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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

PEREGRINOS DO CERRADO*

A ltair Sales B arbosa**

BAR BO SA, A .S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,
5: 159-193, 1995.

RESU M O : O Sistem a B iogeográfico dos C errados, pela diversidade de


ambiente, variedade de recursos e possibilidades de subsistência, exerceu, desde o
final do Pleistoceno e início do Holoceno, importância fundamental na fixação de
populações humanas, nas áreas centrais do Brasil.
Os grupos caçadores e coletores estabeleceram com este tipo de ambiente uma
relação bastante sábia, criando processos culturais singulares. A maior parte desses
processos continua de forma acentuada também na cultura dos grupos horticultores
e motiva o arqueólogo, de maneira geral, a incluir nos seus trabalhos inúmeras
possibilidades e a entender melhor a função do ambiente e a organização do espaço,
por populações de economia simples.

UNITERMOS: Arqueologia e Cerrado - Arqueologia do Brasil - Cultura e


Ambiente.

O Brasil possui sete grandes domínios morfo- • Domínio Roraimo-Guianense, situado


clim áticos e fitogeográficos (A b’Sáber, 1977), como um enclave dentro do Domínio Equato­
sendo que a maior parte, em função de sua história rial Amazônico, na fronteira entre Roraima,
evolutiva, mantém , de certa form a, um a inter­ Venezuela e G uianas. Constitui o dom ínio
dependência ecológica em que variados fatores úmido tropical da Gran Sabana, coberto por
exercem funções de amenizar, difundir, com ple­ vegetação campestre denom inada campos, do
m entar e, às vezes, suprir o todo. Rio Branco e Tumucumaque.
Esses domínios são os seguintes:
• D om ínio das C aatingas, situado em
• Domínio Equatorial Amazônico, situado áreas de depressões interplanálticas do N or­
no Norte e Noroeste do país, abrangendo os deste brasileiro, com clima de caráter semi-
baixos platôs tabuliform es, as grandes pla­ árido, drenagens intermitentes e sazonárias.
nícies, subsetores momelonizados florestados Constitui o Domínio do Trópico Semi-Árido,
e montanhas florestadas das encostas orientais coberto pela vegetação da caatinga, conhecido
andinas, até 600 metros de altitude. Constitui regionalmente por sertões secos.
o grande domínio do Trópico Úmido, coberto
• Domínio Tropical Atlântico, situado na
pela floresta úmida amazônica.
fachada atlântica tropical do Brasil, desde as
costas do Rio Grande do Norte até o Trópico
(*) Este artigo é dedicado ao Prof. Aziz A b’Sáber.
de Capricórnio. Em seu lim ite sul, prolonga-
(**) Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católi­ se pelo interior, em áreas do oeste paulista e
ca de Goiás - UCG. norte do Estado do Paraná. Constitui o Do-

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minio Tropical da Mata Atlântica, de caráter designações populares reflete sua totalidade eco­
úmido e superúmido. lógica, referindo-se apenas a um a m odalidade
fisionômica, às vezes associada a uma ou outra
• Dominio dos Planaltos Sul-Brasileiros,
configuração geomorfológica. No mesmo sentido,
cobertos por um velho núcleo de araucárias,
paradigm a p u ram en te b o tân ico não tem sido
situado em áreas planálticas subtropicais
suficiente para dem onstrar a totalidade e a im ­
atlânticas.
portância ecológica dos cerrados, uma vez que
• Dominio das Pradarias Mistas Subtro­ destaca ou enfatiza apenas parcelas fragmentadas
picais, situado na metade sul do Rio Grande de sua composição. Quando isso acontece, o caráter
do Sul e grande parte do Uruguai. Constitui o da biodiversidade, elemento marcante da ecologia
Dominio das Coxilhas, com campos e flo­ dos cerrados, não recebe a importância merecida,
restas-galerías subtropicais. nem sequer pode ser co m p reen d id a em seus
aspectos fundamentais.
• Dominio dos Cerrados, situado nos pla­
M odernam ente, a utilização do paradigm a
naltos centrais do Brasil, onde im peraram
biogeográfico tem demonstrado ser um referencial
climas tropicais de caráter subúmido, com
de fundam ental im portância para que se possa
duas estações - uma seca, outra chuvosa.
entender o Domínio dos Cerrados em sua globali-
Constitui o grande Domínio do Trópico Sub­
dade. Compreendendo os diversos matizes, tanto
úmido, coberto por uma paisagem que cons­
abertos com o u m b ró filo s, com o su b sistem as
titui um mosaico de tipos fisionômicos que
interatuantes e integrantes decisivos de um sistema
variam desde campos até áreas florestadas.
maior, o conceito biogeográfico tem ressaltado a
Esses sete domínios formam, na maior parte im p o rtân cia que os cerrados exercem para o
dos casos, intrincados sistemas ecológicos inter­ equilíbrio dos demais biomas do continente, além
dependentes. O Domínio dos Cerrados, dos cha- de demonstrar que a principal característica da sua
padões centrais do Brasil, pela posição geográfica, biocenose é a interdependência dos componentes
pelo caráter florístico, faunístico e geomorfológico, aos diversos ecossistemas.
constitui o ponto de equilíbrio desses variados Os cerrados exerceram papel fundamental na
dom ínios, uma vez que se conecta, através de vida das populações pré-históricas que iniciaram
corredores hidrográficos, com esses e com outros o povoamento das áreas interioranas do continente
domínios continentais. sul-am ericano. N a região dos cerrados, essas
Os chapadões centrais do Brasil, cobertos pelo populações desenvolveram importantes processos
dom ínio fitogeográfico e m orfo-clim ático dos culturais que moldaram estilos de sociedades bem
cerrados, constituem a cumeeira do Brasil e tam­ definidas, em que a econom ia de caça e coleta
bém da América do Sul pois distribuem signi­ imprimiu modelos de organização espacial e social
ficativ a quantidade de água que alim enta as com ca racterísticas p ecu liares. Os p ro cesso s
principais bacias hidrográficas do continente. culturais indígenas que se seguiram a este modelo
O Domínio dos Cerrados abrange os Estados trouxeram pouca modificação à fisionomia sócio-
de Goiás, Tocantins, M ato G rosso do Sul e o cultural e, em bora ocorresse o advento da agri­
Distrito Federal. Inclui a parte sul de Mato Grosso, cultura incipiente exercida nas manchas de solo
o oeste da Bahia, oeste e norte de Minas Gerais, de boa fertilidade natural existentes no domínio dos
sul do Maranhão, grande parte do Piauí e prolonga- cerrados, a caça e a coleta, principalmente a vege­
se, em forma de corredor, até Rondônia e, de forma tal, ainda constituíam fatores decisivos na econo­
disjunta, ocorre em certas áreas do N ordeste mia dessas sociedades.
brasileiro e em parte de São Paulo. Ecologicamente, A partir do século XVIII, o panorama regional
relaciona-se às Savanas, e há quem afirme que os começou a sofrer sensíveis modificações, com o
cerrados são configurações regionalizadas destas. incremento da colonização que se em brenha pelo
No Brasil, este tipo de paisagem recebe denomi­ interior do País em busca de ouro, pedras preciosas
nações diferentes, de acordo com a região: gerais, e índios escravos. Nesse contexto, e a partir dessa
em Minas e Bahia, tabuleiro, na Bahia e outras data, surgiram os primeiros aglomerados urbanos
áreas do Nordeste, e ainda campina, costaneira e e a exploração mais intensa dos recursos minerais,
carrasco, dependendo da região. Nenhuma dessas que com eçava a se incrementar, já provoca os

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primeiros sinais de degradação. Findo o ciclo da porque não apresenta esta característica; tampouco
mineração, a região dos cerrados permaneceu eco­ pode ser considerada uma unidade fitogeográfica,
nomicamente dedicada à criação extensiva de gado porque não se trata de uma área uniforme em termos
e à agricultura de subsistência. de paisagem vegetal. O mais correto é correlacionar
A lguns desses m odelos econôm icos ainda os diversos fatores que compõem sua biocenose, e
subsistem em espaços localizados até os dias atuais, defini-la como um Sistem a Biogeográfico. Um
e outros modelos ainda mais simples, baseados no sistema que abrange áreas planálticas - o Planalto
extrativismo, ainda são adotados por populações Central Brasileiro, com altitude m édia de 650
caboclas, habitantes atuais de espaços definidos. metros, clima tropical subúmido de duas estações,
O isolamento que a região manteve em relação solos variados e um quadro florístico e faunístico
às áreas mais populosas e economicamente dinâ­ extremamente diversificado e interdependente. A
micas do Brasil até meados da década de 60 fez fauna variada dos cerrados que transita noutros
com que este quadro permanecesse basicamente dom ín io s m o rfo c lim ático s e fito g e o g rá fic o s,
inalterado, fato que a implantação de Brasília alte­ também, por exemplo a caatinga, tem sua maior
rou consideravelmente, desestruturando os siste­ concentração registrada nessa região ou nesse Siste­
mas sociais implantados e causando entropias de ma Biogeográfico, em virtude das possibilidades
ordem biológica. alimentares que oferece durante todo o ciclo anual.
O potencial agrícola que os cerrados dem ons­ Há um estrato gram ínio que sustenta uma
tram, associado ao fato de ser uma das últimas re­ fauna de herbívoros durante boa parte do ano,
servas da terra capaz de suportar de modo imediato enquanto não está seco. A seguir, aparecem as
a produção de cereais e a formação de pastagens e flo res que, d u ran te um a d eterm in a d a ép o ca,
o desenvolvim ento das técnicas m odernas de substituem como alimento as pastagens. O final
cultivo, tem atraído recentemente grandes inves­ das floradas coincide com o início da estação
timentos e criado modificações significativas, do chuvosa, fazendo rebrotar os pastos secos, e ainda
ponto de vista da infra-estrutura de suporte. O fato com a m aturação de várias espécies frutíferas.
da não-exitência de um a política global para a Acompanhando os herbívoros e atrás também de
agricultura tem provocado o êxodo rural e o cres­ recursos vegetais, anim ais com outros hábitos
cimento desordenado dos núcleos urbanos. Todos formam uma complexa cadeia. Em termos vegetais,
esses fatores, em seu conjunto, têm provocado este S iste m a é co m p lex o e n u n ca p o d e ser
situações nocivas ao meio ambiente natural e so­ entendido como uma unidade: há o predomínio do
cial, com perspectivas preocupantes. cerrado (strictu sensu) como paisagem vegetal, mas
há também seus variados matizes, como campo e
cerradão, além de formações florestadas, como
O C errado com o Sistem a Biogeográfico m atas e matas ciliares, e ainda são com uns as
veredas e ambientes alagadiços.
A região dos cerrados se enquadra, em sua As áreas florestadas são constituídas pelas
quase totalidade, no interior da Província Zoogeo- matas ciliares que ocorrem nas cabeceiras dos
gráfica Cariri/Bororo de M elo-Leitão (1947) ou no pequenos córregos e rios, e em suas margens, como
D istrito Z oogeográfico Tropical, definido por tam bém se espalham em áreas m ais extensas,
C abrera e Yepes (1960). F itogeograficam ente, a c o m p a n h a n d o as m a n ch a s de so lo de b o a
porém, é tratada de forma particular, constituindo fertilidade natural. Por exemplo, as matas do rio
um a província própria; P rovíncia do C errado, Claro e outras vertentes do Paranaíba e o chamado
definida por Cabrera e Willink (Cabrera & Willink, “Mato Grosso de Goiás” . As veredas e ambientes
1980). Da mesma forma, Rizzini (1976), em sua alagadiços são mais abundantes a partir do centro
divisão fitogeográfica do Brasil, dispensa o mesmo da área nuclear (sudoeste de Goiás), em direção a
tra ta m e n to p a r tic u la riz a d o , in c lu in d o -a na norte e a leste. Para o sul, à medida que se aproxima
Subprovíncia do Planalto Central, em bora seus do pantanal matogrossense, as veredas tendem a
limites não coincidam com os limites da Província desaparecer, ficando apenas os am bientes alaga­
de Cabrera e Willink. diços com contornos diferenciados.
A região dos cerrados não pode ser entendida Nessa perspectiva, o Sistema Biogeográfico
com o uma unidade zoogeográfica particularizada, dos Cerrados pode ser subdividido em subsistemas

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esp ecífico s, ca racterizad o s pela fisionom ia e unidade homogênea, pois ostenta em seu domínio
com posição vegetal e anim al, além de outros uma série de ambientes diversificados entre si, pelo
fatores, apresentando a seguinte organização: caráter fisionômico e pela com posição vegetal e
Subsistema dos Campos; Subsistema do Cerradão; anim al. E stes am b ien tes co n stitu e m os seus
S ubsistem a das M atas; S ubsistem a das M atas subsistemas. Sua compreensão é de fundamental
Ciliares e Subsistemas das Veredas e Ambientes importância para se entender o sistema como um
Alagadiços. todo e o caráter da biodiversidade que ostenta. Esse
Essa diversidade de ambiente é um fator muito sistem a b io g e o g rá fic o é co m p o sto p o r seis
importante para a diversificação faunística, per­ subsistemas interatuantes.
mitindo a ocorrência de animais adaptados a am­ O S ubsistem a dos C am pos, o cupando as
bientes secos, com o tam bém adaptados a am ­ partes mais elevadas do sistema, apresenta mor-
bientes úmidos. Da mesma forma, propicia tanto a fologia plana denominada regionalmente chapa­
ocorrência de formas adaptadas a áreas ensolara­ dões ou campinas. Há forte ventilação durante
das e abertas como favorece a ocorrência de formas quase todo o ano, e a temperatura em geral é mais
um brófilas. Esses fatores atribuem ao Sistema baixa que nos dem ais subsistem as. A rede de
Biogeográfico caráter singular, distinguindo-o pela drenagem é insignificante. As vezes, aparecem
diversidade de formas vegetais e animais. pequenas lagoas, algumas perenes. A vegetação é
Estudos de paleoecologia demonstram que os arbustiva esparsa, e há uma com posição grami-
limites modernos do Sistema Biogeográfico dos nácea intensamente distribuída pela área. Durante
Cerrados não coincidem com os limites que deveria o Pleistoceno Superior, possivelmente esse Sub­
ostentar durante o Pleistoceno Superior e Holoceno sistema abrangia espaços geográficos maiores. Sua
Inicial. Estes extrapolavam em muito os limites presença atual pode ser explicada por fatores es­
da área core que hoje ocupa os chapadões centrais tru tu rais do solo, asso ciad o s a m ic ro clim as
do Brasil, prolongando-se na forma de “línguas” e especiais e ainda não totalmente refeitos da agres­
enclaves por grande parte da Amazonia Sul Ame­ são climática do Pleistoceno Superior.
ricana, alcançando áreas localizadas até mesmo ao O Subsistema do Cerrado constitui a paisagem
n o rte do rio A m azonas. Os m esm os estudos dominante do sistema. Ostenta um estrato gra­
dem onstram que, a par das regressões que este míneo diferenciado do campo pela ocorrência de
Sistem a sofreu em direção ao centro do Brasil árvores de pequeno porte e aspecto tortuoso, o que
simultaneamente à expansão da floresta úmida, foi, se explica pela teoria do escleromorfismo oligo-
apesar disto, o sistema sul-americano menos afe­ trópico. A rede de drenagem é boa e os solos são
tado pelas oscilações clim áticas do Pleistoceno de baixa fertilidade natural, mas não são uniformes.
Superior. Da mesma forma, no que diz respeito às Há formações de cerrado que ocorrem tanto em
m odificações na biom assa animal, foi um dos latossolos avermelhados como em solos arenosos,
sistemas sul-americanos menos afetado. Vale dizer dos quais são exemplos o sudoeste de Goiás e o
que a fauna que o caracteriza m odernam ente, oeste da Bahia, respectivamente.
representa, quando com parada com outros do­ Entre o Subsistema dos Campos e o Subsis­
m ínios continentais, quase 50% da biom assa tema do Cerrado, há uma paisagem intermediária,
animal que o caracterizava durante o Pleistoceno designada popularmente campo sujo. Não se con­
Superior e fases iniciais do Holoceno. Esse fato, sidera esta paisagem como um subsistem a à parte,
apesar das proporções, é significativo quando porque sua abrangência geográfica é pequena e,
comparado com a extinção animal que afetou outras ecologicamente, mostra as mesmas características
regiões do continente durante o Pleistoceno Su­ dos dois subsistem as, tendendo, ora m ais ora
perior e fases do Holoceno, que em alguns casos menos, para um ou para outro.
atinge a proporção de 98%. O Subsistema do Cerradão é, fisionomicamen-
te, mais vigoroso que o Subsistema do Cerrado.
Os Subsistem as do As árvores atingem de 10 a 15 metros de altura, e
Sistem a B iogeográfico dos C errados os solos demonstram maior fertilidade natural. Não
há um estrato gramíneo forte como no cerrado e as
Como foi mencionado, o Sistema Biogeográ­ árvores são mais encopadas. A rede de drenagem
fico dos Cerrados não pode ser tomado como uma é bastante significativa. A ntigam ente, alguns

