Você está na página 1de 18

Os acervos de história oral do Centro de Memória do Cacique de Ramos

WALTER DA SILVA PEREIRA JUNIOR*1

Introdução

O texto que se segue versa sobre o relato de criação de dois conjuntos de entrevistas
no âmbito do Centro de Memória Domingos Félix do Nascimento, núcleo do Grêmio
Recreativo Cacique de Ramos: os acervos de história oral denominados Memória Caciqueana
e Impactos da pandemia covid-19 na diretoria do Cacique de Ramos. O primeiro, um projeto
de memória institucional, ainda em curso, voltado para o registro de histórias de vida de
colaboradores e personagens que participaram da agremiação em algum período das suas seis
décadas de existência; o segundo, um acervo de história oral temático, já encerrado, destinado
a um público-alvo restrito, o conjunto de diretores atuantes no Cacique durante o período de
isolamento social e suspensão das atividades (2020-2021). As duas iniciativas figuram como
ações de formação de fontes orais sobre a trajetória da instituição, dentro do contexto de atuação
de um centro de memória que vem sendo construído no próprio território de samba, amparado
pela agremiação. O fato de ocupar esse lugar coloca desafios acerca da manutenção do projeto
a longo prazo e a preservação do material produzido enquanto acervo identificado e disponível.

Cacique de Ramos: breve contextualização

O Cacique de Ramos surgiu como resultado da fusão de grupamentos carnavalescos


de jovens, no bairro de Ramos, na mencionada “zona da Leopoldina”, no Rio de Janeiro. A
versão trabalhada ao longo de décadas pelas memórias de fundadores e testemunhas informa
que no ano de 1961 os grupos encabeçados pelos irmãos Ubirajara (Bira) e Ubirany Félix do
Nascimento, por Aymoré do Espírito Santo e por Walter “Tesourinha” Oliveira fundiram-se
para criar o Cacique2. Em comum entre os integrantes, o carnaval de rua como forma de
expressão das suas identidades e também o fato de serem ligados a famílias negras festeiras
com conexões com a Umbanda e o Candomblé (MESSEDER PEREIRA, 2003). A data de
fundação pactuada como gênese do bloco de embalo foi o 20 de janeiro, dia de São Sebastião,
consagrado padroeiro da agremiação, fortemente atravessada pela religiosidade sincrética.

1 Historiador, Mestre em Memória e Acervos (PPGMA/Fundação Casa de Rui Barbosa). Coordenador do Centro
de Memória Domingos Félix do Nascimento do G.R.Cacique de Ramos.
2 CENTRO DE MEMÓRIA DOMINGOS FÉLIX DO NASCIMENTO. Bira Presidente. Youtube. In: MEMÓRIA

CACIQUEANA. 09 maio 2019. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=ERIO-h4O9qo&t >. Acesso


em: 10 ago. 2022.
1
Desde o seu primeiro ano, o grupo dirigente do Cacique de Ramos, composto de
amigos de bairro e familiares, empenhou-se em construir um ambiente de sociabilidade para
além dos dias da folia, programando bailes, festas e concursos em diversos clubes da zona da
Leopoldina. Essa adesão ao recreativismo cooperou para projetar a expectativa de consolidação
do Cacique como um clube social, o que se expressava pela busca de uma sede fixa, venda de
títulos de sócios, inscrição de representantes da entidade em concursos de miss, fora a já
mencionada programação musical e de lazer. Esse projeto desapareceu do horizonte a partir da
década de 1970, quando outros referenciais comunitários passariam a pautar os destinos da
instituição (MESSEDER PEREIRA, 2003; REIS, 2003).

A atuação como bloco de carnaval colaborou para marcar o Cacique de Ramos no


imaginário social dos cariocas. Desfilando inicialmente no bairro de origem, a partir de 1964 a
entidade passou a figurar no carnaval do centro da cidade do Rio de Janeiro. Seus diretores e
componentes criaram coletivamente uma identidade visual cuja maior marca foi, durante anos,
a fantasia3, em napa, de indígena estilizado que mistura referências simbólicas dos caboclos da
Umbanda brasileira com nativos estadunidenses (CASTRO, 2020). Sempre se apresentando
apenas de modo recreativo, sem competir, a performance vibrante e os sambas levados para a
avenida também são outros elementos notórios da agremiação durante os anos 60, 70 e 80,
período em que seus desfiles se tornaram fenômenos de multidão.

Com presença forte no carnaval de rua carioca, a partir do final dos anos 70, o Cacique
se abriu para uma nova etapa. Já ocupando sede fixa no bairro de Olaria, os diretores e seus
amigos realizavam encontros semanais animados por futebol e roda de samba. Informalmente
foi constituído um pagode, revelado para o grande público por Beth Carvalho no disco “De Pé
No Chão” (1978). No álbum, a cantora incorporou a sonoridade rítmica inventada naquele
ambiente na qual se destacavam instrumentos originais como o tantã, o repique de mão e o
banjo. Daí em diante, o encontro informal passou a reunir mais componentes e compositores,
que viram na roda uma oportunidade de mostrar suas obras musicais. O pagode do Cacique foi
vanguarda na recriação da roda de samba como um evento de intensa sociabilidade, fenômeno
que se espalhou por toda a cidade do Rio pelos anos 80 em diante. Esse período é lido pela
historiografia do samba como uma página original do samba carioca, tendo o Cacique destaque
como polo de criação musical ao reunir e projetar toda uma geração de músicos, autores e

3Essa fantasia foi sendo progressivamente adaptada, com o acréscimo de outros materiais e desenhos, do final da
década de 1980 em diante, até ser substituída, na primeira década dos anos 2000, por outros modelos.
2
intérpretes, muitos com longas carreiras no mercado fonográfico, tais como Jorge Aragão,
Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho (FROTA, 2016; MOURA, 2004)

