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Ao longo do século XX os Jogos Olímpicos se transformara,

um dos principais eventos culturais do planeta e sua organização


demanda envolvimento direto do poder público e da iniciativa privada Psicologia oo
"Esporte
Neste livro Megaeventos esportivos: legado e responsabilidade Dirigida por Katia Rubio
social, um dos frutos do II Seminário de Estudos Olímpicos, temos a
oportunidade de discutir os custos materiais e sociais do processo de
candidatura e realização de um megaevento esportivo na atualidade.
Megaeventos esportivos,
Katia Rubio

legado e
responsabilidade social

Ministéric
do Esporte
ubio
Casa do Psicólogo®
Coíecão
orna òo
Esporte
Dirigida porKatia Rubio

Conselho Editorial
Adriana Bernardes Pereira, doutoranda em Psicologia Social pela PUC-SP; professora
adjunta l da Universidade Católica de Goiás.
António Roberto Rocha Santos, doutor; professor do curso de Educação Física e
coordenador do Laboratório de Psicologia do Esporte da UFPE
Luciana Ferreira Angelo, mestre em Educação, psicóloga do Instituto do Coração da FMUSP

esportivos,, e

ffdffO

(Organizadora)

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Casa do Psicólogo®
© 2008 Casa Psi Livraria, Editora e Gráfica Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade,
sem autorização por escrito dos editores.

1a Edição
2008

Editores
Ingo Bernd Giinterí e Christiane Gradvohl Colas

Assistente Editorial
Aparecida Ferraz da Silva

Prodnção Gráfica & Editoração Eletrônka As muitas dimensões do legado de megaeventos


Ana Karina Rodrigues Caetano esportivos. A dimensão multifacetada do legado:
Capa do académico ao social 11
Ana Karina Rodrigues Caetano

Revisão Gráfica Aspectos Sociais dos Megaeventos Esportivos 13


Christiane Gradvohl Colas
Introdução 13
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Revisão da literatura 13
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Legados sociais do benchmarking? 14
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social/ Detentores do poder de um Megaevento Esportivo 16
Katia Rubio (organizadora). — São Paulo: Casa do Psicólogo®, Os vencedores dos Megaeventos Esportivos 17
2007. — (Coleção psicologia do esporte/ dirigida por Katia Rubio). Os perdedores dos Megaeventos Esportivos 20
Bibliografia. O legado social dos mega eventos esportivos 24
ISBN "978-85-7396-588-9 'Estrutura do evento' e o seu significado para os 'fatores
1. Esportes 2. Esportes - Aspectos psicológicos 3. Esportes - de localização' 24
Competições 4. Eventos especiais 5. Responsabilidade Social Infraestrutura física 24
I. Rubio. Katia. II, Série.
Evidência prática 24
07-9660 CDD- 796.01 Conhecimento, desenvolvimento de habilidades e educação 25
índices para catálogo sistemático: Evidência prática 25
1. Psicologia do esporte 796.01 Imagem 26
Evidência prática 26
Impresso no Brasil Emoções 27
Printed in Brazil Evidência prática 27
Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à
Redes 28
Evidência prática 28
Casa Psi Livraria, Editora e Gráfica Ltda. Cultura 29
Rua Santo António, 1010 Jardim México 13253-400 Itatiba/SP Brasil Evidência prática 29
Tel.: (11) 45246997 Site: www.casadopsicologo.com.br
Ail Books Casa do Psicóíogo®
Mudanças de posicionamento devido à "estrutura de eventos" ... 29
Rua Simão Álvares, 1020 Vila Madalena 05417-020 São Paulo/SP Brasil Conclusão 30
Tel.: (11) 3034.3600 - www.casadopsicologo.com.br
Referências bibliográficas 31
Responsabilidade Social do Terceiro Setor na mediação Apontamentos sobre o Legado da "Universíade
das parcerias Públicos Privados nos Megaeventos 37 de 63" para Porto Alegre 89
Primeiras palavras 37 Introdução 89
Recebendo visitas 38 Porto Alegre Pós-Universíade de 63 92
Conhecendo a nossa casa 41 Da infra-estrutura 92
São impactos sociais • 42 As representações culturais do esporte 97
Algumas saídas 44 As práticas esportivas 101
Referências bibliográficas 45 Considerações finais 102
Referências bibliográficas 103
O Brasil e seus desafios rumo à modernidade dos
eventos esportivos 47 Dia do Desafio - A experiência no continente 105
O esporte é descoberto como canal de mídia 55 Uma campanha mundial 105
Um pouco de história 106
A venda de produtos 60
Países participantes.... 107
Conclusão 61
Organização 107
Referências bibliográficas 62
1. Pré-evento 108
2. No Dia do Desafio 109
Responsabilidade Social e o esporte na Indústria - 3. Pós-evenío 110
O olhar de um atleta olímpico 63 Evolução da ideia 111
Introdução 63 Um evento para todos 112
Ascensão do vôlei no Brasil: atletas como legado 64 O legado do Dia do Desafio 114
SESI -A marca da responsabilidade social 65 Projetos complementares 115
Jogos do SESI - "âncora" do esporte na indústria brasileira ... 69 2001 116
Valores do Esporte 70 2002 116
Contribuições do esporte internacional do trabalhador 72 2003 116
Conclusão 73 2004 116
Referências bibliográficas 74 2005 116
2006 117
Instalações temporárias do Pan Rio 2007: 2007 117
possíveis legados 77 Referências bibliográficas 118
Introdução 77
A infra-estrutura física do Pan Rio 2007 79 O Legado do Pan-Rio 2007 119
O overlay dos Jogos Rio 2007 82
Concluindo: instalações temporárias como legado? 85
Referências bibliográficas 87
Exemplos Históricos dos Jogos Olímpicos - Introdução 172
Beijing 2008 e a Busca de um Modelo de Avaliação A Imagem dos jogos Olímpicos 173
e de Gestão de Legados de Megaeventos Esportivos... 123 Jogos Olímpicos na Mídia 177
Conclusões 131 Josos Olímpicos/cidade-sede: uma fusão perfeita de imagens.... 181
Referências bibliográficas 132 Barcelona 1992 181
Atlanta 1996 183
Sydney2000 185
Megaeventos Espotivos e legado: os jogos olímpicos
Considerações finais 186
de Atenas - 2004 133 Referências bibliográficas 187
Introdução 133
Atenas Pré-Olímpica 134
A dimensão social do doping 191
Os custos e a infra-estrutura da cidade sede dos Jogos
Introdução 191
Olímpicos de 2004 137
A "Esportização" 193
A organização das competições 138
O movimento olímpico e a sociedade 194
O Legado 139
O uso de recursos ergogênicos 197
O trabalho voluntário no Acampamento Olímpico 141
Os controles de Doping na história 199
As propostas do Hellenic Olympic Properties apresentadas
O controle de Doping e a ergogenia 202
na 119a Sessão Anual do Comité Olímpico Internacional .... 142
Responsabilidade sobre os casos positivos 208
Referências bibliográficas 143
Conclusões 209
Referências bibliográficas 210
Jogos Olímpicos, política e cultura: qual o legado
de Berlim- 1936? 145 Cidadania e paraolimpismo 215
Introdução 145 Resumo 215
Esporte e política: seria possível essa separação? 146 Introdução 217
A perfeição e nada menos do que isso 150 As pessoas com deficiência e a relação entre Cidadania
A opção democrático popular 153 e Esporte 217
Arte, cultura e esporte 155 Considerações finais 225
Considerações finais 157 Referências bibliográficas 227
Referências bibliográficas 158
As mulheres nos jogos olímpicos participação e
O Atleta como Maior Legado Olímpico 161
inclusão social 229
Referências bibliográficas 169
A Tradição dos Jogos Olímpicos da Antiguidade 231
O Renascimento dos Jogos: Tradição Mantida 233
Jogos Olímpicos: uma marca de apelo turístico 171 A Resposta das Mulheres: o Caminho da Inclusão nos
Resumo 171 Primeiros Jogos Olímpicos 235
Abstract 171
A inclusão das mulheres: períodos diferentes, leituras
diferentes 237
do
a. de 1896 a 1928 237 A
b.del928a!952 239
c. após 1952 240 do
O Futuro
Conclusão
242
243
do ao
Katia Rubio
Referências bibliográficas 245

Responsabilidade Social na Iniciação Esportiva:


A inclusão como meta sócio-pedagógica para a
emancipação humana 247 Quando no final do século XIX foi celebrada a primeira edição
Introdução 247 dos Jogos Olímpicos da Era Moderna e a cidade de Atenas acolheu a
Responsabilidade social: uma questão pedagógica 250
competição pouco se esperava de um evento que reunia algumas
O modelo hegemónico de iniciação esportiva 255
centenas de pessoas que praticavam esporte como atividade de tem-
Responsabilidade social na iniciação esportiva 260
po livre e sem nenhuma outra finalidade senão a competição em si
Referências bibliográficas 264
mesma. Pierre de Coubertin, idealizador do Movimento Olímpico,
acreditava que poderia por meio do esporte promover a paz e colabo-
rar para a transformação da sociedade.
Ao longo do século XX os Jogos Olímpicos se transformaram
ern um dos principais eventos culturais do planeta e sua organização
demanda envolvimento direto do poder público e da iniciativa privada.
Neste livro Megaeventos esportivos: legado e responsabi-
lidade social, um dos frutos do II Seminário de Estudos Olímpicos,
temos a oportunidade de discutir os custos materiais e sociais do pro-
cesso de candidatura e realização de um megaevento esportivo na
atualidade. Isso porque no princípio do século passado o poder públi-
co era inteiramente responsável pela candidatura e realização do
evento. No presente, desde o momento em que a cidade se candidata
e apresenta seu projeto ela necessita criar uma infra-estrutura para
viabilizar, no princípio, uma ideia (de que a cidade é viável para aco-
lher um megaevento), em seguida, afirmar sua especificidade (que a faz
diferente e melhor das demais concorrentes) e, por fim, viabilizar sua
capacidade (momento em que são feitas as adequações necessárias
para receber o evento em si e todo o universo que gravita no seu
entorno). Isso tem gerado inúmeras controvérsias na medida em que
algumas cidades produzem novos equipamentos públicos para um uso
restrito e temporário enquanto que outras planejam esses equipamentos
para que sejam incorporados à cidade e ocupados por sua população. Holger Preuss
Tradução:
Gabriel Vinícius Morais de Andrade
Elisa Martins da Silva

Introdução
Os aspectos sociais dos megaeventos esportivos são variados.
Enquanto o impacto económico dos megaeventos é considerado pela
consultoria especializada, os comités organizadores e o governo, as
implicações sociais de um evento são frequentemente abordadas1
pela pesquisa académica.
Devido a duas questões a consideração dos aspectos sociais de
sediar mega eventos se torna muito importante. Pela primeira vez mais
dinheiro público deve ser investido para o evento, criando "custos de
oportunidade" significativos. Portanto, os políticos devem considerar
os efeitos económicos e sociais de um evento para a sua população.
Segundo: nos últimos dez anos, mais e mais países em desenvolvimento
e recém-industrializados estão se candidatando a sediar um mega evento.
Portanto o legado social de um megaevento, as mudanças, e os riscos
inerentes para uma cidade devem ser considerados.

da
O corpo de literatura sobre megaeventos esportivos, investigan-
do seus impactos e legados para uma cidade cresceu
consideravelmente nos últimos anos. Muitas dessas análises dão aten-
ção especial aos impactos económicos, cobrindo as perspectivas
a ambos curto e longo prazos. Entre os estudos sobre o impacto
Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social Holger Preuss

económico, muitos são dedicados ao turismo de evento (Getz, 1989, sua singularidade criam um estudo de caso de legados prévios inúteis
1991; Hall, 1992; Kang & Perdue, 1994; Carvalhedo, 2003; Dwyer, coroo os benchmarks para prever os legados de um evento.
Forsyth & Spurr, 2004; Chalip & McGuirty, 2004; Solberg & Preuss, Até o mesmo evento cria legados diferentes se for sediado duas
2006). Outros estudos focam nos impactos sobre a geração de em- vezes na mesma cidade. Devido ao desenvolvimento permanente de
pregos (Burns et ai., 1986; Mules & Faulkner, 1996; Riíchie, 1996; um evento (gigantismo crescente e interesse global crescente, etc.) o
Riíchie, 1984; Hotchkiss et ai., 2001, Hagn & Maennig 2007) e de- evento necessita de diferentes infra-estruturas quando sediado na
senvolvimento urbano (Evans, 1995; Hughes, 1993; Meyer-Kúnzel, mesma cidade em outra ocasião. Apesar de que muitas das necessi-
2001). Muitos estudos mencionam ainda aspectos do meio ambiente dades por infra-estrutura de um evento tenham sido preparadas durante
(May, 1995). o primeiro evento lá sediado, outra infra-estrutura, renovações e alar-
Os aspectos sociais, incluindo o legado, tomaram-se um assunto gamentos são frequentemente necessários para sediar um segundo
importante nos últimos cinco anos (Shultis, Johnston & Twynam, 1994; evento.
Hodges & Hall, 1996; Lenskyj 2002; Fredline et ai., 2003; Misener & Diferentes eventos (Jogos Pan Americanos, Olímpicos e a Copa
Mason, 2006; Smiíh & Fox, 2007; Shipway, 2007). Os Jogos Olímpi- do Mundo da FIFA) criam diferentes legados se forem sediados na
cos de Londres em 2012 se focam na questão do legado desde a mesma cidade. Outras necessidades infra-estruturais, diferentes inte-
primeira fase da candidatura (Vigor et ai, 2005; Shipway, 2007). resses sociais, outra exposição na mídia, diferentes espaços necessários,
etc., significa que mega eventos esportivos criam de alguma forma
Legados sociais d© benchmarking? legados dessa natureza. No entanto, alguns legados - a infra-estrutura
esportiva em particular - podem certamente ser similares.
Devido à complexidade dos megaeventos esportivos e das dife-
Até o mesmo evento cria diferentes legados a cada vez que é
rentes estruturas, tamanho e desenvolvimento das cidades/países que
realizado. Baseado na infra-estrutura da cidade, os alvos políticos
já sediaram esses eventos, é altamente arriscado prever o legado
almejados com o evento e ao longo do tempo o mesmo mega evento
social de qualquer megaevento esportivo brasileiro (Jogos Olímpicos
cria um legado diferente (Preuss, 2007a). O alto grau de liberdade ao
ou Copa do Mundo da FIFA) apenas vendo a "melhor prática"
realizar atividades opcionais para alavancar um legado em particular
{benchmarks) dos do passado.
faz com que o mesmo megaevento crie diferentes legados a cada
A literatura mostra que os legados de eventos esportivos são
vez. Além disso, as cidades possuem diferentes pontos fortes e fra-
mulíifacetados, dinâmicos e dependentes de fatores locais e globais.
cos em relação à infra-estrutura e aspectos sociais, quando estão
A maioria das publicações descreve somente os legados de um even-
sediando um evento. Portanto algumas cidades devem construir e
to específico. Mas mesmo se um legado em particular é provado
evoluir mais em infra-estrutura, recursos humanos, e responsabilida-
cientificamente, sua reprodução é questionável. "Eventos, diferente-
de social, enquanto outras podem construir e investir no seu alto nível
mente de operações de produção ou de serviços, são por definição,
Essas pequenas considerações mostram que é óbvia a necessi-
únicas em relação à localização onde eles são realizados, além de
dade por análises individuais e aspectos sociais. Ao avaliar o legado
estritamente temporário e, portanto, uma avaliação dos seus [...] im-
social de um. megaevento, é importante ter em mente que um investi-
pactos a longo prazo são cheios de incertezas, múltiplas variáveis e
mento em um evento pode servir a objetivos conflitantes em um
medidas subjetivas" (Rose, 2002). Rose explica a dificuldade de pre-
"sistema de alvo". Por exemplo, para aumentar a atratividade de uma
ver o legado de um evento. Ambas, a complexidade do evento, e a

15
r
Megoeveníos esportivos, legado e responsabilidade social Hoiger Preuss

cidade (enobrecimento) que almeja aumentar o turismo pós-evento ivías como podemos medir o sucesso de uma edição de Jogos Olímpi-
e entreter os cidadãos mais ricos, é necessária uma melhora nas áre- os? Saramach se referia ao sucesso financeiro, social, organizacional
as de comércio, instalações esportivas de qualidade, etc. Mas essas esportivo? E de que ponto de vista ele mede o sucesso: o dos políti-
instalações não devem ser utilizadas pelas pessoas mais pobres devi- cos, da indústria empreiteira, dos medalhisías, dos prósperos cidadãos,
do ao seu menor poder de compras. Outro exemplo é a construção ou do COI - em outras palavras, do ponto de vista dos 'ganhadores'?
da Vila Olímpica como moradia popular, contudo isso não agrada aque- Mesmo se fosse possível responder a essas questões, um problema
les investidores que podem querer vender essas novas áreas central continua, especificamente o de comparar os recém-realizados
residenciais. Um ponto crucial para entender legado é entender que Jogos com edições anteriores dos Jogos Olímpicos.
um legado positivo para as classes mais pobres pode ser um legado Um julgamento comparativo dos Jogos é difícil porque o sistema
negativo para as camadas mais ricas da sociedade. de alvo de cada cidade-sede é diferente. Em Los Angeles, por exem-
^ RiCOS
plo, o objetivo principal era evitar prejuízo, e os organizadores, então,
usaram a infra-estrutura já existente sempre que necessário (Ueberroth
et ai, 1985), enquanto em Barcelona a prioridade era a regeneração
Gentrificação urbana (Millet, 1995) ou na China, onde é sinal de sua força económica
(entretenimento) planejado
na nova ordem mundial. O objetivo dessa seção não é identificar quais
foram os 'melhores Jogos de todos os tempos', mas identificar os di-
- pobres versos grupos interessados para assim determinar os 'vencedores' e
'perdedores' em uma cidade-sede de Jogos Olímpicos.
Legado a ser Moradia
evitado popuíar
Os vencedores dos Megaewentos Esportivos
Para identificar os 'vencedores', nós devemos olhar para o pa-
- Ricos drão dos apoios financeiros e ideológicos na fase de candidatura.
Figura 1: Conflitos entre legados sociais positivos e negativos Todos os interesses aqui mencionados foram desenhados a partir de
edições específicas dos Jogos Olímpicos e enquanto emergem alguns
A classificação de um legado é uma valorização que pode atin- padrões em comum, é necessário cuidado ao generalizar devido às
gir as classes dominantes (stakeholders) de maneira positiva ou distintas circunstâncias sócio-cultural, histórica e económica de cada
negativa. país (Preuss, 2007a).
O primeiro grupo de interesse é formado pelos membros do COI
do de um coletivamente, que têm em comum a preocupação em selecionar a
Esportivo cidade-sede que irá realizar os Jogos de maior sucesso, já que essa é
'Os melhores Jogos de todos os tempos', foi a observação que o uma forma de garantir que terá uma forte competição para sediar
ex-presidente do COI, J. A. Saramach fez na conclusão de Jogos futuras edições dos Jogos Olímpicos. Quanto mais cidades se
'bem-sucedidos'. A busca por sediar os melhores Jogos de todos os candidatarem para sediar os Jogos, maiores serão as promessas de
tempos é uma regra não-escrita que se perpetuou até os dias de hoje. investimentos de cidades-sede em potencial e de seus governos.

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Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social Holger Preuss

O segundo grupo interessado é o dos governos locais que reco- nbrecimento de partes da cidade, instalações turísticas de primeira
nhecem o valor dos Jogos em três áreas em particular, sendo elas as i cse e um aeroporto internacional (Sassen, 1996, 123). Um terceiro,
relações internacionais, a moral nacional, e as relações públicas (sina- relacionado, objetivo dos políticos locais é o de ajudar as cidades-
lização) para o país. Tratando das relações internacionais, os Jogos de ede que não são as capitais a serem reconhecidas nacionalmente.
Seul, por exemplo, foram uma oportunidade para o governo tentar me- Políticos locais também estão preocupados em estimular a eco-
lhorar as relações com a Coreia do Norte e outros países socialistas, nomia local atraindo fundos que não vêm da própria cidade, ou que de
assim como para aumentar o conhecimento internacional sobre produ- outra maneira teriam deixado a cidade. Dessa forma eles esperam
tos coreanos manufaturados (Kim et ai., 1989, 48-66). Os recursos criar um impacto económico, definido como uma aceleração concen-
extras que normalmente são investidos no desenvolvimento dos atletas trada para a economia local (Preuss, 2004). Dinheiro externo ou
de alto rendimento do país antes dos Jogos proporcionam um recurso 'autónomo' origina-se do apoio financeiro do governo do estado e do
diplomático útil, já que os atletas dão ao país um perfil melhor em even- Comité Organizador (OCOG). A maior parte da renda do OCOG é
tos esportivos internacionais (Bernard & Busse, 2000). Tratando das autónoma porque ela vem de patrocinadores e redes de televisão que
melhoras na moral nacional, as Olimpíadas de Seul criaram "uma pers- não são localizados na cidade-sede. Portanto, o argumento de oponen-
pectiva nacional, um sentimento de vitalidade, de fazer parte, de ser tes dos Jogos Olímpicos de que o dinheiro público poderia ser mais bem
reconhecido, moderna e tecnologicamente atualizado" (Denis et ai, utilizado em outros projetos deve ser qualificado (Preuss, 1998, 201).
1988, 229). Esse também é o objetivo do governo chinês ao sediar os No entanto, a suposição de um impacto económico positivo deve ser
Jogos de 2008. Porém, além dos sentimentos nacionalistas exaltados, qualificada. Para uma cidade, o impacto pode ser grande porque a
sediar os Jogos também pode levar a um entendimento mais profundo maior parte do dinheiro vem de fora/autónoma, mas para uma nação, o
da incapacidade ao sediar os Jogos Paraolímpicos ou uma motivação impacto será muito menor. Além disso, a situação económica na época
maior para participar dos esportes, como resultado de assistir os Jogos. do investimento deve ser considerada, já que o investimento relaciona-
Finalmente, os Jogos também proporcionam importantes oportunida- do aos Jogos Olímpicos pode levar a um esvaziamento de outros
des de relações públicas. Durante os Jogos, os países sinalizam grandes possíveis investimentos. Portanto não se deve presumir que sediar os
mudanças ou reposição de sua imagem perante o mundo. Por exemplo, Jogos seja a melhor forma de estimular a economia local ou nacional
Pequim está entusiasmada em demonstrar a crescente importância da (Baade & Matheson, 2002, 145; Szymanski 2002, 3).
China para a economia mundial ao realizar Jogos "High Tech", "Jogos Um quarto grupo interessado é o de indústrias empreiteiras lo-
Verdes" e "Jogos do Povo" (Lin, 2004). cais/regionais que se beneficiam mais obviamente da construção da
O terceiro grupo interessado é o dos políticos da cidade-sede, mfra-estratura e de instalações esportivas. Outros negócios locais
que têm como um dos seus objetivos atingir um aumento permanente podem ser 'parceiros' Olímpicos e também vêem os Jogos como uma
no turismo geral, e em particular, congressos e convenções de negó- oportunidade importante e única de iniciar os negócios, desenvolver
cios. Um segundo objetivo comum é o de promover a cidade corno contatos, e promover sua imagem interna e externamente.
uma 'cidade global' com ambições de gerar investimento internacio- O quinto grupo interessado é o das redes de televisão. Não só
nal (Weirick, 1999,70). Sedes Olímpicas desenvolvem os fatores locais transmitir os Jogos é uma fonte de prestígio, mas as redes podem
que são importantes para se tornarem 'cidades globais', tais como gerar lucro a partir da venda de comerciais, sendo que os Jogos po-
novos espaços de negócios, melhora nas telecomunicações, dem ser transmitidos durante o 'horário nobre' da rede. A NBC
Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social Hoiger Preuss

comprou os direitos de transmissão nos EUA dos Jogos entre 2010 e jovens. Além disso, a cidade perde um elemento importan-
2012 por US$2 bilhões. Devido aos Jogos de Vancouver 2010 e Lon- te de sua urbanidade, inclusive sua abertura ao público como
dres 2012, a NBC tem grande chance de transformar o investimento um todo. Cidades-sede parecem melhorar a qualidade dos
em lucro. espaços públicos instalando zonas para pedestres ou par-
Um outro grupo de pessoas interessadas é uma parte enorme ques públicos, mas nessas zonas para pedestres tem lojas
da população local (Preuss & Solberg 2006), muitos dos quais se para os mais abastados, e os parques frequentemente sediam
beneficiam da melhora da atividade económica, produzida pelas me- eventos pagos. Grupos sociais mais pobres têm pouco be-
lhoras da infra-estrutura urbana, outros fatores de localização, e nefício se eles são excluídos pelo custo dos atraíivos de
consequentemeníe da imagem de cidade. Apesar da extensão da lazer pós-Jogos ou se são marginalizados pelo custo do
atividade económica relacionada aos Jogos se diferenciar muito en- mercado das moradias que substituíram suas residências
tre diferentes cidades-sede, a estrutura melhorada, a melhor imagem anteriores. O enobrecimento das áreas residenciais pro-
e os maiores gastos produzem maior renda e empregos adicionais em duz moradias socialmente exclusivas perto do centro da
todas as cidades-sede. A frequente crítica de que a renda e os em- cidade em uma atmosfera atrativa e vibrante da cidade
pregos adicionais somente beneficiam membros das classes média e (Development Action Group, 1996, 9).
alta deve ser rejeitada. Mesmo se trabalhadores não qualificados b) Deslocamento de uma vizinhança. Além do mais, anterior-
fossem mal pagos, eles tiveram uni trabalho e sua renda aumentou, mente a um megaevento, as áreas onde foram construídas
independente da duração do emprego. A capacidade dos Jogos de as novas instalações esportivas eram frequentemente áre-
criar empregos e proteger os empregos existentes é frequentemente as residenciais dos pobres (áreas de ex-trabalhadores nas
proximidades de indústrias). É exatamente esse setor da
ignorada.
população que sofre pela expropriação e relocação causa-
Os perdedores d©s Megaeventos Esportivos das pelas atividades de construção, que leva a uma perda
em seu ambiente social. Sem dúvida, algumas autoridades
Não surpreende que muitos efeitos negativos têm maior impac-
municipais tentaram usar a oportunidade das Olimpíadas
to nos pobres, devido à óbvia prioridade que grupos com baixa renda
para expulsar da área grupos socialmente marginalizados,
têm em ter empregos, casas a preços acessíveis, cuidado médico
como os sem-teto, vendedores ambulantes e prostituías, que
adequado e integração social. Existem três implicações sociais nega-
na opinião deles, entram em conflito com a imagem de urna
tivas em sediar mega eventos esportivos: cidade moderna, aberta ao turismo, que eles estavam ten-
a) Transformação de espaços públicos em espaços pri- tando fabricar. (Para Barcelona veja Garcia, 1993, 260-1;
vados. O impacto do planejamento para o uso da área para Atlanta, veja Gladitz & Gunther, 1995; em geral veja
urbana para os Jogos frequentemente altera o equilíbrio Lenskyj, 1996, 395). Também deve ser notado que os po-
entre espaços públicos e privados, e a capacidade de cer- bres são forçados para for a de suas áreas residenciais não
tos grupos de acessar os espaços públicos restantes. Não só pelos grandes projetos de construção, mas também pelo
só o espaço público é privatizado, mas corno o espaço públi- subsequente enobrecimento das áreas (Cox et ai., 1994, 75).
co restante é remodelado para o uso de clientes adultos cj Enobrecimento. Trata-se da melhora na infra-estrutura
com poder de compra, e não para crianças, velhos ou existente, e causa os mesmos problemas descrito em a). É

20 21
Megoeventos esportivos, legado e responsabilidade social Holger Preuss

óbvio que os pobres não têm dinheiro suficiente para se Os pobres são menos capazes de se beneficiarem do que grupos
manterem nas regiões nobres da cidade, o que pode levar , maior renda, e não podem direcionar os alvos dos Jogos em seu
a um deslocamento indireto massivo, onde muitos cidadãos benefício. Além do mais, os pobres são mais afetados pelas limitações
têm que se mudar e perder suas vizinhanças. Sediar um de capacidade e assim são mais vulneráveis ao esquecimento e desti-
megaevento significa, finalmente, que outros projetos na tuição do que grupos de renda maior, de classe média. Ao concorrer
cidade podem ser excluídos e, portanto, cria altos "custos rã sediar as Olimpíadas, os riscos de possíveis efeitos negativos e se
de oportunidade" para o grupo que necessita da infra-es- eles podem originar-se de um ponto de vista económico deve ser veri-
trutura. Jogos Olímpicos servem a uni complexo particular ficado. Essa revisão mostrou que sediando os Jogos Olímpicos, corre-se
de alvos, e os ganhadores são aqueles que beneficiam quan- o risco de aumentar a polarização social da cidade.
do esse alvos são alcançados. O dinheiro que foi gasto nos A tabela a seguir sumariza os benefícios ligados ao potencial
Jogos não pode ser usado para outros projetos, e assim, os social e os riscos sediar um mega evento esportivo:
perdedores são aqueles que têm outros alvos que não pu- Tabela l: Impactos em potencial ao sediar grandes eventos esporti-
deram ser desenvolvidos, mas que teriam sido se não fosse vos nas, comunidades locais
pelas Olimpíadas. Tig^djjngacto Positi o

Se as Olimpíadas pioram a imagem da cidade-sede, ou se impe-


dem a chegada de investimentos em projetos não-relacionados aos
Jogos devido a uma forte relocação de recursos, a atividade econó-
mica geral na cidade-sede pode ser afetada negativamente. Empresas
locais da cidade não vão crescer, nem outros negócios se sentirão
encorajados a mudar para a cidade. A atividade económica reduzida
tem um efeito negativo na renda e nos empregos com consequências
para todos os cidadãos. Se as Olimpíadas causarem um prejuízo que
tem que ser coberto pela cidade (como em Montreal 1976), então há
consequências para futuros investimentos públicos, e os impostos > Exploração económica da população kscaí para
municipais podem ter que aumentar, produzindo novamente efeitos satisfazer ambições polcas da esite (Legitimar
decisões impopulares)
negativos para todos os cidadãos. O Grupo de Ação e Desenvolvi- • Distorção da rsal natureza de evento para refleiir
os valores da eirle (mai uso de vaiares)
mento (1996, 31) sugere que as lições de Jogos anteriores estejam ' Inabilidade em atingir os objstivos
• Aumento nos sustos administratíVos
claras, ao mostrarem que aqueles que pagam pelos Jogos não neces- • Corrupção
sariamente lucram com eles. Após conquistar o direito de ser uma
cidade-sede, os Jogos devem ser organizados pela cidade e pelo CON Sources: Hall (1992); Scamuzzi (2006); Hiller (1990); Preuss (1998);
Cashman (2005)
(Comité Olímpico Nacional), e assim a maior parte dos benefícios
criados são bens públicos. A indústria privada e outros beneficiários Cuidar dos aspectos sociais de um megaevento é de particular
lrtl
agem livremente e usam a infra-estrutura geral e a imagem melhor portância desde o começo, pois os moradores têm uni papel impor-
que foi construída usando dinheiro público. tante durante o processo de candidatura (Preuss & Solberg, 2006).
23
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social Holger

O legado social JWegaevenfos Esportivos Atenas 2004, que foram usados para melhorar a infra-estrutura de
A aproximação para detectar legado social é baseada no plano turismo das cidades. A Alemanha investiu 1.5 bilhões de Euros em
de desenvolvimento geral a longo prazo de uma cidade, onde_se en- estádios para a Copa do Mundo de futebol da FIFA 2006 (SuBmilch
tende a infra-estrutura física. Cada mega evento esportivo requer & Elter, 2004, 148). As velhas arenas, a maior parte vindas da última
estruturas específicas hard e soft. Toda a estrutura do evento que Copa do Mundo da Alemanha em 1974, não cumpriam os requisitos
existe antes/depois do momento das mudanças do evento - por certo modernos para o marketing e o entretenimento.
período de tempo - a qualidade de uma localidade de forma positiva
ou negativa. A estrutura do evento (ver 5.1) muda a qualidade dos Conhecimento, desenvolvimento de habilidades
fatores da localidade. Um grupo específico de fatores de localidade e educação
determina a qualidade da área como uma área para residências, in- A população local ganha conhecimento e habilidades ao sediar
dústrias, feiras, congressos, eventos e também como uma área para um megaevento esportivo. Empregados e voluntários alcançam habi-
o turismo (ver 5.2). lidades e conhecimento em organização de eventos, gestão de recursos
humanos, segurança, hospitalidade, serviços, etc. Espectadores e
'Estrutura do evento' e o os voluntários aprender a usar o transporte público e são familiarizados
^fatores de localização* com projetos ambientais. Eles também obtêm vasto conhecimento
sobre a história da cidade e do país, cultura e outros assuntos.
Infroesfrofiira físico Evidencio prática
Infraestrutura significa obviamente a infraestrutura esportiva Da perspectiva turística, aproximadamente 100,000 indivíduos
para competições e treinamento, mas também a infraestrutura geral foram capazes de melhorar sua competência intercultural em pelo menos
da cidade, como aeroportos, estradas, telecomunicações, hotéis, alo- uma das várias atividades relacionadas à Copa do Mundo. Por exem-
jamentos (atletas, mídia e oficiais), estruturas para entretenimento, plo, Accor Alemanha e a Dorint AG treinaram 12 mil pessoas com
fair grounds e parques, etc. Toda infraestrutura deixada após um livretes e 2,500 usando módulo eletrônico de aprendizagem. A Deutsche
evento deve caber no desenvolvimento geral da cidade. Hoje cons- Bundesbahn preparou seis mil empregados no seu projeto-XENOS e
truções temporárias ajudam a evitar legados negativos de estruturas providenciou a eles treinamento valioso para eles virarem "embaixado-
grandes demais e não-sustentáveis. res do serviço" (BMI, 2005). Outro exemplo é que quase 50% dos dez
mil voluntários recrutados para os Jogos da Boa Vontade em Manchester
Evidência prática 2002 sentiram que tinham adquirido novas habilidades e capacidades
Bons exemplos de infra-estrutura temporária são uma piscina através da experiência, 18% acreditavam que sendo um voluntário suas
indoor de 50m num campeonato oficial (Copa do Mundo FINA, chances de conseguir um emprego haviam aumentado e 46% concor-
Fukuoka 2001) ou um estádio de atletismo transformado em um está- daram que ser um voluntário havia acelerado seu desenvolvimento
dio de (Jogos Olímpicos, Atlanta 1996). Exemplos para mudanças pessoal (Faber Maunsell, 2004, 21&51).
positivas permanentes na infra-estrutura são os Jogos da Boa Vonta- Um exemplo de efeito negativo é a política dos patrocinadores
de em Manchester, 2002 Jogos da Boa Vontade em Manchester 2002 globais dos mega eventos esportivos que tentam estabelecer lealdade
(Faber Maunsell, 2004, 52) e as Olimpíadas de Barcelona 1992 e à marca na menor idade possível (Klein, 2005, 103-121). Eventos
24 25
MegaevenSos esportivos, legado e responsabilidade social Holger Preuss

oferecem a eles oportunidades para o marketing para os jovens. A campanha para serviços e amabilidade (BMI, 2005, 15). A cam-
respeito dos patrocinadores de Sidney 2000 Lenskyj (2002) escre- nha certamente contribuiu para melhorar a imagem da Alemanha.
veu: "A sua exploração cínica da retórica do 'espírito Olímpico' e De fato, A imagem da Alemanha como um país aberto ao mundo e
iniciativas pseudo-educacionais foram componentes da sua campa- hospitaleiro mudou como resultado da Copa do Mundo.
nha para atingir as crianças e os jovens" (p. 126). Corporações Outro exemplo é o Qatar sediando os Jogos da Ásia 2006 em
investindo dinheiro em programas educacionais estão certamente al- Doba. Ultimamente o país está tentando repor sua imagem e infra-
-J mejando promover a Ideia Olímpica, mas também a indústria Olímpica, estrutura para se transformar em um centro turístico para o esporte o
socializando assim crianças a se tornarem "consumidores globais" entretenimento árabe. Megaeventos esportivos são frequentemente
dos seus produtos. usados com um catalisador para transformar um local em um destino
turístico. Essa estratégia centrada na corporação requer a constru-
Imagem ção de centros de convenção, instalações esportivas, museus,
Megaeventos esportivos têm um significado e forma simbólicos shoppings, e entretenimento e complexos de apostas para alcançar o
tremendos, reposição ou solidificação da imagem da cidade, região e crescimento económico pelo desenvolvimento económico orientado
país. Normalmente eventos criam uma imagem positiva e a cidade e pelo consumo (Burbank et. ai, 2001, p. 35).
os políticos podem "ganhar [sua] glória refletida" (Snyder, Lassegard
& Ford, 1986). Por outro lado, a exposição global do evento, a cida- Emoções
de-sede e sua cultura dependem de representantes da mídia e não Megaeventos esportivos oferecem a políticos uma visão comum
podem ser inteiramente controlados pelos organizadores. Incidentes que proporciona ganho de prestígio internacional, cidadãos são envolvi-
negativos como um ataque terrorista, hooligans, falta de recursos dos emocionalmeníe e a indústria privada inspira-se na ideia de receber
por má organização ou simplesmente um clima ruim podem influenciar um evento extraordinário e altamente reconhecido ao redor do mundo. O
a imagem da sede. Não só os incidentes negativos causam isso, mas orgulho em sediar tal evento cria identificação local, visões e motivação.
também atributos ruins podem ser transportados por um mega evento
para milhões de visitantes, consumidores ou parceiros de negócios Evidência prática
em potencial. Nacionalismo exagerado ou comportamento injusto dos
Um exemplo são os Jogos Olímpicos de Seul em 1988, criadores
espectadores estragam a hospitalidade, e a pobreza e o crime criam
de uma perspectiva nacional, de sentimentos de vitalidade, participa-
dúvidas sobre um possível destino turístico.
ção, reconhecimento e de uma percepção internacional da modernidade
e atualização tecnológica (Denis ET AL. 1988, 229). Os chineses es-
Evidência prática teo entusiásticos em demonstrar sua importância económica crescente
Um dos objetivos de sediar a Copa do Mundo da FIFA em 2006 através dos Olímpicos de 2008 (Lin, 2004; Preuss, 2007b).
era o de repor o estereótipo de que os Alemães eram "conformistas, Como um efeito gravídico, a indústria privada estimula-se com
rígidos com o horário, sérios" (Lewis, 2006, 223). Os organizadores, o esperado afluxo monetário e com o potencialmente positivo le-
governos e a Central Alemã para o Turismo e.V. (Deutsche Zentrale gado posterior ao evento. Existem substanciais evidências
fiir Tourismus e.V.) lançaram um conceito de hospitalidade em nome Provenientes dos Jogos Olímpicos demonstrando que estes inves-
do governo Alemão que incluía: servindo estâncias do governo, unentos antecipatórios vêm ganhando espaço - especialmente no
Marketing-local para a Alemanha, um programa cultural assim como e
tor do turismo. Vistos criticamente, alguns deles têm gerado o
26
27
Megaevenfos esportivos, legado e responsabiíidade social Hofger Preyss

super abastecimento (Solberg & Preuss, 2006; Preuss 2004; Teigland um novo padrão de segurança em geral. O Manchester usou
1996). Contudo, tais resultados não podem ser apontados como um , jogos da Boa Vontade em 2002 para formar bases para a providên-
efeito da Copa do Mundo para a Alemanha em 2006 devido a ouíras cia de novas oportunidades de negócios utilizando os Jogos como recurso
estimulações que estiveram sobrepostas. Entretanto, uma Copa do Mun- nrooiocional de trocas e investimentos (Faber Maunsell, 2004,48).
do da FIFA pode modificar a disposição para investir ao invés de poupar:
"O anúncio de um evento leva à formação de um programa de inves- Cultura
timentos precedentes. Direta ou indiretamente ele é o catalisador de Megaeventos esportivos produzem ideias, identidade e produtos
certo número de eventos "caroneiros" (que, por sua vez produzem
ainda mais investimentos). E durante o próprio evento existem estí- culturais. Em especial as cerimónias de abertura incluem aspectos
mulos que impulsionam a demanda local. Enquanto isso tudo impele artístico-culturais os quais são uma mostra condensada dos aspectos
a economia local no curto prazo, a chave para qualquer efeito em culturais do país sede. Fatores como imagem cultural positiva, cres-
longíssimo prazo encontra-se na possibilidade de formação de um cente consciência, nova infra-estrutura e produtos turísticos adicionais,
legado permanente na infra-estratura ou nas competências da in- combinados com o ténue fator da melhoria da qualidade de serviço
dústria e na forma como ambos acontecem." (Swann, 2001,2-3). possuem juntos, notável potencial para aumentar a atividade turística
Emoções negativas também podem aparecer caso a criação das em longo prazo (Solberg & Preuss, 2006).
novas instalações para o evento use-se, por exemplo, de espaços
anteriormente pertencentes a trabalhadores. Dessa forma, cidadãos Evidência prática
residentes naquele local passam por processos de desapropriação e Barcelona, por exemplo, usou-se dos Olímpicos para transfor-
realocação, mas também de enobrecimento daquela área o que leva mar sua infra-estrutura e vir a tomar-se uma "cidade cultural" (Garcia.
ao aumento nos preços e a perda de seu ambiente social. 1993). A apresentação cultural educa a população anfitriã além de
oferecer a esta, a oportunidade de fazer conhecer sua história. Como
exemplos, encontramos o aumento da consciência da história aborígine
ISGB, mídia, políticos e outros necessitam cooperar para reali- na Austrália durante os Jogos Olímpicos de Sidney em 2002: o maior
zar megaeventos prosperamente. A interação destes elementos cria entendimento das tradições Mórmon nos EUA durante os Jogos Olím-
redes. De maneira geral, eventos otimizam redes políticas permitin- picos de Inverno de Salt Lake City também em 2002. Entretanto, é
do, por exemplo o estreitamento de parcerias com o governo central. fundamental que a consciência cultural promova melhorias na situa-
Em particular o maior conhecimento sobre o esporte, as redes ção das minorias de que trata.
entre políticos e federações esportivas e a imagem de ser uma cidade
esportiva aumenta a afiliação ao esporte. Programas de fundamenta- Mudanças de à
ção de treinamento, instalações para escolas, esporte para todos e «te eventos"
adicionais eventos esportivos são alguns dos resultados possíveis.
Uma duradoura estrutura de evento, que transforma fatores de
localização, é responsável por mudanças no terreno e pode levar ao
Evidência prática
crescimento económico no longo prazo.
Como um exemplo a ser citado, durante os Olímpicos de 2004 em
Atenas foi estabelecida uma rede internacional de segurança que deu

28 29
Megaeverttos esportivos, legado e responsabilidade social Holger Preuss

Evento Esportivo análise individual baseada nos planos de desenvolvimento para


'dade em longo prazo, suas necessidades e estrutura sociais preci-
sa ser feita antes do sorteio.
Pré evsnío
e evento O benefício social deveria ser maximizado por uma estratégia
, iongo prazo, dessa maneira, diversas atividades adicionais devem
iniciadas usando-se do entusiasmo e desenvolvimento acelerado
ludança reais ou perceptíveis dos fatores de localização
vividos pela cidade sedo enquanto esta se prepara para o evento. É
Pós evento claro que isto é muito difícil uma vez que aqueles que pagam pelas
medidas adicionais muitas vezes não obtêm lucros diretos e, por esta
razão, o interesse em iniciar tais atividades é baixo. Adicionalmente,
Demanda locai adicional
os responsáveis pelas tomadas de decisão frequentemente estão muito
l ocupados para começar projetos não obrigatórios durante o período
Produção Emprego/ renda/ tmposto
de preparação para o evento.
O conflito de interesses torna praticamente impossível evitar o
Figura 2: Impacto da estrutura do evento sobre os fatores de localização e acesso dos "perdedores" das classes sociais mais fracas analogamente
sua relevância económica. Fonte: Preuss (2007c) ao que acontece com o aparecimento de projeíos beneficentes desti-
nados aos pobres. Custos de oportunidade para mega eventos
Obviamente existem seis campos de uma cidade que são afeta-
esportivos são geralmente mais altos em países onde o legado "típi-
dos por mudanças dos fatores de localização. Por exemplo, um ponto
co" deste tipo de evento não beneficia a maioria da população. Sendo
turístico é afetado por estruturas do evento tais como aírações turís-
assim, as etapas pertencentes ao evento podem, adicionalmente, di-
ticas, hotéis, transporte, imagem, conhecimentos sobre a indústria de
minuir/parar o desenvolvimento geral da cidade incluindo vários dos
serviços e cultura.
projetos ligados às necessidades sociais dos grupos desprivilegiados.
Aqui o interesse recai particularmente no campo das melhorias
de vida o qual é afetado por estruturas do evento tanto na esfera das
Referências
melhorias no transporte público, zonas para pedestres, instalações
para entretenimento, parques, emoções e cultura como na esfera das Baade,R. A., & Matheson, V. (2002). Bidding forthe Olympics: fool's
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«es Stabes WM 2006 zur Vorbereitung auf die FIFAFuBball-
Aspectos sociais de megaeventos esportivos não podem ser prog- y
veltmeisterschaft2006.
nosticados pelo uso de padrões de excelência ou estudo de casos.
•30 31
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34 35
r
do
na

E l
Fábio Silvestre da Silva

Primeiras palavras
Quero iniciar a minha exposição cumprimentando a organização
desse evento que conseguiu trazer à tona a importante temática, mui-
tas vezes esquecida, dos Megaeventos Esportivos, Legados e
Responsabilidade Social, Cumprimento, ainda, meus companheiros de
mesa (doutor Ricardo Leyser - Ministério do Esporte; Nádia Cam-
peão - ex-secretária de Esporte e Lazer do município de São Paulo;
professor Marco Aurélio Klein - FGV SP e professora Silvia Helena
Marchi - SESI/SP).
Confesso que não é fácil fazer essa exposição hoje, principal-
mente pela minha crise de representação. Quando fui convidado, e
tenho uma leve impressão de que conheço os motivos pelos quais a
professora Kátia Rúbio me quis nesta mesa, eu atuava no Centro de
Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente de Interlagos
(CEDECA Interlagos) e estava responsável por uma disciplina no
curso de Psicologia do Esporte falando de projetos sociais, educação
e terceiro setor. Como sabem, sempre assumi posições mais radicais
e
combativas às diversas omissões tanto do setor público quanto do
pnvado. Hoje, por incrível que pareça, fui convidado e aceitei compor
0
governo do presidente Lula, na equipe da Secretaria Especial dos
Direitos Humanos (ministro Paulo de Tarso Vanucci), mais especifi-
camente a Subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do
Adolescente com a doutora Carmem de Oliveira. Vou trabalhar na
Megoeventos esportivos, legado e responsabilidade social
Fábio Silvestre da Silva

implantação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeucativo para Isto é. um conjunto articulado de diretrizes discutidas entre o estado e
adolescentes em conflito com a lei. Portanto, vou assumir um tom a sociedade civil composto por programas e projetos com pontos fun-
mais técnico do que radical político, ainda que a minha ideologia per- damentais: de caráter universal; com serviços de ação continuada; e
corra todo meu discurso. Espero não cansá-los ainda mais. com recursos políticos, técnicos e, principalmente, os financeiros.
Não podemos nos cansar em falar da Constituição Federal de
visitas 1988 que no seu artigo 217 consagra como direito de todo cidadão
brasileiro a prática esportiva como dever do estado em fomentar as
O povo brasileiro é criativo e guerreiro por natureza. Agora tem
práticas formais e não formais. O esporte pode ser vivido de diversas
uma minoria que está dizendo que cansou. Nós cansamos de muitas
formas principalmente por ser um fenómeno sociocultural plural.
coisas, mas outras, mesmo cansados, nos dão algum contentamento.
Ademais, posso dizer que, de um lado, os últimos 17 anos, com a
Um exemplo é a felicidade que temos ao marcar a visita de uma
promulgação de uma nova Constituição Federal e de importantes
pessoa querida em nossa casa. Como forma de respeito aos nossos
marcos para a política pública, são representativos de um expressivo
convidados, obviamente teremos todo o trabalho de arrumar a casa
avanço na previsão de direitos e na concretização deles em algumas
para recebê-los com o que temos de melhor. Faxina completa. Pre-
áreas (como apontados na Saúde e na Educação). De outro lado, a
paração de comes e bebes e recomendação aos filhos (para quem os
implantação e implementação destes direitos passaram a se chocar
tem). E quando recebemos visitas há algumas curiosidades e aumen-
com o modelo de estado neoliberal. Um exemplo que sempre foi a
to da tolerância. Quando uma visita acidentalmente derruba algo na
minha matéria de discussão é na área da infância e adolescência,
mesa ou no chão, o anfitrião não tem dúvidas e logo vai dizendo "não
onde é fácil verificar que muitas das estruturas públicas, necessárias
foi nada... Não se preocupe". Mas se a mesma cena acontecesse
à promoção do desenvolvimento integral dessa parcela da população,
com um da família, a tolerância seria um pouco menor.
foram desmontadas ou deixaram de ser criadas, em absoluto desres-
Assim fica fácil entender os caminhos que escolhi para falar do
peito à previsão Constitucional e infraconstitucional.
legado que ficou presente nesse Megaevenío esportivo. É um desa-
Neste processo, não é demais afirmar que o aparato estatal,
fio falar agora do legado dessa temática depois da Conferência do
agora com todas as ressalvas necessárias, é importante à promoção
Prof.° Dr. Holger Preuss, mas tentarei não ser repetitivo. Minha re-
dos direitos, mas foi e continua sendo substituído pelo financiamento
ferência de fala são os Jogos Pan Americanos de 2007 no Rio de
de ações desenvolvidas por organizações não governamentais, num
Janeiro, por motivos óbvios. claro processo de terceirização que conjuga dois discursos: o da ne-
Um primeiro ponto importante a ser considerado com legado é
cessidade de redução do aparato estatal e, por consequência, das
que esse evento inaugurou definitivamente o debate em nossa casa a
Ções diretas do Poder Público; e o da "excelência" da atuação das
sobre as políticas púbicas relativas ao esporte. Entendo Políticas Pú-
°NGs quando comparada à "ineficiência" da atuação estatal.
blicas como "o conjunto de ações coletivas voltadas para a garantia Esta ativa participação de organizações da sociedade civil, que
dos direitos sociais, configurando um compromisso público que visa não cansam nunca, na execução de políticas públicas, assumindo in-
dar conta de determinada, em diversas áreas. Expressa a transfor-
° Usive ° Papel do Estado na condução destas políticas, coloca, também,
mação daquilo que é do âmbito privado em ações coletivas no espaço guitas vezes em xeque o próprio papel de controle atribuído, pela
público" (Guareschi, Comunello, Nardini & Hoenisch, 2004, p. 180). e
gislação, à sociedade civil. Todo este quadro é agravado pelo fato

38 39
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social Fábio Silvestre da Silvo

de muitas organizações, ao mesmo tempo em que desenvolvem suas . ,acgo de liberdade que continuam recebendo atendimento que
atividades com recursos financeiros oriundos de convénios com o A respeita sua condição de sujeitos de direitos e em algumas piora-
Poder Público, terem representantes em Conselhos de Direitos. En- significativamente como no caso dos homicídios de jovens.
tão, um dos grandes impasses verificados é: os representantes destas
organizações não governamentais, diante de questões que envolvam Conhecendo a
o poder público, posicionam-se a favor de determinadas lutas sociais Temos uma realidade brasileira muito conhecida por todos
mesmo que em detrimento (ou sob ameaça de restrições) do financia-
nós mas que vale a pena gastar um tempinho, ainda que canse,
mento e da continuidade de suas ações.
nessa temática. De acordo com Di Pierrô e Silvestre (2003) o
A esse quadro soma-se, também, o significativo aumento no
Brasil é um dos países onde se registram as maiores taxas de
número de fundações privadas, muitas delas vinculadas a grandes
desigualdade social. Como é um dos países, ao mesmo tempo,
empresas multinacionais, que passam a ocupar tais espaços. Sua en-
subdesenvolvido e industrializado, guarda como característica
trada se dá basicamente de duas formas: como "financiadores" e
fundamental a convivência de um capitalismo moderno marcado
como integrantes dos conselhos de direitos.
pela extrema concentração de renda, ao lado de um capitalismo
Di Pierrô e Silvestre (2003) destacam que a responsabilidade
predatório que produz e reproduz de forma selvagem e impune
social é um grande negócio para as empresas e no papel de
profundas desigualdades sociais.
financiadores, esse discurso ganha cada vez mais adeptos e esta
Para Sposati (1989) essa desigualdade e o pauperismo são resul-
propalada responsabilidade está atrelada à possibilidade de ganhos.
tantes necessários da busca da acumulação sem limites, contudo, são
Um exemplo claro é a utilização do mecanismo de incentivo fiscal,
também campos de prática do Estado como tutor do bem comum
pelo qual pessoas jurídicas podem optar por destinar l % do imposto
De acordo com Silvestre (2007) muitas pessoas nesta socieda-
de renda devido para os Fundos dos Direitos da Criança e do Adoles-
de estão abaixo da linha da pobreza; muitos são muito pobres e quase
cente. Ocorre, porém, que, frequentemente, as empresas e respectivas
todos são pobres. As estatísticas da desigualdade são assustadoras:
fundações, quando pretendem destinar esse recurso, que inevitavel-
segundo o Atlas da Exclusão de Pochmann e Amorim (2003), a
mente deveria ser pago ao fisco, colocam-se numa posição de renda dos 10% mais ricos corresponde a 45% do PIB nacional. A
desrespeito às atribuições dos Conselhos de Direitos e condicionam a
situação piora se se incluírem nesse cálculo dados sobre o património,
destinação do recurso à garantia de aplicação em áreas e instituições
quando o percentual chega a 75,4% da riqueza total brasileira na mão
por elas selecionadas. Além disso, também avocam o direito de ava-
de 10% da população. O pior talvez seja imaginar o inverso: 24,6%
liação efiscalizaçãodireta dos projetosfinanciados- de onde olho
da riqueza brasileira estão distribuídas entre 90% da população. O
um verdadeiro equívoco.
asil entre 80 e 90 registrou um aumento do número de ricos, mas
Como se pode notar, a presente análise é reveladora da perma- re
gistrou nesse período uma redução do crescimento do país. O po-
nência de seriíssimos problemas sociais e da manutenção do quadro bre
gasta 32,79% da renda com comida e o rico apenas 10,26%, o
de iniqiiidades brasileiras. Os avanços existentes não são lineares.
4 e mostra que os pobres pagam mais tributo, proporcionalmente, do
Em algumas áreas são significativos, como no acesso e expansão da que os ricos, que vivem com conforto.
Saúde e da Educação; em outras, pouco se alteraram, como na mi-
Para Marques e Silvestre (2007), o quadro social é bastante
nha experiência dos últimos anos, com os adolescentes submetidos à
Plexo, com algumas características que devem ser consideradas.

