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JOSÉ EUSTÁQUIO CHAVES FILHO

A CAPTURA DE OSAMA BIN LADEN: AS REPRESENTAÇÕES SOBRE O


ISLÃ E O OCIDENTE NA FOLHA E VEJA.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS


MONTES CLAROS/MG
MARÇO/2017
2

Chaves Filho, José Eustáquio.


C512c A captura de Osama Bin Laden [manuscrito] : as representações sobre o
Islã e o Ocidente na Folha e Veja / José Eustáquio Chaves Filho. – Montes
Claros, 2017.
134 f.

Bibliografia: f. 130-134.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Montes Claros -
Unimontes, Programa de Pós-Graduação em História/PPGH, 2017.

Orientador: Prof. Dr. César Henrique de Queiroz Porto.

1. Representações. 2. Islã. 3. Ocidente. 4. Imprensa. 5. Liberdade. I.


Porto, César Henrique de Queiroz. II. Universidade Estadual de Montes
Claros. III. Título. IV. Título: As representações sobre o Islã e o Ocidente
na Folha e Veja.

Catalogação: Biblioteca Central Professor Antônio Jorge


3

JOSÉ EUSTÁQUIO CHAVES FILHO

A CAPTURA DE OSAMA BIN LADEN: AS REPRESENTAÇÕES SOBRE O


ISLÃ E O OCIDENTE NA FOLHA E VEJA.

Trabalho de qualificação apresentado ao


Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Montes Claros,
como parte dos requisitos para o cumprimento
dos créditos.
Área de Concentração: História Social

Linha de Pesquisa: Poder, trabalho e


identidades.
Orientador: Dr. César Henrique de Queiroz
Porto.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS


MONTES CLAROS/MG
MARÇO/2017
4

Dedicado à todos os homens livres.


5

AGRADECIMENTOS

Esse trabalho chegou ao seu final graças ao apoio de muitas pessoas que
contribuíram significativamente para seu êxito. Primeiramente, agradeço ao meu professor
orientador Cesar Henrique de Queiroz Porto pelas horas de dedicação e leitura conjuntas para
a elaboração dos trabalhos, mas também pelos momentos de amizade compartilhados.
Agradeço também ao professor Laurindo Mékie Pereira pelas instruções na ocasião da
qualificação desse trabalho. Agradeço ao professor Ariel Finguerut pelas criticas e sugestões.
Agradeço o apoio dado pelos colegas do Colégio Marista São José e do Colégio Sólido que
contribuíram diretamente e indiretamente para a execução desse trabalho. Agradeço também
aos meus familiares, especialmente minha esposa Bruna que mais sentiu a aminha ausência
devido às horas de estudo. Agradeço aos meus pais pela compreensão e apoio incondicional
dado durante todo o processo, essa vitória também é deles. Agradeço à Unimontes e ao PPGH
por criarem uma oportunidade única de executar o mestrado em Montes Claros, onde resido e
trabalho. A todos, agradeço por cada conquista.
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RESUMO

Essa dissertação é um estudo sobre as representações das relações entre o Islã e a civilização
Ocidental presentes na imprensa escrita, Revista Veja e o Jornal Folha de São Paulo durante
a cobertura da captura e assassinato do terrorista Osama bin Laden. Inicialmente, a pesquisa
verifica a presença de representações que evocam a tradição orientalista, aos moldes da critica
construída por Edward Said em sua obra o Orientalismo. A partir do estudo das fontes,
verifica-se que os dois veículos midiáticos se afastaram de tal tradição e construíram seus
textos a partir de outras referências. A Revista Veja, em uma postura pró-ação norte-
americana, construiu um discurso permeado de características liberais, que ao mesmo tempo
não recorria à estigmatização da religião islâmica, mas a igualou ao cristianismo e ao
judaísmo, descreveu a diversidade de práticas religiosas dentro do Islã, e separou a religião do
terrorismo. O periódico recorreu a argumentos baseados na defesa de valores liberais como
secularismo, liberdade religiosa e livre-iniciativa, sendo justificativas para a ação norte-
americana e para as demais ações norte-americanas no Oriente Médio. O jornal Folha de São
Paulo, assume uma posição oposta à da Revista Veja, ao enquadrar a construção de seus
textos na ação americana. O veículo recorre também a valores liberais, afirmando que os EUA
em sua intervenção feriam os valores liberais que eles prometiam disseminar. Afirmavam que
os EUA substituíram a justiça racional pela vingança e tortura. O jornal relacionou os EUA ao
patrocínio de grupos terroristas e comportamento imperial que solapa as relações
multilaterais. A oposição entre as duas empresas de informação foram comparadas permeando
suas diferenças como a concepção de um futuro pacífico e liberal para Veja, e ao mesmo
tempo um futuro violento e incerto para a Folha. Apesar das diferenças, a noção de liberdade
construída pelas duas fontes se assemelham em sua fragilidade, pois a Veja confunde a
liberdade pública com a liberdade privada enquanto a Folha de São Paulo se recorre à
matemática do horror para criticar os EUA sem estabelecer uma crítica ao terrorismo a que
Osama bin Laden se filiava.

PALAVRAS-CHAVE: Representações; Islã; Ocidente; Imprensa; Liberdade.


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ABSTRACT

This dissertation is a study of the representations of the relations between Islam and Western
Civilization present in the written press, Revista Veja and Folha de São Paulo newspaper
during the cover of the capture and assassination of the terrorist Osama bin Laden. Initially,
the research verifies the presence of representations that evoke the orientalist tradition, to the
molds of the criticism built by Edward Said in his work Orientalism. From the study of the
sources, it is verified that the two media vehicles moved away from that tradition and
constructed their texts from other references. Revista Veja, in an American pro-action stance,
constructed a liberal-sounding discourse, which at the same time did not appeal to the
stigmatization of the Islamic religion, but equated it with Christianity and Judaism, described
the diversity of religious practices within of Islam, and separated religion from terrorism. The
magazine resorted to arguments such as the defense of liberal values such as secularism,
religious freedom and free initiative, as a justification for American action and for other
American actions in the Middle East. The newspaper Folha de São Paulo, assumes a position
opposed to that of Revista Veja, when framing the construction of its texts in the American
action. The vehicle also resorts to liberal values, stating that the US in its intervention hurt the
liberal values they promised to spread. They claimed that the US replaced rational justice with
revenge and torture. The paper linked the US to sponsoring terrorist groups and imperial
behavior that undermines multilateral relations. The opposition between the two information
companies was compared permeating their differences as the conception of a peaceful and
liberal future for Veja, and at the same time a violent and uncertain future for Folha. Despite
the differences, the notion of freedom constructed by the two sources resembles its fragility,
because Veja confuses public liberty with private freedom while Folha de São Paulo uses the
mathematics of horror to criticize the US without criticizing the terrorism to which Osama bin
Laden was affiliated.

KEYWORDS: Representations; Islam; West; Press; Freedom.


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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1
REVISTA VEJA: A CAPTURA DE OSAMA BIN LADEN E A VITÓRIA DOS VALORES
OCIDENTAIS .......................................................................................................................... 29
1.1. - O papel libertador/interventor dos EUA no conflito entre Oriente e Ocidente .............. 30
1.2 - Os limites da ordem mundial americana ......................................................................... 35
1.3 - O terrorismo como o maior inimigo do Islã ..................................................................... 42
1.4 - A diversidade do Islã ........................................................................................................ 47
1.5 – O Silêncio da Revista Veja .............................................................................................. 53

CAPÍTULO 2
FOLHA DE SÃO PAULO: “PAZ É GUERRA, TORTURA É LIBERDADE”: A
“TRAIÇÃO” DO IMPÉRIO AMERICANO AOS VALORES OCIDENTAIS ...................... 61
2.1 – Folha de São Paulo: Osama executado e o Ocidente no banco dos réus ......................... 62
2.2 – Obama e o terrorismo dos EUA em prol dos Direitos Humanos .................................... 66
2.2.1 – A coluna a favor/contra..................................................................................... 75
2.3 – A inconsistência da Guerra ao Terror .............................................................................. 86
2.4 – A confusa relação entre EUA e o patrocínio a grupos terroristas ................................... 89

CAPÍTULO 3
FOLHA E VEJA: A ESCATOLOGIA HUMANA E O CAMINHO DA LIBERDADE ........ 95
3.1 – Entre a utopia do “fim da história” e a distopia do “choque de civilizações” ................. 96
3.2 – A “aparente” dualidade entre Veja e Folha ................................................................... 104
3.3 – Um via filosófica: Por que os EUA falharam em lutar pela liberdade no Iraque e
Afeganistão? ........................................................................................................................... 109
9

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 125

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 130

FONTES ................................................................................................................................. 131


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INTRODUÇÃO

Naquela fita, Bin Laden também respondeu à freqüente alegação de Bush de


que a Al Qaeda estava atacando os Estados Unidos por causa de suas
liberdades e não por causa de sua política externa, dizendo sarcasticamente:
“Bush alega que odiamos a liberdade. Se isso fosse verdade, então como
explica o fato de não atacarmos a Suécia?” (BERGEN, 2012, p. 53).

O debate entre George W. Bush e Osama bin Laden demonstra como os termos
em que a globalização levada à cabo pelo Ocidente se choca com o fundamentalismo
extremista do terrorismo islâmico. Nesse debate, o tema da liberdade se tornou marcante, pois
o presidente americano acusava o terrorista saudita de odiar as liberdades americanas. A
resposta de Bin Laden, em uma fita VHS divulgada em 2004, foi paradigmática, se esse fosse
o problema todo o mundo ocidental seria atacado, como a Suécia, e não os EUA.
Nesse caso, não é a noção de liberdade que Osama bin Laden ataca com seus atos
terroristas, mas a liberdade imposta pelos EUA por meio de suas ingerências no mundo
muçulmano1. A bandeira da liberdade e do progresso ocidental já foi levada a boa parte dessa
região várias vezes desde o século XIX, com o neo-colonialismo francês e inglês, e
atualmente com os EUA.
A captura de Osama bin Laden foi apenas mais um conflito nessa longa trajetória
de embates entre a civilização muçulmana que tenta se modernizar em termos próprios desde
o século XIX e a hegemonia ocidental que data desse mesmo período. A própria relação entre
o terrorista e os EUA, não se reduz aos eventos do dia 11 de setembro de 2001, nem foi
sempre conflituosa. Desse modo, o objetivo desse trabalho é analisar como as relações entre
Islã e Ocidente, especialmente EUA, são representadas pela mídia impressa durante a
cobertura da captura e assassinato de Osama bin Laden.
A violência da captura e assassinato oculta momentos de parceria e troca de
apoios no passado da Guerra Fria. A relação entre o terrorista saudita e os EUA ocorre na luta
contra um inimigo comum, na luta contra o comunismo ateu da URSS. Naquele momento os
EUA decidiram patrocinar a guerrilha dos Mujahedins afegãos contra a ocupação soviética. A
trajetória jihadista de Osama bin Laden se inicia nos anos de 1980 quando
1
Segundo Peter Demant, o mundo muçulmano abrange cerca de 1,3 bilhão de seres humanos, um quinto da
humanidade. Se encontram desde a África ocidental até a Indonésia, passando pelo Oriente Médio e Índia. Em
muitos países os muçulmanos constituem a maioria da população local, e em outros importante minoria. Tal
mundo é diverso em suas histórias, nações, etnias, línguas, maneiras de viver, relações com o meio ambiente e
vizinhos. Porém todos os povos do mundo muçulmano têm um único e decisivo fator comum: o Islã (DEMANT,
2004, p. 13-14).
11

parte para o Paquistão, a fim de participar do processo de gerenciamento da


resistência afegã. Juntamente com o seu ex-professor Azzam, Bin Laden
funda em 1984 o Maktab al Kidmay lil Mujahidin al-Arab,ou “gabinete
Afegão de Serviços”, que tinha como objetivo recrutar, doutrinar e treinar
milhares de jovens árabes e muçulmanos de toda parte do mundo, que se
voluntariam para tomar parte no conflito afegão (SOUZA, 2011, p. 142).

Na guerra contra os soviéticos, Osama bin Laden ganhou popularidade entre os


combatentes afegãos e em todo o mundo muçulmano por fazer grandes doações financeiras e
por participar pessoalmente dos combates. Ao final da guerra, o terrorista se tornou o líder
natural dos mujahedins, permitindo a fundação da Al Qaeda. Para seus seguidores

Bin Laden era realmente um herói, alguém que eles sabiam que havia aberto
mão de uma vida de luxo como filho de um bilionário saudita. Em vez disso,
ele vivia uma vida de riscos e pobreza a serviço da guerra santa, e era,
pessoalmente irresistivelmente modesto e profundamente devoto. Membros
da Al-Qaeda se calcavam no homem que eles chamavam de “o xeque”,
seguindo cada pronunciamento seu, e quando eles se dirigiam a ele, pediam-
lhe permissão para falar (BERGEN, 2012, p.19).

Mas os mujahedins não lutaram sem apoio, os EUA desejavam apoiar os rebeldes
contra a URSS. Um combate direto entre as duas potências nucleares era impossível na
Guerra Fria, assim conflitos por áreas de influência como o Afeganistão eram bem vindos
para o EUA. Além de sanções à URSS e ajuda financeira aos insurgentes, os EUA deram
apoio militar por meio de seus aliados como o Paquistão. O serviço secreto paquistanês,
conhecido como a

Diretoria de Inteligência Inter-Serviços, ou ISI, é o equivalente da CIA


norte-americana. O ISI desempenhou um grande papel na ajuda americana
dos mujahedin, ajudando o transporte de armamentos através da fronteira
entre os dois países e fornecendo ainda mais ajuda monetária e militar para a
insurgência.
[...] o financiamento e apoio para este grupo começou sob o governo Carter.
Sob o governo Reagan, porém, o financiamento, o armamento e o
treinamento foram levados a um nível muito mais alto (BILLARD JR, 2010,
p.29-30).2

2
Directorate for Inter-Services intelligence, or ISI for short,is Pakistan`s equivalent of the American CIA. The
ISI playeda large rolein America`s AID of the Mujahedeen by helping transport armaments across
themountainous border between the two countries and further providing both monetary and military AID to the
insurgence.
[...] funding and support for this group began under the Carter administration. Under the Reagan administration,
however, founding, arming, and training were taken to a much higher level (BILLARD, JR. 2010. p. 29-30).
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Contudo a Guerra do Golfo vai alterar as relações entre os antigos aliados. Na


ocasião da invasão das tropas iraquianas sobre o Kuwait, a dinastia de Saud recusou a
proposta de Osama bin Laden para usar tropas mujahedins da Al Qaeda. A monarquia saudita
optou pela aliança estrangeira com os EUA para derrotar o inimigo iraquiano. Após a vitória
americana as suas bases militares permaneceram na terra sagrada do Islã, fato que inflamou o
ódio dos mujahedins que consideraram uma traição e passaram a organizar uma campanha
verbal e operacional para derrubar o governo saudita. (SOUZA, 2011, p.145).
Daí em diante a Al Qaeda inicia uma série de ataques aos Estados Unidos.
Atentados em 1992 em hotéis no Iêmen; em 1993, ocorre o primeiro atentado contra o World
Trade Center, sem sucesso; em 1998, Osama bin Laden declara guerra aos EUA e ataca as
embaixadas no Quênia e na Tanzânia; em 2000, a Al Qaeda lança um bote carregado de
explosivos contra o navio de guerra USS Cole; em 11 de setembro de 2011 quatro aviões
foram seqüestrados atingindo o World Trade Center, o Pentágono e o quarto avião caiu antes
de atingir a Casa Branca. A esse ponto, Bin Laden se tornou um mito, ele era

o nobre “Emir da Jihad”, ou Príncipe da Guerra Santa – veneração que ele


não desencorajava. Imitando conscientemente o profeta Maomé, que recebeu
inicialmente as revelações do Corão em uma caverna, Bin Laden fez
algumas de suas primeiras declarações em vídeo a partir das cavernas e
montanhas do Afeganistão. Comícios pró-Bin Laden atraíam dezenas de
milhares de pessoas para o Paquistão, e uma imagem beatífica de seu rosto
podia ser encontrada em camisetas por todo mundo muçulmano. Para seus
detratores – e havia muitos deles, incluindo muçulmanos – Bin Laden era um
homem mau que ordenara o assassinato gratuito de milhares de civis na
cidade que muitos vêem como capital do mundo. Mas, admirado ou odiado,
não havia dúvidas de que ele se tornara um dos poucos indivíduos em
tempos modernos que indiscutivelmente haviam mudado rumo da História
(BERGEN, 2012, p. 30).

A caçada ao terrorista e à sua organização se iniciou dentro da chamada “Guerra


ao Terror” iniciada pelo presidente George W. Bush e continuada por Barack Obama. A
Guerra ao Terror culminou com duas ações militares de ocupação americana, primeiramente
no Afeganistão, que dava abrigo a Al Qaeda, e depois no Iraque sob a falsa alegação de que
esse país possuía armas de destruição em massa.
Durante a invasão do Afeganistão, grande parte da infra-estrutura da Al Qaeda foi
destruída junto com o governo Taleban. Osama bin Laden foi cercado nas montanhas de Tora
Bora, na fronteira com o Paquistão, mas graças ao receio de enviar mais tropas para o
Afeganistão e ao apoio de grupos tribais autônomos, o terrorista conseguiu migrar para o
Paquistão onde o seu rastro se perdeu. Os militantes mais importantes da Al Qaeda foram
13

caindo gradativamente como peças de dominó. As bases americanas que prendiam militantes
se tornaram centros de tortura, também chamadas pelos americanos de “técnicas melhoradas
de informação”, que garantiam as informações necessárias para as futuras ações militares.
Enquanto isso, Londres e Madrid se tornavam alvos de novos ataques terroristas.
Um consenso já se estabelecia entre as agências de segurança quanto ao destino de
Osama bin Laden, não havia a possibilidade de sua captura vivo. Um Osama bin Laden
capturado vivo transformaria seu julgamento em um

palanque para seus pontos de vista venenosos. Havia também a possibilidade


de que os seguidores de Bin Laden tentassem seqüestrar americanos ao redor
do mundo como moeda de troca pela liberdade de seu líder. E se ele
morresse de alguma doença em uma prisão americana? Ou se fosse
assassinado de alguma maneira por outro prisioneiro? Robert Dannenberg, o
chefe das operações antiterrorismo da CIA,diz que capturar Bin Laden nunca
foi realmente uma opção válida por causa de todas essas questões
(BERGEN, 2012, p.64).

Por meio das técnicas de “interrogatório” organizadas pela CIA nas bases
americanas e de países aliados o paradeiro de Osama bin Laden foi localizado na cidade de
Abbotabad, sede de uma escola militar paquistanesa. A ação americana levada à cabo por
tropas de elite, e não por forças de ocupação, foi meticulosamente testada por várias vezes
para que não se repetisse o fiasco operacionalizado por Carter no Irã 3.
A ação americana não encontrou resistência, os moradores adultos que guardavam
a casa de Osama bin Laden, o mensageiro do terrorista e seu irmão foram mortos, as crianças
que habitavam a casa foram amontoadas na escada. Ao entrar no quarto onde Osama bin
Laden habitava, a esposa do terrorista se lançou contra os soldados, que a empurraram e
alvejaram sua perna. O mujahidin não resistiu e foi golpeado com dois tiros na cabeça. Seu
corpo foi recolhido, e segundo o relato oficial norte-americano, passou por uma cerimônia
fúnebre muçulmana, e logo depois seu corpo foi jogado no mar por meio do porta-aviões USS
Carl Vinson.
A notícia da captura foi dada pelo presidente Barack Obama as 23:50, do dia
primeiro de Maio de 2011. No outro dia, inúmeros veículos de comunicação comentavam a
declaração do presidente norte-americano. A capacidade desse evento se reproduzir

3
Segundo Moniz Bandeira, os esforços diplomáticos para libertar os 52 funcionários americanos mantidos reféns
pelas milícias iranianas na Embaixada Americana de Teerã não haviam alcançado resultado. Assim em 1980,
Carter autorizou a operação Eagle Clow (Garra da Águia), com o objetivo de resgatá-los. A missão envolvia oito
helicópteros e 12 aeroplanos. No dia 25 de Abril, algumas aeronaves apresentaram falhas mecânicas e um deles
colidiu com um C-130 Hercules, quando era abastecido, causando uma explosão em que pereceram cinco
homens da força aérea, três marines e muitos saíram feridos (MONIZ BANDEIRA, 2014, p. 411).
14

provocando variadas representações de apoio ou de questionamento sobre o ato americano, se


torna o objeto das investigações. Por isso essa pesquisa recorre ao conceito de “evento
monstruoso” construído por Pierre Nora, pois a captura foi capaz de remodelar as leituras
ocidentais sobre a relação entre o Islã e o Ocidente, por meio da repetição da mensagem,
produzindo um debate na sociedade, que é convidada pelos meios de comunicação a se
posicionar diante dos eventos. Os meios de comunicação

(...) fizeram da história uma agressão e tornaram o acontecimento


monstruoso. Não por que sai, por definição do ordinário, mas porque a
redundância intrínseca ao sistema tende a produzir o sensacional, fabrica
permanentemente o novo, alimenta uma fome de acontecimentos (NORA,
1995, p. 183).

A mídia ao reproduzir a notícia tornou a memória sobre o terrorista islâmico um


evento marcante para as massas ocidentais. O acontecimento se tornou agressivo porque ele
se impôs aos leitores, não havia meio de comunicação que não noticiasse a sua morte. “O
acontecimento testemunha menos pelo que traduz do que pelo que revela, menos pelo que é
do que pelo que provoca. Sua significação é absorvida na sua ressonância; ele não é senão um
eco, um espelho da sociedade, uma abertura” (NORA, 1995, p. 188). Captar a ressonância do
evento é captar as representações produzidas pela sociedade diante desses acontecimentos
espetaculares que fogem à normalidade.
Assim juntamente com a morte de Osama Bin Laden surgiram narrativas e
representações que tentavam explicar como o óbito do terrorista ocorreu, e o significado desse
evento para os destinos da civilização ocidental. Surgiu também um momento para rediscutir
as relações entre Islã e o Ocidente, especificamente os EUA, e uma oportunidade para
remodelar as representações sociais do Ocidente para com os muçulmanos.
Nas fontes escolhidas, “Folha de São Paulo” e “Revista Veja”, pode se observar
posicionamentos diversos, que nos indicam um momento de reestruturação das representações
da mídia brasileira em relação ao Islã. Em um momento anterior, durante a cobertura do
atentado terrorista de “11 de setembro de 2001” e os seus desdobramentos, houve uma
associação entre essa religião e a violência. Esse debate foi pesquisado por Deodoro Moreira,
nas revistas Veja, Istoé, Época e Carta Capital. Sua conclusão foi que os periódicos se
tornaram veículos de representações estigmatizantes:

quando fundamentalismo e terror se unem, o resultado é algo não menos


traumático, ou seja, radicalização total de ambos os lados, com
15

enfrentamento dos EUA e Islã. O outro irrompe do imaginário ocidental ao


interpretar uma ameaça verdadeira e carregado de negatividade: o Islã
(MOREIRA, 2009, p.10).

Outra pesquisa, envolvendo a imprensa escrita, foi a dissertação de mestrado de


Isabelle Christine Somma de Castro que analisou as reportagens dos periódicos Folha de São
Paulo e o Estado de São Paulo seis meses antes e seis meses após os atentados do dia 11 de
setembro. Sua conclusão entrou em consonância com a pesquisa de Deodoro Moreira, pois ela
concluiu que, especialmente após os atentados do dia 11 de setembro de 2001, ambos os
jornais difundiram estereótipos que associavam os muçulmanos ou o Islã ao terrorismo,
violência e à opressão.
Todas essas pesquisas deixam claro como as representações destes meios de
comunicação se enquadravam em uma análise “orientalista” do mundo muçulmano. Para
Edward Said, em sua obra “O Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente”, o
Oriente, era quase uma invenção européia, lugar de romance, aventura, seres exóticos. Sendo
assim, o Oriente era um discurso ocidental inventado acerca de um concorrente cultural, que
ajudou a definir a identidade do europeu, por meio de representações de oposição.
Em sua obra, Said afirma que o orientalismo é uma

instituição organizada para negociar com o oriente – negociar com ele


fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele,
descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o orientalismo
como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o
Oriente (SAID, 1990, p.15).

Esse conhecimento ganharia forma e se organizaria em universidades,


administrações coloniais, livros e periódicos especializados, onde o europeu e o norte-
americano impõem sua hegemonia sobre o resto do mundo representado como inferior. A tese
de Said questiona o discurso que institui o oriental em posição de inferioridade. Um dos
problemas de tal formulação discursiva, conforme o autor é a questão da exterioridade, pois o
orientalista está fora do Oriente. Este último fala por meio da Europa e dos Estados Unidos, e
nesta perspectiva “(...) é diretamente tributário das várias técnicas ocidentais de representação
que tornam o Oriente visível, claro e „lá‟ no discurso sobre ele” (SAID, 1990, p.33).
A representação se torna o principal produto dessa exterioridade, circulando sob a
forma de “verdades”. Logo o Oriente que se apresenta no orientalismo é um conjunto de
representações formado por uma dinâmica complexa que introduziram o universo oriental na
cultura ocidental. Para Said, é na Idade Média, logo após o Islã se aproximar das fronteiras
16

cristãs que o repertório de representações negativas e reducionistas sobre essa religião até
então desconhecida surge, vista como uma versão fraudulenta do cristianismo.
Já no período imperialista, as representações orientalistas se tornaram um
instrumento de legitimação da dominação européia, justificando a empreitada colonizadora: o
“oriental é irracional, depravado (caído), infantil, „diferente‟; desse modo, o europeu é
racional, virtuoso, maduro, „normal‟” (SAID, 1990, p. 50.). Diante desse antagonismo caberia
ao europeu a missão de intervir no oriente e tirar o oriental do atraso e barbárie em que vive.
Uma das grandes contribuições de Edward Said foi demonstrar como os meios de
comunicação contribuíram para renovar a tradição orientalista. Esse autor afirma que a mídia
tem atuado como efeito potencializador sobre o orientalismo (SAID, 1990, p.38). Ao chamar a
atenção para o reforço dos estereótipos pelos qual o Oriente é retratado após o advento do
mundo eletrônico pós-moderno, ele percebe que atitudes orientalistas invadem a esfera
pública povoando a imaginação coletiva com imagens caricaturadas e negativas dos árabes e
muçulmanos.
Segundo esse autor, a mídia pode funcionar como ferramenta de difusão de
imagens que desfiguram o Islã para seus públicos. Em muitas representações o árabe
muçulmano é associado ao atraso, ao saque, a libidinagem. O olhar do leitor se torna cada vez
mais dependente dos estereótipos e representações advindos dos meios de comunicação que
contribuem na formação de sua percepção.
Para Said, nos meios de comunicação de massa

a maior parte das imagens apresenta massas enraivecidas ou miseráveis, ou


gestos irracionais (logo, desesperadamente, excêntricas). À espreita, por trás
de todas essas imagens, está a ameaça da Jihad. Resultado: um temor de que
os muçulmanos (ou árabes) tomem conta do mundo (SAID, 1990, p.291).

O autor deixa clara a conexão entre as representações orientalistas e o papel


catalisador que os meios de comunicação possuem sobre as percepções do homem ocidental.
A obra mais significativa de Said, que relaciona a mídia ao orientalismo foi o Covering Slam.
Essa obra foi publicada em 1981 (foi totalmente revista pelo autor em 1997) e debate a visão
construída pela mídia ocidental sobre o Islã durante e após a crise dos reféns na embaixada
norte-americana em Teerã (1979-1981).
Para Said, nos últimos anos há um renascimento de um cânone de ideias
orientalistas sobre o mundo muçulmano. Generalizações maliciosas sobre o Islã se tornaram a
última forma aceitável de denegrir a cultura estrangeira no Ocidente, fazendo afirmações
17

sobre a mente, cultura, características e religião muçulmana. Contudo, o “Islã” – a religião –


define uma proporção relativamente pequena do que realmente ocorre no mundo muçulmano
entre um bilhão de pessoas, de dezenas de países, sociedades, tradições, línguas e, claro, um
número infinito de experiências diferentes.
Assim é simplesmente falsa a tentativa de rastrear todos os problemas das
sociedades muçulmanas de volta para algo chamado de Islã, não importa o quão veemente as
polêmicas orientalistas insistem que o Islã regula as sociedades islâmicas de cima para baixo,
que a Dar al-Islam4 é uma entidade única, coerente, que a religião e o Estado são realmente
um só no Islã.
O argumento de Said é que a maior parte dessas generalizações são inaceitáveis e
do tipo mais irresponsável, e nunca poderiam ser usadas para qualquer outro grupo religioso,
cultural, ou demográfico na Terra. Desse modo as associações criadas deliberadamente entre
Islã e o fundamentalismo levam o leitor médio a ver o mundo muçulmano como
essencialmente a mesma coisa. A tendência é reduzir o Islã a um punhado de regras,
estereótipos e generalizações sobre a fé, seu fundador, e todas as suas pessoas, então há um
reforço de cada fato negativo associando o Islã à violência, primitivismo ou atavismo. Nessas
pesquisas não há esforço serio em definir o termo fundamentalismo, ou em dar significado
preciso para radicalismo ou extremismo.
Said inquiriu as razões da fácil aceitação das visões frouxas e redutoras da palavra
Islã. As respostas estariam nas antigas percepções do Islã como um concorrente aceitável para
o Ocidente cristão. Atualmente seria o mundo islâmico a última região a demonstrar fortes
sinais de resistência ao avanço norte-americano. A idéia de uma ameaça do Islã é
desmitificada por Said já que os países muçulmanos

são atingidos pela pobreza, tirania, e irremediavelmente ineptos


militarmente, bem como cientificamente para ser uma grande ameaça para
ninguém, exceto seus próprios cidadãos; e para não me debruçar sobre o fato
de que o mais poderosos deles, Arábia Saudita, Egito, Jordânia e Paquistão
estão totalmente dentro da órbita dos Estados Unidos. (SAID, 1997, posição
421-429)

4
As conquistas muçulmanas resultaram na divisão do mundo em três partes: dar al-Islam, dar al-„ahd (ou sulh) e
dal al-harb. Dar al-Islam refere-se aos territórios nos quais a lei islâmica prevalece. Dar al-„ahd (região do pacto)
e dar al-sulh (região de trégua) eram ambas regiões cujos líderes concordam em pagar aos chefes muçulmanos
uma taxa e também em proteger os direitos de qualquer aliado ou aliado dos muçulmanos que ali vivessem, mas
que, por outro lado, pudessem continuar a manter sua autonomia, inclusive seu próprio sistema legal. Dar al-harb
era uma área cujos líderes não tinham feito tal acordo e nas quais, portanto, os muçulmanos e seus aliados não
tinham nem a garantia de viver sob a lei islâmica,nem eram protegidos por ela. Por essa razão,era chamada de
área de guerra (SONN, 2011, p. 64-65).
18

Said, assim, denuncia os experts que mantém o discurso da desproporcional


ameaça islâmica como uma forma de garantir o seu espaço no mercado publicitário. Ele
afirma que

maioria dos muçulmanos árabes de hoje são muito desanimados e


humilhados, e também demasiado anestesiados pela incerteza e pelas suas
ditaduras incompetentes e grosseiras, para apoiar qualquer coisa como uma
vasta campanha islâmica contra o Ocidente (SAID, 1997, posição 435-436)

Então demonizar o Islã serve nada mais como uma arma adicional para
subordinar, compelir e derrotar as resistências árabes muçulmanas contra os EUA e Israel.
Além disso, o Islã se encontra em uma área estrategicamente importante, rica em petróleo.
Logo a campanha anti-Islã elimina a possibilidade de qualquer tipo de igualdade de diálogo
entre Islã e o Ocidente.
Said não acredita que todos os males do mundo muçulmano são devido ao
sionismo e ao imperialismo. Mas está longe de dizer que os EUA e Israel e seus intelectuais,
não tenham desenvolvido um papel combativo e estigmatizante sobre uma abstração chamada
de Islã. Para ilustrar seu ponto de vista ele descreve a abordagem da mídia americana sobre a
invasão israelense no sul do Líbano e a resistência do Hizbollah. Para o autor é necessário
observar em primeiro lugar que,

desde 1982, Israel ocupou uma faixa do sul do Líbano chamada como uma
zona de segurança, e foi montada e continua a manter um exército libanês
mercenário na área ocupada; resistência à ocupação, bem como o Exército
libanês do Sul veio do Hizbollah, o chamado Partido de Deus, cuja razão de
ser tem sido a ocupação de Israel. Estes guerrilheiros residem e lutam no sul,
de modo que a maioria dos padrões do que seria considerado basicamente
um grupo guerrilheiro lutando contra uma ocupação militar ilegal em seu
país. Mas, a observação que é feita na imprensa dos Estados Unidos a
religião do Hizbollah é enfatizada, assim como a suposição de que porque
luta contra Israel é uma organização terrorista (SAID, 1997, posição 565-
570).

A descrição de Said demonstra como a mídia americana rapidamente negligenciou


a dimensão política do conflito, para enfatizar o papel do Islã como motivador na luta contra
Israel. A legitimidade do Hizbollah como grupo guerrilheiro que luta pela libertação de seu
território contra um grupo estrangeiro invasor, foi destruída ao associar as motivações do
grupo à justificativa religiosa fundamentalista. A ação de Israel de invadir e bombardear alvos
libaneses se torna aceitável como uma estratégia de autodefesa.
19

O peso da visão de Edward Said sobre as relações entre Oriente e Ocidente é


muito grande. Assim essa pesquisa iniciou-se com a indagação sobre a influência da tradição
orientalista sobre a mídia brasileira. Investigou-se em que medida Folha e Revista Veja no
ímpeto de cobrir a morte de Osama bin Laden se inseriram na tradição orientalista.
Apesar da repercussão do pensamento de Edward Said, a presente pesquisa
percebe que todos os dias, a imprensa torna-se um palco de ricas possibilidades de se captar
representações sobre o outro, especialmente sobre o mundo muçulmano. E que
historicamente, representações sobre o muçulmano já tomaram contornos positivos como a
figura de Saladino, durante as cruzadas.
Por esse motivo, deve-se ponderar melhor a função da mídia enquanto veículo de
transmissão e reformulação de significados simbólicos. A imprensa enquanto meio de
comunicação é um ambiente complexo que ao transmitir mensagens leva em conta inúmeros
fatores que vão além da simples reprodução de uma idéia preconceituosa. Para Patrick
Charadeau (2006, p. 58-59), em nossa contemporaneidade o jornalismo é dominado pelas
grandes empresas de comunicação que disputam entre si a atenção do público.
Portanto, além da dimensão da própria informação e comunicação, baseada no
compromisso com a credibilidade e imparcialidade, papel fundamental para a construção da
democracia, a imprensa tradicional também possui uma lógica comercial, que tem como
imperativo a captação da maior quantidade de leitores, assim muitas empresas recorrem aos
princípios da sedução e do sensacionalismo que várias vezes ferem o princípio da
credibilidade.
Esse caráter comercial e concomitantemente sensacionalista leva à simplificação
da mensagem na busca da maior audiência pelos consumidores. Essa estratégia facilita a
propagação de preconceitos sobre o mundo muçulmano, pois os eventos envolvendo essa
civilização estão imersos em um contexto complexo e longo de conflitos culturais e políticos
que não se resumem em algumas linhas do periódico.
Assim se a mídia for o mais objetiva possível ela se afasta do grande público e se
isola da sociedade, mas se ela dramatiza demasiadamente as mensagens ela corre o risco de
cair em descrédito. Surge um tenso equilíbrio para o jornalista que deve estar sempre atento
para as estratégias de composição da mensagem que ele quer levar ao seu público.
Fica claro o caráter intricado da mídia, abrindo espaço para novas pesquisas sobre
representações de eventos envolvendo o mundo muçulmano, pois as imagens podem estar
sempre se renovando e ganhando novos sentidos ou reforçando os antigos. Aquele que antes
20

era visto como o inimigo, ou como o diferente pode ser repensando de acordo com as novas
circunstâncias culturais, sociais e econômicas.
O pesquisador Douglas Kellner (2001, p.77) esclarece esse caráter mutável e
inconstante da mídia, afirmando que ela pode não só apresentar visões preconceituosas e
negativas, mas também visões positivas sobre o outro. Segundo o autor, nos meios de
comunicação da atualidade, a cultura midiática pode defender ou não posições, posturas e
representações em relação a temas como sexo, orientação sexual, etnia entre outros. Ou seja,
os meios de comunicação podem veicular imagens progressistas ou não acerca dos
muçulmanos e de sua religião, surgindo uma possibilidade de inflexão em relação aos valores
estabelecidos pela visão ocidental ao Islã.
Logo, a mídia é um campo aberto à investigação das relações entre Ocidente e
Oriente e somente a pesquisa pode verificar a permanência ou não da tradição de
representações orientalistas. Nesse ponto as representações midiáticas são fundamentais, pois
em assuntos do cotidiano dos indivíduos como economia e política, a mídia é mais um veículo
de informação que se soma à experiência pessoal.
Contudo, quando se discorre sobre eventos que ocorrem em dimensões globais ou
lugares distantes como a captura e assassinato de Osama bin Laden, onde o indivíduo não
possui uma experiência pessoal que equilibra a percepção da realidade, a mídia ganha um
espaço privilegiado. A carência de informações dá a mídia o status de única provedora no
processo comunicativo. Nessas circunstâncias as informações da mídia são mais eficientes em
formar opiniões, do que as relações do dia-a-dia.
Torna-se inequívoca a percepção de que a mídia permite ao indivíduo novas
experiências diante da realidade, sem a imprensa provavelmente poucos estariam à par da
morte do terrorista, assim a mídia nos dá uma nova forma de ver o mundo, visão essa que não
se reduz mais ao seu ambiente da comunidade. A mídia permitiu ao indivíduo perceber
realidades que lhes seriam inacessíveis de outro modo. A conseqüência desse fato é o
surgimento de uma nova identidade ao cidadão que se constrói a partir da experiência diária e
também da experiência mediada pela imprensa.
Essa nova identidade intemporal e a-espacial se constrói com o advento da
ampliação dos instrumentos de comunicação, que passam a exigir do indivíduo novas
responsabilidades que vão além daquelas que se reportam à sua comunidade. No mundo
contemporâneo, ele terá que se posicionar tomando decisões e ações em relação aos eventos
que se apresentam distantes geograficamente e temporalmente.
21

O assassinato do líder islamita é um exemplo claro sobre esse posicionamento que


a mídia nos impele. O evento despertou um debate sobre a validade jurídica do ato pelos
norte-americanos, o respeito aos Direitos Humanos e às leis internacionais, e sobre a
importância do evento para a reconstrução de uma ordem mundial mais justa e pacífica.
Portanto surgem novas responsabilidades advindas da interação através dos meios de
comunicação, os indivíduos sabem o “que está acontecendo além de seus contextos sociais
imediatos, e eles podem usar esta afirmação para orientar suas próprias ações” (THOMPSON,
1998, p. 106).
Desse modo, a presente pesquisa se iniciou na analise das representações
produzidas sobre o Islã e o Ocidente, presumindo uma hipótese orientalista. Contudo,
gradativamente as fontes apresentaram resultados diversos, tanto na Veja quanto na Folha,
nenhuma delas reproduziu o cânone orientalista. Muitos temas se mostraram presentes nas
reportagens, como o embate entre idealismo e realismo nas relações internacionais, ou
diferentes concepções de liberdade pertencentes à cada veículo.
O orientalismo não foi a resposta existente, a concepção mais próxima que se
apresentou foi a ideia de uma civilização universal a partir dos valores ocidentais presente nas
representações da Veja. Ainda que haja uma representação da superioridade ocidental, ela não
se faz a partir de critérios raciais, muito menos o Islã é rotulado como homogêneo e oposto à
modernidade. A diversidade do Islã foi apresentada e concomitantemente a sua prática
religiosa foi igualada às demais religiões do mundo quanto à propensão ao fanatismo e à
violência.
As representações presentes nos textos foram conectadas a um espectro mais
amplo, mostrando como as reportagens dialogam com textos filosóficos e obras de
especialistas em relações internacionais e das ciências políticas. Destacou-se as estratégias de
cada veículo na construção da notícia e concomitantemente na construção das representações
do bom e do mau, do certo e do errado, do amigo e do inimigo, da justiça e da vingança, do
passado e dos projetos para o futuro.
Assim os periódicos passaram por uma análise do seu conteúdo, percebendo a
construção de representações que se comunicam e, ao mesmo tempo, constroem a percepção
do mundo dos indivíduos. Tal visão para o trabalho com periódicos só se tornou possível
graças às transformações que o ofício do historiador passou. Desde a década de 1930, houve
uma renovação na produção historiográfica. Acompanhando essa transformação iniciada pela
Escola dos Analles ocorreu uma expansão no conceito de fonte histórica.
22

Marc Bloch um dos fundadores desse novo paradigma afirmou: “tudo o que o
homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele” (2001,
p.79). Desse modo o autor demonstrou a validade do uso de diferentes fontes históricas no
estudo da História. Sua atitude afastou o monopólio da fonte oficial escrita tão defendido pelo
historicismo, abrindo o espaço para o estudo de fontes escritas não-oficiais como os
periódicos.
Esse avanço no uso das fontes não altera a responsabilidade fundamental que o
historiador tem ao tratá-las. Ao entrar em contato com os vestígios do passado o pesquisador
entra em ação exercendo os procedimentos básicos do seu ofício que é lidar com os diferentes
registros, inquiri-los e desconstruí-los, seguindo à sua contextualização e exploração para
deles identificar diferentes versões, de modo crítico usá-los metodologicamente (PAIVA,
2006, p.13).
A metodologia de pesquisa utilizada evitou o uso dos veículos de comunicação
como meras fontes de informação, mas há um esforço em entender o jornal e a revista como
uma

linguagem constitutiva do social, que detém uma historicidade e


peculiaridades próprias, e requer ser trabalhada e compreendida como tal,
desvendado, a cada momento, as relações imprensa/sociedade, e os
movimentos de constituição e instituição do social que esta relação propõe
(CRUZ e PEIXOTO, 2007, p. 258)

Assim o papel da mídia como mobilizadora de ações, definidora de papéis e


posições é o ponto de partida metodológico dessa pesquisa. A posição de cada veículo não é
vista apenas como uma mera opinião, mas como uma adesão a um posicionamento político e
filosófico constituindo um esforço em favorecer determinadas forças sociais ao disseminar
seu conteúdo, projetos, ideias e valores, tentando remodelar a opinião pública.
Essa pesquisa entende que o público que se interessa pelo jornalismo
internacional é muito restrito. Segundo Wainberg (2005, p.12-15), o noticiário internacional
tem pouca popularidade devido à necessidade de intenso processamento de dados (alto custo)
e a pouca gratificação resultante (baixo benefício). Em temas graves como terrorismo, é
comum baixos níveis de compreensão.
Wainberg (2005, p.199-121) aprofunda ainda mais a questão da marginalidade do
noticiário internacional, afirmando que a imprensa escrita nacional limita-se em grande parte
a divulgar a agenda financeira e econômica do país, levando em conta os seus obstáculos para
o seu desenvolvimento. Outros fatores elencados pelo autor são a postura de imparcialidade
23

do governo brasileiro em relação aos eventos internacionais e a ausência de um inimigo


externo. Todos esses elementos são enumerados como responsáveis por um desinteresse pelo
noticiário internacional.
A análise de Wainberg sobre o pouco interesse dos leitores brasileiros em relação
aos noticiários internacionais, com uma pesquisa de amostra, os enquadra como noticiário de
elite, uma vez que ficou evidente

a pouca intimidade do público brasileiro em geral com as notícias do mundo.