O Cacique de Ramos manteve-se em atividade pelas décadas seguintes, realizando


pagodes e desfiles carnavalescos, e alternou períodos de maiores e menores dificuldades
estruturais (REIS, 2003). Por toda a década de 80 e 90, sua presença na memória coletiva veio
sendo retrabalhada pela cobertura da imprensa, por análises acadêmicas e ações do poder
público. O Cacique – quadra, bloco, pagode – gradativamente passou a ocupar um lugar de
destaque no que se convencionou reconhecer como a cultura popular carioca, notadamente
aquela que tematiza a espontaneidade como característica, o subúrbio como cenário e o samba
como trilha sonora. Na cronologia da instituição uma sucessão de acontecimentos a partir da
segunda década do século XXI marcaram nova página na história do Cacique. Em 2010, a
quadra foi reformada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, o que lhe conferiu área
coberta e uma série de melhorias estruturais, elementos que cooperaram decisivamente para
firmar os pagodes de domingo como evento de grande afluência de público 4. Dois anos depois,
a história da entidade foi o tema central do enredo da Estação Primeira de Mangueira
denominado Vou Festejar! Sou Cacique, Sou Mangueira, uma consagração para o bloco, que
completou 50 anos de fundação em 2011 5. Esses episódios são marcos de um progressivo
aumento de visibilidade da agremiação, e consequentemente da renovação de públicos, tanto
nos desfiles quanto no pagode, e também do seu fortalecimento estrutural e patrimonial.

Um centro de memória de uma agremiação de samba e de carnaval

Em 2014, alguns integrantes da diretoria do Cacique ornamentaram com fotografias e


objetos um espaço de circulação restrita, na quadra do Cacique, chamado “centro de memória”,
batizando-o com o nome de Domingos Félix do Nascimento, o patriarca de uma das famílias
fundadoras. A partir de 2018, o recinto decorado foi convertido em projeto de memória
institucional por meio da atuação do autor dessas linhas, historiador de formação. O que se pôde
notar foi uma intensa vontade de memória circulando entre o grupo dirigente, seus familiares e
amigos. A trajetória pregressa do Cacique é constantemente retrabalhada pela memória
coletiva: ações familiares e episódios institucionais sobrepõem-se, e na estrutura dirigente
enxuta e informal disputas de memória apresentam-se. Nesse cenário, a criação de um centro

4PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. “Prefeitura entrega nova sede do Cacique de Ramos”.
Disponível em <http://www.pcrj.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=1164391>. Acesso em 09 ago.2022.
5 G1. “Mangueira forma bloco com público e canta 50 anos do Cacique de Ramos”. Disponível em:

https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2012/noticia/2012/02/mangueira-forma-bloco-com-publico-ecanta-
50-anos-do-cacique-de-ramos.htm. Acesso em 10 ago. 2022.
3
de memória apresentou-se não como a possibilidade de “resolver” essas questões ou trazer uma
palavra definitiva sobre a história do Cacique, mas sim como um modo de construir um espaço
de referências que organize informações e acervos, e crie novas fontes sobre a trajetória da
entidade. Com relevância no imaginário popular e cultural da cidade – e também do Brasil – a
entidade recebe demandas por informações da parte de públicos variados como jornalistas,
estudantes e pesquisadores acadêmicos. Desse modo, a produção de conhecimento sobre os
variados aspectos da história do Cacique é um ativo no qual o Centro de Memória Domingos
Félix do Nascimento se propôs atuar.
A estruturação do núcleo perseguiu os seguintes passos: escrita de projeto de
identificação com objetivos a serem desdobrados; a conquista de uma sala na sede da
agremiação, utilizada como local de guarda de acervos, gravações e atendimento; formação,
gradativa, de uma equipe multidisciplinar 6. Podemos citar como ações que vêm sendo colocadas
em prática para alcançar os propósitos do espaço de referências: uso de redes sociais (Facebook
e Instagram) por meio das quais são noticiadas ações do Centro e divulgados textos, com base
em pesquisas, sobre a trajetória do Cacique, bem como extrovertidos itens do acervo
documental; Cacique Acadêmico, bibliografia organizada com trabalhos acadêmicos que
analisam, seja de maneira direta ou transversal, temas que envolvem o Cacique de Ramos; e
Cacique Audiovisual, listagem de registros audiovisuais externos (filmes, clipes, reportagens,
etc.) que promoveram gravações sobre a agremiação. O núcleo também vem consolidando sua
atuação através da formulação de produtos culturais como a exposição virtual Cacique de
Ramos: seis décadas de carnaval, fomentada pelo edital Cultura do Carnaval Carioca, da
Secretaria Municipal De Cultura do Rio de Janeiro, em 2022.
A iniciativa investe esforços na conformação de um acervo documental próprio. Essa
decisão está amparada no seguinte diagnóstico da realidade institucional do Cacique de Ramos:
a dispersão de registros documentais das atividades da entidade e escassez de material escrito
sobre sua trajetória. A presença desses vestígios documentais é vista como um capital a ser
explorado pela agremiação na escrita da sua história, na relação com a sociedade e poder
público, e na formulação de novos projetos. Desse modo, vem sendo estimulada a incorporação
de documentação variada - fotografias, textuais, troféus, fantasias, discos - que está sendo
organizada de acordo com quadro de arranjo próprio 7.

Projetos de história oral do Cacique de Ramos

6 Entre 2018 e 2022 a equipe vem sendo composta por: Walter Pereira (coordenador e historiador), Marcio Lopes
(designer, webdesigner e cinegrafista), Kissila Rangel (arquivista), Luiza Helena Ermel (projetos).
7 Para um relato dessa experiência, consultar RANGEL e PEREIRA JUNIOR (2022).

