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Florianópolis/SC
2023
Milene Felix da Silva
Florianópolis/SC
2023
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Inclui referências.
TERMO DE APROVAÇÃO
Banca examinadora
PPGD/UFSC
Mestre
Poliana
Ribeiro dos
Santos
PPGD/UFSC
Florianópolis, 2023
TERMO DE RESPONSABILIDADE PELO INEDITISMO DO TCC E
ORIENTAÇ O IDEOL GICA
Eu, Milene Felix da Silva, acima qualificada, venho, pelo presente termo, assumir integral
responsabilidade pela originalidade e conte do ideol gico apresentado no TCC de minha
autoria, acima referido.
Milene F li da Silva
AGRADECIMENTOS
.
RESUMO
The present research was performed in order to demonstrate the complexity and challenges
that permeate the fight against mordern slavery, pointing out the gaps and inconsistencies of
the Brazilian legislation, and mainly to give voice to the forgotten workers, by ensuring the
due legal guarantees, work and dignified experiences of the human person. The objective of
this research was to demonstrate that the commercialization of cocoa involves, in its
production chain, numerous practices considered criminal, subjecting several people to the
work in conditions analogous to slavery in cocoa farms in the state of Pará. The study was
conducted with the application of the inductive method, and the research procedure was the
case study, using techniques such as documental, data and news analysis. The data pointed
out some factors that lead to the existence of work in conditions of modern slavery. These are
due to the practice of tax evasion during the marketing of cocoa beans, resulting from
informality; insufficient tax collections to promote the development of the cocoa hub and the
municipalities in the region; few resources converted to the municipalities, which imposes to
the population to submit to any type of exploitation in order to guarantee the minimum for
their survival; lack of structure and low budget applied at the federal sphere, which prevents
inspection of working conditions in cocoa farms. It was possible to identify that the
informality practiced by intermediaries, called as middlemen, results in tax evasion, which
prevents to trace the almods origins, such as the place where it is being planted and,
consequently, the identification of contemporary slavery spots. Although the Brazilian Penal
Code does not have a specific device to responsabilize the people envolved in this crime, it is
possible to appeal to extra-criminal mechanisms to attribute to the culprits the capacity to be
criminally relevant when there is a violation of social responsibility norms.
CP Código Penal
CONATRAE Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
CRFB/88 Constituição da República Federativa Brasileira
EPI Equipamento de Proteção Individual
EC 45 Emenda Constitucional 45
FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
MT Ministério do Trabalho
MPT Ministério Público do Trabalho
MPF Ministério Público Federal
ONU Organização das Nações Unidas
OIT Organização Internacional do Trabalho
PJ Pessoa Jurídica
STF Supremo Tribunal Federal
TRT Tribunal Regional do Trabalho
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 14
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 83
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1 INTRODUÇÃO
Elucidar que a sonegação fiscal gera impactos negativos na região produtora do cacau,
pois impede que os recursos arrecadados sejam investidos na manutenção de qualidade de
vida de seus habitantes, pois camufla a existência da exploração abusiva e ilegal da mão de
obra e exime os reais responsáveis pelos delitos cometidos.
A partir da demonstração (diagnóstico) anterior, exigir que os órgãos competentes
sejam mais eficazes na aplicação das devidas punições ao empregadores/ fazendeiros,
atravessadores e empresas responsáveis e que haja a fiscalização rigorosa do trabalho
realizado nas lavouras, bem como estabelecer acordos para regulamentar a conduta das
multinacionais, a fim de evitar a comercialização com intermediários (atravessadores) que
obtêm matéria-prima de fazendas irregulares e a proibição concreta da mão de obra utilizada
por jovens e crianças em qualquer nível da produção.
No viés metodológico será empregada como teoria de base e visão de mundo a teoria
da modernidade em Max Weber.
Para uma pesquisa mais aprofundada, é importante considerar autores da teoria do
direito: (1) Max Weber utilizando sua crítica referente à perda de liberdade, uma vez que o
capitalismo fez do trabalho uma atividade em que o fim é ele mesmo. Isso significa que a
racionalidade aumentou a produtividade ao mesmo tempo que escravizou o homem. Nesse
sentido, cabe fazer um paralelo com a perda de liberdade de homens e mulheres, jovens e
crianças que são explorados nas lavouras de cacau devido ao aumento da produtividade nas
indústrias de cacau cada vez mais intensa. (2) Jürgen Habermas, utilizando sua abordagem
sobre os direitos humanos e igualdade, tendo em vista que, em suas teorias enfatiza os
problemas da integração social e da justificação e legitimação de normas e princípios. Suas
teorias tentam inovar nas questões de liberdade e igualdade para todos os cidadãos.
Para complementar a teoria de base e trazer uma abordagem mais contemporânea será
implementado alguns autores da sociologia como Raphael Neves e José Murilo de Carvalho, a
fim de elucidar algumas questões sobre desigualdade, injustiça e cidadania.
Como fonte principal da pesquisa, cabe o uso do Working Paper com o t tulo Cadeia
Produtiva do Cacau, avanços e desafios rumo à promoção do trabalho decente: análise
situacional , produ ido para o projeto Promo o e Implementa o dos Princ pios e Direitos
Fundamentais no Trabalho no Brasil , com a parceria da Organi a o Internacional do
Trabalho (OIT), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Papel Social. Demais fontes como
julgados e jurisprudências serão inseridos nas referências bibliográficas.
No viés do direito do trabalho, é notável a presença de autoras e autores como: 1)
Vólia Bomfim Cassar, onde será possível abordar aspectos dos direitos trabalhistas; 2)
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Leonardo Tibo Barbosa Lima, que dimensiona sobre o Direito do Trabalho Rural, aspectos
relevantes para o entendimento das legislações e contratos utilizados no meio rural.
No direito penal, considera-se os seguintes autores: 1) Eduardo Antonio Temponi
Lebre e Cláudio Macedo de Souza, que explanam a respeito da responsabilidade penal da
pessoa jurídica nas hipóteses de crime em condições análogas à de escravo; 2) Guilherme de
Souza Nucci, que retrata em seu manual a pena para o delito de trabalho escravo.
Demais autores serão demonstrados nas referências bibliográficas.
O método de abordagem aplicado será o indutivo, e o procedimento da pesquisa será o
estudo de caso, por meio das técnicas de análise documental, análise de dados e análise de
notícias.
Como justificativa, cabe primeiramente mencionar a atualidade do tema, tendo em
vista que centenas de pessoas vivem em condição análoga à escravidão nas lavouras de cacau
no estado do Pará. Essa realidade é decorrente de diversos fatores: a educação precária na
região o que impede a busca por maiores informações a respeito das reais condições de
trabalho e principalmente sobre seus direitos; vulnerabilidade social, visto que grande parte da
população na região não possuem banheiro e água encanada, situação que acarreta às pessoas
aceitar qualquer tipo de trabalho na tentativa de diminuir a pobreza; e as ineficiências das
ferramentas jurídicas para combater os crimes, pois na maioria dos casos os órgãos
competentes deixam de realizar a devida fiscalização das atividades realizadas nas lavouras de
cacau. Nesse sentido, a pesquisa demonstra uma realidade atual e que merece ser aprimorada.
Pode-se constatar que a comercialização do cacau, um produto valioso, apreciado pelo mundo
todo, apresenta em sua cadeia produtiva práticas consideradas criminosos, o que afetam de
modo significativo a vivência de muitos humanos.
No quesito de importância do tema, tem-se que nos últimos tempos despontaram
inúmeras notícias de desrespeito aos princípios e direitos fundamentais nas atividades que
compõem o ciclo produtivo do cacau, exploração envolvendo pessoas das mais variadas
idades nas lavouras que indicam também violações aos direitos civis, políticos e sociais.
Desse modo, faz-se necessária a análise sobre a aplicabilidade da legislação no combate ao
trabalho análogo à escravidão na região estudada, uma vez que, o supracitado produto é uma
fonte de riqueza que coloca o Brasil na lista dos principais produtores mundiais daquilo que é
considerado uma paixão mundial, qual seja, o chocolate.
Ademais, o projeto de investigação a respeito do trabalho nas lavouras até chegar ao
produto final, se torna uma tarefa de extrema importância, pois demonstra como uma manobra
comercial pode exercer um planejamento tão complexo para adquirir grandes frutos por meio
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para sua identificação e medidas intensas por parte da Administração Pública para erradicar
essa prática hostil e desumana onde quer que esteja presente.
Posteriormente, objetiva-se apresentar o tipo de relação de trabalho presente nas
plantações de cacau, quais contratos são utilizados nesses arranjos e como os fazendeiros,
proprietários das terras, agem para dissimular o vínculo empregatício com os trabalhadores,
resultando em sua responsabilização pelas irregularidades trabalhistas e criminalmente pela
prática de trabalho análogo à escravidão.
Também, será apresentado o desafio real relacionado à responsabilização dos
envolvidos, especialmente quando se trata de responsabilizar as empresas que operam no setor
cacaueiro. Serão destacadas as dificuldades em enquadrar juridicamente a pessoa jurídica
como culpada pelo crime em questão, uma vez que a legislação brasileira não prevê um
dispositivo específico para essa situação.
O terceiro capítulo intitulado A rota informal do cacau e a ausência de fiscali a o ,
tratará do estudo de caso em si. Será realizada a análise do caso ocorrido no município de
Medicilândia no estado do Pará, envolvendo a fazenda Boi Não Berra/Sítio Verde Vale,
propriedade de Raimundo Rodrigues de Souza, conhecido como "Nó Cego". Em 2013, sua
propriedade foi autuada por prática de trabalho análogo à escravidão.
A análise generalizante deverá ser considerada, tendo como referência o contexto
sucateado da região cacaueira, além de evidenciar quais os possíveis motivos para a
impunidade dos envolvidos, o que permite a perpetuação da exploração abusiva e o alto
número de ocorrências desse crime.
Serão examinadas as razões e a ocorrência das irregularidades trabalhistas não apenas
nas fazendas, mas nas demais etapas da cadeia produtiva. Será esclarecido o conjunto de
irregularidades, como a falsificação de contratos com os trabalhadores meeiros, a servidão, os
salários inadequados e as terríveis condições de trabalho, incluindo a falta de água potável e
instalações adequadas para descanso. Será importante compreender por que essa prática
persiste, apesar da existência de órgãos que combatem esse crime.
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O tema escolhido para a presente pesquisa trata-se de uma investigação que envolve a
complexa produção de cacau no Pará que beneficia as grandes indústrias internacionais e
gigantes do agronegócio por meio da utilização do trabalho análogo à escravidão de crianças,
adolescentes e adultos.
As maiores indústrias de alimentos do mundo estão sendo processadas por utilizar
mão de obra escrava na cadeia produtiva do cacau e chocolate. A ação tramita na capital dos
Estados Unidos, Washington DC, envolvendo também outras indústrias, como Cargill, Barry
Callebaut, Mars, Olam e Hershey. A ação foi ajuizada pela International Rights Advocates,
em nome das crianças exploradas nas plantações da Costa do Marfim (Casara, 2021).
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Afirma-se que no Brasil ocorre situação semelhante à da África. Alguns jornais como
Brasil de Fato em parceria com o Ministério Público do Trabalho, identificaram
multinacionais que exploram trabalho escravo na produção de cacau. Estas empresas são
Nestlé, Mondelez, Garoto, Cargill, Olam e Barry Callebaut. Algumas destas se encontram
com ações ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho. Só no Brasil, são oito mil crianças
e adolescentes em condições desumanas em fazendas de cacau (Casara, 2021). O Brasil ocupa
o quarto lugar no ranking de países que mais consomem chocolate e a nossa produção
também assume a 4ª posição.
No Brasil, o cacau é produzido em oito estados: Pará, Bahia, Espírito Santo,
Rondônia, Roraima, Mato Grosso, Tocantins e Minas Gerais, dado que, os Estados do Pará
(49,3%) e Bahia (45,1%) são os principais produtores, além de serem responsáveis
praticamente pela totalidade da produção nacional (OIT, 2018, p. 11). A Bahia é responsável
por cerca de 90% do processamento inicial do cacau no Brasil, com três indústrias situadas no
município de Ilhéus, pertencentes a três multinacionais moageiras. No entanto, os produtores
baianos perdem cada vez mais espaço para os cacauicultores paraenses, visto que, desde 2017
a produção de amêndoas na Bahia diminuiu pelo quarto ano consecutivo. A seca e a estiagem
na região da Costa do Cacau são as principais causas para a queda da safra, que passou de
153,3 mil toneladas, em 2015, para 83,9 mil em 2017. Com isso, a queda da produção baiana,
faz do estado do Pará o maior produtor brasileiro de amêndoas de cacau (OIT, 2018, p. 11-
12).