(...) os dados coletados reforçam a suspeita de que há no Brasil, de fato,
somente uma minoria em condições de entender e julgar com algum rigor e
precisão tais ocorrências (WAINBERG, 2005, p. 132).

O fenômeno do terrorismo fundamentalista islâmico se destaca pela capacidade da


violência atrair os leitores na dimensão emocional e retirá-los da sua inércia, e não pelo
interesse intelectual. Tanto na Veja quanto na Folha a captura foi destaque como manchete de
capa e primeira página, respectivamente, com inúmeras páginas de reportagens, entrevistas e
editoriais que povoaram as suas folhas. Diante de uma notícia espetacular o esforço por uma
analise gráfica dos periódicos não se fazia tão relevante, o destaque dado ao evento foi
praticamente o mesmo nos dois periódicos.
Apesar de saber que a notícia da captura atraiu vários leitores de ocasião, a
presente pesquisa se interessa pelas representações veiculadas por cada um dos veículos, pois
os periódicos possuem um público selecionado, leitores de elite, cativos, que lêem as
reportagens e colunas, apoiando e rejeitando a posição de seus redatores, e pouco se
importando com a localização da reportagem, mas sim com seu enquadramento.
Com o objetivo de melhor descrever oposicionamento das empresas de
comunicação esta pesquisa recorre à teoria da Agenda. Para a compreensão dessa teoria,
parte-se da percepção de que o cidadão comum é incapaz de dar conta de todos os
acontecimentos que envolvem o seu meio. Sua visão e sua consciência são limitadas, o seu
tempo para estudar os acontecimentos diários é mais limitado ainda; a recorrência aos
estereótipos e simplificações é típica do ser humano na tentativa de dar inteligibilidade ao seu
cotidiano. As distorções

de percepção pelas pessoas de mundos distantes e inacessíveis à experiência


direta se devem à censura, às limitações do contrato social, à insuficiência no
tempo destinado pelos indivíduos a estudar os assuntos públicos, à
necessidade dos comunicadores de expressarem eventos complexos com
passagens curtas, diretas compreensíveis a uma larga e difusa audiência,
24

além dos referidos e inevitáveis preconceitos que todos nós temos e dos
estereótipos que todos nós cultivamos (LIPPMANN, 2008, p. 14)

A estrutura física do meio de comunicação também altera o formato da


mensagem, uma mídia impressa possui algumas poucas colunas para transmitir a informação.
Todo meio de comunicação tem o seu próprio processo de construir um relato do fato que
gera uma distorção. Mas essa não pode simplesmente destruir toda a contribuição que a mídia
deu para o ser humano, ampliando seu horizonte social. A alteração na informação pode ser
percebida de diferentes formas de acordo com a necessidade de informação que as pessoas
tem sobre determinado objeto.
A deformação e fragmentação presente nos meios de comunicação podem ser
corrigidas através da experiência pessoal e do diálogo com seus pares, nesse caso as
informações midiáticas são uma fonte secundária. Essas experiências permitem ao indivíduo
orientação suficiente para enfrentarem os problemas do dia-a-dia. E ainda existe mais outra
categoria de ocorrências que estão fora do alcance particular, onde a experiência pessoal seja
limitada, e que as mensagens nos chegam apenas pelos canais midiáticos. A carência de
informações dá a mídia o status de provedora no processo comunicativo. Nessas
circunstâncias as informações da mídia são mais eficientes em formar opiniões, do que as
relações do dia-a-dia.
A teoria da agenda (MCBOMBS, 2009, p. 99-104) denomina os temas de acesso à
realidade imediata de temas intrusivos, são aqueles tópicos que intervêm na vida das pessoas,
a experiência pessoal será uma referência orientadora para os conflitos do cotidiano. Em seu
contraponto estão os temas não-intrusivos, normalmente envolvem assuntos internacionais
onde a experiência social é limitada ou inexistente, e tem nos meios de comunicação uma
fonte de orientação diária quase sempre exclusiva. Em termos práticos, a captura do terrorista,
tinha como fonte de disseminação apenas os meios de comunicação, que sem eles seria
impossível ter acesso a essas informações.
Diante da necessidade de tornar a análise ainda mais criteriosa é necessário
entender como essas distorções e principalmente fragmentações podem contribuir para
entender eventos internacionais em torno das relações entre os EUA e o mundo muçulmano, e
a dimensão simbólica construída em torno deles. Para esta análise deve-se partir do princípio
de que sem o auxílio dos meios de comunicação o ser humano poderia abarcar apenas uma
porção da realidade provavelmente aquela porção que pertence à vida comunitária.
25

Assim, por mais que ocorram fragmentações, a mídia ampliou a visão do ser
humano, sem os meios de comunicação os fatos do dia 11 de setembro e da captura de Osama
bin Laden não teriam alcançado projeção planetária instantânea como ocorreu. Walter
Lippmann disserta sobre essa limitação humana em acessar realidades distantes e a ação dos
meios de comunicação sobre eles, pois o mundo

que temos que considerar está politicamente fora de nosso alcance, fora de
nossa visão e compreensão. Tem que ser explorado, relatado e imaginado. O
homem não é um Deus aristotélico contemplando a existência em uma
olhadela. É uma criatura da evolução que pode abarcar somente uma porção
suficiente. (...) e ainda assim esta criatura inventou formas de ver o que
nenhum olho nu poderia ver, de ouvir o que ouvido algum poderia ouvir, de
considerar massas imensas assim como infinitesimais, de contar e separar
mais itens que ele pode recordar. Está aprendendo a ver com sua mente
vastas porções do mundo que ele não podia nunca ver, tocar cheirar, ouvir ou
recordar. Gradualmente ele cria para si próprio uma imagem credível em sua
cabeça do mundo que está fora do seu alcance (LIPPMANN, 2009, p.40)

Apesar da ampliação dos horizontes sociais do ser humano, o processo de


fragmentação direciona a atenção do cidadão somente a uma gama de assuntos transmitidos
por eles. Aquilo que não chega aos meios de comunicação opera como se simplesmente não
tivesse existido. “Os temas enfatizados nas notícias acabam considerados ao longo do tempo
como importantes pelo público. Em outras palavras, a Agenda da mídia estabelece a Agenda
pública”.
A conseqüência dessa análise está no fato que a Agenda midiática define em
grande parte as preocupações dos indivíduos, canalizando as energias da sociedade em
direção a um objeto ou camuflando o outro. “A informação fornecida pelos veículos
noticiosos joga um papel central na constituição de nossas imagens da realidade”
(MCBOMBS, 2009, p. 24), e acaba por definir quais se tornaram as maiores preocupações
dos indivíduos em sociedade.
Uma vez que nem os meios de comunicação nem o próprio leitor é capaz de
abarcar toda a realidade, mas apenas uma dimensão dela, a presente pesquisa busca o recurso
do “enquadramento”. Segundo Robert Entman, enquadramento é

selecionar algum aspecto de uma realidade percebida e torná-lo mais saliente


num texto comunicativo, de tal forma a promover uma definição de um
problema particular, interpretação causal, avaliação moral e/ou uma
recomendação de tratamento para o item descrito (ENTMAN, p. 52, 1993).
26

Logo, o enquadramento ajuda a identificar as representações, oferecendo o


contexto para os acontecimentos, fazendo sugestões sobre os temas pela seleção, ênfase,
exclusão e elaboração em atributos e características dos personagens. Wainberg afirma que o
enquadramento estabelece “referências utilizadas pelo público para produzir sentido e
significado dos fatos (WAINBERG, 2005, p.19)”, em resumo, estabelece a significação das
ocorrências.
A pesquisa priorizou a identificação do posicionamento e articulações dentro das
representações no contexto da captura de Osama bin Laden, identificando o enquadramento
privilegiado por cada veículo. O enquadramento foi identificado pelos principais temas
escolhidos e adotados em cada veículo. Como na Revista Veja a liderança americana na
ordem dos países democráticos, a diversidade do Islã e a defesa do secularismo. Já na Folha
de São Paulo à critica dos EUA como uma nação imperialista, que pratica a tortura sobre a
população dos países ocupados e que patrocinou o terrorismo. Evitou-se a simples rotulação
entre pró-EUA ou anti-EUA, a interpretação das reportagens tentou compreender “o que
significa” apoiar ou rejeitar a posição americana naquele contexto, e ir além indagando quais
são os valores e projetos no campo da disputa.
Para o estudo das representações sociais, se faz necessária uma leitura
transdisciplinar respeitando a complexidade do conceito. Desse modo o estudo das
representações sociais é fundamental para o conhecimento histórico, pois por determinar a
percepção da realidade social contribui para o esclarecimento dos conflitos de uma sociedade
e as relações de poder impostas por um grupo social a outro.

as representações do mundo social são sempre determinadas pelos interesses


dos grupos que as forjam. As lutas de representações têm tanta importância
quanto às lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais
um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os seus
valores, o seu domínio (ALEXANDRE, 2004, p.130).

As representações regem as relações dos indivíduos com o mundo definindo suas


identidades sociais, orientando suas ações no mundo, elegendo aliados e inimigos,
convidando à manutenção da ordem, ou ao conflito e à sua transformação.
As fontes para a pesquisa estão disponíveis nos sítios eletrônicos dos periódicos.
Foram escolhidos a Revista Veja e o periódico Folha de São Paulo por serem aqueles de
maior circulação no país segundo o IVC (Instituto Verificador de Circulação), órgão
27

responsável por medir e registrar a circulação de produtos da imprensa escrita.5 6A opção por
esses veículos dificultou a obtenção de respotsas para os objetivos iniciais, pois correspondem
a diferentes modos de produção e que chegam a diferentes públicos. Contudo, essa mesma
escolha permitiu compreender quais as representações estavam a disposição de um amplo
público.
No periódico Folha de São Paulo a morte de Osama Bin Laden é tratada a partir
de abordagens ecléticas, mas ainda assim apresentou um posicionamento predominante. O
jornal apresenta a morte de Bin Laden como manchete dos dias 02 ao dia 11 de maio de 2011
– correspondendo ao dia da publicação da Revista Veja. Ocorrem nos textos do dia 03 e 04 de
maio, as reportagens de maior volume. A Revista Veja deu a primeira página para a morte do
terrorista, sendo a reportagem principal da edição n°239, no mês de Maio de 2011. Na edição
de n° 240, encontramos os comentários dos leitores sobre os argumentos apresentados pela
revista, permitindo o estudo da recepção7.
No capítulo primeiro, analisa-se a abordagem da Revista Veja sobre a cobertura da
captura de Osama bin Laden. As reportagens apresentaram um repertório bem organizado de
representações que falam tanto da identidade ocidental, quanto representações sobre o mundo
islâmico. Assim, os valores liberais como livre iniciativa, liberdade religiosa e secularismo
são promovidos. O texto da Revista Veja dissocia o Islã da violência, deixando claro que a
agressão corresponde a uma minoria sectária e radical, não a toda comunidade de fiéis
muçulmanos. Segundo o texto, a violência não foi associada somente ao Islã, mas a toda
sociedade onde a religião se torna o valor social dominante ou o secularismo é rejeitado.
A presente pesquisa não encontrou elementos que possam justificar a existência
dessa tradição orientalista na cobertura da captura de Osama bin Laden. Em momento algum,
o oriental foi retratado como inferior, animalizado ou bestializado. A religião muçulmana não
foi classificada como oposta aos valores modernos ocidentais. A defesa dos direitos humanos
pelos EUA contra os grupos fundamentalistas islâmicos ou contra as ditaduras da região
justificaria o papel intervencionista norte-americano.
No segundo capítulo, aborda-se a cobertura da Folha de São Paulo sobre a ação
dos EUA. As reportagens apresentaram um repertório de representações que questionavam a
ação executada pelos americanos. Apesar de a Folha de São Paulo ter apresentado textos que

5
http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2014/02/1417947-instituto-ajusta-criterios-para-aferir-circulacao-de-
jornais-folha-e-lider-nacional.shtml. Acessados em: 19/06/2014
6
http://www.ivcbrasil.org.br/aPublicacoesAuditadasRevista.asp. Acessados em 19/06/2014
7
Dentro da proposta de uma pesquisa comparativa com outros eventos, a cobertura da morte do terrorista Osama
bin Laden será comparada com a cobertura de outros eventos importantes do mundo muçulmano como a
“Primavera Árabe”.
28

defendiam a ação americana, ficou marcante e dominante a presença de críticas à ação do


governo estadunidense. A liderança do presidente Barack Obama, a legitimidade da ação, as
ideias de justiça e direito internacional foram colocadas em evidência. Em alguns textos, a
ação de captura do extremista saudita foi enquadrada como um ato terrorista por desobedecer
à legislação internacional.
A Folha de São Paulo defende os valores ocidentais como liberdade de
pensamento, soberania nacional e Estado de Direito. As críticas contundentes ao governo dos
EUA explicitaram o posicionamento crítico do periódico, claramente contra a política norte-
americana de intervenção em outros países soberanos. Fica clara a diferença entre Veja e
Folha, enquanto a primeira se esforça em descrever o mundo muçulmano e dissociá-lo do
terrorismo, a segunda se direcionou para as criticas à intervenção americana e sua
legitimidade, deixando o tema do terrorismo em segundo plano. Outros temas polêmicos
foram usados para criticar a intervenção americana, a saber: as práticas de tortura utilizadas
pelo serviço secreto dos EUA, a invasão da soberania do Paquistão e o comportamento dúbio
estadunidense ao patrocinar governos autoritários que apoiavam ou ainda apóiam grupos
terroristas.
No capítulo três, analisa-se os dois veículos, e observa-se que os princípios
liberais são os seus delineadores, contudo a ênfase dada em cada texto foi diferente. Enquanto
para a Revista Veja, liberdade representou a liderança dos EUA na disseminação da
democracia e do livre-mercado, para a Folha de São Paulo liberdade é o respeito da soberania
dos Estados nacionais, justiça racional e liberdade de informação. Em ambos os textos, os
limites da ação americana são descritos, a partir de referências diferentes. Os oráculos,
descrições do futuro, do mundo governado pelos EUA e sem a ameaça de Osama bin Laden,
foi o ponto de partida para as comparações. O mesmo fato suscitou diferentes representações,
algumas positivas e otimistas sobre um futuro pacífico, enquanto em outras representações o
pessimismo descrevia um futuro de guerra contínua.
Na Revista Veja o otimismo liberal é predominante e as representações são
modeladas dentro da perspectiva do Fim da História e o Último Homem, de Francis
Fukuyama. Já na Folha de São Paulo o pessimismo em seus textos é implícito, mas muitas
representações fazem referência direta à clássica obra de Samuel Huntington O Choque de
Civilizações ao demonstrar a incompatibilidade dos valores ocidentais com a sociedade
islâmica e com o Islã político extremista que levaria a um conflito contínuo entre o ocidente e
o resto do mundo, especialmente contra o Islã.
29

A construção de oráculos, previsões, não só diferentes, mas também opostos


impõem novos questionamentos significativos, especialmente quanto à conquista da
estabilidade e paz nas relações internacionais. O assassinato de Osama bin Laden tornou o
mundo mais seguro? As intervenções americanas são legítimas, ou até mesmo necessárias?
Existem limites para o uso da força nas relações internacionais? As intervenções americanas
disseminam a democracia e a paz ou perpetuam um estado de tensão militar e guerra no
mundo. A suposta oposição entre os veículos é desconstruída ao retornar-se ao debate sobre a
liberdade, que foi sustentado nessa pesquisa pelas abordagens de Hannah Arendt na obra
“Sobre a Revolução”. O sentido e os limites do uso da razão para sustentar os argumentos de
Veja e Folha; os limites da violência para se disseminar a liberdade; a importância da questão
social em uma revolução; e a distinção entre liberdade positiva e liberdade negativa foi
utilizada reaproximar os dois periódicos superando as aparentes polarizações.
A presente pesquisa não respondeu a todos objetivos propostos, nem pretende
ser uma síntese ou um posicionamento final sobre as representações da imprensa escrita sobre
as relações entre Islã e Ocidente, especialmente EUA. As relações entre essas duas
civilizações são complexas e esta pesquisa colabora debatendo apenas uma dimensão dessa
realidade. O debate aqui construído, que inicialmente se articula a partir do pensamento do
Edward Said, mas lentamente se distanciou dele, permitiu a compreensão de como a imprensa
escrita é complexa, bem elaborada e adquire um caráter mutável diante de temas envolvendo
o mundo muçulmano. Apesar de pesquisas anteriores denunciarem o caráter orientalista dos
veículos midiáticos estudados, na presente investigação a tradição orientalista não foi
dominante percebendo outras representações, mais tolerantes sobre o mundo muçulmano, no
caso da Revista Veja, ou mais críticas em relação aos EUA, no caso da Folha de São Paulo.
30

CAPÍTULO 1
REVISTA VEJA: A CAPTURA DE OSAMA BIN LADEN E A VITÓRIA
DOS VALORES OCIDENTAIS

A captura de Osama bin Laden pode ser classificada como um evento grandioso, o
qual se impôs tanto por meio da mídia impressa quanto pela imprensa audiovisual, chegando
aos leitores brasileiros. A propósito, os consumidores da Revista Veja sempre estiveram em
contato com os eventos do mundo muçulmano por meio desse veículo8. Na cobertura da
captura de Osama bin Laden, os leitores entraram em contato com um universo de
informações que não se resumiam à captura, mas obtiveram acesso também a um conjunto
maior de informações, que lhes davam uma nova orientação da geopolítica mundial a partir
dos valores ocidentais, exigindo um posicionamento do seu leitor.
As reportagens apresentaram um repertório bem organizado de representações que
falam tanto da identidade ocidental, quanto representações sobre o mundo islâmico. Assim, os
valores liberais como livre iniciativa, liberdade religiosa e secularismo são promovidos. Sobre
a relação entre Islã e violência, o texto da Revista Veja deixa claro que a agressão corresponde
a uma minoria sectária e radical, não a toda comunidade de fiéis muçulmanos. Segundo o
texto, a violência não foi associada somente ao Islã, mas a toda sociedade onde a religião se
torna o valor social dominante ou o secularismo é rejeitado, por isso muitas vezes a República
Islâmica do Irã foi citada como inimiga dos direitos humanos promovidos pelo Ocidente.
Apesar de a interpretação do Orientalismo de Edward Said ser extremamente
conhecida e divulgada nos meios universitários, a presente pesquisa não encontrou elementos
que possam justificar a existência dessa tradição orientalista na cobertura da captura de
Osama bin Laden. Como será demonstrado neste capítulo, um dos elementos que impedem a
identificação dessa tradição foi o esforço das reportagens em tentar descrever as diferentes
sociedades muçulmanas no espaço e no tempo.
Em momento algum, o oriental foi retratado como inferior, animalizado ou
bestializado. As representações orientalistas não correspondiam a uma tradição ou a um
cânone intelectual, caracterizavam-se mais como um recurso para reforçar a defesa dos
valores ocidentais, do que como uma tentativa de separar orientais e ocidentais. A religião

8
A Revista Veja sempre trouxe às suas páginas o debate sobre o mundo muçulmano. A tese de doutorado de
Deodoro Moreira (2009), intitulada Islã e Terror, analisa a cobertura de várias revistas nacionais, incluindo a
Veja, na cobertura dos eventos e desdobramentos do dia 11 de setembro de 2001.
31

muçulmana não foi classificada como oposta a esses valores modernos, inferior ou mais
intolerante que as outras religiões, mas como dominada politicamente por elites autocráticas
ou grupos religiosos que não correspondem às verdadeiras aspirações da sociedade.
Contudo, a perspectiva da revista de enfocar os problemas derivados do
fundamentalismo religioso camufla os embates políticos e econômicos do conflito entre Islã e
Cristandade durante as cruzadas, e do Islã e o Ocidente durante o imperialismo. Essa
estratégia da revista retirou das potências imperialistas ocidentais, especialmente França e
Inglaterra, a sua parcela de responsabilidade pela desorganização geopolítica em que o mundo
árabe-muçulmano experimenta hoje9.
Desse modo, a organização de ideias do texto justifica a intervenção americana no
Afeganistão, Iraque ou na captura de Osama bin Laden como um esforço dos EUA em levar
ao Oriente a ordem internacional do Estado-nação no mundo globalizado. A legitimidade e a
soberania de um Estado foram medidas a partir da sua capacidade de proteger os direitos
humanos de seus cidadãos. Dessa forma, os EUA interviriam com o objetivo de proteger as
populações e, ao mesmo tempo, reorganizar o mundo muçulmano, tirando-o do seu quadro de
desorganização política e inserindo-o na comunidade internacional de estados democráticos.

1.1. O papel libertador/interventor dos EUA no conflito entre Oriente e Ocidente

A Revista Veja inicia a sua cobertura com uma reportagem intitulada O mundo
depois de Bin Laden, texto de autoria de Diogo Schelp10. No texto de abertura, fica claro o
posicionamento da revista, que cita um dos nomes mais importantes da civilização ocidental
no século XX:

9
O acordo de Sykes-Picot foi assinado secretamente entre a França e a Inglaterra preparando a repartição do
Crescente Fértil para depois da Primeira Guerra Mundial. Os ingleses deveriam ficar com a Palestina,
Transjordânia e o Iraque, enquanto os franceses ficariam com o Líbano e com a Síria. Ao final da guerra, o
Império Turco-Otomano foi desmembrado por essa política colonial (VISENTINI, 2012, p.18). As
independências no Crescente Fértil mantiveram as divisões territoriais coloniais que permitiram a grupos
minoritários oprimirem grupos majoritários, como a minoria sunita, que governou o Iraque, ou a minoria xiita
alawita, que governa a Síria (KISSINGER, 2015, p. 116).
10
Diogo Xavier Schelp é formado pela Universidade de São Paulo. Jornalista de política internacional; em 2014,
foi editor executivo da Revista Veja em São Paulo e apresentador do programa Mundo Livre da TVeja,
disponível no site da revista. Entre as reportagens de maior repercussão feitas por Schelp, estão O alerta dos
polos, para a qual visitou a região do Ártico com o objetivo de ver de perto os efeitos do aquecimento
global, Che - A farsa de um mito, escrito em parceria com o repórter Duda Teixeira, e Darfur - À espera de um
Salvador. Anteriormente, Schelp foi editor e repórter Internacional da revista semanal em São Paulo.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Diogo_Schelp (Acessado em 31/01/2016)
32

O premiê inglês Winston Churchill (1874-1965) dizia: “Os americanos


sempre farão o que é certo... depois de terem esgotado todas as
possibilidades”. A tirada demonstra, por um lado, a força moral que move os
Estados Unidos e, de outro, a capacidade às vezes patética de cometer
equívocos amplificados pelo gigantismo militar e econômico da
superpotência. (VEJA, 11/05/2011, p.85)

A despeito de recorrer a uma citação política do contexto da Segunda Guerra


Mundial, as palavras escolhidas por Diogo Schelp demonstram ao leitor o papel dos Estados
Unidos na ordem mundial após a Guerra Fria. Os EUA e a sua liderança mundial
representariam os princípios morais mais corretos a seguir, já que os americanos “sempre
farão o que é certo”. Pelo texto, subentende-se uma superioridade dos valores ocidentais e
uma excepcionalidade estadunidense, que garantiriam aos Estados Unidos o direito de
interferir nos variados recantos do planeta, ainda que suas ações não alcançassem sempre os
objetivos desejados. Assim, o autor nos fala de uma ordem mundial sob a égide do poder
americano. Não é a superioridade ocidental em termos raciais e étnicos, mas, sim, uma
excepcionalidade dos EUA, que espalham os valores ocidentais, os que não são incompatíveis
com a cultura dos outros povos.
Afinal, que ordem mundial Rodrigo Schelp, de forma sintética, quer descrever ao
leitor da Revista Veja? O que ela realmente significa? É a ordem de Estados soberanos, a
ordem de Westfália11, mas com um elemento diferenciado para manter a paz. Esse tratado,
manteve fragmentada a região da Alemanha, lançou as bases para o equilíbrio de poder entre
as nações, o que é aprofundado pelo Tratado de Viena (1815) (ROMANO, 2012, p. 15).
Contudo, esse mecanismo, surgido do esforço europeu para superar as guerras, deveria ser
substituído por uma paz advinda de uma comunidade de Estados baseada na democracia e nos
direitos humanos.
Nessa perspectiva, os EUA sempre agiram na condição de tutores da comunidade
de Estados, levando os países a uma paz democrática. Essa descrição de Schelp corresponde à

11
Segundo o Dicionário de Relações Internacionais, a Ordem de Westfália surgiu a partir dos Tratados de
Osnabrück e de Münster, e depois por demais tratados que se inspiravam nos dois anteriores. As negociações
desses tratados deram fim à Guerra dos Trinta anos (1618-1648) e estabeleceram o sistema de Estados europeus.
Eles representam uma ruptura na história europeia, pois inauguraram uma nova prática baseada nas negociações
multilaterais. Nos dois congressos, estavam reunidos 145 delegados, que representavam 55 entidades, durante
quatro anos de negociação, visando promover a paz e criar uma nova ordem europeia. A Paz de Westfália
(1648), ao destruir a ordem hierárquica que subordinava os príncipes aos imperadores, inaugurou em seu lugar
relações horizontais assentadas na igualdade jurídica entre os Estados, pela defesa das soberanias e pela defesa
da paz por meio da manutenção da balança do poder. A religião deixou de ser influente na política do continente
europeu e se tornou instrumento a serviço do poder do Estado. Os fundamentos do equilíbrio da balança de poder
são um padrão de relacionamento adotado por um conjunto de Estados, para inibir qualquer pretensão
hegemônica da parte de um dele e, assim, obter a manutenção do status quo e da paz (SILVA, 2010, p. 207).
33

autoavaliação, que, segundo Henri Kissinger12, o povo americano tem de si mesmo. A


perspectiva de sucesso na agenda da política externa era garantida, uma vez que os
americanos têm a convicção

[...] de que seus princípios domésticos eram claramente universais e de que


sua implementação era sempre algo positivo; de que o verdadeiro desafio do
engajamento americano no exterior não era a política externa no sentido
tradicional, mas um projeto de disseminação de valores que, na sua visão,
todos os povos aspiram reproduzir (KISSINGER, 2015, p.236).

A defesa dessa perspectiva americana sobre a ordem mundial dominada pela visão
americana de paz e soberania estará presente não somente nessa reportagem, mas em todas as
reportagens da cobertura. Mas Schelp também deixa claro que essa visão liberal norte-
americana encontrou sucessos e fracassos. O Vietnã, o Afeganistão e o Iraque foram guerras
em que os EUA se envolveram e fracassaram, tendo, como consequência, uma saída unilateral
e deixando as regiões de conflito sem nenhum avanço democrático significativo, ou pior,
dissolvendo a estrutura estatal quando existente (KISSINGER, 2015, p. 318).
Contudo, Schelp demonstra uma excepcionalidade da visão norte-americana de
ordem mundial. A vitória durante a Guerra Fria é um exemplo sólido das palavras do
colunista da Veja: durante esse conflito bipolar, os líderes políticos estadunidenses dedicaram
sua política externa à promoção da liberdade e da democracia, em oposição ao avanço dos
governos autoritários comunistas. As ideias do autor corroboram a leitura de Henri Kissinger
sobre a contribuição dos EUA durante a Guerra Fria.

12
Henry Kissinger nasceu na Alemanha, em 27 de maio de 1923. Veio para os Estados Unidos em 1938 e foi
naturalizado cidadão dos Estados Unidos em 19 de junho de 1943. De 1954 até 1971, foi membro da Faculdade
da Universidade de Harvard, tanto no Departamento de Governo como no Centro de Assuntos
Internacionais. Foi Diretor Associado do Centro de 1957 a 1960. Foi Diretor de Estudo, Armas Nucleares e
Política Externa, para o Conselho de Relações Exteriores de 1955 a 1956; Diretor do Projeto de Estudos
Especiais para o Rockefeller Brothers Fund de 1956 a 1958; Diretor do Seminário Internacional de Harvard de
1951 a 1971 e Diretor do Programa de Estudos de Defesa de Harvard de 1958 a 1971.
Kissinger escreveu muitos livros e artigos sobre a política externa dos Estados Unidos, assuntos internacionais e
história diplomática. Entre os prêmios recebidos, estão o Guggenheim Fellowship (1965-66), o Prêmio
Woodrow Wilson para o melhor livro nos campos de governo, política e assuntos internacionais (1958), o
American Institute for Public Service Award (1973), o Prêmio Esperança para a Compreensão Internacional
(1973), a Medalha Presidencial da Liberdade (1977) e a Medalha da Liberdade (1973), o Prêmio Theodore
Roosevelt (1973), os Veteranos das Guerras Estrangeiras (Dwight D. Eisenhower Distinguished Service Medal
1986).
Atuou como consultor do Departamento de Estado (1965-68), da United States Arms Control and Disarmament
Agency (1961-68), Rand Corporation (1961-68), Conselho de Segurança Nacional (1961-62), Weapons Systems
Evaluation Grupo de Chefes de Estado Maior Conjunto (1959-60), Conselho de Coordenação de Operações
(1955), Diretor do Conselho de Estratégia Psicológica (1952), Escritório de Pesquisas Operacionais (1951) e
Presidente da Comissão Bipartidária Nacional da América Central (1983- 84). Disponível em:
http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/peace/laureates/1973/kissinger-bio.html (Acessado em 9/01/2017).
34

Os Estados Unidos ajudaram a reconstruir as economias devastadas da


Europa, criaram a Aliança Atlântica (OTAN) e formaram uma rede global de
parcerias econômicas e na área de segurança. Passaram do isolamento
imposto à China para uma política de cooperação com ela. Projetaram um
sistema de livre-comércio que fomentou a produtividade e a prosperidade e
esteve (como tem acontecido por todo século passado) na linha de frente de
todas as revoluções tecnológicas do período. Estimularam formas de
governo baseadas na participação tanto em países amigos como naqueles
tidos como adversários; exerceram um papel de liderança na articulação de
novos princípios humanitários e, desde 1945, têm, em cinco guerras e em
várias outras ocasiões, derramado o sangue de americanos para realizar esses
ideais em regiões distantes do mundo (KISSINGER, 2015, p.278).

Citar as palavras de Churchill demonstra a intenção do autor da reportagem em


reconstruir o contexto mundial de excepcionalidade dos EUA, que, independentemente de
interesses materiais, impuseram os valores democráticos que constroem a ordem mundial de
Estados soberanos da atualidade. Um posicionamento claramente pró-EUA e pró-
liberalismo13.
Diogo Schelp também comunica aos leitores um otimismo típico do mundo liberal
pós Guerra Fria. Na visão dele, o século XXI representava uma nova era para a humanidade, o
mundo entraria em uma era de paz na qual apenas duas questões seriam resolvidas: “negociar
a solução de conflitos remanescentes (...) e garantir que a liberdade econômica pudesse
beneficiar uma parcela maior da população com melhorias em suas condições de vida. As
esperanças de sucesso eram justificadas”. (VEJA, 11/5/2011, p. 85).
Com o fim do comunismo, uma ordem democrática mundial iria se estabelecer
como a sociedade internacional de Estados, defendida por Kant 14. Direitos Humanos e

13
Segundo Hobsbawn, “os valores liberais são a desconfiança da ditadura e do governo absoluto; o compromisso
com um governo constitucional com ou sob o governo e assembleias representativas livremente eleitos, que
garantissem o domínio da lei; e um conjunto aceito de direitos e liberdades dos cidadãos, incluindo a liberdade
de expressão, publicação e reunião. O Estado e a sociedade deviam ser informados pelos valores da razão, do
debate público, da educação, da ciência e da capacidade de melhoria (embora não necessariamente de perfeição)
da condição humana (1995, p. 113-114).
14
Immanuel Kant (2008, p. 5-18), em sua obra A paz perpétua, escrita em 1795, estabelece um projeto filosófico
para a paz internacional. O projeto não visava ao fim de uma guerra, mas a um sistema internacional que
garantisse uma paz duradoura, ao modo de uma federação de repúblicas, uma liga das nações. Um dos princípios
necessários para se estabelecer a paz é a existência de constituições republicanas em todos os Estados, pensando
como uma sociedade de homens, na qual os cidadãos devem decidir para si próprios todos os sofrimentos da
guerra (o combate, os custos de manutenção das tropas, a devastação, a reconstrução e as dívidas que nunca
acabam). Quando o súdito não é um cidadão, fora de uma constituição republicana, a escolha da guerra pelo
chefe de Estado é simples, pois ele não é um membro do Estado, mas seu proprietário, decidindo sobre a guerra
como uma espécie de jogo que não faz desaparecer seus luxos. Assim surgiria uma federação da paz (foedus
pacificum), que estabeleceria um pacto entre os povos e, consequentemente, uma constituição civil que retiraria
o sistema internacional do estado de natureza e o submeteria ao imperativo da lei racional, baseada na liberdade
dos Estados conforme os direitos das gentes. A proposta de Kant influenciou fortemente o fim da Primeira
Guerra Mundial, a partir do presidente Woodrow Wilson, que somente aceitou a rendição alemã após a
abdicação do Imperador Guilherme II e a criação da república de Weimar, além da proposta da Liga das Nações
como organismo internacional para a manutenção da paz. Outra influência importante foi na criação da ONU e
35

liberdade econômica iriam difundir-se por todo o planeta, melhorando as condições gerais de
vida em todos os continentes e instituindo uma nova era de prosperidade geral para a
humanidade. Entretanto, para Schelp, os atentados terroristas perpetrados por Osama bin
Laden, na liderança da Al-Qaeda, retiraram o mundo da direção correta.
Por isso, a derrota da Al-Qaeda e a execução de Bin Laden não significariam
necessariamente o fim dos conflitos ou guerras, e sim, a retomada dos esforços do planeta na
direção correta, na promoção de ações para combater os problemas globais, que foi
interrompida pela luta contra o terrorismo. Nesse sentido, a morte de Bin Laden “não garante
o fim da ameaça terrorista, mas simboliza o término de um ciclo no qual o esforço por contê-
la ofuscou os outros desafios globais. (VEJA, 11/05/2011, p. 85)”. Ou seja, a visão de Diogo
Schelp comunga claramente dos valores ocidentais encabeçados pelos EUA no contexto da
ordem mundial no mundo globalizado.
Schelp afirma, contudo, que a violência proliferada após os eventos do dia 11 de
setembro de 2001 e após outros atentados liderados pela Al Qaeda permaneceriam. Isso
porque Osama bin Laden havia vencido na guerra psicológica, pois havia deixado um legado
no campo das ideias, que era “a disseminação de uma ideologia que emprega a guerra santa
contra a civilização ocidental com um fim em si mesmo, com uma vaga pretensão de
reconstruir no Oriente Médio o califado islâmico do século VII”. (VEJA, 11/5/2011, p.85-87).
Diante da universalidade da visão americana de ordem mundial, de democracia e
liberdade, a ideologia da guerra santa contra o ocidente se constitui como um inimigo a ser
derrotado, mantendo um estado de beligerância constante. Por isso, as intervenções
americanas continuam necessárias para garantir a paz mundial e a defesa dos direitos
humanos.
O texto de Diogo Schelp não é, porém, esclarecedor quanto às limitações dessa
visão americana, guiando um leitor a uma utopia de que a ordem mundial sob a liderança
norte-americana é amplamente aceita e que os direitos humanos são uma aspiração mundial
ou uma cultura universal. Na verdade, a combinação entre a ordem de Estados westfaliana e o
idealismo liberal norte-americano nunca recebeu tantos desafios como na contemporaneidade,
especialmente do fundamentalismo islâmico.
No próximo tópico, serão abordadas as criticas à ordem mundial idealizada pelos
EUA, demonstrando que essa visão não é unânime entre os estudiosos do tema, e que reflete

da Declaração dos Direitos Humanos, correspondendo à proposta de um organismo internacional para manter a
paz, formado por signatários que devem defender os direitos humanos de seus cidadãos.
36

tanto uma visão idealizada das relações internacionais quanto os interesses econômicos e
políticos dos EUA enquanto superpotência.

1.2 – Os limites da ordem mundial americana

A defesa dos direitos humanos e o direito de intervenção são um dos avanços mais
polêmicos do direito internacional atual. Na verdade, o direito de intervir em outros Estados é
um rompimento com a tradição do direito costumeiro internacional estabelecido pelas nações
europeias na Paz de Westfália e, depois, expandido para outras partes do planeta. Nesse
evento,

o Estado, não o império, a dinastia ou a confissão religiosa, foi consagrado


como a pedra fundamental da ordem européia. Ficou estabelecido o conceito
de soberania do Estado. Foi firmado o direito de cada um dos signatários
escolher a sua própria estrutura doméstica e sua orientação religiosa, a salvo
de qualquer tipo de intervenção, enquanto novas cláusulas garantiriam que
seitas minoritárias poderiam praticar a sua fé em paz, sem temer conversão
forçada (KISSINGER, 2015, p.33).

A multiplicidade, a igualdade e a soberania dos Estados eram garantidas por um


reconhecimento mútuo da legitimidade e das fronteiras, evitando o surgimento de um império
ou um centro religioso que eliminasse a diversidade política na Europa. Por mais de trezentos
anos, esse mecanismo Westfaliano, aliado ao equilíbrio de poder no continente, foi
responsável por manter a paz, e toda vez que o mecanismo foi abandonado ou a balança de
poder foi desequilibrada, a Europa imergiu em grandes conflitos militares.
Como já citado, após a Guerra Fria, a liderança americana dirigiu as decisões e os
consensos sobre a ordem internacional, que substituiu a estabilidade advinda do equilíbrio de
poder por uma paz mantida pela comunidade de nações democráticas. A consequência dessa
postura, somada às mudanças advindas da globalização econômica e dos meios de
informação, gerou uma pressão para a limitação do conceito de soberania. Por meio de
televisores, as crises humanitárias como genocídio, fome, guerras sectárias e outras formas de
violência foram informadas a todos os cantos do planeta.
Surgiu uma nova concepção de soberania:

estabeleceu-se a idéia de que, quando em situações de crises extremas, a


Comunidade Internacional adquire o direito de intervir, para ajudar
37

populações desprotegidas pelos Estados. Foram esses os argumentos que


justificaram as Intervenções Humanitárias na Somália e na Bósnia, por
exemplo (REGIS, 2006, p.10).

O conceito de soberania aos moldes westfalianos estava minado, os defensores


das intervenções humanitárias afirmavam que o direito internacional não poderia ser aplicado
para proteger regimes opressores. Surgia, assim, uma nova perspectiva sobre a legitimidade
dos Estados, que não se basearia mais no reconhecimento mútuo, mas, sim, na defesa dos
direitos humanos e na democracia.

[...] O Estado deve ser reconhecido como servente de seu próprio povo, e
não o oposto. E, ao mesmo tempo, a soberania do indivíduo deve ser
entendida como sendo as liberdades fundamentais de cada um. Conforme
prescreve a Carta da ONU, tem que ser valorizada por aqueles que acreditam
no direito de cada indivíduo de controlar seu próprio destino (REGIS, 2006,
p. 11).