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botânicos classificavam esta paisagem como floresta Os Cerrados no quadro


xeromorfa, denominação que foi abandonada. evolutivo da flo ra brasileira
O Subsistema das Matas ocorre em manchas
de solo de boa fertilidade natural. Às vezes, adquire No trabalho intitulado “A organização natural
a configuração de ilhas, em meio a uma paisagem das paisagens inter e subtropicais brasileiras”, de
dominante de cerrado, conhecidas pelo nome de 1971, a p re se n ta d o no III S im p ó sio so b re o
capões e, às vezes, formam áreas extensas, com­ Cerrado, A b’Saber apresenta uma pequena síntese
pactas e homogêneas, como é o exemplo clássico d a ev o lu çã o da flo ra b ra sile ira , a p a rtir do
do M ato Grosso de Goiás. C re tá c e o até o Q u a te rn á rio , e n fa tiz a n d o a
O Subsistema das M atas Ciliares ocorre nas descoberta dos depósitos de caliches e sim ilares
cabeceiras dos pequenos córregos e rios, acompa­ no m eio de sedim entos do grupo Bauru e em
nhando-os pelas suas margens em estreitas faixas. outras form ações e Cretáceas do País com o dado
Essas faixas são muito variáveis quanto à confi­ da m aior im portância na com preensão do assunto
guração. Há locais em que se alargam em forma (A b’Sáber, 1971).
de bosque, e há outros onde praticamente desa­ Segundo o autor, o Cretáceo Inferior com por­
parecem, como é o caso de algumas áreas do médio tou grandes desertos no País (deserto de Botucatu).
Tocantins. D aí p ara fren te, porém , houve um a sensível
No S ubsistem a das Veredas e A m bientes atenuação da aridez, posto que a maior parte do
Alagadiços, as cabeceiras de alguns córregos e rios País tenha comportado climas quentes semi-áridos
são às vezes caracterizados por ambientes alaga­ e subúmidos, segundo se pode deduzir pelos tipos
diços, decorrentes do afloramento do lençol de água de sedimentos cretáceos e suas microestruturas:
ou ainda em virtude de características im per­ uma geografia de grandes lagos rasos, situados em
m eabilizantes do solo. N este locais, são muito depressões detríticas interiores, envolvidos por
freqüentes as veredas, que são paisagens nas quais terrenos semi-desérticos, de extensão subconti-
predominam os coqueiros buriti e buritirana, que nental. A p resen ça de calich es em áreas tão
às vezes se distribuem, acompanhando os cursos distantes como as do Triângulo M ineiro, Rubião
d ’água até a parte média de alguns rios, formando Júnior, São Paulo e nas chapadas do N ordeste
uma paisagem muito bonita. Há um estrato inferior (Apodi, Araripe), onde ocorrem, identicamente,
de gramíneas que se apresenta verde durante todo sedimentos calcíferos lacustres, denotando solos
ano. Em alguns locais, o afloramento do lençol do domínio dos pedocals para as áreas interla­
chega a form ar verdadeiras lagoas, rodeadas por custres, elaborados certamente em condições semi-
buritis (M auritia vinífera). Esta paisagem é mais áridas ou relativam ente ásperas, tem sido um
freqüente do centro do Sistema em direção a norte argum ento forte neste sentido. A esse tem po,
e a leste. Quando se aproxima do pantanal mato- portanto, a vegetação som ente poderia ser tipo
grossense, sudoeste do sistema, as veredas tendem subdesértico e, provavelmente devido à tipologia
a desaparecer, ao passo que as áreas alagadas geral dos solos, teria sido uma flora diferente de
aumentam. todas aquelas conhecidas atualmente no país.
O Sistem a Biogeográfico dos Cerrados é li­ O soerguim ento pós-C retáceo do P lanalto
mitado poi_juna série de com plexas formas ve- Brasileiro, a par com os fenôm enos de circun-
getacionais interm ediárias que adquirem co n ­ denudação que compartimentaram o grande bloco
tornos específicos em direção à caatinga e outras territorial que se iniciava no rio Grande do Sul e ia
configurações em direção à floresta am azônica terminar na margem sul da Bacia Amazônica, criou
úmida. outras paisagens, sob a vigência de climas bem
No aspecto fisionômico e em muitos pontos mais úmidos do que os do Cretáceo, e à custa de
da com posição faunística, florística e de ocupação drenagens que foram preferencialmente exorreicas,
humana, as áreas com savanas da América do Sul, isto é, com franca saída para o mar. Este esquema
que aparecem nas Guianas, Venezuela e Colômbia, novo de topografia, mais com partimentada e de
muito se assemelham ao Sistema do Cerrado e, se solos relacio n ad o s com clim as m ais úm idos,
não fosse o caráter da descontinuidade, poderiam p erd u ro u p o r lo n g o s p erío d o s do T erciário .
perfeitam ente estar incluídas como um subsistema Acredita-se que, do médio Terciário para frente,
do mesmo sistema. os solos p red o m in an tes en q u ad rav am -se nos

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dom ínios dos pedalfers. E sta foi, verdadeira­ nância de clim as úm idos e clim as secos, com
mente, a grande m udança global de condições predominância genérica de solos do domínio dos
ocorrida na evolução dos planaltos e das paisa­ pedalfers.
gens interiores do Brasil, do Cretáceo Superior A b ’Saber assin ala ainda que, a p artir do
para o Terciário. Terciário Médio para o Quaternário, é que foram
Na documentação dos fatos que comprovam ela b o ra d o s to d o s os “s to c k s ” da v e g e ta ç ã o
esta grande mutação global de ambientes, uma relacionados de forma mais aproxim ada com o
participação especial está reservada às pequenas quadro atual inter e subtropical brasileiro (matas,
bacias detríticas, nas quais foram poupados se­ cerrados, caatinga, araucárias, pradarias). Tais
dimentos, em alguns compartimentos de planaltos floras, ou stocks, a partir do Quaternário flutuaram
brasileiros. Estando o território em pleno soer- no espaço sob controle das sucessivas mudanças
guimento epirogênico no decorrer do Terciário e climáticas forçadas pela instável paleoclimatologia
sujeito a drenagens tropicais abertas, houve uma dos tempos quaternários.
extraordinária evacuação de detritos para a região
do Prata e para a plataforma continental, restando Problemas referentes à
apenas uns poucos locais de sedimentação interior, distribuição dos Cerrados no
sem remoção por erosão. Trata-se dos casos da Pleistoceno Superior e Holoceno Inicial
Bacia de Taubaté, Bacia de São Paulo, Bacia de
C u ritib a, B acia de R ezende, B acia de Volta Os contornos cartográficos, que atualmente
Redonda, Bacia de Atibaia, Bacias de Fonseca e caracterizam o Sistema dos Cerrados, representam
Gandarela, Bacias costeiras isoladas do Sudeste e um evento muito recente, de acordo com inúmeros
Sul do País (Ribeira, A lexandra, Pelotas). No estudos de paleoecologia. Durante o Pleistoceno
Nordeste e na Amazônia, ocorrem importantes Superior e as fases iniciais do Holoceno, a área
massas detríticas dos fins do Terciário ou início do coberta por vegetação de cerrado era m aior do que
Quartenário. A presença de enormes quantidades a atual área de abrangência.
de horizo n tes argilosos no entrem eio desses Os estudos de geom orfologia evidenciam a
depósitos docum enta que, anteriorm ente à sua existência, durante o Pleistoceno Superior, de duas
deposição, a paisagem regional possuía solos grandes áreas core de cerrado: uma situada nos
oriundos do intemperismo químico, tropical úmido, chapadões do Brasil Central e outra, nos tabuleiros
com espessos regolitos, sobretudo nas rochas e baixos chapadões amazônicos. Esses mesmos
cristalinas. Sem essa argilificação prévia, não seria estudos evidenciam um a possível conexão ou
possível a formação da matriz para o fornecimento extensão dessas formações até áreas de Roraima,
de detritos finos para as aludidas bacias, mesmo Guianas e lhanos do Orinoco.
porque a rem oção dos m antos argilificados e D a m esm a fo rm a, in ú m e ro s es tu d o s de
alterados somente seria possível através de uma p alin o lo g ia relatam a o co rrên cia de savanas
fase agressiva de erosão areolar, concomitante- (cerrados) nas diversas áreas hoje ocupadas pela
mente com uma barragem tectônica eventual em floresta equatorial úmida.
determinados compartimentos de planaltos ou por A m aior p arte dos au to res afirm a que o
meio de um a nova fase de “em baciamento”, como fenôm eno se deve às oscilaçõ es do clim a do
foi o caso da Amazônia. Pleistoceno Superior, e de grande parte do Holoce­
Deve ter havido sempre grande trânsito de no, que afetaram profundamente todos os grandes
sedimentos finos na direção do Prata e da pla­ domínios do continente.
taforma continental, tendo sido poupados apenas No que se refere à Amazônia, principalmente
parte daqueles que foram carregados para a bacia aos baixos chapadões, que sustentavam uma área
A mazônica e os que saíram dos compartimentos core de cerrado e hoje ostentam uma paisagem
intermontanos do Nordeste e se dirigiram para a florestada, os estudos indicam que, durante o
faixa onde hoje está a franja detrítica do grupo período mencionado, a região foi afetada por climas
B arreiras. Identicam ente, os sedim entos que mais secos que favoreceram a perm anência do
ficaram aninhados em alguns raros, porém alta­ cerrado, nos platôs, e da caatinga, nas depressões.
mente significativos, compartimentos de planaltos Buscando correlacionar os dados de paleoeco­
do Brasil de sudeste, documentam sempre a alter­ logia com os dados de botânica, principalmente

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com aqueles que tratam do xerom orfism o do O conjunto de todas essas observações faz
cerrado, parece, à prim eira vista, haver certa possível a afirmação de que as áreas atualmente
contradição, pois estas pesquisas evidenciam que cobertas por vegetação de cerrado nos Chapadões
a água não é fator lim itante no desenvolvimento C entrais do B rasil representam um retrato da
da “vegetação de cerrado” . Entretanto, quando a configuração que essas áreas ostentavam também
paleoecologia se refere a “clim a seco” , está se no Pleistoceno Superior, ou seja, onde há cerrado
referindo a um “seco” relativo, tendo sempre como atualmente sempre houve cerrado, pelo menos até
referência as condições do clim a atual da área; o parâmetro de tempo do Pleistoceno Superior.
portanto, essa aparente contradição nesse sentido O mesmo não acontecia nas depressões e nos
não existe. Todavia, outras questões devem ser vales, pois a expansão dos eixos de semi-aridez,
consideradas, tendo como base os aspectos ligados provenientes do nordeste brasileiro e canalizados
à d ifusão do cerrado. E ssas observações d e­ por essas áreas, raleou a vegetação existente e ainda
monstram ser pouco provável que a vegetação de permitiu a colonização por formas associadas a
cerrado, que ocupava os baixos chapadões da ambientes semi-áridos. A retração desses eixos, já
Amazônia, hoje recobertos pelas florestas, tenham no Holoceno, favoreceu a retom ada e a expansão
expandido a partir de outras áreas core, por razões por núcleos florestados existentes em ilhas de maior
puram ente clim áticas, ocupando, dessa forma, umidade. Fato similar aconteceu na Amazônia, e
áreas anteriormente cobertas por outra formação foi agigantado, à m edida que a forte um idade,
vegetal - no caso, florestas. associada a outros fatores, mudou as condições
Em prim eiro lugar, as condições edáficas edáficas, favorecendo a expansão das florestas
associadas a esse stock vegetal não favoreceriam, sobre os baixos chapadões.
de imediato, uma difusão em escala tão larga. Outro Quanto à área do Brasil Central, as flutuações
argumento contrário é que uma mudança climática clim áticas foram mais intensas nas depressões
para condições mais áridas, mesmo ocorrendo de interplanálticas que envolvem ou penetram os
m aneira lenta, provocaria denudação do solo, altiplanos e chapadões regionais, com a paisagem
ressecando-o e impedindo, dessa forma, a migração de cerrado tendo sido mais ou menos estável nas
das espécies por sementes, o que consequentemente regiões maciças e elevadas da área e os climas,
impossibilitaria, com o passar do tempo, a forma­ ora mais secos ora mais úmidos, sim ilares aos
ção de uma área típica de vegetação de cerrado. atuais climas de tipo goiano, mato-grossense ou
Se essas observações estiverem corretas, como sudanês, afetando áreas como a depressão situada
as pesquisas atuais tendem a conduzir, é possível entre o Espigão Mestre e o Altiplano de Brasília,
afirm ar que a vegetação de cerrado, que ainda no as depressões interplanálticas do Alto Araguaia, a
Pleistoceno Superior ocorria nos baixos chapadões área do pediplano Cuiabano e a calha central da
da Amazônia, não representa uma expansão ou Bacia do Paranã (A b’Sáber, 1971).
difusão a partir de outras áreas nucleares, mais
precisam ente dos Chapadões Centrais do Brasil e, Alguns elementos da ecologia
sim, deveria constituir a vegetação original da área,
que foi conquistada posteriormente pela floresta, O S iste m a B io g e o g rá fic o dos C e rra d o s
em função das modificações do clima e do solo, ab ran g e área de um a g ran d e za esp ac ial que
fato perfeitamente possível, como atestam alguns re c o b re q u ase d o is m ilh õ es de q u ilô m e tro s
estudos botânicos. q u a d ra d o s, re g iã o de m a ciç o s p la n a lto s de
Pode-se concluir, a partir dessas observações, estruturas com plexas e planaltos sedim entares
que as manchas de florestas, em forma de ilhas, com partim entados; cerradões ou cerrados nos
ex isten tes à época na região não constituíam interflúvios e florestas - galeria contínua, ora mais
“refúgios” no sentido de representarem retração de larga ora m ais estreita; cabeceira em ligeiros
um a form ação vegetal anteriorm ente ocupando anfiteatros pantanosos; solos de fraca fertilidade
uma área mais ampla. É mais positivo afirmar que prim ária em geral; drenagens perenes para os
essas m anchas florestadas constituíam núcleos cursos d ’água principais e secundários, com o
originais da floresta úmida que, com o advento de d esap arecim en to dos “cam inhos d ’ág u a” das
situações favoráveis, expandiram-se sobre outras vertentes e dos interflúvios na época das secas;
formações. interflúvios m uito largos e bastante espaçados

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entre si, com pouca ramificação geral da drenagem Nesse contexto, podem ser agregadas as ilhas
na área core dos cerrados; enclaves de matas e de matas e m atas-galeria, integrantes decisivas
m anchas de solos rico s ou áreas de cais de desse ecossistema.
nascentes ou de olhos d ’água perenes; ausência No mesmo trabalho, Kuhlmann e seus cola­
de m am elonização, calhas aluvionais de tipos boradores afirmam que nem sempre é possível
particularizados, em geral não-m eândricos nos retratar com fidelidade, no m apa, os tipos de
planaltos; níveis de pediplanação nos com parti­ vegetação através da interpretação de imagem de
mentos de planaltos, pedim entos escalonados e radar e landsat, observando-se apenas as gra­
terraço s com cascalh o s; sinais de flutuações dações cinzas; mesmo depois de serem efetuados
clim áticas e paisagísticas vinculadas nas depres­ vôos de comprovação a baixa altitude, persistem
sões interm ontanas centrais ou periféricas da muitas dúvidas. Por essa razão, toma-se importante
grande área dos cerrados; climas do tipo sudanés, a análise dos padrões de relevo, solo e geologia.
co m p re c ip ita ç õ e s e n tre 1.300 e 1.800m m , Esses padrões, quando cuidadosamente analisados,
concentradas no verão e relativam ente baixas no servem de indicadores dos tipos de vegetação.
inverno; enclaves de matas na form a de capões M esmo quando o cerrado recobre grandes
de diferentes ordens de grandeza espacial. chapadas e chapadões tabulares, sua hom ogenei­
A área continua dos cerrados inclui pratica­ dade é quebrada com frequência por vales, tanto
mente os Estados de Goiás e Tocantins, oeste e os estreitos e os profundos como os amplos e os
norte de M inas G erais e Bahia, leste e sul do rasos, nos quais, pelo afloramento do lençol d ’água
Estado de M ato Grosso, a totalidade do Estado ou pela m udança dos com ponentes m inerais e
de M ato G rosso do Sul, sul dos E stados do orgânicos dos solos somados a uma maior proteção
M aranhão e Piauí. D essa área contínua e maciça, contra o fogo, a vegetação m odifica-se inteira­
há finas ramificações que penetram em Rondônia, mente, ora para o tipo florestal ora para os campos
sul do Pará e São Paulo. As áreas disjuntas de limpos com buritis, constituindo esses últimos as
cerrados inclusas em outros tipos de vegetação, belas paisagens das veredas.
de tam anhos variados, ocorrem em diferentes Ao se estudar a ecologia dos cerrados, observa-
partes do Brasil, notadamente no Nordeste, São se que uma das características mais marcantes da
Paulo, Paraná e Amazonia. sua biocenose é a dependência de alguns de seus
Anteriorm ente, enfatizou-se a noção da di­ componentes dos ecossistemas vizinhos. Muitos
versidade de formas vegetais que com põem os animais têm seu nicho distribuído entre o subsiste­
cerrados, enquanto sistema biogeográfico. Essa ma do cerrado propriam ente dito e das matas.
diversidade de matizes que constitui seus subsiste­ Podem, por exemplo, passar grande parte do dia no
mas tem constituído certas dificuldades para os cerrado e abrigar-se, à noite, nas matas e vice-versa.
pesquisadores determinarem que tipo de fisionomia
corresponde à vegetação original do cerrado, ou Topografia
pelo menos aquela que, sem um a provável inter­
ferência humana, reflita as condições ambientais O que caracteriza essa área é a alternância de
predominantes. formas topográficas representadas pelos relevos
Assim, nesta perspectiva, o cerrado não pode planálticos, morros de altura variada e depressões
ser entendido como uma unidade fisionômica. O estreitas ou amplas. Dependendo da espessura e
trabalho de Kuhlmann et alii sobre interpretação da com posição dos solos, as fisionom ias dos
de imagens de radar e landsat acerca da cobertura cerrados e de outros tipos de vegetação podem estar
vegetal da região dos cerrados ressalta também essa nitidamente separadas ou podem confundir-se, em
preocupação, e os autores afirmam: contatos pouco nítidos.
O que se procura definir com o termo Há áreas de pequenas superfícies, em que
cerrado não é apenas um tipo de vegetação, q u ase to d as as fisio n o m ias, com o m atas de
mas um conjunto de tipos fisionomicámente nascente, de galerias e de vereda são encontradas,
distribuídos dentro de um gradiente que tem constituindo-se em mosaico vegetal. Os tipos de
com o limites, de um lado, o campo limpo e, vegetação que recobrem a grande área do pantanal
do outro, o cerradão (Kuhlmann et alii, 1983: de M ato Grosso têm sido considerados como uma
205). u n id a d e sob a d esig n a ç ã o de C o m p lex o do

