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ATENÇÃO

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Ricardo Viveiros

Sem limite
A vida de Péter Murányi
Sem limite, a vida de Péter Murányi
Copyright © 2015 Ricardo Viveiros

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André Fernando Ferreira Marcia Nunes
Coordenação editorial Pré-impressão,
Ada Caperuto impressão e acabamento
Intergraf Indústria Gráfica Eireli
Pesquisa histórica
e compilação de dados Projeto e realização
Marcos Da Cunha e Souza Ricardo Viveiros & Associados –
Oficina de Comunicação
Entrevistas e pesquisas Rua Capote Valente, 176
Ada Caperuto Pinheiros CEP 05409-000
Juliana Tavares São Paulo SP Brasil
Laura de Araújo Tel.: (55-11) 3675.5444
Ricardo Viveiros www.viveiros.com.br
Projeto gráfico e edição de arte
Cesar Mangiacavalli

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Viveiros, Ricardo
Sem limite, a vida de Péter Murányi / por
Ricardo Viveiros. -- 1. ed. -- São Paulo :
Azulsol Editora, 2015.

Bibliografia

1. Empreendedores - Biografia 2. Empresários -


Biografia 3. Murányi, Péter Elémer, 1945-1998
4. Sucesso nos negócios I. Título.

15-00761 CDD-338.092
Índices para catálogo sistemático:
1. Empresários : Vida e obra 338.092
ORIGINAL

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SIMPLIFICADA
O pessimista se queixa do vento,
o otimista espera que ele mude
e o realista ajusta as velas

William George Ward, teólogo inglês


Apresentação 9
Prefácio - Um brasileiro que nasceu na Hungria,
por Laudo Natel 11
Capítulo 1 - Reminiscências do Leste Europeu 15
Capítulo 2 - Antes da tempestade 35
Capítulo 3 - A conquista do Brasil 55
Capítulo 4 - Tempos de conflito, tempos de amor 75
Capítulo 5 - Tempo de filhos e de revoluções 101
Capítulo 6 - Um dia de 1979 141
Capítulo 7 - Momentos de decisão 171
Capítulo 8 – Adeus... 205
Epílogo 233
Álbum de família 239
O personagem 255
Agradecimentos 259
Referências Bibliográficas e de imagens 261
8
Apresentação

O que mantém um homem vivo? O poeta, contista e dramaturgo


alemão Bertold Brecht acreditava ser a esperança. Ele próprio
provou isso na sua vida. Afinal, nascido de pai católico e mãe
protestante, ambos autoritários, ele sobreviveu à Primeira Grande Guerra
Mundial e, lutando contra o nazismo, conseguiu exilar-se, escrever, encenar seus
textos e se tornar um dos mais respeitados nomes da cultura universal.
Péter Murányi, húngaro, nasceu em Budapeste em 1915. Chegou ao Brasil
aos 24 anos, fugindo dos horrores da guerra. Idealista, empreendedor e, acima
de tudo, corajoso e inovador, Péter, sem falar uma só palavra em português,
construiu um império empresarial em São Paulo. Com inteligência e intuição
apuradas, criou produtos inéditos, úteis e baratos, gerou milhares de empregos,
foi responsável socialmente ao contribuir para criação e fortalecimento de
várias instituições do Terceiro Setor, atuou na diplomacia abrindo frentes no
comércio exterior, deu ideias aos políticos e administradores públicos, muitas
delas realizadas, viveu tragédias familiares, resistiu e lutou toda uma vida. Amou
este País como poucos brasileiros.
Deixou um importante legado, com exemplos de fibra e produtividade
à economia e de dignidade e trabalho a seus descendentes. A Fundação que
idealizou, tornada realidade por seus filhos Péter Júnior e Vera, atua no
permanente reconhecimento à pesquisa e ao desenvolvimento de soluções para
a melhoria de vida das populações em desenvolvimento.
Se a esperança mantém um homem vivo, a concreta realização de seus sonhos
o eterniza. Os leitores vão conhecer neste livro, que escrevi num misto de fascínio
e emoção, a incrível história de um homem que se tornou eterno: Péter Murányi.

Ricardo Viveiros

9
10
Prefácio

P
Um brasileiro que nasceu na Hungria
éter Murányi foi um dos mais brilhantes empresários da história
deste País. Um pioneiro em seu segmento de atuação. Péter teve pa-
pel fundamental no fortalecimento das relações internacionais e do
comércio exterior ao ocupar o cargo de Cônsul Geral Honorário da Repúbli-
ca Dominicana em São Paulo. Mereceu diversos títulos, condecorações, meda-
lhas e outras honrarias no Brasil. No entanto, se eu tivesse que destacar apenas
uma das características marcantes desse incrível empreendedor, seria sua inte-
ligência privilegiada, ainda que outros aspectos de seu perfil sejam igualmente
impressionantes. Péter talvez seja um dos homens mais bem informados que tive
a oportunidade e o privilégio de conhecer.
Durante os dois mandatos que cumpri como governador do Estado de São
Paulo, nas décadas de 1960 e 1970, travei contato com centenas de personalida-
des da política nacional e internacional. Conheci presidentes da República, che-
fes de Estado, membros da realeza mundial, diplomatas de dezenas de países,
governadores de estado, ministros, prefeitos, juristas e parlamentares. Enfim,
gente de todas as esferas no que tange à gestão pública. No entanto, Péter, um in-
dustrial, não um político de carreira, talvez tenha sido uma das pessoas que mais
contribuíram com ideias para colocar o Brasil no rumo do desenvolvimento.
Péter era uma verdadeira usina de projetos para os mais distintos campos
socioeconômicos: das soluções para os problemas de trânsito enfrentados já
naquele período pela capital paulista às ponderações extremamente coerentes
sobre política econômica, visando ao controle da inflação e ao crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB).
Porém, sua grande preocupação sempre foi com a educação; para ele, o maior
patrimônio de um povo. O instrumento que, concedido igualitariamente às pes-
soas, é o único capaz de fazer alcançar todos os meios de progresso pessoal e
social. E por mérito próprio, sem a dependência de qualquer benefício público
que não o legítimo direito ao saber.
Talvez fossem exatamente esses dois aspectos tão presentes em sua persona-
lidade – inteligência e capacidade de absorver um volume amplo e variado de
conhecimento –, que fizessem dele uma fonte de excelentes soluções para mui-

11
tos dos problemas cotidianos de nossa sociedade. Porém, havia outro elemen-
to que, acredito, era a central dessa verdadeira fonte responsável de criativida-
de: um coração movido por profundo senso de ética, visando, sobretudo, à paz
social e ao desenvolvimento do País.
Embora, mantivesse contato com vasto círculo de relações, formado por pes-
soas de diferentes classes, Péter estava consciente de que a busca pela justiça so-
cial começava por aqueles com quem convivia. E são notórios os benefícios que
oferecia a seus funcionários, em uma época na qual eram poucos empresários
que se preocupavam com as questões trabalhistas.
E isto – a genuína preocupação de ajudar o próximo – foi o motivo de nos-
so primeiro contato, que, surpreendentemente, não se deu pelas vias da política.
Péter e eu tivemos um grande privilégio: o convívio com nossas “Zildas”. Res-
salto aqui minha inesquecível esposa Zilda Natel e sua grande companheira de
ações sociais, a esposa de meu estimado amigo, Zilda Suelotto Murányi.
Em muitos momentos, as duas atuaram juntas em ações sociais – minha
Zilda no Serviço de Assistência Social do Palácio do Governo e a dele no traba-
lho desenvolvido como consulesa. Um dos principais projetos dos quais ambas
tomaram parte foi a Associação de Assistência à Família Necessitada (Aafan).
A amizade que uniu essas duas mulheres fez nascer entre nós dois um conví-
vio de conversas agradáveis e muito produtivas, em que a vida política do Bra-
sil era assunto permanente.
Péter mantinha com todos um relacionamento muito fácil, pela simpatia que
despertava. Era um homem de raciocínio ágil e sempre tinha respostas muito
inteligentes para quem quer que fosse o interlocutor. Ele e a esposa eram, frequen-
temente, nossos convidados às recepções no Palácio dos Bandeirantes. Por outro
lado, estive presente em muitos dos eventos que Péter promoveu em sua residên-
cia, como cônsul da República Dominicana. Eram festas bem concorridas, com
pessoas de vários setores, inclusive militares e toda a sorte de representantes da
política nacional. Por sua postura em que se sobressaia o discurso em defesa da
soberania nacional, não raro, meu amigo era convidado a se unir a este ou aquele
partido, para uma possível candidatura a algum cargo público. Jamais aceitou.
Embora elaborasse diversos projetos para solucionar problemas do País,
Péter claramente não tinha interesse de se dedicar à política. Sua preocupa-
ção em ver progredir a nação, erradicar o analfabetismo e melhorar a econo-
mia era apenas motivada pela profunda crença de que tinha no futuro do País

12
que escolheu para viver. Esse patriotismo, maior que o de muitos brasileiros “de
berço”, era algo que me deixava ainda mais admirado em sua forte personalidade.
Péter Murányi foi, sobretudo, um grande amigo, um eminente empresário
e uma das personalidades mais extraordinárias que tive a oportunidade de co-
nhecer. Em boa hora, sua família e a Fundação, que sua inteligência e generosi-
dade nos legaram, deram ao jornalista e escritor Ricardo Viveiros a feliz possi-
bilidade de perpetuar, nesta biografia, a vida e obra do ilustre brasileiro nascido
em Budapeste.

Laudo Natel

13
Capítulo 1
Reminiscências do
Leste Europeu
O jogo de xadrez é como a vida real.
É preciso juntar todas as informações
antes de fazer o próximo lance.

16 Sem Limite
D esde que o sangue foi derramado no tiroteio de Itupeva, a saúde de
Péter entrou em declínio. O homem de ombros largos, altivo e in-
dependente cedeu lugar a um octogenário que demandava cuida-
dos. Vera, sempre presente no casarão do Sumaré, foi testemunha dessa trans-
formação, embora o espírito irrequieto e empreendedor de seu pai continuasse
visível. A fábrica continuava sendo a grande paixão daquele imigrante, enquan-
to seu cérebro arquitetava fundar uma instituição de reconhecimento à pesqui-
sa, para eternizar a gratidão que sempre dedicou ao Brasil.
Centralizador, buscava manter sua rotina de despachar papéis. Mas, por ve-
zes, uma impaciência muda tomava conta do empresário. Ligava então para o
filho Péter Júnior e, com seu sotaque carregado, dizia:
– Como está o fábrica? Tudo bem? Eu precisa que você venha aqui urgen-
te, tratar um assunto comigo. Faz o que você tem que fazer, mas quero você no
máximo às 4 horas aqui.
O rapaz chegou ao casarão na hora determinada e, com muito respeito, se-
guindo todo o protocolo, subiu a longa e estreita escada que levava ao escritó-
rio do pai:
– O senhor me chamou?
Péter Murányi assentiu com a cabeça e, então, demandou sobre os assuntos
mais variados da vida da empresa, coisas sobre as quais tinha absoluto domí-
nio e consciência de como estavam. Perguntas eram feitas e respondidas sem-
pre de maneira muito direta e clara, sem que palavras sobrassem. Quando o
filho achava que, finalmente, chegaria ao assunto que motivara aquela convo-
cação, seu pai dizia:
– Ora, se já tratamos tudo de importante, agora vamos jogar xadrez!
O tom podia parecer de ordem, mas, a rigor, era um pedido difícil de ser re-
cusado. Descendo a escada, os dois alcançavam a sala de estar. Duas cadeiras de

A vida de Péter Murányi 17


braço forradas de verde os aguardavam. Entre elas, iluminada pela luz natural
de uma das janelas, estava a mesinha de xadrez. Já sentados, enquanto arruma-
vam as peças com destreza, seus cérebros sublimavam pouco a pouco o mundo
externo, mergulhando naquele microcosmo quadriculado onde a natural sorte
dos jogos não tinha qualquer função.
Péter podia ainda ter alguma dificuldade com a língua portuguesa. Mas o
xadrez é um idioma universal falado, exatamente do mesmo modo, em qual-
quer lugar do planeta.
Os lances se sucediam no tabuleiro. Em um dado momento, o filho moveu
o bispo da rainha para a frente do rei. O pai sacudiu levemente a cabeça em tom
de reprovação e comentou:
– O jogo de xadrez é como a vida real. É preciso juntar todas as informações
antes de fazer o próximo lance. Por exemplo, quando eu mandei dinheiro para
o meu irmão sair da Hungria, foi porque dava para prever o que aconteceria na
Europa. E o que ele fez? Ele comprou um barco!
Depois, batendo a mão na própria testa, o velho Péter repetiu:
– E ele comprou um barco!
Ao que parece, essa foi uma lição que ele aprendeu muito cedo e que expli-
ca boa parte do sucesso que teve como empresário. O bispo preto movido pelo
filho lhe trouxe recordações da infância, de suas primeiras lições de xadrez e de
uma cidade muito ao Leste, onde tudo começou. O destino poderia tê-lo man-
tido na Europa, como poderia tê-lo levado à Argentina ou aos Estados Unidos,
mas a ferramenta que ele teria usado em um lugar ou em outro seria a mesma:
a coleta e o uso eficiente da informação. Ele já possuía esse dom quando chegou
ao Brasil, por todos os fatos e circunstâncias que lhe obrigaram a formar mui-
to cedo sua personalidade.
Péter Elémer Murányi nasceu no dia 16 de abril de 1915, sob a proteção de
uma águia de duas cabeças, o Império Austro-Húngaro, grande massa de terra
e de povos localizada no centro da Europa. Ele era um dos 10 milhões de des-
cendentes das tribos magiares que, no ano de 896, atravessaram os montes Cár-
patos e se espalharam por uma vasta e fértil planície banhada pelo Danúbio.
Um povo de língua sem par na Europa, que se autodenomina “magiar”, mas que
viria a ser chamado de “húngaro”pelos seus vizinhos.
A Hungria, por séculos, foi o campo de batalha entre cristãos e muçulmanos,
entre austríacos e turcos otomanos, até que os últimos fossem definitivamente

18 Sem Limite
Ármin e Szidonia Pick, avós
paternos de Péter Murányi

Izidor e Alma Sterk, avós


maternos de Péter Murányi
expulsos em 1699. Mas os vitoriosos austríacos trataram o país como terra con-
quistada, para a grande mágoa dos magiares. Por quase dois séculos, tolerou-se
a supremacia austríaca e a forte influência cultural da língua alemã. Então, em
1867, o povo húngaro arrancou do imperador austríaco um compromisso que
criava um império formado por dois estados com direitos iguais – a Áustria e a
Hungria –, mas governado por um único monarca da dinastia Habsburgo. Isso
deu aos húngaros o direito de ter seu próprio parlamento, sua própria consti-
tuição e seu corpo de ministros. A onda de orgulho nacional que se seguiu teve
muita influência sobre a vida de Péter Murányi. Talvez seja até a causa de tudo,
para o bem e para o mal.
Budapeste, capital da Hungria, simboliza de maneira perfeita a dimensão e a
velocidade das mudanças. A cidade sempre fora favorecida por sua natureza sin-
gular. Talvez seja a única capital do mundo abençoada por uma centena de fontes
termais, das quais jorram diariamente 70 milhões de litros de água a temperatu-
ras que variam entre 21 e 78 graus Celsius. Muitas dessas fontes têm proprieda-
des medicinais, por conta de seus componentes químicos. A cidade, na verdade,
é o resultado da fusão de duas urbes separadas pelo rio Danúbio: Buda e Pest.
Buda se desenvolveu harmoniosamente sobre uma série de colinas íngremes e
arborizadas, onde se destacavam o castelo real e a cidadela. Pest, por outro lado,
se espalhou pela planície arenosa na margem Oriental do rio. Após a criação da
monarquia de duas cabeças, Budapeste se desenvolveu rapidamente, tornando-
-se uma das capitais mais bonitas da Europa. A cidade foi alvo de grandes obras
de urbanização, que culminaram com a construção de duas novas pontes so-
bre o Danúbio, vários prédios públicos, a segunda linha de metrô subterrâneo
do mundo (1896), o vistoso edifício da Ópera em estilo renascentista italiano e
o Memorial dos Mil Anos, na Praça dos Heróis. Entre 1880 e 1900, a população
saltou de 360 mil para 716 mil habitantes.
Durante esse processo de transformação, a língua alemã, então a mais fala-
da na cidade, foi submergida pela vaga de migrantes húngaros vindos do cam-
po. A língua húngara foi valorizada, simbolizando o ressurgimento da nação.
A literatura local foi glorificada e clássicos universais foram por fim traduzi-
dos para o magiar. Nos teatros da cidade, peças em francês ou italiano eram
toleradas, mas o alemão, que trazia lembranças ruins do antigo domínio aus-
tríaco, era visto com desconfiança. Os jovens das ricas famílias, que tradi-
cionalmente estudavam em outros países ou em Viena, foram estimulados a

20 Sem Limite
estudar na universidade local, atualmente muito bem aparelhada. Mas havia um
suposto “problema” em meio a todo esse ufanismo que varria a planície hún-
gara: a população judia.
No início do século XX, existiam quase 170 mil judeus em Budapeste, levando
a cidade a ser apelidada de “Judapest”. Era uma comunidade próspera, que havia
levantado na rua Dohány a maior sinagoga da Europa, capaz de acomodar três
mil pessoas sentadas. Ninguém duvidava da importância dessas pessoas para o
desenvolvimento da capital. Enquanto os magiares eram o motor da transfor-
mação política do país, os judeus financiavam seu desenvolvimento econômi-
co. Mas, para muitos húngaros, o judeu era visto como um elemento estrangei-
ro, que não deveria gozar dos mesmos direitos, a menos que se convertesse ao
cristianismo e adotasse um sobrenome “adequado”. Os avós paternos de Péter
eram judeus e preferiram não nadar contra a corrente...
Nascido em 1841, Ármin Pick, avô paterno de Péter, era um advogado bem-
-sucedido. Ele e a esposa Szidonia, sete anos mais jovem, tiveram nove filhos,
dois dos quais, Ida e Oszkár, morreram ainda na infância. Para viverem em paz
na Hungria, para deixar bem claro a todos que se sentiam integralmente hún-
garos, tomaram uma decisão radical. Com base em uma resolução do ministro
do interior húngaro, em 19 de novembro de 1881, Ármin aceitou, para si e seus
filhos Kornelia, Iván, Ernö, Gyula e János Ödön, adotar um sobrenome tipica-
mente húngaro: Murányi. Após essa data, nasceram mais duas meninas, Andrea,
em 1882, e Vera, em 1884, que desde o início foram apresentadas ao mundo com
o novo sobrenome. A família, contudo, manteve a religião judaica.
János Ödön, um dos filhos de Ármin Murányi, nasceu em 23 de outubro de
1879, na cidade de Györ. Após concluir o Ensino Médio em Budapeste, foi estu-
dar em Londres, Paris e Munique, esta última na Baviera, onde desenvolveu os
conhecimentos teóricos e práticos da sua profissão de técnico em seguros. Foi o
único dos filhos a se converter ao catolicismo, para não ser prejudicado em sua
vida profissional, uma decisão oficializada em 1909.
A conversão forçada foi um fenômeno tristemente comum na Europa e no
Oriente Médio, em várias ocasiões. Tanto que a tradição judaica faz referência
aos “anussim”, ou seja, aqueles que, tendo sido forçados a se converter a outra re-
ligião, continuaram a manter práticas judaicas na intimidade do lar. A literatu-
ra rabínica trata essas pessoas com respeito. O rabino Moisés Maimônides, um
dos mais eminentes talmudistas de todos os tempos, escreveu sobre esse proble-

A vida de Péter Murányi 21


ma já no século XII. Em sua “epístola sobre a apostasia”, considerou justificável
a conversão a outra religião para a proteção da própria vida.
Quando János Ödön esteve na Baviera, aquele reino vivia uma situação pecu-
liar, uma vez que havia sido incorporado ao Império Alemão em 1871, mas con-
tinuava tendo alguma autonomia, com um rei e um exército próprio. Em Muni-
que, acabou travando contato com o príncipe regente Ludwig, responsável pelo
reino por conta da insanidade do rei Otto. O jovem Murányi tornou-se professor
particular de Húngaro do regente e de sua esposa Maria Teresa. Durante os três
anos em que ficou junto à corte bávara, ele desenvolveu um grande respeito pe-
las casas imperiais alemã e austro-húngara, sentimento que não diminuiu com a
deposição de ambas, anos mais tarde. Com o prolongamento, sem esperança de
melhoras, da doença mental do rei Otto, Ludwig foi coroado rei em 1913. Mas,
naquele momento, ele certamente já havia partido de Munique.
János Ödön era um rapaz magro, de rosto fino e nariz levemente adunco.
Seguindo a moda de seu tempo, os cabelos claros eram penteados para trás,
ficando um pouco em pé. Seu bigode, no entanto, era discreto, bem diferente
daqueles usados pelos homens mais velhos, que costumavam ser maiores e, por
vezes, projetados e torcidos para cima nas duas pontas. Após uma juventude de
andarilho, resolveu constituir sua própria família. Ele já devia ter cerca de 30
anos quando se casou com uma moça bem mais jovem e cuja família também
era de judeus: Vilma Sterk.
Vilma, cujo nome judaico era Feigale, nasceu em agosto de 1891. Era filha de
um grande arquiteto húngaro chamado Izidor Sterk.
Izidor nasceu em 1860 em uma família abastada de Budapeste e se formou
em arquitetura muito jovem, em 1881. Foi gerente do escritório do arquiteto
Henrik Schmahl, até abrir o seu próprio, em 1892. Sabe-se que projetou edifí-
cios de apartamentos, escritórios e prédios industriais. Porém, seu nome está
principalmente relacionado à construção do Hotel Gellért, conhecido por seus
banhos termais e por seu exuberante estilo Art Nouveau, com belíssimos mo-
saicos, estátuas e claraboias no teto, que valorizam a luminosidade natural. Cha-
ma a atenção, sobretudo, a área do spa, que conta com piscinas coberta e ao ar
livre, bem como a primeira de ondas do mundo. O projeto foi assinado por
Izidor, entre 1908 e 1918, em parceria com seus sócios, os arquitetos Ármin He-
gedus e Artur Sebestyén. O hotel, construído em grande parte durante a Primei-
ra Guerra Mundial, é ainda hoje um dos edifícios mais encantadores da capi-

22 Sem Limite
János Ödön e Vilma Murányi,
pais de Péter Murányi

Vilma com os filhos


Péter e János Tivadar

Péter criança
tal da Hungria. Localiza-se entre o monte Gellért e o Danúbio, sobre uma fonte
termal que já era famosa no século XIII, o que possibilita suprir de água pura e
mineral diariamente as imensas piscinas que estão no seu interior.
Izidor casou-se com Alma Mauthner, nascida em 1865, que se tornou Sterk
pelo casamento. Ela nascera em Viena (chamada de Bécs pelos húngaros) e, após
terem uma menina natimorta, tiveram Vilma, Yolanda e Ilona.
Vilma Sterk casou-se muito jovem com János Ödön Murányi. Provavelmen-
te, tinha então menos de 20 anos, pois seu primeiro filho, János Tivadar, nas-
ceu em 1911. Em 1912, talvez para atender à insistência do marido, converteu-
-se ao catolicismo.
Era uma época de prosperidade para as duas famílias que se uniam. O pai de
János Ödön fora um destacado advogado até sua morte, em 1902, enquanto o
pai de Vilma vivia o seu momento mais especial, em plena construção do Hotel
Gellért. As potências europeias estavam em paz desde que a Guerra Russo-Tur-
ca terminara em 1878. As estradas de ferro, em constante expansão, uniam as
principais cidades do continente, o que fomentou o comércio e difundiu as rela-
ções culturais. Mas o Império Austro-Húngaro estava contaminado pelo nacio-
nalismo crescente de outros povos que, ao longo da história, tinham sido absor-
vidos pela dinastia austríaca. Havia uma tragédia anunciada, mas o momento
de sua eclosão era incerto.
No dia 28 de junho de 1914, um rapaz de 19 anos, chamado Gavrilo Princip,
matou com um único tiro o arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, em
Sarajevo. Esse ato terrorista, vindo de um grupo nacionalista sérvio, foi o esto-
pim para que, em poucos dias, quase toda a Europa fosse mergulhada em um
conflito de dimensões apocalípticas e que não tardaria em atingir outras partes
do mundo. Era a Primeira Guerra Mundial. Nesse conflito, que se arrastou por
quatro anos, a Áustria-Hungria teve como aliados apenas a Alemanha, a Bulgá-
ria e o Império Otomano. No campo oposto, estava uma lista enorme de países,
dentre os quais França, Grã-Bretanha, Rússia, Sérvia, Itália e, mais tarde, Esta-
dos-Unidos e, até mesmo, Brasil.
Assim, Péter, o segundo filho do casal János Ödön e Vilma, nasceu sob a pro-
teção de um império praticamente sitiado e que, naquele abril de 1915, estava
em estado de choque. Menos de um mês antes o exército austro-húngaro sofre-
ra uma derrota espetacular. Após várias semanas de um cerco rigoroso e bom-
bardeio intenso, a fortaleza de Przemyśl, com seus 117 mil defensores, havia se

24 Sem Limite
rendido aos russos. Sem a fortaleza, tudo indicava que, a qualquer momento, as
forças russas cruzariam os montes Cárpatos e ganhariam a planície húngara.
O Império, que havia entrado na guerra havia menos de um ano, dava provas de
que não era capaz de garantir sua própria segurança.
Dessa forma, os primeiros anos da vida de Péter coincidiram com a rápi-
da decadência do país onde nascera. Em novembro de 1918, a capacidade mi-
litar do Império entrou em colapso e a Áustria-Hungria deixou de existir.
Os povos eslavos que ali viviam clamaram por soberania. Nascia, assim, a
Checoslováquia, enquanto partes dos territórios húngaros eram cobiçados pela
Sérvia e pela Romênia. Em meio à insegurança que se alastrou pela Europa logo
após o fim da guerra, um regime comunista se estabeleceu na Hungria em mar-
ço de 1919, mas foi derrubado pelo exército romeno quando este ocupou Buda-
peste em agosto do mesmo ano.
Com o Tratado de Trianon, de 1920, a Hungria foi fatiada pela Checoslová-
quia, Romênia e pelo novo Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos. Com isso,
três milhões de húngaros ficaram de fora das novas fronteiras do país. Para eco-
nomia daquela nação foi igualmente desastroso, com a perda de regiões indus-
trializadas, o déficit orçamentário e os altos índices de inflação.
Nesse curto período, os judeus húngaros sofreram duplamente: durante o bre-
ve regime comunista, por fazerem parte da “burguesia” e constituírem uma re-
ligião organizada em um Estado que pregava o ateísmo; e, também, com a que-
da do comunismo, pois o novo regime conservador era nacionalista e com forte
influência no cristianismo mais radical. Ademais, o principal líder comunista,
Béla Kun, era filho de pai judeu. Ainda assim, tanto os Murányi quanto os Sterk
sobreviveram e prosperaram. Mas, infelizmente, a onda de antissemitismo pas-
sou a ser um importante elemento da pauta política local. Um exemplo disso foi
a Lei “Numerus Clausus”, de 1920, que proibiu que os judeus da Hungria ocu-
passem mais de 6% das vagas das instituições superiores de ensino. É conside-
rada a primeira lei antissemita da Europa do período “entre guerras” e foi pro-
mulgada 13 anos antes do nazismo chegar ao poder na Alemanha.
Nessa época, mais exatamente em 1923, o casamento de Vilma e János Odön
entrou em crise. Aos 40 e poucos anos, ele apresentava um temperamento in-
transigente e os desentendimentos eram frequentes. Acabaram, então, se sepa-
rando; e de maneira nada amistosa. Os amigos do casal também foram atingi-
dos pelo rompimento, pois János Ödön exigia que tomassem o partido dele, para

A vida de Péter Murányi 25


que Vilma fosse vista e tratada como culpada pelo fracasso. Não havia como
alguém se manter amigo de ambos, na visão dele.
Naquele tempo, a legislação húngara já reconhecia o divórcio, embora a so-
ciedade fosse bastante cruel com as mulheres nele enquadradas. Como se diz
no idioma magiar, “a língua das outras mulheres trabalhava” em comentários
desabonadores contra aquelas que rompiam o juramento de amor eterno fei-
to no seio da Igreja. Em meio às disputas, Vilma voltou com os filhos para a
casa de seus pais, Alma e Izidor Sterk, o que teve uma influência muito positiva
sobre a criação de Péter.
O casal Sterk morava em um dos prédios da rua Dessewffy, perto da Ópe-
ra de Budapeste, em um quarteirão de gente abastada. A rua em si mal permi-
tia a passagem de dois carros ao mesmo tempo e as calçadas, sem árvores, eram
igualmente estreitas. Os seus edifícios, contudo, eram extremamente elegantes.
O da família de Péter era uma construção bem representativa do período ante-
rior à Primeira Guerra Mundial, onde o térreo era destinado a estabelecimen-
tos comerciais, com janelas e portas encimadas por arcos e voltadas para a rua.
Depois, vinham dois andares com espaçosos apartamentos. Por fim, havia um
último andar com cômodos bem menores, onde residiam os empregados, os mo-
toristas, mas que também podiam ser usados como depósitos. As entradas dos
apartamentos eram voltadas para um enorme pátio central, nele havia uma fon-
te e pequenas áreas ajardinadas de uso comum. O acesso aos apartamentos, após
se subir pelo elevador ou pela escada, era possível graças a uma estreita varanda,
com grades lindamente trabalhadas, que dava toda a volta ao pátio.
O apartamento oferecia ambientes amplos, onde a família podia receber seus
convidados com muito conforto, com cadeiras e sofás forrados, móveis de ma-
deira muito bem trabalhados, vasos decorativos, quadros e plantas, além de vas-
tos tapetes com estamparias que remetem à cultura árabe ou persa. Por trás de
uma sólida mesa escura de escritório, encimada por um abajur de cúpula côni-
ca, havia um quadro de Vilma, aos 16 anos, ladeado por duas estantes escuras
com muitos livros.
A vida dos meninos János Tivadar e Péter no apartamento da rua Dessewffy
era cercada de muita atenção. O caçula, que todos chamavam de “Peti”, teve, desde
sempre, um ótimo relacionamento com os avós. Era, então, um menino de traços
delicados, com cabelos claros e curtos repartidos de um lado. O irmão mais ve-
lho, a seu turno, era um rapazola carismático e o “queridinho das meninas”, mas

26 Sem Limite
A casa de veraneio da família
na região de Tatranská Lomnica,
atual Késmárk

Péter e o irmão János Tivadar

O padrasto de Péter, Alfred Halward,


e sua mãe, Vilma
um tanto rebelde e irrequieto a ponto de ser enviado para estudar em um colé-
gio interno. A mãe deles também não ficaria muito tempo naquele apartamento.
Na década de 1920, a Europa ainda buscava curar as feridas da grande guer-
ra. Se para a Hungria havia um sabor amargo de humilhação, havia também um
desejo muito grande de gozar a vida, de se entregar à alegria e apagar as mágo-
as. Afinal, todo europeu era um sobrevivente da guerra ou da Gripe Espanhola...
Daí a intensa vida noturna na Europa de então, os cabarés, o foxtrote. Os jovens
Murányi não eram diferentes, guardadas as limitações da idade.
A família possuía uma casa de veraneio na região de Tatranská Lomnica (atual
Késmárk), nos montes Tatra, ao norte de Budapeste. O endereço exato da cons-
trução, que ficava na área rural era, segundo uma anotação encontrada, “Sterk
Villa, Tatranská Lomnica, ao lado do lago”. A região pertencera ao Império Aus-
tro-Húngaro, mas, com o fim da Grande Guerra, foi incorporada à Checoslová-
quia. Na década de 1920, e mesmo antes, a viagem da família até a região podia
ser feita de trem, sem muitos transtornos.
A Villa era uma casa relativamente pequena, cujo piso térreo se localizava
a cerca de meio metro acima do nível do solo. Uma escada paralela à fachada
dava acesso a uma estreita varanda coberta. O segundo andar da casa era no es-
tilo alemão enxaimel, com vigas de madeira horizontais, verticais e diagonais,
preenchidas em seus intervalos por alvenaria coberta com reboco. Em cada de-
talhe, via-se o capricho do casal Sterk, como as janelas enfeitadas por cortinas
bordadas. A propriedade tinha ainda um vasto gramado e uma área coberta por
pinheiros, onde os meninos brincavam. A poucos metros dali, estendia-se o lago
que servia de referência geográfica para os novos visitantes.
Os dois irmãos ainda eram crianças quando, em um desses dias de ócio na
Villa da Tatra, resolveram fazer uma aposta. Péter tinha um pé de cereja preta
e János Tivadar um de cereja branca. O objetivo era ver qual deles seria capaz
de comer o maior número de frutinhas do seu próprio pé. Péter, tão competiti-
vo quanto o irmão, sabia que era necessário bolar uma estratégia para obter so-
bre o outro alguma vantagem. Concluiu que, se não perdesse tempo separando
a polpa do caroço, conseguiria comer mais depressa do que János. Era preciso,
então, engolir com caroço e tudo. Foi o que fez. Só que sua esperteza deixou con-
sequências: levou-o ao hospital.
Em outra ocasião, com 8 ou 9 anos, Péter levou a réplica de um navio até o
lago próximo à Villa. No meio da diversão, o barquinho acabou se afastando da

28 Sem Limite
margem, indo em direção a uma ilhota, onde ficou preso. Em meio à angústia
de perder o brinquedo, acabou chamando a atenção de um jovem de 20 e pou-
cos anos e que também tinha uma casa próxima ao lago. O rapaz, não sem difi-
culdade, conseguiu ajudá-lo.
Esse novo amigo, nascido em 1899, chamava-se Alfred Halward e era aus-
tríaco. Melhor dizendo, tinha nacionalidade austríaca, pois a cidade onde nas-
cera mudara de mãos ao final da guerra. Seu sobrenome também era empresta-
do, pois, de origem judaica, trocara o Blumenstock pelo Halward. E agora, por
meio do menino Péter, acabou vindo a conhecer sua vizinha dos montes Tatra,
a senhora Vilma. Ela era quase nove anos mais velha do que ele, já passara bem
dos 30 anos, mas era ainda uma bela mulher de olhos claros e cabelos dourados,
com as maçãs do rosto levemente salientes. Quando sorria, seus olhos brilhavam.
Não demorou muito e o rapaz apaixonou-se e foi correspondido. Casaram-se.
Péter passou a ter um bom relacionamento com Alfred, desde o início, tra-
tando-o pelo apelido carinhoso de “Fredziu”. Já em janeiro de 1925, presenteou-
-o com um caderninho onde escreveu, de próprio punho, com muito capricho e
em alemão, a história do general Haníbal, o cartaginês que quase destruiu Roma.
Na dedicatória, o menino escreveu: “Para o meu melhor querido amigo Fredziu
no seu aniversário, do seu fiel Peti”.
Porém, na redescoberta do amor, Vilma encontrou um problema. Alfred
tinha um bom emprego na Áustria, era químico em uma empresa de celulo-
se e papel localizada em Hilm-Kematen. Ele morava na vila dos trabalhadores
melhores qualificados. Era onde residiam também o dono da empresa e seus
diretores. Vilma deveria seguir para lá com ele, mas János Odön, o pai dos meni-
nos, se opôs. Não queria os filhos morando em outro país e chegou a pensar em
pedir a guarda deles. Vilma, então, aceitou fazer um acordo: manteria a guarda
das crianças, mas elas ficariam vivendo com os avós maternos, em Budapeste.
Nas férias, com frequência, Péter viajava para a casa da mãe e do padrasto, usu-
fruindo da influência deles em sua formação pessoal e profissional.
O avô Izidor era um homem conservador, saudosista do Império Austro-Hún-
garo e extremamente metódico. Um arquiteto competente e reconhecido pelo
seu trabalho. Em 1928, um projeto seu foi levado em consideração para abrigar
o Palácio da Liga das Nações (precursora da Organização das Nações Unidas
– ONU) em Genebra. Sua esposa, Alma, era uma versão feminina desse mes-
mo caráter. Ela cuidava de todos os detalhes da casa e nenhuma comida vinha à

A vida de Péter Murányi 29


mesa sem que ela tivesse provado antes e dito que estava de acordo. Na hora do
almoço, a água tinha que estar em determinada temperatura, o que fazia com
que a jarra ficasse suada. Era um tempo em que as mulheres eram destinadas a
cuidar do marido e da família. Se, para muitas, isso soava como limitação, para
Alma era seu mundo inteiro e ela o fazia com amor e dedicação.
O casal foi uma grande influência na vida de Péter, talvez até maior do que
a do próprio pai. János Odön era um corretor competente, que chegou a dirigir
algumas empresas de seguros húngaras. Mas gostava de separar claramente a
hora do trabalho da hora do descanso. Quando terminava o expediente, pega-
va o jornal do dia e ia para um dos charmosos cafés de Budapeste, onde ficava
das cinco da tarde até as oito da noite lendo, conversando com os amigos e to-
mando café. Péter, ao contrário, viria a fazer do trabalho uma parte importan-
te de sua vida privada.
O jovem Péter destacou-se muito cedo nos estudos. Por volta dos 10 anos, já
se divertia fazendo contas de cabeça, com invulgar rapidez. Quando ia ao mer-
cado com a mãe, surpreendia os comerciantes calculando o valor das compras
com exatidão e acabava sendo premiado com doces. Sua dedicação aos estudos
o colocaria em destaque durante todo o período escolar. Seu boletim era reple-
to de conceitos “1”, o mais elevado naquela época. Falava alemão fluentemente,
como era comum entre os jovens das famílias de Budapeste. Mas sua cabeça, ao
longo da vida, ficaria focada na matemática, na economia, na mecânica e nos
problemas práticos e concretos da vida. Não se encantava, por exemplo, com a
literatura e nunca conseguiu ter uma bela caligrafia.
Os irmãos Péter e János Tivadar eram muito amigos, ainda que tivessem
temperamentos diferentes e estivessem separados por quatro anos de idade.
János era extrovertido e ousado, e Péter mais tímido, embora seguisse o irmão
em algumas de suas aventuras. Ambos se interessavam por atividades ao ar livre,
bem típicas das crianças e dos jovens húngaros. Gostavam de acampar, remar e
andar de bicicleta. Além disso, Péter também sabia esquiar e praticava esgrima.
O rio Danúbio era para a Hungria o que o Nilo é para o Egito e isso se refle-
tia no divertimento dos jovens. Apreciava-se subir uma parte do rio de bicicle-
ta e, depois, voltar para Budapeste de barco. Havia um grupo que, nessa hora,
unia dois barcos por um tablado e vinham em cima dele tocando música e dan-
çando os ritmos da juventude de então, como o foxtrote. Quando um rapaz
fazia 15 anos, era normal que ganhasse um barco a remo ou à vela. Esportes náu-

30 Sem Limite
ticos também eram praticados no Balaton, o maior lago não só da Hungria, mas
também de toda a Europa Central.
Dessa época, Péter guardaria para sempre na memória, como uma doce nos-
talgia, os saquinhos de diákcsemege, que eram vendidos na porta das escolas,
como a pipoca de hoje em dia. Essa deliciosa “forragem de estudante” era com-
posta por um sem-número de ingredientes picadinhos, o que incluía nozes, amên-
doas, avelãs, frutas secas, torrões de açúcar, uvas passas, chocolate e outras coi-
sinhas de aspecto tão estranho que era melhor nem perguntar.
Na Budapeste do início dos anos 1930, os adolescentes de ambos os sexos se
encontravam em várias atividades de lazer, como nos passeios de barcos ou de
bicicleta, nas piscinas termais da cidade e até em acampamentos. Péter, naque-
la fase em que ainda não sabia muito bem como cativar uma menina, divertia-
-se colocando sapos dentro das barracas delas e ria muito com a confusão que
vinha em seguida. Depois, talvez seguindo os passos do irmão, aprendeu a arte
de fazer a corte e teve seus namoricos.
János Tivadar era uma influência forte para o caçula, que admirava suas pro-
ezas. Certa feita, ele recebeu um desafio de um amigo, proprietário de um carro.
O jovem Murányi insinuou que seria capaz de roubá-lo, sem se importar com os
obstáculos. Dessa brincadeira acabou surgindo uma aposta, e o amigo, dentro
das limitações técnicas da época, protegeu o veículo com os recursos mais avan-
çados e o estacionou em uma praça. János examinou a situação atentamente e foi
embora. Pouco depois, voltou com um guincho e rebocou para longe o veículo.
De certa forma, usando a inteligência, ele reproduziu a proeza de um antepas-
sado, daquele que, segundo a tradição oral da família materna, foi o primeiro a
carregar o sobrenome Sterk. Conta-se que esse antepassado, que era muito for-
te, também fez uma aposta. Havia em uma casa grande quantidade de material
de construção. Então, por um motivo que o tempo esqueceu, disseram-lhe que
ele poderia ficar com tudo aquilo que ele conseguisse carregar sozinho, no om-
bro, em uma única noite. E esse antepassado acabou conseguindo carregar todo
o material. Por isso ele foi apelidado de “stark”, que em alemão significa força.
Péter teve, assim, uma adolescência intensa, uma vez que conseguiu conci-
liar seus estudos com uma saudável vida ao ar livre, com o irmão e outros jo-
vens da sua idade. Os rapazes de então vestiam-se de maneira bastante formal,
indo para a escola de paletó e gravata, embora as cores, cortes e feitios fossem
variados. Houve, porém, um momento em que, contrastando com seus tra-

A vida de Péter Murányi 31


jes civis do dia a dia, milhares de jovens húngaros passaram a usar gorros de
aspecto militar. No caso de Péter, era um bibico de cor escura, com um emble-
ma arredondado, onde sobressaía o busto do Conde Istvan Széchenyi, gran-
de personagem da história da Hungria, e que dava seu nome ao colégio onde
o menino estudava. Encimando o escudo havia um “v” ao contrário formado
por três traços bordados. Os gorros e o movimento social que os havia criado
eram outro reflexo do Tratado de Trianon, que humilhara a Hungria ao final
da Primeira Guerra Mundial.
O Trianon, como já se viu, embora tenha ajudado outras nacionalidades a
alcançar sua soberania, excluiu três milhões de húngaros das novas fronteiras
do reino e desestruturou a economia. Mas havia também outras imposições.
Uma delas limitava o exército húngaro a ter um efetivo máximo de 35 mil sol-
dados e oficiais. O país estava igualmente proibido de ter força aérea, tanques de
guerra e serviço militar obrigatório.
Essas restrições de caráter militar calaram fundo no orgulho húngaro.
Para um povo que se sentia perseguido pela nova ordem mundial, elas causa-
ram uma sensação de insegurança, de risco de extinção do próprio país. Assim,
havia o entendimento de que seria necessário burlar, embora discretamente, o
Tratado, para que o Estado pudesse ter um maior número de jovens disponí-
veis para a guerra. Dessa forma, a partir de 1921, surgiram leis regulando a prá-
tica obrigatória de educação física para os rapazes entre 12 e 21 anos. Pela lei de
1924, eles eram obrigados à prática supervisionada de três horas de educação
física semanal, além daquelas já realizadas nas instituições de ensino. Esse siste-
ma pretendia, sob a máscara da preparação esportiva, mobilizar a juventude hún-
gara para defender o reino. Criaram-se assim as “Levente Egyesületek” ou, em
português, Associações de Paladinos. Para não burlarem o Tratado de Trianon,
elas ficavam, oficialmente, subordinadas ao Ministério da Cultura e ao Conse-
lho Nacional de Educação Física.
Muitos jovens gostavam de pertencer às Leventes e, no início da década de
1930, as associações não tinham uma conotação ideológica. Seu significado era
amplo e vago: dar aos adolescentes a sensação de pertencerem à nação, ensi-
nar a eles um mínimo daquilo que teriam aprendido durante o serviço militar
que o Tratado lhes recusava. Assim, o gorro de membro das Leventes usado por
Péter em uma foto de família é a prova de que ele se sentia inteiramente húngaro.
Partindo dessa referência, pode-se imaginar o tamanho da decepção desse ra-

32 Sem Limite
paz quando começou a ouvir pelo país vozes que diziam que pertencer à “raça”
judia era incompatível com o pertencimento à “raça” húngara.
Naquele momento, muitos judeus e cristãos de origem judaica pensavam que
a escalada de intolerância era um fenômeno passageiro, semelhante à “hungari-
zação” do século XIX. Mas o panorama da Europa e da Hungria já ganhava co-
res que apontavam para um quadro de horrores totalmente original, que leva-
riam o jovem Murányi a dar um longo salto na escuridão...

A vida de Péter Murányi 33


Capítulo 2
Antes da tempestade
Eu cuspi na minha comida...

36 Sem Limite
P éter concluiu o segundo grau em 1933, com louvor. Além da nota
máxima em praticamente todas as matérias, sua conduta pessoal foi
classificada como példas (exemplar). Tanto que um professor o pre-
senteou com um desenho e, na dedicatória, o chamou de “meu melhor aluno”.
Sua única nota abaixo do nível considerado “excelente” foi, mais uma vez, em
Caligrafia, classificada como rendes (regular). Ademais, ele não havia feito um
curso qualquer, mas sim ensino técnico-comercial, com quatro anos de dura-
ção, na Escola Superior de Comércio Conde Istvan Széchenyi, só para meninos.
Mas, qual seria o passo seguinte do rapaz? Aquela ainda era uma época em
que muito poucas pessoas frequentavam uma faculdade, e ainda não existiam
profissões regulamentadas. A universidade de Budapeste tinha um número
reduzido de alunos, em comparação à população do país. Entretanto, tanto
na família materna quanto na paterna, valorizava-se o ensino superior. Havia
inclusive a situação peculiar da tia Vera, irmã de János Ödön, que veio a ser a
primeira química a obter diploma de doutorado na Hungria.
Havia, por outro lado, uma questão prática. “Papa” Izidor estava ficando ido-
so. Sua elegante bengala, em cuja empunhadura havia a figura de uma mulher,
não era mais mera vaidade. Ela, agora, o ajudava a sustentar o peso da idade.
Para piorar, o arquiteto era o único provedor dos Sterk, em uma época de crise
econômica. Bem diferente era a situação da família paterna de Péter, que vivia
um momento bastante favorável, com vários membros se destacando em suas
profissões. Além do dr. Ármin, patriarca dos Murányi, de János Ödön e Vera,
havia Iván, que era um industrial de sucesso, e Ernö, o filho advogado que lhe
sucederia no escritório. Havia ainda o tio Gyula Murányi que, tendo sido alu-
no do célebre escultor Auguste Rodin, em Paris, se tornara um famoso artis-
ta plástico, que esculpia bustos, medalhas e ainda valorizava os prédios da ca-
pital produzindo detalhes arquitetônicos com arte. Porém, com a guerra que

A vida de Péter Murányi 37


viria depois, de suas obras a família conseguiria guardar apenas algumas pla-
cas, dentre elas, duas com os perfis de Ármin Pick e Szidonia Sorer, em que fo-
ram magnificamente retratados.
Foi nesse momento de transição na vida de Péter que surgiu um concurso
nacional de Economia, voltado aos estudantes concluintes do ensino médio, que
garantia ao vencedor um relógio e um emprego. Era uma oportunidade que lhe
chamou a atenção, assim como a de muitos outros jovens. Mas, ao contrário de
seus adversários, Péter não se enfiou nas bibliotecas de Budapeste para pesqui-
sar e estudar. Com sangue frio e a vitalidade de seus 18 anos, preferiu percorrer
as margens do Danúbio de bicicleta e, com asas nos pés, foi viajar.
Frequentemente, Péter ia à Áustria para visitar a mãe e o padrasto. Era uma
viagem relativamente rápida. Mas, dessa vez, ele resolveu sair do habitual para
comemorar a conclusão do ensino médio. Tomando o caminho da Itália, foi para
a romântica cidade de Rimini, na costa do Adriático. Entre ruínas romanas e
prédios renascentistas, ele andou de bicicleta e de barco durante alguns dias e só
voltou para Budapeste em cima da hora para fazer a prova.
O tema do concurso acabou sendo uma dissertação sobre a importância do
trigo na economia húngara. Isso não é de se surpreender. A questão do trigo era
séria naquele país.
O já morto Império Austro-Húngaro possuía uma estrutura econômica
interdependente. Cada região do país se especializara em uma atividade e,
com a ajuda de políticas protecionistas, o mercado interno era basicamente
suprido pelas empresas e pelos produtores nacionais. Dessa forma, a Hungria
era o principal fornecedor de trigo, centeio e cevada para os centros urbanos
do Oeste do país. Contudo, com o fim do império, o mercado consumidor
dos produtos agrícolas havia encolhido de maneira substancial e o país ficara
com uma produção 500% maior do que as suas necessidades. Isso pode pa-
recer positivo, mas o excedente não encontrou facilmente mercado na nova
geografia política europeia. Os armazéns ficaram abarrotados e, como con-
sequência, a produção despencou nos primeiros anos do pós-guerra. Então,
quando a Hungria começou a se recuperar, no fim da década de 1920, veio
a quebra da Bolsa de Valores de Nova York. Assim, ao escrever a redação,
Péter vivia um país novamente em crise e inseguro quanto à vocação agrí-
cola. O rapaz tinha entendido muito bem todo o problema. Afinal, ele foi
o vencedor do concurso.