Os advogados da intervenção externa, como Kofi Anam15, afirmam que a


intervenção humanitária, na defesa dos direitos humanos, não contradiz o princípio da
soberania, pois as intervenções ocorreriam em Estados falidos, sem estruturas governamentais
ativas, ou em colapso, em que suas instituições e lideranças

perdem a capacidade de controlar a política e economicamente seu território.


E suas instituições não conseguem garantir segurança, lei e ordem, infra-
estrutura econômica ou serviços públicos de saúde para sua população. As
conseqüências dessa situação são grandes. Elas vão desde problemas com
refugiados, com desabastecimento alimentar, passando pela falta de água, de
energia elétrica, até conflitos étnicos. A história revela que este tipo de
colapso é, geralmente, decorrente de guerra civil (REGIS, 2006, p. 13).

Em um mundo globalizado, os problemas humanitários regionais rapidamente


ganham proporções planetárias. As guerras no Oriente Médio, que estão levando milhares de
imigrantes ao coração da Europa; epidemias se espalham do extremo oriente juntamente com
os fluxos de mobilidade humana; terroristas se escondem entre a população comum e
atravessam as fronteiras. Em suma, garantir a defesa dos direitos em nível global seria
garantir a segurança do próprio sistema internacional de Estados soberanos.
O maior símbolo dessa nova era de soberania limitada pelos direitos humanos foi
a II Conferência dos Direitos Humanos em 1993, na cidade de Viena, onde se reuniram

15
Kofi Annam foi o sétimo secretário das Nações Unidas, entre 1997 e 2007, tendo laureado o prêmio Nobel da
Paz em 2001, juntamente com a ONU (https://en.wikipedia.org/wiki/Kofi_Annan, acessado em 31/01/2016)
38

representantes de 171 Estados e mais de duas mil organizações não-governamentais. O


resultado foi significativo em direção a uma ordem internacional caracterizada pela
comunidade de Estados soberanos democráticos.
O documento final ficou conhecido como Declaração e Programa de Ação de
Viena, e o artigo oitavo estabelece a conexão entre Direitos Humanos e democracia e sua
aplicação como universal:

8. A democracia, o desenvolvimento e o respeito pelos Direitos Humanos e


pelas liberdades fundamentais são interdependentes e reforçam-se
mutuamente. A democracia assenta-se no desejo livremente expresso dos
povos em determinar os seus próprios sistemas políticos, econômicos,
sociais e culturais e a sua participação plena em todos os aspectos das suas
vidas. Neste contexto, a promoção e a proteção dos Direitos Humanos e das
liberdades fundamentais, a nível nacional e internacional, devem ser
universais e conduzidas sem restrições adicionais. A comunidade
internacional deverá apoiar o reforço e a promoção da democracia, do
desenvolvimento e do respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades
fundamentais no mundo inteiro (DECLARAÇÃO de Viena, art.8,1993).

Se no plano teórico, a ordem internacional fundamentada na soberania limitada e


na intervenção humanitária deixou de ser considerada contraditória ou incoerente e logo se
tornou uma pedra fundamental do direito internacional, no plano prático as intervenções em
nome da democracia e dos direitos humanos carecem de credibilidade pela sua parcialidade e
seletividade.
Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira, a parcialidade deve-se ao fato de as
relações internacionais serem caracterizadas pela assimetria de poder, visto que “os preceitos
sobre crimes de guerra e crimes de lesa-humanidade, ainda que positivos, só atingem os
derrotados e os governantes de Estados débeis e pequenos”. (MONIZ BANDEIRA, 2013, p.
290). Nesse caso, os Estados fracos tornam-se os principais alvos das intervenções
humanitárias, já que, enquanto crimes humanitários perpetrados por Estados fortes não são, de
fato, julgados, os Estados débeis não possuem poder de retaliação, gerando um clima de
insegurança na comunidade internacional.
Um elemento que torna mais parcial e frágil a defesa da Intervenção Humanitária
é a sua seletividade. Mais uma vez, Luiz Alberto Moniz Bandeira demonstra a fragilidade do
argumento da Intervenção Humanitária durante a Primavera Árabe que varreu o mundo árabe-
muçulmano e derrubou ditaduras. A postura das potências ocidentais foi ambígua, pois o
direito de intervenção humanitária para proteger a população civil foi exigido apenas no caso
39

da Líbia, enquanto, nos eventos anteriores do Egito e da Tunísia, o quadro de agressão do


governo contra a população civil era praticamente o mesmo.

[...] o número de mortos na Tunísia pelo governo de Zine El-Abidine Ben


Ali fora de 300 durante o levante e de no mínimo 846, quando se
manifestavam pacificamente na Tahir Square contra o regime de Hosni
Mubarak, cujas forças de segurança – State Security Investigative Servie
(SSIS) – e a polícia continuavam a torturar e matar centenas de opositores.
As potências ocidentais não propuseram qualquer resolução para proteger a
população civil. Os rebeldes na Líbia, porém, não eram civis desarmados,
que protestavam pacificamente contra o governo como havia ocorrido na
Tunísia e no Egito [...] (MONIZ BANDEIRA, 2013, p. 299-300).

Apesar do consenso em torno da validade dos direitos humanos, a sua imposição


por intervenções humanitárias nem sempre é um fato bem aceito pelos Estados em
desenvolvimento, que veem no discurso intervencionista apenas mais uma forma de as
grandes potências ocidentais imporem a sua dominação econômica.
Immanuel Warlestein, na obra O Universalismo Europeu, estabelece uma reflexão
acerca do discurso europeu de intervenção, utilizado em outras partes do mundo como
justificativa intelectual para a expansão do capital econômico ocidental. Na maioria das
regiões do mundo,

[...] essa expansão envolveu conquista militar, exploração econômica e


injustiça em massa. Os que lideraram e mais lucraram com ela justificaram-
na a seus olhos e aos do mundo com base no bem maior que representou
para todos os povos. O argumento mais comum é que tal expansão
disseminou algo invariavelmente chamado de civilização, crescimento e
desenvolvimento econômico ou progresso. Todas essas palavras foram
interpretadas como expressão de valores universais, incrustados no que se
costuma chamar de lei natural. Por isso, afirmou-se que essa expansão não
foi só benéfica para a humanidade como também historicamente inevitável.
A linguagem utilizada para descrever essa atividade ora foi teológica, ora
derivou de uma perspectiva filosófica secular (WALLERSTEIN, 2007, p.
29-30).

Para Wallerstein, foi invocada, durante a conquista da América, a missão


evangelizadora como justificativa da dominação dos povos pré-colombianos. Durante a
Segunda Revolução Industrial, o imperialismo dominou a África e Ásia legitimado pela
missão civilizatória do homem branco europeu. E na contemporaneidade, a intervenção das
potências capitalistas é justificada como a defesa dos direitos humanos. Isto é, mudam-se os
discursos, todavia permanecem os mesmos objetivos, a mesma ambição de controlar povos e
nações.
40

No concernente à mídia, percebemos a sua capacidade de oferecer uma


perspectiva da realidade. No caso da Revista Veja, o posicionamento liberal foi claro tanto
pela defesa da visão norte-americana da ordem internacional baseada na defesa dos Direitos
Humanos, quanto pelo silêncio diante das fragilidades e das limitações desse posicionamento.
Uma das críticas que deve ser aqui destacada é o posicionamento de Samuel
Huntington em sua obra O Choque de Civilizações, talvez uma das obras mais criticadas na
geopolítica internacional, mas que sempre está sendo rememorada a cada conflito que se
constrói entre os EUA, o Ocidente e o mundo muçulmano. Independentemente da realização
dos seus prognósticos, ou profecias, a sua análise e crítica sobre a relação do Ocidente com o
resto do Mundo (civilizações não-ocidentais) são uma das leituras mais detalhadas e bem
elaboradas sobre o tema. No capítulo terceiro, “Uma civilização universal”, o cientista
político estabelece contra-argumentos à visão universalista e liberal defendida por Schelp,
afirmando que a modernização econômica e tecnológica das outras civilizações significa mais
um afastamento cultural do que uma aproximação com o Ocidente.
Para Huntington, o fim da Guerra Fria não significou necessariamente a vitória do
Ocidente, ou dos EUA. Ao contrário da disseminação de valores liberais, tidos por muitos
intelectuais como universais, o prognóstico de Huntington previa uma fragmentação do
mundo em diferentes civilizações16 que aglutinariam os Estados de acordo com as suas
afinidades culturais.

No final da década de 80, o mundo comunista desmoronou e o sistema


internacional da Guerra Fria virou história passada. No mundo pós-Guerra
Fria, as distinções mais importantes entre os povos não são ideológicas,
políticas ou econômicas. Elas são culturais. Os povos e as nações estão
tentando responder à pergunta mais elementar que os seres humanos podem
encarar: quem somos nós? E estão respondendo a essa pergunta da maneira
pela qual tradicionalmente a responderam – fazendo referência às coisas que
mais lhes importam. As pessoas se definem em termos de antepassados,
religião, idioma, história, valores, costumes e instituições. Elas se
identificam com grupos culturais: tribos, grupos étnicos, comunidades
religiosas, nações e, em nível mais amplo, civilizações. As pessoas utilizam
a política não só para servir aos seus interesses, mas também para definir
suas identidades. Nós só sabemos quem somos quando sabemos quem não
somos e, muitas vezes, quando sabemos contra quem estamos
(HUNTINGTON, 1998, p. 20).

16
Para Huntington, civilizações são entidades culturais mais amplas e se definem por elementos objetivos
comuns, tais como língua, história, religião, costumes, instituições e pela auto-identificação subjetiva das
pessoas. A civilização coexiste com vários níveis de identidades (regional, religiosa, nacional e continental),
sendo a civilizacional o nível mais amplo de identificação. As identidades civilizacionais não possuem fronteiras
definidas, são dinâmicas, se somam ou se fragmentam, se transformam com o tempo, e interagem entre si. Desse
modo, são entidades finitas que se encaixam em uma longa duração. As principais civilizações pós-Guerra Fria
são a Sínica, Japonesa, Hindu, Islâmica, Ortodoxa, Ocidental e Latino-americana (1998, p. 44-52).
41

Seguindo os argumentos de Huntington, a construção de uma sociedade universal


baseada em valores hegemônicos ocidentais, como liberalismo e secularismo, seria
impossível. Diante da falência da utopia comunista que ocorre junto com a queda do Muro de
Berlim, o mundo seria redesenhado a partir de linhas culturais e civilizacionais, os conflitos
econômicos passariam para o segundo plano, enquanto os conflitos entre povos de diferentes
civilizações se tornariam predominantes.
A hegemonia e poderio americano não seriam confirmados após a Guerra Fria. A
geopolítica internacional seria marcada pelo declínio da influência do Ocidente em relação às
demais civilizações. Desde o século XIX, a história da humanidade teria sido a civilização
ocidental influenciando as demais civilizações, contudo, após a Guerra Fria, a história seria
marcada pelo ocidente na defensiva reagindo às mudanças nas demais civilizações que
buscam a expansão econômica e política.

O Ocidente é e continuará a ser por muitos anos a civilização mais poderosa.


Contudo, seu poder em relação ao de outras civilizações está declinando. À
medida que o Ocidente tenta impor seus valores e proteger seus interesses, as
sociedades não-ocidentais se defrontam com uma escolha. Algumas tentam
emular o Ocidente e a ele se juntar ou “atrelar-se” a ele. Outras sociedades
confuncianas e islâmicas tentam expandir seu próprio poder econômico e
militar para resistir e “contrabalançar” o Ocidente. Desse modo, um eixo
central da política mundial pós-Guerra Fria é a interação do poder e da
cultura ocidentais com o poder e a cultura de civilizações não-ocidentais
(HUNTINGTON, 1998, p. 29).

Consoante Huntington, a ideia de uma civilização universal é um comportamento


tipicamente ocidental, seja pela conversão religiosa, pela missão civilizatória ou pela
supremacia da cultura ocidental. Assim, o universalismo é uma ideologia tipicamente do
ocidente para confrontar e negociar com sociedades e culturas diferentes. Como uma ideia
própria da civilização ocidental e de seus contextos históricos, as demais civilizações não
percebem o universalismo cultural da mesma forma. A noção de uma civilização universal

encontra pouco apoio em outras civilizações, os não-ocidentais vêem como


ocidental o que o Ocidente vê como universal. Aquilo que os ocidentais
alardeiam como uma benfazeja integração global, tal como a proliferação da
mídia em escala mundial, os não ocidentais condenam como pernicioso
imperialismo ocidental. Na medida em que não-ocidentais vêem o mundo
como um só, eles o consideram uma ameaça (HUNTINGTON, 1998, p.78).
42

Huntington também ataca outro argumento em favor de uma civilização universal:


a ideia de que a modernização17 gerará a uniformização do planeta, criando uma sociedade
moderna global. Porém, o autor afirma que a identificação entre modernidade e ocidente é
falsa, pois o ocidente adquire sua identidade entre os séculos VIII e IX, e ele se moderniza
apenas nos séculos XVII e XVIII. “As características fundamentais do Ocidente, aquelas que
o distinguem das demais civilizações, antecedem a modernização do Ocidente”.
(HUNTINGTON, 1998, p. 82)18.
Assim, a modernização pode ser separada ou não da ocidentalização de acordo
com as estratégias e os contextos de cada sociedade que deseja se posicionar na geopolítica
internacional: podendo rejeitar o Ocidente ou adotá-lo integralmente. Ainda que inicialmente
conectadas, a modernização e a ocidentalização levam ao revigoramento das sociedades
nativas, que, a longo prazo, desenvolvem uma autoconsciência e geram uma maior confiança
e um maior compromisso com a cultura nativa, além de fortalecerem laços tradicionais para
substituir o vazio e a insegurança gerada pelas mudanças da modernização. No nível
societário,

a modernização amplia o poder econômico, militar e político da sociedade


como um todo e incentiva as pessoas dessa sociedade a terem confiança na
sua cultura e se tornarem culturalmente afirmativas. No nível individual, a
modernização gera sentimentos de alienação e anomia, à medida que laços
tradicionais e relações sociais são rompidos, e conduz a crises de identidade,
para as quais a religião dá uma resposta (HUNTINGTON, 1998, p.91).

A argumentação de Huntington não é um ponto final no debate sobre o


universalismo ocidental, contudo ela invalida o sentimento de otimismo liberal, reproduzido
na reportagem de Diogo Schelp, ao demonstrar os variados obstáculos existentes. A
modernização não é uma garantia de que democracia e liberalismo serão generalizados. De
forma inversa, a modernização fortalece as sociedades nativas e dá altivez a esses povos,

17
Huntington afirma que a modernização envolve industrialização, urbanização, alfabetização crescente,
educação, riqueza, mobilidade social e estruturas ocupacionais mais complexas e diversificadas. A modernização
se origina da expansão do conhecimento científico no século XVIII, rompendo os laços com as estruturas de
sociedades tradicionais. A oposição de Huntington se deve à idéia de que o Ocidente sendo a primeira
civilização a se modernizar levaria as demais civilizações a adquirir padrões semelhantes, transformando a
cultura ocidental em uma cultura mundial. Para Huntington, a modernização levaria ao caminho oposto, que é a
diferenciação das demais civilizações.
18
O Ocidente, para Huntington, possui variadas características e se identifica, principalmente, não unicamente,
com o legado greco-romano, divisão entre católicos e protestantes, pluralidade linguística, separação entre
religião e Estado, a tradição do direito natural, pluralidade social, formação de corpos representativos e
individualismo. Por isso, para Huntington, ser moderno é diferente de ser ocidental.
43

estimulando a busca de soluções próprias, adaptadas à cultura autóctone, para os desafios de


se adaptar aos novos contextos advindos da modernização.
Nesse contexto, a Revista Veja aprofunda sua perspectiva liberal nas demais
reportagens, fugindo dos antigos estigmas orientalistas. Para isso, o periódico se apoia em um
dos maiores pesquisadores da temática dos estudos das relações entre Oriente e Ocidente:
John Esposito. Além disso, vale mencionar, a Revista oferece a imagem de um Islã
diversificado, pacífico, progressista e amigável em relação ao Ocidente. Como será visto no
próximo tópico, a coerência da Revista Veja se mantém ao dissociar o Islã do terrorismo e,
concomitantemente, restringir as práticas de violência a uma minoria sectária, que sequestrou
a fé de uma maioria pacífica.

1.3 O terrorismo como o maior inimigo do Islã

A perspectiva liberal da Revista Veja foi além na defesa dos Direitos Humanos.
Na segunda reportagem assinada por John Esposito 19, intitulada Bin Laden, o pior inimigo do
Islã, há um esforço da revista em desvincular a religião tradicional muçulmana das práticas
terroristas, descrevendo os muçulmanos, e não o Ocidente, como os principais prejudicados
pelo avanço do terrorismo. Para o autor, a islamofobia se tornou uma das principais sequelas
deixadas de herança por Osama bin Laden:

Sua declaração de guerra aos Estados Unidos e à Europa, aos judeus e aos
cristãos e seu apoio aos atos de terrorismo no mundo agrediram a fé da vasta
maioria de muçulmanos. Ao fazer isso, Bin Laden alterou profundamente a
maneira como as pessoas de outras religiões enxergam o islamismo. Muitas
dessas pessoas passaram a associar o Islã à legitimação da violência e ao
terrorismo. Como resultado, fortaleceu-se a idéia de que o islã e o ocidente
são incompatíveis, um conceito que vem sendo usado por demagogos e
fundamentalistas de outras religiões como evidência irrefutável de que
estamos diante de um “choque de civilizações”. Aumentaram, então, as
demonstrações de preconceito contra o Islã e os muçulmanos, que incluem a
discriminação nos locais de trabalho, a restrição de liberdades civis de
muçulmanos no Ocidente e até crimes motivados pelo ódio. (VEJA,
11/5/2011, p. 96-97)

A islamofobia já era presente no continente europeu muito antes do advento da


violência terrorista praticada por Osama bin Laden, associada às diferenças culturais e

19
John Louis Esposito é professor de Relações Internacionais e Estudos islâmicos na Universidade de
Georgetown. E também é o diretor do Centro Príncipe Alwaleed para o entendimento entre muçulmanos e
cristãos na Universidade de Georgetown (https://es.wikipedia.org/wiki/John_Esposito) acessado em 31/01/2016)
44

religiosas e às preocupações econômicas pela busca de emprego. Todavia, adicionou-se “a


preocupação com a segurança e a crescente lista de violências perpetradas por (ou atribuídas
a) fundamentalistas muçulmanos e, por associação, a seus correligionários na Europa.”
(DEMANT, 2004, p.180). Tanto para Esposito quanto para Demant, a violência do terrorismo
transforma a comunidade de praticantes do Islã em vítimas que perdem suas liberdades diante
do medo e desconfiança que outros povos desenvolveram. Desse modo, a tendência para a
xenofobia e islamofobia se amplia, sobretudo na Europa, em Israel e nos EUA, eleitos por
Osama bin Laden como os inimigos da fé islâmica.
A existência de comunidades muçulmanas nos EUA sempre foi um fato discreto,
que não era visto como uma ameaça ao grupo nativo, contudo a radicalização política e
religiosa perpetrada pelos grupos terroristas deu uma maior ênfase para a presença dos grupos
muçulmanos existentes dentro dos EUA. No caso europeu, a presença de comunidades
muçulmanas se amplia desde o período da descolonização nas décadas de 1960 e 1970. Os
muçulmanos se tornaram competidores por vagas de emprego e serviços de assistência social,
e os atentados terroristas catalisaram as hostilidades das populações nativas a partir de uma
pseudopercepção da incompatibilidade entre o Islã e os valores europeus de secularismo e
democracia.
Tanto nos EUA quanto na Europa, o Islã praticado pelos imigrantes asiáticos e
africanos se tornou cada vez mais visto como a religião do outro, estrangeira e violenta. A
relação entre imigrantes e nativos se tornou cada vez mais problemática. John Esposito, em
seu livro What everyone needs to know to about Islam, demonstra como o avanço do
fundamentalismo no Oriente Médio e no subcontinente indiano alterou a vida das minorias
muçulmanas no Ocidente.
Nos EUA, durante muitas décadas atrás,

Os muçulmanos eram quase invisíveis no Ocidente. Havia pouca consciência


da presença ou relevância do Islã nas sociedades ocidentais. Uma maior
consciência do Islã surgiu principalmente como resultado de conflitos, como
a Revolução Iraniana, bem como o seqüestro e tomada de reféns no Líbano,
no Golfo e no Paquistão. Alguns viram esses eventos como sinais de uma
ameaça islâmica ou um choque de civilizações, o Islã contra o Ocidente 20
(ESPOSITO, 2002, p.172).

20
Muslims were mostly invisible in the West. There was little awareness of the presence or relevance of Islam in
Western societies. Greater consciousness of Islam emerged principally as a result of conflicts such as the iranian
revolution, as well as hijacking and hostage taking in Lebanon, the Gulf, and Pakistan. Some saw these events
as signs of an Islamic threat or a Clash of civilizations, Islam versus the West 20 (ESPOSITO, 2002, p.172).
45

Assim, o relacionamento dos estadunidenses com os muçulmanos foi visto pelas


lentes do conflito e da confrontação, o Islã “foi visto como uma religião estrangeira, distinta
da tradição judáico-cristã”21(ESPOSITO, 2002, p.172). Qualquer tentativa de diálogo
intercultural foi dificultada, pelo crescimento do fundamentalismo e dos atos praticados por
grupos de extremistas muçulmanos.
Na reportagem, Esposito oferece dados estatísticos evidenciando como a
percepção dos norte-americanos acerca do mundo muçulmano foi prejudicada pelo
terrorismo. Muitas pesquisas de opinião detectaram

uma tendência real e persistente de os americanos enxergarem o Islã e os


muçulmanos através das lentes do extremismo. O instituto Gallup mostrou
em 2010 que 53% dos americanos vêem o islã de forma negativa. (VEJA,
p.96-97 – “Bin Laden: o pior inimigo do Islã)

O medo e a desconfiança passam a ser sentimentos comuns e o Islã é julgado


como violento, transformando a fé pacífica de uma maioria em refém do ódio e da violência
de uma minoria extremista. Nos EUA, o muçulmano se encontra como uma minoria vítima da
alienação, marginalização e preconceito de uma maioria que ignora muitos aspectos do Islã.
Em seu livro, Esposito descreve o caso europeu, destacando como a presença dos
muçulmanos se fez presente desde a expansão do Islã na Idade Média. Mas ele realça como a
Europa recebeu uma de suas maiores levas de imigrantes nas décadas de 1960 e 1970, quando

Os trabalhadores não qualificados inundaram uma Europa cuja crescente


economia tinha necessidade de mão de obra barata. Mais de um milhão de
muçulmanos, muitos das antigas colônias do Norte Africano e do Oeste
Africano da França, foram admitidos somente para a França. Alemanha e
Grã-Bretanha tinham histórias semelhantes 22 (ESPOSITO, 2002, p.176).

Dessa maneira, após a Segunda Guerra Mundial, milhares de muçulmanos,


oriundos das antigas colônias, serviam aos interesses europeus como um contingente
numeroso de mão de obra necessária para alimentar o crescimento econômico do período. Na
Inglaterra, a integração dos muçulmanos na vida comunitária e política se contrapõe aos
conflitos enfrentados na França, marcada pela exclusão política e pela defesa do secularismo,
que ganhou notoriedade pela proibição do véu nas escolas públicas.

21
The Islam was viewed as foreign religion, distinct from the Judeo-Christian tradition O Islã foi visto como
uma religião estrangeira, distinta da tradição judáico-cristã.
22
unskilled laborers flooded into a Europe whose growing economies were in need of cheap labor. More than a
million Muslims, many from France‟s former North African and West African colonies, were admitted to France
alone. Germany and britain had similar stories.
46

Não obstante, com o fim do crescimento econômico, a população muçulmana


deixou de ser vista como uma colaboradora e passou a ser vista como uma concorrente.
Cresceu na França, antes mesmo dos atentados do dia 13 de novembro de 2015 em Paris23,
uma oposição da direita nacionalista com sua retórica antiestrangeira. A antiga força de
trabalho estrangeira, que foi bem-vinda durante o período de expansão econômica,

tornou-se um conveniente bode expiatório, acusado de roubar "Trabalho


Francês". Em meio ao desemprego crescente, a Frente Nacional de Jean-
Marie Le Pen defendida a expulsão forçada de três milhões de imigrantes,
bem como prioridade em emprego, benefícios de habitação e bem-estar para
o francês nativo (tradução própria).24 (ESPOSITO, 2002,p.178).

Esposito reconstrói seus argumentos na reportagem da Revista Veja afirmando


que o terrorismo somente piorou a visão que os Europeus tinham do Islã. Para o autor da
reportagem, as maiores vítimas do terrorismo são a maioria pacífica dos muçulmanos que

rejeita a versão do Islã propagandeada por Bin Laden e percebe o seu


fracasso e de outros terroristas. Eles não ajudaram em nada a luta por
mudanças políticas. Só contribuíram para que o ódio ao Islã se aprofundasse
no Ocidente. Novos partidos anti-imigrantes e principalmente anti-islâmicos
se saíram bem nas últimas eleições europeias. (VEJA, p.96-97 – “Bin Laden:
o pior inimigo do Islã).

O autor demonstra, ainda, como o terrorismo se tornou um catalisador do


preconceito e incompreensão em torno do Islã e das minorias muçulmanos que habitam a
Europa e os EUA. Além de problemas como as diferenças religiosas e culturais, ou a
concorrência por empregos em tempos de estagnação econômica, os atos de terror dos
extremistas muçulmanos aumentaram a percepção de que Islã e Ocidente se encontram em um
choque de civilizações.

23
Os ataques de novembro de 2015 em Paris foram uma série de atentados terroristas ocorridos na noite de 13
de novembro de 2015 em Paris e Saint-Denis, na França. Os ataques consistiriam de fuzilamentos em
massa, atentados suicidas, detonações de explosivos e uso de reféns. Ao todo, ocorreram três explosões
separadas e seis fuzilamentos em massa, incluindo bombardeios perto do Stade de France no subúrbio ao norte
de Saint-Denis. O ataque mais mortal foi no teatro Bataclan, onde os terroristas fuzilaram várias pessoas e
fizeram reféns até o início da madrugada de 14 de novembro. Pelo menos 137 pessoas morreram (incluindo os 7
terroristas que perpetraram os ataques), sendo 89 delas no teatro Bataclan. Mais de 350 pessoas ficaram feridas
pelos ataques, incluindo 99 pessoas em estado grave. Além das mortes de civis, sete erroristas foram mortos e as
autoridades continuavam a procurar quaisquer cúmplices que permaneceram
soltos. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Ataques_de_novembro_de_2015_em_Paris acessado 30/5/2016)
24
became a convenient scapegoat, charged with stealing “French Jobs”. Amidst growing unemployment, Jean-
Marie Le Pen‟s National Front advocated the forced expulsion of three million immigrants, as well as prioity for
native French in Jobs, housing, and welfare benefits.
47

O leitor, gradativamente, constrói uma narrativa linear entre os textos da revista,


de acordo com a ordem das reportagens. Com Diogo Schelp, a Revista Veja havia destacado a
importância dos EUA na construção de uma ordem liberal e democrática após a Guerra Fria, e
também a legitimidade de seu papel interventor para a defesa dos direitos humanos pelo
planeta. A reportagem de Esposito endossou que os muçulmanos não são terroristas, muito
menos incompatíveis com a democracia, mas, sim, as maiores vítimas dos conflitos incitados
pelos extremistas, pois se tornam alvos dos preconceitos e da incompreensão, principalmente
de europeus e norte-americanos.
A coerência entre as duas reportagens somente reafirma o papel interventor dos
EUA, já que ele se faz legítimo ao proteger os próprios muçulmanos que também são vítimas
do terror. A construção da narrativa da revista colocou muçulmanos e ocidentais como
vítimas de um algoz comum, o extremista religioso. Diante dessa argumentação, qualquer
intervenção norte-americana contra os agentes do terrorismo é legítima, e o seu papel
libertador se faz necessário para a segurança do mundo.
As reportagens deixam claro o esforço do periódico em construir uma imagem
positiva do Islã, muito distante das imagens orientalistas comumente reproduzidas na mídia 25.
A menção ao especialista John Esposito é fundamental, uma vez que é um dos poucos
pesquisadores apontados por Edward Said, na obra Covering Slam, como um defensor de uma
leitura mais realista e menos estigmatizante das sociedades muçulmanas. O Islã diverso e
humano defendido por Esposito encontra-se presente nas demais reportagens da revista, que
será abordado no próximo tópico.

25
Outros estudos sobre a mídia impressa identificaram o peso da tradição orientalista em jornais e revistas
nacionais. Durante a cobertura do atentado terrorista de “11 de setembro de 2001” e os seus desdobramentos,
muitas pesquisas identificaram a associação entre Islã e a violência. Esse debate foi pesquisado por Deodoro
Moreira, nas revistas Veja, Istoé, Época e Carta Capital. Sua conclusão foi que os periódicos se tornaram
veículo de representações estigmatizantes: o Islã irrompe no imaginário ocidental interpretado como uma ameaça
verdadeira e carregado de negatividade. Outra pesquisa, envolvendo a imprensa escrita, foi a dissertação de
mestrado de Isabelle Christine Somma de Castro que analisou as reportagens dos periódicos Folha de São Paulo
e o Estado de São Paulo seis meses antes e seis meses após os atentados do dia 11 de setembro. Sua conclusão
entrou em consonância com a pesquisa de Deodoro Moreira, pois ela percebeu que, especialmente após os
atentados do dia 11 de setembro de 2001, ambos os jornais difundiram estereótipos que associavam os
muçulmanos ou o Islã ao terrorismo, violência e à opressão.
48

1.4 A diversidade do Islã: o multiculturalismo e o secularismo legitimando o pensamento


liberal

Até o presente momento, fica perceptível o esforço da Revista Veja em se


posicionar claramente ao lado do pensamento liberal pró-EUA. Outra característica
importante foi a ausência de categorias orientalistas na composição dos textos. O fato de a
revista recorrer a especialistas, como John Esposito, indica a preocupação dos editores com a
credibilidade e qualidade da informação.
Na reportagem subsequente, o diálogo entre a perspectiva pró-liberal e secular de
Schelp é combinado com a concepção do Islã pacífico e multicultural de Esposito. No texto
intitulado Qual o Islã?, a Revista Veja é digna de mérito por tentar demonstrar a diversidade
do islã no espaço e no tempo, descrevendo sucintamente desde a comunidade fundada pelo
profeta Maomé até a versão religiosa da Nação do Islã praticada pelos muçulmanos negros
dos EUA. Outra estratégia da revista foi a combinação de imagens que não focou apenas o
atraso ou o fanatismo religioso, mas também as cidades modernas e as atividades de
muçulmanos comuns.
A reportagem foi uma obra coletiva assinada por Ana Cláudia Fonseca 26, Duda
Teixeira27 e Júlia Carvalho28, entretanto a estratégia discursiva foi idêntica à utilizada por
John Esposito no livro What everyone needs to know to about Islam, que foi organizado, de
forma didática, por meio da estrutura de perguntas e respostas. Os autores mantiveram muitos
questionamentos e respostas semelhantes ao livro de Esposito, contudo outras perguntas
diferentes foram adicionadas na reportagem.
O fato da Revista Veja apresentar semelhanças entre Islã e o cristianismo, inseri-
lo na tradição judaico-cristã, dissociá-lo do terrorismo, destacar a diversidade muçulmana e
seus aspectos concomitantemente tradicionais e modernos afasta a caracterização do corpo
dessas reportagens como pertencente à tradição orientalista descrita pelos critérios de Edward
Said. Em sua obra, O Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente, Said foi

26
Jornalista com 20 anos de experiência. Passou por veículos como Veja, Época e Thomson Reuters, sempre
trabalhando nas editorias de Internacional, Economia e Cultura (https://br.linkedin.com/in/ana-claudia-fonseca-
66968238).
27
Duda Teixeira é um jornalista brasileiro, formado pela Universidade de São Paulo. É editor de temas
internacionais da revista Veja em São Paulo e autor de inúmeras reportagens, especialmente sobre a América
Latina, como Che - A farsa de um mito, escrito em parceria com o editor de Internacional Diogo Schelp
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Duda_Teixeira acessado em15/5/2016).
28
. Jornalista com cinco anos de experiência em reportagem para diversos veículos, incluindo a revista Veja e o
portal EXAME.com. Produção de conteúdo para sites institucionais para organizações como a Global Peace
Foundation Brasil. Revisão e edição de textos para a Editora Manole
(https://www.workana.com/freelancer/864b1c690d801723a0450b11a32af3b2 acessado em 15/5/2016)
49

influenciado pelos estudos realizados por Norman Daniel29 e analisou obras produzidas por
europeus que retratavam os orientais e concluiu que, sob esse prisma, o Oriente era quase uma
invenção europeia, e fora, desde a antiguidade, um lugar de romance, de seres exóticos, de
memórias e paisagens obsessivas (SAID,1990, p.13). Sendo assim, o Oriente não passava de
um discurso europeu, depois incorporado também pelos norte-americanos, inventado acerca
de um antigo concorrente cultural que ajudou a definir a identidade da Europa, como sua
imagem, ideia e experiência de contraste.
Edward Said apresenta três sentidos básicos para o orientalismo. O primeiro
sentido é acadêmico, o orientalismo é visto como um campo de estudos eruditos. O
orientalista é aquele que estuda especialmente o Oriente Médio. Nesse sentido, de uma
maneira geral, até certa altura do século XVIII, os orientalistas eram estudiosos bíblicos,
estudantes de idiomas semíticos, especialistas islâmicos e até sinólogos.
Portanto, o orientalismo poderia abranger muitos estudos, um campo bastante
eclético, não se limitando ao universo acadêmico. A partir do final do século XVIII, os
estudos acerca do Oriente encontraram nas instituições acadêmicas um poderoso impulso,
ganhando legitimidade científica e se institucionalizando como uma disciplina, geralmente
intitulada “Estudos Orientais”.
O segundo sentido atribuído pelo autor é o orientalismo como um estilo de
pensamento baseado em uma distinção ontológica feita entre o “Oriente” e (a maior parte do
tempo) o “Ocidente” (SAID, 1990, p.14). Nesta acepção, desde muito cedo, o Oriente é
imaginado como uma terra de sonhos, prazeres e fantasias, um fato cultural e imagético,
caricaturado para a representação de um outro, para o consumo de uma Europa que, em
grande medida, modelou sua identidade na diferenciação frente a esse estranho domesticado.
Essa distinção estabelece o orientalismo como um discurso mitificante, que cria um Oriente
imaginário. Nesta formação discursiva, o oriental é descrito como atrasado e retrógrado,
inferior e imutável.
Entretanto, ainda para Said, essa mitificação não é inocente, mas se fundamenta
em uma relação de dominação. Tem-se aí, então, o terceiro sentido, mais materialmente
definido, dado por ele para o orientalismo, que pode ser percebido e analisado

29
Norman Daniel foi um eminente historiador sobre a Idade Média e sobre relações interculturais. Educado na
Rainha College, Oxford, e na Universidade de Edimburgo, seus livros incluem: “Islã e o Oeste”;“Os árabes e
Europa Medieval”; “A barreira cultural”; “Heróis, sarracenos e Islamismo: Influência no passado e futuro
desafios” (https://www.oneworld-publications.com/authors/norman-daniel” acessado em 15/5/2016).
50

(...) como a instituição organizada para negociar com o Oriente – negociar


com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele,
descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o orientalismo
como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o
Oriente (SAID, 1990, p. 15).

Neste último sentido dado pelo autor, o orientalismo se torna quase sinônimo do
empreendimento imperialista franco-britânico. Aqui, a cultura europeia imperial produziu um
discurso que, entre outras coisas, refletiu uma situação de poder e hegemonia sobre o Oriente.
Assim sendo,

O orientalismo, portanto, não é uma fantasia avoada da Europa sobre o


Oriente, mas um corpo criado de teoria e prática em que houve, por muitas
gerações, um considerável investimento material. O investimento continuado
fez do orientalismo, como sistema de conhecimento sobre o Oriente, uma
tela aceitável para filtrar o Oriente para a consciência ocidental, assim como
esse mesmo investimento multiplicou – na verdade tornou realmente
produtivas – as declarações que proliferavam a partir do Oriente para a
cultura geral (SAID,1990, p.18).

Tal sistema de poder e conhecimento se assenta em importantes instituições, como


universidades e administrações coloniais, além de publicações de livros e periódicos
especializados, entre outros, e é nitidamente baseado no conceito de hegemonia da Europa
sobre o resto do mundo. Como corolário dessa formação conceitual, tem-se também as ideias
de superioridade europeia sobre outros povos e culturas, bem como a ideia do atraso e da
inferioridade oriental.
De acordo com Said, o repertório de representações que desqualificam o Oriente,
notadamente o Islã, surgiu na Idade Média, após o advento da religião dos muçulmanos.
Recorrendo à obra de historiadores como Norman Daniel e R. Southern, o autor afirma que
essa fé religiosa era vista como uma versão fraudulenta do cristianismo. Maomé, o seu
profeta, era tido como um impostor, disseminador de uma falsa revelação e tornou-se
sinônimo de lascívia, devassidão e sodomia.
Desse modo, para classificar a Revista Veja como reprodutora de uma tradição
orientalista que opera como um instrumento de poder dos EUA sobre o Oriente, seria
necessária a identificação de representações do muçulmano como o outro inferior, estranho,
distante e bárbaro. Ou, talvez, encontrar representações do mundo muçulmano que o
descrevam como violento; opressor de mulheres e minorias; fanático; e religiosamente
intolerante, mas nenhuma dessas menções foi encontrada.
51

Até agora, nas reportagens assinadas por Diogo Schelp e John Esposito, a imagem
dos muçulmanos é apresentada não como a imagem do outro/inferior, mas como uma
civilização em crise, vítima de uma minoria fundamentalista, o que é um obstáculo para o
desenvolvimento de uma sociedade secularista e liberal no Oriente Médio. Assim, a Revista
Veja segue coerentemente com a reportagem Qual o Islã?, apresentando, de forma positiva, a
diversidade do Islã na sua geografia e história, e suas semelhanças e diferenças com o
Ocidente.
Na abertura da reportagem, a complexidade e riqueza do Islã são visíveis.
Apresentam-se imagens de inúmeros personagens muçulmanos influentes do século XX, por
exemplo o rei do basquete Kareen Abdul Jabbar, o surfista brasileiro Jihad Kodr, o campeão
do boxe Cassius Clay, a Rainha Rânia da Jordânia e o cantor pop Ysuf Islam (Cat Steven,
antes de se converter). Com essa estratégia, os autores criam uma relação de empatia com a
religião muçulmana, pois mostram imagens de personagens proeminentes, que se destacam
nas suas atividades esportivas e culturais. É uma estratégia visual totalmente oposta às
imagens orientalistas, que retratam muçulmanos com turbantes, barbas e armas empunhadas.
No início do texto, a estratégia textual é inspirada em John Esposito, visto que há
uma tentativa de indicar muçulmanos, judeus e cristãos como pertencentes de uma tradição
monoteísta, comum, herdada do patriarca Abraão. Dessa maneira, as três grandes religiões
“têm um ancestral, o imponente profeta Abraão, da nona geração de Sem, um dos filhos de
Noé que sobreviveram às águas do dilúvio”. (Revista Veja, p. 101, Qual o Islã?).
A tentativa de construir uma identificação comum é uma forma de afastar a
percepção de que o Islã é o outro estranho e ameaçador, isto é, afirmar, no texto, uma
abordagem de cunho orientalista seria uma falácia. Embora não seja atribuída a inspiração
argumentativa de algumas sentenças do texto à obra de Esposito, pode-se observar uma
intertextualidade com a sua obra What everyone needs to know to about Islam.
No prefácio do seu texto, Esposito argumenta que o encontro entre o Ocidente e o
Islã não se dá entre duas civilizações opostas que se encontram em um choque ou guerra, mas,
inversamente, judeus, cristãos e muçulmanos são

filhos de Abraão, parte de uma tradição judaico-cristã-islâmica. O mundo do


Islã é global; suas capitais e centros não são apenas Cairo, Damasco, Mecca,
Jerusalém, Istambul, Islamabad, Kuala Lumpur, e Jacarta, mas também é
52

Londres, Paris, Marselha, Bonn, Nova York, Detroit e Washington30


(ESPOSITO, 2002, p. XV).

Esposito coloca que o Islã não está distante da experiência cotidiana da civilização
ocidental, pelo contrário esta é impregnada e atravessada pela sua presença. Muçulmanos se
espalham pelo mundo e se encontram não só nas principais metrópoles orientais, mas também
nos centros econômicos e culturais da sociedade ocidental.
As autoras caracterizam o fundamentalismo e o extremismo dos terroristas como
um elemento doentio encontrado em qualquer religião. A partir daí, ocorre a contribuição
intelectual das repórteres em relação a Espósito, a defesa do liberalismo, elemento típico da
Revista Veja se torna ainda mais visível ao defender a religião como elemento da vida
privada.

Os exegetas não podem admitir, mas a história mostra que, quanto menos
invasiva é a religião no dia a dia das pessoas, melhor as sociedades vivem,
mais colorida e diversificada é a vida e mais rápidos são os avanços éticos,
morais, políticos e tecnológicos. O Islã não escapa dessa constatação. O
período mais rico da história do islamismo floresceu em um tempo em que
os religiosos não tinham poder total sobre todas as esferas da vida em
sociedade. Isso ocorreu na dinastia abássida, que, a partir de Bagdá, foi
dominante entre os anos de 750 e 1258 (Revista Veja, Qual islã? p.100-111).