4
Memória Caciqueana

A formulação de um centro de memória para o Cacique previu desde o início a


implantação de atividade de registro de entrevistas. A decisão foi espelhada na trajetória bem-
sucedida de iniciativas de formação de acervos dessa natureza ligados à cultura popular, no Rio
de Janeiro, como o Depoimentos para a posteridade do Museu da Imagem e do Som do Rio de
Janeiro (MESQUITA, 2003) e o Memória das Matrizes do Samba do Rio de Janeiro do Museu
do Samba (NOGUEIRA; MENDONÇA, SANTOS, 2019). Da mesma forma, esteve inspirada
nas recomendações da literatura acerca dos centros de documentação e memória e as
potencialidades da documentação oral nesses espaços (CAMARGO; GOULART, 2015; ITAÚ
CULTURAL, 2013; TESSITORE, 2003; 2017), bem como nos pressupostos da história oral
como metodologia e campo de atuação (ALBERTI, 2004; AMADO; FERREIRA, 2005;
MEIHY; RIBEIRO, 2011). Dessa maneira, a adesão a essas ferramentas teóricas e
metodológicas foi pensada como possibilidade de conferir consistência e permanência à
iniciativa, convertendo-a em projeto articulado e desdobrado em etapas.
Alguns elementos foram decisivos para a implantação do projeto, ambos no ano de
2018. Inicialmente, a ocupação da sala destinada ao Centro de Memória Domingos Félix do
Nascimento, um ambiente próprio, isolado de outras atividades, ainda que dentro da sede da
agremiação, com relativo silêncio e espaço. Realizar as entrevistas no próprio Cacique conferiu
personalidade específica ao projeto, além de reforçar o ato político da construção de um local
de referências no próprio território de samba. Em seguida, a adesão voluntária de Marcio Lopes,
membro da diretoria do próprio Cacique, profissional de design e audiovisual, ao Centro de
Memória, por afinidade com os objetivos da ação. A incorporação ensejou a possibilidade de
execução técnica da ideia: como o Cacique de Ramos não dispõe de equipamentos próprios de
filmagem, o integrante cedeu seu material de uso profissional, operado por ele mesmo, que
assim se tornou cinegrafista e editor do conteúdo gravado.
A literatura consultada sobre história oral, mencionada parágrafos acima, preconiza a
articulação de diversos construtores nas definições dos objetivos e listas de entrevistados. No
entanto, não foi essa a realidade encontrada: ainda que o ditado popular diga que “uma
andorinha só não faz verão”, foi solitariamente que o escopo do projeto teve de ser definido
pelo coordenador do Centro de Memória, autor dessas linhas. Na pequena estrutura da entidade,
o ato seguinte foi obter a autorização do dirigente do Cacique, Ubirajara Félix do Nascimento,
o Bira Presidente, figura central da agremiação, cuja anuência gerencial, mas sobretudo
simbólica, é preciso atrair dentro daquele microcosmo. Ficou acertada a submissão prévia ao
presidente dos nomes a serem entrevistados. Certamente a ação pode ser lida como um gesto

5
de censura, mas como bem sabem aqueles que articulam projetos em instituições e
comunidades, certa flexibilidade é fundamental para atingir determinados objetivos 8.
O acervo ganhou o nome de Memória Caciqueana, adjetivo habitualmente utilizado
para designar aqueles que se identificam com o Cacique. Logo tornou-se necessário determinar
o público-alvo das entrevistas. Para definir esse ponto, foi preciso perguntar: do que se constitui
o Cacique de Ramos? A resposta aponta para alguns caminhos. Internamente, ao longo das seis
décadas de existência, ele tem sido composto por uma, ou mais, dezenas de diretores,
responsáveis pela execução das diferentes atividades que mantém o grêmio recreativo ativo.
Esse grupo está secundado por outros de familiares e amigos, frequentadores dos espaços do
Cacique nas horas de lazer. Há também a bateria, com os seus diretores e ritmistas, e ainda a
corte de carnaval, grupo de mulheres escolhidas pela agremiação para figurarem como rainha,
rainha de bateria, princesas e musas. Outro círculo social é aquele do Cacique-pagode,
movimento que vem abrigando, ao longo de quatro décadas, conjuntos de músicos e
compositores protagonistas das rodas de samba que a agremiação sediou.
Por outro lado, existem as alas. Inicialmente, a característica do Cacique-bloco era a
massa compacta de foliões, sem distinção de divisões ou indumentárias. Desde os anos 70, vêm
surgindo diversos núcleos batizados com nomes que remetem ao imaginário indígena brasileiro
e estadunidense. Eles recebem autorização para confeccionar, e comercializar, suas próprias
fantasias e adereços, e desfilam no bloco. São todos unidos por laços familiares e fraternos que
os mantém próximos para além dos dias de carnaval através de toda uma vida recreativa, tais
quais festas e encontros. Atualmente sobrevivem cinco dessas alas, que variam anualmente em
adesão de pessoas: Apache, Cheyenne, Família Carajás, Guerreiros e Tamoio. Os segmentos
contam com um presidente e alguns diretores, que estão em permanente contato com a diretoria
do Cacique. Dentro desses integrantes podemos identificar algumas classificações: os apenas
foliões, ou seja, que só se ligam aos grupos nos dias de desfile do bloco; os componentes
eventuais tanto de carnaval quando de “meio de ano”; e outros com permanente vinculação às
turmas e frequentadores da quadra da agremiação. Como se vê, as alas são uma espécie de
microcosmo, com suas próprias histórias e identidades.
Diante de gama tão grande, o Centro de Memória teve de operar uma seleção. Entendeu-
se que os caciqueanos alvo do projeto de entrevistas seriam os personagens que se encaixassem
nas seguintes definições: atuação em prol da agremiação em alguma atividade na esfera
administrativa (diretor/colaborador), em qualquer período da trajetória da instituição; ter se

8Importante registrar que a médio prazo Bira Presidente conferiu total autonomia à consecução do projeto e deixou
de tomar conhecimento prévio do nome do entrevistado, fato que creditamos à confiança adquirida nas intenções
do trabalho realizado.
6
notabilizado, no seio do Cacique, em virtude de atuação artística (artes plásticas, música, canto,
dança); ser reconhecido internamente, entre pares, no Cacique como sujeito relevante na
construção da agremiação. Diante desse recorte, optou-se em não entrevistar componentes das
alas por se tratar de um oceano de personagens e histórias de vida, de difícil abordagem em
projeto de memória institucional. Como o Cacique de Ramos projetou diversos sambistas que
se tornaram artistas de renome, há sempre a expectativa de que os “famosos” serão alvos
prioritários das investidas. No entanto, esse não é um fator levado em consideração na escolha
dos entrevistados: personagens anônimos para o público externo ou com notoriedade no meio
artístico ganham o mesmo peso na lista. Na seleção dos nomes, foram priorizados aquele de
idade mais avançada. Essas decisões ficaram assim sintetizadas nos objetivos descritos no
documento que caracterizou o Memória Caciqueana:

