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e-de-genero-no-brasil-avancos-ee
Acesso em 20/07/2019
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REPRODUÇÃO | ÁLVARO KASSAB
"Art. II. Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção
distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, opinião, ou de
outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição. Art.
III – Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. (...) Art. V - Ninguém será
submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. (...) Art. VII -
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.
Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação
discriminação que viole a presente
Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Os meses de maio e de junho incluem datas importantes para os direitos humanos relativos à
diversidade sexual e de gênero. Remetem a uma história de lutas contra a criminalização e a
patologização de condutas, e pelo efetivo combate à discriminação e a violações de direitos
fundamentais, que se estende desde pelo menos o final do século XIX.
A própria criação da categoria “homossexual” e sua identificação como uma “condição” respondia a
necessidades dos movimentos que, na Europa do final do século XIX, procuravam enfrentar leis que
consideravam crime as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Ao longo da segunda metade do
século XX, contudo, dois processos se desenvolvem paralelamente. O primeiro diz respeito à separação
entre a orientação do desejo sexual e identidade de gênero. O segundo tem relação com o processo de
retirada da homossexualidade e, recentemente, da transexualidade dos manuais e classificações
internacionais de diagnósticos e de doenças.
O 17 de maio, Dia Internacional contra a Homofobia relembra a data em que, no ano de 1990, a
Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) aprovou e oficializou a retirada do código
302.0 – “homossexualismo” – da CID (Classificação Internacional de Doenças), e declarou oficialmente
que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio”. A Associação Americana de Psiquiatria
já havia retirado a palavra da lista de transtornos mentais ou emocionais em 1973.
O dia 18 de junho de 2018 também entrará para essa história: após mais de dez anos de elaboração, a
OMS divulgou a nova versão da CID – a CID-11 – que será apresentada à Assembleia Mundial de Saúde
em maio de 2019 e entrará em vigor no início de 2022. Nessa versão, a transexualidade deixa de ser
considerada um “transtorno” para ser classificada como uma "condição", a "incongruência de gênero" -
"uma incongruência marcada e persistente entre o gênero que um indivíduo experimenta e o sexo ao
qual ele foi designado". Além disso, deixa de estar incluída na lista de "distúrbios mentais" e passa a
integrar uma nova categoria - "condições relacionadas à saúde sexual". [I]
Apesar dessa história e da Declaração Universal dos Direitos Humanos ser explícita quanto à
universalidade desses direitos, relatores das Nações Unidas e especialistas internacionais em direitos
humanos pronunciaram-se recentemente lembrando que em 72 países ainda existem leis que
criminalizam relações homossexuais e expressões de gênero e que apenas um terço das nações contam
com legislação para proteger indivíduos da discriminação por orientação sexual e cerca de 10% têm
mecanismos legislativos para proteger da discriminação por identidade de gênero.
Segundo os especialistas, “a discriminação contra as pessoas LGBT alimenta a espiral de violência a que
elas estão sujeitas diariamente e cria um ambiente favorável à sua exclusão de oportunidades em todas
as facetas da vida, incluindo educação e participação política e cívica, contribuindo para a instabilidade
econômica, a falta de moradia e saúde debilitada”. [IV] Este momento, no qual se celebra os 70 anos da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e 40 anos do movimento brasileiro em favor dos direitos de
LGBT, convida a um balanço.
No Brasil, as primeiras ações do nascente movimento homossexual, no final dos anos 1970, incluíram
certificar-se do direito à associação com fins de defesa dos direitos desses sujeitos e a mobilização de
ampla campanha que levou ao posicionamento de diversas associações científicas e conselhos
profissionais, inclusive do Conselho Federal de Medicina, em favor da não classificação da
homossexualidade como condição patológica. Demandas por legislação antidiscriminatória, por
reconhecimento de uniões homoafetivas e por políticas de segurança pública e de educação integram a
agenda do movimento brasileiro desde seu surgimento.
Uma primeira dificuldade ao se fazer um balanço dos direitos de LGBT decorre do modo como se produz
conhecimento sobre esses sujeitos. Diferentemente de outros recortes populacionais, há poucas
estatísticas de maior abrangência disponíveis e avaliação de indicadores divulgados. Isso se deve à
dispersão dessa população, ao caráter sensível da informação sobre a orientação sexual ou identidade
de gênero dos sujeitos, mas também ao precário reconhecimento dos mesmos como sujeitos de direitos
e ao desprestígio que até pouco tempo poderia atingir pesquisadores envolvidos com a temática.
