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EDIÇÃO, DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO TEXTOS
Thiago Corrêa Ramos André Balaio, Angélica de Barros,
CONSELHO EDITORIAL Antonio Cláudio Neto,
Cristhiano Aguiar, Hugo Viana, Augusto Darde, Caio Russo,
Joana Rozowykwiat, Felipe Teodoro, Fillipe Rodrigues,
Thiago Corrêa Ramos Karen Lima, Nathalie Lourenço,
VACATUSSA Sabrinna Alento Mourão.
site: vacatussa.com
e-mail: vacatussa@gmail.com ILUSTRAÇÕES
endereço: Rua Setúbal, 914 / Victor Zalma
1002, Boa Viagem, Recife-PE, ISSN 2359-1609
51030-010 Periodicidade: Bimestral
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sumário
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motorista, repórter. Não pôde assistir, foi expulso da calçada, pre-
cisou de abrigo na avenida duas quadras adiante. Agora entrava no
palacete, sentia o que os convidados sentiram, admirava as luzes da
fonte e os enfeites do jardim, mesmo que a fonte estivesse sem água,
imunda, cheia de lodo, e o mato cobrisse o que antes era o jardim.
A porta da frente se abriu para um salão enorme que parecia ain-
da maior por estar vazio. O lustre sujo deve ter refletido a luz em
muitas barras de vestido que dançaram no piso de mármore agora
preto de fuligem e poeira. Na escada ainda imponente, uma mulher
bonita desce para lhe conceder a dança. Ele assobia o Danúbio azul,
ergue Elvis e o segura no dorso para uma valsa limitada pelo curto
alcance das patas traseiras. O garçom se aproxima com uma dose
de uísque, outro traz comida e ele se farta de canapés, rissoles e ca-
marões. Um senhor grisalho de smoking aparece, deve ser o dono,
e pergunta quem ele é. Oséias não pode dizer o nome, é um Silva
que só entra numa festa assim para trabalhar, por isso responde sou
o embaixador, não, sou o primeiro-ministro. De onde? Lembrou de
um velho filme com o rei Arthur que viu no cinema quando ainda
morava numa casa e tinha mulher e filhos, havia uma ilha, Avalon,
então ele é o primeiro-ministro de Avalon, resposta que deixa o grã-
fino boquiaberto e o faz chamar a esposa, querida, lhe apresento o
ministro... como é mesmo o seu nome? Oséias Lancelot. E pega uma
garrafa com o garçom que bebe no gargalo até o fim.
A luz do sol atravessa a ausência das telhas e acerta a cara, arde a vis-
ta, queima a pele, assim não dá pra dormir. Levanta e vai para um lugar
protegido. Vem, Elvis, grita para o amigo, e forra o chão com pano velho
para não se cortar com os cacos de vidro que caem das janelas.
Acordou de novo, puta que pariu, agora é um motor ligado. O sol
não era mais uma bola amarela, era preta, o barulho lembrou aque-
les monstros de filme japonês que invadem a cidade, vão pisando
nas casas e derrubando prédios, sim, gostava de cinema quando era
mais moço e tinha dinheiro. Por que a bola de ferro bate na coluna?
Começou a cair o mundo justamente onde estava deitado, ficou
coberto de pedaços de alvenaria no meio do pó de gesso. Tentou se
levantar para correr, mas as pernas estavam presas, gritou e saiu um
fiapo de voz, falou para o companheiro: sai daí, rapaz. Sai.
André Balaio nasceu no Recife-PE, 1968. É escritor e roteirista. Venceu o Off Flip 2016
com o conto O lado de lá, foi finalista do SESC 2017 (contos), do Prêmio Cepe e terceiro
lugar no concurso da UBE – RJ 2017 com Quebranto, livro que sairá em 2018.
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A dieta de Francisca
Angélica de Barros
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e tentei dormir, mas lógico que não consegui. Francisca ainda estava
dentro de mim. Talvez tivesse razão. Ela estava morta, mas com den-
tes. Alguma coisa, por mais insólita e grotesca, ainda podia nutri-la,
nem que fossem alucinações, nem que fossem besouros.
Os gritos dos meninos sujos desapareceram logo e aos poucos, pela
estrada árida, Francisca também desapareceu. Alguma hora adormeci
e quando abri os olhos, o chão estava coberto por besouros.
