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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOPEDAGOGIA • Nº 83 • 2010 • ISSN 0103-8486

Editorial / Editorial .......................................................................................... 161

artigos origiNais / origiNal artiClEs

• Parceria saúde-educação na UFRJ: compartilhando experiências .........................................................163

• Comparação do desempenho de estudantes em instrumentos de atenção e funções executivas ..... 171

• Avaliação do desempenho em matemática de crianças do 5º ano do ensino fundamental.

Estudo preliminar por meio do teste de habilidade matemática (THM) ............................................... 181

• Treinamento da correspondência grafema-fonema em escolares de risco para a dislexia .................. 191

• Habilidades de leitura e escrita de crianças na recuperação do ciclo I: divergências entre avaliação

de professores e resultados em testes padronizados ...........................................................................202

• Processamento auditivo: estudo em crianças com distúrbios da leitura e da escrita........................... 214

• Avaliação psicomotora de escolares do 1º ano do ensino fundamental ..............................................223

• Jogos regrados e educação: concepções de docentes do ensino fundamental ..................................236

rElatos dE EXPEriÊNCia/EXPEriENCE rEPorts

• Construindo e construindo-se: uma experiência da Clínica Social da ABPp-ES .....................................250

• Práticas pedagógicas e inovação na instituição de ensino: uma abordagem psicopedagógica com

foco na aprendizagem ...........................................................................................................................262

• Discurso paterno: sinais indicativos de disfunções relacionais .............................................................273

PoNto dE vista / PoiNt of viEw

• O jogo como recurso de aprendizagem ................................................................................................282

artigos dE rEvisÃo / rEviEw artiClEs

• Pontos de encontro entre os sistemas notacionais alfabético e numérico ..........................................288

• Senso numérico e dificuldades de aprendizagem na matemática ......................................................298

Estudo dE Caso / CasE study

• Problemas emocionais em um adulto com dislexia: um estudo de caso ............................................ 310

30
ANOS
Associação Brasileira
de Psicopedagogia

Sede: Rua Teodoro Sampaio, 417 - Conj. 11 - Cep: 05405-000 - São Paulo - SP
Pabx: (11) 3085-2716 - 3085-7567 - www.abpp.com.br - psicoped@uol.com.br

NúClEoS E SEçõES da aBPp


(abril de 2010)

Núcleo Espírito Santo Seção Paraná Sul


Coordenadora: Maria da Graça Von Kruger Pimentel Diretora Geral: Sonia Maria Gomes de Sá Kuster
R. Elesbão Linhares, 420/601 – Canto da Praia R. Fernando Amaro, 431 – Alto da XV
Vitória – ES – CEP 29057-220 Curitiba – PR – CEP 80050-020
(027) 3225-9978 (041) 363-8006
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Núcleo Sul Mineiro Seção Pernambuco
Coordenadora: Júlia Eugênia Gonçalves Diretora Geral: Maria das Graças Sobral Griz
R. Deputado Ribeiro de Rezende, 494 - Centro R. das Pernambucanas, 277 – Graças
Varginha – MG – CEP 37002-100 Recife – PE – CEP 52011-010
(035) 3222-1214 (081) 3222-4375 – 3231-1461
julia@fundacaoaprender.org.br abpppe@gmail.com
Seção Bahia
Seção Piauí
Diretora Geral: Débora Silva de Castro Pereira
Diretora Geral: Amélia Cunha Rio Lima Costa
Av. Tancredo Neves, 3343 – Ed. Cempre – Sala 1103 –
Torre B – Caminho das Árvores R. Eletricista Guilherme, 815 – Ininga
Salvador – BA – CEP 41820-021 Teresina – PI – CEP 64049-530
(071) 3341-0121 (086) 3233-2878
abppsecao.ba@uol.com.br amelia.costa@ibest.com.br

Seção Brasília Seção Rio de Janeiro


Diretora Geral: Marli Lourdes da Silva Campos Diretora Geral: Ana Paula Loureiro e Costa
SCLN Quadra 102 – Bloco D – sala 110 Av. N. Sra. de Copacabana, 861 sala 302
Brasília – DF – CEP 70722-540 Rio de Janeiro – RJ – CEP 22060-000
(061) 3964-1004 (021) 2236-2012 / Fax: (021) 2521-6902
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Seção Ceará Seção Rio Grande do Norte


Diretora Geral: Galeára Matos de França Silva Diretora Geral: Ednalva de Azevedo Silva
R. Assis Chateaubriand, 362 A – Dionízio Torres R. São João, 1392 – Lagoa Sêca
Fortaleza – CE – CEP 60135-200 Natal – RN – CEP 59022-390
(085) 3261-0064 – 3268-2632 (084) 3223-6870
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Seção Goiás Seção Rio Grande do Sul
Diretora Geral: Luciana Barros de Almeida Diretora Geral: Fabiani Ortiz Portella
Av. 85, 684 sala 207 – Ed. Eldorado Center – Av. Venâncio Aires, 1119/ sala 9
Setor Oeste Porto Alegre – RS – CEP 90520-000
Goiânia – GO – CEP 74120-090 (051) 3333-3690
(062) 3954-2178 abpp.rs@brturbo.com.br
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Seção Santa Catarina
Seção Minas Gerais
Diretora Geral: Albertina Celina de Mattos Chraim
Diretora Geral: Regina Rosa dos Santos Leal
R. Grão Mogol, 502 / 305 – Carmo Sion R. Eurico Gaspar Dutra, 445, sl 101- Estreito
Belo Horizonte – MG – CEP 30310-010 Florianópolis – SC – CEP 88075-100
(031) 3221-3616 (048) 3244-5984
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Seção Pará Seção São Paulo


Diretora Geral: Maria Nazaré do Vale Soares Diretora Geral: Sônia Maria Colli
Trav. 3 de Maio, 1218/ sl 105 – São Braz R. Carlos Sampaio, 304 – cj. 51- sl 03
Belém – PA – CEP 66060-600 São Paulo – SP – CEP 01333-020
(094) 3229-0565 (011) 3287-8406
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Seção Paraná Norte Seção Sergipe


Diretora Geral: Geiva Carolina Calsa Diretora Geral: Auredite Cardoso Costa
R. Montevidéu, 206 Av. Ivo Prado, 312 – Centro
Maringá - PR - CEP 87030-470 Aracaju – SE – CEP 49010-050
(044) 3026-1063 (079) 3211-8668/ 3211-78903
abpppr@ig.com.br auredite@hotmail.com
A associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp) é
uma entidade de caráter científico-cultural, sem fins
lucrativos, que congrega profissionais militantes na área da
Psicopedagogia.

Em 12 de novembro de 1980, um grupo de profissionais já


envolvidas e atuantes nas questões relativas aos problemas da
aprendizagem fundou a Associação Estadual de
Psicopedagogos do Estado de São Paulo, a AEP.
Devido ao grande interesse em torno dessa Associação, a sua
expansão a nível Nacional surgiu como necessidade imperiosa.
Em 1986, a AEP transformou-se na ABPp e gradativamente
foram sendo criados os seus escritórios de representação por
todo o Brasil, denominados de Núcleos e Seções.

Durante estes anos, a aBPp vem cuidando de questões


referentes à formação, ao perfil, à difusão e ao
reconhecimento da Psicopedagogia no Brasil, já tendo
alcançado muitas vitórias na luta pela sua regulamentação.
Atualmente, conta com 16 Seções e 2 Núcleos, espalhados
pelo Brasil, para melhor divulgar a Psicopedagogia e
aproximar os profissionais em torno de seus objetivos comuns.
30
ANOS

A ABPp promove conferências, cursos, palestras, jornadas,


congressos, bem como a divulgação de trabalhos sobre sua
área de atuação, por meio da revista científica
Psicopedagogia, da revista do Psicopedagogo, do informa-
tivo diálogo Psicopedagógico e do site www.abpp.com.br.
Oferece, ainda, descontos tanto nos eventos que
organiza quanto em eventos de terceiros, que são parceiros e
interessados nos assuntos desta área.

Preocupada com as questões sociais, a atual diretoria da


aBPp Nacional organizou um novo trabalho de cunho
sociocientífico, que visa não só ao atendimento
da população carente, promovendo a inserção social e a
divulgação da importância da prática psicopedagógica,
como também à implantação de um novo modelo de estudo
e pesquisa nesse campo. Dele poderão participar todos os
associados interessados em prestar um trabalho social.

Podem associar-se à aBPp todas as pessoas interessadas


nessa área de atuação, tendo ou não concluído a sua
especialização em Psicopedagogia.
Rua Teodoro Sampaio, 417 - Conj. 11 - Cep: 05405-000
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A ABPp faz história em 30 anos de trajetória!


editora
Maria Irene Maluf SP
Conselho exeCutivo
Maria Irene Maluf SP
Quézia Bombonatto SP
Cristina Valdoros Quilici SP

Conselho editorial naCional


Ana Lisete Rodrigues SP Maria Célia Malta Campos SP
Anete Busin Fernandes SP Maria Cristina Natel SP
Beatriz Scoz SP Maria Lúcia de Almeida Melo SP
Débora Silva de Castro Pereira BA
Maria Silvia Bacila Winkeler PR
Denise da Cruz Gouveia SP
Edith Rubinstein SP Marisa Irene Siqueira Castanho SP
Elcie Salzano Masini SP Mônica H. Mendes SP
Eloísa Quadros Fagali SP Nádia Bossa SP
Evelise Maria L. Portilho PR Neide de Aquino Noffs SP
Gláucia Maria de Menezes Ferreira CE Nívea M.de Carvalho Fabrício SP
Heloisa Beatriz Alice Rubman RJ
Regina Rosa dos Santos Leal MG
Leda M. Codeço Barone SP
Margarida Azevedo Dupas SP Rosa M. Junqueira Scicchitano PR
Maria Auxiliadora de Azevedo Rabello BA Sônia Maria Colli de Souza SP
Maria Cecília Castro Gasparian SP Vânia Carvalho Bueno de Souza SP

Conselho editorial internaCional


Alicia Fernández - Argentina
Carmen Pastorino - Uruguai
César Coll - Espanha
Isabel Solé - Espanha
Maria Cristina Rojas - Argentina
Neva Milicic - Chile
Vitor da Fonseca - Portugal

Consultores ad hoc
Ana Maria Maaz Acosta Alvarez
Jaime Zorzi
Lino de Macedo
Lívia Elkis
Luiza Helena Ribeiro do Valle
Pedro Primo Bombonato
Saul Cypel
Sylvia Maria Ciasca
Associação Brasileira
de Psicopedagogia

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PSICoPEdaGoGIa – Órgão oficial de divulgação 7) INdEX PSI – Periódicos – Conselho


da Associação Brasileira de Psicopedagogia – ABPp Federal de Psicologia
é indexada nos seguintes órgãos: 8) dBFCC – descrição Bibliográfica
Fundação Carlos Chagas
1) lIlaCS - literatura latino-americana e Editora Responsável: Maria Irene Maluf
do Caribe em Ciências da Saúde -
BIREME Jornalista Responsável: Rose Batista – 28.268
2) Clase - Citas latinoamericanas en Cien- Revisão e assessoria Editorial:
cias Sociales y Humanidades. Universidad Rosângela Monteiro
Nacional autónoma de Mexico
Editoração Eletrônica: Sollo Comunicação
3) Edubase - Faculdade de Educação, UNI-
CaMP Impressão: Sollo Press
4) Bibliografia Brasileira de Educação - BBE
CIBEC / INEP / MEC
O conteúdo dos artigos aqui publicados é de
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inteira responsabilidade de seus autores, não
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de américa latina, El Caribe, España y expressando, necessariamente, o pensamento
Portugal do corpo editorial.
6) Catálogo Coletivo Nacional – Instituto É expressamente proibida qualquer modali-
Brasileiro em Ciência e Tecnologia – dade de reprodução desta revista, seja total ou
IBICT parcial, sob penas da lei.

Psicopedagogia: Revista da Associação Brasileira de Psicopedagogia /


Associação Brasileira de Psicopedagogia. - Vol. 10, nº 21 (1991). São
Paulo: ABPp, 1991-

Quadrimestral

ISSN 0103-8486

Continuação, a partir de 1991, vol. 10, nº 21 de Boletim da


Associação Brasileira de Psicopedagogia.

1. Psicopedagogia. I. Associação Brasileira de Psicopedagogia.

CDD 370.15
diretoria da assoCiação
Brasileira de PsiCoPedagogia
2008/2010
diretoria exeCutiva
Presidente diretora Científica adjunta
Quézia Bombonatto Márcia Simões
queziabombonatto@abpp.com.br marciasimoes@abpp.com.br
Vice-Presidente
Cristina Valdoros Quilici diretora Cultural
cristinaquilici@abpp.com.br Yara Marlene Prates
Tesoureira yara@donquixote.com.br
Maria Cecília Castro Gasparian Relações Públicas
mcgasparian@uol.com.br Telma Pantano
Secretária administrativa telmapantano@terra.com.br
Maria Teresa Messeder Andion
Relações Públicas adjunta
teresahandeon@abpp.com.br
diretora Científica Edimara de Lima
Nádia Aparecida Bossa edimara.lima@terra.com.br
nadiabossa@abpp.com.br

assessorias
assessora de divulgações Científicas assessora de Reconhecimento e Cursos
Maria Irene Maluf Neide Aquino Noffs
irenemaluf@uol.com.br neidenoffs@abpp.com.br

assessorias regionais
assessora Regional Bahia assessora Regional Paraná
Maria Angélica Moreira Rocha Rosa Maria Schiccitano
maangelicarocha@gmail.com rosamaria@uel.br
assessora Regional Ceará
Maria José Weyne Melo de Castro
mjweyne@yahoo.com.br

Conselheiras vitalíCias
Beatriz Judith Lima Scoz SP Maria Irene Maluf SP
Edith Rubinstein SP Mônica H. Mendes SP
Leda Maria Codeço Barone SP Neide de Aquino Noffs SP
Maria Cecília Castro Gasparian SP Nívea Maria de Carvalho Fabrício SP
Maria Célia Malta Campos SP

Conselheiras eleitas (2008/2010)


Carla Labaki SP Maria Helena Bartholo RJ
Cleomar Landim de Oliveira SP Maria José Weyne M. de Castro CE
Cristina Vandoros Quilici SP Marisa Irene Siqueira Castanho SP
Ednalva de Azevedo Silva RN Marli Lourdes da Silva Campos DF
Eloisa Quadros Fagali SP Miriam do P.S.F. Vidigal Fonseca MG
Evelise Maria Labatut Portilho PR
Nadia Aparecida Bossa SP
Galeára Matos de França Silva CE
Heloisa Beatriz Alice Rubman RJ Neusa Kern Hickel RS
Janaina Carla R. dos Santos GO Quézia Bombonatto SP
Jozelia de Abreu Testagrossa BA Rosa Maria J. Scicchitano PR
Luciana Barros de Almeida Silva GO Silvia Amaral de Mello Pinto SP
Maria Auxiliadora de A. Rabello BA Sonia Maria Colli de Souza SP
Maria Cristina Natel SP Yara Prates SP
Associação Brasileira
de Psicopedagogia
sumário

EDitOriAl / EDitOriAl
• Maria Irene Maluf ...............................................................................................................................................161

ArtigOS OrigiNAiS / OrigiNAl ArtiClES


• Parceria saúde-educação na UFRJ: compartilhando experiências
Health-education partnership at UFRJ: sharing experiences
Renata Mousinho; Claudia Tavares Ribeiro; Gláucia M. M. Martins ..........................................163

• Comparação do desempenho de estudantes em instrumentos de atenção e funções executivas


Comparison of performance of students in instruments of attention and executive function
Adriana Nobre de Paula Simão; Ricardo Franco de Lima; Juliane Cristhine Natalin; Sylvia
Maria Ciasca ....................................................................................................................................171

• Avaliação do desempenho em matemática de crianças do 5º ano do ensino fundamental.


Estudo preliminar por meio do teste de habilidade matemática (THM)
Performance in mathematics of primary school children using the Test of Mathematics Ability:
preliminary study
Sônia das Dores Rodrigues; Adriana Regina Guassi; Sylvia Maria Ciasca .................................181

• Treinamento da correspondência grafema-fonema em escolares de risco para a dislexia


Grapheme-phoneme correspondence training in students at risk for dyslexia
Daniele de Campos Refundini; Maíra Anelli Martins; Simone Aparecida Capellini .................191

• Habilidades de leitura e escrita de crianças na recuperação do ciclo I: divergências


entre avaliação de professores e resultados em testes padronizados
Reading and writing skills of child into recovery cycle I: divergences between assessment of
teachers and results of standardized tests
Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira; Chi Kow Mei; Alessandra Gotuzo Seabra; Deisy
Ribas Emerich; Elizeu Coutinho de Macedo .................................................................................202

• Processamento auditivo: estudo em crianças com distúrbios da leitura e da escrita


Auditory processing: study in children with specific reading and writing deficits
Silvana Frota; Liliane Desgualdo Pereira.......................................................................................214

• Avaliação psicomotora de escolares do 1º ano do ensino fundamental


Psychomotor evaluation with students of 1st grade
Tais de Lima Ferreira; Amanda Bulbarelli Martinez; Sylvia Maria Ciasca..................................223

• Jogos regrados e educação: concepções de docentes do ensino fundamental


The rules games and education: teachers conceptions of primary education
Nelson Pedro-Silva; Manoela de Fátima Cabral Simili ................................................................236
rElAtOS DE EXPEriÊNCiA/EXPEriENCE rEPOrtS
• Construindo e construindo-se: uma experiência da Clínica Social da ABPp-ES
Building and building yourself: an experience of the ABPp-ES Social Clinic
Cheila Araujo Mussi Montenegro; Dina Lucia Fraga; Iara Feldman; Janine C. Barboza;
Mara C. B. R. Lima; Maria da Graça von Kruger Pimentel; Maria José Saavedra Castro;
Marieta Vieira Messina; Maristela do Valle; Sonia Volpini Coelho .............................................250

• Práticas pedagógicas e inovação na instituição de ensino: uma abordagem psicopedagógica


com foco na aprendizagem
Pedagogical practices and innovations in the teaching institution: a psychopedagogic
approach with focus in the apprenticeship
Francisca Francineide Cândido ......................................................................................................262

• Discurso paterno: sinais indicativos de disfunções relacionais


Paternal discourse: signs of relational dysfunctions
Olga Araújo Perazzolo; Siloe Pereira; Marcia M. Capellano dos Santos .....................................273

PONtO DE viStA / POiNt Of viEw


• O jogo como recurso de aprendizagem
The game as a learning resource
Luciana Alves; Maysa Alahmar Bianchin ......................................................................................282

ArtigOS DE rEviSÃO / rEviEw ArtiClES


• Pontos de encontro entre os sistemas notacionais alfabético e numérico
Points of meeting between the systems notacionais alphabetical and numerical
Iara Suzana Tiggemann ..................................................................................................................288

• Senso numérico e dificuldades de aprendizagem na matemática


Number sense and learning difficulties in mathematics
Luciana Vellinho Corso; Beatriz Vargas Dorneles ........................................................................298

EStuDO DE CASO / CASE StuDy


• Problemas emocionais em um adulto com dislexia: um estudo de caso
Emotional problems in an adult with dyslexia: a case study
Flávia Vianna Bonini; Raquel Regina Mari; Sandra Aparecida dos Anjos; Viviane Joveliano;
Sueli Cristina de Pauli Teixeira ......................................................................................................310
EDiToriAL

À
s vésperas do IV Simpósio Internacional de Psicopedagogia da ABPp
Nacional “Conhecer... Fazer... Compartilhar... Ser Psicopedagogo”, evento
de singular expressão que encerra as comemorações dos 30 anos desta
Associação, criada em São Paulo, em 1980, por Leda Barone e atualmente
presidida por Quézia Bombonatto, temos o prazer de trazer uma edição repleta
de artigos de notáveis educadores, pedagogos, psicopedagogos e pesquisadores.
Um assunto que desponta na atualidade como de importância em todo
mundo, a parceria entre a educação e a ciência, tem gerado importantes
pesquisas, como temos a honra de publicar na abertura deste número de
aniversário da ABPp: “Parceria saúde-educação na UFRJ: compartilhando
experiências”, escrito por Renata Mousinho, Claudia Tavares Ribeiro e Gláucia
M. M. Martins. Este trabalho aponta a necessidade de redução das diferenças
individuais no momento do ingresso à escola como fator decisivo para o
enfrentamento e a diminuição prática das dificuldades de aprendizagem, assim
como para a melhoria dos resultados dos processos envolvidos. O interesse
científico pela análise do desempenho estudantil de crianças dos 7 aos 12 anos
não se apresenta apenas nesse artigo, mas também na pesquisa “Comparação
do desempenho de estudantes em instrumentos de atenção e funções executivas”,
de Adriana Nobre de Paula Simão, Ricardo Franco de Lima, Juliane Cristhine
Natalin e Sylvia Maria Ciasca.
Poucos são os artigos que trazem uma análise do desempenho em matemática
com aprofundamento, linguagem clara e com resultados tão importantes para
a aplicação prática, como o que nos apresentam Sônia das Dores Rodrigues,
Adriana Regina Guassi e Sylvia Maria Ciasca, em “Avaliação do desempenho
em matemática de crianças do 5º ano do ensino fundamental. Estudo preliminar
por meio do Teste de Habilidade Matemática”, uma pesquisa que precede na
apresentação a outros dois artigos sobre temas correlatos a este, como se verá
mais adiante.
“Treinamento da correspondência grafema-fonema em escolares de risco
para a dislexia” é o artigo apresentado por Daniele de Campos Refundini,
Maíra Anelli Martins e Simone Aparecida Capellini, baseado na interessante e
esclarecedora pesquisa na qual as autoras concluem que quando é fornecida a
instrução formal do princípio alfabético da Língua Portuguesa, os escolares que
não apresentam o quadro de dislexia deixam de apresentar suas manifestações
como resposta à instrução formal do princípio alfabético. Já “Habilidades
de leitura e escrita de crianças na recuperação do ciclo I: divergências entre
avaliação de professores e resultados em testes padronizados”, artigo enviado
por Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira, Chi Kow Mei, Alessandra Gotuzo
Seabra, Deisy Ribas Emerich e Elizeu Coutinho de Macedo, constitui
um trabalho de pesquisa sobre um dos assuntos mais importantes e mais
controversos no nosso país: a eficácia das Classes de Recuperação de Ciclos,
destinadas a desenvolver habilidades deficitárias dos alunos do Ciclo I do
Ensino Fundamental da escola pública.
Não menos discutido e analisado por vários pesquisadores de renome é o
tema apresentado por Silvana Frota e Liliane Desgualdo Pereira, “Processamento
auditivo: estudo em crianças com distúrbios da leitura e da escrita”, no qual o
desempenho de crianças com distúrbios específicos de leitura e escrita, nos
Testes Verbais e Não Verbais de Processamento Auditivo, e o de crianças sem
o referido transtorno são comparados cientificamente.

8
A contribuição de Tais de Lima Ferreira, Amanda Bulbarelli Martinez e Sylvia
Maria Ciasca, com seu artigo “Avaliação psicomotora de escolares do 1º ano do

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 161-2

161
EDiToriAL

8 ensino fundamental”, nos remete ao papel de fundamental relevância desse


desenvolvimento para a aprendizagem da criança nos aspectos emocionais,
motores e cognitivos.
De Nelson Pedro-Silva e Manoela de Fátima Cabral Simili, “Jogos regrados
e educação: concepções de docentes do ensino fundamental” revela uma
interessante análise sobre a concepção do docente a respeito das contribuições
do emprego dos jogos no processo educativo e no desenvolvimento psicológico
infantil.
Relatos de experiências, sempre tão esperados por nossos leitores, são aqui
representados por três artigos. O primeiro, “Construindo e construindo-se: uma
experiência da Clínica Social da ABPp-ES”, escrito por Cheila Araujo Mussi
Montenegro, Dina Lucia Fraga, Iara Feldman, Janine C. Barboza, Mara C. B.
R. Lima, Maria da Graça von Kruger Pimentel, Maria José Saavedra Castro,
Marieta Vieira Messina, Maristela do Valle e Sonia Volpini Coelho, e o segundo,
“Práticas pedagógicas e inovação na instituição de ensino: uma abordagem
psicopedagógica com foco na aprendizagem”, de Francisca Francineide
Cândido. É de Olga Araújo Perazzolo, Siloe Pereira e Marcia M. Capellano
dos Santos, o último relato de experiência desta edição: ”Discurso paterno:
sinais indicativos de disfunções relacionais”.
“O jogo como recurso de aprendizagem”, de Luciana Alves e Maysa
Alahmar Bianchin, vem também pontuar a importância do aspecto lúdico
para o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança e é de Iara Suzana
Tiggemann o artigo de revisão bibliográfica “Pontos de encontro entre os
sistemas notacionais alfabético e numérico”, que aponta para uma metodologia
interdisciplinar nos anos iniciais da escolarização, considerando que a criança
pequena utiliza procedimentos que se integram a uma estrutura cognitiva mais
ou menos comum.
“Senso numérico e dificuldades de aprendizagem na matemática”, escrito
por Luciana Vellinho Corso e Beatriz Vargas Dorneles, aborda o senso numérico
como conceito-chave para a compreensão das dificuldades de aprendizagem
na matemática e para a prevenção de dificuldades de aprendizagem futura
nesta área.
“Problemas emocionais em um adulto com dislexia: um estudo de caso”,
de Flávia Vianna Bonini, Raquel Regina Mari, Sandra Aparecida dos Anjos,
Viviane Joveliano e Sueli Cristina de Pauli Teixeira, aborda os diversos tipos
de sentimentos causados pela dislexia, baseando-se em um relato real, que
encerra este número.
Agradecemos a todos os autores e ao Conselho Editorial desta publicação,
por terem feito com suas generosas contribuições mais que construírem a
octogésima terceira edição da revista da ABPp Nacional, mas principalmente
terem colaborado para a confecção de um verdadeiro documento histórico,
retrato vivo de uma época de meteóricas e fundamentais mudanças no mundo,
na ciência e na Psicopedagogia.
Aos 30 anos da ABPp, à maturidade e ao reconhecimento científico
desta revista, que foram arduamente conquistados em nome de todos os
psicopedagogos: parabéns!

Maria Irene Maluf


Editora

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 161-2

162
ArTiGo
ParCeria oriGiNAL
saúde-eduCação na uFrJ

ParCeria saúde-eduCação na ufrj:


ComPartilhando exPeriênCias

renata mousinho; Claudia Tavares ribeiro; Gláucia m. m. martins

RESUMO – Objetivo: Verificar os ganhos da parceria educação-saúde


na experiência da fonoaudiologia da UFRJ com o CApUFRJ. Método:
Análise quantitativa - participaram da pesquisa crianças que cursaram o
1° ano em 2007, com idade média de 6,4 anos, em três momentos distintos:
no início do primeiro ano e no início e no fim do segundo ano letivo. A
primeira avaliação serviu para determinar os grupos de alfabetizados e
não alfabetizados na entrada da escola. Nas duas avaliações subsequentes,
foram investigadas a velocidade, a compreensão, a fluência e a precisão
de leitura. Análise qualitativa – impressões sobre o impacto nos alunos,
na família e na equipe profissional da escola. Resultados: No início do ano
letivo, a discrepância entre os grupos mostrou-se bastante importante em
todos os parâmetros avaliados, no fim do segundo ano, essa diferença foi
bastante minimizada, tendo mesmo desaparecido em parte das habilidades
investigadas; o impacto nas diversas categorias da comunidade escolar
foi positivo. Considerações finais: Em curto prazo de tempo, foi possível
minimizar diferenças individuais que se impunham de forma gritante
no momento do ingresso à instituição. Considerando a multifatoriedade
das questões envolvidas no processo ensino-aprendizagem e os desafios
postos à educação na atualidade, a parceria educação-saúde que vai
sendo construída do CAp com o Setor de Fonoaudiologia da UFRJ é uma
importante via de enfrentamento das dificuldades presentes e de produção
de conhecimento na área.

UNITERMOS: Educação. Saúde. Aprendizagem. Fonoaudiologia.

Renata Mousinho – Fonoaudióloga. Mestre em Correspondência


Linguística pela Universidade Federal do Rio Renata Mousinho
de Janeiro (UFRJ). Professora da Graduação em Av. das Américas 2678, casa 11 – Barra da Tijuca – Rio
Fonoaudiologia da UFRJ. de Janeiro, RJ – CEP 22640-102
Claudia Ribeiro – Pedagoga. Especialista em E-mail: renatamousinho@ufrj.br
Sexologia Humana. Orientadora Educacional do
Colégio de Aplicação da UFRJ.
Gláucia M. M. Martins – Psicopedagoga. Mestre em
Tecnologias Educacionais nas Ciências da Saúde pela
UFRJ. Doutoranda em Educação pela UNICAMP.
Orientadora Educacional do Colégio de Aplicação
da UFRJ.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 163-70

163
mousinho r et al

INTRODUÇÃO Nessa perspectiva, a parceria educação-


Problemas de leitura causam impacto em saúde tem um papel social primordial: diminuir
toda a escolaridade, trazendo repercussões diferenças que, a princípio, podem parecer
afetivas e sociais. Diversos estudos mostram a entraves ao desenvolvimento. Considerando a
importância da prevenção e identificação das leitura com compreensão uma das habilidades
crianças em risco de problemas de leitura, para básicas para novos aprendizados, julgou-se im-
possibilitar a intervenção precoce e minimizar portante utilizar este parâmetro nesta pesquisa
futuros prejuízos. Identificar esses problemas que pretende ilustrar o sucesso da experiência
de leitura precocemente torna-se emergente nos primeiros quatro anos dessa parceria.
diante da possibilidade de poder eliminá-los ou São muitos os aspectos necessários à com-
minimizá-los por meio de estimulação precoce. preensão da leitura, dentre eles a fluência, a
Autores chamam a atenção para o fato de velocidade, a precisão, assim como com as ha-
que pesquisadores, educadores e políticos vêm bilidades metalinguísticas e cognitivas3,4.
dando mais atenção a estas questões, demons- Neste contexto, os principais objetivos deste
trando o impacto positivo de programas de artigo são:
intervenção precoce sobre possíveis problemas • apresentar por meio de parâmetros qualita-
de leitura1,2. É justamente a convicção de que é tivos e quantitativos os ganhos da parceria
importante trabalhar conjuntamente, visando educação-saúde para a comunidade escolar;
ao desenvolvimento pleno das crianças, que é • acompanhar a evolução das habilidades de
a alma desta parceria entre a equipe da fono-
leitura nos primeiros anos do ensino funda-
audiologia da UFRJ, especializada em leitura
mental, comparando o grupo que já entrou
e escrita, de um lado, e a equipe do Colégio de
alfabetizado na escola, com aquele não alfa-
Aplicação da UFRJ, encabeçada pelo Serviço
betizado;
de Orientação Educacional, de outro.
• investigar o quanto a parceria educação-saúde
Esta experiência diz respeito a uma pro-
pode interferir na evolução das tarefas de
posta longitudinal, que vem acompanhando o
leitura nas primeiras séries do ensino funda-
desenvolvimento linguístico das crianças que
mental em grupos com experiência de leitura
cursaram o 1° ano do ensino fundamental em
totalmente diversificadas.
2007 e se estenderá durante todo processo de
escolarização formal, ou seja, até o 3° ano do
ensino médio. Dela fazem parte: MÉTODO
• uma avaliação individual anual das crianças;
• orientações aos pais (anuais para todos, Análise quantitativa: a análise de dados
mensais para crianças com dificuldades ou Inicialmente, participaram da investigação
sob demanda); 50 crianças ingressantes em uma escola de
• orientações e trocas com professores (para referência em educação pública no Rio de Ja-
toda a escola, anuais; para os professores que neiro.Há uma grande procura pelas vagas nesta
estiverem atuando direto com este grupo, instituição e a atual forma de ingresso no 1º ano
trimestrais ou sob demanda); do ensino fundamental é realizada por meio de
• discussões com a equipe de orientação edu- sorteio entre os candidatos inscritos. Como con-
cacional (trimestrais ou sob demanda); sequência, embora todas as crianças tivessem
• oicinas de linguagem para as crianças em média de 6 anos, apresentavam diferenças em
risco de Dislexia ou Distúrbio de Aprendi- sua experiência com a leitura e a escrita, que
zagem; variava entre o desconhecimento completo do
• atendimento individual para aqueles com sistema de escrita do português e o domínio de
diagnóstico estabelecido. leitura com razoável fluência.

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164
ParCeria saúde-eduCação na uFrJ

Os procedimentos aconteceram em três ca-sa), pausado (com prolongamentos entre as


etapas, a saber: palavras) ou luente (sem pausas grandes, com
1. Etapa 1: realizada em maio do 1º ano do contorno prosódico). A fim de investigar a preci-
ensino fundamental, quando as crianças tinham são da leitura, foi utilizada uma lista de palavras
idade média de 6,4 anos. Os grupos de leitores isoladas reais, utilizando como variáveis o tipo
e não-leitores foram constituídos a partir do de palavra (regulares, irregulares ou regras), a
desempenho das crianças na leitura de uma frequência (alta ou baixa), e o comprimento das
lista de 24 palavras adaptada para classe de palavras (dissílabas ou trissílabas)7, adaptada8.
alfabetização5. O grupo de não-leitores (G1) foi 3. Etapa 3: realizada no 2º ano do ensino
formado com as crianças que não leram quais- fundamental - fim do ano letivo. A etapa 2 foi
quer das palavras da lista, enquanto o grupo repetida.
de leitores (G2) foi constituído por aqueles que Cabe ressaltar que as crianças do grupo
obtiveram os 25% escores mais altos na tarefa de não-leitores foram convidadas a participar
de leitura, o que correspondeu à leitura fluente de oficinas de linguagem oral e escrita que
de no mínimo 23 palavras. Desta forma, foram ocorreram semanalmente no serviço de fonoau-
20 crianças incluídas no grupo de não-leitores diologia da UFRJ entre a primeira e a terceira
(Idade média = 6,7; DP=2,87) e 13 crianças no coletas. Todos os responsáveis pelos alunos
grupo de leitores (Idade média=6,8; DP=3,95; avaliados assinaram o termo de consentimento
Mdn= 24 palavras). livre e esclarecido da pesquisa aprovada sob o
2. Etapa 2: realizada no 2º ano do ensino número 003/07 do Comitê de Ética e Pesquisa
fundamental - início do ano letivo. Para verifi- do Instituto de Neurologia Deolindo Couto – RJ/
car a velocidade, foi cronometrada a leitura do UFRJ.
texto narrativo “O Acidente”6, composto por O desempenho de G1 e G2 nas tarefas de
196 palavras e 939 caracteres. Com vistas a ve- leitura foi comparado usando o teste t de Stu-
rificar a compreensão, foram realizadas quatro dent para amostras independentes.
perguntas eliciadoras, abrangendo o conteúdo
do texto. O padrão de leitura poderia ser iden- RESULTADOS
tiicado como silabado (Ex: O me-ni-no sa-iu de A Tabela 1 revela os resultados do grupo que

Tabela 1 – Tarefas de leitura em G1 e G2, nos 2 momentos avaliados.


G1 G2
(n = 20) (n = 13) df t p
M DP M DP
Velocidade 1 438,67 290,142 175,50 700,176 31 3,730 0.001**
Padrão 1 1,60 0,737 2,56 0,705 31 -3.783 0.001**
Precisão 1 40,40 12,540 46,56 1,247 24.409 -2.077 0.046*
Compreensão 1 2,47 1,302 3,72 0,461 31 -3.824 0.002**
Velocidade 2 199,40 92,230 135,67 45,075 19.492 2.444 0.024*
Padrão 2 2,40 0,507 2,44 0,705 30.425 -210 0.840
Precisão 2 46,67 1,047 46,94 1,259 31.000 -692 0.494
Compreensão 2 3,47 0,915 3,78 0,428 31 -1.211 0.208
Nota *p ≤ 0,05; **p ≤ 0,01

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mousinho r et al

entrou na escola sem conhecimento do sistema Figura 1 - Evolução da velocidade, padrão, precisão
de escrita (G1), seguido dos resultados do grupo e compreensão de leitura em G1 e G2.
que iniciou no CAP-UFRJ já alfabetizado (G2).
Os valores das colunas subsequentes referem-
se à comparação entre ambos os grupos. As
linhas de velocidade, padrão, compreensão e
precisão seguidos do algarismo 1 referem-se à
análise realizada no início do 2° ano. Aquelas
seguidas pelo algarismo 2 dizem respeito aos
valores obtidos quando as crianças estavam no
fim do 2° ano.
A diferença entre G1 e G2 foi altamente
significativa na primeira avaliação, sobretudo
na velocidade, padrão e compreensão de textos.
A média da velocidade de leitura do G1 foi de
438,6 segundos (2 minutos e 92 segundos) em
contraste com a do G2, que leu todo o texto
em 175,5 segundos (7 minutos e 31 segundos).
Enquanto o G1 apresentou um padrão silabado/ ler no início do 1° ano, está representado pela
pausado, o G2 apresentou um padrão pausado/ cor azul. O G2, grupo formado por crianças
fluente. As respostas às perguntas que visavam que, na mesma época, já conseguiram ler 23
observar a compreensão, um total de 4, apre- das 24 palavras de uma lista, está representado
sentaram 2,47 de média em G1, contrastando pela cor vermelha. Cada uma das habilidades
com 3,72 em G2. Significativo, mas numa aparece com indicação de 1, quando realizada
escala menor, foi o número de palavras lidas no início do 2° ano, e com 2, quando realizada
corretamente (precisão), que foi de 40,4 e 46,5, no fim deste ano letivo.
respectivamente, para G1 e G2. Como se pode observar na Figura 1, a evo-
Na segunda avaliação, no fim do ano letivo, lução foi grande em ambos os grupos, mas o
somente a velocidade de leitura foi discreta- crescimento do G1 foi proporcionalmente muito
mente significativa, considerando-se testes superior. No que diz respeito à velocidade de
estatísticos. Os alunos do G1 puderam ler o leitura, a enorme discrepância observada no
texto todo em 199,5 segundos (3 minutos e 33 início do 2° ano foi minimizada na segunda
segundos), enquanto o G2 fez o mesmo em avaliação. Neste caso, quanto menor o valor,
135,6 segundos (2 minutos e 26 segundos). O melhor, já que o que se deseja é uma leitu-
padrão de leitura apresentou-se de pausado ra mais veloz, portanto, realizada em menor
a fluente em ambos os grupos. A precisão de tempo. Este resultado, associado ao padrão,
leitura foi praticamente idêntica, de um total desta vez igualado entre os grupos em pausado-
de 48 palavras, alunos do G1 acertaram 46,67, fluente, e à precisão, em que ambos os grupos
enquanto os do G2 leram corretamente 46,94. acertaram quase que integralmente a lista de
Assim como as demais habilidades, a compre- palavras propostas, possibilitam uma compre-
ensão apresentou-se bastante similar nos dois ensão adequada.
grupos (3,47 e 3,78, respectivamente), como Considerando-se que a compreensão é o
pode ser observado na Figura 1. objetivo final da leitura e que os atuais moldes
A fim de analisar melhor tais ganhos, os va- educacionais valorizam a compreensão não só
lores foram colocados em proporção. Na Figura na disciplina específica, mas em todas as de-
1, o G1, formado pelas crianças que não sabiam mais, pode-se pensar que a pouca solidez nesta

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166
ParCeria saúde-eduCação na uFrJ

área poderia prejudicar o início da escolarização condições de levar e trazê-los, seja para as ofi-
formal, trazendo reflexos ao longo dos anos. cinas coletivas ou para os atendimentos indivi-
Portanto, a possibilidade de reverter precoce- dualizados nas dependências da Universidade,
mente o cenário inicial, altamente diversificado significou receber uma atenção especial em
também no que diz respeito ao domínio sobre suas necessidades, gerando estímulo e autocon-
a leitura, mostrou que a instituição em questão fiança para o enfrentamento das dificuldades,
cumpriu um dos papéis cruciais da educação: fossem elas de velocidade, precisão ou compre-
permitir oportunidades iguais a despeito das ensão na leitura.
possibilidades iniciais de cada um. Mesmo para crianças que apresentam
É importante lembrar que há crianças que comprometimento em outras áreas de seu de-
ainda se mantêm defasadas em relação ao grupo senvolvimento, além do linguístico, participar
e que, portanto, precisarão de mais tempo para dos atendimentos e oficinas de linguagem ofe-
que tais habilidades se desenvolvam. Neste recidos pelo Setor de Fonoaudiologia fez dife-
contexto, a parceria com o serviço de fonoau- rença. Alunos com alguma dificuldade em seu
diologia, que já existia com o oferecimento de processo de escolarização costumam se retrair
oficinas de linguagem ao grupo de crianças diante das experiências escolares, e se colocam
menos hábil no aprendizado da leitura, torna-se à margem do processo do grupo em que estão
mais relevante. inseridos. Observamos nos alunos que conti-
nuaram participando do trabalho com a equipe
de Fonoaudiologia que eles se fortaleceram e
DISCUSSÃO
puderam viver sua escolaridade de forma mais
confiante e positiva.
Análise quantitativa: o ponto de vista da
No tocante ao desenvolvimento cognitivo,
escola
observamos que o trabalho de estímulo e inter-
Inicialmente, a possibilidade da parceria com
venção, nas habilidades cognitivas relacionadas
a Fonoaudiologia da UFRJ, por meio do proje-
à aquisição da leitura e da escrita, desenvolvido
to se configurou, primordialmente, como uma
com as crianças atendidas pelo Projeto tem
ótima oportunidade de avaliação e atendimento apresentado resultados importantes na interpre-
aos alunos que apresentam dificuldades no tação, compreensão, realização de inferências e
percurso de sua escolarização inicial. Contudo, estabelecimento de relações, em diferentes áre-
esta parceria vem ampliando resultados que as do conhecimento, por parte destas crianças.
se explicitam de formas específicas, nos três Embora ainda não tenhamos criado nenhum
principais segmentos envolvidos na parceria: instrumento para aferição objetiva destas ha-
alunos, famílias e corpo docente. bilidades, são observações também atestadas
Em relação às crianças, poderíamos pontuar pelas avaliações formais da escola.
alguns aspectos importantes relacionados ao Em relação às famílias, ressaltamos nos aten-
percurso do grupo em estudo, no tocante ao dimentos aos responsáveis que a maioria deles
desenvolvimento socioafetivo e cognitivo. Já compareceu às entrevistas agendadas pelo Setor
na primeira fase, quando da primeira avaliação, de Orientação Educacional na escola, e levou as
pudemos perceber que através da forma cuida- crianças às atividades indicadas, demonstrando
dosa com que as atividades de avaliação foram enorme interesse pelo processo. Mesmo as fa-
planejadas e realizadas com as crianças, as mílias que têm condições econômicas de arcar
mesmas se mostraram à vontade, sem constran- com um tratamento fonoaudiológico para seus
gimentos e até muito satisfeitas por participar! filhos, mantiveram a frequência nas atividades
A mobilização na escola para a realização oferecidas pelo Projeto por valorizarem a articu-
das avaliações e na família, que teve que criar lação dos profissionais da Fonoaudiologia com

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167
mousinho r et al

a escola, pois a parceria propiciou a oportunidade CONSIDERAÇÕES FINAIS


das famílias terem acesso a informações quanto Este artigo objetivou investigar a evolução ha-
ao desenvolvimento de seus filhos, e dificuldades bilidades de leitura nos primeiros anos do ensino
pontuais apresentadas de forma integrada com fundamental, comparando grupo que já entrou
o processo ensino-aprendizagem desenvolvido alfabetizado na escola, com aquele não alfabeti-
pela escola. zado, destacando o papel da escola na evolução
A realização de reuniões gerais, voltadas para das tarefas de leitura nas primeiras séries do
aspectos do desenvolvimento linguístico em suas
ensino fundamental em grupo com experiência
diferentes etapas, assim como, as entrevistas in-
diversificada.
dividuais voltadas para orientações relativas às
Enquanto no início do ano letivo a discrepância
dificuldades específicas de cada criança, ajuda-
entre os grupos mostrou-se bastante importante em
ram os responsáveis a compreender e mudar de
todos os parâmetros avaliados, no fim do segundo
postura frente às dificuldades das crianças. Muitas
vezes, ao longo destas entrevistas, os responsáveis ano essa diferença foi bastante minimizada, tendo
se reportavam a questões do desenvolvimento mesmo desaparecido em parte das habilidades
das crianças em fases anteriores, estabelecendo investigadas. Tais dados confirmam evidências
relações e expressando melhor compreensão da encontradas na literatura que apontam a relevân-
situação de seus filhos. Podemos citar mais de um cia da intervenção precoce nas dificuldades de
caso em que a família, que a princípio responsa- leitura9-12.
bilizava a criança por suas dificuldades, pode per- Observou-se que a união de esforços saúde-
ceber, a partir das orientações dadas pela equipe educação conseguiu, num curto prazo de tempo,
da Fonoaudiologia, se tratar de um momento de minimizar diferenças individuais que se impunham
desenvolvimento, entendendo-o não como uma de forma gritante no momento do ingresso à insti-
impossibilidade, mas como uma etapa possível de tuição. Parcerias entre serviços podem se mostrar
ser trabalhada, e quanto às dificuldades, possíveis relevantes no desafio de educar na diversidade.
de serem superadas. A multifatoriedade das questões envolvidas
A parceria entre o Setor de Fonoaudiologia e o no processo ensino-aprendizagem tem indica-
CAp possibilitou aos docentes o acesso a informa-
do a necessidade da articulação entre equipes
ções fundamentais para a sua atuação. A avaliação
multidisciplinares para o enfrentamento dos
e o diagnóstico das dificuldades apresentadas pelas
desafios postos à educação na atualidade.
crianças, acompanhados de uma interlocução entre
Dentre estes desafios, ressaltamos a conquista
os dois principais agentes que atuam na questão -
do atendimento às diferentes modalidades de
professores e fonoaudiólogos - representam uma
forma de melhor conhecer essas dificuldades em aprendizagem presentes na escola. Neste senti-
sua etiologia, por um lado, e em suas manifesta- do, entendemos que a parceria educação-saúde
ções, por outro. Desta forma, são ampliadas formas que vem sendo construída entre o CAp e o Setor
de oferecer, também por meio da família e do tra- de Fonoaudiologia da UFRJ é uma importante
balho pedagógico da escola, aquilo que a criança via de enfrentamento das dificuldades presentes
precisa para a superação de suas dificuldades e no processo de ensino-aprendizagem e também,
pleno desenvolvimento de suas potencialidades. de produção de conhecimento na área.

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ParCeria saúde-eduCação na uFrJ

SUMMARY
Health-education partnership at UFRJ: sharing experiences

Objective: This paper aims at presenting the gains of the health-


education partnership for the school community. Methods: Quantitative
analysis - participants were fifty 6.4 years old children in the 1st grade in
2007, and the same group at the beginning and end of the 2nd grade in
2008. The irst evaluation determined the groups of literate and illiterate at
school entry. Were investigated in two subsequent speed, comprehension,
fluency and reading accuracy. Qualitative analysis: what the impact on
students, family and professional staff of the school. Results: While the
beginning of the school year the discrepancy between the groups proved
to be quite important in all parameters evaluated later in the second year
this difference was much minimized, and has even disappeared in some
of the skills investigated; the impact in the various categories of the school
community was positive. Conclusion: In a short period of time, differences
between children at the time of admission to the institution were minimized.
Considering the multifactorial nature of the issues involved in the teaching-
learning process and the challenges posed to education today, the health-
education partnership, CAp and UFRJ’s graduation in Speech Therapy,
is an important issue for learning development and for the production
knowledge in the area.

KEY WORDS: Education. Health. Learning. Speech, Language and


Hearing Sciences.

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rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 163-70

169
mousinho r et al

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11. Dambrowski AB, Martins CL, Theodoro 2008;10(2):168-74.

Trabalho realizado no Instituto de Neurologia Artigo recebido: 11/3/2010


Deolindo Couto – UFRJ, Rio de Janeiro, RJ. Aprovado: 1/7/2010

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 163-70

170
ArTiGo
atenção oriGiNAL
e Funções exeCutivas

ComParação do desemPenho de
estudantes em instrumentos de atenção
e Funções exeCutivas
Adriana Nobre de Paula simão; ricardo franco de Lima; juliane Cristhine Natalin; sylvia maria Ciasca

RESUMO – O objetivo da presente pesquisa foi comparar o desempenho


de crianças, de ambos os gêneros, de faixa etária entre 7-12 anos, com e
sem queixas de dificuldades de atenção e aprendizagem em instrumentos
que avaliam a atenção e aspectos das funções executivas. Foram usados
os seguintes instrumentos: Stroop Color Word Test, Trail Making Test
A/B, Testes de Cancelamento e Torre de Londres. Os resultados foram
organizados em função dos gêneros, distribuição de frequência das queixas
e caracterização do desempenho. Foram obtidas diferenças significativas
entre os grupos nos escores dos Testes. O grupo com queixas apresentou
escores de tempo e erros aumentados em relação ao grupo sem queixas.
No caso do escore da TOL, o grupo sem queixas apresentou escore maior.

UNITERMOS: Testes neuropsicológicos. Atenção. Transtornos de


aprendizagem.

Adriana Nobre de Paula Simão – Psicóloga; Mestre Correspondência


e Doutora em Ciências Médicas – Faculdade de Adriana Nobre de Paula Simão
Ciências Médicas - FCM/UNICAMP. Rua Hermantino Coelho, 841, Apto 23 – Mansões
Ricardo Franco de Lima – Neuropsicólogo; Santo Antônio – Campinas, SP – CEP 13087-500
Aprimoramento/Especialização em Psicologia E-mail: drisimao@gmail.com
Clínica em Neurologia Infantil – FCM/UNICAMP;
Mestrando em Ciências Médicas – Saúde Mental –
FCM/UNICAMP. Bolsista CNPq.
Juliane Cristhine Natalin – Psicóloga; Aprimoramento/
Especialização em Psicologia Clínica em Neurologia
Infantil – FCM/UNICAMP.
Sylvia Maria Ciasca – Neuropsicóloga; Livre Docente
em Neurologia Infantil – FCM/UNICAMP.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 171-80

171
simão anP et al.

INTRODUÇÃO A flexibilidade mental refere-se à capacida-


A atenção e funções executivas são funções de de o indivíduo modificar o curso dos pensa-
corticais importantes para o processo de apren- mentos, atos e estratégias e alternar a atenção.
dizagem, estando diretamente envolvidas com De acordo com Cañas et al.9, esta capacidade
as habilidades escolares de leitura, escrita e permite ao indivíduo adaptar seu processamen-
cálculo. Dadas estas relações, as queixas de to cognitivo em função de condições novas e
dificuldades na atenção motivam grande parte inesperadas do ambiente.
dos encaminhamentos de crianças e adolescen- O controle inibitório é a capacidade de sele-
tes para avaliação interdisciplinar. Em estudo ção entre estímulos relevantes em detrimento
de Lima et al.1, foi observado que as queixas dos estímulos distratores e a inibição de respos-
escolares e familiares referentes à desatenção tas automáticas10,11.
foi a segunda maior queixa (19%), sendo a pri- Para os autores Capovilla & Dias12, no con-
meira de dificuldades na aprendizagem (47%). texto escolar, dificuldades atencionais são
A atenção pode ser definida como a capa- frequentemente relacionadas a problemas de
cidade de o indivíduo selecionar e focalizar aprendizagem e podem prejudicar significa-
seus processos mentais em algum aspecto do tivamente a aprendizagem, por exemplo, da
ambiente interno, como ideias armazenadas na
leitura e da escrita. Tonelotto13 também afirma
memória ou no ambiente externo, respondendo
que crianças com prejuízos atencionais podem
predominantemente aos estímulos que lhe são
ter dificuldades no processo de escolarização
significativos e inibindo os distratores2,3.
e apresentam problemas tanto na leitura e na
A atenção não constitui um processo único,
escrita, bem como, no cálculo. De acordo com
podendo ser dividida em: seletiva, sustentada,
a autora, o prejuízo escolar se manifesta pela
alternada e dividida. A atenção seletiva refere-
dificuldade da criança planejar e organizar as
se à capacidade de discriminação entre estí-
tarefas e solucionar os problemas.
mulos relevantes e irrelevantes. A sustentada
A relação entre a atenção e o desempenho
é a capacidade de manter o foco atencional em
escolar foi evidenciada no estudo realizado
um determinado estímulo, por um período de
tempo, para executar uma tarefa. A atenção por Capovilla & Dias12 com crianças sem di-
alternada refere-se à capacidade de alternar ficuldades de aprendizagem. No estudo ficou
o foco entre diferentes estímulos e a atenção demonstrada a tendência de desenvolvimento
dividida, por sua vez, compreende a divisão desta função ao longo das séries escolares, as-
do foco atencional para o desempenho de duas sim como a correlação positiva e significativa
tarefas simultaneamente4,5. entre o desempenho de crianças em testes de
As Funções Executivas (FE) são consideradas atenção e seu desempenho escolar.
como um conjunto de funções responsáveis por Em outro estudo realizado por Lima et al.14
iniciar e desenvolver uma atividade com objeti- com crianças sem dificuldades de aprendiza-
vo final determinado, incluindo amplo espectro gem, também foram observadas correlações
de processos cognitivos, como por exemplo: ca- significativas entre o desempenho em tarefas
pacidade de planejamento e uso de estratégias, de atenção e funções executivas e os escores
flexibilidade mental e controle inibitório5-7. de testes de leitura, escrita e cálculo. O estudo
Conforme afirmam Dehaene & Changeux8, demonstrou que o bom desempenho escolar
a capacidade de planejamento envolve um se relaciona com bom desempenho nestes
conjunto de representações mentais e/ou uma instrumentos.
sequência de comportamentos que são dirigidos Há evidências de alterações significativas
para um determinado objetivo. da atenção e funções executivas em diferentes

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 171-80

172
atenção e Funções exeCutivas

transtornos na infância e adolescência, como MÉTODO


por exemplo, no Transtorno do Déficit de Aten-
ção e Hiperatividade (TDAH)15-17 e na Dislexia Participantes
do Desenvolvimento11,18,19. Foram participantes da pesquisa, um total
Especificamente, TDAH é transtorno carac- de 40 crianças, de ambos os gêneros, com faixa
terizado por padrão persistente de desatenção etária entre 7 e 12 anos de idade, cursando do
e/ou hiperatividade-impulsividade. Tais sinto- 1º ao 7º ano do Ensino Fundamental. A amostra
mas devem ser mais frequentes e graves do que foi dividida em dois grupos distintos:
aqueles observados em indivíduos com idade a) 20 crianças com queixas de dificuldades
equivalente; devem estar presentes antes dos de aprendizagem e atenção;
sete anos de idade; presentes em pelo menos b) 20 crianças sem queixas de dificuldades
dois contextos (por exemplo, em casa e na es- de aprendizagem e atenção.
cola); não podem ser explicados por outro trans- Os critérios de inclusão e exclusão dos
torno e causam prejuízos ao desenvolvimento participantes do grupo com queixas foram: a)
global da criança, assim como consequências apresentar queixas de dificuldades de apren-
emocionais, sociais, familiares e escolares20-22. dizagem e atenção; b) assinatura do Termo
Estudo desenvolvido em escolas públicas de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
no Brasil estimou prevalência de 3%, sendo o pelos pais; c) não apresentar rebaixamento no
gênero masculino mais acometido e o subtipo nível intelectual, isto é, apresentar Quociente
de Inteligência (QI) dentro da média (QI>80); d)
combinado, o mais frequente23. No estudo de
não apresentar déficits sensoriais e/ou motores.
metanálise realizado por Polanczych et al.24
Os critérios de inclusão e exclusão dos par-
com mais de 8.000 pesquisas, chegou-se a uma
ticipantes do grupo sem queixas foram: a) não
estimativa aproximada de 5% da população
apresentar queixas de dificuldades de aprendi-
mundial infantil em idade escolar.
zagem e/ou atenção; b) ter sido indicado pelo
Do ponto de vista etiológico, sabe-se que
professor por apresentar bom desempenho es-
o TDAH é um transtorno crônico que possui
colar; c) assinatura do Termo de Consentimento
substrato biológico com disfunções no córtex
Livre e Esclarecido (TCLE) pelos pais; d) não
pré-frontal e em suas conexões com o circuito
apresentar déficits sensoriais e/ou motores.
subcortical e córtex parietal5,25,26. De acordo com
Knapp et al.27, essas alterações explicam o défi- Instrumentos
cit nas funções executivas, incluindo memória Para a coleta dos dados foram utilizados os
de trabalho, planejamento, autorregulação de seguintes instrumentos:
motivação e do limiar para ação dirigida a ob-
jetivo definido e internalização da fala. Stroop Color Word Test – SCWT14
Diante destas considerações, fica evidente O teste visa avaliar a capacidade do estudan-
a necessidade do desenvolvimento de instru- te em considerar estímulos relevantes e descon-
mentos que permitam a avaliação da atenção siderar os estímulos não-relevantes. É composto
e funções executivas e que possam diferenciar por quatro cores (vermelho, amarelo, azul e
crianças que apresentam dificuldades. verde) e 24 estímulos em cada uma das três
Sendo assim, foi objetivo do presente tra- partes: a) “Cartão Cores” (C): a criança deve
balho comparar o desempenho de crianças nomear os quadrados pintados nas quatro cores
com e sem queixas de dificuldades de atenção organizadas em ordem pseudo-randômica; b)
e aprendizagem em instrumentos que avaliam “Cartão Palavras” (P): a criança deve dizer os
a atenção e aspectos das funções executivas. nomes nas cores impressas, que agora estão nas

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simão anP et al.

cores correspondentes (situação congruente); c) mento e raciocínio lógico. É composta por uma
“Cartão Cor-Palavra” (CP): são apresentados base de madeira com três pinos verticais e
nomes de cores impressos em outras cores, por quatro discos coloridos do mesmo tamanho, com
exemplo, a palavra “Amarelo” impressa na furo no centro para o encaixe nos pinos. O obje-
cor “Vermelha” (condição incongruente) e a tivo é mover os discos para reproduzir, em um
criança deve nomear a cor e não ler a palavra. número determinado de movimentos, a posição
Foram obtidos escores de tempo (em segundos) de uma figura-alvo apresentada. Existem dez
e número de erros. Também foram calculados problemas com grau crescente de dificuldade,
os escores de facilitação (C-P) e interferência e a partir de uma posição inicial a criança deve
(CP-C) para tempo e erros. realizar a tarefa em uma quantidade específica
de movimentos. São permitidas três tentativas
Trail Making Test A/B - TMT-A/B14 para a resolução do problema e a resposta é
A parte A do TMT é um teste de atenção considerada correta quando a solução é alcan-
sustentada visual, composto por folha com çada com o correto de movimentos. Os escores
círculos numerados de 1 a 25, distribuídos de de cada item podem variar de 0 a 3 pontos e o
forma aleatória, na qual a criança deve traçar escore total é a soma dos escores de todos os
uma linha ligando a sequência numérica. Foram itens. O escore pode variar de 0 a 30 pontos.
obtidos escores de tempo (em segundos) e nú-
mero de erros de ligação. A parte B é um teste Procedimentos
de flexibilidade mental, composto por círculos A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
com números e letras. A criança deve ligar al- Ética da Faculdade de Ciências Médicas da
ternadamente os círculos com números e letras, Universidade Estadual de Campinas/UNI-
seguindo respectivamente as ordens numérica CAMP. As crianças do grupo com queixas foram
e alfabética. Também foram obtidos escores selecionadas dentre aquelas encaminhadas ao
de tempo (em segundos), número de erros de Ambulatório de Neuro-Dificuldades de Apren-
sequência e erros de alternância. dizagem, localizado no Hospital de Clínicas da
UNICAMP, para avaliação e diagnóstico das
Testes de Cancelamento - TC14 dificuldades de aprendizagem e atenção. As
Constituem testes de atenção sustentada, crianças sem queixas foram selecionadas dentre
exigindo rápida seletividade visual e resposta as indicações de professores de uma escola na
motora repetitiva. Foram usadas duas versões: cidade de Campinas/SP, por não apresentarem
a) Figuras Geométricas (TC-FG): a criança deve dificuldades de aprendizagem e/ou atenção.
marcar os círculos encontrados o mais rápido Todas as crianças foram avaliadas individual-
que conseguir em uma folha com uma sequên- mente após a assinatura do TCLE pelos pais.
cia pseudo-randômica de figuras geométricas; O tempo de cada atendimento foi em torno de
b) Letras em Fileiras (TC-LF): a criança deve 50 minutos e o número de encontros com cada
marcar todas as letras “A” em uma folha com participante foi de três sessões.
letras distribuídas de forma pseudo-randômica. Os dados foram analisados estatisticamente
Em ambos foram obtidos os escores de tempo usando o SPSS v15. Foi adotado o nível de sig-
(em segundos), erros por omissão (número de nificância de 5%, isto é, valor de p<0,05.
estímulos-alvo que a criança não assinalou) e
erros por adição (número de estímulos-não alvo RESULTADOS
que a criança assinalou).
Caracterização da amostra
Torre de Londres – TOL14 Com relação à amostra total, participaram
Tarefa que avalia a habilidade de planeja- do estudo 40 crianças com idade média de

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atenção e Funções exeCutivas

9,48 (DP=1,46), sendo 23 (57,5%) do gênero tais critérios, as crianças do grupo propósito
masculino e 17 (42,5%) do feminino. Não houve também deveriam apresentar queixas referen-
diferenças (p=0,685) entre as idades médias do tes à atenção e à aprendizagem. A análise das
gênero masculino (9,77+0,43 anos) e feminino queixas deste grupo indicou maior frequência
(9,57+0,96 anos). daquelas referentes à atenção/concentração
A Tabela 1 mostra a frequência dos gêneros (33,9%), seguida por dificuldade na leitura e
em relação aos grupos de estudo. Não houve escrita (19,6%), conforme apresenta a Tabela 2.
diferenças na distribuição entre os grupos (Teste
de Fisher, p= 0,523). Comparação do desempenho
A média de idade do grupo com queixas foi A comparação do desempenho entre os
de 9,70 (DP=1,59) e do grupo sem queixas foi grupos nos instrumentos utilizados pode ser
de 9,25 (DP=1,06), sem diferenças significativas observada na Tabela 3.
entre elas (p=0,434). Também não houve dife- Os resultados indicaram que houve diferen-
renças entre os grupos em relação ao nível de ças significativas entre os grupos nos escores
escolaridade (Teste qui-quadrado; χ² =11,883, dos testes: Stroop Color Word Test (Cor-Erros
g.l.=6, p=0,06). e Tempo, Palavra-Erros e Tempo, Cor/Palavra-
Com relação ao grupo com queixas, a mé- Erros e Tempo, Interferência de Erros); Teste de
dia do QI total foi de 102,65 (DP=21,96), obtido Cancelamento – Figuras Geométricas (Erros de
por meio da Escala Wechsler de Inteligência Omissão e Tempo); Teste de Cancelamento – Le-
para Crianças (WISC-III), de modo que não tras em Fileira (Erros de Omissão); Trail Making
apresentavam rebaixamento intelectual, con- Test – Parte A (Erros e Tempo); Trail Making Test
forme os critérios de inclusão. De acordo com – Parte B (Erros de Alternância, de Sequência

Tabela 1 - frequência dos gêneros em relação aos grupos.