38 Sem Limite
Péter e o irmão
János Tivadar em
Budapeste

Péter na adolescência
Foi assim que o caçula de Vilma e János Ödön conseguiu o primeiro empre-
go, aos 18 anos, na Sociedade Anônima Papirmüvek, uma fábrica de papel situ-
ada na rua Szemere, em Budapeste. No fundo, era uma espécie de estágio, com
a módica remuneração de 60 pengös por mês. Mas, quando recebeu o primei-
ro salário, ficou tão feliz que decidiu guardar uma das moedas de um pengö por
toda a vida, como se fosse um talismã. Poucos meses depois, em dezembro de
1933, ele foi transferido para outra fábrica de papel, a Sociedade Anônima Elsö
Magyar Papiripar, que havia incorporado a empresa anterior.
Não há como desconsiderar a coincidência entre o primeiro emprego de
Péter e o ramo de atividade de seu padrasto Alfred. Teria ele tido alguma influ-
ência nisso? Na verdade não, já que o trabalho do rapaz havia sido resultado de
um concurso. Mas, diante da forte amizade entre os dois, o jovem certamente
aprendeu muitas coisas com o brilhante químico austríaco.
Péter, entretanto, não parou por aí. Estimulado pela empresa, que logo iden-
tificou um perfil promissor no dedicado aprendiz, buscou se especializar.
Iniciou, assim, em setembro de 1934, um curso de formação em Gestão Indus-
trial, voltado para a área de celulose e fabricação de diversos tipos de papel, que
foi concluído no ano seguinte. Nos exames pelo qual passou foi avaliado com
kivaló, palavra que pode ser traduzida como “ilustre”.
Essa experiência, em um curso que valorizava o conhecimento prático, mar-
cou o garoto de maneira singular. Ao longo de sua vida, ele guardaria certo des-
dém pelos cursos universitários puramente teóricos. Um diploma, para ele, era
“um quadrinho pendurado na parede”. Não seria mais importante do que o
conhecimento adquirido no chão da fábrica, pelo erro e acerto, pela troca de
experiências. A tese do “aprender fazendo”, que até hoje se observa em muitas
escolas técnicas. Daí por que, anos mais tarde, imaginaria premiar pessoas que
realizassem trabalhos para encontrar soluções práticas e, principalmente viá-
veis, para o progresso da humanidade.
A vida do rapaz evoluía. Existia um vasto campo de possibilidades para
explorar na Hungria. Mas, por outro lado, a Europa vivia anos confusos, com
ideologias extremadas à esquerda e à direita.
Embora existissem movimentos antissemitas na Hungria, eles haviam sido
mantidos fora do poder durante o governo do primeiro-ministro István Bethlen,
a partir de 1921. Mas, com a grande depressão instalada no mundo após 1929,
o governo de Bethlen não conseguiu manter-se por mais tempo. Assim, usando

40 Sem Limite
os judeus como bodes expiatórios da crise, a extrema-direita acabou chegando
ao poder com Gyula Gömbös, em outubro de 1932. O novo dirigente político
afirmava que “os judeus não podem ser autorizados a ter sucesso em qualquer
campo de atuação além do percentual de sua representatividade na população”.
E essa extrema-direita, que já mantinha fortes laços de amizade com a Itália fas-
cista, agora também se aproximaria da doutrina nazista. Na gelada manhã de 30
de janeiro de 1933, chegava ao fim a tragédia da “República de Weimar” – os lon-
gos e frustrados 14 anos nos quais os alemães haviam lutado pela democracia.
Nascia o III Reich, Adolf Hitler chegava ao poder. Ainda assim, Gömbös prefe-
riu não colocar em prática seu discurso antissemita, pois precisava da ajuda dos
judeus para recuperar a economia do país.
Em 8 de setembro de 1935, a vida de Péter foi violentamente sacudida pela
morte de seu avô Izidor, aos 75 anos. O arquiteto, embora tenha aceitado a con-
versão da filha mais velha ao catolicismo, não negou suas origens ao estipular
sua última vontade. Assim, foi sepultado no cemitério judaico Kozma Utca, onde
ainda dorme para sempre.
Além da perda daquele que foi, de certa forma, seu segundo pai, Péter se viu
forçado a amadurecer da noite para o dia. Seu irmão János Tivadar, com seu es-
tilo bon vivant, não parecia interessado em assumir o lugar do avô. Diante des-
se vácuo, Péter se tornou, naturalmente, o chefe de uma família que incluía sua
avó, Alma Mauthner, e suas duas tias Yolanda e Ilona.
Na fábrica tudo ia muito bem, principalmente após a conclusão do curso de
gestão. Ele se sentia reconhecido e podia esperar um futuro nesse campo da in-
dústria. Mas, no jovem irrequieto e idealista, brotava a necessidade de mudar,
drasticamente, de rumo. Em 1938 pediu demissão da empresa e se alistou nas
Forças Armadas. Mais especificamente, na Marinha húngara que, naquela épo-
ca, tinha uma frota fluvial importante.
Quando Péter era adolescente, não era difícil avistar os navios de guerra
húngaros subindo e descendo o Danúbio em suas missões de patrulha e treina-
mento. Muitos deles estavam baseados em Budapeste. A largura do imenso rio
permitia que a frota abrigasse meia dúzia de vapores com 44 metros de compri-
mento e equipados com duas torres de canhão divididas entre a popa e a proa.
Eram blindados, com um perfil de casco baixo, para escapar melhor da mira
dos canhões adversários. Havia também outras embarcações com equipamen-
to mais leve, com metralhadoras antiaéreas, ou apenas destinadas ao transporte

A vida de Péter Murányi 41


de soldados. Todo esse aparato ajudou a alimentar o entusiasmo do rapaz pela
vida militar. Péter, com sua bicicleta à beira do rio, observava fascinado o trân-
sito dos “gigantes de ferro”...
O alistamento de Péter é um fato, por si só, bastante curioso. Afinal, de acor-
do com o art. 103 do Tratado de Trianon, a Hungria estava proibida de manter
um sistema de serviço militar obrigatório. Assim, qualquer engajamento devia
ser, necessariamente, voluntário.
Por que um rapaz com dois cursos na área de gestão empresarial e já traba-
lhando na indústria local daria uma guinada tão brusca em direção à vida militar?
Hoje não há como ter certeza, mas supõe-se que a resposta seja simples. Péter era
um jovem patriota que sentia seus passos serem guiados pelos heróis do passado.
Sua família admirava profundamente Lájos Kossuth, o político húngaro que, em
meados do século XIX, lutou para que a Hungria se tornasse independente da
Áustria. Como sinal de respeito àquele verdadeiro democrata, o rapaz guarda-
va consigo um relevo de Kossuth entalhado em madeira. Bom observador dos
fatos, Péter sentia que seu país passava por um momento decisivo. Em lugar da
natural segurança, o moço preferiu lançar-se à vanguarda, à mais arriscada pro-
fissão, para uma Europa que fervia em todos os sentidos.
Sob outro ângulo, sabe-se que Péter, ao longo da vida, sempre deu muito
valor à experiência nas forças armadas, tanto que tentaria, muitos anos depois,
convencer seu filho a prestar o serviço militar no Brasil. Ele considerava impor-
tante, para a formação de um jovem, o contato com um ambiente moldado pela
disciplina, pela ordem e pelo senso de responsabilidade. As lembranças de sua
passagem pela caserna despertariam nele profunda nostalgia. Como materiali-
zação dessa época, Péter guardaria para toda a vida sua espada e um alvo no qual
acertou cinco tiros na mosca.
Em um primeiro momento, o rapaz permaneceu junto à flotilha baseada em
Budapeste. Tanto que sua avó, para mimá-lo, ia frequentemente ao seu encontro
com um belo carregamento de salames. Era algo que ele adorava e que o ajuda-
va a compensar a horrível comida do quartel.
A rotina na guarnição era dura, mas Péter não ficou traumatizado com isso.
Ao contrário, buscou se adaptar.
A rusticidade era tanta que algumas situações absurdas acabavam se tornan-
do engraçadas. Por exemplo: na hora do “rancho”, o militar não podia repetir a
refeição. A quantidade de comida para cada um era bem delimitada e nem sem-

42 Sem Limite
Da esquerda para a direita: Vilma, Izidor, Péter, Alfred,
Alma, János Tivadar, Yolanda e Ilona

János Tivadar e Péter ao redor do pai, János Ödön


pre suficiente para o tamanho da fome. Assim sendo, quando, durante uma das
três refeições, um soldado era chamado pelo seu superior, os colegas avançavam
no seu desprotegido prato sem nenhuma piedade...
Um dia, Péter, bem no meio do almoço, foi chamado para dar uma explica-
ção ao seu superior. Imediatamente os olhos dos amigos se voltaram, cobiçosos,
para o seu prato. Ele então, achando-se muito esperto, fingiu que havia cuspido
no assado, remexeu tudo com o garfo e colocou um bilhetinho por cima com o
seguinte recado: “Eu cuspi na minha comida”. Feito isso, saiu todo tranquilo e
vitorioso. Fez o que tinha que fazer e, quando voltou, abaixo da frase que escre-
vera, viu que seu bilhetinho estava coberto por diversas anotações dos colegas:
“Eu também cuspi nele”, “eu também”, “eu também”...
Enquanto Péter iniciava sua vida militar, a ordem internacional criada pelo fim
da Primeira Guerra Mundial e pela Liga das Nações desmoronava em descrédito.
Hitler governava a Alemanha sem oposição e preparava seus planos de expansão
territorial. Seu primeiro objetivo era a Áustria, país em que nasceu e onde havia
um partido de orientação nazista favorável ao Anschluss, ou seja, à união políti-
ca com a Alemanha. Mas, Hitler também reivindicava, publicamente, uma par-
te da então Checoslováquia. A política alemã resultante desse cenário não demo-
raria a afetar a família de Péter, de várias formas e com assustadora velocidade.
Na Áustria, Vilma e Alfred acompanhavam de perto a insensatez que toma-
va conta da Europa como um rastilho de pólvora. Eles continuavam vivendo na
vila de Hilm-Kematen, com os diretores e trabalhadores qualificados da fábri-
ca de papel. Mas, ao redor daquele microcosmo, reinava a insegurança e a vio-
lência. Dezenas de assassinatos eram cometidos na luta entre austríacos parti-
dários do nazismo, sociais-democratas e nacionalistas contrários ao Anschluss.
Hitler, tirando proveito dessa instabilidade política, ocupou militarmente o ter-
ritório austríaco na manhã do dia 12 de março de 1938 e convocou um plebisci-
to para que, no dia 10 de abril, fosse confirmada a anexação do país ao III Reich.
Para garantir o sucesso do plebiscito, as forças de segurança alemãs dedica-
ram-se a prender ou intimidar não apenas os militantes de oposição, mas tam-
bém os judeus. Milhares de pessoas foram presas até a data da votação. É possível
que tenha sido naquele momento que Alfred foi arrancado de sua casa. Tropas
nazistas vieram até a vila e requisitaram ao dono da empresa a relação dos fun-
cionários judeus. Alfred tinha um bom relacionamento com ele, inclusive fre-
quentava sua casa. Mas nem por isso foi excluído da lista.

44 Sem Limite
O jovem químico foi levado para uma frente de trabalho e obrigado a parti-
cipar da abertura de uma estrada, como simples operário. Essa arbitrariedade,
embora tenha durado apenas alguns dias, causou o efeito desejado pelos nazis-
tas: intimidação. O padrasto de Péter voltou para a vila revoltado e perguntou
ao chefe por que o havia delatado. Ele respondeu que não teve como evitar aqui-
lo. Foi quando ele e Vilma decidiram abandonar a Europa. O “Velho Mundo”,
o continente que inventara a democracia estava se tornando uma terra sem lei.
Não se sabe exatamente como, mas Alfred soube que uma indústria brasilei-
ra, a Klabin, estava procurando um químico altamente especializado. Essa em-
presa tinha uma longa tradição na produção de papel, tendo inaugurado uma fá-
brica na capital paulista em 1914. Foi por meio desse contato que o casal decidiu
ir para o Brasil — uma longínqua terra localizada do outro lado do imenso mar.
O plebiscito realizado na Áustria veio a confirmar o Anschluss. Como as po-
tências europeias nada fizeram para opor-se a essa anexação, Hitler estava mo-
tivado para ir além. Ele desejava anexar os Sudetos, região da Checoslováquia
de maioria alemã. Criada em 1918, a partir de uma costela da Áustria-Hungria,
a Checoslováquia era uma democracia multirracial, com maioria de checos e
eslovacos dividindo o território com alemães, húngaros, rutenos e poloneses.
Em 1938, Hitler ameaçava invadir o país, sob o argumento de que a mino-
ria alemã estava sendo desrespeitada. A França e a Grã-Bretanha, ainda trauma-
tizadas com a mortandade da Primeira Guerra Mundial, desejavam evitar um
novo conflito geral. Preferiram então fazer um acordo com a Itália e a Alemanha,
autorizando esta última a anexar os Sudetos.
Para o governo húngaro, era o momento para buscar, de maneira pacífica, a
revisão das fronteiras do Tratado de Trianon. Sabe-se que, naquele tempo, cerca
de 750 mil húngaros viviam na Checoslováquia, principalmente em uma faixa
de terra a leste, próxima à fronteira dos dois países. Os húngaros a chamavam,
e ainda a chamam, de Alta-Hungria. Diante da apatia das potências ocidentais
e com o apoio da Alemanha e da Itália, a Hungria obteve um acordo favorável
com o governo de Praga. Por meio dele, uma parte da região em disputa, habi-
tada por meio milhão de húngaros, foi devolvida sem violência.
Péter Murányi, como integrante da Marinha húngara, foi testemunha e partí-
cipe desse momento de reincorporação da Alta-Hungria. Embora tivesse se alis-
tado havia poucas semanas, ele já era então um örmester (sargento). Para tanto,
certamente colaborou o fato de ter concluído o ensino médio e possuir forma-

A vida de Péter Murányi 45


ção técnica superior, em um tempo em que tal condição profissional era atri-
buto raro. Aliás, apenas ter “ginásio superior” dava a Péter o direito de usar um
debrum na manga do uniforme, o que era sinal de status.1 Ademais, sua fluên-
cia na língua alemã fez com que fosse usado como intérprete, tomando conta-
to direto com as movimentações militares que vinham preparando a Hungria
para uma eventual guerra com o seu vizinho ao Norte.
Quando o acordo foi fechado com a Checoslováquia, Péter foi enviado para
Kassa, a maior cidade da Alta-Hungria recém-recuperada. No trajeto, é pro-
vável que tenha subido o bucólico rio Hornád, que banha aquelas paragens e é
navegável. No dia 10 de novembro de 1938, às 9 horas da manhã, os primeiros
soldados húngaros entraram na cidade.
Naquele tempo, a Hungria era uma monarquia sem rei. Ao longo da juven-
tude de Péter, vários homens de tendências ideológicas diversas ocuparam a
cadeira de primeiro-ministro. Mas, à margem disso, o Estado era governado, des-
de 1920, pelo almirante Miklós Horthy, na qualidade de Regente. Quase um rei,
Horthy pode ser considerado uma figura indecifrável da história contemporâ-
nea. Afinal, se é certo que buscou ajuda da Itália e da Alemanha, também fazia
de tudo para que seu pequeno e frágil país não caísse sob o controle das gran-
des potências, em uma época na qual a Europa sangrava por toda parte e trata-
dos eram dilacerados sem cerimônia.
Assim, no dia 11 de novembro, simbolicamente o 20o aniversário do fim da
Primeira Guerra Mundial, o almirante Horthy entrou em Kassa, acompanhado
por um desfile militar. Os habitantes de origem húngara desfraldaram as bandei-
ras tricolores e o acolheram com entusiasmo. Quanto à minoria eslovaca, o re-
gente prometeu respeitar seus valores linguísticos e culturais. Se Péter se alistou
na Marinha com o mesmo entusiasmo que sempre guiou sua vida profissional,
este deve ter sido um momento especial. Mas talvez não tenha durado muito...
O preconceito contra os judeus vinha crescendo na Europa, puxado pelos
discursos inflamados de Adolf Hitler. Na Hungria, boa parte da classe políti-
ca repugnava essa tendência segregacionista. Como disse o cientista político
George Friedman, em data recente, o regente Horthy jamais defenderia o exter-
mínio do povo judeu. Um de seus filhos, o jovem Miklós Horthy Jr., era tão con-
1 N. do A.: Um documento da época apresenta Péter como “kpvj. c. őrmester”, onde a sigla
“kpvj. c.” significa: “karpaszomány viselésére jogosult csendőr őrmester”, ou seja, com a
prerrogativa de usar debrum.

46 Sem Limite
Péter Murányi no exército

Classe de Péter no curso técnico da Escola Superior


de Comércio Conde István Széchenyi
trário ao ideário nazista que, quando foi enviado para ser embaixador no Bra-
sil, levou para ser seu secretário um judeu que tinha interesse em deixar o país.
Mas, em 1938, o primeiro-ministro húngaro era o ambicioso Béla Imrédy. Em-
bora tenha feito carreira como partidário de uma aproximação com a Grã-Bre-
tanha, não teve escrúpulos em se aproximar do fascismo e do nazismo quando
isso lhe pareceu conveniente.
Foi Béla Imrédy quem apresentou ao parlamento húngaro uma proposta de
lei para restringir, drasticamente, os direitos dos judeus húngaros. Enquanto a
lei de 1920 havia criado cotas para as universidades, a proposta de Imrédy era de
maneira clara antissemita, uma vez que defendia que o fato de alguém abando-
nar a religião judaica não implicava qualquer mudança no status dessa pessoa ou
de seus descendentes do ponto de vista racial. A ideia era excluir todos os judeus
envolvidos com funções públicas, criar cotas para a contratação de judeus pelas
empresas privadas e reduzir a participação deles na vida cultural do país. Tal pro-
jeto de lei atingiria como um raio a família de Péter Murányi. Como se não bas-
tasse, nos círculos extremistas eram discutidas propostas ainda mais rigorosas.
Péter vivia um momento de grande tensão. Uma guerra com a Checoslová-
quia ainda era uma possibilidade. Caso isso acontecesse, as tropas húngaras em
Kassa estariam na linha de frente. E, ainda, era necessário lidar com a minoria
eslovaca, nem sempre receptiva, que fora absorvida pela nova linha de frontei-
ra. Assim, Péter e os homens sob seu comando estavam sempre de prontidão.
Para piorar, a ascendência judaica de Péter levantava contra ele a agressividade
de outros militares húngaros.
Certa noite, quando o sargento Murányi estava respondendo por um pos-
to de guarda, ouviu a aproximação de pessoas que se aproveitavam da escuri-
dão para tentar se infiltrar na guarnição. Seguindo o protocolo, ele exigiu a se-
nha de passe, mas não obteve resposta. Insistiu por ela, sem sucesso. Deveria
então ter atirado na direção dos vultos, mas teve a intuição de que aquilo era uma
armadilha preparada por militares húngaros para enervá-lo ou levá-lo a cometer
algum erro fatal. Assim, atirou algumas vezes para o alto e os afugentou.
O ambiente deteriorava rapidamente. Em outra ocasião, um oficial que lhe
demonstrava simpatia, alertou:
– Peter, arrume suas coisas e saia já da Hungria. Está sendo feita uma “lista
negra” e seu nome é um dos primeiros por sua ascendência judaica. Depois que
a lista for entregue, não vou poder ajudá-lo.

48 Sem Limite
A partir daquele momento, por fim seus olhos abriram-se para o caminho
sem volta no qual a Hungria estava entrando. Era uma questão de tempo até
que todos os judeus húngaros fossem expulsos das forças armadas. Péter pre-
feriu sair antes disso, com dignidade. E como havia atuado com valor, recebeu
um diploma em que se lê:

À memória dos serviços militares prestados no Bata-


lhão n. 3 da Patrulha Fluvial do Reino da Hungria,
em setembro, outubro e novembro de 1938, durante
a reintegração da Alta-Hungria.

Milhares de judeus e cristãos de origem judaica tiveram que enfrentar essa


mesma realidade. Em determinado momento, perceberam que a pátria vacila-
va em vê-los como filhos e que uma onda de ódio irracional se formava no ho-
rizonte, desenhando ameaçadora tempestade. Ter arriscado a vida pelo país era
ato insignificante se seu avô fosse judeu. Mesmo assim, alguns como o pai e o
irmão de Péter foram otimistas o bastante para não deixar Budapeste. Entre
aqueles que decidiram partir, a maior parte tinha esperança de voltar. Houve
quem deixasse a casa mobilhada, sob o cuidado dos criados e com os casacos
mais pesados pendurados nos cabides...
Péter decidiu partir para a França, deixando a avó Alma no apartamento da
família e sob os cuidados de seu irmão János Tivadar. Voltaria ou não? Eis uma
pergunta que deve ter passado por sua cabeça muitas vezes.
Em Paris, Péter não demorou para conseguir outro emprego em uma indús-
tria de papel. Seu currículo lhe garantia essa facilidade. O último empregador
fizera até uma carta de recomendação, em que dizia que o jovem profissional
estava preparado para trabalhar em negócios no exterior. Além da experiência
prática, havia o curso feito em Budapeste, que o destacava dos simples operários
e que lhe permitia atuar na área técnica relacionada à produção.
Mas o irrequieto rapaz não parou por aí. Seu instinto de sobrevivência fez com
que voltasse os olhos para o Jornalismo. Sentiu que era uma profissão que ofere-
cia certa mobilidade geográfica e segurança contra a arbitrariedade dos governos.
Assim, juntou-se à Associação Geral da Imprensa Francesa e Estrangeira. Isso

A vida de Péter Murányi 49


lhe permitiu trabalhar também nessa área, e ainda viria a lhe abrir portas impor-
tantes junto a repartições públicas. Foi uma espécie de “passaporte para a vida”.
Em março de 1939, Hitler descumpriu o acordo que fizera com a França e a
Grã-Bretanha e anexou, em um só golpe, a parte ocidental da Checoslováquia.
Era criado o “Protetorado da Boêmia-Morávia”, dando nascimento a um país que
lhe seria totalmente dependente, a Eslováquia. Logo em seguida, Péter começou
a planejar sua vinda para o Brasil, embora não fosse seu objetivo final. O país
serviria como uma porta para o Novo Mundo por fazer menos exigências para
a imigração. Seria, também, uma oportunidade de rever sua mãe e seu padras-
to, que estavam muito bem estabelecidos em São Paulo. Dali então, com calma
e sem as pressões impostas pela ameaça de guerra na Europa, ele poderia cuidar
dos documentos necessários para imigrar para Argentina ou Estados Unidos.
Milhares de húngaros já haviam imigrado para o Brasil. Na maioria, não por-
que tivessem optado por viver aqui, mas porque não obtiveram visto para ou-
tras nações então mais atraentes. É preciso lembrar que, em 1939, o Brasil era um
gigante desconhecido, que poucos sabiam localizar no mapa do mundo. Não
era ainda reverenciado nem mesmo pelo futebol ou carnaval. Na literatura
universal, era apresentado como um país selvagem, como no clássico de Arthur
Conan Doyle, O mundo perdido.
Um húngaro relativamente bem informado sabia apenas que o Brasil era um
país imenso, quente e com muitas florestas. A presença de índios era conhecida
e divulgada de maneira exagerada. Sabia, também, que era um grande produ-
tor de café que, com a crise de 1929, fora forçado a destruir grande parte de sua
colheita. Mas se espantava ao saber que lá se falava português e não espanhol.
A Argentina, por outro lado, era um país conhecido por sua fartura, represen-
tada pela exportação de trigo e carne. O volume de seu comércio exterior supe-
rava o do Brasil. Ali, centenas de milhares de imigrantes já haviam prospera-
do e ajudado a fazer de Buenos Aires a cidade mais europeia da América do Sul.
Ademais, os grandes fazendeiros argentinos, quando visitavam a Europa, des-
tacavam-se pela ostentação. Tanto que na França, quando se queria dizer que
alguém tinha muito dinheiro, dizia-se que ele era “rico como um argentino.”2
Em 25 de abril de 1939, Péter obteve uma carta de apresentação da Associa-
ção Geral da Imprensa Francesa e Estrangeira dirigida ao cônsul do Brasil em
Paris. Nela a entidade requer a gentileza de reservar a Péter “uma boa acolhida e
2 “Riche comme un Argentin.”

50 Sem Limite
Primeiro envelope de pagamento e primeira moeda recebida

Navio SS Mar del Plata


lhe facilitar o exercício de seus deveres de jornalista”. É um indício de que o ra-
paz estava se preparando para usar todas as suas habilidades na hora de fincar
os pés no novo continente.
Por essa época, em março, além do novo regime de cotas para judeus, o pri-
meiro ministro da Hungria fez aprovar uma lei que previa que eles poderiam ser
empregados em trabalhos forçados de interesse da defesa nacional. Péter ime-
diatamente se preocupou com a segurança do irmão. Fazendo um grande esfor-
ço pessoal, reuniu a maior parte do dinheiro que havia conseguido economizar
para a viagem e enviou para János Tivadar, para que ele fosse embora da Hun-
gria. Mas János seguia firme entre aqueles que acreditavam que aquilo tudo era
passageiro e que não seria atingido pelas novas regras. Além disso, estava noi-
vo da bela Martha Rott e não tinha a intenção de deixá-la para trás... Assim,
em lugar de fugir, resolveu usar o dinheiro do irmão para comprar um barco e
ir velejar no deslumbrante lago Balaton. Ao fazer isso, aceitou que seu destino
passasse a ser guiado pelas engrenagens da guerra.
No dia primeiro de setembro de 1939, Adolf Hitler invadiu a Polônia, com
uma ferocidade e eficiência que assustaram o mundo. Dois dias depois, a Fran-
ça e a Grã-Bretanha declararam guerra à Alemanha. Não se sabia ainda, mas era
o início da Segunda Guerra Mundial.
Péter foi testemunha desse momento de choque e confusão, embora a França
tenha limitado-se a mobilizar suas tropas e aguardar a chegada das forças britâ-
nicas. Nessa fase, o rapaz estava com seu projeto de viagem bastante adiantado.
Havia, desde junho, obtido um visto de turista para o Brasil. Mas o conflito criou
uma nova dificuldade. Afinal, logo no início, os alemães lançaram-se em uma
batalha submarina implacável. Já no dia 3 de setembro, afundaram um navio
britânico de transporte de passageiros, o Athenia, matando 112 civis. Ora, com
57 submarinos alemães vasculhando os mares, não seria seguro usar um navio
francês para deixar a Europa. Talvez tenha sido esse o motivo que levou Péter a
seguir para a Bélgica, país ainda neutro, para ali tomar um navio em Antuérpia.
Ele logo subiu ao convés do SS Mar del Plata, embarcação de passageiros que
havia sido lançada ao mar apenas um ano antes, nos Estados Unidos, mas que
pertencia à Compagnie Maritime Belge S.A. Era um belo navio a vapor de 132
metros de comprimento e 7.380 toneladas. No documento de embarque, Péter
aparece como húngaro, jornalista e católico. Era o único dessa nacionalidade,
pois os demais passageiros eram, em sua maioria, alemães e holandeses, com

52 Sem Limite
alguns poucos brasileiros e um judeu polonês. Declarava que sua última residên-
cia havia sido em Antuérpia e indicava como endereço de destino Rua Aurora,
número 489, centro da capital do Estado de São Paulo.
Podem-se imaginar as horas e os dias de tensão que ocuparam o início da
viagem. Para começar, o Canal da Mancha já estava sentindo os efeitos do cli-
ma de guerra e encontrava-se “minado”. A escala, prevista para ocorrer em Da-
car, na costa da África, foi abortada e o navio seguiu direto para as Américas,
sem paradas e totalmente às escuras. Assim que o SS Mar del Plata atravessou
a linha do Equador, um furioso temporal o atingiu. Enjoado com o movimen-
to de sobe e desce das ondas, Péter preferiu sair de sua cabine, permanecendo
atado ao mastro principal do navio para não ser levado por algum vagalhão.
E não foram apenas as intempéries a causar angústia. Mesmo navegando sob
uma bandeira neutra, não havia garantia de que os perigos do conflito não che-
gariam à embarcação e a seus ocupantes. Pois, à medida que o navio se afas-
tava, uma tempestade de ódio se espalhava pela Europa e, nos anos seguintes,
iria cobrir de sangue e lágrimas os campos e as cidades que se estendiam dos
Pirineus às portas de Moscou.

A vida de Péter Murányi 53


Capítulo 3
A conquista do Brasil
Minha paixão pelo Brasil
eu demonstrei no momento
em que escolhi ser seu cidadão.

56 Sem Limite
V encido o oceano, Péter chegou ao porto de Santos, no litoral
paulista, no dia 16 de outubro de 1939. Como era de se prever,
obteve apenas um visto de turista, com validade de 180 dias,
para ficar no Brasil. Assim, sem perder tempo, subiu a Serra do Mar e foi
desbravar a cidade de São Paulo. Na nova terra, para facilitar sua vida futu-
ra, abandonou o uso de seu segundo nome e passou a ser conhecido somente
como Péter Murányi.
Apesar das cartas que recebia da mãe, por meio das quais sempre podia fazer
uma ideia da vida naquela capital, o húngaro se surpreendeu com o tamanho da
cidade que se exibiu orgulhosa perante seus olhos. Com mais de um milhão de
habitantes, era maior do que Budapeste. Ela representava o centro de uma região
que, embora tenha sofrido os reflexos da crise econômica mundial, estava nova-
mente em pleno ciclo de desenvolvimento. As origens desse processo econômi-
co, que fez daquela urbe o grande polo industrial brasileiro, é bastante singular
e, certamente, não escapou à curiosidade do jovem aventureiro.
A partir do final do século XIX, estimulado pelos preços internacionais, o
solo fértil do Estado foi coberto por milhões e milhões de pés de café, o que en-
riqueceu a região e atraiu mão de obra não só do Nordeste brasileiro, mas tam-
bém de outros países. Estrangeiros em busca de oportunidades, especialmente
espanhóis, italianos e japoneses, se espalharam pelo interior, acompanhando o
ritmo da expansão das estradas de ferro e dos machados e fachos que extermi-
navam as matas ainda virgens.
A cidade de São Paulo logo se beneficiou com o dinheiro vindo daquela lu-
crativa monocultura, que bancaram a construção dos casarões da Avenida Pau-
lista e um comércio requintado de produtos importados. Financiados pelas sa-
cas de café, muitos jovens ricos puderam estudar no estrangeiro e a população
acabou absorvendo modismos e padrões estéticos europeus.

A vida de Péter Murányi 57


Além dos imigrantes humildes, São Paulo atraiu também grandes empre-
endedores, que traziam na bagagem experiência profissional, novas técnicas e,
por vezes, até dinheiro. Foi o caso dos Matarazzo, dos Crespi, dos Jafet e dos
Klabin, dentre outras famílias que impulsionaram a vibrante economia paulista.
Esse impulso, entretanto, sofreu uma brusca interrupção. Com a quebra da
Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, o preço do café despencou. Sendo ele
o principal produto brasileiro de exportação, o País entrou em profunda crise,
tanto econômica quanto política. Para reverter a situação, muitas medidas foram
tomadas pelo governo brasileiro, após a Revolução de 1930. Para tentar valori-
zar o produto, 70 milhões de sacas de café foram queimadas. Também se recor-
reu à manipulação do câmbio, que aumentou o preço dos produtos importados,
na tentativa de equilibrar a balança comercial. A desvalorização da moeda aca-
bou favorecendo a indústria nacional, que se livrou de boa parte da concorrência
estrangeira. Assim, aproveitando melhor a capacidade fabril instalada e adqui-
rindo máquinas estrangeiras de segunda mão, a produção industrial brasileira
cresceu 50% entre 1929 e 1937.
A crise do café e a industrialização de São Paulo ajudaram a empurrar a mão
de obra do campo para a cidade, o que transformou a geografia da cidade e be-
neficiou o comércio. Surgiram grandes estabelecimentos varejistas e, em 1933,
inaugurou-se o Mercado Municipal, junto à Zona Cerealista da Capital. Na Rua
Líbero Badaró, ergueu-se, na mesma época, o Edifício Martinelli, que, com seus
25 andares, era o maior arranha-céu não apenas da cidade como também da Amé-
rica Latina, no ano em que Péter chegou a São Paulo. Mesmo assim, boa parte
do território paulistano ainda era ocupada por sítios e a atual Avenida Nove de
Julho não passava de um caminho de terra batida.
O rapaz também se deparou com uma forte comunidade húngara na capi-
tal. Alguns tinham vindo na década de 1920, para trabalhar na lavoura. Eram,
pode-se dizer, refugiados econômicos. O grupo mais influente chegara em data
recente, fugindo como ele da perseguição religiosa e do clima de guerra que se
instalara na Europa. Nessa segunda leva, havia engenheiros, médicos, advoga-
dos, pessoas que precisaram abandonar uma vida que, sob outro panorama po-
lítico, teria sido tranquila e confortável.
O número de magiares em São Paulo era tão grande que, em 1932, justificou
a fundação da Paróquia de Santo Estevão, especialmente dedicada à comunida-
de católica húngara. Naquele mesmo ano, chegou o primeiro sacerdote da Igreja

58 Sem Limite
Péter: em pouco tempo,
um empresário no Brasil

Com a avó materna Alma Sterk


Reformada. Existia também a Associação Húngara Auxiliadora do Brasil e vá-
rios clubes que organizavam bailes, palestras para a juventude e outras ativida-
des. Os judeus frequentavam, tranquilamente, esses espaços, até porque muitas
famílias, do ponto de vista religioso, mesclavam opções meio adaptadas ao co-
nhecido sincretismo brasileiro. Era nesse ambiente que as pessoas conversavam
sobre os problemas de seu país de origem e buscavam informações atualizadas
daqueles que chegavam. Nos anos seguintes, com o alastramento da guerra, os
contatos com as origens ficariam restritos aos canais abertos pela Cruz Vermelha.
Péter teve o primeiro contato com os húngaros de São Paulo por meio de seu
padrasto, mas foi sua mãe quem lhe apresentou, por exemplo, a família Valko,
que chegara à cidade em julho. Alfred e Vilma representaram um apoio afetivo
importante, mas Péter já era então um homem feito, acostumado a sobreviver
em situações adversas. Com pouco mais de 900 dólares no bolso (dinheiro sufi-
ciente para comprar um carro novo), ele decidiu morar sozinho e descobrir por
conta própria o que a nova terra poderia lhe oferecer.
Para facilitar sua ambientação, hospedou-se em uma das pensões da Rua
Barão de Limeira, onde os húngaros eram maioria e o magiar podia ser ouvido
nas lojas e nas calçadas da redondeza.
A língua portuguesa, obviamente, significava um grande obstáculo, espe-
cialmente para um húngaro. Explica-se: o magiar é uma língua do ramo fino-
-magiar (como o finlandês) e muito diversa dos idiomas que, vulgarmente, po-
deríamos chamar de europeus ou ocidentais. Seus “parentes” mais próximos são
línguas hoje quase desaparecidas, usadas por povos nômades da Sibéria. O idio-
ma tem por característica acentuação enérgica e finais de palavras cortantes. Em-
bora possua 15 variedades de sons vocálicos, desconhece os ditongos. Assim, por
toda a vida, quando Péter queria se referir a uma mulher chamada Neuza, ele
invariavelmente dizia: “Dona Ne-ú-za”. E por ser o magiar uma língua agluti-
nante, dava-lhe também, por vezes, um falar embolado, com palavras sobrepos-
tas. Daí por que Paulo Rónai, imigrante húngaro e intelectual brasileiro, um dos
maiores especialistas na influência de línguas estrangeiras no português, dizia
que “em qualquer parte do mundo, qualquer que seja o húngaro e qualquer lín-
gua estrangeira que ele fale, seu sotaque é inconfundível, trai-lhe logo a origem”.
Infelizmente, Péter não tinha tempo para aprender português com a ajuda
de professores. Seu dia estava voltado à concretização de um grande projeto que
estava sendo concebido em sua mente à medida que compreendia seu jovem

60 Sem Limite
país de escolha: o Brasil. Isso fazia com que o estudo do novo idioma acabasse
relegado às horas mortas, quando ele estava chacoalhando no bonde ou para-
do em alguma fila. Com base em suas experiências com o francês, ele acredita-
va que, ao decorar cerca de 500 palavras, ele já poderia se fazer entender e que,
chegando às duas mil, ele já estaria falando bem. Assim, todos os dias ele colo-
cava dez papeizinhos no bolso do paletó. Em cada um havia uma palavra em
português com a tradução para o húngaro escrita em uma letra bem pequeni-
na, no cantinho. Ele então sentava no bonde, pegava um papel do bolso e lia a
primeira palavra em português e a repetia em húngaro várias vezes. O que ele
conseguia decorar colocava em um bolso, o que errava ia para o outro. Depois
ele fazia o contrário, lia a palavra em húngaro e a repetia em português várias
vezes. Ao final da semana ele tinha aprendido mais 70 palavras. O que já sabia,
ele descartava. O que não conseguia memorizar ficava para a semana seguinte.
No ônibus, no bonde, nas horas ociosas, ele aprendeu rapidamente 500 palavras.
Era uma técnica dele, coisa de autodidata.
Outras adaptações se faziam necessárias. Por exemplo, ele até que gostou da
comida brasileira, especialmente da feijoada e das diferentes formas de servir o
camarão. Mas, assim como muitos outros húngaros, não se adaptou à microbio-
logia tropical e foi atacado por amebas. Esse problema o perseguiu por muitos
anos e influenciou bastante a sua alimentação. Sofreu também com o sol forte,
pois sua pele era muito clara e, por qualquer coisa, ficava logo rosada.
Passadas poucas semanas, a comunidade de imigrantes começou a olhar o
rapaz com certo estranhamento. Ele não parecia estar procurando um empre-
go, mas estava sempre bem-vestido, indo de um canto para o outro, fazendo per-
guntas, examinando a cidade. Ele também não ia beber nos clubes, nem ficava
se lamentando pela vida que ficara para trás, na Europa.
– Ele está sempre sério e contido – comentou uma senhora que conversa-
va com a jovem Magdalena Valko –, como se estivesse se preparando para fa-
zer algo muito grande.
A mulher tinha razão. Com as informações que recolhera até ali, Péter já po-
dia afirmar que a nova terra oferecia grandes oportunidades. Em primeiro lu-
gar, havia o fator humano. O povo, embora não fosse refinado, era muito gentil
com os estrangeiros. Demonstrava grande paciência com aqueles que não fala-
vam português e, sempre que possível, tentava ajudar. A cidade era segura e o
regime político, embora não fosse democrático – pois o Brasil vivia a Ditadura

A vida de Péter Murányi 61


Vargas –, não tinha qualquer interesse em perseguir minorias religiosas ou raciais.
Havia assim uma estabilidade que permitia fazer planos para os próximos anos.
Por outro lado, existiam peculiaridades culturais que precisavam ser digeri-
das. Uma era a falta de pontualidade dos brasileiros. Chegar na hora a um even-
to era considerado até falta de educação, já que os anfitriões provavelmente não
estariam prontos. Outra coisa singular era o tal “jeitinho”, mania local de resol-
ver os problemas pela informalidade, mas que, por vezes, beirava a contraven-
ção. O sr. Valko, por exemplo, passou por uma experiência curiosa ao tentar di-
rigir um automóvel sem conhecer as regras de trânsito brasileiras. Causou uma
confusão danada, foi parado por um guarda na Avenida São João, mas não sa-
bia se explicar em português. Um amigo, que estava no banco do carona, para
resolver rápido o problema, sugeriu:
– Dá uma nota de 500 pro homem!
E o guarda, tentando vacilantemente falar, retrucou em húngaro:
– Uma não! Me dá duas!
Eram tantos os húngaros na Avenida São João que até o guarda de trânsito
aprendera o essencial da língua.
Péter também podia notar que a recente industrialização da cidade ofe-
recia vantagens a alguém como ele, que havia estudado gestão empresarial
e, principalmente, tinha experiência prática em fábricas da Hungria e da
França. Na verdade, já havia percebido uma grande oportunidade de negó-
cio. Mas, havia o problema do visto que, além de limitado no tempo, não lhe
permitia abrir uma empresa.
Querendo fazer tudo dentro da lei, Péter foi ao Rio de Janeiro em fevereiro de
1940, onde obteve um visto de turista para a Argentina. Aparentemente, ele já
havia abandonado a ideia de se estabelecer por lá. Assim, quando tomou o bar-
co em Santos com destino a Buenos Aires, seu objetivo era apenas o de resol-
ver uma questão burocrática: obter um visto permanente para ficar no Brasil.
E foi o que fez, com muita rapidez. Colocou os pés na capital argentina no dia
12 de março e, seis dias depois, conseguiu o visto de que precisava no consulado
brasileiro. No dia 31 do mesmo mês, já estava de volta a Santos, desembarcando
do navio Mormachawk. Agora ele estava livre para fazer o que tinha que ser fei-
to, para tomar as rédeas de seu destino. Dessa forma, no dia 10 de abril de 1940,
tendo pisado no Brasil há menos de seis meses, ele abriu sua primeira empresa,
a Péter Murányi, firma individual.

62 Sem Limite
Pouco depois de
chegar ao Brasil,
Péter se casou
com a jovem
Eva Courant

Eva com a filha do casal,


Eva Mônica, ao lado da avó,
Vilma, e da bisavó, Alma

Vilma, Péter e Mônica


Péter tinha um princípio de vida muito simples e muito democrático. Ele
dizia que “a inteligência é o bem mais bem distribuído na face da terra”. Exceto
se você não se alimentou bem quando era pequeno ou seu cérebro não se desen-
volveu como deveria, todos são igualmente inteligentes. “O que faz uma pessoa
tomar a decisão correta são as informações que ela dispõe.” Ou seja, a diferen-
ça entre sucesso e fracasso está na capacidade de coletar e processar correta-
mente os dados que estão à sua disposição. E foi isso que ele fez durante os seus
primeiros meses no Brasil.
Ele sabia que a industrialização de São Paulo estava relacionada a uma de-
manda do mercado interno que não era eficientemente suprida pelo comércio
internacional. Esse panorama tendia a se tornar ainda mais marcante com a
Guerra Mundial e as ações dos submarinos alemães contra as rotas comerciais.
Ele também sabia que, com a guerra, a indústria armamentista mundial preci-
saria de metais, o que resultaria no aumento dos preços dessas matérias-primas
e em restrições à aquisição desses produtos em países envolvidos com a guerra.
Por fim, quando há aumento da atividade industrial, também se aquece a de-
manda por embalagens. Isso tudo passou pela cabeça dele quando se deparou
com uma pilha de rejeitos metálicos saídos de uma fábrica da Nestlé.
A Nestlé, tradicional empresa suíça, abriu sua primeira fábrica no Bra-
sil em 1921. Na ocasião da chegada de Péter, ela já fabricava no Estado de São
Paulo vários produtos, tais como leite condensado, farinha láctea, e as marcas
“Nescau” e “Nestogeno”. Esses produtos vinham em latas, feitas pela própria em-
presa. Durante o processo de fabricação das latas maiores, fazia-se uma espécie
de argola, na boca da embalagem, para encaixar a tampa. Do meio dessa argola,
a indústria destacava um disco (também de lata) com 81 milímetros de diâme-
tro que, sem utilidade, virava sucata. Péter achava aquilo um desperdício, pois
era um material de boa qualidade, feito para embalar alimentos. Perguntando
aqui e acolá, ele descobriu que a fábrica estaria disposta a vender a ele aquela su-
cata por um décimo do valor da matéria-prima original. Ele aceitou e, mental-
mente, comemorou:
– Agora eu tenho muita matéria-prima e por 10% do seu custo!
Ao fazer a compra, ele já tinha um primeiro cliente encaminhado, que era
a fabricante do corante para tecidos “Guarany”. Correndo um grande risco, ele
conseguiu alugar um galpão na rua da Consolação e, raspando seus recursos,
comprou uma prensa de duas toneladas. Usando os discos da Nestlé, ele molda-

64 Sem Limite
va o fundo e a tampa da embalagem do corante. Além disso, ele desenvolveu, por
conta própria, uma máquina para fazer pequenos tubos de papelão, que compu-
nham o corpo do produto final. Essas embalagens, onde a tampa e o fundo são
de metal, separados por um corpo de papelão, eram chamadas de “fibralata”, ter-
mo que depois se tornaria marca da empresa. Anos depois, ele obteria também
uma patente de invenção do modelo de fibralata que ele desenvolveu.
Para despistar a todos, inclusive a própria Nestlé, sobre a origem de sua ma-
téria-prima, ele se valia de uma logística complexa. Contratava um primeiro
caminhoneiro que pegava a sucata na Nestlé e a descarregava em um local que
não tinha qualquer relação com sua empresa. Depois ele contratava um segun-
do caminhoneiro que passava nesse local e levava os discos de metal para a rua
da Consolação. Então, quando alguém da Nestlé perguntou ao primeiro cami-
nhoneiro “o que aquele maluco está fazendo com os nossos discos”, o motorista
respondeu que sinceramente não tinha a menor ideia...
Fazendo os dois carretos sucessivos, ele conseguiu, por certo tempo, man-
ter seu segredo industrial e entrar firme no mercado. Quando o segredo foi des-
vendado, o preço da sucata da Nestlé subiu bastante, mas ele então já dispunha
de bom estoque e capital razoável para seguir em frente.
Não seria essa a única vez que ele faria uso de sucata para obter matéria-pri-
ma boa e barata. Usando o mesmo raciocínio dos discos de 81 milímetros, ele
encontrou uma fábrica de arruelas que jogava no lixo o miolo de metal que so-
brava do processo de fabricação. Ao perceber ali uma oportunidade, pergun-
tou aos responsáveis pela empresa quanto cobrariam pela sucata. Eles respon-
deram que aquilo não tinha valor e que ele podia levar tudo de graça, desde que
desse uma gorjeta ao funcionário responsável pelo descarte dos resíduos. A essa
altura, ele já tinha entrado em contato com uma engarrafadora de refrigeran-
tes, pois percebeu que aqueles pequenos discos eram perfeitos para a fabricação
de tampinhas para garrafas. Dessa forma, ele conseguia a matéria-prima prati-
camente de graça e a vendia por quilo. Deu para ganhar um bom dinheiro, até
a engarrafadora descobrir a origem dos disquinhos de metal e passar a com-
prar diretamente da fabricante de arruelas. Um esquema semelhante ele mon-
tou para ajudar uma empresa da família Matarazzo, que estava com dificulda-
de para importar estanho.
Péter também usava retalhos de outras empresas de embalagem, quando do
processo de fabricação de latas estragavam algumas folhas de flandres no mo-

A vida de Péter Murányi 65


mento da litografia. Era a chamada “folha mala”, cujo nome deriva do espanhol,
“folha ruim”. Essas folhas metálicas, já pintadas com as marcas de uma deter-
minada empresa, não pareciam ter valor algum. Eram jogadas de lado. Mas para
Péter, muito antes de qualquer conceito ecológico, sempre era possível reciclar...
O que ele fazia? Ele estampava a parte já litografada para dentro, colocan-
do-a no fundo da embalagem que ele desejava produzir. Por fora, não se perce-
bia nada. Em uma lata de cera para pisos, por exemplo, o consumidor só se dava
conta quando raspava o fundo da embalagem e lá encontrava outras referências
impressas. Era reciclagem pura e por um custo ínfimo. É claro que ele, para fa-
zer isso, antes mandava uma amostra para o cliente aprovar, oferecendo sempre
um abatimento do preço. E assim, em uma velocidade inacreditável, a empresa
foi ganhando corpo. Logo Péter comprou o seu primeiro carro, mudou-se para
um apartamento na Avenida Vieira de Carvalho, próximo à Praça da Repúbli-
ca e conquistou o respeito de seus compatriotas.
Trabalhar era quase uma obsessão para aquele imigrante, que só descansa-
va aos domingos, quando muito. Para os seus primeiros empregados, era co-
mum vê-lo suado pela manhã, misturando os componentes da cola que usava
em suas embalagens, de maneira quase artesanal. Então, subitamente, troca-
va de roupa, apresentava-se elegantemente impecável e ia tratar com os bancos,
negociar com os clientes.
Aliás, quanto às vestimentas do dia a dia, ele tinha preferência pelos ternos
claros. Os escuros eram relegados às situações de muita solenidade, especial-
mente os enterros. Gravatas chegou a ter muitas, uma verdadeira coleção. E en-
quanto os homens usaram chapéus, ele também os teve. Mas só usava do mo-
delo “Panamá”. No pescoço, levava sempre uma correntinha de São Cristóvão
e, no bolso, embora não fumasse, guardava um isqueiro para acender o cigarro
das damas. Era mesmo um cavalheiro.
Em 1942, o galpão da Rua da Consolação já não conseguia mais atender a
suas necessidades. Assim, naquele ano, ele instalou a “Péter Murányi – Empre-
sa Industrial e Comercial” em um imóvel maior, localizado na Rua Rodrigues
dos Santos, número 491, bairro do Brás.
Embora a Segunda Guerra Mundial estivesse no seu ápice, com a entrada
dos Estados Unidos no ano anterior, Péter tratava a crise como uma oportu-
nidade. Em 1941 obteve um certificado de que a sua empresa não fazia comér-
cio com países inimigos da Grã-Bretanha e que, assim, tinha autorização para

66 Sem Limite
Mônica com cerca de dois anos de idade

Com o pai no Guarujá,


litoral de São Paulo
negociar com firmas britânicas. Tanto que ousou importar máquinas da empre-
sa Perkin & Company, sediada na Inglaterra, país frequentemente bombardeado
pela Alemanha. Também obteve autorização para importar folhas de flandres
dos Estados Unidos, dentro do limite de 420 toneladas imposto pelo esforço de
guerra norte-americano.
Em apenas dois anos à frente de sua empresa, Péter já mostrava boa parte da
ousadia que o tornaria conhecido, respeitado, mas também odiado por alguns.
Assim como o general cartaginês Hanibal, que ele tanto admirava por sua es-
tratégia audaz, Péter comandava seu empreendimento com sangue frio e visão
voltada para o futuro. Em poucos anos, ele acabaria captando clientes impor-
tantes, como as marcas de ceras “Parquetina” e “Colombina”, além de fabricar
as latinhas da pomada “Minâncora”, um sucesso para combater a acne nos ros-
tos dos jovens da época.
Nessa luta para chegar ao topo, o Brasil se apresentava como uma terra aco-
lhedora. Embora os brasileiros pudessem até fazer piadas dos estrangeiros que
ali chegavam, seguindo o temperamento irreverente da nação, não os impe-
diam de crescer e produzir riqueza. Mas, quando o Brasil se viu forçado a de-
clarar guerra contra a Alemanha, a Hungria também passou a ser uma inimiga.
As escolas húngaras instaladas no país sofreram restrições, assim como os clubes e
associações. O uso do idioma magiar, como o das demais nações do denomina-
do “Eixo”, passou a ser mal visto nas ruas e até proibido nas instituições de en-
sino. Alguns imigrantes eram até detidos para averiguação, tendo que passar
por tediosos e inúteis interrogatórios. Outros, tirando vantagem disso, usavam
falsas passagens pela delegacia para explicar às esposas suas inesperadas noi-
tadas fora de casa... Mas toda essa confusão, que também atingiu imigrantes
japoneses, alemães e italianos, era quase sempre sem maiores consequências.
O sr. Murányi seguia em frente.
O ano de 1945 foi marcado por altos e baixos emocionais. No dia 25 de
março, Péter se casou com Eva Courant, uma jovem de apenas 22 anos, “bo-
nita como uma artista de cinema” segundo muitos comentavam. Filha de
Edith Sander e do ilustre matemático Friedrich Courant, embora nascida
em Berlim, ela possuía nacionalidade italiana. A recepção, para familiares
e poucos amigos, foi realizada no Hotel Esplanada, um dos principais pon-
tos de encontro da alta sociedade da época, na Praça Ramos de Azevedo, ao
lado do Theatro Municipal de São Paulo. O matrimônio foi um sopro de ale-

68 Sem Limite
gria e leveza na vida agitada de Péter. Um momento em que ele se arriscou a
aproveitar um pouco os frutos do seu trabalho, velejando com ela, pratican-
do esportes, fazendo pequenas viagens.
Era um momento de otimismo para o mundo, que assistia à rápida decadên-
cia da Alemanha nazista após a derrota em Stalingrado e o desembarque dos
aliados na Itália e na Normandia. Até mesmo o Brasil vinha oferecendo o san-
gue de seus jovens para obter esse sucesso ao enviar 25 mil soldados para com-
bater na Itália. Péter, do jeito que podia, contribuiu para isso doando dinheiro
para que a Grã-Bretanha construísse aviões de caça. Por conta disso, ganhou até
um diploma da bem-humorada “Ordem do Fole”, que recolhia e repassava esses
recursos. Mais de 20 aviões foram adquiridos com a ajuda financeira dos “ma-
nipuladores do fole”. Além disso, ele doou recursos ao Comitê Britânico de So-
corro às Vítimas da Guerra e ao Fundo Patriótico Britânico de São Paulo. Porém,
quando Hitler se suicidou no dia 30 de abril, a comemoração geral não impediu
que o empresário sentisse uma grande apreensão. O que teria acontecido com
sua família na Hungria?
Os anos finais da guerra foram especialmente duros para os húngaros, prin-
cipalmente os de origem judaica. Até 1943, o Regente Horthy conseguira impe-
dir que os judeus húngaros fossem deportados para os campos de concentração
construídos pela Alemanha. Para não entrar em atrito direto com Hitler, ele afir-
mava que seria impossível retirar os judeus da vida econômica do país de um
ano para o outro, substituindo-os por pessoas incompetentes e indignas de con-
fiança, sem que isso levasse a Hungria à bancarrota. “Tal substituição”, escreveu
ele em 1941, “requereria o prazo de uma geração, no mínimo.” Mas, quando o
exército húngaro na Rússia sofreu uma derrota fragorosa, no final de 1942, Hi-
tler exigiu que os judeus húngaros fossem punidos. Para a lógica sanguinária do
líder nazista, os culpados pelo fracasso nas estepes russas eram os 800 mil ju-
deus que Horthy deixara em liberdade.
O Regente evitou mais uma vez as deportações em massa, mas ampliou o
uso dos judeus do sexo masculino em obras de infraestrutura, especialmente
destinadas ao esforço de guerra. Na prática, era trabalho escravo, puro e sim-
ples. Mas, ao menos, as famílias desses homens continuavam em casa, receben-
do suas parcas rações de comida.
Por conta disso, em janeiro de 1943, János Tivadar, o único irmão de Péter,
foi levado com outros milhares de judeus para construir valas e barreiras anti-

A vida de Péter Murányi 69


tanque, em um esforço dramático para tentar deter o vitorioso Exército Verme-
lho. Ele havia acabado de se casar com Martha, que ficou para trás. Durante
muito tempo, não se teria notícias dele.
Em 1944 as primeiras tropas soviéticas atravessaram a fronteira húngara, aju-
dadas pela Romênia, que rompera sua aliança com a Alemanha. Horthy tentou
negociar a paz e foi preso pelos nazistas.
Embora a guerra estivesse perdida, Hitler determinou que Budapeste
deveria ser defendida até o último homem. Isso fez com que a cidade, guar-
necida por 180 mil alemães e húngaros, fosse cercada no dia 26 de dezem-
bro por mais de 500 mil soldados soviéticos. Os combates que se seguiram
ocorreram em pleno inverno, sacrificando não apenas os combatentes das
duas facções, mas também as centenas de milhares de civis que ainda es-
tavam na cidade. A planície de Pest, onde ficava o quarteirão da família
Sterk, virou um verdadeiro campo de batalha, onde os soldados manobra-
vam entre os escombros dos prédios e usavam as galerias de esgoto para
atacar de surpresa seus oponentes. Os estoques de comida da cidade não
teriam como durar muito tempo. Os alemães tentaram por três vezes rom-
per o cerco dos soviéticos, mas foram derrotados. Então, no dia 13 de fe-
vereiro, após 45 dias de cerco, Budapeste se rendeu. Nesse meio tempo, 40
mil civis haviam perdido a vida.
Com o fim da guerra na Europa, as notícias da família foram chegan-
do pouco a pouco. Tia Yolanda havia conseguido fugir para os Estados
Unidos, logo no início da guerra. Tia Ilona, depois que os nazistas depu-
seram o Regente Horthy, havia sido deportada para um campo de concen-
tração, onde faleceu. János Ödön, o pai de Péter, havia sido mandado para
uma cidade do interior, estava pesando apenas 45 quilos, mas deveria se
recuperar. Passado mais algum tempo, Yolanda conseguiu, por meio de
um órgão do governo norte-americano, receber uma carta da mãe, dona
Alma. Ela dizia que a residência da família fora bombardeada durante o
cerco de Budapeste e ficara bastante danificada. Contava ainda que estava
bem de saúde, embora estivesse enxergando muito pouco. “Se fosse possí-
vel” – dizia ela em sua carta, – “é bom enviar-me algum recurso, pois a si-
tuação do país é precária.”
E János Tivadar? A guerra acabou, o ano de 1945 acabou, e não se sabia ao
certo o que havia acontecido com o irmão de Péter. Mas a grande probabilidade

70 Sem Limite
é a de que estivesse morto. Então, um dia a família recebeu uma carta escrita
por um certo Andor Falk. Datada de 15 de dezembro de 1945, começava com a
seguinte frase:

Caro Senhor, é com grande pesar que venho me


reportar para relatar o trágico desaparecimento
do seu irmão mais velho.

