Você está na página 1de 12

Doi: http://dx.doi.org/10.5212/PublicatioHum.v.16i2.

323334 CDD: 800

A INFLUÊNCIA DAS FILOSOFIAS ALTERNATIVAS NA VIDA E NA


LITERATURA DE J. D. SALINGER

THE INFLUENCE OF ALTERNATIVE PHILOSOPHIES AND RELIGIONS IN


J. D. SALINGER’S LIFE AND WORK
Adolfo Jose de Souza Frota1
Se uma pessoa bate palmas, ele consegue discernir o som.
Ouça, então, o som de uma mão apenas.
Hakuin – mestre Zen

"Há uma paz maravilhosa em não publicar. É pacíco. Calmo.


Publicar é uma terrível invasão de minha privacidade. Gosto de escrever.
Amo escrever. Mas escrevo só para mim e para o meu próprio deleite".
Salinger – entrevista ao The New York Times

Recebido para publicação em 19/03/08


Aceito para publicação em 07/05/2008

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar a inuência que as losoas


orientais como o Zen-Budismo, o Cristianismo Ortodoxo, o Taoísmo e o Hinduísmo
teve (e ainda tem) na vida e na obra do autor norte americano J. D. Salinger: como
essas religiões se tornaram fatores determinantes na temática da maioria dos seus
contos.

Palavras-chave: Conto moderno. Filosoa oriental. Koan.

ABSTRACT

This article aims at analyzing the inuence eastern philosophies and religions
like Zen-Buddhism, Russian Orthodox Christianity, Taoism and Hinduism may have
had on J. D. Salinger’s life and work and how these religions became the determining
factor in the thematic choice of his short-stories.

Keywords: Modern short-story. Eastern philosophy. Eastern religions.


