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2022

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ÍNDICE

Prefácio da tradutora ----------------------------------------------------------------------2


Dao De Jing ------------------------------------------------------------------------------ 15
Bibliografia-------------------------------------------------------------------------------179

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PREFÁCIO DA TRADUTORA

O título
No Ocidente, o título desta obra varia: ‘Dao De Jing’, ‘Tao Te Ching’, ‘Tao-tö-king’…
Deve-se isso ao sistema de transcrição fonético que foi adoptado em cada caso. Quando
se adopta a transcrição fonética do chinês conhecida como pinyin, um sistema criado pelo
governo chinês na década de 1950, o nome surge como ‘Dao De Jing’. ‘Tao Te Ching’,
por sua vez, é a transcrição fonética segundo o sistema Wade-Giles, criado na década de
1920 para os países de língua inglesa. ‘Tao-tö-king’ é a transcrição fonética segundo o
sistema EFEO (École française de l’Extrême Orient), criado em 1902 e utilizado nas áreas
de influência da língua francesa. O sistema pinyin sobrepôs-se entretanto a todos os outros
e foi esse que aqui utilizei.
E o que significa 道德經 (Dao De Jing)?

Dao, 道, significa caminho, via, mas também método, ensinamentos, doutrina. Na escrita

sigilográfica: 。Isolando a parte inferior do caracter surge 辵 (辶 chuo), ir, andar;

na parte superior surge 首 shou, cabeça. Nesta combinação, cabeça e pés


encaminham-se na mesma direcção, dando origem ao caracter dao: caminho, via, mas
também doutrina e razão. Enquanto verbo significa ainda dizer, falar, pois é através da
palavra que se indica um caminho, no sentido literal ou metafórico.
O termo dao fazia parte do vocabulário místico-mágico e era utilizado na China desde a
antiguidade remota para designar o princípio regulador do mundo, que é alternância entre
yin e yang. Veio depois a ter grande importância não só para a escola do dao (taoísmo),
como para a escola de ru (confucionismo) e para a escola de Buda (budismo).
A partir do Dao De Jing, porém, o termo dao ganha uma nova inflexão, verdadeiramente
cósmica – ou antes, pré-cósmica ou a-cósmica. Logo no primeiro capítulo adverte-se o
leitor de que “O nome com que se pode nomear não é nome que permaneça”. O dao de
que se vai falar é o dao que permanece (capítulo 1), não é um dos dao das várias escolas
que utilizavam igualmente este termo. A palavra dao vai servir, pois, para designar uma
realidade que, origem primacial de tudo, a rigor e por natureza é inefável (capítulo 14).
Daí decorre a falta de à-vontade em relação ao termo (capítulo 25).
O dao é perfeição primordial anterior a qualquer distinção (capítulos 4 e 25), repouso e
dinamismo total (capítulo 25) que integra toda a diversidade e transformação da vida. A

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um tempo esvaziado e prolífico, preside e desapega-se de tudo quanto gera (capítulo 51).
Gera os seres mas torna-os independentes, capazes por si mesmos de realizar a sua
natureza espontânea. Esse movimento gerador provoca, em simultâneo, o seu contrário:
tudo quanto existe tende para o dao, tal como os rios correm em direcção ao mar (capítulo
32). O dao é, a um tempo, ausente e presente, sabor sem sabor que os contém a todos,
forma sem forma que as origina a todas, fundo indiferenciado de onde tudo procede e que
está presente em cada individuação, cada actualização concreta. Daí que seja possível
aceder ao dao através delas.

De, 德, significa poder, potencial, virtude. Um coração 心 recto 一 como se dez 十 olhos

目 o vigiassem. À esquerda, o radical de passo, 彳: a caminho da virtude. A tradução mais


comum é, com efeito, “virtude” (além de poder, vida, realização, eficácia…), no sentido
da virtus latina. No entanto, a raiz de virtus é vir, a mesma da palavra “viril”. Nada mais
oposto ao espírito da obra do que um primado da virilidade. O poder do dao, a sua acção
geradora, é sobretudo fêmea (não “feminina”). De como virtude moral surge com
frequência nos textos da escola de ru (confucionismo).
Um significado mais arcaico de de remete para um poder especial de alguém ou alguma
coisa, como quando se diz que certas plantas têm um poder curativo. Nos textos da escola
do dao, este é o sentido de de mais frequente. Trata-se de uma capacidade natural, um
determinado efeito que se é capaz de criar sem esforço, uma espécie de dom. A sua
eficácia é específica e não de cariz universal, como sucede com o dao. Trata-se, nessa
medida, não de uma virtude moral, embora possa ser esse o resultado natural, mas de
capacidades particulares que se revelam em conformidade com o dao, porque são o
próprio dao manifestando-se particularmente.
Como o dao, quem tem de tudo faz mas de tudo se desapossa. Isto distingue o verdadeiro
poder, aquele que caracteriza o governo do sábio. Constranger os súbditos com malhas
apertadas, submergindo-os em leis e regras exteriores, provoca o desejo de libertação
(capítulos 72 e 75). Por isso, a melhor forma de amarrar é sempre fazê-lo sem utilizar
cordas (capítulo 27). O de conferido pelo dao permite agir sem acção (wuwei), ser capaz
de tudo levar a cabo com a maior eficiência, porque se está permanentemente em
consonância com o decurso (dao) do mundo. Tudo se torna fácil, natural, vai por si
próprio (ziran).

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Na dinastia Han, pela época do quarto imperador, foi atribuído a esta obra o termo jing
(cânone ou clássico). Mas o título Dao De Jing (道德經) parece ter ganho alento apenas
na dinastia Tang. Até então - e ainda hoje - era comum na China referirem-se a ele como
Lao Zi. Lao Zi não é propriamente um nome, mas uma designação cujo significado é “Velho
(lao 老) Mestre (zi 子)”. O título remetia, pois, para o velho mestre ou para os velhos mestres,
dado que em chinês não há plural ou singular para substantivos e adjectivos. “Velho” pode
significar, como em português, avançado em idade ou “antigo”, além de ser também uma
forma de tratamento para quem é mais velho do que nós e merece o nosso respeito. Zi é uma
forma de tratamento partilhada, por exemplo, por Zhuang Zi e Lie Zi, o Mestre Zhuang e o
Mestre Lie, outros dois expoentes da escola do dao, e por Kongfu Zi, ou seja, o Mestre
Confúcio. Tal como Lao Zi (Lao Tzu e Lao Tseu nas versões Wade-Giles e EFEO,
respectivamente), Zhuang Zi e Lie Zi designam também a obra desses autores.

Versões chinesas
Existem múltiplas versões chinesas do Dao De Jing, cujas diferenças não são
particularmente dignas de nota. As duas versões com maior peso ao longo da História e
que se tornaram por isso nas mais comuns são as de dois comentadores, Heshang Gong
(final da dinastia Han) e Wang Bi (226-249 d.C.). Os comentários de ambos foram
anexados aos textos do Dao De Jing e tornaram-se nos principais veículos para a
disseminação do texto na China. Nestas versões, a primeira parte da obra (estrofes 1-37)
começa com uma estrofe dedicada ao dao; a segunda parte (estrofes 38 – 81) começa com
uma estrofe dedicada ao de. Na versão de Heshang Gong cada capítulo apresenta um
título, o que deverá ser, no entanto, um acrescento muito posterior, provavelmente da
dinastia Song. Fu Yi, um adepto da escola do dao da dinastia Tang, publicou igualmente
um texto descoberto em 574 d.C. que estava enterrado num túmulo Han datado de cerca
de 200 a.C.. Esta versão também apresenta as estrofes do Dao em primeiro lugar. A
divisão em 81 capítulos é em geral atribuída a Liu Xiang (c. 79-6 a.C.), bibliógrafo da
corte da dinastia Han, julga-se que para perfazer o “número perfeito” nove vezes nove.
Há ainda duas obras da escola do dao que se referem profusamente ao Dao De Jing: o
Wenzi, um texto tardio do período dos Reinos Combatentes ou talvez do início dos Han;
e o Huainan Zi, patrocinado e dirigido pelo príncipe de Huainan, Liu An (179-122 a.C.).
Dignos de menção são dois importantes manuscritos do Dao De Jing que foram
descobertos recentemente. Um deles, redigido sobre seda, foi encontrado em 1973 em

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Mawangdui, num túmulo de 168 a.C. pertencente ao filho de um oficial. Foi publicado
em 1976. Na verdade, trata-se de dois textos, o primeiro de cerca de 205-190 a.C. e o
outro um pouco mais tardio. O curioso é que, nestes textos, a segunda metade dos textos
já conhecidos, ou seja, a que começa com de (capítulos 38 – 81) surge em primeiro lugar.
A sequência dos capítulos também diverge pontualmente das versões de Heshang Gong
e Wang Bi.
O outro manuscrito, inscrito em tiras de bambu, foi descoberto em 1993 em Guodian,
uma vila a norte da antiga capital do estado de Chu da dinastia Zhou, Ying, na actual
província de Hubei. Foi publicado em 1998. Encontrava-se num túmulo do séc. III ou IV
a.C. Uma característica relevante do manuscrito de Guodian é contar com cerca de dois
mil caracteres, ou seja, menos de metade das versões conhecidas. Na esmagadora maioria,
são estrofes pertencentes aos capítulos dedicados sobretudo ao dao, isto é, à primeira
parte das versões de Heshang Gong, Wang Bi e Fu Yi. Não se conseguiu apurar se assim
é por se tratar de um excerto do texto total ou por se tratar do núcleo inicial a partir do
qual o texto restante foi desenvolvido. A ordem das estrofes difere de qualquer das
versões anteriormente conhecidas. Os caracteres utilizados também nem sempre
coincidem. Por exemplo, no primeiro capítulo, no texto de Guodian encontra-se 恆 heng

e não chang 常; e, no capítulo 25, encontra-se bu hai 不亥 e não bu gai 不改。

O autor
Como curiosidade, aludirei brevemente ao que foi sendo dito sobre Lao Zi. No seu Shiji
(史記 Memórias Históricas), Sima Qian (c. 145-87 a.C.) redigiu esta breve biografia de Lao
Zi:

“Lao Zi nasceu na aldeia de Quren, na região de Li, distrito de Ku do reino de


Chu. O seu apelido era Li, o nome próprio Er, o nome honorífico Boyang e o
nome póstumo Dan. Foi funcionário dos Arquivos da corte dos Zhou. Confúcio
foi ao reino dos Zhou com o fito de interrogar Lao Zi acerca dos ritos. Lao Zi
disse-lhe: ‘Quanto àqueles de quem falas, até os seus ossos apodreceram. Restam
apenas as suas palavras. Quando chega a sua hora, o homem superior parte.
Quando a sua hora não chegou, anda ao capricho do vento. Diz-se que o bom
comerciante escode as suas riquezas e adopta a aparência de um pobre. O homem
superior de enorme poder (de) adopta a aparência de um ignorante. Abandona
esse teu orgulho, todos esses desejos, esse teu ar formal e toda essa ambição. Isso
em nada te beneficia. É tudo quanto te tenho a dizer.’Confúcio foi-se embora e
disse aos seus discípulos: ‘Sobre os pássaros sei que conseguem voar. Sobre os
peixes sei que conseguem nadar. Sobre os quadrúpedes sei que conseguem
correr. Os animais que correm são capturados com armadilhas. Aqueles que

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nadam são apanhados com redes. E os que voam são atingidos por flechas.
Porém, ao Dragão, não o posso conhecer, porque ascende ao céu deslocando-se
com o vento e com as nuvens! Eu hoje vi Lao Zi e ele é como o Dragão!’
Lao Zi cultivou o dao e o seu poder. A sua doutrina era a arte de se manter
escondido e permanecer anónimo. Habitou longo tempo no reino dos Zhou e,
perante o seu declínio, renunciou ao cargo que ocupava. Foi-se para Xiangu,
onde o guarda Yin Xi lhe disse: ‘Uma vez que ides esconder-vos, imploro que
escreveis um livro.’ Mal terminou o livro, que se dividia em duas partes, uma
sobre o dao, outra sobre o seu poder e que tinha mais de cinco mil palavras, Lao
Zi partiu e ninguém sabe aonde veio a morrer.” 1

No entanto, o próprio Sima Qian é levado a concluir que ninguém poderá saber se tudo isto
é verdade, pois Lao Zi “era um sábio escondido”, isto é, alguém que renunciara à vida pública
e se recusava a colaborar na governação.
A história contada por Sima Qian tem um carácter sobretudo simbólico. A passagem sobre a
viagem de Lao Zi para o Oeste e o encontro com o guarda Yinxi, para quem terá escrito o
livro, significa que o Dao De Jing se destinava a não-iniciados (o guarda). Escrito por um ou
vários iniciados, o livro pretendia levantar o véu sobre a cosmovisão subjacente à via (dao)
que havia(m) adoptado, cosmovisão essa que a obra demonstra já se encontrar então num
estado adiantado de amadurecimento. Trata-se, portanto, de uma obra que não é esotérica,
embora certas passagens e, sobretudo, expressões, pudessem parecer sibilinas a não-
iniciados.
O cargo de arquivista-astrólogo indica uma função e um saber de tipo sagrado e, enquanto
conselheiro do soberano, também político, ao invés do que sucedia com Confúcio, cuja
reflexão era politicamente laica. Assim, o encontro com Confúcio ilustra as diferenças entre
a sua visão e a visão exposta no Dao De Jing, com vantagem para esta última, a qual estaria
para além da capacidade de compreensão daquele. Sima Qian, ele próprio astrólogo da corte
dos Han, simpatizava com a escola do dao e esta lenda talvez fosse do seu agrado. Na
verdade, é muito pouco provável que tal encontro tenha alguma vez tido lugar.
Existem ainda numerosos mitos sobre a figura de Lao Zi. ‘Lao Zi’ significa também “criança-

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老子者,楚苦縣厲鄉曲仁里人也,姓李氏,名耳,字耼,周守藏室之史也。孔子適週,將問禮
於老子。老子曰:“子所言者,其人與骨皆已朽矣,獨其言在耳。且君子得其時則駕,不得其時則
蓬累而行。吾聞之,良賈深藏若虛,君子盛德容貌若愚。去子之驕氣與多欲,態色與淫志,是皆
無益於子之身。吾所以告子,若是而已。”孔子去,謂弟子曰:“鳥,吾知其能飛;魚,吾知其能
遊;獸,吾知其能走。走者可以為罔,遊者可以為綸,飛者可以為矰。至於龍,吾不能知其乘風
雲而上天。吾今日見老子,其猶龍邪!” 老子修道德,其學以自隱無名為務。居周久之,見周之
衰,乃遂去。至關,關令尹喜曰:“子將隱矣,強為我著書。”於是老子乃著書上下篇,言道德之
意五千馀言而去,莫知其所終。

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velha”, o que deu origem ao mito segundo o qual ele teria nascido já com várias centenas de
anos. E a sua mãe conservou-o no útero 72 ou 81 anos – ambos números com forte carga
simbólica; ao nascer, Lao Zi apresentava 72 ou 81 traços distintivos e maravilhosos (boca
quadrada, três orifícios nas orelhas, etc.); foi concebido depois de a mãe ter engolido uma
pérola de cinco cores caída do céu; nasceu do flanco esquerdo da mãe e sob uma ameixoeira
(li 李) e, por isso, o seu apelido era Li; sabia andar e falar desde o nascimento, etc.
No seio da escola do dao, Lao Zi acabou por ser divinizado como terceira figura da principal
trindade do panteão, datando o início do seu culto do séc. II a. C. É descrito em muitos textos
como a consubstanciação do próprio dao. Nascido antes do céu e da terra, antepassado do
sopro original (氣 qi), de corpo invisível, cria e transforma os dez mil seres, permanecendo

sem nome e sem forma e, portanto, podendo transformar-se em todos eles.

