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Bibliografia: f. 130-134.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros -
Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2017.
AGRADECIMENTOS
Esse trabalho chegou ao seu final graças ao apoio de muitas pessoas que
contribuíram significativamente para seu êxito. Primeiramente, agradeço ao meu professor
orientador Cesar Henrique de Queiroz Porto pelas horas de dedicação e leitura conjuntas para
a elaboração dos trabalhos, mas também pelos momentos de amizade compartilhados.
Agradeço também ao professor Laurindo Mékie Pereira pelas instruções na ocasião da
qualificação desse trabalho. Agradeço ao professor Ariel Finguerut pelas criticas e sugestões.
Agradeço o apoio dado pelos colegas do Colégio Marista São José e do Colégio Sólido que
contribuíram diretamente e indiretamente para a execução desse trabalho. Agradeço também
aos meus familiares, especialmente minha esposa Bruna que mais sentiu a aminha ausência
devido às horas de estudo. Agradeço aos meus pais pela compreensão e apoio incondicional
dado durante todo o processo, essa vitória também é deles. Agradeço à Unimontes e ao PPGH
por criarem uma oportunidade única de executar o mestrado em Montes Claros, onde resido e
trabalho. A todos, agradeço por cada conquista.
6
RESUMO
Essa dissertação é um estudo sobre as representações das relações entre o Islã e a civilização
Ocidental presentes na imprensa escrita, Revista Veja e o Jornal Folha de São Paulo durante
a cobertura da captura e assassinato do terrorista Osama bin Laden. Inicialmente, a pesquisa
verifica a presença de representações que evocam a tradição orientalista, aos moldes da critica
construída por Edward Said em sua obra o Orientalismo. A partir do estudo das fontes,
verifica-se que os dois veículos midiáticos se afastaram de tal tradição e construíram seus
textos a partir de outras referências. A Revista Veja, em uma postura pró-ação norte-
americana, construiu um discurso permeado de características liberais, que ao mesmo tempo
não recorria à estigmatização da religião islâmica, mas a igualou ao cristianismo e ao
judaísmo, descreveu a diversidade de práticas religiosas dentro do Islã, e separou a religião do
terrorismo. O periódico recorreu a argumentos baseados na defesa de valores liberais como
secularismo, liberdade religiosa e livre-iniciativa, sendo justificativas para a ação norte-
americana e para as demais ações norte-americanas no Oriente Médio. O jornal Folha de São
Paulo, assume uma posição oposta à da Revista Veja, ao enquadrar a construção de seus
textos na ação americana. O veículo recorre também a valores liberais, afirmando que os EUA
em sua intervenção feriam os valores liberais que eles prometiam disseminar. Afirmavam que
os EUA substituíram a justiça racional pela vingança e tortura. O jornal relacionou os EUA ao
patrocínio de grupos terroristas e comportamento imperial que solapa as relações
multilaterais. A oposição entre as duas empresas de informação foram comparadas permeando
suas diferenças como a concepção de um futuro pacífico e liberal para Veja, e ao mesmo
tempo um futuro violento e incerto para a Folha. Apesar das diferenças, a noção de liberdade
construída pelas duas fontes se assemelham em sua fragilidade, pois a Veja confunde a
liberdade pública com a liberdade privada enquanto a Folha de São Paulo se recorre à
matemática do horror para criticar os EUA sem estabelecer uma crítica ao terrorismo a que
Osama bin Laden se filiava.
ABSTRACT
This dissertation is a study of the representations of the relations between Islam and Western
Civilization present in the written press, Revista Veja and Folha de São Paulo newspaper
during the cover of the capture and assassination of the terrorist Osama bin Laden. Initially,
the research verifies the presence of representations that evoke the orientalist tradition, to the
molds of the criticism built by Edward Said in his work Orientalism. From the study of the
sources, it is verified that the two media vehicles moved away from that tradition and
constructed their texts from other references. Revista Veja, in an American pro-action stance,
constructed a liberal-sounding discourse, which at the same time did not appeal to the
stigmatization of the Islamic religion, but equated it with Christianity and Judaism, described
the diversity of religious practices within of Islam, and separated religion from terrorism. The
magazine resorted to arguments such as the defense of liberal values such as secularism,
religious freedom and free initiative, as a justification for American action and for other
American actions in the Middle East. The newspaper Folha de São Paulo, assumes a position
opposed to that of Revista Veja, when framing the construction of its texts in the American
action. The vehicle also resorts to liberal values, stating that the US in its intervention hurt the
liberal values they promised to spread. They claimed that the US replaced rational justice with
revenge and torture. The paper linked the US to sponsoring terrorist groups and imperial
behavior that undermines multilateral relations. The opposition between the two information
companies was compared permeating their differences as the conception of a peaceful and
liberal future for Veja, and at the same time a violent and uncertain future for Folha. Despite
the differences, the notion of freedom constructed by the two sources resembles its fragility,
because Veja confuses public liberty with private freedom while Folha de São Paulo uses the
mathematics of horror to criticize the US without criticizing the terrorism to which Osama bin
Laden was affiliated.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9
CAPÍTULO 1
REVISTA VEJA: A CAPTURA DE OSAMA BIN LADEN E A VITÓRIA DOS VALORES
OCIDENTAIS .......................................................................................................................... 29
1.1. - O papel libertador/interventor dos EUA no conflito entre Oriente e Ocidente .............. 30
1.2 - Os limites da ordem mundial americana ......................................................................... 35
1.3 - O terrorismo como o maior inimigo do Islã ..................................................................... 42
1.4 - A diversidade do Islã ........................................................................................................ 47
1.5 – O Silêncio da Revista Veja .............................................................................................. 53
CAPÍTULO 2
FOLHA DE SÃO PAULO: “PAZ É GUERRA, TORTURA É LIBERDADE”: A
“TRAIÇÃO” DO IMPÉRIO AMERICANO AOS VALORES OCIDENTAIS ...................... 61
2.1 – Folha de São Paulo: Osama executado e o Ocidente no banco dos réus ......................... 62
2.2 – Obama e o terrorismo dos EUA em prol dos Direitos Humanos .................................... 66
2.2.1 – A coluna a favor/contra..................................................................................... 75
2.3 – A inconsistência da Guerra ao Terror .............................................................................. 86
2.4 – A confusa relação entre EUA e o patrocínio a grupos terroristas ................................... 89
CAPÍTULO 3
FOLHA E VEJA: A ESCATOLOGIA HUMANA E O CAMINHO DA LIBERDADE ........ 95
3.1 – Entre a utopia do “fim da história” e a distopia do “choque de civilizações” ................. 96
3.2 – A “aparente” dualidade entre Veja e Folha ................................................................... 104
3.3 – Um via filosófica: Por que os EUA falharam em lutar pela liberdade no Iraque e
Afeganistão? ........................................................................................................................... 109
9
INTRODUÇÃO
O debate entre George W. Bush e Osama bin Laden demonstra como os termos
em que a globalização levada à cabo pelo Ocidente se choca com o fundamentalismo
extremista do terrorismo islâmico. Nesse debate, o tema da liberdade se tornou marcante, pois
o presidente americano acusava o terrorista saudita de odiar as liberdades americanas. A
resposta de Bin Laden, em uma fita VHS divulgada em 2004, foi paradigmática, se esse fosse
o problema todo o mundo ocidental seria atacado, como a Suécia, e não os EUA.
Nesse caso, não é a noção de liberdade que Osama bin Laden ataca com seus atos
terroristas, mas a liberdade imposta pelos EUA por meio de suas ingerências no mundo
muçulmano1. A bandeira da liberdade e do progresso ocidental já foi levada a boa parte dessa
região várias vezes desde o século XIX, com o neo-colonialismo francês e inglês, e
atualmente com os EUA.
A captura de Osama bin Laden foi apenas mais um conflito nessa longa trajetória
de embates entre a civilização muçulmana que tenta se modernizar em termos próprios desde
o século XIX e a hegemonia ocidental que data desse mesmo período. A própria relação entre
o terrorista e os EUA, não se reduz aos eventos do dia 11 de setembro de 2001, nem foi
sempre conflituosa. Desse modo, o objetivo desse trabalho é analisar como as relações entre
Islã e Ocidente, especialmente EUA, são representadas pela mídia impressa durante a
cobertura da captura e assassinato de Osama bin Laden.
A violência da captura e assassinato oculta momentos de parceria e troca de
apoios no passado da Guerra Fria. A relação entre o terrorista saudita e os EUA ocorre na luta
contra um inimigo comum, na luta contra o comunismo ateu da URSS. Naquele momento os
EUA decidiram patrocinar a guerrilha dos Mujahedins afegãos contra a ocupação soviética. A
trajetória jihadista de Osama bin Laden se inicia nos anos de 1980 quando
1
Segundo Peter Demant, o mundo muçulmano abrange cerca de 1,3 bilhão de seres humanos, um quinto da
humanidade. Se encontram desde a África ocidental até a Indonésia, passando pelo Oriente Médio e Índia. Em
muitos países os muçulmanos constituem a maioria da população local, e em outros importante minoria. Tal
mundo é diverso em suas histórias, nações, etnias, línguas, maneiras de viver, relações com o meio ambiente e
vizinhos. Porém todos os povos do mundo muçulmano têm um único e decisivo fator comum: o Islã (DEMANT,
2004, p. 13-14).
11
Bin Laden era realmente um herói, alguém que eles sabiam que havia aberto
mão de uma vida de luxo como filho de um bilionário saudita. Em vez disso,
ele vivia uma vida de riscos e pobreza a serviço da guerra santa, e era,
pessoalmente irresistivelmente modesto e profundamente devoto. Membros
da Al-Qaeda se calcavam no homem que eles chamavam de “o xeque”,
seguindo cada pronunciamento seu, e quando eles se dirigiam a ele, pediam-
lhe permissão para falar (BERGEN, 2012, p.19).
Mas os mujahedins não lutaram sem apoio, os EUA desejavam apoiar os rebeldes
contra a URSS. Um combate direto entre as duas potências nucleares era impossível na
Guerra Fria, assim conflitos por áreas de influência como o Afeganistão eram bem vindos
para o EUA. Além de sanções à URSS e ajuda financeira aos insurgentes, os EUA deram
apoio militar por meio de seus aliados como o Paquistão. O serviço secreto paquistanês,
conhecido como a
2
Directorate for Inter-Services intelligence, or ISI for short,is Pakistan`s equivalent of the American CIA. The
ISI playeda large rolein America`s AID of the Mujahedeen by helping transport armaments across
themountainous border between the two countries and further providing both monetary and military AID to the
insurgence.
[...] funding and support for this group began under the Carter administration. Under the Reagan administration,
however, founding, arming, and training were taken to a much higher level (BILLARD, JR. 2010. p. 29-30).
12
caindo gradativamente como peças de dominó. As bases americanas que prendiam militantes
se tornaram centros de tortura, também chamadas pelos americanos de “técnicas melhoradas
de informação”, que garantiam as informações necessárias para as futuras ações militares.
Enquanto isso, Londres e Madrid se tornavam alvos de novos ataques terroristas.
Um consenso já se estabelecia entre as agências de segurança quanto ao destino de
Osama bin Laden, não havia a possibilidade de sua captura vivo. Um Osama bin Laden
capturado vivo transformaria seu julgamento em um
Por meio das técnicas de “interrogatório” organizadas pela CIA nas bases
americanas e de países aliados o paradeiro de Osama bin Laden foi localizado na cidade de
Abbotabad, sede de uma escola militar paquistanesa. A ação americana levada à cabo por
tropas de elite, e não por forças de ocupação, foi meticulosamente testada por várias vezes
para que não se repetisse o fiasco operacionalizado por Carter no Irã 3.
A ação americana não encontrou resistência, os moradores adultos que guardavam
a casa de Osama bin Laden, o mensageiro do terrorista e seu irmão foram mortos, as crianças
que habitavam a casa foram amontoadas na escada. Ao entrar no quarto onde Osama bin
Laden habitava, a esposa do terrorista se lançou contra os soldados, que a empurraram e
alvejaram sua perna. O mujahidin não resistiu e foi golpeado com dois tiros na cabeça. Seu
corpo foi recolhido, e segundo o relato oficial norte-americano, passou por uma cerimônia
fúnebre muçulmana, e logo depois seu corpo foi jogado no mar por meio do porta-aviões USS
Carl Vinson.
A notícia da captura foi dada pelo presidente Barack Obama as 23:50, do dia
primeiro de Maio de 2011. No outro dia, inúmeros veículos de comunicação comentavam a
declaração do presidente norte-americano. A capacidade desse evento se reproduzir
3
Segundo Moniz Bandeira, os esforços diplomáticos para libertar os 52 funcionários americanos mantidos reféns
pelas milícias iranianas na Embaixada Americana de Teerã não haviam alcançado resultado. Assim em 1980,
Carter autorizou a operação Eagle Clow (Garra da Águia), com o objetivo de resgatá-los. A missão envolvia oito
helicópteros e 12 aeroplanos. No dia 25 de Abril, algumas aeronaves apresentaram falhas mecânicas e um deles
colidiu com um C-130 Hercules, quando era abastecido, causando uma explosão em que pereceram cinco
homens da força aérea, três marines e muitos saíram feridos (MONIZ BANDEIRA, 2014, p. 411).
14
cristãs que o repertório de representações negativas e reducionistas sobre essa religião até
então desconhecida surge, vista como uma versão fraudulenta do cristianismo.
Já no período imperialista, as representações orientalistas se tornaram um
instrumento de legitimação da dominação européia, justificando a empreitada colonizadora: o
“oriental é irracional, depravado (caído), infantil, „diferente‟; desse modo, o europeu é
racional, virtuoso, maduro, „normal‟” (SAID, 1990, p. 50.). Diante desse antagonismo caberia
ao europeu a missão de intervir no oriente e tirar o oriental do atraso e barbárie em que vive.
Uma das grandes contribuições de Edward Said foi demonstrar como os meios de
comunicação contribuíram para renovar a tradição orientalista. Esse autor afirma que a mídia
tem atuado como efeito potencializador sobre o orientalismo (SAID, 1990, p.38). Ao chamar a
atenção para o reforço dos estereótipos pelos qual o Oriente é retratado após o advento do
mundo eletrônico pós-moderno, ele percebe que atitudes orientalistas invadem a esfera
pública povoando a imaginação coletiva com imagens caricaturadas e negativas dos árabes e
muçulmanos.
