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A construção jurídica da heterosexualidade

Adilson José Moreira

Sumário
1. Introdução. 2. A construção da categoria
de sujeito de direito como um sujeito heteros-
sexual. 3. Homossexualidade e normas sociais
de gênero. 4. A construção jurídica da heteros-
sexualidade na jurisprudência brasileira. 4.1.
União estável: entre tradição e definição. 4.2.
A proteção da família: uma prioridade estatal.
4.3. A sexualização da identidade homossexual.
4.4. Homossexualidade e espaço privado. 4.5.
Heterossexualidade e nação. 5. Conclusão.

1. Introdução
O tema do reconhecimento jurídico das
uniões entre pessoas do mesmo sexo tem
sido amplamente debatido pelas cortes
brasileiras, assunto que levanta uma série
de questões altamente relevantes para os
operadores do Direito. Apesar do número
crescente de decisões estendendo direitos
decorrentes da união estável aos casais
homossexuais, inúmeros tribunais afirmam
que o nosso sistema jurídico não admite tal
possibilidade. Esses órgãos recorrem a vá-
rios argumentos para sustentar tal posição,
todos eles baseados na premissa de que a
união estável é uma instituição inerente-
mente heterossexual. Muitas cortes brasi-
Adilson José Moreira é Doutor em Direito
Constitucional pela UFMG. Mestre em Direito leiras sustentam que os relacionamentos
pela Universidade de Harvard. Mestre em Di- homoafetivos não podem ser reconhecidos
reito Constitucional pela UFMG. Bacharel em como uniões estáveis porque a diversidade
Direito pela UFMG. de sexos é um elemento necessário de todas

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as uniões adultas reguladas pelo Direito.1 homoafetivas como uniões estáveis consti-
A definição legal da união estável serve tui um pedido jurídico impossível porque
como fundamento para a construção de casais homossexuais não podem procriar.3
uma retórica jurídica que procura justificar Esses órgãos julgadores asseveram ainda
a exclusão dos casais homossexuais dessa que o conteúdo da lei estabelece não apenas
instituição2. Muitos tribunais brasileiros limites aos direitos por elas regulados, mas
alegam que o reconhecimento das uniões também a forma como a norma deve ser
interpretada. Como o legislador brasileiro
1
Ver, por exemplo, STJ, Recurso Especial no instituiu a heterossexualidade como um
323.370, Órgão Julgador: 3a Turma, Relator: Barros
Monteiro, DJ 02/10/2006 (afirmando que questões
requisito fundamental para a caracterização
relacionadas com uniões homoafetivas devem ser da união estável, o poder judiciário não
analisadas pelas varas cíveis porque essas uniões não pode simplesmente ignorar esse elemento
podem ser consideradas como entidades familiares em fundamental da definição desse instituto
função da definição legislativa da união estável que
pressupõe a diversidade de sexos); TJMT, Conflito de
jurídico.4 Como consequência da caracteri-
Competência no 2003.00.2.009683-5; Órgão Julgador: 1a
Câmara Cível, Relator: Fernando Habibe, 10/12/2003
3
Ver, por exemplo, TJPB, Apelação Cível no
(afirmando que as uniões entre pessoas do mesmo 200.2004.018714-4/001, Órgão Julgador: 2a Câmara Cí-
sexo não podem ser reconhecidas como uniões está- vel, Relator: Antônio Elias de Queiroga, DJ 08/05/2008
veis porque a definição legal dessa instituição pres- (argumentando que uniões homoafetivas não podem
supõe a dualidade de sexos); TJPR, Apelação Civel no ser classificadas como uniões estáveis devido a im-
possibilidade jurídica de tal pedido); TJSP, Agravo de
0131962-0, Órgão Julgador: 1a Câmara Cível, Relator:
Instrumento no 544640-4/2, Órgão Julgador: 3a Câmara
Salvatori Antônio Astuti, 17/08/1999 (afirmando
de Direito Privado, Relator: Jesus Lofrano, 12.02.2008
que a diversidade de sexos é um requisito objetivo
(dando provimento a recurso sob o argumento de
e essencial para a existência da união estável); TJSP,
que a nossa legislação não reconhece as uniões entre
Apelação Cível no 349.910.4/3-00, Órgão Julgador: 8a
pessoas do mesmo sexo, o que justifica a decisão de
Câmara Cível de Direito Privado, Relator: Alvares
primeira instância classificando a demanda como
Lobo, 08/06/2005 (confirmando decisão de primeira
impossibilidade jurídica do pedido); TJMG, Agravo
instância que negou pedido de inclusão de companhei- de Instrumento no 1.0024.04.509018-0/001, Órgão
ro como beneficiário de plano de saúde porque casais Julgador: 6a Câmara Cível, Relator: Manuel Saramago,
homossexuais não podem ter acesso a direitos decor- 28/10/005 (negando a possibilidade da prestação
rentes da união estável em função da definição dessa de alimentos decorrentes de união homoafetiva sob
instituição); TJRJ, Apelação Cível no 2007.001.44569, a alegação de que a legislação brasileira não prevê
Órgão Julgador: 17a Câmara Cível, Relator: Henrique esse direito); TJSC, Apelação Cível no 2007.032992-5,
Carlos de Andrade Figueira, 28/11/2007 (negando Órgão Julgador: 3a Câmara Cível, Relatora: Maria do
provimento de recurso sob o argumento de que a Rocio Luz Santa Ritta, 18/03/2008 (afirmando que o
diversidade de sexos é um elemento fundamental conteúdo das normas legais brasileiras estabelecem
para a caracterização da união estável). expressamente como um dos requisitos à configuração
2
Ver, por exemplo, TAMG, Apelação Cível no da união estável e seu reconhecimento como entidade
222.040-8, Órgão Julgador: 2a Câmara Cível, Relator: familiar a convivência entre homem e mulher, ou seja,
Carreira Machado, DJ 08.04.1997 (afirmando que a deve haver a diversidade de sexos).
convivência homossexual não gera direitos de ne- 4
Ver, por exemplo, TJMG, Apelação Cível no
nhuma natureza, nem mesmo direitos patrimoniais); 2.000.00.465188-5/000(1), Órgão Julgador: 10a Câmara
TJRJ, Agravo de Instrumento no 8497/99/02, Órgão Cível, Relator: Pereira da Silva, 20.02.2007 (afirmando
Julgador: 12a Câmara Cível, Relator: Alexandre H. P. que a definição legislativa da união estável requer
Varella, 05.10.1999 (decidindo que o companheiro uma interpretação literal da legislação regulando essa
sobrevivente não pode figurar como inventariante ou instituição); TJSP, Conflito de Competência no 141.095-
reclamar direitos sucessórios porque o sistema jurídico 0/1-00. Órgão Julgador: Câmara Especial do Tribunal
brasileiro não reconhece as uniões homossexuais como de Justiça, Relator: Canguçu de Almeida, 09.04.2007
uniões estáveis); TJSP, Agravo de Instrumento no (decidindo que o estabelecimento da diversidade de
389.150-5/0-00, Órgão Julgador: 4a Câmara de Direito sexos como elemento central da definição da união
Público, Relatora: Jo Tatsumi, 07/04/2005 (negando estável impede quaisquer outras interpretações das
provimento a recurso de decisão de primeira instância normas que regulam essa instituição); TJRJ, Apelação
que indeferiu pedido de inclusão de companheira Cível no 7355/98, Órgão Julgador: 14a Câmara Cível,
de mesmo sexo como beneficiária de plano de saúde Relator: Ademir Paulo Pimentel, 13.10.98 (argumen-
porque a legislação brasileira não prevê a extensão de tando que a definição legal da união estável impede o
tais benefícios ao companheiro homossexual). uso da analogia entre as uniões homossexuais e as uni-

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zação da promoção da procriação como um como uma unidade de reprodução bioló-
interesse estatal legítimo, vários tribunais gica parece particularmente problemática
brasileiros argumentam que o tratamento quando consideramos a transformação des-
diferenciado dos casais homosexuais não sa instituição nas últimas décadas. Papéis
constitui uma violação do princípio da sexuais tradicionais têm sido gradualmente
igualdade.5 abandonados e o matrimônio passou a ser
Mais do que justificar o tratamento di- caracterizado como um projeto de reali-
ferenciado dos casais homossexuais, esses zação pessoal que não inclui a procriação
acórdãos instituem a heterossexualidade como um elemento necessário para o alcan-
como uma forma de identidade normativa. ce desse ideal. Configurações alternativas
Ao negar a possibilidade de reconhecimen- têm sido amplamente reconhecidas pelo
to jurídico das uniões homoafetivas como sistema jurídico, o que torna a afirmação de
uniões estáveis, muitos tribunais brasileiros que a reprodução é o objetivo principal da
estabelecem uma configuração específica união estável ainda mais controversa.6
de família como merecedora da proteção O estabelecimento da heterossexuali-
estatal. As uniões entre homens e mulheres dade como requisito para o acesso a certas
fundadas na procriação merecem especial categorias de direitos pode ser apontado
proteção das instituições governamentais como exemplo de um processo social pouco
porque elas têm importância central para
a reprodução social. Tal compreensão da 6
Ver nesse sentido STF, Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade no 3300 MC-DF, Relator: Celso de Mello,
família como um espaço de reprodução DJ 09/02/2006 (argumentando que os princípios da
biológica tem um caráter marcadamente igualdade, da dignidade humana, da privacidade
patriarcal, perspectiva que referenda a e do pluralismo justificam o reconhecimento dos
ideia da existência de papéis naturais ocu- casais homossexuais como entidades familiares);
STJ, Recurso Especial no 820.475 – RJ, Órgão Julga-
pados por homens e mulheres dentro do dor: 4a Turma, Relator: Antônio de Pádua Ribeiro,
matrimônio. A caracterização da família DJ 06/10/2008 (reconhecendo a competência das
varas de família para julgar questões decorrentes de
ões heterossexuais); TJDF, Conflito de Competência uniões homoafetivas porque essas se equiparam às
no 291471, Órgão Julgador: 1a Câmara Cível, Relatora: uniões heterossexuais); TRF-1a Região, Agravo de
Diva Lucy Ibiapina, 12.11.2007 (afirmando que não Instrumento no 2003.01.00.000697-0/MG, Órgão Jul-
existe nenhuma perspectiva interpretativa capaz de gador: 2a Turma, Relator: Tourinho Neto, 29.04.2004
justificar o reconhecimento das uniões homoafetivas (rejeitando o argumento de que a família significa
como uniões estáveis tendo em vista a definição legal necessariamente a presença de um homem e uma
dessa instituição). mulher ligadas pelo casamento, uma vez que a nossa
5
Ver, por exemplo, TJRN, Apelação Cível no tradição jurídica tem reconhecido outras formas de
02.001241-1, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Re- família como o concubinato) TRF-2a Região, Ape-
lator: Caio Alencar, 21/08/2002 (afirmando que a lação Cível no 2002.51.01.019576-8, Órgão Julgador:
exclusão dos casais homossexuais da união estável 7a Turma, Relator: Sérgio Schwaitzer, 04/07/2007
não viola o princípio da igualdade porque os casais (afirmando que a Constituição ao consagrar o plu-
homossexuais não podem fazer parte dessa instituição ralismo familiar e o princípio da dignidade humana
na forma como ela está definida); TJMG, Apelação reconheceu as uniões homoafetivas como uniões
Cível no 1.0024.08.082815-5/001, Órgão Julgador: estáveis, pois não vinculou a família ao casamento);
4a Câmara Cível, Relator: Dárcio Lopardi Mendes, TJRS, Apelação Cível no 70016660383, Órgão Julgador:
14/10/2008 (argumentando que a exclusão dos casais 8a Câmara Cível, Relator: Claudir Fidélis Faccenda,
homossexuais não viola o princípio da igualdade 26/10/006 (afirmando que o dogma da família tradi-
porque o tratamento diferenciado dos mesmos está cional formada por marido mulher e prole tem sido
racionalmente relacionado como interesse estatal em relativizado pelas transformações sociais); TJMG,
promover a procriação); TJRJ, AC no 2005.001.44730, Apelação Cível no 1.0024.05.750258-5/002(1), Órgão
Órgão Julgador: 2a Câmara Cível, Relator: Jesse Torres, Julgador: 7 a Câmara Cível, Relator: Belizário de
17/12/2005 (afirmando que a exclusão do compa- Lacerda, 04/09/2007 (afirmando que os direitos da
nheiro homossexual de plano de saúde não ofende o união homoafetiva são indissociáveis da união estável
princípio da igualdade porque a Constituição Federal e que vários movimentos sociais contribuíram para
define a união estável como o relacionamento entre a transformação da família patriarcal e a criação de
um homem e uma mulher). família baseada no afeto).