A época
À dinastia Xia (c. de 2183–1500 a.C.; os historiadores ocidentais tendem a acreditar que
se trata de uma dinastia mítica) sucedeu a dinastia Shang (c. de 1500–1100 a.C.), a que
por sua vez sucedeu a dinastia Zhou em 1027 a.C., que foi dividida em período da
Primavera e do Outono e período dos Reinos Combatentes. Todas essas dinastias
contavam já com estruturas governamentais sofisticadas, com vários ministros tutelando
diversas pastas, como os transportes, as obras públicas, o exército ou a lei e a cultura. A
China de antanho situava-se em torno da bacia do rio Amarelo e estendia-se para sul até
um pouco mais além do rio Yangzi (Yangtzé; Iansequião). Na dinastia Zhou, o sistema
de escrita era já muito antigo.
Em 771 a.C., os reis da dinastia Zhou começaram a perder poder e influência e tiveram
de se retirar da sua capital. Como consequência, no século seguinte, os senhores locais
afastaram-se do rei Zhou e lutaram por estabelecer os seus próprios estados. Começou
então o período dos Reinos Combatentes cuja instabilidade se prolongou até 221 a.C.. Os
pequenos estados passaram a competir entre si por influência e território, de tal maneira
que, de início, se contava um total de cerca de 120 pequenos estados mas, por volta de
500 a.C., subsistiam 40 e, por volta de 250 a.C., restavam apenas sete. Para além disso, a
precariedade reinava igualmente no interior de cada estado, pois várias famílias nobres
disputavam constantemente o poder entre si. Foi também nessa época que floresceu todo
um conjunto heteróclito de escolas que entraram em diálogo, conhecidas como as Cem

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Escolas de Pensamento, entre elas a escola de ru (儒), “confucionismo”), a escola do dao

(道, “taoísmo”), a escola de mo (墨, “moísmo”) e a escola de fa (法, “legalismo”).


Segundo os investigadores chineses tradicionais, assim como alguns modernos, o Dao De
Jing deveria ser datado entre o final do séc. VI e o início do séc. V a.C., dado fazer
referência ao tempo de Confúcio, embora algumas passagens pontuais pudessem ser
anteriores. Todavia, outros investigadores chineses e muitos ocidentais modernos
preferiram datá-lo desde o início do séc. IV até ao final do séc. III a.C., porque só no Han
Fei Zi, do final do século III a.C., é que se encontram algumas estrofes mais ou menos
completas do Dao De Jing. Nessa ordem de ideias, defendem que deveria ser datado de
uma época próxima à do Han Fei Zi e não à de Confúcio (551-479 a.C.). Até ao Han Fei
Zi surgem apenas alguns fragmentos breves da obra aqui e ali em livros chineses (por
exemplo, no Zhuang Zi, do final do séc. IV ao início do séc. III a.C.).
Com as descobertas de Mawangdui e Guodian, crê-se hoje que uma parte substancial do
texto será de cerca de 400 a.C. e que terá feito parte de uma tradição oral, recorrendo
pontualmente a aforismos, citações, rimas para melhor memorização que remetem, com
efeito, para textos muito mais antigos ou pertenceriam à sabedoria popular. São utilizados na
obra, em geral, para lhes subverter o significado ou denunciar as erróneas ideias estabelecidas.
A forma actual da obra terá sido atingida entre 400 e 300 a.C., ou seja, o Dao De Jing não
foi escrito de uma só vez nem por um só autor, mas foi antes sendo escrito e resultou de
um processo de acumulação e correcção.

As traduções

Extremamente conciso, sem referências históricas ou pessoais, o Dao De Jing, como todas
as grandes obras, pode e deve ser lido segundo múltiplos níveis e a partir de diversas
perspectivas: a filosófica, a política, a estratégica, a fisiológica.
As frases sucintas, privilegiando a profundidade em detrimento da profusão, explicam em
parte o seu poder evocativo, o qual se tem mantido inalterável através dos tempos. Como o
dao, é “pequeno e sem nome” (estando assim de acordo com o que advoga); foi escrito há
cerca de vinte e cinco séculos mas o seu poder é tal que tem sido traduzido em quase todas
as línguas e se mantém espantosamente actual. Talvez hoje mais do que nunca.
O vocabulário utilizado nesta obra é simples e surpreendentemente restrito (mais uma vez,
cumpre o que advoga: “Parcas palavras são conforme o natural”, capítulo 23). Como é
apanágio de obras verdadeiramente profundas, a dificuldade de entendimento não releva

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da complexidade da linguagem mas do significado e alcance daquilo que se pretende
dizer. O tom críptico não resulta do facto de se tratar de um texto secreto, mas de o dao não
poder ser reduzido a palavras. Procurei, por isso, que a minha tradução fosse o oposto de uma
tradução palavrosa, reduzindo ao máximo o vocabulário utilizado em língua portuguesa e
conservando o tom lacónico, não só porque sucede assim no original mas porque é desse
modo que está de acordo com o espírito do dao.
No séc. VII d.C., o Dao De Jing foi um dos primeiros textos chineses a ser traduzido para
o sânscrito. E, no Ocidente, veio a tornar-se na obra mais traduzida do pensamento chinês,
existindo hoje várias dezenas de versões em inglês e em francês e noutras línguas
europeias.
A primeira tradução para uma língua ocidental, o latim, foi levada a cabo por missionários
jesuítas, no final do séc. XVIII. Foi introduzida em latim no Ocidente em 1788 através da
Royal Society de Londres. Em 1844, já havia traduções completas em francês e em
alemão. Em 1868, apareceu a primeira tradução em língua inglesa, por John Chalmers.
Em Macau, Manuel da Silva Mendes publicou em 1930, no jornal Notícias de Macau, os
seus Excerptos de Filosofia Taoísta, em cuja primeira parte reescreveu numa versão
poética concordante com o gosto português de então e muito livre, apenas alguns trechos
do Dao De Jing e do Nan Hua Jing (南華經), de Zhuang Zi. O próprio Silva Mendes
adverte que não se trata de tradução, sendo para mais provável que não tivesse
conhecimentos suficientes da língua chinesa para tal. O autor da primeira tradução para a
língua portuguesa do Dao De Jing a partir do chinês foi um macaense, Gonzaga Gomes,
decorria já o ano de 1952. A segunda, e peculiar, tradução para a língua portuguesa a
partir do chinês, segundo o próprio informa, é da autoria do Padre Joaquim Guerra e foi
publicada pelos jesuítas portugueses em Macau em 1987. No Brasil, a primeira tradução
para a língua portuguesa a partir directamente do chinês parece ter sido a de Mário Bruno
Sproviero, em 1997.
A primeira tradução em língua portuguesa a partir do chinês e publicada em Portugal é
esta que o leitor tem entre mãos e foi dada à estampa originalmente no ano de 2002 numa
casa editora entretanto extinta. Vinte anos se passaram e esta segunda versão contém
modificações em relação à anterior, espero que para melhor. Uma delas foi conservar
desta feita o termo original dao sem o traduzir, pois trata-se de um conceito
especificamente chinês e sem correspondência nas línguas ocidentais, mas que já faz parte

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do vocabulário destas, para mais quando o termo ‘taoísmo’ ou ‘daoísmo’ foi adoptado há
longo tempo. O mesmo não sucede com de, cuja tradução para ‘poder’ conservei.

Considerações finais

Irei tecer agora aqui algumas considerações finais tendo em vista tentar mitigar a estranheza
que o leitor poderá eventualmente sentir em face desta obra.
A cosmovisão da escola do dao sempre teve por base práticas divinatórias, exorcísticas,
astrológicas, medicinais-mágicas, com origem na história remota da China. A velha divisão
da escola do dao numa corrente de pensamento iniciada com Lao Zi e desenvolvida por
Zhuang Zi e Lie Zi – o chamado taoísmo filosófico – e numa corrente que daí teria
degenerado numa espécie de religião composta por uma amálgama de crenças, práticas
xamanísticas, técnicas fisiológicas e alquímicas de interesse menor – o chamado taoísmo
religioso – é muito problemática e está ultrapassada.
Preservando sempre o espírito que a caracteriza, a escola do dao manteve-se como uma
unidade evolutiva para onde foram convergindo práticas e crenças de proveniências diversas.
Evitou sempre o exercício da reflexão dogmática e a transformação em sistema de cariz
filosófico; e também não se deixou consubstanciar numa religião estruturada e unificada. A
irredutibilidade a um sistema filosófico ou religioso é o próprio espírito do dao: ser a
convergência do mundo, mas não se encher (final do capítulo 32), pois só não se enchendo é
que, preservando-se, é capaz de se renovar (final do capítulo 15).
As doutrinas, os sistemas de pensamento, são do domínio da mera comunicação. Mas a
experiência do dao não se consegue pondo em prática uma teoria. No limite e em rigor, a
distinção teoria-prática não tem qualquer sentido. A experiência do dao consegue-se, não
através da fala (“Quem fala não sabe / quem sabe não fala”, capítulo 56), mas de práticas
de meditação às quais brevemente se alude aqui e ali ao longo da obra. Apenas essas
práticas permitem regressar à quietude, à receptividade, à clareza, à autenticidade
(capítulo 10). Para tanto, há que se libertar de desejos e de acções, de tudo quanto se
acumulou: virtudes de tipo confucionista, ditames impostos pela sociedade, leis e ordens,
estudo, falso conhecimento (capítulos 71 e 81). Tudo isto são obstruções à experiência
íntima do dao. O acesso ao dao pressupõe antes uma desconstrução da mente, uma
verdadeira supressão do intelecto (capítulo 48).
Aquilo sobre que versa o Dao De Jing não é redutível a meros conceitos, a nomes, a um
ensino com palavras. A palavra limita (“Quanto mais se fala mais se limita”, capítulo 5),

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enquanto o dao é ilimitado. O mundo da palavra é o mundo da multiplicidade: “com
nome, é Mãe dos dez mil seres”. (capítulo 1). A palavra não é encarada de modo
pejorativo, mas permanecer na sua esfera é tão-só conhecer os brilhos, os reflexos, sem
retornar à lucidez (capítulo 52). A palavra pertence aos seres e os seres também são o
dao, mas há que ser parco na sua utilização. Enquanto instrumento do pensamento
conceptual, as palavras constrangem, analisam, distinguem, dividem. Usam-se sempre à
falta de melhor (capítulo 25) e só a custo se pode com elas tentar descrever o dao
(capítulos 4, 15, 21, 25 e 34). A palavra deve servir para deixar escutar o silêncio e não
para o ocultar. Discussões acerca da diferença entre “bem” e “mal”, tão estéreis quanto
discussões sobre a diferença entre “sim” e “mh-mh” (capítulo 20), são ruídos que
impedem o escutar do silêncio. De que serve estabelecer distinções rígidas e conceitos
estanques? A origem de algo é o seu contrário-complementar (capítulo 2) e
transmudarem-se um no outro é a sua condição (capítulo 58). Por isso, o sábio evita os
extremos e a demasia (capítulo 29). Nessa ordem de ideias, e até aos dias de hoje, o que
se pratica com os adeptos do dao é um “ensino em que não se fala” (capítulos 2 e 43). O
ritual litúrgico assume grande importância e é através da sua prática, não através da
transmissão de uma doutrina, que a iniciação se concretiza.
Ser um com o vazio e, por isso mesmo, pletórico dao tem como efeito a flexibilidade
(física e psíquica, tal distinção perdendo qualquer sentido, capítulo 40), não o
“conhecimento”. O “conhecimento” opera-se pelo confronto de um par dicotómico:
sujeito e objecto, o primeiro exteriorizando o segundo. Ora, isso é afastar-se do dao.
Sujeito e objecto contêm-se um ao outro, é pelo interior que se conhece o exterior. E esse
verdadeiro conhecimento não é um acontecimento mental, é uma experiência vivida. Para
atingir esse estado de naturalidade (ziran) é preciso que uma transformação tenha lugar
através da meditação e de práticas fisiológicas, de modo a alcançar a própria natureza
original que foi corrompida e ocultada com tudo aquilo com que se foi enchendo a mente.
Os exercícios de tipo fisiológico atestam o dao como como uma certa ausência mas
também como uma presença, algo de comum, algo que “está aqui” – esse também é o
significado de “que permanece” (capítulos 1, 16 e 52). Daí que o movimento do adepto
do dao seja “voltar atrás” até ser de novo um “recém-nascido”, um recém-nascido de
ordem superior, que encontrou a própria Mãe dentro de si, que é Mãe e Filho em
simultâneo. E, uma vez retornado à origem, à quietude, ao silêncio, há que voltar atrás
outra vez em direcção ao mundo e ao movimento (capítulos 10 e 15) e de novo nascer.