Koan

1 Prof. M.Sc. de literatura em língua inglesa – UEG (Campos Belos – Goiás). Email: adolfo_thedrifter@yahoo.com.br e adolfothedrifter@gmail.com.
324
É inegável que parte signicativa da literatura um universo em que as coisas estão acontecendo
de J. D. Salinger foi inspirada em algumas premissas todas ao mesmo tempo e cuja realidade não pode
da losoa oriental, principalmente o Zen-Budismo. ser denida em termos abstratos (LUNDQUIST,
E que suas personagens, especialmente Seymour 1991, p. 143-144).
Glass, são os porta-vozes dessas metafísicas nas A resposta Zen para esta problemática é que
letras norte-americanas. Sem dúvida, Salinger, nós já sabemos de tudo sem saber e que aquilo que
além de Herman Hesse, é um dos autores que mais chamamos consciente, pensamento organizado,
procura retratar essa losoa na forma como as nada mais é do que uma mera função aquém da
personagens falam e agem, nas longas lembranças nossa consciência total. Por exemplo, acreditamos
que Buddy tem do irmão morto, ou dos outros controlar as nossas vidas pela adoção de um papel
membros do clã ao se referir a algum problema social (professor, médico), mas a vida não funciona
que os aige. Mas não somente suas personagens dessa forma. Nossos organismos funcionam nor-
se comportam como adeptos do Orientalismo (Ta- malmente sem precisarmos pensar neles: os bati-
oísmo, Hinduísmo, Cristianismo Ortodoxo russo e, mentos cardíacos, cada respiração toma o seu curso
principalmente, Zen-Budismo); Salinger também natural mesmo que não percebamos. Além disso,
assim se comporta. costumamos ter uma visão convencional de nós
Se há uma tênue camada que separa a re- mesmos como uma composição feita de memórias
alidade da cção, isso se realmente há alguma selecionadas. Para a losoa Zen, nós somos aquilo
separação, o autor de O apanhador no campo de que estamos fazendo no momento (LUNDQUIST,
centeio tem se mostrado também um representante 1991, p. 144).
Zen na forma como vem agindo desde que alcançou O silêncio literário do autor que não dá en-
sucesso editorial. Analisaremos como se congura trevistas há anos continua a ser um enigma tanto
nos seus contos a religiosidade oriental e como para os seus biógrafos quanto para os críticos.
Salinger tem se comportado, ou seja, vivendo re- Warren French (1966, p. 30) diz que Salinger tem
cluso e em silêncio desde que se tornou um autor uma vida igual àquela com a qual Holden Cauleld
famoso, comportamento este que, conforme Dipti tanto sonha, quando diz se ngir de surdo-mudo e
Pattanaik (2005), em texto online, apresenta um esconder os lhos. Já James Lundquist (1979 apud
caráter “homilético”, religioso. PATTANAIK, 2005) revela que o seu longo silên-
A palavra Zen signica pensamento, medita- cio como escritor e a sua insistência em manter-se
ção, a capacidade de ver e contemplar. É uma parte longe da publicidade fez dele um escritor difícil de
do Budismo mais anti-racional que se desenvolve entender e ler com muita simpatia.
na Índia e que também chega ao Japão. Ela se di- Dipti Pattanaik (2005) defende que o gesto de
ferencia das outras crenças budistas por procurar a Salinger de silêncio e isolamento “pode ser parte de
iluminação pela introspecção e intuição. E para o um extenso esforço para decretar em vida os valores
pensamento ocidental, esta losoa se torna con- que ele até agora problematizou em arte [...]. Além
fusa e problemática. Isto porque não conseguimos disso, ele é um dos poucos escritores modernos cuja
aprender coisa alguma se não a colocarmos em arte e vida complementam cada um tão perfeitamen-
palavras ou em algum sistema de sinais, como as te que um parece ser a extensão do outro”.
fórmulas matemáticas e as notações musicais. Um Gurus, como Sri Ramakrishna e Swami
mestre Zen chamaria essa característica de “co- Vivekananda, pregam que, através da renúncia
nhecimento convencional”, isto é, um sistema de dos frutos de trabalho, os homens se tornam se-
abstrações, consistindo, além de sinais, símbolos res divinos. Como aponta Ian Hamilton (1990, p.
em que as coisas e os eventos são reduzidos para 130-134), a ordem de que ele almeja ser membro
os seus contornos gerais, de forma que possam é a ordem baseada no talento, como se essa dádi-
ser compreendidos um de cada vez. Mas vivemos va fosse a mesma coisa que iluminação. Partindo
em um universo que não obedece a este sistema, dessa premissa, percebemos que a família Glass
325
se justica. Salinger os cria como personagens tona, pois as atividades mentais só criam perfeições
talentosas, inteligentes e, ao mesmo tempo, liga- superciais e representações que não são o conhe-
das às losoas orientais e ao catolicismo místico. cimento verdadeiro. E o discurso é, geralmente, a
Essas religiões fornecem algumas respostas para a expressão da natureza supercial. Salinger, ciente
sua procura pela vida e pela expressão correta. O dessas idéias Zens, assimila o conhecimento e pas-
modo de vida contemplativo e de renúncias poderia, sa a se comportar à maneira dos monges, recluso
espiritualmente, contrabalançar os perigos de uma em sua solidão e distante do mundo material e da
vida excessivamente materialista, como ocorria no fama. O mesmo podemos creditar a Seymour, que
século XX. Tal pensamento é consoante à losoa não aparece sicamente em boa parte dos contos do
Zen do Sansara e Nirvana. O Sansara é o mundo autor, e que se faz ouvir em apenas dois momentos:
da ilusão e do sofrimento, mundo da matéria, da no conto “Um dia ideal para os peixes-banana”, nos
ambição, de tudo aquilo que pode tirar a alma (Át- seus momentos nais, e em “Hapworth 16, 1924”, a
man) do caminho do Nirvana, ou seja, da verdade, última publicação de Salinger até o momento, e que
da iluminação, do conhecimento e redenção. No traz Seymour no outro extremo da vida. Essa discus-
embate entre os dois mundos, a maioria dos lhos são sobre os extremos fama e reclusão, isolamento
de Bessie Glass escolhe o caminho da iluminação, e presença ocorre com freqüência em “Zooey”
absorvendo losoas do hemisfério oriental, como (Franny & Zooey – FZ). Bessie, mãe dos irmãos
o Zen-Budismo e o Hinduísmo ou resgatando o Glasses, conversando com Zooey, reclama:
Cristianismo Ortodoxo Russo, pela leitura do The – Às vezes sinto vontade de esganar o Buddy
Way of a Pilgrim and the Pilgrim Continue His Way por não ter arranjado um telefone [...]. Isso é tão
