ato de terrorismo. Sentei-me na cama e me senti do jeito que
a maioria das pessoas disse que se sentiu sobre a colina relvada144 em Dallas
naquele dia, cerca de duas décadas antes. Você sabia que algo ruim tinha aconte
cido, você achava que vira algo horrível, mas não podia ser aquilo, simplesmente
não podia ser aquilo! E tudo terminara tão rápido que seu cérebro não conseguiu
captar as imagens bastante rápidas das córneas e processá-las numa explicação
razoável a respeito do que acabara de acontecer. E não havia transmissão radio
fônica na Dealey Plaza ou no aeroporto de Viena, não havia ninguém ali para
ser seu narrador, seu guia; sjua voz calma, reconfortante, que podia ver como
aconteceu para você. E para confortá-lo. Mas você não pode ser confortado.
Porque você não assiste isso numa tela de 25 polegadas em um bar, em Boulder;
você esteve ali. E você não é seu próprio narrador porque não é uma “história”
para você\ é um momento real de “Vou sobreviver?” E que diabos está acon
tecendo ali? A TV explicava tudo para mim. No avião, mais cedo, eu estava
relativamente calmo: confuso, sim; preocupado, certamente. Mas não perdi o
controle de mim mesmo, assim como todos os demais passageiros. Sabíamos
que pessoas haviam morrido. Mas também precisávamos ir ao banheiro.
Naquele momento, pela primeira vez no dia, com os olhos fixos na CNN,
comecei a tremer e, depois, chorei. Muito. A notícia na TV era mais real do que
o real que eu tinha estado tão perto. Pensei a respeito daqueles vinte minutos
de atraso do avião. Peguei o telefone e liguei para minha mulher nos Estados
Unidos. Ela estivera ligando para todos os lugares tentando me encontrar. Eu
fiquei em silêncio. E, então, comecei a chorar de novo.
1 4 4 Refere-se a uma pequena colina situada na Dealey Plaza, uma praça no centro de Dallas, no
Texas, famosa por ser o local do assassinato de John F. Kennedy, em 22 de novembro de 1963. (N. T.)
NAZISTA FOGOSA
E BRONZEADA
Sim, ela era fogosa. Sim, era bronzeada. Tinha cabelo loiro e comprido e um
sorriso amável. O que ela estava fazendo ali? Aproximei-me para fazer essa per
gunta, mas, naquele momento, seu namorado nazista interveio (não, não quero
dizer que seu namorado estava representando um “nazista”; quero dizer que ele
era um nazista real, em um uniforme preto da tropa de assalto). Ele a pegou
pelo braço e a levou para a van Ford Econoline dele, abriu a porta deslizante e
a embarcou na parte de trás, para que eles pudessem, acho, fazer amor, meigo e
nazista, numa tarde ensolarada de abril.
C/S
Algumas semanas antes, eu tinha recebido uma ligação de James Ridgeway, colu
nista político do Village Voice, em Nova York. Ele queria fazer um documentário
sobre a ascensão da extrema direita no Meio-Oeste, na esteira da recessão eco
nômica do governo Reagan. A economia estava em má situação nos lugares em
que predominava o setor industrial, e, em Flint, em Michigan, a situação era
particularmente dramática. Os diversos movimentos de extrema direita enxer
gavam naqueles operários desempregados da indústria automobilística possí
veis recrutas para seus movimentos de supremacia ariana. Aqueles movimentos
tinham uma resposta simples quanto a por que Flint estava começando a se
desintegrar: “São os pretos e os judeus!”. Isso não funcionava com a maioria das
pessoas, mas atraía uma quantidade suficiente de desesperados, que levavam em
consideração os ensinamentos e as pregações daquela gente.
295
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA
145 Organização religiosa de extrema direita, criada por Richard Butler, na década de 1970, que
defende a supremacia branca. (N. T.)
146 É um rótulo aplicado a diversas igrejas vagamente associadas com uma teologia racial. (N. T.)
296
ADORO PROBLEMAS
caso, a prisão não reverteu. Ele tinha suas crenças bem arraigadas: enxergava os
brancos como o povo escolhido, e todos os demais estavam aqui para servi-los.
Não seria um mau arranjo se você fosse branco, não?
Liguei para Bob e perguntei se podia ir até sua fazenda pedir-lhe um favor.
Ele ficou feliz de me ouvir e me convidou para almoçar na sexta-feira. Sua
esposa, uma mulher sociável e de bom coração, preparou uma panela de enso
pado irlandês, biscoitos caseiros e chá gelado. Ele se sentou e me contou a res
peito dos seus primeiros anos em Nova York. Como adolescente, uniu-se a um
grupo juvenil, cuja principal atividade era ir nos fins de semana na Union Square
e brigar com socialistas e comunistas. Ele frequentou a George Washington
High School, na qual Henry Kissinger estava um ano na frente dele.
Depois do ataque a Pearl Harbor, Miles se alistou na Marinha e lutou
durante toda a guerra. Quando saiu da Marinha, ele e sua mulher se mudaram
para Michigan, onde ele se tornou corretor de seguros. Miles acabaria se tor
nando o presidente da Michigan Association of Insurance Executives. Naqueles
dias, os corretores de seguro batiam de porta em porta para convencer as pessoas
a respeito da necessidade de um seguro de vida e de um seguro residencial. Era
um trabalho duro, já que aquele novo grupo demográfico conhecido como wa
classe média” não estava familiarizado com o conceito de dar para alguém o
dinheiro suado dela, para algo que talvez ela nunca usasse. Naqueles tempos,
para ter sucesso no ramo de seguros, você tinha de ser um conversador nato,
mas também tinha de ser capaz de possuir a voz da razão... e do medo. Você
tinha de fazer uma família temer todos os possíveis “e se”: e se minha casa
pegasse fogo, e se meu filho ficasse doente, e se eu morresse antes da hora e dei
xasse minha família sem um tostão furado. Não foi muito tempo antes de quase
todos terem alguém ao qual se referiam como seu próprio “homem do seguro”.
Bob Miles deve ter sido bom nisso e, assim que passou a fazer parte da
KKK, tornou-se o recrutador perfeito para a Aryan Nations: seu corretor de
seguros amigo vendendo-lhe uma apólice simples para protegê-lo dos não
brancos malucos, que estavam vindo incendiar sua casa, roubar suas filhas e tirar
sua vida. A conversa dele era afável e parecia razoável. Ele tinha uma habilidade
que os jecas comuns não tinham e a usou para converter a KKK, em Michigan,
num dos grupos racistas mais poderosos do país.
