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n. 14 | fevereiro + março de 2018 | gratuita


editorial

A convocatória era livre. Recebemos um total de 683 textos, envia-


dos de diversas partes do Brasil e alguns de lá de Portugal. Feita uma
pré-seleção, foram classificados 97 textos, que se somaram a outros
17 que haviam se destacado na convocatória aberta em maio de 2017,
mas não entraram no número 12 por falta de espaço.
Após uma nova triagem, percebemos que as dez vagas disponí-
veis não seriam suficientes para abrigar tanta coisa boa. Resolvemos
então estender a convocatória para uma próxima edição da Revista
Vacatussa e selecionamos um total de 21 textos. Realizada a divisão,
somente durante a revisão percebi que, embora não fosse uma edi-
ção temática, este número poderia ser sobre o “tempo”.
Afinal, ele aparece de forma crucial no confronto entre o passado
e o presente dos contos de André Balaio e Angélica de Barros; na
saudade das palavras de Antonio Cláudio Neto, Augusto Darde e Fil-
lipe Rodrigues; no desgate das relações apresentadas por Nathalie
Lourenço e Karen Lima; no ritmo proposto por Caio Russo; no pro-
cesso de construção da personagem de Sabrinna Alento Mourão e na
mistura de projeções de futuro, dúvidas do passado e surpresas do
presente de Felipe Teodoro. Espero que gostem. Boa leitura!

expediente
EDIÇÃO, DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO TEXTOS
Thiago Corrêa Ramos André Balaio, Angélica de Barros,
CONSELHO EDITORIAL Antonio Cláudio Neto,
Cristhiano Aguiar, Hugo Viana, Augusto Darde, Caio Russo,
Joana Rozowykwiat, Felipe Teodoro, Fillipe Rodrigues,
Thiago Corrêa Ramos Karen Lima, Nathalie Lourenço,
VACATUSSA Sabrinna Alento Mourão.
site: vacatussa.com
e-mail: vacatussa@gmail.com ILUSTRAÇÕES
endereço: Rua Setúbal, 914 / Victor Zalma
1002, Boa Viagem, Recife-PE, ISSN 2359-1609
51030-010 Periodicidade: Bimestral
2 número catorze
sumário

4 7
21
18
24
27
10
15 30
13

4. Elvis, por André Balaio


7. A dieta de Francisca, por Angélica de Barros
10. Da saudade, por Antonio Cláudio Neto
13. Um quintal, um sofá, um litoral, por Augusto Darde
15. Costumes, por Caio Russo
18. João, por Felipe Teodoro
21. Pequenas fatias da vida, por Fillipe Rodrigues
24. Progênie, por Karen Lima
27. Ela é tão bonita desligada, por Nathalie Lourenço
30. Pontes, por Sabrinna Alento Mourão

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Elvis
André Balaio

Oséias colocou a bebida no chão e Elvis se aproximou para cheirar


o gargalo. Ao encostar o focinho, fez a garrafa girar e rolar pela ram-
pa. O vidro bateu no meio-fio e se espatifou, o restinho de aguardente
escorreu pelo canto da rua até o bueiro. Oséias gritou e Elvis correu
até a esquina, ficou lá, deitado encolhido, a cabeça apoiada nas patas.
– Volte aqui, seu porra.
Veio com a cabeça baixa, levou um tapa na cara e ficou quieto, viu
a merda que tinha feito. No tempo em que Oséias morava naquela
rua teve uma festa no casarão só com bacana chegando de carrão,

4 número catorze
motorista, repórter. Não pôde assistir, foi expulso da calçada, pre-
cisou de abrigo na avenida duas quadras adiante. Agora entrava no
palacete, sentia o que os convidados sentiram, admirava as luzes da
fonte e os enfeites do jardim, mesmo que a fonte estivesse sem água,
imunda, cheia de lodo, e o mato cobrisse o que antes era o jardim.
A porta da frente se abriu para um salão enorme que parecia ain-
da maior por estar vazio. O lustre sujo deve ter refletido a luz em
muitas barras de vestido que dançaram no piso de mármore agora
preto de fuligem e poeira. Na escada ainda imponente, uma mulher
bonita desce para lhe conceder a dança. Ele assobia o Danúbio azul,
ergue Elvis e o segura no dorso para uma valsa limitada pelo curto
alcance das patas traseiras. O garçom se aproxima com uma dose
de uísque, outro traz comida e ele se farta de canapés, rissoles e ca-
marões. Um senhor grisalho de smoking aparece, deve ser o dono,
e pergunta quem ele é. Oséias não pode dizer o nome, é um Silva
que só entra numa festa assim para trabalhar, por isso responde sou
o embaixador, não, sou o primeiro-ministro. De onde? Lembrou de
um velho filme com o rei Arthur que viu no cinema quando ainda
morava numa casa e tinha mulher e filhos, havia uma ilha, Avalon,
então ele é o primeiro-ministro de Avalon, resposta que deixa o grã-
fino boquiaberto e o faz chamar a esposa, querida, lhe apresento o
ministro... como é mesmo o seu nome? Oséias Lancelot. E pega uma
garrafa com o garçom que bebe no gargalo até o fim.
A luz do sol atravessa a ausência das telhas e acerta a cara, arde a vis-
ta, queima a pele, assim não dá pra dormir. Levanta e vai para um lugar
protegido. Vem, Elvis, grita para o amigo, e forra o chão com pano velho
para não se cortar com os cacos de vidro que caem das janelas.
Acordou de novo, puta que pariu, agora é um motor ligado. O sol
não era mais uma bola amarela, era preta, o barulho lembrou aque-
les monstros de filme japonês que invadem a cidade, vão pisando
nas casas e derrubando prédios, sim, gostava de cinema quando era
mais moço e tinha dinheiro. Por que a bola de ferro bate na coluna?
Começou a cair o mundo justamente onde estava deitado, ficou
coberto de pedaços de alvenaria no meio do pó de gesso. Tentou se
levantar para correr, mas as pernas estavam presas, gritou e saiu um
fiapo de voz, falou para o companheiro: sai daí, rapaz. Sai.