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Explicitação de alguns termos chineses:

Wu, 無 não-manifesto, e you, 有, manifesto. Na linguagem comum, wu e you significam


“não ter” e “ter”, ou “não haver” e “haver” e, como proposições, “sem” e “com”. Wu
exprime ausência e you exprime presença. As traduções mais comuns são “não existência”
e “existência”, “não ser” e “ser”, “nada” e “ser”, “invisível” e “visível”. No entanto, se
pensarmos em wu e you segundo os conceitos de “ser” e de “não ser” da filosofia ocidental,
então teriam ambos de ser incluídos na esfera do ser. O wu não é “não ser”, mas um modo
diferente e complementar de “ser” (“Os seres do mundo nascem do you. / O you nasce do
wu.”, capítulo 40). De modo análogo, os termos “visível” e “invisível”, dado evocarem a
possibilidade ou impossibilidade de captação sensível dos modos de ser do dao, reenviam
para um sujeito. Ora, o wu existe previamente a qualquer sujeito e é do you que nascem
todos eles (capítulo 40).
O wu é desindividuação, indiferenciação harmonizante; é o modo velado, não manifesto
que, precisamente por isso, necessita de dar nascimento ao you, à individuação, à
actualização diferenciante, ao que se manifesta e revela. Na sua antiga forma sigilográfica,

o caracter you é o pictograma de uma mão a segurar uma fatia de carne . Trata-se de
uma imagem eloquente de concretude, de tangibilidade. O you aponta o tangível, o pleno.
O wu corresponde ao vazio do universo (o silêncio, o espaço vazio, o branco do papel,
etc.); o you corresponde à plenitude do universo, ao nomeável (a palavra, o espaço cheio,
o negro…). O you só consegue a sua plenitude devido a essa presença do vazio wu como
uma certa ausência. O sem-manifestação é in-manifesto, encontra-se no manifesto, só
diferindo em densidade de qi. São termos correlativos e indissociáveis, co-existindo em
todas as coisas, de uma forma semelhante ao yin e ao yang. O wu é o fundo indiferenciado
do you, a partir do qual este se vai diferenciando. O dao a ambos engloba, wu e you.
Existe, porém, um outro wu, que não é apenas o correlato do you como sucede no capítulo
11. É o wu a que se alude no capítulo 40, o indeterminável que não aparece nunca mas,
como um estado segundo do dao, é origem sem nome (capítulo 1) do you.
O dao do sábio é wu: sem (wu) acção, sem (wu) conhecimento, sem (wu) desejo. O sábio
de tudo se desapossa. E, assim, mais tem (capítulo 81), pois o you (ter) nasce do wu (não
ter) (capítulo 40). Só o vazio é receptivo (capítulo 11), é fêmea e, logo, está apto e gerar
e a criar.

Wuwei 無為, não-acção, sem acção, sem agir. Cumpre sublinhar que não se trata de

12
passividade ou de renúncia. Pelo contrário, o Dao De Jing pode ser encarado como um
tratado sobre a acção eficaz. O tipo de negação utilizado na expressão wuwei e outras
semelhantes é muito curioso e revelador. Assim, não é dito que o dao é sem forma, mas
que é a forma sem (wu) forma (capítulo 14). A negação da forma existe no interior da
forma. Uma forma com (you) forma, uma imagem com imagem, diferenciada, actualizada,
já não seria a grande forma ou grande imagem, a que contém todas as formas e todas as
imagens. De modo análogo, a melhor tradução da expressão “wei wuwei” não é “agir a
não-acção”, mas “agir sem-acção”, embora possa soar estranha em português em várias
passagens. O sábio faz, age e saboreia (capítulo 63), mas age sem acção (“marchar sem
marcha / enrolar as mangas sem braços…”, capítulo 69), faz sem fazer e saboreia sem
saborear. O Wuwei não nega a acção, é antes uma acção de ordem superior, é a acção por
excelência, sinal do verdadeiro dom, do verdadeiro poder (de). Não é acção menor que
força e “inter-fere”. Forçar é negar o dao e, logo, cortejar a morte (capítulo 30). Acções
que “inter-ferem” partem de uma escolha e são uma imposição, estando condenadas ao
fracasso porque “o mundo é um recipiente sagrado /sobre o qual não se pode agir!”
(capítulo 29).
O wuwei provoca a retirada de todos os entraves susceptíveis de impedirem a marcha
natural das coisas. Impele a agir sobre aquilo que se encontra ainda num estado anterior
à sua actualização manifesta (“agir sobre algo enquanto não se manifesta”, capítulo 64),
o estado que é o seu contrário-complementar (capítulos 36 e 67). O efeito da brancura
não se obtém através do branco nem o efeito da eloquência através da eloquência. O
melhor efeito é obtido através da sua falta (capítulo 22). Assim, “a grande brancura
parece manchada” (capítulo 41) e “a grande eloquência parece titubeante” (capítulo 45).
Também é através do “isto aqui”, do mais próximo, que se pode chegar mais eficazmente
ao mundo, ao mais afastado, porque, afinal, se contêm um ao outro (“E através de quê é
que sei como o mundo é? / Através ‘disto aqui’!”, capítulo 54; “Não sair da porta / e
conhecer o mundo”, capítulo 47). É reduzindo a acção ao mínimo, operando quando o
efeito que se pretende criar se encontra em estado larvar, que se consegue a flexibilidade
(capítulo 40), isto é, que se consegue que o objectivo seja atingido naturalmente, “por si”
(ziran)2.

2
O termo ziran, no sentido em que é utilizado no seio da escola do dao, exprime, na verdade, uma visão
do que é a liberdade muito mais profunda, real e completa do que aquela que vigora no Ocidente. A
liberdade, no Ocidente, é política e mundana, isto é, exterior e não intrínseca e tem, por isso, revelado ser
ilusória e infrutífera.

13
Shengren, 聖 人, o sábio. O sábio não pode ser separado da figura do governante, do
governante-sábio, aquele que não coloca obstáculos ao curso natural das coisas, ao seu
ziran (capítulo 57). Como o dao, o sábio não emite sinais, é sem sabor, sem sedução. É
inexpressivo, apagado e obscuro (capítulo 20). Está num estado arcaico, como a madeira
em bruto e o recém-nascido, ou num estado final, de retorno e dissolução, como o gelo
que derrete (capítulo 15). Não atinge o estado da diferenciação e é precisamente porque
não se diferencia que consegue fazer do mundo o seu corpo e do coração do povo o seu
próprio coração (capítulos 13 e 49).
Enquanto governante, evita dar ordens e estabelecer imposições, de tal modo que nem
sequer se sabe que ele existe (capítulo 17). Apesar de não fazer sentir a sua existência,
realiza todos os seus interesses (capítulos 7 e 34), sai vencedor em todas as batalhas, fica
sempre por cima e acaba sempre à frente (capítulo 66). Isto sucede porque governa sem
acção (wuwei). O governante-sábio é pessoalmente desinteressado (capítulo 7) pois, como
o dao, cumpre as tarefas mas “não o proclama” (capítulo 34), de tal modo que o povo,
seu filho (capítulo 49), julga que a obra foi sua (capítulo 17). E tudo regressa assim à
unidade primordial, onde reinam uma paz e uma ordem espontâneas (capítulo 80).
O sábio termina com o apreço pelo intelecto (capítulos 19 e 65), com os falsos saber e
conhecimento que conduzem a uma produção descontrolada, à multiplicação de afazeres
e objectos, porque “há que saber parar” (capítulo 32). No governo com dao, soberano e
súbditos são frugais (capítulos 59 e 67). Frugais nos bens materiais, frugais na acção
(“Cumpridas as tarefas é altura de se retirar”, capítulo 9). O sábio termina também com o
apreço pelas qualidades mundanas como a benevolência, a justiça, a lealdade, o dever
filial, que só em aparência são positivas, pois surgem do seu contrário-complementar
(capítulo 18). São imposições normativas que provêm do exterior num mundo
mergulhado em desordem, ao invés de brotarem naturalmente (ziran). O governo com
dao dispensa-as, pois com ele os seres nivelam-se e harmonizam-se por si próprios, isto
é, cumprem efectivamente a natureza (capítulos 32 e 57).
Cláudia Ribeiro
Lisboa, 2022

14
道德经
Dao De Jing

15
16
1.

Dao 道 que se possa indicar (道 dao)3 não é dao que permaneça (常道 chang dao).
Nome (名 ming) que se possa nomear (名 ming) não é nome que permaneça (常名
chang ming).

Sem nome, é origem do céu e da terra (天地 tian di).


Com nome, é Mãe dos dez mil seres (萬物 wan wu)4.

Assim,
permanecendo sem desejos, vê-se o seu fluxo oculto (妙 miao)5,
permanecendo com desejos, vê-se o seu limiar6.

Estes dois brotam juntos


mas tomam nomes diferentes.

A essa junção se chama alternância (玄 xuan)7.

Alternância e mais alternância


- a porta de todo o fluxo oculto.

3
Ou “de que se possa falar”.
4
A multiplicidade de seres e eventos. A melhor tradução de wu é ‘eventos’, ‘ocorrências’ ou ‘processos’ e
não ‘seres’, embora a estranheza resultante da adopção dos primeiros três termos no texto em português me
levasse a optar pelo último. Mas há que ter presente que o termo ‘seres’ não se refere aqui a entidades
pretensamente autónomas que podem ser objectificadas. São antes processos em devir, resultado da
interacção específica e temporária do 陰 yin e do 陽 yang, as duas manifestações do sopro vital, 氣 qi. 物
wu é tudo quanto acontece sob o céu. E tudo é sopro vital em densidades diversas e em perpétua
transformação, e não coisas dom identidade própria e animadas por um sopro vital exterior que nelas penetra.
5
妙 miao. Trata-se de um dos termos de mais difícil tradução da obra. É geralmente traduzido por
‘maravilha’, ‘prodígio’, ‘mistério’. Neste caso, parece-me que a história do caracter pode ser útil. O radical

de 妙, na escrita sigilográfica e, porventura, oracular (o caracter ainda não foi encontrado em ossos
ou carapaças), não era 女 nü, mulher, mas 玄,xuan. Nas inscrições oraculares em ossos, 玄 representa a
possibilidade de compreensão do mundo implícito/oculto a partir do mundo explícito (ver também a nota
6). À direita de 妙 não estava 少 shao, mas o pictograma de "uma seda a flutuar sob a água": a parte superior
era o pictograma de "fluxo de água" e a parte inferior o pictograma de "uma seda a flutuar ". Combinando
os elementos da esquerda e da direita, o caracter significava que, através da percepção da "superfície ", é
possível reconhecer o fluxo do mundo oculto.
6
徼 jiao, “fronteira”, “extremidade”, “delimitação”, “rebordo”, “orla”.
7
玄 xuan é geralmente traduzido por ‘profundidade’, ‘profundo’ ou ‘mistério’, ‘misterioso’. O termo tem
dois significados básicos: a cor preta escura com um leve tom avermelhado; e o significado derivado que
se refere àquilo que é de difícil compreensão, profundo e misterioso. O pictograma que está na origem do
caracter, porém, assemelhava-se a um 8, simbolizando dois fios de seda entrelaçados. O caracter actual
ainda é igual a parte do caracter para ‘seda fina’, 糸。Xuan remetia, portanto, para entrelaçamento,
expressando assim o significado de alternância perpétua entre os opostos-complementares. Conservei aqui
esse significado original dado tornar desse modo mais compreensível este capítulo que é considerado
unanimemente como sendo um dos mais obscuros da obra. Além disso, o capítulo seguinte torna-se assim
uma sequência natural deste, pois trata precisamente da alternância dos opostos-complementares.

17
18
2.

No mundo8
todos julgam saber o que faz a beleza ser a beleza
- daí a fealdade.
Todos julgam saber o que faz com que ser bom (善 shan) seja ser bom
- daí o não ser bom.9

Assim,
haver e não haver geram-se um ao outro,
difícil e fácil complementam-se um ao outro,
longo e curto formam-se um ao outro,
alto e baixo medem-se um ao outro,
nota e voz harmonizam-se uma à outra,
frente e trás seguem-se uma à outra.

Por isso, o sábio


faz o que é sem acção (無為 wuwei)10
e pratica o ensino em que não se fala.

Os dez mil seres surgem


mas ele não interfere.
Gera mas não possui.
Efectua mas não retém.
As tarefas são cumpridas
mas não se apega.

E é porque não se apega


que elas não o rejeitam.

8
天下 tianxia, sob o céu. Também significa “o império”, cuja noção, na antiguidade, coincidia com a de
mundo.
9
Isto é, todos julgam saber definir a beleza e todos julgam saber definir o que é ser bom (a efectuar algo;
não se trata do bem no sentido moral). Ora, as definições, porque afirmam algo, estabelecem por isso mesmo
os seus contrários.
10
Ver nota 12.

19
20
3.

Não prezando o talento,


o povo não entraria em conflito.
Não valorizando bens difíceis de obter,
o povo não se tornaria ladrão.
Não exibindo o que desperta desejo,
o coração-mente (心 xin)11 não se transtornaria12.

Por isso, o governo do sábio


é esvaziar as mentes
e encher os ventres,
enfraquecer as ambições
e fortalecer os ossos13.