297
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA
147 Greve dos trabalhadores da General Motors, que começou em Flint, no final de 1936, e durou 44
dias, com a ocupação das fábricas pelos operários. Consolidou o United Auto Workers como grande
sindicato de trabalhadores da indústria, que passou de 30 mil para 500 mil associados em um curto
período de tempo. (N. T.)
298
ADORO PROBLEMAS
148 Órgão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos responsável por
pesquisa biomédica e relacionada à saúde. (N. T.)
149 Menos de uma década depois, esse livro se tornaria uma inspiração para um jovem e seu cami
nhão cheio de explosivos à base de fertilizante em Oklahoma.
299
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA
eles se for isso que você quer. Realmente, não tenho medo desses o que quer que
eles sejam. Vivo perto deles. Bando de brancos furiosos.”
Contei-lhe a história da Ku Klux Klan queimando uma cruz no quintal dos
meus avós porque ela era católica e ele era protestante.
“Faço com alegria o que você quiser que eu faça”, disse.
“Você deve pensar a respeito disso antes de concordar”, Anne afirmou.
“Quando o filme estiver passando, eles podem não gostar. Você tem de viver aqui.”
Lembrei-lhes que, por causa da recessão econômica, tinha decidido fechar
meu jornal. Aceitara um emprego em San Francisco; assim, não continuaria
morando em Flint.
“Tudo ficará bem”, tranquilizei-os. “Acho que Flint e eu vimos nosso fim
mútuo.”
“Muito bem”, Kevin disse. “Confie na sua intuição, e seremos capazes de
captar o que você faz com eles. Vamos todos sair daqui vivos.”
Assim, começou minha incursão na indústria cinematográfica. Ao menos,
por aquele fim de semana. Parecia que seria divertido, e rapidamente entrei em
sintonia com meus colegas cristãos brancos.
“Estamos aqui para destruir o ZOG!”, um homem me explicou. Recorri
rapidamente a minha memória, achando que ele estava se referindo a um deus
do filme Zardoz.15°
“O que é ZOG?”, perguntei.
“O Governo Ocupado por Sionistas!”,151 ele respondeu. “Isso é o que
temos agora: um governo ocupado por judeus e traidores da raça.”
Dentro de seu celeiro, Miles tinha instalado um palco, um palanque e
cadeiras para diversas reuniões plenárias. Sem dúvida, foi o mais divertido dos
eventos do fim de semana, quando cada palestrante tentava ser mais excêntrico
do que o palestrante anterior. Um homem disse que seu grupo do poder branco
não aceitava membros de nenhum lugar ao sul de Milão, na Itália.
“Não aceitaremos ninguém em nosso clã abaixo de Milano\ ele disse, reve
lando seu domínio tanto da geografia europeia como do italiano. “Se forem
150 É um filme britânico de ficção científica, de 1974, dirigido por John Boorman. (N. T.)
151 Zionist Occupied Government, no original. Teoria de conspiração antissemita que afirma que os
judeus controlam secretamente determinado país. (N. T.)
301
NAZISTA FOG OSA E BRONZEADA
abaixo dali, não são nosso povo. Não queremos ninguém abaixo da fronteira
entre França e Espanha. De jeito nenhum.”
“Somos mais nazistas que os nazistas”, ele concluiu.
O palestrante seguinte falou a respeito da vez que ele marchou com seu
grupo de arianos numa rua central da Carolina do Norte.
“Gritei: ‘Acho que temos alguns crioulos por aqui. Onde eles estão?’ E
andamos mais dois quarteirões, e eu vi onde eles estavam. Eles estavam parados
em cada lado da rua, e marchamos no meio deles. Mas não tivemos nenhum
problema, pois eles não atacaram ninguém. Eles só pulavam para cima e para
baixo na calçada. Se você já viu macacos quando ficam excitados, como eles
pulam para cima e para baixo, era o que parecia.”
Um amigo de Miles subiu no palco com sua apresentação de slides mos
trando numa tela como os brancos dominariam a região do Noroeste Pacífico,
e as outras raças receberiam outras regiões dos Estados Unidos depois da revo
lução. Isso irritou um homem na platéia.
“Quero dizer que essa é a proposta mais estúpida e ridícula que já ouvi na
minha vida”, ele gritou da sua cadeira. “Se somos guerreiros arianos que con
quistaram o mundo, por que diabos devemos nos contentar com algum canto
do país? Não me importo de quão belo ele seja.”
Isso perturbou o homem no palco, mas ele seguiu adiante e pediu para sua
mulher entregar os mapas para a platéia. Sem dúvida, as coisas tinham sofrido
uma reviravolta, pois, naquele momento, a platéia ficou do lado do homem que
tinha se oposto a “mudar para algum canto”.
“Moro aqui em Michigan”, outro homem gritou. “Não vou me mudar para
lugar nenhum.”
As coisas se acalmaram quando William Pierce pisou no palco. Ele era a
coisa mais próxima de um deus do rock ali.
Pierce falava como um intelectual, e longe de chatear aquela massa louca
mente inculta, ele a impressionava com seu vocabulário e sua paixão. Devia ser
bom ter alguém assim tão inteligente (e que não era judeu!) ao seu lado. Ele se
formou em Física na Rice University, e fez mestrado na Cal Tech e doutorado
na Universidade do Colorado. Na década de 1950, trabalhou nos laboratórios
de Los Alamos. Depois, tornou-se professor adjunto da Universidade do Estado
de Oregon.
302
ADORO PROBLEMAS
152 The Dukes o f Hazzard (Os Gatões, no Brasil) foi uma série de TV exibida nos Estados Unidos
entre 1979 e 1984. (N. T.)
304
ADORO PROBLEMAS
No dia final do encontro do ódio, sentei na sala de estar da casa da fazenda com
alguns “pastores” do movimento Christian Identity. Eles lideravam “igrejas” em
suas comunidades, pregando a mensagem da superioridade branca, não porque
acreditassem que eram melhores que os negros, mas porque Deus disse que eles
eram melhores que os negros.
“Sinto mais desprezo pelos líderes que se dizem cristãos do que pelos
negros”, afirmou Allen Poe, pastor de Grand Rapids, em Michigan. “Os [Billy]
Graham,153 os Falwell”;154 e, então, baixinho, ele murmurou de modo zombe
teiro: “Schwartz\,J155 (Aquela foi a maneira de ele demonstrar que não acreditava
que “Jerry Falwell” fosse um nome real e que, na realidade, devia ser um judeu.)
“Se, realmente, quiséssemos tomar este país pela forma, deveríamos empilhar
essas pessoas e silenciá-las.”
“Não você ou eu, mas alguma outra pessoa”, levantou-se uma voz no outro
lado do recinto, consciente da presença das câmeras.