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Elvis girou sem sair do lugar e ganiu ao ver a pedra pegar Oséias,
o sangue escorrendo, uma papa vermelha na testa. Ficou tonto, os
olhos pesados, vontade de dormir, paredes no chão, telhas despen-
cando, a escada explodindo em pedaços de madeira. A casa virou um
imenso entulho, caiu um bloco inteiro sobre Elvis e ele latiu, latiu,
era preciso avisar, era preciso.
No intervalo para o almoço, os operários ouviram o ladrar insis-
tente e correram para os destroços. Tem um cachorro aí embaixo.
Pega a escavadeira, melhor não, pega o carrinho e a pá, cuidado para
o bicho não morrer, usa a mão, segura aqui.
Removeram o material amontoado, retiraram os detritos seguin-
do os ganidos, esperavam salvar o bicho e acharam um homem des-
troçado. Ainda respirava. Ao lado, um cachorro morto, esmagado.

André Balaio nasceu no Recife-PE, 1968. É escritor e roteirista. Venceu o Off Flip 2016
com o conto O lado de lá, foi finalista do SESC 2017 (contos), do Prêmio Cepe e terceiro
lugar no concurso da UBE – RJ 2017 com Quebranto, livro que sairá em 2018.

6 número catorze
A dieta de Francisca
Angélica de Barros

A louca? Respondeu rindo um dos meninos. Levaram para o asi-


lo. Ficava na varanda comendo besouros. Acharam melhor internar.
Aqui não tem casa de louco, então foi para lá. Me deu um profundo
mal-estar quando ele falou isso. Sabia que não estava tudo bem com
Francisca, mas não imaginei que fosse tanto.
Tudo continuava igual naquele buraco. As casas caindo aos pe-
daços, a praça devastada pelo mato, a igreja com a porta fechada, os
meninos sujos perambulando pelas ruas.

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O asilo não era longe, ficava no pé do morro no final da rua prin-
cipal. O calor era insuportável e não havia nenhuma sombra pelo
caminho. Os meninos me seguiram até lá brigando entre eles. Atra-
vessei o portão com um receio enorme. A conversa na recepção não
foi nada boa. Me senti no fim do mundo.
Francisca estava sentada sozinha no sofá com a cabeça abaixada.
Na sua mão uma agulha de crochê e aos seus pés um emaranhado de
fios entrelaçados. Era pele e osso. Os cabelos despenteados e com-
pridos. As pernas tortas. Parecia tão frágil sentada daquela maneira.
Quando me aproximei, levantou a cabeça e olhou para mim com seus
grandes olhos negros.
– Vão arrancar meus dentes, falou Francisca.
– Se você não parar de comer insetos... um absurdo tudo isso.
– Ninguém entende, nem você pelo jeito. O sonho que eu tive, o se-
gredo, os besouros. Os besouros protegem os corações dos mortos,
se arrancarem meus dentes não vai sobrar mais nada.
– Francisca, foi só um sonho estranho, só isso. Essas coisas não
existem, você está viva. Não está falando comigo agora?
– Você faz parte do sonho. Estou em decomposição, os besouros
são os únicos que podem me ajudar.
Não consegui falar mais nada. Francisca voltou para seu mundo e
me deixou ali sozinho diante dela como se nada mais importasse. Eu
estava perdido com tudo aquilo e muito angustiado.
Os meninos sujos estavam me esperando, mas não chegaram
muito perto, acho que perceberam pela minha cara que eu não esta-
va bem. Antes de voltar à praça para esperar pelo próximo ônibus,
parei num boteco e pedi uma cerveja. Estava engasgado com toda
aquela história. O primeiro gole desceu arranhando a minha gargan-
ta como se levasse pedaços de asas duras e de patas pontudas para
o meu estômago. No segundo copo me senti mais aliviado. A única
coisa que eu queria era ir embora daquele lugar.
Para a minha sorte o ônibus chegou logo. Antes de partir, joguei
algumas moedas para os meninos sujos pela janela. Fechei a cortina

8 número catorze
e tentei dormir, mas lógico que não consegui. Francisca ainda estava
dentro de mim. Talvez tivesse razão. Ela estava morta, mas com den-
tes. Alguma coisa, por mais insólita e grotesca, ainda podia nutri-la,
nem que fossem alucinações, nem que fossem besouros.
Os gritos dos meninos sujos desapareceram logo e aos poucos, pela
estrada árida, Francisca também desapareceu. Alguma hora adormeci
e quando abri os olhos, o chão estava coberto por besouros.

Angélica de Barros nasceu em São Paulo-SP, 1967. É formada em Publicidade pela


FAAP-SP. Trabalhou com artes gráficas por vários anos. Participou das oficinas dos
escritores Cadão Volpato (ago2016/jun2017) e Ronaldo Bressane (ago/dez2017).

