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Fortaleza - CE
Agosto, 2012
JOANA MARTA ONOFRE DE ARAÚJO
Fortaleza - Ceará
Agosto, 2012
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CDU 34:336.2
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BANCA EXAMINADORA
No meio de tantas mudanças ocorridas na minha vida neste período de dois anos,
certamente, sozinha eu não conseguiria concluir satisfatoriamente este estudo. Por isso, são
muitas as pessoas a quem devo agradecer.
Agradeço à minha filha, Isabela Lisieux, por ser uma criança alegre, saudável e por me
fazer tão feliz nos momentos mais difíceis. Meu amor é infinito. É a ti que dedico esta
realização pessoal, para compensar todos os segundos de ausência ao seu lado.
Aos meus pais, Marcos e Adelaide, agradeço pela reciprocidade de amor infinito e de
apoio constante. Obrigado por terem me ensinado, desde muito cedo, a ter consciência do meu
papel no mundo.
Aos meus sogros, Marlene e Joaquim, obrigada por serem sempre tão agradáveis,
amigos e prestativos, me acompanhando ao longo desta jornada de estudos.
À Professora Dr. Natércia, a qual não só aceitou prontamente o convite para participar
da banca de qualificação e de defesa deste trabalho, como também apresentou contribuições
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valorosas acerca do tema em discussão. Outrossim, agradeço ao Prof. Dr. Carlos César Sousa
Cintra, por ter gentilmente se disposto a integrar a banca de defesa desta dissertação.
Não poderia deixar de agradecer à minha amiga Daiane Nogueira, a quem confiei o
batismo da minha única filha, por todo o exemplo e companheirismo incessante. Os anos se
passaram, a distância aumentou, mas mesmo assim, você foi a figura mais marcante neste
meu trabalho. Se não fossem as valiosas contribuições bibliográficas oferecidas espontânea e
generosamente por você.... muito obrigada.
Também agradeço à minha amiga de infância, Silvia, por ouvir meus lamentos, por me
dar conselhos, por estar sempre ao meu lado, todas as vezes que eu precisar.
Por fim, reconheço todo o incentivo e cooperação dos meus colegas de trabalho da
Procuradoria Seccional da Fazenda Nacional de Mossoró/RN, em especial, Julianny,
Gianfrancesco e meus queridos estagiários, Kátia, Diego, Sara, Milena e Raquel. Somos uma
equipe unida, sempre uns ajudando e apoiando os outros. Isso é muito gratificante. Também
agradeço aos meus Chefes, Dr. Lupércio Camargo e agora, o Dr. Leonardo Bezerra, por terem
confiado a mim a chefia da PSFN/Mossoró, mesmo sabendo que, naquele momento, eu me
dedicava ao mestrado, o que para eles, não foi razão para desacreditar na minha capacidade.
RESUMO
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 consagrou o Estado Democrático de Direito,
encampando ideologia e valores fundamentais compatíveis com a idéia do Estado Social. Não
obstante, a sociedade brasileira nunca usufruiu um Estado de Bem-Estar Social. O nível de
desigualdade social, econômico-financeiro e cultural que alcança a população é grandioso.
Neste contexto, a tributação exerce papel relevante, não somente por viabilizar o
financiamento da prestação dos direitos fundamentais sociais constitucionais, mas também
por representar um mecanismo eficaz de justiça social, proporcionando a redistribuição de
renda e a redução das desigualdades sociais. Ocorre que, embora os Sistemas Tributários
tenham evoluído ao longo dos séculos, deixando a tributação de ser arbitrária e aleatória, a
relação fisco-contribuinte ainda é muito tensa, sendo cada vez mais sensível a rejeição social
ao tributo. Por tal razão, a fim de rechaçar a possibilidade de retrocesso das conquistas sociais
já alcançadas, um dos maiores desafios contemporâneos consiste na busca pelo equilíbrio da
relação tributária e na legitimação do tributo. Considerando que “direitos não dão em
árvores”, mas sim decorrem do adequado financiamento público, é preciso reconhecer a
existência de complicadores da tributação no Estado Fiscal contemporâneo. Questões como a
carga tributária, justiça fiscal, sonegação, guerra fiscal, globalização, ausência de
praticabilidade da tributação, ineficiência do gasto público e a politização do direito tributário
devem ser discutidas a fim de identificar suas causas e repercussões na atividade tributária.
Apesar de todos os obstáculos, verifica-se que o modelo de Estado Fiscal não se encontra
falido, demonstrando-se o modelo mais eficaz de financiamento estatal, em comparação com
a idéia de Estado Patrimonial. Sendo assim, urge que sejam aprimorados os mecanismos de
pacificação da relação jurídica tributária, já que o alto grau da litigiosidade tributária revela a
ausência de segurança jurídica entre os sujeitos envolvidos na arrecadação. Com este fim, a
promoção de Programas de Educação Fiscal eficientes tendem a conscientizar a sociedade
acerca da função social do tributo, restaurando o espírito cívico da sociedade até então
individualista. Da mesma forma, exige-se a adoção de instrumentos alternativos de
composição da lide tributária, dos quais merecem destaque a compensação e a transação
tributária. Imperioso, pois, analisar de que forma o Projeto de Lei da “Lei Geral da Transação
Tributária” poderá contribuir para a redução da litigiosidade e para a higidez da arrecadação.
Palavras-chaves: Estado Social, Tributação, Estado Fiscal, Complicadores, Pacificação.
ABSTRACT
In Brazil, the Federal Constitution of 1988 consecrated a democratic state, embracing
ideology and values compatible with the idea of the Welfare State. However, Brazilian society
has never enjoyed a State of Social Welfare. The level of social, financial, economic and
cultural inequality within the population is great. In this context, taxation plays an important
role, not only to finance the provision of basic constitutional social rights, but also to
represent an effective mechanism for social justice, providing income redistribution and the
reduction of social inequalities. It happens that, although Tax Systems have evolved over
centuries, leaving taxation to be arbitrary and random, the tax-taxpayer relationship is still
very tense and increasingly vulnerable to societal rejection of taxation. For this reason, in
order to fend off the possibility of losing social gains already achieved one of the biggest
challenges today is to search for a balanced relationship between the tax and legitimacy of the
tax. Understanding that "rights do not grow on trees", but rather result from adequate funding,
we must however recognize the existence of difficulties in the State Taxation Fiscal
contemporary. Issues such as taxes, tax justice, tax evasion, tax war, globalization, lack of
feasibility of taxation, public spending inefficiency and politicization of the tax law should be
discussed in order to identify their respective causes and effects on tax collection. Despite all
of the obstacles, it appears that the model of State Tax is not broken, demonstrating the most
effective model for state funding, compared to the idea of State Assets. Therefore, it is urgent
that the mechanisms of settling tax disputes are improved, since the high degree of tax
litigation reveals the lack of legal certainty between those involved in the collection of taxes.
For this purpose, it is important to promote Educational Fiscal Programs that efficiently
educate society about the social function of tax collection, thus restoring civic spirit in a
hitherto individualistic society. Likewise, it requires the adoption of alternative instruments
for the drafting of a tax deal, in which clearing and transaction taxes should be mentioned. It
is imperative therefore, to examine how the Bill of "Law General Transaction Tax" may
contribute to the reduction of litigation and the efficiency of tax collection.
Key-words: Welfare State, Taxation, Estate Fiscal, Complicating, Pacification.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12
Ao longo dos séculos, o Sistema Tributário passou por processos evolutivos, sendo
inegáveis as conquistas obtidas no campo das garantias aos cidadãos, deixando a tributação de
ser aleatória e arbitrária para pautar-se em princípios veiculadores do valor segurança jurídica,
como por exemplo, o princípio da legalidade. Contudo, afirmar que o tributo é legal, ou
mesmo, constitucional, não significa que ele seja legítimo socialmente. Pelo contrário, é cada
vez mais sensível a resistência dos contribuintes ao pagamento de tributos.
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Disponível em: <File:///D:/Documents%20and%20Settings/66118484368/Configura%E7%F5es%20 locais
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Sabe-se que, chegado o Século XX, o Estado moderno alcançou sua feição mais
evoluída, passando a ser intitulado de Welfare State, Estado Social ou ainda, Estado Social
Democrata (PELAYO, 2005, p. 13). Influenciada pelas transformações culturais, econômicas
e sociais ocorridas no cenário internacional, a relação firmada entre o Estado e o indivíduo
adquiriu nova dimensão. As concepções consolidadas pelo liberalismo, e ainda, pelos regimes
totalitários responsáveis pela desumanização retratada no período pós-guerra, exigiram um
Estado apto à estruturação da nova ordem social, preocupado com a prosperidade, com a paz e
com a justiça social.
Nessa esteira, já não basta a proteção do indivíduo em face do Estado, nem tampouco a
função estatal se resume à proteção da liberdade, da segurança e da propriedade do cidadão. O
Estado Gendarme de Kant sucumbe ao imperativo de um Estado ativo, que chama para si a
tutela efetiva dos direitos fundamentais, guardião da dignidade humana e promovedor dos
direitos sociais.
Por tal razão, um dos maiores dilemas contemporâneos enfrentados pelos juristas, pelo
Estado e pela sociedade consiste na busca pelo equilíbrio da relação jurídica tributária. A
resistência ao pagamento dos tributos desde muito tempo convive com a necessidade de o
Fisco arrecadar para sustentar a máquina pública, bem como garantir a prestação dos serviços
à coletividade, em busca do bem estar social.
entendimento moderno dos Tribunais Superiores pátrios, como será demonstrado ao longo do
trabalho.
É certo, porém, que tais direitos “não dão em árvores” (SUSTEIN, 1999, p. 220), mas
sim acarretam elevados custos ao Estado. Por tal razão, a efetiva concretização do Estado
Social depende prioritariamente do adequado financiamento estatal. Considerando que a
concepção de Estado Patrimonial cedeu à hegemonia do Estado Fiscal, segundo o qual a
maioria dos Estados contemporâneos são financiados predominantemente por impostos, a
tributação funciona como o seu verdadeiro sustentáculo.
Sendo assim, a fim de melhor compreender a moderna relação tributária, propõe-se uma
retrospectiva da relação Estado - sociedade ao longo da humanidade, situando o homem em
suas relações com a entidade a qual necessariamente está ligado. Como se sabe, a intolerância
ao pagamento de tributos não é produto da modernidade. À medida que as sociedades
evoluíram, a relação entre o Estado e o indivíduo passou por profundas transformações. E a
tributação acompanhou esta evolução. Importante, pois, traçar as características da relação
tributária no Estado Medieval, no Estado Absolutista, no Estado Liberal, no Estado Socialista
e no Estado Social Democrático de Direito.
Nessa abordagem merecem destaque como referencial teórico o texto de John Maynard
Keynes (1926), intitulado The end of laissez-faire, o livro “O caminho da Servidão”, de
Friedrich Hayek (1944) e, por fim, a obra de Paulo Bonavides (1996), “do Estado liberal ao
Estado Social”. Os três autores demonstram-se essenciais para delinear as características do
Estado Liberal, do Estado Social e, por fim, do neoliberalismo, a fim de definir o tipo de
Estado incorporado pela Constituição Federal brasileira de 1988.
Ricardo Lobo Torres (1991, p.193) esclarece que a primeira forma de Estado moderno
caracterizou-se como “estado patrimonial”, o qual predominou na Europa até a era do
absolutismo, sendo marcado pela preeminência do financiamento estatal por meio das rendas
dominiais do príncipe, ou ainda, através dos rendimentos da atividade comercial e industrial
por ele próprio desenvolvida.
sobretudo, pela forma como o cidadão apresenta-se diante do Estado, bem como pelas
finalidades e valores estatais de cada época.
Tal constatação demonstra que a relação tributária não se apresenta linear, contínua e
permanente. Basta comparar o espírito cívico característico da tributação na antiguidade
clássica com o individualismo marcante do Estado Liberal. Da mesma forma, não se
harmonizam os valores impostos pelo socialismo ou mesmo pelo Estado Social com a
ideologia neoliberal. Curiosamente, como que um retorno à antiguidade, verifica-se
modernamente a legitimação social do tributo nos países do continente Europeu e nos Estados
Unidos, onde os ricos apóiam publicamente o aumento da carga tributária.
Também é certo que a discussão acerca da relação tributária brasileira deve ser
precedida da discussão acerca do tipo de Estado em que se vive e dos novos paradigmas
jurídicos intrínsecos ao Estado Social Democrático de Direito inaugurados pela Constituição
Federal de 1988.
Armandinho Rocha (2005, p.30) narra que, “por meio da educação que lhe era
ministrada, o cidadão grego compreendia que a obrigação de pagar imposto derivava da sua
obrigação de, como cidadão, contribuir para os gastos públicos e não devido a qualquer
coação externa.”
5
Somente os estrangeiros e os escravos libertos eram sujeitos ao pagamento compulsório do imposto, que no
caso, incidia “por cabeça”.
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Daí porque não se pode menosprezar a importância que têm para os dias atuais o
exemplo dado pelas antigas instituições gregas e romanas. Como menciona Paulo Bonavides
(1996, p. 140), “Estudando a Cidade-Estado, estudamos, na verdade, o ideal dos Estados
modernos, algo que é tanto de ontem como de hoje, por ser essencialmente de sempre”. E,
ressaltando o sentimento igualitário e coletivista presente nessas sociedades, arremata:
É certo que, no Império Romano, assim como nas demais civilizações antigas,
inicialmente prevalecia a idéia de estado patrimonial e não de estado fiscal, uma vez que a
maioria das receitas públicas eram oriundas do uso do patrimônio público, das penalidades
pecuniárias e dos direitos decorrentes dos monopólios e não da tributação. (TORRES, 2011,
p. 565).
Neste período, a tributação justificava-se mais como uma espécie de sujeição dos
vencidos de guerra, do que propriamente uma obrigação ex lege, apta a garantir o
financiamento estatal. Os cidadãos participavam apenas no custeio dos serviços públicos e em
razão de eventos extraordinários, como era o caso do “tributum”, criado para custear
edificações ou festas.
A crise do Império Romano marcou o início da Idade Média, período que compreende
os anos de 476 a 1453, caracterizado essencialmente pela total descentralização do poder. O
grande império cedeu lugar aos feudos, que eram administrados pelos senhores feudais, a
quem a maioria da população campestre, os vassalos, tinha que pagar onerosos tributos em
troca da sobrevivência própria e de sua família.
A exorbitante carga tributária era decorrência direta das cruzadas ou guerras santas, cujo
objetivo principal era a reconquista da Palestina, lugar sagrado dos cristãos. A doutrina do
cristianismo pregava na sociedade o dever político e moral de pagar corretamente os tributos.
Daí a célebre frase dita por Jesus Cristo: “Daí a César o que é de César”. A influência
religiosa era marcante na sociedade, e era este o fundamento utilizado para a crescente
exigência dos tributos destinados ao financiamento do trono e dos exércitos militares.
Não somente os vassalos viam-se sufocados com alta carga tributária. Os senhores
feudais também “insurgiam-se contra as exigências de monarcas aventureiros e de
circunstância, que impunham uma tributação indiscriminada e mantinham um estado de
guerra constante, que só causava prejuízo à vida econômica e social”. (DALLARI, 2006, p.
70).
Era o caso da Inglaterra, onde o Rei Ricardo Coração de Leão deixou o povo sob o
governo do Rei João Sem Terra para comandar seu exército nas cruzadas. Durante a sua
ausência, o Rei João Sem Terra, visando não devolver o seu trono ao rei Ricardo, aproveitou
22
para criar e estruturar o seu próprio exército, sendo que para isso passou a cobrar os tributos
em dobro.
Fruto da forte reação dos nobres senhores feudais diante de tal situação, remonta desta
época o primeiro documento de proteção contra os abusos reais, a Magna Carta, assinada em
15 de junho de 1215 pelo Rei João Sem Terra, cuja importância histórica atribui-se por ser a
primeira limitação legal ao poder dos reis de cobrar tributos, como se vê no trecho abaixo
transcrito:
O período final da idade média foi marcado pelo Renascimento. O fim das cruzadas e o
progressivo enfraquecimento dos senhores feudais provocaram uma paulatina mudança nos
hábitos da população, que aos poucos ia se libertando do poder feudal e migrando para a
cidade. Conseqüentemente, novos hábitos de consumo surgiam e o comércio era fomentado,
fazendo surgir uma nova classe, a burguesia.