“Estamos nos computadores agora”, o reverendo de Grand Rapids conti
nuou. “Nós estamos fazendo listas. Listas dos brancos que não estão conosco,
listas dos que não estão do lado da sua própria raça. Estamos trocando essas listas
de traidores da reação entre nós. Assim, quando chegar o dia da revolução, sabe
remos com quem temos de lidar.”
Em certo instante, ele me olhou direto nos olhos.
“Se eles nos reprimirem, onde vamos procurar você? Sob o mesmo rolo
compressor?”
Ele estava me ameaçando? Olhei para Kevin. Não conhecia o protocolo
correto do documentário para lidar com um momento como aquele. Kevin
olhou para mim com seu olho livre, e sorriu.
“Você nunca verá esse dia que quer ver chegar neste país”, eu disse, fria
mente. “Você não será capaz de fazer nada a respeito disso.”
Uau! Não podia acreditar que tinha acabado de falar aquilo. Todos no
recinto sentiram que eu tinha dito algo temerário: nosso lado, o lado deles, até
153 William Franklin Graham Jr. é pastor batista e televangelista muito popular. Foi conselheiro espi
ritual de diversos presidentes americanos. (N. T.)
154 Jerry Falwell (1933-2007) foi pastor cristão e televangelista. Tornou-se conhecido internacional
mente ao denunciar que um dos personagens do Teletubbies era um símbolo gay. (N. T.)
155 Sobrenome judeu, que, em alemão, significa negro. (N. T.)
305
NAZISTA FOGOSA E BRONZEADA
Por quase dez anos, editei e publiquei o Flint Voice (que, em 1983, virou
o Michigan Voice), e nunca ganhei mais do que 15 mil dólares por ano. Em
duas ocasiões diferentes, o Voice ficou tão sem dinheiro que tive de dar um
tempo. Não era incomum eu ter de atrasar o pagamento mensal de 200
308
ADORO PROBLEMAS
156 Nos Estados Unidos, é celebrado na primeira segunda-feira de setembro. (N. T.)
312
ADORO PROBLEMAS
Uuh! Queria saber o que era aquilo. Entrei em contato com o Departa
mento de Comércio para descobrir.
“É uma conferência de três dias em Acapulco para ajudar as empresas ame
ricanas e contribuir para o crescimento delas”, a voz feminina do Departamento
de Comércio, no telefone, disse. “Destina-se somente a donos e executivos de
empresas. Não é para o grande público nem para a imprensa.”
157 Nascido em 1934, Nader é advogado de renome, que se celebrizou por suas campanhas a favo'
dos direitos dos consumidores na década de 1960. É crítico ferrenho da política externa dos Estados
Unidos, considerando-a imperialista e contrária aos direitos humanos e aos valores democráticos
(N.T.)
158 Maquila ou maquiladora é um conceito que se refere a uma operação que envolve a fabricação
em um país que não é o cliente final e, dessa maneira, oferece um tratamento fiscal e alfandegário
diferenciado. Os principais exemplos desse tipo de operação ocorrem na América Latina. Atual
mente, cerca de 1,3 milhão de mexicanos trabalham em maquiladoras. (N. T.)
159 "Expo Maquila, 86"/Apresentada pelo Departamento do Comércio dos Estados Unidos e pela
Câmara de Comércio Americana do México / Descubra como usar o México para melhorar seus
negócios / 'Mudar a produção para lá protege os empregos em casa!' / Só mediante convite / Entre
em contato com o Departamento de Comércio
313
PARNASSUS
delas com menos de 21 anos e, às vezes, com não mais do que 13 ou 14. As
empresas americanas não queriam contratar arrimos de família do sexo mascu
lino, pois eles tinham mais probabilidade de se sindicalizar e exigir um intervalo
para o banheiro. As mulheres jovens eram mais flexíveis. O único problema real
com elas era que, como jovens de todos os lugares, elas tendiam a ficar grávidas.
Também sofriam de desnutrição e sentiam muita fome. Assim, a GM e outras
empresas fizeram algo interessante: ofereceram controle de natalidade gratuito
para impedir o alto índice de rotatividade e forneceram almoço grátis (pois o
desmaio na linha de montagem causava coisas como deixar o para-brisas passar
na frente do carro).
Al Cisneros, da Comissão do Desenvolvimento Econômico do Texas, falou
ardorosamente para mim a respeito dos planos da General Motors tornar-se a
“maior empregadora do México”.
“A GM vai ter um total de 29 fábricas no México”, ele me contou. “Vai
abrir doze só no próximo ano.”
Ele me disse que o presidente do conselho da General Motors, um homem
chamado Roger Smith, tinha recentemente afirmado que “a mudança para o
México é uma questão de sobrevivência”.
Pensei a respeito disso por um instante e perguntei a mim mesmo: de que
planeta vinha esse sujeito chamado Smith? “Sobrevivência?”No ano anterior, em
1985, a General Motors tinha contabilizado um lucro apenas “acanhado” de 4
bilhões de dólares. Em 1984, a empresa quebrou o recorde de todos os tempos,
com um lucro de 4,5 bilhões de dólares. Ela era a empresa número um do
mundo. E, no entanto, seus dirigentes, constantemente, falavam a respeito de
como a empresa estava “lutando” para sobreviver. Era um truque para convencer
a opinião pública de que, se eles não transferissem parte de sua produção para
o México, a GM poderia afundar - e, então, a economia entraria em colapso
junto. Era uma Grande Mentira, mas, de qualquer modo, o governo Reagan a
engoliu e estava ali a vendendo. Estava vendendo-a porque Reagan, ex-líder
sindical, queria esmagar os sindicatos. Ele ganhou a presidência obtendo muitos
votos dos trabalhadores brancos sindicalizados. Apelando para os seus medos —
em relação à crise dos reféns no Irã, aos negros, ao governo —, ele surfou sobre
uma onda que acabou afogando as próprias pessoas que o elegeram.
316
ADORO PROBLEMAS
para uma economia de serviços, uma economia de alta tecnologia. E vocês serão
capazes de dizer que estiveram aqui quando tudo começou!” Ele parou um pouco
antes de; comparar aquele momento histórico com a Conferência de Wannsee160
ou com os encontros dos chefes de família com Don Corleone. Mas a impe
tuosidade do momento —a importância de quem eles eram e o que estavam
tramando —não foi perdida por ninguém naquele recinto em Acapulco.
160 Realizada no sudoeste de Berlim em 20 de janeiro de 1942, no palacete de Wannsee, essa con
ferência promoveu discussões acerca da "solução final da questão judaica europeia" que levariam
ao Holocausto. (N. T.)
