Você está na página 1de 140

FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR


CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

A LEGITIMAÇÃO DO TRIBUTO COMO PRESSUPOSTO PARA A


CONCRETIZAÇÃO DO ESTADO SOCIAL

Joana Marta Onofre de Araújo

Fortaleza - CE
Agosto, 2012
JOANA MARTA ONOFRE DE ARAÚJO

A LEGITIMAÇÃO DO TRIBUTO COMO PRESSUPOSTO PARA A


CONCRETIZAÇÃO DO ESTADO SOCIAL

Dissertação apresentada ao P rograma de Pós-


Graduação em Direito como requisito parcial
para a obtenção do Título de Mestre em Direito
Constitucional, sob a orientação do Prof. Dr.
José Filomeno de Moraes Filho.

Fortaleza - Ceará
Agosto, 2012
___________________________________________________________________________

A663l Araújo, Joana Marta Onofre de.


A legitimação do tributo como pressuposto para a concretização do estado
social / Joana Marta Onofre de Araújo. - 2012.
140 f.

Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2012.


“Orientação: Prof. Dr. José Filomeno de Moraes Filho.”

1. Direito tributário. 2. Tributação. 3. Estado de direito. I. Título.

CDU 34:336.2

___________________________________________________________________________
3

JOANA MARTA ONOFRE DE ARAÚJO

A LEGITIMAÇÃO DO TRIBUTO COMO PRESSUPOSTO PARA A


CONCRETIZAÇÃO DO ESTADO SOCIAL

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. José Filomeno de Moraes Filho


UNIFOR

Profa. Dra. Natercia Sampaio Siqueira


UNIFOR

Prof. Dr. Carlos Cesar Sousa Cintra


UFC

Dissertação aprovada em: 17 / 08 /2012.


Dedico este trabalho, primeiramente, a Deus,
que abençoou a minha vida com muitas graças
desde o dia em que eu optei por este caminho.
Em seguida, dedico-o à minha pequena
Isabela, que desde quando nasceu, foi privada
diversas vezes do aconchego caloroso de sua
mãe, exatamente em razão deste estudo. É por
ti, filha, que quero ser alguém melhor em
todos os sentidos.
AGRADECIMENTOS

No meio de tantas mudanças ocorridas na minha vida neste período de dois anos,
certamente, sozinha eu não conseguiria concluir satisfatoriamente este estudo. Por isso, são
muitas as pessoas a quem devo agradecer.

O primeiro e mais importante de todos os meus colaboradores, presença forte e sensível


desde o início da minha vida, Deus. Obrigada, Senhor, por me guiar sempre pelo melhor
caminho, sempre no tempo certo.

Em seguida, agradeço ao meu marido, Flávio, por todo o amor, amizade,


companheirismo, paciência e parceria em uma vida repleta de felicidades e de expectativas
por todas as coisas boas que ainda vamos viver ao lado da nossa Isabela e de outros frutos do
nosso amor.

Agradeço à minha filha, Isabela Lisieux, por ser uma criança alegre, saudável e por me
fazer tão feliz nos momentos mais difíceis. Meu amor é infinito. É a ti que dedico esta
realização pessoal, para compensar todos os segundos de ausência ao seu lado.

Aos meus pais, Marcos e Adelaide, agradeço pela reciprocidade de amor infinito e de
apoio constante. Obrigado por terem me ensinado, desde muito cedo, a ter consciência do meu
papel no mundo.

Aos meus sogros, Marlene e Joaquim, obrigada por serem sempre tão agradáveis,
amigos e prestativos, me acompanhando ao longo desta jornada de estudos.

Aos mestres, que desde a graduação e, agora no mestrado, me incentivaram a lutar e a


acreditar na possibilidade de justiça social.

À Professora Dr. Natércia, a qual não só aceitou prontamente o convite para participar
da banca de qualificação e de defesa deste trabalho, como também apresentou contribuições
6

valorosas acerca do tema em discussão. Outrossim, agradeço ao Prof. Dr. Carlos César Sousa
Cintra, por ter gentilmente se disposto a integrar a banca de defesa desta dissertação.

Neste momento, agradeço especialmente ao meu orientador, o Prof. Dr. Filomeno de


Moraes. O senhor foi um professor inesquecível na minha graduação e a minha admiração só
aumentou quando fui novamente sua aluna do mestrado, na disciplina de Teoria do Poder.
Muito obrigada por ter confiado em mim, no meio de tantos contratempos. Se não fosse a sua
segurança, a sua experiência, a sua disponibilidade e, acima de tudo, o seu apoio, as coisas
não teriam fluído tão bem.

Não poderia deixar de agradecer à minha amiga Daiane Nogueira, a quem confiei o
batismo da minha única filha, por todo o exemplo e companheirismo incessante. Os anos se
passaram, a distância aumentou, mas mesmo assim, você foi a figura mais marcante neste
meu trabalho. Se não fossem as valiosas contribuições bibliográficas oferecidas espontânea e
generosamente por você.... muito obrigada.

Também agradeço à minha amiga de infância, Silvia, por ouvir meus lamentos, por me
dar conselhos, por estar sempre ao meu lado, todas as vezes que eu precisar.

Por fim, reconheço todo o incentivo e cooperação dos meus colegas de trabalho da
Procuradoria Seccional da Fazenda Nacional de Mossoró/RN, em especial, Julianny,
Gianfrancesco e meus queridos estagiários, Kátia, Diego, Sara, Milena e Raquel. Somos uma
equipe unida, sempre uns ajudando e apoiando os outros. Isso é muito gratificante. Também
agradeço aos meus Chefes, Dr. Lupércio Camargo e agora, o Dr. Leonardo Bezerra, por terem
confiado a mim a chefia da PSFN/Mossoró, mesmo sabendo que, naquele momento, eu me
dedicava ao mestrado, o que para eles, não foi razão para desacreditar na minha capacidade.
RESUMO
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 consagrou o Estado Democrático de Direito,
encampando ideologia e valores fundamentais compatíveis com a idéia do Estado Social. Não
obstante, a sociedade brasileira nunca usufruiu um Estado de Bem-Estar Social. O nível de
desigualdade social, econômico-financeiro e cultural que alcança a população é grandioso.
Neste contexto, a tributação exerce papel relevante, não somente por viabilizar o
financiamento da prestação dos direitos fundamentais sociais constitucionais, mas também
por representar um mecanismo eficaz de justiça social, proporcionando a redistribuição de
renda e a redução das desigualdades sociais. Ocorre que, embora os Sistemas Tributários
tenham evoluído ao longo dos séculos, deixando a tributação de ser arbitrária e aleatória, a
relação fisco-contribuinte ainda é muito tensa, sendo cada vez mais sensível a rejeição social
ao tributo. Por tal razão, a fim de rechaçar a possibilidade de retrocesso das conquistas sociais
já alcançadas, um dos maiores desafios contemporâneos consiste na busca pelo equilíbrio da
relação tributária e na legitimação do tributo. Considerando que “direitos não dão em
árvores”, mas sim decorrem do adequado financiamento público, é preciso reconhecer a
existência de complicadores da tributação no Estado Fiscal contemporâneo. Questões como a
carga tributária, justiça fiscal, sonegação, guerra fiscal, globalização, ausência de
praticabilidade da tributação, ineficiência do gasto público e a politização do direito tributário
devem ser discutidas a fim de identificar suas causas e repercussões na atividade tributária.
Apesar de todos os obstáculos, verifica-se que o modelo de Estado Fiscal não se encontra
falido, demonstrando-se o modelo mais eficaz de financiamento estatal, em comparação com
a idéia de Estado Patrimonial. Sendo assim, urge que sejam aprimorados os mecanismos de
pacificação da relação jurídica tributária, já que o alto grau da litigiosidade tributária revela a
ausência de segurança jurídica entre os sujeitos envolvidos na arrecadação. Com este fim, a
promoção de Programas de Educação Fiscal eficientes tendem a conscientizar a sociedade
acerca da função social do tributo, restaurando o espírito cívico da sociedade até então
individualista. Da mesma forma, exige-se a adoção de instrumentos alternativos de
composição da lide tributária, dos quais merecem destaque a compensação e a transação
tributária. Imperioso, pois, analisar de que forma o Projeto de Lei da “Lei Geral da Transação
Tributária” poderá contribuir para a redução da litigiosidade e para a higidez da arrecadação.
Palavras-chaves: Estado Social, Tributação, Estado Fiscal, Complicadores, Pacificação.
ABSTRACT
In Brazil, the Federal Constitution of 1988 consecrated a democratic state, embracing
ideology and values compatible with the idea of the Welfare State. However, Brazilian society
has never enjoyed a State of Social Welfare. The level of social, financial, economic and
cultural inequality within the population is great. In this context, taxation plays an important
role, not only to finance the provision of basic constitutional social rights, but also to
represent an effective mechanism for social justice, providing income redistribution and the
reduction of social inequalities. It happens that, although Tax Systems have evolved over
centuries, leaving taxation to be arbitrary and random, the tax-taxpayer relationship is still
very tense and increasingly vulnerable to societal rejection of taxation. For this reason, in
order to fend off the possibility of losing social gains already achieved one of the biggest
challenges today is to search for a balanced relationship between the tax and legitimacy of the
tax. Understanding that "rights do not grow on trees", but rather result from adequate funding,
we must however recognize the existence of difficulties in the State Taxation Fiscal
contemporary. Issues such as taxes, tax justice, tax evasion, tax war, globalization, lack of
feasibility of taxation, public spending inefficiency and politicization of the tax law should be
discussed in order to identify their respective causes and effects on tax collection. Despite all
of the obstacles, it appears that the model of State Tax is not broken, demonstrating the most
effective model for state funding, compared to the idea of State Assets. Therefore, it is urgent
that the mechanisms of settling tax disputes are improved, since the high degree of tax
litigation reveals the lack of legal certainty between those involved in the collection of taxes.
For this purpose, it is important to promote Educational Fiscal Programs that efficiently
educate society about the social function of tax collection, thus restoring civic spirit in a
hitherto individualistic society. Likewise, it requires the adoption of alternative instruments
for the drafting of a tax deal, in which clearing and transaction taxes should be mentioned. It
is imperative therefore, to examine how the Bill of "Law General Transaction Tax" may
contribute to the reduction of litigation and the efficiency of tax collection.
Key-words: Welfare State, Taxation, Estate Fiscal, Complicating, Pacification.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 12

1 A RELAÇÃO ESTADO-SOCIEDADE E A TRIBUTAÇÃO – UMA PERSPECTIVA


HISTÓRICA ....................................................................................................................... 18

1.1 A tributação na antiguidade clássica ......................................................................... 19

1.2 A Idade Média e o financiamento estatal .................................................................. 21

1.3 A Idade Moderna, o absolutismo e o surgimento do Estado Nação .......................... 22

1.4 A Idade Contemporânea ............................................................................................ 23

1.4.1 O surgimento do Estado Constitucional – forte influência do Liberalismo Clássico ... 24

1.4.2 O Socialismo e o Marxismo .......................................................................... 27

1.4.3 O Estado Social e a função do tributo ........................................................... 28

1.4.4 O neoliberalismo e os seus reflexos na tributação ......................................... 30

1.4.5 A tributação no Estado Democrático de Direito – caminho para o Estado


Social Democrático de Direito .................................................................... 34

2 A LEGITIMIDADE E O FUNDAMENTO DO PODER FISCAL NO ESTADO SOCIAL


DEMOCRÁTICO DE DIREITO ........................................................................................ 37

2.1 Teorias sobre o fundamento do poder fiscal .............................................................. 38

2.1.1 Teoria da causa impositionis e a destinação do bem comum como critério de


segurança jurídica .......................................................................................... 39

2.1.2 Teoria do preço ou da troca ou da equivalência ............................................ 40

2.1.3 Teoria do contrato social ou teoria da lei da natureza ................................... 41

2.1.4 Teoria da soberania ........................................................................................ 43

2.1.5 Teoria do benefício x teoria do sacrifício - a capacidade contributiva como


fundamento da tributação .............................................................................. 44

2.2 O fundamento constitucional da tributação no Brasil ............................................... 45

2.3 O dever fundamental de pagar tributos ..................................................................... 47

2.4 A natureza dos direitos sociais .................................................................................. 51


2.4.1 A previsão e a exigibilidade dos direitos sociais no Brasil ........................... 52

2.4.2 A garantia do mínimo existencial e a proibição de retrocesso social ............ 54

2.4.3 Entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da efetivação dos


direitos sociais ............................................................................................... 57

2.4.3.1 Análise concreta da recente interpretação judicial no âmbito do STF -


ARE 639.337 AgR/SP ...................................................................... 58

2.5 Teoria dos custos dos direitos.................................................................................... 61

3 COMPLICADORES DA TRIBUTAÇÃO NO ESTADO CONTEMPORÂNEO –


FATORES DE REJEIÇÃO SOCIAL DO TRIBUTO ...................................................... 64

3.1 Considerações sobre a carga tributária brasileira ...................................................... 65

3.2 A ausência de justiça fiscal ........................................................................................ 68

3.2.1 Justiça fiscal e solidariedade ......................................................................... 68

3.2.1.1 Sonegação fiscal – fator determinante da ausência de justiça fiscal ..... 69

3.2.2 O princípio da capacidade contributiva ......................................................... 72

3.3 A guerra fiscal entre os entes federados .................................................................... 74

3.4 Os reflexos da globalização sobre a tributação ......................................................... 77

3.5 A ausência de praticabilidade da tributação .............................................................. 80

3.6 A ineficiência do gasto público ................................................................................. 83

3.7 Politização do direito tributário – Consequencialismo jurídico ................................ 86

3.8 A crise do Estado Fiscal – verdade ou mito?............................................................. 90

4 INSTRUMENTOS DE PACIFICAÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA .... 94

4.1 Princípios de otimização do Sistema Tributário Nacional ........................................ 96

4.1.1 Princípio da Legalidade ................................................................................. 97

4.1.2 Princípio da Irretroatividade e da Anterioridade Tributária ........................ 100

4.1.3 Princípio da Isonomia Tributária ................................................................. 102

4.1.4 Princípio da Segurança Jurídica .................................................................. 104

4.1.5 Princípio do Devido Processo Legal Administrativo – o processo


administrativo como instrumento eficaz de solução da lide tributária ........ 107

4.1.6 Princípio da Informação do Direito Tributário ............................................ 109


4.2 A educação fiscal como instrumento de promoção da cidadania fiscal .................. 111

4.3 A compensação tributária como mecanismo de redução da litigiosidade da relação


fisco-contribuinte ..................................................................................................... 113

4.3.1 Legislação pertinente – um esboço histórico da evolução do instituto ....... 114

4.3.2 Compensação de ofício ................................................................................ 116

4.3.3 A utilização de precatórios para a extinção de débitos tributários .............. 118

4.3.4 Considerações finais ............................................................................................... 119

4.4 Transação tributária – um instrumento de justiça fiscal consensual ....................... 120

4.4.1 A Lei Geral de Transação - Projeto de Lei 5.089/09 ................................... 122

4.4.2 A experiência brasileira ............................................................................... 124

4.4.3 Considerações finais .................................................................................... 126

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 128

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 134


INTRODUÇÃO

No Brasil, o atual contexto da relação jurídica tributária permite afirmar que a


legitimação social do tributo, assim como o aprimoramento dos instrumentos de pacificação
da relação fisco - contribuinte, são pressupostos necessários para a concretização do Estado
Social Democrático de Direito, ainda carente de solidificação no país.

Ao longo dos séculos, o Sistema Tributário passou por processos evolutivos, sendo
inegáveis as conquistas obtidas no campo das garantias aos cidadãos, deixando a tributação de
ser aleatória e arbitrária para pautar-se em princípios veiculadores do valor segurança jurídica,
como por exemplo, o princípio da legalidade. Contudo, afirmar que o tributo é legal, ou
mesmo, constitucional, não significa que ele seja legítimo socialmente. Pelo contrário, é cada
vez mais sensível a resistência dos contribuintes ao pagamento de tributos.

Tal percepção é acentuada em face do alto volume de contendas administrativas e


judiciais envolvendo o pagamento de tributos. Estatísticas apontam que quase metade de todas
as ações em curso no país são de natureza tributária (37% de tudo tramita na Justiça Federal,
51% do contencioso do Estado de São Paulo e 56% do contencioso do Rio de Janeiro)
(TORRES, 2011, p. 27). No âmbito administrativo federal, segundo dados obtidos do sítio na
internet da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional,1 órgão incumbido da administração da
Dívida Ativa da União (DAU), no ano de 2011 o estoque dos créditos previdenciários e não-
previdenciários inscritos na DAU, sem parcelamento, correspondiam a mais de 874,59 bilhões
de reais, enquanto no ano anterior o estoque era de mais 742,52 bilhões, o que representa uma
variação positiva de quase 17,79%. Enquanto a arrecadação alcançou o patamar de R$
13.636.907.233,79, o estoque da DAU saltou para R$ 998.762.268.281,57, considerando os
débitos parcelados e não parcelados. Embora tenha havido um expressivo crescimento da
arrecadação, o volume do estoque, mais de 73 (setenta e três) vezes superior, demonstra
dificuldade de cobrança dos créditos da União.

1
Disponível em: <File:///D:/Documents%20and%20Settings/66118484368/Configura%E7%F5es%20 locais
Temporary%20Internet%20Files/Content.IE5/W20ZVF7D/BGU_2011%5B1%5D.ppt#257,1,Slide>
13

Tal situação retrata a elevada conflituosidade e, por conseguinte, a insegurança que


parece resultar em um estado de exceção permanente das relações tributárias. A problemática
se acentua porque a copiosa tensão da relação Fisco-contribuinte compromete direta e
negativamente a efetivação do Estado Fiscal Social.

Sabe-se que, chegado o Século XX, o Estado moderno alcançou sua feição mais
evoluída, passando a ser intitulado de Welfare State, Estado Social ou ainda, Estado Social
Democrata (PELAYO, 2005, p. 13). Influenciada pelas transformações culturais, econômicas
e sociais ocorridas no cenário internacional, a relação firmada entre o Estado e o indivíduo
adquiriu nova dimensão. As concepções consolidadas pelo liberalismo, e ainda, pelos regimes
totalitários responsáveis pela desumanização retratada no período pós-guerra, exigiram um
Estado apto à estruturação da nova ordem social, preocupado com a prosperidade, com a paz e
com a justiça social.

Nessa esteira, já não basta a proteção do indivíduo em face do Estado, nem tampouco a
função estatal se resume à proteção da liberdade, da segurança e da propriedade do cidadão. O
Estado Gendarme de Kant sucumbe ao imperativo de um Estado ativo, que chama para si a
tutela efetiva dos direitos fundamentais, guardião da dignidade humana e promovedor dos
direitos sociais.

Tal ideologia refletiu-se no Brasil. Ao instaurar a nova ordem democrática, a


Assembléia Constituinte de 1988 elaborou uma Constituição dirigente, determinante das
novas tarefas assumidas pelo Estado brasileiro, dentre elas, a garantia do desenvolvimento
nacional, a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e
regionais (art. 3º da Constituição Federal de 1988).

Por tal razão, um dos maiores dilemas contemporâneos enfrentados pelos juristas, pelo
Estado e pela sociedade consiste na busca pelo equilíbrio da relação jurídica tributária. A
resistência ao pagamento dos tributos desde muito tempo convive com a necessidade de o
Fisco arrecadar para sustentar a máquina pública, bem como garantir a prestação dos serviços
à coletividade, em busca do bem estar social.

Passados mais de vinte anos desde a promulgação do Texto Constitucional, já não se


questiona acerca da plena exigibilidade dos direitos fundamentais individuais e sociais
inseridos na Constituição, sendo inarredável o dever prestacional do Estado, ao menos quando
tais garantias afetarem o conteúdo da dignidade humana e do mínimo existencial. É este o
14

entendimento moderno dos Tribunais Superiores pátrios, como será demonstrado ao longo do
trabalho.

É certo, porém, que tais direitos “não dão em árvores” (SUSTEIN, 1999, p. 220), mas
sim acarretam elevados custos ao Estado. Por tal razão, a efetiva concretização do Estado
Social depende prioritariamente do adequado financiamento estatal. Considerando que a
concepção de Estado Patrimonial cedeu à hegemonia do Estado Fiscal, segundo o qual a
maioria dos Estados contemporâneos são financiados predominantemente por impostos, a
tributação funciona como o seu verdadeiro sustentáculo.

É certo que a noção de cidadania fiscal e de solidariedade social ainda prescinde de


amadurecimento no país. Ao mesmo tempo em que o Estado é chamado a tutelar uma ampla
diversidade de direitos subjetivos consagrados no texto constitucional, os contribuintes
resistem ao dever fundamental de pagar tributos. A pacificação desta relação representa a
condição sine qua non para a legitimação social da tributação.

Diante deste paradoxo, o presente trabalho objetiva demonstrar que a tributação


funciona como sustentáculo do Estado Social Democrático de Direito e que a tensão presente
na relação Fisco – Contribuinte deve ser suplantada em prol de uma arrecadação capaz de
concretizar os direitos fundamentais previstos na Constituição. Nesse sentido, buscar-se-á
demonstrar que a Constituição Federal de 1988 alberga a concepção de Estado Social, sendo
esta a forma de estado mais compatível com a proteção da dignidade humana. Pretende-se
analisar a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da tutela dos
direitos sociais fundamentais, para, em seguida, aferir que todos os direitos constitucionais,
sejam sociais ou individuais, acarretam custos e dependem de disponibilidade financeira do
erário, pois “direitos não dão em árvores”, o que importará na consolidação doutrinária e
jurisprudencial da existência do dever fundamental de pagar tributos. Outrossim, a pesquisa
analisará alguns dos reais complicadores da tributação no país, bem como abordará as
perspectivas de aprimoramento da relação fisco-contribuinte.

Nesse contexto, objetiva-se desenvolver dissertação de mestrado que responda aos


seguintes questionamentos: Considerando a evolução histórica do Estado e da Sociedade,
pode-se afirmar que a Constituição Federal brasileira de 1988 alberga em seu texto a
concepção de Estado Social ou de Estado Neoliberal? Em que grau de concretização se
encontram os objetivos propostos ao Estado pela Carta Constitucional? Considerando que
15

a escassez de recursos compromete a efetivação dos direitos fundamentais, é possível


encontrar uma justificativa razoável para a oneração dos contribuintes? Existe um dever
fundamental de pagar tributos? Quais são os reais complicadores da relação jurídica
tributária? Pode-se aventar a existência de uma Crise do Estado Fiscal? Quais
instrumentos ou políticas poderiam ser implementadas ou aprimoradas para mitigar a
tensão caracterizadora da relação Fisco – contribuinte?

O trabalho justifica-se em razão do grande clamor da sociedade e no empenho do


Poder Judiciário em garantir a efetividade dos direitos fundamentais, inclusive dos direitos
sociais prestacionais, em especial, aqueles ligados à garantia do mínimo existencial. Sabe-se
que o Brasil é um país de modernidade tardia e arcaica (STRECK, 1999, p. 23), sobretudo
pela falta de empenho nas promessas da modernidade, em especial, a redução das
desigualdades sociais. Nesse contexto, os obstáculos financeiros e orçamentários que
comprometem a efetivação do Estado Social devem ser suplantados, sob pena de ganhar
espaço a ideologia neoliberal que luta para predominar no Brasil, o que representaria um
inegável retrocesso social. É preciso repelir tal ordem de idéias e apresentar novas
perspectivas em prol da harmonização da relação fisco-contribuinte.

Sendo assim, a fim de melhor compreender a moderna relação tributária, propõe-se uma
retrospectiva da relação Estado - sociedade ao longo da humanidade, situando o homem em
suas relações com a entidade a qual necessariamente está ligado. Como se sabe, a intolerância
ao pagamento de tributos não é produto da modernidade. À medida que as sociedades
evoluíram, a relação entre o Estado e o indivíduo passou por profundas transformações. E a
tributação acompanhou esta evolução. Importante, pois, traçar as características da relação
tributária no Estado Medieval, no Estado Absolutista, no Estado Liberal, no Estado Socialista
e no Estado Social Democrático de Direito.

Nessa abordagem merecem destaque como referencial teórico o texto de John Maynard
Keynes (1926), intitulado The end of laissez-faire, o livro “O caminho da Servidão”, de
Friedrich Hayek (1944) e, por fim, a obra de Paulo Bonavides (1996), “do Estado liberal ao
Estado Social”. Os três autores demonstram-se essenciais para delinear as características do
Estado Liberal, do Estado Social e, por fim, do neoliberalismo, a fim de definir o tipo de
Estado incorporado pela Constituição Federal brasileira de 1988.

No segundo capítulo, com o escopo de encontrar uma justificativa razoável em torno da


oneração dos contribuintes, serão analisadas as teorias doutrinárias que fundamentam a
16

tributação, especialmente, a teoria da causa impositionis no bem comum, a teoria do preço ou


da troca, teoria do contrato social ou da lei natural, teoria do benefício e do sacrifício e teoria
da soberania. Com fulcro na doutrina brasileira (TORRES, 2011), portuguesa (NABAIS,
1998) e americana (SUNSTEIN, 1999), defender-se-á que a existência de um dever
fundamental de pagar tributos no Brasil fundamenta a relação tributária no Estado Social. Tal
constatação parte do pressuposto de que os direitos fundamentais sociais são plenamente
exigíveis e acarretam custos ao Estado, em conformidade com a evolução da jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, que foi examinada a fim de verificar em que medida o órgão
guardião dos direitos fundamentais tem dado efetividade a estas imposições.

No terceiro capítulo, pretende-se traçar um esboço acerca dos complicadores do


financiamento estatal moderno. Hodiernamente, a efetividade do Estado Social mostra-se
comprometida em razão da existência de verdadeiros impasses na tributação, tais como a
carga tributária, a globalização, a guerra fiscal entre os estados, a ausência de justiça fiscal, a
ausência de praticabilidade, a falta de controle dos gastos públicos, a corrupção e a sonegação,
dentre outros problemas. No mesmo capítulo será analisado de que forma a politização do
direito tributário e o fenômeno do consequencialismo jurídico afetam a relação intersubjetiva
em debate. Por fim, depois de analisados alguns dos principais fatores de rejeição social do
tributo, indagar-se-á acerca da existência de uma suposta crise do Estado Fiscal, tema
introduzido pelo economista austríaco Schumpeter (1954) ao fim da primeira guerra mundial.

O quarto e último capítulo suscitará o debate em torno dos instrumentos de pacificação


da relação tributária. Em um primeiro momento, serão delineados princípios de interpretação
do Sistema Tributário, os quais funcionam como mandamentos de otimização da relação
jurídica, alguns explícitos e outros implícitos no ordenamento jurídico. Em seguida, será
demonstrado que a Educação Fiscal traduz um importante instrumento de conscientização da
sociedade acerca da realidade enfrentada pelo Estado Social, oportunidade em que será
analisado de que forma o Programa Nacional de Educação Fiscal tem contribuído para a
promoção da cidadania no Brasil. Em seguida, serão abordados dois institutos tributários
hábeis a minimizar a lide fiscal, no caso, a compensação e a transação, todos com previsão
expressa no Texto Constitucional e no Código Tributário Nacional, além de outras legislações
espaças. Tais instrumentos podem ser concebidos como relevantes formas alternativas de
composição de interesses entre o Fisco e os contribuintes, evitando o acionamento estatal
indiscriminado para a solução de conflitos, motivo pelo qual o alcance desses mecanismos
deve ser alargado. Nesse intuito, serão analisadas as modificações aduzidas pela Emenda
17

Constitucional nº 62/2009 em relação à compensação. Outrossim, será trazido ao debate o


Projeto de Lei 5.089/2009, que trata da Lei Geral de Transação Tributária.

Ao final do trabalho, pretende-se demonstrar a relevância de se defender a solidificação


do Estado Social Democrático de Direito, o qual representa a forma mais evoluída de proteção
da dignidade humana, continuamente atacado pelas críticas neoliberais. Para esta defesa será
imprescindível a conscientização social acerca do papel da tributação como mecanismo de
distribuição de renda e de redução das desigualdades sociais, a fim de promover a cidadania
fiscal e a necessária solidariedade, tão precárias frente à sociedade individualista.
1 A RELAÇÃO ESTADO-SOCIEDADE E A TRIBUTAÇÃO –
UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

Para melhor compreender a ordem tributária e financeira do Estado contemporâneo,


revela-se interessante uma análise acerca da evolução das formas de Estado e do
financiamento estatal ao longo da história humana, situando o homem em suas relações com a
entidade a qual necessariamente está ligado.2

Ricardo Lobo Torres (1991, p.193) esclarece que a primeira forma de Estado moderno
caracterizou-se como “estado patrimonial”, o qual predominou na Europa até a era do
absolutismo, sendo marcado pela preeminência do financiamento estatal por meio das rendas
dominiais do príncipe, ou ainda, através dos rendimentos da atividade comercial e industrial
por ele próprio desenvolvida.

Em um segundo momento, surge a figura do Estado fiscal, 3 cujas necessidades


financeiras são essencialmente cobertas por impostos oriundos do patrimônio do contribuinte,
sendo esta a característica da maioria dos países contemporâneos. 4 Nabais (1998, p. 194)
ressalta que o estado fiscal conheceu duas modalidades ao longo de sua evolução: a) o estado
fiscal liberal, movido por interesses individuais e marcado pela menor intervenção estatal,
assentado em uma tributação limitada; b) o estado fiscal social, “economicamente interventor
e socialmente conformador”, fundado em uma tributação alargada.

O fato é que, prioritariamente ou não, desde as civilizações mais antigas, a tributação se


fez presente como uma das formas de financiamento da máquina estatal. Todavia, a relação
entre o Estado fiscal e o contribuinte passou por profundas modificações, influenciadas,
2
Deixa-se de lado a pretensão de retratar cronologicamente todas as formas de Estado ao longo da história
humana. A maioria dos autores que tratam do assunto, segue a seguinte sequência cronológica acerca da
evolução da figura Estatal: Estado Antigo, Estado Grego, Estado Romano, Estado Medieval, Estado Moderno.
(DALLARI, 2006, p. 62).
3
O Estado Fiscal não se confunde com o Estado Tributário, predominantemente assente em tributos bilaterais –
taxas, contribuições sociais (NABAIS, 1998, p. 199).
4
José Casalta Nabais (1998, p.193) esclarece que são estados não fiscais: 1) o estado patrimonial, já mencionado; 2)
o estado socialista, cujos rendimentos decorrem das atividades econômicas por ele monopolizadas ou
hegemonizada, e não de impostos dos cidadãos; 3) estados detentores de matérias primas raras, como petróleo,
gás natural e ouro, de onde retiram receitas substanciais que dispensam o pagamento de tributos pelos cidadãos.
19

sobretudo, pela forma como o cidadão apresenta-se diante do Estado, bem como pelas
finalidades e valores estatais de cada época.

Tal constatação demonstra que a relação tributária não se apresenta linear, contínua e
permanente. Basta comparar o espírito cívico característico da tributação na antiguidade
clássica com o individualismo marcante do Estado Liberal. Da mesma forma, não se
harmonizam os valores impostos pelo socialismo ou mesmo pelo Estado Social com a
ideologia neoliberal. Curiosamente, como que um retorno à antiguidade, verifica-se
modernamente a legitimação social do tributo nos países do continente Europeu e nos Estados
Unidos, onde os ricos apóiam publicamente o aumento da carga tributária.

Percebe-se, assim, que o tributo se revela um produto da vida em sociedade. Da mesma


forma que as civilizações evoluíram, a tributação foi se modelando ao longo dos tempos,
sofrendo influência das correntes políticas que, à sua maneira, demonstraram percepções
diferenciadas sobre o financiamento estatal. É essa evolução que, em linhas gerais, será
analisada neste capítulo.

Também é certo que a discussão acerca da relação tributária brasileira deve ser
precedida da discussão acerca do tipo de Estado em que se vive e dos novos paradigmas
jurídicos intrínsecos ao Estado Social Democrático de Direito inaugurados pela Constituição
Federal de 1988.

1.1 A tributação na antiguidade clássica

Rememorando a Antiguidade Clássica (século VII a. c.), vislumbra-se na Grécia Antiga


um modelo pacífico de tributação, absolutamente utópico se pensado nos dias atuais para o
Brasil. O consenso democrático característico da época permitiu o financiamento voluntário
do aparato Estatal por parte dos cidadãos livres.5

Armandinho Rocha (2005, p.30) narra que, “por meio da educação que lhe era
ministrada, o cidadão grego compreendia que a obrigação de pagar imposto derivava da sua
obrigação de, como cidadão, contribuir para os gastos públicos e não devido a qualquer
coação externa.”

5
Somente os estrangeiros e os escravos libertos eram sujeitos ao pagamento compulsório do imposto, que no
caso, incidia “por cabeça”.
20

Mesmo nos períodos excepcionais de guerra, quando era necessário incrementar o


financiamento dos exércitos armados e o imposto tornava-se obrigatório, este fato era bem
aceito pelos cidadãos gregos, pois para eles a cooperação e a submissão ao imposto decorriam
da exigência do bem comum da Cidade e da comunidade como um todo. Para o cidadão grego
o Estado estava acima do indivíduo. O cumprimento do dever tributário correspondia a uma
virtude moral.

Daí porque não se pode menosprezar a importância que têm para os dias atuais o
exemplo dado pelas antigas instituições gregas e romanas. Como menciona Paulo Bonavides
(1996, p. 140), “Estudando a Cidade-Estado, estudamos, na verdade, o ideal dos Estados
modernos, algo que é tanto de ontem como de hoje, por ser essencialmente de sempre”. E,
ressaltando o sentimento igualitário e coletivista presente nessas sociedades, arremata:

A tradição se depara com formas adiantadas de adsorção do homem pela coletividade.


Os que se entristecem com o cisma entre o individual e o social na Idade Moderna
encontram motivos de encantamento ao contemplarem enternecidamente aqueles
tempos remotos, em que a sociedade política teria realizado, de forma concreta, o
ideal da liberdade humana, produzindo o milagre da vinculação orgânica entre o
indivíduo e a comunidade. (BONAVIDES, 1996, p. 146-147).

É certo que, no Império Romano, assim como nas demais civilizações antigas,
inicialmente prevalecia a idéia de estado patrimonial e não de estado fiscal, uma vez que a
maioria das receitas públicas eram oriundas do uso do patrimônio público, das penalidades
pecuniárias e dos direitos decorrentes dos monopólios e não da tributação. (TORRES, 2011,
p. 565).

Neste período, a tributação justificava-se mais como uma espécie de sujeição dos
vencidos de guerra, do que propriamente uma obrigação ex lege, apta a garantir o
financiamento estatal. Os cidadãos participavam apenas no custeio dos serviços públicos e em
razão de eventos extraordinários, como era o caso do “tributum”, criado para custear
edificações ou festas.

Em um segundo momento, diante da necessidade de alargamento do Império Romano


através das constantes batalhas, a tributação sobre os cidadãos foi a forma encontrada para
sustentar e fortalecer os seus exércitos. “A partir de então, o custo do Estado passou a ser
suportado pelos cidadãos e surge um sistema tributário com impostos sobre o patrimônio
(sobre a terra e a produção)”. (TORRES, 2011, p. 566). “À época, cobrava-se imposto pela
21

importação de mercadorias (portorium) e pelo consumo geral de qualquer bem (macelum)”.


(FAZENDA, 2005, p.22).

1.2 A Idade Média e o financiamento estatal

A crise do Império Romano marcou o início da Idade Média, período que compreende
os anos de 476 a 1453, caracterizado essencialmente pela total descentralização do poder. O
grande império cedeu lugar aos feudos, que eram administrados pelos senhores feudais, a
quem a maioria da população campestre, os vassalos, tinha que pagar onerosos tributos em
troca da sobrevivência própria e de sua família.

Nesse contexto, mesmo os cidadãos livres passaram a sujeitar-se compulsoriamente ao


pagamento de impostos, que eram cobrados de forma abusiva e aleatória. Como narra Heleno
Taveira Torres (2011, p. 565): “O tributo era imposto (imperatum), não consentido ou
aprovado pelos representantes dos destinatários, logo, aplicado como típico ato de império, e,
em seguida, fixado e arrecadado com ampla discricionariedade”. Embora tal fato não tenha
gerado, em regra, uma revolta armada, houve uma resistência passiva e individual por parte
dos contribuintes. Com efeito, há quem atribua à Idade Média o surgimento da fraude no
pagamento de tributos (ROCHA, 2005, p. 32).

A exorbitante carga tributária era decorrência direta das cruzadas ou guerras santas, cujo
objetivo principal era a reconquista da Palestina, lugar sagrado dos cristãos. A doutrina do
cristianismo pregava na sociedade o dever político e moral de pagar corretamente os tributos.
Daí a célebre frase dita por Jesus Cristo: “Daí a César o que é de César”. A influência
religiosa era marcante na sociedade, e era este o fundamento utilizado para a crescente
exigência dos tributos destinados ao financiamento do trono e dos exércitos militares.

Não somente os vassalos viam-se sufocados com alta carga tributária. Os senhores
feudais também “insurgiam-se contra as exigências de monarcas aventureiros e de
circunstância, que impunham uma tributação indiscriminada e mantinham um estado de
guerra constante, que só causava prejuízo à vida econômica e social”. (DALLARI, 2006, p.
70).

Era o caso da Inglaterra, onde o Rei Ricardo Coração de Leão deixou o povo sob o
governo do Rei João Sem Terra para comandar seu exército nas cruzadas. Durante a sua
ausência, o Rei João Sem Terra, visando não devolver o seu trono ao rei Ricardo, aproveitou
22

para criar e estruturar o seu próprio exército, sendo que para isso passou a cobrar os tributos
em dobro.

Fruto da forte reação dos nobres senhores feudais diante de tal situação, remonta desta
época o primeiro documento de proteção contra os abusos reais, a Magna Carta, assinada em
15 de junho de 1215 pelo Rei João Sem Terra, cuja importância histórica atribui-se por ser a
primeira limitação legal ao poder dos reis de cobrar tributos, como se vê no trecho abaixo
transcrito:

1. Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho geral do reino


(commue concilium regni), a não ser para resgate da nossa pessoa, para armar
cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar, mas uma única vez, o casamento da
nossa filha mais velha; e esses tributos não excederão limites razoáveis. De igual
maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres.
2. E a cidade de Londres conservará todas as suas antigas liberdades e usos próprios,
tanto por terra como por água; e também as outras cidades e burgos, vilas e portos
conservarão todas as suas liberdades e usos próprios.
3. E, quando o conselho geral do reino tiver de reunir para se ocupar do lançamento
dos impostos, exceto nos três casos indicados, e do lançamento de taxas,
convocaremos por carta, individualmente, os arcebispos, abades, condes e os
principais barões do reino; além disso, convocaremos para dia e lugar determinados,
com a antecedência, pelo menos, de quarenta dias, por meio dos nossos xerifes e
bailios, todas as outras pessoas que nos têm por suserano; e em todas as cartas de
convocatória exporemos a causa da convocação; e proceder-se-á à deliberação do
dia designado em conformidade com o conselho dos que não tenham comparecido
todos os convocados. (MAGNA CARTA, 1215)

O período final da idade média foi marcado pelo Renascimento. O fim das cruzadas e o
progressivo enfraquecimento dos senhores feudais provocaram uma paulatina mudança nos
hábitos da população, que aos poucos ia se libertando do poder feudal e migrando para a
cidade. Conseqüentemente, novos hábitos de consumo surgiam e o comércio era fomentado,
fazendo surgir uma nova classe, a burguesia.