A Idade Moderna teve como marco inicial a tomada de Constantinopla pelos turcos
otomanos em 1453, e como marco final a Revolução Francesa, em 1789. Com a crise do
Estado Feudal e com o surgimento da Idade Moderna, a evolução na maneira de organização
do poder resultou em uma nova concepção de Estado. Paulatinamente, os feudos foram se
transformando em reinos e estes reinos foram se unindo, dando origem aos Estados Nacionais,
cuja característica básica consistia em ser uma “unidade territorial dotada de poder soberano”
(DALLARI, 2006, p. 70).
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Curioso notar que Nicolau Maquiavel foi responsável pela introdução da palavra
“Estado”, utilizada em sua obra clássica “O Príncipe” (1513), na qual o autor demonstra a
impossibilidade de organização social sem a existência de um poder forte e centralizador. O
pensador florentino foi responsável pela “teorização completa da soberania como instrumento
político de um poder absoluto que se incorpora no príncipe, como se o príncipe fora o próprio
Estado.” (BONAVIDES, 2007, p. 34).
Tal ideologia deu origem ao Estado Nacional Absolutista, 6 segundo o qual os reis
imperavam de maneira absoluta, com poderes ilimitados, o que inevitavelmente dava azo a
medidas exageradamente desproporcionais em face dos súditos. E em relação à tributação, o
problema não era diferente:
O exemplo histórico mais notório da realidade econômica e social dessa era foi o
Estado Nacional da França, de Luis XIV. O sistema tributário imposto por ele é
famoso por seu despotismo: ‘L’État c’est moi’ e tinha por lema: ‘Quero que o clero
reze, que o nobre morra pela pátria e que o povo pague’ (NACIONAL DE
EDUCAÇÃO FISCAL, 2005, p. 27).
À medida que a nova figura política ia se emoldurando, assim como a sociedade por si
mesma, o financiamento estatal e o sistema tributário passavam por profundas
transformações, deixando de lado as tendências amadoras de tributação e evoluindo em busca
de uma estruturação hígida e garantidora das finalidades estatais.
6
À época, a sociedade estruturava-se em castas. A nobreza e o clero eram as classes dominantes e não pagavam
impostos. O Estado era financiado essencialmente pelo pagamento de tributos por parte da burguesia
(comerciantes), dos camponeses e dos artesãos.
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O grande questionamento que se faz diz respeito à identificação de quais seriam tais
finalidades estatais. Por óbvio, diante dos diversos ciclos econômicos e ideológicos pelos
quais passou a humanidade, a resposta varia de acordo com a época, com o lugar e, sobretudo,
de acordo com a corrente política dominante. Tais variantes repercutirão diretamente na
legitimidade social do tributo e no papel do Estado frente às demandas da sociedade e dos
demais agentes econômicos.
O que se sabe é que, pelo menos no Brasil, até que a Constituição Federal de 1988
instituísse o Estado Democrático de Direito que contemplasse os cidadãos com um amplo rol
de Direitos e Garantias Fundamentais e Sociais, um longo caminho foi percorrido. É esse
percurso fático, ideológico e político que será analisado a seguir, doravante dentro do
contexto de um Estado Constitucional.
Com o advento do constitucionalismo, a idéia inicial pregava que o poder não mais seria
determinado pelos soberanos, mas pelas leis. Reside aí uma das maiores conquistas da
burguesia: a legalidade. Em 26 de agosto de 1789 foi aprovado pela Assembléia Nacional
Francesa um documento inspirado nos novos ideais de justiça e legalidade, a Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.
nortear-se pela repartição dos custos da despesa pública e na proporção das riquezas
disponíveis, manifestando-se, desde então, o princípio da capacidade contributiva.
Na obra “Riqueza das Nações” (2001, prefácio - XIII), em defesa da burguesia, Smith
acentuava que os impostos eram um obstáculo ao crescimento da economia. Contudo, ainda
que contrariado, reconhece que a tributação é necessária – “se o Estado deve garantir a
burguesia, a um preço camarada, qual a melhor maneira de cobrar impostos para tal?”.
Tal pensamento servia para sustentação do Estado Mínimo, responsável apenas pela
proteção dos indivíduos e pela manutenção da propriedade. A classe dominante propunha a
consolidação do Estado mínimo, no qual a missão do tributo era prover tão somente as
funções clássicas estatais. Nesse sentido, esclarece Paulo Bonavides (1996, p.40):
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“Decorrente dessa posição filosófica, temos o Estado Gendarme de Kant, o Estado guarda-
noturno, que Lasalle tanto ridicularizava, demissionário de qualquer responsabilidade na
promoção do bem comum.”
Diante da completa ausência de iniciativa social por parte do Estado, cabia aos
indivíduos, individualmente, a busca pelo bem comum, sendo certo que a harmonização de
suas relações privadas era livremente influenciada pelas leis do mercado. No seio de uma
sociedade encampadora dos ideais liberais, o capitalismo apresentava-se como um sistema econômico
altamente lucrativo, mas também promovedor de grandes desigualdades. Percebe-se, então, que a
liberdade e a igualdade consagradas no liberalismo clássico eram apenas formais e não
substanciais, ou seja, encobriam a realidade de uma sociedade repleta de desigualdades
sociais, econômicas e políticas.
São válidas, nesse aspecto, as críticas de Edmund Burke à Revolução Francesa, traçadas
em sua mais importante obra – Reflexões sobre a revolução em França (1790), por meio da
qual o autor diagnostica a existência de contradições internas da Revolução. Para Burke, o
lema encampado pelos revolucionários – “liberdade, igualdade e fraternidade”, desconhece a
real natureza das coisas, pois a desigualdade não pode ser concretamente rechaçada da
sociedade. (KINZO, 2006, p. 20-21).
A classe oprimida passou a lutar por uma liberdade que lhe garantisse independência
econômica, ou pelo menos a perspectiva de paz e igualdade relativa a um mínimo existencial
não dissociado do ideal de dignidade humana. Só assim a idéia democrática de igualdade viria
a preponderar.
Por volta de 1840, a crise social instalada na comunidade européia e os primeiros traços
do movimento operário eram acompanhados por Marx, motivando a construção de sua teoria
política revolucionária. Para o economista e filósofo, a via democrática inaugurada pelo
sufrágio não conseguiria derrubar os privilégios da burguesia, motivo pelo qual passou a
conclamar os trabalhadores para uma solução de força. Em “O Manifesto Comunista” (1847),
Marx suscita: “Proletários de Todos os Países, Uni-vos!”.
Seus objetivos eram claros: acabar com a sociedade de classes e abolir a propriedade
privada burguesa. Entendia que o Estado era apenas uma comissão que administra os
negócios comunitários de toda a classe dominante (MARX, 1847, p.2). Com efeito, o
momento era de ruptura total da sociedade e do Estado,7 sendo a revolução o horizonte mais
eficaz para a crise que se instalava, na visão do pensador.
7
O desaparecimento do Estado só viria depois de um período de transição mais ou menos longo, no qual o
desenvolvimento das forças produtivas levaria ao “desaparecimento das diferenças de classe”, concentrando a
produção “nas mãos dos indivíduos associados”, levando a que o Estado perdesse “seu caráter político”. “É neste
sentido que Marx fala em 1852, ou seja, cinco anos depois de O Manifesto, que a ditadura do proletariado [...] não
é, em si mesma, mais do que o trânsito para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes”.
28
Não obstante Marx ter idealizado uma sociedade mais justa e igualitária, sabe-se que o
ideal democrático não foi alcançado pelo Marxismo. Isso porque, a revolução socialista foi,
fundamentalmente, a revolução de uma só classe. “A ditadura do proletariado conduziu a um
socialismo violento, autoritário, policial, com que a humanidade paga, à edificação do Estado
– socialista, pesadíssimo tributo de sangue e sacrifício” (BONAVIDES, 1996, p.176-177).
Como afirma Manuel Garcia-Pelayo (2005, p.23), “Estado Social – (dice H.P. Ipsen) –
significa La disposición y la responsabilidad, la atribuición y la competência del Estado para
29
la estructuración del orden social”. Sob esta perspectiva, o Estado alcança mais um degrau
em suas transformações, abandonando a idéia de “Estado de Direito” para assumir uma nova
forma - o Estado Social de Direito, 8 também intitulado de Estado do Bem- Estar Social,
Welfare State, Estado Providência ou Estado Previdência.
Por volta de 1930, o economista britânico John Maynard Keynes passou a defender a
idéia de uma política estatal intervencionista. Em 1926, Keynes editou o manifesto “The end
of laissez-faire”, por meio do qual propôs uma análise histórica dos pensadores do presente e
do passado, como Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Paley, Adam Smith, Bentham, e Miss
Martineau, como forma de preparar espaço para o que ele chamou de “emancipação da
mente”, referindo-se à dogmática liberal: “A study of the history of opinion is a necessary
preliminary to the emancipation of the mind” (KEYNES, 1930, on line).
Em 1936, Keynes publicou sua obra mais importante, “Teoria Geral do Emprego, do
Juro e da Moeda”, na qual o autor ressalta a instabilidade do sistema capitalista em prejuízo
do bem-estar social. Segundo o economista:
Enquanto que, na concepção liberal, a liberdade era garantida apenas em seu aspecto
negativo, no Estado Social, assume status negativo e positivo, já que o Estado passa a intervir
em prol do bem-estar da comunidade e para a correção das desigualdades sociais
(BONAVIDES, 1996, p.12).
Sob esse enfoque, ao menos teoricamente, a democracia passaria a ser concebida mais
como um direito do que como uma forma de governo: “Foi esse Estado o degrau decisivo que
8
O Estado Social não se confunde com o Estado Socialista defendido por Marx, absolutamente avesso ao capitalismo.
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Neste contexto, a tributação passa a ser vista não só como instrumento de justiça social,
através da distribuição de renda, mas também como instrumento viabilizador das políticas
sociais, por ser o principal meio de financiamento estatal.
Por certo, a tarefa de efetivação do Estado Social não é fácil. Encontra obstáculos de
origens políticas e ideológicas, profundamente marcados pelo neoliberalismo, os quais, no
mundo globalizado em que se vive, chegam a afetar, inclusive, a idéia de soberania,
fundamento jurídico do poder de tributar.
À época de sua primeira publicação, conforme expõe Perry Anderson (1995, p.10), o
manifesto político de Hayek não encontrou condições propícias para o seu acolhimento, uma
vez que o capitalismo avançado entrava em sua fase de ouro, sem precedentes, apresentando o
crescimento mais rápido da história durante as décadas de 50 e 60. Ainda não havia espaço
para o capitalismo duro defendido pelo autor.
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Foi com a crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, que os seus ideais
passaram a ser analisados sob outra ótica. A economia capitalista caiu em recessão,
apresentando elevadas taxas de juros e baixo crescimento econômico.
Para Hayek, o poder excessivo dos sindicatos e do movimento operário eram fatores
responsáveis por extirpar os lucros das empresas, o que desencadeava os processos
inflacionários e, conseqüentemente, acabava por gerar uma grave crise no mercado. Para
combater tais efeitos, era preciso um Estado forte no que diz respeito à contenção das forças
sindicais e do gasto público, mas omisso nas intervenções econômicas e sociais.
A hegemonia neoliberal avançou nos países da Europa e nos Estados Unidos, com
algumas variantes. Nos Estados Unidos, o governo travou verdadeira competição militar com
a União Soviética, como estratégia para combater o regime comunista na Rússia. Para
sustentar o alto custo da guerra, os Estados Unidos, dentre outras medidas, reduziram
drasticamente a tributação sobre os mais ricos, impuseram nova legislação social e lançaram
um programa de privatização. Nos países europeus, os governantes praticaram um
neoliberalismo mais moderado, focando sua política em restringir o gasto público e na
reforma fiscal (ANDERSON, 1995, p.12).
Com efeito, Perry Anderson (1995, p.15) indaga: “Poder-se ia perguntar qual a
avaliação efetiva da hegemonia neoliberal no mundo capitalista avançado, pelo menos durante
os anos 80. Cumpriu suas promessas ou não?”.
Perry Anderson (1995, p.16) entende que o fracasso do neoliberalismo se deu por duas
razões principais. Primeiro, porque a desregulamentação financeira criou condições mais
propícias para à especulação do que para a efetiva produção de bens e riquezas. Segundo,
porque, apesar de todo o esforço, o gasto público não diminuiu, já que os Estados tiveram que
suportar o ônus causado pelo crescimento do desemprego.
Nem por isso pode-se concluir que a era do neoliberalismo chegou ao fim. A ideologia
tenta sobreviver em meio às reiteradas crises econômicas, sobretudo nos países europeus.
Contudo, em meados do ano de 2010 e 2011 a sociedade mundial assistiu um fenômeno, no
mínimo, curioso: as elites européias e americanas conclamaram o governo a aumentar a carga
tributária sobre os mais ricos como forma de afastar a crise econômica que atinge os seus
países.9 Seria um sinal de que o caminho para o individualismo liberal está sendo novamente
abandonado em prol do coletivismo?
9
Sobre o tema, interessante matéria publicada pelo jornal Valor Econômico (POLITI, 2011), reproduzindo artigo
do Financial Times: “Na segunda-feira passada, o investidor Warren Buffett proclamou que também é a favor
do aumento dos impostos para seus colegas. ‘Enquanto os pobres e a classe média lutam por nós no
Afeganistão, e a maioria dos americanos luta para pagar suas contas, nós, os muito ricos, continuamos tendo
isenções fiscais extraordinárias”, escreveu Buffett no The New York Times. O clamor por impostos maiores
para os ricos - que é compartilhado pelo presidente Barack Obama e por muitos congressistas democratas -
parece estar de acordo com o desejo da maioria dos americanos. Uma pesquisa feita pela CNN este mês
constatou que 63% dos americanos são a favor de impostos maiores para as empresas e cidadãos ricos, para
34
É certo que, analisando os ciclos econômicos e políticos da humanidade até aqui, pode-
se constatar que as ideologias adotadas não foram capazes de efetivar a real democracia.
José Afonso da Silva (2010, p.115-116) reconhece que, embora o Estado Social de
Direito tenha relevância histórica, por revelar “um tipo de Estado tendente a criar uma
situação de bem-estar geral que garanta o desenvolvimento da pessoa humana”, tal concepção
ainda é insuficiente para caracterizar o Estado Democrático, pois a história mundial
demonstrou que o Estado Social se compatibiliza com regimes políticos divergentes, como a
democracia, o fascismo e o nazismo.11
conter a disparada da dívida do país. Mesmo assim, os republicanos no Congresso demonstram poucos sinais
de que estão dispostos a retroceder em sua posição de que qualquer aumento de impostos prejudicaria a fraca
economia dos EUA - e que tributos adicionais sobre os ricos prejudicariam os geradores de novos empregos
num momento em que se precisa desesperadamente deles”.
10
Embora o espírito cívico e coletivista predominante na Cidade – Estado10 seja um exemplo para as sociedades
modernas, é bem verdade que naquela época não se conhecia os direitos fundamentais do indivíduo. Como
explica Paulo Bonavides (1996, p. 147), “Não havia direitos essenciais do indivíduo porque ele não era
indivíduo, senão membro da comunidade. O substrato espiritual da democracia grega não era o individualismo,
mas a idéia de comunidade”.
11
Para José Afonso da Silva (2010, p.116), a expressão Estado Social manifesta-se carregada de suspeição. Cita:
“o próprio Elías Dias, que reconhece a importância histórica do Estado Social de Direito, não deixa de lembrar
a suspeita quanto a saber ‘se e até que ponto o neocapitalismo do Estado Social de Direito não estaria em
realidade encobrindo uma forma muito mais matizada e sutil de ditadura”.