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Megaevanfos esportivos, legado e responsabilidade social Fábio Silvestre da Siíva

No seu processo de produção há uma divisão do trabalho que separa «tino, e mesmo assim, existe ainda um hiato de pesquisa no que se
os indivíduos em classes. Esta divisão reproduz uma relação fere à dimensão temporal e espacial dos efeitos de megaeventos
maniqueísta e de manutenção da lógica capitalista. As relações sociais s taxas de criminalidade. No Brasil não é novidade que a presença

são essencialmente heterogéneas, de dominação, conflituosas e não de um grande número de turistas concentrados geograficamente nos
podem, ser analisadas fora do contexto internacional onde o Brasil eeaeventos pode criar um ambiente que maximiza a oportunidade
tem mantido posições de subordinação económica, social e cultural «ara os crimes, pois os turistas possuem uma série de características
em relação ao grande capital. eme Q fazem mais vulneráveis a ações criminosas que os residentes.
Pensando no Rio de Janeiro, que sediou o PAN 2007, o quadro No caso dos megaeventos esportivos, tal vulnerabilidade pode resul-
das comunidades atendidas por projetos sociais é de violência e misé- tar em crimes cometidos contra atletas e jornalistas, o que pode gerar
ria. Na medida que a sociedade é contraditória, mesmo que a uma superexposição na mídia (amplificação), trazendo consequências
exacerbação das desigualdades gere alternativas desagregadoras. negativas para a atividade turística local.
infelicidade humana, perda da esperança, medo, massificação, É claro que qualquer megaevento, por sua natureza, irá gerar
enrijecimento dos valores, falta de reciprocidade, gera também for- transtornos para a comunidade local, como superlotação da cidade,
mas de resistência cultural, de organizações populares, associações, congestionamento, e conseqiientemente um distúrbio no estilo de vida
sindicatos etc. Há e haverá sempre movimentos coníra-hegemônicos, da comunidade. No entanto, um megaevento pode também gerar
que permitam que as singularidades e espaços de auto gestão coleti- impactos sociais positivos. O fato de sediar um megaevento pode
va se produzam no trabalho cotidíano do instituinte. trazer para a população local um sentimento de orgulho e envolvimento
Neste contexto, as instituições, o trabalho, escolas e famílias com o evento e consequentemente com a cidade. Outro efeito positi-
esperam comportamentos que mantenham um equilíbrio e uma pro- vo é que os megaeventos esportivos estimulam jovens a uma
dutividade adequada à reprodução das relações sociais de produção. participação maior no esporte, o que pode, no caso de países em
desenvolvimento, e principalmente no Brasil, modificar e melhorar a
sociais realidade. E o último que vou listar é a construção da infra-estrutura
necessária para a realização dos megaeventos que pode contribuir
A perspectiva económica predomina na decisão de sediar
para o aumento da qualidade de vida local, já que sua utilização futura
megaeventos. Essa decisão traz alguns impactos negativos. Na bus-
será feita pelos residentes.
ca de espaços para a construção da infra-estrutura de apoio ao evento,
Neste evento, especialmente, houve um investimento na ordem
imóveis são desapropriados criando um transtorno para os proprietá-
de 4 bilhões de Reais que é considerado o segundo maior investimen-
rios e inquilinos e danificando muitas vezes o mercado imobiliário
to no Rio de Janeiro desde a ECO 921. Foram envolvidos nesse
local. Outro efeito negativo pode ser a remoção dos excluídos social-
investimento os governos federal, estaduais e municipais e patrocina-
mente (mendigos, pedintes, crianças abandonadas) para evitar a
dores (não me pagaram para divulgar aqui). Mas o legado dos lucros
divulgação de uma imagem negativa da cidade; vale ressaltar que
isso ocorreu em Atlanía em 1996, e constava na proposta de Sidney £CO-92. Rio-92, Cúpula ou Cimeira da Terra são nomes pelos quais é mais conhecida
on er
em 2000. , ' ência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
JNUMAD), realizada entre 3e 14 de junhode 1992 no Rio de Janeiro. O seu objetivo
Quanto à criminalidade, Page (2001) argumenta que segurança c
nci al
P era buscar meios de conciliar o desenvolvimento socioeconômico com a
e a criminalidade podem afetar de forma negativa o turismo em um -rvaçâo e proteção dos ecossistemas da Terra.

42, 43
Megaevenios esportivos, legado e responsabilidade social
Fábio Silvestre do Siiva

não retorna à população, pois vimos, ainda que a Globo não tenha Outro ponto fundamental é o investimento substancial no espor-
mostrado, alguns fatos que merecem nossa atenção, principalmente te brasileiro - não só no alto rendimento, mas no esporte educacional
por serem contra a "população indesejável" ( consumidores de dro- a exemplo de iniciativas como:
gas, prostituías, moradores de rua). • Programa Segundo Tempo do Governo Federal;
Vimos, por exemplo, que os governos e os patrocinadores anun- » Programa de Educação pelo Esporte do Instituto Ayrton
ciaram numa pílula dourada medidas que chamaram de "choque de Senna;
gestão" nos municípios das metrópoles com recolhimento de mora- Mobilização de atletas nos trabalhos sociais (Rai, Leonar-
dores de rua, conhecida também como política higienista (limpeza do, Paula, Janete e outros)
social) e segurança (com intervenção da Força Nacional). As organi- • Futebol Libertário, projeto que desenvolvi e está em funcio-
zações não governamentais aíuantes denunciaram que milhares de namento no CEDECA Interlagos.
famílias pobres foram removidas de áreas que habitavam há muitos
anos, muitas vezes sem amparo legal e indenização justa. Cerca de É necessário ainda desenvolver propostas que promovam de
75 mil pessoas foram removidas, particularmente em regiões mais fato a inclusão sem necessariamente ter condicionalidades
valorizadas como Zona Sul, Jacarepaguá e Barra da Tijuca - a maior excludentes, como é comum em muitos projetos que se colocam como
onda de remoções de comunidades desde os governos Carlos Lacerda sociais.
e Negrão de Lima, em plena ditadura militar. Houve aqui muitas or- Para não ser excludente e manter a fala dos projetos sociais che-
ganizações do terceiro setor na luta contra essa política de higienização go ao final deste texto ainda que já estejam cansadosl Eu cansei,
e pensando ações não imediatas, mas que resolvam os problemas confesso. A luta pela igualdade social nesse sistema capitalista cansa.
sociais de fato. E como cansa. Mas cansei mesmo é do discurso e desse movimento
Claro que não me canso de perguntar: afinal qual é o projeto de "Cansei", que chamo de "Grito dos Incluídos". Em pleno 7 de setem-
sociedade que estamos construindo? bro de 2007, trago comigo o Grito dos Excluídos no território nacional,
erguendo a bandeira de que os megaeveníos esportivos não devem ter
mais importância que a luta pela igualdade dos direitos.
Com a aproximação de novos pleitos do Brasil é fundamental
Pela paciência, muito obrigado.
aprender com esse megaevento para evitar esses efeitos que chamei
de indesejáveis do ponto de vista do social.
Algumas saídas como planejamento tornam-se necessárias para
Referências
antecipar o que não queremos. O planejamento estratégico é ampla- Brasil. Constituição Federal. Brasília: Esplanada, 2002.
mente recomendado como um importante instrumento para o
Brasil. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 3.069, de 13
desenvolvimento e está relacionado com uma forma de antecipar e "e julho de 1990. Brasília: Secretaria de Estado dos Direitos Humanos,
regular mudanças locais, de forma a promover o desenvolvimento De
Partamento da Criança e do Adolescente, 2002.
ordenado ampliando os benefícios sociais, económicos e ambientais.
Para conseguir isso o planejamento deve possuir uma sequência de ope- s "lerro. C; Silvestre, F. Primeiro tempo do terceiro setor: projetos
°ciais. ln
rações ordenadas desenhadas para alcançar os objetivos esperados.

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Megaevenios esportivos, legado e responsabilidade social

Rúbio, K. Psicologia do Esporte: teoria e prática. São Paulo: Casa do


Psicólogo, 2003. Q e à
Guareschi, N.; Comunello, L. N.; Nardini, M. & Hoenisch, J. C.
Problematizando as práticas psicológicas no modo de entender a
violência. In M. Strey, M. Azambuja & F. Jaeger (Orgs). Violência, género
e políticas públicas. (Vol. II): (pp. 177-194). Coleção Género e
Contemporaneidade. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. Marco Aurélio Klein
Marques, J.A.A.; Silvestre, F. Compromisso Social na prática. In Rúbio,
K. (org.) Educação Olímpica e responsabilidade social - São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2007.
Page, S. J.; Transporte e Turismo. Porto Alegre: Bookman, 2001.
Pochmann, M; Amorim, R. Atlas da exclusão social. São Paulo: Cortez
2003.
Nos últimos dez ou doze anos tenho feito regularmente pales-
Silvestre, F. Projetos Sociais em discussão na Psicologia do Esporte. tras em eventos relacionados aos esportes, com enfoques os mais
Revista Brasileira de Psicologia do Esporte, Vol. l, No l, 2007. variados. O convite para participar do Seminário de Estudos Olím-
Sposati, A. O.. A assistência na trajetária das políticas sociais picos me abriu a oportunidade de ampliar o leque das minhas
brasileiras: uma questão em análise. São Paulo: Cortez, 1989. abordagens e de dar a elas um enfoque de certa forma diferenciado.
Enfoque que, espero, possa provocar reflexão e - por que não? - um
pouco de inquietude.
Sou o que se poderia chamar de "torcedor de carteirinha", embo-
ra provavelmente só torça mesmo, mesmo, daquele jeito de sofrer, pelo
meu Palmeiras. Como gosto muito de esportes, sou dos que assistem
tudo, tudo o que consigo entender. O que, por hora, talvez só me tire pra
valer do beisebol. Nestes dias, enquanto escrevo este capítulo, andei
grudadíssimo no Mundial de Rúgbi, que, nas minhas preferências, pou-
cos anos atrás era um esporte que fazia companhia ao beisebol... Embora
0
nigbi, vá lá, seja uma espécie de tio do futebol.
Assisto ao vivo o que posso e acompanho o resto mundo afora
pela telinha e a internet. Profissional e academicamente envolvido
c
om o esporte desde muito tempo - são quase vinte anos -, divido o
Prazer com certa automissão de olhar criticamente tudo que vejo,
es
pecialmeníe quanto aos aspectos da administração esportiva, o que
1Ilc;
lui marketing, organização do evento e que tais.
Faço esta introdução buscando me qualificar perante você, lei-
°r> para o que apresento a seguir entre boas e más notícias.
Megoeventos esportivos, legado e responsabilidade social Marco Aurélio Klein

Começando pelas boas notícias, a mim parece corretíssimo di- O que destaco é a questão das melhorias estruturais. Como a
zer que de quinze anos para cá houve diversos e importantes avanços hservada na ginástica olímpica, a título de exemplo. Caso no qual fica
em tudo o que envolve o esporte brasileiro, dentro e fora de campos, laro que o Brasil mudou de patamar na cena internacional e que há
quadras e pistas. Os mais críticos, talvez generosamente, apenas me trabalho de longo prazo sendo desenvolvido na formação de base
rotulem de maluco, mas vejamos o que aconteceu. em sentido bem amplo. No futebol, pegando um exemplo peso-pesado,
Considerando o sentido de marco regulaíório para o esporte, organização do calendário e da forma de disputa do Campeonato
antes de 1993 (Lei 8.672/93, aLei Zico), a última medida significativa Brasileiro também é claramente melhor depois do Estatuto do Torce-
fora a criação do CND - Conselho Nacional dos Desportos, no go- dor, e mais crível também se considerarmos o fato de que as regras de
verno Getúlio Vargas, por meio do Decreto-Lei 3.199, de 14 de abril acesso e rebaixamento têm sido respeitadas depois de anos de deci-
de 1941. Durante a ditadura militar, houve ações específicas voltadas sões espúrias tomadas fora de campo - conhecidas como "tapetão".
às questões da educação física nos currículos escolares, inseridas Temos até mesmo o sempre reclamado calendário anual conhecido
que estavam no contexto de leis relativas à reforma do ensino (Leis antecipadamente. Talvez ainda não seja o melhor calendário - e acho
5.540/68 e 5.692/71). que não é -, mas existe, é publicado antecipadamente e respeitado.
E necessário reconhecer que, desde a Lei Zico até hoje, foram Tomando a história do futebol brasileiro, não é pouca coisa. De 1971
vários os avanços - mesmo que pontualmente tímidos - no que até 2003, o Campeonato Brasileiro conseguiu a proeza de nunca repe-
concerne aos marcos regulatórios. Alguns de natureza administraíi- tir uma fórmula de disputa (criando ano após ano fórmulas, uma mais
vo-financeira (Lei 9.615/98, a chamada Lei Pele e a Lei 10.672/03, esdrúxula do que a outra e algumas verdadeiramente bizarras). Desde
conhecida como Lei da Moralização do Futebol); outros de estímulo então, segue o sistema de todos contra todos, em pontos corridos, con-
e/ou apoio e recuperação financeira (Lei 10.264/01, a Agnelo/Piva e sagrada e mais que centenária fórmula adotada com o nascimento das
a criação do Programa Bolsa Atleta, da Lei 11.438/06, do Incentivo primeiras competições na origem do futebol.
ao Esporte e a Timemania, Lei 11.345/06); outros ainda de proteção Em 2007, tivemos como destaque esportivo no país a realização
ao torcedor e de prevenção da violência (Lei 10.6711/03, o Estatuto do Pan do Rio. Se polémico nas questões financeiras e de gestão das
do Torcedor e a Comissão Nacional de Prevenção da Violência para verbas, foi realizado com sucesso e afinal deixou boa imagem das
a Segurança dos Espeíáculos Esportivos - Comissão Paz no Esporte, competições e da cidade do Rio de Janeiro, que tão bem recebeu
criada pelo Decreto No. 4.690/04). atletas e visitantes. No plano esportivo, ficou a impressão de um Bra-
Não bastasse isto. no governo Lula o esporte ganhou ministério sil potência esportiva, tantas as medalhas conquistadas. Verdade
específico, embora continue com um orçamento incompatível com a prontamente restabelecida nas competições internacionais que vie-
importância que todos os políticos (da situação e da oposição), quan- ram a seguir, quando tivemos pela frente a elite de cada esporte, e
na
do em campanha, atribuem ao esporte. « competidores fracos como os que vieram ao Pan. Ainda no cam-
Todas estas leis e decretos, mais a criação do Ministério do PO das boas notícias, temos a candidatura consolidada do Rio para
Esporte, certamente tiveram impacto positivo no cenário desportivo receber os Jogos Olímpicos de Verão de 2016 e a candidatura única
d
do país. E não digo isto amparado em títulos ou crescimento do nú- o Brasil para receber a Copa do Mundo de Futebol de 2014, dentro
e
mero de medalhas obtidas nesta ou naquela competição. Até porque uma política de rodízio estabelecida pela FIFA a fim de garantir a
isto é no mínimo discutível, uma vez que nem sempre se traduz em °Pa em todos os continentes. Há quem não acredite na perenidade
s
melhoras, ao menos no sentido qualitativo. te rodízio, e formo na primeira fila desta turma.

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Marco Aurélio Klein
Megaevenlos esportivos. Segado e responsobílidade social

Há outros aspectos interessantes que também merecem registro, to à sua auto-sustentabilidade. A verdade é que as aíividades no
M t mar do alto rendimento carecem também de um modelo de negócio
com avanços igualmente em áreas correlatas. O espaço para o esporte
na mídia em geral, embora absurdamente dominado pelo futebol (nossa as possa tornar rentáveis e, portanto, auto-sustentáveis. Sem condi-
famosa monocultura esportiva?), cresce para outras modalidades, que ções de tirar o melhor das diversas políticas de apoio e incentivo, este
vão ganhando um pouco mais de atenção dos fas do esporte. Nos forco não tem como se espalhar de forma estruturada até a base.
últimos dez anos, talvez uma centena de livros sobre esportes chegou Esta fragilidade torna o país um exportador de mãos e pés de
às livrarias e universidades, que, além de abrirem espaço para debates, obra para o mercado esportivo do primeiro mundo e até mesmo para
criaram, muitas delas, cursos específicos até mesmo na graduação - periferia deste primeiro mundo; como já acontece no futebol, que
caso da FGV, onde dou aulas de marketing esportivo. exporta seus craques recém-formados para países como Ucrânia e
PAN, Copa de 2014, Olimpíada de 2016, mega-eventos realiza- Turquia, que depois os repassam para Itália ou Espanha por valores
dos e por fazer. Espaço no governo, atenção da mídia, maior importância muito superiores.
na produção cultural e no mundo académico. Vivemos um pré- Então, se não há como negar avanços no cenário esportivo bra-
eldorado esportivo no país? sileiro, também não é possível fechar os olhos para os graves problemas
Longe disso. Hora das más notícias. Olhando alguns resultados estruturais, bem como para a organização e a operação de competi-
brasileiros em esportes de ponta - como o futebol, o vôlei ou o cres- ções de grande porte no país.
cimento da ginástica, e a nítida melhora em algumas modalidades do A fim de se ter uma ideia melhor e mais consistente, vale a
atletismo e da natação —, é possível dizer que o cume da pirâmide tem pena olhar para trás, com enfoque na história da organização das
destaques pontuais. O quadro de novos talentos que surgem e os competições e daqueles que se tornaram os mega-eventos de hoje,
incentivos vários ao esporte, que podem abrir base para a descoberta a exemplo dos Jogos Olímpicos (de Inverno e de Verão) e da Copa
de outros novos talentos, indicam a ampliação da chamada base do do Mundo de Futebol. Avaliando que tamanho e importância tinham
esporte. Se continuarmos na figura geométrica da pirâmide, porém, é e como e por que atingiram as proporções atuais, que nos levam a
nítido o vazio do meio. E "por quê?", você deve estar se perguntando. olhar, inclusive, do ponto de vista do que deixam depois de sua rea-
Porque a estrutura de competições esportivas no país é muito lização (e da dinheirama investida) nas diversas formas de legado,
frágil, para dizer o mínimo. A atividade esportiva no Brasil é baseada e o que isto pode significar, além da mera e muitas vezes apenas
na prática esportiva por meio das associações esportivas, os clubes, e eventual demagogia política.
não na escola ou por seu intermédio. Por razões muitas, o modelo de Um bom começo é situar de forma objetiva a relação do esporte
clubes sociais, especialmente nas grandes cidades, parece esgotado de competição - seja o profissional ou o dito "amador" - com o en-
e a profissionalização da aíividade esportiva em geral - e em particu- tretenimento. Para isso, busco a ajuda do professor Al Lieberman, da
lar das competições esportivas -tomafinanceiramenteinsustentável New York University, que explica o esporte como entretenimento.
Iz
as competições neste modelo, claramente ultrapassado. ° professor: "Se há um meio no qual se permite que os especta-
Or
Sem um miolo da pirâmide com competições em larga escala es se imaginem como participantes, dando vazão às suas
es
para todos os níveis, o surgimento e a produção de talentos na base Peranças, sonhos, medos e aspirações, este meio é o esporte. Des-
não encontra lugar e preparação suficiente para os níveis mais altos tempos longínquos, populações, civilizações, se entretiveram
Cor
do chamado alto rendimento, também muito frágil financeiramente Qpanhando o maior, rnais rápido, mais forte, mais disposto, dentre

50- 51
Meçjaeventos esportivos, legado e responsabilidade social Marco Aurélio Klein
os membros da comunidade, tentando derrotar o vizinho... E, claro, O que aconteceu entre estas duas épocas tão distintas?
assim que alguém começou a pagar para desfrutar de tal privilégio,
outro alguém precisou promover o evento para estimular estas recei- A primeira e mais óbvia explicação é que o mundo mudou e
tas" (The Entertainmení Marketing Revolution, Al Lieberman). mudou muito. Um aluno que comparasse os mapas de um atlas esco-
Pouco tempo atrás, a revista Variety publicou artigo realizado lar da época dos jogos de Atenas 1 896 com um atualizado de Atenas
em parceria com a revista Sport Business, definindo este novo seg- 2004 logo perceberia que são muitos os países que não mais existem,
mento da indústria do entretenimento como "Sporíainment". Q muito maior o número dos que não existiam antes. Considere a
É importante esta contextualização do esporte como uma das questão do transporte. Na primeira Copa do Mundo, em 1930 no
formas da indústria do entretenimento para que fique bastante claro Uruguai, as equipes europeias levaram duas semanas para cruzar o
- para o bem ou para o mal — que vivemos num tempo no qual todos Atlântico de navio. Seleções da África, Ásia ou Oceania? Nem pen-
os mega-eventos estão diretamente ligados ao mundo dos negócios. sar. A preparação física era praticamente feita a bordo, quando as
Ao poderoso ente conhecido como mercado. Claro, muito diferente condições climáticas assim o permitiam. E nem falamos ainda de
de quando foram criadas e realizadas as então chamadas Olimpíadas rádio, tevê e internet, que tanto colaboraram na expansão e
da Era Moderna, no final do século XIX, ou de quando foram organi- popularização das diversas modalidades esportivas.
zadas as primeiras grandes competições de esportes populares como Mas, falando de expansão, começo por um fenómeno bastante
futebol e basquete. recente historicamente: a globalização.
Aliás, os dois maiores eventos do mundo atual, Jogos Olímpicos O jornalista e escritor norte-americano Thomas Friedman, no
e Copa do Mundo, começaram bem inexpressivos. Até mesmo com aclamado livro O Mundo é Plano usa a mesma nomenclatura das
muita dificuldade para "emplacar". etapas de desenvolvimento dos softwares - 1.0, 2.0, 3.0 etc. - para
A primeira Olimpíada da Era Moderna, disputada em Atenas expor o que considera as principais etapas da globalização:
em 1896, contou com a presença de apenas 14 países e 241 atletas,
que disputaram somente 9 modalidades esportivas. Os jogos de Ate- Globalização l .0 > 1492 a 1 800
nas 2004 conseguiram a adesão de 201 países e receberam 11 mil • Mundo de grande para médio
atletas para a disputa de 28 modalidades. • Força dinâmica da mudança: intercâmbio entre países
A primeira Copa do Mundo, idealizada pelo francês Mês Rimet
e disputada em 1930 no Uruguai, sequer conseguiu ter os 16 países Globalização 2.0 > 1800 a 2000
convidados e inicialmente previstos, já que só foi possível conseguir a • Mundo de médio para pequeno
inscrição de 13 para jogar em duas semanas as partidas (foram 18 no Força dinâmica da mudança: intercâmbio entre empresas
total) marcadas na competição. No que se chama fase final da Copa
de 2006, disputada na Alemanha, foram 32 os países classificados, Globalização 3.0 > desde 2000
dentre cerca de 200 que disputaram a fase de eliminatórias continen- Mundo plano
tais. Nas 12 sedes espalhadas pelo país, disputaram 64 partidas durante Força dinâmica da mudança: intercâmbio entre indivíduos
um mês. Todas com estádios com 100% de ocupação da capacidade
Í3e
instalada. e §undo Friedman, na mesma obra, "uma rede de fibras óticas
planetária nos converteu, a todos, em vizinhos de porta".
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Megaeventos esportivos, legcdo e responsabilidade social Marco Aurélio Klein

Por exercício, fiz uma adaptação dos conceitos enunciados O rádio e a televisão mudaram a dimensão do esporte. Ambos,
pelo autor, aplicando-os à história do desenvolvimento dos esportes A qual em seu tempo, foram verdadeiros divisores de águas. De-
hoje mais populares e considerando a história das principais com- c
. . s oa aceleração dos processos de expansão do esporte como
petições. Assim, um processo de crescimento e globalização no rnento da indústria do entretenimento porque alimentaram a ges-
esporte pode ser mostrado como segue: ão de um ente novo e bastante peculiar, o torcedor-espectador. O
'dio e a TV fizeram crescer exponencialmente, na razão inversa do
Globalização do Esporte l .0 > 1860 a 1930 tempo, a geração de ídolos e a expansão geográfica da identificação
• Expansão e consolidação das modalidades de modalidades e marcas esportivas.
° Força dinâmica da expansão: fundação de clubes e Antes do rádio e da TV, espetáculos esportivos estavam sujeitos
federações tão-somente à capacidade de cada estádio ou ginásio. Dependiam do
velho e bom boca-a-boca, sempre eficiente, claro, mas de muito me-
No início da segunda metade do século XIX, na Inglaterra e nor alcance e credibilidade.
nos EUA, modalidades como rúgbi. futebol como o conhecemos no Na Europa, foi em 1938, no dia 9 de abril, no estádio de Wembley,
Brasil e o basquete organizaram sua administração esportiva em em Londres, que aconteceu a primeira transmissão ao vivo de um
torno de entidades que poderiam ser genericamente chamadas de evento esportivo de importância nacional e internacional: o jogo de
federações, e que foram as responsáveis pelas primeiras competi- futebol entre Inglaterra e Escócia.
ções oficiais. AFIFA, a título de exemplo, foi fundada em 1905. No mesmo ano foi transmitida a primeira partida entre clubes:
Preston North End x Huddenfíeld. Começava a mudar para sempre
Globalização do Esporte 2.0 > 1930 a 1990 a história e a importância econômico-financeira do futebol em parti-
• Mundo de médio para pequeno cular, e do esporte em geral. Mudar lentamente, diga-se!
• Força dinâmica da mudança: internacionalização das Demorou bastante para que a TV percebesse as reais possibili-
competições e força da mídia dades das transmissões esportivas. E, por muito tempo, em todas as
modalidades, em todo o mundo, todas as entidades esportivas tam-
Em 1930, com a realização da primeira Copa do Mundo, no bém fizeram o possível para manter a TV bem longe de seus
Uruguai, já se enfrentava o desafio de uma competição internacio- espetáculos.
nal com a participação de países de continentes diferentes. Na
Europa, o rádio e os jornais já tinham relativa importância na cober- O esporte é de
tura do futebol desde o final do século anterior e a cobertura da TV
chegaria aos campos ainda nos anos 1930. — E os valores financeiros disparam.

Globalização do Esporte 3.0 > desde 2000 "Estrelas do esporte são maiores do que a vida normal... Elas
• Mundo plano andam peio mundo, moram empolados, vestem-se para arrasar e
o eles são permitidos vários 'excessos'", destaca o professor
• Força dinâmica da consolidação: Fashionability Lieberman.
e comunicações

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Megaeventos esportivos, legado s responsabilidade social Marco Aurélio Klein

Os números dão a indicação do crescimento deste segmento 50 mil novos empregos criados (1/3 seg. hotéis e
com o advento da TV e, pode-se dizer, com a verdadeira descoberta restaurantes)
do esporte pela TV. É possível dizer que a TV realmente descobriu o PIB = + 8 bilhões* (2003-2010) decorrente da Copa 2006
esporte quando foi além da simples transmissão dos eventos. Era . 3,9 bi* de investimentos públicos em obras viárias
possível ir além e a TV o fez. 3,5 bi* em transporte público
No entanto, com as possibilidades proporcionadas pela tecnologia . l ,5 bi* em investimentos na infra-estrutura de estádios
das transmissões por satélite, da Copa do México (1970) e das Olim- . 4,8 a 5,5 milhões de noites de hotel a um preço/noite médio
píadas de Munique (1972) para cá, a mídia - especialmente a TV, e de 190*
depois também a internet - se transformou em poderoso instrumento . Empresas locais gastaram 2,7 bilhões* em anúncios liga-
no processo de globalização de ídolos, times e marcas esportivas... E dos à Copa (*valores em euros)
seus patrocinadores. Bem como da difusão de produtos com as prin-
cipais marcas: o licenciamento. Recorro novamente ao professor Lieberman para nos ajudar a
A importância da comunicação é tão evidente que impactou até entender por que o esporte tem tanta força e diferenciação de outros
mesmo as regras e regulamentos de várias modalidades - como o eventos de entretenimento.
ténis e o vôlei, que precisaram mudar para serem considerados pro- Qual a diferença? Aparentemente simples, mas talvez por isto mes-
dutos "televisivos". O basquete profissional americano, gerido pela mo tenha demorado a ser percebida pelos principais atores envolvidos:
NBA (National Basketball League), a liga profissional, tem regras
próprias, diferentes das adotadas pela FIBA, a Federação Internacio- 'Tara um show de TV ou um filme funcionar, tudo precisa ser plane-
nal de Basquete. Para que o leitor possa ter uma ideia melhor do que jado e organizado para resultar em um determinado objetivo, como
isto significa, basta imaginar a CBF fazendo o campeonato brasileiro fazer a audiência rir ou chorar. Competições esportivas são diferen-
com os times jogando sob regras bem diferentes daquelas adotadas tes: não há certezas. O público vai por diferentes razões. O torcedor
do esporte não trocará seu entretenimento se seu time não vencer,
pela FIFA.
como o faria se seu show favorito não agradasse. Mais do que
Diversas fontes, dentre elas a revista norte-americana Forbes, entretenimento, o torcedor-espectador busca compartilhar uma
estimam que a Indústria do Entretenimento como um todo movimen- determinada experiência. Viver uma experiência única, de alegria ou
ta em todo o mundo cerca de 700 bilhões de dólares ao ano (o que tristeza. Esporte é um passo mais próximo da vida real do que o
representa 35% a mais do que o PIB do Brasil). As mesmas fon- entretenimento tradicional."
tes atribuem ao esporte aproximadamente 20% deste total, ou seja, Pró f. Al Lieberman
140 bilhões (27% do PIB brasileiro).
Os números da Copa da Alemanha (fonte Deloitte), em 2006,
são ilustrativos da força económica do segmento e de seus mega- Se ficarmos no exemplo apenas das Copas do Mundo de Fute-
eveníos esportivos: °1> poderemos examinar o porte das mudanças desde a primeira
c
Mais de 3,2 milhões de turistas e visitantes °ttipetição no Uruguai, quase 80 anos atrás, veremos que há quatro
Ores
• Estimados 32,5 bilhões de audiência cumulativa novos e de importância chave:
800 milhões de receitas com turistas*

56 57
Marco Aurélio Klein
Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social

Países Audiência global

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Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social Marco Aurélio Klein

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1982 2002
Conclusão
Estes fatores dão dimensão planetária aos eventos mais importan-
tes, os megaeventos, e, portanto, os colocam no patamar da importância
A de capital para o negócio entretenimento. São eventos profissionais, com
Com números expressivos na ocupação média da capacidade investimentos tão grandes em infra-estrutura para sua realização que
instalada dos estádios, em praticamente toda a temporada, as princi- transcendem a própria análise da realização esportiva. Daí a importância
pais ligas e os principais times do mundo são bastante agressivos no dos chamados legados que justifiquem a inserção de tais eventos nas
marketing de seus produtos. políticas públicas e no aporte dos recursos decorrentes.
Percebem a oportunidade para explorar de tudo, dos próprios Voltando ao Brasil, será difícil avançar com segurança para os
times aos jogadores, estádios, história, memorabilia etc. de formas Wega-eventos se não houver no médio e no longo prazo ações
não imaginadas pouco tempo atrás. estruturantes para que as atividades e as práticas esportivas tenham
Em cada produto com a marca do clube, seguem juntas as mar- competições continuadas e regulares, que consigam atrair pratican-
es
cas dos patrocinadores e dos fornecedores dos materiais. Multiplica-se > público, mídia, patrocinadores e investidores.
a exposição destas marcas onde quer que cheguem as imagens da TV. P f-.
Não basta sonhar com grandes eventos, é preciso também pen-
r
na realização adequada dos pequenos e normais do dia-a-dia.
lca
difícil imaginar que possamos operar um evento como a Copa do

'60 61
Megaeventos esportivos, Segado e responsabilidade social

Mundo se não operarmos com padrões regulares de eficiência e se-


gurança uma simples venda de entradas nas partidas normais do eo
Campeonato Brasileiro. Pouco provável que alcancemos os padrões
de excelência necessários para a segurança dos torcedores e fãs de
na -O
uma Olimpíada ou de um Mundial, se não conseguirmos manter as um
escadas livres num ginásio em competições ou exibições do dia-a-dia
esportivo das maiores cidades. Como garantir o funcionamento e Rui Campos
operação impecável de sistemas sofisticados de transmissão de da-
dos em tempo real se não conseguimos manter banheiros em condições
mínimas de higiene nos estádios? Como ocupar novos estádios de
forma adequada operacionalmente, evitando o sucateamento das ins-
talações? O desafio é muito grande e o Brasil já se saiu, como se sai,
muito bem em outras áreas, mas ainda não mostrou isto no esporte.
Introdução
Está na hora de se preparar para mudar de patamar e entrar na O objetivo deste estudo é fazer um paralelo de alguns aspectos
modernidade também fora de campos, quadras e pistas. Será que o do esporte do industriário no Brasil nas competições do Serviço Social
PAN foi um bom sinal? da Indústria - SESI. com experiências pessoais do presente autor
Há muito potencial para ser desenvolvido. vividas no esporte de alto rendimento - na geração que conquistou a
medalha de prata na Olimpíada de Los Angeles, em 1984, conhecida
Referências pelo epíteto de "Geração de Prata".
Ao reunir informações sobre o tema central do legado esporti-
DELOITTE. Apresentação Copa do Mundo, 2006.
vo proposto para este livro foi montada uma sequência lógica,
FRIEDMAN, Thomas. O Mundo é Plano. RiodeJanei.ro: Objetiva,2005. focalizando o efeito do esporte de rendimento numa instituição que
HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios 1875-1914. São Paulo: Paz e desenvolve competições para atletas não-profíssionais - aqui deno-
Terra, 1988. minados "trabalhadores-atletas" - e que cria condições para que
LIEBERMAN, Al. The Entertainment MarketingRevohition. New York possam ter a chance de participar em eventos esportivos em nível
University,2002. nacional e internacional.
MANDELL, Richard. SportA Cultural History. Columbia University No exemplo aqui escolhido, o dos Jogos do SESI, tais atletas
Press, 1984. (homens e mulheres) têm a oportunidade de realizar suas aspirações
e
VOGEL, Harold L. Entertainment Industry Economias. Cambridge sportivas, pois nessa estatura de competições em que se estimula a
University Press, 1998. lv
encia de valores e se proporciona a compreensão de como tais
ores
Sport Business International - magazines têm influência na vida esportiva, social, cultural e profissional
e
ssas pessoas. Este processo, em tese, levaria os atletas não so-
ante a ter um maior reconhecimento pessoal nas suas empresas
Or
nunidades, bem como à melhoria da auto-estima e de alguns

62
Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social Rui Campos

aspectos de saúde, lazer e bem estar. Tais fatores são examinados no a empregadora dos atletas e em alguns casos, a população da

presente relato a partir da percepção dos trabalhadores-atletas em •A de-sede da empresa promotora da competição; por sua vez, o
avaliações realizadas durante as competições (SESI 2007a) e impacto de uma equipe olímpica - como a do voleibol vice-campeã
reinterpretados como legados esportivos e empresariais. To?os Olímpicos de 1984 - tem como suporte a mídia e sua
Em princípio, o processo para a conquista de uma medalha olím- • fluência sobre amplas áreas geográficas e segmentos massivos da
pica pelo viés de minha experiência pode ser comparado ao processo população de um país.
de estruturação de um programa de esportes de competição para o De fato, o impacto do legado produzido por atores atletas é assi-
trabalhador, em que as empresas exercem responsabilidade social nalado por Rubio (2006) ao sugerir que atletas medalhistas olímpicos
por meio do esporte. Esta convergência de situações esportivas apa- tornam-se uma espécie de legado vivo dando exemplo a gerações
rentemente desiguais surge ao se apreciar os Jogos do SESI como futuras - alguns com síatus de heróis e heroínas -. mesmo sem tomar
um ambiente criado para a competição esportiva de elevado impacto consciência do que isso representa. Acrescenta a autora, que são
grupai. Tal repercussão, por hipótese, representaria um imaginário "(...) como representantes brasileiros em um evento de grande im-
social similar ao dos Jogos Olímpicos, em que o atleta é o ator princi- portância para si próprio, para o país e para a história do esporte (...)
pal. Daí não ser surpresa que as empresas mantenedoras do Sistema "(Rubio, 2006, p.9).
Indústria estejam cada vez mais reconhecendo o esporte como agen- Neste contexto de legado relacionado a atletas, pode-se vislum-
te de transformação - integração e preparo para uma vida melhor de brar a possibilidade de se desenvolverem ações que levem pessoas
seus colaboradores -, em que, afinal, não podem existir realmente comuns, sobretudo aquelas provenientes do "chão-de-fábrica" das
empresas, a vivenciarem uma sequência de competições que as esti-
vencedores e vencidos. A pretensão, neste caso, incide no ganho co-
mulem a galgar etapas organizadas em divisões geográficas (municipal
letivo dos envolvidos, isto é, num legado para os trabalhadores, suas
a internacional) e que dêem significado esportivo, social e cultural às
famílias, e as empresas.
açôes promovidas. Com este propósito estruturaram-se no SESI com-
petições esportivas para esse público, o qual embora busque resultado
Ascensão do no
e portanto, rendimento, não pertença ao esporte de "alto" rendimento
legado
- preferencialmente profissionalizado.
O olhar paralelo do percurso metodológico escolhido para este
estudo define-se pela hipótese do trabalhador-atleta ser também um SlSi - A da
ator similar ao atleta do esporte de alto rendimento; este último prota-
A partir de minha vivência com a geração de prata do vôlei brasi-
gonista, no exemplo da Geração de Prata do vôlei brasileiro, deixou eiro e c
°m o esporte de rendimento em geral, aliado a uma inquietude
um legado que vai além do resultado esportivo propriamente dito. A a
zida pelas possibilidades de contribuição à sociedade em que me
experiência do vôlei brasileiro neste contexto interpretativo das últi-
contro inserido, cabe-me então reportar experiências institucionais
mas três décadas incorporou por amplo reconhecimento popular
° Serviço Social da Indústria - SESI quanto à valorização dos atletas-
valores, crenças e aspirações que frequentemente se revelam como b
°lo (trabalhadores e trabalhadoras) e eventual criação de legados.
património coletivo da população brasileira. A distinção com o espor-
Para percorrer o caminho dessa estruturação, é oportuno co-
te promovido pelo SESI estaria na recepção do impacto que entre Cer
um breve histórico, a estrutura e propósito do SESI desde a
trabalhadores atingiria sobretudo o grupo de pessoas delimitado pela

-64 65
Megaeventos esportivos, Segado e responsabilidade sócia! Rui Campos

sua fundação e em seus pontos essenciais, para dar nexo a todo en- •moactados pelas atividades das empresas e (iii) conhecer suas ex-
redo deste estudo. tativas e demandas em relação a essas empresas (CNI, 2006, p. 11).
O SESI foi criado por decreto-lei 1° de julho de 1946, a partir Urna dimensão que se percebe nessas questões é a qualidade
do trabalho dos empresários Euvaldo Lodi e Roberto Simonsen, que vida. conceito tão em voga nos últimos anos e que está expresso
vislumbravam a necessidade de promover a integração e a solidarie- missão institucional (internet) e é a base do propósito de ser dessa
dade entre patrões e empregados, a partir de tensões sociais surgidas • stituição desde a sua fundação. Essa dimensão humana está pre-
no pós-guerra. A instituição é de direito privado, mantida e adminis- ente no "Mapa do Sistema Indústria" abrangendo o Lazer como
trada pela indústria. Com o objetivo de melhorar a qualidade de vida ima das suas vertentes do foco de atuação, voltada para atender a
do industriário e seus dependentes, numa retomada de estruturação esse fim. conjuníameníe com as demais áreas fínalísticas do SESI.
da sociedade no pós-guerra e, portanto carecendo de garantias al- Esse documento foi produzido a partir das opiniões de vários empre-
guns setores já elencados, tendo o bem-estar social como foco. O sários e dirigentes do Sistema Indústria, fazendo uso da metodologia
conceito de bem-estar vem evoluindo desde a fundação do SESI até de gestão estratégica, Balanced Scorecard (Wikipédia - internet),
os dias de hoje, avançando para um conceito mais abrangente e sig- atualmente utilizada nas instituições e empresas de vanguarda.
nificativo, o da responsabilidade social. Como é uma característica dessa metodologia, aconteceu o
Ao investigar na literatura especializada, as interpretações dos desmembramento em mapas subsequentes particularizados para as
autores sobre "responsabilidade social" apontam para direcionamentos demais entidades que compõem o Sistema Indústria, que por sua vez
variados, "por vezes até mesmo divergentes" (CNI, 2006). Assim geram os mapas das respectivas áreas de negócio, mantendo assim
sendo, o Sistema Indústria optou por uma definição operacional e uma sequência lógica dos resultados a alcançar a partir de indicado-
objetiva, já direcionada a um viés relativo ao âmbito do SESI, que res previamente estabelecidos. No mapa da área que trata, em nível
envolve o cliente principal da instituição, a empresa industrial: nacional no SESI, das "Soluções de Lazer", o Esporte está enquadra-
"A responsabilidade social empresarial consiste num conjunto de do enquanto uma das suas iniciativas.
iniciativas por meio das quais as empresas buscam. - voluntariamente A luz dessa conceituação, conclui-se que o esporte no SESI faz
— integrar considerações de natureza ética, social e ambiental às suas parte do campo do Lazer, juntamente com a área das manifestações
interações com clientes, colaboradores, fornecedores, concorrentes, artístico-culturais, das atividades físicas e as de congraçamento social. O
acionistas, governos e comunidades - as chamadas 'partes interessa- Lazer é aqui entendido como direito e como esfera de atuação humana
das' - visando ao desenvolvimento de negócios sustentáveis". que contribui para o desenvolvimento económico, social, cultural, ambiental,
Atualmente, entretanto, quando se fala em Responsabilidade uroa vez que sua experiência sócio-educativa integra informações, práti-
Social Empresarial, tem-se em conta que as empresas não podem se cas e valores em uma vivência lúdica e voluntária (SESI, 2007b).
restringir mais à produção, ao capital e ao lucro1 (Calsing, 2001). Observa-se a essência do Lazer na definição do Programa SESI
Visando a uma aproximação da temática do esporte, é sugerido Esporte, o qual abrange como um guarda-chuva todas as ações es-
que, além das questões legais, ambientais económicas e políticas, as Portivas nas linhas de atuação do SESI, quando se focaliza uma
empresas - aí não importando o ramo de atividade e porte -, terão encionalldade sócio-educativa, nas três dimensões do esporte -
que se confrontar com questões do tipo (i) conhecer os públicos-alvo C
OIBO indica a Constituição Federal do Brasil de 1988, isto é,
relevantes (ii) como os indivíduos desses públicos poderão impactar e "articipativa, educativa e de competição -, e reportando a elementos

67
r Megoevenfos esportivos, legado s responsabilidade social

da missão institucional, característicos da prestação de serviço social


Rui Campos

trabalhador incluiria também a excelência na busca permanente de


desenvolvidas por seus 27 Departamentos Regionais, assim definida gultados - que tem singularizado o voleibol brasileiro - apta tam-
por seus representantes (SESI, 2007c): "Promover o esporte com bém a vincular a responsabilidade social (resultado com impacto na
caráter sócio-educativo, fundamentado na participação, na formação sociedade) ao legado (memória do resultado com benefício social).
e no rendimento, tendo em vista a valorização humana, a promoção
social e a melhoria da qualidade de vida." jogos do - "âncora" do na
O Programa SESI Esporte associado à Educação. Saúde e Lazer brasileira
cria interfaces que possibilitam a complementaridade entre os cam-
A visão do atleta olímpico se apresta ainda ao exame do SESI
pos de atuação. Isto é possível a partir do alinhamento de determinados
em sua atuação junto aos trabalhadores e empresas do setor industri-
conceitos e práticas, tais como qualidade de vida, andragogia, apren-
al brasileiro para que a prática esportiva seja incorporada ao ambiente
dizagem de forma lúdica, fruição dos bens culturais e estilo de vida
de trabalho em função dos benefícios que produz para a saúde e
saudável. Ações fundamentais neste entendimento são geradoras de
bem-estar de seus praticantes.
novas competências capazes de dar sustentação ao papel desse pro-
Do programa SESI Esporte - que abrange todas as ações es-
grama e gerar novas práticas que possam contribuir para o fortalecimento
portivas na instituição -, a linha de atuação mais antiga e bem
da indústria e o exercício de sua responsabilidade social. estruturada são os "Jogos do SESI". Eles se constituem por uma
Outra estratégia utilizada pelo SESI para garantir a qualidade de
cadeia classificatória de competições que abrangem unicamente as
suas ações é o certificado de qualidade, ISO 9001 -2000, de reconhe- empresas mantenedoras do SESI, sendo um produto voltado integral-
cimento internacional. O processo dos Jogos do SESI foi investigado mente para o industriário. Nesse contexto, os Jogos do SESI. em
para se obter essa certificação e vem mantendo esse s tatus desde suas diferentes etapas, têm por objetivo estimular a prática esportiva
2002. Essa estratégia foi muito importante para dar garantia do bom do trabalhador, seu pleno desenvolvimento como pessoa e cidadão,
andamento das ações aos gestores do processo, bem como aos ao mesmo tempo em que busca proporcionar melhor qualidade de
beneficiários das iniciativas. Esta adesão ao Sistema ISO, certamen- vida e maior produtividade no trabalho.
te, facilitará a incorporação futura da norma ISO 26000, ora em Essas competições reúnem anualmente mais de meio-milhão de
preparo, que se destinará a generalizar nas empresas, em qualquer trabalhadores-atletas na fase municipal, que os classificam, repre-
país, a responsabilidade social e o desenvolvimento sustentável como sentando suas empresas, para as fases subsequentes: regional, nacional
base geral de operações. e mter
nacional. Ainda há um grande número de praticantes que par-
Neste particular, entendo que a responsabilidade social de viés topam somente de competições intra-empresa, pois os torneios
normativo de qualidade chancelado pelo Sistema ISO constitua uma Atemos somam uma grande quantidade de equipes para definir qual
forma de legitimação do legado aqui concebido dentro dos benefícios Sera a
quela que participará dessa primeira fase.
do esporte do trabalhador. Para tal elaboração, há que se cogitar de A movimentação nas empresas em relação aos Jogos do SESI
correspondência igualitária entre responsabilidade social e legado, e ra
12 meses por ano, seja para calcular e aprovar orçamento,
talvez mesmo de termos sinónimos, sendo o primeiro relacionado à colher uniformes, definir período de férias, dias a compensar, etc.
empresa e o segundo ao trabalhador-atleta. Se aceita esta tese em is
a
estrutura preenche uma lacuna do esporte sistematizado de
condições preliminares, a visão do atleta olímpico sobre o. atleta- Wiento", uma vez que está baseada na conquista de resultados

6B 69
Megaeveníos esportivos, legado e responsabilidade social Rui Campos

para que se alcancem os objetivos esportivos almejados e que por • ~n de valores e discussão sobre os mesmos fazem parte de cam-
6
sua vez proporciona um maior contato com vivências fundamentais estratégias
~- vinculadas aos Jogos do SESI, desmistifícando
_ o
para atingir objetivos sociais e culturais. Esta concepção é derivada rte pelo esporte, a pratica esportiva encerrada no âmbito da corn-
também da experiência do voleibol brasileiro tendo como ponto de C t' cão por si só, sem expressar significado. As empresas, no caso,
partida os Jogos Olímpicos de 1984, os quais se tomaram fatos cul- entram nestas iniciativas vantagens de desenvolvimento de Recur-
turais de longa duração de memória em nosso país. sn
s Humanos, P°* ^° inani liberar seus funcionários para participar
Neste sentido, cabe enfatizar que muitas das empresas partici- competições esportivas, muitas das vezes em meio ao período de tra-
pantes se utilizam das suas equipes esportivas amantes nos Jogos do balho somente para que tentassem ganhar trofeus ou medalhas, mas sim
SESI como uma forma de fazer marketing interno e externo. A em- diante da expectativa de dela mesma incorporar valores positivos.
presa Marcopolo de Caxias do Sul/RS, por exemplo, foi citada pelas Por outro lado, o legado traduzido por valores assimilados por
revistas 'Exame' e 'Você S.A.' entre as dez melhores empresas para grupos de pessoas (nas empresas) ou populacionais (país, região, ci-
se trabalhar (internet. 2007). Numas das edições passadas da revista dade) pode ser apreciado por meio do exemplo da "Família
Exame na foto da matéria aparecem todos os seus trabalhadores- Bernardinho", como ficou conhecida a seleção brasileira masculina
atletas. É evidente que essa empresa coloca as pessoas como seu de vôlei, maior vencedora em todos os tempos dos esportes coletivos
bem mais valioso, o que gera clima organizacional positivo, segundo no Brasil. A série expressiva de vitórias dessa equipe poderia ser
pesquisa da revista. explicada pela reunião de atletas de alta qualidade oportunamente
Comparando-se atletas de alto rendimento - na sua grande num mesmo momento da história da modalidade, bem como pelo fato
maioria de tempo integral nessa atividade - com trabalhadores-aíle- do treinador basear-se em valores para conduzir seu programa de
tas, que têm que se dedicar um mínimo de oito horas por dia na sua treinos e competições. Esse fato fica evidenciado no seu livro
atividade laborai, surge um contraste que reforça a tese destes últi- (Bernardinho. 2006), quando dá exemplos de valores vivenciados nas
mos produzirem impacto que implica em alguma forma de legado. quadras de vôlei e o respectivo paralelo com aspectos da vida, o que
Isso porque o trabalhador desdobra-se para se manter em forma físi- resulta num maior significado da ação prática. Esse comparativo re-
ca e técnica satisfatórias e cumprir um calendário bastante extenso sulta da experiência do treinador como integrante da Geração de Prata,
dos Jogos do SESI. Para que se tenha uma ideia, a equipe de futsal ° que reforça a teoria aqui apresentada, isto é, considerando sua ex-
da empresa Bortolini, de Garibaldi/RS realizou mais de trinta partidas periência no esporte de alto rendimento tendo como consequência o
para chegar ao título do Mundial do Trabalhador, obtido em Oeiras, atleta como legado" que ocasionou na construção de um trabalho de
Portugal, em 2007. sucesso ao influenciar diretamente seus atletas, obtendo expressivo
resultado.
do Em tennos do esporte do trabalhador, esta possibilidade da pro-
O entendimento do esporte do trabalhador como produtor de Çao de legado pela e para a geração da "família Bernardinho" e
legados, entretanto, não tem surgido apenas por via do olhar do atleta ~se presente por um evento realizado em julho de 2007, em meio
s
olímpico, autor do presente texto. A estrutura gerencial do SESI por Jogos Pan-americanos no Rio de Janeiro, representado pelo
si mesma tem alcançado uma compreensão similar e como tal assu- Çarnenío do projeto "SESI Valores do Esporte". Em resumo, este
miu nos últimos anos seus Jogos como promotores de valores. Assim- jeto entende os valores como referências coletivas consensuais

70 71
Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social ioi Campos

de longa duração, o que coincide com o nexo de legado em suas CS1T, cujas afiliadas promovem serviços sociais básicos ao traba-
essências. Tal concepção consta do Manual de Fundamentos dos lhador e sua família, como acontece com o SESI no Brasil, tendo no
Valores do Esporte (DaCosta, 2007). planejado para dar sentido à
esporte uma fonte principal, quer como competição ou como lazer. A
operacionalização das atividades esportivas do SESI em todo o Bra-
• spíj-ação, neste propósito, veio das proposições sobre valores tanto
sil. Do lado das empresas clientes do SESI, a promoção de valores
das tradições esportivas de Coubertin ("Esporte para Todos") como
segundo o Manual constitui uma forma de assumir responsabilidade
da Revolução Industrial (direitos do trabalhador). Em ambos os ca-
social já aqui também proposta como legado empresarial que inclui
S0s o esporte volta-se para o bem estar do trabalhador, hoje
necessariamente os trabalhadores-atletas.
crescentemente fundado na responsabilidade social da empresa con-
forme antes abordado.
do do
O SESI tem proporcionado, desde 1995, a participação de tra-
trabalhador
balhadores-atletas representantes de empresas do Sistema Indústria
Ao se apreciar mais a fundo os Jogos do SESI, encontra-se um em competições internacionais, tendo registrado em 2007 um total de
elo fundamental da cadeia de competições voltadas para o trabalha- cerca de cinquenta participações no exterior. Seguindo as diretrizes
dor: a fase internacional das competições como ponto chave do paralelo da CSIT, o SESI, por sua vez, já realizou seis eventos no Brasil ao
aqui construído entre o esporte de rendimento e o esporte voltado longo da década de 2000, com status de "mundiais" e "copas do mun-
para o trabalhador. Neste âmbito externo, dou testemunho com base do". Por meio destas experiências, cabe-me também assinalar -
na experiência tanto de atleta olímpico como dirigente do SESI, que prevendo-se a realização futura de pesquisas mais detalhadas - que
as competições internacionais são potencialmente reforçadoras de a participação de trabalhadores-atletas brasileiros em competições
legados como extensão de resultados nacionais. internacionais tem produzido um espírito de pertencilnento mais acen-
O viés histórico que apoia este meu reconhecimento empírico tuado às suas respectivas empresas e ao país; isto porque eles passam,
liga-se a Pierre de Coubertin, restaurador dos Jogos Olímpicos na de meros participantes, para atores de uma dimensão maior, incorpo-
Era Moderna. Este pioneiro da compreensão do esporte como ato
rando um sentimento tal como o de "seleção brasileira" para os atletas
moral (Fair Play) e educativo de atletas e de praticantes em geral
de alto rendimento, por terem garantidos para si seus próprios "mun-
teve especial atenção para a classe trabalhadora. Além de um ativismo
diais", a partir do status dado pelo SESI a essas competições.
explícito em favor deste grupo social, Coubertin partindo do princípio
do Olimpismo como filosofia de vida baseada na prática esportiva,
ajustou, no limiar da década de 1920, seus conceitos ao "Esporte para Conclusão
Todos" (EpT) com base no desenvolvimento social de trabalhadores. Mesmo que no esporte de alto rendimento a conquista de meda-
Nesse ano foi criada a Lucerne Sporís International - LSI. urna as, recordes e títulos seja o objetivo maior, a vivência dos valores
reedição, após a 1a Guerra Mundial, da Association Internationale Presentes no esporte - ganhando mais força e significado quando se
Socialiste d'Éducation Physique - AISEP, fundada em 1913, que se- a
de Jogos Olímpicos, de forma consciente ou não para os seus
ria o embrião da constituição formal de uma associação voltada ores ~} fazem com que estes atletas, em tese, conduzam e
especificamente ao esporte do trabalhador. Produzam a manutenção desse ambiente. Desta forma, preservam
Hoje a herança de Coubertin na área do esporte do trabalhador s valores, caracterizando assim o fenómeno do legado do esporte,
é conduzida pela Confederação Esportiva Internacional do Trabalho n is
tantamente do nível de prática.
•72
73
Rui Compôs
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social
Curso Especialização Gestão de Iniciativas Sociais) - Universidade
Por sua vez, a cadeia dos Jogos do SESI é "classifícatória", et»
ce(jeral do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2001 .
inegavelmente eliminatória e seletiva na visão imediata e pontual,
r AJvfPOS, R - et al- SESÍ í1) Programas. In: DACOSTA, L. (Org.). Atlas do
porém inclusiva numa visão macro, pois as possibilidades de vivências .porte no Brasil. Rio de Janeiro: Shape, 2005.
culturais antes não oportunizadas, daria espaço para que os sonhos
CAMPOS, Rui. O esporte do trabalhador no SESI . In: FÓRUM
de mais pessoas (trabalhadores, empresários) se realizarem. Ou seja: OLÍMPICO, 4., Curitiba, 2003. Programa. Curitiba, 2003.
há em principio uma semelhança entre um atleta de ponta quando se
- Responsabilidade social empresarial. Brasília, 2006.
classifica para uma olimpíada, com o trabalhador-atleta vinculado ao
SESI ou à CSIT, redundando finalmente em legados em suas áreas CORDEIRO FILHO, C.; ALBERGARIA, M. B. Voleibol masculino e
feminino. In: DACOSTA, L. (Org.). Atlas do esporte no Brasil. Rio de
de influência social e cultural. janeiro: SHAPE, 2005. p. 274.
Rubio (2005), citando Hobsbawn e Ranger (1997), menciona o
DACOSTA. L. P. Manual valores do esporte SESI: fundamentos. Brasília
fenómeno da "tradição inventada", relacionando o esporte como res-
:SESI/DN,2007. 1 95 p.
ponsável pela construção de identidades, nurn ambiente em que cultura
KASZNAR, I. K.; GRAÇA FILHO, A. S. Estratégia vitoriosa de empresa:
e tradição seriam "valores responsáveis pela criação de necessida- segundo seus personagens. São Paulo: M. Brooks. 2006. 420 p.
des desconhecidas e pela implementação de comportamentos e atitudes
NORTON, D.; KAPLAN, R. Balanced scorecard: a estratégia em ação.
inéditos". Em contas finais, esta declaração serviria tanto ao atleta
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Balanced_Scorecard>.
olímpico como ao trabalhador-atleta tomado herói. E enquanto tal, diz Acesso em: 12nov. 2007.
ainda Rubio (2001) ao se referir aos atletas medalhistas olímpicos
UOL. Disponível em: http://www2.uol.com.br/aprendiz/guiadeempregos/
como "representantes brasileiros em um evento de grande importân- prímeiro/mfo/artigos_220903b.htm#l . Acesso em: 12 nov. 2007.
cia para si próprio, para o país e para a história do esporte". Assim
RUBIO, K. Medalhistas olímpicos brasileiros: memórias, histórias e
sendo e conclusivamente perguntaríamos: as abordagens de Kátia imaginário. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. 364 p.
Rubio também se aplicam ao industriário que participa dos Jogos do
SESI. DN. Relatório de avaliação: Jogos Regionais do SESI 2006.
SESI. que representa seu país e carrega com orgulho as cores da sua Brasília, 2007a.
empresa e do Brasil, deixando marcas de um verdadeiro herói e um
______ Política de Lazer do SESI. Versão Preliminar. Brasília, 2007b.
legado para os demais colegas e gerações adiante?
-______. Diretrizes técnicas e de gestão do Programa Sesi Esporte.
Brasília, 2007c.
—____. Relatório de acompanhamento de programas estratégicos:
J
Bernardinho. Transformando suor em ouro. Rio de Janeiro: SEXTANTE. ogos do SESI. Brasília, 2007c.
2006.215 P. ——____. Site institucional. Disponível em: <www.sesi.org.br>. Acesso
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do «n: 1 2 nov. 2007.
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez -—-__ . Mapa estratégico do SESI 2006-2010. Brasília, 2006.
de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.168 p. (Série Legislação
Brasileira). , C. Você é do tamanho dos seus sonhos: estratégias para
oncretizar projetos pessoais empresariais e comunitários. São Paulo:
CALSING, E. F. Responsabilidade social da empresa no contexto da
missão do SESI. 2001. 95 f. Monografia (Aperfeiçoamento/Especialização

75
74
pio
Otávio Tavares'

Introdução
Quando se pensa nas instalações temporárias (IT's) de uma
competição esportiva como legado, não é possível deixar de se imagi-
nar que a primeira pergunta que vem à mente é: Que legado é possível?
Esta é uma pergunta bastante pertinente, uma vez que nos últimos
20 anos a ideia de legado e a preocupação com ele transformaram-
se em questões centrais para qualquer grupo que pretenda organizai
competições esportivas de tipo olímpico2. Isto se deve primariamente
ao fato que diante de uma maior consciência dos múltiplos impactos,
nem sempre positivos, que geram os Jogos Olímpicos, o Comité Olím-
pico Internacional (COI) transformou a ideia de legado em um critério
chave para a organização dos mesmos.
De qualquer forma, antes de tentai' responder à pergunta, uma ou-
tra necessita ser feita: o que queremos dizer quando falamos de legado?
Em primeiro lugar, parece ser importante fazer uma distin-
Çao entre impacto e legado. O primeiro apresenta um caráter mais
Wiediato, uma duração curta no tempo e uma possibilidade de va-
Or
ambivalente. O segundo engloba a ideia de longo prazo, menos
Profe
l
>essor adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo: Chefe do Departamento
mi
e p >stica; Coordenador do Centro de tstudos em Sociologias das Práticas Corporais
u
, <Jos Olímpicos; membro da Academia Olímpica Brasileira.
a
j expressão 'tipo olímpico' quero dizer qualquer competição poliesportiva
-rnacional promovida e oraanizada por entidades ligadas ao movimento Olímpico
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social
Otávio Tavares

imediato e uma possibilidade de valor positivo. O impacto pode . cO-Ri° ° responsável pelo plano-mestre dos Jogos e pelo de-
ser controlado e medido, o legado pode ser planejado. Assim, le_ volvimento conceituai de todas as instalações necessárias.
gado relaciona-se às ideias de desenvolvimento sustentável e de Para abordarmos de maneira mais adequada a questão do le-
susíentabilidade (a condição de produção de bens e recursos para do ou não das IT's, é necessário situa-las dentro de uma
uma geração sem que isto ameace as condições de existências da hordagem que vá do geral para o específico. Assim, a análise das
geração seguinte). •nstalações temporárias será contextualizada no conjunto de infra-
Neste trabalho pretendo demonstrar que mesmo instalações des- estruturas requeridas para a competição e suas formas de
tinadas a um uso temporário, portanto, com prazo definido de existência desenvolvimento. Posteriormente, apresentarei o conceito de
e funcionamento (naquele local), podem gerar algum tipo de legado. overlav, um elemento-chave para se compreender e discutir o pa-
Para isto, tomarei como base o documento de conclusões e recomen- pel das instalações temporárias. Na parte final do texto, discuto os
dações do Simpósio Internacional sobre Legado dos Jogos Olímpicos. possíveis legados de instalações temporárias.
1984 - 2000 (IOC, 2002). De acordo com esta fonte, o legado olimpico
apresenta dificuldades de definição, sendo todavia aceito como com- A Infra-esfrytura do Rio
plexo e mulíidisciplinar. De todo o modo, mesmo diante das dificuldades
conceituais relatadas, adotaremos neste como ferramenta conceituai Não é nenhuma surpresa afirmar a grande quantidade de insta-
de análise a distinção entre legado tangível (infra-estrutura esportiva, lações necessárias para a organização de mega-eventos esportivos.
planejamento urbano, arquitetura, desenvolvimento económico e turís- Na verdade, embora as instalações de competição sejam as partes
tico) e legado intangível (produção de ideias e valores culturais, mais visíveis das instalações, boa parte delas refere-se a funções
educação, memória, know-how e etc.) (IOC, 2002, p. 2). administrativas de apoio as competições ou relacionadas aos diferen-
A tentativa de aplicação prática destes conceitos está localizada tes setores diretamente envolvidos. A listagem abaixo oferece uma
na experiência da organização dos Jogos Pan-americanos de 2007, ideia geral da quantidade e da variedade de instalações de infra-es-
realizados na cidade do Rio de Janeiro. Este evento teve entre suas trutura desenvolvidas:
particularidades, e até certo ponto, entre seus problemas, uma gestão e * rnais de 30 locais de competição e treinamento;
financiamento compartilhados entre seu comité organizador (CO-Rio * 2 Centros de mídia (IBC = rádio e televisão; e MPC =
2007, ligado ao Comité Olímpico Brasileiro), órgãos do governo fede- imprensa escrita);
ral, estadual e municipal3. Adicionalmente, foram contratadas algumas * Acomodações (Vila Pan-americana e hotéis);
empresas para fornecimento de assessoria ou prestação de serviços1. Infra-estrutura de transportes (aeroportos, transporte pú-
No que se refere às instalações, a consultoria foi realizada pela empre- blico, vias urbanas e sistema de transporte dedicado);
sa Event Knowledge System (EKS)5, embora, em contas finais, tenha " Instalações operacionais (COP6, COT7, garagens, depósitos);
" Espaços e locais de competição
3
Deve ser observado que, numa atitude inédita, a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro * Espaços públicos de interação;
comprou todos os direitos sobre esta edição do Pac-americano. * TOTAL= mais de 45 locais
4
Ernest & Young, MI Consulting Inc., Five Currents Inc., Event Knowledge Systern.
5
Esta empresa, outrora ligada ao Comité Olímpico Internacional com o nome de Olympw
Games Knowledge System, reúne um conjunto de pessoas com experiência gerência! dí flíeirtro Principal de Operações.
alto-nível na organização de Jogos Olímpicos e outros mega-eventos esportivos. tf;-Cetitr 1 de Operações de Transporte.