10 número catorze
O rio que corre no teu quintal desfez meus planos de outros
lugares, mas ainda quero ganhar o mundo. Embora teu peito, en-
costo necessário, tenha me ensinado a ter paciência, não saber ao
certo quando esquecer me ocupa a sala de estar. É o rio que nasce
nos meus olhos no momento em que me despeço – porque me
deixou ir embora feito astronauta, enquanto habitávamos o mes-
mo lugar no espaço. E ainda que eu te olhasse com todo cuidado,
pedindo pra correnteza não acabar com a gente, precisaríamos
desaguar. Rápido. Como quem deixa de ser rio e aprende a voar.
Fica suspenso. Feito nuvem. Mas quando voltei a sentir os escom-
bros da represa que se rompia, pude conseguir tua boca com a
ponta do meu nariz.
Eu sou um rio que em você represa.
A última camada da tua colcha de retalhos era a da permanên-
cia, parece que todos os tamanhos estavam corretos. Outra canção
sobre estar. Tua desordem é agora o meu devir. Infantaria para noi-
tes sóbrias. Fratura nas minhas sobreposições de enfrentamentos.
Eu sou uma música curta e sussurrada. Meu solo começa no chão.
Olhando pra cima; tentando te alcançar. Tu, qualquer canção sobre
descansar e pronto. Eu sou uma música de dois minutos e meio. A
última do disco.
Acima da cidade, teu beijo. Com a duração de um incenso de âm-
bar, que é o tempo do seu amor, que é o cheiro e a cor. Sabor do chá
de frutas do bosque. Um retrato pra guardar teus cuidados sob os
meus dias. Encosta.
O corpo começa a pedir. O copo começa a perder.
Meus pulsos não se firmaram porque me ensinou a fazer sem
usar as mãos. Agora, estranho é estancar o córrego sem teu sotaque
freando qualquer suposta ansiedade. Ou falta de prática. O tempo só
existe quando estamos prestes a partir – ao meio. Pra perto de tudo
que é desencontro. E só então pude entender que não fomos feitos
para sobrevivermos juntos. No curto espaço entre o pulo e a queda,
o sol mirando todas as sombras de dúvidas nos teus olhos lindos –
rasgados pelo medo de sentir que é pouco. A distância é um soco que
esconde o impacto e excede no sentir da dor.
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Um quintal, um sofá, um litoral
Augusto Darde
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Costumes
Caio Russo
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da pela fala desavisada de alguma visita que não entendera, verda-
deiramente, nossa religião familiar, transgredindo nosso silêncio
marejado de costumes. A inconveniência da visita era recebida com
um inopinado desprezo manso, perguntas como “Vocês acham que
esse ano está mais quente que o ano passado, quando a gente veio
para o Rancho?” eram respondidas – quando respondidas – por um
simples “é”, às vezes um “talvez”, dito no fundo da garganta, mais
preenchido por mudez que por voz. Apenas os comentários sobre
os pernilongos eram permitidos, “quanto pernilongo”, desde que es-
paçados ao longo das horas. Havia uma ética implícita no cotidiano
aparentemente banal de nossa família. A pressa de cada movimento
no jantar se transubstanciava, lentamente, numa moleza generaliza-
da. Ninguém parecia estar ali de verdade, eram só uns esboços meio
incompletos de um desenho esquecido numa gaveta da casa. Só a
face do meu avô continuava intacta, gasta como um papel envelhe-
cido em que alguém escrevera, por linhas tortas, rugas sulcadas ao
redor da boca, destacando cada curva da pele magra, como um solo
arado por um preguiçoso que ia deixando pela metade o plantio do
tempo, abrindo a terra aqui, fechando acolá.
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sendo sincero. Depois você vai guardar o dinheiro na jaqueta e pegar
o máximo de coisas que tiver ao seu alcance. Põe tudo na mochila e
vaza. Vaza e nunca mais volta nessa merda de farmácia. Ninguém vai
precisar se machucar. Vai ser tudo tranquilo. Ok?
Caminha até a farmácia, o coração acelerado, a cabeça quase explodindo.
O velho atrás do balcão acena e diz boa noite. Ficam frente a fren-
te. João está tremendo. Tem dúvidas sobre o que fazer. Enfia a mão
no bolso num movimento automático e tira a receita médica. O ve-
lho nem pede pra verificar, sabe quais remédios ele quer. Há seis
meses João vai até aquela farmácia todo quinto dia útil do mês para
comprar a medicação para a mãe inválida. Dá a volta e desaparece
por alguns segundos. Nesse tempo, uma gota de suor frio escorre da
testa de João. Ele olha pros lados para confirmar que estão sozinhos.
