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Faixa Verde No Juri Historias de Defensoras e Defensores Publicos Volume 4
Faixa Verde No Juri Historias de Defensoras e Defensores Publicos Volume 4
faixa
verde
aqueles que já vivenciaram os dramas e alegrias dos Terra, tremei!!!
julgamentos perante o júri e, igualmente, para todos Firmiane Venâncio
9. O tilintar das algemas
aqueles que têm o interesse de conhecer os meandros
Bruno Bortolucci Baghim dos casos de sangue, mais uma importante obra de Para sempre sem medo
Prefácio
pelo nosso imenso Brasil, somado às suas singulari- histórias de Defensoras
4
Andréa Maciel Pachá
12. O dia em que me travesti de justiceiro dades locais, presenteiam os leitores com a generosi- e Defensores Públicos
para conseguir uma absolvição
dade de narrativas cheias de vida, que de uma manei- 1. Sangue Verde
Cauê Bouzon Machado Freire Ribeiro ra sincera, corajosa e transparente exteriorizam o que Maria Isabel Leão Barbalho
Rafaela Martins da Silva viveram e aprenderam na defesa de seus assistidos.
2
2. Erros Honestos
13. Quem “cutuca” uma onça com vara O júri é o verdadeiro palco da vida. Da vida que muitas Graziela Paro Caponi
curta, e lhe dá as costas, deve esperar
vezes já se foi e da vida que pode se findar a partir de
o quê? Relato de um caso de defesa 3. Até que a morte os separe:
perante o Tribunal do Júri um julgamento injusto. Em todos os casos em que atu-
a história de uma Maria
Cleber Francisco Alves amos, deixamos um pouco de nós e retemos conosco
Flavia Apolonio Gomes
- por vezes sem perceber – uma parcela do que acon-
14. “Nos pequeninos detalhes”: de teceu. Nunca seremos “só nós” depois de atuarmos no 4. Maracutaia? Não Comigo. Não Aqui
“Zé da Silva” até “Zé Malvadão”
plenário do júri. Angélica Cardozo dos Santos
Maurilio Casas Maia
Wisley Rodrigo dos Santos
e Defensores Públicos
histórias de Defensoras
15. Balada do Louco
Julia Moro Bonnet Daniel R. Surdi De Avelar 5. João, o pó mágico e o tribunal do júri
Mariana Araujo Levoratto
Vitor Eduardo Tavares de Oliveira
6. Confissão: a rainha das injustiças!
16. A parabóla do filho pródigo:
Anderson Medeiros Fernandes Morais
a utilização de recursos não
jurídicos no plenário do júri Monaliza Maelly Fernandes
Montinegro de Morais
Patrícia Maria Liz de Oliveira
São Paulo
Av. Paulista, 2073, loja 120, Conjunto Nacional, Bela Vista – São Paulo - SP,
CEP 01311-940
Belo Horizonte
Av. Brasil, 1843, Savassi, Belo Horizonte, MG – CEP 30140-007
Tel.: 31 3261 2801
F175 A faixa verde no júri 4 : histórias de defensoras e defensores públicos / Bruno de Almeida
Passadore... [et al.] (organizadores). - 1. ed. - Belo Horizonte, São Paulo : D’Plácido, 2022.
178 p.
Organizadores: Bruno de Almeida Passadore, Glauce Maués, Maurilio Casas Maia, Renata
Tavares Costa, Vitor Eduardo Tavares de Oliveira, Wisley Rodrigo dos Santos.
ISBN 978-65-5589-605-3
1. Direito 2. Direito Penal I. Passadore, Bruno de Almeida II. Maués, Glauce III. Maia,
Maurilio Casas IV. Costa, Renata Tavares V. Oliveira, Vitor Eduardo Tavares de VI. Santos,
Wisley Rodrigo dos VII. Título.