1.3 A Idade Moderna, o absolutismo e o surgimento do Estado Nação

A Idade Moderna teve como marco inicial a tomada de Constantinopla pelos turcos
otomanos em 1453, e como marco final a Revolução Francesa, em 1789. Com a crise do
Estado Feudal e com o surgimento da Idade Moderna, a evolução na maneira de organização
do poder resultou em uma nova concepção de Estado. Paulatinamente, os feudos foram se
transformando em reinos e estes reinos foram se unindo, dando origem aos Estados Nacionais,
cuja característica básica consistia em ser uma “unidade territorial dotada de poder soberano”
(DALLARI, 2006, p. 70).
23

Curioso notar que Nicolau Maquiavel foi responsável pela introdução da palavra
“Estado”, utilizada em sua obra clássica “O Príncipe” (1513), na qual o autor demonstra a
impossibilidade de organização social sem a existência de um poder forte e centralizador. O
pensador florentino foi responsável pela “teorização completa da soberania como instrumento
político de um poder absoluto que se incorpora no príncipe, como se o príncipe fora o próprio
Estado.” (BONAVIDES, 2007, p. 34).

Tal ideologia deu origem ao Estado Nacional Absolutista, 6 segundo o qual os reis
imperavam de maneira absoluta, com poderes ilimitados, o que inevitavelmente dava azo a
medidas exageradamente desproporcionais em face dos súditos. E em relação à tributação, o
problema não era diferente:

O exemplo histórico mais notório da realidade econômica e social dessa era foi o
Estado Nacional da França, de Luis XIV. O sistema tributário imposto por ele é
famoso por seu despotismo: ‘L’État c’est moi’ e tinha por lema: ‘Quero que o clero
reze, que o nobre morra pela pátria e que o povo pague’ (NACIONAL DE
EDUCAÇÃO FISCAL, 2005, p. 27).

Thomas Hobbes, pensador e teórico do absolutismo, defende em “O Leviatã” (2008)


que todos os tributos, sem exceção, devem ser pagos porque só o Estado é juiz do que se deve
ou não executar, sendo certo que perante o Estado, os súditos não detêm direitos.

Conseqüentemente, a insustentável carga tributária e a gritante sujeição do povo às


arbitrariedades do rei tornaram inevitáveis as reações anti-absolutistas, inspiradas pelos
jusnaturalistas que, através da idéia de contrato social, buscam a constitucionalização dos
Estados. De forma violenta, deflagrou-se a Revolução Francesa, em 1789.

1.4 A Idade Contemporânea

À medida que a nova figura política ia se emoldurando, assim como a sociedade por si
mesma, o financiamento estatal e o sistema tributário passavam por profundas
transformações, deixando de lado as tendências amadoras de tributação e evoluindo em busca
de uma estruturação hígida e garantidora das finalidades estatais.

6
À época, a sociedade estruturava-se em castas. A nobreza e o clero eram as classes dominantes e não pagavam
impostos. O Estado era financiado essencialmente pelo pagamento de tributos por parte da burguesia
(comerciantes), dos camponeses e dos artesãos.
24

O grande questionamento que se faz diz respeito à identificação de quais seriam tais
finalidades estatais. Por óbvio, diante dos diversos ciclos econômicos e ideológicos pelos
quais passou a humanidade, a resposta varia de acordo com a época, com o lugar e, sobretudo,
de acordo com a corrente política dominante. Tais variantes repercutirão diretamente na
legitimidade social do tributo e no papel do Estado frente às demandas da sociedade e dos
demais agentes econômicos.

O que se sabe é que, pelo menos no Brasil, até que a Constituição Federal de 1988
instituísse o Estado Democrático de Direito que contemplasse os cidadãos com um amplo rol
de Direitos e Garantias Fundamentais e Sociais, um longo caminho foi percorrido. É esse
percurso fático, ideológico e político que será analisado a seguir, doravante dentro do
contexto de um Estado Constitucional.

1.4.1 O surgimento do Estado Constitucional – forte influência do Liberalismo Clássico

A Revolução Francesa (1789) representou o marco inicial da Idade Contemporânea e


proporcionou o surgimento do Estado Constitucional, decorrente dos anseios sociais em torno
da limitação do poder estatal. A burguesia ascendia política e socialmente para se tornar a
classe dominante, mas para tanto era necessário desafiar o absolutismo até então imperante.
Como narra Bonavides (2007, p. 40):

A queda da Bastilha simbolizava, por conseguinte, o fim imediato de uma era, o


colapso da velha ordem moral e social erguida sobre a injustiça, a desigualdade e o
privilégio, debaixo da égide do Absolutismo. [...]. Simboliza, por derradeiro, a ocasião
única em que nasce o poder do povo e da Nação em sua legitimidade incontrastável.

Com o advento do constitucionalismo, a idéia inicial pregava que o poder não mais seria
determinado pelos soberanos, mas pelas leis. Reside aí uma das maiores conquistas da
burguesia: a legalidade. Em 26 de agosto de 1789 foi aprovado pela Assembléia Nacional
Francesa um documento inspirado nos novos ideais de justiça e legalidade, a Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.

O século XIX trouxe conquistas também em matéria de tributos. Com o advento do


“Estado de Direito” a justiça tributária passou a justificar-se no consentimento do tributo, já
que o povo decidia quem pagaria o tributo e de que forma este deveria ser apurado e pago
(TORRES, 2011, p.578). Os privilégios odiosos eram abandonados e a tributação passou a
25

nortear-se pela repartição dos custos da despesa pública e na proporção das riquezas
disponíveis, manifestando-se, desde então, o princípio da capacidade contributiva.

No campo tributário, a nova carta de direitos (Declaração Universal dos Direitos do


Homem e do Cidadão, 1789) concebeu o princípio da capacidade contributiva e o controle do
gasto público como direitos naturais, inalienáveis por parte do cidadão, como se vê nos
artigos 13 e 14 do documento:

Artigo 13º. Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração


é indispensável uma contribuição comum, que deve ser repartida entre os cidadãos
de acordo as suas possibilidades.
Artigo 14º. Todos os cidadãos têm o direito de verificar por si ou pelos seus
representantes, a necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de
observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração.

Em que pese o positivismo jurídico característico da época ter assegurado importantes


garantias ao cidadão, hoje sabe-se que, em seu período inicial, o Estado Constitucional foi
fortemente influenciado pelo liberalismo e, conseqüentemente, pelo culto exagerado ao
individualismo e pela busca dos lucros.

“Na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o


indivíduo”. Quanto menos palpável a presença do Estado nos atos da vida humana, mais larga
e generosa a esfera de liberdade outorgada ao indivíduo. Caberia a este fazer ou deixar de
fazer o que lhe aprouvesse. (BONAVIDES, 1996, p.40,57).

Na obra “Riqueza das Nações” (2001, prefácio - XIII), em defesa da burguesia, Smith
acentuava que os impostos eram um obstáculo ao crescimento da economia. Contudo, ainda
que contrariado, reconhece que a tributação é necessária – “se o Estado deve garantir a
burguesia, a um preço camarada, qual a melhor maneira de cobrar impostos para tal?”.

Conseqüentemente, para os liberais, o fundamento da tributação residia na Teoria do


Preço, ou seja, o ônus tributário decorreria, justamente, da contrapartida direta oferecida pelo
Estado. O tributo era tão somente uma troca e não um ato de soberania, por meio do qual o
Estado define a obrigação tributária em consonância com as finalidades estatais.

Tal pensamento servia para sustentação do Estado Mínimo, responsável apenas pela
proteção dos indivíduos e pela manutenção da propriedade. A classe dominante propunha a
consolidação do Estado mínimo, no qual a missão do tributo era prover tão somente as
funções clássicas estatais. Nesse sentido, esclarece Paulo Bonavides (1996, p.40):
26

“Decorrente dessa posição filosófica, temos o Estado Gendarme de Kant, o Estado guarda-
noturno, que Lasalle tanto ridicularizava, demissionário de qualquer responsabilidade na
promoção do bem comum.”

Diante da completa ausência de iniciativa social por parte do Estado, cabia aos
indivíduos, individualmente, a busca pelo bem comum, sendo certo que a harmonização de
suas relações privadas era livremente influenciada pelas leis do mercado. No seio de uma
sociedade encampadora dos ideais liberais, o capitalismo apresentava-se como um sistema econômico
altamente lucrativo, mas também promovedor de grandes desigualdades. Percebe-se, então, que a
liberdade e a igualdade consagradas no liberalismo clássico eram apenas formais e não
substanciais, ou seja, encobriam a realidade de uma sociedade repleta de desigualdades
sociais, econômicas e políticas.

São válidas, nesse aspecto, as críticas de Edmund Burke à Revolução Francesa, traçadas
em sua mais importante obra – Reflexões sobre a revolução em França (1790), por meio da
qual o autor diagnostica a existência de contradições internas da Revolução. Para Burke, o
lema encampado pelos revolucionários – “liberdade, igualdade e fraternidade”, desconhece a
real natureza das coisas, pois a desigualdade não pode ser concretamente rechaçada da
sociedade. (KINZO, 2006, p. 20-21).

Esclarecendo, para Burke (1970), a Revolução Francesa representou tão somente o


triunfo da classe burguesa e a instauração de uma nova ordem política. Em verdade, a
monarquia absoluta cedeu lugar a uma falsa democracia que, da mesma forma, manteve o
caráter absoluto do poder. Isso porque, a liberdade conquistada não se confundia com a idéia
de uma legítima democracia, uma vez que a vontade geral estampada no ordenamento vigente
alcançava apenas a vontade da maioria, que acabava por sobrepor-se à exigência de um
governo da lei. Na medida em que a vontade da maioria se tornava a própria lei, abandonava-
se a idéia de legalidade que garantisse, sobretudo para as minorias, a inviolabilidade dos
indivíduos e as limitações do poder estatal.

Começou a difundir-se na população oprimida o consenso de que a liberdade do homem


perante o Estado já não era suficiente, pois exigia-se uma ideia “mais democrática da
participação total e indiscriminada deste na formação da vontade estatal” (BONAVIDES,
1996, p. 43).
27

A classe oprimida passou a lutar por uma liberdade que lhe garantisse independência
econômica, ou pelo menos a perspectiva de paz e igualdade relativa a um mínimo existencial
não dissociado do ideal de dignidade humana. Só assim a idéia democrática de igualdade viria
a preponderar.

O liberalismo não soube resolver este problema social, e, conseqüentemente, entrou em


crise. Contra os fatores econômicos comprometedores da liberdade do homem, em especial o
capitalismo duro, ganha espaço o socialismo e as idéias comunistas propostas por Karl Marx,
bem como o Estado Social – (Welfare State), com a sugestão de um capitalismo mais
moderado, compatível com o ideal de bem comum coletivo.

1.4.2 O Socialismo e o Marxismo

A frustração diante da Revolução Francesa e dos seus reflexos liberais impulsionou o


pensamento socialista em vários países, inclusive na França. Em um primeiro momento, como
reação à exploração da classe operária, os movimentos socialistas franceses reivindicaram o
sufrágio universal e a burguesia até cedeu a tais anseios.

Por volta de 1840, a crise social instalada na comunidade européia e os primeiros traços
do movimento operário eram acompanhados por Marx, motivando a construção de sua teoria
política revolucionária. Para o economista e filósofo, a via democrática inaugurada pelo
sufrágio não conseguiria derrubar os privilégios da burguesia, motivo pelo qual passou a
conclamar os trabalhadores para uma solução de força. Em “O Manifesto Comunista” (1847),
Marx suscita: “Proletários de Todos os Países, Uni-vos!”.

Seus objetivos eram claros: acabar com a sociedade de classes e abolir a propriedade
privada burguesa. Entendia que o Estado era apenas uma comissão que administra os
negócios comunitários de toda a classe dominante (MARX, 1847, p.2). Com efeito, o
momento era de ruptura total da sociedade e do Estado,7 sendo a revolução o horizonte mais
eficaz para a crise que se instalava, na visão do pensador.

7
O desaparecimento do Estado só viria depois de um período de transição mais ou menos longo, no qual o
desenvolvimento das forças produtivas levaria ao “desaparecimento das diferenças de classe”, concentrando a
produção “nas mãos dos indivíduos associados”, levando a que o Estado perdesse “seu caráter político”. “É neste
sentido que Marx fala em 1852, ou seja, cinco anos depois de O Manifesto, que a ditadura do proletariado [...] não
é, em si mesma, mais do que o trânsito para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes”.
28

De certa forma, não resta dúvidas de que as questões relacionadas à tributação e às


finanças públicas sempre trazem em seus fundamentos a eterna luta de classes, sobretudo
quanto à definição do gasto governamental. Mas tal assertiva não foi suficiente para garantir o
sucesso do Marxismo, que para a maior parte do mundo, não passou de uma utopia.

Não obstante Marx ter idealizado uma sociedade mais justa e igualitária, sabe-se que o
ideal democrático não foi alcançado pelo Marxismo. Isso porque, a revolução socialista foi,
fundamentalmente, a revolução de uma só classe. “A ditadura do proletariado conduziu a um
socialismo violento, autoritário, policial, com que a humanidade paga, à edificação do Estado
– socialista, pesadíssimo tributo de sangue e sacrifício” (BONAVIDES, 1996, p.176-177).

Todavia, Bonavides (1996, p.176-177) explica que, embora não democrática, a


revolução promovida por Marx produziu válidos frutos para a humanidade, uma vez que:

A adesão de Marx à violência legitimou-se historicamente e é duvidoso afirmar que,


sem o apelo à crise social houvéssemos jamais chegado às concessões feitas, a esse
fecundo amadurecimento de consciência, que leva o mundo contemporâneo a
tutelar, como verdade indestrutível, alguns postulados de justiça social.

Segundo o autor, em comparação ao socialismo de Marx, a democracia de Rousseau,


longe de ficar obsoleta, ganha cada vez mais presença. Nesse aspecto, o pensamento de
Rousseau atende com mais proveito do que Marx à criação de um Estado social, por permitir
um socialismo moderado, por via democrática. Rousseau propunha a revolução socialista pelo
consentimento. Através de sua tese democrática, abria caminho para transformações pacíficas
e vantajosas, de imenso alcance social (BONAVIDES, 1996, p.178). É essa ideologia que
mais se aproxima do Estado de Bem Estar Social, que será analisado a seguir.

1.4.3 O Estado Social e a função do tributo

As injustiças provocadas pelo neutralismo ou abstencionismo do Estado liberal


impulsionaram os movimentos sociais em busca de justiça social. Diante desta realidade, no
final do século XIX e no início do século XX, surge um novo sistema de idéias dispostas a
combater os problemas causados pelo pensamento individualista liberal. A proposta era
compatibilizar em um mesmo sistema dois elementos: o capitalismo (neocapitalismo) e o
bem-estar social (SILVA, 2010, p.115).

Como afirma Manuel Garcia-Pelayo (2005, p.23), “Estado Social – (dice H.P. Ipsen) –
significa La disposición y la responsabilidad, la atribuición y la competência del Estado para
29

la estructuración del orden social”. Sob esta perspectiva, o Estado alcança mais um degrau
em suas transformações, abandonando a idéia de “Estado de Direito” para assumir uma nova
forma - o Estado Social de Direito, 8 também intitulado de Estado do Bem- Estar Social,
Welfare State, Estado Providência ou Estado Previdência.

Por volta de 1930, o economista britânico John Maynard Keynes passou a defender a
idéia de uma política estatal intervencionista. Em 1926, Keynes editou o manifesto “The end
of laissez-faire”, por meio do qual propôs uma análise histórica dos pensadores do presente e
do passado, como Hobbes, Locke, Hume, Rousseau, Paley, Adam Smith, Bentham, e Miss
Martineau, como forma de preparar espaço para o que ele chamou de “emancipação da
mente”, referindo-se à dogmática liberal: “A study of the history of opinion is a necessary
preliminary to the emancipation of the mind” (KEYNES, 1930, on line).

Em 1936, Keynes publicou sua obra mais importante, “Teoria Geral do Emprego, do
Juro e da Moeda”, na qual o autor ressalta a instabilidade do sistema capitalista em prejuízo
do bem-estar social. Segundo o economista:

A operação da ‘mão invisível’, ao contrário do que ainda era sustentado por


economistas de inclinação mais ortodoxa, não produz a harmonia apregoada entre o
interesse egoístico dos agentes econômicos e o bem-estar global. Em busca de seu
ganho máximo, o comportamento individual e racional dos agentes econômicos —
produtores, consumidores e assalariados — pode gerar crises a despeito do bom
funcionamento das poderosas forças automáticas dos mercados livres. E essas crises
advêm de insuficiências de demanda efetiva. Nisso se aproxima, dentre outros, de
Marx; deste, no entanto, se afasta radicalmente quanto ao método de análise e
quanto ao futuro do sistema capitalista (1996, Prefácio).
Seu propósito influenciou fortemente o presidente americano Franklin Roosevelt,
responsável por implementar o plano político e econômico “new deal”, que previa ajuda à
parcela da população mais carente e a geração de novos empregos, sem abandono do
capitalismo.

Enquanto que, na concepção liberal, a liberdade era garantida apenas em seu aspecto
negativo, no Estado Social, assume status negativo e positivo, já que o Estado passa a intervir
em prol do bem-estar da comunidade e para a correção das desigualdades sociais
(BONAVIDES, 1996, p.12).

Sob esse enfoque, ao menos teoricamente, a democracia passaria a ser concebida mais
como um direito do que como uma forma de governo: “Foi esse Estado o degrau decisivo que

8
O Estado Social não se confunde com o Estado Socialista defendido por Marx, absolutamente avesso ao capitalismo.
30

fez da democracia direito positivo do povo e do cidadão.” (BONAVIDES, 1996, p. 17). E


acrescenta:

Positivado como princípio e regra de um Estado de Direito reconstruído sobre os


valores da dignidade da pessoa humana, o Estado Social despontou para conciliar de
forma duradoura e estável a Sociedade com o Estado. O Estado Social é, portanto, a
chave das democracias do futuro. Sem Estado social não há democracia e sem
democracia não há legitimidade. (BONAVIDES, 1996, p.38).

Embora haja contradições em torno do caráter democrático do Estado Social, consoante


as críticas neoliberais adiante demonstradas, não há dúvidas que representa em grande avanço
em face do “Estado de Direito”, sobretudo, pela sucumbência do Estado liberal ao imperativo
de um Estado ativo, que chama para si a tutela efetiva dos direitos fundamentais, guardião da
dignidade humana e promovedor dos direitos sociais.

Evidentemente, em face das novas atribuições do Estado Social, surge a necessidade de


aprimoramento dos Sistemas Tributário e Financeiro até então vigentes, sob pena de
frustrarem-se os objetivos encampados no Texto Constitucional.

Neste contexto, a tributação passa a ser vista não só como instrumento de justiça social,
através da distribuição de renda, mas também como instrumento viabilizador das políticas
sociais, por ser o principal meio de financiamento estatal.

Na medida em que o Estado passa a constitucionalizar medidas legais de proteção aos


direitos fundamentais e aos direitos sociais, a tributação revela-se um dever fundamental. Não
há dúvidas de que, em um Estado solidário, mas, ao mesmo tempo, extremamente desigual
como o Brasil, a tributação se justifica como a principal forma de ofertar as necessidades
básicas aos mais necessitados, além de proporcionar o custeio da máquina pública e das
atividades essenciais.

Por certo, a tarefa de efetivação do Estado Social não é fácil. Encontra obstáculos de
origens políticas e ideológicas, profundamente marcados pelo neoliberalismo, os quais, no
mundo globalizado em que se vive, chegam a afetar, inclusive, a idéia de soberania,
fundamento jurídico do poder de tributar.

1.4.4 O neoliberalismo e os seus reflexos na tributação

Em resposta ao intervencionismo estatal característico do Estado de Bem Estar Social,


surge na Europa e na América do Norte o neoliberalismo, tendo como marco teórico a obra
31

“O Caminho da Servidão”, de Friedrich Hayek, publicado na Inglaterra em 1944, durante a


segunda guerra mundial.

Através de uma abordagem declaradamente política, Hayek (2010) objetivava informar


à sociedade acerca dos problemas futuros que fatalmente seriam gerados pela política
econômica centrada no social. Em um primeiro momento, Hayek (2010) dirigia sua crítica ao
socialismo radical, concebido como um “movimento estruturado, que visava uma organização
premeditada da vida econômica pelo estado transformado em principal proprietário dos meios
de produção” (HAYEK, 2010, p.15). Posteriormente, admitiu que o fenômeno do socialismo
adquiriu nova acepção, significando a “redistribuição de renda por meio da tributação e das
instituições do Estado previdenciário” (HAYEK, 2010, p.27). Ou seja, mesmo depois de
constatar a morte do socialismo extremado, Hayek passou a criticar as concepções do Estado
de bem–estar social, afirmando que os “seus fins, demasiadamente complacentes, são
incompatíveis com uma sociedade livre” (HAYEK, 2010, p. 17).

Advogava contra as limitações dos mecanismos de mercado por parte do Estado, em


especial, contra as regulamentações estatais, apontadas como uma forte ameaça à liberdade
econômica e política da sociedade. Para o autor, o planejamento econômico, o amplo controle
governamental e o igualitarismo proposto pelo Estado de bem-estar comprometia a liberdade
de todos e a concorrência de mercado. A desigualdade e a liberdade de escolha eram valores
positivos, essenciais para o correto desenvolvimento do mercado.

Além disso, alegava que o excesso de regulamentação produzia efeitos de ordem


psicológica, alterando o caráter do povo, que era levado a um caminho de servidão, na medida
em que a sua individualidade e as suas opções de escolha para os diversos atos da vida lhe era
tolhidas, estando já previamente definidas pelo ente estatal (HAYEK, 2010, p. 20,41).

À época de sua primeira publicação, conforme expõe Perry Anderson (1995, p.10), o
manifesto político de Hayek não encontrou condições propícias para o seu acolhimento, uma
vez que o capitalismo avançado entrava em sua fase de ouro, sem precedentes, apresentando o
crescimento mais rápido da história durante as décadas de 50 e 60. Ainda não havia espaço
para o capitalismo duro defendido pelo autor.
32

Foi com a crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, que os seus ideais
passaram a ser analisados sob outra ótica. A economia capitalista caiu em recessão,
apresentando elevadas taxas de juros e baixo crescimento econômico.

Para Hayek, o poder excessivo dos sindicatos e do movimento operário eram fatores
responsáveis por extirpar os lucros das empresas, o que desencadeava os processos
inflacionários e, conseqüentemente, acabava por gerar uma grave crise no mercado. Para
combater tais efeitos, era preciso um Estado forte no que diz respeito à contenção das forças
sindicais e do gasto público, mas omisso nas intervenções econômicas e sociais.

Neste intuito, tornava-se indispensável que os governos implementassem uma


impactante reforma fiscal. Primeiro, porque era preciso incentivar os agentes econômicos.
Segundo, porque a redução dos impostos sobre os rendimentos e rendas mais altas era uma
forma de comprometer a redistribuição de renda e, automaticamente, restaurar a desigualdade
social, premissa do pensamento neoliberal.

A hegemonia neoliberal avançou nos países da Europa e nos Estados Unidos, com
algumas variantes. Nos Estados Unidos, o governo travou verdadeira competição militar com
a União Soviética, como estratégia para combater o regime comunista na Rússia. Para
sustentar o alto custo da guerra, os Estados Unidos, dentre outras medidas, reduziram
drasticamente a tributação sobre os mais ricos, impuseram nova legislação social e lançaram
um programa de privatização. Nos países europeus, os governantes praticaram um
neoliberalismo mais moderado, focando sua política em restringir o gasto público e na
reforma fiscal (ANDERSON, 1995, p.12).

Com efeito, Perry Anderson (1995, p.15) indaga: “Poder-se ia perguntar qual a
avaliação efetiva da hegemonia neoliberal no mundo capitalista avançado, pelo menos durante
os anos 80. Cumpriu suas promessas ou não?”.

Em resposta, o autor constata que as políticas adotadas conseguiram deter o processo


inflacionário dos anos 70 e que houve a recuperação dos lucros das empresas, impulsionada,
sobretudo, pela redução dos salários e pelo enfraquecimento das forças sindicais. Contudo, o
objetivo principal, qual seja, a retomada do crescimento econômico mostrou-se
decepcionante. Além disso, as políticas adotadas causaram um efeito nefasto à sociedade,
fortemente marcada pela desigualdade.
33

Perry Anderson (1995, p.16) entende que o fracasso do neoliberalismo se deu por duas
razões principais. Primeiro, porque a desregulamentação financeira criou condições mais
propícias para à especulação do que para a efetiva produção de bens e riquezas. Segundo,
porque, apesar de todo o esforço, o gasto público não diminuiu, já que os Estados tiveram que
suportar o ônus causado pelo crescimento do desemprego.

Inolvidável que a ideologia neoliberal representa um retrocesso no que diz respeito ao


caráter democrático do Estado. Aliás, desde os seus primórdios, a ideologia neoliberal fugiu
de qualquer compromisso real com a democracia. O argumento de que a democracia, no
sistema liberal, é alcançada através da ampla liberdade de escolha por parte dos indivíduos,
não se mostrou válido. É nesse sentido que Mino Carta (2012, on line) escreve:

As conseqüências do neoliberalismo, deste selvagem fundamentalismo, não põem


em xeque somente o sistema econômico mundial, mas também a própria
democracia, a qual não se satisfaz com a - liberdade para buscar a igualdade. Ao
menos, a igualdade de oportunidades.

Ao longo dos últimos trinta anos, o neoliberalismo atribuiu ao capitalismo um caráter


extremamente desumano. Durante este período, as finanças não estiveram a serviço da
produção e do desenvolvimento, mas sim do lucro especulativo, desprezando os valores
supremos da dignidade da pessoa humana em benefício do lucro e do poder. A recente crise
mundial eclodida em 2008 mostrou que tal sistema não poderia levar a sociedade ao alcance
do bem-comum, nem tampouco à tão sonhada liberdade e igualdade.

Nem por isso pode-se concluir que a era do neoliberalismo chegou ao fim. A ideologia
tenta sobreviver em meio às reiteradas crises econômicas, sobretudo nos países europeus.
Contudo, em meados do ano de 2010 e 2011 a sociedade mundial assistiu um fenômeno, no
mínimo, curioso: as elites européias e americanas conclamaram o governo a aumentar a carga
tributária sobre os mais ricos como forma de afastar a crise econômica que atinge os seus
países.9 Seria um sinal de que o caminho para o individualismo liberal está sendo novamente
abandonado em prol do coletivismo?

9
Sobre o tema, interessante matéria publicada pelo jornal Valor Econômico (POLITI, 2011), reproduzindo artigo
do Financial Times: “Na segunda-feira passada, o investidor Warren Buffett proclamou que também é a favor
do aumento dos impostos para seus colegas. ‘Enquanto os pobres e a classe média lutam por nós no
Afeganistão, e a maioria dos americanos luta para pagar suas contas, nós, os muito ricos, continuamos tendo
isenções fiscais extraordinárias”, escreveu Buffett no The New York Times. O clamor por impostos maiores
para os ricos - que é compartilhado pelo presidente Barack Obama e por muitos congressistas democratas -
parece estar de acordo com o desejo da maioria dos americanos. Uma pesquisa feita pela CNN este mês
constatou que 63% dos americanos são a favor de impostos maiores para as empresas e cidadãos ricos, para
34

1.4.5 A tributação no Estado Democrático de Direito – caminho para o Estado


Social Democrático de Direito

É certo que, analisando os ciclos econômicos e políticos da humanidade até aqui, pode-
se constatar que as ideologias adotadas não foram capazes de efetivar a real democracia.

Nem mesmo na antiguidade clássica, com o seu exemplo de democracia ateniense, 10


obteve-se êxito em assegurar condições dignas a todos os indivíduos, já que os escravos
compunham uma parcela relevante da população e eram eivados de qualquer participação
coletiva. O mesmo se diga acerca da sociedade feudal, onde nobreza e clero eram sustentados
por meio do sacrifício e da exploração dos trabalhadores (comerciantes, camponeses e
artesãos). Mesmo com a instauração do Estado Constitucional, a sociedade ainda se submetia
a condições alarmantes de desigualdade, uma vez que os avanços da Revolução Francesa
viram-se frustrados pela ideologia liberal e pela busca incessante de lucros em detrimento da
dignidade humana. Da mesma forma, o marxismo não alcançou o ideal democrático, uma vez
que a ditadura do proletariado demonstrou-se uma revolução sangrenta, de uma só classe.

José Afonso da Silva (2010, p.115-116) reconhece que, embora o Estado Social de
Direito tenha relevância histórica, por revelar “um tipo de Estado tendente a criar uma
situação de bem-estar geral que garanta o desenvolvimento da pessoa humana”, tal concepção
ainda é insuficiente para caracterizar o Estado Democrático, pois a história mundial
demonstrou que o Estado Social se compatibiliza com regimes políticos divergentes, como a
democracia, o fascismo e o nazismo.11

Considerando as deficiências das formas de Estado apresentadas, surge um conceito


novo, o Estado Democrático de Direito, fundado na soberania popular concretizada através de
instrumentos juridicamente regulados (CANOTILHO, 2011, p.100), viabilizador da

conter a disparada da dívida do país. Mesmo assim, os republicanos no Congresso demonstram poucos sinais
de que estão dispostos a retroceder em sua posição de que qualquer aumento de impostos prejudicaria a fraca
economia dos EUA - e que tributos adicionais sobre os ricos prejudicariam os geradores de novos empregos
num momento em que se precisa desesperadamente deles”.
10
Embora o espírito cívico e coletivista predominante na Cidade – Estado10 seja um exemplo para as sociedades
modernas, é bem verdade que naquela época não se conhecia os direitos fundamentais do indivíduo. Como
explica Paulo Bonavides (1996, p. 147), “Não havia direitos essenciais do indivíduo porque ele não era
indivíduo, senão membro da comunidade. O substrato espiritual da democracia grega não era o individualismo,
mas a idéia de comunidade”.
11
Para José Afonso da Silva (2010, p.116), a expressão Estado Social manifesta-se carregada de suspeição. Cita:
“o próprio Elías Dias, que reconhece a importância histórica do Estado Social de Direito, não deixa de lembrar
a suspeita quanto a saber ‘se e até que ponto o neocapitalismo do Estado Social de Direito não estaria em
realidade encobrindo uma forma muito mais matizada e sutil de ditadura”.
35

participação ampla da sociedade nas decisões políticas e nos mecanismos de controle do


poder outorgado.

A Constituição Federal brasileira, promulgada em 1988, proclamou em seu artigo


primeiro que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, consagrou ao longo de seu texto um amplo rol de direitos e garantias
fundamentais, protegidos pelo manto das cláusulas pétreas.

Concebida como a “Constituição Cidadã”, representou a vitória da sociedade contra um


regime autoritário e antidemocrático, instaurado pelo golpe militar de 1964 e
institucionalizado pelo AI 5.

Analisando a teoria política encampada pela nova ordem constitucional, percebe-se que
a ideologia adotada muito se compatibiliza com os valores fundamentais do Estado Social. É
nesse sentido que Paulo Bonavides (2010, p. 2010) é taxativo: “A Constituição de 1988 é
basicamente, em muitas de suas dimensões essenciais, uma Constituição do Estado Social”.

Ao mesmo tempo em que em que se auto-intitula democrática, consagra direitos sociais


dependentes direta ou indiretamente do intervencionismo estatal, alberga um sistema
tributário e financeiro extremamente avançado, capaz de viabilizar a redistribuição de renda e
a redução das desigualdades sociais, sem comprometer a liberdade e igualdade dos
contribuintes, embora tais efeitos sejam obstados pela legislação infraconstitucional.

A respeito do quadro normativo constitucional, cumpre lembrar que o princípio da


capacidade contributiva é previsto como norteador da tributação da renda e patrimônio dos
contribuintes, mas até o momento, o imposto de grandes fortunas autorizado pelo art. 153,
inciso VII, da Constituição Federal de 1988 não foi instituído por lei federal. Outro exemplo
de descumprimento do texto constitucional refere-se ao relevante número de medidas
provisórias, decretos e leis julgados inconstitucionais por ferirem as limitações ao poder de
tributar (artigos 150 a 152 da CF/88), portanto, carentes de legitimação jurídica.

Consequentemente, em que pese os objetivos consagrados no Texto Constitucional, a


sociedade brasileira nunca usufruiu um Estado de Bem-Estar Social. Primeiro, porque o nível
de desigualdade cultural, financeira e social que alcança a população é vergonhoso. Segundo,
porque o retorno do tributo à sociedade é insatisfatório, já que as atividades relacionadas à
educação, saúde e transporte público são prestadas de forma extremamente precária. Terceiro,
36

em razão de não existir justiça tributária no país, uma vez que o princípio da capacidade
contributiva não é tido como prioridade no atual sistema, comprometendo radicalmente a
redistribuição da renda. Isso se dá, na visão de Paulo Bonavides (2010, p.371), devido à
existência de poderosas forças coligadas politicamente contra o Estado Social brasileiro e
contra os importantes avanços prometidos pela CF/88, “fazendo assim inevitável o
antagonismo fatal entre o Estado e a Sociedade”.

Sendo assim, a efetivação do Estado Democrático de Direito estabelecido pela CF/88 só


poderá ser verificada na medida em que os valores consagrados pelo Estado de bem-estar
social servirem de paradigma para a definição das finalidades estatais, concretamente. É nesse
sentido que Bonavides (1996, p.13) afirma: “O Estado social, em seu mais subido grau de
legitimidade, será sempre, a nosso ver, aquele que melhor consagrar os valores de um sistema
democrático.” Para o autor, ultrapassada a ideia liberal, “a democracia deixou de ser abstrata,
vaga, genérica, programática e utópica para tornar-se objetiva, concreta, positiva, pragmática
real.”

O Estado, para atingir um maior grau de evolução, deverá estar apto a conciliar a
necessidade de intervencionismo estatal em prol dos direitos sociais com a idéia de
participação popular democrática e de segurança jurídica, observando, inclusive, os direitos
fundamentais da personalidade, dentre os quais se insere uma tributação mais justa. Assim, a
constitucionalização do Estado Democrático de Direito significa tão somente um ponto de
partida para que a sociedade evolua em busca do Estado Social Democrático de Direito, no
qual a harmonização do homem cidadão com o Estado, finalmente, poderá ser alcançada.

E para que isso ocorra, além de estar previsto na Constituição Federal, o Estado Social
deverá ser “a própria sociedade brasileira concentrada num pensamento de união e apoio a
valores igualitários e humanistas que legitimam a presente Constituição do Brasil”
(BONAVIDES, 2010, p. 371).
2 A LEGITIMIDADE E O FUNDAMENTO DO PODER FISCAL
NO ESTADO SOCIAL DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A fim de encontrar uma justificativa razoável em torno da oneração dos contribuintes,


interessante perquirir acerca dos fundamentos que legitimam a relação tributária no Estado
atual. Considerando o conflito existente entre legalidade e legitimidade, dizer que o tributo é
legal, não significa dizer que o mesmo é legítimo socialmente.

Nesse sentido, serão avaliadas algumas teorias que tratam da fundamentação e da


legitimação dos tributos, especialmente, a teoria da causa impositionis no bem comum, a
teoria do preço ou da troca, teoria do contrato social ou da lei natural, teoria do benefício e do
sacrifício e teoria da soberania, a fim de identificar se alguma delas se adequa à concepção
social democrática do tipo de Estado que se quer atingir.

Ao lado das teorias ventiladas, defender-se-á a existência de um dever fundamental de


pagar tributos no Brasil, já reconhecido e consagrado pela doutrina e pelo ordenamento
jurídico de muitos países.12

Tal constatação relaciona-se diretamente com os direitos fundamentais incorporados na


Constituição da República e com os seus custos. Portanto, será necessário analisar a forma
como os direitos individuais e coletivos se molduram na Constituição Federal brasileira,
trançando novas perspectivas acerca da efetividade e da exigibilidade destas garantias,
utilizando-se da doutrina brasileira e estrangeira para a superação dos paradigmas existentes.

Outrossim, será analisada a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a


fim de verificar em que medida o órgão guardião dos direitos fundamentais tem dado
efetividade a estas imposições.

Por fim, o estudo levará à abordagem da teoria dos custos dos direitos, a qual considera
que todas as prestações estatais são onerosas, trazendo a lume as razões pelas quais a higidez

12
A esse respeito, interessante a obra do autor português José Casalta Nabais (1998), intitulada “O Dever
Fundamental de Pagar Impostos”.
38

da tributação é pressuposto fundamental para a conquista do Estado Social Democrático de


Direito.

2.1 Teorias sobre o fundamento do poder fiscal

Alfredo Augusto Becker (2010, p. 12), procurando justificar a crise do Direito


Tributário no Brasil, ressaltou a importância de se analisar criticamente os fundamentos da
tributação.

No presente trabalho, tal tarefa parte da seguinte constatação: no Estado Democrático de


Direito, o pagamento de tributos é juridicamente legítimo e fruto da aquiescência social. Se
não o é, deveria ser.

Ao conquistar-se o status de Estado Democrático de Direito, tem-se em mente não


somente um Estado obediente às leis, mas também leis orientadas pela vontade popular.
Como ensina Marcelo Neves (2009, p. 70),

No regime democrático há uma verdadeira ditadura da maioria, na qual ‘a vontade


de todos torna-se vontade geral. Não se legitima internamente no sistema político
democrático a decisão que se funda na asserção ou argumento de que o povo errou
ou não está em condições de tomar decisões. Salvo se houver desrespeito às regras
do jogo, o povo constitucional é o limite da democracia’. Caso contrário, teremos
uma democracia em crise, ou mesmo abolida.

Ao tempo em que o tributo é veiculado pela lei, não há como negar a sua legitimidade
jurídica. Todavia, tal constatação não significa dizer que a tributação é bem quista
socialmente, ou seja, a sua legitimidade social é frequentemente questionada. Portanto, para
uma melhor compreensão deste dilema, urge analisar as diversas teorias que fundamentam o
poder fiscal do Estado: teoria da destinação ao bem comum, teoria do preço ou da troca, teoria
do contrato social, teoria da soberania (MORAES, 1987, p. 120), teoria do sacrifício e teoria
da capacidade contributiva como causa justificadora da tributação.

Seria o tributo um preço pelo qual paga a sociedade em troca da prestação de serviços
Estatais? Seria algo inerente à própria concepção de Estado, como uma lei natural ou mesmo
no molde introduzido pela Teoria do Contrato Social? Seria um sacrifício do contribuinte?
Ou, por fim, seria simplesmente manifestação da Soberania Estatal?

A adoção de uma teoria ou de outra repercute diretamente na questão da legitimidade


social da tributação, traçando parâmetros para a relação jurídica Fisco-contribuinte, em
39

especial no que diz respeito ao papel do Estado, aos direitos e obrigações dos cidadãos, à
resistência ao pagamento de tributos e à prestação dos serviços estatais.

2.1.1 Teoria da causa impositionis e a destinação do bem comum como critério


de segurança jurídica

Desde a idade média já se procurava conhecer as causas da tributação, atribuindo-se,


àquela época, justificação moral ao pagamento dos impostos.

Segundo Heleno Taveira Torres (2011, p. 568), a teoria da causa do tributo remonta na
doutrina teológica medieval, fundada em deveres de consciência e pelo critério da justiça. O
cumprimento espontâneo das obrigações tributárias era visto como justo agir e o pecado
adviria do seu não cumprimento.

Segundo Torres (2011, p. 569), o bem comum apresentava-se como critério de


justificação das leis e dos tributos, sendo esta a medida de segurança jurídica material que
nortearia a legitimidade dos tributos exigidos. O que não estava fundado no bem comum era
lei ou tributo injusto, admitindo-se, inclusive, a resistência ou o não pagamento. Isso ocorria,
por exemplo, quando a exação era excessiva, ou ainda, quando se destinava ao custeio de
guerras indevidas, fundadas em querelas pessoais do príncipe.