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Pantanal. Essa expressão, em bora registrada por Em trabalho posterior, o mesmo autor afirma
um bom número de pesquisadores e consagrada que as deficiências minerais limitam o crescimento
na literatu ra científica, não deve ser m antida e, em conseqüência, causam acúmulo de carbohi­
quando se referir aos mapeamentos de 1:1.000.000 dratos. O excesso de açúcares é utilizado para
e maiores: o que na verdade se observa nessa formação de cutículas espessas, de esclerênquima,
extensa planície é a influência da topografia em para produção, em resumo, de estruturas que dão
função das enchentes periódicas. à planta o caráter escleromorfo (Arens, 1971).
M aior ou m enor tempo de perm anência da G oodland (1969), ao estu d ar os solos do
água superficial e subsuperficial está inteiramente Triângulo M ineiro, estabelece uma relação entre
dependente das feições topográficas e do solo. os gradientes de fertilidade do solo com as diversas
Variações de apenas alguns centím etros podem fisionomias dos cerrados. Variam, do cerradão ao
definir a ocorrência de matas, cam pos lim pos, campo limpo de cerrado, os seguintes fatores: pH,
carandazais, campos permanentemente inundados, percentagem de carbono e nitrogênio, m atéria
etc. (Kuhlmann et alii, 1983: 205). orgânica, teor Ca+++ Mg++, K+, Al+++, percentagem
de alumínio, fosfatos e relação C/N.
Solos Assim, o solo do cerradão ocupa a extremidade
m ais alta do g radiente, por ap resen tar teores
Em 1948, Waibel estudou a vegetação e o uso elevados de matéria orgânica (N, P, K) Ca, Mg e
da terra no Planalto Central do Brasil e, ao constatar pH mais alto, baixa relação C/N e quantidades
que em áreas muito limitadas sob mesmas con­ menores de alumínio.
dições climatológicas pode-se encontrar urna gran­ Há uma estreita relação entre a riqueza orgâ-
de variedade de tipos de vegetação, concluiu que nico-mineral do solo e as fisionomias do cerrado.
eles dependem principalmente das condições edá- O xeromorfismo resulta também em grande parte
ficas, que, por sua vez, dependem das rochas que da carência de m icronutrientes do solo. E ssa
originam os solos (Waibel, 1984). carência, ou oligotropismo, limita o uso dos produtos
O mesmo autor, baseando-se em conceitos dos de fotossíntese, os quais ficam acumulados em
agricultores locais, afirma que há dois grandes tipos determ inadas partes das plantas, dando-lhes o
de solos na região dos cerrados: os solos de matas aspecto escleromórfico. Também o nanismo das
e os solos dos campos. Análises têm sempre reve­ p lan tas do cerrado é atrib u íd o à carên cia de
lado que os solos de cerrados (isto é, de campos) micronutrientes, como N, P e S, que são indispen­
são sempre mais pobres que os de matas. sáveis para a síntese das proteínas que entram no
Alvim e Araújo, autores que também destacam desenvolvimento normal de novos tecidos.
a im portância do solo para a com preensão dos
cerrados, afirmam, por exemplo, que a distribuição Clima
desta paisagem em sua região fitogeográfica é
aparentemente controlada pelo solo, mais que por Em trabalho intitulado “Climatologia dos Cer­
qualquer outro fator ecológico. Segundo esses rados”, Reis (1971: 239) faz considerações sobre
autores, as plantas dos cerrados parecem ser o b in ô m io c lim a /v eg e taç ão . D esse trab a lh o ,
tolerantes a um baixo teor de cálcio e a um pH destacam-se algumas conclusões, como a de que a
baixo, o que não permite o crescim ento de árvores vegetação de cerrado não é xerófita - logo, estará
típicas das florestas (Alvim & Araújo, 1952). na dependência de um clima subúmido; a condição
Arens (1958 a,b) admite que o pronunciado clim ática que determ ina o cerrado é a m esm a
xeromorfismo (escleromorfismo foliar) do cerrado responsável pelo aparecimento da mata; um a vez
seja uma conseqüência das condições oligotróficas satisfeita a condição climática, o cerrado aparecerá
dos solos, que são geralmente ácidos e empobreci­ ou não, na dependência de fatores edáficos, de ordem
dos em bases trocáveis. Afirma ainda que um dos nutricional; as diferenças de regime hídrico e térmico
fatores principais seria provavelmente a relativa em certos limites não implicam em modificações
escassez de nitrogênio assimilável, o que pode origi­ sensíveis na fisionomia da vegetação do cerrado.
nar o escleromorfismo oligotrófico, fazendo com que Camargo (1971), considerando as influências
a vegetação peculiar do cerrado seja selecionada pela clim áticas do ponto de vista dos aspectos micro,
deficiência de minerais, à qual teria se adaptado. topo e macro climáticos, afirma que, dada a escassa

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cobertura vegetal, as temperaturas do ar e a umida­ m esm o no auge da seca, flo ração e b rotação
de variam muito no decurso do dia. O autor sugere abundantes antes das chuvas pareciam contradizer
que essa condição microclimática severa é antes a noção geral de que a existência dos cerrados fosse
conseqüência que causa da vegetação. Também o devido à escassez de água.
topoclima tem efeito limitado sobre a vegetação E ssas observações iniciais de R aw itscher
natural. Essa vegetação é encontrada sob várias conduziram a uma série de trabalhos posteriores
condições macroclimáticas. de outros pesquisadores, no sentido de desvendar
Um dos estudos mais exaustivos sobre clima­ o aspecto de xerom orfism o que caracteriza a
tologia do Brasil foi apresentado por Nimer (1977). vegetação de cerrado.
Dentre outras observações, o autor reconhece que O primeiro trabalho experimental foi conduzi­
o domínio de um clima quente e semi-úmido, com do pelo próprio autor, com a colaboração de Ferri
quatro a cinco meses secos, empresta ao clima da e Rachid, no cerrado de Emas - em São Paulo. Entre
região Centro-Oeste do Brasil uma notável homo­ as muitas conclusões, os autores afirmam que a água
geneidade, e esta, por sua vez, é reforçada pela não é um fator limitante da vegetação de cerrado
uniformidade de seu sistema geral de circulação (Rawitscher, Ferri & Rachid Edwards, 1943).
atmosférica. Em trabalho mais extenso, no qual observa o
A essa homogeneidade climática corresponde comportamento estomático e de transpiração, Ferri
uma paisagem vegetal constituída pelos cerrados, (1944) chega às mesmas conclusões, evidenciando
em sentido lato, quebrada localmente por outros que a vegetação de cerrado de E m as não se
componentes do meio natural, tais como topografia, comporta, apesar de seu acentuado xeromorfismo,
litologia e solos. como adaptada a condições de seca.
Em 1955, Ferri publicou um extenso trabalho
O caráter xeromorfo dos cerrados intitulado “C ontribuição ao conhecim ento da
e c o lo g ia do ce rra d o e da c a a tin g a . E stu d o
Revestindo o solo especialmente com gramí­ comparativo do balanço d ’água de sua vegetação”
neas, entre as quais repontam ervas, arbustos e (Ferri, 1955). Na introdução, o autor caracterizou
árvores em proporções variáveis, a vegetação do os vários tipos de vegetação que ocorrem no Brasil
cerrado impressiona especialmente pelo aspecto e indicou sua distribuição. A seguir, focalizou a
tortuoso de suas árvores e arbustos, cujos caules atenção nos ambientes em que vivem as plantas
com frequência recobrem-se de espessa casca, com dos cerrados (em Emas) e da caatinga (em Paulo
folhas coriáceas e brilhantes ou revestidas por um A fonso). A presentou, d epois, um a d escrição
d enso conjunto de pelos, em prestando esses fisionôm ica dos dois tipos de vegetação, cuja
caracteres ao cerrado, a aparência de vegetação composição florística também analisou. Entrou,
adaptada às condições de seca. finalmente, no estudo pormenorizado de problemas
Não é de estranhar, pois, que até recentes anos m orfológicos, principalm ente da anatom ia das
fo sse o cerrado cham ado frequentem ente de folhas, da transpiração, do com portam ento es­
“cam po seco” . C ontribuía para isso o fato de tomático, dos déficits de saturação, entre outros
ocorrer tal vegetação muitas vezes em regiões onde relativos a um grande número de espécies carac­
é comum um período de 4 a 5 meses totalmente terísticas dos dois tipos de vegetação que estudou
sem chuvas. e comparou.
Parece não haver dúvida quanto a ter sido Fatos já descritos em trabalhos anteriores
Rawitscher o primeiro a considerar seriamente a foram postos em destaque: grande profundidade
possibilidade de que a vegetação de cerrado não dos solos dos cerrados; abundância de água nesse
fosse condicionada pela falta de água (Ferri, 1973: solo; profundidade considerável dos sistemas ra­
288). d icu lares das p lan tas p erm an en tes; p resen ça
Levaram-no a isso observações casuais nas freqüente de estrutura xeromorfa na vegetação do
freqüentes viagens feitas em várias partes do Estado cerrado, como estômatos em depressões, epidermes
de São Paulo, onde visitou cerrados, principalmente revestidas por cutículas espessas e camadas cu­
em Emas, próximo a Pirassununga. ticulares ou recobertas por numerosos pelos ou
Folhas enormes que muitas plantas de cerrado escamas, presença de hipoderme e parênquimas
apresentam, ausência de sinais de murchamento incolores, células pétrias e esclerênquimas bem

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desenvolvidos, etc.. Todos esses elem entos são caso, a água é perdida apenas através da cutícula e
habitualmente correlacionados a condições xéricas. essa p erd a-tran sp iração cu ticu lar na caatin g a
E, no entanto, o estudo do com portam ento da geralmente é muito baixa. Mas até isso pode pôr a
vegetação do cerrado não indica a adaptação a tais planta em perigo, e então um dos m eios mais
condições, que, em verdade, não existem. eficientes de proteção contra a seca é reduzir
A grande maioria das plantas permanentes dos consideravelmente a superfície transpirante pela
cerrados transpiram livremente e com altos valores, queda das folhas. Isso é o que realmente ocorre, e
mesmo nos períodos de secas mais pronunciadas; planta após planta se despoja de suas folhas.
som ente poucas m ostram pequena restrição no Alguns indivíduos das espécies mais resistentes
consumo hídrico nessa época. persistem enfolhados, porém até eles derrubam
As plantas do cerrado mostram, quase sem suas folhas quando a seca é realmente severa.
exceção, estôm atos abertos durante todo o dia, Em contraste com as plantas permanentes do
mesmo durante a seca. Também é comum encontrá- cerrado, as árvores e arbustos da caatinga têm
los abertos à noite. estômatos de reações muito rápidas. A Spondias
Em geral, as reações estomáticas das plantas tuberosa, Arruda, por exemplo, reduz mais de 50%
permanentes do cerrado são lentas. O fechamento do valor inicial de sua transpiração em apenas dois
total das fendas estomáticas, quando se faz cessar m inutos após cessar o suprim ento de água e
o suprimento hídrico arrancando a folha da planta, c o m p le ta fe c h a m e n to e s to m á tic o em cin co
pode consumir uma hora ou mais e, às vezes, nunca minutos( Ferri & Laboriau, 1952).
se com pleta inteiramente. A transpiração cuticular A transpiração cuticular indica geralm ente
é habitualmente muito elevada, embora as cutículas valores muito baixos na caatinga, apesar de não
e as cam adas cuticulares sejam espessas. Os serem espessas as cutículas.
déficits de saturação das folhas são baixos em O autor considerou ainda que a caatinga vive
geral, mesmo na época seca. O valor mais alto em condições de seca muito mais pronunciada que
en contrado foi da ordem de 5% do conteúdo o cerrado e é fisiologicamente adaptada a essas
máximo de água. condições, embora não tenha um xeromorfismo tão
Embora restritas a um habitat muito mais seco, acentuado quanto o cerrado, o qual, no entanto, não
a m aioria das espécies dom inantes da caatinga apresenta adaptação fisiológica a ambiente seco,
(exceto as bromeliaceae, as cactáceas e as euphor- o que induz à conclusão de que o que im porta
biaceae suculentas) não apresentam xeromorfismo realmente é a adaptação fisiológica, mas o autor
tão acentuado quanto as plantas do cerrado. considerou que duas questões importantes devem
Assim , não são freqüentes cascas espessas ser resolvidas: 1) se a vegetação do cerrado não
nem folhas coriáceas ou pilosas. Cutículas grossas, vive, em geral, em am biente seco, por que é
e stô m a to s em d e p re ssõ e s, ab u n d a n te tecid o xeromorfa? 2) por que não se desenvolveram na
m ecânico são tam bém incom uns. Em bora com c a a tin g a , com m aio r fre q u ê n c ia , c a ra c te re s
x ero m o rfism o m enos p ro n u n cia d o que o da xeromorfos, ao lado dos mecanismos fisiológicos
v eg etação do cerrado, as plantas da caatinga de proteção contra a seca? não dariam eles proteção
revelam-se melhor adaptadas fisiológicamente para adicional às plantas contra a perda de água?
sobreviverem em condiões xéricas. O autor tentou responder a primeira questão
M esmo durante a época das chuvas, várias por meio de duas formas: a) o xeromorfismo do
plantas já revelam necessidade de restrição do cerrado nada tem a ver com proteção contra a seca,
consumo hídrico, ficando com estômatos abertos tendo-se originado por qualquer outra razão; b) a
somente nas primeiras ordens do dia; outras, após vegetação do cerrado pode, eventualmente, estar
fecharem os estômatos nas horas e condições mais sujeita a secas pouco severas, contra as quais basta
severas, reabrem -nos à tardinha. M uito poucas a proteção de pelos, cutículas espessas, estômatos
podem manter estômatos abertos durante o dia. aprofundados, etc.. A vegetação do cerrado não
À m edida que se agrava a seca, curvas de teria estado sujeita a um estímulo bastante forte,
transpiração indicativa de grande restrição no durante seu processo evolutivo, para desenvolver
c o n s u m o h íd ric o to rn a m -s e c a d a vez m ais e selecionar mecanismos fisiológicos de proteção
freqüentes. Por fim, quase todas as plantas mantêm contra a seca. Tal seleção teria ocorrido, entretanto,
os estômatos fechados durante todo o dia. Nesse no ambiente mais seco da caatinga.

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Com respeito à segunda questão, o autor com portamento estomático, mostrando estô­
considerou que, durante a evolução da vegetação matos abertos durante o dia, em quase todas
da caatinga, sempre que o xeromorfismo aparece as plantas nos três locais, confirma a conclusão
isolado não pode ser fixado, pois, não dando acima (Ferri & Coutinho, 1958).
p ro teção sa tisfató ria co ntra a perda de água,
Pelo que se pode concluir, a água não é fator
permitiu que morressem as espécies às quais isso
lim itante do desenvolvim ento da vegetação do
sucedeu. Quando surgiram apenas os mecanismos
cerrado nas três localidades consideradas.
fisiológicos de proteção contra a seca, eles puderam
Posteriormente, Ferri e outros pesquisadores
ser selecionados, pois, dando suficiente proteção
realizaram pesquisas similares em outras áreas de
às espécies que os envolveram, permitiram-lhes a
ce rra d o , em G o iân ia, P ern am b u c o (F e rri &
sobrevivência.
Lambert, 1960).
Por que, entretanto, não pôde ser selecionado
um núm ero m aior de espécies em que os dois
O agente fogo
grupos de m ecanismos de proteção apareceram
reunidos? Para explicar tal fato, o autor admitiu
Não se pode levar adiante qualquer estudo
que o xeromorfismo deve ser, de qualquer forma,
sobre os cerrados, se não se tomar em consideração
prejudicial às plantas no ambiente seco da caatinga.
o fogo, elem ento intim am ente associado a esta
Supôs que, devido à falta de água, a possibilidade
paisagem . A pesar de sua im p o rtân cia p ara o
de realizar fotossíntese ficasse restrita a um período
entendimento da ecologia desse ambiente enquanto
curto. Q uando o período da seca am eaça, os
conjunto biogeográfico, a ação do fogo nos cerrados
estômatos se fecham rapidamente, mas assim que
é ainda mal conhecida e geralmente m arcada por
o perigo se afasta, eles se abrem depressa e então
questões mais ideológicas que científicas. Também
nada deve dificultar o acesso de luz e de gás
não se pode conduzir seu estudo com base apenas
carbônico. Assim, os estômatos não devem estar
nas comunidades vegetais. O estudo do fogo como
em depressões, nem cobertos por pelos, mas, ao
agente será mais completo se também se observar
contrário, devem estar bem expostos, como, de fato,
a comunidade faunística e os hábitos que certos
geralmente acontece.
animais desenvolveram e que estão intimamente
O autor admitiu que se deveria pensar em valor
associados à ação, cuja assimilação, sem dúvida,
adaptativo de caracteres combinados, em relação
necessita de arranjos evolutivos caracterizados por
a conjuntos de processos, e não em valor adaptativo
tempo relativam ente longo. De algumas dessas
de um caráter isolado, em relação a um processo
observações, constata-se, por exemplo, que a perdiz
único. No presente caso, o xeromorfismo com bi­
(R hyn ch o tu s ru fe sce n s) só faz seu ninho em
nado com mecanismos fisiológicos de proteção
“macegas”, tufos de gramíneas queimados no ano
contra a seca teria, na caatinga, um valor adaptativo
anterior. D a v isita a várias áreas de cerrado
menor que a proteção fisiológica somente porque
im ediatam ente após grande queim ada, tem -se
a proteção adicional contra a perda de água que o
constatado que, apesar de as árvores e arbustos se
xeromorfismo daria à planta não compensaria o
m ostrarem enegrecidos superficialm ente, estes
prejuízo causado à sua fotossíntese.
continuam com vida, ostentando ainda, entre a
No cerrado, o xeromorfismo não seria prejudi­
casca enegrecida e o tronco, intensa microfauna.
cial, pois, devido à abundância d ’água, os estôma­
Fenôm eno sem elhante acontece com o estrado
tos mantêm-se abertos, em geral, o dia todo.
gramíneo: poucos dias após a queimada, mostra
Do estudo feito sobre a transpiração e o
sinais de rebrota que constitui elemento fundamen­
co m portam ento estom ático, F erri e C outiner
tal para concentração de certas espécies animais.
concluem:
O fogo é um elemento extremamente comum
A análise do andamento diário da transpi­ no cerrado, de tal forma antigo, que a maioria das
ração de diferentes espécies, na época, revela plantas parece estar adaptada a ele.
não existir um a diferença fundam ental de Ferri (1973: 297), com entando trabalho de
comportamento nas três regiões consideradas. Rachid Edwards sobre a ação do fogo em áreas de
Revela ainda não haver, em qualquer dessas cam po lim po e cerrado, inform a que a autora
lo c a lid a d e s , n e c e s s id a d e de a p re c iá v e l (Rachid Edwards, 1956) estudou especialm ente as
restrição do consumo hídrico. O estudo do gramíneas, grupo que constitui a massa da vegeta­