CDDir: 341.5
Bibliotecária responsável: Fernanda Gomes de Souza CRB-6/2472
Capítulo 1
Sumário
Terra, tremei!!! 9
Por Firmiane Venâncio
Apresentação 15
Por Daniel Ribeiro Surdi de Avelar
Prefácio 21
por Andréa Maciel Pachá
1. Sangue Verde 25
Maria Isabel Leão Barbalho
2. Erros Honestos 27
Graziela Paro Caponi
8. Seu Genaro 87
Helena Noce
Os autores 175
Terra, tremei!!!
Por Firmiane Venâncio 1
1
Subdefensora geral da Defensoria Pública da Bahia.
2
Antonio Raul Borges Palmeira foi Defensor público na Bahia por mais de 30
anos e faleceu no dia 14 de junho de 2022.
9
do Direito, da técnica, da oratória, muito menos estava nas folhas
do processo, a lição vinha da força que Raul enxergava na atuação
da Defensoria Pública no Tribunal do Juri. Para ele, a instituição
nos colocava degraus acima, por isso devíamos entrar no plenário
sempre de cabeça erguida, com a consciência de que aquele réu teria
em nós, profissionais concursados, membros de uma instituição que
carrega a defesa no nome, o melhor escudo contra a mão pesada
do estado punitivo.
A segunda lição, para quem é do tempo do processo físico, foi
“enxugar” o material que tínhamos em mão, para podermos nos ater
aos detalhes, já que segundo ele, o diabo morava nos detalhes.
A terceira lição era para exercitar a capacidade de contar bem a
história (o que é diferente de verdade, essa nem sempre nos convém
saber para melhor defender), viver experiências diversas na vida e
a trazê-las para a cena, junto também com cultura e, se necessário,
pitadas de humor, ironia (o recurso dos inteligentes).
Ah... como o mestre passeava bem por esses caminhos. E foram
tantos, centenas de vezes pisou nos plenários dessa Bahia e quando
não era mais possível contar, paramos o contador em mil, seguindo
nosso Tribuno para atuar na Instância Superior, junto ao Tribunal de
Justiça e aos Tribunais Superiores.
Raul, como bom ariano, era um profissional amante de desafios
novos, de fundar momentos na instituição, construir métodos, fluxos,
regulamentações, ainda que isso significasse trabalhar muito mais que
a média. Ele fez isso tantas vezes na Defensoria Pública da Bahia e na
Associação dos Defensores e Defensoras Públicas da Bahia. Lembro
do entusiasmo dele em vários desses momentos: “Amiga, precisamos
reativar a nossa associação.Vamos trabalhar nisso? Eu: que horas vamos
fazer isso, Raul? Ele: “você e Edinaldo viriam para Salvador no final
de semana e trabalharíamos na proposta de um estatuto para apre-
sentar à classe, depois regularizo tudo no cartório. Pagarei eu mesmo
as despesas.” E assim, ressurgiu nossa ADEP!
Na democratização da Defensoria Pública do estado da Bahia,
lá estava ele a serviço do novo gestor, sem nada ganhar a mais por
isso, organizando e fazendo funcionar a CAR-Central de Ações
Rápidas. No fortalecimento de nossas atribuições legais específicas,
lá estava ele em 2007, formatando a CEAFLAN, para receber os
10
flagrantes decorrentes da nova legislação que impunha remessa dos
autos para a Defensoria em 24h. No primeiro “plantão de carna-
val”, à noite, lá estávamos nós na sede do Canela, Clériston e eu,
providenciando uma pizza para fazer companhia ao amigo Raul no
início da nova empreitada.
Foi assim também na inauguração e início das atividades da
representação da Defensoria Pública da Bahia em Brasília e seria
também um novo começo, a organização das sustentações orais de
forma sistematizada nas Câmaras Criminais do TJBA.