É certo que a teoria da causa do tributo na destinação do bem comum compatibilizava-


se com as injustificadas imunidades do clero e da nobreza, conforme a política medieval.
Nesse contexto, o tributo era concebido como “condição inderrogável para a conservação da
liberdade do súdito (condição subjetiva) e desde que destinado ao interesse comum (condição
finalística)” (TORRES, 2011, p. 570). Em outras palavras, o súdito consentia no dever de
pagar o tributo em prol da manutenção do reino, de sua liberdade e de seus bens, sob pena de
confisco.

Em que pese a causa do tributo justificar-se no bem comum, faltava à teoria conteúdo
ético em face da relação tributária, além do que a tributação de dava de forma aleatória, sem
critérios minimamente pré-estabelecidos. Posteriormente, influenciada pelo absolutismo, a
teoria da causa impositionis deu lugar à teoria da equivalência como justificativa para a
cobrança de tributos.
40

2.1.2 Teoria do preço ou da troca ou da equivalência

A Teoria do Preço ou da Troca vislumbra uma relação de permuta entre o Estado e o


contribuinte, baseada na equivalência entre a contribuição do cidadão e a contraprestação
retirada da atividade estatal. O tributo seria o preço do custo do serviço público, o preço da
segurança, ou ainda, como dizia Hobbes (2008, p. 104), o preço da paz: “Aqueles que
entregam a um homem o Poder de governar soberanamente, lhe entregam, também, o direito
de recolher impostos para pagar seus Soldados defensores e os Magistrados que se
encarregarão da justiça”.

Tal teoria é fruto da concepção do Estado liberal, visto como uma associação criada
pelo homem para a realização de seus interesses particulares. Para os liberais, quanto menor a
intervenção estatal, menor o ônus a ser suportado pelos cidadãos contribuintes.

Sendo um pensador liberal, Locke afirmava que Estado era necessário apenas para a
garantia da liberdade individual e para o livre exercício dos direitos sobre a propriedade.
Cabia ao corpo político, formado pela comunidade, a decisão sobre as questões estatais,
inclusive sobre a tributação. É o que se vê nos seguintes trechos extraídos de sua obra
clássica. Segundo Tratado sobre o Governo:

O único modo legítimo pelo qual alguém abre mão de sua liberdade natural e
assume os laços da sociedade civil consiste no acordo com outras pessoas para
juntar-se e unir-se em comunidade, para viverem com segurança, conforto e paz
umas das outras, com a garantia de gozar de suas posses, e de maior proteção contra
quem não faça parte dela. [...]. Quando certo número de homens acordou assim em
constituir uma comunidade com governo, ficam, de fato, fazendo parte dela e
formando um corpo político, no qual a maioria tem prerrogativa de agir e resolver
por todos. (LOCKE, 2005, p. 76).
É bem verdade que os governos, para se sustentarem, geram grande dispêndio, e é
natural que todos quantos desfrutem da proteção paguem a proporção necessária
para mantê-lo conforme sua posse. Todavia, mesmo isso terá que ser com o seu
consentimento, isto é – o consentimento da maioria, dado diretamente ou através de
seus governantes. Se alguém se arrogar o poder de lançar impostos sobre o povo,
estaria violando a lei fundamental da propriedade e subverteria o objetivo do
governo (LOCKE, 2005, p. 104).

Contemporaneamente, a ideologia neoliberal também se reflete na teoria apresentada, já


que os seus defensores clamam retoricamente pela redução da intervenção estatal e pela
desoneração tributária dos mais ricos, medidas altamente comprometedoras da distribuição de
renda e da assistência aos mais necessitados.
41

Diferentemente da concepção liberal, como bem demonstrado, o Estado contemporâneo


já não se limita a atender as necessidades individuais dos contribuintes, nem tampouco a
tributação pressupõe um acordo de vontades das partes, tendo em vista a compulsoriedade
peculiar da grande maioria dos tributos. A obrigação do contribuinte decorre diretamente da
lei. Portanto, as idéias de contraprestação ou de equivalência entre contribuição e atividade
estatal não devem corresponder ao fundamento da tributação modernamente.

Ademais, interpretando o tributo como um preço, este não guarda equivalência com o
preço dos serviços públicos que cada contribuinte usufrui, sob pena de se esquecer dos
aspectos da solidariedade (art. 195 da CF/88) e da capacidade contributiva (art. 145 §1º da
CF/88). Exemplificando, nem todos os munícipes pagam IPTU, mas, inquestionavelmente,
todos usufruem os serviços municipais básicos, como o saneamento ou a urbanização das vias
públicas. A teoria do preço serviria tão somente para fundamentar as taxas e contribuições de
melhoria.

2.1.3 Teoria do contrato social ou teoria da lei da natureza

Para os contratualistas, os poderes estatais, e por conseqüência, o poder fiscal, legitima-


se através de um contrato social, responsável pela passagem do estado de natureza para o
estado civil.

Thomas Hobbes,13 autor da obra clássica do absolutismo - o “Leviatã” (2008, p.96-97)),


ao inaugurar o pensamento contratualista, afirma que a natureza humana é malévola e que o
homem governado por si só cairá, necessariamente, em um estado de guerra de todos contra
todos. Portanto, o Estado é uma necessidade, que surge do contrato social, por meio do qual
os homens transferem poder em troca de sobrevivência e de civilidade. Caso não exista
governo ou lei, os homens naturalmente cairão em contendas. Considerando que os recursos
são limitados, certamente haverá competição contínua, o que leva ao medo, à inveja e à
disputa. (RIBEIRO, 2006, p.62).

13
Heleno Taveira Torres (2011, p. 573) refere-se à teoria da “lei da natureza” como justificadora do tributo na
visão de Hobbes: “Para Hobbes, a legitimidade da tributação adviria de uma ‘lei da natureza’, a qual obrigaria
os governantes a dividirem os encargos da república entre os súditos, na forma de tributo. [...] para Hobbes,
tratava-se de um dever ético, que deveria vir acompanhado de critérios de justiça na sua distribuição, conforme
os benefícios auferidos no Reino. Também deveria ser assegurada a divisibilidade do tributo entre todos, a fim
de tornar o encargo menos pesado. Portanto, a evasão fiscal deveria ser rechaçada, sob pena comprometer a
justa tributação daqueles que não sonegam.”
42

Em outro norte, Rousseau, que, ao lado de Marx, forneceu a base ideológica do Estado
Social (BONAVIDES, 1996, p.166), propunha uma concepção diferenciada do
contratualismo. Reputava que a soberania e o poder de legislar, inclusive sobre tributação,
concentram-se na vontade geral, e não e na simples soma das vontades individuais. Assim, o
bem estar da coletividade legitimaria os sacrifícios individuais.

Com efeito, para Rousseau, as contribuições individuais são voluntárias e livres,


pois fundamentadas no pacto social primitivamente estabelecido e não nas vontades
individuais à margem do referido pacto. O cidadão deve submeter-se à vontade
expressa pela maioria, inclusive no que diz respeito à tributação (BONAVIDES,
1996, p.166).

Fazendo referência à contribuição de Rousseau para a implementação do Estado Social,


Paulo Bonavides (1996, p. 177) afirma:

Rousseau, com a volonté générale, espinha dorsal da sua teoria democrática, que ele
postulou com tanta vivacidade, foi, na doutrina, o ponto de partida para a
compreensão social da liberdade, revigorada com a sugestão clássica do modelo
ateniense. Estreme de deformações totalitárias, serve essa compreensão de conteúdo
e base ao novo Estado social por que há de reger-se a evolução doutrinária das
democracias ocidentais.

No contexto sociológico em que se vive, não é difícil sugerir que o contrato social,
sobretudo quando norteado pela ideia de vontade geral, poderia legitimar o Estado e o poder
de tributar. Enquanto a sociedade abriria mão de parcela do seu patrimônio para prover o
Estado de recursos, caberia a este retribuir com os serviços públicos indispensáveis à
coletividade, tais como saúde, educação, segurança. O Estado é um ente necessário, e
consciente disso, o cidadão se submeteria à tributação.

Ocorre que há um flagrante descumprimento do suposto pacto social. E isso não ocorre
somente por parte do Estado. É bem verdade que a contraprestação estatal deixa muito a
desejar. A saúde pública, a segurança e prestação educacional nem de longe alcançam os
ideais almejados pela sociedade.

Mas também é verdade que os contribuintes opõem-se reiteradamente ao pagamento


dos tributos. A sonegação fiscal é evidente. Enquanto a corrupção é utilizada como
subterfúgio para o não pagamento dos impostos, esquece-se que a sonegação compromete os
interesses sociais na mesma medida.

Curioso notar que, os mesmos que defendem a falência do Estado e a insuportabilidade


da carga tributária, ou seja, o descumprimento do contrato social, nem por isso deixam de
43

invocar a adoção imediata de políticas públicas toda vez que um interesse empresarial mais
influente estiver sob ameaça. Nesses casos, o Estado sempre é chamado para contornar crises
ou remover embaraços inerentes à própria economia de mercado.

2.1.4 Teoria da soberania

Segundo a teoria em análise, a justificação da tributação está no poder soberano do


Estado. Nesse sentido, Heleno Taveira Torres (2011, p. 572) acentua que:

Segundo a teoria da soberania, o tributo era exigido em função do jus imperri do


Estado. [...] A ‘razão de Estado’ passaria a servir de justificativa para que a
propriedade pudesse ser confiscada, contratos pudessem ser desfeitos, tributos
pudessem ser cobrados sem relação com o ‘bem comum’ como interesse de todos.

Durante muitas décadas esta teoria foi utilizada como forma de justificar a imposição do
poder estatal, a fim de preservar a liberdade e a propriedade. A exemplo, na doutrina
brasileira, Leciona Morares (1987, p. 121): “o poder fiscal é inerente ao Estado, fazendo parte
de sua soberania”. Assim, “O Estado cobra tributos em virtude da soberania que exerce sobre
os seus súditos, os quais devem pagá-los independentemente de qualquer vantagem a ser
auferida” (MORARES, 1987, p. 122).

Hodiernamente, conforme defendem Heleno Torres (2011, p.573) e Alfredo Augusto


Becker (2010, p. 12) a teoria da soberania é concebida como arbitrária, sobretudo por permitir
a criação de tributos “ex absoluta potestate, como expressão do jus imperii e devidos como
sinal de subordinação, pagos sem a possibilidade de indagar sua justiça” (TORRES, 2011,
p.573).

Isso porque, ao final do século XIX a sociedade passou por um processo de


racionalização do poder, de forma que “as razões de Estado” progressivamente foram
superadas pela necessidade de justiça material. Atualmente, o tributo já não se justifica no jus
imperii, nem tampouco por imposição ética, e muito menos por razões contraprestacionais.
Exige-se o consentimento do contribuinte e a justiça da tributação. É o que leciona Heleno
Torres (2011, p.576):

Entretanto, a ‘razão de Estado’ já não pode ser argüida no âmbito da aplicação ou


exigibilidade de tributos, e nem a soberania ou o ius imperri são, por si sós,
suficientes para tanto. A tributação adquire legitimidade na Constituição e no regime
de princípios da segurança jurídica material.
44

Trata-se, portanto, de uma teoria inapta para o alcance da legitimidade social do tributo,
embora já tenha amparado, em outros tempos, o fundamento jurídico da imposição.

2.1.5 Teoria do benefício x teoria do sacrifício - a capacidade contributiva


como fundamento da tributação

Neste ponto, serão analisadas, em conjunto, a teorias do benefício, a teoria do sacrifício


e a teoria da capacidade contributiva como fundamento da tributação. Segundo Heleno Torres
(2011, p.581), “o surgimento das teorias do Benefício e do Sacrifício foram fundamentais
para que o princípio da capacidade contributiva adquirisse autonomia como critério de justiça
tributária”.

A teoria do benefício equivale à teoria do preço ou da troca já apresentada, defendendo


que os tributos deveriam ser cobrados de acordo com os benefícios recebidos do produto da
arrecadação. Nessa ordem de ideias, a igualdade dos contribuintes era aferida tão somente
proporcionalmente aos valores relativos aos serviços prestados pelo Estado.

Como esta teoria não era capaz de garantir a justiça individual, ganhou espaço a teoria
do sacrifício, segundo a qual “o contribuinte suporta um ônus, uma privação, sentida como
um peso, pela divisão do sacrifício para o custeio dos gastos públicos, o que deveria limitar
segundo os haveres individuais” (TORRES, 2011, p. 583). Enquanto a teoria do benefício
garantia uma isonomia horizontal, já que todos repartiam os custos do Estado
independentemente da capacidade econômica individual de cada um, a teoria do sacrifício
objetivou uma isonomia vertical, baseada na capacidade contributiva, a fim de efetivar a
justiça fiscal.

Não obstante a teoria do sacrifício represente uma inconteste evolução em relação à


teoria do benefício, logo se mostrou necessário o seu aprimoramento. Fundado no ideal de
justiça distributiva, Stuart Mill aperfeiçoou o modelo de tributação fundado na igualdade do
sacrifício, ao avaliar que a igualdade na partilha dos gastos públicos entre os indivíduos só
seria concretizada caso esta se realizasse proporcionalmente às rendas superiores ao nível de
subsistência (1998, p.146). Trata-se do princípio da capacidade econômica do sujeito passivo
como fundamento da tributação.

Com efeito, Heleno Taveira Torres (2011, p. 585) afirma que a teoria da causa jurídica
fundada no princípio da capacidade contributiva marcou o Estado Constitucional de Direito
45

do início da década de 20, tendo como principal precursora a Escola de Pavia (Pugliese, Jarah,
Varoni), liderada por Benvenuto Griziott.

À época, a teoria pregava que somente os fatos econômicos reveladores da capacidade


contributiva poderiam ensejar a cobrança de tributos. Diante disso, o destino ou finalidade do
tributo (atender o bem comum, suprir as necessidades do príncipe ou a razão de Estado)
deixaria de ser o móvel principal a justificar a criação e cobrança de tributos e, no seu lugar, a
capacidade contributiva assumiria a função de princípio fundamental (TORRES, 2011, p.
586).

É inquestionável a relevância da teoria apresentada para a evolução da relação


tributária, já que a capacidade contributiva demonstra-se um critério essencial para a definição
da justiça tributária e deve ser observada sempre que possível, inclusive por meio da
progressividade de alíquotas e da seletividade de produtos.

Contudo, as teorias apresentadas não se mostram capazes de representar o real


fundamento da tributação no Estado Brasileiro. Nem mesmo o princípio da capacidade
contributiva serve para fundamentar o tributo, já que há fatos geradores totalmente
desvinculados deste critério, como é o caso daqueles definidores das taxas e de algumas
contribuições. Ou seja, existem fatos econômicos tributáveis que simplesmente não guardam
correlação alguma com a capacidade econômica dos contribuintes. Portanto, tal critério serve
como norteador da tributação, mas não como o seu fundamento. Cumpre, portanto, perquirir o
real fundamento da obrigação tributária no Brasil.

2.2 O fundamento constitucional da tributação no Brasil

Não há dúvidas acerca da natureza fiscal do Estado brasileiro. A idéia de Estado


patrimonial ou, ainda, de Estado socialista está muito claramente afastada do Texto
Constitucional, como se vê no disposto nos seus artigos 173 e 174, que autorizam a
participação direta do Estado na economia apenas de forma subsidiária, fixando, porém a sua
função de agente normativo e regulador da atividade econômica.

Com efeito, o financiamento estatal consiste primordialmente na arrecadação de


tributos. Contudo, é necessário ter em mente que a Constituição Federal de 1988 caracteriza-
se por ser marcantemente dirigente, estabelecendo como objetivos principais da República: a
construção de uma sociedade justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a
46

erradicação da pobreza e a da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais


e a promoção do bem de todos (art. 3º da CF/88).

Ao lado dos direitos e garantias fundamentais individuais, objetiva tutelar uma ampla
diversidade de direitos sociais, tais como saúde, educação, promoção da cultura e esporte,
lazer, proteção ao emprego e aos desamparados (art. 6º), disciplinando, minuciosamente, a
forma de prestação e de financiamento de tais atividades estatais, conforme estabelecido nos
artigos 145 a 162 e nos artigos 193 a 200 do Texto Constitucional.

Ao constitucionalizar a proposta de uma sociedade solidária e justa, bem como a


erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, não resta dúvidas de que a
Constituição de 1988 é uma Constituição do Estado Social e não do Estado Neoliberal. Sendo
esta a moldura do Estado Constitucional brasileiro, fica fácil perceber que as teorias
apresentadas, isoladamente consideradas, não são suficientes para fundamentar o pagamento
dos tributos, nem tampouco para promover a desejada legitimidade social da tributação.

Esclarecendo, resumidamente, a teoria medieval da “causa impositionis no bem


comum” não tem espaço dentro de um Estado de Direito, na medida em que autorizava a
tributação injustificada e aleatória de uma maioria em prol dos privilégios do clero e da
nobreza, descartando completamente a ideia de igualdade, justiça material e segurança
jurídica.

Da mesma forma, a “teoria da equivalência ou troca” só serve para justificar as taxas e


contribuições de melhoria, já que somente estas formas de tributação estão vinculadas a
alguma atividade específica do Estado. Fora isso, a eventual adoção do pensamento liberal
defensor desta teoria implicaria em verdadeiro retrocesso social, já que grande parte da
arrecadação está desvinculada de qualquer contraprestação estatal dirigida ao sujeito passivo
da obrigação, servindo como instrumento para a garantia do mínimo existencial à parcela da
população menos favorecida.

Como pré-falado, a Teoria do Contrato Social ou da Lei da Natureza não legitima


socialmente a tributação, já que se verifica um consenso geral, no Brasil, de que a prestação
estatal é insatisfatória, ao mesmo tempo em que a sonegação fiscal é alarmente. Ou seja, o
pacto natural não é cumprido e o descompasso entre sociedade – Estado é evidente.
47

A teoria da soberania, no Brasil, encontrou defensores por algum tempo (MORAES,


1987, p. 122). Contudo, como já exposto, tal teoria demonstra-se ultrapassada quando se está
diante de um Estado Democrático de Direito, no qual se exige a igualdade e justiça material
na obrigação tributária, para que a relação fisco-contribuinte tenha pretensões de estabilidade.

As teorias do “sacrifício” e “da capacidade contributiva”, como já exposto, foram


fundamentais para a evolução da relação jurídica tributária, que passou a pautar-se na justiça
material. Contudo, tal teoria funciona como norteadora da tributação, e não como o seu
fundamento, já que existem espécies de tributos totalmente desvinculadas da capacidade
contributiva do sujeito obrigado, como é o caso das taxas.

Deste modo, diante das teorias apresentadas, assiste razão a Lenio Streck (2001),
quando afirma que o tributo não deve fundamentar-se nas razões de Estado ou na Teoria do
Sacrifício do cidadão, mas sim nos objetivos consagrados no Estado Social Democrático de
Direito, dentre eles a construção de uma sociedade justa e solidária, dos quais decorre um
inequívoco dever fundamental de pagar tributos:

Na perspectiva de Estado Social (que inegavelmente se encontra presente no


conjunto de preceitos e princípios da CF/88), o imposto, enquanto dever
fundamental, não deve ser encarado, conforme Casalta Nabais, nem como um
mero poder para o Estado nem como sacrifício para os cidadãos, constituindo
antes o contributo indispensável a uma vida em comunidade organizada em um
Estado Fiscal. [...] Daí não se pode falar num (pretenso) direito fundamental (de
caráter liberal - individualista) a não pagar impostos. Ao contrário, há um dever
fundamental de pagar tributos.

Assim, o verdadeiro fundamento da tributação deve ser extraído da ordem jurídica


constitucional vigente, a qual consagra a existência de um dever fundamental de contribuir
para o bem estar social e para a efetivação dos direitos fundamentais albergados em seu texto
e nos pactos internacionais que acolhe, de onde se extrai, dentre tantos outros princípios, a
garantia do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana, a construção de uma
sociedade justa e solidária e a proibição de retrocesso dos direitos sociais arduamente
conquistados. O grande desafio, portanto, é a conscientização social acerca da existência deste
dever fundamental, um dos pressupostos para o alcance do Estado Social Democrático de
Direito.

2.3 O dever fundamental de pagar tributos


48

Ao contrário do tema afeto aos “direitos” fundamentais, extensa e fortemente debatido


na doutrina e na jurisprudência nacional e estrangeira, o estudo acerca dos “deveres”
fundamentais revela-se tímido e carecedor de maior propagação no meio jurídico.

A concepção segundo a qual os direitos fundamentais merecem maior destaque e


proteção certamente decorre do fato que a grande maioria dos textos constitucionais foram
promulgados em ambientes de luta contra os regimes totalitários e arbitrários, nos quais se
fazia necessário uma maior proteção contra eventuais ilegalidades cometidas pelo Estado.

Contudo, na medida em que o ideal democrático se consolida no tempo e no cenário


mundial, tal paradigma deve ser reformulado, a fim de alcançar maior equivalência entre os
direitos e deveres fundamentais. Como bem esclarece José Casalta Nabais (1998, p. 673):

O entendimento adequado dos deveres fundamentais rejeita simultaneamente os


extremismos de um liberalismo que só reconhece direitos e esquece a responsabilidade
comunitária dos indivíduos e de um comunitarismo que dissolve a liberdade individual
numa teia de deveres (restius, funções).

Assim, após um longo período de afirmação dos direitos fundamentais, sobretudo em


face do poder Estatal arbitrário ou abusivo, exige-se a conscientização de que tais direitos são
correlatos a deveres de responsabilidade para com a coletividade, esvaziando-se a tese
“atomista de que os direitos inculcam a irresponsabilidade para com os deveres sociais”
(GALDINO, 2005, p. 214).

Bem como os “direitos fundamentais”, os “deveres fundamentais” passaram por um


processo de evolução. Sucintamente, basta lembrar que na época medieval havia o dever de
contribuir para o bem comum, que nesta época, consistia em suportar os privilégios da
nobreza em prol do direito à manutenção do reino. Já o liberalismo impunha, dentre outros
deveres, o de respeitar a liberdade e a propriedade, contribuindo com o mínimo necessário à
firmação dessas garantias pelo Estado. Por fim, o Estado Social exige encargos maiores por
parte dos cidadãos, a quem incube a responsabilidade de contribuição para o bem-estar e
justiça social.

Hodiernamente, o ordenamento jurídico reconhece expressamente o dever fundamental


de respeitar a dignidade humana (art. 1º, inc. III da CF/88), os deveres políticos (art. 14, §1º
inc. I da CF/88), o dever de financiamento da seguridade social (art. 195 da CF/88), o dever
familiar de promover a educação (art. 205 da CF/88), o dever de preservar o meio ambiente
para as presentes e futuras gerações (art. 225 da CF/88).
49

Além dos deveres fundamentais estampados no Texto Constitucional, cabe indagar


14
acerca da existência de deveres fundamentais implícitos, que embora não estejam
expressamente previstos, podem claramente ser extraídos do conteúdo material da
Constituição, o que levaria ao reconhecimento da existência do “dever fundamental de pagar
tributos”, consagrado, sobretudo, do disposto nos artigos 145 a 156 da Constituição Federal e
nos demais preceitos estabelecedores do Estado Social Democrático de Direito.

Embora essa hipótese já encontre adeptos na doutrina nacional e estrangeira, o tema


ainda não é pacífico. Defendendo a inexistência de tal dever como categoria autônoma,
Heleno Taveira Torres (2011, p. 332) assevera: “dizer que a Constituição contempla um dever
fundamental de pagar tributos induz a se admitir uma espécie de estado de sujeição
permanente”. Para o autor, no Estado Democrático de Direito presume-se a cidadania
tributária, de forma que antes de qualquer “dever” admite-se o “direito” de pagar os tributos
segundo os parâmetros legais e desde que efetivados todos os direitos e garantias
fundamentais. “Por tudo isso, falar em um dever fundamental de pagar tributos tem mais um
sentido pragmático do que algum efeito jurídico concreto”.

Sabe-se, contudo, que o pressuposto adotado, no caso, a cidadania tributária, é


questionável. Embora esta ideia esteja intrínseca à concepção de Estado Democrático, a
sociedade brasileira ainda não evoluiu a ponto de ser reconhecida a cidadania tributária como
característica deste país, afinal, solidariedade não é algo que se possa impor de um dia para o
outro.

Ao contrário do que se vê em países da Europa e nos Estados Unidos, onde os ricos


clamam pelo aumento da carga tributária a fim de solucionar a crise econômica que assola
estes países e a sonegação fiscal é efetivamente repreendida, no Brasil não só se critica a
carga tributária existente como também se investe fortemente em artifícios em prol da
sonegação.

Acolhendo esta premissa, qual seja, a de que a cidadania fiscal clama por
amadurecimento, concepção esta adotada no presente trabalho, há quem defenda a existência

14
Na doutrina estrangeira, Jose Casalta Nabais (1998, p. 675) defende a taxatividade dos deveres fundamentais,
afirmando que devem ser considerados como tais apenas os constantes, de forma expressa ou implícita, da constituição.
50

do dever fundamental de pagar tributos. A exemplo, Lenio Streck 15 (2001) e José Casalta
Nabais (1998, p. 679), que aduz:

Como dever fundamental, o imposto não pode ser encarado nem como um mero
poder para o estado, nem como um mero sacrifício para os cidadãos, constituindo
antes o contributo indispensável a uma comunidade organizada em estado fiscal. Um
tipo de estado que tem na subsidiariedade da sua própria acção (econômico-social) e
no primado da autorresponsabilidade dos cidadãos o seu verdadeiro suporte. Daí não
se possa falar num (pretenso) direito fundamental a não pagar impostos. 16

Outrossim, Ricardo Lobo Torres (1998, p. 301) entende que o tributo é um dever
fundamental, “estabelecido na Constituição no espaço aberto pela reserva da liberdade e pela
declaração dos direitos fundamentais”.

Em verdade, ao defender a existência do “dever fundamental de pagar tributos”, parte-se


da premissa que de que os direitos fundamentais, nos quais se incluem os direitos sociais
previstos no ordenamento jurídico, geram direito subjetivo à prestação estatal, sendo que a
omissão do Estado quanto à concretização desses direitos, seja por motivos políticos, seja por
razões de ordem financeira, representa desprezo pela autoridade da Constituição, além de
comprometer os objetivos de promoção do progresso e do bem-estar social que devem
fundamentar o Estado.

Por outro norte, é preciso ter em mente, como bem introduz Flávio Galdino (2005, p.
215), que estes “direitos não nascem em árvores”, ou seja, a efetivação das prestações sociais
acarreta custos públicos, o que exige uma nova dimensão acerca da cidadania tributária e da
tributação no país.

Já que modernamente o financiamento estatal se atrela à idéia de estado fiscal, 17 é


preciso levar em conta que a passagem do estado liberal para o estado social provocou o

15
Lênio Streck (2001) afirma: “Na perspectiva de Estado Social (que inegavelmente se encontra presente no
conjunto de preceitos e princípios da CF/88), o imposto, enquanto dever fundamental, não deve ser encarado,
conforme Casalta Nabais, nem como um mero poder para o Estado nem como sacrifício para os cidadãos,
constituindo antes o contributo indispensável a uma vida em comunidade organizada em um Estado Fiscal. [...]
Daí não se pode falar num (pretenso) direito fundamental (de caráter liberal - individualista) a não pagar
impostos. Ao contrário, há um dever fundamental de pagar tributos”.
16
Importante destacar que José Casalta Nabais (1998, p.681) reconhece a existência de um dever fundamental de
pagar “impostos” e não “tributos”, uma vez que o estado fiscal sustenta-se essencialmente através da
arrecadação de daquela espécie tributária desvinculada de qualquer prestação estatal específica, e não por meio
de tributos bilaterais, como é o caso das taxas e contribuições. No presente trabalho, seguindo a tradição
nacional, utiliza-se a terminologia “direito fundamental de pagar tributos”.
17
No Brasil, extrai-se do Texto Constitucional a configuração do estado fiscal, uma vez que há clara rejeição ao
Estado Patrimonial, não só através da previsão de garantias individuais, mas também por restringir a
participação do Estado nas atividades econômicas, conforme estabelece o art. 174 da Constituição Federal de
1988. Neste ponto, merece destaque a observação feita por Nabais (1998, p.199) no sentido de que, ao assumir-
51

alargamento dos aportes financeiros por parte da comunidade, com vistas a concretizar as
diversas imposições prestacionais estabelecidas no texto constitucional.

Sendo assim, urge contextualizar os direitos fundamentais sociais na ordem


constitucional vigente, verificando a efetividade e a exigibilidade dessas prestações. Em um
segundo momento, será abordada a teoria dos custos dos direitos, desenvolvida inicialmente
por Cass Sunstein e Stephen Holmes (1999), a fim de identificar a razão pela qual a relação
tributária necessita de um processo de amadurecimento no país.

Ainda com este propósito, será exposto o entendimento do Supremo Tribunal Federal
acerca do tema aqui proposto, abordando o precedente firmado no acórdão proferido no
Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 639.337/SP, publicado em 23/08/2011, por
meio do qual a Corte reconheceu a exigibilidade imediata dos direitos sociais e a
possibilidade de proteção judicial destes direitos, inclusive através da imposição de multa
diária ao Estado omisso, ressalvando expressamente as garantias do mínimo existencial e a
vedação de retrocesso social, sem deixar de considerar também os custos das prestações
estatais.

2.4 A natureza dos direitos sociais

Inicialmente, não custa conceituar os direitos sociais, consoante a lição de José Afonso
da Silva (2011, p. 286):

Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos direitos
fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta
ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores
condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de
situações sociais desiguais.

O citado autor (2003, p.151) reconhece a existência de correntes doutrinárias que


concebem os direitos sociais como meras garantias institucionais, ou como direitos morais,
negando-lhes o status de verdadeiros direitos exigíveis. A opção constitucional pátria diverge
desse entendimento, atribuindo aos direitos sociais a natureza inequívoca de direitos
fundamentais (Título II, Capítulo II e Título VIII da CF/88).

Com a introdução dos direitos sociais básicos, os direitos fundamentais se enriqueceram


de uma dimensão nova e adicional. Diversamente dos direitos ditos de primeira geração, os

se como Estado Fiscal, o Estado deve respeitar a separação essencial entre estado/economia, fazendo
prevalecer o sistema de economia privada, sob pena de destruir-se como Estado Fiscal.
52

direitos sociais deixam de lado a abstratividade e passam a ser concebidos como instrumento
de redução das desigualdades sociais, viabilizando o efetivo gozo dos direitos individuais, na
medida em criam condições materiais mais propícias à igualdade substancial e ao efetivo
exercício da liberdade.

Antes disso, a liberdade proposta pelo Estado Liberal demonstrava-se vulnerável, pela
ausência de igualdade substancial. Para Bonavides (2010, p. 378), o principio da igualdade
assume papel fundamental em prol da concretização dos Direitos Sociais, e por consequência,
dos direitos fundamentais como um todo.

Não há dúvidas de que o Estado Social Democrático de Direito visa não só garantir a
liberdade e a igualdade formal, mas sim produzir a igualdade fática, ainda que para isso se
aceite como inevitável a desigualdade jurídica. Nesse contexto, os direitos sociais representam
conteúdo indissociável do Estado Social Democrático de Direito. O Estado passa a assumir o
papel de produzir na sociedade, na medida do possível, a igualdade fática, o que se
compatibiliza com o objetivo constitucional de redução da desigualdade social (art. 3º da
CF/88).

A grande parcela da população brasileira é absolutamente dependente das prestações do


Estado. Resta propiciar que o ente cumpra o seu mister igualitário e distributivo, utilizando-se
da tributação justa para a consecução dos direitos fundamentais estabelecidos No Texto
Constitucional. Nesse sentido Bonavides (2010, p.379) assevera: “A grande importância dos
direitos sociais consiste em realizar uma igualdade niveladora na sociedade, tornando a
isonomia menos abstrata e mais real, mediante intervenções na ordem social para amenizar e
romper com as injustiças sociais”.

Definida a natureza jurídica dos direitos sociais, consagrados como direitos


fundamentais do homem niveladores da sociedade e promotores do bem-estar social e da
dignidade humana, resta indagar de que forma estes direitos estão albergados no ordenamento
jurídico, bem como em que medida estão sendo garantidos à sociedade, considerando,
sobretudo, a escassez de recursos para viabilizá-los.

2.4.1 A previsão e a exigibilidade dos direitos sociais no Brasil

A Constituição Democrática brasileira de 1988 ampliou o rol dos direitos sociais


albergados constitucionalmente no regime anterior. O art. 6º da CF/88 estabelece ser direito
53

de todos: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a


previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.
No Título VIII – “Da Ordem Social” tais direitos encontram mecanismos para a sua
implementação, através de ações a cardo do Estado e da sociedade.

Além das cláusulas expressamente previstas na Carta Maior, Ingo Sarlet (2009, p. 118)
ressalta a abertura material para outros direitos sociais, sejam oriundos dos pactos
internacionais, seja em razão de direitos implicitamente positivados, a exemplo da garantia do
mínimo existencial, e da proibição de retrocesso social, razão pela qual se pode asseverar a
inexistência de taxatividade ou de um numerus clausus desses direitos.

Contudo, já não basta a simples previsão de direitos sociais no texto constitucional e nos
pactos internacionais. É preciso garanti-los. O entendimento segundo o qual tais direitos
veiculam-se através de normas programáticas e não podem ser exigidos judicialmente tende a
se tornar ultrapassado, sob pena de restarem banalizados os direitos fundamentais. Nesse
sentido, Daniel Sarmento (2009, p.371) ressalta ser notável o avanço ocorrido no país,
principalmente na última década, acerca do tema referente à efetivação dos direitos sociais, o
que pode ser aferido através da interpretação judicial que vem sendo aplicada a esses direitos.

Durante muito tempo, em prol do Princípio da Separação dos Poderes (art. 2º da CF/88),
consolidou-se a jurisprudência nacional no sentido de que não se inclui dentre as atribuições
ordinárias do Poder Judiciário a função de implementar políticas públicas, ainda que se
estivesse diante de uma omissão inconstitucional.

A consciência acerca da autoridade constitucional vem provocando a superação deste


paradigma, de modo que as normas programáticas já não são admitidas como meras
promessas inconsequentes, mas sim como programas de ação dirigidas aos entes federativos,
dotadas de eficácia jurídica e caráter cogente.18

Ao tempo em que a Constituição já contempla um modelo predefinido de ordem


constitucional, passados mais de vinte anos de sua promulgação, cabe ao intérprete e aos
Poderes Constituídos a inadiável tarefa de concretização dos seus preceitos. Embora se
verifique um verdadeiro abismo entre o projeto social da Constituição e a realidade da
sociedade brasileira, a busca pelo bem estar e pela justiça social (art. 193 da CRFB/88) deve
imprimir novos rumos aos direitos sociais constitucionalizados. Assim, o grande desafio do
18
Agr. Reg. no RE 639.337/SP.
54

Estado Social, como narra Bonavides (2010, p.373), está na concretização dos seus objetivos,
ou seja, reside em estabelecer e inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para
garantir a efetividade dos direitos sociais básicos.

Nesse sentido, o autor alega que Estado Social brasileiro progrediu, “qualificando-se
como de terceira geração, porque não somente prevê a existência de direitos sociais, mas
também os garante através de instrumentos constitucionais”, referindo-se à criação do
mandado de segurança coletivo, do mandado de injunção e da Declaração de
Inconstitucionalidade por omissão.

É certo, porém, considerando a escassez do orçamento estatal disponível e a amplitude


dos direitos sociais previstos, a previsão de tais instrumentos jurídicos não será suficiente para
suprir a lacuna deixada pela ausência de condições financeiras do Estado. Ainda que decisões
judiciais concedam os mais variados direitos sociais, é preciso reconhecer que tais prestações
acarretam custos, e que nem sempre haverá disponibilidade financeira para a implementação
desses direitos, ainda que reconhecidos juridicamente.

A Constituição Federal, por maior que seja o seu valor, é um texto, que para ser
concretizado, necessariamente tem que contar com o auxílio de toda a coletividade e das
instituições jurídicas. A concretização da constituição virá de todos os segmentos. A lei
escrita ou decisões judiciais, em concreto, não suprem deficiência alguma caso não haja meios
materiais de fazer tais comandos serem cumpridos.

Consequentemente, já se anuncia certa crise no constitucionalismo brasileiro, já que a


inexequibilidade da Constituição, ou pior, das decisões judiciais e das escolhas
constitucionais, reflete em inevitável crise do Estado Constitucional. Diante desta situação de
conflito, deve-se buscar novos paradigmas para a máxima efetividade das conquistas sociais,
a exemplo da garantia do mínimo existencial e da dignidade da pessoa humana, bem como a
proibição do retrocesso social, já utilizados na interpretação judicial dos direitos sociais pelo
Supremo Tribunal Federal,19 como adiante será demonstrado.

2.4.2 A garantia do mínimo existencial e a proibição de retrocesso social

19
Exemplificando, pode-se citar os seguintes precedentes do STF: AI 455.802/SP, AI 475.571/SP, RE
401.673/SP, RE 410.715 AgR/SP.
55

A garantia do mínimo existencial pode ser extraída implicitamente do disposto nos


artigos 1º, inciso III e art. 3º, inciso III da Constituição Federal de 1988, resultando em
prerrogativa capaz de coibir condições indignas de existência humana, garantindo a todos os
indivíduos a plena fruição dos direitos sociais básicos, como por exemplo, o direito à
educação, à saúde, à alimentação e à proteção integral da criança e do adolescente.

No constitucionalismo moderno, a exigência da dignidade humana como valor central


do ordenamento jurídico justifica a adoção de prestações positivas no campo dos direitos
fundamentais, sobretudo a fim de firmar a garantia do mínimo existencial, que deixa de ser
uma norma programática para ser um dever a ser garantido pelo Estado e concretizado nas
suas máximas possibilidades (otimização).

Sendo assim, a doutrina e a jurisprudência reconhecem a “necessidade de preservação,


em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do
mínimo existencial”, sem o qual a dignidade humana é mera utopia (STF, ADPF nº 45/DF).

Com efeito, seguindo o entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF nº


45/DF, 20 Ingo Sarlet (2009, p. 143) acentua que eventuais contingências financeiras e
orçamentárias à garantia do mínimo existencial devem ser suplantadas, “com o objetivo de
não suprimir ou esvaziar, não aquém do mínimo existencial, a concretização já levada a efeito
dos direitos sociais”.

Ou seja, nas palavras de Daniel Sarmento (2009, p. 388), o judiciário estaria sempre
vinculado a conceder aquilo que se insira no conteúdo do mínimo existencial,
independentemente de disponibilidade financeira pelo Estado. Acima do mínimo existencial,
a concessão de direitos sociais passaria a depender da vontade legislativa e de suficiência
orçamentária.

Diante da escassez de recursos públicos, a garantia do mínimo existencial deverá servir


como parâmetro para as escolhas estatais, de modo que as prestações incluídas neste núcleo
essencial não possam ser omitidas pelo Estado, ainda que sob o argumento da incapacidade
econômica.

20
“Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir
de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político – administrativa – o ilegítimo, arbitrário e
censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da
pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência” (ADPF 45/DF, Rel. Min. Celso de Mello).
56

Ao mesmo passo em que a garantia ao mínimo existencial consagra-se como valorosa


conquista do Estado Social Democrático de Direito, o princípio da proibição do retrocesso
também há de ser invocado como parâmetro constitucional para a exigibilidade das prestações
estatais.

Admitido como “direito objetivo, garantido constitucionalmente na forma de direito


fundamental” (TORRES, 2011, p. 608), a proibição de retrocesso impede que sejam
desconstituídas conquistas já alcançadas pela sociedade.