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analisado na literatura jurídica nacional. A servem para instituir uma representação
institucionalização dessa forma de identi- específica de família como o fundamento
dade sexual pode ser classificada como um da organização social brasileira, proces-
exemplo paradigmático de como o discurso so responsável pelo estabelecimento da
jurídico funciona como um mecanismo de heterossexualidade como uma forma de
formação de identidades. Como as normas identidade normativa.
jurídicas transformam sentidos culturais O patriarcalismo é a ideologia social
em regras que regulam as relações entre as que fornece os elementos necessários para
pessoas, elas têm uma função fundamen- a institucionalização da heterossexualidade
tal na formação e perpetuação de papéis como uma forma de identidade normativa.
sociais. Tal afirmação pode surpreender O estabelecimento dessa forma de orienta-
aqueles que consideram a atividade do ção sexual como uma identidade universal
juiz como algo restrito à aplicação da le- acontece principalmente pela caracteriza-
gislação a um caso concreto. Mas devemos ção da mesma como uma realidade natural
fazer uma diferenciação entre as normas anterior à regulação jurídica. Muitas cortes
jurídicas propriamente ditas e as razões brasileiras afirmam que a união estável não
apresentadas pelos tribunais para aplicá- pode ser interpretada apenas como uma
las ou interpretá-las de uma determinada criação estatal: as normas jurídicas apenas
maneira. As normas jurídicas são produto disciplinam uma instituição cujos pressu-
de um processo legislativo fundado na postos transcendem o poder regulador do
ideia da legitimidade institucional. Elas Estado. Isso significa que a classificação da
estabelecem um comando que deve ser ob- união estável como uma união entre um ho-
servado pelos agentes governamentais, mas mem e uma mulher fundada na procriação
a maioria delas não fornece razões para a decorre de algo que está inscrito na própria
sua utilização. Os motivos para a aplicação realidade natural. Tal processo é um requi-
e interpretação de uma norma jurídica são sito para a reprodução social porque pres-
apresentados pelos operadores do Direito, creve funções específicas para homens e
atores que sempre recorrem a conteúdos mulheres dentro da estrutura familiar. Mas
ideológicos para justificar o emprego da o estabelecimento da heterossexualidade
norma em um determinado caso e em certo como um requisito necessário para o acesso
sentido. Esse conjunto de razões constitui à união estável não pode ser caracterizado
uma prática discursiva que tem a função de como uma simples decorrência de proces-
legitimar a ordem social de uma determina- sos biológicos. Como toda forma de argu-
da maneira (KENNEDY, 1998, p. 135-155). mento ideológico que pretende mascarar a
A jurisprudência brasileira sobre as uniões realidade para o benefício de certos grupos
homoafetivas pode ser vista como exemplo sociais, esse argumento desconsidera o fato
bastante claro do papel de certas ideologias de que a heterossexualidade não pode ser
sociais no processo de argumentação jurí- entendida apenas como uma orientação se-
dica. A norma que define a união estável xual. Ela fundamenta uma série de arranjos
como uma união entre um homem e uma sociais que sustentam relações assimétricas
mulher não oferece razões para a instituição de poder. Ao estabelecer certos papéis
da heterossexualidade como um requisito sexuais como dados naturais da organiza-
para o acesso a essa instituição. Nós encon- ção social, as instituições governamentais
tramos essa justificação na retórica que os contribuem para a reprodução de relações
tribunais utilizam para excluir os casais de poder como algo constitutivo das inte-
homossexuais dos direitos decorrentes rações humanas. Como as funções sociais
dessa instituição. Esses argumentos estão ocupadas por homens e mulheres são vistas
baseados em uma série de premissas que como um elemento central da família nu-

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clear, todas as outras formas alternativas como um espaço fundado na divisão de
de organização familiar são classificadas papéis sexuais e na hierarquia entre os
como algo contrário à realidade natural. sexos. A institucionalização da heterosse-
A heterossexualidade deve ser pensada xualidade como requisito para o acesso à
como uma instituição política que estabe- instituição da união estável e a exaltação da
lece normas específicas para a organização superioridade moral das uniões fundadas
do poder social, normas fundamentadas na procriação permitem a reprodução do
nas relações assimétricas entre homens e poder patriarcal pelo reforço dos papéis
mulheres dentro das relações matrimoniais sociais atribuídos a homens e mulheres
(JOHNSON, 2005, p. 76-100). dentro dos relacionamentos heterossexuais.
Eu analiso neste artigo os meios pelos Partiremos do pressuposto de que as noções
quais o sistema jurídico atua como um de heterossexualidade e homossexualidade
instrumento de produção de identidades são categorias historicamente construídas a
sociais, processo que tem como função partir de uma dinâmica de relações de po-
principal a legitimação das relações de po- der que procuram legitimar certas formas
der que fundamentam a ordem política de de organização social. Argumentaremos
uma determinada sociedade. Trabalharei que a dicotomia entre homossexualidade
com a hipótese que o estabelecimento da e heterossexualidade não decorre de uma
heterossexualidade como requisito para realidade natural, mas sim de um processo
o acesso à união estável não decorre de de oposição social presente em certas confi-
uma instância que transcende as normas gurações sociais historicamente situadas.
jurídicas. Ele surge como consequência da Demonstraremos na primeira parte
construção dessa expressão da sexualidade deste artigo que a categoria de sujeito de
humana como uma forma de identidade direito pressupõe a heterossexualidade
normativa. Mais do que a regulação estatal como uma forma de identidade universal.
de uma realidade natural, a heterossexu- A associação entre heterossexualidade e
alidade é uma construção social, fruto de direitos individuais permitiu a identifica-
uma configuração política na qual o dis- ção da mesma como um pressuposto fun-
curso jurídico tem um papel fundamental. damental da identidade humana na esfera
Isso significa que a construção jurídica da pública e na esfera privada. Analisaremos
heterossexualidade pode ser vista como na parte seguinte os diversos processos
uma forma de legitimação de uma ordem culturais responsáveis pela construção so-
social baseada no pressuposto de que as cial da heterossexualidade como forma de
pessoas ocupam lugares naturais dentro identidade pessoal compulsória. Teremos
da realidade social. O discurso jurídico oportunidade de observar posteriormente
cumpre assim um papel regulador das que a exclusão dos casais homossexuais da
identidades no espaço público e no espaço união estável decorre principalmente do
privado ao reconhecer as uniões heterosse- fato de que homens e mulheres homosse-
xuais fundadas na procriação como forma xuais violam normas culturais de gênero.
de entidade familiar que merece proteção Investigaremos na última parte deste artigo
estatal privilegiada. Ao instituir essa forma as estratégias ideológicas utilizadas pelos
de união matrimonial como merecedora da nossos tribunais na construção da heteros-
proteção estatal especial, muitos tribunais sexualidade como uma instituição política
brasileiros rejeitam a possibilidade do reco- responsável pela reprodução da família
nhecimento jurídico de formas alternativas patriarcal.
de organização familiar. Essa estratégia tem A jurisprudência brasileira sobre as
como finalidade a reprodução do poder uniões homoafetivas constitui um campo
patriarcal ao preservar a noção de família de estudo privilegiado para a análise da

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construção jurídica da heterossexualidade. que procuravam encontrar um novo funda-
Uma questão de grande importância impul- mento para a organização social passaram a
siona a jurisprudência sobre as uniões entre fazer referência à essa representação dos se-
pessoas do mesmo sexo: a possibilidade do res humanos como ponto de partida para a
reconhecimento dos casais homossexuais construção de uma sociedade democrática.
como entidades familiares. Esse tema está Esses autores partiram do pressuposto que
sempre presente nas decisões jurídicas que a construção de uma sociedade baseada em
tratam dos pedidos de reconhecimento das leis universais e abstratas é possível em
uniões homoafetivas como uniões estáveis, função da identidade comum de todos os
nos acórdãos discutindo o problema da seres humanos como cidadãos. A faculdade
competência para julgamento dos proble- racional de todos os indivíduos permite que
mas relacionados com as uniões homoa- eles desenvolvam uma consciência moral
fetivas, como também nas demandas de universal, o que os torna capazes de ins-
extensão de direitos previdenciários aos tituir uma organização social baseada em
companheiros de funcionários públicos leis que expressam a própria racionalidade
homossexuais. A análise das razões utiliza- humana (HEARSCHER, 1993, p. 18-27). O
das pelos nossos tribunais para responder status comum de todos os seres humanos
a cada uma dessas questões nos permitirá engendra uma identidade de direitos e
demonstrar como esses órgãos julgadores a rejeição de quaisquer privilégios em
constroem a heterossexualidade em oposi- nome de um princípio geral da igualdade
ção à homossexualidade. entre todos eles. Como todas as pessoas
têm os mesmos direitos, eles devem ser
2. A construção da categoria igualmente tratados; quaisquer formas de
de sujeito de direito como um tratamento arbitrário violam o princípio da
igual dignidade dos seres humanos. Essa
sujeito heterosexual
ideologia individualista toma a identidade
A formação da imagem do indivíduo comum de todos os cidadãos como um
como uma entidade metafísica permite a elemento central para a universalização
construção de uma representação genérica dos direitos fundamentais, processo que
dos seres humanos como entes racionais requer a homogeneização social a partir
que possuem direitos e obrigações. Essa da compreensão dos indivíduos como en-
compreensão do homem como um ser tes abstratos representados pela figura do
moral racional abre espaço para o reco- sujeito de direito. A ideologia liberal está
nhecimento de uma característica comum fundada na negação de que as diferenças
a todos os seres humanos, pois a noção de status social possam ter qualquer rele-
de direito como uma faculdade pessoal vância jurídica. O reconhecimento dessas
permite a extensão de status jurídico a diferenças não tem lugar na instauração de
todas as pessoas. A formulação de uma uma sociedade que almeja a uniformização
subjetividade jurídica fundada na ideia do tratamento jurídico entre as pessoas.
do homem como um ser racional torna Estabelece-se assim uma correlação direta
possível a construção de uma organização entre direitos fundamentais e o princípio
social fundada em normas que expressam democrático. Os direitos fundamentais só
a racionalidade humana (AMATO, 1990, p. podem existir dentro de uma sociedade
51-67). Compreendido como um indivíduo pautada pela igualdade política e jurídica
racional capaz de estabelecer a sua própria entre os indivíduos. O ideal universalista,
norma de conduta, o homem passa a ser assentado na noção de identidade comum
visto como uma premissa fundamental do entre todos os indivíduos, toma como
pensamento político e jurídico. Os autores ponto de partida a regra de direito que