Diante deste cenário, a lavoura selecionada para a retratação do presente estudo de
caso está localizada no estado do Pará, mais especificamente na Transamazônica. A escolha
se deve ao fato da elevada importância econômica existente na região, uma vez que
condiciona a base para a elaboração de uma das guloseimas mais saborosas e preferidas de
todos os tempos: o chocolate.
O polo cacaueiro paraense está situado às margens da Rodovia Transamazônica. A
região é a principal produtora do cacau no referido estado e o principal polo de produção do
país, na qual compõem os municípios de Altamira, Anapu, Brasil Novo, Medicilândia,
Uruará, Vitória do Xingu, Senador José Porfírio e Pacajá uma área que totaliza 240,2 km²
na região central do estado (OIT, 2018, p. 12).
Conforme supracitado, os municípios de Medicilândia (Pará) e Ilheus (Bahia) são
considerados os principais produtores de cacau no Brasil. Porém, nesta pesquisa optou-se por
dar prioridade para o município de Medicilândia, razão pela qual envolve um complexo de
cidades em sua proximidade interligadas na prática do trabalho análogo à escravidão. A
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localização do referido complexo poderá ser mais bem analisada conforme a imagem
subsequente:
Figura 1 Polo cacaueiro do Pará ao longo da Transamazônica composto pelos seguintes municípios: 1
Uruará, 2 Medicilândia, 3 Brasil Novo, 4 Altamira, 5 Vitória do Xingu, 6 Senador José Porfírio, 7 Anapu
e 8 Pacajá.
Figura 2 Mapa do Brasil que identifica a localização do município de Mediciliândia (PA), maior
produtora de cacau no Brasil.
A população vítima do trabalho escravo não tem capacidade para atuar em prol de
seus direitos, a carga de trabalho pesado a impede de refletir sobre como poderiam resolver
sua situação, exatamente pela descrença na justiça e a ideia de que esta justiça funciona
apenas para os ricos. Este é um dos fatores que contribui para que esta população explorada
deixe de denunciar seus maus tratos sofridos. Outro fator, refere-se ao desconhecimento de
seus direitos civis, o que faz com que não vejam soluções na justiça brasileira. Essa perda do
sentido da vida pode ser identificada através das injustiças que essas pessoas acabam se
submetendo, uma vez que a real necessidade passa a ser a sobrevivência, e a perda de suas
liberdades é o caminho a fim de obter o mínimo para viver. Segundo Neves, as injustiças
estão relacionadas ao paradigma da redistribuição, visto que as formas socioeconômicas de
injustiças são enraizadas na estrutura econômica da sociedade, como exemplo: a exploração -
ter frutos do trabalho expropriados por outros; a marginalização econômica - ser obrigado a
um trabalho indesejável e mal remunerado ou não ter acesso a nenhum trabalho; e a privação
não ter acesso a um padrão adequado de vida (Neves, 2013).
Os sujeitos injustiçados mencionados nesta pesquisa podem ser identificados como
pertencentes a uma underclass, pois não estão estruturados como trabalhadores assalariados,
devido aos salários ínfimos ou ausência destes. Além de não se tratar de um trabalho
regularizado, existindo à margem do sistema, sustenta a base de todo um mercado
efetivamente consolidado. Algumas famílias produtoras de cacau estabelecem suas moradas
geralmente em locais com uma estrutura precária, esquecidas e marginalizadas e quando as
habitações se localizam nas fazendas, a situação não é diferente, dado que não obtém os
recursos necessários como água potável e saneamento básico. Segundo Fraser, nas palavras de
Neves, o paradigma da redistribuição pode incluir outros casos, como imigrantes e as
minorias raciais identificadas com os trabalhos supérfluos ou com a underclass. Inclui
também as mulheres que realizam o trabalho doméstico e materno, proporcionando para a
sociedade um trabalho de assistência que não é remunerado (Neves, 2013).
Nessa perspectiva é possível fazer uma conexão com a dominação que as empresas
cacaueiras exercem sobre as pessoas que compõem a base dessa estrutura. Verifica-se um
impressionante abandono dessas famílias por parte da cadeia produtiva. Elas são responsáveis
por gerar lucros bastante significativos. A família produtora de cacau é o principal ator nessa
cadeia e, ao mesmo tempo, é a principal vítima de um processo predatório, desumano, e que
não tem seus direitos fundamentais garantidos. Não se reconhece o valor que a cultura deste
tipo de trabalhador possui. Ocorre uma falta de responsabilidade do governo federal, que
cortou brutalmente as verbas usadas nas operações de fiscalização, que não permitem que os
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Verifica-se que os municípios que produzem o cacau têm o IDHM inferior às médias
estadual e nacional, o que demonstra a vulnerabilidade de sua população a processos
exploratórios diversificados (OIT, 2018, p. 17). Esse é um ponto que adentra na questão do
legalismo, que segundo Weber o direito deve se separar do poder e da religião, caso queira
alcançar o objetivo de formular e conservar regras gerais que não são ambíguas. Para ele o
poder tem motivos que a própria razão desconhece, visto que, os governantes sentem-se
tentados constantemente a sacrificar princípios maiores, ou universais em favor de objetivos
particulares que lhe são convenientes. Em uma linguagem teórica constitucional norte-
americana, aqueles que detêm o poder serão levados a tomar decisões baseadas nos resultados
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finais. Igualmente, onde há mistura entre o direito e a religião, muitas pressões surgem para
que se sacrifique aquilo que é geral favorecendo os fins éticos concretos (Trubek, 2007).
Nota-se que o acesso à justiça é limitado, somente pequena parcela da população tem
este privilégio. A maioria desconhece seus direitos, se existe este discernimento não há
condições de fazê-los valer. A minoria que dá queixa à polícia acaba enfrentando os custos e a
demora do processo judicial, e ainda, os custos de um bom advogado não é algo acessível
para a grande maioria da população. Apesar do dever constitucional do Estado em prestar
assistência jurídica gratuita aos pobres, os defensores públicos acabam sendo insuficientes
para atender a demanda. O único setor que pode funcionar um pouco melhor é o da Justiça do
Trabalho. Porém, essa justiça só funciona para o trabalhador regularizado, que possui carteira
assinada, não atinge os trabalhadores do mercado informal, que acabam ficando excluídos
(Carvalho, 2011).
Segundo as famílias entrevistadas nas áreas de plantio, o baixo preço pago pela rede
de atravessadores é um dos fatores determinantes para a ocorrência do trabalho infantil. Pois,
não há recursos para contratar mão de obra temporária durante a colheita. Os pais sabem que a
educação deveria ser uma prioridade na vida das crianças e adolescentes, mas dizem não
restar outra alternativa, tendo em vista que se os filhos n o colaborarem na ro a de cacau, as
contas n o fecham . J o presidente de uma cooperativa que opera na regi o da
Transamazônica com cacau de alta qualidade ressalta que existe relação direta entre o trabalho
infantil e o preço baixo do cacau. Os agricultores também corroboram com essa afirmação.
Além disso, um dos antigos cacauicultores do Pará, que fornece para os atravessadores, atesta
a existência de trabalho infantil em toda a região, inclusive em sua própria propriedade, e
ainda reforça que se ele não estivesse com a corda no pescoço, o filho de 12 anos, que
trabalha na colheita, estaria estudando (OIT, 2018, p. 34).
Na realidade, é observado que muitas pessoas não possuem todos os direitos que lhes
são garantidos constitucionalmente, o que impede que sejam consideradas cidadãos plenos.
De acordo com a perspectiva de Carvalho, a cidadania pode ser desmembrada em direitos
civis, políticos e sociais. Um cidadão pleno é aquele que usufrui dos três tipos de direitos,
enquanto os cidadãos incompletos são aqueles que possuem apenas alguns deles. Já os não-
cidadãos são aqueles que não desfrutam de nenhum desses direitos. Os direitos civis são
fundamentais para a vida, liberdade e igualdade perante a lei. Eles se baseiam na garantia de
uma justiça independente, eficiente, acessível e de baixo custo para todos. São esses direitos
que asseguram relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da sociedade civil,
que surgiu com o desenvolvimento do capitalismo (Carvalho, 2011). Pode-se inferir que os
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denominou como grupos de status. Esses grupos não são definidos pelas relações de
produção, mas sim pelas relações de reconhecimento, uma vez que as vítimas possuem menos
respeito, estigma e prestígio em comparação com outros grupos. Um exemplo clássico na
sociologia weberiana é o da casta inferior, um grupo de status cujos padrões culturais são
considerados menos valorizados (Neves, 2013).
Essa injustiça também pode ser analisada no viés do legalismo, que foi para o
capitalismo mais do que funções econômicas. Na realidade Weber demonstrou a ideia de um
sistema de direito autônomo, que partilha justiça formal, legitima a estrutura política de uma
sociedade capitalista. Sobre esta justiça formal pode-se afirmar que ela garante liberdade
máxima para que as partes envolvidas possam defender seus interesses legais formais. No
entanto, a distribuição desigual de poder, legalizada pelo chamado sistema formal de justiça,
irá produzir de maneira repetida, consequências contrárias das éticas religiosas ou até mesmo
dos proveitos políticos. A justiça formal repudia poderes autoritários, governantes arbitrários,
como também, se coloca contra interesses democráticos. Esta justiça, abstrata, não pode
considerar questões éticas. Esta abstenção diminui a possibilidade de alcançar diretrizes
substanciais que são defendidas por grupos populares. Contudo, determinados valores
democráticos e tipos de justiça social poderiam ser alcançados caso o estrito legalismo fosse
sacrificado (Trubek, 2007).
Vale frisar, que o legalismo confere legitimação à dominação dos capitalistas,
principalmente o domínio sobre os trabalhadores. Pois, aparentemente o legalismo limita as
ações do estado, mas ele concede força ao estado e legitima a dominação de determinada
classe. Deste modo, o estado vai se fortalecendo em relação a outras forças que possam
promover seu crescimento no mercado. Isso reflete no controle de propriedade, pois a
organização, esta lógica de estrutura de mercado vai contribuir para a concentração de poder
daqueles que controlam os recursos no viés econômico, acarretando uma má distribuição
destes recursos, em uma perpetuação da concentração e na origem de diferenças de classes.
Nesse sentido, podem ser implementados remédios úteis para combater as injustiças.
Na vertente do paradigma redistributivo, o remédio consiste em uma reestruturação política e
econômica, incluindo a ideia de redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho,
controles democráticos sobre investimentos e transformação de outras estruturas econômicas.
Já no paradigma do reconhecimento, o remédio se traduz em mudanças culturais ou
simbólicas, com base na valorização da diversidade cultural e na transformação mais radical e
abrangente dos padrões sociais de representação, interpretação e comunicação. No caso da
redistribuição, as distinções de classe são consideradas injustas e as lutas sociais têm como
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descumprimento das leis, estas devem ser aplicadas devidamente. Observa-se que essa
responsabilidade estatal deve ser exercida de forma conjunta, envolvendo órgãos competentes
como o Ministério Público do Trabalho, o Ministério Público Federal e a Secretaria da
Fazenda do Estado. É necessário estabelecer uma política de fiscalização mais comprometida
e elaborada, visando garantir um maior controle, identificação e monitoramento do comércio
do cacau.
É importante destacar que, com a consolidação da Constituição de 1988, diversos
direitos sociais foram garantidos. Os objetivos desta constituição incluem a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e marginalização, e
a minimização das desigualdades sociais e regionais, conforme estabelecido no artigo 3º. A
maioria dos direitos sociais está prevista no artigo 7º da Constituição, que garante a proteção
ao empregado contra demissão arbitrária, seguro-desemprego, salário mínimo, participação
nos lucros da empresa, jornada de trabalho de oito horas diárias, férias, licença maternidade e
licença paternidade, entre outros direitos (Neves, 2013). São esses direitos que devem ser
aplicados e garantidos quando se trata da atual situação de trabalho explanada.
Com base nisso, é crucial realizar investimentos nos municípios do estado do Pará.
Isso inclui melhorias na infraestrutura, saneamento básico e valorização da população, além
de proporcionar um maior acesso à justiça. É fundamental garantir aos habitantes seus direitos
sociais, como um trabalho digno, com todos os direitos trabalhistas previstos na Constituição.