Grupos
Gêneros/Grupos Total
Com queixas Sem queixas
masculino 13 (57%) 10 (43%) 23
feminino 7 (41%) 10 (59%) 17
Total 20 20 40

Tabela 2 - Distribuição de frequência de queixas.


Queixas f %
Atenção/ concentração 19 34
Dificuldade em leitura e/ou escrita 11 20
Agitação motora 7 12
impulsividade 6 11
Dificuldade em aritmética/raciocínio lógico 5 9
Agressividade 4 7
Comportamento opositor 4 7
Total 56 100

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simão anP et al.

Tabela 3 - Comparação dos escores dos instrumentos entre os grupos.


Grupo
p valora
Com queixas Sem queixas
sCWT-Cor Erro 1,20 (1,40) -- 0,000*
sCWT- Cor Tempo 33,10 (11,35) 19,45 (6,38) 0,000*
sCWT-Palavra Erro 1,05 (1,32) -- 0,000*
sCWT-Palavra Tempo 29,05 (12,48) 16,05 (6,10) 0,000*
sCWT-Cor/Palavra Erro 6,70 (6,09) 0,50 (0,89) 0,000*
sCWT-Cor/Palavra Tempo 47,25 (11,72) 31,95 (7,32) 0,000*
sCWT-facilitação Erro 0,15 (1,42) -- 0,329
sCWT-facilitação Tempo 4,05 (10,33) 3,40 (3,07) 0,745
sCWT-interferência Erro 5,50 (6,39) 0,50 (0,89) 0,000*
sCWT-interferência Tempo 14,15 (11,96) 12,50 (4,96) 0,776
TC-fG Erros Adição -- -- 1,000b
TC-fG Erros omissão 2,60 (2,70) 0,05 (0,22) 0,000*
TC-fG Tempo 100,45 (31,92) 80,25 (25,82) 0,010*
TC-Lf Erros Adição -- -- 1,000b
TC-Lf Erros omissão 10,20 (8,40) 0,65 (1,14) 0,000*
TC-Lf Tempo 137,50 (47,47) 134,80 (61,39) 0,409
TmT-A Erros 0,85 (1,42) -- 0,009*
TmT-A Tempo 83,65 (45,38) 40,55 (10,66) 0,000*
TmT-B Erros Alternância 1,65 (2,39) 0,10 (0,31) 0,000*
TmT-B Erros sequência 3,70 (4,71) 0,10 (0,31) 0,000*
TmT-B Tempo 215,40 (128,95) 105,45 (44,82) 0,002*
ToL 15,15 (4,97) 19,70 (3,71) 0,002*
a
teste mann-Whitney; bvalor não calculado, pois os escores entre os grupos foram iguais; *significativo estatisticamente.

e Tempo) e Torre de Londres. O grupo com padrão já caracterizado em outros estudos de-
queixas apresentou escores de tempo e erros senvolvidos no Ambulatório como, por exemplo,
aumentados em relação ao grupo sem queixas. o estudo de Ciasca28, com frequência de 64%
No caso do escore da TOL, o grupo sem queixas de meninos. Posteriormente, os estudos de Lima
apresentou escore maior. et al.1, com 75%, e Lima et al.29, com 70% de
crianças do gênero masculino.
DISCUSSÃO Estudos realizados em outros serviços indi-
No que se refere às características da amos- cam resultados semelhantes no que se refere
tra, observou-se frequência maior de crianças ao encaminhamento para avaliação de crianças
do gênero masculino (57%), dentre aquelas com dificuldades de aprendizagem. Scorte-
encaminhadas ao Ambulatório de Neuro-Difi- gagna e Levandowski30, em estudo realizado
culdades de Aprendizagem e pertencentes ao no Serviço de Psicologia do Programa Vincu-
grupo com queixas. Este resultado segue um lação, de Caxias do Sul, observaram que, de

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atenção e Funções exeCutivas

111 encaminhamentos, 77 eram de crianças do Em crianças com queixas primárias de difi-


gênero masculino. No estudo de caracterização culdades na linguagem escrita (leitura/escrita),
da clientela da Clínica Escola da Universidade como por exemplo, as crianças com dislexia
São Francisco (USF-SP), realizado por Romaro e do desenvolvimento, é observado prejuízo
Capitão31, foi obtida maior frequência de enca- maior nos cartões palavra e cor-palavra, pois a
minhamentos de crianças do gênero masculino, presença de estímulos com conteúdos verbais
na faixa etária até os 14 anos de idade. (palavras) aumenta o efeito de interferência19.
Quando consideradas as queixas do grupo De acordo com Marzocchi et al.34, disléxicos
propósito do estudo, também foi verificado que apresentam prejuízo no processamento de tes-
corroboram com outros trabalhos que indicam tes que envolvam estímulos verbais. No caso de
maior frequência de encaminhamentos devido crianças que apresentam como queixa primária
a dificuldades de atenção e de aprendiza- as dificuldades de atenção e, secundariamente,
gem1,29,31,32. as dificuldades nas habilidades escolares, o es-
Quando comparados os desempenhos dos tudo apresentou um padrão diferente.
grupos com e sem queixas nos instrumentos, No Teste de Cancelamento – Figuras Geo-
foram verificadas diferenças significativas em métricas, foram obtidas diferenças nos escores
diferentes escores. de erros por omissão e no tempo de resolução,
No Stroop Color Word Test, foram obtidas de modo que o grupo com queixas apresentou
diferenças em todos os escores de tempo/erros pior desempenho. Não houve diferenças entre
dos três cartões (Cor, Palavra e Cor-Palavra) e os grupos no escore de erros por adição, ou seja,
no escore de Interferência de erro. Em todos os assinalar uma figura que não fosse o alvo.
escores, o grupo com queixas apresentou valo- No Teste de Cancelamento – Letras em Filei-
res maiores de tempo e erros quando comparado ra, os grupos foram diferentes apenas no escore
ao grupo sem queixas, sugerindo dificuldades de erros por omissão, mas não nos escores de
para a seleção entre estímulos relevantes e erros por adição e tempo. Podemos inferir que
irrelevantes. No desempenho geral do teste, o grupo com queixas apresentou um tempo
costuma-se observar tendência de diminuição maior de resolução da atividade, não diferindo
dos escores (tempo/erros) do cartão cores para do grupo sem queixas, no entanto, apresentou
o cartão palavra, uma vez que este último um número maior de erros por omissão, ou seja,
apresenta situação de congruência da palavra por desatenção.
e cor, facilitando o processamento do estímulo No Trail Making Test, os grupos diferiram
e, consequentemente, da nomeação. Este efeito significativamente em todos os escores de am-
foi observado nos dois grupos. bas as partes (Parte A e Parte B). O grupo com
Posteriormente, observa-se aumento do queixas apresentou escores aumentados de
tempo e número de erros no cartão cor-palavra, tempo e erros e, na parte A, o grupo sem queixas
devido à situação de incongruência. Assim, a não apresentou erros.
criança deve inibir a resposta automática de Na Torre de Londres, os grupos também
leitura da palavra para emitir a resposta correta diferiram com maior média de escore do grupo
nomeando a cor. sem queixas, indicando melhor capacidade de
Para MacLead e MacDonald33, no desempe- planejamento. Em estudos com crianças com
nho da situação incongruente do Stroop Color dislexia não são observadas diferenças com
Word Test, as palavras interferem na nomeação crianças sem dificuldades utilizando este ins-
da cor, mas o inverso não ocorre, indicando trumento35.
que a leitura de palavras, do ponto de vista do O estudo sugere que os instrumentos utili-
processamento cerebral, é mais automática que zados para a avaliação da atenção e funções
a nomeação de cores. executivas (flexibilidade, planejamento e con-

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simão anP et al.

trole inibitório) foram sensíveis para diferenciar aprendizagem obtiveram um desempenho


o desempenho de crianças com dificuldades inferior nos instrumentos que avaliam funções
de atenção e aprendizagem daquelas que executivas e atenção em comparação às crian-
não apresentam. Este pode ser um achado de ças sem dificuldades.
evidência de validade das versões dos instru- Considerando-se tais evidências, novos
mentos. estudos são necessários pra aumentar a amos-
Outro estudo realizado com crianças de 7 a tra de crianças com e sem dificuldades. Além
10 anos de idade utilizando tais instrumentos disso, é importante a avaliação de crianças com
indicou que os escores foram correlacionados diagnósticos específicos, como TDAH, dislexia
com medidas de desenvolvimento, como a idade do desenvolvimento e deficiência mental, e
e o nível de escolaridade14. compará-las com crianças sem dificuldades,
com intuito de indicar perfis específicos, assim
CONCLUSÃO como buscar novas evidências de validades nos
As crianças com queixas de atenção e de instrumentos utilizados.

SUMMARY
Comparison of performance of students in instruments of attention
and executive function

The aim of this work was to compare the performance of children,


both genders and aged between 7-12 years, with and without complaints
of difficulties in attention/ learning in tests of attention and executive
functions. We used the following instruments: Stroop Color Word Test, Trail
Making Test A/B, Tests of Cancellation and Tower of London. The results
were organized according to gender, frequency distribution of symptoms
and characteristics of performance. Significant differences between groups
in scores on tests were obtained. The group lodged complaints with scores
of time and errors increased as compared to group without complaints. In
the case of TOL, score of the group without complaints scores were higher.

KEY WORDS: Neuropsychological tests. Attention. Learning disorders.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 171-80

178
atenção e Funções exeCutivas

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Trabalho realizado na Universidade Estadual de Artigo recebido: 23/5/2010


Campinas – UNICAMP, Campinas, SP. Aprovado: 11/8/2010

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 171-80

180
ArTiGo
avaliação oriGiNAL
da haBilidade matemátiCa

avaliação do desemPenho em matemátiCa


de Crianças do 5º ano do ensino
Fundamental. estudo Preliminar Por meio
do teste de haBilidade matemátiCa (thm)
sônia das Dores rodrigues; Adriana regina Guassi; sylvia maria Ciasca

RESUMO - Neste estudo é apresentado o resultado preliminar do Teste


de Habilidade Matemática (THM), que foi aplicado a 21 alunos do 5º ano
do ensino fundamental. Os dados mostram que houve baixo índice de
acerto (média de 34%) e dificuldade mesmo em conhecimentos básicos,
como conceito de número e capacidade de solucionar problemas que
envolviam enunciado. O aprimoramento do THM, bem como uma possível
padronização, requer aumento da casuística e continuidade do estudo.

UNITERMOS: Matemática. Transtornos de aprendizagem. Discalculia.

Sônia das Dores Rodrigues – Laboratório de Distúrbio, Correspondência


Dificuldade de Aprendizagem e Transtorno da Sônia das Dores Rodrigues
Atenção (DISAPRE) do Departamento de Neurologia Rua Luis Gama 937, apto 64 – Castelo – Campinas,
da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade SP – CEP: 13070-717
Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: sdr@fcm.unicamp.br
Adriana Regina Guassi – Concluinte do Curso rodrigues.sdd@gmail.com
de Especialização em Neuropsicologia Aplicada
à Neurologia Infantil (Modalidade Extensão) da
Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
Sylvia Maria Ciasca – Laboratório de Distúrbio,
Dificuldade de Aprendizagem e Transtorno da
Atenção (DISAPRE) do Departamento de Neurologia
da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.

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INTRODUÇÃO Entretanto, estudos mostram que o domínio


A matemática está presente no nosso coti- da matemática interfere diretamente na vida do
diano. Sem nos darmos conta, lidamos o tempo indivíduo. Hartzell e Compton3, por exemplo,
todo com números e cálculos, como, por exem- investigaram o impacto da matemática na qua-
plo, quando compramos e comparamos preços lificação profissional e concluíram que as crian-
no supermercado, controlamos a velocidade ças com bom desempenho nessa área tiveram
do carro, estimamos o tempo necessário para melhor qualificação quando adultas, enquanto
chegar a determinados lugares, controlamos que o baixo desempenho foi fator preditivo de
nossos pagamentos e saldo nos caixas eletrô- pobre desempenho nas áreas acadêmica e pro-
nicos e diversas situações em que a habilidade fissional, assim como na esfera social.
matemática se faz necessária. Assim, para O profissional (clínico ou institucional)
sobreviver dignamente na sociedade atual, o que lida com a aprendizagem da criança
indivíduo deve dominar conceitos matemáticos deve então valorizar os aspectos relacionados
elementares. à habilidade matemática e, nesse sentido, é
À escola tem sido atribuído o papel de pro- importante que introduza na sua prática a
piciar, ao longo do processo de alfabetização, o avaliação do raciocínio lógico-matemático e
aprendizado pleno da matemática. Nesse senti- dos conceitos elementares próprios da série
do, os conceitos são gradativamente introduzi- escolar que a criança frequenta.
dos, de modo que ao final do ciclo II (atual 5º ano Para a avaliação do raciocínio lógico-
do ensino fundamental) o aluno tenha conheci- matemático, não há dúvidas de que as provas
mentos sólidos sobre números naturais, sistema operatórias são um excelente meio de inves-
de numeração decimal e números racionais, tigação, entretanto há que se ter clareza de
operações com números naturais e racionais, que a sua utilização requer não só o domínio
espaço e forma, grandezas e medidas, tratamento da teoria do desenvolvimento cognitivo de
da informação, além de conteúdos atitudinais1. Jean Piaget, como também do método clínico
Mas, será que esses objetivos têm sido atin- proposto pelo mesmo4.
gidos? Dados de avaliações oficiais mostram que Em relação à análise dos conceitos ele-
boa parte de nossas crianças concluem o ensino mentares, são raros os instrumentos disponí-
fundamental com conhecimentos matemáticos veis para esse fim e, geralmente, os existen-
aquém do esperado e, ainda, que tem havido tes contemplam basicamente a capacidade
decréscimo na média de proficiência em mate- de a criança efetuar contas que envolvem,
mática com o passar dos anos2. principalmente, as quatro operações básicas
Apesar disso, pode-se dizer que há pouca (adição, subtração, multiplicação, divisão).
discussão sobre esse tema e raramente há a Como a priori os sistemas de ensino elaboram
preocupação de encaminhar crianças com difi- o seu projeto pedagógico baseado nos PCN1,
culdades para avaliação e intervenção especia- pode-se dizer que o psicopedagogo carece
lizada. No Laboratório de Distúrbio, Dificuldade de testes de avaliação matemática que con-
de Aprendizagem e Transtornos da Atenção templem os conteúdos de fato trabalhados
(DISAPRE) da Faculdade de Ciências Médicas pela escola.
(FCM) da Universidade Estadual de Campinas, Nesse sentido, o presente estudo teve
por exemplo, dificilmente chegam crianças com como objetivos: 1) a elaboração de um Teste
queixa específica de dificuldade de matemá- de Habilidade Matemática (THM) para crian-
tica, já as relacionadas à leitura e escrita são ças das séries iniciais do ensino fundamental;
frequentes. Depreende-se, então, que é mais 2) a aplicação do THM em uma turma do 5º
aceitável ter dificuldade na matemática do que ano do ensino fundamental, para avaliar os
na leitura e escrita. resultados preliminares do teste.

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MÉTODO Após essa primeira etapa, uma das autoras


Após aprovação do Comitê de Ética em Pes- entrou em contato com uma escola estadual da
quisa da FCM/Unicamp (Parecer nº 829/2009), Região Metropolitana de Campinas/SP e soli-
foi elaborado o THM (Rodrigues e Ciasca). Par- citou que o THM fosse aplicado em uma das
tindo do pressuposto de que deve ser avaliado salas do 5º ano do ensino fundamental. Uma vez
o que de fato é trabalhado no contexto escolar, aprovado e indicada uma sala de aula, os pais
foram introduzidas questões que tivessem rela- foram contatados, informados sobre o teor da
ção com os principais conteúdos propostos pelo pesquisa e aqueles que autorizaram seus filhos
PCN1 (Quadro 1). A descrição dos conteúdos a fazer o THM assinaram o termo de consenti-
avaliados no THM e a pontuação de cada uma mento livre e esclarecido.
das 14 questões são apresentadas no Quadro 2. Em seguida, foi feito o levantamento de da-
dos das crianças que seriam avaliadas, por meio
da Ficha Escolar do Aluno, com o intuito de se
Quadro 1 – Habilidades matemáticas esperadas verificar os seus antecedentes e a existência (ou
para as crianças que concluem o ii Ciclo não) de problemas orgânicos (déficits sensoriais,
(atual 5º ano do ensino fundamental), intelectuais e motores) que pudessem justificar
segundo os PCN (2001). pobre desempenho em matemática.
• Resolver situações-problema que envol- O THM foi aplicado na própria escola, por
vam contagem, medidas, os significados uma das autoras, em sala livre de ruídos e sem
das operações, utilizando estratégias tempo previamente definido para a conclusão
pessoais de resolução e selecionando do teste.
procedimentos de cálculos; Partindo-se do pressuposto de que a leitura
• Ler, escrever números naturais e racio- e a escrita são essenciais para a realização de
nais, ordenar números naturais e racio- qualquer teste, inclusive os de matemática,
nais na forma decimal, pela interpreta- foi aplicado também o Teste de Desempenho
ção do valor posicional de cada uma das Escolar – TDE5, para se avaliar as habilidades
ordens; descritas (leitura e escrita).
• Realizar cálculos, mentalmente e por Os dados foram avaliados quantitativamente
escrito, envolvendo números naturais e e qualitativamente. A análise estatística foi feita
racionais (apenas na representação de- por meio do programa SAS System for Windo-
cimal) e comprovar os resultados, por ws (versão 8.02) e SPSS for Windows (versão
meio de estratégias de verificação; 10.0.5) e a escolha do teste para a avaliação
• Medir e fazer estimativas sobre medi- dos resultados foi realizada segundo o tipo de
das, utilizando unidades e instrumentos variável analisada. Foi considerado significativo
de medida mais usuais que melhor se valor de p >0,05.
ajustem à natureza da medição realiza-
da; RESULTADOS E DISCUSSÃO
• Interpretar e construir representações A casuística foi constituída por 22 alunos,
espaciais (croquis, itinerário, maquetes), com idade entre 9 e 11 anos (média de 10 anos),
utilizando-se de elementos de referên- sendo 14 (63%) do gênero feminino.
cia e estabelecendo relações entre eles; Não se identificou na Ficha Escolar do Aluno
• Recolher dados sobre fatos e fenômenos
nenhuma indicação de problemas orgânicos.
do cotidiano, utilizando procedimentos
Quanto aos antecedentes escolares, 6/22 tinham
de organização, e expressar o resultado
histórico de reprovação (sujeitos 5, 7, 11, 14,
utilizando tabelas e gráficos.
16 e 19).

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Quadro 2 - Teste de habilidade matemática – THm (rodrigues e Ciasca). Descrição dos conteúdos
avaliados e respectiva pontuação.

Número Habilidade avaliada Pontos pre-


vistos

1 Capacidade de diferenciar números de letras 0,5

2 Capacidade de fazer correspondência termo a termo 0,5

3 Conhecimento sobre sequência numérica simples e capacidade de con- 1,5


tagem alternando os números: de dois em dois, de cinco em cinco, de
dez em dez e de cem em cem

4 Capacidade de solucionar problemas simples (adição e subtração) na 1,5


forma oral e identificar o número maior entre dois apresentados

5 Capacidade traduzir números apresentados na forma de palavra para 3,0


a forma arábica (Exemplo: de “doze” para 12). os números são apre-
sentados por ordem de complexidade (dezena, centena, milhar, dezena
de milhar e centena de milhar)

6 Capacidade de traduzir números apresentados na forma arábica para 3,0


a forma de palavra (Exemplo: 12 = doze). os números são apresenta-
dos por ordem de complexidade (dezena, centena, unidade de milhar,
dezena de milhar e centena de milhar)

7 Conhecimento sobre o valor posicional dos números 2,0

8 Capacidade de compor numerais 3,0

9 Vocabulário e conhecimento de numerais 3,0

10 Capacidade de organizar numerais em ordem crescente 0,5

11 Conhecimento sobre operações matemáticas (adição, subtração, multi- 12,0


plicação e divisão)

12 Capacidade de solucionar problemas matemáticos, com interpretação 11,5


de enunciado escrito envolvendo números naturais e racionais e inter-
pretação de tabelas e gráficos

13 Capacidade de se localizar no tempo e no espaço 5,5

14 Conhecimento sobre formas geométricas planas 2,5

Total 50

Porcentagem 100%

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A esse respeito é interessante mencionar que facilidade com a matemática, enquanto que as
desde a Lei de Diretrizes e Bases6 a orientação é meninas teriam maior facilidade com a lingua-
que as crianças com dificuldades sejam subme- gem escrita.
tidas à intervenção e avancem nas séries iniciais Quando se fez a correlação entre desem-
continuamente. Ocorre que, em muitos casos, as penho no TDE e no THM, constatou-se que o
escolas não possuem estrutura adequada (física grupo de alunos classificados como tendo re-
e humana) para fazer o diagnóstico e proceder à sultado “inferior” em escrita e leitura também
solução, ou ao menos a minimização do proble- teve pior resultado no THM. Contrariamente,
ma, fato que acaba por resultar na progressão o grupo classificado com resultado “médio”
da dificuldade. No final do II ciclo, quando o ou “superior” em escrita e leitura teve melhor
aluno não atinge os critérios mínimos atingidos, desempenho no teste de matemática. Como
não é raro que o mesmo seja retido e só então se nota na Tabela 4, a comparação dos grupos
encaminhado para avaliação especializada7. demonstrou diferença estatisticamente signifi-
Pode-se considerar que esse tipo de atitude cativa no subteste de escrita. Nesse sentido, é
prejudica imensamente a criança. Isso porque se importante que o profissional que avalia as ha-
sabe hoje que não só existem períodos críticos bilidades matemáticas também avalie a escrita
para a plasticidade cerebral, como também essa e a leitura (codificação, decodificação, produção
é dependente da estimulação adequada8. Além e interpretação de textos). Por se tratar de es-
disso, se a criança começa a apresentar pro- tudo preliminar, neste estudo foram avaliados
blemas no início da escolarização e não recebe somente codificação e decodificação, por meio
a devida atenção (diagnóstico e intervenção), do teste mencionado.
corre-se o risco de se agravar a dificuldade, não Analisando-se o desempenho global do gru-
só pela ausência de providências, mas também po no THM, constata-se que:
pelos problemas de ordem emocional que po- • Todas as crianças demonstraram capa-
dem vir a se manifestar. cidade de diferenciar números de letras
Não há como afirmar se os aspectos ante- (questão 1);
riormente discutidos se aplicam às seis crianças • 2/22 crianças não conseguiram fazer cor-
deste estudo, já que não se procedeu à avaliação respondência termo-a-termo (questão 2);
psicopedagógica das mesmas. Sabe-se, porém, • 5/22 crianças tiveram diiculdade na se-
que duas delas (sujeitos 5 e 16) tiveram pior quenciação numérica e/ou contagem dos
desempenho no THM (28% e 37% de acerto, números de forma alternada (questão 3);
respectivamente) e desempenho inferior nos • 8/22 crianças tiveram diiculdade de pas-
três subtestes (escrita, aritmética e leitura) do sar números escritos na forma de palavra
TDE (Tabelas 1 e 2). Certamente, as dificuldades para a forma arábica (questão 5);
das crianças serão agravadas na etapa poste- • 12/22 crianças tiveram diiculdade de
rior de ensino (entre o 6º e 9º ano), se não for passar números escritos na forma arábica
feito o diagnóstico e a intervenção de maneira para a forma de palavras (questão 6);
adequada. • 14/22 crianças não conseguiram identii-
Comparando-se o desempenho dos sujeitos car o valor posicional do número (questão
em função do gênero, não se encontrou dife- 7);
rença estatisticamente significativa no TDE • 19/22 sujeitos não conseguiram compor
(Tabela 3) e no THM (p = 0,815 – Teste de Mann numerais, 2/22 acertaram parcialmente e
Whitney). Assim, meninos e meninas tiveram apenas 1/22 teve êxito (questão 8);
desempenho similar nos dois testes utilizados. • apenas 7/22 sujeitos conseguiram organizar
Tal dado contraria, pelo menos neste caso, o numerais em ordem crescente; 10/22 acerta-
senso comum de que meninos teriam maior ram parcialmente e 5/22 erraram (questão 9);

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Tabela 1 – Desempenho dos 22 sujeitos no Teste de Habilidades matemáticas (THm).


S Pontuação obtida nas questões
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 Total %
acerto
5 0,5 0,5 1 1,5 2 2,5 0 0 0 0 4 0 0 2 14 28%
16 0,5 0,5 1 1,5 0,5 2,5 0 0,5 0,5 0,5 4,5 1,5 3,5 1 18,5 37%
21 0,5 0,5 0,5 1 2,5 2 0 0 0 0 5,5 3 5 2,5 23 46%
17 0,5 0,5 1 1,5 1 2,5 0 0,5 0 0,5 7,5 4 4,5 2,5 26,5 53%
8 0,5 0,5 1,5 1,5 3 2,5 1,5 1 0,5 0 6,5 4 3,5 1,5 28 56%
6 0,5 0,5 1,5 1,5 3 0 2 2 1 0,5 9,5 6,5 0 1 29,5 59%
9 0,5 0,5 1,5 1,5 2,5 3 0 1,5 1,5 0,5 8 4,5 4,5 1,5 31,5 63%
15 0,5 0 1 1,5 3 3 0,5 2 0 0,5 9,5 6 4,5 2 34 68%
2 0,5 0 1,5 1,5 3 3 0 1,5 1,5 0 8 8,5 4 2 35 70%
7 0,5 0,5 1,5 1,5 3 2 2 2,5 2,5 0,5 8,5 8 0 2 35 70%
14 0,5 0,5 1,5 1,5 3 2,5 2 2 0 0,5 9 7,5 4,5 1,5 36,5 73%
10 0,5 0,5 1,5 1,5 3 2,5 0 2 2,5 0,5 8 10 3,5 1,5 37,5 75%
11 0,5 0,5 1,5 1,5 3 2,5 0 2,5 3 0,5 7,5 8 5 2 38 76%
1 0,5 0,5 1,5 1,5 2,5 2,5 0 3 2 0,5 7,5 10 4,5 2 38,5 77%
3 0,5 0,5 1,5 1,5 2,5 3 0 1,5 3 0,5 10 8,5 5 1,5 39,5 79%
12 0,5 0,5 1,5 1,5 3 2,5 0 2 2,5 0,5 9,5 9 4,5 2,5 40 80%
4 0,5 0,5 1,5 1,5 2,5 3 0 1,5 3 0,5 9,5 10,5 5 2 41,5 83%
13 0,5 0,5 1,5 1,5 3 3 0 2 3 0,5 9 11 5 1,5 42 84%
19 0,5 0,5 1,5 1,5 3 3 2 1,5 3 0,5 10,5 9,5 4 1,5 42,5 85%
20 0,5 0,5 1,5 1,5 3 3 0 2,5 2,5 0,5 10,5 10 4,5 2 42,5 85%
18 0,5 0,5 1,5 1,5 3 3 2 2,5 3 0,5 8,5 9,5 5 2,5 43,5 87%
22 0,5 0,5 1,5 1,5 3 3 2 2,5 3 0,5 9 9,5 4,5 2,5 43,5 87%
Legenda: s = sujeito.

• 4/22 crianças não tinham conhecimento so- envolvendo números naturais e racionais
bre conceito de unidade, dezena, centena, e interpretação de quadros e gráficos
milhar e dezena de milhar (questão 10); (questão 12);
• nenhuma criança conseguiu solucionar • nenhuma criança conseguiu solucionar
todas as contas aritméticas que envolviam todos os problemas que envolviam a ca-
operações de adição, subtração, multipli- pacidade de se localizar no tempo e no
cação e divisão (questão 11); espaço (questão 13);
• nenhuma criança conseguiu solucionar • apenas 5/22 sujeitos conseguiram reco-
todos os problemas que envolviam a ne- nhecer todas as formas geométricas pla-
cessidade de interpretar um enunciado, nas (questão 14).

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Tabela 2 – Desempenho dos sujeitos no Teste de Desempenho Escolar (TDE).

Escrita Escrita aritmética aritmética leitura leitura Pontos Classif


Sujeito
Pontos Classif Pontos Classif Pontos Classif Geral Final

1 35 s 23 m 70 s 128 s

2 30 m 17 i 69 s 116 m

3 29 m 24 s 69 s 122 s

4 33 s 26 s 70 s 129 s

5 19 i 12 i 62 i 93 i

6 23 i 25 s 64 i 112 m

7 20 i 21 m 67 m 108 i

8 26 i 16 i 70 s 112 m

9 18 i 20 m 66 m 104 i

10 33 s 21 m 68 m 122 s

11 25 m 15 i 69 s 109 i

12 32 s 24 s 68 m 124 s

13 34 s 24 s 70 s 128 s

14 11 i 22 m 56 i 89 i

15 26 i 17 i 69 s 112 m

16 15 i 16 i 54 i 85 i

17 25 i 17 i 67 m 109 i

18 32 s 26 s 70 s 128 s

19 34 s 22 m 70 s 126 s

20 35 s 21 m 69 s 125 s

21 23 i 10 i 65 m 98 i

22 31 m 26 s 69 s 126 s
Legenda: Classif = classificação; i = inferior; m = média; s= superior.

Tabela 3 – Desempenho dos sujeitos no Teste de desempenho escolar (TDE) em função do gênero.
Gênero Pontuação média obtida
Escrita aritmética leitura Total
masculino (n=8) 23,5 20,7 65,2 109,5
feminino (n=14) 28,6 19,9 67,7 116,2
Valor de p(*) 0,946 0,116 0,418 0,378
*(Teste- T)

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Tabela 4 – Comparação entre o desempenho nos subtestes de escrita e leitura no TDE com o desempenho no
THm.
Subteste do TDE Comparação Desempenho THM (Mean rank) Valor de p(*)
Escrita inferior (n=10) 5,50 0,000
superior (n=8) 14,50

inferior (n = 10) 5,65 0,004


médio (n= 4) 12,13

Leitura inferior (n=4) 3,50 0,013


superior (n=12) 10,17

inferior (n=4) 4,00 0,257


médio (n=6) 6,50
(*) Teste de mann Whitnney.

Conforme se observa nas considerações deveria identificar o valor posicional do nú-


acima, duas crianças não conseguiram fazer mero, a maioria não obteve sucesso. Como
correspondência termo-a-termo (questão se sabe, nas séries iniciais, a criança ainda
2), ou seja, não foram capazes de colocar não tem estrutura lógica para tal compreen-
uma mesma quantidade de objetos, a partir são9. Porém, à medida que adquire a noção
de um modelo apresentado. Como se sabe, de hierarquia de classes lógicas (inclusão de
essa conduta é esperada para crianças do classes) e de relações assimétricas (seriações
estágio pré-operatório de desenvolvimento, qualitativas) 10, esse conceito é adquirido.
com conceito intuitivo do número 4. Em fun- Neste estudo seria esperado que todas as
ção da idade e da série escolar das crianças crianças tivessem êxito na referida questão,
deste estudo, seria esperado que todas ti- já que se tratava de alunos do final do 5º ano
vessem êxito nessa questão. Analisando-se, do ensino fundamental, com estruturação
porém, o desempenho das duas crianças cognitiva compatível com a etapa final do
que fracassaram, se nota que ambas tiveram estágio operatório concreto4.
68% e 70% de acerto no THM. A hipótese Nesse sentido, o conhecimento da teoria
que se levanta, neste caso, é que o erro foi de desenvolvimento cognitivo de Piaget 4 é
causado por distração da criança, fato que importante àqueles que pretendem ajudar
não foi devidamente identificado durante a a criança a construir a estrutura do número
avaliação. Assim, chama-se a atenção para a e o desenvolvimento do raciocínio lógico-
necessidade de o profissional se atentar para matemático. Assim, noções de classificação,
os aspectos qualitativos dos testes e retorne à conservação e seriação devem ser trabalha-
questão, sempre que identificar discrepância das na escola, desde o início do processo de
como essa. educação formal. O professor, nesse caso, é o
As questões 3, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 exigiam facilitador que cria oportunidades e situações
que a criança tivesse conceito de número e, que possibilitem à criança manipular obje-
como se nota, várias tiveram dificuldades tos e levantar hipóteses. Com isso, a mesma
nas questões mencionadas. É interessante pode adquirir conceitos elementares que lhe
destacar que na questão 7, onde a criança darão suporte para resolver adequadamente

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situações problemas que requerem a utili- uma série de fatores históricos associados.
zação das operações fundamentais (adição, Além disso, mais importante do que apontar
subtração, multiplicação, divisão). culpados é buscar soluções (a curto e mé-
A esse respeito, nota-se que neste estudo dio prazo) que minimizem os efeitos da não
nenhuma criança teve êxito total nas ques- aprendizagem.
tões 11 e 12, que exigiam o uso das operações O aprofundamento da discussão é uma das
fundamentais, sendo que pior desempenho medidas a ser colocada em prática, porém,
foi identificado na questão 12, que exigia a essa não pode se restringir a métodos de
capacidade de solucionar problemas mate- ensino. A compreensão da complexidade do
máticos a partir de interpretação de enun- desenvolvimento da criança, bem como os
ciado escrito e envolvimento de tabelas e fatores indicativos de que a mesma apresenta
gráficos. dificuldade na matemática, é essencial para
Por fim, embora se considere importante o diagnóstico e intervenção precoces.
algum tipo de classificação (inferior, médio, Em geral, o profissional que lida com o
superior, por exemplo) a partir do desempe- diagnóstico da dificuldade de matemática
nho das crianças no THM, nesse primeiro
carece de instrumentos validados e padro-
momento isso não foi realizado. Somente a
nizados para a nossa população. Embora
continuidade da aplicação do teste, com au-
haja testes disponíveis, geralmente esses se
mento da casuística, abrangendo crianças de
prendem à capacidade de a criança efetuar
diferentes níveis de ensino e em diferentes
contas aritméticas, que envolvem as quatro
escolas, possibilitará a identificação de um
operações básicas, e/ou atividades mnemô-
desempenho padrão e posterior classificação.
nicas. Não se leva em consideração, então,
os conteúdos de fato trabalhados pela escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O baixo rendimento escolar em matemá- No Brasil, os projetos pedagógicos para
tica no Brasil vem se mantendo inalterado o ensino da matemática obedecem, a priori,
com o passar dos anos2. Possivelmente, isso o que preconiza os PCN1. Nesse sentido, no
ocorre porque a matemática ensinada na es- presente estudo a ideia foi desenvolver um
cola geralmente é destituída de significado, teste para avaliar as habilidades matemáti-
havendo uma espécie de isolamento entre cas de crianças matriculadas nas séries ini-
essa e a realidade que ela representa. ciais do ensino fundamental, embasado no
Por conta disso, tende-se a culpar os pro- referido PCN. Optou-se, inicialmente, pela
fessores pelo fato de parte das crianças não aplicação do mesmo em uma classe do 5º
atingir os conhecimentos mínimos exigidos, ano do ensino fundamental e os resultados
após anos de escolarização. Entretanto, há preliminares foram aqui apresentados. Para
que se ter consciência de que não existe o futuro pretende-se padronizar e validar o
uma única explicação para o mau rendimen- THM e, adicionalmente, criar um protocolo
to acadêmico dos alunos, já que o sistema básico de identificação de discalculia do de-
educacional que temos hoje é resultado de senvolvimento.

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SUMMARY
Performance in mathematics of primary school children using the Test
of Mathematics Ability: preliminary study

The aim of this study was to present the preliminary result of the Test
of Mathematical Ability (THM). Twenty one students were evaluated.
The average of correct answers was 34%. The children had difficulty in
basic concepts (number and ability to solve mathematical problems that
needed reading). It is necessary to continue the study with a larger number
of children.

KEY WORDS: Mathematics. Learning disorders. Dyscalculia.

REFERÊNCIAS Dificuldade de aprendizagem escolar: ava-


1. Brasil. Parâmetros curriculares nacionais: liação e comparação do perfil de crianças
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Universitária;1998. continuam reinventando a aritmética: impli-
5. Stein LM. TDE - teste de desempenho esco- cações da teoria de Piaget (series iniciais).
lar: manual para aplicação e interpretação. Trad. Vinicius Figueira. Porto Alegre: Art-
São Paulo: Casa do Psicólogo;2003. med;2005.
6. Brasil. Lei de Diretrizes e Bases da Educação 10. Piaget J, Inhelder B. A psicologia da crian-
Nacional (nº 9394), 20 de dezembro de 1996. ça. 14ª ed. Rio de Janeiro:Editora Bertrand
7. Magalhães GM, Rodrigues SD, Ciasca SM. Brasil;1995.

Trabalho realizado no Laboratório de Distúrbio, Artigo recebido: 14/5/2010


Dificuldade de Aprendizagem e Transtornos da Aprovado: 1/8/2010
Atenção (DISAPRE) - Departamento de Neurologia
- Faculdade de Ciências Médicas – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, SP.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 181-90

190
ArTiGo oriGiNAL
intervenção na dislexia

treinamento da CorresPondênCia
graFema-Fonema em esColares de
risCo Para a dislexia
Daniele de Campos refundini; maíra Anelli martins; simone Aparecida Capellini

RESUMO - Objetivo: Verificar a eficácia do programa da correspondência


grafema-fonema em escolares de risco para dislexia da 1ª série. Método:
Participaram deste estudo 60 escolares de ensino público municipal, na
faixa etária de 6 a 7 anos de idade. Neste estudo foi realizada a adaptação
brasileira da pesquisa sobre treinamento da correspondência grafema-
fonema, composta de pré-testagem, intervenção e pós-testagem. Em situação
de pré e pós-testagem, todos os escolares foram submetidos à aplicação do
teste para a identificação precoce dos problemas de leitura, aqueles que
apresentaram desempenho inferior a 51% das provas do teste foram divididos
em Grupo I (GI): composto por 18 escolares submetidos ao programa de
treinamento; e em Grupo II (GII): composto por 42 escolares não submetidos
ao programa de treinamento. Resultados: Os resultados deste estudo
revelaram diferenças estatisticamente significantes, evidenciando que dos
18 escolares submetidos ao programa, 17 apresentaram melhor desempenho
em situação de pós-testagem em relação à pré-testagem. Conclusão: A
realização deste programa foi eficaz para a identificação dos escolares com
sinais da dislexia, evidenciando que quando é fornecida a instrução formal do
princípio alfabético da Língua Portuguesa, os escolares que não apresentam
o quadro de dislexia deixam de apresentar suas manifestações.

UNITERMOS: Dislexia. Avaliação. Estudos de intervenção. Leitura.

Daniele de Campos Refundini – Discente do Curso de Correspondência


Fonoaudiologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Simone Aparecida Capellini
da UNESP (FFC/UNESP-Marília-SP). Bolsista de Rua Bartolomeu de Gusmão, 10-84 – Jardim América
Iniciação Científica do CNPq. – Bauru, SP – CEP: 17017-336
Maíra Anelli Martins – Discente do Curso de E-mail: sacap@uol.com.br
Fonoaudiologia da FFC/UNESP-Marília-SP. Bolsista
de Iniciação Científica do CNPq.
Simone Aparecida Capellini – Fonoaudióloga.
Doutora e Pós-Doutora em Ciências Médicas
pela FCM/UNICAMP-Campinas-SP. Docente do
Departamento de Fonoaudiologia e Programa de Pós-
Graduação em Educação da FFC/UNESP-Marília-SP.

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191
reFundini dC et al

INTRODUÇÃO interdisciplinares para a investigação do quadro


A dislexia é caracterizada como um distúrbio de dislexia2,8,12,13.
específico de aprendizagem de origem neuro- A importância para a prática clínica e edu-
lógico, em que o escolar encontra dificuldade cacional desses estudos encontra-se na ênfase
com a fluência correta na leitura e dificuldade na falta de resposta à intervenção precoce com
na habilidade de decodificação e soletração, os sinais da dislexia, que pode ser considerada
resultante de um déficit em componentes da um critério para o diagnóstico da dislexia do
linguagem1. desenvolvimento12-14.
Os principais sinais da dislexia podem ser Dessa forma, é preciso que tanto professores
evidenciados durante o desenvolvimento do como psicopedagogos e fonoaudiólogos este-
escolar e, segundo autores, esses sinais se refe- jam atentos ao desenvolvimento da linguagem
rem a: fala ininteligível; imaturidade fonológica; expressiva e receptiva dos escolares no início
redução de léxico; dificuldade em aprender o da alfabetização, para que a identificação e a
nome das letras ou os sons do alfabeto; dificul- detecção dos sinais da dislexia possam ocorrer
dade para entender instruções, compreender precocemente e os problemas acadêmicos de-
a fala ou material lido; dificuldade para lem- correntes de alterações cognitivo-linguísticas
brar números, letras em sequência, questões e minimizados por meio da realização de progra-
direções; dificuldade para lembrar sentenças mas de treinamento de habilidades fonológicas
ou estórias; ao atraso de fala; confusão direita- e treinamento do mecanismo de correspondên-
esquerda, embaixo, em cima, frente-atrás cia grafema-fonema.
(palavras-conceitos); e dificuldade em processar Em decorrência do exposto, este estudo tem
sons das palavras e história familial positiva de por objetivo verificar a eficácia do programa
problemas de fala, linguagem e desenvolvimen- de treinamento da correspondência grafema-
to da leitura2-5. fonema em escolares de risco para a dislexia.
Como esses sinais podem ser evidenciados
na fase pré-escolar e no início da alfabetização, MÉTODO
a dislexia pode ser identificada e detectada Este estudo foi aprovado pelo Comitê de
precocemente. Estudos internacionais reco- Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia
mendam o uso de intervenção em escolares de e Ciências da Universidade Estadual Paulis-
séries iniciais de alfabetização que apresentem ta – CEP/FFC/UNESP, sob o protocolo de nº
desempenho abaixo do esperado em relação ao 3348/2008.
seu grupo classe. Essas crianças são denomina- Participaram deste estudo 60 crianças do
das na literatura internacional como crianças de ensino público fundamental municipal, de am-
risco para a dislexia5-11. bos os gêneros e na faixa etária entre 6 anos a
Segundo esses estudos, o objetivo dessa 7 anos e 11 meses (Tabela 1).
intervenção precoce é verificar se, depois da Os escolares que participaram deste estudo
realização de programas específicos com as não apresentaram anotações referentes à defi-
habilidades cognitivo-linguísticas alteradas, ciência mental, física, sensorial ou múltipla em
os escolares apresentam melhora na aprendi- prontuário escolar.
zagem da leitura ou se permanecem com as A identificação do risco para a dislexia nos
defasagens nessas habilidades, o que significa escolares deste estudo foi realizada a partir da
que os escolares realmente apresentam uma elaboração de provas de avaliação descritas
desordem de origem genético-neurológica que na pesquisa sobre treinamento de habilidades
compromete a aquisição e o desenvolvimento fonológicas e correspondência grafema-fonema
de habilidades perceptivas e linguísticas e que em escolares de risco para a dislexia5.
por isso deveriam ser submetidos às avaliações Inicialmente todos os escolares deste estudo

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intervenção na dislexia

Tabela 1 - Distribuição da média, desvio padrão, valor mínimo, valor máximo e significância (p) do desempe-
nho obtido e esperado dos escolares no teste para identificação precoce dos problemas de leitura.

Habilidades Média Desvio Mínimo Máximo Mediana Valor de


Padrão p
C.A. o 21,83 2,57 8,00 23,00 23,00
< 0,001*
C.A. E 23,00 0,00 23,00 23,00 23,00
P.r. o 7,02 5,33 0,00 20,00 6,00
< 0,001*
P.r. E 20,00 0,00 20,00 20,00 20,00
i. r. o 11,90 5,51 0,00 20,00 12,00
< 0,001*
i. r. E 20,00 0,00 20,00 20,00 20,00
s.s. o 19,85 2,07 10,00 21,00 21,00
< 0,001*
s.s. E 21,00 0,00 21,00 21,00 21,00
P.P. o 16,92 4,66 4,00 21,00 18,00
< 0,001*
P.P. E 21,00 0,00 21,00 21,00 21,00
s.f. o 3,37 4,53 0,00 16,00 1,00
< 0,001*
s.f. E 21,00 0,00 21,00 21,00 21,00
A.f. o 1,92 5,21 0,00 20,00 0,00
< 0,001*
A.f. E 21,00 0,00 21,00 21,00 21,00
i.s.i. o 9,25 6,87 0,00 21,00 8,00
< 0,001*
i.s.i. E 21,00 0,00 21,00 21,00 21,00
m.T. o 19,87 3,68 7,00 24,00 21,00
< 0,001*
m.T. E 24,00 0,00 24,00 24,00 24,00
A.V. o 8,45 2,01 1,00 10,00 9,00
< 0,001*
A.V. E 10,00 0,00 10,00 10,00 10,00
Lo 15,72 15,40 0,00 40,00 11,50
< 0,001*
L E 40,00 0,00 40,00 40,00 40,00
C.f. o 18,12 1,84 12,00 20,00 19,00
< 0,001*
C.f. E 20,00 0,00 20,00 20,00 20,00
Legenda: C.A.: conhecimento do alfabeto; P.r.: produção de rima; i.r.: identificação de rima; s.s. segmentação silábica;
P.P.: produção de palavras a partir do fonema dado; s.f. síntese fonêmica; A.f.: análise fonêmica; i.s.i.: identificação de
som inicial; m.T.: memória de trabalho; A.V: atenção visual; L: leitura; C.f.: compreensão de frases a partir de figuras; o:
obtido; E: Esperado.

foram submetidos aos seguintes procedimentos: Consentimento autorizando a aplicação dos


Termo de Consentimento Livre e Esclare- procedimentos deste estudo.
cido: conforme resolução do Conselho Nacio- Teste para identificação precoce dos pro-
nal de Saúde CNS 196/96, anteriormente ao blemas de leitura5: foi realizada a elaboração
início do estudo, os pais ou responsáveis pelos de 7 provas para identificação precoce dos
escolares selecionadas assinaram o Termo de problemas de leitura baseadas na descrição da

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pesquisa original que oferece suporte teórico 4. Velocidade de acesso à informação


para a realização deste estudo. As provas que fonológica: foram apresentadas ao escolar 7
compõem o Teste estão descritas a seguir e fo- sequências intercaladas de desenhos coloridos
ram normalizadas para a população de escolares (carro, bola, pato, casa e chave) e solicitado que
brasileiros em estudo anterior15. realizasse a nomeação rápida.
1. Conhecimento do alfabeto: foi apresenta- 5. Atenção visual: foram apresentadas ao
do ao escolar o alfabeto para que identificasse escolar 10 figuras coloridas e solicitado que
o nome da letra e o valor sonoro de cada letra identificasse entre duas palavras a que corres-
apresentada. pondia às figuras.
2. Consciência fonológica: foram apresenta- 6. Leitura de palavras e pseudopalavras:
dos ao escolar subtestes de produção de rima, foram apresentadas ao escolar 40 palavras vi-
identificação de rima, segmentação silábica, sualmente (20 palavras e 20 pseudopalavras) e
produção de palavras a partir do fonema dado, solicitado que realizasse a leitura em voz alta.
síntese fonêmica, análise fonêmica, identifica- 7. Compreensão de frases a partir de figuras
ção de som inicial. apresentadas: foram apresentadas ao escolar
2.1. Produção de rima: foram apresentadas 20 frases incompletas com figuras ilustrativas
ao escolar 20 palavras auditivamente e solici- e solicitado que observasse as figuras e com-
tado que dissesse uma palavra que terminasse pletasse as frases.
com o mesmo som. A aplicação desse procedimento durou, em
2.2. Identificação de rima: foram apresenta- média, 50 minutos e foi realizada individual-
dos ao escolar 20 grupos de três em três palavras mente em uma única sessão durante o horá-
auditivamente e solicitado que identificasse as rio de aula, com a anuência e autorização da
palavras que terminassem com o mesmo som. professora e da direção da escola em que foi
2.3. Segmentação silábica: foram apresenta- realizado o estudo.
das ao escolar 21 palavras auditivamente (dis- O material linguístico utilizado para a ela-
sílabas, trissílabas e quadrissílabas) e solicitado boração das provas descritas foi retirado de um
que separasse as palavras por sílabas. banco de palavras de livros didáticos de 1ª a 4ª
2.4. Produção de palavras a partir do fo- série utilizados na rede municipal de ensino
nema dado: foram apresentados ao escolar os de Marília-SP. As palavras utilizadas para a
sons do alfabeto e solicitado que dissesse uma elaboração das provas seguem as regras de
palavra que começasse com o mesmo som. decodificação do português brasileiro tanto para
2.5. Síntese fonêmica: foram apresentadas palavras como para pseudopalavras: a) regra de
ao escolar 21 palavras auditivamente separadas correspondência grafema-fonema independen-
por sons e solicitado que dissesse a palavra te do contexto e b) regra de correspondência
formada. grafema-fonema dependente do contexto16.
2.6. Análise fonêmica: foram apresentadas Entretanto, levou-se em consideração para a
ao escolar 21 palavras auditivamente e soli- elaboração das provas a seleção de palavras de
citado que dissesse os sons de cada letra das alta frequência presentes em todos os livros de
palavras apresentadas. 1ª a 4ª série, para que isso não interferisse no
2.7. Identificação de som inicial: foram apre- desempenho do escolar, com base em critérios
sentadas ao escolar 21 palavras auditivamente e psicolinguísticos de adaptação para a Língua
solicitado que dissesse o som inicial da primeira Portuguesa.
letra de cada palavra apresentada. A caracterização do desempenho dos 60 es-
3. Memória de trabalho: foram apresentadas colares deste estudo no Teste para identificação
ao escolar 24 pseudopalavras auditivamente e precoce dos problemas de leitura está descrita
solicitado que repetisse como havia entendido. na Tabela 1. Os escolares que apresentaram

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intervenção na dislexia

valor mínimo inferior a 51% do valor máximo em 3. Identificação de figuras pelo nome das
pelo menos 4 provas (conhecimento do alfabeto, letras: Foi apresentada aos escolares a imagem
consciência fonológica, nomeação rápida e lei- visual de uma letra para que identificassem as
tura de palavras e pseudopalavras) do teste para 2 figuras que tinham seus nomes iniciados com
identificação precoce dos problemas de leitura a letra.
em relação ao grupo-classe foram considerados 4. Identificação de figuras pelos sons das le-
de risco para a dislexia. tras: Foi apresentado aos escolares o som de uma
Dentre os 60 (100%) escolares submetidos letra e quatro figuras, estes deveriam apontar as
ao procedimento de identificação dos sinais da 2 figuras que iniciavam com o som apresentado.
dislexia, 18 (30%) apresentaram desempenho Depois do término do treinamento do progra-
inferior. A partir desse achado, os escolares ma correspondência grafema-fonema, os esco-
foram divididos em dois grupos: lares do GI e GII foram submetidos novamente
• Grupo I (GI): composto por 18 escolares à aplicação do Teste para identificação precoce
submetidos ao programa de treinamen- dos problemas de leitura, a fim de verificar o
to da correspondência grafema-fonema, impacto da realização deste programa nas habi-
sendo 61% do gênero masculino e 39% lidades avaliadas. Apenas 1 escolar do GII não
do gênero feminino; foi submetido à pós-testagem, pois foi transferido
• Grupo II (GII): composto por 42 escolares de escola.
não submetidos ao programa de treina- Ressalta-se que, em atenção aos aspectos
mento da correspondência grafema-fo- éticos em pesquisa com seres humanos, o es-
nema, sendo 45% do gênero masculino colar de risco para a dislexia identificado neste
e 55% do gênero feminino.
estudo, que não respondeu ao programa de
Após a distribuição dos escolares em dois
treinamento, foi encaminhado para diagnóstico
grupos, foi realizada a aplicação do procedi-
interdisciplinar e tratamento fonoaudiológico no
mento de intervenção com os escolares dis- Centro de Estudos da Educação e Saúde – CEES/
tribuídos em duplas. Da mesma forma que a FFC/UNESP.
avaliação utilizada anteriormente neste estudo, Para uma análise estatística, foi utilizado o
foram elaboradas estratégias para o programa teste de Friedman, com o intuito de verificar
de treinamento correspondência grafema-fone- possíveis diferenças entre os momentos de
ma a partir da descrição da pesquisa original5. intervenção, para as variáveis de interesse.
O programa de treinamento correspondên- Outro método de análise estatística utilizado foi
cia grafema-fonema utilizado neste estudo foi a aplicação do Teste dos Postos Sinalizados de
composto por 4 atividades trabalhadas em 18 Wilcoxon, com o objetivo de verificar possíveis
sessões de 50 minutos de duração realizadas diferenças entre os dois momentos, pré e pós-
em 2 sessões semanais na escola de origem das testagem, considerados na avaliação do grupo
crianças. As atividades desenvolvidas no pro- e possíveis diferenças entre o escore obtido e o
grama de treinamento estão descritas a seguir: escore esperado. O nível de significância ado-
1. Reconhecimento do alfabeto fonêmico: tado para a aplicação dos testes estatísticos foi
Foi apresentado o alfabeto para os escolares de 5% (0,050). A análise dos dados foi realizada
identificarem o nome da letra e o valor sonoro utilizando o programa SPSS (Statistical Package
de cada letra apresentada. for Social Sciences), em sua versão 17.0.
2. Combinação de letras para formação
de sílabas e palavras: Foram apresentadas 6 RESULTADOS
letras para que os escolares as combinassem As Tabelas 2 e 3 apresentam a distribuição da
e realizassem a formação de sílabas simples e média, desvio padrão e valor de p do desempe-
complexas, para posterior formação de palavras. nho obtido no teste para a identificação precoce

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reFundini dC et al

Tabela 2 - Distribuição da média, desvio padrão, valor mínimo, valor máximo e valor p do desempenho dos
escolares do Gi em situação de pré e pós-testagem.

Habilidades Média Desvio Mínimo Máximo Mediana Valor de


Padrão p
C.A. pré 20,39 3,87 8,00 23,00 21,50
0,003*
C.A. pós 22,89 0,47 21,00 23,00 23,00
P.r. pré 2,78 2,92 0,00 11,00 2,50
0,002*
P.r. pós 8,61 5,33 0,00 20,00 10,00
i. r. pré 6,72 4,23 0,00 15,00 7,50
0,001*
i.r. pós 12,83 3,96 2,00 18,00 13,50
s.s. pré 18,67 2,77 10,00 21,00 19,50
0,002*
s.s. pós 20,78 0,73 18,00 21,00 21,00
P.P.pré 12,83 4,61 4,00 20,00 14,00
< 0,001*
P.P. pós 20,06 1,83 15,00 22,00 21,00
s.f. pré 0,44 0,62 0,00 2,00 0,00
< 0,001*
s.f. pós 7,50 4,54 0,00 17,00 8,00
A.f. pré 0,00 0,00 0,00 0,00 0,00
< 0,001*
A.f. pós 9,39 8,22 0,00 21,00 9,50
i.s.i. pré 4,00 3,88 0,00 13,00 5,00
< 0,001*
i.s.i. pós 18,83 4,71 1,00 21,00 20,00
m.T. pré 18,11 4,07 7,00 23,00 19,00
0,001*
m.T. pós 21,50 2,20 18,00 24,00 22,00
A.V. pré 6,78 1,99 1,00 9,00 7,00
0,001*
A.V. pós 9,22 1,48 5,00 10,00 10,00
L pré 0,56 1,69 0,00 7,00 0,00
0,001*
L pós 23,17 13,84 0,00 38,00 24,00
C.f. pré 16,83 2,20 12,00 20,00 17,50
0,012*
C.f. pós 18,78 1,48 16,00 20,00 19,00
Legenda: C.A.: conhecimento do alfabeto; P.r.: produção de rima; i.r.: identificação de rima; s.s. segmentação silábica; P.P.:
produção de palavras a partir do fonema dado; s.f. síntese fonêmica; A.f.: análise fonêmica; i.s.i.: identificação de som inicial;
m.T.: memória de trabalho; A.V: atenção visual; L: leitura; C.f.: compreensão de frases a partir de figuras; Pré: Pré-testagem;
Pós: Pós-testagem.

dos problemas de leitura em situação de pré e intervenção apresentaram diferença estatisti-


pós-testagem, sendo que a Tabela 2 representa camente significante para as provas de conhe-
o GI e a Tabela 3, o GII. Ambas as tabelas com- cimento do alfabeto (CA), produção de rima
param os dois momentos de avaliação por meio (PR), identificação de rima (IR), segmentação
do Teste dos Postos Sinalizados de Wilcoxon. A silábica (SS), produção de palavra a partir do
partir destes dados, foi possível observar que fonema dado (PP), síntese fonêmica (SF), aná-
os escolares do GI submetidos ao programa de lise fonêmica (AF), identificação do som inicial

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intervenção na dislexia

Tabela 3 - Distribuição da média, desvio padrão, valor mínimo, valor máximo e valor de p do desempenho
dos escolares do Gii em situação de pré e pós-testagem.

Habilidades Média Desvio Mínimo Máximo Mediana Valor de


Padrão p
C.A. pré 22,61 0,972 19 23 23
0,020*
C.A. pós 22,95 0,218 22 23 23
P.r. pré 8,98 5,077 0 20 8
< 0,001*
P.r. pós 12,44 5,01 0 20 14
i. r. pré 14,34 4,217 0 20 15
0,002*
i.r. pós 16,46 2,749 11 20 17
s.s. pré 20,51 1,075 16 21 21
0,029*
s.s. pós 20,88 0,4 19 21 21
P.P.pré 18,71 3,495 8 21 21
0,005*
P.P. pós 20,29 1,23 17 21 21
s.f. pré 4,73 4,899 0 16 3
< 0,001*
s.f. pós 10,49 6,527 0 20 12
A.f. pré 2,8 6,116 0 20 0
< 0,001*
A.f. pós 5,73 8,056 0 21 1
i.s.i. pré 11,66 6,666 0 21 14
< 0,001*
i.s.i. pós 16,07 5,274 0 21 18
m.T. pré 20,71 3,258 8 24 21
< 0,001*
m.T. pós 22,88 1,364 20 24 24
A.V. pré 9,32 1,234 5 10 10
0,004*
A.V. pós 9,9 0,3 9 10 10
L pré 22,73 13,766 0 40 28
< 0,001*
L pós 36,71 3,273 25 40 37
C.f. pré 18,71 1,346 15 20 19
< 0,001*
C.f. pós 19,68 0,567 18 20 20
Legenda: C.A.: conhecimento do alfabeto; P.r.: produção de rima; i.r.: identificação de rima; s.s. segmentação silábica; P.P.:
produção de palavras a partir do fonema dado; s.f. síntese fonêmica; A.f.: análise fonêmica; i.s.i.: identificação de som inicial;
m.T.: memória de trabalho; A.V: atenção visual; L: leitura; C.f.: compreensão de frases a partir de figuras; Pré: Pré-testagem;
Pós: Pós-testagem.