O remetente explicava que havia sido deportado ao mesmo tempo que Já-
nos, tendo juntos estado em vários locais diferentes, trabalhando muito ao ar li-
vre e com pouca comida. Apesar dos deslocamentos que foram forçados a fazer,
aparentemente nunca deixaram o território da Hungria. Durante aqueles pri-
meiros meses, a vida era dura, mas ainda suportável. Então, no dia 7 de dezem-
bro de 1944, foram colocados em um trem onde, após onze dias de idas e vin-
das, foram desembarcados na vila de Harka, perto da cidade de Sopron, quase
na fronteira com a Áustria. Ali, sob um frio de dez graus negativos, foram for-
çados a construir fortificações de campanha, das sete da manhã até as quatro
horas da tarde. A ração ficou ainda mais minguada, constituída por apenas 30
gramas de pão, meio litro de uma bebida escura que imitava café e três decili-
tros de cozido. Dormiam sobre a palha em uma espécie de galpão sem aqueci-
mento, onde o vento entrava pelas frestas das tábuas. Eram três mil pessoas vi-
vendo sob essas condições.
Em janeiro de 1945 – escreveu Falk – os dedos dos pés de János Tivadar con-
gelaram e gangrenaram. Não havia médicos para atender a ele e aos outros do-
entes, mas uma cirurgia improvisada foi feita assim mesmo. Ele, então, não ti-
nha mais como sair do galpão e foi minguando aos poucos. Em seguida, o campo
foi atingido por uma epidemia de tifo. Andor Falk continuou trabalhando, mas
vinha diariamente visitar o amigo até que, no dia 25 de março, János faleceu.
Assim, quando os russos finalmente chegaram ao acampamento de Harka,
János havia sido sepultado em uma vala comum apenas seis dias antes. Seus
ossos, até hoje, estão junto à pequena vila fronteiriça, aguardando para serem
transferidos para um memorial construído para os mártires de Harka, em um
cemitério de Budapeste.
O drama dos judeus ao longo da Segunda Guerra Mundial, quando milhões
sucumbiram à perseguição nazista, comoveu o mundo todo. Péter não podia

A vida de Péter Murányi 71


ser indiferente a isso, até mesmo pelo sofrimento de sua família e de sua própria
história pessoal. Então, quando o Estado de Israel foi criado, ele doou recursos
para aquisição de ambulâncias e a entidades beneficentes da jovem nação. Em
razão disso, em 1949, esteve pessoalmente com o deputado Menachem Begin,
personagem ímpar da história de Israel. Os desdobramentos desse encontro for-
mam uma história à parte.
Com o fim da guerra, os empreendimentos de Péter continuaram a se expan-
dir e ele foi construindo alianças com outros empresários, de modo sistemático,
seguindo estratégias por vezes agressivas. Entre as várias empresas de que par-
ticipou como sócio, estava a Austro-Brasil Intercâmbio Exportação & Importa-
ção Ltda., da qual saiu em 1949.
Em 1946, sua empresa mudou para a Rua Cruz Branca, n. 411, próxima à
Rua do Gasômetro. Foi ali que se deu um trágico incidente quando, na madru-
gada do dia 18 de outubro, assaltantes mataram um funcionário chamado Pedro
Alves Lima, arrombaram o cofre da companhia e levaram, além de dinheiro,
muitos documentos. Infelizmente, essa não seria a última tragédia a atingir a
empresa. Mas era preciso seguir adiante.
Se, por um lado, os negócios se ampliavam, por outro ângulo o sonho de ser
pai demorava um pouco mais para se concretizar. A primeira gestação de sua es-
posa não foi muito adiante, fazendo com que perdesse o primeiro filho, que de-
veria se chamar Clemente. Mas Eva logo engravidou novamente e, no dia 4 de
dezembro de 1948, deu à luz uma menininha, chamada Eva Mônica Murányi,
conhecida por todos apenas como “Mônica”. Seria ela uma das grandes alegrias
da vida do empresário. Tanto que, quando o casal se separou poucos anos de-
pois, Péter conseguiu convencer Eva a deixar a menina com ele. Mais tarde, Eva
casou-se com o amigo comum Ladislau Farkas, com quem constituiu família.
Então, em 1949, com a filha nos braços e vendo o quanto tinha conseguido
construir no Brasil, Péter sentiu-se definitivamente ligado à nação, que tão bem
o acolhera. Amava esta terra e tinha o desejo de contribuir para seu futuro. Mas,
principalmente, embora não conseguisse se livrar do sotaque carregado, consi-
derava-se um verdadeiro brasileiro. E foi então por um decreto do presidente
Eurico Gaspar Dutra que aquilo que era um sentimento ganhou concretude:
Péter recebeu a nacionalidade brasileira.
Muitos anos mais tarde ele diria para seu advogado, Braz Martins Neto, em
tom de amistosa provocação:

72 Sem Limite
– Dr. Braz, minha paixão por este país eu demonstrei no momento em que eu
escolhi ser seu cidadão. Assim, sou mais brasileiro do que você. Afinal, o senhor
aqui nasceu e não teve oportunidade, como eu, de adotar esta nacionalidade.

A vida de Péter Murányi 73


Capítulo 4
Tempos de conflito,
tempos de amor
Se você perder,
terá que jantar comigo.

76 Sem Limite
Z ilda Suelotto era uma menina feliz, apesar de ter perdido a mãe,
Olga, aos 13 anos. “Seu” Aurélio não quis se casar novamente,
pois insistia em dizer que “mãe é uma só”. Então Zilda, a caçula,
e sua irmã Lydia, foram criadas por Yvonne, a mais velha das três, e pela tia
materna Zilda e seu marido João, que moravam por perto. O irmão Cláu-
dio, o primogênito, bem mais velho que as moças, já estava casado e vivia
em outro lugar.
O imigrante italiano, que chegou ao Brasil ainda bebê, enfrentou outros de-
safios além da viuvez. Mas, de vitória em vitória, conseguiu montar uma peque-
na fábrica de chapéus, na Praça das Rosas (atual Marechal Deodoro), em São
Paulo. O público-alvo era formado pelas damas da cidade e o espaço da fábrica
era dividido com o sobrado onde a família morava e também eram vendidos os
chapéus de luxo criados por Aurélio. Quando havia o Grande Prêmio do Jockey
Clube, o homem trabalhava dia e noite para atender às demandas das madames
que vinham pessoalmente à Casa Suelotto.
Nas décadas de 1930 e 1940, época em que nem se podia imaginar a constru-
ção do “Minhocão” – como é conhecido o Elevado Presidente Costa e Silva, que
liga a Praça Roosevelt ao bairro de Perdizes –, a região da Praça das Rosas era
muito agradável e, no Carnaval, o corso de carros abertos, com suas batalhas de
confete e serpentina, fazia a curva bem em frente da casa de Zilda. Na verdade,
era uma São Paulo tranquila e romântica, onde a menina podia gozar de uma
infância ingênua. Tanto que acreditou em Papai Noel até os 10 anos, sem des-
confiar do fato de que seu tio sempre chegava para a ceia atrasado, logo depois
da saída do bom velhinho...
Após se formar no ginásio Minerva, a moça continuou a estudar e concluiu
o curso de Contabilidade na Escola de Comércio Brasil, que ficava na Rua São
Gabriel, bem próxima de sua casa.

A vida de Péter Murányi 77


Zilda começou a trabalhar em uma empresa de artigos para escritório, de-
pois passou um tempo no Liceu Vera Cruz, até chegar à União Jornalística Bra-
sileira, que produzia colunas publicadas nos meios de comunicação do interior
do Estado. Como ela era responsável pela contabilidade, sofria com o vício que
um dos sócios tinha: corridas de cavalo. Não era incomum ele, sem prevenir nin-
guém, retirar quantias da empresa para fazer suas apostas. E como ele não era
um homem de sorte, inexistia o salutar princípio de repor o que perdera. Zilda
então, no dia do pagamento, ao buscar o dinheiro, achava apenas um bilhetinho
no fundo do cofre, onde ele havia anotado o montante do saque. E ela que se vi-
rasse para resolver o problema.
Na União Jornalística, ela lutava em várias frentes, fazendo até o papel de re-
datora para as páginas femininas. Vez ou outra escrevia colunas sobre conselhos
de beleza e produzia receitas culinárias. Era divertido.
Um dos sócios tinha uma loja de móveis finos em uma esquina da Rua do
Arouche. Zilda também trabalhou um tempo lá e se espantava com alguns tru-
ques que o dono usava para se desfazer de peças muito feias e baratas.
– Nesta mesa daí, Zilda, você etiqueta um preço bem caro!
– Mas quem é que vai querer comprar? É muito feia!
– Por isso mesmo – respondia ele. – É uma coisa tão feia que quem compra
pensa que é uma nova moda no estrangeiro, um “sabe-se-lá-o-quê”. Já se eu co-
locar preço barato, ninguém compra.
No emprego seguinte, a Madeireira Bessa Fernandes, tanto o dono quanto o
chefe da fábrica confiavam muito no bom senso dela. Este último sempre vinha
com perguntas que fugiam à função da moça.
– Dona Zilda, chegou uma tora de caminhão, onde eu descarrego?
Ela colocava a mão na cabeça, sem acreditar que ele precisava dela para to-
mar tal decisão. Depois, respondia com outra pergunta:
– Qual é o primeiro serviço que o senhor fará com essa tora?
– Ah, vai passar pela desempenadeira.
– Então o senhor descarrega lá perto, claro.
Tal era a capacidade de trabalho da moça, que frequentemente recebia o di-
reito a gratificações especiais. Porém, a empresa não lhe pagava e o dinheiro dor-
mia lá, inscrito na contabilidade, correndo juros. Então, quando a família resol-
veu demolir a casa onde ela nascera, na Rua Bibi, para construir outra no mesmo
lugar, ela teve uma ideia. Usou o crédito que havia com o patrão para adquirir

78 Sem Limite
Zilda Suelotto

Zilda e amigos em uma festa no ano de 1942

Mônica e seu pastor alemão Prins na casa de Zilda, em 1957


madeira para a obra. Com isso obteve os tacos para o piso todo, além do telha-
do e das portas.
Para a obra, não contrataram engenheiro algum. Ela mesma tomava conta
dos operários e cuidava para que as madeiras fossem corretamente utilizadas e
não empenassem. Se precisasse do visto de um engenheiro, pedia a assinatura de
um amigo. No final, o madeiramento do telhado ficou perfeito, tacos bem ajus-
tados e com as portas cuidadosamente secas em estufa. A construção mereceu
muitos elogios, pois era digna de um engenheiro experiente.
Zilda era irrequieta e independente. Tirou a carteira de motorista em 1950,
quando muitas mulheres sequer pensavam nisso. Insatisfeita com a empresa Bes-
sa Fernandes, um dia resolveu comprar um exemplar do Diário Popular e dar
uma olhada nos anúncios de emprego. Risca daqui e circula de lá, viu que a Pé-
ter Murányi Indústria e Comércio S.A. estava procurando uma secretária para
o gerente da firma. A empresa ficava no Brás, muito longe de sua casa. Ainda
assim, encasquetou que iria tentar aquela vaga.
Quando entrou na fábrica, notou que o escritório do dono da firma era no
meio de um salão, fechado por uma cortina. Disseram a Zilda que se a lâmpa-
da vermelha sobre a porta da sala estivesse acesa, o patrão estaria em reunião
com alguém ou ocupado com alguma coisa e ninguém podia entrar. Nessas ho-
ras, os funcionários e os operários nem chegavam perto. E todo mundo falava:
– Ah, o senhor Péter... Ele é muito rígido!
E ela ficou curiosa em conhecer o tal sr. Péter, mas ele estava viajando. Aliás,
até na hora de viajar o empresário tinha procedimentos bem peculiares. Sendo
muito centralizador, ele ficava ansioso para saber como os problemas seriam re-
solvidos durante a sua ausência. Então, dias antes da viagem, ele aparecia na fá-
brica com a seguinte ordem:
– Hoje vamos fazer um ensaio. Façam como se eu não estivesse aqui, como
devem trabalhar quando não estou aqui. Quero ver como as coisas vão funcionar.
Zilda passou na entrevista de emprego sem problemas, pois tinha um currí-
culo excelente e logo começou a trabalhar com o tal gerente. Mas quando Péter
voltou da viagem, estava sem secretária e requisitou a nova funcionária. Polido,
porém seco, pediu que ela se sentasse e disse:
– Vou ditar uma carta.
– Mas eu não sou taquígrafa...
E ele, tentando controlar o sotaque carregado, retrucou:

80 Sem Limite
– Então, eu vou ditar devagarzinho...
E assim, ela acabou trabalhando diretamente para o temido sr. Péter e teve
que aprender a vencer alguns obstáculos. O primeiro era a barreira da língua.
Como ele nunca havia estudado português, era normal trocar o feminino pelo
masculino e vice-versa:
– O senhorra, por favor, pegue a envelope parra mim.
Embora tivesse dificuldade para pronunciar os ditongos, ele frequente-
mente começava uma conversa usando um tritongo misterioso e que ficou fa-
moso entre os funcionários. Era o “úia”, que seria o seu equivalente para o “olha”.
Então, ele podia dizer assim:
– Úia, eu não estou gostando nada desses númerros...
Algumas palavras ele simplesmente não conseguia pronunciar. Ibirapuera
ficava “Ibipuera” e cabia à Zilda fazer a “tradução” na hora de escrever. E isso
para não falar da caligrafia terrível, que nem ele compreendia e que a nova se-
cretária precisava se esforçar para compreender o contexto.
Por outro lado, ele não demorou a conquistar a admiração dela, pela enor-
me capacidade que demonstrava em tudo o que se metia a fazer. A brincadeira
de garoto, de fazer contas de cabeça, tinha virado habilidade de gente grande,
usada no dia a dia da fábrica. Mas ele não gostava de centavos nem de vírgulas.
– Vocês perdem muito tempo com esse negócio de vírgula – dizia ele, irritado.
E quando perguntava a um funcionário sobre o volume de produção, geral-
mente já sabia a resposta de cabeça e corrigia:
– Não é verdade, deu menos!
Com pouco mais de uma década de existência, a Péter Murányi Indústria e
Comércio S.A. alcançou uma posição de respeito no mercado. Seu carro-che-
fe, a embalagem no sistema fibralata, conquistou a confiança de clientes que, no
primeiro momento, temiam que a umidade pudesse atravessar o papelão. Mas a
engenhosidade do empresário foi vencendo os obstáculos técnicos, como acon-
teceu com as embalagens de sorvete, nas quais a impermeabilização do papelão
era garantida por uma camada de parafina. A falta de metal, principalmente an-
tes da construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), também ajudou
na consolidação do produto junto ao mercado.
Em 1952, a Péter Murányi já estava instalada em uma nova sede, na Rua Sam-
paio Moreira, 247, também no Brás. A princípio era um imóvel alugado, que seu
dono, sem fazer muitas obras estruturais, buscou adaptar à indústria. Havia o

A vida de Péter Murányi 81


térreo, onde ficavam todas as prensas maiores, além do almoxarifado. Uma das
prensas, a de litografia, era mais comprida que uma casa. Nela, a folha flandres
entrava branca e saia dourada.
Depois, a fábrica começou a ocupar o andar de cima, onde havia a recrava-
deira, responsável por fazer a junção do corpo da embalagem com o fundo ou
a tampa. Mais tarde, ainda na primeira metade da década de 1950, a empresa
conquistou o segundo andar da construção, onde foram instaladas a embala-
gem e a rotulagem. Pares e pares de mãos femininas colavam sem cessar cente-
nas e milhares de rótulos das marcas Johnson & Johnson, Gessy e Granado, en-
tre outras. Embora já prestasse serviço a várias empresas, seu primeiro cliente
realmente grande foi o talco Granado.
Esse sistema vertical, no entanto, atrapalhava bastante a logística e muitos
materiais e produtos acabavam subindo e descendo de elevador. Então, a so-
lução de expandir para cima esgotou-se rapidamente, mas, naquele momento,
não havia como comprar os terrenos vizinhos, que também pertenciam ao se-
nhorio de Péter e eram ocupados por casas que abrigavam pequenas empresas.
A maioria dos funcionários na linha de produção era formada por mulhe-
res, que cuidavam das rotulagens, da aplicação de parafina e de outras tarefas
em que o perfeccionismo feminino oferecia maior qualidade ao resultado final.
Péter considerava que fazer uma lata não era serviço pesado, mas, isso sim, a ma-
nipulação das peças acabadas era um serviço que envolvia higiene. Em geral, aos
homens cabia operar as prensas e realizar os trabalhos mais duros.
A funcionária Celina talvez fosse uma exceção, pelo respeito que conquis-
tou. Magrinha e de aparência frágil, comandava uma prensa giratória na estam-
paria, fabricando tampas de latas de talco. Era uma prensa muito rápida, capaz
de fazer três mil unidades por hora, com o acabamento final e os furinhos por
onde o pó deveria sair. Os formatos eram variados, podendo ser quadrado para
o talco Johnson ou redondo para o Palmolive. No mais, o sistema da embala-
gem era aquele que Péter tão bem adaptou às terras brasileiras: tubo de papelão
com fundo e tampa de metal.
No início, muita coisa era feita “no muque” dos robustos trabalhadores.
Os caminhões eram descarregados manualmente, diretamente na calha, puxan-
do-se as folhas de flandres, os rolos de papelão e os galões de produtos quími-
cos. A primeira empilhadeira trouxe esperanças à equipe, mas foi uma decepção.
A bateria não funcionava direito e descarregava durante a noite...

82 Sem Limite
Estabelecido como diretor
de sua própria empresa,
Péter logo progrediu em
sua nova pátria
Em 1954, a empresa tinha apenas dois caminhões pequenos, logo reforça-
dos por outros dois.
Nessa fase, Péter ainda ia à fábrica quase todos os dias. Quando resolvia fa-
zer a ronda pelas instalações cumprimentava todo mundo, mas não conversava
muito. Se ele visse alguma coisa errada, buscava corrigir imediatamente. Ele de-
testava quando os problemas eram escondidos dele, mas, por outro lado, estimu-
lava os funcionários a encontrar uma solução. Ele dava prazo para resolver e di-
zia: “Se você não conseguir resolver, peça ajuda para José que ele entende disto”.
Quando alguma máquina enguiçava na sua presença, ou se o empregado
não sabia fazer a operação corretamente, ele colocava um macacão e ia lá mos-
trar como se fazia. Conhecia todos os detalhes de cada fase da produção e do
funcionamento de cada máquina. Assim, não exigia de seus funcionários coi-
sas impossíveis.
Mas Péter não se limitava à fabricação de embalagens, pois estava sempre
atento às outras oportunidades de mercado. Na Rua do Gasômetro, por exem-
plo, ele mantinha uma firma cujo objetivo era fazer a representação de uma fá-
brica alemã que produzia certas espécies de tela usadas na produção de papel.
Em outra atividade, ele costumava usar capital próprio para comprar insu-
mos, quando estavam com preço baixo. Armazenava-os em grande quantidade
para uso próprio ou, quando o preço subia muito, colocava-os à venda com am-
pla margem de lucro. Então, era muito normal se deparar com anúncios de jor-
nal em que a fábrica de Péter oferecia, “pelos melhores preços da praça”, sulfato
de sódio, barrilha, bórax, soda cáustica (em escamas e fundidas), breu K Vivo,
sulfato de alumínio, tenite, potassa cáustica, dióxido de titânio, entre outros in-
sumos. O bórax, por exemplo, era um produto que podia ser misturado à cola
para acelerar a pega do material.
Ao mesmo tempo em que as atividades empresariais de Péter iam se diver-
sificando, ele cedia à tentação de se aventurar por outras áreas. Ele, claramen-
te, se preocupava com o país de adoção e se sentia obrigado a influenciar de al-
guma forma seu destino, fosse nas áreas do Comércio Exterior, da Educação ou
até do Urbanismo.
Durante o governo do presidente Marechal Eurico Gaspar Dutra (1946-1951),
Péter acabou sendo nomeado conselheiro do Ministério de Relações Exteriores,
com a missão de estudar as possibilidades econômicas brasileiras no Caribe. Um
dos frutos desse trabalho veio em 1950, quando foi nomeado Cônsul Honorário

84 Sem Limite
pelo Governo da República Dominicana, para tratar de assuntos daquele país no
porto de Santos, sempre com o objetivo de desenvolver o intercâmbio entre as
duas nações. Nessa primeira fase, ele instalou o consulado em um apartamen-
to que possuía no Guarujá.
Como Cônsul Honorário da República Dominicana, este era o título, ele con-
seguiu intensificar a exportação nacional para aquele país, que se tornou, à épo-
ca, o maior comprador dos produtos industriais brasileiros na América Central.
Para tanto, ajudou a implementar uma linha de navegação ligando Santos a São
Domingos, pelo Loyd Brasileiro.
Graças à sua capacidade de se dedicar a várias tarefas ao mesmo tempo e
ao fato de que muitas delas tinham desdobramentos de interesse social amplo,
Péter logo começou a receber as primeiras de muitas condecorações e homena-
gens. Assim, em 1955, foi agraciado pelo Ministro das Relações Exteriores do
Brasil com a Comenda “Imperatriz Leopoldina” e, em 1958, com a Comenda
“Anchieta” pela Prefeitura do Distrito Federal, então Rio de Janeiro.
Contudo, ao assumir tantas responsabilidades, Péter já não conseguia mais ir
à fábrica com tanta frequência. Ele precisava desenvolver um sistema de gestão a
distância, mas, claro, que lhe permitisse manter a eficiência dos seus negócios e da
sua vida pessoal. Nesse caso, a secretária Zilda Suelotto parecia ser uma impor-
tante solução. A moça era muito competente e tinha se adaptado bem ao estilo de
Péter. Já fazia algum tempo que ela o ajudava também em questões particulares.
Além de ser a secretária da firma, Zilda também resolvia problemas os mais
variados. Péter tinha uma casa de campo com piscina, na charmosa Riviera Pau-
lista, na represa de Guarapiranga, em uma época em que essa região ainda fica-
va apartada da metrópole, no extremo sul da capital. Era a moça que, então di-
rigindo o Buick conversível vermelho de Péter, de tempos em tempos, ia conferir
a rotina dos empregados e o estado do imóvel. Nessas idas, ela ainda aproveita-
va para passar por uma chácara que, sem usar agrotóxicos, produzia belíssimas
verduras que Péter gostava de comer, pois acreditava que o ajudavam a comba-
ter as amebas, mal que tanto o incomodava.
Nesse ritmo, não demorou muito para que a secretária se aproximasse da fi-
lha de Péter. A pequena Mônica, por vezes, ia para a empresa com o pai e acaba-
va ficando com Zilda no escritório. Ela gostava de desenhar, mas também que-
ria passear pela fábrica. A secretária, preocupada com a segurança dela, ia junto
e foram se tornando amigas. Era Zilda, ainda, quem supervisionava a governan-

A vida de Péter Murányi 85


ta que cuidava da menina e, depois de certo tempo, passou a levá-la para as aulas
na hípica. Aos 9 anos, Mônica já era apaixonada por cavalos e gostava de montar.
Então veio a história do cachorro... A menina, que morava com um pai que
estava sempre trabalhando, tinha o sonho de ter um animal de estimação. Mas
Péter resistia, alegando que eles moravam em um apartamento, que não daria
certo. À medida que a menina insistia, ele dava sinais de que ia acabar cedendo,
mas impôs uma condição:
— Úia... Para ter cachorro, precisa merrecer o cachorro. Se você tirar boas no-
tas no colégio eu te dou a cabeça do cachorro. Se você for boazinha em casa, eu
vou te dar as patinhas... Aí, quando completar o corpo todo, eu te dou o cachorro.
E assim foi. Só que Péter não queria o cachorro no apartamento da Aveni-
da Vieira de Carvalho e, ante o impasse, o animal acabou indo para a casa de
Zilda. E ela, dona de um jardim comprido, com flores em todos os lugares, acei-
tou, conformada quando o arteiro filhote de pastor alemão amassou tudo.
Para matar as saudades do cachorro, Mônica o visitava na companhia da go-
vernanta. Em pouco tempo, Péter passou a levar a menina à casa de Zilda, princi-
palmente aos domingos. O empresário e a secretária se tornaram amigos. Dentro
da empresa era só trabalho, mas, do lado de fora, ele era extremamente atencioso
com ela. E Péter gostava de seu Aurélio, com quem costumava jogar damas, en-
quanto a filha brincava com o cachorro. A família de Zilda suspeitava que algo
mais poderia surgir dali, assim sempre alertava a moça sobre o estigma de ele
ser desquitado, além de ter uma filha.
Eles passavam muito tempo juntos. Por vezes, ficavam na fábrica até bem
tarde e, se ele estivesse sem o motorista, ela o levava em casa de carro. Mas
Zilda não tinha pensamentos românticos. Além da admiração por ele, ficava fe-
liz apenas pela amizade e pela confiança cada vez maiores que Péter demonstra-
va ter por ela. Tanto que acabou se tornando uma das procuradoras da fábrica e
de outras empresas dele, como a Rezende e a Fibral.
Então, quando Zilda estava para completar quatro anos de empresa, Péter
decidiu que não queria mais viver em um apartamento. Pediu que ela o ajudas-
se a encontrar uma boa casa, com um terreno amplo. Com a dedicação de sem-
pre, ela assumiu mais essa missão. Depois de visitar vários imóveis, encontrou
na Rua Antonina, na parte alta do Sumaré, um casarão de arquitetura moder-
na que atendia às características procuradas por Péter. Era uma ampla residên-
cia de dois andares, com telhado de duas águas, no topo de um imenso terreno

86 Sem Limite
A Péter Murányi Indústria e Comércio S/A se tornou
muito conhecida por suas carretas, que trafegavam
principalmente entre São Paulo e Rio de Janeiro

A residência da família, na Rua Antonina,


logo ficou conhecida como a “Casa do Relógio”
irregular coberto por gramados, árvores e canteiros de flores. Além da piscina,
o imóvel era favorecido pela paisagem belíssima, oferecendo uma visão da copa
das árvores do bairro, entremeada por pedaços da cidade ao longe. A rua sinu-
osa e em declive parecia ser tranquila e silenciosa. O empresário se interessou e
o negócio foi fechado.
Em 1955, Zilda e Péter não faziam a menor ideia, mas a “casa do Sumaré” te-
ria uma enorme influência na vida de ambos. Naquele momento, entretanto, a
preocupação do industrial estava em ajustá-la às necessidades e ao estilo dele.
Para isso, mais uma vez pediu a opinião e a ajuda de sua secretária.
A casa entrou em obras e os dois iam discutindo as mudanças a serem feitas,
como a remoção de um mezanino ou o que fazer com a lareira e o sistema de
aquecimento. O detalhe mais marcante, que levaria a casa a se destacar de todas
as outras, partiu de uma ideia de Péter. Ele mandou colocar na fachada, voltado
para a rua, um enorme relógio de sol.
– É muito comum encontrar relógios de sol na Hungria e na Europa – justi-
ficou ele. – Acho que falta algo parecido em São Paulo.
Péter então contratou especialistas em astronomia para o desenho das horas
e a colocação da haste que produz a sombra dos raios solares. Para dar o deta-
lhe final, ele chamou um artista polonês para esculpir os signos do zodíaco na
parte superior do relógio. Por conta disso, no Sumaré, logo batizaram a residên-
cia de “Casa do Relógio”, atraindo casais de namorados e estudantes, que gos-
tavam de passear pela bucólica região e admirar a edificação. O mesmo artista
também gravou, na parede externa do salão de festas, desenhos que represen-
tam brincadeiras na piscina.
Vivendo no Sumaré, Péter reorganizou sua rotina. Trabalhava até de ma-
drugada, examinando e despachando papéis. Ainda assim, levantava cedo e
ficava recluso em seu quarto, no segundo andar. Nesse espaço, ele gostava de
ler o jornal inteiro, depois ligava para a Bolsa de Valores, informando-se so-
bre o câmbio, e para a fábrica, a fim de transmitir as instruções do dia para
cada um dos gerentes.
Sua maneira de controlar a empresa foi evoluindo com o tempo, ganhando
sofisticação. Mas, desde o início, ele tinha a mania de anotar tudo o que fosse
importante, fazendo um mapa de controle. Trazia no bolso uma lista de pendên-
cias, para checagem constante. Quando precisava falar com o chefe da ferramen-
taria, já incluía na conversa todas as cobranças que havia identificado nos dias

88 Sem Limite
anteriores e sobre as quais buscava notícias. Era assim com a fábrica, o consula-
do, os advogados e, mais tarde, com a família.
Feitas todas essas coisas, ele saía do quarto quase uma hora da tarde e só de-
pois do almoço é que ele ia para a fábrica – a não ser que tivesse um problema
urgente. Na fábrica, passava revista em tudo, dava os encaminhamentos a serem
seguidos e obrigava os chefes de cada setor a entregar, no final do dia, um re-
latório sucinto da situação geral. Essa era a parte mais difícil, pois os operários
não gostavam de redigir os tais “avisos” do sr. Péter. Sobrava então para Zilda,
que tinha que cobrar de cada um. Aliás, na ausência do chefe, era ela quem de-
veria impor a vontade dele. Mesmo sendo uma mulher às voltas com operários
com mentalidade machista que imperava na década de 1950, rapidamente con-
quistou o respeito de todos.
Enquanto os negócios progrediam em São Paulo, notícias ruins chegavam
da Hungria. O país vinha passando por grandes transformações, desde o dia
em que a União Soviética expulsou as tropas alemãs e derrubou os fascistas
húngaros que tomaram conta do governo após a prisão do Regente Horthy.
Por alguns dias, as tropas russas foram recebidas com festa em meio às ruas
ainda entupidas de escombros e carcaças de veículos militares. Porém, logo
os húngaros perceberam que seriam tratados como inimigos conquistados.
As casas foram saqueadas pelos soldados, que também estupraram milha-
res de mulheres. O historiador Victor Sebestyen conta que, para muitos hún-
garos, a primeira frase aprendida no idioma russo foi “davai tchassey” (algo
como “dá o seu relógio”).
Pelo acordo feito com os aliados ao final da guerra, a Hungria deveria for-
mar um novo governo pelas vias democráticas, mas teria que tolerar a ocupa-
ção militar soviética. Ocorre que Josef Stalin, o homem que governava a União
Soviética desde 1922, tinha o plano de, manobrando por todos os meios, man-
ter a Hungria permanentemente no bloco socialista. Assim, nem a fraca vota-
ção recebida pelos comunistas húngaros pôde inibir a pressão silenciosa dos 75
mil soldados soviéticos espalhados pela planície magiar.
Após um breve ensaio democrático, um jogo de ameaças e fraudes transfor-
mou o país em uma réplica em miniatura do Estado stalinista. Do ponto de vis-
ta econômico, isso levou à rápida e desastrosa reforma agrária que transformou
a outrora abundante planície em uma terra de fome. O antigo celeiro do Impé-
rio Austro-Húngaro precisou se render ao rigoroso racionamento de comida no

A vida de Péter Murányi 89


início dos anos 1950. Todas as empresas com mais de dez funcionários foram na-
cionalizadas. Além disso, as liberdades foram rapidamente cassadas.
O cardeal József Mindszenty, principal dirigente da Igreja Católica, foi con-
denado à prisão perpétua após reconhecer, sob tortura, que era um monarquis-
ta e que pedira ajuda aos norte-americanos para derrubar a República. O bispo
da Igreja Ortodoxa foi condenado a 20 anos de prisão. Processos como esse se
tornaram cada vez mais comuns, atingindo até personalidades famosas do pró-
prio Partido Comunista. O ministro do Interior, o comunista Sándor Zöld, ao
perceber que seria preso por traição e conhecendo muito bem a brutalidade que
o aguardava, matou os filhos e a esposa e, depois, suicidou-se.
A comunidade húngara no Brasil estava ciente desses lamentáveis aconteci-
mentos, pois já vinha acolhendo, desde 1948, os primeiros refugiados do comu-
nismo. Foi o caso de István, entrevistado pela psicóloga Judith Vero para seu li-
vro Alma Estrangeira, que contou como havia conseguido duramente reerguer
sua vida após a Segunda Guerra Mundial, fabricando e vendendo embutidos.
Um dia, ao chegar à firma, encontrou um militar russo que lhe explicou que
sua empresa havia sido expropriada, mas que ele poderia continuar trabalhan-
do ali. Ele preferiu ir embora do país com a família, mas, para isso, teve que cor-
romper os guardas da fronteira.
Mesmo nesse cenário paranoico, János Ödön, o pai de Péter Murányi deve-
ria ter sido visto como um idoso inofensivo, já contando com mais de 70 anos.
Ainda assim, por volta de 1952, foi deportado para uma vila do interior com ou-
tros patriotas. Talvez seja apenas coincidência, mas foi na mesma época em que
o homem forte do país, Mátyás Rákosi, começou a perseguir os judeus, que ele
chamava de “cosmopolitas sem raiz”.
Com a morte de Stalin, em 1953, a Hungria experimentou um período de quase
dois anos de abrandamento do regime, sob o comando do comunista Imre Nagy,
que libertou 150 mil presos políticos, antes de ser retirado do poder pela corrente
“rakosista”. Foi em 1955, ao final dessa curta fase do governo Nagy, que Pé-
ter conseguiu autorização para que seu pai deixasse a Hungria e viesse para o
Brasil no ano seguinte. Isso o tranquilizou bastante, principalmente porque já ti-
nha conseguido fazer o mesmo por sua avó Alma, que veio para o Brasil em 1946.
János, porém, detestou a nova pátria do filho. Para ele, era um país de silví-
colas. Ele reclamava, por exemplo, que o motorista do táxi não abria a porta do
carro para ele. Percebeu também, indignado, que os homens não tiravam os cha-

90 Sem Limite
Casamento Zilda e Péter realizado
no dia 19 de setembro de 1959

O casal em lua de mel

Mônica e o pai na hípica:


a paixão por cavalos

A afinidade entre Mônica


e Zilda foi imediata
péus para cumprimentar as mulheres. Em suma, os brasileiros eram uns mal-edu-
cados. E havia também a saudade da Hungria, para onde não podia voltar. De-
pois de muita confusão, chegou-se ao meio-termo, e Péter o ajudou a se instalar
em Viena, cidade que ainda guardava o charme e a liberdade do Império morto.
Em 1956, uma nova reviravolta política ocorreu na Hungria. O odiado Rákosi
mais uma vez se afastou da vida política, e o popular Imre Nagy foi reabilitado e
autorizado a voltar para o seio do Partido Comunista, em uma função de destaque.
Ernest Gerö, o novo chefe do Partido, embora fosse um membro da “linha dura”,
reviu algumas ações de Rákosi, como meio de apaziguar os ânimos. Mas o povo
interpretou esses sinais com exagerado otimismo e logo tudo saiu do controle.
A partir do dia 19 de outubro, os estudantes das principais cidades do país
começaram a formar associações independentes, fora da estrutura do Partido.
Mais importante do que isso, os estudantes de Budapeste redigiram um mani-
festo organizado em 14 reivindicações. Nele exigiam a volta de Imre Nagy ao po-
der, a retirada de todas as tropas soviéticas do país e a liberdade de imprensa e de
criação artística, além de eleições livres, secretas e pluripartidárias.
No dia 23 do mesmo mês, houve uma grande manifestação em Budapeste
e os estudantes, postados diante da estação oficial de rádio, exigiram que suas
reivindicações fossem anunciadas para todo o país. Perante isso, os agentes da
ÁVO, a polícia política do Partido, reagiram a tiros. Era o sinal para a manifes-
tação se transformar em revolução, apoiada por soldados do Exército, que dis-
tribuíram armas para a população. Imre Nagy apareceu diante do Parlamento,
foi ovacionado pelo povo, mas demorou para perceber o que realmente estava
acontecendo. A maioria não se contentava mais com um abrandamento do re-
gime comunista e clamava por sua derrubada. Da bandeira tricolor, os manifes-
tantes cortaram fora o emblema redondo do Partido.
O dirigente Ernest Gerö, pelo rádio, atacou aqueles que buscavam “romper os
laços entre o nosso Partido e o Partido Comunista da União Soviética”. Ao mes-
mo tempo, por outras vias, pediu a ajuda militar dos soviéticos. Logo em segui-
da, sentindo-se incapaz de administrar aquela crise, entregou a chefia do parti-
do a János Kádar, um homem de passado controverso, que reunia tanto o dom
da coragem quanto o estigma da traição.
Começaram ferozes combates pelas ruas de Budapeste, enquanto comitês de
resistência aos soviéticos eram organizados em várias cidades. Foi uma revolu-
ção extremamente desorganizada. Não existiam líderes nacionais nem planos.

92 Sem Limite
Os rebeldes estavam mal armados e o coquetel molotov era o que tinham de mais
eficiente para deter os tanques russos que entraram na cidade no dia 24 de ou-
tubro de 1956. Centenas de adolescentes, alguns até com apenas 12 anos, par-
ticiparam do levante ombro a ombro com os adultos. Muitos deles morreram.
Os combates ao redor do Cinema Corvin foram épicos. Na praça Széna, um
caminhoneiro de 59 anos virou lenda da noite para o dia. “Tio Szabó”, como fi-
cou conhecido, desenvolveu métodos engenhosos para emboscar os tanques rus-
sos e chegou a comandar 500 homens em uma forte posição defensiva.
Conforme a revolução se alastrava pelo país, milhares de presos políti-
cos foram soltos, incluindo o cardeal József Mindszenty. Este então retornou a
Budapeste em 31 de outubro, recebendo uma acolhida triunfal. No mesmo dia,
Imre Nagy fez um discurso ao vivo pela Rádio Kossuth Livre, quando afirmou
que o país vivia os primeiros dias de sua soberania e que estava negociando a re-
tirada das tropas russas do país.
A realidade, porém, era outra. As tropas soviéticas, em lugar de se retirarem,
estavam sendo reforçadas.
Os Estados Unidos haviam, durante anos, oferecido apoio moral aos magia-
res através da Rádio Europa Livre (REL), que, clandestinamente, era ouvida em
toda a Hungria. Porém, quando o povo húngaro, por fim, conseguiu se levan-
tar contra a presença soviética, descobriu que o Ocidente não estava preparado
para ajudá-lo de maneira decisiva. Afinal, grandes atritos com a União Soviéti-
ca poderiam empurrar o mundo para uma terceira Grande Guerra.
Péter estava atento ao desenrolar dos fatos e não era o tipo de homem capaz
de ficar passivo diante daquela situação. Logo redigiu um manifesto, onde pe-
dia ajuda financeira e material ao povo húngaro. Depois, com ele em mãos, foi
ao escritório paulista da Cruz Vermelha Brasileira e à redação dos principais jor-
nais paulistas. O texto acabou sendo publicado com destaque em O Estado de S.
Paulo do dia 2 de novembro, assim como nos jornais Diário de São Paulo e Fo-
lha da Manhã. Dizia o seguinte:

Apelo aos húngaros, aos amigos da Hungria, à opinião


pública em geral e às autoridades brasileiras:

A vida de Péter Murányi 93


Todos nós acompanhamos com viva emoção o movimen-
to emancipador do heroico povo da Hungria. O sangue
tão patrioticamente derramado conquistou a admiração
universal, dando aos intrépidos húngaros a força moral
– pois a física lhes faltava – para sacudirem o jugo dos
ocupantes tão duramente suportado por longos anos.

Tendo adquirido a nacionalidade brasileira e amando


vivamente a terra adotiva que é a terra natal da minha
querida filha, conservo, entretanto, entranhado o meu
amor pela martirizada Hungria onde nasci e, assim,
não posso silenciar neste momento histórico.

Desejo apelar a todos para se unirem num movimen-


to apolítico e sem distinção de religião, numa coleta de
fundos que deverá ser enviada por intermédio da Cruz
Vermelha da Suíça à Hungria, a fim de amenizar o so-
frimento dos feridos, viúvas e órfãos, prestando tam-
bém uma homenagem aos mortos que se sacrificaram
para que o povo húngaro alcance o direito de escolher
o destino que seus próprios filhos desejam para a Pá-
tria amada.

A Cruz Vermelha Brasileira gentilmente se prontificou


para organizar esse socorro urgente e providenciará a
remessa do mesmo à Hungria. Peço a benção de Deus
aos que corresponderem ao meu apelo para diminuir o
sofrimento de um povo martirizado.

Cinco dias depois o apelo foi igualmente publicado no jornal A Gazeta, após
solicitação feita pessoalmente pelo empresário em visita à redação do diário.

94 Sem Limite
O documento teve grande repercussão e recebeu o apoio do Ministério das Rela-
ções Exteriores do Brasil. Mas, naquele momento, o otimismo quanto ao futuro da
Hungria começava a ser esmagado sob o peso das lagartas dos tanques soviéticos.
No início de novembro, novas tropas soviéticas entraram na Hungria, ocu-
pando posições estratégicas, ao mesmo tempo em que fechavam a fronteira com
a Áustria. Imre Nagy tentava ganhar tempo em negociações, enquanto nomeava
homens de confiança para preparar a defesa da capital. No dia 4 de novembro,
pela manhã, canhões e aviões soviéticos iniciaram o bombardeio de Budapeste.
A maior parte da cidade foi tomada de assalto nas primeiras 48 horas. No dia 7
de novembro, János Kádár, o novo fantoche soviético, entrou na cidade protegi-
do por blindados russos. No dia 13, os últimos combatentes da liberdade foram
mortos ou capturados. Budapeste, mais uma vez, estava coberta de escombros e
corpos insepultos, sob as lágrimas de seu povo.
O fracasso heroico não diminuiu a energia contagiante de Péter Murányi, que
continuou fazendo campanha por mais donativos para as dezenas de milhares
de refugiados, dentro e fora da Hungria. Mas, pedia sempre que os recursos fos-
sem distribuídos pelo escritório da Cruz Vermelha Suíça. Ele desconfiava que a
Cruz Vermelha Húngara, infiltrada pelo governo local, poderia usar as contri-
buições para fazer propaganda do Partido.
No dia 20 de novembro, o jornal O Estado de S. Paulo informava que os do-
nativos recolhidos no país haviam alcançado o montante de Cr$ 477.995,00. Des-
se total, Cr$ 70.000,00 tinham sido doados por Péter Murányi, Cr$ 25.000,00
pela General Motors do Brasil, além de quantias expressivas de outras empre-
sas, como a Klabin Irmãos & Cia e a Geigy do Brasil S.A. Após essa data, outros
donativos foram feitos.
Péter, contudo, sabia que esse dinheiro teria pouco efeito sobre a vida dos mi-
lhares de húngaros que, tendo lutado pela liberdade, não poderiam mais voltar
às casas. A história recente da Hungria mostrava que o Partido seria inclemen-
te com os dissidentes que não conseguiram fugir. A forca foi o destino não ape-
nas do “Tio” Szabó, mas também de muitos outros, como o desconhecido Péter
Mansfeld, que, com apenas 15 anos, enfrentou o exército russo. Assim, o empre-
sário brasileiro sentiu que ainda não havia feito o bastante. Péter desejava que
pelo menos uma parcela dos refugiados pudesse ter um futuro de paz no Brasil.
Em 1956, o ministro das Relações Exteriores do Brasil era o conceituado
Embaixador José Carlos Macedo Soares, irmão do prof. José Paulo, um dos di-

A vida de Péter Murányi 95


retores da fábrica. Foi por meio dele, depois de vencido pela insistência e pelos
argumentos de Péter, que o governo aceitou acolher três mil refugiados húnga-
ros estacionados na Áustria e na Iugoslávia.
A Revolução de 1956 foi para Péter um breve momento de contato com a
colônia húngara de São Paulo, da qual ele havia se distanciado. Existia nele cer-
to trauma ou mágoa por ter sido praticamente obrigado a abandonar sua pátria
de origem. Antes por ser de sangue judeu e, depois de 1945, por ser um empre-
endedor, um homem de negócios. Mas quando o verdadeiro espírito húngaro
tomou as ruas de Budapeste, ele se uniu aos seus para fazer o que fosse possível
pela redenção da pátria magiar.
A ajuda aos húngaros foi um dos poucos projetos de que Zilda não partici-
pou. Ainda assim, o empresário e a secretária estavam cada vez mais próximos,
em que pese um recuo respeitoso da parte dele para preservá-la da maldade dos
comentários de terceiros.
Um dia Péter e Zilda discordaram sobre um assunto trivial: qual a estrada
que se devia tomar para ir ao Butantã. Ele insistia que era uma e ela jurava que
era outra. Como os dois eram muito teimosos e não havia, naquele momento,
como saber quem tinha razão, Péter acabou dizendo:
– Então vamos fazer uma aposta. Se você perder, você terá que jantar comigo.
Zilda ficou surpresa, mas aceitou. E, no final das contas, não é que ele esta-
va certo e ela teve que “pagar” a aposta? Ele então, com o cavalheirismo de sem-
pre, a levou ao restaurante “Bambu” – de propriedade de Felice e Maria Ferrari,
pais do respeitado restauranter e chef Mássimo –, que, à época, era uma refe-
rência da alta gastronomia na cidade de São Paulo. Mas foi um jantar entre ami-
gos, bastante respeitoso. No dia seguinte, no trabalho, voltaram a ser apenas o
chefe e a funcionária.
A década representou uma fase de grande crescimento da empresa. Em
1958, a Péter Murányi Indústria e Comércio S.A. precisava trabalhar em
três turnos para cumprir os contratos. Havia uma turma das 6 às 14h, outra
das 14 às 22h, e mais uma das 22 às 6h. Aos sábados também se trabalhava.
A embalagem mais produzida era, então, a do fermento Royal, para o cliente
Fleischman. Para que as máquinas não parassem mais que o necessário, a em-
presa tinha uma equipe de manutenção de uma dúzia de homens, que incluía
mecânicos, ajustadores, torneiro, soldador, plainador e fresador. Mas o papel
deles não se resumia às suas respectivas funções. Cabia-lhes também encon-

96 Sem Limite
trar novas soluções técnicas para atender ao desejo dos clientes, assim como
aumentar a eficiência da fábrica.
O empresário era bastante rígido com seus funcionários, capaz de fazer exi-
gências que, vistas de fora, até pareciam fugir à lógica. Determinava, por exem-
plo, que o menino de entregas da empresa deveria sair sempre com o guarda-
-chuva, mesmo que estivesse fazendo sol. Também não admitia o namoro entre
seus funcionários, pois, em sua visão, namorados tendiam a esconder os erros
uns dos outros, o que gerava ineficiência e até acidentes. Por outro lado, sabia da
importância e do valor pessoal de sua equipe. Desejava, ardentemente, que pro-
gredissem e tivessem uma vida melhor. Uma das muitas iniciativas que tomou
nesse sentido foi na área da proteção à saúde dos empregados do setor papeleiro.
Naquele período, o serviço de saúde pública no Brasil oferecia uma cobertu-
ra bastante restrita aos trabalhadores e não existiam planos privados de saúde.
O mais próximo disso era a assistência oferecida por empresas do setor público
aos seus empregados. As indústrias automobilísticas talvez tenham sido as pri-
meiras do setor privado a criar sistemas assistenciais para os funcionários. Péter
foi, portanto, um dos pioneiros no sentido de incentivar o setor privado a criar
um hospital voltado a uma categoria de trabalhadores.
Entrando em contato com outras empresas que trabalhavam com artefatos
de papel e papelão, Péter difundiu a ideia de criar o Hospital do Sepaco,1 garan-
tindo assistência médica gratuita aos trabalhadores da classe e às suas famílias.
Para tanto, os empresários destinariam o equivalente a 1,5% de sua folha de pa-
gamento para a manutenção dessa organização. O hospital foi fundado em 20 de
setembro de 1956 e, em meados da década de 1960, já atendia a cerca de 30 mil
famílias. Foi um alívio enorme para aquelas pessoas, levando uma de suas fun-
cionárias, dona Josephina Penha Giglio, a dizer anos mais tarde:
– O sr. Péter estava do outro lado, deveria estar brigando pelos empresários.
Mas ele brigava muito, muito mesmo, pelos funcionários.
O Hospital do Sepaco funciona até hoje, contando com 181 leitos. Atualmen-
te, aceita também credenciados de planos de saúde, mas parece manter o mes-
mo espírito humanitário daquele que o ajudou a surgir.
Em meio a tanto trabalho, tantos projetos ocupando a mente de Péter, Zilda
acabava assumindo uma grande presença na vida de Mônica. Era visível o carinho

1 Serviço Social da Indústria do Papel, Papelão e Cortiça do Estado de São Paulo.

A vida de Péter Murányi 97


que existia entre elas. E como Péter tinha um relacionamento amigável com a ex-
-esposa, Zilda criou uma boa convivência com Eva. Conversavam, trocavam ideias.
Zilda e Péter foram descobrindo muitas coisas em comum. Tinham opini-
ões e valores semelhantes, gostavam de antiguidades e dividiam a adrenalina
na hora de visualizar um novo projeto, colocá-lo em andamento e ver os frutos
multiplicarem-se. Um dia, Péter, ainda que de maneira contida, finalmente teve
o ímpeto de revelar o que se passava em sua cabeça. Disse que simpatizava mui-
to com ela, que a admirava e prezava sua companhia. E assim sendo, após um
suspiro ansioso, perguntou:
– Será que você gostaria de namorar comigo?
A reação de Zilda foi um pouco ambígua. Por um lado, ela não fazia a me-
nor ideia de que ele iria um dia fazer esse pedido. Por outro ângulo, ela já se sen-
tia um pouco a companheira dele, pelo tanto de vida que eles já partilhavam.
O seu “sim” foi então muito natural, quase óbvio não fosse uma ponta de emo-
ção batendo firme no peito...
O primeiro beijo não veio no primeiro dia e foi quase impulsivo. O casal es-
tava de passagem pela casa dele e Zilda foi até o lavabo. Péter a seguiu e, de sur-
presa, roubou-lhe um beijo.
Como o relacionamento estava ficando sério, Zilda foi se aconselhar com a
família, pois havia a questão de ser ele um homem desquitado e com uma filha.
A moça queria saber a opinião da tia Zilda, que a criara após a morte da mãe.
Ela, que já conhecia o pretendente e gostava dele, aprovou de imediato. Depois
Péter foi falar com seu Aurélio, o futuro sogro. Ele era um homem à moda an-
tiga, mas que não queria dar qualquer palpite do qual pudesse se arrepender
depois. Então, também aceitou muito bem.
Tudo caminhava rapidamente e eles não demoraram para ficar noivos.
Mas foi um noivado sem festa, só entre os dois. Para marcar o novo status, ele
deu a ela um belo solitário, relíquia de família. Mônica ficou muito feliz ao sa-
ber que a escolha do pai havia recaído sobre a mulher com quem ela já passa-
ra tantos momentos especiais. Mas, na fábrica, quase ninguém ficou sabendo.
Aliás, os dois continuaram trabalhando como se nada tivesse acontecido.
Como as primeiras núpcias de Péter tinham sido apenas no civil, o casal teve
direito ao casamento religioso. A cerimônia foi na Igreja de São Gabriel, em São
Paulo, em 19 de setembro de 1959. Era um templo ainda inacabado, cuja cons-
trução era um sonho do Padre Benedito Marcondes Pereira, que, havia quase

98 Sem Limite
10 anos, arrecadava os recursos para sua conclusão. Péter doou à Igreja o lon-
go tapete vermelho sobre o qual a noiva andou com seu vestido branco de renda
guipir, todo feito a mão e com uma cauda curta. O padrinho de casamento foi o
Embaixador Macedo Soares. A festa foi no casarão da Rua Antonina, antes de
irem para o Rio de Janeiro e de lá viajarem para a Europa.
Na época, o divórcio não era permitido no Brasil e, assim, a união deles de-
morou para gerar efeitos legais. Porém, mais tarde, casaram-se na República
Dominicana e, passados mais alguns anos, homologaram aquela união no Brasil.
A viagem de núpcias durou três meses, com todos os deslocamentos feitos
por avião, porque Péter não queria perder tempo em navios. Passaram por mui-
tas cidades europeias, visitando vários antiquários de onde trouxeram peças
interessantes para a casa do Sumaré.
Nos antiquários e nos leilões, o prazer de Péter estava em “garimpar” den-
tre os objetos antigos aquele que fora subavaliado e não estava sendo visto pelos
demais compradores com a devida atenção. Ele não pagaria qualquer preço por
uma antiguidade, o objeto era o de menos. Ele gostava de olhar, achar que des-
cobriu algo que era um tesouro. Dessa forma, adquiriu muitas coisas boas com
as quais decorou sua casa, mas algumas vezes comprou “gato por lebre”.
Mesmo tendo ficado tanto tempo pela Europa, Péter se recusou a visitar a
Hungria, dizendo que não havia nada para ver lá. Mas, provavelmente, estava
apenas evitando o desconforto de ver sua cidade coberta pelas cicatrizes de uma
tragédia ainda recente.
Péter tinha então 44 anos e, sob certos aspectos, sua vida estava apenas
começando...

A vida de Péter Murányi 99


Capítulo 5
Tempo de filhos e
de revoluções
Fazer o melhor é o mínimo
que eu espero de você.

102 Sem Limite


A os 15 anos, Mônica escreveu um texto em que descreve o pai como
um carneiro de pelo claro e movimentos ágeis, dono de uma inte-
ligência privilegiada. Ela o retratou vivendo com seu rebanho em
um vale distante, gozando da sua infância, despreocupado e feliz, até que aflo-
rasse a sua verdadeira natureza. Então, disse ela:

O pequeno carneiro de outrora, tornara-se um enorme


animal de pelo forte e escurecido, que mal escondia sob
a pele tendões, músculos e nervos num só todo latente e
rijo, atentos e prontos, numa vontade mal refreada de
combate. Uma cabeça altiva, plena de força e coragem,
que jamais recuava frente ao perigo.

Ele logo se fez um campeão entre os seus, até que um terrível inimigo
ameaçou seu rebanho e o vale onde ele vivia.

Um adversário contra o qual não chegavam apenas seus


chifres e sua audácia. Um adversário carnívoro e sangui-
nário, que, faminto, matava e devassava tudo impondo
a violência e o medo.

Pouco adiantou que o carneiro quisesse manter reu-


nida sua manada, para levá-la em segurança a outras
paragens...

A vida de Péter Murányi 103


Sentindo de longe o odor do inimigo, o bando se disper-
sou desorientado e, desordenadamente, cada animal
procurava salvar sua própria vida...

Nem mesmo com marradas e coices, mordidas e chifra-


das, foi possível ao carneiro que o seguissem e, então,
abandonado, o animal resolveu encetar só a jornada
para pastagens seguras.

Andou dias e dias, primeiro desconsolado, perceben-


do sempre que o inimigo estava perto e destruía a todos
que queria... Pensou naqueles que deixara para trás e,
raivoso por ser impotente contra o destino, escavava o
chão e ia de encontro às árvores... em vão... Seu caminho
havia sido traçado...

Mônica descreve, nessa metáfora poética, a chegada de Péter à “nova ter-


ra”, o Brasil, “diferente e desconhecida”, mas que lhe oferecia boas pastagens e
onde ele acabou se estabelecendo. Ali acabaria sentindo a necessidade de cons-
truir uma família.
O texto nada fala sobre a parceira por ele escolhida, mas conta como “a vida
dispôs as coisas de maneira que satisfizesse sua aspiração e preenchesse o vazio de
sua alma”. Afinal, o destino finalmente lhe concedia sua primeira herdeira e o car-
neiro “teve uma nova experiência, e um novo sentimento se lhe aninhou no peito:
sangue de seu sangue, carne de sua carne, de pelo claro e movimentos ágeis, como
outrora ele mesmo”. Entrava em seu coração uma pequena cabrita, que saltitava
à sua volta, brincando despreocupada e a quem ele dava de si tudo o que possuía.
Mônica então descreveu a passagem dos anos, fato visível na cor do pelo do
carneiro, que se tornou mais opaco, embora seus olhos continuassem, como
outrora, “a possuir um fulgor de chama incandescente, que nunca se apagaria”.
A filha, em seguida, contou como Péter veio a procurar uma nova compa-
nheira para aumentar sua família. Era Zilda, que Mônica acolheu tão bem e que,
reciprocamente, por ela foi acolhida como filha. Dessa união, conta o texto, viria
uma nova e linda cabritinha, “no início pequenina e fraca”, mas que vingou e, com
pelo quase alvo, tinha no olhar alegre e vivo “o mesmo brilho ardente do pai”.

