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Leslie D. Weatherhead
04/06/2007
http://ebooksgospel.blogspot.com/
ISBN 85-7325-129-8
1. Deus-Vontade I. Título.
97-4892 CDD-231.4
Prefácio................................. 9
A Vontade de Deus...
Ou a do homem?
Entender quais são as três vontades genuínas de Deus é descobrir a paz, perder o medo e
fugir da confusão.
Usar a expressão "a vontade de Deus" indistintamente, é convidar o desastre emocional e
intelectual para se instalar no mundo e em nossas vidas.
Em meio a tudo o que acontece conosco, quando é que se trata realmente de uma das três
vontades de Deus, e o que devemos fazer para distinguir essas três vontades ?
Saber essa diferença é o princípio da sabedoria, da realização espiritual e do equilíbrio
social.
Escrevi este livro para ajudar você a distinguir as três vontades de Deus. Isto pode mudar
sua vida.
Prefácio
Aqui foram reunidas cinco mensagens sobre as três vontades de Deus, que preguei
enquanto as bombas dos aviões de Hitler destruíam Londres. Meus amigos Edgar C. Barton e Leslie
F. Church, ambos também pastores, disseram-me que a publicação dessas pregações poderia ajudar
a esclarecer a um maior número de pessoas sobre um assunto de especial importância, nestes dias
de tantas perdas e tristezas. Apresento-as no estilo direto em que foram proferidas. Não tentei
disfarçar o fato de que foram preparadas como sermões.
— L.D.W.
1
A Vontade
Intencional de Deus
Usa-se a expressão "a vontade de Deus" de modo tão impreciso, sendo as consequências
dessa imprecisão sobre a nossa paz de espírito tão sérias, que gostaria de passar algum tempo
refletin-do com você a respeito do assunto. Nada mais há que mereça tanta clareza de reflexão; no
entanto, parece-me às vezes, que poucos assuntos geram tanta confusão.
Permita-me dar-lhe um exemplo. Tenho um amigo cuja esposa querida morreu
recentemente. Após sua morte, eis o que ele disse: "Bem, eu preciso aceitar a morte da minha
esposa. Foi a vontade de Deus". No entanto, sendo médico, ele lutou semanas para salvar a vida da
esposa. Havia contactado os mais competentes especialistas de Londres. Usara todos os recursos da
ciência moderna, toda a engenhosa aparelhagem mediante a qual as energias da natureza podem ser
usadas no combate à doença. Mas será que durante todo o tempo ele estava lutando contra a
vontade de Deus? E na hipótese de a esposa se haver recuperado, não seria tal fato, para ele, a
vontade de Deus? É certo, pois, que não podemos dar o mesmo nome a duas coisas completamente
diversas. A recuperação da mulher ou, no caso contrário, a sua morte não podem de igual modo ser
a vontade de Deus, aquilo que ele havia intentado.
Desejo dar-lhe outro exemplo dessa confusão. "Meu filho morreu há dez dias num dos
ataques aéreos a Londres" disse uma mulher,"mas estou tentando me curvar perante a
incompreensível vontade de Deus." Porém, teria sido aquela morte vontade de Deus? Eu diria que
foi a vontade do inimigo, de Hitler, se preferir, das forças malignas com as quais militamos. Então,
é tudo a mesma coisa?
Temos aí uma mãe que torce as mãos e chora de angústia pela morte de seu menino. O
pastor está ao seu lado, e anseia confortá-la; embora sua presença e suas orações possam representar
algum consolo, ele sabe muito bem que, quando ruge a tempestade, é tarde demais para falar sobre a
âncora que deveria ter sido atirada antes de ela sobrevir.
Quero mostrar com isso a tremenda importância de tentarmos pensar com clareza antes que
a desventura nos assole. Se agirmos assim, a despeito de toda a nossa tristeza, contaremos então
com uma filosofia de vida que nos ampara e tranquiliza, assim como a âncora estabiliza o navio.
Caso contrário, diante do furor da tempestade, muito pouco poderemos fazer até que ela seja
amainada. Ah! se o pastor pudesse ao menos injetar na mente daquela mulher as convicções que ele
mesmo nutria a respeito de Deus! Mas, isso infelizmente é impossível. Em sua angústia, foi isto que
a mulher disse: "Acho que foi a vontade de Deus, mas, se o médico tivesse chegado a tempo, teria
salvado o meu filho". Vê-se, pois, a confusão de pensamento. Se o médico houvesse chegado a
tempo, teria sido capaz de mudar ou neutralizar a vontade de Deus?
Essa questão me atingiu de forma mais forte quando estava na índia. Eu estava em pé, na
varanda de uma casa, sobre a qual descera a sombra do luto. Meu amigo indiano havia perdido o
filhinho — a luz de seus olhos — por causa de uma epidemia de cólera. Na outra extremidade da
varanda estava a filhinha dele, a única criança sobrevivente, que dormia numa cama tosca, recoberta
por um véu que a protegia contra os mosquitos. Andávamos de um lado para o outro. Tentei,
bastante sem jeito, confortar e consolar meu amigo. Disse-me ele, contudo: "Bem, pastor, essa é a
vontade de Deus. É isso. Nada mais: a vontade de Deus".
Felizmente eu o conhecia bem o bastante para replicar sem que me entendesse mal. Disse-
lhe mais ou menos o seguinte:
— Vamos supor que alguém subisse os degraus desta escada até esta varanda e, enquanto
todos dormissem, deliberadamente pusesse na boca de sua filhinha, que está dormindo ali, um
chumaço de algodão embebido numa cultura de germes da cólera. Que você diria disso?
— Meu Deus — exclamou ele — o que eu diria? Ninguém faria uma crueldade dessas. Mas
se tentasse fazê-lo, e eu apanhasse essa pessoa, eu a mataria sem compaixão alguma, como se
estivesse matando uma serpente, e a atiraria varanda abaixo. Mas o que você pretende trazendo um
exemplo desses?
— Muito bem, John — disse-lhe com tranquilidade — você acabou de acusar Deus de fazer
essa crueldade, ao afirmar que essa era a vontade dele. Diga que a morte de seu filho é resultado da
ignorância em grande escala, diga que morreu por causa da insensatez, do pecado, diga o que
quiser, que foi pela precariedade do saneamento básico ou pelo descuido comunitário, mas não diga
que foi a vontade de Deus.
Sem dúvida não podemos identificar como vontade de Deus algo que levaria um homem
para a penitenciária ou um louco para o hospício.
Os que quiserem uma base bíblica para este sermão, a encontrarão no capítulo 18 do
evangelho de Mateus, no versículo 14: "Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que
pereça um só destes pequeninos".
