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Se te oprime, não é Jesus 1

2 Se te oprime, não é Jesus


Se te oprime, não é Jesus 3
4 Se te oprime, não é Jesus
EDITORIAL
Edição 01

BenDiga!
É bendizendo que temos a grata alegria Ouvistes o que foi dito: “Homossexualidade
de apresentar a “Revista BenDiga! Pessoas e transgeneridade são pecados.”
LGBTQIAPN+ cristãs existem e resistem!”. Nós, porém, dizemos: “Homossexualidade
e transgeneridade são manifestação da
A tradição cristã nos ensina que “a fé é graça.”
pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” Ouvistes o que foi dito: “Deus criou Adão
(Romanos 10, 17). Entretanto, quanto tem- e Eva.”
po nós, pessoas LGBTQIAPN+, passamos Nós, porém, dizemos: “Deus criou Adão,
ouvindo mentiras sobre nossa relação Ivo, Ana, João, Pedro...”
com Deus? O “pecado mortal” do qual nos Ouvistes o que foi dito: “Vocês são uma
acusam só denuncia a própria LGBTfobia abominação diante de Deus.”
do fundamentalismo religioso cristão. Por Nós, porém, dizemos: “Nós somos parte
isso, na busca por anunciar caminhos de da diversa e plural criação de Deus.”
reconciliação entre a experiência de fé e Ouvistes o que foi dito: “Deus odeia o
as nossas dissidências sexuais e de gêne- pecado, mas ama o pecador.”
ro, nós decidimos bendizer! Nós, porém, dizemos: “Deus é amor!”
Bendizemos os “textos de terror” usa-
dos contra as pessoas LGBTQIAPN+,
bendizemos o estigma contra o HIV/ Que esta revista, que orgulhosamente
AIDS, bendizemos as experiências dissi- apresentamos, nos capacite a desafiar a
dentes narradas na Bíblia, bendizemos violência sistêmica dos discursos de ódio
os coletivos que se organizam af irmati- contra as pessoas dissidentes sexuais e
vamente dentro e fora das igrejas. de gênero. Nós já ouvimos demais o que
foi dito. É tempo de ouvir, a partir de ex-
Foi o próprio Jesus quem nos ensinou periências encarnadas, que nós somos
o caminho que escolhemos para trilhar imagem e semelhança do Deus Vivo!
nesta publicação. Por diversas vezes,
Ele disse: “Ouvistes o que foi dito... Eu, Boa leitura!
porém, vos digo” (como em Mateus 5,
21-22). À semelhança dEle, nós, também,
dizemos:

Ana Ester
Clériga cristã, teóloga, mestra e doutora em
Ciências da Religião

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6 Se te oprime, não é Jesus
MUITO PRAZER, SOMOS O ESPERANÇAR! versando com trabalhadores sobre a fé
que nos conduz à ação e sobre o amor que
Com muita alegria, o coletivo Esperançar não é só sentido, mas praticado.
deseja lhe receber para um passeio ao Para nos conhecer mais, entre em con-
longo destas páginas. E para que nosso tato por nossas redes sociais. Se você tem
passeio seja ainda mais afetuoso, per- Esperança em outro mundo possível, va-
mita-nos uma breve apresentação: mos partilhar do brilho nos olhos!
O Esperançar é um Coletivo. Coletivo
é um daqueles momentos da vida em SOBRE ESTE MATERIAL
que os olhos de uma pessoa brilham en- Em 2023, o Coletivo Esperançar tem a
quanto ouve da outra um caminho que alegria de lançar mais um material de
a instiga, uma ideia que faz o coração estudos bíblicos. Pelo terceiro ano segui-
pulsar, e às vezes até nos arrepiam. do, foi possível ver a somatória de nossos
Já se arrepiou ao pensar numa grande esforços resultar em uma singela con-
ideia ou um futuro além do que podemos tribuição, em forma de material impresso,
imaginar? Pois então, este é o Esperançar: para aqueles e aquelas que tem o forte
Um lugar de corações palpitantes quan- desejo de manter seus estudos bíblicos,
do lembramos que Jesus morreu na cruz mas não pretendem fazê-lo com auxílio
para que ninguém mais precise viver cas- de literaturas fundamentalistas.
tigado, seja pela fome, pelo preconceito, O Coletivo Esperançar valoriza e ama o
pela intolerância religiosa. texto bíblico: é justamente por conta deste
A gente se arrepia quando lembra que lá amor, que zelamos por uma leitura séria,
na oração do Pai Nosso – oração que Jesus que leve em conta fatores sócio-históri-
nos deu como ensino – aprendemos a orar cos e geográficos de cada trecho bíblico;
pedindo que “venha o Teu Reino, seja feita aliás, uma das formas mais cruéis de lidar
a Tua vontade, assim na Terra, como é nos com a Bíblia é esvaziando sua amplitude
céu” (Mateus 6:10). Ora, se nos céu não há no tempo e espaço: esquecendo que os
pranto ou dor, morte ou lamento, porque textos que a compõem foram escritos em
iremos nos contentar com um mundo momentos específicos, por pessoas espe-
onde pessoas morrem de fome enquanto cíficas, dialogando com questões especí-
outras tem mais dinheiro do que podem ficas. É a partir da compreensão da Bíblia
gastar em toda a sua vida? Porque aceitar- enquanto documento histórico, oferecen-
mos que o Jesus que nos foi apresentado do-lhe a rica dádiva da crítica, o afeto do
como Príncipe da Paz seja, agora, transfor- questionamento e o cuidado da análise,
mado em cabo eleitoral de políticos? que desejamos ardentemente que suas
E com os corações pulsantes, nos reun- páginas possam nos levar a águas mais
imos, nas redes, nas ruas, nas casas. Hoje profundas no conhecimento e intimidade
partilhamos de dois núcleos de estudos com Deus.
bíblicos: um na favela da Rocinha-RJ, e Neste material especificamente, fica
outro em Duque de Caxias-RJ. nosso profundo desejo e oração de que,
Além dos núcleos, estamos mensal- no cheiro de cada página, na cor de cada
mente em igrejas evangélicas, promov- ilustração, no sabor de cada palavra, se
endo a leitura antifundamentalista da reforce no seu coração o amor divino rev-
Bíblia e fortalecendo as comunidades de elado por Jesus quando, depois de res-
fé com os materiais de leitura impressos. suscitar e antes de subir aos céus, visita
Também realizamos anualmente uma seus discípulos e reforça: “(…) Eis que estou
turma online de leitura popular da Bíblia, convosco todos os dias, até a consumação
onde, por um período de 3 meses, nos dos Séculos” (Mateus 28:20). A despeito de
conectamos com pessoas de todo o Brasil. qualquer condenação fundamentalista
O Esperançar também caminha lado a ou do ódio daqueles que ainda não con-
lado com os movimentos sociais como heceram o Deus que é amor, queremos
MST, MTST, MPA, e com todos que tem es- reafirmar: Cristo é conosco!
perança num mundo sem miséria, onde
mana leite e mel. Com carinho,
E claro, não é raro nos ver nas ruas, em THALES FREITAS E
alguma praça ou estação de ônibus, con-
COLETIVO ESPERANÇAR

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8 Se te oprime, não é Jesus
O Fundo Positivo, a mais de 9 anos, tra- Quando encontramos com o Coletivo
balha intensamente para a construção Esperançar, identif icamos similaridade
de um país justo e igualitário para todas na narrativa de enf rentamento do fun-
as pessoas, apoiando as organizações de damentalismo religioso que propaga
base comunitária nas cinco regiões do o discurso de ódio. Firmamos laços de
país. Atuamos, sobretudo, onde o Estado parceria com a perspectiva de enf ren-
não se faz presente e/ou suficientemente tar as narrativas estigmatizantes que
presente, promovendo ações de enf ren- por sua vez são propagados utilizando
tamento das desigualdades em saúde, entendimentos distorcidos de algumas
defesa do direito à saúde pública, uni- narrativas, especialmente da narrativa
versal, integral e equânime, prevenção, bíblica e da fé.
assistência no campo dos direitos hu-
manos. Trabalhamos com vista ao aces- Notamos que a população LGBTQIA+
so a cidadania plena, bem como ações atendida tem apresentado aumento
de combate ao estigma e discriminação no adoecimento da saúde mental, cul-
das populações que encontram-se em minando infelizmente, no exacerba-
contexto de extrema vulnerabilidade so- do índice de suicídio. Ficamos muito
cioeconômica, epidemiológica e, espe- apreensivos e tristes quando percebe-
cialmente, identitária. mos que a população LGBTQIA+ aten-
dida procura espaços de acolhimento
Assim o Fundo Positivo atua diretamente baseados na fé e sofrem discriminação,
com as populações que são vítimas porque sabemos que esses espaços in-
de preconceito e estigma, apenas por clusive, são apropriados por determina-
sua condição de existir em uma socie- dos religiões neopentecostais, funda-
dade LGBTQIA+fóbica, racista, sexista, mentalistas e distorcidas, levando com
machista e xenofóbica. que as pessoas LGBTQIA+ se sintam mais
estigmatizadas e com culpa, contribuin-
A partir deste contexto, o Fundo consti- do significativamente para o aumentan-
tuiu há alguns anos, o Fundo LGBTQIA+ do dos índices acima descritos .
que tem como premissa ofertar o apoio
a organizações e redes da sociedade civ- Por essa razão estreitamos laços com o
il que trabalham no campo dos direitos Coletivo Esperançar para o lançamento
LGBTQIA+, e especialmente entendendo dessa revista, que visa trazer um novo en-
que essa população é a que mais sof re tendimento dos ensinamentos bíblicos e
com o estigma e discriminação no país. da fé baseada no cristianismo que prega
simplesmente que o amor nos aproxima
Estigma esse que coloca o Brasil em de Deus e do divino, respeitando e acol-
1º posição no ranking do país que mais hendo as especificidades de cada ser.
mata pessoas LGBTQIA+ no mundo,
fato este recorrente nos últimos treze Que esta publicação emane o Amor, pois
anos, ou ainda , fazendo com que pes- onde ele existe, existe Deus!
soas travestis e transexuais tenham ex-
pectativa de vida de 35 anos, menor do
que a metade da expectativa de vida
da população geral.

HARLEY HENRIQUES E ÉLIDA MIRANDA


Coordenação Executiva do Fundo Positivo

Se te oprime, não é Jesus 9


CRÉDITOS
Colaboradores • Expediente

ANA ESTER
Clériga cristã, teóloga, mestra e
doutora em Ciências da Religião

EQUIPE ESPERANÇAR

ANA MOURA
Designer

ANDRESSA OLIVEIRA
Assistente de Produção
e Conteúdo

GISELLY CANLLYA
Coordenação de Comunicação

MATHEUS FOSTER
Coordenação de produção

TALES FREITAS
Coordenação teológica

YANNI CURCELLI
Ilustrator

10 Se te oprime, não é Jesus


Se te oprime, não é Jesus 11
Sumário
PARTE I - “OUVISTES O QUE FOI DITO”

BÍBLIA E OPRESSÃO: OS “TEXTOS

06
DE TERROR”
09 | Gênesis 19, 1-25, Judas vs. 7 e 1 Timóteo 1, 10 – Paulo Ueti
15 | Levítico 18, 22 e Levítico 20, 13 – Allie Terassi
18 | Romanos 1, 26-27 – Alexandre Feitosa
22 | 1 Coríntios 6, 9-10 – Keila Guedes

BÍBLIA E HIV/AIDS: SANGUE E

28
IMUNDÍCIA
André Musskopf

PARTE II - “EU, PORÉM, VOS DIGO”

BÍBLIA E LIBERTAÇÃO:

38
ENCONTRANDO-SE NO
TEXTO SAGRADO
Cris Serra

BÍBLIA E HIV/AIDS: SANGUE

44
E VIDA
André Musskopf

59
JESUS E A DIVERSIDADE SEXUAL E DE
GÊNERO: O SILÊNCIO QUE DIZ MUITO
Bob Luiz Botelho

PARTE III – “E NÓS DIZEMOS”

SE TE OPRIME, NÃO É JESUS: EXPERIÊNCIAS

53
CRISTÃS AFIRMATIVAS
55 | Evangelicxs pela Diversidade
59 | Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT
63 | MNE - Movimento Negro Evangélico

12 Se te oprime, não é Jesus


Se te oprime, não é Jesus 13
14 Se te oprime, não é Jesus
Se te oprime, não é Jesus
15
ILUSTRAÇÃO: YANNI CURCELLI EBNER
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Se te oprime, não é Jesus
ILUSTRAÇÃO: YANNI CURCELLI EBNER
“Quando há um diálogo verdadeiro, A diversidade é uma característica
Ambos os lados estão dispostos a constitutiva da existência. É f rustrante
mudar.” e desalentador ter essa questão como
Thich Nhat Hanh um problema ou “algo a trabalhar”, “algo
que discutir” ou escutar e experimen-
“…ora, vocês são o corpo de Cristo e são tar nos nossos corpos, mentes e espíritos
membros deles, cada qual a sua maneira.” consequências violentas dessa realidade,
1 Coríntios 12, 27 desse fenômeno (se assim alguém
quiser estabelecer).
Porque “… Deus, nosso Salvador, que quer
que todas as pessoas sejam inteiras (não Mas, mesmo assim, cada vez mais somos
fragmentadas) e cheguem ao conhecimen- colocadas/os frente a frente com a questão
to da verdade (Jesus)”. Pois, há um só Deus, da diversidade e da unidade. Somos
e um só mediador entre Deus e a humani- ameaçadas porque escolhemos acolher em
dade, um homem, Cristo Jesus, que se deu espírito e verdade a diversidade como “ruah
em resgate por TODAS AS PESSOAS (1 Tim divina”, como fruto do Espírito Perturbador
2, 4–6a) (Santo) que habita em nós.

A modernidade e “pós-modernidade”
trouxeram à tona (fizeram mais visível)
este desafio da convivência humana, tão
O tema gerador desse capítulo é um
convite para revisitar e reler a vida, o mun-
antiga quanto o próprio mundo. Como
conviver com o que é diferente de mim
ou do que minha sociedade determinou
do e os textos bíblicwos. É um convite para como “norma” (normal)? Obviamente
reconhecer que lemos textos sagrados a quando essa pergunta surge como prob-
partir do Evangelho (com letra maiúscula). lema, entendemos que falta informação
Esse Evangelho não é nenhum livro, mas obvia de que normas mudam com o tem-
é uma pessoa – Jesus. Lemos os textos po, elas se adaptam. Como “harmonizar”
tendo muito cuidado em respeitar o que com a criação de Deus? As estatísticas
chamamos de critério de compatibilidade demonstram que ser diferente da “maio-
cristológica. Jesus e seu Evangelho são o ria” tem sido motivo de imputação de
critério pelo qual nossa leitura passa. atos violentos, incluindo assassinato. A
educação assediadora e violenta para a
É, portanto, um convite para interromper o normalidade (seja normal, seja como as
ciclo de violências espiritual, religiosa, intelec- outras pessoas) tem demonstrado noci-
tual e física para com gente “divergente” em va e adoentadora das pessoas como in-
todos os espectros. É um convite para agra- divíduos e das sociedades. O diferente e
decer informações sobre textos e interpre- o divergente (características espirituais
tações violentas que podem vir da Bíblia e fundamentais da espiritualidade cristã)
seguir a vida porque Deus é Amor incondi- se tornaram intoleráveis, hereges, impos-
cional e o Criador de TODO o mundo. É um síveis de conviver, precisam ser apaga-
convite para dizer “muito obrigada/o pela dos da existência. Isso é perverso e está
informação sobre o que o livro do Levítico tomando conta dos discursos religiosos
quis [talvez] dizer contra VÁRIAS práticas entre nossas comunidades cristãs.
qualificadas como abominações, mas eu
sou batizada/o em nome da Trindade que é Para muitas teologias, Deus revelou-se
a perfeita comunidade una e diversa”, “mui- aos seres humanos através de sua capaci-
to obrigada/o pela informação sobre certos dade (ou será sua essência?) de relação.
textos de Paulo apóstolo aos Coríntios ou a É Deus sempre que toma a iniciativa.
Timóteo sobre as sexualidades, mas eu sou Pela relação de Deus com o trabalho
uma pessoa cristã, justificada pela graça e manual e com os elementos básicos da
com a certeza de que nada me separa do natureza (solo, água e ar) o ser humano
amor de Cristo (Rom 8, 31-39)”. Ouvistes o foi feito (Gn 2, 7). Da não existência para
que foi dito, mas... eu vos digo diferente. a existência. Mais tarde um grupo (quem

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escreveu Gn 1, 1-2, 4a) determinou que Deus adas a sermos pessoas que perturbam a
cria ordem (organiza a vida). E a ordem cria- ordem imperial, colonial e hegemônica (At
da é diversa, plural, colorida. E “Deus viu que 2: somos cheios de línguas de fogo e so-
era bom e muito bom” (podemos também mos vento impetuoso por ordem e posse
traduzir por “E Deus viu que era muito belo do Espírito de Deus). Somos chamadas ao
e muito belo”). pensamento crítico ou, sendo mais polido,
ao discernimento no Espírito. “Porque a
A uniformização (hegemonia) é um palavra de Deus é viva, e ef icaz, e mais
caminho tortuoso e nada agradável a cortante do que qualquer espada de
Deus. Ela é violenta, desumanizadora e dois gumes, e penetra até ao ponto de
idiotizante. O texto de Gn 11, 1–9, sobre a dividir alma e espírito, juntas e medu-
tentativa de construir a torre de Babel las, e é apta para discernir (em grego
para “dominar” o mundo, nos mostra κριτικός – desenvolver capacidade de
como essa ideo-teologia absurda foi analisar criticamente) os pensamentos
radicalmente rechaçada pela divin- e propósitos do coração.” (Heb 4, 12)
dade, que reconhece cada pessoa em
sua cultura e língua, o que como efeito Quando lemos, nos relacionamos com um
colateral, segundo o texto, causou con- universo amplo e complexo e não simples-
fusão (f rustrou os planos imperialistas mente com uma única realidade. Nunca va-
e colonizadores). mos para o texto ou para a realidade sendo
inocentes e neutros. E é necessário olhar o
Na continuidade disso temos a experiência quadro todo, para não corrermos o risco de
de Pentecostes, onde todas as pessoas, des- ficar só em detalhes ou peças isoladas do
de o seu lugar, sua língua, sua cultura, podem ambiente e do texto. Essas qualidades não
compreender a mensagem do Evangelho e existem entre nós quando se trata de nos
comprometer-se como comunidade, sem relacionarmos com os tecidos dos quais
deixar de ser o que são, mas entrar num fazemos parte (vida e texto escrito). E essa
processo de conversão continua onde há ordem é importante: primeiro o mundo e a
perdas e ganhos. Assim são as relações. vida, depois a realidade (o que entendemos
da vida) e depois o texto escrito (uma inter-
Deus nos ama do jeito que somos, para pretação do mundo, da vida e do que enten-
sermos algo mais para Ele e para o Mun- demos da vida).
do. Deus nos encontra onde estamos para
caminharmos e trabalharmos em comuni- É por isso que é importante perceber
dade por um mundo “paradisíaco”, onde a que estamos sempre em um processo de
violência, a tortura e o assassinato não sejam interpretação, e toda interpretação é me-
o nosso dia a dia, mas a harmonia, o diálogo diada, nunca objetiva ou neutra. Elizabeth
e o respeito mútuo. “Até a ingratidão inflama Fiorenza nos lembra que qualquer teolo-
o amor de Deus” (Os 11, 1–9) para conosco, e gia (uma linguagem sobre Deus e sua rev-
“nada pode nos separar do amor de Cristo” elação) está “desde o início implicada” em
(Rom 8, 31–39). múltiplos discursos e diversas lutas. Um
aspecto dessa implicação é que “o que
A RELEITURA DA VIDA E DOS TEXTOS você vê depende de onde está posiciona-
SAGRADOS do”, ou seja, as teologias são feitas a partir
de uma perspectiva específica e não po-
Ler e reler é um ato político e de produção dem pretender ser diferentes.
de conhecimento, portanto um ato criador
(como Deus que cria e trabalha com barro Na Leitura Popular da Bíblia, começamos
e ar). Essas práticas desafiam impérios e com interesse, começamos com curiosi-
ideo-teologias opressoras pois re-velam o dade. Eu me interesso por algo ou alguém
mundo e criam capacidade crítica, ou seja, e me aproximo com curiosidade, para me
produz curiosidade (qualidade perigo- integrar, fazer perguntas, conhecer o que
sa). Ler a reler a palavra de Deus que está a outra pessoa conhece e do jeito que ela
nessa coleção multifacetárias e de muitas conhece e compartilhar o que eu conheço
vozes que chamamos de Bíblia (bibliote- e como eu conheço. Começamos já a nos
ca) revoluciona e perturba. Somos cham- encontrar e nos interpretar. Vamos