Mundialmente, não faltam opiniões no sentido de que o problema da elevada carga


tributária pode ser resolvido através da moderação do intervencionismo estatal, “moderação
que implicará, quer o recuo na assunção das modernas tarefas sociais (realização dos direitos
econômicos, sociais e culturais), quer mesmo o abandono parcial de algumas tarefas
tradicionais” (NABAIS, 1998, p. 203).

Em verdade, tal pensamento reflete a ideologia neoliberal e representa um retrocesso no


que diz respeito ao caráter democrático do Estado e às conquistas sociais assumidas nos
últimos tempos, podendo comprometer até mesmo a garantia (material) de proteção ao
mínimo vital (TORRES, 2011, p.607).

Em face desta ameaça, Ingo Sarlet (2009, p. 120) ressalta a importância da garantia da
proibição do retrocesso, sobretudo em virtude dos efeitos perversos da globalização no plano
econômico, dentre eles as políticas de flexibilização e de supressão de garantias dos
trabalhadores, redução das prestações sociais, incremento das desigualdades sociais, dentre
outros aspectos.

Apesar de não previsto expressamente no Texto Constitucional, o princípio em pauta


representa hoje uma garantia difundida na doutrina e jurisprudência de várias ordens jurídicas,
inclusive já consagrada no Direito Internacional dos Direitos Humanos (SARLET, 2009, p.
117).

No ordenamento jurídico interno, percebe-se que o poder constituinte originário e


reformador já adotaram instrumentos de proteção contra medidas supressivas de direitos
fundamentais e sociais estabelecidos, prevendo, por exemplo, a garantia do direito adquirido,
do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, todos albergados no manto das cláusulas pétreas.
57

Resta definir qual o conteúdo e alcance jurídico de tal proibição de retrocesso. Para Ingo
Sarlet (2009, p. 122), a proibição de retrocesso situa-se na esfera da eficácia negativa das
normas constitucionais. Ou seja, independentemente da exigibilidade imediata dos direitos
sociais como direitos subjetivos à prestações, é possível reconhecer “posições subjetivas de
caráter defensivo (negativo), no sentido de proibições de intervenção ou mesmo proibições de
eliminação de determinadas posições jurídicas”.

Com efeito, exige-se que a ordem jurídica repudie eventuais medidas que instaurem um
estado de retrocesso. Tratando-se de direitos sociais, alterações legislativas que afetem o nível
de concretização de tais direitos devem ser rechaçadas sob pena de configurar-se evidente
retrocesso em termos de proteção social. Da mesma forma, eventuais políticas adotadas para a
redução do Estado Social de Direito devem ser contestadas, como acentua Ingo Sarlet (2009,
p.130):

Onde a ampla maioria da população se situa na faixa do assim designado mínimo


existencial ou mesmo aquém desse patamar, maior vigilância se impõe em relação a toda
e qualquer medida potencialmente restritiva ou mesmo supressiva de proteção social.

Não bastasse a incorporação do princípio ao ordenamento pátrio, a jurisprudência do


Pretório Excelso reconhece expressamente que a cláusula da proibição de retrocesso impede
que se frustre a efetividade constitucional, funcionando como obstáculo para o
inadimplemento das prestações sociais (BRASIL. STF, ARE 639.337 Agr/SP).

2.4.3 Entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da efetivação dos


direitos sociais

Daniel Sarmento (2009, p. 371) analisa a evolução da interpretação judicial acerca da


efetivação dos direitos sociais e constata que o tema avançou positivamente, especialmente na
última década. Como esclarece o autor, antes dessa evolução, a doutrina e jurisprudência
predominante defendiam que os direitos sociais constitucionalmente consagrados não
passavam de normas programáticas, não sendo aptos à exigência em juízo de sua
concretização pelo Estado.

Raramente o judiciário intervinha neste campo, a fim de colmatar as omissões estatais,


prevalecendo a leitura mais rígida do princípio da separação dos poderes, “que via como
introdução indevida do judiciário na seara própria do Legislativo e do Executivo as decisões
58

que implicassem controle sobre as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos
sociais” (SARMENTO, 2009, p. 371).

Hoje, no entanto, este paradigma já foi superado. É cada vez mais comum a tutela
judicial de direitos sociais constitucionalmente consagrados, sobretudo quando esta
intervenção for necessária para assegurar condições mínimas existenciais, como é o caso da
concessão de remédios ou de tratamentos médicos negados pelo Estado.

O fato é que, ao que parece, este núcleo – mínimo existencial- também tende a se
alargar, na medida em que o próprio homem segue em sua evolução natural conquistando
melhores condições de dignidade. Poder-se-ia falar em certa gradualidade no processo de
concretização desses direitos. Se há algum tempo o judiciário reconhecia a possibilidade de
tutelar a prestação de remédios para tratamento de saúde, hoje, não raras decisões contemplam
tratamentos médicos de alto custo no exterior, muitas vezes sem considerar que o valor do
benéfico concedido a um só indivíduo acarretará perdas a toda a coletividade, tendo em vista
o imperioso realocamento deste recurso.

Ou seja, direitos que antes não integravam o núcleo mínimo dos direitos sociais básicos,
como o direito à creche para menores de cinco anos, hoje já constam neste rol. No presente
trabalho, será abordado o precedente firmado no acórdão proferido no Agravo Regimental em
Recurso Extraordinário nº 639.337/SP, publicado em 23/08/2011, por meio do qual a Corte
reconheceu a exigibilidade imediata dos direitos sociais à educação infantil para crianças com
até cinco anos de idade, admitindo a possibilidade de proteção judicial deste direito,
independentemente da disponibilidade financeira estatal, inclusive através da imposição de
multa diária ao Estado omisso.

Através dessa abordagem, será possível aproximar o presente estudo à realidade fática
em que se vive, na qual a ideia de Estado de bem–estar social vem sendo veementemente
defendida e posta em prática pelos cidadãos, encontrando acolhida, sobretudo, no Poder
Judiciário, que por sua vez tem atuado ativamente em prol da dignidade humana e da
promoção da inclusão social. Tal fenômeno, inquestionavelmente, revela a forçosa
necessidade de se legitimar socialmente a tributação, a fim de custear, na medida possível e
razoável, as conquistas sociais dos últimos tempos.

2.4.3.1 Análise concreta da recente interpretação judicial no âmbito do STF -


ARE 639.337 AgR/SP
59

Através do citado precedente, o Supremo Tribunal Federal traçou o novo panorama


acerca da natureza e da efetividade dos direitos sociais constitucionais, em especial, do direito
à educação infantil para crianças de até cinco anos de idade.

Inicialmente, o Relator Ministro Celso de Mello afirmou que os direitos sociais (em
especial, a educação) subsumem-se à noção dos direitos de segunda geração, cujo
adimplemento impõe ao Poder Público o dever de satisfação de uma prestação positiva, ou
seja, um facere, dele se desincumbindo tão somente quando criar condições objetivas que
propiciem aos seus titulares o acesso pleno.

Tais direitos exprimem a exigência de solidariedade social, bem como a asserção de que
a dignidade humana, enquanto valor impregnado de centralidade em nosso ordenamento
jurídico, só se afirmará com a expansão das liberdades públicas, quaisquer que sejam as
dimensões em que estas se projetem.

Assim, é necessário conferir efetiva concretização a certos direitos essenciais, cuja


eficácia não pode ser comprometida pela inação do Poder Público. “A não realização das
metas constitucionais traduz-se em censurável situação de inconstitucionalidade por omissão
imputável ao Poder Público”.

O Tribunal considerou que, embora não se inclua ordinariamente no âmbito das funções
institucionais do Poder Judiciário a atribuição de formular e de implementar políticas
públicas, excepcionalmente tal incumbência poderá ser-lhe atribuída quando a omissão estatal
vier a comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais, hipótese em que não
haverá intromissão indevida nos demais Poderes da República.

Entre as inúmeras causas que justificam esse comportamento afirmativo do Poder


Judiciário, destaca-se a necessidade de fazer prevalecer a primazia da Constituição da
República, comprometida pela inércia administrativa, reveladora de inaceitável gesto de
desprezo pela autoridade suprema da Constituição.

Essa constatação evidencia o fenômeno da “erosão da consciência constitucional,


motivado pela instauração, no âmbito do Estado, de um preocupante processo de
desvalorização funcional da Constituição Escrita”.

Com efeito, o acórdão reconhece que o Supremo Tribunal Federal, em diversos


julgamentos, colmatou omissões governamentais e conferiu real efetividade a direitos
60

essenciais, dando-lhes concreção e viabilizando o acesso das pessoas à plena fruição de


direitos fundamentais, cuja realização prática lhes estava sendo negada, injustamente, por
arbitrária abstenção do Poder Público. Outrossim, admitiu que as normas programáticas
veiculadoras de direitos sociais revestem-se de eficácia jurídica e dispõem de caráter cogente.

Ao mesmo passo, a Corte não deixou de considerar que a efetivação dos direitos sociais,
econômicos e culturais depende de um “inescapável vínculo financeiro estatal subordinado às
possibilidades orçamentárias do Estado”, razão pela qual se confere relevo ao tema da
“reserva do possível”.

Não obstante, o Tribunal firmou entendimento no sentido de que não se revela lícito ao
Estado criar obstáculos à efetivação dos direitos sociais, sempre que estiver em questão a
favor do indivíduo a preservação de condições mínimas existenciais.

Considerando a escassez dos recursos públicos, será necessário aderir às escolhas


trágicas, priorizando determinadas prestações em sacrifício de outras. O parâmetro para estas
escolhas deverá fundar-se no princípio da dignidade humana, sob a perspectiva da
intangibilidade do mínimo existencial.

Para o Supremo Tribunal Federal, um segundo princípio merece ser invocado como
parâmetro para a definição das prestações sociais imediatamente tuteláveis: o princípio da
proibição de retrocesso.

A Corte explica que tal cláusula traduz verdadeira dimensão negativa pertinente aos
direitos sociais de natureza prestacional, tendo em vista que os níveis de concretização dessas
prerrogativas, uma vez atingidos, não podem ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo
Estado, exceto na hipótese em que políticas compensatórias venham a ser implementadas.

Por esta razão, será possível reconhecer a inconstitucionalidade de atos estatais que
revoguem garantias já conquistadas em tema de direitos prestacionais, a exemplo do que
ocorreu na jurisprudência portuguesa (Acórdão nº 39/84).

Diante de toda essa abordagem jurisprudencial, pode-se concluir que o judiciário tem
atuado como verdadeiro garantidor dos preceitos entabulados pelo Estado Social Democrático
de Direito, especialmente no que diz respeito à ampla tutela dos direitos fundamentais sociais.
61

Todavia, já estando fortemente firmada a concepção de Estado Social, como acentua


Daniel Sarmento (2009, p. 374), é preciso levar um pouco mais a sério as dificuldades
existentes no processo de implementação destas prestações estatais. Tendo em vista as
limitações financeiras, é preciso racionalizar este processo, motivo pelo qual se torna
imprescindível apresentar a Teoria dos Custos dos Direitos, o que será realizado no tópico
seguinte.

2.5 Teoria dos custos dos direitos

A Teoria dos Custos dos Direitos foi amplamente divulgada no cenário mundial através
da obra “The cost of rights (1999)”, na qual Cass Sunstein e Stephen Holmes analisam a
questão dos custos de todos os direitos consagrados no ordenamento jurídico.

Indo mais a fundo do que o mero reconhecimento de que os direitos sociais demandam
prestações estatais onerosas, os autores partem da premissa de que todos os direitos, inclusive
os direitos de liberdade, são positivos e demandam algum gasto por parte do Estado para a sua
concretização. Nesse sentido, afirmam:

Individual rights and freedoms depend fundamentally on vigorous state action.


Without effective government, American citizens would not be able to enjoy their
private property in the way they do. […] Personal liberty, as Americans value and
experience it, presupposes social cooperation managed by government officials.
(SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p.14-15)

Assim, é preciso afastar a ideia firmada no senso comum, no sentido de que os direitos
fundamentais afetos à liberdade seriam puramente negativos, não demandando qualquer
prestação estatal positiva para a sua efetivação (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p.13-30).

Na medida em que a atuação estatal é imprescindível para a concretização dos direitos,


mas considerando que o Estado se mantém predominantemente através da captação de
recursos financeiros da sociedade (através da tributação), os citados autores chegam à
conclusão de que os direitos só existem onde há fluxo orçamentário que o permita
(SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 228).

Nesse contexto, não existem direitos e liberdades puramente privados, pois o exercício
de todo e qualquer direito e liberdade depende das instituições públicas, sendo públicos e
custosos. Por tal razão, a insuficiência de recursos públicos poderá afetar diretamente o pleno
exercício dos direitos fundamentais como um todo.
62

Ao longo da obra, Holmes e Sunstein (1999) relembram que os direitos são sempre
fruto de uma opção social. Conscientes desta opção, seja pela adoção de um Estado Mínimo,
seja pela escolha do Estado de bem-estar social, cabe aos indivíduos assumir os encargos
correspondentes, sendo inegável a responsabilidade destes para com a sociedade.

Neste aspecto, o fenômeno da redistribuição de renda é onipresente na sociedade, e não


ocorre apenas quando o governo arrecada valores dos contribuintes para repassá-los aos mais
necessitados, mas também quando o poder público custeia atividades essenciais, como a
preservação da propriedade individual. Basta pensar no custo de manter homens armados para
garantir a propriedade privada em uma ação de reintegração de posse, por exemplo. Nesse
sentido:

Redistribution is omnipresent. It does not occur only when the government takes
money from taxpayers and hands it over to the needy. Redistribution also occurs, for
example, when the public force is made available, at the expense of taxpayers
generally, to protect wealthy individuals from private violence and threats of
violence. (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p.229)

É preciso considerar, porém, que os direitos constitucionais já possuem remédios


jurídicos aptos para a sua implementação, mesmo quando os Estados não dispõem de
orçamento suficiente. Nesse sentido, Sunstein (1999, p. 43) afirma: “Where there is a right,
there is a remedy”.

Ocorre que tais remédios também são custosos, na medida em que demandam a criação
e a manutenção de uma complexa estrutura pública, como é o caso do Poder Judiciário, a fim
de assegurar aos cidadãos a tutela adequada dos direitos, o que não pode se dar em uma
situação de vazio orçamentário. Como reconhecem os autores: “Rights are costly because
remedies are costly (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 43). E esclarecem: “No court can
function without receiving regular injections of taxpayers dollars to finance its efforts to
discipline public or private violators of rights, and when those dollars are not forthcoming,
rights cannot be vindicated” (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 45).

Enfim, para que os direitos constitucionais sejam levados a sério, é preciso levar a sério
os problemas decorrentes da escassez de recursos públicos. Este é um importante passo para
promover a conscientização dos indivíduos acerca das responsabilidades individuais para com
a coletividade, uma vez que direitos e deveres são indissociáveis: “rights and responsibilities
can hardly be separated, they are correlative” (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 140). “The
63

mutual dependence of rights and responsibilities, […] makes it implausible to say that
responsibilities are being “ignored” because rights have gone too far”.

Bem por isso, são valiosas as lições de Flávio Galdino (2005, p. 213), quando afirma
que “a falsa ideia de que alguns direitos nada custam, ou são gratuitos, gera
irresponsabilidade”. Sendo assim, a partir da consideração de que todos os direitos públicos
subjetivos são positivos e que demandam uma prestação positiva do Estado para sua
efetivação, o que implica custos públicos, há de se proceder a uma releitura da relação
tributária neste país, sobretudo porque:

The rights of Americans are neither divine gifts nor fruits of nature; they are not
self-enforcing and cannot be reliably protected when government is insolvent or
incapacitated; they need not be a recipe for irresponsible egoism; they do not imply
that individuals can secure personal freedom without social cooperation; and they
are not uncompromisable claims. (SUNSTEIN; HOLMES, 1999, p.220)

Por conseguinte, cumpre perquirir acerca dos complicadores da tributação no Estado


contemporâneo, a fim de procurar soluções para a pacificação da relação tributária e a
desejada legitimação do tributo, com o propósito maior de concretizar os preceitos almejados
no Estado de bem-estar social.
3 COMPLICADORES DA TRIBUTAÇÃO NO ESTADO
CONTEMPORÂNEO – FATORES DE REJEIÇÃO SOCIAL DO
TRIBUTO

No ponto em que se encontra o presente trabalho, demonstra-se inquestionável o fato de


que a tributação funciona como o verdadeiro sustentáculo do Estado Social Democrático de
Direito. Sobretudo em países marcados pela desigualdade social extrema, como é o caso do
Brasil, o recolhimento de tributos se justifica como a forma mais viável de ofertar as
necessidades básicas aos necessitados, além de proporcionar o custeio da máquina pública e
das atividades essenciais, as quais vêm sendo consideravelmente alargadas desde a passagem
do Estado Liberal para o Estado de bem-estar social.

Contudo, o que se vê é a crescente resistência ao pagamento de tributos. Não raras


vezes, os meios de comunicação social veiculam verdadeira apologia à sonegação fiscal. A
elevada carga tributária, a corrupção, a ineficiência dos gastos e dos serviços públicos são
assuntos constantes nos noticiários de âmbito nacional. Não que a mídia deva ser criticada por
isso, afinal, está cumprindo o papel de promover a cidadania no Estado Democrático de
Direito. Mas sim a banalização das atividades criminosas, que vão desde a corrupção ao
envolvimento com o crime organizado, forma a opinião pública em prol do individualismo e
da irresponsabilidade social.

Curiosamente, até mesmo no meio acadêmico, onde se espera a superação do senso


comum, terreno no qual se esquece da necessária correlação entre os direitos e os deveres para
com a coletividade, a sonegação fiscal é estimulada. É o que se vê em cursos de pós-
graduação ou de extensão intitulados “Como pagar menos imposto através da contabilidade” 21
ou ainda, “Como pagar menos imposto de forma legal em 2010”, 22 ambos acessíveis através
de um simples clique na internet. A ética parece ser conteúdo absolutamente alheio à relação
tributária.

21
Disponível em: <http://www.portaldeauditoria.com.br/curso-contabilidade-tributaria-como-pagar-menos-imposto.asp>
22
Disponível em: <http://contabilidadenatv.blogspot.com/2010/03/curso-ibef-rio-como-pagar-menos-imposto.html>
65

Em face da problemática apresentada, mister considerar que certos fatores


comprometem profundamente a harmonia da relação jurídica tributária, acirrando ainda mais
a conflituosa relação Estado-Sociedade. Assim, cumpre traçar um esboço acerca dos
complicadores da tributação no Estado brasileiro, em especial, a criticada carga tributária, a
ausência de justiça fiscal e a inobservância ao princípio da capacidade contributiva, a guerra
fiscal entre os entes federados, os reflexos da globalização sobre a tributação, a ausência de
praticabilidade da tributação, a ineficiência do Gasto Público, e, por fim, a politização do
direito tributário e os malefícios do consequencialismo jurídico.

Ao final, pretende-se responder aos seguintes questionamentos: diante da diversidade de


obstáculos ao financiamento estatal contemporâneo, pode-se concluir que o Estado Fiscal está
em crise? Em que consiste a propalada crise do Estado Fiscal? Demonstra-se viável a adoção
de outro modelo de financiamento estatal, mais compatível com a proposta do Estado Social?

3.1 Considerações sobre a carga tributária brasileira

No Brasil, conforme a conceituação oficial do Ministério da Fazenda (BRASIL, 2011,


p. 6), a Carga Tributária Bruta dos três níveis governamentais é definida como “a razão entre
a arrecadação de tributos e o PIB a preços de mercado, ambos considerados em termos
nominais”.

Os últimos dados divulgados pelo Governo Federal (BRASIL, 2011, p.6) apontam que,
em 2010, a Carga Tributária Bruta atingiu 33,56%, contra 33,14% em 2009, indicando
variação positiva de 0,42 ponto percentual.

O contínuo crescimento dos índices apresentados tem sido objeto de profundas críticas
no cenário nacional. Reiteradamente são produzidas pesquisas no sentido de que a carga
tributária reduz o crescimento do país,23 ou ainda, estudos traçam comparações em relação à
tributação de países mais desenvolvidos, onde o retorno do tributo à sociedade se dá de forma
adequada.

Contudo, antes de traçar qualquer diagnóstico, é fundamental ter a consciência de que o


orçamento de um país em desenvolvimento não se equipara ao custo de um país de 1º mundo.
A carga tributária tende a ser maior nos países subdesenvolvidos, onde o gasto público está

23
Disponível em: <http://www.diap.org.br/index.php/noticias/agencia-diap/16799-ipea-estudo-sugere-que-carga-
tributaria-reduz-crescimento-do-pais>.
66

proporcionalmente relacionado com o grau de desigualdade social, tendo em vista a


necessária proposta de justiça distributiva.

Não obstante, em vários países, sejam eles desenvolvidos ou não, é forte o apelo dos
agentes econômicos pela redução da carga tributária. A exemplo, em Portugal, José Casalta
Nabais (1998, p. 219) defende a limitação do Estado Fiscal, afirmando:

Não se deve abandonar os contribuintes à ferocidade do Fisco, o que ocorrerá


seguramente se a tributação atingir um nível tal que o aproxime da verificação da
chamada ‘lei de bronze do imposto’, segundo a qual ‘ao particular deve ser deixado
só o mínimo necessário para o seu consumo de modo que junto dele não possa
constituir-se qualquer energia econômica potencial.’

Segundo o autor, não se deve propor o retorno ao liberalismo, nem há de ser defendida a
ideia do Estado Mínimo, mas é preciso evitar o “agigantamento estatal”, o que poderia ser
concretizado através do “Princípio da Reprodutividade” (NABAIS, 1998, p. 220). Formulado
por Lorez Von Stein, este princípio “implicava que cada imposto produzisse tanto quanto o
seu montante, de modo a assim, devolver ao indivíduo (ou à economia privada) o quanto foi
arrecadado.” (NABAIS, 1998, p. 220).

Seria o Princípio da Reprodutividade adaptável à realidade brasileira? Em verdade, tal


postulado muito se assemelha à teoria da equivalência ou do preço sustentada pelo Estado
liberal. Todavia, o autor afirma que “é possível adaptar tal princípio ao Estado Social,
considerando reprodutivas também as despesas necessárias à persecução dos interesses gerais
da economia e à correção dos resultados da distribuição econômica.” (NABAIS, 1998, p.
221).

Para isso, considerando a impossibilidade de provar a reprodutividade de cada despesa


do estado, o autor propõe como solução a presunção da reprodutividade de todas as despesas
do Estado, presunção essa que, no entanto, seria abandonada quando os impostos atingissem
uma quota superior a 50% do PIB. (NABAIS, 1998, p. 221).

Com efeito, considerando que a carga tributária brasileira não tem ultrapassado o
percentual histórico de 36% (trinta e seis por cento), comparando o parâmetro proposto pelo
autor português, pode-se afirmar que o montante global de tributos arrecadados não é
desproporcional ao nível de desenvolvimento do país, como tanto se alarma.

Países desenvolvidos como a Dinamarca e a Suécia apresentam carga tributária no


percentual aproximado de 48% do PIB, o que se assemelha a outros países como Itália e
67

França, nos quais este percentual ultrapassa os 43%.24 Poder-se afirmar, então, que a carga
tributária global brasileira, isoladamente considerada, não é um real complicador da relação
tributária, uma vez que não alcança percentuais discrepantes aptos a configurar uma situação
de confisco dos bens particulares.25

É verdade que o senso comum aponta em sentido oposto. Tal fenômeno se dá em razão
da ausência de justiça tributária, já que o princípio da capacidade contributiva não é
observado de forma satisfatória, motivo pelo qual certos grupos de contribuintes são
demasiadamente onerados, enquanto outra parcela com maior disponibilidade econômica
utiliza-se de instrumentos jurídicos ou políticos para pagar menos tributos. Ou seja, ao mesmo
tempo em que a carga tributária global do país não é exorbitante, constata-se que a carga
tributária isolada sobre determinada parcela de contribuintes é arbitrária, desarrazoada e
flagrantemente confiscatória.

Por tal razão, deve-se ter em mente que eventuais políticas implementadas para a
redução da carga tributária brasileira não devem importar na diminuição da arrecadação
global, mas tão somente o redirecionamento do ônus tributário para os setores com maior
capacidade contributiva.

Primeiro porque, os recursos financeiros existentes já são escassos, de forma que a


redução da arrecadação irá comprometer diretamente as conquistas sociais já alcançadas,
acarretando lamentável retrocesso do Estado Democrático de Direito. Segundo, em razão de
que qualquer proposta de redução da carga tributária deverá objetivar o crescimento
econômico e o desenvolvimento sustentável do país, e, consequentemente, ensejará o aumento
da arrecadação e a melhoria dos índices sociais.

24
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Disponível em:
<http://www.ibpt.com.br/img/_publicacao/13891/189.pdf>.
25
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já se firmou alguns precedentes no sentido de que não é possível
reconhecer a configuração de confisco abstratamente, em razão da carga tributária brasileira. Para a Corte: “A
caracterização do efeito confiscatório pressupõe a análise de dados concretos e de peculiaridades de cada
operação ou situação, tomando-se em conta custos, carga tributária global, margens de lucro e condições
pontuais do mercado e de conjuntura social e econômica (art. 150, IV da Constituição). 2. O isolado aumento
da alíquota do tributo é insuficiente para comprovar a absorção total ou demasiada do produto econômico da
atividade privada, de modo a torná-la inviável ou excessivamente onerosa.” (RE 448432 AgR / CE - CEARÁ
Ag.Reg. no Recurso Extraordinário. Relator(a): Min. Joaquim Barbosa. Julgamento: 20/04/201. Órgão
julgador: segunda turma, publicação Dje-096. Divulg 27-05-2010, public 28-05-2010).
68

Cumpre, no entanto, analisar a o tema da justiça fiscal e da capacidade contributiva no


Sistema Tributário Brasileiro, estes, sim, verdadeiros entraves da relação tributária
equilibrada.

3.2 A ausência de justiça fiscal

O problema da ausência de justiça fiscal será exposto sob duas perspectivas, focadas no
binômio solidariedade-capacidade contributiva. A primeira diz respeito à fragilidade da
solidariedade social, o que compromete necessariamente a distribuição de renda e a redução
das desigualdades sociais, funções modernamente assumidas pelo tributo. Neste contexto, será
analisado de que forma a sonegação fiscal contribui para a ausência de justiça fiscal no país,
bem como a forma com os Poderes Públicos estão enfrentando esta problemática.

O segundo enfoque parte da constatação de que o princípio da capacidade contributiva


não é observado no país, o que torna injusta a carga tributária assumida individualmente por
alguns setores da sociedade. Ambas as temáticas são responsáveis por esvaziar a noção de
tributação equitativa, gerando desgastes cíclicos e contínuos na relação tributária.

3.2.1 Justiça fiscal e solidariedade

A concretização dos direitos sociais, ou melhor, do Estado Social em si, depende


essencialmente do fortalecimento dos vínculos de solidariedade e de fraternidade,
lamentavelmente enfraquecidos na sociedade individualista moderna. É preciso ter em mente
que, “o Estado Social Fiscal, redimensionado em suas fontes e em suas atribuições, tem na
solidariedade um de seus pilares mais firmes” (TORRES, 1998, p. 302)

Com efeito, no contexto do pretenso Estado Social Democrático de Direito brasileiro, a


solidariedade deixou de ser meramente um princípio abstrato para revelar-se uma obrigação
moral e jurídica, já positivada dentre os objetivos fundamentais da República, como se vê no
artigo 3º do Texto Constitucional.

Como assevera Ricardo Lobo Torres (1998, p.301-302) “a idéia de solidariedade se


projeta com muita força no direito fiscal por um motivo de extraordinária importância: o
tributo é um dever fundamental”. O pagamento de tributos deixa de ser uma simples
obrigação prevista em lei para assumir o status constitucional, sendo inequívoco o
relacionamento entre solidariedade e justiça fiscal.
69

Fazer justiça tributária exige, dentre várias coisas, ser solidário com a parte da
população mais carente. Neste papel, a tributação funciona como instrumento essencial de
redistribuição de renda e de redução das desigualdades sociais.

É no campo dos impostos que a solidariedade aparece com maior nitidez, já que, ao
contrário das taxas e contribuições, a sua destinação dirige-se ao custeio geral das atividades
estatais, sem vinculação a qualquer contraprestação específica ao contribuinte. Bem por isso,
o Estado brasileiro é caracterizado como Estado Fiscal, sustentado essencialmente por
impostos, diferentemente da hipótese de Estado Tributário.

Sendo assim, a ausência de solidariedade e de cidadania fiscal compromete a


arrecadação e, conseqüentemente, apresenta-se como um complicador da tributação no Brasil.
Diante da correlação entre os deveres e os direitos fundamentais inseridos no Texto
Constitucional, os comportamentos de sonegação fiscal e de apologia ao acirramento da
relação fisco–contribuinte não podem ser tão facilmente tolerados.

3.2.1.1 Sonegação fiscal – fator determinante da ausência de justiça fiscal

Demonstrada a relevância da solidariedade no contexto do Estado contemporâneo,


parte-se para a análise dos malefícios provocados pela sonegação fiscal no país. Como
reconhece Lenio Streck (2011, p.31-32), “muito embora inegável essa perspectiva de Estado
Social-Fiscal, o nível de sonegação de tributos é escandaloso, beirando o surrealismo”.

Em 2009, o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário divulgou estudo com o


objetivo de estimar o montante de tributos sonegados no Brasil, bem como o índice de
sonegação por setores e por tributos. Dentre os resultados alcançados, os seguintes merecem
especial destaque: 1) Tributos sonegados pelas empresas somam R$ 200 bilhões por ano; 2)
Somados aos tributos sonegados pelas pessoas físicas, sonegação fiscal no Brasil atinge 9%
do PIB; 3) Cruzamento de informações, retenção de tributos e fiscalização mais efetiva são os
principais responsáveis pela queda da sonegação; 4) Contribuição Previdenciária (INSS) é o
tributo mais sonegado, seguida do ICMS e do Imposto de Renda; 5) Indícios de sonegação
estão presentes em 65% das empresas de pequeno porte, 49% das empresas de médio porte e
27% das grandes empresas; 6) Com os novos sistemas de controles fiscais, em 5 anos o Brasil
terá o menor índice de sonegação empresarial da América Latina e em 10 anos índice
comparado ao dos países desenvolvidos.
70

As conclusões obtidas no estudo mencionado retratam claramente o cenário da


sonegação fiscal no Brasil. A fraude fiscal, indiscutivelmente, revela-se um forte complicador
da relação tributária. Contribuintes individuais, pequenas e grandes empresas se utilizam de
manobras ardilosas para a redução dos encargos tributários. Parece estar impregnado o
pensamento liberal segundo o qual “é aspiração naturalíssima e intimamente ligada à vida
econômica do homem a de se procurar maior economia e menor despesa nos resultados
econômicos” (BECKER, 2010, p. 143), ainda que para isso o ideal ético e solidário tenha que
sucumbir inteiramente.

Por tal razão, a classe de trabalhadores tributada na fonte de pagamento é continua e


progressivamente onerada, afinal, para alguém o custo da sonegação deve ser redirecionado.
Também é certo que empresas sonegadoras acabam usufruindo privilégios odiosos, na medida
em que se constata a quebra da igualdade de condições concorrenciais no mercado, se
comparados os preços dos seus produtos com os produtos de uma empresa regular, fielmente
cumpridora da obrigação tributária. Outro efeito maléfico diz respeito à prestação dos serviços
essenciais à comunidade, obstada pela drástica redução da receita pública, estimada em 9%
(nove por cento) do produto interno bruto brasileiro.

Como condição sine qua non para o cumprimento das finalidades intrínsecas ao Estado
Social, o combate à sonegação fiscal deve ser priorizado. No intuito de estancar a
inadimplência fraudulenta do tributo, várias medidas já foram tomadas pelo Poder Público,
podendo-se citar como exemplo a adoção de sistemas informatizados avançados pelos órgãos
de arrecadação tributária, investimentos na máquina arrecadadora e fiscalizatória, a instituição
de garantias e privilégios do crédito público, bem como da possibilidade de intercâmbio de
informações fiscais entre as três esferas tributantes.

Não obstante todos os avanços conquistados, de certa forma, a sonegação fiscal ainda
não deixou de ser incentivada no país. Embora a legislação tributária estabeleça multas
administrativas que podem alcançar o percentual de até 225% (duzentos e vinte e cinco por
cento) sobre o valor original do tributo sonegado, conforme dispõe o art. 44 da Lei nº
9.430/1996, o tratamento criminal à matéria continua sendo benevolente.

Isso porque, embora a sonegação fiscal seja tipificada como crime contra a ordem
tributária, nos termos das leis nº 10.684/2003 e nº 9.249/1995, basta que o contribuinte
71

desonesto pague o tributo exigido para ter extinta a sua punibilidade.26 Mais vantajosa ainda é
a possibilidade de adesão a qualquer espécie de parcelamento do débito, situação na qual a
ação penal respectiva será suspensa, até que se cumpra integralmente o acordo administrativo,
cujas modalidades podem chegar ao financiamento do débito por até 180 (cento e oitenta
meses), conforme previsto na Lei 11.941/09.

Bem por isso, muitos contribuintes preferem arcar com os riscos da omissão de receita,
já que a punição a ser aplicada, na remota hipótese de fiscalização, é facilmente remediada
sem maiores transtornos ao sonegador. Portanto, a exemplo da legislação de países mais
desenvolvidos, como é o caso dos Estados Unidos, exige-se maior rigor no tratamento penal
dado à conduta fraudulenta, sendo dever não só do Estado, mas também de toda a sociedade, a
repreensão da prática criminosa, atuando o cidadão consumidor como poderoso instrumento
de fiscalização e de combate à sonegação.

Não há dúvidas de que uma das grandes injustiças que se opera no Brasil é a sonegação.
Enquanto uns sonegam, outros a pagam mais. Tal fator se agrava em razão da ideia
generalizada de que a condução do gasto público é ineficaz. Contra esse fenômeno, o Estado
brasileiro não deve ficar preso às ideologias conflitantes, ou seja, deve a sociedade assumir a
postura de solidariedade social, apropriando-se da ideia de cidadania e abandonando o
individualismo proposto pelo pensamento neoliberal. É de se anotar também que a capacidade
contributiva depende da solidariedade para que o sistema tributário alcance o ideal de justiça
tributária. É esse tema que será analisado a seguir.

26
Nesse sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL. HC 84798 / GO2007/0135347-0 Rel.
Min. Arnaldo Esteves Lima, T5 - Quinta Turma. Data do Julgamento 06/10/2009. Data da Publicação. DJe
03/11/2009). “Ementa: Penal e processo penal. Habeas corpus. Apropriação indébita previdenciária e
sonegação previdenciária. pagamento integral do débito. efeitos penais regidos pelo art. 9º, § 2º, da lei 1
0.684/2003. extinção da punibilidade. inépcia da denúncia. pacientes gestores e administradores da empresa.
ordem parcialmente concedida. 1. Com a edição da Lei 10.684/2003, deu-se nova disciplina aos efeitos penais
do pagamento do tributo, nos casos dos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de
1990, e 168-A e 337-A do Código Penal. 2. Comprovado o pagamento integral dos débitos oriundos da falta de
recolhimento de contribuições sociais, ainda que efetuado posteriormente ao recebimento da denúncia,
extingue-se a punibilidade, nos termos do 9º, § 2º, da Lei 10.684/03. 3. Não se pode ter por inepta a denúncia
que descreve fatos penalmente típicos e aponta, mesmo que de forma geral, as condutas dos pacientes, o
resultado, a subsunção, o nexo causal (teorias causalista e finalista) e o nexo de imputação (teorias
funcionalista e constitucionalista), oferecendo condições para o pleno exercício do direito de defesa, máxime se
tratando de crime societário onde a jurisprudência tem abrandado a exigência de uma descrição pormenorizada
das condutas. 4. Ordem parcialmente concedida para determinar o trancamento da ação penal, exclusivamente,
em relação ao crime de apropriação indébita previdenciária.”
72

3.2.2 O princípio da capacidade contributiva

Ao longo da história humana, muitos pensadores e economistas procuraram definir o


que seria um sistema tributário justo, indagando-se acerca da real definição de justiça
tributária. Em 1776, na clássica obra “A Riqueza das Nações”, Adam Smith (2001, p.420)
definiu que um sistema tributário é justo quando todos, do mais pobre ao mais rico,
contribuem em proporção direta à sua capacidade de pagar: “Os súditos de todo o Estado
deveriam contribuir para sustentar o governo, tanto quanto possível em proporção às suas
respectivas capacidades”.

Assim, a fórmula segundo a qual todos os administrados devem contribuir, sendo que os
contribuintes com maior capacidade econômica27 devem pagar mais impostos do que aqueles
com menor disponibilidade financeira, por muito tempo, pareceu ser a mais correta.

Com efeito, o art. 145, §2º da Constituição Federal brasileira de 1998 consagrou
expressamente o princípio da capacidade contributiva, determinando que, “sempre que
possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade
econômica do contribuinte”.

Não obstante a constitucionalização de tal raciocínio jurídico, verdadeiro norte aos


sistemas tributários modernos, a realidade da tributação no Brasil diverge bastante desse ideal
de justiça, já que, em razão dos impostos indiretos e da tributação na fonte do trabalhador, são
os pobres e a classe média que financiam o Estado contemporâneo.

Evidencia-se, então, dois gravames que comprometem o princípio da capacidade


contributiva no Estado brasileiro. O primeiro diz respeito ao pressuposto de que todos os
administrados devem contribuir para a arrecadação. Em verdade, tal premissa deve ser
abandonada, pois os pobres, desempregados e assalariados, ou seja, aqueles que vivem no
limite do mínimo existencial, não podem suportar o ônus tributário do Estado, mas, sim, hão

27
Imperioso destacar a distinção realizada por Heleno Torres (2011, p. 599-600) entre capacidade contributiva e
capacidade econômica. A capacidade contributiva diz respeito unicamente à parcela da capacidade econômica
integral do contribuinte, aquela que é alcançada pelos tributos ou que pode ser objeto de tributação, afastado o
mínimo existencial e aquelas formas de manifestações econômicas que se possam gravar com tributos. “A
capacidade econômica é um dado empírico alheado de contornos jurídicos. Somente quando judicializado, este
conceito torna-se relevante para a verificação da reserva do mínimo vital e para a determinação objetiva da
capacidade contributiva, a cada espécie de tributo e a partir dos critérios entabulados em lei.”
73

que ser suportados pelo Estado, mediante a arrecadação e a distribuição de riquezas oriundas
do pagamento de tributos dos demais cidadãos-contribuintes.

Nesse contexto, a mera isenção do Imposto de Renda para trabalhadores que recebem
valores aquém do limite normativo está muito distante de alcançar a justiça tributária para
essa parcela da população. Em razão dos tributos indiretos, como é o caso do ICMS, sabe-se
que as classes mais pobres são duplamente penalizadas. Primeiro porque grande parte do seu
salário é gasto com bens de consumo, cuja tributação é inteiramente repassada ao consumidor.
Depois, porque é exatamente esta classe que necessita dos serviços estatais, que em regra, têm
sido prestados de forma deficiente.

Sendo assim, a definição de justiça tributária proposta por Adam Smith demonstra-se
ultrapassada, uma vez que a capacidade contributiva deve exigir que a tributação só exija o
imposto do contribuinte a partir do ponto em que o seu rendimento supere o mínimo
necessário para a subsistência sua e de sua família, ou seja, o mínimo existencial.

Nesse sentido, Ricardo Lobo Torres (1998, p. 302-303) assevera que “o grande
problema ético da capacidade contributiva encontra-se no seu fundamento”. Para o autor, as
teorias positivistas de equivalência, teoria da igualdade do sacrifício e teoria da capacidade
contributiva como causa do tributo não são capazes de efetivar o mandamento.