Além disso, é necessário melhorar a qualidade da educação, pois ela é uma das principais
ferramentas para impedir que a população seja subjugada e explorada. É importante promover
movimentos de conscientização na região para contribuir com a luta contra o trabalho análogo
à escravidão e garantir uma maior prevenção desse tipo de crime. O ordenamento jurídico não
pode ser apenas um manual de leis bem estruturado, a política deve atuar em prol dos
indivíduos, pois são eles que impulsionam a sociedade.
realidade, essas duas figuras estão vinculadas ao emprego, visto que a caracterização é
determinada a partir da perspectiva do empregado, dado que o empregador é, via de regra, um
sujeito judicialmente despersonalizado. No entanto, para uma melhor abordagem do trabalho
rural e suas relações, convém dimensionar o contento de modo invertido, pois a caracterização
dessa espécie de relação depende de maneira essencial da atividade econômica
predominantemente executada pelo empregador, conforme previsto no artigo 511, §2º, c/c
artigo 581, §2º, da CLT (Lima, 2023).
Nesse sentido, sobre o empregador rural, o artigo 3º da Lei 5.889/1973 o define da
seguinte maneira: Considera-se empregador, rural, para os efeitos desta Lei, a pessoa física
ou jurídica, proprietário ou não, que explore atividade agroeconômica, em caráter permanente
ou tempor rio, diretamente ou atrav s de prepostos e com aux lio de empregados , e ainda a
lei em seu § 1o, está previsto a inclusão da atividade econômica mencionada no caput deste
artigo, al m da explora o industrial em estabelecimento agrário não compreendido na
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio
de 1943, a explora o do turismo rural ancilar explora o agroecon mica (Brasil, 1973).
Sendo assim, as características do empregador rural, com base na Lei n. 5.889/1973,
são: a) pessoa física ou jurídica, podendo ser o produtor rural na pessoa física, bem como a
empresa rural como as fazendas, que tem personalidade jurídica própria, que em alguns casos
são instituídas na forma de sociedade empresarial; b) proprietária ou não do imóvel que se
destina à atividade econômica, caso do arrendatário; c) exploração de atividade
agroeconômica, desde a exploração rústica (agropecuária) até a atividade industrial em
estabelecimento agrário; d) caráter permanente ou temporário, que geralmente está presente
na pecuária e turismo rural sazonal ou ancilar; e) diretamente ou através de prepostos,
indicando impessoalidade do empregador, que vincula o emprego à atividade, conforme
demonstra o artigo 2 da CLT ao usar o termo empresa ; f) aux lio de empregados, tendo em
vista que o contrato é bilateral, exigindo a presença do contratado, o empregado (Lima, 2023).
No que se refere a exploração industrial em estabelecimento agrário, o § 4º do art. 2º
do Decreto 73.626/1974, redação mantida pelo Decreto n.10.854/2021, no §4º, art. 84, melhor
clarifica ao dispor que esse tipo de exploração condiz com o primeiro tratamento dos produtos
agrários, que se encontram in natura, sem transformá-lo em sua natureza, tais como:
§ 5º Para os fins previstos no § 3º não será considerada indústria rural aquela que,
operando a primeira transformação do produto agrário, altere a sua natureza,
retirando-lhe a condição de matéria-prima (Brasil, 2021a).
equipamentos de proteção aos trabalhadores. Desse modo, o fazendeiro é tido como parceiro
outorgante, e os trabalhadores são os parceiros outorgados.
Na realidade, os sujeitos que integram a parceria associam a terra, o trabalho e o
capital para assim utilizar na atividade agrária o imóvel rural. A produção obtida e o
rendimento são partilhados no final do contrato, estando incluídos os riscos do
empreendimento, na proporção em que estiver acordada, conforme o que determina a lei. Os
contratantes são denominados parceiros, dado que o parceiro outorgante é aquele que cede a
terra, que entrega os bens, podendo ser ou não o proprietário, e o parceiro outorgado é a
pessoa ou o grupo familiar que recebe a porção de terra. Em muitos casos, esse outorgado é o
cultivador direto, e o outorgante, na maioridade das vezes concorre com o imóvel e as
benfeitorias incluídas, esta pessoa pode também disponibilizar máquinas, animais de tração,
sementes, que incidirão nos percentuais ao final da atividade agrária (Almeida; Buainain,
2013). Porém, na maioria dos casos, esse outorgante não fornece devidamente os produtos e
instrumentos de trabalho, mas isso ficará mais nítido no terceiro capítulo.
O contrato de parceria, estabelecido pelos meeiros, se trata de um contrato típico,
regulado pelo Decreto n.59.566/1966 (Lima, 2023). Desse modo, a classificação do que
consiste uma parceria rural está delineada no art. 4º, visto que os artigos 5º e 6º dimensionam
a respeito das atribuições:
Art. 4º Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à
outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou
partes do mesmo, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e ou facilidades, com
o objetivo de nêle ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agro-
industrial, extrativa vegetal ou mista; e ou lhe entrega animais para cria, recria,
invernagem, engorda ou extração de matérias primas de origem animal, mediante
partilha de riscos do caso fortuito e da fôrça maior do empreendimento rural, e dos
frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os
limites percentuais da lei (artigo 96, VI do Estatuto da Terra). Parágrafo único. para
os fins dêste Regulamento denomina- -se parceiro outorgante, o cedente,
proprietário ou não, que entrega os bens; e parceiro-outorgado, a pessoa ou o
conjunto familiar, representado pelo seu chefe, que os recebe para os fins próprios
das modalidades de parcerias definidas no art. 5º.
Art 5º Dá-se a parceria: I - agrícola, quando o objeto da cessão fôr o uso de imóvel
rural, de parte ou partes do mesmo, com o objetivo de nêle ser exercida a atividade
de produção vegetal; II - pecuária, quando o objetivo da cessão forem animais para
cria, recria, invernagem ou engorda; III - agro-industrial, quando o objeto da sessão
fôr o uso do imóvel rural, de parte ou partes do mesmo, ou maquinaria e
implementos, com o objetivo de ser exercida atividade de transformação de produto
agrícola, pecuário ou florestal; IV - extrativa, quando o objeto da cessão fôr o uso de
imóvel rural, de parte ou partes do mesmo, e ou animais de qualquer espécie, com o
objetivo de ser exercida atividade extrativa de produto agrícola, animal ou florestal;
V - mista, quando o objeto da cessão abranger mais de uma das modalidades de
parceria definidas nos incisos anteriores.
35
Art 6º Ocorrendo entre as mesmas partes e num mesmo imóvel rural avenças de
arrendamento e de parceria, serão celebrados contratos distintos, cada qual regendo-
se pelas normas específicas estabelecidas no Estatuto da Terra, na Lei nº 4.947-66 e
neste Regulamento. Parágrafo único. Reger-se-ão pelas normas do presente
Regulamento, os direitos e obrigações dos atuais meeiros, terceiros quartistas,
parcentistas ou de qualquer outro tipo de parceiro-outorgado, cujo contrato estipule,
no todo ou em parte, a partilha em frutos, produtos ou no seu equivalente em
dinheiro (Brasil, 1966a).
partes celebram um ajuste que é conhecido e certo, tendo a atividade do empregador como
permanente, apesar de ser temporário o período de safra, porém incerto, uma vez que as
variações das estações não possuem datas marcadas. Sendo assim, se o empregador não tiver
a intenção de aproveitar o safrista nas atividades existentes na entressafra, a Lei n. 5.889/1793
concede que a contratação seja por contrato por prazo determinado, conforme disposto no art.
14 (Lima, 2023).
É importante destacar que esse trabalhador sazonal é altamente demandado no cultivo
do cacau durante a safra. Embora seja responsabilidade do proprietário contratá-lo e pagar por
seus serviços, muitas vezes são os próprios meeiros que o contratam para atender a uma
demanda excessiva. Essas contratações são feitas de maneira informal, sem a formalização de
um contrato, e o pagamento é realizado pelos meeiros. Além disso, quando esse trabalhador é
contratado pelos meeiros, ele acaba se tornando mais uma vítima do trabalho análogo à de
escravo.
Outro tipo de trabalhador rural não empregado é boia-fria ou volante. Segundo Vólia
Bonfim Cassar, este é o trabalhador eventual que aceita qualquer tipo de serviço, quando for
necessário ou em qualquer momento, podendo ser realizado em qualquer lugar para a pessoa
que possa lhe fornecer o melhor pagamento. Essa boia-fria não tem o empregador rural e não
há repetição do serviço, faltando assim o requisito da pessoalidade, impedindo a formação do
vínculo de emprego com o tomador. Na maioria dos casos esse tipo de trabalhador rural que é
incorporado para o trabalho escravo no Brasil, em pleno século XXI (Cassar, 2018).
Sobre o requisito da pessoalidade sabe-se que existe a obrigação do trabalhador de
prestar serviços pessoalmente ao empregador. Isso significa que o contrato de trabalho é
estabelecido baseado na relação entre o trabalhador individual e o empregador, exigindo que o
próprio trabalhador execute as tarefas acordadas, não podendo transferir sua obrigação de
trabalho para outra pessoa sem o consentimento do empregador. No entanto, de fato, esse
requisito não se encontra presente na situação acima, e isso se torna um veículo para que
muitos trabalhadores acabam sendo recrutados para a realização do trabalho escravo, sem o
vínculo empregatício trabalham no cultivo do cacau oferecendo seus serviços para diversas
plantações, com o objetivo de complementar suas rendas, e os meeiros também se incluem
nessa situação, trabalhando nas fazendas das imediações, podendo ser identificados como
boias-frias ou volantes nesse contexto.
O nome boia-fria, que demonstra teor pejorativo e discriminatório, lamentavelmente
ainda se utiliza na atual sociedade e nomina o trabalhador que prestar serviços de maneira
eventual e temporária, com ausência de vínculo com o tomador. Em regra, são classificados
37
como safristas, tendo em vista que são considerados empregados, exceto se a realidade
demonstrar que o trabalho é meramente eventual. As tarefas desse trabalhador geralmente são
braçais, simples e rústicas, podendo facilmente ser enquadrada a subordinação nas atividades
rurais do tomador de serviços, sendo qualquer atividade, pelo que se presume (Lima, 2023).
Cabe ressaltar que as categorias de trabalhadores rurais no campo muitas vezes não
são bem definidas. Ao oferecer seus serviços em várias plantações, esses trabalhadores não
têm a opção de escolher quem paga melhor, pois todos na região tendem a oferecer salários
muito baixos. No entanto, eles buscam essas oportunidades para complementar suas rendas,
uma vez que já são explorados nas fazendas onde atuam como meeiros. É crucial ter em
mente que as relações entre trabalhadores rurais e proprietários frequentemente ocorrem com
a clara intenção de mascarar um verdadeiro vínculo empregatício por parte do empregador.
No entanto, os direitos dos trabalhadores rurais são assegurados pelas leis e pela Constituição
de 1988.
Posto isto, cabe enfatizar que os trabalhadores rurais tiveram seus direitos equiparados
aos direitos dos urbanos com a Constituição da República em 1988, estendendo aos rurais o
direito a: previdência social; aviso prévio proporcional ao número de anos de serviço
prestado, de no mínimo 30 e máximo de 90 dias, obtendo um dia de folga por semana para
buscar novo emprego; adicional noturno de 25%, sendo na atividade de agricultura
considerado o período das 21h às 5h; pagamento de 13º salário e férias proporcionais, abono
de férias e FGTS, e no caso de rescisão antecipada pagamento direito ao saque do FGTS e
multa de 40%; no caso de contrato por pequeno prazo, deverá ter expressa autorização em
convenção coletiva, identificação do trabalhador do produtor rural e do imóvel onde o
trabalho será realizado, anotação em carteira de trabalho e contrato por escrito, caso o limite
estipulado na lei seja superado, esse contrato será convertido em contrato por prazo
determinado, pois essa modalidade assegura os mesmos direitos dos demais trabalhadores
rurais; trabalho de menor proibido até 16 anos, e entre 16 a 18 anos é permitido, desde não
seja realizado em horário noturno, insalubre, perigoso ou penoso (Brasil, 2019).
Apesar das dificuldades enfrentadas, os trabalhadores rurais têm direito a uma série
de garantias legais, que devem ser respeitadas pelos empregadores. É fundamental que esses
direitos sejam cumpridos e que medidas sejam tomadas para combater a exploração e
promover melhores condições de trabalho para esses profissionais.
38
Para ajuizar uma ação trabalhista ou penal que envolve o caso de trabalho análogo à de
escravo, é natural imaginar a competência de vários órgãos, tendo em vista a complexidade do
crime e a variedade de matérias para fundamentar o processo.