18 Se te oprime, não é Jesus


fazer isso olhando três textos importantes 4. Como os homens de Sodoma recebem
para nosso diálogo. O primeiro é ler com os anjos/homens, que são estrangeiros
cuidado, curiosidade e carinho (quando é (não são “do lugar”, não pertencem ao
possível neste mundo violento e de violên- “normal” daquela cidade)?
cias em que estamos submetidas) o texto 5. Qual é o status social de Ló naquela
de Gênesis 18-19. O texto que me foi pedi- cidade?
do era o de Genesis 19,1-19. Não podemos 6. Por que os homens da cidade de Sodoma
entender bem o 19 sem o 18. Eles são um são tão abusivos com os estrangeiros que
conjunto. E vamos perguntar: sobre o que visitam?
é esse bloco? De que estão falando essas 7. Em que medida esse conto é sobre
linhas? Quais os assuntos mesmo? O mes- temas de hospitalidade, homossexualidade
mo devemos fazer com Judas (toda a car- e violência sexual?
ta, não só o verso 7) e com 1Timóteo. 8. Importante notar que em outros textos
quando Sodoma e Gomorra são mencio-
A tradição interpretativa colonizadora e nadas o assunto da sexualidade daqueles
patriarcal nos fez acreditar (e muita gente homens ou daquele ato não aparece: ver
acreditou) que esse capítulo do Gênesis Isaías 1, 7-17; Ezequiel 16, 49-50; Lucas 10,
é sobre homossexualidade e sua conde- 10-12; Mateus 10, 14-15. Leiam os capítulos
nação. Também os outros dois textos des- inteiros e não somente os versículos indi-
sa conversa (Judas 7 e 1Timóteo 1,10) são so- cados aqui.
bre a condenação da homossexualidade.
Ou seja, sobre privilégios e merecimento: Quando vamos respondendo a todas es-
quem não merece estar no Reino de Deus, sas curiosidades, vamos descobrindo que
ou pior, quem não merece o amor de Deus o texto é sobre hospitalidade fundamen-
(duas blasfêmias estruturantes dos discur- talmente. Sobre a relação com estrangei-
sos de ódio e de exclusões). ros, sobre xenofobias, sobre violências
com quem não é “normal” (não segue
Mas sobre o que mesmo são esses tex- as normais sociais, econômicas, políticas
tos? Os dois do Novo Testamento vamos e religiosas de um determinado grupo),
considerar que também, além da tradição sobre violência sexual. A questão é que a
interpretativa, há problemas de tradução violência sexual sofrida aqui é pelos an-
e de compreensão do universo de onde os jos/homens nesse conto, feita por outros
termos provêm. homens descontentes (violentamente
descontentes) com a presença desses
RELENDO GENESIS 18-19 primeiros na cidade. O grande pecado da
cidade é não ter sido hospitaleira e não ter
Na Leitura Popular da Bíblia, depois de tratado os estrangeiros como deveriam.
achegar-se ao texto com curiosidade e cui- Uma lista para ajudar: Lv 19, 33-34; Lv 25,
dado, seguimos fazendo perguntas para 9-10; Deut 10, 18-19; Ez 16, 49; Ex 23, 9; Ml 3,
entender melhor e colocar em contexto os 5; 1 Rs 8, 41-44; Jó 31, 32; Mt 25, 35-36; 1 Cor
textos que estamos a ler. Meu colega Ger- 12, 12-14; Gl 5, 14; Lc 10, 29-37; Tg 1, 27.
ald West, do Centro Ujamaa na África do
Sul (um centro parente do CEBI) sugere RELENDO JUDAS 7
que perguntemos:
Nosso texto: “Assim como Sodoma, e
1. Este conto é parte de um conjunto Gomorra, e as cidades circunvizinhas,
literário maior que começa com anjos/ que, havendo-se entregado à prostitu-
homens visitando Abraão. Então, como é ição (outras traduções: imoralidade sexual,
que Abraão recebe os anjos/homens em formicação) como aqueles, seguindo após
Gênesis 18, 1-18? outra carne (foram atras de vícios não nat-
2. Como Ló recebe os mesmos anjos/ urais, práticas contra a natureza, perversão,
homens que vão a Sodoma pela noitinha? indo atrás de corpos estranhos, perseguin-
3. Por que Ló é tão insistente para que do paixões não naturais), são postas para
eles não passem a noite na praça da ci- exemplo do fogo eterno, sofrendo punição”.
dade naquela noite? (Judas 1, 7).

Se te oprime, não é Jesus 19


Para esse servo que vos escreve, esse Mas, mesmo assim, compartilho o que
é o livreto que menos gosto do cânon muita gente já tem relembrado sobre
do Novo Testamento. Mas como minha esse termo segundo do nosso versículo
mãe costumava dizer: você não tem o que é traduzido normalmente por “ho-
que sempre gosta, aprenda a viver com mossexuais”. Vale lembrar em primeiro
isso. Gosto desse conselho e me faz lugar que esse conceito de homossex-
sempre revisitar eu mesmo, situações ualidade é um conceito moderno. Ele
e textos com f requência. Convivência não existia nos tempos bíblicos como
pode aproximar e certamente faz nossas existe hoje. O termo grego usado aqui
opiniões e perspectivas algo que se é ἀρσενοκοίτης arsenokoites (desculpe
move sempre. mencionar o grego, o faço sem nenhu-
ma intenção de ser pedante, mas para
Temos um primeiro problema que é a ajudar a fazer perguntas sobre o mes-
interpretação de quem escreveu a Carta mo). De acordo com Valdenor Montei-
de Judas sobre qual foi o pecado de Sodo- ro Brito Junior “aqui estamos diante
ma e Gomorra. Como já mencionei acima, de um termo muito curioso porque ele
todas as outras citações onde Sodoma e não existe em nenhuma fonte não-cris-
Gomorra são citadas o grande pecado tã, e não possui nenhum uso anterior a
foi a falta de hospitalidade para com os esse que vemos em 1Coríntios (e depois
homens estrangeiros e a violência sexu- em 1Timóteo). Ou seja, em enorme con-
al praticada contra eles pelos moradores traste ao caso de ‘malakoi’, alguém que
(homens) daquela cidade. conhecesse o grego da época chegar-
ia nessas listas e se depararia com um
E, como já estabelecemos qual foi o termo nunca dantes visto. Esse fato por
pecado de Sodoma e Gomorra fica mais si só já é um balde de água fria naque-
fácil navegar com cuidado por esse texto les que acham que nós temos absoluta
e outros parecidos do Novo Testamento. certeza de que aqui o objetivo de Paulo
A tradição comum dentro da Bíblia não era condenar os homossexuais de forma
apoia que o pecado desses lugares foi o absoluta. O termo em questão é muito
que hoje chamamos de homossexuali- idiossincrático (peculiar) para permitir
dade. Foi a violência sexual, foi sobre es- um veredicto tão forte!”
tabelecer quem tem o poder sobre o ter-
ritório e corpos, foi sobre a desobediência Essa palavra pode fortemente estar liga-
de uma norma (depois lei) fundamental da ao Levítico 18, 22, considerando que o
de convivência que é a hospitalidade. autor de Timóteo possa estar lendo a Sep-
tuaginta (a Bíblia traduzido ao Grego an-
RELENDO TIMOTEO 1, 10 tes de Cristo). Mas “pode ser”. Não temos
certeza. Valdenor Monteiro também argu-
“Para os devassos (fornicadores; prati- menta que “o significado desse termo está
cantes de imoralidade sexual; promíscuos; longe de ser unânime entre os estudiosos.
impudicos; devassos; impuros; adúlteros), A ideia de que ‘arsenokoitai’ se refere ao
para os sodomitas (os que se deitam com sexo consensual entre homens como tal é
outros homens; homossexuais; inverti- apenas uma entre quatro hipóteses prin-
dos), para os roubadores de homens, para cipais levantadas para esse termo, e não
os mentirosos, para os perjuros, e para o necessariamente a melhor delas.”
que for contrário à sã doutrina.” (1 Tim 1, 10
Almeida Corrigida e Atualizada) Então, aqui não temos uma resposta de-
finitiva nem “a correta”. Temos que con-
Eu compartilho com vocês que não sou viver com esses “soluços” que passam no
daqueles biblistas que tentam salvar to- cânon bíblico e encontrar a melhor ma-
dos os textos da nossa tradição sagrada. neira de conviver com eles.
Há textos que são em si violentos e estão
ali na nossa Bíblia para lembrar de uma Certamente temos um critério fundamen-
mentalidade e interpretação do sagrado tal oferecido pelos pais e mães da igreja
do passado e as vezes do presente que nos primeiros séculos que é interpretar a
devem ser relidas na perspectiva cristã de bíblia para que a glória de Deus seja
Jesus, que é a verdade, o caminho e a vida.

20 Se te oprime, não é Jesus


presente. E “A Glória de Deus é o ser Que Deus nos abençoe com desconforto
humano bem vivo” (Inácio de Lion). com as respostas fáceis, meias verdades
e relacionamentos superficiais, para que
Ora et Labora - Orar e trabalhar sem- possamos viver no fundo de nossos
pre para que não sejamos reprodutoras corações...
dos sistemas que criam privilégios, pro-
duzem massas de pessoas desumaniza- QUE DEUS NOS ABENÇOE COM INDIGNAÇÃO
das e excluídas dos sistemas de proteção POR CAUSA DA INJUSTIÇA, DA OPRESSÃO E
e bem viver e acumulam riquezas. Orar DA EXPLORAÇÃO DAS PESSOAS, PARA QUE
e trabalhar para que as pessoas em situ- POSSAMOS TRABALHAR PELA JUSTIÇA,
ação de mais vulnerabilidades sejam at- LIBERDADE E PAZ...
endidas e para as que detêm privilégios,
reconheçam essa condição e sintam-se QUE DEUS NOS ABENÇOE COM AS LÁGRIMAS
compelidas a partilhar os seus recursos. DERRAMADAS POR AQUELES QUE SOFREM
Trabalhar contra os sistemas de privilé- DE DOR, REJEIÇÃO, FOME E GUERRA, PARA
gios. Orar e trabalhar para que sejamos QUE POSSAMOS ESTENDER NOSSAS MÃOS
pessoas e instituições hospitaleiras (que PARA CONFORTÁ-LOS E TRANSFORMAR SUA
acolhem e que cuidam de todas e todos DOR EM ALEGRIA...
indistintamente). Orar e trabalhar para
que nossa capacidade de amar seja maior E QUE DEUS NOS ABENÇOE COM UMA DOSE
do que nossa tendência natural de excluir DE FALTA DE JUÍZO PARA ACREDITAR QUE
e odiar. Orar e trabalhar para que nossos PODEMOS FAZER A DIFERENÇA NESTE
discursos religiosos, nossas orações sejam MUNDO, PARA QUE POSSAMOS FAZER O
expressões de amor e carinho, não de ódio QUE OUTROS DIZEM NÃO PODER SER FEITO,
ou discriminação. PARA TRAZER JUSTIÇA E BONDADE A TODOS
OS NOSSOS FILHOS E AOS POBRES...
Este é o constante desafio para nossas
igrejas hoje. O constante desafio de ler,
reler e interpretar os textos bíblicos com
esse projeto político na mente, corpo
e espírito. E nossa tarefa apostólica de
proclamar (a ser para todas as pessoas,
inclusive nós mesmas) o amor incondi-
cional e companheiro dessa divindade
que criou tudo e viu que era BELO / BOM.
Um vento perturbador para espalhar que
nós somos chamadas pelo Espírito de
Deus para continuar essa proclamação da
Boa Nova.

PAULO UETI
É mestiço, nascido no Brasil, filósofo, teólogo e biblista, congregando na Catedral
da Ressurreição da Diocese Anglicana de Brasília. Atualmente trabalhando para
a Comunhão Anglicana na Anglican Alliance e como Consultor para Educação
Teológica na Comunhão Anglicana, membro da Comissão para a Unidade, Fé e
Ordem da Comunhão Anglicana, do CEBI - Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos,
membro fundador da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica - ABIB e sócio da
Society of Biblical Literature - SBL (Estados Unidos da América).

Se te oprime, não é Jesus 21


22 Se te oprime, não é Jesus
“Não se deitarás com um homem como se para compor uma proposta teológica “sem
fosse mulher, é abominação” (Lv 18, 22) corpo, contra o corpo e apesar do corpo”.
Dessa forma, o autor estaria preocupado
“Se também um homem tiver relações com em detalhar quais seriam as práticas civis,
outro homem, como se fosse mulher, ambos culturais, comunitárias, cerimoniais e ritu-
praticaram coisa abominável; serão mortos; alísticas (e por que não sexuais?) - naquela
o seu sangue cairá sobre eles.” (Lv 20, 13) localização espaço-temporal - que trariam
o ser humano para mais próximo de seu
próprio corpo.
“Ferrou.” Foi a primeira coisa que eu
pensei quando fui convidada a escrever É por isso que, junto com os temi-
um texto sobre os tão temidos versículos dos textos de terror, em Levítico ainda
de Levítico. Honestamente, sempre que existem outros diversos trechos com
leio esses textos, a reação imediata é de recomendações tão estranhas quanto,
calaf rios. Não é intuitivo pensar que o dizendo para o povo não utilizar roupas
excerto esteja dizendo uma outra coisa com tecidos diferentes ou não plantar
segundo o seu contexto, nem mesmo im- duas espécies diferentes de semente
aginar que é possível agradar a Deus fazen- em uma mesma lavoura (Lv 19, 19). Eles
do o que o texto aparenta condenar. eram destinados a um contexto imerso
em uma série de circunstâncias especí-
Outra coisa que sinto, logo depois dos ficas àquele povo. Mas, então, qual era a
calafrios, é dúvida (se é que é possível intenção do autor ao deixar Lv 18, 22 e 20,
sentir dúvida). Principalmente porque em 13 para o povo? De que forma esse texto
toda a Bíblia hebraica não existe um úni- deve ser lido? Ainda faz sentido lê-lo?
co versículo que trate de relações entre
duas mulheres, e eu, enquanto travesti, O livro de Levítico utiliza da pena de
sequer encontro corpos semelhantes ao morte para diversos tipos de “pecados” ou
meu em todas as Escrituras. Deus estaria “impurezas” cometidas contra o próprio
condenando apenas a relação entre dois corpo ou o corpo do outro, mas acredito
homens? Não faria sentido, certo? Que tipo que não tenhamos que nos atentar a esse
de relação? Por que ela seria condenável? ponto específico tão exaustivamente. O
E ainda, por que seria “abominável” diante sacrifício feito por Jesus foi suficiente para
de Deus? expiar toda condenação contra nós. No
entanto, a questão que martelava meus
A “profecia” rogada sobre essas pessoas pensamentos é por que tais atos seriam
diz que elas serão mortas - e o seu sangue condenáveis? A questão do adultério, por
cairá sobre elas (Lv 20, 13). Francamente, exemplo, também passível por pena de
olhando de forma descuidada para ess- morte em Levítico, é detalhada pelo teólo-
es trechos eles realmente parecem o que go Daniel Helminiak (1998) como sendo
parecem, não é? Uma pessoa LGBTI+ é interpretada enquanto uma ofensa contra
morta a cada 32 horas no Brasil e, pelo a propriedade (da mulher pelo homem).
que dizem as más línguas, tenho apenas Deitar-se com a mulher de outro homem
35 anos de expectativa de vida. Seriam es- seria parecido com um “roubo”, e traria
sas as boas novas do Evangelho para os diversas implicações financeiras, sociais e
corpos como o meu? comunitárias naquela sociedade.

Bom, o que eu sinto lendo esses textos Nos dois trechos em Levítico utilizados
pouco importa para a teologia cisheter- para condenar a homossexualidade, a ex-
opatriarcal. Então, que façamos uma nova pressão “como se fosse mulher” se repete.
leitura, fria e cuidadosa, sem medos e E ao contrário do que se pensa e se diz por
calafrios. Antes disso, é preciso entender aí, a torto e direito, a expressão em hebra-
por que raios Levítico está na Bíblia, certo? ico mishk’vei ishah (deitar como se fosse
Segundo Nancy Cardoso (2013), o livro “se mulher, ou “na cama” de mulher) não diz
ocupa com a ordenação e a integridade respeito a identidade gay ou bissexual
dos corpos: o corpo pessoal, o corpo social (muito menos trans ou lésbica, né?). Até
e o corpo da terra”, apesar de ser utilizado porque, não havia na época uma com

Se te oprime, não é Jesus 23


preensão política e social desses sujei- hores, adolescentes com homens adultos,
tos, para que fossem “condenados” por filhos e sobrinhos com seus pais e tios etc).
suas existências, e sequer havia um en-
tendimento do que seria uma “homoafe- Além disso, o texto faz uma distinção
tividade” e de como os afetos moldam semântica entre o homem (termo ish:
as vivências comunitárias e constroem homem adulto, cidadão, com direitos
partes significativas da identidade de políticos) e o macho (termo zacar). Uma
cada um. Isso veio muito mais tarde, do tradução literal seria algo como “Não se
meio para o final do século XX, no con- deitarás um homem com macho como
texto das movimentações políticas por se fosse mulher (ishah)”. Dessa forma, fica
Liberdade Sexual nos EUA, junto com o nítida a disparidade (hierárquica, política,
surto epidêmico de HIV/Aids que infeliz- social) entre as duas pessoas (homem e
mente atingiu grande parte dessa pop- macho) na relação sexual penetrativa que
ulação na época e, coincidentemente, foi se estabeleceu.
no mesmo período¹ que as compreensões
dos “textos de terror” enquanto conde- O fato de o excerto focar especifica-
natórios para essas pessoas começaram a mente no sexo penetrativo entre homens,
ser divulgadas e publicizadas. não mencionando outros tipos de inter-
ações sexuais homoeróticas, muito menos
Mas, então, o que literalmente diz o tex- entre mulheres, diz respeito a esse contex-
to? A expressão mishk’vei ishah diz respei- to em que foi escrito. Nenhuma parte da
to, única e exclusivamente, ao sexo anal Bíblia responde à pergunta: “tá, mas e se
penetrativo entre dois homens, “como se homens (ou mulheres) tivessem relações
fosse” com mulher. Nesse caso há uma sexuais (das mais diversas formas) entre si
distinção cultural feita entre o sexo vagi- em um contexto responsável, afetivo, éti-
nal e o sexo anal, enquanto um é o “nat- co, saudável… ainda seria pecado?” O texto
ural, típico” e o outro é “anti-natural, atípi- bíblico não previu, ou não se preocupou,
co”. Quaisquer outros tipos de relações em responder isso, talvez porque a respos-
homoeróticas não estão incluídas na in- ta deveria ser óbvia.
terpretação literal do texto. Mas, então, o
que se pode concluir? Apenas o sexo anal Nesse caso, proponho o exercício de
é proibido? Por que o sexo anal? E por que romper com a lógica cisheteronormativa
não pode? Realmente não pode? e binária das interações sexo-afetivas, para
que o texto seja corporificado e ganhe
Bom, para responder essas perguntas, materialidade aqui, no Brasil, em São Pau-
é importante lembrar que, novamente, lo, no meu corpo - de travesti. E também
estamos há dezenas de séculos de difer- aí, onde quer que você esteja e de onde
ença do texto (historiadores dizem que o quer que você venha.
livro foi escrito no século XV a.C.). E é im-
portante lembrar que nem Levítico, nem Desde que aprendi que a Bíblia é um
qualquer outro livro da Bíblia faz menção conjunto de relatos de diversos corpos em
à concepção moderna de homossexual- sua relação e experiência com Deus - que
idade ou bissexualidade. As relações ho- também tem corpo - ela ficou muito mais
moeróticas que existiam enquanto fatos palpável. Principalmente, porque isso me
sociais (com expressão social e de forma fez perceber que também cabia Deus em
generalizada) no tempo de Levítico não mim, nesses 1,73m de altura, com mais ou
aconteciam em contextos amorosos ou menos 64 kg de massa corporal, sob um
românticos e nem de igualdade entre as regime diário de 12mg de ciproterona,
duas (ou mais) pessoas (em sua maioria, 2,4mg de estradiol para terapia hormonal
eram escravizados junto com seus sen- e 20mg de escitalopram para ansiedade.