(O caminho do peregrino e o peregrino continua o desnecessário? Como pode um adulto viver da-
seu caminho). quele jeito... sem telefone, sem nada? Ninguém
O fato de Salinger ter contato com os textos pretende invadir sua vida privada, se é isso que
de Sri Ramakrishna e Swami Vivekananda fez ele ele teme. Mas certamente não acho que seja ne-
passar a se ocupar com uma vida de reclusão e cessário ele viver como um eremita (FZ, p. 63,
isolamento, à maneira de um monge. O estilo de grifo do autor).
vida vedântico que os autores pregam visualiza dois O isolamento, que já vinha desde Seymour
principais modos de conduta: a vida de um chefe de (morto) e se tornara um fator comportamental de
família (cívica, social) e a de sannyasin (devotada Buddy (e de Salinger também) prossegue com os
à oração). Ambos os estilos têm diferentes estados membros mais jovens da família. Fato curioso é
de perfeição. Salinger adota um estilo de vida que que os irmãos Glasses fazem, na infância, parte de
o aproxima de uma existência menos materialista um programa de rádio chamado “Menino esperto”
e mais espiritualista. O seu silêncio, assim como (It’s a Wise Child), ou seja, desde cedo têm que
o silêncio de Seymour Glass, que fala através das lidar com a fama. E sofrem, pelo menos para eles,
vozes dos irmãos, é um importante ingrediente de deste mal. Em um momento, tanto os irmãos quanto
disciplina espiritual como um sinal de isolamento Salinger lidam com a fama. Salinger, ao pelo menos
do furacão, ou seja, da atividade materialista que nos primeiros contos, aqueles que nunca foram
fomenta o aprisionamento do ego, de uma procura publicados em coletânea, como “Slight Rebellion
pela consciência além do imediato e periférico sen- Off Maddison”, lutava por um espaço de destaque
tido de apreensão e a possibilidade de aquisição de entre as revistas. Segundo Zooey, tanto ele quanto
uma consciência mais elevada que pode somente Franny padecem do complexo do “Menino esperto”.
ser transmitida para o iniciado e pode cair no senso Eles não conseguem sair do ar:
comum pela insinceridade diária da palavra.
Não falamos, discursamos. Não conversamos, ex-
Sri Aurobindo (1970 apud PATTANAIK, pomos. Pelo menos, eu sei que sou assim. Desde o
2005) prega que o silêncio interior da mente pode primeiro minuto em que entro numa sala qualquer
fazer com que o conhecimento apareça, venha à e dou com alguém que tenha o número habitual de
326
orelhas, viro logo um vidente ou então co mudo inaugural dessa nova temática. Em conversa com
(FZ, p. 111, grifo do autor). Bob Nicholson, o Jatismara Teddy (aquele que
O desejo de auto-reclusão se torna presente conhece as suas vidas anteriores) se lembra que em
assim tanto no autor Salinger quanto nas suas per- sua última vida era um iogue hindu que se afastou
sonagens. O caso de Seymour é mais radical, visto da graça de Deus por sua susceptibilidade para com
que a personagem principal quase não aparece si- a luxúria: “Está certo [...]. Eu conheci uma senhora
camente. Essa característica faz parte de uma atitude e praticamente parei de meditar” (NE, p. 158). Se-
budista, o silêncio e a vida eremita são preceitos da gundo a lei kármica, não apenas a impureza sexual,
religião como um mecanismo que auxilia a busca do mas qualquer tipo de ação ou contemplação de uma
conhecimento. Além do Zen-Budismo, Salinger foi ação realizada com o intuito egoísta pode provocar
fortemente inuenciado pela cultura japonesa, que a queda do homem, o impedimento que ele se una
se aproxima muito das religiões advindas da Índia. a Deus. O seu nascimento na América se torna um
O corolário da postura japonesa sobre a língua po- efeito punitivo quando ele cai em pecado.
deria ser chamado de “estética do silêncio”, segundo Para Pattanaik (2005), o que Salinger deseja
a qual o homem é capaz de alcançar o nível mais em suas obras está acima do âmbito da linguagem
elevado de evolução somente quando não se utiliza ccional. É a perfeição que está além do reino hu-
da supercialidade da linguagem verbal. Desta for- mano e da linguagem que pode ser apenas comuni-
ma, deduz-se que a atitude de Salinger assim como cada através do silêncio, a forma como os mestres
a de sua personagem mais complexa, Seymour, zens ensinam o conhecimento espiritual para os seus
vem ao encontro da atitude Zen da preservação da discípulos. Esse mesmo silêncio podemos observar
interioridade, do silêncio e isolamento como forma em Seymour, que deixou um espólio familiar (car-
de atingir a verdade universal. tas, diários e poesias). Suas palavras são conhecidas
Alcançando sucesso com as suas publicações, apenas por alusões de Buddy, Franny e Zooey, pois
torna-se estranho que um autor de êxito do porte Seymour só aparece falando sobre sua religiosidade
de Jerome David Salinger de uma hora para outra em “Hapworth 16, 1924”. E o conjunto de poesias
se isole do mundo, se recuse a dar entrevistas e do Glass morto, que juntas dariam um livro, foi proi-
até mesmo publicar prováveis novos livros. Esse bido de ser publicado pela esposa Muriel. Ou seja,
comportamento encontra ressonância na religião tanto Salinger quanto suas personagens conseguem,
indiana. Na losoa oriental há uma gura chamada de alguma forma, ter pontos em comum. É só lem-
sadhaka, ou seja, aquele que procura a perfeição. brarmos que vários contos salingerianos estão fora
E a perfeição é atingida quando o sadhaka, volun- de catálogo pela própria imposição de seu autor. Se
tariamente, se nega a ambicionar qualquer bem o nome de sua personagem mais complexa pode ge-
do mundo. Para Salinger, o sucesso artístico, para rar várias interpretações que denotem o seu caráter
Seymour, a glória de ser gênio e, para Franny, uma (a pronúncia do nome Seymour, fonologicamente
promessa como atriz, a adulação do meio teatral. pode signicar ver mais, por exemplo), a atitude
Além dessa característica Zen que se congura espiritual, pelo contrário, designa a sua escolha
tanto na vida real quanto na arte, o sadhaka deve se de falar menos. E o silêncio do autor de Franny &
abster de relações sexuais (Brahmacharya), negar Zooey se torna o gesto culminante quando sua vida
os benefícios materiais (aparigraha) e eliminar a se torna a mensagem, um testamento de valores que
identidade individual (apaurusheya). Teddy (do ele até agora professa.
conto homônimo do livro Nove Estórias – NE), Ainda falando do conto “Teddy”, que apre-