Ao chegar na casa do mestre e amigo no dia 14 de junho, mo-
mentos após seu falecimento, encontrei sobre a mesa as anotações das
sustentações orais que faria, atendendo a um pleito dos colegas, mas
especialmente meu. Queria vê-lo na ribalta novamente, eu sonhava
com isso.
Chimamanda Ngozi Adichie em seu livro Notas sobre o luto,
refere como este é uma forma cruel de aprendizado, como o luto tem
a ver com a busca das palavras, com a derrota das palavras.
Essa tentativa de resgatar um pouco a memória afetiva e institu-
cional de um grande cidadão Defensor Público, certamente deixa de
fora inúmeras palavras, experiências vividas e divididas com Raul, mas
pelo pouco do que aqui contei, é de se perceber quão intensa foi sua
existência nesse plano e quão generoso ele foi ao formar tantos de nós.
Raul Palmeira, presente!
11
Para sempre sem medo.
Por Gustavo Vieira Soares 3
3
Defensor Público da Bahia, com atuação no Tribunal do Júri da Comarca de
Salvador.
4
Pedro Joaquim Machado foi defensor público na Bahia por 25 anos e faleceu
em 15 de abril de 2022.
13
Pedro sabia sorrir em meio ao caos e às dificuldades. Enxugava o
suor derramado nos enfrentamentos mais pesados, acendia um cigarro,
tomava um gole de café, e se agigantava, magnânimo, no cume da
confiança de que a guerra, apesar de dura, vale a pena e que poder
lutar é um privilégio de poucos.
Jamais o vi esmorecer.Vi-o raramente triste, cabisbaixo. E, nesses
momentos, no silêncio que se fazia entre nós, na contemplação do
vento, do céu, do sol, de algo etéreo e concreto, a um só tempo, em
meio à dançante fumaça dos nossos cigarros, a companhia e a presença
de um e de outro bastavam. Palavras nem sempre eram necessárias.
“Pedro sem medo” fica cristalizado, tatuado, na vida de todos
os que o conheceram e tiveram o privilégio de desfrutar de sua
amizade, de sua sinceridade, do seu caráter, da sua simplicidade, uma
simplicidade complexa de alguém repletos de aventuras e desafios
ao longo da trajetória terrena, de um sertanejo forte por excelência,
antes de tudo, um forte, um profissional brilhante e um pai amoroso
e dedicado desde sempre.
Um amigo. Um irmão.
Fique em paz, Pedrão. Até um dia.
14
Apresentação
Por Daniel Ribeiro Surdi de Avelar 5
5
Daniel Ribeiro Surdi de Avelar é Juiz de Direito, Presidente do 2º Tribunal do
Júri de Curitiba desde 2008, Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia
(UniBrasil), Professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e
EMAP) e Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (NUPE-
JURI). avelar_daniel@hotmail.com; avelar_dr (Instagram).
15
“Só Jesus na Causa”
As origens remotas do Tribunal do Júri, ou, talvez seja mais cor-
reto dizer, dos julgamentos populares, é tema que desperta curiosida-
des, paixões e incertezas. Concebido pelas Leis Mosaicas; idealizado
nos Dikastas; engendrado na Helieia; projetado no Areópago Grego;
configurado nos Judices Romanos, ou, ainda, nos Centeni Comitês
dos povos primitivos germanos, é correto afirmar que o júri nunca
seguiu um caminho único e uniforme ao longo dos tempos. Porém, é
possível identificar “um traço homogêneo e característico para a me-
lhor compreensão do tema: a competência atribuída a membros – em
número variável no tempo e no espaço – de uma dada comunidade
para decidirem sobre a existência de um fato (criminoso ou não) e a
responsabilidade do acusado”6.
Ademais, é impossível olvidar do forte apelo religioso dos jul-
gamentos populares. O rito do Tribunal do Júri no Brasil e, em
outros países do mundo, é envolto por uma religiosidade pujante e
característica. O número tradicional de 12 (doze) jurados é costumei-
ramente relacionado aos apóstolos de Jesus Cristo7. As vestes talares8
6
AVELAR, Daniel R. Surdi de; SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Manual do
Tribunal do Júri. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 43.
