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CRÔNICAS- LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO

Elaboração das atividades Giovana B F Picolo


Insta @ana.voig.1
A metamorfose
Luís Fernando Veríssimo
Uma barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano.
Começou a mexer suas patas e viu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de
articulação difícil. Não tinha mais antenas. Quis emitir um som de surpresa e sem querer deu
um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las,
mas não coube atrás do móvel. O seu segundo pensamento foi: “Que horror… Preciso acabar
com essas baratas…”
Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia seu instinto.
Agora precisava raciocinar. Fez uma espécie de manto com a cortina da sala para cobrir sua
nudez. Saiu pela casa e encontrou um armário num quarto, e nele, roupa de baixo e um
vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para uma ex-barata. Maquiou-se. Todas as
baratas são iguais, mas as mulheres precisam realçar sua personalidade. Adotou um nome:
Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não bastava. A que classe pertencia?…
Tinha educação?…. Referências?… Conseguiu a muito custo um emprego como faxineira. Sua
experiência de barata lhe dava acesso a sujeiras mal suspeitadas. Era uma boa faxineira.
Difícil era ser gente… Precisava comprar comida e o dinheiro não chegava. As baratas
se acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos não. Conhecem-se, namoram,
brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar ? Conseguir
casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama, mesa e banho. Vandirene casou-se, teve
filhos. Lutou muito, coitada. Filas no Instituto Nacional de Previdência Social. Pouco leite. O
marido desempregado… Finalmente acertou na loteria. Quase quatro milhões ! Entre as
baratas ter ou não ter quatro milhões não faz diferença. Mas Vandirene mudou. Empregou o
dinheiro. Mudou de bairro. Comprou casa. Passou a vestir bem, a comer bem, a cuidar onde
põe o pronome. Subiu de classe. Contratou babás e entrou na Pontifícia Universidade
Católica.
Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado em barata. Seu penúltimo
pensamento humano foi : “Meu Deus!… A casa foi dedetizada há dois dias!…”. Seu último
pensamento humano foi para seu dinheiro rendendo na financeira e que o safado do marido,
seu herdeiro legal, o usaria. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel.
Não pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu cinco minutos depois , mas foram os
cinco minutos mais felizes de sua vida.
Kafka não significa nada para as baratas…
1 O que significa metamorfose?

2 O título está adequado ao texto? Argumente.

3 Por que a barata se preocupou com tantas coisas (referências, educação, classe)?

4 Você pensa que o ser humano raciocina tanto quanto fala no texto? Comente.

5 Por que Valdirene começou a “cuidar onde põe o pronome”?

6 A classe social faz com que as pessoas mudem? Esclareça.

7 O que teria levado Valdirene a pensar no dinheiro antes de morrer? Levante hipóteses.

8 As pessoas são apegadas aos seus bens materiais? Justifique sua resposta.
9 O que teria levado a barata a morrer “feliz”? Levante suposições e comente-as.