Vemos, mediante esses exemplos, que poderiam ser citados com outros infortúnios
diferentes da morte, como nosso pensamento é confuso e desconexo no que diz respeito à vontade
de Deus. Mas deixe-me dizer agora algo que possa aliviar a tensão da sua mente; quero antecipar
algo do que pretendo tratar nas próximas mensagens desta série.
O raciocínio a que cheguei requer que o assunto seja dividido em três partes. Estamos
tratando agora da primeira delas. A vontade de Deus, na verdade, pode ser dividida em três
aspectos:
1. A vontade intencional,
2. A vontade circunstancial,
3. A vontade última.
O problema aparece quando usamos a expressão"a vontade de Deus"em referência aos três
aspectos da sua vontade, sem fazer distinção entre eles. Porém, quando examinamos a cruz de
Cristo, tal distinção, no meu entender, se torna indispensável.
1. Terá sido a intenção de Deus, desde o início, que Cristo fosse para a cruz? Creio que a
resposta a essa pergunta deve ser NÃO. Não me parece que Jesus tivesse isso em mente no começo
de seu ministério. Ele veio com a intenção de que o seguissem, não de que o matassem. A vontade
intencional de Deus ou, se preferir, seu propósito ideal, era que Cristo fizesse discípulos, não que
morresse. Que bom seria se "a vontade de Deus" fosse a expressão usada somente em referência à
vontade intencional de Deus!
3. E finalmente, usamos a expressão "a vontade de Deus" num terceiro sentido: quando nos
referimos à vontade última de Deus, sua intencionalidade a despeito do mal ou, como veremos,
mesmo através dele. Essa intenção se cumpre sem que se perca nada de seu valor, obtendo os
mesmos resultados a que se chegaria se a vontade intencional de Deus houvesse sido obedecida,
sem frustração, desde o início. Espero que cheguemos a ver nos demais capítulos deste livro que
Deus não pode jamais ser derrotado de modo definitivo, sendo isso a que chamo de onipotência.
Nem tudo o que acontece é da vontade de Deus, mas nada do que acontece pode definitivamente
derrotar a sua vontade. Assim, no que concerne à cruz, Deus atingiu seu objetivo irreversível não
simplesmente a despeito da cruz, mas por meio dela. Deus operou grande redenção e concretizou
sua vontade última em sentido pleno, como o teria feito se sua vontade intencional não houvesse
sido temporariamente paralisada.
Sei que as pessoas têm a mente exausta, por causa do cansaço e pelo estresse ocasionados
pelo peso dos problemas da vida. Mas desejo pedir a todos que, no futuro, na hipótese de tristezas
ou desventuras, procurem ter em mente que a vontade divina para com a nossa vida manifesta-se de
três maneiras, as quais poderão depois ser harmonizadas: a vontade intencional de Deus, a vontade
circunstancial de Deus e a vontade última de Deus.
Concentremo-nos, portanto, na primeira, pensando na vontade de Deus sob o aspecto de sua
intenção ideal. Para tanto, uma das primeiras coisas que devemos fazer é dissociar da expressão "a
vontade de Deus" tudo quanto seja perverso e desagradável, que traga infelicidade. Esses aspectos
serão tratados sob o título "A vontade circunstancial de Deus".
A vontade intencional de Deus representa o modo de Deus derrarmar-se em bondade, como
ocorre com o pai amoroso em relação aos filhos.
Veja como nosso pensamento está confuso a esse respeito em razão de certos hinos
teologicamente errados. Eis a estrofe de um deles:
Se é escuro o caminho, triste o viver, Dá que eu os sofra sem murmurar, E sempre a divina
oração a dizer: "Venha tua vontade se realizar".
Que tipo de Deus é esse que, por sua intenção, não por causa das circunstâncias atiradas à
nossa vida pela ignorância, pela loucura ou pelo pecado, derrama aflição imerecida e infelicidade,
decepção e frustrações, tristezas e doenças sobre seus amados filhos, de quem exige que, em meio
às lágrimas, ergam a fronte e clamem: "Seja feita a tua vontade!"? Precisamos acabar com a ideia de
que tudo o que acontece se deve à vontade de Deus, como se essa fosse a sua intenção. Tais
acontecimentos estão dentro da vontade de Deus, se você precisa usar a expressão, nas
circunstâncias sobre as quais já demos algum indício. Mas precisamos entender o fato de que a
vontade intencional de Deus pode ser temporariamente paralisada pela vontade do homem. Não
fosse verdade, o ser humano não teria liberdade alguma. Todo o mal que obtém sucesso temporário
bloqueia a vontade de Deus temporariamente.
Voltemos aos exemplos anteriores. Eu poderia dizer ao meu querido amigo: "A morte de sua
esposa não era da vontade de Deus, de modo algum. Foi apenas o fruto da ignorância humana. Se
pudéssemos gastar tanto dinheiro em pesquisas médicas quanto gastamos na construção de um
navio de guerra, a vida de sua esposa poderia ter sido poupada". Embora não fosse momento
oportuno para dizer-lhe isso, não era possível deixar de pensar dessa forma.
Quando um jovem missionário manifesta sua presteza e resolução diante de todas as provas,
depois de todos os exames exigidos, para entregar a vida em prol de levar as boas novas de Cristo a
um povo que nunca as ouviu antes, podemos dizer verdadeiramente: "Seja feita a tua vontade". Mas
não podemos dizer o mesmo quando um piloto despenca, o avião em chamas, para encontrar a
morte precoce. Porém, quando finda a guerra e os jovens de todas as nações podem apertar as mãos
e iniciar
juntos a reconstrução do mundo — essa é a hora d dizer: "Seja feita a tua vontade".
Não quando um bebé morre, mas sim quando dois jovens levam o filhinho perante o púlpito
da igreja, a fim de consagrá-lo a Deus, porque desejam que Deus reine em seu lar pequenino, mas
amorável, e na pequenina vida que lhes foi concedida, o filho. Esse é o momento de dizer: "Seja
feita a tua vontade".
Não quando as crianças morrem de fome na Africa em razão das circunstâncias da guerra,
ocasionadas pela maldade do mundo todo. Mas quando os países oprimidos forem finalmente
libertados dol jugo impiedoso de seus opressores e todas as crianJ cinhas ali tiverem o suficiente
para comer, podendo! cantar e brincar felizes, ao sol, amigo do corpo e dal alma — é chegado o
momento de dizer: "Seja feita ai tua vontade".
Venha comigo a uma favela, na área esquecida! de alguma cidade grande, em que a vida e o
serviço! das pessoas são meros meios para que outros al-1 cancem seus objetivos, onde
encontraremos doen-l ças do corpo e corrupção da alma, onde o mal se in-l flama e se propaga em
condições sórdidas, terrí-l veis, onde as pessoas nem sequer têm motivação para protestar, mas
aceitam sua forma de vida com apatia mais horrenda que uma revolução. Se diante disso, alguém
diz: "É a vontade de Deus", respondo que se trata de grande blasfémia, pior do que negar a Santa
Trindade.