¹ De acordo com o teólogo queer e biblista Bob Luiz Botelho (2021), as principais traduções bíblicas que traziam
termos relacionados à homossexualidade só começaram a ser globalmente divulgadas a partir de 1987, no
auge da epidemia de HIV/Aids.

24 Se te oprime, não é Jesus


Deus cabe aqui, entre meus artesana-
tos, e é ele quem pulsa nas minhas veias
e artérias e se mistura com os fármacos
dentro de mim. É ele mesmo quem alarga
meus quadris, aumenta meus seios, afina
minha voz. É Deus quem toca no barro do
meu corpo e me molda novamente, desse
jeito, nem homem, nem mulher: travesti.

E é por isso que quando eu - eu mesma,


euzinha - leio os textos de terror em Levíti-
co, penso que nunca me deitaria com al-
guém “como se fosse…”, afinal de contas,
se o afeto acontece, só acontece como é. E
então deito como é, e como sou - seja com
ela, com ele, com elu, ou eles. E descubro
Deus no roçar dos corpos, no suor que
escorre do canto do pescoço, no gemido
que chama pelo seu santo nome. E desse
lugar, recomendo-lhes: deite-se como
uma travesti.

IMAGEM / GOOGLE

ALLIE TERASSI
É travesti, bissexual e cristã de tradição evangélica. Graduanda em Relações
Internacionais e pesquisadora em Estudos de Gênero e Teoria Queer. Atual
coordenadora em Advocacy do Evangélicxs pela Diversidade em São Paulo.

REFERÊNCIAS

PEREIRA, N. C.; BOEHLER, G; Andre Musskopf. Corpora Fluida: contaminación y peligro en el imaginario
religioso. Lectura crítico-antropológica del Levítico bíblico. In: Lima, Silvia Regina; Boehler, Genilma; Lars
Bedurke. (Org.). Teorías queer y teologias: estar en otro lugar. 1ed San Jose: DEI Departamento Ecumenico de
Investigacion, 2013, p. 175-190.
HELMINIAK, D. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade? Curitiba: Edições GLS, 1998, 143 p.
BRITO JR, Valdenor. A Estrela da Redenção. [56] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 3 - O sentido literal
do Levítico. Disponível em: <https://aestreladaredencao.medium.com>; Acesso em 12 de junho de 2023.

Se te oprime, não é Jesus 25


26 Se te oprime, não é Jesus
P
“ or causa disso, os entregou Deus
a paixões infames; porque até as mul-
O texto não diz que as mulheres aban-
donaram as relações naturais com os
heres mudaram o modo natural de suas homens, mas limita-se a dizer que elas se
relações íntimas por outro, contrário à entregaram a práticas sexuais contrárias
natureza; semelhantemente, os homens a natureza, sem mais especificações. O
também, deixando o contato natural da advérbio “semelhantemente” pode ser
mulher, se inflamaram mutuamente em uma pista importante, indicando que as
sua sensualidade, cometendo torpeza, mulheres praticaram relações sexuais
homens com homens, e recebendo, em não gerativas análogas às dos homens, o
si mesmos, a merecida punição do seu seja, o sexo anal.
erro”. (Romanos 1, 26-27)
Quando textos paralelos – todos de
Paulo – são comparados com Romanos
Um texto bíblico jamais deve ser es- 1, 26 e 27, fica ainda mais evidente a
tudado e, portanto, compreendido, fora condenação ao homoerotismo masculi-
de seu contexto. Entretanto, cristãos no, não feminino, pois tanto 1ª Coríntios
fundamentalistas apreciam bastante a 6, 9 quanto 1ª Timóteo 1, 10 referem-se
prática de julgar e condenar a comuni- apenas ao sexo entre homens.
dade LGBTQIA+ utilizando-se de textos
isolados. Com Romanos 1, não poderia Como os atos sexuais são apresentados
ser diferente. O recorte utilizado con- como consequência da idolatria, certa-
centra-se nos versículos 26 e 27. mente, Paulo está se referindo às orgias
cúlticas, muito comuns na adoração a de-
Para o leitor moderno, Romanos 1, 26 uses como Afrodite, Apolo e Baco. Paulo
parece ser uma referência a relações interpreta, portanto, tais comportamen-
sexuais entre mulheres, uma vez que o tos como resultado da adoração pagã.
versículo subsequente é uma referência
ao homoerotismo masculino. Há décadas, As Escrituras, embora possuam concei-
vários estudiosos, e mesmo o leitor co- tos e verdades inspiradas, universais e at-
mum da Bíblia, acreditam que Romanos emporais, não foram concebidas para nós,
1, 26 é o único texto bíblico que condena o ocidentais do século XXI, por isso, uma
homoerotismo feminino. Porém, tal inter- contextualização histórica em determina-
pretação nem sempre existiu. dos textos é necessária, a fim de que pos-
samos compreendê-los não apenas nas
O primeiro ponto importante é o con- linhas, mas, também, nas entrelinhas, em
texto. O versículo 26 se inicia com a virtude da distância cultural.
expressão “por isso”, indicando que as
ações expressas neste ponto do texto É importante ter em mente que a carta
são consequência de fatos apresenta- em questão foi escrita para os cristãos de
dos anteriormente. A partir do versícu- Roma. Naquela capital, o matrimônio era
lo 18, o tema central é a idolatria. Paulo uma questão de estado, uma obrigação
constrói sua argumentação com uma cívica para a manutenção do Império por
progressão de eventos encadeados: 1. O meio de filhos. Com o passar dos séculos,
Deus verdadeiro, invisível, se manifesta os homens romanos permaneceram os
pela criação visível, por isso, os pagãos mesmos em relação ao sexo, usufruindo
são indesculpáveis (v. 20); 2. Apesar da de suas mulheres, concubinas, prostitutas
criação visível, não glorif icaram ao Cri- e de outros homens de estrato social infe-
ador, mas seus corações se obscurecer- rior, como escravos ou libertos. Entretan-
am (v. 21); 3. Passaram a produzir ima- to, sobretudo, a partir do final do século I
gens de ídolos, servindo à criatura em a.C, as mulheres romanas experimenta-
lugar do criador (v. 23); 4. Deram vazão ram uma grande emancipação sobre seus
à suas próprias concupiscências (v. 24); próprios corpos e desejos. Elas ansiavam
5. A mulheres pagãs passaram a pratic- desfrutar o prazer do sexo, porém, sem o
ar formas de sexo contrárias à natureza risco da gravidez. Ao qualificar seus atos
(v. 26b); 6. Os homens se entregaram a como contrários à natureza, o texto confir-
práticas homoeróticas. ma essa verdade. A liberdade das mulheres

Se te oprime, não é Jesus 27


romanas na época de Paulo era incom-
patível com os valores judaicos. Para jude-
us como Paulo, a sexualidade feminina
estava restrita ao casamento. Alfonso Cua-
trecasas, escreveu:

“Devemos ter em conta [...] a evolução da


mulher, não apenas já completamente
emancipada na época de Marcial (século
1 d.C.), como também plenamente liberada
sexualmente, a tal ponto que a partir de en-
tão é ela que se lança e desfruta, seduzindo
os homens e colecionando amantes. Essa
emancipação, essa equiparação da mul-
her ao homem manifestava-se sobretu-
do nos banhos públicos. [...] onde homens
e mulheres podiam encontrar amantes e
dar vazão à suas fantasias sexuais.” ii

Naturalmente, a busca pelo prazer por


parte dessas mulheres não tinha por ob-
jetivo a geração de filhos, o que caracter-
izava seu comportamento sexual como
contra a natureza. Práticas sexuais não
gerativas – como relações homoeróticas
entre homens – não eram consideradas
crime pelos romanos, de modo que faziam
parte de seu cotidiano no século I d.C. Po-
etas como Marcial e Juvenal, entre outros,
nos apresentam um panorama bastante
diverso sobre tais comportamentos. São
numerosas as menções a comportamen-
tos sexuais não gerativos praticados entre
homens e mulheres.

Referências a relações homoeróticas en-


tre mulheres são muito escassas na lit-
eratura latina quando comparadas aos
relatos homoeróticos entre homens. Rep-
resentações em pinturas praticamente
não existem. Dessa forma, dificilmente,
Paulo estaria fazendo menção ao sexo en-
tre mulheres.

Vicky León, pesquisadora e escritora, ao


mencionar o homoerotismo feminino na
Antiguidade grecorromana pontua que
tais mulheres “tomavam o cuidado de se
manterem invisíveis.”iii p. 195

A condenação paulina mais provável


refere-se ao sexo anal heterossexual e a
outras formas de sexo não gerativas. Ain-
da sobre as mulheres do mundo grecor-
romano, Vicki León continua: “O sexo
anal tinha alguns adeptos fiéis entre as

28 Se te oprime, não é Jesus


mulheres que não queriam engravidar: não! Lourdes Conde Feitosa, doutora em
esposas, prostitutas, mulheres de gover- história cultural, expõe:
nantes e escravas.” iv
“...em relação ao comportamento sexual
Renato Lings, doutor em Teologia, expõe: no mundo grecorromano [...] os conceitos
de “homossexual” e “heterossexual” são
[...] Anastácio Sinaíta (século VII) descar- categorias [...] inapropriadas para com-
ta a teoria de que o versículo apresente preender a experiência sexual no mun-
uma referência a [relações entre mul- do antigo. Nesse universo, o fato de um
heres]. Segundo ele, as mulheres se ofere- “homem” fazer sexo com outro “homem”
ceram a homens. Mais especificamente, ou “mulher” não era suficiente para iden-
o teólogo Clemente de Alexandria fala de tificar a sua categoria sexual”. vi
como essas mulheres foram ‘companhei-
ras da complacência’, praticando o coito A percepção da orientação sexual, seja
anal com homens e fazendo mau uso ‘da homo ou heterossexual, é verificada pe-
passagem desenhada para o excremen- los seres humanos ainda na adolescên-
to.’ Um de seus sucessores, Agostinho de cia ou mesmo na infância. Paulo fala de
Hipona, está de acordo. Visto dessa ótica, homens adultos (ἄρρην - árren) que aban-
o texto paulino destaca o aspecto insóli- donaram as relações com mulheres para
to da atividade em que participaram tais se entregarem ao prazer sexual com out-
mulheres: praticaram formas de sexo não ros homens. Tais práticas não são fruto de
destinadas à procriação. ” v orientação sexual, mas daquilo que Paulo
chama de “disposição mental reprováv-
A homossexualidade – conceito construí- el” (v. 28). Alguém dominado por esse
do a partir da segunda metade do sécu- tipo de “disposição” se torna o centro da
lo XIX – não é resultado de paganismo ou própria existência, não percebendo nada
idolatria. O texto paulino nada tem a ver além de seus próprios interesses e desejos.
com homoafetividade, mas com relações A disposição mental reprovável faz com
resultantes de degradação espiritual, as que seres humanos amem suas próprias
quais levaram ao hedonismo, o culto ao pulsões e sejam por elas governados. Tal
prazer. O que está em pauta é a adoração busca do prazer pelo prazer é denominada
da criatura em vez do criador, inversão “hedonismo” –– um estilo de vida bastante
que levou homens e mulheres a cultuar- presente na Roma Antiga.
em seus corpos e a satisfação sexual. Ro-
manos 1, 26 e 27 é, sobretudo, acerca de Os casamentos romanos eram arran-
promiscuidade sexual. jados por suas famílias e, normalmente,
não se levava em consideração a vonta-
E O SEXO ENTRE HOMENS? de ou os sentimentos dos noivos. As es-
posas tornavam-se uma espécie de mal
Roma era politeísta. Suas divindades, em necessário, especialmente à geração de
determinados casos, eram altamente sex- descendência:
ualizadas ou erotizadas. Paulo apresenta o
homoerotismo masculino como resulta- “A mulher era um mero objeto de procriação
do de uma corrupção espiritual, marca- e em geral nem mesmo servia de prazer
da pela inversão da verdadeira adoração. para o marido. Com efeito, para realizar sua
Para o Apóstolo, a inversão na adoração fez missão – parir filhos – ela não precisava de
com que homens e mulheres subvertes- nenhum tipo de relação afetiva e menos
sem o padrão natural do sexo. Cerimônias ainda de satisfação sexual”. vii
em adoração a Apolo e Cibele eram alta-
mente homoeróticas. O homoerotismo, Esse fato fazia com que muitos homens
entretanto, não ficou restrito aos referidos substituíssem as relações conjugais pela
ritos. Tal subversão, segundo o texto, ocor- satisfação sexual fora do casamento, ainda
reu intencional e voluntariamente, por que com outros homens, normalmente,
parte de homens adultos. Estaria Paulo jovens escravos ou prostitutos. O prazer
abordando a homossexualidade enquan- masculino era soberano e os cidadãos ro-
to orientação sexual? Definitivamente, manos não estavam preocupados com o

Se te oprime, não é Jesus 29


gênero das pessoas que lhe proporcion- Def initivamente, Romanos 1, 26 e
avam satisfação sexual. Esse fato justifica 27 nã o constitui uma con dena çã o
a preferência por relações homoeróticas à h om ossexualida de. Em term os
por parte de muitos homens romanos. modernos, muitos gays e lésbicas
Para uma sociedade tão permissiva em nasceram em um lar cristão e não
termos sexuais, esse comportamento tiveram qualquer experiência com
não era condenado. Um cidadão roma- a prática da idolatria, muito menos
no poderia admitir a experiência sexual com os deuses grecorromanos liga-
com outros homens em certos contextos dos à fertilidade ou ao erotismo. Pelo
e configurações sem temer represálias ou contrário, muitos homossexuais são
reprovação. A promiscuidade sexual era cristãos piedosos, ensinados sobre
algo que nem a moral nem a religião ro- a Bíblia desde a infância. Isso não
mana condenavam: os impediu, contudo, de serem ho-
mossexuais. Portanto, a homossexu-
“... Roma foi, não só em suas origens e mi- alidade não pode estar em pauta no
tologia, mas também na realidade e na texto analisado.
prática, uma sociedade especialmente
permissiva no tocante às liberdades e aos
prazeres sexuais.” viii P.11

ALEXANDRE FEITOSA
É brasiliense e professor da Secretaria de Educação de Brasília desde 2001. É
graduado em Letras Português (UnB), pós-graduado em Língua Portuguesa
(Universo) e pós-graduado em Metodologia Exegética (SEBI). Desde 2006,
dedica-se à pesquisa e ao estudo da Teologia Inclusiva. É autor de algumas
obras como: “Bíblia e Homossexualidade: verdade e mitos” (2010) e “Quem
está manipulando a Bíblia?” (2013). Sua obra mais conhecida é a “Bíblia de
Estudo Teologia Inclusiva” (2017).

REFERÊNCIAS

i Compreende-se homoerotismo como toda manifestação histórica a qual retrata envolvimento sexual entre pes-
soas do mesmo sexo, especialmente em arte ou textos antigos quando a compreensão da homossexualidade en-
quanto orientação sexual inexistia.
ii CUATRECASAS, Alfonso: Erotismo no Império Romano. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997, P. 68 e 69.
iii LÉON, Vick, O prazer do Sexo, São Paulo, Apicuri Editora, 2015, p. 195.
iv Idem, p. 201.
v LINGS, Renato: Um apóstolo homófobo? Releitura da Carta aos Romanos.
vi FEITOSA, Lourdes Conde. Gênero e sexualidade no mundo romano: a antiguidade em nossos dias.
Editora UFPR, 2008, p. 132.
vii CUATRECASAS, Alfonso: Erotismo no Império Romano, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997, p. 15.
viii Idem, p.11.

30 Se te oprime, não é Jesus


Se te oprime, não é Jesus 31
32 Se te oprime, não é Jesus
“N ão sabeis que os injustos não herd-
arão o reino de Deus? Não vos enganeis;
Quando a Bíblia de Estudo Palavra-Chave
Hebraico-Grego da Casa Publicadora da
Assembleia de Deus traz o significado
nem os fornicadores, nem os idólatras, da palavra arsenokoitai, ela traduz como
nem os adúlteros, nem os efeminados, “abusador de”.
nem os abusadores de si mesmo com
os do sexo masculino, nem os ladrões, Diante dessa tradução, as Bíblias
nem os cobiçosos, nem os bêbados, nem que traduzem a palavra grega como
os difamadores, nem os extorquidores, “sodomitas” se encontram mais próxi-
herdarão o reino de Deus.”(1 Co 6, 9-10) mas da f idelidade com o texto original,
porquanto os homens da cidade de
Existe um ditado italiano que diz traduttore, Sodoma objetivaram um estupro sexu-
traditore, ou seja, “tradutor, traidor”. al coletivo contra dois visitantes.