A ação trabalhista contra uma pessoa física ou uma empresa, que envolvem sanções
penais individualizadas, com a obrigação de pagamento de verbas trabalhistas com caráter
salarial e indenizatórias ao empregado, sendo a vítima de crime de trabalho escravo,
juntamente com as contribuições previdenciárias e as multas resultantes das fiscalizações
realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego será discutida e julgada na mesma ação,
perante a Justiça do Trabalho (Souza; Lebre, 2017).
Já no caso de crimes de redução à condição análoga à de escravo, segundo a juíza
federal Louise Vilela Leite Filgueiras é de competência da Justiça Federal, tendo em vista que
ofende o bem jurídico da liberdade individual e afeta a organização do trabalho, situação
reconhecida pela jurisprudência. Já a Justiça do Trabalho, atua no sentido de garantir direitos
aos trabalhadores, como pagamento de indenizações, verbas rescisórias e FGTS, àqueles que
se submeteram em situações degradantes. Segundo o Desembargador Lorival Ferreira dos
Santos, do TRT15, explica que a competência da Justiça do Trabalho, de acordo com o art.
114 da CRFB/88, julga a relação de emprego e os conflitos decorrentes da relação de trabalho,
bem como a responsabili a o pela ofensa aos direitos fundamentais como a indeni a o do
dano moral individual ou coletivo da relação contratual (Brasil, 2023d, p. 7-8).
Sobre as fiscalizações, verifica-se que não são executadas apenas por um órgão, pois o
combate ao trabalho análogo à escravidão está intrinsecamente ligado a uma efetiva
fiscalização trabalhista. No Brasil, os responsáveis por essas tarefas são os auditores fiscais do
trabalho, vinculados ao Ministério do Trabalho e Previdência e pelos procuradores do
trabalho, servidores do Ministério Público do Trabalho. A atuação do primeiro órgão é
realizar a fiscalização administrativa, que se trata da via extrajudicial. Já o Ministério Público
do Trabalho não pertence a nenhum dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, pois se
trata de um órgão autônomo, pertencendo ao Ministério Público da União, sendo o
responsável por ajuizar ações judiciais, com base nas irregularidades, que podem ser
modificadas ou corrigidas pelas empresas. A fiscalização é uma inspeção realizada em
qualquer empresa. Sendo um protocolo comum, tem o intuito, por meio dos órgãos
trabalhistas, garantir que a legislação seja respeitada e cumprida.
39
O MPT, como um dos ramos do Ministério Público da União, tem atuado de forma
mais próxima no enfrentamento do combate ao trabalho análogo à de escravo, com relação ao
Ministério Público Federal. O MPT juntamente com o Ministério do Trabalho, ocupa
fundamental papel na execução dessa política, por meio da atuação dos Procuradores do
Trabalho no viés judicial e extrajudicial (Santos, 2018).
Na realidade o MPT possui um papel crucial no combate ao trabalho análogo à
escravidão no sentido de atuar contra a violação de direitos, indispensáveis para o indivíduo e
para a coletividade. Conforme previsto na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, em seu
art. 736 o Minist rio P blico do Trabalho é constituído por agentes diretos do Poder
Executivo, tendo por função zelar pela exata observância da Constituição Federal, das leis e
demais atos emanados dos poderes p blicos, na esfera de suas atribui es . Al m disso, o
parágrafo único elucida que para o exerc cio de suas fun es, o Minist rio P blico do
Trabalho reger-se-á pelo que estatui esta Consolidação e, na falta de disposição expressa,
pelas normas que regem o Minist rio P blico Federal (Brasil, 2023a).
Na atuação judicial, o papel dos procuradores do trabalho é relevante para a repressão
do trabalho análogo à escravidão no país, por meio das ações cautelares e condenatórias que
movem na justiça do trabalho. As ações cautelares objetivam garantir, via provimento
jurisdicional urgente, uma efetiva decisão judicial futura. Nesse sentido, cabe aqui a adoção
de medidas judiciais como arrestos, sequestros e até mesmo a produção antecipada de provas,
entre outras medidas. No entanto, também podem atuar no âmbito extrajudicial, nas operações
de fiscali a o em procedimento como custos legis ou rg o interveniente, de acordo com a
situação. Durante esse procedimento, os procuradores ouvem as testemunhas e fazem o
acompanhamento das equipes de fiscalização. Caso seja necessário, podem ajuizar ações
cautelares para garantir os direitos urgentes das vítimas (Santos, 2018).
Os procuradores atuam em conjunto com as autoridades participantes da inspeção,
juntamente com as tratativas com os exploradores de mão de obra escrava. Suas competências
durante o procedimento é definir os valores devidos pelo dano moral individual e coletivo que
se trata da violação dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Ademais, podem firmar
Termos de Ajustamento de Conduta com a determinação de cláusulas obrigacionais para o
empregador pagar, fazer ou não fazer de acordo com o caso concreto. De acordo com o art.
83, XII, c/c o art. III, podem instaurar procedimentos de investigação a fim de colher
informações pertinentes às violações dos direitos fundamentais que se caracterizam como
trabalho análogo à escravidão. Nesse sentido, podem instaurar os inquéritos civis a fim de
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colher provas e instruir as ações civis públicas para a condenação desses exploradores da mão
de obra análoga à escravidão (Santos, 2018).
Nesse contexto, pode-se afirmar que o MPT não tem competência para julgar as ações
relacionadas ao caso de trabalho análogo à de escravo, mas fiscaliza o cumprimento da
legislação trabalhista. Em suma, tem a missão de atuar na defesa dos direitos difusos e
coletivos dos trabalhadores, e em direitos individuais homogêneos com significativo valor
social, na esfera das relações de trabalho. Esse ramo do Ministério Público, não atua na defesa
dos demais direitos meramente individuais e na realidade quem vai atuar sobre causas
trabalhistas será a Justiça do Trabalho.
Pois bem, após essa elucidação, uma situação que se demonstra polêmica é a razão da
justiça do Trabalho não julgar casos pertinentes ao trabalho análogo à de escravo, uma vez
que o empregado envolvido pode ser vítima desse crime, além de ser vítima de fraude no
contrato de trabalho e infrações administrativas. Na realidade, seria de elevada eficiência, se o
sistema de justiça, tivesse, na Justiça do Trabalho a competência para processar e julgar as
ações no caso supracitado, a fim de reprimir as condutas do art. 149 do CP, como também
crimes contra a organização do trabalho, previsto no art. 203 do CP (Souza; Lebre, 2017).
Nesse sentido, observa-se que a redação da Emenda Constitucional n.45, quando
menciona o art. 114 da CRFB/88, salienta a respeito da evolução da competência trabalhista
ao falar do nexo de causalidade com o contrato de trabalho. A relação de trabalho que for
convertida em uma lide deverá ser ajuizada, processada e julgada pela Justiça do Trabalho.
Sendo que essa é uma tendência constitucional, retratada pelo Congresso Nacional, se
tratando de uma justiça especializada, onde se julga casos que envolvem direitos
personalíssimos (direito civis), e fazem execuções tributárias de contribuições sociais e das
multas provenientes dos autos de infração à CLT (Souza; Lebre, 2017).
A EC 45, que estabeleceu a competência da Justiça do Trabalho para julgar casos de
trabalho análogo à escravidão, deveria ser respeitada pelas razões apresentadas. Pois, ela
possui conhecimento aprofundado sobre a realidade do crime citado, visto que julga outros
crimes relacionados a essa prática. Centralizar todos os processos e crimes em uma única
jurisdição seria altamente eficiente para agilizar o andamento dos casos, atendendo à
necessidade de celeridade processual. Além disso, essa abordagem conjunta permitiria que as
vítimas recebessem todas as reparações necessárias de forma abrangente.
Embora o crime de trabalho análogo à escravidão seja tipificado no âmbito do direito
penal, existem diversos fatores que o relacionam diretamente ao campo trabalhista. Há uma
clara relação de trabalho que envolve o crime, estabelecendo um nexo de causalidade.
41
Portanto, é plausível que a competência para julgar esses casos seja atribuída à Justiça do
Trabalho.
Ao permitir que a Justiça do Trabalho seja responsável pelo julgamento dos crimes de
trabalho análogo à de escravo, garante-se uma abordagem especializada e mais efetiva na
proteção dos direitos dos trabalhadores e na responsabilização dos infratores.
42
Naquela época, o escravo não era categorizado como ser humano, tratado como uma
coisa correspondia a uma propriedade privada, que permitia ser vendido, alugado,
emprestado, trocado por outros escravos e até por animais, por bens móveis, entre outros. A
escravidão colocava o indivíduo ou um grupo na obrigação de servir, sob coação, uma pessoa,
esta que exercia direito de propriedade, estando permitido se apropriar da totalidade do
produto do trabalho e usá-lo como mercadoria, sem considerar qualquer autonomia ou
dignidade desse ser como indivíduo (Silva, 2008). A escravidão era apoiada pelo Estado,
estando presente mais especificamente no período colonial e monárquico. No entanto, com a
sua abolição no século XIX, a escravidão deixa de existir, passando a ser uma prática proibida
e ofensiva ao ser humano.
O chamado trabalho análogo à escravidão se distingue da escravidão mencionada,
mas ambas ofendem a dignidade da pessoa humana, estando em desarmonia com o princípio
da valorização social do trabalho (Garcia, 2021). Atualmente, considera-se inadequado o uso
da expressão trabalho escravo, exatamente por essa prática ter sido extinta e proibida. Deve
ser utilizado o termo trabalho análogo à escravidão ou trabalho análogo à de escravo que de
fato apresenta um delito existente e tipificado no Código Penal Brasileiro.
Cabe reforçar que a escravidão no Brasil não é mais visualizada em seu sentido
histórico, mas vista numa perspectiva contemporânea, sendo decorrente da fragilidade de
trabalhadores (podendo ser rurais, domésticos, estrangeiros irregulares), que ao buscar atingir
suas necessidades basilares, são induzidos a exceder, contra sua vontade, os limites de sua
própria dignidade. Nesse sentido, o conceito atual de trabalho escravo está relacionado à
submissão do trabalhador ao: trabalho forçado, quando há ameaça de sanção, retenção do
operário no local pelo cerceio de meio de transporte, pela vigilância do local de trabalho e
pelo apoderamento de documentos do trabalhador; trabalho indecente, quando há jornadas
exaustivas, remuneração inadequada e trabalho indigno; trabalho degradante, quando estão
ausentes as garantias de saúde e segurança no ambiente de trabalho, ocorrendo o desgaste
físico pelo contato indevido e sem proteção aos agentes físicos, químicos e biológicos nocivo
à saúde, e a degeneração moral que envolve atividade penosas ou humilhantes (Martinez,
2020).
Nesse viés, a proteção do trabalho livre está salvaguardada na legislação brasileira,
bem como abordada pelos tratados internacionais de direitos humanos pertinentes à proibição
do trabalho análogo à escravidão. Cabe informar que o ordenamento jurídico brasileiro
incorporou importantes conceitos estabelecidos pela ONU e pela OIT através da ratificação de
tratados no país. A própria Constituição Federal de 1988 recepcionou determinados
44
Já nos anos 2000, o Protocolo de Palermo, veio para prevenir, suprimir e punir o
Tr fico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crian as ou Protocolo do Tr fico . Esse um
dos protocolos suplementares à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional, que criminaliza o tráfico de pessoas voltado a qualquer forma de exploração
sexual. Esse protocolo está em vigor na esfera internacional desde 2003, sendo ratificado pelo
Brasil (Brasil, 2004). Ressalta-se que o aliciamento de trabalhadores rurais no Brasil e de
trabalhadores estrangeiros irregulares no intuito de submetê-los ao trabalho em condição
análoga à de escravo iguala-se defini o de tr fico de seres humanos nele contida (Brasil,
2011, p. 9-10).
Ressalta-se que a supracitada Convenção sobre Trabalho Forçado, datada de 1930
(Convenção nº 29) da OIT, resultou em algumas atualizações, o que fortaleceu as disposições
para lidar com diversas formas de trabalho forçado, incluindo o trabalho escravo
contemporâneo. Ocorre que, o Protocolo de 2014 à Convenção nº 29 da OIT revogou as
disposições transitórias expostas no artigo 1º, §§ 2º e 3º, e os artigos de 3 a 24 da Convenção
nº 29 (artigo 7º), situações permissivas referentes ao emprego do trabalho forçado com
propósitos públicos e a título excepcional. Por meio desse Protocolo de 2014, a OIT
reconhece a proibição de todas as formas de escravidão, desse modo, impõe a respectiva
observância aos Estados-membros (Escravidão..., 2023).