35
Analisando a teoria política encampada pela nova ordem constitucional, percebe-se que
a ideologia adotada muito se compatibiliza com os valores fundamentais do Estado Social. É
nesse sentido que Paulo Bonavides (2010, p. 2010) é taxativo: “A Constituição de 1988 é
basicamente, em muitas de suas dimensões essenciais, uma Constituição do Estado Social”.
em razão de não existir justiça tributária no país, uma vez que o princípio da capacidade
contributiva não é tido como prioridade no atual sistema, comprometendo radicalmente a
redistribuição da renda. Isso se dá, na visão de Paulo Bonavides (2010, p.371), devido à
existência de poderosas forças coligadas politicamente contra o Estado Social brasileiro e
contra os importantes avanços prometidos pela CF/88, “fazendo assim inevitável o
antagonismo fatal entre o Estado e a Sociedade”.
O Estado, para atingir um maior grau de evolução, deverá estar apto a conciliar a
necessidade de intervencionismo estatal em prol dos direitos sociais com a idéia de
participação popular democrática e de segurança jurídica, observando, inclusive, os direitos
fundamentais da personalidade, dentre os quais se insere uma tributação mais justa. Assim, a
constitucionalização do Estado Democrático de Direito significa tão somente um ponto de
partida para que a sociedade evolua em busca do Estado Social Democrático de Direito, no
qual a harmonização do homem cidadão com o Estado, finalmente, poderá ser alcançada.
E para que isso ocorra, além de estar previsto na Constituição Federal, o Estado Social
deverá ser “a própria sociedade brasileira concentrada num pensamento de união e apoio a
valores igualitários e humanistas que legitimam a presente Constituição do Brasil”
(BONAVIDES, 2010, p. 371).
2 A LEGITIMIDADE E O FUNDAMENTO DO PODER FISCAL
NO ESTADO SOCIAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Por fim, o estudo levará à abordagem da teoria dos custos dos direitos, a qual considera
que todas as prestações estatais são onerosas, trazendo a lume as razões pelas quais a higidez
12
A esse respeito, interessante a obra do autor português José Casalta Nabais (1998), intitulada “O Dever
Fundamental de Pagar Impostos”.
38
Ao tempo em que o tributo é veiculado pela lei, não há como negar a sua legitimidade
jurídica. Todavia, tal constatação não significa dizer que a tributação é bem quista
socialmente, ou seja, a sua legitimidade social é frequentemente questionada. Portanto, para
uma melhor compreensão deste dilema, urge analisar as diversas teorias que fundamentam o
poder fiscal do Estado: teoria da destinação ao bem comum, teoria do preço ou da troca, teoria
do contrato social, teoria da soberania (MORAES, 1987, p. 120), teoria do sacrifício e teoria
da capacidade contributiva como causa justificadora da tributação.
Seria o tributo um preço pelo qual paga a sociedade em troca da prestação de serviços
Estatais? Seria algo inerente à própria concepção de Estado, como uma lei natural ou mesmo
no molde introduzido pela Teoria do Contrato Social? Seria um sacrifício do contribuinte?
Ou, por fim, seria simplesmente manifestação da Soberania Estatal?
especial no que diz respeito ao papel do Estado, aos direitos e obrigações dos cidadãos, à
resistência ao pagamento de tributos e à prestação dos serviços estatais.
Segundo Heleno Taveira Torres (2011, p. 568), a teoria da causa do tributo remonta na
doutrina teológica medieval, fundada em deveres de consciência e pelo critério da justiça. O
cumprimento espontâneo das obrigações tributárias era visto como justo agir e o pecado
adviria do seu não cumprimento.
Em que pese a causa do tributo justificar-se no bem comum, faltava à teoria conteúdo
ético em face da relação tributária, além do que a tributação de dava de forma aleatória, sem
critérios minimamente pré-estabelecidos. Posteriormente, influenciada pelo absolutismo, a
teoria da causa impositionis deu lugar à teoria da equivalência como justificativa para a
cobrança de tributos.
40
Tal teoria é fruto da concepção do Estado liberal, visto como uma associação criada
pelo homem para a realização de seus interesses particulares. Para os liberais, quanto menor a
intervenção estatal, menor o ônus a ser suportado pelos cidadãos contribuintes.
Sendo um pensador liberal, Locke afirmava que Estado era necessário apenas para a
garantia da liberdade individual e para o livre exercício dos direitos sobre a propriedade.
Cabia ao corpo político, formado pela comunidade, a decisão sobre as questões estatais,
inclusive sobre a tributação. É o que se vê nos seguintes trechos extraídos de sua obra
clássica. Segundo Tratado sobre o Governo:
O único modo legítimo pelo qual alguém abre mão de sua liberdade natural e
assume os laços da sociedade civil consiste no acordo com outras pessoas para
juntar-se e unir-se em comunidade, para viverem com segurança, conforto e paz
umas das outras, com a garantia de gozar de suas posses, e de maior proteção contra
quem não faça parte dela. [...]. Quando certo número de homens acordou assim em
constituir uma comunidade com governo, ficam, de fato, fazendo parte dela e
formando um corpo político, no qual a maioria tem prerrogativa de agir e resolver
por todos. (LOCKE, 2005, p. 76).
É bem verdade que os governos, para se sustentarem, geram grande dispêndio, e é
natural que todos quantos desfrutem da proteção paguem a proporção necessária
para mantê-lo conforme sua posse. Todavia, mesmo isso terá que ser com o seu
consentimento, isto é – o consentimento da maioria, dado diretamente ou através de
seus governantes. Se alguém se arrogar o poder de lançar impostos sobre o povo,
estaria violando a lei fundamental da propriedade e subverteria o objetivo do
governo (LOCKE, 2005, p. 104).
Ademais, interpretando o tributo como um preço, este não guarda equivalência com o
preço dos serviços públicos que cada contribuinte usufrui, sob pena de se esquecer dos
aspectos da solidariedade (art. 195 da CF/88) e da capacidade contributiva (art. 145 §1º da
CF/88). Exemplificando, nem todos os munícipes pagam IPTU, mas, inquestionavelmente,
todos usufruem os serviços municipais básicos, como o saneamento ou a urbanização das vias
públicas. A teoria do preço serviria tão somente para fundamentar as taxas e contribuições de
melhoria.
13
Heleno Taveira Torres (2011, p. 573) refere-se à teoria da “lei da natureza” como justificadora do tributo na
visão de Hobbes: “Para Hobbes, a legitimidade da tributação adviria de uma ‘lei da natureza’, a qual obrigaria
os governantes a dividirem os encargos da república entre os súditos, na forma de tributo. [...] para Hobbes,
tratava-se de um dever ético, que deveria vir acompanhado de critérios de justiça na sua distribuição, conforme
os benefícios auferidos no Reino. Também deveria ser assegurada a divisibilidade do tributo entre todos, a fim
de tornar o encargo menos pesado. Portanto, a evasão fiscal deveria ser rechaçada, sob pena comprometer a
justa tributação daqueles que não sonegam.”
42
Em outro norte, Rousseau, que, ao lado de Marx, forneceu a base ideológica do Estado
Social (BONAVIDES, 1996, p.166), propunha uma concepção diferenciada do
contratualismo. Reputava que a soberania e o poder de legislar, inclusive sobre tributação,
concentram-se na vontade geral, e não e na simples soma das vontades individuais. Assim, o
bem estar da coletividade legitimaria os sacrifícios individuais.
Rousseau, com a volonté générale, espinha dorsal da sua teoria democrática, que ele
postulou com tanta vivacidade, foi, na doutrina, o ponto de partida para a
compreensão social da liberdade, revigorada com a sugestão clássica do modelo
ateniense. Estreme de deformações totalitárias, serve essa compreensão de conteúdo
e base ao novo Estado social por que há de reger-se a evolução doutrinária das
democracias ocidentais.
No contexto sociológico em que se vive, não é difícil sugerir que o contrato social,
sobretudo quando norteado pela ideia de vontade geral, poderia legitimar o Estado e o poder
de tributar. Enquanto a sociedade abriria mão de parcela do seu patrimônio para prover o
Estado de recursos, caberia a este retribuir com os serviços públicos indispensáveis à
coletividade, tais como saúde, educação, segurança. O Estado é um ente necessário, e
consciente disso, o cidadão se submeteria à tributação.
Ocorre que há um flagrante descumprimento do suposto pacto social. E isso não ocorre
somente por parte do Estado. É bem verdade que a contraprestação estatal deixa muito a
desejar. A saúde pública, a segurança e prestação educacional nem de longe alcançam os
ideais almejados pela sociedade.
invocar a adoção imediata de políticas públicas toda vez que um interesse empresarial mais
influente estiver sob ameaça. Nesses casos, o Estado sempre é chamado para contornar crises
ou remover embaraços inerentes à própria economia de mercado.
Durante muitas décadas esta teoria foi utilizada como forma de justificar a imposição do
poder estatal, a fim de preservar a liberdade e a propriedade. A exemplo, na doutrina
brasileira, Leciona Morares (1987, p. 121): “o poder fiscal é inerente ao Estado, fazendo parte
de sua soberania”. Assim, “O Estado cobra tributos em virtude da soberania que exerce sobre
os seus súditos, os quais devem pagá-los independentemente de qualquer vantagem a ser
auferida” (MORARES, 1987, p. 122).
Trata-se, portanto, de uma teoria inapta para o alcance da legitimidade social do tributo,
embora já tenha amparado, em outros tempos, o fundamento jurídico da imposição.
Como esta teoria não era capaz de garantir a justiça individual, ganhou espaço a teoria
do sacrifício, segundo a qual “o contribuinte suporta um ônus, uma privação, sentida como
um peso, pela divisão do sacrifício para o custeio dos gastos públicos, o que deveria limitar
segundo os haveres individuais” (TORRES, 2011, p. 583). Enquanto a teoria do benefício
garantia uma isonomia horizontal, já que todos repartiam os custos do Estado
independentemente da capacidade econômica individual de cada um, a teoria do sacrifício
objetivou uma isonomia vertical, baseada na capacidade contributiva, a fim de efetivar a
justiça fiscal.
Com efeito, Heleno Taveira Torres (2011, p. 585) afirma que a teoria da causa jurídica
fundada no princípio da capacidade contributiva marcou o Estado Constitucional de Direito
45
do início da década de 20, tendo como principal precursora a Escola de Pavia (Pugliese, Jarah,
Varoni), liderada por Benvenuto Griziott.
Ao lado dos direitos e garantias fundamentais individuais, objetiva tutelar uma ampla
diversidade de direitos sociais, tais como saúde, educação, promoção da cultura e esporte,
lazer, proteção ao emprego e aos desamparados (art. 6º), disciplinando, minuciosamente, a
forma de prestação e de financiamento de tais atividades estatais, conforme estabelecido nos
artigos 145 a 162 e nos artigos 193 a 200 do Texto Constitucional.
Deste modo, diante das teorias apresentadas, assiste razão a Lenio Streck (2001),
quando afirma que o tributo não deve fundamentar-se nas razões de Estado ou na Teoria do
Sacrifício do cidadão, mas sim nos objetivos consagrados no Estado Social Democrático de
Direito, dentre eles a construção de uma sociedade justa e solidária, dos quais decorre um
inequívoco dever fundamental de pagar tributos:
Acolhendo esta premissa, qual seja, a de que a cidadania fiscal clama por
amadurecimento, concepção esta adotada no presente trabalho, há quem defenda a existência
14
Na doutrina estrangeira, Jose Casalta Nabais (1998, p. 675) defende a taxatividade dos deveres fundamentais,
afirmando que devem ser considerados como tais apenas os constantes, de forma expressa ou implícita, da constituição.
50
do dever fundamental de pagar tributos. A exemplo, Lenio Streck 15 (2001) e José Casalta
Nabais (1998, p. 679), que aduz:
Como dever fundamental, o imposto não pode ser encarado nem como um mero
poder para o estado, nem como um mero sacrifício para os cidadãos, constituindo
antes o contributo indispensável a uma comunidade organizada em estado fiscal. Um
tipo de estado que tem na subsidiariedade da sua própria acção (econômico-social) e
no primado da autorresponsabilidade dos cidadãos o seu verdadeiro suporte. Daí não
se possa falar num (pretenso) direito fundamental a não pagar impostos. 16
Outrossim, Ricardo Lobo Torres (1998, p. 301) entende que o tributo é um dever
fundamental, “estabelecido na Constituição no espaço aberto pela reserva da liberdade e pela
declaração dos direitos fundamentais”.
Por outro norte, é preciso ter em mente, como bem introduz Flávio Galdino (2005, p.
215), que estes “direitos não nascem em árvores”, ou seja, a efetivação das prestações sociais
acarreta custos públicos, o que exige uma nova dimensão acerca da cidadania tributária e da
tributação no país.
15
Lênio Streck (2001) afirma: “Na perspectiva de Estado Social (que inegavelmente se encontra presente no
conjunto de preceitos e princípios da CF/88), o imposto, enquanto dever fundamental, não deve ser encarado,
conforme Casalta Nabais, nem como um mero poder para o Estado nem como sacrifício para os cidadãos,
constituindo antes o contributo indispensável a uma vida em comunidade organizada em um Estado Fiscal. [...]
Daí não se pode falar num (pretenso) direito fundamental (de caráter liberal - individualista) a não pagar
impostos. Ao contrário, há um dever fundamental de pagar tributos”.
16
Importante destacar que José Casalta Nabais (1998, p.681) reconhece a existência de um dever fundamental de
pagar “impostos” e não “tributos”, uma vez que o estado fiscal sustenta-se essencialmente através da
arrecadação de daquela espécie tributária desvinculada de qualquer prestação estatal específica, e não por meio
de tributos bilaterais, como é o caso das taxas e contribuições. No presente trabalho, seguindo a tradição
nacional, utiliza-se a terminologia “direito fundamental de pagar tributos”.
17
No Brasil, extrai-se do Texto Constitucional a configuração do estado fiscal, uma vez que há clara rejeição ao
Estado Patrimonial, não só através da previsão de garantias individuais, mas também por restringir a
participação do Estado nas atividades econômicas, conforme estabelece o art. 174 da Constituição Federal de
1988. Neste ponto, merece destaque a observação feita por Nabais (1998, p.199) no sentido de que, ao assumir-
51
alargamento dos aportes financeiros por parte da comunidade, com vistas a concretizar as
diversas imposições prestacionais estabelecidas no texto constitucional.
Ainda com este propósito, será exposto o entendimento do Supremo Tribunal Federal
acerca do tema aqui proposto, abordando o precedente firmado no acórdão proferido no
Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 639.337/SP, publicado em 23/08/2011, por
meio do qual a Corte reconheceu a exigibilidade imediata dos direitos sociais e a
possibilidade de proteção judicial destes direitos, inclusive através da imposição de multa
diária ao Estado omisso, ressalvando expressamente as garantias do mínimo existencial e a
vedação de retrocesso social, sem deixar de considerar também os custos das prestações
estatais.
Inicialmente, não custa conceituar os direitos sociais, consoante a lição de José Afonso
da Silva (2011, p. 286):
Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos
fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta
ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores
condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de
situações sociais desiguais.
se como Estado Fiscal, o Estado deve respeitar a separação essencial entre estado/economia, fazendo
prevalecer o sistema de economia privada, sob pena de destruir-se como Estado Fiscal.
52
direitos sociais deixam de lado a abstratividade e passam a ser concebidos como instrumento
de redução das desigualdades sociais, viabilizando o efetivo gozo dos direitos individuais, na
medida em criam condições materiais mais propícias à igualdade substancial e ao efetivo
exercício da liberdade.
Antes disso, a liberdade proposta pelo Estado Liberal demonstrava-se vulnerável, pela
ausência de igualdade substancial. Para Bonavides (2010, p. 378), o principio da igualdade
assume papel fundamental em prol da concretização dos Direitos Sociais, e por consequência,
dos direitos fundamentais como um todo.
Não há dúvidas de que o Estado Social Democrático de Direito visa não só garantir a
liberdade e a igualdade formal, mas sim produzir a igualdade fática, ainda que para isso se
aceite como inevitável a desigualdade jurídica. Nesse contexto, os direitos sociais representam
conteúdo indissociável do Estado Social Democrático de Direito. O Estado passa a assumir o
papel de produzir na sociedade, na medida do possível, a igualdade fática, o que se
compatibiliza com o objetivo constitucional de redução da desigualdade social (art. 3º da
CF/88).