.78
79
Megaeventos esportivos, Segado e responsabilidade social Otávio lavores

Neste contexto, algumas questões-chave foram consideradas


na estratégia de desenvolvimento das instalações:
* Atender às exigências da Organização Desportiva Pan-
americana (ODEPA).
Em primeiro lugar, foram consideradas as demandas e re-
querimentos emanados pela entidade que detém os direitos
sobre os Jogos. Isto é obviamente condição sine qita non
para a realização do evento;
8
Sustentabilidade
Em segundo lugar, a estratégia de desenvolvimento das
instalações deveria basear-se em estudos de viabilidade
económica, legal, urbanística e ambiental;
Figura 3: Foto da planta de planejamento operacional da IT Arena de Beach
« Oportunidades de legado esportivo Volley na Praia de Copacabana.
Outra questão-chave a ser considerada foram as pers-
pectivas de uso pós Jogos das instalações. Um planeja-
mento realístico e adequado evitaria o desperdício de di-
nheiro e o legado de 'elefaníes-brancos';
• Aspiração de futuros eventos esportivos
No caso particular do Pan Rio 2007, havia a intenção ex-
plícita de transformá-lo em uma demonstração das condi-
ções de viabilidade de uma competição olímpica na cidade.
Isto se refletiu tanto na gerência quanto nas instalações.
.,.--' ' "-'.-'• , • *';'f-t'í^-*,if'
Outra etapa fundamental para o desenvolvimento das instala-
ções temporárias foi o desenho das instalações. Como veremos
adiante, esta etapa relaciona-se tanto com as instalações esportivas
temporárias quanto com uma série de outras IT's adicionais às ins- Fi
gura 4: IT para alimentação do público na Cidade dos Esportes
talações permanentes.
Uma série de questões precisou ser considerada no desenvol-
vimento do desenho das instalações. As mais importantes são: [1]
as exigências das federações internacionais de cada esporte; [2] o Assim, o desenvolvimento das instalações temporárias pode
s
número de assentos e as condições de visibilidade para os especta- er visto como parte integrante de um conjunto maior de instalações
dores; [3] o planejamento das instalações de lazer, alimentação, P anejadas e desenvolvidas segundo uma série de critérios e neces-
compras e segurança do espectador; [4] a acessibilidade; [5] e o * ades bastante variados, indo além da ideia de um mero conjunto
Ue
planejamento de todas as operações necessárias. se monta e desmonta. Isto pressupôs a utilização do conceito de
só-
81
Megaeventos esportivos, legodo e responsabilidade sócia! Otóvio lavores

overlay. Este conceito técnico unificador no planejamento das FPs Terminais de transporte;
que permitiu articula-las ao plano de desenvolvimento das instala- Sistema de entrada de espectadores;
ções do Pan Rio 2007. Sistema de gerenciamento de público;
Serviços (alimentação, toaletes, lojas);
O RÍO Planejamento de assentos;
Planejamento de circulação;
Em primeiro lugar, devemos clarificar o que é este conceito. Estandes de venda de ingressos;
Na verdade, a definição de overlay atende a critérios tanto materiais Estandes de informações;
quanto operacionais. Considera-se overlay [a] as instalações e lo- Decoração dos locais de competição.
cais temporários ou a adaptação temporária de instalações, locais e
ambientes existentes de modo a atender as necessidades dos Jo-
gos, [b] integralmente ligadas ao local de operações, sendo
considerada uma solução física para necessidades operacionais. Na
organização do Pan do Rio, o overlay terminou por ser transforma-
do em uma área funcional destinada a cuidar de todas as questões
relativas ao que foi definido em [a] e [b].
Neste caso. o overlay específico foi definido segundo dois con-
textos. Em primeiro lugar, no contexto do planejamento geral dos Jogos,
definindo as necessidades de todas as áreas funcionais (segurança,
alimentação, imprensa e etc.). Em segundo lugar, no contexto das
decisões estratégicas a respeito do impacto de legado de uma cons-
trução, da melhora das instalações existentes e da definição das
instalações temporárias completas.
Assim não havia uma preocupação isolada com instalações tem- Figura 5: Detalhe do sistema de entrada de público no Ginásio Gilberto
porárias, mas sim, com um conjunto de ações destinadas a planejar e Cardoso (Maracanãzinho)
produzir um conjunto de elementos temporários, sejam instalações,
sejam equipamentos. Em síntese, o programa de overlay é definido Já no que se refere aos elementos 'internos' podem ser listados:
no início do processo baseado na abordagem estratégica para o de- Áreas de jogo e aquecimento;
8
senvolvimento das instalações. Isto significou instalações temporárias Iluminação;
completas, adaptações temporárias de instalações existentes e * Pódios e equipamentos esportivos;
reconfiguração / expansão de instalações existentes. " Placares;
As ITs do Pan Rio 2007 podem ser divididas funcionalmente e * Instalações para atletas, árbitros e dirigentes;
dois grupos, os elementos 'externos' (front ofhonse) e os elementos Instalações para VIP's e família ODEPA;
'internos' (back of honse). No que se refere aos 'externos' pode- * Instalações para a imprensa dentro e fora das arenas:
mos listar: * Instalações de gerenciamento de eventos;

82- 83
Megoevantos esportivos, legado e responsabilidade soda! Otávio Tavares

8
Instalações para as equipes de apoio; Isto determinou uma série de questões e desafios em pleno pro-
• Cabeamento temporário; o de organização do evento. Em primeiro lugar, a própria
• Geradores e equipamentos de ar condicionado provisórios; anacidade do Comité Organizador em contar com gente capo-
• Instalações e equipamentos de segurança; tada e recursos em quantidade suficiente para desenvolver suas
• Áreas de serviço. tarefas- Em segundo lugar, a relação com múltiplas agências de
zoverno. Embora a articulação política tenha sido um exemplo de
Isto significa um número elevado de elementos de planejamento positividade entre lideranças e partidos políticos situados em campos
e complexidade que exigem alto grau de coordenação entre todos os opostos, as eventuais supeiposições de competências, diferenças de
envolvidos, sejam planejadores, ordenadores de despesas, executo- ritos, processos e disponibilização de recursos ou mesmo seu oposto,
res ou prestadores de serviço. A figura abaixo apresenta o modelo de o hiato administrativo e de competências fez do processo de realiza-
gerenciamento de overlay adotado no Pan Rio 2007. Por meio dele ção do Pan uma empresa mais complexa do que poderia ser. Uma
pode ser observado que o CO-Rio era responsável pela coordenação questão particularmente importante no que se refere a IT's refere-se
entre as diversas áreas funcionais e os serviços públicos, tanto para o a previsão adequada de elementos críticos (energia, tecnologia) e
levantamento de demandas quanto para o planejamento. Por outro a contratação de fornecedores em tempo hábil. Um outro desafio a
lado, observa-se também que a realização dos contratos, a gerência e ser vencido residiu nas limitações do mercado nacional em aten-
o financiamento das obras foi feita diretamente pelos entes governa- der as necessidades materiais. Isto encareceu e atrasou a montagem
mentais restando ao CO-Rio a supervisão geral de modo que fossem de diversas instalações uma vez que o processo de importação deve-
mantidos os padrões técnicos desejáveis. ria necessariamente ser feito dentro do que a legislação exige e dos
prazos próprios de compra, produção e entrega. Do mesmo modo, a
própria entrega das instalações revelou-se problemático, pois impe-
dia a instalação em tempo adequado dos elementos de overlay
planejados. Por fim, uma questão bastante sensível em montagem de
IT's para mega-eveníos é o controle de qualidade consistente para
múltiplos fornecedores.

Devemos então terminar tentando responder a questão coloca-


da no início do texto: que legado é possível? O exame da questão das
TT'
1
s na organização do Pan Rio 2007 nos dá elementos para pensar-
^os realmente na possibilidade da produção de legados. Nossa análise
sste processo demonstra que as IT's são mais do que meras instala-
voes que se montam e desmontam como poderia ser o caso de um
Clr
Figura 6: Modelo de gerenciamento do overlay do Pan Rio 2007 co por exemplo.

84 85
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade sociai
Otávio Tavares

A compreensão ampliada de sua posição dentro do planejamento


tencializá-los. Isto indica a pertinência da temática que relaciona
do conjunto de instalações necessárias e, principalmente, a constatação i„ .e
-» -rp«cnnnçíini1irtarle
do
lê. 3 responsabilidade QAPial
social ruir»
que reuniu
reuniu í^m
em cí^r-n^t-íó-e-í/-»
seminário os ~£-, autores
ont-^*-^^
da existência de um conceito unificador que articula todo o processo
dás contribuições deste livro.
coloca a questão das IT's em um novo patamar de significado.
Assim, proponho a existência de um tangível. Ele resi-
fteferêndois
de no conjunto de equipamentos desenvolvidos e ou comprados para
o Pan, e que posteriormente são redirecionados para outras entida- fKTERNATIONALOLYMPIC COMMITTEE. International Symposium
des. Uma questão sensível aqui é a existência ou não de políticas e on legacy ofthe Olympic Games, 1984 - 2000. Lausanne / Barcelona:
diretrizes que orientem adequadamente esta redistribuição. É exata- jOC Olympic Study Centre / Olympic Studies Centre, UAB, 2002.
mente neste ponto que a relação custo-benefício das 11"s pode Disponível em: http://multimedia.olympic.org/pdf en_report_635.pdf
definir-se. Se por um lado, a adoção deste tipo de instalações é bas-
tante razoável como forma de redução de custos imediatos de
construção e posteriores de manutenção, por outro, seu mau uso pos-
terior pode significar um aumento de custos relativos por ausência de
benefícios e beneficiários identificáveis.
Em princípio, existe a expectativa de que boa parte dos equipa-
mentos esportivos e de tecnologia adquiridos e instalados
provisoriamente no Rio possam transformar-se em capital para o
desenvolvimento do esporte nacional.
Proponho também a existência de um legado Intangível. Ele é
produto da capacitação operacional de recursos humanos em vários
níveis. Um quadro mais claro é àquele advindo os processos de pla-
nejamento, engenharia, da vivência e da experiência com os técnicos
e consultores internacionais. Do processo de aprendizado na realiza-
ção de um evento de escala poucas vezes atingível. Ou seja, gerou-se
a oportunidade de produção de um capital simbólico significativo. Tal
como o legado tangível, esta dimensão do legado também depende,
de alguma maneira, das políticas implantadas em um sentido mais
amplo, uma vez que a utilização desse capital simbólico e sua trans-
formação em fonte geradora de renda e bem-estar social vão depender
do próprio processo de crescimento nacional.
Assim, a possibilidade de pensar na existência de legados tangí-
veis e intangíveis mesmo no âmbito de instalações temporárias está
condicionada as políticas públicas e iniciativas privadas que-possarn

86
87
o
da de

Janíce Zarpellon Mazo

Resumo: O legado da "Universíade de 63" - Jogos Mundi-


ais Universitários realizados em Porto Alegre em 1963 - representa
o grau de importância deste evento esportivo para a cidade de
Porto Alegre. O objetivo do presente trabalho é conhecer o le-
gado sócio-cultural deixado pela "Universíade de 63 " em Porto
Alegre. Com base no aporte teórico-metodológico da História
Cultural, foram consultadas fontes impressas para a realização
da pesquisa: reportagens de jornais e revistas, livros e disserta-
ção de mestrado. A análise documental indica que este evento
esportivo contribuiu, principalmente, para a construção de re-
presentações do Olímpismo no imaginário coletivo dos
porto-alegrenses. Além disso, a construção de instalações e a
melhoria das já existentes nos clubes, provavelmente estimula-
ram a prática físico-esportiva dos associados. A "Universíade
de 63 " foi um evento internacional que contribuiu para a afir-
mação da cultura esportiva na, até então, provinciana cidade
de Porto Alegre,
Palavras-cháve: Universíade 1963; legado; Porto Alegre; Olimpismo.

O legado da "Universíade de 63" (U-63) - Jogos Mundiais Uni-


versitários realizados em Porto Alegre em 1963 - representa o grau
de importância desse evento para a cidade. Já se passaram 44 anos
deste acontecimento esportivo mundial, que ocorreu no período de 30
de Agosto a 8 de Setembro de 1963 na capital do Rio Grande do Sul.
Janiee Zorpelion Mozo
Megoeventos esportivos, legado e responsabilidade social

para os porto-alegrenses, pois a cidade era uma capital de pe-


Durante uma semana. Porto Alegre transformou-se na capital mun-
queno porte, que até então não tinha realizado um evento dessa natureza.
dial do esporte, ao receber aproximadamente, 1.500 atletas
Porto Alegre, quando foi escolhida para ser a sede da U-63,
universitários de 33 países.
a inda conservava aspectos característicos de uma cidade interiorana.
A U-63 era vista corno prévia para os Jogos Olímpicos e, por
O desenvolvimento sociocultural da cidade não acompanhava o ritmo
isso. contava com a participação de atletas com índices olímpicos.
imposto pelas grandes metrópoles brasileiras. De acordo com as re-
Estiveram em Porto Alegre os soviéticos Valeriy Bramei, Tâmara
portagens veiculadas pelos jornais parece que justamente a condição
Press e Larissa Latinyna; os cubanos Enrique Figuerola e Miguelina
de Porto Alegre ser uma capital de pequeno porte favoreceu a sua
Cobian; os húngaros Maria Baila, Katalin Makray (KOCH, 2003,
escolha para sediar a U-63. Alegava-se que as grandes cidades não
p. 11-2). A presença de renomados atletas, também contribuiu para
poderiam viver totalmente em função dos jogos, pois não conseguiam
que o evento causasse impacto no cenário esportivo porto-alegrense.
despertar interesse em grande parte da população. Inclusive, não reu-
Até o início da década de 1960, o evento sempre ocorreu em
niam as condições para cumprir as três finalidades principais dos Jogos:
países europeus. Nas Universíades de Turim-59 (Itália) e Sofia-61
o esporte, a confraternização e a aproximação entre os povos (Diá-
(Bulgária), alguns atletas universitários vinculados à Fundação Uni- rio de Notícias, 25/071963, p. 14).
versitária Gaúcha de Esportes (FUGE) participaram das competições
No início da década de 1960, Porto Alegre era uma metrópole
e começaram a reivindicar a sede dos próximos jogos. Foi na emergente. A capital estava passando pelo processo de transforma-
Universíade de Sofia-61, que o Brasil encaminhou sua candidatura ção dos espaços urbanos, das formas de sociabilidade pública e da
para ser o país sede do próximo evento. No ano seguinte, na reunião cultura urbana. Todavia, a cidade sofria os reflexos da séria crise
da Fédération International du Sport Universitaire (FISU) realizada económica, agravada pela inflação alta que atingira o país. Além das
em Londres, na qual estavam presentes dois universitários gaúchos, dificuldades financeiras, o momento político brasileiro também era
o Brasil foi confirmado para sediar o empreendimento de caráter delicado. João Goulart, conhecido como Jango, assumiu a presidên-
mundial1. Pela primeira vez, os Jogos Mundiais Universitários seriam cia do país em razão da renúncia de Jânio Quadros em 196 1, após um
realizados em um país da América Latina. Faz-se a ressalva que período de muita resistência e discussão política. Á sociedade brasi-
havia interesse da FISU em difundir o movimento esportivo universi- leira estava mergulhada em crises no ano de realização da U-63.
tário na América Latina2. Apesar da dimensão internacional da U-63, há poucos estudos
O próximo passo seria a escolha do estado e da cidade brasilei- (KOCH, 2003; NOGUEIRA, 2004) que se detiveram em investigar
ra que receberia o evento. O Rio Grande do Sul, após disputar com 0
terna. O primeiro trata, fundamentalmente, da história e dos resul-
Minas Gerais, foi escolhido para realizar a U-63 em sua capital. São tados dos jogos da U-63; enquanto o segundo apresenta uma
Paulo, o maior centro esportivo do país, não demonstrou tanto inte- ^construção da memória da U-63, através da perspectiva dos jor-
resse, pois no mesmo ano seria sede dos 'Jogos Pan-Americanos'. A nai
s. E inegável a contribuição desses trabalhos, que destacam a
escolha de Porto Alegre para sediar a U-63 causou surpresa até re
levância do evento para Porto Alegre. Contudo, considera-se que
1 ^a competição desse porte deveria deixar um legado para a cidade.
Na década anterior, o Brasil havia sediado na cidade do Rio de Janeiro um megaevento: ara
a Copa do Mundo de Futebol de 1950. __ além da infra-estratura necessária à realização da U-63, supõe-
2
Após a U-63 em Porto Alegre, a Universíade somente retornou a América em 197— a U-63 deixou um legado de natureza sociocultural para os
sendo realizada nos EUA, nos Jogos de Inverno e, em 1979. no México, nos Jogos ac
Verão.
91
90
Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social Jonice Zarpeilon Maio

O objetivo do presente estudo é conhecer o legado sociocultural Uma das exigências da FISU para a realização da U-63 em
deixado pela "Universíade de 63" em Porto Alegre. Tendo como porto Alegre era a construção de um ginásio, pois a cidade não tinha
base a abordagem teórico-metodológica da História Cultural (Burke, jjn Brande ginásio esportivo. A construção do Ginásio Universíade,
2005; Chartier, 2000), foram consultadas fontes impressas e orais «o terreno cedido pela Brigada Militar, contribuiu para a transforma-
para a realização da pesquisa: reportagens de jornais e revistas, li- ção definitiva do bairro, que estava em processo de urbanização. Em
vros e dissertação de mestrado. apenas 100 dias foi construído um ginásio com capacidade para dez
O texto focaliza na cidade de Porto Alegre Pós-Universíade de jnil pessoas, concebido especialmente para a realização dos jogos de
63 dividindo-se em três partes. A primeira - Da infra-estrutura - basquetebol. O ginásio até hoje é lembrado pelos entrevistados em
trata dos equipamentos, instalações e demais modificações no espa- razão das disputas de alto nível, como também pela vitória da equipe
ço físico da cidade. Na segunda - As representações culturais do brasileira masculina de basquetebol, que se sagrou campeã da U-63.
esporte - refere as representações do esporte, que foram produzidas Apesar das lembranças sobre este episódio marcante para o esporte
pela U-63 em Porto Alegre. A terceira parte - A difusão das práticas local e nacional, posteriormente o ginásio mudou de nome. tornando-se
esportivas - aborda o desenvolvimento do esporte na cidade de Por- conhecido como Ginásio da Brigada Militar.
to Alegre. Ao final busca-se tecer algumas considerações sobre o Além desse grande ginásio, foi construído outro menor, com o
legado do evento para Porto Alegre. nome de Mata-Borrão devido ao formato do prédio. Nele foram rea-
lizadas outras competições e provas esportivas. Alguns anos após a
de 63 U-63 o ginásio Mata-Borrão foi substituído pelo prédio de prestação
de serviços do governo do estado do Rio Grande do Sul.
Com o término da U-63 as delegações retornaram aos seus
países de origem. Mais de 2 mil pessoas - atletas, dirigentes, comis- As melhorias nas instalações de alguns clubes foi exigência da
sões técnicas, entre outros - fizeram parte do cotidiano da cidade FISU, após vistoria realizada na cidade. A primeira mudança ocorreu
durante 10 dias. Porto Alegre após a U-63 não poderia ser a mesma. no Estádio Olímpico do Grémio Foot-ball Porto Alegrense, pois neste
A cidade tinha se transformado, mesmo que temporariamente, na clube seria realizada a cerimónia de abertura da U-63. Para atender
"capital mundial do esporte". Suas transformações serão apresenta- o protocolo do cerimonial de abertura foi construído um Pórtico no
das em três diferentes dimensões: da infra-estrutura; as representações estádio. Outras melhorias foram realizadas na pista de atletismo, que
culturais do esporte; e a difusão das práticas esportivas. se tomaria palco de competições esportivas no dia seguinte "a aber-
tura do evento. No Grémio Náutico União (GNU), outro clube da
cidade, foi construído um tanque para as provas de saltos omamen-
Do tai
§, como também feitas melhorias em suas instalações a fim de
A infra-estrutura representa uma dimensão mais tangível da
sediar os jogos de voleibol. A Sociedade Ginástica Porto Alegre
herança da U-63 para cidade de Porto Alegre. Dela se espera a
(SOGíPA), o Petrópolis Ténis Clube (PTC) e a Associação Leopoldina
condição mínima para o desenvolvimento de projetos e programas Uy
enil (AL J) foram clubes que receberam investimentos para a cons-
das práticas esportivas. A geração de equipamentos destinados ao
""UÇão de equipamentos ou realização de melhorias nos já existentes.
esporte, as melhorias nas instalações dos clubes e a adequação de
Os clubes receberam auxílio financeiro do Conselho Nacional
espaços físicos para receber as delegações compuseram a infra- e
Desporto (CND), através das federações esportivas. Os recursos
estrutura da U-63.
92 93
Megosvenfos esportivos, legado e responsabilidade sotial
Janice Zarpellon Maz0
financeiros das federações esportivas gaúchas eram escassos para
yj]a Olímpica, solucionando-se o preocupante problema do alojamen-
viabilizar a construção de instalações e realizar reformas nos clubes.
to das delegações.
Então foi solicitada a ajuda financeira ao CND, que concedeu o valor
Em seguida foi providenciada a mobília para os apartamentos. As
de 200 mil para as seguintes federações no estado: Aquática, Esgri-
ma, Vôlei, Atlética e Bocha. A Federação de Punhobol recebeu auxílio camas- os colchões e lençóis foram cedidos pela reitoria da Universidade
de 300 mil. mas não se conhece a justificativa para o valor diferenciado. de São Paulo (USP). que tinha alojado os atletas dos Jogos Pan-america-
As federações de punhobol assim como a de bocha, curiosamente nos realizados naquele ano em São Paulo. O Comité Executivo da U-63

receberam recursos financeiros, mas não seriam disputadas na U-63. agilizou o transporte dos materiais de São Paulo para Porto Alegre em
As demais federações gaúchas que não foram contempladas poderi- curto espaço de tempo, pois faltavam poucos dias para o início do evento.
am candidatar-se para a obtenção de uma verba aprovada no A Vila Olímpica foi organizada com a ajuda de familiares dos dirigentes e
orçamento da União no valor de dois milhões e oitocentos mil para voluntários (Diário de Notícias, 29/08/1963, p. 9).
auxílios a entidades esportivas de caráter estadual (Folha Esporti- O conjunto habitacional, até hoje, mantém sua estrutura original
va, 11/01/1962, p. 14). Enquanto a verba não chegava, as federações com pequenas adaptações, como a construção de cerca com grades
e clubes contaram com a ajuda financeira do governo do estado. de ferro e uma guarita para a segurança do local. Os prédios ainda
Os recursos financeiros para a construção e melhoria das instala- possuem os nomes dos cinco continentes que receberam durante a
ções eram oriundos, na sua maioria, do governo do estado e de empresas U-63. À frente do conjunto habitacional está localizada a pequena
de Porto Alegre (depoimento do engenheiro Augusto Araújo Guarita praça em condições precárias, chamada Universíade, tendo como
apud KOCH, 2003, p. 27). O governo estadual acabou suprindo os um marco do evento uma placa fixada em um bloco de concreto.
gastos realizados pelo Comité organizador, que enfrentou problemas A U-63, acabou forçando o poder municipal a tomar medidas
financeiros devido à demora de envio de recursos pelo governo fede- voltadas para o embelezamento e limpeza da cidade, pelo menos na-
ral. Várias empresas responderam ao chamado do Comité Organizador, queles pontos ligados intimamente ao evento. No sentido de deixar Porto
cumprindo papel fundamental, inclusive na recepção das delegações. Alegre uma cidade mais bonita, a administração municipal fez um ape-
Da mesma forma, alguns clubes esportivos - Esporte Clube Cruzeiro, lo aos pichadores, para que não fizessem pichações até o encerramento
Sport Club Internacional e o Grémio Football Porto Alegrense - se da U-63. A providência emergencial do plano de limpeza foi a regulari-
ofereceram para apadrinhar as delegações, prestando todo o tipo de zação da situação dos chamados 'vendedores ambulantes' (comércio
auxílio aos atletas (Diário de Noticias, 31/07/1963, p.ll). informal) nas ruas do centro da cidade. Além de sujarem as ruas, os
Não havia recursos financeiros, nem tempo para a construção da ambulantes' eram acusados de dificultar o trânsito nas ruas centrais
Vila Olímpica da U-63. Então ocorreu a transformação temporária de d
a cidade (Folha Esportiva, 18/07/1963, p. 4). O cenário urbano pre-
um espaço físico: o conjunto habitacional localizado no atual bairro cisava ser modificado para caracterizar o aspecto agradável e festivo
do
Intercap. As obras deste conjunto habitacional, financiado pela Caixa evento esportivo.
Económica Federal (CEF), haviam sido concluídas pouco tempo antes Outro fato que favoreceu a iniciativa da prefeitura para manter limpa
do início da U-63. O Comité Executivo da U-63 solicitou que a CEF ac
idade foi a recepção à gaúcha leda Vargas, que tinha vencido o concur-
retardasse a entrega dos apartamentos aos futuros proprietários a fin1 de
Miss Universo. O prefeito determinou uma série de providências,
de que fossem utilizados como dormitórios para as delegações dos 3 J 18
a cidade receberia jornalistas e correspondentes internacionais
países. Desta fornia, o local foi transformado temporariamente em ra
fazer a cobertura da chegada da Miss Universo a sua terra natal
94
Megaeventos esportivos, legada e responsabilidade social Janice Zorpeilon Mazo

(Correio do Povo, 11/08/1963, p. 13). Estes grandes acontecimen- prestigiou o evento, especialmente aqueles que tinham condições de
tos eram vistos como propaganda da cidade. pagar ingresso para assistir os Jogos. De acordo com Koch (2003,
Acreditava-se, especialmente, que a U-63 tinha um potencial p. 17) "'A cidade ainda não estava definitivamente pronta para rece-
turístico para ser explorado. Afinal, Porto Alegre receberia cerca de ber as competições", mas a U-63 aconteceu.
2.000 pessoas procedentes de vários países. Os atletas eram turistas
em potencial, portanto, se fazia necessária a mobilização popular para As do
recebê-los de forma adequada. A preparação do público e das insti- As representações culturais do esporte são construções simbó-
tuições para receber as delegações3 foi tratada como um aspecto licas que permitem analisar a realidade, mas também se considera as
fundamental para o sucesso do evento. Foram ministrados cursos e representações enquanto uma realidade de múltiplos sentidos
reuniões de preparação com os voluntários, muitos universitários, que (CHARTIER, 2000). As percepções do social não são de forma al-
atoaram durante a U-63 em diversos seíores. guma discursos neutros, mas são determinadas pelo interesse do grupo
As providências relativas à segurança do evento ficaram a car- que as forjam. Identificaram-se nos jornais as seguintes representa-
go do governo do estado. Não se apresentou nenhuma novidade na ções da U-63: o esporte associado ao estilo de vida moderno, o esporte
segurança, com exceção da vinda de um grupo de mulheres integran- permeado pelos valores do Olimpismo e o entendimento de que o
tes da Polícia Feminina do estado de São Paulo. Na época, as mulheres esporte não serviria para discussões políticas.
gaúchas não tinham espaço na Brigada Militar e nem mesmo na Po- A construção de representações do esporte associado ao estilo
lícia Civil. Por isso foi necessário contar com a colaboração das de vida moderno e civilizado foi verificada na perspectiva de justifi-
policiais paulistas, que já tinham experiência na segurança dos Jogos car a importância do evento para a cidade. Esta construção cultural
Pan-americanos em São Paulo realizados antes da U-63. relaciona-se de fornia bastante adequada a Porto Alegre do início da
Um fato que mostra a importância da U-63 para os porto-alegrenses década de 1960, que desejava ser uma cidade moderna. A capital dos
foi a mobilização do poder legislativo municipal no sentido de apoiar a gaúchos tinha como referência as grandes metrópoles brasileiras: Rio
realização do evento. Uma comissão de vereadores visitou o Comité de Janeiro e São Paulo. Assim como a moderna São Paulo foi capaz
Executivo da U-63. Sabe-se que normalmente, a Câmara Municipal não de realizar os Jogos Pan-americanos, a cidade de Porto Alegre acre-
se envolveria em tais assuntos (Ultima Hora, 17/08/1963, p. 19). ditava que também reunia condições para promover a U-63.
Havia uma preocupação do Comité com a organização técnica Mas na U-63, algo de diferente aconteceu. Além da esperada
do evento, mas também de que esta não poderia estar dissociada v
rtória da seleção de basquetebol masculino, o Brasil conquistou meda-
daquela que diz respeito, de modo mais particular, com a própria a de ouro no voleibol feminino. Tendo em vista que havia atletas do
cidade. Editoriais de alguns jornais manifestavam a preocupação com 0 Gr
ande do Sul4 na equipe de voleibol é possível que a U-63 tenha
a apresentação da cidade para os visitantes e afirmavam que o evento ssibiíitado a construção de uma identificação dos porto-alegrenses
não era responsabilidade exclusiva dos organizadores, mas da popu- gaúchos com o esporte. A vitória inesperada do voleibol feminino
lação em geral. Parece que foi uma parcela da população -63 criou condições favoráveis para a afirmação do estilo de vida
e
3
Além do Brasil, estiveram presentes as delegações dos seguintes países: Alemanha. mo e civilizado dos porto-alegrenses, identificados como esportistas.
África do Sul, Argentina, Bulgária, Chile, Cuba. Equador, Espanha. França. HolandJ-
Hungria, Inglaterra, Israel, Itália, Japão, Peru, Polónia. Portugal, Tchecoslováquia,
União Soviética, Uruguai. .0 atletas gaúchos participaram das competições da U-63.

97
Megoevenfos esportivos, legado e responsabilidade soda! Janice Zarpelion Mazo

A U-63 favoreceu a construção de representações do esporte gre não ficou alheio às questões políticas, pois as reportagens
na perspectiva do olimpismo, ou seja, o esporte é uma prática em que refletiram a polarização mundial e o tensionamento político brasileiro,
todos se irmanam e vivem em paz. Nogueira (2003) evidenciou a que se configurava na década de 1960.
construção simbólica de valores positivos sobre os Jogos Olímpicos Um episódio amplamente explorado pelos jornais que faziam opo-
no imaginário coletivo. Constatou que os principais jornais de Porto sição ao governo do presidente João Goulart, segundo Nogueira (2003)
Alegre na época se encarregaram produzir esta representação: "Pela foi a vaia ao ministro da Educação na cerimónia de abertura da U-63.
primeira vez a nossa cidade de Porto Alegre se vê possuída do mes- O ministro proferiu o discurso oficial representando o presidente da
mo espírito das olimpíadas que animaram há muitos séculos atrás os república, que não compareceu à cerimónia de abertura alegando com-
povos helénicos" (Diário de Noticias, 03/09/1963, p. 10). promissos administrativos. Durante o discurso, o ministro referiu alguns
As reportagens dos jornais elevavam o atleta ao patamar de problemas que o governo de João Goulart estava enfrentando naquele
mito. Os valores eram repassados aos espectadores dos jogos atra- momento e foi vaiado. Diante do fato, encerrou rapidamente o discurso
vés da divulgação do esforço dos atletas, da superação de seus limites. e concedeu a palavra ao governador do estado lido Meneghetti, que se
A construção simbólica que os homens fizeram e ainda fazem sobre limitou a pronunciar as palavras oficiais de abertura.
os Jogos Olímpicos passa a ser reforçada pelos meios de comunica- Não se sabe ao certo o motivo da reação do público, mas cogitam-
ção no processo de divulgação de eventos esportivos. se algumas possibilidades. É possível que os espectadores estivessem
A própria cerimónia de abertura da U-63, realizada à noite no irritados porque faltou luz no estádio e isto retardou um pouco o início da
Estádio Olímpico do Grémio Foot-ball Porto Alegrense, construiu re- cerimónia; ou porque as pessoas não estavam esperando um discurso de
presentações do esporte na perspectiva do Olimpismo. O protocolo caráter político em defesa do governo; ou, ainda, devido à ausência do
da festividade de abertura, mesmo com o incidente da falta de luz presidente da república, causando decepção aos porto-alegrenses e gaú-
temporária no estádio, apresenta muitas semelhanças com o cerimo- chos, que esperavam vê-lo na abertura da U-63.
nial dos Jogos Olímpicos: discursos das autoridades, desfile das Este episódio ficou conhecido como "Vaia Olímpica" (Correio
delegações participantes, hasteamento de bandeiras, chegada da tocha do Povo, 03/09/1963). O presidente do Comité Executivo, José Ara-
ao estádio, acendimento da pira olímpica3, programa artístico com nha assegurou ter avisado o ministro de que o regulamento
apresentações de folclore gaúcho, escolas de samba, bandas milita- internacional dos Jogos Mundiais Universitários exige o conhecimen-
res e escolares, salva de tiros e espetáculo pirotécnico no final da to prévio dos discursos de abertura para evitar inconveniências como
festa. A cerimónia de abertura: "Foi, de fato, uma das mais belas e a que se verificara em Porto Alegre. O incidente com o ministro
emotivas já realizadas no estado e uma demonstração eloquente da gerou críticas dos jornais ao presidente João Goulart, que ao não com-
força do esporte como elemento de entendimento entre os povos" parecer, demonstrou descaso com o evento e, por extensão com os
(Folha Esportiva, 02/09/1963, p. 4). Porto-alegrenses e gaúchos.
Outra representação produzida pelos jornais esta relacionada ao en- O debate político-ideológico estabelecido durante a U-63 tam-
tendimento de que o esporte não serviria para discussões políticas. Entretanto, bém pode ser evidenciado no acontecimento conhecido como a
Nogueira (2003) constatou que os jornais, valeram-se da U-63 como for- ftiga do cubano". A fuga do atleta cubano Roberto Perez Ondarse,
ma de demarcar posições políticas. O jornalismo esportivo em Porto integrante da equipe de basquetebol de Cuba, repercutiu amplamente
e
5
A pira foi acesa pelo atleta brasileiro Ademar Ferreira da Silva. m todos os jornais. Durante a U-63, o atleta saiu para passear com

98
Megaeventos esportivos, legodo e responsabilidade social Janice Zarpelion Mazo

dois companheiros de equipe numa das ruas centrais da cidade, a rua As


dos Andradas, e desapareceu, tomando rumo ignorado. Posterior- As competições esportivas constituíram um dos aspectos mais
mente, foi noticiado que ele pretendia seguir para o centro do país, a marcantes da U-63. Durante dez dias, os porto-alegrenses assisti-
fim de solicitar asilo político no Brasil. ^m às competições ou acompanharam as notícias sobre jogos e
As especulações sobre o caso foram muitas. Numa entrevista, resultados das disputas em nove modalidades esportivas: atletismo,
o atleta explicou para um repórter o motivo de sua deserção: "eu basquetebol, esgrima, ginástica, natação, pólo aquático, saltos orna-
estou noivo e pretendo casar-me, mas entendo que em Cuba não há mentais, ténis e voleibol. Nos dias do evento, os jornais publicaram
ambiente para dar à minha futura esposa e aos rneus filhos o tipo de matérias diariamente (Nogueira, 2003). A U-63 estabeleceu a agen-
vida que me agrada e, portanto, lhes desejo". O atleta era noivo da da dos porto-alegrenses e poucos ficaram alheios ao acontecimento.
jogadora de voleibol brasileira Maria de Lourdes Caldeira, conhecida O evento, por sua magnitude, levou os porto-alegrenses aos clu-
pelo apelido de Marilu, que conheceu em Cuba. durante os Jogos bes e ginásios. O público começou a ocupar o estádio do Grémio
Universitários Centro-americanos. (Correio do Povo, 05/09/1963, Foot-Ball Porto Alegrense para assistir à cerimónia de abertura, desde
p. 18.). Alguns entrevistados referiram o fato, que ao ser narrado as primeiras horas da tarde. Aproximadamente 45 mil porto-alegrenses
parece ter a conotação de um romance com final feliz, pois o cubano prestigiaram a cerimónia que iniciou somente à noite.
e a brasileira se casaram após a U-63.. A participação do público também foi expressiva durante. "Ho-
A representação de que o esporte gera união foi reafirmada por ras a fio ficam os porto-alegrenses nas filas dos clubes onde se realizam
outro acontecimento. Na U-63 houve o reencontro de dois irmãos as competições, muitas vezes até sem almoço ou sem jantar. Num
espanhóis que não se viam há 11 anos. O irmão mais velho deixou belo exemplo de entendimento e amor fraterno" (Jornal do Dia, 047
Madrid, na Espanha, durante o governo de Franco e nunca mais para 09/1963, p. 7). As longas filas se formaram porque os ingressos para
lá retomou. Nos Jogos em Porto Alegre, encontrou pela primeira vez, as competições foram vendidos somente nos dias e locais dos jogos.
desde então, o irmão caçula, que fazia parte da delegação espanhola, Foi uma decisão do Comité Executivo da U-63 para evitar a acão de
(Folha Esportiva, 27/08/1963, p. 10). cambistas no caso de venda antecipada dos bilhetes.
Tanto o encontro dos dois irmãos espanhóis, como a fuga do cuba- De fato, algumas situações como a citada podem ser explicadas
no remetem ao entrelaçamento de representações construídas no campo pelo curto espaço de tempo na organização da U-63. Alguns jornais
político, como também no campo esportivo. A ausência dos atletas ame- anunciavam a preocupação com o atraso na organização do evento,
ricanos na U-63 pode ser vista como outro exemplo desta dimensão. A que estava prestes a iniciar em 40 dias. O Comité Executivo6, apesar
delegação americana tinha participado dos Jogos Pan-americanos em das dificuldades financeiras, conseguiu realizar o evento com a cola-
São Paulo, pouco tempo antes, mas não veio a Porto Alegre disputar a boração de entidades e dirigentes esportivos, pois havia uma tradição
D
U-63, que era considerada uma prévia dos Jogos Olímpicos. Em mo- O associativismo esportivo em Porto Alegre.
mento algum as reportagens mencionaram claramente a possibilidade A U-63 pode ser percebida como fruto de uma tradição
de um boicote dos americanos. Mas vale lembrar que os russos da associativa no campo esportivo em Porto Alegre. A partir da segunda
antiga União Soviética e os cubanos enviaram para Porto Alegre do século XIX foram criados clubes, organizadas entidades e
atletas universitários que se destacavam nos Jogos Olímpicos. Fo- "itegravam o Comité: José António Aranha - presidente. Luiz Augusto Bastian de
ram superados 28 recordes esportivos na U-63. j-^valho - diretor técnico. A sede estava localizada no antigo prédio do Banco do
«r

voo 101
Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social Janice Zarpeflon Mazo

realizados eventos esportivos pela iniciativa dos imigrantes europeus rto Alegre- Se os clubes obtiveram algum retorno, parece que o
na cidade. Desde então se constituiu uma rede social - associações -mo não ocorreu com o esporte universitário. Talvez tenha perma-
sociedades, clubes, agremiações, ligas e federações -, na qual circu- ,ido GO imaginário coletivo dos porto-alegrenses representações do
lavam pessoas - atletas, lideranças associativas, sócios, familiares - norte na perspectiva do movimento olímpico. A U-63 provavelmente
interessadas em divulgar informações sobre o esporte, através de nhã contribuído para a preservação e afirmação da identidade cultu-
boletins, revistas, jornais, almanaques, reuniões sociais e no coíidiano 1 dos porto-alegrenses e gaúchos. É possível que a U-63 deixou um
além de difundir as práticas esportivas através de competições de ieeado ^e natureza sociocultural para os porto-alegrenses.
caráter local, regional, nacional. Por fim, considera-se que restaram alguns "lugares de memó-
ria" (LÊ GOFF, 1990) da U-63 em Porto Alegre. Mas são raras as
iniciativas no sentido da preservação da herança desse grande even-
É inegável a relevância da U-63 para Porto Alegre. No entanto, to esportivo. E necessário percorrer um longo caminho não apenas
as fontes impressas consultadas indicam que o legado deixado pela U- para recuperar a memória da U-63, mas para refletir e dimensionar o
63 não causou grande impacto na cidade. Parece que não houve grande seu legado para Porto Alegre.
preocupação dos envolvidos no evento com o legado da U-63. De fato,
tem-se a impressão que a grande preocupação foi realizar um evento
mundial, apesar da pouca experiência e das dificuldades financeiras.
Jornais
A infra-estrutura parece ser o legado mais visível da U-63 para
Porto Alegre. Verificaram-se algumas transformações definitivas e Correio do Povo. LIMPEZA da cidade para receber leda Vargas e para a
Universiade. Porto Alegre, 11/08/1963, p. 13.
outras temporárias na cidade. As instalações que permanecem na
paisagem atual da cidade foram o Ginásio Uníversíade, também co- Correio do Povo. ATLETA cubano abandona delegação e pede asilo.
Porto Alegre, 05/09/1963, p. 18.
nhecido como Ginásio da Brigada Militar, e o Pórtico no Estádio do
Grémio Foot-ball Porto Alegrense. Vários clubes em Porto Alegre Diário de Notícias. Henrique Halpern trouxe a nova: várias federações
receberão auxilio do CND. Porto Alegre, 25/071963, segundo caderno, p. 14.
foram beneficiados com a melhoria de infra-estrutura. As mudanças
definitivas nestes equipamentos permitiram que os associados dos Diário de Notícias. UNÍVERSÍADE 63: Cruzeiro será padrinho dos
Russos. Porto Alegre, 31/07/1963, p. 11.
clubes, apenas eles, usufruíssem das melhorias geradas pela U-63.
Quanto às ações voltadas à limpeza e ao embelezamento de Diário de Notícias. UNIVERSÍADE-63 transforma Porto Alegre na capital
*> mundo. Porto Alegre, 29/08/1963, primeiro caderno, p. 9.
alguns espaços da cidade, é provável que não houve continuidade.
Gradualmente, os vendedores ambulantes retomaram os espaços no Diário de Notícias. FLASHES da U-63". Porto Alegre, Coluna Top Spin.
Caderno, 03/09/1963,p.lO.
centro da cidade gerando transtornos para a população que circulava
Folf}
na região. Não se perceberam iniciativas para melhor explorar o po- a Esportiva. Porto Alegre, 11/01/1962, p. 14.
0h
tencial turístico de Porto Alegre após a U-63. a Esportiva. Um Certame e uma cidade. Porto Alegre, 18/07/1963, p. 4.
A U-63 produziu algumas representações culturais das práticas Sen 1Q
P°n'va- UNÍVERSÍADE uniu irmãos que há onze anos estavam
esportivas. Mesmo que de forma muito ténue, possibilitou a afirmação Parad0s, Porto Alegre, 27/08/1963, p. 10.
da cultura esportiva nos clubes da, até então, provinciana cidade às 0rn
^doDia. U-63. Porto Alegre, 04/09/1963, p. 7.
102
103
Megaeventos esportivas, legado e responsabilidade social

Última Hora. Câmara Municipal apoia Universíade. Porto Alegre, 17/08/


1963, p. 19.
pia do -A
Dissertações
NOGUEIRA, Maristel. Universíade de 63: Reconstrução da memória Maria Luiza de Souza Dias
através da perspectiva dos jornais. Dissertação (Mestrado). PUCRS.
Programa de Pós-Graduação e História. 2003.
MAZO, Janiee. Emergência e a Expansão do Associativismo Desportivo
em Porto Alegre (1867-1945): espaço de representação da identidade
cultural teuto-brasileira. Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação
Física e Ciências do Desporto, UP. Porto, Portugal, 2003.
Livros
BURKE, Peter. O que é história Cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Em 2007, o Continente Americano vivenciou um grande mo-
Editor, 2005. mento esportivo.
CHARTIER, Roger. A história cultural - entre práticas e representações. Os jogos Pan-americanos chamaram a atenção para o esporte
T ed. Lisboa: DIFEL/Bertrand, 2000. de alta performance, em uma das melhores campanhas já apresenta-
KOCH, Rodrigo. Universíade 1963: História e resultados dos Jogos das por atletas brasileiros.
Universitários de Porto Alegre. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2003. Num paralelo sem precedentes, alguns meses antes, um movi-
LÊ GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990. mento de grande envergadura reuniu 55 milhões de aíletas-cidadãos
para a prática da atividade física, desafiando o sedentarismo, numa
celebração ao esporte-lazer e na vontade de fazer parte de um grupo
de pessoas que coloca a participação e o divertimento
como prioridades.
Cada um dos eventos deixou um legado próprio: medalhas para
os competidores do Pan-Americano e um novo estilo de vida para os
cidadãos participantes do Dia do Desafio. Tudo sob a regência bem
orquestrada do esporte competitivo e do esporte para todos.

O Dia do Desafio é uma campanha mundial de incentivo à prá-


Ca
regular de atividades físicas e de promoção da saúde e bem estar,
Balizada por meio de ações das comunidades.
E um evento anual, realizado em cinco continentes, e tem. como
°c° principal o envolvimento dos cidadãos de todas as idades, seg-
sociais e níveis educacionais. Trata-se de um movimento

104
Megaeventos esportivos, Segado e responsabiiidode social Maria Luiztt de Souza Dias

democrático que motiva as pessoas a romperem suas rotinas diárias lucrativos sediada na Alemanha, que deu o impulso necessário para
e a adotarem um estilo de vida saudável. que o evento fosse adoíado por vários países.
Evidentemente, esta grande movimentação deve ser guiada por Em 1 995, o SESC São Paulo foi convidado a coordenar o even-
um estímulo mais forte e, por esta razão, existe uma "competição to oela primeira vez no Brasil, e desde então o crescimento e a resposta
entre cidades". Na disputa amigável, entre cidades de portes e ca- das cidades têm sido positivos. Desde o ano 2000, o SESC coordena
racterísticas similares, está o pano de fundo que mobiliza os habitantes a movimento em todo o continente americano, seguindo o conceito de
a transformarem as rotinas e estenderem novos comportamentos para que o Esporte para Todos abandona a tradição do esporte formal,
os demais dias do ano. institucionalizado, com regras rígidas, baseado na performance, pro-
O Dia do Desafio tem, então, duas grandes vertentes: o desafio pondo uma prática mais lúdica, participativa, sustentada pela cultura
pessoal, na medida em que provoca uma mudança de atitude indivi- popular, criatividade, improviso e cooperação.
dual, na busca do benefício de uma vida mais ativa. E o desafio Em 2007, mais de 55 milhões de pessoas praticaram algum tipo
coletivo, que procura envolver o maior número de pessoas, na ex- de atividade física, na última quarta-feira de maio, o que certifica o
pectativa de fazer da comunidade um núcleo saudável. crescimento da adoção do programa pelas comunidades, adaptando
Outra característica marcante deste movimento é que se reali- as ações às características locais.
za, anualmente e mundialmente, em uma data pré-determinada: a última Uma ideia nascida no Canadá se estendeu para cinco continen-
tes e tomou conta das Américas.
quarta-feira do mês de maio, 21 horas de incentivo ao movimento do
corpo!
Cabe aqui, uma pergunta sempre frequente: por que o Dia do
Desafio não pode ser realizado em um fim de semana, quando as O que pareceu ser, a princípio, um projeto de difícil difusão, foi
pessoas teriam mais tempo livre? A resposta é muito simples, como o aceito rapidamente e transformou-se também numa oportunidade de
é o conceito do evento: a intenção é fazer com que cada vez mais estabelecer o intercâmbio cultural entre povos e culturas. O diálogo
pessoas deixem de lado o sedentarismo, abram espaços em suas agen- por meio do esporte aproximou crianças e adultos de Antigua, Argen-
das e pratiquem diariamente qualquer tipo de atividade física. Assim, tina, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba.
realizado em um dia útil, o objetivo maior, de quebrar a rotina, está El Salvador, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, Ilhas
plenamente contemplado. Falkland, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname,
Uruguai e Venezuela.
de Quase que a totalidade dos países do continente americano par-
A ideia surgiu no Canadá, em 1983, quando os habitantes da ticipa do Dia do Desafio, da pequena vila de Pinera, do Uruguai (118
cidade de Saskatoon foram estimulados a deixar suas casas e cami- habitantes), a São Paulo, Brasil (10,4 milhões de habitantes).
nhar em torno dos quarteirões para minimizar os efeitos do inverno.
Dessa primeira experiência, veio a competição com a cidade
vizinha e a ideia ganhou formas e contornos diversos, atravessando A realização de um movimento desta natureza requer um tra-
as fronteiras canadenses por meio da atuação da TAFISA - Triro balho descentralizado, com normas e etapas bem. definidas. Neste
and Fitness International Sport for Ali Associaíion, entidade sem fios Se
Mido, o SESC atua como órgão coordenador e orientador de ações.