10 Transforme a crônica em HQ. Seja criativo.

Incidente na casa do Ferreiro


Luís Fernando Veríssimo
Pela janela vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho. Dois ou três
olham o rabo do vizinho, mas a maioria cuida do seu. Há também um estranho moinho,
movido por águas passadas. Pelo mato, aparentemente perdido – não tem cachorro – passa
Maomé a caminho da montanha, para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do
enforcado e o ferreiro tomam chá.
Ferreiro – Nem só de pão vive o homem.
Filho do enforcado – Comigo é pão, pão, queijo, queijo.
Ferreiro – Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão. Cuidado.
Filho do enforcado – Por quê?
Ferreiro – É uma faca de dois gumes.
(Entra o cego).
Cego – Eu não quero ver! Eu não quero ver!
Ferreiro – Tirem esse cego daqui!
(Entra o guarda com o mentiroso).
Guarda (ofegante) – Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.
Cego – Eu não quero ver!
(Entra o vendedor de pombas com uma pomba na mão e duas voando).
Filho do enforcado (interessado) – Quanto cada pomba?
Vendedor de pombas – Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60 o par.
Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas) – Não me mostra que eu não
quero ver.
(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são
três pombas voando sob o telhado de vidro da casa).
Ferreiro – Esse cego está cada vez pior!
Guarda – Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem com uma
corda.
Filho do enforcado (com raiva) – Na minha casa você não diria isso!
(O guarda fica confuso, mas resolve não responder. Sai pela porta e volta em seguida).
Guarda (para o ferreiro) – Tem um pobre aí fora que quer falar com você. Algo sobre
uma esmola muito grande. Parece desconfiado.
Ferreiro – É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus, mas acho que exagerei.
(Entra o pobre).
Pobre (para o ferreiro) – Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor me deu. O que
é que o senhor está querendo? Não sei não. Dá para desconfiar…
Ferreiro – Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.
Cego – Essa eu nem quero ver…
(Entra o mercador).
Ferreiro (para o mercador) – Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar o mentiroso
com uma… (Olha para o filho do enforcado). A amarrar o mentiroso.
Mercador (com a mão atrás da orelha) – Hein?
Cego – Eu não quero ver!
Mercador – O quê?
Pobre – Consegui! Peguei uma pomba!
Cego – Não me mostra.
Mercador – Como?
Pobre – Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto.
Mercador – Hein?
Ferreiro (perdendo a paciência) – Me dêem uma corda. (O filho do enforcado vai
embora, furioso).
Pobre (para o ferreiro) – Me arranja um espeto de ferro?
Ferreiro – Nesta casa só tem espeto de pau.
(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do enforcado, e pega na
perna do mentiroso. O mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas voam
pelo buraco no telhado).
Mentiroso (antes de sair) – Agora quero ver aquele guarda me pegar!
(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás).
Ferreiro – Como é que você entrou aqui?
Último – Arrombei a porta.
Ferreiro – Vou ter que arranjar uma tranca. De pau, claro.
Último – Vim avisar que já é verão. Vi não uma mas duas andorinhas voando aí fora.
Mercador – Hein?
Ferreiro – Não era andorinha, era pomba. E das baratas.
Pobre (para o último) – Ei, você aí de um olho só…
Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) – Meu rei.
Mercador – O quê?
Ferreiro – Chega! Chega! Todos para fora! A porta da rua é serventia da casa!
(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à parede. Mas o último
protesta).
Último – Parem! Eu serei o primeiro.
(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás).
Cego – Meu rei! Meu rei!
1 Explique as metáforas:

a- Cada macaco no seu galho

b- Olham o rabo do vizinho

2 O que significa ser “movido por águas passadas”?

3 Por que o homem não vive só de pão? De que mais ele precisa para viver?

4 O que significa uma faca de dois gumes?

5 As pombas que estão voando podem ser vendidas? O vendedor sabe fazer marketing?
Argumente.

6 No texto são citados alguns provérbios. Retire 5 e comente-os.

7 O que dá humor à crônica? Comente.

8 O título está adequado? Argumente.


9 Troque ao menos 2 ditados por outros de igual valor.

10 Afinal, qual era o incidente?

Cuia
Luís Fernando Veríssimo
Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé ― segundo ele, “mais prestimosa que
mãe de noiva” ―, tem sempre uma chaleira com água quente pronta para o mate. O analista
gosta de oferecer chimarrão a seus pacientes e, como ele diz, “charlar passando a cuia, que
loucura não tem micróbio”. Um dia entrou um paciente novo no consultório.
― Buenas, tchê ― saudou o analista. ― Se abanque no más.
O moço deitou no divã coberto com um pelego e o analista foi logo lhe alcançando a
cuia com erva nova. O moço observou:
― Cuia mais linda.
― Cosa mui especial. Me deu meu primeiro paciente. O coronel Macedônio, lá pras
banda de Lavras.
― A troco de quê? ― quis saber o moço, chupando a bomba.
― Pues tava variando, pensando que era metade homem e metade cavalo. Curei o
animal.
― Oigalê.
― Ele até que não se importava, pues poupava montaria. A família é que encrencou
com a bosta dentro de casa.
― A la putcha.
O moço deu outra chupada, depois examinou a cuia com mais cuidado.
― Curtida barbaridade. ― Também. Mais usada que pronome oblíquo em conversa
de professor.
― Oigatê.
E a todas estas o moço não devolvia a cuia. O analista perguntou:
― Mas o que é que lhe traz aqui, índio velho?
― É esta mania que eu tenho, doutor.
― Pos desembuche.
― Gosto de roubar as coisas.
― Sim.
Era cleptomania. O paciente continuou a falar, mas o analista não ouvia mais.
Estava de olho na sua cuia.
― Passa ― disse o analista.
― Não passa, doutor. Tenho esta mania desde piá.
― Passa a cuia.
― O senhor pode me curar, doutor?
― Primeiro devolve a cuia.
O moço devolveu. Daí para diante, só o analista tomou chimarrão. E cada vez que o
paciente estendia o braço para receber a cuia de volta, ganhava um tapa na mão.