Além das cláusulas expressamente previstas na Carta Maior, Ingo Sarlet (2009, p. 118)
ressalta a abertura material para outros direitos sociais, sejam oriundos dos pactos
internacionais, seja em razão de direitos implicitamente positivados, a exemplo da garantia do
mínimo existencial, e da proibição de retrocesso social, razão pela qual se pode asseverar a
inexistência de taxatividade ou de um numerus clausus desses direitos.
Contudo, já não basta a simples previsão de direitos sociais no texto constitucional e nos
pactos internacionais. É preciso garanti-los. O entendimento segundo o qual tais direitos
veiculam-se através de normas programáticas e não podem ser exigidos judicialmente tende a
se tornar ultrapassado, sob pena de restarem banalizados os direitos fundamentais. Nesse
sentido, Daniel Sarmento (2009, p.371) ressalta ser notável o avanço ocorrido no país,
principalmente na última década, acerca do tema referente à efetivação dos direitos sociais, o
que pode ser aferido através da interpretação judicial que vem sendo aplicada a esses direitos.
Durante muito tempo, em prol do Princípio da Separação dos Poderes (art. 2º da CF/88),
consolidou-se a jurisprudência nacional no sentido de que não se inclui dentre as atribuições
ordinárias do Poder Judiciário a função de implementar políticas públicas, ainda que se
estivesse diante de uma omissão inconstitucional.
Estado Social, como narra Bonavides (2010, p.373), está na concretização dos seus objetivos,
ou seja, reside em estabelecer e inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para
garantir a efetividade dos direitos sociais básicos.
Nesse sentido, o autor alega que Estado Social brasileiro progrediu, “qualificando-se
como de terceira geração, porque não somente prevê a existência de direitos sociais, mas
também os garante através de instrumentos constitucionais”, referindo-se à criação do
mandado de segurança coletivo, do mandado de injunção e da Declaração de
Inconstitucionalidade por omissão.
A Constituição Federal, por maior que seja o seu valor, é um texto, que para ser
concretizado, necessariamente tem que contar com o auxílio de toda a coletividade e das
instituições jurídicas. A concretização da constituição virá de todos os segmentos. A lei
escrita ou decisões judiciais, em concreto, não suprem deficiência alguma caso não haja meios
materiais de fazer tais comandos serem cumpridos.
19
Exemplificando, pode-se citar os seguintes precedentes do STF: AI 455.802/SP, AI 475.571/SP, RE
401.673/SP, RE 410.715 AgR/SP.
55
Ou seja, nas palavras de Daniel Sarmento (2009, p. 388), o judiciário estaria sempre
vinculado a conceder aquilo que se insira no conteúdo do mínimo existencial,
independentemente de disponibilidade financeira pelo Estado. Acima do mínimo existencial,
a concessão de direitos sociais passaria a depender da vontade legislativa e de suficiência
orçamentária.
20
“Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir
de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político – administrativa – o ilegítimo, arbitrário e
censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da
pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência” (ADPF 45/DF, Rel. Min. Celso de Mello).
56
Em face desta ameaça, Ingo Sarlet (2009, p. 120) ressalta a importância da garantia da
proibição do retrocesso, sobretudo em virtude dos efeitos perversos da globalização no plano
econômico, dentre eles as políticas de flexibilização e de supressão de garantias dos
trabalhadores, redução das prestações sociais, incremento das desigualdades sociais, dentre
outros aspectos.
Resta definir qual o conteúdo e alcance jurídico de tal proibição de retrocesso. Para Ingo
Sarlet (2009, p. 122), a proibição de retrocesso situa-se na esfera da eficácia negativa das
normas constitucionais. Ou seja, independentemente da exigibilidade imediata dos direitos
sociais como direitos subjetivos à prestações, é possível reconhecer “posições subjetivas de
caráter defensivo (negativo), no sentido de proibições de intervenção ou mesmo proibições de
eliminação de determinadas posições jurídicas”.
Com efeito, exige-se que a ordem jurídica repudie eventuais medidas que instaurem um
estado de retrocesso. Tratando-se de direitos sociais, alterações legislativas que afetem o nível
de concretização de tais direitos devem ser rechaçadas sob pena de configurar-se evidente
retrocesso em termos de proteção social. Da mesma forma, eventuais políticas adotadas para a
redução do Estado Social de Direito devem ser contestadas, como acentua Ingo Sarlet (2009,
p.130):
que implicassem controle sobre as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos
sociais” (SARMENTO, 2009, p. 371).
Hoje, no entanto, este paradigma já foi superado. É cada vez mais comum a tutela
judicial de direitos sociais constitucionalmente consagrados, sobretudo quando esta
intervenção for necessária para assegurar condições mínimas existenciais, como é o caso da
concessão de remédios ou de tratamentos médicos negados pelo Estado.
O fato é que, ao que parece, este núcleo – mínimo existencial- também tende a se
alargar, na medida em que o próprio homem segue em sua evolução natural conquistando
melhores condições de dignidade. Poder-se-ia falar em certa gradualidade no processo de
concretização desses direitos. Se há algum tempo o judiciário reconhecia a possibilidade de
tutelar a prestação de remédios para tratamento de saúde, hoje, não raras decisões contemplam
tratamentos médicos de alto custo no exterior, muitas vezes sem considerar que o valor do
benéfico concedido a um só indivíduo acarretará perdas a toda a coletividade, tendo em vista
o imperioso realocamento deste recurso.
Ou seja, direitos que antes não integravam o núcleo mínimo dos direitos sociais básicos,
como o direito à creche para menores de cinco anos, hoje já constam neste rol. No presente
trabalho, será abordado o precedente firmado no acórdão proferido no Agravo Regimental em
Recurso Extraordinário nº 639.337/SP, publicado em 23/08/2011, por meio do qual a Corte
reconheceu a exigibilidade imediata dos direitos sociais à educação infantil para crianças com
até cinco anos de idade, admitindo a possibilidade de proteção judicial deste direito,
independentemente da disponibilidade financeira estatal, inclusive através da imposição de
multa diária ao Estado omisso.
Através dessa abordagem, será possível aproximar o presente estudo à realidade fática
em que se vive, na qual a ideia de Estado de bem–estar social vem sendo veementemente
defendida e posta em prática pelos cidadãos, encontrando acolhida, sobretudo, no Poder
Judiciário, que por sua vez tem atuado ativamente em prol da dignidade humana e da
promoção da inclusão social. Tal fenômeno, inquestionavelmente, revela a forçosa
necessidade de se legitimar socialmente a tributação, a fim de custear, na medida possível e
razoável, as conquistas sociais dos últimos tempos.
Inicialmente, o Relator Ministro Celso de Mello afirmou que os direitos sociais (em
especial, a educação) subsumem-se à noção dos direitos de segunda geração, cujo
adimplemento impõe ao Poder Público o dever de satisfação de uma prestação positiva, ou
seja, um facere, dele se desincumbindo tão somente quando criar condições objetivas que
propiciem aos seus titulares o acesso pleno.
Tais direitos exprimem a exigência de solidariedade social, bem como a asserção de que
a dignidade humana, enquanto valor impregnado de centralidade em nosso ordenamento
jurídico, só se afirmará com a expansão das liberdades públicas, quaisquer que sejam as
dimensões em que estas se projetem.
O Tribunal considerou que, embora não se inclua ordinariamente no âmbito das funções
institucionais do Poder Judiciário a atribuição de formular e de implementar políticas
públicas, excepcionalmente tal incumbência poderá ser-lhe atribuída quando a omissão estatal
vier a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais, hipótese em que não
haverá intromissão indevida nos demais Poderes da República.
Ao mesmo passo, a Corte não deixou de considerar que a efetivação dos direitos sociais,
econômicos e culturais depende de um “inescapável vínculo financeiro estatal subordinado às
possibilidades orçamentárias do Estado”, razão pela qual se confere relevo ao tema da
“reserva do possível”.
Não obstante, o Tribunal firmou entendimento no sentido de que não se revela lícito ao
Estado criar obstáculos à efetivação dos direitos sociais, sempre que estiver em questão a
favor do indivíduo a preservação de condições mínimas existenciais.
Para o Supremo Tribunal Federal, um segundo princípio merece ser invocado como
parâmetro para a definição das prestações sociais imediatamente tuteláveis: o princípio da
proibição de retrocesso.
A Corte explica que tal cláusula traduz verdadeira dimensão negativa pertinente aos
direitos sociais de natureza prestacional, tendo em vista que os níveis de concretização dessas
prerrogativas, uma vez atingidos, não podem ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo
Estado, exceto na hipótese em que políticas compensatórias venham a ser implementadas.
Por esta razão, será possível reconhecer a inconstitucionalidade de atos estatais que
revoguem garantias já conquistadas em tema de direitos prestacionais, a exemplo do que
ocorreu na jurisprudência portuguesa (Acórdão nº 39/84).
Diante de toda essa abordagem jurisprudencial, pode-se concluir que o judiciário tem
atuado como verdadeiro garantidor dos preceitos entabulados pelo Estado Social Democrático
de Direito, especialmente no que diz respeito à ampla tutela dos direitos fundamentais sociais.
61
A Teoria dos Custos dos Direitos foi amplamente divulgada no cenário mundial através
da obra “The cost of rights (1999)”, na qual Cass Sunstein e Stephen Holmes analisam a
questão dos custos de todos os direitos consagrados no ordenamento jurídico.
Indo mais a fundo do que o mero reconhecimento de que os direitos sociais demandam
prestações estatais onerosas, os autores partem da premissa de que todos os direitos, inclusive
os direitos de liberdade, são positivos e demandam algum gasto por parte do Estado para a sua
concretização. Nesse sentido, afirmam:
Assim, é preciso afastar a ideia firmada no senso comum, no sentido de que os direitos
fundamentais afetos à liberdade seriam puramente negativos, não demandando qualquer
prestação estatal positiva para a sua efetivação (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p.13-30).
Nesse contexto, não existem direitos e liberdades puramente privados, pois o exercício
de todo e qualquer direito e liberdade depende das instituições públicas, sendo públicos e
custosos. Por tal razão, a insuficiência de recursos públicos poderá afetar diretamente o pleno
exercício dos direitos fundamentais como um todo.
62
Ao longo da obra, Holmes e Sunstein (1999) relembram que os direitos são sempre
fruto de uma opção social. Conscientes desta opção, seja pela adoção de um Estado Mínimo,
seja pela escolha do Estado de bem-estar social, cabe aos indivíduos assumir os encargos
correspondentes, sendo inegável a responsabilidade destes para com a sociedade.
Redistribution is omnipresent. It does not occur only when the government takes
money from taxpayers and hands it over to the needy. Redistribution also occurs, for
example, when the public force is made available, at the expense of taxpayers
generally, to protect wealthy individuals from private violence and threats of
violence. (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p.229)
Ocorre que tais remédios também são custosos, na medida em que demandam a criação
e a manutenção de uma complexa estrutura pública, como é o caso do Poder Judiciário, a fim
de assegurar aos cidadãos a tutela adequada dos direitos, o que não pode se dar em uma
situação de vazio orçamentário. Como reconhecem os autores: “Rights are costly because
remedies are costly (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 43). E esclarecem: “No court can
function without receiving regular injections of taxpayers dollars to finance its efforts to
discipline public or private violators of rights, and when those dollars are not forthcoming,
rights cannot be vindicated” (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 45).
Enfim, para que os direitos constitucionais sejam levados a sério, é preciso levar a sério
os problemas decorrentes da escassez de recursos públicos. Este é um importante passo para
promover a conscientização dos indivíduos acerca das responsabilidades individuais para com
a coletividade, uma vez que direitos e deveres são indissociáveis: “rights and responsibilities
can hardly be separated, they are correlative” (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 140). “The
63
mutual dependence of rights and responsibilities, […] makes it implausible to say that
responsibilities are being “ignored” because rights have gone too far”.
Bem por isso, são valiosas as lições de Flávio Galdino (2005, p. 213), quando afirma
que “a falsa ideia de que alguns direitos nada custam, ou são gratuitos, gera
irresponsabilidade”. Sendo assim, a partir da consideração de que todos os direitos públicos
subjetivos são positivos e que demandam uma prestação positiva do Estado para sua
efetivação, o que implica custos públicos, há de se proceder a uma releitura da relação
tributária neste país, sobretudo porque:
The rights of Americans are neither divine gifts nor fruits of nature; they are not
self-enforcing and cannot be reliably protected when government is insolvent or
incapacitated; they need not be a recipe for irresponsible egoism; they do not imply
that individuals can secure personal freedom without social cooperation; and they
are not uncompromisable claims. (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p.220)
21
Disponível em: <http://www.portaldeauditoria.com.br/curso-contabilidade-tributaria-como-pagar-menos-imposto.asp>
22
Disponível em: <http://contabilidadenatv.blogspot.com/2010/03/curso-ibef-rio-como-pagar-menos-imposto.html>
65
Os últimos dados divulgados pelo Governo Federal (BRASIL, 2011, p.6) apontam que,
em 2010, a Carga Tributária Bruta atingiu 33,56%, contra 33,14% em 2009, indicando
variação positiva de 0,42 ponto percentual.
O contínuo crescimento dos índices apresentados tem sido objeto de profundas críticas
no cenário nacional. Reiteradamente são produzidas pesquisas no sentido de que a carga
tributária reduz o crescimento do país,23 ou ainda, estudos traçam comparações em relação à
tributação de países mais desenvolvidos, onde o retorno do tributo à sociedade se dá de forma
adequada.
23
Disponível em: <http://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/16799-ipea-estudo-sugere-que-carga-
tributaria-reduz-crescimento-do-pais>.
66
Não obstante, em vários países, sejam eles desenvolvidos ou não, é forte o apelo dos
agentes econômicos pela redução da carga tributária. A exemplo, em Portugal, José Casalta
Nabais (1998, p. 219) defende a limitação do Estado Fiscal, afirmando:
Segundo o autor, não se deve propor o retorno ao liberalismo, nem há de ser defendida a
ideia do Estado Mínimo, mas é preciso evitar o “agigantamento estatal”, o que poderia ser
concretizado através do “Princípio da Reprodutividade” (NABAIS, 1998, p. 220). Formulado
por Lorez Von Stein, este princípio “implicava que cada imposto produzisse tanto quanto o
seu montante, de modo a assim, devolver ao indivíduo (ou à economia privada) o quanto foi
arrecadado.” (NABAIS, 1998, p. 220).
Com efeito, considerando que a carga tributária brasileira não tem ultrapassado o
percentual histórico de 36% (trinta e seis por cento), comparando o parâmetro proposto pelo
autor português, pode-se afirmar que o montante global de tributos arrecadados não é
desproporcional ao nível de desenvolvimento do país, como tanto se alarma.
França, nos quais este percentual ultrapassa os 43%.24 Poder-se afirmar, então, que a carga
tributária global brasileira, isoladamente considerada, não é um real complicador da relação
tributária, uma vez que não alcança percentuais discrepantes aptos a configurar uma situação
de confisco dos bens particulares.25
É verdade que o senso comum aponta em sentido oposto. Tal fenômeno se dá em razão
da ausência de justiça tributária, já que o princípio da capacidade contributiva não é
observado de forma satisfatória, motivo pelo qual certos grupos de contribuintes são
demasiadamente onerados, enquanto outra parcela com maior disponibilidade econômica
utiliza-se de instrumentos jurídicos ou políticos para pagar menos tributos. Ou seja, ao mesmo
tempo em que a carga tributária global do país não é exorbitante, constata-se que a carga
tributária isolada sobre determinada parcela de contribuintes é arbitrária, desarrazoada e
flagrantemente confiscatória.
Por tal razão, deve-se ter em mente que eventuais políticas implementadas para a
redução da carga tributária brasileira não devem importar na diminuição da arrecadação
global, mas tão somente o redirecionamento do ônus tributário para os setores com maior
capacidade contributiva.
24
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Disponível em:
<http://www.ibpt.com.br/img/_publicacao/13891/189.pdf>.
