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12 | PORTUGAL | PÚBLICO, TER 13 OUT 2015 PÚBLICO, TER 13 OUT 2015 | PORTUGAL | 13

BRUNO LISITA
estavam a viver em casa dos pais, xual”. “Muitos”, diz, “nunca sen-
que tinham os horários controlados, tiram o corpo nu de uma mulher”.
que precisavam de estar em casa até Ou um “abraço verdadeiro” e não
ao anoitecer, a quem lhes era per- de “caridade”. Enfrentaram pre-
guntado com quem tinham saído e conceitos a vida toda; precisam
As pessoas com porquê. Isto não faz sentido. Há um
grande controlo face à sexualidade
delas, relacionado com esta infanti-
antes de tudo de “ser amados”.

Só uma ajuda física


lização, mas também com o receio “Sou um homem normal”, rema-
de abuso dos outros. (...) Isto tem ta João. Gosta de ir à praia e fazer
como consequência o adiamento voluntariado (não trabalha, mas
face a decisões íntimas e também a faz digitalizações numa bibliote-
interiorização de um estigma.” ca). Gosta de desporto (é um atleta
Há cerca de 12 anos João Lomar fez medalhado). Conversa com mulhe-
pela primeira vez uma pesquisa na res em chats da Internet. Desfruta
Internet sobre sexualidade e defici- da sua sexualidade à sua maneira,
ência. Só encontrou um resultado: como pode.
“Dizia que nós, deficientes, não pre- Por agora, alimenta um caso com
cisamos de ter sexo. Não concordo. uma pessoa comprometida com
deficiência têm sexo. E são
Eu tenho sexualidade.” Ainda que
nem sempre a consiga viver “por in-
teiro”. E que já não tenha grande es-
perança na sociedade em geral: “Não
acredito que uma mulher normal
queira ter alguma coisa comigo”.
Tal como Lúcia, João, de 42 anos,
uma leve incapacidade, mas na
instituição onde vive já namorou
com uma mulher com mais defi-
ciência do que ele. Uma relação,
como muitas outras, que contava
com a cumplicidade de quem todos
os dias lida com os residentes. A
sofre de paralisia cerebral. Também nível físico, por exemplo: “Alguém
tem sensibilidade em todo o corpo, a punha na cama, mas não faziam
mais felizes assim mas tem incapacidades motoras (ca- mais nada. O resto era eu.”
minha apoiado numa cadeira de ro- Foi para saber como responder a
das), tem pouca destreza manual e situações semelhantes que Daniela
não consegue falar correctamente. Lopes, terapeuta ocupacional de
Natural de Barcelos, reside actual- 32 anos, dedicou a sua tese do mes-
mente na Villa Urbana de Valbom trado à sexualidade de indivíduos
É um “tabu” imposto por uma sociedade que não lhes reconhece sexualidade. da Associação do Porto de Paralisia adultos com paralisia cerebral. A
Cerebral (APPC), em Gondomar. trabalhar na APPC, começou a re-
Sim, as pessoas com incapacidade motora amam, namoram, desejam, Se as mulheres, por estarem inse- ceber vários pedidos de moradores
fazem amor, excitam-se, mas poucos lhes falam sobre isso ridas num sistema social “sexista e da unidade residencial que preci-
ANA MARQUES MAIA
patriarcal”, têm “muita dificuldade savam de ajuda física para a con-
pessoas com alterações sensitivas. À típica radiografia de pobrezinho, de Lúcia aprendeu com a experiência. ficiência, mas não falas de sexualida- em perspectivarem-se como consu- cretização do acto sexual. E nem
Amanda Ribeiro incapacidade colam-se estereótipos: incapaz, de assexuado. “Já me acon- “Até porque”, diz entre risos, “não há de LGBT [lésbicas, gays, bissexuais midoras do trabalho sexual”, como todos os prestadores de cuidados
os portadores são encarados como teceu dizerem: ‘Ai, coitadinha, uma Kamasutra para deficientes.” Tem e transgéneros]”. Foi obrigado a en- descreve Ana Cristina Santos, mui- estavam dispostos a tal.