A estratégia textual dos autores começa a se delinear com a defesa do secularismo


e do multiculturalismo. A religião islâmica não é alvo de críticas, como fraudulenta, violenta
ou machista. A crítica da Revista Veja se faz contra toda forma de religião que tenta se impor
sobre a sociedade em detrimento do secularismo. Desse modo, a defesa dos valores ocidentais
não se faz pela rejeição ao Islã, mas na estratégia de igualá-las às demais manifestações
religiosas de origem abraânica. Outro mérito foi o elemento pedagógico que a revista
construiu ao caracterizar a dinastia abássida como uma experiência promotora de uma
tolerância e respeito à diversidade religiosa no mundo muçulmano.
As autoras continuam com a sua estratégia demonstrando de forma resumida os
contextos históricos nos quais o Islã se aproxima da experiência ocidental de secularismo,
quando coloca os instrumentos da razão acima da religião. Em uma época em que só crianças
europeias nobres ou muito ricas eram educadas por tutores em casa,

30
Washington children of Abraham, part of a Judeo-Christian-Islamic tradition. The world os Islam is global; its
capitals and centers are not only Cairo, Damascus, Mecca, Jerusalem, Istanbul, Islamabad, Kuala Lumpur, and
Jakarta but also London, Paris, Marseilles, Bonn, New York, Detroit and Washington.
53

a capital abássida tinha colégios públicos nas 30000 mesquitas, onde


professores davam aulas sobre Platão e Aristóteles. Livres-pensadores
chegaram à conclusão naquele tempo de que o Corão fora criado em parte
pelo homem e, portanto, poderia ser interpretado e não seguido cegamente.
Essa linha de pensamento não foi considerada heresia e chegou a ser
oficializada no ano de 827 (Revista Veja, Qual Islã, p. 102).

A passagem do texto faz referência direta à Era de Ouro do Islã durante o domínio
31
abássida , a prosperidade e o desenvolvimento econômico e tecnológico permitiram que o
mundo muçulmano estivesse à frente de todas as demais civilizações conhecidas. A expansão
muçulmana permitiu a absorção de diferentes culturas e diferentes técnicas. Entre esses
avanços, destacam-se as traduções para o árabe das obras de Platão e Aristóteles e outros
pensadores clássicos.
Segundo Peter Demant (2004, p. 48-49), o acesso a esse novo conhecimento
dividiu a sociedade muçulmana. Havia uma escola conservadora, a xaria ou corânica – que
determinava o domínio da religião sobre todos os aspectos do culto. E a sua concorrente era a
Escola progressista, que defendia que a razão alcançaria o mesmo entendimento sobre o
mundo que a revelação divina.

A ênfase na razão conduzia a uma religião bem intelectualizada (qalam). Os


mutazilitas chegaram à conclusão de que o próprio Alcorão era algo criado e,
portanto, não eterno, o que abriu caminho para a crítica da própria religião
(DEMANT, 2004, p.49).

Apesar de a escola racionalista assumir o papel de doutrina oficial, seu domínio


não foi duradouro. A reação antirracionalista foi dominante a partir do ano de 891,
culminando em violentas perseguições. Ao final, a síntese elaborada por Al-Ashari, que se
tornou o pensamento ortodoxo, enfatiza a incomensurabilidade e incompreensibilidade de
Deus. No pensamento de Ashari, “há uma ênfase na importância de não se discutir com a
religião, e também em aceitar o domínio do imã ou califa, e não se revoltar contra ele com a
espada”. (HOURANI, 2006, p.98).
Observa-se, no texto, a tentativa de descrever um Islã histórico, oposto à tradição
orientalista que bestializava e inferiorizava os muçulmanos, caracterizando-os como
incapazes de desenvolver o pensamento racional de forma autônoma. A Revista Veja age de

31
A dinastia abássida governou entre 750 e 1258, que estabeleceu uma revolução ao igualar os direitos de todos
os muçulmanos árabes e não-árabes. Esta ação destruiu a supremacia árabe e deu chances iguais a muçulmanos
não-árabes. O califado abássida conseguiu garantir uma prolongada paz interna, além de um mínimo de justiça e
tolerância para com os seus súditos (DEMANT, 2004, p. 43).
54

forma pedagógica, instruindo o leitor sobre a possibilidade de associar o Islã à racionalidade,


que é um valor caro às sociedades ocidentais.
A diversidade geográfica do Islã também foi abordada pela revista. Na mesma
reportagem, um mapa do mundo muçulmano se abre por duas páginas. A descrição do mapa
informa o leitor acerca das dinâmicas demográficas que os muçulmanos vivem. Mais uma
vez, vislumbramos um diálogo com John Esposito.
O mapa apresenta informações importantes, a saber: a maior parte da população
muçulmana concentra-se, sobretudo, no sudeste asiático (Indonésia), no sub-continente
indiano e não no mundo árabe; a sua taxa de fecundidade é superior à europeia; o jovem é sua
maior composição etária, em detrimento da Europa, a qual se encontra com dificuldades para
enfrentar o envelhecimento de seu povo. O mapa também informa que os muçulmanos, em
proporção demográfica significativamente menor, também se encontram na Europa e nos
EUA.
Até mesmo as versões mais heterodoxas do Islã são descritas na revista, como a
Nação do Islã nos EUA. Mais uma vez de forma pedagógica, as autoras demonstram o papel
do Islã na luta pelos direitos civis nos EUA. A nação do Islã foi “fundada em Detroit por
Wallace Fard Muhammad, que se considerava o „Salvador da Raça Negra‟ e se dizia a
encarnação de Alá. Nada mais herético. Em meio à forte segregação racial, que muitos foram
atraídos por sua doutrina” (Revista Veja, p.102-103, Qual o Islã?).
A reportagem é finalizada com a mesma conclusão elaborada por John Esposito, a
convicção de que o terrorismo encabeçado por Osama bin Laden foi responsável pelo
crescimento da islamofobia, vitimando a fé de uma maioria pacífica pelas mãos de uma
minoria extremista e violenta. O medo e a desconfiança em relação ao Islã foram ampliados, o
terrorista Bin Laden “colocou todas as versões do Islã no mesmo patamar: o da ameaça ao
Ocidente” (Revista Veja, p. 103, Qual o Islã?).

1.5. O silêncio da Revista Veja: a culpa não está somente na religião

Atribuir à prática de uma religião exacerbada os problemas de todas as


civilizações ou grupos humanos do planeta conseguiu afastar as reportagens do periódico das
clássicas acusações de representações orientalistas que estigmatizam e hostilizam o Islã.
Defender que toda religião pode se tornar radical, igualando e aproximando cristianismo, islã
e judaísmo é um grande mérito conquistado durante a escrita. Não obstante, a Revista Veja
55

constrói novas simplificações, que transformam o Ocidente em uma civilização idealizada,


que sempre esteve pronta para dialogar com os demais povos em condições de igualdade.
Tal idealismo é um engodo que invalida qualquer luta contra o Ocidente ou contra
a política ocidental, a qual aparentemente sempre é bem intencionada. Reconstruir as relações
entre Islã e Ocidente focando apenas nas aproximações e semelhanças é insuficiente para
explicar o fenômeno do extremismo islâmico que adotou práticas de terrorismo. Atribuir o
terrorismo apenas a um extremismo religioso puro e simples, praticado por radicais, significa
uma retórica vazia, incapaz de demonstrar a violência política e econômica que se instala em
muitas sociedades muçulmanas, por meio ou por causa das intervenções ocidentais.
Para explicar os seculares conflitos entre o Islã e o Ocidente, as reportagens
buscaram o “mito das origens”, afirmando que a causa dos conflitos se origina e permanece
na religião. Continuando a reportagem Qual o Islã?, o periódico elaborou uma pequena
introdução do leitor ao universo muçulmano a partir de um conjunto de perguntas e respostas.
É muito bem elaborado, explicando as divisões do Islã, entre xiitas e sunitas, as subdivisões, o
papel das mulheres nas sociedades, a sharia e os conceitos de pequena e grande jihad.
A despeito do esforço anterior, que confirma a linha de argumentação construída
em todas as reportagens desde as primeiras palavras de Diogo Schelp, o programa de
perguntas e palavras da revista induziu o leitor a identificar nas Cruzadas “o mito das
origens”, que explicaria os conflitos entre as duas civilizações.

14) O sofrimento dos muçulmanos durante as cruzadas foi tão grande a


ponto de justificar o ódio ao ocidente 1000 anos depois?
Os cruzados cristãos assassinaram inocentes, estupraram mulheres e
pilharam cidades até ser repelidos pelo sultão Saladino (1138-1193). O
símbolo da crueldade dos cruzados é o rei inglês Ricardo Coração de Leão.
Frequentemente, os muçulmanos pintam o rei inglês como um ensandecido
sanguinário em contraste com um Saladino sereno e tolerante. A verdade
histórica é que ambos foram aquilo que os conquistadores pela espada de seu
tempo costumavam ser: impiedosos (VEJA, Qual islã? p. 100-111).

A Revista Veja igualou muçulmanos e cristãos quanto à violência, demonstrando


que aquelas guerras marcaram a imaginação de ocidentais e muçulmanos. Mas a descrição da
Revista Veja exige uma análise histórica mais profunda. A pergunta possui uma grande
violência simbólica ao se referir diretamente às cruzadas como causa do conflito entre
Ocidente e Islã. E, concomitantemente, a resposta simplesmente iguala cristãos e muçulmanos
em violência, comparando Saladino e Ricardo Coração de Leão. Colonialismo, intervenções
56

ocidentais e guerras contemporâneas que envolvem o Oriente Médio – Guerra do Afeganistão


e a Guerra do Iraque – não são citadas. A história foi calada e violentada.
No texto, a figura do líder muçulmano Saladino é reconstruída como um chefe
militar qualquer, violento e sanguinário, semelhantemente aos guerreiros cristãos. Contudo, os
relatos das Cruzadas feitos por muçulmanos e cristãos estão distantes do líder impiedoso que
conquistou pela espada a qualquer custo e que derramou o sangue de seus inimigos em nome
da Guerra Santa. Amin Maalouf, em sua obra A Cruzada vista pelos árabes, destaca o papel
de Saladino em respeitar a diversidade religiosa e a tolerância diante dos cristãos
conquistados. A seguinte citação ilustra a postura de Saladino diante da conquista de
Tiberíades e Acre.

Doravante, pensa ele, os franj não têm mais exército, e é preciso aproveitar
isso imediatamente para recuperar as terras que eles ocuparam injustamente.
Na manhã seguinte, um domingo, ele ataca a cidadela de Tiberíades, onde a
esposa de Raymond sabe que não adianta mais resistir. Ela confia em
Saladino, que concorda em deixar os defensores partir com todos os seus
bens sem que ninguém os incomode.
Na terça-feira seguinte, o exército vitorioso marcha sobre o porto de Acre,
que capitula sem resistência. A cidade adquiriu, nos últimos anos, uma
importância econômica considerável, já que é através dela que se realiza
todo o comércio com o Ocidente. O sultão tenta fazer com que os numerosos
mercadores italianos permaneçam lá, prometendo-lhes oferecer-lhes toda a
proteção necessária. Mas estes preferem partir em direção ao porto vizinho
de Tiro. Lamentando, ele não se opõe a isso. Até mesmo os autoriza a
transportar todas as suas riquezas e lhes oferece uma escolta para protegê-los
dos assaltantes. (MAALOUF, 2007, p. 181 e 182)

Outras descrições, feitas do ponto de vista cristão na transição da Idade Média


para a Idade Moderna, demonstram a importância de Saladino na imaginação ocidental. Na
Divina Comédia, de Dante Alighieri, ainda marcada por forte religiosidade do contexto, vê-se
Saladino em um ambiente especial dentro dos círculos do inferno. Ao invés de estar ao lado
dos assassinos e mentirosos, nos últimos círculos do inferno, o guerreiro curdo das Cruzadas
está no limbo, ao lado de profetas do Antigo Testamento e de grandes filósofos e pensadores
da Antiguidade Clássica, que, apesar de honrados, não conheceram a fé cristã em vida, como
está explícito no Canto IV.

Notei Márcia, Lucrécia e o que Tarquínio


Lançou Cornélia e Júlia; retirado
De todos demorava Saladino

Alcançando os olhos de respeito entrado,


57

O mestre vejo dos que mais se acimam


Em saber de filósofos cercado

Todos com honra e acantamento o estimam


Aqui Platão e Sócrates estavam
Que na grandeza mais se lhe aproximam (ALIGHIERI, 2003, IV, v127-135).

Comparar Saladino com os reis cristãos em comportamentos como tolerância e


diálogo inviabiliza o conhecimento desse personagem histórico, que ficou conhecido, até
mesmo entre os adversários, como modelo de honra e nobreza. Concomitantemente, a
pergunta induziu o leitor a acreditar que o conflito se dá apenas pela dimensão religiosa entre
os representantes das duas religiões e que todo aquele que luta em nome de uma religião é
intolerante, violento e sanguinário, seja ele cristão ou muçulmano.
Os contatos e conflitos entre Islã e Ocidente continuaram para além das cruzadas.
O processo colonial deixou tantas marcas na memória muçulmana quanto a ocupação de
Jerusalém na Idade Média. Um dos exemplos coloniais silenciados pelo periódico foi o
acordo de Sykes-Pickot, que redesenhou o Oriente Médio. Consoante Albert Hourani (2006,
p.417-418), esse acordo anglo-francês sugeria aceitar o princípio da independência árabe,
dividindo em áreas permanentes de influência, que se tornariam mandatos das potências
europeias. A Inglaterra seria responsável pelo Iraque, pela Palestina e pelo Egito, enquanto a
França se responsabilizou pela Síria e pelo Líbano.
Não obstante, esses mandatos estrangeiros representavam a dominação colonial e,
consequentemente, a dominação econômica. A França e a Inglaterra

impuseram a sua concepção de direito ao Oriente Médio, desenhando a partir de


Paris as fronteiras de acordo com os seus interesses petrolíferos. A questão
internacional nunca foi colocada, porque esse direito era sempre adaptado de modo a
preservar os interesses petrolíferos (TOMA, 2005, p.210).

O problema principal que surge dessa divisão não se reduz à questão econômica,
mas à questão política e identitária no Oriente Médio, pois, após as independências, a
possibilidade de reunir os árabes em uma grande nação pertencente a um único Estado
desaparece. Passam a reinar fronteiras artificiais de Estados fracos nascidos da dominação
colonial. O nacionalismo árabe enfrentava a oposição de outros nacionalismos, nascidos da
divisão imposta pela França e Inglaterra sobre a região, havia o nacionalismo egípcio, sírio,
iraquiano, saudita, entre muitos outros que não eram de origem árabe, como o nacionalismo
turco.
58

Os nacionalismos locais venceram o nacionalismo árabe, e as lutas de


independência culminaram com a formação de vários países diferentes, pequenos e
enfraquecidos. Desse modo, a nação árabe estava frágil, sendo que cada país elaborava um
projeto caótico e particular de nação. Assim, grande parte da desorganização e dos conflitos
do Oriente Médio contemporâneo se deve à forte influência das divisões imperialistas
impostas no passado.
Ainda no texto de perguntas e respostas, a Revista Veja também apresenta uma
análise sobre o Irã, quando se pergunta a compatibilidade entre modernidade, democracia e
capitalismo. O posicionamento liberal e pró-EUA fica grosseiramente exposto no corpo do
texto. Os embates entre os EUA e o país xiita invocam uma análise preconceituosa e
estigmatizante acerca do país persa. O Irã é colocado como símbolo de atraso, enquanto as
petromonarquias sunitas do Golfo Árabe são avaliadas como símbolos de modernidade, a
partir de critérios extremamente subjetivos e sem sentido, como ares futurísticos, e não em
liberdades políticas ou desenvolvimento social.

5. O Islã é compatível com a modernidade, a democracia e o capitalismo?


Depende de que tipo de islã se está considerando. Os xiitas do Irã, que
confundem totalmente a religião com o Estado e a burocracia do governo
com hierarquia religiosa, estão atrelados ao modelo econômico centralizado
e baseado na exportação de apenas uma riqueza natural, o petróleo. A única
forma de capitalismo que podem vir a conhecer é a estatal, que define os
vencedores e os perdedores do jogo econômico. Não por acaso, algumas das
maiores fortunas do Irã pertencem aos aiatolás e suas famílias. O Irã nunca
foi moderno, tampouco democrático. Antes do regime dos aiatolás o país era
governado por uma monarquia constitucional que, sem legitimação, se
impunha pela força e terror. No outro extremo, países muçulmanos sunitas
ricos do Golfo Pérsico, como Catar, são monarquias de economia
centralizada, mas recentemente iniciaram experiências modernizadoras, que
trouxeram ares futuristas a suas paisagens urbanas. A regra básica para
responder a essa pergunta é quanto maior for o poder político dos religiosos
islâmicos, menos a chance de qualquer país desfrutar as conquistas
pluralistas da modernidade, da democracia e do capitalismo (Revista Veja,
Qual Islã? p. 100-111).

O problema levantado pela revista está em culpar a elites dos Aiatolás e os


governos autocráticos anteriores pelo atraso e pela estatização econômica. Além disso, a
Revista Veja tratou o Irã de forma hermética, sem explicar a participação das potências
ocidentais nas opções políticas e econômicas tomadas pelos grupos nativos. Por isso, a
presente pesquisa percebe que a reconstituição das relações entre Irã e Ocidente se faz
necessária.
59

O Irã, na primeira metade do século XX, era marcado pela dominação das grandes
potências ocidentais, interessadas em sua posição estratégica no Oriente Médio e na posse dos
campos de petróleo. Essa presença ostensiva das potências estrangeiras incomodou a
população nativa. As intervenções estrangeiras “e a dominação pelas companhias anglo-
americanas suscitam uma renovação nacionalista e garantem o sucesso popular do Partido da
Frente Nacional, do doutor Mossadegh” (DERIVERI, 2005, p. 161).
Desse modo, a resistência contra a espoliação ocidental e contra a monarquia
autocrática Pahlavi foi liderada por Mohamad Hedayat, dito Mossadegh (o valoroso), que
possuía um projeto nacionalista visando à nacionalização do petróleo. Por pressão popular, o
Xá Pahlavi nomeia Mossadegh primeiro-ministro, este nacionaliza o petróleo e é reeleito pela
população. Já o Xá Pahlavi, pressionado pela rebelião popular, vai para o exílio. A monarquia
persa vai ser salva pelos EUA, já que é “a intervenção da CIA que vai salvar o xá – e evitará
ao Irã a vergonha internacional de um governo de esquerda (DERIVERI, 2005, p.162)”. Fica
claro, portanto, o apoio dos EUA a governos autoritários no Oriente Médio.
Com a derrota e a morte de Mossadegh, seguida pela re-entronização do Xá
Pahlavi, as empresas anglo-americanas voltaram a dominar a extração do petróleo iraniano.
Assim, com a oposição derrotada, o governo ficou ainda mais autoritário, forçando uma
modernização da sociedade aos moldes do modelo turco. A modernização forçada da
sociedade, apoiada pelos EUA, lançou os religiosos contra o governo, abrindo espaço para a
liderança dos Aiatolás na Revolução de 1979.
Contrariamente às páginas da Revista Veja, pode-se afirmar que os EUA

foram os primeiros responsáveis pelo fracasso da tentativa de um governo


laico e democrático no Irã. Assim como são diretamente responsáveis pelo
advento de uma república islâmica, junto da qual o mínimo que se pode
dizer é que eles não têm nenhum crédito (DERIVERI, 2005, p.162).

Além dos elementos citados acima, privilegiar os modelos das petromonarquias


em detrimento do Islã demonstra o posicionamento pró-EUA da Revista Veja32. A descrição
de Estados como propriedade pessoal da elite governante não se aplica ao Irã, mas, sim, às
petromonarquias que são

32
Osvaldo Coggiola, em seu texto A Crise do Imperialismo e a Guerra contra o Irã, afirma que os EUA não
poderiam suportar uma hegemonia iraniana, pois o Irã é o quarto país mundial em jazidas de petróleo e o
segundo em gás, além de controlar o estreito de Ormuz, por onde é escoado o petróleo das Monarquias do Golfo.
Controlar o Irã garantiria a viabilidade da economia norte-americana.
60

(...) verdadeiras propriedades familiares, sem grande distinção entre


patrimônio público e privado, e nelas se realizava uma modernização
superficial, sem mudanças sociais. Qualquer noção de democracia era
rejeitada, e a maior parte da sociedade era mantida na ignorância e na
pobreza, apesar dos Xeques e sultões despenderem boa parte do tempo e
dinheiro nos cassinos europeus (VISENTINI, 2012, p. 37).

Usar os governos autocráticos do golfo como modelos de modernidade e


capitalismo é mascarar o fato de que esses países são patrocinadores de grupos terroristas
desde a década de 1980. A contradição é latente, modernidade e terrorismo são as duas faces
da mesma moeda. Patrick Cockburn denuncia a contradição no seu livro A Origem do Estado
Islâmico (2015), não há dúvida

de que a propaganda wahabista, fartamente financiada, contribuiu para o


aprofundamento e a violência crescente da luta entre sunitas e xiitas. Um
estudo de 2013, publicado pelo diretório geral para políticas externas do
Parlamento Europeu e intitulado “O envolvimento do salafismo/wahabismo
no apoio e suprimento de armas para grupos rebeldes em todo o mundo”,
começa afirmando: “A Arábia Saudita tem sido uma grande fonte de
financiamento de organizações terroristas e rebeldes desde os anos 1980”.
Acrescenta que o país ofereceu 10 bilhões de dólares para promover a
agenda wahabista e prevê que “o número de lutadores jihadistas
doutrinados” irá crescer.
Nos anos 1980, desenhou-se uma aliança extremamente duradoura entre
Arábia Saudita, Paquistão (ou, mais propriamente, o exército paquistanês) e
Estados Unidos. Foi um dos principais apoios do domínio norte-americano
na região, mas também ofereceu um criadouro para os movimentos
jihadistas, dos quais a Al-Qaeda de Osama bin Laden foi, originalmente,
uma cepa (COCKBURN, 2015, p. 118).

Percebe-se, no trecho, que o idealismo norte-americano alcançou um obstáculo na


política internacional. Para atacar o Irã após o sequestro na embaixada americana em Teerã
(capital iraniana), os EUA se unem aos financiadores internacionais do terrorismo. Na
verdade, esses conflitos envolvem muito mais do que uma causa religiosa, mas outros
interesses políticos e econômicos. Assim, a culpa não pode ser apenas da religião ou do
extremismo religioso. O mito das origens deve ser destruído.
Analisando toda a proposta da Revista Veja, nota-se que os argumentos
orientalistas não se fazem presentes no texto. Isso porque o Ocidente e sua civilização são
aproximados do mundo muçulmano, as religiões são tratadas com equidade, e o
fundamentalismo em qualquer denominação religiosa é criticado. O Ocidente, na condição de
vitorioso, é idealizado como o caminho a ser seguido: direitos humanos, democracia,
liberalismo e secularismo são suas bandeiras. Ao mesmo tempo, a proximidade civilizacional
61

entre muçulmanos e Ocidente permite o diálogo cultural. Porém, o idealismo encontra seus
limites, uma vez que as relações internacionais envolvem interesses econômicos e hegemonia
política.
Portanto, longe de serem representações orientalistas, no sentido de dominação
ocidental, a Revista Veja se mostrou um veículo de propaganda ocidental por excelência, ao
defender a ideologia liberal e a ordem mundial liderada pelos EUA. A maleabilidade da
Revista Veja indica a tentativa do Ocidente em justificar uma suposta vitória contra Osama
bin Laden, mas não contra o terrorismo. Tal contradição exige que a revista em questão
continue elegendo inimigos - o Irã e o fundamentalismo religioso - e construindo
representações diferenciadas, conectadas ao passado, que deem conta de mobilizar a opinião
pública e toda a sociedade a favor da execução dos projetos pró-EUA.
No próximo capítulo, foi analisada a cobertura do jornal Folha de São Paulo
sobre a narrativa da captura e assassinato de Osama bin Laden e seus desdobramentos. A
busca pela identificação de uma linha editorial da Folha, percebendo os enquadramentos
escolhidos por esse veículo. E conseqüentemente a cobertura dos dois veículos, suas linhas
editoriais e enquadramentos serão comparados no último capítulo.
62

CAPÍTULO 2
FOLHA: “PAZ É GUERRA, TORTURA É LIBERDADE”: A “TRAIÇÃO” DO
IMPÉRIO AMERICANO AOS VALORES OCIDENTAIS

O periódico Folha de São Paulo também deu destaque à cobertura da captura do


terrorista Osama bin Laden. O evento captou a atenção dos redatores e esteve presente como
manchete nas primeiras páginas durante vários dias. Assim como a Revista Veja, os textos não
se resumiam ao fato da captura, mas deram acesso a um mundo muito maior de informações,
que orientam o leitor dentro da geopolítica mundial.
Em oposição à Revista Veja, as reportagens apresentaram um repertório de
representações que questionavam a ação executada pelos americanos. O leitor que tivesse
acesso aos dois veículos de comunicação acreditaria que os EUA tinham executado duas
ações militares diferentes. Apesar de a Folha de São Paulo apresentar textos que defendiam a
ação americana, ficou marcante e dominante a presença de críticas à ação do governo
estadunidense. A liderança do presidente Barack Obama, a legitimidade da ação, as ideias de
justiça e direito internacional foram colocadas em evidência. Em alguns textos, a ação de
captura do extremista saudita foi enquadrada como um ato terrorista por desobedecer à
legislação internacional.
O periódico não se voltou para o mundo muçulmano, como fez a Revista Veja,
voltou-se para os EUA e sua política externa. Embora os tenha criticado, a Folha de São
Paulo defende os valores ocidentais como liberdade de pensamento, soberania nacional e
Estado de Direito. Os textos acusavam o não cumprimento do direito internacional costumeiro
e, concomitantemente, o ferimento dos princípios liberais que os estadunidenses afirmam
disseminar pelo mundo. Desse modo, o periódico fez uma crítica à ideia de universalismo,
demonstrando a relatividade desses valores, os quais são, não raras vezes, estranhos a outras
culturas.
Outra crítica séria apontada pelos autores das reportagens contra a Guerra ao
Terror está nas contradições existentes entre as propostas feitas pelo governo norte-americano
e os fatos históricos associados. Os autores criticaram a insignificância dos atentados
terroristas como instrumento de ataque aos EUA, a publicidade e o controle de informações
do governo norte-americano dados à captura do terrorista, a manipulação de informações
sobre as motivações da Guerra do Iraque e as relações entre EUA e Paquistão – país que
patrocinou grupos terroristas.
63

As críticas contundentes ao governo dos EUA explicitaram o posicionamento


crítico do periódico, claramente contra a política norte-americana de intervenção em outros
países soberanos. Fica clara a diferença entre Veja e Folha, enquanto a primeira se esforça em
descrever o mundo muçulmano e dissociá-lo do terrorismo, a segunda se direcionou para as
criticas à intervenção americana e sua legitimidade, deixando o tema do terrorismo em
segundo plano.
Nesse sentido, a Folha de São Paulo, em nenhum momento, construiu
representações sobre o mundo muçulmano, mas sobre o Ocidente, especialmente acerca dos
EUA. Suas críticas levaram muitos leitores a questionarem se o jornal se posicionava a favor
do terrorista assassinado. O periódico, por sua vez, justificava sua posição independente como
uma defesa dos valores liberais e ocidentais que os americanos feriram durante a captura e
seus desdobramentos.
A análise da Folha permitiu compreender o posicionamento do veículo pelas
criticas do Ombudsman à intervenção militar, interpretado como assassinato extrajudicial e,
ao mesmo tempo, criticava outros periódicos estrangeiros que aceitaram a versão oficial
passivamente. Outros temas polêmicos foram usados para criticar a intervenção americana, a
saber: as práticas de tortura utilizadas pelo serviço secreto dos EUA, a invasão da soberania
do Paquistão e o comportamento dúbio estadunidense ao patrocinar governos autoritários que
apoiavam ou ainda apoiam grupos terroristas.

2.1 – Folha de São Paulo: Osama executado e o Ocidente no banco dos réus.

Inicialmente, para a compreensão da estratégia construída pela Folha de São


Paulo, recorre-se a dois textos que, de algum modo, representam a perspectiva dominante no
corpo de escritores do periódico. A primeira reportagem é a manchete da primeira página, que
se refere ao anúncio oficial feito por Barack Obama da captura e do assassinato do terrorista.
O periódico dá uma alfinetada nos EUA ao relativizar o ato militar e lembrar ao leitor que
“Bin Laden ajudou os EUA contra os soviéticos no Afeganistão nos anos 70. Depois, com a
Al Qaeda, se voltou contra os EUA (FOLHA, p. A1, 02/5/2011, „A justiça foi feita‟)”.
A perspectiva escolhida foi mostrar que Osama bin Laden e os EUA tiveram
relações próximas no passado da Guerra Fria, pois se tornaram aliados contra o avanço do
comunismo, e interesses comuns já uniram aqueles que até então se apresentavam como
64

inimigos irremediáveis. A inocência americana foi ferida intencionalmente pelo texto, a ideia
de uma missão para construir um mundo mais seguro e justo dava lugar a um jogo de
interesses menos idealizado.
O segundo texto é a sessão Ombudsman33, o qual se apresenta como
provedor/advogado do povo, recebendo as críticas, explicando o posicionamento e a
construção das informações do periódico, agindo como um instrumento de autorregulação dos
canais midiáticos. O texto foi escrito no dia oito de maio de 2011, certamente como uma
resposta às inúmeras críticas que o jornal recebia por questionar duramente as ações do
governo americano. Contabilizavam-se seis dias depois da primeira reportagem (dia 02 de
maio de 2015), assim fica nítido o posicionamento que o jornal escolheu desde as primeiras
colunas, e, após dois dias (em 04 de maio de 2015), o jornal encontra sua posição no debate.
Ainda que a Folha de São Paulo tenha aberto para diferentes posições, a sua postura no
campo já estava marcada. Segundo o Ombudsman, a Folha

manteve a distância necessária na Primeira Página: “Bin Laden está morto,


diz Obama”- só deu tempo de incluir a notícia em metade dos exemplares,
mesmo assim apressadamente.
Na terça-feira, a edição se organizou, mas não havia questionamentos sobre
a legalidade da ação, embora já se soubesse que os EUA invadiram um país
e mataram uma pessoa sem julgamento.
Apenas na quinta-feira, o tema da violação do direito internacional e as
dúvidas sobre a versão oficial apareceram com ênfase.
Talvez nunca se saiba o que ocorreu de fato na casa de três andares em
Abbottabad, mas, se a imprensa fizer seu trabalho direito, não teremos que
simplesmente engolir a versão oficial que o governo democrata de Obama
quer nos impingir.
(FOLHA, 08/5/2011, p. A8, “Ombudsman: A morte de Bin Laden”).

A leitura do trecho demonstra uma diferença crucial se comparada com a proposta


da revista Veja. A Folha de São Paulo descreve os eventos como invasão, seguida de
assassinato ilegal, violação do direito internacional e ausência de liberdade de informação.
São esses elementos que estarão predominando no corpo das notícias. Outra crítica feita se
coloca na credulidade que os periódicos internacionais construíram ao aceitarem a versão
oficial estadunidense e até mesmo como se

33
Mario Mesquita, em seu texto “O Jornalismo em Análise”, determina formas diferentes de atuação do
ombudsman de imprensa: discute o jornal trazendo ao público o debate sobre decisões editoriais que,
normalmente, não chegam aos leitores; estabelece uma ponte com os leitores, atendendo às reclamações e
respondendo às críticas; retifica matérias; explica aos leitores os mecanismos de produção jornalística; e sua
crítica influencia editores e jornalistas.
65

comemorassem o sucesso da missão americana e também o fato de ainda


serem relevantes, os jornais fizeram capas do tipo pôster, com títulos em
letras grandes, numa volta ao tempo em que se gritava “Extra! Extra!” para
vender edições especiais
Passada a euforia, surgiram as dúvidas. A morte de bin Laden é a incrível
notícia de uma fonte só, a oficial. Sabemos apenas o que nos conta o
governo Obama, que vai mudando o relato inicial conforme pingam as
contradições. O mentor do 11 de setembro não atirou contra os americanos,
não usou uma mulher como escudo, e parece nem ter havido de fato tiroteio
(o único inimigo armado foi logo morto).
Também faltam provas materiais. O corpo foi jogado ao mar, após uma
inverossímil cerimônia muçulmana em um porta-aviões, as fotos do
terrorista estão censuradas e o exame de DNA não foi mostrado.
(...) Numa época em que se vê praticamente tudo na Internet, causa
estranheza essa notícia sem imagem – graças aos paquistaneses, apareceram
fotos das outras vítimas do ataque americano.
Entre os jornais importantes dos EUA, só “The New York Times” manteve
um pé atrás, creditando a notícia sobre Bin Laden a Obama. Os demais
embaraçaram na credulidade (“Forças Armadas dos EUA matam Bin
Laden”) ou na Euforia (“Pegamos o bastardo”). (FOLHA, 08/5/2011, p. A8,
“Ombudsman: A morte de Bin Laden”).

A Folha de São Paulo se colocou em uma posição oposta aos demais periódicos
estrangeiros ao questionar a versão oficial e a postura de comemoração e euforia das demais
empresas, comemoração que também pode se encontrar nas páginas da Revista Veja. A Folha
considera que sua postura de criticar a versão e ação americana constitui elemento de
distanciamento e imparcialidade, o que possibilitou a construção de textos mais críticos e
responsáveis, ainda que não agradasse a muitos leitores.
A coluna denominada “Painel do Leitor” se tornou palco das disputas entre os
leitores, que apoiavam ou rejeitavam o posicionamento do periódico. Apesar de a proposta
desta pesquisa não se focar no processo de recepção, é interessante como o mesmo veículo se
tornou espaço de violentos debates e ataques pessoais entre seus consumidores. Exemplos
podem ser citados para indicar as diferentes leituras a partir do mesmo veículo.
Os leitores defensores da intervenção americana reuniam seus argumentos dentro
do paradigma da “Razão de Estado” para a defesa da população e do governo dos EUA ou
argumentos maniqueístas como a luta entre o bem (Ocidente) e o mal (fundamentalismo
islâmico).
Os leitores Paulo R. da Silva e João Henrique Rieder se fixaram na defesa da
captura e morte de Osama bin Laden em nome da segurança mundial. O segundo leitor citado
anteriormente vai mais além, acusando a Folha de se posicionar a favor do terrorista.
66

Bin Laden foi localizado e morto como merece todo facínora. No Brasil,
nada se faria sem o devido processo legal. Invadir a casa de Bin Laden, só
com mandado judicial. A prisão preventiva decretada seria logo relaxada.
Surgiriam psicólogos analisando o “sofrimento”dele na infância, pois apenas
isso poderia explicar a explosão das torres gêmeas.(FOLHA, p.A3,
04/5/2011, painel do leitor, Paulo R. da Silva, RJ,Rio de Janeiro)

Há dias que constatamos um posicionamento da FOLHA francamente


favorável a Bin Laden. Em um artigo um tanto infantil, Fernando de Barros e
Silva („De Obama a Bush”, Opinião, ontem) questionou qual seria a reação
caso fosse George W. Bush, e não Barack Obama, quem tivesse autorizado a
ação. Não haveria diferença – estaríamos respirando aliviados com a morte
de um assassino.
Élio Gaspari (“Obama fez o gol que Carter tomou”, Poder, ontem) foi ainda
mais pueril ao dizer que tanto para Bin Laden como para os EUA, teria sido
muito melhor que ele tivesse morrido numa caverna. Trocando em miúdos,
para os cronistas, deveria ter uma negociação entre Obama e Bin Laden para
que este consentisse na invasão de sua fortaleza. (FOLHA, p.A3, 05/5/2011,
painel do leitor, João Henrique Rieder – SP São Paulo)

O argumento mais simplista e, ao mesmo tempo, mais impactante pela sua


violência simbólica foi a posição do leitor Roldão Singer, que reduziu todo o conflito a uma
luta entre o bem e o mal. Aqueles que são sensatos, pessoas de bem, apoiam a intervenção
americana. Já os demais, que questionam a ação americana, são considerados maus, amigos
dos terroristas.

Mesmo contra a opinião de muitos, essa é a guerra do bem contra o mal e,


assim como malfeitor vive a espreita, sua punição deve ser praticada
incontinenti. Portanto, a pena foi justa, a operação americana, irrepreensível.
As pessoas sensatas estão agradecidas. (FOLHA, p. A3, 09/5/2011, painel do
leitor, Roldão Singer – Bauru)

Os argumentos contra a intervenção acompanham o posicionamento da Folha,


ademais atacavam os leitores e autores de reportagens e artigos que defendessem a
legitimidade da ação americana. A ordem internacional ferida pelos EUA, a relatividade entre
bem e mal e a noção de justiça racional foram defendidas por leitores como Alguiberto de
Luca Marcílio e Celso Balloti

Aqueles que defendem os EUA na ação no Paquistão estão cientes de que


isso corresponde a um “agora vale tudo e regras não existem”. O leitor Túlio
Marco Carvalho (“Painel do Leitor, ontem) parece se encaixar nesse
contexto. Será que os civis afegãos e iraquianos que morrem em guerras
inventadas pelos americanos são menos gente que os mortos no WTC?
(FOLHA, p.A3, 05/5/2011, painel do leitor, Aguilberto de Luca Marcílio –
SP São Paulo)
67

É graças a leitores como Roldão Senger (“Painel do Leitor”, ontem) “que


existem os Bin Ladens da vida.” O terrorista, que certamente se julgava “do
bem”, entendia estar vingando agressões à sua crença e, obviamente, não
agiu como poltrão, pusilânime, pedindo justiça: foi à luta da sua desastrosa
maneira.
Em que difere a ação de uns e outros nessa “guerra do bem contra o mal”,
quando se sabe que muitos grupos terroristas foram financiados pelos EUA?
O que diferencia o bem do mal é a aplicação da justiça (acusação formal,
provas, julgamento imparcial e direito de defesa), ainda que para facínoras.
(FOLHA, p. A3, 09/05/2011, painel do leitor, Celso Ballotti – São Paulo)

O embate entre seus leitores permitiu à Folha demonstrar seu lado eclético ao
respeitar diferentes posições. Entretanto, na passagem dos dias, o posicionamento da Folha
estava cada vez mais crítico e desconfiado em relação à legitimidade dos EUA e de suas
alianças.

2.2 Obama e o terrorismo dos EUA em prol dos Direitos Humanos

Muitas reportagens se ocuparam em descrever o papel de Obama e dos EUA


durante e após a captura e o assassinato de Osama bin Laden. Sobre o presidente, a maioria
dos textos mostrava o evento como uma mudança significativa na direção política do governo,
que passaria a ter maior apoio e popularidade. Na reportagem do dia 03 de maio de 2011,
intitulada “Euforia e Cautela”, o autor destaca como o líder estadunidense tirou proveito dessa
ação militar, pois com

a estagnação no front afegão e a incerteza trazida pelas rebeliões árabes,


Obama era acusado de ser um comandante em chefe tibuteante e fraco. Ao
comunicar a morte de Bin Laden, ele reivindicou o sucesso da persistência
na busca do terrorista e conclamou a volta do “sentido de unidade”que
tomou o país dez anos atrás.(FOLHA, p. A2, 03/05/2011, “Euforia e
Cautela”)

Barack Obama reivindicou a vitória sobre Osama bin Laden e,


concomitantemente, restabeleceu a unidade nacional contra o “inimigo comum”, representado
pelo terrorismo fundamentalista. De um governante fraco para a condição de herói nacional,
as dúvidas que pairavam sobre seu governo se dissolveram juntamente com os últimos
suspiros do terrorista árabe. As pesquisas apontavam a recuperação da imagem do presidente
diante dos seus compatriotas, visto que, quatro dias após o evento, o líder americano
68

foi a Nova York prestar homenagens às vítimas do ataque de 11 de


Setembro.
A visita ocorreu no mesmo dia em que pesquisa do Instituto Gallup mostrou
alta na aprovação do presidente americano. Ela avança seis pontos
percentuais, para 52%, desde o assassinato – é sua maior aprovação desde
março do ano passado.
(FOLHA, p. A14, 06/5/2011, “Obama capitaliza morte de Bin Laden em ato
no marco zero”)

Contudo, a imagem de Obama não foi poupada pelo jornal. No periódico, foram
comparados os comportamentos do atual presidente com o comportamento do seu antecessor.
O texto coloca que, apesar das críticas de Obama à Bush, suas atitudes coincidiam quanto à
política internacional, surgindo uma ironia, já que o líder americano reabilitou sua imagem
para as eleições de 2012

pendurado na agenda de Bush, ala “guerra ao terror”. A despeito das


diferenças brutais entre o democrata de Havard e o vaqueiro republicano, a
mise-em-scène de Obama no seu “Dia D” foi típica da era Bush. Basta citar
a divulgação das suas imagens na Sala de Controle da Casa Branca, cercado
de assessores, acompanhando on-line a operação no Paquistão.
Ao inflamar o Patriotismo e tocar o coração conservador da América,
beneficiando-se disso, Obama paradoxalmente reabilita parte do legado
histórico do bushismo. Não a letra da “doutrina”, mas o espírito da guerra
contra o inimigo extremo. Agora “o show tem que continuar” (FOLHA,
p.A2, 04/5/2011, De Obama a Bush”).

