Você está na página 1de 7

14/08/2019 Princípios de Yogyakarta: proteção e direitos LGBT - JOTA Info

ARTIGO

Princípios de Yogyakarta: proteção e direitos LGBT


Compreensão dos princípios permite que juristas, legisladores e outros possam utilizá-los para lutar por um
tratamento justo

PAMELA MICHELENA DE MARCHI GHERINI

30/10/2018 11:00

Prambanan, Yogyakarta. Imagem: Pixabay

O Direito Internacional, assim como o Direito Brasileiro, possui poucas ferramentas


para lidar com questões jurídicas inerentes à comunidade LGBT. A omissão é tanta
que alguns autores chegam a utilizar a expressão “Direito Internacional
Monocromático” para se referir ao fato de que a ordem internacional não se
manifesta expressamente sobre a proteção de pessoas LGBT sem nem vedar
claramente a discriminação contra este grupo que é criminalizado, perseguido,
violentado e morto em diversos países do mundo.1

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/principios-de-yogyakarta-protecao-e-direitos-lgbt-30102018 1/7
14/08/2019 Princípios de Yogyakarta: proteção e direitos LGBT - JOTA Info

Um arcabouço normativo em nível internacional pode contribuir de forma


importante para a superação de preconceitos e opressões. Tanto é o caso que as
políticas públicas de combate à violência contra a mulher foram intensi cadas após
o Brasil se tornar signatário de diversos tratados sobre o tema, além da condenação
sofrida no caso paradigmático de Maria da Penha contra o Brasil pela omissão
deste em processar e punir o ex-marido da vítima por violência doméstica e dupla
tentativa de homicídio.

+JOTA: Faça o cadastro e leia até dez conteúdos de graça por mês!

Com isso em mente, este artigo visa fazer uma rápida análise sobre o que são, e a
importância dos “Princípios de Yogyakarta”, um dos instrumentos mais importantes
do ordenamento internacional para proteção com base em orientação sexual,
identidade de gênero, expressão de gênero e características sexuais, cujo acrônimo
mais utilizado é, em inglês, “SOGIESC”.

O Direito e outras ciências como a sociologia e a loso a recentemente adotaram


esta nova terminologia para se referir à diversidade do ser humano. O acrônimo
signi ca “Sexual Orientation, Gender Identity and Expression, and Sexual
Characteristics” e é bastante usado no meio acadêmico e entre organizações não
governamentais e ativistas em todo o mundo.

Contudo, tal terminologia possui quase nenhuma menção na literatura nacional. Ela
permite descrever melhor os fenômenos ligados à sexualidade, identidade,
características biológicas e comportamentos que são inerentes aos seres humanos,
mas que por expectativas e padrões sociais modernos acabam por se restringir a
noções binárias (apesar da historiogra a já ter registrado a pluralidade de
manifestações no mundo em várias épocas diferentes, refutando a ideia de que
gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e outros só existem em decorrência da
sociedade em que vivemos hoje).

Em essência, quando nos referimos ao termo LGBT (e suas variações como LGBTQ,
LGBTI+ etc.) ou SOGIESC (e suas variações como SOGI ou SOGIE) nos referimos
coletivamente ao grupo de indivíduos que não conformam com padrões sociais
estabelecidos de gênero, orientação sexual, expressão etc. A principal diferença é
que o primeiro grupo de acrônimos pretende trazer no próprio nome as pessoas
especí cas que fazem parte da comunidade como lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais, intersexo, queer dentre tantas outras. Por outro lado, quando
usamos o termo SOGIESC e suas variações reconhecemos que existem várias
possibilidades tanto de orientação sexual como de identidade de gênero, expressão
e características sexuais, não nomeando as pessoas especi camente, mas sim, as

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/principios-de-yogyakarta-protecao-e-direitos-lgbt-30102018 2/7
14/08/2019 Princípios de Yogyakarta: proteção e direitos LGBT - JOTA Info

categorias às quais pertencem. Por exemplo: gays, lésbicas, bissexuais e outros


pertencem à categoria de orientação sexual enquanto transexuais e outros
pertencem à categoria de identidade de gênero e intersexo à categoria de
características sexuais. Isso permite uma melhor precisão, pois evita ser excludente,
principalmente quando se fala em garantir direitos a grupos minoritários cujos
direitos são repetidamente desrespeitados.

Com base neste raciocínio, toda e qualquer pessoa pode ser enquadrada conforme
sua orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero e características
sexuais. Contudo, algumas pertencem às chamadas minorias SOGIESC, que são os
indivíduos que não conformam com os padrões sociais estabelecidos, seja por
serem atraídos por pessoas do mesmo gênero, por se identi carem de forma
diversa do seu sexo biológico ou até por terem nascido com características sexuais
que não se encaixam nos padrões médicos do que é masculino ou feminino, como
no caso das pessoas intersexo.