Faz sempre com que o povo


nada tenha a conhecer nem a desejar.
E faz com que quem conhece
não ouse agir.

Agindo pela não-acção (為無為 wei wuwei)14


nada há que se não governe.

11
O coração é sede não só de emoções mas também da capacidade cognitiva e especulativa, isto é, mente.
Além disso, é o órgão da sensação e do desejo. Daí que o coração-mente deva ser vazio. Outras versões em
chinês acrescentam “do povo…” depois de ‘coração-mente’.
12
Seguindo a ordem de ideias do capítulo anterior, há que evitar as definições, as distinções, pois só assim
se evitam também os seus contrários.
13
Conhecimentos, ambições, desejos, impedem o retorno ao dao, que exige antes o esvaziar da mente, pois
é vazio. O governo do sábio preocupa-se com o bem-estar físico e mental dos súbditos e evita a sua
intelectualização (cf. capítulos 19 e 65).
14
Agindo sem-acção; exercendo a prática da sem-acção, não “inter-ferindo”. Sobre este assunto, ver o
Prefácio da tradutora.

21
22
4.

O dao é um vácuo (沖 chong)15


mas ao ser usado não se enche.
Oh, profundo!
Parece o antepassado dos dez mil seres!

Embota-lhes os gumes.
Desfaz-lhes os nós.
Harmoniza-lhes os brilhos.
Junta-lhes as poeiras.

Oh, abissal!
Parece preservar-se.

Não sei de quem é filho.


Parece ser
o antecessor do senhor supremo.

O caracter 沖 chong surge por vezes como 盅 zhong, um vaso ou taça vazios, que acolhe porque é vazio.
15

Daí que outra possível tradução seja: “O dao é um vaso/que ao ser usado não se enche.”

23
24
5.

Céu e terra não são benevolentes (仁 ren),16


fazem dos dez mil seres cães de palha.
O sábio não é benevolente,
faz de toda a gente cães de palha17.

O intervalo entre céu e terra


assemelha-se a um fole!
Vazio (虛 xu), mas não se esgota.
Movendo-o, continua a soprar.

Quanto mais se fala mais se limita.


É melhor guardar o centro18.

16
O sentido de benevolência deve ser entendido como uma bondade menor, que escolhe a quem se dirige,
que favorece apenas alguns. O céu e a terra são indiferentes perante os objectivos humanos, os seus desejos
e acções. O seu bem é ajudá-los antes a cumprir a sua natureza, recusando qualquer exclusão (cf. capítulos
27, 41, 62 e 79) e, assim, estão para lá do bem e do mal moral, da oposição entre benevolência e não-
benevolência, de feição sobretudo confucionista (cf. capítulo 18). A benevolência age (cf. capítulo 38), pois
distingue e escolhe, mas o sábio prefere o wuwei (cf. capítulo 3).
17
Nos sacrifícios e rituais fúnebres da antiguidade confeccionavam-se cães de palha que eram utilizados
como objectos simbólicos. Uma vez cumprida a sua tarefa, eram todos destruídos e abandonados, sem
excepção. Tratar toda a gente como cães de palha significa tratar toda a gente de igual maneira, sem
favoritismos, ajudando todos a cumprir a sua natureza e abandonando-os uma vez cumprida, pois a natureza
é mutação e os seres entram e saem da vida (cf. capítulos 27, 49 e 79).
18
Local de convergência de tudo e, simultaneamente, a partir de onde tudo se expande. No centro cruzam-
se interior e exterior, yin e yang. É lugar de comunhão dos contrários e também centro original, anterior a
qualquer manifestação.

25
26
6.

O espírito do vale19 não morre.


É a fêmea profunda (玄 xuan).

A porta da fêmea profunda


é a raiz do céu e da terra20.

Incessante, parece preservar-se.


Usando-a, não se desgasta.

19
A imagem de um vale é, para os chineses, o vazio entre duas montanhas.
A origem do mundo, anterior a ele, onde o ‘um’ e o ‘dois’ se juntam e se separam. Como o útero, é vazia
20

mas prolífica.

27
28
7.

O céu perdura, a terra subsiste.


Se céu e terra conseguem durar
é porque não vivem para si mesmos.
Assim, conseguem viver longamente.

Por isso, o sábio,


põe-se atrás mas fica à frente,
põe-se de fora mas preserva-se.

Não será por ser desinteressado


que consegue cumprir os seus interesses?

29
30
8.

Ser supremamente bom (shan)21 é ser como a água22.

A água é boa a (shan) beneficiar os dez mil seres


sem entrar em conflito
e a colocar-se nos lugares
que todos os homens desprezam.

Assim,
quem se aproxima do dao,
quanto à posição, é bom a (shan) pôr-se na base.
Quanto ao coração-mente, é bom a torná-lo profundo.
Quanto às relações, é bom a ser benevolente23.
Quanto à palavra, é bom a ser fiável.
Quanto à governação, é bom a estabelecer a ordem.
Quanto a tratar de assuntos, é bom a ser competente.
Quanto à movimentação, é bom a ser oportuno.
E porque não entra em conflito
não comete falhas.

21
善 shan, além de significar “bem” e “bom”, também significa “ter competência para”, “saber”, no sentido
de “ser bom a” efectuar algo. É neste sentido não moralizador que o termo é aqui utilizado. E é este tipo de
conhecimento que é valorizado.
22
A água é o símbolo máximo da maleabilidade. A tudo se adapta e contorna os obstáculos, por isso nada
a pode impedir de chegar ao seu destino (cf. capítulo 78).
23
A benevolência do adepto do dao não é mundana, mas resulta da não-interferência, da recusa de
favoritismo.

31
32
9.

Encher até transbordar


é pior do que parar a tempo.

Uma espada que amiúde se afia


não poderá durar sempre.

Salas repletas de ouro e jade


ninguém as consegue defender.

Aquele que se ufana de riquezas e honrarias


para si próprio atrai desaires24.

Cumpridas as tarefas é altura de se retirar


- eis o dao do céu.

24
Todo o excesso, todo o reforço, provoca o seu contrário.

33
34
10.

Quando as tuas almas celestes (營 ying)


e as tuas almas terrestres (魄 po)25
abraçam o um26,
consegues não as apartar?

Quando concentras o sopro (氣 qi)


e atinges a maleabilidade27,
consegues ser um recém-nascido28?

Quando limpas a tua visão profunda


consegues que não se manche?

Quando cuidas do povo e governas o país


consegues a não-acção (wuwei)29?

Quando as portas celestes se abrem e fecham30


consegues não ter fêmea31?

Quando a tua lucidez embranquece as quatro direcções


consegues o não-conhecimento32?

25
Referência às sete almas terrestres (魄 po, “almas osso”) e às três almas celestes (魂 hun ou 營 ying,
“almas nuvem”). As primeiras são yin, almas da parte sólida do corpo, que são destrutivas e de natureza
diabólica (鬼 gui); as segundas são yang e têm funções reguladoras, de disciplinar as almas po na sua luta
para regressar à Terra. Da união de po e hun nasce a vida humana. No momento da morte, separam-se umas
das outras.
26
O ‘um’ é o dao enquanto princípio de unidade do mundo. O ‘um’ faz com que cada coisa seja ela mesma
e, de acordo com as suas características, ocupe o lugar (sempre transitório, todavia) que lhe é próprio (cf.
capítulo 39).
27
Alusão às técnicas de controlo respiratório tendo em vista alcançar a longevidade. A maleabilidade é
companheira da vida (cf. capítulo 76).
28
Sobre o recém-nascido, ver o Prefácio da tradutora.
29
Sem-acção.
30
Os comentadores dividem-se quanto ao significado das portas celestes. Segundo uns, trata-se dos orifícios
corporais; segundo outros, das portas por onde entram e saem as existências; ou das vicissitudes ora
favoráveis ora adversas da Natureza, pois “celeste” tem também o significado de “natural”; e também da
Porta do Céu por onde descende o yang, o princípio masculino – daí a necessidade de renunciar à fêmea.
31
能無雌乎 neng wu ci hu, na versão de Wang Bi. Todavia, outras versões em chinês apresentam 能為雌
乎 neng wei ci hu (poderias tornar-te fêmea?).
32
無知 wu zhi: sem-conhecimento. O estado ideal da mente vazia, em que esta fica submergida numa luz
branca. No seio da escola do dao não se valoriza o conhecimento que se obtém quando um sujeito exerce
as suas faculdades mentais perante um objecto, de modo a captar pela abstracção as determinações deste
último. Valoriza-se um conhecimento que nos torna parte do processo do dao através de uma prática
continuada. Wu zhi é esse conhecimento adquirido através da experiência em que se atinge a dada altura
um estado de fluência, isto é, a sua execução torna-se natural, livre de toda a consciência, porque se
desaprendeu o que foi aprendido. É o conhecimento que peixes e aves exibem quando tão bem nadam ou
voam, sem para isso precisar de pensar ou investigar. Este tipo de conhecimento torna-nos bons a (善 shan)
executar algo, como o grande instrumentista a tocar ou o grande pintor a pintar. E é um conhecimento que
se demonstra, não se comunica.

35
A gerar e nutrir,
a gerar sem possuir,
a efectuar sem reter,
a chefiar sem oprimir,
é o que se chama o poder profundo (玄德 xuan de).

36
37
11.

Na roda, trinta raios convergem para o cubo.


É do não-manifesto (無 wu)33 que o veículo recebe a sua utilidade.

Molda-se o barro para fazer recipientes (器 qi).


É do não-manifesto (wu) que os recipientes recebem a sua utilidade.

Escavam-se portas e janelas para fazer um quarto.


É do não-manifesto (wu) que o quarto recebe a sua utilidade.

Assim,
o manifesto (有 you)34 torna acessível,
o não-manifesto (wu) torna útil35.

33
無 wu, “sem”, “não ter”, “não haver”, o indiferenciado. Neste caso, a parte vazia.
34
有 you, “com”, “ter”, “haver”, o diferenciado. Neste caso, a parte cheia, tangível, corpórea. Sobre wu e
you ver o Prefácio da tradutora.
35
Eficaz.

38
39
12.

As cinco cores cegam os olhos do homem.


As cinco notas ensurdecem o seu ouvido.
Os cinco sabores deterioram a sua boca. 36
Corridas e caçadas enlouquecem a sua mente.
Bens difíceis de obter levam-no à má conduta.

Por isso, o sábio


dedica-se ao ventre37
e não ao olho.
Rejeita “isso aí” e prefere “isto aqui”38.

36
As cinco cores (verde, vermelho, branco, preto, amarelo), as cinco notas (a escala dos antigos chineses
era pentatónica) e os cinco sabores (ácido, amargo, acre, salgado e doce): a multiplicidade de cores, notas
musicais e sabores.
37
O ventre é a sede do sopro vital, qi.
38
Rejeita o exterior (os olhos estão virados para o exterior) e prefere o interior (o ventre, sede do qi).

40
41
13.

“O favoritismo humilha como um susto.”

“Valoriza as grandes catástrofes


como o próprio corpo (身 shen)”.

Que significa “o favoritismo humilha


como um susto”?
O favoritismo rebaixa,
obtê-lo é como um susto,
perdê-lo é como um susto.
É o que significa
“o favoritismo humilha
como um susto.”39

Que significa “valoriza as grandes catástrofes


como o próprio corpo”?
Se passamos por grandes catástrofes
é porque temos corpo.
Se não tivéssemos corpo
por que catástrofes passaríamos? 40

Assim,
aquele que valoriza tomar o mundo (tian xia)
como seu corpo
pode encarregar-se do mundo.

Aquele que aprecia tomar o mundo


como seu corpo
pode gerir o mundo.

39
O favoritismo implica estabelecer distinções. Ora, elevar alguém é, na verdade, condená-lo ao
rebaixamento. Colocar-se no alto é acabar por ficar por baixo (cf. capítulos 39 e 42).
40
Concomitância entre corpo e mundo: reenviam ambos um para o outro. Daí que se deva fazer do mundo
o próprio corpo e valorizar as suas catástrofes como se tivessem lugar no nosso corpo. O corpo é imagem
do mundo e vice-versa.

42
43
14.

Olha-se e não se vê,


chama-se indistinto.
Escuta-se e não se ouve,
chama-se silencioso.
Toca-se e não se apanha,
chama-se subtil.
Este trio não é decifrável
pois funde-se numa unidade41.

A parte de cima não é luminosa.


A parte de baixo não é penumbrosa.

Ininterrupto!
Inominável!
De novo regressa
para onde não há seres (wu wu).

É a forma sem forma,


a imagem sem imagem.
É o nebuloso e obscuro.

Enfrenta-se
e não se lhe vê a face.
Persegue-se
e não se lhe vêem as costas.

Tomar o dao da antiguidade


para conduzir o presente
e conseguir conhecer a antiga origem
é o que se chama iniciação42 no dao.

41
O dao é irredutível à análise. A análise é cisão.
42
À letra, “encontrar o fio à meada”.

44
45
15.

Aqueles que, na antiguidade,


eram bons (shan) a ser mestres (士 shi)43
penetravam no subtil, no fluxo oculto, na obscuridade.
Tão profundos que não se podiam entender!

Como não se podiam entender


só a custo se descreve a sua aparência:
ah! Cautelosos, como quem atravessa um rio no Inverno!
Vigilantes, como quem receia todos os vizinhos!
Circunspectos, como um hóspede!
Evasivos, como gelo que derrete!
Autênticos, como madeira em bruto (樸 pu)!
Extensos, como um vale!
Perturbantes, como água turva!

Eram quem conseguia,


na turvação, aquietar-se
e ir tornando-se límpido.

Eram quem conseguia,


na imobilidade, movimentar-se
e ir emergindo.

Os que conservam este dao


não desejam ficar cheios.
E é porque não desejam ficar cheios
que são capazes de escapar
à não-renovação.

43
Existem versões chinesas onde, em vez de shi, mestres, surge dao zhe, adeptos do dao. De qualquer modo,
trata-se dos adeptos do dao.