7
“(...). Por acreditar-se, ao menos originariamente, no dogma religioso tra-
duzido na expressão: ‘quando doze homens de consciência pura se reuniam
sob a invocação divina, a verdade infalivelmente se encontrava entre eles’, em
passagem bíblica alusiva à visita de Cristo aos Apóstolos, sendo este o número
de jurados, no dia do julgamento, tal como no dia de Pentecostes, o Espírito
Santo desceria sobre eles iluminando suas consciências no momento da decisão
de condenar ou absolver um semelhante”. (VIVEIROS, Mauro. Tribunal do júri
na ordem constitucional brasileira: um órgão da cidadania, 1ª ed., São Paulo: Editora
Juarez de Oliveira, 2003, p. 28). No mesmo sentido: “O numero mystico de 12,
recordando o dos apostolos, dava a essa instituição popular a sancção religiosa,
reclamada pela opinião publica” (sic) (ROCHA, Pinto da. O jury e a sua evolução.
Conferências realizadas no Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros. Rio
de Janeiro: Leite Ribeiro & Maurillo, 1919, p. 64).
8
Talus, ou seja, calcanhar em latim, identifica o cumprimento da vestimenta.
Em excelente artigo publicado na Revista Piauí, a jornalista Daniela Pinheiro
descreve todos os adereços passíveis de serem encontrados nas becas hodiernas:
“Uma beca pode ter torçal (uma cordinha trançada com fios de seda), borla
(o pingente da cordinha em forma de campânula, como de cortinas), rosetas
(botões paralelos na altura do peito) e alamares (quando as cordinhas cruzam o
peito presas nos botões frontais). Também pode ter mangas bufantes, plissadas,
16
que a acusação, defesa e o magistrado (e, em algumas comarcas, até
mesmo os jurados e servidores) fazem uso durante toda a sessão de
julgamento, têm sua origem nos trajes sacerdotais da antiga Roma,
somando-se aos clérigos da Idade Média e universidades da época
(p. ex., Sorbonne, no século XIII) e padronizam uma estética quase
religiosa ao ato9. É comum que testemunhas (ou, por vezes, o pró-
prio acusado) prestem o compromisso com a “verdade” segurando a
bíblia antes de iniciarem o seu depoimento. No Brasil, o art. 253 do
Código de Processo Criminal do Império (1832) obrigava que os
jurados jurassem em nome de Deus e a sua falta era passível de gerar
a nulidade do julgamento10: “Juro pronunciar bem, e sinceramente nesta
causa, haver-me com franqueza, e verdade, só tendo diante dos meus olhos
Deus, e a Lei; e proferir o meu voto segundo a minha consciência”.
Em tempos atuais, no histórico edifício do Tribunal do Júri de
Curitiba, cuja construção data da década de 1950, encontramos uma
gigantesca imagem de Jesus Cristo crucificado, esculpida em madei-
ra, que fica centralizada na parede logo à frente ao público e acima
da cadeira do juiz-presidente. Para os mais atentos, ainda é possível
identificar uma sala cuja porta de entrada fica na parte lateral do
plenário, a qual foi “carinhosamente” apelidada de “sala das almas”,
eis que lá são guardados os processos mais antigos do júri da capital.