318
ADORO PROBLEMAS
operários. Um sujeito disse que nunca tinha ouvido falar da minha empresa e
ficou me pressionando por mais informações, até eu finalmente lhe dizer que
“minha empresa acabou de inventar um dispositivo revolucionário, e a Chrysler
me proibiu de dizer qualquer coisa”. Então ele parou. Pude perceber que o
alegrou o fato de ele se ver dizendo, em seis meses, que conheceu aquele rapaz
quando aquela invenção era supersecreta!
Não sabia nada a respeito de fazer um filme e adoraria contar uma história legal
a respeito de como comecei a filmar quando tinha seis anos com a câmera Bell
& Howell de 8 mm do meu pai, ou de quando freqüentei a escola de cinema da
Universidade de Nova York com Spike Lee, ou de que Martin Scorsese foi meu
professor. Tudo o que sabia, tudo o que fiz, foi ir ao cinema. E, quer dizer, ir.
Numa boa semana, procurava assistir, no mínimo, de quatro a cinco filmes no
multiplex local (em outras palavras, tudo que estreou naquele fim de semana).
Se tivesse sorte, pegaria o carro emprestado e iria para Ann Arbor, para um dos
seis cineclubes que exibiam um clássico ou um filme estrangeiro todas as noites.
Uma sexta-feira realmente especial significava uma viagem para o Detroit Film
Theater, no Detroit Institute of Arts. Numa ocasião rara, fazia uma viagem mais
longa, até Chicago, pois não era capaz de esperar um mês ou dois para o filme
estrear em Michigan.
E, então, havia a loucura, a piração, o impulso de “Pegar o carro... Recuso-me
a ver Apocalypse Notu em Flint, pois não tem o recém-inventado som surround e
o final que Coppola queria”. Um momento. O estúdio exibia aquela versão só
em Nova York, Los Angeles e Toronto. E, assim, eu percorria quase 500 quilô
metros de estrada até Toronto, para poder ver o final alternativo.
Eu adorava ir ao cinema.
Sempre gostei. Como a maioria das crianças do meu tempô, meus pri
meiros filmes foram Bambi, Old Yeller, A família Robinson e Álamo. Mas o pri
meiro filme que me lembro que me causou um forte impacto foi PT-109 (JFK
—O herói do 109), a história de John F. Kennedy, na Segunda Guerra Mundial.
Tinha tudo que um menino de oito anos podia querer: ação, suspense - mas,
322
ADORO PROBLEMAS
naquele caso, a história de um heroi que, inicialmente, fez besteira e levou seu
barco na direção de um destróier japonês. No entanto, ele não deixou esse erro
derrotá-lo. Ele salvou sua tripulação e achou um jeito de trazê-los de volta são
e salvos. Era um rapaz rico e, provavelmente, poderia ter escapado de estar na
linha de frente, mas não era esse tipo de americano. Mesmo aos oito anos, eu
entendia isso.
Tornei-me adolescente quando os grandes filmes do final da década de
1960 e começo da década de 1970 apareceram na tela. Out eram os filmes
caros, feitos segundo as fórmulas do envelhecido studio system,161 como Hello,
Dolly e O fabuloso doutor Dolittle. In eram Sem destino, A primeira noite de
um homem. Perdidos na noite, A última sessão de cinema, Amargo pesadelo, Taxi
driver, Nashville e Ensina-me a viver.
Aos dezessete anos, assisti ao Laranja mecânica, de Stanley Kubrick,
e, então, assisti a todos os outros filmes de Kubrick, e, depois disso, não vi
mais nada dele em retrospectiva. Fui capturado pelo potencial e pelo poder
do cinema. Freqüentei dois cursos de Introdução ao Cinema como calouro na
faculdade, e o professor, o doutor Gene Parola, nos exibiu todos os grandes clás
sicos, começando com M —O vampiro de Dusseldorfe Metrópolis, e terminando
com Blow-Up e Quem tem medo de Virgínia Woolfi Meu amigo, Jeff Gibbs, fez
os dois cursos comigo, e passávamos horas depois dissecando cada nuance desses
filmes. Dois anos depois, abri meu próprio “cinema de arte” em Flint, onde, em
apenas duas noites por semana, exibia tudo de Truffaut, Bergman, Fassbinder,
Kurosawa, Herzog, Scorsese, Woody Allen, Bunuel, Fellini, Kubrick e todos os
mestres do cinema. Cada filme era exibido quatro vezes, e eu passava as noites
de sexta e sábado assistindo todas as quatro sessões. Na primeira sessão, sentava
perto da tela e apreciava a experiência. Nas três sessões seguintes, sentava no
fundo da sala e estudava os filmes, às vezes anotando. Tornou-se minha escola
de cinema, com uma única sala e com um único aluno.
Eu não gostava de documentários e, assim, raramente ia ver algum. Os
documentários pareciam remédios, como óleo de rícino; algo que eu devia ver
porque eram bons para mim. Mas a maioria dos documentários eram chatos e
Flint era a Cidade Esquecida da década de 1980. Outrora uma área metropolitana
vibrante, próspera, que foi o lugar de nascimento da maior e mais rica empresa
do mundo, a General Motors, era, naquele momento, uma experiência cientí
fica diabólica dos ricos. Pergunta: podemos aumentar nossos lucros eliminando os
empregos das pessoas que não só produzem nossos carros, mas também os compram?
A resposta era sim; se você mantivesse o resto das pessoas do país trabalhando,
elas poderiam comprar seus carros. O que os cientistas malucos não imaginavam
era que aqueles operários da indústria automobilística não só parariam de com
prar carros tão logo ficassem desempregados, mas também parariam de comprar
TVs, máquinas de lavar louça, rádios relógios e sapatos. Isso, por sua vez, causaria
a ruína das empresas que fabricavam aqueles produtos, ou elas os fabricariam
em outros países. No fim, aqueles que ficassem com os empregos remanescentes
teriam de comprar as coisas mais baratas possíveis com seus salários drasticamente
reduzidos, e, para os fabricantes manterem aquelas coisas baratas, elas teriam de
ser produzidas por crianças de quinze anos na China.
Poucos previram que a retirada de apenas um pequenino fio do tecido da
classe média descosturaria toda tapeçaria em pouco tempo, deixando todos
lutando numa existência em que um come o outro, uma batalha semanal para se
manter à tona. Em certo nível, era pura genialidade política, pois o eleitorado,
tão absorvido em sua sobrevivência pessoal, nunca seria capaz de achar tempo
ou energia para organizar politicamente o local de trabalho, a vizinhança ou a
cidade, para se revoltar contra os cientistas e políticos malucos que projetaram
sua morte.