46
47
16.

Atingir o extremo vazio (虛 xu).


Manter uma quietude tenaz.
Dos dez mil seres que vão surgindo lado a lado
contemplemos o seu retorno (復 fu).

Os seres são uma multidão imensa


mas cada um regressa à sua raiz.

Regressar à raiz é quietude.


Quietude é retornar ao destino.
Retornar ao destino é permanência (常 chang).

Conhecer a permanência é lucidez (明 ming)44


e não conhecer a permanência é correr às cegas para o desastre.

Conhecendo a permanência é-se longânime.


Sendo longânime é-se imparcial.
Sendo imparcial é-se régio45.
Sendo régio é-se celeste46.
Sendo celeste está-se no dao.
Estando no dao dura-se muito
e até ao fim da vida não se corre perigos.

44
明, ming, o caracter onde se juntam o Sol e a Lua, significa luz, iluminação, claridade, boa visão e
compreensão, clarividência, lucidez. Designava ainda a manifestação superior do sopro vital.
45
Existem versões chinesas onde, em vez de 王 wang, rei, soberano, surge 全 quan, “completo”, “inteiro”,
“perfeito”. O caracter 王 wang simboliza alguém que é o intermediário entre o céu e a terra. O traço
horizontal superior do caracter simboliza o céu e o traço horizontal inferior simboliza a terra. O traço
horizontal mediano indica o soberano e o traço vertical o elo de ligação.
46
“Celeste” tem também o significado de “natural”.

48
49
17.

Do maior dos soberanos


nem se sabe que existe47.
Depois, vem aquele que é querido e elogiado.
A seguir, aquele que é temido.
Por último, aquele que é insultado,
pois quando não se confia o bastante48
recebe-se desconfiança!

Mas ele49 hesita, valoriza as palavras50!


As tarefas são cumpridas,
os assuntos encaminhados
e toda a gente diz:
nós somos assim naturalmente (自然 ziran)51!”

47
Outras traduções preferem “é aquele cuja existência é apenas conhecida”.
48
Logo, submerge-se o povo em ordens e leis.
49
O maior dos soberanos.
50
Logo, dá poucas ordens. A verdadeira ordem realiza-se sem constrangimentos e ordens exteriores.
51
O povo convence-se de que foi tudo obra sua. 自然 ziran (à letra, ‘assim por si’) remete para a noção de
espontaneidade, de ser assim naturalmente, sem qualquer pressão externa. O ziran de todas as coisas, o
cumprimento de si próprias, é voltar atrás até à origem.

50
51
18.

Quando o grande dao foi negligenciado


surgiu a benevolência e a justiça.
Quando emergiram intelecto e inteligência
surgiu a grande falsidade.
Quando as seis relações52 não se harmonizaram
surgiu o dever filial e o afecto paternal.
Quando o país caiu no caos
surgiram ministros leais53.

52
Relação do pai para com o filho; do marido para com a mulher; do irmão mais velho para com o irmão
mais novo - e reciprocamente.
53
Benevolência, justiça, falsidade, dever filial, afecto paternal, lealdade, surgiram porque apareceram
primeiro os seus contrários-complementares, com quem formam um par indissociável (cf. capítulo 2 e o
seguinte). São imposições exteriores que resultam da negligência em relação ao dao. No dao, os seres
cumprem por si a natureza que lhes é própria.

52
53
19.

Acabar com o saber, repudiar o intelecto


- o povo beneficiará cem vezes mais.
Acabar com a benevolência, repudiar a justiça
- o povo retornará ao dever filial e ao afecto paternal.
Acabar com o engenho, repudiar o lucro
- não haverá assaltantes e ladrões.

Este trio é insuficiente como prescrição.


Assim, há que subordiná-lo ao seguinte:
mostrar-se simples, abraçar a autenticidade (樸 pu)54,
reduzir o egoísmo e eliminar o desejo.

54
樸 pu significa originalmente madeira em bruto, que não foi trabalhada.

54
55
20.

Acabar com o estudo – não haverá preocupações.

Entre “sim” e “mh-mh”


quanta diferença há?
Entre “bem” e “mal”
qual é a diferença?
“Não é possível não recear
tudo quanto os homens receiam”
- que absurdo sem fim!

Anda toda a gente radiante,


como se se banqueteassem no Tailao55
ou como se subissem ao Miradouro da Primavera56.
Oh, só eu me alheio, não emito sinais,
como os recém-nascidos que ainda não sorriem!
Errante, como quem não tem para onde regressar!

Toda a gente tem em excesso,


só eu pareço estar em perda.

Que ignorante mente a minha!


Que confusa!

A maioria das pessoas é tão esclarecida,


apenas eu pareço obscurecido.
A maioria das pessoas é tão perspicaz,
apenas eu sou reservado.

Oh, indefinido como a escuridão!


Solitário, como quem não tem onde parar! 57

Toda a gente tem aptidões,


só eu sou idiota como um incapaz!

Só eu sou diferente dos demais


porque dou valor a nutrir-me na Mãe.

55
太牢 tailao, ritual operado pelo Filho do Céu no qual se sacrificavam bois, carneiros e porcos às
divindades e ao qual se seguia um banquete.
56
Devido a uma inversão de dois caracteres, outra versão em chinês traduz-se “ou, na Primavera, subissem
ao miradouro.”
57
Outras versões em chinês traduzem-se por “Oh, imenso como o mar! / Infindável, como a ventania que
não para!”

56
57
21.

A característica do grande poder (德 de)


é seguir apenas o dao.

O dao é uma coisa


nublada e obscura.

Oh, obscura e nublada


mas no seu centro há imagem (象 xiang)!

Nublada e obscura
mas no seu centro há ocorrências (物 wu)!

Recôndita e secreta
mas no seu centro há energia (精 jing)!

E essa energia é tão genuína


que no seu centro há fiabilidade (信 xin)!

Desde a antiguidade até agora


o seu nome não desapareceu
para que fosse entrevisto o gérmen de tudo.
E através de quê é que sei como é o gérmen de tudo?
Através “disto aqui”!

58
59
22.

Dobra-se e, assim, fica inteiro.


Curva-se e, assim, endireita-se.
Esvazia-se e, assim, renova-se.
Escasseia e, assim, obtém-se.
Abunda e, assim, perde-se.

Por isso, o sábio,


abraçando o ‘um’
torna-se no modelo do mundo.

Não se exibe e, assim, luz (明 ming).


Não se afirma e, assim, sobressai.
Não se envaidece e, assim, tem mérito.
Não se vangloria e, assim, chefia.

E porque não entra em conflito


ninguém no mundo pode
entrar em conflito com ele.

O que os antigos diziam,


“dobra-se e, assim, fica inteiro”,
não são palavras vazias.
Regressa mesmo à inteireza.

60
61
23.

Parcas palavras são conforme o natural (ziran).


Uma ventania não dura
a manhã toda.
Uma chuvada não dura todo um dia.

E quem as faz?
Céu e terra.
Se nem céu e terra
conseguem tornar nada duradouro,
como o conseguiria o homem?

Assim, quem trata dos assuntos


através do dao, junta-se no dao aos adeptos do dao (道者 dao zhe);
junta-se no poder aos adeptos do poder (德者 de zhe);
junta-se na perda aos perdedores.58

Juntando-se aos adeptos do dao,


o dao aceita-o com alegria.
Juntando-se aos adeptos do poder,
o poder aceita-os com alegria.
Juntando-se aos perdedores,
a perda aceita-o com alegria.

Quando não se confia o bastante


recebe-se desconfiança!

58
O adepto do dao não exclui os perdedores, os homens que não são bons - em todos confia (cf. capítulos
27, 49, 62 e 79).

62
63
24.

Quem se põe em bicos de pés não se equilibra.


Quem distende as pernas não avança.
Quem se exibe não luz.
Quem se afirma não sobressai.
Quem se envaidece não tem mérito.
Quem se vangloria não chefia.

No dao, chamam-lhes
restos de comida e excrescências
que a todos repugnam.

O adepto do dao não é assim.

64
65
25.

Havia uma coisa toda completa59


anterior ao nascimento do céu e da terra.
Isolada! Ilimitada!
Autónoma e inalterável
movendo-se em círculo sem parar!

Pode ser considerada a Mãe do mundo.

Eu não sei o seu nome,


designo-a por dao.
Um nome forçado
será ‘grande’.

Grande, para dizer que se expande.


Expande-se, para dizer que se distancia.
Distancia-se, para dizer que volta atrás (反 fan).

Assim,
o dao é grande,
o céu é grande,
a terra é grande,
o rei60 também é grande.
No espaço há quatro grandes,
um deles é o rei.

O homem regula-se pela terra.


A terra regula-se pelo céu.
O céu regula-se pelo dao.
O dao regula-se por si naturalmente (ziran).

59
Outras versões em chinês traduzem-se por: “caótica e completa” ou “em completo caos”.
60
Existem versões em chinês onde, ao invés de 王 wang, “rei”, “soberano”, surge 人 ren, “ser humano”. A
noção de ser humano na sua dimensão arquetípica e cósmica está estreitamente ligada ao ser humano único
que era o soberano, aquele que podia comunicar directamente com o céu e os espíritos.

66
67
26.

O peso é a raiz da leveza.


A quietude é o amo da agitação.

Por isso, o sábio


viaja todo o dia
sem aliviar o peso do carroção.

Perante visões de glória


e opulência
permanece indiferente.

Como pode o dono das dez mil carruagens61


no seu próprio corpo encarar o mundo com leveza?62

Leve, perderá a raiz.


Agitado, perderá o amo.

61
Indica o soberano de um grande país.
62
Levando uma vida de excessos, abusando do próprio corpo, o soberano está, simultaneamente, a
negligenciar o país (cf. capítulos 13 e 75; e nota 66).

68
69
27.

Ser bom (善 shan) a caminhar é sem deixar rasto.


Ser bom a falar é sem mácula ou defeito.
Ser bom a contar é sem usar varetas.63
Ser bom a fechar é sem usar tranca
mas não se consegue abrir.
Ser bom a amarrar é sem usar corda
mas não se consegue desatar.

Por isso, o sábio


é bom a salvar os homens.
Assim, nenhum é enjeitado.
É bom a salvar os seres (物 wu).
Assim, nenhum é enjeitado.

É o que se chama retomar a lucidez.

Assim, os homens que são bons (善人 shan ren)


são os professores dos que o não são.
Os homens que não são bons
são o encargo daqueles que o são.

Não valorizar os seus professores,


não estimar os seus encargos
é julgar-se inteligente64 mas estar desorientado.

É o que se chama captar o fluxo oculto (要妙 yao miao).

63
Usavam-se pequenas varetas de bambú como instrumento de cálculo.
64
Neste texto em chinês surge, erradamente, 知 ao invés do seu homófono 智.

70
71
28.

Conhecer o macho,
preservar a fêmea,
é tornar-se na ravina do mundo.
Tornando-se na ravina do mundo,
o poder que permanece não se aparta
e de novo se regressa a recém-nascido.

Conhecer o branco,
manter o negro,
é tornar-se no modelo do mundo.
Tornando-se no modelo do mundo,
o poder que permanece não se desvia
e de novo se regressa ao sem-limite.

Conhecer a glória,
manter a humildade,
é tornar-se no vale do mundo.
Tornando-se no vale do mundo,
o poder que permanece é bastante
e de novo se regressa à madeira em bruto (樸 pu)65.

A madeira em bruto (pu) é despedaçada


para se tornar em instrumentos (器 qi).
E o sábio é utilizado66
para se tornar chefe dos governadores67.
Porque o grande produtor
não corta.

65
À autenticidade, ao dao.
66
À madeira em bruto, isto é, o dao.
67
官 guan: governadores, oficiais, mas também “órgãos corporais”. O corpo humano é a imagem de um
país na sua geografia e administração, e vice-versa: o país é a imagem do corpo humano.

72
73
29.

Quem desejar ganhar o mundo


e, para isso, agir,
vejo que não o conseguirá.
O mundo é um recipiente sagrado
sobre o qual não se pode agir!

Quem age, falha.


Quem agarra, perde.

Assim, os seres (物 wu)


ora seguem à frente, ora seguem atrás,
ora respiram com leveza, ora respiram com esforço,
ora são fortes, ora são débeis,
ora consertam, ora destroem.

Por isso, o sábio


rejeita os extremos,
rejeita a demasia,
rejeita o excesso.

74
75
30.

Quem com o dao assiste um governante


não se impõe no mundo através das armas.
Esse feito virar-se-á contra ele.

Onde esteve um exército


nascem cardos e espinhos.
Após grandes batalhas
decerto se seguem anos terríveis.

Homem que é bom no que faz (善者 shan zhe)


uma vez bem sucedido,
pára,
não se atrevendo a alimentar
a sua força.

Bem sucedido, mas não se vangloria.


Bem sucedido, mas não se envaidece.
Bem sucedido, mas não se orgulha.
Bem sucedido, mas considera que o foi por não ter alternativa.
Bem sucedido, mas não exibe a sua força.

Os seres (物 wu), ao se fortificarem, logo envelhecem.


É o que se chama negar o dao.
O que nega o dao cedo perece.

76
77
31.

Ainda que belas, as armas são instrumentos funestos


que a todos repugnam.
Assim, o adepto do dao
não se acerca delas.

Na morada do homem nobre (君子 junzi)


honra-se a esquerda.
Na guerra
honra-se a direita.

As armas são instrumentos funestos,


não são instrumentos do homem nobre.
Só não tendo alternativa as usará,
pois põe acima o sossego e a placidez.

Vitorioso, mas não se regozija.


Aquele que se regozija
alegra-se por matar homens.
Aquele que se alegra por matar homens
não poderá realizar a sua ambição no mundo.

Em acontecimentos auspiciosos
preza-se a esquerda.
Em acontecimentos nefastos
preza-se a direita.