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Da saudade
Antonio Cláudio Neto

10 número catorze
O rio que corre no teu quintal desfez meus planos de outros
lugares, mas ainda quero ganhar o mundo. Embora teu peito, en-
costo necessário, tenha me ensinado a ter paciência, não saber ao
certo quando esquecer me ocupa a sala de estar. É o rio que nasce
nos meus olhos no momento em que me despeço – porque me
deixou ir embora feito astronauta, enquanto habitávamos o mes-
mo lugar no espaço. E ainda que eu te olhasse com todo cuidado,
pedindo pra correnteza não acabar com a gente, precisaríamos
desaguar. Rápido. Como quem deixa de ser rio e aprende a voar.
Fica suspenso. Feito nuvem. Mas quando voltei a sentir os escom-
bros da represa que se rompia, pude conseguir tua boca com a
ponta do meu nariz.
Eu sou um rio que em você represa.
A última camada da tua colcha de retalhos era a da permanên-
cia, parece que todos os tamanhos estavam corretos. Outra canção
sobre estar. Tua desordem é agora o meu devir. Infantaria para noi-
tes sóbrias. Fratura nas minhas sobreposições de enfrentamentos.
Eu sou uma música curta e sussurrada. Meu solo começa no chão.
Olhando pra cima; tentando te alcançar. Tu, qualquer canção sobre
descansar e pronto. Eu sou uma música de dois minutos e meio. A
última do disco.
Acima da cidade, teu beijo. Com a duração de um incenso de âm-
bar, que é o tempo do seu amor, que é o cheiro e a cor. Sabor do chá
de frutas do bosque. Um retrato pra guardar teus cuidados sob os
meus dias. Encosta.
O corpo começa a pedir. O copo começa a perder.
Meus pulsos não se firmaram porque me ensinou a fazer sem
usar as mãos. Agora, estranho é estancar o córrego sem teu sotaque
freando qualquer suposta ansiedade. Ou falta de prática. O tempo só
existe quando estamos prestes a partir – ao meio. Pra perto de tudo
que é desencontro. E só então pude entender que não fomos feitos
para sobrevivermos juntos. No curto espaço entre o pulo e a queda,
o sol mirando todas as sombras de dúvidas nos teus olhos lindos –
rasgados pelo medo de sentir que é pouco. A distância é um soco que
esconde o impacto e excede no sentir da dor.

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Uma parte da saudade que tenho hoje vem carregada de teus de-
dos pequenos bulindo na bagunça do meu corpo. No dia em que en-
feitei teus pelos com acordes dedilhados e versos sussurrados na
beira do teu coração. No samba de roda, teu abraço. Teus sapatos
ajustando os erros dos meus passos. Acordando tudo que é partida.
Devagar de novo. Nossos pés nessa calçada pequena. Um refúgio bo-
nito pro tempo tomar todas as decisões por nós. Calmamente. Sem
fazer barulho. Sem pisar em nada. Pra lembrar você de longe e admi-
tir que sou a parte que vai embora.
Perto do mar tem saudade demais.

Antonio Cláudio Neto nasceu em Olindina-BA, em 1993. É bacharel em Direito e


mestrando em Crítica Cultural pela Universidade do Estado da Bahia. Mantém o
blog: oastronautadasaudade.blogspot.com.

12 número catorze
Um quintal, um sofá, um litoral
Augusto Darde

Existe um pedaço de terra e mato que elegi meu


Não como proprietário legal – não está em meu nome
Não guardo em gavetas a lei toda de sua inscrição
É, no máximo, um quintal
Onde muito pisei e de cujos ventos sei as entradas

Tão importante quanto esse espaço


É a paisagem que o rodeia
Pois foi ali que apalpei horizontes
E é ali que volto ao sair

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Por que motivo escolhi esse quintal
Não sei ao certo
Na prática, nada me traz
A não ser essa dor úmida no corpo
De ruídos e gosto de encanamento novo
Que sugere formas no peito e passa a apertar na cabeça e nos olhos
Depois do choro fácil ao lembrar

Teria cada pessoa neste mundo enorme


Escolhido um quintal, um quarto, uma sala quente de janta
Um sofá, um portão
Um riacho, um litoral, que seja
Apenas para entender perfeitamente
Na qualidade exata
O que chamamos saudade?

Augusto Darde nasceu em Lajeado-RS, 1984. É mestre e doutorando em Literatura


Francesa pela UFRGS. Autor dos livros As bergamotas começaram (2014), Pequenos
poemas na prosa (2015) e O creme de avelã e outros estímulos (e-book, 2017).

14 número catorze
Costumes
Caio Russo

Para Bruna Melfa

“Tá vendo aquela casinha ali no barranco? Tem um senhor sen-


tado lá no quintal, não tem?! É o seu Geraldo que aluga os botes,
lembra? Então, antes, bem antes, tudo aquilo era rio. Até aqui onde
a gente tá, tudo rio. Depois passou um tempão e o rio encolheu, do
jeito que você tá vendo agora é menor que antes”, dizia assim sem
pressa. Para meu avô não passava de uma anedota para comparti-
lhar comigo, na época ainda com meus doze anos por completar. As
aproximações do meu avô com esse neto cheio de alergias, “frescuras