(ISI), memória de trabalho (MT), atenção visual diferença estatisticamente significante para as
(AV), leitura de palavras e não-palavras (L) e provas citadas, indicando que o conteúdo ofe-
compreensão de frases a partir de figuras (CF), recido pelo professor em sala de aula favoreceu
indicando melhora nas habilidades necessárias a melhora do desempenho dessas crianças nas
para a aquisição da leitura e correspondência provas descritas anteriormente.
grafema-fonema. O GII não submetido ao Na Tabela 4, pode-se observar que os escola-
programa de intervenção apresentou também res do GI e GII comparados em situação de pré-

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reFundini dC et al

Tabela 4 - Distribuição da média, desvio padrão, valor mínimo, valor máximo e significância (p) do desempe-
nho dos escolares em situação de pré e pós-testagem no subteste de nomeação rápida de figuras (N.r)

Habilidades Média Desvio Mínimo Máximo Mediana Valor de p


Padrão
N.r. pré 40,46 7,63 25 60 40 0,110
N.r. pós 38,81 9,499 14 66 36
Legenda: N.r: Nomeação rápida; Pré: Pré-testagem; Pós: Pós-testagem.

testagem e pós-testagem apresentaram desem- penho em percepção, discriminação e tempo


penho próximo quanto ao tempo de nomeação de armazenamento da informação linguística
rápida de figuras no subteste para velocidade de provoca a melhora no uso de habilidades de
acesso à informação fonológica, indicando que leitura e compreensão, conforme descrito na
não ocorreu efeito do programa de intervenção literatura5.
sobre a habilidade de fusão rápida de estímulo Destaca-se que, depois do treinamento da
em sucessão para a realização da leitura. correspondência grafema-fonema realizado com
Neste estudo, verificou-se que entre os 18 os 18 escolares de risco para a dislexia, apenas 1
(100%) escolares com sinais da dislexia sub- escolar não apresentou melhora no desempenho
metidos ao programa de treinamento de cor- em situação de pós-testagem. Assim, pode-se
respondência grafema-fonema, apenas 1 (5%) considerar que os 17 escolares deste estudo que
continuou apresentando valor mínimo inferior a obtiveram melhor desempenho em situação de
51% em situação de pós-testagem no teste para pós-testagem em relação à pré-testagem apre-
identificação precoce dos problemas de leitura. sentavam apenas falha no processo de alfabeti-
Esse escolar foi encaminhado para avaliação zação e não o quadro de dislexia.
interdisciplinar composta por avaliação neu- A partir dos dados encontrados nesta pes-
rológica, fonoaudiológica e neuropsicológica quisa e na literatura internacional13, fica evi-
no Centro de Estudos da Educação e Saúde denciada a necessidade da intervenção precoce
– CEES/FFC/UNESP, tendo sido comprovado em escolares que apresentam precocemente
o quadro de dislexia. Depois do diagnóstico in- alguma dificuldade de aprendizagem, pois os
terdisciplinar, o escolar permaneceu no CEES/ dados deste estudo mostraram efeitos positivos
UNESP para início de intervenção fonoaudio- com o treinamento de habilidades de leitura
lógica. e consciência fonológica no início do período
escolar. Como mostra os dados desta pesquisa
DISCUSSÃO e dados de estudos internacionais17,18, os prin-
Os resultados revelaram que dos 18 escolares cipais focos das estratégias de intervenção são
considerados de risco para a dislexia após serem o enfoque na aprendizagem do mecanismo de
submetidos ao treinamento da correspondência conversão grafema-fonema, consciência fono-
grafema-fonema, 17 melhoraram o desempenho lógica e a velocidade de nomeação, o que jus-
em estratégias de percepção, discriminação, tifica o trabalho conjunto entre fonoaudiólogos
armazenamento e recuperação de informação e professores, por meio do uso de programas de
fonêmica, conforme descrito em estudos inter- intervenção para identificar e intervir precoce-
nacionais2,5,8,12. mente nos sinais da dislexia, contribuindo para
Em decorrência disso, esses escolares a diminuição do número de encaminhamentos
apresentaram melhora no uso das habilidades desnecessários para a realização de diagnóstico
cognitivo-linguísticas, visto que um bom desem- interdisciplinar.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 191-201

198
intervenção na dislexia

Um resultado interessante deste estudo foi os professores enfatizam o uso do conhecimento


que os escolares sem risco para a dislexia que de sílabas e letras durante as suas atividades
compuseram o GII apresentaram melhoras em situação de sala de aula, porém sem o uso
quanto às habilidades cognitivo-linguísticas em de medidas de avaliação subsequente não é
situação de pós-testagem em relação à pré-tes- possível identificar o escolar de risco para a
tagem, entretanto, estes não foram submetidos dislexia. Isso remete ao fato de quanto menor o
à intervenção, evidenciando que em situação de uso de estratégias em situação de avaliação pe-
sala de aula, os escolares frequentemente são dagógica ou psicopedagógica das habilidades
expostos a tarefas silábicas ou de conhecimento metafonológicas e de leitura, maior será o risco
de letras que auxiliam no desenvolvimento das de os profissionais da área da saúde e educação
habilidades avaliadas por este estudo. Dessa identificarem erroneamente ou deixarem de
forma, esses achados levam à reflexão de que identificar uma criança disléxica.
o uso de um programa focado apenas na ins-
trução da conversão grafema-fonema não deve CONCLUSÃO
ser indicado para escolares com dificuldades de A realização do programa de treinamento
aprendizagem em início de alfabetização, mas, da correspondência grafema-fonema foi eficaz
deve ser indicado o seu uso associado ao trei- para a identificação dos escolares com sinais
namento de habilidades fonológicas, conforme da dislexia, o que pode ser comprovado pela
descrito na literatura19-22. melhora das habilidades de leitura e corres-
Os achados deste estudo revelaram que pondência grafema-fonema em situação de
o treinamento da correspondência grafema- pós-testagem em relação à pré-testagem, tanto
fonema em escolares com risco para a dislexia para o GI como para o GII.
pode ser útil como um instrumento de auxílio ao Os dados referentes ao teste de identificação
diagnóstico de uma condição determinada ge- precoce nos problemas de leitura em situações
nética e neurologicamente. Este estudo apontou pré e pós-testagem evidenciaram a importância
para o fato de que para os escolares que apre- da realização de uma avaliação que enfoque a
sentam alguma dificuldade de aprendizagem, correspondência grafema-fonema no âmbito
este programa pode auxiliar no domínio do prin- clínico e educacional, visto que este instrumento
cípio alfabético da escrita que é a aquisição do auxilia os professores a identificar escolares de
mecanismo de conversão grafema-fonema, en- risco em situação de aprendizagem da base
tretanto, para isso os professores que atuam em alfabética do sistema de escrita do português
séries iniciais de alfabetização deve-se recordar brasileiro.
que medidas de avaliação para a verificação
do domínio do mecanismo de correspondência AGRADECIMENTOS
grafema-fonema devem ser realizadas de for- Ao CNPq, pela concessão de bolsa de inicia-
ma sistemática e periódica para a verificação ção científica à primeira autora, de apoio técnico
do domínio do princípio alfabético da Língua à segunda autora e da bolsa produtividade em
Portuguesa. Neste estudo, ficou evidente que pesquisa à terceira autora.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 191-201

199
reFundini dC et al

SUMMARY
Grapheme-phoneme correspondence training in students at risk for
dyslexia

Purpose: To verify the efficacy of the grapheme-phoneme correspondence


training program in students from 1st grade at risk for dyslexia. Methods:
The participants of this study were 60 students from public schools,
ranging from 6 to 7 years of age. In this study we adapted the research of
grapheme-phoneme correspondence training. The grapheme-phoneme
correspondence training program was adapted in three stages: pre-
testing, training and post-testing. All the students were submitted to the
test for early identification of reading problems; only 18 students showed
difficulty in performing more than 51% of the test and were submitted to
the training program. The students were divided as follows: Group I (GI)
with 18 students who were submitted to the program; and group II (GII) with
42 students who were not submitted to the program. Results: There were
statistically significant differences, suggesting that 18 students submitted
to the program showed better performance in post-testing when compared
to pre-testing. Conclusions: This study made evident the effectiveness of
this program in students at risk for dyslexia, evidencing that when the
formal instruction of the alphabetical principle of the Portuguese Language
is provided, the student who does not present a dyslexia condition ceases
to present such manifestations.

KEY WORDS: Dyslexia. Evaluation. Intervention studies. Reading.

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Trabalho realizado na Faculdade de Filosofia e Artigo recebido: 8/12/2009


Ciências da Universidade Estadual Paulista - FFC/ Aprovado: 4/3/2010
UNESP, Marília, SP.
Fonte de auxílio: Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

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201
ArTiGo
t oriGiNAL
eixeira mCtv et al.

haBilidades de leitura e esCrita de Crianças


na reCuPeração do CiClo i: divergênCias
entre avaliação de ProFessores e
resultados em testes Padronizados

maria Cristina Triguero Veloz Teixeira; Chi Kow mei; Alessandra Gotuzo seabra; Deisy ribas Emerich;
Elizeu Coutinho de macedo

RESUMO – No Brasil, as Classes de Recuperação de Ciclos são


destinadas a desenvolver habilidades deficitárias dos alunos. Esse estudo
verificou os possíveis ganhos em leitura e escrita de 23 crianças inseridas
na Recuperação do Ciclo I do Ensino Fundamental de uma escola pública
de São Paulo. Os alunos foram avaliados no final do 2º e do 4º semestre.
O professor fez a avaliação tradicional e os pesquisadores usaram os
seguintes testes: Competência de Leitura de Palavras, Compreensão de
Sentenças Escritas e Nomeação de Figuras por Escrita. Foram observados
ganhos significativos apenas na avaliação feita pelos professores. Análises
não revelaram aumento entre as duas avaliações com uso dos testes. Os
principais resultados sugerem a utilização da rota fonológica para leitura
e escrita, sem a utilização da rota lexical. Todos os participantes tiveram
promoção automática para a 5ª série do ensino fundamental, mesmo não
apresentando nível mínimo de leitura.

UNITERMOS: Leitura. Redação. Avaliação de desempenho.

Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira - Psicóloga, Mestre Correspondência


em Psicologia e Doutora em Saúde pela Universidade Dra. Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira
Federal de Santa Catarina. Prof. Adjunto I do Programa
Centro de Ciências Biológicas e da Saúde
de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM).
Chi Kow Mei - Pedagoga, Mestre em Distúrbios do Rua da Consolação, 896 Prédio 38, Térreo –
Desenvolvimento pela UPM. Consolação – São Paulo, SP – CEP: 01302-907
Alessandra Gotuzo Seabra - Psicóloga, Mestre e Doutora E-mail: cris@teixeira.org
em Psicologia Experimental pela Universidade de São
Paulo (USP). Profa. do Programa de Pós-Graduação em
Distúrbios do Desenvolvimento da UPM. Bolsista de
Produtividade CNPq.
Deisy Ribas Emerich - Aluna de Graduação em Psicologia
da UPM; Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
Elizeu Coutinho de Macedo - Psicólogo, Mestre e Doutor
em Psicologia Experimental pela USP. Prof. do Programa
de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento
da UPM. Bolsista de Produtividade CNPq.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 202-13

202
haBilidades de leitura e esCrita de Crianças na reCuPeração do CiClo i

INTRODUÇÃO encontra com grande frequência. Nesse estágio,


O fracasso escolar no Brasil tem se agravado o texto ainda é tratado como um desenho, logo
consideravelmente. Há estudos que mostram ele pode ser considerado um estágio de pseudo-
diversos tipos de relações entre o desempenho leitura e pseudoescrita. No segundo, o estágio
escolar e uma multiplicidade de variáveis, por alfabético, iniciam-se os processos de leitura e
exemplo, uso de métodos de alfabetização inefi- escrita propriamente ditos, sendo que a escrita
cazes, condições inadequadas de infraestrutura ocorre por meio da codificação fonografêmica
escolar, problemas de capacitação do professor, e a seleção das letras e o seu sequenciamento
problemas afetivo-emocionais das crianças, mantêm-se sob o controle dos sons da fala. As-
problemas no ambiente familiar, transtornos sim durante a leitura, o leitor converte as letras
de aprendizagem, como a dislexia e inserção do texto escrito em sons correspondentes, isto
da promoção automática, dentre outros 1-5. é, decodificação grafofonêmica. No terceiro
Uma frase de Gomes5 caracterizava o sistema estágio, o ortográfico, a leitura é realizada com
educacional brasileiro como de modestas tra- rapidez e fluência, por meio do reconhecimen-
dições avaliativas e marcado pela “pedagogia to visual direto. Neste último estágio, usa-se a
da repetência”. estratégia lexical, na escrita prevalece o uso
O interesse pelo esclarecimento das cau- do sistema lexical grafêmico e há habilidades
sas do fracasso escolar e da repetência tem para o reconhecimento da estrutura morfológica
sido norteado pelos resultados desfavoráveis de cada palavra. Nesse modelo, a consciência
que diversos países obtiveram no Programa fonológica é fundamental para o uso eficaz da
Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). estratégia alfabética de leitura.
Crahay6, por exemplo, publicou um estudo no A partir do modelo de Frith8, pesquisadores
qual analisa, em 31 países, os diversos efeitos como Morton9 e Ellis e Young10 propuseram o
da repetência à luz dos resultados do Pisa do modelo de dupla-rota para a leitura, segundo
ano 2000. O autor discute os altos e baixos es- o qual a leitura propriamente dita pode ocorrer
cores na classificação internacional, assim como por meio de dois processos básicos, denomina-
alguns dos fatores que afetam o rendimento dos dos também de rotas, a fonológica e a lexical.
sistemas educativos. O pesquisador chama a Na rota fonológica, a pronúncia da palavra é
atenção para que os gestores políticos usufruam construída por meio da aplicação de regras de
as pesquisas científicas da área educacional. correspondência grafofonêmica, o significado é
Conforme Capovilla e Capovilla7, as cau- alcançado por mediação da forma auditiva da
sas das dificuldades na leitura e escrita têm palavra, resultante da síntese fonológica. Já na
sido frequentemente reduzidas a variáveis do rota lexical, o item sofre primeiro uma análise
tipo infraestrutura escolar, problemas afetivo- visual antes de ser processado pelo sistema
emocionais das crianças e ambiente familiar. de reconhecimento visual de palavras. O item
Conforme levantamento bibliográfico realizado somente será reconhecido como palavra se sua
pelos autores, porém, têm sido identificadas forma ortográfica (morfemas e palavras) estiver
outras causas, principalmente relacionadas representada no léxico ortográfico. Esta rota
às habilidades metafonológicas. Tais habili- permite o reconhecimento da palavra como
dades são fundamentais para a aquisição da um todo, sem a necessidade da conversão
linguagem escrita que, segundo Frith8, ocorre grafema-fonema. De acordo com as caracte-
ao longo de três estágios. No primeiro estágio rísticas psicolinguísticas das palavras a serem
logográfico, não há decodificação alfabética, o lidas, o uso de uma rota será predominante
texto é processado como se fosse desenho, e a em relação à outra11,12. O desenvolvimento de
leitura consiste no reconhecimento visual global ambas as rotas estão relacionados entre si, visto
de uma série de palavras comuns que a criança que a exposição da criança à leitura fonológica

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 202-13

203
teixeira mCtv et al.

permite a constituição de um léxico ortográfico, de habilidades de leitura e escrita na amostra


que possibilitará à criança, posteriormente, ler estudada. Estas contribuições sugerem que é
de acordo regras ortográficas7. necessário investir na formação continuada de
O processamento fonológico deficitário difi- professores e revisar criticamente os Parâmetros
culta a leitura pela rota alfabética, sendo essa Curriculares Nacionais22.
uma das principais dificuldades observadas em Porém, nem sempre o uso de métodos errô-
crianças com problemas de leitura13-15. Crianças neos de alfabetização é reconhecido como uma
com tais problemas apresentam, de forma geral, das causas essenciais do fracasso escolar e da
dificuldade em avançar ao estágio logográfico repetência24. Na verdade, no Brasil ainda há
para o alfabético e, as instruções de alfabetiza- resistência em adotar este método, tendo sido
ção empregadas têm sido relacionadas ao grau adotadas outras medidas como tentativa de di-
de desenvolvimento fonológico16-18. Estudos minuir o fracasso escolar39. Dentre elas, o Minis-
anteriores apontam como fator importante no tério de Educação e a Secretaria da Educação do
fracasso escolar o tipo de instrução de alfabeti- Estado São Paulo elaboraram o Plano Nacional
zação empregado19-21. de Educação, que estabeleceu uma medida no
Abordagens fônicas de alfabetização na intuito de melhorar o desenvolvimento escolar
língua portuguesa têm sido desenvolvidas para de crianças e adolescentes. No caso, a medida
promover o desenvolvimento do processamento consistiu-se na Progressão Continuada que foi
fonológico, contribuindo para o estabelecimento deliberada no Conselho Estadual da Educação,
das representações fonológicas das palavras, a partir da Deliberação CEE 9/199740 e abrange
o desenvolvimento da consciência fonológica 10 meses (fevereiro até dezembro).
e o conhecimento das correspondências entre Conforme essa medida, o Ensino Fundamen-
grafemas e fonemas7,12,18,22-30. Tais abordagens tal teria duração de oito anos e seria dividido
incluem, além das atividades de correspondên- em dois ciclos. Somente após o término do
cias letra-som, atividades metafonológicas, por primeiro ciclo (i.e., dos quatro primeiros anos),
exemplo, exercícios de rima, aliteração, discri- caso o aluno não estivesse alfabetizado, perma-
minação e manipulação silábicas e fonêmicas. neceria na escola por mais um ano na mesma
Freitas et al.31 obtiveram resultados relevan- série. Tal medida extinguiu a reprovação por
tes em relação ao uso de programas de ensino desempenho nas séries intermediárias do ciclo
para o desenvolvimento de habilidades de cons- em vários estados onde a mesma foi imple-
ciência fonológica em alunos com histórico de mentada41. Após esse ano de recuperação, o
dificuldade na aquisição de leitura e escrita da aluno é promovido para a 5ª série, mesmo que
terceira e quarta série do ensino fundamental de não consiga se alfabetizar até o final do ano.
uma escola pública brasileira. O resultado cor- Daí o nome da medida “Recuperação do Ciclo
roborou outros achados sobre o papel essencial I”. A medida foi proposta, mas muitas escolas
de estratégias fonológicas na aquisição destas a utilizam sem questionar o método de ensino
habilidades associadas ao risco de fracassar no vigente e sem aplicar outros avanços científicos
processo de alfabetização7,27,31-38. de pesquisas nacionais e estrangeiras sobre a
Nikaedo12 avaliou, no Brasil, a eficácia de mesma medida42-46.
uma intervenção coletiva com o Programa Alfa- No caso específico do estado de São Paulo,
betização Fônica Computadorizada, em que fo- a medida “Progressão Continuada no Ensino
ram conduzidas atividades de correspondências Fundamental”, além de utilizar as avaliações
grafofonêmicas e de consciência fonológica com formais, atribui, conforme acordo interno emitido
escolares do Ensino Fundamental. A interven- pelos professores, um conceito aos alunos, dentre
ção foi eficaz para aumentar a fluência na deco- plenamente satisfatório (PS), satisfatório (S) e
dificação, contribuindo para o desenvolvimento não satisfatório (NS). As diretrizes recomenda-

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 202-13

204
haBilidades de leitura e esCrita de Crianças na reCuPeração do CiClo i

das pelo governo para a Recuperação do Ciclo I Em relação aos desempenhos no Teste das
incluem método de ensino global, pressupondo Matrizes Progressivas de Raven, um teste de in-
que a criança comece por textos e frases forma- teligência não verbal, especificamente do fator
das por palavras conhecidas para desenvolver “g”, proposto por Spearman, os participantes
a estratégia de leitura baseada na tentativa de apresentavam uma média de 18,1 pontos, em
adivinhar o significado das palavras a partir do termos de escores brutos, com desvio padrão de
contexto, ou seja, uma focalização progressiva 6,7 pontos. Em termos de percentis, os desem-
em frases, palavras, sílabas até grafemas, dentre penhos no Teste Raven variaram do percentil
outras características18,47. Diante das evidências 5 ao percentil 25, com percentil médio de 15,9
já discutidas anteriormente, pode-se questionar a e desvio padrão de 9,8, conforme as normas do
eficácia desse procedimento para a alfabetização manual brasileiro48.
dos alunos já defasados dessas séries7,15,17,21.
Nesse contexto, o presente estudo teve como Instrumentos
objetivo verificar a relação entre dois proce- A avaliação do desempenho escolar foi feita
dimentos de avaliação de leitura e escrita em a partir de uma avaliação quantitativa e uma
um grupo de crianças com história de fracasso avaliação qualitativa. Na avaliação quantitativa,
escolar inseridas na Recuperação do Ciclo I. foram utilizados três dos sete testes computa-
Uma avaliação foi realizada com uso de testes dorizados da Bateria de Avaliação de Leitura e
Escrita BALE-On-line36 e o Teste de Matrizes
padronizados de habilidades de leitura e escrita
Progressivas de Raven – escala especial48.
baseados na psicologia cognitiva e no modelo
A Bateria de Avaliação de Leitura e escrita
de processamento da informação, e outra ava-
On-Line - BALE On-Line36 está formada por
liação de tipo qualitativa, baseada na obser-
um conjunto de testes computadorizados que
vação e descrição dos professores dos estágios
podem ser operados via Internet e avalia habi-
de alfabetização, seguindo os pressupostos do
lidades de leitura e escrita. Os testes utilizados
construtivismo adotados na abordagem global.
da bateria foram Teste de Competência de
Partiu-se das seguintes hipóteses: a) Apenas as
Leitura de Palavras, Teste de Compreensão de
primeiras avaliações confirmarão correlação en-
Sentenças Escritas e Teste de Nomeação de
tre os escores dos testes padronizados de leitura
Figuras por Escrita.
e escrita e avaliação qualitativa do professor, b) O Teste de Competência de Leitura de Pa-
Os testes padronizados identificarão com maior lavras e Pseudopalavras – TCLPP apresenta
especificidade possíveis problemas de leitura pares compostos por uma figura e um item es-
escrita em ambas as avaliações. crito (palavra ou pseudopalavra), bem como as
opções <CERTO-C> e <ERRADO-E>. A tarefa
MÉTODO do aluno é julgar se o item escrito corresponde
à figura apresentada, do ponto de vista gráfico
Participantes e semântico. O teste é composto por 78 itens,
Participaram do estudo 23 alunos de uma sendo que oito são de treino e 70 de teste, assim
mesma Classe de Recuperação do Ciclo I do a pontuação máxima a ser obtida é 70 pontos.
Ensino Fundamental de uma escola pública Há sete tipos de pares ordenados aleatoria-
estadual localizada em Parque das Nações, na mente, com dez itens de cada tipo. São estes
zona sul do Município de São Paulo. Destes, as palavras corretas regulares, como FADA sob
15 são do sexo masculino e 8 do sexo feminino. figura de fada; palavras corretas irregulares,
As idades dos participantes oscilaram entre 11 como TÁXI sob figura de táxi; palavras com
e 14 anos, com média de 11,4 anos e desvio incorreção semântica, como TREM sob figura
padrão de 0,84. de ônibus; pseudopalavras com trocas visuais,

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205
teixeira mCtv et al.

como CAEBÇA sob figura de cabeça; pseudopala- descrever o estágio de alfabetização que cada
vras com trocas fonológicas, CANCURU sob figura aluno se encontrava e foi realizada ao longo
de canguru; 6) pseudopalavras homófonas, dos quatro bimestres do ano letivo: fevereiro-
PÁÇARU sob figura de pássaro; e pseudopalavras março (1), maio-junho (2), agosto-setembro (3) e
estranhas, como RASSUNO sob figura de mão. Os novembro-dezembro (4). No presente estudo são
pares corretos incluem as palavras corretas re- descritos apenas os resultados das avaliações ao
gulares (CR) e as palavras corretas irregulares final do 2o e do 4o bimestres. A avaliação consiste
(CI), e os pares incorretos incluem palavras com em uma observação que o professor realiza com
trocas semânticas (TS), pseudopalavras com seus alunos para atribuir ao aluno o estágio de
trocas visuais (TV), pseudopalavras com trocas alfabetização que a criança se encontra: estágio
fonológicas (TF), pseudopalavras homófonas pré-silábico; estágio silábico sem valor sonoro;
(PH) e pseudopalavras estranhas (PE). O teste estágio silábico com valor sonoro; estágio silábico
avalia o estágio de desenvolvimento da leitura alfabético e estágio alfabético. Os pressupostos
ao longo das etapas do desenvolvimento da dessa avaliação são construtivistas baseados
criança, sendo também utilizado para o diag- em Ferreiro49 sobre o processo de construção da
nóstico diferencial de distúrbios relacionados à escrita.
aquisição de leitura.
O Teste de Compreensão de Sentenças Escri- Procedimentos
tas – TCSE avalia a compreensão de leitura de O estudo foi conduzido em duas fases. A pri-
sentenças que variam em complexidade lexical meira foi realizada no final do primeiro semestre
e semântica. Consta de 46 telas, nas quais há do ano de Recuperação do Ciclo I, e a segunda
uma sentença e cinco figuras, sendo que o aluno fase foi executada no final do segundo semestre.
é solicitado a escolher a figura que corresponde Em ambas as fases, todos os participantes foram
à sentença escrita. Uma única alternativa é cor- avaliados com os instrumentos acima descritos da
reta, as quatro figuras restantes são distratoras. BALE On-Line, bem como foram registrados os
Dentre as 46 telas, 6 telas são de treino e 40 são resultados da avaliação do professor no bimestre
de teste. A pontuação máxima a ser obtida é de de acordo com o estágio de leitura. Além disso, na
40 pontos. Como há cinco figuras alternativas primeira avaliação, ao final do primeiro semestre,
para cada sentença, a probabilidade de acerto os alunos também foram avaliados nas Matrizes
acidental é de 20%. Pelo fato de existirem 40 Progressivas Coloridas de Raven – escala especial,
sentenças, a pontuação por acerto casual é de apenas para fins de caracterização dos participan-
8 pontos. tes, conforme anteriormente descrito.
Por último, o Teste de Nomeação de Figuras Todos os testes da BALE On-line foram apli-
por Escolha de Palavras – TNF contém 36 itens cados na sala de informática da escola. A sala
que permitem avaliar o desenvolvimento da constava de oito computadores que foram usados
competência de leitura em Português. Cada tela para efetuar as avaliações individualmente, isto
apresenta uma figura e o aluno deverá escolher, é, uma criança em cada computador. Todas as
dentre quatro palavras escritas, uma única op- crianças envolvidas no estudo já estavam familia-
ção que corresponda ao nome correto da figura. rizadas com o uso do computador antes de iniciar
Dentre as opções há distratores semânticos, as coletas de dados. Somente o Teste de Matrizes
ortográficos e quirêmicos. A pontuação máxima Progressivas Coloridas de Raven foi aplicado de
para o teste é 36 pontos. forma tradicional, com papel e lápis, em sala reser-
Na avaliação qualitativa utilizaram-se os vada da escola, com grupos de aproximadamente
resultados da avaliação de desempenho execu- oito alunos cada.
tada rotineiramente pelo professor da classe de Os escores brutos dos testes da BALE On-line
Recuperação do Ciclo I. A mesma consistiu em foram processados quantitativa e qualitativamen-

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haBilidades de leitura e esCrita de Crianças na reCuPeração do CiClo i

te e comparados com as avaliações do professor. para as duas avaliações dos professores.


Para efetuar essas comparações, as avaliações Conforme a Tabela 2, as análises falharam
qualitativas efetuadas pelo professor foram trans- em revelar qualquer diferença significativa nos
formadas em números. Assim, para cada estágio desempenhos dos participantes nos três testes
foi atribuído um número sequencial de 1 até 5, quantitativos, a saber, Teste de Competência
respeitando a mesma ordem dos estágios: número em Leitura de Palavras e Pseudopalavras (TCL-
1 foi associado ao estágio pré-silábico; número 2 PP), Teste de Compreensão de Sentença Escrita
ao estágio silábico sem valor sonoro; número 3 ao (TCSE), Teste de Nomeação de Figura por Escrita
estágio silábico com valor sonoro; número 4 ao (TNF).
estágio silábico alfabético; ao estágio alfabético Foi conduzida também uma análise de cor-
número 5 ao estágio alfabético não ortográfico e, relação de Pearson para verificar a existência
número 6 ao estágio alfabético ortográfico. de correlação entre os testes e as avaliações dos
professores em ambos os momentos. Conforme
RESULTADOS sumariado na Tabela 3, os resultados demonstram
A Tabela 1 sumaria os desempenhos obtidos correlação positiva estatisticamente significante
no 2o e no 4a bimestres para cada uma das qua- entre todos os testes padronizados e as avaliações
tro avaliações, a saber, testes de Competência dos professores em ambos os momentos, ou seja,
em Leitura de Palavras (TCLP), Compreensão final do 2º e do 4º bimestres.
de Sentença Escrita (TCSE) e Nomeação de Fi- Pode-se observar que a avaliação dos profes-
gura por Escrita (TNF), bem como para as duas sores mostrou-se correlacionada positiva e signi-
avaliações dos professores, em termos de média, ficativamente com as avaliações padronizadas.
desvio-padrão, mínimo e máximo. Na primeira avaliação, tais correlações foram de
De modo a comparar os desempenhos dos moderadas a altas com os testes TCLPP, TCSE e
participantes ao final do primeiro e do segundo TNF, com r = 0,53, 0,72 e 0,74, respectivamente. Já
semestres escolares, foram conduzidas Análises na segunda avaliação, apesar de tais correlações
de Variância de Medidas Repetidas, tendo o continuarem significativas, tenderam a diminuir
momento (primeira x segunda avaliação) como um pouco em magnitude, com r = 0,55, 0,56 e 0,64,
fator intra-sujeitos. Na Tabela 2, são sumariados respectivamente.
os resultados de tais análises para os testes de
Competência em Leitura de Palavras (TCLP), DISCUSSÃO
Compreensão de Sentença Escrita (TCSE) e No- A partir da análise dos resultados observa-se
meação de Figura por Escrita (TNF), bem como que a única diferença significativa observada do

Tabela 1 - Estatísticas descritivas, com média, desvio-padrão, mínimo e máximo, dos desempenhos nos 2o e
4o bimestres das avaliações conduzidas com uso do Teste de Competência em Leitura de Palavras (TCLP), Teste
de Compreensão de sentença Escrita (TCsE), Teste de Nomeação de figura por Escrita (TNf) e avaliação dos
professores (AP).
2o bimestre 4o bimestre
Avaliação média dp mín máx média dp mín máx
TCLP 47,20 48,20 31 64 48,20 9,059 30 61
TCsE 19,06 23,18 5 34 23,18 12,39 6 40
TNf 29,00 28,55 16 36 28,55 8,54 9 36
AP 4,96 5,43 2 6 5,43 0,90 3 6

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2o para o 4o bimestre foi em relação às avaliações


Tabela 2 - resultados de f e p após Análises de
dos professores. Assim, houve aumento no de-
Variância intrasujeitos dos desempenhos em
ambos os momentos (2o e 4o bimestres) para as sempenho dos alunos na avaliação qualitativa
quatro avaliações conduzidas. feita em relação ao estágio de alfabetização que
a criança se encontra: estágio pré-silábico; es-
Avaliação F p tágio silábico sem valor sonoro; estágio silábico
TCLPP f(1, 19) = 0,22 p = 0,641 com valor sonoro; estágio silábico alfabético,
estágio alfabético não ortográfico e estágio
TCsE f(1, 16) = 1,96 p = 0,181
alfabético ortográfico.
TNf f(1, 19) = 0,11 p = 0,748 Pode-se observar que, conforme as avalia-
ções dos professores, o escore médio na pri-
AP f(1, 22) = 14,95 p = 0,001
meira avaliação foi em torno de 5 pontos, que

Tabela 3 - matriz de correlação de Pearson e nível de significância entre a primeira e a segunda avaliação no
Teste de Competência em Leitura de Palavras (TCLP), Teste de Compreensão de sentença Escrita (TCsE), Teste
de Nomeação de figura por Escrita (TNf) e avaliação dos professores (AP).
TCLPP_1 TCSE_1 TNF_1 AP_1 TCLPP_2 TCSE_2 TNF_2
TCsE_1 r 0,706(**)
p 0,002
N 16
TNf_1 r 0,618(**) 0,790(**)
p 0,006 0,000
N 18 19
AP_1 r 0,531(*) 0,717(**) 0,742(**)
p 0,016 0,001 0,000
N 20 19 21
TCLPP_2 r 0,456(*) 0,598(**) 0,531(*) 0,691(**)
p 0,043 0,007 0,013 0,000
N 20 19 21 23
TCsE_2 r 0,370 0,408 0,448 0,332 0,550(**)
p 0,131 0,104 0,054 0,142 0,010
N 18 17 19 21 21
TNf_2 r 0,303 0,579(*) 0,692(**) 0,614(**) 0,646(**) 0,357
p 0,207 0,012 0,001 0,002 0,001 0,112
N 19 18 20 22 22 21
AP_2 r 0,410 0,536(*) 0,776(**) 0,816(**) 0,551(**) 0,558(**) 0,644(**)
p 0,072 0,018 0,000 0,000 0,006 0,009 0,001
N 20 19 21 23 23 21 22

* p < 0,05; ** p < 0,01.

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haBilidades de leitura e esCrita de Crianças na reCuPeração do CiClo i

corresponde à classificação de estágio alfabético morfêmicas. Isto confirma uma vez mais que
não-ortográfico, subindo para 5,43 pontos na se- eles estavam lendo pela rota fonológica, ou
gunda avaliação, que corresponde a um estágio seja, pela decodificação grafofonêmica estrita,
intermediário entre o alfabético não-ortográfico sem fazer o uso da rota lexical. Há neste grupo
e o ortográfico. Entretanto, as médias nas duas ausência de processamento de leitura, leitura
avaliações em cada um dos testes da BALE no nível meramente logográfico, leitura no
On-line utilizados mostram que as pontuações nível perilexical com falta de acesso ao léxico
desses alunos encontram-se abaixo da média ortográfico e falta de acesso semântico, como
de acertos esperados para crianças da 4ª série, comprovado por outros autores36,52. Esses acha-
de acordo com Nikaedo et al.50 e Diana51. Es- dos confirmam a necessidade de programas de
tes escores médios obtidos nas três avaliações intervenção com uso de estimulação de cons-
padronizadas dos testes são compatíveis com ciência fonológica que facilitem a percepção
habilidades de desenvolvimento de linguagem fonêmica, assim como a compreensão básica de
escrita de crianças de 2ª série. Por exemplo, o princípios alfabéticos, como mostrado no estudo
TCSE foca habilidades de compreensão e de de Silva e Capellini54, realizado com crianças
leitura de sentenças e as médias de acertos entre 8 e 10 anos de idade.
nas avaliações inicial e final são plausíveis Independentemente deste resultado no tes-
de serem interpretadas como decorrentes de te, ao finalizar a recuperação do ciclo, todos os
um processamento de informações ainda não alunos são, inexoravelmente, promovidos para a
ortográfico, ou seja, uma leitura que, provavel- 5ª série, segundo a medida de Progressão Con-
mente, encontra-se entre o nível logográfico e tinuada deliberada no Conselho Estadual da
o nível alfabético36. Mas são crianças que serão Educação, a partir da Deliberação CEE 9/199740.
promovidas para a 5ª série independentemente Trata-se de uma promoção compulsória de
deste resultado. alunos para a 5ª série que não é efetiva em
De um lado é conhecida a estreita relação termos de melhoras de ensino nem de aprendi-
que existe entre o desenvolvimento de habilida- zagem43. Em 2001, provou-se que a própria me-
des de leitura e escrita e a sensibilidade que a dida é avaliada como negativa e contraditória
criança deve ter aos diferentes segmentos silábi- por 10.027 professores de ensino do estado de
cos e fonêmicos15,52,53. De outro, apresenta-se um São Paulo, como relatado no estudo de Almeida
conceito final nos estágios da leitura e escrita et al.55.
segundo critérios de professor que não parecem
refletir o aproveitamento das crianças. Os esco- CONCLUSÃO
res da BALE On-Line parecem ir à contramão O presente estudo permite uma reflexão
das avaliações do professor. Observou-se no es- sobre a eficácia da Classe de Recuperação de
tudo que os dois piores resultados obtidos pelos Ciclo I na promoção da competência de leitura
alunos foram nos subtestes pares de palavras e escrita. Como foi observado, os alunos da
Pseudopalavras Homófonas e Troca Fonológica presente amostra não apresentaram qualquer
do TCLP. Um dos principais erros cometidos pe- ganho significativo em testes padronizados
los alunos foi deixar de rejeitar pseudopalavras de leitura e escrita do segundo para o quatro
com trocas fonológicas e leituras incorretas de bimestre do ano escolar. Além disso, seu nível
palavras que se afetou pela irregularidade das de leitura caracterizou-se basicamente como
mesmas. Uma conclusão parcial é que os alunos logográfico, apesar de já terem cursado os pri-
que participaram do presente estudo ainda não meiros quatro anos do ensino fundamental e,
atingiram os estágios de leitura e escrita orto- adicionalmente, a classe de recuperação. Ou
gráficos e não são capazes de acessar o léxico seja, além desses alunos estarem com um nível
semântico a partir da identificação de unidades de leitura e escrita incipiente, eles em nada

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teixeira mCtv et al.

melhoraram do segundo para o quarto semestre nizados com o passar dos bimestres. Sabendo
escolar e, apesar disso, foram todos aprovados que tais testes são padronizados no contexto
para a 5ª série do ensino fundamental. nacional36, infere-se que os estágios da leitu-
Tais achados, apesar de terem sido coleta- ra e escrita atribuídos pelos professores aos
dos com uma amostra pequena e proveniente alunos parecem seguir critérios variáveis, sem
de uma única classe, corroboram os resultados sistematização científica e, consequentemente,
de pesquisas prévias. Estudo anterior em que imprecisos. Assim, pode-se questionar o quan-
foram avaliadas habilidades de leitura, escrita to são capazes de refletir o real aproveitamento
e aritmética de alunos do ensino fundamental das crianças. Isto confirma o apontado por Car-
já havia revelado dificuldades na aquisição valho46 e Junior et al.31, quando colocam que os
das habilidades acadêmicas ao final do ciclo professores utilizam um procedimento de ava-
da progressão continuada. Gomes44, em estudo liação ambíguo e inconsistente ao outorgar um
de revisão sistemática sobre implementações ou outro conceito. Estas ambiguidades já foram
da progressão continuada em vários países do apontadas em outros sistemas de ensino, como
mundo, comenta que o sistema, em muitos paí- é o caso de Portugal. Neste sentido, Fernándes
ses, garantiu um bom aprendizado de discentes
critica a denominada avaliação sumativa uti-
quando se combinaram a promoção automática
lizada em Portugal, cuja função é classificar e
com a flexibilidade da organização e avaliações
certificar os alunos para estabelecer balanços
externas rigorosas. Entretanto, em muitos países
globais sobre o que o aluno sabe e é capaz
de América Latina, esta promoção automática
de fazer. O autor ainda assinala que este tipo
não assegurou melhor aprendizagem ou a eli-
de avaliação parece não ter contribuído para
minação da repetência. Por exemplo, Brasil que,
o desenvolvimento de práticas de avaliação
dentre outros efeitos negativos, a progressão
formativa orientadas para a melhoria do ensino
continuada tem servido apenas para transferir
e das aprendizagens.
os problemas para o fim do ciclo básico.
Desta forma, a medida da progressão conti- Pode-se sugerir, a partir dos dados obtidos,
nuada parece estar garantindo um alto índice a fragilidade do sistema de avaliação escolar
de aprovação sem o devido sucesso escolar que está sendo usado na escola que foi lócus da
propriamente dito46, e o sistema de classes de pesquisa. Ressalta-se, porém, a necessidade de
recuperação de ciclo não parece estar sendo que este estudo seja replicado em outros con-
eficaz. De fato, o presente estudo mostrou que textos escolares e com amostras mais amplas,
os participantes promovidos para a 5ª não de- com a finalidade de avaliar, mediante o uso de
senvolveram habilidades de leitura e escrita instrumentos padronizados, as habilidades de
conforme os testes da BALE On-Line que foram leitura e escrita de alunos da recuperação do
utilizados. ciclo I. Dados como estes poderão contribuir
Adicionalmente, observou-se, no presente com o questionamento não só do sistema de
estudo, que os conceitos atribuídos pelos pro- avaliação vigente, mas também com o ques-
fessores aos alunos tornaram-se menos corre- tionamento da própria medida de progressão
lacionados aos desempenhos nos testes padro- continuada.

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haBilidades de leitura e esCrita de Crianças na reCuPeração do CiClo i

SUMMARY
Reading and writing skills of child into recovery cycle I: divergences
between assessment of teachers and results of standardized tests

In Brazil, the Recovery Cycles Classes are implemented to improve


academics abilities of some students. The aim of this research was to
assess the impact of the Recovery Cycle I Class in reading and writing
abilities of 23 children inserted in a public school in São Paulo. Students
were evaluated at the end of the 2nd and 4th semesters. The teacher made
the traditional evaluation and the researchers applied the following tests:
Word Reading Competence, Sentence Reading Comprehension and
Picture-Print Writing. Significant improvements were observed only in the
assessment made by teachers. The scores in the tests have not changed.
The main results suggest that the reading and spelling of these children
occur by the phonological route without doing the use of the lexical route.
All participants had automatic promotion to the 5th grade of elementary
school, even not presenting a minimum level of reading.

KEY WORDS: Reading. Writing. Performance assessment.

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Trabalho realizado no Programa de Pós-Graduação Artigo recebido: 3/4/2010


em Distúrbios do Desenvolvimento. Centro de Aprovado: 5/8/2010
Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 202-13

213
FArTiGo
rota s &oriGiNAL
Pereira ld

ProCessamento auditivo: estudo em


Crianças Com distúrBios da leitura
e da esCrita

silvana frota; Liliane Desgualdo Pereira

RESUMO – Objetivo: Avaliar o desempenho de crianças com distúrbios


específicos de leitura e escrita, nos Testes Verbais e Não Verbais de
Processamento Auditivo, e comparar com o de crianças sem o referido
transtorno. Método: Sessenta crianças foram submetidas a testes de
linguagem e de processamento auditivo. Resultados: Ocorreram diferenças
de desempenho nos testes realizados, com significância estatística.
Conclusão: Inabilidades auditivas surgiram concomitantemente com os
distúrbios da leitura e da escrita.

UNITERMOS: Percepção auditiva. Dislexia. Transtornos da linguagem.


Transtornos de aprendizagem.

Silvana Frota – Fonoaudióloga. Doutora em Distúrbios Correspondência


da Comunicação Humana pela Universidade Federal Silvana Frota
de São Paulo - Escola Paulista de Medicina (UNIFESP Av. Niemeyer, 925 – bloco 2 apto.1102 – São Conrado
- EPM), Professora Adjunta da Universidade Federal – Rio de Janeiro, RJ – CEP: 22450-221
do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: silfrota@gmail.com
Liliane Desgualdo Pereira – Fonoaudióloga. Doutora
em Distúrbios da Comunicação Humana pela
Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista
de Medicina (UNIFESP - EPM), Professora Associada
e Livre Docente do Departamento de Fonoaudiologia
da Universidade Federal de São Paulo.

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ProCessamento auditivo: estudo em Crianças Com distúrBios da leitura e da esCrita

INTRODUÇÃO distúrbio relacionado com leitura e a escrita6-12.


O processamento auditivo vem sendo ampla- Crianças com dislexia, quando comparadas
mente estudado, a fim de esclarecer as dificul- a crianças sem dislexia, apresentam diferentes
dades auditivas presentes em crianças e adultos formas de funcionamento do córtex pré-frontal,
com limiares audiométricos normais, porém com para o processamento acústico rápido. Foi re-
queixas na percepção auditiva. alizado estudo com crianças disléxicas e com-
O processamento auditivo diz respeito à provado que a ativação do córtex pré-frontal
eficiência com que o sistema nervoso central ocorre de forma mais lenta, quando elas são
utiliza a informação auditiva. Pode ser definido submetidas a estímulos verbais rápidos6.
como o conjunto de mecanismos e processos Na comparação de adultos com e sem disle-
responsáveis pelos fenômenos de lateralização xia, a pesquisa apontou que o grupo de adultos
e localização do som, discriminação auditiva, com dislexia apresentou dificuldade de enten-
reconhecimento dos padrões auditivos, aspectos der a fala, mediante presença de outras mensa-
temporais da audição – integração, discrimi- gens linguísticas e ruído. Os autores sugerem a
nação, ordenação e mascaramento temporal existência de um elo entre a dificuldade de exe-
– e habilidades auditivas com sinais acústicos cutar as habilidades auditivas de figura-fundo
competitivos e degradados1. e fechamento e o funcionamento adequado do
A leitura é um modo particular de aquisição sistema eferente olivococlear medial11.
de informações, cujo objetivo é a compreensão Consciente da importância que o processa-
de texto escrito. mento auditivo tem para a consciência fonoló-
Antes de aprender a ler, a criança já deve ser gica e esta, por sua vez, para o aprendizado da
capaz de conhecer formas fonológicas e as sig- leitura e da escrita, optamos por estudar essas
nificações correspondentes2. Além disso, existe alterações em crianças com distúrbios da leitura
outra habilidade, conhecida como consciência e da escrita. Outra escolha foi caracterizar as
ou processamento fonológico, igualmente fun- habilidades auditivas verbais – figura-fundo
damental para aquisição de leitura e escrita2. para sons verbais; ordenação temporal de sons
A consciência fonológica – ou segmentação verbais; memória sequencial simples para sons
de fonemas – é definida como a habilidade de verbais e fechamento – e não verbais – figura-
dividir palavras em porções separadas da fala e fundo para sons não verbais; ordenação tempo-
é fundamental para o aprendizado da leitura e ral de sons não verbais e localização da direção
escrita2. A consciência fonológica desenvolve-se da fonte sonora.
gradualmente durante a infância. Sendo uma O objetivo desse trabalho foi avaliar o de-
atividade metalinguística, envolve pensar e sempenho de crianças com distúrbios especí-
refletir sobre a linguagem como objeto3. ficos de leitura e da escrita nos testes verbais
O déficit de consciência fonológica e o trans- e não verbais de processamento auditivo e
torno do processamento auditivo são comumen- comparar com o de crianças sem distúrbios
te associados na literatura4-6. A integridade dos específicos de leitura e da escrita.
mecanismos fisiológicos auditivos exerce um
papel fundamental no processamento acústico MÉTODO
rápido, na percepção da fala, no aprendizado A pesquisa foi realizada na instituição de
e na compreensão da linguagem, sendo, con- origem e as crianças, com e sem dificuldade
sequentemente, pré-requisito na aquisição da de leitura e escrita, encaminhadas por fonoau-
leitura e da escrita. diólogas e professoras de escolas particulares.
Na literatura especializada, também existem As avaliações foram realizadas após a
alguns estudos demonstrando a associação en- equipe de trabalho explicitar sobre os testes e
tre o transtorno do processamento auditivo e o suas condições, conforme descrito na carta de

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informação do protocolo dessa pesquisa, e de competitiva, total de acertos e inversões; teste


os responsáveis assinarem o termo de consenti- de sequencialização sonora para sons verbais
mento livre e esclarecido, segundo a orientação e teste de fala com ruído branco.
aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Os testes com estímulos não verbais foram:
instituição de origem, sob o número de proto- Teste Dicótico, nas condições atenção livre,
colo, 094/02. atenção direcionada à direita e à esquerda; Tes-
O primeiro critério de exclusão era ser te de Sequencialização Sonora; e de Localização
portador de doença otológica, daí a ne- para Sons Não Verbais.
cessidade de realizar anamnese otológica, Para a análise estatística foram calculadas
meatoscopia, testes imitanciométricos e estatísticas descritivas (média, mediana, desvio
audiometria tonal liminar. padrão, valores mínimo e máximo). O nível de
Desta maneira, foram consideradas aptas a significância fixou-se em 0,05 ou 5%. Nesta
serem submetidas a esta pesquisa, as crianças parte da análise utilizou-se:
que apresentaram normalidade na avaliação • Teste t-Student: para comparar as médias nos
audiológica básica. testes Staggered Spondaic Word (nas condi-
As crianças selecionadas realizaram uma ções direita e esquerda competitiva e total de
bateria de testes de linguagem, com o objetivo acertos), Fala com ruído, Teste Dicótico Não
de classificá-las em dois grupos, compostos Verbal (nas condições atenção livre e atenção
por 30 indivíduos de ambos os sexos, otologi- direcionada);
camente normais, com faixa etária variando • Teste não paramétrico de Kruskal-Wallis:
entre 9 e 12 anos. utilizado no Teste Staggered Spondaic Word,
O conjunto de testes de linguagem consti- para comparar as respostas do tipo Inversão,
tuiu-se da Prova de Consciência Fonológica13; nos dois grupos;
da Avaliação da Velocidade de Leitura14; da Pro- • Teste qui-quadrado de homogeneidade: a im
va de Leitura em voz alta; avaliação escrita com de comparar as distribuições das respostas
ditado de palavras reais e inventadas13; além nos testes auditivos de Memória Sequencial
da avaliação da compreensão de narrativas por Verbal e Localização, em G1 e G2.
meio da noção linguística de figura-fundo15.
No Grupo 1 (G1), os participantes não possu- RESULTADOS
íam histórico nem manifestação de distúrbios de Apresentamos os resultados referentes à
leitura e escrita; ou seja, apresentaram respostas análise estatística descritiva dos Testes Verbais
satisfatórias em todos os testes que avaliaram de Processamento Auditivo na Tabela 1.
leitura e escrita. Em contrapartida, no Grupo 2 Com base na média das variáveis dos itens
(G2) estavam aqueles que apresentaram preju- de acertos do Teste SSW foi utilizado, para a
ízo em pelo menos um dos testes supracitados. análise inferencial, o teste t-Student, o qual
Todos os participantes dessa pesquisa fo- apontou diferenças estatisticamente significan-
ram submetidos à avaliação do processamento tes entre o G1 e o G2, com p-valores de 0,0016;
auditivo com testes especiais, agrupados e 0,024; 0,002, respectivamente.
analisados considerando os estímulos verbais No item inversões do Teste SSW, empregou-
e não verbais16; objetivando avaliar a capaci- se, também para a análise inferencial, o teste
dade auditiva de processar neurologicamente Kruskal-Wallis, que apontou diferença estatis-
informações sonoras. ticamente significante, entre o G1 e o G2, com
Para avaliar a capacidade de processar os um p-valor de 0,023.
sons verbais, foram realizados os seguintes No Teste de Memória Sequencial Verbal, foi
testes: Teste Staggered Spondaic Word (SSW) realizado o teste qui-quadrado, com um p-valor
– nas condições direita competitiva, esquerda de 0,136, não apontando diferenças estatistica-

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ProCessamento auditivo: estudo em Crianças Com distúrBios da leitura e da esCrita

Tabela 1 - medidas descritivas das identificações corretas dos itens obtidos pelos indivíduos do G1 e G2, nos
Testes Verbais de Processamento Auditivo.
SSW SSW SSW SSW SSW SSW SSW SSW MSV MSV F/R F/R F/R F/R
OD OD OE
DC DC EC EC total total INV. INV. OE%
% % %
Obser-
% % % % % %
vação
acer- acer- acer- acer- acer- acer-
tos tos tos tos tos tos
G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2
média 90,8 83,58 89,53 81,78 93,85 88,43 0,57 1,40 2,83 2,60 81,73 76,67 80,40 77,33
mediana 95 85,0 93,50 85,0 95,93 88,12 0,0 0,50 3 3 80,0 80,0 80,0 75,0
+ + + + + + + + + + + + + +
D.Padrão
9,55 10,39 9,85 15,40 5,69 7,25 1,43 1,83 0,37 0,67 6,78 10,35 9,35 9,30
mínimo 55,0 57,50 62,50 37,50 76,87 69,37 0,0 0,0 2,0 0 68,0 52 64,0 60,0
máximo 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 93,37 7,0 7,0 3,0 3 95,0 92 95,0 92,0
ssW: Teste de dissílabos alternados; DC e EC: Direita Competitiva e Esquerda Competitiva; inv: inversões; msV: memória se-
quencial Verbal; f/r: Teste de fala com ruído.

mente significantes entre os grupos analisados. No Teste de Memória Sequencial Não Verbal
No estudo das respostas do Teste Auditivo de (MSNV) e de Localização foi realizado o Teste
Fala com Ruído, o teste t-Student apontou p-va- qui-quadrado e não foram encontradas asso-
lores para a orelha direita de 0,029 e para orelha ciações estatisticamente significantes entre os
esquerda de 0,21. Esse índice indica diferenças grupos G1 e G2, com p-valores de 0,202 (MSNV)
estatisticamente significantes, apenas para a e de 0,166 (localização).
orelha direita, entre as respostas de cada grupo.
Na Tabela 2, encontram-se os resultados re- DISCUSSÃO
ferentes à estatística descritiva dos Testes Não A realização de testes que avaliam o proces-
Verbais de Processamento Auditivo. samento auditivo, em indivíduos com distúr-
Baseada na média das variáveis dos itens de bios de leitura e escrita, tem sido recomendada
acertos do Teste Dicótico Não Verbal, nas condi- por diversos autores4,5,9-12. Tal recomendação
ções atenção livre, atenção direcionada à direita se faz necessária, uma vez que o Distúrbio do
e à esquerda, foi utilizado o teste t-Student para Processamento Auditivo, quando presente,
a análise inferencial, o qual não apontou dife- requer treinamento auditivo específico, que
renças significantes entre as respostas observa- pode melhorar o desempenho para o proces-
das no G1 e G2. O teste apresentou p-valores de samento acústico rápido, aumentar a ativação
0,44 (condição atenção livre na orelha direita) e do cérebro e melhorar significativamente a
0,32 (condição atenção livre na orelha direita). linguagem e a leitura6.
Já para a etapa de atenção direcionada à Na pesquisa, observou-se que na avaliação
direita e à esquerda, o Teste t-Student apon- linguística o G1:
tou diferenças significantes entre as respostas • mostrou boa compreensão de narrativas ou-
dos grupos, havendo p-valores de 0, 015 para vidas, indicando bom desenvolvimento dos
atenção à direita e de 0, 019 para atenção à níveis semânticos e pragmáticos;
esquerda. • presença da habilidade de manipular os sons

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Tabela 2 - medidas descritivas das identificações corretas dos itens obtidos pelos indivíduos do G1 e G2, nos testes não
verbais de Processamento Auditivo.
Lo- Lo-
TDNV TDNV TDNV TDNV TDNV TDNV TDNV TDNV TDNV TDNV MSNV
cal cal

Obser- Total- Total-


OD-AL OD-AL OE-AL OE-AL AD AD AE AE
vação AL AL
acertos acertos acertos acertos acertos acertos
G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2 G1 G2
média 11,3 11,7 12,4 11,9 23,7 23,6 23,1 21,3 23,2 21,6 2,6 2,4 4,87 4,77
mediana 11,0 11,0 12,0 12,0 24,0 24,0 24,0 23,0 24,0 23,0 3,0 3,0 5,0 5,0
+ + + + + + + + + + + + + +
D.Padrão
2,2 1,7 2,3 1,9 0,5 0,9 1,5 3,6 1,5 3,3 0,8 0,7 0,43 0,43
mínimo 7 9 8 7 22 21 17 9 18 13 0 1 3 4
máximo 16 16 17 15 24 24 24 24 24 24 3 3 5 5
TDNV:Teste Dicótico Não Verbal; oD e oE AL: orelhas Direita e orelha Esquerda Atenção Livre; AD e AE: Atenção Direita e Atenção
Esquerda; msNV: memória sequencial Não Verbal; LoCAL: Localização.

da fala, revelando que a consciência fonológi- tória para o nível de escolaridade; baixo nível
ca estava adequada para a faixa etária; de compreensão de narrativas, principalmente
• boa capacidade de escrever palavras regula- para a leitura silenciosa; e um tipo de leitura
res e irregulares, sugerindo, de acordo com o pausada e silabada (alfabética), sinalizando ine-
autor2, o desempenho competente no uso da ficiência no uso da estratégia ortográfica (leitura
estratégia ortográfica na escrita, velocidade de lexical) e no duplo processo para a leitura, de
leitura satisfatória para o nível de escolarida- acordo com a literatura especializada2,15.
de, bom nível de compreensão de narrativas,
tanto para a leitura oral, quanto para a leitura TESTES VERBAIS DO PROCESSAMENTO
silenciosa e um tipo de leitura global (lexical). AUDITIVO
Para as crianças do G2, a análise do desem- Ao analisar os testes comportamentais do
penho nos testes linguísticos demonstrou: processamento auditivo (Tabela 1), observamos
• boa compreensão de narrativas ouvidas, pa- que, no Teste SSW, a quantidade de acertos to-
recendo ter bom desenvolvimento dos níveis tais em porcentagem foi de cerca de 90% para
semânticos e pragmáticos; G1, e de 80% para G2. Desta forma, o desem-
• inabilidade de manipular os sons da fala, penho de G2 foi pior no mecanismo fisiológico
apontando que a consciência fonológica está de discriminação de sons sobrepostos em escuta
inadequada para a faixa etária; dicótica, cuja habilidade é figura-fundo2,16. Tal
• diiculdades de escrever palavras regulares achado também é descrito na literatura12.
e principalmente irregulares, sugerindo que Os resultados do Teste SSW, em relação às
a criança apresenta desempenho compatível inversões da ordem das palavras, demonstraram
com a estratégia alfabética, não tendo atingido que o desempenho de G2 foi inferior a G1. A
o domínio da estratégia ortográfica na escrita. partir daí, é possível levantar a hipótese de que
Assim, os indivíduos que constituíram o a alteração, no mecanismo fisiológico de discri-
G2 apresentaram, de modo geral, resultados minação de sons em sequência, pode dificultar
insatisfatórios para a escrita de palavras reais a aprendizagem da leitura e escrita.
e inventadas; velocidade de leitura insatisfa- Neste estudo, analisou-se que 10 (33,3%)

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ProCessamento auditivo: estudo em Crianças Com distúrBios da leitura e da esCrita

crianças de G1 apresentaram Distúrbio de Pro- isto não é a base destes problemas, podendo ser
cessamento Auditivo. Dentre estas, 4 (13,3%) simplesmente um agravante.
com alterações de processamento auditivo de Para o Teste de Memória Sequencial Verbal
grau leve; 5 (16,6%) com alterações de grau mo- não ocorreram diferenças estatisticamente sig-
derado; e 1 (3,3%) com alterações de grau grave. nificantes entre as médias de G1 e G2. Assim,
A partir destes dados, poderão ser feitos os indivíduos com distúrbios de leitura e escrita
diversos questionamentos. A alteração do pro- não apresentaram desempenho ruim nos meca-
cessamento auditivo puro, é suficiente para nismos fisiológicos auditivos, cuja habilidade é
causar dificuldades linguísticas? Os resultados memória sequencial para sons verbais.
anômalos, nos Testes Verbais de Processamento Um estudo7 buscou estabelecer a relação
Auditivo realizados, indicam que há risco dos das dificuldades de leitura e escrita com as
desenvolvimentos da linguagem e acadêmico alterações do processamento auditivo, avalia-
não continuarem a progredir adequadamente das por meio dos Testes Comportamentais de
naquelas crianças? Localização Sonora; Memória Sequencial Não
Como resultado de um estudo sobre a relação Verbal; e Memória Sequencial Verbal, também
entre os Distúrbios de Processamento Auditivo denominado Avaliação Simplificada do Proces-
e as alterações linguísticas17, os autores obser- samento Auditivo. As autoras não encontraram
varam que nem todas as crianças com proble- associação significante entre alteração na prova
mas linguísticos apresentaram dificuldades no de memória sequencial verbal e o desempenho
processamento auditivo temporal e vice-versa. rebaixado em tarefas de leitura e escrita7, o que
O déficit de processamento auditivo pode estar corrobora com os achados do presente estudo.
presente em crianças com linguagem normal. O presente trabalho mostra que a pesquisa
Segundo os autores17, são inúmeras as causas do desempenho em tarefa de sequencialização,
ou fatores de risco que agem sinergicamente e avaliada pelo Teste Diótico de Memória Se-
que levam a transtornos nos diferentes níveis quencial Verbal, talvez não seja eficiente como
linguísticos. O processamento auditivo puro único instrumento de pesquisa das alterações
não é fator suficiente para causar dificuldades de processamento auditivo, nos transtornos es-
de linguagem. pecíficos da leitura e da escrita. Isto porque não
Por outro lado, também é descrito na litera- houve diferença estatisticamente significante
tura que as alterações de processamento audi- entre G1 e G2. Assim, acreditamos que é impor-
tivo – processamento binaural; dificuldade de tante realizar testes auditivos comportamentais
perceber fala com ruído de fundo; déficit de dis- mais complexos como os de Escuta Dicótica.
criminação e ordenação temporal de sequências No Teste Fala com Ruído Branco, ocor-
rápidas, no sinal auditivo; e discriminação de reram diferenças estatisticamente signifi-
frequência – podem ser a base de inúmeros pro- cantes somente entre as respostas da orelha
blemas de linguagem18. Também é importante direita (Tabela 1).
ressaltar que alterações da ordenação temporal A média das porcentagens de acertos no
de sons, de diferentes frequências (alta/baixa) Teste Fala com Ruído, no qual a habilidade au-
e duração (longo/curto), ocorrem em crianças ditiva é o fechamento, houve diferenças de 5,06
com déficit de consciência fonológica5. e 3,07 nas orelhas direita e esquerda, respec-
No G2, é provável que as disfunções no me- tivamente. Isso demonstra que o desempenho
canismo fisiológico auditivo de discriminação de G2, na orelha direita, foi pior no mecanismo
de sons, sobrepostos em escuta dicótica (figura- fisiológico de discriminação de sons fisicamente
fundo) e discriminação de sons em sequência, distorcidos.
estejam associadas aos transtornos específicos Ao estudar a habilidade de compreender a
da leitura e da escrita; porém, acredita-se que fala com ruído em adultos com e sem dislexia11,

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os autores observaram assimetria de respostas Mesmo para as crianças do G2 que apre-


entre as orelhas e interpretaram como altera- sentaram desempenho ruim no Teste Dicótico
ções no sistema eferente olivococlear medial Não Verbal, para as condições de atenção
direito e esquerdo, diferente do grupo controle, sustentada à direita e à esquerda, não foram
que apresentou funcionamento semelhante encontradas alterações nos níveis linguísticos
para ambas as orelhas. semântico e pragmático. Isso indica que o
talento para reconhecer o significado na lin-
TESTES NÃO VERBAIS DO PROCESSA- guagem não foi afetado, apesar da dificuldade
MENTO AUDITIVO na habilidade auditiva de figura-fundo para
Nesse estudo, buscou-se caracterizar o sons não verbais. Isto é, a capacidade de saber
desempenho nos Testes Não Verbais de Pro- informações referentes ao significado de mor-
cessamento Auditivo, considerando os mecanis- femas individuais, palavras e sentenças – além
mos fisiológicos de discriminação de sons não de perceber as regras que governam o uso da
verbais, sobrepostos em escuta dicótica (Teste linguagem em contextos sociais – está ade-
Dicótico Não Verbal, nas condições atenção quada à faixa etária dos indivíduos avaliados.
livre e direcionada); discriminação não verbais Sendo assim, podemos questionar: a lingua-
em sequência (Teste Memória Sequencial Não gem, nos níveis semântico e pragmático, con-
Verbal); e discriminação da direção da fonte tinuará se desenvolvendo satisfatoriamente? A
sonora (Teste de Localização). avaliação do processamento auditivo, por meio
Os mecanismos fisiológicos acima citados do Teste DNV, não é suficiente? Assim sendo,
avaliam, respectivamente, as habilidades au- é preciso verificar se esse é um bom indicador
ditivas de figura-fundo para sons não verbais, da análise desses níveis, por avaliar apenas
ordenação temporal de sons não verbais e lo- os aspectos suprassegmentais e prosódicos da
calização da direção da fonte sonora. fala. Além disso, os resultados do Teste DNV
Para o estudo do Teste de Memória Sequen- – para as condições de atenção sustentada à
cial Não Verbal e de Localização não ocorreram direita e à esquerda – indicam risco dos níveis
diferenças estatisticamente significantes entre linguísticos semântico e pragmático não conti-
as respostas de G1 e G2 (Tabela 2). A localização nuarem a se desenvolver conforme o esperado?
é uma etapa do processamento auditivo, que Para a correta interpretação de piadas,
exerce uma função importante no processo do metáforas e ambiguidade nos sentidos, é
desenvolvimento da percepção espacial e no necessário o conhecimento dos significados
desenvolvimento da atenção seletiva. Assim, no literais das expressões e da percepção das
G1 e G2 ocorreram predomínio de 4 e 5 acertos, regras, que governam o uso da linguagem
que foram consideradas respostas satisfatórias, em contextos sociais17. Para interpretar cor-
de acordo com os critérios de normalidade16. retamente o significado de uma mensagem
No presente estudo, no desempenho no linguística, ventila-se a hipótese de que as
Teste Dicótico Não Verbal, pela condição de alterações na habilidade auditiva de figura-
atenção livre (Tabela 2), não ocorreu diferença fundo para sons não verbais – avaliada pelo
estatisticamente significante entre as respostas Teste DNV – relacionem-se apenas com os
de G1 e G2. Assim, para a etapa de atenção aspectos suprassegmentais e prosódicos da
livre, este prejuízo auditivo não coocorreu com fala; ou seja, tonicidade da palavra, extensão
os transtornos específicos observados na leitura do vocábulo e entonação da frase. Porém, há
e escrita. Este fato não foi observado com as também a possibilidade dessas habilidades
condições de atenção direcionada à direita (AD) não serem responsáveis ou estarem relacio-
e atenção direcionada à esquerda (AE), para as nadas com o desenvolvimento linguístico,
respostas de G1 e G2. nos níveis semântico e pragmático (os mais

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ProCessamento auditivo: estudo em Crianças Com distúrBios da leitura e da esCrita

elevados na hierarquia do desenvolvimento volvimento semântico e pragmático, por meio


da linguagem). do Teste DNV.
Assim, apenas quando os elementos su-
prassegmentais da fala (tonicidade da palavra, CONCLUSÕES
extensão do vocábulo e entonação da frase) O desempenho das crianças sem distúrbios
influenciam a compreensão de piadas e duplo na leitura e escrita foi melhor do que no grupo
sentido, podemos estabelecer associações com com o déficit – tanto na avaliação dos testes
a inabilidade de figura-fundo para sons não verbais quanto não verbais de processamento
verbais, avaliadas por meio do Teste DNV. auditivo. Houve exceção apenas no Teste de
Novos estudos devem ser feitos, correla- Memória Sequencial Verbal e Teste de Memó-
cionando os níveis mais complexos do desen- ria Sequencial Não Verbal e de Localização.