por exemplo, caiu na lei da transmigração espiri- senta a personagem Teddy em um cruzeiro com a
tual quando foi seduzido por uma mulher e Franny família, o jovem prodígio defende a idéia de que
detesta o assédio artístico. tudo que o rodeia faz parte de uma grande Força
O conto “Teddy” é aquele em que o discurso Cósmica e Universal. Esse discurso resgata a crença
Zen é mais presente. Ele também se torna o marco na natureza divina de todas as coisas e seres:
327
Eu tinha seis anos quando vi que tudo era Deus, e um professor que o entrevista para parar de ensinar,
quei todo arrepiado e tudo isso. Me lembro que já que ele leciona muitas coisas que não lhe são
foi num domingo. Naquela época minha irmã era benécas e nem para os seus alunos (NE, p. 162).
uma criancinha pequena e estava tomando leite; de Esta parte do conto também se assemelha muito às
repente eu vi que ela era Deus e o leite era Deus. palavras de Sidarta, que diz não conseguir vencer
Quer dizer, o que ela estava fazendo era verter
o seu outro eu por ter um excesso de erudição, de
Deus em Deus (NE, p. 159, grifo do autor).
versículos sagrados, de rituais, ambições e ascetis-
Tal pensamento é consoante com a losoa mo (Sidarta, p. 83-84).
Zen que prega serem todas as coisas manifestações Os conselhos de Teddy se aproximam do mo-
divinas. O teor Zen deste conto assemelha-se muito delo de educação vedântica, pois ele quer fazer as
ao romance Sidarta, de Herman Hesse, que conta a pessoas compreenderem o caráter ideal, supremo,
peregrinação desse jovem em busca da iluminação. que o Baghavad Gita diz ser o Sthitaprajna, o ser
Em conversa com o amigo e discípulo Govinda, sem nenhum tipo de indulgência sentimental ou
Sidarta fala a respeito da nossa natureza divina: paixão. Aquele que pode ter um melhor controle do
O pecador não se encontra a caminho do estado de imediato transcendendo-o. Essa idéia é mais bem
Buda; não está em plena evolução, muito embora desenvolvida em “Zooey”. Zooey, em conversa com
o nosso cérebro seja incapaz de imaginar as coisas Franny, num momento decisivo para a irmã, diz:
de outro modo. Pelo contrário, no pecador já se Desprendimento, companheira. Ausência de desejo.
acha contido, hoje, agora mesmo, o futuro Buda ‘O m de todas as ambições, de todos os anseios’.
[...]. O mundo, amigo Govinda, não é imperfeito Esse negócio do desejo [...] é o que faz um ator, em
e não se encaminha lentamente rumo à perfeição. primeiro lugar” (FZ, p. 155).
Não! A cada instante é perfeito. Todo e qualquer
O crítico James Lundquist (1991, p. 143)
pecado já traz em si a graça. Em todas as crianci-
arma que é em Nove estórias que a losoa Zen
nhas já existe o ancião (HESSE, 2003, p. 118).
é mais propositadamente utilizada como uma força
Mais adiante, Sidarta fala que uma pedra pode conceitualizante. Quando o leitor se propõe a ler
ser terra e da terra pode se transformar em planta, a coletânea, as primeiras palavras de Salinger são
ou num animal, ou num homem, e pode ser Deus e um koan budista que abre o livro: “Nós todos co-
Buda (Sidarta, p. 118). Esta é a conrmação de um nhecemos o som de duas mãos que aplaudem. Mas
preceito Zen da Unidade com Deus, em que cada qual será o som duma única mão que aplaude?”, é
membro da natureza, cada representante da força a pergunta feita. O leitor mais atento talvez tente
vital é uma centelha da Força Cósmica, da Suprema respondê-la assim que termine o livro. Este koan,
Sabedoria. Por este motivo, o romance se torna um importante para auxiliar na busca do conhecimen-
clássico na era hippie e ganha popularidade entre to, é um dos mais famosos e é atribuída ao poeta
aqueles jovens. japonês Hakuin (1685-1768). Lundquist (1991, p.
Teddy também tem preferência pela medita- 143-145) aponta que o koan utilizado por Salinger
ção, apesar de, para ele, ser difícil meditar e levar é um exercício de primeiro nível (Hosshin) numa
uma vida espiritual na América, que despreza o sen- escala de atividades, em busca da iluminação, que
timentalismo e a interioridade (NE, p. 159). Numa vai até o sexto.
das partes mais interessantes do conto, ele fala que O koan serve para que o aspirante à ilumina-
devemos “vomitar” a maçã que todos comemos, ção medite sobre a pergunta contida e só volte ao
diferentemente de Adão e Eva, para poder ver as mestre que a fez quando souber e conseguir provar
coisas como elas realmente são. A maçã, para a con- o signicado da inquirição. É um processo utilizado
cepção cristã, representa o conhecimento cientíco para que se produza o satori (compreensão espon-
que se torna prejudicial na busca pela evolução. “A tânea) e a comunhão com a verdadeira realidade da
lógica é a primeira coisa que você tem que abando- natureza humana e que não pode ser descrita por
nar” (NE, p. 160), aconselha o jovem prodígio que palavras. É uma forma de penetrar o nevoeiro da
conversa com Bob Nicholson. Ele também adverte
328
abstração e, portanto, não pode ser explicado por feição. Nas últimas histórias salingerianas, elas se
qualquer abstração. A metáfora serve para que o aproximam de um sentido de unidade primária. Por
discípulo Zen, a princípio, chegue à conclusão de isso, o autor as elege como os modelos autênticos.
que não sabe absolutamente nada, tudo se torna Nas crianças, a imaginação ainda não foi destruída
incompreensível assim como o som de uma mão. pelos pais exigentes, elas ainda não racionalizam
Da mesma forma que não conseguiria mover uma suas ações. Elas também deixam manifestar suas
rocha de gelo, ele não consegue compreender a espontaneidades tão facilmente quanto o ato de res-
metáfora. Mas, depois de um tempo indetermina- pirar e não dicotomizam a linguagem, as pessoas e
do, o gelo começa a derreter e o estudante passa a os lugares. Por m, basta lembrarmos de um ditado
ter noção do signicado e o nó é desembaraçado, budista que diz ser a mente da criança a mente de
a abstração da mente que procura se conhecer é Buda, e a passagem bíblica de São Mateus (cap.
malograda, não mais existe. Quando ele chegar a 19, v. 14) em que Jesus diz serem elas pertencentes
este estágio de liberação, seu mestre pode começar ao Reino dos Céus, para compreendermos a razão
o seu treinamento. sagrada da escolha das personagens de Salinger.
Aquela oferecida pelo garoto genial Teddy, Em Nove estórias, aparecem Sybil Carpenter
a de vomitar a ciência, impele o leitor a um efeito (“Um dia ideal para os peixes-banana”), Lionel Tan-