A opressão económica, a usura, a negação das dádivas de Deus a seus próprios filhos por
causa da nbição de uma minoria, os horrores da guerra — isso retrata um ateísmo pior do que
aquele que se rofessa. Voltamo-nos para pouco mais de cem nos atrás e maravilhamo-nos de que os
cristãos entoassem hinos a Deus, enquanto a escravidão dominava. Queira Deus, todavia, que daqui
a cem anos nossos descendentes se voltem para nós sem entender como nos intitulamos cristãos
com o corpo de Cristo despedaçado nas igrejas, pisoteado em nossas cidades, explorado na indústria
e no comércio, abandonado às doenças, embora o conhecimento médico e os recursos terapêuticos
estivessem ao alcance da família humana. Chame a tudo isso perversidade, chame-o mal inevitável,
por causa do pecado que se propagou, mas não diga que se trata da vontade de Deus.
Percebe, então, a importância que há em corrigirmos nossa forma de pensar a respeito da
vontade de Deus? É que, por causa de nossa própria confusão, jogamos as pessoas num tormento
inacreditável; embotamos o fio do propósito humano até que as pessoas murmurem o refrão: "Seja
feita a vontade de Deus". Mas o oposto da vontade de Deus é que está sendo feito.
Se os homens pudessem ver com maior clareza ps propósitos de Deus e corrigissem seus
pensamentos desconexos, passariam a ser os instrumen->s úteis de Deus para a consecução de seu
propósito, eliminando o mal que arrogantemente consideraram "vontade de Deus". As pessoas estão
usando a expressão "a vontade de Deus" como se fosse uma fórmula de feitiçaria, selando toda a
questão com um tabu de silêncio, fugindo assim do desafio das perguntas perturbadoras que o
pensamento sincero faria ressoar em suas mentes com a insistência de soar de trovão.
Há, todavia, duas dificuldades:
1. A primeira pode ser expressa como segue: Você poderia afirmar: "Sim, está certo, mas
não devemos esquecer que as pessoas se consolam ao i-maginar que suas tragédias são da vontade
de Deus. O sofredor suporta melhor suas dores ao su-3or que são da vontade de Deus. É difícil
suportá-as, se forem resultado de erro humano grosseiro, e ião da vontade de Deus. Esse modo de
ver as coisas tira o consolo das pessoas. Mas quando elas icham que determinada coisa é da vontade
de Deus, conseguem suportá-la com serenidade de espírito".
Mas, apesar dessa contra-argumentação, eu :ontinuo firme nos meus argumentos. Como se
;abe, existe uma época em que as coisas podem ;er ditas e outra época em que não podem ser dias,
ainda que sejam verdadeiras. Se passamos por ima grande tragédia, muito pouco podemos di-^er
acerca da vontade de Deus. Mas de uma coisa \ão podemos nos esquecer: Jamais pode existir
:onsolo na mentira.
Apesar do quão intimamente tenhamos acalentado uma mentira, no momento que a
percebermos como tal, devemos ter a sabedoria de nos afastar dela. Os que se refugiam numa
mentira asseme-lham-se aos que se refugiam sob um abrigo fraquíssimo, feito de ripas pintadas de
modo que pareçam pedras. Quando as pessoas mais precisarem desse abrigo, ele ruirá, expondo-as à
tempestade.
Quem se proteger numa falsa ideia a respeito de Deus, na hora da necessidade ficará tão sem
auxílio quanto o ateu. Se por recusar-se em ponderar bem as coisas, a pessoa se vir num abrigo
imprestável, incapaz de dar-lhe proteção à alma, essa mesma recusa torna-se pecado, pois Cristo
ordenou-nos que o amemos de todo o coração. E ele é o nosso único abrigo. Sei quão penoso é
encarar a verdade, e as pessoas odeiam ser obrigadas a pensar, mas só pela verdade é que seremos
libertos.
2. Em segundo lugar, há outra objeção, de que trataremos agora. Alguém poderá dizer: "É
bom guardarmos a expressão 'a vontade de Deus' para as coisas amáveis, alegres, sadias e benéficas
que acontecem às pessoas; porém, algumas das melhores qualidades, as pessoas adquirem mediante
o sofrimento. Portanto, não seria também o sofrimento a vontade de Deus? O sofrimento muitas
vezes dá coragem às pessoas. A guerra faz heróis".
Veremos essa objeção de modo mais minucioso ao tratarmos da vontade circunstancial de
Deus.
Basta-nos por ora dar uma breve resposta a essa objeção.
Existe um nó vicioso na lógica da observação de quem usa esse argumento, visto que a
pessoa estará errada ao argumentar que, para criar a coragem, a guerra é da vontade de Deus. Não
foi a guerra que deu a coragem. A guerra apenas pôs a descoberto a coragem que sempre existiu.
Deu-lhe a oportunidade tremenda de se manifestar. Jamais o mal gera o bem, embora as
circunstâncias do mal muitas vezes ocasionam a manifestação do bem.
Observe não apenas a falta de lógica, mas também as implicações infundadas no que
concerne à teologia. Se afirmarmos que o sofrimento causado pelo mal é essencial por causa das
qualidades que produz, pela lógica somos obrigados a supor que Deus precisa do mal para produzir
o bem. Isto nos leva à conclusões mais sérias: Deus só poderia gerar a coragem fazendo uso de uma
guerra perversa; ou quando Jesus curava as pessoas, estava desafiando a vontade de Deus, em vez
de cumpri-la, pois estava eliminando algo essencial ao crescimento da alma.
Se isso for verdade, que acontecerá nos céus dos céus depois que todas as almas tiverem
sido recolhidas no último dia? Será que todas as qualidades manifestadas pelo mal ficarão
atrofiadas porque o mal não estará mais presente para produzi-las? Repito que o mal não gera as
boas qualidades. Ele as faz aflorar e lhes dá exercício, mas sempre existe a possibilidade — e essa é
a intenção de Deus, com toda certeza — de essas mesmas qualidades surgirem e ser exercidas em
decorrência da bondade.
Permita-me trazer-lhe à memória, a esse respeito, as palavras de Jesus: "Jerusalém,
Jerusalém! que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu
reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e tu não o quiseste!
Eis que a tua casa te ficará deserta" (Mt 23:37,38). Observe as palavras: "Tu não o quiseste".