Muitas vezes, os tradutores vão além do Nesse sentido, de todas as versões bíbli-
ato de traduzir e incorrem em interpre- cas que eu já li, a King James 1611 é a que
tações do texto original, fundamentados traz a melhor definição para arsenokoitai,
em seu próprio entendimento ou con- traduzindo o termo como “abusadores
cepção do assunto abordado pelo autor, de si mesmo com os do sexo masculino”.
afastando-se, assim, do que realmente o Note como o texto se apresenta:
texto original objetiva dizer.
“Não sabeis que os injustos não herdarão
Na busca do real propósito da passagem o reino de Deus? Não vos enganeis; nem
bíblica, a chave que abre a fechadura para os fornicadores, nem os idólatras, nem os
se alcançar a compreensão dos versículos
adúlteros, nem os efeminados, nem os abu-
da 1ª Carta de Paulo aos Coríntios 6, 9-10 é
o significado das palavras gregas malakoi sadores de si mesmo com os do sexo mas-
e arsenokoitai. culino, nem os ladrões, nem os cobiçosos,
nem os bêbados, nem os difamadores, nem
Uma das razões para a dificuldade em os extorquidores, herdarão o reino de Deus”
traduzir essas duas palavras é o fato de que
o grego koinè, ancestral do grego mod- Ora, uma coisa é um sexo com uma
erno, não é uma língua usada em nossos finalidade de abuso sexual. Coisa dis-
tempos. A segunda razão é que a palavra tinta é o envolvimento de pessoas que
arsenokoitai provavelmente foi cunhada vivenciam relações homoafetivas ou ho-
pelo apóstolo Paulo. O apóstolo fez uma mossexuais consensuais, decorrentes de
justaposição com os termos arseno e koitai. sua orientação sexual.
Na literalidade arsenokoitai poderia signific-
ar “homens que penetram outros homens”. Passagem similar ao texto de Sodoma
é descrita no Livro de Juízes 19. O texto
No entanto, essa relação sexual à qual o descreve um homem levita que viajava
texto se refere não diz respeito à orientação com sua concubina e seu servo. Ao che-
sexual, conforme entendida atualmente. A garem na cidade de Gibeá, buscaram
relação entre pessoas do mesmo gênero abrigo, o que lhes foi negado. Um senhor,
possui no sexo o fruto de um envolvimento também estrangeiro, que residia naquela
afetivo ou desejo sexual. Nos textos bíblicos cidade, resolveu acolhê-los. Os homens de
usados para condenar pessoas LGBTQIAP+, Gibeá, contudo, reprovando aquela hos-
o ato sexual descrito consistia no meio para pitalidade, se reuniram na frente da casa
se alcançar uma finalidade distinta de um do senhor exigindo que o levita visitante
prazer oriundo de um relacionamento con- fosse lançado fora da casa para ser abusa-
sensual. A finalidade, na verdade, em al- do. O levita, objetivando se livrar daquela
guns textos, era a idolatria e em outros o situação, lança sua mulher fora da casa,
abuso sexual. Explico. submetendo-a a um abuso sexual coletivo
durante toda a noite.

Se te oprime, não é Jesus 33


Os líderes religiosos, quando leem essa deixaram então de fazer guerra, desejan-
passagem, não encontram dificuldade em do apenas desfrutar em paz e com prazer
diferenciar um estupro coletivo de vários os muitos bens de que se viam cumula-
homens contra uma mulher das relações dos. Sua abundante riqueza lançou-os
heterossexuais consensuais. O mesmo no luxo e na volúpia. Não se incomoda-
peso e a mesma medida deveriam ser vam mais em observar a antiga discipli-
aplicados para a passagem de Sodoma, na e tornaram-se surdos à voz de Deus e
porquanto não se tratava de homens ho- as suas santas leis. Assim, atraíram-lhe a
mossexuais que objetivavam um sexo cólera, e Ele lhes fez saber que era contra
casual, mas sim, de um grupo de homens a sua ordem que eles poupavam os cana-
que tinham como finalidade humilhar neus e que tempo viria em que, no lugar
dois visitantes por meio do estupro coleti- da bondade dispensada aos cananeus,
vo, prática usual naquele tempo. experimentariam a crueldade deles. Esse
oráculo deixou-os assustados, no entanto
Por sua vez, na busca da tradução da pa- não os fez mudar de ideia e recomeçar a
lavra malakoi, percebe-se que ela nada guerra, por causa dos tributos que rece-
tem a ver com a concepção que se tem biam daqueles povos e porque as delícias
hoje dos homens ditos como afeminados. os haviam tornado tão efeminados que o
trabalho agora lhes era insuportável”. ¡
A Bíblia em Hebraico Transliterado apre-
senta a seguinte tradução para a palavra Perceba que a palavra está sendo utilizada
grega malakoi: para descrever o caráter daqueles homens,
não havendo relação com “gays afeminados”.
“Não sabeis que os injustos não hão de
herdar o Reino de Deus? A Bíblia de Estudo Palavra-Chave Hebrai-
Não erreis: nem os fornicadores [devas- co-Grego da CPAD apresenta a tradução da
sos], nem os idólatras, nem os adúlteros, palavra malakoi como: de origem incer-
nem os efeminados [ou covardes, ou ta; macio i.e., elegante (veste); (figurado),
moles], nem os sodomitas, nem os efeminado, delicado. ¡¡
ladrões, nem os avarentos, nem os
bêbados, nem os maldizentes, nem os Essa tradução é confirmada, inclusive, na
roubadores [usurpadores], herdarão o passagem do Evangelho Segundo Mateus,
Reino de Deus.” capítulo 11, versículo 8. Jesus, ao se refer-
ir às vestes de João Batista, fala ironica-
mente: “Sim, que fostes ver? Um homem
Observe que a versão em hebraico ricamente vestido?”. Em outras versões,
transliterado traz entre colchetes os a tradução é “um homem com vestes fi-
termos “covardes ou moles”, porque o nas?”. Esse adjetivo “finas” é malakoi no
signif icado literal de malakoi é “mole”, original grego.
indicando uma ideia comportamental,
e não necessariamente do “ser afemi- Percebe-se, portanto, que o termo
nado”, como compreendido hoje. Até a malakoi, traduzido como “efeminado”,
Reforma Protestante, e no Catolicismo não apresentava o mesmo significado dos
até o século XX, achava-se que malakoi dias atuais. Aliás, importante registrar que
signif icasse “masturbadores”. Segundo as palavras podem mudar de sentido, con-
o historiador Joh n Boswell, a tradução forme tempo e/ou cultura. Na antiguidade,
mais sensata para malakoi nesse texto por exemplo, a palavra “piscina” era usada
seria “libertino”, “indisciplinado”, como para se referir a um pequeno lago com
também poderia signif icar “f raco”, mas peixes. Não era um local para nadar. Do
nunca homossexual. mesmo modo, a palavra “célula” era usada
para designar uma cela pequena. A palavra
Flávio Josefo, na obra “A História dos He- “célula” hoje designa uma parte do corpo
breus”, se refere aos judeus que viviam humano. Por sua vez, analisando sob a óti-
no tempo de Juízes como “efeminados”, ca das diferentes culturas, a palavra “bico”
dizendo que eles não queriam saber de no Brasil significa um trabalho extra. Por
trabalhar. Segundo Josefo, “os israelitas outro lado, “bico” em Portugal significa
sexo oral. Do mesmo modo ocorre com a

34 Se te oprime, não é Jesus


palavra malakoi, quando traduzida como duzir as expressões gregas como “práti-
“efeminado”. cas homossexuais”. Ora, se o autor não
objetivou a condenação de mulheres ao
A despeito de todo o contexto que expli- utilizar duas expressões empregadas no
ca os possíveis significados das expressões masculino, o que nos resta é concluir que
malakoi e arsenokoitai, as Bíblias Nova as traduções dizem muito mais das con-
Versão Internacional e a Nova Versão Trans- cepções e interpretações dos tradutores.
formadora traduzem, respectivamente, as
palavras malakoi e arsenokoitai como “ho- Note, portanto, que não há como tra-
mossexuais passivos ou ativos” e “práticas duzir malakoi e arsenokoitai como “ho-
homossexuais”. mossexuais ativos e passivos” ou “práti-
cas homossexuais”.
Ora, como poderiam as palavras gregas
malakoi e arsenokoitai serem traduzida como Nós vivemos relações consensuais e ap-
“homossexuais” ou “práticas homossexuais” se a enas desejamos o reconhecimento do
Carta de Paulo aos Coríntios foi escrita no sécu- nosso direito de existir e de sermos felizes
lo I e a palavra homossexual surgiu apenas no ao lado de quem amamos, independente-
século XIX? mente de nossa orientação sexual, identi-
dade de gênero ou expressão de gênero,
A palavra “homossexual” foi utilizada pela pois assim Deus nos fez.
primeira vez em uma carta escrita pelo
médico teuto-húngaro Karl-Maria Benk- Desse modo, a passagem da I Carta de
ert, datada de 06 de maio de 1868 (final do Paulo aos Coríntios 6, 9-10 nunca conde-
século XIX), endereçada ao juiz alemão Karl nou pessoas por motivo de orientação sex-
Heinrich Ulrichs (primeiro jurista assumid- ual. O que temos são traduções feitas por
amente homossexual da História). A carta um sistema de tradutores que objetivam
falava da teoria desenvolvida por Benkert, a todo custo condenar a orientação sexual
a qual gerou os termos homossexual e het- homossexual. Entre a busca do real sen-
erossexual. tido bíblico e o preconceito próprio, a es-
colha pela condenação homossexual, em
Ao traduzir as palavras gregas como ho- detrimento do original do texto, pode ser
mossexuais, os tradutores incorrem no bem mais rentável.
chamado anacronismo, erro que consiste
em atribuir palavras ou costumes de uma Fato é que se pode não saber com pre-
época à outra. A intenção certamente é cisão o que as palavras malakoi e arseno-
uma só: condenar a orientação sexual ho- koitai significam. Porém, sabe-se o que
mossexual, o que fala da concepção do elas não significam, e elas não significam
tradutor, e não da intenção do autor do “homossexuais ativos ou passivos”, e, mui-
texto. to menos, “práticas homossexuais”. Como a
intenção, todavia, é simplesmente condenar,
Nesse ponto, ressalto que por muitos não se espante se a próxima versão bíblica tra-
anos as igrejas pregaram a “cura” para os duzir malakoi e arsenokoitai como “comuni-
homossexuais. Contudo, a tal “cura gay” dade LGBTQIAP+”.
não aconteceu. A solução encontrada,
então, foi pregar que não há problema
em você ser homossexual. O problema KEILA GUEDES SILVA SANTOS
passa a ser as “práticas homossexuais”.
É especialista em Direito Homoafetivo
A nova pregação, claro, não deixaria de e Gênero. Pesquisadora Bíblica e autora
constar na Bíblia, conforme se verifica na do livro “Pessoas LGBTQIAP+ e o direito
NVT. Repare que quanto mais os tradu- a Deus”.
tores objetivam inserir os homossexuais na
reprovação contida em Coríntios, capítulo
6, versículos 9-10, mais se afastam do texto REFERÊNCIAS
bíblico original. ¡ JOSEFO, Flávio. História dos hebreus: de Abraão à queda
de Jerusalém. Tradução de Vicente Pedroso. 28. ed. [S. l.]:
Ed. CPAD, 2016. Pág. 251.
Além disso, é importante registrar a evi- ¡¡ BÍBLIA de Estudo Palavra-Chave Hebraico-Grego. Rio
de Janeiro: CPAD, 2020. Almeida Revista e Corrigida.
dente intenção de incluir lésbicas ao tra- (ref.3120). Pág. 2291.

Se te oprime, não é Jesus 35


36
Se te oprime, não é Jesus
ILUSTRAÇÃO: YANNI CURCELLI EBNER
N a história recente nos acostumamos
a falar sobre doenças e enfermidades
preconceitos e sem uma preocupação com
os fatos que desse conta de uma realidade
como situações puramente definidas por complexa e multifacetada. Ainda que hoje
questões biológicas e naturais. Assim, esteja comprovado que a infecção pelo vírus
supõe-se que as explicações dadas às HIV e o desenvolvimento da AIDS não este-
doenças são racionalmente determinadas jam restritos a determinados grupos (como
e a forma de lidar com elas uma decor- se afirmava nos anos de 1990), mantem-se o
rência lógica, materializada em ações de estigma que identifica ambos os processos
prevenção e tratamento neutras e univer- com a qualidade moral de determinados
sais. O contexto em que emergem, as for- indivíduos, suas formas de vida e seus com-
mas de transmissão e os lugares aos quais portamentos. A ideia de “grupos de risco”
chegam não teriam nenhuma relação com (identificados nos inícios da epidemia de
condições particulares. Mais do que isso, as HIV/AIDS como: homossexuais, prostitutas,
narrativas criadas sobre todas as questões usuários e usuárias de heroína, pessoas com
envolvendo uma doença em particular hemofilia e – quem diria – pessoas do Haiti)
(ou um conjunto de doenças) não teriam foi suplantada, primeiro, pela ideia de “com-
nenhuma relação com a “história social” portamentos de risco” e, depois, pela ideia
de dita doença (GALVÃO, 2000; PARKER, de “vulnerabilidade”, apontando justamente
1994). para os múltiplos fatores que tornam uma
pessoa “vulnerável” à infecção e ao adoeci-
A AIDS, sem dúvida, é o exemplo mais mento, especialmente as condições sociais
forte desse tipo de situação vivenciada na qual se encontra (BASTOS, 2006).
mundialmente no século XX (NASCIMEN-
TO, 2005). Mesmo depois de meio século Na história social da AIDS, o primeiro
desde as primeiras suspeitas do surgi- nome atribuído à doença no contexto
mento de uma nova doença e da poste- norte-americano foi GRID, sigla que, tra-
rior identificação do vírus causador e das duzida, refere-se a “deficiência imune rel-
formas de transmissão, ainda há relati- acionada a gays” [Gay Related Imune-De-
vamente poucos consensos sobre sua ficiency]. Outra denominação que se
origem. Mesmo assim, no imaginário so- popularizou foi a ideia de “câncer gay”. E,
cial persiste uma ideia bastante generalis- apesar de todas as evidências contrárias,
ta de que esteja relacionada a práticas e persiste no imaginário social e nos dis-
povos específicos, geralmente percebidas cursos de algumas lideranças políticas e
como imorais e inferiores em relação a religiosas a narrativa de que pessoas iden-
outros povos e culturas. Dessa forma, para tificadas como homossexuais e, por ex-
além de uma doença com uma história tensão, o que hoje chamamos de pessoas
natural e social particular, a AIDS, enquan- LGBTQIAPN+ ou tudo relacionado à diver-
to doença, também se configura como sidade sexual e de gênero, eram “preferen-
e contém metáforas que apontam para cialmente” atingidas pela doença. Numa
formas de organização e controle social – perspectiva religiosa (e cristã), tal narrati-
marcadamente cisheteropatriarcais (SON- va assumiu (e preservou) a ideia de que a
TAG, 2004). AIDS seria um “castigo divino”, ou seja, que
a doença seria uma forma de Deus punir
Da mesma forma, a maneira como o vírus comportamentos e modos de vida con-
se espalhou pelo mundo e os significados siderados equivocados, nomeadamente
atribuídos a esse processo permanecem “pecado” (MUSSKOPF, 2020).
relacionados a uma narrativa criada num
contexto particular e que foi incorporada
e propagada, muitas vezes, com base em

Se te oprime, não é Jesus 37


a importância que dá e as consequências
que tira dessa relação - tema será aprofun-
dado no texto “Bíblia e HIV/AIDS: sangue e
vida” desta revista.

No caso da AIDS, o fato do vírus ser trans-


mitido através de fluídos corporais (espe-
cificamente sangue e esperma), a relação
simbólica estabelecida entre uma “doença”
(com suas características biológicas e con-
textuais) e uma forma de “punição” por
pecados cometidos (no caso de relações
sexuais consideradas ilícitas) ficou ainda
mais potente. O livro do Levítico é o conjun-
to de textos bíblicos mais utilizado para essa
associação. Articuladas em torno de códigos
de pureza e impureza, as leis recolhidas aí,
com todas as suas descrições e prescrições
sobre os fluídos corporais e a relação entre
os corpos, são atualizadas dentro do marco
moral pré-definido em relação à AIDS, tra-
zendo “à luz um repertório de preconceitos e
estigmatizações que estavam adormecidas
na consciência de muitas pessoas ou silen-
ciadas propositalmente por outras” (SAM-
PAIO, 2002, p. 23).

Dentro do sistema proposto pelo Levítico,


segundo Nancy Cardoso (2013): “As partes
A ideia de uma relação causal entre moles, úmidas, líquidas e modificadas/mod-
doença e pecado/castigo/punição é parte ificantes pertencem ao mundo do ‘perigo’, e
do repertório de interpretações religiosas por isso são marcadas pelo sinal do ‘impuro’
oferecidas na Bíblia (GERSTENBERGER; e podem assumir o extremo da ‘abomi-
SCHRAGE, 2007). Especialmente no Anti- nação” (p. 177). Na ordenação da vida social
go Testamento tal ideia parece ter preva- o “poder de comunicação/transmissão são
lecido, de modo especial no processo de identificados nos fluídos corporais (sêmen,
fixação dos textos escritos. Ainda assim, sangue, pus, saliva, etc.) que extrapolam
essa não é a única forma de entender as suas potencialidades para além do próprio
doenças, suas causas e a forma de lidar corpo e assumem caráter condutor das
com elas nesses textos e mesmo essa relações interpessoais, grupais, sociais e até
perspectiva precisa ser entendida a partir ambientais” (p. 181). Assim, é preciso entend-
de uma compreensão mais ampla de ser er tal sistema no seu conjunto e na sua for-
humano e sociedade daqueles contextos. ma de funcionamento, pois: “O Levítico, sem
Mas, sem dúvida, é essa compreensão e crítica e sem mediações, passa a formar par-
passagens que a refletem que informar- te do circo de horrores da teologia retributi-
am a ideia de que a AIDS era (é) um cas- va e patriarcal sem corpo, contra o corpo e
tigo divino. A mesma ideia também está apesar do corpo” (p. 182).
presente no Novo Testamento e na forma
como as narrativas sobre Jesus falam de
sua compreensão sobre o tema. No entan-
to, além de não ser a única forma de en-
tender as doenças, autores como Errhard
S. Gerstenberger e Wolfgang Schrage
sugerem que uma mudança fundamen-
tal na forma como o posicionamento de
Jesus é apresentado está relacionada com

38 Se te oprime, não é Jesus


Os usos e preconceitos da leitura do Levíti- Para superar a relação problemática
co e outros textos bíblicos têm servido de e condenatória estabelecida entre HIV/
combustível para as pretensões de reforço AIDS e diversidade sexual e de gênero é
do poder da igreja patriarcal, elitista e ho- necessário adentrar nos mecanismos da
mofóbica do cristianismo ocidental, que linguagem religiosa e seus significados
reivindica para si a função de guardião acionados para a culpabilização de deter-
de uma pretendida heterossexualidade minados indivíduos e grupos sociais. Isso
normativa e universal que trata de natu- implica identificar as relações de poder e
ralizar as proibições. Os medos de contá- formas de controle da ordem social, eviden-
gio – que insistem na vinculação entre ciando hierarquias e interesses – tanto nos
aids/desordem/castigo – encerram em si textos sagrados quanto na atualidade. A
uma ideologia heterossexual colonizadora ameaça dos fundamentalismos e do se-
dos corpos, baseada na homogeneidade e questro da religião para a manutenção
repetição do mesmo – uma porno-grafia – de relações injustas e violentas não pode
expressas nas formas clássicas de teologia ser subestimada e deve ser chamada
sistemática e no ‘lobby’ das hierarquias pelo seu nome.
contra outras formas de organização e
vivência do sexo, das relações, das peles e
do pelo (p. 189-190).

