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RCB 106 – Módulo de Embriologia Geral

Texto de Apoio I: Introdução ao estudo da embriologia humana

1. O que é embriologia e como se originou o estudo do desenvolvimento

embrionário humano?

Embriologia (do Grego ἔμβρυον “ainda não nascido” e λογία “estudo”) é o

ramo do conhecimento dedicado ao estudo da formação e do desenvolvimento

pré-natal dos tecidos, órgãos e sistemas que compõem os organismos

multicelulares. O termo, neste sentido, começou a ser empregado somente no

final da primeira metade do século XIX, embora tentativas de investigar

racionalmente a maneira como órgãos e tecidos adultos se organizam durante o

período de gestação remontem aos primeiros filósofos gregos no século VI a. C.

Não obstante os avanços realizados desde então no entendimento e descrição das

características do desenvolvimento embrionário dos diversos animais,

principalmente vertebrados, quase todo conhecimento que atualmente

possuímos sobre as especificidades da embriologia do Homo sapiens é

relativamente recente. Os primeiros estudos sistemáticos do desenvolvimento

de embriões e fetos humanos foram realizados por Wilhelm His1 e publicados

1
Wilhelm His (Basel, 1831-Leipzig, 1904) anatomista e pioneiro da embriologia descritiva
humana, não deve ser confundido com seu filho, o também famoso anatomista e cardiologista
Wilhelm His, Jr (1863-1934) descobridor do “feixe de His”, componente do sistema de condução
dos impulsos elétricos no músculo cardíaco.
durante a penúltima década do século XIX. Já os mecanismos celulares e

moleculares envolvidos e sua regulação genética somente começaram a ser

desvendados no início do presente século, em consequência da aplicação à

embriologia dos revolucionários avanços metodológicos e conceituais originados

principalmente da genética molecular e biologia celular, dando origem a uma

nova e abrangente área de estudo do desenvolvimento animal denominada

biologia do desenvolvimento. Descobertos em sua maioria em modelos animais

(principalmente o nematódeo Caenorabditis elegans, o díptero Drosophila

melanogaster, o anfíbio Xenopus laevis, o peixe Danio rerio, a ave Gallus gallus e o

camundongo Mus musculus), o surpreendente grau de conservação dos

mecanismos moleculares do desenvolvimento embrionário ao longo da evolução

biológica revelado por estes estudos permite atualmente que resultados

originalmente obtidos em um organismo-modelo possam, embora com bastante

cautela, ser generalizados para mamíferos superiores como o Homo sapiens.

2. Por que é importante o conhecimento da embriologia humana?

Para o estudante de medicina ou de cursos correlatos na área da saúde,

existem várias razões para se estudar o desenvolvimento embrionário humano

além da curiosidade natural e do fascínio que despertam o mistério da nossa

transformação em indivíduos altamente complexos a partir de uma única célula

fertilizada. Uma destas razões é a capacidade da embriologia de integrar e

explicar aspectos da anatomia adulta, tanto normal como patológica, que se


apresentam à primeira vista como arbitrários e sem conexão aparente. Por que,

por exemplo, os dois nervos frênicos, formados por fibras que emergem ao nível

da terceira à quinta vertebras cervicais, estão associados à inervação do

diafragma, uma estrutura cuja parte mais superior no adulto se localiza na

transição entre as regiões torácica e a lombar? A explicação torna-se clara uma

vez estudado como o dobramento crânio-caudal e subsequente crescimento do

embrião influencia a expansão e subdivisão das cavidades corporais. Da mesma

forma a existência de um intrigante defeito na organização anatômica do

pâncreas conhecido como pâncreas anular, em que este circunda anormalmente

o duodeno causando obstrução intestinal, torna-se compreensível uma vez

entendido o desenvolvimento embrionário desta glândula. A embriologia,

portanto, “ilumina” a organização e as relações anatômicas, facilitando seu

aprendizado. Mais recentemente, esta capacidade “iluminadora” da embriologia

tem se estendido a outras disciplinas, como a biologia celular e tecidual: constata-

se que um número crescente de patologias afetando o controle da proliferação e

migração celular, assim como transformações moleculares em células tumorais

responsáveis pela aquisição de características metastáticas, resultam da

reativação aberrante de mecanismos de comunicação intercelular e vias de

transdução de sinais originalmente utilizados durante o desenvolvimento

embrionário normal. Neste contexto o estudo em nível genético, celular e

molecular da formação e crescimento do embrião e do feto contribui


adicionalmente para a construção de uma sólida ponte entre a ciência básica e

suas aplicações clínicas e terapêuticas.