Em 1996 ou 1997, ao tempo que era estagiário da 02ª Vara
Privativa do Tribunal do Júri de Curitiba, fui partícipe de uma cena
pitoresca. Naquela época, existia um sino no edifício do júri locali-
zado na entrada do plenário. Não era grande e tampouco pequeno,
drapeadas ou lisas. Nas costas, pode ser reta, ter elástico na altura do cóccix ou
sobrepeliz nos ombros. O punho pode ter renda francesa ou sintética. Ou não
ter nada. Pode-se usá-la sobre o terno, com um grosso cinto preto marcando a
cintura ou aberta como uma capa. É a gosto do freguês”. O artigo é publicado
no ano de 2012 e descreve a indumentárias dos advogados que atuavam no caso
julgado pelo STF. (PINHEIRO, Daniela. Das Vestes Talares. Revista Piauí, Edição
72, Setembro de 2012. Disponível em < https://dev1-piaui.folha.uol.com.br/
materia/das-vestes-talares/>. Acesso em 07/04/2022.
9
ALBUQUERQUE, Katia Oliveira Bonifácio. A Toga & a Beca – Vestes Talares,
Alagoas: Editora Gogó da Ema, 2022.
10
De acordo com a lição de Whitaker: “A falta de juramento na oportunidade,
produz nulidade dos atos posteriores, ainda que as partes consintam na omissão”
(WHITAKER, Firmino. Jury. Estado de S. Paulo. Seção de obras d’ ‘O Estado de
S. Paulo’: 1926, p. 78).
17
mas tinha o tamanho suficiente para chamar a atenção daqueles que
passassem pela frente do tribunal. Certa feita, no início de um dos
julgamentos, o juiz-presidente ordenou que eu soasse o instrumento,
anunciando o início da sessão. Mas como era a primeira vez que era
chamado a executar tal tarefa, fiquei na dúvida e questionei: “quantas
badaladas devo executar?”. Após alguns segundos de hesitação, obtive
a resposta: “Nunca havia pensado nisso”, respondeu o juiz. “Toque uma
para cada jurado, mas que seja bem forte”, exclamou.
Anos depois, em 2008, assumi a presidência do mesmo tribunal
ao qual servi como estagiário. Tudo estava como sempre esteve, com
exceção do sino que acabou por ser retirado e encaminhado para outro
local. A “sala das almas” está lá e, por motivos que não desejo esclarecer,
confesso que até hoje nunca cheguei a adentrar ao local. Jesus Cristo, no
alto e imponente, continua a nos abençoar e nos lembrar de um dos mais
significativos erros judiciários de todos os tempos operado por força de
um julgamento popular11. Penso que alguns chegam a silenciosamente
questionar a Sua presença, uma vez que desde 07/01/189012, o Brasil é
um estado laico, mas confesso que nunca recebi qualquer manifestação
oficial, seja de quem defende, seja de quem acusa, solicitando qualquer
providência para a sua retirada. Na verdade, lembro de um “verdadeiro
milagre” operado por Ele durante um julgamento.
Apesar de muitos juízes serem refratários a admitir que as partes
exerçam com plenitude o seu direito de questionar vítimas, testemu-
nhas, peritos, etc., sempre fui partidário da premissa de que a verda-
11
Para Calamandrei, a imagem do Cristo deveria ocupar um local visível aos
magistrados, para que sempre lembrassem do perigo de condenar um ino-
cente: “O crucifixo não compromete a austeridade das salas dos tribunais;
eu só gostaria que não fosse colocado, como está, atrás das costas dos juízes.
Desse modo, só pode vê-lo o réu, que, fitando os juízes no rosto, gostaria de
ter fé na sua justiça; mas, percebendo depois atrás deles, na parede do fundo,
o símbolo doloroso do erro judiciário, é levado a crer que ele o convida a
abandonar qualquer esperança – símbolo não de fé, mas de desespero. Dir-
-se-á até que foi deixado ali, às costas dos juízes, de propósito para impedir
que estes o vejam. Em vez disso, deveria ser colocado bem adiante deles,
bem visível na parede da frente, para que o considerassem com humildade
enquanto julgam e nunca esquecessem que paira sobre eles o terrível perigo
de condenar um inocente”. (CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes vistos
por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 327).
12
Decreto n. 119-A, de 07/01/1890.