162 "Mr. Gorbachev, tear down this w all!" foi a última frase de um discurso proferido pelo presidente
Ronald Reagan, em 12 de junho de 1987, no Portão de Brandenburgo, em Berlim, por ocasião do
750- aniversário da cidade. (N. T.)
163 Título de uma canção de 1984, criada e interpretada por Bruce Springsteen. (N. T.)
326
ADORO PROBLEMAS
Na década de 1980, porém, era apenas aquele primeiro fiozinho que estava
sendo removido; mas aquilo estava acontecendo no lugar em que eu vivia: Flint,
em Michigan. O índice de desemprego oficial alcançou 29%. Devia ter sido
uma advertência precoce do perigo. Em vez disso, poucos perceberam. Sem
dúvida, houve alguns que se preocuparam a respeito do nosso apuro e procu
raram contar a história. Houve uma matéria densa da BBC a respeito de Flint
ser a capital dos desempregados dos Estados Unidos e, depois, houve uma...
ah... ah... hum... Bem, OK, foi isso. A matéria da BBC. De 8 mil quilômetros
de distância. Flint não recebeu a visita de muitos outros para contar nossa his
tória. Eles estavam muito atarefados falando a respeito da revolução de Reagan,
e de como algumas pessoas estavam prosperando com a economia de corte de
impostos para os ricos e para as grandes empresas. E eles tinham razão. Aqueles
que se deram bem na década de 1989 se deram muito bem; e, realmente, não
existiam muitos lugares que se pareciam com Flint. Exceto as cidades do aço
do vale do rio Ohio, que tiveram sua punição merecida alguns anos antes, e
as fábricas têxteis do nordeste, alguns anos antes de Ohio. O país ainda estava
se dando muito bem, a classe média ainda existia, e ninguém prestava muita
atenção para as cidades sujas e corajosas que produziam seus carros. Os bri
tânicos sabiam a partir da BBC com o que se parecia uma cidade de joelhos,
e o DNA deles permitia-lhes falar sem rodeios a respeito do motivo pelo qual
aquilo estava acontecendo, quando fizeram sua matéria em Flint. Mas quem
assistiu aquilo? Longe dos olhos, longe do coração. Se você vivesse em Tampa,
em Denver, em Houston, em Seattle, em Las Vegas, em Charlotte, em Orange
County, em New York, o destino de Flint nunca seria o seu. Vocês estavam
dando certo, e continuariam dando certo. Sim, é claro, pobre Flint. Pobre,
pobre, Flint. Pena. Mau.
Certo dia, em 1984, estava sentado na minha mesa, no Flint Voice, e ouvi uma
batida na porta. Dois homens que não pareciam das nossas bandas estavam
parados na varanda, olhando através da porta de tela para ver se havia alguém
em casa.
“Ei, vocês aí”, eu disse. “Posso ajudá-los?”
327
GRATIDÃO
164’ Ron Shelton seria o roteirista e diretor de Sorte no am ore White men can't jump, e Roger Donal
dson dirigiria o remake de O grande motim (Rebelião em alto-mar) e Sem saída, o filme de ação e
suspense com Kevin Costner.
165 Nome da família que protagoniza o romance As vinhas da ira, de John Steinbeck, escrito em
1939. (N. T.) !
328
ADORO PROBLEMAS
e outras pessoas despendemos muito tempo com ela, e ela parecia pronta para
transformar nossa história num filme. Era estimulante; estávamos contentes que
não íamos mais ser ignorados. O pessoal do çinema tinha dado as caras!
Por qualquer motivo, nenhum dos dois filmes foi realizado, e, como quis
o destino, eu logo iria embora de Flint. Depois de um mês da minha mudança
para a Califórnia, para o emprego dos sonhos de uma vida, estava sentando em
San Francisco, tanto sem sonho nem emprego como vivendo do seguro-deáem-
prego. Deprimido, voltei para Flint, para pensar a respeito de que curso minha
vida deveria seguir. Deveria tentar recomeçar o Flint Voicéi Deveria ser candi
dato em uma eleição, para, quem sabe, prefeito de Flint? Talvez pudesse tentar
um emprego... bem, não havia onde conseguir um emprego.
“Salve-me quem puder. Não, espere; esse eu vi anteontem à noite. Foi Uma
escola muito louca. ”
“Meu Deus, por que você perde seu tempo com essa porcaria?”
“Você está desencaminhando a discussão. Acho que já vi muitos filmes para
saber como se faz um. E eu posso fazer esse filme. E conheço uma pessoa que
pode me ajudar.”
166 Rede de lojas de moda de luxo, cujo nome alude à loja localizada na Quinta Avenida, em! Nova
York. (N. T.) j
332
ADORO PROBLEMAS
ter dinheiro para fazer três refeições por dia. Alegrei-me em levá-lo para comer
fora, mesmo sendo num bar que eu não podia arcar com as despesas. Seu único
luxo parecia ser o constante fluxo de cigarros que ele fumava; a marca não era
familiar para mim.
“Bem, isso parece uma grande ideia”, ele respondeu, tornando essa a pri
meira vez que alguém disse que gostava do meu plano chocante. “O que você
quer que eu faça?”
Hum, tudo?
“Bem, para começar”, disse, timidamente, “você podia me mostrar como
funciona uma câmera de 16 mm.”
“Posso ir para Flint e filmar alguma coisa para você”, Kevin disse, do nada.
Eu queria que ele repetisse aquilo, mas receei que, se ele repetisse, poderia se
revelar que ele realmente disse: “Quero outra Heineken, porfavor, da torneirinha.
uS é r i o perguntei, com os dedos cruzados.
“Claro. Posso levar meu equipamento, e talvez alguém da minha equipe
possa ir. Acho que até Anne Bohlen [sua codiretora em Blood in the Face, o
documentário deles sobre os nazistas americanos] poderá vir.”
Isso era muito além do que eu estava esperando e, verdade seja dita, eu,
realmente, estava achando que um “boa sorte” e “até mais” seria tudo o que eu
conseguiria.
“Uau!”, eu exclamei, ruborizado. “Isso seria incrível. Nossa, eu não estava
esperando isso, mas...”
“Não, seria legal. E eu posso mostrar para você o que você precisa saber.
Posso lhe dar uma semana do meu tempo.”
Uma semana inteira? Em Flint?
“Kevin, ficarei feliz com o que quer que você possa fazer. Você acha que
pode me ensinar essa coisa em uma semana?”
“Não demora muito para saber como o equipamento funciona. A parte
mais importante a respeito de fazer um filme é o que está na sua cabeça, suas
ideias, e, depois, as pulsações e ritmos em ação. Saber como dizer mais com
menos. Ter um olhar aguçado. Escutar as coisas que acontecem nas entrelinhas.