Ao contrário, afirma que são as ideias de solidariedade e de fraternidade que devem


ancorar a capacidade contributiva. Assim, em prol dessa solidariedade, espera-se que a carga
tributária recaia predominantemente sobre os mais ricos, reduzindo a incidência sobre os mais
pobres e dela dispensando os que se encontram abaixo do mínimo existencial.

É verdade que o ordenamento tributário já evoluiu no que tange à busca pela justiça da
carga tributária. A progressividade das alíquotas é uma clara manifestação desse fenômeno.
Acerca deste assunto, Nabais (1998, p. 577) assevera que “o princípio do Estado Social
constitui o verdadeiro fundamento da progressividade, ainda que a projeção do imposto seja
apenas alguma das suas projeções”.

Todavia, a implementação de alíquotas progressivas não é suficiente para amenizar o


grande vazio que se tem neste tema. Exemplificando, nos Estados Unidos, o milionário e
investidor Warren E. Buffett (2011) publicou um artigo no jornal New York Times, intitulado
“Stop Coddling the Super-Rich”, aduzindo as razões pelas quais era tributado de forma menos
74

onerosa do que os seus secretários de classe média. Interessante conhecer alguns dos seus
argumentos:

OUR leaders have asked for ‘shared sacrifice’ But when they did the asking, they
spared me. I checked with my mega-rich friends to learn what pain they were
expecting. They, too, were left untouched. […]
Last year my federal tax bill — the income tax I paid, as well as payroll taxes paid
by me and on my behalf — was $6,938,744. That sounds like a lot of money. But
what I paid was only 17.4 percent of my taxable income — and that’s actually a
lower percentage than was paid by any of the other 20 people in our office. Their
tax burdens ranged from 33 percent to 41 percent and averaged 36 percent. […]
I know well many of the mega-rich and, by and large, they are very decent people.
They love America and appreciate the opportunity this country has given them.
Many have joined the Giving Pledge, promising to give most of their wealth to
philanthropy. Most wouldn’t mind being told to pay more in taxes as well,
particularly when so many of their fellow citizens are truly suffering.[…]

A situação narrada por Buffettt (2011) expõe com clareza o segundo gravame incidente
sobre o princípio da capacidade contributiva: a classe média, tributada diretamente na fonte,
vê-se sobrecarregada com uma carga tributária tão árdua, compensatória dos privilégios
odiosos concedidos às empresas e do déficit provocado pela sonegação fiscal.

Nesse sentido, a desoneração tributária de produtos de consumo destinados às


necessidades essenciais da população carente, como itens da cesta básica popular, remédios e
alguns materiais de higiene, seria um grande avanço em prol da concretização da justiça
fiscal. Da mesma forma, a criação do imposto sobre grandes fortunas, prevista do Texto
Constitucional desde a sua promulgação, há mais de 20 anos, representaria uma atitude
afirmativa dos Poderes Legislativo e Executivo em prol do Estado Social.

3.3 A guerra fiscal entre os entes federados

A guerra fiscal pode ser definida como a prática de concessão de incentivos fiscais
unilateralmente por certos entes federativos, relacionados especialmente ao ICMS e ao ISS, à
revelia da legislação e da Constituição Federal e sem a concordância dos demais entes
tributantes, gerando a concorrência acirrada entre os Estados e Municípios em busca de novos
investimentos privados.

No que tange ao ICMS, visando coibir tal prática, o artigo 155, § 2º da Constituição
Federal de 1988 dispõe de verdadeira engenharia constitucional voltada para o combate da
“guerra fiscal” entre os Estados responsáveis pela arrecadação do Imposto sobre a Circulação
de Mercadorias e Serviços.
75

Outrossim, a Lei Complementar nº 24/1975, recepcionada pela Constituição Federal de


1988, proíbe expressamente a concessão de isenções e de outros incentivos fiscais
relacionados ao ICMS, ressalvados os previstos em convênios celebrados em reunião do
Conselho de Política Fazendária – CONFAZ, que congrega todos os Estados e o Distrito
Federal. A lei determina que a aprovação da concessão de um benefício depende da decisão
unânime dos Estados representados, prevendo penalidades no caso de descumprimento. Isso
porque, presume-se que, em uma estrutura federalista, a cooperação entre os entes deve ser a
regra.

Na hipótese de o sistema funcionar tal como idealizado e estabelecido pelo


Ordenamento Jurídico, dentro do contexto cooperativo e solidário inato ao federalismo, não
haveria dúvida acerca da legitimidade da concessão dos incentivos fiscais pelos estados
federados e municípios. Como defende Heleno Taveira Torres (2011, p.619), “é de justiça
distributiva que são informados os incentivos fiscais”. Para o autor, assim como o caráter
extrafiscal dos impostos, as isenções e os incentivos fiscais são instrumentos de concretização
da justiça fiscal, “por intermédio da realocação de recursos e redistribuição de meios de
produção de riquezas”. Com efeito, Heleno Torres (2011, p. 621) reputa que:

Todo incentivo fiscal é legítimo quando concedido sob amparo constitucional, enquanto
se nutre do propósito de reduzir desigualdades e promover o bem comum, como o
desenvolvimento nacional ou regional, sustentado em desígnio constitucional que se
preste à promoção da quebra das desigualdades ou preservação dos direitos individuais
ou sociais, ou ainda, o próprio sentido de unidade econômica do federalismo.

Todavia, a existência de um sistema tributário bem construído, baseado num conjunto


claro de princípios harmônicos e complementares, não tem impedido a eclosão da
problemática guerra fiscal, o que se dá em flagrante desrespeito às normas e aos princípios
constitucionais. No afã de atrair investimentos para os seus territórios, é comum a opção pela
renúncia fiscal exacerbada e pela criação de setores com tratamento privilegiado.
Conseqüentemente, a competitividade acirrada tem produzido efeitos maléficos no âmbito
social e econômico.

Por tal razão, pode-se justificar a opinião radical de Ives Granda Martins (2011, p
1157.), segundo o qual deve haver a “vedação absoluta à concessão de estímulos fiscais e
financeiros via ICMS, pois se trata de um imposto de vocação nacional, que no Brasil,
gritante exceção no concerto das nações, foi regionalizado”. Ou seja, o autor afirma que o
problema a guerra fiscal no Brasil tem sua origem na formulação da EC nº 18/65, por meio da
76

qual era possível regionalizar um tributo de “vocação nacional, mediante o princípio geral do
valor agregado, ou melhor, da não cumulatividade”.

De fato, embora Heleno Torres (2011, p.621) reconheça o sentido social dos incentivos
fiscais, no atual cenário da guerra fiscal do ICMS no Brasil, pode-se afirmar que a concessão
de incentivos fiscais pelos entes federados deixa de significar importante instrumento de
redução das desigualdades sociais e regionais para se tornar um preocupante complicador da
relação tributária.

Tal política revela-se temerosa, na medida em que nem todos os entes federativos
possuem a mesma capacidade de conceder privilégios, sem sacrifício da competente prestação
de serviços públicos à sociedade. Bem por isso, as desigualdades regionais se acentuam, já
que os Estados mais pobres são exatamente aqueles que mais precisam de empregos e do
incremento do pólo industrial, mas não podem abrir mão de suas receitas fiscais, sob pena de
comprometimento dos parcos serviços prestados à comunidade. Sendo assim, a proposta de
desenvolvimento econômico e social também fica comprometida.

Reconhecendo os efeitos maléficos provocados pelo fenômeno da guerra fiscal, em


junho de 2011, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de diversas Ações Diretas
de Inconstitucionalidade - ADINS que tratavam do tema. A exemplo, na ADIN nº 2.345 – SC,
a Suprema Corte fixou o entendimento no sentido de que não pode o Estado- membro
conceder isenção, incentivo ou benefício fiscal, relativos ao ICMS, de modo unilateral,
mediante decreto ou outro ato normativo, sem prévia celebração de convênio
intergovernamental no âmbito do CONFAZ.

Resta saber se, de fato, não permanecerá o cidadão-contribuinte sendo o maior


prejudicado com esta situação. Isso porque, a declaração de inconstitucionalidade das leis
estaduais concessivas de benefícios tem levado alguns entes federados a anular
unilateralmente, os efeitos econômicos dos benefícios fiscais concedidos aos contribuintes.
Assim, os contribuintes têm as suas declarações glosadas, sendo obrigados a recolher a
parcela do crédito incentivado, muitas vezes acompanhado de juros e multa.

No bojo do Recurso Extraordinário nº 628.075 – RS, o Supremo Tribunal Federal


reconheceu a Repercussão Geral deste relevante tema concernente à Guerra Fiscal, qual seja,
legitimidade de lei local e federal que permite ao ente federado negar ao adquirente de
mercadoria o direito ao crédito de ICMS destacado em notas fiscais, nas operações
77

interestaduais provenientes de estados da Federação que concedessem benefícios fiscais


inconstitucionais ou ilegais.

No caso, segundo a leitura do acórdão, a Corte Suprema considerou que o tema


discutido é grave, por colocar em risco o desenvolvimento de atividades econômicas lícitas, a
manutenção de empregos e a harmonia de entes federados. Especificamente, os seguintes
preceitos constitucionais parecem violados em razão do problema: 1) a regra da não -
cumulatividade , na medida em que impede que o contribuinte credite-se do valor do tributo
cobrado na operação precedente (art. 155, §2º, inc. I da CF/88); 2) ofensa ao pacto federativo,
tendo em vista que nenhum ente pode declarar a inconstitucionalidade de legislação de outro
membro da federação (inconstitucionalidade do art. 8º da LC 24/1975 – arts. 1º, 2º, 102 e 155,
§ 2º, inc. I da Constituição).

Independentemente do resultado do julgamento noticiado, é valido o entendimento de


Ricardo Pires Calciolari (2011, p. 41), segundo o qual a guerra fiscal tem se mostrado uma
política pública inócua no que tange à redução das desigualdades sociais. Tal objetivo
constitucional não deve ser alcançado por meio da concessão de incentivos fiscais, mas sim
através da participação concreta de todos entes federados no fomento do desenvolvimento
social. Acentua o autor que a “incapacidade da União em implantar políticas públicas nesse
sentido é a principal causa da guerra vivenciada hoje, utilizada como único instrumento
desenvolvimentista por Estados menos abastados”.

3.4 Os reflexos da globalização sobre a tributação

Parte-se do princípio de que a legislação tributária de cada país deva ser diferenciada,
para que possa se adequar à história, à cultura e aos interesses de cada nação. Nesse sentido,
Reuven S. Avi-Yonah (2010, p. 2) leciona: “Tax Law reflects specific national histories,
cultures and interests, and not surprisingly they differ”. Da mesma forma, o economista
Joseph Schumpeter (1954, p. 7) preceituava: “the spirit of a people, its cultural level, its social
structure, the deeds its policy may prepare – all this and more is written in its fiscal history”.

Ocorre que, desde meados de 1980, o regramento tributário interno dos Estados tem
convergido e a maioria dos países passou a “relaxar suas restrições à mobilidade do capital”.
No caso dos Estados Unidos e dos países da Europa, três exemplos muito claros demonstram
este acontecimento: 1) o mix fiscal global, com a instituição de imposto único usado por
78

diferentes países (IVA); 2) a integração fiscal das empresas; 3) a escolha entre a tributação
global ou territorial (AVI-YONAH, 2010, p. 02).

Trata-se, então, do fenômeno da globalização, cujo marco histórico é relativamente


recente no Brasil, já que até o final da década de oitenta, o termo quase não era usado, seja na
literatura acadêmica, seja na linguagem cotidiana (FERNANDES, 2011, p. 26), não obstante a
popularidade do signo nos dias atuais.

Apresentar o significado de globalização não é tarefa fácil, já que o fenômeno envolve


dimensões econômicas, políticas, sociais, culturais, ambientais e, inevitavelmente, jurídicas.
Por tal razão, cumpre transcrever a definição de globalização esboçada por Antony Giddens
(1991, p.60), referência mundial sobre o tema:

A globalização pode assim ser definida como a intensificação das relações sociais
em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que
acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de
distância e vice-versa. Este é um processo dialético porque tais acontecimentos
locais podem se deslocar numa direção anversa às relações muito distanciadas que
os modelam. A transformação local é tanto uma parte da globalização quanto a
extensão lateral das conexões sociais através do tempo e do espaço.

Por óbvio, o presente estudo limita-se à abordagem da globalização no contexto do


Estado Fiscal, a fim de verificar se o fenômeno representa efetivamente um complicador da
tributação e da concretização do Estado Social Democrático de Direito.

Respondendo à indagação acerca da positividade ou da negatividade do fenômeno da


globalização sobre o Sistema Tributário, Avi-Yonah (2010, p. 6) entende que “There are
reasons to decry tax convergence . If one believes that cultural diversity is important and that
countries should be free to adopt their tax laws without undue pressure from outside forces
like globalization”.

Em tese, as peculiaridades culturais, econômicas e, sobretudo, sociais de cada Estado


deveriam definir as escolhas políticas orçamentárias e o nível de oneração dos contribuintes.
Ocorre que, diferentemente deste ideal, os governos nacionais estão tendo que se amoldar
continuamente aos avanços e recuos das condições e forças do mercado global.

A concorrência pela dominação e pela garantia de participação no mercado


internacional acaba por limitar a soberania fiscal dos Estados, não podendo estes, no quadro
de uma economia aberta, instituir ou manter os impostos que bem entenderem necessários
79

para suprir seus custos. Como explica Nabais (2011, p.31.): “Daí que o problema actualmente
mais crítico seja o da insuficiência da receita fiscal decorrente dessa concorrência fiscal” (sic).

Com efeito, a ausência de regras e limites, no plano internacional, para a concorrência


fiscal entre os Estados acaba por comprometer a sustentabilidade financeira do Estado social.
Embora a Organização Mundial de Comércio (OMC) exerça a função regulatória de
pacificadora do comércio mundial, especialmente em razão do Sistema de Resolução de
Controvérsias, é certo que vários países simplesmente ignoram suas resoluções, atuando no
mercado internacional de forma flagrantemente abusiva.

Inevitavelmente, para manter a indústria nacional competitiva, o governo tem que abrir
mão de receitas e desonerar o custo final dos produtos produzidos em seu território, quer se
destinem à exportação, quer tenham por destinatário final o consumidor interno, como é
exemplo clássico a recente fixação de “alíquota zero” para o IPI incidente sobre veículos e
eletrodomésticos. Consequentemente, a classe média fica sobrecarregada, uma vez que sobre
o rendimento do trabalho se acentuará a carga tributária, já que esses contribuintes não podem
se deslocar para outra jurisdição, ou seja, não podem negociar o domicílio da obrigação
tributária. É o que ressalta o estudo de Avi- Yoná (2010, p. 4): “If capital is more móbile that
labor, one would expect a shift in the tax base from capital to labor”. Da mesma forma,
Nabais (2011) vislumbra a ocorrência de um verdadeiro apartheid fiscal, segregando um
grupo de contribuintes excessivamente tributados e outro grupo com benefícios odiosos.

Não bastasse este efeito reflexo sobre a tributação na fonte do trabalhador, constata-se,
ainda, o crescente número de desemprego no país, já que a competitividade do produto
internacional diminui a produção interna e a demanda por mão de obra nos diversos setores.
Por outro lado, caso o Estado opte pela contínua renúncia de receita fiscal, a sustentabilidade
do Estado restará comprometida, especialmente diante da escassez de recursos para o
financiamento das atividades estatais, pondo em questão o bem estar social e a garantia do
mínimo existencial para a parcela mais carente da população.

Em face deste quadro de insatisfação social, muitos autores afirmam que o processo de
globalização é entendido como uma construção primordialmente ideológica, útil para a
justificação e a legitimação de projetos como o do “livre mercado neoliberal” e a
consolidação do capitalismo americano mundialmente (FERNANDES, 2011, p. 26).
80

Há de se anotar, ainda, a opinião de Nabais (2011, p.26), segundo a qual a globalização


“contribui para a desagregação da base de legitimação do Estado Democrático”. No Brasil,
como bem adverte Celso Antônio Bandeira de Melo (2008, on line), a Constituição Federal de
1998 foi altamente desfigurada para atender interesses estrangeiros. Para que o Brasil pudesse
se adaptar à chamada globalização, durante o governo do Fernando Henrique Cardoso, foram
feitas emendas constitucionais que permitiram a invasão de multinacionais na economia
interna. O texto original estabelecia que a exploração do subsolo era privativa de brasileiros,
estabelecia o monopólio estatal do petróleo, das telecomunicações, entre outros. “No primeiro
ano de governo, o Fernando Henrique aprovou quatro emendas que acabaram com tudo isso e
eliminaram a noção de empresa brasileira de capital nacional”. A Constituição Federal só
preservou um dispositivo que protege o mercado nacional. É aquele que diz que o mercado
interno é patrimônio nacional.

É certo que o país não ficaria alheio aos avanços globais percebidos nas últimas
décadas. Além disso, as conquistas sociais recentes colocaram o país em destaque no cenário
internacional, o que não deixa de ser reflexo da globalização.

Não se deve aceitar, contudo, que tais conquistas sociais sejam ameaçadas pela
ideologia neoliberal, razão pela qual é preciso ter consciência de que a disputa acirrada na
conjuntura do mercado internacional representa inequívoco gravame ao Estado Fiscal e à
harmonia da relação fisco-contribuinte. Nesse sentido, são válidas as lições de Lenio Streck
(2000, p. 2), no sentido de que “a globalização neoliberal-pós-moderna coloca-se justamente
como o contraposto das políticas do Welfare State.” Por tal razão, “precisamos de um Estado
cada vez mais forte para garantir os direitos num contexto hostil de globalização neoliberal”.

3.5 A ausência de praticabilidade da tributação

De acordo com Adam Smith (2001, p.420-421), um sistema tributário simplificado


torna mais fácil e barato para o contribuinte calcular e pagar o quanto deve. Da mesma forma,
para o governo é mais fácil e menos oneroso fiscalizar se o contribuinte pagou efetivamente o
que devia ou se houve sonegação fiscal.

Ocorre que, em sentido oposto caminha a legislação tributária brasileira, cuja má


qualidade é evidente fator de insegurança jurídica, uma vez que os numerosos e detalhados
textos, freqüentemente cambiantes, colidem com os ideais de estabilidade do ordenamento.
(TORRES, 2011, p. 253).
81

Por ser demasiadamente complexa, a burocracia normativa gera custos desnecessários


aos contribuintes, que, além de suportarem a alta carga tributária, necessitam de um serviço de
contabilidade permanente. Além disso, em razão da vasta gama de Portarias, Regulamentos e
Instruções Normativas, nem sempre conhecidas pelos contribuintes, os equívocos na definição
da obrigação tributária são freqüentes, principalmente nos casos de lançamento de ofício,
tumultuando a regularidade fiscal até mesmo dos bons pagadores.

Conseqüência deste fenômeno é a violação da igualdade entre os destinatários da norma


tributária, já que nem todos os contribuintes dispõem de recursos suficientes para financiar
consultoria contábil, mas todos estão igualmente sujeitos à fiscalização e aos lançamentos
decorrentes da contabilidade irregular, já que vigora o “principio da não escusabilidade da
ignorância da lei”. “De acordo com o IBPT,28 as empresas precisam conhecer 3.000 normas
distintas, com 55.000 artigos ao todo, para estar em dia com seus impostos. [...]”.
(VELLOSO, 2003, on line.).

Assim, a burocracia do Sistema Tributário vigente se apresenta como um complicador


do financiamento do Estado Social. Ao mesmo tempo em que sobrecarrega o contribuinte,
exige um largo aparato estatal para a fiscalização da regularidade fiscal dos sujeitos passivos.
Também é certo que a complexidade do Sistema Tributário só oportuniza o incremento da
sonegação fiscal.

Tamanha é a complexidade do tema, que alguns municípios optam por abrir mão de
receitas fiscais em razão do custo para a arrecadação e fiscalização dos impostos de sua
competência. Em face de situações esdrúxulas como esta, a reforma tributária torna-se
imperiosa, com a finalidade de viabilizar a tributação por parte dos contribuintes e do Fisco,
sob pena de contínua lesão ao erário público e do comprometimento dos fins sociais.

Diante dessa problemática, Misabel Abreu Machado Derzi (2010, on line) esclarece que
o princípio da praticabilidade é identificado como um imperativo constitucional implícito que
visa, em última análise, tornar o ordenamento jurídico tributário exeqüível, realizável,

28
Estudo mais recente publicado pelo IBPT (Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário) constatou, em
relação ao número de normas a que estão sujeitos as empresas sediadas no Brasil: “Como a média das
empresas não realiza negócios em todos os Estados brasileiros, a estimativa de normas que cada uma deve
seguir é de 3.507, ou 30.384 artigos, 91.764 parágrafos, 293.408 incisos e 38.596 alíneas. Isto corresponde a
5,9 quilômetros de normas, se impressas em papel formato A4 e letra tipo Arial 12. Em decorrência desta
quantidade de normas, as empresas gastam cerca de R$ 43 bilhões por ano para manter pessoal, sistemas e
equipamentos no acompanhamento das modificações da legislação”.
82

viabilizando a arrecadação dentro dos parâmetros legais e constitucionais. Nesse sentido,


esclarece:

A praticidade é um princípio geral de difuso, que não encontra formulação escrita


nem no ordenamento jurídico alemão, nem no nacional. Mas está, sem dúvida, por
detrás das normas constitucionais. Para tornar a norma exeqüível, cômoda e viável, a
serviço da praticidade, a lei ou regulamento muitas vezes se utiliza de abstrações
generalizantes fechadas (presunções, ficções, enumerações taxativas, somatórios e
quantificações) [...] A principal razão dessa acentuada expressão da praticidade
reside no fato de que o Direito Tributário enseja aplicação em massa de suas normas,
a cargo da Administração, ex officio, e de forma contínua ou fiscalização em massa
da aplicação dessas normas (nas hipóteses de tributos lançados por homologação).
(DERZI, 2010, on line)

A simplificação do sistema tende a produzir efeitos positivos para a economia e,


conseqüentemente, para a arrecadação. Exemplo disso é o Simples Nacional (Super Simples),
atualmente regulamentado pela Lei Complementar nº 123/2006. O instituto visa dar
aplicabilidade ao art. 146, inciso II, “d”, da Constituição, estabelecendo normas gerais
relativas ao tratamento tributário diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas
e às empresas de pequeno porte no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, mediante regime único de arrecadação, inclusive obrigações acessórias. Como
bem analisa o economista Rodrigo Velloso (2003, on line.):

O sistema substitui oito impostos federais distintos por um único imposto sobre o
faturamento. Além de cumprir seus objetivos iniciais, o Simples reduziu o custo de
fiscalização da Receita Federal em R$ 235 milhões por ano e, desde sua criação,
gerou mais de 3 milhões de empregos. ‘O Simples é um modelo que o mundo inteiro
está tentando copiar’, orgulha-se Everardo.

Entre as técnicas que materializam esse princípio estão as presunções e as ficções


(DERZI, 2010, on line). Exemplo típico de aplicação do princípio da praticabilidade na
tributação é a previsão da técnica de arrecadação via substituição tributária, que em muito
torna factível a legislação tributária. Tal princípio já foi, inclusive, incorporado pela
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como se vê no seguinte acórdão:

Ementa: TRIBUTÁRIO - SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA - PIS -


COMPENSAÇÃO - CESSÃO DE CRÉDITOS - SUBSTITUÍDO PARA
SUBSTITUTO - IMPOSSIBILIDADE - EXISTÊNCIA DE OUTRAS FORMAS
DE RESTITUIÇÃO DO INDÉBITO.
1. No regime de substituição tributária para frente ou progressiva, é o substituto quem
mantém vínculo jurídico com a Administração tributária e não o substituído, de modo
que não é possível a compensação entre créditos deste com o Fisco no âmbito dessa
sistemática de tributação. Inviabilidade de cessão de créditos a terceiros.
2. Razoabilidade da premissa em que se funda o acórdão recorrido, já que entre a
proibição do enriquecimento indevido e o princípio da praticabilidade da tributação,
83

pendeu para a adoção deste, ante a conclusão de que há outras vias de ressarcimento para
que o substituído possa reaver os créditos que possua frente à Administração tributária.
3. Recurso especial não provido. (BRASIL. STJ, Recurso especial 2008/0044906-0.
Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 25/05/2009).

Por fim, não custa destacar que a ampla diversidade normativa observada no direito
tributário vai de encontro ao previsto na Lei Complementar 95/1998, que é a lei geral em
matéria legislativa, conforme comando imposto pelo art. 59, parágrafo único da Constituição
Federal de 1988. Tal norma estabelece, dentre outras regras: 1)cada lei terá um único objeto;
2) a lei não conterá matéria estranha ao seu objeto ou a este não vinculada por afinidade,
pertinência ou conexão; 3) o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei,
exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-a
a esta por remissão expressa.

Heleno Taveira Torres (2011, p.256) esclarece que a LC 95/1998 objetiva dar
acessibilidade e estabilidade à relação jurídica, porém, falta-lhe efetividade e observância por
parte dos parlamentares do federalismo tributário. A simplificação e a consolidação do
Sistema Tributário brasileiro são exigências não só para a efetivação da norma complementar,
mas também representam importantes passos em prol da legitimação social do tributo no país.

3.6 A ineficiência do gasto público

O mau uso do dinheiro público é apontado como uma das causas da sonegação fiscal no
Brasil. O consenso popular fixou a ideia de que o dinheiro pago com impostos não é gasto
satisfatoriamente, já que o retorno à sociedade é praticamente imperceptível. Acredita-se que,
na medida em que os serviços públicos essenciais como saúde, educação e infraestrutura são
desprezados pelo Poder Público, o dinheiro dos impostos escorre na vala da corrupção, ou
ainda, na ineficiente administração do mau gestor.

Inquestionavelmente, a cultura da corrupção por muito tempo permaneceu arraigada entre


os administradores públicos no país. Um dos exemplos mais claros desse fenômeno refere-se à
extinção das antigas SUDAM e SUDENE, agências de fomento regional das regiões norte e
nordeste, cujas atividades foram obstadas em razão do desvio ilegal de verbas públicas.

É verdade que o país avançou no combate à corrupção, sobretudo por meio da atividade
desenvolvida pelos órgãos de controle e fiscalização, em especial os Tribunais de Contas, o
Ministério Público, a Advocacia Geral da União e as Procuradorias Estaduais e Municipais,
84

que promovem a concretização dos preceitos estabelecidos na Lei de Improbidade


Administrativa (Lei nº 8.429/92), nas hipóteses de enriquecimento ilícito e de dano ao erário.

Não obstante, exige-se um esforço contínuo por parte das Instituições Públicas e da
sociedade no combate à corrupção, fator social supostamente justificante do não pagamento
de tributos. A corrupção e não o pagamento de impostos são causas impeditivas do
desenvolvimento e do progresso do país, comprometendo as finalidades primordiais do
Estado Social.

Contudo, é preciso ter ciência de que este não é o único fator comprometedor da
eficiência do gasto público. A adoção de soluções eficientes quanto à definição de prioridades
para a alocação das receitas públicas reflete um dos maiores desafios da administração pública
no Brasil. Em razão do engessamento orçamentário decorrente das vinculações legais e
constitucionais, analistas apontam que apenas 10% (dez por cento) das despesas do Estado
podem ter a sua destinação livremente deliberada (GALDINO, 2005, p. 256). Por tal razão,
exige-se a otimização dos recursos disponíveis.

Embora o princípio da eficiência tenha sido erigido ao status de norma constitucional


(art.37 da CRFB), a despesa pública ainda representa um dos pontos mais criticados dos
últimos governos brasileiros e relaciona-se diretamente com a elevação da carga tributária no
país, já que houve o alargamento da máquina estatal.

Se a despesa aumenta, é preciso arrecadar mais. Por tal razão, a tributação deve ser
planejada conjuntamente com o orçamento estatal. Como leciona José Afonso da Silva (2010,
p.656), “Tributação e orçamento são dois instrumentos da atividade financeira do Estado, que
consiste na obtenção, administração e emprego dos recursos financeiros na satisfação dos
interesses coletivos.”

Sendo assim, os gestores públicos devem observância ao Princípio da Eficiência da


Administração, ou seja, devem utilizar os recursos disponíveis da maneira mais proveitosa
possível, rechaçando a má gestão do dinheiro público e evitando o incremento da carga
tributária para cobrir gastos desnecessários.

Outro importante instrumento de legitimação social do tributo consiste na


democratização das informações sobre as finanças públicas, a fim de propiciar o
acompanhamento e o controle do gasto público. Tal medida refletirá positivamente na relação
85

fisco-contribuinte, contribuindo para a sua harmonização, já que assim poder-se-á garantir que
os tributos arrecadados sejam efetivamente aplicados conforme a vontade popular.

Nesse intuito, a Lei Complementar nº 131, de 27 de maio de 2009, alterou a redação


da Lei de Responsabilidade Fiscal no que se refere à transparência da gestão fiscal, inovando
ao determinar a disponibilização, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a
execução orçamentária e financeira da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios.

Recentemente, a Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, em vigor desde 16 de maio


de 2012, passou a dispor sobre o direito ao acesso a informações previsto no inciso XXXIII
do caput do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição. O
Artigo 7º do Decreto 7.724/12 que regulamenta a Lei de Acesso à Informação prevê que seja
divulgada, de maneira individualizada, a remuneração e os subsídios recebidos por ocupantes
de cargos, postos, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios (como auxílio-
moradia), jetons (remuneração por participação em conselhos de administração e fiscal de
empresas estatais) e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de
aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa.29

Como acentua Denise Lucena Cavalcante (2012, p. 36), “A Lei 12.527 de 18.11.2011
representa o marco regulatório no Brasil sobre o acesso às informações públicas, buscando
democratizar o alcance aos bastidores que compõem as políticas públicas.”

O direito à informação consubstancia verdadeiro direito fundamental do contribuinte,


devendo a inovação legal ser ampliada para possibilitar aos cidadãos brasileiros o pleno
acesso às informações fiscais, possibilitando que tenham conhecimento sobre todos os
tributos incidentes sobre os produtos e mercadorias adquiridos. Tal possibilidade encontra-se
prevista no Texto Constitucional, sendo flagrante a omissão inconstitucional diante da não
regulamentação do disposto no art. 150, §5º da CF/88, o qual determina: “§ 5º - A lei
determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que
incidam sobre mercadorias e serviços.”

29
Além de órgãos e entidades públicas dos três níveis de governo, as autarquias, fundações, empresas públicas e
entidades privadas sem fins lucrativos que recebem recursos públicos devem colocar as informações à
disposição do cidadão de forma gratuita. Da mesma forma, a lei garante o acompanhamento de dados gerais de
programas, ações, projetos e obras, por meio de simples acesso ao sítio do governo federal na internet.
86

Com isso, percebe-se que embora estejam sendo adotadas medidas por parte dos
Poderes Constituídos em benefício da transparência fiscal e da eficiência do gasto público,
ainda depende da sociedade a sua efetiva participação nesses processos, o que certamente
resultará na superação do paradigma até então existente e contribuirá para a legitimação social
do tributo, e consequentemente, para a concretização do Estado Social Democrático de
Direito.

3.7 Politização do direito tributário – Consequencialismo jurídico

Consoante os ensinamentos de Heleno Taveira Torres (2011, p. 592), após o advento do


Estado Constitucional, o Sistema Tributário deixou de ser um conjunto aleatório de exações
para representar uma organização coerente de princípios e regras em torno do conceito de
tributo, de forma “a surpreender o fenômeno tributário por uma metodologia puramente
jurídica, sem interferências econômicas e a constituir uma legitimidade do tributo baseada em
critérios de justiça e segundos fundamentos constitucionais”.

Em verdade, a ideia segundo a qual o direito tributário é concebido de forma pura, sem
interferências econômicas e sociais encontra-se superada. A definição neutra da tributação
muito se aproxima do paradigma jurídico dominante no século XIX, ideologicamente
construído por Kelsen30 em sua “Teoria Pura do Direito”, por meio da qual a ciência jurídica
era concebida de forma pura, neutra, excluindo do seu âmbito as dimensões fáticas e
valorativas.

Como é sabido, a “Teoria Pura” de Kelsen foi bastante criticada por distanciar o Direito
do seu real conteúdo e da realidade social. Ao conceber o Direito de forma reducionista, a
ciência jurídica desprezaria, por exemplo, a análise econômica do direito e os impactos
financeiros e sociais das decisões judiciais, que muitas vezes são determinantes na
interpretação da norma tributária.

Com a superação do paradigma positivista, é cada vez mais crescente a procura por
novos parâmetros racionais de expressão do Direito. E nesse passo, o Poder Judiciário passa a

30
A Teoria Pura do Direito foi formulada por Hans Kelsen através de sua extensa obra, tornando-se um
verdadeiro paradigma da ciência jurídica no século XX. Foi inicialmente esboçada no ano de 1911, com a
publicação do livro Problemas Fundamentais da Teoria Jurídica (Hauptproblemen der Staatsrechechtslehre).
Posteriormente, sua ampla bibliografia traçou os contornos da teoria, adaptando e reforçando os seus
fundamentos, como se vê na publicação dos livros Teoria Geral do Estado (1923), Teoria Pura do Direito
(lançada em 1934 e republicada em 1960, sendo este o principal trabalho sobre o tema) e a Teoria Geral do
Direito e do Estado (publicado em 1945)
87

exercer um papel fundamental. Primeiro porque, diante das diversas fontes de poder, o Direito
passa a desenvolver um papel condicionador e limitador das forças conflitantes. Em segundo,
diante do fato de, se que não há como neutralizar o Direito em si, propõe-se, na medida do
possível, a neutralidade de sua aplicação.

Acerca da difícil tarefa de delimitar objetivamente o poder do juiz, Tércio Sampaio


Ferraz Junior (1994, on line) demonstra que a neutralização política do Judiciário é
consequência da clássica noção de divisão de poderes de Montesquieu. Ao contrário dos
poderes legislativo e executivo, o judiciário não é um poder político, mas detém a
competência para atuar como um freio às aspirações políticas dos outros poderes, postulando,
com isso, a vitória do direito sobre o poder político.

Isso não quer dizer que o judiciário esteja imune às pressões de ordem política e que
adote uma postura indiferente frente a essas questões. A neutralidade que se impõe, segundo
Ferraz Jr. (1994, on line.) “encontra-se no nível das expectativas institucionalizadas: ainda
que de fato haja pressões políticas, estas institucionalmente não contam”.

O problema maior surge em razão de o ideal de neutralidade institucional não refletir a


realidade das Cortes de Justiça brasileiras, nas quais os critérios políticos sobressaltam-se
tanto na de escolha dos seus membros como no consequencialismo jurídico enraizado nas
decisões judiciais. Na maioria dos casos, a crença na neutralidade do judiciário fica afetada
em nome de padrões políticos (valores, objetivos, finalidades), pondo-se a complicada
questão dos possíveis limites da sua imunidade. É nesse sentido que Helena Taveira Torres
(2011, p.459) argumenta:

A doutrina anglo-saxônica da ‘argumentação consequencialista’ (consequentialist


argument), que se caracteriza por um modelo fundado no dirigismo da decisão
segundo critérios baseados nas consequências práticas externas ao sistema jurídico,
como justificativa para a valoração dos fatos e normas aplicáveis, intensificou-se nos
últimos tempos, tanto nos estudos quanto nas próprias decisões do STF.

Tal fenômeno decorre da progressiva abertura do ordenamento jurídico às clausulas


gerais, que acabam por fundamentar julgamentos pautados na razoabilidade e na conformação
do direito com a realidade social.

No Brasil, a politização do direito tributário possui poderoso instrumento de


concretização, especificamente quanto aos efeitos das decisões proferidas em controle de
constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, qual seja, a modulação temporal dos
88

efeitos da decisão, prevista nos art. 27 da Lei nº 9.868/99 e art. 11 da Lei nº 9882/99, cuja
redação é a seguinte:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em


vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os
efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito
em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. 31

Com efeito, a premissa segundo a qual a declaração de inconstitucionalidade de uma lei


tributária atinge a norma impugnada desde a sua entrada em vigor, fulminando-a com efeitos
ex tunc, flexibilizou-se diante da possibilidade excepcional de modulação dos efeitos da
decisão judicial, a ser ratificada pela maioria de dois terços dos membros do Supremo
Tribunal Federal, sempre que os efeitos da anulação impactem gravosa e negativamente a
segurança jurídica e o interesse social.

A exemplo, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº


556664 / RS, declarou a inconstitucionalidade dos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e do art. 5º do
Decreto-Lei 1.569/77, os quais previam o prazo decenal para a decadência e a prescrição do
crédito previdenciário. Na oportunidade, modulou os efeitos da decisão declaratória de
inconstitucionalidade, consignando expressamente serem “legítimos os recolhimentos
efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 e não impugnados antes da
data de conclusão deste julgamento (Relator, Min. Gilmar Mendes, em 12/06/2008)”.

Inolvidável que à época da decisão houve grande apelo por parte do Poder Executivo
em prol da modulação dos efeitos fixada no acórdão. Na hipótese de ser declarada a nulidade
da norma com efeitos ex tunc, o prejuízo ao erário causado pelas restituições de indébito
pleiteadas pelos contribuintes seria imensurável, sendo certo que o cumprimento das
finalidades estatais ficaria comprometido, gerando prejuízos diretos à parcela da sociedade
menos favorecida.

É de se considerar que, com fulcro na teoria dos custos dos direitos já apresentada,
inolvidável que o mecanismo de modulação possui justificativa social e econômica, uma vez
que o grave impacto orçamentário provocado pela retirada retroativa da norma do
ordenamento jurídico poderia comprometer a prestação de serviços essenciais, sobretudo

31
Importante ressalva faz Heleno Taveira Torres (2011, p. 462), segundo o qual o art. 27 da Lei 9.868/99 não
autoriza acreditar na existência de um Estado Ponderador”, nem mesmo confere ao STF licença para decidir sobre
a égide de critérios da razoabilidade e proporcionalidade as questões constitucionais analisadas. A única liberdade
cabível é a restrição dos efeitos da declaração para garantir a segurança jurídica e o excepcional interesse social.
89

aqueles ligados à previdência e à assistência social. Contudo, a questão é muito mais


complexa.

Primeiramente, questiona-se até que ponto a segurança jurídica da relação tributária é


efetivamente observada. Parece paradoxal o fato de a medida ser adotada para garantir a
segurança jurídica, quando, ao mesmo tempo, possa importar na quebra de expectativas dos
contribuintes quanto à observância do fundamento constitucional da obrigação tributária.
Esclarecendo, diante do caso concreto, ao vê-se impedido de obter a restituição tributária
sobre o fundamento da modulação temporal nas decisões referidas, o contribuinte sente-se
confiscado e até mesmo frustrado, por ter sido obrigado a recolher tributo declarado
inconstitucional, sem, contudo, dispor da possibilidade de reaver o indébito, havendo quebra
das expectativas geradas pelo próprio ordenamento. Enquanto isso, o contribuinte faltoso,
sonegador, não está obrigado a recolher o tributo em atraso, mas aquele que honrou os seus
compromissos em dia será inquestionavelmente prejudicado, em gritante violação ao princípio
da igualdade.

A garantia da isonomia também fica comprometida, pelo fato de que, aqueles


contribuintes que questionaram judicialmente o tributo antes da declaração de
inconstitucionalidade poderão obter a restituição do indébito, enquanto aqueles outros que
esperaram a decisão no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não poderão. Ora, se ambos os
contribuintes foram prejudicados da mesma forma, não se justifica a diferenciação gerada
pelo mecanismo, afinal não se deve tratar de maneira diferente pessoas que se encontrem
juridicamente na mesma situação.