ANDRÉ MUSSKOPF
Doutor em Teologia. Professor do Departamento de Ciência da Religião da Universi-
dade Federal de Juiz de Fora. Integrante do Grupo de Pesquisa Religião, Educação e
Gênero – REDUGE.
asmusskopf@hotmail.com

REFERÊNCIAS
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CARDOSO, Nancy. Corpora fluida: contaminación y peligro en el imaginario religioso – Lectura críti-
co-antropológica del Levítico bíblico. In: BOEHLER, Genilma; BEDURKE, Lars; SILVA, Silvia Regina de Lima
(ed.). Teorías queer y teologías: estar… en otro lugar. San José, Costa Rica: Editorial DEI, 2013. p 175-190.
GALVÃO, Jane. AIDS no Brasil: A agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro: ABIA; São Pau-
lo: Ed. 34, 2000.
GERSTENBERGER, Erhard S.; SCHRAGE, Wolfgang. Por que sofrer? O sofrimento na perspectiva bíblica. 3ª
ed. revista. São Leopoldo: EST, CEBI, Sinodal, 2007.
MUSSKOPF, André S. Nem Santo te protege – AIDS, teologia e religião de bolso. Série Ensaios Teológicos
Indecentes. Vol. 1. Belo Horizonte: Editora Senso, 2020.
NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. As pestes do século XX – tuberculose e AIDS no Brasil, uma história
comparada. Coleção História e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
PARKER, Richard; BASTOS, Cristiana; GALVÃO, Jane; PEDROSA, José Stalin (orgs.). AIDS no Brasil (1982-
1992). 2ª ed. História social da AIDS n. 2. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, ABIA; IMS-UERJ, 1994.
SAMPAIO, Tânia Mara. Aids e religião: aproximações ao tema. Impulso, Piracicaba, Editora Unimep, v. 13,
n. 32, set-dez, 2002.
SONTAG, Susan. Doença como metáfora – AIDS e suas metáforas. Tradução Rubens Figueiredo e Paulo
Henrique Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Se te oprime, não é Jesus 39


40 Se te oprime, não é Jesus
Se te oprime, não é Jesus
41
ILUSTRAÇÃO: YANNI CURCELLI EBNER
42 Se te oprime, não é Jesus
P recisamos tirar a Bíblia do armário.
Há muito tempo (tempo demais) o texto
mente como “servo”, na verdade se refere
a um tipo de relacionamento específico
sagrado é usado para ferir as pessoas dissi- da cultura romana da época: o “servo” é
dentes das normas sexuais e de gênero. E também amante do centurião. Por isso
não só por meio da seleção e uso de umas o militar romano está tão desesperado,
poucas passagens que supostamente a ponto de procurar Jesus e suplicar-lhe
condenam as sexualidades e experiências por um milagre. Porém, ele não é só um
e expressões de gênero dissidentes, como pagão; como comandante das forças in-
vimos na Parte I, sobre os sete “textos do vasoras, é visto pelos judeus como um
terror”. Esses sete textos, juntos, somam “inimigo”. Pior, é alguém que vive um
pouco mais de 30 versículos, quando a tipo de relação fora das normas sexu-
Bíblia toda tem mais de 30 mil versículos. ais e de gênero da sociedade judaica da
Porém, tão grave ou pior do que selecion- época. Como autoridade militar romana,
ar 30 versículos em 30 mil para condenar o centurião tinha o poder de dar ordens
as dissidências de sexualidade e gênero, a qualquer judeu. Ele poderia ter simples-
é ignorar no texto bíblico as experiências mente ordenado a Jesus que fosse até sua
sexuais e de gênero dissidentes; ignorá-las casa e curasse seu servo/amante. Ainda
a ponto de quase conseguir apagá-las, assim, ele demonstra imensa fé e profun-
como se não existissem. Mas elas estão da humildade ao pedir: “Senhor, não sou
lá. Nós, com nossas sexualidades e ex- digno de que entreis em minha morada,
pressões de gênero fora das normas, es- mas dizei uma palavra e o meu servo fi-
tamos lá. E nos encontrarmos no texto cará curado”. É uma expressão de fé tão
bíblico é fundamental para resgatarmos a impactante que foi incorporada ao rito
dimensão libertadora das nossas escritu- católico romano, sendo recordada pela
ras, ajudando-nos a viver plenamente nos- assembleia antes da Santa Ceia.
so encontro com o sagrado e com a fé.
O próprio Jesus fica tão impressionado
As normas que pretendem organizar as com a atitude do centurião que chama
experiências humanas de sexualidade e a atenção das pessoas ao redor: “Em ver-
de gênero são diferentes em diferentes dade vos digo, que nem mesmo em Israel
lugares, culturas, momentos históricos e encontrei tamanha fé”. E faz um alerta: a
contextos sociais. E, assim como as nor- fé e o amor a Deus serão a medida para
mas variam, mudam também as formas ter um lugar em Seu reino. À luz da men-
como as pessoas, em cada um desses sagem bíblica mais ampla, entendemos
diferentes lugares, culturas, momentos que a mera conformidade às leis e às nor-
históricos e contextos sociais, vão se ade- mas, sem amor, não bastará para estar no
quar em maior ou menor grau às normas reino de Deus. E é um excluído do povo de
vigentes, por um lado, e, por outro, se afas- Deus – excluído em muitos sentidos: es-
tar delas, em maior ou menor grau. (Aliás, trangeiro, pagão, inimigo e dissidente das
é importante ter em mente que ninguém normas sexuais – que maravilha o próprio
encarna integralmente as normas. Nesse Jesus e é visto até hoje como modelo de
sentido, todo mundo apresenta alguma uma fé exemplar. É muito significativo
dissidência, em alguma medida.) Ora, se que o centurião expresse essa fé tão sólida
as normas apresentam configurações dis- movido por uma conexão amorosa pro-
tintas, também as dissidências em relação funda com seu servo/amante. Seu amor
às normas assumem formas variadas. alimenta a sua fé.

Um exemplo é a passagem de Mt 8, 5-13, A reverenda Nancy Wilson, em seu livro


quando um centurião, líder de um desta- “Nossa tribo: gays, Deus, Jesus e a Bíblia”,
camento do exército romano que ocupava dá vários exemplos da presença de dissi-
a Palestina, implora a Jesus que cure um dentes das normas sexuais e de gênero
servo seu, que está muito doente. O que em diferentes contextos no texto bíblico.
passa despercebido e não é comentado Entre os mais conhecidos estão a relação
nas diferentes traduções do texto é o que
o teólogo espanhol Xabier Pikaza mostra –
que o termo pais, que é traduzido simples-

Se te oprime, não é Jesus 43


entre Davi e Jônatas, cuja morte Davi lam- heres casadas ao gerar filhos eram sinais
enta dizendo “Tu me eras imensamente da aliança entre Deus e seu povo. Numa
amado, o teu amor me era mais caro que o compreensão bastante literal, a fertilidade
amor das mulheres” (2 Sm 1, 26); e a história concreta seria a materialização da vida
de Rute e Noemi, narrada no livro de Rute. em abundância gerada pelo Deus Criador
Rute, nora de Noemi, permanece com a e anunciada como Boa Nova por Jesus.
sogra mesmo depois que esta enviúva e se Nesse contexto, é profundamente sig-
vê desprovida de recursos. Noemi insiste nificativo que essas histórias tenham sido
que Rute volte para seu povo, mas esta se incluídas no texto sagrado, justamente
recusa a abandoná-la, pronunciando um por tratarem de casais, digamos, “heter-
voto de amor e fidelidade tão tocante que odoxos”. São “heterodoxos” no sentido de
é amplamente adotado em cerimônias de que escapam à norma da fertilidade liter-
casamento: “Não insistas comigo para eu al, que se traduzia numa expectativa de
te deixe, pois para onde fores, irei também; reprodução, de geração de prole. Apesar
onde for tua moradia, será também a minha; de escaparem à norma reprodutiva, esses
teu povo será o meu povo, e teu Deus será o personagens são tomados como exem-
meu Deus. Onde morreres, quero morrer e plos de beleza e profundidade amorosa,
ser sepultada” (Rute 1, 16-17). como materialização de vida, mas não no
sentido estritamente biológico. A vida que
As histórias dessas pessoas apresentam se multiplica aqui, a vida que se manifesta
vínculos poderosos, em que o amor é o como potência criadora, a vida em pleni-
fundamento de uma forma de se relacio- tude, a vida abundante que é expressão da
nar, pautada por uma ética de entrega, criatividade divina, é a vida que emerge no
dedicação, cuidado e fidelidade ao outro. encontro; é a vida que emerge da abertu-
As narrativas que se desdobram a partir ra amorosa que é imagem do Deus que é
daí são tão belas que – ainda que envol- Amor (1Jo 2: 5-11).
vam encontros amorosos fora do esperado
e do habitual no contexto social, histórico Deus é um acontecimento amoroso de
e cultural em que acontecem; ainda que profunda abertura, entrega e encontro
tratem de ligações amorosas que con- com o outro; não à toa, é um Deus que
trariam as normas sexuais e de gênero de vem a nós – Emanuel, Deus-Conosco – e se
seu tempo e contexto, e de outros tempos entrega em alimento. Deus, esse acontec-
e contextos – há milênios comovem e in- imento amoroso, é vida em abundância,
spiram quem as lê. que jorra em profusão como fonte de água
viva por toda a eternidade (Jo 4, 13-14). E as
Precisamos lembrar que, na Israel bíblica, histórias desses amores humanos tão het-
a fertilidade era entendida como mani- erodoxos nos revelam que a vida que nos é
festação da aliança com Deus. Desde a prometida – a Vida que é Amor, a Vida e o
promessa de descendência numerosa fei- Amor que são a verdadeira natureza desse
ta por Deus a Abraão, a fertilidade da terra Deus que se entrega todo a nós em Sua
nas colheitas, a fertilidade dos rebanhos capacidade de criação e geração amoro-
ao se multiplicarem, a fertilidade das mul- sas – está muito além da vida material en-

44 Se te oprime, não é Jesus


cerrada na dimensão biológica das nossas os povos” (Is 56, 7). A promessa se cumpre,
existências. A Vida e o Amor que são Deus por exemplo, no Novo Testamento, quan-
são muito maiores, estão muito além da do Filipe, inspirado por um anjo, vai ao en-
biologia humana. contro do eunuco etíope (não só eunuco,
portanto, mas também estrangeiro; ou
Nesse sentido, temos uma chave para seja, duplamente excluído) e o batiza (At 8,
compreender o lugar dos eunucos no tex- 26-39).
to bíblico. Em sentido estrito, eunucos seri-
am homens castrados. Contudo, o próprio Deus subverte as normas que excluem
Jesus, ao falar em eunucos que “nasceram pessoas de Seu povo com base em atribu-
assim” (Mt 19, 13), nos sugere que a referên- tos físicos ou capacidade biológica de ger-
cia a “eunucos” pode ir além desse senti- ar uma descendência. A lei que devemos
do da castração literal. Temos aí uma pista seguir para permanecermos em Deus é
de que, para além de sua esterilidade no a lei do Amor, vivido na abertura e na en-
sentido biológico, de sua incapacidade de trega ao encontro com o outro. O man-
gerar prole, os eunucos são pessoas em damento ético de Deus, o mandamento
situação irregular, fora da norma reprodu- novo, o mandamento maior, é o Amor:
tiva. Dissidentes, portanto. Ainda assim, o “Um novo mandamento lhes dou: Am-
profeta Isaías adverte para que os eunu- em-se uns aos outros. Como eu os amei,
cos não se considerem “árvores secas”, e vocês devem amar-se uns aos outros. Com
anuncia: se permanecerem fiéis, Deus lhes isso todos saberão que vocês são meus
dará, dentro de Sua casa, “um monumen- discípulos, se vocês se amarem uns aos
to e um nome mais preciosos do que teri- outros” (Jo 13, 34-35).
am com filhos e filhas”. Apesar da falta de
descendência literal, em forma de filhos e Como dissidentes das normas sexuais e
filhas, Deus lhes oferece algo ainda mais de gênero, conhecemos muitas formas
precioso: “um nome eterno, que não será de exclusão das nossas comunidades de
extirpado” (Is 56, 3, 5). fé, um sem-número de apagamentos de
quem somos e das nossas experiências de
A profecia de Isaías 56, que se refere sagrado. Mas aqui podemos nos deparar
não só aos eunucos, mas também aos com um paradoxo: no momento em que
estrangeiros de maneira geral (ou seja, somos excluídos, no momento mesmo em
aqueles e aquelas que não são parte do que nos vemos fora dos limites da comu-
povo de Deus), é esperança de inclusão nidade, fora dos limites do mundo que é
para quem, pelas normas, fica excluído da conhecido, estabelecido, fixado e organ-
comunidade e do culto. Àqueles e àque- izado pelas normas, longe do Deus feito
las excluídos pelas normas, Deus promete: à imagem e semelhança desse mundo e
“esses eu trarei ao meu santo monte e lhes dessas normas – neste mesmo momento
darei alegria em minha casa de oração. somos convidados a reinventar, reencon-
Seus holocaustos e seus sacrifícios serão trar formas de existirmos. Precisamos re-
aceitos em meu altar; pois a minha casa inventar a nós mesmos e nossas experiên-
será chamada casa de oração para todos cias de mundo, de vida e de sagrado.

Se te oprime, não é Jesus 45


Nesse processo, podemos ser abençoados É sempre à luz da Boa Nova de Amor,
com a recriação de nossas experiências de da Boa Nova que é Vida Abundante, que
fé, e de Deus. E é justamente esse o con- todas e todos nós, que caminhamos nos
vite que Jesus nos faz: para ver o Reino de passos de Jesus, precisamos redescobrir
Deus, é preciso nascer de novo (Jo 3, 3). a Bíblia e reaprender a lê-la, de novo, a
cada vez; e então ofertar, como dádiva
A Bíblia pode ser muitas coisas. Dever- para a Igreja – a Igreja que somos juntos
ia ser sempre Palavra Sagrada e Bendi- e juntas, a Igreja que somos uns para os
ta; mas tantas vezes é violentamente outros, umas para as outras –, essa chave
mal-usada, e mal-dita. Especialmente de uma leitura bíblica que seja recon-
nós – dissidentes das normas sexuais e versão permanente à sua mensagem de
de gênero em vigor neste mundo, neste Amor, para que a Bíblia seja sempre para
tempo e nesta Igreja – temos como vo- nós, povo de Deus, caminho de comun-
cação singular a escuta do texto bíbli- hão e libertação. Só assim a Bíblia será,
co não como letra morta, nunca como de fato, Palavra de Salvação.
lei sem Amor, mas sempre como alegre
diálogo e feliz encontro com a Boa Nova
encarnada por Cristo. O anúncio do Amor
incondicional e irrestrito de Deus precisa
iluminar os caminhos que percorremos
em nossas vidas e em nossas relações,
como pessoas e como comunidades.

CRIS SERRA
É psicóloga e pesquisadora de gênero e religião. Atua no movimento brasileiro de
dissidentes de gênero e sexualidade cristãos desde 2008, tendo integrado a coorde-
nação da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT de 2018 a 2021 e o board da Global
Network of Rainbow Catholics entre 2020 e 2022. Publicou, pela Metanoia Editora,
“Viemos pra comungar: os grupos de católicos LGBT brasileiros e suas estratégias de
permanência na igreja” e “Para que tenhamos vida: saberes e fazeres de coletivos cris-
tãos de feministas e de dissidentes de gênero e sexualidade no Brasil” (no prelo). Faz
parte da rede de ativistas de Católicas pelo Direito de Decidir.

REFERÊNCIAS

PIKASA, Xabier. Jesus cura o amante do centurião. Diversidade Católica, 04/11/2017.


Disponível em: <https://www.diversidadecatolica.com.br/2017/11/04/jesus-cura-o-amante-do-centuriao/>.
Acesso em: 29 jun. 2023.
WILSON, Rev. Nancy. Nossa tribo: gays, Deus, Jesus e a Bíblia. Rio de Janeiro: Metanoia, 2012. 276 p.

46 Se te oprime, não é Jesus


Se te oprime, não é Jesus 47
48 Se te oprime, não é Jesus
N o texto “Bíblia e HIV/AIDS: sangue e
imundícia”, discutiu-se como uma deter-
o sofrimento não é considerado primor-
dialmente sinal do pecado e do juízo, mas
minada narrativa sobre a AIDS entrou e da provisoriedade e da salvação” (GESTEN-
se fixou no imaginário social, estabelecen- BERGER; SCHRAGE, 179). Os autores afir-
do a conexão entre práticas e comporta- mam ainda:
mentos considerados imorais a infecção e
o adoecimento. Viu-se, também, como a O próprio Jesus não nega uma relação
relação com os fluídos corporais implica- entre pecado e culpa, rejeita, porém, a
dos na transmissão do vírus HIV reforçou tendência de inferir do sofrimento de
essa conexão, resultando na (ainda maior) alguém conclusões sobre seus pecados
estigmatização de determinadas pessoas especiais. [...] [a doença, o desastre, o
e grupos sociais. Ademais, refletiu-se so- sof rimento] nada mais é para Jesus do
bre como a religião participou desse pro- que um chamado ao arrependimento e
cesso emprestando determinadas com- não um motivo para cálculos teológicos
preensões que podem ser identificadas sofisticados, conclusões a posteriori e
com passagens e narrativas bíblicas es- tentativas de explicar o sof rimento hu-
pecíficas e suas interpretações e apro- mano. Rejeita-se toda a possibilidade
priações tanto no contexto original quanto de calcular ou racionalizar o nexo caus-
em diferentes momentos na história, in- al de culpa e pecado. (p. 177)
clusive na atualidade.
Especialmente em narrativas que en-
Neste texto, busca-se refletir sobre como as volvem polêmicas entre Jesus e lideranças
próprias narrativas bíblicas podem oferecer religiosas de seu tempo, Jesus “chama a
elementos para um tratamento diferencia- atenção dos inquiridores para si mesmos.
do dessas questões. Como dito, não se tra- Aqueles desastres não são um castigo es-
ta de buscar equivalências e comparativos pecífico para os que por eles foram atingi-
simples, mas, a partir da experiência concre- dos, antes conclamam todos ao arrepen-
ta de quem lida com essas situações, pen- dimento” (p. 177). Essa visão coloca todas
sar em leituras que possam, desde o próprio as perguntas sobre a relação de HIV/AIDS
campo religioso e com as suas ferramen- com supostos comportamentos consider-
tas, encontrar formas de promover a vida ados imorais ou ilícitos em suspensão. Na
e o bem-estar. Os textos bíblicos tanto po- perspectiva do que se tem trabalhado em
dem oferecer contribuições para questões relação à prevenção e tratamento do vírus
e relações contemporâneas, quanto essas e da doença, transfere a responsabilidade
questões e relações podem ajudar a criar para as condições sociais que fazem com
novos sentidos para os textos. É no encon- que indivíduos e grupos sociais sejam at-
tro entre texto e vida/experiência que novos ingidos e sofram por um lado e, por outro,
conhecimentos e práticas sociais podem ser convoca todas as pessoas a buscar formas
experimentadas. de superar preconceitos, desigualdades e
injustiças e promover a vida.
Em relação ao Levítico e outros textos
do Antigo Testamento é necessário com- Ou seja, doenças e enfermidades são
preender como e com quais objetivos de- questões de responsabilidade coletiva
terminadas compreensões são articuladas – e de saúde pública. A estigmatização,
e as consequências de seus usos, bem exclusão e violência praticada contra in-
como perspectivas conflitantes que con- divíduos ou grupos sociais específicos ba-
vivem nos próprios textos oferecendo múl- seadas em metáforas que atribuem sig-
tiplas possibilidade de leitura. Em relação nificados morais e acionam dispositivos
ao Novo Testamento, como anunciado no de medo precisam ser superadas. Isso se
texto “Bíblia e HIV/AIDS: sangue e imundí- refletirá em relações mais justas e vida
cia”, é possível entrever diferenças que são digna para todas as pessoas direta ou in-
importantes para recolocar o discurso re- diretamente atingidas. No campo religi-
ligioso, seja na relação com doenças de oso e cristão, narrativas contidas nos tex-
modo geral e sobre HIV/AIDS de modo es- tos sagrados podem ajudar a encontrar
pecífico. Segundo Erhard S. Gerstenberger uma outra linguagem para falar sobre tais
e Wolfgang Schrage: “de acordo com o NT, questões e incentivar a con-versão