Ademais, ainda no âmbito internacional, cabe citar a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, tendo em vista sua previs o no artigo IV, em que ningu m ser
mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em
todas as suas formas . Para mais, prev em seu artigo XXIII, do item 1, que toda pessoa tem
direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à
proteção contra desemprego (ONU, 1948). Com isso, o trabalho degradante, que tem como
caraterística as péssimas condições de labor, sem a observação das normas de segurança e
medicina do trabalho, também é identificado como uma das modalidades do trabalho análogo
à escravidão (Garcia, 2021).
No âmbito nacional, a Constituição de 1988, também conhecida como Constituição
Cidadã consolidou a garantia dos direitos individuais e coletivos, além de viabilizar a
ampliação e proteção dos direitos sociais como o direito ao trabalho e as garantias
constitucionais trabalhistas, colocou em igualdade de direitos os trabalhadores urbanos e
rurais, edificando também o direito dos trabalhadores domésticos. Assim, além da
institucionalização de um regime político democrático e ter sido um avanço em relação às
46
terras que busca lucro com a produção versus trabalhador que busca sustento próprio ou
familiar), há uma clara demonstração da fragilidade do meeiro outorgado devido à sua
hipossuficiência, tornando-o vulnerável à exploração pelo meeiro outorgante. Portanto, a
afirmação de que o contrato rural é uma sociedade só é válida em situações em que os
parceiros estão em níveis semelhantes de esforço, interesses e recursos.
Nas lavouras de cacau, a relação de trabalho é estabelecida por meio do contrato de
parceria rural, mas na prática, fica evidente a tentativa de encobrir um verdadeiro vínculo
empregatício, caracterizando uma fraude para evitar o cumprimento dos direitos trabalhistas
por parte do fazendeiro, que atua de forma dissimulada. Consequentemente, o fazendeiro pode
ser responsabilizado por irregularidades trabalhistas e até criminalmente pela prática de
trabalho análogo à escravidão.
Os meeiros se enquadram na categoria de trabalhadores rurais e são regidos pela Lei
5.889/73, ao serem constatadas as irregularidades em seu ambiente de trabalho, devem ser
indenizados com todos os direitos trabalhistas. Já no caso dos safristas e boias-frias, em que
não há relação de emprego, dado que são contratados para a realização de tarefas, não deixam
de ser trabalhadores rurais, e por isso, o enquadramento legal também será a Lei supracitada,
e no caso de irregularidades no trabalho também serão amparados com todas as indenizações
pertinentes.
As responsabilidades trabalhistas dizem respeito ao conjunto de obrigações que o
empregador precisa cumprir aos seus funcionários, para assegurar a eles direitos e respeito às
normas trabalhistas vigentes. Essas responsabilidades compreendem registro do empregado,
pagamento de salários e outras remunerações, controle de jornada de trabalho para assegurar o
cumprimento da legislação e pagamento de horas extras, férias remuneradas e período anual
de descanso, segurança e saúde no trabalho, pagamento da previdência social como FGTS,
13º salário e licenças necessárias. Todos esses direitos devem ser assegurados ao trabalhador
rural, e não havendo a observância desses requisitos, o empregador estará sujeito a sanções e
penalidades na esfera civil e penal.
Nesse sentido, constatadas a prática de trabalho análogo à de escravo, o empregador
será condenado ao pagamento de salários com valores atualizados, considerando o salário
mínimo vigente do período em questão, além do pagamento de remunerações que foram
estabelecidas no contrato.
Sobre a jornada de trabalho, caberá indenizações aos empregados, quando constatadas
jornadas exaustivas, sem intervalo, o que contraria a lei. A interjornada é assegurada para o
trabalho superior a seis horas, sendo obrigatória a concessão de intervalo para alimentação de
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pelo menos uma hora, com horários de uso e costumes da região, conforme previsto no art. 5º
da Lei 5.889/73 c/c o art. 5º, §1º, do Decreto Complementar. Além do mais, como a lei rural
não prevê o limite máximo para intervalo intrajornada daquele que trabalha mais de 6 horas,
entende-se que deve ser considerado o art. 71 da CLT, que há limite máximo de 2 horas,
exceto para os trabalhos intermitentes, quando a lei tem regra própria. O pagamento de horas
extras também deve ser verbas indenizatórias, o trabalho noturno também deve ser
considerado quando executado das 21h às 5h, na qual será contabilizado o adicional noturno
de 25%, conforme art. 7º, parágrafo único, da Lei 5.889/73 (Cassar, 2018).
Verifica-se que os meeiros exercem jornadas exaustivas, com ausência de férias, sendo
que é uma responsabilidade do empregador assegurar esse direito, tanto de férias
remuneradas, como do período de descanso anual aos empregados, conforme previsto nos
arts. 129 a 153 da CLT. Por essa razão, esse tipo de verba se inclui na indenização trabalhista.
No contexto da segurança e saúde no trabalho, é observado que os cacauicultores estão
expostos aos diversos agentes químicos nocivos à saúde, como os agrotóxicos.
Preocupantemente, esses produtos são aplicados nas lavouras sem o uso adequado de
equipamentos de proteção individual. Além disso, alguns trabalhadores armazenam esses
produtos em suas próprias residências, sem seguir protocolos mínimos de segurança, o que
representa um perigo para toda a família que vive no local. Se tratando de algo recorrente
nessas lavouras, cabe ao proprietário da fazenda, a responsabilidade de oferecer os EPIs aos
trabalhadores, sob pena de responder por danos conforme previsto no art. 7º, inciso XXII da
CRFB/88, art. 200, inciso VIII, art. 225, §3º, da CRFB/88, além das Normas Reguladoras
Rurais, estabelecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Assim, o empregador que descumprir esses dispositivos estará sujeito a sanções e
penalidades, na esfera civil e penal, como obrigação de indenizar os trabalhadores pelos
prejuízos causados como adicional de insalubridade, danos materiais, morais e até pensão
vitalícia em casos mais graves. Além das sanções administrativas como multas aplicadas por
cada trabalhador afetado, poderá responder por expor o indivíduo ao trabalho degradante,
sendo uma proibição prevista na Constituição de 1988, art. 5º, III. A esse respeito, colhe-se do
seguinte julgado:
Como muitos meeiros trabalham a vida toda nas lavouras sem o registro na CTPS,
permanecem sem seus direitos de aposentadoria, sem o FGTS e sem direito ao PIS. Cabe
elucidar que a Constituição de 1988 garante aos rurais esses direitos. Além da previsão de 13º
salário e licença maternidade, paternidade, entre outros, conforme já mencionado. Ausentes
esses direitos, o empregador poderá responder por danos e sofrerá multas pelo não registro
dos empregados.
Nesse sentido, o empregado resgatado por ser vítima de trabalho análogo, caso seja da
vontade dele permanecer trabalhando no local, situação recorrente nesse ramo de trabalho, o
empregador deverá regularizar a situação trabalhista de todos os empregados, fazer o registro
do empregado da CTPS, recolher as contribuições previdenciárias e demais encargos sociais,
como FGTS e se atentar a todos os direitos apresentados anteriormente. Além de pagar as
devidas multas e indenizações por cada irregularidade apresentada.
Já na esfera penal, quando o empregador é flagrado reduzindo o trabalhador ao
trabalho forçado, com jornada exaustiva e condição degradante responderá pelo crime de
trabalho análogo à de escravo, com base no art. 149 do CP, com pena de reclusão, de dois a
oito anos, multa e pena correspondente à violência. Além disso, de acordo o §2º, inciso I, caso
haja a presença de menor trabalhando, como criança ou adolescente, a pena é aumentada de
metade (Brasil, 2023c). O trabalho infantil geralmente é utilizado nas lavouras de cacau,
sendo uma prática habitualmente desempenhada pelos fazendeiros e permitida pelos próprios
pais, que optam por esse sistema a fim de garantir o sustento da família. Porém, a obrigação
do empregador é impedir que essa prática seja aplicada em sua propriedade.
No que se refere às condições mínimas de saúde e segurança, higiene, respeito e
alimentação, verifica-se que no caso estudado, as condições de habitações dos trabalhadores
são precárias, as casas que são construídas com madeira simples e rústicas não possuem água
potável para ingestão, dado que há necessidade de buscar em outro local da fazenda, mas que
também não há qualquer tipo de tratamento. Muitas casas são desprovidas de banheiro, e as
famílias precisam improvisar do lado de fora, em alguma parte do mato. Todos os objetos que
necessitam para o trabalho devem ser comprados na própria fazenda que é vendido pelo
propriet rio ou por um atravessador, sendo esse valor descontado quando recebem o lucro
da produção final. Essas causas indicam que não há menor respeito à dignidade das pessoas
52
Outro quesito recorrente se trata da servidão por dívida dos trabalhadores. Essas
pessoas são persuadidas a comprar alguns itens necessários em mercados fixados no próprio
local de labuta, ou por uma questão geográfica, já que as lavouras se localizam em regiões de
difícil acesso, ou por uma questão de obrigação, na medida em que os produtos adquiridos
possuem valores elevados, situação que conduz o trabalhador a comprar e pagar
posteriormente, aumentando cada vez mais suas dívidas, o submetendo ao trabalho penoso
para quitar um montante que nunca se encerra. Essa condição também os impede de buscar
outras possibilidades de trabalho, já que se encontram impedidos de deixar o local enquanto
não cessar suas dívidas.
Nesse viés, o cerceamento da liberdade de locomoção do indivíduo, não se faz conduta
imprescindível para a ofensa à liberdade na caracterização do trabalho análogo ao de escravo,
pois a violação do bem jurídico, como a dignidade já é elemento para isso. Ademais, as
condutas alternativas já têm o condão de configurar este crime, como trabalhos forçados ou a
jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho, conforme previsto no art. 149 do
CP. O presente tema já foi pacificado em termos jurisprudenciais, veja-se:
Constituição Federal. O que consta no direito de propriedade, previsto no art. 5º, inciso XXII,
da mesma Constituição, é que deve ser exercido de modo lícito, não abusivo, para que se
atenda a função social (art. 5º, inciso XXIII, art. 170, Inciso III, da CF/1988), situação
divergente no caso da utilização para o uso de trabalho análogo à de escravo (Garcia, 2021).
A este respeito, recentemente, a Comissão de Direitos Humanos (CDH) aprovou, no
dia 12 de abril de 2023, o projeto que regulamenta a expropriação de imóveis urbanos e rurais
caso constatados a prática do trabalho análogo à de escravo. De acordo com a sugestão da
senadora Soraya Thronicke, do União Sul-mato-grossense, a expropriação só acontecerá após
a sentença condenatória em que não caiba mais recurso, ou seja, após o trânsito em julgado da
sentença penal condenatória ou na Justiça do Trabalho pelo crime de redução à condição
análoga à de escravo previsto no artigo 149 do Código Penal (Borges, 2023).
Conforme demonstrado, são diversos os dispositivos que asseguram a proteção ao
empregado, e mesmo na tentativa de fraudar um vínculo empregatício, no caso de exploração
abusiva da mão de obra é possível essa constatação numa análise perspicaz dos elementos
presentes. Sendo assim, destaca-se que o empregador que explora o trabalho escravo atual
responderá por sanções e penalidades que podem variar de acordo com a infração e gravidade
dos danos causados.
que a empresa não emprega nem mantém vínculo com o trabalhador rural. Além disso, as
empresas parecem ignorar as atividades realizadas nas lavouras. No entanto, ao aprofundar a
análise, torna-se evidente que essas grandes empresas não apenas têm conhecimento da
exploração na base da produção, mas também financiam essa prática ao adquirirem as
amêndoas a preços extremamente baixos. Essa aquisição não é feita diretamente, exigindo a
presença de intermediários para estabelecer a ligação entre as processadoras e os agricultores.
Uma situação lamentável é que o atravessador tem o controle da vida e morte das
famílias produtoras de cacau. Esse intermediário está a serviço das grandes empresas
moageiras, as processadoras do cacau, e seu objetivo não é ajudar as famílias, mas sim obter o
cacau pelo menor valor possível. Existe uma rede de atravessadores. Em algumas localidades
os pequenos atravessadores possuem um caminhão para a realização do transporte do cacau,
que leva para um armazém, em alguns casos o agricultor entrega diretamente para esses
armazéns, são dezenas nos municípios onde há produção. No Pará, a entrega é feita em
Altamira, e esse atravessador entrega para as grandes processadoras, localizadas no sul da
Bahia, onde há concentração do processamento de cacau no país (Console, 2018).
Ocorre que esses atravessadores também possuem um comércio local, funcionando
como uma pessoa jurídica e compondo esse emaranhado de empresas envolvidas na
exploração da mão de obra dos produtores juntamente com as indústrias moageiras e as
principais multinacionais que confeccionam o cacau para a produção do chocolate e demais
guloseimas.