106 107
Megaevenlos esportivos, legado e responsabilidade social Maria Luiza de Soyzo Dias

A responsabilidade pela realização do evento é assumida pelas pró- • Reforçar a e ampliar a consciência do cidadão sobre a
prias comunidades, por meio das Prefeituras, em parceria com escolas, importância da atividade física diária;
empresas, órgãos de comunicação, entidades e instituições públicas e • Abrir espaço para o surgimento e desenvolvimento das li-
privadas. deranças regionais e locais;
As comunidades devem observar os princípios e a filosofia do « Elaborar uma programação com foco nos limites físicos
"desafio" para que o trabalho ocorra em efeito cascata, com estraté- das pessoas',
gias e linguagem universais. Neste aspecto, o Dia do Desafio é também • Preservar a identidade cultural e os costumes locais;
um exemplo de administração descentralizada e de aprendizado de • Incentivar a criatividade;
liderança. • Abrir espaço para que se formem alianças (vínculos) entre
as comunidades;
• Estabelecer e fortalecer parcerias;
• Valorizar e ampliar a participação de voluntários;
Integrar e mobilizar todos os segmentos da sociedade;

Foco principal: Inclusão da atividade física na agenda diária das


pessoas;
Ponto de partida para ações permanentes, na administração
pública, em empresas e instituições.
Podemos mencionar, de forma mais didática. os principais as-
pectos que norteiam o trabalho de coordenação deste movimento 2. No Dia do
comunitário. Após se inscreverem, as cidades são sorteadas em pares ou
trios e, a partir daí, elaboram a programação de acordo com seus
í,
recursos financeiros e ambientais, suas características locais, traços
e
Manter contatos, em vários níveis, para formular o convite culturais e disponibilidade de recursos humanos. Porém, alguns prin-
de adesão a países e cidades; cípios devem ser seguidos para que o movimento aconteça dentro
» Cuidar para que os esforços sejam concentrados na quali- dos mesmos princípios, onde quer que se realize:
dade e não apenas na quantidade. Acessibilidade - todos têm a oportunidade de participar, de acordo
Valorizar ações adequadas ao tipo de público, às caracte- com seu potencial individual, sem qualquer restrição à idade, condi-
rísticas locais e, principalmente, às ideias que surgem das ção social, habilidade ou local onde vive.
comunidades; Envolvimento - as ideias nascem nas comunidades e todos par-
Dar suporte e assistência às cidades nas fases de prepara- tocipam e colaboram com o desenvolvimento da programação.
ção do evento: Diversão - deixar de lado índices esportivos, metas e recordes,
• Identificar e incentivar ações que podem se tornar tezendo da atividade física um momento de diversão.
permanentes;
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Meguevenfos esportivos, legado e responsabilidade social Luizo de Souza Dias

Diversidade - ações individuais e/ou programas coletivos são . Implantação de campanhas permanentes (um bom exem-
opções para quem quer participar. Sempre existe uma atividade ade- plo é a Ginástica Laborai em empresas, com programas
quada à condição e interesse de cada indivíduo. específicos de prevenção a doenças provocadas por ativi-
Segurança - o Dia do Desafio privilegia a segurança dos parti- dades repetitivas, stress, posturas incorretas);
cipantes, selecionando atividades adequadas aos locais onde se » Formação de grupos comunitários: Grupo de Caminhada.
realizam, em especial as que envolvem grandes multidões. Grupo de Corrida, Clube do Pedal, entre outros.
Confíabilidade - o cuidado e a honestidade na apuração e divul-
gação dos resultados garantem a confiança o bom relacionamento da
entre as cidades. A competição entre as cidades deu lugar a um trabalho maior,
Benefícios para a comunidade - uma comunidade saudável se de solidariedade e ação social.
forma com indivíduos saudáveis onde prevalece a integração e a co- O estímulo à atividade física incentivou propostas inovadoras
operação. Um estímulo à formação do espírito de coletividade. que extrapolaram a prática da atividade física pura e simplesmente.
Benefícios para a saúde - a prática da atividade física diária Outras ações complementares de caráter social e humanitário passa-
promove grandes melhorias na condição de saúde. O Dia do Desafio ram a compor, com a atividade física.
alerta as populações para esta necessidade. Nesses anos de realização, o continente americano testemu-
Ética e Cidadania - o exercício da cidadania e da ética é um dos nhou vários casos de ações complementares, realizadas em
principais valores deste evento, que abre espaço para a manifestação combinação com a atividade física.
individual e coletiva. Em respeito à saúde do meio-ambiente, praças, parques, quar-
O Dia do Desafio é um evento de um só dia, que resulta em teirões e bairros foram restaurados e limpos pela população. Lixo
grandes benefícios para a comunidade. reciclável recolhido, monumentos lavados, escolas pintadas.
Campanhas de doação de alimentos e agasalhos também surgi-
3. ram, como o coração formado por 35 toneladas de arroz, a pirâmide
Apesar de ocorrer ern dia e horário predeterminados, os efeitos feita com pacotes de macarrão - da altura de um prédio de quatro
da campanha são observados no decorrer do ano com o aumento do andares -, distribuídos para populações de baixa renda.
número de ações permanentes, adotadas após a realização do Dia do Agasalhos recolhidos, doação de equipamentos para hospitais,
Desafio. Por exemplo: creches e asilos, construção de casas em sistema de mutirão.
8
Criação de espaços públicos para a prática da ativida- Dois mil bilhetes escritos à mão, por uma professora de 77 anos,
de física (ciclovias, novos parques e áreas de recrea- trazendo mensagens de paz e esperança aos participantes do Dia do
ção, adaptação de espaços em quadras esportivas, en- Desafio.
tre outros); Atividades físicas nos presídios, nas áreas rurais, em hospitais e
9
Elaboração de programas permanentes (adotados pelos instituições de apoio aos portadores de necessidades especiais.
poderes públicos, empresas, instituições, entidades de as- Reconstrução de uma cidade destruída por terremoto!
sistência social e de saúde, ONGs e outros); Ações de cidadania estão sempre presentes em praticamente
to
das as cidades.
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social Maria Luiza de Souza Dias

Ações pitorescas e divertidas também encontram espaço neste As pessoas permanecem mais tempo sentadas, em suas ações
dia dedicado à atividade física: restaurantes elaboram cardápios es- cotidianas; escola, trabalho, transporte. Mesmo nos momentos de
peciais; barbeiros e cabeleireiras atuam em mutirão para atender a lazer o corpo pouco se movimenta (ou quase nunca se movimenta,
população; abraços ao mar; abraços à mata... considerando o número de horas despendidas na frente da tevê e
Bailes com idosos; gincanas para crianças; caminhada do pija- do computador).
ma, captação de água de rio para encher as fontes de praças; Segundo Gilberto Freire, fazemos parte da "civilização dos ho-
cãominhada - com os cachorros acompanhando seus donos em um mens sentados".
passeio pela cidade, jogo de futebol com lanternas. Por outro lado, percebemos o lançamento mais frequente de
Atividades realizadas nas casas das pessoas, nas escolas, nas campanhas de incentivo à Geração Saúde e o aumento da procura
ruas e praças das cidades, nos hospitais, nos hotéis e restaurantes, por academias de ginásticas.
nos presídios, nas instituições sociais, no metro e nos aeroportos, nas Diante deste cenário, o SESC SP assume mais do que a reali-
praias. zação de um evento de incentivo à pratica de atividade física. Assume
Talvez esta seja a grande virtude do Dia do Desafio, sempre um grande compromisso com a sociedade e reforça seus próprios
aberto à inventividade, às surpresas, às disputas inusitadas, sempre objetivos de realizar ações na área da educação para a saúde da
dentro da filosofia de fazer incluir a atividade física. população, através de campanhas e outros programas, com o pro-
pósito ambicioso de mudar atitudes e comportamentos.
Desde o primeiro ano de realização no Brasil, o índice de
crescimento da mobilização alcança resultados surpreendentes,
"A ideia é tão simples quanto genial Se me perguntassem que
medida pode dar início a um processo de mudança de estilo de tanto no número de cidades inscritas quanto no total de pessoas
vida sadio, eu não hesitaria em responder: é o exercício físico... O participantes:
Dia do Desafio introduz os 15 minutos do bom senso, os 15 minu-
tos da lógica, os 15 minutos que podem mudar a vida da gente.
Desafio alguém a ter uma ideia melhor" Moacyr Scliar - Jornal
Zero Hora - Porto Alegre

Se nos detivermos ao perfil do homem moderno e aos dados


revelados em pesquisas realizadas na década de 1990 e no inicio dos
anos 2000, vamos nos deparar com uma realidade que precisa mu-
dar. O movimento do esporte para todos é uma das mais importantes
ferramentas para reverter a situação em que a maioria das pessoas
se encontra.
O sedentarismo é um dos males mais graves da sociedade m°'
dema. Ele afeta igualmente adultos e crianças, sem fazer distinça° Fi
de classes sociais, raças ou sexos. eiira 7: Quadro de cidades inscritas - continente americano

112 113
Megoeventos esportivos, legado e responsabilidade sotiai Maria Lyiz® de Souza Dias

. Bailes e aulas de dança


. Artes marciais e atividades alternativas
Escalada esportiva, cama elástica, atletismo
• Natação, hidroginástica
. Esportes tradicionais e esportes adaptados

4. Implantação de ações permanentes (alguns exemplos)


« Viva Mais
• Mini-tênis na ma
• Clubes de caminhada, corrida e ciclismo
• Programa de Ginástica Laborai em empresas
Figura 8: Quadro do número de participantes - continente americano Implantação do Programa Exercícios para a Saúde
• Intercâmbios esportivos, culturais e económicos
O do do Parcerias das cidades com instituições ligadas ao Esporte
Tentando simplificar a complexidade do evento e seus resulta- para Todos
dos, podemos visualizar o Dia do Desafio como um evento que deixa Redes de Relacionamento entre os Municípios participantes
uma herança preciosa, em vários níveis:
l. Estabelecimento e manutenção de relações 5. Comunicação
• Poder público: Países, Estados, Municípios e seus organis- Criação de espaços para promover e divulgar a importân-
mos e representações. cia do esporte para todos
Instituições públicas e privadas: educacionais, esportivas e • Parceria com a imprensa, rádio e TV para divulgação de
recreativas, culturais, medicina e saúde, corporativas, ONGs. programas de melhoria da saúde
• Comunidades " Canais de diálogo abertos entre as cidades e o Centro Coor-
denador do Dia do Desafio para o Continente Americano
e
2. Mobilização da sociedade Realização de eventos paralelos - congressos, seminários,
9
Em casa lançamento de publicações, relativos ao tema esporte para
8
Nas escolas, faculdades e universidades todos.
• No trabalho
" Nos clubes e academias
• Em centros de recreação comunitária e espaços urbanos Para manter a ideia viva, o SESC está sempre buscando alter-
nativas e projetos complementares que possam revigorar o evento.
3. Incentivo à criatividade u exemplo são os "temas" adotados anualmente para orientar as
8
Caminhadas, passeios ciclísticos, corridas do Dia do Desafio:
" Exercícios em empresas
' Gincanas, jogos e brincadeiras
114 115
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social Mário Isjizu de Souza Dias

2001 2006
Dia Mundial da Atividade Física intercâmbio Cultural
A última quarta-feira de maio rompe as fronteiras entre países e Aproximar cidades e cidadãos, numa troca de elementos que
culturas. O esporte para todos toma-se linguagem universal. compõem as culturas locais, mostrando as diferenças e as igualdades
ao ressaltar as realidades e vocações de cada região, estimulando uni

2002 relacionamento mais próximo com a comunidade parceira.


Cuidar do Corpo é divertido.
2007
O Dia do Desafio ganha um caráter mais descontraído e estimula
a participação prazerosa, na qual cada participante busca seu próprio Esporte por uma comunidade aiiva
ritmo para desenvolver uma atividade adequada às suas condições. Orientar as ações do movimento e incentivar o surgimento de
ideias e soluções criativas de motivação para a prática de atividade
2003 física, com o envolvimento de todos os setores da comunidade, não
apenas no Dia do Desafio mas também nos demais dias do ano.
Driblando a inatividade
Colocar o corpo em movimento é o tema adotado para impulsi-
Dia do Desafio no Mundo
onar o Dia do Desafio no Continente Americano em sua campanha
O SESC São Paulo não atua isoladamente na realização do Dia
de combate ao sedentarismo. Cuba apresentou uma das mais ex- do Desafio.
pressivas campanhas, com 169 cidades inscritas. Todo o esforço em criar a mobilização no Continente America-
no tem como fundamentos as linhas gerais e preceitos da TAFISA -
2004 Trim and Fitness Sport for Ali Association, disseminadas em suas
Interação com os espaços urbanos coordenações mundiais.
A atividade física ampliou a iníeração das pessoas com os espa-
ços urbanos, revelando alternativas de lazer e diversão, muitas vezes TARSA
pouco valorizadas, como escolas, empresas, ruas, praças, e demais
locais públicos. A redescoberta de um lugar especial na cidade.
Dia do Desafio
2005
l í
Ação social do Dia do Desafio
Continente
A importância da ação social desencadeada pelo movimento Americano Ásia Oceanía África
comunitário resultou na adoção de programas permanentes para pra-
tica de atividade física nas cidades, estímulo bem recebido por várias No continente americano, o trabalho do SESC integra todos os
Prefeituras que criaram projetos para os outros dias do ano. es
tados brasileiros e os países das Américas.
O Esporte para Todos não está fundamentado apenas na reali-
2a
Ção do Dia do Desafio.

.116 117
Megaevenfos esportivos, legado e responsabilidade social

Outros eventos, de características diversas, são realizados mun-


dialmente, para promover um estilo de vida mais saudável e beneficiar O do
milhões de pessoas que se preocupam com a melhoria da qualidade
Djan Madruga
de vida.
Sabidamente as mudanças sociais, em particular aquelas que
dizem respeito às atitudes e comportamentos, não acontecem do dia
para a noite, de uma hora para a outra. O tempo que decorre entre a
aquisição de um determinado conhecimento e a formação de um va-
lor pode ser imenso e cheio de percalços; maior ainda parece ser o
tempo que vai da assunção de um valor - de algo que se constitua um
bem desejável para o indivíduo - à implementação de ações para
Os Jogos Pan-americanos Rio 2007 todos sabemos, foram um
alcançá-lo.
Assim acontece com o Dia do Desafio. Mais que um programa grande sucesso. E para isso o governo federal investiu cerca de R$
ou um conjunto de atividades, precisa ser um estado de espírito. 1.8 bilhão na realização do evento, sendo que parcela significativa dos
recursos foi para a infra-estrutura esportiva da cidade do Rio de Ja-
neiro. Mas, além da promoção da cidade anfitriã, os Jogos
Pan-americanos deixaram um importante património para a popula-
O Desafio do Movimento, SESC SP, 2005 ção de todo o país que repercutirá positivamente por muitas décadas.
Guia do Coordenador do Dia do Desafio, SESC SP, 2007 Os atletas ficaram hospedados na vila Pan-Americana,
construída na Barra da Tijuca por meio de financiamento da Caixa
Económica Federal que foi um dos principais investimentos do gover-
no federal, orçado em R$ 189,3 milhões. São 17 prédios, somando um
total de l .480 apartamentos, suficientes para abrigar mais de oito mil
pessoas. Esses apartamentos foram usados também pelos atletas dos
Jogos Parapan-Americanos, terminados em agosto e que também
resultaram em enorme sucesso.
As disputas do Pan do Rio de Janeiro foram divididas em qua-
tro núcleos: Complexo do Maracanã, Complexo de Deodoro. região
do Pão de Açúcar e da Barra. No total, os Jogos tiveram 14 sedes,
es
palhadas num raio de 25 km.
O Complexo Esportivo de Deodoro, localizado na Vila Militar,
Abrigou o Centro Nacional de Hipismo e o Centro Nacional de Tiro,
In
stalações sem similar na América Latina, o de tiro, dizem os especia-
«stas, é um dos melhores do mundo! Neste Complexo foram realizadas
as
provas de hipismo, hóquei sobre grama, tiro esportivo, tiro com
118
Djon Madruga
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

arco e pentatlo moderno. O local está sendo formatado como um Segue um resumo dos principais investimentos do governo fe-
grande centro de excelência para o desenvolvimento dos seguintes deral no Pan
• Tecnologia de informação: R$ 1 12.9 milhões;
esportes: Pentatlo Moderno. Tiro, Esgrima, Hockey sobre a grama e
• Serviços de áudio e vídeo: R$ 52,5 milhões;
Futebol Paraolímpico de 5 e de 7.
O governo federal também foi o responsável pela construção Telecomunicações (fibra ótica, telefonia, internet e trans-
missão de dados): R$ 46,7 milhões;
do Centro de Operações Tecnológicas, espaço de gerenciamento e
monitoramento das operações de tecnologia de informação dos lo- • Complexo Esportivo Deodoro: R$ 1 1 9 milhões;
cais de competição e de não-competição. Foram mais de trinta sistemas • Parque Aquático Maria Lenk: R$ 60 milhões;
integrados durante a competição, com cerca de cinco mil • Vila Pan-americana: R$ 189,3 milhões;
microcomputadores, além de aparelhos de cronometragem e redes. • Reforma e ampliação do Aeroporto Santos Dumont:
A União investiu R$ 112,9 milhões na montagem do centro. R$ 1 65 milhões;
Todos os equipamentos importados pelo Ministério do Esporte • Segurança: R$ 385 milhões;
continuarão a ser utilizados pelos atletas depois dos Jogos. A inten- • Aquisição de materiais e equipamentos esportivos:
ção do governo federal é permitir um melhor desenvolvimento do R$ 1 6 milhões;
9
esporte de alto rendimento no país. O novo material já vinha sendo Ladetec (laboratório): R$ 6,5 milhões;
utilizado em treinamentos, campeonatos e seletivas para os jogos re- • Bolsa Atleta: R$ 13.2 milhões que garantiram 30 medalhas no
alizados. São barcos, redes, caiaques, colchões, placares, cronômetros Pan (45% dos Atletas do Para-pan eram nossos bolsistas).
de alta precisão e quadras esportivas, entre outros. A frota de barcos,
por exemplo, importada da Itália, é a mais qualificada de toda a Amé- Gostaria de falar também do maior legado do Pan, o Legado
intangível:
rica Latina.
O evento também foi previsto como uma oportunidade para 1) Vamos considerar as centenas de milhares de crianças que
melhorar a vida de populações em áreas de risco. Em iniciativa inédi- estão nesse momento iniciando as práticas desportivas por causa do
Pan e, consequentemente, crescerão mais saudáveis, disciplinadas,
ta, a inclusão social foi eleita como núcleo central das ações
socialmente ajustadas e prontas para enfrentar desafios, tomando-se
governamentais dentro dos preparativos da competição. Ampliações
cidadãos produtivos para nosso pais;
do atendimento dos programas Segundo Tempo e Ponto de Cultura,
2) E os milhões de jovens, adultos e pessoas da terceira idade
novas parcerias e fortalecimento do diálogo entre o poder público e
que, motivados pelo Pan, estão agora praticando atividades físicas
as comunidades são exemplos do legado que os Jogos deixaram. re
gularrnente e, consequentemente, também melhorarão sua saúde,
As três esferas de governo - federal, estadual e municipal -
gastando menos com remédios e exames médicos, ou seja, haverá
foram preparadas para receber os 5,5 mil atletas representantes de
^a melhora da saúde pública nacional;
42 países participantes do Pan. Do governo federal participaram, de
3) E quantos jovens das áreas de risco deixaram de ter como
forma direía ou indireta, 21 ministérios. Devo ressaltar a importância 1(
Mos os traficantes e bandidos da sua vizinhança e passaram a que-
do entendimento entre os três governos que se uniram para a realiza'
rer ser como a Jade da ginástica, o Jadel do atletismo, o Thiago da
cão dos jogos, deixando suas diferenças políticas de lado.
ão, a Marta do futebol, o Diogo do taekwendô, o Hugo do ténis
e
m
mesa, só para citar alguns ídolos do Pan;
121
'120
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

4) E a melhora da imagem internacional do nosso país que para


muitos lá fora, era um país de terceiro mundo e, com o pan, mostrou
capacidade de realizar um evento de 1° mundo, em instalações gran- ea
diosas como as que nós construímos. Eu pergunto sobre o que as
milhares de horas em tevê, as várias páginas de jornais divulgadas
de um de e de
mundialmente a nosso respeito, vão gerar de turistas no futuro próxi- de
mo? Quanto isto vai mexer positivamente com a nossa economia?

E o Parapan, que permitiu a milhões de brasileiros verem de Lamartine P. DaCosta


forma diferente os portadores de deficiência, antes percebidos com
descrédito; agora, viraram ídolos nacionais por superar espetacular-
mente suas condições; vimos exemplos dos nadadores Clodoaldo Silva. Os Jogos Olímpicos de Beijing-2008 têm se revelado um marco
André Brasil e Daniel Dias, cada um ganhando 8 medalhas de ouro, divisor de tendências desde suas proposições iniciais ao longo da dé-
e a Terezinha Guilhermina do atletismo, o Tenório do judo, os garotos cada de 1990, sobretudo diante da expectativa de se ajustar o modelo
do futebol de 5 e de 7 e os novos ídolos do vôlei sentado, todos cam- ocidental de organização dos Jogos à cultura chinesa e por outro lado
peões parapanamericanos. Sua performance, com certeza, repercutirá reforçar a adaptação da China à modernização global.
em maior respeito pelo portador de deficiência e, principalmente, abrirá Assim, o legado cultural tem sido apontado como o de maior
as portas para a inclusão social de 24 milhões de brasileiros nesta impacto do megaevento Beijing 2008 (Hai Ren, 2007), embora se
condição e, quem sabe, proporcionará a eles melhor acessibilidade apresentando de modo intangível. Nesse contexto, o presente estudo
que é a grande queixa da nossa sociedade. apresenta um modelo analítico-descritivo para avaliação de fatores
Por fim, quero falar na melhora da nossa auto estima com o relacionados aos legados olímpicos e para sua respectiva gestão, in-
Pan, pois descobrimos que, além de sermos capazes de organizar um cluindo impactos tangíveis e intangíveis. Nesta abordagem
evento dessa magnitude, também viramos uma potência esportiva ao metodológica preliminar fez-se revisão sucinta do modelo OGGI -
superarmos o Canadá e olha que quase ganhamos de Cuba no Pan, Olympic Games Gobíal Impact postulado pelo Comité Olímpico In-
enquanto que no Parapan fomos a nação número l das Américas. ternacional - COI, visando-se a comparações com o modelo de 3D
superando inclusive os EUA. criado no Brasil também voltado para legados (DaCosta, 2007).
Tivemos orgulho dos nossos atletas, choramos de felicidade com Em princípio, os Jogos Olímpicos de Beijing-2008 estão se tor-
eles quando subiram ao pódio e, ao ouvirmos o hino nacional, nando um fato histórico de importância no esporte também por várias
emocionamo-nos ao conhecer o seu drama na superação das enor- razões sociais, culturais, políticas, tecnológicas e sobretudo económi-
mes dificuldades para conquistar aquela medalha. cas, vis-à-vis o gigantismo do evento e pelo sentido de inovação que
Concluímos que, se eles conseguiram, todos nós brasileiros tem permeado sua preparação ao longo da década. Neste contexto, o
poderemos superar os nossos obstáculos do dia-a-dia. modelo 3D consiste por descrição e análise em um meio de avaliação
e
gestão de legados de megaeventos esportivos em que se possam
observar os Jogos de Beijing e demais Olimpíadas futuras, quer de

122
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Lamctrtine P. DaCosto

verão ou de inverno. A opção pelo legado como foco central da ava- Segue a Figura 9:
liação e gestão deve-se ao fato de que o Comité Olímpico IntemacioQaj
leva em. consideração este fator como básico em suas avaliações
para escolha de cidades-sede dos Jogos Olímpicos (COI, 2007).
Tal exercício de modelagem se inspira primariamente em dois Impactos
documentos técnico-metodológicos recentes emitidos em momen-
tos de significados distintos: The Legacy of the Olytnpic Games
1984-2000, publicação em estilo de manual emitida pelo Comité
Olímpico Internacional (COI) em 2003. que consolidou e deu eleva- Definição de base para
da prioridade ao fator "legado" como base para avaliação dos Jogos legado ofmpico: retorno
ggrantidoà sociedade
Ouíra definição
de base: o legado
Olímpicos e outros eventos similares; e From Beijing to Bow Belh desempenhos para a
reafeação dos Jogos.
é especifico á cidade,
à região e ao país.
- Measuring the Olympic Effect" do London Easí Research
Institute (Londres) de 2007, que redefiniu e deu maior precisão ao
uso de legados para a avaliação dos Jogos Olímpicos já consideran- A partir destes direcionamentos a abordagem inicial deste estudo
do experiências práticas desde 1992 (Jogos de Barcelona) até 2004 pode ser apreciada esquematicamente pela Figura l, que apresenta os
(Jogos de Atenas). componentes principais do Modelo 3D de Legados de Megaeventos
A metodologia da construção do modelo ora ensejado por este Esportivos, aqui introduzido com esta denominação por focalizar essen-
estudo foi baseada em experiências passadas - tal como se encon- cialmente tempo, espaço e impacto. Tais variáveis foram selecionadas
tra nas publicações formato working papers (estudos preliminares) à vista da fonte COI (2003) que contém 53 contribuições, nas quais
de produção do COI e do East London antes citadas - mas voltadas 62% discutem as dimensões temporais e espaciais dos legados dos
para uso futuro, o que torna possível avaliar Beijing - 2008 e outros Jogos Olímpicos de verão e de inverno das últimas três décadas. Já o
megaeventos a terem lugar nos próximos anos. Neste particular, a componente "impacto" aparece em 40% dos papers na mesma fonte,
relevância deste estudo é de uso em projetos de candidatura do Rio embora nem sempre relacionados ao tempo ou ao espaço.
de Janeiro aos Jogos Olímpicos de 2016 ou de 2020, possibilidades Esta conjugação de três dimensões foi confirmada, todavia, nos
hoje em pauta junto ao Comité Olímpico Brasileiro (COB), Prefei- estudos do East London de referência (Poynter, 2007), que também
tura do Rio de Janeiro e Ministério do Esporte do Governo Federal cita tais dimensões, porém em meio a várias outras. Mas uma orien-
Brasileiro. Além disso, há uma tendência de expansão de tação da fonte COI (2003) que consolidou a percepção
megaeventos esportivos em geral que frequentemente se revela no tempo-espaço-impacto concerne a Robert Barney (pp. 43-53). O autor
cotidiano da gestão do esporte e que legitima tal área como tópico canadense definiu legado como "algo recebido do passado que possui
de estudos e pesquisas. valor presente e certamente valor futuro". Uma versão geral desta
definição consta da Figura 1. Enfim, na composição aqui proposta
s
iíua-se a relação tripartite como básica até mesmo porque ela pode
a
brigar componentes que materializam os legados, como se observa
na Figura 2.

.124
125
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte iamartine P. DaCosto

Segue a Figura 10: Ovas


construções em áreas sujeitas à recuperação ou adaptações.
-Naturalmente, a proteção - ou melhor, sustentabilidade - do meio
ambiente é uma consequência da intervenção inicial definida pela
construção e posteriormente pela renovação de seu entorno urbano.
Impactos por sua vez, a política pública é um componente que surge como
necessário para legitimar a sequência construção-renovação do en-
torno-sutentabilidade, a qual acaba por incluir o próprio megaevento.
Espaço

Segue a Figura 11:

Impaste
Socioam! Positivos Económicos
Tangíveis (Ex: Turismo)
Socioculturais

• Construção
Não tangíveis
X (Ex: Entretenimento)

• Renovação Urbana
• Susteníabilidade ambiental
X Ambientais
{Ex: Sustentabilidade Urbana)
Esportivos-Competíção
Direitos Negativos
• Poiíticas públicas
Esportivos-Lazer/saúde
• Megaevento
Indiretos Descontrole orçamentado
• Outro fatores
Politieos-comunitários

Em última instância, a figura 2 pode ser entendida como resulta- Espaço - Local, regional, nacional e internacional
do de uma meta-análise simplificada, isto é uma metodologia de
identificação por frequência de registros, no caso presente por sim- 80

ples percentual de abordagens selecionadas em relação ao numero X


total de estudos compulsados (n=53).
 meta-análise revelou também uma elevada convergência das Tempo -Curto, médio e longo prazo
fontes quanto a considerar o tema de legados como complexo e sujei-
to a múltiplos conceitos e interpretações, porém se identificaram
l/: Outros componentes podem ser aduzidos a estes cinco princi-
fatores centrais (core meanings) do modelo; portanto esta ideníifi" fMs, contudo em valor decrescente. Isto porque que cada caso de
cação tornou a modelagem operacional tendo como componentes fígado mostra-se peculiar ao espaço em que se delimita e ao tempo
principais: construções, renovação urbana, sustentabilidade ambiental, fP*e se define, geralmente de longo prazo, mas passando por curto e
políticas públicas e o megaevento propriamente dito. estágios de efeitos benéficos ou maléficos. Neste particular, o
Esta hierarquização não constituiu preocupação tanto dos auto- ie dos textos COI e East London revelam uma grande variedade
res do manual do COI, como dos working papers do East LondoD f£ impactos possíveis a partir da relação tripartite inicial e de seus
Institute, contudo o modelo 3D implica identificar as construções es- fBico desdobramentos típicos. Assim, a Figura 3 apresenta relações
portivas como de maior foco de atenção. Assim se admite urna vez positivas e negativas de impactos, quer diretas ou indiretas, tangíveis
que sem instalações não há megaeventos esportivos e nem as reper' f$ intangíveis, com exemplos retirados das fontes consultadas. Esses
cussões de renovação urbana que se tornam mais viáveis ao inserl I^Uceitos qualificam os componentes principais dos legados, sempre
127
• 126 I::
Instrumentos de Avaliação Psicológico em Psicologia do Esporte Lamartine f. DaCosta

nas perspectivas de tempo de curto, médio e longo prazo, bem com <je compreensão do modelo, mas que seja suficiente para haver ações
de espaço local, regional, nacional e internacional. de gestão. A figura 4 traduz esta concepção em relações esquemáticas,
Cabe realçar que os esquemas das Figuras l, 2 e 3 são compo- colocando em níveis hierárquicos de focalização prioritária as instala-
sições sintéticas com dados recolhidos dos textos que não se ções esportivas e seus desdobramentos, seguindo-se política pública
preocuparam em ter sínteses, mas sim análises per se de cada com- e respectivos modos de gestão pública e privada com abordagens de
ponente isoladamente. A exceção no caso refere-se ao texto de Dubi, ações a serem feitas. Este modelo naturalmente torna-se pertinente
Hug e van Griethuysen (pp. 403 - 413) da fonte COI (2003). Este nas condições pós evento desde que ele opera a partir de experiências

estudo tem como resultado o modelo OGGI, isto é Olympic Games já ocorridas; daí o modelo configurar as intervenções com relação à
Global Impact, que se apresenta corno uma síntese de vários compo- gestão e avaliação dos legados em modalidades Ex ante (anteceden-
nentes de megaeventos reunidos em torno de seus impactos. Com te ao evento) e Ex post (posterior ao evento).
este fim, o OGGI opera com indicadores selecionados e com acom- Em estudo anterior deste autor com seus colaboradores sobre
panhamento da respectiva evolução em face a mudanças detectadas meio ambiente considerando os Jogos de Inverno de Turim, abordou-
na ordem social, cultural e económica de determinada região onde se se a metodologia do OGGI, enfatizando-se o uso de visões ex ante e
situaram ou vão se localizar os Jogos Olímpicos. ex post por darem maior conteúdo e sentido às avaliações do
megaevento (DaCosta & Veerman, 2006). Já no caso do modelo 3D
Segue a Figura 12: de legados, a proposta implica se fazerem análises separadas ex ante
de l, 2 e 3 como etapas da Figura 4 visando-se à análise económica
Instalações esportivas.
do legado; para necessidades de gestão de legados a proposta incide
renovação urbana e meio em análises ex post de l, 2 e 3 em conjunto.
ambiente.
Políticas governo/ Gestão
pública e privada Segue a Figura 13:
• Megaeventos
• Intervenções
ex ante/ ex post
Data mining, rneta-análises,
Estado-da-arte, cenários
Espaço
Seminários, painéis, memória,
Dossiers. livros, sites, etc.
Estudos premilnares, diagnósticos,
Modelo de Gestão de Legados -
pesquisas eprojetos
Níveis operacionais pós evento
Legislação, planos, ações de governo e da
iniciativa privada, direcionamento e recursos
para estudos e pesquisas
Dado a que Dubi et ai. (2003) estabeleceram limites para a
eficácia do modelo OGGI - sobretudo em vista da impossibilidade de
isolar um determinado indicador do contexto em que ele opera - o
modelo 3D deslocou-se para a gestão de legados e bem menos Modelo de Gestão de Conhecimento
para o manejo de íegados em projetos
para sua avaliação. Este posicionamento implica ter um mínimo de megaeventos

128 129
Lamartine f. DaCssta
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

por sua vez as variáveis examinadas foram: construção esportiva, re-


Outra dimensão do modelo 3D está representada na Figura 5
forma urbana, proteção do meio ambiente e os megaeventos previstos
em que se fazem constar as diferentes formas de Gestão do Conhe-
para o Rio em 2011 (Olimpíada Mundial Militar) e 2014 (Copa do Mun-
cimento com relação aos níveis hierárquicos da análise de legados
do de Futebol) segundo mudanças e exigências conforme os padrões
Nestas condições há conhecimentos referenciados mas afetos à ob-
jo COI (ver Candidate cities bidding em www.olympic.org). Neste
servação ex ante como outros ex post, sendo que esta última opç|0
arranjo a variável política pública reduziu-se às decisões já assumidas
pode utilizar técnicas de cenário. Assim se dispõe à vista de simula-
para a realização dos megaeventos de 2011 e 2014.
ções simplificadas feitas pelo autor deste texto, com auxílio de alunos
Outra simulação simplificada incidiu sobre Beijing 2008,
do doutorado / mestrado da Universidade Gama Filho - Rio de Janei-
jnegaevenío com previsão de legados de grande porte, mas com um
ro que debateram várias entradas e saídas de informações sobre
entorno em escala de país com muitas incertezas. Mais uma vez. as
legados dos Jogos Pan-americanos de 2007, realizados no Rio de
Janeiro (DaCosta, 2007). entradas principais do modelo foram as construções esportivas, a re-
Neste particular de ensaio do modelo 3D em um megaevento forma urbana da cidade, e a sustentabilidade ambiental, definidas de
produzido na prática, é oportuno registrar que as outras opções de acordo com o projeto governamental dos Jogos de 2008 que tem se-
metodologia e de apresentação de dados além da técnica de elabora- guido a orientação de dar ênfase aos legados culturais não tangíveis e
ção de cenários continuam válidas, podendo ser utilizadas conforme ao desenvolvimento do esporte nacional (tangível do lado dos resulta-
dos internacionais).
disponibilidades e preferências dos modeladores. Nestas circunstân-
cias, a opção cenário se aprestou a variadas situações e objetivos Para este conjunto de projeções, a base de viabilidade somente
dada a flexibilidade no uso das informações, sobretudo do ponto de encontrou oportunidade no crescimento económico da China, que
vista de mulíidisciplinaridade. Este estágio de experimentação teve a deverá se alongar até 2050, porém em ritmo decrescente (Wilson &
participação de Holger Preuss (2007), especialista da Universidade Purushothaman, 2005). As demais expectativas, sobretudo as referi-
de Mainz (Alemanha) em economia de megaeventos e Jogos Olímpi- das ao meio ambiente, mantiveram-se em maior risco de que
cos, que confirmou o uso de cenários como capaz de relacionar oportunidade. Contudo, admite-se que se em cenário do início da dé-
múltiplas entradas dos estudos e observações sobre legados manten- cada de 2010 a proteção ambiental apresentar melhorias, os legados
do as referências básicas de tempo-espaço-impacto. dos Jogos de Beijing poderão ser efetivos com prejuízos ambientais
Os ensaios de cenários resguardando os parâmetros do modelo de menor compromisso.
3D tiveram também apreciações de Hai Ren (2007) da Universidade
do Esporte de Beijing e lain MacRury (2007) do East London Instirute Conclusões
de Londres, ambos dedicados a pesquisas na área de legados olímp1" O modelo 3D de DaCosta (2007) tem praticabilidade adequada
cos. Nestes termos foi discutido um cenário básico para o período e
precisão de desenvolvimento progressivo na medida que os cenários
2008-2014 com respeito ao Rio de Janeiro, que estava passando de sa
o construídos e desdobrados de acordo com a entrada de novos
uma posição de realização dos Jogos Pan-americanos 2007 para ou- a
dos de acontecimentos incertos ou não previstos. Este acerto pas-
tra como cidade candidata aos Jogos Olímpicos de 2016. Essa 0a
passo diante de incertezas que se transformam eventualmente em
montagem de informações solicitou descrições, inter-relacionanieB
P°itunidades pode atender melhor os casos de legados não planejados,
tos e análise de riscos versus oportunidades com o objetivo de ap Or
oo no caso dos Jogos Pan-americanos do Rio de Janeiro 2007.
o processo de decisões do governo, COB, empresas de mídia

130 131
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Ssporfe

Isto posto, o modelo 3D revela-se como um meio de gestão em


condição de maior favorecimenío do que um instrumento de avalia-
ção que acompanha as modificações da variáveis por via de
o: os
indicadores estabelecidos a partir do projeto do megaevento. Este -
aspecto do modelo 3D pode lhe dar vantagens em termos de obser-
vação de impactos intangíveis e/ou incertoscomo ora ocorre com
Roberto Maluf de Mesquita
Beijing-2008, aqui entendido como gerador de legados dependentes
de acontecimentos futuros ainda não bem claros
Introdução
Os 25 votos de diferença para a segunda cidade concorrente
CO1 (2003), The Legacy ofthe Olympic Games 1984 - 2000. Lausanne: mais votada na última rodada de escrutínio da escolha de Atenas para
Olympic Museum. sediar os Jogos Olímpicos de 2004, ocorrida em 1997 (COI, [on-line]),
COI (2007), Bidding Process. Ver em http://multimedia.olympic.org/pdf/ demonstrou que os Membros do Comité Olímpico Internacional (COI)
fr_report_635 .pdf. reconheceram o momento adequado para a volta desse megaevento
DaCosta, L.P. & Veerman, C. (2006), The Olympic Winter Games: the esportivo para a sede da Primeira Edição dos Jogos Olímpicos da Era
Quest for Environmental Protection and Educational Promotion - an Moderna. O primeiro recorde dos Jogos Olímpicos de Atenas — 2004
Overvíew. In From Chamonix to Turim, N. Muller, M. Messing & H.
foi registrado no número de Comités Olímpicos Nacionais represen-
Preuss (Editors), Kassel: Agon Sportverlag, pp. 79-98.
tados: 201. A cobertura da televisão contabilizou uma audiência de
DaCosta, L.P. (2007), Painel de Gestão de Legados PAN2007, SESC Rio,
3,9 bilhões de pessoas, ratificando o elevado grau de importância
setembro, 3-5,2007. Apresentação em PowerPoint.
destinado pela população mundial ao esporte olímpico (COI, [on-line]).
H ai Ren (2007), Cultural values of China related to sport and to the
Beijing Olympic Games of2008. Paper apresentado ao Seminário
A disputa por inúmeras cidades pelo direito de sediar os Jogos
Internacional Valores do Esporte SESI. Rio de Janeiro: FIRJAN. Olímpicos é um fato recente. Esse interesse crescente está, provavel-
Poynter, G. (2007), From Beijing to Bow Bells - Measuring the Olympic
mente, atrelado aos mais diversos fatores. Até os Jogos Olímpicos de
Effect. London: London East Research Institute - Working Papers in Moscou - 1980, a viabilidade económica era preponderante na organi-
Urban Studies. zação desses megaeventos esportivos. Cardoso (1996, p. 6) relata que:
Wilson, D & Purushothaman, R. (2005), Dreaming with the Brics: the Quando Samaranch tomou posse na presidência do COI os jogos
Path to 2050, New York: Goldman Sachs Group - Research paper. estavam ameaçados de falência. As Olimpíadas de Munique — 1972
deixaram um prejuízo de oitocentos milhões de dólares. Os contri-
buintes canadenses pagam até hoje o rombo de um bilhão de dóla-
res cavado para promover Montreal - 1976. Do ervanário consumi-
do em Moscou - 1980 e bancado pelo Estado Soviético nunca se
soube o montante. Sabe-se apenas que pequeno não foi.
A partir do sucesso financeiro conquistado pelo Comité
Organizador dos Jogos Olímpicos de Los Angeles - 1984 que

132
instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Roberto Mofuf de Mesquita

registraram "um lucro de 150 milhões de dólares" (CARDOSO, 1996, p. 6), Olímpicos. As eleições legislativas apontaram à derrota do gover-
os interesses políticos, económicos e académicos também passaram no socialista, levando os conservadores ao poder. Em sua primeira
a considerar o fenómeno global desses megaeventos esportivos como entrevista, a recém empossada Secretária de Estado para os Jo-
tema prioritário de suas agendas. gos Olímpicos, Fanny Petralia, admitiu que as obras olímpicas
A presidenta do Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de custariam mais do que o previsto e acrescentou: não se pode igno-
Atenas - 2004 (ATHOC), Angelopoulos-Daskalaki (2003, p. 42) de- rar o fato de que houve atrasos nas ações de algumas obras por
clarou poucos meses antes desse megaevento esportivo que: "os olhos parte do governo anterior e há custos a mais em muitas instala-
do mundo estarão voltados para Atenas no próximo mês de agosto. ções (TERRA, 2004 [on-line]).
Esse fato será uma consequência de muitos anos de trabalho duro As questões políticas estão entrelaçadas com os Jogos Olímpi-
por parte do país anfitrião dos Jogos Olímpicos". A declaração acima cos da Era Moderna desde sua primeira edição em 1896, Chamerois
ratifica a responsabilidade que a magnitude desse megaevento es- (2002) ao abordar esse megaevento esportivo enfatiza que: a dimen-
portivo provoca. são política está sempre presente, ainda que subjacente. Como uma
O objetivo deste estudo é analisar o impacto e o consequente cidade sede dos Jogos Olímpicos é eleita sete anos antes do evento,
legado suscitado pelos Jogos Olímpicos de Atenas - 2004. O texto uma possível troca de governo precisa ser levada em consideração
está fundamentado em uma revisão bibliográfica, acrescida de pelos Comités Organizadores.
constatações empíricas derivadas da participação no trabalho volun- Na 119a Sessão Anual do COI, realizada na cidade da Guatemala
tário do autor no referido megaevento esportivo. em 2007, o Governo Grego e o Comité Olímpico Grego (COG) apre-
sentaram a empresa Hellenic Olympic Properties (HOP) que foi criada
Atenas Pré-Olímpica visando gerenciar e desenvolver o legado dos Jogos Olímpicos de
A intensa comemoração dos integrantes do ATHOC e de alguns Atenas - 2004 (HOP, 2007).
setores da população grega, resultante da conquista de Atenas sediar O Governo Grego e o COG reconheceram, no relatório apresen-
os Jogos Olímpicos de 2004, parecia prematura para alguns críticos. O tado na Sessão acima mencionada, a dificuldade de organizar os Jogos
motivo do alerta estava baseado no fato de algumas propriedades Olímpicos em uma cidade que apresenta administração fragmentada
projetadas para transformarem-se nas arenas olímpicas serem priva- em 54 subprefeituras. Além dessa dificuldade, também foi admitido os
das. O prognóstico pessimista em relação ao episódio foi confirmado e altos níveis de poluição, meio de transporte deficitário, a necessidade
um longo período envolvendo processos judiciais transcorreu até que o de intervenção urbana há décadas reivindicada que aliada com a falta
ATHOC conseguisse a liberação para construir toda estrutura que pos- de espaços e alta densidade populacional, comprometiam a qualidade
teriormente formou o anel olímpico. Embora as generalizações referentes de vida da população ateniense (HOP, 2007).
às estratégias dos Comités Organizadores dos Jogos Olímpicos devam Na época o COI manifestava atenção especial no que se refe-
ser evitadas, acredito que o despreparo apresentado nesse caso, certa- ria ao meio ambiente, uma vez que o tema já era tratado como prioritário
mente servirá de modelo a não ser seguido por cidades candidatas a há alguns anos. Samaranch (1993) afirmou: na eleição das cida-
organização de futuros megaeventos esportivos. des candidatas o COI levará em consideração, prioritariamente, o
Outra adversidade muito difícil de ser administrada foi à troca Jfflpacto ecológico das instalações olímpicas. O fato de o COI assi-
de governo ocorrida no mês de março que antecederam aos Jogos nar em 1994 um acordo de cooperação com as Nações Unidas visando

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Instrumentos de Avolioçòo Psicológica em Psícoiogio do Esporte Roberto Mafuf de Mesquita

o desenvolvimento de projetos nessa área (COI, 1998), ratificava as Fica evidenciado nos exemplos mencionados o prejuízo que
preocupações do momento. um equívoco pode acarretar em uma ou diversas áreas da infra-
Outro período importante registrado na relação do esporte com estrutura de um megaevento esportivo.
o meio ambiente ocorreu por ocasião das comemorações do cente-
nário do Primeiro Congresso Olímpico. O ministro francês do Meio Os custos e a Infra-estrutyra da
Ambiente (BARMER, 1994), foi enfático ao afirmar que: segura- dos Jogos de
mente o esporte nunca recebeu o apoio de um aliado tão consistente
Os custos da organização dos Jogos Olímpicos de Atenas -
quanto o meio ambiente. Contudo, imediatamente questionou: Mas o
2004 foram: 11,27 bilhões de Euros, dessa quantia 9,01 bilhões de
caminho inverso também faz parte da realidade?
Euros pagos pelo governo (PREUSS, 2004). Além de superar em
Com relação à Atenas Pré-Olímpica, segundo a HOP (2007).
1,78 bilhões de Euros o valor destinado para a organização dos Jogos
o que deveria ser construído ern décadas foi executado em cinco
Olímpicos de Barcelona (PREUSS, 2004), dois aspectos relaciona-
anos. Ainda que sem comprovações documentais, cabe registrar a
dos com as cifras dos Jogos chamaram muito a atenção:
manifestação da crítica que questiona o período de cinco anos de
• O valor elevado que superou significativamente o orça-
trabalhos específicos no anel olímpico divulgado pela HOP. uma vez
mento inicial;
que muitas arenas foram construídas em um prazo inferior a cinco
O quanto se poderia ter economizado caso o ATHOC ti-
anos. Esse é um exemplo de negligência com o meio ambiente reivin-
vesse apresentado maior eficiência na organização dos
dicado durante a conferência do ministro Francês do Meio Ambiente
Jogos Olímpicos.
no evento académico acima referenciado.
O curto período destinado à intervenção urbana gerou inúme-
Como o governo foi responsável pela maior parte do pagamen-
ros transtornos que em certos casos atingiu proporções elevadas.
to dos custos dos Jogos Olímpicos, a reclamação de inúmeras cidades
Um exemplo que ilustra a afirmação anterior foi divulgado no Relató-
gregas foi inevitável, já que todas pagaram impostos, porém Atenas
rio da primeira Visita de Inspeção do Comité Olímpico Brasileiro
recebeu a parte majoritária dos benefícios. Esse exemplo de conflito
(COB) a capital grega, que relata:
entre cidades de um mesmo país responsável por sediar os Jogos
As dificuldades para construção em Atenas, onde as escavações Olímpicos, está cada vez mais comum.
geralmente encontram locais históricos que necessitam ser preser- Com relação à infra-estrutura, o ATHOC mencionou a constru-
vados, obrigando o acompanhamento de um arqueólogo, retardam ção do novo aeroporto como exemplo de legado para o povo grego. O
os trabalhos de construção dos locais de competição e alguns índice de aproximadamente 50% do aumento de embarques entre 1996
eventos-testes terão que ser adiados (COB, 2001, p. 17). e
2006 na região de Ática e Atenas, foi apresentado pelo HOP (2007).
Os Portos de Faliron e Hellinikon também foram utilizados como
m
No mesmo documento acima referenciado (COB, 2001, p. 22) odelo, no intuito de demonstrar outro grande benefício desse
alguns atrasos foram registrados: "a Vila Olímpica está dentro do Megaevento esportivo (HOP, 2007).
cronograma previsto, mas algumas instalações esportivas e obras de Além disso, a rede hoteleira melhorou seus serviços ao registrar
a
infra-estrutura viárias encontram-se com a construção atrasada". construção de 11 novos hotéis e a reforma de 25 já existentes
(CARTALIS, 2003).
136 137
Roberto Mdluf de Mesquita
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

cJesinformação de um grande número de voluntários era evidente,


O argumento que critica a denominação de legado das obras
comprometendo inúmeras competições. Essa opinião é pessoal, sob
acima mencionadas está baseado na necessidade da melhoria da
o olhar de quem trabalhou nos dois Jogos Olímpicos (Sydney 2000 e
infra-estrutura da cidade, independente da realização dos Jogos Olím-
Atenas 2004) na condição de voluntário.
picos. Nesse sentido, torna-se sem validade tal promoção das
Um exemplo negativo que marcou a história dos Jogos Olímpi-
reformas, já que tanto o aeroporto antigo de Atenas, como os Portos
cos de Atenas, especialmente para os brasileiros, ocorreu com o
mencionados e a rede hoteleira antes das reformas e aquisições, não
maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima que foi atrapalhado por um
apresentavam condições compatíveis com a cidade de Atenas na
manifestante em plena prova, perdendo 40 segundos e a liderança da
época. Ou seja, deveriam ser construídos e/ou reformados caso os
niesma. Ao final da disputa, demonstrando muita superação, o atleta
Jogos Olímpicos fossem organizados na capital grega, ou mesmo não
conquistou a medalha de bronze (UOL, [on-liné]). A falha inédita da
ocorrendo à realização do megaevento.
organização motivou o COI a premiar o brasileiro com a medalha
Barão Pierre de Coubertin de mérito olímpico (COB, [on-line]).
A organização das competições
Acredito que se um atleta de uma nação "mais influente" no Movi-
Na Cerimónia de Encerramento dos Jogos Olímpicos de Syd- mento Olímpico Internacional, como por exemplo, os Estados Unidos,
ney 2000, o então Presidente do COI Juan António Samaranch, passasse por tal situação, os procedimentos adotados no final da pro-
declarou serem aqueles Jogos os que obtiveram maior êxito entre va não seriam os mesmos.
todos já organizados até aquele momento. Um dos fatores que pode
ser atribuído ao sucesso dos Jogos de Sydney, está centrado no cum- O Legado
primento dos prazos das construções das arenas esportivas. De modo
Para avaliar o impacto do legado percebido no país sede dos
geral, essas obras foram concluídas no prazo estabelecido, alguns
Jogos Olímpicos, Cartalis (2003) afirma que depende de modo decisi-
meses ou anos, em alguns casos, antes do megaevento. Entendo que
vo dos objetivos propostos, da execução dos mesmos e do processo
pela grandeza do evento, o papel dos voluntários torna-se fundamen-
administrativo estabelecido. O alerta referente às normas de proce-
tal e nesse caso, um grande grupo de voluntários recebeu a
dimento adotadas pelos Comités Organizadores dos Jogos Olímpicos,
oportunidade de treinar em eventos de diferentes âmbitos (regional,
enfatizam que o planejamento dos Jogos Olímpicos precisa, necessa-
nacional e internacional) antes dos Jogos Olímpicos.
riamente, prever perspectivas muito além de alguns dias de competição.
Ainda que usufruindo da reputação representada pelo slogan
As recomendações do International Symposium on Legacy of
de "os melhores Jogos de todos os tempos", a organização dos Jogos
the Olympic Games 1984-2000 (2002) são claras e concisas: o pri-
de Sydney segue recebendo críticas da comunidade académica. Essa
meiro passo de uma cidade candidata aos Jogos Olímpicos deve levar
posição está evidenciada pela seguinte afirmação: está claro que o
em consideração os aspectos relacionados com o legado do evento.
planejamento para a utilização da área olímpica após os Jogos de
A preocupação do COI referente ao tema é crescente, o que gerou
Sydney foi insuficiente (CÂSHMAN, 2007).
inúmeras publicações de especialistas nos últimos anos, como o exem-
Os Jogos Olímpicos de Atenas contaram com 45.000 voluntári-
Plo que segue.
os (COI, [on-liné]). Porém, o fato da construção das arenas esportivas
O gigantismo da atividade económica originada por ocasião da
não ter cumprido o prazo estabelecido, acarretou na falta de um trei-
realização dos Jogos Olímpicos pode apresentar impacto permanente
namento consistente desse grupo. Ao contrário de Sydney. a
138 139
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Roberto Moluf de Mesquita

se a infra-estrutura do evento for projetada para seguir funcionando os aspectos negativos consequentes do próprio megaevento. Na ou-
com eficiência similar ao período que corresponde os Jogos Olímpi- tra ponta, os críticos que questionam a validade de investimentos
cos (PREUSS, 2007). Importante destacar a dificuldade de seguir na elevadíssimos e analisam os dados apresentados sob perspectivas ainda
prática a proposta do autor acima referenciado, por se tratar de um não percebidas ou divulgadas.
megaevento esportivo que por si só apresenta inúmeras variáveis e Acredito que o meio ambiente foi uma das áreas que mais cha-
falta de modelos a serem seguidos, já que as cidades organizadoras mou atenção nos Jogos Olímpicos de Atenas - 2004. Mesmo
desse mesmo megaevento estão inseridas em contextos diferentes. apresentando deficiências já mencionadas anteriormente, foi consi-
No caso de uma mesma cidade organizar dois megaeventos esporti- derado um legado "positivo". Nesse caso tudo indica que as seguintes
vos, os diferentes períodos da realização dos respectivos megaeventos propostas apresentadas: melhora da qualidade do ar e eficiência da
também dificultam a utilização de um mesmo padrão. utilização de energia, redução da poluição sonora, plantio de 100 mi-
Um exemplo de legado que pode ser considerado "positivo" foi lhões de árvores (CARTALIS, 2003), foram cumpridas pelo ATHOC.
divulgado pelo ATHOC:
Após os Jogos, as casas da Vila serão doadas pelo governo grego O trabalho voluntário no Acampamento
a pessoas carentes e alguns dos edifícios utilizados pela organiza- Olímpico
ção dos Jogos, serão de construção permanente, abrigando poste-
riormente um hospital, escolas e outras instalações de utilidade O Acampamento Olímpico originou-se nos Jogos Olímpicos de
pública para a comunidade (COB, 2001, p. 14). 1912, quando o Rei Gustavo V da Suécia convidou 1500 escoteiros
para montarem suas barracas ao lado do Estádio Olímpico de Esto-
Na mencionada 119a Sessão Anual do COI, o HOP apresentou colmo. A segunda edição do Acampamento Olímpico foi celebrada
o índice de desemprego entre 1996 e 2006 da cidade de Atenas e da durante os Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964. Após esta data, o
região de Ática que compreende: Atenas (representa 95% da re- evento foi organizado coincidindo com cada uma das edições dos Jo-
gião), Pireus, Ática Ocidental e Oriental, de acordo com a enciclopédia gos Olímpicos de verão, com exceção de Los Angeles — 1984
virtual Wikipédia ([on-line]). Segundo o HOP (2007), o índice de de- (CAMPAMENTO JUVENIL OLÍMPICO, 2000).
semprego na capital grega, no período acima mencionado, diminuiu Na Carta Olímpica (COI, 2000) consta que por ocasião dos
1,5% e o mesmo índice também diminuiu na Região de Ática em 4%. Jogos Olímpicos, um Acampamento Olímpico poderá ser organizado
O comentário que segue não questiona os índices de decrésci- sob a responsabilidade do Comité Organizador, após autorização da
mo apresentados em relação ao desemprego na região de Ática e Comissão Executiva do COI.
Atenas entre os anos de 1996 e 2006. O questionamento é o seguinte: Um dos principais objetivos do Acampamento Olímpico de Ate-
como comprovar que o decréscimo do índice de desemprego apre- nas 2004 foi reunir adolescentes oriundos dos países participantes dos
sentado pelo HOP é uma consequência da organização dos Jogos respectivos Jogos Olímpicos, em um evento que promoveu a educação
Olímpicos? A percepção que suscita parece apresentar dois Por meio do esporte e da cultura (ORGANISING COMMITTEE FOR
extremos: de um lado os organizadores dos Jogos Olímpicos que bus- ATHENS 2004 OLYMPIC GAMES, 2004).
cam demonstrar que o legado desses megaeventos esportivos De modo geral, a organização do Acampamento Olímpico de-
apresenta resultados de inúmeros benefícios que superam, em muito, trou um reflexo dos Jogos Olímpicos de Atenas. O que presenciei
"Urante o período de permanência em Atenas na condição, tanto de
140 141
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Roberto Malul de Mesquita

voluntário como de espectador, foram trabalhos elogiáveis do ponto de execução de um megaevento esportivo. Quando uma alta quantia de
vista organizacional e também, o extremo oposto. Com relação a esse dinheiro público "está em jogo", as possibilidades de equívocos preci-
megaevento, as evidências apontam para um sistema complexo sam ser diminuídas ao máximo, ou o risco de cometer erros históricos
organizacional muito distante de apresentar um modelo exemplar a ser pode repetir-se.
seguido. Esse aspecto torna mais difícil a execução de um projeto de
Jogos Olímpicos, uma vez que ao cometer-se um equívoco no início do Referências bibliográficas
processo, as consequências maléficas persistirão por longos anos ou
décadas. Conforme mencionado nesse texto, o ATHOC cometeu al- ANGELOPOULOS-DASKALAKl, Gianna. TheA-Team. OlympicReview.
Lausanne, v. 28, n. 49, p. 42-44, out./ nov./ dez. 2003.
guns equívocos irreparáveis logo no início do processo de organização
dos Jogos Olímpicos, registrados alguns anos antes do megaevento. BARNIER, Michel. Morning plenary session. INTERNATIONAL
OLYMPIC COMMITTEE. Centennial Olympic Congress, 1994. Lausanne.
Diante da situação, o COI vem apresentando, nos últimos anos, Report... Lausanne: COI, 1994. p. 66-68.
especial atenção ao tema gerador de muita investigação e polémica:
CASHMAN, Richard. Algumas dimensões éticas acerca da sediação de
Jogos Olímpicos e respectivo legado. Jogos Olímpicos. Promessas de candidatura e suas realizações nos Jogos
Olímpicos de Sydney 2000. In: RUBIO, Katia et ai. (Org.). Ética e
As propostos do Hellenic Olympic Properties compromisso social nos estudos olímpicos. Porto Alegre: EDIPUCRS
apresentados na 119a Sessão Anua! d© Comité 2007. p. 9-25.
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Sydney: ORGANISING COMMITTEE FOR THE SYDNEY 2000 OLYMPIC
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Internacional, Estádio Galatasi e os locais onde foram realizadas as
CHAMEROIS, Nicolas. The Globalisation ofthe Olympic Games-From
modalidades esportivas: badminton, canoagem, vela e vôlei de praia. Seoul (1988) to Sydney (2000). 2002. 6 f. Thesis summary (Doctorate in
Esses locais passarão a funcionar como museu, shopping center, Geography)-Department of Human, Language and Social Sciences,
parque de diversão, o novo campus da Universidade de Pireaus, en- University of Franche-Comté, Besançon (France), 2002.
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Importante enfatizar a preocupação do governo grego e do HOP www.cob.org.br/>. Acesso em: 21 set. 2007.
(2007) que reconheceram existirem 22 locais Olímpicos espalhados COMITÉ OLÍMPICO BRASILEIRO. Relatório da Visita de Inspeção:
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fante branco"): alto custo das manutenções das arenas olímpicas e COMITÉ OLÍMPICO INTERNACIONAL. Carta Olímpica. Lausarme-
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ATHOC receberam refere-se à preocupação tardia em relação ao COMITÉ OLÍMPICO INTERNACIONAL, [on-line]. <http://
problema acima mencionado. Fica registrado um alerta aos Comi- www.olympic.org/uk/games/past/index_uk.asp?OLGT=I&OLGY=2004>.
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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