Se te oprime, não é Jesus 49


(mudança de caminho). salvação/justiça. O próprio texto expressa
a autocompreensão dos “leprosos” sobre
A narrativa encontrada em Lucas capítu- sua condição mantendo-se distantes e, ao
lo 17, versos 11 a 19, conhecida como “a cura mesmo tempo, o seu pedido de ajuda (v.
de dez leprosos”, é um exemplo desse tipo 13). Jesus não os repreende em nenhum
de leitura possível. A “lepra” (hanseníase) é momento, mas pede que eles se apresen-
uma dessas doenças carregadas de senti- tem às lideranças religiosas (sacerdotes).
dos metafóricos que têm interferido prej- Ao seguirem essa recomendação eles são
udicialmente no próprio diagnóstico, no “purificados” (v. 14). Na segunda parte da
tratamento e na convivência social das narrativa há um elemento adicional que
pessoas que vivem e convivem com ela. explicita a intenção da narrativa: um dos
Por algumas características sintomáti- que foram curados retorna para agradecer
cas (por exemplo, erupções na pele), mas a Jesus “dando glória a Deus em alta voz”
também pelo tratamento dispensado a que, surpreendendo-se, termina dizendo
essas pessoas no passado (e, ainda, no “Levanta-te e vai; a tua fé te salvou” (v. 19).
presente), a lepra/hanseníase foi, muitas O texto faz questão de destacar que essa
vezes, identificada com a AIDS, fazendo pessoa que retornou era um samaritano/es-
coincidir as metáforas atribuídas às duas trangeiro.
doenças e as suas consequências.
Quando se toma a concepção tradicional
Segundo Erhard S. Gerstenberger e da relação entre doença e pecado/punição
Wolfgang Schrage, no Antigo Testamen- divina e suas consequências para a vida
to a lepra aparece como uma doença em comunidade, a narrativa de Lucas 17
especialmente temida que “acarretava apresenta um grupo de pessoas excluídas
a exclusão de todo contato humano (Lv por conta de sua condição de saúde (do
14.45s; Dn 4.29)” (p. 32) e “representava ponto de vista religioso vista como “im-
‘açoites’ de Deus” (p. 33), fazendo com pureza”) que vão em busca de alívio para
que “os leprosos não [fossem] admitidos, os seus sofrimentos. Nessa busca encon-
sob hipótese alguma, ao culto” (p. 34). tram Jesus que os respeita, acolhe e orien-
Essa compreensão reverbera no Novo ta, sem que nada em relação a sua doença
Testamento, onde: ou vida seja questionado. A recomendação
de se apresentarem às lideranças religio-
É possível deduzir a implicação religiosa já sas oficiais indica tanto o questionamento
do simples fato de que a doença, de acor- da sua compreensão e do tratamento por
do com a concepção de época, excluía da elas dispensado, quanto um desafio de re-
participação do culto, pois a doença torna inserção dessas pessoas nas suas comuni-
o indivíduo impuro, e os atingidos devem dades de origem. O destaque dado ao fato
ser evitados ou até proscritos. Isso não de que apenas uma das pessoas retornou
tinha motivos higiênicos, mas cultuais (cf. e de que se tratava de um estrangeiro, en-
Lv 13-14). Não é pelo perigo de contágio fatiza ainda mais a ideia de acolhimento
que os dez leprosos se mantêm afastados de quem é considerado “diferente” e, por
(Lc 17.12), ma s por tornarem imundo (cf. isso, excluído do convívio.
Lv 13.45s). Por essa razão, a doença esta-
va relacionada à desintegração social e As curas e milagres são um elemen-
miséria religiosa (p. 126). to bastante comum nas narrativas sobre
Jesus nos textos do Novo Testamento.
Várias compreensões aí expressas têm Há muitos significados e compreensões
sido revividas no contexto da epidemia de atribuídas a elas como uma linguagem
HIV/AIDS, nem sempre de maneira explíci- para falar sobre a experiência religiosa das
ta, mas muito real. A novidade da narrati- pessoas (REIMER, 2012). Um outro relato
va de Lucas 17 em relação à compreensão que pode ajudar a re-situar a compreensão
geral sobre essa (e outras) enfermidades e e tratamento sobre HIV/AIDS no campo re-
a forma como as pessoas acometidas por ligioso e cristão, bem como sobre a relação
elas são tratadas, está na forma como a entre essa questão e a diversidade sexual e
questão é tratada por Jesus e o significa- de gênero encontra-se no livro de Mateus,
do que assume dentro do seu projeto de capítulo 8, versos 5 a 13.

50 Se te oprime, não é Jesus


Nessa narrativa, um soldado romano (cen- mesma hora o criado foi curado” (v. 13).
turião) vai até Jesus buscando ajuda para o
seu criado que está, segundo o texto, “em Para quem tem familiaridade com sit-
casa, de cama, paralítico, sofrendo horriv- uações de pessoas que vivem com HIV/
elmente” (v. 6). Há razões suficientes para AIDS e se sentem excluídas das suas co-
pensar que a relação entre esse soldado e munidades, inclusive religiosas, há vári-
o seu criado estão para além de obrigações os elementos na narrativa que permitem
formais de trabalho e envolvem, pelo estabelecer uma relação com a experiên-
menos, grande afeto e estima, sugerindo cia narrada no texto. O sentimento de “in-
uma relação homoafetiva. Além disso, a dignidade”, infelizmente, não é incomum.
afirmação, por parte do soldado, de “não A culpa e o medo da reação (inclusive
ser digno” de que Jesus vá até sua casa re- nos serviços de saúde) são ainda muito
força a ideia de autocompreensão de uma comuns. O isolamento e o cuidado dele-
situação de exclusão que pode tanto estar gado a companheiros e amigos e amigas
ligada ao relacionamento entre esses dois diante da ausência de outros espaços e
homens, quanto ao fato de o primeiro ser, redes de apoio também são experiências
também, um estrangeiro a serviço do Im- comuns nesses casos, particularmente
pério Romano (MUSSKOPF, 2004). para pessoas LGBTQIAPN+.

Também nessa narrativa a questão está Há, sem dúvida, vários outros elemen-
menos nas informações específicas liga- tos a serem considerados em relação às
das à enfermidade e às relações e com- narrativas aqui brevemente apresentadas
portamentos dos personagens e mais na e que podem aprofundar a reflexão. Ain-
forma como Jesus age em relação a elas. da assim, a boa notícia presente nos dois
Da mesma forma que em Lucas 17, Jesus textos no contexto da epidemia de HIV/
respeita, acolhe e disponibiliza ajuda – ape- AIDS é de que, nos dois casos, as pessoas
sar das reticências de quem o procura. Não afetadas por enfermidades (ou alguém
há nenhum questionamento sobre a espe- em nome delas) buscam formas de alivi-
cificidade da doença ou como foi contraí- ar seus sofrimentos, afirmando seu direi-
da, sobre as particularidades do relaciona- to à vida digna. Nos dois casos, se trata de
mento entre os dois homens ou qualquer pessoas excluídas de suas comunidades,
outra questão a respeito de suas vidas. inclusive pelo fato de serem estrangeiras.
Pelo contrário, também aqui o interlocutor Além disso, nos dois casos os personagens
é apresentado como um exemplo de fé – são apresentados como exemplos de fé a
“nem mesmo em Israel achei fé como esta” serem seguidos, sem nenhum questiona-
(v. 10) – que produz efeitos na vida concreta mento em relação às condições específicas
da pessoa por quem ele intercede – “Vai- de suas enfermidades ou modos de vida.
te, e seja feito conforme a tua fé. E naquela

Se te oprime, não é Jesus 51


A Bíblia não oferece afirmações definitivas
e válidas para todos os lugares e contextos.
Quando se tratam os textos bíblicos dessa
forma (fundamentalista) se dá “margem
à dissimulação, à mentira, à falsidade nas
relações, à dubiedade de sentimentos, à
culpabilidade doentia” (GEBARA, 2015, p.
36). A Bíblia, assim como qualquer outro
texto sagrado ou prática religiosa deve ser
lida e relida a partir das situações atuais
que atingem as pessoas e comunidades. O
critério de leitura e interpretação deve ser
a promoção da vida, na forma de paz com
justiça para tudo e para todas.

ANDRÉ MUSSKOPF
Doutor em Teologia. Professor do Departamento de Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Integrante do Grupo de Pesquisa
Religião, Educação e Gênero – REDUGE.
asmusskopf@hotmail.com

REFERÊNCIAS

GEBARA, Ivone. As epistemologias teológicas e suas consequências. NEUENFELDT, Elaine G.; BERGESCH,
Karen; PARLOW, Mara (orgs.). Epistemologia, sexualidade e violência. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2015. p. 31-
50.
GERSTENBERGER, Erhard S.; SCHRAGE, Wolfgang. Por que sofrer? O sofrimento na perspectiva bíblica. 3ª
ed. revista. São Leopoldo: EST, CEBI, Sinodal, 2007.
REIMER, Ivoni Richter. Milagre das Mãos - Curas e exorcismos de Jesus em seu contexto histórico-cultural.
São Leopoldo: Oikos, 2012.
MUSSKOPF, André S. Bíblia, cura e homossexualidade. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana,
v. 49, 2004. p. 88-100.

52 Se te oprime, não é Jesus


Se te oprime, não é Jesus 53
54 Se te oprime, não é Jesus
N
“ o princípio era Aquele que é a
Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus.
uma realidade para a qual precisaremos
lidar? Já foram tantas perguntas feitas só
Ela estava com Deus no princípio.” João 1, nesse até aqui e até agora nenhuma re-
1-2 sposta, nenhum horizonte a se pensar.
Tanta angústia pra se resolver e no centro
“Este é o discípulo que dá testemunho do silêncio que dá título ao texto a figura
dessas coisas e que as registrou. Sabemos responsável por chamarmos esse ano de
que o seu testemunho é verdadeiro. Jesus 2023. Um homem que dividiu a história
fez também muitas outras coisas. Se cada moderna e contemporânea em “antes e
uma delas fosse escrita, penso que nem depois” dele e que até hoje tem suas falas
mesmo no mundo inteiro haveria espaço (e seus silêncios) utilizados como justifica-
suficiente para os livros que seriam escri- tiva de vida e prática de grande parte do
tos.” João 21, 24-25 mundo. Inclusive de gente que sequer o
considera como referência de fé e espirit-
Quando fui convidado para escrever sobre ualidade, mas mesmo sem perceber, tem
esse assunto minha primeira indagação foi sua visão de mundo moldada por reflexos
“é muito simples explicar, afinal é só diz- de seus passos aqui na terra.
er que Jesus nunca disse nada sobre pes-
soas LGBTI+”. Mas daí, quando sentei para A Bíblia vai falar sobre Jesus como o Ver-
escrever o primeiro parágrafo fiquei pen- bo/Palavra que estava desde a criação, in-
sando em tantas coisas. O que se pode es- clusive em referência ao próprio Gênesis 1,
crever ou dizer sobre o silêncio? Quantas no qual Deus cria as coisas por meio da Pa-
pessoas, assim como nós, já passaram pela lavra. Foi por meio da palavra que a Terra,
experiência de lidar com o silêncio como que estava sem forma e vazia, passou a ter
resposta? Todo silêncio é igual? Nesse tex- ordem. É importante perceber que, quan-
to vamos deflagrar um silêncio encontra- do falamos sobre Jesus, falamos sobre um
do em toda a história de Jesus registrada e homem (e um Deus) que sabe a importân-
com coragem e (ir)reverência vamos con- cia do falar/nominar. Faz parte do caráter
versar e falar sobre o que Ele não disse. de Deus usar a palavra como construto-
ra da norma, e fez parte do ministério de
Uma vez eu escrevi uma carta de amor Jesus disputar aquilo que era dito como
a um rapaz com quem tive uma relação ordem. E essa mesma bíblia, inclusive no
profunda por 11 meses. E não era uma sim- mesmo livro, que é o Evangelho de João,
ples carta. Me empenhei em fazer poesias, diz que ainda faltariam palavras para regis-
fotos, registros de conversas que tivemos. trar tudo o que Jesus fez. A palavra d’Aque-
Imprimi o livro (de mais de 10 páginas) em le que é O Verbo pode ser sim o ponto de
papel especial, fiz um pacote todo rebus- partida, mas não é, nem de longe, onde
cado e mandei por correio. Duas semanas tudo se acaba. Há muita vida e potência
depois uma amiga que sabia do romance no mistério que se contempla daquilo que
perguntou pra mim o que ele disse sobre ainda não se disse sobre.
o presente e foi quando eu respondi “não
sei, ele não falou nada” e no ímpeto ela re- O silêncio de Jesus sobre nossas cores
agiu “que droga”. Confesso que eu estava tem duas grandes chaves que se podem
tranquilo até ela reagir e imediatamente operar. Quero começar pela chave de re-
comecei a ter uma crise de ansiedade. sposta para quando querem colocar pa-
Perceber o silêncio como uma resposta foi lavras na boca do Cristo e como podemos
entender que qualquer conclusão que eu reagir diante daquelas pessoas que quer-
pudesse gerar era fruto de especulações e em usar a bíblia e a memória de Jesus
então a paz se tornou em angustiado sem para propósitos completamente opostos
fim. Aquele silêncio era como um despre- à vitória de Jesus na cruz. Deus não é in-
zo, um descaso com minha existência. gênuo, muito menos inexperiente e con-
templar essa dimensão do Seu caráter nos
Como se reage diante de um silêncio? O preenche com a certeza de que, se de fato
que ele significa? Quanta angústia a gente houvesse uma intenção clara na Trin
vive porque simplesmente não tem uma
resposta concreta que nos aponte pra

Se te oprime, não é Jesus 55


dade em dizer que nossas identidades são her do fluxo de sangue, homem da mão
condenáveis, Jesus jamais cumpriria seu curada no sábado. A Palavra esteve entre
ministério sem deixar passar esse ponto. nós. O Verbo teve seus pés sujos na areia
Se alguém acha que Deus deseja morte do deserto e é a Esse Verbo que servimos e
de alguém (especialmente da população não mais a lei.
LGBTI+), não entendeu a cruz de Cristo. Se
alguém manipula a bíblia pra pregar isso, Mas e o silêncio? Como subvertê-lo?
profana a cruz e nega o próprio Cristo! Como nos apropriamos disso? Já enten-
demos que o silêncio pode ser uma chave
Nós, pessoas LGBTI+ somos experientes de defesa no que se refere ao fato de que
em subverter e ressignificar as palavras. Jesus nunca disse nada sobre nossas cores
A própria palavra “gay” tem uma origem e nossos corpos. Não há condenação. Mas
em uma forma pejorativa de se referir a então é só isso? Acabou?
“alegre” para ridicularizar homens afem-
inados. Nos apropriamos dela e hoje Comecei contando sobre o silêncio que
tenho orgulho de dizer que sou gay! Bi- recebi da carta de amor que enviei. Há
cha, viadinho, seguem na mesma lógica uma diferença dos silêncios apresentados
ou até para as população trans, a iden- entre o que acontece após uma declaração
tidade “travesti” nem sempre foi moti- de amor em relação ao silêncio de Jesus
vo de orgulho. Ser “queer” foi, por mui- sobre a diversidade sexual e de gênero. O
to tempo, motivo de vergonha, porque silêncio como (não) resposta a uma carta
uma tradução literal da palavra é “es- de amor existe a partir de um movimen-
quisito/estranho”. Nós, população LGB- to concreto: uma carta foi enviada. Eu fui
TI+ fazemos com as palavras o que nós até uma pessoa e manifestei a ela os afetos
cristãos fazemos com a Cruz. E eu amo que tinha. Eu falei primeiro e esperava que
estar nessa interseccionalidade. minha fala tivesse uma resposta. Mas nem
todo silêncio é igual. Quando a gente fala
Morrer crucificado por muitos anos foi sobre o silêncio de Jesus a gente fala so-
motivo de vergonha. A apropriação da bre um Jesus que fez tantas outras coisas
Cruz de Cristo como símbolo de orgulho, que nem todos os livros e todas as palavras
de vitória, de honra, utiliza o mesmo dis- dariam conta de registar. O silêncio de
positivo. Tal transformação está no cerne Jesus sobre nós fala sobre um Jesus que
do cristianismo. A crucificação era consid- estava na criação, usando a palavra como
erada no mundo antigo como uma forma instrumento de ordem e que entendeu
de humilhação e tortura, tanto como uma que nossas identidades não precisam ser
maldição quanto como uma punição. De- rígidas e limitadas pela ordem. Jesus não
morou muito até que os cristãos se sentis- falou nada sobre nós porque Ele sabia que
sem confortáveis em ver a cruz como uma havia muito mais pra se criar e expressar
medalha de honra. Uma grande dimensão do que a palavra poderia limitar. Limitar o
do poder do cristianismo primitivo foi essa corpo e as identidades reduzindo ao que
transformação do que tinha sido um moti- se tinha na época como homem/mulher
vo de vergonha em uma fonte de orgulho. ou macho/fêmea não fazia parte do plano
Em primeira análise e em última instância, da Trindade.
nossa vocação enquanto pessoas LGBTI+ é
fazermos o que Jesus fez. Sermos cristãos E se Deus sempre soube que dentro do
(pequenos Cristos, na tradução de senso espectro visível do arco-íris, há infinitas
comum) é ressignificar as palavras, lem- cores, em Sua criatividade e virtude, não
brando que A Palavra é o modelo e que reduziria a diversidade em palavras lim-
O Verbo não nos condenou! Aleluia! Para itantes. Aquele que é a Palavra/Verbo as-
cada momento em que alguém ousar diz- sumiu que quem fala sobre o corpo é o
er “está escrito” que possamos dizer que a próprio corpo. Foi assim com Ele e é assim
grande parte dos momentos em que Je- que Ele nos convida. O silêncio de Jesus é
sus manifestou seu ministério foi libertan- profético. É um grande convite. Para que
do pessoas de opressão quando usavam continuemos a encarnar em nossos cor-
“está escrito” para condenar. Mulher pega pos a possibilidade de falarmos por nós
em adultério, cobrador de impostos, mul- mesmos. Com orgulho e esperança de que

56 Se te oprime, não é Jesus


não há nada que nos limite. A Palavra/Ver- certeza de que todos esses caminhos de
bo nos dá, em Seu santo e criativo silêncio, explicação lógica sobre as cores do espec-
a autoridade para que de nós saiam as pa- tro visível que nossos corpos são tentativas
lavras sobre nós. Nada sobre nós sem nós. frustradas de reduzir o mistério ao cam-
Jesus fez tantas coisas e poderiam ser vári- po lógico. Jesus nos ofereceu seu silêncio
as as páginas de palavras para falar sobre contemplativo. O mistério não é algo a ser
tudo o que Jesus fez. Algumas páginas, explicado, mas algo a ser contemplado. Há
entretanto, ficaram em branco para que, muitas cores que merecem ser vistas e no-
em posse de nossos corpos, usemos nos- meadas ainda. Nem todo arco-íris é igual,
sas próprias mãos para escrevê-las. porque cada arco-íris tem um mistério
inteiramente seu na maneira de expres-
Diferente da minha carta de amor, re- sar suas cores no mundo. Por isso nossas
spondida com silêncio, Jesus não falou cores são também, luz que irradia uma di-
primeiro, para que respondêssemos ao versidade de possibilidades.
que Ele disse sobre nós. Nossas cores, que
por muitos anos não foram nominadas e Celebremos o mistério do silêncio que
tantas outras cores que ainda virão a se proclama a criatividade e potência da pos-
expressar no porvir, cada uma delas tem sibilidade. Nunca houve na história um
espaço e autoridade para falar. O que diz- silêncio tão poderoso em nos fazer sentir
er sobre o mistério do que há de vir a não orgulho de quem somos.
ser contemplá-lo? O silêncio de Jesus é a
“Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus”
Salmos 46, 10

BOB LUIZ BOTELHO


É membro Associado das Nações Unidas para tema de religião em 2023 por
Outright International e fundador do Evangélicxs Pela Diversidade. Ordenado
clérigo pela Iglesia Antigua de Las Américas (IADLA-Brasil), é pastor da Comuni-
dade MESA (Missão, Ensino, Serviço e Adoração) na cidade de Curitiba. Estudou
Geografia na UFPR e fez seu trabalho de conclusão de curso do bacharelado
pesquisando Geografia da Religião de gays e lésbicas em contexto evangélico.
Primeiro membro pleno abertamente LGBTI+ na Fraternidade Teológica Latino-
americana, Bob é biblista popular formado pelo CEBI (Centro de Estudos Bíbli-
cos). Diretor Executivo da Coonceito Cooperativa, trabalha com representação
internacional de movimentos sociais. Pesquisador Associado e Diretor de
Programas no Instituto Superior de Estudos Inter-religioso e Sociais (ISDEIS
Brasil) é coordenador da EFATAH (Escola de Formação e Aprimoramento em
Teologia Artes e Humanidades).