Assim, até mesmo pessoas que conformam com tais padrões sociais conseguem
ser descritas de acordo com esta classi cação como, por exemplo, indivíduos cis
gênero, heterossexuais e endosexo. A única diferença é que eles não pertencem a
uma minoria SOGIESC e por isso não encaram barreiras no que se refere a
casamento, constituir família, ter o nome social reconhecido e ser tratado por ele,
violência com base em discriminação e assim por diante. Todos são destinatários
das mesmas normas de direitos humanos, mas por diversas razões algumas
minorias têm maior di culdade de acessar tais direitos e nestes momentos os
Princípios Yogyakarta são essencialmente úteis.

Como surgiram os Princípios Yogyakarta e para que


servem
Entendendo que todos os seres humanos estão protegidos pelos instrumentos
internacionais de direitos humanos, mas que algumas minorias estão mais
vulneráveis a violações, especialistas de todo o mundo se uniram para discutir e
desenvolver princípios e obrigações a serem seguidas pelos Estados relacionados à
aplicação de normas de direitos humanos à orientação sexual e identidade de
gênero. Especialistas de 25 países se uniram para isso na Universidade de Gadjah
Mada na cidade de Yogyakarta na Indonésia em novembro de 2006.

Os Princípios de Yogyakarta não são legalmente vinculantes para os Estados como


um tratado seria, contudo eles pretendem ser uma rea rmação do direito
internacional vigente (este sim vinculante).2 Apesar disso, os princípios vêm sendo
amplamente utilizados em âmbito internacional e doméstico, inspirando a criação
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/principios-de-yogyakarta-protecao-e-direitos-lgbt-30102018 3/7
14/08/2019 Princípios de Yogyakarta: proteção e direitos LGBT - JOTA Info

de políticas públicas e até fundamentando decisões judiciais em vários países do


mundo, inclusive no Brasil3.

No que se refere à utilização destes princípios em litígios, é possível levantar


diversos casos em que foram discutidos perante o judiciário brasileiro valendo
ressaltar que foram trazidos inclusive perante o Supremo Tribunal Federal sendo
reconhecido como fonte por esta corte:

Ementa: União Civil entre pessoas do mesmo sexo – Alta relevância social e jurídico-
constitucional da questão pertinente às uniões homoafetivas – Legitimidade
Constitucional do reconhecimento e quali cação da união estável homoafetiva
como entidade familiar: Posição consagrada na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal (ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF) – O afeto tem valor jurídico impregnado de
Natureza Constitucional: A valorização desse novo paradigma como núcleo
conformador do conceito de família – O direito à busca da felicidade, verdadeiro
postulado constitucional implícito e expressão de uma ideia-força que deriva do
princípio da essencial dignidade da pessoa humana – Alguns precedentes do
Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte Americana sobre o direito
fundamental à busca pela felicidade – Princípios de Yogyakarta (2006): direito de
qualquer pessoa de constituir família, independente de sua orientação sexual ou
identidade de gênero – Direito do companheiro, na união estável homoafetiva, à
percepção do benefício da pensão por morte de seu parceiro, desde que observados
os requisitos do art. 1.723 do Código Civil – O art. 226, §3º, da Lei Fundamental
constitui típica norma de inclusão […] (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/
RE 477.554 AgR/ Relator Ministro Celso de Mello/ Julgado em 16.08.2011/
Publicado no DJe-164/ Divulgado em 25.08.2011/ Publicado em 26.08.2011).

Os primeiros 29 princípios que decorreram da reunião de novembro de 2006


tratavam especi camente sobre a aplicação de normas de direitos humanos
relativos a orientação sexual e identidade de gênero (ou “SOGI”, conforme acrônimo
em inglês). Mesmo sem mencionar as categorias de expressão de gênero e
características sexuais, o documento proporcionou proteções importantes para
estes grupos, como pelo princípio n. 18 que se refere à proteção de abusos médicos.

Cita-se este princípio em especial porque trata-se de uma das principais demandas
da população intersexo, já que sofrem no mundo todo com a imposição de
procedimentos cirúrgicos desde a infância, com o intuito de “normalizar” suas
características sexuais para conformarem ao padrão estabelecido pela medicina.

Mesmo que o corpo da pessoa intersexo não represente perigo à sua própria saúde,
alguns membros da comunidade médica orientam pela realização de procedimentos

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/principios-de-yogyakarta-protecao-e-direitos-lgbt-30102018 4/7
14/08/2019 Princípios de Yogyakarta: proteção e direitos LGBT - JOTA Info

estéticos irreversíveis, na maior parte das vezes, em indivíduos com idade que não
podem consentir implicando que vivam para sempre com as modi cações feitas em
seus corpos.4

Isso se traduz, inclusive, na Resolução do Conselho Federal de Medicina n.