Outra razão para o estudo da embriologia humana é sua importância cada

vez maior para a detecção precoce, diagnóstico e eventuais correções de

anomalias congênitas. Defeitos do desenvolvimento embrionário e fetal

constituem-se atualmente na principal e mais persistente causa de mortalidade

infantil nos países desenvolvidos e nas regiões sul e sudeste do Brasil. Isto faz

com que o conhecimento da embriologia humana, tanto normal como patológica,

seja indispensável ao profissional de saúde, o qual, com cada vez mais frequência

se defronta com situações requerendo aconselhamento a gestantes e suas famílias

sobre características, prognósticos, opções de intervenção terapêutica e seus

riscos, associados a defeitos do desenvolvimento pré-natal e necessita apresentar

subsídios atualizados e cientificamente embasados que permitam a tomada de

decisões informadas sobre qual o melhor procedimento e suas perspectivas.

3. Como é estudada a embriologia humana?

Convencionalmente o desenvolvimento humano antes do nascimento é

dividido em duas fases: um período embrionário, que se encerra ao fim da oitava

semana de gestação, e um período fetal que se segue imediatamente àquele e se

estende até o nascimento. Esta divisão reflete a sequência fundamental do

desenvolvimento de todo e qualquer organismo multicelular, em que uma fase

inicial onde o plano tridimensional básico da espécie emerge e diferentes


populações celulares interagem para formar órgãos e tecidos é seguida por um

período de crescimento e maturação funcional dos sistemas do corpo

previamente diferenciados. Alguns autores definem ainda um período perinatal,

entre o final da vigésima oitava semana após a fertilização e a primeira semana

após o nascimento, visando enfatizar a existência uma fase do desenvolvimento

humano em que os sistemas do corpo, embora ainda imaturos, permitem já,

embora com dificuldade, a sobrevivência extrauterina.

Até meados do século passado, o estudo do desenvolvimento pré-natal

humano era realizado quase exclusivamente através da observação de cortes

seriados, seccionados em diferentes planos, de embriões e fetos normais ou

malformados, de diferentes idades, em sua maior parte espontaneamente

abortados. Estudos exaustivos deste tipo de material, tanto em nível histológico,

por microscopia de luz e eletrônica, como através de técnicas cada vez mais

refinadas de reconstrução tridimensional, forneceram as primeiras descrições

rigorosas do desenvolvimento humano, principalmente na fase fetal e nas fases

embrionárias mais tardias. No entanto razões técnicas, éticas e legais restringem

drasticamente a disponibilidade de conceptos humanos nas fases iniciais de

desenvolvimento, assim como, obviamente, sua manipulação experimental,

impedindo que questões mais especificas relativas aos mecanismos subjacentes

dos diferentes processos embrionários assim como a contribuição dos diferentes

folhetos embrionários para embriogênese dos diferentes órgãos e tecidos possam


ser estudadas através deste tipo de abordagem. Estas dificuldades só puderam

ser superadas a partir do estabelecimento de técnicas de fertilização in vitro e a

utilização da ultrassonografia, nas décadas de 60 e 70. Tais metodologias tiveram

um enorme impacto na pesquisa embriológica na medida em que, por um lado,

tornaram possível o estudo intensivo de embriões humanos em estágios

anteriores à implantação uterina, e por outro, permitiram a observação do

desenvolvimento humano “in utero” de maneira não invasiva e segura. Os

contínuos avanços tecnológicos ocorridos desde então na área de aquisição de

imagens incluíram o advento da ultrassonografia de alta resolução e da

ressonância magnética. O uso destas tecnologias possibilita atualmente

acompanhar a dinâmica do desenvolvimento de órgãos e tecidos, no espaço e no

tempo, em um grau de detalhamento previamente impossível de ser alcançado.

Não menos importante, elas foram responsáveis pela viabilização de

procedimentos de extrema utilidade clínica, incluindo-se aí cirurgias fetais

corretivas intrauterinas e uma variedade de técnicas diagnósticas e de

monitoramento pré-natal.