18
deira instrução é aquela que ocorre em plenário e que a originalidade
cognitiva dos jurados deve ser estimulada para que conheçam com
integralidade os meandros do fato levado a julgamento. Muitas vezes,
confesso (e que tal ato sirva para atenuar a minha pena, amém...),
faço um exercício mental para não intervir, especialmente quando
a inquirição se alonga por horas e o inquiridor parece se perder no
raciocínio. Porém, na maioria esmagadora das vezes, aguento firme a
“penitência” ou o “sacerdócio”, pois foi exercendo o meu livre-ar-
bítrio que em 2008 requeri a remoção para presidir uma das varas
do júri de Curitiba.
Porém, chegou o dia da “tentação”. Era um júri importante e o
caso chamava a atenção da mídia local. De um lado, atuava o decano
dos promotores de justiça, profissional do plenário com mais de mil
júris devidamente registrados no seu curriculum vitae; de outro, uma das
maiores bancas de advocacia criminal da capital. Ambos acostumados
a grandes embates no “Maracanã dos Júris”, alcunha do plenário do
Tribunal do Júri de Curitiba, o qual possui a capacidade para apro-
ximadamente 400 espectadores.
Eu tinha ciência que retornar para jantar em casa seria impos-
sível. Mas, iniciando o júri pela manhã, esperava ouvir até o início
da madrugada o maior número possível de testemunhas, procurando
minimizar os gastos com hospedagem, alimentação e a infraestrutura
de oficiais de justiça e agentes de segurança chamados para ajudar na
rumorosa sessão de julgamento.
Formado o Conselho de Sentença e iniciada a instrução plenária,
as coisas pareciam andar bem e as inquirições não estavam ultrapas-
sando o período de duas horas para cada testemunha. Parecia uma
bênção! Mas sabemos que júri que é júri só termina quando acaba
e, em um dado depoimento, já no período da noite, momento em
que eu apostava que as partes já estavam arrefecendo o seu ímpeto
inicial, forças do além surgiram e uma torrente de perguntas infinitas
que ganharam a forma de uma banca de advogados. Indagações, dú-
vidas e mais interpelações inundavam o plenário numa perquirição
que parecia adentrar madrugada adentro. Público perplexo, jurados
cansados e um juiz presidente à espera de um milagre.
Eu já havia solicitado que a defesa atuasse com mais objetividade e
indicasse o escopo de questionamentos de que eu, talvez pelo cansaço
19
ou ignorância, não entendia a relação com os fatos que circundavam a
hipótese acusatória. Como resposta, escutava: “Excelência, infelizmente
não podemos adiantar a tese da defesa. V. Exa. compreenderá quando dos
debates. Rogamos a paciência costumeira desse juízo”. Nesse momento,
procurando não demonstrar sinais de aborrecimento, especialmente
perante os jurados – os quais são facilmente influenciáveis pelo humor
do juiz-presidente -, direcionei o rosto para o alto e lá, como que
pairando sob a minha cabeça, vi a imagem de Jesus Cristo pregado
na cruz e com sua coroa de espinhos. Rogando perdão pelos meus
pecados, cheguei a refletir a respeito do Seu julgamento e da sua
duração até que o povo tivesse escolhido libertar Barrabás.
Foi nesse impulso que chamei a Defesa até a minha mesa:
“Dr., com licença, o Sr. poderia se aproximar da minha mesa?”
“Claro, Excelência, com muito gosto”, respondeu o advogado que
capitaneava a banca.
“Está vendo esse Sr., aqui no alto?”
Sem muito entender, o defensor retrucou: “Não entendi. A quem
V. Exa. se refere?”.
Com o dedo indicativo apontando para o alto, expliquei: “Está
vendo Jesus Cristo na cruz?”.
Ainda sem muito compreender o que se passava, o advogado
expressou: “Sim! Trabalho primoroso do escultor e que fica muito bem sobre
a cabeça de V. Exa., decorando e abençoando esse plenário”.