Subentendem um "...mas poderias". Veja também estas outras palavras de Jesus: "Eis que a tua casa
te ficará deserta. E em verdade te digo que não mais me verás até que venhas a dizer: Bendito o que
vem em nome do Senhor". Observe também esta expressão bíblica: "Ah! Se conheceras...". Mostra
que tinham a possibilidade de conhecer. As excelentes qualidades da alma humana não são
concebidas pelo mal. Deus é quem as gera, e às vezes elas se revelam na reação correta do homem
bom diante do mal, sem, contudo, depender do mal para ser produzidas, pois podem ser ocasionadas
mediante uma reação positiva ao bem.
Sejamos, portanto, extremamente cuidadosos no uso da expressão "a vontade de Deus".
Gostaria de encerrar este capítulo falando sobre a morte de um grande líder religioso, o pastor F.
Luke Wiseman. Num dia cinzento e nebuloso, esse servo de Deus, nos seus 86 anos, pregou duas
vezes — uma delas no próprio púlpito de Wesley, em City
Road. Depois, foi para casa. A esposa morrera há muitos anos. Os filhos eram todos adultos.
Podemos imaginá-lo sentado em sua poltrona, junto à lareira. Caiu no sono e acordou nos céus. A
respeito desse acontecimento você pode usar a expressão "Seja feita a tua vontade". E alguns de nós
acrescentariam outro texto bíblico: "e que eu termine meus dias assim".
Neste, iremos examinar também como a calamidade e a tristeza se enquadram em nossa
estrutura de pensamento acerca da vontade de Deus. Por enquanto, guardemos a expressão para
aquilo que Deus de fato intentou. E, quando você vir a glória de Deus refletir-se nesta terra
maravilhosa, na natureza tão exuberante ao nosso redor, na poesia e na música, na pintura, na
arquitetura de primeira qualidade e no serviço humilde, na vida de pessoas encantadoras, na
felicidade de um lar, na saúde do corpo, na capacidade da mente e na consagração da alma, olhe
para o Pai, que está nos céus, e diga: "Está sendo feita a tua vontade". E dediquemo-nos de tal modo
que possamos nos tornar um, na gloriosa harmonia de todas as coisas, com todas as pessoas que
cumprem a vontade de Deus, para que ela possa realizar-se na terra, como os anjos a praticam no
céu.
2
A Vontade Circunstancial de Deus
Já dissemos que a expressão "a vontade de Deus"é proferida tão imprecisamente que fica-
mos não só confusos, mas também com sentimentos atormentados.
Quando perdemos uma pessoas amada, dizemos que foi "a vontade de Deus", embora as
medidas tomadas para impedir essa morte dificilmente seriam consideradas contrárias à vontade de
Deus. Se as mesmas providências, no entanto, tivessem alcançado sucesso, teríamos dado graças a
Deus, certos de que, na recuperação do doente, a vontade de Deus se havia concretizado. De modo
semelhante, quando a tristeza, a doença e a calamidade recaem sobre as pessoas, elas dizem,
resignadas: "Seja feita a vontade de Deus". Dizem isto mesmo quando o ocorrido contraria essa
vontade. Quando Jesus curou muitas pessoas na Palestina, alegrando-lhes a vida, estava cumprindo
a vontade de Deus. Não a estava contrariando, tampouco anulando-a.
Para reforçar o que estou querendo provar neste livro, repetirei: a vontade de Deus
manifesta-se de três maneiras:
1. Sem dúvida não era a vontade intencional de Deus que Jesus fosse crucificado. Antes,
que as pessoas o seguissem. Se o povo tivesse aceito a mensagem de Jesus, se tivesse se
arrependido de seus pecados e entendido a dimensão do reino que ele veio anunciar, a história do
mundo teria sido muito diferente. Os que afirmam que a crucificação foi da vontade de Deus
precisam lembrar-se de que ela foi da vontade dos homens perversos permitida pela vontade
circunstancial de Deus.
2. Todavia, quando Jesus encarou as circunstâncias provocadas pelo mal e se viu lançado
no dilema de ter de fugir ou ser crucificado, então, dadas aquelas circunstâncias, a cruz tornou-se a
vontade do Pai. Foi por isso que Jesus disse: "Não seja como eu quero, e, sim, como tu queres".
3. A vontade última de Deus significa, no caso da cruz, que o elevado propósito de redimir o
homem (ou, usando uma linguagem mais simples, de restituir o homem à sua unidade com Deus) —
alvo que teria sido alcançado pelo plano intencional de Deus, se tal plano não tivesse sido frustrado
— ainda será alcançado mediante a vontade circunstancial de Deus. Em suma, o mal não consegue
deter a vontade de Deus definitivamente, nem fazer que algum "valor"se perca.
Vamos, então, concentrar-nos na segunda divisão e tratar daquilo a que chamo "vontade
circunstancial de Deus". A questão poderá ficar mais clara ainda se eu relembrar o exemplo
anterior; imaginemos um pai que planeja a carreira do filho com a colaboração do próprio jovem.
Talvez fosse da vontade de ambos, digamos, que o rapaz se tornasse arquiteto. Mas explode a
guerra. O pai está disposto a permitir que o filho se engaje nas forças armadas. Entretanto, a carreira
na marinha, no exército ou na força aérea é apenas a vontade provisória ou circunstancial do pai
para o filho, vontade gerada pelas circunstâncias da guerra. Dizer que a intenção ideal do pai em
relação ao filho era que o rapaz passasse anos valiosos da juventude nas forças armadas não
corresponde à realidade.
Bem, há, de maneira semelhante, um propósito intencional da parte de Deus para a vida de
cada pessoa. Entretanto, por causa da insensatez e do pecado humano; porque o livre-arbítrio do ser
humano propicia circunstâncias perniciosas que atravancam os planos de Deus; porque a nossa uni-
dade com a grande família humana implica em o mal entre os demais membros da espécie humana
poder criar circunstâncias que perturbam a intenção de Deus para conosco — por tudo isso, existe
uma vontade dentro da vontade de Deus, isto é, a "vontade circunstancial" de Deus (como a chamo).
Ao segui-la, a alma encontra paz, a mente encontra equilíbrio e a vontade pode manifestar-se de tal
modo que, em última análise, o plano original de Deus é levado à execução plena.
No meu entender, há dois aspectos da vontade circunstancial de Deus — um no reino
natural, e o outro no espiritual.
3
A Vontade Última de Deus
Há uma frase no fim do livro de Jó que sintetiza a mensagem deste capítulo: "Bem sei que
tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado". Moffatt traduziu esse texto assim: "Nada
é demasiado difícil para ti".
Falamos a respeito da vontade intencional de Deus — isto é, o plano original de Deus em
prol do bem-estar de seus filhos, intenção que a insensatez e o pecado do homem prejudicaram.