Segundo esse autor, a mídia pode funcionar como ferramenta de difusão de
imagens que desfiguram o Islã para seus públicos. Em muitas representações o árabe
muçulmano é associado ao atraso, ao saque, a libidinagem. O olhar do leitor se torna cada vez
mais dependente dos estereótipos e representações advindos dos meios de comunicação que
contribuem na formação de sua percepção.
Para Said, nos meios de comunicação de massa
4
As conquistas muçulmanas resultaram na divisão do mundo em três partes: dar al-Islam, dar al-„ahd (ou sulh) e
dal al-harb. Dar al-Islam refere-se aos territórios nos quais a lei islâmica prevalece. Dar al-„ahd (região do pacto)
e dar al-sulh (região de trégua) eram ambas regiões cujos líderes concordam em pagar aos chefes muçulmanos
uma taxa e também em proteger os direitos de qualquer aliado ou aliado dos muçulmanos que ali vivessem, mas
que, por outro lado, pudessem continuar a manter sua autonomia, inclusive seu próprio sistema legal. Dar al-harb
era uma área cujos líderes não tinham feito tal acordo e nas quais, portanto, os muçulmanos e seus aliados não
tinham nem a garantia de viver sob a lei islâmica,nem eram protegidos por ela. Por essa razão,era chamada de
área de guerra (SONN, 2011, p. 64-65).
18
Então demonizar o Islã serve nada mais como uma arma adicional para
subordinar, compelir e derrotar as resistências árabes muçulmanas contra os EUA e Israel.
Além disso, o Islã se encontra em uma área estrategicamente importante, rica em petróleo.
Logo a campanha anti-Islã elimina a possibilidade de qualquer tipo de igualdade de diálogo
entre Islã e o Ocidente.
Said não acredita que todos os males do mundo muçulmano são devido ao
sionismo e ao imperialismo. Mas está longe de dizer que os EUA e Israel e seus intelectuais,
não tenham desenvolvido um papel combativo e estigmatizante sobre uma abstração chamada
de Islã. Para ilustrar seu ponto de vista ele descreve a abordagem da mídia americana sobre a
invasão israelense no sul do Líbano e a resistência do Hizbollah. Para o autor é necessário
observar em primeiro lugar que,
desde 1982, Israel ocupou uma faixa do sul do Líbano chamada como uma
zona de segurança, e foi montada e continua a manter um exército libanês
mercenário na área ocupada; resistência à ocupação, bem como o Exército
libanês do Sul veio do Hizbollah, o chamado Partido de Deus, cuja razão de
ser tem sido a ocupação de Israel. Estes guerrilheiros residem e lutam no sul,
de modo que a maioria dos padrões do que seria considerado basicamente
um grupo guerrilheiro lutando contra uma ocupação militar ilegal em seu
país. Mas, a observação que é feita na imprensa dos Estados Unidos a
religião do Hizbollah é enfatizada, assim como a suposição de que porque
luta contra Israel é uma organização terrorista (SAID, 1997, posição 565-
570).
era visto como o inimigo, ou como o diferente pode ser repensando de acordo com as novas
circunstâncias culturais, sociais e econômicas.
O pesquisador Douglas Kellner (2001, p.77) esclarece esse caráter mutável e
inconstante da mídia, afirmando que ela pode não só apresentar visões preconceituosas e
negativas, mas também visões positivas sobre o outro. Segundo o autor, nos meios de
comunicação da atualidade, a cultura midiática pode defender ou não posições, posturas e
representações em relação a temas como sexo, orientação sexual, etnia entre outros. Ou seja,
os meios de comunicação podem veicular imagens progressistas ou não acerca dos
muçulmanos e de sua religião, surgindo uma possibilidade de inflexão em relação aos valores
estabelecidos pela visão ocidental ao Islã.
Logo, a mídia é um campo aberto à investigação das relações entre Ocidente e
Oriente e somente a pesquisa pode verificar a permanência ou não da tradição de
representações orientalistas. Nesse ponto as representações midiáticas são fundamentais, pois
em assuntos do cotidiano dos indivíduos como economia e política, a mídia é mais um veículo
de informação que se soma à experiência pessoal.
Contudo, quando se discorre sobre eventos que ocorrem em dimensões globais ou
lugares distantes como a captura e assassinato de Osama bin Laden, onde o indivíduo não
possui uma experiência pessoal que equilibra a percepção da realidade, a mídia ganha um
espaço privilegiado. A carência de informações dá a mídia o status de única provedora no
processo comunicativo. Nessas circunstâncias as informações da mídia são mais eficientes em
formar opiniões, do que as relações do dia-a-dia.
Torna-se inequívoca a percepção de que a mídia permite ao indivíduo novas
experiências diante da realidade, sem a imprensa provavelmente poucos estariam à par da
morte do terrorista, assim a mídia nos dá uma nova forma de ver o mundo, visão essa que não
se reduz mais ao seu ambiente da comunidade. A mídia permitiu ao indivíduo perceber
realidades que lhes seriam inacessíveis de outro modo. A conseqüência desse fato é o
surgimento de uma nova identidade ao cidadão que se constrói a partir da experiência diária e
também da experiência mediada pela imprensa.
Essa nova identidade intemporal e a-espacial se constrói com o advento da
ampliação dos instrumentos de comunicação, que passam a exigir do indivíduo novas
responsabilidades que vão além daquelas que se reportam à sua comunidade. No mundo
contemporâneo, ele terá que se posicionar tomando decisões e ações em relação aos eventos
que se apresentam distantes geograficamente e temporalmente.
21
Marc Bloch um dos fundadores desse novo paradigma afirmou: “tudo o que o
homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele” (2001,
p.79). Desse modo o autor demonstrou a validade do uso de diferentes fontes históricas no
estudo da História. Sua atitude afastou o monopólio da fonte oficial escrita tão defendido pelo
historicismo, abrindo o espaço para o estudo de fontes escritas não-oficiais como os
periódicos.
Esse avanço no uso das fontes não altera a responsabilidade fundamental que o
historiador tem ao tratá-las. Ao entrar em contato com os vestígios do passado o pesquisador
entra em ação exercendo os procedimentos básicos do seu ofício que é lidar com os diferentes
registros, inquiri-los e desconstruí-los, seguindo à sua contextualização e exploração para
deles identificar diferentes versões, de modo crítico usá-los metodologicamente (PAIVA,
2006, p.13).
A metodologia de pesquisa utilizada evitou o uso dos veículos de comunicação
como meras fontes de informação, mas há um esforço em entender o jornal e a revista como
uma
além dos referidos e inevitáveis preconceitos que todos nós temos e dos
estereótipos que todos nós cultivamos (LIPPMANN, 2008, p. 14)
Assim, por mais que ocorram fragmentações, a mídia ampliou a visão do ser
humano, sem os meios de comunicação os fatos do dia 11 de setembro e da captura de Osama
bin Laden não teriam alcançado projeção planetária instantânea como ocorreu. Walter
Lippmann disserta sobre essa limitação humana em acessar realidades distantes e a ação dos
meios de comunicação sobre eles, pois o mundo
que temos que considerar está politicamente fora de nosso alcance, fora de
nossa visão e compreensão. Tem que ser explorado, relatado e imaginado. O
homem não é um Deus aristotélico contemplando a existência em uma
olhadela. É uma criatura da evolução que pode abarcar somente uma porção
suficiente. (...) e ainda assim esta criatura inventou formas de ver o que
nenhum olho nu poderia ver, de ouvir o que ouvido algum poderia ouvir, de
considerar massas imensas assim como infinitesimais, de contar e separar
mais itens que ele pode recordar. Está aprendendo a ver com sua mente
vastas porções do mundo que ele não podia nunca ver, tocar cheirar, ouvir ou
recordar. Gradualmente ele cria para si próprio uma imagem credível em sua
cabeça do mundo que está fora do seu alcance (LIPPMANN, 2009, p.40)
responsável por medir e registrar a circulação de produtos da imprensa escrita.5 6A opção por
esses veículos dificultou a obtenção de respotsas para os objetivos iniciais, pois correspondem
a diferentes modos de produção e que chegam a diferentes públicos. Contudo, essa mesma
escolha permitiu compreender quais as representações estavam a disposição de um amplo
público.
No periódico Folha de São Paulo a morte de Osama Bin Laden é tratada a partir
de abordagens ecléticas, mas ainda assim apresentou um posicionamento predominante. O
jornal apresenta a morte de Bin Laden como manchete dos dias 02 ao dia 11 de maio de 2011
– correspondendo ao dia da publicação da Revista Veja. Ocorrem nos textos do dia 03 e 04 de
maio, as reportagens de maior volume. A Revista Veja deu a primeira página para a morte do
terrorista, sendo a reportagem principal da edição n°239, no mês de Maio de 2011. Na edição
de n° 240, encontramos os comentários dos leitores sobre os argumentos apresentados pela
revista, permitindo o estudo da recepção7.
No capítulo primeiro, analisa-se a abordagem da Revista Veja sobre a cobertura da
captura de Osama bin Laden. As reportagens apresentaram um repertório bem organizado de
representações que falam tanto da identidade ocidental, quanto representações sobre o mundo
islâmico. Assim, os valores liberais como livre iniciativa, liberdade religiosa e secularismo
são promovidos. O texto da Revista Veja dissocia o Islã da violência, deixando claro que a
agressão corresponde a uma minoria sectária e radical, não a toda comunidade de fiéis
muçulmanos. Segundo o texto, a violência não foi associada somente ao Islã, mas a toda
sociedade onde a religião se torna o valor social dominante ou o secularismo é rejeitado.
A presente pesquisa não encontrou elementos que possam justificar a existência
dessa tradição orientalista na cobertura da captura de Osama bin Laden. Em momento algum,
o oriental foi retratado como inferior, animalizado ou bestializado. A religião muçulmana não
foi classificada como oposta aos valores modernos ocidentais. A defesa dos direitos humanos
pelos EUA contra os grupos fundamentalistas islâmicos ou contra as ditaduras da região
justificaria o papel intervencionista norte-americano.
No segundo capítulo, aborda-se a cobertura da Folha de São Paulo sobre a ação
dos EUA. As reportagens apresentaram um repertório de representações que questionavam a
ação executada pelos americanos. Apesar de a Folha de São Paulo ter apresentado textos que
5
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/02/1417947-instituto-ajusta-criterios-para-aferir-circulacao-de-
jornais-folha-e-lider-nacional.shtml. Acessados em: 19/06/2014
6
http://www.ivcbrasil.org.br/aPublicacoesAuditadasRevista.asp. Acessados em 19/06/2014
7
Dentro da proposta de uma pesquisa comparativa com outros eventos, a cobertura da morte do terrorista Osama
bin Laden será comparada com a cobertura de outros eventos importantes do mundo muçulmano como a
“Primavera Árabe”.
28
CAPÍTULO 1
REVISTA VEJA: A CAPTURA DE OSAMA BIN LADEN E A VITÓRIA
DOS VALORES OCIDENTAIS
A captura de Osama bin Laden pode ser classificada como um evento grandioso, o
qual se impôs tanto por meio da mídia impressa quanto pela imprensa audiovisual, chegando
aos leitores brasileiros. A propósito, os consumidores da Revista Veja sempre estiveram em
contato com os eventos do mundo muçulmano por meio desse veículo8. Na cobertura da
captura de Osama bin Laden, os leitores entraram em contato com um universo de
informações que não se resumiam à captura, mas obtiveram acesso também a um conjunto
maior de informações, que lhes davam uma nova orientação da geopolítica mundial a partir
dos valores ocidentais, exigindo um posicionamento do seu leitor.
As reportagens apresentaram um repertório bem organizado de representações que
falam tanto da identidade ocidental, quanto representações sobre o mundo islâmico. Assim, os
valores liberais como livre iniciativa, liberdade religiosa e secularismo são promovidos. Sobre
a relação entre Islã e violência, o texto da Revista Veja deixa claro que a agressão corresponde
a uma minoria sectária e radical, não a toda comunidade de fiéis muçulmanos. Segundo o
texto, a violência não foi associada somente ao Islã, mas a toda sociedade onde a religião se
torna o valor social dominante ou o secularismo é rejeitado, por isso muitas vezes a República
Islâmica do Irã foi citada como inimiga dos direitos humanos promovidos pelo Ocidente.
Apesar de a interpretação do Orientalismo de Edward Said ser extremamente
conhecida e divulgada nos meios universitários, a presente pesquisa não encontrou elementos
que possam justificar a existência dessa tradição orientalista na cobertura da captura de
Osama bin Laden. Como será demonstrado neste capítulo, um dos elementos que impedem a
identificação dessa tradição foi o esforço das reportagens em tentar descrever as diferentes
sociedades muçulmanas no espaço e no tempo.
Em momento algum, o oriental foi retratado como inferior, animalizado ou
bestializado. As representações orientalistas não correspondiam a uma tradição ou a um
cânone intelectual, caracterizavam-se mais como um recurso para reforçar a defesa dos
valores ocidentais, do que como uma tentativa de separar orientais e ocidentais. A religião
8
A Revista Veja sempre trouxe às suas páginas o debate sobre o mundo muçulmano. A tese de doutorado de
Deodoro Moreira (2009), intitulada Islã e Terror, analisa a cobertura de várias revistas nacionais, incluindo a
Veja, na cobertura dos eventos e desdobramentos do dia 11 de setembro de 2001.
31
muçulmana não foi classificada como oposta a esses valores modernos, inferior ou mais
intolerante que as outras religiões, mas como dominada politicamente por elites autocráticas
ou grupos religiosos que não correspondem às verdadeiras aspirações da sociedade.
Contudo, a perspectiva da revista de enfocar os problemas derivados do
fundamentalismo religioso camufla os embates políticos e econômicos do conflito entre Islã e
Cristandade durante as cruzadas, e do Islã e o Ocidente durante o imperialismo. Essa
estratégia da revista retirou das potências imperialistas ocidentais, especialmente França e
Inglaterra, a sua parcela de responsabilidade pela desorganização geopolítica em que o mundo
árabe-muçulmano experimenta hoje9.
Desse modo, a organização de ideias do texto justifica a intervenção americana no
Afeganistão, Iraque ou na captura de Osama bin Laden como um esforço dos EUA em levar
ao Oriente a ordem internacional do Estado-nação no mundo globalizado. A legitimidade e a
soberania de um Estado foram medidas a partir da sua capacidade de proteger os direitos
humanos de seus cidadãos. Dessa forma, os EUA interviriam com o objetivo de proteger as
populações e, ao mesmo tempo, reorganizar o mundo muçulmano, tirando-o do seu quadro de
desorganização política e inserindo-o na comunidade internacional de estados democráticos.