SUMMARY
Auditory processing: study in children with specific reading and wri-
ting deficits

Purpose: To assess the performance of children with specific reading


and writing disorder in verbal and nonverbal auditory processing tests, and
to compare it with children without specific reading and writing disorder.
Methods: Sixty children have undergone language and auditory processing
tests. Results: Performance analysis on the test battery revealed significant
statistical differences. Conclusion: Auditory disabilities co-occured with
specific reading and writing disorders.

KEY WORDS: Auditory perception. Dyslexia. Language disorders.


Learning disorders.

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auditory processing disorder and auditory impairment: neither necessary nor suf-
processing efferent system functional- ficient for causing language impairment
ity in adult dyslexics: towards a unifica- in children. J Speech Lang Hear Res.
tion theory of auditory- language pro- 1999;42(7):1295-310.
cessing impairments. J Acoust Soc Am. 18. Bailey PJ, Snowling MJ. Auditory processing
2008;123(5):3566-72. and the development of language and litera-
12. Schmidt R, Winter K, Tesch-Romer C, cy. Br Med Bull. 2002;63(4):135-46.
Behmdt SM, Steffen M, Nawka T. Are the 19. Kaufman D. A natureza da linguagem e sua
auditory processing and perception disor- aquisição. In: Gerber A, ed. Problemas de
der in children with dyslexia? Laryngorhi- aprendizagem relacionados a linguagem:
nootologie. 2007;86(1):22-6. sua natureza e tratamento. Porto Alegre:
13. Capovilla AGS, Capovilla FC. Uma per- Artes Médicas;1996. P.51-71.

Trabalho realizado na Universidade Federal do Rio Artigo recebido: 11/5/2010


de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ. Aceito: 23/8/2010

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 214-22

222
avaliação PsiComotora deArTiGo oriGiNAL
esColares do 1º ano do ensino Fundamental

avaliação PsiComotora de esColares do


1º ano do ensino Fundamental
Tais de Lima ferreira; Amanda Bulbarelli martinez; sylvia maria Ciasca

RESUMO – Na infância, o papel da psicomotricidade é de fundamental


importância para o desenvolvimento e aprendizagem da criança e envolve:
aspectos emocionais, motores e cognitivos. O presente trabalho aborda
o tema desenvolvimento psicomotor, tendo como objetivo verificar se no
1º ano do ensino fundamental a criança já está apta, sob o ponto de vista
psicomotor, para o início da aprendizagem formal escolar, uma vez que
crianças com alteração psicomotora são fator de risco para dificuldades de
aprendizagem. O trabalho se constituiu a partir da avaliação psicomotora
de 17 crianças, de ambos os sexos, com idade entre 6 anos e 1 mês e 7 anos
e 2 meses, com média etária de 6 anos e 2 meses, frequentadoras do 1º
ano de uma Escola Municipal de Mairinque – SP. O material proposto para
avaliação do perfil psicomotor é subdividido em três etapas, que avaliam
aspectos relacionados às unidades funcionais. Como resultado, obtivemos
desempenho aquém do esperado em equilíbrio, imitação, reconhecimento e
nomeação das partes do corpo em si e no outro, dissociação de movimentos,
velocidade e precisão motora, melhor desempenho dos sujeitos do sexo
masculino, em relação ao feminino, somente em dissociação de movimentos
e desempenho além do esperado de todos os sujeitos em habilidades
rítmicas. Concluiu-se que, sob o ponto de vista psicomotor, os sujeitos
ainda estão em grupo de risco para o início da aprendizagem da leitura
e da escrita.

UNITERMOS: Desempenho psicomotor. Aprendizagem. Avaliação.

Tais de Lima Ferreira – Fonoaudióloga. Aprimoramento Correspondência


em Fonoaudiologia Aplicada à Neurologia Infantil Tais de Lima Ferreira
– UNICAMP. Mestranda em Ciências Médicas Rua Theodolina Modena Cocca, 85. apto 123 – Vila
– UNICAMP. Pesquisadora do Laboratório de Nery – São Carlos, SP – CEP: 13569-055.
Distúrbios da Aprendizagem e Transtornos da E-mail: ferr.tais@gmail.com
Atenção – DISAPRE – FCM – UNICAMP. Bolsista
CAPES.
Amanda Bulbarelli Martinez – Terapeuta Ocupacional
– Especialização em Neuropsicologia Aplicada à
Neurologia Infantil – UNICAMP.
Sylvia Maria Ciasca – Neuropsicóloga. Professora
Livre Docente em Neurologia Infantil – FCM/
UNICAMP.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

223
Ferreira tl et al.

INTRODUÇÃO ensino, que considere as fases de desenvolvi-


A psicomotricidade está relacionada a aspec- mento neural da criança, maximizando assim
tos psicológicos e cognitivos do movimento e às o aprendizado5.
atividades corporais na relação do organismo Luria6 referiu que o sistema nervoso central
com o meio em que se desenvolve. Na psico- é composto por sistemas funcionais complexos
motricidade, há componentes maturacionais que não se encontram “localizados” em áreas
relacionados com os movimentos e ações que específicas do cérebro, mas ocorre por meio da
se mostram quando a criança entra em contato participação de grupos de estruturas cerebrais,
com pessoas e objetos com os quais se relacio- cada qual contribuindo para a organização des-
na de forma construtiva. E, ao mesmo tempo, é tes sistemas funcionais complexos.
fonte de conhecimento e expressão do que já se Cada uma dessas unidades básicas exibe
tem, como meio de gerar vivências e emoções. uma estrutura hierarquizada, com pelo menos
Assim se inicia a relação homem-vida, ou três zonas corticais construídas uma sobre a ou-
seja, a inserção do ser na vida a partir de seu tra: as áreas primárias, que são áreas de proje-
movimento1. ção, recebem impulsos da periferia ou os enviam
A meta do desenvolvimento psicomotor é o para ela; as áreas secundárias, que são áreas de
controle do próprio corpo até o mesmo ser ca- projeção-associação, aonde as informações que
paz de extrair todas as possibilidades de ação chegam são processadas ou reprogramadas; e
e expressão que sejam possíveis2. O desenvol- as áreas terciárias, de superposição, sendo os
vimento psicomotor progride lentamente, de últimos sistemas dos hemisférios cerebrais a se
acordo com a experiência e oportunidades que desenvolverem responsáveis pelas formas mais
a criança possui em explorar o ambiente no complexas de atividade mental que requerem
qual está inserida, portanto a falta de habilidade a participação de várias áreas corticais, como a
motora pode ser muitas vezes resultado da falta linguagem e a aprendizagem6.
de vivência corporal3. Os elementos básicos da psicomotricidade
A representação mental do movimento, in- são: esquema corporal, lateralidade, orientação
dispensável ao ajustamento com representação espacial, orientação temporal, coordenação
mental, supõe a visualização das atitudes su- global, coordenação fina e óculo-manual. Es-
cessivas, segundo seu desenvolvimento rítmico. tes elementos psicomotores bem organizados
A percepção e a memorização das estruturas atuam de forma integrada e são pré-requisitos
rítmicas são, portanto, um apoio funcional in- essenciais para que a aprendizagem escolar
dispensável4. aconteça de forma fluente e regular1.
A construção de esquemas motores comple- A criança com seis anos de idade ingressa na
xos envolve, portanto, não apenas a disponibi- escola e bruscamente é exposta a uma situação
lidade corporal completa, no plano postural, da nova, a qual deverá se adaptar rapidamente.
localização e da dissociação do movimento, mas Os problemas com os quais ela vai se envolver
também de boa percepção e memorização das implicam, em muitos casos, em reconsideração
estruturas rítmicas4. de hábitos e atitudes anteriores. Esta exigência
A aprendizagem ocorre através da mudança de desempenho é exacerbada pelas compara-
de comportamento viabilizada pela plasticidade ções feitas de uma criança para outra e, este
neural. Considerando que a aprendizagem mo- ambiente competitivo passará, rapidamente,
tora é complexa e envolve praticamente todas a ter significado afetivo, e até mesmo moral. A
as áreas corticais de associação, é necessário situação da criança se torna ainda mais difícil
compreender o funcionamento neurofisiológico pela exigência dos pais que se sentem pesso-
da maturação, para entender as bases teóricas almente implicados, e até traídos, quando seus
necessárias para a estruturação de um plano de filhos não chegam ao nível das outras crianças4.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

224
avaliação PsiComotora de esColares do 1º ano do ensino Fundamental

As grandes causas funcionais nos problemas visão proporciona o modelo gráfico mais regu-
leitura-escrita são déficits cognitivo-linguísticos lar e rápido. A escrita consiste na organização
que podem ser observados nos atrasos ou nos de movimentos coordenados para reproduzir
transtornos de linguagem e nos problemas es- formas e modelos; constitui uma praxia motora.
sencialmente psicomotores4,7. A coordenação visomotora se elabora de modo
Morais8 relatou que crianças com problemas progressivo com a evolução motriz da criança e
de aprendizagem podem apresentar dominân- do aprendizado. Visão e feedback perceptivo-
cia lateral contrariada, cruzada ou indefinida, motor estão estruturados e coordenados para
porém não há relação causa-efeito direta entre produzir comportamento motor adaptado em
os problemas de lateralidade e os problemas de qualquer situação1.
aprendizagem. A leitura é a varredura ordenada feita com
Entretanto, em termos de processo de apren- os olhos sobre o material escrito. Para o desen-
dizagem, as dificuldades que ocorrem em crian- volvimento da leitura e da escrita faz-se ne-
ças com lateralidade cruzada e indefinida, se cessária, além da capacidade de simbolização,
referem ao tipo de grafia (disgrafia); às dificul- verbalização e desenvolvimento intelectual, a
dades de orientação espacial (quando utilizam a criança deve ter capacidade de memorização,
folha de papel) e às posturas inadequadas para acuidade visual, coordenação ocular, atenção
escrever. As dificuldades de orientação espacial dirigida e concentração, mínimo de vocabulário
e as posturas inadequadas, por sua vez, podem e compreensão, noção de lateralidade, orienta-
trazer implicações diretas sobre a produção ção espacial e temporal10.
escrita da criança. Além destes pré-requisitos já citados, Vallet
Assim como a linguagem oral, a escrita é apud Capellini11 referiu que para ler, a criança
essencialmente um modo de expressão e de também precisa ter habilidade para entender
comunicação. Entretanto, a linguagem oral é e interpretar a língua falada no cotidiano;
anterior ao grafismo e ao aprendizado da lei- memória auditiva e ordenação; habilidade no
tura e da escrita e apóia-se numa linguagem processamento das palavras; análise estrutural
expressiva em cujo nível a sucessão sonora e e contextual da língua; síntese lógica e interpre-
a qualidade dos sons emitidos não manifestam tação da língua; desenvolvimento e expansão
déficits patentes. Em outras palavras, antes do do vocabulário e fluência na leitura.
aprendizado da leitura, é preciso estimular a Com base no exposto, este trabalho teve por
criança a utilizar a linguagem oral de forma objetivo realizar a caracterização psicomotora
mais rica e correta possível4. em um grupo de escolares do 1º ano do ensino
Ferreiro9 afirma que a escrita pode ser consi- público fundamental.
derada como uma representação da linguagem
ou como um código de transcrição gráfica das MÉTODO
unidades sonoras. No caso da codificação, tanto O estudo foi realizado após aprovação
os elementos como as relações já estão prede- do Comitê de Ética em Pesquisa (parecer nº
terminados; porém na criação de uma represen- 1180/2009) da Faculdade de Ciências Médicas
tação, nem os elementos nem as relações estão da UNICAMP.
predeterminados. Participaram deste estudo 17 estudantes
A escrita representa uma atividade motriz matriculados no 1º ano do ensino fundamental,
usual que requer a atividade controlada de sendo 10 do gênero masculino e 7 do gênero
músculos e articulações de um membro superior feminino, com faixa etária de 6 anos e 1 mês a
associada à coordenação visomotora. Conside- 7 anos e 2 meses, com média etária de 6 anos e
rando que a coordenação óculo-manual não é 2 meses. Os critérios de inclusão para a partici-
indispensável, a escrita manual guiada pela pação deste estudo foram: assinatura do Termo

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

225
Ferreira tl et al.

de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), meses, média etária de 6 anos e 2 meses e sem
apresentar desenvolvimento neuropsicomotor diferença estatisticamente significante entre os
dentro da normalidade, apresentar acuidade grupos. Em relação à idade, foram avaliados 13
auditiva e visual e ter freqüentado, no mínimo, (76,5%) escolares com 6 anos e 4 (23,5%) com
três anos do ensino infantil. Foram critérios 7 anos. Houve predomínio de escolares do sexo
de exclusão: alteração do desenvolvimento masculino na faixa etária de 6 anos, conforme
neuropsicomotor, alteração sensório-motora, Tabela 2.
apresentar diagnóstico e/ou comorbidade de Entre os sujeitos, a idade média do gênero
outras origens neurológicas ou psiquiátricas masculino foi de 6,20 anos e do gênero feminino
e não ter freqüentado, no mínimo, 3 anos de foi de 6,29 anos (+ 0,49), sem diferenças signifi-
ensino infantil. cativas (p = 0,704), conforme Tabela 3.
O trabalho foi desenvolvido na escola públi-
ca na cidade de Mairinque-SP, que atende alu- Estatística descritiva do instrumento
nos desde o maternal até o 1º ano, nos períodos Na Tabela 4, encontra-se a descrição de
matutino e vespertino. desempenho mínimo, máximo, médio e desvio
Para a realização deste trabalho, os sujei- padrão nos testes citados.
tos foram submetidos à avaliação por meio da No teste de reconhecimento de esquerda e
bateria psicomotora proposta por Mattos & Ka- direita em si e no outro, os sujeitos avaliados de-
barite7, que propõem a análise da tonicidade, monstraram mais facilidade de reconhecimento
equilíbrio, conhecimento do corpo, organização de esquerda e direita em si.
perceptiva e estruturação espacial, lateraliza- Não houve diferença significante estatisti-
ção, praxia global e praxia fina, por meio de camente em nenhum dos testes.
protocolo padronizado. Finalizada a avaliação, A Tabela 5 demonstra que em relação à do-
os professores e pais de crianças que apresen- minância lateral, a maior freqüência foi de uso
taram desempenho aquém do esperado foram de mão, pé e olho direito, com exceção da frequ-
orientados e encaminhados para intervenção. ência referente à dominância manual e ocular.
A bateria de avaliação proposta por Mattos Não houve diferença estatisticamente signi-
e Kabarite7 é subdividida em 3 etapas organi- ficante entre os gêneros na maioria das provas
zadas de acordo com os pressupostos teóricos (Tabela 6), porém apenas o teste de dissociação
das 3 unidades funcionais de Lúria12. A Tabela de movimentos apresentou diferença significa-
1 ilustra a bateria de avaliação psicomotora7 tiva (p=0,024*) entre os gêneros, sendo a média
utilizada neste estudo e a organização proposta de acertos dos meninos de 5,00 pontos e das
pelas autoras de acordo com o modelo funcional meninas 1,14 pontos.
Luriano. Foi realizado o teste qui-quadrado para ve-
Para a análise estatística foi utilizado o rificar a existência de associação entre as variá-
programa SPSS - Statistical Package for Social veis categóricas entre os gêneros. Os resultados
Sciences e adotado nível de significância de indicam que não houve diferenças entre os
5%, ou seja p <0,05. gêneros na dominância manual (qui-quadrado
= 0,580, g.l.= 2, p = 0,748) e dominância ocular
RESULTADOS (qui-quadrado = 5,499, g.l.= 3, p = 0,139). Na
prova de dominância lateral dos pés, a análise
Caracterização da amostra das frequências entre os gêneros também não
Foram avaliados 17 escolares, sendo 10 mostrou diferenças estatisticamente significati-
(58,8%) do sexo masculino e 7 (41,2%) do sexo vas (Teste Exato de Fisher, p > 0,05) (Tabela 7).
feminino do 1º ano do ensino fundamental, A Tabela 8 demonstra que desempenho mé-
com idade entre 6 anos e 1 mês a 7 anos e 2 dio dos sujeitos se encontra aquém do esperado,

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226
avaliação PsiComotora de esColares do 1º ano do ensino Fundamental

Tabela 1 - Descrição da bateria de avaliação motora.

Unidade Funcional Subteste Objetivo

Tonicidade investigação de tônus de fundo

Passividade Avaliação passiva de tônus de


mi e ms

Extensibilidade Avaliar extensibilidade de


mi e ms

sincinesias Avaliar sincinesias axiais e distais


1ª unidade funcional Controle Tônico-Postural Avaliar repercutividade,
instabilidade postural e de ação

Equilibração Avaliar ajustamento postural


antigravitário

Equilíbrio Estático Avaliar equilíbrio estático

Equilíbrio Dinâmico Avaliar equilíbrio corpóreo


durante marcha

Cinestesia Avaliação do conhecimento


corpóreo

imitação de gestos Avaliação do esquema corporal

Conhecimento / nomeação das reconhecer e nomear


partes do corpo determinadas partes do corpo em
sim e no outro

organização perceptiva e estrutu- Avaliar a capacidade de


ração espacial organização espacial

formação de um retângulo Avaliar análise e organização


espacial
representação topográfica
2ª unidade funcional Estruturação rítmica Avaliar a organização temporal

Lateralização Avaliar a dominância lateral

manual Avaliar dominância manual

Pedal Avaliação dominância pedal

ocular Avaliar dominância ocular

reconhecimento direita/ esquerda Avaliar reconhecimento de


lateralidade em si e no outro

Em si Avaliar reconhecimento de
lateralidade em si

No outro Avaliar lateralidade cruzada

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

227
Ferreira tl et al.

Tabela 1 - Descrição da bateria de avaliação motora. (cont.)


Praxia global Avaliar habilidades motoras
globais
saltar para frente Avaliar habilidade motora a
partir do repouso
saltar sem impulso sobre elástico Avaliar habilidade motora de
saltar
saltar num pé só Avaliar habilidade motora de cada
hemicorpo no salto
Coordenação óculo-motora Avaliar a coordenação entre
movimentos manuais e oculares
Coordenação óculo-pedal Avaliar a coordenação entre
movimentos dos pé e oculares
Dissociação de movimentos Avaliar a capacidade de
dissociação de membros durante
movimentos
3ª unidade funcional
Praxia fina

Avaliar motricidade e destreza


Construir torre com 6 cubos
manual
fazer um nó
Confeccionar pulseira com clipes
Diadococinesia Avaliar a execução rápida e
alternada de movimentos
opostos de dedos
Velocidade e precisão dos traços Agilidade e precisão motora
mi: membros inferiores, ms: membros superiores.

Tabela 2 - frequência de idades em relação aos gêneros.


Idade
Gênero 6 anos 7 anos Total
masculino f 8 2 10
% 61,5 50,0 58,8
feminino f 5 2 7
% 38,5 50 41,2
Total f 13 4 17
% 100 100 100
f = frequência; % = Porcentagem.

Tabela 3 - médias de idade entre os gêneros (N=17).


Gênero N M DP
masculino 10 6,20 0,42
feminino 7 6,29 0,49
m = média, DP = Desvio Padrão.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

228
avaliação PsiComotora de esColares do 1º ano do ensino Fundamental

Tabela 4 - Estatística descritiva dos testes na amostra geral (N=17).


Variável Mínimo Máximo M DP
Passividade 1,00 1,00 1,00 -
Extensibilidade 1,00 1,00 1,00 -
Axial - 1,00 0,71 0,36
sincinesias 0,50 1,00 0,94 0,17
instabilidade de ação 1,00 1,00 1,00 -
instabilidade postural - 1,00 0,35 0,49
repercutividade - 1,00 0,94 0,24
Equilíbrio Estático - 1,00 0,35 0,49
Equilíbrio Dinâmico 1,00 1,00 1,00 -
marcha Controlada 0,50 1,00 0,94 0,17
Cinestesia 8,00 18,00 8,59 2,43
imitação 5,00 20,00 13,88 4,31
mostrar outro 19,00 24,00 21,65 1,50
mostrar Próprio Corpo 18,00 23,00 21,00 1,50
Nomear outro 19,00 23,00 20,82 1,19
Nomear Próprio Corpo 19,00 24,00 21,24 1,39
organização Perceptiva 1,00 1,00 1,00 -
formação de um retângulo 1,00 1,00 1,00 -
representação Topográfica 1,00 2,00 1,59 0,51
Estruturação rítmica 3,00 25,00 15,94 6,14
reconhecimento E/D outro - 3,00 3,82 1,07
reconhecimento E/D si - 3,00 2,12 1,17
Praxia Global – salto frente 1,00 1,00 1,00 -
Praxia Global – salto elástico 1,00 1,00 1,00 -
Praxia Global – salto um pé só - 1,00 0,71 0,47
Coord. oculom. – jogar bolas 1,00 5,00 2,71 1,26
Coord. oculom. – agarrar bola - 1,00 0,53 0,51
Coordenação oculopedal - 5,00 3,71 1,16
Dissociação de movimentos - 14,00 3,41 3,59
Construir Torre 6,00 6,00 6,00 -
fazer Nó - 1,00 0,88 0,33
Confeccionar pulseira clips 59’’ 372’’ 119,88’’ 82,52’’
Diadococinesia 1,00 2,00 1,53 0,51
Velocidade e precisão 15,00 66,00 34,29 15,14
m = média, DP = Desvio Padrão.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

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Ferreira tl et al.

Tabela 5 - Estatística descritiva da dominância lateral na amostra total (N=17).


Dominância Lateral Lateralidade F %
D 4 23,5
D 11 64,7
manual
E - -
E 2 11,8
d 7 41,2
D 7 41,2
ocular
e 1 5,9
E 2 11,8
D 15 88,2
Pés
E 2 11,8
Dominância manual: d = criança utiliza a mão direita entre sete e nove vezes das dez provas; D = a criança utiliza a mão
direita nas dez provas; e = a criança utiliza a mão esquerda entre sete e nove vezes das dez provas; E = a criança utiliza a mão
esquerda nas dez provas. Dominância ocular: d = criança utiliza olho direito em duas das três provas; D = a criança utiliza
olho direito nas três provas; e = a criança utiliza olho esquerdo em duas das três provas; E = a criança utiliza o olho esquerdo
nas três provas. Dominância pés: D = a criança utiliza o pé direito nas duas provas; E = a criança utiliza o pé esquerdo nas
duas provas.

segundo referência dos autores nas provas de Provas de Conhecimento e nomeação em si e


equilíbrio dinâmico, imitação, reconhecimento no outro evidenciam a pouca habilidade em es-
em si/ no outro, nomeação em si / no outro e quema corporal, uma vez que a noção de corpo
dissociação de movimentos. Houve desempenho deve ser observada e é da responsabilidade da
acima do esperado para a faixa etária estudada segunda unidade funcional. A imitação de gesto
em estruturação rítmica. proposto supõe habilidade em esquema corpo-
Em relação ao equilíbrio, observou-se que os ral, lateralidade, orientação espacial, temporal
sujeitos não apresentaram o desempenho ade- e equilíbrio13. Nas regiões cerebrais envolvidas
quado, como proposto pelas autoras7 do protocolo nesta 2ª unidade funcional, ocorre a integração
de avaliação. A observação do equilíbrio é fator de experiências multissensoriais que se relacio-
interessante, pois envolve ajustamentos posturais nam a funções complexas, como a linguagem,
antigravitários que dão suporte a qualquer ato esquema corporal, espaço, espaço-tempo, cál-
motor, sendo resultante da ação coordenada e culo, entre outras.
simultânea da propriocepção, tonicidade e es- Os sujeitos apresentaram desempenho
tereoceptividade, sendo o ponto de partida para acima do esperado em habilidades rítmicas,
ações intencionais e coordenadas. corroborando assim com os estudos de Mattos
e Kabarite7, Fonseca14, Rosa Neto¹, Oliveira10,
DISCUSSÃO estes concordam em seus estudos que a criança
Quando a criança apresenta dificuldades em para aprender a ler, precisa dominar o ritmo, ter
relação ao equilíbrio, sente-se insegura para pra- uma memorização auditiva, diferenciar sons,
ticar determinadas atividades, apresentar-se-á reconhecer frequências e durações dos sons
mais tensa e, consequentemente fará um maior das palavras. Por meio do ritmo há uma maior
uso das mãos. flexibilidade nos movimentos, maior poder de
O desempenho inferior ao esperado nas atenção e concentração. O ritmo está ligado às

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

230
avaliação PsiComotora de esColares do 1º ano do ensino Fundamental

Tabela 6 - Estatística descritiva dos testes nos gêneros.

Variável Gênero M DP p- valor


masculino 1,00 -
a
Passividade
feminino 1,00 -
masculino 1,00 -
a
Extensibilidade
feminino 1,00 -
masculino 0,65 0,41
Axial 0,457
feminino 0,79 0,27
masculino 0,90 0,21
sincinesias 0,233
feminino 1,00 -
masculino 1,00 -
a
instabilidade de ação
feminino 1,00 -
instabilidade pos- masculino 0,40 0,52
0,653
tural feminino 0,29 0,49
masculino 0,90 0,32
repercutividade 0,420
feminino 1,00 -
masculino 0,50 0,53
Equilíbrio Estático 0,146
feminino 0,14 0,38
masculino 1,00 -
a
Equilíbrio Dinâmico
feminino 1,00 -
masculino 0,95 0,16
marcha Controlada 0,803
feminino 0,93 0,19

masculino 8,00 -
Cinestesia 0,244
feminino 9,43 3,78
masculino 13,40 4,20
imitação 0,598
feminino 14,57 4,72
masculino 21,50 1,58
mostrar outro 0,644
feminino 21,86 1,46

mostrar Próprio masculino 20,60 1,65


0,198
Corpo feminino 21,57 1,13
masculino 20,90 1,20
Nomear outro 0,762
feminino 20,71 1,25

Nomear Próprio masculino 21,30 1,70


0,827
Corpo feminino 21,14 0,90

organização Percep- masculino 1,00 -


ª
tiva feminino 1,00 -

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

231
Ferreira tl et al.

Tabela 6 - Estatística descritiva dos testes nos gêneros. (cont)

formação de um masculino 1,00 -


ª
retângulo feminino 1,00 -
representação Topo- masculino 1,50 0,53
0,409
gráfica feminino 1,71 0,49
Estruturação rít- masculino 16,00 7,73
0,964
mica feminino 15,86 3,29
reconhecimento E/D masculino 1,80 1,23
0,918
outro feminino 1,86 0,90
reconhecimento masculino 1,70 1,34
0,076
E/D si feminino 2,71 0,49
Praxia Global – salto masculino 1,00 -
ª
frente feminino 1,00 -
Praxia Global – salto masculino 1,00 -
ª
com elástico feminino 1,00 -
Praxia Global – salto masculino 0,80 0,42
0,339
em um pé só feminino 0,57 0,53
Coord. Óculo-m. – masculino 2,80 1,48
0,726
jogar bolas feminino 2,57 0,98
Coord. Óculo-m. – masculino 0,40 0,52
0,226
agarrar bola feminino 0,71 0,49
masculino 3,60 1,43
Coord. Óculo-pedal 0,667
feminino 3,86 0,69
Dissociação de mo- masculino 5,00 3,92
0,024*
vimentos feminino 1,14 1,07
masculino 6,00 -
Construir Torre ª
feminino 6,00 -
masculino 0,80 0,42
fazer Nó 0,233
feminino 1,00 -
Confeccionar pulsei- masculino 116,10 62,71
0,830
ra clips feminino 125,29 110,47
masculino 1,50 0,53
Diadococinesia 0,788
feminino 1,57 0,53
masculino 37,50 17,85
Velocidade e precisão 0,312
feminino 29,71 9,55
Legenda: ª p-valor não foi calculado, pois o desvio padrão em ambos os grupos é 0; m = média, DP = Desvio Padrão.

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232
avaliação PsiComotora de esColares do 1º ano do ensino Fundamental

Tabela 7 - Estatística descritiva dos testes de dominância lateral nos gêneros.


Dominância
Gênero D d e E
Lateral
masculino f 6 3 1
% 54,5% 75% 50%
manual
feminino f 5 1 1
% 45,5% 25% 50%
masculino f 2 6 1 1
% 28,6% 85,7% 100% 50%
ocular
feminino f 5 1 1
% 71,4% 14,3% 50%
masculino f 8 2
% 53,3% 100%
Pés
feminino f 7
% 46,7%
ª p-valor não foi calculado, pois o desvio padrão em ambos os grupos é 0; m = média, DP = Desvio Padrão.

Tabela 8 - Comparação entre o desempenho obtido e o esperado*.


Provas Desempenho médio obtido Desempenho esperado*
Equilíbrio Estático 35” 60”
Equilíbrio Dinâmico/ marcha controlada 0,94 m 2,00 m
imitação 13,88 pontos 19 pontos
reconhecimento em si 21 pontos 25 pontos
reconhecimento no outro 21,65 pontos 25 pontos
Nomeação em si 21,24 pontos 24 pontos
Nomeação no outro 20,82 pontos 24 pontos
Dissociação de movimentos 3,41 pontos 11 pontos
Estruturação rítmica 15,94 pontos 6 pontos
Legenda: * segundo autores, ’’- segundos, m- metros.

noções de tempo e espaço, e a combinação dos plexa dos sistemas piramidais, extrapiramidais
dois dá origem ao movimento. e cerebelosos, coordenados em função de um
Nas provas de Praxia Global, o grupo estuda- plano estruturado das aquisições aprendidas7.
do apresentou desempenho inferior ao esperado A diferença estatisticamente significante
no subteste de dissociação de movimentos, que é entre os gêneros em dissociação de movimentos,
a capacidade de individualizar vários segmentos com melhor desempenho dos sujeitos do sexo
corporais em um gesto ou gestos sequenciais e masculino em detrimento do outro gênero, não
exige a capacidade de planificação e generali- apresenta referências na literatura pesquisada.
zação motora, demandando uma interação com- Em relação à velocidade e precisão motora,

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 223-35

233
Ferreira tl et al.

os sujeitos apresentaram desempenho aquém mento e nomeação das partes do corpo em si e no


do esperado, exibindo resultado não compatível outro, dissociação de movimentos, velocidade e
com o proposto pelo teste original. precisão motora e desempenho além do esperado
Ressalta-se que, se o número de sujeitos ava- em habilidades rítmicas.
liados fosse aumentado, provavelmente encon- Os sujeitos do sexo masculino apresenta-
traríamos maiores diferenças estatisticamente ram desempenho estatisticamente significante
significante entre os sujeitos, mesmo com o N superior somente na prova de dissociação de
deste estudo sendo igual a 17. movimentos.
Finalmente, sugere-se maior ênfase na re-
CONCLUSÃO alização do trabalho psicomotor de qualidade
Os sujeitos apresentaram desempenho nas escolas, a fim de maximizar o potencial de
aquém do esperado nas seguintes atividades cada criança e prevenir futuras dificuldades de
psicomotoras: equilíbrio, imitação, reconheci- aprendizagem relacionadas a este aspecto.

SUMMARY
Psychomotor evaluation with students of 1st grade

In childhood, the role of psychomotricity is of fundamental importance


for the development and learning of children and involves: emotional,
cognitive and motor aspects. This work addresses the topic of psychomotor
development and its relationship to learning, with the objective to verify
if in the 1st year of elementary school the child is already able, under the
psychomotor view, to begin with the formal school, since children with
psychomotor changes are a risk factor for learning disabilities. The work
is based on the psychomotor evaluation of 17 children of both genders,
in an age range of 6 years and 1 month and 7 years and 2 months with a
mean age of 6 years and 2 months, attending the 1st year of a School Hall,
located in an inland city of São Paulo state. To evaluate the psychomotor
profile this work was divided into three steps that assessed aspects related
to the functional units. As a result, we got an underperform for equilibrium,
imitation, recognition and naming of own and others body parts, decoupling
of movements, speed and motor accuracy. But better performance of
male subjects in relation to female, only in decoupling of movements and
performance beyond expectations of all those involved in rhythmic skills.
Conclusion was that under the psychomotor point of view the children
were not yet ready to start with the reading and writing.

KEY WORDS: Psychomotor performance. Learning. Evaluation.

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234
avaliação PsiComotora de esColares do 1º ano do ensino Fundamental

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penho. Coleção Resumido – Perfil Psicomo- cas; 1988.

Trabalho realizado na Universidade de Campinas Artigo recebido: 3/6/2010


(UNICAMP) – Faculdade de Ciências Médicas Aprovado: 18/8/2010
– Departamento de Neurologia, Campinas, SP.
Trabalho de conclusão do curso de “Neuropsicologia
Aplicada à Neurologia Infantil – FCM/UNICAMP.
Apresentado ao 18º Congresso de Fonoaudiologia,
em Curitiba, PR, em setembro de 2010.

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235
ArTiGo
Pedro-silva noriGiNAL
& simili mFC

Jogos regrados e eduCação: ConCePções de


doCentes do ensino Fundamental

Nelson Pedro-silva; manoela de fátima Cabral simili

RESUMO – Os jogos regrados têm sido alvo de pesquisas, principalmente


no tocante a sua influência no processo de ensino-aprendizagem. Em
razão disso, realizamos pesquisa cujo objetivo, dentre outros, foi analisar
a concepção docente sobre as contribuições do emprego dos jogos
no processo educativo e no desenvolvimento psicológico. Para tanto,
empregamos a teoria piagetiana acerca das relações entre a psicologia
genética, os processos de ensino-aprendizagem e os jogos regrados. Os
sujeitos foram docentes, escolhidos aleatoriamente, que lecionavam no
Ensino Fundamental, de escolas municipais do interior de São Paulo. Para
a coleta, utilizamos questionário e entrevista semi-estruturada. Quanto
aos resultados, a) os professores mencionam os jogos regra dos como
importante instrumento facilitador do processo de ensino-aprendizagem;
b) não os relacionam ao desenvolvimento psicológico; e c) apesar de os
considerarem positivos, a maioria deles não os emprega em aula, embora
estudos demonstrem o seu valor para a concretização do processo educativo
e do desenvolvimento psicológico.

UNITERMOS: Educação. Jogos e Brinquedos. Docentes. Psicologia


educacional.

Nelson Pedro-Silva - Curso de Psicologia, UNESP – Correspondência


Campus de Assis. Nelson Pedro-Silva
Manoela de Fátima Cabral Simili - Mestre em Rua Padre Gusmões, 1.667 – Tênis Clube - Assis - SP
Psicologia – UNESP – Campus de Assis. CEP:19806-083
E-mail: nelsonp1@terra.com.br

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 236-49

236
Jogos regrados e eduCação

INTRODUÇÃO transformar problemas político-pedagógicos


Várias pesquisas sobre o papel dos jogos têm em orgânicos ou decorrentes de diferenças de
sido realizadas, mormente no tocante ao proces- classes sociais6,7.
so de ensino-aprendizagem1-5. O que se nota, Não se pode deixar de verificar, porém, que
a partir delas, é o imperativo de se analisar a várias políticas educacionais já foram implan-
relação que os educadores estabelecem com os tadas, com o fim de melhorar o rendimento
jogos, pois, conforme a perspectiva piagetiana, escolar, como a do ciclo básico em jornada
eles são recursos que podem auxiliar o sujeito única (1983/1984), a psicogênese de Emília Fer-
na construção de conhecimentos; concepção reiro (rotulada de “pedagogia construtivista”,
educativa cujo cerne é a premissa de que as 1984/1985) o sistema de progressão continuada
pessoas não aprendem pela mera interioriza- (1997), a municipalização do Ensino Funda-
ção de informações, mas a partir das situações mental (1996), a política de inclusão (2003) e,
consideradas problemáticas para elas. mais recentemente, as salas multifuncionais e o
Observamos, porém, que na atuação profis- uso de dois docentes em cada sala de aula, no
sional o docente amiúde só se preocupa com a Estado de São Paulo.
transmissão dos conteúdos escolares, deixando Ressaltamos, também, os impactos decor-
em segundo plano as estratégias para a sua rentes da implantação do ECA8. O seu cumpri-
veiculação, como os jogos. mento, mesmo que parcial, levou ao aumento
Diante disso, começamos a nos indagar sobre de matrículas escolares e à efetiva frequência
as concepções que docentes do Ensino Funda- de crianças e de jovens, sobretudo no Ensino
mental têm acerca dos jogos. Fundamental, pois o Estado passou a ter a obri-
Outra razão que nos levou a executar o gatoriedade de assegurar ensino obrigatório e
presente estudo decorreu de dados acerca do gratuito a todos os alunos em idade escolar. E
fracasso escolar no Brasil. os pais, por sua vez, passaram a ter o dever de
Segundo pesquisa coordenada pelo MEC, matricular seus filhos. Dessa forma, a criança
em 2008, cerca de 40% dos ingressantes não passou a ser assistida – pelo menos formalmente
chegaram a concluir a 8ª série do Ensino Fun- – por todas as esferas referentes à sua formação
damental. Isso nos chamou a atenção, pois os básica (família, escola e Estado), com vistas a se
dados de 2006 mostraram que 97% das crianças tornarem capazes, quando adultas, de cumpri-
em idade escolar estavam frequentando a es- rem seus deveres e de usufruírem seus direitos.
cola. Somam-se a isso, também outros estudos: Apesar dessas mudanças, é fato que, na prá-
em 2008, cerca de 50% dos alunos do Ensino tica, os resultados ficaram aquém do esperado.
Fundamental eram analfabetos funcionais e 1,7 Por exemplo, vários docentes passaram a se
milhões de jovens brasileiros entre 15 e 17 anos queixar que se tornaram reféns, pois – a partir
estavam fora da escola, para 20% dos alunos, do ECA – o aluno passou a mandar na Escola.
por razões de ordem econômica, enquanto que, Como afirma La Taille9, passou-se a viver em
para 40% deles, por desinteresse e por terem uma sociedade puericêntrica, ou seja, filhos e
a sensação de não aprenderem na escola nada alunos passaram a ser vistos como possuidores
de útil para suas vidas. de direitos, e as demais pessoas, apenas de
As razões explicativas desse quadro são vá- deveres.
rias. Alguns as atribuem à baixa qualidade do Outro efeito inesperado foi a transformação
ensino, que, por sua vez, é determinada pela da progressão continuada em promoção auto-
falta de estrutura escolar (por exemplo, pré- mática, levando frequentemente à diplomação
dios em estado precário), método pedagógico do analfabetismo pleno e do funcional.
inadequado, baixa remuneração dos profes- Concluímos, então, que os resultados das
sores e pela política educacional que tende a mudanças implantadas ficaram aquém do espe-

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 236-49

237
Pedro-silva n & simili mFC

rado. Porém, ocorreu o aumento de matrículas Tal constatação decorreu de revisão de li-
para quase 97% em 2003, a permanência de teratura realizada por nós, durante o período
crianças das classes menos favorecidas na es- de 2005 a 2008, nas bases de dados eletrônicas
cola e o tratamento do educando como cidadão. DEDALUS, Athena e Acervus, por meio das
Outro aspecto referiu-se à formação de tais palavras-chaves ”concepção do professor”,
alunos, pois se nota mudança considerável nos “jogos educativos”, “psicologia genética” e
índices de reprovação e evasão, se os comparar- “desenvolvimento psicológico”.
mos com os da década de 1970. Em oito anos, Pereira10 e Lombardi11, por exemplo, con-
a porcentagem de alunos que frequentavam as cluíram que os jogos educativos constituem-se
aulas passou de 88% para 97%, inclusão essa em recurso pedagógico na construção da lecto-
que ocorreu principalmente entre os sujeitos das escrita. Costa12, Amate13 e Baptista14 verificaram
camadas populares. Em se tratando do Ensino que os jogos eletrônicos a) são considerados
Médio, no período de 1996 a 2002, chegou-se a lúdicos pelas crianças, b) influenciam nas ativi-
três milhões de matrículas. No Ensino Superior, dades desempenhadas habitualmente por elas,
em 2009, havia quatro milhões de matriculados, c) auxiliam no desenvolvimento de habilidades,
sendo que, em 1960, era de 95 mil. estratégias e atitudes cooperativas e d) podem
Assim, se quase 50% das crianças fracassa-
ser empregados para avaliar crianças que apre-
vam ou eram expulsas anualmente na década
sentam dificuldades de aprendizagem. Montei-
de 1960 e 1970, verificamos que hoje esse fenô-
ro15 e Medeiros16 confirmaram que as atividades
meno não ultrapassa um terço desse percentual.
lúdicas possibilitam o desenvolvimento global
Esses dados, por si só, justificam o esforço de
dos alunos. Marquezini3, Afonso17 e Blanco18
toda a sociedade, sobretudo do Estado e do
concluíram que as docentes do Ensino Infantil
Ministério Público para manter as crianças na
avaliaram o brincar como necessário ao desen-
escola.
volvimento psicológico, apesar de não terem
É certo que nem todos os estudantes apren-
derão na íntegra os conteúdos dos currículos ciência sobre a psicologia infantil.
ideais, ingressando na 5ª série do Ensino Fun- Em síntese, tais estudos nos levaram a in-
damental alfabetizados. Contudo, não é prer- ferir que há uma lacuna a preencher sobre a
rogativa desse nível de ensino a presença de concepção de professores que ministram aulas
analfabetos funcionais. Segundo levantamento no Ensino Fundamental acerca do uso de jogos.
feito de maneira assistemática, encontramos
tais alunos também em outros níveis de ensino OBJETIVOS
e vêm aumentando rápida e substancialmente Considerando tais aspectos, foi nosso objeti-
de ano para ano. vo principal analisar a concepção do docente so-
Pois bem, tal cenário só fez nossas indaga- bre o emprego dos jogos de regras como recurso
ções se tornarem mais incisivas, já que com para o processo de ensino-aprendizagem e de
todas as mudanças no plano macro educativo, desenvolvimento psicológico do corpo discente
ainda o analfabetismo se fazia presente nas es- do Ensino Fundamental.
colas. Diante disso, passamos a nos perguntar: Secundariamente, visamos: a) analisar a
será que eles estão fazendo uso de estratégias importância dada pelo docente para o emprego
diferentes das tradicionais, como jogos de re- dos jogos de regras na escola; b) contribuir para
gras, a fim de facilitarem e “motivarem” os alu- a discussão acerca do seu uso como instrumento
nos para o processo de ensino-aprendizagem? auxiliar do processo educativo e de superação
Infelizmente, estudos científicos demonstram do analfabetismo funcional; e c) investigar a
que os docentes pouco empregam os jogos de eficácia dos referidos jogos como instrumento
regras e de construção, como recurso pedagó- facilitador à ocorrência do desenvolvimento
gico e de desenvolvimento psicológico. psicológico.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 236-49

238
Jogos regrados e eduCação

REFERENCIAL TEÓRICO e motora. Com tal intenção, eles acabam por


Empregamos, para a análise dos dados, colocar em ação uma série de condutas que não
a psicologia genética de Jean Piaget. Cabe chegam a modificar as estruturas, prevalecendo
sublinhar, que se torna impossível abordar a a assimilação funcional.
obra de Jean Piaget (1896-1980) ou reduzi-la Quanto aos simbólicos, Piaget os definiu por
sem perder toda a sua complexidade, além de seu valor analógico, pois se trata não só de “re-
nos julgarmos incompetentes para realizar tal petir no vazio”, mas de “reproduzir” as ações
tarefa. Por essa razão, no presente tópico, te- cotidianas julgadas interessantes pelo sujeito.
cemos considerações sobre as relações entre a Agora, o conteúdo passa a ter primazia. Logo,
psicologia genética e os jogos. ao brincar com a boneca, por exemplo, o sujeito
Assim, além de algumas obras de Piaget19-22, tende a repetir o que a mãe fez com ele tantas
utilizamos, as de Macedo4,23, Macedo et al.24,25, vezes, bem como compreender temas da reali-
La Taille9,26 e Castorina27, em virtude de os re- dade julgados significativos por ele.
feridos autores: a) abordarem o uso dos jogos A terceira modalidade são os jogos de regras.
como meio que pode auxiliar os sujeitos a se Piaget19 verificou que os sujeitos, a depender do
desenvolverem cognitiva, afetiva e socialmente; seu nível de desenvolvimento, relacionam-se
b) buscarem fazer a articulação da psicologia com as regras de três maneiras diversas.
genética com o campo pedagógico e o psico- A primeira (anomia) caracteriza-se pela
pedagógico. ausência da moral, isto é, os sujeitos que estão
Informamos que Piaget não produziu uma nessa condição “não seguem regras coletivas”,
Pedagogia. Sua atenção estava voltada à preocupando-se em satisfazer interesses moto-
construção de uma epistemologia científica. res e simbólicos. Apesar disso, ela é essencial,
Apesar disso, é certo que várias de suas ideias pois desenvolve a noção de regularidade; as-
foram apropriadas pela Educação, muitas delas pecto vital para o desenvolvimento posterior,
equivocadamente, como a utilização do método pois a regra pressupõe exatamente a repetição.
clínico como meio para a montagem de salas Na heteronomia (segunda direção) o sujeito
de aula homogêneas. Por ele ser um utensílio já apresenta interesse em participar de ativida-
de avaliação do nível cognitivo, autores, como des coletivas e regradas. Porém, sua participa-
Carraher28, concordam acerca de sua perti- ção se dá de modo egocêntrico, fazendo com
nência para a compreensão do funcionamento que ele brinque mais ao lado de outros sujeitos,
cognitivo e, em decorrência, como fator auxi- do que contra ou com eles. Elucidamos que es-
liar na compreensão, sobremaneira dos alunos ses sujeitos concebem as regras como imutáveis,
considerados portadores de dificuldades de de origem análoga às leis físicas, apresentando
aprendizagem, além de facilitador da ação edu- respeito rígido no plano do discurso e desres-
cativa. Afinal, ao se compreender a lógica de peito no prático.
funcionamento mental do aprendiz, se terá – em Na autonomia, o sujeito tende a apresentar
tese – maiores condições de propiciar práticas características opostas às da heteronomia. Isso
educativas consequentes. ocorre porque, agora, os jogadores respeitam
Feito esse preâmbulo, apresentamos breve e cumprem as regras, não as vendo mais como
descrição acerca de como os jogos foram con- sagradas e imutáveis. Além disso, o respeito é
cebidos por Piaget19,20, que os estruturou em produzido por meio de acordos entre os joga-
três modalidades: de exercícios, simbólicos e dores, isto é, eles se vêem como legisladores.
de regras. Há ainda os jogos de construção. Eles guar-
Os jogos de exercícios, típicos do período dam todos os caracteres dos jogos de regras.
sensório-motor, caracterizam-se pela busca, Contudo, nestes os sujeitos estão interessados
por parte do sujeito, de satisfação perceptual com a elaboração de certo objeto: “[...] a forma

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Pedro-silva n & simili mFC

se subordina ao conteúdo, ou seja, a ênfase Em 1958, foram feitas novas indagações:


é dada ao processo, no qual as relações ou “Se ficou provado que até as aprendizagens
estruturas são meios para a realização do con- mais elementares pressupunham uma orga-
teúdo”24. nização ativa dos dados [como a do labirinto],
É evidente que o tipo de relação com os jo- esta organização lógico-matemática poderia ser
gos de regras é dependente do tipo de relação aprendida no sentido tradicional?”27.
interindividual estabelecida, que pode ser de As experiências realizadas, com conserva-
coação ou de cooperação. ção de peso, demonstraram que os sujeitos não
As relações de coação são assimétricas, pois desenvolviam a noção de transitividade, apesar
um dos pólos impõe sua forma de pensar e suas de ter ocorrido algum grau de desenvolvimento,
verdades. Isso ocorre porque as regras já são pois a aprendizagem fortalecia as estruturas já
dadas a priori. Vê-se, então, que nesse tipo de existentes.
relação não há a reciprocidade. Por causa disso, Em meados da década de 1960, uma nova
a coação acaba por reforçar o egocentrismo, questão foi colocada: é possível promover o
tendo como resultado o fato de: a) os sujeitos aprendizado de estruturas cognitivas, incidindo-
submetidos a esse tipo de relação acreditarem, se diretamente sobre o desenvolvimento do
mas não saberem a razão; b) apresentarem sujeito?
respeito unilateral; e c) pautarem pelo realis- As experiências realizadas consistiam em
mo moral, derivando, desse tipo de relação, a “levar” o sujeito a entrar em conflito cognitivo
heteronomia moral. na resolução dos problemas propostos. Os resul-
Quanto às relações de cooperação, são simé-
tados foram promissores, pois cerca de 70% dos
tricas; portanto, regidas pela reciprocidade. Por
sujeitos se desenvolveram, passando de um esta-
serem constituintes, as regras são compreendi-
do de não conservação para a conservação total
das como produto de mútuos acordos.
ou, no limite, caminhavam para um de transição.
Concluímos, dessa forma, que somente com
Vê-se, então, que é possível realizar um tipo
a cooperação o desenvolvimento intelectual e
de aprendizagem, por meio de jogos regrados,
moral podem ocorrer, pois ele exige que os su-
que incida diretamente sobre o desenvolvimen-
jeitos se descentrem para compreender o ponto
to. A propósito: para Macedo4, os jogos podem
de vista alheio, levando ao respeito mútuo e à
a) auxiliar na construção da aprendizagem
autonomia.
significativa; b) estimular a construção de novos
Claro está que as relações de coação são vi-
conhecimentos; e c) “despertar” o desenvolvi-
tais para que o sujeito possa ser submetido às de
cooperação. Sem elas, o sujeito ficaria privado mento de habilidades operatórias.
de conteúdos que pudessem levá-los a legitimar,
a descartar e/ou a construir novas regras. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Quando à aprendizagem, por volta do final
de 1950, a Escola de Genebra realizou estudos Considerações sobre a pesquisa qualitativa
com o fim de responder aos adeptos da filosofia A partir da década de 1970, em países da
empirista, que concebiam o sujeito como um América Latina, aumentou o interesse da Peda-
ser passivo e o processo de aquisição de co- gogia e das ciências afins pela pesquisa qualita-
nhecimento como produto da relação estímulo- tiva. Tal fato decorreu por causa do tipo de dado
resposta. Pois bem, os piagetianos opuseram-se que essa afeição de pesquisa podia oferecer,
a esse esquema. Eles verificaram que não há trazendo novas contribuições à compreensão
leitura direta da experiência, pois entre o es- do fenômeno educativo.
tímulo e a resposta coloca-se um conjunto de Trivinõs 29 salienta que os pressupostos
estruturas de assimilação. fenomenológicos-qualitativos ressaltam a ideia

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240
Jogos regrados e eduCação

de que o “comportamento humano, muitas ve- dadas por seus filhos. Sua atenção, ao contrário,
zes, tem mais significados do que os fatos pelos estava voltada para a análise da forma como
quais ele se manifesta”. Acrescente-se que a resolviam situações julgadas problemáticas por
designação “qualitativa” é compreendida como eles próprios.
sinônimo de “etnográfico” e decorre da ciência Outra crítica refere-se ao fato de eles conside-
antropológica, pois “muitas informações sobre rarem a linguagem, entre outros aspectos, como
a vida dos povos não podem ser quantificadas e objeto de estudo.
precisavam ser interpretadas de forma mais am- A esse propósito, o próprio Piaget19 não é par-
pla que circunscrita ao simples dado objetivo”29. tidário de uma possível relação visceral entre a
Ludke e André30 salientam, porém, a existên- fala e a ação, a ponto de se poder afirmar que um
cia de inúmeras dúvidas que ainda caracteriza a docente que se diz fazer uso dos jogos, mesmo
cientificidade da pesquisa qualitativa. Por exem- considerando-os eficientes, o fará realmente.
plo, “não há possibilidade de se estabelecer uma Assim, acreditamos que a fala é reveladora de um
separação nítida e asséptica entre o pesquisador raciocínio que tende a se fazer presente quando
e o que ele estuda e também os resultados do uma ação é executada, a ponto de influenciar,
que ele estuda”. mas não de determinar as condutas abertas.
Para Minayo31, a pesquisa qualitativa diz res- Sobre a preparação do pesquisador, para
peito a situações particulares: “ela trabalha com Triviños29, ela está em perfeita consonância com
o universo de significados, motivos, aspirações, a maneira defendida por Piaget e pode ser resu-
crenças, valores e atitudes, o que corresponde mida da seguinte forma:
a um espaço mais profundo das relações, dos “[...] não se pode iniciar um estudo de uma
processos e dos fenômenos que não podem ser situação sem bases refletidas em relação à te-
reduzidos à operacionalização de variáveis”. oria e ao contexto. Os inquéritos precisam ser
Dessa maneira, tal tipo de pesquisa busca pensados com algumas perguntas fundamentais
explicar os motivos que levam os sujeitos a re- e a atitude vigilante do pesquisador durante o
alizarem determinado ato ou a terem certa opi- encontro, conservando a clareza, a simplicidade
nião, sem se preocuparem com a quantidade e e a concisão que permitam ser compreendida
tampouco com a colocação à prova dos fatos. “A sem explicações complexas.”
abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo Tendo como parâmetro tais advertências,
dos significados das ações e das relações huma- estruturamos o nosso roteiro de entrevista.
nas, um lado não perceptível e não captável em
equações, medidas e estatísticas”31. Informantes1
Embora Piaget não tenha feito considerações Os sujeitos foram docentes que lecionam no
a esse respeito, várias de suas pesquisas, como Ensino Fundamental do Ciclo I (antiga 1ª a 3ª
as compelidas em La formation du sýmbole chez série) de Escolas Municipais localizadas numa
l’enfant20, demonstraram que ele empregou esta cidade da Região Sudoeste de São Paulo, com
metodologia. idade média de 40 anos, a maioria do sexo fe-
Em razão disso, o método clínico-crítico de minino, casados, com dois filhos, concursados,
Piaget32, ao analisar a maneira como os sujeitos com mais de 10 anos de exercício no Magistério,
raciocinam, pode e deve ser considerado como de com carga de trabalho de 30 horas semanais,
natureza qualitativa, pois ele não se preocupou formados em Pedagogia e com especialização
em medir a quantidade de respostas corretas em Matemática ou Psicopedagogia.

1
o presente estudo, que aqui apresentamos breve relato, obedeceu aos critérios da realização de pesquisa com seres humanos,
conforme parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da faculdade de Ciências e Letras da unesp – Campus de Assis, Processo nº
1381/2008, registro no CEP nº 025/2008.

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Pedro-silva n & simili mFC

Instrumentos postos pelo estudo e não houve discrepância


Empregamos dois instrumentos de coleta de significativa entre as respostas e justificativas
informações. oferecidas pelos docentes de ambas as cidades.
O primeiro foi um questionário, composto de
questões fechadas, sobre dados relacionados à Procedimento geral para coleta das infor-
identificação dos sujeitos (idade, sexo, estado mações
civil, dados relacionados aos filhos, atividade Inicialmente, entramos em contato com a
profissional, formação escolar, nível de ensino direção das duas escolas, com o fim de obter
em que eles estavam ministrando aulas e tempo autorização para a realização do estudo. Tendo
de exercício no magistério). obtido a permissão, ato contínuo, entramos em
O uso do questionário deu-se em razão do contato com os professores no horário de estudo
número expressivo de docentes nas duas escolas coletivo. Nessa oportunidade, fizemos uma su-
de Ensino Fundamental (cerca de 100 docentes). mária apresentação do Projeto.
Além disso, o empregamos com a intenção de Em seguida, indagamos se os docentes con-
selecionar sujeitos que pudessem colaborar com cordariam em responder ao questionário; tendo
a segunda parte do estudo (a entrevista). a maioria deles respondido afirmativamente. Os
O outro instrumento foi um roteiro de entre- que não se prontificaram a colaborar argumenta-
vista semi-estruturado, composto de questões ram que estavam cansados de preencher papéis.
sobre: (1) a concepção dos docentes acerca dos Diante dessa resposta, novamente explana-
jogos de regras; (2) o seu emprego em sala de mos os objetivos da pesquisa e dissemos que
aula; (3) a importância dos jogos para o desen- o preenchimento do referido instrumento não
volvimento psicológico dos alunos; (4) a relação acarretaria problema algum. Ele teria apenas
do emprego dos jogos em sala e sua relação o fim de selecionar os sujeitos que pudessem
com o brincar do professor na infância e com colaborar com a segunda parte do inquérito (a
os seus filhos. entrevista). Diante desta exposição, pratica-
Adotamos esse modelo de entrevista por ele mente todos os docentes que tinham se negado
possibilitar aos sujeitos que: a) respondessem as a participar da primeira vez se prontificaram a
nossas indagações; b) apresentassem respostas respondê-lo.
não previstas por nós; e c) se sentissem mais Em seguida, 67 professores assinaram o
espontâneos durante o inquérito. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Informamos que, para a montagem do e responderam ao questionário. A duração foi
instrumento, fizemos estudo piloto. Neste, de cerca de 30 minutos. Quanto aos demais,
entrevistamos 11 docentes, sendo seis do En- mesmo depois de reiterados pedidos, não
sino Fundamental da cidade onde realizamos foram respondidos.
a pesquisa e cinco de outro município, ambos Tendo, então, os inquéritos em mãos, veri-
localizados na região sudoeste de São Paulo. A ficamos quais deles eram representativos do
intenção foi a de, além de servir como meio para grupo de docentes pretendidos. Constatamos
a montagem do instrumento, verificar se o fato que 32 questionários preenchiam os critérios
de, na época, estarmos exercendo a função de estabelecidos por nós.
psicopedagogos em um dos municípios pesqui- De posse de tais inquéritos, sorteamos
sado interferiria nos resultados a serem obtidos. 11 respondentes e os convidamos a se sub-
Além disso, buscamos verificar se a referida meterem à entrevista individual, numa sala
ferramenta atendia aos objetivos propostos pelo destinada a este fim, tendo todos concordados.
estudo. Na sequência, agendamos períodos dispo-
Os dados coletados mostraram que o roteiro níveis na grade curricular, tendo as entrevistas
de entrevista correspondeu aos objetivos pro- duração de cerca de 60 minutos.