Tratamos da vontade circunstancial de Deus, sua vontade de acordo com as circunstâncias
originadas pela maldade humana. Desejo falar agora sobre a vontade última de Deus, do objetivo
que, parece-me, ele alcança, não só apesar do que o homem possa fazer, mas até mesmo utilizando-
se dessa maldade a fim de fazer cumprir seu plano.
Voltemo-nos para a cruz mais uma vez, o nosso supremo exemplo. Veremos que:
1. a vontade intencional de Deus não era que Jesus fosse crucificado, mas que fosse
seguido;
3. vontade última de Deus — a saber, a redenção do homem. Este foi reconsquistado para
Deus, não apesar da cruz, mas através dela, tendo sido criada pelo pecado humano como
instrumento para fazer cumprir a vontade última de Deus.
Nada caminha com pés errantes; Nenhuma vida pode ser destruída, Nem jogada fora como
lixo ao nada, Pois Deus importa-se com todos nós: guarda-nos para si.
Aí está, pois! Tenho certeza de que você não vai ser defraudado. Quando chegar ao fim da
estrada não terá nenhum sentimento de injustiça, nenhum sentimento de perda. A vontade
intencional de Deus era que você exercitasse plenamente sua personalidade, por meio de algo que
poderíamos chamar de regato da montanha, os anos verdes de sua vida conjugai. O regato está
agora represado. Mas você tem certeza, segundo o lugar onde está, com visão tão limitada, de que
Deus não pode realizar sua personalidade por nenhum outro meio? O propósito primeiro para o
universo todo é o Amor, e Deus jamais falhará, jamais desamparará nenhum de seus filhos, a menos
que se lhe oponham para sempre.
O mal pode fazer-nos coisas terríveis. Quanto mais leio e penso, mais acredito no diabo.
— Deus está dando corda ao diabo nestes dias — disse um amigo, doutor em teologia, à sua
mãe.
— Sim — disse a senhora idosa — mas continua segurando a outra ponta com firmeza.
Deus reina. Um Deus que é como Jesus, que morreu para que um sonho se tornasse
realidade. Uma realidade melhor que nossos mais fantásticos sonhos. Descanse nesta certeza da
vontade última de Deus. "Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em
coração humano, o que Deus tem preparado para aqueles que o amam". Confie em Deus. Descanse
na natureza de Deus. Ele, que iniciou essa curiosa aventura a que chamamos vida humana, a
controlará até o fim. "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o último". A última
palavra está com Deus.
Esse Deus, que vive e ama para sempre, Um só Deus, uma só lei, um só elemento, Um só
acontecimento divino e distante, Para quem a criação toda se dirige...
"Um só acontecimento divino e distante" de natureza tal qual nenhum ser humano pode
sequer sonhar, mas a que podemos chamar de concretização da vontade última de Deus.
4
Como Discernir
a Vontade de Deus
Tendo feito as distinções acima a respeito das três maneiras como a vontade de Deus se
manifesta, podemos perguntar-nos agora se é possível discerni-la, e como. Faço um quadro mental
para você: o de uma pessoa perdida numa floresta. Não precisamos descobrir se ela se perdeu por
culpa sua, ou se foi mal-orientada, ou se teria sido vítima de um acidente. A pessoa perdida está
fazendo uma pergunta que nos últimos dias tem estado nos lábios de muita gente: "E agora, para
onde vou?". Essa pessoa entende que deve haver um caminho, o plano de Deus para sua vida,
naquelas circunstâncias, mas de que maneira pode essa pessoa ter certeza de que aquele é o
caminho de Deus, e como pode ter certeza de que não cometerá erros?
Primeiro, vamos responder à primeira pergunta.
Para sermos bem sinceros, essa pessoa não pode ter certeza de não estar cometendo um erro
enquanto não chegar ao fim. Precisa ir caminhando pela fé, mais que pela vista. Todavia, se estiver
disposta a ler as "placas"e seguir as orientações, vai acabar no lugar em que Deus queria que
estivesse. Felizmente Deus lida conosco no exato lugar onde estamos.
Há uma história engraçada a respeito de um motorista que pôs a cabeça para fora da janela
do carro e perguntou a um camponês qual era o caminho para Londres. Ao que este respondeu:
"Bem, senhor, se eu estivesse indo para Londres, eu não começaria por aqui". Felizmente, Deus
pode começar conosco onde estamos, e ele tem meios de mostrar-nos o caminho de sua vontade
para nós.
Estou certo de que a maior ajuda disponível para quem quer descobrir a vontade de Deus
está em aprofundarmos nossa comunhão com ele. Todos os que conhecem a Deus são os que de
modo mais rápido e certo discernem a sua vontade. Às vezes se ouvem pessoas discutindo a
respeito de um presente que gostariam de dar a um amigo. É possível que alguém então diga: "Ora,
eu o conheço há 50 anos. Sei o que ele gostaria de ganhar". Penso que, de modo geral, a autoridade
de tal pessoa é imediatamente reconhecida.
Às vezes, tentando interpretar a vontade de uma pessoa morta, alguém dirá: "Eu sei de que
ele mais gostaria". O conhecimento, a amizade e o amor tornam-se as qualificações que decidirão o
que se fará a respeito da pessoa em questão.
Sem dúvida foi a intimidade que Jesus desfrutava com o Pai — se pudermos dar-lhe nome
tão simples — que fazia o Senhor ter tanta certeza, ao trilhar os caminhos tortuosos deste mundo,
em cada curva, e em cada bifurcação, de qual era a direção segundo a vontade de Deus.
O Senhor quase se perdeu no jardim das Oliveiras; a noite estava excessivamente escura.
Foi difícil encontrar o caminho; mas, ajoelhando-se em profunda agonia espiritual, o Senhor usou a
chave poderosa — "Não se faça a minha vontade, e, sim, a tua". Cristo abriu a porta que o levaria à
morte, crendo que naquelas circunstâncias deveria tomar o caminho da cruz.
Entretanto, deixando de lado a amizade e a comunhão, há numerosas "placas" que nos
orientam, sobre quais eu gostaria de falar de modo breve.
1. A consciência pode ter origem humilde. Algumas pessoas acham que é uma espécie de
sabedoria de grupo, acumulada ao longo das eras, à medida que as pessoas iam descobrindo que
certos comportamentos conduziam a um precipício, outros a um beco sem saída e outros cons-
tituíam avenidas. Sei que pode-se dar muito desprezo a essa voz suave e modesta do interior do
coração. Os seres humanos já praticaram o mal, supondo estarem seguindo os ditames da
consciência. Essa voz é distorcida pelo nível espiritual que a raça atingiu, e depende muito da
sensibilidade da pessoa que a ela reage.