104 Sem Limite


Péter recebeu o título de
Cidadão Paulistano em 1964

Ao lado, cerimônia de entrega


do Diploma de Cidadão
Paulistano e, abaixo,
o convite do evento
Esse conto inacabado, que no último parágrafo assinalava a chegada de no-
vos desafios, foi a maneira doce que Mônica usou para descrever a trajetória de
Péter, seu grande herói, até o nascimento de Vera, sua segunda irmã por parte
de pai. E aqui não há equívoco: segunda irmã por parte de pai.
Após o casamento, Zilda não demorou mais do que um ano para engravi-
dar. Péter ficou muito contente e um quarto logo foi preparado, com todo o ca-
rinho, para a chegada do bebê. Mas, para tristeza do casal, a menininha nasceu
com sérios problemas de saúde, em 25 de novembro de 1960. Batizada às pres-
sas com o nome de Maria, faleceu quatro dias depois e foi sepultada no dia se-
guinte, no Cemitério São Paulo, na capital do estado.
Essa tragédia os abalou bastante. Zilda, embora nove anos mais nova do que
Péter, já estava com 36 anos e queria muito ter filhos.
Uma nova gravidez veio logo em seguida, mas as coisas também não
foram simples. Zilda ainda não tinha cinco meses de gravidez quan-
do foi com Péter a Campos do Jordão, na serra paulista, para ficar alguns
dias, e começou a passar mal. A cidade na época não tinha muitos recur-
sos para atender a tal situação, que caminhava para o aborto espontâneo.
O obstetra, por telefone, recomendou que ela voltasse imediatamente a São Paulo.
Mas, fazer o trajeto de carro seria muito arriscado naquelas condições. Foi quan-
do se conseguiu um helicóptero da Força Aérea Brasileira, que seguiu com o mé-
dico para uma cidade localizada no Vale do Paraíba. A aeronave teve que pou-
sar no campo de futebol do Hotel Toriba, onde Zilda foi embarcada com muito
cuidado, sendo conduzida para São Paulo. Ficou acamada em sua casa, na es-
perança de concluir o período de gestação. Mas, antes de completar o sétimo
mês, o bebê nasceu, no dia 15 de abril de 1962, pesando apenas um quilo e vinte
gramas. Era outra menininha, a cabritinha mencionada no poema de Mônica.
Zilda Vera Suelotto Murányi, conhecida por toda a família simplesmente
como Vera, precisou ficar dois meses na incubadora. A mãe a visitava todos os
dias, enquanto ela era alimentada pelo banco de leite, e a menina acabou se de-
senvolvendo muito bem, tornando-se uma criança saudável.
Mônica, apesar da diferença de 14 anos, amava a irmãzinha. Ela continu-
ava morando com o pai, e Péter pôde perceber que, mesmo com o nascimen-
to de Vera, Zilda continuou tratando a enteada como se fosse sua própria filha.
Enquanto Péter vivia as emoções da perda de Maria e da chegada de Vera,
muitas outras questões importantes se desenrolavam na empresa e na vida do

106 Sem Limite


seu País de adoção. A todas elas ele buscava estar atento e, sempre que possível,
influenciando o resultado final.
Em 1961 a empresa Fogões Cosmopolita, que era a dona do imóvel no Brás
onde se situava a fábrica de Péter, viu-se em uma grave crise e, para tentar
se reestruturar, pediu concordata. O empresário percebeu então uma opor-
tunidade para comprar não apenas o prédio da fábrica, mas também os so-
brados vizinhos que pertenciam à mesma empresa e que estavam alugados
para vários inquilinos.
O imóvel trazia consigo vários problemas jurídicos que o dr. Flávio Bellio,
então jovem advogado, o ajudou a resolver.
A empresa, que nasceu em 1940 com apenas três trabalhadores, contava à
época com cerca de 1.500 funcionários, entre operários e administrativos, tra-
balhando em diferentes turnos. Embora carregasse o nome empresarial de Péter
Murányi Indústria e Comércio S.A., era conhecida no mercado pela marca Fibra-
lata. A fama que Péter tinha na fabricação desse tipo de embalagem, que conju-
gava o tubo de papelão com uma base e tampa de metal, era tão bem consolida-
da que lhe dispensava o trabalho de fazer publicidade. A divulgação da empresa,
na verdade, era feita pelas carretas Mercedes Benz que Péter usava para trans-
portar as suas mercadorias para outras cidades do País, especialmente o Rio de
Janeiro. Com 22 m de comprimento, eram veículos ainda pouco vistos nas es-
tradas brasileiras. Causavam admiração nos pedestres e agonia aos condutores
da Via Dutra que, naquele tempo, ainda era de pista única. Quando uma car-
reta da Fibralata subia a Serra das Araras na segunda marcha, amarrava toda a
fila, pois não era fácil ultrapassá-la.
Na carreta seguiam milhares e milhares de latas que seriam usadas pela Shell
e pela Atlantic para armazenar óleo para motores de automóveis. Latinhas de
talco das marcas Granado e Joia também eram entregues pelos caminhões da
Fibralata, assim como para muitos outros clientes.
Um dos pioneiros dessa fase da empresa foi o motorista Adelson Concei-
ção que, durante anos, fazia três viagens por semana, cobrindo Rio de Janeiro e
Valinhos. Pela confiança que inspirava, acabou se tornando motorista particu-
lar de Péter, bem na época do nascimento de Vera. Apesar da gratidão pela con-
fiança dedicada, ele acabou se aborrecendo com a rotina de trabalhar de terno,
gravata e quepe. Depois de três anos, implorou que patrão o deixasse voltar para
a sua carreta. Péter ainda resistiu por 30 dias, mas acabou cedendo.

A vida de Péter Murányi 107


Nesse ritmo, um dos grandes problemas da empresa era cumprir os prazos.
Zeus Telles, que trabalhava como comprador da Gessy Lever, reclamava que o
mercado não atendia à demanda por embalagens com a mesma tecnologia da
Fibralata e que, por conta disso, Péter acabava vendendo mais do que conseguia
produzir. E então surgiam desentendimentos sérios, mas que acabavam sen-
do contornados pela postura de Péter. Afinal, embora ele fosse um negociador
duro, era também homem de palavra e cavalheiro. Brigava pelo dele, mas res-
peitava o lucro do outro.
Passados 20 anos de sua chegada ao Brasil, Péter se tornara uma pessoa bas-
tante conhecida na sociedade paulistana, graças a seu espírito irrequieto e em-
preendedor. No meio empresarial era difícil ignorá-lo, pois quem não o admira-
va geralmente não gostava dele. Afinal, era um negociante agressivo, que sabia
identificar a fraqueza de seus concorrentes. Aliás, um episódio em particular
mostra que, além de desafetos, ele também tinha inimigos impiedosos. Poucas
semanas antes do nascimento de sua filha, Zilda recebeu uma ligação telefô-
nica de um desconhecido, informando que seu marido havia morrido em um
acidente de carro. Foi apenas um trote telefônico, pois Péter surgiu algumas
horas depois diante de sua assustada esposa, mas as consequências do susto na
gestante poderiam ter sido sérias.
Por outro lado, Péter era um homem respeitado por sua constante preo-
cupação com o desenvolvimento social do País. Seu nome já havia aparecido
na imprensa ao tempo da coleta de donativos para os refugiados húngaros,
em 1956. Logo em seguida, sem fazer alarde, foi um dos grandes incentiva-
dores da criação do Hospital Albert Einstein, que viria a se tornar um dos
mais renomados complexos de saúde do País. Em 1957, ele doou 250 mil cru-
zeiros para apoiar o início do projeto. Depois, a partir de maio de 1959, com-
prometeu-se a contribuir com 50 parcelas de cinco mil cruzeiros cada, ten-
do depositado a última em outubro de 1963. Nessa época, o presidente do
hospital era o dr. Jozef Fehér que, além de seu médico de confiança, era um
amigo por quem tinha muita estima e com quem compartilhava várias opi-
niões. Mas, sua ajuda à instituição não pararia por aí e o hospital gozaria de
seu apoio até a hora de sua morte.
Em 1960 Péter voltou a receber destaque nos jornais por conta de um gesto
patriótico, envolvendo o seu posto de cônsul honorário da República Domini-
cana na cidade de Santos, no litoral de São Paulo.

108 Sem Limite


Esse pequeno país do Caribe era governado, desde 1930, pelo ditador
Rafael Trujillo, auxiliado por seu irmão Héctor. Trujillo era um tipo populis-
ta, que tinha um espírito desenvolvimentista, mas que também sabia ser brutal.
Com a Revolução Cubana de 1959, Rafael percebeu que sua manutenção no poder
estava em risco e começou a tomar decisões temerárias. Uma delas foi ordenar o
assassinato de Rómulo Betancourt, presidente da Venezuela, que vinha apoian-
do a oposição dominicana. O plano quase deu certo, mas um carro bomba atin-
giu o automóvel de Betancourt matando um militar e provocando sérias quei-
maduras no presidente. Isso deu ensejo a uma série de reações internacionais
contra a ditadura de Trujillo. O ápice foi quando os membros da Organização
dos Estados Americanos (OEA), com destaque para o Brasil, decidiram romper
relações diplomáticas com a República Dominicana.
Péter vinha acompanhando todos esses fatos com bastante atenção, até que
Trujillo cometeu um ato desesperado de intimidação e retaliação, ao permi-
tir (ou ordenar) a invasão da embaixada brasileira por um grupo de policiais.
Péter reagiu imediatamente enviando um telegrama a Héctor Trujillo, que, na-
quele momento, fazia as vezes de presidente do país, no lugar do irmão ditador:

A invasão dos jardins da embaixada do Brasil na cida-


de de Trujillo faz para mim, cidadão brasileiro, impos-
sível continuar no cargo de cônsul honorário da Repú-
blica Dominicana em Santos, São Paulo, Brasil. Assim
peço aceitar a minha irrevogável demissão do cargo ocu-
pado, como protesto e desagravo ao desrespeito da ban-
deira brasileira pelos policiais dominicanos.

O telegrama foi publicado com destaque no jornal O Estado de S. Paulo do


dia 21 de julho de 1960. Essa atitude de Péter seria lembrada em muitas ocasiões
como prova de seu sincero amor pelo Brasil. Mas, enquanto isto acontecia, ele
já estava envolvido em outro projeto de dimensões bem mais impressionantes.
O mundo estava em plena Guerra Fria, período caracterizado por intensas
disputas entre um bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e um bloco
socialista, dirigido pela União Soviética. Embora as duas potências nunca tenham
se enfrentado diretamente no campo de batalha, combates sangrentos ocorre-
ram nas fronteiras entre os dois blocos. Foi assim quando a Coreia do Norte,

A vida de Péter Murányi 109


comunista, tentou se apoderar da Coreia do Sul. Foi ainda, igualmente, quan-
do a Hungria tentou se retirar da esfera de influência soviética. No início da dé-
cada de 1960, as imagens do levante húngaro de 1956 ainda estavam frescas na
memória de Péter. Mais do que isso, ele havia visitado seu País de origem após a
instalação do comunismo e se espantara com a capacidade de o regime contro-
lar todos os aspectos da vida das pessoas. Ficou deprimido ao ver que a arquite-
tura de Budapeste ainda guardava a graça dos anos 1930, mas que o povo anda-
va de cabeça baixa e com medo. Daí porque ele sempre dizia que “o comunismo
roubou a minha Hungria”.
Na visão de Péter, era preciso evitar que o Brasil passasse pelo sofrimento
de se tornar um mero peão a ser violentamente disputado no imenso tabulei-
ro de xadrez da Guerra Fria. Entretanto, ele também sabia que as injustiças so-
ciais forneciam um terreno fértil para o radicalismo e para o uso do povo desa-
fortunado como massa de manobra de grupos antidemocráticos. A saída para o
Brasil era o progresso do seu povo e, nesse sentido, Péter estava decidido a agir.
No apagar da década de 1950, um dos homens públicos de maior projeção na-
cional era o advogado Jânio da Silva Quadros, ex-governador de São Paulo. Com
uma plataforma de combate à corrupção e eficiência do serviço público, combi-
nava preciosa e ferina oratória com um visual espalhafatoso. Tinha seus longos
cabelos negros, quase sempre despenteados, e era famoso por seus paletós escu-
ros, geralmente amassados e surrados, com uma pitada proposital de caspa nos
ombros. Uma figura que se fazia passar por excêntrica, em um marketing polí-
tico oportuno para a época.
Murányi impressionou-se com esse personagem e viu nele alguém merece-
dor de chegar à Presidência da República. Na verdade, o entusiasmo causado por
esse homem que insistia em fugir ao convencional era grande, atraindo pessoas
tanto da direita quanto da esquerda.
Talvez pelo hábito que desenvolveu de enviar cartas a prefeitos e governadores,
tanto para cumprimentá-los pelos acertos, quanto para fazer sugestões de melho-
rias, Péter e Jânio acabaram aproximando-se e se tornaram amigos. O empresá-
rio admirava o estilo de gestão do ex-governador. Dentre as famosas e pitorescas
manias de Jânio, Péter incorporou o hábito de se comunicar com os encarrega-
dos da fábrica por meio de bilhetinhos incisivos que ninguém ousava ignorar.
Com o fim do mandato de governador, Jânio se elegeu deputado federal pelo
Paraná, mas estava um pouco distante do burburinho político, mirando de

110 Sem Limite


Com o vice-presidente Aureliano Chaves

Péter e Zilda encontram o ministro da Educação


Jarbas Passarinho, na década de 1970
maneira indecisa a eleição presidencial em 1960. Não tendo conseguido ser indi-
cado candidato na Convenção Nacional da União Democrática Nacional (UDN),
realizada em março de 1959, Jânio viajou para o exterior. Durante sua ausên-
cia, Péter se uniu a figuras de renome da política nacional, como o governador
Carvalho Pinto, para criar, durante uma reunião na Associação Brasileira de
Imprensa (ABI), o “Movimento Popular Jânio Quadros”, com vistas a encontrar
legendas partidárias interessadas em sua candidatura. Péter, seguindo o seu dom
natural, foi escolhido tesoureiro-geral do Movimento.
A iniciativa deu rápido resultado e Jânio logo foi indicado pelo minúsculo Par-
tido Trabalhista Nacional (PTN), seguido pela UDN, Partido Democrata Cristão
(PDC) e Partido Libertador (PL). Foi a base de que precisava para fazer uma cam-
panha fulgurante, embalada por um jingle que se espalhou pela boca do povo:

Varre, varre, varre, varre vassourinha / varre, varre a ban-


dalheira / que o povo já tá cansado / de sofrer dessa manei-
ra / Jânio Quadros é a esperança desse povo abandonado!

No dia 3 de outubro, o povo foi às urnas e Jânio foi eleito com 5,6 milhões de
votos, o que representava 48% dos votos válidos, muito à frente do segundo co-
locado. Até 1986 (quando Mário Covas foi eleito senador por São Paulo) foi o ho-
mem mais votado da história brasileira. Dona Penha, que assumiu a função de
secretária de Péter no dia seguinte à eleição, herdou um armário repleto de car-
teirinhas do movimento popular, além das famosas vassourinhas de metal que
os partidários de Jânio usavam na lapela dos ternos. Ela detestava atender os te-
lefonemas do presidente recém-eleito que, com sua voz característica e se valen-
do de uma intimidade que ela não concedera, dizia:
– Querida, quero falar com o seu chefe.
Jânio assumiu a presidência em janeiro de 1961, mas com as mãos amarra-
das. A oposição – Partido Social Democrático (PSD) e Partido Trabalhista Bra-
sileiro (PTB) – controlava 55% do Congresso, enquanto os seus aliados da UDN
clamavam por ministérios que o novo presidente não estava disposto a conce-
der. Formou uma equipe de governo considerada por muitos como inexpressiva,
contrastando com sua atuação pessoal dinâmica. Na verdade, vaidoso e centrali-
zador, não queria sombra. Inesperadamente, renunciou sete meses depois, dizen-
do-se vencido por “forças ocultas”. Os reais motivos dessa renúncia nunca foram

112 Sem Limite


esclarecidos, mas o gesto repercutiu forte na empresa, gerando um tráfico inco-
mum de pessoas e telefonemas. Penha, funcionária discreta, apenas passava as li-
gações e fechava a porta. Nunca chegou a saber o que se cogitava, o que se falava
entre os homens que ajudaram a criar um presidente e que tão cedo o perderam.
A saída de Jânio não representou o fim da amizade com Péter e os dois ho-
mens voltariam a juntar suas forças 25 anos depois.
O que veio em seguida dividiu o País de modo radical. O sucessor ao cargo
de Jânio era o gaúcho João Goulart, mais conhecido como “Jango”. Ele fora elei-
to vice-presidente pelo PTB, dentro da antiga regra de não vinculação entre os
votos dados aos candidatos à presidência e à vice-presidência. Sobre ele, o jor-
nalista Elio Gaspari escreveu: “Sua biografia raquítica fazia dele um dos mais
despreparados e primitivos governantes da história nacional. Seus prazeres es-
tavam na trama política e em pernas, de cavalos ou de coristas. (...) Movia-se no
poder por meio daqueles sistemas de recompensas e proveitos que fazem a fama
dos estancieiros astuciosos”.1
Mas, para Péter Murányi, a posse de Jango trazia preocupações que iam além
do seu despreparo. As palavras do novo Presidente, assim como a natureza da-
queles que o apoiavam, faziam com que fosse acusado de ligações com a ideolo-
gia comunista e que estaria tramando a instalação de um regime ao estilo cubano
ou um regime sindicalista inspirado no peronismo (seguidores de Juan Domingo
Perón, na Argentina). Essa era uma possibilidade assustadora. Então, assim como
ele não ficara impassível quando a União Soviética sufocou a redemocratização
da Hungria, também não estava disposto a cruzar os braços naquele momento.
Antes mesmo da renúncia de Jânio, Péter já havia se comprometido com a
ideia de enfraquecer o radicalismo de esquerda. Uma de suas iniciativas nes-
se sentido poderia parecer, para as pessoas comuns, algo bastante quixotesco.
Afinal, ele resolveu dar conselhos ao presidente norte-americano de como me-
lhorar a imagem do seu País no Brasil, ao mesmo tempo em que se buscaria me-
lhorar as condições sociais dos brasileiros.
Em maio de 1961, Péter enviou uma carta ao presidente John Fitzgerald
Kennedy alertando que os Estados Unidos, como líder do mundo livre, não es-
tavam utilizando eficientemente as suas possibilidades. Afinal, o País gastava
anualmente bilhões de dólares na ajuda aos países subdesenvolvidos sem que
a maioria do povo simples dessas nações tivesse conhecimento disso, porque
1 Elio Gaspari. A Ditadura Envergonhada. Ed. Intrínseca (2014, p. 46).

A vida de Péter Murányi 113


tudo era feito “de uma maneira indireta”. Como exemplo, ele citava a subven-
ção norte-americana à compra de trigo pelo Brasil. Nesse passo, o empresá-
rio sugeria que os Estados Unidos passassem a usar os recursos daquele sub-
sídio para combater o analfabetismo no Brasil. O plano era construir escolas
com recursos norte-americanos, por meio de financiamentos a serem pagos
em cruzeiros pelas cidades beneficiadas, no prazo de 40 anos. Dar-se-ia am-
pla publicidade à ajuda americana, melhorando, assim, a imagem da super-
potência. E, claro, como sempre pensou Péter, ajudando o Brasil a dar educa-
ção de qualidade ao povo.
Em 10 anos, de acordo com os cálculos de Péter, “não existiria mais lugar
no Brasil onde não haveria escolas primárias, secundárias e, onde necessárias,
superiores, e todas as crianças e jovens brasileiros teriam a possibilidade de
concluir os seus estudos”. Sendo assim, “em 20 anos teríamos uma geração em
que boa parte do pessoal foi educada por escolas doadas pelos Estados Unidos”.
Para o empresário, o custo dessa ajuda não seria superior ao que já vinha sendo
feito, com a diferença de que o resultado seria muito mais visível, o que lhe au-
torizava a perguntar ao presidente Kennedy:
– Pode V. Exa. imaginar o que isso representaria para os Estados Unidos e o
mundo livre em propaganda e demonstração de solidariedade aos países envol-
vidos numa luta de vida e morte contra o comunismo?
Péter recebeu, no mesmo ano, uma resposta do Departamento de Estado
norte-americano, alegando que o País já vinha ajudando os programas educa-
cionais no Brasil desde 1942 e que, naquele momento, mais de 2.800 brasileiros
estavam estudando em instituições dos Estados Unidos.
Péter retrucou em uma carta de janeiro de 1962, demonstrando que os auxí-
lios prestados naquele momento passavam despercebidos perante o povo sim-
ples “que compõe 80% da população do Brasil”.
Apesar da resposta defensiva do governo norte-americano, este não ignora-
va que a imagem dos Estados Unidos entre os países da América Latina era bas-
tante desfavorável. O que aquele país não vinha conseguindo era, justamente,
encontrar uma solução para isso. Coincidência ou não, poucos meses após a pri-
meira carta de Péter, representantes dos Estados Unidos e de 22 países latino-
-americanos se reuniram em Punta del Este, no Uruguai, para assinar a “Alian-
ça para o Progresso”, um programa cooperativo que tinha por objetivo acelerar
o desenvolvimento econômico e social da América Latina, como meio de impe-

114 Sem Limite


dir a expansão do comunismo no continente. Os Estados Unidos, junto com al-
gumas organizações internacionais, deveriam injetar cerca de 20 bilhões de dó-
lares na América Latina pelos próximos dez anos. No Brasil, em julho de 1963,
Péter comemorava o aporte de 12 bilhões de cruzeiros para erradicar o analfa-
betismo no Nordeste.
Se a carta de Péter ao presidente Kennedy colaborou com esse resultado, nós
nunca saberemos. Mas, de qualquer forma, é extraordinário perceber o quan-
to a sua ideia, longe de ser quixotesca, estava em consonância com as estratégias
da maior potência do ocidente.
Enquanto aquelas cartas eram trocadas, as crises políticas se multiplicavam
pelo Brasil, levando Jango a ter frequentes atritos com o Poder Legislativo e
com alguns governadores, como Adhemar de Barros (SP) e Carlos Lacerda (RJ).
A situação econômica, que já era delicada na época de Jânio, começava a sair do
controle. Algumas regiões sofriam com o desabastecimento de gêneros essen-
ciais. Greves se espalhavam pelo País, enquanto a economia registrava contração
da renda per capita e um déficit fiscal equivalente a um terço do total das despe-
sas.2 Jango respondia a tudo isso com discursos que apontavam para a quebra
das instituições e a instauração de “reformas de base”, nunca muito bem expli-
citadas. Entre essas reformas, falava em desapropriar, para fins de reforma agrá-
ria, todos os imóveis rurais com mais de 500 hectares que estivessem localiza-
dos em uma faixa de 10 km às margens das rodovias, ferrovias e açudes federais.
Essa proposta, naturalmente, causava preocupações a Péter. Afinal a Hungria,
antigo celeiro de um império, tivera sua produção agrícola muito comprometi-
da após a reforma agrária implantada pelo regime comunista. Ademais, a pro-
posta de Jango não apontava a origem dos recursos, quer para as indenizações,
quer para o assentamento dos colonos.
Dentro deste panorama, Péter acabou sendo um dos organizadores e te-
soureiro da Ação Democrática Popular, um grupo apartidário que busca-
va coordenar as forças políticas que se opunham às reformas do presidente.
Ou, como ele mesmo definiu, uma entidade voltada ao combate da corrup-
ção, por uma paz social justa, pela manutenção da livre iniciativa, pelas refor-
mas sociais humanas e cristãs, além da manutenção da Constituição e do Po-
der Legislativo. Em suma, uma organização que lutava contra qualquer forma
de ditadura, seja da esquerda, seja da direita.
2 Elio Gaspari. Ob. Cit. p. 48.

A vida de Péter Murányi 115


O principal instrumento de ação era a promoção do debate econômico, po-
lítico e social, por meio da ação publicitária e política. Também se promovia o
apoio a candidatos do campo democrático, e a Ação Democrática Popular (Adep)
tinha, para tanto, algumas peruas Rural Willys para fazer propaganda de seus
ideais e candidatos.
O trabalho de Péter foi tão bem-sucedido, que o presidente João Goulart edi-
tou o Decreto n. 52.425, de 31 de agosto de 1963, suspendendo as atividades da
Adep pelo prazo de três meses e determinando que o Ministério Público pro-
movesse judicialmente a sua dissolução. Para justificar a medida, o presidente,
em seus considerandos, sustentava que a Adep era uma associação que “noto-
riamente” exercia atividade político-eleitoral, intervindo no processo de escolha
dos representantes políticos do povo brasileiro, levando à distorção da opinião
pública e à corrupção eleitoral. Afirmava ainda que ela se valia de “incalculável
soma de recursos financeiros”, atentando assim contra a segurança das institui-
ções e, era possível, contra a própria soberania nacional.
A velha capacidade de Péter para reunir e administrar recursos assustava o
governo, que então achava mais fácil acusar a Adep de receber dinheiro da Agên-
cia Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos.
Na qualidade de responsável pela Adep em São Paulo, Péter Murányi teve
de apresentar-se à Câmara dos Deputados em Brasília, em novembro de 1963.
Durante quatro horas foi sabatinado, explicando a origem dos recursos da asso-
ciação e seus objetivos. Sua apresentação foi considerada impecável e nada pôde
ser levantado contra ele. Por ter sido convocado pela Comissão Parlamentar de
Inquérito, Péter tinha direito à indenização de CR$ 55.664,00, para cobrir despe-
sas de transporte e hospedagem. Mas ele recusou o dinheiro, pedindo à Câma-
ra que doasse a quantia para a Santa Casa da Misericórdia de São Paulo, confor-
me se pode ver em um documento assinado pelo deputado Ulisses Guimarães.
Nessa mesma época foi chamado a depor no Departamento de Ordem Po-
lítica e Social (DOPS) e, mais uma vez, nada se conseguiu sustentar contra ele.
Ainda assim, sob a pressão de Jango, a Adep foi extinta por decisão judicial de
20 de dezembro de 1963. Igual destino teve o Instituto Brasileiro de Ação De-
mocrática (Ibad), entidade que desenvolvia projetos semelhantes.
Era difícil naquele momento alguém prever o que poderia acontecer com
o Brasil até a eleição presidencial de 1965. Leonel Brizola, cunhado de Jango,
proclamava a existência do chamado “grupo dos onze”, ou dos “onze compa-

116 Sem Limite


nheiros”, que deveria se organizar por todo o País para formar um Exército
Popular de Libertação (EPL). Assim, para Péter e outros brasileiros, foi um alí-
vio quando, no dia 31 de março de 1964, eclodiu em Minas Gerais um movi-
mento (Coluna Tiradentes) tido como cívico-militar, que, já no dia seguinte,
levou João Goulart a abandonar o País. Tendo sido declarada vaga a presidên-
cia da República, o presidente da Câmara dos Deputados governou por onze
dias, até a eleição indireta do general Humberto de Alencar Castelo Branco.
Era o início do Regime Militar.
A presidência do militar deveria ser um governo tampão até as próximas elei-
ções presidenciais e, inicialmente, tinha sido festejada por grandes líderes po-
líticos, como Juscelino Kubitschek (MG) e Carlos Lacerda (RJ). Foi, então, em
clima de alívio e até euforia que, no dia 27 de outubro daquele ano, Péter foi con-
vidado pela Câmara Municipal de São Paulo para receber o título de “Cidadão
Paulistano”. Era uma forma de festejá-lo por suas realizações como empresário e
defensor do regime democrático.
Exatamente um mês após essa homenagem, em 27 de novembro, Zilda dava
à luz outra criança. Dessa vez era um menino e que veio forte como um touri-
nho. Em homenagem ao pai, ganhou o nome de Péter Murányi Júnior. Mas, para
evitar confusão, por vezes, quando ainda menino, era tratado de Petinho. Ali-
ás, o empresário, no seu português vacilante, por vezes chamava o filho de a Pe-
tinho e a filha de o Verinha!
Infelizmente, os pais do empresário não puderam conhecer o neto mais novo.
János Ödön estava morando em Viena, mas sua saúde começou a decair
muito rapidamente. Péter acabou trazendo-o de volta para o Brasil em março
de 1963, consciente de que o pai não duraria muito tempo. Como ele não podia
mais subir escadas, Zilda abriu mão de sua biblioteca no térreo para montar um
quarto para o sogro. A partir daí, Péter quase enlouqueceu. Afinal, János tinha
uma filosofia de vida própria. O húngaro considerava que a casa era um lugar de
descanso e repouso e não aceitava ver o filho trabalhando até tarde. Mas, para
Péter, casa e trabalho eram uma coisa só e seu estilo de gestão implicava virar
a noite despachando a papelada. Para piorar, János veio para a companhia do
filho justo no momento da crise política, quando Péter tinha reuniões frequentes
em casa. Então, quando János, do seu quarto no térreo, percebia que tinha reu-
nião de trabalho na sala quase em frente, saía da cama de ceroulas, ia até a por-
ta de vidro e criava uma confusão:

A vida de Péter Murányi 117


– Depois das seis horas da tarde não se pode trabalhar! – dizia ele em hún-
garo – Isto é falta de educação!
E Péter, irritado, respondia para o pai:
– Nesta casa o trabalho vem em primeiro lugar! Só depois vêm o descanso
da família e tudo o mais!
– Mas quem é esta gente? – insistia o pai. – Não são seus amigos! Como as-
sim, reunião que não é com os amigos, é com estranhos?
E Péter sentia muita vergonha. Até porque o vidro da porta da sala era trans-
parente e todo mundo via o idoso com sua roupa de dormir.
János acabou falecendo em outubro de 1963, na casa do Sumaré, aos 84 anos.
A mãe de Péter, dona Vilma, faleceu menos de um ano depois, em 13 de ju-
lho de 1964. Tinha apenas 72 anos e deixou de conhecer o neto caçula por uma
questão de apenas quatro meses. Morreu brasileira, em terras paulistas.
Ao contrário de János, Vilma manteve até o fim o seu temperamento ado-
rável. Tratava Zilda como se fosse sua filha e se sentia muito feliz em ver o
carinho que a nora tinha por Mônica. Por vezes, quando Zilda ia pegar a en-
teada no colégio, passava na casa da sogra, na rua Haddock Lobo, nos Jar-
dins, para as três tomarem chá. Vilma, muito vaidosa, sempre cuidava de ir
ao salão na véspera, para fazer as unhas e o cabelo. Verdadeira dama, rece-
bia a família impecavelmente vestida e com a mesa posta com estilo e de-
licadeza. Era como se uma brisa dos antigos salões de Budapeste soprasse
naquele apartamento paulistano. Ali Mônica encontrava invariavelmente
a “nhá benta” de que gostava, e Vilma não deixava Zilda sair sem levar um
presentinho, que podia ser uma bandejinha de prata, um lencinho, sempre
algo muito refinado.
Quando a saúde da sogra definhou, Zilda tomou para si a responsabilidade
e esteve ao seu lado nos últimos dias.
Vilma faleceu carregando a mágoa de ter sido abandonada por seu segun-
do marido, Alfred Halward. Ele a trocou por Hertha, uma alemã que trabalha-
va para ele e era muito mais jovem. Para Péter também não foi fácil aceitar a es-
colha do padrasto. Mas ele, nem assim, deixou de ter carinho pelo seu amigo
“Fredziu”, que sempre vinha visitar os netos postiços no Sumaré. E quando a bela
Hertha subitamente morreu, Alfred ficou atordoado, sem saber o que fazer. Foi
Péter quem, generosamente, o ajudou a cuidar do enterro da mulher que tirara
o marido de sua mãe.

118 Sem Limite


O batizado de Zilda Vera Suelotto
Murányi. Com os pais e a irmã....

...e com os padrinhos,


Arlete e Fritz Josef Bar

Família reunida com os


padrinhos Rui Barbosa
Nogueira e sua esposa Zoé
(à esquerda), no batizado de
Péter Murányi Júnior

Vera e Péter Júnior na casa do Sumaré


Péter era um homem que sabia sentir tristezas, mas que também tinha uma
capacidade incomum de seguir adiante. E quando queriam atiçá-lo, tentando le-
vantá-lo contra alguém que ele já perdoara, ele respondia irritado:
– Eu esqueci. Não me lembro!
Péter Murányi Júnior nasceu quando seu pai já tinha 49 anos e levava uma
vida totalmente devotada ao trabalho. O contato do empresário com os filhos
menores ocorria em grande parte durante as refeições ou nas viagens de fim de
semana para Águas de Lindoia e o litoral paulista.
Por conta de sua luta interminável contra as amebas, além de outras crenças
que desenvolveu ao longo da vida sobre alimentação saudável, as refeições dos
Murányi contrastavam bastante com as de outras famílias brasileiras.
Quando ele se casou com Zilda, no café da manhã, ele era capaz de comer
cebola e nabo ralados, hábito que ninguém da família jamais adotou. Mas, com
as crianças já pequenas, ele costumava tomar leite cru, queijo, pão preto ale-
mão, uma maçã, uma pastinha de ricota com alho e páprica (tipicamente hún-
gara) e, por vezes, ovos quentes e frutas. Nunca tomava café, mas gostava bas-
tante de chocolate.
Nas outras refeições, Vera e Péter Júnior não demoraram a perceber que os
Murányi eram muito diferentes. Seguindo a doutrina alimentar do chefe da
família, a refeição se iniciava com frutas, como uvas, ameixas, peras e maçãs.
Só então vinha a comida quente.
Tudo devia ser cozido no vapor, o que deixava o linguado sem gosto de nada
ou, como diziam as crianças, com “gosto de isopor”. Ele também não comia car-
boidratos com carne, o que tornava impossível para as crianças comer uma boa
macarronada à bolonhesa. E a mera menção a comer pastel ou um misto quente
era o equivalente a uma heresia. Todos esses dogmas, segundo ele, estavam bem
fundamentados em um livro estrangeiro sobre dietas, que ele mandou traduzir
para o português, e que insistia (em vão) para que todos lessem.
Mas, quando ele terminava o prato principal e a salada, fazia tocar a sineta
de cachorrinho dependurada sobre a mesa e dizia à governanta:
– Agora traga os meus queijos!
E então vinham eles, de variadas qualidades, alguns saídos de uma estufa es-
pecialmente desenhada para mantê-los na temperatura certa. Mal terminava de
saborear um queijo ou dois e ele dizia, com seu indisfarçável sotaque:
– Agora vou comer meu tchucoulate!

120 Sem Limite


E vinha então uma bandeja de chocolate, com uns oito tipos diferentes.
Chocolate era, aliás, algo que ele podia apreciar a qualquer hora do dia, com
a ajuda de diferentes esconderijos espalhados pela casa. O mais conhecido era
uma gaveta do móvel da sala. Esses depósitos de chocolate eram franqueados às
crianças, que podiam atacá-los livremente, desde que não os esgotassem.
Preso às suas raízes magiares, só apreciava um vinho licoroso húngaro cha-
mado tokay. Eventualmente podia ser visto bebericando uma caipirinha, uma
champanha ou um licor de cereja Peter Hering. Mas, decididamente, não tinha
o hábito de beber.
Quando as crianças ainda eram pequenas, terminada a refeição, ficavam es-
palhados pela mesa os pedaços de papel alumínio que, minutos antes, haviam
embalado os chocolates. Disso nasceu uma brincadeira: Péter e as crianças fa-
ziam bolinhas que eram usadas para um joguinho. A regra era simples. Da cabe-
ceira, jogava-se com cuidado a bolinha para o extremo oposto da mesa. Ganha-
va quem jogasse a bolinha mais longe, sem deixá-la cair da mesa. E dona Zilda,
ao voltar para a sala, reclamava:
– O que é esse monte de bolinhas aqui no chão!?
Ele era competitivo e estimulava isso no filho. Petinho fazia grandes bolas
de papel, enrolava fita adesiva para manter o formato e, com a conivência do
pai, fechava uma grade pantográfica, que ainda existe no vão que separa a sala
de estar do jardim de inverno. Ali os dois brincavam de gol. Péter não era bom
com o pé, mas atirava muito bem com as mãos, e o menino, que era o golei-
ro, tinha de pegar os arremessos. Durante as competições, algumas vezes aca-
bavam quebrando algumas peças da decoração. Dona Zilda enlouquecia, mas
Péter não estava nem aí...
O empresário, que praticara esgrima na adolescência, também se divertia lu-
tando “esgriminha” com o filho, usando espadinhas de brinquedo. E, tão logo o
menino ficou maiorzinho, com 6 ou 7 anos, ele o ensinou a jogar xadrez. As par-
tidas de xadrez seriam, até o final da vida de Péter, momentos de profunda co-
nexão com o filho. Era um momento para conversar e comer chocolate e outras
gulodices, mas sem perder a concentração no tabuleiro. No início, naturalmen-
te, o pai vencia todas. Mas, ao longo da vida, a balança iria tender para o filho.
Esses eram os tipos de brincadeira de que ele gostava. Não era aquele pai de
dar carinho, abraçar. E quando contava uma história para distraí-los, era sem-
pre algo sério e edificante. Nessas horas, mais uma vez, vinham-lhe à mente as

A vida de Péter Murányi 121


proezas de Haníbal, o general cartaginês que quase destruiu Roma. Tentava tam-
bém, desde cedo, incutir nos filhos algumas reflexões sobre a vida e o mundo.
Na hora do jantar, por exemplo, as crianças tinham de ficar em silêncio du-
rante o noticiário da televisão, pois o aparelho ficava em uma das extremidades
da sala. Péter Júnior e Vera ficavam inquietos, porque só podiam abrir a boca
durante os “reclames”, como eram denominados os anúncios publicitários. Mas,
isso não os impedia de ficarem se cutucando, brincando, o que também irritava
o pai. Uma vez, querendo lhes dar uma lição, perguntou ao final:
– Vamos ver quem prestou atenção no “Jornal Nacional”. Qual foi a frase mais
importante do repórter?
Péter Júnior, sem titubear, respondeu:
– Foi o “boa noite”!
As duas crianças riram e o menino foi castigado, tendo que subir para dormir
sem a sobremesa. Mas, havia uma verdade naquela resposta, pois quando vinha
o “boa noite”, vinha também a permissão para a família conversar.
Era uma educação rígida, baseada em uma forma de ver o mundo muito par-
ticular. Péter sabia ser generoso e podia dar um presente aos filhos sem motivo
algum. Por outro lado, se Zilda viesse lhe mostrar boas notas tiradas na escola,
ele menosprezava dizendo:
– É obrigação deles.
– Mas você não vai dar um prêmio?
– Eu pago os estudos. É obrigação deles saber tudo.
Era uma resposta coerente com uma de suas máximas: “fazer o melhor é o
mínimo que eu espero de você”. E na porta do seu escritório, em casa, havia uma
placa que também retratava muito bem o seu estilo de administrar que, se por
um lado era centralizador, por outro instigava as pessoas a raciocinar: “O incom-
petente só traz os problemas. O competente propõe também soluções”.
O humor de Péter era instável como o clima em São Paulo, capaz tanto do
perdão quanto da explosão repentina. Alguns diziam que ele nunca sorria, ou-
tros afirmavam que ele tinha um humor sutil e gostava de contar piadas ingê-
nuas. Na verdade, mostrava-se até muito alegre em certas festas. Aliás, depois
que se separou da primeira esposa, durante alguns anos participou de corsos de
Carnaval, dirigindo seu Buick vinho conversível através de memoráveis guer-
ras de confete e lança perfume. Chegava ao ponto de fechar a fábrica nessa épo-
ca. Com os filhos, atazanava-os, puxando a cadeira na hora em que iam se sen-

122 Sem Limite


tar, fazendo-os cair de traseiro no chão e levando os presentes às gargalhadas.
Petinho tentava imitar o pai e, certa vez, encontrou uma vítima totalmente dis-
traída. Puxou a cadeira, o homem estatelou-se no chão, mas, em lugar do riso,
ouviu um murmúrio geral de horror. Caído no chão e com fortes dores estava
Alfred, o idoso padrasto de Péter. A criança demorou para compreender por que
sua brincadeira não tinha graça.
Mesmo em sua aparente instabilidade, havia certa coerência nas variações
de humor de Péter. Por exemplo: a vida dificilmente fazia-o chorar, mas era ca-
paz de se emocionar com alguns episódios do seriado “Daniel Boone”, apresen-
tado na TV em meados dos anos 1960, sobre um dos mais populares ícones da
cultura norte-americana. Certa vez, o empresário derramou discretas lágrimas
com o episódio em que o protagonista se empenhou em conduzir uma ex-escra-
va, já idosa, para que pudesse morrer em território livre. Talvez por ter se iden-
tificado com o sonho da personagem, ele chorou quando ela finalmente reali-
zou esse desejo, nos seus últimos instantes de vida, transportada em uma maca.
Até em suas explosões de irritação ele se destacava de algum modo peculiar.
Como no dia em que seu carro sofreu uma fechada violenta e ele, furioso, saiu
em perseguição do motorista. Tanto a esposa quanto os filhos não sabiam o que
esperar, até que ele emparelhou com o outro e, pela janela aberta, gritou como
se o estivesse ofendendo gravemente:
– Seu bobo!
Enquanto as atividades empresariais progrediam e ele diversificava os in-
vestimentos, sua alma insaciável o levava a encarar novos desafios. Um deles
foi o de reassumir suas atividades no consulado da República Dominicana, em
23 de outubro de 1969, dessa vez como Cônsul Geral. Após a morte do ditador
Trujillo, o novo governo dominicano reconheceu que a renúncia de Péter tinha
sido plenamente justificável e pediu que ele voltasse à responsabilidade sobre o
único consulado daquela república instalado no Brasil.
O consulado foi, assim, instalado no salão de festas da casa do Sumaré, de
frente para a piscina. Era uma construção cor de cimento, com telhado de duas
águas, dividida entre três salas. A maior delas ficava na frente e era ocupada por
dona Tânia, secretária de Péter a partir de março de 1970. Nos fundos da sala
de Tânia ficava outra, que era do cônsul, mas onde ele raramente permanecia.
Servia apenas para umas poucas reuniões, agendadas antecipadamente. O ter-
ceiro cômodo, ao seu turno, era uma espécie de sala de espera.

A vida de Péter Murányi 123


Por ser o único consulado do país caribenho, atendia empresas e pessoas físi-
cas de todo o Brasil, interessadas em importar ou exportar, legalizar documentos
de casamento, de visto ou de passaporte. Dependendo da época, podiam passar
por ali de 10 a 20 pessoas, durante o expediente que ia das 10 horas da manhã
até meio dia e meia.
A casa ficava muito devassada, pois não havia um controle de entrada. As
pessoas eram guiadas apenas por plaquinhas com setas que indicavam o cami-
nho para o consulado. Com isso, as crianças eram praticamente proibidas de
frequentar a piscina. Graças aos esforços de Péter, o volume das exportações de
produtos industrializados paulistas para a República Dominicana, em 1973, so-
freu um aumento de cerca de 100% em relação ao ano anterior.
Não satisfeito com isso, Péter ainda encontrava tempo para desenvolver
projetos na área da educação que ele enviava, por iniciativa própria, ao gover-
no brasileiro.
Em 1968, o Brasil vivia um período de grande agitação política, no qual se
destacava o movimento estudantil. A juventude questionava os erros e mortes
do Regime Militar, assim como as incoerências e deficiências da sociedade bra-
sileira. Havia uma insatisfação reprimida e que, em maio daquele ano, encon-
trou eco e inspiração na rebeldia dos estudantes franceses, que tomaram as ruas
de Paris e levantaram barricadas para enfrentar a polícia. No Brasil, ainda se fa-
lava da invasão do restaurante universitário do Calabouço, em março daquele
ano. Durante o incidente, o estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto
foi morto por um oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O velório do rapaz
foi marcado por incidentes, frutos da violenta repressão policial. A partir daí, a
agitação estudantil foi crescendo e, em sentido contrário, o governo deteve de-
zenas de estudantes. O ápice veio com a famosa “Marcha dos 100 Mil” ocorrida
no Rio de Janeiro, no dia 26 de junho de 1968. Acompanhada por cerca de 150
religiosos e inúmeros intelectuais, a passeata foi absolutamente pacífica, tendo
se estendido das 10 às 17 horas.
A cobertura da imprensa foi positiva, mas o Governo Federal formado
por militares, naturalmente a entendeu como um perigoso ato de subver-
são da ordem. Sem dúvida, entre os vários discursos, existiam aqueles mais
radicais, inspirados em líderes como Che Guevara, Mao Tsé-tung e Ho Chi
Min. Em São Paulo, alguém tentava perceber o que poderia acontecer além
daquele protesto popular...

124 Sem Limite


Péter acompanhava tudo isso com muita atenção. Por um lado, ele rejeita-
va a ideologia dos líderes do movimento, marcadamente socialista ou comunis-
ta. Por outro ângulo, ele compreendia a insatisfação da massa formada por es-
tudantes, intelectuais e trabalhadores. Eram poucos os cursos universitários no
Brasil, os quais podiam acolher somente 2% da juventude brasileira. Havia ain-
da o problema da falta de escolas e do analfabetismo que atingia 18 milhões de
adultos. Em uma entrevista ao jornalista Paulo Zingg, Péter externou sua visão
de como tirar o Brasil da encruzilhada onde ele se encontrava, em que a juven-
tude servia de massa de manobra nas mãos de alguns agitadores. Ele afirmou
que muitas das reivindicações da juventude eram justas e sérias e deveriam ser
rapidamente atendidas. Com maiores investimentos em educação, os estudan-
tes ganhariam seu espaço na sociedade e os radicais ficariam isolados. A educa-
ção seria então “o investimento de maior rentabilidade para o futuro”.
Além dos estudantes universitários, Péter tinha uma preocupação especial
com o destino dos analfabetos. Ele afirmava que uma pessoa analfabeta encon-
traria dificuldades durante toda a sua vida, como, por exemplo, seguir as instru-
ções nas questões de saúde pública, compreender as orientações profissionais e
resistir à demagogia e ao domínio dos ditadores. Acreditava na possibilidade de
melhorar a cultura pela leitura de jornais, revistas e livros. Além disso, pensava
ele, como a produtividade de um analfabeto é muito inferior a de uma pessoa
alfabetizada, é evidente que, para o País, é muito importante para sua expansão
incluir os 18 milhões de habitantes em sua força produtiva e torná-los trabalha-
dores mais eficientes, assim como aumentar o seu poder aquisitivo.
Com essa ideia em mente, Péter resolveu escrever, em julho de 1968, um lon-
go telegrama ao novo presidente brasileiro, o general Arthur da Costa e Silva,
com uma sugestão para solucionar os problemas estudantis e educacionais des-
de as escolas primárias até universitárias, com a consequente extinção do anal-
fabetismo no Brasil. Para tanto, deveria o governo:
1) Permitir que a indústria, comércio e particulares utilizem parte de seu im-
posto de renda, como hoje ocorre em favor da Sudene, do Turismo, da Pesca e
de outras entidades, formando sociedades particulares, sob fiscalização do go-
verno, que montarão escolas primárias, secundárias, profissionais, técnicas e
universidades;
2) Educação gratuita do povo e solução de problemas universitários, sem
encargos suplementares para o governo, são no mínimo tão importantes

A vida de Péter Murányi 125


quanto o desenvolvimento do turismo, reflorestamento e outros. E consti-
tuem investimentos maiores, profundidade e lucratividades para a paz social
e o futuro desenvolvimento da Nação, do que qualquer outro. O velho pro-
vérbio chinês diz: “Quando alguém lhe pede comida, não lhe dê um peixe,
mas ensina-lhe a pescar”.
No entanto, na visão de Péter, mandar aquele telegrama não era suficiente.
Era preciso trazer a questão para o centro do debate, cooptando não apenas li-
deranças políticas, empresariais e sindicais, mas também toda a sociedade. Era
essa a sua visão estratégica e que tinha funcionado muito bem quando liderou
a campanha pelos refugiados húngaros ou quando, por meio da Adep, questio-
nou os radicalismos do governo João Goulart.
Para garantir que a suas sugestões viessem a ser apreciadas pelo Governo
Federal, Péter cuidou de enviar cópias do telegrama para diversas autorida-
des, como os ministros da Justiça, do Exterior, do Trabalho e da Agricultura.
Vários governadores de Estado e secretários estaduais também foram comunica-
dos, além de pessoas vinculadas à área empresarial e acadêmica, como Octávio
Bulhões, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Algumas dessas personalidades,
como o governador de São Paulo Abreu Sodré, já eram velhas conhecidas do
empresário. Todas elas, diretamente ou por seus assessores, responderam. Uma
parte das respostas veio em formato protocolar, burocrático, com promessas de
que a questão seria examinada ou apoiada. Outras foram bastante simpáticas e
entusiasmadas, como a do vereador Marcos Mélega e a do presidente da Fede-
ração dos Empregados no Comércio do Estado de São Paulo.
Pedro Aleixo, vice-presidente da República, escreveu a Péter dizendo que sua
proposta, “que tem recebido tão expressivas demonstrações de apoio, deve ser
considerada, a fim de vir a figurar em nossa legislação fiscal”. Paulo Pimentel,
governador do Paraná, respondeu dizendo que o plano era oportuno e valio-
so “face ao que representa o investimento na Educação, mormente em um País
como o nosso, em franco desenvolvimento e com cerca de 50% de seus habitan-
tes menores de 21 anos”.
A resposta do Presidente da República veio pelo subchefe do Gabinete Civil,
em agosto do mesmo ano, comunicando que a sugestão “foi encaminhada ao
Ministério da Educação e Cultura (MEC) para exame”. Apesar da aparente frie-
za da resposta, Péter soube, por diferentes fontes, que o presidente Costa e Silva
havia demonstrado interesse pela questão.

126 Sem Limite


Os irmãos Vera e Péter Murányi Júnior
em dois momentos da infância
A iniciativa de Péter ganhou um fôlego novo quando o conteúdo do seu tele-
grama foi divulgado pela imprensa. O Jornal da Tarde, de 13 de setembro, por
exemplo, publicou uma extensa matéria sobre o projeto do industrial paulista
visando à formação de fundações educacionais, impulsionadas por incentivos
fiscais e que seriam responsáveis pelo ensino brasileiro, desde o primário até as
universidades. Pensando na melhoria da mão de obra brasileira, ele vislumbra-
va grandes indústrias químicas e mecânicas que, com as deduções do imposto
de renda, poderiam criar universidades voltadas para as suas atividades.
Matérias semelhantes, explicando a sugestão de Péter, foram publicadas no
mês de setembro nos jornais O Globo, Diário do Comércio, Diário Popular,
Notícias Populares, Gazeta Mercantil e na revista Banas.
Em alguns momentos, Péter deixava clara sua descrença na capacidade do poder
público resolver sozinho o problema da educação. Ao jornal Notícias Populares, ele
disse que “o Estado como patrão é ineficiente, caro na sua administração e sujeito
às influências e alterações políticas”. E, saindo um pouco do tema, ousou criticar
abertamente a estratégia do Regime Militar para resolver os problemas do Nordeste.
Para ele, era necessário entregar “a tarefa do reerguimento do Nordeste à inicia-
tiva particular, em vez de tentar formar estas novas fábricas do Nordeste, como
empresas estatais”.
Dada toda essa repercussão, reflexos mais concretos começaram a se fazer
visíveis. Em novembro Tarso Dutra, então ministro da Educação e Cultura, in-
formou que a proposta contida no telegrama ao Presidente seria “considerada
brevemente pelo grupo de trabalho a ser constituído para a reforma do ensino
médio e primário”. E não demorou muito para que um membro da bancada go-
vernista, o deputado Nicolau Tuma (Arena-SP), escrevesse a Péter informando
que a proposta estava sendo enviada pela presidência ao Congresso Nacional,
sendo seu relator o deputado paulista Lauro Cruz (Arena-SP).
Embora o objetivo fosse educacional, o remédio passava pelo Direito Tribu-
tário, que deveria disciplinar o incentivo. Assim, não causou estranheza que a
resposta definitiva viesse pelas mãos do chefe de gabinete do Ministro da Fazen-
da que, em 21 de novembro de 1968, escreveu a Péter:

Prezado Senhor
Em atenção à carta na qual Vossa Senhoria sugere o uso
de uma parte dos incentivos fiscais do imposto de ren-

128 Sem Limite


da para estabelecer “Fundações”, apraz-me informar, de
ordem do Senhor Ministro, que a pretensão foi atendida
através de Lei n. 5.531, de 13 de novembro do corrente.

Ora, quem conhece os trâmites do legislativo brasileiro sabe que conseguir


tal alteração da legislação tributária em apenas quatro meses é um feito extra-
ordinário. Péter obtivera, para o seu projeto de melhoria da educação brasileira,
aquilo que costuma ser o mais difícil: dinheiro.
Entretanto, essa vitória teve vida curta. Em maio de 1969, o general-presiden-
te Costa e Silva, que vinha governando o País por meio de decretos-leis desde o
Ato Institucional n. 5 de dezembro de 1968, revogou a Lei n. 5.531. Usou como
justificativa o parecer H-789 da Consultoria-Geral da República, que conside-
rava que o Fundo Federal de Desenvolvimento da Educação violava o § 3º do
artigo 65 da Constituição de 1967, que estatuía que “nenhum tributo terá a sua
arrecadação vinculada a determinado órgão, fundo ou despesa”.
Péter, no entanto, não se deixou abater. No final de 1969, o coronel Jarbas
Passarinho assumiu o Ministério da Educação e Cultura. O empresário paulis-
ta, com espírito renovado, não demorou para lhe enviar um telegrama de cum-
primento, além de expor suas convicções sobre a importância de um maior in-
vestimento em educação. Passarinho, assim como Péter, estava preocupado com
a taxa de analfabetismo, que quase não fora reduzida durante a década de 1960
e era de 33,6% em 1970.
O governo militar havia criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mo-
bral) em 1967, mas vinha atuando como mero repassador de recursos, vincula-
do ao Departamento Nacional de Educação (DNE). Com a posse de Jarbas Pas-
sarinho, houve uma total reestruturação do Mobral, que passou a ser um órgão
executor de seus próprios projetos. Mas, com a revogação da Lei n. 5.531, a fal-
ta de dinheiro era novamente um problema. Os lobistas do jogo do bicho viram
nessa falta de recursos uma oportunidade para legalizar a atividade, que era uma
contravenção penal desde 1946. Um projeto tramitando na Câmara Federal pro-
punha que, em troca da legalização, um percentual dos valores arrecadados pe-
los “bicheiros” seria aplicado na educação. Perguntado sobre esse plano, o Mi-
nistro Passarinho, em maio de 1970, respondeu ao jornal O Estado de S. Paulo:
– No momento estou entusiasmado com uma sugestão do Sr. Péter Murányi,
cônsul da República Dominicana em São Paulo.

