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COMPLÔ (Moacyr Sciliar)

Sempre que havia falta de um professor, Dona Marta assumia o papel e o substituía no na
escola, ensinando canto. Embora sua disciplina fosse considerada irrelevante e suas aulas
não fossem boas, ela sempre estava disponível, seja de manhã, tarde ou noite. Morava
praticamente na escola e, ao chegarmos pela manhã, já a encontrávamos na sala dos
professores com um sorriso meio sofrido, meio estranho. Mesmo após o término das aulas
noturnas, ela continuava no colégio, esperando um irmão que ninguém nunca tinha visto, o
que levava a boatos de que ela dormia no sótão da escola. Diziam também que ela comia
lá. Ao meio-dia, Dona Marta sentava em um banco no pátio, comendo um sanduíche, com
uma expressão melancólica.

Certo dia, quando a professora de português faltou, Dona Marta foi convocada para
substituí-la. Com sua voz normalmente rouca, ela anunciou que não faríamos canto, mas
sim iriamos escrever uma composição. Ela propôs que escolhêssemos qualquer tema, e
cinco alunos seriam selecionados aleatoriamente para ler suas composições, com o melhor
ganhando uma recompensa. Para deixar a atividade mais interessante, Dona Marta mostrou
uma barra de chocolate com um ar misterioso, fazendo com que todos ficassem animados.
Estudávamos em um colégio frequentado principalmente por filhos de famílias de classe
alta. Quando Dona Marta mencionou o chocolate, ouvi risadinhas debochadas. No entanto,
a chegada inesperada do diretor fez todos se concentrarem imediatamente na atividade. Eu
não esperava ser escolhido para ler, já que nunca era selecionado para nada e nem
almejava ser. O título da minha composição, "Conspiração contra os cegos", possivelmente
foi influenciado pelo meu interesse em livros de mistério na época. Nela, descrevi um país
distante governado por cegos, onde o rei, ministros e generais cegos oprimiam o povo.
Apesar das limitações do povo para conspirar verbalmente, líderes resolutos organizavam
uma conspiração baseada apenas na escrita. Livros, revistas e jornais eram publicados
para articular a resistência anti-cegos. O monopólio era derrubado e um novo soberano
assumia o poder, tomando medidas para proibir a alfabetização, destruindo impressoras e
fechando jornais. Depois de concluir minha composição, fiquei calado, esperando enquanto
os outros terminavam também. Quando Dona Marta perguntou se estávamos prontos, todos
responderam afirmando, menos eu. Infelizmente, ela apontou para mim (muito azar!). Sob o
nome falso de Oscar, ela pediu que eu lesse minha composição sobre um passeio no
campo.
Ela sorria, aprovadora. Contei então sobre um passeio no campo. Descrevi a paisagem: as
árvores, o riacho, as
vacas pastando sob um céu muito azul. Concluí dizendo que um passeio no campo nos
ensinava a amar a
natureza. Muito bonito, ela disse, quando terminei. E adicionou, emocionada: - Eu gostaria
de guardar sua
composição. Não vale a pena, eu disse. Mas eu quero, insistiu ela. Não vale a pena, repeti.
Ela riu: ora, Oscar,
não seja modesto, me entregue a sua composição. - A composição é minha – eu disse – e
faço com ela o que eu quiser.
Esta aula era para ser de canto, não de português. A senhora não pode me exigir nada. -
Vou pedir
uma última vez – disse ela, e sua voz agora tremia. – Quero sua composição. Por favor.
Peguei a folha de papel
e rasguei ela, em meio a um silêncio sepulcral. Não fiquei calado, mas todos podiam ver as
lágrimas correndo-lhe
pelo rosto. O que me surpreendeu: eu não sabia naquela época, que os cegos podem
chorar.

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