Convidando o advogado para se aproximar ainda mais, a uma
distância que apenas ele poderia ouvir, questionei: “O Dr. sabe o motivo
de ele ter sido crucificado?” Sem deixar o culto defensor responder,
acrescentei: “Pelo simples motivo do Dr. não estar patrocinando a Sua De-
fesa, pois, nesse caso, o julgamento ainda não teria terminado”.
Operando-se verdadeiro milagre, o Defensor encerrou as suas
perguntas e o primeiro dia de julgamento chegou ao fim. Agradecen-
do a “graça alcançada” e com a fé redobrada, fomos todos descansar.
20
Prefácio
por Andréa Maciel Pachá 13
13
Desembargadora do TJ-RJ. Ex-Conselheira do CNJ (2007/2009).; Graduada
em Direito pela UERJ, com Mestrado pela Fundação Oswaldo Cruz.; Escri-
tora, membro titular da Academia Petropolitana de Letras, é autora dos livros
“Velhos são os outros”, “Segredo de Justiça” e “A vida não é justa”, os quais
reúnem histórias inspiradas na sua experiência de mais de duas décadas de
atuação como juíza, que alcançaram grande sucesso editorial e tiveram inclusive
adaptações para a TV e para o teatro.
21
humanismo e as contradições humanas nos identificavam e irmanavam.
Há os que reconhecem sua importância definitiva, no desejo de uma
justiça possível, que aplaque os ressentimentos, e devolva à sociedade
a decisão sobre aquele indivíduo que, em determinado momento da
vida, matou ou tentou matar alguém.
Não há menor potencial ofensivos nas histórias que chegam aos
Tribunais do Júri e, talvez por isso, seja a experiência mais dramática
de todas e todos os profissionais que por ali transitam, ainda que
pontualmente.
Quatorze defensores públicos contam histórias que viram, ouvi-
ram e sentiram nas experiências nos Tribunais do Júri. Sem preocupa-
ção de uniformizar estilo ou linguagem, cada qual, a seu modo, exibe
não só as dores das rés e dos réus, nas preparações e nos julgamentos,
mas também as próprias angústias e vulnerabilidades, que constroem
a ponte necessária para que a alteridade se estabeleça.
São quatorze histórias que sintetizam a história de um Brasil
tão desigual e injusto. Um passeio sensível e cruel, revelador de um
sistema que segrega, e que não compreende o significado do perdão,
não como uma concessão, mas como um fator determinante para
que se possa seguir adiante.
“Há aqueles que dizem, de maneira absolutamente preconceituosa
e leviana, que a defesa criminal se compraz e se regozija da demora,
agindo inescrupulosamente para dilatar e corromper a marcha pro-
cessual como forma de obter a prescrição” diz Graziela Paro Caponi,
na história de abertura do livro. É uma advertência importante. Para
embarcar na obra, precisamos nos despir dos preconceitos.
E é isso o que fazem com competência e poesia, Graziela, Flávia
Apolônio Gomes, Angélica Cardozo dos Santos,Wisley Rodrigo dos
Santos, Mariana Araujo Levoratto, Anderson Medeiros Fernandes
Morais, Monaliza Maelly Fernandes Montinegro Morais, José Vic-
tor Ferreira Lima Ataíde, Helena Noce, Bruno Bortolucci Baghim,
Maria Isabel Leão Barbalho, Alberto Carvalho Amaral, Cauê Bouzon
Machado Freire Ribeiro, Rafaela Martins da Silva, Cleber Francis-
co Alves, Maurílio Casas Maia, Júlia Moro Bonnet e Vitor Eduardo
Tavares de Oliveira.