Analisa o que tanto consegue pegar. Salgadinhos. Chocolates. Há
também uma caixa cheia de remédios pra gripe que com certeza ele
consegue vender pra alguém. Tenta não pensar nas consequências
do crime. Só assim é possível realizar tal façanha. Sem se preocupar
com o depois. Agir como se só existisse o agora. Fica frio, fica frio, ele
pensa enquanto bate com os dedos no balcão. E o velho volta com os
medicamentos, coloca tudo em uma sacola plástica e diz quarenta e
cinco reais. João entende que aquele é o momento decisivo. Tudo ou
nada. Você tira a arma e mira na cabeça dele. Pede o dinheiro, pega
o remédio e o que mais você conseguir e aí vaza. Vaza e não volta.
Nunca mais passa perto dessa maldita farmácia. Esse é o plano. Fica
frio, vai ser rápido, é tranquilo.
Enfia a mão por baixo da blusa e infinitas possibilidades passam
em sua cabeça. Um cliente que abre a porta e entra bem na hora. Um
grito de desespero e ele assustado atira. Estoura os miolos do velho.
A bala atravessa a cabeça e deixa um furo bem no meio da testa. O
velho que reage, pegando o 38 antigo embaixo do balcão e acertando
seu peito. João cai no chão e o mundo gira. A escuridão toma conta.
A mãe sozinha no quarto recebendo a ligação, seu filho tá morto,
tentativa de assalto. A mãe no IML reconhecendo seu corpo. É aque-
le ali, com a tatuagem no pescoço. O corpo sendo enfiado na gaveta
após a identificação. Os amigos vestindo preto. As lágrimas. A terra.
Os vermes. O inferno. Rios de fogo. O capeta. Tortura eterna. Vê tudo
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Pequenas fatias de vida
Fillipe Rodrigues
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Eu ainda continuo aqui. Fazendo os mesmos trabalhos, usando as
mesmas roupas, comendo a mesma comida. A diferença é que agora
estou mais velho, querido.
Imagino se você envelheceu também ou se continuou pra sempre
do jeito que eu lembro de você.
Com o passar dos anos aqui dentro tenho usado cada vez mais
minha imaginação pra criar meu próprio refúgio e você, mesmo que
com os contornos borrados pela minha memória frágil, está sempre
nele. Principalmente nos dias de céu azul com nuvens brancas.
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nho-claro, essa morte bebida a conta-gotas, esse cheiro de mofo pela
casa. Não sou mais Cassandra. Sou só saudade de quem me deu um
nome e uma vida.
Fui Cassandra durante um ano e nove meses. Um amor e uma vida
germinada, pronta pra nascer. Eu quis ter filhos, escrever um livro,
entrar no teatro e cantar algumas músicas pra ele ouvir. Só de pai-
xão. Nem por mim nem pelo mundo. Muito menos pelos rastros que
ficarão no fechamento de meu túmulo.
O meu nome me dava direito de ser quem eu era. Como nunca
soube ser qualquer coisa, não suportei o peso de mim mesma. A in-
finitude me causava medo. Agora, olho as paredes e só vejo finito.
O branco da tinta reflete na alma, atinge os olhos e arde. A lágrima
desce ligeira, mas a minha testa não franze, meus olhos não fecham,
minhas bochechas intactas e minhas mãos continuam na asa da xí-
cara de café, que já esfriou.
Tenho vontade de pegar o telefone e discar pra qualquer um que
atenda e escute a minha voz, que nem me recordo se é grave ou agu-
da. Desejo inútil. Não paguei a conta telefônica dos últimos meses
e nem sequer recebo mais ligações. Isso me conforta. É um jeito de
me enganar, como se fosse escolha minha essa solidão. A culpa é de
Cassandra, que não soube carregar o amor no colo e derrubou como
se arrasta o prato de comida na mesa. Enchi-me de amor até não
suportar. O que eu fiz foi resguardar o meu pão.
Pego uma caneta e um papel. Faço traços finos. Alguns retos, ou-
tros circulares. Imagino se esses rabiscos parecem com alguma coi-
sa. Mania de criança, isso de inventar o incriável ao olhar para a vida
real. Como ver dinossauros nas nuvens, acreditar, depois passar a
ver um morango gigante e acreditar novamente. Sempre acreditan-
do, e desacreditando, para acreditar ainda mais. Eu que já estou na
meia idade de mim, que nem é medida em anos, mas em sobrevivên-
cias, penso que a velhice parece mesmo com a infância. Às vezes, isso
é tristeza, mas outras vezes é salvação.