Ter alguma coragem. Eu o observei quando estivemos em Michigan. Você vai
se sair bem.”
333
GRATIDÃO
para mim, para sairmos um pouco da casa, para ele poder fumar... e ter uma
conversa comigo.
“Os filmes são, sem dúvida, um processo colaborativo”, ele disse para mim,
do lado de fora da casa, no frio. “Mas não são uma democracia. Esse é o seu
filme. Você não tem de realizar reuniões e ter discussões. Nós filmamos suas
ideias. Só precisamos estar ali amanhã e começar a filmar.”
A filosofia de Kevin era simplesmente filmar tudo que acontecesse; estilo
cinema-verdade.
“Tenho um esboço das coisas que gostaria de fazer”, eu disse, tirando a lista
do meu bolso.
“Eu não uso listas de planos de filmagem”, ele disse. “Eu simplesmente
filmo. Mas esse é seu filme. Assim, nós o faremos do seu jeito.” Ele não gostou
da minha ideia de ter uma lista, mas estava disposto a cooperar. “Vamos j ter
minar essa reunião, dormir um pouco e ir trabalhar de manhã”, ele disse, apa
gando seu cigarro.
“Roger”, eu disse, o que me lembrou do título que eu tinha criado p$ra o
filme. Decidi esperar por outro momento para lhe contar. Imaginei que ele não
pensaria muito a respeito do título antes de saber o que se teria.
Mas eu sabia o que eu tinha. Eu vivia aquilo por trinta anos, o tempo todo
fazendo anotações mentais. Havia escrito sobre Flint e a GM por mais de uma
década. Eu já estava funcionando em 24 quadros por segundo, embora ainda
não tivesse encontrado a mulher que criava coelhos para vender como “aniinais
de estimação ou carne”, ou um subxerife que despejava as pessoas das suas casas
na véspera do Natal, ou a futura Miss América desfilando num carro aberto
na rua principal de Flint e acenando para lojas com as vitrines tapadas por
tábuas, ou a elite de Flint vestida em uma festa tal como o descrito em O grande
Gatsby167e sem perceber a ironia, ou um programa de turismo após o outro para
convencer as pessoas a passar suas férias em Flint. E eu ainda tinha de encontrar
um homem chamado Roger Smith.
Eu não sabia nada disso quando o primeiro rolo de filme foi colocado na
câmera Aaton de 16 mm de Kevin, num dia frio de fevereiro de 1987. Filmámos
167 Título do romance escrito por F. Scott Fitzgerald e publicado em 1925. Retratando a vida dos
ricos na próspera década de 1920, o autor critica o sonho americano e o materialismo desenfreado.
(N.T.)
336
ADORO PROBLEMAS
a recordação da Sit-Down Strike, e filmamos outras trinta cenas nos sete dias
seguintes. O posto de transfusão onde os desempregados vendiam seu sangue,
a fila do queijo grátis, o porta-voz da GM que dizia que a GM só estava no
negócio para ganhar dinheiro e não para ajudar sua cidade natal. Nós filmamos
do nascer do sol até bem depois do pôr do sol.
Eu observava o que Kevin e Anne faziam, enquanto mostravam coisas para
mim a respeito de como, às vezes, são os pequenos momentos que você capta
com sua câmera ou microfone que contam a história maior. Eles falavam a
respeito de como, com somente dez minutos de filme na câmera (depois dos
quais você teria de parar e recarregar, impedindo, assim, a filmagem por alguns
minutos), você tinha de agir como uma espécie de montador no set e fazer
tudo na sua cabeça. Essa disciplina não só o impedia de desperdiçar filme, mas
também o forçava a pensar a respeito do que era exatamente aquela história que
você estava tentando contar. Eles não consideravam a restrição dos dez minutos
como um obstáculo; consideravam, sim, um beneficio criativo.
“Imagine se tivéssemos um filme de uma hora na câmera e o filme fosse
tão barato quanto papel”, alguém da equipe observou. “Ficaríamos preguiçosos
e filmaríamos tudo. Não teríamos de pensar enquanto filmássemos. Nós nos
preocuparíamos a respeito disso depois!”
“Quero ir até a sede da GM e ver se Roger Smith fala conosco”, disse para
Kevin. “Você está a fim?”
“Você está brincando?”, ele disse, com seu típico tom sarcástico, engraçado.
“Estava querendo saber quando as coisas iam ficar interessantes.”
Assim, fomos para Detroit e entramos no saguão da General Motors. Fui
direto para o elevador e apertei o botão. As portas se abriram, e nós entramos.
Pressionei o botão para o décimo quarto andar, onde ficava o escritório de Smith.
O botão não se iluminou. Continuei pressionando, mas nada aconteceu. As
portas não fechavam. Foi quando um segurança apareceu e pediu para sairmos.
Ele era um homem mais velho, educado, e pediu para esperarmos enquanto ele
ligava para alguém. Ele voltou e disse que precisávamos marcar uma reunião, e
que voltássemos depois que tivéssemos feito isso.
Nos dois anos seguintes, tentei marcar aquele encontro. E, enquanto não
conseguia, fiz diversas viagens para Detroit, apenas para dar as caras e ver o que
aconteceria. A tentativa de achar Roger, para fazê-lo vir para Flint, para que eu
337
GRATIDÃO
pudesse lhe mostrar o estrago que suas decisões causaram, tornou-se o fio con
dutor do filme. Mas a missão real do filme não tinha nada a ver com Smith, a
GM ou mesmo Flint. Eu queria fazer uma comédia triste, furiosa, a respeito de
um sistema econômico que eu considerava injusto. E não democrático. Eu tinha
a expectativa de que cumpriria meu dever.
A semana com Kevin chegou ao fim. Agradeci-lhe muito por tudo que
ele, Anne e os outros fizeram para eu poder dar minha arrancada. Ele me disse
que me ajudaria de qualquer maneira; bastava ligar para ele. Mostrei-lhe uma
ficha de inscrição que tinha recebido para requerer uma subvenção do Michigan
Council for Arts. Perguntei-lhe se ele poderia me ajudar a preencher a ficha,
pois supus que era algo que ele tinha de fazer o tempo todo.
“O que eu ponho aqui?”, perguntei-lhe, apontando para a linha que per
guntava minha “profissão”.
“Cineasta”, ele disse, sem pestanejar.
“Não sou um cineasta”, respondi. “Não fiz nenhum filme.”
“Desculpe-me”, ele replicou, sumariamente. “Você escreve que é cineasta.
Você tornou-se cineasta no momento em que o filme começou a rodar nessa
câmera.” j
Assim, escrevi “cineasta’. Nos próximos dois anos e meio, fiz um filjme.