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da cidade”, e aquele ar taciturno de quem frequentou mais hospitais
do que deveria, o amedrontava mais do que a mim, só hoje sei disso.
Aquela pele fina beirando o translúcido, e, também, o corpo fran-
zino, indicava não apenas uma saúde debilitada como certo estado
constante de convalescença que nunca chegaria a se completar. Os
adoentados, por sua própria natureza, exalam uma atmosfera que
só com certa dificuldade pode ser compartilhada com os sãos, sei
disso hoje. Cada fragilidade minha inquietava-o como um mistério
insolúvel: seu neto, algo tão próximo de seu sangue, carne e linhas
genéticas, mas também seu neto, uma tapeçaria escrita num diale-
to desconhecido, feito em filigranas de um material volátil demais,
pequeno demais, instável demais. Eu era como uma xícara de porce-
lana que meu avô não sabia segurar, as mãos calejadas escolhendo
com cuidado cada palavra para não lascar nenhum pedaço de mim.
Num simples suspiro mais alongado meu avô acreditava piamente
que eu podia desaparecer sem deixar rastros, de uma hora para ou-
tra, sem nenhuma explicação, como se não houvesse nenhum cami-
nho, nenhuma memória que provasse minha existência aqui. Seus
olhares vinham como que cheios de pequenas tiras de algodão, ten-
tando segurar minha existência ao rés do chão, à vida, aquilo que ele
entendia por viver verdadeiramente: a dureza do minério quieto.
“O rio encolheu”, essa simples frase me inquietou por anos. Porém,
no dia em que me foi dita assim, sem qualquer preparo, foi como
se meu avô me tivesse lançado no meio do rio e me abandonado lá,
ao fundo, perdido no azul opaco em que não saberia nadar nunca.
Naquele dia o jantar parecia distante, as vozes de minha mãe, de
meu pai, tias e tios, soavam como por detrás de um cômodo recém-
fechado, uma porta que encostara discreta sem nenhuma corrente
de ar. Os rostos chegavam abafados, levemente apagados nas bor-
das, suspensos enquanto caminhavam entre as louças, as conversas,
o tilintar dos talheres e certa pressa cotidiana em acabar os afaze-
res para, em seguida, não irmos a lugar algum. Tudo se resumia em
lavar a louça, organizar os copos, cada prato em seu devido lugar,
para sentarmos finalmente defronte à espera, numa suspeita tran-
quilidade familiar. Depois do jantar sofríamos de uma afazia natural,
todos sentados em cadeiras de área verde-berrante, com fios esgar-
çados, pendurados pelo desgaste natural dos dias, formando nítidos
buracos no encosto das costas, ficávamos numa mudez entrecorta-

16 número catorze
da pela fala desavisada de alguma visita que não entendera, verda-
deiramente, nossa religião familiar, transgredindo nosso silêncio
marejado de costumes. A inconveniência da visita era recebida com
um inopinado desprezo manso, perguntas como “Vocês acham que
esse ano está mais quente que o ano passado, quando a gente veio
para o Rancho?” eram respondidas – quando respondidas – por um
simples “é”, às vezes um “talvez”, dito no fundo da garganta, mais
preenchido por mudez que por voz. Apenas os comentários sobre
os pernilongos eram permitidos, “quanto pernilongo”, desde que es-
paçados ao longo das horas. Havia uma ética implícita no cotidiano
aparentemente banal de nossa família. A pressa de cada movimento
no jantar se transubstanciava, lentamente, numa moleza generaliza-
da. Ninguém parecia estar ali de verdade, eram só uns esboços meio
incompletos de um desenho esquecido numa gaveta da casa. Só a
face do meu avô continuava intacta, gasta como um papel envelhe-
cido em que alguém escrevera, por linhas tortas, rugas sulcadas ao
redor da boca, destacando cada curva da pele magra, como um solo
arado por um preguiçoso que ia deixando pela metade o plantio do
tempo, abrindo a terra aqui, fechando acolá.

Caio Russo nasceu em Assis-SP, 1992. É escritor, historiador e pesquisador em


História da Arte, Estética e Teoria da Imagem. Autor das obras Delicado desespero
de beija-flor em voo (Chiado, 2015) e Alguém, ninguém (Laranja Original, prelo).

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João
Felipe Teodoro

Quando a noite chega, João ajeita a pistola na cintura, pega a mo-


chila e sai. Para em uma praça que fica três quadras da farmácia.
Acende um cigarro e repassa o plano. Você vai entrar. Como se fos-
se comprar o remédio. Quando ele estiver na frente do caixa, você
aponta o cano pra cabeça dele e grita, passa o dinheiro, passa todo
o dinheiro! Não. Gritar não. Vai que alguém escuta? Vai que o ve-
lho mora nos fundos da farmácia e tem uma esposa. Um filho. Hein?
Você aponta o cano pra cabeça dele e fala com calma, passa o di-
nheiro. Sim. Com calma. Pra ele ver que você tá no controle. E você
vai falar olhando no fundo dos olhos dele. Pra ele ver como você tá