Os dados divulgados mais regularmente dizem respeito à quantidade de países que pune ou protege
direitos de LGBT. Outros dados comparativos entre países são geralmente produzidos por organizações
ativistas transnacionais e referem-se majoritariamente a “crimes de ódio” e a casos tratados no âmbito
das organizações de direitos humanos em nível internacional. Embora as violações a diretos humanos
sejam bem conhecidas e divulgadas pela mídia, a escassez de dados quantitativos dificulta a produção e
a avaliação do impacto de políticas públicas.
A maior parte da produção científica brasileira sobre LGBT focaliza o HIV e aids, único tema sobre o qual
há produção sistemática e regular de dados epidemiológicos. O segundo maior tema é o da
discriminação e violência, que aparece articulado à vulnerabilidade individual e social para a infecção
pelo HIV, mas também para outros agravos à saúde, incluindo depressão, ideação e tentativas de
suicídio, abuso de substâncias e, ainda, dificuldades de acesso a cuidados e serviços de saúde. [V]
No início dos anos 2010, pesquisadores e ativistas LGBT chamavam atenção para as dificuldades de
converter políticas públicas em legislação [X] e para o escopo efetivamente alcançado pelas políticas
direcionadas a LGBT, vistas como “fragmentárias, pontuais e periféricas” [XI]. As tentativas pela via do
Legislativo em âmbito federal têm sido malsucedidas, vide a proposta de inserir a não discriminação por
“orientação sexual” na Constituição Federal de 1988 e outros pleitos que atravessaram as décadas de
1990 e 2000 e acabaram arquivados, como a definição de crimes resultantes de discriminação ou
preconceito relativos a orientação sexual e identidade de gênero ou o reconhecimento legal das uniões
entre pessoas de mesmo sexo.
Avanços importantes se deram pela via do Judiciário. Em 2011, houve o reconhecimento pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) da união homoafetiva estável como entidade familiar, garantindo a casais de
mesmo sexo direitos até então restritos a casais heterossexuais, como herança, benefícios da
previdência e inclusão como dependente em plano de saúde. Mais recentemente, em março deste ano,
o STF entendeu ser possível a alteração de prenome e gênero no registro civil mediante averbação no
registro original, independentemente de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo e sem
necessidade de autorização judicial.
Os avanços na proteção aos direitos humanos de LGBT observados recentemente no Brasil estiveram
ancorados num contexto de reconhecimento de direitos sexuais e reprodutivos e de combate à
intolerância no âmbito das Nações Unidas, mas fragilizam-se sensivelmente ao sabor dos processos
transnacionais de politização reativa das moralidades e do campo religioso.
Embora estejamos acolhendo nas universidades públicas a primeira geração de travestis e transexuais
que têm a oportunidade de passar de objetos a sujeitos nos processos de produção do conhecimento,
os efeitos de tal conjuntura política já se fazem sentir no único aspecto da saúde de LGBT monitorado
sistematicamente ao longo do tempo no Brasil, os dados sobre o HIV e aids. Atualmente, a prevalência
de HIV entre “homens que fazem sexo com homens” com 25 anos ou mais é de 19,8% e de 9,4% entre
os de 18 a 24 anos, contra 0,6% na população em geral, e registra-se incremento de 32,9% na proporção
de casos de aids entre homossexuais e bissexuais na última década. [XIV]
Apesar da importância da divulgação da mudanças inseridas na CID-11 e do impacto positivo que pode
vir a ter no combate a violações de direitos de LGBT no cenário internacional, os dados recentes
mencionados nos últimos parágrafos sugerem um alerta sobre a gravidade e a piora das condições dos
direitos humanos de LGBT no Brasil.
NOTAS:
[V] Ver: Veras MASM, Calazans GJ, de Almeida Ribeiro MCS, de Freitas Oliveira CA, Giovanetti MR,
Facchini R, França IL, McFarland W. High HIV Prevalence among Men who have Sex with Men in a Time-
Location Sampling Survey, São Paulo, Brazil. AIDS Behav. 2015;19(9):1589-1598. ; Grinsztejn B, Jalil EM,
Monteiro L, Velasque L, Moreira RI, Garcia AC, Castro CV, Krüger A, Luz PM, Liu AY, McFarland W,
Buchbinder S, Veloso VG, Wilson EC; Transcender Study Team. Unveiling of HIV dynamics among
transgender women: a respondent-driven sampling in Rio de Janeiro, Brazil. Lancet HIV. 2017;
4(4):e169-e176. ; Perucchi J, Brandão BC, Vieira HIS. Aspectos psicossociais da homofobia intrafamiliar e
saúde de jovens lésbicas e gays. Estud. psicol. 2014; 19(1):67-76. ; Barbosa RM, Facchini R. Acesso a
cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil.