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ção baixa dos cam pos, e no qual existe grande térmico atmosférico montam rapidamente tempes­
número de espécies tunicadas. Entre elas destacam- tades magnéticas caracterizadas pela intensidade
se A r is tid a p a lle n s , Im p e ra ta b r a s ilie n s e s , dos trovões, relâmpagos e raios (Nascimento, 1987).
Tristachya leiotachya e Paspalum carim atum , Atualmente, a forma descontrolada de utiliza­
Flugge. Inform a ainda que a autora estudou duas ção do fogo pelo homem vem provocando sérios
espécies de Schizacaceae (Filicinae) - A nem ia desequilíbrios nesse sistema biogeográfico.
anthrisifolia e A. fulva.
Rachid Edwards indica neste mesmo trabalho Problemas relacionados
que as form ações túnicas são encontradas em com a difusão dos cerrados
plantas da vegetação baixa dos cam pos, como
Graminae, Cyperaceae, Iridaceae, Filicinae, etc.. O problem a da origem do cerrado, tanto no
Indica ainda que, segundo Bouillene e ta lii (1930),
sentido evolutivo como no sentido sucessional, nem
ocorrem também em Velloziaceae pontos vegeta­ sempre é tratado com a clareza e a distinção que o
tivos e, em função, com param-se aos catafilos que tema exige. Entretanto, levantar alguns dados é da
protegem as gemas dormentes. Tais elementos, maior importância para compreender alguns fatores
além de protegerem contra a perda da água, são
ligados à sua difusão bem com o às áreas de
eficazes na proteção contra o fogo e contra o forte distribuição em épocas mais recuadas.
aquecimento por ele produzido. O primeiro problema para o qual se chama a
A autora ainda trata dos sistemas subterráneos atenção refere-se à difusão da vegetação de cerrado.
(bulbos, rizomas, tubérculos e xilopódicos), que Não há muitos estudos nesse sentido, e os que
tam bém proporcionam resistência às condições existem referem -se às áreas p eriféric as, nem
adversas. sempre típicas. Todavia, apesar desse fato, esses
Arens (1958 a, b) afirma que o fogo é um fator estudos trazem alguns pontos elucidativos de
que acentua o o ligotrofism o, influindo dessa grande importância.
m aneira sobre conservação ou propagação do Em nota com plem entar que acom panha a
cerrado, e Goodland (1969) sugere que a ação do apresentação preliminar do mapa fitogeográfico do
fogo sobre m icroorganism os do solo é m uito Estado do Paraná, Brasil, Maak (1949) opina que
importante no cerrado, porém pouco conhecida. A as ilhas de cerrado que ocorrem no Paraná devem
produtividade primária é aumentada, pois há uma ser relictos de uma vegetação clímax, sendo as
aceleração da ciclagem dos nutrientes minerais. matas do Paraná a formação secundária de sucessão
N a m esm a linha de raciocínio, C outinho mais recente.
(1976) inform a que a ação do fogo no cerrado Comentando o trabalho de Maak, Ferri (1973:
aum enta o vigor da vegetação herbáceo-subarbus- 302) conclui, contrariam ente, que no local em
tiva, enquanto a arbustivo-arbórea o tem diminuído. q u estão os elem en to s de ce rra d o d evem ser
Isso significa, de acordo com o autor, um aumento considerados como invasores.
progressivo das áreas de campo sobre as áreas de Em 1960, C outinho e F erri, estu d an d o a
cerrado e áreas de cerradão. transpiração e o com portamento estom ático das
Outro dado importante a destacar, quando se espécies de cerrado que ocorrem na área m encio­
p rocura entender a ação do fogo ao longo da nada por M aak, Campo do M ourão, Estado do
história, é que a ação do hom em pré-histórico Paraná, afirmam:
brasileiro não funcionou como elemento perturba­
dor dessa paisagem porque, além da ocupação do “Próxim o do centro da cidade, encon­
interior do Brasil ser um fato relativamente recente, tramos um grupo de plantas que ocorrem em
era insignificante em termos populacionais para numerosos cerrados, e a vegetação que estu­
produzir perturbações em am plas escalas; suas damos não tem o aspecto típico dos cerrados
ações revestem -se de caráter puramente local. que conhecemos em outras localidades. (...)
Ao longo do tempo, a ação do fogo no cerrado Como foi mencionado acima, a vegetação que
deve ser buscada em causas naturais. O calor e as estudamos não constitui um cerrado típico. Os
variações do albedo sempre alto nas áreas provocam exemplares das espécies típicas de cerrado que
intensos movimentos convectivos na atmosfera, em encontramos eram, em geral, de pequeno porte
que a concentração da umidade e o forte gradiente e de troncos delgados. (...) Finalmente, deve-

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BARBO SA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

se anotar a ocorrência de num erosas plan- Se uma área coberta por floresta é devastada
tin h a s, sem d ú v id a alg u m a o riu n d as de pelo homem e se sementes de plantas de cerrado
sementes, o que não é freqüente em cerrados aí caírem logo, a situação é bem diversa: a superfície
velhos, bem estabelecidos em determ inada do solo é macia, tem um alto teor de coloides e uma
região. Tudo isso faz supor que a migração de boa capacidade de retenção de água. Aí as sementes
elementos de cerrado para aquela localidade é podem germinar logo e uma alta porcentagem de
relativamente recente” . plantas pode sobreviver. Com o correr do tempo,
Em trabalho de 1961, no qual reuniu dados e entretanto, as condições do solo conquistado pelo
observações próprias e de outros pesquisadores cerrado tornam-se cada vez menos favoráveis, até
referentes à ecologia dos cerrados, Ferri retoma o que a situação se equipare à descrita no início, com
tema da difusão do cerrado e focaliza, em especial, referência aos cerrados antigos.
o fato de que, após vários anos de pesquisas no C om o adendo às o b serv açõ es de Ferri e
cerrado, surpreendeu-se com a constatação de que colaboradores, acrescentem-se algumas das obser­
nunca encontrou plantinhas de espécies permanen­ vações do professor Binômio da Costa Lima, além
tes que p u d esse dizer, com se g u ra n ça , que de outras nossas. As observações de Costa-Lima
provinham de sementes (com exceção do caso já datam de 1950, ao passo que as nossas são de 1975,
mencionado de Campo do Mourão, que não é um quando efetivam ente passam os a acom panhar
cerrado típico). Reprodução vegetativa de vários aquele pesquisador em suas jornadas de campo.
tipos é responsável pela manutenção desta vegeta­ A mbos constatam os que em áreas onde a
ção em determinado local e pela sua expansão em vegetação original era constituída por matas, e
áreas adjacentes, mas a ocupação de locais mais quando estas são degradadas e abandonadas, sem
afastados só pode verificar-se por germinação de atividades que requeiram manejo do solo, a tendên­
sementes. cia é o aparecimento de espécies típicas da mata
E xperiências com sem entes de Stryphno- que formam uma paisagem de árvores de cresci­
dendron a d strin g e n s, D im orphandra m ollis, m ento rápido, retilín eas e finas, d enom inada
E rio th e ca g ra c ilip e s, K ielm eyera co riá cea , regionalm ente “capoeiras” . Esse fenôm eno foi
Annona coriácea, Aspidosperma tomentosum, etc. observado em várias localidades do sudoeste de
revelaram que não há dificuldade para a germina­ Goiás, em manchas de matas com cerrado nas
ção em condições de Laboratório. No cerrado, proximidades.
entretanto, as mesmas sementes não germinaram Quando a área de mata é degradada e aí se
ou o fizeram em porcentagem muito pequena. exerce algum a atividade de m anejo do solo,
M esm o quando houve algum a germ inação, a abandonada em seguida, observou-se que aumenta
sobrevivência final foi extremamente baixa. significativam ente a ocorrência de leguminosas
O autor acredita poder explicar o que se passa: num primeiro estágio. Em seguida, com eçam a
as sementes das plantas permanentes do cerrado surgir espécies típicas de matas. Em ambos os
são produzidas e dispersadas, via de regra, ao final casos, não se observa a invasão dessas áreas por
da época seca. Muitas são comidas por insetos e espécies de cerrado.
outros animais. M uitas m orrem pelo excessivo Constatamos também a retom ada da mata nos
calor solar. Algumas apenas são preservadas em seus aspectos originais em áreas onde atualmente
certos pontos mais abrigados. Nos cerrados antigos, ocorrem sítios arqueológicos e que foram degrada­
a superfície do solo é dura e tem um baixo teor de das para implantação de aldeias, por indígenas
coloides. Assim, quase toda a água das primeiras conhecedores da prática agrícola, com a abertura
chuvas corre pela superfície. As sem entes que de clareiras para suas roças. Essas áreas, depois
in iciam sua germ inação com estas prim eiras de abandonadas por essas populações, retomaram,
chuvas podem não encontrar água suficiente para com o passar do tempo, suas características pri­
prosseguirem em seu desenvolvimento. Mesmo que márias. Convém salientar que, nas áreas obser­
algum as plan tin h as consigam nascer, podem vadas, o período que separa a época do abandono
morrer em seguida, por falta de água, se alguns pelas populações indígenas até os dias atuais é de
dias sem chuva sobrevierem porque suas raízes 150 a 100 anos.
podem não ultrapassar, em tempo satisfatório, a Outras observações nestas áreas demonstram
camada superficial seca do solo. que, quando degradadas, brotam de imediato um

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BARBOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

conjunto de espécies que representam antigos que distribui água para as grandes bacias do con­
cultígenos com o feijão (Phaseolus sp.), algodão tinente. Assim, neste Sistema encontram-se rios
(Gossypium sp.), Guariroba (Syagrus olerácea). das Bacias Amazônica, do Prata, do Pantanal, do
Tal fato tem inclusive servido como indicador para São Francisco, além de pequena porção de algumas
localizar sitios arqueológicos correspondentes a bacias menores do nordeste. Isto permite a ocor­
grupos agricultores no centro do Brasil. rência de grande variedade de peixes e alguns rios,
Costa Lima tem constatado a invasão de áreas, como os que formam as bacias do Araguaia, Pan­
originariam ente com vegetação de cerrado, por tanal e Prata, são muito piscosos. Associa-se a este
espécies de matas sempre que essas formações fator o papel ecológico que os tributários repre­
ocorrem próxim as e quando algum a atividade sentam , sendo locais de desova preferidos por
altera os componentes do estrato inferior da vege­ inúmeras espécies. Algumas espécies de peixes
tação de cerrado, como, por exemplo, o pisoteio chegam a pesar mais de 100 quilos quando adultos;
do gado, sufocando o estrato gramíneo. e uma grande maioria atinge facilmente 20 a 30
quilos, havendo também várias espécies menores.
Alguns elementos da flo ra e fauna Numa listagem preliminar, Costa Lima (1976)
registra para este Sistema 62 espécies, sendo sua
A diversificação em variados ambientes é que distribuição da seguinte forma: 22 espécies são
atribuí ao Sistema dos Cerrados o caráter funda­ exclusivas das águas que correm para o norte, 17
mental da biodiversidade. Compreender a distri­ espécies são das águas que correm para o sul, 15
buição dos elementos da flora e da fauna pelos espécies ocorrem tanto nas águas do norte como
diversos subsistem as e seu ciclo anual é muito nas do sul e o restante é específico dos lagos das
importante para uma visão de globalidade. águas de norte.
No que se refere às espécies vegetais frutíferas,
o Sistema dos Cerrados se apresenta como um dos Distribuição dos principais elementos
mais ricos, oferecendo uma grande quantidade de da flora e da fauna pelos subsistemas
frutos comestíveis, alguns de excelente qualidade,
cujo aproveitamento por populações humanas dá- Os dados seguintes procuram dem onstrar
se desde os primordios da ocupação e, em épocas alguns elementos dessa biodiversidade e o caráter
atuais, são aproveitados de forma artesanal. As­ de interdependência dos diferentes subsistemas,
sociados aos frutos, outros recursos vegetais de tom ando com o base a d istrib u içã o de certo s
caráter medicinal, madeireiro, vinífero, etc., podem recursos vegetais, principalmente frutíferos, e as
ser listados em grande quantidade. Alguns desses formas animais.
recursos, frutíferos ou não, constituem potenciais Pelas características similares no que se refere
fontes de exploração econômica de certa grandeza, à distribuição desses elementos, alguns subsiste­
sendo que a pesquisa e o desenvolvim ento de mas foram agrupados em categorias mais amplas,
tecnologias podem viabilizar seu aproveitamento denom inadas biom as. Assim , o Subsistem a do
a curto prazo. Campo e o do Cerrado passam a constituir o bioma
O Sistema Biogeográfico dos Cerrados também Campestre. O Subsistema do Cerradão e da M ata
apresenta uma fauna variada, representada essen­ não sofreram modificação, constituindo respectiva­
cialmente por animais de médio e pequeno porte. m ente o B iom a do C erradão e o da M ata. O
No que se refere à avifauna, 935 espécies ocor­ Subsistema das Veredas e Ambientes Alagadiços
rem no Sistema; destas, 148 espécies são anotadas e o das M atas C iliares foram reunidos sob a
como próprias. d e s ig n a ç ã o de B io m a R ib e irin h o . A lg u m as
Da Costa (1981) registra 298 espécies de ma­ espécies têm sua ocorrência registrada em todos
míferos para o Sistema dos Cerrados e não con­ os biom as; por isso, além dos quatro biom as
sidera nesta listagem os mamíferos aquáticos. Os definidos, há um espaço reservado a essa categoria.
répteis listados para o Sistema representam 268
espécies o que corresponde a mais de 67% do total D istribuição de recursos vegetais p o r biomas
citado para o Brasil.
Já foi mencionado que o Sistema Biogeográ­ No Bioma Campestre, há grande concentração
fico dos Cerrados se assemelha a uma cumeeira, de recursos vegetais, representados essencialmente

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BARBOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

por frutos comestíveis. 37% das espécies listadas, 15% dos mamíferos são comuns a todos os
englobando todos os recursos e não somente frutos, biomas.
têm sua ocorrência neste bioma, sendo que 34% Embora possam ser visíveis durante todo o
são exclusivos e o restante é registrado também ano, os mamíferos campestres estão mais concen­
noutros biomas. trados nos meses de setembro, outubro, novembro,
No Biom a do Cerradão, a distribuição dos dezembro e janeiro. Esta época coincide com as
recursos vegetais não é significativa, apenas 4% floradas e rebrota dos pastos afetados por quei­
têm sua ocorrência registrada aí, sendo que 3% são madas naturais ou antrópicas do ano anterior. Coin­
exclusivos. cide também, principalmente a partir de novembro,
No Bioma Ribeirinho, não é também significa­ com a época de maturação dos frutos. As espécies
tiva a distribuição dos recursos vegetais, no que se insetívoras também encontram, nesta época, farto
refere à quantidade de espécies. Entretanto, isto é recurso, propiciado pela revoada e multiplicação
m uito relativo, pois algum as espécies que aí de certas espécies de insetos.
ocorrem fornecem grande quantidade de massa Outros mamíferos carnívoros também estão
alimentar. 9% dos recursos listados ocorrem neste mais concentrados em setem bro, outubro, no­
bioma; desses, 6% são exclusivos. vem bro, dezem bro e janeiro, acom panhando a
Englobando não somente os frutos, o Bioma co n cen tração dos m am íferos cam p estres. Os
da Mata, apresenta-se como o de maior concentra­ mamíferos habitantes do Bioma Ribeirinho podem
ção dos recursos vegetais, reunindo 50% deles, ser mais visíveis e concentrados nos meses secos,
sendo que 44% são exclusivos. principalmente junho, julho, agosto e setembro.
Nenhum recurso vegetal é comum a todos os
biomas. Distribuição de aves p o r biomas

Distribuição de recursos 33% das aves podem ser en co n trad as no


vegetais p o r época do ano Bioma Campestre, sendo que 10% são comuns a
outros biomas.
A distribuição dos recursos vegetais, principal­ 24% das aves são encontradas no B iom a
mente dos frutos, tem sua maior concentração nos Cerradão e não há formas exclusivas.
meses de novembro, dezembro e janeiro, época que Da mesma forma que o Bioma do Cerradão, o
coincide com o auge da estação chuvosa. Essa Biom a da M ata no Sistem a dos C errados não
concentração diminui proporcionalmente à medida apresenta formas exclusivas de aves, mas 9% das
que se distancia da época chuvosa. Todavia, com espécies com uns a outros biom as podem ser
excessão de maio, os meses que correspondem à encontradas aí.
ép o c a se ca , m esm o em q u a n tid a d e m enor, 25% das espécies avícolas também são regis­
apresentam certa regularidade de recursos. tradas no Bioma Ribeirinho. Dessa porcentagem,
24% são exclusivas.
Distribuição de mamíferos po r biomas 9% das aves são freq ü en tes em todos os
biomas.
32% dos mamíferos listados têm sua ocorrên­ A m aio r p arte das aves do S iste m a dos
cia registrada no B iom a C am pestre; 17% são Cerrados põe seus ovos durante a estação seca,
exclusivos e 15% são comuns também a outros mais especificamente em junho, julho e agosto. As
biomas. aves campestres estão mais concentradas no início
No Bioma do Cerradão, ocorrem 15% dos da estação chuvosa.
mamíferos, mas nunca de forma exclusiva, ou seja,
os m am íferos listados aí são com uns a outros Distribuição de répteis por biomas
biomas.
16% dos mamíferos ocorrem no Bioma da 34% dos répteis do Sistem a dos C errados
M ata; desses, 5% são exclusivos. podem ser encontrados no Bioma Campestre, sendo
No Bioma Ribeirinho são registrados 22% dos que 17% são formas exclusivas. Todas as espécies
mamíferos, sendo 8% exclusivos. campestres são representadas por formas pequenas.

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N enhum a form a de réptil é listada para o Bioma sistemas físicos e culturais até então estruturados
do Cerradão. e p o r flu tu a çõ es no esp aço p o r p arte d esses
25% podem ser encontrados no B iom a da sistemas, culminando com a redução de áreas com
Mata, sem exclusividade. savanas e início de desertificação em certos setores,
41% são encontrados no Biom a Ribeirinho, fatos que acentuam o processo de redução faunís-
sendo que 25% são exclusivos; nesse bioma também tica, principalmente a fauna de gigantes na parte
são registradas as formas maiores dessa classe. centro-norte ocidental do continente.
A m aior parte dos répteis campestres é mais Parece claro que essas m ovim entações hu­
facilmente encontrada na época chuvosa. Entretan­ manas estejam relacionadas com modificações de
to, os répteis maiores, como jacarés e tartarugas, ordem am biental, mesmo que essas sejam m e­
habitantes do biom a ribeirinho, são mais visíveis diatizadas pela cultura. Os sistemas culturais são
durante a estação seca, época que coincide com a de certa forma desestruturados, e as populações
postura. são impulsionadas a buscarem novas formas de
planejamento ambiental/social e novas alternativas
D istribuição de peixes de sobrevivência. Nesse contexto, as áreas abertas,
p o r bacias hidrográficas representadas especialmente pelos cerrados ainda
existentes em manchas significativas nos baixos
48% dos peixes ocorrem na Bacia Araguaia/ chapadões da Amazônia, devem ter exercido papel
Tocantins, 27% nos tributários da Bacia do Paraná/ fundamental no favorecimento de novas expectati­
Platina e 25% ocorrem em ambas as bacias. A vas de sobrevivência e novos arranjos culturais,
m aior concentração dos peixes coincide com a desencadeando os processos iniciais de colonização
época da seca, p rincipalm ente junho, ju lh o e das áreas interioranas do continente.
agosto, quando acontece a piracema, ou seja, a Essa colonização dá-se preferencialmente em
subida para postura, seguida da descida dos cursos áreas de formações abertas. O início acontece de
d ’água por grandes cardumes. form a acanhada, mas algum tem po depois já é
possível constatar a formação de um horizonte
cultural fortemente adaptado às novas condições
Outros recursos animais ambientais, principalmente quando se aproxima da
grande área core, das formações abertas, existente
M ultiplicam moluscos em certa quantidade no nos chapadões centrais brasileiros, cujas caracte­
Bioma Ribeirinho e no Bioma da M ata e também rístic a s físic as e b io ló g ica s m a n têm -se com
ao longo de paredões rochosos mais úmidos. A alteração pouco significativa quando com parada
m aior concentração acontece na estação chuvosa. com m odificações que afetaram outros biom as
O mel silvestre pode ser encontrado em todos continentais durante o Pleistoceno Superior e fases
os biomas, principalm ente no tronco das árvores e iniciais do Holoceno.
nas fendas rochosas. A época da coleta mais farta Os estudos sobre a indústria lítica que compõe
coincide com a estação chuvosa. Nesse sentido, as esse grande horizonte cultural que se form a nos
abelhas indígenas (meliponinae) constituem um Cerrados, quando com parados com outros sobre
g ran d e p o te n cia l a ser estudado e explorado as indústrias líticas do continente, situadas mais a
racionalm ente. oeste e mais recuadas tem poralm ente, parecem
dem onstrar que alguns traços tecnológicos são
A ocupação dos cerrados p or m antidos, porém aperfeiçoados de fo rm a sui
bandos de caçadores e coletores g e n e r is, o rig in a n d o u m a in d ú s tria ta m b é m
bastante singular e assustadoramente homogênea.
O registro da pré-história sul-americana de­ Processo quase que similar ocorre com relação à
m onstra intensa m ovim entação adotada por po­ economia de subsistência.
pulações hum anas nos sistem as andinos e pré- O estudo de algumas áreas cujos vestígios
andinos, principalm ente a partir de 12.000 anos estão preservados demonstra, quando com paradas
A. P.. Essa movim entação coincide com mudanças às áreas do oeste, um a ten d ên cia crescen te à
am bientais m aiores de cunho continental, com generalização que, em pouco tempo, difunde-se
matizes localizadas, responsáveis por entropias nos como sistema econômico básico.