que o koan sugere, ou seja, se desligar da lógica. nembaum, sobrinho de Seymour (“Lá embaixo, no
Porém, o exercício do koan Zen pode levar, segun- bote”) e Seymour Glass, que não consegue se adap-
do Heinrich Dumoulin (1970 apud GOLDSTEIN; tar ao mundo e às responsabilidades dos adultos. Em
GOLDSTEIN, 1987, p. 82), ao desastre, visto que “Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira”, do
a supressão antinatural da razão é perigosa, pois livro Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira
tende a destruir, permanente e irremediavelmente, e Seymour, uma apresentação – CS, a dama de
a estrutura psíquica de uma pessoa. E uma aborda- honra do casamento alega que a fuga de Seymour
gem, levando-se em conta tal premissa, ajuda-nos a da responsabilidade do casamento acontece por ele
entender Seymour em “Um dia ideal para os peixes- nunca ter crescido (CS, p. 39). Em “Zooey”, Buddy
banana”. Dessa forma, o anti-racionalismo pode le- se refere a uma garotinha que havia lhe chamado a
var a um colapso mental, porque a razão se tornaria atenção por ter dado uma resposta Zen a uma per-
parte importante da constituição do ser humano, e, gunta feita por ele. A pergunta se refere à quantidade
sem esse componente, o homem pode estar fadado de namorados que a garotinha tem, e a sua resposta
à morte, como foi o caso de Seymour. foi dois, um menino e uma menina. A impressão foi
Com isso, o exercício Zen de tentar ouvir o para Buddy tão benéca que assim ele se refere ao
som do aplauso de uma única mão pode levar o pra- encontro: “uma visão perfeitamente comunicável
ticante dessa losoa ao discernimento de um som da verdade” (FZ, p. 56).
inaudível para os ouvidos, pode ultrapassar todo o Menos enigmática do que Nove estórias é
conhecimento, deixar o mundo das distinções para “Franny”, que, à parte das polêmicas sobre essa
trás, atravessar o oceano kármico dos renascimentos personagem ser a mesma que aparece em “Zooey”,
e vencer a escuridão da ignorância. A iluminação apresenta o Cristianismo Ortodoxo como a esperan-
que o discípulo alcança o conduz para uma liber- ça da irmã caçula dos Glass vencer a crise nervosa,
dade ilimitada. provavelmente em decorrência de ela atravessar o
Se pensarmos em algo que possa simbolizar limiar entre o mundo infantil e o mundo adulto,
essa liberdade ilimitada, a criança se adequaria mesmo limiar que Holden e Seymour se recusam
perfeitamente à idéia. Para as mentes ocidentais, a atravessar. Os dois contos reunidos em Franny &
liberdade ilimitada é mais facilmente simbolizada Zooey são, para George Panichas (1991, p. 157)
pelas crianças por elas agirem de forma natural, “um outro exemplo de como a cção moderna pode
ainda não subjugadas pelas convenções sociais. armar a divindade de todos os homens”. Em “Zoo-
As crianças personicam o estado religioso da per- ey”, a crise é vencida quando Zooey tem um longo
329
diálogo com a irmã, lembrando-a de várias frases de viver em um mundo egoísta e por ela detestar o
efeito proferidas por Seymour. Nestes dois contos, egoísmo acima de tudo, e a leitura da história mís-
há a forte presença de uma narrativa russa antiga, tica signica um desprendimento de si mesmo, uma
datada do século XIX, anônima e encontrada em um perda do egoísmo. Ao entoar o nome de Deus, o su-
monastério grego ortodoxo: The Way of a Pilgrim plicante foca somente n’Ele. A repetição da oração
and the Pilgrim Continue His Way. Franny procura faz o homem se desprender de sua individualida-
nessa obra um meio de redenção e de sabedoria para, de. Nessa parte, a idéia de TheWay of a Pilgrim...
provavelmente, ajudá-la nessa travessia. assemelha-se à losoa Zen do desprendimento do
A narrativa The Way of a Pilgrim... traz a materialismo e da consciência individual.
longa peregrinação de um camponês pelo interior Segundo John Wenke (1991, p. 73), o clímax
da Rússia em busca do conhecimento espiritual e da de “Franny” ocorre quando ela e o namorado Lane
salvação. Certa vez, ela ouve de um pregador que o Coutell conversam sobre a ecácia de um meio al-
caminho para a elevação está nas palavras de São ternativo de vida. A obsessão da caçula dos Glasses
Paulo aos Tessalonicenses: “Orai sem cessar”. Ao apresenta, num literário e religioso paradigma, um
iniciar a viagem, ele encontra um monge ancião que corretivo em potencial dos horrores egoísticos. O
lhe ensina como conseguir orar sem cessar e o que é livro, que ela primeiramente arma ter descoberto
a “Oração do Senhor”. Para atingir a graça, ele tem numa aula de religião, em “Zooey”, o irmão diz
que estudar o Philokalia (uma coleção de escritos pertencer a Seymour. A “Oração do Senhor”, que
religiosos originalmente em grego realizados pelos causa em Franny uma descoberta metafísica, tam-
padres entre o quarto e o décimo quinto século). O bém oferece um antídoto para o embaraço do ego.
monge se refere à “Oração do Senhor” como um A oração, diz Franny, se torna autoprogressiva, pois
chamar contínuo e ininterrupto pelo nome sagrado algo acontece:
de Jesus Cristo com os lábios, mente e coração, e E as palavras cam sincronizadas com as batidas
na ciência de Sua duradoura presença é um pretexto do coração e é então que uma pessoa se encontra
para a sua bênção em todos os empreendimentos, realmente rezando sem parar – quase sem se dar
em todos os lugares e em todas as horas, mesmo por isso – o que tem um efeito esmagadoramente
dormindo. místico em todas as nossas concepções” (FZ, p.
Com a explicação do monge, o peregrino 34).
descobre o conteúdo da oração, ou seja, a repetição Assim, Franny acredita que o hábito da repe-
contínua das palavras “Senhor Jesus Cristo, tenha tição acaba se tornando qualidade por si só.
piedade de mim!”. Com a peregrinação e leituras, A “Oração do Senhor” reete, ao mesmo tem-
o camponês gradualmente descobre como orar sem po, o desejo de Franny de preenchimento espiritual
cessar, e, por isso, acaba alcançando o estado de e um perigoso sintoma de instabilidade mental. E
felicidade e inocência, a liberdade sobre o pensa- nessa dualidade reside o perigo, já que “apagar” a
mento maléco e sobre a consciência egoísta. Em essência de alguém com uma oração autoprogres-
sua viagem árdua e em seu encontro com todos os siva, acaba eliminando a sua própria identidade.
tipos de pessoa, o camponês alcança o sucesso da John Wenke (1991, p. 74) diz que esta condição não