18 número catorze
sendo sincero. Depois você vai guardar o dinheiro na jaqueta e pegar
o máximo de coisas que tiver ao seu alcance. Põe tudo na mochila e
vaza. Vaza e nunca mais volta nessa merda de farmácia. Ninguém vai
precisar se machucar. Vai ser tudo tranquilo. Ok?
Caminha até a farmácia, o coração acelerado, a cabeça quase explodindo.
O velho atrás do balcão acena e diz boa noite. Ficam frente a fren-
te. João está tremendo. Tem dúvidas sobre o que fazer. Enfia a mão
no bolso num movimento automático e tira a receita médica. O ve-
lho nem pede pra verificar, sabe quais remédios ele quer. Há seis
meses João vai até aquela farmácia todo quinto dia útil do mês para
comprar a medicação para a mãe inválida. Dá a volta e desaparece
por alguns segundos. Nesse tempo, uma gota de suor frio escorre da
testa de João. Ele olha pros lados para confirmar que estão sozinhos.
Analisa o que tanto consegue pegar. Salgadinhos. Chocolates. Há
também uma caixa cheia de remédios pra gripe que com certeza ele
consegue vender pra alguém. Tenta não pensar nas consequências
do crime. Só assim é possível realizar tal façanha. Sem se preocupar
com o depois. Agir como se só existisse o agora. Fica frio, fica frio, ele
pensa enquanto bate com os dedos no balcão. E o velho volta com os
medicamentos, coloca tudo em uma sacola plástica e diz quarenta e
cinco reais. João entende que aquele é o momento decisivo. Tudo ou
nada. Você tira a arma e mira na cabeça dele. Pede o dinheiro, pega
o remédio e o que mais você conseguir e aí vaza. Vaza e não volta.
Nunca mais passa perto dessa maldita farmácia. Esse é o plano. Fica
frio, vai ser rápido, é tranquilo.
Enfia a mão por baixo da blusa e infinitas possibilidades passam
em sua cabeça. Um cliente que abre a porta e entra bem na hora. Um
grito de desespero e ele assustado atira. Estoura os miolos do velho.
A bala atravessa a cabeça e deixa um furo bem no meio da testa. O
velho que reage, pegando o 38 antigo embaixo do balcão e acertando
seu peito. João cai no chão e o mundo gira. A escuridão toma conta.
A mãe sozinha no quarto recebendo a ligação, seu filho tá morto,
tentativa de assalto. A mãe no IML reconhecendo seu corpo. É aque-
le ali, com a tatuagem no pescoço. O corpo sendo enfiado na gaveta
após a identificação. Os amigos vestindo preto. As lágrimas. A terra.
Os vermes. O inferno. Rios de fogo. O capeta. Tortura eterna. Vê tudo

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isso naquela pequena fração de tempo enquanto a mão avança até a
pistola. Tudo ou nada. É tranquilo.
Aperta com mais força o cabo da pistola e depois, sua mão escorre
para o bolso da frente da calça jeans. Tira um amontoado de notas
e algumas moedas, deposita elas no balcão olhando pra baixo, ex-
tremamente envergonhado, impotente. Um covarde. Um bundão. Eu
sempre soube que você era um bundão, um bundão.
O velho conta as notas e todas as moedinhas. Depois coloca a
quantia no caixa e estende a sacola para João. Não se preocupe. Tá
tudo certo, filho. Na próxima vez, você paga o que faltou. E por alguns
segundos ele não acredita na atitude do velho. Em um movimento
involuntário ele agarra a sacola com as duas mãos e sai correndo.
Sem reação. Chora enquanto corre para casa. Desce a escadaria de
pedra com o gosto amargo das lágrimas na boca.
Entra em casa, acende as luzes e depois guarda a arma debaixo
do colchão. Senta na cama e respira fundo. Não se preocupe. Tá tudo
certo, filho. Na próxima você paga o que faltou.
Entra no quarto da mãe e dá os comprimidos. Depois vai pra co-
zinha, prepara um pão com mortadela, mas não consegue comer.
Perdeu toda a fome. A comida também é amarga. Resolve ir dormir.
Deita na cama e sonha. Sonha com o velho da farmácia. No sonho os
dois estão empinando pipa na esquina de casa e o velho é o pai que
João não conheceu.

Felipe Teodoro nasceu em Ponta Grossa-PR, em 1993. É formado em Letras e


atualmente mestrando em Estudos da Linguagem na UEPG. Tem textos publicados
em várias antologias nacionais. Contato: felipets9@hotmail.com.

20 número catorze
Pequenas fatias de vida
Fillipe Rodrigues

Eu lembro do imenso calor que fazia naquele dia. Lembro da


sensação de sentir o suor escorrendo pelas minhas costas por bai-
xo da camisa. Nós dois estávamos sentados um de frente pro outro
no refeitório e nossos pés se roçavam levemente de vez em quan-
do. Esse era um dos nossos sinais secretos, uma de nossas mais
íntimas carícias, o máximo que nós nos permitíamos na frente de
todos. Encostávamos não só os pés, mas também as mãos, os bra-
ços e qualquer parte do corpo que pudesse ter contato uma com
a outra de maneira que parecesse com um simples esbarrão sem
nenhuma outra intenção oculta. Como quando vínhamos em lados

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opostos em um corredor e, ao passar um pelo outro, deixávamos as
costas das nossas mãos se tocarem por um pouco mais de tempo
do que seria o normal. Nessas horas, a vontade que eu tinha era de
apertar sua mão com força, de te abraçar, de gritar que eu te amava,
de ver o teu sorriso que tive tão poucas oportunidades de ver e de
provar teu beijo uma única vez, mas isso eu jamais teria. Fazer algo
assim ali seria o fim pra nós dois.
A melhor lembrança que eu tenho é daquele dia quente no re-
feitório. As nossas pernas se encostando por baixo da mesa e um
céu azul cheio de nuvens brancas na janela atrás de você. Eu te olhei
bem, mesmo que rápido, e me concentrei o máximo que pude em
escapar dali. Vi você em um campo aberto, verde e cheio de flores,
desses que a gente só vê mesmo em filme, e acima de nós um céu
azul igual ao que eu via pela janela atrás da mesa. Eu sempre fazia
isso. Pegava pequenas coisas que encontrava durante o dia, peque-
nas fatias de vida, como eu gostava de imaginar, e remontava na mi-
nha cabeça do jeito que eu queria. Isso eles nunca conseguiriam tirar
de mim. Na minha fantasia a gente comia frutas, sanduíches e bebia
vinho sentados em uma toalha vermelha colocada sobre a grama. A
gente conversava e ria tanto, mas tanto até a barriga doer e eu ficava
maravilhado com a sua voz. Ali nós conversávamos como nunca tí-
nhamos tido a chance de conversar. Nós usávamos roupas mais leves
e coloridas, não essas coisas que eles nos obrigam a usar. No meu
devaneio nós podíamos ser nós mesmos.
Acho que fiquei um bom tempo sonhando acordado nesse dia.
Quando dei por mim, você estava me olhando e eu pude ver come-
çando a se formar, primeiro nos seus olhos e depois na sua boca, um
sorriso. Pequeno e quase imperceptível pra todo o resto do mundo,
mas não pra mim. Você olhou pra baixo e disfarçou. Eu também dis-
farcei, com medo do que eles poderiam fazer caso percebessem algo.
Você levantou os olhos novamente, levando a colher à boca e ele ain-
da estava ali, estampado em seus olhos, o sorriso. Seu sorriso atra-
vessou a mesa e me encontrou. Marcou em mim como ferro quente
e até hoje trago a lembrança vívida daquele dia.
Aquele foi o último dia que te vi. O dia que levaram você de mim. É
engraçado que a minha melhor lembrança de nós seja a última.