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governa a comunidade política, o que pos- acesso exclusivo dos homens a direitos civis
sibilita a instauração do indivíduo racional e políticos durante o constitucionalismo
como centro do universo político e jurídico liberal pode ser apontado como um claro
(ATTAL-GALLY, 2003, p. 6). exemplo dos meios pelos quais a categoria
Apesar da formulação da noção de de sujeito de direito estava identificada
sujeito de direito como uma categoria abs- com esse grupo social. O conceito de auto-
trata, inúmeros processos históricos foram nomia pública e privada permaneceu algo
responsáveis pela identificação da mesma estranho para as pessoas do sexo feminino
com grupos sociais específicos. De acordo porque as normas jurídicas limitavam os
com o pensamento liberal clássico, o Direito direitos das mulheres em ambas as esferas
não tem nenhum papel na construção da da existência. Elas não tinham os mesmos
identidade dos indivíduos; eles podem direitos no espaço público, como também
desenvolver as suas próprias concepções não possuíam direitos iguais no espaço pri-
do que seja uma vida adequada. Mas uma vado, uma consequência do fato de que as
análise da realidade histórica demonstra normas jurídicas, formuladas por homens,
que essa asserção sempre teve uma valida- classificavam a mulher como legalmente
de bastante limitada. A categoria de sujeito dependente do pai ou do marido. Baseados
de direito pressupõe uma separação da na ideia de que as mulheres não eram ade-
vida dos indivíduos entre a esfera pública quadas para a participação na vida pública,
e a esfera privada. Enquanto a esfera pri- os sistemas jurídicos ocidentais validaram
vada estiver fundada na premissa de que várias normas culturais que institucionali-
as vidas das pessoas podem ser reguladas zaram o espaço público como um espaço
pelas instituições estatais, elas têm liber- masculino (NAFFINE; OWENS, 1997, p.
dade para ser o que quiserem na esfera 7-8). O privilégio dos homens no espaço
privada. Parte-se do pressuposto de que público e no espaço privado demonstra que
os indivíduos são sujeitos autônomos e que a noção moderna de sujeito de direito surge
as normas jurídicas são produtos da von- como uma categoria que identifica o gênero
tade racional dos indivíduos considerados masculino como parâmetro para a plena
como seres igualmente livres. Mas a noção cidadania (NAFFINE, 1995, p. 24-27).
de sujeito de direito sempre esteve asso- Se os processos históricos responsáveis
ciada a um grupo social específico, únicos pela expansão da autonomia na esfera pú-
indivíduos que tinham a possibilidade de blica e na esfera privada concorreram para
atuar autonomamente na esfera pública e a conquista da igualdade formal das mulhe-
na esfera privada: o homem heterossexual. res no mundo contemporâneo, a igualdade
A identificação de diversas categorias de entre homossexuais e heterossexuais ainda
direitos com esse grupo social acontece continua longe de ser plenamente alcan-
principalmente em função da restrição de çada. Isso se deve ao fato de que a noção
direitos de certas classes de indivíduos.7 O de sujeito de direito ainda continua sendo
uma categoria claramente identificada com
7
Alguns casos da jurisprudência norte-americana
demonstram de maneira bastante clara como a noção
a heterossexualidade. A dicotomia entre a
de cidadania estava claramente associada ao homem homossexualidade e a heterossexualidade
branco proprietário. A Suprema Corte dos Estados também está estruturada a partir da dia-
Unidos decidiu no famoso caso Dred Scott v. Sandford lética entre o espaço público e o espaço
(60 U.S. (19 How.) 393, 1857) que os negros não podiam
ter acesso ao sistema jurídico porque eles não faziam
privado. A construção da hierarquia entre
parte da comunidade política tal como idealizada essas duas formas de orientação sexual
pelos fundadores da nação. O mesmo órgão julgador pode ser observada quando levamos em
também institucionalizou a ideia de que as mulheres
ocupam um status social inferior aos homens no caso elas não são capacitadas para desempenhar atividades
Bradwell v. Illinois (83 U.S. 130, 1873) ao afirmar que da vida pública.

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consideração o fato de que muitas normas expressão de homens e mulheres heteros-
jurídicas estão fundamentadas na premissa sexuais (RICHARDSON, 1996, p. 15).
de que todas as pessoas são heterossexuais. A construção da heterossexualidade
Leis que regulavam a sexualidade humana como uma forma de identidade normativa
nos diferentes âmbitos da vida social pro- acontece principalmente em função do esta-
curavam reiterar os papéis sociais atribu- belecimento de um contrato heterossexual.
ídos a homens e mulheres, criando assim Se o contratualismo parte do pressuposto
a homossexualidade como uma forma de de que a ordem social é criada a partir do
comportamento contrário à ordem social acordo entre indivíduos racionais sobre
(ESKRIDGE, 2002, p. 13-98). A exclusão da princípios básicos de organização política, o
homossexualidade do espaço público e do contrato heterossexual está fundamentado
espaço privado demonstra que o sistema na premissa de que a heterossexualidade é
jurídico constitui a heterossexualidade uma forma de identidade que deve regular
como uma forma de identidade universal todas as relações sociais. O contrato hete-
em ambas as dimensões das vidas dos in- rossexual expressa assim um entendimento
divíduos. Essas considerações sugerem que entre os indivíduos de que a heterossexu-
a distinção entre a esfera pública e a esfera alidade é um princípio básico da ordem
privada tem uma conotação claramente social. Esse pressuposto encontra expressão
sexual. Ela serve para definir os lugares na institucionalização dessa norma por
ocupados por homens e mulheres dentro meio das regras jurídicas que reproduzem
da estrutura familiar. A família aparece o ideário heterossexual (WITTIG, 1992,
aqui como uma unidade social formada p. 37-43). O contrato heterossexual está
pelo casal heterossexual e os seus filhos, fundamentado nas dicotomias entre ho-
instituição que tem como função principal mem e mulher e entre heterossexualidade
a socialização das crianças e estabilização e homossexualidade. Esses termos não
emocional de adultos. A estrutura das nos- designam categorias naturais, mas são
sas sociedades complexas estabelece uma construídos em função da oposição de uma
separação crescente do espaço público e do em relação à outra. A cultura heterossexual
espaço privado e a consequente divisão do está fundamentada na premissa de que as
trabalho entre os gêneros. Enquanto o espa- pessoas são necessariamente homens ou
ço público é o campo de ação do homem, mulheres, o que implica a existência de qua-
ator responsável pelo sustento da família, lidades naturalmente associadas a elas em
a esfera privada é o espaço privilegiado função do gênero. O contrato heterossexual
da mulher, cônjuge responsável pelos ser- também está baseado na oposição entre he-
viços domésticos e pela criação dos filhos terossexualidade e homossexualidade, sen-
(PARSONS; BALES, 1955, p. 23). O espaço do que a primeira adquire o sentido social
privado representa o espaço da tolerância de normalidade em oposição à construção
máxima para homens e mulheres homosse- da segunda como uma anormalidade (MA-
xuais, uma vez que o exercício dessa forma SON, 1995, p. 73-76). Mas esses processos
de orientação sexual deve permanecer sociais são mascarados pelo discurso jurí-
como algo restrito à vida íntima dos indi- dico ao assumir a ideia de que os sexos são
víduos. Apenas a heterossexualidade pode um dado natural anterior à regulação legal.
ter expressão no espaço público porque as O contrato heterossexual transforma uma
uniões heterossexuais são vistas como o construção social em uma realidade natu-
fundamento da unidade social. Enquanto ral, legitimando, assim, uma ordem social
a esfera privada representa a opressão de fundada na heterossexualidade (DAVIES,
homens e mulheres homossexuais, a esfera 1997, p. 31-32). A heterossexualidade deve
pública é construída como espaço de livre então ser entendida como um sistema po-

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lítico que estabelece uma série de funções A construção da heterossexualidade
sociais que vão muito além da questão da como um dado natural da realidade social
atração sexual. Esse parâmetro de organi- serve para ofuscar o fato de que a identi-
zação social serve como um princípio que dade sexual é o produto da interação entre
justifica os lugares sociais ocupados por experiências pessoais e sentidos sociais.
homens e mulheres em várias instâncias Como tivemos oportunidade de observar
sociais, sendo que todos eles estão funda- anteriormente, a heterossexualidade pode
mentados na divisão de papéis sociais entre ser classificada como uma categoria social
homens e mulheres na esfera pública e na baseada na divisão entre os gêneros mascu-
esfera privada (VANEVERY, 1996, p. 48). A lino e feminino. O gênero é uma construção
heterossexualidade, sendo uma instituição social que sustenta uma série de práticas
política, pressupõe a existência do gênero sociais e institucionais responsáveis pela
masculino e do gênero feminino, como tam- criação de relações assimétricas de poder
bém a atribuição de certos papéis inerentes entre homens e mulheres. A naturalização
ao homem e à mulher. Essas funções repro- das funções sociais atribuídas a homens e
duzem uma estrutura de dominação social mulheres contribui para a formação dessa
que permite aos homens obter benefícios de relação de subordinação entre os gêneros.
ordem sexual e econômica das mulheres. A Devemos observar que a divisão de gêne-
naturalização da heterossexualidade per- ros possibilita a construção da identidade
mite a exploração econômica das mulheres feminina e da masculina uma em relação à
em função do esquecimento do fato de que outra. A identidade social das mulheres é
o trabalho doméstico não remunerado das definida em termos do desejo sexual pelo
esposas constitui uma tarefa de caráter sexo masculino, pela construção da ma-
econômico que contribui diretamente para ternidade como um destino natural e pela
o bem-estar masculino.8 dependência econômica e psicológica em
relação aos homens. Por outro lado, a iden-
8
O entendimento de que o trabalho doméstico tidade masculina é construída em função da
tem um caráter eminentemente econômico tem sido
dominação do sexo feminino, dominação
esposado por vários tribunais brasileiros. Ver, por
exemplo, TAMG, AC no 9.036, Relator: Leal da Paixão, fundada na disposição sexual e econômica
RF/76, 24.04.1938 (reconhecendo a natureza econômi- das mulheres. Parte-se do pressuposto de
ca dos serviços domésticos e afirmando que eles têm que a diferença entre os sexos reflete pro-
especial importância na construção do patrimônio
comum); TAMG, AC no 10.203, Órgão Julgador: 1a Câ-
cessos biológicos que dão suporte à certos
mara Cível, Relator: Newton Cruz, RT/124, 30.05.1940 comportamentos naturais de homens e
(afirmando que a mulher tem direito à compensação mulheres (RICHARDSON, 1996, p. 20).
por serviços prestados mesmo que esteja casada com A construção da sexualidade como um
o homem que se beneficia dos mesmos); TJSP, AC no
58.715, Órgão Julgador: 2 a Câmara Cível, Relator: Fre- processo biológico tem então uma função
derico Roberto, RT 242, 27.05.1952 (argumentando que política: ao mesmo tempo que a construção
os serviços domésticos têm uma natureza econômica social da heterossexualidade justifica rela-
intrínseca e que eles constituem uma contribuição
econômica para os seus beneficiários); STF, RE no
ções assimétricas de poder entre homens
70.271, Órgão Julgador: 1a Turma, Relator: Aliomar e mulheres, ela também cria as condições
Baleeiro, RTJ 66/765, 11.05.1973 (conferindo direito à para a exclusão das relações homossexuais
compensação financeira a uma mulher que viveu em da proteção jurídica oferecida aos casais
uma união livre e honesta com um homem por mais
de vinte anos); TJPR, Apelação Cível no 1.591, Relator: heterossexuais. Esse processo está por trás
Ronald Accioly, 14.10.1981 (afirmando decisão de do raciocínio jurídico que estabelece a pro-
primeira instância que reconheceu o direito de uma criação como o objetivo central das relações
concubina de receber parte do patrimônio deixado
matrimoniais: a identidade heterossexual
pelo seu companheiro porque ela contribuiu para a
formação desse patrimônio por meio dos serviços compulsória serve como uma justificativa
domésticos). para a atribuição do papel de reprodução