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conflito, sem o uso da violência.
UOL, [on-line}. Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/olimpiadas/ O receio de lidar com conflitos internos e o ceticismo com a de-
medalhistas/vanderlei.jhtm>. Acesso em: 21 set. 2007.
mocracia levou Pierre de Coubertin a estruturar e organizar o COI
W1KIPÉDIA, [on-line]. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ como uma instituição unipartidária, em um modelo próximo ao oligárquico,
%C3%81tica>. Acesso em: 21 set. 2007.
tendo como documento norteador de sua prática a Carta Olímpica,
elaborada por ele em aproximadamente 1898 (Valente, 1999).
Regidos desde então por princípios fundamentais contidos na
Carta Olímpica, os Jogos Olímpicos pautaram-se por um conjunto de
valores que são a referência fundamental do Movimento Olímpico
at
é os dias atuais.
Se para os gregos, os Jogos representavam um momento de tré-
§ua nas guerras e conflitos de qualquer ordem para que competidores e
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Katia Uubio
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espectadores pudessem chegar a Olímpia ao longo desses cento e doze mante-la permanentemente enfraquecida. Isso foi conseguido nem tanto
anos de competições os Jogos Olímpicos da Era Moderna já sofreram por perdas territoriais, mas pela privação de um exército e marinha
três interrupções por causa das duas Grandes Guerras (VI, XII e organizados, além de suas antigas colónias ultramar, impondo repara-
XIII) Olimpíadas e boicotes promovidos por Estados Unidos e União ções teoricamente infinitas (Hobsbawn, 1995). Esse quadro levou a
Soviética na década de 1980, indicando que o Movimento Olímpico uma desestruturação da economia alemã, impondo aos governantes, e
não está alheio às questões sociais e políticas do mundo contemporâ- sobretudo ao povo, medidas drásticas que afetaram duramente a vida
neo como assim desejava Coubertin. de todos. Esse quadro é agravado pela grande depressão económica
Dentre vários acontecimentos polémicos ocorridos ao longo da após a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929.
história olímpica os Jogos da XI Olimpíada foram um dos mais discu- Se no princípio essas iniciativas se propuseram, e conseguiram,
tidos e analisados não apenas pelas circunstâncias singulares nas quais abalar o espírito nacional dos alemães, o que se observou ao longo de
ocorreram, mas por seu legado material e também simbólico, como alguns anos foi um movimento de reação a essas diversas perdas,
uma das grandes realizações do nazismo. Isso porque não há como materiais, sociais e emocionais, que fortaleceu os movimentos de
analisar a realização dos Jogos Olímpicos de Berlim sem associá-lo à caráter fascistas, incluindo aqui o nazismo. De acordo com Hobsbawn
ascensão do nacional-socialismo e com o uso da máquina nazista, (1995) o que havia de comum entre esses movimentos era o ressen-
afirmando a impossibilidade de dissociar Movimento e Jogos Olímpi- timento de homens comuns contra uma sociedade que os esmagava
cos do contexto social, histórico e político onde eles ocorrem, muito entre a grande empresa, de um lado, e os crescentes movimentos de
embora esse fosse um desejo de Pierre de Coubertin. trabalhistas, do outro. Ou ainda, que os privava da posição respeitá-
Toda a circunstância em que se deu a preparação e organização vel que tinham ocupado na ordem social e que julgavam lhes ser
dos Jogos de Berlim e seu resultado foram julgados à época como a devida, ou do status social numa sociedade dinâmica a que achavam
proximidade da perfeição. Hoje sabe-se que essa construção não foi que tinham direito a aspirar.
apenas pautada em bases materiais, mas também em uma apurada es- A grande diferença entre a direita fascista e a não fascista era
tratégia de propaganda, dificultando o isolamento dessas duas questões. que o fascismo existia mobilizando massas de baixo para cima. Per-
Diante da derrota alemã na II Guerra Mundial muito se produziu tencia essencialmente à era da política democrática e popular, ou
acerca dos Jogos de Berlim e sobre eles incorporou-se a visão e a seja, para o fascismo a mobilização das massas representava um
versão daqueles que escreveram a história dos vitoriosos. grande teatro público, por exemplo, os comícios de Nuremberg, mes-
Conforme afirma Vigarello (2002:145) visível, midiático, o es- mo depois de chegar ao poder. Segundo o autor os fascistas eram os
porte é necessariamente político. revolucionários da contra-revolução: em sua retórica, em sen apelo
aos que se consideravam vítimas da sociedade, em sua convoca-
e política: seria ção a uma total transformação da sociedade e até mesmo em sua
separação? deliberada adaptação aos símbolos e nomes revolucionários
sociais como a bandeira ou a apropriação do primeiro de maio
O final da I Guerra Mundial impôs à Alemanha, e consequeo-
como feriado nacional em 1933 (p. 121).
temente ao povo alemão, uma paz punitiva, justificada pelo
Conforme Holmes (s.d.) a Alemanha é marcada na década de
argumento de que o Estado era o único responsável pela guerra e
todas as suas consequências, denominada 'culpa de guerra', para 1920 pela alta inflação, pela ascensão do partido nacional-socialista

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e pelas tentativas dos moderados de reestruturar a economia e a embora agonizante, ainda se mantinha e juntamente como Comité de
política alemãs. Organização Olímpico alemão apresentou ao COI os detalhes da
Esse cenário de conflito é o pano de fundo do Movimento Olím- realização dos Jogos, com o projeto das reformas e construções ne-
pico da primeira metade do século XX. Berlim teria sido a sede dos cessárias para esse fim.
Jogos de 1916 não fosse a eclosão da I Guerra. Na época em que os membros do COI visitaram Barcelona (25
A Primeira Guerra Mundial marcaria a história dos Jogos Olím- de abril de 1931) o projeto de Berlim, encabeçado por Theodore
picos pela interrupção de um calendário seguido de maneira exemplar Lewald e Cari Diem, encontrava-se adiantado com o detalhamento
(a VI Olimpíada). Os Jogos de 1920 foram abrigados pela cidade de do estádio, da vila olímpica e da infra-estrutura necessária. Quando
Antuérpia, na Bélgica, alguns meses após o fim da guerra e busca- da realização da reunião para escolha da sede nenhum delegado es-
vam resgatar não apenas a periodicidade, mas outros valores que panhol se encontrava presente e havia poucos delegados das demais
haviam se perdido nos anos de conflito. Uma das razões para a esco- nações. Ao se computar os votos Berlim obteve 43 votos a seu favor,
lha dessa sede seria uma homenagem ao país arruinado depois de contra 16 dados a Barcelona e mais 80 abstenções, o que levou o
anos de guerra. Esse foi o motivo que levou a Bélgica a se recusar a COI a realizar uma nova eleição por correio. E assim, somente ern 31
convidar a Alemanha a participar oficialmente dos Jogos, cabendo ao de maio de 1931 é que os Jogos Olímpicos da XI Olimpíada foram
Comité Organizador formalizar o convite. enfim marcados para se realizar em Berlim.
Em razão disso a Áustria, Hungria, Bulgária, Polónia e Rússia, Muito embora os Jogos Olímpicos de Berlim sejam confundidos
países também atingidos pelo conflito, recusaram-se a participar do com o regime nazista é importante destacar que seu início se dá ainda
evento, marcando o primeiro boicote da história dos Jogos Olímpicos. sob a República Constitucional de Weimar. Ou seja, o início da candi-
Durante 10 anos a Alemanha foi privada de participar das com- datura de Berlim é marcado pelo esforço de um grupo de pessoas,
petições olímpicas, como uma das muitas retaliações sofridas em entre eles um judeu Theodor Lewald, que buscava elementos para
função da I Guerra Mundial. Embora distante do cenário olímpico o sustentar uma candidatura repudiada por grande parte da comunida-
desejo de participação nessa aíividade de congraçamento internacio- de olímpica. Para tanto foram levantados recursos por meio de diversas
nal não deixou de existir, reforçada por uma cultura de valorização da fontes: contribuições voluntárias e subvenção de um milhão de
atividade ginástica e esportiva disseminada entre a juventude alemã reichmarks do Ministério dos Correios, além da venda de selos espe-
(Hache, 2000). ciais, lotería nacional e o 'centavo olímpico', pequena quantia
Mesmo excluída a Alemanha voltou a postular a candidatura acrescentada ao preço dos ingressos de todos os acontecimentos
Olímpica para sediar os Jogos de 1936 juntamente com Alexandria, esportivos que ocorriam na Alemanha então. Segundo Salvador (2004),
Barcelona, Budapeste, Colónia, Dublin, Frankfurt, Helsinque, ainda em 1932 o Partido Nacional Socialista se opunha à realização
Nuremberg e Roma. Por fim restaram as candidaturas de Berlim e dos Jogos Olímpicos em Berlim por causa de seu caráter cosmopolita
Barcelona (Lunzenfichter, 2002). e alto custo, além das implicações integradoras e multirraciais. Des-
Quando em 26 de maio 1930 os membros do Congresso Olímpi- taca o historiador a visão peculiar que Hitler tinha do esporte e que
co se reuniram na Universidade de Berlim para ouvir a solicitação fica explicitada no filme Minha luta, produzido por Leni Riefenstahl,
alemã para sediar os Jogos não podiam imaginar as transformações io qual o ditador mostrava grande interesse pelo boxe e pela esgrima,
por que passaria o mundo até sua realização. A República de Weirnar? além do apoio às ideias do íurner de Friedrich Ludwig Jahn, cujo

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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Katíct Rubio

e pelas tentativas dos moderados de reestruturar a economia e a agonizante, ainda se mantinha e juntamente como Comité de
política alemãs. Organização Olímpico alemão apresentou ao COI os detalhes da
Esse cenário de conflito é o pano de fundo do Movimento Olím- realização dos Jogos, com o projeto das reformas e construções ne-
pico da primeira metade do século XX. Berlim teria sido a sede dos cessárias para esse fim.
Jogos de 1916 não fosse a eclosão da I Guerra. Na época em que os membros do COI visitaram Barcelona (25
A Primeira Guerra Mundial marcaria a história dos Jogos Olím- de abril de 1931) o projeto de Berlim, encabeçado por Theodore
picos pela interrupção de um calendário seguido de maneira exemplar Lewald e Cari Diem, encontrava-se adiantado com o deíaíhamento
(a VI Olimpíada). Os Jogos de 1920 foram abrigados pela cidade de do estádio, da vila olímpica e da infra-estrutura necessária. Quando
Antuérpia, na Bélgica, alguns meses após o fim da guerra e busca- da realização da reunião para escolha da sede nenhum delegado es-
vam resgatar não apenas a periodicidade, mas outros valores que panhol se encontrava presente e havia poucos delegados das demais
haviam se perdido nos anos de conflito. Uma das razões para a esco- nações. Ao se computar os votos Berlim obteve 43 votos a seu favor,
lha dessa sede seria uma homenagem ao país arruinado depois de contra 16 dados a Barcelona e mais 80 abstenções, o que levou o
anos de guerra. Esse foi o motivo que levou a Bélgica a se recusar a COI a realizar uma nova eleição por correio. E assim, somente em 31
convidar a Alemanha a participar oficialmente dos Jogos, cabendo ao de maio de 1931 é que os Jogos Olímpicos da XI Olimpíada foram
Comité Organizador formalizar o convite. enfim marcados para se realizar em Berlim.
Em razão disso a Áustria, Hungria, Bulgária, Polónia e Rússia, Muito embora os Jogos Olímpicos de Berlim sejam confundidos
países também atingidos pelo conflito, recusaram-se a participar do com o regime nazista é importante destacar que seu início se dá ainda
evento, marcando o primeiro boicote da história dos Jogos Olímpicos. sob a República Constitucional de Weimar. Ou seja, o início da candi-
Durante 10 anos a Alemanha foi privada de participar das com- datura de Berlim é marcado pelo esforço de um grupo de pessoas,
petições olímpicas, como uma das muitas retaliações sofridas em entre eles um judeu Theodor Lewald, que buscava elementos para
função da I Guerra Mundial. Embora distante do cenário olímpico o sustentar uma candidatura repudiada por grande parte da comunida-
desejo de participação nessa atividade de congraçamento internacio- de olímpica. Para tanto foram levantados recursos por meio de diversas
nal não deixou de existir, reforçada por uma cultura de valorização da fontes: contribuições voluntárias e subvenção de um milhão de
atividade ginástica e esportiva disseminada entre a juventude alemã reichmarks do Ministério dos Correios, além da venda de selos espe-
(Hache, 2000). ciais, loteria nacional e o 'centavo olímpico', pequena quantia
Mesmo excluída a Alemanha voltou a postular a candidatura acrescentada ao preço dos ingressos de todos os acontecimentos
Olímpica para sediar os Jogos de 1936 juntamente com Alexandria, esportivos que ocorriam na Alemanha então. Segundo Salvador (2004),
Barcelona, Budapeste, Colónia, Dublin, Frankfurt, Helsinque, ainda em 1932 o Partido Nacional Socialista se opunha à realização
Nuremberg e Roma. Por fim restaram as candidaturas de Berlim e dos Jogos Olímpicos em Berlim por causa de seu caráter cosmopolita
Barcelona (Lunzenfichter, 2002). e alto custo, além das implicações integradoras e multirraciais. Des-
Quando em 26 de maio 1930 os membros do Congresso Olímpi- taca o historiador a visão peculiar que Hitler tinha do esporte e que
co se reuniram na Universidade de Berlim para ouvir a solicitação fica explicitada no filme Minha luta, produzido por Leni Riefenstahl,
alemã para sediar os Jogos não podiam imaginar as transformações no qual o ditador mostrava grande interesse pelo boxe e pela esgrima,
por que passaria o mundo até sua realização. A República de Weimar> além do apoio às ideias do turner de Friedrich Ludwig Jahn, cujo

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Kafia Rubio

enfoque maior recaía sobre a preparação física por meio da ginástica afírrna: A Alemanha nazista podia ser execrável, mas os Jogos
com forte apelo nacionalista. Olímpicos que organizaram em Berlim, não (p. 77). Essa é uma
Apenas em janeiro de 1933, com a ascensão de Hitler ao poder dúvida que paira sobre uma grande parcela dos estudiosos dos estu-
é que essa situação se transformou. Durante três ans o Comité dos olímpicos. Seria possível, de fato, cumprir o ideal de separar
organizador enfrentara a falta de recursos em meio à depressão eco- Olimpismo com questões nacionais e políticas? Teria o Movimento
nómica, à indiferença do governo e a má vontade dos administradores Olímpico condições de não se envolver, nern se perder nas questões
de Berlim. McComb (2004 aponta) que a partir de março de 1933 cio mundo que mobilizavam exércitos e promoviam a guerra?
Hitler aceitou com entusiasmo os Jogos Olímpicos em Berlim e afir- Toda a hipocrisia e demagogia sobre sua suposta iníeração com
mou sua determinação em realizar uma edição dos Jogos que marcaria o poder da raça ariana e o desprezo para com as restantes deve ser
a história olímpica. Entendia o chanceler que os Jogos contribuiriam entendido dentro de um contexto de exacerbação da xenofobia nazis-
para favorecer os relacionamento da Alemanha com outras nações ta, de um lado, e anti-nazista de outro.
do mundo e também promoveria o esporte entre a juventude alemã. Ressalta Salvador (2004) que os Jogos Olímpicos modernos es-
tavam em perfeita sintonia com as ideias do nacionalismo alemão: o
A perfeição e nado menos do que isso resgate de valores clássicos e a mescla de espetáculo e paixão que os
A presença onipotente de Hitler em todo o processo de constru- Jogos Olímpicos conquistaram ao longo do século XX ofereciam a
ção dos Jogos de Berlim bem como a determinação de mostrar ao possibilidade de relacioná-lo com a literatura e a arte alemã mais na-
mundo a perfeição do nazismo renderam muitas teorias e análises a cionalista. Vale ressaltar que os grandes estudiosos sobre o agonismo
respeito da influência da política e da ideologia no Olimpismo e a grego, bem como as descobertas relacionadas com Olímpia e os Jo-
flexibilidade com que o Movimento Olímpico lidou historicamente com gos Olímpicos da Antiguidade eram de origem alemã.
as questões políticas e nacionais. No Congresso Olímpico de Viena, em 1934, os governantes ale-
Os Jogos Olímpicos de Berlim, do ponto de vista olímpico e es- mães se comprometeram a respeitar a Carta Olímpica e o prometido
portivo, fariam supor o exemplo mais fiel de como devem ser foi levado a cabo, conforme aponta Gaston Meyer em sua obra El
organizados os Jogos Olímpicos, independente de todo o rancor e fenómeno Olímpico. Ainda segundo esse autor, contrariando muitas
aversão que se tem contra os responsáveis, à margem da realização versões sobre o fato, Hitler não se retirara do estádio diante do triunfo
esportiva, que provocaram, naquele momento, o maior conflito arma- de Jessé Owens, nem tampouco interviu sobre a aclamação do povo
do da história da humanidade. Quando se julga uma obra de arte ou alemão ao atleta estadunidense que triunfou sobre os alemães em
um descobrimento científico, ninguém põe em dúvida os valores da diferentes provas do atletismo. Diante desse episódio e de outros mais
obra ou a descoberta científica, ninguém põe em dúvida os valores da recentes, como o boicote promovido pelas grandes potências ditas
obra ou dos benefícios que o invento pode trazer para a humanidade, guardiãs da democracia contemporânea aos Jogos de Moscou, é pos-
desligando-se dos atos alheios a ambos no que diz respeito ao autor sível afirmar que Jogos Olímpicos não são ou não foram aproveitados
ou cientista (Kruger, 1999). como forma de propaganda política?
López (1992) dirige uma dura crítica àqueles que fizeram uso A construção do projeto olímpico berlinense começou com
dessa oportunidade para ter benefícios políticos e ideológicos, fflas a observação detalhada do que foram os Jogos de Los Angeles,
não tem qualquer dúvida sobre a qualidade daquela competição. & 2m 1932. Considerados os melhores produzidos até então, com

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inovações como a Vila Olímpica e uma cerimónia de abertura Um dado a se ter em conta em todo esse processo foi a ad-
apoteótica, a realização dos Jogos de 1932 impressionaram forte- vertência que Henri Bailler-Latour, presidente do COI fez a Hitler, de
mente os alemães que retornaram a Berlim com a firme intenção de que durante os Jogos Olímpicos de Berlim o fuhrer seria um convidado
produzir tantas instalações quanto necessárias, melhores e mais im- de honra e nada mais, uma vez que os Jogos Olímpicos não pertenciam
ponentes, como a luxuosa Vila Olímpica, que depois viria a ser utilizada ao país da cidade sede, mas ao Movimento Olímpico Internacional.
como Vila Militar (Cardoso, 2000).
Os nacional socialistas desejavam a participação de todo o povo A democrático popular
alemão nas festividades olímpicas, com o firme propósito de inspirar-
Como forma de protesto contra os Jogos Olímpicos que iriam se
lhes otimismo, devoção e amor ao trabalho. Em muitos aspectos os
realizar na Alemanha, organizou-se em vários países uma série de
Jogos Olímpicos de Berlim reforçavam o ideal totalitário do nazismo.
Antijogos por vários grupos de oposição ao nazismo.
Aponta Mandell (1986) que uma exposição itinerante montada em ca-
minhões com reboques, o Olympia-Zug, percorreu mais de dez mil Em 1935 realizou-se em Tel-Aviv a Olimpíada Judaica. Duas
Olimpíadas dos Trabalhadores foram planejadas uma para a cidade
quilómetros através da Alemanha para atrair a população rural onde
de Praga e outra em Antuérpia, em 1937.
eram expostas fotografias os monumentos e obras da arte da Grécia
clássica, dos grandes atletas alemães, maquetes das instalações olímpi- Mas a competição que mais chamou atenção aconteceria em
Barcelona. Os Jogos Obreiros, como foram chamados, serviram como
cas de Berlim e de Garmisch (onde seriam realizados os Jogos Olímpicos
uma forma de protesto contra a escolha de Berlim pelo Comité Olím-
de Inverno) e projeção de curta metragens sobre o atletismo nacional.
pico Internacional. A perseguição aos judeus e aos negros já seria
Os atritos entre o chefe da nação alemã e o presidente do Co-
mité Olímpico Internacional foram constantes. Começou com a motivo suficiente para a negação dessa cidade para sediar uma edi-
tentativa de destituição do judeu Theodore Lewald da chefia do co- ção dos Jogos Olímpicos. Some-se a isso a repressão às diversas
mité organizador dos jogos, após a edição dos Decretos de Nuremberg, manifestações populares. A ideia de realizar Jogos alternativos, tendo
que declaravam ser os judeus sub-humanos. E continuou quando fo- Barcelona como sede, caminhava na direção de um movimento inter-
ram encontrados cartazes que ultrajavam as populações judias e nacional mais amplo de defesa do governo democrático e popular
negras. Hitler alegou que a Alemanha era ele quem governava. O ameaçado por um grupo liderado pelo General Fraco e apoiado por
conde Henri Bailler-Latour respondeu que no momento em que fosse Hitler. Contava com o apoio ativo do movimento sindical internacio-
hasteada a bandeira olímpica aquele território passaria a ser Olímpia nal e com o Kominíern, o órgão oficial russo de propaganda
e sob a égide do Olimpismo seria governada. Hitler concedeu, sabe- internacional. As expectativas em torno dessa edição olímpica eram gran-
dor da importância e abrangência daquele evento. Nenhuma outra des e esportistas da Europa e da América já fixavam seus planos para
máquina de divulgação era capaz de tanta publicidade quanto os Jo- comparecer a ela num gesto de protesto contra os Jogos Nazistas.
gos Olímpicos. Acorreram a Berlim aproximadamente 3 mil jornalistas. Embora tenha sido preterida como candidata, a cidade possuía a
Fosse pelo crescente interesse acerca do esporte ou por causa da estrutura necessária para a realização de evento daquela magnitude.
curiosidade com o que ocorria naqueles dias na Alemanha, os profis- Foi formado então o Comité da Olimpíada Popular de Barcelona,
sionais da imprensa realizaram uma grande cobertura do evento, sendo com Josep Antoni Trabal como seu Presidente. Mesmo com aco-
recepcionados pessoalmente por Joseph Goebbels, o responsável modações e refeições pagas na Espanha, os atletas teriam que
área de comunicação e divulgação nazista. pagar suas passagens, pois suas associações nacionais, com raras

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exceções, não se dispuseram a providenciar fundos para o encontro. realização dos Jogos da XI Olimpíada em Berlim. Mesmo com muitas
Na Inglaterra, a Amateur Athletic Association tentou, inclusive, impe- tentativas, nenhum país importante chegou a boicotar a competição.
dir que seus atletas competissem em Barcelona. Ao contrário disso, o
governo francês da Frente Popular, do socialista Leon Blum, viu com Arfe, cultura e
bons olhos os Jogos de Barcelona, doando 600 mil francos aos 1.200
Uma das ideias mais brilhantes, originais e espetaculares mate-
membros de sua delegação.
rializadas nos Jogos Olímpicos de Berlim foi o traslado da chama
Esses Jogos teriam as bases ideológicas presentes nos Jogos Ope-
Olímpica de Olímpia, na Grécia, até Berlim, levada a cabo pelo pes-
rários que eram realizados por organizações de esquerda e pelo movimento
quisador dos Estudos Olímpicos, Cari Diem.
anarquista da época, tendo como princípios a valorização da superação
No início do mês de julho de 1936, um grupo de jovens gregas,
ao invés da competição extremada; o acesso ao esporte para todos, e
vestidas conforme a tradição clássica, por meio de uma grande lupa
não apenas aos especialistas e habilidosos; o rechaço à comercialização
Zeiss acenderam uma grande fogueira no templo de Hera em Olímpia.
do esporte, entre outros. As Olimpíadas Populares, como foram chama-
O 'fogo sagrado', repassado a uma tocha, foi levado desde a Grécia
das, deveriam ser abertas no dia 19 de julho de 1936.
até Berlim por milhares de jovens que iam se revezando e percorre-
No domingo, dia 20 de julho, alguns batalhões saíram às ruas.
ram a Grécia, Bulgária, lugoslávia, Hungria, Áustria e Alemanha. Em
Milhares de pessoas aguardaram o desenrolar dos acontecimentos,
todo o írajeío foram realizados inúmeros atos e cerimónias que mobi-
que levaram o exército a se confrontar com os defensores do gover-
lizaram milhões de pessoas entre espectadores e participantes
no popular. Os Jogos foram deixados de lado e seguiram-se confrontos.
(Mandei, 1986; Salvador, 2004).
Muitos dos atletas que foram à cidade para competir em diferentes
Já no estádio olímpico a tocha foi carregada por um jovem louro
modalidades esportivas o que se viu em Barcelona foi a transforma-
ção desses atletas/operários em soldados que ajudaram a combater de olhos claros, símbolo do arianismo, que correu em direcão à pira,
pela democracia na Guerra Civil Espanhola. onde o fogo solene foi aceso. Essa pira, representando o ideal olímpi-
Nos EUA o World Labor Athletic Carnival concebeu e organi- co, ficaria acesa durante toda a competição e se apagaria ao final,
zou algumas competições. O objetivo declarado do WLAC foi estimular com uma cerimónia também espetacular. Desde então essa cerimó-
o atletismo amador, como meio vantajoso de se utilizar o tempo de nia se repete em todas as edições do Jogos Olímpicos, com o fogo
lazer dos trabalhadores (Holmes, s.d.). Não há registro de que algum sagrado sendo aceso em Olímpia e percorrendo a distância necessá-
atleta que estivesse treinando para os Jogos de Berlim voltasse suas ria até seu destino.
atenções para o Carnival. Entretanto, o tema ganhou mais publicida- Mas, nesse momento da história era o cinema que exercia verda-
de e apoio do que o normal e muitos atletas que não eram sindicalizados deiro fascínio sobre a sociedade ocidental. A imagem em ação, acrescida
participaram do encontro, por suas conotações antiolímpicos. Mais posteriormente de som, movia o imaginário ocidental na forma de drama,
de 500 atletas estiveram envolvidos nas competições. O governador comédia ou documentário e se transformava em uma das principais ma-
Herbert Lehman ofereceu um trofeu e o prefeito La Guardiã provi- nifestações da indústria cultural do século XX. Esse meio de expressão
denciou uma taça para a representação sindical vencedora. não havia sido usado, até então, de maneira tão clara para registrar das
O movimento de contestação aos Jogos de Berlim não teve maio- imagens do corpo em competição.
res consequências efetivas. Apesar de todo o trabalho, os inúmeros Em Berlim foi produzida uma obra de arte cinematográfica. A con-
comités que foram formados pelo mundo não conseguiram impedir a vite de Hitler Leni Riefenstahl produziu o filme Olympia, que assim como

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a diretora, foi por muito tempo categoricamente repudiado por aqueles do derrotado ao lado do vencedor supremo, bem como os doses e
que o associavam com o regime nazista, muito embora fosse considera- slow motion, montagens revolucionárias para a época, revelavam
do uma obra-prima, uma referência singular à perfeição física. a intensidade do esforço dos vencedores. Algumas tomadas de
Iniciado vários meses antes dos Jogos Olímpicos, com a prepa- Olympia, como o salto do trampolim, imprimem uma estética de ho-
ração e treinamento dos técnicos que se envolveriam com o registro mens voadores, também chamados de anjos.
das imagens da competição, Leni inovou o cinema em muitos aspec- Riefenstahl (apud Salvador, 2004:634) declarou: Tentei colo-
tos: a focagem e o movimento das pesadas câmeras buscavam o car-me mentalmente no lugar do corredor e sentir o que ele sentia:
registro da perfeição do movimento dos atletas, fossem eles alemães seu cansaço e esgotamento, como seus pés se apegavam ao solo
ou não. Para tanto foi preciso desenvolver filmadoras automáticas e com um último esforço de vontade tentava chegar ao estádio.
Também ouvi a música provocadora que empurra o corpo fati-
em miniatura para não atrapalhar nem a concentração, nem o movi-
gado e o induz a não render-se.
mento dos atletas. Pela primeira vez cinegrafistas alocaram-se em
Olympia serviu de modelo para as reportagens cinematográfi-
valas e torres para filmar os atletas em atuação. Câmeras flutuavam
cas dos Jogos Olímpicos de Roma em 1960 e de Tóquio em 1964,
sobre o local das competições em balões ou submergiam nas piscinas e
momento que a televisão começou a ser utilizadas para transmitir as
trilhos que corriam ao longo das pistas em busca da cena perfeita. Holmes
competições esportivas. A tomada de cenas aéreas e outras técnicas
(s.d.) aponta que apenas 10 metros de um rolo de mil metros de filme
cinematográficas aproximaram ainda mais a câmera e o espectador
foram utilizados com algumas sequências, hoje sabidas, sensacionais.
ao atleta em plena ação. Entretanto, o filme de Riefenstahl preserva-
Melo (2005) aponta que Olympia foi um marco do amadureci-
va, ao mesmo tempo em que transmitia, boa parte do potencial estético
mento da estética nazista. do esporte de suas manifestações mais espetaculares.
Conforme Beamish & Ritchie (2006), para o Fiihrer a propa-
ganda não era necessariamente um mal, mas sim uma arte. Logo,
Considerações finais
registrar todas as imagens marcantes daqueles que seriam os Jogos
da realização ariana, seria fundamental para depois distribuir ao mun- Não há dúvida de que os Jogos de Berlim foram um sucesso de
do, afirmando a superioridade dos alemães, fosse na performance organização e de público, êxito que custou 30 milhões de dólares ao
atlética, fosse na construção de equipamentos e organização do evento governo, destinados à construção de estádios, ginásios, piscinas e
esportivo, fosse pela arte manifesta por meio das imagens editadas demais instalações. Em troca o público deixou nos cofres dos
por Riefenstahl. organizadores algo em torno de 2.800.000 dólares, afirmando o que já
Depois de editado Olympia foi finalizado em quatro versões (ale- se percebera em Los Angeles quatro anos antes. Os Jogos Olímpicos
mão, inglês, francês e italiano) com seis horas de duração. Apesar desse podiam ser altamente rentáveis.
esforço o filme somente foi visto na Alemanha e Itália, como decorrência Os Jogos Olímpicos de 1936 foram cobertos por rádio e a im-
da censura dos países aliados contra as produções 'nazistas'. prensa mundiais e seus resultados adquiriram um simbolismo
Mandei (1986) e Salvador (2004) apontam que esse prodigioso: o totalitarismo e a submissão da vontade individual aos
documentário assimilava e reforçava o imaginário mítico do esporte desenhos de um Estado agressivo eram o melhor meio de afrontar
moderno que se entrelaçavam com os símbolos atléticos produzi- com êxito os conflitos bélicos que se aproximavam.
dos na Antiguidade grega, com o apelo do espetáculo esportivo da Não se sabe ao certo se os vencedores dos Jogos de 1936 tira-
sociedade industrial. A técnica de Riefenstahl ressaltava a nobreza ram vantagens políticas substanciais de seus êxitos esportivos, mas o

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que é certo é que a imagem política de Hitíer saiu reforçada no solo MANDELL, R. D. Historia cultural dei deporte. Barcelona: Ediciones
Bellaterra, 1986.
alemão mas também no exterior.
O responsável pelo financiamento deste espetáculo foi um Esta- McCOMB, D. G Sports in WorldHistory. New York and London:
Routledge, 2004.
do nacional para respaldar sua política interna e externa. Os italianos e
os japoneses, entre outros, haviam demonstrado de forma conclusiva MELO, V. A. Jogos Olímpicos e arte. Olympia. In.: V. A. Melo & F. F. Peres
(orgs) O esporte vai ao cinema. Rio de Janeiro: Senac, 2005.
que o esporte anglo-saxão, tal como havia evoluído desde a mudança
dos séculos, não era património de nenhuma cultura concreta, senão SALVADOR, J. L. El deporte em Occidente. Hitoria, cultura y política.
Madrid: Cátedra, 2004.
que, assim como a indústria moderna, se baseava inexoravelmente no
uso racional de recursos humanos e o planejamento de longo prazo. VALENTE, E. F. Notas para uma crítica do Olimpismo. In: O. Tavares & L.
O espetáculo e os símbolos olímpicos estavam, porém, em pro- P. DaCosta (eds) Estudos Olímpicos. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho,
cesso de evolução e reconhecimento. O ritual evoluiu de forma
irretocável para a apresentação dos Jogos de forma atrativa e acei-
tável. O mundo começava a conhecer uma nova máquina para
fabricar heróis.

Referências bibliográficos
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performance sport. New York & London: Routledge, 2006.
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Janeiro : Ed. Renes, s.d.
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159
o
Olímpico
Raoni Permeei Toledo Machado
Katia Rubio

Podemos dizer que, em geral, os megaeventos esportivos são


eventos de curto prazo, com duração variável de duas semanas a um
mês, mas com consequências de longo prazo para a localidade que o
abrigou. Vemos melhoras duradouras na infra-estrutura local, um im-
pacto signifícante na economia e na vida social, além de conseguir
uma exibição da cidade através da mídia, de forma que jamais conse-
guiriam de outra maneira. ZOUAIN e BARBOSA (2003) mostram
que, além disso, as exigências e vontades da construção de algo real-
mente grandioso podem, por vezes, gerar enormes gastos nas contas
publicas, se tornando mais um problema do que uma solução.
Mas de qualquer forma, seguindo qualquer tipo de critério, é
bastante cuidadosa, e por que não, cercada de mistérios, a escolha de
uma cidade para sediar urna edição de um megaevento esportivo, no
nosso caso, dos Jogos Olímpicos. Esta cidade ganhará novas e mo-
dernas instalações, centenas de milhares de espectadores, jornalistas,
atletas, dirigentes, enfim, se deslocarão até esta cidade gerando enor-
mes benefícios à economia local. As vantagens se estenderão por um
prolongado período de tempo, o turismo gerado pela veiculação de
belas imagens através da televisão aumentará, e a realização de ou-
tros grandes eventos, utilizando-se da mesma infra-estrutura, trará
resultados bastante parecidos. Os que se enquadram nessa situação
são por TAVARES (2005), denominados de "Os vencedores dos Jo-
gos Olímpicos".
Perrucci Toledo Machado - Katia Rubio
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte
"Esporte tem o poder de mudar o mundo, o poder de inspirar, o
A solução para os problemas urbanos, através de reformas ou poder de unir as pessoas em um sentido em que poucos conse-
até reconstrução de ampla parte da cidade escolhida, é hoje uma das guem. Fala com as pessoas em uma linguagem que elas entendem.
exigências mais fortes por parte do Comité Olímpico Internacional, O esporte cria esperança onde ela parecia estar desaparecida.
Quebra barreiras raciais, passa por cima de quaisquer tipos de
sendo este legado uma das principais recompensas para todos os
discriminação, dando esperança ao mundo" (PARJRY. 2007).
seus cidadãos. E de fato é isso que podemos ver nas propostas das
próximas duas cidades a realizar uma edição dos Jogos. O principal O esporte é, sem duvida, de longe o maior evento de pacifica-
conceito usado para a promoção dos jogos de 2008 pelo seu Comité ção do mundo, se tornando símbolo único de cooperação internacional.
organizador é "New Beijing, Great Olympics" nos dando uma ideia No entanto, quantas vezes ouvimos frases, quando estamos no auge
de reconstrução, de uma coisa nova, e ainda no primeiro parágrafo do nervosismo ou da ansiedade do que podemos chamar aqui de "Ten-
de sua proposta, prometem um legado único para a China e para o são Pré-Resultado Final Esportivo", do tipo: "isso é apenas um jogo",
mundo dos esportes (BOCOG, 2007). Associado a isso, e dentro do "isso não é questão de vida ou morte", ou até: "pára com isso,
que foi acima citado, ainda completam em sua proposta o respeito jogos são para criança...". É claro que os jogos, esportivos no nos-
aos cinco mil anos de historia da China assim como aos seus diversos so caso, frequentemente tomam um significado muito mais sério do
grupos étnicos, e principalmente, a promessa de uma "Olimpíada ver- que eles em sua essência deveriam tomar. Segundo o Prof.
de", ou seja, ecologicamente correta, estando dentro da tendência KRETCHMAR (2007), eles são apenas convenções, são problemas
mundial de conscieníização à proteção do meio ambiente. Vancou- artificiais criados pelas suas próprias regras, de forma a torná-los
ver, futura sede dos Jogos Olímpicos de Inverno em 2010, teve sua problemas ideais, caso contrário, podemos mudar essas regras até
escolha baseada em um projeto relativamente simples, mas apostan- estarmos totalmente satisfeitos.
do exclusivamente no crescimento da cidade através das O esporte como conhecemos hoje, e podemos falar também
oportunidades económicas que os jogos trarão, ao mesmo tempo em em relação ao movimento Olímpico, já possuem mais de 100 anos,
que tentará fazer com que sua própria grandeza não prejudique os suas estruturas datam do século 19. O Comité Olímpico Internacio-
direitos civis de seus cidadãos (VANOC, 2007). nal foi criado em 1894, possui sua base na Suíça e representa seu
Essa é outra tendência do movimento olímpico moderno, fazer trabalho por todo o globo, é bem verdade que o mundo mudou bastan-
ao máximo com que os Jogos sejam inerentes à cultura local. Para te desde então, e o esporte caminhou ainda mais rápido. Além do
ilustrar o pensamento, vemos uma das determinações para a constru- notório gigantismo, vemos problemas de corrupção e violência, que
ção de um estádio, a qual diz que este, por maior que seja, deve estar infelizmente não são exclusividade, e temos também o aparecimento
em harmonia com a natureza e com a cidade a sua volta, outro exem- do doping. se tornando sério problema ético. O aparecimento da
plo é a utilização das dependências da Vila Olímpica como moradia Agência Internacional Antidoping (WADA) e da Corte de Arbitra-
popular após a realização dos Jogos, não se tornando um problema de gem Esportiva (CAS) simboliza bem essa mudança (CHAPPELET,
espaço para a cidade escolhida. 2007). Hoje, o COI conta com a participação de 205 comités olímpi-
Qual a mágica? O que faz do esporte algo tão grandioso, tão cos nacionais, junto aos quais procura, segundo seu Sexto Principio
chamativo, o que dá a ele poder de gerar significativas mudanças nas Fundamental, promover o Movimento Olímpico, e acima de tudo, con-
estruturas de uma sociedade? tribuir para a construção pacifica de um mundo melhor através da
Nelson Mandela certa vez disse,
163
162
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Rooni Permeei Toledo Machado - K c í iço Rubio

educação dos jovens pelo esporte, tornando-o um serviço para a mum ouvirmos as famosas frases "Citius, Altius, Fortius" ou
sociedade. Portanto, a proteção e o desenvolvimento do movimento "£> importante não é vencer, mas participar", ambas relacionadas
olímpico é uma das principais missões desta entidade, assim como -a competição e atribuídas a Coubertin - que na verdade não é o
propagar os princípios fundamentais do Olimpismo em programas autor de nenhuma delas: seus pensamentos eram voltados principal-
escolares de educação física e esporte em escolas e universidades ciente para a educação dos jovens, não a competição. MÃES (2007)
além de incentivar a criação de instituições que seguem os modelos relata que, durante o Congresso Mundial do Esporte de 1894, os Jo-
da Educação Olímpica (Carta Olímpica, capítulo IV, Missão e Papel gos Olímpicos oficialmente renasceram, e ao mesmo tempo, uma guerra
dos Comités Olímpicos Nacionais, 2004). foi declarada ao desporto escolar. Não vou me aprofundar nesse as-
Neste ponto, vemos o aparecimento de outro conceito, o do sunto, pois não cabe aqui esta discussão; o ponto central era que
Olimpismo. Está na Carta Olímpica (IOC, 2004) o Primeiro Principio acima de tudo o esporte tinha que ter uma dimensão ética, e era essa
Fundamental do Olimpismo: a verdadeira preocupação de Coubertin. Mais de um século se pas-
"Filosofia de vida que exalta e combina em equilíbrio as quali- sou e ainda estamos tentando procurar onde realmente se encontra a
dades do corpo, espírito e mente. Ao associar esporte com cultura verdadeira ética no esporte.
e educação, o Olimpismo se propõe a criar um estilo de vida Naquela época, talvez não fosse correio procurar a vitória a
baseado na alegria do esforço, o valor educativo do bom exem- qualquer custo, mas hoje em dia, a busca desenfreada pela vitória no
plo e o respeito pelos princípios éticos fundamentais universais."
campo esportivo apenas reflete o que acontece na vida real, não ape-
Esse princípio, idealizado em fins do século XIX d.C., era per- nas no esporte. A questão passa a ser de como vencemos.
feitamente justificado pelo momento em que foi criado, onde o esporte Este ponto parece ser um bom momento para retrocedermos ao
era praticado principalmente como estratégia de controle do tempo passado, mais precisamente à época da Grécia Antiga.
livre, ganhando grande importância como conteúdo de formação es- Por volta dos séculos IV e V a.C. existiam cerca de 400 a 500
colar (ELIAS & DUNNING, 1995; HUARD & WONG, 1990). No festivais esportivos locais espalhados por todo o mundo de língua gre-
entanto, independentemente de qualquer período histórico, as carac- ga, quase qualquer cidadão podia tomar parte das competições. No
terísticas fundamentais do esporte são as mesmas, por mais distintas início, apenas a elite social participava e temos pouquíssimos regis-
que sejam as manifestações socioculturais de seu tempo. Vejamos tros de atletas não pertencentes a essa elite que alcançaram algum
por exemplo o slogan criado para os Jogos Olímpicos de Beijing em sucesso, pois o próprio contexto da sociedade não permitia que eles
2008, "One World, One Dream". Na própria página da internet dos realmente triunfassem. WEILER (2007) nos mostra que mesmo em
organizadores podemos ver seus significados - "One World, One Homero isso acontecia, pois vemos tanto na Ilíada quanto na Odis-
Dream" reflete na totalidade a essência e os valores universais do seia os participantes das competições sendo membros da aristocracia.
Espírito Olímpico: União, Amizade, Progresso, Harmonia, Participa- As razões podem ser muitas, mas podemos ser simplistas e acreditar
ção e Sonho (BOCOG, 2007). Esse slogan, como foi citado, é para <}ue eles, por viverem em condições financeiras favoráveis, conse-
os Jogos de 2008, mas poderiam com naturalidade ser aplicados aos guiam sobreviver sem ter que trabalhar, sobrando mais tempo para os
Jogos de Atenas, em 1896, como da mesma forma, caso existisse Reinos, ou até mesmo atribuir o desenvolvimento das habilidades atlé-
esta necessidade, a qualquer edição dos Jogos na Antiguidade. como frutos diretos dos programas de educação, como a
Os Jogos Olímpicos, portanto, são apenas a ponta do iceberg éia. Píndaro vai um pouco mais longe, e acredita no protótipo do
dentro do amplo conjunto do movimento Olímpico; é muito co-
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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte
laoni Perrucd Toledo Machado - Katia Rubio
atleta como aquele que além de belo de corpo é bom de espírito
Hércules é um bom exemplo: a representação de seus trabalhos no
atingindo a excelência física e moral, o que reconhecemos sendo o
templo de Zeus, em Olímpia, com um corpo harmonioso e expressão
princípio do Kalos kai Agathos (bom e belo), presente em todas as
indicando um espírito igualmente belo, davam prova constante das
almas dos principais heróis daquele tempo.
intenções daqueles jogos (PALEOLOGOS, 1982).
Por ser a raça dos heróis a mais bela e justa, e a que mais se
Os ideais olímpicos, segundo GEORGIADIS (2007) não são di-
assemelha aos deuses, mesmo possuindo uma condição humana, foi
ferentes, pois expressam a essência do esporte como um elemento
para os helenos, desde a Antiguidade, a mais admirada por sua bravura
educativo, procurando criar um homem saudável e virtuoso da me-
e perspicácia. Foram revelados em tempos de guerra e de grandes
lhor maneira possível, seguindo a mesma linha do Kalos k'Agathos,
dificuldades. Posteriormente seu surgimento passou a estar vinculado
à imagem dos vencedores em Olímpia.
com os eventos atléticos e mesmo com o passar do tempo, permane-
Hesíodo, no século oitavo antes de Cristo, teve a percepção de
ceu sustentando o imaginário de atletas e espectadores.
olhar para os heróis como seres diferenciados, e decidiu por criar
O herói toma-se, então, frequentemente honrado pela comuni-
uma classe exclusiva para eles. Quase 3 mil anos depois. Academia
dade em virtude de seus feitos, é lembrado através de contos populares,
Olímpica Internacional teve a mesma percepção, atribuindo seme-
representado sob o ponto de vista moral ou físico, dependendo do
lhante característica aos modernos olimpiônicos. MÃES (2007)
objetivo. É, portanto, segundo CAMPBELL (1990), alguém que en-
acredita que os medalhistas olímpicos podem, diante desse novo
controu ou realizou algo excepcional, que ultrapassou as esferas de
status, se tornar importante ferramenta para a promoção e divulga-
sua própria realidade.
ção dos valores olímpicos, especialmente para os jovens.
Dessa forma, ele se preserva, muitas vezes associado a um sen-
O mesmo autor diz que como resultado da crescente cobertura
timento de sagrado, se opondo ao racional e melhor se expressando
da mídia no mundo esportivo, as crianças de hoje podem descobrir
através do afetivo. A ligação com o herói pode se dar no relaciona-
diferentes modalidades esportivas e junto com elas novos atletas que
mento de valores, na identificação do "eu" interior com o mundo
praticam tais modalidades. Os quartos de muitas delas estarão deco-
exterior, fazendo com que o indivíduo, longe do campo de batalha ou
rados com fotografias e outros artefatos que associarão sua própria
do ambiente esportivo, sinta-se unido àquele que lhe é admirado, sa-
imagem àquele a quem ele deseja ser identificado. Além de admirar
tisfazendo a necessidade condicionada de evitar o isolamento e a
seus ídolos, essas crianças desejam demonstrar a mesma dedicação,
solidão moral (FROMM, 1977).
o mesmo comportamento.
Na prática esportiva essa representação se amplifica por
Recente estudo europeu1, citado por PARASKEVI (2007), rea-
viabilizar a representação da possibilidade do vir a ser. RUBIO (2001)
lizado entre estudantes do primário e secundário, se propôs a revelar
diz que atletas já consagrados tiveram que, inevitavelmente, percor-
as razões por que uma criança admira um medalhista olímpico. A
rer um caminho comum e, assim como os heróis da Antiguidade,
mais importante foi que eles os consideravam um bom atleta. Outras
realizaram feitos em um determinado momento que os elevaram a
razões mencionadas foram: ele é um bom indivíduo, é um orgulho
um nível acima dos outros, tornando-se exemplos para os mais jovens
nacional ou possui um bomyâ/r play. Foi também perguntado sobre
e objetos de admiração para os mais velhos, alcançando muitas vezes
a posição de ídolo nacional. 1
Telama, R.; Naul, R.; Nupponen, H.; Rychtecky, A.; Vuolle, P.
Physical Fítness, Sporting Lifestyles, and Olympic Ideais: Studies on Youth Sport in
Europe. Schorndorf, Hofman, 2002.
166
167
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Saoni Permeei Toledo Machado - Katia Rubio

as razões para desgostar de um medalhista olímpico e as respostas sua longa carreira de atleta profissional viveu em uma grande família
foram em tomo do mau comportamento em público, o uso de doping, multicultural, existiam atletas de todos os continentes treinando e
e possuir um temperamento desonesto. Quando perguntados se eles competindo conjuntamente, e que isso jamais se tomou um problema
gostariam de ser um medalhistas, eles disseram que sim, pela diver- nem para ele e nem para os outros. Ele respeitava, mesmo sem sa-
são da competição, mas também por fatores económicos e pela glória. ber, os Princípios Fundamentais do Olimpismo, e de certa maneira
Os atletas, portanto, vistos como heróis, são frutos diretos da seguia as recomendações das Nações Unidas, de Tolerância, Igual-
grandiosidade dos próprios Jogos Olímpicos, se tornam heróis da noi- dade, Fair Play e Paz. E por fim, ele mesmo conclui que os grandes
te para o dia e muitas vezes não estão preparados para serem o eventos esportivos, como os Jogos Olímpicos, podem ser um
exemplo. Para tanto, entre os dias 25 e 30 de julho de 2007, foi reali- incentivador para a formação do ser humano.
zada a 1a Sessão Internacional para Medalhistas Olímpicos organizada Portanto, podemos notar que além da grande preocupação do
pela Academia Olímpica Internacional (AOI) em sua sede, na Grécia, Comité Olímpico Internacional com o património físico que os Jogos
tendo como principal foco mostrar a importância que eles mesmos, Olímpicos podem ocasionar, podemos notar que é crescente o reco-
os atletas, possuem na educação dos jovens de seus respectivos pa- nhecimento dos atletas como principal legado, se tornando importante
íses. Ao programar e desenvolver temas que possuem relação direta ferramenta para a propagação do ideal Olímpico.
com a representaíividade que os atletas ganharam após um triunfo
olímpico, mostra se cada vez mais forte a necessidade de este estar Referências bibliográficas
preparado para enfrentar esta nova realidade.
BOCOG, Beijing Organization Committee ofthe Olympíc Games —
Para tanto, torna-se necessário expor o valor dos atletas para a
www.beijing2008.com, 2007.
sociedade tanto na Antiguidade como no período moderno, assim como
CAMPBELL, J. Opoder do mito. São Paulo: Palas-Athenas, 1990.
diferentes programas de educação pelo esporte realizado nesses dois
períodos. Associado a isso, os efeitos negativos que um atleta flagrado CHAPPELET, J. L. The New Olympic System.
no exame antidoping pode ocasionar mancham os ideais propostos ELIAS, N.; DUNNING, E. Deporte y ócio en el processo de Ia
pela Carta Olímpica. O caso Ben Johnson foi um choque para o civilización. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.
público, deixou no ar a pergunta de que "será que eles não são FROMM, E. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
super-heróis?", e acabou confirmando o que muitos suspeitavam GEORGIADIS, K. The OlympicEducationPmgrammeofATHOC2004
por muito tempo. Torna-se, portanto, importante aos atletas conhece- and the Hellenic Ministry of Education. International Olympic Academy,
rem a magnitude não só da punição, mas também do simples fato de 1a International Session for Olympic Medallists, Ancient Olympia, 2007.
serem flagrados, assim como por outro lado, conhecer os efeitos po- HUARD, P.; WONG, L. Cuidados e técnicas do corpo na China, no
sitivos que ações sociais realizadas pouco tempo depois da conquista Japão e na índia. São Paulo: Summus, 1990.
da medalha olímpica podem gerar. IOC. The Olympic Charter. Lausanne, 2004.
O discurso proferido nesta sessão pelo marroquino Hichan El KRETCHMAR,S.
Guerrouj, duas medalhas de ouro em Atenas 2004, nos 5000 e 1500
MÃES, M. The Educational and Social Role ofthe Olympic Movement.
metros do atletismo, ilustra bem o quanto as experiências dos atletas Jnternational Olympic Academy, l st International Session for Olympic
podem ajudar na educação das gerações mais novas. Diz ele que stí1 lists, Ancient Olympia, 2007.