A Folha destaca que, ainda que com a mudança de presidentes, ambos se


aproveitaram da Guerra ao Terror fortalecendo suas posições políticas. As críticas se
aprofundam à operação que assassinou Osama bin Laden e também ao conjunto maior de
operações que correspondem à doutrina da Guerra ao Terror iniciada por Bush e continuada
pelo seu sucessor democrata.
A validade da captura e assassinato de Osama bin Laden foi questionada tanto em
termos jurídicos quanto morais e militares. Para a maioria dos colunistas, a ação americana se
caracterizava mais como uma vingança do que como um ato de justiça, ferindo aspectos
importantes do Direito. No texto “Sem fim”, afirma-se que o assassinato do terrorista “não
buscou outro sentido senão o de vingança, não propriamente cristã, pela monstruosidade do
maior de seus crimes (FOLHA, p. A6, 03/5/2011, “Sem fim”)”.
Segundo o jornalismo aqui avaliado, o presidente Obama cedeu ao
comportamento carismático populista para capitalizar o evento. A reportagem do dia 06 de
maio de 2011, nomeada “Familiares de vítimas dizem estar agradecidos”, cita o nome de um
dos pais das inúmeras vítimas do 11 de setembro, Charles Wolf, que havia perdido a esposa
69

Katerine nos atentados. Ele disse ter ficado muito contente “em agradecer o homem que
vingou a morte de sua mulher. Se Bin Laden tivesse sido julgado e preso, não haveria justiça.”
(FOLHA, p. A14, 06/5/2011, “Familiares de vítimas dizem estar agradecidos”.)
No entanto, a ideia de justiça não é congruente com a ideia de vingança. A própria
Folha de São Paulo se esforça para desconstruir esse argumento e desqualificar as ações
militares citadas. Na análise feita por Hélio Shwartsman34, há uma distinção entre vingança e
justiça. Para ele, há duas concepções de direito, a primeira

é conhecida como Talião. É o famoso “olho por olho, dente por dente”.
Tecnicamente leva o nome de justiça retributiva. Não difere muito de
vingança. Aplica-se a pena porque o réu “merece”.
(...) Esse conceito mais bruto começou a ser questionado no século 18,
especialmente por Cesare Beccaria e Jeremy Benthan. A partir do século 19,
foi ganhando a noção de justiça utilitarista de que a pena tem como objetivo
não a punição pela punição, mas a manutenção da ordem pública. O
criminoso deve sofrer uma sanção para desencorajar outras pessoas a imitá-
lo.
(...) O dilema das sociedades contemporâneas é equilibrar as necessidades
de uma justiça racional, calcada no utilitarismo, com o respeito à
sensibilidade jurídica da população, que, como mostra a reação à morte de
Bin Laden, ainda caminha perigosamente perto da vingança.
Ao sancionar a solução final em vez da captura e do julgamento do terrorista
saudita, Barack Obama, que já foi professor de direito constitucional na
universidade de Chicago, parece não ter resistido aos apelos populistas.
(FOLHA, p. A14, 05/5/2011, “Decisão de Obama atende a apelo populista
por “vingança”).

A Folha apresenta a sua visão de liberalismo, que se antagoniza com a visão


norte-americana de paz mundial corroborada pela Veja. Não ter capturado o terrorista vivo
feriu os valores liberais, como justiça racional, que os EUA tanto defendem. Em outro texto, a
Folha de São Paulo compara os métodos usados para fazer justiça contra os nazistas com as
circunstâncias ocorridas com Osama bin Laden.

Nos EUA justiça é feita quando uma pessoa é levada a julgamento, não
quando uma pessoa desarmada que não estava resistindo à prisão é
executada sumariamente, que, aparentemente, é como bin Laden morreu.
A equipe militar que o executou provavelmente recebera ordem de trazê-lo
de volta morto, e não vivo. Mas por quê? Os julgamentos de Nuremberg
levaram líderes nazistas à justiça, em lugar de serem executados
sumariamente, e, assim, enobreceram as forças armadas.

34
Hélio Schwartsman (9 de julho de 1965, São Paulo) é um filósofo e jornalista brasileiro. É editorialista e
colunista do jornal Folha de S.Paulo. Publicou Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no
Afeganistão, em 2001. Escreve para a Folha diariamente, exceto às segundas e quintas. Escreve semanalmente,
às quintas, na Folha.com. (https://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9lio_Schwartsman, acessado em 31/12/2016).
70

(...) Esses julgamentos disseram ao mundo: “Nós temos os princípios que


faltam a vocês, criminosos de guerra”. Ao levar Bin Laden a julgamento, os
EUA poderiam ter transmitido a mesma mensagem, e não uma que diz
“execução sem julgamento pode ser chamado de justiça”.
O presidente Obama agora parece ser um líder ousado e corajoso, porque
autorizou uma missão de combate arriscada que eliminou o pior inimigo de
seu país desde Hitler. Para mim, porém, ele e os americanos que aplaudiram
a morte desse inimigo poderiam ter agido de maneira mais pautada por
princípios se tivessem se lembrado das lições de Nuremberg.
(FOLHA, 09/5/2011, p.A13, “Festejas à morte de Bin Laden me dão
vergonha de ser norte-americano”).

Conforme a linha editorial da Folha de São Paulo, democracia não se concilia


com vingança ou tortura. A fim de se entender tal posicionamento, esta pesquisa recorre ao
pensamento liberal clássico. Nas sociedades de Estado constitucional em que a lei é
construída racionalmente, ela serve como elemento para prevenir a violência e o crime, e não
como objeto de punição. A captura e o assassinato de Osama bin Laden ferem a tradição do
direito ocidental sintetizada na obra de Cesare Beccaria. Para o autor iluminista, é melhor a
prevenção dos crimes

do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o
mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de
proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos
os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos
males desta vida (BECCARIA, 2002, p. 67)

Em outras palavras, a ação perpetrada pelos Estados Unidos foi contra as regras
do direito internacional costumeiro, gerando mais instabilidade e desconfiança no contexto
das relações entre Estados-nação, uma vez que os EUA se colocam acima da lei que eles
mesmos dizem defender. A justiça punitiva que as forças de segurança estadunidenses
impuseram ao terrorista enfraquece qualquer estatuto democrático vigente e
concomitantemente constrói novas relações baseadas no ressentimento e no medo.
A justiça racional elaborada dentro dos preceitos liberais iluministas é abandonada
em favor de um Estado autoritário no plano interno. No plano internacional, “a política
externa de resolução de conflitos, por sua vez, abandona paulatinamente a orientação pacífica
(diplomática) e assume cada vez mais a postura combativa traduzida em respostas militares
agressivas” (PASTANA, 2011, p. 97).
A execução do terrorista dentro dos termos de uma vingança explica a catarse que
o povo americano viveu por meio de comemorações públicas e de demonstrações de
nacionalismo. Se a justiça racional fosse aplicada, não haveria espaço para respostas
71

emocionais típicas de sociedades autoritárias, como o ressentimento, a insegurança e a


intolerância.
Retornando ao estudo do corpo de notícias do periódico supracitado, outro
problema abordado foram os meios pelos quais as forças de segurança dos EUA chegaram às
informações que permitiram a localização do terrorista. A tortura é um tema controverso no
combate ao terrorismo, marca de regimes autoritários e violentos, que usurpam as liberdades
civis e largamente utilizadas pelos EUA para sustentar a Guerra ao Terror. Obama,
oficialmente,

rejeita os “métodos coercitivos” de interrogatório, aprovados por George W.


Bush após o 11 de setembro.
Panetta35 disse ser “questão em aberto”a validade do uso “desse tipo de
procedimento para extrair informações”.
Na discussão sobre o tema, boa parte dos quadros do governo anterior saiu
em defesa de suas ações, como ex-chefe de contra terrorismo da CIA José
Rodrigues Jr. e John Yoo, ex-advogado do departamento de Justiça que
elaborou uma justificativa legal para a tortura sob Bush. (FOLHA, p. A16,
06/5/2011, “Assassinato de Bin Laden revigora debate sobre tortura”).

Para a CIA, a morte do terrorista representa a eficiência dos métodos coercitivos


de interrogatório, um mero eufemismo para tortura, que, segundo as fontes americanas,
forneceu a pista para se encontrar o alvo. Não só a imagem de Obama foi restaurada, mas
também a imagem de George W. Bush, pois foram as suas decisões e a destruição de
inúmeras liberdades que permitiram a ampliação do aparato de segurança. De acordo com a
Folha, a narrativa neoconservadora da captura validou

os métodos do governo anterior, de George W. Bush, inclusive a tortura.


Esse argumento se apóia na suposição de que a pista inicial que levou à
localização do saudita partiu de um prisioneiro submetido à tortura em
Guantánamo. “Claro que algumas preciosas informações foram obtidas nesse
tipo de “interrogatório”, afirmou Leon Panetta, diretor da agência de
inteligência da CIA. (FOLHA, p. A16, 06/5/2011, “Assassinato de Bin
Laden revigora debate sobre tortura”).

Os relatos de violência e tortura ocorrem nas bases americanas situadas em


territórios estrangeiros, como em Guantánamo ou em Abu Grabhi, ou também usando o
serviço secreto de governos aliados como o Paquistão ou Egito. A Folha de São Paulo se

35
Leon Edward Panetta serviu como 23º secretário de Defesa de julho de 2011 a fevereiro de 2013. Antes de
ingressar no Departamento de Defesa, Panetta serviu como diretor da Agência Central de Inteligência de
fevereiro de 2009 a junho de 2011. Panetta liderou a agência e gerenciou programas de coleta de informações e
inteligência humana em nome da comunidade de inteligência.
Acessado em 15/03/2017: https://www.defense.gov/About/Biographies/Biography-View/Article/602799.
72

esforça em fortalecer as acusações de tortura impostas pelos EUA, ao reconstituir um relato


de um ex-prisioneiro acusado injustamente de terrorismo pelas forças de segurança.
Segundo o relato da Folha, Murat Kurnaz era um jovem alemão que se converteu
ao Islã na Europa. Com o objetivo de conhecer melhor sua nova fé, decidiu viajar para o
Paquistão para estudar a religião. No país, foi sequestrado e entregue ao serviço secreto
paquistanês e à CIA como extremista islâmico. Após cinco anos preso, isolado da família, a
esposa se separou dele e, sem nenhuma prova de seu relacionamento com Bin Laden, ele foi
liberado. Conforme o jovem muçulmano alemão Kurnaz, entrevistado pela Folha de São
Paulo, na base de Guantánamo,

os julgamentos são feitos em tribunais militares seguindo regras ditadas sob


George W Bush (2001-2009).
“É claro que há alguns que podem ser culpados, mas, mesmo assim, eles
(americanos) não têm o direito de mantê-los em Guantánamo.”
Em seu livro sobre a experiência. “Cinco anos de Minha vida” (Planeta),
Kurnaz também fala de tortura.
Conta que, quando preso, teve a cabeça mergulhada em balde d‟água e foi
submetido a eletrochoques, além de passar dias enclausurado ou privado de
sono e de comida. Os EUA negam ilegalidade.
(FOLHA, 09/5/2011, p. A14, “Bin Laden está morto, mas outros não”).

A questão envolvendo a tortura vai de encontro à missão americana de defender


os direitos humanos e a liberdade. A “Doutrina da Guerra ao Terror”, criada por George W.
Bush, é acusada por muitos como uma forma de destruir direitos civis básicos. Logo após os
atentados do dia 11 de setembro de 2001, o líder americano institui uma retórica que
desumanizava e, ao mesmo tempo, justificava qualquer ação violenta contra os supostos
inimigos.
Para entender o significado da crítica do periódico, esta pesquisa recorreu à leitura
do artigo de Clarissa Forner, intitulado Guerra Preventiva ao fundamentalismo. Segundo a
autora, a construção simbólica do inimigo foi possível a partir da elaboração do conceito de
“Eixo do Mal”,

cunhado pelo próprio “Bush Filho” em seu State of the Union, em 2002, para
se referir a Estados supostamente patrocinadores e cúmplices do terrorismo,
como Irã, Coreia do Norte e Iraque, que, por essa concepção maniqueísta de
mundo, seriam tão responsáveis pelo terrorismo quanto seus praticantes
diretos. Em última instância, a “ameaça” representada por todos esses
elementos conjugados poderia justificar quaisquer ações tomadas pelo
governo americano, em nome do combate ao terrorismo, mesmo as mais
abusivas e excessivas [...] (FORNER, 2015, p. 23)
73

A desumanização do inimigo é uma estratégia importante para garantir o apoio da


população no uso máximo da força. A disseminação do medo pelo antagonismo entre bem e
mal, respectivamente nós e eles, permite o fortalecimento dos instrumentos de segurança e
violência do Estado e, consequentemente, a redução das liberdades individuais. As perdas das
liberdades não ocorrem apenas nos países ocupados pelas tropas americanas, mas também
dentro do próprio território americano. A lei antiterrorismo, conhecida como Ato Patriótico,

permitia ao governo, dentre outras coisas, usar de todos os meios de


inteligência disponíveis para monitorar e interceptar suspeitos por
envolvimento em atividades terroristas. Isso incluiria medidas invasivas
como o uso de espionagem contra civis ou o recurso a prisões preventivas,
sem direito a habeas corpus (FORNER, 2015, p. 24)

Em um ambiente caracterizado pelo temor permanente, a perda de liberdades não


é questionada porque o inimigo está em qualquer lugar e pode atacar a qualquer hora. Essa
desumanização permitiu que a tortura se tornasse legalizada por meio da ação do
Departamento de Justiça, que “aprova um memorando de flexibilização e relativização do
conceito de tortura para garantir a aplicação desse método de interrogatório em suspeitos por
terrorismo, nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, para as quais eram mandados os
referidos suspeitos quando capturados (FORNER, 2015, p. 25)”.
Outra leitura que aprofunda a compreensão dos periódicos da Folha é o artigo de
Moisés Augusto Gonçalves, doutor em sociologia pela UNESP, intitulado Considerações
sobre a tortura no mundo contemporâneo. Consoante o autor, esse quadro de guerra
permanente é chamado de cenário de “tincking bomb”, que usa o medo como um instrumento
que legitima a tortura, distorcendo a realidade por meio da manipulação das emoções. Assim,
torna-se possível abrir uma exceção legal para o uso da tortura, e, nesse contexto retórico,

um terrorista preso é portador de informações precisas sobre um atentado


que poderia causar inúmeras mortes. Nessa situação, a tortura seria legítima?
A teia argumentativa tem como pano de fundo a idéia de que o Estado deve
utilizar de todos os meios para garantir uma pretensa “segurança nacional”
(GONÇALVES, 2009, p. 135).

Retomando a leitura do periódico, além das objeções anteriormente citadas, por


exemplo a ideia de justiça racional e o uso de tortura como meio para adquirir informações
militares, a Folha de São Paulo também direciona a sua crítica à tática utilizada para chegar
até o terrorista e assassiná-lo. Segundo o periódico, os Estados Unidos desobedeceram às leis
74

internacionais, o território soberano do Paquistão e cumpriu um assassinato seletivo


extrajudicial de um réu, que deveria ser levado à corte internacional.
A validade da tortura como meio para se proteger a população também é uma
inquirição necessária. Para compreender o debate do periódico, remete-se ao texto de Mark
Napoli Costa, professor de psicologia jurídica na Escola Superior Dom Helder Câmara e
mestre em saúde pública pela UFMG. A prevenção de atentados se faz por meio de atividades
de investigação e espionagem. Não há nenhuma comprovação de que algum atentado
terrorista foi coibido pela coleta de informações feita por torturadores.

Se o torturado em última instância é capaz de falar e confessar tudo aquilo


que ele supõe ter o poder de fazer parar com o processo de tortura, a
desinformação produzida pela tortura de pessoas inocentes consome recursos
e tempo para, no final, não se chegar a lugar algum. A demonstração clara da
ineficiência da tortura enquanto instrumento de produção de verdade fica
muito evidente quando, passados seis anos de tortura oficial pelo governo
norte-americano, ainda não é possível demonstrar que qualquer informação
obtida através de tortura tenha efetivamente salvado alguma vida, prevenido
algum atentado ou levado ao desmantelamento do tão temido grupo
terrorista Al Qaeda ou qualquer outro grupo terrorista (COSTA, 2008, p.
131).

Desse modo, a tortura não alcança sua meta inicial de obtenção de informações e
passa a se tornar mais um instrumento simbólico na guerra contra o terrorismo. A tortura
dissemina o medo na população dominada, gerando desorganização social e desmanchando as
formas de solidariedade coletiva, consequentemente impedindo qualquer tentativa de
resistência. Por isso,

ela tem que se tornar pública. Por isso, muitos torturados devem sobreviver.
Eles devem contar a todos o que acontece com aqueles que atravessam o
caminho de quem tortura, para que o pânico se espalhe e o imobilismo e
inércia se imponham à população subjugada (COSTA, 2008, p 132).

Outro autor a que esta pesquisa recorre e que corrobora com o ponto de vista do
periódico é o filósofo Moniz Bandeira. Conforme ele, a Guerra contra o Terror instalou um
governo autoritário nos EUA. Longe de ser uma democracia, o Ato Patriótico e a legalização
da tortura transformaram o governo estadunidense em um Estado Policial que dissemina o
medo e a condição permanente de guerra para justificar as restrições das liberdades. O Ato
Patriótico criou leis de exceção, aprovada pelo Senado após o11 de setembro. Elas ampliaram
os poderes do executivo e criaram a definição do
75

novo crime de “domestic terrorism” tão amplamente que poderia ser usado
contra qualquer tendência política que praticasse a desobediência civil. Era
uma contravenção direta da Constituição dos Estados Unidos, conforme
observou o congressista Denis Kucinich (democrata, Ohio). E Francis A
Boyle, professor de Direito Internacional da Universidade de Illinois,
declarou que, desde 11 de setembro, o que os americanos viram foi um golpe
atrás do outro contra a Constituição. Estavam sendo criadas assim as
condições para o estabelecimento na América de um Estado policial, com
traços similares aos da Alemanha nazista, mediante a restrição dos direitos
civis e das garantias individuais, coação das liberdades públicas, adensados
pela crença na superioridade racial dos americanos e na invencibilidade de
suas armas, por arrogante patriotismo e nacionalismo de grande potência.
(MONIZ BANDEIRA, 2014, p. 644).

Para Moniz Bandeira, a Guerra ao Terror permitiu que os EUA na luta contra
Osama bin Laden e contra o terrorismo islâmico iniciassem um estado de guerra permanente,
infinita, que permitiria tanto o rompimento com as leis internas, a constituição, quanto as leis
do direito internacional costumeiro. A lei não possuía validade, imperava o direito do mais
forte, retroagindo o sistema internacional em um Estado de Natureza hobbesiano. A ideia de
que a luta contra Osama bin Laden e a Al Qaeda representava a vitória dos princípios liberais
apenas travestia um quadro em que a violência e a ditadura global americana ampliavam seu
poder sobre o mundo.

George W. Bush, no discurso sobre o Estado da União, em Janeiro de 2002,


demonstrou que pretendia instaurar e envolver o mundo em um estado de
guerra permanente, implantando a ditadura global dos Estados Unidos. [...]
Seu objetivo consistiu em fomentar o clima de medo e de pavor, para
justificar o programa de guerra permanente, a guerra infinita [...] (MONIZ
BANDEIRA, 2014, p. 668-669).

Após criticar a ideia de justiça e a validade jurídica da tortura, a crítica da Folha


de São Paulo foi persistente também quanto à legitimidade da ação. Questionamentos sobre a
invasão do espaço soberano do Paquistão seguido de uma execução extrajudicial de um
criminoso internacional enfraqueceram a legitimidade da ação americana diante dos
princípios consagrados como os Direitos Humanos. Somente nessa temática é que o periódico
se abriu para o dissenso, permitindo a entrada de outras vozes que representavam o ponto de
vista do governo americano. Ficavam claros os limites do ecletismo tão defendido pela
direção do jornal.
Como foi descrito no texto do Ombudsman, desde o anúncio da captura do
terrorista pelo presidente Barack Obama, o corpo editorial do jornal interpretou o evento
como “os EUA invadiram um país e mataram uma pessoa sem julgamento”. No dia 04 de
76

maio, a legalidade da operação passou a ser abertamente questionada, com inúmeras


reportagens que descreviam a operação entre erros e acertos do governo americano. Foram
criadas colunas que opunham especialistas que eram favoráveis ou contrários à intervenção
militar.

2.2.1 A coluna a favor/contra

A Folha sempre se posicionou segundo uma tradição eclética, uma vez que,
mesmo contra o assassinato, também permitiria diferentes pontos de vista em suas
reportagens. Nas colunas, os debates sobre a legitimidade ou não da intervenção, construídos
por especialistas, eram colocados à disposição do leitor.
Os argumentos que defendiam a intervenção se organizavam em torno de alguns
pontos: a resistência do terrorista à prisão; o estado de guerra contra a Al Qaeda, que
continuava ameaçando os americanos; o questionamento acerca da invasão do território
soberano do Paquistão.
O primeiro argumento se refere à resistência do terrorista à prisão. Os EUA

alegaram que a operação foi legal e que o terrorista, apesar de estar


desarmado, resistiu à prisão. “A resistência não exige uma arma de fogo”,
disse o porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, sem explicar como Bin Laden
teria tentado impedir sua captura a ponto de ameaçar os agentes. O líder
terrorista foi morto com tiros no rosto e no peito. (FOLHA, p. A12,
04/5/2011, Legalidade de ação militar é questionada)

Tal discurso tenta legitimar a escolha em assassinar o terrorista, em vez de levá-lo


ao tribunal internacional. Contudo, as contradições que o governo americano construiu ao
elaborar diferentes versões, uma após a outra, para justificar a ação, levaram à perda de
credibilidade e à desconfiança quanto aos verdadeiros procedimentos adotados pelas tropas
que assassinaram o terrorista. Ao final, ficou implícito que o governo americano não assumiu
publicamente que a missão das tropas americanas no Paquistão era matar Osama bin Laden e
recolher o corpo.
A versão mais aceita do fato está no livro do ex-marine Matt Bissonette, líder da
operação em campo que eliminou Osama bin Laden. Ele publicou sua experiência com título
“No Easy Day” (publicado no Brasil com o título: Um dia nada fácil), narrando que
77

Bin Laden não estava armado quando baleado com um tiro no lado direito da
cabeça e que, depois de caído, ainda se contorcendo em convulsão, em meio
a “blood and brains spilled outof the side of his skull”, os outros soldados
continuaram a cravar seu corpo de balas, até deixá-lo “motionless”. Dentro
do quarto só havia duas armas, um fuzil AK-47 e uma pistola Makarov,
ambas com as câmaras vazias. Bin Laden não estava sequer preparado para
defender-se. A missão, porém,consistia em “killing/capture”, i.e., primeiro
matar e capturar o cadáver (MONIZ BANDEIRA, 2013, p. 225).

Fica evidente que o terrorista não resistiu, não esboçou nenhuma reação. Osama
bin Laden foi atingido na cabeça, o relato em inglês afirma que “sangue e cérebro saíram
para o lado de fora do seu crânio” e os soldados continuaram a atirar até que seu corpo
estivesse “imóvel”. Os argumentos levantados para a defesa da execução sem julgamento dos
terroristas foram desacreditados pelos próprios americanos ao construírem diversas versões
sobre o fato. Mas a versão final está subentendida: a missão era um assassinato extrajudicial.
O segundo argumento se constrói na legitimidade do ataque como parte da guerra
entre os Estados Unidos e a Al Qaeda. O ataque em Abottaboad seria parte da estratégia
americana na Guerra contra o Terror. No dia 04 de maio, as vozes dos defensores da operação

sustentam que os EUA estão em guerra contra a Al Qaeda e que o congresso


americano autorizou em 2001 uso de força militar contra terroristas.
“O presidente está autorizado a usar toda a força necessária e apropriada
contra aquelas nações, organizações ou pessoas que ele determinar que
tenham planejado, autorizado, cometido, ou ajudado os ataques terroristas de
11 de setembro de 2001”, diz a resolução (FOLHA, p. A12, 04/5/2011,
Legalidade de ação militar é questionada).

No dia 06 de maio, mais uma vez, defende-se a legalidade da intervenção


americana em matá-lo. A ideia de um julgamento formal seria dispensável, uma vez que a
guerra contra o terrorismo ainda estava em andamento, portanto Osama bin Laden era um
inimigo em combate.

Outra polêmica é o fato de bin Laden ter sido morto e não levado a
julgamento.
Para o influente comentarista neoconservador Robert Kagan, “historiadores
vão escrever que dois governos falharam em impedir o 11 de setembro (Bill
Clinton, 1993-2001 e Bush) e dois governos conseguiram lutar contra o
terrorismo (Bush e Obama). (FOLHA, p. A16, 06/5/2011, “Assassinato de
Bin Laden revigora debate sobre tortura”).

No dia 07 de maio, o discurso é retomado na coluna “Tendências e Debates”, com


a interrogação: “Foi correta a operação norte-americana para matar Osama bin Laden?”.
78

Mesmo sua linha editorial criticando a ação americana, o jornal deu voz aos argumentos que a
legitimavam. O argumento anterior, de que os EUA estavam agindo em defesa do seu Estado
e de sua população contra futuros atentados da Al Qaeda, ganha sofisticação, ao se utilizar o
conceito de “Razão de Estado” para descrever e justificar a ação americana. Jorge
Zaverucha36, autor do artigo, afirma que havia base legal e moral para matar o terrorista, pois
a

Al Qaeda continuou a atingir novos alvos americanos, afora as ações que


foram desmanteladas pelas forças de segurança dos EUA. Nada mais
apropriado, à luz do direito internacional, os EUA possam atacar seu inimigo
sem pedir licença a ele.
Afinal, Osama bin Laden estava abertamente planejando novos ataques
contra alvos civis e militares. Alijá-los da disputa era uma questão de salvar
vidas inocentes – e não apenas norte-americanas. (...).
Localizado o esconderijo de bin Laden, a escolha que o presidente dos EUA
tinha a fazer era entre duas alternativas: não tomar qualquer atitude efetiva
ou fazer algo que poderia ser questionável, por alguns em termos morais e
legais.
Creio que a decisão de Obama de usar a razão de Estado para atacar o
esconderijo de Bin Laden foi mais satisfatória do que se nada tivesse feito.
Como comprova a reação da população de seu país. A expressão razão de
Estado significa o uso da força para a conservação do poder político e da
segurança de determinada coletividade humana. (FOLHA, p. A3
07/5/2016,”Sim! Havia base legal e moral para matá-lo).

A Folha, utilizando do recurso do ecletismo, não está necessariamente


coadunando com o argumento pró-americano descrito por Jorge Zaverucha, mas abre espaço
em seu enquadramento para uma voz discordante do ponto de vista que foi defendido pelo
Ombudsman. De um modo geral, a ideia levantada nos dois textos recorre ao argumento da
defesa da “Razão de Estado”, já que a sociedade e o Estado norte-americano estavam sob a
ameaça terrorista da Al Qaeda. Nesse caso, qualquer ação seria aceitável, ainda que ferisse a
moralidade ou o direito internacional, desde que retomasse a condição de normalidade e
segurança do país.
Para se entender o princípio da Razão de Estado, defendido pelo artigo de Jorge
Zaverucha, esta pesquisa cita o Dicionário de Política, de Noberto Bobbio, Nicola Matteucci
e Ginfranco Pasquino. Segundo o verbete, a tradição de argumentos que defendem a “Razão
de Estado” afirma que

36
Doutor em ciências políticas pela universidade de Chicago (EUA), é professor da Universidade Federal de
Pernambuco e pesquisador do Instituto Nacional de Tecnologia/Instituto de Estudos Comparados em
Administração de conflitos. Publicou recentemente o livro “Armadilha em Gaza – Fundamentalismo Islâmico e
Guerra de propaganda contra Israel”.
79

a segurança do Estado é uma exigência de tal importância que os


governantes, para a garantir, são obrigados a violar normas jurídicas, morais,
políticas e econômicas que consideram imperativas, quando essa necessidade
não corre perigo. Por outras palavras, a Razão de Estado é a exigência de
segurança do Estado, que impõe aos governantes determinados modos de
atuar (BOBBIO, 1998, p. 1066).

O Direito Internacional costumeiro seria descumprido intencionalmente, uma vez


que a soberania do Estado e a segurança da população estavam sendo ameaçadas por grupos
terroristas não-estatais como a Al Qaeda. A partir de uma perspectiva realista das relações
geopolíticas, a ação norte-americana era coerente e necessária, ainda que à margem das leis.
Relacionando o argumento do periódico e a descrição do Dicionário de Política,
percebe-se que a defesa da Razão do Estado justificaria até mesmo o Ato Patriótico debatido
anteriormente, já que os ataques do dia 11 de Setembro e a luta contra o terrorismo instalaram
no país uma situação de crise. A fim de defender a democracia, seriam necessárias ações
emergenciais que não estavam corporificadas nos códigos de leis. Logo, até mesmo em um
país como os EUA, cuja democracia é sólida e duradoura, ocorreriam situações excepcionais
que exigiriam o rompimento da legalidade.
Os Estados democráticos vivem em situações de emergência,

que, por sua natureza, não podem ser juridicamente reguladas de forma
completa (em última análise, necessitas non habet legem), existem situações
e casos de recorrência à Razão de Estado, exatamente provocados pela
necessidade de salvar o Estado democrático. Nestes casos, é usual também a
expressão Razão de Estado democrática, o que indica que, perante a
consciência pública, o recurso à Razão de Estado só parece justificado
quando se trata de defender a segurança da forma específica de Estado que é
o Estado democrático. É de constatar que, nos Estados democráticos mais
sólidos, isto é, com um maior consenso ou onde falta uma consistente
oposição ao regime, encontra-se na população uma maior disposição a
aceitar, em momentos de aguda crise, um espaço residual para a Razão de
Estado, já que não se teme que ela seja usada para fins partidários; por
razões iguais e contrárias, tal disponibilidade é indubitavelmente menor nos
Estados democráticos onde não há perfeita identificação com o regime
democrático por parte das forças políticas mais destacadas e,
conseqüentemente, por parte do povo em conjunto (BOBBIO, 1998, p.
1069).

Os ataques de 11 de setembro recuperaram a identidade entre os cidadãos norte-


americanos e o Estado, que estava aparelhado pelo partido republicano. O ataque fez os EUA
recuperarem a crença em seus valores. O consenso em torno da necessidade das medidas de
segurança internas e externas recuperou o nacionalismo e a conformidade em torno dos
80

valores americanos. Assim, o Ato Patriótico não seria uma forma de destruição dos valores
democráticos, mas, sim, uma medida para protegê-los diante de uma crise e de renovar o
contrato social.
Retornando, mais uma vez, as inúmeras reportagens e argumentos contra a ação
americana, presentes nas páginas da Folha, eles podem ser aglutinados na destruição da
ordem legal que os EUA haviam atropelado em nome da “Razão de Estado”. A ausência de
um julgamento formal pelo Tribunal Penal Internacional, que representa a sociedade de
Estados, e a invasão do espaço aéreo do Paquistão são vistos como uma atitude autoritária
norte-americana. Um abuso de poder que enfraquece a possibilidade de paz no mundo.
Desde o dia 04 de maio de 2011, a legalidade da operação é questionada, visto
que

alguns juristas questionam o assassinato sem direito a julgamento e o fato de


a operação ter ocorrido em um Estado soberano. “A ação pareceu um
assassinato extrajudicial”, disse Nick Grief, professor de direito da
universidade de Kent, ao jornal britânico “Guardian” (FOLHA, p. A12,
04/5/2011, Legalidade de ação militar é questionada).

No dia 05 de maio de 2011, mais textos criticam o ato americano e sua posição
ambígua quanto à sua coerência, evidenciando o uso de tortura e seu apoio a governos
autoritários no mundo árabe. Porque os EUA

invadem um país, fuzilam um inimigo sem julgamento, jogam o corpo do


sujeito no mar e estamos conversados. Tudo isso depois de se valerem de
“técnicas coercitivas de interrogatório”, eufemismo para tortura com
afogamentos. E ainda vem a ONU, candidamente, dizer que “‟é preciso
investigar”. Se o direito internacional foi desrespeitado.
A lógica política da operação Gerônimo é a mesma que preside a
intervenção seletiva nos conflitos na África e no Oriente Médio. Gaddafi, o
ex-amigo, agora é inimigo, então chumbo nele e na família. Já na Síria, não é
bem assim, tampouco no Iêmen e na Arábia Saudita – azar de quem nasceu
rebelde por ali. Mais uma vez, os EUA tratam o planeta como quintal, e
usam a ONU de platéia para “rambolices”. (FOLHA, p. A2, 05/5/2011,
“Licença para matar”)

As críticas acima citadas colocam novamente os temas da justiça e tortura.


Ademais, colocam em destaque a relação ambígua dos EUA com outros países do Oriente
Médio, como Arábia Saudita e Síria. Para se entender as críticas à relação entre esses países,
busca-se o auxílio de autores como Peter Demant e Robert Cockburn. No primeiro caso, é
citado um aliado dos EUA, a Casa de Saud recebe o apoio para sustentar uma das monarquias
mais autoritárias e fechadas do planeta. Após a descoberta do petróleo em 1933, o papel
81

geoestratégico da Arábia Saudita e da dinastia de Saud foi crescente e o interesse norte-


americano também. A empresa petrolífera Aramco

se tornou o canal de um acordo que garantia acesso norte-americano


desenfreado à maior fonte petrolífera do mundo. Posteriormente, os EUA se
comprometeram a proteger militarmente a monarquia contra tribos
concorrentes e outros inimigos internos e externos. O acordo se mantém até
hoje (DEMANT, 2004, p. 95).

Outro fator, que vai ser estudado com maior detalhe no próximo tópico, é o
patrocínio fornecido pela Arábia Saudita aos grupos terroristas sunitas. O caso da Síria
destacado pelo texto está em uma condição oposta. Esse país foi aliado da URSS durante a
Guerra Fria e ainda opera diplomaticamente pró-Moscou.
Nos dias atuais, esse compromisso é comprovado pelo apoio russo ao regime de
Bashar Al-Asad na Guerra Civil Síria (COCKBURN, 2014, p. 121). Tal proteção impede que
os EUA se lancem contra o governo autoritário sírio e permite o massacre de parte da
população civil que migra como refugiados para países vizinhos ou para a Europa. A política
externa americana e suas intervenções militares revelam um caráter ambíguo, já que interesses
políticos e econômicos predominam mais que o ideal de expansão democrática.
Retornando às páginas da Folha, na entrevista feita pelo jornalista Samy Adghirni
com o professor de Direito internacional da USP, Alberto Amaral Junior, do dia 05 de maio
de 2011, a legalidade, mais uma vez, foi questionada, a ideia de defesa preventiva foi
colocada sob suspeita e a falta de uma legislação internacional que permitisse essa ação
militar levou a comparação da ação americana aos atos terroristas.

FOLHA: Cabe o argumento da legítima defesa preventiva?


- A legítima defesa preventiva é o princípio pelo qual um Estado que deduzir
que o outro Estado cometerá uma agressão pode adotar medidas para
impedir uma futura invasão. Isso não se configurou. Além disso, qualquer
ação de legitima defesa tem que ser imediatamente comunicada ao Conselho
de Segurança da ONU, o que não aconteceu.
(...) FOLHA: Os EUA alegam que sua legislação pós 11/09 permite caçar
terroristas mundo afora.
– Qualquer lei nacional só vale para dentro de um país. O Congresso
brasileiro pode decidir invadir o Uruguai, por exemplo, cujo território foi
parcialmente considerado parte do Brasil. Mas isso não obriga nenhum país
a acatar a decisão.
Bin Laden era um dos homens mais perigosos do mundo. Muita gente
discutia a justificativa moral de eliminá-lo, mas a morte dele nessas
circunstâncias não tem justificativa legal. Não podemos usar contra os
terroristas os mesmos métodos que eles usam contra nós. (FOLHA, p. A14,
82

05/5/2011, “Contra a ação dos EUA: Não podemos usar contra os terroristas
os métodos deles”)

Primeiramente, a tese da defesa preventiva foi colocada sob suspeita, pois o


ataque não foi feito a um Estado hostil, mas, sim, a um grupo não-Estatal. Legalmente, o
terrorista deveria ser levado ao tribunal internacional, como os nazistas em Nuremberg. Além
disso, a intervenção não foi comunicada à ONU e sequer informada ao Paquistão, que teve
sua soberania atacada, configurando uma ação americana unilateral.
Outro fator importante, denunciado na segunda reportagem, foi a extensão da ação
americana, uma vez que a Guerra ao Terror e sua legislação antiterrorista foram usadas no
âmbito internacional. As leis que deveriam se limitar ao território soberano dos EUA são
usadas sobre outros países, destituindo a sua soberania. E por último, a ação americana foi
comparada a um ato terrorista, por carecer de legalidade ao desrespeitar as regras do direito
internacional.
No debate erguido pelo periódico no dia 07 de maio, a Folha insiste no
questionamento da legalidade do evento, denunciando o caráter autoritário do governo norte-
americano. Na resposta ao artigo de Jorge Zaverucha, citado nas páginas anteriores, estava o
artigo escrito por José Rodrigo Rodriguez37 intitulado: Não! “V” de Vingança, em que os
termos da razão de Estado e legitima defesa são questionados e comparados à uma vingança
dos EUA e não um ato de justiça. Segundo o autor, a história

ensina que os poderosos abusam de sua posição. Um poder sem controle


pode degenerar em autoritarismo: basta que a definição do justo se torne
privilégio de um pequeno grupo de pessoas.
(...) Não é razoável que o presidente dos EUA tenha o poder de decidir
unilateralmente quem deve viver e quem deve morrer ao redor do mundo. E
pouco importa que a execução de Bin Laden seja considerada “justa” pela
opinião pública ou que venha a desestimular ações terroristas. A questão não
é essa.
(...) O autoritarismo nasce falando em nome da justiça, com o objetivo de
fazer o bem. Mas sem permitir que a sociedade influencie seus atos,
tomando decisões em fortalezas secretas vigiadas por guardas amados para o
bem da democracia, é fundamental que Obama ponha um ponto final na
Guerra ao Terror e passe a combatê-lo em regime de normalidade, ao lado da
comunidade internacional. (FOLHA, 07/05/2011, “Não! V de Vingança”).

As ideias de respeito à lei, processo criminal e justiça são retomadas. A


justificativa de que, em nome do bem, o uso da força ou violência sem limites legais tem
37
Mestre em direito pela USP, doutor em filosofia pela UNICAMP, é professor, editor da revista “Direito GV”,
coordenador de publicações da Escola de Direitoe Democracia do Centro Brasileiro de An‟liselise e
Planejamento.
83

legitimidade é denunciado como autoritarismo. Opostamente à ideia de liberdade, os EUA


derrubariam o império da Lei e levariam ao autoritarismo. Nessa visão do periódico, a retórica
de expansão da liberdade e democracia não está coerente com o autoritarismo e unilateralismo
que a política diplomática americana desenvolveu após a Guerra Fria. Para se entender o
autoritarismo estadunidense nas relações internacionais, esta pesquisa relaciona os
argumentos presentes no periódico com o pensamento dos autores Benjamin Barber, Moniz
Bandeira, Eric Hobsbawn e Alexander Del Valle.
Benjamin Barber, em seu livro Império do Medo, descreve como o autoritarismo
dos EUA leva à desconfiança em relação ao seu poder. Segundo ele, a própria história dos
Estados Unidos encontra sua fundação na desconfiança em relação ao poder colonial inglês
que se tornou abusivo e na proposta de restaurar as liberdades usurpadas. Os americanos
desconfiam do poder dos seus próprios governantes. A liberdade americana

deve muito à desconfiança americana em relação ao poder – ao seu próprio


poder. Por que então julgarmos que os outros devem confiar em nós somente
porque dizemos ser seus libertadores? Ou por que sargentos e soldados rasos
que se comportam mal nas prisões do Iraque são considerados culpados,
enquanto um secretário de defesa e um presidente que dizem que na guerra
contra o terrorismo “vale tudo” são inocentes? (BARBER, 2005, p. 18-19).