vida contemplativa, porque a “Oração do Senhor” se deveria “ser entendida como o objetivo dos sobrevi-
transforma numa parte orgânica de sua vida e o seu ventes Glasses, mais notadamente Franny, Zooey e
propósito, capacitando-o para ver e sentir Deus em Buddy. Antes, o que um faz com identidade pessoal
todos os lugares. Esse se torna o principal ensina- é o tortuoso dilema pelo qual eles lutam”.
mento do livro e percebemos Franny tentando levar “Zooey”, que se torna a continuação direta de
uma vida semelhante ao do peregrino na esperança “Franny”, apresenta a seqüência dos eventos após
de que ela consiga o mesmo insight espiritual. o encontro da irmã com o namorado. Já em casa,
Para Anne Gael Henningfeld (2005), a crise Franny se fecha em seu mundo, e isso preocupa Bes-
foi provocada pelo sofrimento de Franny por ela sie, a mãe, que pede para que Zooey intervenha. A
330
narrativa, que traz o efeito da crise na caçula Glass, Zooey reconhece a importância da “Oração
também apresenta algumas referências das experi- do Senhor” como o meio de atingir a fusão entre o
ências de Buddy. Uma delas, que chama atenção, é homem e Cristo, fazendo com que o ego desapare-
o encontro dele, já referido, com uma garotinha que ça, mas não descarta o apoio do Zen-Budismo para
disse ter dois namorados, um menino e uma menina. fortalecer as convicções de Franny. Este livro de
A referência a esse encontro fortuito fez Buddy se Salinger nos soa como mais um rito de passagem
lembrar de um ensinamento Zen uma vez proferido da irmã caçula dos Glasses, que se vê em dúvida
por Seymour. O Irmão morto certa vez disse: “que sobre o modelo de metafísica que a auxilie na dura
todo estudo religioso legítimo deve culminar na passagem. Conhecendo The Way of a Pilgrim...,
ignorância das diferenças, as ilusórias diferenças, sente falta do guia espiritual, o guru, falta Seymour
entre rapazes e moças, animais e pedras, dia e noite, ou alguém que o represente. E é Zooey quem toma
calor e frio” (FZ, p. 56). o lugar em sua ausência. É ele quem a ajuda a
O grande momento de “Zooey” é o diálogo “traduzi-lo”, a reconhecer os problemas de sua in-
entre os irmãos Franny e Zooey. O ponto fundamen- terpretação empírica. Desta forma, Zooey aconselha
tal deste conto se desenvolve quando Zooey revela a irmã: “Você pode dizer a Prece de Jesus daqui até
todos os problemas com a educação que recebera, ao dia do Juízo, mas se você não percebe que a única
tanto por parte da escola quanto por parte até dos coisa que conta na vida religiosa é o desapego, o
próprios irmãos (Seymour e Buddy). Referindo-se desprendimento, então não vejo como conseguirá
aos dois mais velhos, chama-os de bastardos por avançar um palmo” (FZ, p. 154-155).
terem se tornado, tanto ele quanto Franny, excên- A leitura e a repetição da “Oração do Senhor”
tricos e anormais (FZ, p. 110). Entretanto, Franny por Franny denotam sua vontade de alcançar a
reconhece que a solução para os danos causados iluminação espiritual, mas, intelectualmente, vê o
pela escola seriam amenizados a partir da escolha seu desejo por satisfação pessoal entrar em conito
de preceitos Zens: com a sua moral. Zooey lhe sugere aderir à idéia
Por vezes, penso que o saber... quando é saber por Zen de desapego ao materialismo, do desinteresse
saber e nada mais do que isso... é o pior de tudo e da cessação de qualquer desejo. Para Anne Gael
[...]. – Eu não creio que tivesse cado tão depri- Henningfeld (2005), esta losoa serve para que o
mida se uma vez por outra... sim, apenas uma vez homem limpe a mente das idéias pré-concebidas
por outra... houvesse alguma delicada e mínima e, agindo dessa forma, ele conseguirá a sabedoria.
implicação, uma sugestão mesmo supercial, de É um processo que vai de encontro à educação
que o conhecimento deve conduzir fatalmente à tradicional que abarrota os estudantes com o co-
sabedoria e que, se não o zer, é uma repugnante nhecimento. Franny reclama que os “poetas” de sua
perda de tempo! Mas lá [universidade] nunca universidade não escrevem nada de belo, apenas
houve disso (FZ, p. 116, grifo do autor).
forçam-na a aprendê-los.
Esclarecendo o motivo pelo qual Franny não Para Panichas (1991, p. 159), a escolha do
consegue assimilar de forma completa os ensina- The Way of a Pilgrim... não deve ser concluído
mentos do The Way of a Pilgrim..., Zooey lembra como uma conversão do autor de Nove estórias ao
que a intenção da “Oração do Senhor” é dotar as misticismo russo, pois a abordagem percebida pela
pessoas da consciência de Cristo e não colocá-las leitura do livro Franny & Zooey é inteiramente não
em um lugar sagrado e aconchegante com alguma sectária, é principalmente uma busca pelo sentido
personagem divina e adorável, que iria levá-la em religioso e pela visão espiritual nos mais altos níveis
seus braços e aliviá-la de suas obrigações e que de experiência. Este livro não constitui um manual
expulsaria o professor Turper (seu desafeto) de sua de devoção e sim uma obra de arte criativa que
presença: “A oração tem uma nalidade e só uma transcende a doutrina religiosa, o credo e as dimen-
nalidade. Dar à pessoa que a recita a Consciência sões teológicas. A obra trata da sensibilidade, das
de Cristo” (FZ, p. 134). emoções vitais e respostas. Qualquer tentativa de
331
tratar a obra do plano religioso deve ser destacada animal como uma égua baia. Entretanto, quando
da severidade teológica e homilética. Na verdade, chega um garanhão negro como carvão, Mu reclama
o que distingue este livro é a religião, e não a reli- a Po Lo que Kao não podia nem mesmo distinguir
giosidade. cor e sexo. Encantado, o perito responde que Kao
“Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira”, é dez mil vezes melhor que ele porque tem em
conto sobre o dia do casamento de Seymour e Mu- mente apenas o lado essencial, espiritual. Ao fazer
riel e da fuga dos noivos, também é outra narrativa prevalecer apenas o que interessa, Kao se esquece
na qual encontramos várias referências à doutrina dos meros detalhes, julgando apenas as qualidades
Zen e Taoísta. Fica evidente que quanto mais Salin- internas e se esquecendo do aspecto externo.
ger mergulha no estudo desses princípios religiosos A parábola de Lieh-tzu visualiza o homem vi-
alternativos, mais transparece sua verticalização vendo sob os princípios taoístas, o caminho celestial
para esse assunto. A partir do Cristianismo Ortodoxo de perfeita liberdade e harmonia com a natureza,