25
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já se firmou alguns precedentes no sentido de que não é possível
reconhecer a configuração de confisco abstratamente, em razão da carga tributária brasileira. Para a Corte: “A
caracterização do efeito confiscatório pressupõe a análise de dados concretos e de peculiaridades de cada
operação ou situação, tomando-se em conta custos, carga tributária global, margens de lucro e condições
pontuais do mercado e de conjuntura social e econômica (art. 150, IV da Constituição). 2. O isolado aumento
da alíquota do tributo é insuficiente para comprovar a absorção total ou demasiada do produto econômico da
atividade privada, de modo a torná-la inviável ou excessivamente onerosa.” (RE 448432 AgR / CE - CEARÁ
Ag.Reg. no Recurso Extraordinário. Relator(a): Min. Joaquim Barbosa. Julgamento: 20/04/201. Órgão
julgador: segunda turma, publicação Dje-096. Divulg 27-05-2010, public 28-05-2010).
68
O problema da ausência de justiça fiscal será exposto sob duas perspectivas, focadas no
binômio solidariedade-capacidade contributiva. A primeira diz respeito à fragilidade da
solidariedade social, o que compromete necessariamente a distribuição de renda e a redução
das desigualdades sociais, funções modernamente assumidas pelo tributo. Neste contexto, será
analisado de que forma a sonegação fiscal contribui para a ausência de justiça fiscal no país,
bem como a forma com os Poderes Públicos estão enfrentando esta problemática.
Fazer justiça tributária exige, dentre várias coisas, ser solidário com a parte da
população mais carente. Neste papel, a tributação funciona como instrumento essencial de
redistribuição de renda e de redução das desigualdades sociais.
É no campo dos impostos que a solidariedade aparece com maior nitidez, já que, ao
contrário das taxas e contribuições, a sua destinação dirige-se ao custeio geral das atividades
estatais, sem vinculação a qualquer contraprestação específica ao contribuinte. Bem por isso,
o Estado brasileiro é caracterizado como Estado Fiscal, sustentado essencialmente por
impostos, diferentemente da hipótese de Estado Tributário.
Como condição sine qua non para o cumprimento das finalidades intrínsecas ao Estado
Social, o combate à sonegação fiscal deve ser priorizado. No intuito de estancar a
inadimplência fraudulenta do tributo, várias medidas já foram tomadas pelo Poder Público,
podendo-se citar como exemplo a adoção de sistemas informatizados avançados pelos órgãos
de arrecadação tributária, investimentos na máquina arrecadadora e fiscalizatória, a instituição
de garantias e privilégios do crédito público, bem como da possibilidade de intercâmbio de
informações fiscais entre as três esferas tributantes.
Não obstante todos os avanços conquistados, de certa forma, a sonegação fiscal ainda
não deixou de ser incentivada no país. Embora a legislação tributária estabeleça multas
administrativas que podem alcançar o percentual de até 225% (duzentos e vinte e cinco por
cento) sobre o valor original do tributo sonegado, conforme dispõe o art. 44 da Lei nº
9.430/1996, o tratamento criminal à matéria continua sendo benevolente.
Isso porque, embora a sonegação fiscal seja tipificada como crime contra a ordem
tributária, nos termos das leis nº 10.684/2003 e nº 9.249/1995, basta que o contribuinte
71
desonesto pague o tributo exigido para ter extinta a sua punibilidade.26 Mais vantajosa ainda é
a possibilidade de adesão a qualquer espécie de parcelamento do débito, situação na qual a
ação penal respectiva será suspensa, até que se cumpra integralmente o acordo administrativo,
cujas modalidades podem chegar ao financiamento do débito por até 180 (cento e oitenta
meses), conforme previsto na Lei 11.941/09.
Bem por isso, muitos contribuintes preferem arcar com os riscos da omissão de receita,
já que a punição a ser aplicada, na remota hipótese de fiscalização, é facilmente remediada
sem maiores transtornos ao sonegador. Portanto, a exemplo da legislação de países mais
desenvolvidos, como é o caso dos Estados Unidos, exige-se maior rigor no tratamento penal
dado à conduta fraudulenta, sendo dever não só do Estado, mas também de toda a sociedade, a
repreensão da prática criminosa, atuando o cidadão consumidor como poderoso instrumento
de fiscalização e de combate à sonegação.
Não há dúvidas de que uma das grandes injustiças que se opera no Brasil é a sonegação.
Enquanto uns sonegam, outros a pagam mais. Tal fator se agrava em razão da ideia
generalizada de que a condução do gasto público é ineficaz. Contra esse fenômeno, o Estado
brasileiro não deve ficar preso às ideologias conflitantes, ou seja, deve a sociedade assumir a
postura de solidariedade social, apropriando-se da ideia de cidadania e abandonando o
individualismo proposto pelo pensamento neoliberal. É de se anotar também que a capacidade
contributiva depende da solidariedade para que o sistema tributário alcance o ideal de justiça
tributária. É esse tema que será analisado a seguir.
26
Nesse sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL. HC 84798 / GO2007/0135347-0 Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, T5 - Quinta Turma. Data do Julgamento 06/10/2009. Data da Publicação. DJe
03/11/2009). “Ementa: Penal e processo penal. Habeas corpus. Apropriação indébita previdenciária e
sonegação previdenciária. pagamento integral do débito. efeitos penais regidos pelo art. 9º, § 2º, da lei 1
0.684/2003. extinção da punibilidade. inépcia da denúncia. pacientes gestores e administradores da empresa.
ordem parcialmente concedida. 1. Com a edição da Lei 10.684/2003, deu-se nova disciplina aos efeitos penais
do pagamento do tributo, nos casos dos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de
1990, e 168-A e 337-A do Código Penal. 2. Comprovado o pagamento integral dos débitos oriundos da falta de
recolhimento de contribuições sociais, ainda que efetuado posteriormente ao recebimento da denúncia,
extingue-se a punibilidade, nos termos do 9º, § 2º, da Lei 10.684/03. 3. Não se pode ter por inepta a denúncia
que descreve fatos penalmente típicos e aponta, mesmo que de forma geral, as condutas dos pacientes, o
resultado, a subsunção, o nexo causal (teorias causalista e finalista) e o nexo de imputação (teorias
funcionalista e constitucionalista), oferecendo condições para o pleno exercício do direito de defesa, máxime se
tratando de crime societário onde a jurisprudência tem abrandado a exigência de uma descrição pormenorizada
das condutas. 4. Ordem parcialmente concedida para determinar o trancamento da ação penal, exclusivamente,
em relação ao crime de apropriação indébita previdenciária.”
72
Assim, a fórmula segundo a qual todos os administrados devem contribuir, sendo que os
contribuintes com maior capacidade econômica27 devem pagar mais impostos do que aqueles
com menor disponibilidade financeira, por muito tempo, pareceu ser a mais correta.
Com efeito, o art. 145, §2º da Constituição Federal brasileira de 1998 consagrou
expressamente o princípio da capacidade contributiva, determinando que, “sempre que
possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte”.
27
Imperioso destacar a distinção realizada por Heleno Torres (2011, p. 599-600) entre capacidade contributiva e
capacidade econômica. A capacidade contributiva diz respeito unicamente à parcela da capacidade econômica
integral do contribuinte, aquela que é alcançada pelos tributos ou que pode ser objeto de tributação, afastado o
mínimo existencial e aquelas formas de manifestações econômicas que se possam gravar com tributos. “A
capacidade econômica é um dado empírico alheado de contornos jurídicos. Somente quando judicializado, este
conceito torna-se relevante para a verificação da reserva do mínimo vital e para a determinação objetiva da
capacidade contributiva, a cada espécie de tributo e a partir dos critérios entabulados em lei.”
73
que ser suportados pelo Estado, mediante a arrecadação e a distribuição de riquezas oriundas
do pagamento de tributos dos demais cidadãos-contribuintes.
Nesse contexto, a mera isenção do Imposto de Renda para trabalhadores que recebem
valores aquém do limite normativo está muito distante de alcançar a justiça tributária para
essa parcela da população. Em razão dos tributos indiretos, como é o caso do ICMS, sabe-se
que as classes mais pobres são duplamente penalizadas. Primeiro porque grande parte do seu
salário é gasto com bens de consumo, cuja tributação é inteiramente repassada ao consumidor.
Depois, porque é exatamente esta classe que necessita dos serviços estatais, que em regra, têm
sido prestados de forma deficiente.
Sendo assim, a definição de justiça tributária proposta por Adam Smith demonstra-se
ultrapassada, uma vez que a capacidade contributiva deve exigir que a tributação só exija o
imposto do contribuinte a partir do ponto em que o seu rendimento supere o mínimo
necessário para a subsistência sua e de sua família, ou seja, o mínimo existencial.
Nesse sentido, Ricardo Lobo Torres (1998, p. 302-303) assevera que “o grande
problema ético da capacidade contributiva encontra-se no seu fundamento”. Para o autor, as
teorias positivistas de equivalência, teoria da igualdade do sacrifício e teoria da capacidade
contributiva como causa do tributo não são capazes de efetivar o mandamento.
É verdade que o ordenamento tributário já evoluiu no que tange à busca pela justiça da
carga tributária. A progressividade das alíquotas é uma clara manifestação desse fenômeno.
Acerca deste assunto, Nabais (1998, p. 577) assevera que “o princípio do Estado Social
constitui o verdadeiro fundamento da progressividade, ainda que a projeção do imposto seja
apenas alguma das suas projeções”.
onerosa do que os seus secretários de classe média. Interessante conhecer alguns dos seus
argumentos:
OUR leaders have asked for ‘shared sacrifice’ But when they did the asking, they
spared me. I checked with my mega-rich friends to learn what pain they were
expecting. They, too, were left untouched. […]
Last year my federal tax bill — the income tax I paid, as well as payroll taxes paid
by me and on my behalf — was $6,938,744. That sounds like a lot of money. But
what I paid was only 17.4 percent of my taxable income — and that’s actually a
lower percentage than was paid by any of the other 20 people in our office. Their
tax burdens ranged from 33 percent to 41 percent and averaged 36 percent. […]
I know well many of the mega-rich and, by and large, they are very decent people.
They love America and appreciate the opportunity this country has given them.
Many have joined the Giving Pledge, promising to give most of their wealth to
philanthropy. Most wouldn’t mind being told to pay more in taxes as well,
particularly when so many of their fellow citizens are truly suffering.[…]
A situação narrada por Buffettt (2011) expõe com clareza o segundo gravame incidente
sobre o princípio da capacidade contributiva: a classe média, tributada diretamente na fonte,
vê-se sobrecarregada com uma carga tributária tão árdua, compensatória dos privilégios
odiosos concedidos às empresas e do déficit provocado pela sonegação fiscal.
A guerra fiscal pode ser definida como a prática de concessão de incentivos fiscais
unilateralmente por certos entes federativos, relacionados especialmente ao ICMS e ao ISS, à
revelia da legislação e da Constituição Federal e sem a concordância dos demais entes
tributantes, gerando a concorrência acirrada entre os Estados e Municípios em busca de novos
investimentos privados.
No que tange ao ICMS, visando coibir tal prática, o artigo 155, § 2º da Constituição
Federal de 1988 dispõe de verdadeira engenharia constitucional voltada para o combate da
“guerra fiscal” entre os Estados responsáveis pela arrecadação do Imposto sobre a Circulação
de Mercadorias e Serviços.
75
Todo incentivo fiscal é legítimo quando concedido sob amparo constitucional, enquanto
se nutre do propósito de reduzir desigualdades e promover o bem comum, como o
desenvolvimento nacional ou regional, sustentado em desígnio constitucional que se
preste à promoção da quebra das desigualdades ou preservação dos direitos individuais
ou sociais, ou ainda, o próprio sentido de unidade econômica do federalismo.
Por tal razão, pode-se justificar a opinião radical de Ives Granda Martins (2011, p
1157.), segundo o qual deve haver a “vedação absoluta à concessão de estímulos fiscais e
financeiros via ICMS, pois se trata de um imposto de vocação nacional, que no Brasil,
gritante exceção no concerto das nações, foi regionalizado”. Ou seja, o autor afirma que o
problema a guerra fiscal no Brasil tem sua origem na formulação da EC nº 18/65, por meio da
76
qual era possível regionalizar um tributo de “vocação nacional, mediante o princípio geral do
valor agregado, ou melhor, da não cumulatividade”.
De fato, embora Heleno Torres (2011, p.621) reconheça o sentido social dos incentivos
fiscais, no atual cenário da guerra fiscal do ICMS no Brasil, pode-se afirmar que a concessão
de incentivos fiscais pelos entes federados deixa de significar importante instrumento de
redução das desigualdades sociais e regionais para se tornar um preocupante complicador da
relação tributária.
Tal política revela-se temerosa, na medida em que nem todos os entes federativos
possuem a mesma capacidade de conceder privilégios, sem sacrifício da competente prestação
de serviços públicos à sociedade. Bem por isso, as desigualdades regionais se acentuam, já
que os Estados mais pobres são exatamente aqueles que mais precisam de empregos e do
incremento do pólo industrial, mas não podem abrir mão de suas receitas fiscais, sob pena de
comprometimento dos parcos serviços prestados à comunidade. Sendo assim, a proposta de
desenvolvimento econômico e social também fica comprometida.
Parte-se do princípio de que a legislação tributária de cada país deva ser diferenciada,
para que possa se adequar à história, à cultura e aos interesses de cada nação. Nesse sentido,
Reuven S. Avi-Yonah (2010, p. 2) leciona: “Tax Law reflects specific national histories,
cultures and interests, and not surprisingly they differ”. Da mesma forma, o economista
Joseph Schumpeter (1954, p. 7) preceituava: “the spirit of a people, its cultural level, its social
structure, the deeds its policy may prepare – all this and more is written in its fiscal history”.
Ocorre que, desde meados de 1980, o regramento tributário interno dos Estados tem
convergido e a maioria dos países passou a “relaxar suas restrições à mobilidade do capital”.
No caso dos Estados Unidos e dos países da Europa, três exemplos muito claros demonstram
este acontecimento: 1) o mix fiscal global, com a instituição de imposto único usado por
78
diferentes países (IVA); 2) a integração fiscal das empresas; 3) a escolha entre a tributação
global ou territorial (AVI-YONAH, 2010, p. 02).
A globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais
em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que
acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de
distância e vice-versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos
locais podem se deslocar numa direção anversa às relações muito distanciadas que
os modelam. A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a
extensão lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço.
para suprir seus custos. Como explica Nabais (2011, p.31.): “Daí que o problema actualmente
mais crítico seja o da insuficiência da receita fiscal decorrente dessa concorrência fiscal” (sic).
Inevitavelmente, para manter a indústria nacional competitiva, o governo tem que abrir
mão de receitas e desonerar o custo final dos produtos produzidos em seu território, quer se
destinem à exportação, quer tenham por destinatário final o consumidor interno, como é
exemplo clássico a recente fixação de “alíquota zero” para o IPI incidente sobre veículos e
eletrodomésticos. Consequentemente, a classe média fica sobrecarregada, uma vez que sobre
o rendimento do trabalho se acentuará a carga tributária, já que esses contribuintes não podem
se deslocar para outra jurisdição, ou seja, não podem negociar o domicílio da obrigação
tributária. É o que ressalta o estudo de Avi- Yoná (2010, p. 4): “If capital is more móbile that
labor, one would expect a shift in the tax base from capital to labor”. Da mesma forma,
Nabais (2011) vislumbra a ocorrência de um verdadeiro apartheid fiscal, segregando um
grupo de contribuintes excessivamente tributados e outro grupo com benefícios odiosos.
Não bastasse este efeito reflexo sobre a tributação na fonte do trabalhador, constata-se,
ainda, o crescente número de desemprego no país, já que a competitividade do produto
internacional diminui a produção interna e a demanda por mão de obra nos diversos setores.
Por outro lado, caso o Estado opte pela contínua renúncia de receita fiscal, a sustentabilidade
do Estado restará comprometida, especialmente diante da escassez de recursos para o
financiamento das atividades estatais, pondo em questão o bem estar social e a garantia do
mínimo existencial para a parcela mais carente da população.
Em face deste quadro de insatisfação social, muitos autores afirmam que o processo de
globalização é entendido como uma construção primordialmente ideológica, útil para a
justificação e a legitimação de projetos como o do “livre mercado neoliberal” e a
consolidação do capitalismo americano mundialmente (FERNANDES, 2011, p. 26).
80
É certo que o país não ficaria alheio aos avanços globais percebidos nas últimas
décadas. Além disso, as conquistas sociais recentes colocaram o país em destaque no cenário
internacional, o que não deixa de ser reflexo da globalização.