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Jogos regrados e eduCação

Elucidamos que, dos 11 entrevistados, des- Nota-se nesse depoimento que os jogos
cartamos cinco deles, pois não se dispuseram a de regras “impedem” a ocorrência de um dos
se submeterem a uma segunda entrevista, com a maiores obstáculos à aprendizagem: o receio
intenção de aprofundar depoimentos apresenta- de errar. Como a docente disse, a criança re-
dos na primeira, ou, quando – ao comparecermos aliza as atividades sem medo de errar. A esse
ao encontro agendado – apresentavam todo o respeito, Castorina27, Macedo23 e Piaget33 são
tipo de justificativa (falta de tempo, cansaço, mu- unânimes ao afirmarem que – em determinadas
dança de opinião quanto a submeter-se a outra situações – o erro é mais frutífero do que um
entrevista e receio de ter a sua identidade reve- acerto imediato. Isso ocorre porque o fracasso
lada). Quanto aos seis restantes, prontificaram-se num jogo, por exemplo, leva a criança a refletir
a serem entrevistados novamente. sobre a estratégia empregada, possibilitando a
construção de novos conhecimentos.
Procedimento geral para a análise das in- Outro aspecto apontado, principalmente
formações por João (sexo masculino, 43 anos), referiu-se
Obtidas as informações, procedemos da se- à importância dos jogos como pré-requisito ao
guinte forma: 1º fizemos leitura minuciosa dos desenvolvimento do raciocínio.
protocolos; 2º quando as justificativas mostra- [Para o aprendizado de] todo conhecimento
vam-se insuficientes, com vistas aos objetivos abstrato é necessário sempre partir de algo con-
creto, lúdico, para que o educando possa obser-
propostos, entramos novamente em contato
var os caminhos percorridos. Na matemática, o
com os sujeitos, a fim de que eles prestassem
professor tem que partir de dados da realidade
novas explicações; 3º com isso, completamos as
que é o concreto, para que haja compreensão
respectivas entrevistas e demos início à catego-
daquilo que é trabalhado e ensinado, que possa
rização das justificativas emitidas, tendo por pa-
agir como facilitador do conhecimento proposto.
râmetro os objetivos do estudo. De acordo com
Maria (sexo feminino, 48 anos) mencio-
Minayo31, “as categorias são empregadas para
nou que, quando os alunos jogam, sentem-se
se estabelecer classificações. Nesse sentido,
motivados, demonstrando prazer em jogar:
trabalhar com elas significa agrupar elementos
participam com prazer, pois para eles falar em
[...] em torno de um conceito”.
jogo traz motivação, quer fazer, participar e
A análise foi feita tendo como parâmetro a principalmente ganhar.
teoria psicológica de Piaget21 e de estudiosos Vê-se, porém, que não foi explicitado se tal
da epistemologia e psicologia genéticas4,26,27. motivação é transferida para o aprendizado
formal. A propósito: muito se fala em motivar os
ANÁLISE DOS DADOS alunos. Fundamentado em Piaget, não podemos
considerar essa possibilidade. Afinal, é o sujeito
A concepção dos docentes sobre os jogos que constrói o seu próprio conhecimento, a par-
de regras tir da relação com o meio físico e social, e desde
Os docentes argumentaram que os jogos de que ele queira, tenha os esquemas adequados à
regras contribuem para a maneira como os alu- construção proposta e as institucionais. Logo, é
nos lidam com o erro. Leiamos o que Iris (sexo um processo que depende do meio e do sujeito.
feminino, 36 anos) disse: Se for por meio do jogo, Em outros termos, é necessário que o estímulo
a criança se sente mais livre e segura sem medo (fato físico) seja concebido pelo aluno como
de errar. É um jeito dela pensar sem estar meca- significativo.
nizada. Comparo com a educação do meu filho. Eles afirmam, ainda, que os citados jogos de-
Ele sai jogando, descobrindo soluções, enquanto senvolvem a conduta de liderança. Por exemplo,
que na escola, ele demonstra insegurança. Lia afirma que muitas crianças que, às vezes,

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tem dificuldade na aprendizagem, através dos ainda, que no discurso trazem uma visão tradi-
jogos conseguem demonstrar liderança, espírito cional, como jogar perde tempo, jogar é brincar
de equipe. e não estudar.
Maria (sexo feminino, 48 anos) disse que, ao
jogar, o aluno busca desenvolver estratégias. O uso dos jogos em sala de aula
Contudo, ela não explicitou quais são essas Sobre o uso dos jogos de regras em sala de
táticas e se elas são transferidas para o pro- aula, eis a posição de Maria (sexo feminino, 48
cesso ensino-aprendizagem: O jogo desafia o anos), que o utiliza pouco: Não utilizo muito [os
raciocínio lógico, busca estratégias e os alunos jogos], porque depende do conteúdo estudado
participam com prazer. [E] buscar estratégia é e o resultado que o aluno apresentou. Pois, se
quando o aluno está pensando em soluções que ainda há dificuldade, o jogo será outro recurso
resolvam as situações em questão. que posso utilizar, pois, se o aluno não assimilou
Lia (sexo feminino, 43 anos) afirmou que – ao o conteúdo exposto, será necessário recorrer aos
jogar – os alunos desenvolvem a competitivida- jogos, que é uma atividade mais concreta. Existe
de: No trabalho em equipe, vai destacar o líder conteúdo que dá para fazer essa adaptação e
e todos têm que chegar ao objetivo do jogo. É outros conteúdos que não dá.
uma competição. Fica evidente na fala de Maria que o empre-
Contudo, a natureza de tal competitividade go dos jogos de regras depende do conteúdo a
não é explicada. Com isso, ficamos a nos indagar ser ensinado. Essa opinião é – de certa forma
se eles a estão compreendendo com um aspecto – contrária ao que apregoa os PCNs34. Lá é
positivo e se independe dos meios empregados sugerido que os jogos sejam utilizados como
para o seu êxito. facilitador do processo educativo e do trabalho
Apenas Jack (sexo feminino, 38 anos) disse com os temas transversais.
que, ao jogar, há mais socialização. Além disso, Continuemos com os depoimentos dos pro-
ela atentou para o fato de que os jogos auxiliam fessores sobre o uso dos jogos em sala de aula.
no aumento da resistência à frustração: porque Carol (sexo feminino, 35 anos): Utilizo pouco,
há mais socialização das crianças, aprendem devido ao tempo, a infantilidade de trabalhar
as regras e a competição do perder e ganhar; em grupo. [Os alunos] discutem muito para a
ajuda a refletir sobre as perdas. escolha dos colegas e o foco maior está em con-
João (sexo masculino, 43 anos) concebeu o cluir o conteúdo programático. Devido também
jogo, além de uma atividade lúdica, como faci- à grade curricular que eles têm aulas de Inglês,
litador da compreensão de conteúdos abstratos. Informática, sem contar outras atividades extras
Neste sentido, ele o vê como uma espécie de [datas comemorativas].
organizador prévio: na matemática, o professor Notamos, nessas falas, que as docentes estão
tem que partir de dados da realidade que é o mais preocupadas com os conteúdos progra-
concreto, para que haja compreensão daquilo máticos. Todavia, cremos que o problema está
que é ensinado, que tenha significado, que possa relacionado, como dissemos, à dificuldade em
agir como facilitador do conhecimento proposto. relacionar os jogos com o conteúdo programáti-
As falas desses docentes indicam a impor- co. Além disso, subjaz a ideia de que os jogos de
tância que dão aos jogos de regras, sobretudo regras devem ser desenvolvidos, sobremaneira,
o fato de eles o conceberem como recurso para nas aulas de Educação Física, Informática e
desenvolver o raciocínio, criar estratégias e Robótica – assumindo, assim, posicionamento
motivar os alunos. contrário ao defendido pelos PCNs34 e conce-
Entretanto, não é explicitado se tais recursos, bendo tais disciplinas como espaço para o de-
que os jogos proporcionam, são “transferidos” senvolvimento do lúdico, ou seja, daquilo que
para o dia-a-dia da sala de aula. Notamos, não é julgado “sério”.

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Jogos regrados e eduCação

Há outros professores que até gostariam de certos alunos, dessa forma, nos leva a inferir
fazer uso dos jogos de regras. Contudo, eles que a sua demanda era por um aprendiz plena-
alegam – como Íris (sexo feminino, 36 anos) – a mente desenvolvido. Essa visão é equivocada,
falta de tempo para empregá-los: É muito es- pois – se for assim – qual o sentido de se existir
porádico o uso do jogo pela questão da falta de educadores? Certamente alguns dirão que é o
tempo. [...] Caso contrário, não consigo concluir de ensinar. Acontece que, segundo Piaget33, a
o conteúdo proposto. escolarização é apenas um dos fatores respon-
Lia (sexo feminino, 43 anos) foi a única que sáveis pelo desenvolvimento.
disse utilizar bastante os jogos de regras, dei-
xando em evidência que tal objeto estimula o A importância dos jogos para o desenvol-
desenvolvimento do raciocínio de seus alunos, vimento psicológico dos alunos
propicia a interação e o confronto entre dife- Eis a fala de uma docente sobre a relevância
rentes pontos de vista. Penso que tem que ter que dá aos jogos de regras para o desenvolvi-
o concreto, que seria o jogo, e se imaginar na mento psicológico dos seus alunos. Íris (sexo
condição de jogador com a intenção de alcançar feminino, 36 anos): Eu acredito que o amadu-
o objetivo proposto e assim jogar para efetivar recimento psicológico vem através do desen-
uma aprendizagem. Os jogos estimulam não só volvimento do raciocínio, porque a criança que
o desenvolvimento do raciocínio lógico, também raciocina desenvolve estratégia e desenvolve
propicia a interação e o confronto entre diferen- a autonomia. Uma criança autônoma é mais
tes formas de pensar. segura, não depende tanto da mãe. Quando
Em resumo, notamos que a quase totalidade perde, ela compreende que no jogo e na vida
dos docentes entrevistados: a) não fazem uso não é só ganhar, lidam melhor com a situação.
dos jogos de regras ou os emprega de maneira A primeira feição desse depoimento, empre-
aquém do desejável; b) está preocupada – pro- gado aqui como exemplo, é que os docentes
vavelmente por pressões dos órgãos educativos reduzem o desenvolvimento psicológico, à di-
superiores – em “vencer” os conteúdos progra- mensão cognitiva. É como se eles não compre-
máticos, sem levar em consideração se os alunos endessem, desconsiderassem ou não dessem a
estão aprendendo de modo significativo; c) devida importância às dimensões afetiva e a
delega a atividade dos jogos para outras disci- moral como parte do “psicológico”.
plinas, vistas amiúde sem importância ou como É indicador também de que há problemas na
utensílio de diversão; d) não busca dialogar e formação de tais docentes. Não queremos, com
estabelecer parcerias como os docentes de ou- isso, responsabilizar as instituições de formação
tras áreas, como a de Educação Física. em si, pois sabemos que o conhecimento é re-
Outro dado é que, se temos, por um lado, construído e apenas só atentamos para aquilo
salas de aulas com 30 a 40 alunos, geralmente que faz parte do nosso horizonte significativo.
com problemas de várias ordens, por outro, há Insistimos, todavia, que – a despeito de tais
docentes com pouco tempo e falta de formação aspectos – os docentes apresentam problemas
para se dedicar a um tipo ensino que tenha o graves de compreensão dos conteúdos psicoló-
desenvolvimento global do aluno como foco. A gicos e pedagógicos; provavelmente, decorren-
esse respeito, Carol (sexo feminino, 35 anos) tes da formação que tiveram, mesmo a maioria
chega a dizer que os seus alunos são tão infantis, tendo feito curso de pós-graduação. Nesse
que apresentam dificuldades até para escolher sentido, faz-se urgente pensar e intervir junto
os colegas que comporão os grupos. aos cursos de graduação e de pós-graduação
Ora, conforme explicita os PCNs34, é tarefa frequentado por tais docentes. Afinal, sabe-
do docente contribuir para que o desenvolvi- mos que muitos deles são oferecidos, apenas,
mento ocorra. Queixar da “infantilidade” de formalmente.

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Pedro-silva n & simili mFC

Os jogos de regras e sua relação com o CONSIDERAÇÕES FINAIS


brincar do professor na infância Os sujeitos nos fizeram refletir sobre o quan-
Quanto ao emprego dos jogos de regras to estamos tendo escolas preocupadas com
em sala de aula e sua relação com o brincar o cumprimento dos conteúdos curriculares.
do professor na infância e com os seus filhos, Contudo, segundo Becker36, pensar a educação
eis o depoimento de Íris (sexo feminino, 36 para o futuro implica em considerar o conheci-
anos): Eu inventava os móveis de argila e bo- mento – antes de tudo – como produto da ação
neca de espiga de milho para poder brincar. humana (e não como mera interiorização de
Não tinha televisão, tinha que criar brinque- informações).
dos. [...] Tenho um filho que brinca mais com Outros aspectos foram observados:
jogos eletrônicos do que com os amigos. E a) os docentes têm “consciência” de que os
certo dia meu marido fez um estilingue para jogos de regras podem contribuir para a solução
ele e parecia o brinquedo mais caro que já de problemas e, em consequência, possibilitar
tivera, pois os amigos não conheciam e foi a o desenvolvimento cognitivo;
maior festa. b) contudo, fica aquém a compreensão deles
Notamos, por meio desse protocolo e dos acerca do fato de que os jogos também são efi-
demais, que os docentes brincaram conside- cientes como recursos para o desenvolvimento
ravelmente na infância. Contudo, em torno das demais dimensões psicológicas (afetiva e
de metade deles não fazia uso de tais brin- moral);
cadeiras da sua infância com os seus alunos c) os docentes não relacionam os jogos de
e sequer de outras, como as desenvolvidas regras com os vivenciados na sua infância;
em computadores. d) tampouco articulam tais jogos com a prá-
Ve r i f i c a m o s , a i n d a , q u e , a p e s a r d e tica pedagógica;
existirem muitas leituras sobre a infância e) empregam como pretexto, para o seu não
e o papel do lúdico no favorecimento da uso, a falta de tempo, de espaço, a necessidade
aprendizagem, a maioria dos docentes ain- de ter que cumprir os conteúdos programáticos
da não faz uso desse meio em sala de aula. e a falta de interesse dos alunos.
De acordo com Silva 35, os docentes estão Soma-se certa ideia – que já se tornou re-
despreparados para lidar com os alunos. presentação37 – de que jogos são sinônimo de
Isto ocorre por vários motivos, “que vão diversão e, portanto, só podem ser desenvolvi-
desde a concepção de criança internalizada dos nas aulas de Educação Física, de Artes e
(adulto em miniatura), à falta de conheci- de Informática, pois elas não apresentam valor
mento acerca do desenvolvimento psicoló- pedagógico, servindo apenas de instrumento
gico infanto-juvenil, o próprio desinteresse de adorno e de “ludicidade”.
com a profissão e o descompromisso com a Isso não significa que estamos a responsa-
formação”. bilizar apenas os docentes. Há que reconhecer
Resumindo: os docentes, de maneira uma política educacional que fomenta a pro-
geral, demonstraram satisfação em falar de dução de burocratas, não investe efetivamente
suas brincadeiras, pois relataram marcas na capacitação docente (sobretudo na área da
significativas da infância. É como se eles psicologia do desenvolvimento) ou possibilita
as revivessem. Apesar disso, eles concebem a contratação de pessoas nada afeitas ao ofício
esse momento como de uma “infância per- de educar.
dida“ e/ou só pertencente a ele; portanto, Além disso, entendemos como capital que os
incapaz de ser, em parte, vivenciada com docentes voltem a ficar de “bem” com a criança
seus alunos ou não atinente ao espaço edu- que há dentro deles, ou seja, eles devem buscar
cativo formal. continuamente colocar-se no lugar de seus alu-

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Jogos regrados e eduCação

nos, pois a impressão é que eles se esqueceram eles se queixam. A maioria deles – salvo, me-
de sua infância. lhor juízo – a) não gosta de ler, b) tem medo
Não se pode desconsiderar, todavia, que de ser avaliado, c) considera a teoria descar-
os docentes estão sendo produzidos por um tável, d) é extremamente indisciplinada e e)
caldo de cultura que incita o individualismo, o acredita que está sempre com a razão. Em
hedonismo, o consumismo e a desconsideração síntese, emitem um discurso e apresentam
pelo conhecimento. Bruckner38 afirma, a esse uma prática completamente diversa e, a nosso
respeito, que o interesse hoje é por outros valo- ver, lamentável.
res, como o sucesso e o dinheiro, aspectos que Salientamos que tal diagnóstico não é si-
não podem ser obtidos por meios acadêmicos. nônimo de descrença em relação aos educa-
A propósito: observamos em cursos de espe- dores e à educação, pois temos nos deparado
cialização destinados aos docentes do Ensino com professores sérios, comprometidos e que,
Fundamental e Médio que eles se comportam apesar de todas as adversidades, têm o conhe-
de maneira semelhante aos alunos, que tanto cimento como um valor.

SUMMARY
The rules games and education: teachers conceptions of primary edu-
cation

The rules games have been a target of researches, mainly related to its
influence in the teaching-learning process. For that reason, this research
was developed with the aim, among others, to analyze the academic
conception about the contributions of the application of rules games in
the education process and in the psychological development. For such,
there was used the theory of Jean Piaget about the relations among the
genetic psychology, the teaching and learning processes and the rules
games. The participants were teachers, randomly chosen, teaching in the
primary schooling of municipal colleges in the state of São Paulo. For the
data collection, there were used a questionnaire and a half-structured
interview. The results demonstrated that: a) Teachers consider the rules
games as an important tool to help the teaching and learning processes; b)
they do not associate them to the psychological development; c) although
considering the games positive, most of them do not use them in class,
even researches demonstrating its value to the educational process and
psychological development.

KEY WORDS: Education. Play and playthings. Faculty. Psychology,


educational.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 236-49

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Pedro-silva n & simili mFC

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Trabalho realizado na Faculdade de Ciências Artigo recebido: 16/6/2010


e Letras da UNESP – Campus de Assis, Assis, Aprovado: 30/7/2010
SP. Artigo extraído da dissertação de mestrado
intitulada Jogos de regras e educação: concepções
de docentes do ensino fundamental, defendida em
dezembro de 2009.

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rELATo DE EXPEriÊNCiA
montenegro Cam et al.

Construindo e Construindo-se: uma


exPeriênCia da ClíniCa soCial da aBPP-es
Cheila Araujo mussi montenegro; Dina Lucia fraga; iara feldman; janine C. Barboza; mara C. B. r. Lima; maria da Graça von
Kruger Pimentel; maria josé saavedra Castro; marieta Vieira messina; maristela do Valle; sonia Volpini Coelho

RESUMO – O trabalho que pretendemos compartilhar foi fruto de


uma experiência construída em grupo e constitui um grande exercício
de autoria. Configura-se no atendimento psicopedagógico de grupos de
crianças/adolescentes de Ensino Fundamental, de uma escola municipal,
na cidade de Vitória, ES, realizado por cinco duplas de psicopedagogas,
da ABPp-ES. O Projeto promoveu o crescimento de todas as pessoas
envolvidas, tanto das psicopedagogas que participaram do planejamento
e implementação, como das crianças/adolescentes que participaram dos
atendimentos. O trabalho, operacionalizado no fazer psicopedagógico
e no trabalho cooperativo, se estruturou na confiança no potencial dos
parceiros de equipe. Os valores intrínsecos e ideais nele contidos foram
experimentados e vividos em grupo. Os bons resultados obtidos foram uma
consequência do envolvimento ativo e respeitoso das pessoas que atuaram
na sua construção/execução.

UNITERMOS: Aprendizagem. Transtornos de aprendizagem.


Psicoterapia de grupo.

Cheila Araujo Mussi Montenegro – Psicóloga. Correspondência


Dina Lucia Fraga – Psicopedagoga clínica. Maria da Graça von Kruger Pimentel
Janine C. Barboza – Especialista em Educação em Saúde Rua Elesbão Linhares, 420/601 – Praia do Canto –
Pública e em Atendimento ao Adolescente. Vitória, ES – CEP 29055-340
Mara C. B. R. Lima – Licenciada em Línguas e
E-mail: mgvkp@terra.com.br
Literaturas (UFES).
Maria José Saavedra Castro – Pedagoga, especialização em
Terapia Familiar Sistêmica, psicanalista clínica.
Sonia Volpini Coelho – Psicodramatista.
Iara Feldman – Mestranda em Psicologia da Educação
(UFES), Membro titular da ABPp.
Maria da Graça von Kruger Pimentel – Mestre em
Educação (UFES), Membro do Grupo SEJA, membro
Titular da ABPp.
Maristela do Valle – Mestre em Educação (UFES), Membro
Titular da ABPp.
Marieta Vieira Messina – Licenciada em biologia, psicóloga,
especialista em planejamento escolar.
Todas as autoras são psicopedagogas e membros
da ABPp-ES.

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Construindo e Construindo-se

INTRODUÇÃO ca a globalidade de uma ação social, composta


A Clínica Social surgiu do desejo e da neces- por elementos nem sempre tão evidentes e de
sidade de um grupo de associados da ABPp-ES fronteiras fluidas. A articulação da educação
em aprofundar o saber-fazer psicopedagógico, formal/não formal ganha representatividade
fortalecer o Núcleo/ES e divulgar o trabalho da em espaços neutros, não institucionais. Segundo
Psicopedagogia, dando-lhe visibilidade num Martinez2, “o retorno ao aprendizado de olhar
espaço público. a realidade ou revisá-la supõe renunciar uma
Tínhamos o objetivo de realizar um trabalho tradição positivista que nos acostumou a uma
psicopedagógico efetivo e sistêmico, acompa- análise em meio único e excludente”. Essa foi
nhando e estudando as experiências, para que a razão para tirar o psicopedagogo do círculo
pudessem ser compartilhadas, em moldes seme- fechado da escola e conectá-lo à realidade da
lhantes à de uma pesquisa científica. Para tal, comunidade.
os encontros tanto de preparação, covisão, como Os grupos foram formados usando como
os encontros de atendimento foram registrados primeiro critério atender as crianças mais ve-
numa perspectiva de “fazer história”. Embora lhas indicadas pela escola, no sentido de dar
o foco estivesse direcionado para as crianças/ a oportunidade de um trabalho de resgate no
adolescentes e, consequentemente, o desvelar momento de uma possível passagem para o
progressivo dos desejos e das necessidades segmento posterior de escolarização.
que poderiam ser percebidos, procuramos nos Os atendimentos buscavam envolvê-los
observar dentro da perspectiva da construção no sentido de recuperar o prazer de apren-
do atendimento. der, valorizar o conhecimento que já tinham
“A única forma para que o estudo da Psico- construído e abrir perspectivas futuras. Muitos
pedagogia possa transformar-se em aprendiza- desafios se apresentaram durante o trabalho
gem é abrindo espaços de autoria do pensamen- na Clínica Social e com eles pudemos aprender
to para nós mesmos, enquanto tentamos abri-lo e ampliar nosso olhar psicopedagógico sobre
para os outros.”1. outros modelos socioculturais. A compreensão
Para a realização efetiva do trabalho, esta- do “outro” nos possibilitou uma escuta em dire-
belecemos parcerias com uma escola da rede ção à alteridade. Essa compreensão foi iniciada
municipal, que indicou os alunos para o traba- na formação dos grupos, nas articulações que
lho, e um Centro Cultural, que disponibilizou foram acontecendo nas primeiras interações
o espaço onde aconteceram os atendimentos com as crianças/adolescentes, quando essas
psicopedagógicos, realizados por duplas de começaram a construir sua identidade de gru-
psicopedagogas. Delimitamos o espaço geográ- po, dando-lhe um nome e trabalhando com as
fico próximo ao Centro Cultural para a escolha regras.
da escola, facilitando o acesso das crianças/ As atuações diversificadas das atividades da
adolescentes e famílias. Clínica Social, planejadas e realizadas pelas du-
A decisão de que o atendimento fosse rea- plas de psicopedagogas, de acordo com a visão
lizado num Centro Cultural se justificou pela que faziam do atendimento e das necessidades
natureza de educação não formal e pelas possi- que foram percebendo em seus grupos, tiveram
bilidades de construção de redes, que abririam sempre um eixo comum, que foi sendo identifi-
perspectivas fora de um modelo de educação cado desde a elaboração do projeto e durante as
institucionalizada. A vivência de outro espaço, covisões, tecido em saberes e fazeres próprios
onde os horizontes pudessem ser ampliados, foi de cada participante da equipe.
de extrema importância para a possibilidade Buscamos descrever a experiência, condu-
de exercitar a cidadania, criando acesso a bens zida pelos procedimentos indicados pela Fe-
culturais. O exercício da Psicopedagogia desta- nomenologia, ao buscar situar o fenômeno no

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mundo-vida, com significações vivificadas na A FORMAÇÃO DAS DUPLAS E A PREPA-


experiência existencial, conforme nos aponta RAÇÃO DA EQUIPE
Laurenti3. A fenomenologia visa descrever as O atendimento em parceria mostrou que os
coisas ou analisá-las como experienciadas pelo múltiplos olhares e escutas facilitam a percep-
sujeito, segundo constatamos em Merleau-Pon- ção de dimensões fragilizadas na construção do
ty4. O trabalho, portanto, envolve a descrição conhecimento, apontando estratégias e meios
dos depoimentos dos aprendentes, da escuta para se trabalhar. Os problemas de aprendiza-
dos psicopedagogos, das reflexões realizadas gem surgem, muitas vezes, da dificuldade em
nos espaços de covisão e nas inúmeras corres- perceber potencialidades encobertas ou até
pondências realizadas em ambiente virtual. mesmo anuladas por um processo de aprisiona-
Usamos nomes fictícios nos relatos, para pre- mento da inteligência. Entendemos esse projeto
servar a identidade das crianças. como uma ferramenta de aprendizagem da vi-
Estivemos sempre focados na essência da vência de situações de intervenções psicopeda-
Psicopedagogia, que tem sua especificidade, gógicas, buscando o crescimento para a pessoa
conforme visto em Weiss & Weiss5, na “reunião atendida e também para o psicopedagogo na
das condições ambientais, por um lado próprias reflexão em conjunto, sobre a sua prática.
de qualquer processo terapêutico, às condições Nesse sentido, a covisão foi uma escolha para
de um processo de aprendizagem libertadora o planejamento e o acompanhamento dos tra-
balhos, que proporcionou o prazer de trabalhar
se usássemos a terminologia de Paulo Freire”.
aprendendo e de aprender trabalhando, criando
Buscamos levar em consideração a rede em
espaços de escuta e oportunizando a construção
que as crianças/adolescentes estão inseridas,
de novos vínculos com o aprendizado. Essa di-
incluindo família, escola e meio social. Nesse
nâmica, na qual cada dupla de psicopedagogas
sentido, nos apoiamos em afirmações de teó-
apresenta e discute seu atendimento com as
ricos de visão sistêmica, que, mesmo de pers-
outras duplas, em conjunto com a coordenadora
pectivas diferentes, acreditam na importância
do projeto, propicia experiências que ampliam
da construção do ser social, conforme podemos
espaços de pensamento, oportunizando ao
observar nas citações abaixo:
ensinante-aprendente um maior universo de
“...Um problema é aquilo que uma pessoa
recursos. A covisão constrói novas direções a
vive com uma dificuldade que ela define como serem seguidas nos próximos atendimentos, fa-
tal para si mesmo ou para outra pessoa. Por isso, vorecida pelo fato de que, além da formação em
um problema se relaciona com a forma como a psicopedagogia, todas têm uma outra formação,
pessoa se vê a si mesma ou a outra pessoa e com possibilitando que diferentes saberes estejam
a maneira que ele ou ela constrói um domínio presentes nas discussões, mudando o foco do
social que aceita tal maneira de ver...” 6 fiscalizar para o de cooperar, de ver junto.
“...De acordo com a visão sistêmica, as Fizemos algumas leituras e releituras que
propriedades essenciais de um organismo ou fundamentaram nossas ações e nos fortalece-
sistema vivo são propriedades do todo, que ram, ajudando a construir critérios para usar
nenhuma parte possui. Elas surgem das in- somente o que fosse possível e o que nos desse
terações e das relações entre as partes. Elas segurança. Sabíamos que não haveria necessi-
são destruídas quando o sistema é dissecado, dade de investigar e esgotar alguns aspectos. O
física ou teoricamente, em elementos isolados. tempo é sempre um obstáculo real ao que gos-
Embora possamos discernir partes individuais taríamos de realizar e as informações a serem
em qualquer sistema, essas partes não são iso- buscadas precisariam ter um direcionamento
ladas e a natureza do todo é sempre diferente do precisávamos saber e do que teríamos o que
da soma das partes.”7 fazer com a elas.

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As duplas de psicopedagogas foram forma- o olhar do professor para ele. Fundamentadas


das por disponibilidade de tempo, especialmen- em Fernandez8, que inclui os professores como
te, mas com uma sinergia que aos poucos foi possíveis coautores da história da criança, pre-
ficando mais clara e consistente. Os acolhimen- tendíamos desenvolver um trabalho paralelo
tos mútuos e o respeito pelas diferenças foram com eles, não totalmente implementado até o
uma preparação para o trabalho que teria essa momento. O nosso foco de trabalho, nessa abor-
mesma essência com as crianças/adolescentes. dagem com os professores, seria oportunizar a
O projeto começou com a marca do cuidado, reflexão sobre suas atividades, reconhecendo e
do respeito e da solidariedade entre os partici- valorizando as proposições, de forma a ajudá-los
pantes, na maneira respeitosa como cada uma a se posicionar e a descobrir a sua autoria por
se olhou, aprendendo e ensinando, o tempo meio da escrita cuidadosa e observadora sobre
todo. As experiências vividas e/ou planejadas, cada aluno.
sonhadas e/ou realizadas nesse projeto e em De posse das informações obtidas pela es-
outros, que enriqueceram a vida profissional de cola, elaboramos as entrevistas com as famílias
cada uma, fizeram com que crescêssemos nas com questões que nos dessem uma visão de sua
nossas diferenças com autonomia e autoria para estrutura. Foram encontros muito instigantes,
poder agir da mesma maneira com as crianças/ nos quais pudemos perceber diversos modelos
adolescentes. Alimentamo-nos de solidariedade de relacionamentos familiares, visões de mun-
e desejo de aprender com o outro para transpor- do, como era ou como se dava a convivência fa-
tarmos para os encontros essa mesma atitude. miliar e, especialmente, o tipo de envolvimento
“Como tem sido maravilhoso poder aprender dos pais nas questões escolares dos seus filhos.
experiências diferentes. Praticar o olhar e a A família é o primeiro núcleo social que
escuta psicopedagógicas entre pares, podendo abriga o homem. É ela quem vai dar condições
assim fazer a transposição para os grupos de à criança de construir seus modelos, de apre-
atendimento”7. (Cheila Montenegro, 2009) ender e aprender1.
Procuramos deixar claro às famílias que seria
O INÍCIO DO TRABALHO importante ter o desejo de atendimento e que
Os encontros com a família e a escola foram acesso aos encontros semanais seria responsa-
fundamentais para que, percebendo os contex- bilidade delas. Esses encontros de estruturação
tos, formássemos um sistema de atendimento, foram fundamentais para o esclarecimento de
onde a comunicação fosse feita em uma lingua- limites, de possibilidades e da construção social
gem comum, valorizando e respeitando cada do sentido e de como entendíamos o trabalho
contribuição. psicopedagógico que nos propúnhamos realizar.
O primeiro passo foi o contato com uma Inicialmente, a visão dos pais era que o
Escola de Ensino Fundamental do Município atendimento seria para uma “aula de reforço”,
de Vitória (EMEF), com a intenção de oferecer por isso foi necessária a explicação sobre a
parceria, propondo a busca de alternativas de proposta psicopedagógica, que não teria um
solução no trabalho com alunos que apresen- caráter imediatista de suprir as falhas de ensino-
tassem dificuldades em acompanhar a proposta aprendizagem relativas ao conteúdo escolar. O
escolar. À escola coube a tarefa da indicação projeto dos atendimentos visaria à construção
das crianças/adolescentes que necessitassem de da autonomia e da autoria, por meio da criação
atendimento, o que foi feito pelos professores, de vínculos, o que possibilitaria um espaço de
aos quais foi solicitado que preenchessem uma confiança onde acontecesse o crescimento de
ficha com observações sobre cada criança indi- todos. Segundo Pichon Rivière9, “um vínculo é
cada, dando-nos uma primeira visão de como um tipo particular de relação de objeto, cons-
esses alunos eram vistos na escola e qual seria tituída por uma estrutura que funciona de de-

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terminada maneira. É uma estrutura dinâmica de Flicts (Dina Lúcia Fraga e Mara Lima, 2009).
em continuo movimento”. Portanto, o vínculo O grupo Forte nasceu com a característica
estabelece a comunicação e orienta a conduta, marcante da curiosidade e da vontade de brin-
daí a necessidade da positividade em relação car, mas com a determinação de aprender a
ao objeto do conhecimento e com tudo o que ler e a escrever. Ao final de cada encontro ou
envolve o processo do aprender, para que o enquanto um esperava a vez de ser atendido, as
encontro seja o espaço de se descobrir capaz brincadeiras e exploração de jogos foram libera-
e potente, autor de suas próprias construções. das (Marieta Messina e Janine Barboza, 2009).
Percebemos os movimentos dos grupos sob
a ótica do Paradigma Luz Borges, quando as OS PRIMEIROS ENCONTROS
etapas de indiferenciação, diferenciação, sepa- Os primeiros encontros foram de ajustes e
ração e integração foram vividas, alcançando de revelações impactantes, mas, sobretudo, de
estruturas que permitiram não só encontrar o investimento na construção de vínculos impor-
outro – pessoa e objeto do conhecimento – como tantes. O perfil da dupla e do grupo determinou
integrar-se num novo patamar de relação com metas e definições de atuação diferenciadas.
o Mundo. As caixas de grupo, a escolha das dinâmicas, a
Borges10 explica como os primeiros momen- interação entre as crianças/adolescentes e entre
tos são essenciais para a construção de vínculos as crianças/adolescentes e a dupla de psicope-
bem sucedidos, por meio da estrutura espiral dagogas foram construídas em tempos próprios,
que o sujeito tem diante do novo, a partir do com estilos de atendimento e possibilidades de
indiferenciado até chegar à integração do co- escuta diferentes. As psicopedagogas ficaram
nhecimento ao seu saber. envolvidas, atentas e cuidadosas, aprendendo
Os relatos dos grupos explicitarão esses a “ler” desejos e possibilidades, que se expres-
momentos e facilitarão a identificação dos prin- savam pela postura do corpo, pelo pensamento
cípios ligados ao ato de aprender: atividade, dito, pelo olhar curioso, pelo envolvimento nas
criatividade, autoridade, liberdade. atividades, abrindo espaços para que esses de-
Para o grupo Força, recorremos a um plane- sejos se transformassem em palavras e ações.
jamento onde a Contação de Histórias entraria Os grupos foram definindo os seus rumos,
como material estratégico que viabilizaria o com sinais para o que deveria ser o “motif” do
acesso das crianças/adolescentes ao simbólico. trabalho... Um, com as questões da relação entre
De acordo com Bettelheim11, a criança precisa eles e o início do trabalho de regras.
que lhe sejam oferecidas sugestões em forma “Sentimos que no início tinham muita difi-
simbólica sobre como ela pode agir em relação culdade de expressar suas ideias, mas no final
a suas próprias questões existenciais, amadu- do encontro verbalizaram com mais liberdade.
recendo de forma mais saudável. Sentimos necessidade de elaborar combina-
As crianças/adolescentes do grupo, por dos do grupo. E aproveitamos para trabalhar a
exemplo, logo no segundo encontro, passaram a construção da identidade grupal, escolhendo
se apoiar no personagem Flicts12 para expressar um nome para o grupo... Enfim, estamos anima-
alguns sentimentos ainda não verbalizados por díssimas com as possibilidades que se abrem”
carência de espaços de escuta. E, a partir da (Iara Feldman, 2009).
apropriação do material significativo da história Outro, com um desejo muito bem definido
de uma cor muito rara e triste, incorporaram de “aprender a ler”, e com isso o desafio de
Flicts12 ao discurso interno do grupo. Washing- descobrir de onde vem a impossibilidade de ler
ton experimentava a elaboração de discursos em alguém que tem tanto desejo.
simbólicos: Flicts tem a cor de pele ou, ainda, a “O encontro foi muito importante pelo desejo
expressão de desejos: O bolo tem que ser da cor expresso no olhar, fala e movimentos de nossa

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criança. Veio fortalecer a riqueza necessária sobre um incidente que envolvia as crianças/
de projetos como esse. Desejo explicitado: adolescentes que atendíamos. Verificamos que
“Aprender a ler e a escrever”. Desejo não dito um dos crianças/adolescentes havia molhado e
pela fala, mas pelas suas atitudes durante o sujado o banheiro de uso coletivo. Voltamos ao
atendimento: Fazer parte de um contexto, não grupo de crianças/adolescentes e solicitamos
se sentir excluída, diminuída. Poder se expres- que o autor do “incidente” se apresentasse.
sar e compreender como tantas pessoas fazem Para a nossa surpresa, Antonio (com queixa
e delas se espera. Grande responsabilidade a familiar de mentira) se apresentou. Era uma
nossa: instrumentalizar para que o desejo acon- criança que revelava grandes necessidades de
teça, para que essa criança se perceba potente, reconhecimento e aceitação no grupo familiar
capaz, autora” (Cheila Montenegro, 2009). e escolar. Além de sérios problemas cutâneos,
As atividades eram planejadas, porém rees- que por si só, contribuíam para uma autoes-
truturadas a partir do posicionamento do grupo: tima negativa no grupo social inserido, a de-
o que desejava, quais seriam as demandas “li- sorganização familiar provocava em Antonio
das” a partir da interpretação do que estavam uma espécie de “fragmentação” de si mesmo.
pedindo. O material de trabalho era compar- Antonio vivia em um estado infantil de despro-
tilhado pelos grupos e, com isso, estabelece- teção: não interagia com os outros membros
mos um convívio na cidadania, onde as coisas do grupo, tinha grandes dificuldades em lidar
comuns precisam ser preservadas para o outro. com a frustração, chupava o dedo, não cumpria
acordos, buscava sempre a atenção individual
Outra preocupação discutida e comparti-
das psicopedagogas, fazia “birra” e até chorava
lhada por algumas duplas era a de reconhecer
quando contrariado. Tinha onze anos, cursava a
que as crianças/adolescentes chegam com pe-
quarta-série e não estava alfabetizado. Quando
didos e carências. A discussão sobre o lanche
recebia atenção individual dentro do grupo,
resultou na sua ressignificação como estratégia
manifestava grande desejo de aprender e fazer.
de construção de vínculos. A tarefa seria usar
Não fizemos alarde da situação, e em conversa
o espaço-tempo do lanche como acolhimento,
individual com a criança, descobrimos que, ao
alimentando corpo e alma.
chegar para o atendimento, ele havia lavado
“Gostei do lanche antes da história... Segun-
sua cabeça dentro da pia com sabonete líquido.
do Costa13, da Pedagogia da Presença, antes de
Esta operação havia deixado o banheiro sujo
alimentar a alma, vem o corpo e sua urgência. A
e molhado. Depois de conversa com o grupo,
história/alimento é a volta as primeiras apren-
ficou acertado que Antonio, com auxílio de uma
dizagens, que nos remete a Winnicott14, quando psicopedagoga, limparia o banheiro. O que An-
diz que a mãe enquanto alimenta o bebê, fala tonio fez prontamente e sem resistências. Nesta
com ele, o toca e o conforta. Isso cria o espaço tarde, ele não chupou o dedo. Pudemos inferir
de criação e segurança, necessárias para o nosso que a criança, sentindo-se acolhida e acompa-
propósito” (Mara Lima, 2009). nhada em uma nova situação de proximidade
com o adulto, sem a esperada penalização
INTERVENÇÕES que ocorreria no ambiente familiar/escolar,
Atividades diversificadas foram propostas e descobriu-se um ser aprendente - como dizem
elaboradas nos grupos de trabalho, buscando Carmo e Souza15, “fazer-se um ser aprendente
fortalecer o desenvolvimento da possibilidade é conhecer os limites e transgredi-los” (Mara
de autoria. Lima e Iara Feldman, 2009).
Em uma ocasião, o atendimento de segun- Uma das atividades realizadas foi a constru-
da-feira foi interrompido pela funcionária do ção de uma maquete representando o caminho
Centro Cultural onde atuávamos, para informar percorrido pelas crianças/adolescentes de suas

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casas até o local dos atendimentos. A partir “... pedir que registrem suas ideias no papel
do percurso descrito e desenhado, a maquete (cortado como pensamento). Aí, marcaríamos
foi construída, contendo em seu relevo toda a um tempo (tenho uma ampulheta de um jogo
leitura do espaço geográfico, social e emocio- que poderia levar) Isso para limitar um pouco,
nal percorrido pelas crianças/adolescentes, já que o Daniel necessita dessa contenção, o que
contemplando a topografia, a vegetação, as acha? - colocar essas ideias como ornamentação
edificações e as ruas pelas quais andam. “As- da caixa. Poderíamos depois acrescentar com
sim, cada criança pode recriar o que vive, no gravuras dos animais escolhidos no primeiro
imaginário (quantas dimensões são usadas em encontro (com os quais se identificaram) (Dina
sua elaboração?), na folha de papel e no qua- Lucia Fraga, 2009).
dro, em duas dimensões e depois, na maquete, “A Clínica Social é muito envolvente. É muito
em três dimensões” (Marieta Messina e Janine bom estar trabalhando com o desejo.” (Sonia
Barboza, 2009). Volpini, 2009).
“... foi a primeira a chegar. Conversamos um “... abertura de espaço para a possibilidade
pouco e ela começou a explorar o que havia na de autoria. O grupo vem transformando o con-
sala. Em seguida, chegou o Eduardo, e a Joana ceito e a maneira de atendimento. É claro que
o convidou para montar o quebra-cabeça com temos o nosso foco, mas o formato é dado pelas
o nome dos animais. Ele já teve uma atitude crianças/adolescentes. A leitura realizada pelas
diferente da semana anterior, quando traba- crianças/adolescentes continua tendo seu lugar
lhou com o mesmo jogo. Organizou de forma de destaque e sendo instrumento para a per-
diferente, o que facilitou a procura das peças. cepção do “eu sei” (Cheila Montenegro, 2009).
Eliana foi a última a chegar. Sentou-se em volta A formação dos grupos de trabalho não se
da mesa e olhou para mim, como que pedisse deu como imaginávamos. Havia uma grande
permissão para participar. Perguntei-lhe o demanda, indicada pela escola, mas nem todas
que ela formaria e ela já começou o trabalho” as famílias compareceram para a entrevista ini-
(Cheila Montenegro, 2009). cial e formação dos grupos. Durante o período
“Telefonei para a Carla e disse que as coisas de atendimento, algumas crianças/adolescentes
dela na “Caixa de Trabalho” estavam esperando que faziam parte da indicação, influenciados pe-
por ela e que nós também estávamos esperando los colegas de escola, vinham para o atendimen-
por ela e com saudade. Ela prontamente disse to, e outras que iniciaram o trabalho deixaram
que ia e foi. A caixa de Trabalho está ficando de comparecer. A energia e o entusiasmo que
recheada e eles estão ficando “loucos”, no existia nos grupos foram determinantes para
bom sentido, para levar para casa, mas sabem administrar as constantes entradas e saídas das
que só vão poder levar em dezembro” (Janine crianças/adolescentes nos mesmos, por motivos
Barboza, 2009). diversos. Tivemos, então, que tomar cuidado com
essas situações e, muitas vezes foi necessário o
A MOBILIDADE DOS GRUPOS E OS ESTI- estabelecimento de novos limites.
LOS DE ATENDIMENTO “...bem, essa era mesmo a nossa intenção:
Correções de rota muitas vezes foram neces- remanejar os “agregados” para as outras du-
sárias. Em muitos momentos necessitávamos, plas. Joana necessita mesmo de um acompa-
como diz Fernandez16, “desmontar o estabele- nhamento afetivo e psicopedagógico, pois na
cido e transformar nosso modo de pensar como segunda-feira ela não quis aceitar de maneira
psicopedagogos.” A diversidade nos atendi- nenhuma a negativa. E não queria ir para casa.
mentos foram experiências cheias de “amoro- Chorou. Como minha intuição apitou, resol-
sidade” e de doação dos conhecimentos que vemos deixá-la na antesala desenhando...”
cada uma trouxe e que enriqueceu os trabalhos. (Mara Lima, 2009).

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INTERAÇÃO COM A ESCOLA cipativos e o irmão de Bernardo até estranhou o


O trabalho resultou em um movimento nas encaminhamento para a “aula de reforço”.
aprendizagens, tornando claro o que na maioria “O Caê – faltou na sexta – sinto que lhe fal-
das vezes acontece: a dificuldade diagnosti- tam mais estímulos em leitura, o que o atrasa
cada na escola, muitas vezes, é originada de um pouco em relação aos outros, dificultando
uma resistência à acomodação a um modelo o acompanhamento de textos na sala de aula.
de ensinagem. Em algumas crianças aparece Constatamos que Daniel realmente tem dificul-
como uma forma de demonstrar sentimentos de dades em leitura e, consequentemente, compre-
inadequação, baixa autoestima, que acabam por ensão da leitura - compreende bem problemas
inibir e prejudicar a aprendizagem na escola. orais e tem bom raciocínio lógico. Ele não foi
“Seu grito de socorro expressa um sentimen- totalmente alfabetizado e tem uma ânsia louca
to profundo de exclusão, exclusão da sociedade por livros. Ele “vidrou” no Flicts, pedindo de
que caracteriza a realidade de todas as crianças/ novo esta leitura” (Mara Lima, 2009).
adolescentes privadas de oportunidades de Nos encontros com a escola reconhece-
fazer parte da cultura mais ampla, e exclusão mos que a diretora e coordenadora são duas
no seu próprio meio. São crianças/adolescen- guerreiras na defesa da escola e das crianças/
tes que, pela dificuldade de relacionamento adolescentes. Algumas situações são difíceis
interpessoal, ou carência de tudo, ou aspectos de contornar, provenientes da violência, que
físicos (sobrepeso) ou sensibilidade para artes, acontece no entorno da escola. Elas foram par-
se sentem excluídas no próprio ambiente esco- ticipativas com a equipe e se mostraram felizes
lar” (Iara Feldman, 2009). com os atendimentos, solicitando um controle
Na visão da Psicopedagogia, “o fracasso de frequências para que pudessem pedir aos
escolar muitas vezes tem a ver com fatores ex- professores uma observação mais apurada de
ternos à criança ou ao adolescente, não estando possíveis mudanças.
localizado na estrutura interna do indivíduo, Os professores, durante um tempo, não con-
nem se prende a situações externas com sig- seguiram perceber mudança no comportamento
nificações inconscientes sobre o aprender e o das crianças/adolescentes. Tendo como foco o
conhecer, acontecidas anteriormente. As inter- resultado escolar, a valorização de atitudes que
venções necessárias são da ordem de restituição favorecem o aprendizado, não parecia ter muito
dos vínculos ou numa reinserção saudável no significado para eles, impedindo-os de ver e
ambiente de aprendizagem. Podemos dizer que valorizar outras aprendizagens, que contribui-
a maioria dos casos de problemas de aprendi- riam para o crescimento do rendimento escolar.
zagem está nesta classificação e um dos nossos “Gostaria muito de poder vê-la na escola,
objetivos poderia ser um trabalho preventivo, ou conversar mais sobre ela, para saber se
nas instituições de ensino para evitá-los”17. também é assim, ou se este é o espaço que ela
Com a possibilidade de entrada na escola e encontrou para poder liderar, se ali reproduz o
de troca com professores, essas são discussões que é feito com ela fora daquele espaço. Joana
que podem flexibilizar olhares e atitudes. lê com ritmo, compreende e interpreta o que lê.
“... percebemos que Antonio e Bernardo Faremos observações em relação ao raciocínio
não possuem dificuldades em aprendizagem. lógico matemático” (Cheila Montenegro, 2009).
Lêem com desenvoltura e compreendem bem “Aos poucos, foram percebendo sinais de
as situações de problemas. Eles tiram notas altas mudança, quebrando resistências e possibilitan-
na escola, e Bernardo disse que tirou nota boa do a entrada no verdadeiro sentido do trabalho
em Ciências, apesar de não gostar de algumas conjunto com a escola. Na última reunião, pu-
matérias, o que propicia alguma “dificuldade” demos perceber, por meio dos relatos, que al-
em se motivar na sala de aula. São muito parti- gumas diferenças já estavam sendo notadas no

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espaço da escola. Alguns professores falavam muitas atividades para ler e escrever e houve
de mais envolvimento, de maior interesse, de resistências. Lúcia, como sempre resistiu, re-
demonstrações de autoestima elevada e de re- sistiu e no fim, escreveu mais. Lúcia disse que
conhecimento de potencialidades de aprender. pensava estar indo lá para ter “aulas”...” (Mara
Outros, porém, continuaram sem perceber dife- Lima, 2009).
rença nas crianças/adolescentes. Acreditamos Utilizamos várias histórias que pudessem
que, pela dificuldade intrínseca da dinâmica da reforçar os nossos objetivos para esse grupo: A
sala de aula, é preciso de um tempo maior para ideia de que temos um lugar único e especial e
que a observação seja consistente”. que somos fortes à medida que juntamos nos-
sas potencialidades veio com “Os Músicos de
RESULTADOS APARECENDO Bremen”19. Com “Nicolau Tinha Uma Idéia”20,
“As dificuldades de aprendizagem e de evidenciamos o quanto ter ideias e socializá-las
comportamento relacional que as crianças/ é importante para nos fortalecer e crescer. Mas,
adolescentes mostram em sua vida escolar não foi Flicts (Ziraldo) que provocou uma verdadeira
são de índole intelectual nem relativa às suas “revolução” no grupo. Tudo passou a girar em
características intrínsecas de personalidade, torno dessa história. Tivemos que contá-la vá-
mas surgem da negação do amor como espaço rias vezes. Tudo remetia a Flicts e, acreditamos
de convivência e são corrigidas restituindo-se ter sido esse o momento da “virada”, pois como
o dito espaço.”18 diz Maria Vitória Mamede21, “...essas crianças/
As experiências de colaboração incenti- adolescentes são crianças/adolescentes Flicts,
vadas pelas duplas de psicopedagogas foram sejam porque agridem, sejam porque não
se tornando mais frequentes e os retornos dos aprendem, sejam porque são agredidas. Elas,
comentários realizados se reverteram em par- iguais a esse lápis de cor, não têm lugar na caixa
ticipação e demonstração de crescente autoes- de lápis tão supostamente arrumada da nossa
tima, garantindo ao grupo o primeiro passo da sociedade” (Dina Lucia Fraga, 2009).
autonomia responsável a partir da experiência
de um espaço de convivência reconstruído sob MOMENTOS DE PREPARAÇÃO PARA O
novas bases de vinculo positivo com o conhe- ENCERRAMENTO DO ANO
cimento. “Como sábios marinheiros, era preciso traçar
Mesmo com momentos de regressão, al- a rota de volta, ancorar nossos sentimentos ao
gumas crianças/adolescentes mostravam que fechamento do trabalho e assim organizamos
poderiam avançar. As psicopedagogas apresen- nossos últimos encontros, iniciando um resgate
taram outros formatos e organização de ativida- da memória histórica, tanto nossa, como do Cen-
des, surpreendendo as crianças/adolescentes e tro de Vitória, local que os abriga socialmente.
fazendo planejamentos com mais mobilidade. Impressionante perceber a dificuldade de reco-
Os contos sempre presentes trabalharam com nhecer os lugares que vêem todos os dias, por
a dimensão do imaginário, trazendo os perso- onde passam para ir ao local dos atendimentos.
nagens que poderiam ser convocados nas horas Trabalhamos também com fotos antigas, tanto
que se faziam necessários e começaram a fazer nossas como deles. Percebemos que o tempo
parte do imaginário do grupo. passou, a cidade se modificou, assim como nós e
“Fizemos o planejamento, li a estória que que o tempo nos traz a certeza de que podemos
escolheram e levaram um tempo boooommm fazer história, assim como as histórias que foram
para planejar a rua deles. Fiz como se fosse um contadas” (Dina Lucia Fraga, 2009).
livro, para organização e planejamento. Ficou Com a aproximação do fim do ano nos orga-
legal, cada um fazendo um pouco e na próxima nizamos para uma parada, que seria necessária
todos irão falar da “escola” da rua deles. Foram em função da reforma do espaço que ocupáva-

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Construindo e Construindo-se

mos e também da dificuldade de contato com e seriedade com que as crianças/adolescentes


a escola que perderíamos durante o período conduziram e se deixaram conduzir, o valor da
de férias. nossa atuação na criação do espaço libertário
Fizemos o convite aos professores e à direção de busca de autoria e autonomia
da escola, aos pais das crianças/adolescentes
atendidas e à direção do Centro Cultural, es- CONSIDERAÇÕES
paço utilizado para o nosso trabalho, para que O mais importante do bordado/ É o avesso
participassem junto conosco de um encontro de é o avesso/O mais importante em mim/
encerramento. A ideia era que fosse um encon- É o que eu não conheço/Eu não conheço
tro das parcerias que propiciaram o crescimento Jorge Vercilo e J Velloso21
das crianças/adolescentes. Esse seria o momen-
to de visualizarmos em conjunto o resultado dos A grande vivência que trazemos dessa expe-
nossos compromissos comuns. riência é o reconhecimento do valor de oportu-
Os grupos se prepararam para um encontro nizar que os grupos seguissem seus caminhos e
de festa, onde poderiam falar da experiência por construções diversificadas. Com isso, pudemos
meio de várias formas de linguagem: desenhos, aprender com cada dupla e compartilhar expe-
produções, apresentações e representações. riências. Foi um desafio grande o trabalho com
As escolhas foram valorizadas e significadas grupos e em grupo e muito importante sentir a
nos grupos como uma forma de mostrar sua possibilidade de sermos portos seguros umas
identidade. das outras e ganhar o olhar de observação como
“Na terça-feira, eu e Maria José conversa- uma nova luz para continuar.
mos um pouco sobre o encontro de todos com Como a música diz, o importante do borda-
a Eliana e ela disse que queria ler uma história do é o avesso. O avesso era o nosso encontro,
que ela escreveu. Achamos ótimo” (Cheila o planejamento, a covisão... O que não se vê,
Montenegro, 2009). mas que foi tecido na confiança.
No encontro de despedida do ano, várias re- A vivência do processo de construção foi uma
velações aconteceram. Testemunhamos a serie- grande oportunidade para o grupo tornar-se um
dade e envolvimento das crianças/adolescentes locus de diálogo, solidariedade e cooperação,
na preparação e no momento da apresentação. onde todas se envolveram num desafio coleti-
Apesar de alguma insegurança, os grupos se vo. Se, por um lado, o desenvolvimento de um
mostraram unidos e respeitosos, dando tempo e projeto comum transforma as pessoas em grupo,
força aos mais tímidos, para que a participação por outro, é somente sua estruturação como
fosse fluindo. Exercitaram o desejo de escolha grupo que possibilita a construção de alterna-
e de possibilidade de demonstrar o que tinham tivas solidárias de atuação. Novos significados
crescido. Estavam orgulhosos e comprometidos. e ações são produzidos coletivamente e a forma
A professora representante da escola pode de atendimento buscada toma a dimensão do
refazer o olhar para algumas das crianças/ grupo transcendendo a atuação individual.
adolescentes, avaliadas anteriormente como Pudemos compartilhar angústias em relação
“não tendo feito diferença”, vendo-as sob uma a atitudes tomadas e refletir juntas, devolvendo
nova perspectiva. A diretora do Centro Cultural leituras de acordo com as nossas vivências an-
percebeu a valorização do espaço usufruído, teriores, definindo nossas linhas de ação, cada
nas histórias exploradas a partir das exposições vez mais aproximadas e definidas.
que lá aconteceram. Os pais fizeram uma ava- Piera Aulagnier23 diz que: “existe o indizível,
liação positiva do trabalho, com depoimentos o não comunicável, naquilo que nós e nossa
de mudanças de comportamento, e nós mes- parceira vivemos, experienciamos e vivencia-
mas pudemos sentir, por meio da organização mos no tempo do encontro e que não se pode

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montenegro Cam et al.

traduzir a cor de certas falas, certas emoções, a o envolvimento de todo o grupo nas atividades,
mensagem de certos silêncios...” a sensibilidade de perceber a experiência e a
As características de trabalho de cada dupla oportunidade de construir e valorizar a diferen-
de psicopedagogas enriqueceu e aprofundou ça na semelhança, numa riqueza de percepções
relações e conhecimentos: a organização tra- e a abertura de canais de comunicação.
zendo uma nova perspectiva ao atendimento, as Como Alícia Fernandez sempre fala, não há
flexibilizações e adaptações, atendendo o dese- como se fazer um trabalho psicopedagógico
jo das crianças/adolescentes, as múltiplas ativi- sem que se reverta positivamente para quem
dades pensadas e sugeridas, o cuidado em fazer está atuando.

SUMMARY
Building and building yourself: an experience of the ABPp-ES Social
Clinic

The work we intend to share is the outcome of a group experience built


together and was a great exercise of authorship. Set in the psychopedagogical
activity for groups of children/adolescents of an Elementary School in the
city of Vitória, performed by five pairs of psychopedagogic educators
from ABPp-ES. The Project promoted the growth of all persons involved -
both the educational psychopedagogic educators who participated in the
planning and implementation, as children/adolescents who attended the
sessions. The work, operated in an activity of psychopedagogy and based
in cooperative work, was structured on confidence in the potential of team
partners. The intrinsic values and ideals contained in it were tested and
experienced group. Good results were a consequence of active involvement
and respectful of people who worked on its construction / implementation.

KEY WORDS: Learning. Learning disorders. Psychotherapy, group.

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Construindo e Construindo-se

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Trabalho realizado na Associação Brasileira de Artigo recebido: 15/2/2010


Psicopedagogia – Espírito Santo (ABPp ES), Vitória, ES. Aprovado: 7/7/2010

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rELAToCDE EXPEriÊNCiA
ândido FF

PrátiCas PedagógiCas e inovação na


instituição de ensino: uma aBordagem
PsiCoPedagógiCa Com FoCo na aPrendizagem

francisca francineide Cândido

RESUMO – Este artigo, fruto de um trabalho de supervisão, tem o


propósito de estudar as práticas educativas desenvolvidas no Lar da
Criança Domingos Sávio, em Fortaleza/Ceará, a partir de uma sondagem
qualitativa junto às professoras e suas auxiliares, considerando, de um
lado, os desafios por elas enfrentados no dia a dia em sala de aula e, de
outro, a necessidade de valorizar, nas suas práxis, as concepções teóricas
interacionistas e construtivistas de Piaget, Vygotsky, Wallon e outros, cujas
abordagens, na perspectiva psicopedagógica, sugerem inovações das
práticas pedagógicas, de modo que favoreçam a aprendizagem significativa
dos alunos.

UNITERMOS: Aprendizagem. Ensino. Inovação. Ensino de recuperação.

Francisca Francineide Cândido – Engª Agrônoma Correspondência


(UEMA), Psicopedagoga e Psicomotricista (UVA), Francisca Francineide Cândido
Mestranda em Ciências da Educação (UMa – Rua Martinho Rodrigues, 1301 – Bl. “B” 404,
Portugal), Conselheira da ABPp – Seção CE, terapeuta Condômino Village Côte D’Azur – Bairro de Fátima
voluntária do Projeto Lumiar – Núcleo II, diretora do – Fortaleza, CE – CEP: 60411-280
Instituto Educah e Presidente da Associação de Apoio E-mail: franciscafrancineide2@yahoo.com.br
aos Pais e Alunos do Estado do Ceará – AAPAECE.