O maior desafio é que, sob o ponto da técnica legislativa em responsabilizar
penalmente a pessoa jurídica pelo crime de redução à condição análoga à de escravo, é fato
que o sujeito ativo previsto no art. 149 do CP, só pode ser a pessoa física. No entanto, apesar
de existir essa impossibilidade técnica, não se pode simplesmente transferir a
responsabilidade, ou a autoria desse crime para as pessoas físicas que representam a pessoa
jurídica, sem demonstrar a atuação personalíssima e voluntária do dirigente, mesmo baseado
em fatos, pela força dos princípios da responsabilidade pessoal e da responsabilidade
subjetiva. Pois há entraves dogmáticos para responsabilizar penalmente as empresas, tendo
em vista que a interpretação e aplicação do Direito Penal se fundamenta na tradicional teoria
do crime (Souza; Lebre, 2017).
Para que ocorra a ação ilícita, para a teoria do crime, o dolo ou a culpa e tal fato não
concilia com a responsabilidade penal da Pessoa Jurídica, pois esta não tem capacidade de
realizar ato por ela própria. Todavia, essa conjuntura não pode funcionar como empecilho
para a aplicação da responsabilidade penal. Cabe fazer algumas adaptações da dogmática
56
penal para a efetivação de interpretações e aplicações do art. 149 do CP, visto que há uma
sanção inaplicável à PJ, que é a pena privativa de liberdade (Netto, 2022).
Existe na tradição do Direito Penal brasileiro a exigência do dolo ou culpa para haver
a ação criminosa, bem como da consciência da ilicitude, da exigibilidade de conduta de
acordo com o direito e da imputabilidade para conferir a culpabilidade. Isso é incompatível
com a responsabilidade da pessoa jurídica, tendo em vista que ela não tem capacidade de
ação, de capacidade de culpabilidade e capacidade de pena. Na realidade o obstáculo de
imputar a PJ se encontra em sua incapacidade de praticar uma ação, de ser culpada e sofrer
penalidades. Por isso, se torna incabível a aplicação e interpretação do art. 149 do CP,
baseado na tradicional teoria do crime (Souza; Lebre, 2017).
Cabe ressaltar que esse entrave se faz presente nos diversos casos que envolvem
trabalho análogo à de escravo nas inúmeras cadeias produtivas no Brasil, tal qual ocorrido no
Rio Grande do Sul, nas lavouras de laranja, maçã e uva da Serra Gaúcha. O fato é que o crime
previsto no art. 149 do CP não admite a figura culposa, isso significa que precisa ter que
ocorrer um dolo direto e específico ao ponto de impedir a liberdade e impor à vítima
condições degradantes e desumanas em sua labuta. Desse modo, para que os sócios ou
responsáveis das empresas vinícolas pudessem responder com sanções de natureza criminal
pelos fatos, caberia a necessidade de comprovação da ação ou omissão atribuídos a um dolo
específico que causaram aquele resultado e tivessem tido uma relação direta na submissão
daqueles trabalhadores à condição de trabalho análogo à escravidão por meio da obrigação de
jornada exaustiva, trabalho forçado, restrição de liberdade de locomoção ou imposição de
condições degradantes de trabalho (Villela; Barbosa, 2023).
Não obstante, esses reveses não podem funcionar como desígnio da não punibilidade
das pessoas jurídicas. Constata-se que na própria Constituição há previsão legal de imputar a
PJ nos casos de crimes ambientais, em consonância com a Lei n° 9.605/98, que confere pena
restritiva de direito em seu art. 22, como I - suspensão parcial ou total de atividades; II -
interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; III - proibição de contratar com o
Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações (Brasil, 2014b).
Ademais, haverá suspensão de atividade caso estas estiverem em desarmonia com as normas
legais, pertinentes à proteção ambiental, bem como haverá interdição do estabelecimento,
obra ou atividade caso funcione sem o devido funcionamento ou autorização em relação ao
que foi concedido, ou se estiverem presentes violação da norma legal (Brasil, 2023b).
Verifica-se que o aumento da globalização econômica e social, potencializada pelas
tecnologias, contribui para originar a criminalidade no viés empresarial. A empresa é a
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estrutura de onde a criminalidade econômica pode surgir, o que justifica sua responsabilidade
penal. No entanto, há outro dispositivo que ressalta a responsabilidade penal da PJ, apesar de
não ser regulamentado, a CF/88, em seu art. 173, §5º, prevê a responsabilidade por meio dos
crimes econômicos. A escolha se constata diante da pequena eficácia da sanção de caráter
administrativo e trabalhista, aplicado aos entes morais, referentes aos delitos com motivação
econômica. Por isso, a afirmação de que bastam aplicar sanções extrapenais para punir delitos
das pessoas jurídicas não é algo incomum. Mas essa tese não apresenta coerência, tendo em
vista que o crime previsto do art. 149 do CP, carrega uma carga social muito alta, que é a
escravidão do indivíduo (Souza; Lebre, 2017).
Essas previsões demonstram que a pessoa jurídica poderá ser responsabilizada pelos
crimes ambientais e econômicos cometidos. Isso quer significar que submeter uma pessoa à
condição análoga à de escravo não poderá ser imune para a PJ, ainda mais porque se trata de
um crime que manifesta elevado sofrimento humano e que nas centenas de casos são
cometidos por empresas de variados setores como o comercial, industrial e agropecuário.
No setor cacaueiro, é comum observar as inúmeras propagandas das grandes marcas
em promover suas práticas de boa conduta, no combate da desigualdade social, do
desmatamento, e trabalho infantil. Os sites dessas multinacionais indicam que elas realizam o
monitoramento da cadeia produtiva, mas ao verificar as práticas que dizem adotar, de fato elas
não fazem. Pois, os relatórios de sustentabilidade e responsabilidade social dessas empresas
indicam que elas não utilizam mão de obra escrava e tampouco trabalho infantil em suas
cadeias produtivas, adotando uma série de protocolos como enfrentamento da questão
(Console, 2018).
Indubitavelmente que a responsabilidade de mudar esse quadro, primeiramente é das
empresas, mas se a preocupação é apenas lucrar com o sofrimento das pessoas, outras
medidas devem ser adotadas para combater de fato essa perversidade. Sabe-se que a
incriminação dos reais responsáveis por esse delito nem sempre é possível, pois há
dificuldade de apurar a responsabilidade dos sujeitos ativos, e ainda pode acontecer da estrita
imputação direcionada à pessoa física envolver funcionários subalternos, que para evitar
retaliações, acabam não incriminando seus superiores. Além do que, a punição de funcionário
não importa, pois o intuito das empresas é a continuidade de sua atividade econômica (Souza;
Lebre, 2017).
Para se entender quão complexa é essa situação, verifica-se uma intensa ação das
empresas que aliciam trabalhadores em toda parte do Brasil para realizar mão de obra barata,
degradante e exaustiva, exercendo a típica escravidão moderna. São inúmeras denúncias,
58
reportagens, artigos que dimensionam a adoção dessa prática pelas multinacionais. Mais uma
vez a queixa se dá pela dificuldade da responsabilização por esse crime. Segundo o
procurador do MPT de Goiás, Tiago Cabral, são diversos problemas enfrentados nas
condenações criminais, sendo o principal a jurisdição. Ainda reforça que em fevereiro de
2023, mais de 150 trabalhadores foram resgatados por trabalho análogo à de escravo em uma
usina de cana-de-açúcar, porém, a empresa é uma multinacional francesa, e a questão é que
precisa estar pessoalmente envolvido, tendo em vista que responsabilidade penal é subjetiva,
além disso, existe uma empresa terceirizada na contratação (Wolff, 2023).
Esse cenário assemelha-se à cadeia produtiva do cacau, em que multinacionais estão
envolvidas e se beneficiam do trabalho análogo à escravidão. No entanto, devido à falta de
transparência e à dificuldade em identificar as pessoas físicas diretamente envolvidas, as
empresas conseguem se distanciar da responsabilidade legal. Por isso, é essencial desenvolver
mecanismos robustos para responsabilizá-las de forma adequada.
Nesse sentido, a incriminação da pessoa jurídica pela exploração ilegal e abusiva do
trabalho humano, se origina não apenas como punição pertinente a conduta prejudicial da
liberdade individual, mas sim como prevenção desse crime, que é uma função fundamental da
sanção penal. Desse modo, como prevenção, esse crime nas relações de trabalho deve ser
analisado pelo viés capitalista, tendo a sanção penal funcionando com a lógica do mercado
capitalista para desencorajar a prática do delito e conceder proteção liberdade individual nas
relações de trabalho (Souza; Lebre, 2017).
Na realidade deve-se observar que a responsabilidade penal da PJ é decorrente de
opção político criminal para a possibilidade de estratégia de combate à criminalidade
moderna. Esse não é um posicionamento aleatório, irrefletido ou inconsequente, mas sim, se
trata de uma postura diante do fato social, que é legítima e que deve ser verificada. O
operador do Direito não deve deixar de atender à opção política que foi acolhida pelo Direito
positivo. Considerar inadequada é viável, mas no Estado Democrático de Direito, o que deve
ser feito é observar a norma jurídica. Já o doutrinador, deve traçar o caminho teórico
suficiente ao ponto de dar sustentação à vontade política, direcionando a realização prática da
opção política. A meta da ciência jurídica consiste nisso (Galvão, 2017).
Com isso, decorrente de uma opção política, a responsabilização depende de
modificações da dogmática penal clássica tanto em sua interpretação, como em sua aplicação.
Sendo assim, o injusto penal deverá ser compreendido baseado na ação juridicamente
relevante, com fundamento na sua responsabilidade social. Assim, a ação com relevância
penal se tratará da violação do papel social determinado pela norma penal. Sendo assim, a
59
empresa será capaz de realizar uma ação penal relevante no sentido de que sua autoria será
decorrente da capacidade jur dica de ter causado um resultado , pela viola o do papel social
imposto pela norma vigente. Ent o, se a pessoa jur dica tem exist ncia pr pria no
ordenamento jur dico e pratica atos no meio social, poder vir a praticar condutas t picas .
Contudo, ser capaz de realizar condutas típicas vai depender da atuação voluntária de seus
administradores, que o fazem em nome e em benefício da empresa (Souza; Lebre, 2017, p.
70).
Sendo assim, a capacidade da culpabilidade é na realidade a responsabilidade social, e
a culpabilidade da empresa tem seu limite na vontade do seu administrador quando age em
seu próprio nome e proveito. No campo teórico, tem-se uma culpabilidade diferente da
tradicional, pois prescinde do dolo. Assim, não convém compreender a responsabilização da
PJ separada da atuação de uma pessoa física, que atua com de modo subjetivo próprio, isto é,
com dolo ou culpa (Souza; Lebre, 2017).
A complexidade em atribuir responsabilidade às empresas envolvidas na cadeia
produtiva do cacau fica evidente nessa discussão. Embora o Código Penal brasileiro não
possua um dispositivo específico para tratar e responsabilizar as pessoas jurídicas pelo
trabalho análogo à escravidão, é possível recorrer a mecanismos extrapenais para atribuir à
empresa a capacidade de ser penalmente relevante ao violar as normas de responsabilidade
social. Isso se aplica quando seus representantes ou administradores atuam com vontade
própria.
Aqui, fica evidente que é possível responsabilizar as pessoas jurídicas, desde que haja
uma análise mais aprofundada sobre o assunto e que sejam considerados todos os aspectos
discutidos anteriormente como ferramentas de combate a esse crime. Dessa forma, o Direito
Penal poderá desempenhar sua verdadeira função de proibir condutas que violem bens
jurídicos relevantes.
60
os trabalhadores eram expostos a produtos nocivos à saúde, sem a devida proteção individual.
Essas pessoas eram submetidas a sistemas de servidão por dívida, habitando em condições
degradantes e realizando jornadas exaustivas de trabalho.
As irregularidades podem ser atestadas conforme consta no documento de Inteiro Teor
da Ação Civil Pública Cível n. 0000012-95.2021.5.05.0492, julgada pela 26ª Vara do
Trabalho de Salvador do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, na Fazenda Boi Não
Berra, do proprietário Raimundo Nó Cego, onde a fiscalização do Grupo Especial de
Fiscalização Móvel encontrou a exploração da mão de obra infantil, além de:
Na época, o MPT compreendeu que Raimundo não agia sozinho, obtinha auxílio de
uma figura significativa nesse processo, o atravessador Daniel Uliam, que interferia na
produção do cacau, e promovia um sistema de endividamento dos meeiros. O MPT autuou o
atravessador, mas ele tentou se isentar da responsabilidade. Foi instaurado inquérito civil na
cidade de Santarém, mas em uma das audiências, os irmãos de Uliam compareceram e
informaram que a cerealista (a empresa dos atravessadores) seria fechada (Fazendeiro...,
2019).