Apesar de serem textos distintos, tanto na Folha de São Paulo – produzido no


contexto da captura de Osama bin Laden – quanto na obra de Benjamin Barber – escrito no
contexto da Guerra ao Terror e da invasão americana ao Iraque –, na analise feita pela
presente pesquisa percebem-se argumentos que concordam que os limites entre a legitimidade
da intervenção militar para expandir direitos humanos e democracia devem se condicionar,
não ao interesse da opinião pública, ou ao que os americanos consideram como um bem maior
para a humanidade, mas, sim, à autoridade da lei. Qualquer ação que exceda esses princípios é
uma forma de autoritarismo e abuso de poder.
No dia 08 de maio, as reportagens contra ou a favor já não se voltam para o tema
da captura do terrorista, o tom de rejeição ao comportamento político estadunidense é
predominante. Dentro desse mesmo debate sobre legalidade, justiça e abuso de poder,
destaca-se o editorial “Recaída Imperial”, sem autoria definida, que sintetizou, de forma mais
contundente, os argumentos anteriores. A redação é iniciada com os questionamentos acerca
da violação da soberania do Paquistão e se havia a opção de capturar Osama bin Laden e levá-
lo a um Tribunal Internacional.
84

A polêmica sobre o primeiro tema é rapidamente respondida com a afirmação de


que Paquistão e EUA há muito tempo haviam feito acordos que permitiam a ação militar
estadunidense, ainda que no assassinato de Osama bin Laden não houvesse nenhuma
autorização específica. Quanto ao segundo questionamento,

as informações obtidas sugerem que o objetivo da operação era eliminar bin


Laden, e não prendê-lo. Só um cúmplice terrorista teria disparado contra as
forças especiais, Bin Laden teria sido morto diante da filha e de uma mulher.
Tinha pistola e fuzil ao alcance, mas não usou.
(...) Barack Obama tentou conferir um tom de vitória ao raide, ao dizer que
se fez justiça. Justiça, no entanto, é algo que se realiza nos tribunais, sob o
império da lei – como não se cansam de pregar os americanos, ainda que
nem sempre o pratiquem.
Países poderosos sempre se reservaram a prerrogativa de não cumprir
normas caso julguem que seus interesses ou segurança estejam em risco. A
Guerra ao terror transformou a exceção em regra ao proclamar o direito de
intervenção preventiva.
(...) Os EUA, portanto, precisam não apenas esclarecer as circunstâncias da
morte de Bin Laden, mas assegurar ao mundo que essa recaída imperial não
implica abjular a profissão de fé no multilateralismo e no respeito às normas
internacionais feito por Obama.
(FOLHA, 08/05/2011, P.A2, Recaída Imperial)

A maior contribuição desse texto foi relacionar o abuso de poder norte-americano


na captura e assassinato de Osama bin Laden com a ideia de recaída imperial. A noção de um
Império Americano é destacada no texto, e é importante debater-se aqui a implicação desse
termo no contexto da escrita. A existência ou construção de um império americano é discutida
por Hobsbawn, para o qual a ideia de um império americano está totalmente em contradição
com os princípios de uma ordem mundial de Estados soberanos democráticos.
Analistas otimistas podem sugerir que a imagem de um império seja bem-vinda
para garantir a paz, uma vez que, em uma ordem internacional anárquica, a paz somente seria
obtida por meio de um Estado imperial, de um “Império Americano”. Contudo, Hobsbawn
(2007, p.55) estabelece fortes críticas a essa postura dos EUA e analisa a impossibilidade de
uma ordem imperial na contemporaneidade. O autor inglês afirma que um império vai contra
a própria cultura americana baseada na “lei” e na “autodeterminação”.
Hobsbawn (2007, p. 80-84) afirma ainda que o poder superior dos impérios que
lhe permitia conquistar e governar o mundo baseava-se na noção de uma civilização superior,
ou uma superioridade moral ou mesmo racial. Essa perspectiva garantia a cooperação com os
interesses locais e a legitimidade do poder efetivo. Desse modo, a ocidentalização era uma das
poucas formas que uma economia atrasada poderia se modernizar. Esse fato garantia a boa
vontade implícita das elites nativas. Entretanto, a globalização fez com que a modernização
85

deixasse de ser monopólio do Ocidente. Para o mundo da periferia das potências


desenvolvidas, “a presença dos ocidentais nos seus países, para não falar do exercício da
influência e do poder político local, já não é necessária para a modernização das suas
sociedades (HOBSBAWN,2007, p. 84)”.
O autor em questão descreve os riscos em se deixar levar pela ideia de que o
domínio dos EUA na política externa favorece a formação de um império americano que
levaria à paz mundial. Para o autor, a noção de que um império mundial traz a paz é uma
falácia. Isso porque, em um mundo

crescentemente desordenado e instável, é natural que se sonhe com algum


poder capaz de estabelecer a ordem e a estabilidade. Esse sonho se chama
império. É um mito histórico. O império americano, com suas esperanças de
pax americana, tem como imagem assumida a pax britannica, período de
globalização e paz mundial do século XIX associado à assumida hegemonia
do Império Britânico, paz que, por sua vez, tinha como imagem e razão do
seu próprio nome a pax romana do antigo Império Romano. Mas isso é
conversa mole. Se a palavra pax tem algum sentido nesse contexto, é por
referir-se ao estabelecimento da paz dentro de um império, e não
internacionalmente. Os impérios da história raramente deixaram de conduzir
operações militares nos seus próprios territórios e com certeza o fizeram nas
suas fronteiras em todos os tempos. Simplesmente essas operações não
afetaram a vida civil em suas metrópoles (HOBSBAWN, 2007, p. 58-59).

Dessa maneira, ainda que a hegemonia americana se concretize, as guerras e o


terrorismo permanecerão em suas fronteiras como uma ameaça constante, pois a paz só
existirá dentro da influência e esfera de poder do império. O sonho de organismos
multilaterais competentes, ou de uma sociedade de nações que chegaram à paz
diplomaticamente é subjugado por uma paz imposta pela força militar dos EUA, distanciando-
se cada vez mais do multilateralismo para a ação unilateral de uma potência mais poderosa
sobre as demais. Tanto no editorial Recaída Imperial quanto no texto de Hobsbawn há uma
visão pessimista sobre as intervenções americanas que solapariam as relações multilaterais e
as leis internacionais que, conseqüentemente, gerariam mais instabilidades e conflitos
armados em diferentes partes do planeta.
Outro crítico desse pensamento é o filósofo Moniz Bandeira, que analisa o
imperialismo americano durante o governo republicano de George W. Bush como um
rompimento unilateral da ordem de Westfália. As relações interestatais deveriam ser
reconstruídas com os EUA no centro de uma ordem internacional liberal. Os Estados Unidos,
sob o governo dos neoconservadores,
86

decidiram derrogar unilateralmente os princípios da soberania nacional e da


não intervenção nos assuntos internos de outros países, acordados no Tratado
de Westfália, de 1648. E George W. Bush, com o objetivo de racionalizar as
guerras que pretendiam desencadear, oficializou a doutrina dos “preemptive
attack”, em documento de 33 páginas – The National Security Strategy of
the United states of America -, divulgado em 17 de setembro de 2002.
(...) Os americanos procuravam defender uma “liberal internacional order”,
porém, the only stable in sucessuful order” que os americanos podiam
imaginar era aquela que tivesse os Estados Unidos como centro (MONIZ
BANDEIRA, 2013, p. 679-680).

Mais uma vez, a ideia de um imperialismo é criticada pelo unilateralismo dos


EUA, que poderia interferir na soberania dos demais países. Essa nova ordem seria a ordem
da economia liberal. A liberdade econômica não seria necessariamente acompanhada pela
liberdade política, já que os EUA seriam o único centro político dessa ordem mundial.
Outro comentarista que nos ajuda a entender o significado e os riscos de uma
recaída imperial norte-americana é novamente Benjamin Barber. O autor endossa que as
guerras constantes no exterior, em nome do combate ao terror e aos abusos nas práticas
internas de segurança, inauguraram um medo muito maior que os terroristas conseguiriam
provocar. Os líderes americanos

estão implementando uma militância irresponsável que visa estabelecer um


império americano do medo mais terrível do que qualquer outra coisa que os
terroristas poderiam ter concebido. Prometendo desarmar todo e qualquer
outro adversário, utilizar a “mãe de todas as bombas”, acabar com o tabu
sobre o uso de armas nucleares táticas, e, além disso, querendo chocar e
espantar tanto inimigos quanto amigos para levá-los a uma submissão total, a
nação que já foi celebrada como arauto da democracia tornou-se hoje a
potência beligerante que todos temem (BARBER, 2003, p.30).

O último comentarista que também traz uma luz sobre o significado de um


Império norte-americano é Alexandre Del Valle. Para esse autor, as práticas políticas e
militares americanas são mascaradas de boa guerra em nome dos direitos humanos e
escondem um totalitarismo, menos brutal que o nazista e comunista, mas também violento. O
domínio norte-americano dos meios de comunicação e das instituições produtoras de
conhecimento e consenso

impediria os analistas de examinar objetivamente, dessa vez, os contornos do


“imperialismo americano”, totalitário ao seu modo, certamente de maneira
menos brutal que o nazismo e o comunismo, mas extremamente violento
também, como se observa desde o início dos anos 90? O fato de Washington
mascarar de boa guerra as manifestações coercitivas de seu hegemonismo
global atrás da moral universal dos direitos humanos, “os valores do
87

ocidente”, o “direito de ingerência”, humanitário, até o novo conceito de


“guerra humanitária”, dispensaria os observadores de pôr em evidência o
caráter unilateral, violento, desestabilizador, para o mundo inteiro, e cada
vez mais antidemocrático da política externa americana? Assim como se
pode constatar, os ensinamentos dos Antigos estão longe de estar prescritos,
a arte da retórica como instrumento de poder e de guerra é mais atual do que
nunca (DEL VALLE, 2003, p. 18).

Nesse sentido, a conjectura de uma recaída imperial colocada pelo editorial de


forma extremamente negativa é corroborada por esses autores selecionados pela pesquisa. O
sentido negativo desse termo, que se tentou aqui decifrar, remete-se ao estado permanente de
guerra, unilateralismo, autoritarismo e a uma leitura mais extrema acerca do controle da
informação e do totalitarismo. Comparada à abordagem feita pela Veja, que tratou os EUA
como promotores da paz no mundo, o editorial da Folha constrói a imagem dos EUA como
promotores de um estado de guerra constante, o que culminou na destruição da liberdade
garantida pela lei, em nome da paz e segurança imposta pelas armas norte-americanas.
No próximo e último tópico, abordam-se as críticas construídas pelos
colaboradores da Folha em torno das contradições da Guerra ao Terror. Nesse tópico, a
efetividade da invasão do Afeganistão e Iraque é questionada, a relação entre EUA e
Paquistão também é criticada. Por último, será analisado o esforço da Folha em demonstrar a
íntima relação entre EUA e terrorismo.

2.3. A inconsistência da Guerra ao Terror

A Folha, inúmeras vezes, fez referência à Guerra ao Terror. A despeito do seu


caráter eclético, o periódico se concentrou em estabelecer inúmeras críticas elaboradas por
diferentes autores e diferentes fontes. Conforme o Ombudsman da Folha, até o dia 04 de
maio, a Folha ainda não possuía um posicionamento claro sobre a ação americana. Mas, no
dia 03 de maio, a doutrina da Guerra ao Terror já era colocada sob suspeita.

É difícil, porém, predizer que a morte de Bin Laden vá acarretar redução do


terrorismo. Na realidade, países ocidentais se preparam para um
recrudescimento inicial. Mas ela repõe duas dúvidas sobre a “guerra ao
terror”.
A primeira diz respeito a intervenções militares e ocupações prolongadas. A
derrubada do Talibã no Afeganistão retirou o apoio importante para a Al
Qaeda, mas foi uma ação focalizada que levou à morte do terrorista.
88

A segunda se refere à relação entre os EUA e Paquistão. A planejada retirada


de forças americanas na região deixaria aberto o flanco representado pela
proximidade do serviço secreto paquistanês com grupos terroristas.
(FOLHA, p. A2, 03/5/2011, “Euforia e Cautela”).

A presença de tropas em terras estrangeiras é questionada no periódico, pois a


prisão do terrorista ocorreu por meio de uma ação focalizada, e não pela presença de tropas
americanas no Afeganistão e no Iraque. Essas ocupações, longe de disseminar a democracia e
promover sociedades estáveis, favoreceram a abertura de negócios para empresas de
reconstrução, lançando esses países a novos conflitos militares internos.
E o segundo questionamento se deve à relação ambígua entre Estados Unidos e o
seu maior aliado muçulmano na guerra contra a Al Qaeda: o Paquistão. Por quais motivos os
EUA não poderiam contar com o apoio do Paquistão para a captura de Osama bin Laden?
Essa fratura nas relações entre os dois países abre uma estrada para o passado, que denuncia a
relação íntima entre EUA e Paquistão na formação de grupos fundamentalistas e terroristas
contra o avanço da URSS na região durante a Guerra Fria.
Segundo a Folha, a intervenção americana no Afeganistão e no Iraque teve um
efeito reverso no combate aos terroristas. “Se os Estados Unidos mantiveram o plano de
retirada, a tendência é a Al Qaeda enfraquecer”, diz ele.“Não por acaso, os lugares onde há
maior militância extremista é onde há presença americana, no Iraque e no Afeganistão
(FOLHA, p A16, 04/5/2011, “O Fim da Caçada: Primavera Árabe mostra rejeição a Osama)”.
Graças ao recurso da visão retrospectiva, que os jornalistas da época não
possuíam, sabe-se que a intervenção americana gerou cada vez mais ressentimento e, no caso
iraquiano, derrubou o principal governo secular da região, abrindo um vácuo de poder e
causando a formação de grupos extremistas ligados a Al Qaeda como a Frente Al-Nusra38 e o
EI (Estado Islâmico) 39.
A fim de entender melhor as ambiguidades destacadas pelo periódico, esta
pesquisa recorre ao suporte das análises de Benjamin Barber. Tal autor defende que a
presença de tropas em solo estrangeiro faz parte de uma estratégia de construção que visa
38
A Frente Al-Nusra foi uma ramificação da Al Qaeda no Iraque, que passou a agir na Síria em 2012 contra o
regime de Bashar Al Asad. Após a morte do líder da Al Qaeda no Iraque, Abu Musab al-Zarqawi,e a
desarticulação do movimento islamita, a Frente Al Nusra passa a agir na Guerra Civil Síria, mantendo sua
fidelidade ao líder da Al Qaeda após a morte de Osama bin Laden, Ayman Al-Zawahiri. Apesar de romper
politicamente com o EI,a Frente Al-Nusra coopera com esse grupo islamita em suas ações na Síria e no Iraque.
(WEISS, 2015, p. 166-171)
39
O EI surge após a derrota da Al Qaeda no Iraque, com o assassinato de Abu Musab al-Zarqawy. Nesse
contexto a liderança dos jihadistas no Iraque passa para Abul Bakr al- Baghdadi que rompe com a Al Qaeda e
passa a liderar o jihadismo na região. Após tomar importantes regiões do Iraque o EI se espalha em direção à
Síria lutando ora como aliado ora independente da Frente Al-Nusra, a Al Qaeda do Iraque (WEISS, 2015, 122-
126).
89

menos à reconstrução de Estados democráticos estáveis e mais à abertura de novos setores


econômicos para a expansão do capital americano. A reconstrução democrática desses países
equivale à ampliação do mercado, uma vez que esta

... é o traço básico da reconstrução de nações do pós-guerra,seja no


Afeganistão ou no Iraque. (...) Mesmo antes do começo da guerra, o governo
tinha convidado corporações americanas para concorrer aos contratos das
obras de reconstrução. Falou-se muito da conexão entre alguns membros da
administração e certas corporações interessadas (Haliburton, por exemplo),
mas não se prestou a devida atenção ao fato mais importante de que a
reconstrução estava sendo ao mesmo tempo privatizada e americanizada – as
ONGs internacionais praticamente ficaram de fora (BARBER, 2005, p. 183).

A presença de tropas em terras estrangeiras, dentro de um contexto de guerra


permanente, representou gastos gigantescos que sustentaram o aparato industrial-militar
norte-americano. Em entrevista à Folha, Steve Clemons, pesquisador Sênior do New America
Foudation, refere-se aos gastos americanos e à manutenção de uma guerra sem fim, eterna.

FOLHA - O Sr. também menciona que, mais do que desbaratar a rede


terrorista, a morte de Bin Laden foi importante para a auto-estima americana.
CLEMONS - Sim. Nós gastamos mais de US$ 2 trilhões desde os ataques de
11 de Setembro de 2001, muito acima de nosso orçamento normal de
Defesa, mandamos centenas de milhares de soldados para duas guerras, e
milhares deles foram mortos.
A noção de que a maior potência militar do mundo não conseguia pegar Bin
Laden criou uma necessidade psicológica de compensar exageros no
orçamento militar e no envio de tropas. Tudo tem sido muito anormal.
(...) FOLHA - A política externa vai privilegiar Somália e Iêmen?
CLEMONS - Sim, em franquias da Al Qaeda e outros grupos terroristas.
Agora que bin Laden se foi, vamos ver outros terroristas ganharem
proeminência. Não porque eles sejam perigosos, mas porque nós temos essa
necessidade de ter um grupo terrorista por aí, para focarmos nele.
FOLHA - Por quê?
CLEMONS - É a maneira pela qual o governo americano é organizado. Há
muita gente interessada em manter ativo o jogo contra o terrorismo.
Nós nos acostumamos a ver o terrorismo como a causa de muitas coisas e já
vemos Al Awalaki40 e a Al Qaeda no Iêmen se transformando nos próximos
grandes vilões. (MELLO, entrevista da 2ᵃ, 09/5/2011)

40
Anwar al-Awlaki e possuía dupla cidadania, americana, iemenita. No Iêmen,atuou como clérigo,
propagandista e operante da Al-Qaeda na Península Arábica (AQAP). Em 30 de setembro de 2011, Awlaki foi
alvo e morto no Iêmen em um ataque de drones dos EUA para atacar deliberadamente um cidadão dos EUA.
Enquanto ele estava vivo, Awlaki dirigiu uma série de atentados terroristas contra os Estados Unidos, e divulgou
vídeos em inglês e árabe, gravações de áudio e artigos on-line. Os ensinamentos de Awlaki, ainda amplamente
disponíveis na Internet, continuam a inspirar dezenas de ataques terroristas, frequentemente dirigidos aos
Estados Unidos. Acessado em : https://www.counterextremism.com/extremists/anwar-al-awlaki. 16/03/2017.
90

Ao se analisar esse trecho, percebe-se que a captura de Osama bin Laden e o


enfraquecimento dos grupos terroristas não significam necessariamente o fim da Guerra ao
Terror. Mesmo após a Guerra Fria, os EUA se mantêm em engajamento militar constante.
Nesse caso, não só a reconstrução, mas a própria guerra se transforma em um grande negócio.
Para Moniz Bandeira o estado de guerra perpétua,

a guerra sem fim constituía uma necessidade vital para os Estados Unidos,
não apenas econômica, mas também política. Sua economia passa a
depender, em grande proporção, das indústrias de material bélico e da alta
tecnologia, eletrônica e digital, cujo maior consumidor era o governo
americano. Havia uma simbiose entre essas indústrias e o Estado americano.
Os imensos recursos financeiros, de orçamento de defesa destinavam-se a
mantê-las em funcionamento, mediante a renovação de encomendas de
aviões, mísseis, tanques, canhões, fuzis, metralhadoras, granadas, munições
e outros apetrechos bélicos ou de utilidade dual. E tornava-se necessário
queimar os excedentes da produção (MONIZ BANDEIRA, 2005, p. 682).

As guerras operam tanto em uma dimensão econômica quanto em uma dimensão


política. A exportação de material bélico contribui para o crescimento econômico do país. O
apoio aos países aliados, a venda de armas e de tecnologia militar permitem aos EUA
enfrentarem os males da sua economia ainda que multiplicando focos de instabilidade pelo
mundo, por exemplo o caso iraquiano.
Esses conflitos em que os EUA se envolveram foram dados como encerrados,
contudo as inúmeras consequências, muitas delas não previstas, geraram mais instabilidade no
Oriente Médio e em grande parte do mundo muçulmano. A Guerra ao Terror se perpetua,
porque ela necessita ser perpétua, porque alimenta a economia e o interesse dos EUA e de
diversos grupos políticos no Oriente Médio.
O terrorismo fundamentalista é uma das principais forças que agem para a
desorganização política no Oriente Médio. A Folha tentou, por meio dos seus analistas e
comentadores, estabelecer uma relação de proximidade entre EUA e fundamentalismo
islâmico. A porta de entrada desse debate foi a tensão surgida entre EUA e Paquistão após a
invasão do território paquistanês para a captura de Osama bin Laden.

2.4. A confusa relação entre EUA e o patrocínio a grupos terroristas

O periódico, desde a manchete da primeira página, que tratava do anúncio da


captura e assassinato do terrorista no dia 02 de maio, já fazia questão de destacar a relação
91

íntima entre Osama bin Laden e o governo norte-americano. As antigas relações entre CIA e o
terrorismo, muito fecundas durante a Guerra Fria, são destacadas no trecho “Bin Laden
ajudou os EUA contra os soviéticos no Afeganistão nos anos 70. Depois, com a Al Qaeda, se
voltou contra os EUA (FOLHA, p. A1, 02/5/2011, „A justiça foi feita‟)”.
As demais reportagens ocultam essa relação íntima, não obstante, durante os
demais dias, houve um esforço do periódico em relacionar o ISI – o serviço de Inteligência
paquistanês – ao apoio ao Talibã e a Osama bin Laden. Tal esforço denuncia uma
contradição: os EUA lutam contra o terrorismo e buscam apoio no Paquistão, que é um
patrocinador do terrorismo fundamentalista.
Conforme a Folha já havia “alfinetado” anteriormente, os EUA já haviam se
aproximado de práticas terroristas ou patrocinado o terrorismo islâmico contra os soviéticos.
EUA, Paquistão e Arábia Saudita se uniram para patrocinar o terrorismo fundamentalista
contra o avanço soviético sobre o Afeganistão. Dessa união de recursos, treinamento e
tecnologia que se criam as condições para o crescimento e destaque do milionário saudita
Osama bin Laden como líder da Jihad contra os soviéticos.
Com o suporte das análises de Moniz Bandeira, na obra O Império Americano,
estabelece-se a relação entre EUA, Paquistão e terrorismo, enunciados anteriormente nas
páginas da Folha de São Paulo. Segundo o autor, foram a CIA, o ISI e o serviço de
inteligência saudita que

institucionalizaram o terrorismo em larga escala, com o estabelecimento de


campos de treinamento no Afeganistão, a fim de combater as tropas da união
Soviética (1979-1989), fornecendo aos mujahidin toda sorte de recursos e
sofisticados petrechos bélicos – de 300 a 500 mísseis antiaéreos Stinger, dos
Estados Unidos (...) A CIA forneceu em torno de US$ 3,3 bilhões, dos quais
pelo menos metade proveio do governo da Arábia Saudita. Mais de US$ 250
milhões fluíam, mensalmente, para os mujahidin da Arábia Saudita e de
outros países árabes (MONIZ BANDEIRA, 2013, p. 37).

O terrorismo instituído pelos EUA, Paquistão e Arábia Saudita transformou o


Afeganistão no Vietnã da URSS41. As tropas soviéticas se retiraram do Afeganistão e esses
grupos ganharam autonomia, aprendendo a se manter sem os recursos e a estrutura dos seus

41
Brzezinski, conselheiro presidencial no governo Kenedy e no governo, Carter entendia que o funamentalismo
islâmico constituía importante arma ideológica não somente para impedir que a influência comunista se
expandisse nas regiões do Golfo Pérsico, da África e do Oceano Índico, como também para incitar as repúblicas
asiáticas da União Soviética a se revoltarem contra o governo de Moscou. Em seu livro Game Plan, salientou
que a melhor maneira de de dissuadir a união Soviética de avançar na direção sul estava dentro de suas próprias
fronteiras, onde havia cerca de 55 milhões de muçulmanos, que tinham sido subjugados apenas na superfície
(MONIZ BANDEIRA, 2014, p. 396).
92

apoiadores iniciais. Os grupos que atuaram no Afeganistão também atuaram em outras partes
do mundo em conflitos que envolviam muçulmanos. Esses grupos aprenderam

a se autofinanciar com o tráfico de drogas e com outras atividades ilícitas.


Depois do Afeganistão, tais movimentos foram empregados na Iugoslávia,
em apoio aos bósnios contra os sérvios, e em outros países. Contudo, os
EUA se desinteressaram pelo Afeganistão, após o fim da URSS, e esses
grupos foram abandonados a própria sorte. Com a formação de um regime
talibã, eles ganharam um lar nacional, como foi o caso da Al Qaeda. Em seu
ressentimento, eles se voltaram contra o Ocidente e, particularmente, contra
os EUA. Tiveram também seus aliados e contatos nesses países, sempre
grupos frustrados com seus governos e com o fim da Guerra Fria, que os
transformou em “rebeldes sem causa” (VISENTINI, 2012, p. 66-67)

O Afeganistão se tornou a base para o crescimento da rede Al Qaeda e da


liderança de Osama bin Laden. Entretanto, foram os próprios EUA, o Paquistão e a Arábia
Saudita “a base” para a jihad internacional. Desse modo, quando a Folha insiste em focar o
debate na desconfiança dos EUA em relação ao Paquistão, ela demonstra a íntima relação
entre esse país e o terrorismo e, concomitantemente, desnuda uma contradição da “Guerra ao
Terror”.
As dúvidas sobre a lealdade do ISI para com a aliança entre EUA e Paquistão
levaram as próprias autoridades americanas a temer que a informação vazasse e permitisse a
fuga de Osama bin Laden, impedindo assim a sua captura. Fato semelhante permitiu a fuga de
Osama bin Laden do complexo de cavernas de Tora Bora para o Paquistão. O diretor da CIA,
Leon Panetta, afirmou que, se “Islamabad fosse avisada sobre o ataque, alertaria o líder
terrorista (FOLHA, p. A15, 04/5/2011, “O Fim da Caçada: EUA afirmam que Paquistão
poderia alertar Bin Laden).
A fuga de Osama bin Laden das cavernas de Tora Bora e sua entrada no
Paquistão, mesmo com a monstruosa recompensa em troca de sua cabeça, demonstra que até a
população não compactuava com o apoio do governo paquistanês à intervenção americana no
Afeganistão. A Folha explora esse tema ao destacar novamente como o Paquistão fomentou a
formação de grupos terroristas contra a Índia e apoiou a formação do Talibã, responsável pelo
governo no Afeganistão após a derrubada dos soviéticos. O periódico afirma que é inocência

acreditar que alguém na vasta rede de informações do país não soubesse da


presença de Bin Laden. É certo ter havido troca de informações sobre
Abbotabad antes da operação.
Islamabad está sob forte pressão, e a aliada americana e arquirrival Índia já
aproveitou para criticar sua relação com extremistas. Como se sabe, o
93

Paquistão alimentou radicais para desgastar os indianos e ajudou a criar o


talibã afegão para ganhar influência regional.
Sua aliança com os EUA gera mortes diárias no país, que tem forte
sentimento antiamericano, o que explica as duras cobranças sobre a operação
militar.
(FOLHA, p. A17, 06/5/2011, “EUA querem mais bases no Afeganistão”)

Além do apoio ao terrorismo, o texto destaca o antiamericanismo. Os ataques


feitos por drones se tornaram uma arma na caçada e extermínio de terroristas, contudo as
falhas nos usos dessas armas causaram a morte de civis, além de inúmeros danos físicos e
psicológicos em muitas comunidades. A ação dos drones foi alvo de uma pesquisa da
University School of Law (New York University Clinic), da International Human Rights and
Conflict Resolution Clinico of Stanford Law School (Stanford Clinic) e da Global Justice
Clinica at New York em várias províncias do Paquistão e concluiu

(...) que o programa de ataques secretos com drones “terrorized” as


comunidades locais, matava enorme número de civis e fomentava o pavor
antiamericano em todo o país. O estudo, intitulado Living Under Drones,
constatou que os moradores das áreas afetadas temiam comparecer a
cerimônias públicas, como casamentos e funerais, porque frequentemente os
operadores dos aviões teleguiados erravam o alvo e atingiam inocentes
(MONIZ BANDEIRA, 2013, p. 219).

O antiamericanismo não pode ser confundido como o ódio aos valores ocidentais.
Mas os EUA fazem um desfavor para a expansão desses valores ao disseminarem o medo na
população civil do Oriente Médio, porque, mesmo sem participarem diretamente dos grupos
terroristas, acabam dando apoio indireto por meio de proteção, moradia ou mesmo silenciando
acerca da presença de grupos terroristas. Essas pessoas são denominadas por Benjamin Barber
como terroristas tácitos, são homens e mulheres que possuem

uma concordância com a justificativa do terrorismo, sem adesão às suas


práticas. Não foram os terroristas, mas seus adeptos tácitos, que, nas regiões
que supostamente libertamos, instalaram zonas seguras para os assassinos.
Sem serem terroristas ou assassinos, os guardiães dessas áreas alimentam
ódios e ressentimentos que incentivam as atividades guerreiras dos
terroristas ativos. Eles são a razão pela qual não conseguimos “decapitar” o
terrorismo removendo seus líderes e prendendo assassinos individuais ou
derrubando regimes perversos. (...) se Osama bin Laden fosse um assassino
solitário, sua captura seria garantida. Mas esses fanáticos fora do comum
obtiveram o apoio dos cidadãos comuns e fiéis, que organizam abrigos,
transformando regiões inteiras em “províncias seguras” no Iraque. (...) Na
verdade, grande parte do Afeganistão e talvez o Paquistão inteiro constituem
abrigos seguros para Osama bin Laden (BARBER, 2005, p. 21-22).
94

As palavras de Barber são significativas e quase proféticas. No Iraque, a


intervenção americana permitiu a ascensão da maioria xiita ao poder. E o novo governo,
liderado pelo primeiro ministro Nouri Al-Maliki, iniciou a perseguição à minoria sunita após
a saída das tropas americanas. A intervenção dos EUA no Iraque, em vez de trazer a paz e a
estabilidade, apenas liberou as tensões entre xiitas e sunitas no país.
Os terroristas do Estado Islâmico (EI) se aproveitaram da opressão de xiitas sobre
os sunitas para avançar sobre o Iraque. Boa parte da população sunita, pacífica, apoiou o EI
não porque eram terroristas, mas porque buscavam proteção contra a opressão do governo
xiita instalado em Bagdá. A população sunita iraquiana não concorda com os atos violentos
do Estado Islâmico, mas

apesar de sua brutalidade, ele garantiu uma vitória para uma comunidade
sunita perseguida e esmagada. Mesmo os sunitas de Mosul, que não gostam
do grupo, temem a volta de um governo iraquiano vingativo e dominado
pelos xiitas.
(...) Um sunita em Mosul, escrevendo logo depois que um míssil disparado
por forças governamentais explodiu na cidade, disse-me: “As forças de
Maliki já demoliram a Universidade de Tikrit. Ela foi reduzida a destroços e
pedras, como toda a cidade. Se Maliki puser as mãos sobre nós, em Mosul,
ele irá matar a população ou transformá-la numa horda de refugiados. Reze
por nós”. Tais visões são comuns e tornam menos provável que a população
sunita levante-se contra o ISIS ou o Califado. Um novo e terrível Estado
surgiu – e ele não desaparecerá facilmente (COCKBURN, 2014, p.67-68).

Exatamente esse apoio tácito que impede a vitória rápida sobre o terrorismo. E
mesmo as revoluções árabes que se espalharam, no mesmo período que a captura de Osama
bin Laden, não representaram uma vitória sobre o terrorismo fundamentalista, pois foram os
grupos fundamentalistas que chegaram ao poder na Líbia, Tunísia e Egito após as eleições.
Em 12 de maio de 2011, a Folha entrevistou um dos inspiradores paquistaneses
do Talibã, o general da reserva Hamid Gul, que apoiou os mujahidins na luta contra a URSS e
esteve à frente do ISI na década de 1980. A sua leitura da primavera árabe foi sombria ao
afirmar que, mais cedo ou mais tarde, a população se voltaria para os grupos
fundamentalistas. Naquele período, ele viu a retirada americana como um espaço

para a composição política com seus antigos pupilos islâmicos. E faz uma
previsão sombria. “A primavera árabe não tem nada a ver com Bin Laden.
Mas quando tudo acabar e esses jovens se virem abandonados de novo, vão
acabar reconhecendo nele uma lenda, um herói, alguém que foi até o fim”
(FOLHA, 12/5/2011, p. A16, “Morte de Bin Laden termina a guerra”, diz pai
do Taleban).
95

A leitura dos fatos feita por Hamid Gul se realizou e derrotou as leituras
concorrentes, que também foram citadas na Folha. Elas afirmavam o papel da Primavera
Árabe42 como o estopim para a implantação da democracia no mundo muçulmano.
Longe de uma perspectiva orientalista, a Folha de São Paulo estabeleceu fortes
críticas aos EUA, destacando sua ingerência no Oriente Médio e mundo muçulmano, as
práticas de tortura e seu apoio ao terrorismo internacional. A seleção de temáticas presentes
no periódico, entendidas especialmente pela posição clara do Ombudsman, demonstra a visão
liberal do periódico, visto que defende princípios como direitos individuais, liberdade e
diversidade de pensamento, liberdade de informação e justiça racional.
Nota-se que tanto Folha quanto Veja partiam de uma visão liberal para avaliar a
ação norte-americana. Todavia, ambas chegaram a resultados diferentes, pois o
enquadramento escolhido por cada veículo permitiu a construção de críticas diferentes.
Enquanto Veja focou no mundo muçulmano, a Folha se direcionou para o governo norte-
americano. Ainda que os textos buscassem a credibilidade por meio da voz de especialistas
entrevistados, o recorte demarcou claramente a posição de cada veículo no debate. São essas
diferenças entre Veja e Folha que serão abordadas no último capítulo, diferenças que não são
meros posicionamentos, mas refletem debates da filosofia política nos dias atuais.

42
A Primavera Árabe foi um conjunto de levantes populares que ocorreram no mundo árabe contra os governos
autoritários da região. As revoltas começaram na Tunísia, que levou à derrubada da ditadura de Zine el-Abidine
Bem Ali, que estava a 23anos no poder. A Revolução se espalhou para o Egito e levou à derrubada da ditadura
de Hosni Mubarak, a partir de levantes na Praça Tahir. As rebeliões chegaram à líbia que levou à derrubada e
morte do presidente Kadafi. Em outros países como Bahrein, Arábia Saudita e Irã os levantes populares foram de
início sufocados. Na Síria a Primavera Árabe levou o país a uma guerra civil que perdura até os das atuais
(VISENTINI, 2012, p. 127-137).
96

CAPÍTULO 3
FOLHA E VEJA: A ESCATOLOGIA HUMANA E O CAMINHO DA LIBERDADE

A Revista Veja e a Folha de São Paulo apresentaram visões distintas sobre o


mesmo fato. Nenhuma delas se construiu a partir da antiga tradição colonial orientalista
descrita nas obras de Edward Said, como já foi abordada ao longo da introdução do texto. Nos
dois periódicos os princípios liberais são os delineadores, contudo a ênfase dada em cada
impresso foi diferente. Enquanto para a Revista Veja, liberdade representa a liderança dos
EUA na disseminação da democracia e do livre-mercado, para a Folha de São Paulo
liberdade é o respeito da soberania dos Estados nacionais, justiça racional e liberdade de
informação. Em ambos os textos, os limites da ação americana são descritos, a partir de
referências diferentes.
Os oráculos e descrições do futuro, do mundo governado pelos EUA e sem a
ameaça de Osama bin Laden, possuíram presença marcante. Contudo, as duas visões se
apropriam de diferentes representações políticas sobre a geopolítica mundial. A riqueza dos
textos estava exatamente nas suas capacidades de conectar passado e futuro dentro das
relações entre Islã e Ocidente. O mesmo fato suscitou diferentes representações, algumas
positivas e otimistas sobre um futuro pacífico, enquanto em outras representações o
pessimismo descrevia um futuro de guerra contínua.
Na Veja, o debate liberal se destacou aliado à defesa do papel dos EUA após a
Guerra Fria. O papel dos norte-americanos como nação disseminadora dos valores
democráticos e liberais foi exaltado e a concepção de um futuro liberal foi celebrada. Sem
Osama bin Laden, os esforços para um mundo sem grandes guerras estruturado a partir do
liberalismo e da democracia iria triunfar. Na Folha de São Paulo, o pessimismo sobre o futuro
é dominante, longe de ser o triunfo da democracia e do liberalismo, a morte de Osama bin
Laden representou apenas um exercício de poder dos EUA como líderes da sociedade
ocidental, uma megalomania imperial do governo americano. O assassinato do terrorista
significou o acirramento das diferenças entre o Ocidente e o Islã.
Desse modo, no capítulo final são comparadas as perspectivas dos periódicos,
investigando o significado que a captura e execução do terrorista teria para o mundo
globalizado. Na Revista Veja o otimismo liberal é predominante e as representações são
modeladas dentro da perspectiva do Fim da História e o Último Homem, de Francis
Fukuyama. Já na Folha de São Paulo o pessimismo em seus textos é implícito, mas muitas
97

representações fazem referência direta à clássica obra de Samuel Huntington O Choque de


Civilizações ao demonstrar a incompatibilidade dos valores ocidentais com a sociedade
islâmica e com o Islã político extremista.
A construção de oráculos, não só diferentes, mas também opostos impõem novos
questionamentos significativos, especialmente quanto à conquista da estabilidade e paz nas
relações internacionais. O assassinato de Osama bin Laden tornou o mundo mais seguro? As
intervenções americanas são legítimas, ou até mesmo necessárias? Existem limites para o uso
da força nas relações internacionais? As intervenções americanas disseminam a democracia e
a paz ou perpetuam um estado de tensão militar e guerra no mundo?

3.1 – Entre a utopia do “fim da história” e a distopia do “choque de civilizações”.

Após a análise dos dois periódicos, observa-se que o mesmo acontecimento foi
abordado de diferentes formas pelos veículos de comunicação, cada um deles legitima seu
posicionamento a partir da defesa dos princípios da civilização ocidental. A Revista Veja
defendeu o liberalismo, secularismo e democracia. Enquanto a Folha de São Paulo patrocinou
valores como a justiça racional, direitos individuais e liberdade de informação. Posicionados
em lados opostos do debate, os meios de informação partiram do mesmo caldeirão
civilizacional.
O debate poderia ser relativizado, afirmando a imprecisão desses valores,
justificando as diferenças na abordagem de cada texto. Contudo, a resposta não está em
palavras mortas que foram impressas no papel. Cada reportagem comunicou mais que
conceitos, mas também perspectivas de futuro, que visavam mobilizar o leitor, convidá-lo a se
posicionar dentro de um embate internacional que eles são coagidos a compreender.
Esse embate é uma guerra de quarta geração43 entre personagens como o
governo dos EUA e os grupos terroristas islâmicos. Cada movimento nessa guerra não visa
simplesmente atacar as estruturas físicas do território inimigo, mas acima de tudo atacar o
moral do adversário e reforçar as próprias fileiras de aliados e combatentes. Atacar o World
Trade Center e capturar Osama bin Laden cumpriram objetivos simbólicos que visavam
desmoralizar o adversário, levá-los à crise interna e fortalecer o moral do front interno. Os

43
A Guerra de Quarta Geração é decidia nos níveis operacional, estratégico, mental e moral, ao invés dos níveis
tático e físico. Portanto, a forma de emprego da força e das manobras se altera. Alvos psicológicos e simbólicos
se tornam mais importantes que alvos físicos (VISACRO, 2009, p. 39-40).
98

meios de comunicação se tornam, nesse contexto, catalisadores de representações de guerra,


instrumentos poderosos, que mobilizam a opinião pública que definem a vitoria na Guerra de
Quarta geração.
A disparidade entre as estratégia de cada meio de comunicação permitiram que a
Revista Veja se posicionasse a favor da ação dos EUA, e a Folha de São Paulo se
posicionasse contra. Ao confrontar ambos os textos, as linhas editorias escolhidas, revelam o
esforço em moldar no leitor os diferentes papéis políticos que a comunidade de cidadãos,
informados pela opinião pública, deve exigir do seu governo dentro da civilização ocidental.
Em cada caso, o papel do cidadão e do seu governo é pensado de formas
diferentes, concomitantemente, as perspectivas de futuro de cada veículo direcionam para a
paz perpétua ou para a guerra perpétua. O anseio final, construído após o cruzamento das
perspectivas diferenciadas foi compreender se os EUA e seu modo de intervenção
representam o tipo de futuro que a sociedade ocidental pretende construir para si e para o
mundo, ou se não, qual seria o modelo proposto.
Na Folha de São Paulo, na manchete da primeira página, o texto nos lembra que,
anteriormente a essa relação de ódio entre americanos e Bin Laden, o terrorista na década de
1970 foi um aliado privilegiado do governo estadunidense na Primeira Guerra do
Afeganistão44, durante a Guerra Fria. Osama Bin Laden ajudou o governo dos EUA “contra
os soviéticos no Afeganistão nos anos 70. Depois, com a Al Qaeda, se voltou contra os
EUA.”(FOLHA, p. A1, Bin Laden está morto,diz Obama).
Para o jornal, a morte de Bin Laden deve ser vista com cautela, porque o desfecho
deixa “mais dúvidas que certezas sobre as conseqüências para o terrorismo de inspiração
islâmica fundamentalista e para a política exterior norte-americana”. (FOLHA, p. A2, Euforia
e Cautela). Segundo o jornal, os ataques terroristas estão se tornando decrescentes e o apelo
dos extremistas islâmicos estava se enfraquecendo antes mesmo da morte de Bin Laden.