russo, imergimos no Hinduísmo e Zen-Budismo pe- em que ele perde a auto-consciência e se torna tão
los discursos das personagens envolvidas, a partir de suave quanto a água, tão livre quanto uma criança,
Nove estórias. No conto que analisaremos a partir de tão informe quanto um bloco de madeira. Entrando
agora, além de Buddy, como narrador e personagem no vazio sem limite, forma ou nome, ele perde qual-
e Seymour (como uma voz), outros seres ccionais quer identidade prévia como um ser separado. Vazio
aparecem como novos elementos que simbolizam do falso ego, com todos os seus desejos e ilusões,
o pluralismo religioso de J. D. Salinger. ele conseguirá divisar o verdadeiro caminho. Desta
No discurso de Buddy Glass, percebemos forma, o homem que se “perde” no Taoísmo tem a
como se congura o conhecimento desse autor nas liberdade espiritual de divisar o cavalo excepcional,
referências que o narrador faz de sua formação e pois somente um visionário ignoraria cor e sexo, os
da formação espiritual do irmão: “Não sei se seria padrões do critério humano, para julgar sob a luz
oportuno esclarecer que meus vínculos – com a Tao. A parábola também celebra o reino do espí-
filosofia oriental, tanto quanto os de Seymour, rito e introduz a preocupação de Seymour com as
estavam e estão enraizados no Velho e no Novo qualidades internas. E, nalmente, ela serve para
Testamento, no Advaita Vedanta e taoísmo clássico” associá-lo com a religião oriental.
(CS, p. 177). A análise de Dennis O’Connor (1987, p. 122),
“Carpinteiros...” começa com um evento pas- em “Salinger’s Religious Pluralism: the Example
sado em 1934, quando Franny (10 meses de idade), of ‘Raise High the Roof Beam, Carpenters’”, da
com caxumba, passa a noite com Buddy e Seymour. qual aproveitaremos algumas referências, discorre
Acordando com o choro da caçula, Buddy presen- sobre três personagens que se destacam. A primeira
cia o irmão lendo em voz alta um texto taoísta do delas é Kao, que atua na parábola taoísta. A segunda,
poeta chinês Lieh-tzu. O texto, assim como o diário Seymour, o irmão ausente, e a outra, o velho miste-
do Glass morto, que aparece mais adiante, são os rioso e inominado que vai para o apartamento dos
elementos principais que ajudam a elucidar o texto Glasses. Segundo O’Connor (1987, p. 122), estes
todo. A parábola conta a história do duque Mu que três “visionários” sugerem a profundidade religiosa
pede a Po Lo, seu experiente perito em cavalos, um que tempera a narrativa de Buddy e que concentra os
novo ginete. Po Lo diz que um bom cavalo pode ser temas da visão falsa contra a verdadeira, a exigência
distinguido pela sua constituição física. Porém, um social opressiva por uma “normalidade” versus o
cavalo fora de série, aquele que não levanta poeira não categórico estilo de vida do artista visionário
e não deixa rastros, é algo imperceptível e veloz, sob a losoa taoísta. Na losoa Tao, o agir pelo
esquivo como o ar. Visto o duque estar interessado não agir é conhecido pelo termo wu-wei, ou seja,
no animal, o perito recomenda que ele procure Chiu- agir de forma natural e espontânea. Assim, o seu
fang Kao, que, despachado para um lugar remoto, agir parece vazio e sem forma, não produtivo como
depois de três meses, encontra-o. Kao descreve o as nuvens passageiras. Essa característica pode ser
332
observada no jeito como ele se comporta com sua coisas inessenciais quanto à presença “espectral” de
noiva e com a família dela: Seymour, o hai-yen, expressão Tao que signica “li-
Quando estávamos sentados na sala de visitas, a berdade das palavras”, o estado daquele sem nome
familiaridade entre M. e sua mãe me impressionou e sem ego. Esta personagem também se mostra
como alguma coisa muito bonita. Elas conhecem uma pessoa inerte e serena, mesmo no clima das
as fraquezas uma da outra [...] e se criticam com declarações pesadas da dama de honra. A inércia
os olhos. [...] Quando discutem entre si, não há o é prescrita na losoa Tao. Para a inércia do céu,
menor perigo de que se crie uma discórdia perma- chama-se pureza, a da terra, paz.
nente, porque são Mãe e Filha. É um fenômeno O conto “Seymour: uma apresentação” é a
ao mesmo tempo terrível e belo de se assistir. justicativa de Buddy para o suicídio do irmão.
Todavia [...] há momentos em que desejo que o Um dos temas mais notáveis na literatura de Salin-
sr. Fedder tivesse uma participação mais ativa na
ger é a da falha do poeta em sobreviver no mundo
conversa (CS, p. 62).
moderno. Seymour havia composto 184 haicais, e
A tranqüilidade de Seymour, que causa estra- Buddy discute a inuência do verso japonês e chinês
nhamento para a família e para os críticos, indica na composição dos mesmos. John Wenke (1991, p.
mais uma evidência taoísta no conto. Dessa forma, a 103) nos informa que o haicai, forma favorita do
tranqüilidade adquire um sentido que outra interpre- Glass morto, “fornece um veículo de iluminação es-
tação diria ser estranha. O autor oferece um indício piritual, especialmente na preocupação de Seymour
taoísta na primeira anotação do diário, quando Sey- com a invocação da espiritualidade intrínseca de
mour contrasta a sua serenidade com a dos soldados todas as pessoas e coisas”. Para Salinger, o poeta se
desmaiando de frio: “Eu não tenho circulação nem torna um canal para o mundo espiritual ser expresso:
pulso [...]. O andamento do Hino Nacional e eu “o verdadeiro poeta não escolhe o seu material. O
estamos em perfeita sintonia. Para mim, seu ritmo material sem dúvida o escolhe, não o oposto” (CS,
é o de uma valsa romântica” (CS, p. 60). p. 105).
A serenidade de Seymour evoca uma tran- Em certo momento, Buddy se volta para con-
qüilidade meditativa, de harmonização entre o siderações da força da losoa Zen e do combate
homem e o ambiente, de total desligamento para contra as tradições ocidentais. Nas palavras de Bu-
assuntos exteriores. A sua paz pressupõe um de- ddy, a verdadeira força Zen sobrevive às impressões
sinteresse exível que supere todos os obstáculos, equivocadas que as mentes ocidentais têm de seus
como foi a guerra. Assim, o crime denunciado pelo ensinamentos. Esse depoimento, quase no nal da
psiquiatra em Nove estórias, a respeito da liberação narrativa, parecer-nos-ia uma despedida do tema
de Seymour do hospital do exército, se torna uma religião se não houvesse outra publicação posterior
interpretação pessoal dele (psiquiatra) e da família à “Seymour: uma apresentação”:
