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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FFCH


Programa de Pós-Graduação em Antropologia -PPGA
Disciplina: Teoria Antropológica Clássica
Professora: Roca Alencar

Marcos Queiroz
Doutorando em Antropologia

Síntese do texto: KUPER, Adam. Lewis Henry Morgan e a Sociedade Antiga. Em: A
reinvenção da sociedade primitiva: transformações de um mito. Recife: UFPE, 2008.

A síntese apresentada aqui é baseada no texto do antropólogo sul-africano Adam Kuper.


Este autor, ao longo de sua trajetória, desenvolveu trabalhos de campo na atual Botswana,
Uganda e Jamaica. A partir da década de 1970, Adam Kuper começou a fazer publicações de
recorte histórico e crítico sobre a Antropologia e, dessa série de reflexões, estão os seus
trabalhos mais conhecidos: “Antropólogos e Antropologia”; “Cultura na Visão dos
Antropólogos” e “A Reinvenção da Sociedade Primitiva: transformações de um mito”. É deste
terceiro título que pertence o capítulo objeto desta síntese.
O capítulo 4, intitulado “Lewis Henry Morgan e a Sociedade Antiga”, procura
apresentar, de maneira crítica, elementos necessários para compreender a perspectiva teórica
que fundamenta a produção dos trabalhos deste autor evolucionista norte-americano,
relacionando elementos de sua trajetória pessoal (político e religioso), o método de trabalho,
referenciais, diálogos com contemporâneos e o impacto da sua obra sobre outros pesquisadores.
No início deste capítulo, Morgan é apresentado como um jurista e presbiteriano de Rochester,
Nova Iorque, que soube sintetizar as ideias de autores britânicos e produziu um dos textos mais
influentes sobre a sociedade primitiva.
No início da trajetória de Morgan, é imprescindível destacar a sua relação com o
Filólogo e Ministro Presbiteriano McIlvaine. Este religioso e pesquisador exerceu uma
influência expressiva no sentido de “monitorar”, termo usado por Adam Kuper, as implicações
teóricas do trabalho do seu amigo. A atuação de McIlvaine junto a Morgan teve duas
orientações definitivas: persuadir Morgan a afirmar sua crença na fé cristã e agir como censor
das ideias dele a partir de interesses teológicos. Kuper indica que essa relação foi crucial para
o trabalho de Morgan no sentido de sintetizar as ideias do período sobre o Evolucionismo e,
também, garantir sua primeira publicação, A Sociedade Primitiva, pelo Instituto Smithsoniano1.
O debate sobre o Evolucionismo foi se consolidando nos Estados Unidos
contemporaneamente ao advento da Guerra Civil, estabelecendo disputas entre o Norte e o Sul
no campo de batalha, assim como no campo religioso/teórico/científico. O caráter religioso de
ambas as posições era compartilhado, mas do ponto de vista teórico-científico se distinguiam.
Havia contraposições a respeito das ideias evolucionistas de Darwin, por exemplo. Cada
perspectiva acomodava as ideologias políticas que estavam em jogo naquele contexto e
afirmavam disputas teóricas. O grupo do Norte, ligado a McIlvaine, se alinhava com ideais mais
democráticos, repudiavam a escravidão e flertavam com o utilitarismo. Os presbiterianos
sulistas justificavam a escravidão a partir da apropriação das ideias darwinistas,
fundamentando-a sob uma ótica religiosa: “porque Deus havia criado muitas espécies humanas
distintas, cada uma com um destino particular” (pag. 92). Neste cenário, uma “escola americana
de antropologia” se desenvolveu no Sul, difundindo essa visão e acendendo uma rivalidade
entre dois pesquisadores de Harvard: Agassiz e Asa Grey, cada qual lendo Darwin numa
perspectiva diferente. Agassiz deu suporte a perspectiva do Sul, mas Asa Gray criticava essa
leitura, enfatizando que Darwin dizia que “as raças diferentes eram simplesmente variedades
de uma espécie, com uma origem comum” (pag. 93) acenando para uma diferença entre o que
Darwin dizia e o uso feito das ideias dele.
Nesse embate político/religioso/científico, o grupo do Norte criticava abertamente a
evolução na perspectiva de Darwin e a tese “poligenista” defendida pelo grupo do Sul. Os
nortistas argumentavam que essas ideias eram “uma negação da verdade, da qual ambas a bíblia
e a declaração de independência ofereciam evidencia” (pag. 93). Kuper aponta que “as visões
de Darwin eram inaceitáveis para a maioria dos cristãos” e um ponto importante se confrontava
com as ideias do grupo do Norte: as espécies não eram fixas e, em consequência desse
raciocínio, os seres humanos também não eram, pois configuravam-se como o resultado de um
processo evolutivo e adaptativo, produzindo variabilidades e espécies com ancestrais comuns.
McIlvaine atacava a teoria de Darwin, argumentando que a perspectiva deste tratava a História
Natural como algo do acaso e da seleção natural e fez objeção similar a tese de Malthus
afirmando que estas ideias não haviam deixado “espaço para planejamento divino”. De maneira
geral, havia uma diferença distinguindo os intelectuais cristãos e Morgan. Enquanto os
primeiros estavam preocupados em afirmar o progresso do homem como um propósito divino,