22 número catorze
Eu ainda continuo aqui. Fazendo os mesmos trabalhos, usando as
mesmas roupas, comendo a mesma comida. A diferença é que agora
estou mais velho, querido.
Imagino se você envelheceu também ou se continuou pra sempre
do jeito que eu lembro de você.
Com o passar dos anos aqui dentro tenho usado cada vez mais
minha imaginação pra criar meu próprio refúgio e você, mesmo que
com os contornos borrados pela minha memória frágil, está sempre
nele. Principalmente nos dias de céu azul com nuvens brancas.

Fillipe Rodrigues nasceu em Belém-PA, em 1994. Estuda Cinema e Audiovisual na


Universidade Federal do Pará e trabalha como freelancer com edição de vídeos.
Esta é sua primeira publicação.

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Progênie
Karen Lima

“Batizo-te como Cassandra em nome do pai, do filho e do espí-


rito santo. Amém.”
Não sei bem por que esse nome e nem o acho muito bonito, mas
foi nos primeiros dias de dezembro, daquele ano devastador, que ele
me designou: Cassandra. Hoje, olho no relógio as horas, os dias, o
tempo. Nem me lembro qual folha do calendário devo olhar. Mês de
março? Acho que não. Em março é aniversário da Aninha, que sem-
pre me convida pra festa. Deve ser fevereiro ainda ou então ela es-
queceu que ainda não morri. Até eu me esqueço, às vezes: essa pele
seca, essa olheira que esconde toda a beleza da minha íris cor casta-

24 número catorze
nho-claro, essa morte bebida a conta-gotas, esse cheiro de mofo pela
casa. Não sou mais Cassandra. Sou só saudade de quem me deu um
nome e uma vida.
Fui Cassandra durante um ano e nove meses. Um amor e uma vida
germinada, pronta pra nascer. Eu quis ter filhos, escrever um livro,
entrar no teatro e cantar algumas músicas pra ele ouvir. Só de pai-
xão. Nem por mim nem pelo mundo. Muito menos pelos rastros que
ficarão no fechamento de meu túmulo.
O meu nome me dava direito de ser quem eu era. Como nunca
soube ser qualquer coisa, não suportei o peso de mim mesma. A in-
finitude me causava medo. Agora, olho as paredes e só vejo finito.
O branco da tinta reflete na alma, atinge os olhos e arde. A lágrima
desce ligeira, mas a minha testa não franze, meus olhos não fecham,
minhas bochechas intactas e minhas mãos continuam na asa da xí-
cara de café, que já esfriou.
Tenho vontade de pegar o telefone e discar pra qualquer um que
atenda e escute a minha voz, que nem me recordo se é grave ou agu-
da. Desejo inútil. Não paguei a conta telefônica dos últimos meses
e nem sequer recebo mais ligações. Isso me conforta. É um jeito de
me enganar, como se fosse escolha minha essa solidão. A culpa é de
Cassandra, que não soube carregar o amor no colo e derrubou como
se arrasta o prato de comida na mesa. Enchi-me de amor até não
suportar. O que eu fiz foi resguardar o meu pão.
Pego uma caneta e um papel. Faço traços finos. Alguns retos, ou-
tros circulares. Imagino se esses rabiscos parecem com alguma coi-
sa. Mania de criança, isso de inventar o incriável ao olhar para a vida
real. Como ver dinossauros nas nuvens, acreditar, depois passar a
ver um morango gigante e acreditar novamente. Sempre acreditan-
do, e desacreditando, para acreditar ainda mais. Eu que já estou na
meia idade de mim, que nem é medida em anos, mas em sobrevivên-
cias, penso que a velhice parece mesmo com a infância. Às vezes, isso
é tristeza, mas outras vezes é salvação.
Neste instante me vem uma vaga lembrança daquela que fui. Da-
quela que sobrou de mim. Essa que eu voltei a ser. Nesse corpo que
é nada. Eu era Cassandra para quem me deu uma gramática que eu