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social às mulheres, uma vez que o discurso social que concorre para a subordinação
jurídico constrói essa função como o seu social das mulheres ao criar normas cultu-
lugar natural (WITTIG, 1992, p. 4-6). A rais que reproduzem o sexismo (PHARR,
institucionalização da heterossexualidade 1988, p. 8-14). O privilégio atribuído aos
como uma categoria de organização social relacionamentos heterossexuais como o
serve então para fundamentar ideia de que fundamento da estrutura social reforça a
as relações entre sexos opostos constituem ideia de que a heterossexualidade é um
o fundamento da organização social. O parâmetro fundamental para as relações
casal heterossexual representa, assim, um interpessoais em função da atribuição de
princípio de unidade social que delimita o papéis específicos para homens e mulheres.
acesso de outros grupos a quaisquer catego- Essa premissa serve para fundamentar a
rias de direitos relacionados à sexualidade. percepção social da heterossexualidade
Tal processo permite a perpetuação da como uma forma de identidade necessária,
heterossexualidade como uma identidade universal e natural. Como um princípio
individual natural e também reforça a organizador da estrutura social, a heteros-
percepção de que o mundo social deve ser sexualidade também organiza a identidade
visto como naturalmente heterossexual dos indivíduos que devem apresentar-se
(RICHARDSON, 2001, p. 20) socialmente a partir das características
A regulação das relações sociais por socialmente atribuídas aos gêneros (RI-
meio da construção da heterossexualidade CHARDSON, 1996, p. 3-4).
como uma forma de identidade normativa
é um processo característico do patriarcalis- 3. Homossexualidade e normas
mo que caracteriza as sociedades humanas. sociais de gênero
Muitos papéis sociais atribuídos a homens
e mulheres reforçam uma estrutura social A classificação da homossexualidade
fundada na dominação das mulheres, ori- como um comportamento desviante nos
gem do sexismo característico que permeia campos da Psicologia, da Sociologia e do
o nosso universo cultural. Culturas patriar- Direito está fundamentada no pressuposto
cais reforçam constantemente papéis sociais de que homossexuais violam normas cul-
fundamentados em relações assimétricas de turais de gênero. Podemos afirmar que a
poder. Mulheres são constantemente dis- condenação cultural da homossexualidade
criminadas porque desafiam papéis sociais decorre do fato de que homossexuais contra-
baseados no pressuposto da dependência riam os valores culturais responsáveis pelo
feminina em diferentes instâncias. Essa estabelecimento da hierarquia social entre
dependência criada por práticas discrimi- os sexos. Devemos observar ainda que essa
natórias e por normas culturais serve como dicotomia entre homem e mulher funciona
justificação para o sentimento de superiori- paralelamente a dicotomia entre heterosse-
dade masculina, reforçando a ideia de que xualidade e homossexualidade para pro-
as mulheres devem ocupar naturalmente duzir a estigmatização do comportamento
certas funções sociais. O sexismo serve para homossexual. A associação entre heterosse-
justificar a dominação masculina ao per- xualidade e a masculinidade aparece como
petuar a ideia de que as mulheres devem elemento central da identidade social de
procurar sempre a companhia masculina e todos os homens, assim como a correlação
comportar segundo as expectativas sociais entre heterossexualidade e feminilidade
criadas pelos homens. Vemos então que a determina a identidade social de todas as
construção da heterossexualidade como mulheres (MASON, 1995, p. 68-71). Como
uma identidade universal constitui um ele- consequência da correlação entre esses pares
mento central do patriarcalismo, ideologia de opostos, a homossexualidade passa a

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ser percebida como um desvio sexual, de- porque casais homossexuais não podem
signando assim pessoas que não vivem de procriar. Esse argumento está diretamente
acordo com os papéis sexuais naturalmente associado à percepção de que as uniões
atribuídos ao gênero. O comportamento ho- homossexuais envolvem atividade sexual
mossexual aparece, então, como uma forma não diretamente associada com os papéis
de degradação pessoal e de insubordinação naturais associados a homens e mulheres.
social. Segundo o imaginário heterossexual, As uniões homossexuais são vistas como
a homossexualidade masculina é vista como algo ainda mais perigoso do que a simples
um comportamento degradante porque o prática de atos sexuais entre pessoas do
homem equipara-se à mulher ao permitir ser mesmo sexo porque afronta a dominação
penetrado por outro homem. A homosse- masculina dentro do casamento (LAW,
xualidade feminina é tida como uma forma 1988, p. 217-218).
de insubordinação porque tal comporta- Vemos então que a homofobia pode ser
mento contraria a percepção social de que vista como responsável pela propagação do
a sexualidade feminina deve estar sempre sexismo quando associada ao heterossexis-
subordinada ao desejo sexual masculino mo. O heterossexismo provoca a homofobia
(KOPPELMAN, 1994, p. 235-238). ao pressupor que a heterossexualidade é
A tese segundo a qual homens e mu- uma norma cultural que deve regular todos
lheres homossexuais violam os papéis os espaços da vida humana. Essas duas
sexuais comumente atribuída aos gêneros categorias atuam conjuntamente para criar
masculino e feminino pode ser apontada a heterossexualidade como uma forma de
como uma das razões para a resistência de identidade compulsória e a família nuclear
proteção jurídica às uniões homoafetivas. como expressão de uma estrutura social
Essas uniões desafiam a noção de que carac- baseada na hierarquia entre os gêneros
terísticas como dominação e subordinação (PHARR, 1988, p. 16-17). Tais considerações
estão naturalmente associadas aos sexos levaram alguns autores a formular o argu-
dos cônjuges. As uniões homossexuais mento de que a discriminação baseada na
rejeitam implicitamente práticas sociais as- orientação sexual dos indivíduos pode ser
sociadas à hierarquia sexual, criando assim classificada como uma forma de discrimi-
uma grande ansiedade cultural em relação nação sexual. A perpetuação da distinção
ao reconhecimento jurídico desses relacio- entre papéis sexuais está na base dessa for-
namentos. Boa parte da oposição à legali- ma de discriminação que tem como objeto
zação das uniões entre pessoas do mesmo principal o gênero da pessoa a qual o indi-
sexo decorre de posição conservadora que víduo dirige o seu interesse sexual. Como
compreende o casamento como uma ins- o gênero da pessoa serve como base para a
tituição fundada em uma clara divisão de atribuição de direitos em diversas áreas da
papéis sexuais. As uniões homossexuais vida social, a discriminação contra homens
desafiam as normas sociais que requerem e mulheres homossexuais pode ser caracte-
a estabilidade dos papéis sexuais para a rizada como uma forma de discriminação
sustentação da hierarquia social entre os sexual (KOPPELMAN, 1994, p. 285-287).
gêneros. O fato de que a autoridade den-
tro das relações homossexuais não poder 4. A construção jurídica da
ser estabelecida em função do gênero dos heterossexualidade na jurisprudência
indivíduos causa uma grande ansiedade
brasileira
cultural. Os oponentes do reconhecimento
jurídico das uniões homoafetivas também As considerações desenvolvidas nos
argumentam que essas uniões não podem parágrafos anteriores demonstram que
ser reconhecidas como uniões estáveis o tratamento discriminatório contra os

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casais homossexuais cumpre uma função cido uniões homoafetivas como uniões
bastante clara: a manutenção da família estáveis, mas boa parte das nossas cortes
como uma entidade exclusivamente he- afirma que o nosso ordenamento jurídico
terossexual fundada na hierarquia sexual não admite tal possibilidade. Para muitos
entre homens e mulheres. O argumento dos nossos magistrados, a ideia da união
de que a diversidade de sexos constitui estável homossexual ou o casamento ho-
um aspecto fundamental da definição da mossexual constitui uma contradição em
união estável pode ser apontado como um termos porque a diversidade de sexos é
dos elementos utilizados para a institucio- parte fundamental da definição dessas
nalização da heterossexualidade como uma duas instituições. Uma decisão do Tribunal
identidade normativa. Esse pressuposto de Justiça do Rio Grande do Sul pode ser
é constantemente articulado nas decisões apontada como um bom exemplo de como
judiciais sobre as uniões entre pessoas do as nossas cortes empregam esse raciocínio
mesmo sexo. Três temas principais estão para negar proteção jurídica aos casais
presentes na jurisprudência brasileira sobre homossexuais. O autor da ação interpôs
as uniões homoafetivas: a possibilidade do um recurso para aquele Tribunal no qual
reconhecimento das uniões homoafetivas requeria a reforma da decisão de primeira
como uniões estáveis, a determinação da instância que negou o pedido de reconhe-
competência judicial para resolver pro- cimento do longo relacionamento mantido
blemas jurídicos decorrentes das uniões com o seu companheiro como uma união
homoeróticas e o problema da consideração estável. Ele argumentou que o juiz errou ao
de casais homossexuais como entidades não deferir o pedido porque aquele órgão
familiares. Uma análise das decisões ju- superior tem reconhecido a existência de
diciais sobre essas uniões demonstra que uniões estáveis entre casais homossexuais.
os tribunais brasileiros recorrem a cinco O órgão julgador em questão indeferiu a
estratégias discursivas para excluir os apelação afirmando que a legislação bra-
casais homossexuais da união estável: a) sileira define a união estável como uma
uma interpretação literal da legislação que união entre um homem e uma mulher, o
regula essa instituição, b) a afirmação de que impede o acesso dos casais homosse-
que a proteção da família e a promoção da xuais a essa instituição.9 O desembargador
procriação constituem interesses estatais afirmou que o reconhecimento jurídico das
legítimos, c) a sexualização da identidade uniões homoafetivas como uniões estáveis
homossexual e a consequente caracteri- enfrenta um obstáculo instransponível:
zação da heterossexualidade como um a caracterização da diversidade de sexos
comportamento altruísta, d) a consideração como um elemento central da definição
das uniões homoafetivas como relações de legal dessa instituição. Como a diversidade
caráter puramente patrimonial, e) a cor- de sexos é uma condição fundamental para
relação entre heterossexualidade e nação. a procriação, a exclusão dos casais homos-
Analisaremos nas sessões seguintes cada sexuais da união estável não constitui uma
uma dessas estratégias. violação da igualdade.10 Alegando haver
4.1. União estável: entre 9
TJRS, AC no 70009888017, Órgão Julgador: 7a Câ-
tradição e definição mara Cível, Relator: Sergio Fernando de Vasconcelos
Chaves, 27.04.2005.
Apesar do consenso sobre a necessidade 10
Ver, nesse mesmo sentido, STJ, Recurso Especial
de proteção jurídica dos casais homos- no 648.763 – RS, Órgão Julgador: 4a Turma, Relator:
Cesar Asfor Rocha, DJ 16/04/2007 (negando a possi-
sexuais, existe uma grande controvérsia bilidade de reconhecimento de uniões homoafetivas
sobre a forma e a extensão de tal proteção. como uniões estáveis porque essa instituição é legal-
Muitos tribunais brasileiros têm reconhe- mente definida como uma união entre um homem