Geral:
Registrar, por meio de entrevistas de história oral, as memórias individuais, vivências e
experiências de fundadores, diretores e colaboradores próximos (músicos, passistas, cantores,
carnavalescos e outros) que participaram da história do Grêmio Recreativo Cacique de Ramos,
sem distinção de visibilidade midiática.
Específicos:
Coletar, tratar, guardar e difundir o acervo de entrevistas que estará abrigado - fisicamente e
virtualmente - na estrutura do Centro de Memória Domingos Félix do Nascimento do G.R.
Cacique de Ramos;
Colaborar na construção de fontes de pesquisa sobre a história institucional da agremiação, bem
como de temas conexos tais como: formação dos bairros dos, assim nomeados, subúrbios
cariocas e suas vidas recreativa, comunitária, social e cultural; as matrizes do samba do Rio de
Janeiro; e o carnaval de rua carioca.
Essa foi uma definição estratégica necessária para que o projeto ganhasse identidade e
deslanchasse. No entanto, futuramente as alas poderão ser objeto de iniciativa específica
destinada a registrar as falas dos seus componentes a partir de algum direcionamento, ou até
mesmo por curadoria realizada por cada um dos segmentos. Desse modo, o projeto Memória
Caciqueana guardaria alguma analogia com a história oral institucional, uma vez que valoriza
a participação dos depoentes em processos de estruturação da entidade Cacique de Ramos: “A
preocupação maior [da história oral institucional] se dá frente aos registros documentais que
permitem pensar o papel da instituição por meio de casos, trajetórias, caracterização de
personalidades profissionais ou projetos (MEIHY; RIBEIRO, 2011: 51).
Por outro lado, conforme descrevemos, o pertencimento dos sujeitos ao Cacique não é
construído por vínculos utilitários e profissionais, o que aproximaria a abordagem da história
oral comunitária:
7
Aceita-se o suposto de que história oral comunitária é parte da história oral
institucional. Por seu caráter associativo de adesão, tem-se que não se enquadram
empresas de projeção econômica onde prevalecem relações mediadas pelo mundo do
capital. As relações de afeto determinam também de alguma naturalidade nos
envolvimentos. Além de grupos familiares, ligações socioculturais matizam as
relações. Há instituições comunitárias de escolhas expressas em times de futebol,
escolas de samba, irmandades religiosas, mas todas elas são independentes de
vínculos trabalhistas. Nesses casos, o que se privilegia é a familiaridade da vida
comunitária, seu papel e função social (...) No caso da história oral comunitária, é
cabível supor outros compromissos que não os ligados a salários, lucros e demais
proventos (MEIHY; RIBEIRO, 2011: 53).

Quanto ao tipo de entrevistas, o projeto abriu-se para as duas possibilidades mais


habitualmente definidas pelo campo: a de história de vida e a temática. Sobre elas, assim definiu
pesquisadora da área:

As entrevistas temáticas são aquelas que versam prioritariamente sobre a


participação do entrevistado no tema escolhido, enquanto as de história de vida têm
como centro de interesse o próprio indivíduo na história, incluindo sua trajetória
desde a infância até o momento em que fala, passando pelos diversos acontecimentos
e conjunturas que presenciou ou de que se inteirou (ALBERTI, 2004: 48).

Conforme estamos explicando, o fator levado em consideração na escolha do


entrevistado é sua vinculação à “comunidade” do Cacique-instituição: seus colaboradores,
amigos próximos, familiares, a rede de personagens que vivencia internamente a instituição.
No entanto, ainda que esse envolvimento específico defina a abordagem, o projeto foi pensado
de modo a aproveitar a potencialidade do registro da trajetória de vida que abarca:

(...) desde a infância até o momento em que fala, passando pelos diversos
acontecimentos e conjunturas que presenciou, vivenciou ou de que se inteirou. Pode-
se dizer que a entrevista de história de vida contém, em seu interior, diversas
entrevistas temáticas, já que, ao longo da narrativa da trajetória de vida, os temas
relevantes para a pesquisa são aprofundados (ALBERTI, 2005: 37-38).

Portanto, o roteiro geral não versa exclusivamente sobre a participação no Cacique e


está aberto para outras questões relativas às origens, formação, atividades profissionais e/ou
artísticas, família e cotidiano, conforme descrito abaixo:

I - Dados biográficos e lembranças da infância e juventude: data, local de nascimento;


filiação, bairro de origem, formas de lazer, formação escolar; primeiros contatos com o samba
e o carnaval
II - Cacique de Ramos: como se ligou à entidade; ações das quais tomou parte;
lembranças de desfiles; lembranças de ensaios/eventos; demais lembranças marcantes da sua
vivência na agremiação; círculos de amigos; caciqueanos da sua admiração;

8
III - Outras atuações profissionais e sociais: atividades profissionais e/ou recreativas;
contraste entre a vivência laboral e a ambiência foliã/boêmia;
IV - Família, vida atual e cotidiano: casamentos, filhos, se a família o acompanhou no
gosto pelo samba e o carnaval; atividades que realiza no momento.
V - Mensagem final: opinião sobre o trabalho do Centro de Memória do Caciqu; o que
o samba e carnaval proporcionaram em sua vida; importância do Cacique em sua vida; o que é
ser caciqueano; mensagem a jovem sambista/caciqueano.