O vice-comandante posiciona-se à esquerda,


o comandante supremo à direita.
Quer dizer, as posições vão a par
com as dos ritos funerários.

O massacre de inúmeros homens


é carpido com dor.

A vitória numa batalha


vai a par com ritos funerários.

78
79
32.

O dao permanece sem nome,


autêntico (pu)68 e, embora pequeno,
o mundo não ousa subjugá-lo.

Se senhores69 e reis
se conseguissem nele manter,
os dez mil seres (物 wu) obedeceriam por si próprios
e céu e terra unir-se-iam
para que caísse um doce orvalho.
Os homens, sem decretos, mas por si próprios,
nivelar-se-iam.

Começada a produção70
surgiram os nomes.
Uma vez surgidos os nomes
há que saber onde parar.
Sabendo parar
então não haverá perigo71.

O mundo em relação ao dao


é como os ribeiros e riachos a rumar
para os rios e os mares.

68
Madeira em bruto.
69
侯 hou. Título honorífico da antiguidade chinesa.
70
Da multiplicidade e da diferença.
71
Neste texto chinês surge, erradamente, 始 em vez de 殆.

80
81
33.

Quem conhece os homens é inteligente.


Quem se conhece a si próprio é lúcido (明 ming).

Quem vence os homens tem força.


Quem se vence a si próprio é forte.

Quem sabe ter quanto baste é rico.


Quem é persistente tem ambição.

Quem não perde o seu lugar dura muito.


Quem morre mas não termina tem longevidade.

82
83
34.

O grande dao – que inundação!


Pode estar à esquerda e à direita.
Os dez mil seres dependem dele para viver
mas ele não interfere.
Cumpridas as tarefas, não o proclama72.

Cuida e alimenta73 dos dez mil seres


mas não se torna seu dono;
permanece sem desejos
- pode-se chamá-lo pequeno.
Os dez mil seres a ele regressam
mas não o sabem seu dono74
- pode-se chamá-lo grande.

Por isso, o sábio


jamais se engrandece.
Assim, pode cumprir a sua grandeza75.

72
名有 ming you, proclamar. Outras versões em chinês apresentam 不有 bu you, “sem possuir”, ou 不局
bu ju, “sem se considerar meritoso”.
73
Outra versão em chinês traduz-se por “veste e alimenta”.
74
Outra versão em chinês repete “mas não se torna seu dono”.
75
Os caracteres 是以聖人 shi yi shengren, “por isso, o sábio” não surgem noutras versões em chinês, que
terminam com “E como jamais se engrandece / pode cumprir a sua grandeza.”

84
85
35.

Àquele que retém a grande imagem76


o mundo acorrerá.
Acorrerá e não será prejudicado,
mas acalmado, apaziguado e serenado.

Música e manjares
fazem parar aquele que passa.

Mas o dao que sai da boca para fora


é insípido! Sem sabor!

Olhá-lo não basta para o ver.


Escutá-lo não basta para o ouvir.
Usá-lo não basta para o desgastar.

76
A imagem sem imagem que contém e gera todas as imagens: o dao.

86
87
36.

Quando se deseja encolher


há que primeiro esticar.
Quando se deseja amolecer
há que primeiro enrijecer.
Quando se deseja eliminar
há que primeiro fazer prosperar.
Quando se deseja retirar
há que primeiro oferecer.

É o que se chama iluminar (明 ming) o subtil.

A maleabilidade vence a rigidez.


A flexibilidade vence a rijeza.

Os peixes não podem


deixar as profundezas.
Os instrumentos eficazes de um país77
não podem ser revelados aos homens.

77
Os governantes, as suas “armas” no sentido figurado e literal, mas também os órgãos corporais, o “país”
indicando o “corpo”.

88
89
37.

O dao permanece não activo,


mas nada há que não efectue.

Se senhores e reis
se conseguissem nele manter,
os dez mil seres por si próprios evoluiriam (化 hua)78.
Se, ao evoluírem, surgissem desejos,
refreá-los-iam através da autenticidade (pu)79 sem nome.
A autenticidade (pu) sem nome fá-los-ia não desejar.
Não desejando, aquietar-se-iam
e o mundo corrigir-se-ia80 por si próprio.

78
化 hua é o movimento do yin e do yang, do wu e do you, da vida e da morte. Evolução e mutação é o
próprio movimento natural do mundo, na sua perpétua regeneração (cf. capítulo 29).
79
Madeira em bruto.
80
正 zheng, corrigir. Outras versões em chinês apresentam 定 ding, estabilizar e, em vez de “o mundo”
apresentam “os dez mil seres” ou “o céu e a terra”.

90
91
38.

O poder (de) supremo não é poderoso (de).


Por isso, tem poder.
O poder inferior não se afasta dos poderes.
Por isso, não tem poder.

O poder supremo não age (wuwei)


e não tem objectivos.
O poder inferior [não] age81
mas tem objectivos.

A benevolência suprema age


mas não tem objectivos.
A justiça suprema age
mas tem objectivos.

O rito supremo age e,


não havendo resposta, arregaça as mangas e insiste.

Assim, afastado o dao, vem atrás o poder (de),


perdido o poder (de), vem atrás a benevolência,
perdida a benevolência, vem atrás a justiça,
perdida a justiça, vêm atrás os ritos.

Os ritos são fachada de lealdade e confiança


e começo da desordem.

A previsão é um adorno do dao


e o início da ignorância.

Por isso, o grande homem


acerca-se do fundo,
não se acerca da superfície;
acerca-se do âmago,
não se acerca do adorno.
Rejeita “isso aí” e prefere “isto aqui”.

81
下德為之 xia de wei zhi, “O poder inferior age”, torná-lo-ia idêntico à justiça, o que não seria coerente.
Por isso, foi adoptada antes neste passo outra versão em chinês que apresenta 下德無為 xia de wu wei, “O
poder inferior não age”. O poder supremo não age, não tem objectivos, não exibe poder, por isso, tem poder.
O poder inferior não age mas fá-lo interesseiramente, com um objectivo, para ter poder. Por isso, não o tem.

92
93
39.

Aquilo que, no passado, alcançou o um:


o céu que, ao alcançar o um,
se tornou límpido;
a terra que, ao alcançar o um,
se tornou estável;
os espíritos82 que, ao alcançarem o um,
se tornaram mágicos;
os vales que, ao alcançarem o um,
se tornaram fartos;
os dez mil seres que, ao alcançarem o um,
se tornaram férteis;
os senhores e reis que, ao alcançarem o um,
se tornaram nos exemplos do mundo.
Eles atingiram o um.

O céu, sem limpidez, desmoronar-se-ia.


A terra, sem estabilidade, desabaria.
Os espíritos, sem magia, desvanecer-se-iam.
Os vales, sem fartura, secariam.
Os dez mil seres, sem fertilidade, extinguir-se-iam.
Os senhores, sem exemplaridade e valorizando o alto, decairiam.

Assim, o valioso tem no depreciável a sua raiz


e o alto tem no baixo a sua fundação.

É por isso que senhores e reis


a si próprios se intitulam
“desamparado”, “insignificante” e “sem préstimo”83.
Isto não é tomar o depreciável como raiz?

Assim, numerosos louvores não contêm louvor.

Não desejar cintilar como o jade


mas ser fosco como a pedra.

82
神 shen, originalmente, a mais pura das almas celestes de que o ser humano é dotado. Os dez mil seres
compõem-se da união dos sopros celestes (yang) e terrestres (yin) que se juntam no centro (entre terra e
céu), quando os primeiros descendem (movimento yin) e os segundos ascendem (movimento yang). Ver
nota 114.
83
Era costume dos governantes da antiguidade chinesa designarem-se a si próprios deste modo.

94
95
40.

Voltar atrás (fan) é o movimento do dao84.


A flexibilidade é o seu efeito.

Os seres do mundo
nascem do manifesto (you).
O manifesto (you) nasce do não-manifesto (wu)85.

84
Sobre 反 fan, ver o Prefácio da tradutora. Este movimento está na origem de várias técnicas de cariz
fisiológico praticadas pelos adeptos do dao, como inverter a respiração, fazer recuar o líquido seminal, etc.
A inversão do movimento cíclico teria como resultado a inversão do processo de envelhecimento.
85
Ver notas 32 e 33.

96
97
41.

Homem superior que ouve falar do dao


pratica-o com diligência.
Homem mediano que ouve falar do dao
ora o recorda ora o esquece.
Homem inferior que ouve falar do dao desata a rir.
Se não rir é porque não se trata ainda do dao.

Assim, existem os adágios:


o luminoso dao parece sombrio,
o dao que avança parece recuar,
o liso dao parece rugoso,
o poder superior parece um vale,
a grande brancura parece manchada,
o poder imenso parece insuficiente,
o poder empreendedor parece indolente,
a rectidão pura parece instável,
o grande quadrado não tem ângulos,
o grande recipiente tarda a aprontar-se,
na grande nota escasseia o som,
a grande imagem não tem contorno86.

O dao é oculto e sem nome


mas só ele é bom (shan) a guarnecer87 e cumprir.

86
O dao revela-se sempre de maneira velada.
87
Outras versões em chinês apresentam 始 shi, “começar”.

98
99
42.

O dao gerou o um.


O um gerou o dois.
O dois gerou o três.
O três gerou os dez mil seres88.

Os dez mil seres


carregam às costas o yin
e levam ao colo o yang89.
O sopro (qi)90 inundante harmoniza-os.

O que aos homens repugna


é o desamparado, o insignificante e o sem préstimo,
mas reis e ministros
a si mesmos assim se designam.

Assim,
os seres, diminuindo-se, aumentam
e aumentando-se, diminuem.

O que os homens ensinam também eu ensino:


“o homem violento não morre de morte natural”.91
Será este o ponto de partida dos meus ensinamentos.

88
O um é o taiji, o cume supremo, origem do universo prestes a cindir-se no dois, o par yin e yang; o três
é o yin e o yang unificados pelo qi, o sopro. Dessa união harmónica nascem todos os seres. Sobre o sopro,
ver a nota 89.
89
陰 yin: o que é sombrio, passivo, retrogressivo, retractivo, receptivo, frio, água, Lua, desaparecimento e
morte; 陰 yang: o que é luminoso, activo, progressivo, expansivo, dador, calor, fogo, sol, nascimento e vida.
São “sopros” relativos e relacionais, não existem a não ser um com o outro, combinam-se e entrecruzam-
se em todas as coisas, num dinamismo de atracção e rejeição, de equilíbrio e tensão. O yin ou yang absolutos
não existem; o estado paroxístico do yin coincide com o retorno do yang e vice-versa /cf. capítulo 21).
90
O sopro (qi) é o dinamismo vital do mundo na sua constante regeneração e transformação. Tudo quanto
existe é o sopro particularizando-se em formas concretas. É a potência transformadora, a energia que anima
e que compõe essas formas determinadas.
91
A acção, e ainda mais a acção violenta, provoca retribuições (cf. capítulos 30 e 74).

100
101
43.

Aquilo que no mundo é mais maleável


sobrepõe-se àquilo que no mundo é mais duro.
O incorpóreo (無有 wu you) penetra no que é compacto.
É por isto que conheço as vantagens da não-acção92.

O ensino em que não se fala


e as vantagens da não-acção93,
raros, no mundo, os encalçam.

92
Sem-acção.
93
Sem-acção.

102
103
44.

Renome ou vida (身 shen): qual o mais querido?


Vida ou bens: qual vale mais?
Ganho ou perda: qual o mais errado?

Assim, um cálculo exacerbado


decerto implica grandes custos
e muita poupança
decerto implica enormes perdas.

Saber ter quanto baste


é não se desgraçar.
Saber parar
é não correr perigos
e poder durar muito tempo.

104
105
45.

A grande completude parece inacabada


mas o seu uso não se esgota.
A grande plenitude parece um vácuo (冲 chong)
mas o seu uso não termina.

A grande rectidão parece torcida.


A grande habilidade parece desajeitada.
A grande eloquência parece titubeante.

A agitação vence o frio


mas a quietude vence o calor.

A quietude é a norma do mundo.

106
107
46.

Quando o mundo tem dao


os corcéis fertilizam os campos.
Quando o mundo não tem dao
os cavalos do exército são criados nos subúrbios.

Não há maior aflição do que muito desejar.


Não há maior infortúnio do que não saber ter quanto baste.
Não há maior desaire do que desejar obter.

Assim,
saber ter quanto baste
é ter sempre bastante.

108
109
47.

Não sair da porta


e conhecer o mundo.
Não espreitar pela janela
e ver o dao do céu.

Quem mais longe vai


é quem menos conhece.

Por isso, o sábio


não viaja, mas conhece,
não vê, mas nomeia94,
não age, mas cumpre.

94
名 , ming, nomear. Há comentadores que defendem que se trataria antes do seu homófono 明 ,
compreender. O caracter 名 é composto por 夕, noite, e 口, boca. Dado que no escuro da noite não é possível
distinguir pessoas ou objectos, há que usar a boca para os nomear. “Não vê mas nomeia”, no sentido de
“mas identifica”, parece, pois, seguir a mesma ordem de ideias do verso anterior e do verso seguinte.

110
111
48.

O estudo
é uma acumulação diária.
O dao
é um diário despojamento.

Despojar-se e tornar a despojar-se


até chegar à não-acção.
Agindo pela não-acção95
nada há que se não efectue.

Assim, quem ganha o mundo


nunca tem afazeres.
Quem tiver afazeres
não chegará a ganhar o mundo.

95
Sem-acção.

112
113
49.

O sábio não tem coração que permaneça.


Faz do coração de toda a gente o seu coração.

É bom para quem é bom.


Para quem não é bom
é bom também.
Porque o poder é ser bom.

Fia em que é fiável.


Em quem não é fiável
fia também.
Porque o poder é fiável.

O homem de sabedoria96 no mundo


apaga-se, anula-se.
A favor do mundo
oculta o seu coração.

Toda a gente concentra


ouvidos e olhos97.