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uma relação racional entre o tratamento O argumento da definição geralmente
diferenciado dos casais homossexuais e o utilizado pelos nossos tribunais encontra
interesse estatal em promover a procriação, grande aceitação dentro do mundo jurídico
o desembargador asseverou que a legisla- porque faz referência às normas legais que
ção brasileira não discrimina os casais ho- definem a instituição estável.12 Mas o que
mossexuais. Eles simplesmente não podem nos interessa aqui é a retórica utilizada pelos
ter acesso a essa instituição na forma como tribunais para afastar a possibilidade de uma
ela está legalmente definida porque não interpretação expansiva da norma que regu-
podem procriar. A legislação simplesmente la a união estável. Esse argumento tem uma
reflete a realidade biológica de que casais natureza claramente circular: a definição da
formados por pessoas do mesmo sexo não união estável pressupõe a diversidade de se-
podem reproduzir.11 xos porque todas as uniões adultas sanciona-
das pelo Estado pressupõem a diversidade
e uma mulher); TJDF, Conflito de Competência no de sexos. O argumento da tradição aparece
2004.00.02.001313, Órgão Julgador: 1a Câmara Cível,
Relatora: Sandra de Santis, DJU 01/06/2004 (afirman-
como um corolário necessário do argumento
do que a definição legal da união estável impede a da definição: as uniões homoafetivas não po-
analogia entre uniões homossexuais e heterossexuais); dem ser reconhecidas como uniões estáveis
TJMG, Apelação Cível no 1.000.00.245373-6/00(1), porque as uniões matrimoniais estiveram
Órgão Julgador: 5a Câmara Cível, Relator: Aluízio
Quintão, 03/10/2002 (indeferindo recurso sob o argu- fundadas na diversidade de sexos desde
mento de que as uniões entre pessoas do mesmo sexo tempos imemoriais. Esses dois argumen-
é algo estranho ao direito de família tendo em vista a tos cumprem duas funções importantes: a
definição legislativa dessa instituição); TJPR, Apelação instituição da heterossexualidade como um
Cível no 02144205-8, Órgão Julgador: 10a Câmara Cível,
Relator: Salvatore Antônio Astuti, 12/04/2005 (dizen- requisito lógico da união estável e a exclusão
do ser impossível equiparar uniões homossexuais a da possibilidade do reconhecimento de ou-
uniões heterossexuais em função da definição legal tras formas alternativas de organização fami-
da união estável); TJSE, Conflito de Competência no
liar. A utilização dessas duas teses jurídicas
0100/2006, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Relator:
Gilson Gois Soares, 21/03/2007 (afirmando que, nos serve para justificar a preservação da união
termos do parágrafo terceiro do artigo 226 da Consti- estável como uma instituição inerentemente
tuição Federal, o conceito de união estável pressupõe heterossexual pela referência aos princípios
a diversidade de sexos, o que distingue as uniões
homossexuais das uniões heterossexuais)
do direito natural. Nossos tribunais afirmam
11
Muitos tribunais brasileiros fazem referência que a diversidade de sexos surge como um
ao princípio da diversidade de sexos como elemen- dado natural da ordem social porque decor-
to fundamental da definição da união estável para re da vontade de Deus. O reconhecimento
classificar o pedido de reconhecimento das uniões
homoafetivas como um pedido jurídico impossível.
das uniões homoafetivas deve ser afastado
Ver, por exemplo, TJSC Apelação Cível no 2007.032992- porque tais uniões contrariam a ordem na-
5, Órgão Julgador: 3a Câmara Cível, Relatora: Maria tural instituída pelo Criador.13
do Rocio Luz Santa Rita, 18/03/2008 (classificando
o reconhecimento das uniões homoafetivas como e a mulher, mas não deixa de estimular o casamento
uniões estáveis como um pedido jurídico impossível sem olvidar de equipará-la à entidade familiar, sendo
porque essa instituição pressupõe a possibilidade inconstitucional qualquer projeto que vise equiparar
de procriação); TJRJ, Apelação Cível no 7355/98, à entidade familiar à união de lésbicas e pederastas”);
Órgão Julgador: 14a Câmara Cível, Relator: Ademir TJMG, Apelação Cível no 1.0024.04.537121-8/002(1),
Paulo Pimentel, 23.03.2001 (argumentando que a Órgão Julgador: 12a Câmara Cível, Relator: Domingos
definição legal da união estável torna o pedido de Coelho, 08/07/2006 (afirmando que o reconhecimento
reconhecimento da união entre pessoas como união de uma união homoafetiva como união estável consti-
estável uma impossibilidade jurídica); TJSP, Apelação tui caso de impossibilidade jurídica porque tais uniões
Cível no 425.148-5/2-00, Órgão Julgador: 5a Câmara; não constituem entidades familiares).
Relator: Alberto Zvirbis, 05/10/2006 (afirmando ser 12
Para uma análise minuciosa desse argumento
impossível o pedido de reconhecimento de uma união ver Adilson José Moreira (2010, p. 330-340).
homoafetiva como uma união estável porque “o Esta- 13
Ver, por exemplo, TJRS, Apelação Cível no
do estende a proteção à união estável entre o homem 70009791351, Órgão Julgador: 7a Câmara Cível, Relator:

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Os argumentos da definição e da em diferentes culturas humanas demonstra
tradição servem também para excluir que a instituição da diversidade de sexos
evidências históricas da existência de for- como um requisito para o acesso à união es-
mas alternativas de organização familiar. tável não decorre apenas de uma realidade
Muitos tribunais brasileiros utilizam uma natural. Essa regra representa uma forma
narrativa histórica de caráter linear, como de configuração familiar baseada em uma
se o sentido das instituições sociais não cultura patriarcal, sendo que esses papéis
tivesse sofrido nenhuma variação ao longo decorrem supostamente da constituição
do desenvolvimento da cultura humana. biológica dos sexos. Percebemos então que
Vários estudos recentes revelam que o o recurso ao direito natural procura atingir
casamento sempre teve funções sociais dois objetivos específicos: impedir que
diversas. Uniões homoafetivas eram social- casais homossexuais sejam reconhecidos
mente reconhecidas em várias civilizações como entidades familiares e a manutenção
humanas, sendo que o casamento entre de uma ordem social baseada na hierarquia
pessoas do mesmo sexo existiu em muitas sexual entre o homem e a mulher.14
delas. Os relacionamentos entre homens
foram mais valorizados do que as uniões 4.2. A proteção da família: uma
heterossexuais, forma de relacionamento prioridade estatal
que tinha apenas a função de manter a pro- A premissa de que a diversidade de
priedade dentro da mesma família. Outros sexos é um elemento central da definição
grupos humanos não conheceram uma da união estável está diretamente relacio-
estrita correspondência entre papéis sociais nada com outro argumento constantemente
e o sexo morfológico, o que possibilitou utilizado pelos tribunais brasileiros: a ideia
a sanção do casamento entre pessoas do de que a união estável pretende proteger
mesmo sexo. Enquanto algumas culturas a instituição familiar. Os pretórios bra-
conheciam a existência de um terceiro sexo, sileiros asseveram que as normas legais
outras sociedades sancionavam o casamen- têm como objetivo a proteção da família
to entre pessoas do mesmo sexo como um e não os relacionamentos adultos, sejam
estágio preliminar para o casamento entre eles homossexuais ou heterossexuais. Esse
um homem e uma mulher. Outras culturas
efetivamente reconheciam o casamento 14
Vários tribunais brasileiros argumentam que a
entre pessoas do mesmo sexo, sendo que institucionalização da heterossexualidade como forma
de identidade necessária para o acesso a direitos ma-
um dos parceiros ocupava o papel social trimoniais contradiz princípios fundamentais da nossa
geralmente atribuído a pessoas do sexo ordem constitucional. Ver nesse sentido STF, Ação
oposto (MOREIRA, 2010, p. 273-305). Essa Direito de Inconstitucionalidade no 3300, MC/DF,
variedade de concepções de papéis sexuais Relator: Celso de Mello, DJ, 09/02/2006 (afirmando
que o sistema jurídico brasileiro está fundamentado
nos princípios da dignidade humana e no pluralismo
Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, 10/11/2004 social, o que impede a restrição de direitos matrimo-
(definindo a família como um fenômeno natural que niais aos casais heterossexuais); TJRS, Apelação Cível
prescinde de toda e qualquer convenção formal ou no 70001338892, Órgão Julgador: 7a Câmara Cível,
social tendo origem nos textos religiosos); TJMG, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis, 14/03/2001
Apelação Cível no 56.899, Órgão Julgador: 1a Câmara (reconhecendo uma união homoafetiva como união
Cível, Relator: Paulo Tinoco, RT 572/189, 16/11/1982 estável sob o argumento de que a construção da noção
(alegando que o acasalamento de seres humanos do de sujeito de direito como necessariamente heteros-
mesmo sexo contraria os mandamentos do direito sexual viola o princípio constitucional da igualdade);
natural); TJPB, Apelação Cível no 2000.2004.0187140- TJMG, Apelação Cível no 1.0024.06.930324-6/001(1),
4/001, Órgão Julgador: 2a Câmara Cível, Relator: João Órgão Julgador: 7a Câmara Cível, Relator: Heloisa
Machado de Souza, 18/04/2006 (definindo o casamen- Combat, 22/05/2007 (argumentando que os vínculos
to como a comunhão de um homem e uma mulher que afetivos marcam as uniões familiares a partir da segun-
se associam para toda a vida em uma comunhão do da metade do século passado, o que inclui as uniões
direito humano e do direito divino). formadas entre pessoas de mesmo sexo).

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entendimento está claramente articulado matrimoniais e concubinárias entre pessoas
em uma decisão do Superior Tribunal de de sexos opostos. Isso significa que as varas
Justiça.15 Um casal homossexual formado de família não podem apreciar os proble-
por duas mulheres requereu a homologa- mas decorrentes das uniões homoafetivas
ção de dissolução de sociedade estável e porque elas não podem ser classificadas
afetiva cumulada com partilha de bens e como entidades familiares. Como elas não
guarda. A juíza da vara de família declarou encontram respaldo no direito de família,
a sua incompetência para conhecer e deci- as relações homoafetivas só geram direitos
dir o caso, sustentando que as uniões ho- obrigacionais. Sendo assim, a questão fa-
moafetivas devem ser equiparadas a uma miliar está ausente porque não existe uma
sociedade civil regida pelas disposições do união que possa ser regulada pelo direito
direito obrigacional. Por outro lado, a juíza de família.16
da vara cível argumentou que as uniões Os tribunais que recorrem ao argumen-
homoafetivas equiparam-se às uniões he- to da família e da procriação legitimam o
terossexuais, devendo o feito processar-se pacto heterossexual ao instituir a família
perante uma vara de família. O Tribunal fundada na atribuição específica de pa-
estadual afirmou que as varas de família péis sexuais a homens e mulheres como
têm competência para julgar esses casos. uma realidade natural. Ao afirmar que
O Procurador-Geral de Justiça interpôs um casais homossexuais não podem assumir
recurso especial alegando que o pedido os papéis de pais e mães perante os seus
pretendia o reconhecimento e a posterior filhos, o ministro relator reproduz uma
dissolução de uma união homoafetiva com compreensão da ordem social baseada na
contornos familiares. O relator do caso, família nuclear heterossexual como uma
Ministro Fernando Gonçalves, afirmou logo realidade natural. As uniões homoafetivas
no início do acórdão que o texto constitucio- contradizem a norma cultural segundo a
nal reconhece apenas a união estável entre qual a paternidade e a maternidade são
um homem e uma mulher como uma enti- destinos naturais de homens e mulheres
dade familiar. Esse entendimento orientou porque elas subvertem os princípios da
o legislador a adotar a mesma definição na família patriarcal. Percebemos também que
legislação infraconstitucional que regula a
16
Ver nesse sentido TJDF, Conflito de Compe-
instituição da união estável. O magistrado
tência no 291471, Órgão Julgador: 1a Câmara Cível,
argumentou que a diversidade de sexos Relatora: Diva Lucy Ibiapina, 12/11/2007 (afirmando
é a primeira condição para a existência que a família fundada na união do homem e da mu-
da união estável porque duas pessoas do lher constitui a base da sociedade); TJMG, Apelação
mesmo sexo não podem assumir, uma pe- Cível no 1.0024.04.537121-8/002(1), Órgão Julgador:
Domingos Coelho, 24/05/2006 (afirmando que o
rante a outra, os papéis de marido e esposa. reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo
Da mesma forma, um casal formado por sexo constitui hipótese de impossibilidade jurídica
duas pessoas do mesmo sexo não podem do pedido porque a legislação brasileira estabelece
cumprir as funções de pai e mãe perante a diversidade de sexos como um elemento essencial
da definição da união estável); TJRJ, Apelação Cível
eventuais filhos. Os problemas jurídicos no 2006.001.59548, Órgão Julgador: 11a Câmara Cível,
que emergem das relações homoafetivas Relator: Roberto Guimarães, 15/01/2007 (demons-
não podem ser regulados pelo direito de trando que a noção de família permaneceu imutável
família porque esse campo jurídico, argu- ao longo do desenvolvimento do constitucionalismo
brasileiro); TJSC, Apelação Cível no 2006.035584-8,
mentou o magistrado, regula os direitos e Órgão Julgador: 3a Câmara de Direito Civil, Rela-
deveres decorrentes da constituição e dis- tor: Fernando Carioni, 28/11/2006 (afirmando que
solução da família formada pelas relações uniões homossexuais não podem ser reconhecidas
como uniões estáveis porque dois homens ou duas
STJ, REsp. no 502.995-RN, Órgão Julgador: 4a
15
mulheres não podem assumir os papéis de mãe e pai
Turma, Relator: Fernando Gonçalves, DJ 16.05.2005. perante os filhos).