té aos 15 anos, até assexuados, ou, por vezes no caso rapariga tão bonita numa cadeira de sensibilidade no corpo todo e uma contrar “alternativas”. “Não tenho tos homens com incapacidade con- Como resultado do estudo, há
ter iniciado a sua particular da deficiência mental, hi- rodas!’ Eu respondi: ‘Mas acha que mente muito aberta. Já procurou o chamado ‘orgasmo’, não tenho tinuam a encontrar aí uma forma hoje uma maior abertura e “sen-
vida sexual, Lúcia persexuais. Vistos como vítimas, con- isto só acontece aos feios?’” Natural posições na Internet, já viu porno- ejaculação. No entanto, tenho uma de vivenciarem a sua sexualidade. sibilização”, inclusive entre os
Fisteus Marques siderados pouco atraentes, sempre do Porto, mudou-se há alguns me- grafia. Já esteve com pessoas com parte que normalmente as pessoas João Lomar, por exemplo, perdeu técnicos auxiliares, mas não hou-
via o seu corpo co- bons amigos, nunca companheiros ses para Lisboa — um processo de deficiência, já esteve com pessoas não trabalham tão bem com ela... a a virgindade por volta dos 30 anos ve grande retorno a nível prático
mo um símbolo de ou amantes. Preconceitos que os autonomização recente, em fuga de sem deficiência. Já se ouviu a proferir minha cabeça.” com uma trabalhadora sexual. Não — porque, diz a terapeuta ocupa-
“sofrimento”. “Se “impedem de aceder à sua própria um ambiente familiar violento. A sua o emblemático: “Tu gostaste?” E já Nem sempre a família, os profis- correu bem — ele estava nervoso, ela cional, esta ainda não é uma pro-
calhar vou chocar sexualidade” e que têm repercussões incapacidade afecta-lhe apenas os usou algemas. Sim, leu As Cinquenta sionais de saúde, os amigos adoptam não o tratou bem. Há uns anos, por blemática “prioritária”. Há outras.
ao dizer isto”, ad- a nível emocional, formando, enfa- membros inferiores, o que lhe permi- Sombras de Grey e, embora seja hete- as melhores práticas para promover recomendação de um amigo, voltou “Ainda se está muito voltado para
mite a jovem, que tiza Garrett, indivíduos “com uma te ter alguma independência desde rossexual, teve uma experiência com a sexualidade saudável dos porta- a experimentar. “Ele disse-me que resolver situações de pessoas que
nasceu há 29 anos com paralisia péssima auto-imagem e baixa auto- que disponha de uma cadeira eléc- uma mulher. No fundo, faz o que dores de deficiência. Diminuem-lhe ela seria boa comigo e foi. Deu-me têm algum problema intelectual e,
A
cerebral. Foi com o primeiro namo-
rado, também ele numa cadeira de
rodas, que começou a considerar
pela primeira vez a sua sexualidade
e se deparou com um “mundo ex-
traordinário”. Só então descobriu
estima”.
Em Portugal, as próprias pessoas
com deficiência também continuam
a ter de travar outras batalhas. Mas
em 2013, inspirados pelo documentá-
rio espanhol Yes, We Fuck, lançaram
trica. Até há bem pouco tempo tudo
estava um pouco diferente. Tinha,
por exemplo, uma relação estável
com um homem sem deficiência. O
que correu mal? “A causa que acaba
com muitas coisas e ajuda a começar
“toda a gente faz, mas muita gente
esconde”. Gosta de experimentar e
tem duas certezas: 1) “Quando um
deficiente se entrega, não entrega só
o corpo. (...) A pessoa vai descobrir
todas as tuas fragilidades, mas tam-
a importância, até porque há mais
elementos a observar, como a rea-
bilitação. A falta de autonomia des-
ta população também pode afectar
esta vivência. No projecto de inves-
tigação Intimidade e Deficiência — Ci-
mais carinho, mais atenção.”
Afecto, carinho, amor — para
além do desejo sexual. É o que os
leva a visitá-la. É pelo menos essa
a experiência de Madalena (nome
fictício) ao fim de 13 anos de traba-
por isso, estão mais susceptíveis ao
abuso. É a grande preocupação —
e bem! Mas falta a outra vertente:
então e aquelas pessoas que não
precisam de ser protegidas, por-
que conseguem consentir e só pre-
que aquele corpo que vestia de com- o Sim, Nós Fodemos, um movimen- outras: o preconceito.” A sociedade, bém tudo aquilo que és capaz.” 2) “É dadania Sexual e Reprodutiva de Mu- lho sexual. Tem hoje, entre os seus cisam é de uma ajuda física?”