Até mesmo pessoas da mesma geração têm opiniões diferentes a esse respeito. Uma pessoa
pratica algo relativamente mau sem sentir nenhuma alfinetada na consciência. Outra faz a mesma
coisa e sente que um tormento lhe penetra a alma, um grande remorso, o qual talvez não se
justifique tanto.
Anos a fio a escravidão jamais foi condenada pela consciência humana, e, nos séculos à
nossa frente, muitas pessoas acharão incrível que nossa consciência pudesse dormir sem se preocu-
par com as favelas e com as guerras. Porém, no final de tudo, reconheceremos uma voz que dirá:
"Isto está certo; aquilo está errado". E reconheceremos o caminho que conduz à vontade de Deus.
2. Há outro "sinal" de estrada a que damos o nome de "bom senso". "Orei pedindo
orientação", disse um homem certa vez, "mas nada aconteceu. Não recebi resposta alguma às
minhas orações. Então usei o bom senso". Mas, quem lhe deu o "bom senso", e por que foi-lhe
dado? Se Deus colocou dentro da nossa mente um maquinismo que nos ajuda a tomar decisões, por
que não o usaríamos? É certo que um entendimento baseado na apreciação bem ponderada da
situação merece mais confiança do que impulsos. Mas não merece mais confiança que os desígnos
de Deus. Ao mesmo tempo precisamos fazer uma advertência: às vezes a orientação da vontade de
Deus é o oposto daquilo que o bom senso está determinando. Às vezes a vontade de Deus é o que o
mundo chama "loucura".
É claro que há problemas em que o melhor meio de Deus ajudar a pessoa é mediante um es-
pecialista. Numa situação médica ou psicológica difícil, talvez não tenhamos sabedoria suficiente
para trazer a melhor solução; o psicólogo fez dos problemas particularmente difíceis para nós seu
campo de especialização. De novo pensemos no conselheiro como um instrumento nas mãos de
Deus, como alternativa à nossa capacidade de avaliação. Lembre-se de duas citações de Browning:
Silêncio, eu imploro!
Esse amigo pode muito bem ser... Deus!
e a outra:
Descubra um amigo com visão cristã, para que lhe empreste sua mente na resolução de seus
problemas, e Deus dará a você orientação segura. Não quero dizer que há obrigatoriamente uma
identificação entre o que o amigo aconselhar e a vontade de Deus, mas o problema, visto sob novo
prisma, se apresentará de forma mais clara.
4. Há outra maneira de usar a mente e a sabedoria das pessoas. Agimos assim ao ler bons li-
vros, sobretudo os históricos e os biográficos. Já fui grandemente consolado ao ler biografia de
grandes homens. Poucos problemas existem em nossa vida que grandes pessoas já não tenham
enfrentado antes de nós; e, quando lemos a Bíblia, biblioteca de variados livros, embora escritos sob
uma perspectiva ímpar — sob as três manifestações da vontade de Deus e sob os propósitos de
Deus —, talvez tenhamos acesso com maior clareza à orientação que Deus proporciona aos filhos
que procuram discernir sua vontade.
5. Não se deu ainda, creio, o devido valor à voz da Igreja. Certa vez Jesus recomendou a
seus discípulos que ouvissem a igreja (Mt 18:17). Acredito não estar sendo demasiado severo se
disser que nenhuma igreja funcionará como deve se não mantiver grupos de comunhão fraterna aos
quais o crente perplexo possa levar seus problemas. Esse irmão pode até disfarçar, dizendo:
"Conheço um homem que...", sendo ele próprio a pessoa com problema.
Posso afirmar com certeza, baseado na experiência própria que tive no City Temple, que às
vezes a alma perturbada, em busca em discernir a vontade de Deus recebe direção com clareza
cristalina, quando recorre a um grupo de crentes solícitos, prudentes, amorosos, perguntando qual
seria a vontade de Deus em determinada situação.
6. Nossos amigos quacres utilizam muito bem o que chamam "luz interior", e apoio
inteiramente as afirmações que fazem. Dizem que Deus pode falar diretamente à alma humana e
mostrar sua vontade aos que o buscam. Sem dúvida isto é verdade. Desejo fazer apenas um alerta.
Seguir a prática dos grupos de Oxford, esforçando-se para que a mente fique inteiramente vazia e, a
seguir, considerar qualquer coisa que vier à mente como vontade de Deus, é prática de todo
temerária.
Corremos o risco de supor que esse método pelo qual recebemos a "luz" faz que ela seja "di-
vina". Mas o pensamento ou impulso que ocorre à mente vazia é apenas o fruto de processos
mentais anteriores como, por exemplo, do pensamento que ocorre à mente depois de longa
discussão. Na verdade, ninguém consegue desligar a mente, apagá-la a partir de certo ponto,
impedir o fluxo dos pensamentos. Isso é tão impossível quanto tentar isolar uma onda do mar, na
suposição de que nenhuma relação tem com as demais ondas que vêm atrás. No entanto, se o
método for usado com sabedoria e prudência e se o que "vier" à mente naqueles momentos de
tranqüilidade for testado de outras maneiras, como as apresentamos acima, se tudo for "testado"por
outras pessoas, ninguém pode negar que a vontade de Deus pode ser discernida desta maneira.
Dessa forma, então, a vontade de Deus, no momento que precisamos de ajuda, pode ser
discernida. Quero ressaltar a última parte do que acabei de dizer: no momento que precisamos de
ajuda. Já cometi o erro de tentar discernir a vontade de Deus com anos de antecedência. Cheguei à
conclusão de que Deus não nos incentiva a ver as coisas à nossa frente se estiverem ainda longe
demais. Deve-se aceitar a realidade de que não sabemos onde e como a estrada vai terminar. Basta
saber que, ao chegar a uma encruzilhada, saberemos que caminho tomar.
Embora gostemos de pensar que é de máxima importância não cometer erros — e repito que
jamais podemos ter certeza de não haver cometido um erro —, creio firmemente no conceito
expresso no capítulo sobre a vontade última de Deus. Nossos erros, se cometidos de boa fé, não
resultarão em ficarmos perdidos. "Não perderemos nosso caminho providencial." Com freqüência
Deus interliga nossos erros ao elaborar seu plano para nós, da mesma forma que tece nossos
sofrimentos e pecados.
Entretanto, permita-me encerrar o capítulo com duas perguntas desafiadoras que sempre me
faço e desejo transmiti-la a você:
1. Quero mesmo discernir a vontade de Deus, ou simplesmente quero que ele aprove a
minha? Conta-se a história engraçada do pastor que fora convidado para pastorear uma igreja que
pagava um salário quatro vezes maior que o que ele vinha recebendo. Sendo homem consagrado,
passou muitas horas em oração a fim de discernir a vontade de Deus. Certo dia um amigo encontrou
o filho desse pastor na rua e perguntou-lhe:
— Então, o que o seu pai está fazendo?
