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«e serras floridas, não há aqui justiça.


«o Deus dos secretos, Leixai-me, Morte.
w Senhor das vidas: MORTE – Ó Tempo me atiça.
«ribeiras crecidas, ABEL – Onde me levas?
«Louvai nas alturas MORTE – Lá to dirão.
«Deus das criaturas. ABEL – Mundo, não me vales?
«Louvai, arvoredos MUNDO – Está bem à mão.
«de fruto presado, TEMPO – Pois não se t'escusa, não hajas preguiça:
«digam os penedos nem tomes paixão.
«Deus seja louvado,
«e louve meu gado Entra Abel na escuridade do Limbo e diz:
«nestas verduras
«o Deus das alturas». ABEL – Despois de viver vida trabalhada,
despois de passada tão mísera morte,
SATANÁS – Oh. como cantas tão doce, pastor! este é o descanso, este é o deporte,
Quanta doçura que nasceu contigo este é o abrigo, esta é a pousada!
Conselho-te, irmão, senhor e amigo, BELIAL – E esse é o siso,
que te estimes muito: pois és tal cantor, despois que vos vedes neste santo abiso,
bem é que te prezes. despois que estais fora de guardardes gado,
Tu és mais fermoso que teu pai mil vezes: despois que cobrastes tal vale abrigado,
e se eu a ti fosse leixaria o gado, despois de vizinho no nosso paraíso,
que andas nos matos mui mal empregado, nos dais esse grado?
mancebo disposto: e não te desprezes Sus, sus, à corrente.
de ser namorado. LUCIFER – Aperta-o mui bem
que nunca Satã o pôde enganar,
ABEL – Queria ora mais fartar o meu gado, porque ele fora pousar no lugar
sem fazer nojo nem perda a ninguém. onde pera sempre não virá ninguém,
SATANÁS – Queres que engorde o teu gado bem? senão outros tais.
Sempre apacenta em pasto vedado. BELIAL – Hás tu saudadç de ir ver a teus pais,
ABEL – Quem te mete a ti ou por ventura das tuas ovelhas?
a aconselharem outrem, nem menos a mi, ABEL – Ó Senhor Deus! pois tal me aparelhas,
sem te pedirem conselho nem nada? recebe meus gritos, prantos e ais,
SATANÁS – É, tanta a virtude que tenho sobrada, nas tuas orelhas.
que sempre isto faço e fiz até'qui
a cada passada. TEMPO – Vós, padre Adão, e vossa parceira,
ABEL – Oh! e tu gabas-te e fazes-te santo? cheguemos à vara, já sabeis meu mando;
juro-te, amigo, que hipócrita és. mil anos há que estou esperando;
Torna-te monge, descalça esses pés, esta é a vossa hora derradeira.
e serás fino nessa arte dez tanto: ADÃO – Ó Tempo, espera!
a isto te espero. TEMPO – Este relógio não se destempera,
sat. Este é o homem que eu busco e quero. é muito certo e muito facundo.
Muito desejo tua companhia, ADÃO – Queria falar um pouco c'o Mundo:
e sem mais soldada, com grande alegria, não aparelharei eu o pano e a cera?
prometo servir-te como escravo mero ora é caso profundo!
de noute e de dia.
TEMPO – Alto, despachai: e vós aguardais?
TEMPO – Despachai, Abel, parti pola fria, Fazei o alforge à hora da ida?
que já vossas horas estão consumidas. ADÃO – Dá-me siquer um dia de vida.
ABEL – Ó Tempo, tão curtas são aqui as vidas? TEMPO – Diz cá o relógio que não tendes mais;
Senhor, agravais-me, que ainda crecia; não há i maneira.
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MORTE – Não sabeis vós que sou vossa herdeira, pois hei-de morrer.
e a vossa filha a primeira gerada? Eu creio, Mundo, que o meu Redentor
ADÃO – Ó triste Morte, como és apartada! vive, e no dia mais derradeiro
Como és espantosa, em tanta maneira eu o verei Redentor verdadeiro,
desaventurada! meu Deus, meu Senhor e meu Salvador.
Eu o verei, eu,
Entrando na casa de sua prisão, e achando Abel seu filho, preso naquela infernal não outrem por mim, nem com olho seu,
estância, fizeram todos um pranto, cantando a três vozes; e acabando diz o mas o meu olho, assim como está;
porque minha carne se levantará,
MUNDO – Eis Job vem falando há grande pedaço, e em carne mea verei o Deus meu,
triste com causa de ter grão tristeza. que me salvará.
TEMPO – Oh quantos haveres e quanta riqueza
perdeu aquele homem em tão pouco espaço! SATANÁS – Prosigue tu embora tua mania,
MUNDO – Infinitos gados que Deus bem de chapa te assenta ele a mão:
e muitos haveres lhe tenho já dados derribou-te agora as casas no chão,
e tudo lhe foi através brevemente; e matou-te os filhos morte supitânia.
porque Satanás o achou excelente, JOB – Verdade é isso?
todos seus bens lhe tem assolados, SATANÁS – Assim me veja eu rei do Paraíso.
e Job paciente. JOB – Bento e louvado seja o Deus dos Céus!
SATANÁS – Se o tu renegasses, temer-t'ia Deus,
JOB – Se os bens do mundo nos dá a ventura, e correr-se-ia muito de te fazer isso.
também em ventura está quem os tem. JOB – Lá, lá aos incréus!
O bem que é mudável não pode ser bem,
mas mal, pois é causa de tanta tristura; SATANÁS – Assi! ora espera, farei que renegues,
e se Deus os dá, quero fazer o que Deus me manda.
como eu creio mui bem que será,
e a fortuna tem tanto poder, (Toca Satanás a Job, e fica coberto de lepra)
que os tira logo cada vez que quer,
o segredo disto, oh! quem m'o dirá, JOB – Oh chagado de mi, que esta é outra demanda!
pera o eu saber? Oh Deus meu! e porque me persegues?
Contra mi perfias,
SATANÁS – Falemos um pouco, Job, a de parte sabendo que nada são os meus dias!
sobre esse segredo, verás que te digo. Minha alma s'enoja já de minha vida,
Eu quero-te bem e sou teu amigo, e como a seta é minha partida.
sem usar contigo cautela nem arte. Senhor, meu Senhor! porque te desvias
Tu saberás, de tua guarida?
e não me descubras nem hoje nem crás, Responde-me, quantas maldades te fiz?
Deus é aquele que trata assi; Ou quantas treições obrei contra ti?
quer-te grão mal e diz mal de ti:. Porque assim escondes a face de mi,
não cures dele, e logo tornaras como meu contrário, sendo meu juiz?
a como te vi. Contra a folha prove,
Tu dás com teus males louvores a Deus, que ligeiramente o vento revolve,
e ele pesa-lhe por tu nomeá-lo: mostras as forças que tu tens contigo?
renega, renega de ser seu vassalo, Porque te puseste contrário comigo?
e logo verás tecer outros véus. Que a tua bondade me escusa e absolve
JOB – Se o eu leixar. de ser teu imigo.
qual é o senhor que m'há d'emparar? Senhor, homem de mulher nascido
Qual é o Deus que me pode valer? muito breve tempo vive miserando,
Nos bens desta vida não está o perder, e como flor se vai acabando,
que assi como assi cá hão-de ficar, e como a sombra será consumido.
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Pois porque, Senhor, quanto vós podeis dizer.