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De onde vieram estes povoadores iniciais é um possível que as populações que alcançaram
problem a para o qual ainda não se tem m uita São Raimundo Nonato e Lagoa Santa não mi­
clareza, mas algumas áreas do oeste merecem mais graram pelo cerrados dos chapadões centrais,
atenção que outras, porque podem ter funcionado pois seus vestígios não foram encontrados
como centros dispersores. O estudo comparativo nesta região, ou, se migraram, os vestígios
de v ariá v eis bem d e fin id a s in e v ita v elm en te estão mascarados com a indústria que constitui
conduzirá a algumas respostas. a tradição Itaparica. Quanto à prim eira hi­
N esse sentido, o horizonte cultural que se pótese, apesar de a am ostragem ser signi­
formou nas Savanas e formações xerófilas, na área ficativa, os espaços não foram esgotados e as
andina, representado principalmente pelas áreas escavações não avançaram em profundidade
nucleares de El Abra e Ayacucho, cujas explorações suficiente, portanto, ainda não se tem ele­
das formações abertas já apontam elementos muito mentos definitivos para confirmá-la, embora
significativos, devem conveter-se num ponto de a m aior parte dos dados direcionem neste
investigação inicial. sentido. Quanto à segunda hipótese, a análise
Entre 12.000 e 11.000 anos A.P., dois sistemas minuciosa e comparativa do material prove­
ocupacionais bem definidos já estão definitivamen­ niente de pelo menos três áreas nucleares da
te implantados no interior do continente. Trata-se tradição Itaparica: Serranópolis, Caiapônia em
da área nuclear do Vale do Guaporé, nas quebradas Goiás e Gerais, na Bahia, não a confirma;
do planalto brasileiro, cuja cobertura vegetal é
caracterizada pelos cerrados, e a região das coxilhas 2) se a antiguidade das ocupações de São
gaúchas, cujas ocupações se relacionam com as Raimundo Nonato e Lagoa Santa for anterior
ocupações das estepes patagónicas, formando com às ocupações dos cerrados, e se a migração
essa um horizonte cultural descontínuo. não se deu por esse ambiente, é possível que
As o cupações das cox ilh as gaúchas não as populações atingiram essas área por via das
demonstram nenhum tipo de relacionamento com caatingas, migrando ao longo das depressões
as ocupações que se instalam imediatamente nos do rio Am azonas pelas duas m argens, as­
cerrados dos chapadões centrais do Brasil. Pelo sentando-se de forma mais duradoura em São
contrário, estão mais relacionadas com as ocupações Raimundo Nonato e posteriormente em Lagoa
das estepes patagónicas, com processos evolutivos Santa, cuja m igração efetuou-se pelas caa­
similares e muito diferentes dos processos adotados tingas da depressão Sanfranciscana. A inexis­
ou desenvolvidos pelas ocupações que formam o tên cia de v estíg io s entre São R aim u n d o
Grande Horizonte Cultural dos Cerrados. Nonato e Lagoa Santa, situados nessa faixa
Já as ocupações do vale do Guaporé guardam cronológica, bem com o a inexistência dos
ligeiras relações tanto com as ocupações das savanas mesmos vestígios na depressão amazônica e
localizadas mais para oeste e mais antigas como as a falta de cronologias mais antigas no oeste
ocupações localizadas nos cerrados do leste, ins­ do continente não corroboram essa afirmação.
taladas em épocas ligeiramente mais recentes. A possibilidade da migração via formações
A indústria lítica demonstra certa transição abertas da V enezuela e G uianas esb arra nos
evidenciada por uma desestruturação, e por uma mesmos obstáculos para comprovação.
posterior adaptação exitosa. Assim, de acordo com os dados disponíveis
Esse esquema explicativo seria perfeitamente até o presente momento, envolvendo amostragem
compreensível se já não existisse no interior, em significativa em M ato G rosso do Sul, quase a
ambiente similar, o registro das áreas ocupadas de totalidade de Goiás, grande parte do Tocantins,
São R aim u n d o N o n ato e L agoa S anta. N ão oeste da Bahia e grande parte de Minas Gerais, a
tomando em consideração a área Central, na Bahia, ocupação efetiva do interior do continente sula-
em virtude de as informações serem prematuras. mericano inicia-se com a implantação do Horizonte
A questão, entretanto, pode ser resolvida por uma dos Cerrados a partir de 11.000 anos A.R. Esse
das duas formas seguintes: horizonte é caracterizado por uma indústria lítica
1) se a época das ocupações destas áreas for muito homogênea, que constitui a tradição Ita-
realmente anterior à ocupação das áreas dos parica, intimamente ligada às formas de exploração
cerrados dos chapadões centrais do Brasil, é dos cerrados, com mecanismos adaptativos res-

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ponsáveis por um sistema económico, que perdura seguinte questão: o que tem essa paisagem em
por dois mil anos quase sem alteração, a não ser especial para atrair populações com econom ia de
aquela decorrente da migração. caça e coleta, favorecendo ocupações duradouras
As populações dominadoras da tecnologia que e homogêneas?
criou a industria que constitui a tradição Itaparica Tentou-se responder essa indagação cruzando
colonizaram um a área de grandeza espacial com algumas informações:
cerca de dois milhões de quilômetros quadrados:
desde M ato Grosso, Goiás, Tocantins, até áreas Clima
com cerrados no oeste da Bahia, norte e oeste de
Minas Gerais e áreas com enclaves de cerrados em Com relação ao clima, tanto em relação aos
ambientes dominados por caatingas do nordeste limites atuais como aos limites antigos, a área do
brasileiro, notadamente Pernambuco e Piauí. Essas Sistema Biogeográfico dos Cerrados se caracteriza
localidades, em conjunto, revelam o alcance dessa pela falta de excessos e por um ciclo climático e,
tradição e a maneira homogênea de organizar o em conseqüência, tam bém biológico, bastante
espaço, também revelam a importância que o Sis­ h o m ogêneo, fato que p erm ite às p o p u laçõ es
tema Biogeográfico dos Cerrados exerceu nesses humanas de econom ia simples a adoção de um
processos iniciais de ocupação por populações hu­ planejamento também homogêneo.
manas.
Geomorfologia
Os processos culturais
associados à ocupação inicial Tanto nas áreas atuais como na periferia dos
seus lim ites antigos há grande o co rrên cia de
O panorama do povoamento das áreas centrais abrigos naturais, elemento fundamental para esses
do continente sul-americano começa a se definir a grupos humanos em determinada época do ano.
partir de 11.000 anos A.P. e, para tal, contribui em
muito o advento no Planalto Central do Brasil de Recursos vegetais
um complexo cultural denominado pela arqueo­
logia “tradição Itaparica” . O assunto já foi discutido na prim eira parte
Há 10.000 anos, essa tradição está implantada do documento referente aos recursos dos cerrados,
sobre mais de 2.000 Km de extensão. É quase certo entretanto, faz-se oportuno reforçar a informação
que ela cobriu a área dos cerrados dos chapadões de que o Sistem a Biogeográfico dos C errados
centrais do Brasil e suas extensões. Pelos processos fornece fibras, lenhas, folhas ásperas que são
a que estão associadas, sua implantação na área utilizadas para acertar superfícies, palhas de pal­
reveste-se num marco referencial de fundamental meiras para cobertura de abrigos, etc., mas o im­
importância para com preender os processos cultu­ portante a ressaltar nesse item é que, de todos os
rais que caracterizam o alvorecer do povoamento sistemas biogeográficos da América do Sul, este é
humano nas áreas centrais da América do Sul. o que fornece maior variedade de frutos com es­
Por volta de 9.000 anos A .P , ou um pouco tíveis. E embora a maturação da maior parte esteja
mais tarde, essa cultura perde suas características relacionada à época da estação chuvosa, a grande
básicas, representadas pela adoção de artefatos bem variedade p ossibilita a distribuição regular de
trabalhados e se transforma em indústria de lascas, outras espécies durante todo o ano.
com poucos retoques, assinalando um a nova
tendência à especialização. Recursos animais
Os estudos arqueológicos têm demonstrado
um a íntim a relação entre a cultura da tradição A par das informações neste sentido já discuti­
itaparica e a área dos Cerrados. O nível dessa rela­ das tam bém na prim eira parte do docum ento,
ção é evidenciado não só pelo m anejo paleo- resolveu-se buscar algumas respostas correlacio­
ecológico, mas também pelos restos de alimentos nando os mapas com a vegetação dos cerrados e
associados a esta cultura encontrados nas esca­ os contornos das províncias zoogeográficas da
vações arqueológicas e a própria distribuição dos América do Sul estabelecidas por Cabrera e Yepes
sítios arqueológicos. Resta, portanto, esclarecer a (1960) e Melo Leitão (1947).

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BAR BO SA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

D esse estudo, constatou-se estreita relação era similar e as duas áreas estavam conectadas, e
entre um a fauna bastante peculiar que define essas também porque as áreas florestadas primeiro se
províncias zoogeográficas com as áreas de vege­ ad en saram nas am plas p la n ícies rib eirin h a s,
tação aberta, cerrado, caatinga e áreas de transição. constituindo ambientes umbrófilos e, consequente­
Também constatou-se, e isso é um dado importante, mente, verdadeiros obstáculos para determinadas
que, em bora essa fauna peculiar transite nesses espécies adaptadas a áreas ensolaradas. Alie-se a
ambientes, é na área de vegetação dos cerrados que este fato o obstáculo constituído pelo próprio rio
se dá sua m aior concentração. Os elementos para Amazonas. A migração faunística é acompanhada
ex p licar esse fato são a ocorrência do estrato no mesmo sentido por populações hum anas aí
gramíneo, flores e frutos e a diversidade de am­ situadas.
bientes que caracterizam o Sistema dos Cerrados, A compreensão dessas afirmações é mais clara
permitindo o estabelecimento de uma complexa quando associada ao panorama da pré-história do
cadeia biológica. continente e da configuração paleoambiental que
imediatamente antecedeu à formação da cultura da
Processos de adaptação tradição Itaparica no centro do Brasil.
A revisão da pré-história da América do Sul
O fato de existir um a fauna que elege os revela a existência, em períodos anteriores ao
cerrados como ambiente prioritário, associado à povoamento do interior do Brasil, de um Horizonte
grande variedade de frutos, ocorrência de abrigos Cultural que atuava em áreas de savanas e outras
naturais e clim a sem excessos, exerceu papel formações abertas, estabelecido em áreas do leste
importante na fixação de populações humanas, bem Andino ou tendentes a esta orientação e quase à
como no desenvolvimento de processos culturais borda da área nuclear da vegetação de cerrados dos
específicos. Porém, quando se refere à cultura da chapadões baixos da Amazônia. Esse horizonte
tradição Itaparica e sua fixação no Sistema Bio- cultural, que recebe a denominação de “Horizonte
g eográfico dos C errados do centro do Brasil, Descontínuo das Savanas e Formações X erófilas”,
constituindo nessa área um horizonte cultural com ocorre na área de form a não hom ogênea desde
2 .0 0 0 anos de d u ra ç ã o , re sta um a sé rie de aproxim adam ente 15.000 até 12.000 anos A.P..
indagações relacionadas às origens desse processo. Suas principais categorias espaciais são represen­
N este sentido, algum as afirm ações podem ser tadas por el Abra, Ayacucho e Guitarrero I, que
organizadas. englobam um conjunto de com plexos culturais
O protótipo dessa cultura representa um a similares que caracterizavam um sistema de coleta
ex p a n sã o ac o m p a n h ad a de ap e rfe iço a m en to e caça, no qual os anim ais de grande p o rte,
adaptativo de antigas culturas de savanas e de atualmente extintos, constituíam uma alternativa
outras formações abertas, situadas mais para oeste alimentar de grande importância.
do continente, as quais, por motivos ambientais, A observação sobre a formação deste horizonte
tiv e ram que ad o tar novos p la n eja m e n to s de e sua configuração espacial e temporal demonstra
subsistência, aperfeiçoando a coleta vegetal e uma fase de implantação situada entre 15.000 a
enfatizando a caça generalizada, em detrimento da 14.000 anos A.P., acompanhada por uma fase de
especializada. Os processos iniciais desse aper­ expansão que caracteriza o período de 14.000 a
feiçoamento situam-se na área core da vegetação 13.000 anos A.P., fase que é seguida por fragmenta­
de cerrados, ainda presente à época nos baixos ção de algumas áreas, provocada por migrações
chapadões da Amazônia. para leste e que caracteriza o período de 13.000 a
À m edida que os reflexos das mudanças cli­ 12.000 anos A.P.. A partir desta época, a principal
m áticas tornam -se m ais efetivos na área, pos­ área cultural ainda habitada das savanas colom­
sib ilitan d o o avanço das antigas m anchas de bianas fragmenta-se, propiciando migrações para
florestas sobre área de cerrados, intensifica-se um o interior do continente.
movim ento faunístico. Algumas formas migram O desaparecimento deste horizonte coincide
em várias direções; a maior parte, entretanto, migra com uma época de grande instabilidade climática
para leste e sudeste, no sentido da outra grande que marca o limite entre o Pleistoceno e o Holoceno.
área core de vegetação dos cerrados dos chapadões Coincide também com o início do avanço das áreas
centrais do Brasil. Isso acontece porque a vegetação florestadas sobre áreas de caatinga nas depressões

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BAR BO SA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

e áreas de cerrado nos baixos platôs da Amazônia. grandes áreas de vegetação aberta, onde hoje ocorre
Essas significativas m udanças do clim a e seus a flo re sta ú m id a am azô n ica. E ssas áre as de
reflexos nos biomas certam ente intui nas popu­ vegetação aberta eram caracterizadas pela ocorrên­
lações humanas aí estabelecidas a necessidade de cia de caatinga, nas depressões, e cerrados, nas
se buscar novas alternativas e planejam ento de partes mais elevadas. Esses estudos evidenciam
subsistência, o que im plica em novos arranjos também que o Sistema dos Cerrados dos chapadões
sociais. Esse fenômeno não parece ser exclusivo centrais do Brasil foi o menos afetado pelas oscila­
das populações que constituem esse horizonte ções do Pleistoceno Superior e do Holoceno Inicial.
cultural. Muito pelo contrário, a revisão da pré- A essas observações de ordem física acres­
história do continente dem onstra intensos m o­ c e n ta m -s e o b s e rv a ç õ e s b io ló g ic a s , a p a rtir
vimentos ocorridos nesta época nas áreas povoadas principalm ente dos estudos de H affer (1969),
do oeste. Esse período coincide tam bém com o Vanzolini (1970) e Brown Jr. (1977).
agravamento de um processo de drástico empobre­ Após estudos de algumas espécies de aves da
cimento qualitativo e quantitativo representado por região amazônica, Haffer postula que várias vezes,
uma grande extinção da biom assa de megafauna. durante o Quartenário, a floresta úmida teria sido
Por volta de 12.000 ou, quando muito, 11.000 reduzida a manchas, conservadas em local de maior
anos A.P., os ecossistemas tropicais já se mostra­ umidade, a que denomina refúgios, separados entre
vam bastante alterados em relação à composição si por formações abertas. Essa situação, segundo
faunística. No caso das áreas tropicais situadas o autor, provocou o isolamento, às vezes longo, de
entre o Andes e a área core dos cerrados, ainda populações anteriormente interatuantes da fauna
presente se encontra bastante reduzida ou quase selvática, agindo, assim, para a diferenciação em
totalm ente extinta neste período. O rareamento da raças, subespécies ou até espécies completas.
biom assa de megafauna afetou a subsistência de O autor afirma que esse arranjo paisagístico
agrupamentos humanos, impulsionando-os para a criou oportunidades para que a fauna não-selvática
busca de novas alternativas e para o desenvolvi­ pudesse expandir-se desde o sul até as terras baixas,
mento de novos mecanismos de subsistência. Um atravessando-as. Populações relictuais em parques
dos p o n to s de c o n v e rg ê n c ia , ta lv e z o m ais de savanas isoladas, especialmente no interior das
importante, era constituído pelas áreas de vegetação Guianas e entre alguns tributários meridionais do
de cerrados, já bastante reduzidas mas ainda Amazonas, testemunham antiga continuidade da
existentes à época, nos baixos platôs amazônicos, v e g e ta ç ã o a b e rta , te n d o e s sa c o n fig u ra ç ã o
configurando-se na forma de faixas estreitas que influenciado nas rotas de dispersão.
se co n e ctav a m com a grande área core dos Enquanto Haffer constatava a ocorrência de
chapadões centrais do Brasil. flutuações climáticas e de mudanças no quadro da
N esse biom a, a concentração de recursos paisagem vegetal, baseado nos padrões de distri­
vegetais associada a uma grande percentagem da buição das aves, Vanzolini chegava à conclusão
biom assa anim al representada por anim ais de similar, analisando a variedade e grau de dife­
médio e pequeno porte constitui-se num a fonte renciação exibidos por dois gêneros de lagartos
alternativa de singular im portância para essas selváticos: Coleodactylus e Anolis. O autor acredita
p o p u laçõ es, que len tam en te aperfeiço am um que o padrão de diferenciação das espécies desses
sistema de coleta e caça generalizadas. gêneros só pode ser explicado mediante aceitação
A revisão da paleoecologia do continente, da ocorrência de significativas oscilações clim á­
englobando o período situado entre o Pleistoceno ticas na Amazônia, capaz de afetar os quadros
Superior e o Holoceno Inicial, dem onstra que os vegetais.
atu ais d o m ín io s b io g e o g rá fic o s rep rese n tam N a mesma linha, seguem as conclusões de
fenômenos recentes e que esse período é marcado Brown Jr. a partir de estudos da biogeografia de
por grandes transformações que representam uma algumas espécies de borboletas neotropicais. O
re v o lu ç ã o na co m p o siç ã o b io g e o g rá fic a do autor demonstra haver forte relação entre os centros
continente. de distribuição e evolução de algumas espécies e
Há inúmeros estudos sobre paleoecologia do subespécies com fatores ligados à evolução das
continente para o referido período que comprovam paisagens, especialm ente na Amazônia, durante o
essa afirm ação e evidenciam a ex istê n cia de Pleistoceno e Holoceno.