Não se deve aceitar, contudo, que tais conquistas sociais sejam ameaçadas pela
ideologia neoliberal, razão pela qual é preciso ter consciência de que a disputa acirrada na
conjuntura do mercado internacional representa inequívoco gravame ao Estado Fiscal e à
harmonia da relação fisco-contribuinte. Nesse sentido, são válidas as lições de Lenio Streck
(2000, p. 2), no sentido de que “a globalização neoliberal-pós-moderna coloca-se justamente
como o contraposto das políticas do Welfare State.” Por tal razão, “precisamos de um Estado
cada vez mais forte para garantir os direitos num contexto hostil de globalização neoliberal”.
Tamanha é a complexidade do tema, que alguns municípios optam por abrir mão de
receitas fiscais em razão do custo para a arrecadação e fiscalização dos impostos de sua
competência. Em face de situações esdrúxulas como esta, a reforma tributária torna-se
imperiosa, com a finalidade de viabilizar a tributação por parte dos contribuintes e do Fisco,
sob pena de contínua lesão ao erário público e do comprometimento dos fins sociais.
Diante dessa problemática, Misabel Abreu Machado Derzi (2010, on line) esclarece que
o princípio da praticabilidade é identificado como um imperativo constitucional implícito que
visa, em última análise, tornar o ordenamento jurídico tributário exeqüível, realizável,
28
Estudo mais recente publicado pelo IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário) constatou, em
relação ao número de normas a que estão sujeitos as empresas sediadas no Brasil: “Como a média das
empresas não realiza negócios em todos os Estados brasileiros, a estimativa de normas que cada uma deve
seguir é de 3.507, ou 30.384 artigos, 91.764 parágrafos, 293.408 incisos e 38.596 alíneas. Isto corresponde a
5,9 quilômetros de normas, se impressas em papel formato A4 e letra tipo Arial 12. Em decorrência desta
quantidade de normas, as empresas gastam cerca de R$ 43 bilhões por ano para manter pessoal, sistemas e
equipamentos no acompanhamento das modificações da legislação”.
82
O sistema substitui oito impostos federais distintos por um único imposto sobre o
faturamento. Além de cumprir seus objetivos iniciais, o Simples reduziu o custo de
fiscalização da Receita Federal em R$ 235 milhões por ano e, desde sua criação,
gerou mais de 3 milhões de empregos. ‘O Simples é um modelo que o mundo inteiro
está tentando copiar’, orgulha-se Everardo.
pendeu para a adoção deste, ante a conclusão de que há outras vias de ressarcimento para
que o substituído possa reaver os créditos que possua frente à Administração tributária.
3. Recurso especial não provido. (BRASIL. STJ, Recurso especial 2008/0044906-0.
Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 25/05/2009).
Por fim, não custa destacar que a ampla diversidade normativa observada no direito
tributário vai de encontro ao previsto na Lei Complementar 95/1998, que é a lei geral em
matéria legislativa, conforme comando imposto pelo art. 59, parágrafo único da Constituição
Federal de 1988. Tal norma estabelece, dentre outras regras: 1)cada lei terá um único objeto;
2) a lei não conterá matéria estranha ao seu objeto ou a este não vinculada por afinidade,
pertinência ou conexão; 3) o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei,
exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-a
a esta por remissão expressa.
Heleno Taveira Torres (2011, p.256) esclarece que a LC 95/1998 objetiva dar
acessibilidade e estabilidade à relação jurídica, porém, falta-lhe efetividade e observância por
parte dos parlamentares do federalismo tributário. A simplificação e a consolidação do
Sistema Tributário brasileiro são exigências não só para a efetivação da norma complementar,
mas também representam importantes passos em prol da legitimação social do tributo no país.
O mau uso do dinheiro público é apontado como uma das causas da sonegação fiscal no
Brasil. O consenso popular fixou a ideia de que o dinheiro pago com impostos não é gasto
satisfatoriamente, já que o retorno à sociedade é praticamente imperceptível. Acredita-se que,
na medida em que os serviços públicos essenciais como saúde, educação e infraestrutura são
desprezados pelo Poder Público, o dinheiro dos impostos escorre na vala da corrupção, ou
ainda, na ineficiente administração do mau gestor.
É verdade que o país avançou no combate à corrupção, sobretudo por meio da atividade
desenvolvida pelos órgãos de controle e fiscalização, em especial os Tribunais de Contas, o
Ministério Público, a Advocacia Geral da União e as Procuradorias Estaduais e Municipais,
84
Não obstante, exige-se um esforço contínuo por parte das Instituições Públicas e da
sociedade no combate à corrupção, fator social supostamente justificante do não pagamento
de tributos. A corrupção e não o pagamento de impostos são causas impeditivas do
desenvolvimento e do progresso do país, comprometendo as finalidades primordiais do
Estado Social.
Contudo, é preciso ter ciência de que este não é o único fator comprometedor da
eficiência do gasto público. A adoção de soluções eficientes quanto à definição de prioridades
para a alocação das receitas públicas reflete um dos maiores desafios da administração pública
no Brasil. Em razão do engessamento orçamentário decorrente das vinculações legais e
constitucionais, analistas apontam que apenas 10% (dez por cento) das despesas do Estado
podem ter a sua destinação livremente deliberada (GALDINO, 2005, p. 256). Por tal razão,
exige-se a otimização dos recursos disponíveis.
Se a despesa aumenta, é preciso arrecadar mais. Por tal razão, a tributação deve ser
planejada conjuntamente com o orçamento estatal. Como leciona José Afonso da Silva (2010,
p.656), “Tributação e orçamento são dois instrumentos da atividade financeira do Estado, que
consiste na obtenção, administração e emprego dos recursos financeiros na satisfação dos
interesses coletivos.”
fisco-contribuinte, contribuindo para a sua harmonização, já que assim poder-se-á garantir que
os tributos arrecadados sejam efetivamente aplicados conforme a vontade popular.
Como acentua Denise Lucena Cavalcante (2012, p. 36), “A Lei 12.527 de 18.11.2011
representa o marco regulatório no Brasil sobre o acesso às informações públicas, buscando
democratizar o alcance aos bastidores que compõem as políticas públicas.”
29
Além de órgãos e entidades públicas dos três níveis de governo, as autarquias, fundações, empresas públicas e
entidades privadas sem fins lucrativos que recebem recursos públicos devem colocar as informações à
disposição do cidadão de forma gratuita. Da mesma forma, a lei garante o acompanhamento de dados gerais de
programas, ações, projetos e obras, por meio de simples acesso ao sítio do governo federal na internet.
86
Com isso, percebe-se que embora estejam sendo adotadas medidas por parte dos
Poderes Constituídos em benefício da transparência fiscal e da eficiência do gasto público,
ainda depende da sociedade a sua efetiva participação nesses processos, o que certamente
resultará na superação do paradigma até então existente e contribuirá para a legitimação social
do tributo, e consequentemente, para a concretização do Estado Social Democrático de
Direito.
Em verdade, a ideia segundo a qual o direito tributário é concebido de forma pura, sem
interferências econômicas e sociais encontra-se superada. A definição neutra da tributação
muito se aproxima do paradigma jurídico dominante no século XIX, ideologicamente
construído por Kelsen30 em sua “Teoria Pura do Direito”, por meio da qual a ciência jurídica
era concebida de forma pura, neutra, excluindo do seu âmbito as dimensões fáticas e
valorativas.
Como é sabido, a “Teoria Pura” de Kelsen foi bastante criticada por distanciar o Direito
do seu real conteúdo e da realidade social. Ao conceber o Direito de forma reducionista, a
ciência jurídica desprezaria, por exemplo, a análise econômica do direito e os impactos
financeiros e sociais das decisões judiciais, que muitas vezes são determinantes na
interpretação da norma tributária.
Com a superação do paradigma positivista, é cada vez mais crescente a procura por
novos parâmetros racionais de expressão do Direito. E nesse passo, o Poder Judiciário passa a
30
A Teoria Pura do Direito foi formulada por Hans Kelsen através de sua extensa obra, tornando-se um
verdadeiro paradigma da ciência jurídica no século XX. Foi inicialmente esboçada no ano de 1911, com a
publicação do livro Problemas Fundamentais da Teoria Jurídica (Hauptproblemen der Staatsrechechtslehre).
Posteriormente, sua ampla bibliografia traçou os contornos da teoria, adaptando e reforçando os seus
fundamentos, como se vê na publicação dos livros Teoria Geral do Estado (1923), Teoria Pura do Direito
(lançada em 1934 e republicada em 1960, sendo este o principal trabalho sobre o tema) e a Teoria Geral do
Direito e do Estado (publicado em 1945)
87
exercer um papel fundamental. Primeiro porque, diante das diversas fontes de poder, o Direito
passa a desenvolver um papel condicionador e limitador das forças conflitantes. Em segundo,
diante do fato de, se que não há como neutralizar o Direito em si, propõe-se, na medida do
possível, a neutralidade de sua aplicação.
Isso não quer dizer que o judiciário esteja imune às pressões de ordem política e que
adote uma postura indiferente frente a essas questões. A neutralidade que se impõe, segundo
Ferraz Jr. (1994, on line.) “encontra-se no nível das expectativas institucionalizadas: ainda
que de fato haja pressões políticas, estas institucionalmente não contam”.
efeitos da decisão, prevista nos art. 27 da Lei nº 9.868/99 e art. 11 da Lei nº 9882/99, cuja
redação é a seguinte:
Inolvidável que à época da decisão houve grande apelo por parte do Poder Executivo
em prol da modulação dos efeitos fixada no acórdão. Na hipótese de ser declarada a nulidade
da norma com efeitos ex tunc, o prejuízo ao erário causado pelas restituições de indébito
pleiteadas pelos contribuintes seria imensurável, sendo certo que o cumprimento das
finalidades estatais ficaria comprometido, gerando prejuízos diretos à parcela da sociedade
menos favorecida.
É de se considerar que, com fulcro na teoria dos custos dos direitos já apresentada,
inolvidável que o mecanismo de modulação possui justificativa social e econômica, uma vez
que o grave impacto orçamentário provocado pela retirada retroativa da norma do
ordenamento jurídico poderia comprometer a prestação de serviços essenciais, sobretudo
31
Importante ressalva faz Heleno Taveira Torres (2011, p. 462), segundo o qual o art. 27 da Lei 9.868/99 não
autoriza acreditar na existência de um Estado Ponderador”, nem mesmo confere ao STF licença para decidir sobre
a égide de critérios da razoabilidade e proporcionalidade as questões constitucionais analisadas. A única liberdade
cabível é a restrição dos efeitos da declaração para garantir a segurança jurídica e o excepcional interesse social.
89
Por tal razão, vozes autorizadas na doutrina pátria discordam da adoção do mecanismo
de modulação de efeitos das decisões utilizado pelo Supremo Tribunal Federal. Neste sentido,
oportuno transcrever a lição de Harada (2012, on line):
Em que pese a opinião do renomado autor, ainda que esta realidade seja criticável, o
parâmetro positivista não cumpre com o dever estatal de garantia do bem-estar social. Com a
consagração e a constante difusão dos direitos sociais, sobrepõe-se a atividade criadora do
90
juiz, pois ao judiciário não cabe apenas julgar o que é certo e errado com base na lei, mas
também é sua a atribuição de analisar se a atividade discricionária do legislativo coaduna-se
com as finalidades a que se destina o Direito e com as exigências do Estado Social. Ademais,
como pondera Heleno Torres (2011, p. 461), “razões de segurança jurídica, certeza jurídica e
de acessibilidade do jurisdicionado ante o próprio Tribunal” sugerem a importância do
cabimento da medida prevista no art. 27 da Lei 9.868/99, afirmando ainda que os pressupostos
legais evitam que o julgador aja por arbítrio ou puro consequencialismo, mas sim por critérios
certos e coerentes, no caso, a segurança jurídica e o excepcional interesse social, sendo
inconteste a segurança garantida pelo quorum qualificado. Paulo de Barros Carvalho (2005,
p.10) coaduna-se com esta opinião, afirmando que a segurança jurídica e o excepcional
interesse social devem ser invocados para proteger as relações formuladas com fulcro no
princípio da presunção de constitucionalidade das normas, resguardando-se as situações
jurídicas já firmadas.
A fim de evitar o inevitável desgaste entre sociedade e Estado frente aos julgamentos
proferidos em controle de constitucionalidade, o melhor remédio parece ser a prevenção, ou
seja, o controle prévio da constitucionalidade das normas antes mesmo de sua edição,
consoante os diversos mecanismos já previstos no próprio texto constitucional, como são
exemplos o exame prévio do projeto de lei na Comissão de Constituição e Justiça, conforme
previsto no Regimento Interno do Senado Federal e Câmara dos Deputados, assim como a
possibilidade de veto jurídico do texto pelo Poder Executivo, na hipótese do art. 66, § 1º da
Constituição Federal de 1988.
The fiscal capacity of the state has its limits not only in the sense in which this is self-
evident and which would be valid also for a socialist community, but in a much
narrower and, for the tax state, more painful sense. If the will of the people demands
higher public expenditures, if more and more means used for purposes for which
privates individual have not produced them, if more and more power stands behind
this will, and if finally all parts of the people are gripped by entirely new ideas about
private property and the formas of life-then the tax state will have run its course and
society will have to depend on other motive forces for its economy than self-interest.
This limit, and with it the crisis which the tax state could not survive, can certainly be
reached. Without doubt, the tax state can colapse. (SCHUMPETER, 1954, p.25).
Com efeito, a crise do Estado Fiscal32 pode ser identificada como “as dificuldades de
relacionamento entre a ordem econômica e o financiamento público mediante tributos”, ou
ainda, “a própria crise de segurança jurídica por que passam a criação e a aplicação da
legislação tributária” (TORRES, 2011, p. 174). Em outras palavras, os mais variados
problemas inerentes ao Sistema Tributário contemporâneo levariam os contribuintes ao
desinteresse de prosseguir com as atividades produtivas (TORRES, 2011, p. 173).
Ainda antes da Segunda Guerra, com a finalidade de evitar o colapso do Estado Fiscal,
economistas renomados, apontavam que o Estado não pode arrecadar mais do que um quarto
32
O significado de Estado Fiscal foi abordado no capítulo primeiro: “Estado cujas
necessidades financeiras são essencialmente cobertas por impostos oriundos do patrimônio do
contribuinte, sendo esta a característica da maioria dos países contemporâneos. Na
oportunidade, traçou-se a diferenciação entre Estado Fiscal, Estado Patrimonial e Estado
Social.
92
do produto nacional bruto ou renda nacional bruta do país sem gerar pressões inflacionárias
irresistíveis (DRUCKER, 1997, p. 61). Em tempos atuais, Drucker (1997, p. 61) avalia que o
limite de 40% (quarenta por cento) é mais próximo da realidade da maioria dos países. Não
obstante, este limite de fato existe e quando é ultrapassado, o aumento da receita pública deixa
de estimular a economia, provocando ou uma depressão ou uma estagflação. A consequência
do aumento deste percentual da carga tributária não é o aumento da receita, mas sim a sua
diminuição, ante o inevitável retrocesso da atividade econômica.
Peter Drucker (1997, p. 62) aponta, ainda, outro grave impedimento do Estado Fiscal:
quando a carga tributária supera os percentuais razoáveis de oneração, algo em torno de 35%
(trinta e cinco por cento) a 40% (quarenta por cento), ocorre uma rebelião fiscal silenciosa, na
medida em que as pessoas param de trabalhar, com o objetivo de não auferir renda, evitando
que ocorra o fato gerador do tributo, ou ainda, passam a sonegar, fazendo surgir a economia
informal paralela.
Por tal razão, o sistema constitucional tributário deverá estar apto a superar tais
obstáculos, inclusive, eventuais crises que venham a comprometer os fins sociais pré-
estabelecidos. Ao que parece, o que deve chegar ao fim não é o Estado Fiscal, mas sim o
Estado de Dispêndios, não conhecedor dos limites da arrecadação. A busca pelo equilíbrio da
relação tributária, através da correção das flagrantes distorções no sistema deve ser concebida
como prioridade nas políticas estatais.