Cad. Saúde Pública. 2009; sup 2:S291-S300. ; Arán M, Murta D, Lionço T. Transexualidade e saúde
pública no Brasil. Physis. 2009; 14(4):1141-1149. ; Teixeira-Filho FS, Rondini CA. Ideações e tentativas de
suicídio em adolescentes com práticas sexuais hetero e homoeróticas. Saúde soc. 2012; 21(3):651-667.
[VI] Pesquisas realizadas em concentrações de LGBT por ocasião de Paradas do Orgulho em diversas
capitais brasileiras têm encontrado percentuais consistentes de relatos de discriminação e de agressões
entre LGBT participantes desses eventos: entre 61% e 65% dos LGBT entrevistados relatam ao menos
um episódio de discriminação com base na sexualidade ao longo da vida e entre 56% e 72%, ao menos
um episódio de agressão. Carrara S; Ramos S; Caetano M. Política, direitos, violência e
homossexualidade. Pesquisa 9ª Parada do Orgulho GLBT - Rio 2003. Rio de Janeiro: CEPESC, 2004. ;
Carrara S; Ramos S. Política, direitos, violência e homossexualidade. Pesquisa 9ª Parada do Orgulho
GLBT - Rio 2004. Rio de Janeiro: CEPESC, 2005. ; Carrara S; Ramos S; Simões J; Facchini R. Política,
direitos, violência e homossexualidade. Pesquisa 9ª Parada do Orgulho GLBT - São Paulo 2005. Rio de
Janeiro: CEPESC, 2006. ; Carrara S; Ramos S; Lacerda P; Medrado B, Vieira N. Política, direitos, violência e
homossexualidade. Pesquisa 5ª Parada da Diversidade - Pernambuco 2006. Rio de Janeiro: CEPESC,
2007.
[VII] Ver: Venturi G; Bokany V. (ed.). Diversidade sexual e homofobia no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2011. Nessa pesquisa, 92% dos respondentes identificavam a existência de
discriminação contra LGBT, sendo que 32% admitia ter preconceito contra LGBT. Esse percentual de
admissão de preconceito foi contrastado com os 4% obtidos em pesquisas similares que enfocavam o
preconceito racial ou contra idosos, e tomado como indicativo do alto grau de aceitação social do
preconceito contra LGBT.
[VIII] Para os mais recentes pareceres do Conselho Nacional de Educação sobre o uso do nome social na
educação básica acessar: http://portal.mec.gov.br/observatorio-da-educacao/30000-
uncategorised/61941-nome-social . Acesso em 12.ju.2018.
[IX] De acordo com dados do Inep, em 2016, 407 pessoas solicitaram o uso do nome social. Em 2014,
foram 102 pessoas trans, e 278 no ano de 2015. Disponível
em: http://www.brasil.gov.br/editoria/educacao-e-ciencia/2016/10/cresce-o-uso-de-nome-social-por-
travestis-e-transexuais-no-enem . Acesso em 12.ju.2018.
[X] Mello L, Avelar RB, Maroja D. Por onde andam as políticas públicas para a população LGBT no Brasil.
Soc. estado. 2012; 27(2):289-312.
[XI] Aguião S; Vianna A; Gutterres A. Limites, espaços e estratégias de participação do movimento LGBT
nas políticas governamentais. In: Lopes JSL, Heredia B (orgs). Movimentos sociais e esfera pública:
burocracias, confrontos, aprendizados inesperados. Rio de Janeiro: CBAE; 2014. p. 239-270.
[XII] Disponível
em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1985/5_1985.htm, http://www.portalmedico.org.
br/resolucoes/cfm/1997/1482_1997.htme http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652
_2002.htm. Acesso em: 12.jun.2018.
[XV] Guimarães, Mark Drew Crosland; Kendall, Carl; Magno, Laio; More. Comparing HIV risk-related
behaviors between 2 RDS national samples of MSM in Brazil, 2009 and 2016. Medicine. 97(1S):S62-S68,
May 2018. Disponível em: https://journals.lww.com/md-journal/toc/2018/05251 . Acesso em:
12.jun.2018.