Por tal razão, vozes autorizadas na doutrina pátria discordam da adoção do mecanismo
de modulação de efeitos das decisões utilizado pelo Supremo Tribunal Federal. Neste sentido,
oportuno transcrever a lição de Harada (2012, on line):

Tenho para mim que na seara do Direito Tributário a modulação de efeitos é


absolutamente incabível em razão dos princípios de legalidade tributária, da
segurança jurídica e da moralidade pública. A unanimidade dos tributaristas
reunidos no XXXV Simpósio Nacional de Direito Tributário, no dia 19/11/2010, em
São Paulo assim deliberou, destacando não ser possível ‘permitir a exigibilidade de
tributo inconstitucional ou impedir a sua restituição’.

Em que pese a opinião do renomado autor, ainda que esta realidade seja criticável, o
parâmetro positivista não cumpre com o dever estatal de garantia do bem-estar social. Com a
consagração e a constante difusão dos direitos sociais, sobrepõe-se a atividade criadora do
90

juiz, pois ao judiciário não cabe apenas julgar o que é certo e errado com base na lei, mas
também é sua a atribuição de analisar se a atividade discricionária do legislativo coaduna-se
com as finalidades a que se destina o Direito e com as exigências do Estado Social. Ademais,
como pondera Heleno Torres (2011, p. 461), “razões de segurança jurídica, certeza jurídica e
de acessibilidade do jurisdicionado ante o próprio Tribunal” sugerem a importância do
cabimento da medida prevista no art. 27 da Lei 9.868/99, afirmando ainda que os pressupostos
legais evitam que o julgador aja por arbítrio ou puro consequencialismo, mas sim por critérios
certos e coerentes, no caso, a segurança jurídica e o excepcional interesse social, sendo
inconteste a segurança garantida pelo quorum qualificado. Paulo de Barros Carvalho (2005,
p.10) coaduna-se com esta opinião, afirmando que a segurança jurídica e o excepcional
interesse social devem ser invocados para proteger as relações formuladas com fulcro no
princípio da presunção de constitucionalidade das normas, resguardando-se as situações
jurídicas já firmadas.

Considerando as opiniões favoráveis e desfavoráveis acerca do tema, inolvidável que o


consequencialismo econômico embutido em decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal representa um complicador da relação tributária, mas reflete também o aspecto
solidário intrínseco aos fins firmados pelo Estado Social, justificando a sua excepcional
aplicação quando a superação de direitos individuais dos contribuintes for necessária para a
garantia do mínimo existencial da parcela mais desfavorecida da população.

A fim de evitar o inevitável desgaste entre sociedade e Estado frente aos julgamentos
proferidos em controle de constitucionalidade, o melhor remédio parece ser a prevenção, ou
seja, o controle prévio da constitucionalidade das normas antes mesmo de sua edição,
consoante os diversos mecanismos já previstos no próprio texto constitucional, como são
exemplos o exame prévio do projeto de lei na Comissão de Constituição e Justiça, conforme
previsto no Regimento Interno do Senado Federal e Câmara dos Deputados, assim como a
possibilidade de veto jurídico do texto pelo Poder Executivo, na hipótese do art. 66, § 1º da
Constituição Federal de 1988.

3.8 A crise do Estado Fiscal – verdade ou mito?

Diante de todos os complicadores da tributação acima suscitados, acrescidos dos demais


obstáculos próprios das ciências econômica e financeira, poder-se-ia concluir que o Estado
Fiscal estaria em crise, ou ainda, que a forma de financiamento público predominantemente
91

através de impostos encontra-se superada, fazendo-se necessários novos parâmetros de


sustentabilidade estatal?

A suposta crise do Estado Fiscal não é um tema recente entre os tributaristas e


financistas. Ao fim da Primeira Guerra Mundial, o economista austríaco Joseph Schumpeter
(1954) introduziu essa expressão através do trabalho intitulado “The crisis of the tax State”,
publicado em 1918. Influenciado pelas experiências da guerra e ciente do alto custo da
beligerância, o autor previu novas perspectivas nas finanças e na política dos governos, a fim
de evitar o perecimento do modelo de financiamento estatal em curso (Estado capitalista
fiscal). A importância de sua obra consistiu no alerta de que existiriam limites ao que os
governos poderiam arrecadar sem prejudicar gravemente a economia e sem debilitar a
sociedade politicamente organizada:

The fiscal capacity of the state has its limits not only in the sense in which this is self-
evident and which would be valid also for a socialist community, but in a much
narrower and, for the tax state, more painful sense. If the will of the people demands
higher public expenditures, if more and more means used for purposes for which
privates individual have not produced them, if more and more power stands behind
this will, and if finally all parts of the people are gripped by entirely new ideas about
private property and the formas of life-then the tax state will have run its course and
society will have to depend on other motive forces for its economy than self-interest.
This limit, and with it the crisis which the tax state could not survive, can certainly be
reached. Without doubt, the tax state can colapse. (SCHUMPETER, 1954, p.25).

Com efeito, a crise do Estado Fiscal32 pode ser identificada como “as dificuldades de
relacionamento entre a ordem econômica e o financiamento público mediante tributos”, ou
ainda, “a própria crise de segurança jurídica por que passam a criação e a aplicação da
legislação tributária” (TORRES, 2011, p. 174). Em outras palavras, os mais variados
problemas inerentes ao Sistema Tributário contemporâneo levariam os contribuintes ao
desinteresse de prosseguir com as atividades produtivas (TORRES, 2011, p. 173).

Ainda antes da Segunda Guerra, com a finalidade de evitar o colapso do Estado Fiscal,
economistas renomados, apontavam que o Estado não pode arrecadar mais do que um quarto

32
O significado de Estado Fiscal foi abordado no capítulo primeiro: “Estado cujas
necessidades financeiras são essencialmente cobertas por impostos oriundos do patrimônio do
contribuinte, sendo esta a característica da maioria dos países contemporâneos. Na
oportunidade, traçou-se a diferenciação entre Estado Fiscal, Estado Patrimonial e Estado
Social.
92

do produto nacional bruto ou renda nacional bruta do país sem gerar pressões inflacionárias
irresistíveis (DRUCKER, 1997, p. 61). Em tempos atuais, Drucker (1997, p. 61) avalia que o
limite de 40% (quarenta por cento) é mais próximo da realidade da maioria dos países. Não
obstante, este limite de fato existe e quando é ultrapassado, o aumento da receita pública deixa
de estimular a economia, provocando ou uma depressão ou uma estagflação. A consequência
do aumento deste percentual da carga tributária não é o aumento da receita, mas sim a sua
diminuição, ante o inevitável retrocesso da atividade econômica.

Peter Drucker (1997, p. 62) aponta, ainda, outro grave impedimento do Estado Fiscal:
quando a carga tributária supera os percentuais razoáveis de oneração, algo em torno de 35%
(trinta e cinco por cento) a 40% (quarenta por cento), ocorre uma rebelião fiscal silenciosa, na
medida em que as pessoas param de trabalhar, com o objetivo de não auferir renda, evitando
que ocorra o fato gerador do tributo, ou ainda, passam a sonegar, fazendo surgir a economia
informal paralela.

Embora efetivamente o financiamento estatal por meio de tributos encontre árduas


resistências, o que poderia levar a crer na existência de uma crise, tal fenômeno não
representa o fim do Estado, nem tampouco levará à estatização dos meios de produção.
Segundo constata Ricardo Lobo Torres (1996, on line), encontra-se inteiramente superada a
doutrina de que “a crise do Estado Fiscal conduziria à dissolução do modelo fundado na
fiscalidade e à reapropriação da forma patrimonialista como consequência da própria crise do
Estado de Direito.”

Na quase totalidade dos países, a redistribuição de renda através do Sistema Tributário


ainda é considerada o instrumento mais eficaz de política social (social policy), tanto pelos
políticos como pelos eleitores. “Mas talvez tenha chegado o momento de voltarmos a um
antigo preceito: a finalidade dos impostos é gerar receitas, e isso deve ser feito com o menor
número possível de efeitos sócio - econômicos colaterais” (DRUCKER, 1997, p.60).

Deve-se levar em consideração a estabilidade dos Sistemas Tributário e Financeiro,


rechaçando as situações de quebra do princípio da Confiança Legítima, uma vez que a
insegurança jurídica, em matéria tributária, na forma como se encontra, atingiu grau
intolerável e, com isso “causa severos prejuízos à organização das atividades dos particulares,
presta-se como estímulo à corrupção e à sonegação, reduz a eficiência econômica, contribui
93

para o aumento dos chamados ‘custos de transação’ e mitiga a capacidade arrecadatória.”


(TORRES, 2011, p. 26).

Por tal razão, o sistema constitucional tributário deverá estar apto a superar tais
obstáculos, inclusive, eventuais crises que venham a comprometer os fins sociais pré-
estabelecidos. Ao que parece, o que deve chegar ao fim não é o Estado Fiscal, mas sim o
Estado de Dispêndios, não conhecedor dos limites da arrecadação. A busca pelo equilíbrio da
relação tributária, através da correção das flagrantes distorções no sistema deve ser concebida
como prioridade nas políticas estatais.
4 INSTRUMENTOS DE PACIFICAÇÃO DA RELAÇÃO
JURÍDICA TRIBUTÁRIA

A busca pelo equilíbrio da relação jurídica tributária consiste em um dos maiores


dilemas enfrentados pelos operadores do direito, pelo Estado e pela sociedade ao longo dos
tempos. Considerando que a tributação ainda se mostra a ferramenta mais eficaz de justiça
distributiva em prol do alcance do bem-estar social, impõe-se que sejam retirados do
Ordenamento Jurídico os sacrifícios desnecessários impostos aos contribuintes, a fim de que o
Estado Fiscal não se afaste dos seus limites racionais.

Os interesses afetos aos agentes econômicos sempre foram antagônicos, chegando ao


ponto de a história humana ser marcada, e por que não dizer, revolucionada, por conflitos
armados justificados primordialmente na tributação, como são exemplos a Revolução
Gloriosa e a Inconfidência Mineira, esta última ocorrida no Brasil, 33 em 1789. Passados
alguns séculos, não obstante a reconstitucionalização do país e a travessia do Estado brasileiro
de um regime autoritário, intolerante e, por vezes violento, para um Estado Democrático de
Direito (BARROSO, 2007), o que se deu com a promulgação da Constituição Federal de
1988, ainda é presente a certeza de que a relação entre o contribuinte e o Fisco não é pacífica,
nem tampouco o seu equilíbrio parece ser objetivado.

Tal percepção é acentuada em face do alto volume de contendas envolvendo o


pagamento de tributos, seja no âmbito administrativo ou judicial, gerando uma inquestionável
judicialização das questões tributárias em razão da flagrante ausência de segurança jurídica na
relação fisco-contribuinte. A cobrança de crédito tributário no Brasil tem sido um problema
que aflige governos e as suas administrações tributárias. Como expõe Heleno Torres (2011, p.
27), estatísticas apontam que “quase metade de todas as ações curso no país são de natureza

33
Aécio S. Cunha (2002) rememora que a derrama aterrorizou a população da capitania de Minas em meados do
século XVIII, de modo que a insatisfação com o imposto do quinto motivou membros da elite mineira a
contestar o pacto colonial.
95

tributária (como exemplo, 37% de tudo tramita na Justiça Federal e 51% e 56% de todo o
contencioso dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro), respectivamente”.

No âmbito administrativo federal, segundo dados obtidos do sítio na internet da


Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, 34 órgão incumbido da administração da Dívida
Ativa da União (DAU), no ano de 2011 o estoque dos créditos previdenciários e não-
previdenciários inscritos na DAU, sem parcelamento, correspondiam a mais de 874,59 bilhões
de reais, enquanto no ano anterior o estoque era de mais 742,52 bilhões, o que representa uma
variação positiva de quase 17,79%. Enquanto a arrecadação alcançou o patamar de R$
13.636.907.233,79, o estoque da DAU saltou para R$ 998.762.268.281,57, considerando os
débitos parcelados e não parcelados. Embora tenha havido um expressivo crescimento da
arrecadação, o volume do estoque, mais de 73 (setenta e três) vezes superior, demonstra
dificuldade de cobrança dos créditos da União.

Diante desse panorama, o objetivo do presente capítulo é traçar um estudo em busca de


instrumentos que proporcionem maior equilíbrio da relação Estado-Contribuinte. É necessário
racionalizar o sistema, reduzir os elevados custos decorrentes da solução das controvérsias,
garantir celeridade e efetividade à demanda tributária e aprimorar os instrumentos disponíveis
para a extinção da lide.

Em um primeiro momento, serão delineados princípios de interpretação do Sistema


Tributário, o quais funcionam como mandamentos de otimização da relação jurídica, alguns
explícitos e outros implícitos no ordenamento jurídico. São exemplos, os princípios da
segurança jurídica, da legalidade, da anterioridade, da irretroatividade, da informação fiscal e
do devido processo legal administrativo.35

Em seguida, será demonstrado que a Educação Fiscal traduz um importante


instrumento de conscientização da sociedade acerca da realidade enfrentada pelo Estado
Social, oportunidade em que será analisado de que forma o Programa Nacional de Educação
Fiscal tem contribuído para a promoção da cidadania no Brasil.

34
Disponível em: <File:///D:/Documents%20and%20Settings/66118484368/Configura%E7%F5es%20 locais
emporary%20Internet%20Files/Content.IE5/W20ZVF7D/BGU_2011%5B1%5D.ppt#257,1,Slide>
35
Não se pretende abordar exaustivamente o tema dos princípios tributários, o que demandaria um trabalho
acadêmico próprio, mas objetiva-se tão somente estimular a promoção de alguns valores essenciais para o
alcance do fim objetivado, qual seja, a legitimação social do tributo.
96

Por fim, serão abordados dois institutos tributários hábeis a minimizar a lide fiscal, no
caso, a compensação e a transação, todos com previsão expressa no Texto Constitucional e no
Código Tributário Nacional, além de outras legislações esparsas. Tais instrumentos podem ser
concebidos como relevantes formas alternativas de composição de interesses entre o Fisco e
os contribuintes, evitando o acionamento estatal para a solução de conflitos.

4.1 Princípios de otimização do Sistema Tributário Nacional

A Constituição Federal de 1988 trouxe um extenso rol de normas regentes da atividade


tributária, demonstrando o interesse do Constituinte em tratar analiticamente o tema, com a
finalidade inequívoca de resguardar os interesses do fisco e dos contribuintes, além de
impedir qualquer possibilidade de tributação arbitrária, alheia aos postulados do Estado
Democrático de Direito.

Dos artigos 145 a 156 da Carta Maior pode-se extrair a essência do Sistema Tributário
Nacional, cujas normas irradiam efeitos e limitações a todo o ordenamento jurídico. É certo
também que outros preceitos constitucionais influenciam diretamente a formulação da política
tributária, sobretudo os capítulos que versam sobre os Princípios Fundamentais (art. 1º ao art.
4º), os Direitos e Garantias Fundamentais (art. 5º), a Repartição de Receitas Tributárias (art.
157 a 162), as Finanças Públicas (art. 163 a 169) e a Seguridade Social (art. 195).

O artigo 150 da CRFB, em especial, consubstancia verdadeiros princípios


estabilizadores da tributação, quais sejam: o princípio da legalidade, o princípio da
anterioridade anual, o princípio da anterioridade nonagesimal, o princípio da imunidade
recíproca, o princípio da isonomia, a vedação da bitributação e a vedação do confisco. Tais
mandamentos foram autoqualificados pelo legislador constituinte como limitações ao poder
de tributar. Por salvaguardarem os direitos dos contribuintes e funcionarem como
instrumentos de tutela contra eventuais excessos do Poder Executivo, tais limitações já foram
concebidas como “garantias individuais dos contribuintes”, portanto, não podem ser
suprimidas ou reduzidas nem mesmo pelo Poder Constituinte Reformador, restando
consolidadas como Cláusulas Pétreas (art. 60, §4º, inciso IV da CF/88) de status
constitucional. A relevância dos princípios na resolução da lide tributária é ressaltada por
Paulo de Barros Carvalho (2008, p.6):

Vivemos um tempo histórico de grandes questionamentos constitucionais, sobretudo


em matéria tributária. As raízes do nosso sistema, cravadas no Texto Supremo, fazem
com que a atenção dos estudiosos seja convocada para o inevitável debate sobre o
97

conteúdo de princípios fundamentais, conduzindo os feitos à apreciação do Supremo


Tribunal Federal. Fica até difícil imaginar assunto tributário que possa ser inteiramente
resolvido em escalões inferiores, passando à margem das diretrizes axiológicas ou dos
limites objetivos estabelecidos na Carta Magna. Por sem dúvida que tal consideração
eleva, desde logo, esse ramo do direito público, outorgando-lhe status de grande
categoria, pois discutir temas de direito tributário passa a significar, em última análise,
resolver tópicos da mais alta indagação jurídica, social, política e econômica.

Com efeito, poder-se-ia acreditar que os pressupostos básicos para o equilíbrio da


relação jurídica já foram preestabelecidos pelo constituinte ordinário. Ocorre que, caso tal
premissa fosse verdadeira, não haveria que se preocupar com a atual expressão da
litigiosidade das questões tributárias.36

Por tal razão, ao lado dos princípios expressos no ordenamento jurídico, os quais serão
sucintamente abordados com enfoque jurisprudencial, deve-se considerar a existência de
valores jurídico-tributários implícitos na linguagem do texto constitucional.

Com efeito, há um quantum de direitos, deveres e garantias de natureza principiológica


que são construídos a partir de valores implícitos recepcionados pelo ordenamento jurídico
constitucional e pelo sistema tributário. A própria Constituição Federal de 1988 admite essa
construção, como autoriza o art. 5º, § 2º: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição
não excluem outros decorrentes dos regimes e princípios por ela adotados”. Da mesma forma,
o art. 150 da CF dispõe que “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte”, o
que significa dizer que as limitações ao poder de tributar não se esgotam nas previsões
expressas dos artigos 150 a 152.

Partindo da constatação de que o Sistema Tributário pode ser otimizado em função de


princípios compatíveis com o Estado Democrático de Direito, a seguir serão analisados alguns
valorosos postulados jurídicos hábeis a contribuir para o aperfeiçoamento da relação
intersubjetiva tributária.

4.1.1 Princípio da Legalidade

36
Para que se possa aferir o elevado grau de litigiosidade da relação tributária, cita-se como exemplo a capital
paulista, onde existem 12 (doze) varas federais especializadas em execução fiscal federal. Além dessas doze
varas, as vinte e seis varas cíveis federais contam com alto estoque de processos ajuizados contra a União -
Fazenda Nacional com o objetivo de discutir matéria tributária federal. Ademais, como já falado, Heleno
Torres (2011, p. 27), observa: estatísticas apontam que “quase metade de todas as ações curso no país são de
natureza tributária (como exemplo, 37% de tudo tramita na Justiça Federal e 51% e 56% de todo o contencioso
dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro), respectivamente”.
98

Principal conquista da Revolução Francesa, o Princípio da Legalidade encontra-se


incorporado ao Ordenamento Constitucional em variadas vertentes. Sob o prisma dos direitos
individuais (privado) o art. 5º, inciso II da Constituição Federal de 1988 expõe a garantia de
que “ninguém está obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei”.
Diferentemente, o art. 37 do Texto Superior veicula a legalidade pública, segundo a qual o
poder público vincula-se estritamente à lei, só lhe sendo permitido atuar quando há
autorização legal, devendo se ater aos comandos estipulados pelo legislador.

Diante da relevância histórica do princípio frente à regulamentação da relação Estado-


Cidadão, o postulado ganhou especificidade no Direito Tributário, uma vez que o art. 150,
inciso I do Texto Constitucional veda a criação ou majoração de tributos sem lei que o
estabeleça. Tal garantia surgiu com a insurgência dos contribuintes contra o arbítrio do
soberano, ao qual restou imposta a necessidade de ouvir previamente os representantes do
povo, antes de autorizada qualquer exação (PAULSEN, 2008, p. 178).

Por óbvio, não se trata de uma inovação do Direito Brasileiro, já que, culturalmente, a
“legalidade é um preceito de interdição, de proibição à realização de desejos de uma dada
pessoa ou conjunto de pessoas” (SCAFF, 2005, p. 374). Nesse sentido, além de ser clara
manifestação da soberania popular, há muito tempo a legalidade tributária é concebida como
instrumento de contenção do exercício arbitrário e irracional do Poder, decorrente do
pensamento clássico de Montesquieu (1982, p. 187) e de sua Teoria da Separação dos
Poderes:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo


está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o
mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Por tal razão, Hugo de Brito Machado (2004, p. 22) chama a atenção para o fato de que
legalidade não quer dizer apenas que a relação de tributação é jurídica, mas sim que, no que
tem de essencial, esta relação há de ser regulada em lei. “Não em qualquer norma jurídica,
mas em lei, no seu sentido específico”.

Não obstante, o princípio da legalidade encontra-se gravemente excepcionado 37 no


ordenamento jurídico brasileiro. Há longa data, tornou-se comum a utilização de Medida

37
O princípio da legalidade também é excepcionado pela Constituição através do disposto no art. 153, §1º da
CF/1998, que autoriza a alteração de alíquotas pelo Poder Executivo mediante Decreto dos seguintes impostos:
Imposto de Importação, Imposto de Exportação, Imposto sobre Produtos Industrializados, e Imposto sobre
Operações Financeiras.
99

Provisória para a instituição ou a majoração de impostos. Diante da ausência de previsão


constitucional expressa que autorizasse a adoção da medida, houve profundo debate jurídico
em torno do tema, até o que o Supremo Tribunal Federal (RE 234.463/MG, 1ª T., j.
16.11.1999, v.u., rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 11.02.2000) se posicionou pela
constitucionalidade das Medidas Provisórias questionadas, reconhecendo ser possível a
criação ou aumento da alíquota de impostos através de Medida Provisória, tendo em vista tais
instrumentos legislativos possuírem força de lei.

Não bastasse isso, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº


32/2001, através da qual a própria Constituição passou a autorizar expressamente a instituição
ou a majoração de tributos por meio de Medidas Provisórias, instrumento político-jurídico a
cargo do Poder Executivo.

Para a grande maioria da doutrina nacional, a possibilidade de criação ou majoração de


tributos através de Medidas Provisórias representa um claro retrocesso dos direitos e garantias
fundamentais dos contribuintes, sendo notável a inconstitucionalidade da Emenda
Constitucional nº 32 (SIQUEIRA, 2012, p. 41). Roque Antonio Carrazza (2004, p. 248)
expressa bem este sentimento, ao afirmar que a Reforma Constitucional afronta o princípio da
legalidade tributária, e por via de consequência, a autonomia e independência do Poder
Legislativo, violando o disposto no art. 60, §4º, III da Constituição Federal, além de traduzir
inequívoca limitação à garantia individual do contribuinte.

Resta cristalina a falta de imparcialidade do sujeito ativo da relação tributária no que


tange à criação e à majoração do tributo a ser instituído, aumentado e arrecadado por ele
próprio, o Executivo. Por tal razão, Fernando Facury Scaff (2005, p. 374) lamenta que o
sistema autoritário dos antigos Decretos-lei, que foram expurgados do sistema constitucional
pátrio em razão da Constituição de 1988, tenha sido reintroduzido no ordenamento de forma
sub-reptícia, através de uma interpretação caduca e míope da realidade brasileira.38

Com efeito, se o instituto já se faz presente na legislação tributária, torna-se imperioso


que a Constituição seja interpretada de forma sistemática. O dispositivo que autoriza a edição

38
Fernando Scaff (2005, p.388) leciona que no julgamento do RE nº 146.733-9-SP (RTJ 143/2-684), o Supremo
Tribunal Federal, em controle difuso de constitucionalidade fez equivaler as medidas provisórias aos Decretos-
lei: “Não há razão para que, em face da medida provisória, que nada mais é do que modalidade do Decreto –
lei, sem restrições, quanto ao seu objeto, constantes da Emenda Constitucional nº1/69, que se passe a entender
que a mesma vedação (exigir ou aumentar tributo sem lei que estabeleça), agora constante do art. 150, I
(também integrante do Sistema Tributário Nacional), mudou de sentido, para passar a exigir nesse caso, lei em
sentido formal e não, apenas, em sentido material”.
100

de medida provisória para criar ou majorar impostos não confere ao Executivo as mesmas
prerrogativas garantidas à lei oriunda do Congresso Nacional. Portanto, o art. 62 da
Constituição Federal deve ser interpretado restritivamente. A primeira restrição diz respeito
ao fato de que as matérias tributárias afetas à Lei Complementar não podem ser objeto de
Medida Provisória (art. 62§1º). Observa-se também que as medidas provisórias não alcançam
todos os tributos, mas tão somente os impostos, devendo ser convertidas em lei até o último
dia do exercício financeiro em que foi editada, para que produza efeitos no exercício
financeiro seguinte (art. 62, §2º). Por fim, exige-se para a edição de medida provisória a
presença dos requisitos da relevância e urgência. Neste último ponto, percebe-se que ambos
os vocábulos traduzem expressões marcadas pelo subjetivismo, dificultando o seu controle
pelo Congresso Nacional e pelo Poder Judiciário. Ora, se a medida provisória deve ser
convertida em lei até o último dia útil para que a exigibilidade do tributo se dê no exercício
seguinte, já resta duvidosa a sua relevância e urgência.

Sendo assim, por ser uma conquista histórica, o princípio da legalidade há de ser o
fundamento para a imposição da obrigação tributária, devendo ser rechaçadas as tentativas de
excepcionar tal postulado, a exemplo da possibilidade de criação ou de majoração de
impostos por meio de Medidas Provisórias, fenômeno que tende a comprometer a
legitimidade da imposição fiscal, afastando a relação tributária dos pilares do Estado
Democrático de Direito.

É de se observar que a legalidade tributária também deve influenciar o plano das


liberdades dos contribuintes, uma vez que através da lei impõe-se o dever fundamental de
pagar tributos, o que funciona como um freio às aspirações irracionais de não cumprir a
obrigação tributária. Assim, o princípio possui uma dupla face, pois é, a um só tempo, uma
limitação ao Poder de Tributar do Estado e uma determinação imposta à sociedade para
auxiliar nos gastos públicos (SCAFF, p. 375).

4.1.2 Princípio da Irretroatividade e da Anterioridade Tributária

O art. 150, inciso III da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre três garantias
individuais dos contribuintes, quais sejam: a irretroatividade, a anterioridade anual e a
anterioridade nonagesimal da lei tributária.

O princípio da irretroatividade encontra-se consubstanciado na alínea “a” do inciso III,


traduzindo a vedação imposta à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
101

quanto a cobrança de tributos “em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da
vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”. Ou seja, a lei tributária não poderá
retroagir para fazer incidir tributo sobre situações jurídicas já consolidadas no passado.

Quanto à proteção da relação jurídica pró-futuro, desde o seu texto original, a


Constituição Federal consagrou o princípio da anterioridade no bojo do art. 150, inciso III,
alínea “b”, por meio do qual veda a cobrança de tributos no mesmo exercício que o instituiu
ou aumentou, excetuados os casos expressamente previstos. Assim, eventual modificação do
regime jurídico tributário não atingirá inesperadamente o planejamento inerente às atividades
econômicas e sociais submetidas à tributação.

No que tange às Contribuições Sociais, a anterioridade era qualificada, conforme


previsto no art. 195§ 6º da CRFB, por impor o decurso do prazo de 90 (noventa dias) para a
eficácia da lei que onere o contribuinte. A reforma tributária introduzida pela Emenda
Constitucional nº 42/2003 ampliou a garantia da anterioridade, para adicionar, ao lado da
anterioridade anual, a anterioridade nonagesimal, antes restrita às contribuições sociais, à
grande maioria dos tributos, com exceção do IOF, IE, II e Imposto Extraordinário de Guerra
(art. 150, inc. III, alínea “c” e §1º). Trata-se de um reforço ao princípio da confiança legítima
e da não surpresa do contribuinte.

Manifestações profícuas da segurança jurídica, os princípios da anterioridade e da


irretroatividade representam garantias individuais dos contribuintes perante o Poder Público,
pertencendo ambos ao núcleo intangível da Constituição, por qualificarem-se como cláusulas
pétreas (art. 60 da CF/88). Destinam-se a assegurar o mínimo de previsibilidade à relação
jurídica tributária, possibilitando que o sujeito passivo da obrigação planeje e se adeque às
imposições tributárias mais gravosas.

Acerca do tema, são valiosas as considerações do Ministro do Supremo Tribunal


Federal Luiz Fux, em voto proferido no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 4.661-DF (Rel. Min. Marco Aurélio, 20/10/2011), por meio do qual
elucida que a anterioridade e a irretroatividade refletem um novo fenômeno “exsurgente do
pós-positivismo, que transfigurou o contribuinte de objeto de tributação para sujeito de
direitos”.

É a partir desse novo estatuto do contribuinte que emerge a regra que veda a surpresa
fiscal, consectário maior do princípio da segurança jurídica no âmbito do Direito Tributário.
102

Portanto, inquestionável o fato de que tais princípios funcionam como estabilizadores da


relação tributária, contribuindo para a convivência harmônica do Fisco frente à sociedade.

4.1.3 Princípio da Isonomia Tributária

Historicamente, o princípio da isonomia consistiu em valoroso fruto do liberalismo.


Sendo Adam Smith um dos seus primeiros teóricos, o princípio figurou como um dos lemas
da Revolução Francesa, que pregava a igualdade entre as pessoas como forma de eliminar os
privilégios odiosos da nobreza e do clero (COSTA, 1996, p. 369). Tratava-se, no entanto, de
uma igualdade meramente formal, incapaz de criar uma isonomia material concretamente, já
que concebida tão somente no sentido de equalizar os membros de uma dada casta social, a
burguesia, sendo abismal a desigualdade percebida entre as classes.

Diante do evidente insucesso do Liberalismo, a concepção original da isonomia passou


por largo período de evolução até se adequar às finalidades concernentes ao Estado Social.
Atualmente, o conteúdo político-ideológico do princípio da isonomia pode ser extraído das
lições de Celso Antonio Bandeira de Mello (1998, p.10): “A Lei não deve ser fonte de
privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar
equitativamente todos os cidadãos.”

Em outras palavras, objetiva-se a efetivação da igualdade material. Não basta que a lei
declare que todos são iguais, mas sim o Estado deve propiciar os meios adequados para a
redução das desigualdades, funcionando o Sistema Tributário como poderoso instrumento de
equalização das diferenças econômicas e sociais. Como enfatiza Valdés Costa (1996, p.370),
como gênero, o Princípio da Igualdade deixa de ser traduzido como “igualdade perante a lei”
para significar “igualdade por meio da lei”, “en el sentido de que ésta séria utilizada como
instrumento para lograr uma igualdad de lós individuos, corrigiendo las desigualdades
económicas imperantes”.

Nesse contexto, partindo para o campo específico do direito tributário, o comando


expresso no art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988 já seria suficiente para definir que,
por mais discricionárias quem possam ser as políticas públicas e econômicas, a igualdade
deve ser o primeiro norte a ser observado pelo legislador e pelo aplicador do direito. A lei
tributária não poderia conceber discriminações odiosas, nem tampouco poderia representar
óbice à equalização dos seus destinatários.
103

Não bastasse isso, o princípio da Isonomia Tributária foi elevado ao status


constitucional, encontrando-se capitulado no art.150, inciso II da Constituição Federal,
através do qual restou expressamente vedado aos entes tributantes a instituição de tratamento
desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer
distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente
da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. Para Ricardo Lobo Torres
(2011, p.78), “trata-se de um contraponto fiscal, sob forma negativa”, do principio da
igualdade proclamado afirmativamente no caput do art. 5º da CF/88, por significar a proibição
de desigualdade.

Assim, a observância do Princípio da Isonomia Tributária representa um dos


pressupostos para a pacificação da relação jurídica tributária, na medida em que os
contribuintes devem ser poupados de conviver com privilégios e discriminações odiosas. Por
tal razão, qualquer benefício fiscal concedido a determinado contribuinte deve passar pelo
crivo da análise de sua constitucionalidade, a fim de aferir se houve efetivamente quebra de
isonomia, ou se a medida é adequada em razão de o traço diferenciador justificar o tratamento
jurídico diversificado. É nesse sentido que Ricardo Lobo Torres (2011, p. 78) afirma que só
“será proibida a desigualdade na apreciação da capacidade contributiva do cidadão ou da
necessidade do desenvolvimento econômico se não estiver fundamento na justiça ou na
utilidade social, hipótese em que estará ferida a liberdade alheia”. O que a Constituição veda
são os privilégios odiosos e não os não-odiosos.

Tal acepção revela a relação umbilical entre os princípios da igualdade e da capacidade


contributiva. Para que realmente seja respeitado o Princípio da Igualdade Tributária, é
necessário que aqueles que tenham igual capacidade contributiva sejam tratados de forma
igual, enquanto aqueles que não têm igual capacidade contributiva devem ser tratados de
forma desigual.

Diante do exposto, o princípio da isonomia serve de instrumento ao equilíbrio do Estado


Fiscal, na medida em que veda a adoção de privilégios ou discriminações desarrazoadas, o
que poderia comprometer o livre exercício da atividade econômica, assim como ressalta a
importância do principio da capacidade contributiva, sobretudo quando se verifica o
sobrecarregamento das classes média e baixa, responsáveis por suportar a maior parcela da
carga tributária do país. Ambas as situações narradas, se não são evitadas, significam fatores
de rejeição social do tributo.
104

4.1.4 Princípio da Segurança Jurídica

Inquestionavelmente, o princípio da Segurança Jurídica assume papel de destaque no


contexto da pacificação das relações intersubjetivas do direito tributário, não somente no
plano interno/nacional, mas também no cenário externo/internacional, considerando a
mobilidade do capital decorrente do processo de globalização.

Também intitulado como Princípio da Confiança Legítima, em verdade, tal postulado


reflete a um só tempo um valor a ser alcançado pelo Estado de Direito e uma garantia material
de tutela da efetividade do ordenamento jurídico, por gerar a expectativa legítima de certeza e
de estabilidade na aplicação das normas vigentes. Nesse sentido, José Afonso da Silva (2005,
p. 17) afirma: “A segurança do direito, como visto, é um valor jurídico que exige a
positividade do direito, enquanto a segurança jurídica é já uma garantia que decorre dessa
positividade”.

Heleno Torres (2011, p.28) observa que, embora a garantia da segurança já se


encontrasse implicitamente consagrada no âmbito da Constituição Federal de 1988, como
derivação de diversos outros princípios, foi com o advento da EC 45/2004 que o termo
“segurança jurídica” foi efetivamente alçado ao patamar constitucional, com previsão
expressa no art. 103-A, que trata da possibilidade de edição de súmula vinculante, nas
hipóteses em que a interpretação de determinadas normas acarrete grave insegurança jurídica.

No nível infraconstitucional, a segurança jurídica já tem amparo legal há algum tempo,


como se extrai do art. 2º da Lei 9.784/1999, ao tratar dos princípios da administração pública,
e ainda, do art. 27 da Lei 9.868/1999, que regula os poderes do STF para declarar a
inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, admitindo a restrição dos efeitos da declaração
por razões de segurança jurídica. Mesmo no plano internacional, como destaca Ingo Sarlet
(2005, p. 86), desde a Declaração dos Direitos do Homem de 1948, “o direito (humano e
fundamental) à segurança passou a constar nos principais documentos internacionais em
expressivo número de Constituições modernas”.

Constata-se, porém, que toda a estrutura normativa e constitucional do Sistema


Tributário Nacional não é suficiente para a efetiva percepção da Segurança Jurídica. O risco
da insegurança e a quebra das expectativas são comuns e, paradoxalmente, manifestam-se
predominantemente na própria norma tributária. Como bem reconhece Heleno Torres (2011,
105

p. 22), “eis o paradoxo da segurança jurídica: o ordenamento jurídico, criado para conferir
segurança, em si mesmo, segundo o seu manejo, pode ser causa de insegurança e incertezas”.

Ou seja, se por um lado, a função do ordenamento jurídico consiste em garantir


previsibilidade, estabilidade e proteção às relações jurídicas, por outro, os dilemas provocados
pela ambiguidade da legislação e pelas incertezas decorrentes de sua complexidade têm
afetado a estabilidade do sistema tributário.

Atualmente, no Brasil, constata-se que a insegurança do âmbito tributário assumiu


níveis intoleráveis, chegando ao ponto de alguns doutrinadores sustentarem a existência de
um “estado de exceção permanente”. Heleno Torres (2011, p. 31) explica que o “estado de
exceção se verifica quando os direitos sofrem alterações sucessivas, [...] como decisões
sempre excepcionais e como regimes geralmente baseados em exceções”.

Ora, não raras vezes o governo brasileiro adota políticas públicas flagrantemente
afrontosas à Segurança Jurídica da relação tributária, impondo verdadeiras exceções às
garantias petrificadas no Texto Constitucional. O exemplo39 mais claro é também um dos mais
recentes: por meio do Decreto 7.567/2011, o Executivo majorou a alíquota de IPI para carros
importados em 30% (trinta pontos percentuais), impondo em seu artigo 16 a vigência imediata
da nova alíquota.

É certo que a política protecionista adotada se justificou em razão da necessidade de


promoção imediata da indústria nacional, prejudicada pela concorrência desleal do setor
automotivo estrangeiro, sobretudo dos países orientais. Contudo, a determinação de vigência
imediata do decreto contém flagrante inconstitucionalidade, tendo em vista excepcionar o
disposto no artigo 150, inciso III, alínea c, da Constituição Federal, que garante a
anterioridade nonagesimal nas hipóteses de aumento da alíquota de IPI.

39
Outro exemplo de quebra da segurança jurídica por parte da Legislação Tributária consiste no disposto no art.
3º da LC 118/05, o qual fixou o prazo da repetição de indébito tributário em 5 (cinco) anos, contrariando a
jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores no sentido de que o prazo para a restituição do pagamento
indevido de tributo sujeito ao lançamento por homologação era de 10 (dez) anos. Mais gravosa ainda foi a
determinação contida em seu art. 4º, para que se dê aplicabilidade imediata à nova “lei interpretativa”, logo
após a vacatio legis. No caso, a fim de restaurar a segurança jurídica violada, o STF, no julgamento do RE
566.621/RS, submetido à sistemática da Repercussão Geral, ao apreciar a constitucionalidade do art. 4° da Lei
Complementar n. 118/05 nos autos do RE n. 566.621/RS, considerou-o inconstitucional em sua parte final, no
ponto em que determina que o art. 3º da referida LC (que dispõe, em suma, que o prazo para a repetição do
indébito de tributos sujeitos a lançamento por homologação conta-se da data do pagamento antecipado de que
trata o art. 150, § 1º do CTN) possui natureza interpretativa e, portanto, retroage para alcançar fatos pretéritos.
106

Neste caso, beira o absurdo a necessidade de demandar o Supremo Tribunal Federal


para garantir as expectativas criadas pelo próprio ordenamento aos destinatários da norma,
prejudicando especialmente os importadores e consumidores que já haviam remetido veículos
nos países de origem muito antes da edição da medida, mas ainda estavam pendentes de
desembaraço aduaneiro.

No bojo da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.661/DF, o STF


atribuiu interpretação harmônica com os postulados da não surpresa e da legalidade,
declarando que:

O princípio da anterioridade representa garantia constitucional estabelecida em favor


do contribuinte em face do Pode Público, norma voltada para preservar a segurança
e a possibilitar um mínimo de previsibilidade às relações jurídico-tributárias.
Destina-se a assegurar o transcurso de lapso temporal razoável a fim de que o
contribuinte possa elaborar novo planejamento e adequar-se à realidade tributária
mais gravosa.