1 O analista realmente curava? Levante hipóteses.

2 O pronome oblíquo realmente é usado pelos professores? Cite alguma situação de fala.

3 Caracterize o analista.
4 Qual o contraste entre o personagem e a profissão do protagonista da crônica?

5 No 22º parágrafo a palavra é entendida com sentido duplo. Explique os dois sentidos
pressupostos de acordo com cada personagem.

6 O que teria levado o analista a tomar mate sozinho? Argumente.

7 O tapa na mão cura? Levante hipóteses.

8 Escreva um final para a crônica.

9 Que características precisa ter um psicanalista?

O homem trocado
Luís Fernando Veríssimo
O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há
uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.
– Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.
– Eu estava com medo desta operação…
– Por quê? Não havia risco nenhum.
– Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos... E conta que
os enganos começaram com seu nascimento.
Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de
orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos.
Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois
o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê
chinês.
– E o meu nome? Outro engano.
– Seu nome não é Lírio?
– Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e... Os enganos se sucediam.
Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso,
mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não
apareceu na lista.
– Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado
tive que pagar mais de R$ 3 mil.
– O senhor não faz chamadas interurbanas?
– Eu não tenho telefone!
Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes.
– Por quê?
– Ela me enganava.
Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não
fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer: - O senhor está
desenganado. Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma
simples apendicite.
– Se você diz que a operação foi bem…
A enfermeira parou de sorrir.
– Apendicite? - perguntou, hesitante.
– É. A operação era para tirar o apêndice.
– Não era para trocar de sexo?

1 Justifique o título do texto.

2 Você já passou por algum tipo de engano ou conhece alguém que tenha passado?
Comente.

3 Qual seria a sua atitude no lugar do homem?

4 Pode-se dizer que o personagem é azarado? Argumente.

5 O que você sentiu pelo protagonista? Por quê?

6 Você pensa que o personagem vê tudo de forma “normal”? Justifique.

7 O que acontece se a pessoa não opera a apendicite? Pesquise e comente.

8 O que levou o personagem a ficar feliz em saber que estava desenganado?

9 O que causa estranheza no nome do personagem? Comente.

10 O que pode ter acontecido com o personagem depois da descoberta? Seja criativo,
lembrando que a vida dele é uma constante.

Dois mais dois


Luís Fernando Veríssimo
O Rodrigo não entendia por que precisava aprender matemática, já que a sua
minicalculadora faria todas as contas por ele, pelo resto da vida, e então a professora
resolveu contar uma história.
Contou a história do Supercomputador. Um dia disse a professora, todos os
computadores do mundo serão unificados num único sistema, e o centro do sistema será em
alguma cidade do Japão. Todas as casas do mundo, todos os lugares do mundo terão
terminais do Supercomputador. As pessoas usarão o Supercomputador para compras, para
recados, para reservas de avião, para consultas sentimentais. Para tudo. Ninguém mais
precisará de relógios individuais, de livros ou de calculadoras portáteis. Não precisará mais
nem estudar. Tudo que alguém quiser saber sobre qualquer coisa estará na memória do
Supercomputador, ao alcance de qualquer um. Em milésimos de segundo a resposta à
consulta estará na tela mais próxima. E haverá bilhões de telas espalhadas por onde o
homem estiver, desde lavatórios públicos até estações espaciais. Bastará ao homem apertar
um botão para ter a informação que quiser.
Um dia, um garoto perguntará ao pai:
– Pai, quanto é dois mais dois?
– Não pergunte a mim – dirá o pai -, pergunte a Ele.
E o garoto digitará os botões apropriados e num milésimo de segundo a resposta
aparecerá na tela. E então o garoto dirá:
– Como é que sei que a resposta é certa?
– Porque Ele disse que é certa – responderá o pai.
– E se Ele estiver errado?
– Ele nunca erra.
– Mas se estiver?
– Sempre podemos contar nos dedos.
– O quê?
– Contar nos dedos, como faziam os antigos. Levante dois dedos. Agora mais dois.
Viu? Um, dois, três, quatro. O computador está certo.
– Mas, pai, e 362 vezes 17? Não dá para contar nos dedos. A não ser reunindo muita
gente e usando os dedos das mãos e dos pés. Como saber se a resposta d’Ele está certa? Aí o
pai suspirou e disse:
– Jamais saberemos…
O Rodrigo gostou da história, mas disse que, quando ninguém mais soubesse
matemática e não pudesse pôr o Computador à prova, então não faria diferença se o
Computador estava certo ou não, já que a sua resposta seria a única disponível e, portanto, a
certa, mesmo que estivesse errada, e... Aí foi a vez da professora suspirar.