1
O Instituto Smithsoniano foi fundado 1846, é uma instituição educacional e de pesquisa associada a um complexo
de museus, fundada e administrada pelo governo dos Estados Unidos (https://www.si.edu/).
ele estava interessado nos estudos de etnologia americana, impressionando-se com a abordagem
dos estudiosos a respeito das línguas indo-europeias. Considero apontar estes detalhes do texto,
pois alguns fundamentos que estão presentes aqui vão se manter ao longo da trajetória de
Morgan, mesmo havendo alguma alteração no contato com novas informações, novos
referenciais e diálogos. Tais aspectos vão acompanhá-lo ao longo de sua produção científica,
tais como: a oposição as ideias de Darwin, a relação entre ciência e religião, o caráter fixo das
espécies e a noção de progresso.
Em seguida, o texto relata a relação de Morgan com os Iroqueses que habitavam uma
reserva na região onde ele morava. Morgan passou a visitar a reserva com o objetivo de “coletar
informações etnográficas”. Nesse período, fez campanha contra a deportação dos Iroqueses
daquela reserva para o Kansas e auxiliou o grupo na reinvindicação das terras. Escreveu seus
“achados etnográficos” em um trabalho descritivo chamado “The league of the Iroquois”. O
autor compara os iroqueses aos gregos, tomando como referencial o livro “History of Greece”
de George Grote. Este livro apresentava o desenvolvimento da organização social da Grécia em
momentos diferentes ao longo do tempo. Os gregos eram organizados em famílias separadas
que se juntaram e formaram os clãs, uma unidade baseada no parentesco e na política. Depois,
outros dois momentos se seguem, como a junção dos clãs em tribos ou fratrias e, por último, o
período de maior complexidade de organização social e poder (a monarquia). Morgan
identificou que os iroqueses se encontravam nas condições primeiras caracterizadas por Grote,
organizações baseadas em “relações familiares”. De maneira secundária, Morgan fez registros
das terminologias iroquesas de parentesco, percebendo que eram diferentes daquela da Lei
Civil.
Depois da publicação desse trabalho em 1851, Morgan se voltou para a profissão de
advogado. A medida que foi se tornando bem-sucedido, enveredou por outros caminhos
profissionais, como a dedicação a carreira política, atuando no congresso nacional e, depois,
assumiu alguns postos públicos ligados aos povos indígenas. Em Rochester fundou com
McIlvaine o Clube Pundit, onde estudavam geologia, filologia e etnologia. Depois, em 1887,
Morgan foi eleito como membro da Associação para o Avanço da Ciência, encorajando-o a
retornar as observações sobre os iroqueses. Preparou um artigo intitulado “Laws of descent of
the Iroquais”, que apresentava o sistema de classificação do parentesco iroquês. Anos depois,
Morgan tomou conhecimento sobre os Ojibwa, povo indígena falante de língua muito diferentes
dos iroqueses, cuja organização social possuía um sistema de classificação de parentesco muito
semelhante. Essa descoberta ampliou a perspectiva de Morgan, abrindo margem para refletir
sobre uma hipótese: além de pensar na origem comum, sugeriu que os indígenas americanos
tinham origem asiática.
O contato com o trabalho de Samuel Haven, “Archeology of the United States”, deu um
novo ânimo as pesquisas de Morgan. Haven fez uma varredura em trabalhos de diversas áreas,
principalmente aqueles que tratavam das línguas norte-americanas e considerou três
importantes indicativos: 1. apontava que, para além da diversidade de línguas, os indígenas
compartilhavam uma estrutura gramatical comum; 2. havia referências que todos descendiam
de um mesmo povo e 3. essas afinidades encontravam características que correspondiam a
condição inicial da “raça asiática”. Essas proposições reforçavam uma questão importante para
Morgan, que era a crença “monogenista” e a “unidade da raça humana”.
Morgan logo ficou impressionado com os dados da filologia e dos linguistas norte-
americanos, que usavam o modelo indo-europeu para identificar afinidades entre línguas que
anteriormente eram vistas como diferentes, como as línguas semíticas. Max Müller, professor
de Harvard, sugeriu um terceiro grupo e o chamou de “turariano”. Divididos entre o ramo do
norte europeu e o ramo sul, esse grupo incluía muitas línguas do mundo, inclusive as dos
indígenas norte-americanos. Os três modelos acenavam para uma origem asiática comum, mas
como não foi possível ter uma conclusão com base filológica, Max Müler usou a tipologia de
Humboldt para classificar as línguas de acordo com características gramaticais: isolamento,
aglutinação e inflexão. Assim, traçou um modelo de caracterização abrangente.