As entrevistas serão de história temática, ou seja, apenas dedicada a aspectos da ligação


do personagem com o Cacique, sem explorar outros assuntos, quando a biografia específica do
indivíduo assim indicar 9.
Todas as gravações são precedidas de pré-pesquisa, cujas fontes consultadas variam de
acordo com as possibilidades da trajetória do entrevistado. Elas podem ser conversas com
informantes de sua rede, pesquisa no próprio acervo do Centro de Memória do Cacique ou em
outros centros de documentação, e referências bibliográficas. A reunião dessas informações
prepara a pré-entrevista que é realizada com todos os personagens. Nessa oportunidade são
esclarecidos os objetivos do projeto, levantadas novas informações e definidos os eventuais
documentos (fotografias, textuais, objetos, etc) que o entrevistado poderá levar no dia da
entrevista como estímulo à memória.
O “pontapé" do projeto demorou a acontecer em virtude da espera pela definição do
local de gravações e outras questões da organização interna da agremiação. A primeira
entrevista foi realizada em maio de 2019 e desde então foram realizadas oito gravações: Bira
Presidente, Adilson Siqueira, Miguel do repinique, Noca da Portela, Sidney Machado (Chopp),
Milton Manhães, Cacilda Duarte e Walter Pereira. Nessa listagem estão respectivamente:
fundador e presidente; ex-diretor; ex-membro da bateria; compositor; atual diretor de harmonia;
músico e ex-mestre de bateria; ex-passista; e ex-vice-presidente, atual diretor. Todos assinaram
termo de autorização de uso de voz e imagem. As entrevistas ficam armazenadas no Youtube,
abertas à consulta10, e recebem pós-tratamento feito pelo próprio Centro: ficha da entrevista,
resumo biográfico do depoente e o sumário dos assuntos tratados. Esses instrumentos são de
fundamental importância para que as entrevistas estejam contextualizadas como fontes de
pesquisa. O material é arquivado em nuvem, HD e em mídias físicas arquivadas no próprio

9 Como exemplo, o cantor e compositor Noca da Portela, dono de trajetória pessoal, profissional e artística que
extrapola seu período de atuação junto ao bloco, foi objeto de entrevista temática.
10 O acervo pode ser consultado no seguinte endereço do Youtube:
https://www.youtube.com/playlist?list=PLV5QzQnhAUUk1kefDCjDaVMXPeUt2q8zg.
9
Centro. Dessa forma, dentro das limitações técnicas e orçamentárias do núcleo de memória do
Cacique de Ramos, procura-se garantir a preservação digital das gravações, conforme
preconizado pela literatura do meio (ALBERTI, 2004). Como ações de difusão do material
gravado, indicamos a inserção da exibição de uma das entrevistas na Semana Nacional de
Arquivos de 2020 – a primeira realizada integralmente de modo virtual em virtude da pandemia
– e o uso de trechos selecionados dos depoimentos como parte da exposição virtual Cacique de
Ramos: seis décadas de carnaval, onde dialoga com outros suportes.

Impactos da pandemia covid-19 na diretoria do Cacique de Ramos

Entre maio de 2019 e janeiro de 2020, o acervo Memória Caciqueana foi ganhando
corpo de maneira progressiva. Ainda que sem a regularidade e estrutura de um centro de
documentação ligado à instituição universitária ou empresarial – o Centro de Memória só conta
com um pesquisador/entrevistador e um cinegrafista/editor - nesse período foram realizadas
seis entrevistas. A expectativa era de que no ano de 2020 o projeto alcançasse uma
periodicidade mais intensa. No entanto, em março daquele ano, o Cacique de Ramos foi
surpreendido com a expansão da contaminação pelo coronavírus na cidade do Rio de Janeiro.
Caracterizado como pandemia, o fenômeno obrigou as autoridades municipais a decretarem a
suspensão dos eventos e restringirem a circulação de pessoas.
A agremiação organiza, há quatro décadas, pagode semanal que ocorre aos domingos.
No terceiro domingo do mês, a roda de samba começa mais cedo, sendo servida uma feijoada.
A que seria realizada no dia 15 de março de 2020 foi o primeiro evento do Cacique a ser
cancelado. A partir daí até outubro de 2021, todas as rodas de samba e feijoadas foram
suspensas, o que significou uma perda material e tanto, pois foi impossível continuar gerando
renda para a manutenção da entidade. A própria circulação na quadra do Cacique foi suspensa,
conforme as recomendações das autoridade sanitárias, o que implicou também o cancelamento
das reuniões semanais da diretoria da entidade. A agremiação é administrada pelo seu
presidente e um conjunto de diretores, pessoas que se aglutinaram ao redor do Cacique
fundamentalmente pelo afeto. Esses diretores construíram, ao longo do tempo, laços de
pertencimento à agremiação e de amizade entre si, e repentinamente viram-se privados dessa
convivência.
Em meio a esse cenário adverso, as entrevistas do Memória Caciqueana foram
interrompidas. O fato assumiu contornos dramáticos: um dos previamente contactados, o
sambista Ubirany, fundador e ex-vice-presidente da agremiação, faleceu em dezembro de 2020
em decorrência de complicações da covid-19, sem que sua história de vida fosse registrada. Tal

10
fato colaborava para criar um ambiente de extremo desânimo e sensação de perda de laços entre
a comunidade caciqueana. À medida que os meses avançavam, criava-se expectativa com
relação à realização do carnaval de 2021. Nessa ocasião, o Cacique de Ramos comemoraria
seus 60 anos de fundação, e uma série de planejamentos, festas e celebrações haviam sido
previamente especulados ao redor da efeméride. No entanto, em janeiro de 2021, a Prefeitura o
Rio de Janeiro, determinou a suspensão de todo o carnaval de rua da cidade, tendo em vista que
a contaminação pelo coronavírus prosseguia e a vacinação estava ainda em fase inicial e nada
foi realizado11.
Diante desse cenário, a própria Prefeitura, por meio da sua Secretaria Municipal de
Cultura, lançou o edital Cultura do Carnaval Carioca, estímulo à criação de conteúdos inéditos
e destinado a blocos, bandas, bailes, turmas, fanfarras, cordões, cortejos e assemelhados, uma
forma de reparo pelo impacto da pandemia. A linha do edital Origens propunha a criação de
videodocumentários ou projetos de registro e preservação da memória dos grupos em formato
a ser escolhido pelo proponente. No entanto, o edital exigia que todos os produtos deveriam ser
feitos em formato digital, tendo em vista a não recomendação de aglomeração naquele contexto.
A oportunidade se converteu como a chance ideal de produzir conteúdo sobre o carnaval do
Cacique de Ramos, e de alguma maneira ocupar a lacuna deixada pela suspensão do desfile
daquele ano. Dessa forma, o Centro de Memória inscreveu a proposta da exposição virtual
Cacique de Ramos: seis décadas de carnaval, selecionado em primeiro lugar na mencionada
linha do edital. O fomento do edital viabilizou pesquisa, seleção do material e criação da
plataforma virtual onde está abrigada a exposição, trabalho realizado pelos próprios integrantes
do Centro. A narrativa foi composta por meio de textos, fotografias e vídeos, está dividida em
blocos que organizam a trajetória da identidade visual e musical do Cacique e contam a história
dos indivíduos ao longo do tempo: Origens, Avenidas, Visuais, Sonoridades e Alas.
O Centro de Memória compreendeu que o período da suspensão das atividades é parte
marcante e constitutiva da identidade contemporânea do Cacique. Um espaço antes dedicado à
festa, ao lazer e à celebração da vida foi atravessado intensamente por sentimentos como
tristeza, angústia, solidão, medo e frustração. Diante disso, a equipe do núcleo, atento ao fato
de que passamos por um momento inédito que deixou marcas institucionais e pessoais, achou
por bem realizar um registro do nosso tempo presente. Foi criado o acervo Impactos da
pandemia na diretoria do Cacique de Ramos, cujo público-alvo é o conjunto de diretores
atuantes durante os anos de 2020 e 2021, período de suspensão das atividades. As gravações