— Bem — disse o garoto — meu pai está orando, e minha mãe encaixotando as coisas.
O pai perguntava a Deus: "Que queres que eu faça?". Mas a mãe, com intenções não tão
boas, estava dizendo a Deus: "Vou fazer isso, Senhor. Espero que tu aproves".
Discernir a vontade de Deus significa colocar-nos fora do quadro — não vamos escolher um
caminho, argumentando que é o caminho de Deus, só porque é desagradável (já tratei dessa falácia),
nem ir ao outro extremo, dizendo: "Vou fazer tal e tal coisa. Por favor, aprove meu plano, Senhor,
porque quero muito realizá-lo".
1. Livramo-nos do medo de nos perder. Todos sabem quão terrível é quando a criança não
consegue encontrar o caminho de casa. Há uma boa ilustração a esse respeito, na maneira pela qual
um piloto de avião descobre o caminho de casa. Uma onda de rádio é enviada pela estação de sua
cidade. Desde que o piloto permaneça dentro dessa onda e a siga, encontrará o caminho de casa. Se
se desviar da onda, um ruído forte ressoará nos fones de ouvido, o que significa com toda clareza:
"Você está indo na direção errada. Volte até que haja total silêncio". Dentro da onda sonora, há paz.
Creio não estar forçando a ilustração ao dizer que Deus envia, por assim dizer, uma onda de
orientação — isto é, sua vontade para nós nas circunstâncias que enfrentamos agora — e, enquanto
estivermos dentro de sua vontade, teremos paz. A turbulência e a intranqüilidade tomarão conta de
nossa mente, se nos afastarmos de sua vontade ou não conseguirmos achá-la — coisa que com
freqüência, como bem sei, para grande tristeza minha, nos acontece, ainda que procuremos
diligentemente evitá-lo.
Acho que acontece a mesma coisa na cabecinha de um pássaro. Não nos referimos à "cora-
gem" nem à "confiança" da andorinha, visto que tais valores humanos não têm sentido no mundo
das aves. Todavia, na primavera, ou no início do verão, uma andorinha na África longínqua inicia
uma viagem de milhares de quilômetros, de volta aos telhados da mesma cidadezinha, às mesmas
árvores em que no ano passado edificou seu ninho. Essa andorinha não se desviará, nem perderá o
caminho. Descobrirá seu caminho não-traçado, entre as tempestades, entre ventos tempestuosos, por
cima das ondas tumultuadas, sem perturbação alguma, sem mau humor, sem ansiedade, visto que,
embora de modo mecânico, instintivo, a andorinha está no caminho da vontade de Deus, e na
vontade de Deus há paz. Assim é que Browning diz:
Guardemos bem esta mensagem: ao nos mantermos na vontade de Deus, como a vemos em
qualquer experiência, descobrimos o caminho, ainda que sobrevenham tempestades aparentemente
avassaladoras, até por fim chegarmos aonde Deus quer que estejamos — e o objetivo de todos os
esforços humanos é cumprir os propósitos de Deus e ser um com ele.
2. A segunda razão por que penso que encontramos paz na vontade de Deus é esta: elimina-
se o terror de ter de carregar a responsabilidade dos fatos. Que momento angustioso quando a mul-
tidão, clamando ardentemente pela crucificação de Cristo, gritava: "Caia sobre nós o seu sangue, e
sobre nossos filhos". O povo entendia estar pronto para assumir a responsabilidade de seus atos.
Esse peso da responsabilidade com freqüência nos esmaga. Mas creio que a mensagem de
Deus a nós inclui isto. É como se ele nos dissesse: "Enquanto você estiver tentando fazer minha
vontade, aceitarei a responsabilidade por tudo que acontecer. Carregarei o fardo em seu lugar.
Dirigirei sua vida, e as conseqüências serão minha responsabilidade, não sua". "Reconhece-o em
todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas" (Pv 3:6).
Talvez outro exemplo nos ajude aqui. Há pouco tempo tomei conhecimento de uma garota
cuja mãe, longe de casa, delegou-lhe a responsabilidade de cuidar da casa, do pai e de vários irmãos
menores. Você talvez consiga imaginar o peso da responsabilidade posto sobre os ombros daquela
criança, que tinha a tarefa de substituir a mãe, não só no cuidado da casa, mas na atenção às
exigências das crianças menores. Essa menina comportou-se com bravura e desempenhou suas
funções de modo maravilhoso. Mas, quando a mãe voltou, você pode imaginar o alívio da menina?
Ela clamou: "Ah! Mãe! Que bom que você voltou!".
Lembre-se de que a menina talvez tenha continuado a desempenhar a maior parte daqueles
deveres domésticos, mas agora a mãe assumia a responsabilidade. Creio que esse exemplo é pro-
fundo.
Quando submetemos nossa vontade à suprema vontade de Deus, em certo sentido podemos
dizer a Deus: "Que bom que tu voltaste!". Já não estamos desempenhando uma série de deveres
desacompanhados, nem levando sozinhos a responsabilidade da vida. Estamos tentando fazer a
vontade de alguém que está conosco o tempo todo, e que nos diz: "Tudo que você tem de fazer é
seguir meu plano, minha vontade, dia a dia, e a responsabilidade pelo que acontecer será minha. Eu
a assumirei por você". Porém, muitas vezes, em vez de deixarmos que Deus se responsabilize,
estamos tentando arcar com o peso do mundo. Mas isso é responsabilidade de Deus.
Talvez eu possa ilustrar um pouco melhor o que pretendo dizer, citando parte de uma oração
que escrevi há pouco, para meu conforto espiritual, num período de tensão muito forte:
Senhor Jesus, a ti que suportas o peso dos homens, e és confortador dos oprimidos,
trazemos todos os que estão tristes. Ajuda-nos a partilhar teu amor fortalecedor com o nosso
próximo, mas concede-nos a graça de termos o contínuo refrígério da comunhão contigo. Que não
sejamos esmagados pelos fardos do mundo. Tu és o que leva os nossos fardos — nós não
agüentamos peso algum. Tu és o Redentor; nós, os pecadores. Só tu, ó Cristo, podes carregar as
tristezas do mundo. Nessa fé, ensina-nos a cumprir nossos deveres, dia a dia, desde que os
entendamos como vontade tua, e livra-nos da opressão e da tirania dos que tentam oprimir-nos
com pesos superiores aos que o ser humano pode suportar. Que olhemos para ti continuamente, ó
Cordeiro de Deus, que levaste os pecados do mundo.