“As línguas mais primitivas eram “isolantes”. Cada palavra consistia de uma raiz
estável, única. Em nível mais avançado, elas eram caracterizadas pela “aglutinação”; as
raízes eram “coladas” para formar novas palavras. As línguas mais desenvolvidas
faziam “amalgamação”, desenvolvendo formas mais inflexíveis nas quais as raízes
originais, uma vez simplesmente coladas, fundiam-se para formar novas palavras.”
(KUPER, 2008, pag. 99 – 100)

Müller classificou as línguas do mundo neste esquema de desenvolvimento linguístico,


combinando com o modelo dos 4 estágios do iluminismo escocês, vinculando o
desenvolvimento linguístico aos estágios econômicos associados ao desenvolvimento político,
que vai do comunismo anárquico à concepção da propriedade privada. Os agrupamentos
humanos foram classificados e separados em categorias baseadas no desenvolvimento
progressivo, endossou a divisão entre povos arianos e semíticos, turarianos do Norte e
turarianos do Sul. Mesmo indicando a diversidade humana como elemento, ao mesmo tempo
esses grupos possuíam uma origem única. Estes modelos foram tomados como base para a
organização dos dados no “Systems of Consanguinity and Affinit of the Human Family” de
Morgan, reafirmando a premissa de que os grupos indígenas compartilhavam uma origem
comum e era asiática. Com essa hipótese em mente, ele foi buscar as conexões entre os
turarianos asiáticos prototípicos, os tâmeis. Convidou o Dr Scudder, missionário norte-
americano que estava no sul da Índia, a preparar uma tabela de tâmil e telugu. Quando Morgan
comparou as tabelas, concluiu que elas tinham a mesma estrutura. Para ele, isso significava a
evidencia da origem asiática da “raça indígena norte-americana”.
Então, em “Sistemas Classificatórios e Descritivos de Consanguinidade”, Morgan
conclui que haviam semelhanças entre as terminologias de parentesco da família turariana do
sul. Já os arianos, semitas e turarianos do Norte possuíam sistemas descritivos. Esses sistemas
foram chamados inicialmente de “natural” e “artificial”: o primeiro espelhava a realidade do
parentesco biológico, os termos de referência (pai-mãe-irmão-irmã) eram usados somente
dentro do núcleo familiar; já os sistemas classificatórios ou artificiais, não refletiam o
parentesco biológico e agregavam relações diversas sob o mesmo termo como, por exemplo, a
mesma palavra poderia se referir a pai, irmão do pai, filho do pai e pai do pai. Os sistemas
classificatórios se desdobravam em outros tipos, alguns consideravam os primos como irmãos
e outros consideravam irmãos apenas aqueles por linha materna ou paterna. Baseado na
quantidade enorme de dados sobre as terminologias usadas para o parentesco, Morgan também
demonstrou a unidade e a origem asiática das línguas dos indígenas norte-americanos.
Seus escritos foram apreciados e sofreram críticas, indicando que as análises dos dados
estavam incompletas. Ao rever os dados, Morgan chegou a seguinte leitura: a designação
classificatória da parentela se baseava na relação real entre pai e filho como no sistema
descritivo, mas as realidades eram ordenadas de maneiras diversas. O que distinguia um modelo
do outro era a certeza ou não da consanguinidade da prole. Em algumas sociedades de
parentesco classificatório, as esposas eram compartilhadas, como não se sabia quem era o pai,
o filho ou filha eram de todos. Em correspondência, todas as mulheres que eram parceiras de
um pai, eram chamadas de mãe. Tal percepção encontrava correspondência na publicação de
“Primitive Marriage” de McLennan, etnólogo inglês. Neste trabalho, foi descrito sistemas