Se te oprime, não é Jesus 57


58 Se te oprime, não é Jesus
Se te oprime, não é Jesus
59
ILUSTRAÇÃO: YANNI CURCELLI EBNER
60 Se te oprime, não é Jesus
O surgimento do Evangélicxs pela Di-
versidade se relaciona com essa enorme
mais de 10 mil pessoas conectadas pelas
redes sociais, formando uma rede em ex-
resistência que existe na comunidade pansão. Em agosto de 2018, traduzimos e
evangélica, de modo geral, de incluir a lançamos, em parceria com a Red Latino-
diversidade sexual e de gênero como americana y del Caribe por la Democracia
tema pastoral, bíblico, teológico e comu- (RedLad), o Grupo de Estudios Multidisci-
nitário, de uma maneira afirmativa, cele- plinarios sobre Religión e Incidencia Pú-
brativa e inclusiva. Embora a emergência blica (GEMRIP), atualmente denominado
e a consolidação de comunidades evan- Otros Cruces e o Instituto Superior de Es-
gélicas inclusivas sejam uma realidade tudos Inter-religiosos e Sociais (ISDEIS) a
que se espalha pelas principais cidades cartilha “12 Mitos sobre as Religiões e a Di-
do país, o reconhecimento desse de- versidade Sexual”, com ampla repercussão
bate, que se dá não só no Brasil, mas nas redes sociais. Além da presença nas
na América Latina e em outras partes redes sociais, ainda em 2018, o Evangélicxs
do mundo, com consideráveis avanços, começou a desenvolver duas atividades
encontra notável oposição das cúpulas no campo da comunicação: 1) um podcast
denominacionais e lideranças pastorais, que inclui uma série de histórias narradas
reverberando entre os membros das co- por pessoas LGBTI evangélicas sobre suas
munidades locais evangélicas. experiências de ser evangélica e LGBTI
e conteúdos temáticos que dialoguem
O objetivo dessa iniciativa missionária com questões de interface pessoal e pú-
é multiplicar as oportunidades de am- blica na inter-relação com os temas de
pliação da discussão sobre experiências espiritualidade, teologia e bíblia, por um
e o conhecimento desse público sobre o lado, e direitos humanos, estado laico e
debate que se dá nos principais centros democracia, por outro; 2) um hangout
de estudos bíblicos e teológicos sobre quinzenal ao vivo em seu canal do You-
sexualidade e gênero, além de oferecer Tube sobre questões pastorais que dia-
a pessoas evangélicas diversas o apoio logue sobre a vivência dentro do espaço
para encontrar seus pares e fortalecer a de fé evangélico; 3) uma série de textos
luta por ampliação dos espaços de diálo- e conteúdos escritos como estudos bí-
go sobre diversidade sexual e gênero nas blicos, artigos temáticos, ferramentas
suas comunidades de fé e denominações, teológicas, entre outros.
bem como oferecer apoio a familiares e
lideranças cristãs que desejam caminhar ÁREAS DE ATUAÇÃO
na afirmação e celebração de todas as
identidades. O trabalho do Evangélicxs se desenvolve
através de quatro áreas de atuação que
HISTÓRICO tem por objetivo alcançar um leque de
possibilidades no trabalho com diversi-
Em 2016, um grupo de pessoas LGBTI de dade e a fé cristã. São elas:
diferentes igrejas se encontrou e percebeu
a necessidade da articulação permanente • CUIDADO INTEGRAL - oferecer apoio
de evangélicos LGBTI. Para se organizar a e cuidado a pessoas que estão sofrendo
fim de lutar contra a violência lgbtfóbica dentro das comunidades evangélicas por
das igrejas evangélicas e disputar as nar- se entenderem numa expressão de gêne-
rativas do sagrado e da possibilidade da ro ou sexualidade diferentes do padrão
espiritualidade em diálogo com a diver- heteronormativo; oferecer cuidado a fa-
sidade sexual e identidade de gênero, foi miliares (mães, pais, irmãos e irmãs, tios/
organizado, sob liderança de Bob Luiz Bo- tias, etc) de pessoas LGBTI+ que querem
telho, a iniciativa missionária Evangélicxs caminhar em direção a uma visão afirmati-
pela Diversidade no segundo semestre de va e celebrativa sobre as pessoas que estão
2017, que tem caráter não-denominacion- em sua famílias; suporte psicoterapêutico
al. Tornando-se público nas redes sociais com psicólogo treinado para lidar com de-
em maio de 2018, reuniu ao longo dos anos safios teológicos e de caráter religioso no
mais de 100 pessoas diversas em gênero setting terapêutico.
e sexualidade como voluntárias, além de

Se te oprime, não é Jesus 61


• FORMAÇÃO E ENSINO - criar oportuni- do por mais de 170 lideranças Evangélicas
dades de aprendizado contínuo e atualiza- que não são LGBTI+ e que defendem a
do que contribua para formar e informar a afirmação do amor de Deus e dignidade
igreja evangélica brasileira, incluindo a pro- das pessoas LGBTI+.
dução de conteúdo e materiais didáticos
sobre como se tornarem comunidades de
fé que acolhem e afirmam a diversidade
sexual; oferecer o FLEA Lab. (Laboratório de
SOCORRO, REFÚGIO E ESPERANÇA
Formação de Lideranças Evangélicas Afirm-
Por Pastora Adriana Carla
ativas), que é um curso de formação em te-
ologias afirmativas e queer.
Meu nome é Adriana Carla, tenho 48
anos, mulher lésbica, escondida dentro
• SERVIÇO - promover e organizar a par-
de tantos armários e ainda durante mais
ticipação e engajamento de pessoas evan-
de 40 anos buscando “cura” entre lugares
gélicas e comunidades de fé em ações de
fantasiados de bem e paz, mas que su-
serviço à comunidade LGBTI, tanto a nível
geriam apenas mais armários fechados.
local quanto nacional, na promoção de seus
Em 2019, então com 44 anos e cansada
direitos e dignidade humana e articulações
da luta e do conflito entre quem era e o
regionais e globais para defesa de direitos
que a Igreja dizia ser palavra de Deus de
de pessoas LGBTI.
condenação sobre minha existência fui
abençoada por uma amiga que me falou
• DIÁLOGO - Promover a visão de comu-
de um perfil no Instagram onde poderia
nidades de fé que acolham e afirmam a
conhecer cristãos LGBT e quem sabe as-
diversidade sexual e identidade de gêne-
sim pudesse me encontrar.
ro através da ampliação dos canais de
diálogo e troca entre pessoas LGBTI, o
Foi incrível ter a experiência de ouvir um
movimento LGBTI e as igrejas e denomi-
missionário (na época), hoje reverendo,
nações evangélicas.
querido Bob falando do seu amor a Jesus
e de que sua existência era celebrada por
PANDEMIA Deus. Ele era missionário como eu, e Deus
me trouxe o socorro. Encontrei naqueles
Durante a pandemia da COVID-19, o Evan-
vídeos e testemunhos um lugar de socorro
gélicxs realizou um forte trabalho de atu-
diante de tantos pensamentos de morte e
ação nas redes sociais e online, com gru-
inadequação que me sobrevinham, liguei
pos que se reuniam virtualmente, além de
para Bob, começamos a dialogar sobre a
produção de uma série de conteúdos em
Deus e meus conflitos e sobre a libertação
parceria com a Fundação Luterana de Di-
que poderia e viria a acontecer a partir
aconia. Além disso, o Evangélicxs constru-
desses encontros e conversas. Deste mo-
iu o projeto “Psis Pela Diversidade” que é
mento em diante esse coletivo passou a
grupo de profissionais da Psicologia (com
ser lugar de refúgio para a caminhada da
CRP ativos) que ofereciam atendimento
descoberta que “textos de terror” nada
psicoterapêutico a pessoas LGBTI+ a preço
mais eram do que textos intencional-
social ou gratuitamente e que também
mente pervertidos para desconstruir o
ofereciam a pessoas profissionais da Psic-
amor e a graça do Deus da diversidade,
ologia treinamentos para enfrentar os de-
um fundamentalismo que destrói a es-
safios do setting terapêutico.
piritualidade. Assim, faço a travessia do
armário para a liberdade, guardada e
Além disso, o Evangélicxs realizou o Labo-
refugiada por queridos, queridas e que-
ratório de Formação de Lideranças Evan-
rides irmãos do Evangelicxs que estiver-
gélicas Afirmativas (FLEA Lab.) que reuniu
am de mãos dadas comigo até que em 28
mais de 50 lideranças de todos os lugares
de junho de 2020 celebrei minha redenção
do Brasil em um curso de 120 horas com 18
descrita no texto publicado em meu Insta-
módulos de 6 horas cada, mentorias men-
gram com as seguintes palavras:
sais e resenhas de dois livros.
Mobilizamos também um abaixo-assina-
do chamado “Fé na Diversidade” assina-

62 Se te oprime, não é Jesus


“Hoje é dia de luta...dia de resistência... que privilégio tem sido caminhar com
Dia de clamor por respeito! Dia de gente eles e elas. Falar da existência do Evan-
que tem fé e orgulho de ser quem é. Gente gelicxs é falar de esperança porque em
que sofreu e sofre por lhe ser negada não meio a tantas violências e desencontros,
só a existência, mas também o amor de encontramos formação e experiências
Deus. Gente que sofreu por tanto tempo que me fortaleceram na fé e na esper-
ouvindo que era abominável aos olhos ança viva, por exemplo ao participar do
de Deus, que ouviu que Deus não tem curso de “Formação de Lideranças Evan-
filhos e filhas LGBTQIA+, gente que tir- gélicas Af irmativas”, iniciativa desse
ou a própria vida por não suportar a re- coletivo com tantos parceiros que du-
jeição e o desprezo, gente que pensou rante nove meses nos ensinaram e nos
em morrer tantas vezes, para dar o fim formaram para sermos agentes de so-
a dor de não poder ser simplesmente corro, refúgio e esperança para outras,
ser... Mas hoje celebra e reconhece o outros e outres, em 2021 ainda vivendo
amor incomparável de Jesus de Nazaré. as dores, as tristezas e as incertezas de
Somos amados, eu sou amada por esse uma pandemia nunca enf rentadas an-
Deus, pai e mãe que se revelou na pe- tes, e no meio do caos, experienciamos
quena e desprezada Nazaré...por meio de alegria, conhecimento, acolhimento, par-
Jesus que é amor e respeito. Que defen- tilha e vitórias. Agradeço a companhia
deu os corpos desprezados e marginais desse coletivo comigo nos momentos de
da sociedade. De Nazaré... Esse lugar es- muitas dores e de maiores alegrias, como
quecido...desprezado e discriminado...as- a celebração do meu ministério celebra-
sim como pessoas como eu vem o clamor do o reconhecimento do meu chamado
e a alegria... a celebração do encontro pastoral de tantos anos e reconhecido
com Jesus... amor, graça e luz. Em Jesus em fevereiro de 2023 através da minha
posso hoje ser quem sou e com orgulho. Igreja, Primeira Igreja Batista em Bultrins
Afinal como disse meu querido @bob. – Olinda-PE, igreja-membro da Aliança
luizbotelho ‘não sou um erro que Deus de Batistas do Brasil (ABB) e Evangélicxs
tolera. Sou criação que Deus celebra’. Pela Diversidade, que inspiração e honra
Filha amada sempre.” eu ter essas pessoas em minha camin-
hada. Continuamos juntes na luta, con-
Saí do refúgio e me f ixei na esperança struindo um coletivo que continue a ser
de que esse coletivo pudesse alcançar socorro, refúgio e esperança.
ainda mais pessoas e ser socorro, refú-
gio e esperança para muites como eu. E

Se te oprime, não é Jesus 63


64 Se te oprime, não é Jesus
O s católicos LGBTQIA+ brasileiros,
pertencentes à Rede Nacional, se organ-
filhas e filhos de Deus e da Igreja”. Mais
adiante, o II Encontro Nacional de Católi-
izam a partir da necessidade de criar es- cos LGBTI realizado em 2018, em São Pau-
paços seguros de acolhimento respeitoso, lo, já contava com representantes de quin-
partilha de experiências e vivência da fé ze grupos de todo o país. Na ocasião, foi
cristã em comunidade para aqueles que construída uma Constituição para a Rede,
buscam conciliar sua pertença religiosa assim como estabelecida a primeira equi-
católica romana com suas identidades pe nacional de coordenação para o biênio
como pessoas LGBTQIA+. São lugares de 2018-2020, composta por quatro coor-
encontro e de troca, de reflexão e escu- denações regionais (Nordeste, Sudeste,
ta, de aprofundamento de nossa fé e es- Centro-Oeste e Sul), além de uma secre-
piritualidade, espaços necessários já que taria/tesouraria, uma coordenação de co-
ainda prevalece, na Igreja e no mundo, a municação e outra de assessoria, sendo
noção de uma suposta incompatibilidade que cada equipe tem seu trabalho orien-
entre a diversidade sexual e de gênero tado pelas metas estratégicas definidas
com a pertença religiosa. Sendo impor- em plenário no Encontro Nacional para o
tante destacar especialmente, a pertença período de seu mandato¹.
ao cristianismo em geral e ao catolicismo
romano em particular. Essa percepção Em 2020, a Rede reunia vinte grupos
segue sendo constantemente repetida e passou a integrar a Global Network of
e reforçada, acarretando violências das Rainbow Catholics (GNRC), que congrega
mais diversas dentro e fora da igreja. Ess- grupos de “católicos do arco-íris” de todo
es lugares seguros proporcionados pelos o mundo, com perfis e trajetórias bastante
grupos são onde plantamos sementes distintas, refletindo uma ampla riqueza e
de vida que nos nutrem, enriquecem diversidade de experiências.
e de onde saímos para semear nossos
dons e gerar bons frutos, contribuindo Atualmente, a Rede Nacional conta com
assim para a construção de um mundo cerca de 25 grupos, em agosto de 2022 fil-
de mais justiça e igualdade, em que haja iou-se ao Conselho Nacional do Laicato do
espaço para cada um florescer em sua Brasil (CNLB), que tem por objetivo criar e
própria diversidade. apoiar mecanismos de formação e capac-
itação que ajudem leigos e leigas a desco-
Desde a década de 1960, grupos de pes- brirem sua identidade com vistas à con-
soas católicas LGBTQIA+ se organizam por strução de uma sociedade justa e fraterna,
todo o mundo, realizando um trabalho sinal do Reino de Deus. Importante explic-
pastoral de acolhida, partilha de experiên- ar que a equipe de coordenação, eleita no
cias e aprofundamento da fé. No Brasil, II Encontro Nacional, estendeu seu man-
esse movimento teve início em 2007, com dato até novembro de 2021 por ocasião
o surgimento no Rio de Janeiro do grupo da Pandemia, realizando o III Encontro
Diversidade Católica. Composto por leigas Nacional totalmente online reunindo 21
e leigos católicos que compartilhavam a grupos da Rede, com o tema “Pra Vida ser
mesma compreensão de que a salvação sempre mais!”, tomando como inspiração
de Cristo e sua mensagem são para todos, a palavra de Jesus no evangelho de João²:
todas e todes sem distinção. Os sete anos “Que todes tenham vida plenamente”. O
seguintes seguiram-se com a construção IV Encontro Nacional está previsto para
e organização de outros coletivos, do Sul novembro de 2023 em Fortaleza - CE.
ao Nordeste do país, culminando no I En-
contro Nacional de Grupos Católicos LGBT, A vivência pessoal e comunitária de pes-
realizado no Rio de Janeiro - RJ, em 2014, soas LGBTQIA+ na Igreja é uma conquista
em que estiveram reunidos os grupos já contemporânea, impensável há algumas
formados até época. décadas. Porém, ela é, antes de mais, um
resgate daquela “surpresa” original dos
Esse momento ficou marcado como o discípulos e discípulas que acompanhar-
nascimento da Rede Nacional de Grupos am o Nazareno e as primeiras comuni-
Católicos LGBT, a partir de um manifesto dades cristãs, deixando-se guiar pelo Es-
que assumia a nossa identidade: “Somos pírito Santo. O sopro do Espírito sobre o