A Revista Veja inicia a sua cobertura com uma reportagem intitulada O mundo
depois de Bin Laden, texto de autoria de Diogo Schelp10. No texto de abertura, fica claro o
posicionamento da revista, que cita um dos nomes mais importantes da civilização ocidental
no século XX:
9
O acordo de Sykes-Picot foi assinado secretamente entre a França e a Inglaterra preparando a repartição do
Crescente Fértil para depois da Primeira Guerra Mundial. Os ingleses deveriam ficar com a Palestina,
Transjordânia e o Iraque, enquanto os franceses ficariam com o Líbano e com a Síria. Ao final da guerra, o
Império Turco-Otomano foi desmembrado por essa política colonial (VISENTINI, 2012, p.18). As
independências no Crescente Fértil mantiveram as divisões territoriais coloniais que permitiram a grupos
minoritários oprimirem grupos majoritários, como a minoria sunita, que governou o Iraque, ou a minoria xiita
alawita, que governa a Síria (KISSINGER, 2015, p. 116).
10
Diogo Xavier Schelp é formado pela Universidade de São Paulo. Jornalista de política internacional; em 2014,
foi editor executivo da Revista Veja em São Paulo e apresentador do programa Mundo Livre da TVeja,
disponível no site da revista. Entre as reportagens de maior repercussão feitas por Schelp, estão O alerta dos
polos, para a qual visitou a região do Ártico com o objetivo de ver de perto os efeitos do aquecimento
global, Che - A farsa de um mito, escrito em parceria com o repórter Duda Teixeira, e Darfur - À espera de um
Salvador. Anteriormente, Schelp foi editor e repórter Internacional da revista semanal em São Paulo.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Diogo_Schelp (Acessado em 31/01/2016)
32
11
Segundo o Dicionário de Relações Internacionais, a Ordem de Westfália surgiu a partir dos Tratados de
Osnabrück e de Münster, e depois por demais tratados que se inspiravam nos dois anteriores. As negociações
desses tratados deram fim à Guerra dos Trinta anos (1618-1648) e estabeleceram o sistema de Estados europeus.
Eles representam uma ruptura na história europeia, pois inauguraram uma nova prática baseada nas negociações
multilaterais. Nos dois congressos, estavam reunidos 145 delegados, que representavam 55 entidades, durante
quatro anos de negociação, visando promover a paz e criar uma nova ordem europeia. A Paz de Westfália
(1648), ao destruir a ordem hierárquica que subordinava os príncipes aos imperadores, inaugurou em seu lugar
relações horizontais assentadas na igualdade jurídica entre os Estados, pela defesa das soberanias e pela defesa
da paz por meio da manutenção da balança do poder. A religião deixou de ser influente na política do continente
europeu e se tornou instrumento a serviço do poder do Estado. Os fundamentos do equilíbrio da balança de poder
são um padrão de relacionamento adotado por um conjunto de Estados, para inibir qualquer pretensão
hegemônica da parte de um dele e, assim, obter a manutenção do status quo e da paz (SILVA, 2010, p. 207).
33
A defesa dessa perspectiva americana sobre a ordem mundial dominada pela visão
americana de paz e soberania estará presente não somente nessa reportagem, mas em todas as
reportagens da cobertura. Mas Schelp também deixa claro que essa visão liberal norte-
americana encontrou sucessos e fracassos. O Vietnã, o Afeganistão e o Iraque foram guerras
em que os EUA se envolveram e fracassaram, tendo, como consequência, uma saída unilateral
e deixando as regiões de conflito sem nenhum avanço democrático significativo, ou pior,
dissolvendo a estrutura estatal quando existente (KISSINGER, 2015, p. 318).
Contudo, Schelp demonstra uma excepcionalidade da visão norte-americana de
ordem mundial. A vitória durante a Guerra Fria é um exemplo sólido das palavras do
colunista da Veja: durante esse conflito bipolar, os líderes políticos estadunidenses dedicaram
sua política externa à promoção da liberdade e da democracia, em oposição ao avanço dos
governos autoritários comunistas. As ideias do autor corroboram a leitura de Henri Kissinger
sobre a contribuição dos EUA durante a Guerra Fria.
12
Henry Kissinger nasceu na Alemanha, em 27 de maio de 1923. Veio para os Estados Unidos em 1938 e foi
naturalizado cidadão dos Estados Unidos em 19 de junho de 1943. De 1954 até 1971, foi membro da Faculdade
da Universidade de Harvard, tanto no Departamento de Governo como no Centro de Assuntos
Internacionais. Foi Diretor Associado do Centro de 1957 a 1960. Foi Diretor de Estudo, Armas Nucleares e
Política Externa, para o Conselho de Relações Exteriores de 1955 a 1956; Diretor do Projeto de Estudos
Especiais para o Rockefeller Brothers Fund de 1956 a 1958; Diretor do Seminário Internacional de Harvard de
1951 a 1971 e Diretor do Programa de Estudos de Defesa de Harvard de 1958 a 1971.
Kissinger escreveu muitos livros e artigos sobre a política externa dos Estados Unidos, assuntos internacionais e
história diplomática. Entre os prêmios recebidos, estão o Guggenheim Fellowship (1965-66), o Prêmio
Woodrow Wilson para o melhor livro nos campos de governo, política e assuntos internacionais (1958), o
American Institute for Public Service Award (1973), o Prêmio Esperança para a Compreensão Internacional
(1973), a Medalha Presidencial da Liberdade (1977) e a Medalha da Liberdade (1973), o Prêmio Theodore
Roosevelt (1973), os Veteranos das Guerras Estrangeiras (Dwight D. Eisenhower Distinguished Service Medal
1986).
Atuou como consultor do Departamento de Estado (1965-68), da United States Arms Control and Disarmament
Agency (1961-68), Rand Corporation (1961-68), Conselho de Segurança Nacional (1961-62), Weapons Systems
Evaluation Grupo de Chefes de Estado Maior Conjunto (1959-60), Conselho de Coordenação de Operações
(1955), Diretor do Conselho de Estratégia Psicológica (1952), Escritório de Pesquisas Operacionais (1951) e
Presidente da Comissão Bipartidária Nacional da América Central (1983- 84). Disponível em:
http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/peace/laureates/1973/kissinger-bio.html (Acessado em 9/01/2017).
34
13
Segundo Hobsbawn, “os valores liberais são a desconfiança da ditadura e do governo absoluto; o compromisso
com um governo constitucional com ou sob o governo e assembleias representativas livremente eleitos, que
garantissem o domínio da lei; e um conjunto aceito de direitos e liberdades dos cidadãos, incluindo a liberdade
de expressão, publicação e reunião. O Estado e a sociedade deviam ser informados pelos valores da razão, do
debate público, da educação, da ciência e da capacidade de melhoria (embora não necessariamente de perfeição)
da condição humana (1995, p. 113-114).
14
Immanuel Kant (2008, p. 5-18), em sua obra A paz perpétua, escrita em 1795, estabelece um projeto filosófico
para a paz internacional. O projeto não visava ao fim de uma guerra, mas a um sistema internacional que
garantisse uma paz duradoura, ao modo de uma federação de repúblicas, uma liga das nações. Um dos princípios
necessários para se estabelecer a paz é a existência de constituições republicanas em todos os Estados, pensando
como uma sociedade de homens, na qual os cidadãos devem decidir para si próprios todos os sofrimentos da
guerra (o combate, os custos de manutenção das tropas, a devastação, a reconstrução e as dívidas que nunca
acabam). Quando o súdito não é um cidadão, fora de uma constituição republicana, a escolha da guerra pelo
chefe de Estado é simples, pois ele não é um membro do Estado, mas seu proprietário, decidindo sobre a guerra
como uma espécie de jogo que não faz desaparecer seus luxos. Assim surgiria uma federação da paz (foedus
pacificum), que estabeleceria um pacto entre os povos e, consequentemente, uma constituição civil que retiraria
o sistema internacional do estado de natureza e o submeteria ao imperativo da lei racional, baseada na liberdade
dos Estados conforme os direitos das gentes. A proposta de Kant influenciou fortemente o fim da Primeira
Guerra Mundial, a partir do presidente Woodrow Wilson, que somente aceitou a rendição alemã após a
abdicação do Imperador Guilherme II e a criação da república de Weimar, além da proposta da Liga das Nações
como organismo internacional para a manutenção da paz. Outra influência importante foi na criação da ONU e
35
liberdade econômica iriam difundir-se por todo o planeta, melhorando as condições gerais de
vida em todos os continentes e instituindo uma nova era de prosperidade geral para a
humanidade. Entretanto, para Schelp, os atentados terroristas perpetrados por Osama bin
Laden, na liderança da Al-Qaeda, retiraram o mundo da direção correta.
Por isso, a derrota da Al-Qaeda e a execução de Bin Laden não significariam
necessariamente o fim dos conflitos ou guerras, e sim, a retomada dos esforços do planeta na
direção correta, na promoção de ações para combater os problemas globais, que foi
interrompida pela luta contra o terrorismo. Nesse sentido, a morte de Bin Laden “não garante
o fim da ameaça terrorista, mas simboliza o término de um ciclo no qual o esforço por contê-
la ofuscou os outros desafios globais. (VEJA, 11/05/2011, p. 85)”. Ou seja, a visão de Diogo
Schelp comunga claramente dos valores ocidentais encabeçados pelos EUA no contexto da
ordem mundial no mundo globalizado.
Schelp afirma, contudo, que a violência proliferada após os eventos do dia 11 de
setembro de 2001 e após outros atentados liderados pela Al Qaeda permaneceriam. Isso
porque Osama bin Laden havia vencido na guerra psicológica, pois havia deixado um legado
no campo das ideias, que era “a disseminação de uma ideologia que emprega a guerra santa
contra a civilização ocidental com um fim em si mesmo, com uma vaga pretensão de
reconstruir no Oriente Médio o califado islâmico do século VII”. (VEJA, 11/5/2011, p.85-87).
Diante da universalidade da visão americana de ordem mundial, de democracia e
liberdade, a ideologia da guerra santa contra o ocidente se constitui como um inimigo a ser
derrotado, mantendo um estado de beligerância constante. Por isso, as intervenções
americanas continuam necessárias para garantir a paz mundial e a defesa dos direitos
humanos.
O texto de Diogo Schelp não é, porém, esclarecedor quanto às limitações dessa
visão americana, guiando um leitor a uma utopia de que a ordem mundial sob a liderança
norte-americana é amplamente aceita e que os direitos humanos são uma aspiração mundial
ou uma cultura universal. Na verdade, a combinação entre a ordem de Estados westfaliana e o
idealismo liberal norte-americano nunca recebeu tantos desafios como na contemporaneidade,
especialmente do fundamentalismo islâmico.
No próximo tópico, serão abordadas as criticas à ordem mundial idealizada pelos
EUA, demonstrando que essa visão não é unânime entre os estudiosos do tema, e que reflete
da Declaração dos Direitos Humanos, correspondendo à proposta de um organismo internacional para manter a
paz, formado por signatários que devem defender os direitos humanos de seus cidadãos.
36
tanto uma visão idealizada das relações internacionais quanto os interesses econômicos e
políticos dos EUA enquanto superpotência.
A defesa dos direitos humanos e o direito de intervenção são um dos avanços mais
polêmicos do direito internacional atual. Na verdade, o direito de intervir em outros Estados é
um rompimento com a tradição do direito costumeiro internacional estabelecido pelas nações
europeias na Paz de Westfália e, depois, expandido para outras partes do planeta. Nesse
evento,
[...] O Estado deve ser reconhecido como servente de seu próprio povo, e
não o oposto. E, ao mesmo tempo, a soberania do indivíduo deve ser
entendida como sendo as liberdades fundamentais de cada um. Conforme
prescreve a Carta da ONU, tem que ser valorizada por aqueles que acreditam
no direito de cada indivíduo de controlar seu próprio destino (REGIS, 2006,
p. 11).
15
Kofi Annam foi o sétimo secretário das Nações Unidas, entre 1997 e 2007, tendo laureado o prêmio Nobel da
Paz em 2001, juntamente com a ONU (https://en.wikipedia.org/wiki/Kofi_Annan, acessado em 31/01/2016)
38
16
Para Huntington, civilizações são entidades culturais mais amplas e se definem por elementos objetivos
comuns, tais como língua, história, religião, costumes, instituições e pela auto-identificação subjetiva das
pessoas. A civilização coexiste com vários níveis de identidades (regional, religiosa, nacional e continental),
sendo a civilizacional o nível mais amplo de identificação. As identidades civilizacionais não possuem fronteiras
definidas, são dinâmicas, se somam ou se fragmentam, se transformam com o tempo, e interagem entre si. Desse
modo, são entidades finitas que se encaixam em uma longa duração. As principais civilizações pós-Guerra Fria
são a Sínica, Japonesa, Hindu, Islâmica, Ortodoxa, Ocidental e Latino-americana (1998, p. 44-52).
41
17
Huntington afirma que a modernização envolve industrialização, urbanização, alfabetização crescente,
educação, riqueza, mobilidade social e estruturas ocupacionais mais complexas e diversificadas. A modernização
se origina da expansão do conhecimento científico no século XVIII, rompendo os laços com as estruturas de
sociedades tradicionais. A oposição de Huntington se deve à idéia de que o Ocidente sendo a primeira
civilização a se modernizar levaria as demais civilizações a adquirir padrões semelhantes, transformando a
cultura ocidental em uma cultura mundial. Para Huntington, a modernização levaria ao caminho oposto, que é a
diferenciação das demais civilizações.
18
O Ocidente, para Huntington, possui variadas características e se identifica, principalmente, não unicamente,
com o legado greco-romano, divisão entre católicos e protestantes, pluralidade linguística, separação entre
religião e Estado, a tradição do direito natural, pluralidade social, formação de corpos representativos e
individualismo. Por isso, para Huntington, ser moderno é diferente de ser ocidental.
43
A perspectiva liberal da Revista Veja foi além na defesa dos Direitos Humanos.