44
Em 1979, inúmeras revoltas anti-comunistas foram organizadas por grupos islâmicos dentro do Afeganistão
contra o governo marxista do Partido Democrático do Povo Afegão. A resposta de Moscou foi sair em apoio ao
governo aliado levando tropas de ocupação para o Afeganistão. Ressoou pelo mundo muçulmano, um apelo
sagrado pela defesa das fronteiras do Islã, e logo milhares de jovens impregnados do proselitismo
fundamentalista apresentaram-se como voluntários para ingressarem na Jihad dos guerrilheiros mujahidin,
convertendo a resistência afegã numa grande cruzada internacional. O Exército vermelho digladiava-se contra
dezenas de insurreições tribais, que se organizaram em guerrilhas nas montanhas. Incapazes de romper a barreira
cultural que os separavam do povo afegão, amargando sucessivos insucessos contra a guerrilha mujahidin,
defrontando-se com o custo crescente da guerra e diante do fracasso da tentativa de organizar o Exército nacional
afegão, de fechar as fronteiras com o Paquistão e interromper o apoio externo vindo da CIA, Paquistão e Arábia
Saudita. Em 1989, a URSS estava esgotada e desmoralizada,foi derrotada pela resistência nujahidin (VISACRO,
2009, p. 204-209).
99

Desse modo, a Folha diminui a importância política do evento, seu texto afirma
que a morte do terrorista tem mais valor simbólico do que prático na luta contra o terror, pois
“nada indica que o mundo ficou „melhor e mais seguro‟ como ele quer. A importância do
assassinato de Bin Laden é simbólica. Até nos EUA especialistas dizem que a rede Al Quaeda
não dependia mais do seu mentor”. (FOLHA, p. A2, Década de Osama?). Afirma-se que o
fundamentalismo islâmico está decadente e a principal transformação para o mundo
muçulmano não é a morte de Osama, mas sim a Primavera Árabe, demonstrando a
possibilidade de associação entre democracia e Islã.

O que se passa hoje no mundo árabe aponta para isso. Governos balançam e
ditadores caem pela pressão das ruas, mas não há nenhum sinal de avanço do
fundamentalismo. Pelo contrário, parece estar em curso naquela região uma
espécie de „revolução burguesa‟, pró-capitalista, muito mais significativa dos
eventos da história do que a morte de Osama, “o cara”. ( FOLHA, p. A2,
Década de Osama?).

Outra reportagem, ainda no dia 06 de Maio, retirou todo o mérito da caçada e


eliminação de Bin Laden do planeta pelos norte-americanos, deixando um clima pessimista e
de dúvida sobre uma possível fase de estabilização e paz no mundo.

O êxito festejado na morte de Bin Laden foi pela morte em si mesma. Não
buscou outro sentido senão o da vingança, não propriamente cristã, pela
monstruosidade do maior de seus crimes.
A caçada a Bin Laden estava ciente de que o comando efetivo da Al Quaeda
passara a outras cabeças. (...) Para que não falte uma resposta: o mundo está
melhor? Não há quem saiba. (FOLHA, p. A6, Sem fim).

No dia 04 de Maio, as reportagens que discutem o significado do ato terrorista


mantém o tom condenatório pela ação militar e também pela “Guerra ao Terror” iniciada
pelos EUA após os atentados do dia 11 de setembro de 2001. O texto afirma que enquanto os
olhos dos leitores se fixavam no combate ao terror no Oriente Médio, eventos muito mais
importantes se desenvolveram no planeta.

Em livro publicado há dois anos, o acadêmico John Mueller disse que o total
de americanos mortos em atentados desde os anos 60 é „mais ou menos igual
ao de mortos em acidentes causados por cervos, neste período‟.
(...) Enquanto os EUA despejavam dinheiro nessa guerra, mudanças
verdadeiramente decisivas estavam em curso no leste da Ásia. A ascensão de
novas potências como a China e a Índia influenciará o novo século de forma
100

mais decisiva do que a ameaça terrorista. (FOLHA, p. A12, Hora de declarar


vitória e encerrar a guerra global contra o terror).

Mais uma vez, a Folha de São Paulo dá uma alfinetada reduzindo a importância
da Guerra ao Terror para o planeta e demonstrando uma leitura global para os eventos.
Inserindo o leitor e uma narrativa globalizada, o texto afirma que eventos como o crescimento
da Índia e China foram fatos mais influentes para o desenvolvimento das relações políticas
internacionais.
Já na Revista Veja, a morte do terrorista pelas tropas de elite dos EUA recebeu a
primeira página. O rosto do militante islâmico estava estampado na capa da revista, com a
manchete: “O mundo depois de Bin Laden”. Na capa, o rosto do personagem sofre um efeito
visual como se estivesse se desmanchando como o vento que leva as areias do deserto.
Enquanto a Folha de São Paulo afirmava que a morte do terrorista Osama Bin
Laden pouco significava para o planeta, a Revista Veja apresentou a morte do terrorista como
o primeiro passo para a retomada da prosperidade planetária interrompida pelas ameaças
terroristas operadas por militantes extremistas muçulmanos contra os símbolos do poder
americano: o World Trade Center e o Pentágono. Em tom poético e quase profético a
reportagem constrói uma síntese de mundo, colocando a vitória dos EUA na Guerra Fria
como a realização de uma sociedade em caminho do progresso e prosperidade coletiva graças
à Globalização e ao Neoliberalismo.

Na virada do milênio, o mundo preparava-se para fazer do século XXI,


aquele em que duas nobres questões seriam resolvidas: negociar a solução
dos conflitos remanescentes, passada a fase de acomodação da ordem global
que se seguiu ao fim da Guerra Fria; e garantir que a liberdade econômica
pudesse beneficiar uma parcela maior da população com melhorias em suas
condições de vida. As esperanças de sucesso eram justificadas. (VEJA, p,
85, O mundo depois de Bin Laden).

Ao contrário da Folha de São Paulo, o terrorismo é colocado pela Revista Veja


como um dos eventos mais importantes do planeta, que afastou o mundo do seu curso normal
e impôs uma agenda de guerra e conflito ofuscando outras prioridades planetárias. A morte de
Osama Bin Laden não significaria o fim do terrorismo, mas sim algo maior, pois o mundo
retomaria sua agenda de crescimento econômico e negociação dos conflitos remanescentes
sob a liderança do Ocidente.
101

A revista retoma a narrativa lembrando em tom sensacionalista que os atentados


terroristas do dia 11 de setembro de 2001deixaram mais de 3000 crianças órfãs. Segundo o
periódico, a morte de Bin Laden não representa o fim do terrorismo, pois o maior legado deste
extremista “foi a disseminação de uma ideologia que emprega a guerra santa contra a
civilização ocidental como um fim em si mesmo”.(VEJA, p. 87, O mundo depois de Bin Laden).
Contudo, a revista é categórica ao afirmar que a humanidade retomará o seu rumo
normal e que os apelos de Bin Laden por uma Jihad perderam sua força no mundo islâmico
que entrava em uma onda de rebeliões que visavam derrubar os governos autoritários do
Oriente Médio. Desse modo, a mesma pergunta feita pela Folha de São Paulo é respondida de
forma diferente pela Revista VEJA afirmando que o mundo, “sem dúvida, é um lugar melhor
sem Osama Bin Laden”. (VEJA, p. 87, O mundo depois de Bin Laden).
Diferentemente da Folha de São Paulo, para a Revista Veja a relação entre Osama
Bin Laden e os EUA sempre foi de oposição e começa a partir dos conflitos da Guerra do
Golfo e não durante a Guerra Fria. E a causa dos desafetos entre o militante islamita e os
norte-americanos é no mínimo simplória e suspeita, atribuindo a Osama Bin Laden a
responsabilidade por todos os conflitos posteriores.

Só para lembrar: Bin Laden virou a mira para os americanos depois que
Sadam Hussein invadiu o Kuwait, e a Arábia Saudita, temendo ser a
próxima, aceitou a intervenção militar dos Estados Unidos. Ele considerava
o maior dos sacrilégios que infiéis cristãos conspurcassem o solo onde viveu
o profeta Maomé e está o principal local de culto, a santa Meca.
Pois é, a história toda começou porque o sujeito de turbante achava, no
figurado, que não dava para entrar no mesmo elevador que os americanos,
um dos motivos mais idiotas de todos os tempos. (VEJA, p. 90, Mais um
pouco ele vira santo).

O homem comum se encontra, então, com duas perspectivas diferentes da


realidade, não somente diferentes, mas também contraditórias em alguns sentidos. Diante
desse fato, qual seria seu quadro de referências para compreender o seu mundo? Esse é um
dos maiores desafios da atualidade marcada pela presença e disseminação dos meios de
comunicação de massa.
Essa presença da mídia e seu papel como um dos principais vetores da formação
cultural ocidental permitem ao homem contemporâneo ter acesso rápido e barato a um grande
volume de informações sobre uma grande quantidade de eventos. Contudo, esse bombardeio
102

de informações pode trazer mensagens contraditórias que, em enorme variedade, conseguem


desinformar e confundir mais do que orientar.
Esse processo levou o indivíduo moderno a um estado de “superinformação
perpétua e de subinformação crônica”. (NORA, 1995, p. 187). Diante desse quadro, o papel
da História é rediscutir o presente em busca de uma síntese, ainda que provisória, sobre a
realidade. Recorre-se assim à História do Tempo Presente que surge “como um instrumento
destinado a integrar a inevitável velocidade dos acontecimentos num andamento mais lento,
refletido e inteligível” (BIBBEANO, 2011, p. 9). Caberá ao historiador lutar contra esse
quadro de superinformação acelerada, pois

uma reflexão histórica sobre o presente pode ajudar as gerações que crescem
a combater a atemporalidade contemporânea, a medir o pleno efeito destas
fontes originais, sonoras e em imagens, que as mídias fabricam, a relativizar
o hino à novidade tão comumente entoado, a se desfazer desse imediatismo
vivido que aprisiona a consciência histórica como a folha de plástico
“protege” no congelador um alimento que não se consome (RIOUX, 1999, p.
46).

Ao colocar a morte de Bin Laden e o fundamentalismo em um contexto histórico


e geopolítico mais amplo, consegue-se compreender que não são apenas duas versões
diferentes para o mesmo fato, mas sim duas teorias geopolíticas que fazem parte dos debates
das ciências sociais. A Revista Veja ao estabelecer sua leitura de mundo se aproxima da tese
defendida por Francis Fukuyama em que o fim da Guerra Fria permitira a humanidade entrar
em uma fase de maior integração, harmonia e prosperidade. Para o autor, o acontecimento
mais notável do último quarto do século XX foi

a revelação de uma fraqueza enorme no âmago das aparentes fortes ditaduras


do mundo sejam elas da direita militar autoritária, sejam da esquerda
comunista totalitária. Da América Latina ao Leste Europeu, da União
Soviética ao Oriente Médio e à Ásia, os governos fortes têm desmoronado
nas últimas duas décadas. Embora não tenham, em todos os casos cedido
lugar a democracias liberais estáveis, a democracia liberal continua como a
única aspiração política coerente que constitui o ponto de união entre regiões
e culturas diversas do mundo todo. Além disso, os princípios liberais em
economia – o “mercado livre” – estão hoje disseminados, conseguindo
produzir níveis sem precedentes de prosperidade material, tanto nos países
industrialmente desenvolvidos quanto nos países que, no fim da Segunda
Guerra Mundial, faziam parte do empobrecido Terceiro Mundo. A liberdade
103

política no mundo todo foi às vezes percebida, outras vezes seguida, de uma
revolução liberal no pensamento econômico (FUKUYAMA, 1992, p. 14).

A tese de Fukuyama nos transmite a ideia de que após a vitória na Guerra Fria, o
destino do Ocidente se cumpriria, levando os seus valores a todos os lugares do planeta,
estendendo seus princípios universais as demais regiões do globo. Isto não causaria conflito
ou resistência já que a globalização seria um fato irreversível e que os valores ocidentais não
teriam concorrentes.
Retomando o discurso da Revista Veja, a defesa da morte de Osama Bin Laden
como a chance de se construir um mundo melhor é herdeira do discurso de Francis
Fukuyama. Na representação do futuro criado pelo periódico, agora com a morte de Bin
Laden e a decadência do fundamentalismo islâmico, o Ocidente poderá retomar seu
crescimento econômico e levar os valores universais para as outras regiões do planeta, que
aspiram sua libertação de regimes políticos autoritários e da pobreza resultante da má gestão
desses governos.
Passados seis anos da morte de Bin Laden a tese da Revista Veja ainda não se
realizou, mas como toda profecia ela aguarda indefinidamente sua realização. O quadro de
referências elaboradas pela revista não foi eficiente como instrumento de identificação
geopolítica do indivíduo no mundo. A Primavera Árabe levou partidos fundamentalistas ao
poder na Líbia, Tunísia e Egito. Na Europa, ucranianos se dividem em uma pequena guerra
civil entre os partidários da União Européia e os partidários da Rússia. A crise econômica
lançou uma onda de xenofobia dentro dos países periféricos da Europa, como Grécia e
Espanha.
Decididamente, a leitura de mundo da Revista Veja foi uma representação de
mundo baseada na emulação dos valores ocidentais, que dão a convicção ao leitor que a
democracia e o liberalismo são os destinos inevitáveis da humanidade. Resistir aos avanços
dos EUA para a disseminação da liberdade nos países governados por ditaduras e teocracias
religiosas é ilegítimo e contradiz a marcha inevitável da história.
A leitura da Folha de São Paulo é debitaria de uma teoria concorrente à de
Francis Fukuyama. Samuel Huntington publicou sua teoria sobre o “Choque de Civilizações”.
Nela encontramos uma tentativa de síntese para a nova conjuntura mundial marcada pela
derrota do comunismo soviético. Ao invés de ver um mundo marcado pela prosperidade, ele
constrói um panorama caracterizado pela exacerbação de conflitos no planeta, e o Ocidente
não seria o modelo a ser seguido, mas sim questionado pelas civilizações concorrentes.
104

Para Huntington não seriam as trocas econômicas que determinariam as relações


internacionais, mas em maior parte elas seriam determinadas pelas relações de pertencimento.
“A cultura e as identidades culturais – que em nível mais amplo, são a identidade das
civilizações – estão moldando os padrões de coesão, desintegração e conflito no mundo pós-
Guerra Fria” (HUNTINGTON, 1998, p. 19).
Segundo o autor, os conflitos não seriam mais marcados pela luta de classes, mas
sim entre cidadãos pertencentes a diferentes agrupamentos culturais. O Ocidente seria uma
civilização em declínio

com sua parcela de poder político e econômico e militar mundial baixando


em relação aos de outras civilizações. A vitória do Ocidente na Guerra Fria
produziu não o triunfo, mas a exaustão. O Ocidente está cada vez mais
preocupado com seus problemas e necessidades internos, ao mesmo tempo
que enfrenta um lento crescimento econômico,, o desemprego, enormes
déficits públicos, uma ética de trabalho em declínio, baixas taxas de
poupança e, em muitos países, inclusive nos Estados Unidos, desintegração
social, drogas e criminalidade. O poder econômico está se deslocando
rapidamente para a Ásia Oriental e o poder militar e a influência política
estão começando a ir pelo mesmo caminho (HUNTINGTON, 1998, p. 19).

A Folha de São Paulo, ao comparar o número de americanos mortos em atentados


terroristas com o número de americanos mortos em acidentes com cervos, demonstra como a
Guerra ao Terror respondia muito mais às necessidades políticas internas do governo de Bush
e do governo de Obama de vingança e ressarcimento do que aos desafios da geopolítica
mundial. Ao desprezar a “Guerra ao Terror” e afirmar que o crescimento econômico e político
da Índia e a da China no cenário mundial eram mais importantes, o jornal corrobora com a
tese de Huntington na qual o pólo de poder não está no Ocidente, mas se transfere
gradativamente para o extremo oriente da Ásia.
Poderia soar contraditório o paradigma do choque de civilizações, já que a Folha
de São Paulo afirmou que Osama Bin Laden foi parceiro dos EUA na Primeira Guerra do
Afeganistão contra os soviéticos. E soaria muito mais estranho dizer que na atualidade os
EUA são aliados da Arábia Saudita, já que a casa de Saud, de orientação wahabbita, patrocina
mesquitas e grupos fundamentalistas sunitas em todo o planeta.
Muitos estudiosos da geopolítica internacional são defensores do paradigma do
choque de civilizações, e desconstroem facilmente esta pseudo-contradição. Um desses
estudiosos é Alexander Del Valle, em sua obra “Guerras contra a Europa”, ele explica
claramente como a política americana é extremamente pragmática e visa a manutenção de sua
105

liderança dentro da civilização Ocidental, ainda que prejudicando ou inviabilizando os


interesses russos e europeus. Assim gerar instabilidade em aliados e adversários é uma forma
de garantir a hegemonia dos americanos em um quadro de poder decrescente.

(...) os estrategistas americanos continuam a instrumentalizar os “fanáticos


de Alá” um pouco por toda a parte no mundo, com o objetivo, desta vez de
cercar a Rússia, a China e mesmo a Índia, por razões essencialmente
econômicas e geoestratégicas (...) O aliado americano não se comporta
sempre como um membro solidário da civilização ocidental, diante da
ameaça global representada pelo islamismo. (DEL VALLE, 2003, p.19).

Desse modo, o quadro de desprezo pela morte de Bin Laden não significa o apoio
deste jornal à causa islâmica ou um espírito de antiamericanismo, mas sim a compreensão da
natureza complexa em que se organizou o mundo, após a queda do socialismo soviético. O
panorama apresentado pela Folha de São Paulo é profundamente crítico, e suas leituras da
realidade foram confirmadas, como a China rivalizando com os EUA para se tornar a
economia mais influente do mundo, o papel da Índia como destacado país emergente, além da
permanência e fortalecimento da Al Qaeda no Afeganistão e Iraque.

3.2. A “aparente” dualidade entre Veja e Folha

As narrativas dos periódicos não são apenas diferentes, mas são também opostas
em seus oráculos. O leitor que se colocar diante das duas leituras do mesmo evento poderá se
sentir pressionado a adotar uma das duas posições. Uma que apóia a ação americana, posição
da Veja, e outra que condena a ação americana, posição da Folha. Os riscos de adotar tais
posições é no primeiro caso, apoiar a intervenção americana com o objetivo de pacificar o
mundo, se solidarizando com as vítimas dos atentados terroristas, mas ao mesmo tempo estar
apoiando os interesses econômicos dos EUA e sua ingerência autoritária no Oriente Médio. A
segunda posição denuncia a violência, os interesses econômicos e a falta de legitimidade das
intervenções americanas, mas corre o risco de sugerir estar justificando os atentados
terroristas.
Esse risco foi denunciado por Peter Demant, no texto A escorregada rumo ao
extremismo islâmico, em que o autor adverte sobre o problema de se estudar os atos
terroristas, pois eles conseguem “provocar uma reação do mesmo nível ou ainda mais violenta
106

(pelo menos na percepção dos „observadores externos‟), ele consegue estabelecer uma
equivalência moral entre terroristas e anti-terroristas (DEMANT, 2004, p. 26-27)”. Em outras
palavras, estudar o terrorismo islamita leva a uma falsa necessidade de se posicionar a favor
dos EUA, o anti-terrorismo, ou contra os EUA, contra a democracia, e a favor de Osama bin
Laden e dos terroristas.
Tal debate se instaura na opinião pública, desde os atentados do dia 11 de
setembro de 2001, passando pela Guerra ao Terror e culminando com a captura e assassinato
de Osama bin Laden. Mas, essa dicotomia é um engodo, pois não existem escolhas entre as
opções, já que

cada uma é tendenciosa e falsa. (...) A narrativa patriótica americana – a


inocência sitiada, o surto de orgulho patriótico – é evidentemente vã;
entretanto seria a narrativa da esquerda realmente melhor? A reação
predominante na esquerda européia – e também americana – foi nada menos
que escandalosa. (...) Não foi mesquinha e infeliz a lembrança da matemática
do holocausto (o que são 3 mil mortos contra milhões em Ruanda,
Congo,etc.)? E o que dizer do fato de a CIA ter colaborado na criação do
Talibã e de Osama bin Laden, financiando-os e ajudando-os a lutar contra os
russos no Afeganistão? Não seria mais lógico afirmar que o dever dos EUA
era precisamente o de nos livrar do monstro que haviam criado? No
momento em que pensamos em termos “É verdade, a queda do WTC foi
uma tragédia, mas não podemos nos solidarizar inteiramente com as vítimas,
pois isso significaria apoiar também o imperialismo americano”, já estamos
diante da catástrofe ética: a única atitude aceitável é a solidariedade
incondicional com todas as vítimas. A atitude ética correta é aqui substituída
pela matemática moralizadora da culpa e do horror, que perde de vista um
ponto importante: a morte terrível de todo indivíduo é absoluta e
incomparável (ZIZEK, 2003, p 66-68).

A narrativa da esquerda, descrita e criticada por Slavoj Zizek, se assemelha muito


aos argumentos construídos na Folha de São Paulo abordando a relação entre EUA e o
patrocínio ao terrorismo islamita contra a URSS e o apoio dado a países que financiavam
grupos fundamentalista violentos como a Arábia Saudita.
Jacques A. Wainberg já havia analisado um comportamento similar da mídia
impressa nacional durante a cobertura dos eventos do dia 11 de setembro de 2001. Nesse caso

O ódio anti-americano falou mais forte. Não houve espaço no imaginário


social para a vitimização dos norte-americanos. Passados os instantes de luto
e respeitoso silêncio, passou-se às usuais analises e discursos. Recordou-se
como já mencionado, o ataque a Hiroshima e Nagasaki e a projeção militar
daquele país e de seus interesses econômicos. Osama bin Laden colocou em
movimento uma série de lamúrias e queixas anti-americanas que estão mais
à flor da pele dos brasileiros do que o ódio ao terrorismo. (...) Há, na
107

verdade, pouca sensibilidade e energia emocional para refletir sobre a


natureza do fundamentalismo wahabita de bin Laden (WAINBERG, 2005,
p.142).

Wainberg aponta um enquadramento perigoso, que a presente pesquisa também


destaca nessa argumentação da esquerda. Ao focar nos Estados Unidos como imperialista,
permite que se perca o foco das especificidades do terrorismo fundamentalista islâmico 45,
movimento de reação à modernidade que prega um retorno à Era de Ouro do Islã, uma
emulação da sociedade dos tempos do profeta. O projeto político extremista visa a restauração
do califado, a instauração de um Estado islâmico, governado a partir de uma leitura rigorosa e
literal do Al Corão, consequentemente a leitura islamista da xaria inclui a

diferenciação acentuada entre homens e mulheres, com a mulher não raro


ocupando posição abertamente inferior, inclusive a clausura; total proibição
do álcool; rezas comunais obrigatórias; proibição da prática da usura
(cobrança de juros nas transações comerciais); punições alcorânicas para
determinados crimes, incluindo mutilações; estado com governo teocrático.
Inclui, ainda, o que a princípio representava o comprometimento com a
expansão ilimitada da fé: a exportação da “revolução islâmica”, hoje
representada pelo confronto com o ocidente “corrupto” e com o sistema
internacional inspirado por ele (DEMANT, 2004, p. 20-21).

Ao focar unicamente nos EUA, se olvida dos objetivos e ações dos grupos
fundamentalistas islâmicos, que são contra os ideais de igualdade de gênero, secularismo,
Estado de Direito e justiça racional. Esquecer os crimes do terrorismo de inspiração
fundamentalista, pode construir a dicotomia entre o mal, os Estados Unidos, e o bem, Osama
bin Laden como um “guerreiro da liberdade”. Os riscos desse enquadramento levaram às
criticas de alguns consumidores no “painel do leitor”, afirmando que os periódicos estavam
argumentando em favor do terrorista.
A saída é fugir de tais oposições e perceber o caráter de simbiose entre elas.
Osama bin Laden e os EUA são as diferentes faces de uma mesma moeda. Longe de ser uma
reação de fanáticos religiosos que desejam alcançar o paraíso e receber setenta virgens como
recompensa, os atos terroristas são construídos racionalmente com objetivos militares e
políticos específicos. Tal comportamento surge como uma reação as falhas ocorridas no

45
Peter Demant afirma que o termo “fundamentalismo islâmico” é um neologismo impróprio, pois o
fundamentalismo foi um movimento religioso protestante nascido no seio dos Estados Unidos. O termo é usado
para movimentos vagamente paralelos em outras religiões. Demant, afirma que o termo islã político é aceitável,
assim como revivalismo islâmico. Na literatura árabe se usa tanto islamiyya, ou se, islamismo, quanto al-
usuliyya al-islamiyya,o equivalente a “fundamentalismo islâmico” (DEMANT, 2004, p. 194).
108

processo de modernização do mundo muçulmano, sob influencia de ideias européias como


imperialismo, nacionalismo e socialismo.
Para uma melhor leitura e compreensão da conexão íntima entre modernismo e
extremismo islâmico é necessário entender a origem dos movimentos fundamentalistas. Dois
grandes especialistas da área, Gilles Kepel e Peter Demant nos dão a chave de compreensão
desse período.
O islamismo, também chamado de fundamentalismo islâmico por alguns autores
como Peter Demant, tem sua origem mapeada no fracasso das ideologias modernizadoras
como o socialismo e o nacionalismo. Para Kepel, os principais ideólogos do fundamentalismo
são o egípcio Qutb, o paquistanês Mawdudi e o iraniano xiita Khomeini, eles tinham em
comum a defesa de um Estado islâmico, assim se opunham

(...) tanto ao nacionalismo secular quanto às correntes tradicionais do Islã,


que não vêem na luta política uma prioridade absoluta. (...) A primeira
batalha política do islamismo foi travada no campo da cultura, no sentido
amplo do termo, antes de sua investida na sociedade e na política. O combate
foi contra o nacionalismo e teve por objetivo substituir uma visão de mundo,
uma comunhão de ideias por outra (KEPEL, 2003, p.47-48).

Assim, o fundamentalismo islâmico surge como uma rejeição ao nacionalismo


que prometia modernizar as sociedades muçulmanas a partir de parâmetros europeus, contudo
instalou ditaduras que não alteraram a situação social da maior parte da população que
permaneceu vítima da desigualdade social e da miséria. O nacionalismo não conseguiu
reverter a condição dos países que compõem o mundo muçulmano de periferia das potências
ocidentais.
Peter Demant, em O Mundo Muçulmano, gradativamente constrói o conceito de
islamismo como:

(...) uma ideologia política anti-moderna, anti-secularista e anti-ocidental,


cujo projeto é converter o indivíduo para que se torne um muçulmano
religioso e observante, é transformar a sociedade formalmente muçulmana
em uma comunidade religiosa voltada ao serviço a Deus e estabelecer o
reino de Deus em toda a Terra (DEMANT, ..., p. 201).

A partir deste conceito, Peter Demant coloca o islamismo como uma politização
da religião, que se estabelece como uma reação ao projeto modernista das ditaduras
implantadas na região, que visavam ocidentalizar o mundo muçulmano. A perda de valores
tradicionais associados à falta de democracia e de acesso aos benefícios econômicos e sociais
109

por grande parte das massas gerou insatisfação coletiva e abertura para o islamismo. Assim
muitos no mundo muçulmano

se abrem ao discurso islamista não em virtude de seu extremismo teológico e


político antimoderno, mas apesar dele. O que estes milhões de pessoas
buscam é fugir da impotência coletiva estrutural – uma evasão que projetos
anteriores, modernistas não forneceram (DEMANT, ...,p. 353)

É possível entender o projeto fundamentalista como uma reação à modernidade,


como anti-ocidental, anti-secularista e religioso. Para Peter Demant é impossível desvincular a
modernidade da ocidentalização. Os fundamentalistas seriam anti-modernos que incorporam a
modernidade como forma de alcançar seus objetivos. Gilles Kepel apresenta a intenção desses
movimentos criarem os seus próprios modelos de modernidade. Kepel afirma que os
fundamentalistas da Irmandade Muçulmana recusavam-se “a ficar relegado ao pietismo e ao
culto, mas professava uma modernidade „islâmica‟ em oposição aos costumes europeus
(KEPEL, 2003, p. 54)”.
Assim, os eventos do dia 11 de setembro de 2001 e a captura e assassinato de
Osama bin Laden nos colocam dentro de um processo mais longo,que se localiza na tentativa
do mundo muçulmano de se modernizar desde o final do século XIX, até os dias atuais. O
conflito com os EUA foi apenas mais uma erupção de uma tensão latente entre o Islã e o
Ocidente. Este último, tenta impor seus modelos, contudo a civilização islâmica tenta se
modernizar em termos próprios.
A captura do terrorista confrontou-se tanto na Revista Veja quanto na Folha de
São Paulo com o debate sobre a liberdade, na sua perspectiva liberal iluminista. A Folha
centralizou seu debate nos conceitos de justiça racional, soberania racional e liberdade de
expressão, enquanto, a Revista Veja caracterizou-se pela defesa dos direitos humanos,
secularismo e liberdade de mercado.

3.3 – Um via filosófica: Por que os EUA falharam em lutar pela liberdade no Iraque e
Afeganistão?

Em algum momento o projeto de disseminação da liberdade dos americanos se


perdeu. Hannah Arendt, em seu livro “Sobre a Revolução”, analisou os fundamentos da
Revolução Americana de 1776. Em sua obra questionamentos como: a validade e os limites
110

da violência dentro da Revolução; a possibilidade de se exportar experiências revolucionárias;


e a diferença entre a liberdade negativa e a liberdade positiva. De modo indireto as
reportagens tocaram tais questionamentos e nos ajudam a superar o dualismo das propostas da
Veja e da Folha.
O primeiro questionamento fala sobre o papel da violência dentro da ação
revolucionária, tal discussão faz-se importante porque a Guerra ao Terror, iniciada após os
atentados do dia 11de setembro de 2001, perpetua-se até os dias atuais na luta contra o Estado
Islâmico e contra a Al Qaeda. As intervenções no Oriente Médio seriam justificadas no
combate ao terrorismo extremista praticado por alguns grupos islamitas que massacravam
populações civis.
Na obra, Hannah Arendt discute sobre a guerra e o uso justificável da violência. A
Guerra e a Revolução teriam em comum a violência. Contudo, a diferença entre ambas, é que
a Guerra não conduz necessariamente à liberdade, mas a Revolução sim. A violência somente
é justificável se conduzir para a fundação da liberdade dos indivíduos. Entretanto, a violência
não deve ter um fim em si, mas a Revolução é vitoriosa quando se estabelece um limite para a
violência e se institui os debates e os pactos entre os homens sem o uso da violência, mas pelo
consentimento entre as partes.
A política e a liberdade começam quando se cessa a violência. Assim uma teoria
da guerra ou uma teoria da violência “só pode tratar da justificação da violência porque essa
justificação constitui seu limite político; se, em vez disso, ela chega a uma glorificação ou
uma justificação da violência enquanto tal, já não é política, e sim antipolítica (ARENDT,
2011, p. 45)”. A Guerra ou Revolução, deve ter objetivos claros, para que se estabeleça um
fim para a violência e o homem possa encontrar sua liberdade pela participação na vida
política por meio da palavra e da persuasão. A violência só é revolucionária

quando empregada para constituir uma forma de governo totalmente


diferente e para gerar a formação de um novo corpo político,quando a
libertação da opressão visa pelo menos à constituição da liberdade,é que se
pode falar em revolução (ARENDT, 2011,p. 64).

A verdadeira vida política é a razão dialógica que permite a interlocução com


argumentos de outros campos da experiência e submete as decisões aos melhores argumentos
capazes de conciliar interesses diversos e não eliminá-los. A submissão violenta da religião ou
da cultura diante do secularismo não dá fim à violência, mas se sustenta pela ação violenta
111

permanente. A Guerra ao Terror impede o diálogo entre as civilizações, mas exacerba o


conflito e caricatura a religião islâmica como disseminadora da violência
No segundo questionamento, a possibilidade de se exportar a experiência
revolucionária é outro apontamento importante feito pela autora. Se as liberdades ocidentais
fossem a melhor forma de se constituir um governo, pode-se exportar essa experiência
ocidental, especialmente as engrenagens políticas criadas após a Revolução Americana de
1776? A guerra ao Terror pode disseminar a liberdade e as instituições ocidentais para o
Oriente Médio e para o mundo muçulmano?
Hannah Arendt afirma que a Revolução se tornou vitoriosa primeiramente na
América e não na Europa, porque ela não foi seqüestrada pela questão social, como ocorreu
no continente europeu durante a Revolução Francesa. O novo continente havia se tornado

um refúgio, um “asilo” e um ponto de convergência dos pobres; surgira uma


nova linhagem de indivíduos, “unidos pelos laços suaves do governo
moderado”,vivendo em condições de “uma agradável uniformidade”da qual
fora banida “a miséria absoluta pior do que a morte” (ARENDT, 2011, p.
51).

Na América a causa social, que foi fundamental na Revolução Francesa, não teve
quase nenhuma importância durante a Revolução Americana. Foi a pobreza, entendida como
miséria para a autora, que levou a participação das multidões nas revoluções européias, e é
exatamente a participação dessas multidões que desviou o caminho da liberdade para o
caminho da superação das necessidades. A pobreza

é mais do que a privação, é um estado de carência constante e miséria aguda


cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora;a pobreza é sórdida
porque coloca os homens sob o ditame absoluto de seus corpos, isto é, sob o
ditame absoluto dessa necessidade que a multidão se precipitou para ajudar a
Revolução Francesa, inspirou-a, levou-a em frente e a acabou por conduzi-la
à ruína, pois era a multidão dos pobres. Quando apareceram no palco da
política, a necessidade apareceu junto com eles, e o resultado foi que o poder
do antigo regime se tornou impotente e a nova república se mostrou
natimorta; a liberdade teve de se render à necessidade, à premência do
processo vital em si (ARENDT, 2011, p. 93-94).

A possibilidade de se exportar a Revolução da América para a França foi cogitada


pelos pais fundadores, Thomas Jefferson e John Adams, que conheceram a realidade
econômica e social do país europeus, se convenceram da impossibilidade de se copiar a
112

experiência de um continente para o outro. Segundo Hannah Arendt, para o pai fundador
Thomas Jefferson,

nem por um instante lhe ocorreu que um povo tão “carregado de miséria”- a
dupla miséria da pobreza e da corrupção – conseguiria realizar o que fora
realizado na América. Pelo contrário,ele alertou que não era “de maneira
nenhuma o povo de espírito livre que o supomos na América”, e John
Adams estava convencido de que um governo republicano livre entre eles
“era tão inatural, irracional e impraticável como seria entre leões,tigres,
panteras, lobos e ursos no zoológico real de Versalhes” (ARENDT,
2011,p.102).

Os pais fundadores não viam a Revolução Americana e suas liberdades como


elementos universais, viáveis à todas sociedades. Segundo Arendt, os pais fundadores não
acreditavam na viabilidade de uma Revolução de sucesso na França, por causa da pobreza e
da corrupção que contaminavam a sociedade.
A Revolução Francesa falhou quando os jacobinos substituíram sua fé nas leis e
nas instituições pela crença na bondade de uma classe social, os sans-cullotes. Segundo
Arendt, a bondade não encontra limites e compartilha com a maldade a força da violência. A
diversidade de opiniões é substituída pela vontade do povo, que deve ser única, encarnada na
liderança de Robespierre e dos jacobinos. É nesse momento, que a Revolução Francesa se
desintegrou em uma guerra interna e externa. Os jacobinos atropelaram as leis e instituições
em nome da urgência que o povo exigia para solucionar a questão social, qualquer interesse
contrário ao bem do povo era considerado contrário à Revolução. A busca de um inimigo
interno, motiva o “Terror”.
Além dos limites da violência e da possibilidade de se exportar a Revolução, o
terceiro e último tópico que interessa a essa pesquisa vai dissertar acerca do estabelecimento
das diferenças entre liberdade negativa e liberdade positiva. As intervenções americanas
possuíram grande sucesso em apoiar a reconstrução da Alemanha e do Japão no pós-guerra.
Contudo, a reconstrução dos países como o Iraque e Afeganistão se tornaram catástrofes. A
própria população enxergava os americanos não como forças libertadoras, mas como forças
de ocupação.
A libertação não levou à instituição da liberdade. As empresas de reconstrução e
envolvidas na exploração dos recursos energéticos se multiplicaram nesses países, mas a
democracia permaneceu uma utopia. Por que a liberdade negativa, entendida como ausência
de restrições venceu, e a liberdade positiva, a instituição de leis e governos de participação
cidadã falhou?
113

Hannah Arendt afirma que a grande novidade da Revolução Americana foi a


instituição da liberdade positiva, enquanto as revoluções anteriores visavam a liberdade
negativa. Essas liberdades significavam

tão somente liberdade de restrições injustificadas e, como tais, eram


fundamentalmente iguais à liberdade de movimento – “o poder de
locomoção (...) sem aprisionamento ou restrição, a não ser pelo devido curso
da lei” –, que Blackstone, de pleno acordo com o pensamento filosófico da
Antiguidade, considerava o mais importante de todos os direitos civis. (...)
Todas essas liberdades, às quais poderíamos acrescentar nossas exigências
de estarmos livres de medo e da fome, são, é claro, essencialmente
negativas; resultam da libertação, mas não constituem de maneira nenhuma o
conteúdo concreto da liberdade, que, como veremos adiante, é a participação
nos assuntos públicos ou a admissão na esfera pública. Se a revolução
visasse apenas à garantia dos direitos civis, estaria visando não à liberdade, e
sim à libertação de governo que haviam abusado de seus poderes e violado
direitos sólidos e consagrados (ARENDT, 2011, p.60-61).

Hannah Arendt afirma que a liberdade negativa, a libertação das restrições e da


opressão poderia ser facilmente resolvida sob um governo monárquico limitado. Mas, para a
instituição de um novo corpo político baseado na participação nos assuntos públicos, era
necessária uma nova forma de governo, a Constituição de uma República46.
Aplicando a análise de Hannah Arendt ao objeto de pesquisa, retorna-se a cada
um dos questionamentos anteriores. O primeiro questionamento, sobre a validade da violência
e os seus limites para o estabelecimento de uma Revolução, para a instituição da liberdade, é
precioso, porque as duas fontes estudadas, Veja e Folha, dão significados diferentes para essa
violência. Para Veja, a captura do terrorista, ponto alto da “Guerra ao Terror”, representava o
ponto alto do governo Obama, pois ele ganhou

no estilo caubói: Obama mandou invadir o espaço aéreo de um aliado, uma


equipe de assalto baixou na casa do terrorista, subiu as escadas, deu-lhe um
tiro na cabeça e jogou o corpo no mar. “It‟s macho thing”, festejou uma
republicana de 63 anos ouvida por um instituto de pesquisa. “É coisa de
macho”. Obteve um sucesso estrondoso naquilo que o ex-presidente Jimmy

46
Um dos maiores críticos de Hannah Arendt é Jürgen Habermas, que critica a redução da política à praxis, do
pensamento aristotélico: ação comum com o objetivo de buscar os melhores fins, pressupondo o diálogo, a
violência seria a ausência da política e não parte dela. A redução da política a esse princípio levaria a três
conseqüências (FERRY, 2003, p.26-28). A primeira é a eliminação dos elementos estratégicos da política, os
quais são essenciais. A segunda, a pensadora dissocia o político do seu meio social e econômico, que, contudo,
se encontra inserido. A terceira é a violência estrutural residente na distribuição desigual das oportunidades de
satisfação das necessidades, elemento que leva a associação entre violência e poder que Arendt tenta dissociar.
Outra crítica acerca das ideias de Hannah Arendt é feita por Benhabib, este afirma que questões como a
emancipação da mulher, a conquista de direitos por minorias são lutas por justiça e liberdade, por isso deveriam
ser incluídos na agenda pública, não podem ser tratados como elementos da esfera privada que corrompem o
espaço público. (CORREIA, 2008,p.106-107).
114

Carter colheu um fiasco. (...) Daqui para frente, não cola mais acusar Obama
de não ser suficientemente “americano”, de não defender os interesses
americanos com firmeza, ou mesmo de ser um secreto seguidor de Maomé.
Obama ganhou o direito de figurar no panteão dos presidentes genuinamente
americanos. (VEJA, Obama um presidente americano, p. 94, 11 de maio de
2011).

A reportagem não destaca a retomada das liberdades individuais e direitos


políticos que deveriam ocorrer após a captura de Osama bin Laden. A reportagem elogia
Obama, não pelo fim da violência interna e externa que estrutura a “Guerra ao Terror”, mas
sim pela violência e decisão do presidente americano em ordenar a missão. Obama foi o
presidente forte e decidido que Carter não foi. A força que Obama utilizou contra seus
adversários é que o tornou genuinamente americano. A violência e não a política foi
glorificada.
A captura de Osama bin Laden se tornou somente mais um episódio dentro da
“Guerra ao Terror”. Ao contrário dos pais fundadores, destacados por Hanna Arendt que
finalizaram a Revolução estabelecendo um limite para a violência. A captura de Osama bin
Laden, pretexto inicial para a Guerra no Afeganistão, não dá fim à guerra contra o terrorismo.
O ato americano não sinaliza o fim das leis restritivas do Ato Patriótico, na verdade, Obama
vai estender a vigência das leis do Ato Patriótico por mais quatro anos47.
Na Folha de São Paulo o caráter perpétuo da Guerra ao Terror é destacado, na
entrevista de Steve Clemons

(...) FOLHA - A política externa vai privilegiar Somália e Iêmen?