168 169
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

PALEOLOGOS, K. Hércules, the Ideal Olympic Personality. Proceedings de


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PARASKEVI, L. Training Workshopfor Olympic Medallists on the
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International Session for Olympic Medallists, Ancient Olympia, 2007.
PARRY, J. Heroes and Villains: doped athletes and their impact on
society and education. International OlympicAcademy, 1a International
Session for Olympic Medallists, Ancient Olympia, 2007.
RUBIO, K. O atleta e o mito do herói. São Paulo: Casa do Psicólogo.
2001.
TAVARES, O. Quem são os vencedores e os perdedores dos Jogos
Olímpicos? Pensar a Prática. V.8, n. l, p.69-84,2005. Resumo
VANOC, Vancouver Organization Committee —
O fato de os Jogos Olímpicos serem urn ícone de referência por
www.vancouver2010.com, 2007.
serem um espaço de sentido na concretização do sonho de heroicização
WEILER, I. Some Thougths on the Social Status and Geographic
do homem permite que se compreenda como eles se mostram como
Background ofthe Athletes at Ancient Olympia. International Olympic
Academy, 1a International Session for Olympic Medallists, Ancient um apelo catalisador de grande público nas cidades em que se reali-
Olympia, 2007. zam. Este artigo discute como a imagem consagrada dos Jogos
ZOUAIN, D. M.; BARBOSA, L. G. M. Os jogos Pan Americanos Rio 2007 associada à imagem de sua cidade-sede conquista a fusão perfeita
- Em busca de uma estratégia para a maximização dos benefícios capaz de transformá-la em uma referência das Olimpíadas.
turísticos. Anais Sport Congress, 2003. Palavras chaves: Jogos Olímpicos, mídia, turismo, cidade-sede,
fusão de imagens.

Abstraet
Taking into account tfaat Olympic Games are undoubtly a cone
of reference and a site of sense which makes true men's dream of

1
O recorte que analisa os Jogos Olímpicos como uma marca de apelo turístico que é
constitutivo desta reflexão foi apresentado no V Fórum Olímpico, realizado pela
Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, em Tutoriais, no dia
24 de junho de 2004.
1
Bacharel em Educação Física. Pedagogo, Mestre e Doutor em Ciências da
Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo,
Assistente de Direção e professor do Centro de Práticas Esportivas da Universidade
São Paulo. Professor Titular dos cursos de Propaganda e Marketing e Comunicação
Social da Universidade Paulista, Professor Convidado do curso de Pós-graduação
Lato Sensu em Língua Inglesa e Tradução da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
da Universidade Paulista, nas disciplinas de Cultura e Linguagem e Análise de Discurso.

170
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Páscoa! Lui: Tambucd

heroicization, it can be easily understood that the games becarne an imagem desse particular evento na sua relação com a cidade na qual
appeal to large audience in the host cities in which they are held. This ele se realiza. Para tanto, concentra-se nas três últimas edições do
paper discusses faow the sacred image of the Olympic Games século XX - Barcelona 1992, Aílanta 1996 e Sydney 2000.
associated to the image of the host ciíy can bridge the perfect fiision
of image which transforms the host city into a reference of the A olímpicos
Olympics.
Considerando-se a imagem dos Jogos como um sustentáculo
Key-words: Olympic Games, media, tourism, host city, fiision
fundamental para que eles tenham-se tornado um ícone de apelo uni-
of image.
versal, é necessário que se compreenda como se constrói a imagem
das Olimpíadas desde a Antiguidade.
introdução
Segundo CABRAL (2004), o início dos Jogos ficou perdido na
Um megaevento esportivo como os Jogos Olímpicos transfor- pré-história é associado a competições entre deuses e heróis que,
ma a cidade na qual se realiza em uma referência das Olimpíadas segundo a tradição antiga, foram os primeiros a competir em Olímpia,
pelo fato de ser pautado por uma retórica imagética que ecoa na permanecendo como modelo para os mortais. Os Jogos eram realiza-
memória e no imaginário do homem. dos com fins religiosos que tinham como objetivo reverenciar deuses
Entende-se que a projeção da imagem da cidade-sede associa- e heróis do passado.
da à imagem do evento conquiste benefícios significativos porque a "Nos tempos históricos as principais modalidades de competi-
imagem consagrada dos Jogos confere à sua cidade-sede um dife- ções em Olímpia baseavam-se nos jogos míticos, que constituíam
rencial importante. A fusão de imagens que se estabelece instaura seus modelos heróico-divino. Tornar o homem semelhante aos deu-
uma imagem mitificada para a cidade, no que se refere à sua identi- ses e heróis era a principal missão do santuário de Olímpia, bem
como a de outros santuários helénicos. A tarefa espiritual dos jo-
dade tanto em nível nacional como internacional.
gos era ensinar que somente com a disputa o homem consegue se
A importância dos Jogos Olímpicos para a sua cidade-sede é con- libertar da 'vida bestial' e desenvolver os inesgotáveis poderes e
firmada por MORÁGAS SPÀ, RIVENBURG & LARSON (1995) virtudes físicos e mentais que a natureza lhe concedeu, tornando-
que afirmam que a cidade na qual os Jogos Olímpicos se realizam tem se verdadeiramente livre" (2004:82).
uma oportunidade única de se projetar no mundo em um só momento.
No período da realização dos Jogos, as guerras eram suspensas,
Segundo FRENCH (1997), há quatro benefícios principais que o que deu origem ao armistício, termo em língua helénica que signifi-
a realização dos Jogos pode trazer à cidade na qual se realizam: o
ca literalmente "aperto de mão". Uma vez instituído o armistício, as
primeiro é o legado da infra-estrutura construída para a realização do
cidades enviavam seus atletas para as Olimpíadas em segurança.
evento; o segundo é o estímulo económico em curto prazo para novas
Entende-se que esse aspecto conferiu aos Jogos um importante valor
construções e novos investimentos e visitantes; o terceiro é a grande
atrelado à paz.
visibilidade e oportunidade de marketing catalisadora de negócios e
Para os helenos antigos, a vitória em Olímpia representava um
promotora de turismo; o quarto e o mais difícil de ser atingido é re-
verdadeiro favor dos deuses. A premiação era o momento culmi-
desenvolvimento urbano (p:2).
nante na vida dos vencedores, porque se traduzia como o bem maior,
Desse modo, considerando a imagem dos Jogos Olímpicos e
a mais alta honra a qual um mortal podia aspirar. O vencedor recebia
sua repercussão, este artigo tem como objetivo discutir o potencial da
uma coroa de louros e seu nome permaneceria nos lábios de todos
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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporle Luiz Tambucci

até mesmo após sua morte. Era recebido em sua cidade como um Olímpico Internacional foi constituído e definiu a retomada dos Jo-
deus, cercado de glória e aclamação, desfrutava de muitas vanta- gos. Os primeiros Jogos da Era Moderna foram realizados em Atenas
gens e privilégios, chegava a ser dispensado do pagamento de em 18964.
impostos e passava a ter cadeira cativa em cerimónias importantes. Na atualidade, apesar de os Jogos focalizarem primordialmente
A vitória lhe garantia o direito de ter uma estátua erguida na sagra- o esporte, o rito que os legitima se serve de muitos dos elementos
da Altis3. Na estátua, em sua homenagem, para perpetuar seu feito, simbólicos que os consagraram há quase 30 séculos, na medida em
escreviam o seu nome, o de seus pais, o de sua cidade e muitas que o simbólico da Antiguidade, sobretudo o da Grécia, exerce um
vezes o da modalidade esportiva na qual ele havia sido proclamado certo fascínio no homem moderno.
vencedor (CABRAL, 2004). A imagem mitificada do atleta que o apresenta como herói e
Essa espécie de endeusamento do esportista vencedor configu- semideus se mantém na modernidade. Observa-se uma espécie de
rava-se porque "muitos deuses eram considerados modelos de força veneração pela figura de esportistas pelo fato de eles se destacarem
e beleza e os grandes atletas eram glorificados como heróis popula- em suas respectivas modalidades, conquistarem o pódio e, conse-
res, verdadeiros semideuses" (RAMOS, 1982:86). Para o autor, os quentemente, se tornarem alvos de atenções.
exercícios físicos remetiam ao "espírito imaginativo do grego e ao O esportista, cujo desempenho leva ao pódio e transforma
sobrenatural", imiscuindo-se em aspectos religiosos de forma sim- em herói, tem a capacidade de humanizar o esporte, na medida
ples, favorecendo o endeusamento. em que faz com que uma determinada modalidade esportiva se
A magia que cerca os Jogos Olímpicos pode ser ainda atribuída transforme em um momento de superação e, consequentemente, em
ao fato de eles representarem um legado da humanidade. O marco um espetáculo.
oficial da celebração dos Jogos da Antiguidade deu-se no ano de 776 O espectador identifica-se com o esportista heroicizado pela
a.C. De acordo com os registros oficiais, a celebração dos Jogos superação que a prática do esporte lhe permite. A identificação projetiva
Olímpicos durou até o ano de 394 depois de Cristo, quando, por ques- permite ao espectador viver, na imagem do esportista vencedor, a
tões religiosas, foi banida pelo Imperador Teodósio, de Roma, durante fantasia de realização do sonho da fama, glória e poder que é ineren-
a dominação romana. te ao próprio homem.
A celebração dos Jogos ficou adormecida por quinze séculos. O esporte pode ser entendido como o lugar do possível, porque
Deve-se o seu renascimento, já na Era Moderna, ao trabalho do instaura sentidos capazes de levar o sujeito a abandonar a apatia,
pedagogo e esportista francês Barão Pierre de Coubertin - Secretario pela catarse da emoção. Isso permite ao sujeito se perceber ativo,
Geral da União de Sociedades Francesas de Esportes Atléticos. Dis- uma vez que, no imaginário, o esporte se reveste de vida na mais pura
posto a reformar o sistema educacional da França, Pierre de Coubertin acepção do termo (TAMBUCCI, 2000).
viu no esporte, sobretudo nos ideais olímpicos gregos, uma fonte "O esporte é a afirmação triunfal da juventude e da sua lei, que
de inspiração para o aperfeiçoamento do ser humano. Graças à é viver com uma prodigalidade louca, renovando a cada prova decisi-
dedicação e ao empenho de Coubertin, em junho de 1894, o Comité va a lenda da Fénix, símbolo, ao mesmo tempo, do ato criador e do
3
Altís, o santuário de Olímpia, "(•••) separado do restante da área por um muro que °
esforço do atleta procurando superar-se" (MAGNANE, 1969:93).
circundava. No seu interior estavam os templos e as construções ligadas ao culto, e, do
lado de fora. encontravam-se as construções auxiliares, as hospedarias para atletas, o Toda una vida ai servido de una idea In: Veen a descubrir el Museo Olímpico, Comité
ginásio, a palestra, etc" (CABRAL, 2004:40). Olímpico Internacional, 1994. p. 76-77, Lousane, CEGE Creaciones Gráficas S.A.

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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do isporte Poscoal Luiz Tambucci

Considerando-se que a imagem consagrada do esporte se cons- Segundo PAYNE (2000), por um determinado número de me-
trói no imaginário e na memória do homem através dos tempos pelos ses, a cada quatro anos, o Planeta vive e respira os Jogos Olímpicos
sentidos de perseverança, coragem, força, fé e poder, pode-se com- que permitem aos seres humanos partilhar as mesmas emoções e da
preender o esporte como um espaço de sentido. Os Jogos Olímpicos, mesma alegria a um só tempo. Para o especialista, se existe uma
portanto, têm uma representação simbólica fundamental para o ho- celebração de magnitude mundial em tempos de globalização, essa
mem, na medida em que se revelam como um lugar de heroicização. celebração é representada pelos Jogos Olímpicos; se existe um lugar
A imagem olímpica é a essência do modo como o público perce- capaz de simbolizar amizade e fraternidade entre os membros da
be os Jogos Olímpicos em todo mundo5.0 Movimento Olímpico e os raça humana, esse lugar é nos Jogos7.
Jogos demonstram possuir uma imagem duradoura e valiosa, como O fato de os Jogos provocarem emoção faz com que as pessoas
fiquem mais propensas a aceitar as ideias associadas a eles, porque a
pode ser resumido nos seguintes aspectos:
"Esperança: os Jogos Olímpicos oferecem a esperança emoção, segundo FERRES (1998), condiciona a liberdade, ofusca a
de um mundo melhor por usarem a competição esportiva razão e atua sobre o inconsciente.
para todos sem qualquer discriminação, tornando-se um O marketing esportivo trabalha a imagem consagrada dos Jogos
exemplo e uma lição. com rara propriedade, atuando sobre a necessidade de o sujeito se
Sonhos e Inspiração: os Jogos Olímpicos propiciam a ins- projetar em figuras heroicizadas, de maneira a vislumbrar a
piração para que o homem conquiste seus sonhos pessoais concretização de seus sonhos e a buscar louvações, reconhecimento,
por intermédio da lição de luta, sacrifício e determinação poder, fama - pódio - enfim (TAMBUCCI, 2000).
dos atletas. Essas considerações são corroboradas por FERRES (1998),
Amizade e Justiça: Os Jogos Olímpicos dão um exemplo quando o autor afirma que, ao adotar a imagem do herói no qual se
tangível de como a humanidade pode superar preconceitos projeta, o sujeito "age muito menos do que pensa movido por suas
políticos, económicos, religiosos e raciais através do valor convicções, ideias e princípios, e muito mais do que pensa movido por
herdado do esporte. seus sentimentos, desejos e temores" (p. 18).
Alegria e Esforço: Os Jogos Olímpicos celebram a ale- Pode-se entender, portanto, que a magia significada na imagem
gria universal pela doação plena independentemente dos dos Jogos Olímpicos os transforma em um ícone capaz de promover
resultados" (tradução do autor deste artigo)6. e difundir o esporte e as imagens a ele associado.
A retórica imagéíica que circula os Jogos Olímpicos da
A imagem olímpica é, portanto, uma força catalisadora de pai- modernidade está atrelada à imagem mitificada dos Jogos que se
xão e deslumbramento para aqueles que a vivem mais intimamente e consolida desde a sua fundação na Grécia Antiga, o que faz com que
para aqueles que a admiram ainda que a distância. o evento tenha um importante apelo em diferentes culturas.

5
Projetos de pesquisas contínuos globais desenvolvidos pelo Comité Olímpico
Internacional, com o objetivo de identificar e definir a imagem olímpica - wvvw.
Olympic org. Internacional Olympic Committee - Marketingfact File - chapter eme,
p.1.9. J ' Michel Payne, díretor de marketing do Comité Olímpico Internacional no ano 2000.
6 -i
Idem.

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Poscoal Luiz Tambucd
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia da Esporte

principais atores na indústria da comunicação ". Para os autores, tra-


Jogos Olímpicos na ta-se de "uma reunião sem precedentes de cooperação e troca
Uma reflexão sobre a projeção da imagem da cidade-sede as- intercultural" (p.241).
sociada à imagem dos Jogos tem de considerar que a cobertura A ampla visibilidade que a cidade-sede conquista com a realiza-
dada aos Jogos não se atém apenas à sua realização. Momentos ção dos Jogos antes, durante e após o evento seria, portanto, inviável
anteriores e posteriores ao evento constituem-se em campanhas de se não tivesse como motivo principal os Jogos. Quando se pensa o
divulgação amplamente trabalhadas na mídia local e internacional potencial dos Jogos na projeção da sua cidade-sede, é preciso que se
concomitantemente, com um apelo muito significativo na captação considere que a sua realização permite que a imagem da cidade seja
de uma audiência global. prestigiada pelo marketing esportivo do evento necessariamente, na
A audiência virtual desse particular mega-evento esportivo cons- medida em que a divulgação do evento é constituída pela imagem da
titui uma espécie de torcida universal desde 1936, quando então, pela cidade na qual se realiza.
primeira vez, foram transmitidas 138 horas de um filme sobre os Jo- O marketing esportivo dos Jogos Olímpicos concentra sua atuação
gos, atingindo uma audiência de 162 mil pessoas8. na imagem dos Jogos que deve ser entendida como seu produto central.
Na ótica de Paul Shugart9, citado por SCHOFIELD (1998), os Por outro lado, o markeíing da cidade organiza-se ao redor da imagem da
Jogos são, indiscutivelmente, o evento mais assistido no mundo, no cidade e seus ícones que passam a ser o seu produto central.
momento que a audiência de televisão de muitos esportes profissio- A associação da imagem dos Jogos à da sua cidade-sede pode
nais está em queda. conquistar a fusão perfeita capaz de refletir os valores dos Jogos na
Para ROTHENBUHLER (1988 e 1989), os Jogos Olímpicos imagem da cidade onde eles se realizam, conferindo à cidade uma ima-
podem ser entendidos como uma experiência mais social que outros gem mitificada e capaz de exercer forte apelo junto ao público em geral.
eventos esportivos televisionados, porque sua audiência é mais pro- Quando se pensa a imagem mitificada da cidade em função da
pensa a assistir à cobertura na companhia de amigos e familiares, sua associação à imagem dos Jogos, é necessário que se considere
conversando, comendo e bebendo, como se houvesse uma celebra- que as cerimónias constitutivas do evento têm grande importância
ção a ser partilhada. O autor sugere que os Jogos Olímpicos nesse processo de mitificação, na medida em que elas retomam os
assemelham-se a uma experiência religiosa. rituais que marcam a tradição dos Jogos desde a Antiguidade.
Esse aspecto é corroborado por DAYAN & KATZ (1992). quan- Ao considerar a relevância das cerimónias para os Jogos Olím-
do os autores se referem aos Jogos como "high holidays" of television, picos, Coubertin (1910:41) foi pontual ao enfatizar que, por intermédio
distinguished by its timing, consequences, rituais, and religious das cerimónias, os jogos se distinguem de uma série de meros cam-
undertones" (p: 53). peonatos mundiais".
MORÁGAS SPÀ, RIVENBURG & LARSON (1995) consi- Na análise que MacALOON10 (1995) apresenta sobre as ceri-
deram que "os Jogos Olímpicos são um evento capaz de transformar mónias dos Jogos, evidencia-se a importância que esses rituais têm
a cidade em um laboratório tecnológico e em um show para seus para o evento em si e para a cidade na qual eles se realizam. O autor
é enfático ao afirmar que nenhum outro evento olímpico ou cultural,
8
Marketing Matters, 100 Years of Olympic Movement/ 100 Years of the OlymP' c
Marketing, Summer 1994. Issue n" 5, publicado pelo Departamento de Marketing "0
Comité Internacional Olímpico de Lausane. Suíça. MacLoon
9
Paul Shugart, diretor executivo de marketing da Associação Olimpica Canadense-
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nenhum outro festival esportivo, atuação artística, igreja, movirne O mesmo autor considera que a cerimónia de Abertura seja a
ou organização política, incluindo as Nações Unidas, de faio, naci -piais emblemática das duas", porque ela apresenta as Olimpíadas
jamais conseguiu criar uma programação regular de atuações prev- depois de uma espera de quatro anos, tendo os olhos do mundo volta-
síveis capaz de assemelhar-se e centralizar a atenção global com dos para a cidade organizadora do evento.
ocorre com a Cerimónias Olímpicas"(1995:33). No que se refere à cerimónia de Encerramento, o autor considera
RIBA11 (1995) acentua que as cerimónias dos Jogos Olímpicos que o ritual que marca o fim de uma edição é mais pautado pelas
têm importância fundamental em termos de expressão cultural, p0r festividades e pela emoção, o que faz com que a imagem dos Jogos e a
serem o meio perfeito para que cada país, organizador e cidade pos- da cidade sejam fixadas na lembrança das pessoas de forma inseparável.
sam expressar suas diferenças culturais que são questões difíceis de As cerimónias constitutivas de uma edição dos Jogos Olímpicos
serem abordadas. Na ótica de ROCA12 (1995), sem as cerimónias, selam a fusão perfeita Jogos Olímpicos/cidade-sede porque, segundo
os Jogos seriam simplesmente a soma de vinte e cinco competições Orlandi na leitura de DUGAICH (1993 e 2001), o ritual é constituído
esportivas internacionais que dificilmente traduziriam a capacidade por elementos que conferem legitimidade às partes envolvidas. Para
de organização da cidade. DUGAICH (2001), o ritual favorece a construção da retórica
Ao discutirem a importância das cerimónias constitutivas dos imagética que se constitui um importante elemento de liga na estrutu-
Jogos Olímpicos, MORAGÁS, MACALOON & L11NÉS (1995:17) ra argumentativa do discurso que se instaura.
apontam que vários estudos das áreas da antropologia, comunica- Á fusão perfeita da associação da imagem entre os Jogos Olím-
ções, história e etnomusicologia devotam sua atenção para as picos e a cidade-sede resulta da condição de a imagem do produto
cerimónias dos Jogos, como o maior fenómeno intercultural e central do marketing esportivo e do marketing da cidade ser trabalha-
transculturaí do século. da de modo que uma imagem complete a outra, em perfeita sinergia,
Entende-se que entre as cerimónias constitutivas dos Jogos a para que a cidade-sede seja capaz de re-significar a imagem imolada
Abertura e o Encerramento sejam dois significativos momentos de dos Jogos Olímpicos.
enunciação na projeção da associação da imagem dos Jogos e da cida-
de-sede pelo fato de essas cerimónias serem marcadas por rituais Jogos Olímpicos/cidade-sede:
herdados dos Jogos da Antiguidade e registrarem os mais altos pontos de imagens
de audiência local e internacional. De maneira a compreender associação de imagens que se
Para ROCA (1995), a Abertura pode ser considerada o ponto estabelece entre os Jogos Olímpicos e sua cidade-sede no espaço
máximo no que se refere a aspectos culturais e criativos de uma de sentidos que a realização de uma edição permite, observam-se
edição, devido à grande expectativa que se instaura à ampla audiên- as três últimas edições dos Jogos Olímpicos do século XX - Bar-
cia que a transmissão televisiva alcança ao apresentar a cidade para celona (Espanha) 1992, Atlanta (Estados Unidos), 1996 e Sydney
o mundo. (Austrália) 2000.

11
Fernando Riba - Conselheiro do Gerenciamento do Museu Olímpico.
12
Josep Roca. diretor das cerimónias de Abertura e Encerramento e co-produtor do 1?
MORAGÁS SPA, RIVENBURG& GARCIA que se dedicaram a uma vasta produção
filme oficial dos Jogos Olímpicos de Barcelona 1992: académica sobre a edição de 1992.

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instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte
Paseoal Luiz Tambucd

na visitação a essas áreas, encontrar um pouco do glamour do espe-


A cidade de Barcelona que sediou os Jogos Olímpicos em 1992 táculo que Barcelona viveu durante os dias que hospedou os Jogos.
é um típico exemplo de fusão perfeita. Segundo PALOMEQUE (1995), muito embora os resultados da
Segundo MORAGAS SPÀ, RIVENBURG & GARCIA realização dos Jogos não tenham resolvido todos os problemas de or-
(1996)'3, Barcelona desejava apresentar-se ao mundo como uma dem social de Barcelona, no que se refere à dimensão espacial e às
cidade moderna, aberta a atividades económicas e iniciativas de todo suas necessidades urbanísticas, a cidade ficou conhecida como a ci-
tipo. Os especialistas afirmam que o marketing da cidade definiu uma dade renovada, na medida em que a incorporação da obra olímpica
estratégia precisa para atrair projetos capazes de dinamizar ativida- melhorou substancialmente suas condições ambientais e condições
des económicas locais e em desenvolvimento. de vida.
"Desejou-se promover a cidade como o mais importante foco eco- Ao realizar os Jogos em perfeita sinergia com os ideais do
nómico do sul da Europa. Pretendeu-se que Barcelona fosse perce- Movimento Olímpico, a cidade conquistou uma imagem mitificada e
bida não apenas como uma cidade próspera, cosmopolita e prepa- ficou conhecida como Barcelona Olímpica, tomando um típico exem-
rada para o século vindouro, mas também como uma cidade
plo de fusão perfeita entre a imagem dos Jogos e sua cidade-sede.
construída sobre séculos de muita história" (p: 94).
Spain, everyíhing under the Sun foi o tema da campanha tu- Atlanta 1996
rística que criou uma imagem iluminada e romântica do país que provou
Ao sediar os Jogos Olímpicos, Atlanta vislumbrou a oportunida-
ser eficaz na captação de interesse. Barcelona tornou-se um destino
de de se tornar uma grande cidade internacional e de conquistar o
turístico obrigatório antes, durante e após o evento.
Na ótica dos autores, os objetivos culturais da cerimónia de reconhecimento nacional e internacional como o centro de justiça
Abertura foram definidos de maneira a eliminar alguns dos estereóti- racial e prosperidade económica, conforme seus líderes buscavam
pos turísticos que marcavam a cidade, como a siesta, as corridas de desde a Guerra Civil americana (FRENCH, 1997).
touros e a falta de pontualidade. A meta era apresentar ao mundo A disputa pela edição dos Jogos de 1996 - centésimo aniversário
uma Espanha diversa, democrática, moderna e culta. Para construir dos Jogos da Era Moderna - foi acirrada porque Atlanta competiu
com Atenas que é o berço dos Jogos Olímpicos. Ainda assim, o em-
a imagem cultural idealizada, foram escolhidos representantes do meio
artístico consagrados internacionalmente, como Picasso, Dali, Miro e penho dos organizadores da candidatura de Atlanía venceu Atenas e
personalidades promotoras de espetáculo, como Montserrat Caballé conquistou o direito de hospedar o evento.
e Josep Carreras para cantar. Os Jogos levaram os refletores do mundo para Atlanta que se
Nos considerandos de PALOMEQUE (1995), Barcelona con- beneficiou de semanas de exposição em nível nacional e internacio-
quistou investimentos importantes e turistas de todo mundo, como nal, bem como de excelentes resultados na economia local e de um
pôde ser constatado durante a preparação dos Jogos, na sua realiza- legado físico valioso (FRENCH, 1997).
ção e na fase posterior ao momento olímpico. A Georgia Power's Project Legacy, que se serviu dos Jogos
As áreas olímpicas imaginárias definidas por ocasião do evento Olímpicos para atrair novos investimentos, conquistou uma significa-
- Diagonal, Vali d'Hebrón, Park de Mar, Montjuic - centro nevrálgico tiva expansão que representou um investimento de $177 milhões e
dos Jogos Olímpicos, atraem um grande público até hoje que busca, 3.400 novos empregos nos subúrbios e em outros pontos do estado
(QUINN, 1997).
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Instrumentos áe Avolio|ão Psicológica em Psicologia do Esporte Poscoal Luiz Tombucci

Segundo pesquisa desenvolvida por NEIROTTI, BOSETTI & acentua que o projeto de Aílanta 1996 é um exemplo de que os proje-
TEED (2001), o maior interesse daqueles que se dirigiram à Atlanía tos de candidatura não devem considerar os Jogos Olímpicos ou
em 1996 estava atrelado à oportunidade única de eles assistirem aos qualquer outro mega-evento como "magic bullets" capazes de resol-
Jogos, enquanto que a possibilidade de conhecerem a cidade ficou ver uma gama de problemas de diferentes tipos para confortar suas
classificada em décimo lugar. cidades-sede. Para o autor, os Jogos de Atlanía 96 foram um
Estudos sobre os fatores que motivaram os espectadores dos Jo- sucesso, mas não puderam resolver todos os problemas de ordem
gos de Atlanta em 1996 revelam que 91% dos espectadores social da cidade, porque a falta de consonância entre os projetos
entrevistados foram à Atlanta porque os Jogos são o maior evento existentes para a cidade comprometeu os resultados esperados
esportivo do mundo; 94% justificaram seu interesse no fato de os quanto ao re-desenvolvimento.
jogos estarem calcados em uma importante tradição; 95% afirmaram
que os Jogos oferecem algo especial para que todos possam aproveitá- Sydney
los e 96% alegaram que a atmosfera dos Jogos é muito especial quando
Na edição dos Jogos de 2000, Sydney contou com um trabalho
comparada a outros eventos esportivos14.
tão criterioso de markeíing que levou seus habitantes a acreditarem
Considerando que o grande número de bilhetes colocados à venda
que eles e a própria cidade se tornariam melhores ao partilhar dos
para uma edição sinaliza que existe suficiente motivação para mover
ideais de paz e harmonia entre os povos, propostos pelo Barão Pierre
pessoas a realizar o sonho de participar do evento, NEIROTTI,
de Coubertin, simplesmente pelo fato de Sydney sediar os Jogos.
BOSETTI & TEED (2001) afirmam que os Jogos Olímpicos são um
Para WAITT (2001), a condição de viver os Jogos promoveu o
perfeito exemplo de mega evento esportivo com significativo apelo
equivalente a uma experiência sagrada ou um rito de passagem não ape-
em todo mundo.
nas para os habitantes de Sydney, mas também para a cidade em si.
O efeito catártico que a participação in loco tem condições de
A Olimpíada Verde conseguiu encontrar o tom do momento e
propiciar motivação no público que forma a audiência de mega-even-
conquistou o apoio do próprio Greenpeace para que todos os detalhes
tos esportivos, para os quais até mesmo o próprio percurso de ida e
fossem considerados. Tal precisão criou novos ícones na cidade, como
volta para assistir ao evento instiga o público a viver o espetáculo
é o caso do seu cartão postal - o Opera House - que se transformou
pessoalmente.15
em um cartão postal olímpico.
Os Jogos Olímpicos e a cidade de Atlanta conquistaram a fusão
Segundo RUGGIA (2000), a escolha de Sydney como sede dos
perfeita, dando à cidade uma nova imagem em nível nacional e inter-
Jogos causou um impacto imediato na capacidade de a cidade atrair
nacional que lhe permitiu realizar grande parte dos seus objetivos.
convenções de negócios.
Ao analisar as expectativas que os organizadores da cidade-
MORSE (2001), diretor da Australian Tourist Commission (ATC),
sede criam em relação à realização do evento, FRENCH (1997)
declara que os Jogos deixaram um duradouro legado para a indústria
14
Pesquisa desenvolvida pelo Comité Internacional Olímpico em conjunto com o do turismo australiano e para a Austrália, na medida em que o modo
Sports Research International com espectadores dos Jogos de Atlanta, em 1996.
como o mundo vê a Austrália indiscutivelmente mudou com os Jogos,
'- Miquel de Morágas Spà. em comunicação pessoal, durante o curso de
Marketing y Patrocínio Deportivo oferecido pelo Centre d'Estudis Olimpies i de porque, a partir daquele momento, os Jogos permitiram que as pesso-
1'Esport da Universidade Autónoma de Barcelona (UAB), do qual este pesquisador as tivessem um conhecimento muito maior do que a Austrália pode
participou corn bolsa da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), janeiro a abril de 1995. oferecer, dos australianos e do excelente destino que a Austrália é.

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Páscoa! luiz Tambucci
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

espetáculo. Quando terminam e os refletores se apagam, cabe às orga-


Segundo Michael Payne, diretor de marketing do Comité Olím-
nizações políticas da cidade saber capitalizar a imagem que conquistou,
pico Internacional, a estratégia de marketing da Australian Tourist
transformando aquele particular momento em um ícone da história.
Commission foi considerada um modelo para as cidades-sede pelo modo
Considera-se que nos três casos observados se realizou um importante
como a ATC trabalhou o Movimento Olímpico, seus patrocinadores, a
trabalho entre autoridades políticas, organizadores, mídia, população local e
cobertura oficial, a publicidade e os programas da mídia para promo-
patrocinadores porque houve comunhão de intenções entre as partes quan-
ver tanto a Austrália como os Jogos (MORSE, 2001:106).
to à preservação da imagem tanto das cidades-sede como dos Jogos.
Os resultados do trabalho realizado em Sydney foram responsá-
Observou-se que as comissões organizadoras do evento das ci-
veis para que essa edição dos Jogos conquistasse o sucesso capaz de
dades-sede tinham claras as reais necessidades de melhoria para a
permitir a fusão perfeita entre a imagem dos Jogos e Sydney que foi
imagem da cidade - os aspectos que deviam ser enfatizados, aqueles
eleita a sede permanente dos Jogos Olímpicos.
que deviam ser melhorados e, inclusive, aqueles que desejavam mudar.
Nos casos observados, evidenciou-se que os Jogos Olímpicos
Embora a edição de 2004 não tenha sido o foco desta discussão
são, indiscutivelmente, uma eficiente estratégia na captação de uma
pelo fato de se realizarem no momento em que este artigo é conclu-
população turística, porque, conforme NE1ROTTI, BOSETTI &
ído, o fato de a Grécia ter sediado os Jogos em um momento de
TEED (2001) concluem sobre a motivação dos espectadores em re-
transição política e dificuldades económicas significa que o evento se
lação dos Jogos, muitas pessoas assistem ao evento simplesmente
revela ideal para a construção de uma imagem renovada e re-
para dizer que estiveram nos Jogos Olímpicos e viveram essa única
estruturada da sua cidade-sede.
oportunidade em suas vidas.
É fundamental que se compreenda que a potencialidade dos
Jogos Olímpicos pode atrair uma população turística valiosa, porém
Considerações finais crítica. A singular oportunidade de realizar uma edição dos Jogos pode
Este percurso reflexivo situou os Jogos Olímpicos, a partir da levar ao mundo uma imagem de cidade perfeita e atraente ou marcas
sua história, focalizando como sua imagem se constrói na memória que dificilmente serão esquecidas.
da humanidade, de modo a permitir uma maior compreensão da força
imagética que os constitui e lhes confere uma importante singularida- Referências bibliográficas
de como apelo turístico.
Os resultados das três edições observadas permitiram compre- CABRAL, Luiz Alberto Machado. Os jogos olímpicos na Grécia Antiga -
Olímpia Antiga e os jogos olímpicos, São Paulo: Editora Odysseus, 2004.
ender que o sucesso de uma edição depende da perfeita sinergia
entre a comissão responsável pela realização dos jogos na cidade e Comité Internacional Olímpico, Olympic Market Research Analysis
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não apenas no projeto de candidatura da cidade-sede e durante a DAYAN, D. & KATZ, E. Media Events: The Live Broadcasting of
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organização do evento, mas também na fase posterior ao evento,
para que se possa trabalhar a manutenção da imagem que a cidade- DUGAICH, Cibele Mara. A Estrutura Argumentativa no Discurso
Político: uma análise da heterogeneidade no pronunciamento de posse
sede conquista com a realização dos Jogos. do Presidente Kennedy, dissertação de mestrado, São Paulo: Pontifícia
No momento em que os Jogos entram em ação, com todos os refle- Universidade Católica de São Paulo, 1993.
tores sobre eles e a cidade na qual se realizam, instala-se o grande
187
186*
instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Páscoa) Luiz Tambucd

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188 189
A do
Alexandre Velly Nunes

introdução
A sociedade contemporânea apresenta características comuns
apesar de sua diversidade cultural e social. A competitividade e a
busca desenfreada por rendimentos superiores estabelecem certos
padrões de comportamento, comuns a diversos povos, de variados
níveis de desenvolvimento social e cultural. Dentro desse contexto o
esporte aparece como um reflexo da sociedade apresentando em suas
características os mesmos sintomas. Com alguma frequência se diz
que o esporte é o fenómeno cultural mais importante da sociedade
contemporânea. (Barbedo González 1993; Rúbio, 2006)
Ao discutirmos a dimensão social do doping necessitamos defi-
nir inicialmente o que o esporte representa na sociedade e o que é o
doping. Diversos autores se posicionam a esse respeito. Rúbio, em
2007. afirma que: "depois de se transformar em uma prática profissio-
nal ímpar e em um dos principais fenómenos socioculturais
contemporâneos, o esporte se revelou um cenário privilegiado para a
discussão sobre a identidade e suas mutações em uma sociedade que
viu o papel do trabalho e das instituições sofrer profundas alterações
ao longo do último século."(Rubio, 2007, p. 86).
Aquino Neto, por sua vez, entende que na sociedade, especial-
mente a ocidental, o esporte está presente em todas as faixas de
idade e camadas sociais e, em muitos casos, é a chance de ascensão
social e económica para os desfavorecidos. (Aquino Neto, 2001)
Alexondre Velly Nunes
instrumentos de Avaliação Psicológico em Psicologia do Esporte
primeiro presidente do COI. (Coubertin, apudNavacelle, 1979; Melas
procuram se manter "puras" na sua essência e não sucumbir à tentação 2004; COB, 2004) Dois anos mais tarde, em 1896, ocorreu a primeira
das altas verbas e espaços na mídia, que são proporcionadas principal- olimpíada da era moderna, em Atenas. Nesse mesmo ano, Coubertin
mente aquelas que fazem parte do programa olímpico. (Brofam, 2004) foi eleito o segundo presidente do COI e se manteve na presidência
O programa olímpico atual possui 28 modalidades as quais pos- até 1925. (Coubertin, 1995; MELAS, 2004: COB, 2004; RÚBIO, 2006)
suem 37 disciplinas. Para os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, O movimento olímpico recriado por Coubertin em 1894 procu-
duas delas serão retiradas; entretanto outras já estão pleiteando a rava reestabelecer os ideais dos antigos gregos, em que prevaleciam
entrada. Essas modalidades têm espaço garantido na mídia e, em o Citius, Altius et Fortius. Ainda assim, o objetivo dos Jogos da An-
muitos casos, grandes somas de dinheiro envolvido na organização tiguidade distinguia os vencedores, estabelecendo de alguma forma a
de eventos esportivos, pagamentos aos atletas e a sua identificação mesma dinâmica dos nossos dias. (COB, 2004; Musée Olympique de
com marcas e instituições que se beneficiam direta e indiretamente Lausanne, 2006; The International Olympic Academy, {2005}; Rúbio,
das suas performances. As IF's são divididas em IF de esportes de 2001; Melas, 2004) Corroborando com essa ideia, Rúbio e colabora-
verão, IF de esportes de inverno e IF de esportes reconhecidos pelo dores afirmam que: "a moderna ética olímpica de Coubertin é uma
IOC. (Répertoire/Direcíory, 2007; Musée Olympique Lausanne, 2006) ética do desempenho" (Rúbio et ali 2007 p. 60).
Os eventos promovidos pelo IOC e pelas IF's nos últimos 20 anos O olimpismo busca melhorar o indivíduo e a sociedade, combi-
aproximadamente se transformaram em megaeventos, movimentam gran- nando esporte, educação e cultura. Isto é conseguido a partir de cinco
des somas e mobilizam muito mais do que atletas e seus treinadores. Os valores humanos básicos:
exemplos mais típicos são os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo de • Harmonia entre o corpo e a mente;
Futebol, capazes de gerar alguns bilhões de euros quando da sua organi- • Excelência em si mesmo;
zação e realização. Todo esse investimento acabou por transformar o • Integridade nas ações;
fenómeno esportivo, influenciando as suas metas e modificando os seus • Respeito mútuo;
objetivos originais. (Walsh & Giulanotti, 2007; Rúbio, 2006) • Alegria no esforço.

O movimento olímpico e a O papel do IOC é coordenar, liderar e servir o movimento olím-


O movimento olímpico foi criado a partir das ideias de um grupo pico na sua missão de divulgar o olimpismo por todo o mundo e
de pensadores, esportistas e pedagogos, liderados por Pierre de assegurar a celebração regular dos jogos olímpicos, o que melhor
Coubertin, na tentativa de reviver a glória e os ideais dos jogos olím- exemplifica os valores do olimpismo. (COI, 2004)
picos da antiga Grécia. Ele seguiu o conceito inglês de interagir jogos Temos então os Jogos Olímpicos (JO) como um evento que
esportivos e educação. Sua experiência de muitos anos permitiu con- extrapola o âmbito esportivo e que adquiriu nos últimos vinte anos a
cluir que o efeito do treinamento em jogos esportivos não ocorre apenas condição de megaevento, visto que o Movimento Olímpico Internacio-
no corpo, mas também na educação moral e desenvolvimento social nal possui um número de nações associadas maior do que o das Nações
dos jovens (SHOUHE, Cão apudPfister, Gertrud & Yueye, Liu, 1999). Unidas. (Tavares et ali, 1999; IOC, 2007). O aumento do número de
Em 23 de junho de 1894, Coubertin criou uma instituição deno- países é frequente e de acordo com o informativo do Museu Olím-
minada Comité Olímpico Internacional (IOC). Este ato ocorreu em pico de Lausanne de 2006, o IOC possuía 199 países com
Paris, na Universidade Sorbonne. Demetrius Vikelas, da Grécia, foi o representação, ou seja, com Comités Olímpicos Nacionais (NOC's)
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Instrumentos de Avali0çõo Csicológica em Psicologia do Esporte Alexandre Velly Nunes

constituídos (Musée Olympique Lausanne, 2006). Na última publica- A influência da mídia representa a entrada de valores elevados
ção do IOC de 21 de março de 2007 já encontramos 203 NOC's. e crescentes nas estruturas esportivas internacionais e tem direcionado
(Répertoire/Directory, 2007). Os JO são o maior evento esportivo do os rumos do esporte no planeta. Os valores pagos pela transmissão
planeta em termos do número de participantes, número de esportes dos JO cresceu de 287 milhões de dólares em 1984, JO de Los Angeles,
no programa, e número de países reunidos em uma mesma área ge- para l bilhão e 482 milhões de dólares nos JO de Atenas em 2004.
ográfica. (Musée Olympique Lausanne, {2006}; Melas. 2004) (Rúbio, 2006). Os atletas que no início do século eram obrigatoria-
Devido ao imenso crescimento da importância do esporte na mente amadores passaram a viver do esporte, podendo se dedicar
sociedade o papel do esportista modificou-se totalmente. A participa- com exclusividade à prática de suas modalidades para conseguir al-
ção nos Jogos Olímpicos passa a representar muito mais do que uma cançar os níveis de performance exigidos.
comparação de habilidades ou técnicas, mas a venda de ideias ou Os valores e a ética de um grupo social são influenciados pela
produtos. "Se o Movimento Olímpico e o fenómeno esportivo passa- evolução dos costumes e outras alterações nos conceitos da socieda-
ram por grandes transformações ao longo do século XX, pode-se de como um todo. Com o passar do tempo, é de se esperar que esses
dizer que o mesmo se deu com a condição de atleta e o papel social valores acompanhem a evolução, tornando-se assim mais fáceis de
desempenhado por ele."(Rúbio, 2006, p. 27) serem aceitos e assimilados. Da recriação do movimento olímpico
Este fenómeno começa a ficar evidente a partir dos Jogos Olím- por Coubertin até os dias de hoje, o esporte mundial sofreu mudanças
picos de Berlim, 1936, quando da exploração política do evento. significativas, comparativamente à ideia original. Alguns valores fo-
Considerado o maior evento esportivo até então, os Jogos de Berlim ram agregados ao Citius, Altius et Fortius e outros perderam a sua
entram para a história como um evento lucrativo, que divulga uma po- relevância.
sição política determinada e seus heróis iniciam a venda de produtos Os motivos que levam os atletas buscarem a vitória para as
comerciais. Cari Diem, um dos principais organizadores, montou com o suas equipes, países ou empresas patrocinadoras os transformaram
apoio de Hitler um evento que poderia demonstrar a superioridade da em uma espécie de mercadoria. As alternativas possíveis para alcan-
raça ariana e fortalecer o nacionalismo alemão. (Ardoino e Brohm, çarem melhores performances e a grande evolução nas áreas do
1995; Barbero Gonzalez, 1993; Rúbio, 2007; IOC, 2007; Melas, 2004) treinamento e da tecnologia obrigaram os organizadores do desporto
A partir de então, os interesses comerciais e políticos que sem- internacional a estabelecerem certos limites. Limites estes que têm
pre cercaram os Jogos desde a Grécia Antiga tomam uma dimensão fundamentos éticos e técnicos e, por isto mesmo, vão se alterando
exacerbada. Walsh e Giulianotti utilizam os termos commodification com o passar dos anos. (Nunes, 1997)
e hyper-commodification para definir o que acontece com o espor-
te contemporâneo. Na opinião dos autores, esta transformação dos O de recursos ergogênlcos
valores do esporte, que passa a ser "vendido" e comercializado, de-
termina uma nova dinâmica. Estes aspectos, no entanto, ocorrem no O treinamento e a performance nos dias de hoje são influencia-
esporte de alto rendimento e mais especificamente nas modalidades dos pela utilização constante de recursos ergogênicos e também do
mais praticadas e, portanto, mais comerciais. Assim, o futebol no mundo doping. As modalidades esportivas e suas respectivas disciplinas
inteiro, as ligas norte-americanas de basquete, beisebol e futebol e/ou eventos tem características próprias que determinam que
americano são exemplos clássicos desta hyper-commodification. substâncias ou recursos podem hipoteticamente melhorar a sua
(Walsh et ali, 2007) performance esportiva. Enquanto alguns atletas utilizam-se dos mais

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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte
Alexandre Velly Nunes

variados e modernos recursos ergogênicos outros ultrapassam a bar- de alguns valores pessoais e a formação dos treinadores, médicos e
reira do permitido utilizando métodos ou substâncias que ferem a dirigentes esportivos fez com que, na tentativa de melhoria da
legislação e são consideradas doping. O controle de doping é regula- performance, a qualquer custo, a saúde dos atletas e dos seus adver-
mentado pelo Comité Olímpico Internacional, pelas Federações sários tenha sido colocada em risco, muitas vezes com o consentimento
Internacionais e mais recentemente pela WADA-AMA, Agência dos próprios atletas. (Nunes, 1997)
Mundial Anú-Doping.
O uso de substâncias para melhorar o desempenho esportivo é Os controles de no história
conhecido desde os tempos dos Gregos que utilizavam chás de ervas
e cogumelos. Antes disso na China já eram conhecidos os efeitos da Em 1960, durante os Jogos Olímpicos de Roma, a morte de um
efedrina machuang (De Rose, et ali 2007). Mais recentemente, no ciclista (Knut Jansen) em uma prova de estrada precipitou a tomada
ressurgir dos Jogos Olímpicos da era moderna, eram utilizadas dro- de medidas que determinaram por iniciar um processo de controle do
gas como estriqumina e cocaína, todas de uso comum pelos ciclistas uso desses recursos, impondo limites. Poucos anos depois, outro ci-
(Noakes, 2004; De Rose, et ali, 2007). clista, Tommie Simpson, veio a falecer, desta vez na subida do Monte
A exigência de performances crescentes transforma os atletas Ventoux durante o Tour de France (Noakes, 2004; De Rose, 2002).
em gladiadores do presente. A preocupação com esses exageros já Esses casos não se caracterizam por doping, já que não existia regu-
existia no olimpismo proposto por Coubertin, como se pode observar lamentação que determinasse o que era permitido ou proibido. Em
nas suas próprias palavras: "Ao esporte se reportam três classes de função desses fatos, o Comité Olímpico Internacional criou a sua
males sobre treinamento físico: contribuição ao retrocesso intelectual Comissão Médica e, em 1968, a comissão efetua o primeiro controle
e difusão do espírito materialista e amor ao lucro" (Coubertin apud de doping nos Jogos Olímpicos do México. Iniciou-se então uma luta
Navacelle,1979,p.l38). sem tréguas contra o uso de métodos e substâncias proibidas pelos
Em suas Memórias Olímpicas (Navacelle, 1979), Coubertin des- esportistas. (IOC Mc, 1999; De Rose et ali, 1999; AQUINO NETO
creve muitas de suas preocupações sobre o esporte que, ainda que 2001; FEDER ET ALL, 2006; Miah, 2007; Noakes, 2004).
tenham sido escritas nos séculos passado e retrasado, parecem ex- Nestes quase 40 anos de controle de doping o sistema como um
todo evoluiu bastante e se uniformizou. A criação da WADA-AMA em
tremamente atuais.
A tentativa da ciência de resolver os problemas do 1999 colaborou muito para esta evolução. Hoje temos uma lista padrão
sobretreinamento (overtraining, como é conhecido internacionalmen- de substâncias e métodos proibidos para todas as modalidades e paí-
te), levou à descoberta de inúmeros recursos ergogênicos que ses, que recebe alterações anualmente. Todo mês de outubro é divulgado
oportunizam uma melhoria da performance nas competições e possi- um rascunho da nova lista, que passa a ser divulgado para todos as IF's
bilitam suportar cargas de treinamento muito mais elevadas. Estes e especialistas no mundo todo. A partir de l de janeiro essa nova lista
recursos têm custo elevado, assim como a dedicação exclusiva que de substâncias e métodos passa a vigorar. (WADA, 2004; IOC, 2007;
os atletas devem dispor a serviço de suas performances. Pesquisa- De Rose et ali, 2007; FEDER et ali, 2006).
dores de diversas áreas têm desenvolvido esses recursos e criado O grande interesse da sociedade e a cobertura da mídia fizeram
alternativas para os atletas e seus treinadores, que propiciam com que nos últimos vinte anos, aproximadamente, o esporte tenha
performances inimagináveis 30 ou 40 anos atrás. Infelizmente, a falta recebido vultosas quantias para o seu desenvolvimento. A divulgação
em todos os meios -de comunicação e o interesse de grandes empresas
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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Alexandre Velly Nunes

em associar a sua marca ao nome dos "heróis", campeões e suas "Após a confissão, na quinta, de que usou doping, a velocista
modalidades faz com que estas quantias tenham grande influência terá suas melhores marcas anuladas. N a prática, quem mais per-
nas atuações e comportamentos dos atletas e seus treinadores, diri- to chegou dos suspeitos recordes de Florence terá o nome apaga-
do dos registros. Marion Jones confessou uso de THG, esteróide
gentes esportivos e patrocinadores. (Mas, 2007: Rúbio, 2006)
anabólico criado só para burlar o antidoping. A droga era
Alejandro Sosa, Psicólogo Clínico Argentino afirma que: fornecida pelo técnico Trevor Graham, que dizia tratar-se de "óleo
"...as pressões jogam um papel preponderante no desportista de de linhaça". (Folha Online, 2007)
alto rendimento, que em muitas ocasiões busca superar-se a par-
tir da obtenção do êxito, sobretudo de imediato. " Assim o autor As entidades esperam que a atleta devolva premiações Entre
ainda afirma que: "O uso do doping aparece como uma alterna- outras receitas, ela dividiu prémio de US$ 2 milhões (R$ 3,6 milhões)
tiva errónea de solução mágica que envolve não só o desportista referente aos títulos das seis etapas da Liga de Ouro em 2001 e 2002.
como também o seu entorno. Na atualidade estão desaparecendo O comité quer banir seu nome da Olimpíada, o que não seria proble-
os casos em que os desportistas recorrem ao doping solitaria- ma, já que Marion Jones encerrou a carreira. Porém ela não poderia
mente" (Sosa, 2007, p. 1).
participar dos Jogos em nenhuma função. (Folha-Online/esporte, 2007
Nessa mesma linha de pensamento Hoberman diz que confron- b). Marion não é a única a cumprir pena do time Norte-Americano,
tados com a demanda de seus atletas clientes, médicos do esporte outros integrantes do time medalhista do revezamento 4 X 100 tam-
tem se dividido em duas facções em respeito ao conhecimento e a bém foram punidos. No esporte quando os culpados são identificados
propriedade de administrar drogas aos atletas, (Hoberman, 2001). e, é comprovada a sua culpa, as punições são cumpridas, diferente-
Alguns escândalos nesta área, como o doping do atleta Ben mente do ocorre em outros segmentos da sociedade.
Johnson do Canadá (Jamaica), em Seoul-1988 e a morte da atleta O presidente da WADA-AMA, Dick Pound, ex-atleta de natação,
norte-americana, Florence G. Joyner em 1998, entre tantos outros, já considerava importante a união de esforços de todos os poderes para
indicam a necessidade de providências urgentes para obstaculizar punir os faltosos, conforme depoimento publicado na revista Veja em
essas performances alteradas por métodos e procedimentos setembro de 2006. Em sua opinião, o fato de atletas contratarem advoga-
questionáveis. Mais recentemente a declaração de culpa da atleta dos caros e agressivos não vai liberá-los de cumprir suas penas. O caso
norte-americana Marion Jones, grande destaque dos JO de Sydney Marion pode comprovar sua tese. A punição de outros membros da equi-
no Atletismo, onde ganhou cinco medalhas, três delas de ouro, pe como treinadores e médicos é mais difícil porque é o atleta que se
estarreceu o mundo do esporte. A beneficia diretamente do resultado e é responsabilidade dele o uso de
repercussão de suas declarações na imprensa internacional, onde qualquer substância ou método proibido. (Revista Veja, 2006)
reconhece o uso de agentes anabólicos e se desculpa por mentir an- O doping e a dopagem têm sido alguns dos principais desafios
teriormente com relação ao mesmo caso, possivelmente tenha e combates do mundus sportivus, no sentido de manter íntegros os
desdobramentos posteriores que envolvam outras pessoas do meio princípios, os valores e o significado simbólico do verdadeiro despor-
esportivo. Note-se que ela não foi pega no doping e sim se declarou to. (Puga, 2004, Noakes, 2004) Puga ainda nos adverte que os prejuízos
culpada admitindo o uso de anabólicos. (Folhaonline-esporte, 2007b) do doping são em dois planos: interfere na organização da competi-
De acordo com a reportagem do jornal eletrônico a atleta terá suas ção e promove injustiça aos outros atletas que alcançam seus méritos
marcas anuladas e seu nome apagado dos registros. Espera-se que dentro das regras e das suas reais possibilidades.
no desdobramento outros envolvidos também sejam punidos.