Paralelamente, técnicas cada vez mais robustas para fertilização e

desenvolvimento embrionário humano inicial “in vitro” tem permitido o estudo

em nível molecular e celular das fases imediatamente precedendo a implantação

e elucidando diretamente em embriões humanos as interações celulares e

circuitos gênicos envolvidos em processos como início e manutenção da


clivagem, compactação e especificação das linhagens embrionárias e

extraembrionárias pluripotentes iniciais. Antecipa-se que a integração destas

tecnologias já estabelecidas com os espetaculares avanços ocorrendo na área da

genética molecular humana, particularmente o rápido progresso no

desenvolvimento de metodologias de edição gênica in vivo, como CRISPR,

tornará viável, em um futuro não muito distante, a correção genética direta de

malformações congênitas diagnosticadas durante a gestação, abrindo uma nova

era da embriologia médica.

3. Terminologia básica e nomenclatura dos eixos corporais

Além de possuir uma terminologia específica, a embriologia humana utiliza

alguns termos que frequentemente diferem não apenas da maneira comumente

utilizada para outros animais como também da terminologia anatômica humana.

A seguir são apresentadas a nomenclatura dos eixos corporais do embrião e do

feto e a terminologia dos planos de corte mais comuns utilizados para sua

descrição.

3.1. Denominação dos eixos corporais no embrião e no feto (ver Figura 1

abaixo).

- Crânio-Caudal: corresponde ao eixo conectando, respectivamente, a

região da futura cabeça à porção onde se formaria a cauda (correspondendo

aproximadamente à futura região coccígea). Equivale ao eixo supero-inferior do

adulto em posição anatômica. No entanto é importante ressaltar que o termo


anteroposterior para este eixo é extensamente empregado na literatura

embriológica e de biologia do desenvolvimento, principalmente em referência a

organismos não humanos. Em Homo sapiens (e em outros organismos bípedes),

seu uso é fortemente desencorajado devido a potencial confusão com seu

emprego anatômico no adulto (ver abaixo). O termo rostral é algumas vezes

utilizado em embriologia com referência à parte frontal da região mais cranial do

embrião.

- Dorso-Ventral: Corresponde ao eixo conectando a parte traseira (dorso) à

parte dianteira do corpo (ventre). Equivale ao eixo póstero-anterior do adulto em

posição anatômica.

- Direito-Esquerdo (também denominado eixo Levo-Dextro). Corresponde

ao eixo simultaneamente perpedicular aos eixos crânio-caudal e dorso-ventral. É

idêntico ao eixo direito-esquerdo do adulto em posição anatômica.

- Próximo-Distal. Eixo que conecta a extremidade de uma estrutura

apendicular (parte distal) de sua origem no corpo (parte proximal). É idêntico ao

eixo próximo-distal do adulto em posição anatômica.

Adicionalmente os termos, medial e lateral são frequentemente

empregados no desenvolvimento embrionário para definir a localização mais

próxima (medial) ou mais afastada (lateral) de uma dada estrutura em relação ao

centro do eixo crânio-caudal (denominado linha média embrionária).


Figura 1. Representação e nomenclatura dos eixos corporais no adulto e no embrião

3.2. Planos de Seccionamento de Embriões Humanos (Figura 2)

Quatro planos de seccionamento são usualmente empregados em

embriologia, tanto para a produção de cortes histológicos seriados como em

ilustrações científicas destinadas a visualizar o desenvolvimento de estruturas

específicas dentro de seu contexto anatômico. O plano mediano divide o embrião

em duas metades simétricas (direita e esquerda) ao longo do eixo crânio caudal


(Figura 2A). Qualquer outro plano de corte paralelo ao plano mediano é

denominado plano sagital. O plano transverso, por sua vez, divide o embrião

perpendicularmente ao eixo crânio-caudal (Figura 2B). Finalmente o plano

coronal (frequentemente denominado plano frontal) é simultaneamente

perpendicular aos planos mediano e transverso (Figura 2C). Cortes seriados

coronais progridem ao longo do eixo dorso-ventral.

Figura 2. Representação e nomenclatura dos planos de seccionamento embrionários. (A) e (B)


vista ventral; (C) vista lateral (Modificado de Schoenwolf et al, Larsen Embriologia Humana, 4
ed 2010)

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