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BARBOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

Inferindo aos seus estudos observações de estimadas mediante glotocronologia (Greenberg,


clima, topografia e solo, Brown Jr. afirma que os 1960; Noble, 1965; Rodrigues, 1958), constata-se
sistem as ecológicos das florestas neotropicais, que este movimento que motiva uma diversificação
distintos genética e taxonómicamente dos sistemas lingüística culm ina com a form ação de alguns
v izinhos e co-evolutivos em escala regional, troncos atuais dentre os quais o M acro-Jê, num
sofreram uma influência bastante clara e forte do período situado ao redor de 10.000 anos A.P..
longo período paleoecológico, frio e seco, que Portanto, o mesmo período em que tam bém se
caracteriza a última época glacial, e que sua relativa atinge o clímax da cultura da tradição Itaparica.
v isc o sid a d e p erm itiu a rete n çã o de padrões A tentativa de uma projeção em direção a
regionais derivados dessa época até o presente. épocas mais recentes tendo com o base dados de
Im portantes e fundamentais correlações de arqueologia e etnografía evidencia que a vegeta­
Meggers (1976), tomando dentre outras categorias ção dos cerrados constitui elemento fundamental
a lingüística, vêm complementar ainda mais este para essas sociedades Jê do Planalto, sobre a qual
panorama, no conhecimento dos processos cultu­ exercem um controle rigoroso e dem onstram
rais iniciais das áreas centrais da América do Sul. grande conhecimento, embora tenha havido signi­
T o m a n d o a c la s s ific a ç ã o p ro p o s ta por ficativas mudanças tecnológicas no decorrer do
Greenberg (1960), que combina todas as línguas tempo.
sul-am ericanas em quatro troncos ancestrais, e
c o m p a ra n d o -se as lo c a liz a ç õ e s dos g ru p o s A ocupação do interior do
associados ao Jê-Pano-Caribe com os mapas dos continente no Holoceno Inicial
refúgios, Meggers sugere que a dispersão teve lugar
durante o episódio mais antigo de redução da Neste período, o homem assegurou a ocupação
floresta. De fato, as rotas postuladas por Haffer para de todo o Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste do
a intrusão e a difusão da fauna não-selvática na Brasil. Sobre a vida deste homem existem algumas
A m azônia desde os am bientes abertos do sul informações fidedignas.
passam próximo ou através das áreas ocupadas O início do H oloceno trouxe o recuo da
pelos falantes de línguas pertencentes a este tronco. glaciação, com todas as suas conseqüências: os
Se e sta c o rre la ç ã o é v álid a, im p lic a que a ventos frios regridem, com a diminuição das calotas
reconstituição da selva, uns 10.000 anos A.P., glaciais e andinas, a corrente fria de Falkland se
introduziu no centro da A m azônia um a cunha retrai, a corrente quente do Brasil se esparrama pelo
ecológica que isolou os grupos do norte e do sul litoral nordestino; com o derretimento do gelo, o
durante um tem po suficiente para perm itir a nível do mar sobe, a tem peratura e a umidade
diferenciação do Jê-Pano-Caribe em subfamilias. au m en ta m e se p ro d u z a tro p ic a liz a ç ã o do
Quando o período de aridez entra no processo ambiente. Aparentemente, isto não acontece de
final, a floresta úmida começa a avançar sobre as forma unilinear, mas com oscilações que, no todo,
form ações abertas, fazendo com que estas se representam um crescimento do calor, da umidade
retraiam , e o cerrado in icia um p rocesso de e do nível do m ar até alcançar o m áxim o no
regressão em direção à sua área core, provavel­ altiterm al ou ótim o clim ático europeu, entre
mente também algumas populações humanas aí a p ro x im ad am en te 6 .5 0 0 a 4 .0 0 0 anos A.P..
situadas, em sua m aior parte associadas a este Naturalmente, as condições gerais são matizadas
tronco lingüístico ancestral (Jê-Pano-C aribe), localmente por fatores diversos, dos quais o relevo
acompanham esta regressão e se instalam na área parece ter papel saliente.
core dos cerrados do centro do Brasil, onde, nos Provavelmente, a vegetação continua aberta
períodos imediatamente posteriores, atingem um durante todo o período; talvez no Nordeste se torne
clím ax adaptativo. A grande hom ogeneidade ainda mais rala.
lingüística que caracteriza a parte central do Brasil Com o au m en to g eral da te m p e ra tu ra e
como um grande domínio de línguas Jê, estrita­ provavelmente um aumento mais lento da precipi­
mente relacionadas com as form ações abertas, tação por volta de 9.000 a 8.000 anos A.P., talvez
apóia esta situação. mais cedo no Piauí, instala-se um período muito
Se se cruzam estes dados com os períodos de seco, responsável por mudanças tecnológicas e
maior diversificação das línguas sul-americanas, culturais e pela migração de populações.

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Entre aproximadamente 11.000 e 8.500 anos Também aparecem caroços de frutos, principal­
A .P., industrias de lám inas unifaciais, em que mente de palmas. Estes alimentos provêm de um
predom inam furadores e raspadores term inais ambiente diferenciado, onde se reúnem campos
encamados, parecem formar um grande horizonte, limpos, cerrados, cerradão, matas tropicais e am­
cobrindo uma área que inclui Pernambuco, Piauí, bientes ribeirinhos e palustres.
Bahia, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, talvez Para outras localidades, as informações ainda
parte de São Paulo. Uma grande parte desses sítios são escassas, quer porque faltam os restos de ali­
pode ser incluída na chamada tradição Itaparica. mentos, quer por não terem ainda sido analisados.
Um pouco mais tarde, entre 9.000 e 8.000 anos Sobre a captura da maior parte dos animais,
A .P., ap a re c e m iso la d a s p o n ta s de p ro jé til não temos conhecimento se seria o dardo com ponta
pedunculadas no m esm o contexto da tradição de pedra finamente trabalhada, característica dos
Itaparica ou em outros, como em Cerca Grande - caçadores de grandes gregários da mesma época
MG (Hurt & Blassi, 1969), em Serranópolis - GO, nas estepes americanas do Norte e do Sul, ou se
datadas entre 8.700 e 8.400 anos A.P. (Schimitz, outra técnica era utilizada. O caçador do planalto
1984) em São Raimundo Nonato - PI, datadas de e do Nordeste chegou a conhecer as pontas de pedra
8.400 A.P. e talvez em Alice Boér - SP, Estado de já no fim do período, mas elas aparecem muito
São Paulo. esporadicam ente, ao lado de pontas, tam bém
A economia é a de um caçador e coletor ge­ esporádicas, em osso.
n eralizado que explora principalm ente nichos Também os alimentos vegetais eram de tra­
diversificados, onde num extremo está o cerrado, tam ento fácil, sendo a m aior parte frutos de
a caatinga, ou o campo, no outro extremo, a mata consumo imediato, sem m odificações notáveis,
e, no meio, várias formas vegetais transicionais, exigindo no máximo a quebra de noz das palmas
como o agreste ou o cerradão. para aproveitamento de suas amêndoas.
Os assentam entos desse homem dão-se em A transformação das outras matérias-primas,
grutas ou abrigos calcários, areníticos ou quartzíti- como pedra, peles, ossos, chifres, cascos, poderia
cos, nos estados de Minas Gerais, Pernambuco, exigir instrumentos mais acabados.
Piauí e no alto das colinas em Goiás. Alguns destes Os artefatos mais importantes e mais freqüen­
sítios apresentam bastante permanência, como no tes no contexto instrumental deste horizonte são
sudoeste e centro de Goiás, porque os recursos eram u n ifaciais, isto é, têm um a face plana e não
abundantes, ao passo que a maior parte são de trabalhada, a outra convexa e transformada. Uma
acam pam entos tem porários. Com o nos locais grande parte é feita de lâm inas, lascadas por
geralm ente estão reunidos recursos m inerais, percussão e retocadas por percussão ou pressão.
vegetais e anim ais em nichos diversificados, é Outras são feitas a partir de lascas. Serviam para
possível que a maior parte dos acampamentos seja as funções de cortar, furar, raspar, alisar, esmagar
de atividades múltiplas; com uma certa frequência, e quebrar. Na term in o lo g ia dos arqu eó lo g o s,
aparecem sítios da apropriação e preparação de aparecem com o raspadores, fu rad o res, facas,
minerais, mas ainda não se tem notícia de sítios de talhadores, machados, alisadores ou mós, discos,
matança. quebra-cocos ou bigornas, bolas e percutores; entre
O regime alimentar desse caçador generali­ os cinco últimos, alguns são pisoteados ou alisados,
zado pode ser estudado com bastante precisão nos o que representa uma utilização muito antiga desta
abrigos do sudoeste de G oiás, onde os restos técnica de preparar artefatos de pedra.
alimentares são abundantes e bem conservados. Os Nos locais de ambiente rico e matéria-prima
animais caçados são das espécies mais variadas e mineral abundante, como no sudoeste e centro de
de todos os tam anhos, desde cervos, veados, Goiás, os restos de artefatos e resíduos de las-
capivaras, macacos, tamanduás, tatus, tartarugas, camentos podem chegar a centenas de milhares em
lagartos, emas, todo tipo de aves e pequenos peixes; escavações relativamente pequenas, e neles se pode
também se recolhiam ovos de emas. Os moluscos acompanhar todo o processo de manufatura, desde
estão ausentes neste período, mas vão ser alimento o momento em que as lascas são desprendidas dos
básico no seguinte. Os animais classificados são blocos, sua redução e conformação como instru­
todos de espécies holocênicas, não tendo aparecido mento e sua rejeição depois de quebrado ou inuti­
até hoje nenhum exem plo de espécie extinta. lizado. As peças são grandes e bem acabadas. Na

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região de Lagoa Santa, pelo contrário, os artefatos Atividade de coleta


são quase indistinguíveis dos detritos de lasca-
mento, pela deficiência de rochas adequadas. A atividade de coleta de frutos era mais sig­
A m atéria-prim a desses artefatos e o local em nificativa durante a estação chuvosa, que atual­
que a m esm a é apanhada estão ligados às dis­ mente corresponde principalmente aos meses de
ponibilidades locais. No sudoeste de G oiás, o outubro a janeiro, e poderia ser exercida no bioma
quartizito ou arenito silicificado usado encontra- campestre, no bioma da mata e no bioma ribeirinho.
se nas próprias paredes dos abrigos ou nos blocos A m aior q uantidade de frutos com estív eis se
desgarrados dos mesmos; nos sítios sobre colinas, restringe ao bioma campestre.
a m atéria-prima provém dos eixos que recobrem
seu topo e seus flancos, e se origina da decom­ Atividade de cata ou apanha
posição do arenito Furnas, no qual estavam in­
Os ovos das aves poderiam ser mais facilmente
crustados como veios. Em outros lugares, geral­
conseguidos no auge da estação seca, p rin ci­
mente a matéria-prima é selecionada entre os seixos
palmente nos meses de julho e agosto. O maior
transportados pelos rios.
fornecimento desse tipo de recursos provém das
M atéria-prima muito importante também são
ninhadas de ema (Rhea americana), encontradas
as peles, os cascos, os ossos, os dentes e chifres
essencialmente no bioma campestre. Os ovos de
dos animais caçados; por isso, os ossos da caça
répteis, como a Tartaruga (Podocnemis expansa)
estão quebrados, cortados, apontados; ossos longos
e o Jacaré (Caiman crocodilus), também seriam
de veados eram afinados para produzir espátulas.
obtidos na estação seca. As atividades neste sentido
Num clima frio de planalto e Nordeste, e para
se restringiam ao bioma ribeirinho.
uma população desabrigada, o abastecimento de
Os insetos que poderiam servir de alimento
lenha era im portante, mas sem problem as. Em
seriam representados principalmente por larvas de
muitos lugares, os abrigos naturais são numerosos
algumas espécies voadoras e Tanajura (fêmeas de
e o homem os utilizou intensamente, sempre que
Atta sp), conseguidos em abundância no início da
ofereciam condições de habitabilidade, uma das
estação chuvosa, cuja atividade de apanha se
quais era água próxima, mas também acampava
restringia principalmente ao bioma campestre.
ao ar livre, na vizinhança de abrigos ou em lugares
A apanha de mel silvestre poderia ser mais
onde eles não existiam. Na maior parte da área,
facilmente exercida durante a estação chuvosa.
mesmo nos tempos de seca, pode-se conseguir água
boa, abundantemente, sem esforço, mas abrigos
Atividade de caça e de pesca
grandes foram rejeitados, temporária ou permanen­
temente, por falta desse líquido. A caça de m am íferos poderia ser exercida
Pelo tipo, distribuição e quantidade de resíduos durante toda época do ano. Os mamíferos campes­
encontrados nos acampamentos, infere-se que os tres estariam mais concentrados na estação chuvosa
grupos m igrantes eram pequenos, com postos e os m am íferos ribeirinhos poderiam ser mais
provavelmente por algumas famílias cada um, que facilmente caçados no meio da estação seca.
se moveriam como bandos frouxos dentro de um A caça de aves era desenvolvida, principal­
espaço delimitado. mente, nos prim eiros meses correspondentes à
estação chuvosa.
O modelo de planejam ento Os répteis de pequeno porte poderiam ser
am biental adotado pelas populações caçados mais facilmente na estação chuvosa, ao
de caçadores e coletores nos cerrados passo que os répteis de porte maior, como tartaruga
e jacaré, poderiam ser abatidos na época seca.
A observação sobre a distribuição dos prin­ A atividade pesqueira estava restrita essen­
cipais recursos de subsistência no Sistema dos Cer­ cialmente à época seca.
rados possibilita a organização de um diagrama
de abastecimento que espelha as possibilidades de Ciclos de abastecimento
obtenção desses recursos por populações de eco­
nomia simples, baseado na época de maior con­ Combinados todos os recursos, as populações
centração. com economia de caça e coleta habitantes do Siste-

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m a dos Cerrados poderiam conseguir alimentos m assa da fauna de gigantes nos am bientes tro­
durante todo o ano. E, de certa forma, não deveria picais. Entretanto, fica aberta a possibilidade da
existir época de penuria total, em função da escas­ existência de rem anescentes desses animais em
sez de alimentos. alguns núcleos específicos. Na localidade de Pau
A época de maior variedade alim entícia cor­ Ferrado, município de Jaupaci, foi encontrado sítio
responderia à estação chuvosa. Essa variedade da tradição Itaparica, em terraço, nas proximidades
seria, de certa forma, com pensada na seca pela de um grande jazim ento fossilífero, segundo cons­
grande quantidade de peixes. Assim, os recursos tatamos o pesquisador Luiz Eurico M oreira e eu.
combinados poderiam oferecer anualmente uma
alim entação balanceada de proteínas, açúcares, M odelo simples das relações
vitaminas e sais minerais. Entretanto, esse pro­ espaciais e comportamento cultural
vimento está ligado à estação chuvosa, em função das populações de caçadores coletores
dos frutos, sendo que na estação seca era reduzido.
O abastecimento de água não seria problema Tendo como base as observações advindas do
no Sistema dos Cerrados mesmo durante a estação ciclo de abastecimento elaborado para o Sistema
seca, e ainda levando-se em consideração os aspec­ dos Cerrados, é possível construir um “modelo”
tos climáticos do final do Pleistoceno e Holoceno que possa refletir a organização espacial e compor­
Inicial. tamento cultural das populações de caçadores e
O abastecimento de matéria-prima para fabri­ coletores durante a estação chuvosa e durante a
co de instrum entos e utensílios era facilm ente estação seca.
assegurado. Rochas para a fabricação dos instru­
mentos existem nos abrigos, são abundantes nas
Estação chuvosa
colinas e no leito dos rios e córregos do Sistema.
Os ossos de certas espécies animais parecem ter Na estação chuvosa, o Sistema Biogeográfico
sido altam ente valorizados para o fabrico de dos Cerrados fornece uma grande variedade de
instrumentos, como espátulas e furadores. Havia recursos representada por frutos, insetos com estí­
peles que tinham várias utilidades e abundância veis, mel silvestre, moluscos, mamíferos, aves e
de m atéria-prim a vegetal. O com bustível para pequenos répteis. Esses recursos se distribuem
cozinha, calefação e ilum inação era fácil de se pelos biomas Campestre, do Cerradão, da M ata e
conseguir. Ribeirinho, possibilitando em cada um o exercício
Os abrigos naturais parecem ter sido os pontos de atividades de cata ou apanha, coleta e caça.
de referência territorial. No Sistema dos Cerrados, Essas atividades exigem uma divisão sexual e
em função dos aspectos geomorfológicos, eram etária do trabalho e, fundamentalmente a atividade
numerosos, amplos, cômodos e estrategicamente de caça, a divisão em bandos menores.
localizados. Diversos, por suas condições, foram Essa grande diversidade de recursos é acom ­
ocupados mais intensamente, ao passo que outros panhada por um a restrição im posta pela estação,
eram ocupados esporadicamente. que é a necessidade de abrigos, principalm ente
A distribuição do material no interior desses nos períodos noturnos e nos períodos de preci­
abrigos poderia indicar que a população não era pitação mais prolongada. Nesse contexto, o abrigo
m uito densa, não chegando a preencher todo o n atu ral se rev este de im p o rtâ n cia cap ital. A
espaço. necessidade do abrigo condiciona deslocam entos
A caça disponível seria a que se conhece pelas a curta distância, ou seja, distância suficiente para
escavações de alguns abrigos, e que consiste em alcançar o abrigo, ao menos no período noturno.
representantes da fauna atual, predominando ani­ A ocupação do abrigo, em função do espaço,
m ais de p o rte m édio a p eq u e n o , fa c ilm e n te com odidade, obtenção e distribuição dos alim en­
transportáveis do local de abate para o sítio de tos, im p licaria na d ivisão de grupos m aiores
habitação. D essa forma, seria pouco provável a (m a c ro b a n d o s) em g ru p o s m e n o re s (m ic ro -
existência de “Sítios de matança” característicos bandos).
de caçadores pleistocênicos especializados. Os A o cu p ação do abrigo asso ciad a à b aix a
dados de P aleontologia apontam o período de mobilidade e à disponibilidade de recursos variados
13.000 a 12.000 anos A.P. para uma extinção em bem co m o ao p e río d o de p re c ip ita ç ã o m ais