1.664/2003 que orienta médicos a realizarem tais procedimentos o mais rápido
possível, classi cando o nascimento de uma criança intersexo como uma “uma
urgência biológica e social”.

O corpo de uma pessoa intersexo pode possuir genitálias ou gônadas femininas e


masculinas e a decisão do médico em remover uma delas implica numa imposição
irreversível de quem esta pessoa será para o resto de sua vida. Em muitos casos, ela
é submetida ao procedimento enquanto bebê e cresce se identi cando com o
gênero oposto ao que lhe foi “designado” pelo procedimento.

Por estas e outras razões, em declaração conjunta com especialistas independentes


da Organização das Nações Unidas e com o Comitê dos Direitos da Criança, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos fez advertência de que minorias
SOGIESC podem ser submetidas a “terapias” prejudiciais, contrárias à ética,
carecendo de fundamento cientí co, podendo constituir uma forma de tortura5.

O Conselho Federal de Medicina brasileiro ainda adota um posicionalmente


frontalmente contrário a tais orientações. O Chile, por outro lado, é um dos países
pioneiros a proibir este tipo de intervenção cirúrgica em crianças intersexo,
mostrando que é possível fazer regulamentações mais inclusivas e menos violentas,
compreendendo a diversidade que é inerente aos seres humanos e valorizando a
identidade de cada um.

Princípio Yogyakarta 10+


Reconhecendo a necessidade de atualizar e rever os princípios com base no
desenvolvimento dos direitos humanos e legitimar as experiências de outras
minorias, em setembro de 2017, os Princípios de Yogyakarta foram atualizados
incluindo 10 novos princípios e 111 obrigações que os Estados devem observar.
Além disso, o escopo foi revisitado, deixando de olhar apenas para a proteção de
direitos SOGI e passando a abranger os direitos SOGIESC, portanto incluindo
expressão de gênero e características sexuais em seu recorte de proteção. Alguns
dos novos princípios decorrentes desta atualização são o direito a proteção estatal,
direito a reconhecimento legal e o direito a integridade física e mental.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/principios-de-yogyakarta-protecao-e-direitos-lgbt-30102018 5/7
14/08/2019 Princípios de Yogyakarta: proteção e direitos LGBT - JOTA Info

A adequada compreensão dos Princípios de Yogyakarta, de sua importância e suas


amplas possibilidades de utilização permite que juristas, legisladores, funcionários
públicos e outros possam utilizá-los para lutar por um tratamento justo e igualitário
das minorias SOGIESC, nelas reconhecendo a materialização da diversidade
humana e o seu potencial, rejeitando o preconceito e a opressão.

———————————————

1฀ LELIS, Rafael Carrano; GALIL, Gabriel Coutinho. Direito Internacional

Monocromático: previsão e aplicação dos direitos LGBTI na ordem internacional.


Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 15, n. 1, 2018 p.277-298. Disponível em: <
https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/rdi/article/view/5087/pdf >.
Acesso 04 out. 2018.

2฀ ARC INTERNATIONAL; THE INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION AND THE

INTERNATIONAL LESBIAN, GAY, BISEXUAL, TRANS AND INTERSEX ASSOCIATION


(ILGA). Sexual Orientation, Gender Identity and Expression, and Sex Characteristics at
the Universal Periodic Review. Ed. Novembro, 2018. Disponível em: <
https://ilga.org/downloads/SOGIESC_at_UPR_report.pdf >. Acesso 09 out. 2018.

3฀ ARC INTERNATIONAL; THE INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS (ICJ); et

al. Activist’s Guide to The Yogyakarta Principles on the Application of International


Human Rights Law in Relation to Sexual Orientation and Gender Identity. Disponível
em: <http://ypinaction.org/wp-
content/uploads/2016/10/Activists_Guide_English_nov_14_2010.pdf >. Acesso 09
out. 2018.

4฀ INTERSEX HUMAN RIGHTS AUSTRALIA (IHRA). What is intersex? Disponível em:

< https://ihra.org.au/18106/what-is-intersex/ >. Acesso 09 out. 2018.

5฀ COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Violência contra

Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas Américas. Ed. novembro
2015. Disponível em: <
http://www.oas.org/pt/cidh/docs/pdf/violenciapessoaslgbti.pdf >. Acesso 10 out.
2018.

PAMELA MICHELENA DE MARCHI GHERINI – Advogada e pesquisadora pelo Escritório Baptista Luz
Advogados e Formada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/principios-de-yogyakarta-protecao-e-direitos-lgbt-30102018 6/7
14/08/2019 Princípios de Yogyakarta: proteção e direitos LGBT - JOTA Info

Os artigos publicados pelo JOTA não re etem necessariamente a opinião do site. Os textos
buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a
pluralidade de ideias.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/principios-de-yogyakarta-protecao-e-direitos-lgbt-30102018 7/7

Você também pode gostar