Cabe ressaltar que as autuações não impediram a continuidade da prática em questão.
Em 2019, o Câmera Record esteve na fazenda de Raimundo, seis anos após a fiscalização do
MPT, a equipe de repórteres encontrou os irmãos Alexandre e Leonardo (nomes fictícios)
com a idade de 14 e 15 anos trabalhando no mesmo local, mas que na época da operação do
MPT tinham 9 e 10 anos e foram afastados juntamente com outros 10 menores. Já adolescente
Alexandre continua não frequentando a escola por conta da rotina extensa de trabalho na
lavoura, e pelo desgaste ao carregar um balaio cheio de cacau com peso de 40kg nas costas. A
escola se localiza a 3 km e não tem ônibus para a locomoção dos menores. Esses irmãos,
62
residem com a família em uma casa desprovida de água encanada, cedida pelo proprietário da
lavoura. A família utiliza uma estrutura rústica no mato para a captação de água de um poço,
que serve para beber e tomar banho (Fazendeiro..., 2019).
Outro casal de meeiros, Sandra e Anderson (nomes fictícios), percorre 300 metros
abaixo do morro, três vezes ao dia para buscar água, pois a água dada no alojamento por
Raimundo, sai suja e com forte cheiro. As pessoas que usaram a referida água tiveram
diarreias e coceira no corpo. Sandra desabafa di em que Medicil ndia a capital do cacau.
a da pobre a, porque eu n o sei para onde o dinheiro do cacau vai . A cr tica da lavradora se
refere à relação entre meeiros e o dono da terra. Pois, no contrato de parceria agrícola, o lucro
obtido na produção deve ser dividido em partes iguais entre os trabalhadores e o proprietário,
bem como os gastos com ferramentas e produtos como adubos e inseticidas. Porém, na
fazenda, os trabalhadores arcam com todos os gastos e o proprietário Raimundo não arca com
os produtos para a planta o e ainda recebe a sua metade sem descontos. Ela ressalta que dos
nossos 50%, gastamos ainda com veneno, adubo, diarista, porque ele não paga nada, mas
recebe a parte dele limpa , di . Ainda coloca, aqui o trabalho escravo. Ninguém tem direito
a nada. E o que a gente colhe mal d para comida (Farias et al., 2020).
No entanto, Raimundo alega que arca com todos os insumos e que as dificuldades dos
meeiros são decorrentes do mau uso dos valores que recebem, pois gastam com farra. E ainda
enfati a que um homem de bom cora o por j ter ajudado alguns trabalhadores. Ele [o
meeiro] confia em mim. Eu costumo di er que eu sou melhor do que Deus! (Fazendeiro...,
2019).
Cumpre entender que quando as partes estabelecem a parceria agrícola, fica acordado
que cada um receberá a metade dos lucros. No caso do proprietário, poderá receber a metade
do lucro, mas cabe a ele arcar com todos os custos da produção, fornecer moradia para todos
os trabalhadores, higiene, equipamento de segurança, compra de instrumentos para o trabalho
como maquinário, adubo, todos os insumos necessários à produção do cacau. O proprietário
não pode dividir esses custos com os trabalhadores, devido ao que consta no contrato.
Segundo entrevista de Natália, meeira que vive na fazenda de Raimundo, no ano de
2019 colheu 1.300 kg de cacau, e vendeu a R$ 9,10 cada quilo, tendo um lucro total de R$
11.830,00. Esse valor foi dividido em duas partes (meeira e proprietário), ou seja, sobrou R$
5.915. Mas esse valor é utilizado para o ano todo, dividido assim em 12 meses, que gerou um
total de R$ 492,00 ao mês, menos de meio salário mínimo. Além disso, é com esse valor de
R$ 492,00, que ela compra os insumos, como inseticidas, adubo, entre outros produtos para a
produção do cacau. Com isso, o valor que de fato sobra é muito baixo, diferentemente do
63
valor que o proprietário recebe, que não investe em nenhum produto para a produção, recebe
o valor limpo de descontos (Fazendeiro..., 2019). São situações como estas que obrigam os
meeiros a solicitar pequenos adiantamentos para suprir o que falta, e os descontos posteriores
são convertidos em juros exorbitantes.
Já no caso do atravessador, mesmo tendo sido autuado em 2013, não foi suficiente
para intimidá-lo. Os repórteres do Câmera Record flagraram Daniel Uliam exercendo a
atividade de atravessador novamente. Para se esquivar da fiscalização ele utiliza o
supermercado do filho, localizado no km 140 da cidade vizinha de Uruará, distância de 40
minutos de carro de Medicilândia. Esse sujeito emite recibos com o nome do Supermercado
Líder, na qual juntamente com seu filho montaram um galpão de compra de cacau ao lado do
estabelecimento. Quando foi questionado o motivo de abrir o comércio em Uruará ao invés de
Medicil ndia, ele argumentou que se a fiscali a o passar [e disser]: ah, voc t aqui
comprando cacau de novo? Agora voc preso (Farias et al., 2020).
Nesse quesito, percebe-se o quão complexo é o caso em questão, sendo que este não é
o único com essas características na região. Esta é realidade de inúmeras famílias que
trabalham nas lavouras estabelecidas ao longo da Transamazônica que vivenciam situações
semelhantes como as supracitadas. Desde a fiscalização de 2013 quase nada foi modificado.
Na realidade, as mesmas atuações se perpetuaram e ganharam nova roupagem. As famílias
que dependem do cacau se submetem a um trabalho forçado, a moradias distantes da
comodidade e dos centros urbanos, inalcançáveis pelas estradas desfalcadas, e isso permite
que o controle da produção nas lavouras seja ineficiente. É devido ao sofrimento e à voz
desvanecida dessas pessoas que se identifica a importância de trazer à tona um assunto
polêmico e delicado, a fim de dar visibilidade aos menos favorecidos que constituem a base
da sociedade.
relacionada à demora do Poder Judiciário na apreciação das ações penais ajuizadas, resultando
na prescrição do crime e no impedimento de coleta de provas que possa fundamentar as ações
e garantir a aplicação das penas, sem alterá-las em medidas alternativas (Conforti, 2019).
Um fato que chama a atenção pode ser evidenciado na entrevista com o atravessador
envolvido no caso da Fazenda Boi Não Berra, que fora autuado em 2013, mas que em 2019,
quando entrevistado pelo Câmera Record informou que, para se esquivar da fiscalização ele
utiliza o supermercado do filho, localizado no km 140 da cidade vizinha de Uruará, distância
de 40 minutos de carro de Medicilândia. Ele continua atuando no ramo da compra de cacau,
como atravessador. Esse quadro demonstra que as penalidades não foram suficientes para
obstaculizar ações criminosas, como compra de amêndoas provenientes do trabalho análogo à
de escravo, e de trabalho infantil.
No caso da Fazenda Boi Não Berra há evidência de impunidade das grandes
moageiras e dos atravessadores, pois, de acordo com o Termo de Audiência de Daniel Uilian,
a produção de cacau ainda pode ser vendida pelos atravessadores diretamente para as
empresas processadoras. Veja-se:
Com isso, Daniel ressaltou que a empresa do Sr. Moisés Uilian revende as amêndoas
para as multinacionais. Dessa maneira, não restou dúvida de que as amêndoas colhidas por
menores de 18 anos e que por meio dos atravessadores, chega até as moageiras Barry
Callebaut e Olam Agrícola e Cargill Agrícola.
Essa é uma constatação de que a movimentação na região, que fora fiscalizada e
autuada em 2013 ainda permanece, e a mesma fazenda se encontra no cenário, submetendo
indivíduos ao trabalho forçado, degradante e exaustivo, crianças, adolescentes e adultos.
Outra evidência disso é a tranquilidade apresentada pelo proprietário da Fazenda Boi Não
Berra, o Raimundo Nó Cego. Na época da autuação foi acusado de utilizar trabalho infantil e
escravo, e ele declara essa informação sem muitas preocupações, já que permanece alegando
que é uma pessoa boa e que ajuda os trabalhadores.
Observa-se que até o momento presente, Raimundo Nó Cego e Daniel Ulian, que
trabalhavam em conjunto, no mesmo ramo de atividade, ainda estão cometendo suas ações
ilegais, uma vez que o sistema judiciário ainda não conseguiu aplicar a devida sanção
conforme estabelecido pela lei.
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Para se ter uma ideia, em 2013, no âmbito da jurisprudência do TRF 1ª Região, foi
constatado que o Ministério Público Federal do Pará ajuizou, até o final de 2013, um total de
326 ações penais nas quais envolviam o crime de redução à condição análogo à de escravo,
destes 114 foram sentenciados, desse número 84 foram objetos de apelação, sendo que apenas
38 foram julgados pela segunda instância recursal, até julho de 2014. Dos 38 acórdãos
proferidos, 13 reduziram as penas aplicadas aos réus na primeira instância e 18 concederam
absolvição dos réus, restando apenas 7 acórdãos que tiveram resultado condenatório
(Mesquita apud Freitas; Mesquita, 2016).
Ademais, os fundamentos cruciais utilizados pelo TRF 1ª Região, nas quais foram
avaliados pela autora supracitada, que permitiram a absolvição dos réus foram os seguintes: I
- repetição de prova, colhida durante o inquérito na fase judicial, que não poderia ser
utilização na formação do convencimento do magistrado; II - a verificação de conduta atípica,
devido à inexistência de completa sujeição do trabalhador ao tomador do serviço; e III -
inviável aplicabilidade do art. 149 do CP, dado que não houve restrição efetiva à liberdade de
locomoção da vítima. Além disso, a instância recursal não considerou o número de vítimas
envolvidas nos processos, quando realizou a fixação da pena (Mesquita apud Freitas;
Mesquita, 2016).
Esses dados podem ser aplicados para o caso presente nessa pesquisa. De fato, não há
condenação dos envolvidos no trabalho análogo à de escravo realizado na Fazenda Boi Não
Berra, e, segundo os dados obtidos, não há restrição efetiva de liberdade de locomoção da
vítima, pelo menos não é algo que se apresenta de modo transparente. No entanto, os
trabalhadores se veem obrigados a pedir adiantamentos aos atravessadores, devido aos baixos
valores que recebem. Os adiantamentos são descontados sem qualquer critério legal,
excedendo em juros, permitindo o surgimento de uma dependência dos trabalhadores em
relação aos donos das fazendas. De certa maneira, é uma outra roupagem para limitar a
locomoção das vítimas.
A justificativa de impossibilidade da aplicação do art. 149 do CP, devido à ausência da
restrição de liberdade de locomoção, não é um argumento válido. Pois, conforme já retratado
neste trabalho, o STF, já se pronunciou no sentido de que não há necessidade da coação direta
contra a liberdade de ir e vir ou o cerceamento da liberdade de locomoção.
Embora o julgado apontado seja de 2022, à época em que as ações foram ajuizadas em
2013, já existia parecer abordando a desnecessidade da coação direta contra a liberdade de ir e
vir. A este respeito verifica-se o julgado subsecutivo:
66
Dessa maneira, não há o que se falar em inaplicabilidade do art. 149 do CP, pela
ausência de restrição efetiva à liberdade de locomoção da vítima. Tendo em vista que para a
configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação
física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, o que
basta é a submissão da vítima ao trabalho forçado ou também a jornada exaustiva, ou mesmo
a condições degradantes de trabalho, conforme supracitado.
Observa-se, portanto, que a interpretação adotada pela Justiça Federal do Pará em
relação ao crime descrito no art. 149 do Código Penal é problemática, pois requer a total
submissão do trabalhador e a restrição completa de sua liberdade para que o crime seja
reconhecido. Essa abordagem revela uma análise equivocada, uma vez que não leva em
consideração outros elementos presentes nesse contexto. Isso contribui para a continuidade da
prática do trabalho escravo contemporâneo na região, além de ir contra o entendimento
estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (Mesquita apud Freitas; Mesquita, 2016). Como
resultado, a impunidade dos verdadeiros responsáveis continua sendo perpetuada.
O contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo
determinado ou não, o uso especifico de imóvel rural, de parte ou partes do mesmo,
incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e ou facilidades, com o objetivo de nêle
ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agro-industrial, extrativa
vegetal ou mista; e ou lhe entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou
extração de matérias primas de origem animal, mediante partilha de riscos do caso
fortuito e da fôrça maior do empreendimento rural, e dos frutos, produtos ou lucros
havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais da lei
(artigo 96, VI do Estatuto da Terra) (Brasil, 1966a).