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PrátiCas PedagógiCas e inovação na instituição de ensino

INTRODUÇÃO A estrutura de reforço escolar é composta


O Lar da Criança Domingos Sávio é uma de quatro salas de aula em cada turno, sendo
entidade de natureza filantrópica, localizado duas multisseriadas, uma pela manhã e outra
em Fortaleza/Ceará, que há mais de vinte anos à tarde. Cada sala acolhe crianças de três e até
desenvolve atividade pedagógica de reforço de quatro escolas, com idade e demandas esco-
escolar, recreação, formação religiosa, musical lares (tarefas para casa) diferentes: Jardim (4 a
e cidadã, com crianças carentes, oriundas das 6 anos); 1º ano (7 e 8 anos); 2º e 3º anos (9 e 10
escolas públicas do bairro Vila União, evitando anos); 3º, 4º e 5º anos (11 a 14 anos).
o seu abandono nas ruas, no expediente oposto O objetivo deste trabalho é estudar as práti-
ao das escolas de origem. cas educativas desenvolvidas no Lar da Criança
Desde 2004, o Lar da Criança acolhe o Domingos Sávio, em Fortaleza/Ceará, a partir
Núcleo II do Projeto Lumiar, uma iniciativa da de uma sondagem qualitativa junto às profes-
ABPp – Seção Ceará. Além do atendimento soras e suas auxiliares, considerando, de um
psicopedagógico clínico às crianças com difi- lado, os desafios por elas enfrentados no dia a
culdades de aprendizagem, o Núcleo assegura dia em sala de aula e, de outro, a necessidade
um suporte psicopedagógico institucional às de valorizar, nas suas práxis, as concepções
professoras, com base nas teorias interacionis- interacionistas e construtivistas dos teóricos
tas e construtivistas do desenvolvimento e da Piaget, Vygotsky, Wallon e outros, cujas aborda-
aprendizagem humana, tendo como principais gens, na perspectiva psicopedagógica, sugerem
referências Piaget, Vygotsky, Wallon e outros. inovações das práticas pedagógicas, de modo
A despeito das resistências, esse suporte que favoreçam a aprendizagem significativa
teórico, complementado com a supervisão das dos alunos.
práticas pedagógicas, tem favorecido a com-
preensão de como se processa a aprendizagem FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: DESEN-
nas crianças, contribuindo para uma adequada VOLVIMENTO DA CRIANÇA E SUA RE-
atuação pedagógica com aquelas que apresen- LAÇÃO COM A APRENDIZAGEM
tam mais dificuldades em sala de aula, de modo As concepções que explicam o desenvolvi-
que minimizem suas dificuldades e apresentem mento da criança e sua relação com a aprendi-
um melhor desempenho na escola, na família e zagem são variadas, porém são indispensáveis
em outros contextos sociais. à construção do conhecimento do professor,
Em 2009, o Lar da Criança iniciou o ano leti- podendo acontecer de diferentes formas, de
vo com 250 crianças de 4 a 14 anos e encerrou acordo com as teorias que privilegiam e funda-
com 228, portanto, com 22 (8,7%) crianças a mentam as dimensões, cujos pressupostos são
menos. A direção da instituição atribui como assumidos como verdadeiros.
causas desse abandono: mudanças de ende- Relativamente ao contexto escolar e aos
reço da família, desinteresse dos pais ou res- projetos de intervenção pedagógica, onde os
ponsáveis, ou, ainda, as crianças mais frágeis processos ensino-aprendizagem se desenvol-
não conseguem acompanhar o ritmo dos dois vem, há que considerar e compreender como se
expedientes escolares. processa o desenvolvimento global da criança
Em 2010, 234 crianças matricularam-se no e sua relação com a aprendizagem, buscando
Lar, 6,4% a menos do que em 2009, porém, suporte teórico nas concepções interacionistas
2,26% a mais que o total de crianças que con- e construtivistas.
cluíram o ano letivo anterior. As crianças ma- Ao estudar o papel do meio físico e dos gru-
triculadas são oriundas das escolas: Papa João pos na educação, Wallon (1954) destaca que “é
XXIII, Haroldo Jorge Brawn Vieira, Presidente no meio físico e social que a atividade infantil
Médice, Piamarta, Cordeiro Neto e Geni Gomes. encontra as alternativas de sua realização: o

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saber escolar não pode se isolar desse meio, de Psicologia Genética” (1972, p. 339)4, a qual
mas, sim, nutrir-se das possibilidades que ele fornece alguns dados para a compreensão do
oferece”1. desenvolvimento intelectual da criança.
Com visão semelhante, Oliveira2 assegura Nessa concepção, cujo resumo encontra-
que é no espaço escolar, dentro e fora da sala de se descrito por Cândido & Ferreira5, quando
aula, que o professor encontra a melhor possibi- o indivíduo ainda é um bebê, suas ações são
lidade de observar a postura e o comportamento automáticas e necessitam do objeto para imitar,
das crianças e adolescentes, pois é na interação usa o próprio corpo, brinca com as mãos e com
entre esses sujeitos que a expressão corporal, a os pés, e os seus atos são repetitivos.
linguagem oral e a escrita se manifestam mais À medida que vai crescendo (2 a 7 anos), a
naturalmente, com ou sem dificuldades. criança passa a fazer maior uso da linguagem,
Na concepção interacionista, o desenvolvi- começa a imitar sem modelo, faz uso da fantasia,
mento do pensamento e o conhecimento são do mágico, da ficção e da dramatização. Nesta
construídos na relação de interdependência fase, o mundo da criança é um mundo lúdico,
entre o sujeito e o meio. Nessa perspectiva, a do imaginário, do “como se fosse”, ou do “faz
teoria de desenvolvimento da criança, formu- de conta”.
lada por Henri Wallon1, sustenta que criança Por volta dos 7 anos, a criança atinge uma
precisa de um adulto socializado, para ser in- fase mais prática do pensamento, subordina-se
serida no social. Complementa essa corrente o a regras a que todos devem obedecer, sabe o
construtivismo, que é uma teoria cognitivista, que é seu e o que é do outro, reconta histórias,
tendo sua base na psicogênese da inteligência descreve cenas, trabalha com jogos e brincadei-
e dos conhecimentos. ras que envolvem alguns objetos, distingue a
Piaget (1896-1980), Vygotsky (1896-1934) fantasia da realidade e se interessa pelas causas
e Wallon (1879-1962), teóricos interacionistas dos fenômenos.
e construtivistas, estudaram o como e o por- Dos 7 aos 11 anos, a criança passa a fazer
quê as pessoas aprendem, como acontece o uso das operações lógico-concretas, trabalha
desenvolvimento cognitivo e quais os fatores com jogos mais complexos, como futebol, adivi-
que estimulam a aprendizagem, empregando nhações, enigmas e charadas, vê uma situação
fundamentos realistas, com maior objetividade por diferentes ângulos, é capaz de organizar
e melhor adequação à evolução dos alunos e do elementos de acordo com suas características
próprio professor, os quais poderão favorecer (cor, tamanho, forma, comprimento, volume,
a interpretação e orientação para uma prática etc), usando critérios de conjunto, mantém di-
educativa inovadora. álogo e cria histórias com enredo.
Dos estudos das teorias construtivistas, rea- Nesse estágio, a criança ainda não é capaz
lizados por Fino3, podem-se extrair os seguintes de discutir diferentes pontos de vista, sua lógi-
postulados: a) o mundo e o conhecimento que ca também não é igual à lógica do adulto, os
cada um tem é construído histórico e socialmen- enunciados verbais podem não ser suficientes
te e conforme seu entendimento de realidade; b) e as operações lógicas desta idade dependem,
os cenários espaço-temporais moldam a nature- sem dúvida, de sua esfera concreta de aplicação.
za das construções de mundo; c) criamos a nós Para Piaget, a faculdade de pensar logicamen-
mesmos como ferramentas; d) o conhecimento te nem é congênita, nem está pré-formada no
é pessoal, intransferível e não auto-suficientes. psiquismo humano.
Com essa visão, não há como pensar a edu- O último estágio de desenvolvimento cogni-
cação e as inovações pedagógicas sem con- tivo do homem, segundo Piaget4, a partir dos 12
siderar os conhecimentos teóricos de Piaget, anos, é o operatório formal. Nesta fase, a criança
encontrados na sua obra literária “Problemas liberta-se inteiramente do objeto, apresenta pen-

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PrátiCas PedagógiCas e inovação na instituição de ensino

samento hipotético-dedutivo, mantém diálogo, De acordo com a interpretação de Oliveira


é cooperativa, interessa-se por transformações (s/d, p. 44)2, a ZDP atua como uma forma indire-
sociais, discute temas, considera pontos de vista ta de consciência, até que a criança seja capaz
e chega a conclusões nas suas hipóteses. de dominar sua própria ação por meio de sua
Considerando o ensino baseado no cons- própria consciência e controle.
trutivismo de Piaget, Fiorillo6 argumenta que De acordo com Fino8, o conhecimento é algo
este tem como intenção o aprender e o ensinar, pessoal e intransferível e é construído (resulta-
possibilitando ao aprendiz construir e recons- do) na experiência pessoal e subjetiva de uma
truir o conhecimento, descobrindo novas formas atividade que é mediada por signos culturais
para significar algo, baseado em experiências (linguagem, utensílios, tecnologia, meios de
e conhecimentos existentes, o que implica um comunicação, convenções, etc), destacando,
novo conhecimento. nesse processo, o papel do “outro social” no
Em resumo, a abordagem construtivista desenvolvimento da criança.
originada da concepção e da epistemologia Ao estudar e conceber o indivíduo nos aspec-
genética de Jean Piaget estuda o processo de tos psicológico e social, Vygotsky (1978), apud
construção do conhecimento humano como Fino3, refere-se à mediação como o conceito
resultante da interação social entre o sujeito e central de sua psicologia, uma espécie de lei em
o objeto de aprendizagem. que todas as funções cognitivas aparecem duas
Por sua vez, a abordagem construtivista que vezes no desenvolvimento cultural infantil: uma
fundamenta as práticas educacionais baseadas no nível social, entre as pessoas (interpsicologi-
na teoria histórico-cultural de Vygotsky é uma camente), e a outra, no nível individual, dentro
das que exerce influência marcante na com- da criança (intrapsicologicamente).
preensão da relação entre aprendizagem (um Para Vygotsky, citado por Fino3, a interiori-
processo psicológico ativo na construção do zação se processa com a reconstrução interna
conhecimento) e desenvolvimento cognitivo, de operação externa, ou seja, a transformação
cuja resultante é a própria aprendizagem, ou de um processo interpessoal em intrapessoal,
seja, aquilo que se aprende cognitivamente. resultado de uma série de eventos do desen-
A concepção construtivista de Vygotsky7 volvimento. Nesse sentido, Vygotsky ressalta:
mostra que “o aprendizado humano pressupõe a escolaridade formal é um dos contextos mais
uma natureza social específica e um processo favoráveis para o desenvolvimento das funções
através do qual as crianças penetram na vida mentais superiores.
intelectual dos que a cercam”, ou seja, é por Sinteticamente, a teoria Vygotskyana
meio da interação da criança com um parceiro oferece aos profissionais de diferentes áreas,
mais experiente (tutor, colega, professor) ou da especialmente aos educadores, os seguintes
cultura (Fino, 2001, p. 99)8 que se dá a interna- postulados: a) a criança constrói o seu próprio
lização dos mediadores simbólicos e da própria conhecimento; b) o desenvolvimento cognitivo
relação social. não pode ser separado do seu contexto social;
Para explicar o desenvolvimento cognitivo c) a aprendizagem pode liderar o desenvolvi-
da criança, Vygotsky cria o conceito de Zona de mento; d) a linguagem desempenha um papel
Desenvolvimento Proximal (ZDP) − capacidade central no desenvolvimento da mente; e) a
de solucionar problemas com a ajuda de adultos, aprendizagem do conhecimento é o momento
ou de crianças mais experientes, medido pela em que o aprendiz interiorizou ou aprendeu
distância entre o “nível de desenvolvimento determinada informação, ou conceito, e é capaz
atual” - capacidade em solucionar problemas de usá-la independentemente; f) a atividade
sem ajuda de terceiros, e o “nível potencial de humana é mediada pelo uso de ferramentas;
desenvolvimento”9. e g) os sistemas de signos (linguagem escrita,

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Cândido FF

numeração etc.) são criados pela sociedade e agarrar, segurar, manipular, apontar, sentar,
mudam com o seu grau de desenvolvimento. andar, auxiliada pela fala e por gestos do
Esta concepção mostra que a construção do sensório-motor e projetivo, preparando o
real e do simbólico, pela criança, se dá na sua afetivo e o cognitivo para o próximo estágio
interação com pessoas mais experientes, ou de desenvolvimento;
seja, ao imitar o adulto e por ele ser orientada, • Personalismo (3 a 6 anos) – a criança já se
internaliza, paulatinamente, a realidade do seu diferencia de outros seres pela auto-explo-
meio, do seu contexto social, os significados, os rarão, começando aí, por meio de atividades
conceitos, símbolos e signos que a representam. de oposição (expulsão do outro) e, ao mesmo
Complementarmente às demais teorias tempo, de sedução (assimilação do outro) e
construtivistas, o estudo de Henri Wallon sobre da imitação, o processo de construção da sua
o desenvolvimento da criança compreende o subjetividade e da discriminação entre o Eu
indivíduo em sua totalidade, na sua gênese e o Outro, que se revela no uso insistente de
(origem biológica da consciência), por meio da expressões, como: eu, meu, não, etc;
qual se tem uma “visão integrada do aluno”, • Categorial (6 a 11 anos) – a nítida diferencia-
conforme ressalta Mahoney1. ção entre o Eu e o Outro oferece condições
A teoria de Wallon aponta que a pessoa para a exploração cognitiva do mundo físi-
é constituída das dimensões motora, afetiva co (atividades de agrupamentos, seriação,
e cognitiva, que se revelam em atividades classificação), em nível de abstração, até
vinculadas entre si e nas suas interações em chegar ao pensamento categorial, ou seja, a
constante movimento, sendo que, a cada con- organização do mundo físico em categorias
figuração resultante (estágio), completa-se uma mais bem definidas;
totalidade responsável pelos comportamentos • Puberdade e Adolescência (11 anos e mais)
daquela pessoa naquele momento, naquelas – neste estágio, o sujeito explora a si mesmo
circunstâncias, e que preparam as mudanças como uma entidade autônoma, mediante
para o estágio seguinte. atividades de confronto, autoafirmação,
Os estágios de desenvolvimento sequencial questionamentos, porém se submete e se
da criança propostos por Wallon, enquadrados apoia nos grupos de pares, contrapondo-
na existência social de sua época, bem como as se aos valores dos adultos, com os quais
características atribuídas a cada um, são: convive, dominando categorias cognitivas
• Impulsivo-emocional (0 a 1 ano) – na primeira de maiores níveis de abstração, nas quais a
fase (0 − 3 meses) predominam movimentos dimensão temporal toma relevo, tendo uma
bruscos e desordenados da tensão muscular, noção mais clara dos limites de sua autono-
ora enrijecidos ora relaxados, orientados à mia e dependência.
exploração do próprio corpo em relação às
suas sensibilidades internas e externas e que METODO
chamam a atenção do outro para cuidar da A metodologia trabalhada na supervisão
satisfação de suas necessidades, funcionando das práticas pedagógicas é composta de uma
como instrumentos que expressam estados sondagem qualitativa junto às professoras,
de bem-estar e mal-estar. Na segunda fase feita por meio de um questionário aberto, com-
(3 – 12 meses), é possível reconhecer padrões plementada posteriormente em um encontro
emocionais diferenciados para medo, alegria, dialógico, onde as informações descritas no
raiva, etc; questionário foram apresentadas e enrique-
• Sensório-motor e projetivo (1 a 3 anos) – cidas em debate pelo grupo, culminado com
com atividade motora exuberante, a criança nossas orientações, fundamentadas nas con-
explora concretamente o espaço físico pelo cepções interacionistas e construtivistas.

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PrátiCas PedagógiCas e inovação na instituição de ensino

Por meio do questionário, obtiveram-se di- que suas falas e opiniões são valorizadas, após
versas informações, como a discriminação das o que a direção relembra aos pais as normas de
práticas pedagógicas internas e extraclasses, funcionamento do estabelecimento de ensino
envolvendo as crianças aprendizes e os pais, a (horários, fardamento, atividades extraclasses)
metodologia de trabalho no atendimento peda- e informa sobre suas práticas educativas.
gógico às crianças com demandas escolares dife- Contando, geralmente, com a parceria da
rentes (escolas de origem), o relacionamento das Associação de Apoio aos Pais e Alunos do
professoras e da instituição com as famílias dos Estado do Ceará - AAPAECE, vários temas de
alunos, a compreensão das pedagogas quanto interesse das famílias são abordados, dentre os
às queixas das famílias com relação aos filhos/ quais: violência contra criança e adolescente;
alunos e destes com relação aos pais, e as práticas drogas; educação sexual; amor, limite e inte-
educativas no tocante às questões disciplinares. gração família-escola ingredientes da aprendi-
O encontro com as professoras teve início zagem; acompanhamento da vida escolar dos
com uma dinâmica de sensibilização, por meio filhos, em casa, na escola e em outros contextos
da qual se procurou evidenciar o contraditório e sociais.
o desafio da prática profissional diária, no pro- As questões disciplinares, ou de dificuldade
cesso ensino-aprendizagem, ante a diversidade de aprendizagem dos alunos, são tratadas pelas
de subjetividades de crianças envolvidas no pro- professoras e, dependendo do caso, pela dire-
cesso em sala de aula e dos fatores interferentes tora, diretamente com os pais ou responsáveis.
na vida cotidiana de cada uma. Outra forma de aproximação com a família ou
A dinâmica iniciava-se com movimentos len- responsável acontece no momento da acolhida
tos e desordenados sob a mediação de uma músi- (chegada) e da saída da criança no portão, uma
ca rápida e, depois, continuava com movimentos função diária desempenhada pelas professoras.
rápidos, usando uma música instrumental lenta,
seguida de uma reflexão na abordagem dialógica 2. Relacionamento com as escolas de origem
freireana10 sobre a vivência e, posteriormente, Embora o Lar da Criança ainda não tenha
sobre as questões contempladas no questionário. mantido diretamente qualquer relacionamento
com as escolas de origem dos seus alunos, há
PRÁTICAS EDUCATIVAS E INOVAÇÃO tempo, segundo a fala das professoras, a insti-
PEDAGÓGICA tuição percebe a importância e a necessidade
Neste item, estão contempladas as principais dessa aproximação, seja para discutir estraté-
práticas educativas e pedagógicas desenvolvi- gias pedagógicas de aprendizagem, seja para
das no Lar da Criança, como: discutir questões disciplinares.
Nesse sentido, uma professora enfatizou:
1. Relacionamento com os pais “aqui temos alunos do 2º ano que não sabem
Anualmente, após as matrículas, as professoras ler, nem escrever”; outra professora acrescen-
visitam os lares de todas as crianças, procurando tou: “temos criança que não faz letra cursiva, só
estabelecer um vínculo inicial positivo entre a letra de forma; a gente tenta ajeitar a letra dela”.
escola e a família, especialmente entre a profes-
sora, a família e o aluno. Nessa visita, percebem 3. O olhar das professoras com relação às
as condições socioeconômicas das famílias (esco- queixas das famílias sobre os filhos
laridade, ocupação, trabalho, aposentadoria), as O comportamento indisciplinar das crianças,
condições de moradia, como vivem e se relacio- a falta de interesse pelos estudos e a falta de
nam no contexto familiar e no seu entorno. atenção e concentração em sala de aula são as
Mensalmente, a instituição promove reunião principais queixas das mães com relação aos
ou palestra de formação para os pais, ocasião em filhos, segundo as professoras.

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Ressaltando a contradição entre a queixa É necessário educar os filhos com amor e


da família e o cuidar dos filhos, uma professora limite, pois esses ingredientes causam im-
destaca: “algumas delas não se preocupam pacto positivo na vida escolar das crianças,
com os filhos”. Outra professora enfatiza: assim como a escola deve estabelecer um di-
“existe mãe que só aparece no dia da matrícu- álogo franco, sincero e aberto com os pais. A
la. Durante todo o ano, manda a criança para a presença dos pais na escola é um estímulo às
escola pela vizinha, ou por uma amiga”. crianças; elas se sentem orgulhosas, quando
Referindo-se ao fato de que, muitas vezes, a os pais se interessam pelos seus estudos e
criança encontra-se no terceiro e até no quarto pela sua vida, passando pelo seu vínculo po-
ano sem saber ler e escrever, outra professora sitivo com a escola e com sua aprendizagem.
acrescentou: “e a mãe só percebe a dificuldade Em sala de aula, após a grande acolhi-
do filho depois que chamamos a sua atenção da no pátio, envolvendo todas as crianças,
para o problema”. algumas professoras inovaram iniciando as
atividades com uma dinâmica, com jogos
4. O olhar das professoras quanto às quei- ou brincadeiras, de modo que despertam o
xas das crianças sobre os pais interesse maior em todas as crianças, espe-
Segundo as professoras, as crianças se cialmente naquelas crianças que ainda estão
queixam da falta de atenção, carinho, diálogo com o sono acumulado. Esta prática deve ser
e interesse dos pais. Falando sobre a carência reforçada por meio do diálogo com os pais,
afetiva da criança, uma professora ressaltou: observando o horário de dormir das crianças.
“muitas vezes recebemos uma criança no Também foi recomendado pelas professo-
portão, ela entra chorando, empurrada pela ras que a escola coloque uma TV no pátio, a
mãe, que, ao fechar o portão em suas costas, partir das 10h30, pela manhã, e das 16h30, à
ainda diz: ‘você fica porque não tenho onde tarde, no espaço físico de recreação e lanche,
lhe deixar’”. para as crianças assistirem a filmes infantis,
Sem, a princípio, tentar compreender as seguidos de reflexões dialógicas educativas,
razões desse comportamento das mães, as enquanto aguardam os pais na saída, nos
professoras entendem que essa atitude da mãe expedientes matutino e vespertino.
é de quem quer se livrar da criança, usando a
escola como depósito. 5. Planejamento das atividades pedagó-
Do debate, surgiram essas indagações: qual gicas
o estímulo que essa criança encontra para ir a Todas as professoras (cinco) realizam o
escola e para se interessar pelos estudos, se a planejamento anual no período das férias
própria mãe age dessa forma? Como a crian- e o planejamento mensal de acordo com o
ça pode se concentrar em sala de aula e ter calendário escolar, ocasião em que as au-
motivação para os estudos, se já entra na sala las são suspensas para a realização dessa
contrariada, sentindo-se rejeitada pela própria atividade.
mãe e sem qualquer estímulo doméstico? As que elaboram o planejamento sema-
“Na minha sala”, confessa uma professora, nal (quatro) argumentam que o plano sema-
“muitas crianças dormem tarde, assistindo nal contorna melhor situações imprevistas,
televisão; daí chegam sempre com sono”. Nas como passeios, visitas e festas inesperadas,
reflexões, ficou claro que essas questões devem principalmente de outubro a dezembro,
continuar sendo objeto de discussão nas pales- período das festas natalinas, fato notório
tras com os pais, devendo-se ressaltar que toda na vida de uma instituição educativa de
criança deve ter horário para estudar, brincar, natureza filantrópica (ONG) que conta com
assistir televisão, fazer as refeições, etc. o apoio do trabalho voluntário e de doações.

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PrátiCas PedagógiCas e inovação na instituição de ensino

6 . P r á t i c a s e d u c a t i v a s c o m re l a ç ã o dos alunos, são encaminhados para o Núcleo


à questão disciplinar e dificuldades de II do Projeto Lumiar, onde as crianças passam
aprendizagem por uma avaliação.
Diariamente, as professoras trabalham com Conforme o resultado dessa avaliação, a
as crianças os dez mandamentos da escola, os criança passa por um acompanhamento psico-
quais tratam das regras de convivência, da pedagógico no próprio Núcleo II, ou é encami-
ética, das boas maneiras e da disciplina. “As nhada para outro especialista, conforme sugere
crianças melhoram bastante ao longo do ano”, a hipótese diagnóstica.
afirma uma professora, “porém quando se
aproxima do final do ano, ficam mais agitadas, 7. Práticas pedagógicas nas salas de reforço:
mudam de comportamento”. inovação pela diversidade
“Essa agitação, por um lado, é devido ao Por turno, o lar da Criança trabalha com
calor que aumenta consideravelmente, ficando quatro salas de aulas, sendo uma do Jardim,
insuportável e, por outro, devido às festivida- com crianças de 4 a 6 anos, uma sala do 1º ano
des e à angústia de saberem que não vão entrar (7 e 8 anos), uma que congrega crianças do 2º
de férias na escola pública, devido às greves de e 3º (9 e 10 anos) e uma com alunos do 3º, 4º e
professores. Geralmente o calendário escolar 5º anos (11 a 14 anos).
das escolas públicas passa para o ano seguin- É, de certa forma, inovadora a prática pe-
te”, ressalta uma professora. dagógica das professoras em sala de aula no
No caso da indisciplina escolar, as pro- tocante ao acompanhamento e orientação das
fessoras confessam que tratam o problema atividades de reforço escolar, considerando que,
dialogando diretamente com as crianças, ex- em uma mesma sala, encontram-se crianças de
plicando e debatendo sobre os mandamentos diferentes idades e diferentes escolas, portanto,
disciplinares da instituição, em sala de aula, com demandas escolares oriundas de contextos
ouvindo a opinião de cada uma. culturais e educativos diferentes.
A despeito dos bons resultados, uma pro- As crianças são dispostas em sala de aula,
fessora ressaltou: “existem crianças que agri- sentadas próximas umas das outras, por estabe-
dem, são provocativas, são violentas, batem lecimento de ensino, de modo que, no mesmo
nos colegas e, mesmo com a nossa orientação intervalo de tempo, todas as crianças realizam
não mudam, não aceitam que estão erradas suas tarefas escolares, chamadas reforço, com
e não pedem desculpas”. “Quanto aos casos a ajuda da professora e da auxiliar, uma prática
mais difíceis com relação à indisciplina, que que vem ao encontro da necessidade de atender
perturbam a sala de aula e o ambiente institu- a uma demanda da instituição de ensino.
cional, chamamos as famílias”, complementa Segundo a descrição de como se processa
uma professora. essa prática, percebe-se que as crianças com
“Os casos de indisciplina exacerbada que mais dificuldades são orientadas por último, o
concorrem prejudicando não só o interesse e a que deve contribuir mais ainda para acentuar
aprendizagem da própria criança, mas de todo sua dificuldade de aprendizagem.
ambiente escolar, a direção da instituição, jun- Com exceção da professora da sala multis-
tamente com os pais, faz o devido encaminha- seriada do 2º e 3º ano, em que as crianças se
mento da criança”, confessa outra professora. sentam em semicírculo, uma ao lado da outra,
Já os casos mais difíceis, com relação a formação que favorece as trocas interativas,
problemas de aprendizagem, associados à a aprendizagem colaborativa e a aprendiza-
memória, atenção, concentração, trocas fonê- gem midiatizada por pares mais experientes
micas e silábicas na escrita e na fala, hipo e (Vygotsky). Nas demais salas, as professoras
hipertonia, que comprometem a aprendizagem ainda não romperam com o paradigma fabril,

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prevalecendo ainda a “fila indiana”, uma inva- Quanto à participação dos pais nas reuniões,
riante cultural, conforme Fino11. há um consenso de que esta tem melhorado
Quanto às demais atividades pedagógicas, bastante: “estão mais desinibidos e opinam mais
como jogos, brincadeiras, dramatização, leitu- sobre diferentes temas”, porém se recomenda
ra de palavras, frases e textos, contos infantis, a adoção de estratégias que promovam mais
pintura e desenho, recreação, oficina de músi- ainda a escuta, a narração das histórias de vida
ca, coral e dança, são desenvolvidas em grupo e a escolha temática com reflexão dialógica nas
e também individualmente, na modalidade reuniões. É necessário que se discuta com toda
semidiretiva e conforme o planejamento da a comunidade escolar o projeto “Educação pela
professora, embora se perceba uma abertura e Paz e pela Cidadania”, lançado recentemente
uma grande vontade de aprender e inovar no pela AAPAECE.
processo do ensino-aprendizagem. Também se recomenda que se estabeleça
um ritual diário de acolhida e sensibilização
CONSIDERAÇÕES FINAIS com os pais, na entrega dos filhos, levando-os a
Ante a evidência da necessidade de apro- compreender a importância de acompanharem
ximação do Lar da Criança com as escolas de a vida escolar dos filhos e participarem dela
origem, recomenda-se que estas sejam visitadas mais de perto, além de ampliarem os vínculos
pela diretora do Lar da Criança, acompanhada positivos na relação escola-família: ambos são
da psicopedagoga do Projeto Lumiar – Núcleo II, imprescindíveis à aprendizagem significativa
que realiza o trabalho de supervisão pedagógica da criança.
na instituição. Sobre os postulados teóricos referentes ao
A ideia é articular e programar reunião ou en- interacionismo e construtivismo necessário à
contro com a participação dos professores dessas compreensão do desenvolvimento humano, se
instituições de ensino para discutir os problemas o professor não os leva em conta na sua prática
comuns, como dificuldades de aprendizagem das pedagógica, a criança pode até ampliar suas
crianças em leitura, escrita e matemática e ques- dificuldades de aprendizagem, implicando
tões disciplinares, bem como estabelecer estraté- muito provavelmente numa defasagem escolar
gias de práticas pedagógicas educativas focadas (reprovação), em função de vínculos negativos
na aprendizagem das crianças, especialmente no seu processo de aprendizagem significativa.
daquelas que apresentam mais dificuldades. Assim, é importante ter sempre em conta
No Lar, as atividades pedagógicas de reforço a fase em que a criança se encontra para se
escolar, em sala de aula, devem atender, priorita- propor a atividade adequada ao seu processo
riamente, as crianças com mais dificuldades, até de aprendizagem e desenvolvimento, além de
que consigam elevar seu nível de aprendizagem valorizar como se processa a aprendizagem na
e sua autoestima. Para tanto, recomendam-se criança, pois cada criança tem um jeito de ser
práticas que favoreçam a interação da criança e de aprender, tem uma subjetividade própria.
com mais dificuldade com outras mais expe- Portanto, considerar estas fases e a forma
rientes, principalmente no momento em que a como o professor trabalha a informação para
professora volta sua atenção para a turma como transformá-la em conhecimento, em sala de
um todo. aula, é de suma importância para o desenvol-
Nunca é demais lembrar que as crianças vimento intelectual da criança. A maturação de
com dificuldades mais graves devem ser enca- uma fase é fundamental para o desenvolvimen-
minhadas para uma avaliação psicopedagógica, to da fase seguinte.
com o consentimento dos pais, se possível junto Além de considerar os postulados das teorias
ao Projeto Lumiar, como vem acontecendo nos construtivistas nas suas práxis, recomenda-se,
últimos seis anos. ainda, que as professoras considerem a impor-

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PrátiCas PedagógiCas e inovação na instituição de ensino

tância da aprendizagem colaborativa em seus pátio. Nesse sentido, recomenda-se um melhor


diferentes modos de aquisição, construção e uso dos recursos e materiais atualmente dispo-
partilhamento do conhecimento resultantes do níveis, inclusive de informática.
processo de interação social (vivências, dinâmi- Na percepção das professoras, em sala de
cas de grupo, jogos coletivos, etc), no qual os aula, o maior desafio do professor é saber lidar
aprendizes são os protagonistas. com as diferenças, considerando e valorizando
Nos projetos, ou atividades de leitura e escri- os diferentes estilos de ser e de aprender das
ta, é fundamental que a criança seja colocada crianças, o envolvimento das famílias no acom-
no lugar de leitor e escritor, antes mesmo de panhamento da vida escolar dos filhos, e encon-
dominar as convenções do sistema alfabético, e trar uma forma de viabilizar a aproximação do
o professor, de um monitor ou um parceiro mais Lar da Criança com as escolas de origem.
experiente, que garante, inclusive, a troca de Nesse sentido, além de um olhar e de uma
informações entre as crianças, especialmente escuta sensível (Carl Rogers) sobre as crianças
nas atividades complementares às do reforço com mais dificuldades, as professoras, em sala
escolar, estimulando a reflexão dialética e crítica de aula, devem atendê-las prioritariamente,
em todos os temas trabalhados.
chamando-as para junto de si, dando-lhes mais
Além disso, valorizando os requisitos do
atenção, até que consigam melhorar sua auto-
processo de aquisição da leitura e da escrita
estima e se tornem autônomas no seu processo
e da construção da autonomia, em situações
de aprendizagem.
de jogos, manuseio de livros, periódicos, etc.,
Uma boa estratégia é trabalhar com o coti-
a criança deve: a) assistir a atos de leitura e
diano do aluno, suas vivências e experiências
escrita; b) imitar atos de leitura e escrita; e c)
em nível familiar, escolar, bairro, cidade, estado
ler e escrever com finalidade social.
e país, contextualizando.
Não menos importantes são as condições e
Valorizando o pensamento das pedagogas,
os recursos físicos que dão suporte às práticas
educativas e de aprendizagem, como: ventila- recomenda-se um encontro de supervisão a
ção nas salas de aula, para amenizar o calor, cada dois meses e, mensalmente, uma vivência
quadro branco, para minimizar processos alér- ou uma atividade de sensibilização mediada por
gicos, e colocação de televisão no pátio, para psicopedagogo, um suporte terapêutico às suas
as crianças assistirem a filmes educativos em práticas pedagógicas.
horários programados ou enquanto aguardam Por último, recomenda-se que o professor
seus pais no horário de saída. procure atuar como um parceiro mais experien-
Ainda como suporte ao processo ensino- te, como um agente dinamizador e mediador da
aprendizagem, há uma recomendação das transformação da informação em conhecimento,
professoras no sentido da contratação de um evoluindo por meio de práticas pedagógicas
instrutor de atividades esportivas (futebol, vôlei, inovadoras, passando dos procedimentos e das
etc) e recreação, assim como a da aquisição de rotinas escolares tradicionais para contextos
mais jogos pedagógicos e recreativos e de mais e atividades que favoreçam a aprendizagem.
materiais didáticos, para dar suporte às dinâmi- É tornar o ato de ensinar e aprender um ato
cas e às atividades lúdicas em sala de aula e no significativamente prazeroso.

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SUMMARY
Pedagogical practices and innovations in the teaching institution: a
psychopedagogic approach with focus in the apprenticeship

This paper, result of a work of supervision, has the purpose to study the
educative practices developed in the Lar da Criança Domingos Sávio, in
Fortaleza/Ceará, from a qualitative sounding near by the woman teachers
and their assistants, considering, on one side, the challenges faced by
them, day by day, in class rooms, and, on the other side, the necessity to
value, in their praxis, the Piaget’s, Vygotsky’s, Wallon’s and others’ inter-
actionist and constructivist theoretical conceptions, whose approaches, in
the psychopedagogic perspective, suggest innovations of the pedagogical
practices, so that favor the student meaningful apprenticeship.

KEY WORDS: Learning. Teaching. Innovation. Remedial teaching.

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Trabalho realizado no Lar da Criança Domingos Artigo recebido: 4/6/2010


Sávio, Fortaleza, CE. Aprovado: 19/8/2010

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rELATo DE EXPEriÊNCiA
disCurso Paterno

disCurso Paterno: sinais indiCativos de


disFunções relaCionais
olga Araújo Perazzolo; siloe Pereira; marcia m. Capellano dos santos

RESUMO – O trabalho apresenta considerações teóricas sobre


elementos encontrados no discurso de pais de crianças do sexo masculino
com problemas de aprendizagem e de comportamento. As reflexões são
embasadas em contributivos teóricos da psicanálise, e na associação do
fenômeno com referentes da organização da sociedade contemporânea,
particularmente no que tange ao tripé de sustentação social (família, escola,
instituições propagadoras de valores), e aos instrumentos que conectam os
três eixos (leis/normas). Os elementos dos discursos se referem às ideações
circulares que tendem a recolocar o pai no lugar central das narrativas;
à tendência de designar o locutor como vítima principal do problema
apresentado pela criança; à argumentação sobre práticas educativas
adotadas por meio da lógica da submissão; à ausência de imagens de futuro
do filho. A expectativa, após conclusão do estudo, é a de que a atenção aos
aspectos referidos poderá, por meio de uma abordagem precoce, orientar
estratégias que potencializem o êxito de intervenções terapêuticas.

UNITERMOS: Transtornos de aprendizagem. Narcisismo. Organização


social. Relações pai-filho.

Olga Araújo Perazzolo – Mestre em Psicologia, Correspondência


docente da Universidade de Caxias do Sul. Profa. Olga Araujo Perazzolo
Siloe Pereira – Mestre em Psicologia, docente da Programa de graduação em Psicologia e de Pós-
Universidade de Caxias do Sul. graduação em Psicopedagogia.
Marcia M. Capellano dos Santos – Doutora em Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130, Bloco E – Cidade
Educação, docente da Universidade de Caxias do Sul. Universitária – Caxias do Sul, RS
E-mail: oaperazz@ucs.br

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Perazzolo ao et al

INTRODUÇÃO As leis e normas, de outra parte, cumpririam a


As relações familiares constituem, segura- função de ligar os eixos, como uma corda que
mente, um dos focos de estudo de significa- amarra e mantêm a estrutura de sustentação.
tiva importância no processo potencialmente Se adotado esse crivo para a leitura do con-
ampliador do arcabouço teórico necessário à texto contemporâneo, ficam claros os sinais de
criação de novas abordagens que maximizem deformidades presentes em cada um dos eixos
intervenções favorecedoras do desenvolvimento de suporte social, favorecendo a emergência
dos sujeitos e minimizem os graves problemas de ameaça à funcionalidade dos grupos, frag-
de organização e controle das normas que re- mentando a teia relacional, e destituindo a lei
gulam as relações humanas na sociedade con- como alegoria da ordem que assegura a vida
temporânea. Fala-se, portanto, de um cenário em sociedade.
de crise que envolve desde a constituição mais No que tange às famílias, alguns marcos
singular dos sujeitos, até os sistemas sociais característicos da vida contemporânea, bastante
complexos, carregados de valor simbólico. difundidos nos campos sociológico e psicológi-
As evidências de que os meios que assegura- co, permitem supor graus variados de compro-
vam os limites comportamentais da ordem social metimento do desempenho do papel da família,
já não servem aos modos de vida da rede huma- enquanto fundadora de matrizes psico-afetivas
na globalizada estão mais claramente expressas primárias. A fragilidade do processo de consti-
nos padrões de manifestação exacerbada da tuição de vínculos autênticos e duradouros, tão
violência urbana, e nas diferentes formas de bem apresentada por Bauman2, por meio da me-
transgressão, para as quais os recursos repres- táfora do amor líquido; as exigências atuais da
sivos e jurídicos não conseguem dar conta dos subsistência, na rotina urbana do trabalho, que
procedimentos de responsabilização. afastam pais e filhos por um tempo físico que
A ideia de que o tripé de sustentação dos me- coloca em questão a viabilidade de consolida-
canismos de controle e manutenção das normas ção de um núcleo imaginário de grupo familiar,
que viabilizam a convivência social seria cons- dentre tantos outros aspectos, podem estar na
tituído primariamente pela família, pela escola base das mudanças que provocam os desajustes
e pela igreja vem sendo difundida, há muito, de sustentação do tripé de autorregulação do
sobretudo nos domínios dos discursos religiosos sistema humano de convívio coletivo.
e sociais. Os elementos integrantes desse tripé, A escola, quer na condição de entidade
portanto, poderiam ser caracterizados pelo afe- privada submetida à lógica das relações co-
to (família), pelo conhecimento (escola) e pela merciais, quer na condição de serviço público
transcendência/espiritualidade (igreja). destituído, via de regra, da atenção política
Esse modelo pode ser tomado como simplista necessária, vem tendo dificuldades importantes
se considerada a amplitude da engrenagem de em constituírem-se no espaço onde, por meio do
autorregulação das sociedades, ou, ainda, ser aprendizado, encontra-se vigor, valor, caminhos
concebido como expressão da força repressiva e ferramentas para construir conhecimentos que
das relações sociais - entendimento que assume devem nascer e circular na esfera individual e
a complexidade devida com as contribuições de coletiva. Refém da violência e mantida numa
Foucault1, acerca da dinâmica social e da ideolo- relação com o aluno marcada pela autoridade
gia. Mas talvez esse modelo possa ser conside- invertida, a escola atua, não raras vezes, como
rado como ferramenta interessante de reflexão instituição cuja função é permitir que a cultura
se, ao invés da igreja como entidade exclusiva emergente apresente seus produtos3, e que os
do terceiro eixo, forem abarcadas as instituições alunos ensaiem jogos de poder, por meio de
sociais guardiãs e/ou propagadoras de valores regras marcadas pela flacidez e pela perversão.
como terceiro elemento constitutivo do tripé. A escola, nesse sentido, estaria contribuindo

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disCurso Paterno

para o fortalecimento do individualismo e do “vai e vem” dos discursos circulantes nas três
consumismo como prática ativadora do delírio dimensões, assim como na configuração dos
social compartilhado - cujo conteúdo pode ser discursos intradimensionais. Nesse processo, é
sintetizado na expressão “é possível ter tudo”. necessário pensar a família, e a relação paterna
Esse processo, ao invés de educar, corromperia em particular (considerando sua importância
ou dificultaria a constituição dos sujeitos, anu- na constituição do psiquismo humano), tendo
lando o sentido e a experiência de privação4, em conta a profunda interdependência com as
disso resultando uma caótica e primária fusão demais instâncias sociais.
ser/ter. Mas, além disso, o cenário desenhado na in-
No processo de anulação de seu papel, e trodução do presente artigo tem pertinência na
sem condições e forças para a retomada de sua medida em que os pais, cujos sinais no discurso
função, a escola acaba atuando como núcleo foram associados a dificuldades encontradas
de fomento ao império do efêmero, à era do em seus filhos, apresentam, justamente, os ele-
vazio, tomando por empréstimo as expressões mentos que marcam, a cultura nessa nova era.
e o sentido atribuído por Lepovetsky5,6, no que
tange ao enfraquecimento, ou à puerilidade do PAI: SIGNIFICADO, FUNÇÃO, COMPRO-
coletivo, e à hipervalorização das demandas in- MISSO
dividuais, particularmente expressas pelo furor O conceito de pai e de paternidade vem
consumista contemporâneo. sofrendo alterações importantes, sobretudo
Por fim, as instituições sociais, guardiãs, nos últimos cem anos, como consequência das
propagadoras e asseguradoras dos valores efetivas transformações pelas qual o mundo,
construídos no processo de culturalização, tais especialmente no campo político, econômico,
como as instituições políticas, religiosas, es- científico e cultural, vem passando. Por centenas
portivas, dentre outras, integrariam o terceiro de anos, a cultura assentou um lugar paterno
eixo do tripé de sustentação de autorregulação associado à função de prover a família de suas
das sociedades. No âmbito de suas ações, essas necessidades materiais, de assegurar a ordem
atuam como a fonte necessária à transcendência no sistema microfamiliar - de acordo com os
constitutiva da subjetividade humana, e como padrões ético-morais da cultura vigente, - e
amplificadora do discurso social, dando sentido de definir a base religiosa norteadora e propa-
aos elementos valorados e significados também gadora dos princípios a serem observados. A
pela família e pela escola. No entanto, o que partir da revolução industrial, no entanto, um
se constata é que essas instituições desabam novo ritmo e uma nova dinâmica foram sendo
em avalanches de práticas ilícitas e de trans- estabelecidos no mundo das relações de pro-
gressões aos princípios que lhes são próprios e dução, redimensionando os papéis do homem
característicos. e da mulher, assim como as responsabilidades
Por fim, o descompasso no cumprimento das nos cuidados com os filhos7.
leis, assim como o desmoronamento de valores Com a mudança do cenário social e das
transcendentes e ideais e as concepções subje- relações, uma gama importante de novas
tivas de vida e futuro (substituídos por valores configurações familiares passou a integrar a
circunscritos a ganhos pessoais), comprome- rotina social (famílias monoparentais, famílias
teriam a qualidade dos laços que amarram o homossexuais/homo-afetivas, famílias desfeitas,
tripé social. famílias reconstituídas, etc). Esta nova realidade
De qualquer forma, independentemente de passou a requerer olhares acurados por parte,
julgamentos sobre as bases político-econômicas especialmente, dos estudiosos das áreas huma-
e de outros fatores intervenientes na crise social nas e sociais, exigindo reflexões que permitis-
do mundo globalizado, é necessário pensar o sem interpretar a lógica da unidade familiar,

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sua função para os sujeitos e para a sociedade. se a unidade da ligação mãe-filho. Esta nova
No entanto, apesar da diversidade consti- configuração permite multiplicar as perspecti-
tutiva de agrupamentos familiares, ainda não vas, as habilidades, as cognições, e os ensaios
está desenhado um modelo consistente de de- de independência constitutiva dos sujeitos.
senvolvimento humano que permita excluir ou Conforme a autora8, o pai se insere num
descaracterizar qualquer um dos três eixos da cenário infantil marcado pela angústia e pela
triangulação psíquica/familiar (pai, mãe, filho), depressão, decorrente da traumática experi-
no processo de constituição dos sujeitos e de ência de integração da figura materna, antes
sua identidade. fragmentada e mobilizada por movimentos
As publicações didáticas sobre o desen- de introjeção e projeção de objetos “bons” e
volvimento humano tendem a apresentar as “maus”. A origem da representação do pai esta-
mudanças e as fases do ciclo vital de forma es- ria sustentada no suposto de um conhecimento
sencialmente descritiva, nem sempre assentada inato dos genitais, e no deslocamento do objeto
sobre escopos teóricos explicativos das origens mau para o pênis, marcando o cunho persecu-
dos fenômenos observados. tório da origem do complexo de castração da
Mas dentre as escolas psicológicas contem- fase fálica na concepção freudiana.
porâneas, a psicanálise se destaca na apresenta- Na obra freudiana9, por outro lado, a teori-
ção de um expressivo conjunto de contributivos zação sobre o lugar paterno é construída em
que abordam, direta e indiretamente, aspectos alguns textos fundamentais. O primeiro refere-
sobre a importância do pai, em diferentes se ao caso do pequeno Hans (1909), marco no
momentos e publicações. Nessa perspectiva, avanço de conhecimentos sobre o papel que o
a figura do pai tende a ser percebida como pai desempenha no processo de desenvolvi-
de importância indireta no início da vida. Nas mento humano. Ali já estão sedimentadas as
etapas iniciais, é a mãe que se estabelece como bases do entendimento de que à paternidade
soma que engloba o bebê e o mundo, fundando está conferida a função de proibir, de ser o
modelos relacionais decisivos na organização ganhador na disputa a ser travada com o filho,
do pensamento, dos padrões de crescimento. de ser indutor da transformação dos objetos
A ideia de fusão psíquica é fortemente con- de desejo. Posteriormente, em A Organização
templada na obra freudiana, e retomada por Genital Infantil10, se consolidou a estrutura de
inúmeros autores que, no conjunto de suas um dos mais importantes corpos teóricos sobre
obras, desdobram o conceito de unidade fusio- a linha do desenvolvimento psicossexual, no
nal, como Margareth Malher, Donald Winnicott, qual a fase fálica, o complexo de Édipo, e o
John Bowlby, Melaine Klein, e, particularmente, complexo de castração compõem um núcleo
Jacques Lacan, que reconstrói a leitura da fusão marcado pela “presença” do pai como protago-
original enfatizando a condição do filho como nista fundamental da história de vida de cada
expressão do desejo do falo, processo caudatário um. Outro texto a destacar é Totem e Tabu11,
da inveja do pênis. em que apresenta uma proposta de teorização
O conceito de complexo de Édipo precoce, sobre os mecanismos de estabelecimento da
apresentado por Melaine Klein8, por exemplo, ordem social, inspirado nas rígidas práticas
explicita as razões pelas quais os primeiros aborígines. Neste texto, a culpa e o remorso pelo
indicadores factuais da existência do pai no assassinato e canibalização de um pai tirano e
universo mental da criança costumam surgir por déspota conduzem à instituição simbólica da
volta dos seis a oito meses de vida, por meio de proibição do incesto.
sinais de reconhecimento e de mudança. Com Da releitura do texto freudiano, Lacan12 pro-
a inserção progressiva do pai em seu mundo, põe que o simbólico paterno deriva da experi-
triangula-se um “corpo relacional”, rompendo- ência original de interdição do incesto, sendo o

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disCurso Paterno

porta voz “legítimo” do que não é possível, do de manutenção do próprio eu. Nesse sentido, o
que não se pode ter/fazer. Na metáfora paterna, desejo de paternidade e os cuidados paternos
Lacan dimensiona o pai como herdeiro e fiel de- seriam expressões da competência da espécie
positário da lei, como um significante que subs- para manter-se, pois a precocidade humana
titui o desejo da mãe, barrando o gozo obsceno não suportaria a vida sem vínculos capazes
entre ela e o filho, viabilizando a estruturação de assegurar proteção, processo acionado por
do sujeito, na sua condição humana/social. afetos e ações imaginativas que, no conjunto,
A função paterna, assim, remete a alguma constituem a subjetividade, fundam o simbólico.
forma de inauguração do sentido do limite, da
experimentação intrínseca e genuína da finitu- O MONÓLOGO NARCÍSICO DO DISCUR-
de como cerne do nascimento da humanização. SO PATERNO DISFUNCIONAL
Desse processo resultam infinitas cadeias de A clínica psicanalítica vem sendo concebi-
sentidos/significados, e novas competências da como espaço privilegiado de investigação.
para a sobrevivência do corpo físico e de tra- Achados casuais da prática terapêutica per-
jetórias para desejo. Não há, pois, constituição mitem desencadear reflexões importantes e
psíquica efetiva, nem humanização, sem a ex- geradoras de hipóteses que, eventualmente,
periência de relação com um pai. Na ausência culminam na elaboração de produtos teóricos
de um corpo paterno real, seu discurso deve contributivos à compreensão da dinâmica
que ser ouvido de algum lugar, e, na ordem mental.
dinâmica das teias sociais, há também que ser É nesse contexto que está sendo proposta
replicado e reconhecido na fala da família, da reflexão sobre elementos do discurso paterno,
escola, e das instituições. potencialmente indicadores de padrões carac-
O arcabouço teórico acerca da origem do terísticos de disfunções relacionais associadas
desejo de ser pai é restrito e, comumente, inte- a dificuldades de aprendizagem e de compor-
gra perifericamente estudos cuja tônica aborda tamento de seus filhos.
outras temáticas. Mesmo na vertente lacaniana Com base na análise de achados clínicos,
da psicanálise, que se excede na exposição da em processo de sistematização, estão sendo
origem do desejo da mãe/maternidade, há des- construídas hipóteses de que em, pelo menos,
taque sobre a função do pai, mas não está clara quatro aspectos, há pontos comuns no discurso
a natureza, ou mesmo o suposto da existência, de pais proferido em situação de entrevista
do desejo do homem de ser pai, para além da diagnóstica. As dificuldades apresentadas pelas
concepção de que o nascimento de um filho crianças, foco da avaliação, estão relacionadas,
se dá sob a égide do narcisismo dos pais, e é a mais comumente, ao controle dos impulsos;
metáfora do casal. a práticas transgressoras, envolvendo acolhi-
Outras perspectivas da psicanálise, e o mo- mento de normas legais/morais e disciplinares,
delo sistêmico, abordam aspectos da dinâmica assim como de rotinas; e à aprendizagem de
familiar como um todo, sem menções à distinção conteúdos escolares.
dos desejos. Para Eiguer13, por exemplo, os filhos Os aspectos comuns referem-se a: a) o en-
integram projetos de futuro desenhados à luz do cadeamento de ideações tende a ser circular,
ideal de ego familiar. Já numa perspectiva evo- (re) colocando a figura do locutor (pai) no lugar
lucionista14, calcada em supostos darwinianos, central do conteúdo descritivo / narrativo /
a paternidade, ou a geração de descendentes dissertativo-argumentativo; b) os componentes
com os genes do pai e a sobrevivência dos filhos, discursivos sobre o problema da criança indicam
ocuparia posição prioritária na hierarquia das o locutor como principal sujeito vitimizado; c) a
necessidades humanas, em situação de igual- estrutura argumentativa das práticas educativas
dade ou imediatamente após as necessidades cotidianas assenta-se na lógica da submissão;

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Perazzolo ao et al

d) as referências acerca de desejos, demandas, vítima do(s) problema(s) do filho, embora isso
e projetos/imagens futuras de vida apresentam não exclua o reconhecimento de que outros
o locutor, e não a criança de quem se fala como membros, eventualmente a própria criança,
sujeito. possam também experienciar sofrimentos.
O primeiro aspecto destaca a estruturação Por meio de provocações indagativas, como
do discurso caracterizada pela tendência de “Porque vieram buscar ajuda?”, o discurso do
adequar as temáticas abordadas na entrevista grupo dos pais sobre os quais se fala apresenta
de modo a manter a figura do locutor (pai) como conteúdos descritivos ou narrativos indicadores
sujeito principal do conteúdo, apresentado quer de que a função precípua da intervenção diag-
sob forma de descrição, narração, ou argumento nóstica é cessar a fonte dos problemas causados
dissertativo. As estratégias cognitivas de orga- ao locutor. Os conteúdos exemplificativos de tais
nização do pensamento incluem desde a eleição processos podem ser extraídos de expressões
formal da temática discursiva, até a perversão como: a) Porque tenho vergonha...; Porque eu
dos elos lógicos de ligação pergunta – resposta, não aguento mais essa história de ser chamado
deformando a relação locutor/enunciador – in- na escola...; Porque tudo isso acaba me deixan-
terlocutor/enunciatário por meio da constituição do muito nervoso e nem trabalho direito...
da relação interlocutor/enunciador, em que há O terceiro aspecto refere-se à estrutura argu-
um rompimento do processo interlocutório, e a mentativa característica dos conteúdos relativos
criação de um novo enunciado. Num contexto às práticas cotidianas de educação. No encade-
de prática diagnóstica, esse fenômeno se ex- amento ideativo do discurso desses pais, fica
pressa, por exemplo, quando em situações de explicitado semanticamente que a submissão
questionamentos abertos, como “O que está do filho deve ocorrer pela pertinência da obe-
acontecendo?”. Nestes casos, as respostas ten- diência em si, sem qualquer elo com a situação
dem a ser já formuladas na primeira pessoa: específica, ou espaço para relativizações, ainda
Eu estou preocupado, e isso não me faz bem...; que a ideia da obediência pela obediência seja
Preciso dar um jeito na minha vida...; Não vim acompanhada por argumentos adicionais que
antes porque precisava resolver outras coisas, remetam a supostos educativo-morais de qual-
mas agora quero resolver isso... Em outras quer ordem. Expressões tais como Eu deixei
situações, perguntas tais como: a) “Como de castigo porque não me obedeceu... e se não
descreveria seu filho?”, ou b) “O que seu filho obedece agora, depois será bem pior; Se uma
entende por ‘comportamento correto’?”, podem criança não atende ordens é preciso fazer com
ser pervertidas na sua organização compreen- que atenda ...; Toda vez que eu falo ele tem
siva – responsiva e originar pararespostas, ao que respeitar, porque eu sou o pai dele. A im-
mesmo tempo em que recolocam o falante no portância da relação hierárquica, portanto, não
eixo do discurso. Assim, respostas como: a) Ele está amparada no processo educativo, tampouco
é um pouco como eu, mas nem sempre. Sou na pretensão de proteger, ou de fomentar com-
uma pessoa que...; Quando se descreve alguém preensões sobre a lógica da ação-reação, ou de
tem que se levar em conta muitos aspectos. Eu, antecipar o reconhecimento de riscos para si e
por exemplo, tenho que ser descrito como pai, terceiros, dentre outros aspectos. A natureza do
profissional...; e b) Sempre expliquei o que é papel hierarquicamente elevado da paternida-
ser correto. Meus pais também sempre me en- de está, nesse caso, enunciado de forma clara:
sinaram...; Eu sei que nem sempre há consenso “Quero ser obedecido.”, ao invés de “É preciso
sobre isso (...), todas as vezes que tive dúvidas que você entenda e respeite limites”.
procurei ver pelos dois lados... O último aspecto comum diz respeito a ex-
O segundo aspecto refere o suposto de que pressões que indicam processos de construções
o pai é percebido, por si próprio, como principal de planos, de imagens de futuro, do próprio

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disCurso Paterno

pai, e ausência de referências de “sonhos” para o Ao retirar o filho do centro de seu discurso, e
filho. Nas situações em que são provocados a falar ao inserir-se neste, recursivamente; ao se colo-
sobre como vêem a criança no futuro, há ausência car no lugar de quem se fala, ocupando o lugar
de especificidades e tendência a replicar com de quem é olhado; ao impor a submissão como
displicência os mesmos elementos que integram prática em si; ao referir sonhos e planos pessoais,
os “sonhos” do locutor. Esse aspecto pode ser apresentando um conjunto vazio onde deveria
exemplificado por meio de trechos extraídos de haver elementos “sonhados” pelos pais, o sujeito
narrações, como: Eu pretendo ser dono de meu que discursa parece explicitar o que “quer” e o
próprio negócio...; Se eu aprender inglês com rapi- que “pode” fazer. Esse processo pode ser enten-
dez poderei...; Tenho certeza que posso assumir a dido como um gozo gerado pela prática do poder
liderança...; Meu filho? Ele vai fazer as metas dele.; sem restrições, marcado pela similaridade com a
Há! Ele vai querer essas coisas também, como eu... tirania e perversidade características do pai da
Um estudo sobre percepção de mães de crian- horda primitiva, teoria darwiniana na qual Freud
ças com problemas de aprendizagem15 apresentou se apoia para teorizar acerca da constituição da
resultados semelhantes, no que tange às práticas lei e da fraternidade.
educativas e à construção imaginativa de futuro A origem da disfunção relacional pode ter elos
para os filhos. No entanto, o conteúdo do discurso em diferentes dimensões e processos da história
materno se caracteriza pela natureza fusionada das singular e familiar, como, por exemplo, no conflito
relações, ao invés da base narcísica que marca o competitivo ativado por vivências edipianas; na
discurso dos pais. submissão à demanda da família; no transborda-
Há um dado importante e curioso dos achados mento de conteúdos delirantes persecutórios, den-
comuns encontrados nos discursos desse grupo tre outros. No entanto, é pertinente ressaltar que
de pais. Trata-se do fato de que não parece haver o discurso desses pais reflete a situação de desali-
constância tipológica, do ponto de vista da estru- nhamento das estruturas de sustentação social. Se
tura constitucional, ou do funcionamento de base, retomados os aspectos introdutórios apresentados,
de qualquer ordem ou vertente teórica. Tampouco pode-se argumentar que a fragilidade dos víncu-
parece que as marcas do discurso, identificadas nas los familiares está, neste caso, dramaticamente
falas que “envolvem” o filho, estejam presentes exposta no discurso do pai, mas também no dos
em falas que abordem outras relações. Esses pais demais membros da família nuclear e estendida,
parecem poder falar, por exemplo, da mulher, da na medida em que não constituem interlocuções
família, e de amigos, como quem pode habitar de confronto que interfiram na prática perversa
o espaço empático que permite pensar e sentir de exclusão do filho do universo de seus sonhos.
o que o outro pensa e sente. No entanto, nestes A escola, da mesma forma, parece não conseguir
casos, a natureza polifônica do discurso de sujeitos lidar com as dificuldades que a priori lhe estariam
em adequadas condições funcionais, expressão afetas, devolvendo aos pais a tarefa exclusiva
da experiência genuína de tramas vinculativas e de conter, educar e ensinar o aluno. E, ainda, as
evidência do desdobramento da consciência em instituições, que deveriam estar ecoando valores,
vozes que ecoam no universo histórico de cada um, fortalecendo e orientando os fazeres da família e
parece alterar-se numa direção monofônica, onde da escola, não integram, em nenhum momento,
apenas uma voz fala e é escutada, como narciso o discurso parental.
falando a si próprio.
O que há, então, na base de uma relação onde CONCLUSÃO
o outro é empurrado para a sombra, para fora do A análise do discurso de um grupo de pais
âmbito do olhar, mantendo-o encarcerado num de crianças que apresentam problemas de
espaço onde também outros não possam vê-lo e comportamento e de aprendizagem, ainda em
ouvi-lo? processo de sistematização, já oferece dados

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Perazzolo ao et al

que permitem refletir sobre indicadores de expressam a lógica da submissão; d) ausência


disfunções relacionais potencialmente gera- de elementos de imagens de futuro do filho,
dores de dificuldades para o desenvolvimento indicando que este não se constitui em veículo
infantil. natural de realização de suas esperanças.
Nessa direção, vem sendo observado que, A atenção ao conjunto desses elementos
independentemente do nível de adequação no discurso paterno, se reconhecidos como si-
funcional, de constituição estrutural, ou de nais indicativos de transtornos relacionais que
predominâncias caracterizais, o discurso des- favorecem ao surgimento de dificuldades na
ses pais tendem a apresentar: a) ideações cir- infância, poderá, por meio de uma abordagem
culares que recolocam o locutor (pai) no lugar precoce, orientar estratégias que potencializem
central de temáticas e de materiais evocados o êxito de intervenções terapêuticas.
de suas relações; b) persistente tendência de Cabe ressaltar que as considerações apre-
mencionar a si próprio como sujeito vitimado sentadas não devem ser tomadas como resulta-
pelo desconforto causado pelo problema (ver- dos conclusivos, e sim como meio de, através da
gonha, transtornos); c) referência a práticas socialização dos resultados parciais, buscarem
de educação sustentadas em argumentos que interlocuções profícuas à análise dos dados.

SUMMARY
Paternal discourse: signs of relational dysfunctions

The assignment presents theoretical considerations about elements


found in the speech of male children’s parents with learning and behavior
disabilities. The reflections are based in psychoanalysis theoretical
contributories and in the association of the phenomenon with the modern
society’s organization referring, particularly, on what sounds the family`s
sustentation tripod (family, school, value propagators institutions), and
the instruments that connect the three axles (laws/norms). The speech
elements are referred to the circular thoughts that tend to reestablish the
father as the center of the narratives; the tendency of designing the narrator
as the main victim of the problem showed by the child; the argumentation
about educational practices adopted throughout the submission logic;
the child’s future image absence. The expectation, after the conclusion of
the study, is that the attention of the referred aspects might be, through a
premature approach, guided strategies that boost the success of therapeutic
interventions.

KEY WORDS: Learning disorders. Narcissism. Social organization.


Father-child relations.

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disCurso Paterno

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Trabalho realizado na Universidade de Caxias do Sul Artigo recebido: 30/5/2010


(UCS), Caxias do Sul, RS. Aprovado: 8/8/2010

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 273-81

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PoNTo
alves l & BDE VisTA
ianChin ma

o Jogo Como reCurso de aPrendizagem


Luciana Alves; maysa Alahmar Bianchin

RESUMO – Diante do fato de que os jogos são frequentemente ignorados


por educadores e instituições escolares em geral, almeja-se pontuar
a importância do aspecto lúdico para o desenvolvimento cognitivo e
emocional da criança. Dentro desse contexto, trata-se de demonstrar que
usando atividades lúdicas desenvolvemos várias capacidades, exploramos
e refletimos sobre a realidade, a cultura na qual vivemos, incorporamos e,
ao mesmo tempo, questionamos regras e papeis sociais. O presente artigo
tem como objetivo evidenciar o papel do jogo como recurso facilitador
na aprendizagem, reconhecendo-o como um instrumento pedagógico
importante no desenvolvimento intelectual e social do educando. Conclui-
se que são apresentadas as principais ideias dos diferentes papeis que o jogo
exerce no trabalho pedagógico com o intuito de estimular no profissional
docente a reflexão sobre a utilização do lúdico na aprendizagem.

UNITERMOS: Jogos e brinquedos. Aprendizagem. Desenvolvimento


infantil. Docentes.

Luciana Alves – Aluna concluinte do curso de Pós- Correspondência


Graduação Lato Sensu em Psicopedagogia Clínica Maysa Alahmar Bianchin
e Institucional: Educação e Saúde da Faculdade de Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto –
Medicina de São José do Rio Preto/SP (FAMERP). FAMERP
Maysa Alahmar Bianchin – Terapeuta Ocupacional, Rua Francisco Giglioti, 390 – São José do Rio Preto,
Doutora em Neurociências e Comportamento, SP – CEP: 15090-208.
Professora Adjunta do Departamento de Ciências E-mail: maysa@famerp.br
Neurológicas da FAMERP.