Percebe-se, então, que o Decreto nº 7.567/2011 configura verdadeiro retrocesso às


garantias individuais dos contribuintes. Neste caso, merece especial destaque a lição de
Heleno Taveira Torres (2011, p. 401), ao afirmar que “a proibição de retrocesso deriva do
princípio-garantia de segurança jurídica, incorporada integralmente ao ordenamento jurídico,
pelos art. 5º, §§1º e art. 2º, da CF”. Da mesma forma, Ingo Sarlet (2005, p.113) reconhece que
a proibição de retrocesso está umbilicalmente ligada à ideia de segurança jurídica, a qual
pressupõe a proteção da confiança contra atos retrocessivos de um modo geral.

Diante de medidas deste jaez, o princípio da segurança jurídica deverá impedir que os
contribuintes sujeitem-se a um estado permanente de exceção, sendo certo que suas condutas
deverão estar fundadas na lei e na Constituição, e não por relações de força ou de império.
Não há mais espaço para que os sujeitos da relação tributária se esquivem das garantias do
Direito Adquirido, do Ato Jurídico Perfeito, da Coisa Julgada, da igualdade, da legalidade, da
irretroatividade e da universalidade da jurisdição, principais manifestações constitucionais da
segurança jurídica.

Aos sujeitos da relação tributária compete interpretar o Sistema Jurídico de modo a


favorecer a construção de um direito seguro e justo. Da mesma forma, o Estado deve assumir
o papel de garantir a todos um elevado grau de segurança e confiabilidade permanente. Como
cita José Afonso da Silva (2005, p. 30), a segurança jurídica deve ser sempre o valor
instrumental de efetivação da justiça, e onde a justiça reina, a convivência democrática estará
107

salvaguardada. Eis a razão pela qual a observância do Princípio da Segurança Jurídica impõe-
se como pressuposto do equilíbrio da relação tributária.

4.1.5 Princípio do Devido Processo Legal Administrativo – o processo


administrativo como instrumento eficaz de solução da lide tributária

A concepção do tributo enquanto fator de rejeição social aliada aos variados problemas
concernentes à judicialização da obrigação tributária, em especial, a morosidade e o alto custo
do processo judicial, tem demonstrado a necessidade de reformulação da lide tributária.
Contemporaneamente, muitos conflitos tributários são submetidos previamente ao julgamento
administrativo, que é menos oneroso ao Estado e ao contribuinte, além de contar com
“julgadores” tecnicamente especializados nas normas tributárias.

Como leciona James Marins (2001, p.162-163), “o processo administrativo tributário


integra, ao lado do Processo Judicial Tributário, o Direito Processual Tributário”. Por tal
razão, é coerente afirmar a existência de um direito fundamental ao devido processo legal
administrativo, a partir do qual o processo administrativo40 passa a ser instrumento eficaz e
seguro de tutela aos direitos dos contribuintes, sendo inconstitucionais eventuais restrições
impostas pela legislação tributária.41

O fundamento do princípio é extraído dos incisos LIV e LV do art. 5º da Constituição


Federal de 1988, os quais determinam: que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens
sem o devido processo legal, e ainda, que aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes. No âmbito infraconstitucional, cada ente federado deve possuir legislação própria,

40
O termo “processo administrativo” aqui utilizado não se confunde com “procedimento administrativo”, o qual
representa uma sucessão de atos administrativos dirigidos a uma finalidade específica, a exemplo do lançamento
fiscal previsto no art. 142 do CTN. Nesse sentido, James Marins (2001, p. 162): “a etapa contenciosa (processual)
caracteriza-se pelo aparecimento formalizado do conflito de interesses, isto é, transmuda-se a atividade
administrativa de procedimento para processo no momento em que o contribuinte registra seu inconformismo
com o ato praticado pela administração, seja ato de lançamento de tributo ou qualquer outro ato que, no seu
entender, lhe cause gravame, como a aplicação de multa por suposto incumprimento de dever instrumental. A
mera bilateralidade do procedimento não é suficiente para caracterizá-lo como processo”.
41
O Supremo Tribunal, por meio do RE 504288 AgR / BA ( Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJe-047 , de 29-06-2007, P
00128, EMENT VOL-02282-14 PP-02742) reconheceu a validade do princípio do Devido Processo Legal
Administrativo, nos seguintes termos: “E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - EXIGÊNCIA LEGAL DE
PRÉVIO DEPÓSITO DO VALOR DA MULTA COMO CONDIÇÃO DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
ADMINISTRATIVO - OCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO ART. 5º, LV, DA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA - NOVA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL FIRMADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL - RECURSO DE AGRAVO PROVIDO. - A exigência legal de prévio depósito do valor da
multa, como pressuposto de admissibilidade de recurso de caráter meramente administrativo, transgride o art. 5º, LV, da
Constituição da República. Revisão da jurisprudência: RE 390.513/SP (Pleno)”.
108

sendo que o Decreto nº 70.235/72, recepcionado como lei ordinária pela ordem constitucional
superveniente, dispõe sobre o processo administrativo fiscal no âmbito federal.

Apresentados seus fundamentos constitucionais e legais, o presente trabalho não


pretende analisar exaustivamente o instituto e suas regras, mas sim, procura demonstrar a
grande contribuição do julgamento administrativo para a redução da litigiosidade tributária,
especificamente no âmbito federal. Tal sucesso se deve, em grande parte, à fórmula adotada
para o julgamento em segunda instância dos recursos apresentados pelos contribuintes (art. 37
do Decreto nº 70.235/72), na qual o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do
Ministério da Fazenda (CARF), antigo Conselho de Contribuintes, é o órgão de revisão das
decisões e dos recursos que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos
administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.

A Portaria nº 256, de 22 de junho de 2009, veicula o regimento interno do CARF e


estabelece que o órgão colegiado terá formação paritária, ou seja, será composto por
representantes do Fisco e dos Contribuintes, em número igual de representatividade. Em
regra, as confederações e os órgãos públicos apresentam listas tríplices com a sugestão de
nomes para as vagas, e a seleção dos conselheiros é realizada por um comitê de notáveis.

Embora o julgamento das impugnações administrativas aos lançamentos em primeira


instância (âmbito da Receita Federal ou das Delegacias Regionais de Julgamento) seja
realizado unicamente por representantes do Fisco, é exatamente a composição paritária do
CARF que garantirá, em instância administrativa superior, a imparcialidade do julgamento
administrativo. Garantida a imparcialidade do órgão, mostra-se vantajoso o fato de que os 216
(duzentos e dezesseis) representantes do CARF possuem perfil técnico e especializado em
direito tributário, contábil e financeiro, o que pressupõe a superioridade da qualidade da
decisão proferida, quando comparada com a decisão judicial.

A imparcialidade do colegiado aliada à tecnicidade das decisões tem contribuído para a


pacificação da relação jurídica tributária, principalmente por proporcionar uma maior
segurança jurídica em relação à ocorrência da obrigação tributária, tendo em vista a edição de
Súmulas administrativas pelo órgão, que servem para orientar a conduta do Fisco e dos
contribuintes nos casos de controvérsia reiterada.
109

Além disso, em artigo intitulado “Segurança Jurídica no novo CARF”, Paulo de Barros
Carvalho (2011) relaciona outras vantagens correlatas ao processo administrativo.42 Afirma o
autor que a ausência de custas, a rapidez, a simplicidade e a economia são pormenores que
inspiram o procedimento administrativo tributário. A rapidez interessa a todos. “Se à rapidez
se liga a simplicidade, é lícito dessumir que da conjugação dos dois requisitos nasce a
economia”.

Para que o processo administrativo seja efetivamente pacificador da relação tributária,


seus sujeitos devem estar atentos aos princípios e garantias já conquistados pelos
contribuintes, em especial, a ampla defesa e o contraditório, assim como se deve respeitar os
prazos estipulados na legislação própria, sob pena de a morosidade acabar por desmotivar a
opção pela via administrativa. Feito isso, inolvidável que o paradigma segundo o qual o Poder
Judiciário é o único guardião da tutela dos direitos fundamentais tente a ser superado por
novas perspectivas de solução satisfatória dos conflitos pelo Poder Executivo, o que
representa a ampliação dos mecanismos de proteção dos contribuintes, ainda pendente de
estímulos no contexto cultural brasileiro.

4.1.6 Princípio da Informação do Direito Tributário

O direito à informação integra o conteúdo de qualquer Estado Democrático de Direito,


estando necessariamente vinculado à ideia de cidadania, já que é a partir do amplo acesso às
informações que o cidadão pode participar das escolhas governamentais. No Brasil, o direito à
informação qualifica-se como direito fundamental, estando salvaguardado pelo disposto no
art. 5º, inciso XIV da CF/88: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o
sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Outrossim, o art. 220 da
Constituição Federal é explícito quanto à impossibilidade de restrição ao direito, salvo nos
casos expressamente previstos no texto constitucional.

No âmbito tributário, ao contrário do que a maioria dos contribuintes imagina, o


princípio encontra-se expressamente constitucionalizado, como se extrai da leitura do art. 150,
§5º do Texto Constitucional: “A lei determinará medidas para que os consumidores sejam
esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços.”
Lamentavelmente, constata-se verdadeira omissão inconstitucional acerca do direito em
debate, uma vez que, passados mais de vinte anos desde a promulgação da Constituição
42
O autor entende que o termo correto é “procedimento administrativo” e não “processo administrativo, uma vez
que o termo “processo” deve ser reservado ao processo judicial.
110

Federal Pátria, os meios adequados para que os contribuintes saibam o quanto pagam de
impostos ainda não foram disciplinados pelo legislador infraconstitucional, nem tampouco tal
medida foi posta em prática.

A informação consciente dos contribuintes acerca dos impostos pagos é um dos passos
mais importantes para o fomento da cidadania fiscal. Isso porque, como bem adverte Denise
Cavalcante (2012, p.36-37), é exatamente a falta de informação que promove
inconscientemente uma ignorância coletiva. Por tal razão, a autora afirma que no Brasil “reina
uma espécie de ilusão fiscal em virtude do baixíssimo grau de informação apresentada aos
cidadãos-contribuintes no momento que adquirem seus bens”.

Diante do comando constitucional inserido no art. 150, §5º da CF/88, pode-se afirmar
que o Estado encontra-se obrigado a informar à sociedade o valor dos impostos incidentes
sobre suas aquisições individuais, sendo certo, contudo, que não se trata de uma tarefa fácil,
diante da complexidade dos impostos indiretos incidentes sobre as mercadorias e serviços.
Para tornar mais claro para o consumidor/contribuinte o peso dos impostos no preço dos
produtos, o Projeto de Lei nº 174/2006 encontra-se em trâmite no Congresso Nacional. O
projeto prevê a ampla divulgação do valor dos tributos, cujos percentuais devem constar em
vitrines, propaganda e na nota fiscal.

Cumpre observar, porém, que o direito à informação tributária não se restringe ao


conhecimento do valor dos impostos incidentes sobre os produtos e serviços adquiridos, uma
vez que o acesso às informações também guarda relação direta com a ideia de transparência
fiscal. Assim, cumpre ao Estado divulgar amplamente suas ações governamentais, bem como
os resultados fiscais a toda a população, a fim de democratizar a gestão do Estado Fiscal.
Nesse passo, o dever geral de transparência das informações fiscais encontra-se respaldado
nos artigos 48 e 49 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000), os quais
preveem diversos instrumentos de transparência da gestão fiscal, dentre os quais são válidos
mencionar: a ampla divulgação dos planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as
prestações de contas e o respectivo parecer prévio, o Relatório Resumido da Execução
Orçamentária e o Relatório de Gestão Fiscal, e as versões simplificadas desses documentos. A
Lei também assegura que a transparência será assegurada mediante: o incentivo à participação
popular e realização de audiências públicas, durante os processos de elaboração e discussão
dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos.
111

Ou seja, o Estado deverá ser transparente quanto à receita pública, informando a


sociedade acerca do quanto foi ou deixou de ser arrecadado e qual a previsão de arrecadação
nos orçamentos futuros. Não bastasse isso, o artigo 198, §3º do Código Tributário Nacional
excepcionou da regra do sigilo fiscal a divulgação de informações relativas aos débitos
inscritos em Dívida Ativa da União, além de dados referentes à concessão de parcelamento e
moratória.

Em que pesem as dificuldades operacionais suscitadas, o Estado deve aceitar o desafio


da efetivação do Princípio da Informação em prol dos sujeitos tributados, a fim de que estes
possam desenvolver a consciência tributária coerente, despida de ignorância e voltada para a
legitimação social do tributo. Nesse passo, o alargamento da eficácia do princípio da
informação, para que passe a alcançar o conhecimento acerca do valor dos tributos pagos
individualmente muito contribuirá para o amadurecimento da relação tributária.

4.2 A educação fiscal como instrumento de promoção da cidadania fiscal

Enquanto Platão afirma a impossibilidade de a virtude ser ensinada, Aristóteles (2001,


p.14), em seu célebre texto “Ética a Nicômano”, contrapondo-se à ideia do filósofo, sustenta
que a virtude é um hábito e, portanto, não só pode, mas também deve ser ensinada,
construindo-se talvez numa das tarefas mais importantes da educação do homem:

Quanto à excelência moral, ela é produto do hábito, razão pela qual seu nome é
derivado, com ligeira variação, da palavra hábito.[...] Portanto, nem por natureza, nem
contrariamente à natureza a excelência moral é engendrada em nós, mas a natureza nos
dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito.

Eis o ponto inicial desta exposição: a constatação de que a cidadania fiscal não é inata à
natureza humana, mas sim, deve ser ensinada e fomentada com a finalidade de conscientizar a
sociedade acerca do dever fundamental de pagar tributos, dever este correlato ao pleno gozo
dos direitos fundamentais individuais e coletivos.

Há tempos parece prevalecer o desejo ínsito aos agentes econômicos do capitalismo de


lucrar egoisticamente, sem nada contribuir para a coletividade. Sem hipocrisias, pode-se
afirmar que, ao lado de todos os complicadores da tributação, é esta a principal razão de ser o
tributo rejeitado socialmente. Autentica é a lição de Ives Granda Martins (1998, p. 131), ao
afirmar que “Foi na medida em que o Estado se tornou complexo e o interesse público mais
indetectável que a imposição tributaria ganhou os coloridos de odiosa pretensão”.
112

É certo que, ao menos no plano doutrinário, a conscientização da importância do tributo


reduziu o seu caráter odioso, mas embora tal fenômeno seja percebido entre os teóricos, na
prática, a legitimação social do tributo ainda luta para ser desmistificada. Ainda em
concordância com as palavras de Ives Granda Martins (1998, p. 131), “à época em que
inexistia doutrina fundamental, o tributo, pela simplicidade das sociedades primitivas, era
contribuição natural, estando as normas constituídas que o regiam entre aquelas de aceitação
social. Hoje o fenômeno é inverso”.

Por tal razão, a implementação de um programa nacional de educação fiscal representa


uma importante política pública em prol da sustentabilidade do Estado Social, refletindo
diretamente na cultura, na economia e no bem-estar da sociedade. Não há dúvidas de que “A
educação propulsiona a economia e molda a sociedade. Mas ela o faz através do seu
‘produto’, o indivíduo instruído” (DRUCKER, 1997, p. 209).

Ao se comparar a consciência ambiental no Brasil há alguns anos, quando não passava


de um discurso ético a preocupação com a sustentabilidade do planeta, em paralelo às ações
afirmativas adotadas pelos agentes econômicos, pela sociedade e pelo Estado na atualidade,
criam-se expectativas otimistas em torno da educação fiscal.

No intuito de promover e institucionalizar a Educação Fiscal para o pleno exercício da


cidadania, sensibilizar o cidadão para a função socioeconômica do tributo, levar
conhecimento ao cidadão sobre administração pública e criar condições para uma relação
harmoniosa entre o Estado e o cidadão, a Portaria Interministerial43 nº 413, de 31 de dezembro
de 2002 instituiu o Programa Nacional de Educação Fiscal, de âmbito nacional, integrado
pelos Ministérios da Educação, Receita Federal do Brasil, Secretaria do Tesouro Nacional,
Escola Superior de Administração Fazendária - ESAF e Secretarias de Fazenda e de Educação
estaduais.

Desde a instituição do programa, várias medidas foram implementadas pelas


Instituições envolvidas, merecendo destaque a realização de palestras em escolas e
instituições públicas e privadas, a edição de cartilhas educativas com conteúdo histórico
simplificado e esclarecedor da função social dos tributos, a prestação de informações à

43
Portaria Conjunta do Ministério da Fazenda e do Ministério da Educação, disponível em:
<http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Portarias/2002/Interministeriais/portinter413.htm>.
113

sociedade acerca dos instrumentos de controle da gestão pública e a criação de sítios 44 na


internet para a ampliação do acesso às informações fiscais, dirigidas não somente aos adultos
como também às crianças.

A simples consulta ao material disponibilizado demonstra o quanto é enriquecedor o seu


conteúdo. Na medida em que o PNEF chegar ao conhecimento da sociedade, através da
linguagem não só simplificada, mas em certos pontos, lúdica, a sociedade tenderá a aquiescer
com o fato de que o tributo é um instrumento que pode e deve ser utilizado para promover as
mudanças e reduzir as desigualdades sociais. O cidadão, consciente da função social do
tributo como forma de redistribuição da renda nacional e elemento de justiça social, será
capaz de participar do processo de arrecadação, aplicação e fiscalização do dinheiro público.
Se a educação ambiental foi determinante para mudança de atitudes comportamentais da
humanidade, porque não esperar bons frutos da educação fiscal.

Para que isso ocorra, é imprescindível que a promoção da Educação Fiscal não se
restrinja ao Poder Público. A mídia deve exercer a função essencial de ampliar o acesso da
sociedade a tais informações. Da mesma forma, a sociedade organizada, sobretudo as
instituições voltadas à prestação de serviços sociais devem contribuir com a cidadania fiscal.
Com a finalidade de estimular a ampla participação neste processo, a Norma de Execução
Conjunta COAEF/COPOL nº 2/2011 autoriza a doação de bens apreendidos pela Receita
Federal do Brasil a órgãos públicos e entidades sem fins lucrativos que adotem propostas
relacionadas à educação fiscal, concedendo tratamento preferencial às solicitações destes
participantes.

Trata-se, portanto, de poderosa ferramenta de construção da Ética Fiscal, baseada na


noção de solidariedade e de cidadania, orientando os contribuintes a cumprirem
voluntariamente o dever fundamental de pagar impostos de acordo com a sua capacidade
contributiva.

4.3 A compensação tributária como mecanismo de redução da litigiosidade


da relação fisco-contribuinte

Sabe-se que, em grande parte, a litigiosidade tributária nasce da resistência ao


pagamento do tributo já constituído, em cobrança ou em vias de ser cobrado. A extinção do

44
Dentre os sites criados para promover o PNEF, destacam-se: <http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/> e
<http://www.esaf.fazenda.gov.br/esafsite/educacao-fiscal/Edu_Fiscal2008/INDEX.htm>
114

crédito tributário passa a ser objetivo comum do Fisco e do contribuinte, contudo, os meios
para o alcance deste fim divergem, pois nem sempre a extinção do crédito por pagamento (art.
156, inciso I do CTN) é aceita pelo sujeito passivo, que insiste na luta pela desconstituição do
débito através das outras fórmulas arroladas no art. 156 do Código Tributário Nacional, dentre
as quais se destaca a compensação.

A compensação é modalidade de extinção das relações jurídicas obrigacionais.


Disciplinada pelos artigos 368 a 380 do Código Civil, ocorre quando duas pessoas forem ao
mesmo tempo credoras e devedoras uma da outra, possibilitando que as obrigações se
extingam até onde se compensam. Como bem explica José Eduardo Soares de Melo (2008,
pág. 375), a compensação funda-se na justiça e na equidade, revelando significativa utilidade,
pois objetiva (implicitamente) evitar multiplicação de providências administrativas e de
demandas judiciais.

Considerando o crescente ambiente de tensão provocado pelo elevado número de


questões administrativas e judiciais envolvendo a obrigação de pagar tributos, a compensação
no âmbito do direito tributário revela-se um tema bastante instigante nos dias atuais, por
demonstrar-se eficaz na prevenção de múltiplas demandas que poderiam se originar da
existência de débitos e créditos recíprocos, traduzindo aspectos positivos na economia e em
celeridade da administração tributária e judicial.

Portanto, cabe analisar em que situações a compensação poderá fundamentar a extinção


do crédito tributário, solucionando a lide e harmonizando a relação fisco-contribuinte.

4.3.1 Legislação pertinente – um esboço histórico da evolução do instituto

Embora desde a vigência do Código Tributário Nacional já houvesse a previsão


expressa da compensação como forma de extinção do crédito tributário, o instituto só foi
introduzido como direito subjetivo do contribuinte após o advento da Lei 8.383/91, quando se
passou a admitir a compensação de tributos da mesma espécie. Por tributos da mesma espécie
se entendiam aqueles que possuíam a mesma destinação constitucional. Por exemplo, o
indébito de Imposto de Renda poderia ser compensado com débitos de Imposto de Renda.

Em seguida, a Lei 9.430/96 deu nova regulamentação à matéria, possibilitando a


compensação entre tributos de espécies distintas, a ser autorizada e realizada pela Secretaria
115

da Receita Federal, após a análise de cada caso, a requerimento do contribuinte ou de ofício


(Decreto 2.138/97), com relação aos tributos sob administração daquele órgão.

Pode-se concluir que, até o advento da Lei nº 10.637/02 vigorava um duplo regime de
compensação. O primeiro, realizado pelo contribuinte em sua própria escrita fiscal, mas
restrito a tributos da mesma espécie (Lei nº 8.383/91). O segundo, mediante requerimento à
Receita Federal, ainda que entre tributos de espécies diferentes, nos termos da Lei nº
9.430/96.

Com a edição da Lei 10.637/02, 45 adotou-se um regime único e admitiu-se a


compensação por iniciativa do contribuinte, mediante a entrega de declaração contendo
informações sobre os créditos utilizados, os quais poderão ser utilizados na compensação de
débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados pela Secretaria
da Receita Federal. Assim, a compensação passou a ser objeto de simples declaração do
sujeito passivo gerada a partir do programa PER/DCOMP (Programa Pedido Eletrônico de
Ressarcimento ou Restituição e Declaração de Compensação), extinguindo o crédito sob
condição resolutória de sua ulterior homologação, nos termos do art. 74 da Lei nº 9430/96.46

No âmbito infralegal, a Instrução Normativa RFB nº 900, de 30 de dezembro de 2008


disciplina a restituição e a compensação de quantias recolhidas a título de tributo ou
contribuição administrados pela Secretaria da Receita Federal. Por óbvio, por regulamentarem
um direito subjetivo do contribuinte, as instruções normativas expedidas pela Receita Federal
do Brasil devem observar os limites estabelecidos pela lei, disciplinando apenas
procedimentos formais de mera execução, abstendo-se de impor novas condições ou limites,
tendo em vista o princípio da reserva legal.

45
Importante lembrar que, diante das relevantes alterações normativas acerca do instituto, dúvidas podem surgir
quando à legislação aplicável. O Superior Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento no sentido de
que o regime jurídico aplicável é o vigente à época da propositura da demanda, não podendo ser a causa
julgada à luz do direito superveniente, tendo em vista o requisito do prequestionamento, ressalvando-se o
direito de o contribuinte proceder à compensação de créditos pela via administrativa, em conformidade com as
normas posteriores, desde que atendidos os requisitos próprios. (Embargos de Divergência em RESP – Pet
5.546 – SP, 1ª Seção, rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux, DJU 20/04/2009).
46
Art. 74 da Lei 9430/96: “O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado,
relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de
ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e
contribuições administrados por aquele Órgão. § 1o A compensação de que trata o caput será efetuada
mediante a entrega, pelo sujeito passivo, de declaração na qual constarão informações relativas aos créditos
utilizados e aos respectivos débitos compensados. § 2o A compensação declarada à Secretaria da Receita
Federal extingue o crédito tributário, sob condição resolutória de sua ulterior homologação”.
116

Diante da evolução histórica, pode-se concluir que o mecanismo da compensação


tributária tem se alargado ao longo do tempo, refletindo maior preocupação do legislador com
o instituto que, ao mesmo tempo, consubstancia um direito subjetivo do contribuinte e um
instrumento viabilizador da economicidade e da celeridade na solução dos conflitos. Prova
disso é que, além da compensação proposta pelo contribuinte, com fulcro na Lei 10.637/02, o
direito passou a tutelar a compensação como legítimo direito subjetivo do Estado, através da
possibilidade de compensação de ofício, a qual será adiante ilustrada.

4.3.2 Compensação de ofício

A compensação de ofício ou, como preferem alguns autores, a imputação de


compensação, foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Medida Provisória nº
255/05, convertida na Lei nº 11.196/05. Com a edição do diploma legal, o art. 7º do Decreto-
lei nº 2.287, de 23 de julho de 1986, passou a vigorar nos seguintes termos:

Art. 7o A Receita Federal do Brasil, antes de proceder à restituição ou ao ressarcimento


de tributos, deverá verificar se o contribuinte é devedor à Fazenda Nacional.
§ 1o Existindo débito em nome do contribuinte, o valor da restituição ou
ressarcimento será compensado, total ou parcialmente, com o valor do débito.
§ 2o Existindo, nos termos da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966, débito em
nome do contribuinte, em relação às contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e
c do parágrafo único do art. 11 da Lei no 8.212, de 24 de julho de 1991, ou às
contribuições instituídas a título de substituição e em relação à Dívida Ativa do
Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, o valor da restituição ou ressarcimento
será compensado, total ou parcialmente, com o valor do débito.

Desde então, surgiu para o Fisco o poder/ dever de proceder à compensação de valores a
disposição do contribuinte com créditos tributários. Nos termos da IN nº 900 de 2008 da RFB,
verificada a existência de débito, ainda que já encaminhado para inscrição em Dívida Ativa,
de natureza tributária ou não, o valor da restituição ou do ressarcimento deverá ser utilizado
para quitá-lo, mediante compensação em procedimento de ofício.

No âmbito da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, a Portaria PGFN nº 919 de


17.11.2005 determina que caberá ao Procurador da Fazenda Nacional, sempre que, em razão
de sua atuação em processo judicial ou administrativo, tomar conhecimento acerca da
existência de crédito disponível em favor da parte ou interessado, proceder à consulta junto ao
Sistema Informativo da Dívida Ativa da União - SIDA e demais cadastros de dívida fiscal
para a identificação de inscrições ativas em nome deste.
117

Em um primeiro momento, para muitos, a possibilidade de retenção dos créditos


disponibilizados aos contribuintes para pagamento de tributos devidos soou arbitrária.
Contudo, os que se manifestaram contra a medida certamente foram motivados por razões
egoísticas, uma vez que não se ampara eticamente a pretensão de ter restituído valores
oriundos dos cofres públicos quando se está em débito com aquela entidade. Se nas relações
particulares os sujeitos não costumam fugir dos “acertos de contas”, tratando-se de crédito
público, que por essência, é coletivo e indisponível, a compensação não se trata de uma mera
faculdade, mas de uma imposição.

À luz dessas ideias, recentemente, o mecanismo da compensação como forma de


extinção do crédito tributário deu novo salto evolutivo e alcançou status constitucional. Com
o advento da Emenda Constitucional nº 62/2009, os §9º e 10º foram incluídos no art. 100 da
Constituição Federal de 1988, para determinar que, independentemente de regulamentação, no
momento da expedição dos precatórios, deles deverá ser abatido, a título de compensação,
valor correspondente aos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e
constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas
vincendas de parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de
contestação administrativa ou judicial. A fim de operacionalizar a medida, o § 10º estabeleceu
que, antes da expedição dos precatórios, o Tribunal solicitará à Fazenda Pública devedora,
para resposta em até 30 (trinta) dias, sob pena de perda do direito de abatimento, informação
sobre os débitos que preencham as condições estabelecidas no § 9º, para os fins nele
previstos.

Não obstante a eficácia da medida ser imediata, independente de regulamentação legal,


a Lei 12.431/2011 dispõe sobre a matéria em seus artigos 30 a 44, sendo interessante ressaltar
que a legislação infraconstitucional ampliou a proteção dada ao contribuinte, sobretudo por
determinar a observação dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa no procedimento
de compensação.

Inolvidável que se trata de medida voltada para a redução da litigiosidade tributária, não
só por prevenir ou extinguir a execução fiscal ajuizada para a recuperação do crédito público,
mas também por elidir questionamentos sobre a possibilidade de utilização do precatório para
a extinção do crédito tributário, matéria objeto de árdua discussão doutrinária e
jurisprudencial.
118

4.3.3 A utilização de precatórios para a extinção de débitos tributários

Como foi acima suscitado, a Emenda Constitucional nº 62/2009 representou grande


avanço para a redução da litigiosidade tributária em razão de autorizar expressamente a
utilização de precatórios para a extinção do crédito tributário, consoante se extrai do §9º e
§10º do art. 100 da CF/88. Inolvidável que o legislador constituinte visou dar segurança
jurídica a um dos temas mais polêmicos do direito financeiro e tributário, qual seja, a
compensação de tributos com precatórios.

No Brasil vigora o sistema do precatório para o cumprimento de condenações judiciais


transitadas em julgado a que se submetem as Fazendas Públicas, nos moldes estipulados no
art. 100 da Constituição Federal. Ocorre que, em razão dos princípios da impenhorabilidade e
da indisponibilidade dos bens públicos, bem como em face das limitações orçamentárias e
financeiras, fáticas e jurídicas que acometem os entes da Federação, é cada vez mais comum
por parte de alguns estados e municípios o inadimplemento de sua dívida consolidada, em
especial, dos precatórios. Sabe-se bem que tal postura do ente público nem sempre é
justificável, já que estados ricos, com arrecadação bastante elevada, politicamente têm optado
por não permanecer com suas contas em dia. O resultado desta problemática é que muitos
credores da administração passam por verdadeiros dramas por não possuírem qualquer
perspectiva de recebimento dos valores devidos.

Nesse contexto, passou a ser comum a hipótese em que o contribuinte é ao mesmo


tempo titular de precatório devido por determinado ente estatal e devedor de tributos perante
aquele mesmo Fisco. Sendo assim, nada mais razoável do que a possibilidade de utilização de
precatórios vencidos e não pagos para a extinção de créditos tributários. Por tal razão, o art.
78, § 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias concedeu ao titular de precatório
vencido o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, desde que
atendidos certos pressupostos legais, nos seguintes termos:

Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de


natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus
respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na
data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até
31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente,
acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo
máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.
[...]
119

§ 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas
até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos
da entidade devedora.
§ 3º O prazo referido no caput deste artigo fica reduzido para dois anos, nos casos de
precatórios judiciais originários de desapropriação de imóvel residencial do credor,
desde que comprovadamente único à época da imissão na posse.

Todavia, como é sabido, o comando constitucional encontrou resistência por parte de


alguns entes federativos, que argumentam, em síntese, o possível desequilíbrio financeiro-
orçamentário provocado pela medida, bem como a inexistência de regulamentação legal para
a plena eficácia do dispositivo. É certo que as discussões travadas acerca do tema ganharam
contornos que fogem ao âmbito do presente estudo, tendo em vista a sua extensão demandar
estudo próprio.47

Por tal razão, inquestionável a importância do advento da Emenda Constitucional nº


62/2009, não só por autorizar expressamente a extinção de débitos tributários por meio do
valor veiculado no precatório, mas principalmente diante do disposto no art. 6º da EC nº
62/2009, 48 o qual convalidou as compensações operadas anteriormente à data de sua
promulgação, quer se refiram a precatórios comuns ou a precatórios alimentares, com o
objetivo de encerrar ou ao menos diminuir definitivamente os debates acerca da questão.

4.3.4 Considerações finais

Diante do exposto, percebe-se que o novo regramento dado pelo legislador constituinte
em relação à compensação tributária reflete a consciência de que o instituto revela-se um
poderoso instrumento de redução da litigiosidade tributária e de pacificação da relação fisco-
contribuinte.

Não obstante, diante das limitações orçamentárias e financeiras pertinentes aos entes
públicos, não se deve menosprezar o fato de que a compensação como forma de extinção do
crédito tributário deve ser interpretada literalmente, podendo a lei estipular condições ou
garantias para o encontro de contas, nos termos do art. 170 do Código Tributário Nacional.
Com efeito, não é possível deixar de reconhecer que, ao lado do direito do contribuinte –
credor de liquidar seus débitos, exige-se o equilíbrio financeiro-orçamentário do ente estatal,

47
Embora a Constituição Federal (art. 100§9º) utilize o termo “compensação” de precatórios com tributos, alguns
autores esclarecem que a EC 30/2000 teria transformado os precatórios em verdadeira moeda para pagamento,
extinguindo o crédito por pagamento e não por compensação. (FERRAZ, 2009, p. 353).
48
“Art. 6º - Ficam também convalidadas todas as compensações de precatórios com tributos vencidos até 31 de
outubro de 2009 da entidade devedora, efetuadas na forma do disposto no § 2º do art. 78 do ADCT, realizadas
antes da promulgação desta Emenda Constitucional”.
120

motivo pelo qual o instituto da compensação no direito tributário encontra restrições não
previstas no campo obrigacional privado.

Tais exigências legais, contudo, não devem afrontar as permissões traçadas pela
Constituição, nem tampouco a legislação infralegal deve desrespeitar o princípio da
legalidade, impondo restrições não previstas em lei. Considerando que o contribuinte já sofreu
um desfalque em seu patrimônio decorrente do pagamento indevido de tributo, os gravames
estabelecidas devem se justificar como adequadas e necessárias (sem excessos), sem importar
em um sacrifício desnecessário individual ou coletivo.

Salutar, portanto, que os mecanismos de cobrança do crédito público sejam


aprimorados, tal como ocorreu com o instituto da compensação, sendo esta e outras políticas
legislativas decorrentes da necessidade de renovação dos meios preventivos de conflitos e do
anseio social e institucional por procedimentos mais eficazes, econômicos e céleres.

4.4 Transação tributária – um instrumento de justiça fiscal consensual

Desde a promulgação do Código Tributário Nacional vigente (Lei 5.172/66), a


transação encontra-se arrolada no art. 156, inciso III, dentre as causas de extinção do crédito
tributário. O art. 171 do diploma legal prevê a possibilidade de edição de lei ordinária que
faculte e estabeleça condições para que os sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária
celebrem transação e, mediante concessões mútuas, findem o litígio em torno do crédito
tributário. Dos dispositivos narrados, extrai-se que a transação dependente necessariamente de
previsão legal do ente tributante.

Diante da inexistência da regulamentação legal nacional/federal até os dias atuais,


permanece dogmatizada a ideia de que é vedada a transação como forma de extinção do
tributo, sobretudo diante da indisponibilidade do crédito público. Além desse argumento,
autores renomados afirmam que a transação poderá incrementar a prática da corrupção na
relação tributária, além de converter a tributação em instrumento de poder político, podendo
favorecer aliados e prejudicar oposicionistas (MACHADO, 2001, p. 134). O consenso chega a
ser tão forte, que a premissa parece intocável, intangível mesmo diante da necessidade
crescente de medidas alternativas de solução dos conflitos. Todavia, os princípios da
legalidade e da indisponibilidade do interesse público seriam realmente incompatíveis com a
inovação legislativa em torno da transação?
121

Em verdade, urge desmistificar o tema, uma vez que a aceitação de dogmas49 jurídicos
não se coaduna com as necessidades do ordenamento contemporâneo 50 . A dinâmica das
relações intersubjetivas exige o constante aprimoramento do ordenamento a fim de garantir
seu objetivo essencial, qual seja, a paz social. O Direito não é algo estático, mas sim dinâmico
por essência.

Bem por isso, imperioso que a transação tributária seja analisada sob o enfoque da
relevância de sua contribuição para o alcance da justiça fiscal. Nesse intuito, Heleno Taveira
Torres, prefaciando Arnaldo Godoy (2010, p. 11), informa que no final de 2007, o Ministério
da Fazenda resolveu instituir um grupo de trabalho dedicado à reforma do contencioso
tributário, com o propósito de reformular a legislação, além de atualizar e encontrar medidas
alternativas para soluções das controvérsias tributárias. Para os integrantes do grupo, dentre
eles, Arnaldo Godoy e Heleno Torres, a proposta não visa discutir apenas o contencioso
administrativo, mas também busca apontar opções ao contribuinte para a discussão do débito
tributário pautado na celeridade e consensualidade (GODOY, 2010, p. 12). À época, traçou-se
a estimativa de que:

No âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a fase administrativa do


processo tributário tenha, em média, uma duração de 04 anos para ser concluída e a
fase judicial, 12 anos. Esse fato, somado à ineficácia da execução fiscal dos créditos
tributários, explica, em boa medida, o fato de que menos de 1% do estoque da dívida
ativa da União de R$ 400 bilhões de reais ingressa nos cofres públicos a cada ano
por essa via, sendo que o percentual do ingresso não ultrapassa a dois vírgula cinco
por cento do estoque (R$ 9,6 bilhões de reais de arrecadação em 2006), mesmo com
as medidas de parcelamento adotadas (REFIS, PAES e PAEX) e com a incorporação
dos depósitos judiciais. O estoque da dívida ativa da União, incluída a da
Previdência Social, já alcança a cifra de R$ 600 bilhões de reais e, uma vez
incorporado o que ainda está em litígio administrativo, chega-se à impressionante
cifra de R$ 900 bilhões de reais. Esse número representa 1,5 vezes a arrecadação da
União de 2006 e, apenas no âmbito da arrecadação federal, cerca de metade do PIB
do país (Anteprojeto da Lei Geral de Transação Tributária – PL 5.089/09).51

49
Consoante se extrai da lição de Hugo de Brito Machado Segundo (2008, p. 7), geralmente, justifica-se a
dogmática jurídica com a afirmação de que “como se trata de descrição de normas postas, o estudioso teria que
delas partir necessariamente, não as podendo modificar. Seu papel seria descrever o direito que é, e não aquele
que deveria ser”. Arnaldo Vasconcelos, prefaciando Machado Segundo (2008, p. XV), ao atribuir significado
ao termo “dogma”, indica que seria uma questão de crença, na qual se acredita ou não, independentemente de
ser ou não absurda a proposição apresentada, e que “sustentado pelo princípio da autoridade, é estático por
definição, tem perfil reducionista, caráter conservador e postura fechada e acrítica. Categórico e irrefutável por
natureza, é puro ato em busca de conservação”.
50
Geraldo Ataliba (1978, p.19), em sentido contrário, defendia que o Direito deveria sempre ser encarado sob o
aspecto dogmático, pois os juristas não devem se comportar como cientistas. Ao receber o mandamento jurídico,
o bacharel deve tão somente recebê-lo e interpretá-lo, sem discutir sobre o seu conteúdo. No presente trabalho,
entende-se que tal posicionamento já se encontra ultrapassado pela necessidade corrente de o Direito alcançar a
justiça social.
51
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=431269>.
122

A partir da constatação de que a relação Administração Tributária – Contribuinte exige


aprimoramento, surge uma perspectiva concreta de introdução da transação no âmbito
tributário, adaptando a idéia de consensualidade aos limites da legalidade tributária, “até então
vista como objetiva e hermética aos desígnios da proteção da confiança legítima ou da boa-fé
no Direito Tributário” (GODOY, 2010, p.13). Portanto, diante da iminência da aprovação do
Projeto sobre a Lei Geral de Transação Tributária, cumpre analisar quais são suas premissas e
descrever de que forma a matéria tende a ser regulamentada no ordenamento jurídico
brasileiro.

4.4.1 A Lei Geral de Transação - Projeto de Lei 5.089/09

Com vistas a cumprir o conjunto de proposições que informam o II Pacto Republicano,


o Poder Executivo encaminhou para o Congresso Nacional o Projeto de Lei 5.089/09, o qual
versa sobre a Lei Geral de Transação Tributária, “resultado de discussões com vários setores
da sociedade, da administração tributária e do Poder Judiciário, focadas na transparência,
celeridade, desburocratização e eficiência nas relações entre o Fisco e os Contribuintes” 52
(GODOY, 2010, p. 16).