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prolongado brindariam a população com horas de tecnológicas. As condições ambientais encontradas


ociosidade que favoreciam a criação. Provavel­ pelos horticultores indígenas não parecem ter sido
mente, algumas manifestações rupestres surgiram muito diferentes das conhecidas pelos primeiros
nestas circunstâncias. colonizadores de origem européia, e foram explo­
radas diferencialmente.
Estação seca O P lanalto C entral já era ocupado desde
11.000 anos A.P. por um a população hum ana
Na estação seca, a maior parte dos recursos com posta de caçadores e/ou coletores. As etapas
que o Sistema do Cerrado oferece está concentrada m ais antigas da evolução desses hom ens pré-
no Bioma Ribeirinho. Nesse bioma, podem ser cerâm ico s são m ais co n h ecid as que as m ais
exercidas atividades de apanha de ovos de grandes recentes, nas quais se transformariam em cultiva­
répteis, caça desses répteis e de algumas espécies dores e ceramistas. Nos locais em que se encontram
de mamíferos e essencialmente a pesca, em função depósitos estratificados em abrigos, com o em
da abundância dos cardumes. No Bioma Campes­ Serranópolis-GO, há uma descontinuidade entre as
tre, apenas a cata de ovos de aves se reveste de camadas do homem sem cerâmica e a do ceramista;
importância. as próprias datas indicam um hiato muito marcado
A cata de ovos implica na divisão sexual e entre am bas as ocupações. Nas áreas onde as
etária do trabalho e a caça, em divisão do bando, aldeias de ceram istas se levantaram ao ar livre
mas essas atividades não se revestiam da importân­ ainda não foram encontrados sítios pré-cerâmicos
cia da pesca, uma tarefa coletiva. q ue p u d e sse m a p o ia r e s tu d o s de tra n s iç ã o
As áreas mais piscosas são os vales amplos e tecnológica e/ou cultural.
esp raiad o s, lagoas e lagos que estão sem pre Desta maneira, sem transição, aparecem no
distantes das áreas com abrigos naturais. E certos Sistema os Cerrados grupos ceramistas e os cul­
pontos, em função de características peculiares, tivadores de plantas que os arqueólogos separam
deveriam exercer atração sobre essas populações, em quatro ou cinco tradições tecnológicas diferen­
exigindo deslocam ento a longa distância, por tes. Estas classificações ainda são altamente hipo­
períodos longos. As características da estação, que téticas e será necessário um longo trabalho de aná­
perm ite acam pam entos ao ar livre, facilitariam lise e comparação não apenas dos elementos ce­
longos deslocamentos e alta mobilidade. râmicos e líticos, mas de todos os outros dados para
Assim , enquanto a estação chuvosa se ca­ se obter conhecimentos fidedignos sobre as po­
racterizaria pela ocupação dos abrigos, baixa mo­ pulações, sua vida e sua história; os existentes são
bilidade e fragmentação grupai, a estação seca se indicativos e conjeturáis. M esm o cronologica­
caracterizaria pelo abandono dos abrigos, alta mente, as inform ações se apresentam escassas,
mobilidade e união em macrobandos, exigida pela apoiando-se em um pequeníssimo número de datas
atividade de pesca e para maior controle do ter­ de C l 4, que não m arca nem o com eço nem o
ritório. transcurso completo da ocupação.
A observação dos frutos corroídos por animais O apoio na etno-história proporciona algumas
encontrados no interior do abrigo e em estratigrafía hip ó teses, ainda não testad as, com relação à
dem onstra que os frutos com essas marcas, prin­ continuidade destes cultivadores pré-históricos no
cipalmente amêndoas e jatobá, são típicas da esta­ período colonial. Cronologicam ente, o primeiro
ção seca. E esses animais roedores não poderiam grupo ceramista, e provavelmente cultivador, é o
ter habitado os abrigos na mesma época em que as denominado fase Pindorama, estudada num abrigo
populações humanas. do médio-norte do Tocantins, que atesta o uso de
cerâmica ao menos já no século V a.C. (há duas
A ocupação dos cerrados outras datas, em camadas inferiores, de quase 2.000
p o r horticultores de aldeias anos a.C., para as quais não se pode assegurar
plenamente o uso da cerâmica). Esta data não deve
O Sistema dos cerrados tem sido o palco no causar estranheza, uma vez que próxim am ente,
qual as p opulações indígenas desenvolveram tanto no Pará (tradição Mina, 3.000 anos a.C.),
culturas diferentes, em conformidade com suas como em Minas Gerais (tradição Una, 2.000 anos
origens, seu tempo histórico e suas possibilidades a.C.) ela já era usada desde muito antes. Tendo a

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BAR BOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologici, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

pesquisa na área da fase Pindorama sido provisoria­ pouco mais recentem ente que os horticultores
mente interrom pida, não se pode avaliar o que Aratu/Sapucaí. Sua origem também é desconhecida
representa o seu m aterial, nem com relação à e todos os indicadores levam a p en sar num a
entrada da cerâmica e/ou da horticultura na região economia baseada no cultivo da mandioca amarga
do m édio T ocantins, nem com relação à sua e na pesca, mas, em concreto, desconhece-se seus
continuidade em tempos coloniais. restos alimentares, que só poderiam ser estudados
A fase Jatai, outro grupo reconhecidamente em a b rig o s. E ram p o p u la ç õ e s n u m e ro sa s e
horticultor, cujos restos aparecem em numerosos certamente desembocaram em grupos coloniais.
abrigos de Serranópolis e Caiapônia, no Estado de Finalmente, a tradição Tupiguarani,1 além de
Goiás, poderia ser um invasor na área. Isto porque um certo número de sítios na bacia do Paranaíba,
os seus refugos, acumulados desde 1.000 anos d.C., tem apenas o cu p açõ es esp arsas na b acia do
aparecem em descontinuidade com os restos dos Araguaia e mais rarefeitas ainda no resto do Estado
últimos caçadores/coletores locais. A tradição Una, de Goiás, como se tivesse enfrentado dificuldades
à qual a fase é atribuída, encontra-se em direção na ocupação do espaço, no qual dois outros grupos
leste até o mar, b eirando sem pre a fro n teira de horticultores aldeões já estavam fortem ente
meridional dos horticultores aldeões da tradição estabelecidos. Pertence ao ramo do Sudeste, que
A ratu/Sapucaí. Com o as pesquisas publicadas os arqueólogos denominam “subtradição Pintada”
sobre as áreas dos dois Mato Grosso são ainda (ou, como querem alguns, Tupi), em oposição aos
escassas, não se pode nem especular sobre suas do Sul, denominados “subtradição Corrugada” (ou,
origens, que poderiam ser tanto orientais quanto ainda segundo os mesmos, G uarani). Também
ocidentais. Já eram cultivadores de numerosas parecem ter construído sua econom ia sobre a
p la n ta s, en tre as q u ais se d e sta c a o m ilho. utilização de mandioca amarga, dado a ser compro­
A p aren tem en te, chegaram até a co lonização vado concretamente, através dos restos alimentares
européia, mas supõe-se que sem ligação genética ainda desconhecidos. Sua expansão, excetuando
e/ou cultural com os horticultores que construíram talvez a bacia do Paranaíba, se afigura recente
suas aldeias a céu aberto, em áreas de relevo mais quando relacionada às duas tradições de aldeões
suave, ocuparam áreas acidentadas, com predo­ anteriores.
mínio de cerrado. A fase Palma, no nordeste do Em resumo, tem-se grupos, aparentem ente
Estado de Goiás e sudeste do Tocantins, ao menos pouco num erosos, em áreas acidentadas, com
em alguns aspectos, se assem elha à fase Jatai, dom ínio dos cerrados, cujas h abitações eram
inclusive na cronologia. predominantemente os abrigos; e tem-se grupos
Os h o rtic u lto re s que co n stro em grandes muito numerosos, em áreas abertas, com mata ou
aldeias a céu aberto junto à mata de galeria ou na mata de galeria, com as aldeias nas colinas ou na
m ata contínua são divididos em três tradições beira dos rios e lagos; se entre os dois grandes
tecnológicas e provavelmente culturais. A tradição grupos os contatos parecem ter sido mínimos, o
Aratu/Sapucaí, com dispersão geral mais oriental, mesmo não acontece entre as tradições dos três
tem sítios no centro-leste do Estado de Goiás. conjuntos de aldeãos, que eram marcados ao longo
Apesar de as datas só recuarem até o século IX, de fronteiras definidas, indicando dom ínio de
sua primeira ocupação deve remontar aos primeiros territórios exclusivos.
séculos de nossa era; seu lugar de origem também S obre o m odo com o os d iv erso s grupos
ainda é desconhecido; todos os indicadores levam exploravam o ambiente, dominavam o território e
a p e n s a r n u m a e c o n o m ia com a u s ê n c ia de deslocavam suas aldeias, há uma boa am ostra para
mandioca amarga, mas provavelmente baseada em um a das áreas m ais densam ente povoadas da
tubérculos e talvez em m ilho; por não serem tradição Aratu: o Mato Grosso de Goiás.
encontradas ocupações em abrigos, são desconhe­ Sobre a produção simbólica preservada nas
cidos os restos de suas plantas cultivadas e das
nativas recolhidas. Eram populações numerosas e
certamente desembocaram em grupos coloniais.
( 1 ) 0 termo “Tupiguarani” é utilizado para designar urna
A tradição Uru, com dispersão mais ocidental,
tradiçào ceram ista (sistem a classificatòrio usado pela
apresenta marcados aspectos tenológicos am azô­ arqueologia), diferentemente de “tupi-guarani”, utilizado para
nicos e parece ter chegado ao Planalto Central, um designar urna famflia linguistica.

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gravuras de lajedos e ñas paredes dos abrigos, por por outro lado, esta planta como fundamental para
enquanto existem alguns trabalhos descritivos que os horticultores aldeões vizinhos, representados
v isa m p rin c ip a lm e n te à d o c u m e n ta ç ã o dos pelas tradições Uru e Tupiguarani.
fenômenos antes que dasapareçam, e não propria­ Os K ayapó do Sul são reg istra d o s pelos
mente à sua compreensão. bandeirantes nesta área desde 1726, mas provavel­
O desconhecimento da biologia das popula­ m ente já foram contactados no fim do século
ções, em parte porque não foram encontrados os anterior. Devido à resistência que o forte contin­
restos correspondentes e em parte porque os raros gente de seus homens opôs à colonização branca,
esqueletos encontrados não foram ainda conve­ foram violentam ente com batidos desde 1739;
nientem ente estudados, é certam ente um a das pacificados em 1781, foram os habitantes de suas
deficiências mais sérias. quatro aldeias reunidos no aldeamento de M aria I.
Nesse momento, já parecem altamente dizimados,
Considerações sobre a ligação de sobrando apenas 687 indivíduos, de uma população
fases arqueológicas com tribos coloniais que era estimada em 3.000 índios. Em 1813, os
129 homens sobreviventes foram transferidos para
A pesar de as penetrações bandeirantes em São José de Mossâmedes. Em 1910, tem-se notícia
da sobrevivência de 30 a 40 indivíduos abaixo do
busca de escravos, ouro e pedras preciosas terem
Salto Vermelho, no rio Grande (Araguaia), que
causado imensos prejuízos à população e à cultura
indígena, a fixação do povoam ento branco do posteriormente também desapareceram.
O território da tradição Uru era ocupado no
Sistema dos Cerrados foi relativamente recente,
período colonial predominantemente por índios Jê
dando aos grupos autóctones um espaço que
permitiu sua sobrevivência por mais tempo, alguns Centrais, linguisticam ente muito diferentes dos
Kayapó do Sul, embora da mesma grande denom i­
inclusive até os dias atuais.
nação Jê. Os grupos mais conhecidos eram os
Que representam essas populações indígenas
coloniais com relação às fases e tradições arqueo­ Goyá, os Akuen-Xavante e os Akroá. A rqueoló­
lógicas? Ou, em outras palavras, é possível unificar gicam ente, não se pode captar a diferença lin­
a histó ria feita pelos arqueólogos com a dos güística, mas constata-se a fronteira da língua na
cerâmica e em outros elementos, especialmente na
etnógrafos?
Em bora as conexões aqui propostas sejam utilização da mandioca amarga que nestes grupos
altamente conjeturáis e de comprovação empírica parece básica, sendo inexistente entre os Kayapó
do Sul.
d ifíc il, e além d isso ap e n as a p re se n ta m -se
sugestões para algumas tribos, as especulações Entre estes grupos, os Goyá, estabelecidos nas
apresentadas podem transformar-se em hipóteses nascentes do rio Vermelho, foram contactados já
testáveis e fechar uma lacuna das mais sérias nos em 1647. Apesar de numerosos, parecem ter sido
estudos das populações indígenas. pacíficos em relação às prim eiras entradas do
O território atribuído aos Kayapó do Sul, do branco, facilitando a exploração das riquezas e, ao
gupo Jê do Norte coincide, até nos detalhes, com a mesmo tempo, o seu próprio cativeiro. Finalmente,
o corrência de sítios da fase M ossâm edes, da no começo do século XVIII, na confluência do rio
tradição Aratu; isto tanto de forma positiva, na dos Bugres com o Vermelho, eles opõem resistência
medida que dentro do território se repetem os sítios à e x p lo ra ç ã o , m as com p o u co ê x ito , sen d o
Mossâmedes, como negativa, de maneira que os rapidamente exterminados. Exatamente ali estão
mesmos não aparecem fora desse território. Há os sítios da fase Itap irap u ã (T radição U ru) e
tam bém coincidência no material, na forma da exclusivamente eles.
aldeia e nos cultivos; os cultivos registrados para Mais para o Norte, são assinalados, já em
os Kayapó do Sul são a batata-doce, o inhame e o tempos coloniais, os Akuen-Xavante, que teriam
m ilho, com exclusão da m andioca am arga; a am eaçado seguidam ente o arraial de Pilar. Em
a u s ê n c ia de m a n d io c a am arg a é ta m b ém a 1788, teriam sido aldeados 3.500 indivíduos no
inferência conseguida a partir de observação das Carretão, perto de Crixás, Goiás. Segundo alguns
formas de cerâmica da fase Mossâmedes, usando informantes, o aldeamento poderia ter chegado a
modelo testado por Brochado (1984), que atesta, contar 5.000 índios, mostrando que o grupo era
realmente numeroso, mas não resistiu, deslocando-

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se a parcela mais avessa aos brancos para a margem seus assaltos, teriam sido logo atacados, não só ao
esq uerda do T ocantins (1824), depois para o longo do rio M aran h ão e do rio das A lm as,
Araguaia (1859), acabando por se estabelecer nos formadores do Tocantins, mas também no rio Claro
campos do rio das M ortes, onde é conhecida como do Araguaia. Em 1824, estariam localizados na
Xavante. Na região de sua principal atuação, são margem direita do Araguaia, ao sul do rio Crixás e
conhecidos exclusivamente sítios da fase Uruaçu na margem esquerda do rio Tocantins, entre este e
(Tradição Uru). o rio Santa Tereza.
Uma outra fase da tradição Uru, localizada no Em bora os dados em píricos concretos para
baixo rio Vermelho e sobre o Araguaia, encontra- ligar os fenômenos pré-coloniais com os coloniais
se em território antigo dos Karajá, em local onde ainda sejam muito escassos, há um fato que é de
os mesmos ainda hoje têm sobreviventes. Material grande importância: seria difícil explicar que a
de uma tapera Karajá de 50 anos atrás, estudada população horticultora, firmemente estabelecida no
nesse local por W üst (1975), apresenta diferenças local, encontrada pelos primeiros bandeirantes, não
mínimas com relação ao restante da fase, encai­ fosse a que ali se desenvolveu nos séculos ante­
xando perfeitam ente numa seqüência de sítios da riores. Em favor de sua estabilidade, falam as
fase Aruanã. numerosas taperas de aldeias sucessivas da mesma
Os Karajá pertencem ao tronco Macro-Jê, mas cultura e tecnologia, que em quase todas as fases
constituem um a fam ília lingüística ainda não arqueológicas se justapõem durante muitos séculos
classificada (Melatti, 1970). Eles têm seu habitat no mesmo local. O fato de que os sítios de um local
ao longo da m argem direita do rio A raguaia, apresentem m atizes cu ltu rais d iferen tes com
estando seu limite meridional na proximidade de relação às de outro relativamente próximo leva os
A ruanã, G oiás, jun to à desem bocadura do rio arqueólogos a darem nomes diferentes às séries de
Vermelho, exatamente onde foi encontrado material sítios que daí resultam. Não se negam com isso os
que possibilitou a criação da fase Aruanã (Tradição deslocamentos de fronteiras, que são bem claros
Uru). ao longo do rio U ru/Alm as na parte antiga do
Os sítios Tupiguarani dispersos na bacia do povoamento horticultor, nem tentativas de entrada
Tocantins (fase São D om ingos) e talvez os da de outros grupos, sem deslocar os habitantes já
margem do rio Claro (fase Iporá), facilmente podem estabelecidos, como os Tupiguarani, ao longo do
resultar de antigos acampamentos Tupi, conhecidos rio Claro. Estes fenômenos estão bastante bem
como Canoeiro, hoje Avá-Canoeiro, cuja presença compreendidos. O que se constata como regra geral
é registrada a partir de 1780. Alguns indivíduos é que os primeiros habitantes encontrados pelos
so b rev iv em atualm en te errantes na b acia do brancos nos diversos locais foram os que aí se
Tocantins. desenvolveram.
G eralmente se afirma que os Canoeiro teriam Também não se pode aceitar o argumento de
chegado à região no período colonial, sendo que a colonização do litoral pelos portugueses já
descendentes dos Tupi, vindos da costa, foragidos tenha afetado os grupos na sua estrutura dem o­
de bandeiras, posteriorm ente m estiçados com gráfica e cultural ou os tenha tornado instáveis
negros quilombolas. A extrema escassez de sítios antes de o branco os alcançar diretam ente. O
d isp e rso s em g randes ex ten sõ es p o d eria ser comportamento pacífico dos Goyá, um dos pri­
indicador de ocupação recente. Teriam vivido meiros grupos atingidos pelas bandeiras paulistas,
p rin cip alm e n te nas m atas próxim as dos rios poderia ser indício de que a instabilidade, e com
Maranhão, Paranã e M anoel Alves e da Barra do isso o conflito, ainda não se tinham instalado, como
Palma, onde estariam suas aldeias. A principal conseq ü ên cia da in seg u ran ça prov o cad a p o s­
delas, entretanto, ficaria entre as montanhas além teriormente pelo branco. As bandeiras chegaram
do rio Duro, onde povoadores lusos então dificil­ na região rapidamente em busca de mão-de-obra,
mente penetrariam . Para além do M aranhão, a ouro e pedras preciosas, não dando tempo à outra
oeste, possuíram ainda os descampados até Amaro onda de desestruturação para atingir o local antes
Leite (hoje Mara Rosa) e Piedade. Teriam destruído deles.
os arraiais de Tesouras (da freguesia de São Félix), Esses contatos diretos dos bandeirantes, que
Cocai, Água Quente e Amaro Leite, e dizimado a ainda encontraram as tribos plenamente instaladas,
população de Crixás e da Vila do Pilar. Devido a com suas aldeias, seus roçados, seus campos de