plexos, no qual se julgava “presa to, o primeiro do género em territó- enfatiza Lúcia, não sabe lidar com problemático que em pleno século lheres Deficientes em Portugal, que clientes regulares, 12 homens com Daniela Lopes aponta, por isso,
para toda a vida”, poderia afinal ser rio nacional, que pretende abordar a diversidade funcional: “Mas isso XXI, se saíres à rua e perguntares a auscultou precisamente pessoas do incapacidade, física e, principalmen- para a necessidade de um servi-
um “companheiro”. “E até dar-me e desmistificar a sexualidade em também não me assusta. Acho que pessoas se se conseguiriam envolver sexo feminino entre os 25 e os 45 te, mental. É, diz, das poucas que ço de assistência sexual em Por-
coisas bastante prazerosas.” pessoas com diversidade funcional — existo para a preparar.” com uma pessoa com deficiência, a anos com diversas incapacidades, os atende, o que, na sua opinião, tugal à luz do que existe noutros
A intimidade da pessoa com de- porque, sublinham, a sexualidade é o Aceitou integrar esta reportagem maioria te diga que não — porque não várias entrevistadas descreveram só reforça a importância da legali- países, ou, pelo menos, de um
ficiência é um “mito”, um “tabu”, “motor mais potente de crescimento — em que são apenas abordados ca- vêem uma pessoa deficiente como “situações de infantilização prolon- zação do trabalho sexual. Com ela mecanismo facilitador. “Se estas
diz Lúcia. Imposto não pelos por- pessoal, desenvolvimento da própria sos de incapacidade motora e não uma pessoa capaz de praticar o ac- gada” — porque as famílias se tor- sentem, pela primeira vez, que lhes pessoas pudessem ter acesso a
tadores de incapacidade, mas sim personalidade e das relações sociais” mental — para combater a “ideia de to sexual e de ter uma vida sexual navam hiperprotectoras, ainda que é reconhecida sexualidade — e não uma sexualidade livre, saudável,
por uma sociedade que “não está e, como tal, deve ser “discutida nos que a sexualidade na deficiência é plena e feliz.” “na melhor das intenções”, porque só. Por isso, são clientes fiéis: “Têm vivida de uma forma plena, eram
preparada para acolher a diversi- apoios sociais”. Tal como toda a gen- um pecado, algo completamente fora lhes é reconhecida uma “sexualida- a necessidade de sentir o meu cari- muito mais felizes, mais bonitas,
dade como algo positivo”, reforça te, os deficientes amam, namoram, do padrão, que não faz sentido”. A Uma sexualidade invisível “normal”, ainda que, muitas vezes, o com deficiência adquirida. Dizem- de invisível”. nho e de ouvir aquilo que eu digo, com mais vontade de fazerem ou-
a investigadora Ana Cristina Santos. desejam, fazem amor, excitam-se. realidade, diz, é que as pessoas com Em adolescente, nunca foi confron- próprio acto de ir ao posto de saúde lhes que não vão ter mais direito ao profissional de saúde abordou o “Não estamos a falar de adolescen- que é [um discurso] diferente. Digo tras coisas.” E é isso “o mais im-
Como “outras pessoas sem defici- “Sim, nós temos direito a uma sexu- deficiência passam pelas mesmas tada com a habitual conversa sobre seja uma aventura, porque muitos sexo, que acabou ali, quando há mil retomar da actividade sexual. “Fui tes”, enfatiza Ana Cristina Santos, a sempre: ‘Então, toda a gente tem ne- portante”, diz Madalena. “Fazer
ência existem em maioria”, a sexu- alidade digna e adequada; sim, nós etapas que todas as outras pessoas. sexo. “Quem falou sobre prevenção edifícios não são acessíveis. E que a formas bastante agradáveis de reto- descobrindo, falando com pessoas, coordenadora do estudo, financiado cessidades fisiológicas, tu também uma pessoa gostar dela própria,
alidade desta população não é “re- somos pessoas.” “Com uma dificuldade acrescida: com a minha médica fui eu. Disse- “sensibilidade dos médicos seja de mar a vida sexual.” vendo na Net.” Ainda para mais, pela FCT, que decorreu no Centro tens de ter, é natural.’” Nem todos fazer a pessoa gostar de viver.”
solvida”, concorda a psicóloga Ana Já é tempo, diz Lúcia, de se come- ninguém nos fala sobre isso. Nin- lhe que ia iniciar a minha vida sexu- bradar aos céus”: “Acho que mui- A Bruno (nome fictício), a quem sendo homossexual, pertence a uma de Estudos Sociais da Universida- “chegam ao fim”, isto é, atingem o
Garrett, autora de um programa çar a olhar para o deficiente como a guém nos prepara para descobrir o al e ela perguntou-me se eu tinha a tos médicos não estão preparados, um acidente de viação atirou para minoria dentro da minoria: “É que de de Coimbra entre 2012 e 2014. orgasmo. Mas há que perceber que Ver mais em
de reabilitação da sexualidade em pessoa que é, deitando por terra a nosso corpo de maneira diferente.” certeza daquilo que eu queria.” Foi principalmente em casos de pessoas uma cadeira de rodas, nunca um até podes falar de sexualidade na de- “Ouvimos relatos de mulheres que “há muitas formas de realização se- http://p3.publico.pt

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