1 A tecnologia pode substituir nossos conhecimentos? Argumente.

2 A cena retratada pela professora parece ser atual? Justifique.

3 A quem o “Ele” destacado no texto se refere?

4 O computador pode estar errado? Levante hipóteses.

5 Se bastasse um clique para termos as respostas corretas, por que há fake news?
Explique.

6 É correto não questionarmos as respostas que nos são oferecidas? Por quê?

7 Fale o que você entendeu sobre o último parágrafo do texto.

8 Você alguma vez fez uma pesquisa e se perguntou sobre a resposta encontrada?
Comente.

9 Que motivos teria a professora de chamar o Supercomputador e dizer que ele ficaria no
Japão? Levante hipóteses comentando-as.

10 A tecnologia tem nos deixado mais acomodados? Por quê?

11 Qual a importância do conhecimento em nossa vida?

A foto
Luís Fernando Veríssimo
Foi numa festa de família, dessas de fim de ano. Já que o bisavô estava morre não
morre, decidiram tirar uma fotografia de toda a família reunida, talvez pela última vez.
A bisa e o bisa sentados, filhos, filhas, noras, genros e netos em volta, bisnetos na
frente, esparramados pelo chão. Castelo, o dono da câmara, comandou a pose, depois tirou o
olho do visor e ofereceu a câmara a quem ia tirar a fotografia. Mas quem ia tirar a fotografia?
– Tira você mesmo, ué. – Ah, é? E eu não saio na foto?
O Castelo era o genro mais velho. O primeiro genro. O que sustentava os velhos.
Tinha que estar na fotografia. – Tiro eu - disse o marido da Bitinha. – Você fica aqui -
comandou a Bitinha. Havia uma certa resistência ao marido da Bitinha na família. A Bitinha,
orgulhosa, insistia para que o marido reagisse. "Não deixa eles te humilharem, Mário Cesar",
dizia sempre. O Mário Cesar ficou firme onde estava, do lado da mulher.
A própria Bitinha fez a sugestão maldosa: – Acho que quem deve tirar é o Dudu... O
Dudu era o filho mais novo de Andradina, uma das noras, casada com o Luiz Olavo. Havia a
suspeita, nunca claramente anunciada, de que não fosse filho do Luiz Olavo. O Dudu se
prontificou a tirar a fotografia, mas a Andradina segurou o filho. – Só faltava essa, o Dudu
não sair.
E agora? – Pô, Castelo. Você disse que essa câmara só faltava falar. E não tem nem
timer! O Castelo impávido. Tinham ciúmes dele. Porque ele tinha um Santana do ano.
Porque comprara a câmara num duty free da Europa. Aliás, o apelido dele entre os outros era
"Dutifri", mas ele não sabia.
– Revezamento - sugeriu alguém. – Cada genro bate uma foto em que ele não
aparece, e... A ideia foi sepultada em protestos. Tinha que ser toda a família reunida em volta
da bisa. Foi quando o próprio bisa se ergueu, caminhou decididamente até o Castelo e
arrancou a câmara da sua mão. – Dá aqui. – Mas seu Domício... – Vai pra lá e fica quieto. –
Papai, o senhor tem que sair na foto. Senão não tem sentido! – Eu fico implícito - disse o
velho, já com o olho no visor. E antes que houvesse mais protestos, acionou a câmara, tirou a
foto e foi dormir.