4 INSTRUMENTOS DE PACIFICAÇÃO DA RELAÇÃO
JURÍDICA TRIBUTÁRIA
33
Aécio S. Cunha (2002) rememora que a derrama aterrorizou a população da capitania de Minas em meados do
século XVIII, de modo que a insatisfação com o imposto do quinto motivou membros da elite mineira a
contestar o pacto colonial.
95
tributária (como exemplo, 37% de tudo tramita na Justiça Federal e 51% e 56% de todo o
contencioso dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro), respectivamente”.
34
Disponível em: <File:///D:/Documents%20and%20Settings/66118484368/Configura%E7%F5es%20 locais
emporary%20Internet%20Files/Content.IE5/W20ZVF7D/BGU_2011%5B1%5D.ppt#257,1,Slide>
35
Não se pretende abordar exaustivamente o tema dos princípios tributários, o que demandaria um trabalho
acadêmico próprio, mas objetiva-se tão somente estimular a promoção de alguns valores essenciais para o
alcance do fim objetivado, qual seja, a legitimação social do tributo.
96
Por fim, serão abordados dois institutos tributários hábeis a minimizar a lide fiscal, no
caso, a compensação e a transação, todos com previsão expressa no Texto Constitucional e no
Código Tributário Nacional, além de outras legislações esparsas. Tais instrumentos podem ser
concebidos como relevantes formas alternativas de composição de interesses entre o Fisco e
os contribuintes, evitando o acionamento estatal para a solução de conflitos.
Dos artigos 145 a 156 da Carta Maior pode-se extrair a essência do Sistema Tributário
Nacional, cujas normas irradiam efeitos e limitações a todo o ordenamento jurídico. É certo
também que outros preceitos constitucionais influenciam diretamente a formulação da política
tributária, sobretudo os capítulos que versam sobre os Princípios Fundamentais (art. 1º ao art.
4º), os Direitos e Garantias Fundamentais (art. 5º), a Repartição de Receitas Tributárias (art.
157 a 162), as Finanças Públicas (art. 163 a 169) e a Seguridade Social (art. 195).
Por tal razão, ao lado dos princípios expressos no ordenamento jurídico, os quais serão
sucintamente abordados com enfoque jurisprudencial, deve-se considerar a existência de
valores jurídico-tributários implícitos na linguagem do texto constitucional.
36
Para que se possa aferir o elevado grau de litigiosidade da relação tributária, cita-se como exemplo a capital
paulista, onde existem 12 (doze) varas federais especializadas em execução fiscal federal. Além dessas doze
varas, as vinte e seis varas cíveis federais contam com alto estoque de processos ajuizados contra a União -
Fazenda Nacional com o objetivo de discutir matéria tributária federal. Ademais, como já falado, Heleno
Torres (2011, p. 27), observa: estatísticas apontam que “quase metade de todas as ações curso no país são de
natureza tributária (como exemplo, 37% de tudo tramita na Justiça Federal e 51% e 56% de todo o contencioso
dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro), respectivamente”.
98
Por óbvio, não se trata de uma inovação do Direito Brasileiro, já que, culturalmente, a
“legalidade é um preceito de interdição, de proibição à realização de desejos de uma dada
pessoa ou conjunto de pessoas” (SCAFF, 2005, p. 374). Nesse sentido, além de ser clara
manifestação da soberania popular, há muito tempo a legalidade tributária é concebida como
instrumento de contenção do exercício arbitrário e irracional do Poder, decorrente do
pensamento clássico de Montesquieu (1982, p. 187) e de sua Teoria da Separação dos
Poderes:
Por tal razão, Hugo de Brito Machado (2004, p. 22) chama a atenção para o fato de que
legalidade não quer dizer apenas que a relação de tributação é jurídica, mas sim que, no que
tem de essencial, esta relação há de ser regulada em lei. “Não em qualquer norma jurídica,
mas em lei, no seu sentido específico”.
37
O princípio da legalidade também é excepcionado pela Constituição através do disposto no art. 153, §1º da
CF/1998, que autoriza a alteração de alíquotas pelo Poder Executivo mediante Decreto dos seguintes impostos:
Imposto de Importação, Imposto de Exportação, Imposto sobre Produtos Industrializados, e Imposto sobre
Operações Financeiras.
99
38
Fernando Scaff (2005, p.388) leciona que no julgamento do RE nº 146.733-9-SP (RTJ 143/2-684), o Supremo
Tribunal Federal, em controle difuso de constitucionalidade fez equivaler as medidas provisórias aos Decretos-
lei: “Não há razão para que, em face da medida provisória, que nada mais é do que modalidade do Decreto –
lei, sem restrições, quanto ao seu objeto, constantes da Emenda Constitucional nº1/69, que se passe a entender
que a mesma vedação (exigir ou aumentar tributo sem lei que estabeleça), agora constante do art. 150, I
(também integrante do Sistema Tributário Nacional), mudou de sentido, para passar a exigir nesse caso, lei em
sentido formal e não, apenas, em sentido material”.
100
de medida provisória para criar ou majorar impostos não confere ao Executivo as mesmas
prerrogativas garantidas à lei oriunda do Congresso Nacional. Portanto, o art. 62 da
Constituição Federal deve ser interpretado restritivamente. A primeira restrição diz respeito
ao fato de que as matérias tributárias afetas à Lei Complementar não podem ser objeto de
Medida Provisória (art. 62§1º). Observa-se também que as medidas provisórias não alcançam
todos os tributos, mas tão somente os impostos, devendo ser convertidas em lei até o último
dia do exercício financeiro em que foi editada, para que produza efeitos no exercício
financeiro seguinte (art. 62, §2º). Por fim, exige-se para a edição de medida provisória a
presença dos requisitos da relevância e urgência. Neste último ponto, percebe-se que ambos
os vocábulos traduzem expressões marcadas pelo subjetivismo, dificultando o seu controle
pelo Congresso Nacional e pelo Poder Judiciário. Ora, se a medida provisória deve ser
convertida em lei até o último dia útil para que a exigibilidade do tributo se dê no exercício
seguinte, já resta duvidosa a sua relevância e urgência.
Sendo assim, por ser uma conquista histórica, o princípio da legalidade há de ser o
fundamento para a imposição da obrigação tributária, devendo ser rechaçadas as tentativas de
excepcionar tal postulado, a exemplo da possibilidade de criação ou de majoração de
impostos por meio de Medidas Provisórias, fenômeno que tende a comprometer a
legitimidade da imposição fiscal, afastando a relação tributária dos pilares do Estado
Democrático de Direito.
O art. 150, inciso III da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre três garantias
individuais dos contribuintes, quais sejam: a irretroatividade, a anterioridade anual e a
anterioridade nonagesimal da lei tributária.
quanto a cobrança de tributos “em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da
vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”. Ou seja, a lei tributária não poderá
retroagir para fazer incidir tributo sobre situações jurídicas já consolidadas no passado.
É a partir desse novo estatuto do contribuinte que emerge a regra que veda a surpresa
fiscal, consectário maior do princípio da segurança jurídica no âmbito do Direito Tributário.
102
Em outras palavras, objetiva-se a efetivação da igualdade material. Não basta que a lei
declare que todos são iguais, mas sim o Estado deve propiciar os meios adequados para a
redução das desigualdades, funcionando o Sistema Tributário como poderoso instrumento de
equalização das diferenças econômicas e sociais. Como enfatiza Valdés Costa (1996, p.370),
como gênero, o Princípio da Igualdade deixa de ser traduzido como “igualdade perante a lei”
para significar “igualdade por meio da lei”, “en el sentido de que ésta séria utilizada como
instrumento para lograr uma igualdad de lós individuos, corrigiendo las desigualdades
económicas imperantes”.
p. 22), “eis o paradoxo da segurança jurídica: o ordenamento jurídico, criado para conferir
segurança, em si mesmo, segundo o seu manejo, pode ser causa de insegurança e incertezas”.
Ora, não raras vezes o governo brasileiro adota políticas públicas flagrantemente
afrontosas à Segurança Jurídica da relação tributária, impondo verdadeiras exceções às
garantias petrificadas no Texto Constitucional. O exemplo39 mais claro é também um dos mais
recentes: por meio do Decreto 7.567/2011, o Executivo majorou a alíquota de IPI para carros
importados em 30% (trinta pontos percentuais), impondo em seu artigo 16 a vigência imediata
da nova alíquota.
39
Outro exemplo de quebra da segurança jurídica por parte da Legislação Tributária consiste no disposto no art.
3º da LC 118/05, o qual fixou o prazo da repetição de indébito tributário em 5 (cinco) anos, contrariando a
jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores no sentido de que o prazo para a restituição do pagamento
indevido de tributo sujeito ao lançamento por homologação era de 10 (dez) anos. Mais gravosa ainda foi a
determinação contida em seu art. 4º, para que se dê aplicabilidade imediata à nova “lei interpretativa”, logo
após a vacatio legis. No caso, a fim de restaurar a segurança jurídica violada, o STF, no julgamento do RE
566.621/RS, submetido à sistemática da Repercussão Geral, ao apreciar a constitucionalidade do art. 4° da Lei
Complementar n. 118/05 nos autos do RE n. 566.621/RS, considerou-o inconstitucional em sua parte final, no
ponto em que determina que o art. 3º da referida LC (que dispõe, em suma, que o prazo para a repetição do
indébito de tributos sujeitos a lançamento por homologação conta-se da data do pagamento antecipado de que
trata o art. 150, § 1º do CTN) possui natureza interpretativa e, portanto, retroage para alcançar fatos pretéritos.
106
Diante de medidas deste jaez, o princípio da segurança jurídica deverá impedir que os
contribuintes sujeitem-se a um estado permanente de exceção, sendo certo que suas condutas
deverão estar fundadas na lei e na Constituição, e não por relações de força ou de império.
Não há mais espaço para que os sujeitos da relação tributária se esquivem das garantias do
Direito Adquirido, do Ato Jurídico Perfeito, da Coisa Julgada, da igualdade, da legalidade, da
irretroatividade e da universalidade da jurisdição, principais manifestações constitucionais da
segurança jurídica.
salvaguardada. Eis a razão pela qual a observância do Princípio da Segurança Jurídica impõe-
se como pressuposto do equilíbrio da relação tributária.
A concepção do tributo enquanto fator de rejeição social aliada aos variados problemas
concernentes à judicialização da obrigação tributária, em especial, a morosidade e o alto custo
do processo judicial, tem demonstrado a necessidade de reformulação da lide tributária.
Contemporaneamente, muitos conflitos tributários são submetidos previamente ao julgamento
administrativo, que é menos oneroso ao Estado e ao contribuinte, além de contar com
“julgadores” tecnicamente especializados nas normas tributárias.
40
O termo “processo administrativo” aqui utilizado não se confunde com “procedimento administrativo”, o qual
representa uma sucessão de atos administrativos dirigidos a uma finalidade específica, a exemplo do lançamento
fiscal previsto no art. 142 do CTN. Nesse sentido, James Marins (2001, p. 162): “a etapa contenciosa (processual)
caracteriza-se pelo aparecimento formalizado do conflito de interesses, isto é, transmuda-se a atividade
administrativa de procedimento para processo no momento em que o contribuinte registra seu inconformismo
com o ato praticado pela administração, seja ato de lançamento de tributo ou qualquer outro ato que, no seu
entender, lhe cause gravame, como a aplicação de multa por suposto incumprimento de dever instrumental. A
mera bilateralidade do procedimento não é suficiente para caracterizá-lo como processo”.
41
O Supremo Tribunal, por meio do RE 504288 AgR / BA ( Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJe-047 , de 29-06-2007, P
00128, EMENT VOL-02282-14 PP-02742) reconheceu a validade do princípio do Devido Processo Legal
Administrativo, nos seguintes termos: “E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - EXIGÊNCIA LEGAL DE
PRÉVIO DEPÓSITO DO VALOR DA MULTA COMO CONDIÇÃO DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
ADMINISTRATIVO - OCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO ART. 5º, LV, DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA - NOVA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL FIRMADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL - RECURSO DE AGRAVO PROVIDO. - A exigência legal de prévio depósito do valor da
multa, como pressuposto de admissibilidade de recurso de caráter meramente administrativo, transgride o art. 5º, LV, da
Constituição da República. Revisão da jurisprudência: RE 390.513/SP (Pleno)”.
108
sendo que o Decreto nº 70.235/72, recepcionado como lei ordinária pela ordem constitucional
superveniente, dispõe sobre o processo administrativo fiscal no âmbito federal.
Além disso, em artigo intitulado “Segurança Jurídica no novo CARF”, Paulo de Barros
Carvalho (2011) relaciona outras vantagens correlatas ao processo administrativo.42 Afirma o
autor que a ausência de custas, a rapidez, a simplicidade e a economia são pormenores que
inspiram o procedimento administrativo tributário. A rapidez interessa a todos. “Se à rapidez
se liga a simplicidade, é lícito dessumir que da conjugação dos dois requisitos nasce a
economia”.
Federal Pátria, os meios adequados para que os contribuintes saibam o quanto pagam de
impostos ainda não foram disciplinados pelo legislador infraconstitucional, nem tampouco tal
medida foi posta em prática.
A informação consciente dos contribuintes acerca dos impostos pagos é um dos passos
mais importantes para o fomento da cidadania fiscal. Isso porque, como bem adverte Denise
Cavalcante (2012, p.36-37), é exatamente a falta de informação que promove
inconscientemente uma ignorância coletiva. Por tal razão, a autora afirma que no Brasil “reina
uma espécie de ilusão fiscal em virtude do baixíssimo grau de informação apresentada aos
cidadãos-contribuintes no momento que adquirem seus bens”.
Diante do comando constitucional inserido no art. 150, §5º da CF/88, pode-se afirmar
que o Estado encontra-se obrigado a informar à sociedade o valor dos impostos incidentes
sobre suas aquisições individuais, sendo certo, contudo, que não se trata de uma tarefa fácil,
diante da complexidade dos impostos indiretos incidentes sobre as mercadorias e serviços.
Para tornar mais claro para o consumidor/contribuinte o peso dos impostos no preço dos
produtos, o Projeto de Lei nº 174/2006 encontra-se em trâmite no Congresso Nacional. O
projeto prevê a ampla divulgação do valor dos tributos, cujos percentuais devem constar em
vitrines, propaganda e na nota fiscal.
Quanto à excelência moral, ela é produto do hábito, razão pela qual seu nome é
derivado, com ligeira variação, da palavra hábito.[...] Portanto, nem por natureza, nem
contrariamente à natureza a excelência moral é engendrada em nós, mas a natureza nos
dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito.
Eis o ponto inicial desta exposição: a constatação de que a cidadania fiscal não é inata à
natureza humana, mas sim, deve ser ensinada e fomentada com a finalidade de conscientizar a
sociedade acerca do dever fundamental de pagar tributos, dever este correlato ao pleno gozo
dos direitos fundamentais individuais e coletivos.
43
Portaria Conjunta do Ministério da Fazenda e do Ministério da Educação, disponível em:
<http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Portarias/2002/Interministeriais/portinter413.htm>.
113
Para que isso ocorra, é imprescindível que a promoção da Educação Fiscal não se
restrinja ao Poder Público. A mídia deve exercer a função essencial de ampliar o acesso da
sociedade a tais informações. Da mesma forma, a sociedade organizada, sobretudo as
instituições voltadas à prestação de serviços sociais devem contribuir com a cidadania fiscal.
Com a finalidade de estimular a ampla participação neste processo, a Norma de Execução
Conjunta COAEF/COPOL nº 2/2011 autoriza a doação de bens apreendidos pela Receita
Federal do Brasil a órgãos públicos e entidades sem fins lucrativos que adotem propostas
relacionadas à educação fiscal, concedendo tratamento preferencial às solicitações destes
participantes.
44
Dentre os sites criados para promover o PNEF, destacam-se: <http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/> e
<http://www.esaf.fazenda.gov.br/esafsite/educacao-fiscal/Edu_Fiscal2008/INDEX.htm>
114
crédito tributário passa a ser objetivo comum do Fisco e do contribuinte, contudo, os meios
para o alcance deste fim divergem, pois nem sempre a extinção do crédito por pagamento (art.
156, inciso I do CTN) é aceita pelo sujeito passivo, que insiste na luta pela desconstituição do
débito através das outras fórmulas arroladas no art. 156 do Código Tributário Nacional, dentre
as quais se destaca a compensação.