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a defesa de uma estrutura familiar fundada Esse acórdão demonstra claramente
na clara delimitação de funções ocupadas que as uniões homoafetivas são cultural-
por homens e mulheres também procura mente condenadas porque elas desafiam
reproduzir a própria identidade heterosse- noções tradicionais de papéis sexuais,
xual: apenas uma família na qual pessoas uma vez que elas desarticulam a noção de
de ambos os sexos ocupam lugares sociais que certos traços culturais são caracterís-
claramente delimitados podem produzir ticas naturais de homens e mulheres. Os
pessoas que serão heterossexuais. O magis- relacionamentos homossexuais são vistos
trado sugere claramente que filhos criados como uma subversão da ideia tradicional
por casais homossexuais provavelmente se- de família como uma instituição baseada
rão homossexuais quando adultos porque na hierarquia entre os sexos. A concepção
foram criados em um lar no qual os papéis de família defendida por esses tribunais
de homem e mulher estavam ausentes. reproduz uma cultura fortemente marca-
Mais do que uma consideração sobre a pos- da pelo patriarcalismo. Verificamos que
sibilidade de reconhecimento jurídico das as sociedades ocidentais adotaram uma
uniões homoafetivas, esse acórdão pode forma de moral sexual baseada na ideia
ser caracterizado como uma prescrição de de que apenas a atividade sexual que leva
como as uniões heterossexuais devem ser à procriação pode ser classificada como
constituídas: homens e mulheres devem legítima. Essa premissa serviu como base
ocupar papéis bastante específicos dentro para a construção de uma moral sexual
da união matrimonial para que a família construída em torno do pressuposto de
possa constituir assim um espaço adequado que apenas as atividades sexuais dentro do
para a criação de filhos que serão adultos casamento são moralmente adequadas. Pa-
heterossexuais.17 ralelamente à elevação da procriação como
objetivo do casamento, surgiu também a
17
Ver nesse sentido TJRS, Apelação Cível n o construção de lugares sociais próprios para
70009888017, Órgão Julgador: 7a Câmara Cível, Relator:
homens e mulheres. Esses pressupostos
Sergio Fernando de Vasconcelos Chaves, 27/04/2005
(argumentando que a família é um fenômeno natural foram incorporados pelo sistema jurídico,
cuja caracterização precede a sua regulação legal e servindo como parâmetro para controlar
que o casal monogâmico heterossexual monogâmico a vida sexual dos indivíduos dentro do
é o melhor ambiente para a criação de filhos); TJSC,
espaço público e do espaço privado. Mais
Agravo de Instrumento no 2006.04587-2, Órgão Jul-
gador: 2a Câmara de Direito Civil, Relator: Manzoni do que isso, o controle social da sexualidade
Ferreira, 06/09/2007 (afirmando que a união estável pelas normas jurídicas serve também para
homossexual não pode existir nem pelo casamento, reforçar a dicotomia sexual entre os sexos
nem pela união estável porque esses relacionamen- (LAW, 1988, p. 197-201).
tos não têm como objetivo a constituição da família,
função que o legislador conferiu aos casais formados
por um homem e por uma mulher); TJRJ, Apelação 4.3. A sexualização da identidade
Cível no 10.704/2000, Órgão Julgador: 3a Câmara Cí- homossexual
vel, Relator: Antônio Eduardo F. Duarte, 07/10/2000
(negando a possibilidade de reconhecimento de uma A análise da jurisprudência sobre as uni-
união homoafetiva como união estável porque apenas ões homoafetivas demonstra também que
a família formada pelo casal heterossexual merece os tribunais adotam ainda uma estratégia
proteção estatal porque pode promover a procriação);
TJPB, Apelação Cível no 200.2004.018714-4/001, Órgão
bastante sutil para rejeitar a possibilidade
Julgador: 2a Câmara Cível, Relator: Antônio Elias de do reconhecimento das uniões homoafe-
Queiroga, 05/09/2004 (classificando a família como tivas como uniões estáveis. Estamos aqui
um grupo social que tem a função de constituir a diante de outro processo que tem grande
prole, sendo um lugar privilegiado para a criação
de futuros cidadãos. Esse grupo social constituído
importância para a construção jurídica da
pelo homem, a mulher e a prole constitui a base da heterossexualidade: a caracterização da ho-
sociedade brasileira). mossexualidade como um comportamento

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sexual voltado apenas para a gratificação objetivo porque casais homossexuais não
pessoal. Paralelamente à sexualização da podem procriar. Apenas os casais heteros-
identidade homossexual, os tribunais bra- sexuais podem constituir família, entidade
sileiros classificam o comportamento sexual que forma a base da sociedade. A família,
heterossexual como uma manifestação al- asseverou a desembargadora, representa
truísta da sexualidade humana porque tem um espaço privilegiado para a transmissão
como objetivo a procriação. Podemos per- de valores morais, constituindo assim um
ceber como os nossos tribunais empregam objeto especial de proteção estatal.19
essa estratégia discursiva em uma decisão O argumento apresentado pela magis-
do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.18 trada está baseado em duas premissas. A
A decisão trata do conflito de competência homossexualidade é uma forma de com-
para apreciar e julgar demandas que envol- portamento que deve ser protegida pelo
vem interesses decorrentes das uniões ho- Direito porque é uma expressão da sexua-
moafetivas. A querela jurídica foi suscitada lidade humana que diz respeito apenas aos
pelo juiz de uma vara cível que entendeu indivíduos que a praticam. As instituições
não ter jurisdição para julgar um caso cuja estatais não devem intervir na vida privada
competência para julgamento já tinha sido desses indivíduos, nem utilizar esse critério
declinada por um juiz de uma vara de para discriminá-los. Mas esse argumento
família. O tratamento jurídico da homos- também está fundamentado na ideia de que
sexualidade nessa decisão judicial tem um a homossexualidade e heterossexualidade
interesse particular para a nossa análise, não têm o mesmo valor aos olhos do siste-
principalmente em função da retórica libe- ma jurídico. Enquanto a homossexualidade
ral nela presente. A desembargadora reite- é um comportamento sexual que não diz
rou diversas vezes durante o acórdão que a respeito aos órgãos estatais, sendo apenas
homossexualidade não deve ser objeto de uma questão relativa à consciência indi-
discriminação porque o princípio da igual- vidual, a heterossexualidade tem grande
dade e o princípio da dignidade humana interesse para o Direito porque possibilita
proíbem tratamento discriminatório contra a reprodução social. A homossexualidade
homossexuais. A magistrada argumentou é classificada como um mero ato de caráter
que o exercício da homossexualidade é privado, enquanto a heterossexualidade é
constitucionalmente protegido por vários um comportamento sexual altruísta porque
princípios constitucionais como a liberdade possibilita a reprodução social. Se homens e
individual e a dignidade humana. Mas ela mulheres homossexuais apenas congregam
afirmou também que o texto constitucional entre si para obter prazer sexual, homens
não veda completamente a utilização da ho- e mulheres heterossexuais contribuem
mossexualidade como tratamento diferen- para a constituição da própria sociedade.
ciado e a exclusão dos casais homossexuais Dessa forma, a heterossexualidade deve
da união estável pode ser citada como um ter expressão no espaço público enquanto
exemplo. As uniões homossexuais não po- a homossexualidade deve ficar confinada
dem ser classificadas como uniões estáveis ao espaço privado. Essa estratégia serve,
porque não existe nenhuma semelhança então, para negar o valor moral das uniões
entre elas. Aquela instituição tem como entre pessoas do mesmo sexo porque ape-
função principal a formação da família nas o sexo heterossexual pode contribuir
por meio da constituição da prole. Uniões para esse objetivo moral mais alto que é
homossexuais não podem visar o mesmo
19
Para uma análise exaustiva dos argumentos
18
TJDF, Conflito de Competência no empregados para negar a possibilidade do reconheci-
2007.00.2.010432-3, Órgão Julgador: 1a Câmara Cível, mento das uniões homoafetivas como uniões estáveis
Relatora: Diva Lucy Ibiapina, 12/11/2007. ver Adilson José Moreira (2010, p. 309-375).

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a reprodução social.20 Vemos então que a ção emocional e sexual de dois adultos.
rejeição do reconhecimento jurídico das A recusa do reconhecimento jurídico das
uniões homoafetivas concorre ainda para a uniões homoafetivas pode ser classificada
regulação da heterossexualidade também também como uma reação ao processo
em um outro plano: a exaltação moral da de privatização das relações familiares
família nuclear cria uma hiearquia também ocorrido nas últimas décadas. Os próprios
entre os relacionamentos entre homens e casais heterossexuais procuram construir
mulheres. As uniões heterossexuais que relacionamentos baseados em parâmetros
têm como objetivo a procriação são moral- distintos daqueles defendidos por vários
mente superiores às uniões heterossexuais magistrados brasileiros.21
que não estão fundadas na reprodução. A
exaltação moral da heterossexualidade em 4.4. Homossexualidade e espaço privado
relação à homossexualidade aparece como Outra característica da jurisprudência
um instrumento de regulação da atividade brasileira sobre as uniões homoafetivas
sexual heterossexual ao instituir a pater- concorre para a construção da esfera públi-
nidade e a maternidade como um destino ca como um espaço heterossexual: a carac-
natural de todos os homens e mulheres. terização das uniões homossexuais como
Essa estratégia empregada por muitos relacionamentos de natureza meramente
tribunais brasileiros pode ser interpretada obrigacional. Uma decisão do Tribunal de
como uma defesa da família patriarcal ao Justiça do Rio Grande do Norte ilustra esse
atribuir indiretamente um menor valor processo de forma paradigmática.22 Um
social às uniões que procuram a realiza-
21
A caracterização da família como um projeto
20
Ver nesse sentido TJRJ, Apelação Cível n o individual baseada no afeto e no companheirismo
2007.001.44569, Órgão Julgador: 17a Câmara Cível, que não inclui necessariamente a procriação encontra
Relator: Henrique Carlos de Andrade Figueira, ampla fundamentação na jurisprudência dos tribu-
28/11/2007 (afirmando que o estabelecimento da nais brasileiros. Ver, por exemplo, TRF-1a Região,
Agravo de Instrumento no 2003.01.00.000697-0/MG,
diversidade de sexos como requisito para o acesso
Órgão Julgador: 2a Turma, Relator: Tourinho Neto,
à união estável constitui uma simples opção do le-
29/04/2004 (chamando a atenção para o fato de que
gislador, opção que não está fundada em qualquer
o centro de gravidade das relações familiares situa-se
forma de preconceito, mas apenas no fato de que
modernamente na mútua assistência afetiva e que é
apenas as relações heterossexuais podem promover o
plenamente possível encontrar tal núcleo entre casais
interesse estatal na procriação); TJPB, Apelação Cível
homossexuais); TJRS, Apelação Cível 70005488812,
no 200.2004.018714-4/001, Órgão Julgador: 2a Câmara Órgão Julgador: 7a Câmara Cível, Relator: José Carlos
Cível, Relator: Antônio Elias de Queiroga, 05/09/2004 Teixeira Giorgis, 25/06/2003 (afirmando que o prin-
(afirmando que a Constituição Federal não protege os cípio da dignidade humana permite que o indivíduo
amantes, mas apenas a família formada pelo homem possa tomar decisões essenciais sobre a sua vida
e pela mulher que têm o objetivo de reproduzir. As tais como a escolha de uma parceiro íntimo); TJMG,
uniões homoafetivas podem ser consideradas ape- Apelação Cível no 1.0024.06.930324-6/001(1), Órgão
nas como sociedades de fato porque não podem ser Julgador: 7a Câmara Cível, Relator: Heloisa Combat,
equiparadas com as uniões heterossexuais); TJRN, 22/05/2007 (argumentando que os vínculos afetivos
Apelação Cível no 2005.004298-6, Órgão Julgador: 2a marcam as uniões familiares a partir da segunda
Câmara Cível, Relator: Cláudio Santos, 07/03/2006 metade do século passado, o que inclui as uniões for-
(reconhecendo as uniões homoafetivas como um madas entre pessoas de mesmo sexo); TJSP, Apelação
fato social que merece proteção jurídica na forma Cível no 552.574-44-00, Órgão Julgador: 8a Câmara de
de sociedade de fato porque a Constituição Federal Direito Privado, Caetano Lacastra, 12.03.2008 (decli-
considera apenas a família formada por um homem nando a possibilidade de considerar a preliminar de
e uma mulher como passível de proteção estatal); impossibilidade jurídica do pedido porque o julgador
TJSE, Comp. no 0100/2006, Órgão Julgador: Tribunal precisa considerar os vínculos pessoais de sentimento
Pleno, Relator: Gilson Gois Soares, 21.03.2007 (argu- e afeto familiar, não reduzidos a meras discussões
mentando que as uniões homoafetivas não podem ser patrimoniais).
reconhecidas como uniões estáveis, mas que o direito 22
Ver, por exemplo, TJRN, Apelação Cível no
reconhece o direito à orientação sexual e reconhece 2005.004298-6, Órgão Julgador: 2a Câmara Cível,
direitos patrimoniais decorrentes dessa união). Relator: Cláudio Santos, 07/03/2006.