11 CNN BRASIL. "Prefeitura do Rio de Janeiro cancela o Carnaval em julho de 2021”. Disponível em
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/prefeitura-do-rio-de-janeiro-cancela-o-carnaval-em-julho-de-2021/.
Acesso em 09 ago. 2022.
11
foram realizadas em duas levas, nos meses de novembro de 2021 e janeiro de 2022. Nessa fase,
a retomada das atividades presenciais foi autorizada pela Prefeitura carioca, desde outubro de
2021 o Cacique tornou a realizar seus eventos, e a circulação de diretores e colaboradores na
quadra normalizou-se. No período das entrevistas, a totalidade dos entrevistados já havia sido
vacinada com duas ou três doses. Dos 17 integrantes elencados como diretores no período, três
não puderam ser gravados: um por problemas de saúde (agravados pela pandemia), outro porque
encerrou sua colaboração com a entidade durante a pandemia e optou por não dar entrevista, e
uma terceira por incompatibilidade de agenda. Os 14 personagens enfocados atuam nas
seguintes áreas: presidência; administração e finanças; patrimônio; gestão de eventos; direção
de harmonia; direção de bateria; departamento feminino; carnavalesco; comunicação social;
mestre de cerimônias/locução; projetos sociais; centro de memória.
O convite direto foi feito a cada um dos membros, acompanhado de texto de
esclarecimento dos objetivos do projeto, já contendo as perguntas que seriam apresentadas:

Convite aos membros da diretoria:


A pandemia da covid-19 impôs perdas materiais e simbólicas ao mundo inteiro. Diante de um
cenário adverso, pessoas e instituições tiveram suas rotinas transformadas em virtude do
isolamento necessário à contenção do contágio, da restrição da circulação, e da suspensão de
inúmeras atividades presenciais.
Nosso Cacique de Ramos também foi impactado nesse “novo normal”. Entre março de 2020 e
novembro de 2021, os tradicionais pagodes de domingo foram suspensos. Em 20 de janeiro de
2021, a agremiação comemorou 60 anos e, ao contrário do planejado anteriormente, não
realizou nenhuma comemoração. Também o carnaval de 2021 foi suspenso, e o Cacique não
pôde desfilar, o que fazia sem interrupção desde 1961.
Contemplado na Linha Origens do edital “Cultura do Carnaval Carioca” para desenvolver a
exposição virtual “Cacique de Ramos: seis décadas de carnaval”, o Centro de Memória convida
o presidente e a diretoria do Cacique a registrar suas vivências sobre aquele período por meio
do registro de depoimentos. O material gravado em vídeo ficará arquivado no acervo do núcleo,
e será utilizado como conteúdo da exposição.
Não há resposta certa, errada, bonita ou feia: cada um pode, e deve, se expressar da sua maneira.
Serão bem-vindas todas as expressões que registrem o impacto da pandemia nas vidas dos
indivíduos responsáveis por conduzir o Cacique de Ramos:

1. Quem é você, o que faz no Cacique, e como chegou à agremiação.


2. O que você sentiu com a suspensão das atividades presenciais do Cacique?
12
3. Como foi para você não ter carnaval em 2021? De que forma isso te impactou?
4. A quadra do Cacique de Ramos foi ponto de vacinação durante o ano de 2021: qual sua
opinião sobre esse papel da agremiação no combate à pandemia?
5. As atividades presenciais estão sendo retomadas gradativamente, e haverá carnaval em
2022. Qual a sua expectativa para esse carnaval?

Ainda que a divulgação prévia do conteúdo das perguntas não seja exatamente um
hábito de um projeto de história oral, considerou-se que o fato causaria mais tranquilidade para
o público-alvo, tendo em vista da abordagem de um período delicado da vida dos indivíduos.
Dos 14 entrevistados, sete estão enquadrados na categoria idosos (mais de 60 anos), grupo
considerado de risco durante a fase de maior contaminação da pandemia. O período de
isolamento social foi um severo momento no qual a circulação dessas pessoas no espaço foi
interrompida, bem o desempenho de atividades que lhes conferiam um círculo de
reconhecimento social e profissional. Especificamente sobre os idosos, muitas perguntas
colocavam-se: perderemos esses diretores para a doença? Com o retorno das atividades, eles
terão saúde mental e física para retornarem suas funções? Como se dará o processo de
substituição de dirigentes no Cacique? Que Cacique sairá desse período?
Todas essas são questões próprias à escrita da história do período, esforço que está no
horizonte do próprio Centro de Memória do Cacique de Ramos. Por ora, o núcleo compreendeu
que era importante registrar as falas, visões e emoções dos atores do período, com a memória
dos acontecimentos ainda “frescas”, passados apenas dois meses do fim do isolamento. A
condução das entrevistas respeitou a individualidade de cada um, ainda que o mesmo conjunto
de perguntas tenha sido feito para todos os entrevistados. Há depoentes mais sucintos, que
responderam de maneira mais direta, outros que se alongaram um pouco mais em suas
explanações. Dessa forma, há entrevistas curtas e outras maiores. Logo, estamos diante da
história oral temática, assim definida por especialista do meio:

Em geral, a escolha de entrevistas temáticas é adequada para o caso de temas que


têm estatuto relativamente definido na trajetória de vida dos depoentes, como um
período determinado cronologicamente, uma função desempenhada ou o
envolvimento e a experiência em acontecimentos ou conjunturas específicos. Nesses
casos, o tema pode ser de alguma forma “extraído” da trajetória de vida mais ampla
e tornar-se centro e objeto das entrevistas (ALBERTI, 2004: 48).