A vida de Péter Murányi 129


Era, mais uma vez, a ideia de um desconto a ser aplicado sobre o imposto de
renda das empresas que viesse a doar recursos a projetos educacionais. O presi-
dente Costa e Silva havia cassado a medida, mas Péter achava que, com a posse
do general Emílio Garrastazu Médici, em outubro de 1969, aquela suposta in-
constitucionalidade poderia ser afastada. E o ministro Jarbas Passarinho tinha a
esperança de convencer seu colega da Fazenda da necessidade daquela medida.
A aposta de Péter, para não chamar de teimosia, se mostrou acertada. Em se-
tembro de 1970, o presidente Médici, por meio de Decreto-lei n. 1.124, determi-
nou que as pessoas jurídicas poderiam deduzir do imposto de renda devido as
quantias destinadas à aplicação nos programas de alfabetização aprovados pela
Fundação Mobral de acordo com critérios fixados, conjuntamente, pelos Minis-
tros da Educação e Cultura e Fazenda. O artigo 4º estipulava que os estabeleci-
mentos particulares de ensino, devidamente registrados no Ministério da Edu-
cação e Cultura e credenciados pela Fundação Mobral, que mantivessem cursos
gratuitos de alfabetização, poderiam receber doações de pessoas físicas ou ju-
rídicas. Na prática isso significava que as pessoas jurídicas, em lugar de pagar
30% de imposto de renda sobre seu lucro líquido, podiam destinar 1% em favor
do Mobral, pagando somente 29% de imposto, em favor do estado. Era o pro-
jeto de Péter, tal como idealizado, tornando-se realidade. A medida, de acordo
com o decreto, teria validade apenas até 1973, mas foi renovada por normas pos-
teriores até 1989.
Para Péter, ainda não era o bastante. Ele logo percebeu que as empresas nor-
te-americanas sediadas no Brasil preferiam pagar a totalidade do Imposto de
Renda brasileiro, sem reverter nem um centavo ao Mobral. Como empresário
experiente, ele intuiu que isso tinha alguma explicação de ordem econômica e,
pesquisando o assunto, descobriu o porquê. As companhias americanas, ao pa-
gar a alíquota de 30% do imposto de renda brasileiro, podiam compensar a to-
talidade desse valor no imposto de renda a ser recolhido nos Estados Unidos.
Por outro lado, se a companhia pagasse somente a alíquota de 29% do imposto
de renda brasileiro e recolhesse o 1% restante para o Mobral, esse 1% não pode-
ria ser compensado nos Estados Unidos. Essa verificação foi confirmada tanto
pelo cônsul dos Estados Unidos em São Paulo, como também por um escritó-
rio de auditoria especializado.
Uma pessoa comum, ao chegar a essa conclusão, simplesmente compreende-
ria as razões das empresas norte-americanas e voltaria a cuidar da própria vida.

130 Sem Limite


Mas Péter era diferente. Em outubro de 1971, ele levou a questão ao III Seminá-
rio de Dirigentes de Empresas Brasil-Estados Unidos, promovido pela Associa-
ção Cristã de Moços (ACM). Naquela oportunidade, recomendou que a reunião
discutisse a conveniência de pleitear junto ao governo norte-americano que a lei
estrangeira passasse a permitir a compensação da parcela do Mobral na decla-
ração do imposto de renda norte-americano. Em seguida, no mesmo mês, for-
malizou pleito junto ao cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo para que
a legislação norte-americana fosse reinterpretada de modo a incluir aquele 1%
como matéria dedutível. Como argumento, ele afirmava, mais uma vez, que a
imagem daquele País estava deteriorada no Brasil, pois:

O povo em geral não compreende quais são as razões


pelas quais as companhias americanas não apoiam o
Mobral e em muitas cidades do interior, onde uma fá-
brica de propriedade americana representa um grande
contribuinte do município, criam-se certos ressentimen-
tos, uma vez que as menores fábricas brasileiras reco-
lhem em favor do Mobral, o seu 1% de imposto de renda
e as fábricas norte-americanas não. E esse ressentimen-
to é explicado pelas camadas interessadas em criar um
ambiente antiamericano.

Sempre no seu espírito de buscar o objetivo por todos os meios ao seu alcance,
Péter escreveu também ao ministro Jarbas Passarinho, pedindo a intervenção do
Itamaraty para cobrar a promessa dos americanos que estavam naquele seminá-
rio, um dos quais parecia ser bem relacionado com o presidente Richard Nixon.
Os frutos dessa iniciativa demoraram um pouco para aparecer, mas fo-
ram impressionantes. No dia 18 de junho de 1974, Francis Lambert, cônsul-
-geral em exercício dos Estados Unidos no Brasil, escreveu a Péter informan-
do que há cerca de dois anos o consulado vinha tentando obter uma solução
favorável para o problema que ele havia apresentado. A matéria foi motivo
de extensa correspondência entre o sr. Arnold Burks, representante do In-
ternal Revenue Service (IRS) em São Paulo, e as autoridades corresponden-
tes em Washington, entre o Consulado Geral e a Embaixada em Brasília, as-
sim como entre o então Embaixador Rountree e o ex-presidente do Mobral,

A vida de Péter Murányi 131


o economista Mario Henrique Simonsen. Finalmente, era com satisfação
que o Consulado vinha informar a Péter que as autoridades americanas ti-
nham chegado a uma solução favorável sobre o assunto, estabelecendo que
as firmas americanas sediadas no Brasil, que contribuíssem para a Fundação
Mobral, poderiam compensar essa contribuição no imposto de renda norte-
-americano. Foi uma grande vitória.
Com os recursos injetados no sistema, foram precisos apenas três anos para
que o Mobral chegasse a todos os municípios brasileiros, funcionando em 120
mil pontos, como hospitais, quartéis, fábricas, penitenciárias e até mesmo nos
subterrâneos das obras do metrô. Mais de seis milhões de pessoas receberam au-
las na primeira fase. A empresa de Péter participou diretamente do movimento,
o que lhe valeu um diploma de Honra ao Mérito no ano de 1971, além de certi-
ficados de participação em anos posteriores. Mas a grande homenagem foi in-
formal, daqueles que reconheceram o papel de Péter no sucesso do projeto e que
o chamavam de “pai espiritual do Mobral”.
A despeito da polêmica que ainda hoje existe sobre a metodologia e resulta-
dos alcançados com o programa, para Péter, assim como para parcela de educa-
dores daquele período, o Mobral se mostrava como a alternativa capaz de erra-
dicar um problema que existia desde os tempos de Brasil colônia.
Com uma vida tão agitada, era difícil cultivar grandes amizades desinteressa-
das. O melhor amigo de Péter era um alemão chamado Fritz Josef Bar. Ele havia
trabalhado por um tempo na Fibralata, antes de abrir sua própria fábrica com a
esposa, dona Arlete. Ela era uma empresária ainda mais ativa do que ele, de modo
que era a gerente industrial, enquanto o marido respondia pela parte comercial.
Os dois casais costumavam se encontrar na casa de Péter às sextas-feiras,
para jogar pôquer e conversar. Jogavam a dinheiro, mas sempre valores simbó-
licos. O desconforto para o perdedor não era a questão financeira, mas sim as
pilhérias que tinha de ouvir quando tirava a carteira do bolso e entregava as no-
tinhas na mão do outro.
“Seu” Josef, que era padrinho de Vera, sempre trazia um docinho, uma lem-
brancinha para as crianças. Na Páscoa ele dava coelhinhos de chocolate, no fi-
nal do ano vinha com porquinhos de marzipã e uma moeda. Enfim, nunca es-
quecia dos filhos do amigo.
As duas mulheres se davam muito bem, mas não se comparava à amiza-
de dos dois homens, que eram como irmãos. Conversavam por telefone quase

132 Sem Limite


Zilda, Péter e Mônica em
seu aniversário de 18 anos

Casamento de Mônica e Ernst, em 1973.


O casal com Zilda, Vera e Péter Júnior

Os filhos mais novos fazem homenagem a


Péter, em comemoração ao Dia dos Pais
todos os dias, no final da tarde, quando o expediente das respectivas fábricas
se acalmava. Tagarelavam em alemão e se tratavam, de brincadeira, por “Herr
General Direktor” (Sr. Diretor Geral).
Mônica, por esse tempo, já era uma mulher feita, com mais de 20 anos. Havia
sofrido muito com as interferências do pai, com seu caráter centralizador. Mas
conseguiu estudar Psicologia na Pontifícia Universidade Católica, curso que cer-
tamente não era do agrado de Péter. Ele sonhava em vê-la ajudando na fábrica,
mas a vida dela eram os cavalos.
Para terminar o curso de Psicologia, era necessário fazer um estágio que,
para ela, deveria ser na Alemanha, no Max-Planck-Instituts für Psychiatrie, em
Munique. Ademais, outro rasgo de independência, estava em um relacionamen-
to sério com Ernst Lanz, um suíço de Winterhur. Dadas essas circunstâncias,
ela acabou se casando com Ernst no dia 3 de janeiro de 1973, na Capela de São
Pedro e São Paulo, no bairro de Cidade Jardim. A pedido da noiva, houve ape-
nas uma recepção discreta na casa do pai. Mônica preferiu que o dinheiro da
festa fosse revertido em doações a instituições de caridade. O casamento foi
objeto de uma nota, dois dias depois, no caderno “Ilustrada” da Folha de
S. Paulo. Logo em seguida, ela foi morar em Munique, Alemanha.
No final daquele ano, a família programou visitar Mônica, na Europa. Mas
antes, iriam passar o Natal em Águas de Lindoia.
No dia 23 de dezembro, Zilda arrumou todas as coisas das crianças em suas
malas, fechou a casa, as grades das janelas e se colocou junto à porta para a via-
gem. Péter, entretanto, continuava em seu escritório.
– Antes de ir embora tenho que assinar essa pilha de papéis – disse ele, com
a naturalidade de quem sempre colocava o trabalho acima dos prazeres da vida.
Entediada, talvez até um pouco irritada, Zilda olhou para o jardim e disse
para si mesma:
– Vou fazer o quê parada na porta? Vou catar as ervas daninhas no jardim...
Mexe daqui, puxa dali, a dona de casa achou uma taturana que estava comen-
do as roseiras e falou para a filha:
– Vera, pega esta taturana, põe num papel e joga no lixo.
Mas a menina conseguiu enganar a bichinha, fazendo-a subir em um
graveto e, com ele em mãos, levou-a para outro lugar. Foi quando encon-
trou Arlindo, o jardineiro, que vinha em sentido contrário. Ao ver a tatu-
rana, ele exclamou:

134 Sem Limite


– Ah, essa desgraçada! Semana passada eu estava limpando o ninho delas no
coqueiro e uma delas me queimou. Agora ela vai ver o que é bom para a tosse!
Vai se queimar também...
E assim, a partir de uma banalidade, a roda do destino começou o seu curso de
eventos que, concatenados, levariam nossos personagens a um resultado terrível.
A garrafa plástica de álcool tinha um bocal com sistema de jato, com o qual
Arlindo encharcou a taturana para, logo em seguida, colocar fogo. Enquanto
o inseto se contorcia, alguém chamou o jardineiro para fechar novamente as
grades da casa.
Ele então se virou para Vera e, antes de partir, pediu que a menina de 11 anos
guardasse o recipiente de álcool. Ela fez menção de ir, mas, ao ver que o inseto
ainda estava agonizante, pensou:
– Puxa, coitadinha... Ainda não morreu.
Aos seus olhos, a chama já havia se apagado, pois a claridade tornara o fogo
do álcool quase invisível. Ela então apontou o bico do álcool para a taturana e
o instante seguinte, o que viria depois, seria revivido na sua memória centenas
de vezes por muitos e muitos anos. Ao espirrar o líquido sobre o inseto, a cha-
ma azulada subiu pelo jato para dentro da garrafa, criando uma bomba incan-
descente que ela, por instinto, jogou para cima.
A bola de fogo girou uma ou duas vezes, na altura de sua cabeça. Foi tudo
muito rápido, até cair em outra criança que estava assistindo a tudo desde o iní-
cio: seu irmão Péter. O álcool explodiu, encharcou sua roupa de tecido sintético
e, em uma fração de segundos, o menino virou uma tocha humana.
Péter ainda conseguiu raciocinar e lutando pela vida, deu a volta pela casa e
entrou no tanque que ficava nos fundos. Brigando com a torneira que não abria,
ele buscou ali sua salvação.
Ao ouvir os gritos, o pai veio da cozinha apreensivo, incapaz de imaginar o
quê o aguardava.
– Vera! O Que está acontecendo?
A menina, chocada, não teve coragem de entrar em detalhes e disse apenas:
– Petinho se machucou...
O menino tivera cerca de 40% do corpo queimado, o suficiente para matar
muitas pessoas. A antes lenta roda do destino girava agora a todo vapor. Entre
ligar para o médico da família e este chamar uma ambulância, os pais lutavam
impotentes pela vida do filho. Cansados de esperar pelo socorro, o enrolaram

A vida de Péter Murányi 135


em um lençol tirado do varal e o enfiaram no LTD Landau rumo ao Hospital
Sírio Libanês.
Quando o menino chegou ao hospital, ele estava sentindo tanta dor que seus
sentidos ficaram confusos. Ele sabia, por exemplo, que a enfermeira ia lhe apli-
car um anestésico. Ela provavelmente estava preparando a seringa o mais rápi-
do possível, mas para quem sofria como ele, a impressão era de que ela se mo-
via em câmera lenta.
Somente quando o menino já estava na UTI, os pais se deram conta de que a
menina sofrera uma queimadura no braço, de primeiro e segundo graus, além
de ter perdido parte das sobrancelhas e dos cílios.
A vida da família mudou entre o instante em que as artimanhas do des-
tino permitiram que uma garrafa de álcool fosse parar nas mãos de uma
criança e aquele outro em que a chama maliciosa subiu pelo jato inflamável.
Nada de viagem, nada de Natal. Agora a prioridade era o básico, era a sobre-
vivência de Péter Júnior.
Conforme as horas e os primeiros dias passavam, ia-se tomando ciência das
dimensões do dano. O fogo atingira o nervo da perna esquerda, retirando parte
dos movimentos, que somente viriam a ser recuperados tempos depois, à custa
de um tratamento à base de estímulos elétricos. O braço esquerdo, com a pele
repuxada pelas queimaduras, não se levantava acima do peito. O menino perdeu
ainda uma mama e o umbigo. Apenas para poder voltar para casa, foram neces-
sárias 22 cirurgias ao longo de dois meses de hospitalização contínua.
Em um determinado momento, os médicos ficaram preocupados com a ali-
mentação de Júnior, que estava ficando debilitado. Entre outras coisas, ele se re-
cusava a tomar leite. A mãe não conseguia convencê-lo a se alimentar, até que
resolveu apelar: ofereceu a ele um presente. Havia um brinquedo que era a “co-
queluche” da garotada de então: o Missile Robot MR 45. O robô, fabricado no
Japão, tinha uns dois palmos de altura e possuía acessórios que até hoje impres-
sionam. O mais vistoso era um lançador de foguetes preso ao peito, que podia ser
ajustado por controle remoto para lançar até quatro mísseis em um raio de 360
graus. O rapazinho ficou animado com a oferta e se esforçou para se alimentar
melhor. Ainda assim, acabou recebendo uma sonda nasal.
Ao longo desse período, o menino quase perdeu a vida algumas vezes, como
quando teve uma violenta infecção causada pelo intracath, um método de aces-
so vascular para a administração de drogas ou soluções. Ainda nos dias de hoje,

136 Sem Limite


Péter Júnior e seu pai, durante viagem
à República Dominicana

Alfred Halward e Péter Murányi,


amizade de toda uma vida

Péter em viagem à China, na década de 1970


é um sistema que exige uma rotina diária e rígida de antissepsia da via de aces-
so, justamente para evitar complicações. Em outra ocasião, sofreu choque ana-
filático causado por transfusão de tipo sanguíneo errado.
Na cabeça do pai do menino, um homem que tinha verdadeira compulsão
por exatidão, era preciso haver um culpado. Ainda mais em uma situação como
aquela. Sofrendo, em devastador desespero pelo risco de vida de seu filho, ele
não mediu sua drástica reação. Assim, logo no primeiro dia, na pressa de punir
alguém, fosse quem fosse, lançou sua sentença contra a filha de 11 anos, man-
dando-a para o quarto, por uma semana. De lá, ela seguiu para a casa da tia-avó
Zilda, pois não havia quem pudesse cuidar dela, já que a mãe passava o tempo
todo ao lado do menino e o pai se desdobrava em consultar especialistas e achar
os melhores recursos técnicos para abreviar a recuperação.
Quando Zilda se internou com o filho, para cuidar dele, ela estava com uma
terrível bursite, que a impedia de levantar o braço direito. Mas esse mal se curou
pela necessidade, desapareceu sem ela nem perceber quando. Afinal, não que-
ria que enfermeira alguma tirasse o menino da cama, na hora de trocar o lençol.
Era sempre ela, que esticava os braços para a frente e o pegava de um jeito espe-
cial, para que a pele do menino não tocasse em nada.
E cada cirurgia que o menino fazia para implantar pele ou fazer enxerto,
Péter exigia estar presente, dentro da sala. E se o médico dizia que não era neces-
sário, ele respondia: “Então não opera. Sem mim não opera”. E houve até mes-
mo um dia em que era necessário fazer um enxerto na barriga, mas o médico
achou que o menino de apenas 9 anos, não aguentaria uma nova anestesia. E o
pai, após conversar com o garoto, autorizou o médico a fazer o procedimento sem
anestesia alguma. Péter Júnior sentiu dores horríveis, mas aguentou até o fim.
No dia 1º de fevereiro de 1974, com o menino ainda internado, ocorreu o trá-
gico incêndio do Edifício Joelma, em São Paulo, que provocou a morte de 191
pessoas, deixando 300 feridos. Zilda ficou desesperada, do banheiro do quar-
to do hospital era possível ver o prédio em chamas, de onde algumas pessoas se
atiravam no vazio em um gesto extremo de desespero para se livrar das chamas.
Da cama, o menino queimado perguntava o que eram aqueles sons de sirene,
incessantes. E a mãe, para enganá-lo, dizia apenas:
– É o governador Laudo Natel que está passando com os seus batedores.
Desde o início, uma das maiores angústias da menina Vera era falar com o ir-
mão, precisava ser perdoada de alguma forma. Mas, em um primeiro momento,

138 Sem Limite


ela não pôde vê-lo, porque estava na UTI. Depois, quando ele foi para o quarto,
o pequeno recusava receber a visita dela. Era, para Vera, a pior punição. A irmã
então quis mostrar o quanto o seu perdão tinha importância, dando de presen-
te a ele coisas que o menino sabia serem valiosas para ela. Foi quando o presen-
teou com o “Manual do Escoteiro Mirim”, do Walt Disney, e uma caixa de bor-
rachinhas perfumadas com formato e cheiro de frutas. Objetos que hoje podem
parecer ingênuos, mas que no universo daqueles dois irmãos tinham um imen-
so significado. Depois disso, Péter Júnior lhe abriu as portas.
Vera passaria muitos anos da vida com aquela culpa, que, em parte, fora ali-
mentada sem intenção pelo jeito de ser do próprio pai. Repassava mentalmen-
te cada detalhe, conversava com o irmão. Mas, no início de 1974, ela não tinha
a maturidade, nem aquele distanciamento que só o tempo oferece, para perce-
ber que um acidente como aquele é o resultado de vários pequenos erros co-
letivos, pelos quais os adultos são os principais responsáveis. Mas, o amor e o
tempo se encarregaram de colocar tudo em seus devidos lugares. Como foi,
desde sempre e para sempre.

A vida de Péter Murányi 139


Capítulo 6
Um dia de 1979
O incompetente só traz problemas.
O competente propõe soluções.

142 Sem Limite


O dia começou com a governanta trazendo-lhe o Estadão na porta
do quarto, às sete horas da manhã. Se ela tivesse vindo antes disso,
ele provavelmente teria dito:
– Ainda no está no sua horário...
E se ela tivesse atrasado alguns minutos, ele a receberia com um irônico
“boa tarde”.
Ele leu o diário por ali mesmo, zanzando entre o quarto e o escritório e, uma
hora depois, começou a ligar para a fábrica. Ele costumava anotar todas as pen-
dências em um caderninho, fazia um mapa de controle e ia perguntando a cada
um dos encarregados se os problemas da véspera já haviam sido resolvidos. Fa-
zia sempre isso, como também instruía o que esperava deles para aquele ou
para os próximos dias. Essa tarefa era facilitada pelos relatórios feitos por dona
Tânia, que informavam a produção do dia anterior, a produção semanal e os
eventuais atrasos no cumprimento de metas.
Como havia um processo judicial em andamento, relativo a um de seus ter-
renos, Péter também ligou para o advogado, não deixando de mencionar que
o prazo para o recurso estava se esgotando. O advogado, obviamente, sabia
muito bem disso, mas era uma compulsão que o empresário não conseguia e,
claro, nem queria evitar...
Boa parte do lucro de suas empresas era reinvestida em imóveis. Por que ele
iria comprar ações de outras empresas? Para Péter, a ação era “um pedaço de pa-
pel pintado”, enquanto a terra era terra, algo palpável e eterno. Aos amigos mais
íntimos, ele dizia:
– Investe em imóvel, porque o população cresce, e a imóvel não.
Quanto a isso, ele parecia ter um dom para adivinhar para onde a cidade ia
crescer e o que iria valorizar. Um de seus grandes negócios foi comprar o ter-
reno da antiga fábrica de ceras “Parquetina”, na esquina da avenida IV Cente-

A vida de Péter Murányi 143


nário com a rua Pedro de Toledo. Eram 10 mil m2 de frente para o Parque do
Ibirapuera. Mas, nunca chegou a dar a essa propriedade o destino que ela me-
recia. Por ter se tornado uma área residencial, não podia abrir uma fábrica ali.
Então, montou um depósito para guardar material, produtos prontos, máqui-
nas antigas e refugos.
Em seguida, com muito do dinheiro que ganhou fabricando as latinhas de
graxa da Nugget, comprou em 1975 o antigo edifício das Grandes Indústrias
Minetti-Gamba Ltda., na Mooca, zona Leste paulistana. Era um conjunto indus-
trial impressionante, formado por galpões espalhados por uma área com cerca de
18 mil m2. Levantado a partir de 1910 e ampliado na década de 1930, pertencera à
empresa, que se dedicava à moagem de trigo, produção de sabão e de óleo vegetal.
Em Santo Amaro ele comprou por muito pouco um terreno de 60 mil m2,
onde pretendia desenvolver um imenso projeto imobiliário. Ocorre que o terre-
no era um mangue, pois fazia parte da área de expansão do rio Pinheiros. Isso,
para Péter, não era problema, pois ele achava possível fazer uma obra de drena-
gem. Mas, para a sorte dele, não foi preciso. Quando o governo resolveu dragar
o rio, a areia retirada seria levada de caminhão para um local distante, para lá de
Perus, noroeste da cidade de São Paulo. Péter procurou então o mestre de obras
e o sondou com a seguinte astuta pergunta:
– E se eu deixa você joga esta areia toda na minha terreno?
O homem sorriu e respondeu sem titubear:
– Se o senhor me deixar jogar, eu ainda coloco máquinas para deixar o solo
bem plano.
Assim, sem ter praticamente qualquer despesa, ele conseguiu deixar o terre-
no pronto para ser utilizado. Do ponto de vista jurídico, contudo, muitos em-
bates se fariam necessários até que ele pudesse ser utilizado da maneira como o
empresário desejava.
Nesse meio-tempo, ele acabou sendo procurado por representantes da
Associação Cristã de Moços (ACM), que tinha interesse em construir um cen-
tro para jovens naquela região. Ao atender esses líderes, Péter ficou encantado
com a proposta da ACM, de trabalhar para a juventude e com a juventude, pro-
movendo valores nos quais ele também acreditava. Ele acabou tomando para
si aquela bandeira e, quando percebeu que conseguiria regularizar o terreno,
decidiu doar para a ACM uma área de três mil m2. Ali, o arquiteto Arnaldo
Paoliello, com quem o empresário manteve uma amizade durante mais de 30

144 Sem Limite


Time de futebol da fábrica

Laudo Natel com Péter e Zilda


anos, ergueu um arrojado projeto de um edifício de quatro pavimentos, incluin-
do um complexo esportivo que atende a 5 mil pessoas.
Em suma, o empresário foi, aos poucos, construindo um patrimônio imobi-
liário imenso, mas que ele não tinha tempo para administrar. Seus olhos esta-
vam sempre voltados para a fábrica, que era o seu grande orgulho e que sempre
exigia muita imaginação para reduzir os custos, aumentar a eficiência e atender
aos pedidos dos clientes, todos sempre ávidos por novas soluções técnicas para
as suas embalagens.
Ainda em seu quarto, Péter telefonou para a corretora Suplicy, que interme-
diava suas aplicações de commodities. Inicialmente eram apenas café, algodão e
soja. Mas, em 1978, começou a funcionar a Bolsa de Mercadorias de São Paulo,
abrindo para o empresário a oportunidade de negociar também com gado e
ouro. Aliás, Péter teve um papel importante nesta expansão da Bolsa, tanto que
acabou sendo nomeado conselheiro da instituição. Ele era exigente, e a correto-
ra precisava estar sempre atenta para não perder a confiança de seu bom, mas
igualmente atento, cliente.
Por conta de suas negociações no mercado de futuro, Péter, vez ou outra,
acabava recebendo algumas dezenas ou centenas de sacas de café, que ele guar-
dava em um depósito na avenida Presidente Wilson, que ali dormiam seguras
esperando por melhores preços. Mas quando o assunto era boi, ele somente po-
dia trabalhar virtualmente. Era preciso liquidar a posição antes da data do re-
cebimento, porque não havia como enfiar os bois em nenhum de seus imóveis...
Feitas todas as ligações telefônicas, Péter cochilou por mais uma hora, antes
de retomar suas atividades no escritório contíguo.
Dona Tânia, como se sabe, além de secretária do consulado, cuidava da pa-
pelada que diariamente vinha da fábrica para receber os despachos do senhor
Péter. Pela manhã, cabia a ela recolher os documentos assinados na noite ante-
rior para enviá-los por malote de volta à empresa. Mesmo trabalhando com ele
há alguns anos, ela ainda foi capaz de, por um gesto inconsciente, bater na por-
ta do escritório antes de entrar. Mas logo se arrependeu dessa delicadeza ao ou-
vi-lo dizendo, como um pai que ralha com o filho:
– Eu já falei dona Tânia! Eu no qué que peça licença pra entrá. Isto aqui é um
escritório, você entra o hora que precisa!
Ela entrou e imediatamente pegou a pilha de papéis que ele separara para ela,
examinando rapidamente o conteúdo com as pontas dos dedos. Não achando o

146 Sem Limite


que procurava, repetiu a operação, tentando não chamar a atenção do chefe. Mas
vendo que Tânia continuava ali parada, Péter logo perguntou:
– O que o senhora quer? O que está faltando?
– Aquele documento do consulado que o senhor ficou de examinar ontem
à noite.
– Eu no está mais com ele. Deve está no sua mesa – respondeu o homem,
sem pestanejar, confiante no seu método de organização, que, sem dúvida, era
muito eficiente.
Desta vez, porém, Tânia tinha certeza do que estava falando. O documento
não fora devolvido. Como não gostava de enfrentá-lo, vasculhou discretamente
o escritório com um olhar atento. Trinta segundos depois, exclamou:
– Ali, senhor Péter! Estou vendo o documento no canto da mesa, assinado.
Péter franziu o cenho ao ver que havia se enganado, passou o papel para ela em
um gesto seco, mas não se fez de rogado. Sem admitir o erro, saiu pela tangente:
– Está vendo? Este escritório é muito organizado. Se não está no sua mesa,
está no minha. Se não está no minha, está no sua.
Em seguida, como que para contra-atacar a funcionária, ele logo se lem-
brou de uma pendência anterior. E cobrou um galão de tinta preta que
Tânia ficara de providenciar para os carimbos do consulado. Ela, descon-
certada, respondeu:
– Eu juro para o senhor que pedi para o Rubens comprar, mas ele agora está
dizendo que eu não pedi.
Um fato corriqueiro como esse era capaz de irritar bastante o empresário.
Não era tanto pela falta de tinta, mas sim porque Tânia não cumprira o proto-
colo que ele exigia: fazer os pedidos sempre por escrito, para ficar com a prova
na mão. Irritado, reclamou:
– Agora é o palavra do senhora contra o palavra do Rubens! Vou acreditar
em quem?
No casarão do Sumaré, Tânia era o braço direito do empresário, que a ad-
mirava enormemente. Nem assim, porém, ela conseguia se livrar dos reflexos,
por vezes desagradáveis, daquela personalidade centralizadora e perfeccionista.
Neste exato momento dona Lenir, a governanta, entrou no escritório sem ba-
ter. Viu, pela cara do chefe, que ele estava contrariado. Nessas horas ela não pen-
sava duas vezes e batia em retirada escada abaixo. Enquanto ela fechava a porta,
delicadamente, ainda pôde ouvir o patrão dizendo:

A vida de Péter Murányi 147


– Dona Lenir, volta! Eu não quero descarregar no senhora os meus proble-
mas... Não é nada sério!
Mas a mulher nem queria saber, tal era o desconforto que sentia quando o
homem estava nervoso. Seu sotaque ficava ainda mais carregado e a fala tão em-
bolada que mal se conseguia compreender o que ele falava.
Na década de 1970, Péter se envolvera em tantos projetos simultâneos, que não
encontrava mais tempo para ir pessoalmente à fábrica. Uma das grandes ideias
que teve, de certo modo viria a beneficiar não apenas seus próprios funcioná-
rios, mas seria praticamente uma revolução no modelo de pagamento de traba-
lhadores que existia então. Até o ano de 1976, a maioria deles recebia seus ven-
cimentos em envelopes de pagamento, em cujo interior o salário de cada pessoa
era depositado integralmente, incluindo as miúdas moedas de centavos.
Para aqueles que viviam na criminalidade não era difícil descobrir o dia e ho-
rário de pagamento de funcionários das empresas próximas. Assim, os assaltos
eram uma frequente. Se não isso, os trabalhadores eram surpreendidos quan-
do retornavam para suas casas, levando os polpudos envelopes para entregar o
dinheiro às famílias.
Em contato com seu amigo Laudo Natel, que deixara o cargo de governador
do Estado em 1975 e retornara para a diretoria do Bradesco, Péter Murányi não
hesitou em pedir que o banco colocasse em prática uma solução criada por ele.
Surgiu assim o Cheque Salário, um documento onde constava o valor inte-
gral do pagamento de cada funcionário e que poderia ser descontado em qual-
quer agência Bradesco. Nominal a este, o cheque permitia também que seu porta-
dor fizesse compras nos mercados credenciados, recebendo o troco em dinheiro.
Até dezembro de 1977, o Bradesco contava com 500 empresas cadastradas e a
emissão mensal de 350 mil cheques, utilizados no pagamento de mais de 100 mil
empregados. O sistema funcionou tão bem que, anos mais tarde, a Associação
dos Bancos no Estado de São Paulo pediu autorização do Banco Central para
lançar o Cheque Salário em outras instituições financeiras.
Tal preocupação era a prova de que, mesmo não comparecendo à fábrica,
Péter não diminuía em nada sua dedicação. E ainda que não estivesse presente,
além dos telefonemas diários, valia-se dos relatórios de produção que recebia to-
dos os dias e de outros nem sempre ortodoxos instrumentos de gestão. Por exem-
plo, quando instituía alguma regra a ser cumprida pelos empregados, ele o fazia
por meio de seus famosos “avisos”. Eram normas de serviço que, de tempos em

148 Sem Limite


tempos, podiam ser consolidadas em um novo aviso oficial, englobando tudo o
que era proibido ou exigido com o que era permitido. O mais famoso deles era
o chamado “Aviso 467”, que versava sobre irregularidades.
A intenção do Aviso 467 era excelente: comunicar à chefia qualquer irregula-
ridade, qualquer problema identificado no funcionamento da fábrica. Cada ge-
rente de seção deveria preenchê-lo diariamente, mesmo que fosse apenas para
dizer que estava tudo bem. Servia como meio de os administradores saberem
em tempo real o que estava acontecendo. Era também um alvará para o empre-
gado que havia se deparado com um obstáculo poder resguardar-se em caso
de algum desdobramento desastroso. Ele, servindo-se do 467, poderia dizer:
“Eu bem que avisei, pelo aviso da segunda-feira, que a manutenção estava ruim”.
O problema é que, na prática, esses relatórios geravam atritos entre os chefes
de seção. Por exemplo, se o João Raimundo, chefe da Ferramentaria, recebia
de outra seção um componente errado para montar, ele primeiro deveria con-
versar com o colega para solucionar o problema. Se os dois não fossem capazes
de resolver a questão sozinhos, o primeiro deveria relatar o fato pelo Aviso 467.
E já sabendo que o documento iria direto para as mãos do senhor Péter. A maio-
ria não gostava de fazer isso, mas não tinha jeito. Todos sabiam que o patrão
detestava omissões e segredos em sua fábrica. A punição poderia ser severa...
Naquele dia, uma segunda-feira, Péter tinha uma reunião no consulado da
República Dominicana. No passado, ele recebera ali muita gente famosa, can-
tores e esportistas, como Nelson Ned, Roberto Carlos, Pelé e Carlos Alberto
Kirmayr. Eles tinham interesse em se casar na república caribenha, como forma
de driblar a legislação brasileira que negava aos desquitados o direito a um novo
matrimônio. Mas, depois de aprovada a lei brasileira que concedia o divórcio, em
26 de dezembro de 1977, projeto dos então senadores Nelson Carneiro (MDB-
-RJ) e Accioly Filho (MDB-PR), as questões consulares eram mais relacionadas
ao comércio, que Péter havia conseguido incentivar.
O papel de Péter, como cônsul honorário, não era nada simbólico. Tanto que
ele acabara de voltar de uma viagem com os filhos à República Dominicana, a
convite do governo local. Eles foram hospedados, durante seis semanas, em um
hotel de Santo Domingo para que Péter pudesse realizar com calma uma mis-
são bastante singular. Ciceroneado pelo senhor Savignon – embaixador domini-
cano no Brasil – e auxiliado por duas secretárias, o empresário brasileiro deve-
ria elaborar um plano econômico para acelerar o crescimento daquela pequena

A vida de Péter Murányi 149


república. Enquanto isso, Vera e Péter Júnior, então com 17 e 15 anos respecti-
vamente, não ficaram parados. Foram muito bem recebidos pelas filhas e pe-
los netos do diplomata dominicano, com quem se divertiam na piscina, indo ao
cinema e em outros passeios.
As crianças haviam crescido...
Péter Júnior, após sair do hospital, continuou sofrendo as consequências do
acidente. A pele queimada não conseguia mais se expandir e ele era obrigado a
fazer novas cirurgias a cada ano para enxertar pedaços de pele que lhe permi-
tissem acompanhar o desenvolvimento do seu corpo. Dos 9 anos em diante, ele
precisou abrir mão das férias de verão para fazer essas cirurgias.
Em 1975 eles foram aos Estados Unidos para verificar as possibilida-
des de tratamentos no centro especializado em queimados Shriners Burns
Institute, em Galveston, Texas (EUA) e em outros hospitais norte-americanos.
Ali fizeram para ele um colete especial para comprimir a pele e evitar a for-
mação de queloides, mas o garoto acabou não usando porque era muito
apertado. Embora o conjunto dessas ações tenha apresentado resultados po-
sitivos, ele estava triste por não poder passar as férias no Guarujá, litoral pau-
lista, jogando bola e surfando. Como prêmio de consolação, Petinho, a mãe
e a irmã foram para o parque de diversões da Disney, na Flórida, enquanto
Péter seguia a trabalho para Nova York.
O garoto também sofreu com o bullying dos colegas do Colégio Santo Améri-
co, que era um semi-internato para meninos e administrado por padres húngaros.
Péter, enquanto arrumava a gravata diante do espelho, lembrou-se do dia
em que dom Emilio Jordan, que era o diretor do colégio, chamou o empresário
para uma conversa. A reclamação do padre era sobre a agressividade do meni-
no, que brigava quase todos os dias. Péter ouviu tudo em silêncio enquanto Jú-
nior, em um canto da sala, manteve-se de cabeça baixa, visivelmente preocupado
com a reação do pai. Quando o diretor terminou de falar, Péter manifestou-se de
maneira curta e seca:
– No se preocupa. Vou tomá meus providências.
Dali pai e filho saíram em silêncio, até o estacionamento. Quando entraram
no carro, o pai perguntou:
– Úia, filho, por que você está fazendo estas coisas?
O menino, certo da punição rigorosa que sofreria, respondeu com a voz
embargada:

150 Sem Limite


Péter e Zilda em
visita à República
Dominicana

Zilda e Péter na década de 1970, no Sumaré


– É por causa do meu acidente, das minhas queimaduras. Os meninos ficam
me chamando de torrada, tostex, omelete. Das duas uma, ou eu brigo e enfren-
to os meus problemas, ou eles vão “subir” em cima de mim!
O homem ficou pensativo por alguns instantes, fez uma longa curva para a
esquerda, engatou a terceira marcha com certa agressividade e disse:
– Úia, filho, se é por causa disso... Continue brigando na escola e deixa que
eu me acerto com dom Emilio.
E funcionou. Como em todo colégio de meninos, Péter Júnior logo conquis-
tou “no braço” seu espaço dentro do grupo e as brigas pararam.
Mas o menino não deixou, com isso, de ser muito arteiro dentro de casa.
E, mesmo condoído pelo acidente do filho, Péter continuava a ser rigoroso com
a disciplina. Certa vez, por causa das notas ruins na escola, deixou o filho um
ano inteiro sem ver TV. Em muitas ocasiões, diante da indisciplina do garoto,
oferecia-lhe possibilidades de determinar sua própria punição. Assim, Júnior, o
penalizado, poderia indicar a mais adequada. Se escolhesse algo suave demais,
Péter agravaria o castigo. Se fosse algo muito severo, o pai abrandaria. Mas se a
punição lhe parecesse justa, ele consideraria. Aliás, esse tipo de atitude fazia par-
te de seu rígido critério de justiça. Quando da oportunidade de qualquer tipo de
divisão, como um punhado de balas ou um bolo, o sistema que usava era o se-
guinte: o mais velho dos filhos faria a partilha, mas, para forçar o perfeito equi-
líbrio, quem escolheria sua cota em primeiro seria sempre o caçula.
Se Péter Júnior podia “escolher” sua punição, com Vera as coisas eram bem
diferentes. A moça fazia de tudo para não decepcionar os pais, embora tives-
se constantes desavenças com a mãe. Agora, aos 17 anos, ela carregava o sonho
de estudar Letras na Universidade de São Paulo (USP), pois planejava traba-
lhar com idiomas ou com turismo. Mas Péter sabia que, se fosse para o bem dos
negócios da família, seria preciso convencê-la a mudar de rumo.
Ele era o tipo de pai que, mesmo fechado em seu casulo de trabalho e obriga-
ções, tentava influenciar a formação dos filhos, segundo a sua própria visão de
mundo. Um exemplo disso foi o presente que deu a Vera em 1976, o livro Como
evitar preocupações e começar a viver. Escrito por Dale Carnegie, o mesmo
autor do best-seller Como fazer amigos e influenciar pessoas, era uma leitura
um tanto pitoresca para uma menina que contava, então, com apenas 14 anos.
Mas Péter dizia que aquela obra havia mudado a sua vida e, na dedicatória, fazia
votos para que o livro a ajudasse tanto quanto havia ajudado a ele.

152 Sem Limite


Ele pudera avaliar a maturidade dos filhos durante os dias que passaram
juntos em Nova York, pouco depois da passagem pela República Dominicana.
Como o empresário e diplomata tinha vários compromissos de trabalho, não
encontrava tempo para passear com os filhos. Sua mente, quando colocava os
pés em um país estrangeiro, ficava sempre borbulhando em busca de oportu-
nidades comerciais, novas máquinas, novos materiais e embalagens. Então, pe-
gou para cada um deles um mapa da cidade, marcou um x sobre a localização
do hotel e desenhou um grande quadrado ao redor dele, que tinha por um dos
lados a rua 42. Depois disse:
– Dentro desse quadrado vocês podem anda à vontade, mas sempre juntos.
Estejam na hotel 18 horas, no máximo.
E lá ia ele para as reuniões, certo de que os filhos saberiam se cuidar.
E não era apenas essa demonstração que o fazia acreditar na capacidade que
tinham seus filhos de serem responsáveis. Cerca de um ano antes da viagem,
Péter Júnior vencera uma antiga resistência do pai e começara a fazer pequenos
serviços na fábrica. Péter sabia que Vera também poderia ajudá-lo, trabalhando
no casarão do Sumaré. Era um projeto para quando ela estivesse na faculdade.
Portanto, tão logo 1979 chegasse ao fim, ele daria um jeito nisso.
Péter olhou para o relógio. Faltava pouco para a reunião no consulado e ele
primava pela pontualidade. Em seu quarto, abriu com orgulho o guarda-roupa
que ele mesmo mantinha impecavelmente arrumado. Ninguém, nem a esposa
ou a governanta, podia colocar ou tirar dali coisa alguma. Vestiu então o pale-
tó claro de linho, prendeu as abotoaduras de madrepérola, deu o nó clássico na
gravata de seda, amarrou o cadarço do seu sapato suíço e desceu as escadas da
casa. Algumas dezenas de metros depois, tomou a trilha de pedras que levava
ao consulado, onde encontrou empresários interessados em fazer negócios com
a República Dominicana.
Nessa época, o consulado recebia cerca de 20 pessoas por dia e Péter se quei-
xava enormemente da falta de apoio do governo dominicano que, na opinião
dele, não agia em favor de seus próprios interesses. Ele lamentava, por exem-
plo, a ausência de material propagandístico a ser distribuído no consulado, in-
formando os interessados sobre o turismo e a economia da pequena república.
Por causa disso, enviou ao presidente Antonio Guzmán um plano denomina-
do “Reorganizações Administrativas Internas e do Serviço de Exterior para
dinamizar as Exportações”.

A vida de Péter Murányi 153


Aliás, a mente de Péter continuava bastante fértil no que diz respeito à ela-
boração de planos na área econômica, educacional, tributária e até urbanística.
Em 1967 ele enviara ao governador biônico paulista Abreu Sodré um projeto
extremamente detalhado e lúcido para resolver o problema do trânsito no Cen-
tro de São Paulo, criando duas rótulas sobrepostas, onde, na interna, somente
poderiam trafegar veículos coletivos e oficiais entre as 8 e as 19 horas. Na exter-
na, os carros particulares só poderiam circular durante o dia se provassem que
tinham vaga de estacionamento permanente. Haveria locais, fora das rótulas,
para o estacionamento de veículos particulares, próximos aos terminais de ôni-
bus, permitindo assim o fácil acesso ao Centro da capital. Era o tipo de projeto
que não oferecia a Péter qualquer benefício pessoal, denotando apenas um sin-
cero e desprendido amor pela cidade.
No início de 1974, quando já se sabia que o general Ernesto Geisel seria o
novo presidente do Brasil, Péter usou seus contatos pessoais para buscar um en-
contro de 45 minutos com o futuro governante. O empresário pretendia apre-
sentar alguns projetos destinados ao desenvolvimento do País, à redução das de-
sigualdades sociais e da importação de petróleo, entre outros temas relevantes.
Ao que parece, não obteve sucesso. Ainda assim, o projeto revela, mais uma vez,
sua compreensão da necessidade de coordenar as ações do estado com a reali-
dade social e econômica.
Terminada a reunião no consulado, o almoço no Sumaré foi melancólico e
solitário. Afinal, havia algo que o perturbava profundamente, algo do qual sua
mente não conseguia se afastar por muito tempo. Zilda o havia deixado em ju-
nho daquele ano, cansada e nervosa pelo ritmo de vida do empresário. Mesmo
quando viajavam, mesmo quando ele promovia uma festa ou recepção, o fundo
de tudo sempre era o seu trabalho, as suas empresas ou o consulado. Enquanto
as amigas dela saíam para jantar na sexta-feira, Zilda via com frustração o ma-
rido desabar exausto na cama, totalmente insensível aos interesses dela. Um dia,
após uma dura conversa, sua companheira fez a mala e partiu, coisa que ele nun-
ca aceitou. Ela foi morar no mesmo prédio onde moravam suas irmãs, na ave-
nida Angélica.
Desconfortável com a situação, ele fazia de tudo para que os laços entre eles
jamais se rompessem totalmente. Se dava uma festa no Sumaré ou oferecia um
almoço, invariavelmente a chamava. Mas, independentemente do sentimen-
to dele sobre aquela situação, algumas questões práticas precisavam ser resol-

154 Sem Limite


vidas. Desse modo, por consenso, aceitaram dividir os filhos. O menino mo-
raria com o pai e a menina com a mãe. Para Vera, o rompimento veio em um
momento especialmente ruim, não só por conta do vestibular que se avizinha-
va, como também porque seu relacionamento com a mãe não estava na melhor
fase. Diante disso, a adolescente logo teria que forçar outra solução que muda-
ria drasticamente sua vida.
Após o almoço, Péter decidiu, subitamente, que era necessário dar uma pas-
sada pela fábrica. Ele não estivera por lá na semana anterior e havia alguns as-
suntos pendentes que considerava importante discutir pessoalmente. Quando
Tânia soube disso, chegou a rir por dentro, imaginando o susto que o pessoal da
fábrica iria tomar quando ele aparecesse por lá. Seria um “pandareco”, como se
usava dizer à época. Com pena dos colegas, apressou-se em telefonar:
– O homem está indo para a fábrica... Gente, se prepara!
Péter, por sua vez, antes de chamar o motorista, avisou à governanta:
– Estou de saída. Meu quarto está livre para o arrumação.
Dona Lenir foi cuidar pessoalmente do assunto e, assim que entrou no quarto,
deparou-se com dois maços de dinheiro largados no chão. Aquilo não era nada
incomum e, como ela não gostava nem de tocar no dinheiro do patrão, deu aos
maços um destino singular. Logo em seguida, lançou-se ao trabalho de arru-
mação do cômodo.
Dentro do carro, sentado confortavelmente no amplo banco de trás,
Péter consultou sua lista de pendências. Em seguida, abriu um exemplar da re-
vista “Visão” que, na edição de “Quem é Quem na Economia Brasileira”, apon-
tava mais uma vez a empresa Péter Murányi Indústria e Comércio S/A entre
as maiores do Brasil. Porém, mantendo aquele perfil que já ficara bem eviden-
te desde a década de 1950, Péter continuava se destacando em outros campos,
como suas ações beneméritas, e em outras relacionadas à difusão e proteção da
cultura. Um dos reflexos disso é que continuava colecionando condecorações
e homenagens. Daí ter recebido em 1974, da Câmara Municipal de São Paulo, a
Medalha “Anchieta” e o Diploma “Gratidão da Cidade de São Paulo” pelo tra-
balho que fez em prol da alfabetização do povo brasileiro. Em 1975 mereceu a
medalha “Euclides da Cunha”, pelo Clube dos Estados. Em 1976, foi a vez da
“Ordem do Mérito Republicano”, entregue pela Academia Brasileira de Histó-
ria. Em 1977, o Instituto Histórico e Cultural de São Paulo entregou-lhe a me-
dalha “Pero Vaz de Caminha”. Por fim, em 1979, foi condecorado pelo Presiden-

A vida de Péter Murányi 155


te da República Dominicana, com a Ordem Honra e Mérito “Duarte, Sanchez y
Mella”, no grau de Grande Oficial.
Enquanto ele se deslocava pela cidade, o telefonema de Tânia causou o alvo-
roço esperado entre os funcionários da empresa. Casacos foram retirados dos
encostos das cadeiras, copos desapareceram de cima das mesas, cigarros foram
apagados. Algumas pessoas tinham tanto medo do patrão que se esconderam
no banheiro para evitar encontrá-lo.
Dona Penha era supervisora da área de Pessoal, dentre muitas outras funções.
Tinha uma grande equipe sob seu comando, mas também atuava como secre-
tária de Péter na fábrica. Naquele dia, ela já havia terminado seu expediente às
13 horas. Contudo, sabendo que ele passaria por lá, deixara no lugar de sempre
uma pilha de folhas datilografadas para conferir. Era um projeto que ele tencio-
nava apresentar ao presidente João Figueiredo e cujas ideias essenciais havia, na
semana anterior, gravado e entregue a ela em uma fita cassete. Naquela primei-
ra versão, ele certamente ainda faria várias alterações, cortando um tanto, ra-
biscando novidades, acrescentando algo, gerando ao longo das semanas novas
versões que seriam, sucessivamente, datilografadas por dona Penha, até que se
chegasse ao documento acabado.
A eleição de Figueiredo poderia representar uma boa oportunidade para que
as sugestões de Péter voltassem a ser ouvidas pelo Palácio do Planalto. Afinal, o
novo presidente tinha sido o chefe da Polícia Militar durante o primeiro man-
dato (1966-1967) de seu amigo Laudo Natel à frente do governo de São Paulo.
Natel, embora tivesse voltado à vida privada após o segundo mandato (1971-1975),
continuava sendo uma figura admirada e respeitada nacionalmente.
Penha deixara também à vista a “Folha de Compromissos”, com a relação dos
telefonemas recebidos na ausência dele, as ligações que ele teria de fazer, além
dos assuntos do dia anterior que estavam pendentes. Por fim, a supervisora dei-
xara em sua mesa uma questão não resolvida. Naquela manhã o office-boy da
empresa trouxera, junto com os papéis vindos do Sumaré, os tradicionais bi-
lhetinhos manuscritos de Péter para os diferentes encarregados da empresa.
Nessas horas era comum que um ou outro não conseguisse ler o que ele havia
escrito e acabava trazendo o papel para que Penha fizesse a devida interpreta-
ção, que era quase uma tradução da caligrafia e do português vacilante do pa-
trão. Tarefa que também dona Tânia se via forçada a fazer, no escritório do Su-
maré. Para a complexa missão, o cérebro de ambas já estava calejado. Mas, dessa

156 Sem Limite


Alfred Halward, Vera, Péter Júnior, Zilda e Péter na Rua Antonina

Péter Júnior, Mônica, Vera, Lydia, Fritz Josef Bar, Yvonne,


Alfred, Arlete e Péter, em uma reunião de família na Rua
vez, o bilhete enviado ao sr. Eurico Gerson, conselheiro técnico da empresa, im-
pusera uma dificuldade inesperada até para a competente dona Penha. Ele esta-
va escrito metade em alemão!
Feita a tradução, ele começou a fazer a inspeção da fábrica como de costume,
cumprimentando todo mundo, mas sem entabular conversações ociosas. Tirando
o ruído do interior da fábrica, o processo de fabricação das embalagens era bo-
nito de se ver. Havia uma lógica e uma ordem que inspiravam admiração. Além
da precisão das máquinas, via-se a desenvoltura com a qual todos os operários,
com seus uniformes de cor azul, manuseavam as embalagens, os rótulos, as em-
pilhadeiras e os pesados equipamentos do processo de fabricação.
A higiene também era uma questão importante, pois várias embalagens iriam,
no futuro, carregar alimentos, como as latas de manteiga e leite em pó. Não por
acaso, as moças que mexiam com as embalagens estavam de avental e usavam
os cabelos presos. Os empregados responsáveis pelos equipamentos pesados
vestiam adequados grossos macacões e calçavam botas com bico de aço. Os aci-
dentes eram muito raros, como demonstrava um quadro na entrada da fábrica,
que, atualizado diariamente, indicava a ausência de acidentes há várias semanas.
Os empregados da Murányi eram extremamente conceituados em São Paulo e
comumente eram atraídos para trabalhar em outras empresas.
A fábrica não fornecia comida para os operários. Eles geralmente traziam mar-
mitas de casa, mas havia um espaço grande para esquentar e comer as refeições.
Embora, por vezes, as visitas de Péter pudessem gerar momentos de tensão,
também podiam trazer outros tipos de surpresa. Naquele dia, por exemplo, ele
entrou no quartinho da oficina e disse ao Raimundo, encarregado da mecânica:
– Raimundo, vai entrar no fábrica um português, que vai ser encarregado ge-
ral, e um espanhol, que será encarregado do estamparia. Eles vão ganhar mais
que você.
O mecânico ficou olhando o patrão por um instante, entre chateado e con-
fuso. Mas Péter logo arrematou:
– Mas no se preocupe, porque vem um aumento do sindicato. Mas além des-
se aumento, quanto você qué ganhá?
O funcionário tomou então um susto ainda maior. Porém, essa era a forma
peculiar que Péter tinha para mostrar sua consideração pelos bons empregados.
Sim, ele protegia a sua gente. Protegia e “preservava”, por assim dizer. Uma
das táticas empregadas por Péter para evitar a fuga de funcionários para a con-

158 Sem Limite


corrência era emprestar dinheiro a ser descontado do salário de cada um em
pequenas parcelas. Não cobrava juros, mas atingia seu objetivo e deixava todo
mundo feliz, afinal. A questão é que ninguém, nem os melhores, nem os mais
queridos estavam livres das suas curiosas manias e do seu rigor. Em um sába-
do, ele foi à fábrica só porque soube, por um fofoqueiro, que o Raimundo estava
namorando uma moça da produção. Dessa vez não deu em nada. Mas, de ou-
tra feita, ele fez o impensável. Ao descobrir que a Tânia estava há cinco anos na-
morando um dos funcionários do departamento pessoal, não vacilou em demi-
tir o rapaz, embora ele já tivesse nove anos de firma. Péter continuava firme na
opinião de que empregados não devem ter relações íntimas, porque ficam pro-
pensos a encobrir os fatos, ou podem se mancomunar para fazer algo de errado.
Essa filosofia era um dos fundamentos para justificar sua antipatia pelos cam-
peonatos de futebol na empresa.
Desde o início existiram os jogos internos na indústria. Eram partidas dos
operários da fábrica contra os funcionários do escritório, algo como “Fer-
rugem” contra “Pó de Arroz”. Mas, com o tempo, os empregados da Fibra-
lata começaram a organizar partidas e até campeonatos contra times de
outras empresas do setor. Houve uma fase de futebol de campo e outra, pos-
terior, de futebol de salão. Ainda na época da grama, um funcionário que-
brou o braço em campo e o empresário ficou revoltado, tentando conven-
cer os operários de que “futebol é para quem é profissional”. A verdade é que
Péter não gostava muito dessa modalidade. Aquela bobagem de uma bola
disputada por 22 homens apenas despertava sua atenção durante a Copa do
Mundo. Torcia, é claro, pelo Brasil, e sem perder a oportunidade de esbra-
vejar usando os termos originais do esporte britânico. Xingava o linesman, que
não assinalasse corretamente um impedimento, ou um corner, e também o goal
keeper, que deixasse passar um frango.
Penha era uma das entusiastas dos campeonatos, conspirando para amo-
lecer o coração do chefe e ajudando a conseguir uniformes para as equipes
e transporte para as partidas. Por sua vez, a secretária Tânia era tão fanáti-
ca pelo time que, nas vitórias da equipe, recebia medalhas como se fosse um
dos atletas. Péter, em algumas ocasiões, quase ficava animado com as con-
quistas da equipe, que chegou a se destacar nos campeonatos “Comércio x
Indústria” de 1971 e de 1972. Porém, voltava a se irritar pouco tempo depois,
talvez achando que aquilo tudo tirava a atenção de seus operários. Mas não

A vida de Péter Murányi 159


era verdade. A força humana que ele organizara continuava eficiente e não
perdera seu poder de iniciativa.
Houve um dia em que o João Fermino, chefe da Ferramentaria, resolveu
por conta própria um problema antigo. Na linha de montagem da embalagem
do talco “Granado”, tinha que ficar um funcionário especificamente para co-
locar em pé os tubos de papelão que seriam recravados. Ele fez um dispositivo
que levantava o tubo quando este saia da máquina, permitindo que seguisse so-
zinho para a fase seguinte. Mas, durante esse processo criativo, o operário teve
alguns atritos com o patrão. Mais tarde, quando tudo ficou pronto, Péter veio
assistir ao funcionamento e, no final, deu um tapinha nas costas de João Fermino
antes de comentar:
– Úia, eu vai te dar um prêmio!
O empregado retrucou, dizendo que não queria.
Péter, surpreso, perguntou:
– Você no gosta de dinheirro?
– Gosto e preciso. Mas eu preferia mesmo é que o senhor não pegasse no meu
pé quando eu faço algo errado!
– Úia, você é muito mal criada! – disse Péter, indo embora. E o prêmio foi
pago, mesmo assim.
Nas conversas com seus funcionários de confiança, ele constantemente pas-
sava a mensagem de que ninguém era insubstituível na organização. Um dia,
depois de demitir um encarregado do setor de Expedição, avisou aos demais:
– Eu tenho uma lista aqui de quem eu vai mandá embora. O primeira era
ele, que já foi.
Um funcionário, assustado, não se conteve:
– Seu Péter, eu estou na lista?
– Você era o quinta – respondeu Péter ironicamente – agora está em segunda!
Ele também costumava dizer que tinha um copo em cima da mesa para cada
funcionário de confiança. Cada erro que o funcionário cometia resultava em uma
gota de água que o empresário colocava em seu copo. “Alguns copos já estão quase
transbordando!” – dizia ele, em tom ameaçador. Mas ele sabia a importância que
alguns empregados tinham para a produção, o que o levava a tomar algumas de-
cisões incoerentes. Por exemplo, quando ele descobriu que um de seus melhores
mecânicos havia se ausentado do serviço durante o expediente, Péter deu a ele ape-
nas uma advertência, mas suspendeu o porteiro que o deixou sair e nada avisou.