Pode-se concluir que, até o advento da Lei nº 10.637/02 vigorava um duplo regime de
compensação. O primeiro, realizado pelo contribuinte em sua própria escrita fiscal, mas
restrito a tributos da mesma espécie (Lei nº 8.383/91). O segundo, mediante requerimento à
Receita Federal, ainda que entre tributos de espécies diferentes, nos termos da Lei nº
9.430/96.
45
Importante lembrar que, diante das relevantes alterações normativas acerca do instituto, dúvidas podem surgir
quando à legislação aplicável. O Superior Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento no sentido de
que o regime jurídico aplicável é o vigente à época da propositura da demanda, não podendo ser a causa
julgada à luz do direito superveniente, tendo em vista o requisito do prequestionamento, ressalvando-se o
direito de o contribuinte proceder à compensação de créditos pela via administrativa, em conformidade com as
normas posteriores, desde que atendidos os requisitos próprios. (Embargos de Divergência em RESP – Pet
5.546 – SP, 1ª Seção, rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux, DJU 20/04/2009).
46
Art. 74 da Lei 9430/96: “O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado,
relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de
ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e
contribuições administrados por aquele Órgão. § 1o A compensação de que trata o caput será efetuada
mediante a entrega, pelo sujeito passivo, de declaração na qual constarão informações relativas aos créditos
utilizados e aos respectivos débitos compensados. § 2o A compensação declarada à Secretaria da Receita
Federal extingue o crédito tributário, sob condição resolutória de sua ulterior homologação”.
116
Desde então, surgiu para o Fisco o poder/ dever de proceder à compensação de valores a
disposição do contribuinte com créditos tributários. Nos termos da IN nº 900 de 2008 da RFB,
verificada a existência de débito, ainda que já encaminhado para inscrição em Dívida Ativa,
de natureza tributária ou não, o valor da restituição ou do ressarcimento deverá ser utilizado
para quitá-lo, mediante compensação em procedimento de ofício.
Inolvidável que se trata de medida voltada para a redução da litigiosidade tributária, não
só por prevenir ou extinguir a execução fiscal ajuizada para a recuperação do crédito público,
mas também por elidir questionamentos sobre a possibilidade de utilização do precatório para
a extinção do crédito tributário, matéria objeto de árdua discussão doutrinária e
jurisprudencial.
118
§ 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas
até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos
da entidade devedora.
§ 3º O prazo referido no caput deste artigo fica reduzido para dois anos, nos casos de
precatórios judiciais originários de desapropriação de imóvel residencial do credor,
desde que comprovadamente único à época da imissão na posse.
Diante do exposto, percebe-se que o novo regramento dado pelo legislador constituinte
em relação à compensação tributária reflete a consciência de que o instituto revela-se um
poderoso instrumento de redução da litigiosidade tributária e de pacificação da relação fisco-
contribuinte.
Não obstante, diante das limitações orçamentárias e financeiras pertinentes aos entes
públicos, não se deve menosprezar o fato de que a compensação como forma de extinção do
crédito tributário deve ser interpretada literalmente, podendo a lei estipular condições ou
garantias para o encontro de contas, nos termos do art. 170 do Código Tributário Nacional.
Com efeito, não é possível deixar de reconhecer que, ao lado do direito do contribuinte –
credor de liquidar seus débitos, exige-se o equilíbrio financeiro-orçamentário do ente estatal,
47
Embora a Constituição Federal (art. 100§9º) utilize o termo “compensação” de precatórios com tributos, alguns
autores esclarecem que a EC 30/2000 teria transformado os precatórios em verdadeira moeda para pagamento,
extinguindo o crédito por pagamento e não por compensação. (FERRAZ, 2009, p. 353).
48
“Art. 6º - Ficam também convalidadas todas as compensações de precatórios com tributos vencidos até 31 de
outubro de 2009 da entidade devedora, efetuadas na forma do disposto no § 2º do art. 78 do ADCT, realizadas
antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.
120
motivo pelo qual o instituto da compensação no direito tributário encontra restrições não
previstas no campo obrigacional privado.
Tais exigências legais, contudo, não devem afrontar as permissões traçadas pela
Constituição, nem tampouco a legislação infralegal deve desrespeitar o princípio da
legalidade, impondo restrições não previstas em lei. Considerando que o contribuinte já sofreu
um desfalque em seu patrimônio decorrente do pagamento indevido de tributo, os gravames
estabelecidas devem se justificar como adequadas e necessárias (sem excessos), sem importar
em um sacrifício desnecessário individual ou coletivo.
Em verdade, urge desmistificar o tema, uma vez que a aceitação de dogmas49 jurídicos
não se coaduna com as necessidades do ordenamento contemporâneo 50 . A dinâmica das
relações intersubjetivas exige o constante aprimoramento do ordenamento a fim de garantir
seu objetivo essencial, qual seja, a paz social. O Direito não é algo estático, mas sim dinâmico
por essência.
Bem por isso, imperioso que a transação tributária seja analisada sob o enfoque da
relevância de sua contribuição para o alcance da justiça fiscal. Nesse intuito, Heleno Taveira
Torres, prefaciando Arnaldo Godoy (2010, p. 11), informa que no final de 2007, o Ministério
da Fazenda resolveu instituir um grupo de trabalho dedicado à reforma do contencioso
tributário, com o propósito de reformular a legislação, além de atualizar e encontrar medidas
alternativas para soluções das controvérsias tributárias. Para os integrantes do grupo, dentre
eles, Arnaldo Godoy e Heleno Torres, a proposta não visa discutir apenas o contencioso
administrativo, mas também busca apontar opções ao contribuinte para a discussão do débito
tributário pautado na celeridade e consensualidade (GODOY, 2010, p. 12). À época, traçou-se
a estimativa de que:
49
Consoante se extrai da lição de Hugo de Brito Machado Segundo (2008, p. 7), geralmente, justifica-se a
dogmática jurídica com a afirmação de que “como se trata de descrição de normas postas, o estudioso teria que
delas partir necessariamente, não as podendo modificar. Seu papel seria descrever o direito que é, e não aquele
que deveria ser”. Arnaldo Vasconcelos, prefaciando Machado Segundo (2008, p. XV), ao atribuir significado
ao termo “dogma”, indica que seria uma questão de crença, na qual se acredita ou não, independentemente de
ser ou não absurda a proposição apresentada, e que “sustentado pelo princípio da autoridade, é estático por
definição, tem perfil reducionista, caráter conservador e postura fechada e acrítica. Categórico e irrefutável por
natureza, é puro ato em busca de conservação”.
50
Geraldo Ataliba (1978, p.19), em sentido contrário, defendia que o Direito deveria sempre ser encarado sob o
aspecto dogmático, pois os juristas não devem se comportar como cientistas. Ao receber o mandamento jurídico,
o bacharel deve tão somente recebê-lo e interpretá-lo, sem discutir sobre o seu conteúdo. No presente trabalho,
entende-se que tal posicionamento já se encontra ultrapassado pela necessidade corrente de o Direito alcançar a
justiça social.
51
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=431269>.
122
52
Em 13 de abril de 2009, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário firmaram o II Pacto Republicano, cujo
objetivo principal é a consolidação do compromisso dos três poderes por um sistema de justiça mais ágil,
acessível e efetivo, sendo o primeiro Pacto ampliado para fortalecer a proteção aos direitos humanos, a
efetividade da prestação jurisdicional, o acesso universal à Justiça e também o aperfeiçoamento do Estado
Democrático de Direito e das instituições do Sistema de Justiça. Conforme assinalado na exposição de motivos
do anteprojeto 5.089/09, as outras medidas legislativas encaminhadas ao Congresso Nacional consistem na
edição de outras duas leis ordinárias (uma referente aos mecanismos de cobrança dos créditos inscritos na
dívida ativa da União e a outra, à execução fiscal administrativa) e uma lei complementar (alteração do Código
Tributário Nacional), essa última indissociável do referido anteprojeto, visto que alguns de seus efeitos
dependem das alterações naquela lei propostas (como os que tratam da interrupção da prescrição, das causas de
suspensão da exigibilidade do crédito tributário e da prova da regularidade fiscal).
123
Por tratar-se de questão polêmica, a normatização proposta exige amplo debate jurídico.
As críticas formuladas são válidas para assegurar que os mecanismos de controle sejam
satisfatórios para a proteção do erário público, mas não devem inviabilizar a discussão,
votação e aprovação de matéria de tamanha relevância. Embora inicialmente tenha sido
atribuído regime de urgência no trâmite do projeto, diante dos mais variados questionamentos
e opiniões contrárias ao seu conteúdo, a proposta legislativa encontra-se parada desde
11/09/2009, quando o Poder Executivo solicitou o cancelamento da urgência e determinou-se
a criação de uma comissão especial para discussão do tema.53
Embora a União ainda não possua uma Lei Geral de Transação Tributária que viabilize
ao contribuinte, a qualquer tempo, a negociação dos tributos devidos, o Governo Federal tem
editado leis esporádicas autorizando reduções substanciais do débito tributário para
contribuintes que pretendam regularizar a sua situação fiscal. Exemplo mais recente refere-se
à já mencionada Lei 11941/09, a qual, na hipótese de pagamentos à vista de débito vencido
até 30 de novembro de 2008 concedeu redução de 100% (cem por cento) da multa de mora e
de ofício, 40% (quarenta por cento) da multa isolada, 45% (quarenta e cinco por cento) dos
53
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=431269>
125
juros de mora e de 100% (cem por cento) sobre o valor do encargo legal. Além disso,
autorizou a reduções nos acréscimos e o alargamento do prazo caso o contribuinte opte pelo
parcelamento dos créditos vencidos até tal período. Trata-se de modalidade de transação
tributária por adesão.
54
Arnaldo Godoy (2010, p. 60-75) traça um esboço das legislações estaduais e municipais que regulamentam a
transação tributária, em especial, a Lei nº 11.475/2000 do estado do Rio Grande do Sul, a Lei 13.449/2008 do
município de Campinas, a Lei nº 262/84 de Angra dos Reis/RJ, Lei Complementar 68/2008 de Curitiba/PR.
55
A lei foi regulamentada pelo Decreto nº 32.549/2008.
126
Nesse contexto, percebe-se que, ainda que timidamente, a transação tributária já faz
parte da relação Fisco - Contribuinte, sendo certo que o advento da Lei Geral de Transação
deverá assumir a missão de aprimorar os sistemas já existentes, delineando as regras gerais a
serem observadas pelos entes tributantes (art. 24 §1º da CF/88), a fim de evitar distorções que
quebrem a isonomia ou que provoquem qualquer espécie de guerra fiscal.
56
A fim de perquirir acerca da relação de custo-benefício no ajuizamento das Execuções Fiscais de tributos federais,
cumpre destacar que a Portaria MF nº 75, de 22 de março de 2012, que dispõe, entre outras matérias, sobre o não
ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou
inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). A edição deste ato decorre do estudo promovido pela PGFN desde o ano
de 2010 e está inserida no contexto das ações que visam o aprimoramento da gestão da Dívida Ativa da União
(DAU), otimizando os processos de trabalho e aumentando, por conseguinte, a efetividade da arrecadação.
127
Nacional, com o intuito de quitar o valor devido, terá que arcar com os mesmos R$
100.000,00 (cem mil reais), sendo absolutamente indiferente se age com boa-fé e eticidade, ou
se age de forma temerária no bojo da execução fiscal, inclusive provocando atos para retardar
a satisfação da obrigação. Uma vez que o contribuinte não poderá ser beneficiado sequer com
a redução dos honorários advocatícios, logo percebe que não terá prejuízo algum em manter
judicializado o conflito, ao invés de propor uma solução mais célere, econômica e eficaz, qual
seja, que pode ser alcançada pela via consensual.
Qualquer debate acerca da transação deve fugir do nível meramente doutrinário, muitas
vezes dogmático, e buscar uma acepção mais pragmática para que a lei possa criar um modelo
de justiça consensual com regras, limites e objetivos bem definidos, sem dar margem a
negociações balizadas na improbidade administrativa. A adoção de mecanismos eficientes de
controle interno e externo trará reflexos positivos à aceitação social do novo instrumento, por
gerar transparência e segurança jurídica ao mecanismo. Ademais, o projeto dispõe que a
transação poderá ser nula se comprovados prevaricação, concussão ou corrupção passiva,
dolo, fraude, simulação, erro essencial quanto à pessoa ou quanto ao objeto do conflito (art.
12, III e IV do PL 5.089/09).
Vale notar, ainda, que a morosidade na resolução dos litígios tributários produz graves
distorções nos mercados, sendo profundamente danoso para a livre concorrência. Os bons
empresários, ao cumprirem rigorosamente suas obrigações fiscais, têm que se submeter à
concorrência desleal de outros agentes que protraem no tempo o pagamento de tributos por
meio de discussões administrativas e judiciais meramente protelatórias.
Percebe-se, contudo, que o Estado Social Democrático de Direito ainda não restou
consolidado do Brasil. O nível de desigualdade cultural, financeira e social que alcança a
população é vergonhoso. O retorno do tributo à sociedade é insatisfatório, uma vez que as
atividades relacionadas à educação, à saúde e ao transporte público são prestadas de forma
extremamente precária. Por tal razão, afirma-se que o Brasil passou por um processo de
modernização tardio e arcaico, já que muitas das promessas da modernidade ainda não foram
concretizadas.
No mundo globalizado, a tarefa de efetivação do Estado Social não é fácil, pois encontra
obstáculos de origens políticas e ideológicas, profundamente marcados pelo neoliberalismo.
As propostas neoliberais de menor intervencionismo Estatal e de redução da carga tributária
global devem ser rechaçadas a todo custo, sob pena de o país retroceder socialmente. As
crises internacionais que assolam os países europeus, por si só, já retratam o caráter desumano
da política neoliberal, responsável por inserir a economia e as finanças desses países em um
contexto de lucro especulativo, em detrimento do desenvolvimento sustentável e compatível
com a dignidade humana.
A fim de afastar tal ameaça, exige-se que a sociedade tenha consciência de que a
tributação é o sustentáculo do Estado prestacional brasileiro. Todos os direitos e garantias
constitucionais relevam, direta ou indiretamente, a prestação de atividades estatais e,
conseqüentemente, acarretam custos aos cofres públicos. Por tal razão, a tributação não deve
129
ser concebida somente por sua função arrecadatória, mas, sobretudo como instrumento de
justiça social, através da distribuição de renda e da viabilização financeira das políticas
públicas sociais.
Além disso, este núcleo – mínimo existencial- tende a se alargar, na medida em que o
próprio homem segue em sua evolução natural conquistando melhores condições de
dignidade, o que sugere certa gradualidade no processo de concretização desses direitos.
Exemplificando, direitos que antes não integravam o núcleo mínimo dos direitos sociais
básicos, como o direito à creche para menores de cinco anos, hoje já constam neste rol, como
restou decidido no acórdão proferido no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº
639.337/SP, publicado em 23/08/2011, por meio do qual a Corte reconheceu a exigibilidade
imediata dos direitos sociais à educação infantil para crianças com até cinco anos de idade,
admitindo a possibilidade de proteção judicial deste direito, independentemente da
disponibilidade financeira estatal, inclusive através da imposição de multa diária ao Estado
omisso.
Diante desta nova realidade, não basta que as decisões judiciais concedam os mais
variados direitos sociais. É preciso reconhecer que tais prestações acarretam custos, e que nem
sempre haverá disponibilidade financeira para a implementação desses direitos, ainda que
reconhecidos juridicamente. A Constituição Federal, por maior que seja o seu valor, é um
texto, que para ser concretizado, necessariamente tem que contar com o auxílio de toda a
coletividade e das instituições jurídicas. A lei escrita ou decisões judiciais, em concreto, não
suprem deficiência alguma caso não haja meios materiais de fazer tais comandos serem
cumpridos.
130
Para que o Estado de bem-estar social seja materializado, deve-se reconhecer que, ao
lado dos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição Federal, existem
deveres fundamentais correlatos, dentre os quais se insere o dever fundamental de pagar
tributos. É este o fundamento da obrigação tributária mais compatível com a proposta de
Estado veiculada pela Constituição Federal de 1988.
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