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companheiro homossexual propôs uma direitos de caráter privado e individual
ação de reconhecimento de união estável porque tais relacionamentos estão baseados
homossexual perante uma vara de família no prazer pessoal. As uniões homossexuais
para que ele pudesse ter acesso a direitos não podem contribuir para o objetivo maior
sucessórios. O juiz de primeira instância que é a reprodução social. A união estável
julgou o pleito e reconheceu a existência pretende proteger apenas os indivíduos
de uma união estável entre o autor e o que fazem parte de uma união heterosse-
seu companheiro falecido. O Tribunal de xual, tipo de relacionamento que tem um
Justiça do Rio Grande do Norte reformou valor social maior porque está baseado na
a decisão sob o argumento de que as varas criação e proteção de uma comunidade
de família não têm jurisdição para resolver formada pelo homem, pela mulher e os
problemas decorrentes das uniões homoa- filhos. A dicotomia entre esfera pública e
fetivas. Aquele órgão julgador afirmou que esfera privada demonstra então como as
toda e qualquer noção de família pressupõe normas jurídicas brasileiras estão baseadas
a diversidade de sexos. Consequentemente, na superioridade moral da sexualidade
as varas de família não possuem competên- ao oferecer um grau maior de proteção às
cia para julgar o pleito porque a questão uniões heterossexuais.
tem um caráter meramente obrigacional. A classificação das uniões homoafetivas
A orientação sexual é uma liberdade indi- como relações de natureza patrimonial tem
vidual que pode ser submetida a restrição duas consequências. Em primeiro lugar, es-
de direito quando tal limitação está rela- sas decisões ignoram a natureza afetiva das
cionada a um interesse estatal legítimo, mesmas porque elas classificam as uniões
argumentou o magistrado. A definição da entre pessoas do mesmo sexo como relações
família como uma união entre um homem de caráter obrigacional. Tal caracterização
e uma mulher pela legislação brasileira in- serve como uma justificação do tratamen-
dica claramente que as uniões homoafetivas to diferenciado dos casais homossexuais
não podem ser classificadas como uniões porque a proteção e classificação de uniões
estáveis. Elas podem ser classificadas como de natureza obrigacional como entidades
sociedades de fato porque a diversidade de familiares não pode constituir um interesse
sexos não é um requisito para a regulação estatal que justifique a equiparação das
de relações obrigacionais. uniões homossexuais às relações heteros-
A caracterização dos relacionamentos sexuais.23 O Estado não deve fazer nada
homoafetivos como uniões que só podem
ter consequências jurídicas no plano obriga-
23
Ver, por exemplo, TJRS, Apelação Cível no
70009888017, Órgão Julgador: 7 a Câmara Cível,
cional decorre diretamente da sexualização Relator: Sergio Fernando de Vasconcelos Chaves,
da identidade homossexual. Esse processo 27/04/2005 (classificando a homossexualidade como
permite que os nossos tribunais regulem a uma expressão legítima da sexualidade humana,
liberdade privada de cidadãos homosse- mas afirmando que as uniões homoafetivas possam
ser reconhecidas como entidades familiares porque
xuais e heterossexuais de forma bastante essas uniões têm um caráter privado e patrimonial);
diversa. Possíveis direitos decorrentes das TJMG, Apelação Cível no 1.0024.05.817915-1/001, Ór-
uniões homoafetivas são vistos apenas gão Julgador: 8a Câmara Cível, Relator: Silvas Vieira,
como um direito de caráter individual 02/08/2007 (afirmando que a sociedade de fato entre
pessoas do mesmo sexo, possibilidade decorrente do
associado à liberdade de expressão sexual. direito da privacidade dos indivíduos, gera reper-
Isso significa que as instituições estatais cussões apenas obrigacionais, que não adentram a
devem permitir que as pessoas vivenciem a seara do direito de família); TJRJ, Apelação Cível no
2006.001.00660, Órgão Julgador: 10a Câmara Cível,
sua sexualidade no espaço privado apenas
Relator: Bernardo Moreira Garcez Neto, 26/09/2005
como uma forma de liberdade individual: (negando a possibilidade de reconhecimento de uma
os direitos das uniões homossexuais são união homoafetiva como união estável, mas afirmando

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para reconhecer as uniões homoafetivas à homossexualidade a partir da distinção
como instituições familiares porque esses entre espaço público e espaço privado. Se
relacionamentos só podem ser entendidos as uniões homoafetivas são apenas relações
como relações de caráter patrimonial. Isso de caráter obrigacional, elas devem ficar
significa que apenas as consequências de restritas ao espaço privado, sendo regula-
ordem econômica podem ser legalmente das pelas mesmas normas que tratam as
reguladas porque elas não implicam o relações societárias. As normas jurídicas
reconhecimento dos relacionamentos devem proteger apenas as relações hete-
homoafetivos como uniões conjugais.24 A rossexuais fundadas na procriação porque
possibilidade de classificação das uniões elas contribuem para o bem comum, sendo
homoafetivas como sociedades de fato responsáveis pela sobrevivência da própria
não decorre do reconhecimento do valor sociedade.
social dessas uniões, mas meramente de um
preceito de equidade segundo o qual uma 4.5. Heterossexualidade e nação
pessoa não deve enriquecer injustamente O processo de construção da heterosse-
às custas de outra. Temos aqui a constru- xualidade como uma forma de identidade
ção da heterossexualidade por oposição normativa completa-se com a correlação
que o patrimônio formado durante a existência de uma feita pelos tribunais brasileiros entre he-
sociedade de fato pode ser dividido entre as partes. O terossexualidade e nação. Essa estratégia
fato de as partes estarem envolvidas em uma relação pode ser classificada como um verdadei-
íntima não tem qualquer relevância para a lide em
ro catalizador dos processos analisados
questão porque o que interessa é a prova do interesse
em formar uma sociedade baseada na comunhão do anteriormente. Um acórdão do Tribunal
patrimônio comum); TJSP, Conflito de Competência de Justiça do Rio de Janeiro ilustra de
no 141-195-0/1-00, Órgão Julgador: Câmara Especial, forma exemplar essa estratégia discursiva
Relator: Canguçu de Almeida, 09/04/2007 (afirmando
empregada pelos nossos magistrados. 25
que não há possibilidade de atribuição de competência
às varas de família para discutir questões relativas às O caso em questão analisa o pedido de
uniões homoafetivas porque elas têm consequências reconhecimento de uma união homoafeti-
puramente econômicas). va como uma união estável. Como várias
24
Ver, por exemplo, STJ, Recurso Especial no
outras decisões presentes na jurisprudência
648.763 – RS, Órgão Julgador: 4a Turma, Relator: Cesar
Asfor Rocha, DJ 16/04/2007 (negando a possibilidade brasileira sobre as uniões homoafetivas, o
de reconhecimento de uma união homoafetiva como acórdão teve início com a afirmação de que
união estável porque essas uniões não podem ser a homossexualidade não deve ser objeto de
caracterizadas como entidades familiares, restando a
preconceito ou discriminação. Mas esse tra-
possibilidade de proteção jurídica na forma de socie-
dade de fato); TJRJ, Apelação Cível no 2006.001.00660, tamento aparentemente liberal apenas mas-
Órgão Julgador: 10a Câmara Cível, Relator: Bernardo cara a caracterização da homossexualidade
Moreira Garcez Neto, 16.01.2006 (afirmando que as como algo inferior à heterossexualidade. O
relações homossexuais geram apenas consequências
magistrado afirmou que o tratamento de-
econômicas porque elas não podem ser reconhecidas
como entidades familiares); TJSP, Agravo de Instru- sigual dos casos desiguais não caracteriza
mento no 476.923/4-00, Órgão Julgador: 9a Câmara de uma violação do princípio da igualdade.
Direito Privado, Relator: Grava Brazil, 28/11/2006 Ele chamou atenção para o fato de que nem
(afirmando que a união estável entre pessoas do mes-
todos os direitos da personalidade decor-
mo sexo não foi acolhida nem pela Constituição nem
pela legislação inferior em função do seu caráter pu- rentes da dignidade humana são imunes
ramente obrigacional); TJSE, Conflito de Competência a restrições estatais. O direito à liberdade
no 0100/2006, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Relator: individual e à própria vida são certamente
Gilson Gois Soares, 21/03/2007 (argumentando que
indisponíveis, mas existem direitos peri-
as uniões homoafetivas não podem ser reconhecidas
como uniões estáveis, mas que o direito reconhece o 25
TJRJ, Apelação Cível no 2006.001.59548, Órgão
direito à orientação sexual e reconhece direitos patri- Julgador: 11a Câmara Cível, Relator: Roberto Guima-
moniais decorrentes dessa união). rães, 22/11/2007.