O sábio a todos perfilha.

96
賢人 xian ren. A maioria das versões em chinês apresenta 聖人 shengren, o sábio.
97
Concentram os ouvidos e os olhos para tentar ouvir e ver o sábio. Existem versões chinesas onde esta
frase não aparece.

114
115
50.

Sair da vida e penetrar na morte:


em cada dez homens
há três companheiros da vida;
em cada dez homens
há três companheiros da morte;
aqueles cuja vida
se move para o lugar da morte
também são três em cada dez.
Porque será?
Porque vivem uma vida de excessos.

Diz-se que aquele que é bom a (shan) cultivar a vida


caminha em terra e não encontra rinocerontes ou tigres.
Penetra numa batalha e não evita armaduras e armas98.
Os rinocerontes não acham nele sítio
onde enterrar os chifres.
Os tigres não acham nele sítio
onde cravar as patas.
As armas não acham nele sítio
onde espetar as lâminas.
Porque será?
Porque nele nenhum lugar é mortal.

98
Outra tradução possível é “Entra no exército sem carregar armadura ou arma”.

116
117
51.

O dao gera-os.
O poder nutre-os.
Os eventos (物 wu) dão-lhes forma.
O ambiente completa-os.

Por isso, entre os dez mil seres,


não há um que não venere o dao
e valorize o poder.

A veneração do dao
e a valorização do poder
não são imposição de ninguém.
Permanecem assim naturalmente (ziran).

Assim, o dao gera-os, nutre-os99,


fá-los crescer e por eles zela,
abriga-os, amadurece-os,
alimenta-os e agasalha-os.

A gerar mas não possuir,


a efectuar mas não reter,
a chefiar mas não oprimir
é o que se chama o poder profundo.

99
Existem versões em chinês que se traduzem: “Assim, o dao gera-os. / O poder nutre-os”, como acontece
nos dois primeiros versos.

118
119
52.

O mundo teve uma origem.


É a Mãe do mundo.

Aquele que, alcançada a Mãe,


conhecer o seu filho
e, conhecido o seu filho,
tornar a (復 fu) conservar a Mãe100
até ao fim da vida não corre perigos.

Bloqueando os orifícios,
fechando as portas101,
até finar-se não terá problemas.

Abrindo os orifícios,
multiplicando os afazeres,
até finar-se não terá salvaguarda.

Ver o pequeno é lucidez (明 ming).


Conservar a maleabilidade é força (強 qiang).

A usufruir dos brilhos


para de novo retornar à lucidez (明 ming)102
não atraindo sobre si calamidades
é o que se chama retomar a permanência.

100
A Mãe é o dao; o filho é o mundo.
101
Não tendo desejos, não agindo.
102
Paralelismo com o começo do capítulo. Os brilhos são o filho (o mundo), a luz é a Mãe (o dao).

120
121
53.

Se eu tivesse um grão de conhecimento


caminharia sobre o grande dao.
Só recearia dele me desviar.

O grande dao é bem plano


mas o povo gosta de atalhos.

As cortes estão bem limpas


mas os campos incultos
e os celeiros bem vazios!

Aos que envergam trajes magníficos,


portam espadas aceradas,
se enchem de vinho e manjares
e têm riquezas de sobra
é o que se chama os cabecilhas dos ladrões.

Não é o dao!

122
123
54.

O que foi bem implantado não se remove.


O que foi bem cingido não se arranca103.
Filhos e netos não cessam de prestar culto
aos seus antepassados 104.

Cultivado em si próprio, o seu poder torna-se genuíno (zhen).


Cultivado na família, o seu poder torna-se abundante.
Cultivado na comunidade, o seu poder torna-se crescente.
Cultivado no estado, o seu poder torna-se copioso.
Cultivado no mundo, o seu poder torna-se total.

Assim, através de si próprio


vê os outros;
através da sua família
vê as outras famílias;
através da sua comunidade,
vê as outras comunidades;
através do seu estado,
vê os outros estados;
através do seu mundo
vê o mundo.
E através de quê é que sei como o mundo é?
Através “disto aqui”!

103
Outras traduções optam por “não se escapa”, “não se tira”.
104
Porque se conserva viva a memória dos antepassados.

124
125
55.

Quem encerra um poder profundo


assemelha-se a um bebé.
Os répteis venenosos não o picam,
as feras não o assaltam
e as aves de rapina não o capturam.

Os seus ossos são frágeis


e os músculos maleáveis
mas agarra com firmeza.
Não conhece a união entre a fêmea e o macho
mas o seu membro viril ergue-se
pois a sua energia (精 jing) está no auge.
Chora todo o dia sem enrouquecer
pois a sua a harmonia está no auge.

Conhecer a harmonia é permanência.


Conhecer a permanência é lucidez.

Abusar da vida é funesto.


Servir-se a mente do sopro é reforçar-se (強 qiang)105.

Os seres, ao se fortificarem, logo envelhecem.


É o que se chama negar o dao.
O que nega o dao cedo perece106.

105
A mente deve esvaziar-se; não se encher.
106
Repetição do capítulo 30.

126
127
56.

Quem sabe não fala.


Quem fala não sabe.

Bloqueia os orifícios,
fecha as portas,
embota os gumes,
desfaz os nós,
harmoniza os brilhos,
junta as poeiras107:
é o que se chama comunhão profunda (玄同 xuan tong).

Assim,
está para lá de afinidade
ou estranheza;
está para lá de benefício
ou prejuízo;
está para lá de valorização
ou depreciação.

Assim, é valioso para o mundo.

107
Repetição do capítulo 4. Como sucede noutros capítulos, mais uma vez a figura do sábio é descrita de
maneira análoga ao dao.

128
129
57.

Pela norma se governa um reino.


Pela surpresa108 se faz a guerra.
Não tendo afazeres se ganha o mundo.

Através de quê é que sei como o mundo é? 109

No mundo, quantas mais são as interdições e proibições


mais o povo é pobre;
quantos mais instrumentos eficazes110 têm os homens
mais o país resvala no caos;
quanto mais astuciosos e engenhosos os homens
mais transgressões111 acontecem;
quanto mais evidentes as leis e as ordens
mais assaltantes e ladrões há.

Assim, diz o sábio:


eu não ajo
e o povo por si próprio evolui (化 hua);
aprecio a quietude
e o povo por si próprio se ordena;
não tenho afazeres
e o povo por si próprio se enriquece;
não tenho desejos
e o povo por si próprio se torna autêntico (pu)112.

108
奇 qi, o inesperado, o insólito, o contrário da norma.
109
Outras versões chinesas incluem a resposta “Através disto!”, como no capítulo 54.
110
Como as armas, em sentido literal ou figurado.
111
奇物 qi wu: eventos insólitos, anormalidades, transgressões à norma.
112
Madeira em bruto.

130
131
58.

Quando o governo é discreto


o povo é honesto.
Quando o governo é vigilante
o povo é matreiro.

O infortúnio é o assento da felicidade!


A felicidade é o recosto do infortúnio!
Quem saberá delimitá-los?
Não há norma aí,
pois o normal advém bizarro
e o bem advém maléfico.
A desorientação dos homens já vem de há longo tempo!

Por isso, o sábio,


esquadreja mas não corta,
aguça mas não golpeia,
endireita mas não constrange,
brilha mas não ofusca.

132
133
59.

No governo dos homens,


servindo o céu,
nada se compara à frugalidade.
Apenas à frugalidade
se chama entregar-se cedo113.

Entregar-se cedo
é acumular poder duplamente.
Acumulando poder duplamente
nada há que se não supere.
Nada havendo que se não supere
ninguém nos conhece limites.
Ninguém nos conhecendo limites
podemos possuir um país.
Possuindo a Mãe de um país
podemos durar muito tempo.

É o que se chama o dao


da raiz profunda e do solo firme,
da vida longa e da visão duradoura.

113
Ao dao.

134
135
60.

Governar um país
é como fritar pequenos peixes114.

Lidando com o mundo através do dao


os demónios (鬼 gui) não se fazem de espíritos (神 shen)115.
Não se fazendo de espíritos
os espíritos não maltratam os homens.
Não só os espíritos não maltratam os homens
como o sábio também não maltrata os homens.
E como ambos não se maltratam
o poder converge e regressa!

114
Não se pode virá-los e revirá-los constantemente sob pena de os desfazer, nem se pode dar mais atenção
a uns do que a outros. No governo de um grande país, o melhor é não tomar muitas iniciativas, não estar
constantemente a agir.
115
神 shen são os espíritos nos quais se torna a parte celeste, yang, da alma, 魂 hun, depois da morte. 鬼 gui
são os fantasmas nos quais se torna a parte terrestre, yin, da alma, 魄 po, depois da morte. As po devem ser
enterradas segundo as regras da geomancia chinesa, fengshui. Se não retornam adequadamente à terra
aquando do enterro, por exemplo, caso os ritos associados aos mortos não tenham sido levados a cabo pelos
descendentes de forma correcta ou se a morte se deveu a causas não naturais, as almas po tornam-se
fantasmas que amedrontam os humanos. Ver nota 24.

136
137
61.

Um grande país é um baixo fluvial,


a convergência do mundo,
a fêmea do mundo.

A fêmea, permanecendo quieta, triunfa sobre o macho


porque, pela quietude, se abaixa.

Assim,
um grande país,
ao se baixar perante um pequeno,
colhe-o.

Um pequeno país,
porque é baixo perante um grande,
é colhido.

Assim,
um, por se baixar,
colhe;
outro, porque é baixo, é colhido.

O grande país
não deseja senão anexar e prover.
O pequeno país
não deseja senão servir.

Ambos obterão o que desejam,


mas o grande tem de se baixar.

138
139
62.

O dao é o esconderijo dos dez mil seres,


o tesouro dos homens que são bons,
o abrigo dos que o não são.

Com belas palavras se pode mercar,


com uma conduta respeitosa se pode atrair pessoas. 116
Mas aqueles homens que não são bons (shan) nisso,
como há quem os enjeite?

Assim, na entronização do Filho do Céu117


e na investidura dos três ministros118,
embora haja quem estenda com ambas as mãos discos de jade
seguidos de carruagens de quatro cavalos119,
nada se compara a genuflectir-se
e oferecer este dao.

Desde a antiguidade que se valoriza este dao.


Não será porque, através dele,
quem pede obtém
e quem tem culpas é redimido?

Assim, ele é valioso


para o mundo.

116
Outras versões em chinês, pela inclusão de mais um caracter, traduzem-se: “As belas palavras podem
comprar respeito / e a bela conduta pode atrair pessoas”.
117
O imperador.
118
O 太師 taishi, o 太博 taibo e o taibao 太保, com funções idênticas a ministros.
119
Alusão ao ritual de oferta de tributos na cerimónia em questão.

140
141
63.

Agir pela não-acção (wei wuwei).


Tratar dos assuntos pelo não-tratar (事無事 shi wushi)120.
Saborear o sem-sabor (為無味 wei wuwei).

Engrandecer o pequeno.
Ampliar o pouco.
Responder à hostilidade com o poder.

Levar a cabo o difícil


através do que nele é fácil.
Fazer o grandioso
através do que nele é minúsculo.

No mundo, os assuntos difíceis


surgem a partir do que é fácil.
No mundo, os grandes assuntos
surgem a partir do que é minúsculo.

Por isso, o sábio nunca faz grandezas.


Assim, consegue cumprir a sua grandeza.

Quem promete com ligeireza


decerto despertará pouca confiança.
Para quem tudo julga fácil
tudo será decerto difícil.

Por isso, o sábio tudo considera difícil.


Assim, nunca tem dificuldades.

120
Agir sem-acção /tratar dos assuntos pelo sem-tratar.

142
143
64.

Aquilo que está em repouso


é fácil de agarrar.
Aquilo de que não há sinal121
é fácil de prevenir.
Aquilo que está quebradiço
é fácil de despedaçar.
Aquilo que está diminuído
é fácil de dissipar.

Agir sobre algo enquanto não se manifesta (未有 wei you).


Regrá-lo (治 zhi) enquanto não cai em desordem (未亂 wei luan). 122

A árvore que só com ambos os braços se abraça


nasce a partir de uma haste minúscula.
A plataforma de nove níveis
ergue-se a partir de um punhado de barro.
A viagem de mil li123
começa por um passo.

Quem age, falha.


Quem retém, perde124.

Por isso, o sábio


não age e, assim, não falha;
não retém e, assim, não perde.

O povo, nos seus afazeres,


muitas vezes falha estando prestes a terminá-los.
Tendo cuidado com os fins
tanto como com os princípios
não haverá falhas.

Por isso, o sábio


deseja não desejar,
não valoriza bens difíceis de obter,
aprende a não aprender,
retorna àquilo que a multidão transpôs
e colabora com a natureza espontânea (ziran) dos dez mil seres
mas não ousa agir.

121
Um sinal (兆 zhao) situa-se num estádio intermediário entre a realidade ainda não manifesta e a realidade
manifesta. Sabendo detectar o sinal, torna-se mais fácil intervir no seio do processo da sua actualização, a
acção dispensando esforço.
122
É colocando-se na génese de um acontecimento que se torna possível acompanhá-lo e dominá-lo. Do
mesmo modo, o adepto do dao coloca-se na origem para ser, como ela, vazio mas criador, quieto mas
regulador.
123
Medida chinesa de comprimento, equivalente a meio quilómetro.
124
Repetição do capítulo 29.

144
145
65.

Na antiguidade, aqueles que eram bons


a tornar-se adeptos do dao
não elucidavam (明 ming) o povo com ele
mas com ele o mantinham ignorante.

A difícil governação do povo


provém do excesso de intelecto.

Assim, governar um país pelo intelecto


é a desventura desse país.
Não governar um país pelo intelecto
é a felicidade desse país.

Conhecer estes dois princípios


é ter um modelo e uma fórmula.
Conseguir conhecer modelos e fórmulas
é o poder profundo.