Teria mais de uma dúzia de outras filmagens. Kevin me pôs em contato eom
seus amigos documentaristas; de modo mais importante, com um casal de San
Francisco, Chris Beaver e Judy Irving. Eles também vieram a Flint e filmaram
comigo durante uma semana. O resto do tempo era somente eu, minha mulher
e alguns amigos (mais um cameraman ou dois de Detroit) tropeçando no equi
pamento, dando o máximo para fazer um filme. No carro, nunca havia mais
de quatro de nós quando íamos de filmagem em filmagem. Deixados por nossa
própria conta, constantemente danificávamos a câmera e o gravador de som;
na realidade, muitas vezes, tanto que, no final da filmagem, em 1989, somente
cerca de 10% do que filmamos era aproveitável.
Eu estava tendo tempos difíceis, sofrendo dificuldades financeiras, e, assim, o
DuArt, laboratório de filmes de Nova York, disse que eu podia adiar o pagamento
até a estreia do filme. O laboratório era dirigido por um velho esquerdista, e ele
gostou de ver o material quando eu o enviei. Soube de um evento em Nova York
em que os distribuidores e os investidores reuniam-se para assistir os filmes em exe
338
ADORO PROBLEMAS
cução. Se você lhes pagasse uma taxa, você poderia mostrar-lhes quinze minutos
do que você tinha. Mas nada do meu material fora editado junto, porque, bem...
eu não sabia como editar. Novamente, Kevin teve de me salvar.
“Eu vou editar um carretei para você”, ele disse. “Quando você pode vir
para Nova York?”
“Quando você quiser”, eu respondi.
Três semanas depois, visitei novamente a “suíte” de edição de Kevin, no
Village. Sentei-me e assisti quinze minutos do meu filme que ele tinha mon
tado. Fiquei boquiaberto. Parecia um filme! Ele me mostrou como a Steenbeck
funcionava. Mostrou-me seu sistema de montagem e como podia criar minha
própria montagem. Passei horas o observando na montagem do seu filme sobre
os nazistas, como ele tomava decisões, como ele sabia o tempo que devia manter
uma cena e quando tinha de cortar. Ele não acreditava em narração, ou nele
mesmo ficando na câmera ou usando música.
Certo dia, na sala de montagem, perguntei-lhe como ele aprendera a fazer
tudo aquilo.
“Bem, tenho formação superior em cinema.”
“Por qual escola?”
“Na realidade, não freqüentei uma escola de cinema”, ele respondeu.
“Então, onde você se formou?”
Ele fez uma pausa. “Harvard.”
“Harvard?”, perguntei, pasmado.
“Sim, Harvard”, ele respondeu, a contragosto.
“Merda! Quer dizer, uau! Legal.”
Como aquele cara foi admitido em Harvard? Não queria me meter em
assuntos alheios, especialmente em questões a respeito de como ele podia bancar
seus estudos ali. Afinal de contas, Harvard também tem bolsa de estudos. Nem
todos que vão para lá são ricos. Não seja intolerante! Uma coisa era óbvia: o cara
era inteligente, muito inteligente, e, assim, aquele era, sem dúvida, seu bilhete
de ingresso.
Instalei uma sala de montagem em Washington, e contratei um amigo íntimo
de Flint e uma mulher local, do subúrbio de Maryland, para serem meus monta
dores, ainda que nenhum deles tivesse montado um filme alguma vez. Assim, nós
três nos ensinamos a nós mesmos, com a orientação de Kevin, a como montar um
339
GRATIDÃO
filme. Nossa sala de montagem era bem superior à atmosfera da de Kevin, mas nós
tínhamos nosso problema de baratas e roedores. A sala ficava no nono andar de
um prédio arruinado, na esquina da Pennsylvania e Twenty -First Street, a cerca de
quatro quadras da Casa Branca. Do lado do prédio, havia uma lanchonete da rede
Roy Rogers, que servia hambúrgueres, e o exaustor expelia fumaça na nossa sala
de montagem diariamente (só esse fato deveria ter convertido nós três em veganos
imediatamente, se essa coisa existisse naqueles dias).
Pouco a pouco, entendemos como montar um filme. Meus dois amigos
se tornaram montadores incríveis. O filme era engraçado e era triste. Paramos
de fazer um “documentário” e decidimos fazer um filme no qual levaríamos a
namorada numa sexta-feira à noite. O filme tinha um ponto de vista, mas não o
ponto de vista da esquerda petrificada, sem graça. Não senti necessidade de fal
sificar o tipo de “objetividade” que outros jornalistas escondem de modo frau
dulento. Podia me sentar ali, na nossa sala de montagem apertada, e ver úma
platéia imaginária, num grande cinema, gritando, torcendo, vaiando e deixando
o cinema pronta para fazer barulho.
Estávamos trabalhando dia e noite na sala de montagem, tentando acabar o
filme antes que os credores decretassem minha falência. Então, numa fria manhã
de janeiro de 1989, um novo presidente assumiria o cargo ao meio-dia daquele
dia. Seu nome era George H. W. Bush, o vice-presidente de Ronald Reagan.
Alguns dias depois da posse do velho Bush como presidente dos Estados Unidos,
achei Kevin em casa. Eu tinha de saber se era ele.
“Kevin”, eu disse, no telefone, “outro dia, eu estava na posse de Bush e
posso jurar que vi você no palanque. Era você?”
Silêncio.
“Você estava Zí?”, pressionei.
Mais silêncio, então uma tragada no cigarro, depois a fumaça sendo expi
rada. “Sim, eu estava lá.”
“No palco?”
Outra tragada. “Sim.”
“Nossa! Que legal! O que diabos você estava fazendo lá no alto? Como você
entrou?”
Um suspiro. “Meu tio é o presidente dos Estados Unidos.”
“Hahaha. Essa é boa. Meu tio é Dan Quayle!”
“Não. Não estou brincando”, ele interrompeu. “Meu tio é George Bush, o
presidente. Minha mãe e Barbara Bush são irmãs. Seus quatro filhos e sua filha
são meus primos de primeiro grau. Sou um membro da família. Por isso que eu
estava ali.”
Escutei muitas coisas ao longo dos anos: coisas pessoais, coisas chocantes,
as coisas que todos escutam de alguém em algum momento ou outro - *Sou
gay\ “Estou deixando você” “Apenas cidadãos austríacos podem desembarcar desse
avião” -, mas nada na minha vida tinha me preparado para essa notícia. O
que Kevin estava me dizendo era que ele tinha trabalhado comigo por quase
três anos, primeiro eu o ajudando no filme dele, depois ele me ajudando na
filmagem do meu filme e, por fim, ele montando a primeira parte do meu filme
—,mas, o mais importante, sendo meu mentor, meu único professor, uma escola
de cinema de um homem miseravelmente vestido —e, naquele momento, ele
estava me dizendo que seu tio era o presidente do Maldito Estados Unidos da
América??????????????????????????????????????????