Na segunda reportagem assinada por John Esposito 19, intitulada Bin Laden, o pior inimigo do
Islã, há um esforço da revista em desvincular a religião tradicional muçulmana das práticas
terroristas, descrevendo os muçulmanos, e não o Ocidente, como os principais prejudicados
pelo avanço do terrorismo. Para o autor, a islamofobia se tornou uma das principais sequelas
deixadas de herança por Osama bin Laden:
Sua declaração de guerra aos Estados Unidos e à Europa, aos judeus e aos
cristãos e seu apoio aos atos de terrorismo no mundo agrediram a fé da vasta
maioria de muçulmanos. Ao fazer isso, Bin Laden alterou profundamente a
maneira como as pessoas de outras religiões enxergam o islamismo. Muitas
dessas pessoas passaram a associar o Islã à legitimação da violência e ao
terrorismo. Como resultado, fortaleceu-se a idéia de que o islã e o ocidente
são incompatíveis, um conceito que vem sendo usado por demagogos e
fundamentalistas de outras religiões como evidência irrefutável de que
estamos diante de um “choque de civilizações”. Aumentaram, então, as
demonstrações de preconceito contra o Islã e os muçulmanos, que incluem a
discriminação nos locais de trabalho, a restrição de liberdades civis de
muçulmanos no Ocidente e até crimes motivados pelo ódio. (VEJA,
11/5/2011, p. 96-97)
19
John Louis Esposito é professor de Relações Internacionais e Estudos islâmicos na Universidade de
Georgetown. E também é o diretor do Centro Príncipe Alwaleed para o entendimento entre muçulmanos e
cristãos na Universidade de Georgetown (https://es.wikipedia.org/wiki/John_Esposito) acessado em 31/01/2016)
44
20
Muslims were mostly invisible in the West. There was little awareness of the presence or relevance of Islam in
Western societies. Greater consciousness of Islam emerged principally as a result of conflicts such as the iranian
revolution, as well as hijacking and hostage taking in Lebanon, the Gulf, and Pakistan. Some saw these events
as signs of an Islamic threat or a Clash of civilizations, Islam versus the West 20 (ESPOSITO, 2002, p.172).
45
21
The Islam was viewed as foreign religion, distinct from the Judeo-Christian tradition O Islã foi visto como
uma religião estrangeira, distinta da tradição judáico-cristã.
22
unskilled laborers flooded into a Europe whose growing economies were in need of cheap labor. More than a
million Muslims, many from France‟s former North African and West African colonies, were admitted to France
alone. Germany and britain had similar stories.
46
23
Os ataques de novembro de 2015 em Paris foram uma série de atentados terroristas ocorridos na noite de 13
de novembro de 2015 em Paris e Saint-Denis, na França. Os ataques consistiriam de fuzilamentos em
massa, atentados suicidas, detonações de explosivos e uso de reféns. Ao todo, ocorreram três explosões
separadas e seis fuzilamentos em massa, incluindo bombardeios perto do Stade de France no subúrbio ao norte
de Saint-Denis. O ataque mais mortal foi no teatro Bataclan, onde os terroristas fuzilaram várias pessoas e
fizeram reféns até o início da madrugada de 14 de novembro. Pelo menos 137 pessoas morreram (incluindo os 7
terroristas que perpetraram os ataques), sendo 89 delas no teatro Bataclan. Mais de 350 pessoas ficaram feridas
pelos ataques, incluindo 99 pessoas em estado grave. Além das mortes de civis, sete erroristas foram mortos e as
autoridades continuavam a procurar quaisquer cúmplices que permaneceram
soltos. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Ataques_de_novembro_de_2015_em_Paris acessado 30/5/2016)
24
became a convenient scapegoat, charged with stealing “French Jobs”. Amidst growing unemployment, Jean-
Marie Le Pen‟s National Front advocated the forced expulsion of three million immigrants, as well as prioity for
native French in Jobs, housing, and welfare benefits.
47
25
Outros estudos sobre a mídia impressa identificaram o peso da tradição orientalista em jornais e revistas
nacionais. Durante a cobertura do atentado terrorista de “11 de setembro de 2001” e os seus desdobramentos,
muitas pesquisas identificaram a associação entre Islã e a violência. Esse debate foi pesquisado por Deodoro
Moreira, nas revistas Veja, Istoé, Época e Carta Capital. Sua conclusão foi que os periódicos se tornaram
veículo de representações estigmatizantes: o Islã irrompe no imaginário ocidental interpretado como uma ameaça
verdadeira e carregado de negatividade. Outra pesquisa, envolvendo a imprensa escrita, foi a dissertação de
mestrado de Isabelle Christine Somma de Castro que analisou as reportagens dos periódicos Folha de São Paulo
e o Estado de São Paulo seis meses antes e seis meses após os atentados do dia 11 de setembro. Sua conclusão
entrou em consonância com a pesquisa de Deodoro Moreira, pois ela percebeu que, especialmente após os
atentados do dia 11 de setembro de 2001, ambos os jornais difundiram estereótipos que associavam os
muçulmanos ou o Islã ao terrorismo, violência e à opressão.
48
26
Jornalista com 20 anos de experiência. Passou por veículos como Veja, Época e Thomson Reuters, sempre
trabalhando nas editorias de Internacional, Economia e Cultura (https://br.linkedin.com/in/ana-claudia-fonseca-
66968238).
27
Duda Teixeira é um jornalista brasileiro, formado pela Universidade de São Paulo. É editor de temas
internacionais da revista Veja em São Paulo e autor de inúmeras reportagens, especialmente sobre a América
Latina, como Che - A farsa de um mito, escrito em parceria com o editor de Internacional Diogo Schelp
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Duda_Teixeira acessado em15/5/2016).
28
. Jornalista com cinco anos de experiência em reportagem para diversos veículos, incluindo a revista Veja e o
portal EXAME.com. Produção de conteúdo para sites institucionais para organizações como a Global Peace
Foundation Brasil. Revisão e edição de textos para a Editora Manole
(https://www.workana.com/freelancer/864b1c690d801723a0450b11a32af3b2 acessado em 15/5/2016)
49
influenciado pelos estudos realizados por Norman Daniel29 e analisou obras produzidas por
europeus que retratavam os orientais e concluiu que, sob esse prisma, o Oriente era quase uma
invenção europeia, e fora, desde a antiguidade, um lugar de romance, de seres exóticos, de
memórias e paisagens obsessivas (SAID,1990, p.13). Sendo assim, o Oriente não passava de
um discurso europeu, depois incorporado também pelos norte-americanos, inventado acerca
de um antigo concorrente cultural que ajudou a definir a identidade da Europa, como sua
imagem, ideia e experiência de contraste.
Edward Said apresenta três sentidos básicos para o orientalismo. O primeiro
sentido é acadêmico, o orientalismo é visto como um campo de estudos eruditos. O
orientalista é aquele que estuda especialmente o Oriente Médio. Nesse sentido, de uma
maneira geral, até certa altura do século XVIII, os orientalistas eram estudiosos bíblicos,
estudantes de idiomas semíticos, especialistas islâmicos e até sinólogos.
Portanto, o orientalismo poderia abranger muitos estudos, um campo bastante
eclético, não se limitando ao universo acadêmico. A partir do final do século XVIII, os
estudos acerca do Oriente encontraram nas instituições acadêmicas um poderoso impulso,
ganhando legitimidade científica e se institucionalizando como uma disciplina, geralmente
intitulada “Estudos Orientais”.
O segundo sentido atribuído pelo autor é o orientalismo como um estilo de
pensamento baseado em uma distinção ontológica feita entre o “Oriente” e (a maior parte do
tempo) o “Ocidente” (SAID, 1990, p.14). Nesta acepção, desde muito cedo, o Oriente é
imaginado como uma terra de sonhos, prazeres e fantasias, um fato cultural e imagético,
caricaturado para a representação de um outro, para o consumo de uma Europa que, em
grande medida, modelou sua identidade na diferenciação frente a esse estranho domesticado.
Essa distinção estabelece o orientalismo como um discurso mitificante, que cria um Oriente
imaginário. Nesta formação discursiva, o oriental é descrito como atrasado e retrógrado,
inferior e imutável.
Entretanto, ainda para Said, essa mitificação não é inocente, mas se fundamenta
em uma relação de dominação. Tem-se aí, então, o terceiro sentido, mais materialmente
definido, dado por ele para o orientalismo, que pode ser percebido e analisado
29
Norman Daniel foi um eminente historiador sobre a Idade Média e sobre relações interculturais. Educado na
Rainha College, Oxford, e na Universidade de Edimburgo, seus livros incluem: “Islã e o Oeste”;“Os árabes e
Europa Medieval”; “A barreira cultural”; “Heróis, sarracenos e Islamismo: Influência no passado e futuro
desafios” (https://www.oneworld-publications.com/authors/norman-daniel” acessado em 15/5/2016).
50
Neste último sentido dado pelo autor, o orientalismo se torna quase sinônimo do
empreendimento imperialista franco-britânico. Aqui, a cultura europeia imperial produziu um
discurso que, entre outras coisas, refletiu uma situação de poder e hegemonia sobre o Oriente.
Assim sendo,
Até agora, nas reportagens assinadas por Diogo Schelp e John Esposito, a imagem
dos muçulmanos é apresentada não como a imagem do outro/inferior, mas como uma
civilização em crise, vítima de uma minoria fundamentalista, o que é um obstáculo para o
desenvolvimento de uma sociedade secularista e liberal no Oriente Médio. Assim, a Revista
Veja segue coerentemente com a reportagem Qual o Islã?, apresentando, de forma positiva, a
diversidade do Islã na sua geografia e história, e suas semelhanças e diferenças com o
Ocidente.
Na abertura da reportagem, a complexidade e riqueza do Islã são visíveis.
Apresentam-se imagens de inúmeros personagens muçulmanos influentes do século XX, por
exemplo o rei do basquete Kareen Abdul Jabbar, o surfista brasileiro Jihad Kodr, o campeão
do boxe Cassius Clay, a Rainha Rânia da Jordânia e o cantor pop Ysuf Islam (Cat Steven,
antes de se converter). Com essa estratégia, os autores criam uma relação de empatia com a
religião muçulmana, pois mostram imagens de personagens proeminentes, que se destacam
nas suas atividades esportivas e culturais. É uma estratégia visual totalmente oposta às
imagens orientalistas, que retratam muçulmanos com turbantes, barbas e armas empunhadas.
No início do texto, a estratégia textual é inspirada em John Esposito, visto que há
uma tentativa de indicar muçulmanos, judeus e cristãos como pertencentes de uma tradição
monoteísta, comum, herdada do patriarca Abraão. Dessa maneira, as três grandes religiões
“têm um ancestral, o imponente profeta Abraão, da nona geração de Sem, um dos filhos de
Noé que sobreviveram às águas do dilúvio”. (Revista Veja, p. 101, Qual o Islã?).
A tentativa de construir uma identificação comum é uma forma de afastar a
percepção de que o Islã é o outro estranho e ameaçador, isto é, afirmar, no texto, uma
abordagem de cunho orientalista seria uma falácia. Embora não seja atribuída a inspiração
argumentativa de algumas sentenças do texto à obra de Esposito, pode-se observar uma
intertextualidade com a sua obra What everyone needs to know to about Islam.
No prefácio do seu texto, Esposito argumenta que o encontro entre o Ocidente e o
Islã não se dá entre duas civilizações opostas que se encontram em um choque ou guerra, mas,
inversamente, judeus, cristãos e muçulmanos são
Esposito coloca que o Islã não está distante da experiência cotidiana da civilização
ocidental, pelo contrário esta é impregnada e atravessada pela sua presença. Muçulmanos se
espalham pelo mundo e se encontram não só nas principais metrópoles orientais, mas também
nos centros econômicos e culturais da sociedade ocidental.
As autoras caracterizam o fundamentalismo e o extremismo dos terroristas como
um elemento doentio encontrado em qualquer religião. A partir daí, ocorre a contribuição
intelectual das repórteres em relação a Espósito, a defesa do liberalismo, elemento típico da
Revista Veja se torna ainda mais visível ao defender a religião como elemento da vida
privada.
Os exegetas não podem admitir, mas a história mostra que, quanto menos
invasiva é a religião no dia a dia das pessoas, melhor as sociedades vivem,
mais colorida e diversificada é a vida e mais rápidos são os avanços éticos,
morais, políticos e tecnológicos. O Islã não escapa dessa constatação. O
período mais rico da história do islamismo floresceu em um tempo em que
os religiosos não tinham poder total sobre todas as esferas da vida em
sociedade. Isso ocorreu na dinastia abássida, que, a partir de Bagdá, foi
dominante entre os anos de 750 e 1258 (Revista Veja, Qual islã? p.100-111).
30
Washington children of Abraham, part of a Judeo-Christian-Islamic tradition. The world os Islam is global; its
capitals and centers are not only Cairo, Damascus, Mecca, Jerusalem, Istanbul, Islamabad, Kuala Lumpur, and
Jakarta but also London, Paris, Marseilles, Bonn, New York, Detroit and Washington.
53
A passagem do texto faz referência direta à Era de Ouro do Islã durante o domínio
31
abássida , a prosperidade e o desenvolvimento econômico e tecnológico permitiram que o
mundo muçulmano estivesse à frente de todas as demais civilizações conhecidas. A expansão
muçulmana permitiu a absorção de diferentes culturas e diferentes técnicas. Entre esses
avanços, destacam-se as traduções para o árabe das obras de Platão e Aristóteles e outros
pensadores clássicos.
Segundo Peter Demant (2004, p. 48-49), o acesso a esse novo conhecimento
dividiu a sociedade muçulmana. Havia uma escola conservadora, a xaria ou corânica – que
determinava o domínio da religião sobre todos os aspectos do culto. E a sua concorrente era a
Escola progressista, que defendia que a razão alcançaria o mesmo entendimento sobre o
mundo que a revelação divina.
31
A dinastia abássida governou entre 750 e 1258, que estabeleceu uma revolução ao igualar os direitos de todos
os muçulmanos árabes e não-árabes. Esta ação destruiu a supremacia árabe e deu chances iguais a muçulmanos
não-árabes. O califado abássida conseguiu garantir uma prolongada paz interna, além de um mínimo de justiça e
tolerância para com os seus súditos (DEMANT, 2004, p. 43).
54
Doravante, pensa ele, os franj não têm mais exército, e é preciso aproveitar
isso imediatamente para recuperar as terras que eles ocuparam injustamente.
Na manhã seguinte, um domingo, ele ataca a cidadela de Tiberíades, onde a
esposa de Raymond sabe que não adianta mais resistir. Ela confia em
Saladino, que concorda em deixar os defensores partir com todos os seus
bens sem que ninguém os incomode.