1 O que as fotos representam para nós?

2 As fotografias têm o mesmo valor de antigamente? Por quê?

3 As desavenças em família são comuns? Argumente.

4 Se a foto fosse feita hoje, teria todo esse impasse? Justifique.

5 Quem resolveu a situação? Por que você acha que ele tomou tal atitude?

6 O que significa estar “implícito”?

7 Na crônica há uma expressão coloquial, retire-a e depois coloque a oração em norma


culta.

8 Em toda família há alguém invejoso? Argumente.

9 As fofocas também acontecem dentro do seio familiar? Explique.

10 Como seria o texto se fosse na sua família? Descreva a cena.

Aviãozinho
Luís Fernando Veríssimo
A estratégia do falso aviãozinho que todas as mães do mundo ― literalmente: todas ―
usam para convencer o bebê a comer sua papinha e é tão antiga quanto o próprio avião, não
tem nenhuma lógica. Para começar, é pouco provável que um bebê na idade de comer
papinha sequer saiba o que é um avião. A mãe fazer o ruído do motor enquanto aproxima o
pseudoaviãozinho da sua boca não ajuda em nada, o bebê também não sabe como é barulho
de avião. Para ele aquilo é apenas outro barulho de mãe.
Em segundo lugar, não há qualquer razão para um bebê aceitar papinha de um avião
que não aceitaria de uma colher. No seu universo, avião e colher é a mesma coisa. Navio e
colher é a mesma coisa. Se o bebê, por um fenômeno de precocidade, se desse conta do
surrealismo da cena ― "Abre a boquinha que lá vai o aviãozinho"?! ― isso seria mais causa
para espanto do que para abrir a boca. Quem quer comer papinha com um avião se
aproximando da sua boca, fazendo barulho?
Pensando bem, nossa infância era cheia de surrealismo inconsciente, de ameaças e
sentenças que só não nos paralisavam de medo ou perplexidade porque não pensávamos
muito a respeito. Não me lembro de ficar muito impressionado com a informação de que eu
só não perdia a cabeça porque ela estava presa no corpo, por exemplo. Hoje, sim, penso
naquela terrível possível consequência da minha distração ― ir embora e deixar a cabeça em
algum lugar! Ou, já que o cérebro estava na cabeça, pelo menos a maior parte, me dar conta
que meu corpo tinha me esquecido. Sem poder gritar, sem poder sequer assoviar, já que os
pulmões tinham ido junto. Uma cabeça abandonada no mundo, incapaz de sequer se
alimentar.
A não ser, claro, que um aviãozinho surgisse, misteriosamente, do passado, carregado
de papinha, para me salvar. Pulseira dourada Mais lembranças inúteis. Tinha eu meus 7
anos... Se você quiser parar por aqui, tudo bem. Não, não, nenhum constrangimento. Vá ler o
resto do jornal, aqui você só estaria perdendo tempo. O que é isso? Eu entendo. Numa boa.
Eu mesmo só fico porque preciso botar o ponto final. Mas tinha eu meus 7 anos e morávamos
em Los Angeles. Meu pai lecionava na Ucla, eu e minha irmã frequentávamos uma escola
perto de casa. E me apaixonei por uma menina da escola. Uma daquelas paixões dos 7 anos,
terrível e, no meu caso, secreta e silenciosa. Os donos da casa que alugávamos tinham
deixado uma bijuteria mal escondida atrás de uns livros, numa prateleira da sala. Uma
pulseira dourada dentro de uma caixa. Um dia, tomei a decisão. Meu amor justificava tudo,
até o crime. Peguei a pulseira e a levei, escondida, para a escola. Na saída, entreguei a caixa
para a menina ― e saí correndo.
Em casa nunca deram falta da pulseira. A menina nunca disse nada sobre o presente.
Eu, obviamente, nunca mencionei o fato para ninguém, muito menos para a menina ― com
quem, aliás, nunca troquei nem um tímido "hello". A história termina aqui. Eu avisei que
você ia perder tempo. Mas às vezes penso naquela pulseira e imagino coisas. Chegar, um dia,
nos Estados Unidos e alguém da imigração americana consultar um computador e dizer "Há
a questão de uma certa pulseira dourada na Califórnia, Mr. Verissimo..." Estar assistindo à
entrevista de alguma atriz famosa na TV e ela contar que um dia, quando tinha 7 anos, um
garoto estranho lhe entregara uma pulseira e saíra correndo, e mostrar a pulseira dourada,
que lhe dera sorte, que era responsável pelo seu sucesso, e que ela nunca pudera agradecer...
Pelo menos minha vida de crimes acabou ali.
Post-scriptum tipo nada a ver com nada. Muitos anos depois visitei o bairro em que
morávamos em Los Angeles e fui procurar a escola, palco do meu gesto tresloucado. Tinha
sido destruída por um terremoto.
Mudança ― As seis colunas semanais que publico no Estadão vão ser reduzidas para
duas: esta, aos domingos, e uma que sairá às quintas-feiras. A mudança é a meu pedido, por
nenhuma outra razão além da mais antiga que existe, a vontade de trabalhar menos. Esta
seção continuará igual. Não adianta protestar, continuará.