CLEMONS - Sim, em franquias da Al Qaeda e outros grupos terroristas.
Agora que bin Laden se foi, vamos ver outros terroristas ganharem
proeminência. Não porque eles sejam perigosos, mas porque nós temos essa
necessidade de ter um grupo terrorista por aí, para focarmos ele.
FOLHA - Por quê?
CLEMONS - É a maneira pela qual o governo americano é organizado. Há
muita gente interessada em manter ativo o jogo contra o terrorismo.
Nós nos acostumamos a ver o terrorismo como a causa de muitas coisas e já
vemos Al Awalaki e a Al Qaeda no Iêmen se transformando nos próximos
grandes vilões. (MELLO, entrevista da 2ᵃ, 09/05/2011)

A guerra é contínua48. Enquanto houver um inimigo externo a guerra deve


continuar. A própria proposta da Guerra ao Terror, feita por Bush e continuada por Obama,

47
http://www.conjur.com.br/2011-mai-27/obama-prorroga-quatro-anos-polemica-lei-combate-terrorismo.
Acessado em: 24/01/2017.
48
Em um artigo sem autoria definida do jornal eletrônico português “Observador”, o discurso violento de
Donald Trump contra imigrantes, especialmente contra muçulmanos, facilitará ainda mais o recrutamento par as
fileiras do Estado Islâmico, dentro e fora do Oriente Médio. Trump colocou como prioridade a luta contra o
115

tem um caráter perpétuo, não têm objetivos e inimigos definidos, visava qualquer país
suspeito de abrigar ou apoiar grupos terroristas. Desse modo, a qualquer momento uma guerra
pode ser provocada pela simples suspeição de apoio ao terrorismo. Segundo Barber, a “Guerra
ao Terror” prevê uma guerra sem fim,

quando a intimidação falhar (primeira opção do medo), serão levadas a cabo


intervenções armadas em país após país, desde os parceiros do Iraque
integrantes do “eixo do mal” Irã e Coréia do Norte, até nações com obscuras
relações com o terrorismo, como Síria, Somália, Indonésia e Filipinas. (...)
Em síntese, a nova doutrina prevê uma guerra tornada permanente graças a
uma estratégia pervertida que toma por alvo substitutos inapropriados, mas
visíveis (os “Estados Parias” e os regimes maus, por exemplo) de inimigos
terroristas invisíveis, que seriam na verdade, os alvos apropriados.
(BARBER, 2005, p. 55)

Portanto, a violência não tem fim, a revolução não se realiza, pois não há vida
política dentro da Guerra. A palavra não tem poder contra força. A libertação do Afeganistão
e do Iraque feita sob o poder das armas americanas não foi capaz, ainda, de estabelecer
sociedades políticas estáveis. Pelo contrário, o contínuo uso da força leva a população nativa a
ver os americanos não como libertadores, mas como tropas de ocupação, que exercem a tutela
política de seus Estados.
Recordando ao leitor, após finalizar-se o primeiro debate sobre os limites da
violência no processo revolucionário, parti-se para o segundo questionamento sobre a
possibilidade de se exportar a democracia ocidental, do tipo americana, ao resto do mundo,
entenda Iraque e Afeganistão. Hannah Arendt destaca que os pais fundadores já estabeleciam
os limites da própria experiência revolucionária ao descartarem a possibilidade de reproduzir
a experiência na França. A pobreza e a corrupção da sociedade francesa impediriam o sucesso
da fundação da liberdade. O império da necessidade humana venceria o império da liberdade
política.
A Veja, embebida no pensamento neoliberal inverte a relação: é a implantação das
liberdades ocidentais, como a democracia e o livre-mercado, que gera a superação da pobreza;
não é a superação da pobreza que permite a construção da liberdade política. Como foi visto
na reportagem de Diogo Schelp o mundo se encontrava diante de dois desafios: a solução dos
conflitos localizados e a disseminação das práticas do livre-comércio. A presente pesquisa
associou Schelp ao pensamento de Francis Fukuyama, que afirmava: “a liberdade política no

grupo terrorista, e que se fosse necessário cooperaria com a Rússia para realizar tal objetivo
http://observador.pt/2016/11/15/comandante-do-estado-islamico-diz-que-trump-e-completamente-doido/.
Acessado em 18/03/2017.
116

mundo todo foi às vezes percebida, outras vezes seguida, de uma revolução liberal no
pensamento econômico (FUKUYAMA, 1992, p. 14).”
Hannah Arendt já havia destacado durante a competição da Guerra Fria entre
EUA e URSS a falha desse raciocínio. Segundo ela, os intelectuais ocidentais afirmavam que
a riqueza e o bem-estar econômico são frutos da liberdade, mas já era sabido que esse tipo de
“felicidade”

já abençoava a América antes da revolução, e que a causa dessa felicidade


era a fartura da natureza sob um “governo brando”, e não a liberdade política
nem a “iniciativa privada” sem peias nem limites do capitalismo, a qual, na
ausência de fartura natural, levou todos os países à infelicidade e à pobreza
de massa. A livre-iniciativa, em outras palavras, tem sido uma autêntica
bênção apenas nos Estados Unidos, e é secundária em comparação às
verdadeiras liberdades políticas, como a liberdade de expressão e
pensamento, de reunião e associação, mesmo sob as melhores condições. O
crescimento econômico algum dia pode se revelar uma maldição, e não uma
benção, e em nenhuma hipótese ele pode levar à liberdade ou constituir
prova de sua existência (ARENDT, 2011, p.276-277).

Nesse trecho, a autora demonstra o equívoco de algumas leituras que colocam a


liberdade como anterior à ausência de pobreza. Mas, pelo contrário, demonstra que essa
felicidade (ausência de pobreza) já existia na América antes da Revolução, e a primeira foi
uma condição para o sucesso da última. Por fim, Hannah Arendt afirma que o livre mercado
não leva à liberdade nem pode confirmar sua existência. Tal posicionamento, feito pela
autora, vai de encontro com os posicionamentos de Schelp e Fukuyama que, colocam o livre
mercado como uma conseqüência da liberdade política ou uma forma de percebê-la.
Desse modo, a questão da pobreza é um obstáculo. O Afeganistão e o Iraque são
sociedades empobrecidas respectivamente pelas guerras contínuas ou embargos econômicos,
e a implantação da democracia e das liberdades públicas não são garantias de crescimento
econômico que viabilizariam a manutenção dessas instituições políticas.
Na Folha de São Paulo tanto aqueles que defendiam a intervenção americana
quanto os que criticavam estavam influenciados por um evento paralelo à captura de Osama
bin Laden: a Primavera Árabe. Nesse movimento as populações árabes se levantaram contra
seus regimes autoritários na Tunísia, Egito, Líbia e Síria. No periódico, em uma entrevista
com o especialista britânico em terrorismo Anthony Glees, ele afirma que podem existir

alguns adeptos da Al Qaeda entre as pessoas que foram para as ruas


protestar, mas a grande maioria quer a implantação de uma democracia
liberal, não de um Estado islâmico. Nós temos que apoiar aqueles que no
117

mundo árabe e islâmico que querem ter os direitos e liberdades do mundo


ocidental. (FOLHA, p A15, 05/05/2011, “Derrota do terror virá com força,
não pela negociação”)

A Primavera Árabe é vista pelo entrevistado como um movimento espontâneo das


massas árabes pela democracia liberal, ao estilo ocidental. Mesmo os textos que criticavam a
intervenção americana guardavam o mesmo otimismo por esse movimento. Assim, se destaca
o texto de Hussein Ali Kalout49 que associa, brilhantemente, a origem do terrorismo islamita
como oriunda da pobreza e marginalização econômica do mundo muçulmano; defende a
Primavera Árabe como um movimento em busca da democracia liberal e Justiça Social; e por
último, critica a violência na ação americana. Segundo ele

A emergência do extremismo e do radicalismo no mundo muçulmano é


oriunda da pobreza, da exclusão e da marginalização social. Por outro lado,
os atentados terroristas da Al Qaeda pelo mundo constituíram-se no maior
desserviço que Bin Laden poderia prestar ao mundo árabe em particular.
(...)As crescentes revoluções em prol da democracia nos países árabes
marcaram o declínio da filosofia política da Al Qaeda e do fracasso do
extremismo fundamentalista.
Da Tunísia à Síria, passando por Egito, Iemen, Líbia e Bahrein, observa-se
um movimento pela democracia e pela laicidade do Estado. A revolução no
mundo árabe está calcada na luta pelas liberdades civis e de imprensa, na
justiça social, no combate à corrupção e no fim das ditaduras hereditárias.
(...)A credibilidade política dessa operação exaure-se na atuação do governo
americano pautada pela tortura de presos, pela invasão da soberania de uma
nação e pela execução sem direito à julgamento do terrorista.
(FOLHA, 12/05/2011, p. A3, “Terrorismo, Islã e a Democracia”)

O otimismo quanto ao caráter liberal da Primavera Árabe está presente tanto no


posicionamento dos dois textos, na Veja e na Folha. E no texto crítico quanto à posição norte-
americana, a ideia de democracia liberal estava também ligada à ideia de justiça social.
Graças ao recurso da visão retrospectiva, sabe-se do fracasso da Primavera Árabe. Porque
onde ela foi vitoriosa, não se pode exportar para lá uma democracia ao molde liberal, mas se
instituíram governos e constituições de forte inspiração no fundamentalismo islâmico. Houve
libertação, mas não se constituiu a liberdade. E a questão social participa deste desfecho.

49
possui graduação em Ciência Política pela Universidade de Brasília (2000) e graduação em Relações
Internacionais pela Universidade de Brasília (2000). Atualmente é secretário de relações internacionais -
Superior Tribunal de Justiça. Tem experiência na área de Política Internacional, com ênfase em Integração
Internacional, Conflito, Guerra e Paz. https://www.escavador.com/sobre/2170186/hussein-ali-kalout. Acessado
em 25/01/2017.
118

Segundo Patrick Cockburn, o papel das manifestações na Primavera Árabe foi


superdimensionado, especialmente pela mídia ocidental. As revoluções e levantes populares
de 2011

eram genuínos como quaisquer outros da história, mas a maneira como


foram percebidos, em particular no Ocidente, tinha erros muito sérios.
(...) As raízes políticas, sociais e econômicas dos levantes de 2011 são muito
complexas. Isso não ficou óbvio naquele momento, em parte porque os
comentaristas estrangeiros exageraram o papel das novas tecnologias de
informação nesses eventos. Os manifestantes, habilidosos em propaganda,
viram vantagem em apresentar os levantes como revoluções de “veludo”. Na
vanguarda, estavam blogueiros e tuiteiros educados e falantes de inglês. O
propósito deles: sugerir ao público do Ocidente que os novos revolucionários
eram parecidos com ele, e que os acontecimentos no Oriente Médio, em
pleno 2011, eram algo como os levantes anticomunistas e pró-Ocidente no
leste Europeu depois de 1989.
(...)As exigências da oposição eram apenas sobre liberdades pessoais.
Desigualdades sociais e econômicas foram raramente declaradas questões
pertinentes, mesmo quando eram as razões da ira popular contra o status
quo. (...) A liberalização econômica, elogia-da pelos capitais estrangeiros,
concentrava rapidamente riquezas nas mãos de poucas pessoas bem
relacionadas politicamente (COCKBURN, 2014, p. 153-154).

Conforme Cockburn esse movimento era liderado por jovens intelectuais que
operavam dentro das redes sociais. Eles lutavam por direitos individuais e ignoravam a
pobreza da maior parte das suas sociedades. Não havia uma ideologia clara, apenas o desejo
de derrubar o governo, a quem era atribuído todos os males da sociedade. Faltava uma
ideologia comum, um elo que unisse os grupos e garantissem a passagem para uma nova
forma de governo. Somente uma mudança democrática não iria satisfazer a população mais
pobre, apenas direitos individuais não garantiriam a participação dos grupos sociais menos
abastados na base de sustentação de um novo governo.
Ainda para Cockburn, a oposição política aos regimes autoritários no mundo
árabe não tinha nenhum projeto que iria além de tirar os ditadores do poder, não havia um
projeto ou proposta de uma constituição que garantisse a liberdade positiva, o direito do
cidadão de participar do governo, apenas se visava os direitos individuais, a liberdade
negativa. A oposição iraquiana achava

que os problemas sectários e éticos do Iraque derivavam de Saddam Hussein


e que tudo ficaria bem assim que ele fosse afastado. As oposições na Líbia e
Síria pensavam que os regimes de Gaddafi e Assad eram tão
escancaradamente maus que havia se tornado desnecessário questionar se
119

seus substitutos seriam melhores. Repórteres estrangeiros compartilhavam


amplamente essas opiniões (COCKBURN, 2014, p 134)50.

Observa-se que a agenda da Primavera Árabe carecia de uma ideologia que


unificasse a elite jovem globalizada com os grupos sociais mais miseráveis que desejavam
maior justiça social. Derrubados os ditadores, os grupos revoltosos perderam sua amalgama e
automaticamente sua razão de existir. O vazio deixado pelas revoltas permitiu a contra-
revolução liderada por governos militares autoritários ou a instalação de governos
fundamentalistas. Sem uma ideologia, a libertação não gerou a liberdade política.
O terceiro e último questionamento está na distinção entre liberdade positiva e
negativa. Esse tópico unifica todo o trabalho em torno da ideia de liberdade. Hannah Arendt
se esforça para demonstrar a diferença entre as duas liberdades, a negativa e a positiva. Ela
afirma que a grande novidade da revolução Americana foi ir além da liberdade negativa, a
liberdade das restrições, e instaurar um novo corpo político marcado pela liberdade positiva, a
liberdade dos indivíduos de participarem da vida pública, da vida política, por meio da
constituição republicana.
A liberdade que os EUA levam ao planeta com suas intervenções é liberdade
positiva ou a liberdade negativa? A partir dos veículos midiáticos, observa-se que a
representação da liberdade presente no texto é a liberdade negativa, tanto para Revista Veja
quanto para Folha de São Paulo, a diferença está na avaliação otimista da primeira e
pessimista da segunda.
Em Veja, não há distinção entre liberdade positiva e negativa, as duas não
coexistem, mas se confundem. Democracia, secularismo, liberdade individual e livre-mercado
são um conjunto inseparável. O fim dos regimes socialistas demarcaria a vitória da
democracia liberal. Contudo, nas reportagens a ênfase no secularismo irrestrito e no livre-
mercado subverte a ideia de uma liberdade política, uma característica do hiper-racionalismo.
Na reportagem já citada, Qual o Islã, os regimes das petromonarquias autocráticas sunitas são
comparados ao Irã xiita.
Peço licença ao leitor para retomar uma citação já utilizada. Quando se questiona
sobre a compatibilidade entre modernidade, democracia e Islã a resposta é puramente
econômica:

5. O Islã é compatível com a modernidade, a democracia e o capitalismo?


Depende de que tipo de islã se está considerando. Os xiitas do Irã, que
confundem totalmente a religião com o Estado e a burocracia do governo
50
Ver também: VISENTINI, 2012, p. 159-160.
120

com hierarquia religiosa, estão atrelados ao modelo econômico centralizado


e baseado na exportação de apenas uma riqueza natural, o petróleo. A única
forma de capitalismo que podem vir a conhecer é a estatal, que define os
vencedores e os perdedores do jogo econômico. Não por acaso, alguma das
maiores fortunas do Irã pertencem aos aiatolás e suas famílias. O Irã nunca
foi moderno, tampouco democrático. Antes do regime dos aiatolás o país era
governado por uma monarquia constitucional que, sem legitimação, se
impunha pela força e terror. No outro extremo, países muçulmanos sunitas
ricos do Golfo Pérsico, como Catar, são monarquias de economia
centralizada, mas recentemente iniciaram experiências modernizadoras que
trouxeram ares futuristas a suas paisagens urbanas. A regra básica para
responder a essa pergunta é quanto maior for o poder político dos religiosos
islâmicos, menos a chance de qualquer país desfrutar as conquistas
pluralistas da modernidade, da democracia e do capitalismo (Revista Veja,
Qual Islã? p. 104).

Na reportagem, a República Islâmica do Irã é comparada às Petromonarquias. O


Islã xiita é transformado em um governo centralizado que estatizou a economia, quase se
confundindo com a descrição da economia soviética na era Brejnev. Segundo a reportagem,
“o Irã nunca foi democrático nem moderno”. E a riqueza se concentraria nas mãos de uma
classe de dirigentes religiosos, os Aiatolás. Já a descrição das petromonarquias sunitas do
Golfo Pérsico é mais otimista, descritas como monarquias centralizadas que passaram a adotar
experiências modernizadoras que deram ares futuristas a suas paisagens. A reportagem
finaliza afirmando que quanto mais os religiosos estiverem envolvidos na vida política
menores serão as conquistas da modernidade, democracia e capitalismo.
Mas será que a modernidade e democracia podem ser medidas por ares modernos
de paisagens urbanas? A mentalidade hiper-racionalista da linha editorial da Veja reduziu a
experiência pluralista típica de sociedades democráticas e republicanas a uma experiência
estética e econômica desconectada totalmente da realidade política desses países.
A defesa do secularismo na mesma reportagem é evidente. Ao descrever a divisão
entre fundamentalistas e secularistas no mundo muçulmano os autores descrevem a irmandade
muçulmana como uma organização “reacionária, retrógada e dominada pelo fundamentalismo
religioso (...) seus líderes não se dão se quer ao trabalho de escamotear os planos de, uma vez
no comando, implantar a sharia, a lei islâmica (Revista Veja, Qual Islã? p. 108).
Já na Folha de São Paulo, liberdade é o respeito à soberania dos Estados, justiça
racional e liberdade de informação. Ações como a captura de Osama bin Laden, são ilegais
por se utilizar da tortura, invasão da soberania de um país aliado e uma execução extra-
judicial. Para o periódico, a intervenção americana não objetiva levar a liberdade política ou a
democracia à região, mas ampliar seu poder geopolítico e econômico.
121

As relações políticas internacionais são descritas como um exercício unicamente


da força dos poderosos que se permitem abandonar as regras do direito internacional
costumeiro e o multilateralismo na resolução de problemas sempre que necessário. Os críticos
dos EUA reduziram a sua história internacional contemporânea à razão de Estado, ao
exercício de poder bélico sobre o resto do mundo. Nesse caso a razão se submete à história, e
a história se resume ao exercício da força.
Nas reportagens, a ação dos Estados Unidos é acusada de inúmeras violações no
direito internacional. As entidades internacionais e potências responsáveis pela aplicação do
direito internacional nada fizeram quando a

URSS invadiu o Afeganistão, e os Estados Unidos invadiram o Iraque, o


Panamá, Granada, o Vietnã, o Laos, sem dar confiança à ONU e em violação
flagrante do direito internacional? Entre as nações dominantes, o direito
internacional é matéria de transações. Acontece mais uma vez. E assim será,
não se imagina até quando (Revista VEJA, 05/05/2011, Gerônimos).

A ordem internacional foi reduzida a um espaço anárquico onde os direitos dos


Estados mais fracos está condicionado a sua submissão aos interesses dos Estados mais fortes.
Nesse quadro, não há espaço para a política e o cumprimento de pactos, mas sim uma
violência perpétua.
Nas duas fontes, as intervenções americanas não são associadas à disseminação de
uma liberdade positiva que desse a cidadania aos povos que deveriam sofrer ou sofrem a
intervenção americana. A liberdade foi associada positivamente à abertura econômica para a
modernidade pela Revista Veja, e negativamente como imposição dos interesses políticos e
econômicos americanos sobre o resto do mundo, pela Folha de São Paulo. Assim, mesmo em
periódicos com visões opostas, a ação americana não é entendida como disseminação da
liberdade política – liberdade positiva -, no máximo à expansão da liberdade econômica e dos
direitos individuais – liberdade negativa.
Segundo Hanna Arendt, no capítulo três do livro Sobre a Revolução, intitulado
“A Busca da Felicidade”, os colonos ingleses da América do Norte já haviam experimentado
a Revolução, a liberdade pública antes mesmo da Independência, pois os habitantes das
colônias “tinham „o direito de se reunir (...) na sede de seus municípios para deliberar sobre os
assuntos públicos‟; foi „nessas assembléias de municípios ou distritos que se formaram em
primeiro lugar os sentimentos do povo‟(ARENDT, 2011, p. 162)”.
A liberdade nasce como uma prática pública, felicidade pública, pois participar
das assembléias não era considerado um fardo, ou uma atividade para garantir algum interesse
122

pessoal,mas pelo desejo da emulação, o desejo de se visto, ouvido, aprovado e respeitado


pelas pessoas ao redor. Para isso os pais fundadores da republica americana tentavam
distinguir em seus escritos a felicidade pública da felicidade privada, demonstrando a
superioridade da primeira (ARENDT, 2011, p.178-180).
Para Hannah Arendt, a perda do sentido da liberdade pública nos EUA ocorreu
com a imigração dos pobres europeus para a América, pois os ideais dos pobres passam a
dominar a sociedade, eles são

a abundância e o consumo sem fim: são as miragens no deserto da miséria.


Nesse sentido, a riqueza e a pobreza são apenas as duas faces da mesma
moeda; as cadeias da necessidade não precisam ser de ferro: podem ser feitas
de seda. A liberdade e o luxo sempre foram incompatíveis, e a avaliação
moderna que tende a atribuir a insistência dos Pais Fundadores sobre a
frugalidade e “a simplicidade dos costumes” (Jefferson) a um desprezo
puritano pelos prazeres do mundo demonstra muito mais uma incapacidade
de entender a liberdade do que uma mentalidade sem preconceitos. (...) O
sonho americano, como os séculos XIX e XX sob o impacto da imigração
em massa vieram a entender,não era o sonho da Revolução Americana – a
fundação da liberdade -, nem o sonho da revolução Francesa – a libertação
do homem; era,infelizmente, o sonho de uma “terra prometida” onde correm
rios de leite e mel (ARENDT, 2011, p.186).

No capítulo final, intitulado “A Tradição Revolucionária”, a autora se questiona


sobre o que restou da tradição setecentista nos EUA. Sob a influência da imigração de pobres
da Europa e da força do elemento social da Revolução Francesa que se tornou o paradigma, o
espírito revolucionário das liberdades públicas se perdeu,

foram as liberdades civis, o bem-estar individual da maioria e a opinião


pública como a maior força a governar a sociedade democrática e igualitária.
Essa transformação corresponde com grande precisão à invasão da esfera
pública pela sociedade, como se os princípios originalmente políticos
tivessem se traduzido em valores sociais (ARENDT, 2011, p.281).

A Revolução se perdeu exatamente porque a tradição da felicidade pública não


teve continuidade após a independência. Relacionando o pensamento de Arendt com a visão
dos dois periódicos, percebe-se que a Veja representou a liberdade que os EUA disseminam
em termos de liberdades civis, especialmente em termos de não restrição econômica, livre
mercado; já a maioria dos colunistas e repórteres da Folha, que se posicionaram contra a
intervenção americana, rejeitaram qualquer ideia de liberdade nas intervenções americanas
mas as relacionam com a dominação imperialista.
123

A ausência da liberdade política em suas intervenções é destacada por Benjamin


Barber como uma das principais causas da falha dos EUA em disseminar as instituições
ocidentais no Oriente Médio. O pensamento de Barber encontra-se sintetizado em três livros:
Jihad X McMundo; Consumido; e Império do Medo. Apesar de estabelecer um debate dentro
da mesma distinção entre liberdade positiva e negativa de Arendt, Barber mistura em uma
mesma amálgama democracia e liberdade pública, muitas de suas referências sobre
participação em decisões públicas se refere às instituições republicanas e não à democracia.
Esses termos foram distinguidos por Arendt, mas tal diferença entre autores não representa
riscos para a interpretação dentro da presente dissertação.
Para Barber, existem duas forças em choque no mundo atual. As forças da
globalização, consumismo, e livre-mercado são denominadas de McMundo. Já as forças que
nasceram como uma reação a essa globalização na forma de tribalismo ou fundamentalismo
são chamados de Jihad. O que elas têm em comum? Destroem as liberdades públicas,
respectivamente, por meio da ideologia da privatização e da intolerância política e religiosa.
Para Barber, o problema do McMundo é confundir democratização com
liberalização econômica, isto equivale a confundir liberdade com consumo. Quando o ethos
da Disney

se torna sinônimo da ética da liberdade e quando os consumidores passam a


ser considerados cidadãos algo está errado com a democratização. No
entanto, tornar democratização equivalente a ampliação do mercado é o traço
básico da estratégia de construção no pós-guerra, seja no Afeganistão ou no
Iraque. A premissa central é que o livre mercado promove o surgimento de
homens ou mulheres livres, e que mercado e democracia significam a mesma
coisa (BARBER, 2005, p.182).

Observa-se que a descrição de Barber das intervenções americanas no Iraque e


Afeganistão corrobora com a leitura de Arendt sobre a distinção entre liberdade privada e
liberdade pública. Não se pode confundir a expansão da não restrição, do livre-mercado, com
a disseminação de uma cidadania, da liberdade pública. A globalização assimétrica, levada a
cabo pelos EUA, fortalece a ideologia neoliberal da privatização.
A ideia de que os mercados são mais eficientes que o Estado, lançam as
instituições públicas em descrédito. Os indivíduos abrem mão da vida pública para se
voltarem apenas para seus interesses privados. A liberdade precisa ser pública e não privada,
para Barber. Acreditar em uma republica de consumidores
124

é simplesmente um paradoxo. Os consumidores não conseguem ser


soberanos; apenas cidadãos conseguem A liberdade pública exige
instituições públicas que permitam aos cidadãos tratar das conseqüências
públicas das escolhas do mercado privado.
(...) A privatização é mais do que simplesmente uma ideologia econômica.
Age em aliança com o etos da infantilização para abraçar e reforçar o
narcisismo, a preferência pessoal e a puerilidade. Interpreta de maneira
errada a liberdade e, portanto, distorce o modo como compreendemos a
liberdade civil e a cidadania, amiúde ignorando e as vezes minando o próprio
significado dos bens públicos e da prosperidade pública. Nesse ponto,
Hannah Arendt está certa ao argumentar que a liberdade política é definida
pela participação no governo, não pela liberdade em relação ao alcance do
governo;a privatização não apenas diminui nossa capacidade de moldar
nossas vidas comuns e determinar o caráter da civilização na qual queremos
viver, mas também nos tornou menos livres (BARBER, 2009, p. 146-147).

A crítica à globalização vai mais além, na obra de Benjamin Barber. Ele


estabelece as diferenças dos efeitos da globalização para o primeiro e para o terceiro mundo.
Enquanto muitos no Primeiro Mundo “se beneficiam dos mercados livres em matéria de
capitais, trabalho e bens, esses mesmo mercados anárquicos deixam bastante desprotegidas as
pessoas comuns no terceiro mundo (BARBER, 2003, p.18)”.
O caráter de dominação da globalização é destacado por Barber. Na forma de um
imperialismo brando a expansão da globalização e do livre-mercado impõe a homogeneização
destruindo as liberdades cívicas e a diversidade. A expansão do consumo denota a íntima
relação entre cultura e política. A destruição das instituições públicas permite que o mercado
estabeleça as opções de escolha dos indivíduos, espaço antes dado à sociedade civil. Em um
mercado mundial a venda de produtos de consumo

depende de hábitos e comportamentos do consumidor e quem manipula


mercados consumidores não pode deixar de manipular hábitos e atitudes.
Pode-se presumir constituir-se essa a razão de ser da indústria mundial de
propaganda que movimenta tantos bilhões de dólares. Apreciadores de chá
são consumidores poucos prováveis de Coca-Cola. A tradição de almoços
demorados é um obstáculo para o desenvolvimento de franquias de fast-food
e as franquias bem-sucedidas de fast-food solapam o ritual mediterrâneo de
ir almoçar em casa – quer o façam intencionalmente ou não, o resultado é o
mesmo (BARBER,2003, p. 104).

A transformação de hábitos e culturas pelo consumo globalizado também pode


alterar as práticas políticas. Ao confundir o poder de consumo com liberdade política o livre-
mercado deslegitima os bens públicos que são interpretados como destruidores da liberdade.
Como consumidor você pode escolher sobre onde vai morar, mas não decidir sobre os índices
125

de poluição na cidade, mas somente cidadãos organizados em torno de instituições públicas


podem fazê-lo.
Na religião o ethos consumista altera as práticas tradicionais para se tornar mais
uma experiência de consumo, assim feriados religiosos,

Desde o Natal e a Páscoa até a Páscoa juadaica e o ramadã, juntaram-se a


outros feriados, como Halloween, o Kwanza e o Dia dos Namorados, como
ocasiões para o comércio se espalhar além dos limites étnicos e nacionais. A
“santidade”dessas datas é apneas uma desculpa para parar de trabalhar
(produzir) e aumentar o consumo (BARBER, 2009, p.259).

A crítica de Barber é interessante para esse trabalho por evidenciar duas


dimensões que, segundo ele, permitiram o fracasso das intervenções no Afeganistão e Iraque.
Primeiramente, a democracia levada a esses Estados não visava a ampliação das liberdades
públicas dos indivíduos, mas a exportação das liberdades individuais e das práticas do livre-
comércio, elogiadas na Veja. Segundo, as práticas decorrente do livre-mercado e da
globalização impostas pelos ocidentais é vista como uma forma de dominação branda pelos
povos dominados que perdem as instituições públicas por meio das privatizações e vêem seus
laços tradicionais tribais ou étnicos serem dissolvidos pela homogeneização e secularismo
imposto pelas necessidades de consumo, críticas construídas na Folha como uma forma de
imperialismo americano.
Folha e Veja perderam a capacidade de inserir suas narrativas dentro de um todo,
dentro do sistema de mundo globalizado. A Veja, reduziu suas reportagens a analisar, com
qualidade, o mundo muçulmano e o destino do fundamentalismo após a morte de Osama bin
Laden, mas em nenhum momento criticou as ações americanas nem o sentido de liberdade
que elas carregavam. Já a Folha, reduziu suas reportagens a analisar as ações americanas,
apesar do ecletismo, o tom crítico e pessimista predominou, descrevendo os EUA como uma
potência imperialista e beligerante, mas em nenhum momento analisou a pobreza do mundo
muçulmano e o fundamentalismo islâmico que motivou e justificou a guerra ao Terror.
126

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enquanto essa dissertação foi escrita as relações entre o Islã e o Ocidente


tornaram-se mais complexas. O crescimento do Estado Islâmico no Oriente Médio e a vitória
eleitoral de Trump nos EUA marcam um contexto momentâneo de crescente desentendimento
entre as duas civilizações. Durante a campanha eleitoral, noa no de 2015, uma das principais
propostas feitas pelo atual presidente americano foi proibir a entrada de imigrantes
muçulmanos.
Assim ele disse: "Até que sejamos capazes de determinar e entender esse
problema e o perigo que ele representa, nosso país não pode ser vítima desses ataques
horrendos de pessoas que acreditam apenas na jihad, e que não tem nenhum senso de razão ou
respeito pela vida humana"51. A violência tanto do Estado Islâmico quanto das palavras e
decisões tomadas pelo governo Trump, representam a dimensão política dessas relações
civilizacionais que preferem se concentrar nas diferenças e no atrito do que nas fases de
diálogo pacífico entre as duas civilizações.
A importância dessa pesquisa é atualizada toda vez que os conflitos e os discursos
se exacerbam, tanto contra os EUA quanto contra o terrorismo. A captura de Osama bin
Laden foi mais um episódio desse conflito, que permitiu a produção e remodelação das
representações entre a civilização ocidental e o Islã. As representações que povoam o
imaginário ocidental são em grande parte debitarias da tradição orientalista erigida no século
XIX, que Edward Said tanto critica.
Os eventos do dia 11 de setembro de 2001 atualizaram essas representações
reducionistas e estigmatizantes. A violência dos atentados se somou à falta de informação que
inicialmente marcaram as coberturas jornalísticas, o resultado foi devastador, ao confundir
Islã, fundamentalismo e violência em uma amalgama que só poderia resultar em
incompreensão e intolerância em relação ao outro/muçulmano.
Durante a cobertura da captura e assassinato do terrorista Osama bin Laden, foi
perceptível na imprensa escrita uma mudança de posição que analisou-se nessa pesquisa. Nos
dois periódicos escolhidos, Revista Veja e Folha de São Paulo, a tradição orientalista não foi
significativa nem determinante para a compreensão das notícias. Outras representações

51
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/12/donald-trump-quer-proibir-entrada-de-muculmanos-nos-eua.html.
Acessado em: 19/03/2017.
127

construídas a partir da tradição liberal que os dois periódicos se filiam foram mais
significativas.
No capítulo um, analisou-se a cobertura feita pela Revista Veja, as reportagens
apresentadas descreviam a importância dos valores ocidentais e da liderança norte-americana
no mundo. Na reportagem de Diogo Schelp, a liderança dos EUA foi louvada e o assassinato
de Osama bin Laden foi tratado como um evento único capaz de redirecionar a humanidade
para as práticas de solução de conflitos e livre-mercado do qual a atividade terrorista a havia
afastado.
Em outras reportagens estava claro como valores referentes ao arcabouço liberal
estavam presentes como a defesa da livre-iniciativa, liberdade religiosa e secularismo.
Analisou-se também como a Revista Veja conseguiu se afastar das antigas descrições que, por
outros pesquisadores como Moreira Dedoro, eram identificadas como orientalistas. O veículo
se esforçou para dissociar o Islã da violência praticada pelos terroristas, relacionando-a a uma
minoria sectária e radical de extremistas, mas não a toda comunidade de fiéis muçulmanos
que é descrita como pacífica, tolerante e aberta ao diálogo. Essa mesma comunidade foi
descrita como a maior vítima dos extremistas,pois a imagem do Islã é deturpada e seus fiéis se
tornam vítimas do preconceito nos EUA e na Europa.
Durante a pesquisa destacou-se também as tentativas da Revista Veja em
descrever o mundo muçulmano em sua diversidade, fugindo do elemento homogeneizante dos
discursos orientalistas coloniais. As diferentes formas de se professar o islã no espaço, foram
destacados na reportagem “Qual o Islã?”. O mapa com a presença muçulmana no mundo foi
apresentado. As diferentes formas de professá-lo foram destacadas tanto no espaço geográfico
quanto na história. Até mesmo os grupos mais heterodoxos são citados como a “Nação do
Islã” nos EUA.
Percebeu-se na pesquisa, que apesar do esforço da Revista Veja em se afastar das
descrições orientalistas, outro discurso foi utilizado para legitimar as intervenções americanas
no mundo muçulmano, a ideia da civilização universal. A legitimidade da ação se dá pela
necessidade de se disseminar os direitos humanos e as práticas de livre-mercado pelo mundo.
A própria civilização muçulmana foi descrita como desejosa de adotar tais valores, contudo
são, na maioria, reféns de governos autoritários e violentos.
Demonstrou-se também a estratégia da Revista Veja em ser seletiva quanto aos
eventos conflituosos entre Islã e Ocidente. As causas do conflito entre as duas civilizações se
reduziram às intervenções americanas durante a Guerra do Golfo. As cruzadas, o
128

imperialismo e a fragmentação do Oriente Médio pelo Tratado de Sykes-Picot foram


esquecidos.
Percebeu-se a postura da Revista Veja em se distanciar de qualquer descrição
estigmatizante, e justificar as intervenções norte-americanas no Iraque e no Afeganistão. Tais
intervenções tinham como objetivo tirar o mundo muçulmano do seu quadro de desagregação
e inseri-los na comunidade internacional de Estados democráticos.
No segundo capítulo, as atenções foram voltadas para o jornal Folha de São
Paulo, enfatizou-se a postura diversa que esse veículo construiu em relação às reportagens da
Revista Veja. Apesar da postura eclética, predominaram críticas à ação americana. Pouco se
falou sobre o mundo muçulmano ou sobre o terrorismo de origem islamista. As críticas se
concentraram nos EUA e em sua política externa. Os textos acusaram o não cumprimento do
direito internacional e o ferimento de princípios liberais que os estadunidenses afirmam
disseminar pelo mundo.
Identificou-se rapidamente a linha editorial e a postura do jornal pela declaração
do Ombudsman da Folha de São Paulo no dia 08de Maio de 2011, rotulando o ato como um
assassinato extrajudicial e a conivência da mídia internacional em comemorar a ação norte-
americana sem se posicionar criticamente quanto às falhas da versão oficial dada pelo
presidente Barack Obama. As críticas foram tão fortes, que muitos leitores, afirmavam que o
jornal possuía uma postura pró-Osama ou estava justificando o terrorismo islamista.
O enquadramento da cobertura se concentrou em demonstrar como o presidente
Barack Obama capitalizou politicamente o evento, e que no nível estratégico da luta contra o
terrorismo a eliminação de Osama bin Laden pouco significava. A Folha também destacou
como os EUA feriram os direitos humanos ao praticar a tortura como forma de obter
informações para a captura de terroristas. A Folha entrevistou o jovem muçulmano alemão
Albert Kurnaz que foi torturado injustamente pelo serviço secreto americano sob suspeita de
apoio ao terrorismo.
A Guerra ao Terror levada pelos Estados Unidos também foi criticada pela Folha.
O apoio dado pelos governos norte-americanos para grupos terroristas islâmicos contra a
URSS no fim da Guerra Fria foi enfatizado. A Guerra ao Terror foi questionada por não visar
grupos terroristas, mas por visar países como o Iraque que era um dos maiores representantes
do secularismo na região.
Realçou-se o enquadramento do jornal que tratou as ações americanas, não como
intervenções humanitárias, mas sim como intervenções que são feitas de modo seletivo, com
interesses econômicos e geopolíticos. A postura americana foi descrita como uma recaída
129

imperial que enfraquece os esforços do multilateralismo e dissemina conflitos que


desestabilizam diferentes regiões no planeta
A diferença entre a Revista Veja e o jornal Folha de São Paulo, são comparadas
no terceiro capítulo. O ponto de partida privilegiado que ressaltou-se na pesquisa foram as
diferentes representações de futuro presentes em cada veículo. Na Veja, o otimismo
predominou, e um futuro de paz era anunciado. O papel dos EUA como líderes de uma ordem
mundial baseada na democracia e livre-comércio foi celebrada. Na Folha, o pessimismo foi
dominante, longe de ser o triunfo do liberalismo e da democracia, a captura de Osama bin
Laden foi um exercício do poder imperial norte-americano. O evento apenas acirrava ainda
mais os conflitos civilizacionais.
Identificou-se que cada uma dessas visões se comunicavam com obras
importantes da geopolítica mundial. Na Revista Veja, as representações de futuro foram
modeladas dentro da perspectiva do Fim da História e o Último Homem, de Francis
Fukuyama. Já na Folha de São Paulo, o pessimismo em seus textos se deveu muito às
representações de Samuel Huntington em sua obra o Choque de Civilizações.
As diferentes posições sobre o futuro elencadas pelos dois jornais partindo de um
mesmo ideário liberal foram questionadas na pesquisa. Inquiriu-se sobre a legitimidade das
intervenções americanas. Elas são capazes de levar a paz e a liberdade aos povos do
Afeganistão e Iraque? O leitor foi impelido a entrar em um debate de falsas oposições. Esse
questionamento sobre a legitimidade do uso da violência, nas intervenções, e a possibilidade
dos EUA exportar seus valores políticos levou a uma saída filosófica para o desfecho da
pesquisa.
Tal saída se busca na obra Sobre a Revolução, de Hannah Arendt. Nele a autora
analisa a Revolução Americana, o papel da violência para os “pais fundadores” e o sentido da
liberdade dentro de uma Revolução. Observa-se que a violência é legitima quando ela se
encerra na constituição de um governo pelos cidadãos, quando não há limite para a violência
cessa-se a política, porque ela reside no espaço da palavra. Quanto á liberdade, dessa fala-se
na liberdade pública, e não da privada, que só um governo republicano pode instaurar.
Observou-se que tanto a Veja quanto a Folha, construíram narrativas
fragmentadas. A Revista Veja analisou o mundo muçulmano e legitimou as intervenções
americanas, e com ela legitimava a Guerra ao Terror que sem alvo determinado, é uma guerra
que se faz eterna, sempre elegendo um novo inimigo a ser combatido. Identificou-se também
que a liberdade defendida pelos EUA é a mesma na revista, a liberdade negativa, a liberdade
econômica. Já a Folha condena a violência das intervenções militares norte-americanas, mas
130

com uma visão niilista da razão não critica o fundamentalismo islâmico extremista e sua
agenda de violência que podem até agir como libertadores do mundo muçulmano contra o
domínio imperialista, mas suas propostas estão longe de instituir a liberdade pública.
De modo semelhante às demais pesquisas sobre as relações entre Islã e Ocidente
nos meios de comunicação, o presente estudo abarca apenas uma pequena fração da realidade
e dos eventos que ocorrem no mundo muçulmano. O evento da captura do terrorista foi
apenas uma porta de entrada para as representações que compõe essas relações.
Na cobertura do tema percebe-se elementos positivos como a ausência da tradição
imperialista, uma riqueza de conceitos das ciências políticas e geopolítica, mas a
fragmentação da cobertura impunha um debate maniqueísta em ser à favor ou não das
intervenções norte-americanas, simplificando ainda mais, em ser à favor dos EUA ou à favor
dos terroristas.
Tal postura sacrifica o debate, pois não se pergunta sobre o tipo de liberdade que
se está levando para o Oriente Médio, e se os povos da região a desejam. Concomitantmente,
criticar as intervenções não significa legitimar os grupos fundamentalistas, que também não se
preocupam com a liberdade política, querem apenas ressuscitar um passado idealizado de
pureza do Islã.
Essa não é uma visão definitiva do conflito, mas uma contribuição parcial que irá
ser complementada por novas leituras desses eventos tensos e problemáticos que ainda
assolam as relações entre Islã e Ocidente, e que sejam capazes de oferecer uma melhor
compreensão desses eventos e possibilite também um maior diálogo entre as duas civilizações
no mundo globalizado.
131

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