Na terça-feira seguinte, o exército vitorioso marcha sobre o porto de Acre,
que capitula sem resistência. A cidade adquiriu, nos últimos anos, uma
importância econômica considerável, já que é através dela que se realiza
todo o comércio com o Ocidente. O sultão tenta fazer com que os numerosos
mercadores italianos permaneçam lá, prometendo-lhes oferecer-lhes toda a
proteção necessária. Mas estes preferem partir em direção ao porto vizinho
de Tiro. Lamentando, ele não se opõe a isso. Até mesmo os autoriza a
transportar todas as suas riquezas e lhes oferece uma escolta para protegê-los
dos assaltantes. (MAALOUF, 2007, p. 181 e 182)
O problema principal que surge dessa divisão não se reduz à questão econômica,
mas à questão política e identitária no Oriente Médio, pois, após as independências, a
possibilidade de reunir os árabes em uma grande nação pertencente a um único Estado
desaparece. Passam a reinar fronteiras artificiais de Estados fracos nascidos da dominação
colonial. O nacionalismo árabe enfrentava a oposição de outros nacionalismos, nascidos da
divisão imposta pela França e Inglaterra sobre a região, havia o nacionalismo egípcio, sírio,
iraquiano, saudita, entre muitos outros que não eram de origem árabe, como o nacionalismo
turco.
58
O Irã, na primeira metade do século XX, era marcado pela dominação das grandes
potências ocidentais, interessadas em sua posição estratégica no Oriente Médio e na posse dos
campos de petróleo. Essa presença ostensiva das potências estrangeiras incomodou a
população nativa. As intervenções estrangeiras “e a dominação pelas companhias anglo-
americanas suscitam uma renovação nacionalista e garantem o sucesso popular do Partido da
Frente Nacional, do doutor Mossadegh” (DERIVERI, 2005, p. 161).
Desse modo, a resistência contra a espoliação ocidental e contra a monarquia
autocrática Pahlavi foi liderada por Mohamad Hedayat, dito Mossadegh (o valoroso), que
possuía um projeto nacionalista visando à nacionalização do petróleo. Por pressão popular, o
Xá Pahlavi nomeia Mossadegh primeiro-ministro, este nacionaliza o petróleo e é reeleito pela
população. Já o Xá Pahlavi, pressionado pela rebelião popular, vai para o exílio. A monarquia
persa vai ser salva pelos EUA, já que é “a intervenção da CIA que vai salvar o xá – e evitará
ao Irã a vergonha internacional de um governo de esquerda (DERIVERI, 2005, p.162)”. Fica
claro, portanto, o apoio dos EUA a governos autoritários no Oriente Médio.
Com a derrota e a morte de Mossadegh, seguida pela re-entronização do Xá
Pahlavi, as empresas anglo-americanas voltaram a dominar a extração do petróleo iraniano.
Assim, com a oposição derrotada, o governo ficou ainda mais autoritário, forçando uma
modernização da sociedade aos moldes do modelo turco. A modernização forçada da
sociedade, apoiada pelos EUA, lançou os religiosos contra o governo, abrindo espaço para a
liderança dos Aiatolás na Revolução de 1979.
Contrariamente às páginas da Revista Veja, pode-se afirmar que os EUA
32
Osvaldo Coggiola, em seu texto A Crise do Imperialismo e a Guerra contra o Irã, afirma que os EUA não
poderiam suportar uma hegemonia iraniana, pois o Irã é o quarto país mundial em jazidas de petróleo e o
segundo em gás, além de controlar o estreito de Ormuz, por onde é escoado o petróleo das Monarquias do Golfo.
Controlar o Irã garantiria a viabilidade da economia norte-americana.
60
entre muçulmanos e Ocidente permite o diálogo cultural. Porém, o idealismo encontra seus
limites, uma vez que as relações internacionais envolvem interesses econômicos e hegemonia
política.
Portanto, longe de serem representações orientalistas, no sentido de dominação
ocidental, a Revista Veja se mostrou um veículo de propaganda ocidental por excelência, ao
defender a ideologia liberal e a ordem mundial liderada pelos EUA. A maleabilidade da
Revista Veja indica a tentativa do Ocidente em justificar uma suposta vitória contra Osama
bin Laden, mas não contra o terrorismo. Tal contradição exige que a revista em questão
continue elegendo inimigos - o Irã e o fundamentalismo religioso - e construindo
representações diferenciadas, conectadas ao passado, que deem conta de mobilizar a opinião
pública e toda a sociedade a favor da execução dos projetos pró-EUA.
No próximo capítulo, foi analisada a cobertura do jornal Folha de São Paulo
sobre a narrativa da captura e assassinato de Osama bin Laden e seus desdobramentos. A
busca pela identificação de uma linha editorial da Folha, percebendo os enquadramentos
escolhidos por esse veículo. E conseqüentemente a cobertura dos dois veículos, suas linhas
editoriais e enquadramentos serão comparados no último capítulo.
62
CAPÍTULO 2
FOLHA: “PAZ É GUERRA, TORTURA É LIBERDADE”: A “TRAIÇÃO” DO
IMPÉRIO AMERICANO AOS VALORES OCIDENTAIS
2.1 – Folha de São Paulo: Osama executado e o Ocidente no banco dos réus.
inimigos irremediáveis. A inocência americana foi ferida intencionalmente pelo texto, a ideia
de uma missão para construir um mundo mais seguro e justo dava lugar a um jogo de
interesses menos idealizado.
O segundo texto é a sessão Ombudsman33, o qual se apresenta como
provedor/advogado do povo, recebendo as críticas, explicando o posicionamento e a
construção das informações do periódico, agindo como um instrumento de autorregulação dos
canais midiáticos. O texto foi escrito no dia oito de maio de 2011, certamente como uma
resposta às inúmeras críticas que o jornal recebia por questionar duramente as ações do
governo americano. Contabilizavam-se seis dias depois da primeira reportagem (dia 02 de
maio de 2015), assim fica nítido o posicionamento que o jornal escolheu desde as primeiras
colunas, e, após dois dias (em 04 de maio de 2015), o jornal encontra sua posição no debate.
Ainda que a Folha de São Paulo tenha aberto para diferentes posições, a sua postura no
campo já estava marcada. Segundo o Ombudsman, a Folha
33
Mario Mesquita, em seu texto “O Jornalismo em Análise”, determina formas diferentes de atuação do
ombudsman de imprensa: discute o jornal trazendo ao público o debate sobre decisões editoriais que,
normalmente, não chegam aos leitores; estabelece uma ponte com os leitores, atendendo às reclamações e
respondendo às críticas; retifica matérias; explica aos leitores os mecanismos de produção jornalística; e sua
crítica influencia editores e jornalistas.
65
A Folha de São Paulo se colocou em uma posição oposta aos demais periódicos
estrangeiros ao questionar a versão oficial e a postura de comemoração e euforia das demais
empresas, comemoração que também pode se encontrar nas páginas da Revista Veja. A Folha
considera que sua postura de criticar a versão e ação americana constitui elemento de
distanciamento e imparcialidade, o que possibilitou a construção de textos mais críticos e
responsáveis, ainda que não agradasse a muitos leitores.
A coluna denominada “Painel do Leitor” se tornou palco das disputas entre os
leitores, que apoiavam ou rejeitavam o posicionamento do periódico. Apesar de a proposta
desta pesquisa não se focar no processo de recepção, é interessante como o mesmo veículo se
tornou espaço de violentos debates e ataques pessoais entre seus consumidores. Exemplos
podem ser citados para indicar as diferentes leituras a partir do mesmo veículo.
Os leitores defensores da intervenção americana reuniam seus argumentos dentro
do paradigma da “Razão de Estado” para a defesa da população e do governo dos EUA ou
argumentos maniqueístas como a luta entre o bem (Ocidente) e o mal (fundamentalismo
islâmico).
Os leitores Paulo R. da Silva e João Henrique Rieder se fixaram na defesa da
captura e morte de Osama bin Laden em nome da segurança mundial. O segundo leitor citado
anteriormente vai mais além, acusando a Folha de se posicionar a favor do terrorista.
66
Bin Laden foi localizado e morto como merece todo facínora. No Brasil,
nada se faria sem o devido processo legal. Invadir a casa de Bin Laden, só
com mandado judicial. A prisão preventiva decretada seria logo relaxada.
Surgiriam psicólogos analisando o “sofrimento”dele na infância, pois apenas
isso poderia explicar a explosão das torres gêmeas.(FOLHA, p.A3,
04/5/2011, painel do leitor, Paulo R. da Silva, RJ,Rio de Janeiro)
O embate entre seus leitores permitiu à Folha demonstrar seu lado eclético ao
respeitar diferentes posições. Entretanto, na passagem dos dias, o posicionamento da Folha
estava cada vez mais crítico e desconfiado em relação à legitimidade dos EUA e de suas
alianças.
Contudo, a imagem de Obama não foi poupada pelo jornal. No periódico, foram
comparados os comportamentos do atual presidente com o comportamento do seu antecessor.
O texto coloca que, apesar das críticas de Obama à Bush, suas atitudes coincidiam quanto à
política internacional, surgindo uma ironia, já que o líder americano reabilitou sua imagem
para as eleições de 2012
Katerine nos atentados. Ele disse ter ficado muito contente “em agradecer o homem que
vingou a morte de sua mulher. Se Bin Laden tivesse sido julgado e preso, não haveria justiça.”
(FOLHA, p. A14, 06/5/2011, “Familiares de vítimas dizem estar agradecidos”.)
No entanto, a ideia de justiça não é congruente com a ideia de vingança. A própria
Folha de São Paulo se esforça para desconstruir esse argumento e desqualificar as ações
militares citadas. Na análise feita por Hélio Shwartsman34, há uma distinção entre vingança e
justiça. Para ele, há duas concepções de direito, a primeira
é conhecida como Talião. É o famoso “olho por olho, dente por dente”.
Tecnicamente leva o nome de justiça retributiva. Não difere muito de
vingança. Aplica-se a pena porque o réu “merece”.
(...) Esse conceito mais bruto começou a ser questionado no século 18,
especialmente por Cesare Beccaria e Jeremy Benthan. A partir do século 19,
foi ganhando a noção de justiça utilitarista de que a pena tem como objetivo
não a punição pela punição, mas a manutenção da ordem pública. O
criminoso deve sofrer uma sanção para desencorajar outras pessoas a imitá-
lo.
(...) O dilema das sociedades contemporâneas é equilibrar as necessidades
de uma justiça racional, calcada no utilitarismo, com o respeito à
sensibilidade jurídica da população, que, como mostra a reação à morte de
Bin Laden, ainda caminha perigosamente perto da vingança.
Ao sancionar a solução final em vez da captura e do julgamento do terrorista
saudita, Barack Obama, que já foi professor de direito constitucional na
universidade de Chicago, parece não ter resistido aos apelos populistas.
(FOLHA, p. A14, 05/5/2011, “Decisão de Obama atende a apelo populista
por “vingança”).
Nos EUA justiça é feita quando uma pessoa é levada a julgamento, não
quando uma pessoa desarmada que não estava resistindo à prisão é
executada sumariamente, que, aparentemente, é como bin Laden morreu.
A equipe militar que o executou provavelmente recebera ordem de trazê-lo
de volta morto, e não vivo. Mas por quê? Os julgamentos de Nuremberg
levaram líderes nazistas à justiça, em lugar de serem executados
sumariamente, e, assim, enobreceram as forças armadas.
34
Hélio Schwartsman (9 de julho de 1965, São Paulo) é um filósofo e jornalista brasileiro. É editorialista e
colunista do jornal Folha de S.Paulo. Publicou Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no
Afeganistão, em 2001. Escreve para a Folha diariamente, exceto às segundas e quintas. Escreve semanalmente,
às quintas, na Folha.com. (https://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9lio_Schwartsman, acessado em 31/12/2016).
70
do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o
mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de
proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos
os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos
males desta vida (BECCARIA, 2002, p. 67)
Em outras palavras, a ação perpetrada pelos Estados Unidos foi contra as regras
do direito internacional costumeiro, gerando mais instabilidade e desconfiança no contexto
das relações entre Estados-nação, uma vez que os EUA se colocam acima da lei que eles
mesmos dizem defender. A justiça punitiva que as forças de segurança estadunidenses
impuseram ao terrorista enfraquece qualquer estatuto democrático vigente e
concomitantemente constrói novas relações baseadas no ressentimento e no medo.
A justiça racional elaborada dentro dos preceitos liberais iluministas é abandonada
em favor de um Estado autoritário no plano interno. No plano internacional, “a política
externa de resolução de conflitos, por sua vez, abandona paulatinamente a orientação pacífica
(diplomática) e assume cada vez mais a postura combativa traduzida em respostas militares
agressivas” (PASTANA, 2011, p. 97).
A execução do terrorista dentro dos termos de uma vingança explica a catarse que
o povo americano viveu por meio de comemorações públicas e de demonstrações de
nacionalismo. Se a justiça racional fosse aplicada, não haveria espaço para respostas
71
35
Leon Edward Panetta serviu como 23º secretário de Defesa de julho de 2011 a fevereiro de 2013. Antes de
ingressar no Departamento de Defesa, Panetta serviu como diretor da Agência Central de Inteligência de
fevereiro de 2009 a junho de 2011. Panetta liderou a agência e gerenciou programas de coleta de informações e
inteligência humana em nome da comunidade de inteligência.
Acessado em 15/03/2017: https://www.defense.gov/About/Biographies/Biography-View/Article/602799.
72
cunhado pelo próprio “Bush Filho” em seu State of the Union, em 2002, para
se referir a Estados supostamente patrocinadores e cúmplices do terrorismo,
como Irã, Coreia do Norte e Iraque, que, por essa concepção maniqueísta de
mundo, seriam tão responsáveis pelo terrorismo quanto seus praticantes
diretos. Em última instância, a “ameaça” representada por todos esses
elementos conjugados poderia justificar quaisquer ações tomadas pelo
governo americano, em nome do combate ao terrorismo, mesmo as mais
abusivas e excessivas [...] (FORNER, 2015, p. 23)
73
Desse modo, a tortura não alcança sua meta inicial de obtenção de informações e
passa a se tornar mais um instrumento simbólico na guerra contra o terrorismo. A tortura
dissemina o medo na população dominada, gerando desorganização social e desmanchando as
formas de solidariedade coletiva, consequentemente impedindo qualquer tentativa de
resistência. Por isso,
ela tem que se tornar pública. Por isso, muitos torturados devem sobreviver.
Eles devem contar a todos o que acontece com aqueles que atravessam o
caminho de quem tortura, para que o pânico se espalhe e o imobilismo e
inércia se imponham à população subjugada (COSTA, 2008, p 132).
