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Para uma Sociologia “em Mangas de Camisa”

Não se divisa até agora no pensamento sociológico latino-americano nenhuma


transformação correlata àquela que é liderada, no setor econômico, pela Comissão
Econômica para América Latina (CEPAL).
Caracteriza a atuação da CEPAL o propósito de tornar a política e o
pensamento econômicos dos países Latinoamérica nos fatores operativos do seu
desenvolvimento. Desta maneira, ao propor soluções para os problemas de
desenvolvimento, parte da consideração dos recursos disponíveis e não das
conveniências e necessidades idealisticamente concebidas. Todo o esforço deste
organismo internacional é o de formular os princípios de uma estratégia econômica
cuja assimilação habilite o economista latino-americano, em suas atividades de
aconselhamento, a contribuir para a direção dos fatores. produtivos em cada país, de
modo a acelerar a sua velocidade de capitalização.
Nestas condições, a renda nacional passa a ser objeto de atenção especial do
economista. É ela que marca o compasso, a espécie as normas das políticas
econômicas, as quais devem procurar sempre combinar os fatores nacionais de
produção de modo a serem atingidos os níveis mais altos de rentabilidade. Este novo
modo de ver tornou-se, no campo econômico, o suporte de uma atitude
antitransplantativa. Um dos prógonos desta corrente de ideias, Raúl Prebisch!,
advertia, em 1951, que a urgente necessidade atual de capitalização nas atividades
internas é muitas vezes incompatível com o empenho de reproduzir nos países menos
desenvolvidos as formas de existência dos mais desenvolvidos, entre os quais se
destacam, desde logo, os Estados Unidos, porque estas formas de existência, as
modalidades de consumo que elas implicam, assim como as modalidades de
capitalização, resultam de altos ingressos a que gradualmente chegaram esses
países pelo aumento de sua produtividade; e sua mera transfusão aos países menos
desenvolvidos, sem um esforço deliberado de seleção e adaptação, provoca tensões
que noutros tempos não se apresentavam.
Com essas ideias coadunava-se, perfeitamente, uma das recomendações
submetidas ao plenário do 11 Congresso Latino-americano de Sociologia, elaboradas
pela Comissão de Estruturas Nacionais e Regionais, que tive a honra de presidir.
Estava assim redigida:
“No exercício de atividades de aconselhamento, os sociólogos latino-
americanos não devem perder de vista as disponibilidades de renda nacional de seus
países, necessárias para suportar os encargos decorrentes das medidas propostas.”
Como expus linhas atrás, fui derrotado na defesa deste princípio. Não obstante,
a mim parece que a sociologia latino-americana deve ingressar nessa trilha, O que
tem prejudicado, entre nós, a sociologia, neste particular, é o confinamento do
sociólogo nos quadros academicamente definidos como sendo os próprios desta
disciplina. Desta forma, o profissional perde de vista o significado econômico do seu
trabalho. Num país carecente da consciência orgânica de suas necessidades, isto é
um desastre, porque, na medida que o sociólogo, com tal deficiência de formação,
adquire prestígio pessoal e é ouvido ou levado a sério, pode induzir agências
governamentais ou particulares à aplicação funesta de recursos.
O que tem levado sociólogos latino-americanos a obnubilar-se, neste particular,
é o farto de considerar idênticos, na presente época, o momento de seus países e o
de países mais desenvolvidos. Em geral, não se lembram de comparar os seus países
com os que consideram como paradigmas, em termos de fase. Ao contrário, seu
critério é o da contiguidade ou justaposição.
Eis um recente flagrante: um sociólogo norte-americano aconselhou, como
medida fundamental de uma reforma agrária no Brasil, a criação de escolas
secundárias em cada município, proporcionalmente ao número de pessoas,
semelhante ao que se verificamos Estados Unidos. Segundo ele, o menor dos nossos
municípios deveria manter, pelo menos, um estabelecimento de ensino secundário,
com, no mínimo, cinco professores trabalhando em regime de tempo integral. E
remarcava o conselho com esta observação: o município que, no período de dois
anos, a partir da promulgação da norma, não a tivesse cumprido, perderia o status de
municipalidade.
À sugestão merece restrições sob muitos pontos de vista, ainda mesmo que a
escola secundária de que se trata seja de tipo radicalmente diverso daquele a que,
entre nós, se aplica a designação, isto é, o ginásio ou colégio. Mas à sua
contraindicação é óbvia do simples ponto de vista da renda nacional do país. Faça-se
a conta de quanto dinheiro seria necessário inverter na concretização desse propósito,
para que se enxergue o absurdo que a medida representaria. Admiramos, porém, que
o governo, num ato de loucura, resolvesse pôr em prática o conselho. Onde encontrar
os professores? Como manter nas escolas secundárias uma população de
adolescentes cuja psicologia e cuja situação econômica se constituiriam em fatores
impeditivos das escolaridades? Como localizar estabelecimentos secundários, num