estimas tu cousa de baixo valor JOB – Que me queres tu fazer?
pera trazê-lo a juízo contigo? BELIAL – Servir-te e dar-te pousada,
E quem me darás que seja comigo onde estês a teu prazer.
em o Inferno por meu guardador
e por meu abrigo? (Diz Job despois de preso)
Que a minha pele, as carnes gastadas,
logo a meu osso se achegará, JOB – Quare de vulva me eduxiste?
e também solamente o que ficará Antes ali fora consumido.
os beiços acerca de minhas queixadas. Ó minha esperança, faze-me sofrido,
Ó meus amigos, pois vida, morte e prisão tão triste
ao menos vós outros, amigos antigos, me fazem pesar-me porque fui nacido.
amerceai-vos de mim que me vou,
porque a mão do Senhor me tocou; MUNDO – Agora estes quatro bem abastarão,
e vós perseguis-me como inimigos, quanto aos Padres de lei de Natura;
assi como estou? logo virão, de lei da Escritura,
Moisés, Isaías, David, Abraão.
TEMPO – Queixai-vos vós bem, que ainda estais pior, Falará primeiro
pois não tendes mais momento de vida: Abraão, patriarca justo, verdadeiro,
alto, despejai, fundai na partida. reprendendo os ídolos da gentilidade;
JOB – Oh! bento e louvado seja o meu Senhor! porque no seu tempo era a vaidade,
O que ele me mandar e pola verdade se fez pregoeiro
a vida é sua, pode-a tirar, da Santa Trindade.
a morte é nossa de juro e herdade; ABRAÃO – Ó Deus mui alto, ignoto, escondido,
e pois que ele é o juiz da verdade demonstra-te às gentes, que já tempo é
faça-se logo sem mais dilatar que daquele tempo do justo Noé
a sua vontade. está o teu nome na terra perdido,
e está sonegado
MORTE – Vinde cá, bom homem, que esta é dor maior. o tributo do mundo, que é teu de morgado.
JOB – Memento mei, Deus Senhor, E adoram as gentes deuses de palmeira,
porque vento é a minha vida. deuses de metal, e de pederneira,
Apressa-te muito asinha, deuses sem vida, deuses de pecado,
favorece meu temor, feitos de madeira.
e a minha alma encaminha. Têm pés e não andam, mãos e não palpam,
Peccante me quotidie, olhos e não vêem, orelhas e não ouvem,
et non me poenitentem , corpo e não sustêm, cabeça e não entendem.
meus espíritos já não sentem; Et tu, qui solus es,
timor mortis, conturbas me. que tens todo o mundo debaixo dos pés,
Ubi fugiam, que farei? e teu ouvir e ver é infinito,
circumdederunt me dolores: Criador dos spítitos, eternal spírito,
Ajuda-me, Rei dos senhores, e sendo seu Deus, não sabem quem és,
não te alembre que pequei, sequer por escrito.
esqueçam-te meus errores.
Manus tuae fecerunt me, MOISÉS – Eu Moisés direi como ele formou
oh! não me desfaças ora; no princípio o céu, terra e paraíso.
acorre-me, Senhor, agora, A terra era vácua, e sobre abiso
que a minha vida ida é, eram as trevas quando a luz criou.
e a morte é de mi senhora. E assentarei
mistérios profundos no livro da lei,
BELIAL – Ora andai, que tudo é nada tudo figuras da Santa Trindade,

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