semelhantes e foi possível traçar a linha de parentesco baseada nos homens, indicando que o
crescimento da propriedade e, depois, o surgimento da propriedade individual foi a causa para
que os homens procurassem manter relações individuais de paternidade. Morgan vinculou as
terminologias de parentesco que descobriu às formas de casamento percebidas por Mclennan.
Nesse caminho, Morgan esquematizou de forma resumida o modo como as terminologias de
parentesco foram se desenvolvendo progressivamente das relações indiferenciadas de parentes
(classificatórios) para o parentesco de reconhecimento biológico (descritivo), considerando a
propriedade como “essência da civilização”.
Seguindo nas suas reflexões e dialogando com autores como Maine, McLennan, Tylor,
Huxley, Darwin, Spencer, Lubbock, Morgan logo toma o modelo de Lubbock-Tylor sobre as
fases de desenvolvimento da pré-história (idades da pedra, do cobre (bronze e do ferro) e os
“estágios do progresso” escocês (selvageria/ barbárie/civilização) e desenvolve essas ideias no
seu livro “Sociedade Antiga”, afirmando que “a história da raça humana é uma só – na fonte,
na experiência, no progresso” (MORGAN, 2005, pag. 44). O autor vai indicar elementos que
vão auxiliar as leituras sobre o progresso e o desenvolvimento dos agrupamentos humanos. As
invenções e descobertas que mantêm relações sequenciais ao longo da linha de progresso
humano, registram seus sucessivos estágios. Esses estágios de desenvolvimento foram
esquematizados no que Morgan denomina de “períodos étnicos”. Adam Kuper (2008) indica
que a maior parte da “Sociedade Antiga” foi dedicado ao “crescimento das ideias das
instituições civis, definindo que os estágios de desenvolvimento são predeterminados e
inevitáveis. Kuper retoma o caráter religioso da abordagem de Morgan, no qual este autor
considera que o “desenvolvimento das instituições humanas expressava os pensamentos de
Deus” (KUPER, 2008, pag. 113).
Ao longo de todo o texto, Adam Kuper demonstra como Morgan foi recebendo as
informações e os dados, articulando-os às suas reflexões. Quando os dados não se adequavam
ao seu propósito, eram eliminados a partir de sua perspectiva dedutiva. A produção científica
do período estava baseada na repulsa a contradita e Morgan acreditava ter produzido um corpo
teórico e analítico sólido. Seus escritos causaram impacto entre os autores com os quais
estabeleceu diálogo e que lhe serviram de referência, mas também repercutiu em estudiosos
como Marx e Engels. No final do texto, Andam Kuper recupera o roteiro do capítulo,
demonstrando como Morgan coletou material etnográfico original através do trabalho de campo
e do envio de questionários. Também fica claro que incentivou outros a fazer campo para ele,
bem como desenvolveu uma estrutura interpretativa semelhante ao bricoleur do pensamento
selvagem de Levi-Strauss, adaptando os referenciais que encontrava e ajustando-os as suas
proposições. O autor do texto finaliza fazendo uma interpretação axial da obra de Morgan,
dizendo que a “história humana fazia sentido moral”, “era uma história de progresso” e que
“unia todos os ramos da espécie humana” indicando como a “promiscuidade” teórica e a “fé”
do autor evidenciava um pensamento comum que ele compartilhava com outros autores com
quem dialogou.
Referências:

KUPER, A. Lewis Henry Morgan e a Sociedade Antiga. Em: A reinvenção da sociedade


primitiva: transformações de um mito. Recife: UFPE, 2008.

MORGAN, L.H. A sociedade Antiga. Em: CASTRO, Celso (org.) Evolucionismo cultural.
Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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