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282
o Jogo Como reCurso de aPrendizagem

INTRODUÇÃO significa diversão, brincadeira e que é tido como


Atualmente, nossa sociedade vive inserida um recurso capaz de promover um ambiente
num contexto de diversidade de formas e meios planejado, motivador, agradável e enriquecido,
de comunicação, no qual é essencial ser compe- possibilitando a aprendizagem de várias habili-
tente na leitura e compreensão das diferentes dades. Dessa maneira, alunos que apresentam
linguagens1. dificuldades de aprendizagem podem aprovei-
Embora se reconheça facilmente essas dife- tar-se do jogo como recurso facilitador na com-
rentes modalidades de comunicação (expressões preensão dos diferentes conteúdos pedagógicos.
gestuais ou corporais; formas visuais; formas
gráficas e verbais), o que se tem visto na reali-
dade, de forma geral, é somente o uso da leitura Figura 1 - Crianças montando quebra-cabeça.
e escrita como representações convencionais
nas atividades escolares. Compreendendo a
inevitável incorporação das outras formas de
comunicação nas instituições escolares, o pre-
sente artigo pretende falar da inclusão do jogo
nas diferentes modalidades de comunicação que
permeiam nossa sociedade2,3.
Vale considerar que o jogo como instrumen-
to de aprendizagem é um recurso de extremo
interesse aos educadores, uma vez que sua im-
portância está diretamente ligada ao desenvolvi-
mento do ser humano em uma perspectiva social,
criativa, afetiva, histórica e cultural. Levando-se
em conta isso, é de extrema importância que os
profissionais que trabalham com crianças devam
se interessar e buscar conhecimento sobre a
temática, permitindo assim um melhor direcio-
namento no seu trabalho pedagógico4.
Todavia, vale ressaltar que o jogo é uma
oportunidade de desenvolvimento (Figuras 1
a 4). Jogando a criança experimenta, inventa,
descobre, aprende e confere habilidades. Sua Figura 2 - Criança jogando jogo da memória.
inteligência e sua sensibilidade estão sendo
desenvolvidas. A qualidade de oportunidades
que são oferecidas à criança por meio de jogos
garante que suas potencialidades e sua afetivi-
dade se harmonizem. Dessa maneira, pode-se
dizer que o jogo é importante, não somente
para incentivar a imaginação nas crianças, mas
também para auxiliar no desenvolvimento de
habilidades sociais e cognitivas.

O JOGO E A APRENDIZAGEM
De início é importante explicar que a palavra
“jogo” se origina do vocábulo latino ludus, que

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283
alves l & BianChin ma

se forneça às crianças um material conveniente,


Figura 3 - Crianças jogando Tangram.
a fim de que, jogando elas cheguem a assimilar
as realidades intelectuais que, sem isso, perma-
necem exteriores à inteligência infantil”5.
Com esse posicionamento, torna-se eviden-
te que o jogo, em seus vários aspectos, pode
desempenhar uma função impulsionadora do
processo de desenvolvimento e aprendizagem
da criança.
Isso acontece porque a criança, em início de
desenvolvimento, vive em um meio ambiente
em constante mudança e com uma imensa
quantidade de objetos que ela não conhece e
domina. É nesse contexto que o jogo ganha um
espaço como ferramenta ideal da aprendizagem,
na medida em que propõe estímulo ao interesse
do aluno. O jogo ajuda-o a construir suas novas
Figura 4 - Criança jogando Tangram. descobertas, desenvolve e enriquece sua perso-
nalidade e simboliza um instrumento pedagógico
que leva o professor à condição de condutor,
estimulador e avaliador da aprendizagem.
Em educação, a utilização de um programa
que estimule a atividade psicomotora, espe-
cialmente por meio do jogo, permite que o
desempenho psicomotor da criança enquanto
joga alcance níveis que só mesmo a motivação
intrínseca consegue. Ao mesmo tempo favorece
a concentração, a atenção, o engajamento e
a imaginação. Como consequência, a criança
fica mais calma, relaxada e aprende a pensar,
estimulando sua inteligência. Nesse contexto,
precisamos elucidar os pontos de contato com a
Piaget5 defendeu que a atividade lúdica é realidade, a fim de que o jogo seja significativo
o berço obrigatório das atividades intelectuais para a criança. Por meio da observação do de-
da criança. Elas não são apenas uma forma de sempenho das crianças com seus jogos podemos
desafogo ou algum entretenimento para gastar avaliar o nível de seu desenvolvimento motor
e cognitivo. No lúdico, manifestam-se suas
energia das crianças, mas meios que contribuem
potencialidades e, ao observá-las, poderemos
e enriquecem o desenvolvimento intelectual.
enriquecer sua aprendizagem, fornecendo por
Ele afirma: “O jogo é, portanto, sob as suas
meio dos jogos os “nutrientes” do seu desenvol-
formas essenciais de exercício sensório-motor vimento. Ou seja, brincando e jogando a criança
e de simbolismo, uma assimilação do real à ati- terá oportunidade de desenvolver capacidades
vidade própria, fornecendo a esta seu alimento indispensáveis à sua futura formação e atuação
necessário e transformando o real em função das profissional, tais como: atenção, afetividade,
necessidades múltiplas do eu. Por isso, os méto- concentração e outras habilidades perceptuais
dos ativos de educação das crianças exigem que psicomotoras.

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284
o Jogo Como reCurso de aPrendizagem

Sendo assim, pode-se afirmar que o jogo bitual de sua idade, além de seu comportamento
enquanto promotor da capacidade e potenciali- diário. A criança vivencia uma experiência no
dade da criança não só pode como deve ocupar brinquedo como se ela fosse maior do que é
um lugar especial na prática pedagógica, privi- na realidade... o brinquedo fornece estrutura
legiando o espaço da sala de aula. básica para mudanças das necessidades e da
Dinello6 indica que “pelo jogo, a psicomotri- consciência da criança”9.
cidade da criança se desenvolve num processo Assim que as crianças vão crescendo e se
prático de maturação e de descobrimento do desenvolvendo emocional e cognitivamente,
mundo circundante.” elas começam a colocar outras pessoas em suas
Dessa maneira, pode-se dizer que no jogo brincadeiras, e é percebendo a presença do
há uma importância do desenvolvimento psico- outro que começam a ser respeitadas as regras
motor para aquisições mais elaboradas, como as e os limites. Os jogos com regras exigem racio-
intelectuais. Oliveira7 valida esse entendimento, cínio e estratégia.
ao afirmar que: Muitas das dificuldades apre- Dessa maneira, quando uma criança se
sentadas pelos alunos podem ser facilmente sa- mostra capaz de seguir uma regra, nota-se que
nadas no âmbito da sala de aula, bastando para seu relacionamento com outras crianças e até
isto que o professor esteja mais atento e mais mesmo com adultos melhora, reforçando a ideia
consciente de sua responsabilidade como edu- de que os jogos influenciam no processo de
cador e despenda mais esforço e energia para aprendizagem das crianças, ainda que algumas
ajudar a aumentar o potencial motor, cognitivo caminhem de forma mais rápida e outras, de
e afetivo do aluno. Assim sendo, devemos esti- forma mais devagar.
mular os jogos como fonte de aprendizagem7. Jogando, as crianças podem colocar desafios
Em educação, a utilização de um programa e questões para serem por elas mesmas resolvi-
que estimule a atividade psicomotora, espe- das, dando margem para que criem hipóteses
cialmente por meio do jogo, permite que o de soluções para os problemas colocados.
desempenho psicomotor da criança enquanto Isso acontece porque o pensamento da crian-
joga alcance níveis que só mesmo a motivação ça evolui a partir de suas ações. Assim, por meio
intrínseca consegue. Ao mesmo tempo, favo- do jogo o indivíduo pode brincar naturalmente,
rece a concentração, a atenção, o engajamento testar hipóteses, explorar toda a sua espontanei-
e a imaginação. Como consequência a criança dade criativa. Os jogos não são apenas uma for-
fica mais calma, relaxada, e aprende a pensar, ma de divertimento: são meios que contribuem
estimulando sua inteligência. e enriquecem o desenvolvimento intelectual.
Segundo Bettelhein8, os jogos mudam à Para manter seu equilíbrio com o mundo, a
medida que as crianças crescem. Então, muda- criança precisa brincar, criar e inventar. Com
se a compreensão em relação aos problemas jogos e brincadeiras, a criança desenvolve o
diversos que começam a ocupar suas mentes. É seu raciocínio e conduz o seu conhecimento
jogando que as crianças descobrem o que está de forma descontraída e espontânea: no jogar,
a sua volta, começando a se relacionar com a ela constrói um espaço de experimentação, de
vida, percebendo os objetos e o espaço que seu transição entre o mundo interno e externo.
corpo ocupa no mundo em que vivem. Por meio As possibilidades não se limitam a estas,
de brincadeiras, como o faz de conta, o jogo sim- servindo ainda para agilizar a astúcia e o ta-
bólico, a vivência de papeis, criando e recriando lento, estabelecer e revisar valores e estimular
situações agradáveis ou não; a criança pode as habilidades manuais. Além disso, os jogos
realizar atividades próprias do mundo adulto. não podem ser tidos apenas como uma fonte
Para Vygotsky, “... é na brincadeira que a de aprendizado para os alunos, mas também
criança se comporta além do comportamento ha- para professores e pais, pois quando se trata

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alves l & BianChin ma

da educação formal, os jogos podem ajudar a se profissional trabalhar com a criança de forma
incentivar o respeito às demais pessoas e cul- prazerosa. Ou seja, a formação lúdica possibilita
turas, estimular a melhor aceitação de regras, ao educador conhecer-se como pessoa, saber de
agilizar o raciocínio verbal, numérico, visual e suas possibilidades, desbloquear resistências e
abstrato e, por último, mas não necessariamente ter uma visão clara sobre a importância do jogo
o fim, possibilitar ao aluno o aprendizado acer- e do brinquedo para a vida da criança, do jovem
ca da resolução de problemas ou dificuldades, e do adulto10,11.
estimulando-o a procurar alternativas. Ademais, um aspecto relevante nos jogos é o
desafio que eles provocam no aluno, o que gera
CONSIDERAÇÕES FINAIS interesse e prazer. Por isso é importante que a
Diante do exposto neste artigo, é importante criança explore livremente o jogo, mesmo que o
ressaltar que o lúdico é de fundamental impor- resultado não seja a que esperávamos. Não nos
tância para o desenvolvimento físico e mental cabe interromper o pensamento da criança ou
da criança, auxiliando na construção do seu co- atrapalhar a simbolização do que está fazendo.
nhecimento e na sua socialização, englobando Devemos nos limitar a sugerir, a estimular, a
aspectos cognitivos e afetivos. O lúdico também explicar, sem impor nossa forma de agir para
é um importante instrumento pedagógico que que a criança aprenda descobrindo e compre-
tem o poder de melhorar a auto-estima e au- endendo, e não por simples imitação.
mentar os conhecimentos da criança, quando Ao professor, cabe analisar e avaliar a po-
utilizados com objetivos definidos. O ensino tencialidade educativa dos diferentes jogos,
utilizando meios lúdicos cria um ambiente grati- permitindo assim um trabalho pedagógico mais
ficante e atraente, servindo como estímulo para envolvente.
o desenvolvimento integral da criança. Por último, vale ressaltar que os profissionais,
Assim, é importante que o professor busque ligados ou não a áreas educacionais, não estão
sempre ampliar seus conhecimentos sobre o aproveitando as situações prazerosas que os
lúdico e que utilize com mais frequência téc- jogos e brincadeiras lhes dão. Tais profissionais
nicas que envolvam jogos, proporcionando o se esquecem de que os jogos e as brincadeiras
desenvolvimento integral de seus alunos. são considerados excelentes auxiliares para
Vale ressaltar que quanto mais o adulto vi- fornecer limites, estabelecer liberdade, conviver
venciar sua ludicidade, maior será a chance des- com regras, tornar-se um cidadão.

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o Jogo Como reCurso de aPrendizagem

SUMMARY
The game as a learning resource

Facing the fact that the games are frequently ignored by the educators
and by the teaching institutions in general, we aim to punctuate the
importance of the ludic aspect for the child’s cognitive and emotional
development. Inside this context we aim to demonstrate that by using ludic
activities we may develop several abilities, we explore and reflect upon
reality, upon the culture in which we are inserted, which we absorb and at
the same time makes us questioning rules and social roles. This article aims
to highlight the role of the game as a facilitating resource in the learning
process, recognizing this as an important pedagogical instrument in the
learner’s intellectual and social development. We conclude as showing the
main ideas from the different roles the game operates in the pedagogical
work wishing to stimulate on the teaching professional, the reflection upon
the using of the ludic resource in the learning process.

KEY WORDS: Play and playthings. Learning. Child development.


Faculty.

REFERÊNCIAS ro: Forense Universitária;1976.


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Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de São Artigo recebido: 12/5/2010


José do Rio Preto, São José do Rio Preto, SP. Aprovado: 1/8/2010

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ArTiGo DE rEVisÃo
tiggemann is

Pontos de enContro entre os sistemas


notaCionais alFaBétiCo e numériCo

iara suzana Tiggemann

RESUMO – O presente texto parte do pressuposto que na construção dos


sistemas notacionais alfabético e numérico, vistos tradicionalmente como
distintos, alguns entendimentos comuns se fazem presentes nas primeiras
conceitualizações da criança. Assim, esta pesquisa bibliográfica, apoiada
na epistemologia genética, traz inicialmente características básicas entre
os modos de estruturação dos sistemas alfabético e numérico, avançando
para a indicação de pontos de encontro entre a psicogênse desses dois
sistemas simbólicos. Dessa forma, o estudo aponta para uma metodologia
interdisciplinar nos anos iniciais da escolarização, considerando que a
criança pequena utiliza procedimentos que se integram a uma estrutura
cognitiva mais ou menos comum.

UNITERMOS: Educação. Desenvolvimento infantil. Processo mental.

Iara Suzana Tiggemann – Mestre em Educação Correspondência


(UFRGS); Pedagoga (UFSM); Docente do IMES - Iara Suzana Tiggemann
Catanduva e UNIFEV. Profa de Teoria e Prática da Rua Vitória, 230 – Catandura, SP, Brasil – CEP 15805-060
Alfabetização. E-mail: iaratiggemann@yahoo.com.br

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sistemas alFaBétiCo e numériCo

INTRODUÇÃO A ESTRUTURAÇÃO DOS SISTEMAS NO-


Nas últimos décadas, pesquisadores TACIONAIS ALFABÉTICO E NUMÉRICO:
adeptos da epistemologia genética têm dado
continuidade aos estudos de Jean Piaget, CONSIDERAÇÕES INICIAIS
especificando etapas do desenvolvimento Tradicionalmente, os estabelecimentos de
e níveis de construção do conhecimento em ensino situam, em seus currículos, o conheci-
diversos domínios do saber. Na perspectiva mento lógico-matemático e o conhecimento
de compreender como as crianças se apro- linguístico em lados opostos. Ainda que as
priam de diferentes objetos conceituais, são práticas inter e multidisciplinares venham to-
buscados novos entendimentos acerca das mando espaços cada vez mais significativos no
estruturas cognitivas que subsidiam os pro- cotidiano escolar, essas áreas são tomadas como
cedimentos da criança em sua interação ativa epistemologicamente distintas. De fato, diferen-
com o mundo simbólico. De fato, os resulta- tes são suas aplicações e, sobretudo, diferentes
dos de várias pesquisas na área da Psicologia são as formas de estruturação. Assim, vejamos
têm alterado de forma qualitativa o ensino como se estruturam os sistemas simbólicos em
nos anos iniciais do Ensino Fundamental, questão e alguns entendimentos que norteiam
principalmente nos campos da Linguagem e a sua construção.
Matemática – áreas predominantes nesse ní- Até pouco tempo, prevalecia a ideia de
vel escolar e nas quais concentram-se maior que a aquisição da escrita estaria diretamente
quantidade de estudos. vinculada ao trabalho escolar – sistemático,
Nos estudos teóricos realizados e ao metódico. As tentativas precoces de represen-
longo de minha experiência profissional tação da linguagem não eram consideradas,
como educadora, percebi que na constru- senão como atividades de faz-de-conta, como
ção dos sistemas notacionais alfabético e atividades lúdicas de imitação das condutas dos
numérico realizada pela criança algumas adultos. Entretanto, de acordo com Ferreiro3, as
noções e alguns conceitos se intercruzam e primeiras notações da criança, que há pouco
se interrelacionam. Assim, com o presente eram consideradas brincadeira, hoje são identi-
texto, pretendo tecer relações iniciais entre ficadas como o início do processo de construção
a psicogênse desses dois sistemas simbóli- da língua escrita. Assim, entendendo que a
cos, buscando mostrar que entre campos do evolução da escrita na criança inicia antes do
conhecimento, vistos tradicionalmente como seu processo de escolarização, passou-se a com-
distintos, alguns entendimentos comuns se preender também que as instituições educativas
fazem presentes nas primeiras conceituali- influenciam, porém não determinam totalmente
zações da criança. a construção desse complexo sistema simbólico.
Este texto, fruto de uma pesquisa biblio- Nessa linha de entendimento, a criança
gráfica, traz diferenças básicas entre os mo- passou a ser concebida como agente de seu
dos de estruturação dos sistemas alfabético e conhecimento, como sujeito ativo e criador, e
numérico. Posteriormente, tendo como base a aprendizagem da língua escrita, muito mais
os estudos de Ferreiro & Teberosky 1 e as que um método de codificação e decodificação
proposições teóricas de Sinclair2, caracteriza de unidades fonéticas, passou a ser concebida
a evolução do pensamento da criança em como compreensão de um sistema de repre-
busca da compreensão desses dois objetos sentação.
conceituais. Finalmente, apresenta para o A ideia de que a criança não poderia repre-
debate, as relações estabelecidas entre a sentar a língua escrita sem a intervenção escolar
construção da escrita alfabética e a escrita ou pelo menos familiar também se estendeu à
numérica. escrita numérica elementar. Ou seja, entendia-

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se que a criança aprendia a numeração escrita todavia, dificilmente encontraremos contextos


por meio de uma técnica perceptivo-motora, por nos quais os conceitos numéricos não estejam
sua vez, ainda mais fácil que a aprendizagem envolvidos nas ações cotidianas: contar, somar,
da escrita alfabética por envolver apenas dez subtrair, dividir são ações que desde muito cedo
formas diferentes. Dez formas que, combinadas, acompanham as crianças em suas atividades.
conseguem representar um sistema numérico Parece claro que sistema alfabético e sistema
infinito. numérico estruturam-se de formas diferencia-
Essa ideia parece natural e evidente sob o das e justamente por isso exigem da criança
ponto de vista do adulto, que já não consegue diferentes processos cognitivos para sua apre-
pensar em outra possibilidade de representação ensão. Entretanto, percebemos que, principal-
numérica, senão a partir do sistema decimal mente no início da trajetória traçada pela crian-
com valor de posição. Contudo, é preciso ter ça em busca da compreensão desses complexos
clareza que nosso sistema numérico é uma sistemas simbólicos, alguns conceitos e noções
invenção cultural, com características próprias se interrelacionam. Assim, para entendimento
e arbitrárias. mais claro da questão que suscitamos, passamos
Diferente do sistema alfabético em que a a rever rapidamente a psicogênese da língua es-
escrita representa a linguagem oral, no sistema crita, tal como foi esquematizada por Ferreiro3,
numérico cada algarismo é um ideograma que bem como, a evolução das notações numéricas
representa um conceito, uma ideia. O sistema na criança estudada por Sinclair2, para que seja
numérico é composto por algarismos que não possível, posteriormente, estabelecer algumas
guardam marcas relacionadas com a quantidade relações iniciais.
a ser representada, tampouco, mantém relações
entre a palavra falada e sua respectiva grafia. A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA
Aliás, o sistema de numeração subdivide-se em As pesquisas realizadas por Ferreiro & Tebe-
duas formas diferentes: a oral e a escrita. Isto é, rosky1, com um número bastante abrangente de
a primeira forma utiliza expressões diferentes crianças de diferentes faixas etárias, condições
para diferenciar as quantidades, enquanto que socioeconômicas e dissemelhantes interações
a segunda forma utiliza diferentes posições para com o universo letrado, levaram à construção
indicar unidades, dezenas, centenas. Nunes & da psicogênese da língua escrita – a trajetória
Bryant4 comentam que, por exemplo, no sistema que toda criança percorre para compreender as
de numeração oral utilizamos expressões como características desse objeto conceitual. Desde
cinco, cinquenta, quinhentos para diferenciar o momento em que a escrita passa ser alvo de
unidades, dezenas, centenas. Já no sistema sua atenção, a criança elabora diferentes enten-
de numeração escrito, ocupamos diferentes dimentos e interpretações das informações que
posições, da direita para a esquerda, em que o obtém do meio em que vive e interage. Esses
valor do 5 de 50 é diferente e 500, ainda que o entendimentos são organizados em etapas, sua
dígito 5 seja o mesmo. sucessão não é aleatória, e a idade e o tempo
Apesar de trazer consigo uma série de con- de duração de cada uma é condicionada por
venções, o sistema numérico em relação ao uma série de influências (sociais, familiares,
sistema alfabético é geralmente mais rapida- individuais, educativas...).
mente apreendido pela criança, o que parece De acordo com as autoras, a psicogênese da
estar ligado a dois aspectos fundamentais: maior língua escrita pode ser dividida em três gran-
transparência desse sistema e maior interação des períodos: a) busca de parâmetros de dife-
da criança com o mesmo. Podemos imaginar renciação entre as marcas gráficas figurativas
ambientes em que as situações de leitura e es- e não-figurativas; b) construção de modos de
crita são limitadas ou praticamente inexistentes, diferenciação entre os encadeamentos de letras,

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sistemas alFaBétiCo e numériCo

baseando-se em eixos de diferenciação quali- numeroso, o mais velho. Para Ferreiro3, esse pro-
tativo e quantitativo; c) fonetização da escrita. cedimento não mostra a dificuldade da criança
O primeiro período caracteriza-se pela busca em se desprender do desenho ou objeto a ser
de diferenciações no universo das marcas grá- representado, mas consiste numa busca formal
ficas. Até então, desenhos, letras, algarismos que dirige as explorações da criança. A autora
numéricos faziam parte de um mesmo conjunto ainda acrescenta que a busca de uma corres-
sem que isso chamasse a atenção da criança. pondência entre os aspectos da representação
Agora a criança preocupa-se em diferenciar e os aspectos do referido objeto leva em conta
formas icônicas e não-icônicas: tudo que não é exclusivamente os aspectos quantificáveis, já
desenho é reconhecido como escrita, inclusive que a criança não pensa em utilizar letras arren-
numerais e pseudo-letras. Nesta etapa, a crian- dodadas para representar objetos redondos, ou
ça também passa a perceber que a escrita pode mesmo letras quadradas ou pontiagudas para
substituir os desenhos. Ou seja, por meio do representar objetos com estas formas.
estabelecimento de relações entre texto e figura, Outras situações mostram a possibilidade de
a criança pressupõe que no texto está o nome do a criança utilizar o mesmo número de letras ou
objeto desenhado. A escrita, portanto, deixa de caracteres quantos forem os objetos que deseja
ser uma mera sequência de letras organizadas representar. Nessa perspectiva, cada letra conta
para se tornar em objetos-substitutos. para um objeto e a sequência de letras forma-
No segundo período, as propriedades especí- da representa a palavra no plural. Importante
ficas do texto passam a ser observadas, produto salientar que essa hipótese que se funda na
de uma nova centração cognitiva, oferecendo correspondência termo a termo não é genera-
novas condições de interpretabilidade e legi- lizável, tampouco estável, porque a criança não
bilidade. Se no período precedente um texto consegue desprender-se da exigência mínima
poderia ser “lido” com a ajuda do desenho, de três letras para que algo possa ser escrito
nesse momento são construídas novas relações. ou lido. Diante dessa exigência, a criança não
A criança nessa etapa releva os aspectos poderia representar quantidades inferiores a
intrafigurais e interfigurais da escrita que se três elementos.
expressam sobre os eixos quantitativo e qua- Interessante notar que quando a criança é
litativo. A variação intrafigural apoia-se em solicitada a escrever primeiro uma palavra no
critérios absolutos que não permitem comparar plural, representando um conjunto de elemen-
as escritas entre si, mas estabelecer quais são tos, ela pode utilizar uma letra ou caracter para
interpretáveis. Assim, para que algo possa ser cada objeto, como citamos acima. No entanto,
escrito/lido é preciso que tenha, no mínimo, quando instigada a escrever primeiro a palavra
três caracteres e que haja uma variação entre no singular, na palavra no plural a criança ten-
estes. A variação interfigural, por sua vez, derá a repetir a sequência de letras tantas vezes
apoia-se em critérios relativos, o que possibilita quantos forem os objetos a serem representados.
a comparação entre uma palavra escrita e outra. Se a criança utiliza “Oai” para representar a
Nessa linha de entendimento, nenhuma palavra palavra gato, poderá utilizar “OaiOaiOai” para
diferente será escrita da mesma forma. representar três gatos, por exemplo1.
Outro procedimento utilizado é a tentativa Para que a criança avance em direção ao
de corresponder as variações quantitativas das terceiro período de conceitualização da escrita,
representações e as variações quantitativas no é preciso que compreenda a palavra enquanto
objetivo referido. Dessa forma, os nomes dos sequência de sons. Esta compreensão inicia
objetos grandes são escritos com mais letras do ainda no segundo período, quando a criança
que os objetos pequenos, sendo que o mesmo estabelece relações entre a palavra falada e
procedimento ocorre para o mais pesado, o mais palavra escrita, sem que isso demande de uma

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hipótese silábica. A criança continua utilizando entender que a criança tenha problemas quanto
o critério de variação intrafigural, mas compre- à escrita propriamente dita.
ende que cada letra corresponde a uma parte O caminho traçado pela criança em direção
da palavra falada e não a uma parte do referido ao entendimento da estruturação da língua
objeto. De acordo com Ferreiro3, estabelece-se escrita inicia com noções gerais que vão se
uma nova correspondência termo a termo entre especificando, na medida em que novas cen-
dois conjuntos ordenados. Assim, a ideia de que trações cognitivas são feitas. As descobertas
o nome pronunciado pode ser decomposto em realizadas não se perdem, mas se integram às
partes que podem ser associadas às porções do novas construções, ampliando e enriquecendo
nome escrito dá início à fonetização da escrita. as estruturas que, por sua vez, dão suporte às
O terceiro período, que se caracteriza pelo novas intervenções da criança. De acordo com
estabelecimento da relação fonema/grafema, Dorneles5: “... uma aprendizagem nunca se dá
inicia com a hipótese silábica e culmina com a no vazio: é resultado de outras aprendizagens
hipótese alfabética. A hipótese silábica consiste anteriores, reintegradas e reorganizadas cons-
na presença de uma correspondência termo a tantemente”. Esse entendimento não se res-
termo, onde a série de letras é ordenada com a tringe à construção da escrita, mas se constitui
série de sílabas da palavra falada. A hipótese em um princípio geral na construção de outros
silábica tem uma importância enorme na evo- conhecimentos. Apresento, a seguir, a evolução
lução na escrita: pela primeira vez a criança das notações numéricas para que possa, pos-
encontra um recurso que lhe permite regular teriormente, traçar algumas ideias comuns às
o número de letras e pode, inclusive, antecipar representações dos dois sistemas.
essa quantidade antes mesmo de sua produção.
Nessa etapa, a criança pode compreender A EVOLUÇÃO DAS NOTAÇÕES NUMÉRI-
a sua maneira de escrever, mas tem grande CAS NA CRIANÇA
dificuldade em compreender a escrita que a O entendimento de que a criança, por meio
cerca. Cada vez que ela tenta aplicar a hipótese de suas explorações com o meio, é capaz de
silábica às escritas produzidas pelos adultos, representar a linguagem oral de diferentes
encontra um excedente de letras. Dessa forma, maneiras até conceitualizá-la da forma conven-
certas escritas como o seu nome próprio terão cional é compartilhado por Sinclair2 quando se
importância decisiva na desiquilibração dessa refere à evolução das notações numéricas. Em
hipótese. É preciso então encontrar um meio suas pesquisas, tomou como objeto de estudo
de analisar a palavra de forma diferente, de a notação de pequenas quantidades discretas e
modo a absorver o excedente de letras que se verificou que a criança pode utilizar diferentes
formam com a hipótese silábica. O nível de formas de representá-las, de maneira coerente,
construção da escrita que caracteriza o avanço antes de empregar a forma convencional. Por
dessa hipótese para outra constitui-se no nível meio da análise dos procedimentos utilizados
intermediário denominado silábico-alfabético. pelas crianças quando solicitadas a anotar uma
No nível silábico-alfabético, a criança utili- determinada quantidade de objetos, a autora
za escritas que ora caracterizam-se ainda pela sinaliza para uma construção progressiva de
hipótese-silábica, ora avançam em direção à nosso sistema de numeração escrita.
hipótese alfabética, onde cada letra representa Tal como a evolução das conceitualizações
um som e não uma sílaba. da escrita, a evolução das notações numéricas
Finalmente, ao chegar à hipótese alfabética, também relaciona-se com as experiências e in-
a criança terá compreendido os princípios da terações concretas que a criança tem com esse
língua escrita. Os problemas de ortografia po- sistema. Mas, como já assinalei, desde muito
dem ainda permanecer, o que não implica em cedo a criança defronta-se com a possibilidade

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sistemas alFaBétiCo e numériCo

de contar quantidades numéricas, instigando-a chos...) ou de uma linha contínua e ondulada, a


a engendrar diferentes formas de representa- criança procura representar a ideia de “muitos”
ção. Em outro artigo, em que problematizo a ou “vários”. Nas coleções de apenas um ou dois
construção do número pela criança apresento elementos, entretanto, são anotados uma grafia
a ideia: para cada objeto1.
“Aprender números parece uma tarefa relati- Em uma segunda categoria de notação,
vamente fácil para nossas crianças. Desde tenra a criança detém-se nas características ou no
idade, elas estão envolvidas com quantidades nome dos objetos que compõe as coleções a
numéricas — um objeto, muitos, poucos, alguns serem representadas. Em crianças menores (3 a
objetos, nenhum objeto — e com situações 4 anos), evidenciam-se tentativas de represen-
cotidianas de classificar, ordenar, acrescentar, tação das formas dos objetos (desenhando, por
diminuir, dividir e tantas outras. Desde muito exemplo, um círculo para uma coleção de fichas
jovens, estão em contato com as expressões que ou sementes, um quadrado para designar uma
designam quantidades (um, dois, dez, cem, um coleção de figurinhas). Em crianças maiores (5
milhão... ) e com os símbolos correspondentes a 6 anos), esse tipo de notação caracteriza-se
(1, 2, 3, 4...). Mal a criança aprende a falar e já pela atenção dada ao nome dos objetos. Assim,
nos mostra com seus dedinhos quantos anos a criança tenta escrever, da sua forma, palavras
tem. É orgulho dos pais ver que o filho já sabe que possam descrever a coleção. De acordo com
contar de 1 a 5 ou de 1 a 10 corretamente. No Sinclair2, “... em tais casos, a criança é cons-
entanto, apesar de parecer simples, a construção ciente do fato de que a cardinalidade não está
do número pela criança é um processo comple- representada, porque ela diz que não se pode
xo, que lhe exige a compreensão de diferentes “ler” quantos têm e fornece igualmente outros
princípios lógicos6”. tipos de notação”. Nesse sentido, podemos
Sinclair2 aponta seis tipos diferenciados de entender como uma notação aparentemente
notação numérica entre crianças de 3 a 6 anos. primitiva pode ser usada por crianças de idades
Notações estas que não são mutuamente ex- mais avançadas.
clusivas, permitindo a uma criança a utilização Na terceira categoria de notação, aparece
de diferentes notações para representar uma pela primeira vez a correspondência termo a
mesma quantidade de objetos. termo. A criança que utiliza esse tipo de notação
Os tipos ou categorias de notação levanta- corresponde o número de objetos presentes nas
dos por Sinclair2 são descritos seguindo uma coleções ao número de grafias. Essa categoria
sequência ascendente, em direção às formas pode ser dividida em dois tipos. No primeiro, a
que correspondem ao nosso sistema numérico. criança utiliza formas semelhantes aos objetos
Resumidamente, caracterizarei cada categoria. (três círculos para três bolinhas de gude, quatro
Na forma mais primitiva de notação, a crian- retângulos para quatro pauzinhos de picolé).
ça procura representar as quantidades de ma- Já no segundo tipo, a criança utiliza grafias
neira global. A criança não se centra na forma que não apresentam relação com a forma dos
e natureza dos objetos a serem representados, objetos. Dessa forma, tanto pode usar formas
tampouco à cardinalidade da coleção. Por meio geométricas, pontos, cruzes, traços ou mesmo
de uma série de pequenas grafias (barras, gan- letras e pseudoletras. Nesse caso, a criança pode

1
Embora não seja alvo de meu interesse traçar paralelos entre a psicogênese e a sociogênese dos sistemas notacionais, a forma de re-
presentar as quantidades um, dois e mais unidades nos chama a atenção e nos remete aos estudos de Ifrah7. O autor, em sua obra, resgata a
pré-história dos números, apontando que um e dois são os primeiros conceitos numéricos inteligíveis pelo ser humano. E assim, em épocas
mais remotas de nossa história, o máximo de relações que se podia estabelecer entre as quantidades residia na possibilidade em diferenciar a
unidade, o par e a pluralidade tal como vimos na notação acima descrita.

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usar uma única letra para representar a coleção buscando procedimentos cada vez mais exatos
(cinco “A” para cinco lápis – AAAAA) ou usar e específicos, mas não mais ou menos coeren-
uma letra diferente para cada objeto (XBAEL). tes com suas hipóteses. Um dado que chama
Em crianças pequenas, essa correspondên- atenção diz respeito à “súbita aparição” dos
cia nem sempre é exata, todavia, percebe-se algarismos numéricos que, tão logo apareçam,
uma clara intenção em relacionar o número representam a cardinalidade de maneira corre-
de objetos ao número de grafias. Interessante ta. Segundo as proposições de Sinclair2, conhe-
notar que, em ambos os tipos dessa categoria cer a grafia e o nome dos numerais não implica,
de notação, as grafias são ordenadas em linha necessariamente, em saber sua aplicação. Com
(da direita para a esquerda, da esquerda para isso podemos entender que a criança não utiliza
direita ou de cima para baixo), ainda que os os algarismos numéricos nas notações anteriores
objetos das coleções estejam dispostos de forma por ainda não compreender sua utilização e fun-
desordenada sobre a superfície. ção, mas não por desconhecer sua simbologia
Na quarta categoria de notação, embora se oral e escrita.
mantenha a ideia de correspondência termo a Mas não seria evidente que a criança utili-
termo, aparecem os algarismos numéricos. A zasse algarismos numéricos (ainda que escritos
criança utilizando esse tipo de notação registra de forma inexata) ao invés de iniciar com letras
uma algarismo para cada elemento da coleção. na correspondência termo a termo, tal como
A criança pode utilizar a sequência dos algaris- vimos na terceira categoria de notações? Não
mos (1,2,3,4,5 para cinco objetos; 123456 para me parece tão claro quanto parece para Ferrei-
6 objetos), como pode utilizar o algarismo que ro1 que a criança desde muito cedo diferencia
representa a cardinalidade tantas vezes quantos natureza e função de letras e numerais.
forem os objetos a serem representados (333 O que pretendi mostrar nesta análise é de
para três objetos; 55555 para cinco objetos). que em dois campos do conhecimento, epis-
Em ambos os casos, os algarismos são sempre temologicamente diferentes, a criança pode
escritos de maneira correta. utilizar procedimentos similares e apoiar-se,
Na quinta categoria de notação, o cardinal possivelmente, em semelhantes estruturas cog-
aparece sozinho, representando de forma exata nitivas na compreensão desses conhecimentos.
a quantidade de objetos das coleções. Final- Se analisarmos a evolução de cada sistema
mente, na sexta categoria de notação, a criança notacional, perceberemos que a criança parte
escreve o algarismo numérico acompanhado de uma percepção e representação global para
de letras, representando tanto a cardinalidade, uma progressiva atenção aos aspectos espe-
quanto a natureza dos objetos. cíficos e particulares dos objetos conceituais.
Entretanto, uma análise ainda mais cuidadosa
RELAÇÕES INICIAIS ENTRE PSICOGÊ- pode nos levar a outras constatações.
NESE DOS SISTEMAS NOTACIONAIS A correspondência termo a termo parece
ALFABÉTICO E NUMÉRICO guiar os procedimentos das crianças tanto em
Com essa breve revisão à evolução do siste- suas representações dos números quanto da
ma notacional numérico e alfabético algumas linguagem oral. Na numeração escrita, a cor-
relações podem ser tecidas. respondência termo a termo aparece de forma
Observando a progressão das notações clara na terceira categoria de notações, em que
numéricas podemos perceber que existe uma a criança relaciona a quantidade de elementos
relação entre estas e a idade das crianças. Ainda ao número de grafias correspondentes.
que as notações não se excluam mutuamente, Na conceitualização da linguagem escrita, a
a criança com o avanço de sua idade tende a correspondência um a um aparece de diferentes
deixar de produzir as notações mais primitivas, formas e em dois períodos diferentes. Antes de

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tentar representar a linguagem oral, a criança que parece associar-se aos conceitos numéricos.
representa os objetos explorando diferentes Trata-se de uma hipótese construída pela crian-
meios. Um deles consiste na tentativa de rela- ça, em que o número de letras utilizado para
cionar o número de elementos ao número de representar um determinado objeto relaciona-se
grafias. Como já destaquei anteriormente, essa com os aspectos quantificáveis do mesmo. Ora,
hipótese não se estabiliza, pois rapidamente é utilizar mais letras para o maior objeto, e menos
precedida pelo critério de quantidade mínima letras para o menor, implica na compreensão
de letras para composição das palavras. Sob de um conjunto de relações matemáticas que
outra forma, mas de maneira inexata, a cor- envolvem a seriação. Assim, para que a crian-
respondência biunívoca permite que a criança ça possa diferenciar suas escritas baseando-se
estabeleça primeiras relações entre palavra nesse critério, precisa, inicialmente, arranjar os
escrita e falada, o que lhe possibilita o avanço objetos em uma ordem crescente, captando uma
ao terceiro período. Nesse período, caracteriza- regra lógica básica denominada transitividade2.
do pela fonetização da escrita, a criança passa Parece-me bastante claro que nessa hipótese
a ordenar uma letra a cada sílaba emitida, estão imbricados conceitos de natureza lógica-
avançando em direção à compreensão da escrita matemática na construção da linguagem escrita.
convencional. Parece-me que esse procedimento
consegue organizar o pensamento da criança de CONSIDERAÇÕES FINAIS
maneira lógica, permitindo que a mesma avance Apresentei nessa revisão, de forma bastante
em seus modos de construção em ambos os sis- resumida, a evolução de dois sistemas notacio-
temas aqui analisados. nais. Em ambos, a progressão de um nível a outro
A noção de variação intrafigural que se evi- posterior relaciona-se com as diferentes interações
dencia na psicogênese da escrita parece também que a criança mantém com esses objetos simbóli-
acompanhar o raciocínio da criança em momento cos. Nesse artigo, procurei mostrar que a criança,
específico da construção numérica. Na terceira ca- no início de suas conceitualizações, organiza seu
tegoria de notação, a criança registra as quantida- pensamento, utilizando alguns esquemas que
des utilizando diferentes formas gráficas – icônicas se ajustam aos dois campos do conhecimento.
ou abstratas, mantendo a possibilidade de não Não me parece claro que as operações lógico-
repeti-las em uma das variações dessa categoria aritméticas sejam exclusivas na conceitualização
de notação. Sinclair2 descreve esse procedimen- numérica. Da mesma forma, não entendo que
to dizendo que “... a criança toma o cuidado de a escrita alfabética possa utilizar-se somente
variar as formas empregadas; por vezes, ela pára das relações espaciais para consolidar-se como
e reflete para encontrar uma ‘diferente’. Seu sistema simbólico. Parece-me, isso sim, que no
estoque de ‘letras’ é ainda restrito e, para uma início dessas construções, antes que sejam com-
cardinalidade de 6, por exemplo, ela tem dificul- preendidas as particularidades de cada sistema,
dade de desenhar o mesmo tanto em formas dife- a criança utiliza procedimentos que se integram
rentes”. Questiono, portanto, se a criança utiliza a uma estrutura cognitiva mais ou menos comum.
diferentes formas para distinguir cada um dos Mesmo quando a criança, por volta dos quatro
elementos registrados ou se, possivelmente, os anos, parece imprimir uma clara diferenciação
critérios utilizados na construção da escrita são entre letras e números, isso não parece suficiente
estendidos na construção dos números. para que passe também, desde já, a estruturar seu
Finalizando, trago para reflexão um procedi- pensamento de modo diferenciado na construção
mento comum na construção da língua escrita desses dois objetos conceituais.

2
sobre transitividade, ver Nunes & Bryant4.

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295
tiggemann is

Em minha experiência profissional como alfa- Esse entendimento articulado ao princípio


betizadora, verifiquei que, de um modo geral, as piagetiano de que “... não se podem criar
crianças avançam de forma mais ou menos unifor- estruturas cognitivas, mas sim ativar as que
me na compreensão dos dois campos do conheci- já existem, ampliando-as e aplicando-as em
mento, no início de sua escolarização. A meu ver as diferentes conteúdos...”5, possibilita que pen-
dificuldades ou facilidades em um campo do saber semos formas de articular o desenvolvimento
em relação ao outro se estabelecem quando justa- das crianças em áreas de maior dificuldade,
mente a criança se apropria das particularidades de partindo, justamente das áreas mais desen-
cada sistema, quando parecem se consolidar dois volvidas. Não me restam dúvidas, entretanto,
diferentes núcleos de estruturação, duas formas da necessidade de mais pesquisas nessa área
diferenciadas de ordenar o pensamento. e que, sem demora, seus resultados possam
Assim, corroboro com Dorneles5 quando alcançar as instâncias escolares, provocando
expõe que: mudanças no ensino que parece ainda insistir
“...num momento inicial das construções de na divisão sistemática dessas duas áreas do
cada sistema simbólico, os esquemas utilizados conhecimento.
são semelhantes e, às vezes, os mesmos. No
decorrer desse processo de independentização, AGRADECIMENTOS
os esquemas vão se diferenciando, conforme as Agradeço a Dra. Beatriz Vargas Dorneles,
leis particulares de cada sistema (...) Se pensar- pela revisão cuidadosa deste artigo, no âmbi-
mos em cada um dos sistemas simbólicos como to da disciplina “Sociogênese e psicogênese
um núcleo de estruturação, podemos entender dos sistemas notacionais”, do programa de
que estes têm seu ritmo de desenvolvimento Pós-Graduação em Educação da Universida-
próprio e parcialmente independente.” de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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296
sistemas alFaBétiCo e numériCo

SUMMARY
Points of meeting between the systems notacionais alphabetical and
numerical

The present text proceeds from the assumption that, in the construction
of the notational alphabetical and numerical systems, there are some
understandings in children’s first conceptualizations which are common
to both systems, though they are traditionally seen as being different
from each other. This bibliographical research, rested on the genetic
epistemology, brings basic characteristics between the ways of structuring
of the alphabetical and numerical systems, advancing then to the indication
of points of meeting between the psychogenesis of these two symbolic
systems. In this way, the study points to an interdisciplinary methodology
in the initial years of the schooling, considering that little children use
proceedings that belong to a more or less common cognitive structure.

KEY WORDS: Education. Child development. Mental processes.

REFERÊNCIAS tez/Autores Associados;1990. p.19-70.


1. Ferreiro E, Teberosky A. Psicogênese da lín- 4. Nunes T, Bryant P. Crianças fazendo ma-
gua escrita. 4ª ed. Porto Alegre:Artes Médi- temática. Tradução: Costa S. Porto Alegre:
cas;1991. 284p. Artes Médicas;1997. 248p.
2. Sinclair A. A notação numérica na criança. 5. Dorneles BV. Escrita e número: rela-
In: Sinclair H, org. A produção de notações ções iniciais. Porto Alegre: Artes Médi-
na criança: linguagem, número, ritmos e cas;1998. 104p.
melodias. Tradução: Moro MLF. São Paulo: 6. Tiggemann IS. A construção do número
Cortez/Autores Associados;1990. p.71-96. pela criança: algumas considerações. Inter-
3. Ferreiro E. A escrita... antes das letras. In: ciência – Ciências Exatas. 2005;4(2):65-72.
Sinclair H, org. A produção de notações na 7. Ifrah G. Os números, a histó-
criança: linguagem, número, ritmos e melo- ria de uma grande invenção. Rio de
dias. Tradução: Moro MLF. São Paulo: Cor- Janeiro:Globo;1989. 367p.

Trabalho realizado programa de Pós-Graduação em Artigo recebido: 5/6/2010


Educação da Universidade Federal do Rio Grande Aprovado: 22/8/2010
do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS.

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CArTiGo DEdrEVisÃo
orso lv & orneles Bv

senso numériCo e diFiCuldades de


aPrendizagem na matemátiCa
Luciana Vellinho Corso; Beatriz Vargas Dorneles

RESUMO - O artigo aborda o senso numérico, conceito-chave para a


compreensão das dificuldades de aprendizagem na matemática. A partir
de uma revisão da literatura internacional e nacional, destacam-se os
principais tópicos em torno do tema: conceituação, origem, intervenção e
avaliação do senso numérico. O artigo apresenta o Teste de Conhecimento
Numérico, desenvolvido por Okamoto e Case (1996), aceito pela literatura
atual como um bom instrumento para avaliar senso numérico. Por fim, são
apontadas as implicações do estudo deste conceito para a prevenção de
dificuldades de aprendizagem e para a pesquisa nesta área.

UNITERMOS: Matemática. Transtornos de aprendizagem. Conceitos


matemáticos.

Luciana Vellinho Corso – Pedagoga, Psicopedagoga, Correspondência


Mestre em Educação pela Universidade de Flinders, Luciana Vellinho Corso
Austrália. Doutora em Educação pela Universidade Rua Marques do Pombal, 1577 apto 202 – Porto
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Alegre, RS – CEP 90540-001
da Faculdade de Educação UFRGS. E-mail: l.corso@terra.com.br
Beatriz Vargas Dorneles – Pedagoga, Dra em
Psicologia da Educação e do Desenvolvimento
Humano pela USP, Pós Doutorado pela Universidade
de Oxford. Professora do Programa de Pós-Graduação
em Educação da FACED/UFRGS.

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senso numériCo e diFiCuldades de aPrendizagem na matemátiCa

INTRODUÇÃO vam o conceito de senso numérico, nas áreas de


O senso numérico é um conceito de funda- desenvolvimento cognitivo e educação matemá-
mental importância para a área das dificuldades tica e, como resultado, compilou uma lista de 30
de aprendizagem na matemática, tanto no que características presumíveis de comporem este
diz respeito à intervenção como à prevenção. conceito. O autor destaca que senso numérico
Um crescente corpo de pesquisas aponta que inclui consciência, intuição, reconhecimento,
as crianças com problemas na matemática apre- conhecimento, habilidade, desejo, sentimento,
sentam dificuldade central no senso numérico, expectativa, processo, estrutura conceitual ou
a qual pode ser identificada desde cedo na linha numérica mental.
educação infantil1-3. Possuir senso numérico permite que o indi-
Um senso numérico pouco desenvolvido víduo possa alcançar: desde a compreensão do
pode ser decorrente de uma representação e/ significado dos números até o desenvolvimento
ou processamento imaturo dos números, que de estratégias para a resolução de problemas
ocasiona defasagens na compreensão e flexi- complexos de matemática; desde as compara-
bilidade no uso do sistema numérico e acarreta ções simples de magnitudes até a invenção de
problemas para o desenvolvimento de habilida- procedimentos para a realização de operações
des do tipo contagem, realização de operações, numéricas; desde o reconhecimento de erros
estimativas e cálculo mental, aspectos estes fun- numéricos grosseiros até o uso de métodos
damentais para o desenvolvimento da fluência quantitativos para comunicar, processar e in-
em matemática4. terpretar informação.
Por apresentar dificuldades no senso numé- Um senso numérico bem desenvolvido é
rico, o aluno não interage de forma significativa refletido na habilidade da criança de estimar
com os contextos que envolvem número (quan- quantidade, reconhecer erros em julgamentos
tificar, relacionar e comparar), o que acaba por de magnitude ou de medida, fazer compara-
acentuar suas dificuldades iniciais. Estamos nos ções quantitativas do tipo, maior do que, menor
referindo aqui ao efeito São Mateus1, frequente- do que e equivalência5. Crianças com senso
mente mencionado em relação à leitura, e que é numérico desenvolvido têm uma compreensão
válido, do mesmo modo, para a aprendizagem do que os números significam. Por exemplo, o
da matemática. problema 5/12 + 3/7 pode ser resolvido da forma
Apesar do conceito de senso numérico ter convencional, encontrando um denominador
sido apresentado pela primeira vez, em 1954, comum, ou reconhecendo que cada fração é um
por Dantzig, os esforços para defini-lo estão pouco menor do que 1/2, de forma que o resul-
apenas em seus estágios de formação5, como tado do problema deve ser um pouco menor do
veremos logo a seguir. que um. A forma convencional se dá por meio
da aplicação de um procedimento memorizado,
DEFINIÇÃO DE SENSO NUMÉRICO mas a outra forma exige conhecimento do que os
Não há consenso na literatura com relação ao números verdadeiramente representam, ou seja,
conceito de senso numérico. De um modo geral, requer senso numérico7. O senso numérico tem
este se refere à facilidade e à flexibilidade das como foco os números, ao invés dos dígitos, e o
crianças com números e à sua compreensão do sig- propósito das operações matemáticas, ou seja, a
nificado dos números e ideias relacionadas a eles. adição, aumenta o tamanho de um conjunto, a
Berch6 analisou vários estudos que engloba- divisão gera conjuntos menores e equivalentes8.

1
Conceito apresentado por stanovich (1986) em que o autor destaca que se o aluno lê pouco, desenvolverá em menor grau as
habilidades necessárias e, em decorrência disso, tenderá a ler menos, acentuando-se, assim, os problemas iniciais.

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Corso lv & dorneles Bv

O senso numérico dá vida aos números ao indivíduo lidar com as situações diárias que
que usamos e às relações entre eles. Um senso incluem quantificações e o desenvolvimento
pouco desenvolvido sobre o que os números de estratégias eficientes (incluindo cálculo
representam torna uma tarefa do tipo aprender mental e estimativa) para lidar com problemas
multiplicação um puro exercício de memoriza- numéricos.
ção. Apoiar-se na memória para lembrar que os
múltiplos de cinco terminarão em 0 ou 5 pode ORIGEM DO SENSO NUMÉRICO
ser útil. Melhor será, no entanto, se o aluno com- Com relação à origem do senso numérico,
preender que 6 x 8 resulta em uma quantidade encontramos duas explicações distintas. A cor-
maior do que 6 x 6, ou que o produto de 7 e 9 rente construtivista propõe o senso numérico
é um pouco menor do que 70 (que é 7 x 10), ou como um constructo que a criança adquire ou
seja, que deve ser 60 e alguma coisa. atinge, ao invés de, simplesmente, possuir e
A ideia de propriedade comutativa também considera que seu desenvolvimento é influen-
pode ser melhor compreendida quando alguém ciado pela dinâmica do ambiente5,8. Este desen-
se apoia no senso numérico. Um aluno pode ser volvimento ocorre por meio de interações sociais
ensinado que 3 x 4 = 4 x 3 porque a lei comuta- com adultos e a partir de jogos e brincadeiras
tiva da multiplicação diz que a x b = b x a. No com outras crianças. Deste modo, as interações
entanto, ele pode ter a compreensão de que informais são um canal para o desenvolvimento
aquelas afirmações tratam de um reagrupamen- do senso numérico da mesma forma que as inte-
to da mesma quantidade. Se um conjunto de 12 rações espontâneas da criança com a linguagem
itens é agrupado em 3 subconjuntos de 4 itens podem auxiliá-la, desde cedo, a desenvolver
ou em 4 subconjuntos de 3 itens é irrelevante - habilidades verbais do tipo vocabulário e cons-
os 12 itens originais permanecem. ciência fonológica.
Neste sentido, o conceito de senso numéri- A corrente inatista defende a ideia de que
co aproxima-se do conceito de numeralização existe algum tipo de predisposição inata que nos
apresentado por Nunes & Bryant9 em que ser possibilita sermos numericamente competentes.
numeralizado significa uma familiaridade com Para esta corrente, as habilidades numéricas
números e uma capacidade de usar habilidades iniciais são o resultado de uma capacidade
matemáticas que permitam enfrentar as neces- inata de “abstração numérica das crianças”,
sidades diárias. Significa, também, uma habi- isto é, a capacidade que as crianças têm para
lidade de apreciar e compreender informações formar representações sobre a numerosidade
que são apresentadas em termos matemáticos, de conjuntos10.
como gráficos, tabelas e mapas, por exemplo. Tal corrente defende a ideia de que os be-
Juntos, estes aspectos indicam que a pessoa bês, quando nascem, dispõem de competências
numeralizada deveria ser capaz de entender as necessárias para resolver com êxito distintas
formas por meio das quais a matemática pode tarefas numéricas do tipo: habilidades para
ser usada como um meio de comunicação. representar e usar conceitos cardinais (proprie-
Com base nas definições citadas anterior- dade que regula se dois conjuntos são ou não do
mente, a compreensão de senso numérico que mesmo tamanho), representar e usar conceitos
caracteriza esse artigo é a de que este é um ordinais (qual a relação existente entre dois
constructo geral, que engloba um conjunto conjuntos maior do que/menor do que) e reali-
de conceitos bastante amplo, o qual o aluno zar cálculos numéricos de adição e subtração.
desenvolve gradativamente, a partir de suas As pesquisas que investigam as habilidades
interações com o meio social. O senso numérico numéricas nos bebês utilizam como instrumento
é uma forma de interagir com os números, com de medida a preferência que eles demonstram
seus vários usos e interpretações, possibilitando por fixar o olhar em situações não-familiares.

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senso numériCo e diFiCuldades de aPrendizagem na matemátiCa

Este é o paradigma da habituação – desabitu- possuirmos intuições elementares sobre quanti-


ação que consiste em apresentar aos bebês a dades? Acreditamos que uma importante impli-
mesma estimulação repetidas vezes até que se cação resulta no desenvolvimento de pesquisas
habituem mostrando menos interesse11. voltadas para a elaboração de programas de
As críticas que são feitas a tais estudos prevenção e de intervenção das dificuldades de
apontam a falta de precisão para identificar se aprendizagem na matemática. Estes programas
a reação dos bebês de fixar o olhar para aquilo baseiam-se no ensino explícito dos aspectos de
que lhes causa estranheza é uma resposta que senso numérico considerados essenciais para o
sugere identificação de quantidade ou uma bom desempenho e proficiência do aluno em
resposta que revela estranheza a diferentes matemática.
variáveis como densidade, brilho, perímetro dos
objetos envolvidos no teste12. INTERVENÇÃO EM SENSO NUMÉRICO
Vemos, assim, que a evidência empírica A importância da intervenção precoce é
de que dispomos para determinar as origens destacada por Dowker15. A autora lembra que
das competências numéricas e aritméticas dos uma intervenção adequada poderá ter sucesso
bebês é ainda insuficiente e muito controver- a qualquer momento, mas que é importante que
sa. “[...] partimos, então, da possibilidade de ela ocorra nos estágios iniciais das dificuldades,
uma certa predisposição genética, não bem pois problemas na matemática podem afetar o
determinada, mas existente, que permite o de- desempenho em outros aspectos do currículo,
senvolvimento do senso numérico, que poderá como também prevenir o desenvolvimento de
ir amadurecendo a partir das interações dadas atitudes negativas e ansiedade em relação a
pela cultura”13. esta área.
Adeptos da corrente construtivista sugerem Dowker16 apresenta algumas propostas de
que a maioria das crianças adquire o senso intervenção na matemática destinadas à educa-
numérico informalmente por meio das intera- ção infantil. Tais programas2 incluem a introdu-
ções com os pais e parentes antes mesmo de ção de atividades e jogos matemáticos no cur-
entrarem na educação infantil. E, aquelas que rículo da educação infantil e, em alguns casos,
não adquiriram o senso numérico, necessitam também auxiliam os pais a usarem os materiais
de instrução formal. Por exemplo, uma criança educacionais em casa com seus filhos. Muitos
pode entrar na escola sabendo que 8 é 3 maior destes programas não têm como alvo apenas as
do que 5, enquanto um de seus colegas, com crianças com dificuldades na matemática e sim
um senso numérico menos desenvolvido, pode apresentam um enfoque preventivo.
saber somente que 8 é maior do 5. Outra criança A autora menciona dois programas de
que tenha o senso numérico bem desenvolvido intervenção individualizados, desenvolvidos
pode ter uma estratégia para descobrir quanto recentemente, que enfocam o senso numérico
maior o 8 é do 5 usando os dedos ou blocos para (numeracy) em crianças de primeira série: o
contar5,14. programa Mathematics Recovery, desenvolvido
É de se questionar, então, quais são as im- na Austrália, e o programa Numeracy Reco-
plicações pedagógicas de encararmos o senso very, desenvolvido em Oxford. Embora ainda
numérico como um construto muito mais com- estejam sob avaliação, ambos têm se mostrado
plexo e multifacetado do que simplesmente promissores já que os alunos que participaram

2
Dowker (2005) refere tais programas: Nos Estados unidos – Big math for Little Kids (GiNsBurG et al., 1999), Head start (Ar-
NoLD; fisHEr; DoCToroff; DoBBs, 2002), Berkeley maths readiness Project (sTArKEY; KLEiN, 2000), right start (GriffiN;
CAsE; siEGLEr, 1994). Na Holanda – Additional Early mathematics Program (VAN DE rijT; VAN LuiT, 1998). Na inglaterra
– family Numeracy (roBErTs, 2001).

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Corso lv & dorneles Bv

destes evidenciaram resultados significativos no volvidos no aluno (por exemplo, princípios da


desenvolvimento do conhecimento matemático. comutatividade, estratégias de contar a partir da
Respostas positivas à intervenção indicam que, parcela maior). De acordo com esta perspectiva,
diante de propostas adequadas às suas necessi- a intervenção auxiliaria o aluno a desenvolver
dades, os alunos com dificuldades demonstram estratégias de contagem cada vez mais maduras
progressos15. e aprender a utilizá-las de forma mais eficiente,
Barbosa17 também destaca a implicação das aspectos estes que estão relacionados com a re-
pesquisas sobre senso numérico para a educa- cuperação fluente de combinações aritméticas.
ção infantil. A autora aponta a importância de Siegler 20 , por sua vez, destaca que os
se planejar e mediar situações de aprendiza- programas de intervenção devem levar em
gem que possibilitem a criação de conexões e consideração o fato de que os conhecimentos
relações flexíveis entre ideias e habilidades de conceitual e procedimental da matemática
caráter numérico-cognitivas. A qualidade do devem estar integrados apontando como ideal
senso numérico3, construído gradualmente pela a criação de situações de aprendizagem em
criança, dependerá das experiências materiais, que os alunos possam orquestrar todos estes
sociais e psicológicas que ela vivencia e estas conceitos enquanto fazem atividades mate-
experiências, por sua vez, influenciam o desen- máticas.
volvimento do senso numérico. Encontramos também pesquisadores que,
A literatura mostra que programas de inter- apesar de exaltarem a existência de pro-
venção em senso numérico adotam caminhos gramas que se propõem a ensinar o senso
distintos. Alguns enfatizam o armazenamento numérico, chamam-nos a atenção para o fato
de combinações aritméticas na memória de tal de que não sabemos, ainda, qual é a melhor
maneira que a criança possa recuperar o fato forma para se ensinar senso numérico5. Tais
matemático de forma rápida, sem esforço e sem questionamentos nos fazem tomar consciência
erro, como uma tentativa de ajudá-la a utilizar da necessidade de mais pesquisa nesta área.
estratégias de recuperação, ao invés de contar
de forma ineficiente nos dedos18. Outros acredi- DETECTORES INICIAIS DE DIFICULDA-
tam que as crianças podem obter respostas para DES NA MATEMÁTICA
os cálculos rapidamente com um mínimo esforço Pesquisas recentes apontam que o senso
cognitivo por meio do ensino de “atalhos”, ou numérico, avaliado na educação infantil, é um
seja, da aplicação de princípios de cálculos do forte preditor de desempenho na matemática
tipo utilizar uma combinação de número conhe- nas séries iniciais. Por exemplo, Jordan &
cida para derivar uma resposta (2+2=4, então Hanich examinaram o desenvolvimento do
2+3=5) ou de buscar relações entre operações senso numérico em 411 crianças de educação
(6+4=10, então 10-4=6)7,18. infantil, considerando as seguintes habili-
Robinson et al.7 propõem que as intervenções dades: contagem, princípios de contagem,
para alunos com dificuldades em lidar com as conhecimento de número, transformação de
combinações aritméticas devem incluir dois número, estimativa e padrões numéricos. As
aspectos: a) intervenções que ajudem a cons- mesmas crianças foram testadas em desempe-
truir a recuperação da informação matemática nho em matemática no final do 1º ano. Análi-
de forma mais rápida; e b) concentração do ses preliminares apontam que as habilidades
ensino em todos os aspectos do senso numérico testadas têm forte validade preditiva, mesmo
ou conceitos aritméticos que estão subdesen- no início da educação infantil, quando as

3
A autora traduz o termo number sense por sentido de número.

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302
senso numériCo e diFiCuldades de aPrendizagem na matemátiCa

crianças tinham uma limitada instrução formal usadas durante a contagem.


em matemática. O outro instrumento analisado foi composto
Outro estudo3 sugere que o desempenho por um conjunto de tarefas para avaliar habi-
das crianças de educação infantil em habilida- lidades especificas e proficiência desenvolvido
des do tipo ler números, comparar magnitudes por Geary et al.23. Este incluía medidas de
de números de 1 dígito e desempenhar cálcu- discriminação de quantidade (comparação
los mentais simples são fortes preditores de de magnitude), conhecimento de contagem,
dificuldades de aprendizagem na matemática identificação de número e memória de trabalho.
no 3º ano do ensino fundamental. Baker et al.21 observaram que as tarefas que
compunham o Teste de Conhecimento Numé-
MEDINDO O SENSO NUMÉRICO rico foram as que melhor puderam prever o
Interessados em pesquisar a possível validade desempenho dos alunos nos testes padroniza-
dos instrumentos que medem o senso numérico, dos de desempenho na matemática que foram
Baker et al.21 analisaram um conjunto de medi- reaplicados nas crianças da educação infantil
das que avaliavam o senso numérico e outros no ano seguinte. No entanto, conforme desta-
aspectos do conhecimento de número para ver cam os autores, três tarefas simples parecem
se tais medidas eram capazes de predizer o de- ser bastante promissoras: (a) discriminação de
sempenho subsequente do aluno na matemática. quantidade ou comparação de magnitude; (b)
Uma bateria de tarefas foi administrada em mais identificação de um número faltando em uma
de 200 crianças da educação infantil em duas sequência; (c) medidas de identificação de
áreas urbanas. O desempenho nestas tarefas foi número. Apresentamos no Anexo 1 o Teste de
correlacionado com o desempenho dos alunos Conhecimento Numérico.
em testes padronizados de matemática: dois
subtestes de matemática, um do Stanford Achie- UM ESTUDO BRASILEIRO COM O TESTE
vement Test – Nineth Edition (SAT-9), e o outro DE CONHECIMENTO NUMÉRICO
do Procedures and Problem Solving (Harcourt O estudo de Corso24,25 procurou compreender
Educational Measurement, 2001). e identificar as relações entre as dificuldades
O primeiro instrumento avaliado foi o Teste na leitura e na matemática em 79 alunos brasi-
de Conhecimento Numérico (Number Know- leiros, do 3º ao 6º ano do Ensino Fundamental,
ledge Test) desenvolvido por Okamoto e Case22. divididos em quatro grupos: com dificuldades
Este é um instrumento aplicado individualmen- na leitura (DL), na matemática (DM), nas duas
te que permite ao examinador não só avaliar áreas (DLM) e sem dificuldades (SD). O perfil
o conhecimento de conceitos e operações cognitivo dos grupos foi obtido por meio de
aritméticas básicos da criança (conhecimento tarefas de senso numérico, processamento
de contagem, os procedimentos de contagem, fonológico (consciência fonológica, memória
a compreensão de magnitude, o conceito de fonológica e velocidade de processamento),
“maior do que”, a noção de estimativa e as es- memória de trabalho (componente executivo
tratégias que usam durante a contagem), como central) e estratégias de contagem e de recu-
também avaliar sua compreensão em relação peração da memória.
àqueles conceitos e operações. Uma série de Em relação ao senso numérico, tema de
questões estruturadas foi oferecida às crianças interesse deste artigo, o estudo tinha o obje-
para avaliar sua compreensão de magnitude, tivo de verificar se os problemas enfrentados
o conceito de “maior do que” e as estratégias pelos alunos que apresentam a coexistência

4
instrumento traduzido por Luciana Vellinho Corso e utilizado em seu trabalho de tese de doutorado (Corso, 2008)24.