Outro autor a que esta pesquisa recorre e que corrobora com o ponto de vista do
periódico é o filósofo Moniz Bandeira. Conforme ele, a Guerra contra o Terror instalou um
governo autoritário nos EUA. Longe de ser uma democracia, o Ato Patriótico e a legalização
da tortura transformaram o governo estadunidense em um Estado Policial que dissemina o
medo e a condição permanente de guerra para justificar as restrições das liberdades. O Ato
Patriótico criou leis de exceção, aprovada pelo Senado após o11 de setembro. Elas ampliaram
os poderes do executivo e criaram a definição do
75
novo crime de “domestic terrorism” tão amplamente que poderia ser usado
contra qualquer tendência política que praticasse a desobediência civil. Era
uma contravenção direta da Constituição dos Estados Unidos, conforme
observou o congressista Denis Kucinich (democrata, Ohio). E Francis A
Boyle, professor de Direito Internacional da Universidade de Illinois,
declarou que, desde 11 de setembro, o que os americanos viram foi um golpe
atrás do outro contra a Constituição. Estavam sendo criadas assim as
condições para o estabelecimento na América de um Estado policial, com
traços similares aos da Alemanha nazista, mediante a restrição dos direitos
civis e das garantias individuais, coação das liberdades públicas, adensados
pela crença na superioridade racial dos americanos e na invencibilidade de
suas armas, por arrogante patriotismo e nacionalismo de grande potência.
(MONIZ BANDEIRA, 2014, p. 644).
Para Moniz Bandeira, a Guerra ao Terror permitiu que os EUA na luta contra
Osama bin Laden e contra o terrorismo islâmico iniciassem um estado de guerra permanente,
infinita, que permitiria tanto o rompimento com as leis internas, a constituição, quanto as leis
do direito internacional costumeiro. A lei não possuía validade, imperava o direito do mais
forte, retroagindo o sistema internacional em um Estado de Natureza hobbesiano. A ideia de
que a luta contra Osama bin Laden e a Al Qaeda representava a vitória dos princípios liberais
apenas travestia um quadro em que a violência e a ditadura global americana ampliavam seu
poder sobre o mundo.
A Folha sempre se posicionou segundo uma tradição eclética, uma vez que,
mesmo contra o assassinato, também permitiria diferentes pontos de vista em suas
reportagens. Nas colunas, os debates sobre a legitimidade ou não da intervenção, construídos
por especialistas, eram colocados à disposição do leitor.
Os argumentos que defendiam a intervenção se organizavam em torno de alguns
pontos: a resistência do terrorista à prisão; o estado de guerra contra a Al Qaeda, que
continuava ameaçando os americanos; o questionamento acerca da invasão do território
soberano do Paquistão.
O primeiro argumento se refere à resistência do terrorista à prisão. Os EUA
Bin Laden não estava armado quando baleado com um tiro no lado direito da
cabeça e que, depois de caído, ainda se contorcendo em convulsão, em meio
a “blood and brains spilled outof the side of his skull”, os outros soldados
continuaram a cravar seu corpo de balas, até deixá-lo “motionless”. Dentro
do quarto só havia duas armas, um fuzil AK-47 e uma pistola Makarov,
ambas com as câmaras vazias. Bin Laden não estava sequer preparado para
defender-se. A missão, porém,consistia em “killing/capture”, i.e., primeiro
matar e capturar o cadáver (MONIZ BANDEIRA, 2013, p. 225).
Fica evidente que o terrorista não resistiu, não esboçou nenhuma reação. Osama
bin Laden foi atingido na cabeça, o relato em inglês afirma que “sangue e cérebro saíram
para o lado de fora do seu crânio” e os soldados continuaram a atirar até que seu corpo
estivesse “imóvel”. Os argumentos levantados para a defesa da execução sem julgamento dos
terroristas foram desacreditados pelos próprios americanos ao construírem diversas versões
sobre o fato. Mas a versão final está subentendida: a missão era um assassinato extrajudicial.
O segundo argumento se constrói na legitimidade do ataque como parte da guerra
entre os Estados Unidos e a Al Qaeda. O ataque em Abottaboad seria parte da estratégia
americana na Guerra contra o Terror. No dia 04 de maio, as vozes dos defensores da operação
Outra polêmica é o fato de bin Laden ter sido morto e não levado a
julgamento.
Para o influente comentarista neoconservador Robert Kagan, “historiadores
vão escrever que dois governos falharam em impedir o 11 de setembro (Bill
Clinton, 1993-2001 e Bush) e dois governos conseguiram lutar contra o
terrorismo (Bush e Obama). (FOLHA, p. A16, 06/5/2011, “Assassinato de
Bin Laden revigora debate sobre tortura”).
Mesmo sua linha editorial criticando a ação americana, o jornal deu voz aos argumentos que a
legitimavam. O argumento anterior, de que os EUA estavam agindo em defesa do seu Estado
e de sua população contra futuros atentados da Al Qaeda, ganha sofisticação, ao se utilizar o
conceito de “Razão de Estado” para descrever e justificar a ação americana. Jorge
Zaverucha36, autor do artigo, afirma que havia base legal e moral para matar o terrorista, pois
a
36
Doutor em ciências políticas pela universidade de Chicago (EUA), é professor da Universidade Federal de
Pernambuco e pesquisador do Instituto Nacional de Tecnologia/Instituto de Estudos Comparados em
Administração de conflitos. Publicou recentemente o livro “Armadilha em Gaza – Fundamentalismo Islâmico e
Guerra de propaganda contra Israel”.
79
que, por sua natureza, não podem ser juridicamente reguladas de forma
completa (em última análise, necessitas non habet legem), existem situações
e casos de recorrência à Razão de Estado, exatamente provocados pela
necessidade de salvar o Estado democrático. Nestes casos, é usual também a
expressão Razão de Estado democrática, o que indica que, perante a
consciência pública, o recurso à Razão de Estado só parece justificado
quando se trata de defender a segurança da forma específica de Estado que é
o Estado democrático. É de constatar que, nos Estados democráticos mais
sólidos, isto é, com um maior consenso ou onde falta uma consistente
oposição ao regime, encontra-se na população uma maior disposição a
aceitar, em momentos de aguda crise, um espaço residual para a Razão de
Estado, já que não se teme que ela seja usada para fins partidários; por
razões iguais e contrárias, tal disponibilidade é indubitavelmente menor nos
Estados democráticos onde não há perfeita identificação com o regime
democrático por parte das forças políticas mais destacadas e,
conseqüentemente, por parte do povo em conjunto (BOBBIO, 1998, p.
1069).
valores americanos. Assim, o Ato Patriótico não seria uma forma de destruição dos valores
democráticos, mas, sim, uma medida para protegê-los diante de uma crise e de renovar o
contrato social.
Retornando, mais uma vez, as inúmeras reportagens e argumentos contra a ação
americana, presentes nas páginas da Folha, eles podem ser aglutinados na destruição da
ordem legal que os EUA haviam atropelado em nome da “Razão de Estado”. A ausência de
um julgamento formal pelo Tribunal Penal Internacional, que representa a sociedade de
Estados, e a invasão do espaço aéreo do Paquistão são vistos como uma atitude autoritária
norte-americana. Um abuso de poder que enfraquece a possibilidade de paz no mundo.
Desde o dia 04 de maio de 2011, a legalidade da operação é questionada, visto
que
No dia 05 de maio de 2011, mais textos criticam o ato americano e sua posição
ambígua quanto à sua coerência, evidenciando o uso de tortura e seu apoio a governos
autoritários no mundo árabe. Porque os EUA
Outro fator, que vai ser estudado com maior detalhe no próximo tópico, é o
patrocínio fornecido pela Arábia Saudita aos grupos terroristas sunitas. O caso da Síria
destacado pelo texto está em uma condição oposta. Esse país foi aliado da URSS durante a
Guerra Fria e ainda opera diplomaticamente pró-Moscou.
Nos dias atuais, esse compromisso é comprovado pelo apoio russo ao regime de
Bashar Al-Asad na Guerra Civil Síria (COCKBURN, 2014, p. 121). Tal proteção impede que
os EUA se lancem contra o governo autoritário sírio e permite o massacre de parte da
população civil que migra como refugiados para países vizinhos ou para a Europa. A política
externa americana e suas intervenções militares revelam um caráter ambíguo, já que interesses
políticos e econômicos predominam mais que o ideal de expansão democrática.
Retornando às páginas da Folha, na entrevista feita pelo jornalista Samy Adghirni
com o professor de Direito internacional da USP, Alberto Amaral Junior, do dia 05 de maio
de 2011, a legalidade, mais uma vez, foi questionada, a ideia de defesa preventiva foi
colocada sob suspeita e a falta de uma legislação internacional que permitisse essa ação
militar levou a comparação da ação americana aos atos terroristas.
05/5/2011, “Contra a ação dos EUA: Não podemos usar contra os terroristas
os métodos deles”)
40
Anwar al-Awlaki e possuía dupla cidadania, americana, iemenita. No Iêmen,atuou como clérigo,
propagandista e operante da Al-Qaeda na Península Arábica (AQAP). Em 30 de setembro de 2011, Awlaki foi
alvo e morto no Iêmen em um ataque de drones dos EUA para atacar deliberadamente um cidadão dos EUA.
Enquanto ele estava vivo, Awlaki dirigiu uma série de atentados terroristas contra os Estados Unidos, e divulgou
vídeos em inglês e árabe, gravações de áudio e artigos on-line. Os ensinamentos de Awlaki, ainda amplamente
disponíveis na Internet, continuam a inspirar dezenas de ataques terroristas, frequentemente dirigidos aos
Estados Unidos. Acessado em : https://www.counterextremism.com/extremists/anwar-al-awlaki. 16/03/2017.
90
a guerra sem fim constituía uma necessidade vital para os Estados Unidos,
não apenas econômica, mas também política. Sua economia passa a
depender, em grande proporção, das indústrias de material bélico e da alta
tecnologia, eletrônica e digital, cujo maior consumidor era o governo
americano. Havia uma simbiose entre essas indústrias e o Estado americano.
Os imensos recursos financeiros, de orçamento de defesa destinavam-se a
mantê-las em funcionamento, mediante a renovação de encomendas de
aviões, mísseis, tanques, canhões, fuzis, metralhadoras, granadas, munições
e outros apetrechos bélicos ou de utilidade dual. E tornava-se necessário
queimar os excedentes da produção (MONIZ BANDEIRA, 2005, p. 682).
íntima entre Osama bin Laden e o governo norte-americano. As antigas relações entre CIA e o
terrorismo, muito fecundas durante a Guerra Fria, são destacadas no trecho “Bin Laden
ajudou os EUA contra os soviéticos no Afeganistão nos anos 70. Depois, com a Al Qaeda, se
voltou contra os EUA (FOLHA, p. A1, 02/5/2011, „A justiça foi feita‟)”.
As demais reportagens ocultam essa relação íntima, não obstante, durante os
demais dias, houve um esforço do periódico em relacionar o ISI – o serviço de Inteligência
paquistanês – ao apoio ao Talibã e a Osama bin Laden. Tal esforço denuncia uma
contradição: os EUA lutam contra o terrorismo e buscam apoio no Paquistão, que é um
patrocinador do terrorismo fundamentalista.
Conforme a Folha já havia “alfinetado” anteriormente, os EUA já haviam se
aproximado de práticas terroristas ou patrocinado o terrorismo islâmico contra os soviéticos.
EUA, Paquistão e Arábia Saudita se uniram para patrocinar o terrorismo fundamentalista
contra o avanço soviético sobre o Afeganistão. Dessa união de recursos, treinamento e
tecnologia que se criam as condições para o crescimento e destaque do milionário saudita
Osama bin Laden como líder da Jihad contra os soviéticos.
Com o suporte das análises de Moniz Bandeira, na obra O Império Americano,
estabelece-se a relação entre EUA, Paquistão e terrorismo, enunciados anteriormente nas
páginas da Folha de São Paulo. Segundo o autor, foram a CIA, o ISI e o serviço de
inteligência saudita que
41
Brzezinski, conselheiro presidencial no governo Kenedy e no governo, Carter entendia que o funamentalismo
islâmico constituía importante arma ideológica não somente para impedir que a influência comunista se
expandisse nas regiões do Golfo Pérsico, da África e do Oceano Índico, como também para incitar as repúblicas
asiáticas da União Soviética a se revoltarem contra o governo de Moscou. Em seu livro Game Plan, salientou
que a melhor maneira de de dissuadir a união Soviética de avançar na direção sul estava dentro de suas próprias
fronteiras, onde havia cerca de 55 milhões de muçulmanos, que tinham sido subjugados apenas na superfície
(MONIZ BANDEIRA, 2014, p. 396).
92
apoiadores iniciais. Os grupos que atuaram no Afeganistão também atuaram em outras partes
do mundo em conflitos que envolviam muçulmanos. Esses grupos aprenderam
O antiamericanismo não pode ser confundido como o ódio aos valores ocidentais.
Mas os EUA fazem um desfavor para a expansão desses valores ao disseminarem o medo na
população civil do Oriente Médio, porque, mesmo sem participarem diretamente dos grupos
terroristas, acabam dando apoio indireto por meio de proteção, moradia ou mesmo silenciando
acerca da presença de grupos terroristas. Essas pessoas são denominadas por Benjamin Barber
como terroristas tácitos, são homens e mulheres que possuem
apesar de sua brutalidade, ele garantiu uma vitória para uma comunidade
sunita perseguida e esmagada. Mesmo os sunitas de Mosul, que não gostam
do grupo, temem a volta de um governo iraquiano vingativo e dominado
pelos xiitas.
(...) Um sunita em Mosul, escrevendo logo depois que um míssil disparado
por forças governamentais explodiu na cidade, disse-me: “As forças de
Maliki já demoliram a Universidade de Tikrit. Ela foi reduzida a destroços e
pedras, como toda a cidade. Se Maliki puser as mãos sobre nós, em Mosul,
ele irá matar a população ou transformá-la numa horda de refugiados. Reze
por nós”. Tais visões são comuns e tornam menos provável que a população
sunita levante-se contra o ISIS ou o Califado. Um novo e terrível Estado
surgiu – e ele não desaparecerá facilmente (COCKBURN, 2014, p.67-68).