O poder profundo
vai fundo! Vai longe!
Ajuda os seres a voltar atrás (反 fan)
até chegarem à grande conivência (大順 da shun)!

146
147
66.

Rios e mares conseguem ser reis dos cem vales


porque são bons (shan) a ficar por baixo deles.
É assim que conseguem ser reis dos cem vales.

Por isso, o sábio


desejando ficar acima dos homens,
em palavras, rebaixa-se;
desejando ficar à frente dos homens,
põe-se atrás.

Por isso, coloca-se acima


mas não pesa sobre os homens.
Coloca-se na dianteira
mas não prejudica os homens.

Por isso, o mundo


alegra-se por impeli-lo e não o repele.

E como não entra em conflito


ninguém no mundo pode
entrar em conflito com ele125.

125
Repetição de uma passagem do capítulo 22.

148
149
67.

No mundo, todos dizem que o meu dao é grande


mas como que se parecendo com nada.
É por ser grande que é como que se parecendo com nada!
Caso se parecesse com alguma coisa
há muito que seria minúsculo!

Eu tenho três tesouros


que entesouro e retenho:
o primeiro é a compaixão (慈 ci),
o segundo é a frugalidade,
o terceiro é não ousar ser a vanguarda do mundo.

Com compaixão pode-se ser corajoso.


Sendo frugal pode-se ser magnânimo.
Não ousando ser a vanguarda do mundo
podemos tornar-nos chefes dos instrumentos (器長 qi chang)126!

Hoje, desiste-se da compaixão para ser corajoso,


desiste-se da frugalidade para ser magnânimo,
desiste-se da retaguarda para ficar na vanguarda.
Ah, é a morte!127

Com compaixão,
triunfa-se no combate
e é-se firme na defesa.

O céu virá em seu socorro


e, com compaixão, protegerá.

126
O termo “instrumentos” tanto pode fazer referência aos governantes, ao armamento ou aos órgãos
corporais.
127
Ao tentar quebrar a unidade fundamental dos contrários, retendo apenas um e recusando o outro, vai-se
contra a lei natural, é forçar. E forçar é a morte, é negar o dao (cf. capítulos 30 e 55).

150
151
68.

Quem é bom (shan) a guerrear não combate.


Quem é bom a lutar não se enfurece.
Quem é bom a vencer inimigos não entra em conflito.
Quem é bom a manejar os homens baixa-se perante eles.

É o poder de não entrar em conflito,


é a força (力 li) de manejar os homens.

É o que se chama a aliança com os antigos preceitos (極 ji)128 do céu.

極 ji” Além de “extremo”, “limite”, “topo”, também significava “critério”, “mandamento”, “norma”,
128

“preceito”. Esta passagem tem sido objecto das mais incompreensíveis e díspares traduções por não se ter
isto em mente.

152
153
69.

Os estrategas têm um dito:


“Eu não ouso ser o dono (主 zhu),
prefiro ser o convidado (客 ke);
não ouso avançar um centímetro,
prefiro recuar meio metro.”

Isto é marchar sem marcha,


enrolar as mangas sem braços,
enfrentar sem inimigo,
empunhar sem armas.

Não há maior infortúnio


do que encarar o inimigo com leveza.
Quem o encara com leveza
arrisca-se a perder os seus tesouros.

Assim, quando dois exércitos se confrontam,


o que o lastima vencerá!

154
155
70.

As minhas palavras
são tão fáceis de compreender
e tão fáceis de praticar.

Mas ninguém no mundo


as consegue compreender
e ninguém as consegue praticar.

Tais palavras têm um antepassado.


Tais feitos têm um senhor.
É por não compreenderem isto
que não me compreendem.

Raros são os que me compreendem


e quem me segue é valioso.

Por isso, o sábio


enverga rudes trapos
mas no peito oculta jade.

156
157
71.

Saber que não se sabe é o melhor.


Não saber e julgar saber é um erro.

É tomando o erro como erro


que não se erra.
O sábio não erra
porque toma o erro como erro.
Por isso, não erra.

158
159
72.

Se o povo já não teme a intimidação


então chega o grande terror.

Há que não desprezar as suas moradas


nem reprimir as suas vidas.
Só não o reprimindo
ele não te repelirá.

Por isso, o sábio


conhece-se a si próprio,
não se exibe;
esconde-se (愛 ai)129 a si próprio,
não se valoriza.
Rejeita “isso aí” e prefere “isto aqui”.

129
愛 ai costuma aqui ser erradamente traduzido segundo o seu sentido comum, “amar”. No entanto, tinha
também o sentido de “esconder”, como no verso do poema 靜女 “Jing nü” do Shijing《诗经》, O Clássico
das Odes: “愛而不見,搔首踟躕 ai er bu jian, sao shou chichu” (Esconde-se e desaparece, coça a cabeça
e hesita para a frente e para trás). Este é o sentido que está em acordo com o espírito do Dao De Jing e com
a passagem em questão e não “ama-se a si próprio”.

160
161
73.

Quem tem a coragem de ousar será morto.


Quem tem a coragem de não ousar viverá.

Neste par,
um é benéfico,
o outro prejudicial.
Daquilo que ao céu repugna
quem saberá a razão?

Por isso, o sábio tudo considera difícil130.

O dao do céu
não entra em conflito
mas é bom (shan) a vencer.
Não fala
mas é bom a responder.
Não convoca (召 zhao)
mas vêm ter com ele.
Não se apressa
mas é bom a solucionar.

Vasta é a rede celeste.


Cheia de buracos,
mas nada se perde.

130
Esta passagem é uma repetição do capítulo 63.

162
163
74.

O povo nunca teme morrer.


Para quê ameaçá-lo com a morte?

Se fizessem com que os homens temessem sempre morrer


e ao cometer transgressões
fossem apanhados e mortos,
quem ousaria cometê-las?

Há um carrasco que desde sempre mata!131


Substituir esse carrasco a matar
é como substituir o carpinteiro na talha.
Quando se substitui o carpinteiro na talha
raros são aqueles que não se golpeiam na mão!

131
A lei da morte para todos os seres vivos.

164
165
75.

A fome do povo
vem dos superiores se alimentarem de demasiados impostos.
Por isso tem fome.

O difícil governo do povo


provém de os superiores serem activos (有為 you wei)
Por isso é difícil de governar.

A leveza com que o povo encara a morte


provém de os superiores levarem vidas de excessos132.
Por isso encara a morte com leveza133.

Só quem não age para viver


tem o talento de valorizar a vida134.

132
Foi seguida a versão do texto em chinês onde se lê 以其上生生之厚 yi qi shang sheng sheng zhi hou e
não 以其生生之厚 yi qi sheng sheng zhi hou, onde falta decerto o caracter 上 shang, “superiores”.
133
No texto em chinês, aparece erradamente 經 em vez de 輕.
134
Quem vive para si mesmo abusa da vida, logo, corteja a morte (cf. capítulo 50). Quem não vive para si
mesmo consegue viver muito tempo (cf. capítulo 7).

166
167
76.

Em vida, os homens são maleáveis e flexíveis.


Na morte, duros e rijos (強 qiang).
Em vida, as plantas são maleáveis e macias.
Na morte, encarquilhadas e ressequidas.

Assim, a dureza e a rijeza (強 qiang)


são companheiras da morte;
a maleabilidade e a flexibilidade
são companheiras da vida.

Por isso,
se o exército é forte (強 qiang) não será vitorioso;
se a árvore é rija (強 qiang) o machado virá.135

O que é rijo (強 qiang) e grande fica por baixo.


O que é maleável e flexível fica por cima.

No texto em chinês aparece, erradamente, 共 gong em vez de 兵 bing. Existem outras versões do texto
135

em chinês onde surge 折 zhe, traduzindo-se por “será cortada”.

168
169
77.

O dao do céu assemelha-se


a esticar um arco.

Refreia-se a parte do alto


e eleva-se a parte de baixo.
O excedente é reduzido,
a insuficiência é compensada.

O dao do céu reduz o excedente


para compensar a insuficiência.

O dao dos homens não é assim:


reduz a insuficiência
para acrescentar ao excedente.

Quem consegue doar ao mundo o excedente?


Somente o adepto do dao.

Por isso, o sábio


efectua mas não retém,
cumpre as tarefas
mas não se considera meritoso
e não deseja
exibir o seu talento.

170
171
78.

Nada no mundo é tão maleável e flexível


quanto a água,
mas no ataque ao que é duro e rijo (強 qiang)
nada a consegue ultrapassar136
e nada há que a substitua.

Assim, a maleabilidade vence a rigidez (剛 gang)


e a flexibilidade vence a rijeza (qiang)137.
No mundo não há quem o não saiba
mas não há quem o consiga praticar.

Por isso, o sábio diz:


aquele que acarreta com a imundície do país
é o senhor dos altares aos espíritos da terra e dos cereais138.
Aquele que acarreta com o infortúnio (不祥 bu xiang) do país
é o rei do mundo.

As palavras correctas parecem às avessas (反 fan)139.

136
Outra versão em chinês traduz-se “nada a consegue vencer”.
137
No texto em chinês aparece, erradamente, 疆 em vez de 強。A passagem é uma repetição do capítulo
36.
138
Altares utilizados apenas pelo imperador.
139
反 fan, voltar atrás. As palavras correctas parecem o movimento do dao, por isso resultam paradoxais,
contendo em si o seu reverso. Ao homem de pensamento lógico provocam riso (cf. capítulo 41).

172
173
79.

Reconciliados grandes rancores


decerto subsistirá certo rancor.
Como pode isto ser considerado bom?140

Por isso, o sábio,


desempenha a sua metade do contrato
sem nada reclamar dos homens.

Assim, quem tem poder acata com as suas obrigações.


Quem não tem poder explora.

O dao do céu não tem preferências,


trata sempre bem os homens.

140
O melhor, pois, é nunca guardar rancor, nunca ter preferências, como se conclui neste capítulo.

174
175
80.

Países pequenos com escassa população:


havendo todo o tipo de instrumentos
que se faça com que não sejam utilizados;
que se faça com que o povo pondere a morte
e não emigre para longe.

Ainda que haja barcos e carruagens


que ninguém para eles suba.
Ainda que haja armas e armaduras
que ninguém as exponha.
E que se faça com que o povo
retome o uso de dar nós em cordas. 141

Apreciando o seu alimento,


comprazendo-se com as suas moradas,
regozijando-se com os seus costumes
e avistando-se com um país vizinho,
galos e cães de um ouvindo-se no outro,
que as populações cheguem a morrer de velhas
sem se terem visitado entre si.

141
Na alta antiguidade chinesa, antes do aparecimento da escrita, os acontecimentos relevantes eram
registados através de um sistema de dar nós em cordas.

176
177
81.

Palavras fiáveis não são belas.


Belas palavras não são fiáveis.142

Boas palavras não são persuasivas.


Palavras persuasivas não são boas.143

Quem sabe não é ilustrado.


Quem é ilustrado não sabe.

O sábio não armazena,


quanto mais se dedica aos outros
mais possui.
Quanto mais dá aos outros
mais tem.

O dao do céu facilita,


não prejudica.
O dao do sábio efectua,
não entra em conflito.

142
As palavras fiáveis não são elogiosas, sedutoras.
143
As palavras adequadas não precisam do reforço da persuasão. Existem versões em chinês que se
traduzem por “quem é bom no que faz (善者 shan zhe) não persuade. / Quem persuade não é bom no que
faz”.

178
BIBLIOGRAFIA

Obras em chinês:

道德經白話解說 Dao De Jing baihua jieshuo (1988), 北京白雲觀翻印。


Apresenta o texto em chinês e comentários sobre cada capítulo.

道教大辭典 Daojiao dacidian (1987), 浙江古籍出版社。


Dicionário dos termos utilizados na escola do dao.

許嘯天 Xu Xiaotian (1988), 老子Lao Zi, 北京:中國書店出版。


Contém uma extensa introdução ao pensamento de Lao Zi, extractos comentados das suas
biografias mais importantes e um comentário pormenorizado do Dao De Jing. Contém
ainda textos de vários comentadores históricos, entre os quais Wang Bi e He Shang Gong.

任繼愈 Ren Jiyu (1987), 老子新譯 Lao Zi xinyi, 上海古籍出版社。


Contém uma extensa introdução teórica, a versão de Wang Bi pontuada, a versão em
chinês moderno e uma reprodução dos dois manuscritos em seda de Mawangdui
descobertos em Changsha em 1973.

王曉梅 Wang Xiaomei,李芳芳 Li Fangfang (2011)《道德經》一讀就懂, 北京 : 中央


編譯出版社。
O texto do Dao De Jing e sua explicação passo a passo, termo a termo.

王弼集校釋, 北京: 中華書局出版, 1987.


Antologia crítica dos escritos de Wang Bi.

Traduções:

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Translation, Nova Iorque: Ballantine Books.

Waley, Arthur (1934), The Way and its Power. A Study of the Tao Te Ching and its Place
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Tao Te Ching. The Richard Wilhelm Edition (1985), Londres: Arkana.

François Houang e Pierre Leyris (s/d), La Voie et sa Vertu, Paris: Sagesses.

Larre, Claude (1977), Tao Te King. Le Livre de la Voie et de la Vertu, Paris: Desclée de
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Brouwer Bellarmin.

Roberts, Moss (2001) Dao De Jing. The Book of the Way, Berkeley, Los Angeles, Londres:
University of California Press.

Estudos de carácter geral:

François, Jullien (1995), Le Détour et l’Accès. Stratégies du Sens en Chine, en Grèce,


Paris: Editions Grasset & Fasquelle.

Rainey, Lee Dian (2014), Decoding Dao. Reading the Dao De Jing (Tao Te Ching) and
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Michael, Thomas (2022), The Original Text of the Daodejing: Disentangling Versions
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Robinet, Isabelle (1996), Lao Zi et le Tao, Paris: Bayard.

Schipper, Kristofer (1996), The Taoist Body, Malásia: Pelanduk Publications.

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