A exposição de motivos ressalta que “o escopo do anteprojeto consiste em constituir


nova relação entre a administração tributária e os contribuintes, possibilitando que as duas
partes, mediante entendimento direto, alcancem uma aplicação mais homogênea da legislação
tributária”. Ao elaborar o Projeto de Lei que regulamenta a transação tributária, seus autores
adotaram as seguintes premissas: a conduta do contribuinte, as atitudes reveladoras da boa-fé
e da confiança deverão ser levadas em consideração dentro de critérios previamente
entabulados.

As disposições propostas harmonizam-se com os permissivos existentes nos artigos 156,


incisos III e IV, 171 e 172 do Código Tributário Nacional (Lei nº 5172, de 1966, entre nós

52
Em 13 de abril de 2009, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário firmaram o II Pacto Republicano, cujo
objetivo principal é a consolidação do compromisso dos três poderes por um sistema de justiça mais ágil,
acessível e efetivo, sendo o primeiro Pacto ampliado para fortalecer a proteção aos direitos humanos, a
efetividade da prestação jurisdicional, o acesso universal à Justiça e também o aperfeiçoamento do Estado
Democrático de Direito e das instituições do Sistema de Justiça. Conforme assinalado na exposição de motivos
do anteprojeto 5.089/09, as outras medidas legislativas encaminhadas ao Congresso Nacional consistem na
edição de outras duas leis ordinárias (uma referente aos mecanismos de cobrança dos créditos inscritos na
dívida ativa da União e a outra, à execução fiscal administrativa) e uma lei complementar (alteração do Código
Tributário Nacional), essa última indissociável do referido anteprojeto, visto que alguns de seus efeitos
dependem das alterações naquela lei propostas (como os que tratam da interrupção da prescrição, das causas de
suspensão da exigibilidade do crédito tributário e da prova da regularidade fiscal).
123

vigorando com força de Lei Complementar). Segundo a sugestão apresentada, a transação


deve ser proposta pelo contribuinte e só poderá alcançar multas, juros e encargos pecuniários,
sendo vedada a negociação do principal correspondente ao tributo devido. O projeto prevê
quatro espécies de transação pré-estabelecidas: I) transação em processo judicial; II) transação
na insolvência civil (recuperação judicial e falência); III) transação por recuperação tributária;
IV) transação administrativa por adesão. Concomitantemente, a lei prevê a adoção da
arbitragem para a solução de conflito ou litígio, cujo laudo oficial será vinculante para ambas
as partes. Também prevê o Termo de Ajustamento de Conduta do contribuinte no curso de
medidas administrativas ou judiciais para garantir o crédito tributário efetuadas pela Fazenda
Pública.

Caberá à Câmara-Geral de Transação e Conciliação - CGTC, vinculada à Procuradoria-


Geral da Fazenda Nacional e composta paritariamente por procuradores da Fazenda Nacional
e por auditores-fiscais da Receita Federal do Brasil, disciplinar, analisar e deliberar sobre os
pedidos de transação. Muito proveitoso o fato de que o processamento da transação será
efetivado por um órgão técnico especializado, apto a lidar com a grande complexidade da
legislação tributária pátria, garantindo, assim, a resolução eficiente, segura e justa dos litígios
tributários, o que refletirá positivamente para aliviar o Poder Judiciário e as instâncias
administrativas de julgamento, com a eliminação dos desperdícios públicos decorrentes da
sistemática em vigor.

O anteprojeto estabelece os seguintes requisitos gerais para a transação: a) ocorrerá


somente nos casos previamente disciplinados e autorizados pela Câmara Geral de Transação e
Conciliação da Fazenda Nacional - CGTC (art. 4º); b) nos casos de valores superiores a um
milhão dependerá da prévia autorização do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, e
superiores a dez milhões, do Ministro da Fazenda (§ 3º do art. 4º); c) para valores inferiores
ao limite mínimo de execução fiscal, a PGFN, ouvida a CGTC, fixará os critérios de transação
(§4º do art. 4º); d) a transação não aproveitará nem prejudicará senão aos que nela intervirem
(art. 5º); e) o sujeito passivo facultará à Fazenda Nacional o acesso e a fiscalização dos
documentos necessários ao procedimento de transação (art. 10); f) a celebração da transação
implicará renúncia, pelo sujeito passivo ao direito sobre que se funda a ação ou recurso
administrativo ou judicial (art. 11); g) o termo de transação somente poderá ser discutido,
administrativa ou judicialmente quanto à sua nulidade (art. 12); h) a transação não se anulará
por erro de direito (§5º do art. 12); i) o termo de transação poderá ser revisto pela Fazenda
Pública, com efeitos ex nunc, quando fundando em lei ou ato normativo declarados
124

inconstitucionais pelo STF ou aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo contrário à


jurisprudência definitiva dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal (§6º do art.
12); j) o descumprimento das obrigações firmadas na transação (art. 13), autoriza a
interrupção da prescrição, a revogação dos compromissos presentes e futuros após
manifestação do sujeito passivo no prazo de 15 dias, a execução da dívida integral constante
do termo de transação e a cobrança integral do crédito tributário devido na origem, atualizado
e acrescido de juros de mora, descontando-se o valor arrecadado no período;

O anteprojeto também se preocupou em assegurar que a composição não deve estar ao


alcance do administrador inidôneo, motivo pelo qual criou mecanismos eficientes de controle
dos procedimentos a serem seguidos, para evitar margens de discricionariedade. Nos termos
do art.2º do Projeto de Lei 5.089/09, em todos os atos e procedimentos desta Lei, serão
observados os princípios do art. 37, caput, da Constituição, do art. 2o da Lei no 9.784, de 29 de
janeiro de 1999, e os deveres de veracidade, de lealdade, de boa-fé, de confiança, de
colaboração e de celeridade.

Por tratar-se de questão polêmica, a normatização proposta exige amplo debate jurídico.
As críticas formuladas são válidas para assegurar que os mecanismos de controle sejam
satisfatórios para a proteção do erário público, mas não devem inviabilizar a discussão,
votação e aprovação de matéria de tamanha relevância. Embora inicialmente tenha sido
atribuído regime de urgência no trâmite do projeto, diante dos mais variados questionamentos
e opiniões contrárias ao seu conteúdo, a proposta legislativa encontra-se parada desde
11/09/2009, quando o Poder Executivo solicitou o cancelamento da urgência e determinou-se
a criação de uma comissão especial para discussão do tema.53

4.4.2 A experiência brasileira

Embora a União ainda não possua uma Lei Geral de Transação Tributária que viabilize
ao contribuinte, a qualquer tempo, a negociação dos tributos devidos, o Governo Federal tem
editado leis esporádicas autorizando reduções substanciais do débito tributário para
contribuintes que pretendam regularizar a sua situação fiscal. Exemplo mais recente refere-se
à já mencionada Lei 11941/09, a qual, na hipótese de pagamentos à vista de débito vencido
até 30 de novembro de 2008 concedeu redução de 100% (cem por cento) da multa de mora e
de ofício, 40% (quarenta por cento) da multa isolada, 45% (quarenta e cinco por cento) dos
53
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=431269>
125

juros de mora e de 100% (cem por cento) sobre o valor do encargo legal. Além disso,
autorizou a reduções nos acréscimos e o alargamento do prazo caso o contribuinte opte pelo
parcelamento dos créditos vencidos até tal período. Trata-se de modalidade de transação
tributária por adesão.

Compartilha-se da opinião de que pacotes tributário-econômicos dessa estirpe


necessitam de aprimoramento, uma vez que comprometem a isonomia substancial entre os
contribuintes, além de estimularem o inadimplemento do tributo. É exatamente um vazio
legislativo que se tem com a ausência da Lei Geral de Transação Tributária. Ao mesmo tempo
em que o advento da lei episódica causa ojeriza na sociedade, por proporcionar privilégios
odiosos, renúncia exorbitante ao crédito fiscal, e a perpetuação de vantagens ilegais em
benefício de maus pagadores, sabe-se que, para aqueles contribuintes de boa-fé, o fim do
benefício pelo esgotamento do prazo legal representa um obstáculo intransponível para a
continuidade de suas atividades econômicas. Portanto, imperioso que a Lei Geral de
Transação substitua o modelo até então utilizado pelo Executivo Federal, consistente nos
parcelamentos excepcionais.

No âmbito dos Estados e dos Municípios, já existem algumas parcas experiências na


seara da transação tributária. Os estados de Pernambuco e do Rio Grande do Sul já
regulamentaram o uso do instrumento, assim como o fizeram os municípios de Campinas-SP,
Belo Horizonte-MG, Angra dos Reis-RJ e Curitiba-PR.

Exemplificando,54 o estado de Pernambuco editou a Lei Complementar nº 105/2007, a


qual dispõe sobre os procedimentos a serem adotados, no âmbito da Procuradoria Geral do
Estado, acerca da transação. O art. 3º da lei prevê que as transações judiciais e extrajudiciais
em que seja parte ou interessado o Estado de Pernambuco, suas autarquias e fundações
públicas, serão firmadas pelo Procurador Geral do Estado, fundamentado em parecer, após
ouvido o dirigente do órgão ou entidade estadual relacionado com a demanda e o Conselho de
Programação Financeira, devendo ser observados o interesse público e a conveniência
administrativa, na forma estabelecida em Decreto. 55 Segundo o art. 8º, As transações
referentes a ações judiciais que versem sobre matéria tributária não acarretarão dispensa de
tributo devido nem de multa, juros e demais acréscimos porventura cobrados, exceto se

54
Arnaldo Godoy (2010, p. 60-75) traça um esboço das legislações estaduais e municipais que regulamentam a
transação tributária, em especial, a Lei nº 11.475/2000 do estado do Rio Grande do Sul, a Lei 13.449/2008 do
município de Campinas, a Lei nº 262/84 de Angra dos Reis/RJ, Lei Complementar 68/2008 de Curitiba/PR.
55
A lei foi regulamentada pelo Decreto nº 32.549/2008.
126

cumulativamente atenderem às seguintes condições: (I) o litígio envolver matéria em


confronto com súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de
Tribunal Superior, e desfavorável à Fazenda Pública; (II) houver renúncia, por parte do sujeito
passivo da obrigação tributária, a eventual direito a verbas de sucumbência, compreendendo
os honorários advocatícios, que deve ser formalizada pelo advogado titular da verba, bem
como às custas e demais ônus processuais.

Nesse contexto, percebe-se que, ainda que timidamente, a transação tributária já faz
parte da relação Fisco - Contribuinte, sendo certo que o advento da Lei Geral de Transação
deverá assumir a missão de aprimorar os sistemas já existentes, delineando as regras gerais a
serem observadas pelos entes tributantes (art. 24 §1º da CF/88), a fim de evitar distorções que
quebrem a isonomia ou que provoquem qualquer espécie de guerra fiscal.

4.4.3 Considerações finais

Embora o presente trabalho não se proponha a analisar a epistemologia da transação,


nem tampouco vise apresentar sugestões ou críticas em torno do Projeto de Lei em trâmite no
Congresso Nacional, pretende-se provocar a discussão acerca da viabilidade da transação
enquanto meio de pacificação da relação Estado Sociedade. Já é tempo de se preencher a
lacuna legislativa em comento. Não se mostra razoável a ausência de alternativas ao
contribuinte de boa-fé, muitas vezes intencionado a alcançar a regularidade fiscal, mas
impedido de exercer de forma viável a sua atividade econômica. No cenário brasileiro atual,
beira o absurdo a simetria com a qual a lei brasileira trata os devedores de tributos.
Exemplificando, imagine-se a hipótese em que o contribuinte deve R$ 100.000,00 (cem mil
reais) de imposto de renda, estando o débito inscrito em Dívida Ativa da União e já ajuizada a
execução fiscal respectiva. Para a quitação do débito, pode a Fazenda Pública mover toda a
onerosa máquina judiciária, deslocar servidores, penhorar bens, realizar hasta pública, e,
enfim, através da prestação da tutela judicial, adentrar na esfera patrimonial do contribuinte e
reaver os valores devidos, no caso, R$ 100.000,00 (cem mil reais). Qual o custo de todo esse
procedimento? Por óbvio, exorbitante.56 Por outro lado, caso o contribuinte seja citado para
pagar o débito e, de imediato, procure a União, através da Procuradoria Geral da Fazenda

56
A fim de perquirir acerca da relação de custo-benefício no ajuizamento das Execuções Fiscais de tributos federais,
cumpre destacar que a Portaria MF nº 75, de 22 de março de 2012, que dispõe, entre outras matérias, sobre o não
ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou
inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais). A edição deste ato decorre do estudo promovido pela PGFN desde o ano
de 2010 e está inserida no contexto das ações que visam o aprimoramento da gestão da Dívida Ativa da União
(DAU), otimizando os processos de trabalho e aumentando, por conseguinte, a efetividade da arrecadação.
127

Nacional, com o intuito de quitar o valor devido, terá que arcar com os mesmos R$
100.000,00 (cem mil reais), sendo absolutamente indiferente se age com boa-fé e eticidade, ou
se age de forma temerária no bojo da execução fiscal, inclusive provocando atos para retardar
a satisfação da obrigação. Uma vez que o contribuinte não poderá ser beneficiado sequer com
a redução dos honorários advocatícios, logo percebe que não terá prejuízo algum em manter
judicializado o conflito, ao invés de propor uma solução mais célere, econômica e eficaz, qual
seja, que pode ser alcançada pela via consensual.

Qualquer debate acerca da transação deve fugir do nível meramente doutrinário, muitas
vezes dogmático, e buscar uma acepção mais pragmática para que a lei possa criar um modelo
de justiça consensual com regras, limites e objetivos bem definidos, sem dar margem a
negociações balizadas na improbidade administrativa. A adoção de mecanismos eficientes de
controle interno e externo trará reflexos positivos à aceitação social do novo instrumento, por
gerar transparência e segurança jurídica ao mecanismo. Ademais, o projeto dispõe que a
transação poderá ser nula se comprovados prevaricação, concussão ou corrupção passiva,
dolo, fraude, simulação, erro essencial quanto à pessoa ou quanto ao objeto do conflito (art.
12, III e IV do PL 5.089/09).

De fato, por pertencer à coletividade, o interesse público é indisponível, motivo pelo


qual o administrador não pode dispor discricionariamente do crédito tributário. Contudo, há
casos em que o Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público pode ser atenuado,
sobretudo quando a solução adotada pela Administração é a que melhor atende a este
interesse. E neste aspecto, o aumento da arrecadação será o principal avaliador da medida
quando esta for posta em prática.

Vale notar, ainda, que a morosidade na resolução dos litígios tributários produz graves
distorções nos mercados, sendo profundamente danoso para a livre concorrência. Os bons
empresários, ao cumprirem rigorosamente suas obrigações fiscais, têm que se submeter à
concorrência desleal de outros agentes que protraem no tempo o pagamento de tributos por
meio de discussões administrativas e judiciais meramente protelatórias.

Por fim, cumpre destacar que a transação importará na maior participação do


contribuinte junto à administração tributária, o que implica uma significativa mudança de
paradigmas na relação Estado contribuinte, tornando-a mais democrática.
CONCLUSÃO

As teorias políticas e econômicas adotadas pela Constituição Federal de 1988


claramente qualificam o Estado brasileiro como Estado Fiscal Social. Ao mesmo tempo em
que consagra um amplo rol de direitos fundamentais e objetiva a redução das desigualdades
sociais, exigindo ações afirmativas para o alcance das metas enunciadas, o financiamento
estatal é fundado predominantemente através da arrecadação de impostos e de contribuições
sociais.

Percebe-se, contudo, que o Estado Social Democrático de Direito ainda não restou
consolidado do Brasil. O nível de desigualdade cultural, financeira e social que alcança a
população é vergonhoso. O retorno do tributo à sociedade é insatisfatório, uma vez que as
atividades relacionadas à educação, à saúde e ao transporte público são prestadas de forma
extremamente precária. Por tal razão, afirma-se que o Brasil passou por um processo de
modernização tardio e arcaico, já que muitas das promessas da modernidade ainda não foram
concretizadas.

No mundo globalizado, a tarefa de efetivação do Estado Social não é fácil, pois encontra
obstáculos de origens políticas e ideológicas, profundamente marcados pelo neoliberalismo.
As propostas neoliberais de menor intervencionismo Estatal e de redução da carga tributária
global devem ser rechaçadas a todo custo, sob pena de o país retroceder socialmente. As
crises internacionais que assolam os países europeus, por si só, já retratam o caráter desumano
da política neoliberal, responsável por inserir a economia e as finanças desses países em um
contexto de lucro especulativo, em detrimento do desenvolvimento sustentável e compatível
com a dignidade humana.

A fim de afastar tal ameaça, exige-se que a sociedade tenha consciência de que a
tributação é o sustentáculo do Estado prestacional brasileiro. Todos os direitos e garantias
constitucionais relevam, direta ou indiretamente, a prestação de atividades estatais e,
conseqüentemente, acarretam custos aos cofres públicos. Por tal razão, a tributação não deve
129

ser concebida somente por sua função arrecadatória, mas, sobretudo como instrumento de
justiça social, através da distribuição de renda e da viabilização financeira das políticas
públicas sociais.

Nesse aspecto, é importante reconhecer que a jurisprudência do Supremo Tribunal


Federal evoluiu a passos largos no tema da efetivação dos direitos sociais, especialmente na
última década. Antes dessa evolução, prevalecia o entendimento no sentido de que os direitos
sociais constitucionalmente consagrados não passavam de normas programáticas, não sendo
aptos à exigência em juízo de sua concretização pelo Estado. Atualmente, este paradigma
encontra-se superado. É cada vez mais comum a tutela judicial de direitos sociais
constitucionalmente consagrados, sobretudo quando esta intervenção for necessária para
assegurar condições mínimas existenciais, como é o caso da concessão de remédios ou de
tratamentos médicos negados pelo Estado.

Além disso, este núcleo – mínimo existencial- tende a se alargar, na medida em que o
próprio homem segue em sua evolução natural conquistando melhores condições de
dignidade, o que sugere certa gradualidade no processo de concretização desses direitos.
Exemplificando, direitos que antes não integravam o núcleo mínimo dos direitos sociais
básicos, como o direito à creche para menores de cinco anos, hoje já constam neste rol, como
restou decidido no acórdão proferido no Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº
639.337/SP, publicado em 23/08/2011, por meio do qual a Corte reconheceu a exigibilidade
imediata dos direitos sociais à educação infantil para crianças com até cinco anos de idade,
admitindo a possibilidade de proteção judicial deste direito, independentemente da
disponibilidade financeira estatal, inclusive através da imposição de multa diária ao Estado
omisso.

Diante desta nova realidade, não basta que as decisões judiciais concedam os mais
variados direitos sociais. É preciso reconhecer que tais prestações acarretam custos, e que nem
sempre haverá disponibilidade financeira para a implementação desses direitos, ainda que
reconhecidos juridicamente. A Constituição Federal, por maior que seja o seu valor, é um
texto, que para ser concretizado, necessariamente tem que contar com o auxílio de toda a
coletividade e das instituições jurídicas. A lei escrita ou decisões judiciais, em concreto, não
suprem deficiência alguma caso não haja meios materiais de fazer tais comandos serem
cumpridos.
130

Para que o Estado de bem-estar social seja materializado, deve-se reconhecer que, ao
lado dos direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição Federal, existem
deveres fundamentais correlatos, dentre os quais se insere o dever fundamental de pagar
tributos. É este o fundamento da obrigação tributária mais compatível com a proposta de
Estado veiculada pela Constituição Federal de 1988.

É preciso suprir as barreiras decorrentes da ausência de condições financeiras do


Estado, sob pena de ser anunciada a crise no constitucionalismo brasileiro, já que a
inexequibilidade da Constituição, ou pior, das decisões judiciais e das escolhas
constitucionais, reflete em inevitável crise do Estado Constitucional. Diante desta situação de
conflito, acentuada pelo crescente antagonismo entre a administração e os administrados,
exige-se maior esforço por parte dos Poderes Constituídos na tarefa de legitimar socialmente a
tributação. Para atingir maior grau de harmonização do homem com o Estado, o Estado
deverá estar apto a identificar as causas de rejeição social do tributo, a fim de superar os
obstáculos que comprometem a arrecadação, através de mecanismos jurídicos e políticos de
aprimoramento do Sistema Tributário.

Alguns fatores se revelem muito fortes no argumento da rejeição social do tributo. A


carga tributária brasileira, por exemplo, é reiteradamente objeto de críticas pelos diversos
setores da sociedade, sendo a sua redução aclamada por variados segmentos. Todavia, tendo
em vista que a carga tributária global nunca superou o percentual histórico de 36% (trinta e
seis por cento), pode-se afirmar que o seu importe não é desproporcional ao nível de
desenvolvimento do país, inexistindo a situação de confisco tantas vezes alarmada. Por outro
lado, a carga tributária individual incidente sobre parcela da sociedade, em especial a classe
média e os pobres, demonstra-se arbitrária, desproporcional e confiscatória. A distorção
verificada é fruto da ausência de justiça fiscal e da não observância do princípio da
capacidade contributiva.

Outros problemas afetos à tributação acentuam tal percepção, pois a sonegação, a


globalização e a guerra fiscal refletem em oneração demasiada sobre o trabalhador tributado
na fonte, já que a perca de arrecadação acaba sendo redirecionada a esta classe.
Conseqüentemente, vislumbra-se a ocorrência de um verdadeiro apartheid fiscal, segregando
um grupo de contribuintes excessivamente tributados e outro grupo com benefícios odiosos.
131

Outrossim, a burocracia do Sistema Tributário vigente se apresenta como um


complicador do financiamento do Estado Social. A ausência de praticabilidade sobrecarrega o
contribuinte e o Estado, por exigir um largo aparato estatal na fiscalização da regularidade
fiscal dos sujeitos passivos. Além disso, a complexidade do Sistema Tributário só oportuniza
o incremento da sonegação fiscal.

Dentre os fatores de desestabilização da relação tributária, merece destaque a


politização do direito tributário e o consequencialismo jurídico incorporado às decisões de
forte impacto econômico e social proferidas pelos Tribunais Pátrios, em especial, pelo
Supremo Tribunal Federal. No Brasil, a politização do direito tributário possui poderoso
instrumento de concretização, especificamente quanto aos efeitos das decisões proferidas em
sede de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, qual seja, a
modulação temporal dos efeitos da decisão, prevista no art. 27 da Lei nº 9.868/99 e no art. 11
da Lei nº 9882/99. Se por um lado, as decisões já proferidas são criticadas por afetarem a
isonomia entre os contribuintes, por outro, tais julgamentos são pautados na razoabilidade e
na conformação do direito com a realidade social, com o objetivo maior de garantir a
segurança jurídica nas relações afetas ao Estado e à sociedade.

Apesar dos variados problemas inerentes ao Sistema Tributário contemporâneo, não se


permite afirmar a existência de uma crise do Estado Fiscal, caracterizada pelas dificuldades de
relacionamento entre a ordem econômica e o financiamento público mediante tributos,
marcada pelo desinteresse privado em torno das atividades produtivas. Embora efetivamente o
financiamento estatal por meio de tributos encontre árduas resistências, o que poderia levar a
crer na existência de uma crise, tal fenômeno não representa o fim do Estado, nem tampouco
levará à estatização dos meios de produção. Na quase totalidade dos países, a redistribuição
de renda através do Sistema Tributário ainda é considerada o instrumento mais eficaz de
política social.

Não obstante, deve-se ter em mente as lições do economista austríaco Joseph


Schumpeter (1954), que alertaram acerca da existência de limites ao que os governos
poderiam arrecadar sem prejudicar gravemente a economia e sem debilitar a sociedade
politicamente organizada. Deve-se ter em mente a máxima segundo a qual a finalidade dos
impostos é gerar receitas para sustentar o Estado, mas isso deve ser feito com o menor número
possível de efeitos maléficos aos contribuintes, à economia e à sociedade.
132

Portanto, considerando que a tributação ainda se mostra a ferramenta mais eficaz de


justiça distributiva em prol do alcance do bem-estar social, impõe-se que sejam retirados do
Ordenamento Jurídico os sacrifícios desnecessários impostos aos cidadãos, a fim de que o
Estado Fiscal não se afaste dos seus limites racionais.

O alto volume de contendas envolvendo o pagamento de tributos é preocupante,


demonstrando que a cobrança de crédito tributário no Brasil tem sido um problema que afeta
todos os Poderes Constituídos, além de comprometer a prestação e a tutela dos direitos
fundamentais. Diante desta realidade, o Ordenamento Jurídico ainda depende do
aperfeiçoamento dos instrumentos de pacificação da relação intersubjetiva tributária. É
necessário racionalizar o sistema, reduzir os elevados custos decorrentes da solução das
controvérsias, garantir celeridade e efetividade à demanda tributária e alargar os instrumentos
disponíveis para a extinção da lide.

Nesta tarefa, sujeito ativo e passivo da relação devem conceber os princípios


constitucionais como mandamentos de otimização da relação jurídica, em especial, os
princípios da segurança jurídica, da legalidade, da anterioridade, da irretroatividade, da
informação fiscal e do devido processo legal administrativo. Com o mesmo fim, os programas
de Educação Fiscal consistem em importante instrumento de conscientização da sociedade
acerca da realidade enfrentada pelo Estado Social. Pode surgir daí o espírito cívico de
solidariedade abstraído da sociedade brasileira.

Por fim, a adoção de instrumentos alternativos de solução da controvérsia tributária não


deve ser desprezada. A exemplo, a compensação demonstra-se eficaz na prevenção de
múltiplas demandas, traduzindo aspectos positivos na economia e celeridade da administração
tributária e judicial. Por isso, louvável a inovação efetivada pela EC nº 62/2009, por meio da
qual o mecanismo deu novo salto evolutivo e alcançou status constitucional. Desde então, os
§§9º e 10º foram incluídos no art. 100 da Constituição Federal de 1988 para autorizar a
compensação de créditos tributários com valores cobrados em precatório. O novo regramento
dado pelo legislador constituinte reflete a consciência de que o instituto revela-se um
poderoso instrumento de redução da litigiosidade tributária e de pacificação da relação fisco-
contribuinte.

Da mesma forma, o dogma da vedação da transação tributária deve ser superado. A


experiência nacional e estrangeira demonstram que a transação pode representar um
133

mecanismo eficiente na redução da litigiosidade tributária. Por isso, almeja-se a aprovação da


Lei Geral de Transação Tributária, objeto do Projeto de Lei 5.089/09, em trâmite no
Congresso Nacional. O diploma legal tem por escopo constituir nova relação entre a
administração tributária e os contribuintes, possibilitando que as duas partes, mediante
entendimento direto, alcancem uma aplicação mais homogênea da legislação tributária.

Nesse sentido, a Lei Geral de Transação Tributária tende a substituir os modelos de


parcelamentos excepcionais periodicamente concedidos pelo Executivo Federal, a exemplo do
veiculado na Lei 11.941/09. É pacífico o entendimento de que pacotes tributário-econômicos
dessa estirpe necessitam de aprimoramento, uma vez que comprometem a isonomia
substancial entre os contribuintes, além de estimularem o inadimplemento do tributo. É
exatamente um vazio legislativo que se tem com a ausência da Lei Geral de Transação
Tributária. Ao mesmo tempo em que o advento da lei episódica causa ojeriza na sociedade,
por proporcionar privilégios odiosos e a renúncia exorbitante de crédito fiscal em benefício
dos maus pagadores, sabe-se que, para aqueles contribuintes de boa-fé, o fim do benefício
pelo esgotamento do prazo legal representa um obstáculo intransponível para a continuidade
de suas atividades econômicas. A simetria com a qual a lei brasileira trata os devedores de
tributos já não conta com a aceitação social e deve ser objeto de reflexão legislativa.

Chama atenção o fato de que, apesar de as reformas tributárias em trâmite no Congresso


Nacional proporem medidas de simplificação dos tributos federais e do ICMS, tratarem da
guerra fiscal, reduzirem a oneração da folha salarial, dos investimentos e da cesta básica,
dentre outras medidas, não tocam substancialmente na Administração Tributária. Não faz
parte da reforma a reestruturação do modelo brasileiro da relação entre o fisco e o
contribuinte, à luz do princípio da dignidade humana e da concepção de justiça consensual.

Deve-se, contudo, aproveitar o bom momento vivido no Brasil, no qual, a despeito da


presença ameaçadora do pensamento neoliberal, os objetivos traçados pelo Estado Social
gradualmente passaram a ser defendidos e postos em prática pelos cidadãos, encontrando
acolhida, sobretudo, no Poder Judiciário, que tem atuado ativamente em prol da dignidade
humana e da promoção da inclusão social. As reformas tributárias em curso devem viabilizar
financeiramente tal fenômeno, prevendo instrumentos de legitimação social da tributação, a
fim de custear, na medida possível, as conquistas sociais dos últimos tempos, para que a
sociedade brasileira possa, finalmente, usufruir uma sociedade mais justa, humanitária e
democrática.
134

REFERÊNCIAS

AMARAL, Letícia Mary Fernandes. Brasil sobe no ranking mundial dos países com maior
carga tributária. Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Disponível em:
<http://www.ibpt.com.br/img/_publicacao/1389 1/189.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2012.

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Org.).
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.

ARISTOTELES. Ética a Nicomaco. Trad. Pietro Nasseti. 4. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001.

ATALIBA, Geraldo. Elementos de Direito Tributário. Propedeutica Jurídica. São Paulo:


Revista dos Tribunais, 1978.

AVI-YONAH, Reuven S. Public law and legal theory working paper series. Tax Convergence
and Globalizaton. nº 214. Michigan: University of Michigan Law School, july 2010.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (Triunfo


tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado,
Salvador, n. 9, mar./abr./maio 2007.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2010.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Social ao Estado Liberal. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

________. Teoria do Estado. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

________. Curso de direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

BRASIL. Ministério da Fazenda. Programa Nacional de Educação Fiscal. Sistema


Tributário Nacional. Caderno 3. 2. ed. Brasília: Esaf, 2005.

BUFFETT, Warren E. Stop coddling the super-rich. New York Times, 14 ago. 2011.
Disponível em: <http://www.nytimes.com/2011/08/15/opinion/stop-coddling-the-super-
rich.html?_r=2&scp=1&sq=buffett%20and%20taxes&st=cse/>. Acesso em: 10 maio 2012.

CALCIOLARI, Ricardo Pires. Aspectos jurídicos da guerra fiscal no Brasil. Revista de


Estudos Tributários, São Paulo, ed. 77, jan./fev. 2011.

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo:


Saraiva, 2004.

CARTA, Mino. Democracia e capitalismo. Revista Carta Capital, São Paulo, ed. 680. 13
jan. 2012. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/politica/democracia-e-
capitalismo/>. Acesso em: 31 jan. 2012.
135

CARVALHO, Paulo de Barros. Segurança jurídica e modulação dos efeitos. Porto Alegre:
FESDT, 2008.

_________. Segurança Jurídica no novo CARF. In: ROSTAGNO, Alessandro (Org.).


Contencioso administrativo: questões polêmicas. São Paulo: Noeses, 2011.

CAVALCANTE, Denise Lucena; CAMURÇA, Eulália. Cidadania fiscal: O direito à


informação da Carga Tributária no Brasil. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São
Paulo: Revista dos Tribunais, ano 20, nº 104,2012.

COSTA, Ramón Valdés. Instutiones de derecho tributario. Buenos Aires: Depalma, 1996.

CUNHA, Aécio S. Texto nº 258. Brasília: Universidade de Brasília, nov. 2002. (Série Textos
para Discussão).

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 27. ed. São Paulo:
Saraiva, 2007.

DERZI, Misabel Abreu Machado. A fiscalização tributária em um Estado Democrático de


Direito. Seminário: Fiscalização tributária - Contexto, práticas e tendências. BID-
UCP/PNAFE - Ministério da Fazenda, Minas Gerais. Disponível em:
<http://www.fazenda.gov.br/ucp/pnafe/cst/arquivos/Fisc-Democ-Misabel.doc>. Acesso em:
20 nov. 2010.

DRUCKER, Peter F. As novas realidades. No governo e na política, na economia e nas


empresas, na sociedade e na visão de mundo. Trad. Enio Matteus Guazelli. 4. ed. São Paulo:
Pioneira, 1997.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um


princípio em decadência?, Revista USP, n 21, São Paulo: 1994. Disponível em :
<http://www.usp.br/revistausp/21/SUMARIO-21.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012.

FERRAZ, Roberto. Grandes questões atuais do direito tributário – O pagamento de


tributos com precatórios – Caso de uso de moeda e não de compensação – A
inconstitucionalidade dinâmica da vedação à compensação. São Paulo: Dialética, 2009. v. 13.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves Direito constitucional e democracia: Entre a


globalização e o risco. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos - Direitos não dão nascem
em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo:


UNESP, 1991.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Transação tributária: introdução à justiça fiscal


consensual. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

HARADA, Kiyoshi. Repetição de tributo declarado inconstitucional. Disponível em:


<http://www.haradaadvogados.com.br/publicacoes/Artigos/770.pdf>. Acesso em: 6 jun. 2012.
136

KEYNES, John Maynard. The end of laissez-faire. 1926. Disponível em:


<http://www.panarchy.org/keynes/laissezfaire.1926.html> Acesso em: 10 fev. 2012.

_________. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Tradução de Mário R. da


Cruz. 1936. São Paulo: Abril Cultural, 1996.

KINZO, Maria D´alva Gil. Burke: a continuidade contra a ruptura. In: WEFFORT, Francisco
C. (Org.). Os clássicos da política. 14. ed. São Paulo: Ática, 2006. v. 1.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.


Trad. Rosina D'Angina. 3. ed. São Paulo: Ícone, 2008.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin
Claret, 2005.

MACHADO, Hugo de Brito. Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de


1988. 5. ed. São Paulo: Dialética, 2004.

__________. A transação no direito tributário. Revista Dialética de Direito Tributário, São


Paulo: Dialética, n. 75, 2001.

MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Por que dogmática jurídica? Rio de Janeiro:
Forense, 2008.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socrático a Wittgenstein. 7. ed.


Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. São Paulo: Dialética, 2001.

MARX; ENGELS. Manifesto ao Partido Comunista. Trad. Marcus Vinicius Mazzari, 1847.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141998000300002&script
=sci_arttext>. Acesso em: 20 jan. 2012.

MARTINS, Ives Granda da Silva. Uma proposta para acabar com a guerra fiscal. BDA –
Boletim de Direito Informativo, out./2011.

__________. Teoria da imposição tributária. São Paulo: LTr, 1998.

MELO, José Eduardo Soares. Curso de direito tributário. 8. ed. São Paulo: Dialética, 2008.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed.
São Paulo: Malheiros, 1998.

_________. Carta maltratada. Entrevista. Conjur, 2008. Disponível em: <


http://www.conjur.com.br/2008-set-28/ constituição _foi_desfigurada_ atender_globalizacao>
Acesso em 20 jun. 2012.

MELLO, Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco
C. (Org.). Os clássicos da política. 14. ed. São Paulo: Ática, 2006. v. 1.
137

MENDONÇA, Fabiano André de Souza. Democracia e legalidade na tributação da


Constituição Federal de 1988. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n.133,
jan./mar. 1997.

MENEZES, Anderson de. Teoria geral do Estado. 8. ed. revista e atualizada por José
Lindoso. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

MILL, John Stuart. Princípios de Economia Política. Vol. III. Trad. Luiz João Baraúna.
3.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MORAES, Bernardo Ribeiro. Compêndio de direito tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

MONTESQUIEU. O espírito das leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso. Brasília: UNB, 1992.

NABAIS, José Casalta. Considerações sobre a sustentabilidade do estado fiscal. Revista


Fórum de Direito Tributário – RFDT, RFDT, Belo Horizonte, ano 9, n.49, jan./fev. 2011.

________. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998.

NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Perspectiva ético-jurídica do planejamento tributário.


Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 419, 30 ago. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br
/revista/texto/5641>. Acesso em: 9 jul. 2012.

PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e


da jurisprudência. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado/Esmarfe, 2008.

PELAYO, Manuel Garcia. Las transformaciones del Estado contemporâneo. 2. ed.


Madrid: Alianza Universidad, 2005.

POLITI, James. Ricos engrossam coro por mais impostos nos EUA. Jornal Valor
Econômico, São Paulo, 28 ago. 2011. Disponível em: <
http://www.valor.com.br/internacional/982396/ricos-engrossam-coro-por-mais-impostos-nos-
eua >. Acesso em: 31 jan. 2012.

RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes, o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco C. (Org.).
Os clássicos da política. 14. ed. São Paulo: Ática, 2006. v. 1.

ROCHA, Armandinho. A ética e os tributos ao longo dos tempos. Revista de Controle e


Administração, Brasília, ano 1, n. 1, jun. 2005.

SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre a assim designada proibição de retrocesso social no
constitucionalismo Latino – Americano. Revista do TST, Brasília, v.75, n.3, jul./set. 2009.

________; ROCHA, Carmem Lúcia Antunes (Coord.). Constituição e segurança jurídica:


direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. A eficácia do direito fundamental à
segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso
social no Direito Constitucional Brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005.

SARMENTO, Daniel. Reserva do possível e mínimo existencial. In: MIRANDA, Jorge


(Org.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Gen/Forense, 2009.
138

SCAFF, Fernando Facury. Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico
perfeito e coisa julgada. Notas sobre a Reserva Legal Tributária no Brasil. 2. ed. Belo
Horizonte: Forum, 2005.

SCHUMPETER, Joseph A. The crisis of the tax state. International Economic Papers, New
York: MacMillan, n. 4, 1954.

SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003.

_________; ROCHA Carmem Lúcia Antunes (Coord.). Constituição e segurança jurídica: direito
adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. 2. ed. Belo Horizonte: Forum, 2005.

_________. Comentário contextual à constituição. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

_________. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Legalidade tributária. Revista Tributária e de
Finanças Públicas, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 20, n. 102, 2012.

SMITH, Adam. Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações.
Trad. Norberto de Paula Lima. Curitiba: Hermus, 2001.

STRECK, Lenio Luiz. O dever fundamental de pagar impostos. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 21 fev. 2001.

_________. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção


do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

_________. Constituição ou barbárie? – a lei como possibilidade emancipatória a partir do


estado democrático de direito. 2000. Disponível em: <http://www.leniostreck.com.br/site/wp-
content/uploads/2011/10/16.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2012.

SUNSTEIN, Causs; HOLMES, Stephen. The cost of rights. Cambridge: Harvard University
Press, 1999.

TAVEIRA, Heleno Torres. Direito constitucional tributário e segurança jurídica. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

TORRES, Ricardo Lobo. A ideia de liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal.


Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

__________.Curso de direito financeiro e tributário. 18. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

__________. Reforma fiscal do Estado ou reforma do Estado fiscal? Rio de Janeiro, 1996.
Disponível em: < http://www.rlobotorres.adv.br/htm/artreformafiscal.htm>. Acesso em: 4 jul.2012.

__________. Solidariedade e justiça fiscal. In: CARVALHO, Maria Augusta Machado.


Estudos de direito tributário em homenagem à memória de Gilberto Ulhoa Canto. Rio
de Janeiro: Forense, 1998.
139

VELLOSO, Rodrigo. Reforma tributária, carga pesada. Revista Super Interessante, São
Paulo: Abril, ed. 187-A, maio 2003. Disponível em:
<http://super.abril.com.br/cotidiano/reforma-tributaria-carga-pesada-443838.shtml>. Acesso
em: 23 mar. 2011.

Você também pode gostar