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Alexandre Veíly Nunes
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

essa regulamentação. As listas de substâncias e métodos proibidos


O de e a ergogenia são encontradas na Internet e, no caso do Brasil, as federações es-
As tentativas de aumento da performance são comuns nas mais portivas recebem um manual com todas as informações necessárias.
diversas áreas, não se limitando somente ao esporte. No caso das Além disso, estas informações também podem ser acessadas a partir
atividades físicas, os métodos utilizados podem variar desde a ingestão da página eleírônica do Comité Olímpico Brasileiro,
de suplementos alimentares, medicamentos ou determinado tipo de <www.cob.org.br>.
alimento, até o uso de equipamentos sofisticados, disponibilizados pela Independente das classificações (de substâncias) existentes
evolução tecnológica nesta área. A ideia básica é alcançar resultados os atletas e seus treinadores parecem considerar apenas dois tipos:
cada vez melhores nas suas respectivas modalidades. os que melhoram (ou aparentam melhorar) a performance e os que
Por definição, todo e qualquer método que tenha por objetivo o não apresentam esses resultados na prática. A ciência muitas vezes
aumento da performance, quer seja por ingestão de substâncias leva algum tempo até comprovar que uma determinada técnica, mé-
(medicamentosas ou não), à utilização de materiais ou equipamentos todo ou procedimento realmente pode provocar um melhor
que propiciem um melhor rendimento, ou ainda a preparação adequa- desempenho, mas os atletas e seus treinadores, através de métodos
da com o uso de materiais como pesos, assim como as técnicas da empíricos muitas vezes se antecipam a essas descobertas. É comum
psicologia são considerados recursos ergogênicos (Wilmore et ai, 2001; que atletas e suas equipes utilizem recursos, lícitos ou não na tentati-
Fox et ai, 2003). Garret et a! em sua revisão sobre o tema definem: va de melhorar suas performances sem que estes tenham sido
"... são substâncias usadas na tentativa de aumentar a potência físi- realmente comprovados pelo método científico. Este parece ser um
ca, a força mental, ou a eficiência mecânica além dos efeitos atribuíveis problema para fisiologistas, especialistas em biomecânica, nutrição
ao treinamento. (Garrett & Kirkendalí, 2003, p.401), enquanto Fox e ou outras ciências auxiliares tentarem resolver e que não está entre
colaboradores simplificam:"... é qualquer coisa que aprimora ou que se as prioridades dos atletas.
admite aprimorar o desempenho... "(Fox & Mathews, 1983, p.421) ou A falta de comprovação científica, por sua vez, faz com que
"... qualquer substância, processo ou procedimento que pode, ou que é muitas vezes, os atletas sejam submetidos a métodos ou recursos que
percebido como tal, aprimorar o desempenho... (Fox, 2003 p.287). prejudiquem sua saúde e através dos quais não venham a obter qual-
Basicamente o uso de doping se diferencia do uso de recursos quer ganho de performance. As questões éticas que envolvem esse
ergogênicos pelo tipo de substância ou método utilizado. Caso esta(e) tipo de decisão deveriam ser mais aprofundadas neste momento que
esteja incluída na lista de proibições do IOC, WADA-AMA ou de sua as performances em algumas modalidades chegam muito próximas
respectiva federação, será considerada doping. O uso de doping, tan- dos limites do homem.
to quanto qualquer forma de recurso ergogênico utilizado no
Em 1999, finalmente, foi criada a Agência Mundial
treinamento com vistas ao alto rendimento, o objetivo é mesmo:
Antidoping (Wada-Ama), cujo código foi assinado por países,
aumento da performance. Deve-se considerar também que o aumento
federações internacionais e governos de diversos países, de forma
da performance não é uma exclusividade das atividades esportivas e
a envolver toda a comunidade na luta e no combate ao uso de subs-
sim um comportamento comum da sociedade.
tâncias e métodos proibidos no esporte. O Código Mundial
O IOC e as federações internacionais promovem ampla divul-
Antidoping foi aprovado por unanimidade em 2003, com validade a
gação sobre os métodos e substâncias proibidas e hoje em dia é
partir de janeiro de 2004. (Renner, 2004; De Rose, 2007) Além da
pouco provável que um atleta de nível internacional desconheça

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202
Instrumentos de Avalioçõo Psicológico em Psicologia do Esporte
Alexandre Velly Nunes

WADA alguns países preocupados com o tema criaram suas próprias Conselho Nacional do Esporte. A Comissão é composta por 17 mem-
agências de controle, como é o caso dos Estados Unidos, Austrália, bros, representantes das mais diversas áreas, que atuam, ou estão
França e Nova Zelândia, entre outros. diretamente envolvidos no sistema. (Nunes, 2006)
Abaixo informamos como é constituída a Comissão de Comba-
te ao Doping:
"I- um representante da Secretaria Executiva do Ministério
Austrefian Sports Drug Agency do Esporte;
The Ausfrian Sports Net II- um representante da Secretaria Nacional de Esporte de
Belgíurn (Freneh Communtty) Alto Rendimento;
Arti-DGpíng Comrritte of the Czech Repubiic III-
Canacfian Centre for Ethics in Sport um representante da Comissão Nacional de Atletas;
Antí-Doping Deiimark IV- um representante do Comité Olímpico Brasileiro;
Firtnish Ântidoping Agency (FINADA} V- um representante do Comité Paraolímpico Brasileiro;
Franee VI-
Gertnariy um representante da Agência Nacional de Vigilância
Iceland Sanitária;
Antí-Doping Comrnission of Ma VII- um representante do Conselho Nacional Aníidrogas;
The Irish Sports Counci!
Itaíy VIII- um representante da Associação Brasileira de Estudos
The Nethettends Centre for Doping Affairs e Combate ao Doping;
The New Zeatend Sports Drug Agsncy IX- um representante do Conselho Federal de Farmácia;
X- um representante da Sociedade Brasileira de Medicina
Portugal
Slovak Anfi-Doping Cornmíttee Esportiva;
South African Instituís for Orug-Free Sport XI- um representante do Laboratório de Controle de
The Sports Confecteration
Swiss Doping Irrfo stfe Dopagem do Laboratório de Apoio ao Desenvolvimento
UK Sport Tecnológico do Instituto de Química da Universidade Fe-
Urted States Anti-Doping Agency deral do Rio de Janeiro:
Disponível em; r!ttp://www,wada-arna,Qrg/en/!2.asp?p::31224 XII-
em um representante do Conselho Federal de Educação
Física; e
XIII- três membros de livre nomeação do Presidente do Con-
Quadro l - Agências Nacionais Antidoping - (Wada web site) selho Nacional de Esporte - CNE."

O Brasil, que é um dos países pioneiros na América do Sul no A Comissão passou então a exercer um importante papel no
controle de doping, porém criou somente em 2004 a sua Comissão controle das atividades esportivas no país, no que tange ao combate
de Combate ao Doping, que atua dentro do Conselho Nacional do do uso das substâncias e métodos proibidos, sendo suas competên-
cias descritas à seguir:
Esporte. As primeiras reuniões trataram de elaborar as alterações na
legislação nacional sobre o tema e este trabalho foi aprovado pelo
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205
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Alexandre Vefiy Nunes

"I - promover a luta contra o doping no esporte de forma XI - estabelecer regras, procedimentos disciplinares, sanções
independente e organizada, de acordo com as regras e outros meios para o combate ao doping, observadas as
estabelecidas pela Agência Mundial Antidoping, e os pro- regras internacionais de cada modalidade esportiva, bem
tocolos e compromissos assumidos pelo Brasil; como as disposições do Código Mundial Antidoping."
II - fazer cumprir o Código Mundial Antidoping, do qual o
Brasil é signatário, mediante permanente articulação com (MINISTÉRIO DO ESPORTE - Conselho Nacional do Esporte. 2004)
o segmento esportivo, nas esferas pública e privada;
III - articular-se com a Agência Mundial Antidoping e de Até então, esse papel vinha sendo cumprido pelas federações
mais organismos internacionais de combate ao doping; esportivas locais, pelo Comité Olímpico Brasileiro (COB) e por algu-
IV - dar transparência às ações e garantir a divulgação do mas poucas ações individuais de organizadores de eventos. O COB
programa de controle de doping; sempre desempenhou um papel de destaque no combate ao doping,
V - desenvolver programas de controle, prevenção, reabili- mantendo uma comissão de especialistas, sob a liderança do Dr. Eduar-
tação e educação, de forma a criar a cultura do jogo do Henrique De Rose. Entre outras ações o COB avalia as seleções
limpo na sociedade; nacionais que participam dos JO e Jogos Pan-americanos desde 1996.
VI - gerar uma base de dados e conhecimentos sobre os ca- Os atletas classificados ou designados para representar o país são
sos positivados de doping; submetidos a exames fora de competição, ou seja, sem aviso prévio,
VII - promover, coordenar e estabelecer programa de estí- antes de embarcar para os jogos. Isto tem ajudado a orientar os atle-
mulo ao desenvolvimento de pesquisas com relação ao tas e treinadores e a evitar casos de doping em atletas brasileiros
combate e detecção do doping; nestes eventos.
VIII - estabelecer padrão de procedimento para o controle dos O credenciamento de um laboratório brasileiro pelo COI, em
exames antidoping, respeitadas as normas previstas no 2002, também representou uma grande conquista no combate ao doping
Código Mundial Antidoping; no país. (Aquino Neto, 2001) Em 2008, mais uma vez, estaremos
IX - promover e coordenar a luta contra o doping, dentro e utilizando o Ladetec da UFRJ para analisar as amostras de todos os
fora das competições, cooperando com as entidades atletas brasileiros que irão participar dos Jogos Olímpicos de Beijing.
desportivas nacionais e internacionais, públicas e priva- No mundo inteiro são poucos os laboratórios credenciados e nas
das, buscando a obtenção de um pacto de apoio moral e Américas são apenas cinco. Além dos Estados Unidos, também Ca-
político para o cumprimento e supervisão das recomen- nadá, Brasil, Colômbia e Cuba possuem laboratórios credenciados.
dações no enfrentamenío contra o doping; Os relatórios emitidos pelos laboratórios credenciados devem
X - estabelecer, adaptar, modificar, atualizar e divulgar a lis- conter certas informações padronizadas e, simultaneamente, devem
ta de substâncias e métodos proibidos na prática do es- ser informadas as seguintes autoridades: as responsáveis pela orga-
porte, observadas as regras internacionais emanadas da nização do evento e do controle; a Comissão Médica do COI em
Agência Mundial Antidoping - WADA; e Lausanne e ainda a respectiva Federação Internacional (I.F.).
(WADA, 2004). Estes relatórios ainda deverão conter, no mínimo,
alguns itens básicos como: a autoridade responsável, data e local da

206 . 207
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Alexandre Velly Nunes

tomada de amostra, a substância proibida encontrada e o código da As discussões sobre os valores do esporte parecem ter ultra-
amostra. Todas estas exigências, além da tecnologia de ponta utiliza- passado o mundo esportivo, o Parlamento Europeu tem discutido o
da em todo o processo, tornam os custos bastante elevados. assunto em algumas de suas sessões e a UNESCO tem participado
Apesar de todos estes esforços, durante os Jogos Sul-Ameri- ativamente de reuniões de discussão sobre o controle de doping.
canos que realizamos no Brasil, em 2002, os atletas brasileiros foram Espera-se que, com atitudes de conscientização e informação, os
os que apresentaram o maior número de casos positivos. Os Jogos atletas e seus treinadores possam atingir as mais elevadas performances,
Pan-Americanos do Rio de Janeiro, recentemente encerrados, nova- os dirigentes e patrocinadores os seus objetivos e, mesmo assim, o
mente tiveram um caso de atleta brasileiro dado como positivo, dentro esporte seguir como uma das formas de desenvolvimento sadio da so-
dos três positivos divulgados até esta data. ciedade, cumprindo os objetivos do movimento olímpico.

Responsabilidade os casos positivos Conclusões


Conforme está estabelecido no Código Brasileiro de Justiça A sociedade em que vivemos é extremamente competitiva em
Desportiva: todos os seus segmentos. Pode-se afirmar que um comportamento
"O ato de ministrar ou prescrever ao atleta substância ou método de "doping" é comum nas mais diversas áreas. O esporte é um dos
proibido é reprimido com a pena de eliminação. Nesse caso todos os
profissionais envolvidos com o atleta, e, desportivamente imputáveis,
poucos segmentos que consegue fazer uma fiscalização adequada
podem cometer a infração indicada. "(Puga, 2004, p. 129) entre os seus atletas de alto rendimento, onde a utilização de subs-
tâncias proibidas é mais frequente. As regras para o controle estão
Seguindo essa tendência internacional, os gestores do esporte
no nosso país, deverão dar cada vez mais atenção a esse tema, espe- padronizadas e aceitas por todas as federações internacionais
cialmente no que se refere a educação dos profissionais da área da reconhecidas pelo IOC e quase todos os países. O sistema de coleta
saúde, dos atletas, dirigentes e sociedade em geral sobre os proble- de amostras e análise das substâncias é esíandar no mundo inteiro.
mas que podem resultar do uso de "recursos ergogênicos" proibidos. Atualmente os atletas mais destacados íem a obrigação de informar
(Revista Veja, 2006; Folha On-line-Esporte, 2007) onde estão treinando ou competindo, e até mesmo onde passarão as
A nova legislação brasileira permite responsabilizar qualquer mem- suas férias. Podem ser controlados em qualquer momento de suas
bro da comissão técnica, nos casos em que tenham sido co-responsáveis vidas, não podendo se negar a fazer o controle. Os índices de resulta-
pelo uso indevido de substâncias e/ou métodos proibidos. Espera-se dos analíticos adversos (casos positivos) são menos de 2% das
amostras coletadas em média.
que as equipes multidisciplinares que apoiam os atletas atuem dentro
das regras estabelecidas e considerando os conceitos éticos e morais Os atletas que são controlados sistematicamente, muitas vezes
sobre os quais foram estabelecidas as bases do desporto contemporâ- são os ídolos dos jovens e adultos que acompanham as suas
neo. O caso recente da atleta Marion Jones pode servir de lição para performances espetaculares. Alguns desses indivíduos são heróis em
as pessoas que tem orientado e/ou estimulado o uso de doping. Espera- seus países e por isso mesmo suas atitudes e comportamentos são
se que essa tendência possa repercutir positivamente já que deve punir seguidos pela juventude.
exemplarmente os envolvidos em atos ilícitos ocorrido no passado. No Desta forma, uma das maiores preocupações do sistema desportivo
caso da atleta Norte-Americana, ela admitiu o uso de anabólicos entre internacional é impedir que os valores morais e éticos do desporto pos-
setembro de 2000 e julho de 2001. (Folha Online, 2007) sam ser deturpados pelos interesses comerciais envolvidos no esporte
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A tendência atual é que a sociedade controle com mais rigor os CARREIRA FILHO, D. Relevância do uso de substâncias químicas, com
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parece importante é de valores e, consequentemente, da ética a ser Médicas, UNICAMP, São Paulo, 2004.
respeitada. Isto envolve todas as pessoas que fazem parte do siste- COMITÉ INTERNACIONAL OLYMPIQUE, (org.) Code Medicai du C.I.O.
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administradores esportivos. Aparentemente os exemplos que se ofe- COUBERTIN, Pierre. Memórias olímpicas. Comité Olímpico Internacional,
recem oriundos de outros segmentos como a política ou a igreja não Laussane.[1975] 141p.
são os mais adequados. Toda e qualquer regra estabelecida pela so- COMITÉ OLÍMPICO BRASILEIRO, Olimpismo: sua origem e ideais.
ciedade deve em primeiro lugar ser aceita e acatada por todos. Assim, Assessoria de Comunicação do COB/Textual e SESC/SP. 2004.
defendemos a ideia de educar e instruir adequadamente os pratican- COMITÉ OLÍMPICO INTERNACIONAL; Memórias Olímpicas por Pierre
tes e atletas e estabelecer uma formação baseada na ética e valores deCoubertin. 1979.
do esporte. Quanto aos profissionais que militam no esporte, deve-se De ROSE, Eduardo.Henrique.; NOBREGA, Antônio.Cláudio.Lucas da.
regular a sua atuação, responsabilizando-os nas situações que seus Drogas lícitas e ilícitas.In: Ghorayeb N, Barros Neto,TL. O exercício. São
atletas burlem as regras estabelecidas. Embora seja de difícil com- Paulo: Atheneu, 1999: 395-405
provação, todos os integrantes da equipe que trabalha com atletas De ROSE, Eduardo.Henrique.; NOBREGA, Antônio.Claúdio.Lucas.O
podem ser responsabilizados em caso de envolvimento num caso doping na atividade esportiva. In: Pace Lasmar N.;Camalho, G; Pace
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de, à igualdade perante a lei, ou seja, deve ter direitos civis; assim
como diretos políticos que implicam na capacidade de participar das
decisões da sociedade, votar e ser votado, e poder assumir cargos
214 .
Instrumentos de Avaliação Psicológico em Psicologia do tsporte Leonardo Mafcnina

diretivos; sem esquecer dos direitos sociais que devem assegurar o Palavras-chave: Paraolimpismo, Esporte adaptado e
alicerce, denominado democracia, que viabiliza a participação na ri- Cidadania.
queza coletiva, como o direito a educação, ao trabalho, ao salário
justo, à saúde, entre outros. Alguns estão assegurados na Constitui- Introdução
ção Brasileira e atendem a todos os cidadãos, independente da raça,
A pessoa com deficiência tem buscado espaço na sociedade
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A pes-
durante muitos anos mas permaneceu excluída por grande parte da
soa com deficiência que esteve excluída durante a maior parte da
história. Sabe-se que a partir da Revolução Francesa em 1789, a
história, a partir da segunda grande guerra começa a ter acesso a
concepção do que se entende por cidadania começou a dar os seus
uma vida dita "normal", mas o seu processo de envolvimento com o
primeiros passos, mas não conseguiu o devido reconhecimento da
esporte data do século XIX quando a ideia do assistencialismo, ainda
sociedade. As pessoas sabiam ou não da declaração formal das liber-
presente na contemporaneidade, começa a ser descaracterizada e a
dades nos documentos, contudo nas legislações esboroava, ruía, frente
visão de incapacidade total inicia seu longo processo de desconstrução.
a inexorável exclusão económica da maioria da população. Sendo
O termo paraolimpíadas surge apenas na década de 1970 corn a
assim século XIX, a busca pelos direitos sociais como ações estatais
etimologia simbólica de ser os Jogos paralelos às Olimpíadas e não os
que compensassem aquelas desigualdades, municiando os desvalidos
Jogos dos Paraplégicos como muitas pessoas à época pensavam.
com direitos implantados e construídos de forma coletiva, em prol da
Desde então as semelhanças entre ambos os eventos vêm crescendo
saúde, da educação, da moradia, do trabalho, do lazer e da cultura de
a cada edição. Na mesma proporção, aumentam os estudos sobre a
todos foi absorvida pela sociedade (FONSECA, 2007; PINSKY e
filosofia que o mesmo produz que se caracteriza como paraolimpismo. PINSKY, 2003).
Pode-se dizer que a imagem de incapacidade vem sendo apagada
Apenas depois da Segunda Guerra Mundial, que a afirmação da
pelo determinismo espontâneo da superação e também do entendi- cidadania se completou, pois percebeu-se a necessidade de valorizar
mento que a autonomia atlética valoriza a potencialidade dos indivíduos a vontade da maioria, respeitando-se, sobretudo, as minorias, suas
com deficiência. Suas limitações ficam reduzidas quando podem ser necessidades e peculiaridades. Verificou-se claramente que a maio-
superadas com adventos tecnológicos, educacionais ou médicos ria pode ser opressiva a ponto de conduzir legitimamente ao poder o
(órteses e próteses), ações que garantem autonomia para lutar pelos nazismo ou fascismo. Para que isto não se repetisse na história, fez-
mesmos direitos que os determinam tão cidadãos quanto as ditas "pes- se premente a criação de salvaguardas em prol de todas as minorias,
soas normais" e que estão sacramentados legalmente no Brasil e visto que a soma destas empresta legitimidade e autenticidade àquela
alguns países desenvolvidos. Ás condições de acesso facilitado por (FONSECA, 2007).
cotas aos estudos e trabalho facilitaram os caminhos na busca da
igualdade pela cidadania, caso em que existe grande conectividade
As deficiência e a relação entre
com o esporte, visto que nos tempos atuais, este campo tem se mos- Cidadania e
trado ser um canal para que a sociedade os entenda como pessoas
pertencentes à mesma nação, sob uma comum identidade heróica Durante grande parte da história as pessoas com deficiências
bradada no sucesso esportivo. foram excluídas de todas as possibilidades das relações polítíco-
sociais do meio em que se inseriam. Na pré-história, nas sociedades
nómades os indivíduos eram levados ao sacrifício da vida por
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Leonardo Mataruna
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte
o direito de acesso aos estudos está comprometido; que a saúde é
atrapalharem o processo de deambulação das tribos ou por serem privada de atendimento coletivo; que a questão racial passa a ser um
entendidos como pessoas amaldiçoadas. determinante de afirmação e reconhecimento social; ou ainda que o
Em algumas sociedades as pessoas com deficiência eram vis- indivíduo não possua a igualdade associada a sua dignidade social reco-
tas como seres mágicos capazes de realizar previsões, no caso dos nhecida pela sociedade, temos diversos casos de deficiências.
cegos e moucos, e no caso da deficiência de crescimento (nanismo) Deve-se levar em conta que os seres humanos que apresentam
como enviados dos deuses para a promoção do riso e de momentos uma deficiência, são PESSOAS (destaque do autor) e que devem ter
de perversão sexual. Outras deficiências eram caraterizadas apenas asseguradas seus direitos e deveres imbutidos na sua cidadania. Vale
como castigo às famílias ou a determinados grupos sociais, sendo lembrar que uma deficiência pode ser temporária (corrigível cirurgi-
associados a qualquer coisa que pudesse justificar como negativa a camente ou através de mecanismos terapêuticos) ou permanente (para
existência daquele ser humano. toda a vida), mas que de todas as maneiras as limitações que são
A sociedade brasileira, assim como outras ao redor do planeta, evidentes acabam por ser compensadas em outros aspectos que cor-
rejeitava as pessoas com deficiência pela presença de um dito "pa- roboram para um equilíbrio do ser humano. Quando o mesmo se
drão" de normalidade, que prega o modelo do indivíduo perfeito. Aqueles equibilibra em função da deficiência apresentada e da compensação
que apresentavam "defeitos" no protótipo do padrão estavam à mar- necessária para superar suas limitações e a sociedade o desequilibra
gem da média, sendo, portanto, marginalizados. Este tipo de apresentando novas barreiras através do meio em que este se insere,
pensamento preconceituoso gerava um sentimento velado de rejei- o processo de cidadania passa a ser duplo, pois primeiro existe a
ção que às vezes predomina na contemporaneidade, ainda atuando autosuperação, advinda da busca da sua autonomia pela luta dos seus
de maneira excludente às pessoas com deficiência. direitos, e em seguida a extero-superação que seria a busca
Algumas terminologias surgiram ao longo dos anos para ameni- heteronoma na afirmação da potencialidade do ser.
zar o termo deficiência. Importante ressaltar que a deficiência não Este é o pano de fundo do artigo 1° da Constituição do Brasil, ao
deve ser negada, pois de fato ela existe em todos os seres vivos. A afirmar que a República Brasileira constitui-se em Estado Democrá-
ideia de perfeição do ser, perpertuada muitas vezes através do espor- tico de Direito, cujos fundamentos repousam na soberania, cidadania,
te, com origens na Grécia Antiga, sob o termo Kalos Kai Agathos, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre
vende a falsa imagem de fortaleza. iniciativa e pluralismo político. O art. 3°, também da Constituição,
Todos os indivíduos possuem fraquezas que podem ser denomi- traça as diretrizes da sociedade inclusiva brasileira. Visando
nadas de deficiências. Algumas estão presentes nas suas formas implementar os fundamentos da República, determina que cabe ao
físicas, sensoriais, mentais ou psicológicas, e facilmente são descritas Estado construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a
por identificação visual. Outras se apresentam de maneira obscura pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regio-
pelos rastros da sociedade, pois possuem seus direitos assegurados nais, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
na legislação vigente, mas continuam tão excluídas por serem, consi- raça, sexo, cor, idade Q quaisquer outras formas de discriminação.
deradas incapazes e que assim, em razões estruturais etimológicas A sociedade deve, portanto, superar os paradigmas da mera afir-
da terminologia cidadania, continuam alijadas da sociedade sem con- mação da igualdade de todos perante a lei, como quer o art. 5° da
seguir exercer o lema da igualdade e são tidas como deficientes. A Constituição, e agir, efetivamente, para que a igualdade substancial
partir do momento em que as preferências sexuais ficam privadas; que

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instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Leonardo Matarunct

de participação política, económica e profissional de todos garanta mostrar o melhor de si, para se superar diante dos outros e em si próprio.
também a fruição das benesses sociais do acesso ao lazer, à cultura, A ideia de potencialidade, a capacidade de fazer tudo o que as outras
à educação, à saúde e à moradia. São as chamadas ações afirmati- pessoas fazem vira ingrediente do cotidiano e passa a inserir-se no in-
vas em favor das minorias que, até o presente, não tiveram sequer consciente coletivo, substituindo a ideia limitadora de incapacidade.
acesso à oportunidade de acesso à cidadania (FONSECA, 2007). Este aspecto é muito mais forte no Brasil do que em outros
O que vem acontecendo em relação às raças, aos géneros, às países no mundo. Após visitar mais de 48 países dos cinco continen-
preferências sexuais, entre outros que até pouco tempo atrás eram tes nos últimos 6 anos, e ter contato com os principais medalhistas do
tratados como minorias sociais vem determinar uma necessidade movimento paraolímpico de diferentes potências do esporte, visualizo
emergencial de se repensar o comportamento das sociedades em que o Brasil é o país com maior inserção em mídia do esporte
todo o planeta. Se fizermos um exercício reflexivo, entenderemos paraolímpico. Isto faz parte de um trabalho do Comité Paraolímpico
que a sociedade é formada de pequenas comunidades e de diferentes Brasileiro iniciado nos Jogos de Sidney' 2000, em que diversos jorna-
grupos sociais, o que nos leva à lógica de que os mesmos não são tão listas foram convidados com todas as despesas pagas para cobrir o
pequenos assim como pensado antes. Mas há de se entender que evento. Muitas pessoas criticaram esta ação que se repetiu de ma-
estes diferentes grupos vão ganhar conotações interpretativas dife- neira mais estruturada nos Jogos de Atenas' 2004 e que surtiu grande
renciadas nos locais onde se inserem de acordo com o período histórico efeito de impacto na população brasileira. As pessoas passaram a
em que se manifestam. conhecer não só os atletas mas as modalidades também que partici-
Isto fica visível quando estes grupos se mobilizam pelas suas pam dos Jogos Paraolímpicos além dos atletas que não alcançaram
diferenças e identidades, ou seja, buscam seus direitos de cidadãos bons resultados e que apenas participaram sem obtenção de meda-
exacerbando a necessidade de serem entendidos como pessoas atra- lhas. Se não fosse utilizada esta estratégia de marketing, provavelmente
vés de organizações e mobilizações públicas que exploram suas o paradesporto no país estaria como na maioria dos países que acom-
características e apontam como as mesmas estão presentes nos dife- panham o movimento, em passos lentos e com maiores dificuldades
rentes setores da produção de um país e nas diferentes ordens de das que as existentes no momento.
organização da sociedade. Como exemplo desta afirmação, temos o O grau de reflexão da potencialidade de atletas medalhistas nos
movimento gay no Brasil que vem crescendo e ganhando força de Jogos Para-Pan-Americanos impressionou grande parte da socieda-
expressão a cada ano, no qual explora suas diferenças como uma via de sobre dois aspectos, o primeiro é uma causa real, o término histórico
da aceitação da sua realidade na sociedade brasileira. O movimento em primeiro lugar no quadro de medalhas a frente de potências como
gay em outros países tem sido tão bem organizado que do ponto de EUA e Canadá; o segundo é o que chamo de improporcionalidade
vista esportivo, já possuem os Jogos Olímpicos Gay, que teve sua comparativa, que significa a comparação dos resultados da
última edição realizada em 2006 nos EUA (GAY GAMES, 2006). performance de atletas paraolímpicos com olímpicos assim como os
No caso do esporte para pessoas com deficiência, os Jogos respectivos resultados. Na verdade os atletas olímpicos que servem
Paraolímpicos têm sido uma excelente via de afirmação da capacida- de modelos para demais atletas (paraolímpicos, másíer, juvenis,
de, da autonomia e da superação das pessoas com deficiência juniores, entre outros) possuem um número de provas menores que
evidenciando a existência da diferença, mas o foco fica centrado os atletas paraolímpicos, entretanto possuem mais modalidades e maior
no indivíduo atleta, ou, melhor dizendo, no que este pode fazer para número de competidores. Uma análise correlacionando, número de

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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte
Leonardo Mataruna
atletas, número de provas, número de modalidades, número de meda-
lhas em disputa e número de participantes deveria ser realizada para possam oferecer uma complementação e lapidação do atleta. Sendo
se ter a real proporcionalidade comparativa entre os indicadores, es- assim, para que haja respeito da cidadania, deve-se deixar que os
tabelecendo assim, caso necessário um índice de correção estatística atletas decidam os seus passos iniciais de profissionalização, garan-
que permita a determinada comparação de maneira mais correia. tindo-lhes o processo autónomo inerente aos indivíduos livres.
O fato de que os Jogos Para-Pan-Americanos foram A educação física escolar é fundamental para a pessoa com
televisionados em emissora privada (tevê a cabo) com cobertura to- deficiência por inúmeros aspectos que passam desde as esferas psi-
tal dos jogos e na tevê aberta com flashes informativos durante os cológica, fisiológica, neuromotora e social, mas que atinge a formação
jornais e programas esportivos aumentou a popularidade dos atletas do princípio da cidadania pelos indivíduos de uma sociedade. O que
com deficiência em todo o país. Outra ação tida como elementar precisa ser mais bem entendido é que a educação física escolar não
neste processo se pauta na gratuidade dos ingressos para os especta- é esporte. Esta manifestação cultural faz parte dos elementos que
dores. Pela primeira vez na história de todos os Jogos Paraolímpicos compõem os parâmetros curriculares nacionais, mas não a educação
todos os eventos estavam lotados, com a participação maciça de es- física não pode ser limitada a apenas uma via de trabalho. Este mo-
colas públicas que exerciam sua cidadania ao torcerem para os atletas mento perene está destinado a educar o movimento, educar pelo
nacionais e traçavam uma relação de heroismo atlético associado a movimento e educar para o movimento entendendo o indivíduo pelo
performance e não a deficiência. todo e não de maneira fragmentada. As aulas de educação física
Algo que deve ser entendido é que nem todo deficiente vai ser devem ser mais amplas e atender a todas as pessoas que estão
atleta ou campeão paraolímpico. O esporte é uma via para a reabili- inseridas na escola.
tação, para a educação e para a saúde, e pode ainda ser entendido Sabe-se que muitas escolas apresentaram dificuldades de rea-
como educação, participação e alto rendimento, mas as pessoas de- lizar a dita equidade social após a Declaração de Salamanca que
vem praticar se o quiserem. Nenhuma pessoa pode ser obrigada a orientou a inclusão social das pessoas com deficiência na escola re-
praticar um esporte. A promoção esportiva deve ser realizada, mas gular ou convencional. Os governos ao redor do mundo iniciaram
sua obrigatoriedade está fadada à rejeição pelos indivíduos com ou desenfreadamente a incluir pessoas sem preparar as escolas para
sem deficiência. Alguns treinadores, ao se depararem com um talen- recebê-las1 Os problemas com acessibilidade são os que perduram,
to esportivo, vislumbram no atleta um "passaporte" para a participação desde as faltas de rampas, inadequação dos banheiros para a entrada
nos Jogos Olímpicos ou Paraolimpicos e exigem uma maturação do das cadeiras de rodas, carteiras inapropriadas ergonomicamente, bi-
alto rendimento de maneira precoce para não perder o atleta e obter bliotecas sem recursos especiais para as deficiências sensoriais,
resultado a curto prazo. Aquele que seria uma futura promessa e professores despreparados necessitando de capacitação para saber
poderia render frutos esportivos no tempo correio pode se frustar e lidar com as pessoas, principalmente nas aulas de educação física e
abandonar o esporte. Portanto, fica ratificado que os interesses dos educação artística, entre outros problemas que muitas vezes excluem
cidadãos que buscam a prática esportiva devem ser priorizados e o mais do que incluem os indivíduos na sociedade.
tempo de formação de urn atleta de rendimento deve ser respeitado. Entretanto, pontos positivos foram alcançados como a maior
Sabe-se que muitos professores que formam atletas de alto rendi- inserção de pessoas com deficiência na escola; uma interação mais
mento acabam freando a evolução dos mesmos quando não permitem 1
Entenda-se por escolas regulares ou convencionais os espaços educacionais diferentes
que se transfiram para clubes de alto porte ou demais locais das escolas especiais, que atendem a todas as pessoas. As escolas especiais eram destinadas
apenas às pessoas com deficiências pelas suas especialidades, como visual, auditiva e
mental.
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223
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Isporte Leonardo Mataruna

ampliada entre as pessoas com e sem deficiências; a possibilidade de ensino possam ter acesso ao conhecimento sobre as deficiências,
das pessoas entenderem melhor as diferenças e ainda o atendimento as metodologias de ensino e acesso aos materiais que reduzem as
legal de oferecer uma escola para todos os cidadãos. O esporte, que diferenças educacionais.
vem sendo adotado em escolas no momento formal ou não-formal, tem Uma medida que poderia ser adotada seria o cumprimento do
permitido a prática a apenas uma pequena parcela de pessoas com horário regular na escola convencional e aulas equiparatórias ou
deficiência, mas deveria abranger maior número de pessoas, em suas niveladoras que possam atender com maior atenção a deficiência
manifestações, até mesmo entendendo a necessidade que existe deste especifica, melhorando as possibilidades de inserção social.
ser visto como prática social. Puga et aí (2002) decrevem que: A reclamação constante de que o estado não fomenta a
"O Esporte Social deve ser contemplado com a maior parte dos capacitação docente e administrativa nas escolas acaba servindo
recursos públicos federais, estaduais e municipais voltados para a de desculpas para não atender com dignidade e qualidade as pesso-
área. Neste caso os recursos do esporte devem ser investidos qua- as com as suas respectivas diferenças imbutidas nos distindos casos
se que exclusivamente em custeio: pessoal (professores, especia- de deficiência em que apontamos neste paper. Contudo, a atualiza-
listas da área, pedagogos, etc.), material esportivo e outros. Todos ção profissional faz parte do compromisso docente já que o
os levantamentos realizados apontam para uma subtilização das
áreas esportivas existentes que, em sua maioria, demandam, quan-
profissional se compromete desde o dia de sua formatura nas esco-
do muito, pequenas reformas, solucionáveis com investimentos las universitárias com este aspecto. Se o Estado não oferece não
insignificantes. O Esporte Social deve buscar como parceiro princi- significa que o professor não deva correr para obter um conheci-
pal a escola pública, valorizando seus profissionais (principalmen- mento deficiente em sua formação a fim de preencher as lacunas
te professores) e espaços físicos. Nos bairros populares, as parce- existentes.
rias devem estar voltadas não somente paraas escolas públicas
como para associações de moradores, igrejas e demais segmentos
representativos da comunidade. Cumpre salientar que, nas peque- Considerações finais
nas reformas necessárias nos espaços esportivos existentes, o O esporte vem sendo abordado como política pública, sobretudo
envolvimento de profissionais das próprias comunidades apresen-
como meio de educação, no que tange a questão da pessoa com deficiên-
ta uma vantagem tripla: praticidade das reformas, custosmais redu-
zidos e abertura de frentes de trabalho." cia, e vem sendo objeto de análises e indicativos para o que pode se
entender como cidadania através do esporte. Em muitos momentos
Um fato preocupante é a extinção das escolas especiais, que encontram-se governantes e intituições que defendem e lutam pelas
vem acontecendo em países desenvolvidos como Inglaterra, Escócia, causas de igualdade das pessoas com deficiência buscando o esporte
Suécia, Suíça, Dinamarca, EUA, Canadá e Japão, e que em breve como uma ferramenta inclusiva para quebra de paradigmas e de pre-
pode ocorrer no Brasil, uma vez que as escolas têm número menor conceitos sociais. Mas o uso desta manifestação cultural apenas visto
de alunos para atender, consequentemente menos verbas e ainda não como esporte de rendimento tende a causar mais exclusão social e
estão preparadas para realizar a dita inclusão bilateral2. A extinção
renegação dos direitos do cidadão, o que vai na contra-mão dos ideiais
das Escolas Especiais deve ser evitada, visto que servem de modelos
dos movimentos que tentam possibilitar uma afirmação da necessidade
teóricos e de suporte profissional para que outros estabelecimentos
de tratamento equitário no plano social.
A relação entre esporte e cidadania significa exatamente o Es-
- É o processo de inclusão das pessoas sem deficiências nas escolas especiais assim
como a inclusão das pessoas com deficiências nas escolas convencionais ou regulares. porte Democrático e Educativo, ou seja, é o Esporte Social que deve

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leonardo Matoruna
instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

ser entendido como Esporte Cidadão: democratizado, e voltado para o Pode-se dizer que o esporte paraolímpico emprega
atendimento prioritário das camadas mais pobres da população (pratica- assistencialmente mais que o esporte olímpico, visto que muitos atle-
do nas escolas e bairros populares). Puga et ai (2002) descrevem que: tas hoje se dedicam exclusivamente aos treinamentos graças às
estratégias governamentais adotadas para assistir os atletas, como
"(•••) n° que tange ao esporte de alto rendimento, pode e deve
existir uma relação de complementaridade com o esporte social por exemplo a bolsa-atleta, que beneficia mais atletas paraolímpicos
(inclusive com investimentos significativos na capacitação de que atletas olímpicos, em detrimento que estes últimos possuem pa-
recursos humanos), principalmente se estas atividades tiverem seu trocinadores que dispõem mais recursos que os programas
planejamento tracejado em conjunto. E necessário não confundir governamentais. Sendo assim, pode-se dizer que os atletas
democratização do esporte com escolinhas que já estão no campo
paraolímpicos brasileiros dependem mais do auxílio do governo que
do esporte de alto rendimento, servindo como peneira para revela-
ção de atletas, representando dois conceitos diferenciados em uma os atletas olímpicos e adotam as bolsas como uma espécie de salário,
política esportiva. O esporte de alto rendimento pode estimular a numa perspectiva laborai.
geração de empregos e frentes de trabalho, a capacitação de recur- O esporte deve ser uma via facilitadora para o
sos humanos no estágio da democratização (esportesocial) visan- ententendimento de todos os indivíduos, como membros de uma
do à profissionalização para atuação não somente dentro de cam- nação de cidadãos participantes dos processos de construção co-
pos e quadras como nas diversas atividades que circundam o es- letiva, onde as diferenças sejam compreendidas como vetores
porte: árbitros, massagistas, roupeiros, fisioterapeutas, anotadores,
salva-vidas e dezenas de outras profissões. É impossível deixar de multidiferenciais para a determinação de uma cultura pluralizada
citar a importância do futebol não somente como esporte, mas como que venha determinar a identidade de um país sem preconceitos e
arte, cultura e paixão popular, fator de identidade nacional e marco marginalizações.
histórico da auto-estima do povo brasileiro, parte integrantedo ima-
ginário na constituição de nossa nação, património cultural Referências bibliográficas
inalienável.
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em 5 de outubro de 1988. Júris Síntese Millenium. Editora Síntese Ltda.
Mas um país não pode viver culturalmente de apenas um es- 2000. CD-ROM.
porte, como é a questão do futebol e o modo como a mídia dá destaque
à modalidade. Outro detalhe é que o esporte não pode ser visto DIAS, L.C.P O panorama atual da pessoa portadora de deficiência
física no mercado de trabalho. "Temas Atuais de Direito do Trabalho e
como a solução de todos os problemas sociais ou como um elemen- Direito Processual do Trabalho"- Coord. por Guilherme José Purvin de
to mágico que os políticos utilizam quando querem divulgar suas Figueiredo. São Paulo: IBAP - Instituto Brasileiro de Advocacia Pública &
marcas. Editora Esplanada, ADCOAS, 2001.
Dias (2001) analisa que a Constituição Federal de 1988, elencou FONSECA, R.T.M. A sociedade inclusiva e a cidadania das pessoas com
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ordem económica nacional a valorização do trabalho, com a finalida- GAY GAMES. InternationalFederation ofGay Games. Disponível em:
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Instrumentos ée Avaliação Fsicoiógica em Psicologia do Esporle

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PINSKY, J.; PINSKY, C.B. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, Ana Miragaya
2003.

A participação de mulheres no esporte moderno é um fenóme-


no social recente. A aceitação da participação de mulheres no esporte
moderno é um fenómeno mais recente ainda. Embora o registro da
participação feminina nos Jogos Olímpicos da Era Moderna comece
em 1900, as mulheres levaram 104 anos para ser 40,7% do número
total de atletas a participar de uma edição dos Jogos Olímpicos (IOC
- Jogos da XXVIII Olimpíada em Atenas, 2004: 10.864 atletas: 4.306
mulheres e 6.452 homens) (IOC, 2005).
Os Jogos Olímpicos da Era Moderna iniciaram oficialmente em
6 de abril de 1896, em Atenas, na Grécia, com a participação de 245
atletas masculinos de 14 países do mundo ocidental. O ídealizador do
renascimento das Olimpíadas, o barão Pierre de Coubertin (1863-
1937), homem típico de sua época, optou por seguir a tradição dos
Jogos Olímpicos da Antiguidade mantendo as mulheres fora das qua-
dras, campos e arenas esportivas, ao mesmo tempo em que reverenciou
a figura do herói da Antiguidade, portador de um físico extraordinário
e virtudes morais inigualáveis. As primeiras Olimpíadas modernas
não tiveram a participação de mulheres atletas, excluindo, portanto,
51% da humanidade. Entretanto, é possível se observar o aumento
gradual no número de mulheres atletas e um número muito pequeno
de mulheres assumindo posições administrativas e de gerência nos
comités olímpicos a partir de 1981.
O objetivo deste texto é descrever sucintamente a evolução da
participação das mulheres nos Jogos Olímpicos da era moderna:

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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Ana Miragaya

desde sua passividade ditada por crenças e valores tradicionais da menor. Entretanto, com os avanços da sociedade em face da nova
Grécia antiga e total exclusão (0,0% de participação) em 1896, até tecnologia e informação, as mulheres começaram a se dar conta de
sua inclusão parcial, pressionada pela inovação e pelas iniciativas de que a história delas teria que ser recontada de uma outra perspectiva:
emancipação feminina ocorridas ao longo do século 20. Várias con- aquela da inovação, da participação, da atividade e da inclusão social.
tribuições empíricas ilustraram este tema. que é aqui primordialmente A situação das mulheres nos Jogos Olímpicos evoluiu então de uma
visto como uma interação de oposições. total exclusão no início da nova edição dos Jogos Olímpicos para al-
A inclusão das mulheres nas Olimpíadas veio a ser feita gradual- guma inclusão ao longo dos anos. O avanço e a conscientização das
mente por elas próprias como resultado do seu desenvolvimento e da mulheres em relação ao seu novo posicionamento pressionaram a
conscientização de um papel ativo que elas já começavam a exercer sociedade a chegar ao ponto em que o próximo passo não era se as
na nova sociedade industrializada da segunda metade do século 19 e mulheres poderiam participar dos Jogos, mas como elas participariam:
no decorrer do século 20. As mulheres começaram a conquistar em quais esportes ou modalidades esportivas e em quais posições,
novas posições em seus países, tornando-se mais ativas, e especial- inclusive de gerência em instituições olímpicas nacionais e internacio-
mente lutando para se tomarem cidadãs com direito ao voto. Se as nais as mulheres poderiam participar. A 'permissão' e a extensão desta
mulheres estavam cada vez mais querendo ocupar um lugar na or- participação ainda estão sendo prescritas pelos membros do Comité
dem social, não era muito diferente no mundo do esporte. Pouco a
Olímpico Internacional (COI), cuja maioria é composta de homens
, pouco as mulheres começaram a invadir uma área que nunca lhes (DeFranz, 1997).
-havia pertencido e que lhes era bastante atraente. A prática do espor-
te e da atividade física lhes dava prazer, porém o esporte sempre foi
um construto masculino do qual muito raramente as mulheres fize-
A Tradição dos Jogos Olímpicos do Antiguidade
ram parte. Alem disso, crenças tradicionais sempre prescreveram Nos tempos da Grécia Antiga, raiz de toda tradição ocidental, os
que o cansaço físico e a competição eram contrários à natureza da atenienses acreditavam que as mulheres deveriam andar cobertas
mulher. Acreditava-se que o lugar da mulher era dentro de casa, num dos pés à cabeça para não serem vistas; logo, elas não podiam parti-
mundo interno e particular, tomando conta do lar e dos filhos e que o cipar de competições esportivas porque elas teriam que se expor.
lugar do homem era fora de casa, no mundo externo e público, traba- Além disso, acreditava-se que o corpo feminino era condicionado para
lhando para o sustento da família (Miragaya & DaCosta, 2002). a maternidade. Na mesma época, os Jogos da Deusa Hera, cujos
A história de inclusão das mulheres no esporte é identificada por primeiros registros datam de 200 a.C. eram jogos que incluíam mu-
algumas autoras (DeFranz, 1997; Hargreaves, 1984; Thèberges, 1991) lheres atletas jovens e solteiras em competições a cada quatro anos
como uma história de poder e dominação masculina sobre as mulhe- (The Real Síory ofthe Ancient Olympic Games, 2005). As mulhe-
res e também como uma história de desigualdades onde as mulheres res que competiam nos Jogos de Hera não tinham o status de heroínas
sempre tinham papéis de submissão, sem poder procurar respeito e porque elas não preenchiam os requisitos dos heróis olímpicos pelo
igualdade. Outros pesquisadores qualificaram essa mesma história tamanho corporal, força física, habilidades e técnicas. Suas competi-
como produto do colonialismo europeu e norte-americano, que espelha ções eram mais simples e não exigiam o mesmo preparo físico
seus próprios jogos sem considerar aqueles que representam os po- masculino (Olympic Women, 2005).
vos nativos do resto do mundo (Boutilier & Giovanni, 1991). É uma O primeiro registro dos Jogos Olímpicos da Antiguidade data de 776
história baseada na tradição, onde mudanças e inovação tinham papel a.C. Embora somente homens pudessem competir nas Olimpíadas, que
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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Ana Miragaya

eram em honra a Zeus, algumas mulheres tinham permissão para as- eram considerados vitoriosos e heróis, eles tinham direitos a grandes
sistir. Essas mulheres eram jovens e solteiras à procura de um marido honras e privilégios. A cultura do vitorioso transformou-se na cultura
(Miragaya, 2002). Elas deveriam observar os corpos fortes e falar com do herói, que vem sendo carregada através da tradição ao longo de
seus irmãos ou pai sobre aquele atleta que queriam para marido. Entre- séculos até a sociedade de hoje (Luzenfichter, 1996; IOC, 2005).
tanto, mulheres casadas eram proibidas de assistir às Olimpíadas sob Às mulheres também era dado valor, mas pela qualidade dos
pena de morte. A única mulher casada que tinha permissão de assistir filhos que elas produziam; portanto, elas não podiam competir ou par-
aos Jogos era a Pitonisa de Demeter (Luzenfichter, 1996). ticipar de atividades físicas similares porque se pensava que a mulher
As mulheres chegaram a ser prémios para os vencedores das era muito delicada e frágil, tendo que se restringir à vida doméstica e
corridas de biga ou charrete. mas participaram indireíamente como levar um estilo de vida restrito a casa. Essa crença, cultivada através
competidoras em alguns Jogos Olímpicos na condição de proprietárias dos séculos e ainda existindo quando os Jogos Olímpicos foram re-
de cavalos. A princesa espartana Kyniska foi a primeira a ganhar editados por Coubertin, foi aos poucos se modificando na medida em
uma medalha de ouro nos Jogos e ter seu nome incluído entre os que a ciência se desenvolveu para provar que as mulheres podiam
'heróis' através de estátua e homenagem. Ela era a criadora dos fazer o mesmo que os homens e ainda ter filhos.
cavalos de raça que foram vencedores nos Jogos de 396 a.C. e de Os Jogos Olímpicos da Antiguidade duraram 12 séculos e foram
392 a.C. (Miragaya, 2002). abolidos em 393 pelo imperador romano cristão Teodósio II por cau-
É interessante observar que as primeiras mulheres atletas vieram sa do mau relacionamento entre gregos e romanos, da brutalidade e
de Esparta, particularmente porque os espartanos acreditavam que as corrupção que reinava durante os Jogos, mas também por que ele
mulheres que eram saudáveis tinham condicionamento físico e se exer- acreditava que os festivais eram pagãos. Alguns anos mais tarde, o
citavam regularmente teriam filhos saudáveis. Inicialmente esta filosofia estádio de Olímpia, onde aconteciam as competições, foi arrasado e
de inclusão pode parecer bastante diferente da filosofia ateniense, que os campos olímpicos, destruídos (Luzenfichter, 1996).
preconizava a domesticidade e a reclusão feminina (Luzenfichter, 1996).
Na verdade, os espartanos estavam colocando a atividade física a ser-
O Renascimento Jogos; Tradição Mantida
viço da função feminina da procriação. As mulheres não tinham papel
de heroínas na condição de serem ativas e atletas. A participação das As celebrações desapareceram por quase mil anos até que al-
mulheres não era considerada importante especialmente porque os guns aficionados pelos Jogos Olímpicos da Antiguidade consideraram
antigos gregos eram altamente competitivos e acreditavam muito no renascê-los nos séculos 18 e 19 em vários países europeus. Dentro
conceito de agon, ou seja, competição para a excelência. Essa compe- de contextos variados, com diferentes objetivos, alguns empreendi-
tição, no entanto, só acontecia entre os homens, que eram os únicos mentos foram bem sucedidos enquanto outros não passaram de sonhos
que poderiam se extenuar fisicamente. (Miragaya & DaCosta, 2006).
O objetivo mais importante dos gregos era sempre ser o melhor Em 1881, Ernst Curtais, um arqueólogo alemão, que dirigia um
em termos de condutas, atitudes, comemorações e festividades. To- grupo de pesquisa, descobriu as ruínas do estádio de Olímpia. A des-
dos os aspectos da vida, especialmente o esporte, estavam centrados coberta alemã do sítio arqueológico e, especialmente, seu contato
nessa crença cultural. Eles davam valor à força, competitividade, agi- com William Penny Brookes foram dois dos vários fatores que
lidade, velocidade e outras qualidades físicas que acreditavam ser evocaram no barão Pierre de Coubertin um interesse especial
inerentes somente ao sexo masculino. Como os campeões olímpicos nos festivais olímpicos do passado, principalmente devido ao
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Insfrumenlos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Ana Miragaya

nacionalismo e à educação francesa que havia recebido (Miragaya Pelo fato de ter não ter incluído as mulheres e de ter mantido os
& DaCosta, 2006). Sua vaga proposta em 1892 para um festival espor- mesmos valores tradicionais de outro povo de uma época distante no
tivo internacional foi inicialmente recebida com olhares estupefatos. passado, é possível que Coubertin tenha também resgatado com isso
Ele não desistiu. Como secretário geral da Union of French Societies o espírito do herói olímpico, que tem inspirado atletas do mundo todo
of Athletic Sports (União das Sociedades Francesas de Esportes Atlé- por décadas. Não houve o resgate da figura da heroína por que na
ticos), ele visitou faculdades, universidades e clubes esportivos realidade ela nunca existiu (Miragaya & DaCosta, 2006).
particulares, falando para quem quisesse ouvi-lo. Então, em 1894, fa-
lando na Sorbonne, em Paris, num encontro com representantes de A mulheres; o da
nove países, incluindo os Estados Unidos e a Rússia, ele argumentou e
propôs o renascimento dos Jogos Olímpicos da Atualidade numa esca-
la internacional. Com a aprovação dos ouvintes, ele fundou o Comité Apesar dos esforços que Coubertin fez para manter as mulheres
Olímpico Internacional (COI) para organizar os Jogos Olímpicos e ela- fora das competições, houve uma competidora exíra-oficial na marato-
borar as regras para os eventos (Miragaya & DaCosta, 2006). na de 1896: uma mulher grega pobre que acabou sendo conhecida
Coubertin decidiu que os primeiros Jogos aconteceriam em Ate- como 'Melpomene', cujo nome verdadeiro era Stamata Revithi. Ela
nas, onde se deu a origem dos festivais do passado, e nomeou o grego não teve permissão para competir, porém fez o mesmo trajeto de 42
Demetrius Vikelas como primeiro presidente do COI, (IOC, 2005). km no dia seguinte, sendo que a última volta, aconteceu fora do estádio
Com o mesmo entusiasmo com que saudou a descoberta arqueológi- porque a entrada lhe havia sido proibida. Como os organizadores do
xa alemã na Grécia e com a mesma energia com que propôs o evento não lembravam o nome dela, apelidaram-na de 'Melpomene', a
renascimento dos Jogos Olímpicos, Pierre de Coubertin manteve com- musa grega da tragédia. Olhando para Stamata Revithi, eles só viram
pletamente sua coerência com a antiga tradição grega da não-inclusão drama e não o seu feito extraordinário (DeFrantz, 1991). Ela havia
das mulheres atletas nos Jogos. Ele era completamente contra a prá- terminado sua corrida menos de duas horas atrás do vencedor (em 4
tica de esportes e atividade física pelas mulheres assim como a maioria horas e meia) e foi mais rápida de que alguns de seus adversários
dos homens de sua época. De acordo com ele, as mulheres tinham a masculinos (Théberge, 1991). Ela foi a primeira inovadora a enfrentar
função de procriação: "a glória de uma mulher viria através do núme- as barreiras da tradição, buscando a inclusão no esporte olímpico.
ro e da qualidade dos filhos que produzisse. Até onde concerne o Os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna aconteceram no
esporte o papel da mulher é de encorajar seus filhos para vencer. A final do século 19, quando o mundo ocidental vivia o início da época
ela não cabe bater recordes". Os Jogos eram "a manifestação perió- do avanço da ciência e da tecnologia que mudariam a cara do século
dica solene de esporte masculino baseado no internacionalismo, na 20. A industrialização e a reforma social foram essenciais para deter-
lealdade como meio, na arte como conhecimento básico e no aplauso minar a direção que os países mais ricos do mundo, como os Estados
das mulheres como recompensa" (Boutilier & Giovarmi, 1991). Como Unidos e nações europeias, iriam tomar dali para frente. Aos poucos
Lunzenfichter (l 996) relata, Coubertin ainda afirmou que uma "Olim- as novas invenções foram sendo incorporadas às indústrias que co-
píada feminina seria impraticável, desinteressante, antiestética e meçavam a florescer. Mais trabalhadores estavam sendo necessários
incorreta", logo após obter o apoio do papa Pio XI, que havia seria- para empurrar à frente as várias economias mundiais que desponta-
mente condenando a prática de esporte pelas mulheres. vam. As mulheres já tinham começado a trabalhar fora de casa e
estavam começando a ingressar no mercado de trabalho em maior
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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Ano Miragaya

número por causa da demanda, assumindo, portanto, novos papéis A inclusão diferentes,
dentro da sociedade. À medida que elas começavam a participar leituras
mais na economia de seus países, elas queriam ser ouvidas como
a. de a
cidadãs e ter direito ao voto. Muitas organizações de mulheres fo-
ram fundadas para lutar por sua cidadania. Pouco a pouco, as mulheres Hargreaves (1984) identificou três períodos de participação de
foram saindo da passividade e submissão para a atividade, iniciativa e mulheres atletas nos Jogos Olímpicos da Era Moderna: (1°) de 1896 a
inclusão. Mudanças na área do esporte feminino também começa- 1928: (2°) de 1928 a 1952 e (3°) de 1952 até hoje.
ram a ocorrer no final do século 19 e início do século 20. O primeiro período é caracterizado pela tradição da exclusão e
Embora o COI regulasse as atividades olímpicas, Comités Olím- alguns esforços para resistir a essa prática. Foi também a época em
picos Nacionais (CONs) tiveram que ser criados nos países que que as mulheres estavam começando a trabalhar fora, tendo mais
queriam participar dos Jogos. No início, os comités nacionais locais acesso à educação, lutando para ter direto ao voto e tentando se
organizaram os Jogos Olímpicos em suas respectivas cidades. Os ajustar às mudanças constantes de uma nova sociedade que exigia
Jogos de 1900 e de 1904 aconteceram junto com Feiras Mundiais; novos papéis de género. Este período inclui os anos de 1920, quando,
portanto, a escolha das modalidades esportivas a serem incluídas nos de acordo com Théberge (1991), havia alguma luta pelo controle do
Jogos Olímpicos estava nas mãos dos comités organizadores das fei- esporte feminino internacional e pela forma e definição da participa-
ras e, logo, fora do controle do COI (Miragaya & DaCosta, 2006). ção das mulheres. Na medida em. que o progresso empurrou os países
Na realidade, as Olimpíadas demoraram um pouco para se populari- industrializados para frente, também pressionou uma mudança no es-
zar. Os Jogos de 1906, chamados de Jogos Intermediários pelo COI, porte feminino internacional. Já que o COI se recusava a incluir o
\ealizados em Atenas e organizados pelos gregos, e os de 1908, de atletismo feminino nos Jogos Olímpicos, a francesa Alice de Milliatt
Londres, organizados pelo Comité Olímpico Britânico foram mais bem desafiou a situação da época, fundou a Fédération Sportive Féminine
organizados, e tiveram a participação de atletas femininas, especial- Internationale (Federação Esportiva Feminina Internacional) e orga-
mente as convidadas para demonstrações esportivas de ginástica nizou os primeiros Jogos Olímpicos Femininos em 1922 (Drevon, 2005).
(Miragaya & DaCosta, 2006). Os Jogos Olímpicos de 1912 em Esto- Eles foram tão bem sucedidos que foram reeditados em 1926, 1930 e
colmo foram praticamente os primeiros a serem organizados pelo 1934 como The Women's World Games (Jogos Femininos Mundiais).
COI (Miragaya & DaCosta, 2006). Eles se tornaram visíveis ao COI especialmente por causa do enor-
É importante mencionar que o patrocínio sempre foi um fator me interesse do público, contrariando declarações de Coubertin, que
decisivo para a participação da mulher atleta nos Jogos Olímpicos. Nem dizia que o esporte feminino era 'desinteressante'. Os Jogos Femini-
todas as mulheres tiveram ou têm a credibilidade e o apoio dos comités nos Mundiais com seu enorme público pressionaram o COI a
locais e de patrocinadores, logo, torna-se bastante difícil para muitas incorporá-los permanentemente aos Jogos Olímpicos, porém somen-
atletas conseguirem viajar para os locais de competição. A maioria te depois de longas negociações e manobras políticas (Miragaya &
delas não trabalha fora e quando o fazem, a renda tende a ser bem DaCosta, 2006). Os Jogos Femininos Mundiais também influencia-
mais baixa do que a renda masculina. Os atletas masculinos, por sua ram os Jogos Femininos no Brasil em 1933 (Tavares) e em 1949
vez, têm mais credibilidade devido à tradição, portanto, conseguem mais (Mourão & Soares, 1999).
oportunidades. Além disso, a renda masculina tende a ser maior do que As mulheres estavam começando a vencer suas batalhas para
a feminina, o que lhes permite fazer investimentos em viagens. a inclusão, o que pode ser observado nas palavras de Coubertin quando
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Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte Ana Miragaya

ele deixou a presidência do COI em 1925: "Eu continuo contra a b. de a


participação das mulheres nos Jogos Olímpicos. Elas foram incluídas Esses dois significados foram levados para a segunda fase.
em grandes números contra a minha vontade" (Pfister, 2000). Hargreaves (1984) identificou o período entre 1928 e 1952 como de
Foi ainda durante o período 1896-1928 que apareceram dois luta e de consolidação. As mulheres se esforçaram muito para se
pontos cruciais de debate sobre o envolvimento da mulher no espor- tornarem visíveis e para consolidar sua posição como esportistas.
te. Eles iriam influenciar por um bom tempo o papel da mulher no Este era um conceito novo não somente para elas, mas também para
esporte e sua participação nos Jogos Olímpicos. O primeiro ponto, a sociedade como um todo. As mulheres estavam numa situação com-
ainda baseado na tradição e relacionado à sabedoria médica pobre e plexa que exigia a criação de modelos de mulheres que praticavam
limitada da época, com nenhuma evidência que pudesse provar, pro- esportes e que participavam de grandes competições como os Jogos
moveu crenças baseadas na suposta fragilidade natural da mulher e Olímpicos. As mulheres até então só podiam se espelhar em modelos
condenou a atividade física vigorosa como perigo para a saúde e o do sexo masculino: os heróis das Olimpíadas. Elas se viram então
bem-estar da mulher. Conseqiientemente, ao longo das várias Olim- numa encruzilhada que apontava em duas direções: ou elas continua-
píadas, a participação de mulheres no atletismo e em esportes de vam a seguir o modelo masculino tradicional, que já existia com sua
equipe, que exigiam contato físico, era feita de forma restrita e su- temática própria, ou então elas teriam que inventar modelos novos de
postamente baseada no caráter da fragilidade. A mulher ainda era o mulheres do esporte, baseados nelas próprias e em sua temática fe-
ser que procriava, biologicamente diferente do homem, e sujeita a minina. Naquela época a decisão ficou para a primeira alternativa,
prescrições dos médicos, todos, claro, do sexo masculino. As mulhe- que significava alguma inclusão, especialmente por causa do acesso
res foram então excluídas das modalidades de força do atletismo e limitado aos esportes olímpicos imposto pelo COI em 1928.
j somente aos poucos as equipes femininas de esportes coletivos fo- As mulheres deram um pequeno passo à frente e garantiram
ram introduzidas nos Jogos Olímpicos. seu papel com participantes ativas no esporte e na sociedade. Esta
O segundo ponto de debate era sobre o controle do esporte femi- posição de certa estabilidade foi reforçada durante os anos 40, quan-
nino, assunto novo para a sociedade e para as mulheres. De acordo do as mulheres tiveram que ser mobilizadas em maior número para
com a tradição, as posições ativas de comando e poder deveriam per- ocupar os postos deixados pelos homens que tiveram que ir para os
tencer aos homens e não às mulheres. Estas deveriam obedecer e se campos de batalha na Europa. A Segunda Guerra Mundial impediu as
manter passivas. Muitas disputas ocorreram sobre quem deveria con- edições dos Jogos Olímpicos dos anos 1940 e 1944. Por outro lado, a
trolar o esporte feminino nacional e internacional e quais deveriam ser participação maciça direta e indireía e a consequente maior inclusão
a forma e definição da participação da mulher. Para seguir a tradição das mulheres na economia de seus países que estavam em guerra
mais uma vez, as mulheres continuaram excluídas, fora do controle de contribuíram enormemente para o re-posicionamento da mulher na
sua própria participação no esporte nacional e internacional. sociedade e para a conscientização do lugar que ocupavam.
Sumarizando, é possível afirmar que os acontecimentos das dé- Durante esta época, o modelo da mulher esportiva, baseado nas
cadas de 1920 e de 1930 tiveram dois significados essenciais de cunho diferenças biológicas e que havia sido construído durante os anos 30,
cultural e social: (1) a definição e o significado do esporte feminino foi levado para os currículos escolares e acabou limitando a forma
baseados nas diferenças biológicas e (2) o controle da organização com que as mulheres olhavam sua própria capacidade atlética e es-
dos esportes femininos como uma função tipicamente masculina. portiva. Entretanto, ao final deste período, a participação de mulheres