Senti-me confuso.
“Escute”, ele disse, “sei que você deve estar chateado comigo por não
ter contado para você. Mas tente considerar isso da minha posição favorável.
341
GRATIDÃO
168" Quando o filme foi lançado, a Casa Branca ligou para o escritório da produção e perguntou
se uma cópia do filme podia ser enviada para Camp David no fim de semana, pois o presidente
queria exibir para a família o filme no qual Kev trabalhou. Tentei ser convidado para isso, masinão
consegui. Tempos depois, perguntei para Kevin se ele tinha escutado alguma coisa. "Acho queleles
gostaram do meu trabalho com a câmera", ele disse, de modo típico. "Fora isso, acho que hcj>uve
um belo silêncio." Contei-lhe que, alguém do estúdio, soube que houve um membro da famíliajque
realmente adorou o filme e ficou gritando histericamente durante a projeção. "Aparentementé era
um dos filhos de Bush, ele disse. E, ao que tudo indica, precisou de algum socorro farmacêutico.
Acredite-me, ele não significa muito, com certeza." Eu disse para o representante do estúdio: i"Ser
filho do presidente é não significar muito?" |
342
ADORO PROBLEMAS
Sete meses depois, terminei o filme. Havia mostrado uma edição dele para
as comissões de seleçáo de três festivais de cinema: Telluride, Toronto e Nova
York. Todas as comissões gostaram e concordaram que o filme fosse exibido
em todos os festivais, em setembro de 1989. Também mostrei uma versão pre
liminar do filme para minhas duas irmãs. Elas se sentaram comigo na casa dos
nossos pais e assistiram. Elas disseram coisas legais para mim, estimulando-me
a continuar trabalhando nele. O que elas não me disseram (até anos depois) foi
que ficaram aflitas a respeito de quão deficientemente o filme estava montado.
Elas falaram baixinho uma para outra: “O que devemos falar para ele? Como
não decepcioná-lo?” -, mas elas não conseguiram achar uma maneira. Elas não
queriam me desapontar, pois eu parecia muito empolgado a respeito da versão
final do filme. Assim, não disseram nada. No entanto, fizeram um pacto mútuo
de estar na primeira exibição do festival de cinema, para que eu não estivesse
sozinho no meu momento de humilhação pública.
O primeiro festival foi em Telluride, no Colorado, no fim de semana pro
longado do Dia do Trabalho. O festival pagou minhas despesas (pois, naquele
momento, eu estava realmente falido). Algumas pessoas da minha equipe via
jaram para lá com o dinheiro que conseguiram vendendo camisetas e broches
do logotipo do filme nas ruas de Telluride.
Na semana anterior ao festival, entrei em pânico, achando que tinha esco
lhido o título errado para o filme. Liguei para Bill Pence, o organizador do
festival, e lhe disse que estava mudando o título do filme para Bad Day in Buick
City (Dia Ruim na Cidade do Buick).
“Não, você não vai mudar \ ele disse, de modo bastante convincente. “O
nome desse filme é o que você deu - Roger e E u - t é o nome perfeito. Você não
vai mudá-lo. Além disso, já mandamos o programa do festival para a gráfica.”
Fiquei desapontado, mas receoso de dizer mais alguma coisa. Desliguei o telefone.
Quando cheguei em Telluride e recebi o programa, percebi algo terrível: o
festival havia decidido programar minha estreia junto com a exibição do grande
filme da noite de abertura, O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante, do
diretor britânico Peter Greenway. O filme da abertura de gala seria exibido na
histórica Casa de Ópera da cidade. Meu filme teria sua “première mundial” no
salão da Maçonaria, na outra extremidade da cidade. Salão da Maçonaria! Devia
me sentir bem a esse respeito? Ser grato por não ser na sede do Kiwanis? Ou,
343
GRATIDÃO
Deus me livre!, no Elks Lodge? Procurei ver todos os aspectos positivos naquilo.
Bem, quer dizer, afinal, quem era eu? Ninguém ali me conhecia, nunca tinha
feito um filme, e, sejamos honestos: era um documentário! Assim, entendi por
que sua estreia estava sendo enterrada. Droga.
Antes da Telluride Opening Night Gala, a cidade fechou a rua principal
e promoveu uma festa para todos os cineastas e freqüentadores do festival.
Minhas irmãs e seus maridos e filhos vieram de San Diego; elas estavam man
tendo a promessa mútua de estar ali, em Telluride, para me amparar na minha
queda. Minha equipe e eu chegamos cedo na festa e aproveitamos a comida
grátis (enquanto vendíamos mais broches e camisetas). Foi quando reconheci o
crítico de cinema Roger Ebert, que, junto com Gene Siskel (com quem apresen
tava um programa de TV), eram os críticos de cinema mais conhecidos do país.
Decidi me aproximar dele e convidá-lo para meu filme.
“Olá”, eu disse. “Meu nome é Michael Moore. Sou de Flint, em Michigan,
e tenho um filme aqui no festival. Chama-se Roger e Eu. E gostaria muito que
você o visse.” |
“Eu vou vê-lo. Amanhã, ao meio-dia, no cinema Nugget”, Ebert respondeu,
enquanto estendia a mão para pegar outro canapé. Fiquei impressionado que ele
já me conhecesse. í
“Bem, o filme vai fazer sua estreia mundial hoje à noite, daqui uma hora,
mais ou menos, no salão da Maçonaria. Seria incrível contar com sua presençja.”
“Obrigado, mas tenho ingressos para a noite de abertura, na Casa de Ópera.”
“Foi o que imaginei, mas acho que você devia estar na primeira exibição |do
meu filme. Acho que você realmente vai gostar. E você vai poder dizer que o viu
aqui primeiro!”
“Como disse, tenho ingressos para a abertura. Já gastei algo como 800
dólares por eles.” “Mas Roger”, eu implorei, usando seu primeiro nome, como
se nós nos conhecêssemos; algo que ele evidentemente não gostou. “Sei que
você vai querer estar na estreia dele. Você não viu nada parecido. Trata do Meio-
-Oeste, de onde nós dois viemos. Ele...” j
Ele me interrompeu:
“Escute”, ele disse enfaticamente, “eu disse que iria ver amanhã e vou ver] e é
isso. E, agora, se você me permite.” E depois disso, ele se afastou de mim, pertur
bado, nervoso, talvez até irritado: Quem era esse idiota de Flint me enchendo o saco?
344
ADORO PROBLEMAS