da noiva, apenas uma versão que procura explicar
[...] o verdadeiro zen certamente sobreviverá a
o estranho comportamento da personagem. seus paladinos ocidentais, os quais, na sua gran-
Uma das personagens que chama a atenção de maioria, parecem confundir a quase-doutrina
de O’Connor (1987, p. 125-127), no artigo citado do Desligamento com um convite à indiferença
anteriormente, é o homem misterioso que vai à casa espiritual, até mesmo à insensibilidade – e que
de Buddy. Sua única identicação é o parentesco evidentemente não hesitariam em derrubar um
com Muriel. Na verdade, ele é o tio do pai da noi- Buda sem antes fazer por merecer um punho
va. É descrito apenas como um surdo-mudo, cujo de ouro. O genuíno zen, escusado dizer – mas é
silêncio só ressalta a aição tumultuosa dos outros melhor dizer, no ritmo em que vou seguindo –,
convidados. A descrição desta personagem também estará por aqui depois que sujeitos pretensiosos,
como eu, já tenham há muito desaparecido. (CS,
se adequa ao preceito taoísta do homem perfeito
p. 176-177).
que não se constitui como ser. Sendo inonimado,
ele não tem ego, identicação. Mudo e desinteres- O último conto de Salinger, “Hapworth 16,
sado, ele sugere tanto o esquecimento de Kao das 1924” é uma divagação, um prefácio de 20 mil
333
palavras para o silêncio. O jovem Seymour, curio- personagem, só uma explicação de sua psique afeta-
samente mais evoluído do que o outro de “Um dia da poderia levar a um entendimento de seu ato nal.
perfeito...”, reforça a sua força espiritual ao falar Ademais, o depoimento de Buddy, em “Seymour:
sobre temas como a reencarnação e o conhecimento uma apresentação”, que ressalta as suas qualidades
aprofundado das religiões. Seymour também critica excepcionais, é a versão de um irmão admirador.
o conhecimento estreito dos médicos, ou seja, da Então, podemos concluir que ele falhou ao não se
ciência, arma conhecer sua trajetória espiritual e livrar dos traumas da guerra, ou o Seymour de “Um
pede uma longa lista de livros, abrangendo várias dia ideal para os peixes-banana” não corresponde ao
áreas do saber, principalmente literárias e espiritu- mesmo das narrativas posteriores, resultando, desta
ais. O conto é mortalmente chato, quase ilegível e forma, numa falha técnica de Salinger.
não conseguiria prender o leitor que se entusiasmou
com as outras narrativas. Em suma: o Seymour de
“Hapworth 16, 1924” é semelhante ao Teddy de REFERÊNCIAS
Nove estórias. As referências ao Zen-Budismo são FRENCH, Warren. J. D. Salinger. Trad. Rubem Rocha Filho.
praticamente as mesmas, parecendo-nos que em Rio de Janeiro: Lidador, 1966, p. 174.
“Hapworth...” estão um pouco mais desenvolvi- GOLDSTEIN, Bernice; GOLDSTEIN, Sanford. The critics.
das. De qualquer forma, quem leu e compreendeu In: WENKE, John. J. D. Salinger: a study of the short ction.
“Teddy” não terá diculdade com este conto, a Boston: Twayne Publishers, 1991. p. 160-162.
não ser o fato de que é uma carta extensa, difícil ______. Zen and Nine Stories. In: BLOOM, Harold (Org.). J.
e contraditória, pois, pela idade de Seymour, sete D. Salinger. New York; New Haven: Philadelphia; Chelsea
anos, torna-se improvável que uma criança tenha House Publishers, 1987. p. 81-93.
tamanha erudição, escreva de forma tão complexa HAMILTON, Ian. Em busca de J. D. Salinger. Tradução
em tão tenra idade. de Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro: Casa-Maria
Na verdade, acreditamos que o sentido do Editorial & LCT – Livros Técnicos e Cientícos, 1990.
conto repousa na decisão de Seymour de se retirar HENNINGFELD, Anne Gael. Books and more books: read-
das relações com os humanos. Sendo isso, vida e ing in J. D. Salinger’s Franny and Zooey. Disponível em:
<http://www.gradesaver.com/ClassicNotes/Titles/franny/
cção estão intimamente relacionadas, visto que há essays/ essay1.html>. Acesso em: 4 maio 2005.
quarenta anos não temos notícias de novas publica-
ções do autor. O ultimato de Seymour, ou seja, o seu HESSE, Herman. Sidarta. Tradução de Herbert Caro. São
Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
silêncio representa o silêncio do próprio Salinger.
“Hapworth 16, 1924” contém as palavras nais do LUNDQUIST, James. The critics. In: WENKE, John. J. D.
Salinger: a study of the short ction. Boston: Twayne Publish-
jovem mestre, suas últimas recomendações e pensa- ers, 1991. p. 143-148.
mentos, a não ser que Salinger ainda publique algo
novo. De qualquer forma, parece ser uma despedi- O’CONNOR, Dennis L. J. D. Salinger’s religious pluralism:
the example of “Raise High the Roof Beam, Carpenters”. In:
da da família, dessa temática religiosa ou mesmo BLOOM, Harold (Org.). J. D. Salinger. New York & New
da vida de escritor. São apenas meras suposições Haven: Philadelphia & Chelsea House Publishers, 1987. p.
reforçadas pelo longo silêncio do autor e pelo seu 119-138.
repúdio sempre crescente à publicidade. PANICHAS, George. The critics. In: WENKE, John. J. D.
Sendo Seymour o guru de uma família, que Salinger: a study of the short ction. Boston: Twayne Pub-
pregou os ensinamentos de diversas religiões orien- lishers, 1991. p. 157-159.
tais para os irmãos, pareceu-nos ter falhado ao não PATTANAIK, Dipti R. The holy refusal: a vedantic interpre-
conseguir viver de acordo com o que pregava. O tation of J. D. Salinger’s silence. Disponível em: <http://www.
ex-combatente não alcançou superar o problema ndarticles.com/p/articles/mi_m2278/is_2_23/ai_54543100>.
Acesso em: 20 set. 2005.
psíquico de experienciar um conito armado. Na
guerra do Vietnã, alguns monges se imolavam dian- SALINGER, J. D. Carpinteiros, levantem bem alto a
te de praças em protesto pela invasão. No caso desta cumeeira e Seymour: uma apresentação. Tradução de Jorio
334
Dauster. São Paulo: Compahia das Letras, 2001.
______. Franny & Zooey. Tradução de Álvaro Cabral. Rio
de Janeiro: Editora do Autor, 2003, p. 160.
______. Nove estórias. Tradução de Jório Dauster Magalhães
e Silva e Álvaro Gurgel de Alencar. Rio de Janeiro: Editora
do Autor, 2003.
______. Hapworth 16, 1924. Disponível em: <http//www.
geocities.com/deadcaulelds/ stories/Hapworth_16_1925.
txt>. Acesso em: 26 set. 2005.
THE WAY of a pilgrim and the pilgrim continue his way.
Tradução de Helen Bacovcin. New York: Doubleday, 2003.
WENKE, John. J. D. Salinger: a study of the short ction.
Boston: Twayne Publishers, 1991, 210 p.

Você também pode gostar