Neste instante me vem uma vaga lembrança daquela que fui. Da-
quela que sobrou de mim. Essa que eu voltei a ser. Nesse corpo que
é nada. Eu era Cassandra para quem me deu uma gramática que eu
Karen Lima nasceu em São Paulo-SP, em 1994. Mora em Petrolina-PE desde 2000.
Jornalista pela UNEB, usa o lápis e a câmera fotográfica para revelar a grandeza das
pessoas. Também esconde textos no blog pravacadormir.blogspot.com.br.
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Ela é tão bonita desligada
Nathalie Lourenço
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valet. Foi maravilhoso. Deborah tinha pernas que funcionavam bem
e que a levavam para longe de mim. Agora você a vê. Agora não.
Quando Deborah vinha em casa, cobria Joyce com um lençol e a
deixava na área de serviço. Àquela altura era bastante normal que
homens tivessem ginoides, mas você sabe como são as mulheres.
Joyce sempre foi muito orgulhosa. Nessas horas, não dizia nada e até
mesmo silenciava a função despertador na manhã seguinte. As coisas
foram ficando mais sérias, e a ginoide, quieta, sempre lá. Eu ainda
tinha carinho por ela, não via motivos para me desfazer. Vez ou outra,
tirava os casacos e camisas que seriam postas pra lavar que andavam
pendurados em seus ombros e a trazia para ver algum episódio de
uma série favorita. Já não puxava informações e curiosidades da in-
ternet. Foi aprendendo o silêncio. Ontem, Deborah me perguntou se
tínhamos esponjas e amaciante. Topei com Joyce no escuro do quar-
tinho. Tinha na mão uma garrafa de cloro ativo, que acariciava de for-
ma frenética, para cima e para baixo, como tinha aprendido que eu
gostava, tempos atrás. Os cílios começavam a descolar da pálpebra,
mas ainda subiam e baixavam. Me pareceu terrivelmente só.
A página no Mercado Livre seguia sem interessados, por isso, re-
duzi mais uma vez o preço. Na tela direita, na barra de relacionados,
havia anúncio de um androide, modelo um pouco mais antigo, robus-
to, pelo preço que eu pagaria em um jantar, se tomasse café e sobre-
mesa. Chamava-se Caetano e o estado parecia excepcional. Androides
usados são ainda mais difíceis de revender. Acabei encomendando.
Deborah me ajudou a tirar as caixas que restavam no depósito (então,
era aí que estava a panela de pressão?) para abrir espaço. Ligamos
Caetano e esperamos que algo acontecesse. Nada. Eram programa-
dos para aprender, não ensinar. Alteramos o modo behavioral para
estritamente físico e neste momento começaram a se entender. Por
alguns minutos, de mãos dadas, observamos. Em Joyce o arranhar, a
perna erguida, todos os gestos feitos ainda pra mim. Em Caetano, um
puxar de cabelo, um roçar com as costas da mão, as sombras de uma
antiga dona. Nenhum dos dois se daria conta.
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nos ouvidos já deficientes, algumas poesias dickinsonianas na ponta
da língua inglesa das gringas de Iracema. Versuvius at home. Eu que,
alimentada e acolhida pelas sapatonas sindicalistas que me leva-
vam às passeatas e protestos, gritava coisas vermelhas e igualitárias
enquanto bebia a cerveja com a estrelinha da revolução e o cigarro
do camelo (de filtro vermelho, claro) em plena crise e Guararapes,
olhando de soslaio aqueles que nos assistiam de suas calçadas, em-
brulhados em seus mantos e lençóis manchados de sangue de briga
ou de pneumonia e úmidos de chuva e mijo de rato, sem entende-
rem tchongas. Esbravejo Fora, Medo! enquanto espero meu sanduí-
che de picanha ficar pronto. Juventude transviada!, alguém grita. Já
muito bêbada, gargalho. Pode crer, cara, eu sou mesmo um tiro pela
culatra do caralho. Eu juro que fiz de tudo e mais um pouco, não é
assim que dizem? Tudo e mais um pouco. Mas fazer o quê, se eu era
dessas menininhas piegas que fazia universidade & poesia & recebia
elogios maçantes tipo nossa-você-brinca-deslumbrantemente-com
-a-última-flor-do-Lácio? De fato!, eu responderia, rindo, pernas cru-
zadas e os cotovelos pousados na mesa, esperando minha apoptose
enquanto te desejo lembranças e felicidades num fim de bilhete de
aniversário que escrevo diretamente da ponta submersa desse ice-
berg monumental chamado seguir adiante.
ilustrações:
Victor Zalma
incentivo:
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