Exatamente esse apoio tácito que impede a vitória rápida sobre o terrorismo. E
mesmo as revoluções árabes que se espalharam, no mesmo período que a captura de Osama
bin Laden, não representaram uma vitória sobre o terrorismo fundamentalista, pois foram os
grupos fundamentalistas que chegaram ao poder na Líbia, Tunísia e Egito após as eleições.
Em 12 de maio de 2011, a Folha entrevistou um dos inspiradores paquistaneses
do Talibã, o general da reserva Hamid Gul, que apoiou os mujahidins na luta contra a URSS e
esteve à frente do ISI na década de 1980. A sua leitura da primavera árabe foi sombria ao
afirmar que, mais cedo ou mais tarde, a população se voltaria para os grupos
fundamentalistas. Naquele período, ele viu a retirada americana como um espaço
para a composição política com seus antigos pupilos islâmicos. E faz uma
previsão sombria. “A primavera árabe não tem nada a ver com Bin Laden.
Mas quando tudo acabar e esses jovens se virem abandonados de novo, vão
acabar reconhecendo nele uma lenda, um herói, alguém que foi até o fim”
(FOLHA, 12/5/2011, p. A16, “Morte de Bin Laden termina a guerra”, diz pai
do Taleban).
95
A leitura dos fatos feita por Hamid Gul se realizou e derrotou as leituras
concorrentes, que também foram citadas na Folha. Elas afirmavam o papel da Primavera
Árabe42 como o estopim para a implantação da democracia no mundo muçulmano.
Longe de uma perspectiva orientalista, a Folha de São Paulo estabeleceu fortes
críticas aos EUA, destacando sua ingerência no Oriente Médio e mundo muçulmano, as
práticas de tortura e seu apoio ao terrorismo internacional. A seleção de temáticas presentes
no periódico, entendidas especialmente pela posição clara do Ombudsman, demonstra a visão
liberal do periódico, visto que defende princípios como direitos individuais, liberdade e
diversidade de pensamento, liberdade de informação e justiça racional.
Nota-se que tanto Folha quanto Veja partiam de uma visão liberal para avaliar a
ação norte-americana. Todavia, ambas chegaram a resultados diferentes, pois o
enquadramento escolhido por cada veículo permitiu a construção de críticas diferentes.
Enquanto Veja focou no mundo muçulmano, a Folha se direcionou para o governo norte-
americano. Ainda que os textos buscassem a credibilidade por meio da voz de especialistas
entrevistados, o recorte demarcou claramente a posição de cada veículo no debate. São essas
diferenças entre Veja e Folha que serão abordadas no último capítulo, diferenças que não são
meros posicionamentos, mas refletem debates da filosofia política nos dias atuais.
42
A Primavera Árabe foi um conjunto de levantes populares que ocorreram no mundo árabe contra os governos
autoritários da região. As revoltas começaram na Tunísia, que levou à derrubada da ditadura de Zine el-Abidine
Bem Ali, que estava a 23anos no poder. A Revolução se espalhou para o Egito e levou à derrubada da ditadura
de Hosni Mubarak, a partir de levantes na Praça Tahir. As rebeliões chegaram à líbia que levou à derrubada e
morte do presidente Kadafi. Em outros países como Bahrein, Arábia Saudita e Irã os levantes populares foram de
início sufocados. Na Síria a Primavera Árabe levou o país a uma guerra civil que perdura até os das atuais
(VISENTINI, 2012, p. 127-137).
96
CAPÍTULO 3
FOLHA E VEJA: A ESCATOLOGIA HUMANA E O CAMINHO DA LIBERDADE
Após a análise dos dois periódicos, observa-se que o mesmo acontecimento foi
abordado de diferentes formas pelos veículos de comunicação, cada um deles legitima seu
posicionamento a partir da defesa dos princípios da civilização ocidental. A Revista Veja
defendeu o liberalismo, secularismo e democracia. Enquanto a Folha de São Paulo patrocinou
valores como a justiça racional, direitos individuais e liberdade de informação. Posicionados
em lados opostos do debate, os meios de informação partiram do mesmo caldeirão
civilizacional.
O debate poderia ser relativizado, afirmando a imprecisão desses valores,
justificando as diferenças na abordagem de cada texto. Contudo, a resposta não está em
palavras mortas que foram impressas no papel. Cada reportagem comunicou mais que
conceitos, mas também perspectivas de futuro, que visavam mobilizar o leitor, convidá-lo a se
posicionar dentro de um embate internacional que eles são coagidos a compreender.
Esse embate é uma guerra de quarta geração43 entre personagens como o
governo dos EUA e os grupos terroristas islâmicos. Cada movimento nessa guerra não visa
simplesmente atacar as estruturas físicas do território inimigo, mas acima de tudo atacar o
moral do adversário e reforçar as próprias fileiras de aliados e combatentes. Atacar o World
Trade Center e capturar Osama bin Laden cumpriram objetivos simbólicos que visavam
desmoralizar o adversário, levá-los à crise interna e fortalecer o moral do front interno. Os
43
A Guerra de Quarta Geração é decidia nos níveis operacional, estratégico, mental e moral, ao invés dos níveis
tático e físico. Portanto, a forma de emprego da força e das manobras se altera. Alvos psicológicos e simbólicos
se tornam mais importantes que alvos físicos (VISACRO, 2009, p. 39-40).
98
44
Em 1979, inúmeras revoltas anti-comunistas foram organizadas por grupos islâmicos dentro do Afeganistão
contra o governo marxista do Partido Democrático do Povo Afegão. A resposta de Moscou foi sair em apoio ao
governo aliado levando tropas de ocupação para o Afeganistão. Ressoou pelo mundo muçulmano, um apelo
sagrado pela defesa das fronteiras do Islã, e logo milhares de jovens impregnados do proselitismo
fundamentalista apresentaram-se como voluntários para ingressarem na Jihad dos guerrilheiros mujahidin,
convertendo a resistência afegã numa grande cruzada internacional. O Exército vermelho digladiava-se contra
dezenas de insurreições tribais, que se organizaram em guerrilhas nas montanhas. Incapazes de romper a barreira
cultural que os separavam do povo afegão, amargando sucessivos insucessos contra a guerrilha mujahidin,
defrontando-se com o custo crescente da guerra e diante do fracasso da tentativa de organizar o Exército nacional
afegão, de fechar as fronteiras com o Paquistão e interromper o apoio externo vindo da CIA, Paquistão e Arábia
Saudita. Em 1989, a URSS estava esgotada e desmoralizada,foi derrotada pela resistência nujahidin (VISACRO,
2009, p. 204-209).
99
Desse modo, a Folha diminui a importância política do evento, seu texto afirma
que a morte do terrorista tem mais valor simbólico do que prático na luta contra o terror, pois
“nada indica que o mundo ficou „melhor e mais seguro‟ como ele quer. A importância do
assassinato de Bin Laden é simbólica. Até nos EUA especialistas dizem que a rede Al Quaeda
não dependia mais do seu mentor”. (FOLHA, p. A2, Década de Osama?). Afirma-se que o
fundamentalismo islâmico está decadente e a principal transformação para o mundo
muçulmano não é a morte de Osama, mas sim a Primavera Árabe, demonstrando a
possibilidade de associação entre democracia e Islã.
O que se passa hoje no mundo árabe aponta para isso. Governos balançam e
ditadores caem pela pressão das ruas, mas não há nenhum sinal de avanço do
fundamentalismo. Pelo contrário, parece estar em curso naquela região uma
espécie de „revolução burguesa‟, pró-capitalista, muito mais significativa dos
eventos da história do que a morte de Osama, “o cara”. ( FOLHA, p. A2,
Década de Osama?).
O êxito festejado na morte de Bin Laden foi pela morte em si mesma. Não
buscou outro sentido senão o da vingança, não propriamente cristã, pela
monstruosidade do maior de seus crimes.
A caçada a Bin Laden estava ciente de que o comando efetivo da Al Quaeda
passara a outras cabeças. (...) Para que não falte uma resposta: o mundo está
melhor? Não há quem saiba. (FOLHA, p. A6, Sem fim).
Em livro publicado há dois anos, o acadêmico John Mueller disse que o total
de americanos mortos em atentados desde os anos 60 é „mais ou menos igual
ao de mortos em acidentes causados por cervos, neste período‟.
(...) Enquanto os EUA despejavam dinheiro nessa guerra, mudanças
verdadeiramente decisivas estavam em curso no leste da Ásia. A ascensão de
novas potências como a China e a Índia influenciará o novo século de forma
100
Mais uma vez, a Folha de São Paulo dá uma alfinetada reduzindo a importância
da Guerra ao Terror para o planeta e demonstrando uma leitura global para os eventos.
Inserindo o leitor e uma narrativa globalizada, o texto afirma que eventos como o crescimento
da Índia e China foram fatos mais influentes para o desenvolvimento das relações políticas
internacionais.
Já na Revista Veja, a morte do terrorista pelas tropas de elite dos EUA recebeu a
primeira página. O rosto do militante islâmico estava estampado na capa da revista, com a
manchete: “O mundo depois de Bin Laden”. Na capa, o rosto do personagem sofre um efeito
visual como se estivesse se desmanchando como o vento que leva as areias do deserto.
Enquanto a Folha de São Paulo afirmava que a morte do terrorista Osama Bin
Laden pouco significava para o planeta, a Revista Veja apresentou a morte do terrorista como
o primeiro passo para a retomada da prosperidade planetária interrompida pelas ameaças
terroristas operadas por militantes extremistas muçulmanos contra os símbolos do poder
americano: o World Trade Center e o Pentágono. Em tom poético e quase profético a
reportagem constrói uma síntese de mundo, colocando a vitória dos EUA na Guerra Fria
como a realização de uma sociedade em caminho do progresso e prosperidade coletiva graças
à Globalização e ao Neoliberalismo.
Só para lembrar: Bin Laden virou a mira para os americanos depois que
Sadam Hussein invadiu o Kuwait, e a Arábia Saudita, temendo ser a
próxima, aceitou a intervenção militar dos Estados Unidos. Ele considerava
o maior dos sacrilégios que infiéis cristãos conspurcassem o solo onde viveu
o profeta Maomé e está o principal local de culto, a santa Meca.
Pois é, a história toda começou porque o sujeito de turbante achava, no
figurado, que não dava para entrar no mesmo elevador que os americanos,
um dos motivos mais idiotas de todos os tempos. (VEJA, p. 90, Mais um
pouco ele vira santo).
uma reflexão histórica sobre o presente pode ajudar as gerações que crescem
a combater a atemporalidade contemporânea, a medir o pleno efeito destas
fontes originais, sonoras e em imagens, que as mídias fabricam, a relativizar
o hino à novidade tão comumente entoado, a se desfazer desse imediatismo
vivido que aprisiona a consciência histórica como a folha de plástico
“protege” no congelador um alimento que não se consome (RIOUX, 1999, p.
46).
política no mundo todo foi às vezes percebida, outras vezes seguida, de uma
revolução liberal no pensamento econômico (FUKUYAMA, 1992, p. 14).
A tese de Fukuyama nos transmite a ideia de que após a vitória na Guerra Fria, o
destino do Ocidente se cumpriria, levando os seus valores a todos os lugares do planeta,
estendendo seus princípios universais as demais regiões do globo. Isto não causaria conflito
ou resistência já que a globalização seria um fato irreversível e que os valores ocidentais não
teriam concorrentes.
Retomando o discurso da Revista Veja, a defesa da morte de Osama Bin Laden
como a chance de se construir um mundo melhor é herdeira do discurso de Francis
Fukuyama. Na representação do futuro criado pelo periódico, agora com a morte de Bin
Laden e a decadência do fundamentalismo islâmico, o Ocidente poderá retomar seu
crescimento econômico e levar os valores universais para as outras regiões do planeta, que
aspiram sua libertação de regimes políticos autoritários e da pobreza resultante da má gestão
desses governos.
Passados seis anos da morte de Bin Laden a tese da Revista Veja ainda não se
realizou, mas como toda profecia ela aguarda indefinidamente sua realização. O quadro de
referências elaboradas pela revista não foi eficiente como instrumento de identificação
geopolítica do indivíduo no mundo. A Primavera Árabe levou partidos fundamentalistas ao
poder na Líbia, Tunísia e Egito. Na Europa, ucranianos se dividem em uma pequena guerra
civil entre os partidários da União Européia e os partidários da Rússia. A crise econômica
lançou uma onda de xenofobia dentro dos países periféricos da Europa, como Grécia e
Espanha.
Decididamente, a leitura de mundo da Revista Veja foi uma representação de
mundo baseada na emulação dos valores ocidentais, que dão a convicção ao leitor que a
democracia e o liberalismo são os destinos inevitáveis da humanidade. Resistir aos avanços
dos EUA para a disseminação da liberdade nos países governados por ditaduras e teocracias
religiosas é ilegítimo e contradiz a marcha inevitável da história.
A leitura da Folha de São Paulo é debitaria de uma teoria concorrente à de
Francis Fukuyama. Samuel Huntington publicou sua teoria sobre o “Choque de Civilizações”.
Nela encontramos uma tentativa de síntese para a nova conjuntura mundial marcada pela
derrota do comunismo soviético. Ao invés de ver um mundo marcado pela prosperidade, ele
constrói um panorama caracterizado pela exacerbação de conflitos no planeta, e o Ocidente
não seria o modelo a ser seguido, mas sim questionado pelas civilizações concorrentes.
104
Desse modo, o quadro de desprezo pela morte de Bin Laden não significa o apoio
deste jornal à causa islâmica ou um espírito de antiamericanismo, mas sim a compreensão da
natureza complexa em que se organizou o mundo, após a queda do socialismo soviético. O
panorama apresentado pela Folha de São Paulo é profundamente crítico, e suas leituras da
realidade foram confirmadas, como a China rivalizando com os EUA para se tornar a
economia mais influente do mundo, o papel da Índia como destacado país emergente, além da
permanência e fortalecimento da Al Qaeda no Afeganistão e Iraque.
As narrativas dos periódicos não são apenas diferentes, mas são também opostas
em seus oráculos. O leitor que se colocar diante das duas leituras do mesmo evento poderá se
sentir pressionado a adotar uma das duas posições. Uma que apóia a ação americana, posição
da Veja, e outra que condena a ação americana, posição da Folha. Os riscos de adotar tais
posições é no primeiro caso, apoiar a intervenção americana com o objetivo de pacificar o
mundo, se solidarizando com as vítimas dos atentados terroristas, mas ao mesmo tempo estar
apoiando os interesses econômicos dos EUA e sua ingerência autoritária no Oriente Médio. A
segunda posição denuncia a violência, os interesses econômicos e a falta de legitimidade das
intervenções americanas, mas corre o risco de sugerir estar justificando os atentados
terroristas.