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303
Corso lv & dorneles Bv

ANEXo 1

Teste de Conhecimento Numérico (Okamoto e Case, 1996)4

Compreende questões estruturadas em quatro níveis de complexidade, das mais simples às mais complexas,
que são apresentadas aos alunos para avaliar o conhecimento de contagem, os procedimentos de contagem,
a compreensão de magnitude, o conceito de “maior do que”, a noção de estimativa e as estratégias que usam
durante a contagem.

Nível 1 - É esperado que o aluno possa contar oralmente e quantificar, mas não relacionar o número à
quantidade. os alunos são apresentados com as seguintes propostas:
“Eu vou te mostrar algumas fichas. [mostrar uma variedade de fichas misturadas sendo 3 vermelhas e 4
azuis]. Conte as fichas azuis e me diga quantas têm.”
“Aqui temos alguns círculos e triângulos. [mostrar uma variedade misturada de 7 círculos e 8 triângulos].
Conte somente os triângulos e me diga quantos têm”.
“Eu vou te dar 1 bombom e depois vou te dar mais 2 bombons [realize a ação]. Quantos bombons tens
ao todo?”
“Eu vou te dar duas pilhas de fichas. [mostre um empilhado com 5 fichas vermelhas e um empilhado com
2 fichas azuis]. Qual pilha tem mais?”
Você preferiria ter 5 bombons ou 2 bombons? Por que?

Nível 2 - Para verificar se os alunos construíram uma série de contagem mental que requer a compreensão
de números e quantidades, realizaremos as seguintes perguntas:
“se tu tens 4 chocolates e alguém te dá mais 3, com quantos chocolates tu ficarias ao todo?”
2a. “Que número vem logo depois do 7?”.
2b. “Que número vem 2 números depois do 7?”
3a. ”Qual é o maior 5 ou 4?”.
3b. “Qual é o maior 7 ou 9?”
3c. “Qual é o menor 8 ou 6?”
3d. “Qual é o menor 5 ou 7?”
4a. [Apresentar visualmente uma variedade de triângulos contendo os números 5, 6, 2.] “Qual número
é mais perto do 5? É o 6 ou o 2?”.
4b. [Apresentar visualmente uma variedade de triângulos contendo os números 7, 4 e 9] “Qual número
está mais perto do 7? É o 4 ou 9?”.
5. “Quanto é 2 mais 4?”.
6. “Quanto é 8 menos 6?”.
7. [mostrar visualmente cartões com os números 8, 5, 2 e 6, e pedir a criança para nomear cada nume-
ral] “Quando tu estás contando, qual destes números tu dizes primeiro? Quando tu estás contando,
qual destes números tu dizes por último?”.
8a. [mostrar visualmente cartões com os números 6, 4, 2 e 9; e então perguntar:] “Quando tu estás
contando de trás para a frente, qual destes números tu dizes por último?”.

Nível 3 - Para verificar se as crianças são capazes de trabalhar simultaneamente com duas séries de con-
tagem mental, realizaremos as tarefas do Nível 3. Estas tarefas exigem que as crianças possam seguir a pista
dos “uns” e “dezes” enquanto adicionam ou subtraem e possam entender a relação entre eles. Também requer
que os alunos usem uma série de contagem para computar a distância entre dois pontos em outra linha de
contagem, e então construir a noção de uma “diferença” matemática.
“Quanto é 12 mais 54?”
“Quanto é 47 menos 21”?
3a. “Qual é o maior 69 ou 71?”.
3b. “Qual é o maior 32 ou 28?”
4a. “Qual é o menor 27 ou 32?”.

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304
senso numériCo e diFiCuldades de aPrendizagem na matemátiCa

CoNTiNuAÇÃo Do ANEXo 1

4b. “Qual é o menor 51 ou 39?”


5a. [Apresentar visualmente uma variedade de triângulos com os números 21, 25, 18] “Qual número está
mais perto do 21? É o 25 ou o 18?”.
5b. [Apresentar visualmente uma variedade de triângulos com os números 28, 31 e 24]. “Qual número está
mais perto do 28? É o 31 ou 24?”
6. “Qual o número que vem 5 números depois do 49?”.
7. “Qual o número que vem 4 números antes do 60”?
8a. “Quantos números existem entre o 2 e o 6?”.
8b. “Quantos números existem entre o 7 e o 9?”
8c. “Quantos números existem entre o 3 e o 9?”
9a. “Tu sabes o que é um número de 2 dígitos?” [se o aluno não souber, explicar.] “Qual é o maior número de
2 dígitos?”.
9b. “Qual é o menor número de 2 dígitos”?
10a. “Quando tu estás contando de trás para frente, qual o número que tu dizes primeiro, 49 ou 66?”.
10b. “Quando tu estás contando de trás para frente, qual o número que tu dizes por último 81 ou 69?”

Nível 4 – Pretende verificar se os alunos podem estender a sua compreensão de “dezes” e “uns” para todo o
sistema numérico. As tarefas deste nível nos possibilitam, também, observar se os alunos são capazes de integrar o
“pedir emprestado” e o “adicionar com transporte” com a adição e subtração mental, podendo compreender a forma
na qual duas diferenças podem ser relacionadas.
“Qual número vem 10 números depois do 99?”
“Qual número vem 9 números depois do 999?”
3a. “Qual diferença é maior, a diferença entre 9 e 6 ou a diferença entre 8 e 3?”
3b. “Qual diferença é maior, a diferença entre 6 e 2 ou a diferença entre 8 e 5?”
4a. “Qual a diferença é menor, a diferença entre 96 e 92 ou a diferença entre 25 e 11?”
4b. “Qual a diferença é menor, a diferença entre 48 e 36 ou a diferença entre 84 e 73?”
5. “Quanto é 13 mais 39?” [mostrar o cartão].
6. “Quanto é 36 menos 18?” [mostrar o cartão].
7. “Eu te perguntei antes sobre números de dois dígitos. Agora, eu quero te perguntar sobre números de 5
dígitos. Qual é o maior número de 5 dígitos?”
8. “Quanto é 301 menos 7?”.
9. “o joão levou 90 minutos para ir de casa à escola. Ele levou somente uma hora e meia para voltar da escola
para casa. Podes explicar por quê?”
10a. “Qual está mais perto de r$ 25,35, r$20,00 ou r$30,00?”
10b. “Qual está mais perto de r$ 46,45, r$ 46,00 ou r$ 47,00?”
10c. “Qual está mais perto de r$ 40,00, r$ 29,95 ou r$ 68,05?”
10d. “Qual está mais perto r$ 15,00, r$ 9,95 ou r$ 19,95?”

o teste é interrompido no momento em que as crianças apresentam dificuldades para resolver mais da metade
das questões de um determinado nível. As respostas são avaliadas como corretas ou incorretas, obtendo-se um
escore médio de desempenho para cada aluno.

de dificuldades na leitura e na matemática ou Vemos que o senso numérico demonstrou


que apresentam defasagens exclusivamente ser uma habilidade prejudicada no grupo de
na matemática podem estar associados a um alunos com dificuldades na leitura e na ma-
senso numérico pouco desenvolvido. O Teste temática (DLM). Resultados como estes vêm
de Conhecimento Numérico foi o instrumento reforçar o que as pesquisas, de um modo geral,
utilizado para avaliar o senso numérico nos têm apontado em relação à maior gravidade
diferentes grupos de alunos (Tabela 1). das dificuldades apresentadas pelos alunos

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Corso lv & dorneles Bv

Tabela 1 - Desempenho obtido pelos diferentes grupos no teste de Conhecimento Numérico.


DL DM DLM CONT
P-
(n=20) (n=13) (n=25) (n=21)
Valor
m DP m DP m DP m DP
senso 38,8 4,44a 38,0 6,37a 35,9 5,84 41,4 4,73 0,00
Numérico 0 b 0 b 2 a 3 b 9
DL - Alunos com dificuldades na leitura; Dm - Alunos com dificudades na matemática; DLm - Alunos com dificuldades
na leitura e na matemática; CoNT - Alunos sem dificuldades de aprendizagem; *Letras iguais indicam que as médias
não diferem.

com DLM, em relação àqueles com problemas (< 5th ou 10th percentil) ou mais lenientes (<
exclusivamente na matemática ou na leitura26. 30th percentil), acabam por produzir grupos de
Isto pode ocorrer em função de diferentes tipos alunos com dificuldades que diferem substan-
de dificuldades subjacentes às habilidades de cialmente em seu perfil de desempenho em
domínio geral associadas com a co-ocorrência matemática e nas habilidades relacionadas
de dificuldades na leitura e na matemática e a ela28,29.
reflete dificuldades que podem abranger várias Outra possibilidade seria a de que as di-
áreas do desenvolvimento, ou seja, problemas ficuldades na aritmética apresentadas pelos
que não são específicos somente à leitura ou à alunos que compuseram nosso grupo com DM
matemática27,28. estariam menos relacionadas aos aspectos de
Embora os alunos com dificuldades na senso numérico referentes à compreensão de
matemática tenham apresentado desempe- magnitude, ao senso de quantidade, ao uso
nho inferior na tarefa de senso numérico, de linha numérica mental, e à compreensão
em relação ao grupo de controle e ao grupo de conceitos tais como “maior do que” e sim
com dificuldades na leitura, tal diferença não estariam mais voltadas para os procedimentos
alcançou nível de ignificância estatística. e estratégias de contagem já que este grupo
Possíveis justificativas para tal resultado in- evidenciou defasagem específica nesta vari-
cluem questões metodológicas e conceituais. ável, avaliada no estudo de Corso24, que não
A primeira diz respeito ao tamanho reduzido nos deteremos aqui. É importante lembrar que
da amostra de alunos que compôs o grupo com as estratégias e os procedimentos de conta-
dificuldades na matemática (n=13). Amostras gem também são aspectos que englobam o
deste tipo podem diminuir o poder de detectar conceito de senso numérico. No entanto, o
diferenças significativas nas variáveis sendo escore do Teste de Conhecimento Numérico
avaliadas e, assim, reduzir a possibilidade de reflete o desempenho dos alunos naquele con-
generalização dos resultados obtidos. junto de habilidades citadas anteriormente.
A segunda se refere ao ponto de corte, Estamos retomando aqui a idéia de que o
neste caso mais leniente, que caracterizou o senso numérico refere-se a um conjunto bas-
instrumento utilizado nesta pesquisa para for- tante amplo de habilidades, conforme vimos
mar a amostra de alunos com dificuldades na anteriormente, e que o desempenho do grupo
matemática. Estudos recentes têm chamado com DM no Teste de Conhecimento Numérico
atenção de pesquisadores da área de dificul- (sem diferença significativa em relação aos
dades de aprendizagem para o fato de que demais grupos) sugere que alguns elemen-
diferentes pontos de corte para os escores de tos de senso numérico podem estar intactos
desempenho em matemática, mais restritivos nestes alunos, enquanto outros (estratégias

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306
senso numériCo e diFiCuldades de aPrendizagem na matemátiCa

e procedimentos de contagem) mostram-se numérico. Em outras palavras, o ensino nesta


deficitários19. área continua a enfatizar o cálculo, ao invés
da compreensão matemática, o que acaba por
CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICA- favorecer o desenvolvimento de dificuldades
ÇÕES PARA O ENSINO E PESQUISA de aprendizagem. De fato, as influências dos
Discutimos aqui o conceito de senso nu-
estudos sobre senso numérico no Brasil estão,
mérico que, apesar de bastante controverso
ainda, presas aos discursos teóricos.
quanto à definição, avaliação e intervenção,
é crítico para o desenvolvimento da compe- É fundamental que o ensino da matemática
tência em matemática. Pesquisas recentes dê ênfase maior ao desenvolvimento do senso
têm apontado que um senso numérico pouco numérico. Por meio do fortalecimento do senso
desenvolvido é uma das características que numérico estaremos favorecendo aos nossos
acompanha os alunos que enfrentam dificul- alunos o desenvolvimento de conhecimentos
dades na matemática. conceituais necessários para a resolução aritmé-
Não restam dúvidas quanto à necessidade
tica (experiências de contagem que permitam
de mais estudos nesta área de investigação
a descoberta de relações matemáticas). Do
para que possamos melhor refinar e opera-
mesmo modo, estaremos promovendo a prática
cionalizar o senso numérico. Somente, assim,
a área das dificuldades de aprendizagem na de estratégias de contagem mais maduras e
matemática estará apta a aprimorar a natu- eficientes que funcionam como uma espécie
reza dos instrumentos desenvolvidos para a de andaime para o desenvolvimento das estra-
identificação inicial de problemas e delinear tégias baseadas na recuperação imediata da
programas de intervenção efetivos em senso memória. A recuperação de fatos aritméticos
numérico. da memória, por sua vez, exerce um impor-
Infelizmente, nossa realidade mostra que,
tante papel no desenvolvimento de processos
de forma frequente, o ensino da matemática
matemáticos mais complexos (e.g., cálculo de
tem se baseado em práticas com limitadas
oportunidades para que os alunos explorem multidígitos, solução de problemas) e, por isso,
verbalmente o seu raciocínio e recebam fee- a importância de se dar mais ênfase ao ensino
dback sobre o seu conhecimento de conceitos desta habilidade, principalmente, para os alu-
e estratégias, aspectos essenciais do senso nos com dificuldades na matemática.

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Corso lv & dorneles Bv

SUMMARY
Number sense and learning difficulties in mathematics

The article focuses on number sense, a key concept for understanding


learning difficulties in mathematics. Through a review of international
and national literature, the main topics around the theme are highlighted:
definition, origin, intervention and assessment. The article presents the
Number Knowledge Test, developed by Okamoto e Case (1996), suggested
by the literature as a good instrument to measure number sense. Finally,
it presents the implications of studying this concept to the prevention of
mathematics difficulties and to research in this field.

KEY WORDS: Mathematics. Learning disorders. Mathematical concepts.

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308
senso numériCo e diFiCuldades de aPrendizagem na matemátiCa

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Trabalho realizado na Universidade Federal do Rio Artigo recebido: 8/4/2010


Grande do Sul, Porto Alegre, RS. Aprovado: 7/7/2010

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EsTuDo DEetCAso
Bonini Fv al.

ProBlemas emoCionais em um adulto Com


dislexia: um estudo de Caso

flávia Vianna Bonini; raquel regina mari; sandra Aparecida dos Anjos; Viviane joveliano; sueli Cristina de Pauli Teixeira

RESUMO – Este trabalho visa abordar os diversos tipos de sentimentos


causados pela dislexia, baseando-se em um relato real, obtido por meio
de uma entrevista em que o sujeito relatou suas experiências e frustrações
do início da sua vida escolar até a fase adulta. Com isto focou-se na
análise do discurso do sujeito, selecionando os recortes mais significativos
e interpretados à luz da literatura. Desse modo, procurou-se salientar
os prejuízos emocionais causados pela baixa-estima, agressividade,
ansiedade, depressão, ou pelo medo de errar ou de ser descoberto, entre
outros sentimentos apontados nesta pesquisa e comumente encontrados
em indivíduos com dislexia que podem se estender, afetando tanto o plano
social quanto o profissional. Porém esses sentimentos podem ser superados
por meio de um diagnóstico correto, possibilitando assim um tratamento
eficaz, mas a principal causa de superação pode estar ligada à habilidade
desenvolvida em superar, estrategicamente, as dificuldades.

UNITERMOS: Dislexia. Transtornos de aprendizagem. Adulto.


Instituições acadêmicas. Emoções.

Flávia Vianna Bonini – Fonoaudióloga e Psicopedagoga Correspondência


formada pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Sueli Cristina de Pauli Teixeira
Ribeirão Preto, SP. Rua 1, casa 15, Condomínio Bosque das Colinas -
Raquel Regina Mari – Pedagoga e Psicopedagoga Royal Park - Bonfim Paulista, SP - CEP 14110-000
formada pelo Centro Universitário Barão de Mauá, E-mail: scpauli@ig.com.br
Ribeirão Preto, SP.
Sandra Aparecida dos Anjos – Pedagoga e
Psicopedagoga formada pelo Centro Universitário
Barão de Mauá, Ribeirão Preto, SP.
Viviane Joveliano – Pedagoga e Psicopedagoga
formada pelo Centro Universitário Barão de Mauá,
Ribeirão Preto, SP.
Sueli Cristina de Pauli Teixeira – Psicóloga, Mestre
e Doutora em Psicologia pela Universidade de São
Paulo – Ribeirão Preto, Professora e coordenadora do
curso de pós-graduação em Psicopedagogia do Centro
Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto-SP. Profª
Substituta da UFSCar, proferindo aulas de Psicologia
do Desenvolvimento e Psicologia da Educação aos
cursos de licenciatura do campus.

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310
ProBlemas emoCionais em um adulto Com dislexia

INTRODUÇÃO nelli et al.3 afirmam que a história familiar é um


A dislexia é definida, segundo a Associação dos fatores de risco mais importantes, pois 23 a
Brasileira de Dislexia1 (ABD), como um distúrbio 65% das crianças com pais disléxicos apresen-
ou transtorno do aprendizado da linguagem. tam o distúrbio.
É uma alteração, transitória ou permanente, Para Ferreira4, os aspectos neurológicos,
da compreensão da leitura, soletração, escrita, como sensibilidade, movimento, coordenação,
comunicação expressiva e receptiva, em crian- concentração, interesse e inteligência, costu-
ças com adequada acuidade auditiva e visual, mam estar normais. Em decorrência deste fato,
interessada na sua aquisição. Ainda, segundo a a dislexia só é descoberta quando a criança
ABD, a dificuldade no aprendizado da leitura, encontra-se no período de alfabetização. An-
em diferentes graus, é característica evidencia- tes disso, os pais, familiares e professores não
da em cerca de 80% dos disléxicos. conseguem identificar a dislexia; quando muito,
Nas últimas décadas, a dislexia tem desper- podem notar pequenos desvios no desenvolvi-
tado maior interesse de investigação e discus- mento neuropsicomotor. Para este mesmo autor,
são, principalmente porque afeta a capacidade é nítido o predomínio da dislexia em meninos,
de leitura e este é um instrumento cultural que baseando-se numa proporção de quatro para
dá acesso a outros conhecimentos e desenvol- uma menina (4:1). Scapinelli et al.3 afirmam,
vimento de outras capacidades e o não domínio ainda, que se acreditava na predominância em
da leitura pode causar danos evidentes, tanto meninos, porém apontam que estudos recentes
no plano afetivo quanto social. revelam que as taxas de acometimento são se-
A Orton Dyslexia Society of USA (Orton So- melhantes entre meninos e meninas.
ciedade Americana de Dislexia, hoje denomina- Snowling e Stackhouse5, quanto à heredita-
da International Dyslexia Association – Associa- riedade da dislexia, apontam que os geneticistas
ção Internacional de Dislexia) define a dislexia do comportamento têm demonstrado que a pro-
como uma das diversas incapacidades distintas babilidade de um menino se tornar disléxico é
na aprendizagem, a qual se manifesta por uma de 50%, se o pai for disléxico, e cerca de 40%, se
dificuldade variável em diferentes formas de a mãe for afetada, e que esta probabilidade é um
linguagem, apresentando não só problemas na pouco menor se a criança for do sexo feminino.
leitura, mas também um problema eminente Sabe-se que as tentativas de definir e ex-
com relação à aquisição de proficiência na plicar a dislexia foram inúmeras nas últimas
escrita e no soletrar. Sendo este um distúrbio décadas. De acordo com a World Federation of
específico baseado na linguagem, de origem Neurology, para entender porque a criança não
constitucional, caracterizado por dificuldades aprende, é necessário ter conhecimento de que
na decodificação de palavras isoladas, que a dislexia compreende a dificuldade de apren-
geralmente refletem habilidades insuficientes dizagem de leitura, independente de instrução
de processamento fonológico. Estes episódios convencional e outros fatores, mas depende
são inesperados em relação à idade ou a outras de dificuldades cognitivas, que são de origem
capacidades cognitivas, pois não se trata de constitucional e funcional. A dislexia seria uma
uma incapacidade de desenvolvimento ou de diminuição na sequência normal de aquisição
um comportamento sensorial2. dos diferentes processos de identificação da
Ao contrário do que muitos pensam, a disle- palavra (Frith apud Ciasca et al.6).
xia não é resultado de má alfabetização, desa- Ainda para as mesmas autoras, baseadas no
tenção, desmotivação, condição socioeconômica Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtor-
ou baixa inteligência. Ela é uma condição here- nos Mentais (DSM IV), os testes padronizados,
ditária, com alterações genéticas, apresentando administrados individualmente, de correção ou
ainda alterações no padrão neurológico. Scapi- compreensão da leitura, apresenta-se abaixo do

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 310-22

311
Bonini Fv et al.

nível esperado, considerando a idade cronológi- assim, possíveis prejuízos emocionais e, con-
ca, a inteligência medida e a escolaridade apro- sequentemente, sociais e profissionais. Quando
priada à idade do indivíduo. A alteração nesse não há um acompanhamento adequado na
critério interfere nitidamente no rendimento fase escolar, estes aspectos afetivos emocionais
escolar ou atividades da vida diária que exigem tornam-se prejudicados e poderão se manifes-
habilidades de leitura, levando em conta que a tar em forma de depressão, ansiedade, baixa
criança também deve estar livre de distúrbios auto-estima e, em alguns casos, o ingresso nas
sensoriais ou neurológicos6. drogas e no álcool.
No entanto, para a confirmação deste dis- A dislexia é causa ainda ignorada de evasão
túrbio de aprendizagem (dislexia), conforme escolar em nosso país, e uma das causas do
cita a ABD1, o indivíduo deve ser submetido à chamado ‘analfabetismo funcional’, que, por
avaliação realizada por uma equipe multidis- permanecer envolta no desconhecimento ou na
ciplinar, formada por psicóloga, fonoaudióloga informação imprecisa, não é considerada como
e psicopedagoga clínica. Deve-se iniciar minu- desencadeante de insucessos no aprendizado.
ciosa investigação. Essa equipe deve garantir De acordo com diversos pesquisadores, como
maior abrangência do processo de avaliação, Minervino9, podem estar incluídas no grupo de
verificando a necessidade do parecer de outros risco para a dislexia as crianças que apresentam
profissionais, como neurologista, oftalmologista sinais indicando dificuldades para entender
e outros, conforme o caso. Os autores Valle e instruções; pouco vocabulário para a produção
Valle7 também concordam com estes procedi- de frases; dificuldades em lembrar sentenças
mentos e acrescentam, ainda, que o diagnóstico ou estórias, levando sempre em consideração
eficaz da dislexia permite uma correta inter- as condições pedagógicas a que essas crianças
venção nas dificuldades apresentadas, além de são submetidas. Sugere ainda que, problemas
descartar a possibilidade de outros distúrbios relacionados à linguagem em crianças com
correlacionados. seis anos são fortes preditores de dificuldades
Além dessas preocupações, a equipe de pro- na leitura.
fissionais deve verificar todas as possibilidades Em relação à linguagem, Minervino9 des-
diagnósticas antes de confirmar ou descartar um taca que aspectos relacionados à memória
quadro de dislexia. Este processo é chamado de estão subentendidos e acredita que crianças
Avaliação Multidisciplinar e de Exclusão. Con- com dificuldades de aprendizagem acusam
tudo, é importante levar em conta o parecer da frequentemente problemas de memorização,
escola, dos pais e levantar o histórico familiar conservação, consolidação, retenção, rememori-
e de evolução do paciente. zação, e retomada da informação anteriormente
O processo da leitura é individual, variável, recebida, pois a memória e a aprendizagem são
dependendo da idade, maturação, de experi- indissociáveis, considerando que a aprendiza-
ências culturais, de motivação e integridade do gem da leitura requer a integridade mínima de
Sistema Nervoso Central (SNC) e do Sistema processos psiconeurológicos e psicomotores.
Nervoso Periférico (SNP), e de todo o desen- Segundo Frank10, o sentimento de frustração
volvimento global8. e fracasso que o indivíduo vivencia, enquanto
Levando-se em conta os aspectos aqui cita- negocia sua vida com a dislexia, pode aparecer
dos, nota-se a importância de um diagnóstico de várias formas, sentimentos comuns que vão
claro e preciso sobre a dislexia, pois, com estas reaflorar de tempos em tempos, seja ao abordar
informações, pode-se iniciar um acompanha- seus trabalhos escolares ou ao se interagir com
mento adequado enquanto o indivíduo ainda for colegas e familiares.
criança. Caso contrário, os sintomas persistirão Um dos aspectos emocionais que podem ser
e irão permear a fase adulta, acrescentando, desenvolvidos com a ajuda dos pais é a auto-

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 310-22

312
ProBlemas emoCionais em um adulto Com dislexia

estima. Segundo Selikowitz11, as crianças com úteis para nortear outros estudos semelhantes,
dislexia percebem que enfrentam obstáculos já que um estudo de caso permite o conheci-
que outras crianças não enfrentam. Muitas mento mais amplo e profundo da realidade
criam mecanismos bem-sucedidos para manter que enfoca.
sua auto-estima, apesar das dificuldades; mas
algumas desenvolvem mecanismos inadequa- O DISLÉXICO: VIDA EMOCIONAL
dos para enfrentar o problema. Segundo Frank10, os lados emocional e cog-
Neste estudo, pretende-se descrever, anali- nitivo da dislexia estão sempre entrelaçados,
sar e discutir as questões referentes exclusiva- por isso que para o disléxico é importante o
mente aos aspectos emocionais presentes em apoio, a compreensão, a paciência e a dedicação
um indivíduo adulto com diagnóstico de disle- daqueles que o cercam, pois o fato da criança
xia. Trata-se de um tema de grande relevância, se sentir diferente dos demais já é um grande
visto que existem pouquíssimas publicações que desafio, uma vez que este indivíduo terá de vi-
abordam a dislexia na vida adulta. venciar os efeitos da dislexia, que é uma questão
E, de acordo com os dados levantados, para a vida toda.
pretende-se com esta pesquisa esclarecer e Educar a criança segundo a natureza do
ajudar não só as pessoas com dislexia, mas seu distúrbio, valorizando suas qualidades e
também profissionais e pais que convivem dia- ressaltando seu bom desempenho em diferen-
riamente com todas as implicações emocionais tes áreas, é um meio sábio de torná-la ativa,
que atrapalham o desenvolvimento pessoal e interessada e responsável em melhorar o seu
intelectual desse indivíduo, e também por meio desempenho.
deste assunto, enfatizar que a dislexia necessita Alvarez et al.12 citam autores que trabalha-
de um tratamento apropriado, pois não se trata ram com comunidades que sofreram de priva-
de um problema que é superado com o tempo; ção cultural; tais comunidades representavam
a dislexia não pode passar despercebida. Pais e o espelho da população. Perceberam cada um
professores devem se esforçar para identificar a no seu caminho de pesquisa que, em alguns
possibilidade de seus filhos ou alunos sofrerem anos, essa população poderia assumir a posição
de dislexia. de culturalmente atuante. Portanto, devem-se
Contudo, a finalidade desta pesquisa é abor- ressaltar as habilidades e não as limitações do
dar especificamente os problemas emocionais indivíduo, propondo, assim, uma educação
que ocorrem no disléxico e suas implicações apropriada, pensada, planejada e elaborada,
no processo de aprendizagem, destacar as levando-se em conta as necessidades do indiví-
características, causas e processos envolvidos duo e da sociedade na qual está inserido.
na dislexia. A auto-estima é fundamental para crianças
A preocupação em desenvolver este estudo com dificuldades específicas de aprendizagem,
foi a de ter uma melhor compreensão dos sen- porque ela as habilita a entrar no ciclo do êxito.
timentos que ocorrem em um indivíduo com Se elas acreditarem na sua capacidade, reagirão
dislexia; confirmar, por meio de um relato real, mais intensamente e passaram a se autovalo-
os ‘danos’ que uma dificuldade de leitura e es- rizar. Em contraste, a baixa auto-estima pode
crita causa em um ser quando em processo de causar um ciclo vicioso de fracasso. A criança
aprendizagem, além de mostrar as estratégias tenta fugir do fracasso, evitando os desafios.
que o sujeito pode desenvolver na tentativa de Para o autor Selikowitz11, o desenvolvimento
mascarar o problema. da auto-estima tem importantes implicações
Não se pretende fazer generalizações, em- no futuro da criança. Se uma criança não tiver
bora seja importante destacar que este estudo adquirido boa auto-estima até a idade adulta,
permite tirar conclusões que possam vir a ser o resultado será o pouco proveito de suas habi-

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lidades acadêmicas. Se tiver boa auto-estima, e quando fica mais velha, sua incapacidade de
ela provavelmente enfrentará bem a vida, evocar palavras (a chamada disnomia) pode
mesmo que suas habilidades acadêmicas sejam causar embaraço ou sentimento de inadequa-
limitadas. ção, aumentando o sentimento de frustração e
Por isso, os pais devem aceitar a insegurança de inferioridade dos disléxicos. O fato de tanta
de seu filho, seus sentimentos, sem crítica, pro- pressão emocional em dar o melhor de si, pode
curando enfatizar as suas qualidades positivas e torná-los agressivos.
mostrar o quanto é valorizado não pelos acertos Com base nos pontos abordados nesta pes-
(resultados) obtidos por ele, mas pelo esforço em quisa, é importante salientar que a dislexia é um
tentar superar as suas dificuldades. problema neurológico e não pode ser ignorado,
De acordo com Frank10, especialista na área pois nenhum disléxico deixará de ser disléxico,
de Psicologia Educacional, a dislexia é muito mas com o consistente apoio e encorajamento
mais que um problema de leitura, pois esta por parte de familiares e compreensão dos
dificuldade se estende na escrita, nas relações amigos vão ajudar este indivíduo a se conhecer
espaciais, nas direções, na administração do melhor e aprender a viver com seu transtorno e
tempo, na lembrança de palavras e na memória. ser bem-sucedido.
É a incapacidade de lembrar, por um instante,
o sobrenome do seu melhor amigo; é o pânico SUJEITO EM ESTUDO E O PERCURSO
de saber que a qualquer momento, a confusão METODOLÓGICO
mental pode aparecer e esta carga emocional O sujeito em foco é do sexo masculino, que
que se origina da perda da memória, em espe- atualmente tem 42 anos de idade. Casado há
cial, pode ser enorme. 21 anos e pai de uma filha, hoje com 11 anos,
E para salientar há evidências de que as também com o diagnóstico de dislexia. É de
crianças disléxicas possuem problemas com a uma família classe média e sempre estudou em
aprendizagem verbal de longo prazo, como, por escola pública. Atualmente, é dono de uma em-
exemplo, a memorização dos meses do ano ou as presa de caminhões guincho e presta serviços
tabelas de multiplicação. Também apresentam para várias empresas de sua cidade e região.
dificuldades para encontrar palavras (nomear), O indivíduo em estudo sempre lidou com o
pois esta tarefa exige a recuperação de infor- fracasso escolar. Fez três vezes a primeira série,
mações fonológicas da memória de curto prazo. duas vezes a segunda e três vezes a terceira
Fato comprovado em estudos experimentais (atualmente denominada como segundo, tercei-
que usam tarefas de nomeação rápida, os quais ro e quarto ano). Parou de estudar no meio da
relatam deficiências nos disléxicos5. quarta série (quinto ano), aos 15 anos de idade.
Outra característica muito frequente da Começou a trabalhar aos 12 anos, horário
dislexia é a dificuldade com a memória, tanto alternado ao da escola. Aos 15 anos, optou por
a curto como a longo prazo. Segundo Frank10, só trabalhar. Aos 20 anos, se casou e permanece
este é um dos aspectos, emocionalmente, mais com esta pessoa até hoje.
doloroso, pois, às vezes, é impossível lembrar- Voltou a estudar aos 18 anos para tirar Car-
se de certas experiências do passado. Este fato teira Nacional de Habilitação. E, durante este
pode levar os indivíduos disléxicos a se esquivar período, frequentou por dois meses aulas de
e se isolar para não serem descobertos ou por supletivo em um espaço cedido pela Prefeitura
não saber lidar com essa dificuldade, sentindo Municipal na cidade onde mora, e mais tarde
vergonha e medo de ser diferente dos demais. tentou realizar trabalhos (aulas ministradas)
Frank10 ressalta que, se para uma criança com professora particular, mas sem sucesso.
disléxica o tempo levado para lembrar uma sim- Em 2005, sua filha teve diagnóstico de dis-
ples palavra pode ser extremamente frustrante, lexia. No final de 2006, ele submeteu-se a exa-

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mes e avaliações para confirmar o seu próprio e comuns, causadas pela frustração em tentar
diagnóstico. Em 2007, iniciou tratamento fono- vencer as inúmeras dificuldades apresentadas
audiológico, interrompido em agosto de 2008. por este distúrbio.
O material empírico deste estudo, base para O sentimento de baixa-estima merece uma
o estudo de caso, é o conteúdo do depoimento atenção cuidadosa, pois quando o disléxico con-
pessoal de um sujeito que conta a sua história segue acreditar no seu potencial, mesmo diante
de vida referente à sua aprendizagem. O dis- das dificuldades, ele pode, de forma positiva,
curso coletado via entrevista, realizado em 2007, superar e desenvolver habilidades que podem
acompanhado de um roteiro que foi previamen- livrá-lo do fracasso.
te elaborado para a realização da mesma, o qual O sujeito em estudo relatou que em vários
não foi rigidamente utilizado, já que algumas momentos de sua vida se deparou com o senti-
perguntas feitas pela entrevistadora ocorreram mento de fracasso e, consequentemente, baixa-
em função do que o sujeito relatava. estima, e isto é o que mostra o recorte abaixo:
Este processo foi realizado em dois dias, com [...] eu mesmo me condenando pela pre-
duração de 50 minutos cada, com a permissão do guiça, pela safadeza, né. Esse ato meu de se
sujeito, que assinou o Termo de Consentimento esconder e não ir na escola.
Livre e Esclarecido, executada por uma das Segundo Frank10, é viável estar a par dos
pesquisadoras que atendeu o sujeito por apro- efeitos emocionais da dislexia e procurar de-
ximadamente 1 ano e 2 meses, a fim de realizar senvolver maneiras de diminuir esses efeitos
um trabalho fonoaudiológico. A entrevista foi negativos, favorecendo a confiança e o sucesso,
transcrita na íntegra e foi base para a análise, desse modo é possível tranquilizar o disléxi-
uma vez que a linguagem reflete o mundo in- co quando se esclarece que todas as pessoas
terno do sujeito. podem ser boas em algumas coisas, mas apre-
O presente estudo de caso partiu de um relato sentar dificuldades em outras, a fim de que ele
em que o sujeito discorreu sobre sua história de saiba que pontos fortes e fracos fazem parte da
vida, desde o início da vida acadêmica, seus fra- vida de todas as pessoas. Este aspecto, apesar de
cassos enquanto aprendiz; suas vitórias enquanto ter acontecido depois de um período significa-
profissional; a descoberta da dislexia; seus senti- tivo de fracasso escolar, também foi observado
mentos; os caminhos em busca da melhor leitura. quando o sujeito disse estar entusiasmado e
A análise dos dados foi realizada a partir do orgulhoso:
levantamento dos significados atribuídos pelo [...] a profissão de mecânico que era mais
sujeito a sua história escolar, sua trajetória, fácil é uma profissão que eu gostava demais,
seus medos, sentimentos. Foram selecionados [...] eu procurei me aperfeiçoar [...] que não tem
os recortes mais significativos de seu discurso muita leitura... é mais prática.
e estes foram interpretados à luz dos aspectos Estes pontos, abordados por Frank10, podem
teóricos apontados pelos estudiosos da dislexia. diminuir o sentimento de inferioridade dos dis-
léxicos, mas para a ABD1 é preciso que pais e
ANÁLISE DA ENTREVISTA DO SUJEITO: professores compreendam, exatamente, quais
RESULTADOS E DISCUSSÃO são as dificuldades que uma criança com disle-
De acordo com o discurso do sujeito, foram xia apresenta, o importante é que o obstáculo
encontrados alguns aspectos específicos com apresentado pela dislexia seja reconhecido, pois
relação ao seu comportamento, ou seja, alguns estas pessoas (pais e professores) podem ser
pontos emocionais característicos de pessoas úteis, não apenas no sentido de mostrar simpatia
que são disléxicas. e encorajamento, mas principalmente na busca
Durante a entrevista, observou-se a baixa- de uma didática mais adequada e eficaz.
estima, uma das características mais frequentes Pois, segundo Franchi13, o professor alfabe-

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tizador é quem enfrenta os maiores problemas podem levar o indivíduo ao desânimo, perda de
linguísticos, e todos de uma vez, por isso deve interesse e a falta de prazer de ir à escola, e des-
aliar o seu trabalho a uma tendência de pes- se modo aumentando o sentimento de frustração
quisador da linguagem, a fim de tomar conhe- e de inferioridade do disléxico. Sentimentos
cimento do assunto, tendo este, além de outros estes também presentes no sujeito quando diz:
profissionais, papel importante no desenvol- “[...] nunca... tinha aquele prazer para ir na
vimento de habilidades de leitura e escrita do escola, né... a realidade seria essa, né [...] tinha
disléxico. Por isso, o professor não deve deixar que ir, mais a dificuldade era maior [...] A situ-
de recorrer às fontes de que disponha para ação era difícil, né...”
compreender os fenômenos de linguagem que Para Scapinelli et al.3, pessoas com história
ocorrem diante dele e as propriedades linguís- de dislexia na infância podem apresentar me-
ticas envolvidas. lhora no conhecimento fonológico, mas conti-
Segundo Ianhez e Nico14, o fenômeno da lin- nuam com deficiências na leitura, quando são
guagem escrita é uma transição da linguagem comparadas a pessoas que não tiveram história
oral, ou seja, há modificações na passagem de de dislexia na infância, pois se observa perma-
uma para outra. E este processo de aquisição nência da falta de automatismo (velocidade)
da escrita se dá por conta de aspectos semân- da leitura.
ticos e sintáticos, ou melhor, os códigos e as De acordo com Zorzi8, a leitura corresponde
regras da língua escrita e a própria codificação a um ato de compreensão, da relação entre
e decodificação, isto é, os sons, seus símbolos e símbolos/letras (significantes) e aquilo que
seus significantes e significados, que requerem eles simbolizam (significado), assim, pode-se
síntese e análise auditiva e visual, assim como concluir que uma criança que seja capaz ape-
discriminação temporoespacial. Estes aspectos nas de decodificar, ou seja, capaz somente de
linguísticos não são características dominantes pronunciar as palavras sem conseguir obter o
nos disléxicos e, consequentemente, a aquisição entendimento das ideias nelas contidas, não
da escrita (para os disléxicos) não poderá ser pode ser considerada como alguém que real-
adquirida da forma convencional, como é feito mente lê.
na escola, pois deste modo o disléxico pode não O disléxico diante dessa inabilidade de
responder às expectativas esperadas, o que lhe leitura pode desenvolver um sentimento de fo-
acarretará frustrações. Fato evidente no relato bia, aspecto relacionado ao fato de sair de casa
do sujeito: do que ansiedade relacionada à escola, o que
“...eu vou aprender ler, mas assim,... eu ali ocasionalmente provocará rejeição pela escola.
sozinho ou, então com uma pessoa,... se eu lê Segundo Selikowitz11, esta rejeição à escola é
para mais pessoas eu já não vou... eu vou ter decorrente da pressão causada por dificuldades
dificuldade... não tenho confiança...” acadêmicas ou sociais enfrentadas pelo dislé-
O medo que descubram o seu problema, de xico. Ele pode ficar com medo de errar, ou de
acordo com Frank10, é, talvez, o elemento mais ser importunado e rejeitado pelos que estão a
significativo da vida secreta do disléxico, pois, sua volta.
geralmente, vai tentar manter seu transtorno em Estes aspectos também foram encontrados
segredo, inclusive atos que envolvam ler, escre- no relato do sujeito, quando ele fala da inse-
ver, soletrar, falar em voz alta ou lembrar, mas gurança apavorante e do medo que parecia
isto é algo quase impossível na nossa sociedade, dominá-lo diante da dificuldade não só da lei-
porém, há alguns disléxicos que conseguem ser tura, mas da escrita também. É o que mostra o
bem criativos para escapar dessas tarefas. recorte a seguir:
A falta dessas habilidades e as inúmeras di- “[...] Eu com a minha dificuldade [...] Era
ficuldades apresentadas pela dislexia também uma tensão muito forte... era feio você levar

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um nome para a pessoa assinar e escrito tudo ajudá-lo diante desta situação. Pois, esses ex-
errado”. cessos costumam ocorrer nas horas em que o
Muitas vezes, é constrangedor para o dislé- disléxico se sente falho ou sob ameaça de falha.
xico admitir que sente medo e, consequente- Quando estas situações são identificadas com
mente, este sentimento pode aflorar na forma de antecedência, é possível evitar ou modificar as
baixa-estima, estimulando o indivíduo a desistir coisas para que ele não se sinta inapto. Ensi-
de ser perseverante, e este ato de desistência nar certas estratégias ao disléxico, como pular
pode ser também uma forma de enfrentar ou de de um trampolim ou ouvir música, são tarefas
se entregar diante das dificuldades apresenta- prazerosas onde ele poderá descarregar toda
das pela dislexia. a sua raiva.
Pode-se observar este fato quando o sujeito Mas, se apesar de todas estas medidas, os
viu-se sem alternativa e desistiu de ir à escola, excessos agressivos permanecerem, é aconse-
convencido de que esta tentativa era perca de lhável procurar ajuda médica ou psicológica,
tempo. pois se este hábito se tornar crônico, pode
“[...] na escola não teve mesmo jeito de ir ser difícil erradicá-lo mais tarde e com possi-
mesmo... eu tava perdendo tempo.” bilidade de agravar-se na fase adulta. Outro
Outro aspecto encontrado, de acordo com aspecto importante, segundo Selikowitz11, é a
a literatura, é a agressividade reprimida que depressão que pode se manifestar por meio de
os disléxicos podem apresentar, pois segundo outros sintomas como dor de cabeça, distúrbio
Frank10 este fato pode ser decorrente da pressão de alimentação, comportamento agressivo e
emocional vivida pelo indivíduo e isto pode ser revoltado, regressão no desempenho escolar e
constatado quando o sujeito afirma que, apesar abuso de droga ou álcool.
de brincalhão, era também nervoso. Os sintomas acima citados são difíceis de
“[...] Ah, eu era brincalhão e ao mesmo tem- serem identificados como depressão, pois,
po era, como diria... nervoso...” segundo o autor, os sintomas mais comuns da
Contudo, alguns disléxicos podem ser saga- depressão são sentimento de tristeza, solidão e
zes com relação à estratégia para escapar de isolamento, declarações autodepreciativas, dis-
alguma situação indesejável, como, por exem- túrbio do sono e reclamações de aborrecimento.
plo, na escola podem tentar arrumar alguma Estes sintomas podem ocorrer transitoriamente
confusão só para fugir da dificuldade de leitura no disléxico que não esteja sofrendo de de-
ou de algum exercício não compreendido. As- pressão, pois estes sinais de depressão podem
sim, é o que mostra o recorte a seguir: surgir devido às dificuldades enfrentadas pelo
[...] já arrumava uma “encrenquinha” com disléxico.
o vizinho de carteira, [...], ela punha para fora Todos esses fatores podem se agravar se
da sala de aula, aí ficava no corredor... Ficava não forem diagnosticados adequadamente ou
desfilando até acabar o exercício.” descobertos a tempo, pois podem tornar a vida
De maneira precisa, Selikowitz11 afirma que do disléxico mais complexa, contudo é preciso
o comportamento agressivo é normalmente não apresentar um diagnóstico precipitado e
uma “capa” para a baixa auto-estima, pois ao superficial de uma criança quando esta se en-
sentir que falhou, o disléxico pode descarregar contra no início de seu aprendizado, por isso
sua raiva nos outros, pois exercer poder sobre o diagnóstico deve ser realizado apor meio de
as pessoas, como impor sua força física, fazer uma avaliação profunda e específica.
comentários críticos sobre os outros, pode lhes Segundo Ianhez e Nico14, apoiados na opi-
trazer satisfação. nião da ABD1, definir a causa das dificuldades
Para esse mesmo autor, é importante iden- do disléxico provoca mais sensação de alívio do
tificar o que provoca tal comportamento para que sentimento de angústia, pois este indivíduo

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não ficará mais exposto ao rótulo de preguiçoso, vilegiada, pois ele ficará aliviado porque seu
desatento, bagunceiro. Ambos, pais e crianças, problema de há longo tempo será “nomeado”,
serão liberados da suspeita de deficiência in- e consequentemente, indicará o caminho a per-
telectual. correr, proporcionando-lhe confiança e entendi-
O sujeito em estudo sofreu com estes pre- mento do seu problema, pois é o que demonstra
conceitos inculcados por parte de profissionais o sujeito em estudo quando diz:
e familiares, pois a avaliação superficial e “[...] Sempre fui alegre e hoje to melhor ain-
precipitada impediu que o levasse a encami- da porque já descobri, né o que era o problema;
nhamentos adequados e específicos para o seu tô bem já, lendo bem, se entendeu? [...] não
caso. Observe o relato do sujeito quando diz: pode deixar se levar pela dislexia...”
“[...] a psicóloga olhou tudo e falou... ó isso Com a descoberta e o tratamento (fez acom-
aqui é mais malandragem do que problema panhamento fonoaudiológico por algum tempo),
[...] pro pessoal, pra professora, pra minha o sujeito passou a ter uma vida menos dolorosa,
mãe, né... “pros outros” ao redor da gente tava livre de preconceitos (rótulo) e imposições, pois
como eu... preguiçoso; não era esforçado na agora ele sabe como lidar com as dificuldades
escola, né.” apresentadas pela dislexia e todo sofrimento
O sujeito descobriu que era disléxico aos 40 enfrentado por ele foi identificado e nomeado
anos de idade, pois a falta de uma visão mais ‘dislexia’. Isto ocasionou uma sensação de alívio
sensível, por parte dos profissionais, impediu o e liberdade, é o que demonstra quando diz:
seu tratamento quando ainda era criança. Du- “[...] Para mim foi uma vitória porque era
rante o relato, o próprio sujeito disse, ou seja, uma coisa que eu procurava assim... desde
mostrou que é preciso se ter conhecimento do moço, né, desde a escola. Por que os meus
que é a dislexia para depois procurar enfrentar amigos tudo é... pega um papel e lê, [...] e eu
e entender as dificuldades por ela apresentadas. não consigo ler?”
Observe o recorte a seguir: O próprio sujeito confirmou que o tratamento
“[...] com 40 anos que eu descobri a dislexia surtiu resultado e que hoje consegue ler e es-
que para mim ela não afetou nada, eu acho crever, se for o caso, embora ele esteja ciente
que [...] tem que procurar [...] se informar mais, de que não vai ficar 100% curado, mas se sente
não ter vergonha de... falar, de comentar com feliz e realizado diante do problema. Demons-
as pessoas, ... que tem a dislexia, que tem uma trando isto em seu relato a seguir:
dificuldade de ler. “[...] Hoje até se precisa até escrevo. Hoje, tô
Neste relato, o sujeito afirma que a dislexia bem melhor mesmo; tô bem contente...”
não o afetou em nada, isto porque adultos dislé- Por isso que, para Zorzi8, a dislexia tem sido
xicos, segundo Ianhez e Nico14, podem parecer vista como uma deficiência de caráter linguís-
ótimos memorizadores, mas paradoxalmente tico e deve ser abordada terapeuticamente com
são capazes de desenvolver essa habilidade a finalidade de desenvolver habilidades de
porque sua memória é pobre. Isto acontece de- linguagem, principalmente aquelas ligadas ao
vido aos problemas de memória imediata que é processamento fonológico.
prejudicada para as tarefas diárias, e por conta Capovilla e Capovilla15 citam a importância
deste fato, alguns adultos procuram caminhos do processamento fonológico para a aquisição
efetivos para desenvolvê-la. É o que aponta o de leitura e escrita. E, de acordo com estes
relato do sujeito a seguir: autores, as melhores medidas para se adquirir
“[...] Eu tinha sonhos, sabe? Sempre sonho consciência fonológica são as tarefas que re-
e sempre procurando novidade...” querem a manipulação de segmentos no nível
Para os autores citados acima, o diagnóstico fonêmico. Tais tarefas incluem habilidades de
para um adulto pode ser uma experiência pri- identificar, isolar, contar, adicionar, subtrair e

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ProBlemas emoCionais em um adulto Com dislexia

combinar fonemas. Além dessas habilidades dos inúmeros obstáculos apresentados por ela,
fonológicas, há também outras variáveis que também pode ser considerada um caso de in-
são igualmente importantes para tal aquisição, clusão, isto é, considerando que este indivíduo
como o nível socioeconômico, a escolaridade não se desenvolverá intelectualmente da forma
dos pais e o tipo de escola que o indivíduo está convencional, ou seja, da maneira como é apli-
sendo submetido. cada na escola.
Com base em tudo que foi abordado neste Portanto de acordo com o Decreto Federal nº
trabalho e de acordo com as inúmeras dificul- 3298, publicado em 20 de dezembro de 1999,
dades enfrentadas, o sujeito demonstrou que que regulamenta a Lei nº 7853, de 24 de outubro
tinha potencial como qualquer outra pessoa, de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para
pois mesmo não tendo habilidade com a lei- Integração da Pessoa Portadora de Deficiência
tura e escrita não se mostrou indiferente a e consolida as normas de proteção.
essas dificuldades e aos aspectos emocionais De acordo com Oliveira16, é importante citar
aqui levantados e observados durante o seu as definições do que é deficiência, a qual é clas-
relato. O sujeito não permitiu que a dislexia sificada como: “toda perda ou anormalidade de
o abatesse e partiu para a conquista dos seus uma estrutura ou função psicológica, fisiológica
sonhos, mas sem se descuidar do tratamento, ou anatômica que gera incapacidade para o de-
o que colaborou para o entendimento do seu sempenho de atividade, dentro do padrão con-
problema, proporcionando meios para vencer os siderado normal para o ser humano”, também
obstáculos, quanto para que alcançasse sucesso há a deficiência permanente que é “aquela que
profissional. ocorreu ou se estabilizou durante o período de
Isto ficou evidente quando ele, satisfeito, tempo suficiente para não permitir recuperação
disse: ou ter probabilidade de que se altere, apesar
“[...] minha empresa... [...] eu comecei do de novos tratamentos”. Estas definições foram
nada... [...] Isso foi uma grande vitória, foi uma estabelecidas pelo Decreto nº 3298/99, em seu
grande batalha de suor mesmo, meu pai não art. 3º.
deixou herança...” Considerando o fato de que a dislexia afeta
Para finalizar, fica claro que o diagnóstico e a capacidade de leitura, uma vez que este é
o tratamento adequado, profissionais qualifica- um instrumento cultural que dá acesso a outros
dos, o apoio, a dedicação dos familiares e a co- conhecimentos e desenvolvimento de outras
laboração dos que estão a sua volta, pode fazer capacidades, na maioria dos casos, pode causar
com que o disléxico supere suas dificuldades. prejuízos, não só no plano afetivo, mas, con-
Deste modo, elevando a sua auto-estima e sequentemente, ocasionando exclusão social.
confiança a ponto de sentir prazer em lutar pelos Neste sentido, fica evidente considerar a
seus objetivos e atingi-los, assim como mostra a dislexia como um caso de inclusão, pois este é
grande satisfação do sujeito quando relata que um distúrbio persistente, o qual deve ser tratado
é um vitorioso e que uma pessoa disléxica pode, cuidadosamente e, consequentemente, compre-
apesar das dificuldades, ter o devido reconhe- endido e aceito pela sociedade.
cimento e ser visto com respeito e admiração. Masini17, quanto ao processo de integração,
relata no artigo 2º, que “a educação é direito
O DISLÉXICO NO PROCESSO DE INCLU- de todos...” e, no artigo 88, que “a educação
SÃO de excepcionais deve, no que for possível,
Baseando-se no que foi exposto e observado enquadrar-se no sistema geral de educação, a
neste trabalho é importante levantar alguns fim de integrá-los na comunidade”. Fato esta-
aspectos sobre os direitos das pessoas com belecido de acordo com a Lei Federal 4.024/61,
deficiência, uma vez que a dislexia, dentro que firmou as bases da Educação Nacional.

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Com base neste pressuposto, os disléxicos cada vez mais graves, levando-os à depressão,
também devem ter o direito assegurado de ansiedade, baixa auto-estima, ou até mesmo,
serem recebidos por profissionais capacitados às drogas e ao álcool.
da escola ou por especialistas de outras áreas, Estes sentimentos precisam ser encarados
uma vez que a dislexia deve ser acompanhada pelos disléxicos e pelos que estão a sua vol-
ou descoberta por uma equipe multidisciplinar, ta, pois sentimentos de frustração e fracasso
que os acolham com objetivo de propiciarem surgem como desafios diários na vida destes
sua integração social. indivíduos, sejam eles sociais ou acadêmicos.
Masini17 relata que grande parte dos proble- Porém, como mostra o sujeito em estudo,
mas de deficiência encontrados na escolariza- muitos disléxicos podem desenvolver mecanis-
ção formal não se dá somente nas capacidades mos bem-sucedidos para manter a auto-estima,
linguísticas e psíquicas gerais do aluno, mas e isto pode ocorrer mesmo estando diante da
se somam a um ato mecânico e simplificador insistência das dificuldades. No caso do sujeito
da linguagem. estudado, o fato de ele ter enveredado por uma
Sendo assim, segundo Oliveira16, a inclusão escolha profissional que não dependia expres-
social significa permitir que as pessoas com samente das habilidades de escrita e leitura,
qualquer deficiência se tornem participantes da parece ter feito toda a diferença.
vida social, econômica e política, e desse modo Daí a importância de pais e professores es-
assegurar o respeito aos direitos no âmbito da tarem atentos para o reconhecimento ou iden-
Sociedade e pelo Estado, pelo poder público. tificação da dislexia, pois conforme diz Frank10,
citado nesta pesquisa, os lados emocional e
CONCLUSÃO cognitivo da dislexia estão sempre entrelaçados
Com base no assunto e pesquisa abordados e, nem sempre, é possível fazer uma escolha
neste trabalho, a dislexia afeta a capacidade profissional tão feliz, como a do sujeito deste
de leitura. Uma vez que este é um instrumento estudo.
cultural de extrema importância social, pois dá Baseando-se nos pressupostos levantados
acesso a outros conhecimentos historicamente nesta pesquisa, também fica evidente a impor-
construídos e ao desenvolvimento de outras tância do apoio, da compreensão, da paciência
capacidades, tais dificuldades podem causar e da dedicação das pessoas que o cercam, pois o
nítidos problemas, tanto no plano afetivo quanto disléxico pode se sentir incompetente ou menos
social. inteligente que os demais. Superar esse senti-
No decorrer do trabalho e também de acor- mento parece ser um desafio para a vida toda.
do com a literatura, observou-se claramente A auto-estima é parte fundamental para
a importância do diagnóstico preciso e eficaz tornar o disléxico confiante, pois quando ele
da dislexia para se obter uma intervenção e acredita na sua capacidade, a chance de al-
acompanhamento ajustado a cada caso e para se cançar o êxito diante das dificuldades é maior.
prevenir que se instalem dificuldades de ordem Isto pode ser observado no relato do sujeito em
emocional no sujeito disléxico. estudo, o qual, apesar de todas as dificuldades,
Outro aspecto importante é o indivíduo ter mesmo apresentando limitações acadêmicas,
conhecimento a respeito do que está acontecen- conseguiu se sobressair e alcançar o sucesso
do consigo, pois quando se tem conhecimento desejado, não só na profissão, mas também na
da dislexia pode-se iniciar um acompanha- vida pessoal e relação social.
mento adequado, principalmente, quando se Contudo, os disléxicos podem apresentar
é criança. Pode-se dizer, também, que quando comportamento agressivo, o qual nada mais é que
este processo não é realizado, os prejuízos emo- um mecanismo de defesa contra a percepção de
cionais, sociais e profissionais podem se tornar suas dificuldades. A dislexia os ‘torna’ agressivos

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ProBlemas emoCionais em um adulto Com dislexia

devido à pressão emocional por eles vivenciada, assim ao fortalecimento e à compensação das
mas quando as qualidades positivas são colocadas deficiências da pessoa disléxica.
em evidência, pode livrá-los de confusão ou de Em suma, pode-se concluir que os disléxicos,
algum constrangimento indesejado.
apesar de suas dificuldades de leitura/escrita,
Sendo assim, de acordo com todos os aspec-
são pessoas que, como muitas outras com ne-
tos levantados neste trabalho, é preciso deixar
que outros potenciais do disléxico tornem-se cessidades educacionais especiais, possuem
evidentes para ele e para os que o cercam. E criatividade, alegria e espontaneidade, sem
neste processo a informação é essencial. Quan- contar que eles podem ser ótimos estrategistas
do se sabe a respeito da dislexia e se realiza o em determinadas situações, como mostra o
acompanhamento adequado com especialistas,
sujeito em estudo aqui, que, hoje, consegue
dando respaldo à família e à escola, pode-se
lidar com diversas situações apresentadas pela
alcançar os resultados desejados. Cientes do
problema, além do esclarecimento de muitas dislexia, e com isto conquistou o lugar desejado
dúvidas e perturbações, pode-se prepará-los e esperado por ele, tornando-se, portanto, um
para direcionar seus esforços e levando-os vitorioso diante da dislexia.

SUMMARY
Emotional problems in an adult with dyslexia: a case study

This study aims to address the various types of feelings caused by


dyslexia based on a real life situation, obtained through an interview where
the subject reported their experiences and frustrations from the start of their
school life to adulthood; with a focus on the analysis of the discourse of the
subject, selecting the most significant pieces from the discourse which were
interpreted using current literature. The emphasis of emotional damage
caused by low self-esteem, aggression, anxiety, depression, the fear of
making mistakes or being discovered to be dyslexic, among other feelings
mentioned in this study and commonly found in individuals with dyslexia,
may be extended, affecting both the social and professional aspects of life.
But these issues can be overcome by correct diagnosis allowing for effective
treatment, but the most important point in overcoming the problems can
be linked to a strategically developed ability to overcome the difficulties.

KEY WORDS: Dyslexia. Learning disorders. Adult. Schools. Emotions.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 310-22

321
Bonini Fv et al.

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Trabalho realizado no Centro Universitário Artigo recebido: 3/2/2010


Barão de Mauá, Pós-Graduação (Lato Sensu) em Aprovado: 15/5/2010
Psicopedagogia Clínica e Institucional, Mauá, RJ.

rev. Psicopedagogia 2010; 27(83): 310-22

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ASSOCIADOS TITULARES PARA REVISTA Nº 83 – 2010

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