Se te oprime, não é Jesus 65


gênero e a sexualidade: o nascimento de ais no seu tempo. Jesus já assinalara, em
uma Espiritualidade da Diversidade. algumas ocasiões nas quais se encontrou
com não-judeus, que “nunca viu uma fé
Em 2022, em resposta à pergunta: “O como essa em Israel”, elogiando a confiança
que o senhor diz a um católico LGBT que despertada por ele em pessoas que não eram
foi rejeitado pela Igreja?”, feita pelo padre judias ou sequer religiosas³. Ele mesmo tinha
jesuíta James Martin, o Papa Francisco se deixado evangelizar pela mulher cana-
acentuou, entre outras coisas, que “A Ig- neia, que lhe exigiu as migalhas dos cães e
reja é uma mãe e reúne todos os seus fil- acabou recebendo do Mestre o mesmo pão
hos, uma Igreja ‘seletiva’, de ‘puro sangue’, dos filhos, por causa de sua fé e coragem4.
não é a Santa Madre Igreja, mas sim uma
seita.” Depois de muitos anos de rejeição Assumimos enquanto Rede Nacional de
e perseguição dos setores conservadores Grupos Católicos LGBT a missão de pro-
das igrejas, os Grupos da Diversidade es- mover e difundir a Boa Nova de Jesus Cris-
tão finalmente recebendo um grande to e o projeto plenamente inclusivo do Re-
impulso, através das declarações e ati- ino de Deus, partilhando a experiência do
tudes tomadas pelo Papa Francisco e do Amor, da Liberdade, da Justiça e da Vida
empenho de pessoas e setores eclesiais em abundância com todas as pessoas que
comprometidos com a leitura dos sinais são excluídas da Igreja e/ou da sociedade
dos tempos e o sopro do Espírito Santo. O em virtude de sua identidade de gênero
tempo de Francisco tem sido, para uma e/ou orientação sexual. Acreditamos que
multidão de pessoas, um Kairós (em gre- Deus nos criou e ama a todos e todas com
go καιρός, “o momento oportuno”), tempo Amor Incondicional, que Cristo nos abraça
no qual é preciso atenção porque estamos e nos chama de amigos e amigas, e que
sendo visitados, de maneira especial, por Sua Igreja é para todos, todas e todes nós.
Deus. Tempo em que pessoas que foram Acreditamos no Espírito Santo que sopra
historicamente violentadas e descartadas, em nossos corações e nossas vidas, e que
até mesmo por setores do cristianismo, é nossa missão profética contribuir com
voltam a ter a esperança de ocupar o lugar nossas dádivas e nossos testemunhos
oferecido por Deus a elas, na Igreja e na so- para a construção do Reino.
ciedade.
O patriarcado cisgênero, branco, heter-
A Espiritualidade da Diversidade vai se onormativo, continuará usando suas fer-
desenvolvendo e nos atravessando na me- ramentas de exclusão e segregação, para
dida em que o Espírito encontra abertura dizer quem “tem direito” ao sagrado5, para
para novas e profundas perspectivas, de- controlar nossos corpos, nossos afetos,
sembocando numa vivência humana mais mas como igreja viva de Jesus, nós pes-
transparente e numa religiosidade menos soas LGBTQIA+ iremos permanecer sen-
infantil. Essa forma radical, surpreenden- do existência em forma resistência, nossa
te e universalmente acolhedora de viver relação com Deus é mais profunda que o
a espiritualidade exige muita abertura e falso moralismo pregado, nosso direito ao
discernimento, a fim de ouvir as vozes que sagrado não sera impedido, nosso lugar a
clamam em nós e na realidade intra e ex- mesa não será retirado.
tra eclesial, reconhecendo nelas os sinais
do Reino de Cristo, e o enfrentamento dos Por fim, relembramos as palavras de Cris
desafios aos nossos limites mentais, ao Serra6: “Vivemos tempos sombrios, que
conformismo e à acomodação, que se tor- exigem de nós fortaleza, ânimo e esper-
naram as maiores tentações contra o so- ança para seguirmos resistindo contra as
pro do Espírito. trevas e lutando por um mundo melhor.
Em tempos de ataques constantes à nossa
A partir da vida pública de Jesus de Naz- comunidade, por meio dos quais o ordena-
aré, passando pela experiência dos seus mento de gênero patriarcal e cis-heteronor-
discípulos e discípulas, as primeiras co- mativo vai sendo reforçado mediante o uso,
munidades foram vivenciando essa Es- muitas vezes, de uma linguagem e símbolos
piritualidade da Diversidade, contrária em cristãos, nossos testemunhos vêm se jun-
essência a algumas das crenças tradicion- tar à disputa de narrativas sobre o que é e

66 Se te oprime, não é Jesus


o que significa o cristianismo não apenas quem caminha com Cristo precisa unir-se
no campo religioso, mas no espaço públi- à luta por igualdade e justiça para todas
co mais amplo. [...] Queremos revelar um as pessoas – especialmente as mais mar-
seguimento de Cristo que seja coerente ginalizadas, como as LGBTQIA+ – dentro
com Seu Evangelho. E o seguimento de e fora das Igrejas cristãs.”
Cristo, para ser coerente com Seu Evangel-
ho, precisa levar ao engajamento a luta an- Que a paz de Cristo e a proteção amorosa
tirracista e pelos direitos humanos – inclu- de Maria, nossa mãe, estejam sempre com
sive os direitos sexuais e à livre expressão todos, todas e todes nós.
de gênero, no marco da laicidade do Es-
tado. Para ser coerente com o Evangelho,

Autores do texto construído coletivamente:


DANIELLA CARDOZO; EDELSON SOLER; LUÍS RABELLO E
MARIANNE LUNA.

¹ Informações sobre a rede: Sobre – Rede Nacional de Grupos Catolicos LGBT (redecatolicoslgbt.com.br);
² Evangelho de João Capítulo 10, versículo 10;
³ (Cf Mt 8,10; Lc 7,9)
4 (Cf Mt 15, 21-27; Mc 7, 24-30)
5 A Ruah que habita em nós — Católicas pelo Direito de Decidir (catolicas.org.br)
6 Serra, Cris. Viemos para comungar: os grupos católicos LGBT brasileiros e suas estratégias de permanên-
cia na igreja / Cris Serra. Rio de Janeiro, RJ: Metanoia, 2019.

Se te oprime, não é Jesus 67


MNE
M OVI M E N TO N E G R O EVA N G É L I CO

68 Se te oprime, não é Jesus


E u fui uma criança e um adolescente
que amava frequentar a igreja; lembro que
casar?” “Em breve, Deus lhe providenciará
uma varoa, uma mulher de oração!” “Você
implorava aos irmãos por uma oportuni- tem que casar, não é bom que o homem
dade, ao longo do culto, para entoar cân- viva só!” (Gênesis 2, 18). A minha postura
ticos de louvor a Deus. Gostava também nunca “denunciou” a minha orientação
de estar envolvido com trabalhos evan- sexual; na verdade, os gays são estereoti-
gelísticos, projetos sociais, adorava estar pados culturalmente, e isso está ligado ao
em comunhão com as pessoas da minha preconceito também que nós sofremos.
idade nos grupos juvenis, mas o que eu Por eu ser um homem preto, alto e com
mais amava fazer era ministrar uma pala- um modo de ser, de agir e falar “heteros-
vra de reflexão e lecionar na Escola Bíbli- sexuais,” a sociedade – e, em especial, a
ca Dominical... Sem dúvidas, a igreja era igreja – sempre esperaram de mim a virili-
a extensão da minha vida. Porém, desde dade masculina, a força, o vigor, a potência.
cedo, eu percebia que havia algo de “erra- “Como assim você tem medo de baratas?”
do” comigo, com os meus sentimentos e “Como assim você tem medo de altura?”
com o meu próprio corpo; eram sensações “Um negão desse tamanho!” E esses es-
e atrações que “contrastavam” com os va- tereótipos e desumanizações eu encon-
lores da minha religião e que me “distanc- trei não somente na igreja, mas também,
iavam” da “vontade de Deus.” Eu recordo infelizmente, na comunidade LGBTQIA+.
que, já na escola primária, os garotos me Pelas minhas características físicas, mui-
atraiam de um jeito diferente, mexiam com tos gays esperam que eu seja ativo, um
os meus hormônios, erotizavam a minha “bofe” potente e não uma “bicha” passiva.
carne. Acreditava que tinha “demônios” Eu não posso chorar, não posso fraquejar,
e carregava, dentro de mim, um medo não posso enxergar o mundo de um modo
terrível do “Deus Todo-Poderoso” me ful- meigo, fofo, carinhoso, colorido, porque eu
minar devido àqueles desejos proibidos. sou “negão.” Quer dizer, a homofobia, o
Nessa época, a relação que eu tinha com racismo e o machismo estão todos inter-
o sagrado era muito tóxica, por causa da ligados e operam simultaneamente. To-
própria igreja. O Deus que eu conhecia, davia, em Cristo, eu sou livre. Jesus disse
imagem e semelhança dos homens, era que “se, pois, o Filho vos libertar, verdadei-
um tirano, insensível, centralizador, intran- ramente sereis livres” (João 8, 36). Hoje, eu
sigente, egoísta e autoritário, capaz de me sei que Deus vive na minha carne, no meu
castigar a qualquer momento diante de al- sangue, nos meus tecidos; eu sei que Deus
gum “vacilo” meu. Por causa dessa relação respira e transpira em meus sentimentos,
abusiva com esse “Deus” que a igreja evan- na minha forma de amar, de viver e de ex-
gélica me apresentou, durante muito tem- istir e nele eu sou livre para ser o homem
po, eu enganei a mim mesmo, neguei a meigo, sensível, ativo e passivo como Ele
minha natureza, minha identidade, meus me fez. O verbo se fez carne (João 1, 14);
sentimentos, enfim, minha homossexu- para mim, Deus se fez carne e se revelou
alidade, e conforme eu fui adentrando na em uma “amizade colorida” que eu tenho
puberdade, fui me tornando um rapaz alto, com um menino negro, de pele clara, o
esbelto, bonito – na medida do possível – qual tanto amo e que toca as feridas mais
e, quando, finalmente, chegou a maiori- profundas da minha alma. Se isso não é
dade, com ela veio também a pressão da Deus, eu não sei mais o que poderia ser.
igreja: “Quando vai namorar?” “Quando vai

CLEITON CHAGAS
É professor de História, poeta e escritor homossexual. Filiado ao Partido dos
Trabalhadores (PT), Cleiton é integrante do MNE (Movimento Negro Evangélico)
e leciona, atualmente, no Ensino Médio, em cursinhos preparatórios e em
pré-vestibulares sociais. É membro também da Igreja Batista do Caminho.
Seus temas de maior interessante são poesia, teologia, discurso, religião, in-
tolerância e sexualidade.

Se te oprime, não é Jesus 69


A ssim como meu colega Cleiton, eu
nasci e fui criado na igreja. (No meu caso
A pior fase da minha vida no que tange a
minha sexualidade foi a adolescência. En-
foi a Igreja Batista) e é inegável a im- quanto os meus amigos e amigas (héteros)
portância da igreja na minha formação falavam das suas desilusões amorosas, eu
enquanto ser humano. Pois, foi o lugar nem cogitava essa possibilidade, pois, no
em que eu aprendi a falar em público fundo, eu sentia que o amor (hétero) não
por conta das oportunidades de dirigir tinha sido feito pra mim. E na minha ca-
os cultos jovens, foi o ambiente no qual beça a única possibilidade de afeto era en-
eu criei a minha primeira rede de amiza- tre homem e mulher. Fora isso, era pecado.
des, e, também, foi através do ambiente As perguntas sobre a minha sexualidade
eclesiástico que eu formei os meus posi- eram inúmeras e me enchiam de verg-
cionamentos e opiniões sobre o mundo onha. Só de ouvir a seguinte indagação
pelo viés da Bíblia. “Posso te fazer uma pergunta?” me deixa-
vam completamente desconcertado, pois
A igreja traz esse lugar de pertencimen- eu intuía que iam me perguntar se eu era
to e acolhimento, que, de certa forma, é gay e em 99% dos casos, a minha intuição
real. Mas quando se é preto e LGBTQIA+ estava certa…
as coisas são um pouco diferentes… é
um sentimento de não pertencimento Depois de muita dor e sofrimento, eu
que fazia com que eu ficasse perdido e consegui compreender a verdadeira paz
ao mesmo tempo tentando buscar ma- de Deus, que excede todo entendimen-
neiras de me encaixar num padrão bran- to (Filipenses 4, 7), passei a me aceitar do
co e heteronormativo. Por conta das vi- que jeito que eu sou e me amar incondi-
olências (em formas de pregação) que cionalmente. Depois da saída do armário,
eu sofria na igreja, eu neguei a minha a minha vida mudou pra melhor. Princi-
sexualidade por anos. Perdi as contas de palmente a minha relação comigo mes-
quantas orações eu fiz durante a minha mo. Hoje eu sou leve, tenho paz e vivo
adolescência pra que Deus tirasse de a minha fé de maneira mais orgânica e
mim o “demônio do homossexualismo”. genuína.

Oro para que todos os pretinhos gays,


que estão sofrendo dentro do armário, se
libertem. A vida fora do armário, é possível
e é linda.

LUCAS ADENIRAN
Bixa preta afeminada, 27 anos, jornalista em formação, cria de São Gonçalo, membro
do MNE, Repórter (Estagiário) da TV PUC-RIO.

70 Se te oprime, não é Jesus


A ssim como meu mestre, cresci longe
do centro (Mt 2, 23; Jo 1, 23) , em Padre
No ano seguinte, tentei caminhar se-
gundo meu coração e minha razão. Com-
Miguel, zona oeste do Rio de Janeiro. Um ecei a minha transição de gênero e fui
lugar onde a diversidade é comumente feliz em muitos momentos, até que com-
comedida por haver poucos espaços onde ecei a ser sufocada pela marginalização
ela possa florescer. Desde o berço ouvin- e pela realidade condicionada para as
do músicas cristãs, fui alfabetizada com pessoas trans, principalmente mulheres
bíblias infantis e já grandinha folheava as trans e travestis. Não agi muito diferente
apostilas de teologia da minha mãe. Jesus da forma como agia antes, mas os as-
sempre foi uma inspiração para mim. Seu sédios, as invalidações e o desejo de “sal-
amor e seu sacrifício me fizeram a mulher var” aquelas pessoas e de fazê-las voltar
idealista que sou (Jo 3, 16). a sonhar e a acreditar em um mundo
melhor e com possibilidades, mexia mui-
Aos 13 anos, Jesus me escolheu para uma to com minha alma.
missão (Jo 15, 16), e eu a abracei numa lon-
ga caminhada, onde aprendi a língua de Essa realidade condicionada foi mais
sinais, fiz vários projetos em igrejas, toquei forte do que eu. Fui assaltada, abandona-
vários corações e a luz de Jesus brilhava da pelos que chamei de amigos, e corri
em mim e lá estava eu no altar exercendo como um furacão para reparar os danos.
meu chamado (Lc 10, 2; Lc 11, 33). Mesmo Não dando conta das minhas demandas,
com tantas “verdades inconvenientes”, an- falhei e quase colapsei. Isso me fez duvi-
tes ocultas e posteriormente reveladas, o dar do meu valor. Foi no deserto que aos
fato eterno e incontestável é que eu, Philli- poucos minha alma suplicava pelo amor
pa, fui escolhida (Je 1, 5a, Co 1, 25-29). de Deus. Meu coração foi se abrindo aos
Diferentemente da minha irmã Sil, minha poucos e as oportunidades vieram. Sim,
família não tem uma boa relação com a di- voltei a congregar e já visitei outras três ig-
versidade. Em 2019, entrei em um processo rejas onde fui recebida de braços abertos,
de libertação e passei a me permitir sentir e minha identidade foi respeitada.
a verdade em relação a como eu me vejo
e vejo o outro. Foi um longo processo no Voltei a traduzir louvores para a língua de
qual tive medo de desagradar a Deus. Até sinais nos cultos, em sincera adoração e
que conheci o MNE e fui abraçada como serviço a Deus. No dia 9 de junho de 2023,
negra e dissidente sexual. Mesmo assim, mostrei minha nova identidade com meu
minha alma gritava por justiça e repa- nome social para a pastora Viviane, minha
ração. Em uma tentativa desesperada de amiga e irmã em Cristo, e ela orou e me
me conectar comigo mesma e me libertar abençoou, um gesto simples, mas sig-
de toda possível opressão, desconsiderei a nificativo. Sinto-me abraçada pela infini-
fé cristã e larguei a cruz. ta misericórdia e amor de Jesus, e confio
nos planos Dele para a minha vida e para a
minha comunidade (Je 29, 11).

PHILLIPA SILVEIRA
É mulher trans, instrutora e tradutora de libras- língua brasileira de sinais. Bachare-
landa em Letras-Libras pela Uniasselvi. Empreendedora, proprietária da Ph Idiomas,
aspirante à escritora e roteirista, formada em roteiro pela AIC, audiovisual pela CA-
PACITRANS, e estudante de cinema de ficção pelo Cinema Nosso. Autista. Evangélica.
Membra dos coletivos MNE e Quilombo PCD.

Se te oprime, não é Jesus 71


“Q uem nunca pecou que jogue a
primeira pedra”.
pelo fato de dividir meu amor com out-
ras mulheres, muito pelo contrário, me
sinto abençoada por ter partilhado afeto
Essa frase que Jesus Cristo usou para com todas as pessoas que Deus colocou
proteger uma mulher oprimida já seria su- no meu caminho, sem culpa e sem pre-
ficiente para explicar a uma grande parte conceito.
do meu povo evangélico que nossa comu-
nidade se desviou do caminho que Deus Hoje como mulher adulta, mais velha
tanto nos orientou a seguir. inclusive do que a última idade terrena
da mãe que eu tive, cultuo minha fé da
Esse entendimento me chegou graças forma como foi me ensinado, respeitan-
ao maior privilégio que a vida me presen- do a todas as criaturas oriundas do amor
teou, o de ter nascido de uma mulher que de Deus e levando a palavra, não de ade-
sempre fez questão de cultivar sua fé em stramento, mas de amor e acolhimento a
um Deus que é conhecido por sua miser- qualquer pessoa que esteja a minha vol-
icórdia e que inspirou reis, apóstolos e pro- ta e que precise dela.
fetas a registrarem em um Livro Sagrado,
todas as histórias que provam que era ao Me sinto dividindo um pouco desse
lado dos oprimidos que ele estava. Essa privilégio que me foi concedido, privilé-
mulher de pele parda, trazia todas as mar- gio esse que me protegeu das pedras
cas da negritude em sua essência, o que jogadas pelas mãos dos homens e mul-
a levava a se identificar com a luta contra heres que confundem a graça de Deus
a desigualdade social e tomar para si as com um templo, a prosperidade prometi-
dores de outras mulheres na comunidade da na bíblia com o poder e a autoridade de
onde vivíamos. Esse hábito de cuidar do Deus com o aval para julgar o próximo.
próximo, fez com que a minha mãe se tor-
nasse uma pessoa querida até os dias de Essas pedras não me atingiram, mas, in-
hoje, mesmo tendo se passado 40 anos de felizmente, atingem inúmeros meninas e
sua despedida na terra. meninos que se descobrem amando al-
guém cujo único pecado foi ter nascido
Durante toda minha infância, fui protegi- sob o mesmo gênero que elas. Por isso,
da por essa seguidora de um Cristo gen- em minhas orações, eu peço pelos meus
eroso, que me ensinou a semear o amor, irmãos e irmãs, que como eu, nasceram
dividir o pão nosso de cada dia com todos sob a nomenclatura da homossexuali-
os irmãos que estivessem com fome e a dade, mas não tiveram a sorte que eu tive
nunca encarar a diferença entre as pes- de ter uma mulher como a minha mãe
soas como algo ruim, apenas diferente. em suas vidas, que lhes teria dito em voz
alta para que seguissem as suas vidas de
Talvez tenha sido essa a razão pela cabeça erguida e vivessem a plenitude de
qual pude amar sem medo as pessoas suas identidades, sem medo das sombras
por quem meu coração se encantou, e, em e com amor em seus corações. Pois a úni-
nenhum momento da minha vida, eu me ca certeza que temos, nesse mundo, é que
senti distante da comunhão com Deus Deus está, sim, no meio de todos nós!

SIL AZEVEDO
É uma profissional de 55 anos, lésbica e não binária, que atua há 30 anos nos
campos da fotografia e do cinema sócio-político. Em 2020, fundou o coletivo
“Espaço Carioca 70”, um estúdio de mentoria e produção audiovisual no Rio de
Janeiro, com foco na criação de conteúdo voltado para o empoderamento de
mulheres negras e da população LGBTQIA+.

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