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c a ç a e c o le ta , com o h a v ia sid o em ép o c as engloba 26 povos de características cu ltu rais


anteriores, provocam não só uma desagregação diferenciadas.
social, com o a dim inuição da população por O g ru p o in d íg e n a G u a ja já ra , de lín g u a
escravização, guerras e doenças, mas uma dete­ Tenetehara, fam ília Tupi-Guarani, tronco Tupi,
rioração econômica, com a ocupação de espaços habita o centro-sul do M aranhão, em áreas dos
vitais para os cultivos, com a pilhagem das roças, m unicípios de Bom Jardim , Grajaú e Barra do
a desorganização dos espaços de cada aldeia, Corda. De acordo com dados de 1982/83, estima-
levando os grupos à guerra, primeiro contra os se uma população de 6.776 indivíduos.
arraiais brancos, mas logo também entre si. Os Urubu-Kaanor, grupo indígena de língua
Se fosse possível ter uma etnografía das po­ Urubu, pertencentes à família Tupi-Guarani, do
pulações no momento inicial do contato, realizado tronco Tupi, habitam o noroeste do Estado do
pelos bandeirantes paulistas, certamente ter-se-ia Maranhão, em áreas de transição entre o Domínio
uma visão mais completa da vida pré-colonial; a dos Cerrados e o Domínio Equatorial Amazônico,
imagem que os viajantes e etnógrafos do século nos municípios de Carutapera, Cândido Mendes,
XIX oferecem das populações então sobreviventes, T uriaçú e M onção. P ossuem um a p o pulação
com absoluta certeza, já é falsa, porque o impacto estimada em 494 indivíduos, de acordo com dados
violento da colonização, primeiro desestruturando de 1982.
e depois reestruturando a sociedade, a economia e Ainda não há informações precisas sobre a
talvez partes consideráveis da cultura, já havia sido língua falada pelo grupo indígena Guajá, que habita
absorvido. Se isto parece verdadeiro para as desde o centro-sul do M aranhão até o norte do
p o p u la çõ e s ainda num ero sas que assolaram Estado do Tocantins, possuindo uma população
desesperadas os arraiais brancos antes de serem estimada em 240 indivíduos, dos quais 150 estão
“pacificados”, o é muito mais para as já reduzidas, sem contato, de acordo com dados de 1982. Este
que foram aldeadas e completamente deculturadas grupo situa-se nos m unicípios de Bom Jardim,
sob o domínio do colonizador. Santa Luzia e Imperatriz, no Maranhão e Goiatins,
Os seus descendentes, que hoje sobrevivem no Tocantins.
na medida que levam uma vida tribal, devem ter O grupo indígena Tembé, como os Guajajára,
reorganizado mais de uma vez sua sociedade e sua fala a língua Tenetehara e habita a área indígena
cultura com os restos que salvaram do impacto Turiaçu, no noroeste do Maranhão, já nas transição
co lo n ial, rea d ap ta n d o -a s conform e as novas p ara o D om ínio E q u ato rial A m azônico. Sua
condições e necessidades. Por isso, mais que uma população é estimada em 130 indivíduos.
verdadeira continuidade cultural, deve-se imaginar Os Gavião (Pukobyé) são um grupo indígena
uma continuidade populacional, que em nenhum pertencente à família Jê, do tronco Macro-Jê que
momento enfrentou maior desafio e foi obrigada a fala a língua Timbira e habita nas proximidades
maior criatividade que nos três séculos de expansão do município de Amarante, Estado do Maranhão,
colonial. com população estimada em 306 indivíduos, de
acordo com dados de 1983.
Os sobreviventes O grupo indígena Krikati fala a língua Timbira
e habita o município de Montes Altos, no Estado
Sem considerar a área do Parque Nacional do do Maranhão, com população estimada em 325
Xingu, que mesmo possuindo alguns elementos do indivíduos, com base em dados de 1983.
Sistema dos Cerrados é integrante do Domínio O grupo indígena Krikati/Gavião, de língua
Equatorial Amazônico, ou Trópico Úmido, e sem Timbira, habita áreas do município de Barra do
considerar também alguns povos que vivem em Corda, no Maranhão. Não se conhecendo dados
áreas disjuntas de Cerrados, com o os Pareci e de demografia.
N am bikw ara, a área contínua do Sistem a dos T im bira (Pukobyé) é um grupo in dígena
C e rra d o s dos ch a p ad õ e s c e n tra is do B rasil falante da língua T im bira e h ab ita terras do
a p re sen ta um a p o p u la çã o in d íg e n a atual de município de Grajaú, no Estado do Maranhão, com
aproxim adam ente 44.118 índios, distribuídos população estimada em 21 indivíduos, de acordo
principalmente em terras do Maranhão, Tocantins, com dados de 1983.
G oiás e M ato G rosso do Sul. Esta população O grupo in d íg en a C an ela A p an iek a fala

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também a língua Timbira e habita em terras do 102 indivíduos, de acordo com dados de 1982.
m u nicípio de B arra do C orda, no M aranhão, O grupo indígena Tapirapé fala a língua dos
possuindo uma população estimada em 274 indíos, Tapirapé, fam ília T upi-G uarani, tronco Tupi e
de acordo com dados de 1983. habita os municípios de São Félix, no Estado de
Os C anela R am kokam ekra são um grupo Mato Grosso, e Santa Terezinha, no Tocantins.
indígena também falante da língua Timbira. Suas Possui uma população estimada em 180 índios,
aldeias estão situadas no município de Barra do segundo dados de 1981.
Corda, no Maranhão. Possuem uma população de Avá-Canoeiro é um grupo indígena falante de
718 índios, de acordo com dados de 1983. uma língua ainda não precisamente definida, que
O grupo indígena Bakairi, que fala a língua pertence à família Tupi-Guarani, do tronco Tupi.
dos Bakairi, da família Karib, ainda não devida­ Habita os municípios de Formoso do Araguaia,
mente classificada em troncos. Habita os municí­ Cristalândia, Cavalcante e Minaçu, possuindo uma
pios de Chapada dos Guimarães e Nobres, a leste população estimada em 101 índios, de acordo com
de Mato Grosso, com população estimada em 448 dados de 1981/83.
índios, de acordo com dados de 1983. O grupo Xerente fala a língua dos Akuen, da
Borôro é um grupo indígena falante da língua família Jê, tronco Macro-Jê. Habita o município
dos Borôro, da fam ília Borôro, pertencente ao de Tocantínia, no Estado do Tocantins, com popu­
tronco Macro-Jê. Suas aldeias estão distribuídas lação estimada em 850 índios, de acordo com dados
nos m unicípios de Rondonópolis, General C ar­ de 1984.
neiro, Poxoréu, Santo Atônio do Leverger e Barão Os Krahó, grupo indígena que fala língua dos
de Melgaço, no Estado do Mato Grosso. Possuem Timbira, família Jê, tronco M acro-Jê, habitam os
uma população estimada em 752 índios, de acordo municípios de Goiatins e Itacajá, no Estado do
com dados de 1980/83. Tocantins e possuem uma população estimada em
X avante - o grupo indígena X avante fala 894 índios, segundo dados de 1983.
língua dos Ekuen, da família Jê, do tronco Macro- Os Apinayê - grupo indígena que fala língua
Jê. Suas aldeias se distribuem pelos municípios dos Timbira, da fam ília Jê, tronco M acro-Jê -
de B arra do G arças, C hapada dos G uim arães, habitam o município de Tocantinópolis, Estado do
General Carneiro e Poxoréu, no Estado de Mato Tocantins e possuem uma população estimada em
Grosso. Possui uma população estimada em 4.413 508 índios, de acordo com dados de 1983.
índios, de acordo com dados de 1983. O grupo indígena Guarani fala a língua dos
Os Javaé/K arajá falam a língua dos Karajá, G uarani, fam ília T u p i-G u aran i, tro n co Tupi.
ainda não classificada em fam ília, pertencente Habita, em sua grande maioria, os municípios de
ao tro n c o M a c ro -Jê . As p rin c ip a is a ld e ia s Amambaí, Sete Quedas, Eldorado, Douradinha,
lo c aliza m -se nos m unicípios de F orm oso do Dourados, Caarapó, Bela Vista, A ntônio João,
A raguaia e C ristalândia (Ilha do Bananal), no Ponta Porã, Tacuru, Arai M oreira e Novo Mundo,
E stado do Tocantins. Possuem um a população no Estado de Mato Grosso do Sul, um pequeno
estim ada em 388 índios, segundo dados de 1980/ grupo habita o munícipio de Araguaína, no Estado
83. do Tocantins. Possui uma população estimada em
O grupo indígena Karajá fala também a língua 12.445 índios, segundo dados de 1981/83.
Karajá, com uma aldeia situada em Aruanã, Goiás, O grupo indígena Kadiwéu fala a língua dos
e os demais se distribuindo pelos municípios de Kadiwéu, da família Guaikuru, ainda não classifi­
São M iguel do Araguaia, Formoso do Araguaia, cada em tronco. Habita áreas do Município de Porto
Luciara, Conceição do Araguaia, Pium, Dueré, M urtinho, no Mato Grosso do Sul e possui uma
C ristalândia e Santa Terezinha, no E stado do população aproxim ada de 850 índios, segundo
Tocantins. Há também o registro de um pequeno dados de 1983.
grupo em São Félix, no Estado de Mato Grosso. Os Terêna - grupo indígena que fala língua
Possuem uma população estimada em 1.194 índios, dos Terêna, da fam ília Aruak, tronco A ruak -
de acordo com dados de 1976/82. h ab itam áreas dos m u n ic íp io s de M ira n d a ,
Os Karajá do Norte (Xambioá) falam a língua Aquidauana, Anastácio, Dourados, Sidrolândia,
dos Karajá, com aldeia situada no município de Nioaque, todos no Estado de Mato Grosso do Sul.
Araguaína, no Tocantins, e população estimada em Possui uma população aproximada de 9.711 índios,

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BARBOSA, A.S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

de acordo com dados de 1983. indígenas como as de Goiás são o resultado final
Sobre o grupo indígena Cam ba não se tem de um longo processo de experimentação, coleta,
informações lingüísticas. O grupo habita áreas do cu ltiv o e d o m e stic a ç ã o , d e s e n v o lv im e n to e
município de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, em préstim o de técnicas e ajustam ento da so­
com população aproximada de 2.000 individuos, ciedade. Talvez a transição do período úmido e
segundo dados de 1979. quente do altitermal para um período mais seco e
ameno fosse a ocasião. Em Goiás se desconhece
ainda por completo todo o processo e, depois dos
Idéias para urna Historia caçadores, encontram-se de repente, já formados,
os horticultores ceramistas, num tempo em que o
A região do Cerrado é ponto de encontro entre am biente supostam ente já era o atual. O mais
a A m azonia, o N ordeste e o Sul. O planalto, antigo até agora detectado é o da fase Pindarama,
revestido de cerrado, é recortado pelos rios das três supostamente horticultor, que já utiliza cerâmica
grandes bacias brasileiras (Amazonas, Paraná e desde 500 anos a.C. pelo menos. Depois, aparece
São Francisco), acompanhadas de matas de galeria, a tradição Aratu/Sapucaí, a Una, a Uru e a Tupi-
ora mais ora menos largas. No encontro dos rios guarani.
das três bacias, formou-se uma extensão maior de As diferentes tradições cerâmicas de horti­
floresta, conhecida como Mato Grosso de Goiás. cultores exploram ambientes diferentes e cultivos
As áreas de mata oferecem solos para cultivo, a diversos. A tradição Una coloniza vales enfurna­
serem aproveitados no começo das chuvas de verão. dos, geralmente pouco férteis, com predominância
O cerrado é muito rico em caça e frutos, que podem de cerrados, usando como habitação os abrigos e
complementar a agricultura no começo das chuvas. grutas n atu ra is e com o eco n o m ia um a fo rte
Os rios proporcionam muito peixe, no tempo da associação de cultivos nos quais predomina o milho
seca. de caça e de coleta. Imagina-se que a população
Muito antes dos horticultores ceramistas, os Una distribuía-se em pequenas sociedades, aptas
caçad o res/co leto res p ré-cerâm icos haviam -se a explorar os recursos diversificados que poderiam
esparramado pelo território, utilizando os recursos alcançar do seu ponto de instalação: o rio mais
de acordo com suas necessidades e em conformi­ próximo, a pequena mata de galeria, o cerrado e
dade com sua tecn o lo g ia. N ão se tem ainda muitas vezes o campo no alto do chapadão. Este
nenhuma idéia de quando e como se instalaram os am biente não é d isp u tad o pelos grupos, que
cultivos. Aparentemente, eles não surgiram ali, constroem suas aldeias em áreas abertas.
porque as diversas tradições tecnológicas até agora Os primeiros aldeões conhecidos foram os da
estudadas pertencem a horizontes mais ampios e a tradição Aratu/Sapucaí. Seu domínio era os con­
datas mais altas, sendo atribuidos a horticultores trafortes baixos das serras do centro-sul e leste de
instalados fora do estado; faz exceção a tradição G oiás, especialm en te as áreas férteis e m ais
Uru, até agora só conhecida no oeste de Goiás, mas florestadas do Mato Grosso de Goiás, onde pu­
que certamente ultrapassa seus limites em direção deram in stalar um a econom ia fortem ente d e­
ao Mato Grosso, o que ainda não foi pesquisado. pendente de cultivos, mas provavelm ente sem
Os cultivos poderiam ter chegado através da dispensar a exploração dos frutos do cerrado, a caça
migração de grupos horticultores, ou pela acultu­ e a pesca. Sua população era numerosa e nenhum
ração dos ca ça d o re s/c o leto re s anteriorm ente outro grupo conseguiu infiltrar-se no seu território
presentes, que os poderiam ter recebido de vizinhos. que, por seus recursos, deveria ser muito am bicio­
É possível que am bos os fenôm enos tenham nado. Suas aldeias populosas podiam permanecer
o co rrid o um com um as e o u tro com outras longamente no mesmo lugar e, quando desejável,
po p u laçõ es h o rtic u lto ras da p ré-h istó ria dos d eslocar-se para um espaço próxim o, po is o
Cerrados. território era fértil e estava sob seu dom ínio.
Não se pode resumir todo o jogo do povoa­ Tam bém o sistem a de c u ltiv o , b a se a d o em
mento em deslocamentos de grupos já prontos, pois tubérculos e provavelmente no milho, pôde resistir
so b ra a p erg u n ta : onde estes se form aram ? ao avanço dos grupos mandioqueiros da tradição
Certamente, como nas outras áreas do mundo, os Uru e da Tupiguarani.
sistemas agrícolas desenvolvidos por populações A tradição Uru chega mais tarde e domina o

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BAR BO SA, A .S. Peregrinos do cerrado. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 5: 159-193, 1995.

centro-oeste do Estado. Avançando ao longo dos p ro cedência im ediata de lá, a trad ição A ratu/
rios, ocupa terrenos mais baixos, provavelmente Sapucaí faz parte de uma tradição mais do centro-
de pouca utilidade para os aldeões que se haviam nordeste. A tradição Una, com menos dom ínio
instalado antes, mas importante para eles por causa sobre as áreas abertas, disputadas pelos aldeões
da locomoção e principalmente da pesca. Dessa da tradição anterior, se comprime numa faixa entre
forma, criou-se entre os dois grupos um a fronteira estes e as populações coletoras-cultivadoras do
b a sta n te e stá v e l, m as nem sem p re p ac ífica . planalto meridional, tradicionalmente conhecidas
Aparentemente, a tradição Aratu é mais receptiva, p o r suas ald eias de casas su b te rrâ n eas. N ão
aceitando elem entos tecnológicos selecionados, obstante esta sua posição marginal, é nela, fora da
entre os quais não está a m andioca e seu processo Amazônia, que estão as datas mais antigas para a
de tra n s fo rm a ç ã o , a c e ito ap e n as em lo c a is cerâmica; talvez seja ela uma forma de cultura ante­
restritos. rior ao desenvolvimento dos aldeões e, quem sabe,
A tradição T upiguarani parece ser a m ais a origem deles.
recente, tendo um certo domínio sobre o vale do Com exceção do Tupiguarani, os representan­
Paranaíba; a partir dele, acompanha seus afluentes, tes das outras tradições viveram no territó rio
indo acam par nos abrigos anteriormente habitados durante séculos sem muita movimentação, numa
pela tradição Uru. Há também aldeias dispersas terra que era deles. Entre 70 e 100 gerações de
na bacia do alto Araguaia, mas aparentemente sem h o rtic u lto res de fro n te ira, até o d ia em que
muita autonomia, convivendo às vezes na mesma irrom peram na área, em grandes destacamentos
aldeia com grupos horticultores de outras tradições. armados, homens diferentes, não interessados em
Os Tupiguarani da bacia do Tocantins têm aldeias plantar, colher e caçar, nem em construir aldeias
ainda mais dispersas e, recentem ente, como se entre o cerrado e a mata, ou à beira da lagoa ou do
realmente fossem, tal qual se imagina, populações rio. Queriam levar gente, pedras brilhantes e ouro.
vindas já no período colonial, enfrentaram não Era o caos. Roças pilhadas, aldeias dem olidas,
apenas os demais índios aldeões já instalados, mas mulheres violentadas, terras de cultivo invadidas,
também os colonizadores brancos que os teriam pessoas morrendo de doenças desconhecidas. A
trazido. guerra foi a solução ditada pelo desespero. A
Se a tradição Uru e a tradição Tupiguarani, derrota, o aldeamento, a desmoralização, a extinção
ambas mandioqueiras, parecem mais próximas das ou a fuga foram as conseqüências.
culturas amazônicas, em bora talvez não tenham

BARBOSA, A .S. Pilgrims of the Cerrado. Rev. do M useu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo,
5: 159-193, 1995.

ABSTRACT: The Cerrado biogeographic system exerted, through the diversity


of environment, variety of resources and possibities of subsistence, since the end of
Pleistocene and the beginning of Holocene, fundamental importance in the settlement
of human populations in the central areas of Brazil. The hunter-gatherers groups
have established with this kind of environment a very wise relationship which gave
rise to singular culture processes. Most of these processes continuate an accentuated
form also in the culture of the horticultural groups and motivate the archaeologist, in
a general way, to include a manifold of possibilities in his works, as well as to better
understand the function of the invironment, and the organization o f space, by
populations endowed with simple economies.

UNITERMS: Archaeology and Cerrado - Archaeology of Brazil - Culture and


environment.

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