Cabe salientar que a parceria rural é uma sociedade particular, tendo em vista que os
contratantes dividem os riscos bem como os resultados da produção de maneira proporcional,
assim como está previsto na lei. O legislador estabelece a quota máxima do proprietário, que é
o parceiro outorgante de acordo com a sua participação na atividade agrária exercida, nos
termos do artigo 35 do Dec. 59.566/66 (Almeida, 2013). Sendo assim, é possível identificar as
porcentagens do lucro em:
I. 10% (dez por cento) quando concorrer apenas com a terra nua;
II. 20% (vinte por cento) quando concorrer com a terra preparada e moradia;
III. 30% (trinta por cento) caso concorra com o conjunto básico de benfeitorias,
constituído especialmente de casa de moradia, galpões, banheiro para gado, cercas,
valas ou currais, conforme o caso;
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IV. 50% (cinqüenta por cento), caso concorra com a terra preparada e o conjunto
básico de benfeitorias enumeradas no inciso III, e mais o fornecimento de máquinas
e implementos agrícolas, para atender aos tratos culturais, bem como as sementes e
animais de tração e, no caso de parceria pecuária, com animais de cria em proporção
superior a 50% (cinqüenta por cento) do número total de cabeças objeto da parceria;
V. 75% (setenta e cinco por cento), nas zonas de pecuária ultra-Fextensiva, em que
forem os animais de cria em proporção superior a 25% (vinte e cinto por cento) do
rebanho onde se adotem a meação do leite e a comissão mínima de 5% (cinco por
cento) por animal vendido (Brasil, 1966a).
Art. 92. A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato
expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade
agrícola ou pecuária, sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola,
pecuária, agro-industrial e extrativa, nos termos desta Lei. § 1° O proprietário
69
Já ensacadas, estão prontas para a venda. Nesse momento, pode-se identificar novos
traços da exploração, principalmente no valor atribuído à produção das sacas. As amêndoas
são negociadas por compradores locais, ou seja, pelos atravessadores, alguns até possuem
estabelecimentos específicos para esse tipo de negócio. As sacas das amêndoas são entregues
a estes compradores que pagam valores baixíssimos por uma quantidade generosa. A compra
e venda são realizadas sem notas fiscais, pela via verbal, e as sacas de todos os produtores da
região são armazenados em um depósito, sendo praticamente impossível identificar a
procedência da produção quando os estoques estão cheios.
Esses atravessadores auxiliam no processo de escoamento da produção, que são
destinados às moageiras para a realização do processamento. Os cerealistas acabam sendo
responsáveis pelo intermédio entre os produtores de cacau e as indústrias moageiras. Essas
indústrias processam manteiga, liquor, pó e torta de cacau, sendo a matéria-prima que
resultará em chocolates ou produtos achocolatados, doces, confeitos e massas. A manteiga de
cacau é demasiadamente utilizada pelas indústrias farmacêuticas e de cosméticos (OIT, 2018).
71
intermediários ou mesmo a sua procedência, o que poderia funcionar como uma boa prática
(OIT, 2018).
A não contribuição dos impostos é algo notável quando se visita a região produtora do
cacau, diante da carência na educação, saúde e infraestrutura, demonstrando precariedade dos
serviços públicos municipais. O baixo arrecadamento não é suficiente para estruturar a região.
Para se ter uma ideia, em 2016, a arrecadação de Medicilândia foi de apenas 39 mil. Por isso,
os dados demonstram que o IDH desse município é considerado baixo (0,582). A renda per
capita é inferior a R$350,00, a menor do polo Transamazônico. Além disso, a cada dez casas,
seis não possuem banheiro, esgoto e água encanada. Além do mais, os problemas de
saneamento e coleta de lixo nos bairros acarretaram no aumento da espécie de urubus de
cabeça preta, considerada uma praga na região, pois vivem em todas as aéreas sondando
açougues, latões de lixo e pátios das escolas. Essas aves, que possuem cabeças depenadas e
rugosas, constituem o cenário e muitos parecem não se incomodar com o risco de doenças ou
bicadas (Giovanaz, 2017).
O cenário descrito revela a realidade dos habitantes que são submetidos a diversas
formas de subjugação. Nesse contexto, é evidente que os atravessadores desempenham um
papel crucial na perpetuação do trabalho análogo à escravidão e infantil nas regiões
cacaueiras. É paradoxal que em um lugar onde a produção de cacau é fértil e próspera, a
população e os próprios produtores não consigam desfrutar dos benefícios. Isso significa que
a sonegação também dificulta o rastreamento da cadeia de produção, tornando praticamente
impossível determinar a origem do produto.
Entrementes, a sonegação fiscal não é o único fator que contribui para a disseminação
da mão de obra barata. A ausência de fiscalização tem sido um grande desafio para os órgãos
competentes, a fim de controlar as inúmeras lavouras produtoras do cacau.
Indubitavelmente que os desafios enfrentados pelos órgãos competentes a fim de
combater as irregularidades trabalhistas são elevados, em muitos casos superam suas
jurisdições por estarem relacionados a fatores que não dizem respeito apenas à execução de
tarefa ou aplicabilidade da lei, pois na maioria dos casos, há uma significativa queda no
quadro de servidores capacitados para lidar com as inúmeras queixas da existência do trabalho
forçado, em outros casos há baixa do número de servidores lotados nas regiões com maior
incidência dessas ocorrências, impedindo que ocorra uma efetiva fiscalização por partes
desses órgãos.
Segundo os órgãos, existe uma quantidade alta de trabalhadores resgatados comparado
ao número baixo das operações. Indicam que a continuidade das efetivas tarefas de combate a
76
essas práticas se deparam com a falta de estrutura e orçamento da esfera federal. Esse quadro
faz com que as áreas cacaucultoras sejam pouco fiscalizadas (OIT, 2018).
Segundo Marques Casara, um dos realizadores da pesquisa encomendada pela
Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT),
entre 2017 e 2018, existe uma responsabilidade do governo federal, na medida em que
sucateou os órgãos de fiscalização ou cortou consideravelmente as verbas aplicadas nas
operações de fiscalização, impedindo que os fiscais e auditores saiam de seus escritores e
verifiquem a situação do trabalho no campo. Em diversos locais do Brasil, nos escritórios do
Ministério do Trabalho não há computadores como ferramenta de trabalho para os auditores.
Eles possuem carro, mas não têm combustível, e casos que não possuem o automóvel e
necessitam se deslocar de cidade. Isso demonstra um problema na estrutura e gestão
intencional, que inviabiliza o acompanhamento mais perto das autoridades (Console, 2018).
Conforme destaca o supracitado pesquisador, a responsabilidade primária cabe às
multinacionais do ramo de cacau e chocolate. Isto posto, convém também destacar que a
responsabilidade secundária deve ser direcionada ao Estado, uma vez que as políticas públicas
estaduais e federais devem ser firmes e o governo brasileiro, em todas as suas esferas, deve
agir de forma decisiva para proteger sua população. É inegável que as multinacionais devem
ser responsabilizadas, pois são as principais impulsionadoras das práticas abusivas de trabalho
na cadeia produtiva do cacau. Portanto, o governo, que permite a instalação dessas indústrias
em território brasileiro para garantir o desenvolvimento econômico do país, por outro lado
também deve implementar mecanismos para combater a exploração de seus habitantes.
As implicações da informalidade são verdadeiros entraves, dado que uma região
produtora de grande quantidade de cacau, na qual comporta enormes fazendas, que possui
uma rica biodiversidade nativa, com um potencial elevado, deveria ser um exemplo de
desenvolvimento, de educação, de oportunidade de investimentos e trabalho. No entanto,
constatou-se que as etapas existentes no ramo cacaueiro ocultam manobras que intencionam
burlar o sistema legal. A sonegação fiscal segue corroborando para o atraso da região, os
tributos que não são arrecadados ocasionam um déficit orçamentário, impedindo o
desenvolvimento dos municípios onde há o cultivo do cacau. Na realidade demonstra um
cenário de abandono por parte dos governantes, e o que se elucida é sempre a mesma história,
empresas que exploram, multinacionais que almejam apenas alcançar suas arrecadações
bilionários, a fim de permanecerem na lista de empresas mais lucrativas à custa de uma terra
judiada, explorada, sem incentivos governamentais, num lugar esquecido, numa terra sem lei.
77
Por fim, no quesito da interpretação adotada pela Justiça Federal do Pará em relação
ao crime descrito no art. 149 do Código Penal, observou-se algumas contradições. As
decisões devem ser conduzidas de maneira diferente, pois além da competência ser atribuída à
Justiça do Trabalho, não deveria requerer a total submissão do trabalhador e a restrição
completa de sua liberdade para que o crime fosse reconhecido. Todas as situações do caso
concreto devem ser relevantes para a decisão, além disso, o entendimento estabelecido pelo
Supremo Tribunal Federal deve ser contemplado, já que se trata da instância superior ou
última instância do poder judiciário brasileiro.
É fundamental que o sistema jurídico funcione de maneira eficaz para garantir que os
trabalhadores sejam protegidos e que os empregadores e as empresas sejam responsabilizados
por práticas ilegais e desumanas. Para isso, é necessário o envolvimento e a atuação conjunta
de órgãos governamentais, instituições sociais e da sociedade civil na fiscalização, denúncia e
punição dessas violações.
79
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa lacuna legal pode representar um desafio significativo na busca por uma punição
adequada e efetiva em casos em que empresas ou outras pessoas jurídicas estão envolvidas na
exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão. Essa ausência de previsão
legal pode levantar questões sobre a adequação do arcabouço legal brasileiro no
enfrentamento do trabalho análogo à escravidão, especialmente em casos em que práticas de
exploração ocorrem de forma organizada e sistemática.
No entanto, a legislação brasileira prevê outras formas de responsabilização das
pessoas jurídicas. Embora o Código Penal brasileiro não possua um dispositivo específico
para responsabilizar todas as pessoas envolvidas nesse crime e se tratando de um cenário
desafiador para o seu enfrentamento, é possível recorrer a mecanismos extrapenais para
atribuir aos culpados a capacidade de ser penalmente relevante quando houver violação das
normas de responsabilidade social.
No tocante às contribuições da pesquisa, notou-se que algumas se referem à
compreensão e ao enfrentamento do trabalho análogo à escravidão na cadeia produtiva do
cacau. Como destaque verificou-se a identificação das principais irregularidades e violações
de direitos trabalhistas presentes nas lavouras de cacau do Pará. Isso permitiu uma
compreensão mais profunda das condições precárias de trabalho e da exploração enfrentada
pelos trabalhadores rurais, contribuindo para conscientização e sensibilização da sociedade
sobre esse grave problema.
Outra contribuição se refere à evidência das lacunas legais na responsabilização penal
da pessoa jurídica pelo crime de redução à condição análoga à de escravo. Essa evidência
ressalta a necessidade de revisão e aprimoramento da legislação para garantir uma punição
adequada e efetiva, especialmente em casos envolvendo empresas que se beneficiam da
exploração de trabalhadores. Ademais, trouxe a conscientização sobre o funcionamento da
cadeia produtiva do cacau, desde o plantio até a comercialização pelas grandes indústrias, que
foi fundamental para contextualizar as violações trabalhistas e identificar os pontos críticos
que requerem atenção.
Do mesmo modo, trouxe à tona a problemática do crime em questão, viabilizando um
chamado de ação e conscientização pública, a fim de obter a atenção da sociedade e dos
órgãos governamentais para a necessidade de combater essa prática desumana. Isso pode levar
a uma maior mobilização e ação coordenada para proteger os trabalhadores e garantir a
aplicação efetiva das leis trabalhistas. Além disso, as evidências apresentadas podem subsidiar
discussões sobre mudanças legislativas para preencher as lacunas identificadas e fortalecer a
proteção dos trabalhadores rurais. Igualmente, destacou-se a valorização dos trabalhadores
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rurais ao revelar suas condições precárias enfrentadas no campo. A pesquisa contribui para
ampliar o reconhecimento da importância desses profissionais para a economia e para o país,
reforçando a necessidade de assegurar-lhes condições dignas de trabalho.
Com base nas conclusões apresentadas, espera-se que a pesquisa estimule ações e
iniciativas para erradicar o trabalho análogo à escravidão, proteger os direitos dos
trabalhadores e promover uma cadeia produtiva mais justa e sustentável.
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