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féricos que sempre admitem limitações. A Como dissemos no início desta sessão, o
orientação sexual é uma liberdade indivi- processo de construção jurídica da heteros-
dual que pode ser submetida a restrições sexualidade culmina com a correlação entre
quando tal limitação está relacionada a um a identidade heterossexual e o conceito de
interesse estatal legítimo. A definição da nação. A definição legal da união estável
família como uma união entre um homem serve para rejeitar demandas de acesso
e uma mulher por todas as constituições dos casais homossexuais à união estável
brasileiras promulgadas no último século porque essa instituição é inerentemente
indica claramente que as uniões homoa- heterossexual. Homossexuais não devem
fetivas não podem ser classificadas como ter acesso a essa instituição porque eles
uniões estáveis. Segundo o entendimento não podem constituir uma família e essa
do magistrado, o objetivo da união estável instituição está fundamentada na possibi-
não se restringe à proteção das pessoas lidade de reprodução biológica. Embora a
envolvidas em uma relação adulta, mas homossexualidade não deva ser objeto de
visa à formação de descendência e dos discriminação, ela é um comportamento
laços de parentesco. Esse objetivo deve ser sexual que não tem a mesma relevância
visto como um interesse estatal legítimo social e moral da heterossexualidade,
porque dele depende a própria existência porque não contribui para a reprodução
da nação brasileira. A definição da família social. Apenas a união entre um homem e
como uma união entre um homem e uma uma mulher deve fazer parte da esfera pú-
mulher não aparece apenas como dado blica porque dela depende a reprodução e
fundamental para a interpretação da norma estabilidade social. Ao reconhecer a família
que define a união estável. Uma análise do formada pela união do homem e da mu-
texto constitucional demonstra que a união lher como a base da sociedade, o discurso
adulta entre um homem e uma mulher jurídico estabelece uma relação necessária
pode ser vista como o fundamento de toda entre heterossexualidade e nação, estabe-
a estrutura social. Segundo o entendimento lecendo assim a heterossexualidade como
do desembargador, a família forma a base uma forma de identidade normativa. Os
da nação brasileira, merecendo proteção tribunais utilizam essa argumentação para
especial das instituições estatais. A família afastar a ideia de que a exclusão dos casais
não constitui apenas a base moral da socie-
ambiente ideal para a reprodução social, constituindo
dade: ela também fundamenta as suas ba- a base da sociedade brasileira); TJRS, Apelação Cível
ses econômicas. Reafirmando que a união no 70009888017, Órgão Julgador: 7a Câmara Cível,
estável pressupõe necessariamente uma Relator: Sergio Fernando de Vasconcelos Chaves,
união entre um homem e uma mulher, o 27/04/2005 (argumentando que as normas que re-
gulam a união estável têm como objetivo principal a
magistrado continuou dizendo que o texto proteção da família e não os relacionamentos afetivos
constitucional não pretende proteger as entre pessoas adultas); TJDF, Conflito de Competên-
uniões amorosas sejam elas heterossexuais cia no 2007.00.2.010432-3, Órgão Julgador: 1a Câmara
Cível, Relatora: Diva Lucy Ibiapina, 12/11/2007
ou homossexuais. A Constituição Federal (negando a possibilidade de equiparação das uniões
pretende proteger a família como uma homossexuais às uniões heterossexuais porque a ins-
unidade de reprodução biológica, condição tituição da união estável tem como função principal
essencial para a reprodução e manutenção a proteção da instituição familiar e não os relaciona-
mentos afetivos); TJRN, Conflito de Competência no
da ordem social e da nação brasileira.26 02.001241-1, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Relator:
Caio Alencar, 21/08/2002 (afirmando que as varas de
26
Ver nesse mesmo sentido TJPB, Apelação Cível família não têm competência para julgar os problemas
no 200.2004.018714-4/001, Órgão Julgador: 2a Câmara decorrentes das uniões homoafetivas porque as nor-
Cível, Relator: Antônio Elias de Queiroga, 05/09/2004 mas constitucionais reconhecem apenas a união entre
(classificando a família como uma instituição na qual o homem e a mulher fundada na procriação como
o homem e a mulher se ajustam para construir um objeto de proteção legal).

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homossexuais da união estável constitui casais homossexuais não podem procriar,
uma violação do princípio da igualdade. as relações heterossexuais que procuram
Não se pode veicular tal hipótese porque a apenas a gratificação sexual ou emocional
homossexualidade e a heterossexualidade, dos parceiros também não podem ser com-
embora expressões comuns da sexualidade paradas àquelas uniões heterossexuais que
humana, são moralmente e socialmente têm a procriação como objetivo principal.
distintas.27 Ao afirmar que as normas constitucionais
Devemos prestar muita atenção ao fato protegem apenas as uniões heterossexuais
de que esses tribunais não fazem referência que têm como objetivo a procriação, os
a qualquer forma de união heterossexual. tribunais brasileiros legitimam uma forma
Os tribunais afirmam reiteradamente que de organização social baseada na rígida
as normas constitucionais não pretendem separação de papéis sociais entre homens
proteger uniões que têm como objetivo e mulheres. Tal posição concorre para a
apenas o envolvimento emocional entre reprodução do poder social masculino
um homem e uma mulher. Eles sempre ao referendar uma ordem social baseada
afirmam que o texto constitucional protege na ideia de que homens e mulheres ocu-
aquela forma de união adulta entre um ho- pam lugares sociais naturais. Classificar
mem e uma mulher que têm como objetivo a família como uma célula de reprodução
a constituição da família, ou seja, a repro- social significa perpetuar uma ideia que
dução. Vemos aqui como o patriarcalismo impõe várias restrições ao exercício da
está claramente presente no discurso dos sexualidade feminina porque classifica
nossos tribunais: apenas aquelas famílias a maternidade como um destino social
fundadas na distribuição tradicional de pa- natural das mulheres, impondo o ônus da
péis sociais devem ter especial proteção do criação dos filhos prioritariamente a elas.
Estado. As uniões de casais voltadas apenas Apesar da defesa do livre exercício da se-
para a realização pessoal não têm o mesmo xualidade defendida por esses tribunais,
valor moral daquelas entidades familiares a sexualidade só adquire seu pleno valor
formadas pelo pai, pela mãe e os filhos. Se a moral quando ligada à reprodução. Isso
homossexualidade não tem o mesmo valor significa que o livre exercício da sexuali-
moral que a heterossexualidade porque dade não deve ter o mesmo valor moral ou
jurídico do que o comportamento sexual
27
Alguns tribunais brasileiros explicitamente que leva à reprodução. Podemos classificar
consideram os relacionamentos homossexuais uma essa posição como uma reação a processos
anormalidade, não devendo as instituições estatais
conferir qualquer tipo de proteção jurídica a essas
sociais responsáveis pela transformação
uniões. Ver, por exemplo, TJSP, Apelação Cível no da família presentes no mundo contempo-
425.148-5/2-00, Órgão Julgador: 5a Câmara de Direito râneo. Procura-se defender uma formação
Privado, Relator: Alberto Zvirblis, 05.10.2006 (negan- familiar fortemente patriarcal para rejeitar
do a possibilidade de extensão de direitos previdenci-
ários a casais homossexuais sob o argumento de que
a possibilidade de proteção jurídica de
qualquer projeto equiparando uniões entre lésbicas entidades familiares alternativas.28
e pederastas às uniões heterossexuais são imorais);
TJPB, Apelação Cível no 200.2004.018714-4/001, Órgão 28
Inúmeros tribunais brasileiros têm recusado esse
Julgador: 2a Câmara Cível, Relator: Antônio Elias de entendimento, adotando a posição de que a família
Queiroga, 08/04/2008 (classificando as uniões homo- não pode ser mais compreendida como uma unida-
afetivas como um “esquisitismo extremo que provoca de de reprodução biológica. Ver, por exemplo, STF,
a inversão de valores morais e espirituais”); TJRJ, Ação Direta de Inconstitucionalidade 3300 MC/DF,
Apelação Cível no 1992. 001.03309, Órgão Julgador: Relator: Celso de Mello, DJ 09/02/2006 (afirmando
8a Câmara Cível, Relator: Celso Guedes, 24/11/1992 que a família não se define exclusivamente em razão
(afirmando que o concubinato entre dois homens é do vínculo entre um homem e uma mulher, também o
um “exdruxularia” que não pode ser protegida pelo convívio de pessoas do mesmo sexo ligadas por laços
sistema jurídico). afetivos cabe ser reconhecido como entidade familiar);

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5. Conclusão também uma série de parâmetros para
a vivência da heterossexualidade. Se os
Pudemos analisar neste artigo as dife-
relacionamentos homossexuais devem ser
rentes estratégias utilizadas pelos nossos
proscritos porque eles violam os papéis so-
tribunais para estabelecer a heterossexu-
cialmente atribuídos a homens e mulheres,
alidade como uma forma de identidade
os relacionamentos heterossexuais devem
normativa. A instituição da heterossexu-
ter como fundamento a procriação. A
alidade como um requisito para o acesso
atribuição de uma superioridade moral às
à união estável está fundamentada na
uniões que têm como objetivo a reprodução
construção do sexo como um dado natural,
estabelece uma hierarquia entre relaciona-
devendo o sistema jurídico apenas regular
mentos heterossexuais e homossexuais,
o exercício do mesmo pelas normas que
como também entre os relacionamentos
regulam os relacionamentos adultos. Os
heterossexuais. Os tribunais brasileiros ins-
tribunais que adotam essa posição partem
tituem assim a maternidade e a paternidade
do pressuposto de que a sociedade está
como um destino natural de todos os ho-
fundada na existência de papéis sexuais
mens e de todas as mulheres heterossexu-
naturais, o que possibilita a construção
ais, processo de fundamental importância
ideológica da procriação como uma função
para a construção da heterossexualidade
natural da unidade familiar. Ao construir a
como uma identidade normativa.
heterossexualidade como uma norma social
supostamente fundada em uma ordem
biológica, esses órgãos julgadores necessa-
riamente excluem as uniões homossexuais Referências
como relacionamentos legítimos. Mais do
AMATO, Salvatore. Il soggetto e il soggetto di diritto.
que proscrever as uniões entre pessoas do
Torino: Giapichelli, 1990.
mesmo sexo do rol de entidades familiares,
o discurso jurídico sobre a heterossexuali- ATTAL-GALY, Yael. Droits de l’homme et categories
d’individus. Paris: L.G.D.J., 2003.
dade permite a perpetuação de uma ordem
patriarcal fundamentada na hierarquia BURDEAU, Georges. Droit Constitutionel et institutions
entre os gêneros. As diferentes estratégias politiques. Paris: L.G.D.J., 1980.
utilizadas pelos nossos tribunais para ne- ESKRIDGE, William. Gaylaw: challenging the apar-
gar a possibilidade do reconhecimento das theid of the closet. Cambridge: Harvard University
uniões como uniões estáveis prescrevem Press, 2002.
DAVIES, Margareth. Taking the inside out: sex and
TRF-2a Região, Apelação Cível no 2002.51.01.500478-3, gender in the legal subject. In: NAFFINE, Ngaire;
Órgão Julgador: 4a Turma, Relator: Fernando Mar- OWENS, Rosemary (Ed.). Sexing the subject of law.
ques, 02/06/2004 (afirmando que o direito de família Londres: Sweet & Maxwell, 1997.
recebe o influxo do direito constitucional, sendo que
o princípio da igualdade restou por fazer verdadeira HEARSCHER. Filosofia dos direitos do homem. Lisboa:
faxina em discriminações que existiam no campo das Instituto Piaget, 1993.
relações familiares) TRF-4a Região, Apelação Cível no
170491/RS, Órgão Julgador: 3a Turma, Relator: Marga JOHNSON, Paul. Love, society and heterosexuality.
Inge Barth Tessler, DJU 24/11/1998 (afirmando que a Londres: Routledge, 2005.
extensão de proteção legal às relações livres decorre KATZ, Jonathan Ned. A inveção da heterossexualidade.
do reconhecimento da afetividade como elemento
Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
central das uniões matrimoniais); TJMG, Apelação
Cível no 1.0024.06.930324-6/001(1), Órgão Julgador: 7a KENNEDY, Duncan. A critique of adjudication. Fin de
Câmara Cível, Relator: Heloisa Combat, 22/05/2007 siécle. Cambridge: Harvard University Press, 1998.
(argumentando que os vínculos afetivos marcam as
uniões familiares a partir da segunda metade do século KOPPELMAN, Andrew. Why discrimination against
passado, o que inclui as uniões formadas entre pessoas gays and lesbians is sex discrimination. New York
de mesmo sexo). University Law Review, v. 69, p. 197-267, 1994.

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