Os roteiros privilegiaram abordagem comum, mas com liberdade de aprofundando de


questões específicas das biografias dos depoentes. Um outro aspecto existente nos roteiros é o
estímulo à reflexão sobre o carnaval vindouro de 2022, que por fim acabou não sendo

13
realizado12, também como forma de evitar a disseminação da contaminação do coronavírus. A
colocação: “As atividades presenciais estão sendo retomadas gradativamente, e haverá carnaval
em 2022: qual a sua expectativa para esse carnaval?” portanto registra explicitamente o tempo
em que o roteiro e as entrevistas foram realizados (dezembro/2021; janeiro/2022) . O estímulo
não discorre sobre um fato já ocorrido, mas sim expressa projeções sobre um futuro próximo e
todo o significado que isso alcança na identidade da comunidade de destino abordada.
Da mesma forma que o Memória Caciqueana, os entrevistados assinaram termo de
autorização de uso de voz e imagem e o material está arquivado físicamente no Centro e em
outras armazenagens. O conjunto de entrevistas, disponível na íntegra, figura como parte de
seção Pandemia dentro da exposição virtual Cacique de Ramos: seis décadas de carnaval 13.

Breves apontamentos sobre gestão e preservação em um centro de memória de uma


agremiação de samba

O espaço ocupado por um centro de memória dentro de uma agremiação de samba é


extremamente frágil. É difícil consolidar, em todas as suas plenas potencialidades, aquilo que
não é visto como atividade-fim e por vezes considerado “exótico”. Se a bibliografia sobre os
centros de memória empresariais aponta descontinuidades em iniciativas corporativas, que dirá
em entidades recreativas com frágeis estruturas organizacionais, de caráter comunitário e
cambiantes fontes de renda.
Muitas vezes esses espaços surgem pelo voluntarismo de indivíduos com laços
familiares ou fraternais no seio da agremiação. Um importante desafio é institucionalizar
projetos dessa natureza, eventualmente lidos como diletantismo individual. Nesse processo,
conquistar espaço físico é uma importante estratégia, bem como mobilizar diferentes
personagens, internos e externos. Cabe apontar a relevância da escrita formal dos projetos, com
a enumeração de objetivos e procedimentos para alcançá-los. No entanto, é impossível não
mencionar a maneira como essas iniciativas em blocos e escolas de samba ficam à mercê dos
“humores” de diretores, que a qualquer momento, e sem muita necessidade de justificativa
formal, podem encerrar autoritariamente o projeto. Quando caem nas graças dos gestores, as
ações de memória correm o risco de serem cooptadas como instrumentos de consolidação da
hegemonia do grupo dirigente por meio da fossilização de uma “memória oficial”, dentro do
campo de batalha das versões sobre a trajetória, remota ou recente, das entidades.

12 Referimo-nos ao carnaval dos blocos, de rua, ao qual o Cacique de Ramos vincula-se.


13 O acesso pode ser feito em: https://caciquederamos.com.br/expo60/pandemia.html.
14
Na luta contra a interrupção abrupta ou o aliciamento para propósitos políticos internos,
um centro de memória do samba e do carnaval carioca equilibra-se na “corda bamba de
sombrinha”. O Dossiê das Matrizes do Samba do Rio de Janeiro, instrumento que guiou a
formulação da política que salvaguarda o partido-alto, o samba de terreiro e o samba de enredo
como patrimônio nacional, expressou o salutar papel que as atividades de pesquisa e
documentação podem ter na transmissão de saberes. O documento faz recomendações
explícitas pela criação de centros de documentação/espaços de referência no seio das
comunidades sambistas, estimulando o envolvimento dos próprios personagens do meio
(CENTRO CULTURAL CARTOLA; IPHAN, 2007). Em diálogo com essas assertivas, o
Centro de Memória Domingos Félix do Nascimento almeja que os acervos que ajudam a narrar
a trajetória da agremiação estejam identificados, referenciados e preservados na própria
entidade, e não em espaços oficiais de terceiros. Essa projeção luta cotidianamente para
consolidar o núcleo como atividade profissional, a realizar a manutenção do espaço em sintonia
com as melhores práticas de gestão, e em diálogo com as humanidades e ciências sociais
aplicadas.
Nesse cenário, os acervos de história oral podem ser vítimas de algumas investidas.
Inicialmente, a interrupção das gravações, uma perda significativa no que representa de
formação de referências para a comunidade de destino/afetiva. Para que isso aconteça, podem
pesar desde a intervenção direta de dirigentes, desgostosos com os rumos do projeto, ou a
ausências de recursos tecnológicos mínimos para a consecução das gravações. Esgrimando
contra esses fatores, o Centro de Memória do Cacique de Ramos busca a sensibilização
constante dos seus administradores, fazendo com que vejam o projeto não como algo “bonito”,
mas fundamentalmente como estratégico para a identidade da agremiação, o envolvimento de
novos simpatizantes e, consequentemente, sua sobrevivência. Essa negociação envolve a
liberdade de atuação e a busca por recursos financeiros e humanos externos (editais, convênios).
Por exemplo, no primeiro semestre de 2022, o núcleo conseguiu fechar parceria com o Museu
da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, firmando termo de convênio entre as instituições. A
ação coloca à disposição do Centro a possibilidade de depositar cópias de segurança das suas
entrevistas no MIS-RJ, conforme preconizam os manuais de história oral (ALBERTI, 2004).
Por fim, outro elemento digno de vigilância é o tratamento das entrevistas como fontes.
O fato de serem documentos orais não exime que o material seja preservado e disponibilizado
da maneira correta. Primeiro, mencionamos a constante observância com relação à
obsolescência dos meios tecnológicos e a gradativa mudança de mídias. Em segundo lugar, o
núcleo não abre mão do pós-tratamento: as entrevistas só são disponibilizadas acompanhadas
de instrumentos de consulta. Esse fato é fundamental para “dar ver” as gravações como
15
documentos contextualizados no seu tempo, acompanhados de metadados que explicitem as
intenções realizadoras, o que possibilitará seu devido uso como fonte de pesquisa. Por exemplo,
o sumário torna visível a qualquer um os assuntos tratados, o que estimula a consulta, facilitada
pelo fato de o material estar disponibilizado no Youtube. Desse modo, é preciso vigiar para que
as entrevistas não sejam tratadas como um “ajuntamento de coisas curiosas”, misturadas a
outros audiovisuais e, pelo contrário, sejam observadas suas proveniências e preservada a
integridade arquivística dessas fontes orais, tanto na organização do acervo documental, quanto
na sua disponibilização ao grande público.

