Você está na página 1de 2

Crítica System 1 - Matheus Barcellos

Nunca é fácil fazer o exercício de, a partir de uma perspectiva crítica, repousar o olhar e o
pensamento sobre eventos passados de forma retroativa. Como ignorar a mente, já não uma
tabula rasa, mas sim, uma colcha de retalhos pós-moderna contaminada pela história e pela
consciência da mesma? Creio, infelizmente, que qualquer Gen Z baby, como eu sou, sofre
desse mal. Se o objeto de tal exercício for a tecnologia, aí que não somos mesmo as melhores
pessoas para a tarefa. A tentação de cair em um gesto revisionista, na pior apropriação que
esse termo pode ter, é muito grande. O limite entre o que foi o melhor que se podia fazer a
partir das condições originais e o que de fato foi uma ideia mal executada é muito nebuloso e
tênue. Longe de mim querer diminuir os feitos de um pioneirismo que solidificou bases para
tudo o que é crucial para o meu funcionamento quotidiano. Isso seria como querer apedrejar a
natureza pela formação do oxigênio. O melhor caminho, então, seria se reter aos fatos
históricos. Deixar que a História seja a juíza final. Deixar que ela fale, através das heranças e
modificações sofridas, dos acertos e erros da tecnologia analisada. E, nesse ponto, o
Macintosh System 1, de certa forma, mostra ter sido um grande feito.

Dia 14 de janeiro de 1984, uma das datas mais importantes na história da informática. É aqui
o começo do seu ciclo vicioso de atualizações, de iPhone 10, de iPhone 15, de iPhone 153, de
um novo consumo ano após ano. Acho que no ponto em que chegamos, meu iPod Touch de
2010 está mais próximo do Lisa que de um smartphone. Foi nesse dia que a Apple Inc.
lançou a primeira versão de seu sistema operacional Macintosh, o System 1. Não foi a
primeira empreitada da empresa de Steve Jobs e Steve Wozniak na corrida informática, pois
tivemos o desastre comercial previamente mencionado do Lisa, mas considero ter sido o
começo de duas das suas principais tendências: a visão de mercado consumidor e a obsessão
pelo design minimalista - dessa última questão estética falarei mais tarde, pelo momento,
vamos nos ater à primeira e à funcionalidade do sistema.

É seguro afirmar que a Apple aprendeu com os erros do Lisa. Se no seu desenvolvimento
faltou, talvez, um teste de usuários, para levar em consideração o lugar do consumidor
caseiro, com o System 1, isso foi uma prioridade. Sem confundir family friendly com infantil,
como o posterior Microsoft Bob o fez, ele conseguiu estabelecer um diálogo instintivo e
fluido entre a interface gráfica do usuário (GUI) e o grande público, as massas; seu sucesso
influenciando até os rivais, como o Microsoft Windows. A metáfora de desktop, herança do
Xerox PARC presente no Lisa, se manteve, tendo como superfície base um ambiente de
escritório virtual bidimensional, a área de trabalho, onde podia-se organizar os aplicativos e
arquivos representados pelos clássicos ícones gráficos, como a lixeira (presente até hoje). A
tradução do ato de organizar papéis (no sistema, arquivos) em pastas também estava inclusa,
criando, no geral, uma experiência de cliques, arrastes e arranjos muito superior a alguns
sistemas contemporâneos que ainda utilizavam comandos e sintaxes digitadas. Até então,
pareço estar descrevendo, basicamente, qualquer interface contemporânea. Em muitos
sentidos o System 1 é isso mesmo, o que atesta todos seus acertos. Suas semelhanças com o
Mac OS ainda vão além, compartilhando o suporte para mouses, barra de menus,
sobreposição de janelas e exatamente os mesmos atalhos de teclado, como o “Command + C”
e “Command + V” para copiar e colar. Mas se existem diferenças, essas representam um
grande abismo tecnológico. E aqui entramos naquela fronteira opaca da qual discursei. O
ponto onde meu costume de século XXI tende a menosprezar como banalidades certas
questões do passado e a minha ignorância não sabe propriamente compreender os desafios
pré Internet e portáteis. O Macintosh não possuía um disco rígido (o primeiro viria a surgir no
final de 1985), então, tanto o acesso ao próprio sistema quanto o uso de aplicativos envolvia a
inserção e troca de disquetes. Aliado à baixíssima capacidade de RAM, isso impedia a
execução simultânea de diferentes aplicativos, a possibilidade de minimização e a existência
de um comando para desligar o sistema. Percebe-se, então, que todos os empecilhos que
truncavam uma interação quase perfeita proviam de deficiências tecnológicas, com exceção,
talvez, da necessidade de manter o mouse pressionado para a execução de algumas ações. Por
isso, creio não ser proveitoso e até rude, querer repreender algo na funcionalidade do System
1. Ele foi o que ele podia ter sido no seu tempo. O que me permito fazer é resgatar seus
méritos estéticos, superiores até se comparados aos de seus netos contemporâneos.

O design minimalista é a marca registrada não só da Apple, mas, também, até da


personalidade de seu principal rosto humano, Steve Jobs. É só lembrarmos de seus momentos
de oração pública, como a apresentação do primeiro iPhone, em 2007. A gola rolê, o jeans, os
óculos de armação redonda e delicada, a pose e as falas sempre concisas. “Think Different”,
esse era o mantra de Jobs e repetido pelas publicidades da marca. Essa ideia acaba sendo
muito mal compreendida por muitos. Pensar diferente, em uma época onde o entusiasmo pelo
novo pode tendenciar a um fetiche pelo rebuscado, pelo exagero, é acertar milimetricamente
o básico, achar a beleza no simples, no esquelético, no necessário. O gráfico em 1 bit e p&b
do System 1 acabou sendo a perfeita representação dessa mentalidade. Com tela de 512 ×
342, suporte para fontes proporcionais e interação entre seus aplicativos de texto e arte, o
sistema foi muito inspirador para os artistas gráficos, basta ver algumas das artes pontilhadas
feitas no Mac Paint. Existe uma qualidade de nanquim em como a interface se apresenta. É
como despir das cores uma página de quadrinho que você admira e observar só o inking.
Depois de colorido, a escolha já foi feita. No branco e no preto se encontram
simultaneamente, em convívio, todas as possibilidades As hachuras e pontilhados realizada
para atingir o degradê do cinza são belas como as de Edward Gorey. Se as janelas são
imutáveis e rígidas, não se acoplam e não camuflam, com seus limites bem delineados, elas
impulsionam a compartimentalização de múltiplos espaço-tempos e consequentemente,
múltiplas narrativas, que foi tão cara à net art.

Você também pode gostar