1 Relate sua infância.


2 Qual foi a 1ª fake news que você ouviu na infância? Comente.

3 É comum sentirmos medo quando crianças? Eles ficam no passado ou crescem com a
gente? Argumente.

4 Conte como foi a sua primeira paixão.

5 Comente o penúltimo parágrafo do texto.

6 Você acha que as pessoas reclamam das crônicas escritas nos jornais? Esclareça.

7 Se você precisasse escrever uma crônica para o jornal, sobre o que seria? Qual o motivo
de sua escolha?

8 Por que muitas vezes lemos uma crônica que parece ter acontecido conosco? Levante
hipóteses.

9 No tempo de infância tudo é mais fácil? Qual seria o motivo?

10 Por que perdemos os “impulsos” quando crescemos? Justifique.

Engraçada
Luís Fernando Veríssimo
Minha mulher e eu temos o segredo para fazer um casamento durar: Duas vezes por
semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida e um
bom companheirismo.
Ela vai às terças-feiras e eu, às quintas.
Nós também dormimos em camas separadas: a dela é em Fortaleza e a minha, em
SP.
Eu levo minha mulher a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.
Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento, “em algum
lugar que eu não tenha ido há muito tempo!” ela disse. Então, sugeri a cozinha.
Nós sempre andamos de mãos dadas…Se eu soltar, ela vai às compras!
Ela tem um liquidificador, uma torradeira e uma máquina de fazer pão, tudo elétrico.
Então, ela disse: “nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar”. Daí,
comprei pra ela uma cadeira elétrica.
Lembrem-se: o casamento é a causa número 1 para o divórcio. Estatisticamente,
100% dos divórcios começam com o casamento.
Eu me casei com a “senhora certa”. Só não sabia que o primeiro nome dela era
“sempre”.
Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.
Mas, tenho que admitir: a nossa última briga foi culpa minha.
Ela perguntou: “O que tem na TV?”
E eu disse: “Poeira”.
1 O que torna a crônica engraçada? Comente