Quer com a radiografia generosa de Cleber Francisco Alves que,
em escalada, ensina o passo a passo do processo, das teses, da preparação
22
e da sessão, dissecando objetivamente os conceitos de direito e justiça,
quer com o olhar feminista de Flávia Apolônio Gomes, desejando que
todas as Marias encontrem a libertação da violência, da opressão e do
machismo, e que a Defensoria Pública seja um instrumento de luta
contra as dores dessas Marias, não há um relato que não seja atraves-
sado pela sensibilidade e pela percepção de que a dor nos humaniza,
quando a enfrentamos, a compreendemos, e escolhemos caminhos
civilizatórios que apostam nos direitos fundamentais.
Vivemos tempos sombrios. Com o fascismo à espreita, e o arbítrio
mostrando as garras, mais que nunca é fundamental resgatar e forta-
lecer os valores e princípios de humanidade. “Faixa Verde” chega em
boa hora. Para que a lógica do justiçamento não contamine o sistema
de justiça. Para que, a partir dessas histórias, possamos compreender
a importância do Tribunal de Júri, do contraditório, da ampla defesa,
do devido processo legal, não como indicadores formais, mas como
estruturas inexpugnáveis da civilidade e da justiça.
Shakespeare já nos ensinou que o oposto da injustiça não é a
justiça, mas o amor. Porque toda justiça que não se pratica por amor,
não é justiça, mas vingança.
Vamos às histórias! São, antes de mais nada, histórias de amor.
23
4 a
Publicado pela Editora D’Plácido, é oferecido a todos
faixa
verde
aqueles que já vivenciaram os dramas e alegrias dos Terra, tremei!!!
julgamentos perante o júri e, igualmente, para todos Firmiane Venâncio
9. O tilintar das algemas
aqueles que têm o interesse de conhecer os meandros
Bruno Bortolucci Baghim dos casos de sangue, mais uma importante obra de Para sempre sem medo
Prefácio
pelo nosso imenso Brasil, somado às suas singulari- histórias de Defensoras
4
Andréa Maciel Pachá
12. O dia em que me travesti de justiceiro dades locais, presenteiam os leitores com a generosi- e Defensores Públicos
para conseguir uma absolvição
dade de narrativas cheias de vida, que de uma manei- 1. Sangue Verde
Cauê Bouzon Machado Freire Ribeiro ra sincera, corajosa e transparente exteriorizam o que Maria Isabel Leão Barbalho
Rafaela Martins da Silva viveram e aprenderam na defesa de seus assistidos.
2
2. Erros Honestos
13. Quem “cutuca” uma onça com vara O júri é o verdadeiro palco da vida. Da vida que muitas Graziela Paro Caponi
curta, e lhe dá as costas, deve esperar
vezes já se foi e da vida que pode se findar a partir de
o quê? Relato de um caso de defesa 3. Até que a morte os separe:
perante o Tribunal do Júri um julgamento injusto. Em todos os casos em que atu-
a história de uma Maria
Cleber Francisco Alves amos, deixamos um pouco de nós e retemos conosco
Flavia Apolonio Gomes
- por vezes sem perceber – uma parcela do que acon-
14. “Nos pequeninos detalhes”: de teceu. Nunca seremos “só nós” depois de atuarmos no 4. Maracutaia? Não Comigo. Não Aqui
“Zé da Silva” até “Zé Malvadão”
plenário do júri. Angélica Cardozo dos Santos
Maurilio Casas Maia
Wisley Rodrigo dos Santos
e Defensores Públicos
histórias de Defensoras
15. Balada do Louco
Julia Moro Bonnet Daniel R. Surdi De Avelar 5. João, o pó mágico e o tribunal do júri
Mariana Araujo Levoratto
Vitor Eduardo Tavares de Oliveira
6. Confissão: a rainha das injustiças!
16. A parabóla do filho pródigo:
Anderson Medeiros Fernandes Morais
a utilização de recursos não
jurídicos no plenário do júri Monaliza Maelly Fernandes
Montinegro de Morais
Patrícia Maria Liz de Oliveira