Referências

Acervos de história oral

Impactos da pandemia covid-19 na diretoria do Cacique de Ramos. Disponível em:


https://caciquederamos.com.br/expo60/pandemia.html.

Memória Caciqueana. Centro de Memória Domingos Félix do Nascimento. Grêmio Recreativo


Cacique de Ramos. Disponível em:
<https://www.youtube.com/playlist?list=PLV5QzQnhAUUk1kefDCjDaVMXPeUt2q8zg>

Sites consultados:

CNN BRASIL. "Prefeitura do Rio de Janeiro cancela o Carnaval em julho de 2021”. Disponível
em https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/prefeitura-do-rio-de-janeiro-cancela-o-carnaval-
em-julho-de-2021/. Acesso em 09 ago. 2022

G1. “Mangueira forma bloco com público e canta 50 anos do Cacique de Ramos”. Disponível
em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2012/noticia/2012/02/mangueira-forma-
bloco-com-publico-ecanta-50-anos-do-cacique-de-ramos.htm. Acesso em 10 ago. 2022.
Bibliografia

PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. “Prefeitura entrega nova sede do Cacique


de Ramos”. Disponível em
<http://www.pcrj.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=1164391>. Acesso em 09 ago.2022.

Bibliografia

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. In: AMADO, Janaina;


FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2005.

CAMARGO, Ana Maria de Almeida; GOULART, Silvana. Centros de memória: uma proposta
de definição. São Paulo: SESC, 2015.

CENTRO CULTURAL CARTOLA; IPHAN. Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro:
partido-alto, samba de terreiro e samba enredo: 2007. Disponível em:
16
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossi%20Matrizes%20do%20Samba.pdf
. Acesso em 07 jul. 2022.
CASTRO, Mauricio Barros de. Carnaval-ritual: Carlos Vergara e Cacique de Ramos. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2021.
FERNANDES, Simone Silva. Fontes orais: perspectivas para o tratamento em centros de
documentação e arquivos. In: Almeida, Juniele Rabêlo de; Rovai, Marta Gouveia de Oliveira
(org.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
ITAÚ CULTURAL. Centros de memória: manual básico para implantação. São Paulo: Itaú
Cultural, 2013.
LOPES DA SILVA, Fábio Luiz. Esquina de tantas ruas: os pagodes do Cacique de Ramos no
espaço urbano carioca. Fênix: revista de história e estudos culturais. Florianópolis, v. 10, p. 1-
22, 2013.
MESQUITA, Claudia. A trajetória de um “museu de fronteira”: a criação do Museu da Imagem
e do Som e a identidade carioca (1960-1965). In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario. (Org.).
Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, v. 1, p. 11-305.
MEIHY, José Carlos Sebe B.; RIBEIRO, Suzana L. Salgado. Guia prático de história oral. São
Paulo: Contexto, 2011.
MESSEDER PEREIRA, Carlos Alberto. Cacique de Ramos: uma história que deu samba. Rio
de Janeiro: E-Papers, 2003
MOURA, Roberto M. No princípio, era a roda: Um estudo sobre samba, partido-alto e outros
pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
NOGUEIRA, Nilcemar; MENDONÇA, Elizabete de Castro; SANTOS, Desirree dos Reis.
História oral na coleção do Museu do Samba: Registrar para salvaguardar. XV ENECULT.
Salvador, Bahia: 2019.

RANGEL, Kissila; PEREIRA JUNIOR, Walter. A síncopa do samba e a organicidade:


organização do acervo do Centro de Memória Domingos Félix do Nascimento (Cacique de
Ramos). Revista Eletrônica Ventilando Acervos. Florianópolis, v. especial, n. 1, jul. 2022.

REIS, Leonardo Abreu. Memória familiar no Cacique de Ramos. Orientador: Drº Miguel Angel
de Barrenechea; Drª Jô Gondar. 111 f. Dissertação (Mestrado em Memória Social e
Documento) - Programa de Pós-Graduação em Memória Social, Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, 2003.
SANTOS, Joel Rufino. IPCN e Cacique de Ramos: dois exemplos de movimento negro no Rio
de Janeiro. Comunicações ISER, n. 28, p. 5-28, 1988.
TESSITORE, Viviane. Como implantar centros de documentação. São Paulo: Arquivo do
Estado, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. 56p. (Projeto como fazer, 09).
TESSITORE, Viviane. Arquivos, centros de documentação e de memória: perfis institucionais
e funções sociais. In: CAMPOS, José Francisco Guelfi (org.). Arquivos pessoais: experiências,
reflexões, perspectivas. São Paulo. Associação dos Arquivistas de São Paulo, 2017.

17
TROTTA, Felipe. Mussum, Os Originais do Samba e a sonoridade do pagode carioca. Revista
FAMECOS. Porto Alegre, v. 23, n. 2, p. ID22325, mar. 2016.

18

Você também pode gostar