fevereiro + março | 2018 25


pudesse escolher e saborear as palavras todas. Aquele que, com a
água do mar, batizou-me e então eu pude sentir: um coração, uma
respiração, a veia pulsando no pescoço, uma visão. Viva. Soube que
eu existia a partir dali. Um nascimento, mas em segredo.
“Vamos lá, agora você!”. Mas eu não podia. Era me dada a respon-
sabilidade de parir alguém que viria ao mundo e cresceria por luga-
res que eu ainda não conhecia. Eu não tinha útero. Só coração. Ain-
da recém-nascida, perdida, e deslumbrada com o que era o sangue
percorrendo nas artérias. “Agora não, depois.” Depois. Depois. Depois.
“Quando, Cassandra?” E eu nunca era agora, eu só era atraso. Achava
que dando nome a alguém, estaria abrindo caminhos e oferecendo o
labirinto pra chegar no âmago meu. Tive medo. Não sabia que os es-
paços já estavam todos preenchidos por alguém que já tinha nascido
em mim, só não tinha nome. Eu o neguei. Recusei por amor. Calei por
não saber que letras dar a alguém que era todo um alfabeto e sons.
Ele já ressuscitava, eu que nascia.
Mas sempre ao voltar em minha direção, trazia consigo a sensa-
ção de que eu continuava. Eu e meus átomos que funcionavam ainda
mais aflitos perto dele. Assim, descobri. A gente só pode ser, se tiver
alguém pra reafirmar essa certeza. Só dá pra se ver, se for no reflexo
do olho do outro. Só se tem um nome, se alguém te chamar por ele.
Então morri. Cassandra deve estar em alguma áurea perdida entre
os outros seis sóis do cosmos. Eu? Eu não sou. “Vamos, Cassandra!
Quero que seja entre seus lábios e seus dentes e seu timbre”. Depois.
Depois. Depois. Entre um até logo e um adeus. Entre um pedido e um
abandono. Dessa vez, ele não mais me encontrou. Depois: e depois
eu fiquei sem ter por quem chamar.

Karen Lima nasceu em São Paulo-SP, em 1994. Mora em Petrolina-PE desde 2000.
Jornalista pela UNEB, usa o lápis e a câmera fotográfica para revelar a grandeza das
pessoas. Também esconde textos no blog pravacadormir.blogspot.com.br.

26 número catorze
Ela é tão bonita desligada
Nathalie Lourenço

Coloquei Joyce no Mercado Livre, mas ninguém comprou. É um


tanto difícil vender objetos em que seu esperma já tenha tocado.
Mesmo que sua avaliação de vendedor beire os 90% e você esclareça
que ela passou pelos procedimentos de limpeza necessários. Para as
ginoides, a virgindade é ainda mais valorizada que nas mulheres de
carne, não só pelo momento de romper a entrada de silicone, o equi-
valente a tirar a película de um novo celular, e sim porque custam a
desaprender os hábitos sexuais de seus antigos donos.
Com a falta de compradores, me resignei a colocá-la no pequeno
depósito que havia no apartamento que aluguei junto com Deborah.

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Foi uma coisa triste. No modelo de Joyce (N’Joy 5, wireless, com ba-
teria que recarrega com o movimento do corpo), o botão de desliga
fica na nuca, e precisa ser pressionado por quase 20 segundos. É um
asfixiamento, os olhos em segundos perdendo a inteligência, o corpo
endurecendo em uma posição fixa. Fiz isso uma única vez, quando
mamãe veio passar alguns dias em São Paulo, e a escondi debaixo da
cama. Tinha um medo irracional que o corpo começasse a cheirar e
Joyce fosse descoberta. Lógico que não aconteceu. Ainda assim, nun-
ca mais tive estômago para desligá-la. Outra vez me acovardei. Dei-
xei-a só, junto aos produtos de limpeza e o resto de caixas abertas da
mudança. Deborah tem horror a ela, perdi a conta de quantas vezes
ela deixava espatifar de noite um copo d’água, ao topar com Joyce na
área de serviço. Agora que o apartamento era terreno neutro, tive
que ceder. Não que Deborah tivesse razões para se preocupar.
No começo, é claro, tivemos uma fase de lua de mel. Abri com uma
faca de serra a caixa onde ela vinha, pedaços imersos em cobrinhas
de isopor. Encaixei tudo às pressas. A comi antes de sequer dar a
primeira carga na bateria. Era tão bonita, desligada. Ainda sem os
cílios, as unhas e sobrancelhas, que fui achar mais tarde no fundo
da caixa, passada a urgência. Por três ou quatro meses fomos lou-
cos um pelo outro. Eu, de verdade, ela, por causa da opção behavio-
ral número 3. Como Joyce não anda, eu a carregava da sala para o
quarto, do quarto para a cozinha. Fazíamos tudo juntos. Aos pou-
cos, comecei a deixá-la para dormir na sala. Acabou que depois de
uns seis meses não fazíamos mais do que ver televisão. Eu, fazendo
pequenos comentários, ela, puxando informações sobre os atores
no IMDB. Comecei a achá-la monótona. Tudo que fazia era para me
agradar e isso era justamente o que mais me desagradava. Joyce não
podia fazer nada a respeito. Responder segundo os scripts que tinha
acumulado sobre meus gostos por tantos meses era inevitável. Os
scripts não compreendiam que já me irritava aquele mesmo jeito de
rir-olhar-pro-lado-pegar-minha-mão, demoravam a se reescrever. E
então, Deborah. De carne e osso e proporções agradavelmente as-
simétricas. Me pareceu curioso como minhas mãos afundavam ao
pressionar suas coxas. Seu calor era discreto e, em vez do zumbido
constante, seu corpo emitia pequenos gorgolejos. Já na segunda vez
que saí com Deborah, tivemos uma briga estúpida sobre a gorjeta do