160 Sem Limite


Péter era exigente e duro com sua equipe. Mas, para ele, era um desdobra-
mento lógico da atividade econômica ali realizada. Existiam contratos a serem
cumpridos, que demandavam o comprometimento de todos. A qualidade do re-
sultado precisava ser a melhor possível, dentro das limitações técnicas. Como a
história mostra que as barreiras da tecnologia podem ser constantemente ven-
cidas, então uma boa empresa deve estar sempre em busca de novas soluções.
Por fim, em uma indústria, a integridade física do grupo depende de uma atitu-
de responsável de cada um. Assim, tendo tudo isso em mente, a disciplina pre-
cisava ser rígida.
Havia também no seu raciocínio um caráter didático e que se refletia, por
exemplo, nas “normas internas de pessoal”, em que se lia:

Dispomos de vestiários com armários individuais e ins-


talações higiênicas suficientes. Pedimos para o seu pró-
prio bem e o bem geral de seus colegas que cada um
procure conservar ao máximo estas instalações. Elas re-
velam o grau de civilidade de seus usuários.

Para muitos empregados, fazer carreira na Péter Murányi representou


uma efetiva ascensão social, em um tempo em que isso não era muito comum.
O empresário sempre dizia que “todos são candidatos a promoções, e elas depen-
dem, como é óbvio, de vários fatores, tais como: assiduidade, disciplina, esforço,
dedicação e capacidade profissional para assumir o cargo”. Foi o caso de João
Fermino, que entrou na empresa com 14 anos, como aprendiz, chegou a chefe
da fábrica e atualmente tem sua própria indústria.
Coerente com esses ideais, Péter buscava incentivar a produtividade e a ca-
pacidade criativa de seus funcionários.
Havia o “Abono de Frequência”, que era um valor em dinheiro considerável.
Ele era recebido na sua integralidade se o funcionário não se atrasasse mais do
que cinco dias no mês. O abono era cortado pela metade entre seis e dez atra-
sos. Acima disso, ele era suprimido por completo. Atrasos inferiores a cinco mi-
nutos não eram levados em conta. Para os cargos de confiança havia uma re-
gra mais flexível.
Outro abono concedido era o chamado “Abono Prêmio Provisório”, que, na
linguagem popular, era conhecido como o “cai-cai”. Era uma quantia peque-

A vida de Péter Murányi 161


na e que era reduzida por conta de cada falta cometida. Dependendo da puni-
ção, podia-se perder o cai-cai por alguns meses. Isso era a critério da Diretoria.
A empresa também estimulava novas ideias e soluções, oferecendo prêmios
em dinheiro aos inovadores. Graças a essa política, a indústria era titular de al-
gumas patentes de invenção, como o sistema de abertura da lata de graxa Nugget.
Os funcionários da empresa, além de terem o direito a utilizar o hospital
Sepaco, contavam com uma caixa de auxílio da própria empresa, que prestava
assistência financeira em casos de acidente ou doença. O auxílio era concedido
após o estudo da real situação, por uma comissão dos empregados e homologa-
ção da Diretoria. Por meio de um sistema semelhante, também podiam ser feitas
doações aos empregados para resolver outros tipos de problema, como a compra
de passagens aéreas para visitar um parente doente em outro estado.
Além das doações, muitos empregados foram beneficiados por emprésti-
mos isentos de juros para a compra de imóveis ou automóveis. Nesse sentido,
dona Penha era um bom exemplo. Seu primeiro carro foi financiado pelo senhor
Péter a preço de custo. Ela pediu essa ajuda em 1963 para comprar um Dolphine,
um modelo popular da marca Renault, e combinou com ele quanto seria descon-
tado do salário ao longo dos meses. Porém, quando ela pediu demissão para se
casar, descobriu que o patrão havia liquidado o restante da dívida. Ficou como
presente de casamento. Mais tarde, em 1967, quando ela lhe pediu uma carta de
referência para trabalhar em uma das unidades do Serviço Social da Indústria
(Sesi), ele disse:
– Já que vai voltar a trabalhar, volte para sua antigo lugar.
E assim foi, pois Péter tinha a característica de se apegar aos funcionários de
quem gostava. Mas, não foram apenas os empregados ocupantes de cargos de
confiança que se beneficiaram desses empréstimos generosos.
Em outra frente, ele também ajudou um bom número de funcionários a con-
cluir cursos superiores. No caso de Tânia, sua secretária no Sumaré, reduziu a
sua carga horária de trabalho para que ela pudesse estudar Direito em Mogi das
Cruzes. E como a secretária fazia muito bem o seu serviço, manteve aquele be-
nefício quando ela concluiu o curso.
Todos esses fatos pareciam impregnar as paredes da fábrica enquanto Péter
caminhava pelos seus diferentes setores. Após duas horas de andanças e con-
versas com os chefes e os supervisores de diferentes áreas, o senhor Murányi
foi embora tão subitamente quanto havia chegado. Dali seguiu direto para sua

162 Sem Limite


Família velejando em Ubatuba, nos anos 1980: Péter, Paru, Gert, Zilda,
Mônica, Vera e Péter Júnior

Péter Júnior, Mônica, Vera e um amigo da família, Ralph Rocha


casa no Sumaré, onde estava sendo esperado por Yvonne. Ela era a encarre-
gada de assuntos privados, aplicações financeiras, contas pessoais e coisas do
gênero. Vinha a ser irmã da Zilda e, por conta da recente separação do casal,
havia surgido certo desconforto na relação entre ela e o empresário. Naquele fi-
nal de tarde, entretanto, os dois conseguiram conversar normalmente, sob um
clima bastante profissional.
Por volta das seis horas da tarde, ao voltar para o seu quarto, Péter encon-
trou algumas roupas suas limpas e dobradas sobre a cama, esperando que ele
mesmo as guardasse. Como tinham vindo da tinturaria, ele deu a baixa de cada
peça em um rol, no qual ele controlava a entrada e a saída de suas roupas. No-
tou, entretanto, a falta de alguma coisa que lhe obrigou a chamar a governanta.
– Dona Lenir, cadê meu dinheirrrinha que estava no quarto?
– Sua dinheirrrinha que estava espalhada pelo chão? – respondeu ela com um
sorriso jovial – eu joguei embaixo da cama, para poder limpar o chão!
O jantar foi servido às sete horas em ponto e, no mesmo horário, pela pri-
meira vez naquele dia, Péter esteve com seu filho. O rapaz gozava de uma liber-
dade muito grande. Dava a impressão de que, para o empresário, os meninos se
desenvolviam melhor quando livres da vigilância paterna. Já com as meninas o
seu machismo impunha um controle mais aproximado.
Jantaram em silêncio, assistindo ao noticiário e, quando este acabou, con-
versaram um pouco sobre as questões mais importantes. O país vivia então um
processo de abertura política que tivera por ápice a promulgação da Lei de Anis-
tia, no dia 28 de agosto. Com a volta dos exilados, o próximo passo parecia ser
a criação de novos partidos políticos. Tudo isso interessava a Péter vivamente.
Após o jantar, os dois se desafiaram para uma partida de xadrez no salão pró-
ximo ao jardim de inverno. Embora o pai tenha vencido ao final, a disputa foi
bastante acirrada e se alongou por quase duas horas.
Quando Júnior subiu para seu quarto, Péter foi tomado por um profundo
desalento. Sentia falta da esposa e da filha. Aquela casa, aquele salão eram sóli-
dos monumentos a eternizar sua vida ao lado de Zilda. Ela o ajudou a comprar e
reformar o imóvel, quando ainda era sua secretária. Dentro daquelas paredes
tinham trocado o primeiro beijo.
Ainda sentado diante do tabuleiro de xadrez, fechou os olhos e viu a espo-
sa com um belo vestido longo, brilhando em uma das muitas festas que, como
consulesa da República Dominicana, organizara ali.

164 Sem Limite


Sim. As recepções do Sumaré eram disputadíssimas, muitas delas coinci-
dindo com festas nacionais brasileiras ou dominicanas. As mais simples eram
para até 40 pessoas. Quando o evento exigia um número maior de convidados,
o casal contratava um bufê, que também cuidava da decoração. Assim, se era
um jantar de comida chinesa, móveis orientais eram distribuídos pelo ambien-
te para compor a atmosfera.
Boa parte da elite empresarial paulista comparecia, assim como autoridades
estaduais e municipais, além de chefes militares. As funcionárias da casa gos-
tavam especialmente dos oficiais da Marinha, com seus impecáveis uniformes
brancos. A alegria se estendia pelo jardim de inverno e pelo gramado. Vera e
Péter Júnior, sem muito entusiasmo, também faziam as honras da casa, distri-
buindo sorrisos entre os convidados.
Havia também os eventos beneficentes, bastante comuns no Sumaré. Zilda
fazia parte de um grupo de consulesas que se reunia pelo menos uma vez por
mês para a arrecadação de recursos. Normalmente eram chás, ocasião em que
as mais prendadas aproveitavam para fazer enxovais de crochê para crianças ca-
rentes. A casa também abrigava desfiles de moda caritativos. Tiravam-se os mó-
veis da sala, que virava uma passarela para as modelos que faziam da bibliote-
ca um camarim.
Tudo isto servia de pano de fundo para o elemento principal, que era a for-
mulação de estratégias para os projetos filantrópicos do grupo. E o resultado tor-
nava-se palpável ao longo dos meses, conforme iam chegando sacos e mais sacos
de peças de roupas e outros itens diversos.
Quando chegava o Natal, aqueles sacos eram abertos na sala e as mulheres
dividiam de modo equilibrado as peças de roupa, cueiros e fraldas, formando
enxovais que eram então empacotados para presente.
Lembrando então do nascimento de Jesus, as mulheres iam para as materni-
dades mais humildes da cidade distribuir enxovais para todas as mães que esta-
vam lá. E a criança que nascesse à meia-noite, na noite de Natal, ganhava ainda
um berço ricamente enfeitado com rendas. Depois, por sugestão de Zilda, dimi-
nuiu-se o luxo das rendas para aumentar o número de berços doados. O resul-
tado disso era uma sucessão de momentos comoventes, não apenas pelos pre-
sentes distribuídos, mas pelo calor humano. Não raro elas se deparavam com
parturientes sozinhas, porque o marido não pudera ser avisado, porque estava
trabalhando em outra cidade ou porque, simplesmente, haviam sido abando-

A vida de Péter Murányi 165


nadas. Havia também situações mais dramáticas, de crianças que nasciam com
problemas ou de jovens mães que traziam à luz bebês natimortos. Para essas
situações, elas também tentavam prestar algum auxílio.
Foi por conta dessas ações que Zilda acabou conhecendo uma outra Zilda, a
esposa do governador Laudo Natel, quando ele ainda estava à frente do Estado
de São Paulo. Conheceram-se através de uma amiga em comum, por conta das
ações sociais desenvolvidas pela primeira-dama. Ela era extremamente dedica-
da à caridade, tanto pelo Fundo Social do palácio do governo quanto por uma
entidade que ela havia criado no final da década de 1960. Era a Associação de
Assistência à Família Necessitada (Aafan). A principal finalidade era a recupe-
ração de famílias carentes por meio do trabalho. Garantindo a subsistência dos
pais, buscava-se manter a família agregada, assegurando, assim, a proteção dos
filhos e seu acesso à educação e à saúde.
O Fundo Social cadastrava famílias carentes que recebiam diferentes ti-
pos de auxílio, que iam de cestas de Natal a cadeiras de roda e andadores. Zilda
Murányi ajudou a sua xará, dando o melhor de si, mas com muita humildade.
Demorou muito tempo até que a primeira-dama viesse a saber, por terceiros, que
a voluntária era consulesa da República Dominicana.
– Por que você nunca nos contou? – perguntou-lhe Zilda Natel.
– Porque eu venho aqui para trabalhar e não para me exibir – respondeu
Zilda Murányi.
A partir daí elas desenvolveram uma grande amizade, que acabou por tam-
bém aproximar seus maridos. Péter já admirava o governador e passou a gostar
também de sua conversa franca, sua simplicidade e seu estilo caipira. O senti-
mento era recíproco, uma vez que Laudo apreciava não apenas a simpatia de Pé-
ter e seu raciocínio rápido, como também seu profundo espírito patriótico e sua
incessante busca por soluções que atendessem aos interesses do País.
Laudo Natel deu grandes provas dessa amizade em momentos de extre-
ma tristeza para a família Murányi. Uma delas foi quando Péter e Zilda esti-
veram nos Estados Unidos para buscar alternativas ao tratamento do filho.
Então, no dia 31 de janeiro de 1975, Aurelio Suelotto, pai de Zilda, subita-
mente faleceu. A notícia alcançou a família na Flórida, para onde haviam
estendido a viagem. O problema é que Zilda caíra doente, sendo diagnosti-
cada com pneumonia dupla. Laudo, que ainda era o governador do Estado,
passou a noite na casa do Sumaré para velar o corpo e, assim, honrá-lo na

166 Sem Limite


Navegar: uma prática que se tornou cada vez mais
rara na vida do empresário

Péter e seu grande amigo Fritz Josef Bar


ausência da esposa do amigo. Uma vez que ela, por ordens médicas, foi for-
çada a perder o sepultamento do pai.
Péter se emocionou com todas essas lembranças, mas não deixou que uma
única lágrima o denunciasse. Levantou-se da cadeira e foi para o quarto, onde
uma pilha de documentos o aguardava.
Ao entrar no dormitório notou que a imagem de Nossa Senhora estava fora
do lugar. Para ele, a santa precisava estar exatamente centralizada sobre a cama
do casal, sem pender nem para o lado de um, nem para o lado do outro. Ele en-
tão tratou logo de arrumá-la, antes de qualquer outra coisa.
Na cabeceira da cama, tinha sempre um açucareiro e os chamados “masco-
tes”. Embora ele tivesse um regime alimentar rígido, era marcado por profundas
incoerências. Uma delas era o hábito de consumir colheradas de açúcar cristal.
Sem encostar os lábios na colher, ele lançava punhados de açúcar na direção da
boca, com grande destreza. Ele falava que o açúcar era o combustível de seu cé-
rebro, que precisava dele para raciocinar. Juntando-se a isso a grande quantida-
de de chocolate, queijos e de tutano que comia. Pode-se dizer que o regime dele
se resumia à seguinte sentença: “a família deve comer o que me faz feliz e tudo o
que não gosto faz mal e, consequentemente, está fora do meu regime”.
Os “mascotes” eram uma série de bonequinhos, cada um com origem e
história diferentes. Um deles, por exemplo, era um pequeno violinista de ma-
deira que ele ganhou da filha mais velha, Mônica. Outro era um brinquedo
de sua infância, e outro ainda era um boneco de gesso feito por Júnior. No
total, não passavam de oito e tinham um valor muito grande para ele, tanto
que ele costumava levá-los em suas viagens. Seguindo uma tradição que a fa-
mília tinha de fazer presentes uns para os outros no Natal, Vera, em algum
momento, fez para o pai uma caixinha com detalhes em pirografia. Era de
couro, toda trabalhada, para ele guardar os mascotes quando viajava. Havia
por ali também a Bíblia que ele usara em sua primeira comunhão e que Vera
também encapou para o Natal.
Já era tarde da noite. Em um momento em que quase todas as pessoas iam
descansar, dormir ou passar algum tempo com a família, Péter recomeçava a
trabalhar. No escritório, em algum momento do dia, o boy havia trazido de vol-
ta um malote com um sem-número de documentos – tanto que, às vezes, preci-
savam usar uma mala de viagem. Muitos deles vinham em formulários ou pa-
péis timbrados com um número codificando cada assunto.

168 Sem Limite


Os documentos, antes de chegarem às mãos dele, tinham sido organizados
por Penha e Tânia em quatro pastas básicas: “Assinatura”, “Em mãos”, “Urgente”
e “Rotina”. Por vezes, havia também a “Confidencial”.
Lançadas as assinaturas nos documentos da primeira pasta, Péter passava
ao exame dos documentos classificados como “Em mãos”. Dependendo da si-
tuação, ele podia perder horas debruçado sobre essa parte. Tanto que a pasta de
“Urgentes” frequentemente ficava para o dia seguinte e a “Rotina” para quando
fosse possível. E era tanto barulho que ele fazia em seu escritório, por horas a fio
e madrugada adentro, que Zilda, antes de se separar dele, mandou colocar uma
porta dupla para isolar o ruído.
Era normal que, em situações como essa, ele fosse dormir por volta das cin-
co da manhã. Não raro, passando pelo corredor, encontrava com Vera, quando
ela acordava mais cedo para estudar. Mas, naquela noite, com saudades da filha
e da esposa, foi dormir às três da madrugada mergulhado em suas reminiscên-
cias para afastar a solidão.

A vida de Péter Murányi 169


Capítulo 7
Momentos de decisão
Agora você tem um diploma
para colocar na parede.

172 Sem Limite


E m 1979, a jovem Vera Murányi passou por uma verdadeira monta-
nha-russa de experiências. Presenciou seus pais se separarem em ju-
nho. Logo em seguida, viajou por cerca de dois meses com o pai e o
irmão pelo Caribe e Estados Unidos. Não bastasse isso, deixou a casa onde nas-
cera para morar com a mãe em um apartamento. Para Zilda, a mudança tam-
bém era drástica. Era uma mulher ativa, que já exercera muitas funções de res-
ponsabilidade na fábrica e nos negócios de Péter. Cuidava com esmero de suas
responsabilidades como consulesa e, mais recentemente, havia começado a se
dedicar à pintura e às obras beneficentes de vulto. Nessa nova fase, pretendia
equilibrar sua vida agitada com outros valores. Queria, especialmente, dedicar-
-se à filha adolescente e ao novo lar.
Quando as duas se viram sozinhas no mesmo imóvel, as diferenças de tem-
peramento, que já existiam, ficaram latentes. A mãe se esforçava para fazer as
panquecas de que a filha gostava e se preocupava em dar palpites sobre as rou-
pas que ela usava. Vera, no novo contexto, passou a ser um dos pontos domi-
nantes do dia a dia de sua mãe. A moça, por outro lado, queria liberdade para
conduzir seus próprios planos. Era ano de vestibular e ela preferia, muitas vezes,
estudar na casa de suas amigas. Então, por melhor que fosse o almoço prepara-
do pela mãe, isso não era incentivo para voltar para casa depois da aula. Ela não
se sentia inclinada a submeter seus planos à vida nova que a mãe estava tentan-
do construir para as duas. Nessas horas, sentia inveja da autonomia conquista-
da pelo irmão caçula. Para Zilda, por outro lado, era difícil compreender que a
filha não desse valor aos seus gestos de dedicação.
Passados quatro meses e alguns atritos, Vera chegou à conclusão de que aque-
la nova vida a estava sufocando. Foi quando visualizou a possibilidade de con-
quistar, pelo trabalho, alguma autonomia. A tia Yvonne estava cada vez mais
incomodada em cuidar dos negócios pessoais de Péter, que deixara de ser seu

A vida de Péter Murányi 173


cunhado. A moça, então, foi sondando a possibilidade de ajudar a tia, de traba-
lhar com ela. Seu pai também gostou da ideia e, no dia 1º de novembro daque-
le ano, ela assumiu na empresa o cargo de Assistente Financeira. Embora soas-
se imponente, ela ainda era apenas uma aprendiz. O importante é que, em sua
mente, era um jeito de estar mais próxima do pai, de retomar sua vida no Suma-
ré e de crescer, conquistar conhecimento e experiência. A “estratégia” deu certo:
em pouquíssimo tempo, Vera voltou a morar no casarão.
Em 3 de dezembro, Alfred Halward, o padrasto de Péter, morreu em São Pau-
lo. Anos atrás ele havia deixado a mãe de Péter para se casar com sua secretá-
ria – da qual logo enviuvou. Apesar dessa conturbada história, ele continuou a
ser muito bem recebido no Sumaré. Aliás, era tratado como avô tanto por Vera
quanto por Péter Júnior, sendo conhecido por toda a família como “opa”, que sig-
nifica “avô” em alemão. Com bom humor e carinho, a “neta” havia criado para
ele a designação de “avôdrasto” para explicar a sua complexa posição na árvore
genealógica da família. Além do relacionamento familiar, Alfred integrara a di-
retoria da Péter Murányi Indústria e Comércio S.A., fazendo parte de uma es-
pécie de conselho de confiança do presidente da empresa. E ele foi, sem sombra
de dúvida, um referencial importante na vida de Péter, que, atendendo à última
vontade do velho “Fredziu”, providenciou a sua cremação no dia 4 de dezembro.
Pouco depois, Vera foi aprovada no vestibular para o curso de Letras na
Universidade de São Paulo (USP). Era a realização de seu sonho, mas o pai in-
terveio imediatamente, movido por sua visão prática do mundo. Achava que
aquele curso seria uma perda de tempo para ela. Então, resolveu persuadi-la a
mudar de rumo, dizendo:
– Toda o luta das pais é tentar evitar experiências dolorosos para os filhos.
Na Hungria se diz mais ou menos assim: a sábio aprende com o experiência das
outros. Então, veja... Aqui em casa você está trabalhando com Administração, o
que é muito mais útil para a família do que Letras. Então, eu proponho um acor-
do. Esquece Letras. Você faz curso de Administração e eu manda você estudar
línguas, nas férias, em outro país.
E assim foi. Em 1980, ela fez um cursinho preparatório. Seis meses depois,
foi aprovada no vestibular de Administração de Empresas da Fundação Getúlio
Vargas e começou o novo curso. Juntando a faculdade com o trabalho no casa-
rão do Sumaré, Vera foi entrando na vida adulta meio sem perceber. Nos primei-
ros meses, o trabalho era relativamente simples, mas já exigia bastante atenção.

174 Sem Limite


Péter durante jantar com o futuro primeiro ministro de
Israel, Menachem Begin, nos anos 1950

Péter em uma reunião com a diretoria da Federação


das Indústrias do Estado de São Paulo
Naquela época, em que quase tudo era feito à mão ou na máquina de escrever, ela
lançava cheques em livros de contabilidade, fazia mapas de produção em folhas
de oito colunas, controlava os aluguéis e conversava com os inquilinos.
Em contrapartida, Péter Júnior continuava trabalhando na fábrica, aprenden-
do o funcionamento das máquinas, participando das diferentes fases do proces-
so industrial e acompanhando de perto a atividade dos funcionários. Era evi-
dente que ele estava sendo preparado para dirigir a empresa, por isso precisava
conhecer todos os meandros. Se um funcionário falasse que não era possível fazer
algo, ele deveria ter condições de julgar tal afirmação. Sua vida também era mui-
to mais livre. Tanto que, com 16 anos, já transitava com sua própria motocicleta.
Embora Péter Júnior fosse o caçula dos Murányi, o pai o encarava como o
herdeiro natural da fábrica. Afinal Mônica, que começou a frequentá-la mui-
to mais jovem do que os irmãos, nunca se interessou pelos negócios. Houve até
uma época em que a primogênita estagiou por lá, sob a orientação de Penha, mas
não deu certo. Vera, por outro lado, nunca teve a oportunidade de viver a rotina
do processo industrial. Foi logo de início escalada para trabalhar junto ao pai,
no Sumaré. Embora pudesse acompanhar de lá muitos dos problemas, influía
nas decisões de maneira indireta, ajudando Péter a organizar as informações
que fundamentariam as suas sentenças. Havia certo machismo nessa divisão de
responsabilidades, mas talvez fosse muito mais uma questão de temperamento.
Algo que Péter resumiu para a filha quando a jovem terminou o curso de
Administração. Em seu estilo seco e direto, ele disse:
– Agora você tem um diploma para colocar no parede. Mas você ainda no
sabe nada, e só vai aprender com o prática. Não quero que você trabalhe no fá-
brica, porque você tem a perfil errado. Você no consegue demitir ninguém, você
é o “Associação Beneficente Vera Murányi”. Qualquer empregado que lhe pedir
alguma coisa, você dará.
E a moça, no seu íntimo, via certa verdade nisso. Era ciente de que, apesar
de o pai também ter atitudes beneficentes, os dois viam o mundo por perspec-
tivas e cores bem diferentes.
Cursando a faculdade recomendada pelo pai, Vera se sentiu à vontade para
cobrar a promessa. Queria estudar idiomas no estrangeiro. Assim, nas férias de
julho de 1982, foi fazer um curso de Inglês, com duração de seis semanas, no
Canadá. Aproveitou-o intensamente sem perceber que, durante sua ausência,
algo de importante estava acontecendo no Sumaré. Hospedada em um quarto

176 Sem Limite


no campus da universidade canadense, ela recebeu um telefonema dos pais no
meio da madrugada – Péter vivia se confundindo com o fuso horário. Conver-
sou com ambos por alguns instantes, até se dar conta de que no Brasil eram seis
horas da manhã. Confusa, pensou: “O que a mamãe está fazendo a esta hora na
casa do papai?”
Péter e Zilda tinham reatado o casamento.
Ao longo dos anos, a moça foi se aprofundando no estudo de diversos idio-
mas, como Inglês, Francês, Alemão e, posteriormente, Húngaro. A facilidade
que tinha nesse campo do conhecimento seria usada pelo pai com bastante fre-
quência. Ele falava Alemão muito bem, mas tinha apenas um razoável conheci-
mento da língua inglesa. Por não se sentir confortável em escrever nesse idioma,
ditava a carta em Português e Vera anotava, depois fazia a tradução e entrega-
va tudo datilografado a ele. Um exemplo inesquecível dessa simbiose entre pai
e filha veio no início da década de 1980, quando fatos deploráveis mancharam
de sangue o Oriente Médio.
Em junho de 1982, as Forças de Defesa de Israel (FDI) invadiram o Líbano,
buscando impedir que a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) usas-
se o Sul daquele país para lançar foguetes contra Israel. Com o apoio de parte da
comunidade cristã do Líbano, as tropas israelenses não demoraram muito para
isolar as forças da OLP em um pedaço da cidade de Beirute. O conflito, por si só,
desgastou bastante a imagem de Israel no Ocidente e esse quadro se tornou ain-
da mais sombrio em setembro. No dia 14 daquele mês, o presidente do Líbano,
o cristão Bachir Gemayel, foi assassinado junto com outras 26 pessoas na sede
do Partido Falangista, em meio a uma grande explosão. Dois dias depois, mili-
cianos falangistas, que atuavam no território ocupado por Israel, promoveram
um terrível ato de vingança. Invadiram os campos de refugiados palestinos de
Sabra e Chatila e massacraram centenas de pessoas. Muitas delas eram crian-
ças, conforme se pôde constatar pelas fotos comoventes que logo se espalharam
por jornais de todo o mundo.
No dia 24 de setembro de 1982, Péter participou de um jantar íntimo com
alguns líderes da comunidade israelita de São Paulo. O conflito do Líbano foi o
tema central da conversa e o empresário logo notou que, mesmo entre os isra-
elitas presentes, havia um sentimento quase unânime de repúdio à política do
governo de Israel, principalmente pela recusa do dito governo em aceitar a me-
diação do presidente norte-americano Ronald Reagan. A irritação dos presen-

A vida de Péter Murányi 177


tes também era dirigida contra Menachem Begin, que, naquele momento, era o
primeiro-ministro do Estado de Israel. Péter e um diplomata israelense foram
os únicos a defender a política de Begin.
Péter e Menachem Begin se conheciam desde 1949, quando o empresário
brasileiro aderira a uma campanha para a aquisição de ambulâncias e ou-
tros equipamentos em favor do jovem Estado de Israel. Depois disso se en-
contraram em outras oportunidades e também trocaram correspondências.
Em 1978, o então deputado israelense mandou uma carta a Péter agradecen-
do uma doação de cinco mil dólares em favor de um programa de erradi-
cação de moradias precárias em bairros pobres de seu país. Péter também
tinha em seu poder um pequeno pedaço de papel onde Begin, em algum en-
contro que tiveram, anotou o telefone de sua própria casa e de seu gabinete
no Knesset, a Assembleia Legislativa de Israel.
Péter, embora não fosse judeu, sempre honrou o sangue dos avós e a cultu-
ra na qual foi criado, por isso sentia que tinha responsabilidade pessoal pela so-
brevivência de Israel. Tanto que, paralelamente às doações que fez às instituições
sociais e culturais daquele país, destinou recursos às Forças de Defesa de Israel.
Assim, ao sair daquela reunião em São Paulo, sentiu-se na obrigação de es-
crever para o primeiro-ministro israelense relatando o quanto a imagem do país
estava comprometida entre pessoas que, normalmente, seriam o apoio de Israel
no exterior. Ao escrever, acabou indo muito além. Como era do seu feitio, achou-
-se na obrigação de dar algumas sugestões.
Péter estava preocupado com a recusa de Israel em aceitar a mediação norte-
-americana. Por conta disso, ele lembrou a Menachem Begin o quanto os Esta-
dos Unidos eram importantes para a defesa do país, tanto em recursos materiais,
quanto pelo poder de veto que aquela potência ocidental possuía no Conselho
de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). “Mesmo um homem
decidido e destemido deve saber quando chegou a hora de ceder” – disse Péter.
O tema era complexo e a redação da carta exigiu, além da versão para o In-
glês feita por Vera, a revisão minuciosa de Eva Courant, que trabalhava como
tradutora e intérprete. O documento de Péter é repleto de referências a ques-
tões que até hoje perturbam a região e o mundo, como as colônias israelenses na
Cisjordânia, a necessidade da formação de um Estado Palestino e as mudanças
geopolíticas que advirão da criação de um combustível capaz de substituir o pe-
tróleo dos países árabes. Ele também teceu elogios ao Papa João Paulo II e suge-

178 Sem Limite


riu a demissão de Ariel Sharon do cargo de ministro da defesa, por ele não ter
impedido o massacre de Sabra e Chatila.
Begin respondeu rapidamente, já no dia 4 de outubro, referindo-se a ele como
“querido amigo” e lembrando-se do primeiro encontro que tiveram, em 1949.
Em sua carta, o primeiro-ministro afirma que a rejeição às posições apresenta-
das a ele pelo presidente Reagan nada tinham a ver com “fanatismo”. Ao contrá-
rio, foi o resultado de análises lógicas, visando à sobrevivência e à segurança de
Israel. Como reforço da tese, ele enviou a Péter dois documentos em que esclare-
ceu ponto a ponto as suas preocupações e a rejeição ao plano de Reagan. Ao final,
agradeceu as “amigáveis observações” de Péter e desejou a ele um feliz Ano-Novo.
Curiosamente, poucos meses depois o ministro da defesa Ariel Sharon, pressio-
nado por não ter evitado o massacre dos refugiados palestinos, renunciou ao cargo.
Essa troca de correspondências é particularmente interessante para ressaltar
a personalidade de Péter como um homem que não reconhecia limites ou obs-
táculos na sua crença de que tinha o dever de intervir em tudo aquilo que con-
siderasse errado, fosse no Brasil ou em outras nações. Assim, o mesmo homem,
que mudou uma norma tributária norte-americana e que estruturou um projeto
de desenvolvimento econômico para a República Dominicana, também não via
obstáculos em dar conselhos ao primeiro-ministro de Israel e por ele era ouvido!
Não era apenas impetuosidade. Tanto que muitas entidades vinham se acon-
selhar com ele. Afinal, suas visões sobre a situação do país frequentemente ga-
nhavam as páginas de grandes jornais, como na entrevista que concedeu ao jor-
nal O Estado de S. Paulo, em 4 de julho de 1983, intitulada “Saídas para a Crise”.
As ações de Péter na área social lhe valeram muitas condecorações e home-
nagens. Ficou, porém, especialmente tocado com o título de “Patrono Benemé-
rito” do Hospital Albert Einstein e com a adoção do nome “Péter Murányi” para
a unidade de Santo Amaro da Associação Cristã de Moços.
Para dar conta de tantas atividades, para poder formar sua opinião sobre
questões tão díspares, Péter se sentia na necessidade de estar sempre muito
bem informado.
Além dos jornais impressos, o empresário tinha compulsão por assistir a to-
dos os noticiários televisivos. Assim, quando sentia que não poderia chegar em
casa a tempo, mandava que seus filhos gravassem os programas. No início as gra-
vações eram apenas do áudio, em fitas cassete. Nem sempre os resultados fica-
vam perfeitos, pois era preciso um grande esforço de sincronia para terminar a

A vida de Péter Murányi 179


gravação do jornal de um canal e, logo em seguida, começar a de outro. Frustra-
do com a perda de parte das notícias, Péter pediu a um primo de Zilda, especia-
lista em eletrônica, que “inventasse” um gravador com timer. Isso, obviamente,
não era possível. A partir de 1979, quando ele foi para a República Dominicana
com os filhos, eles passaram a gravar em um videocassete Betamax, que com-
praram por lá. Era um equipamento moderno para aquele tempo, mas parecia
uma churrasqueira de tão grande e pesado. Na verdade, ele queria que gravas-
sem todos os noticiários, porque assim poderia comparar os diferentes pontos
de vista. Joelmir Betting tinha opiniões diferentes de Boris Casoy que, por sua
vez, tinha uma visão também diferente de Alberto Tamer. Ele queria conhecer
todas as tendências e linhas editoriais.
Essa mania do empresário acabou levando a um desdobramento inesperado.
Naquela época, as televisões demandavam algumas regulagens manuais e uma
delas era a “horizontal”, que se usava quando a imagem oscilava para baixo ou
para cima. Péter Júnior era o único da casa que conseguia arrumar o problema.
Um dia, quando o rapaz estava com 17 ou 18 anos, o pai lhe pediu:
– Filho, está passando “Jornal Nacional” e a horizontal desregulou.
Vá arrumar para mim.
– Espera um pouco... – respondeu o garoto – Estou no telefone.
A resposta talvez tenha sido a gota d’água em alguma situação conflitu-
osa que vinha se acumulando entre pai e filho, pois a reação de Péter foi ex-
tremada. O empresário começou a gritar, dizendo que era ele quem mandava
na casa e que o rapaz não tinha o direito de fazê-lo esperar. Dali a discus-
são rapidamente saiu do controle, até que o empresário expulsou o filho de
casa. Zilda ficou desnorteada, mas não conseguiu fazer nada. Péter Júnior
teve de ir morar na casa de duas tias, irmãs de sua mãe. Mas, as consequên-
cias não ficaram nisso.
O jovem vinha trabalhando na fábrica desde os 14 anos, primeiro como en-
tregador de recados, aos sábados. Depois foi pedindo novos desafios. Queria, em
especial, assistir às reuniões do pai com os funcionários graúdos e com os clien-
tes. A briga também interrompeu esse processo.
O rapaz, que estudava Engenharia Eletrônica, sabendo que não poderia con-
tar com a ajuda financeira do pai, recorreu aos classificados de emprego. Con-
seguiu um trabalho em Diadema, na região do ABCD paulista, em uma empre-
sa que precisava de um bom soldador para teclados de computador. O mercado

180 Sem Limite


Péter e Zilda
em Bariloche

Na Argentina, Péter retoma um dos esportes de sua infância


de informática ainda estava engatinhando no Brasil, amarrado pela lei de reser-
va de informática, que restringia bastante a importação.
Péter Júnior era o único aluno do primeiro ano com estágio em carteira, por-
que seus colegas, mantidos pelos pais, iriam procurar emprego apenas lá pelo 4º
ou 5º ano. Com o tempo, graças à experiência que tinha adquirido na fábrica do
pai, foi chamando a atenção dos chefes e ganhando promoções. Isso lhe permi-
tiu sair da casa das tias e ir para um apartamento próprio. Foram precisos dois
ou três anos até que Zilda conseguisse fazer Péter perceber que, pela sua teimo-
sia, estava fazendo uma grande bobagem.
– Teu filho está crescendo muito naquela empresa. Não seria mais inteligen-
te que crescesse na tua fábrica e não na do vizinho?
Os dois homens se acertaram e Péter Júnior voltou a trabalhar na empresa,
assumindo a cartonagem. Mas ele não voltou a morar na casa do pai.
– Eu não vou te dar uma segunda oportunidade para me expulsar de casa –
disse o rapaz.
Como não tinha concluído o curso superior, teve que transferir seu curso da
Faculdade Mauá de Tecnologia, também no ABCD, para a Fundação Arman-
do Álvares Penteado (FAAP), na nobre região do Pacaembu, na capital. Mesmo
assim, mal tinha tempo para frequentar as aulas. Em solidariedade, os colegas
assinavam a lista de chamada para que ele pudesse trabalhar e, assim, o jovem
teve professores que mal conheceu. Estudava à noite pelos cadernos fotocopia-
dos dos amigos, na base de muito café e cigarros. Em dias de prova, alguns pro-
fessores o olhavam com surpresa e perguntavam:
– Quem é você?
Esse tipo de ocorrência era uma constante. Terminadas as provas, ele corria
de volta para a fábrica.
Vera, embora mais velha, tivera outra criação e vivia uma realidade bem di-
ferente. Ela morava na casa do Sumaré e trabalhava no outro extremo do mes-
mo terreno, no salão de festas, que fora, havia muitos anos, transformado nas
instalações do consulado. Entre a casa e o “escritório” eram apenas “dez passos
de chinelo”, como o irmão gostava de dizer em tom de gozação. Podia parecer
um exagero, mas não estava muito distante da realidade. Como ela almoçava
em casa, acabou vivendo como que dentro de uma redoma, onde Péter era seu
pai e seu chefe; sua casa era seu trabalho, e o horário de expediente se mistu-
rava com a sua vida privada.

182 Sem Limite


Além das funções de rotina, relacionadas aos negócios do pai, como a decla-
ração de imposto de renda ou os contratos de locação, Vera foi progressivamen-
te abraçando questões mais complexas. Ela passou a ser a pessoa de confiança
quando Péter decidia coletar informações técnicas para tomar decisões estraté-
gicas. A moça, já sabendo os tipos de pergunta que o pai faria, buscava cobrir
todas as facetas da questão, para que ele tivesse a imagem mais completa possí-
vel daquilo que estava em jogo.
Para frustração de Vera, quando ele recebia o material pronto, quase sem-
pre se fechava e tomava a decisão final sozinho e, muitas vezes, sem sequer
lhe dizer os fatores que tinham sido preponderantes para o veredicto. Em
certo ponto, era como se ele julgasse que ela não seria capaz de compreen-
der seu raciocínio. Isso, naturalmente, a desgastava. Em relação ao filho, a
atitude dele não era muito diferente. Quando o empresário metia uma ideia
na cabeça, não adiantava Péter Júnior tentar convencê-lo do contrário, pois
logo ouvia um desaforo:
– Meu vida inteira ganhei dinheiro sem precisar dos suas opiniões!
Houve uma vez, por exemplo, em que um advogado apontou uma inconsti-
tucionalidade na legislação do imposto de renda. A tal regra teria causado um
grande ônus a Péter nos últimos cinco anos e, provavelmente, seria interessan-
te ajuizar uma ação para pleitear a devolução do tributo. Péter então pediu que
Vera fizesse um levantamento para apurar qual era a ordem de grandeza dos
valores envolvidos. Isso, entretanto, deveria ser feito sem demora, dado que o
crédito corria o risco de prescrever.
O método mais prático para apurar o montante seria por meio de extratos
bancários, mas Péter, não querendo expor sua vida em juízo, não aceitou.
– Para cada imposto que eu tiver recolhida você vai ter que arrumar algum
documenta! – decidiu o empresário.
Vera teve então que “caçar” os recibos de cada movimentação individual que
o pai havia feito nos últimos cinco anos. Chegou a cerca de 3.800 documentos,
divididos por oito pesadas pastas de arquivos, que ela entregou a ele, junto com
o montante do suposto crédito.
Ele recebeu a papelada e a colocou em um canto do escritório, onde ficou in-
tocada por algumas semanas. Então, quando finalmente procurou o advogado
para examinar a viabilidade da causa, este lhe explicou que a orientação dos tri-
bunais havia mudado drasticamente e que não valia mais a pena ajuizar a ação.

A vida de Péter Murányi 183


Em suma, todo o trabalho foi para o lixo. Em que pese esses momentos de frus-
tração, Vera aprendeu muito trabalhando ao lado do pai.
Péter era, inegavelmente, um autodidata. Metia-se em qualquer questão
técnica que julgasse ser útil para si ou para seus negócios. Muitos exemplos
disso podem ser encontrados em sua obsessão por descobrir meios lícitos
para pagar menos tributos, praticando aquilo que os juristas hoje chamam
de “planejamento tributário”. Um dos métodos que usava era a abertura de
firmas menores, “empresas satélites”, que eram destinadas a atividades mui-
to específicas, mas cuja existência permitia usufruir de certos benefícios fis-
cais. Entre as assim constituídas existiram a Fibral S.A. Indústria e Comér-
cio, a Fábrica de Embalagens Itajubá S.A. e a Telaco Importação e Comércio
S.A. Ele operava nesse modelo de negócio desde a década de 1960 e uma das
primeiras “empresas reserva” foi a Fábrica de Embalagens Nacional (Fensa),
criada em 1969 para atender a Atlantis na fabricação das latinhas da graxa
Nugget, da qual, aliás, detinha a patente.
No entanto, a célula principal desse conglomerado sempre foi a Péter Mu-
rányi Indústria e Comércio, empresa que, em meados da década de 1980, tinha
seu organograma encabeçado por seu fundador e diretor presidente. Abaixo dele
havia três divisões principais. O Grupo Industrial estava segmentado nos seto-
res de Determinação, Preparação, Programação, Estamparia (tesouras, prensas,
borracheiras, litografia e apontagem), Cartonagem, Linha de Metal, Controle de
Qualidade e Manutenção (predial, elétrica e veículos). O Grupo Comercial era
dividido em vendas, compras, almoxarifado do Brás, almoxarifado do Ibirapue-
ra e Expedição. O Grupo Administrativo era composto pela Gerência Adminis-
trativa, Contabilidade, Tesouraria, Pessoal e Secretaria/Expediente.
Reinaldo Lino, que começou a trabalhar com Péter em 1979, como conta-
dor-chefe, frequentemente precisava lidar com a compulsão inventiva do pa-
trão. Como o empresário não tinha qualquer formação jurídica, Lino por vezes
ficava desconfiado com as ideias que ele trazia. Algumas pareciam, literalmen-
te, malucas. Foi o caso de um estudo que Péter o encarregou de fazer, com o in-
tuito de reduzir a carga tributária por meio da incorporação de duas empresas.
O contador-chefe fez a pesquisa, chegando à mesma conclusão do chefe, mas
achou o resultado bom demais para ser verdade. Conversando com o empresá-
rio, acharam melhor contratar uma boa empresa de auditoria para tirar aqui-
lo a limpo. Ao final, os auditores também confirmaram a intuição de Péter.

184 Sem Limite


Lino então arregaçou as mangas para trazer o projeto à realidade e a empresa
economizou muito dinheiro.
Péter Murányi tinha um dom especial para obter vantagens competitivas
em relação aos seus concorrentes e, eventualmente, até lucrava em cima deles.
Na área das embalagens onde ele atuava, a folha de flandres era um insu-
mo essencial e nem sempre fácil de obter. A Companhia Siderúrgica Nacional
(CSN), a partir de um determinado momento, não conseguia suprir toda a de-
manda brasileira e precisou criar um sistema de cotas máximas para cada em-
presa do setor. Péter então virou seus olhos para os fornecedores norte-america-
nos. Nos Estados Unidos já se trabalhava com uma folha de apenas 0,16 mm de
espessura, mais barata, enquanto no Brasil a matéria-prima era 0,25 mm. O em-
presário colocou os técnicos da sua empresa para adaptar as máquinas que pos-
suía para usar a folha mais fina. Não foi uma tarefa fácil, mas, ao final, passou
a deter uma flexibilidade que seus concorrentes não tinham. Com isso ele não
apenas diminuiu o custo de aquisição do insumo, como ainda passou a vender,
com lucro, parte da sua cota junto a CSN para os seus competidores brasileiros.
Nesse cenário de crise, Péter também buscou outra saída ao importar do Ja-
pão nada menos que a metade da capacidade de um navio cargueiro em folhas
de flandres sucateadas. Habituado à recuperação e reúso de materiais – afinal,
sua empresa começara exatamente assim –, ele montou quatro linhas de produ-
ção, colocando cerca de 30 funcionários para selecionar esse material de acordo
com o nível de danos. Assim, uma parte menos afetada era usada integralmente
na fabricação de embalagens, outra, um pouco mais danificada, era aproveita-
da em parte e assim por diante. A verdadeira luta travada com a alfândega para
desembaraçar produtos tão incomuns compensou enormemente. Além de pro-
var que, mais uma vez, não se curvaria às dificuldades locais, Péter faturou alto
com o investimento, pois tinha material de sobra para sua própria produção e
ainda vendia o excedente.
Além de saídas ousadas e inovadoras como essa, a frase “o segredo é alma do
negócio” também se aplicava ao cotidiano empresarial. Certa vez, Péter importou
um lote de máquinas para seu parque fabril. Originários da Alemanha, os equi-
pamentos incorporavam as mais modernas tecnologias de produção da época.
Como sempre recebia visitantes em suas instalações, ele se preparou antecipa-
damente para evitar uma possível espionagem industrial. Assim que as máqui-
nas alemãs chegaram, ele removeu todas as identificações. A quem perguntasse

A vida de Péter Murányi 185


a origem delas, ele rapidamente dizia: “São suecas”. E o interessado em lhe fazer
concorrência que tivesse a dor de cabeça de procurar o produto no país errado.
Economizar custos era outro lema praticado diariamente na empresa. Cien-
te de que na maioria das casas as lâmpadas mais usadas eram da Phillips, ele
só comprava a marca Osram. A ideia era evitar que algum operário substituís-
se suas próprias lâmpadas queimadas por novas, surrupiadas no almoxarifado.
O mesmo valia para as canetas usadas no escritório. Para ter acesso a outra, o
funcionário deveria levar a carga vazia.
Por outro lado, o empresário tinha soluções bastante incomuns para a época
e, muitas vezes, elas beneficiavam os funcionários. Vendo aumentar no depar-
tamento de Recursos Humanos o fluxo de pessoas reclamando que os salários
de funções idênticas muitas vezes eram díspares, Péter logo entendeu que isso
era efeito da conhecida “rádio peão”, a popular disseminação da fofoca nas fábri-
cas. E não adiantava explicar que os vencimentos de cada um eram influencia-
dos por tempo de casa, entre outros fatores. Assim, adotou uma medida muito
simples: instalou no refeitório dos homens um espaço de jogos, com sinuca, car-
tas e dominó. A empolgação foi tanta que começaram a ser organizados campe-
onatos de truco. Para as funcionárias, mandou colocar pilhas de revistas femi-
ninas de moda, culinária, decoração e entretenimento – incentivando a leitura.
E foi o fim da rádio peão.
Outra inovação para a época foi a instituição da cesta básica, quando esse
tipo de benefício sequer existia. Péter costumava dar abonos e prêmios por pro-
dução. Isso até perceber que o dinheiro adicional era possivelmente empregado
na farra após o expediente. Não por acaso, muitos funcionários se atrasavam no
dia seguinte em que recebiam o abono. Ou seja, no mês imediatamente seguin-
te ao bom desempenho, o mesmo operário baixava sua produção. O empresá-
rio resolveu a questão passando a entregar o prêmio em cestas básicas. E ele não
ficou surpreso ao ver que a produção havia aumentado. Supunha que, em con-
dições de comprar outros alimentos, o funcionário fazia refeições mais equili-
bradas. Satisfeito com os resultados, ele decidiu incorporar a cesta básica aos
benefícios, contemplando mensalmente todos os funcionários, independente-
mente de prêmios.
Paralelamente, o empresário continuava investindo em imóveis e commodi-
ties. Ele tinha um interesse especial pelo ouro, pois o via como um lastro, algo
que não costumava perder valor. Com o seu passado de imigrante, talvez tam-

186 Sem Limite


Ao lado da esposa, Péter celebra os 50 anos de sua chegada ao Brasil

Apesar da seriedade com que se apresentava na maioria


das vezes às pessoas, Péter era muito bem-humorado
bém o considerasse como uma riqueza que pode ser levada de um país para o
outro sem perder sua utilidade como meio de troca.
Normalmente, quando se adquire ouro no mercado de capitais, o investidor
mantém o metal guardado em um banco custodiante, mantendo consigo ape-
nas um certificado, que, aos seus olhos, era um mero pedaço de papel. Péter,
ao que parece, não tinha muita fé nesse sistema. Um dia comentou com o fi-
lho que os dois teriam que apanhar no banco cerca de cinco quilos de ouro, um
volume que, se colocado em cifrões, seria um valor muito expressivo. O rapaz
respondeu de pronto:
– Sem problemas. Vou contratar um carro-forte.
– De jeito nenhuma! Vamos levar na corpo mesmo. Vista um roupa com
muitas bolsos. Os barras são de 250 gramas, dá para espalhar discretamente.
Quando os dois voltaram a se encontrar, no salão de casa, o empresário
estava usando botas de montaria.
– Pai! Você vai andar com isso no Centro da cidade?
Ante a surpresa do filho, ele se justificou:
– Úia! Eu vai botar a ouro aqui dentro. Esconderija perfeito!
Pegar as barras de ouro foi fácil. Mas andar com lingotes dentro das bo-
tas, entre a rua Boa Vista e o estacionamento, lá na Rua Líbero Badaró, não
foi tão tranquilo... Os lingotes foram mudando de posição ao longo do ca-
minho, descendo pelo cano das botas, causando dores intensas. Em pou-
cos minutos, Péter estava mancando e gemendo pela rua, sem poder sentar-
-se à vista de todos para arrumar a preciosa carga. Nisso passou por ele um
senhor que, condoído pelo visível sofrimento do empresário, deu-lhe um
tapinha amigável e disse:
– Vai com carma, vô!
Depois disso, por anos a fio, sempre que o pai vinha com aquele seu entu-
siasmo incontrolável, com soluções mirabolantes, entremeadas com “nós vamos
fazer isto”, “você no sabe de nada” ou um “vou te ensinar”, o filho soltava o bor-
dão: “Vai com carma, vô!”.
A mania de “esconder” dinheiro em diferentes bolsos era típica do empre-
sário. Certa vez, Braz Martins Neto testemunhou uma situação incomum e en-
graçada. O advogado pediu a ele determinada soma para pagar algumas despe-
sas e Péter imediatamente tirou a alta quantia de um dos bolsos. Ao ver a cara
de espanto de Braz, explicou-se:

188 Sem Limite


– Úia, doutor, se um dia eu for assaltado no ficarei sem dinheirra, porque eu
levo um pouco no carteirra e neste bolso, neste, neste... – disse, apontando. Não
raro, ele colocava dinheiro dentro das meias e andava por aí tranquilamente.
Na década de 1980, Péter podia ficar várias semanas sem ir à fábrica. Afinal,
além de controlar a empresa por telefone e pelos volumosos malotes de docu-
mentos, ele agora tinha o filho lá dentro. Diariamente ele telefonava para Péter
Júnior, usando o mesmo estilo telegráfico que utilizava com os demais funcio-
nários. Nada de demonstrar carinho ou perguntar “Como foi o seu dia?”. Ele fa-
lava o que tinha que falar e, ao final, desligava o telefone na cara. O filho ficava
sem graça, caso tivesse alguém com ele na sala. Então, antes de pousar o telefo-
ne no gancho, simulava algum tipo normal de fim de conversa.
– Então, tá, pai, um abraço!
Obviamente o rapaz, embora conhecesse bem o funcionamento da fábri-
ca, ainda estava em uma fase de transição e, até mesmo, de autoafirmação.
Péter, centralizador como sempre, continuava tomando as grandes decisões. Mas,
para várias questões do dia a dia, a distância física o obrigava a delegar, inclusive,
quanto aos contatos com os clientes. Ele então dizia ao filho:
– Você vai para um reunião? Se prepara antes. Se informa. Faz como se fos-
se um jogo de xadrez. Pensa na que o sujeita vai falar e se prepara antes com as
respostas, estuda antes. Não vai para um reunião do jeito: “cheguei!” ou “no sei
do que vamos tratar”. Trabalha o reunião antes!
Com menos de 25 anos, Péter Júnior se esforçava para mostrar segurança
diante dos clientes. Quando lhe faziam uma pergunta para a qual ele não tinha
resposta, o rapaz se reclinava contra o encosto da cadeira, acendia um cigarro e
o tragava calmamente, ganhando assim uns 30 segundos para pensar com cal-
ma. Era um subterfúgio, para não se precipitar na resposta. Quando se é jovem,
a resposta corre o risco de vir da boca antes da cabeça...
A fase de insegurança não durou muito. Como chefe da fábrica, o rapaz logo
percebeu que os empresários brasileiros podiam ser leões em suas fábricas, mas
podem ser domados quando estão fora de suas zonas de conforto. Ainda as-
sim Péter Júnior nunca se livrou das críticas ácidas do pai, que se avolumavam
diante de qualquer mínimo deslize. O jovem encarava isso com naturalidade,
pois tinha muito respeito pela experiência e inteligência do pai e ficava muito
aborrecido quando, por não ter seguido os ensinamentos do empresário, algo
de ruim ocorria.