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Instrumentos de Avoliaçõo Psicológica em Psicoiogia do Esporte Ana Míragoya

atletas nas Olimpíadas transformou-se num fato corriqueiro. Os gan- Mesmo quando os países que faziam parte da antiga União So-
hos eram conservadores porque o modelo da mulher atleta que havia viética começaram a competir por si próprios nos Jogos Olímpicos, o
sido adotado espelhava o do herói masculino e reforçava o ideal fe- número de medalhas ainda era mais importante do que o género dos
minino atlético, seu significado cultural e o mito da fragilidade feminina atletas que as recebiam. Sempre que um atleta, masculino ou femini-
(The Real Story ofthe Ancient Olympic Games, 2005). Daí então é no, conquista uma medalha de ouro, o hino de seu país é ouvido e a
possível observar a manutenção dos papéis tradicionais da mulher. bandeira hasteada, tornando aquele país visível para o mundo (IOC,
2005). Já era o período da Guerra Fria. O número de medalhas signi-
c. opôs ficava quantas vezes esses países eram homenageados com suas
O ano de 1952 dá início a um período de desafios à hegemonia vitórias. Uma vez que os países do bloco soviético tinham descoberto
masculina no esporte olímpico, especialmente por causa de dois even- uma nova forma de se tornarem visíveis e de fazer propaganda polí-
tos (Boutilier & Gíovanni, 1991). Não se pode dizer que durante esta tica, o mundo ocidental foi forçado a se preocupar com sua própria
fase as relações de género seriam reconstruídas para compensar por posição nas Olimpíadas e a prestar maior atenção na participação e
desigualdades passadas, porém pôde se observar que as mulheres no desempenho das mulheres. Começaram então a investir no treina-
descobriram novos caminhos para lutar contra a exclusão, tradição, mento e na preparação delas. As mulheres souberam aproveitar a
passividade e as tarefas impostas pela sociedade para então tentar oportunidade e se beneficiaram da situação, tornaram-se inovadoras
alcançar seus objetivos de inclusão, inovação, atividade e o design de e começaram a aumentar sua participação.
novos papéis num mundo que estava mudando rápido demais. Uma O segundo evento aconteceu nos anos 60. Foi o movimento femi-
análise em perspectiva do passado recente e das mudanças detecta- nista que ocorreu na América do Norte e na Europa como consequência
das nas Olimpíadas de 2000 pode ilustrar esses pontos. do desenvolvimento científico e tecnológico, especialmente por causa
O primeiro acontecimento foi a entrada da União Soviética e da invenção da pílula anticoncepcional, que ajudou as mulheres a en-
dos outros países do bloco do Leste como novos participantes na frentar os métodos tradicionais, controlar sua vida sexual, e planejar
expansão dos Jogos que aconteceram em Helsinque, na Finlândia, no sua família. Os novos papéis que as mulheres assumiram durante e
pós-guerra. Estes países não discriminavam as mulheres atletas por- depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente relacionados à sua
que tinham objetivos e tradições culturais diferentes, nas quais as entrada no mercado de trabalho e consequente emancipação financei-
mulheres já haviam sido incluídas muito tempo atrás. Valorizava-se ra, adicionaram-se aos avanços da ciência produzindo um re-pensar da
demais o desempenho dos atletas sem discriminação do género dos posição da mulher na sociedade: um desafio às ideias tradicionais sobre
vitoriosos. Grandes investimentos materiais e sociais no treinamento os papéis do género. Como resultado desse novo posicionamento, foi
desses atletas haviam sido feitos para que eles pudessem participar possível observar um aumento na participação das mulheres no espor-
nos Jogos Olímpicos. Conseqílentemente, o número de atletas mu- te e, com ele, a preocupação com a posição de desigualdade da mulher
lheres participantes aumentou de 385 em 1948 para 518 em 1952. As na sociedade e no esporte.
novas atletas se tornaram visíveis por seu desempenho de sucesso, O número de atletas olímpicas tem aumentado. Pode até pare-
expondo seu treinamento e sua educação específica nas escolas e cer que as mulheres já tenham atingido posições de igualdade em
faculdades (Schneider, 1996). O número de medalhas era o mais im- relação a sua representação em números. Nos Jogos de Sydney o
portante para os estreantes nas Olimpíadas. número de mulheres atletas (4.069) foi 38,3% do número total de

240 241
Ana Miragaya
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

representantes femininas no movimento mundial é ainda uma tarefa


atletas participantes (10.651) enquanto que em Atenas foi de 40,7%
mais desafiadora na medida em que cada país se move na sua pró-
(4.306 mulheres) do total de 10.864 participantes. Se o objetivo é
pria velocidade em direção a igualdade dos sexos de acordo com seu
alcançar 52,0% como proposto por Lucas (l 999), há ainda um cami-
próprio contexto (DaCosta & Miragaya, 2002). De alguma forma, as
nho longo a percorrer.
mulheres que têm mais talento devem descobrir seu próprio caminho
para preencher posições locais, nacionais e internacionais e, exata-
O futuro
mente como os homens têm feito ao longo dos séculos, e aproveitar
Enquanto a biologia e a fisiologia podem oferecer condições para as oportunidades.
melhor interpretar as diferenças entre os sexos, acrescentando mais De acordo com Schneider (l 996), "qualquer organização que rei-
esportes e modalidades às agendas das mulheres atletas, os contex- vindica o desenvolvimento humano como um de seus principais objetivos
tos cultural e social continuam a mostrar as diferenças e desigualdades tem que apoiar a representatividade completa da mulher em todos os
entre os géneros. níveis da organização. Negar as mulheres o seu próprio espaço - do
É questionável que a Inglaterra, a Alemanha, a Austrália, os Esta- lado dos homens como iguais e parceiros - é errado e vergonhoso".
dos Unidos e a Rússia aumentem seus números de atletas olímpicas Novas políticas de incentivo para mulheres que praticam esporte
sem que, ao mesmo tempo, a América do Sul, a América Central, a terão impacto positivo no perfil da mulher olímpica e no seu novo papel
África e as nações islâmicas enviem suas atletas para as Olimpíadas. na sociedade. Pela primeira vez as mulheres nas áreas do esporte es-
Como o mundo do esporte reflete a sociedade, pode ainda levar mais tarão capacitadas a fazer suas escolhas quando chegarem à
algum tempo para que as sociedades islâmicas, as culturas menos encruzilhada. Elas poderão escolher e seguir o exemplo do herói mas-
favorecidas economicamente e um número de países nos quais a igreja culino ou desenvolver seu próprio construto feminino como heroínas e
católica tradicionalmente tenha compartimentalizado meninos e meni- líderes sem levar em consideração que posição ocupam no mundo dos
nas a desempenharem papéis específicos na sociedade abrirem espaço
esportes se esportistas, administradoras, gerentes, representantes dos
para a igualdade no esporte e em outras funções ligadas ao esporte. As
CONs ou até mesmo se for presidente do COI. Elas estarão conscien-
culturas e costumes antigos devem ser respeitados; crenças milenares
tes de que também têm o direito ao esporte e à prática da atividade
não podem ser eliminadas. A tradição no sentido da exclusão deve ser
física e se sentirão com o poder de escolher qualquer um dos dois
re-analisada por lideranças diferentes para que seja tratada de forma
caminhos que as leva à inclusão no esporte e à inclusão social.
diferente. É essencial se considerar que o esporte é um direito humano
já que ele pertence a todos os seres humanos, homens e mulheres,
Conclusão
meninos e meninas. As diferenças biológicas têm que ser respeitadas
para que a humanidade atinja a igualdade social, especialmente no es- Olhando para 1896, é possível observar que as mulheres progredi-
porte. A atividade física e o esporte são direitos do ser humano e devem ram muito em seus desafios e lutas. Elas trabalharam bravamente para
ser incluídas em todas as práticas. se inserirem na sociedade de forma igualitária e têm sido bem sucedidas
O objetivo desejável da liderança olímpica é para que as mulhe- em vários aspectos. Elas conquistaram a cidadania e sua inclusão nos
res de cada país participem dos Jogos Olímpicos como atletas, Jogos Olímpicos, mas ainda não atingiram a igualdade em termos de
treinadoras, e administradoras e também como representantes números. Será que elas se tornaram heróis, heroínas ou mediadoras
nos CONs, nas federações e no COI. Aumentando o número de (Tavares, 2002)? Será que já atingiram uma posição de equilíbrio?

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Instrumentos de Avaliação Psicológico em Psicologia do Esporie Ana Miragaya

Seria inimaginável há alguns anos atrás que as mulheres iriam procurar um modelo de conflito-resolução equilibrado em termos de
competir numa maratona e na corrida dos 10.000 metros, ou jogar oposições dentro do Movimento Olímpico?
futebol com habilidade, dedicação e poder das mulheres das Olimpí-
adas de 2000. Ao mesmo tempo, seria difícil de imaginar que as
mulheres ocupariam alguma posição no COI ou chefiariam um Co-
mité Olímpico Nacional, embora a extensão das mudanças a níveis BOUT1LIER, M. & GIOVANNI, L. (1991) Ideology, Public Policy and
Female Olympic Achievement: a Cross-National Analysis of the Seoul
organizacionais não tem sido tão dramática quanto aquelas entre par- Olympic Games. In Landry. R, Landry, M. & Yerlès, M. (Eds), Sporí... The
ticipantes. Há ainda algumas barreiras para serem superadas, das ThirdMillenium, p. 397 - 412.
quais a mais crucial é dividir o poder com a figura masculina que DACOSTA, L. & MIRAGAYA, A. (2002). WorldwideExperiences and
representa a tradição e o poder no esporte. As mulheres têm questi- Trenas in Sportfor AH. Aachen: Meyer & Meyer.
onado papéis tradicionais e se tornado mais conscientes de seu lugar
DEFRANTZ, A. (1991). Progress Made, Pitfalls and Conditions for
no terceiro milénio. Elas aprenderam a pensar que as diferenças bio- Further Advancement of Women in the Olympic Movement. In Landry, F.,
lógicas são parte delas próprias e que as permitem competir em seus Landry, M. & Yerlès, M. (eds), Op. C/í., p 413 - 418.
próprios termos, mas tendo as mesmas oportunidades que os homens. DEFRANTZ, A. (1997). J&sjChanging Role of Women in the Olympic
É importante mencionar que a inovação que causou a inclusão da Games. Trabalho apresentado na 37a Sessão Internacional para Jovens
mulher nas Olimpíadas da Era Moderna pressionou a ciência e a Participantes - IOA Report, Ancient Olympia.
tecnologia para a pesquisa e novas descobertas que têm mostrado que DREVON, A. (2005). Alice Milliat Lapassionaria du Sport Féminin.
as mulheres podem de fato fazer mais do que elas pensaram que pode- Paris: Vuibert.
riam: não somente em termos de participação em Olimpíadas, mas HARGREAVES, J. (l 984). Women and the Olympic phenomenon. In
também em termos de participação em qualquer tipo de atividade físi- Tomlinson A. & Whannel, G. (Eds). FiveRing Circus. London: Pluto
Press p. 53-70.
ca. A pressão que as mulheres têm feito para terem o direito de participar
j das Olimpíadas como seres humanos tem contribuído muito para o di- INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE (2005). Recuperado em 14 de
reto que elas têm agora de praticar esportes e atividade física. maio de 2005, da Rede Internacional de Computadores: http://
www.olympic.org/uk/organisation/commissions/women/
A mulher de amanhã precisa hoje de modelos femininos de atletas, full_story_uk.asp?id= 1017
dirigentes, líderes, administradoras, heroínas como incentivo a desenvol-
LUCAS, J. (1999). The Future ofthe Olympic Games. Champaígn: Human
ver carreira no esporte. Isso significa também que necessita de modelos Kinetic,ppl33-143.
femininos em todas as outras esferas da sociedade: na sua família, na sua
LUZENFICHTER, A. (1996). Women andOlympism. International Olympic
escola, na sua cidade, em seu país e demais organizações. Academy. Paper presented at the 36* International Session for Young
A mulher olímpica é um modelo ideal. Os desafios futuros tor- Participants - IOA Report, Ancient Olympia.
nam-se mais claros porque eles contrastam com este modelo. E MIRAGAYA, A. (2002). The female Olympian. In DaCosta, L. Olympic
necessário consolidar igualdade de direitos e diferenças nas práticas Studies Current Intellectual Crossroads. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho.
e na educação porque este parece ser o único caminho. As mulheres
MIRAGAYA, A. & DACOSTA, L, (l 997). Atividades físicas sistemáticas e
então sentirão que tem os mesmos direitos e saberão que caminho a mulher: inclusão no lazer, na família e no trabalho (trabalho não-
escolher. Será que essa posição representa um bom exemplo de como publicado).

244 245
Instrumentos de Avaliação Psicológica em Psicologia do Esporte

M1RAGAYA, A. & DACOSTA, L. (2006). The Process ofinclusion of


Women in lhe Olympic Games. Tese de doutorado, Universidade Gama na
Filho.
MOURÃO, L. & SOARES, A. (1999). 1949 -1972 Duração das Olimpíadas
a
Femininas no Brasil via Jornal dos Sports - Rio de Janeiro. In Tavares, O
& DaCosta, L. (Eds) Estudos Olímpicos, Editora Gama Filho, Rio de
Janeiro, Brasil: p.98-107. a
OLYMPIC WOMEN. Recuperado em 20 de maio de 2005, da Rede
Internacional de Computadores: www.olympicwomen.co.uk/.
Marcelo Olivera Cavalli1'2'3-4
PFISTER, G. (2000). Women and the Olympic Games: 1900 - 97. In Roberto Malufde Mesquita'-4
Drinkwater, B. Women and Sport. The Encyclopedia of Sports Medicine.
Adriana Schuler Cavalli3
An IOC Medicai Commission Publication in collaboration with the
International Federation of Sports Medicine. Oxford: Blackwell Science. Vera Lúcia Pereira Brauner1-4
Fábio Rodrigo Suné1-4
SCHNEIDER, A. (1996). Women in theRepublic and the Olympic
Movement. Trabalho apresentado na 36a Sessão Internacional para
Jovens Participantes - IOA Report, Ancient Olympia. introdução
TAVARES, O. Women 's Games in Brazil in 1933 (em pesquisa). O esporte contemporâneo assume presença substancial na com-
TAVARES, O. (2002). The Olympic Athlete: Hero or Mediator. In DaCosta. preensão, organização e relações da sociedade hodierna. É quase
L. Olympic Studies. Editora Gama Filho: Rio de Janeiro. Brasil. como se ele fosse um elemento constitutivo dessa sociedade. Como
THE REAL STORYOF THE ANCIENT OLYMPIC GAMES. Recuperado se o homem estivesse atrelado a um modelo de vida dependente e
em 14 de maio de 2005, da Rede Internacional de Computadores: delineado pelas crenças, valores e preceitos da ordem esportiva do-
www.upenn.edu/museum/Olympics/olympicsexism.html.
minante. Poucos são aqueles que percebem o esporte como um
THÉBERGE, N. (1991). Women and the Olympic Games: a consideration of elemento acessório da identidade humana, como uma qualidade não-
gender, sport and social change. In Landry, F., Landry, M. & Yerlès, M. essencial, acessória do ser.
(Eds), Sport... The ThirdMillenium, Lês Presses de l* Université Lavai,
Sainte-Foy-Canada, p. 385-396. Não há como negar, contudo, a visibilidade e imponência que o
esporte, representado pelo seu "carro-chefe", os megaeventos es-
portivos, assumiu com o passar do tempo. Há fortes indícios que a
iniciativa de "terceirizar" a organização dos Jogos Olímpicos de Los
Angeles em 1984 tenha influenciado essa tendência. Entretanto, com
base em acontecimentos históricos de cunho político, social, cultural,

1
Faculdade de Educação Física e Ciências do Desporto (FEFID), Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
2
Faculdade de Educação, Ciências e Letras São Judas Tadeu, Curso de Educação
Física.
~" Grupo de Pesquisa e Estudos Sociológicos em Educação Física e Esporte - GPES/
FEFID/PUCRS
4
Grupo de Pesquisa em Estudos Olímpicos - GPEO/FEFID/PUCRS.
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Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social Marcelo Olivera Cavalli - loberto Maluí de Mesquita - Adriano Schiiler Covolli
Vera Lúcio Pereira Brauner - Fábio Rodrigo Suflê
económico, religioso e racial, verifica-se que os megaeventos espor- O objetivo deste estudo é discutir a responsabilidade social na
tivos deixaram de ser apenas esportivos. Na atualidade, são iniciação esportiva estruturada a partir de um processo esportivo
megaeventos esportivos-políticos-sociais-culturais-econômicos-edu- hegemónico que contraria, de certo modo, inúmeras reflexões atuais
cacionais-religiosos-raciais. Portanto, detectamos que todas essas da comunidade académica e não privilegia o desenvolvimento efetivo
manifestações da personalidade sociopolítica humana encontram-se de práticas pedagógicas geradoras de inclusão social.
presentes nos megaeventos esportivos. Inicialmente, o texto apresenta argumentos destinados a introdu-
Esforços têm sido multiplicados e entusiasticamente aplicados em zir definições de responsabilidade social, sua significância e implicações.
níveis local, regional, nacional e internacional para disseminar e perpe- A proposta traz em seu cerne o conceito de que responsabilidade social
tuar a manifestação esportiva. A premissa de que o esporte é bom para significa potencializar comportamentos responsáveis e éticos, impreg-
o homem, fundamenta seu caráter e fortalece suas relações tem sido nados de valores e atitudes pró-aíivos que contribuam para a
enfatizada e reforçada por meio de vários canais rnidiáticos e, inclusi- sustentabilidade da comunidade, da sociedade e do meio ambiente.
ve, pela educação. Muito tem sido feito e discutido com referência à Em um segundo momento, questiona a relevância e abrangência
implantação de modelos para a iniciação esportiva de crianças e jovens da hegemonia do modelo esportivo - que, de certo modo, forja a
no Brasil e no mundo. Observamos que a maneira como o esporte é iniciação esportiva dentro de preceitos e premissas que induzem a
formalmente apresentado às crianças e jovens em escolas e clubes eliminação prematura dos praticantes: limitação do número de parti-
demonstra ser "[...] uma cópia dos padrões adotados pelos adultos" cipantes por equipe segundo as regras das competições; treinamento
(MESQUITA; STOBÀUS; MOSQUERA, 2007, p. 168). Por assimi- baseado no modelo de alto rendimento; e avaliação e seleção dos
lação, verificamos que esse modelo tende a considerar e abordar as mais habilidosos. Um modelo que tem por premissa a detecção e
crianças e jovens como se fossem adultos em miniatura. seleção de talentos isenta-se, contudo, da estruturação organizacional
A opção pela utilização na iniciação esportiva de um modelo já de programas que estimulem a "produção de talentos". Não apresen-
socialmente estruturado e consolidado, certamente apresenta uma ta propostas claras de socialização da prática esportiva e não estimula
origem, evolução e justificativa. Entretanto, percebemos que as im- estudos académicos do esporte dentro de uma vertente de cunho
plicações dessa escolha não estão totalmente evidenciadas e sócio-educacional. Face ao exposto, os objetivos da formação espor-
comprovadas: falta apresentar fundamentos científicos que ratifiquem tiva direcionados a projetos de inclusão social tornam-se
)essa opção: falta verificar se esse modelo é eficiente na formação de descaracterizados, devido à dificuldade de uma transformação de
um ser humano íntegro consciente e emancipado; falta determinar caráter educacional/social no contexto esportivo.
padrões e níveis de responsabilidade para com a sociedade em ques- Por último, evidenciamos a necessidade de estimular esforços
tão; enfim, faltam reflexão e análise crítica do processo no qual múltiplos para o desenvolvimento de uma Pedagogia do Esporte vi-
estamos inseridos e somos responsáveis por estabelecer. sando à aproximação dos interesses institucionais com os da sociedade.
Desta maneira, as reflexões apresentadas neste texto nos re- Salientamos, também, a necessidade de elaborar propostas para a
metem a pensar sobre a responsabilidade social na iniciação esportiva utilização da iniciação esportiva não só para a formação de seres
e, na constatação da necessidade de implantação de mudanças, a humanos aptos para a prática esportiva, mas para a construção de
instaurar um fórum para estudar essas possíveis transformações vi- uma sociedade mais humana, mais justa e socialmente responsável
sando possibilidades de fomento à emancipação humana. por meio da experiência esportiva.

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Marcelo Olivera Cavalli - ioberto Maluf de Mesquifa - Adriano SchiiSer Cqvctlli
Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade social Vera Lúcia Pereira Brauner - Fábio Rodrigo Suné

ao desenvolvimento de todas as ações a serem instauradas individual


social: ou coletivamente na sociedade.
pedagógica Dentro desse contexto, é importante ressaltar que no ano 2000
Na tentativa de conceituar "Responsabilidade Social" ressalta- em Nova Iorque, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabe-
mos a necessidade de apresentar definições de "responsabilidade" e leceu a Declaração e Metas do Milénio - priorizando a busca de
de "social" para que possamos de um modo mais eficaz estabelecer alternativas até 2015 no que diz respeito a erradicar a fome e a po-
sua abrangência e ingerência. breza: propiciar o acesso de todas as crianças ao ciclo básico de
Segundo a enciclopédia virtual Wikipédia ([on-line]): educação; atenuar as desigualdades/disparidades de género; reduzir
Responsabilidade é a obrigação a responder pelas próprias ações. a mortalidade infantil; melhorar os serviços na área de saúde pública;
e pressupõe que as mesmas se apoiam em razões ou motivos. O estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento na tentati-
termo aparece em discussões sobre determinismo e livre-arbitrio. va de que os países muito pobres possam investir nos seus problemas
pois muitos defendem que se não há livre-arbítrio não pode haver sociais; garantir a sustentabilidade ambiental e o combate à AIDS/
responsabilidade individual, e consequentemente, também não pode fflV (UNITED NATIONS, 2003).
haver nem ética nem punição.
Na tentativa do cumprimento dos compromissos assumidos em
Com relação à "social", o Dicionário (1987, p. 1615), da 2000, a ONU traz à tona possíveis soluções e adota em assembleia
Encyclopaedia Britannica do Brasil, define: "Relativo ou perten- geral em 2003, a Resolução A/58/L.2 e Ad. l que trata do incentivo,
cente às manifestações provenientes das relações entre os seres de forma mundial, à prática do esporte e da educação física para
humanos, inclusive aquelas que constituem o campo específico todos, objetivando a utilização do esporte como facilitador da parti-
da Sociologia". cipação, da inclusão e da cidadania. Nessa mesma assembleia,
A conceituacão desses termos nos permite esclarecer o escopo decidiu proclamar 2005 como o Ano Internacional do Esporte e da
de nossa reflexão. Facilita-nos a compreensão da dimensão e da res- Educação Física visando à promoção da educação, da saúde, do
ponsabilidade intrínseca das ações humanas e corporativas conduzidas desenvolvimento e da paz; enfatizando o convite aos Governos na
com as mais diversas finalidades. Remete-nos a compreender que to- preparação e consolidação de eventos a níveis nacionais e interna-
das nossas intervenções, sejam elas individuais e/ou coletivas, pessoais cionais (UNITED NATIONS, 2003).
e/ou jurídicas, carregam em seu entorno a incumbência de respeitar Um país com enormes desigualdades como o Brasil exige que
\x aos demais e ao todo. Conduz-nos a percebermos a tarefa individual e sejam tomadas decisões no sentido de potencializar ações que visem
J
coletiva de nos manifestarmos com responsabilidade social. o fortalecimento social, por meio de estratégias que possam intervir
Agir com responsabilidade social não é novidade na sociedade na construção ético-política e que repercutam na educação, na
contemporânea. Há muito tempo que as ações humanas individuais, economia, na saúde, no meio ambiente, na superação da violência,
coletivas e/ou institucionais tendem a compreender a razão de nossa na busca da consolidação da paz e também nos mecanismos de
existência/convivência dentro de uma perspectiva de co-responsabilidade. inclusão, necessários ao processo civilizatório.
Essa abordagem harmoniosa procura abarcar questões sociopolítíco- No âmbito empresarial, a responsabilidade social vem se desen-
educacionais, de progresso e de aprimoramento tecnológico com urna volvendo e tem se mostrado presente nas políticas sociais de empresas
visão eticamente correia para a subsistência da raça humana. Portanto, de negócios. Na busca por uma maior conscientização/sensibilização
responsabilidade social deve ser considerada corno sendo primordial das empresas frente à responsabilidade social, salientamos o trabalho
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Megaeventos esportivos, legado e responsabilidade sócia! Marcelo Olivera Cavalii • Roberto Maluf de Mesquita - Adriana Schúler Cavalii
Vera lucia Pereira Erouner - Fábio Rodrigo Suné

realizado por uma organização não-governamental criada para nada vale pensar e efetivar ideias que não sejam socialmente viáveis.
tratar diretamente da questão da responsabilidade social: o Insti- Essa convicção empresarial indica a estreita conexão existente entre
tuto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Essa o sucesso sócio-econômico e a própria subsistência da empresa. Indo
organização, composta por empresas associadas que represen- ao encontro dessa premissa, o setor empresarial vem praticando ações
tam o faturamento anual de aproximadamente 35% do PIB sociais, fazendo doações a entidades do terceiro setor ou estruturando
brasileiro, procura mobilizar e ajudar empresas a gerir seus ne- suas próprias fundações sociais.
gócios de uma maneira socialmente responsável. O Instituto Ethos A Agência CT (2005) do Ministério da Ciência e Tecnologia
visa implementar políticas e práticas que atendam a elevado cri- brasileiro indica que:
tério ético com o intuito de alcançar sucesso sustentável em longo Está em andamento a formulação de uma norma padrão para respon-
prazo; demonstrar a importância de um comportamento social- sabilidade social corporativa. A iniciativa é da Organização Interna-
mente responsável a seus acionistas visando um retorno sobre cional de Normalização (ISO. na sigla em inglês). AISO 26000, como
seus investimentos em longo prazo; identificar formas eficientes a norma será chamada, servirá para estabelecer um padrão internacio-
e inovadoras de ação junto à comunidade na tentativa da melhoria nal para implementação de um sistema de gestão e certificação de
empresas quanto ao quesito responsabilidade social.
do bem-estar comum (INSTITUTO ETHOS, [on-line]a).
Demonstrando o envolvimento e a preocupação empresarial, o Corporações e agências governamentais pelo mundo intei-
Instituto destaca que ro estão se provendo das condições necessárias para garantir o
A responsabilidade social empresarial é um tema de grande rele- atendimento a normas éticas de responsabilidade social. O pró-
vância nos principais centros da economia mundial. Nos Estados prio International Standardization Organization (ISO, /on-line/,
Unidos e na Europa proliferam os fundos de investimento forma- tradução nossa) indica novembro de 2009 como sendo a data
dos por ações de empresas socialmente responsáveis. O limite para a publicação das diretrizes da ISO 26000.
Sustainability Index, da Dow Jones, por exemplo, enfatiza a neces-
A responsabilidade social vem regulando também muitas ações
sidade de integração dos fatores económicos, ambientais e sociais
nas estratégias de negócios das empresas. Normas e padrões no âmbito esportivo, como modo de resgatar crianças e jovens dos
certificáveis relacionados especificamente ao tema da responsabi- processos de exclusão. A ideia da responsabilidade social nasce tam-
lidade social, como as normas SA8000 (relações de trabalho) e bém do contexto da exclusão social e suas consequências. Esse exercício
AÃ 1000 (diálogo com partes interessadas), vêm ganhando cres- da responsabilidade social vem crescendo e se tornando uma forma de
cente aceitação (INSTITUTO ETHOS, [on-line]b). parceria e co-responsabilidade pelo desenvolvimento social.
Como podemos observar, as empresas vêm demonstrando pre- Nesse sentido e com o intuito de acatar a Resolução da ONU
disposição para desenvolver suas ações sob nova perspectiva de ética de 2003, o governo brasileiro promove o "Programa Segundo Tem-
empresarial - levando em consideração e respeitando não somente po", que, junto com outros programas financiados por instituições
os ganhos económicos de seus acionistas, mas relevando o interesse privadas e pelo terceiro setor, formam a base dos projetos esportivos
e as necessidades de todos os envolvidos: empregados, fornecedo- sociais em vigência. O Programa Segundo Tempo foi idealizado pelo
res, fínanciadores, clientes e a sociedade em geral. Agindo dentro Ministério do Esporte brasileiro com o propósito de oferecer aos alu-
dessa perspectiva "[...] a empresa revela sua crença no preceito de nos das escolas públicas de Ensino Fundamental, acesso à prática
que só uma sociedade saudável pode gerar empresas saudáveis" esportiva, por meio de atividades esportivas e de lazer, no turno con-
(INSTITUTO ETHOS, [on-line]c). A história nos mostra que de trário ao da escola. Tem a finalidade de promover o desenvolvimento
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Megaeventos esportivos, Segado e responsabilidade soeiaí MarceSo Olivera Cavalli - Coberto Maluf de Mesquita - Adriano Schiiler Cavolli
Vera Lúcia Pereira Brauner - Fábio Rodrigo Suné
integral do indivíduo, oportunizando o acesso ao esporte educacional [...] o estar de posse do património cultural e do conhecimento por
de qualidade como forma de inclusão social, ocupando o tempo ocio- parte dos cidadãos, significa para eles uma oportunidade de parti-
so de crianças e adolescentes em situação de risco social cipação social, de mobilidade social e de potenciação dos recursos
oferecidos pelo sistema formativo, especialmente durante o perío-
(MINISTÉRIO DO ESPORTE, [on-line]).
do evolutivo (infância e adolescência). Neste sentido o sistema
Esses procedimentos são indicativos da preocupação para com formativo pode ser gerador de exclusão social a partir do momento
a questão social que permeia as ações, intenções e resoluções gover- em que se revela seletivo, ou seja. quando se organiza a partir do
namentais. Atualmente é consenso de que não há desenvolvimento património cultural, do conhecimento e dos interesses dos estu-
sem preparação do capital humano. Portanto, uma reflexão sobre o dantes das classes privilegiadas, à revelia daqueles que pertencem
papel da escola como um agente responsável por essa socialização às classes pobres, marginalizadas e excluídas.
faz-se necessária. Dados apresentados por Camargo (2004) apon- As ideias do autor nos remetem a uma reflexão sobre os pro-
tam que mais de 80% das crianças brasileiras provenientes de famílias cessos de inclusão alardeados por programas esportivos, que, em muitos
de baixa renda não concluem o ensino fundamental: muitos por terem casos, é a forma de tratamento dada ao esporte, produzindo proces-
de ingressar no mercado de trabalho e outros pela falta de atratividade sos excludentes pelo exercício da competição e seleção dos mais
da escola. aptos e, por consequência, reproduzindo o que no conjunto da socie-
Frente a esses dados torna-se evidente que a escola precisa dade capitalista, representa um de seus maiores problemas. Neste
assumir com prontidão o papel de identificador de alternativas para a sentido, entendemos que o processo educacional desenvolvido dentro
solução dos problemas da comunidade onde está inserida. Essas ações e fora das escolas deva ser voltado para a responsabilidade social
devem ser conduzidas por todos aqueles envolvidos no processo edu- utilizando em sua estrutura organizativa e pedagógica, ações efetiva-
cacional. Em seu bojo, as propostas devem carregar o propósito de mente inclusivas como forma de resgatar os sujeitos implicados nos
aprender a ver e a viver o mundo sob a ótica da pró-atividade; de processos de exclusão.
realizar trabalhos voltados ao desenvolvimento de uma cultura de paz Com a preocupação acerca da introdução da ideia da "inclusão
e solidariedade; estimular o exercício da cidadania através de seus social", levamos a iniciação esportiva um passo adiante: queremos
fundamentos de liberdade, autonomia e responsabilidade; e promover fomentar o desenvolvimento de seres humanos socialmente respon-
a aquisição e reflexão de valores éticos e morais essenciais à vida em sáveis para melhor gerenciar o mundo ao seu redor; queremos instigar
comunidade. O esporte e a educação física não podem ficar alheios a a formação de professores de educação física com embasamento
essa problemática; precisam apresentar-se aos educandos com obje- teórico e prático, atuando em termos de desafios decisivos para a
tivos, ações e atitudes pró-ativas e conscientes. sociedade.
Ainda dentro do contexto educacional, a exclusão se caracteri-
za, conforme Caliman (2006), pela condição de pobreza - entre velhos O de
e novos modelos — daqueles que não têm acesso aos recursos que o
Uma análise específica direcionada a compreender a iniciação
sistema social promete teoricamente a todos. Condições e tipologias
esportiva de crianças e jovens, não encontrou registros de estudos
de pobreza têm origem em frustradas tentativas de satisfação das
académicos com fundamentação científica que comprovassem a
necessidades fundamentais da pessoa humana. É ainda Caliman (2006,
efetividade e o valor formativo do modelo hegemónico empregado
[on-line]) quem coloca que,
(MESQUITA, 2007). Quase dez anos antes, Garganta (1998, p. 15)

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já havia indicado essa constatação ao apontar: "[...] trazemos aqui A partir da institucionalização dessa nova perspectiva, os clubes
um tema que tem preocupado os especialistas, no âmbito do ensino sociais e escolinhas esportivas contabilizaram um aumento na partici-
dos Jogos Desportivos Coletivos. A polémica gerada em torno da pação de crianças e jovens que antigamente praticavam livremente.
proliferação de opiniões e convicções pouco fundamentadas e peia Esse fato foi favorável aos educadores físicos que passaram a contar
inexistência de conhecimentos provenientes de estudos de cunho ci- com um maior número de alunos. Concomitantemente, a comunidade
entífico". Corroborando ainda mais, Mesquita, Stobãus e Mosquera científica passou a destinar um maior número de publicações na área.
(2007, p. 168) afirmam: "[...] não foi exatamente a ciência que inspi- O modelo de competição utilizado ao longo dos anos nas categorias
rou a origem dos modelos esportivos competitivos voltados para de base de diversas modalidades esportivas tem instigado inúmeras
crianças e adolescentes [...]". publicações com proposições que manifestam certa contrariedade.
Se a ciência não justifica tal preponderância, a necessidade de Contudo, a maneira como estamos instruindo a competição nessas
uma reflexão crítica e consciente sobre essa constatação, ou melhor, faixas etárias é que está gerando muita polémica. Ao referir-se ao
sobre esse contexto torna-se evidente. Observa-se, por exemplo, que tema. Marques (2004, p. 78) enfatiza que:
o modelo competitivo utilizado para crianças e jovens apresenta for- Não é com a adoção dos modelos de alto nível, não é com a rápida
tes indícios de ser uma adaptação daquele utilizado com adultos. evolução para os modelos mais evoluídos da prática que se asse-
Legitimando essa tradição histórica, Strõher e Krebs (1998) apon- gura o quadro que sustentará condições de resposta mais efeti-
tam, por exemplo, registros da realização do I Campeonato Mundial vas e rápidas. O tempo de aprendizagem faz-se de experiências
ricas, significantes e adquiridas pacientemente, ou não se cumpre
de Minibasquetebol -jogadores até doze anos - organizado nos Es- adequadamente.
tados Unidos em 1967, sob a chancela da Federação Internacional de
Basquetebol (FIBA). Entendemos, entretanto, que as propostas dos Observamos nessas disputas uma busca pela superação de limi-
inúmeros eventos direcionados até agora para crianças e jovens não tes muito semelhante à realidade dos adultos que competem no esporte
devam ser desprezadas, uma vez que representam um momento his- em caráter profissional. As partidas oficiais destinadas para crianças e
tórico de um determinado contexto social. jovens têm seu principal objetivo ideologicamente definido: a busca,
Outro ponto importante a ser ressaltado é que o contexto sócio- muitas vezes desumana, pela vitória. Essas constatações representam
a polémica circundante ao tema e que merece atenção especializada.
cultural de gerações passadas favorecia um maior desenvolvimento
Ressaltamos que o contexto social que envolve as práticas de
do repertório motor/esportivo de crianças e jovens por meio de
iniciação esportiva, exigindo resultados em curto espaço de tempo,
vivências e experiências culturais próprias da idade que eram realiza-
intensifica os princípios norteadores da especialização precoce. O
\das em ruas, parques, campos, praças, entre outros. Com o passar do
questionamento de inúmeros pesquisadores se refere à validade do
tbmpo, por inúmeras razões, esse "hábito esportivo" foi gradativamente
treinamento especializado precoce na infância e juventude.
diminuindo. Esse fenómeno também foi constatado por pesquisado-
De uma maneira geral, entendemos que os aspectos negativos
res de outros países, como, por exemplo, na Alemanha. Kroger e
estão suplantando os positivos nas competições esportivas voltadas
Roth (2002) destacam que para suprir a ausência das brincadeiras e
para crianças e jovens no Brasil. Acreditamos ser essa uma das
jogos cotidíanos realizados no passado, fez-se necessária a formação
razões que pedagogicamente justificam as inúmeras críticas pre-
de creches esportivas visando o desenvolvimento das habilidades
sentes na literatura questionando o modelo hegemónico. Paes e
motoras básicas. Balbino (2005, p. 27) defendem a ideia de que:
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distanciamento existente entre a teoria e a prática da iniciação espor-


A aprendizagem deve ir além do ensino dos fundamentos em suas
execuções analíticas, combinadas e aplicadas em situações de jogo, tiva: a teoria enfatiza o respeito pela prontidão esportiva, a prática a
ou seja, deve caminhar na direção do desenvolvimento do ser hu- demanda sociopolítico-esportiva.
mano. Para tanto, é preciso dar ao esporte um tratamento pedagó- Kroger e Roth (2002, p. 9) abordam em seus estudos questões
gico, permitindo o enfoque essencialmente educativo. Em sintonia referentes ao abandono precoce do esporte antes do praticante atin-
com esse pensamento, o investimento no agente transformador gir a fase do alto rendimento. É o que na literatura específica se conhece
deve ser considerado, a fim de preparar para exercitar com ousadia por dropout. Os autores criticam o modelo vigente na Alemanha, jus-
e coragem as intervenções necessárias para a formação do ser inte-
gral e fazer o jogo em que todos ganham, não pelos resultados de tificando que "as crianças não são, na sua natureza, especialistas:
placar, mas pelos significativos aprendizados presentes nas práti- elas são generalistas. A especialização precoce com cargas unilate-
cas de iniciação do basquetebol. rais (um só tipo de esporte), como a dos adultos, é copiada neste
modelo em relação às exigências das cargas em geral".
A exemplo desta última citação, abordagens baseadas em pers-
No nosso caso, acreditamos que a generalização deva ser
pectivas alternativas merecem atenção por parte dos técnicos e
enfatizada e desenvolvida, uma vez que o modelo hegemónico de ini-
professores especializados na área. A ênfase dos estudos alerta para
ciação esportiva utilizado no Brasil apresenta inúmeras semelhanças
equívocos nos modelos de competição que deveriam, na prática, vi-
com o descrito pelos estudiosos acima mencionados. Entendemos que
sar a formação dos iniciantes, ao invés da obtenção do melhor
as percepções dos autores alemães assemelham-se com as de um
rendimento em idades consideradas precoces. Entendemos que as
elevado número de pesquisadores brasileiros no que se refere à
práticas jogadas e organizadas pelas próprias crianças podem servir
inadequação da proposta vigente.
de exemplo aos adultos. Nessas atividades não encontramos pais
desesperados nas arquibancadas, técnicos gritando e exigindo esfor- De um modo geral, a iniciação esportiva estruturada com base
em resultados imediatos e maduros não apresenta fundamentação
ços extremos dos participantes, e, principalmente, crianças sendo
científica lógica e comprovada para justificar tal prática, assim como
cobradas corno se estivessem representando a seleção nacional de
denota a negação dos pressupostos científicos contidos em estudos
um país. Afinal, é apenas um jogo. O modelo adulto perpassa uma
académicos. As evidências levantadas no decorrer deste texto sinali-
ideia de maturidade e seriedade, assim algumas crianças e jovens se
zam a necessidade de reflexão. Apontam também na direção da
sentem atraídas pelo alto nível de competição. Ao mesmo tempo,
iminência de construção/estruturação de teorias que possam contri-
outras são afastadas por fatores como excesso e rigidez de exigências
buir para que a prática subsidiada/amparada pela teoria seja
advindas desse tipo de competição.
efetivamente incorporada. Poderíamos, dessa maneira, promover uma
Com relação ao amadurecimento, no sentido amplo da palavra,
educação por meio da atividade física, com práticas cujo significado a
x Malina (1987) afirma que a prontidão esportiva é o equilíbrio entre o
expressão esporte simboliza.
J nível de crescimento, de desenvolvimento e de maturação e o nível
de demanda competitiva. O desrespeito ao desses faíores afeta a
formação e o desenvolvimento equilibrado do indivíduo. A observa- na
ção da demanda competitiva em detrimento da prontidão esportiva Historicamente situando o esporte, mais precisamente na defini-
caracteriza negativamente o processo: estaríamos exigindo mais do ção moderna que o esporte assume, percebemos que sua origem denota
que poderíamos cobrar. Desta forma, fica evidenciado o a coníextualização sociocultural. O esporte surgiu em forma de jogo,

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quer dizer, sua essência natural é a de um jogo. Um jogo que vinha ao quais têm valor inestimável, especialmente em uma sociedade como
encontro das aspirações e necessidades de seus criadores e prati- a que vivemos. Em processos formativos, percebemos hoje um mo-
cantes. Ou seja, era construído, reformulado e estabelecido pelos delo educativo que visa à preparação para o mundo do trabalho e isto
próprios agentes participantes. Portanto, se representava as necessi- vem se estendendo cada vez mais a idades menores. Assim, em mui-
dades de seus envolvidos e havia a possibilidade de efetuar tos casos, os aspectos lúdicos, prazerosos, do "brincar jogando" ou
modificações e/ou variações, não há como negar que apresentava do "jogar brincando", ficam esquecidos, quando deveriam ser parte
fortes indícios de ser socialmente responsável aos seus membros. integrante do viver de crianças e jovens por serem absolutamente
Assumindo um ponto de vista mais atual, o esporte, quando dei- necessários na formação de sujeitos saudáveis.
xou de ser apenas um jogo, incorporou regras definidas e Na relação dos modelos estabelecidos de iniciação esportiva
preestabelecidas por instituições externas aos agentes sociais envol- com os processos de inclusão social, o princípio lúdico pode repre-
vidos. As regras podem ser alteradas e/ou complementadas pelas sentar um aumento na participação de crianças e jovens, por meio do
federações específicas ou comités olímpicos. Não podem mais ser elemento motivacional, gerado pelo próprio prazer da atividade física
influenciadas pelos agentes sociais imediatos: os praticantes. pautada pela diversão e alegria. O jogo prazeroso pode também pro-
Dentro dessa perspectiva, e levando em consideração a influên- porcionar momentos de estímulo ao "saber conviver" e às relações
cia das mais diversas naturezas sofrida ao longo dos tempos, o esporte interpessoais tão necessárias nos trabalhos com grupos.
na vertente rendimento passou a ser almejado como a supremacia do Ao tratar sobre o princípio cinestésico, Cagigal analisa a impor-
movimento humano e advogado em larga escala como sinónimo de tância do movimento na vida do homem justificando o esporte como
perseverança, dedicação e superação. O modelo hegemónico de inicia- promotor de uma vida saudável por meio da atividade física.
ção esportiva debatido ao longo deste estudo encontra-se diretamente Complementamos com a observação de que, nos modelos atuais de
estruturado, delineado e embasado nesses preceitos ideológicos. iniciação esportiva, é comum vermos a exclusão dos menos habilido-
Resta-nos, contudo, o desafio de semear o esporte com ideais sos com o objetivo de preparar a equipe para as competições que se
sociais, onde ele possa apresentar claramente características de agente aproximam, quando nesse momento, o mais importante seria dotar
socialmente responsável, transformador e emancipador. todos os participantes do processo de um amplo repertório motor.
Pensar a responsabilidade social na iniciação esportiva permite Neste sentido, o princípio cinestésico como inerente à prática da ati-
uma aproximação a alguns aspectos tratados por Cagigal (1966) - vidade física fica questionado quando o trabalho se volta para um
um clássico nas referências sobre pedagogia do esporte, com forte processo seletivo que visa à formação de atletas, estruturada em
contribuição humanística. O autor coloca que a humanização do es- modelos excludentes. Entendemos que a inclusão por meio do espor-
porte passa pelo atendimento a 4 princípios que representam o te deve ser para todos, mas a realidade hoje leva a pensarmos que
compromisso com uma atividade efetivamente formativa e responsá- quando precisamos "selecionar" para participação em campeonatos,
vel. Os princípios são: lúdico, cinestésico, ético e agonístico. estaremos diminuindo o tempo de atividade motora daqueles menos
Diante de nossa perspectiva de pensar a responsabilidade social
aptos, já que a atenção e o esforço do trabalho se concentrarão no
na iniciação esportiva, entendemos que o trabalho a partir desses
grupo selecionado. Essas questões pensadas na perspectiva da
princípios pode fornecer elementos interessantes para reflexão.
iniciação esportiva se alinham ao que já tratamos anteriormente e
Sobre o princípio lúdico, Cagigal coloca que o esporte enquanto
que Caliman (2006) aponta na discussão sobre a responsabilidade
jogo, não pode prescindir dos aspectos prazerosos da atividade, os social na relação com a inclusão/exclusão.
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A ética vem sendo tratada como princípio universal para a con-
estejam de acordo com os quatro pilares fundamentais da educação
vivência e estabelecimento de valores em prol de uma sociedade mais
propostos pela UNESCO (DELORS, 2001):
humanizada. Cagigal trata o princípio ético como elemento impres-
• Aprender a conhecer - significa a aquisição dos instru-
cindível a ser trabalhado no esporte. O autor demonstra que o aluno
mentos necessários à compreensão da realidade;
está em processo de regulação de valores, formação da moral, da
• Aprender a fazer - para que o sujeito possa ser atuante na
ética e da cidadania. Estes aspectos são reforçados através da ne-
realidade que o envolve;
cessária responsabilidade dos professores educadores, como 0
Aprender a conviver - para poder participar e cooperar
potencializadores de ações em direção a uma moral esportiva. Tratar
com seus pares nas atividades que permeiam seu dia-dia;
os aspectos éticos através do esporte é responsabilizar-se com a for-
• Aprender a ser - engloba o conjunto de competências pes-
mação de crianças e jovens.
soais que envolvem o projeío de vida do sujeito; ponto que
Por fim, o quarto princípio trazido por Cagigal é o agonístico que
se torna essencial no enlace dos três pilares apresentados
opera na perspectiva da competição. A prática saudável da competi-
anteriormente.
ção na iniciação esportiva pode servir também para a criança identificar
seus próprios limites, visando uma constante análise do aluno na rela-
Ainda dentro dessa perspectiva sócio-educacional do esporte,
ção consigo mesmo, ou seja, os estímulos competitivos devem
Cavalli, Araújo e Cavalli (2007, p. 306) indicam que
especialmente ser dados ao aluno procurando remetê-lo a pensar sobre
O esporte, quando analisado dentro de uma perspectiva social aca-
si mesmo, num processo de autoconhecimento. A competição esti-
ba por tornar-se mais que uma ferramenta de aprendizagem. O es-
mulada em demasia pode levar a distorções no sentido formativo. porte assume a função de um agente de transformação e/ou eman-
Assim, o profissional que trabalha com grupos de iniciação deve ter cipação social a partir do momento que o mesmo gera modificações
sempre presente que a competição deve permitir a participação do comportamentais, sociais e políticas tanto dentro como fora das
maior número de crianças, estabelecendo regras que rompam quadras. Projetos esportivos sociais tratam-se, portanto, de um
com os modelos preestabelecidos para o trabalho com esporte suporte tanto físico-mental quanto afetivo-social, para pessoas que
poderiam nunca ter tido a oportunidade de crescimento que o es-
de rendimento. Defendemos a competição na iniciação esportiva,
porte proporciona.
considerando como Cagigal, que ela é inerente ao esporte, mas que
essa competição seja regulada por outros modelos que não sejam Acreditamos que os valores éticos que permeiam a conduta dos
excludentes, oferecendo oportunidade para todas as crianças. profissionais envolvidos nos processos de iniciação esportiva sejam
Diante do exposto, fica evidente a necessidade de pautarmos as de suma importância na elaboração e execução de projetos esporti-
ações voltadas à iniciação esportiva em pressupostos vos. A retidão ético-moral, ou seja, a responsabilidade social durante
sociopedagógicos. Conforme atesta Cavalli (2001), a primazia da a implantação de qualquer atividade é que possibilitará a garantia de
política do método é intrínseca à formação da experiência humana. sucesso do projeto. O êxito do projeto privilegia não só o desenvolvi-
Ou seja, o que incluímos ou deixamos de fora, está politicamente mento de aspectos educacionais intrínsecos ao processo, mas viabiliza
expresso naquilo que queremos atingir. Se almejarmos o social, temos a construção de pressupostos básicos para a co-existência, respon-
que socializar nossas ações e intenções. Sendo assim, consideramos pri- sabilidade social e emancipação de seus participantes.
mordial que projetos que tenham como meta a educação pelo esporte

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