28 número catorze
valet. Foi maravilhoso. Deborah tinha pernas que funcionavam bem
e que a levavam para longe de mim. Agora você a vê. Agora não.
Quando Deborah vinha em casa, cobria Joyce com um lençol e a
deixava na área de serviço. Àquela altura era bastante normal que
homens tivessem ginoides, mas você sabe como são as mulheres.
Joyce sempre foi muito orgulhosa. Nessas horas, não dizia nada e até
mesmo silenciava a função despertador na manhã seguinte. As coisas
foram ficando mais sérias, e a ginoide, quieta, sempre lá. Eu ainda
tinha carinho por ela, não via motivos para me desfazer. Vez ou outra,
tirava os casacos e camisas que seriam postas pra lavar que andavam
pendurados em seus ombros e a trazia para ver algum episódio de
uma série favorita. Já não puxava informações e curiosidades da in-
ternet. Foi aprendendo o silêncio. Ontem, Deborah me perguntou se
tínhamos esponjas e amaciante. Topei com Joyce no escuro do quar-
tinho. Tinha na mão uma garrafa de cloro ativo, que acariciava de for-
ma frenética, para cima e para baixo, como tinha aprendido que eu
gostava, tempos atrás. Os cílios começavam a descolar da pálpebra,
mas ainda subiam e baixavam. Me pareceu terrivelmente só.
A página no Mercado Livre seguia sem interessados, por isso, re-
duzi mais uma vez o preço. Na tela direita, na barra de relacionados,
havia anúncio de um androide, modelo um pouco mais antigo, robus-
to, pelo preço que eu pagaria em um jantar, se tomasse café e sobre-
mesa. Chamava-se Caetano e o estado parecia excepcional. Androides
usados são ainda mais difíceis de revender. Acabei encomendando.
Deborah me ajudou a tirar as caixas que restavam no depósito (então,
era aí que estava a panela de pressão?) para abrir espaço. Ligamos
Caetano e esperamos que algo acontecesse. Nada. Eram programa-
dos para aprender, não ensinar. Alteramos o modo behavioral para
estritamente físico e neste momento começaram a se entender. Por
alguns minutos, de mãos dadas, observamos. Em Joyce o arranhar, a
perna erguida, todos os gestos feitos ainda pra mim. Em Caetano, um
puxar de cabelo, um roçar com as costas da mão, as sombras de uma
antiga dona. Nenhum dos dois se daria conta.

Nathalie Lourenço nasceu em São Paulo-SP, 1984. Publicitária, publicou em 2017


o livro Morri por educação (Oito e Meio). Foi publicada em revistas como Philos,
Blecaute, Flaubert, Subversa e outras. Escreve crônicas em medium.com/@ridicula

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Pontes
Sabrinna Alento Mourão

De fato!, eu responderia, rindo, enquanto ele (outrora tão robus-


to, barba crescida e cabelo rebelde, parecido com o Raul – o Seixas,
que o Castro ele detestava, apesar de ser um Castro, só que vindo
dos recônditos do agreste) contava uma história sem graça sobre
os presidentes da década de noventa depois de me contar que per-
deu a virgindade com uma mulher casada em troca de uma garrafa
de toucinho. Eu, pernas cruzadas e os braços também, ar distante,
dois anos passados na cidade grande, quase completando vinte anos
de idade. Eu que, fugida, bebia cachaça em espeluncas empoeiradas
no Ceará. Dezessete anos nos couros, cara de quinze, muito Belchior

30 número catorze
nos ouvidos já deficientes, algumas poesias dickinsonianas na ponta
da língua inglesa das gringas de Iracema. Versuvius at home. Eu que,
alimentada e acolhida pelas sapatonas sindicalistas que me leva-
vam às passeatas e protestos, gritava coisas vermelhas e igualitárias
enquanto bebia a cerveja com a estrelinha da revolução e o cigarro
do camelo (de filtro vermelho, claro) em plena crise e Guararapes,
olhando de soslaio aqueles que nos assistiam de suas calçadas, em-
brulhados em seus mantos e lençóis manchados de sangue de briga
ou de pneumonia e úmidos de chuva e mijo de rato, sem entende-
rem tchongas. Esbravejo Fora, Medo! enquanto espero meu sanduí-
che de picanha ficar pronto. Juventude transviada!, alguém grita. Já
muito bêbada, gargalho. Pode crer, cara, eu sou mesmo um tiro pela
culatra do caralho. Eu juro que fiz de tudo e mais um pouco, não é
assim que dizem? Tudo e mais um pouco. Mas fazer o quê, se eu era
dessas menininhas piegas que fazia universidade & poesia & recebia
elogios maçantes tipo nossa-você-brinca-deslumbrantemente-com
-a-última-flor-do-Lácio? De fato!, eu responderia, rindo, pernas cru-
zadas e os cotovelos pousados na mesa, esperando minha apoptose
enquanto te desejo lembranças e felicidades num fim de bilhete de
aniversário que escrevo diretamente da ponta submersa desse ice-
berg monumental chamado seguir adiante.

Sabrinna Alento Mourão nasceu em Parnaíba-PI, 1997. É estudante de Ciências


Sociais. Tem textos publicados na plataforma Escrever sem Fronteiras e publicou o
livro de contos IN VIVO pela Livrinho de Papel Finíssimo em 2017.

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textos:
André Balaio
Angélica de Barros
Antonio Cláudio Neto
Augusto Darde
Caio Russo
Felipe Teodoro
Fillipe Rodrigues
Karen Lima
Nathalie Lourenço
Sabrinna Alento Mourão

ilustrações:

Victor Zalma
incentivo:

32 número catorze

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