A vida de Péter Murányi 189


Certa feita um cliente muito antigo encomendou quatro mil tambores de sor-
vete de 10 litros. Dada a histórica e cordial relação entre as duas empresas, Péter
Júnior fechou o pedido sem pestanejar. No dia do vencimento, o cliente não pa-
gou. O velho empresário foi investigar e descobriu que a empresa havia quebra-
do e que não iria pagar. Deu uma tremenda bronca no rapaz, por ter feito um ne-
gócio tão grande sem buscar informações comerciais. Ele aceitou a crítica, ficou
arrasado, mas, pelo menos, tirou daquilo uma lição para a vida. Nunca mais co-
meteria o mesmo erro. E o pai, rabugento, disse-lhe tempos depois:
– Para você foi muita barato esse aprendizada, para mim custou muita
mais cara.
A pressão exercida em Péter Júnior acabou levando o rapaz a uma reação
pouco comum para uma vítima de acidente de trânsito. Responsável pela folha
de pagamentos da empresa, ele tinha o hábito de levar a papelada para casa e fa-
zer a última revisão dos cálculos. Foi em um desses dias de pagamento que, tra-
fegando pelo Viaduto da Liberdade, a caminho da empresa, ele se envolveu em
um engavetamento que destruiu seu carro, embora tenha saído apenas levemen-
te zonzo. Ciente da importância que o pai dava à pontualidade do pagamento
dos operários, a primeira coisa que fez foi procurar um telefone público. Naque-
le momento, agradeceu à mania que seu pai tinha de obrigá-los a andar sempre
com fichas telefônicas nos bolsos. Mas ele não queria pedir socorro, e sim avi-
sar que alguém precisa ir buscar a folha de pagamento. Cinco minutos depois,
Vera chegou para fazer exatamente isso, com a máxima urgência e sem condi-
ções de esperar o irmão ser liberado pelas autoridades. Péter Júnior só foi resga-
tado uma hora mais tarde pelos pais.
Péter, como já se disse, não fumava e proibia terminantemente que se fumas-
se na fábrica. O prédio estava repleto de papel, celulose, cola, materiais inflamá-
veis em geral. Ele punia seriamente qualquer infração a essa regra.
Um dia, em uma vistoria de sábado, ele seguia ao lado de Péter Junior pela
linha de produção, para chegar a um determinado setor. Bastava seguir mais al-
guns passos junto às tesouras rotativas e virar à direita para chegar lá. De re-
pente, ele parou e deu uma volta de 180 graus, retomando o caminho de onde
tinha vindo. O filho não entendeu nada e perguntou o que havia acontecido.
O empresário, sussurrando entre os dentes, explicou:
– Percebi que o Fermino estava fumando perto das tesauros rotativas. Se eu
passa por ele, serei obrigada a chamar o atenção e lhe dar um punição. Mas nós

190 Sem Limite


estamos com o produção atrasado e ele está dando uma duro danada. Então, no
é meu interrresse descobrir ele fumando.
Este era o espírito. A fábrica não podia parar! Tanto que Péter Júnior, embora
nascido em um lar rico, dificilmente tinha tempo para desfrutar daquilo que a
vida poderia lhe proporcionar. Nos tempos de faculdade, os amigos tiravam fé-
rias em julho e ele continuava “ralando” como sempre. No Carnaval, ele ia para
Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, se divertir com os amigos e as respecti-
vas namoradas. Mas somente no fim de semana. Na segunda-feira, com todo o
Brasil sambando, ele precisava voltar para a empresa.
Neste específico assunto, Carnaval, ainda havia um agravante: até por volta
de seus 50 anos, seu pai adorava os desfiles, os bailes, serpentina, confete e lan-
ça-perfume... E desfrutava muito o período de folia, saindo com seu carro con-
versível. Parecia afronta, assim, Péter Júnior ter que trabalhar.
Nessa época, ele tinha uma namorada de longa data e com quem gostava de
praticar esportes. Mas, quando ela entrou na faculdade, começou a se cercar
de amigos que militavam em grupos de esquerda e que hostilizavam o jovem
Murányi. Péter Júnior ficava irritado com aquilo, especialmente porque traba-
lhava muito mais do que eles. Um dia, hospedado na casa dela em Pirassununga,
no interior do Estado, um dos rapazes o chamou de burguês.
– Não sou burguês. Sou aristocrata! Para mim burguês é pobre!
Péter via com naturalidade os namoros do filho, que eram longos e estáveis.
Como bom machista, só cobrava que as moças fossem bonitas. Vera, por sua vez,
sofria nas mãos do pai. Por um lado, exigia que a filha fosse praticamente um
“peão de obra”, dando o máximo de si, sem reclamar. Por outro, ele queria que
ela fosse mais feminina e dependente. Uma lady.
– Vera, você nunca vai casar! Porque você é mandona demais, homem no gos-
ta do mulher que manda. Se você quer ter razão sempre, no vai se casar.
Felizmente, a moça tinha bom senso suficiente para refutar aquela teoria.
– Mas, pai, você acha que eu vou fazer o quê? Virar uma bonequinha para atrair
alguém, para depois de casada sair do armário e mostrar quem eu sou de verdade?
Sob a pressão diária de Péter, de suas exigências e valores, Vera buscava de-
cididamente fortalecer uma identidade própria. Ela, por exemplo, tinha uma
imensa curiosidade pela cultura do país de seu pai. Ele, por razões particulares,
havia se afastado da colônia húngara e não estimulava o contato dos filhos com
o seu idioma de origem.

A vida de Péter Murányi 191


Vera, desde criança, gostava de confeccionar presentes para o pai. Mas, em
1983, ela colocou na cabeça que iria comprar para o aniversário dele alguma coisa
que remetesse à Hungria. Era uma época, entretanto, em que o Brasil importava
muito pouco e que mesmo os comerciantes húngaros de São Paulo não tinham
muitos produtos originais para oferecer. Por meio da indicação que recebeu de
um restaurante, ela soube que dona Gisela, da tradicional Confeitaria Odeon,
teria vinho de Tokaj e salame húngaro. Ela telefonou para lá e...
É interessante como fatos absolutamente banais podem mudar as nossas vi-
das para sempre. No caso de Vera, a busca por um presente a levou a falar com
Gabor, um rapaz de origem húngara que trabalhava na confeitaria e que, por
coincidência, era neto de um antigo empregador de dona Zilda. Vera e Gabor
faziam aniversário no dia 15 de abril, embora ele fosse três anos mais velho.
A partir de um contato telefônico e de uma visita à confeitaria, Vera adquiriu
um pedaço bem pequeno de salame – a ponta de uma peça que havia sido ven-
dida fatiada aos clientes –, a cópia da gravura de um pintor húngaro e um con-
vite para entrar para o grupo folclórico que ensaiava na rua Sabará, próximo ao
Cemitério da Consolação. Ela passou a frequentá-lo e, logo em seguida, entrou
em contato com a colônia húngara. Tempos depois, ela perceberia que aquele
momento foi um divisor de águas.
Na primeira vez em que Vera tentou falar em húngaro com o pai, ele foi
extremamente crítico. Disse que a pronúncia estava toda errada e que não ha-
via qualquer razão para ela aprender, porque era uma língua totalmente inú-
til. Mas, teimosa, ela gostou de usar o idioma dos primeiros Murányis e conti-
nuou aprendendo.
A entrada de Vera para a colônia acabou fazendo com que Péter voltasse a se
interessar pelos assuntos da comunidade. Só que ele nunca se satisfazia em ape-
nas participar. Precisava externar seu ponto de vista e contribuir para que as coi-
sas fossem como ele acreditava que deveriam ser... Naquela ocasião, ele achava
que a comunidade estava se transformando em um gueto que caminhava para a
extinção. Afinal, não havia mais tanta imigração húngara para o Brasil e as pes-
soas estavam envelhecendo. Ele então dizia:
– Vocês querem preservar o cultura e o língua? Tudo bem, mas incluam ou-
tras pessoas. Quantos húngaros vão casar entre si? Se vocês fizerem um inclu-
são vocês vão trazer muitas pessoas para cá e mais gente vai gostar do colônia
húngara pelos benefícios que tem, pelo alegria que oferece. Se vocês fizerem uma

192 Sem Limite


Péter durante desfile que celebrou os
30 anos da Revolução Húngara, em 1986

Péter Júnior, Vera e Mônica com El Hazin


gueto, ele irá fechar e acabar. Que cada um preserve sua hungaricidade, mas que
não excluam as demais.
Foi nesse ambiente de descoberta de suas origens que Vera conheceu Albert
Kiss, cujo pai era imigrante e a mãe, filha de húngaros. Em 1985, ele havia acaba-
do de chegar da Hungria, onde concluíra a graduação e o mestrado na Academia
de Artes Aplicadas de Budapeste. Sofreu algum preconceito da colônia, e até mes-
mo a incompreensão do próprio pai, por ter ido estudar naquele país, que ainda
vivia sob o comunismo. Mas não havia motivação ideológica na escolha dele. Era
apenas um artista querendo aprender, um jovem disposto a conquistar o mundo.
Albert fazia parte do Grupo de Danças Folclóricas Húngaras Pántlika. Vera
também integrava um dos grupos de dança, mas, em algum momento, acabou
se transferindo para o Pántlika e se tornou muito amiga dele e de sua esposa,
que veio a conhecer mais tarde. Foi ali que também começou sua amizade com
Ági Bester, funcionária do Consulado da Hungria em São Paulo. Nesse passo,
Vera aprofundava cada vez mais seu conhecimento sobre as tradições do país
de origem de seu pai.
Albert, que mantinha um escritório de design, tinha estreito contato com a
colônia, para a qual sempre elaborava peças de divulgação de suas atividades.
Não demorou muito para que tivesse o primeiro contato com Péter Murányi.
Naturalmente, tentou conversar com o empresário em húngaro. Mas ele, surpre-
endentemente, teve uma reação áspera e, pelo seu sotaque, irônica:
– No! Eu no fala bem húngaro, eu já esqueci. Eu fala melhor Português!
Albert sabia que não era verdade, mas não se ofendeu. Ninguém sabia bem
porque Péter resistia em falar o idioma em público. Para alguns era fruto de uma
mágoa, por seu irmão ter morrido em um campo de trabalhos forçados dirigido
não por alemães, mas por húngaros. Para outros, era uma forma de se afirmar
como um verdadeiro brasileiro, totalmente destacado de suas origens.
Mantendo seu espírito filantropo, Péter passou a apoiar a Associação Bene-
ficente 30 de Setembro, que mantinha um lar de idosos húngaros. Ele e Zilda
se tornaram um dos casais que ocupavam a posição de patronos de honra do
baile beneficente, com o lucro revertido para a entidade. Em 1988, ao elaborar
os convites da festa, Albert Kiss ficou sabendo de um desentendimento entre o
empresário e o então presidente da associação que, mais uma vez, levaria Péter
a se afastar da comunidade. Ele queria colocar no convite uma homenagem a
Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética

194 Sem Limite


e dirigente de fato daquela superpotência. O usual era que os que os patronos
e patrocinadores utilizassem o espaço como propaganda de suas empresas. No
entanto, por acreditar que o anúncio em nada influenciaria os negócios, Péter
teve a ideia de utilizar o espaço para homenagear uma pessoa que ele acreditava
que poderia mudar o mundo. Os organizadores do evento não podiam aceitar
tal homenagem. Afinal, naquele momento, a Hungria ainda era um país domi-
nado pelos soviéticos e os discursos de abertura e transparência de Gorbachev
pareciam ser apenas mais uma estratégia maliciosa de Moscou. Mas Péter sen-
tia que havia algo de novo naquele personagem:
– Esse homem vai fazer o diferença – dizia ele. – Com ele Hungria irá se
abrir novamente!
Essas declarações soavam como verdadeira heresia para os imigrantes re-
sidentes no Brasil. Mas Péter, provavelmente, soubera interpretar como pou-
cos a saída discreta de János Kádár do comando da Hungria em maio daquele
ano. No ano seguinte, o Muro de Berlim foi derrubado pacificamente e o blo-
co comunista, no qual a Hungria fora inserida à força, desmoronou em poucos
meses. Isso somente foi possível porque Gorbachev tinha a firme convicção de
que a União Soviética não tinha mais o direito de escolher os líderes dos outros
países do bloco.
A política brasileira também continuava a interessar o empresário, embora
com menos entusiasmo. Quando seu velho amigo, o ex-presidente Jânio Quadros,
voltou do exílio e resolveu candidatar-se à prefeitura de São Paulo, o industrial
não tardou em se oferecer para fabricar, em folha de flandres, as famosas vassou-
rinhas de lapela, que tinham sido o símbolo da campanha do político em 1960.
Empossado em 1986, Jânio aceitava de bom grado os palpites do amigo em-
presário e um dia resolveu ir ao casarão do Sumaré para terem uma conversa,
mas avisou Péter que queria aproveitar para almoçar uma boa comida brasi-
leira. O anfitrião providenciou então coquetel de camarão de entrada e feijo-
ada como prato principal. O prefeito se esbaldou na feijoada, mas pediu para
colocar pimenta. Péter não comia pimenta, algo proibido na dieta tão parti-
cular que seguia havia anos. Para sua sorte, Vera, cansada de se ver privada
de alimentos e temperos que apreciava, guardava um vidrinho de tabasco em
seu quarto para uso pessoal. E foi ela quem salvou o almoço: Jânio esvaziou o
frasco da forte pimenta, regando tudo com uísque e uma boa pinga. Logo em
seguida, “apagou” no sofá, roncando.

A vida de Péter Murányi 195


Porém, as preocupações políticas de Péter Murányi em breve teriam de ce-
der espaço para um tema muito mais sério: sua primogênita. Nesse meio-tempo,
muitas coisas tinham se passado na vida de Mônica. Após terminar seu estágio
na Alemanha, voltou para o Brasil com seu marido e montou um consultório de
psicologia na Rua José Maria Lisboa, em Pinheiros. Ernest, entretanto, não con-
seguiu estruturar sua vida em São Paulo, nem se adaptou ao trânsito intenso, à
vida maluca da imensa metrópole tropical. Queria voltar para a Suíça, mas não
conseguiu convencer a esposa. Acabaram se separando.
Como psicóloga, Mônica não se sentia realizada. Embora fosse uma boa
profissional, com o tempo acabou se deixando afetar pelos problemas de seus
pacientes. Isso a entristecia. Mas o fato é que sua verdadeira e absoluta pai-
xão eram os cavalos e, quanto a eles, ela questionava a eficiência da doma ba-
seada na violência do chicote. A percepção dela era que, quando se domina o
cavalo pela força, ele ganha muitos vícios que vão se refletir em seu desempe-
nho atlético. Desejava usar seu conhecimento de Psicologia no adestramento
dos animais. Ela desenvolveu uma teoria de “doma psicológica”, por meio da
qual buscava construir um vínculo de confiança entre a montaria e o cavalei-
ro. Defendia que, quando se adéqua o cavalo para que faça o que se espera dele,
o animal se torna um atleta. A maior dificuldade era fazer a montaria apren-
der a conviver com o peso extra, porque seu eixo de equilíbrio muda quando
traz uma carga nas costas. Caso o animal aprenda a fazer essa transição sem
estresse, ele se tornará um bom competidor no adestramento, no salto ou na
corrida. Por ser menos agressiva, a técnica era importante para qualquer ca-
valo, mas tinha seu mérito destacado quando se tratava de um animal de puro
sangue, que custava milhões. Uma vez que a doma tradicional não funcionas-
se, inviabilizando até mesmo a cruza para fins de reprodução, seria um inves-
timento perdido para seu proprietário.
As dúvidas sobre sua carreira não impediram Mônica de se relacionar ro-
manticamente. Separada havia algum tempo, ela acabou conhecendo um pin-
tor alemão radicado em São Paulo desde 1978. Gerhard Berlet era um artista
plástico elegante e alto, 12 anos mais velho do que ela, que vivia uma inspirada
fase hexagonista. Péter, entretanto, não chegou a se entusiasmar com o novo re-
lacionamento da filha. Afinal, na visão prática dele, não havia como ficar rico
apenas pintando hexágonos... Faltava aquela ambição que a alma despojada de
um artista nem sempre deseja alimentar. Mas, Mônica, contrariando seu tipo

196 Sem Limite


físico delicado, tinha um temperamento forte e não se deixou dobrar pelo pon-
to de vista do pai.
Embora tivesse reencontrado o amor, durante a tentativa de definir um rumo
para a sua vida, Mônica entrou em um processo de depressão profunda. Um dia,
por volta de 1986, ela marcou uma visita ao pai em sua casa, mas não apareceu.
Hospedou-se em um hotel e ligou para a mãe. Eva sentiu no tom de voz da fi-
lha, na conversa em si, um tom de despedida. Sua voz foi ficando confusa, até
que a mãe percebeu que ela havia desmaiado. Tomada pelo desespero, sem colo-
car o fone no gancho, ligou imediatamente para o ex-marido de outro aparelho.
– Péter, a Mônica está em outra linha, não sei onde. Ela está falando em sui-
cídio, chorando muito. Me ajude!
O empresário, que sempre empregava seus protocolos para gerenciar todo
tipo de crise, não tinha um plano para uma situação como aquela. A primeira
ideia que teve foi sair de casa para tentar descobrir, junto à companhia telefôni-
ca, de onde partira o telefonema da filha para a ex-esposa. Mas, antes que pudes-
se sair, Vera telefonou dizendo que estava indo para casa. Ele, naquele seu jeito
telegráfico de falar, disse-lhe apenas, antes de desligar o telefone abruptamente:
– Venha para o casa, sua irmã suicidou-se.
Para ele, que não dominava bem o Português, a expressão “suicidou-se” não
tinha ligação com o sucesso da tentativa ou não. Significava apenas atentar con-
tra a própria vida. Então, nem imaginou o terror que acabara de plantar na ca-
beça de Vera, que, trêmula, precisou pedir a alguém para acompanhá-la no
carro, temendo não conseguir chegar em casa sozinha.
Quando Vera chegou ao casarão e finalmente compreendeu o verdadeiro
quadro da situação, tratou logo de imaginar um meio de localizar a irmã. Teve
então a ideia de ligar para os hotéis onde Mônica, seguindo uma lógica, poderia
ter escolhido como hospedagem. Acabou encontrando. Disse ao gerente que, se
ele prestasse atenção, veria que a linha telefônica do quarto certamente estaria
ocupada. Depois ordenou:
– Estou ciente de que ela tentou o suicídio. Por favor, arranje uma ambulân-
cia e arrombe a porta. Estou indo aí.
Ela então chamou uma segunda ambulância, de acordo com a máxima se-
gundo a qual “é melhor pagar por duas ambulâncias a ficar sem nenhuma”.
Quando Vera chegou ao hotel, a porta do quarto já havia sido aberta e Mônica
estava sendo atendida. Ela havia tomado uma dose colossal de medicamen-

A vida de Péter Murányi 197


tos e estava desmaiada. Dali foi enviada imediatamente para o Hospital Albert
Einstein. Socorrida rapidamente, a jovem se recuperou sem qualquer sequela.
O relacionamento com Gerhard Berlet foi, afinal, um dos fatores a ajudá-la a re-
encontrar seu equilíbrio interior.
Vera tinha apenas 24 anos e acabara de provar que, em momentos de crise,
tinha a destreza e a frieza para resolver grandes problemas, assim como seu
pai. Péter, intimamente, deve ter reconhecido a atitude da jovem, mas rara-
mente deixava transparecer que estava ciente da capacidade dos filhos, nem
era de fazer elogios. Por saber que o pai era exigente, muitas vezes ela simples-
mente cedia às solicitações dele, como havia feito com a faculdade. Isso, po-
rém, não impedia que cuidasse de seus próprios interesses e realizasse alguns
sonhos. Um deles foi o desejo de comprar uma moto, confessado certo dia ao
irmão. Apesar de achar que ela estava apenas empolgada porque namorava um
jovem motociclista na época, Péter Júnior resolveu ajudá-la. Ele sabia que os
pais diriam não e ela, embora adulta, cederia a vontade deles. Então, tomou a
frente da irmã e disse à mãe:
– Vejam só! A Vera comprou uma moto!
Zilda ficou horrorizada, criticou a moça, disse que ela teria que tomar mui-
to cuidado, pois aquilo era perigosíssimo e fez várias considerações negativas.
Quando terminou seu discurso e se afastou, Péter Júnior disse à irmã:
– Viu só? Tomou uma bronca, mas passou. Agora você já tem aval para com-
prar a moto...
Ela de fato a comprou, mas não se adaptou ao veículo de duas rodas. Vendeu
a motocicleta com apenas 32 quilômetros rodados, após a terceira queda e o con-
sequente autoquestionamento: “Para que estou fazendo isso?”.
Em 1989, Zilda voltou a sair de casa, separando-se de Péter, ainda que não
oficialmente, mas, dessa vez, em definitivo. Esse era apenas um dos conflitos no
ambiente familiar em que Vera, como filha do meio, se sentia como a argamas-
sa de um conjunto em que todos os outros eram tijolos. Ela era a complacente, a
conciliadora, a que tentava segurar o restante unido.
Também no trabalho, a vida que a moça levava era estressante. Tinha que li-
dar diariamente com questões financeiras, e justo no momento em que o País
passava por uma de suas mais sérias crises, com uma sucessão de planos eco-
nômicos mal sucedidos que obrigavam qualquer administrador de empresas a
fazer malabarismos com números.

198 Sem Limite


Péter em reunião da Bolsa de Valores de São Paulo (sentado, à extrema direita)

Zilda, Péter Júnior e Vera em festa de família


Por morar e trabalhar no mesmo endereço, a qualquer momento ela po-
dia ser convocada para uma reunião com o pai. Não raro, no meio da noite, ao
vê-la ainda acordada, Péter era capaz de dizer à filha que acabara de ter uma
ideia brilhante e precisava que procurasse um documento qualquer. A moça até
admitia continuar trabalhando com ele, mas não aceitava mais era morar na casa
do patrão, sem separar a vida pessoal da profissional.
E foi isso que a fez entrar em acordo com os pais para sair de casa e viver
a sonhada independência, o que certamente faria a pressão diminuir. Agora
podia ao menos desfrutar a paz do verdadeiro fim do expediente em seu tran-
quilo apartamento no bairro de Pinheiros. A isso, somou-se a consolidação do
relacionamento com o amigo Albert Kiss, que havia se separado da primeira es-
posa e agora era seu namorado. No entanto, o momento de alegria vivido na-
quele ano de 1990 não foi suficiente para amenizar o amargo sabor das frus-
trações. Isso acabou levando ao desenvolvimento de um problema de saúde:
um nódulo na tireoide.
Em meio a um delicado tratamento, o médico recomendou que ela se afas-
tasse do trabalho durante seis meses. Péter logo reagiu:
– Verinha, eu preciso muito de você. Você pode trabalhar menos e fazer seu
tratamento, mas eu no posso ficar sem você tanto tempo!
E assim ele aceitou diminuir um pouco a carga de serviço e contratar um
advogado, o dr. Wilton, para cuidar da área imobiliária.
A doença de Vera seguia indefinida, pois ela se recusava a fazer uma biópsia,
embora tenha feito todos os outros exames. Com o tratamento, o nódulo dimi-
nuiu, mas o problema somente se resolveu em 1992, quando ela fez a cirurgia e
descobriu que era realmente um câncer.
Aquele susto, a visão da morte, a fez questionar o que queria para sua
vida. Viu que era a hora de fazer certas coisas que havia postergado e decidiu
ter seu período sabático, passando três meses na Hungria, no que foi apoia-
da por Albert. De lá, ela voou diretamente para Nova York, onde encontrou
seu namorado para, juntos, passarem o Réveillon de 1994 no Central Park.
À meia-noite, no famoso Tavern on the Green, cercados por amigos de Albert,
ele a pediu em casamento.
Na volta para o Brasil, Péter foi buscar o casal no aeroporto e somente en-
tão soube que a filha havia aceito o pedido de Albert. Pego de surpresa com a
notícia, ele não ficou muito feliz. Primeiro porque sua expectativa era que sua

200 Sem Limite


Zilda Murányi com os filhos Péter Júnior (acima) e Vera (abaixo)
durante viagem em Ubatuba, no início da década de 1980
filha se casasse com alguém que agregasse algo à sua vida empresarial, talvez
um economista ou um administrador de empresas. Segundo porque ele só en-
xergava como prósperas profissões como a sua, um industrial, ou a de grandes
latifundiários e doutores com muitos títulos. Sua visão de mundo talvez não lhe
permitisse vislumbrar a importância de algumas carreiras em ascensão e que
viriam a dominar o século XXI. Ademais, tinha que aceitar que Vera se torna-
ra uma mulher independente.
No caminho de volta para casa, enquanto dirigia, repetia em voz baixa, como
se fosse um mantra:
– É o felicidade dela que importa... É o felicidade dela que importa...
Vera continuaria a trabalhar com o pai, com o empenho de sempre. Mas o
noivado era um sinal a mais de que o mundo de Péter estava mudando rapida-
mente. Outros sinais já eram visíveis havia alguns anos.
Na última década, após 25 anos à frente do consulado da República Domini-
cana, Péter acabou sendo vítima do próprio sucesso. Ele havia ajudado os empre-
sários brasileiros a multiplicar por cem suas exportações para o país caribenho.
A representação diplomática ficara então grande demais, sendo elevada à cate-
goria de Consulado Geral. Isso gerava um entrave burocrático, pois, de acordo
com uma carta enviada pelo Secretário das Relações Exteriores daquela peque-
na república, o Itamaraty havia informado o governo dominicano de que não se-
ria possível manter um Consulado Geral Honorário na jurisdição de São Paulo.
Motivo pelo qual o governo dominicano, com pesar, se via forçado a tornar sem
efeito a nomeação de Péter como Cônsul. Era o fim de um ciclo.
Em outro campo, a economia brasileira não tinha ido bem nos anos 1980 e o
próprio mercado de embalagens vinha passando por transformações. O plásti-
co, como concorrente do sistema fibralata, era um exemplo eloquente.
Ademais, em março de 1990, a fábrica foi abalada seriamente pelo bloqueio
dos ativos financeiros no chamado Plano Collor. Do dia para a noite, a maior
parte do dinheiro da empresa – e de todo o País – ficou indisponível. A empresa
costumava ter matéria-prima em estoque para manter o funcionamento. Assim,
a grande preocupação do empresário foi com o pagamento dos salários de suas
centenas de funcionários. Sem fugir ao seu estilo, ele chamou os filhos e disse:
– Vocês vão as bancos buscar empréstimos porque meus funcionários no
têm nada a ver com a governo. Eles trabalham para mim e eu tenho que pagar.
Se a governo bloqueou, no quero nem saber!

202 Sem Limite


E foi o que fizeram. Como Péter não era homem de recorrer a empréstimos
e tinha um excelente nome na praça, teve mais facilidade do que outros para
levantar a quantia necessária. Mas o incidente demonstrava que o Brasil deixara
de ser um ambiente seguro para tocar uma fábrica tão grande. Em pouco tem-
po, Péter Júnior começaria a pensar na relação custo/benefício de manter aque-
la fábrica como estava. Por outro lado, para se manter competitiva por mais
um decênio, grandes investimentos seriam necessários. Nos primeiros anos da
década de 1990, outro caminho parecia se apresentar para a família Murányi.
E Péter começaria a revelar seu sonho mais caro...

A vida de Péter Murányi 203


Capítulo 8
Adeus...
Então vamos fechar a fabrica!

206 Sem Limite


O ano era 1990, em um dia qualquer de pagamento. Péter Júnior,
que era o encarregado geral da fábrica, liberou um grupo de em-
pregados para ir ao banco às 11 horas, com ordem para não vol-
tar antes das 12h30. Por lei, a empresa deveria conceder meia hora livre, além
do horário de almoço, para que todos pudessem ir ao banco. Se voltassem an-
tes, o sindicato teria margem para uma autuação, ao alegar que a regra traba-
lhista não fora cumprida. Ocorre que, por uma falha do banco, o dinheiro não
estava lá e os operários foram para a porta da fábrica muito antes do programa-
do. Começou a reinar certa impaciência, um desconforto por terem que esperar
na rua. Raimundo, que era o encarregado da mecânica, marcou então o cartão
de ponto e entrou. Vendo isso, a turma toda entrou atrás dele, o que gerava, do
ponto de vista trabalhista, uma confusão tremenda em termos de carga horária.
Péter, quando soube, ficou muito aborrecido e telefonou para Raimundo,
querendo tirar satisfações:
– Eu coloco a dinheirrinha na banco, ela pega a dinheirrinha de vocês e faz
outras coisas! Está errado, claro! Mas, vocês deviam ter obedecido Júnior!
Raimundo defendeu-se, usando a falta de autoridade vivida pelo país como
argumento:
– Ora... O Collor, que é presidente da República, às vezes dá umas ordens
que ninguém cumpre... O Péter Júnior é o quê? Um encarregado da firma!
Pensa bem. Não tem dinheiro, a gente ia ficar fazendo o quê? Sentar na calça-
da em frente à fábrica?
– Ah! Vocês podiam ir a um loja qualquer... Sei lá... Comprá uma sapato!
– Mas, sr. Péter, não tinha dinheiro!
O empresário era “carne de pescoço” quando o assunto envolvia qual-
quer desvio naquilo que ele havia determinado. Tudo deveria seguir um mé-
todo, obedecer a um protocolo, e ele não gostava de admitir que estava errado.

A vida de Péter Murányi 207


Ainda assim, ninguém podia negar que o perfil de Péter Murányi, como admi-
nistrador, era brilhante.
Ele começara na década de 1940 com apenas três operários e praticamente
sem capital em um país estrangeiro, cuja língua ele então mal conhecia. Atraves-
sou inúmeras crises políticas e econômicas sem se abalar. Em alguns momentos
arriscou-se ao tentar influir na política local, movido por suas visões econômi-
cas e democráticas. Chegou a ter 1.500 empregados, constituiu um patrimônio
imobiliário extraordinário e, 50 anos depois, ainda era um ícone na produção
de embalagens.
Seus empregados, graças ao seu estilo de liderança, eram homens e mulheres
extremamente criativos, cobiçados pelas empresas concorrentes. Com esse per-
fil, foram muitas vezes capazes de materializar as inovações tecnológicas, admi-
nistrativas e jurídicas idealizadas pelo empresário, na sua eterna busca de ofere-
cer o melhor produto por um preço competitivo. A energia daqueles homens e
mulheres também era potencializada pela segurança que sentiam em uma em-
presa que se preocupava com a saúde e o bem-estar deles e onde centenas pude-
ram encontrar crédito barato para adquirir a casa própria ou até um automóvel.
Existia um lado afetivo muito grande entre o empresário, a fábrica e os seus
funcionários. Ele comparecia aos casamentos dos empregados, assim como aos
funerais de seus parentes. Dona Zilda fazia enxovais para os filhos dos funcio-
nários mais chegados e algumas dessas crianças, mais tarde, chegaram a nadar
na piscina do casarão. A fábrica era como um filho a mais, também motivo do
seu orgulho. Porém, seus negócios, por circunstâncias externas, haviam chega-
do a uma encruzilhada.
Diferentes tipos de problema fervilhavam na sua cabeça.
A população da cidade de São Paulo multiplicara-se por cinco desde a fun-
dação da fábrica, nos anos 1940. Manter uma indústria no Brás não era uma
tarefa fácil. O trânsito, o sistema viário ineficiente e uma série de limitações
administrativas do município haviam tornado proibitivo tanto a chegada dos
insumos, quanto o escoamento da produção. Problemas semelhantes afetavam
as idas e vindas dos funcionários nos diferentes turnos. Mudar a fábrica para
outro ponto da Grande São Paulo não melhoraria muito esse quadro. Ademais,
o prédio da fábrica, por ser em andares, não tinha um layout adequado para a
circulação de matéria-prima, equipamentos e ferramentas, o que diminuía a
eficiência e aumentava custos.

208 Sem Limite


Péter Júnior e o pai em uma festa de família

Quadro de Gerhard Berlet foi a única imagem


que ficou da fábrica
A relação entre o lucro obtido e o trabalho exigido vinha sendo reduzida com
o tempo, de modo que nenhum dos Murányi achava que era o momento de des-
cansar e viver exclusivamente do patrimônio acumulado. Havia muito traba-
lho a fazer. Para manter a competitividade, grandes investimentos seriam ne-
cessários. Por outro lado, existiam cidades bem menores no sul de Minas Gerais
que ofereciam terrenos e isenções tentadoras às indústrias que lá se instalassem.
Péter Júnior, como responsável pela fábrica, tinha ciência de tudo isso, mas
sabia que o pai, por um conflitante misto de amor e vaidade, tentaria continuar
levando o empreendimento adiante. O velho empresário via, no ato de produzir
e gerar riqueza, uma obrigação quase sagrada. Até porque, mal ou bem, a fábrica
ainda dava lucro e a demanda do mercado por embalagens continuava aquecida.
A empresa, que fora a responsável pela fabricação dos famosos cofrinhos da
Delfin, a instituição financeira que popularizou o conceito de poupança na dé-
cada de 1970, continuava com clientes de peso, como a Brunella, para a qual pro-
duzia os grandes tubos de papelão, que ficavam dentro das geladeiras horizon-
tais das sorveterias e de onde saíam as bolas de sorvete de casquinha.
No final da década de 1980, a empresa comemorava o sucesso das latas de
sorvete decoradas encomendadas pela Kibon e que muitas pessoas colecionavam
e reutilizavam para guardar biscoitos e demais gêneros alimentícios ou mesmo
outros objetos. Eram de tão boa qualidade que, mais de 20 anos depois, ainda
seriam usadas por muitas pessoas. Entre vários outros clientes, como Gilette,
Quaker Alimentos, Café Globo, Laboratório Pfizer, Atlantis e Bauducco, Péter
Júnior vinha colhendo os frutos da corajosa parceria que fez com a Minasa, a fá-
brica de alimentos que produzia molhos para a rede de lanchonetes McDonald’s.
Aquela fora uma vitória e tanto. Mais uma vez a empresa confirmara a efi-
ciência de sua propaganda: as carretas que circulavam pelas estradas. Foi assim
que João Bosco Sieh, o diretor da Minasa, soube da existência da Péter Murányi
Indústria e Comércio. Não era a primeira fabricante de embalagens que ele pro-
curava, mas todas as anteriores não se animaram em atendê-lo. Naquele ano de
1982, João encontrou a resposta que tanto procurava, quando Péter Júnior de-
cidiu abraçar o inédito projeto. Naquele momento, os dois selaram um acordo
para um desenvolvimento histórico. Se hoje as lanchonetes McDonald’s fazem
parte da vida cotidiana, no começo da década de 1980, pouca gente acredita-
va que um restaurante de sanduíches desse certo no Brasil, onde a preferência
ainda era o tradicional arroz com feijão.

210 Sem Limite


Era uma situação bem diferente. A Minasa deveria fornecer às lojas do
McDonald’s invólucros com diferentes tipos de molho usados nos sandu-
íches. Cada um deles continha em seu interior um embolo e um dispen-
sador, por meio do qual se despejava a quantidade milimetricamente cali-
brada, exatamente como na matriz da rede, nos Estados Unidos. Além de
inventar um produto que não existia, a Péter Murányi Indústria e Comér-
cio estaria entrando em um projeto de risco, pois o volume de embalagens
a ser inicialmente produzido não oferecia uma escala capaz de compensar o
investimento da produção.
Com o corpo em fibralata, a embalagem era composta por algumas peças de
plástico e metal. Depois de fazer parcerias com fornecedores aptos a produzir
os itens que não fabricavam internamente, a empresa contou mais uma vez com
a inventividade de seus funcionários Raimundo e Fermino, que elaboraram as
peças faltantes para que o sistema funcionasse perfeitamente.
Depois de todo o trabalho intelectual e físico para reproduzir no Brasil o pa-
drão exigido pela multinacional norte-americana, a empresa podia contabilizar
encomendas de centenas de milhares de tubos por mês, especialmente adapta-
dos para os dispensadores de molho das lanchonetes. A parceria entre cliente e
fornecedor seguiu os parâmetros tradicionais vistos até então. A Péter Murányi
continuaria como fornecedora da Minasa até 1999, quando a fabricante de mo-
lhos encerrou suas atividades.
Péter, percebendo que era um momento do “tudo ou nada”, imaginou cons-
truir uma nova fábrica na cidade de Extrema, no sul de Minas Gerais, bem na
divisa com o estado de São Paulo. Além dos benefícios oferecidos pelo municí-
pio, havia a possibilidade de pagar alíquotas menores de ICMS em suas opera-
ções com clientes do Rio de Janeiro e São Paulo. Seria também o momento ade-
quado para investir em novas máquinas, modernizar.
Em outros tempos, Péter teria seguido esse caminho sem pestanejar. Mas ele
estava então com mais de 75 anos e, embora detestasse admitir, já não tinha mais
a mesma energia... Precisava de um comprometimento claro e expresso do filho.
Um dia ele teve uma conversa sobre seus planos com Péter Júnior e João
Fermino que, à época, era assistente da diretoria. Ele pensava inclusive em en-
viar o funcionário para a Suíça, onde faria estágio em uma fábrica de ponta.
O filho, eventualmente, poderia seguir o mesmo caminho, mas o rapaz não fi-
cou entusiasmado. Para ele também era um momento decisivo e o aproveitou

A vida de Péter Murányi 211


para dizer ao pai que não gostava do ramo industrial, que preferia se dedicar aos
empreendimentos imobiliários da família.
– Como assim? – questionou Péter.
– Olha pai, durante todos estes anos você pegou boa parte do lucro da fá-
brica e investiu em imóveis. Muitos deles foram comprados por um preço ridí-
culo e hoje valem muito dinheiro. Com isso, olhando seu patrimônio, a fábri-
ca representa menos de 10% daquilo que você acumulou, enquanto os imóveis
representam de 90% a 92%. Você está querendo que eu passe a minha vida me
dedicando a esses 8%, mas eu quero me dedicar aos 92%.
– É assim? – reagiu Péter. – Então vamos fechá o fábrica!
Ao ouvir o patrão dizer isso, João Fermino tomou um susto, pois o empresá-
rio, após sua inesperada declaração, ficou uns dois minutos quieto, sem abrir a
boca, como se estivesse se escorando na cadeira para não cair.
Mas o “fechar” não seria de uma tacada só. Não seria perdendo dinheiro, mui-
to pelo contrário. E, enquanto ele pensava nisso, Péter Júnior sentia-se liberado
para seguir o caminho desejado: administrar o patrimônio imobiliário da família.
Quanto a isso, o patriarca, sempre centralizador, sugeriu uma solução que,
para o filho, soou como uma armadilha. Queria reformar uma oficina locali-
zada no mesmo terreno da casa do Sumaré para transformá-la em escritório.
O rapaz sabia que, se isso acontecesse, sua vida se tornaria um martírio, pois a
proximidade do pai tiraria dele qualquer autonomia. O problema era como de-
movê-lo daquela ideia.
Péter, como se sabe, era um homem difícil de manobrar, mas cada filho de-
senvolveu uma técnica para isso. Péter Júnior costumava usar uma espécie de,
chamemos assim, “psicologia reversa”. Por exemplo: com a idade, Péter passou a
dirigir muito mal e os filhos morriam de medo de ir de carona quando a família
pegava a estrada para Águas de Lindoia. Se Vera pedia ao pai que não dirigisse,
teimoso que era batia o pé e ia guiando até lá, para desespero da família. Seu ir-
mão usava outro método. Sentava-se no banco do carona, o “lugar do patrão”,
esticava-se todo confortavelmente e dizia ao pai:
– Jarbas, vamos logo para Lindoia! Acorde-me quando chegarmos!
Péter ficava irritado com aquela brincadeira.
– Jarbas?! Mas que moleque impertinente! Quem vai guiá hoje é você!
E Péter Júnior, ainda manipulando o pai, continuava o teatrinho:
– Ah, não, poxa vida, pensei que ia com chofer...

212 Sem Limite


Uma grande amizade: Péter e Laudo Natel

O ex-governador de São Paulo, José Maria Marin,


e a esposa Neusa, ao lado de Péter
E o pai arrematava, vitorioso:
– No! Quem vai com chofer sou eu.
O segredo, quando se tratava de Péter, era jogar com o orgulho. E no caso do
escritório de imóveis, o rapaz fingiu rebaixar o próprio orgulho dizendo:
– Você está dando muito crédito ao meu projeto. Afinal, se eu gastar o seu di-
nheiro para montar o escritório aqui, isso não vai valorizar a sua casa. E, se der
errado meu plano de vida, esse dinheiro terá sido jogado fora. Eu acho que seria
melhor gastar o triplo comprando uma casa para eu trabalhar. Se der errado, você
vende e não perde nada. Eu não estou colocando tanta fé em mim quanto você.
Assim, eles compraram um imóvel nas proximidades do Sumaré e conti-
nuaram com a fábrica, em ritmo gradualmente reduzido e sob a administra-
ção de Péter.
Os investimentos imobiliários na região da Grande São Paulo eram impres-
sionantes. O capital investido em décadas anteriores havia sido multiplicado
várias vezes. Mas, com toda a energia que ele dedicava à fábrica, muitos deles
estavam abandonados e apenas davam despesas.
Um deles era o imenso terreno de Santo Amaro, comprado em meados dos
anos 1970, e que, desde aquela época, estava “ocupado” por um campinho de
futebol, no qual, entre craques do passado e do futuro, até vacas pastavam...
Os animais pertenciam ao sr. Osvaldino, que tomava conta da propriedade. Péter
Júnior o alugou para um empresário conhecido como Zé Lagoa, que ali fez uma
casa de tradições nordestinas chamada Patativa, que comportava 10 mil pesso-
as/noite no que se poderia denominar de “um forró lascado”. O terreno passou
a atrair um movimento enorme. O local seria o palco de lançamento de grupos
musicais das regiões Norte e Nordeste que hoje fazem sucesso em todo o Brasil,
como as bandas Calypso e Caviar com Rapadura. Além dos 7 mil m2 ocupados
pela Patativa, havia ainda outros 10 mil m2 de cada lado, que eram explorados
como estacionamento. Com lotação esgotada quase todas as noites, o empreen-
dimento gerava muito dinheiro.
O prédio das Grandes Indústrias Minetti-Gamba Ltda. foi outro caso
emblemático. A instalação servia apenas de depósito para o maquinário da
antiga fábrica, que ficou abandonado quando ela encerrou suas atividades.
Desde que fora adquirido por Péter, o local estava com as portas fechadas,
guardada por um caseiro e dez cachorros, o que, para Péter Júnior, era um
desperdício e um verdadeiro criadouro de pulgas. Seu pai, inicialmente, não

214 Sem Limite


queria alugá-lo, pois usava o imóvel como depósito de itens variados, inclu-
sive as velhas máquinas que, embora ele dissesse o contrário, jamais seriam
usadas novamente. Depois de estudar os argumentos do filho, que mostrou
a ele que o valor das coisas ali guardadas logo seria superado pelo aluguel,
Péter se deixou convencer e cedeu. Assim, alugado para a empresa Moinho
Eventos S.A., o local se transformou no Moinho Santo Antonio, um espaço
de festas de alto padrão.
Tanto o Moinho quanto o Patativa foram alugados por uma quantia muito
alta de dinheiro, valor que deixaria boquiaberta qualquer pessoa, levando à ine-
vitável reflexão: “E pensar que isso ficou tanto tempo parado!”. Mas Péter Júnior
também se dedicou a dar um destino semelhante a outros imóveis menores. No
final de um ano, a área imobiliária estava lucrando mais do que a fábrica e de-
mandando muito menos trabalho.
Péter, ao se despertar para a importância do patrimônio que ele mesmo ha-
via criado, interessou-se pelo filão. Começou a desenterrar velhos planos e a
imaginar novos. Assim, sem dar o braço a torcer, claro, aproveitou o momento
em que precisaria fazer uma cirurgia no coração para pedir que o filho voltas-
se para a fábrica, com a missão de fechá-la aos poucos. Por sua vez, o patriarca
tomaria conta do novo e empolgante negócio, que era também mais adequa-
do à sua recuperação pós-operatória, por ser perto de casa. Péter Júnior acatou
o pedido do pai, mas ele não fez logo a cirurgia e foi imediatamente cuidar dos
novos e lucrativos empreendimentos...
Péter passou a atuar intensamente no setor imobiliário, comprando e venden-
do imóveis, mas também desenvolvendo projetos. Um deles foi um prédio com
frente para a Av. Ipiranga, no Centro de São Paulo, e onde funcionara, por mui-
tos anos, uma agência do Banco do Estado de São Paulo – ficava bem ao lado de
um galpão, na rua Araújo, que ele havia adquirido na década de 1970.
No lugar da antiga agência, ele iniciou, em 1994, um projeto ambicioso
com um antigo colaborador, o corretor da bolsa de valores André Ivatchkovi-
tch. Eles instalaram no local o outlet Quality Discount Shopping, um mode-
lo comercial de locação de pequenos estandes de vendas de produtos variados,
de eletrônicos a roupas e miudezas em geral. A boa localização do imóvel, em
frente ao Edifício Itália, os fez acreditar que conseguiriam atrair o público que
passava nas Avenidas Ipiranga e São Luís. Mas isso não aconteceu. O dom que
Péter demonstrava para a atividade industrial e para a compra de imóveis não o

A vida de Péter Murányi 215


ajudou na hora de lidar com o varejo. O empreendimento acabou sendo fecha-
do em menos de quatro anos.
Para viabilizar juridicamente suas ideias, Péter continuava a buscar apoio
em advogados que, por acaso, tinham algo em comum: a maioria deles inicia-
ra a carreira bem jovens e eram destacados profissionais antes dos 40 anos. Era
o caso de Cesar Ciampolini Neto, que abrira seu escritório aos 27 anos e que,
muitos anos mais tarde, se tornaria desembargador no Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo.
Nos seis anos que trabalhou para Péter Murányi, Ciampolini entendeu que
tinha diante de si bem mais que um cliente. Talvez porque fosse pouco mais ve-
lho que os filhos do empresário, a relação entre eles era afetuosa. Tanto, que não
foram raros os momentos em que recebeu conselhos como os dados por um pai.
Foi assim quando o advogado viajou para a Europa onde iria esquiar pela pri-
meira vez na vida. Mesmo sabendo que ele praticava esportes com frequência,
Péter não se furtou de lhe dar conselhos e advertências.
– Úia, preste bem atenção ao que vai fazer, reflita bem. Uma coisa é um eu-
ropeu que nasce com esqui no pé descer uma montanha. Mas um homem que
mora em um país que não tem neve e que nunca esquiou tem de tomar muito
mais cuidado – disse o empresário que esquiava desde pelos menos os 12 anos.
Se, por um lado, ele investia nos imóveis, por outro encaminhava aos pou-
cos o fechamento da fábrica. A estratégia tinha por motivação central uma an-
tiga constatação de Péter: cada vez que uma jamanta da Fibralata cruzava as es-
tradas do País ela “carregava”, em grande parte, apenas “ar atmosférico”. Era um
problema intrínseco ao tipo de embalagem que produziam que, por não ser do-
brável como uma caixa de papelão, ocupa muito espaço, aumentando o preço
relativo do frete. Por outro lado, por ser, praticamente, o único fornecedor des-
se tipo de embalagem, havia uma demanda excedente que Péter não tinha capa-
cidade produtiva para atender. Assim, o plano era sair do mercado com honra
e dinheiro, vendendo linhas de montagem e know-how para os antigos clientes.
Para esse sistema, muito ajudaram as suas “empresas de reserva”. Na verda-
de, para pagar menos impostos na transação, ele não vendia oficialmente a li-
nha de produção, mas sim uma empresa que havia criado especificamente para
atender a um grande cliente, como a Cera Suiza ou a Kibon. Em relação a esta
última, em dado momento, a “empresa reserva” passou a funcionar dentro da
planta industrial, fabricando os tambores para acondicionamento de sorvete.