quadro demográfico rarefeito, de modo que cada um deles funcionasse com o mínimo
de alunos tecnicamente requeridos? Por esses e outros motivos, é temerária a
observância à risca de aconselhamentos de autoridades =estrangeiras, sem levar em
conta as suas respectivas equações nacionais.
Muitos técnicos, 10 Brasil, se conduzem exatamente como esse sociólogo
norte-americano quando, por exemplo, aconselham quede vamos gastar em serviços
de saúde três dólares por pessoa, quede vamos ter um posto de puericultura para
cada 10.000 pessoas, um leito para cada óbito de tuberculose, cinco leitos de hospital-
geral para cada mil habitantes, 60.000 médicos, 100.000enfermeiros, 165.000 leitos
para doentes mentais. Ou quando calculam outras necessidades institucionais, à luz
do mesmo critério. Para eles, os problemas sociais se resolvem por meio de regra de
três. Uma das mais espetaculares ilustrações desta concepção aritmética dos
problemas sociais é um famoso levantamento realizado tendo em vista a implantação
do ISSB, principalmente na parte relativa à saúde.
Confundem nesta conduta, os efeitos com as causas. Na verdade, os altos
níveis de bem-estar são inseparáveis do processo que os criou. São resultados, por
assim dizer, automáticos de um processo de desenvolvimento. Portanto, são os
fatores deste processo que urge instalar aqui; é uma dinâmica econômico-social que
se terá de promover.
Na correção de tais hábitos de pensar é que a contribuição do sociólogo poderia
ser das mais oportunas. O sociólogo, de todos os especialistas, é o que está mais
habilitado, pelos instrumentos: () intelectuais que possui, a superar a visão parcelada
das necessidades do país, substituindo-a por uma visão unitária de sua contextura
integral.
À estratégia do desenvolvimento de um país é condicionada ela particular
dinâmica de sua contextura, a qual, em cada fase histórica, apresenta a sua prioridade
específica de necessidades de desenvolvimento. Desta forma não são
necessariamente transferíveis, em dado momento, de um país para outro, quando
estão em diferentes fases de desenvolvimento, os critérios de ação social.
Uma das razões desta intransferibilidade decorre de fatores culturológicos. À
atual sociologia das transplantações nos centros norte-americanos e ingleses parece
enxergar somente os impedimentos culturológicos, neste terreno. Mas uma razão
importante daquela intransferibilidade se exprime em termos de recursos disponíveis.
À necessidade básica de um país subdesenvolvido como o Brasil é obter
combinação ótima dos seus fatores econômicos, tendo em vista acelerar o incremento
de sua taxa de investimentos em bens de produção. Imperativos de contabilidade
social impõem atitude seletiva na realização de medidas. Estas não têm valor
absoluto; ao contrário, sua eficácia depende das relações dominantes em
determinado momento das estruturas nacional e regionais.
O trabalho sociológico em país periférico, muito menos doque qualquer outro,
não pode permanecer descomprometido do processo de acumulação de capital.
Como ouras nações latino-americanas, o Brasil não atingiu a taxa anual mínima de
inversões líquidas necessária para atender ao custo do seu desenvolvimento
econômico e nem poderá atingir a este montante por processo espontâneo, E a
consciência deste fato deve ser suficientemente eloquente para converter o trabalho
científico, em todos os setores, ao interesse nacional.
Orientado nesse sentido o trabalho sociológico em nosso país tem diante de si
o caminho para emancipar-se do mecenato. O. verdadeiro sociólogo, no Brasil, não
precisaria de subvenções de| favor ou de comprometer-se com a burocracia cartorial
a fim de dedicar-se aos seus estudos. Ficará preso a essa contingência, se insistir em
suas tendências acadêmicas e academiastes. É cada vez mais crescente a demanda
de especialistas em sociologia capazes de vincular as suas atividades científicas às
tarefas de promoção da autarquia econômica do país. Quero dizer, uma sociologia
“em mangas de camisa” pode viver, hoje, no Brasil, dos proventos de sua efetiva
utilidade para o esforço de construção nacional.
É verdade que, atualmente, a orientação aqui preconizada desperta forte
resistência e sistemáticas antipatias, tanto mais quanto ameaça falsas posições e
falsas reapurações. Reconheço que este modo de ver, pelo seu caráter pioneiro, não
é o mais cômodo. Por outro lado, contraria poderosos interesses investidos e se
afigura incompreensível, esquisito, difícil, a uma legião de pessoas sinceramente
equivocadas. Paga-se, às vezes, ônus pesado pelas ideias. E nem todos estão
dispostos para tanto.
Mas nada disto deve obscurecer o faro de que o Brasil está amadurecendo. O
grau de expansão de suas forças produtivas e as contradições cada vez mais agudas
entre tais forças e os quadros institucionais vigentes estão tornando incoercível a
mudança qualitativa da vida brasileira, em todos os seus aspectos.
Trata-se de um processo. E contra um processo é inútil lutar.

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