2 Esse relacionamento é verdadeiro? Argumente.

3 Você gostaria de ter um casamento como o abordado na crônica? Justifique.

4 Por que os divórcios começam no casamento? Esclareça seu ponto de vista.

5 Um casal como o descrito na crônica, corre o risco de se divorciar? Por quê?

6 O motivo da briga deles foi banal? Levante hipóteses.

7 Muitos casais acabam se separando por motivos banais. O que deve ser feito para que
isso mude?

8 Trace um paralelo entre o casamento de hoje e o de antigamente.

9 Essa crônica já é da era do celular? Levante suposições sobre.

10 Adapte a crônica para os dias de hoje.

Brincadeira
Luís Fernando Veríssimo
Começou como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:
– Eu sei de tudo.
Depois de um silêncio, o outro disse:
– Como é que você soube?
– Não interessa. Sei de tudo.
– Me faz um favor. Não espalha.
– Vou pensar.
– Por amor de Deus.
– Está bem. Mas olhe lá, hein?
Descobriu que tinha poder sobre as pessoas.
– Sei de tudo.
– Co- como?
– Sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
– Mas é impossível. Como é que você descobriu?
A reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
– Alguém mais sabe?
Outras se tornavam agressivas:
– Está bem, você sabe. E daí?
– Daí nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
– Se você contar para alguém, eu…
– Depende de você.
– De mim, como?
– Se você andar na linha, eu não conto.
– Certo.
Uma vez, parecia ter encontrado um inocente.
– Eu sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
– Não sei. O que é que você sabe?
– Não se faz de inocente.
– Mas eu realmente não sei.
– Vem com essa.
– Você não sabe de nada.
– Ah, quer dizer que existe alguma coisa pra saber, mas eu é que não sei o que é?
– Não existe nada.
– Olha que eu vou espalhar…
– Pode espalhar que é mentira.
– Como é que você sabe o que eu vou espalhar?
– Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
– Está bem. Vou espalhar.
Mas dali a pouco veio um telefonema.
– Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre nada daquilo.
– Aquilo o quê?
– Você sabe.
Passou a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e
sussurrava:
– Você contou para alguém?
– Ainda não.
– Puxa. Obrigado.
Com o tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi procurado por
um amigo com uma oferta de emprego. O salário era enorme.
– Por que eu? – quis saber.
– A posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei você.
– Por quê?
– Pela sua descrição.
Subiu na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a boca
para falar de ninguém. Além de bem-informado, um gentleman. Até que recebeu um
telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
– Sei de tudo.
– Co- como?
– Sei de tudo.
– Tudo o quê?
– Você sabe.
Resolveu desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu
desaparecimento repentino. Investigara. O que ele estaria tramando? Finalmente foi
descoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que a voz que uma noite vieram muitos
carros e cercaram a casa. Várias pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos
contam que mais se ouvia era a dele, gritando:
– Era brincadeira! Era brincadeira!
Foi descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas as
pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
Sabia demais.

1 Justifique o título atribuído ao texto.

2 Por que a pessoa que ligava descobriu ter poder sobre as pessoas?

3 Qual seria a sua reação se recebesse uma ligação como essa?

4 O que fazia as pessoas se tornarem agressivas?

5 O inocente realmente era? Argumente.

6 Pelo enredo, as pessoas sabiam quem estava ligando? Levante hipóteses.

7 Por que ele recebeu um emprego e salário “enorme”?

8 Pode-se dizer que o feitiço virou contra o feiticeiro? Esclareça.

9 É bom sermos bem informados? Comente.

10 Quando temos amigos, costumamos contar segredos. Às vezes, discutimos com eles. É
correto eles saírem contando por aí? Por quê?

Aprenda a chamar a polícia


Luís Fernando Veríssimo
Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando
sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves
ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro. Como
minha casa era muito segura, com grades nas janelas e trancas internas nas portas, não
fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali, espiando
tranquilamente.
Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço.
Perguntaram-me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.
Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para
ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível.
Um minuto depois, liguei de novo e disse com a voz calma:
— Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter
pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guardada em
casa para estas situações. O tiro fez um estrago danado no cara!
Passados menos de três minutos, estavam na minha rua cinco carros da polícia, um
helicóptero, uma unidade do resgate , uma equipe de TV e a turma dos direitos humanos,
que não perderiam isso por nada neste mundo.
Eles prenderam o ladrão em flagrante, que ficava olhando tudo com cara de
assombrado. Talvez ele estivesse pensando que aquela era a casa do Comandante da
Polícia.
No meio do tumulto, um tenente se aproximou de mim e disse:
— Pensei que tivesse dito que tinha matado o ladrão.
Eu respondi:
— Pensei que tivesse dito que não havia ninguém disponível.
1 Você tem o sono leve? Comente.

2 Como uma pessoa pode garantir que sua casa é segura? Argumente.

3 O que torna a situação inusitada? Por quê?

4 Por que o ladrão teria pensado ser a casa do comandante?

5 O que a pessoa fez para chamar a atenção da polícia?

6 O que você faria no lugar da pessoa?

7 Você costuma manter a calma diante de situações perigosas? Explique.

8 Comente o 7º parágrafo.

9 Em seu ponto de vista o dono da casa estava ou não preocupado? Justifique.

10 O que você pensa sobre as pessoas portarem armas? Escreva um parágrafo


argumentando seu ponto de vista.

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