Esse risco foi denunciado por Peter Demant, no texto A escorregada rumo ao
extremismo islâmico, em que o autor adverte sobre o problema de se estudar os atos
terroristas, pois eles conseguem “provocar uma reação do mesmo nível ou ainda mais violenta
106
(pelo menos na percepção dos „observadores externos‟), ele consegue estabelecer uma
equivalência moral entre terroristas e anti-terroristas (DEMANT, 2004, p. 26-27)”. Em outras
palavras, estudar o terrorismo islamita leva a uma falsa necessidade de se posicionar a favor
dos EUA, o anti-terrorismo, ou contra os EUA, contra a democracia, e a favor de Osama bin
Laden e dos terroristas.
Tal debate se instaura na opinião pública, desde os atentados do dia 11 de
setembro de 2001, passando pela Guerra ao Terror e culminando com a captura e assassinato
de Osama bin Laden. Mas, essa dicotomia é um engodo, pois não existem escolhas entre as
opções, já que
Ao focar unicamente nos EUA, se olvida dos objetivos e ações dos grupos
fundamentalistas islâmicos, que são contra os ideais de igualdade de gênero, secularismo,
Estado de Direito e justiça racional. Esquecer os crimes do terrorismo de inspiração
fundamentalista, pode construir a dicotomia entre o mal, os Estados Unidos, e o bem, Osama
bin Laden como um “guerreiro da liberdade”. Os riscos desse enquadramento levaram às
criticas de alguns consumidores no “painel do leitor”, afirmando que os periódicos estavam
argumentando em favor do terrorista.
A saída é fugir de tais oposições e perceber o caráter de simbiose entre elas.
Osama bin Laden e os EUA são as diferentes faces de uma mesma moeda. Longe de ser uma
reação de fanáticos religiosos que desejam alcançar o paraíso e receber setenta virgens como
recompensa, os atos terroristas são construídos racionalmente com objetivos militares e
políticos específicos. Tal comportamento surge como uma reação as falhas ocorridas no
45
Peter Demant afirma que o termo “fundamentalismo islâmico” é um neologismo impróprio, pois o
fundamentalismo foi um movimento religioso protestante nascido no seio dos Estados Unidos. O termo é usado
para movimentos vagamente paralelos em outras religiões. Demant, afirma que o termo islã político é aceitável,
assim como revivalismo islâmico. Na literatura árabe se usa tanto islamiyya, ou se, islamismo, quanto al-
usuliyya al-islamiyya,o equivalente a “fundamentalismo islâmico” (DEMANT, 2004, p. 194).
108
A partir deste conceito, Peter Demant coloca o islamismo como uma politização
da religião, que se estabelece como uma reação ao projeto modernista das ditaduras
implantadas na região, que visavam ocidentalizar o mundo muçulmano. A perda de valores
tradicionais associados à falta de democracia e de acesso aos benefícios econômicos e sociais
109
por grande parte das massas gerou insatisfação coletiva e abertura para o islamismo. Assim
muitos no mundo muçulmano
3.3 – Um via filosófica: Por que os EUA falharam em lutar pela liberdade no Iraque e
Afeganistão?
Na América a causa social, que foi fundamental na Revolução Francesa, não teve
quase nenhuma importância durante a Revolução Americana. Foi a pobreza, entendida como
miséria para a autora, que levou a participação das multidões nas revoluções européias, e é
exatamente a participação dessas multidões que desviou o caminho da liberdade para o
caminho da superação das necessidades. A pobreza
experiência de um continente para o outro. Segundo Hannah Arendt, para o pai fundador
Thomas Jefferson,
nem por um instante lhe ocorreu que um povo tão “carregado de miséria”- a
dupla miséria da pobreza e da corrupção – conseguiria realizar o que fora
realizado na América. Pelo contrário,ele alertou que não era “de maneira
nenhuma o povo de espírito livre que o supomos na América”, e John
Adams estava convencido de que um governo republicano livre entre eles
“era tão inatural, irracional e impraticável como seria entre leões,tigres,
panteras, lobos e ursos no zoológico real de Versalhes” (ARENDT,
2011,p.102).
46
Um dos maiores críticos de Hannah Arendt é Jürgen Habermas, que critica a redução da política à praxis, do
pensamento aristotélico: ação comum com o objetivo de buscar os melhores fins, pressupondo o diálogo, a
violência seria a ausência da política e não parte dela. A redução da política a esse princípio levaria a três
conseqüências (FERRY, 2003, p.26-28). A primeira é a eliminação dos elementos estratégicos da política, os
quais são essenciais. A segunda, a pensadora dissocia o político do seu meio social e econômico, que, contudo,
se encontra inserido. A terceira é a violência estrutural residente na distribuição desigual das oportunidades de
satisfação das necessidades, elemento que leva a associação entre violência e poder que Arendt tenta dissociar.
Outra crítica acerca das ideias de Hannah Arendt é feita por Benhabib, este afirma que questões como a
emancipação da mulher, a conquista de direitos por minorias são lutas por justiça e liberdade, por isso deveriam
ser incluídos na agenda pública, não podem ser tratados como elementos da esfera privada que corrompem o
espaço público. (CORREIA, 2008,p.106-107).
114
Carter colheu um fiasco. (...) Daqui para frente, não cola mais acusar Obama
de não ser suficientemente “americano”, de não defender os interesses
americanos com firmeza, ou mesmo de ser um secreto seguidor de Maomé.
Obama ganhou o direito de figurar no panteão dos presidentes genuinamente
americanos. (VEJA, Obama um presidente americano, p. 94, 11 de maio de
2011).
47
http://www.conjur.com.br/2011-mai-27/obama-prorroga-quatro-anos-polemica-lei-combate-terrorismo.
Acessado em: 24/01/2017.
48
Em um artigo sem autoria definida do jornal eletrônico português “Observador”, o discurso violento de
Donald Trump contra imigrantes, especialmente contra muçulmanos, facilitará ainda mais o recrutamento par as
fileiras do Estado Islâmico, dentro e fora do Oriente Médio. Trump colocou como prioridade a luta contra o
115
tem um caráter perpétuo, não têm objetivos e inimigos definidos, visava qualquer país
suspeito de abrigar ou apoiar grupos terroristas. Desse modo, a qualquer momento uma guerra
pode ser provocada pela simples suspeição de apoio ao terrorismo. Segundo Barber, a “Guerra
ao Terror” prevê uma guerra sem fim,
Portanto, a violência não tem fim, a revolução não se realiza, pois não há vida
política dentro da Guerra. A palavra não tem poder contra força. A libertação do Afeganistão
e do Iraque feita sob o poder das armas americanas não foi capaz, ainda, de estabelecer
sociedades políticas estáveis. Pelo contrário, o contínuo uso da força leva a população nativa a
ver os americanos não como libertadores, mas como tropas de ocupação, que exercem a tutela
política de seus Estados.
Recordando ao leitor, após finalizar-se o primeiro debate sobre os limites da
violência no processo revolucionário, parti-se para o segundo questionamento sobre a
possibilidade de se exportar a democracia ocidental, do tipo americana, ao resto do mundo,
entenda Iraque e Afeganistão. Hannah Arendt destaca que os pais fundadores já estabeleciam
os limites da própria experiência revolucionária ao descartarem a possibilidade de reproduzir
a experiência na França. A pobreza e a corrupção da sociedade francesa impediriam o sucesso
da fundação da liberdade. O império da necessidade humana venceria o império da liberdade
política.
A Veja, embebida no pensamento neoliberal inverte a relação: é a implantação das
liberdades ocidentais, como a democracia e o livre-mercado, que gera a superação da pobreza;
não é a superação da pobreza que permite a construção da liberdade política. Como foi visto
na reportagem de Diogo Schelp o mundo se encontrava diante de dois desafios: a solução dos
conflitos localizados e a disseminação das práticas do livre-comércio. A presente pesquisa
associou Schelp ao pensamento de Francis Fukuyama, que afirmava: “a liberdade política no
grupo terrorista, e que se fosse necessário cooperaria com a Rússia para realizar tal objetivo
http://observador.pt/2016/11/15/comandante-do-estado-islamico-diz-que-trump-e-completamente-doido/.
Acessado em 18/03/2017.
116
mundo todo foi às vezes percebida, outras vezes seguida, de uma revolução liberal no
pensamento econômico (FUKUYAMA, 1992, p. 14).”
Hannah Arendt já havia destacado durante a competição da Guerra Fria entre
EUA e URSS a falha desse raciocínio. Segundo ela, os intelectuais ocidentais afirmavam que
a riqueza e o bem-estar econômico são frutos da liberdade, mas já era sabido que esse tipo de
“felicidade”
49
possui graduação em Ciência Política pela Universidade de Brasília (2000) e graduação em Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília (2000). Atualmente é secretário de relações internacionais -
Superior Tribunal de Justiça. Tem experiência na área de Política Internacional, com ênfase em Integração
Internacional, Conflito, Guerra e Paz. https://www.escavador.com/sobre/2170186/hussein-ali-kalout. Acessado
em 25/01/2017.
118
Conforme Cockburn esse movimento era liderado por jovens intelectuais que
operavam dentro das redes sociais. Eles lutavam por direitos individuais e ignoravam a
pobreza da maior parte das suas sociedades. Não havia uma ideologia clara, apenas o desejo
de derrubar o governo, a quem era atribuído todos os males da sociedade. Faltava uma
ideologia comum, um elo que unisse os grupos e garantissem a passagem para uma nova
forma de governo. Somente uma mudança democrática não iria satisfazer a população mais
pobre, apenas direitos individuais não garantiriam a participação dos grupos sociais menos
abastados na base de sustentação de um novo governo.
Ainda para Cockburn, a oposição política aos regimes autoritários no mundo
árabe não tinha nenhum projeto que iria além de tirar os ditadores do poder, não havia um
projeto ou proposta de uma constituição que garantisse a liberdade positiva, o direito do
cidadão de participar do governo, apenas se visava os direitos individuais, a liberdade
negativa. A oposição iraquiana achava
CONSIDERAÇÕES FINAIS
51
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/12/donald-trump-quer-proibir-entrada-de-muculmanos-nos-eua.html.
Acessado em: 19/03/2017.
127
construídas a partir da tradição liberal que os dois periódicos se filiam foram mais
significativas.
No capítulo um, analisou-se a cobertura feita pela Revista Veja, as reportagens
apresentadas descreviam a importância dos valores ocidentais e da liderança norte-americana
no mundo. Na reportagem de Diogo Schelp, a liderança dos EUA foi louvada e o assassinato
de Osama bin Laden foi tratado como um evento único capaz de redirecionar a humanidade
para as práticas de solução de conflitos e livre-mercado do qual a atividade terrorista a havia
afastado.
Em outras reportagens estava claro como valores referentes ao arcabouço liberal
estavam presentes como a defesa da livre-iniciativa, liberdade religiosa e secularismo.
Analisou-se também como a Revista Veja conseguiu se afastar das antigas descrições que, por
outros pesquisadores como Moreira Dedoro, eram identificadas como orientalistas. O veículo
se esforçou para dissociar o Islã da violência praticada pelos terroristas, relacionando-a a uma
minoria sectária e radical de extremistas, mas não a toda comunidade de fiéis muçulmanos
que é descrita como pacífica, tolerante e aberta ao diálogo. Essa mesma comunidade foi
descrita como a maior vítima dos extremistas,pois a imagem do Islã é deturpada e seus fiéis se
tornam vítimas do preconceito nos EUA e na Europa.
Durante a pesquisa destacou-se também as tentativas da Revista Veja em
descrever o mundo muçulmano em sua diversidade, fugindo do elemento homogeneizante dos
discursos orientalistas coloniais. As diferentes formas de se professar o islã no espaço, foram
destacados na reportagem “Qual o Islã?”. O mapa com a presença muçulmana no mundo foi
apresentado. As diferentes formas de professá-lo foram destacadas tanto no espaço geográfico
quanto na história. Até mesmo os grupos mais heterodoxos são citados como a “Nação do
Islã” nos EUA.
Percebeu-se na pesquisa, que apesar do esforço da Revista Veja em se afastar das
descrições orientalistas, outro discurso foi utilizado para legitimar as intervenções americanas
no mundo muçulmano, a ideia da civilização universal. A legitimidade da ação se dá pela
necessidade de se disseminar os direitos humanos e as práticas de livre-mercado pelo mundo.
A própria civilização muçulmana foi descrita como desejosa de adotar tais valores, contudo
são, na maioria, reféns de governos autoritários e violentos.
Demonstrou-se também a estratégia da Revista Veja em ser seletiva quanto aos
eventos conflituosos entre Islã e Ocidente. As causas do conflito entre as duas civilizações se
reduziram às intervenções americanas durante a Guerra do Golfo. As cruzadas, o
128
com uma visão niilista da razão não critica o fundamentalismo islâmico extremista e sua
agenda de violência que podem até agir como libertadores do mundo muçulmano contra o
domínio imperialista, mas suas propostas estão longe de instituir a liberdade pública.
De modo semelhante às demais pesquisas sobre as relações entre Islã e Ocidente
nos meios de comunicação, o presente estudo abarca apenas uma pequena fração da realidade
e dos eventos que ocorrem no mundo muçulmano. O evento da captura do terrorista foi
apenas uma porta de entrada para as representações que compõe essas relações.
Na cobertura do tema percebe-se elementos positivos como a ausência da tradição
imperialista, uma riqueza de conceitos das ciências políticas e geopolítica, mas a
fragmentação da cobertura impunha um debate maniqueísta em ser à favor ou não das
intervenções norte-americanas, simplificando ainda mais, em ser à favor dos EUA ou à favor
dos terroristas.
Tal postura sacrifica o debate, pois não se pergunta sobre o tipo de liberdade que
se está levando para o Oriente Médio, e se os povos da região a desejam. Concomitantmente,
criticar as intervenções não significa legitimar os grupos fundamentalistas, que também não se
preocupam com a liberdade política, querem apenas ressuscitar um passado idealizado de
pureza do Islã.
Essa não é uma visão definitiva do conflito, mas uma contribuição parcial que irá
ser complementada por novas leituras desses eventos tensos e problemáticos que ainda
assolam as relações entre Islã e Ocidente, e que sejam capazes de oferecer uma melhor
compreensão desses eventos e possibilite também um maior diálogo entre as duas civilizações
no mundo globalizado.
131
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