216 Sem Limite


Péter em Águas de Lindóia, um de seus
retiros favoritos

O casal Albert e Vera entre os pais da noiva


Então, quando Péter resolveu se desfazer disso, simplesmente transferiu as quotas
da sociedade para o cliente. A empresa compradora ainda tinha a vantagem de her-
dar os empregados do Péter que estivessem trabalhando na linha de montagem e
que, por suas habilidades, eram muito cobiçados por outras fábricas de embalagem.
Nesse ritmo, a fábrica no Brás também foi reduzindo suas atividades e enco-
lhendo. Em 1992, ela contava com apenas 200 operários e tinha a Casa Granado
como sua maior cliente. A indústria continuava dividida em dois grandes seto-
res, a estamparia no térreo e a cartonagem no primeiro andar. Fermino acumu-
lava a chefia da cartonagem e a gerência da fábrica, enquanto Raimundo conti-
nuava à frente da oficina mecânica.
Também continuava em operação o galpão do Ibirapuera, com seus 10 mil
m2, onde os dez funcionários trabalhavam na manipulação das matérias-pri-
mas. Além das folhas de flandres compradas nos fornecedores, lá o encarrega-
do, Antônio Herrera, mantinha viva a tradição que dera origem à empresa: se-
guia adquirindo sucata de boa qualidade e colocava os materiais em condições
de aproveitamento pela produção.
Com a redução do pessoal, a rotatividade de empregados era alta, principal-
mente na contabilidade e no departamento de pessoal, pois Péter só aceitava fi-
car com os melhores. Robson Ribeiro, que foi contratado em 1991, em poucos
meses se tornou o funcionário mais antigo do seu setor. Quando alguém era con-
tratado para os setores administrativos, os outros funcionários chegavam a fazer
apostas de quantos meses ou semanas se passariam até ser demitido ou pedir as
contas. É que Péter, apesar da idade, jamais abandonara seu estilo centralizador
de gerir os negócios e, para isso, precisava ser continuamente alimentado por in-
formações claras e precisas. O funcionário tinha o direito de errar, mas não de
mentir ou tentar esconder alguma coisa dele.
O fato de a empresa estar em processo de fechamento não mudava seu per-
fil perfeccionista. Péter era um exemplo raro, se não o único, de diretor de uma
grande companhia que conferia pessoalmente os balanços contábeis. E todo o
trabalho dos empregados era feito à mão ou na máquina de escrever, pois ele não
confiava na informática.
Para contratar funcionários para a contabilidade, o empresário impunha que
se fizessem extensas provas de conhecimentos. Eram páginas e mais páginas mi-
meografadas com testes cuidadosamente preparados para checar o preparo téc-
nico dos candidatos – muitos deles com “pegadinhas” para confundir os menos

218 Sem Limite


avisados. Quando João Popazoglo se candidatou ao cargo, viu-se diante de di-
versos lançamentos contábeis que deveria fazer como teste. Devolveu a papela-
da para dona Tânia e disse:
– Se vocês quiserem que eu faça isso, que me paguem o dia de trabalho!
Apesar da postura irreverente, o candidato acabou ganhando o emprego. Pro-
va de que, na hora de contratar um novo auxiliar, apesar de exigir “mil” requi-
sitos, não eram raras as ocasiões em que Péter dava preferência ao seu instinto.
E João deve tê-lo impressionado positivamente de algum modo.
No fundo, parecia que ele ainda cogitava em não fechar a empresa. Admitin-
do que Péter Júnior nunca aceitaria voltar a dirigir uma fábrica com mais de mil
funcionários, ele teria gostado de criar uma espécie de empresa modelo, bastan-
te eficiente e moderna, com apenas 100 funcionários.
Aliás, ao contrário do que possa parecer, Péter não queria que as pessoas
trabalhassem demais. Ele defendia que as máquinas é que deveriam trabalhar
sem parar e que, quanto mais eficiente fossem, mais rapidamente se pagariam.
Para ele, toda a força de trabalho do planeta deveria ser dividida em dois tur-
nos, em que cada grupo trabalharia apenas três dias e meio por semana.
De acordo com esse projeto, haveria menos desemprego, as pessoas teriam mais
tempo para consumir diversão e cultura, aumentando a ocupação dos hotéis e
desenvolvendo o turismo. Por outro lado, as empresas funcionariam todos os dias
e haveria o uso mais racional do sistema público de transportes. Esse sonho utó-
pico não deixa de ser tentador para o século XXI, quando se conclui que a carga
semanal do trabalhador permanece inalterada desde a década de 1940, apesar
do contínuo aumento da eficiência das máquinas e dos serviços – em particu-
lar, após o advento da internet.
Foi por essa época que Péter travou contato com o consultor financeiro José
Carlos Leme da Silva, de quem logo conquistou a confiança. O empresário possuía
grandes valores investidos e precisava rapidamente obter liquidez para comprar
um conjunto de imóveis que, por inadimplência dos proprietários, seria leiloa-
do pelo Bradesco. Péter pretendia participar de maneira agressiva, arrematan-
do tudo. O consultor conseguiu realizar as complexas operações com sucesso e,
a partir daí, fizeram muitos negócios juntos.
Paralelamente, Péter continuava debruçado sobre o estudo dos problemas na-
cionais e as alternativas disponíveis para solucioná-los. Tanto que, em 1992, en-
viou uma longa carta ao presidente Itamar Franco com sugestões para reduzir

A vida de Péter Murányi 219


a inflação, proteger e profissionalizar os menores abandonados, além de tribu-
tar a economia informal. Quanto ao terceiro ponto, sugeria a criação de um im-
posto sobre movimentações financeiras, algo que veio a ser implementado anos
depois, no governo Fernando Henrique Cardoso. A íntegra do documento, em
forma de “Carta aberta ao presidente”, foi publicada no caderno de “Economia”
do jornal O Estado de S. Paulo, de 2 de outubro daquele ano.
Mônica, por sua vez, recobrara o ânimo de viver e havia se lançado com mais
paixão ao que considerava sua grande empreitada. Anos antes, querendo colo-
car em prática o seu método de doma de cavalos, instalou o Haras Murányi,
em Itupeva, a cerca de 60 km da capital. Contudo, o projeto dependia da aqui-
sição de cavalos de raça, de preço elevado. Ela apreciava especialmente os cava-
los árabes, de linhagem egípcia. Dentre os animais adquiridos em leilões, um
deles se destacou especialmente pelo valor do lance. O árabe Mocheno custou o
equivalente a 32 automóveis Monza, um dos veículos mais valorizados de então.
O irmão tomou um susto ao saber.
– Como você investiu essa soma de dinheiro em um cavalo? – perguntou à irmã.
Obviamente, o montante veio do pai. Péter inicialmente a apoiou, mas,
depois de algum tempo, advertiu a filha de que não poderia financiar eter-
namente aquele projeto. “Eu vai considerar, entom, que estou adiantando seu
herança” – disse ele.
Entre compras e vendas de animais, ela chegou a ter mais de 20 cavalos ao
mesmo tempo. Seu estilo de doma conquistou o respeito do público especiali-
zado, ao mesmo tempo em que ela se destacava como amazona, chegando a ser
tetracampeã brasileira de hipismo. As vitórias e a perícia como domadora fize-
ram dela uma pauta constante nas páginas das revistas especializadas Hippus e
Cavalo Árabe Latin America.
Mônica teve seu período de profundo entusiasmo. Assim como o pai, ela gos-
tava de criar coisas, de ver sua imaginação ganhar concretude. Comprava cavalos
já pensando nas características que eles poderiam transmitir à prole. Formava os
casais buscando o desenvolvimento de crias que representassem perfeitamente
as características do cavalo árabe de linhagem egípcia. Mas o fato é que o haras
nunca chegou a dar lucro e, mensalmente, Péter a socorria com alguma quantia.
Então, subitamente, ela foi atingida por uma tragédia. Gerhart morreu de uma
pneumonia fulminante. Mônica se abateu novamente e não encontrou conforto
em sua vida no haras. Confidenciou à irmã:

220 Sem Limite


A memória que fica de
Mônica Murányi
– Vera, é muito ruim tudo isso. O que gosto de verdade é mexer com cava-
los, montar, criar, domar. Ter um haras não era o que eu esperava... Vejo os ani-
mais aqui, lindos e perfeitos. Mas eu gasto 50% do meu tempo administrando
tudo e resolvendo problemas com empregados. Não era isso o que eu queria...
Agora ela via que teria sido melhor oferecer seus serviços aos diversos haras
do Estado e do Brasil, aplicando por toda parte a sua técnica de doma. Passan-
do um mês aqui e outro acolá, ela teria se dedicado de corpo e alma ao seu dom.
Mas como dizer isso ao pai depois de tanto dinheiro investido? Ademais, ela
começou a ficar preocupada em morar sozinha na sua casa, em um lugar tão
ermo. Por precaução, buscava ter sempre uma arma ao alcance da mão.
De alguma maneira, as preocupações dela coincidiram com as do pai, que
acabou lhe dizendo que era hora de sair dali. Na verdade, Péter tinha outros pro-
jetos para ela. Aliás, de uma forma ou de outra, em sua visão, todos os filhos es-
tavam destinados a tomar parte de seus planos, grandes ou pequenos. Certa fei-
ta, em um momento de irritação, ele chegou a dizer que deserdaria o filho que
não trabalhasse com ele. No caso de Mônica, ele gostaria que ela o ajudasse a es-
crever suas memórias. Afinal, ele reclamava que seu pai havia feito várias anota-
ções sobre a história da família, mas nunca transformara os esboços em um livro.
E mais importante do que isso, ele queria que ela o ajudasse a criar uma fun-
dação de reconhecimento à pesquisa. Não qualquer pesquisa, mas aquela volta-
da às ações que pudessem concretamente melhorar a vida das pessoas. Esse era
o grande sonho que passou a acalentar nos últimos anos de vida: uma fundação
que pudesse ser reconhecida internacionalmente e que tivesse um patrimônio
grande o suficiente para ser totalmente autossuficiente.
Nesse passo, o haras começou a ser desconstruído, primeiro pela venda da
grande maioria dos animais. Sobraram apenas dois garanhões, El Hazim e
Mocheno, os preferidos da domadora. Logo Mônica começou a procurar por um
apartamento para comprar em São Paulo. Em meio a tudo isso, Péter aproveita-
va para discutir com a filha os planos que nutria para ela.
Mas a força do destino já começara a mover tudo em outra direção.
Na sede do haras, Mônica preservava uma peça publicitária, a cabeça de um
cavalo em tamanho natural, feita em papelão em tons dourados. De longe, tinha-
-se a impressão de que se tratava de uma sólida escultura em ouro. E foi exata-
mente isso que atraiu a atenção de um adolescente, irmão de um antigo funcio-
nário, que passou perto de uma das janelas da casa certo dia. Ao ver a fotografia

222 Sem Limite


em três dimensões, sua imaginação o fez acreditar que Mônica, a amazona pre-
miada, fosse a proprietária de uma cabeça de cavalo de ouro. Ao espalhar a boa
notícia pelas redondezas, não foi difícil reunir comparsas e formar uma quadri-
lha para assaltar o haras e roubar o cobiçado objeto.
No final da tarde de 8 de fevereiro de 1994, como fazia todos os dias, seu Os-
car, gerente do haras, despediu-se de Mônica e retornou para sua casa, que fi-
cava em Jundiaí, cidade vizinha. Seu carro seguiu na direção da estrada, mas,
quando chegou ao portão do haras, foi rendido por nove criminosos distribuí-
dos por dois ou três carros. Alguns ficaram ocultos, tomando conta dos veículos
e prontos para a fuga, enquanto a maioria subiu com o refém para fazer o assal-
to. No caminho, aprisionaram os demais funcionários do haras e cortaram a li-
nha telefônica. O grupo então se dividiu mais uma vez. Uma parte ficou vigian-
do os colonos e apenas três seguiram com Oscar para a casa da frágil amazona.
Chegando perto da sede, um deles permaneceu com o gerente enquanto os
outros deram a volta para os fundos do imóvel. Mônica, ao ver o funcionário de
volta, perguntou de longe:
– Ué, sr. Oscar, por que voltou?
O homem, sem esconder o nervosismo, respondeu:
– Este homem está querendo comprar cavalos... – disse indicando o bandi-
do que mantinha o revólver contra suas costas.
– Mas como? Eu não vou vender mais nenhum...
O empregado insistiu e Mônica logo percebeu que se tratava de um assalto.
Como a casa era cercada por grades, ela refletiu rapidamente e disse:
– Vou buscar a chave.
Caso, nesse espaço de tempo, ela tenha pensado em telefonar para alguém,
certamente descobriu que o telefone estava mudo. Então, pegou sua espingar-
da e veio até a porta enfrentar o criminoso que estava ao lado de Oscar. Já che-
gou atirando.
Talvez nem tenha tentado acertar o assaltante, seguindo a máxima do pai, se-
gundo a qual “nunca encurrale o ladrão, deixe sempre um lugar para ele fugir”.
Infelizmente, os bandidos que haviam dado a volta na casa vieram em apoio ao
companheiro e um deles a atingiu, através da grade, com um tiro no pescoço.
Quando os ecos do tiroteio chegaram à casa do Sumaré, Péter reagiu de modo
enérgico. Como de hábito, deu ordens rápidas para tentar mobilizar os recursos
possíveis, socorrer a filha e perseguir os criminosos.

A vida de Péter Murányi 223


Mas era tarde demais.
O sangue de um Murányi já havia sido derramado e a história convergia para
um desfecho irreversível.
Alvejada com um tiro certeiro, Mônica morreu imediatamente.
E isso mudaria a vida de Péter para sempre.
O caso teve grande repercussão na imprensa, mas isso é um detalhe menor.
O velório atraiu um sem-número de pessoas, entre amigos, funcionários e au-
toridades dos mais diversos escalões. Ali elas encontraram um pai emociona-
do, revoltado, mas também inesperadamente orgulhoso pela reação da filha.
Para um amigo, ele assim justificou a atitude corajosa de Mônica:
– Ela fez o que era para ser feita. No poderia baixar o cabeça para bandidas!
Um funcionário ficou surpreso quando ele desabafou:
– É assim mesma, a gente morre, mas no se enverga!
Independentemente do que o rosto de Péter pudesse expressar, por dentro
havia uma dor profunda e um desejo imensurável de colocar as mãos nos culpa-
dos. No fundo, ele também se consumia com o inevitável “e se”, reflexão a que
todos chegam quando ocorre uma tragédia, uma separação, uma perda. Pensa-
va que, “se” tivesse antecipado a compra do apartamento para a filha na capital
– negociação que estava em lento andamento –, hoje, quem sabe, sua filha esti-
vesse ali entre eles. Seu anseio por justiça era tal que chegou a contratar detetives
para colher pistas que pudessem apontar os envolvidos no assassinato. Conhe-
cido seu temperamento, não surpreende que tenha também questionado conti-
nuamente, com toda a ênfase e persistência, cada uma das autoridades policiais
envolvidas no caso. Péter não queria que a morte de Mônica se incorporasse às
estatísticas de crimes sem solução. Ao final, também esse objetivo ele alcançou,
pois todos os criminosos foram presos, embora a punição do menor de idade
tenha sido aquela de praxe na lei brasileira: foi internado em um estabelecimen-
to para menores infratores.
Por conta do haras e dos cavalos recentemente vendidos, Mônica deixou um
patrimônio razoável, cujos herdeiros eram seus pais, Péter e Eva. O empresá-
rio recusou sua parte e dividiu o montante entre os outros filhos e o hospital
Albert Einstein. O estabelecimento que Péter ajudou a fundar retribuiu o gesto
ao instalar uma escultura em homenagem à Eva Mônica Murányi, no 7º andar
do hall do elevador panorâmico de um dos blocos. Também colocou um qua-
dro de Gerhard Berlet no prédio da Faculdade de Enfermagem.

224 Sem Limite


Homenagem à Mônica Murányi, cuja herança foi doada ao Hospital Israelita
Albert Einstein. Na foto, em primeiro plano, da esquerda para a direita, estão:
Dr. Josef Fehér, Laudo Natel, Max Eberhardt, Péter e Ruy Barbosa Nogueira

Péter Murányi (terceiro da esquerda para a direita) durante


comemoração dos seus 80 anos, em abril de 1995, com Péter
Júnior, Regina, Vera, Arlete, Albert e Fritz Josef Bar
Em janeiro de 1995, chegou a data de um evento importante para a famí-
lia: o casamento de Vera e Albert. Mesmo abalado pela perda da filha mais ve-
lha, Péter foi conduzido por seu temperamento centralizador também nesse
momento de felicidade geral dos Murányi. Talvez movido por um sentimento
de perda, por perceber que sua outra filha também sairia definitivamente de
seu controle, ele alimentou confrontos com Vera e até com a esposa. Primeiro
porque ele e Zilda tinham opiniões muito diferentes sobre a montagem da ce-
rimônia e Vera estava, claramente, de acordo com a mãe. Segundo porque ele
iria custear todas as despesas e queria restringir a lista de convidados, cha-
mando apenas as pessoas que escolhesse. Normalmente, Vera evitaria se de-
sentender com o pai, mas dessa vez não aguentou cumprir o seu velho papel
de argamassa. Disse que, em hipótese alguma, deixaria o pai intervir na lista.
O empresário turrão então disse:
– Se você fizer isso, eu no paga o festa de casamento!
Vera, surpresa, perguntou então:
– Mas você não vai deixar de entrar comigo na Igreja, certo?
– No, no chega a ser tão grave. Entrar no Igreja com você eu entra.
– Então está tudo bem! – disse a noiva.
Vera, para evitar discussões, pegou o dinheiro que herdara da irmã e pagou
sua festa de casamento. Para ela foi um detalhe marcante, sentir que a irmã lhe
havia dado um presente e que, de alguma forma, faria parte da cerimônia.
Albert sofreria com as interferências do sogro em muitas oportunidades.
Péter chegou a sugerir que ele, para enriquecer, deveria comprar uma fazenda
em Mato Grosso, porque, após 20 anos de labuta, ele poderia vendê-la por um
valor 50 vezes maior. E Albert perguntou:
– Certo. Mas como será minha vida nesse intervalo? Meu sonho não é penar
20 anos para aproveitar a vida depois de velho...
Outras situações foram mais inusitadas.
Um ano depois do casamento, Vera e Albert voltaram de uma viagem ao
Havaí e Péter resolveu pegá-los no aeroporto com sua Mercedes prata. Dali fo-
ram todos almoçar no Sumaré. Ocorre que a garagem do casarão não tinha co-
municação para dentro da casa. Era necessário sair à rua e depois entrar pelo
portão. Como eles deveriam ir para o apartamento do casal logo depois, Vera
resolveu deixar as malas no carro e tirar apenas a caixa com gulodices que
tinha comprado para o pai no freeshop. Foi quando um homem armado apare-

226 Sem Limite


ceu pedindo as chaves do automóvel. Albert ainda estava dentro da garagem, re-
tirando a tal caixa, quando Péter, que estava um pouco surdo, demorou alguns
instantes até perceber o que estava acontecendo. Quando viu a arma, quis ne-
gociar com o assaltante:
– Minha carro no! Você no quer entrá e levá outra coisa?
O assaltante, intransigente, insistiu que ele desse a chave do veículo. Péter,
teimosamente, disse que não o deixaria levar a Mercedes e, em um gesto impen-
sado, arremessou a chave para o outro lado da rua.
Vera, nesta hora, apenas conseguiu pensar que seus dias haviam acabado:
– Pronto, agora eu morri!
A situação saíra de controle. Felizmente, o assaltante preferiu atravessar a rua,
pegar a chave e dizer, em tom agressivo:
– A brincadeira acabou! Vou levar o carro!
Albert, também não muito sensato, explicou para o ladrão que haviam acaba-
do de chegar de viagem e pediu para pegar as malas. E, sem nem mesmo esperar
uma resposta, começou a retirá-las. Foi quando Péter e Vera saíram da garagem
com o controle remoto. Sem refletir muito bem, simplesmente acionou o botão
que fez descer o portão, fechando ladrão e genro na garagem. Desesperada, mas
com frieza de pensamento, Vera tentou segurar o portão e berrou em húngaro
para seu marido sair. O bandido, assustado, engatou a marcha ré e acelerou, des-
truindo não apenas o portão, como também o porta-malas, que estava aberto.
Saldo da tragédia? O seguro não pagou a porta da garagem. Péter teve que ar-
car com a franquia. E o criminoso não foi preso porque fugiu antes de a polícia
chegar, abandonando o carro irremediavelmente amassado poucas ruas adiante.
Por incrível felicidade ninguém morreu. Mas não houve quem conseguisse con-
vencer o empresário de que ele não deveria ter reagido naquele caso.
O avanço da idade e o lento fechamento da fábrica foram fatores que, prova-
velmente, levaram o empresário a pensar novamente no legado que gostaria de
deixar para as pessoas: a Fundação Péter Murányi. Ele desejava criá-la em vida.
Mas, caso isso não fosse possível, era preciso que se tornasse realidade pelas mãos
das três pessoas que ele mais amava: Vera, Péter Júnior e Zilda. Embora a espo-
sa tivesse saído de casa, ela continuava sendo um apoio constante, a mulher da
sua vida. Ele fora forçado a compreender que ela precisava e merecia viver um
pouco afastada das suas manias, daquelas regras que permeavam cada instan-
te da rotina do casarão. Mas o carinho, o respeito e a amizade permaneceram,

A vida de Péter Murányi 227


e eram recíprocos. Tanto que ela nunca tirou do dedo a aliança de noivado, nem
o anel de casamento.
Assim, Péter dividiu com sua família o seu sonho e os planos da fundação.
Ele escrevia isso a mão, enquanto trocava ideias com a esposa e os filhos. Ha-
via um pensamento muito claro na mente dele, bem coerente com sua visão do
mundo e da vida. Mas existiam vários detalhes que foram sendo delineados aos
poucos e outros que ele não teria nem tempo, nem energia para resolver.
Apesar de manter uma vida ativa, ainda tocando alguns projetos empresariais,
Péter Murányi nunca se recuperou da morte da filha. Sentia-se mais cansado, por
vezes até dormia depois do almoço. Para Lenir, a governanta, ele disse uma vez:
– Eu morri com meu filha.
Raimundo, o encarregado da mecânica, sentiu o abatimento do patrão de um
modo diferente. Durante os quase 40 anos que trabalharam juntos, acostumara-
-se com o entusiasmo do empresário, sempre em busca de novas soluções técni-
cas cada vez que precisavam atender a um novo cliente. Cada embalagem podia
ter uma peculiaridade, que exigia adaptações das máquinas e novas ferramen-
tas. Era preciso otimizar, ganhar tempo, velocidade, economizar matéria-pri-
ma, reduzir as chances de defeitos no produto final. Para todos esses pormeno-
res, a cabeça do empresário estava sempre em funcionamento. Por conta disso,
era comum que conversassem pessoalmente ou que Péter lhe enviasse grandes
folhas de papel sulfite onde ele desenhava suas soluções.
Então, um dia, Péter mandou que Raimundo montasse uma nova linha para
a Arisco, de um jeito que permitisse produzir muitas peças por vez. Ele pediu
que o chefe fosse à fábrica, pois, por telefone, ele não conseguira compreender os
planos. Péter não o atendeu pela primeira vez. Simplesmente não veio. E, assim,
Raimundo compreendeu que o grande líder estava de fato cansado de tudo.
Pouco antes de fazer a prometida cirurgia no coração, Péter teve uma arrit-
mia cardíaca. A família imediatamente entrou em contato com o dr. Jairo Taba-
cow Hidal, seu endocrinologista. O empresário estava de tal modo debilitado,
que o médico precisou carregá-lo para descer as escadas da residência e levá-lo
de pronto ao Hospital Albert Einstein em seu próprio carro. Se nesse dia Péter
teve que ser cuidado, em outros era ele quem se preocupava com a saúde daque-
les de quem gostava. Certa vez, Neusa Narzetti, uma de suas governantas, ficou
muito doente. Ele não apenas chamou o médico e mandou seu motorista buscar
medicamentos, como se encarregava pessoalmente de garantir que a funcioná-

228 Sem Limite


ria tomasse os remédios. Anos mais tarde, quando ela saiu do emprego, o empre-
sário soube das péssimas condições de sua moradia e a ajudou a comprar uma
casa melhor – algo que fizera com os funcionários da fábrica durante toda a vida.
Em 1995, Péter finalmente decidiu fazer a cirurgia cardíaca. Dona Lenir e
seus dois filhos se revezaram como acompanhantes durante o tempo em que
ele permaneceu no hospital. Mesmo convalescente, ele não deixava de cutucar a
governanta. Cada vez que ela cochilava, o homem resmungava:
– O senhora só pensa em dormir? Senhora é muito cansada...
Quando saiu da UTI para a unidade de terapia semi-intensiva, ele estava co-
nectado a alguns monitores e tubos de soro. Em dado momento, ele arrancou to-
dos os fios que o prendiam ao leito e simplesmente caminhou sozinho até o ba-
nheiro. Com isso, os alarmes dos aparelhos dispararam, fazendo com que uma
equipe completa de emergência surgisse na porta do quarto quase imediatamente.
Péter, que voltava para a cama com o semblante sereno, olhou espantado para
o médico e enfermeiros e perguntou:
– O que foi? Eu só fui ao banheiro.
Quando Péter Júnior soube do ocorrido, perguntou por que fizera aquilo.
– Eu queria ver se conseguia andar sozinho.
O filho entendeu a preocupação implícita na frase. Seu pai talvez nem pre-
cisasse ir ao banheiro com tanta urgência. O que ele queria era certificar-se de
que não estava inválido. Tal era a preocupação com sua autonomia, que ele não
revelou a quase ninguém que a cirurgia seria no coração. Para alguns disse que
faria uma operação para livrar-se de uma hérnia de hiato. Para outros, em quem
depositava maior confiança, acabou falando a verdade. Por não saberem que
grupo de amigos tinha conhecimento dos fatos, Vera e Péter Júnior não esca-
param ilesos de algumas “saias justas”. Enfim, ao término dos 12 dias de inter-
nação, voltou para casa e fez questão de subir os degraus da escadaria do casa-
rão sem ajuda. E vangloriava-se de que havia se recuperado em um prazo 20%
menor que o estimado pelo médico.
Além do problema cardíaco, Péter de fato lutava, havia mais de 30 anos, con-
tra uma hérnia intestinal causada por uma abertura no saco gástrico. Com medo
de operar, ele tentava contornar o problema usando uma cinta muito desconfor-
tável, que empurrava a hérnia para dentro. Em 1996, depois da cirurgia no cora-
ção, ele tomou coragem. Pode ser que a perda da filha tenha feito com que não
mais se incomodasse com a possibilidade de morrer. Quem pode ter certeza?

A vida de Péter Murányi 229


Dona Lenir, querendo animá-lo, resolveu levá-lo para Águas de Lindoia no
final daquele ano. Ela sabia que aquele lugar era um dos preferidos do empresá-
rio. O homem, enfastiado de tudo, reclamou:
– Dona Lenir, eu estar em recuperação!
– Mas nem por isso vai deixar de curtir o Natal, certo?
– O senhora é um maluco do cabeça...
Péter Júnior costumava encontrar o pai na famosa estância hidromineral.
Nessa época, ele estava em um namoro firme com a jovem Regina Gil, muito
alegre e simpática. Quando o acompanhava até o trabalho, lá apreciava dirigir
a empilhadeira sob a supervisão do motorista Adelson. Péter gostava muito da
nora e o sentimento era recíproco.
Pai e filho ainda jogavam longas partidas de xadrez, mas sem o mesmo grau
de atenção. A saúde do empresário continuava a declinar, provavelmente afe-
tada pela angústia que o corroía por dentro. Vera queria lhe dar carinho, mas
o pai nunca se sentiu confortável com esse tipo de contato físico com os filhos.
Durante toda a vida, ela apenas venceu a resistência do pai fazendo-lhe um cafu-
né forte ou coçando as costas dele com a unha. Ele adorava, pois encarava aquilo
como algo que ativava a circulação e o ajudava a pensar. A sessão de carinhos foi
denominada por ela de kráczi-kráczi, uma expressão inventada, mas que, pela
sonoridade, lembrava o húngaro.
Em 1998, o empresário foi diagnosticado com câncer de próstata.
No dia 16 de abril, seu aniversário, dona Lenir deu a ele uma caixa com di-
visórias, para colocar seus remédios. Ele olhou o presente sem emoção e disse:
– Que pena dona Lenir, eu no vai ter tempo de usar a presente.
A família já estava sobressaltada com o seu contínuo desinteresse pela vida.
Uns dias antes, jogando buraco, recusou-se a contar os pontos da partida.
– Mas que graça há em jogar sem somar os pontos? – disse a governanta.
– Oh, sim, sim. Senhora está certo. Vá dormir então.
No dia seguinte ao aniversário, Péter foi chamado pelo médico ao tele-
fone, pois havia uma alteração na taxa de açúcar no sangue do empresário.
Nada alarmante, mas seria necessário realizar uma bateria de exames no hos-
pital. Embora ciente de que iria apenas para uma consulta mais demorada,
ele parecia pressentir algo. Na saída, foi até a porta do casarão caminhan-
do, enquanto se despedia de todos. Desceu as escadas e, do portão, acenou
para os que ficaram.

230 Sem Limite


No Hospital Albert Einstein, ele soube que deveria permanecer internado,
pois os exames levariam certo tempo. Assim, Zilda, Péter Júnior e Vera combi-
naram os horários em que cada um ficaria como acompanhante. O filho foi o
primeiro. Zilda iria mais tarde e Vera passaria a noite com o pai. Tarde da noi-
te, ele reclamou de azia, pedindo um remédio para indigestão. Atendido em sua
necessidade, pouco depois ele teve uma parada respiratória. Os médicos vieram
rápido, mas, apesar do atendimento, ele não voltou à consciência. Pouco tempo
depois, seu coração parou de bater de uma vez por todas.
A despedida, afinal, havia sido para sempre...

A vida de Péter Murányi 231


Epílogo
Deus dai-me a paciência para me
conformar com as coisas que não posso
alterar, dai-me a coragem de alterar as
coisas que posso e dai-me a sabedoria
de distinguir entre umas e outras

Friedrich Christoph Oetinger


Teólogo alemão

234 Sem Limite


N o dia 17 de abril de 1998, Péter Murányi faleceu no hospital Albert
Einstein, que ele ajudara a fundar. Um enfarte foi o ponto final de
um definhamento que se arrastava desde o assassinato de Mônica.
Embora o empresário tenha morrido em uma sexta-feira, o enterro, no jazigo da
família, no Cemitério de São Paulo, só ocorreu no domingo pela manhã. Durante todo
o dia e a noite do sábado, foram feitas muitas homenagens ao empresário.
O velório foi no mesmo lugar onde ele viveu e trabalhou por quase 40 anos, o seu
casarão no Sumaré. A rua Antonina, sempre tão tranquila, foi tomada por carros, de
onde desciam pessoas consternadas. Na escadaria da entrada, amigos conversavam e
lembravam de suas experiências pessoais ao lado do grande empresário.
Além da família e dos amigos, muitos funcionários, ex-funcionários, colegas em-
presários e pessoas públicas do passado e do presente vieram compartilhar um mes-
mo lamento. Entidades que foram beneficiadas pelos seus gestos de caridade também
estavam presentes. Não era apenas um adeus. No coração de muitos, havia a sensação
de que algo se havia perdido: um espírito que ainda tinha muito a realizar, uma voz
que desaparecia antes de poder festejar a aurora de um Brasil não apenas sonhado com
amor, mas idealizado com criativa lucidez.
Antes de o caixão ser fechado, os filhos discretamente colocaram os mascotes
da mesinha de cabeceira junto ao corpo de Péter, como se quisessem cercar o pai dos
momentos felizes que cada um deles representava.
Na saída, batedores da Polícia Militar de São Paulo abriram o caminho para o
carro fúnebre que transportou Péter Murányi para a última morada na terra que
escolheu para viver e a qual amou como sua pátria.
E o corpo se foi... Mas o espírito de Péter, ao contrário do que temiam aqueles que
o admiravam, ainda teria uma missão a cumprir.
Em uma das paredes do salão da casa da família Murányi, há um quadro
no qual Zilda retratou o marido. Nele vemos um Péter totalmente diferente

A vida de Péter Murányi 235


daquele que ficou famoso como empresário arrojado e investidor calculista.
Afinal, a esposa o eternizou sorridente, em um momento raro de lazer. Na tela
ele está de short, blusa estampada e sob a brisa do mar, a bordo de uma lancha
que se afasta da terra.
Essa pintura talvez não represente o que foi a vida de Péter Murányi, mas
certamente simboliza a paz que sua alma alcançou quando a esposa, os fi-
lhos e alguns amigos colocaram em andamento o item mais importante de seu
testamento.
Quando as últimas vontades do empresário foram reveladas, logo se viu que ele
havia encontrado uma forma de realizar, após sua morte, aquilo que fora um dos
grandes sonhos em vida. Ele destinou uma parte considerável de seu patrimônio
para a criação da Fundação Péter Murányi, que tem por principal objetivo premiar
anualmente na área de saúde, desenvolvimento científico e tecnológico, de alimen-
tação e de educação trabalhos que de fato tenham melhorado a qualidade de vida
das populações situadas abaixo do paralelo 20 de latitude norte, região do plane-
ta onde se encontra a maioria dos países em desenvolvimento.
Mantendo a coerência que marcou sua vida, ele quis incentivar a produção
daquele tipo de conhecimento dotado de utilidade prática e efeito social rele-
vante. Embora fosse beneficiar a população brasileira sua principal preocupa-
ção, sua Fundação não deveria restringir-se a focar impactos locais ou pesqui-
sadores nacionais. Para tanto, caberia aos responsáveis pela gestão divulgar sua
existência e criar um mecanismo capaz de atrair trabalhos relacionados ao foco
por ele determinado.
Os herdeiros de Péter puseram-se de pronto em ação. O objetivo do em-
presário estava bem delineado, e os recursos haviam sido reservados para isso.
Mas havia uma série de questões práticas e jurídicas que eles não sabiam como
resolver. Foi quando dr. Rui Barbosa Nogueira indicou a eles outro Ruy, o dr.
Altenfelder, que é uma sumidade no assunto. Além de orientá-los, tornou-se um
dos conselheiros da Fundação.
Assim, já no ano seguinte, no aniversário do nascimento de Péter Murányi,
houve a cerimônia de posse do Conselho Superior da Fundação Péter Murányi,
à época formado não apenas por Péter Júnior, que ocupou o cargo de primei-
ro presidente; Vera, a vice-presidente, e Zilda, mas também por Rui Barbosa
Nogueira, Ruy Martins Altenfelder Silva, Reinaldo Lino e o ex-governador de
São Paulo Laudo Natel, além de André Ivatchkovitch, como primeiro secretário.

236 Sem Limite


Para garantir a seriedade dos trabalhos e atuar como uma espécie de pré-
-seleção, a Fundação entra em contato com instituições de pesquisa do Bra-
sil e do exterior, que foram cadastradas como integrantes do chamado Co-
légio Indicador. Cada membro desse Colégio, formado por instituições de
países latino-americanos, pode selecionar até dois trabalhos e deve levar em
conta se o projeto indicado é realmente inovador, tem aplicabilidade prática
e melhora a qualidade de vida das pessoas situadas na área geográfica apon-
tada pelo fundador.
O primeiro prêmio somente pôde ser concedido em 2002, ao médico Sérgio
Henrique Ferreira, pesquisador do Departamento de Farmacologia da Faculda-
de de Medicina da Universidade de São Paulo, de Ribeirão Preto (FMRP-USP),
por seu trabalho no desenvolvimento de um fármaco feito a partir do veneno da
cobra jararaca e indicado para hipertensão e insuficiência cardíaca. Em que pese
o prêmio de 100 mil reais pago naquela época, o pesquisador ficou mais emo-
cionado com o reconhecimento público pelo seu trabalho.
A presidência do segundo mandato foi exercida por Zilda Suelotto Murányi,
tendo seu filho como vice. A partir do sexto ano de existência, a Fundação passou
a ser presidida por Vera, aliás, Zilda Vera Suelotto Murányi Kiss. Atualmente,
Péter Murányi Júnior é o vice-presidente e os demais membros do Conselho
Superior incluem Adolpho José Melfi, Eduardo Moacyr Krieger, Helena
Bonciani Nader, Orchidéa Apparecida Marchezani Corciolli, Reinaldo Figueiredo
Lino, Ruy Martins Altenfelder Silva, além da viúva do instituidor, Zilda
Suelotto Murányi. Existe também um Conselho Fiscal, formado por Donaldo
Fogaroli, Eduardo Rottmann e Walter Schueler Knupp. André Fernando
Ferreira é o Secretário Executivo e a incansável dona Tânia (Sebastiana Parris)
ainda cuida, eventualmente, das questões financeiras.
A fábrica do Brás deixou de existir, antes mesmo da morte de Péter. E, al-
guns anos mais tarde, o terreno foi vendido para a Companhia de Desenvol-
vimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU), que ali construiu qua-
tro torres residenciais. A única imagem preservada da empresa é um quadro
que retrata as instalações, feito por Gerhard Berlet, em seu característico estilo
hexagonista, como uma homenagem ao sogro. Uma das últimas linhas de mon-
tagem foi vendida por Péter Júnior no dia de seu casamento com Regina, em 14
de setembro de 1999. Mas a empresa, mesmo inativa, continua existindo e tem
nove funcionários.

A vida de Péter Murányi 237


Outro legado deixado por Péter são seus filhos e netos. Os primeiros há mui-
to já vêm honrando seu nome. O neto mais velho, filho de Vera, nasceu um ano
antes da morte do avô. Chama-se Gustáv Miklós. Depois vieram os três filhos
de Péter Júnior: Caroline, Julia e Peter.
Neste ponto, é interessante notar que o sobrenome Murányi, inventado na
Hungria para evitar perseguições religiosas, era ainda inexpressivo quando foi
trazido para o Brasil por um jovem obstinado que aqui o lapidou e o imortali-
zou. São Paulo foi a terra prometida daquele cristão de sangue judeu, que mos-
trava orgulho de se dizer brasileiro e que provou seu patriotismo mesmo de-
pois de morto.
Entretanto, somente podemos compreendê-lo ao perceber que, sob as camadas
de mágoas deixadas pelas injustas mortes do irmão e da filha, sempre carregou na
mente e no coração o menino de Budapeste que andava de bicicleta e jogava pedri-
nhas no rio Danúbio...
Péter Murányi, eterno.

238 Sem Limite


Álbum
de família
Péter Murányi em
diferentes momentos de
sua infância na Europa

240
O navio SS Mar del
Plata, que trouxe Péter
para o Brasil, ancorado
no porto de Antuérpia

À esquerda o visto
temporário que permitiu a
entrada de Péter no Brasil
em 1939. Abaixo, o visto
que garantiu a permanência
definitiva na nova pátria

241
Acima, Mônica cavalgando em
Águas de Lindóia e, ao lado, com
o avô János Ödön e o pai

Péter sentado no Buick


conversível na década de 1960

242
O casamento, em 1959. Da esquerda para a direita: Aurélio
Suelotto, Zilda, Mônica, Péter, Vilma e Alfred Halward

Os funcionários prestigiaram as bodas do diretor-presidente


da Péter Murányi Indústria e Comércio S/A

243
De cima para baixo:
Péter na lua de mel,
Zilda na piscina do hotel
na República Dominicana
e Péter velejando em
Guarapiranga

244
Cerimônia de entrega do título
de Cidadão Paulistano, em 1964

Péter cumprimenta
o presidente da
República Artur da
Costa e Silva

Com o coronel Confúcio Danton de Paula Avelino, comandante


da Força Pública do Estado de São de Paulo de 1969 a 1971

245
O casal Péter e Zilda
na festa de aniversário
de 21 anos de Mônica

246
Péter recebe a Medalha “Euclides da Cunha”, em 1975, pelo Clube dos Estados

Reunião de diretoria da Péter Murányi Indústria e Comércio S/A

247
Em festa na Rua Antonina, Péter e Zilda se reúnem com
a família Natel: Maria Zilda (acima) e seu filho Ivan com
a esposa Maria Bernadete Menezes (abaixo)

248
Péter e Zilda no
casamento de
Mônica com o
suíço Ernst Lanz

Mônica com sua


mãe, Eva Courant

249
Zilda Suelotto Murányi (no destaque) e,
abaixo, com o filho Péter Júnior e a família
Suelotto: tios Zilda e João, Lydia (irmã),
Aurélio (pai) e Yvonne (irmã)

250
Em suas viagens de negócios,
Péter passou por vários países,
em especial da Europa e Ásia

251
Momentos de vida em
família: com Péter
Júnior (ao centro)
e Vera (abaixo)

252
Com Péter Júnior, em Bariloche (acima),
com Zilda e Vera (ao lado)
e com Mônica, no Sumaré

253
254
O personagem

P ÉTER MURÁNYI nasceu a 16 de abril de 1915 em Budapeste


(Hungria). Filho de János Ödön Murányi e de Vilma Halward.
Casado com Zilda Suelotto Murányi. Pai de três filhos: Eva Mônica
Murányi, Zilda Vera Suelotto Murányi Kiss e Péter Murányi Junior.
Realizou seus estudos na Hungria, onde formou-se em Economia com dis-
tinção na Escola Superior de Comércio Conde Istvan Széchenyi.
Industrial do setor de embalagens, iniciou suas atividades na Hungria,
trabalhando depois na França. Com o início da Segunda Guerra Mundial,
decidiu emigrar para o Brasil, chegando ao país no final de 1939. No ano seguinte,
estabeleceu-se por conta própria com a Indústria de Embalagens de Papel, como
firma individual, pioneira na fabricação de embalagens com corpo de celulose
e fundo e tampa em folha de flandres. Em 1946, a empresa se tornou a Péter
Murányi Indústria e Comércio S/A, a qual operou durante mais de 50 anos e
chegou a ter 1.500 funcionários.
Também ocupou o cargo de Cônsul Geral Honorário da República Domini-
cana em São Paulo de 1969 a 1984. Enquanto ocupou o cargo, intensificou a ex-
portação brasileira para aquele país, que se tornou, na década de 1970, o maior
comprador dos produtos industriais brasileiros na América Central, com linha
de navegação que liga Santos a São Domingos, pelo Loyd Brasileiro.
Elaborou um sistema de pagamento aos assalariados, com cheque bancário,
que ficou conhecido como Cheque Salário, como forma de reduzir ou evitar os
incidentes envolvendo furtos e roubos a empresas e funcionários destas.
Iniciou a luta para a alfabetização dos adultos, da qual resultou o MOBRAL.
Conseguiu por intermédio do Consulado Geral Norte Americano, que o Go-
verno dos Estados Unidos modificasse a lei do imposto de renda, autorizando o
desconto das contribuições das empresas norte-americanas, do imposto de ren-
da pagável naquele país.

A vida de Péter Murányi 255


Ao longo de sua vida, apresentou dezenas de projetos socioeconômicos ao
poder público, em todas as esferas de governo, com vistas ao desenvolvimento
do País e, em particular, à promoção da educação.

RECONHECIMENTOS

◆ Comenda “Imperatriz Leopoldina” (1955), do Ministro das Relações Exteriores

do Brasil.
◆ Medalha Comemorativa “Presidente Stroessner” (1957), do Ministro das

Relações Exteriores do Brasil.


◆ Comenda “Anchieta” (1957), da Secretaria Geral de Educação e Cultura da

prefeitura do Distrito Federal, em comemoração ao 4º Centenário da chegada


do Padre José de Anchieta ao Brasil.
◆ Título de “Cidadão Paulistano” (1964), da Câmara Municipal de São Paulo.

◆ Medalha “Hipólito José da Costa” e o título de sócio efetivo (1964), da

Associação Interamericana de Imprensa.


◆ Grã-Cruz da Legião de Honra “Marechal Rondon” (1971), do Museu de História

do Rio de Janeiro.
◆ Medalha “Anchieta” e Diploma “Gratidão da Cidade de São Paulo” (1974), da

Câmara Municipal de São Paulo, pelo trabalho que fez em prol da alfabetização
do povo brasileiro, com do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral)
◆ Medalha “Euclides da Cunha” (1975), pelo Clube dos Estados, em consideração

aos seus méritos pessoais e dedicado culto ao Brasil.


◆ Medalha do Cinquentenário (1975), da Sociedade Consular em São Paulo.

◆ Certificado de Participação Comunitária (1975), do Movimento Brasileiro de

Alfabetização (Mobral).
◆ Ordem do Mérito Republicano (1976), da Academia Brasileira de História,

pelos serviços prestados à cultura e à comunidade


◆ Medalha “Pero Vaz de Caminha” (1977), do Instituto Histórico e Cultural de

São Paulo.
◆ Certificado de Participação Comunitária (1978), do Movimento Brasileiro de

Alfabetização (Mobral).
◆ Ordem Honra e Mérito “Duarte, Sanchez y Mella”, no grau de Grande Oficial

(1979), do Presidente da República Dominicana.

256 Sem Limite


◆ Diploma (1979), da Associação Cristã de Moços, pelos relevantes serviços
prestados à juventude paulistana.
◆ Diploma de Conselheiro (1980), da Academia Brasileira de História.

◆ Comendador da Cruz do Mérito Cívico e Cultural (1985), da Sociedade

Brasileira da Heráldica e Medalhística, como reconhecimento aos serviços que


desenvolveu em favor da comunidade brasileira.
◆ Homenagem da Associação Cristã de Moços – Distrital de Santo Amaro

(1983), entidade que presidiu de 1986 a 1990, com a escolha do nome de Péter
Murányi para o edifício-sede, em reconhecimento à doação do terreno onde
este está localizado.
◆ Título de “Patrono Benemérito” (1985), do Hospital Israelita Brasileiro Albert

Einstein.
◆ Plaqueta Comemorativa “Julianus” (1986), da Associação Beneficente 30 de

setembro.
◆ Colar José de Anchieta (1987), do Instituto Histórico e Cultural Pero Vaz de

Caminha.
◆ Diploma e Medalha (1987), da Academia Brasileira de História, ao comemorar

30 anos de sua fundação, pelo trabalho e dinamismo com que o homenageado


ajudou a construir a história do País.
◆ Diploma de Mérito Cívico comemorativa à Proclamação da República (1989),

do Instituto Histórico e Cultural Pero Vaz de Caminha.


◆ Estrela da Legião de Honra da Transilvânia (1989), da Federação Mundial da

Transilvânia (Erdélyi Világszövetség), pela coragem, dignidade e préstimos


heroicos em defesa dos princípios de Auto Determinação Nacional e Direitos
Humanos e Paz Mundial baseada na Justiça.
◆ Homenagem com o Sino Comemorativo da abertura do pregão (1990), do

Conselho da Bolsa de Mercadorias de São Paulo, por seu papel de liderança


empresarial e comprometimento com a sociedade.
◆ Inauguração do Laboratório de Pesquisa e Desenvolvimento Péter Murányi

(2002), do Hospital Israelita Brasileiro Albert Einstein, em homenagem a um


de seus beneméritos.

A vida de Péter Murányi 257


258 Sem Limite
Agradecimentos

O autor deste livro, Ricardo Viveiros, e a família Murányi gostariam


de agradecer às equipes envolvidas no projeto e a todos aqueles que
concederam depoimentos para a construção desta história.
A participação de familiares, amigos e colaboradores – posições que, neste
caso, muitas vezes se permeiam e misturam – foi fundamental para que a tra-
jetória de Péter Murányi pudesse ser escrita e atingisse seu objetivo, sua razão
de ser: preservar a memória de um homem que não conheceu limites para con-
cretizar aquilo que entendia como justo e ético, realizado em nome de um bem
maior e comum a todos.
O nosso muito obrigado a: Adelson Marcelino Conceição, Ági Bester, An-
dré Ivatchkovitch, Antonio Herrera, Arnaldo Paoliello, Braz Martins Neto, Ce-
lina da Conceição, Cesar Ciampolini Neto, Flávio Oscar Belio, Jairo Tabacow
Hidal, João Bosco Sieh, João Fermino, João Popazoglo, José Carlos Leme da Sil-
va, Laudo Natel, Lenir Franhan, Magdalena Valko Kapos, Marco Antonio Su-
plicy, Maria Cristina Bordinassi, Marisia Donatelli, Neusa Narzetti, Penha Gi-
glio, Raimundo do Espírito Santo, Reinaldo Lino, Robson Ribeiro, Tânia Parris,
Wilton Kanup e Zeus Telles.
Uma obra biográfica não existe sem a contribuição daqueles que convive-
ram com o personagem central. Relatos, memórias e lembranças são os elemen-
tos vivos que têm o poder de transformar uma simples exposição de fatos em
ordem cronológica em narrativa rica e, em alguns momentos, até mesmo lírica.

A vida de Péter Murányi 259


260 Sem Limite
Referências bibliográficas

LIVROS

◆ 100 anos da Associação Cristã de Moços. São Paulo: Árvore da Terra, 2002.
◆ Meio século de progresso paulista. Sociedade
Paulista Editora: São Paulo, 1938.
◆ ÂNGELO, Ivan. São Paulo, 110 Anos de Industrialização. Editora Três:
São Paulo, 1992
◆ BOGDAN, Henry. Histoire des pays de l’Est. Paris: Pluriel, 1990.
◆ CLARK, Christopher. Os Sonâmbulos - Como Eclodiu A Primeira
Guerra Mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
◆ D’ENCAUSE, Hélène Carrère. Le Grand Frère. L’Union
soviétique et l’Europe soviétisée. Paris: Flammarion, 1983.
◆ FROTA, Guilherme de Andrea. Quinhentos Anos de História do Brasil.
Biblioteca do Exército Editora: Rio de Janeiro, 2000.
◆ GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
◆ RECLUS, Onésime. Grande Geographie Bong Illustré.
Paris: Maison d’Edition Bong, 1912.
◆ SEBESTYEN, Victor. Doze Dias: A Revolução de
1956. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
◆ SEBESTYEN, Victor. A Revolução de 1989: A queda
do Império Soviético. São Paulo: Globo, 2009.
◆ SHEPPERD, Alan. Hitler em Paris. Barcelona: Osprey Publishing, 2009.
◆ TUCHMAN, Barbara. Canhões de Agosto.
Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998.
◆ VERO, Judith. Alma Estrangeira. São Paulo: Ágora, 2003
◆ VIVEIROS, Ricardo. 200 Anos – Indústria Gráfica no Brasil. São Paulo:
Clemente e Gramani Editora, 2008. Laudo Natel: Um bandeirante.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.
Um olhar sobre São Paulo. São Paulo: RV & Associados, 2011

A vida de Péter Murányi 261


PERIÓDICOS

Jornais
A Gazeta, 07 e 19 de novembro de 1956 e 14 de fevereiro de 1958.
Diário de São Paulo, 02 de novembro de 1956.
Diário do Comércio, 14 a 16 de setembro de 1968.
Diário dos Municípios, 30 de outubro de 1964.
Diário Oficial, julho de 1969.
Diário Popular, 30 de setembro de 1968.
Folha da Manhã, 02 de novembro de 1956.
Folha da Tarde, 26 de março de 1979.
Folha de S. Paulo, 04 de julho, 23 de maio, 15 de agosto e 28 de novembro de 1954;
11 de dezembro de 1956; 1º de abril de 1958; 15 de abril de 1961; 06 de novembro
de 1969; 23 de fevereiro de 1970; 21 de fevereiro e 25 agosto de 1971; 05 de agosto
de 1972; 05 de janeiro e 20 de dezembro de 1973; 05 de fevereiro de 1975; 10 e 22
de fevereiro de 1976; 13 de setembro de 1977; 19 de maio de 1978; 15 de fevereiro
de 1982; 14 de abril de 1985; 13 de novembro de 1987; e 23 de abril de 1998.
Gazeta Húngara, 25 de novembro de 1956.
Gazeta Mercantil, 13 de setembro de 1968.
Jornal da Semana, 25 de fevereiro de 1973.
Jornal da Tarde, 13 de setembro de 1968.
Notícias Populares, 13 de setembro de 1968.
O Estado de S. Paulo, 07 de agosto de 1949; 12 de julho, 30 de setembro, 02, 13 e
20 de novembro de 1956; 1º, 05 e 08 de janeiro de 1957; 21, 22 e 23 de janeiro de
1958; 21 de julho e 30 de novembro de 1960; 26 de fevereiro de 1961; 30 de outubro
e 21 de dezembro de 1963; 12 de julho de 1964; 28 de junho e 14 de outubro de
1969; 14 de maio, 17 de outubro e 04 de novembro de 1971; 04 e 18 de novembro e
11 de dezembro de 1971; 17 de fevereiro de 1972; 08 de fevereiro e 20 de dezembro
de 1973; 09 de março de 1978; 16 de maio de 1982; 30 de junho de 1988; 02 e 03
de outubro de 1992; 11 de fevereiro e 13 de agosto de 1994; 12 de dezembro de
1995 e 28 de junho de 1997; 08 de outubro de 2002; e 11 de março de 2008.
O Globo, 14 de setembro de 1968.
The Jerusalem Post, 29 de outubro de 1982.

262 Sem Limite


Revistas
Banas, de 30 de setembro de 1968.
BC – Economia e Política, 1968.
Associação Brasileira dos Supermercados, setembro de 1976.

Sites
◆ Associação Cristã de Moços: www.acmsaopaulo.org
◆ Fundação Péter Murányi: www.fundacaopetermuranyi.org.br
◆ Hospital Israelita Albert Einstein: www.einstein.br
◆ Santo Amaro Online: www.santoamaroonline.com.br

Outros
◆ Cartas, telegramas, certificados, diplomas, declarações
e demais documentos pessoais do biografado.
◆ Relatório da ACM Santo Amaro (2005)

Créditos das imagens


Todas as fotos são de arquivo particular da família Murányi e entrevistados,
exceto pela imagem no alto da página 193, cujo crédito é o seguinte: Livro “Bolsa
de Mercadorias de São Paulo: 1917-1987”, por Laserprint, São Paulo (1987).

A vida de Péter Murányi 263


Ricardo Viveiros de Paula

N ascido em 18 de março de 1950, no Rio de Janeiro (RJ), é jornalista com passagem por importantes jornais,
revistas, emissoras de rádio e TV, tendo atuado no Brasil e no Exterior. Foi repórter, editor, diretor de redação, âncora,
comentarista político e econômico, articulista e correspondente em quatro guerras civis.
Recebeu a medalha da Organização das Nações Unidas (ONU) por um conjunto de matérias sobre Direitos
Humanos, no Ano Internacional da Paz (1986), e ganhou duas vezes o Prêmio Esso de Jornalismo por trabalhos em
equipe. É palestrante convidado por diversas universidades e instituições organizadas da sociedade civil, nacionais e
internacionais.
Nos anos 1960, atuou como roteirista e diretor de vários filmes sobre personalidades brasileiras. Esses
documentários alcançaram muito êxito e receberam prêmios (inclusive em festivais no exterior). Entre os nomes
focados na série, estão: Carlos Drummond de Andrade, Burle Marx, Garrincha, Luís Carlos Prestes, Di Cavalcanti e
Darcy Ribeiro.
Em 1968, por combater a ditadura que se instaurou no País após o Golpe Militar de 1964, foi preso, torturado e
seguiu para o exílio na América do Norte (México), África (Argélia), Europa (França) e América do Sul (Chile e
Argentina).
Em 1986, ele foi uma das personalidades públicas que liderou, no Brasil, o projeto Um Milhão de Minutos de Paz e,
em 1989, foi um dos embaixadores do projeto Cooperação Global para um Mundo Melhor – ambos de amplitude
internacional, promovidos pela Brahma Kumaris University (com sede na Índia e representações por todo o mundo),
em conjunto com a ONU.
Foi dirigente esportivo do São Paulo F.C. (comandou o marketing, a comunicação e o futebol, em diferentes épocas),
coordenador executivo da primeira visita de Sua Santidade o Papa João Paulo II a São Paulo (1980), membro do
Conselho de Defesa da Paz (Condepaz) e diretor do Museu Padre Anchieta (centro histórico da fundação da cidade de
São Paulo / Pátio do Colégio). Atuou como consultor na área de Comunicação Social e na área Pública da Fundação
Prefeito Faria Lima e lecionou Comunicação na pioneira Escola de Serviço Público do Estado do Rio de Janeiro
(ESPRJ).
Em seus 49 anos de carreira, comemorados em 2015, entrevistou mais de uma centena de líderes políticos,
empresários, religiosos e, também, personalidades da cultura e do esporte, no Brasil e em várias partes do mundo.
Esteve em mais de 100 países. Prefaciou diversos livros e foi patrono/paraninfo de diversas turmas de formandos, em
faculdades de Comunicação por todo o Brasil.
É autor de 33 livros, em diferentes gêneros: biografia, história, infantojuvenis, poesia, arte, crônica, reportagem e
comunicação.
Em maio de 2006 a Câmara Municipal de São Paulo concedeu-lhe o título de Cidadão Paulistano. Em 2009, foi
homenageado pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo (OAB-SP), por relevantes serviços prestados à
Comissão de Estudos da Lei de Imprensa.
Recebeu o Prêmio Benjamin Hurtado Echeverria, em 2010, como Personalidade da Comunicação Impressa na
América Latina, indicado por todos os países membros da Confederación Latinoamericana de la Industria Gráfica
(Conlatingraf), em Cancún, México.
Em 2011, recebeu o prêmio Antônio Bento, da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). Em junho de 2012,
em Ankara (Turquia), foi homenageado pela The Journalistis and Writers Foundation, daquele país, por sua atuação
como jornalista e escritor na defesa dos direitos humanos ao longo de sua vida.
Em novembro de 2013, foi escolhido pelos empresários do setor no qual atua, em votação nacional, como
Comunicador Empresarial do Ano. Em prestigiada solenidade em São Paulo (SP), recebeu troféu e diploma da
Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje). Trata-se do mais importante prêmio do setor no País.
Empresário de Comunicação, fundou e dirige, desde 1987, a Ricardo
Viveiros & Associados – Oficina de Comunicação, uma das maiores
empresas no ranking brasileiro do setor, detentora de importantes prêmios
técnicos e uma das poucas de capital 100% brasileiro.
Foi conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). É membro
do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, da
Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais (Brasília, DF), da
Federação Internacional dos Jornalistas (Bruxelas, Bélgica), da Associação
Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), da Asso-ciação Internacional de
Críticos de Arte (AICA), da União Brasileira dos Escritores (UBE) e do
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP).
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