3. A terceira razão por que na vontade de Deus reside a nossa paz é que pela sua vontade
nossos conflitos se resolvem. Estou certo de que um pouco de conflito é essencial para o progresso
da alma. A alma inconsciente do conflito não consegue perceber o confronto do bem com o mal —
está como que cega aos impulsos da tentação por se entregar demais a ela; esta já não exerce seu
poder, e a ação desejada é efetuada sem conflito algum. Segue-se uma horrenda deterioração da
personalidade.
Ao mesmo tempo, como é fraco o homem que está constantemente pesando as suas deci-
sões: "Devo fazer isto? ou Devo fazer aquilo?". O princípio orientador "farei a vontade de Deus no
que puder discerni-la" responde a muitos de nossos conflitos e traz-nos paz e forças. Se nos for dito:
"Sim, mas você poderia fazer cessar o conflito tomando uma decisão errada", minha resposta é que
cometer um erro sempre suscita uma dezena de conflitos quando antes havia apenas um.
Afundamo-nos cada vez mais no pântano do mal e perdemos as forças na tentativa infrutífera de
safar-nos dali, pois o universo tende para o bem.
Para o direito eterno
As estrelas eternas são fortes.
Se esta fosse uma aula de psicologia, eu tentaria explicar com que freqüência a
personalidade se exaure nos conflitos internos. Ao escrever estas palavras, lembro-me de uma
jovem oficial do Exército que certa vez me consultou, queixando-se de fadiga tão grande que em
certas ocasiões não conseguia erguer o braço acima dos ombros para pentear os cabelos. Sua mente
estava atormentada pela obsessão de vir a adoecer. A verdade era que parte de sua mente desejava
adoecer, visto que a doença lhe traria compreensão, amor e segurança no lar, sob os cuidados dos
pais. Seu namoro havia sido rompido recentemente; a moça sentia-se sem amor, e almejava o
carinho da mãe. Mas outra parte de sua mente temia a doença, para ela sem causa real, e essa do-
ença resultaria em grande sentimento de culpa por ter de sair do Exército. Ela odiava o Exército,
porque nele não havia a menor oportunidade de ser amada. A sede de amor e a ausência de amor —
como sabem muito bem os psicólogos — são importantes causas das neuroses.
Tais conflitos nos deixam exaustos e enfraquecidos. A jovem sente o conflito entre o dever
para com sua mãe e o desejo de independência. O dr. Hadfield nos conta que, na mente de certo
soldado, o sentimento do dever era tão forte, mas formava tão grande conflito com seu desejo de
fugir, movido pelo instinto de autopreservação, que lhe causou uma paralisia nas pernas, a qual
solucionou o problema imediatamente, embora fizesse dele uma vítima, uma baixa no Exército.
Em nossa clínica psicológica conheci o conflito que assolava um estudante. Este tinha o
desejo de sobressair-se nos estudos universitários, como fizera no curso secundário, mas agora
sofria a inferioridade que o agarrara com tanta intensidade ao tentar fazer o curso universitário.
Aqui ele se viu entre pessoas com qualidade intelectual mais apurada que a dos de sua antiga escola.
A frustração de não ser mais o primeiro aluno da classe, o medo de ser
tachado de aluno mediano e o desejo de estar em primeiro lugar na universidade causaram
um conflito tão cansativo que o rapaz ficou doente. Diz Hadfield sabiamente:
Quando enfrentamos nossos conflitos e de modo deliberado tomamos nossas decisões, ao
dirigir todos os nossos esforços a um propósito grandioso, cheios de confiança e sem medo algum,
nossa alma se restaura, cheia de harmonia e força.
Sempre imagino que o quadro que Jesus pintou com suas palavras —"Tomai sobre vós o
meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as
vossas almas" (Mt 11:29) —, na verdade está falando do jugo que une o boi forte a um animal mais
fraco, distreinado. O boi mais fraco contribui apenas com sua pouca força, como diríamos,
mantendo-se no nível do boi mais forte. Este carrega o peso maior, na extremidade do jugo. É o
responsável pelo sulco direito, em linha reta, e por atingir o outro lado do terreno. Se o boi mais
fraco ficar puxando o arado para outra direção, a de sua escolha, o jugo lhe esfola o pescoço, e o
peso se lhe torna grande demais. "Tomai sobre vós o meu jugo", diz-nos Jesus, "e aprendei de mim,
porque sou manso e humilde de coração. Não sejais desobedientes, presos a vossas próprias
opiniões, orgulhosos e autoconfiantes, dizendo: 'farei o que eu bem entender'. Se vós
fizerdes isso, fareis que o jugo fique esfolando vossos pescoços. Caminhai comigo, e o
trabalho será fácil (é o verdadeiro sentido da palavra). A responsabilidade será tirada de vós, e o
vosso peso se tornará leve". (Em sua vontade está a nossa paz.)
Quando adolescente, muitas vezes eu tirava férias numa fazenda na Charnwood Forest.
Perto da fazenda havia uma enorme pedra na qual eu gostava de me sentar, principalmente no pôr-
do-sol. Lá embaixo, no sopé do morro íngrime, havia um reservatório d'água rodeado de juncos e
arbustos. Ao lado, a imensidão das águas. Do outro lado um bloco de granito imenso, vermelho,
soerguendo-se acima do lago. No alto do rochedo viam-se uns pinheiros soberbos.
Sentei-me naquela rocha em todas as horas do dia. Posso fechar os olhos agora e recobrar a
sensação de tranqüilidade e de paz que me sobrevinha naquele lugar solitário. Quase posso ouvir o
grito da gaivota ao sobrevoar as águas, o doce sussurro do vento, o murmúrio das águas caindo nas
pedras de uma pequena praia em meio aos juncos.
Certo dia me sobreveio, quase como uma revelação, um pensamento que pode ser algo banal
para você, que me atingiu a mente com a força da verdade. Não havia seres humanos, tampouco ha-
bitação humana à vista. Tudo que eu enxergava cumpria totalmente e com perfeição a vontade de
Deus. Concordo que ali a vontade do Senhor era cumprida mecanicamente, e que a vida campestre,
selvagem, ao meu redor, não oferecia o peso de uma decisão. Mas eu parecia estar aprendendo o
segredo da harmonia e da paz daquele lugar. Ali a vontade de Deus era executada com perfeição. Se
pudéssemos executar a vontade de Deus voluntariamente, como se faz na natureza de modo mecâni-
co, acredito que encontraríamos a mesma sensação de paz. "Reconhece-o em todos os teus
caminhos [como os pássaros fazem], e ele endireitará as tuas veredas."
Os poetas conseguem dizer essas coisas melhor do que nós. Permita-me concluir com uns
versos do poeta William Cullen Bryant, que os escreveu quando contemplava um pássaro a voar —
assim lhe pareceu — em direção do centro ao pôr-do-sol: