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Faculdade Internacional Teológica do Rio de Janeiro

Felipe Borssato

Livre Arbítrio
Uma herança doutrinária?

Rio de Janeiro
2014
Felipe Borssato

Livre Arbítrio: Uma herança doutrinária?


Trabalho apresentado como requisito parcial
para obtenção do título de Bacharel em
Teologia Eclesiástica pela Faculdade
Internacional Teológica do Rio de Janeiro,
propondo uma mais profunda observação
técnica do tema, considerando as linhas
doutrinárias históricas e contemporâneas
que mais pontualmente se posicionam a
respeito do mesmo.

Rio de Janeiro
2014
Ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó, e do
nosso Senhor Jesus Cristo. Ao Deus
Soberano que além de criar e sustentar esse
universo, ora misterioso, ora revelador,
desceu de um trono de glória insondável e
habitou entre nós, tomando nossa forma e
sofrendo nossas dores: o único herói
verdadeiro que esse mundo de fábulas já
viu.

À minha amada Caren, que esteve todo o


tempo ao meu lado, me apoiando e sendo
uma excelente esposa e serva de Deus.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................ 5

2. A VERDADE QUE LIBERTA ........................................................... 7

3. DEBATE HISTÓRICO: PERSONAGENS CENTRAIS .................. 11

4. EMBASAMENTO DOUTRINÁRIO ................................................ 12

5. CONCLUSÃO: LIVRE ARBÍTRIO E CRISTIANISMO .................. 24

5.1 O LIVRE ARBÍTRIO DE ADÃO E EVA ........................................ 25

5.2 O SER HUMANO NASCIDO DO PECADO ................................. 30

5.3 O CRENTE TEMENTE A DEUS .................................................. 34

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS ................................................... 36


INTRODUÇÃO

O ser humano contemporâneo, da era da democracia e do livre acesso à


informação, identifica-se cada vez mais facilmente com a idéia de possuir um livre
arbítrio. De fato, quando a lógica nos leva a julgar nossas ações de forma primária
e do ponto de vista dos motivos e causas que resultam em conseqüências,
chegamos à conclusão de que somos livres para escolhermos o que quisermos
fazer.
Lembro-me de ter ficado espantado ao ouvir de um pastor luterano que o
termo “livre arbítrio” não estava escrito em nenhum lugar da Bíblia. Para mim, era
uma questão de lógica acreditar em sua existência, uma vez que sempre que tive
vontade de fazer algo eu o fiz. Se eu queria fazer o bem, eu fazia o bem e se, do
contrário, eu queria fazer o mal eu o fazia, a não ser que houvesse alguma
intervenção superior que me impedisse. Quase sempre havia conseguido fazer
tudo o que quisera. Então, lá estava eu, no auge dos meus 14 anos, e aquilo teve
que ser pensado e repensado muitas vezes até que eu conseguisse chegar ao
entendimento de que minha incapacidade de fazer o bem me colocaria sempre em
cheque e, se não fosse por uma real intervenção divina, eu sempre escolheria o
mal por ter nascido pecador e escravo do pecado. Essa inclinação para o pecado
de que os luteranos falavam é, de fato, biblicamente incontestável.
Isso fazia realmente sentido exceto por um problema. Se isso era uma
conclusão boa e vinda da mente de Deus, ela deveria produzir resultados
positivos. O que eu percebia era que não só eu, mas quase todas as pessoas que
comigo conviviam e criam nessa incapacidade de escolha para o bem e, portanto,
em uma intervenção divina como única esperança de acerto, estavam caminhando
despreocupadamente em uma estrada muito perigosa que poderia levar à morte.
É uma conclusão bem imaginável. Se eu preciso de uma intervenção divina para
fazer o bem e sem ela sou escravo do pecado e incapaz de fazer senão o mal,
então não há absolutamente nada que eu possa fazer pela minha própria
santidade. Não posso me tornar uma pessoa melhor, tenho que esperar que Deus
intervenha sempre que ele quiser e que ele me conduza a fazer o bem sempre, ou
seja, por mim mesmo sou livre apenas para pecar porque é isso que eu sei fazer
por mim mesmo.
A questão da certeza da salvação também me influenciou muito na hora de
tomar decisões entre pecar ou não e ela é um resultado da questão primeira. Se
eu tenho um livre arbítrio e sou capaz de decidir sobre ser salvo ou não eu
também possuo a mesma capacidade de decisão quando já fui salvo e agora
posso optar por abrir mão da minha salvação. Se eu creio que isso é possível,
provavelmente viverei uma vida mais regrada e correta, pois fazendo o contrário
estaria optando em não me salvar e ir para o inferno. Se eu não creio que posso
tomar essa decisão, mas que só Deus tem esse poder de me salvar, como dizem
as Escrituras “Deus efetua tanto o querer quanto o realizar”, posso ter a tendência
de levar uma vida remissa e despreocupada por já ter sido salvo e não ter nada a
temer.
Hoje, com 33 anos e tendo passado por várias igrejas e doutrinas
diferentes, penso que um “caminho do meio” pode ser encontrado nesta questão.
São muitas as convicções bíblicas que abandonei ao longo desses 20 anos de
cristianismo, mas a questão da soberania de Deus e de como entender a maneira
com que vivemos uma liberdade escrava ou uma liberdade limitada, relativa e
restrita, enquanto convivemos com um Deus Soberano e Todo-poderoso que
assiste aos acontecimentos de um mundo mau e às vezes interfere nesse tempo e
às vezes não, eu nunca consegui abandonar. Nunca pude descansar neste
assunto e ainda não consigo de maneira definitiva. Eu posso conviver com o
batismo por aspersão ao invés do batismo por imersão e isso não influenciará em
nada a maneira com que eu interpreto as Escrituras e como vivo minha vida. Eu
posso conviver com a santa ceia sendo um ato simbólico para batistas e um ato
real para luteranos e isso não influenciará em nada quando tiver de falar de Cristo
para alguém. Quando eu penso nos meus atos e na maneira que Deus interfere
na minha vida, porém, toda minha concepção de vida muda, desde a maneira com
que eu interpreto as Escrituras até a maneira com que eu trato a minha esposa.
Talvez sejam muitas as pessoas que passam pelas mesmas dificuldades
que eu passei e tenham as mesmas dúvidas ainda sobreviventes. Talvez possa
ajudá-las a encontrar um meio termo entre as duas idéias e minimizar as
distâncias entre os dois conceitos sem que percamos a essência de um evangelho
rico e muito vivo na pessoa do Nosso Senhor Jesus Cristo.
A VERDADE QUE LIBERTA

Se olharmos além da incessante busca pela definição do que é “livre


arbítrio” em si, as Escrituras nos revelarão algo sobre a própria definição de
liberdade que devemos considerar. Antes de divagarmos a respeito de possuirmos
ou não um “livre arbítrio”, podemos nos deleitar com o que a Palavra de Deus já
nos revelou sobre “sermos livres”.
“Disse Jesus aos judeus que haviam crido nele: ‘Se vocês permanecerem
firmes na minha palavra, verdadeiramente serão meus discípulos. E conhecerão a
verdade, e a verdade os libertará’.” (Jo 8:31-32)
Quando Jesus disse isso, os fariseus se espantaram com as palavras dele,
porque entendiam que eram livres e não havia nada que os pudesse escravizar:
“Eles lhe responderam: ‘Somos descendentes de Abraão e nunca fomos
escravos de ninguém. Como você pode dizer que seremos livres?’” (Jo 8:33)
Então a resposta de Jesus é a maior revelação sobre “liberdade” que o
mundo já havia conhecido:
“Jesus respondeu: ‘Digo-lhes a verdade: Todo aquele que vive pecando é
escravo do pecado. O escravo não tem lugar permanente na família, mas o filho
pertence a ela para sempre. Portanto, se o Filho os libertar, vocês de fato serão
livres. Eu sei que vocês são descendentes de Abraão. Contudo, estão procurando
matar-me, porque em vocês não há lugar para a minha palavra. Eu lhes estou
dizendo o que vi na presença do Pai, e vocês fazem o que ouviram do pai de
vocês’.
‘Abraão é o nosso pai’, responderam eles.
Disse Jesus: ‘Se vocês fossem filhos de Abraão, fariam as obras que
Abraão fez. Mas vocês estão procurando matar-me, sendo que eu lhes falei a
verdade que ouvi de Deus; Abraão não agiu assim. Vocês estão fazendo as obras
do pai de vocês’.
Protestaram eles: ‘Nós não somos filhos ilegítimos. O único Pai que temos
é Deus’.
Disse-lhes Jesus: ‘Se Deus fosse o Pai de vocês, vocês me amariam, pois
eu vim de Deus e agora estou aqui. Eu não vim por mim mesmo, mas ele me
enviou. Por que a minha linguagem não é clara para vocês? Porque são
incapazes de ouvir o que eu digo. Vocês pertencem ao pai de vocês, o diabo, e
querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou
à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua,
pois é mentiroso e pai da mentira. No entanto, vocês não crêem em mim, porque
lhes digo a verdade! Qual de vocês pode me acusar de algum pecado? Se estou
falando a verdade, porque vocês não crêem em mim? Aquele que pertence a
Deus ouve o que Deus diz. Vocês não ouvem porque não pertencem a Deus. (Jo
8:34-47)
Pertencer ou não a Deus parece ser realmente o divisor de águas aqui, e
não uma escolha proveniente de um “livre arbítrio”. Você ouve o que Deus diz se
você “pertence a Deus” e isso não parece ser algo que venha de uma escolha
própria, pelo menos no texto acima citado.
Consideremos o que diz o pastor John Piper, do ministério Desiring God, no
que diz respeito à definição de liberdade:
“Eu considero uma certeza que todos nessa sala querem ser livres. Quero
dizer, realmente livres. Livre no mais profundo significado desta palavra. E eu sei
que alguns de vocês, ou nós, somos escravizados a coisas que são tão
prazerosas e agradáveis que dizemos: “não, eu não quero ser livre.” Eu entendo
isso. Entendo que às vezes somos escravizados a coisas tão prazerosas que a
idéia de sermos livres disso não é nada atrativa. Você pode dizer: “Você pode
estar certo que queremos ser livres, mas eu não estou tão certo disso.” Apenas
considere isto: O que você ama nisso tudo não é a dependência, as amarras , é o
prazer. Certamente se você pudesse ter esse prazer sem ser escravizado você
diria: “sim, é isso que eu quero.” Então, eu ainda afirmo: “todo mundo nessa sala
quer ser livre.” O oposto de liberdade é escravidão e quem de vocês levantaria a
mão e diria: “’escravidão’, é isso que eu quero!” ou “‘dependência’ é meu objetivo!”
Ninguém, absolutamente ninguém. Estamos no mesmo barco aqui, queremos ser
livres. O mundo está explodindo sobre esse assunto nos dias de hoje. A Bíblia diz:
“se o Filho vos libertar, verdadeiramente livres sereis.” Isso não é uma liberdade
rasa, é uma liberdade total, da esquerda para a direita, do fundo para a superfície,
total e completamente livre. E é isso que queremos.
A escravidão de que falamos não é algo superficial, relacionado apenas
com suas ações e com os resultados de nossas escolhas, o problema que temos
é muito mais profundo do que isso e está completamente enraizado no nosso
coração. ‘o problema do coração do homem é o próprio coração do homem’. A
nossa dependência e toda nossa inclinação para o pecado e toda vontade
corrompida que temos e que nos leva a pecar contra a autoridade, a santidade e a
glória de Deus já está impressa em nosso coração de forma que afeta toda a
nossa existência. Eu não sou um pecador ocasional, que peca de vez em quando,
eu sou um pecador de fato, nos lugares mais profundos do meu coração estão a
inveja, a avareza, o egoísmo e todo o pecado que evidencio em minha vida. Esse
pecado é o que temos de vencer e ele é muito profundo e significante para que
possamos vencê-lo por nós mesmos e é por isso que precisamos de Jesus. O
pecado é uma fábrica de desejos e a definição de pecado é justamente essa, onde
nossos desejos começam a parecer mais valiosos do que Jesus para nós. O
pecado é o poder que faz com que qualquer coisa na nossa vida pareça mais
valiosa do que Jesus. E é por isso que escolhemos essas coisas ao invés de
escolhermos Jesus. Essa é a função do pecado e de satanás, fazer com que
qualquer coisa pareça mais valiosa que Jesus e nós, conseqüentemente,
escolheremos fazer aquilo que é mais desejável: “Jesus é chato, atemorizante,
mitológico, mas isso aqui, isso aqui é real!” Isso é idolatria, e por isso todo pecado
é idolatria.
A segunda maneira com que o pecado nos afeta, se não houver uma
interferência direta que o aniquile e interrompa o seu curso, é nos levando
diretamente para o inferno. Alguém pode dizer “estou legal assim, não me importo
com a dependência do pecado, inclusive considero minha vida mais feliz que a
sua! Então, que venha a escravidão!”. Mas eu digo que isso não é liberdade
porque você será destruído no fim. Se você continuar andando naquele caminho,
certamente será destruído no fim e isso não é liberdade. Isso é escravidão em um
patamar ainda mais profundo e mais aterrorizante. Jesus nos livra desses dois
tipos de escravidão morrendo na cruz do Calvário. Ele paga o preço pelos nossos
pecados sendo feito maldito por nós e sobre ele é lançada toda a ira de Deus e
toda justiça é feita nele, sendo que desse modo ele nos livra da escravidão do
pecado e da morte eterna no inferno. Agora o Espírito Santo habita em nós e
Jesus passa a ser mais valioso e mais desejável do que aquele pecado que antes
nos escravizava. No evangelho de João isso é chamado de “novo nascimento” e
diz respeito justamente ao coração que agora é livre e não mais escravo do
pecado. Então agora eu, não somente, não serei condenado, mas tenho um novo
tesouro: Jesus.
Existem quatro modos de definirmos “liberdade”:
Para ser totalmente livre, o ser humano precisa do desejo, da habilidade e
da oportunidade para fazer aquilo que o deixará feliz por mil anos. Em outras
palavras, ter o desejo, a habilidade e a oportunidade de fazer aquilo do qual não
se arrependerá para sempre. Isso é a liberdade completa.
Se você não faz aquilo que você quer fazer você não é livre. Alguém pode
dizer: “eu sim, posso ir contra meus próprios desejos e chamar isso de liberdade!”,
mas isso não é liberdade, viver constantemente frustrado por não poder fazer
aquilo que você quer não é liberdade. Eu não quero essa falsa liberdade, eu quero
fazer aquilo que eu quero fazer! Isso é liberdade, fazer o que eu quero fazer! Se
isso é cristianismo, estou fora! Você só pode ser livre se fizer aquilo que tem
desejo de fazer.
Se você tem o desejo mas não tem a capacidade, você não é livre para
fazer.
Se você tem o desejo e a capacidade, mas não tem a oportunidade, você
não é livre. “Eu sei falar em público e dar discursos, eu sou livre para falar!”, mas
você mora na Arábia Saudita e tem de ficar calado. Isso não é liberdade, pois você
pode ser preso ou até morto por dizer aquilo que você pensa por lá.
E em quarto lugar, se você tem o desejo, a capacidade e a oportunidade de
fazer algo que o destrói no fim, você não é livre.
Ninguém, além do Filho de Deus, pode te dar essa liberdade completa.
Você até pode conseguir parte disso por você mesmo, mas não a totalidade. “Se o
Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.” (Jo 8:36)
Aqui vai a minha ilustração: Pára-quedismo.
Imagine que você quer pular de pára-quedas para sentir toda a adrenalina e
toda a excitação possível até que se abra o pára-quedas. Você realmente quer
muito pular e sentir toda essa emoção. O que pode te fazer sentir mais livre do
que isso? 120 milhas por hora. Então você está indo para o aeroporto para saltar e
então você acerta um buraco na estrada e fura o pneu do carro e não tem mais
como continuar. Então você vai até o telefone mais próximo e tenta de tudo, mas
você perdeu o horário e não vai mais saltar. Você acaba de perder a liberdade de
oportunidade. Você perdeu a oportunidade mesmo, você tem a capacidade e o
desejo de saltar, mas não vai mais saltar.
A ilustração continua, agora vamos imaginar que você consegue chegar no
aeroporto. A liberdade de oportunidade está ali, mas você matou todas as aulas
de salto. Você não sabe absolutamente nada sobre saltar de pára-quedas. Você
não sabe as coisas mais básicas sobre o procedimento, você não sabe nem
colocar o pára-quedas ou abri-lo. O instrutor não vai deixar você saltar. Você não
tem a capacitação necessária. Você não pode saltar! Você tem a oportunidade,
mas não tem a capacidade.
Agora imagine que você consegue chegar no aeroporto com facilidade,
você foi à todas as aulas de pára-quedismo e você sabe bem como efetuar o salto
e tudo está correndo maravilhosamente bem. Você sobe com o avião até a altura
correta e eles abrem a porta. Você olha lá para fora pela primeira vez e de repente
todo o seu desejo de pular se vai. Você agora está tomado de um medo
paralisante e não mais se sente livre. Você tem a oportunidade, tem a capacitação
necessária, mas o seu desejo de pular se foi. E se eles te jogarem para fora do
avião você não vai chamar isso de “liberdade”, vai?
Quarta parte, você chegou ao aeroporto e freqüentou todas as aulas de
salto e tudo está dando certo. O avião sobe e quando eles abrem a porta você
olha lá para fora e vê todo aquele cenário maravilhoso, com suas fazendinhas,
casinhas e lotes de terra e toda aquela paisagem exuberante. Você realmente
ama o que você está vendo! Você está vislumbrado com a situação e mal pode
esperar para pular para fora do avião. Você finalmente pula, mas percebe que seu
pára-quedas é defeituoso. Não importa o que você faça, ele não vai abrir e você
vai morrer. Você acha que isso é “liberdade”? Você é livre? Eu digo que não. Você
pode estar vislumbrando cada momento do salto e curtindo muito cada cenário,
mas você vai morrer. Você está indo na direção da sua destruição, da sua
aniquilação.
Então, para você ser realmente livre, você precisa ter a oportunidade, a
capacitação, o desejo de fazer aquilo que você realmente ama, contanto que no
final, você não se arrependa de nada disso. O benefício tem de ser eterno, senão
isso não é “liberdade”. Você não é livre.
Na nossa vida real, fora da ilustração, não temos um pára-quedas que vai
nos segurar no ar, temos um salvador que nos pega em meio à queda. E por isso
mesmo Ele se tornou nosso tesouro supremo. Ele nos carrega por toda vida e, se
confiarmos nele, seremos satisfeitos e felizes em mil anos, ou seja, por toda
eternidade. Jesus está aqui nessa sala agora mesmo e ele oferece a si mesmo
por nós. Isso não é apenas informação da parte de Deus, é um convite. Ele está
dizendo: “Se o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres”. Ele está
oferecendo a si mesmo, para salvar você e carregar você para sempre. Por toda
eternidade.”
DEBATE HISTÓRICO: PERSONAGENS CENTRAIS

JACOBUS ARMINIUS (JACOB ARMÍNIO)

O arminianismo é conhecido como sendo a principal doutrina histórica que


defende a crença no livre arbítrio. Jacob Arminius nasceu na Holanda em 10 de
outubro de 1560 e morreu em 19 de outubro de 1609 e foi um renomado teólogo
neerlandês da época da reforma protestante. Em 1603, foi professor de teologia
na Universidade de Leiden, e escreveu muitos livros e tratados sobre o assunto.
Embora sua visão tenha se tornado a base do que posteriormente ganhou o nome
de “arminianismo” e do movimento neerlandês Remonstrante, o próprio Armínio
jamais teria conhecido o termo “arminiano”, que foi dado em sua homenagem.
Este teólogo objetou o padrão reformado e a Confissão de Fé Belga,
provocando uma ampla discussão no Sínodo de Dort que resultou pela rejeição do
arminianismo, que foi considerado herege por teólogos representantes de vários
países. Mais tarde, o teólogo inglês John Wesley reafirmou as idéias de Armínio,
que hoje são mais populares que as convicções reformadas nas igrejas e
instituições de ensino dos países ocidentais.

JEAN CAUVIN (JOÃO CALVINO)

O calvinismo foi o movimento que nasceu para contestar as idéias do


arminianismo e foi nomeado em homenagem a João Calvino. Este expoente do
protestantismo nasceu na França em 10 de julho de 1509 e morreu na Suíça em
27 de maio de 1564. Ele foi um teólogo cristão que exerceu grande influência
durante a Reforma Protestante, tendo sido considerado por muitos a fiel
continuação da obra de Martinho Lutero. O nome “calvinismo” foi repudiado pelo
reformador, que não queria ter seu nome atribuído a nenhum sistema de
pensamento.
Calvino foi inicialmente um humanista e jamais foi ordenado sacerdote. Ele
teve uma vida bastante tribulada por conta da perseguição católica e começou a
ser visto como a voz do movimento protestante na França, enquanto o
Luteranismo seguia crescendo na Alemanha. Em 1536 fugiu para Genebra, onde
morreu em 1564. Genebra acabou tornando-se um dos grandes centros do
protestantismo Europeu e João Calvino permanece até os dias de hoje como um
expoente da história de Genebra e da Suíça.
EMBASAMENTO HISTÓRICO E DOUTRINÁRIO

O personagem considerado o causador do começo das discussões sobre o


assunto “livre arbítrio” seria Pelágio da Bretanha (350 a.D. a 423 a.D.). Ele
sustentava a idéia de que homem é totalmente responsável pela sua própria
salvação e não necessita da graça divina para alcançar o céu. A Reforma
Protestante veio salientar e rever questões cruciais sobre a natureza e a extensão
do pecado original e encontrou no pelagianismo um inimigo mortal. Os debates
incandescentes entre Pelágio e Agostinho, no século V, foram seguidos de várias
discussões na igreja, que na maioria das vezes, considerou o pelagianismo pagão
e herético. Agostinho defendia o fato de que o pecado original de Adão foi herdado
por toda a humanidade e que, mesmo que o homem caído retenha certa
capacidade de escolha, ele está escravizado ao pecado e não pode deixar de
pecar. Este princípio é encontrado nas Escrituras em passagens que afirmam que
o homem é “escravo do pecado” ou está “morto em seus delitos e pecados”.
Pelágio, por sua vez, defendia que o homem é intrinsecamente bom e ele nasce
livre, podendo escolher livremente entre o bem e o mal, por não ter herdado o
pecado de Adão. Segundo ele, pecamos por socialização, ou seja, por vermos
outras pessoas pecarem.
O pelagianismo foi então definitivamente considerado herege pelos
concílios e sínodos da época, mas renasceu mais tarde dentro do catolicismo em
uma versão melhorada, sustentando a idéia de que homem herdou sim o pecado
de Adão e nasce no pecado, mas esse pecado não é tão profundo na sua
natureza que o impeça de tomar uma decisão por Deus e pela salvação de sua
alma. Na época da Reforma, surgiram dois personagens que também travaram
batalhas incansáveis sobre o assunto, Erasmo de Rotterdam (28 de outubro de
1466 a 12 de julho de 1536) e Martinho Lutero (10 de novembro de 1483 a 18 de
fevereiro de 1546). Erasmo de Rotterdam parecia até mesmo simpatizar com os
reformadores e era a favor das reformas na igreja católica, mas, ao contrário de
Lutero, permaneceu na igreja e cria no semi-pelagianismo e defendia-lo. Lutero
refuta a idéia de o homem ter nascido e ser livre para escolher o bem e, em 1525,
escreve o livro “De servo arbitrio”, contestando diretamente a obra “Debate sobre
o livre arbítrio”, escrito em 1524 por Erasmo de Rotterdam.
Resumindo, a idéia defendida por Pelágio da Bretanha foi confrontada por
Agostinho no século V, que evoluiu para um semi-pelagianismo que foi fortemente
debatido por Erasmo de Rotterdam e Lutero no século XVI. A questão aqui é
sempre a existência ou não de um arbítrio livre, onde o homem pode livremente
tomar decisões, inclusive sobre sua salvação, mesmo sendo influenciado
fortemente pelo pecado herdado de Adão no Éden.
A história então evolui para sua terceira e aparentemente última geração:
Armínio e Calvino. A maioria das igrejas européias havia aderido à Reforma
Protestante e seguiam o pensamento de Lutero ou Calvino, até que surgiu um
estudioso chamado Armínio, que trazia de volta as idéias de Pelágio, defendendo
o livre arbítrio. Armínio nunca escreveu artigos confrontando as idéias da Reforma,
mas seus seguidores, após sua morte, enviaram um documento ao sínodo da
igreja da Holanda, pedindo que esta refutasse a idéia calvinista e a linha
reformada de Lutero e Agostinho. Esse grupo foi chamado de “os remonstrantes”,
por estarem pedindo a revisão do assunto. Nesse documento eles apresentavam,
basicamente estas cinco petições: livre arbítrio, predestinação condicional,
sacrifício geral, graça resistível e queda da graça.

Livre arbítrio – O homem é herdeiro do pecado original de Adão, mas esse


pecado não é suficiente para afetar a sua capacidade de escolha. O homem pode
escolher entre o bem e o mal e, por suas próprias forças, superar a inclinação do
seu coração e fazer o bem.
Predestinação condicional – A predestinação é mencionada na Bíblia em
várias ocasiões. A Bíblia fala de “eleitos”, “escolhidos” e “predestinados” e isso
não pode ser negado. Então esses termos são interpretados de maneira que não
afetem o livre arbítrio. Um pensamento logicamente correto se partirmos do
pressuposto que o livre arbítrio existe. Então essa predestinação se transforma em
uma pré-ciência de Deus. Deus antevê a decisão humana pela salvação e por isso
os chama de “eleitos”, mas nunca interferindo nessa decisão, pois isso seria violar
o livre arbítrio.
Sacrifício Geral – A morte de Jesus na Cruz foi por todos os homens em
geral e por nenhum homem em particular. Quando Cristo morreu na cruz ele não
estava morrendo por ninguém em particular, pois isso é uma decisão do ser
humano que ainda não foi tomada. Então Cristo morreu por toda a humanidade
para que aqueles que aceitarem o que ele fez sejam salvos. Sendo assim, a
salvação não aconteceu eficazmente na cruz e sim acontecerá quando o homem
escolher Cristo e decidir por ser salvo. Conclui-se também que Cristo teria morrido
em vão por aqueles que não vão aceitar o seu sacrifício e o seu senhorio. A
eficácia da salvação é real para os que decidirem por ele, mas ineficaz para
aqueles que não o escolherem. Outro problema aqui é a questão dos pecados que
são pagos por Cristo na cruz. Se eu não aceitar a salvação e a obra de Cristo e
tomar a decisão de ser salvo, eu vou para o inferno para pagar pelos pecados que
Cristo já pagou previamente na cruz. Parece uma matemática incorreta sendo que
os pecados estariam sendo pagos duas vezes.
Graça Resistível – O livre arbítrio influencia tanto nesse sistema todo que a
graça de Deus passa a ser limitada à vontade do homem. Deus respeitaria a
vontade do homem e ainda que ele, Deus, quisesse transformar o coração ou a
vida de um homem a fim de salvá-lo, não poderia se assim não fosse da sua
vontade.
Queda da Graça – Na idéia do livre arbítrio, a salvação passa a ser
totalmente submetida à vontade humana, sendo que uma vez que o ser humano já
decidiu se salvar, ele pode agora mudar de idéia e decidir abrir mão de sua
salvação. Ele pode perder a salvação ou mesmo abrir mão dela por sua própria
vontade.

Em resposta a estes cinco pontos, apresentados pelos remonstrantes, a


igreja da Holanda convocou um concílio conhecido como sínodo de Dort, na
cidade de Dordrecht. O objetivo era regular uma séria controvérsia nas igrejas
Holandesas iniciada pela ascensão do arminianismo. Foram mais de 154 sessões
por um período de seis meses, assistidas por teólogos importantes da Alemanha,
Suíça, Escócia e outras nações, totalizando oito países estrangeiros.
Por fim, o sínodo decidiu pela total rejeição das idéias arminianas e
estabeleceu a doutrina reformada oficial em cinco contra-pontos: depravação total,
eleição incondicional, expiação limitada (sacrifício eficaz), vocação eficaz (graça
irresistível) e a perseverança dos santos. Estas doutrinas, descritas no documento
final chamado Cânones de Dort, acabaram também sendo conhecidas como os
cinco pontos do calvinismo. Os remonstrantes foram considerados hereges e
tiveram que deixar a Holanda, mas pouca gente hoje sabe da existência deste
movimento, fazendo com que o calvinismo pareça ser o começo da tentativa de se
criar um sistema em relação ao assunto, quando na verdade se trata de uma
contra proposta ao arminianismo. Segue a lista dos cinco contra-pontos,
conhecidos popularmente como cinco pontos do calvinismo:

Total Depravação – O arbítrio do homem está prejudicado pelo pecado, que


afetou profundamente a vontade, a consciência e a natureza do homem, de forma
que ele não pode escolher pelas coisas de Deus sem uma influência externa. Sua
inclinação é sempre para o mal e é isso que ele vai escolher sempre que deixado
à sua própria vontade de escolha. A depravação atingiu a totalidade dos aspectos
da vida humana, o que não significa que ele vai ser tão mau quanto pode ser.
Eleição Incondicional – Deus contempla a raça humana miserável e caída,
totalmente escravizada, e ele elege para a salvação conforme a sua vontade. O
critério de escolha de Deus não foi baseado no caráter ou nas escolhas previstas
de cada pessoa, mas na sua própria vontade divina e incontestável. Aqueles que
não foram eleitos e salvos receberão tão somente aquilo que merecem, Deus não
será injusto ao não escolhê-los. Deus não tem a obrigação de salvar ninguém. Se
todos se perdessem Deus não estaria cometendo injustiça alguma.
Sacrifício Eficaz – Cristo morreu na cruz efetivamente pelos pecados dos
eleitos. Um grupo separado da humanidade e predestinado para a vida eterna, de
forma que os que se perdem não tiveram seus pecados pagos por Cristo. Se
Cristo de fato tivesse pagado seus pecados na cruz, não teriam motivo para pagá-
los novamente no inferno. E se Cristo morreu também por aqueles que não foram
salvos, então a graça de Deus pode não funcionar e essa idéia é absurda.
Graça Irresistível – O Evangelho é pregado no mundo todo, mas no meio da
pregação para o mundo Deus fará com que essa pregação seja eficaz para
aqueles que foram eleitos, ou seja, se Deus quiser derramar de sua graça e
regenerar alguém, esse alguém não poderá resistir à sua graça. Aqui há uma
diferença básica no chamado “Ordo Salutis”, ou ordem para se chegar à fé, onde a
Regeneração feita por Deus vem antes do Arrependimento e da Fé. Se Deus não
tocar o coração e regenerar o homem primeiro, dar vida a ele, nada mais poderá
acontecer.
Perseverança dos Santos – Nada pode desfazer a ação de Deus na
salvação do indivíduo. Isso não faz com que o homem passe a ser perfeito, ele
continuará a pecar, mas sempre se arrependerá e continuará e perseverará até
que Deus o leve. Uma vez salvo sempre salvo. Aqui podemos concluir também,
que aqueles que eram aparentemente salvos e “se desviaram e perderam a
salvação” na verdade nunca foram salvos, nunca fizeram parte do grupo dos
eleitos de Deus.

Embora houvesse uma unanimidade no que dizia respeito à abolição do


arminianismo e da idéia de um “livre arbítrio” por parte tanto de luteranos como de
calvinistas, ainda havia discórdia na recém nascida “igreja reformada”. Calvino foi
considerado por muitos o sucessor de Lutero, no que diz respeito à sua reforma,
mas os luteranos não concordam com tal sucessão. Para os luteranos tradicionais,
a obra de Martinho Lutero é completa e absoluta em sua dogmática e a
“continuação” que Calvino teria dado não é senão uma distanciação da sã doutrina
escriturística. Para calvinistas, entretanto, Lutero foi o antecessor e pioneiro nas
idéias reformadas e, portanto, é parte do começo da história que Calvino
continuou a escrever, sendo o nome de Lutero pouco citado por eles.
É notório também, que no movimento reformista (também chamado de
Reforma ou Reforma Luterana), Lutero não concordou com o "estilo" de reforma
de João Calvino. Martinho Lutero queria reformar a Igreja Católica, enquanto João
Calvino acreditava que a Igreja estava tão degenerada, que não havia como
reformá-la. Calvino se propunha a organizar uma nova Igreja que, na sua doutrina
(e também em alguns costumes), seria idêntica à Igreja Primitiva. Já Lutero
decidiu reformá-la, mas ele mesmo foi compelido a afastar-se desse objetivo,
fundando, então, o Protestantismo, que não seguia tradições, mas apenas a
doutrina registrada na Bíblia, e cujos usos e costumes não ficariam, em tese,
presos a convenções ou épocas. A doutrina luterana está explicitada e esmiuçada
no "Livro de Concórdia", e não aceita mudanças em sua dogmática, embora os
costumes e formas variem de acordo com a localidade e a época.
Existem pontos muito conflitantes entre essas duas doutrinas,
principalmente no que diz respeito ao livre arbítrio e a forma com que se dá a
salvação e a condenação eterna do ser humano. É interessante constatar que o
calvinismo nem mesmo considera o luteranismo como algo diferente daquilo que o
próprio calvinismo prega e ensina, enquanto o luteranismo ensina e prega com
veemência contra os, assim considerados, erros doutrinários do calvinismo, tendo
muitos livros publicados sobre o assunto e essa discussão trazida em seus
estudos bíblicos até os dias de hoje.
O arminianismo foi banido da Holanda medieval e praticamente esquecido
por muitos anos até o seu ressurgimento na América do pentecostalismo. A idéia
de se ter um livre arbítrio parece ter adormecido por muitos anos e então
retomado sua força na igreja em um período de, digamos, menos estudos e mais
experiências. Um período em que as pessoas procuravam sentir algo de Deus e
experienciarem por elas mesmas milagres e espiritualidade. Embora o
arminianismo seja vastamente difundido hoje no Brasil por várias denominações,
talvez pela maioria delas, não parece ser defendido com tanta base doutrinária por
seus seguidores, sendo que a maioria de seus adeptos parecem simplesmente
crer nele e nem ao menos questioná-lo. Em outras palavras, parece fácil rebatê-lo
biblicamente, enquanto a diferença doutrinária entre luteranos e calvinistas parece
ser de mais difícil distinção e suas doutrinas mais fortemente embasadas.
As citações abaixo, retiradas do livro Dogmática Cristã, de John Theodore
Müeller, traduzida em 1960, por Martinho L. Hasse, pela Casa Publicadora
Concórdia S.A., explicam um pouco sobre essas diferenças:

“A pergunta relativa à causa eficiente da conversão tem sido respondida de


três diferentes maneiras. Em primeiro lugar, afirmou-se que o mesmo homem é a
causa de sua conversão (pelagianismo). Outrossim alegou-se que Deus e homem
cooperam na operação da conversão deste, o pecador fazendo o princípio da obra
e Deus dando início e o próprio pecador iluminado e desperto a completando
(sinergismo).
A respeito do semipelagianismo e sinergismo diz a Fórmula de Concórdia:
‘Repudiamos também o erro dos semipelagianos, que ensinam poder o homem
por suas próprias faculdades dar início à sua conversão, porém não consumá-la
sem a graça do Espírito Santo; igualmente, quando se ensina que, embora o
homem antes da regeneração seja pelo seu livre arbítrio fraco demais para fazer o
começo e por suas próprias faculdades converter-se a Deus e obedecer de
coração a Deus, contudo, se o Espírito Santo com a pregação da palavra fez o
princípio e nela ofereceu a sua graça, então a vontade do homem de certo modo
poderá por suas próprias faculdades naturais acrescentar a isto alguma cousa,
conquanto pouco e debilmente, ajudar a cooperar, capacitar-se e preparar-se para
a graça, apossar-se dela, aceitá-la e crer o evangelho.’ Segundo esta afirmativa
clara e decisiva, a confissão luterana, fundamentada na Escritura, rejeita tanto o
pelagianismo como o sinergismo e fornece uma terceira resposta à pergunta
pertinente à conversão do homem, a saber, Deus somente é a causa eficiente da
conversão (monergismo divino), ao passo que o pecador (subiectum
convertendum) se mantém mere ou pure passive.
A isto diz a Fórmula de Concórdia: ‘A conversão de nossa vontade corrupta,
a qual nada mais é do que ressurreição dela da morte espiritual, é única e
exclusivamente obra de Deus, bem como o ressurgir na ressurreição corporal da
carne só deve ser atribuído a Deus, segundo acima ficou amplamente
demonstrado e comprovado por meio de testemunhos claros das Sagradas
Escrituras.’ A doutrina da conversão aqui apresentada é a das Sagradas
Escrituras, as quais ensinam expressamente que, se o pecador se converte, se o
deve, não a qualquer esforço de sua parte, mas unicamente à operação efetiva da
graça divina (Ef 1:19). A prova escriturística para esta verdade pode-se
estabelecer da seguinte maneira:
a. A Escritura atribui, positivamente, a conversão ou a geração da fé no
coração do homem exclusivamente a Deus e, em particular, à sua graça, sendo o
‘novo nascimento’ e a ‘ressurreição espiritual’, citados como prova de que a
conversão é um ato da graça divina (monergismo) e dele excluem a operação e
cooperação do homem.

‘Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair; e eu o


ressuscitarei no último dia.’ (Jo 6:44)

‘Por meio dele e por causa do seu nome, recebemos graça e


apostolado para chamar dentre todas as nações um povo para a obediência
que vem pela fé. E vocês também estão entre os chamados para
pertencerem a Jesus Cristo. A todos os que em Roma são amados de Deus e
chamados para serem santos: A vocês, graça e paz da parte de Deus nosso
Pai e do Senhor Jesus Cristo.’ (Rm 1:5-7)

‘dando graças ao Pai, que nos tornou dignos de participar da herança


dos santos no reino da luz. Pois ele nos resgatou do domínio das trevas e
nos transportou para o Reino do seu Filho amado.’ (Cl 1:12-13)

‘pois a vocês foi dado o privilégio de, não apenas crer em Cristo, mas
também de sofrer por ele.’ (Fp 1:29)

‘Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de
vocês, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie.’ (Ef 2:8-9)

‘e a incomparável grandeza do seu poder para conosco, os que


cremos, conforme a atuação da sua poderosa força.’ (Ef 1:19)

‘Pois Deus que disse: "Das trevas resplandeça a luz", ele mesmo
brilhou em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de
Deus na face de Cristo.’ (II Co 4:6)

‘Contudo, aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-
lhes o direito de se tornarem filhos de Deus.’ (Jo 1:12)

‘Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus, e todo
aquele que ama o Pai ama também ao que dele foi gerado.’ (I Jo 5:1)

‘Isso aconteceu quando vocês foram sepultados com ele no batismo, e


com ele foram ressuscitados mediante a fé no poder de Deus que o
ressuscitou dentre os mortos. Quando vocês estavam mortos em pecados e
na incircuncisão da sua carne, Deus os vivificou juntamente com Cristo. Ele
nos perdoou todas as transgressões.’ (Cl 2:12-13)

b. A Escritura denega expressamente ao homem inconverso o poder para


conhecer ou crer o evangelho e o incrimina da ofensa de resistir à boa e graciosa
vontade de Deus, que sinceramente deseja a sua regeneração, até o justo
momento em que se converte. Logo também estas passagens descrevem a
conversão como sendo um ato da graça divina e dela excluem a operação e
cooperação do homem. A Escritura, pois, declara-se de modo positivo e negativo
pelo monergismo e contra toda forma de pelagianismo e sinergismo. Lutero:
‘Honramos devidamente a Deus, se reconhecermos que não nos salvamos por
nossos méritos e depositamos nossa confiança na sua misericórdia.’

‘Quem não tem o Espírito não aceita as coisas que vêm do Espírito de
Deus, pois lhe são loucura; e não é capaz de entendê-las, porque elas são
discernidas espiritualmente.’ (I Co 2:14)
‘Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, não o atrair; e eu o
ressuscitarei no último dia.’ (Jo 6:44)

‘a mentalidade da carne é inimiga de Deus porque não se submete à lei


de Deus, nem pode fazê-lo.’ (Rm 8:7)

Que somente Deus é a causa eficiente da conversão evidencia-se da


própria natureza da conversão (forma conversionis). Como vimos, a conversão
consiste essencialmente nisto que o pecador aterrorizado e penitente crê em
Cristo e com tal fé deveras repudia o mais energicamente toda justiça das obras e
em nada mais confia para sua salvação senão nos méritos de Cristo. Tal fé em
Cristo, todavia, compreende uma transformação absoluta do coração e
entendimento do pecador. O homem é por natureza dado à justiça das obras e
não quer outro modo de salvação além do de fiar-se nas suas boas obras.
Se, contudo, este é o caso, a transformação mediante a qual repudia todas
as obras e se apega tão só aos méritos de Cristo não pode provir do homem; pois
que por natureza detesta e combate o plano evangélico de salvação. A
transformação, por conseguinte, tem de ser operada por Deus, como realmente é.
Escreve a Apologia com acerto: ‘Esta opinião da lei é por natureza inerente ao
espírito dos homens; e não pode ser expulsa, a menos que sejamos ensinados
por Deus. Todavia, o espírito tem de ser reconduzido de semelhantes opiniões
carnais à palavra de Deus.’
Contra a doutrina escriturística de que só Deus opera e efetua a conversão
tem-se sustentado que por natureza o homem é deveras incapaz de crer o
evangelho, de desistir de opor-se ao Espírito Santo, de apresentar-se para a graça
e manter uma conduta apropriada diante da operação divina de chamamento e
santificação; isto, porém, afirma-se, pode ele certamente fazer tão logo seja
dotado de poderes espirituais.
A esta objeção revidamos que, se a pessoa é capaz de realizar estas obras
espirituais com poderes a ela conferidos pelo Espírito Santo, já está convertida;
pois neste caso o seu coração já se acha completamente transformado, a sua
vontade é conforme a Deus e às cousas divinas, seu entendimento já não
considera loucura o evangelho, mas divina sabedoria, e o Salvador crucificado, a
única esperança espiritual do mundo, já não lhe é pedra de tropeço. Em outras
palavras, o homem neste caso revela todas as características de uma pessoa
convertida, ou seja, de um crente.
A respeito do irregenerado ou inconverso declara a Fórmula de Concórdia
corretamente: “Daí manter-se o livre arbítrio natural, de acordo com sua índole e
natureza pervertidas, tão somente empenhado e ativo naquilo que desagrada e é
contrário a Deus.” Da conversão diz: ‘A conversão é uma transformação tal no
entendimento, na vontade e no coração do homem, operada pelo Espírito Santo,
que o homem pode por efeito desta operação do Espírito Santo aceitar a graça
oferecida.’ Nossa confissão destarte apóio a doutrina escriturística de que o dotar
uma pessoa de poderes espirituais constitui a verdadeira essência da conversão
(Donatio virium spiritualium est ipsa conversio).
O verdadeiro escopo do artigo II da Fórmula de Concórdia é a constatação
de que só Deus é a causa da conversão. Como faz ver corretamente, o homem
não é ativo no tocante à sua conversão, mas puramente passivo, isto é, “em
absoluto nada contribui para a mesma, porém unicamente sofre o que Deus nele
opera.” Em outras palavras, a cooperação espiritual do homem só começa depois
de se haver convertido.
Não há, por conseguinte, três causas eficientes da conversão, a saber, o
Espírito Santo, a palavra e a vontade anuente do homem, segundo afirmaram
erroneamente Melanchton e seus seguidores sinergistas, mas apenas duas, o
Espírito Santo e a palavra de Deus. Em sua conversão, o homem é qual um
pedaço de pau ou uma pedra, em verdade, muito pior que um pedaço de pau ou
uma pedra, visto que em razão de sua natural inimizade contra Deus resiste às
operações do Espírito Santo até que esteja convertido.

‘Povo rebelde, obstinado de coração e de ouvidos! Vocês são iguais


aos seus antepassados: sempre resistem ao Espírito Santo!’ (At 7:51)

Diz a isto a Fórmula de Concórdia: ‘Uma pedra ou pedaço de pau não


resiste àquele que o impele, tampouco entendem ou sentem o que com eles se
faz, ao contrário do homem, que resiste ao Senhor Deus e sua vontade até se
converter. ... Não pode contribuir absolutamente nada para a sua conversão ... e
neste caso é muito pior que uma pedra ou pedaço de pau; porquanto resiste à
palavra e vontade de Deus até que Deus o desperte da morte do pecado, o
ilumine e renove.’
Fato é, a conversão não se dá sem uma completa transformação interior do
coração; pois que o pecador experimenta os terrores de consciência e pela
operação do Espírito Santo crê o evangelho, ao qual anteriormente, em seu
estado de incredulidade, rejeitou. Contudo, nem os efeitos da lei sobre o coração
nem a fé nas promessas do evangelho se devem aos seus próprios esforços; pois
frente à lei bem como ao evangelho é puramente passivo e tão somente sofre ‘o
que Deus nele opera’. ‘De si mesmo ou por suas faculdades naturais, nada pode o
homem fazer ou contribuir para a sua conversão, e a conversão é, não só em
parte, mas inteiramente operação, dom e dádiva e obra do Espírito Santo, que
pela palavra a efetua e opera mediante a sua força e o seu poder.’
A Fórmula de Concórdia defende nestas palavras claras e inconfundíveis o
monergismo divino contra o sinergismo. É sua doutrina: ‘A conversão só é obra do
Espírito Santo, o qual opera por meio da palavra de Deus’. À acusação de que
nossa confissão estaria dando demasiada ênfase a este ponto, revidamos
afirmando que os escritores da Fórmula de Concórdia estavam perfeitamente
persuadidos que a adoção do sinergismo pela igreja luterana destruiria
completamente o fundamento da Reforma e reconduziria a igreja purificada ao
pelagianismo, o erro fundamental do papado. Uma igreja luterana sinergista, eles
o compreenderam, não poderia ensinar a ‘sola gratia’ em sua verdade e pureza
escriturística. Logo, ao repelirem os ataques dos sinergistas, combatiam contra
adversários que ‘saltavam à goela’ do cristianismo. ... Dr. F. Bente declarou: ‘O
luteranismo genuíno teria sido estrangulado, caso houvesse o sinergismo
emergido vitoriosamente desta grande controvérsia da graça contra o livre
arbítrio.’”
Até aqui, temos calvinistas e luteranos andando juntos e combatendo o
arminianismo triunfantemente. Ambos crêem que o homem não pode salvar a si
mesmo e apenas Deus pode efetuar tal milagre neste “exército de ossos secos”
que somos antes de nossa conversão. A sola gratia é clara e se sustenta com
supremacia por toda Escritura e não pode ser negada. O problema começa a
surgir quando entramos em questões como os meios usados por Deus para que
seja efetuada a conversão e a resistibilidade da graça. Enquanto os calvinistas
afirmam que Deus é irresistível, portanto, a graça de Deus para a conversão é
irresistível e o homem quando é alcançado por ela não pode fazer nada senão se
entregar, os luteranos afirmam que Deus é, de fato, irresistível e se ele quisesse
poderia converter o ser humano sem nenhum impedimento e irresistivelmente,
mas não é assim que Deus escolheu fazer. Ele usa os meios da graça para
alcançar o homem e preservar a sua humanidade, e esses meios são resistíveis.
Em outras palavras, se Deus quisesse aparecer em pessoa diante de um homem
para convertê-lo, ele poderia fazer isso e o pobre sujeito realmente não seria
capaz de resistir a Deus e se converteria instantaneamente, mas não é assim que
acontece conosco. Deus usa de seus meios para alcançar o coração do homem,
transformá-lo e regenerá-lo. Esses meios são o Batismo e a Palavra de Deus. São
chamados pelos luteranos de sacramentos.
Seguimos com mais um trecho da Dogmática Cristã de Müeller:

“Conquanto a conversão do homem seja obra da onipotência de Deus, a


divina graça convertedora não obstante, não é irresistível, conforme ensinam os
calvinistas, mas resistível, segundo o afirmam as Escrituras Sagradas. A razão
para tanto é evidente. Posto que Deus seja irresistível sempre que trate com o
homem segundo o seu soberano poder, pode-se-lhe resistir sempre que exerça o
seu poder ilimitado mediatamente. Tanto no seu reino do poder como no reino da
graça podem-se rejeitar os meios pelos quais tencione abençoar o homem. Assim
a vida, o maior dom terreno de Deus, embora criada e mantida pela divina
onipotência, pode, não obstante, ser destruída pelo homem. Semelhantemente a
vida espiritual, ou seja, a conversão, posto que oferecida por meio da onipotente
Palavra de Deus, pode ser rejeitada pelo homem mediante maldosa resistência.
Mantendo a resistibilidade da graça convertedora, a igreja luterana
confessional repudia tanto o calvinismo como o singergismo. Negando a
universalidade da graça, declara o calvinismo que os eleitos se regeneram pela
graça irresistível, ao passo que aos não eleitos só se concede a graça comum. Os
sinergistas, por seu turno, concluem da resistibilidade da graça que o pecador,
assim como pode rejeitar a graça divina a ele oferecida, também pode cooperar
com o Espírito Santo em sua conversão, mediante uso correto dos poderes
espirituais que lhe foram conferidos. Ambos os erros são contrários ao claro
ensinamento das Sagradas Escrituras a este ponto.

‘Isso é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador, que deseja que
todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade.’ (1
Tm 2:3-4)
‘pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar,
de acordo com a boa vontade dele.’ (Fp 2:13)

‘Pois Deus que disse: "Das trevas resplandeça a luz", ele mesmo
brilhou em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de
Deus na face de Cristo.’ (2 Co 4:6)

‘Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que


lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a
galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não
quiseram.’ (Mt 23:37)

‘Povo rebelde, obstinado de coração e de ouvidos! Vocês são iguais


aos seus antepassados: sempre resistem ao Espírito Santo!’ (At 7:51)”

As duas últimas passagens nos trazem, de maneira bem explícita, um Deus


que quer salvar a todos. É louvável a idéia calvinista de que se Deus quisesse
salvar a todos ele simplesmente o faria por não poder ele ser resistido e um plano
seu não poder ser frustrado. A dificuldade maior é encontrar uma igualdade na
bondade de Deus para com salvos e condenados nestes termos. Daí a explicação
luterana parece bem sustentável, colocando os meios da graça como resistíveis e
Deus, como soberano e supremo em sua onipotência, escolhendo meios para que
o homem seja salvo, mas que podem ser resistíveis para que a própria
humanidade do homem não seja violada e ele não se torne um fantoche. Note,
porém, que o livre arbítrio não tem nada a ver com isso tudo e sim a capacidade
do homem de rejeitar a graça de Deus. Aquilo que arminianos chamariam de “livre
arbítrio”, é chamado por luteranos apenas de “arbítrio para o mal”, não livre, mas
escravo do pecado.
Os calvinistas ensinam uma predestinação dupla, ou seja, Deus escolhe,
predestina e elege aqueles que serão salvos e também elege, predestina e
escolhe os que serão condenados. Ainda que a responsabilidade pelo próprio
pecado seja do homem tão somente, isso tanto para calvinistas como para
luteranos, é Deus quem predetermina na eternidade a condenação daqueles “que
não são contados como suas ovelhas.” Há muitas passagens que expressam essa
idéia. Quero citar algumas delas:

“E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tendo eles feito bem ou
mal algum, foi dito a ela: O mais velho servirá ao mais moço. Como está
escrito: Eu amei a Jacó, porém aborreci a Esaú. Que diremos, pois? Há,
porventura, em Deus injustiça? De modo nenhum. Pois a Moisés disse: Terei
misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia, e terei compaixão de
quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, não é daquele que quer, nem
daquele que corre, mas de Deus que usa de misericórdia. Pois disse a
Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu
poder, e para que seja anunciado o meu nome por toda a terra. Logo ele tem
misericórdia de quem quer, e a quem quer endurece.” (Rm 9:11-18)
“O Senhor fez todas as coisas para atender aos seus próprios
desígnios, até o ímpio para o dia do mal.” (Pv 16:4)

“O coração do homem planeja o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige


os passos.” (Pv 16:9)

“A sorte se lança no regaço, mas do Senhor procede toda a


determinação.” (Pv 16:33)

“Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro


foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado,
quando nem um deles havia ainda.” (Sl 139:16)

“Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que
o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois
aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos. E aos que predestinou, também chamou; aos que chamou,
também justificou; aos que justificou, também glorificou. Que diremos, pois,
diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele
que não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como
não nos dará juntamente com ele, e de graça, todas as coisas? Quem fará
alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica.
Quem os condenará? Foi Cristo Jesus que morreu; e mais, que ressuscitou
e está à direita de Deus, e também intercede por nós. Quem nos separará do
amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou
nudez, ou perigo, ou espada? Como está escrito: ‘Por amor de ti
enfrentamos a morte todos os dias; somos considerados como ovelhas
destinadas ao matadouro’. Mas, em todas estas coisas somos mais que
vencedores, por meio daquele que nos amou. Pois estou convencido de que
nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o
futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer
outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está
em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Rm 8:28-39)

"Não estou me referindo a todos vocês; conheço os que escolhi. Mas


isto acontece para que se cumpra a Escritura: ‘Aquele que partilhava do meu
pão voltou-se contra mim’.” (Jo 13:18)

“Ouvindo isso, os gentios alegraram-se e bendisseram a palavra do


Senhor; e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna.”
(At 13:48)

“Porque Deus nos escolheu nele antes da criação do mundo, para


sermos santos e irrepreensíveis em sua presença. Em amor nos predestinou
para sermos adotados como filhos por meio de Jesus Cristo, conforme o
bom propósito da sua vontade, para o louvor da sua gloriosa graça, a qual
nos deu gratuitamente no Amado.” (Ef 1:4-6)

“Deus nos salvou e nos chamou com uma santa vocação, não em
virtude das nossas obras, mas por causa da sua própria determinação e
graça. Esta graça nos foi dada em Cristo Jesus desde os tempos eternos.” (2
Tm 1:8-9)

“E ele enviará os seus anjos e reunirá os seus escolhidos dos quatro


ventos, dos confins da terra até os confins do céu.” (Mc 13:27)

"Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham, benditos
de meu Pai! Recebam como herança o Reino que lhes foi preparado desde a
criação do mundo.” (Mt 25:34)

De todas as passagens citadas, a passagem abaixo parece expressar a


idéia de que é, de fato, Deus quem toma a decisão de salvar ou condenar alguém:

“E, quando Jesus se achou só, os que estavam junto dele com os
doze interrogaram-no acerca da parábola. E ele disse-lhes: A vós vos é dado
saber os mistérios do reino de Deus, mas aos que estão de fora todas estas
coisas se dizem por parábolas. Para que, vendo, vejam, e não percebam; e,
ouvindo, ouçam, e não entendam; para que não se convertam, e seus
pecados não lhes sejam perdoados.” (Mc 4:10-12)
CONCLUSÃO: LIVRE ARBÍTRIO E CRISTIANISMO

A definição de “livre arbítrio”, segundo o Dicionário Aurélio, é: “poder,


faculdade de decidir, de escolher, de determinar, dependente apenas da vontade.”
Muitas vezes procuramos uma imparcialidade quando fazemos escolhas
importantes, mas sempre haverá uma gama de fatores que nos influenciará nas
nossas decisões e, ainda que escondidos em nosso subconsciente, esses fatores
mudarão o curso das nossas vontades. Eles fazem isso o tempo todo, na verdade.
É impossível tomarmos uma decisão sem que elementos como cultura,
experiências pessoais, traumas, sentimentos bons, ruins, superficiais ou
profundos, e outras condições internas ou externas estejam nos influenciando e
impulsionando para tal. A decisão, por mais livre e genuína que pareça ser, é
apenas o desfecho de uma série de microsistemas interligados, como uma
corrente de causas e conseqüências que simplesmente gera resultados. Ela é
apenas o último elo, a conclusão. Nossas preferências não são livres em si e, por
isso, não nos permitem sermos livres nas nossas decisões. Biblicamente, nossa
natureza também não.
João é jovem e está prestes a entrar na faculdade e ele está sendo
exaustivamente pressionado por seu pai para fazer o curso de Direito Civil e ser
mais um grande advogado na linhagem. João não tem certeza de que está
fazendo isso apenas por causa da pressão de seu pai, que é um grande
advogado, ou porque ele realmente chegou à conclusão de que o Direito Civil é o
curso que ele quer fazer. A única coisa que ele consegue lembrar é que ele
sempre gostou desse curso e que seu pai e seu avô são grandes e renomados
advogados. Ele não tem certeza de que a sua escolha está sendo primordialmente
influenciada apenas por seu pai ou por outros fatores e ele ainda considera a
opção de enfrentar a tirania de seu pai e terminar estudando artes plásticas ou
música, que também são cursos nos quais ele sempre esteve interessado. O
dinheiro que ganharia como advogado também está pesando em sua decisão,
afinal, todos sabem que ele teria mais chances de crescimento profissional e
também social se fosse um bom advogado. Paralelamente a isso tudo, ainda há a
possibilidade de João nem mesmo querer fazer faculdade alguma e resolver virar
surfista nas praias de Santa Catarina, que é um sonho de criança que ele ainda
alimenta lá no fundo do seu inconsciente. Ele é livre para escolher e vai tomar
uma decisão que pode mudar o curso de toda sua vida. Ele realmente parece ter o
livre arbítrio para escolher qualquer uma dessas opções, mas não é claro que
existe algo que o impulsiona para tomar a decisão e pender para cada um dos
lados? Não parece que seja o que for que ele escolha foi motivado por algo e
houve algum fator que pesou mais que o outro? A pergunta chave seria, alguma
decisão é tomada a partir de um ponto zero, de um ponto neutro, ou são todas
influenciadas e impulsionadas por outros fatores já pré-existentes?
Olhando a partir dessa lente bem básica, o livre arbítrio, em sua essência,
parece então ser inexistente em si mesmo. Ninguém é livre para decidir tendo
vivido o minuto anterior. Ele seria um estado ideal de escolha totalmente utópico.
Ele poderia ser exercido apenas por um ser que não fosse influenciado por nada e
por ninguém. Um ser que tivesse seu emocional totalmente intacto e não pudesse
ser abalado, tocado ou influenciado por nada e ninguém: Deus.
Escolher entre o bem e o mal, que é a questão maior, a questão moral aqui
envolvida, nunca pode ser exercido fora do contexto em que se encontra.
Podemos pontuar três etapas distintas da vida humana referente ao livre
arbítrio: Adão e Eva antes da queda, o ser humano nascido no pecado e o crente
temente a Deus. Cada uma delas possui características que diferem no tocante à
natureza do homem e de suas escolhas:

1. O Livre Arbítrio de Adão e Eva

Adão e Eva foram criados perfeitos à imagem e semelhança de Deus. Nada


que Deus crie pode ser imperfeito em sua essência porque Deus é perfeito e tudo
o que faz é fruto de sua perfeição e, a não ser que haja uma mudança externa e
antagonista, tudo que Deus cria é bom.
“Disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre
o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E
criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher
os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e
enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos
céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra. E disse Deus: Eis que vos
tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e
toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. E a
todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que
há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi. E viu Deus
tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã, o dia
sexto.” (Gn 1:26-31)
“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas
narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. E plantou o Senhor
Deus um jardim no Éden, do lado oriental; e pôs ali o homem que tinha formado.”
(Gn 2:7-8)
“E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar
e o guardar. E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do
jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela
não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás. E disse
o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora
idônea para ele.” (Gn 2:15-18)
“E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e
trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da
minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada.
Portanto deixará o homem o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e
serão ambos uma carne. E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não
se envergonhavam.” (Gn 2:22-25)
Essas são as passagens que descrevem a criação do homem e seu estado
natural perfeito quando foi criado. O fato de ter sido criado à imagem e
semelhança de Deus e de que o homem e sua mulher estavam nus mas não se
envergonhavam, nos leva à fácil conclusão de que eram inocentes, sem culpa ou
pecado algum, e neles não havia também malícia alguma, não havia dolo ou
maldade em sua natureza. Nem mesmo a inclinação para o pecado pode ser
notada em parte alguma. Até que, instigados por um fator externo, comecem do
fruto da árvore do bem e do mal não havia pecado no mundo e o homem
governava sobre todo o mundo e era responsável por ele. Coroa da criação. Era
como se o mundo fosse propriedade de Deus, mas estivesse arrendado ao
homem, que deveria tomar conta dele com total autonomia e poder sobre todos os
seres vivos. Deus era o rei e o homem seu representante legal, como um
governador. A Terra, com todos os seres vivos, estava submetida ao homem.
Deus, na sua autoridade superior, aparentemente havia ditado apenas uma regra
a que o próprio homem era submetido, a saber, não comer do fruto da árvore do
conhecimento do bem e do mal. Essa regra era cumprida naturalmente pelo
homem, pois em sua natureza não havia maldade, portanto, nenhuma
possibilidade de descumpri-la. Nenhuma possibilidade de rebelião contra a
autoridade e Deus. Havia somente uma fonte de maldade existente que havia sido
expulsa do céu e jogada à terra: a serpente.
“Houve então uma guerra no céu. Miguel e seus anjos lutaram contra o
dragão, e o dragão e os seus anjos revidaram. Mas estes não foram
suficientemente fortes, e assim perderam o seu lugar no céu. O grande dragão foi
lançado fora. Ele é a antiga serpente chamada diabo ou Satanás, que engana o
mundo todo. Ele e os seus anjos foram lançados à terra.” (Ap 12:7-9)
Em outra versão, temos:
"E irrompeu uma guerra no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam com o
dragão, e o dragão e os seus anjos batalhavam, mas ele não prevaleceu, nem se
achou mais lugar para eles no céu. Assim foi lançado para baixo o grande dragão,
a serpente original, o chamado Diabo e Satanás, que está desencaminhando toda
a terra habitada; ele foi lançado para baixo, à terra, e os seus anjos foram
lançados para baixo junto com ele." (Ap 12:7-9)
A forma como o mal passou a existir no coração desse dragão ainda nos é
encoberta e não nos aprofundaremos neste assunto, embora a interpretação
bíblica sobre a “questão do mal” seja de caráter fundamental para um bom
entendimento das Escrituras. A maneira como um cristão entende essa questão
pode mudar totalmente sua visão sobre a Bíblia toda. Há um trecho de Isaías que,
apesar de ser de difícil aceitação, parece ser bastante claro quanto à questão da
criação do mal. Se Deus criou todas as coisas e antes dele nada existia, então de
onde surgiu o mal? Quem criou o mal?
“Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus; eu te cingirei,
ainda que tu não me conheças; para que se saiba desde o nascente do sol, e
desde o poente, que fora de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro.
Eu formo a luz, e crio as trevas; eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço
todas estas coisas.” (Is 45:5-7)
"Veja, sou eu quem criou o ferreiro, que sopra as brasas até darem chama
e forja uma arma própria para o seu fim. E fui eu quem criou o destruidor para
gerar o caos.” (Is 54:16)
A explicação que recebi da doutrina luterana para a questão do mal é
baseada na ausência de Deus, portanto, o mal não existe em si mesmo e é sim, o
resultado da ausência de Deus em todos os parâmetros. Assim como a escuridão
não é senão a ausência de luz e por si só não existe, o mal do coração do homem,
por exemplo, é a falta da presença de Deus no mesmo. Assim sendo, o mal não
foi criado porque ele não é nada além da ausência de algo. É um pouco
complicado conceber essa conclusão quando a confrontamos com a já
estabelecida onipresença de Deus. Se Deus está presente em todos os lugares e
ainda assim o mal é notado, então há uma coexistência real entre as duas forças,
a não ser que Deus seja capaz de deixar de existir parcialmente e
deliberadamente em alguns lugares para que o mal possa exercer seu papel e
isso também parece paradoxo. A única saída que eu encontrei para a questão,
tendo chegado a este ponto, é a forma como interpretamos o nosso mundo. A
onipresença de Deus e o mal parecem poder coexistir apenas em um mundo que
não é exatamente real. Como no filme MATRIX, por exemplo, onde a realidade não
acontece aqui e sim fora daqui.
Pode-se concluir então, que no lugar onde as coisas realmente existem, ou
seja, no mundo espiritual e real, Deus jamais coexistirá com o mal, pois a sua
presença elimina e subjuga o mal total e completamente, a ponto de ele não
existir. Tal qual a luz quando emana seus raios dissipa totalmente a escuridão.
Não existe nenhuma possibilidade de uma lanterna ser ligada dentro de um cofre
escuro e a escuridão prevalecer. A escuridão tem de bater em retirada assim que
a luz é acesa. O mundo em que vivemos é apenas um reflexo daquele mundo
real. Um reflexo ínfimo e tão insignificante quanto profundamente eterno. Se para
Deus um dia é como mil anos e mil anos são como um dia, ele habita tanto na
menor e mais indivisível partícula sub-atômica, quanto na totalidade de toda
realidade física. No menor fragmento de tempo que possa fracionar o milésimo de
segundo e na eternidade. Não há nada que Deus não conheça, não há lugar onde
ele não habite e não há nada que ele não possa fazer.
Voltando à questão do Éden, podemos afirmar com toda certeza que o mal
já existia e a serpente era sua portadora. Sabemos também que a serpente era
satanás, o diabo, que havia sido jogado para baixo, para terra. A interpretação
conclusiva é de que esta “terra” se trata do Planeta Terra, pois era aqui que tal
serpente estava e foi aqui que ela tentou Eva a pecar. Há relatos mitológicos que
também apontam para tal, como a lenda da Ave Fênix, que foi jogada dos céus à
terra e então renasceu das cinzas. A dúvida que ainda resta e que parece não
poder ser tirada com propriedade é se tal serpente, o diabo, era ou não um anjo:
“O grande dragão foi lançado fora. Ele é a antiga serpente chamada diabo
ou Satanás, que engana o mundo todo. Ele e os seus anjos foram lançados à
terra.” (Ap 12:9)
É bastante claro que “seus anjos” se refere aos demônios que com ele
foram lançados à terra, mas o texto não esclarece com toda clareza se o próprio
satanás era também um anjo. Há um outro texto, em Ezequiel 28, que é por
alguns teólogos considerado uma descontextualização errônea, mas pela maioria
considerado profético:
"Filho do homem, erga um lamento a respeito do rei de Tiro e diga-lhe:
‘Assim diz o Soberano Senhor: ‘Você era o modelo de perfeição, cheio de
sabedoria e de perfeita beleza. Você estava no Éden, no jardim de Deus; todas as
pedras preciosas o enfeitavam: sárdio, topázio e diamante, berilo, ônix e jaspe,
safira, carbúnculo e esmeralda. Seus engastes e guarnições eram feitos de ouro;
tudo foi preparado no dia em que você foi criado.
Você foi ungido como um querubim guardião, pois para isso eu o
determinei. Você estava no monte santo de Deus e caminhava entre as pedras
fulgurantes. Você era inculpável em seus caminhos desde o dia em que foi criado
até que se achou maldade em você. Por meio do seu amplo comércio, você
encheu-se de violência e pecou. Por isso eu o lancei em desgraça para longe do
monte de Deus, e eu o expulsei, ó querubim guardião, do meio das pedras
fulgurantes. Seu coração tornou-se orgulhoso por causa da sua beleza, e você
corrompeu a sua sabedoria por causa do seu esplendor. Por isso eu o atirei à
terra; fiz de você um espetáculo para os reis.
Por meio dos seus muitos pecados e do seu comércio desonesto você
profanou os seus santuários. Por isso fiz sair de você um fogo, que o consumiu, e
eu reduzi você a cinzas no chão, à vista de todos os que estavam observando.
Todas as nações que o conheciam ficaram chocadas ao vê-la; chegou o seu
terrível fim, você não mais existirá’ ". (Ez 28:12-19)
O texto é normalmente interpretado de forma profética, ou seja, Deus falou
de forma profética em meio a outros textos. Essa interpretação é de longe a mais
popular entre os crentes contemporâneos, mas há os que discordam e entendem
que isso não faz sentido no contexto. A verdade é que não podemos estabelecer
com precisão quanto à natureza do diabo e sua criação e temos que nos contentar
com aquilo que as Escrituras nos trazem de forma ainda obscura.
O mal existia e Adão e Eva eram livres para escolher comer ou não da
Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. A tal árvore tinha nome e havia sido
colocada no Éden por Deus, bem como a árvore da vida:
“Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista
e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do
conhecimento do bem e do mal.” (Gn 2:9)
Essa árvore da morte era a pedra de tropeço colocada ali no meio do
jardim, assim como contrariamente Cristo foi tido como pedra de tropeço para
muitos que precisavam apenas crer nele para serem salvos, mas não podiam ou
não queriam. O messias que eles esperavam não poderia ser um homem simples,
humilde sentado num jumentinho. Eles queriam um grande líder político e então
tropeçaram nas suas próprias expectativas crucificando seu próprio Senhor.
Em relação ao Éden, os motivos pelos quais Deus permitiu que fosse assim
ou assim quis ainda não nos são totalmente claros e talvez nunca sejam para
nossas mentes limitadas e ainda imperfeitas, mas é nítido que havia uma escolha
que podia ser feita e que o homem era livre para escolher o que quisesse. O
homem não tinha dentro de si uma inclinação para o mal, portanto, podia ser
considerado livre. Lembremos, porém, que a serpente não fez Eva pecar, ou seja,
não foi satanás quem moveu a mão de Eva para apanhar o fruto ou que o levou à
sua boca contra sua vontade. A própria mulher o fez convencida, enganada e
incitada pela serpente, mas o fez de livre e espontânea vontade. Ela tinha uma
escolha a fazer e escolheu desobedecer à ordem direta de Deus e hoje somos
todos afetados diretamente por essa decisão de Eva e então Adão.
Se Deus se afastou propositalmente neste momento para que isso fosse
possível ou se o livre arbítrio que havia dado ao homem era tão supremo a ponto
de o próprio Deus não querer interferir nessa escolha também não podemos
estabelecer com base no que temos. Lembremos que apesar de Deus ser
onipresente e de seu Espírito pairar sobre a face das águas, o encontro entre
Adão, Eva e Deus acontece mais tarde, quando então tiveram vergonha por
estarem nus. Isso nos leva a crer que Deus, de alguma forma, não estava
presente enquanto a serpente enganava Eva e enquanto Eva tomava o fruto e o
comia. De alguma forma, e por algum motivo que desconhecemos, Deus permitiu
que isso acontecesse. Sendo Deus soberano e bom, porém, sabemos que tudo
isso corroborou para glória de Deus e essa era a maneira na qual Deus seria mais
glorificado, do contrário, teríamos um plano de Deus que teria sido frustrado e isso
é, ao menos, ilógico.
É interessante notarmos também quais foram os argumentos usados pela
serpente para convencer Eva de comer o fruto. A serpente disse que eles
certamente não morreriam e que seriam conhecedores do bem e do mal assim
como Deus e disse que se lhes abririam os olhos. O diabo, além de mentir para
Eva, lhe fez uma proposta. Isso me lembra muitos os pactos satânicos que são
feitos ainda hoje e a forma com que o diabo ofereceu poder a Jesus no deserto. A
história se repete ainda no nosso cotidiano quando nos oferecem prazeres e
realizações “melhores” do que aquilo que Deus nos propõe.
Se pensarmos mais profundamente, veremos que todo pecado é um desejo
forjado no nosso coração. Um desejo de ter algo melhor do que aquilo que Deus
oferece, que é a santidade e a conformidade com a sua soberana vontade. O
pecado parece ter um gosto especial, um prazer em si só que só pode ser
alcançado se quebrarmos as regras e nos rebelarmos contra Deus em favor da
nossa própria vontade. Aquela idéia de que “tudo que é proibido é mais gostoso.”
O gosto do pecado é realmente doce e se assim não fosse não atrairia ninguém!
O problema é que esse doce se dissolve em um amargo mortal, que é a
separação de Deus. Esse é o salário do pecado. Ele é doce, dá prazer e, de certa
forma, satisfaz, mas tudo isso sem Deus se transforma em vazio, doloroso e
desesperador. O pecado nos afasta de Deus e isso é a maior punição que poderia
existir. Certa vez, meu pastor me perguntou: “Sabe qual a maior desgraça de estar
no inferno?” Ao qual ele mesmo logo respondeu: “É que Deus não está lá”. Outra
citação oportuna é a de um teólogo que disse: “Se Jesus Cristo estivesse no
inferno, é para lá que eu queria ir”. A presença de Deus é nosso maior presente.
A questão maior é a fonte do popularmente chamado “pecado original”. O
pecado foi induzido pela serpente de forma que de dentro do coração da mulher
foi gerado um desejo pecaminoso antes inexistente e que a levou ao ato de
rebeldia, mas nós já nascemos com esse desejo e “estamos mortos em nossos
delitos e pecados” porque “no pecado nos concebeu nossa mãe”. A
responsabilidade, porém, é totalmente da mulher e não da serpente, porque
embora ela tivesse sido enganada e incitada ao pecado, foi do coração dela que
surgiu a intenção pecaminosa. Foi ela quem decidiu desonrar a Deus e seguir
seus próprios desejos. Ela é plenamente responsável pela sua morte e nós,
embora já nasçamos com a inclinação, também somos responsáveis pela nossa
rebeldia, pois o pecado vem de dentro de nós, de dentro do nosso coração. É o
nosso querer.
A conclusão é de que Adão e Eva possuíam um livre arbítrio de fato, um
direito de escolha, que os capacitava a decidir sobre o bem e o mal em suas
vidas. Eles eram perfeitos e podiam escolher obedecer a Deus ou desobedecer a
Deus. Por algum motivo o egoísmo e a ilusão de seguir seus próprios desejos e
alcançar um conhecimento maior, e assim se igualar a Deus, os fez perecer.
Alguns ainda podem especular o fato de que se eles não tivessem comido o fruto
hoje seríamos perfeitos e o pecado não existiria em nós, mas isso seria conceber
uma linha de tempo paralela à de Deus. Lembremos que Deus conhece o tempo e
que nada existe fora de Deus, tornando isso uma conjectura incabível. Outros
poderiam ainda considerar que se Adão, apenas ele, não tivesse comido o fruto,
nós não herdaríamos o pecado e, daí em diante, são mais algumas dezenas de
possibilidades do que aconteceria com a mulher. Tudo isso, porém, será sempre
pura especulação e aquilo que aconteceu foi consumado e jamais fugiu do
controle de Deus e nenhum universo paralelo pode existir fora de Deus. O “futuro
do pretérito” nada mais é do que uma ilusão, um devaneio humano totalmente
impossível de ser concretizado em tempo algum.

2. O Ser Humano Nascido do Pecado

A questão do livre arbítrio nos nossos dias se torna mais difícil por causa da
maneira que pensamos. É bastante difícil encontrarmos alguém que defenda a
existência do livre arbítrio na Bíblia com propriedade. A grande maioria das
argumentações traz a questão para uma série de conclusões totalmente
humanizadas, mas sem muita profundidade e não fundamentadas nas Escrituras,
de forma que alguém que defenda vorazmente o livre arbítrio, parece estar tão
mergulhado na questão moral que não consegue trazer a discussão para a
questão essencial. Eles acabam chegando à conclusão da lógica humana natural
de que se não existe livre arbítrio então Deus não é justo, ou seja, a salvação e a
questão moral do bem e do mal respondem a uma demanda do homem e não de
Deus. É mais ou menos comparável aos aristocratas que defendem o capitalismo
como sendo a única forma justa de governo porque o comunismo é muito pior, ou
seja, ainda que o capitalismo não seja perfeito, não temos nada melhor a oferecer,
o que para eles torna o capitalismo uma “boa resposta”. O livre arbítrio acaba
sendo a única maneira na qual eles conseguem conceber um Deus justo, que
salva o homem por uma escolha que ele mesmo fez: meritocracia. Basicamente,
se a razão humana não consegue conceber uma moral que faça pleno sentido e
sacie sua sede de respostas, então essa moral não existe; mas sabemos que
Deus e suas propostas eternas têm de ser muito superiores à razão humana
criada e limitada.
A definição do Dicionário Aurélio de que o arbítrio é livre se “dependente
apenas da vontade” parece ser bem correta e precisa, mas a vontade é livre?
Fazemos coisas porque queremos, mas por que é que queremos algo? Segundo a
Bíblia, “Deus é o que opera em nós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua
boa vontade.” (Fp 2:13), sendo assim, “eu sei que em mim, isto é, na minha carne,
não habita bem algum; e, com efeito, o querer está em mim, mas não consigo
realizar o bem.” (Rm 7:18). É verdade que as Escrituras nunca isentaram o
homem de sua responsabilidade pelos seus atos e ainda afirmam impetuosamente
que os homens serão punidos por suas obras más e por toda iniqüidade que há
em seus corações, porém, a Bíblia também não afirma que o homem é capaz de
fazer o bem por si mesmo sem a iniciativa de Deus. A Bíblia afirma justamente o
contrário, de que o homem não pode fazer o bem porque nele não habita o bem,
apenas o mal e sua inclinação para o pecado.
Mergulhemos nas Escrituras e imaginemos o homem segundo a figura que
a Bíblia nos propõe: caído, morto em seus delitos e pecados e com uma inclinação
mortal para o pecado. Um homem que não consegue fazer o bem ainda que
queira, porque na sua carne, na sua natureza, não habita bem algum. Como um
ser portador de tal descrição poderia exercer um livre arbítrio? Como um morto
escolhe qualquer coisa? Como um escravo é livre para escolher o que quer? Pois
é assim que a Bíblia descreve o homem sem Deus, morto em delitos e pecados e
escravo do pecado: “Deus vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e
pecados.” (Ef 2:1) No Evangelho de João, a Bíblia usa ainda o termo “filhos do
diabo”. Filho é alguém que carrega o DNA, a carga genética, a natureza do seu
pai e é isso mesmo que Jesus está dizendo:
“Por que a minha linguagem não é clara para vocês? Porque são incapazes
de ouvir o que eu digo. Vocês pertencem ao pai de vocês, o diabo, e querem
realizar o desejo dele.” (Jo 8:43.44) É verdade que alguns teólogos defendem que
essa referência “filhos do diabo” era dada apenas àqueles que pertenciam a seitas
satânicas da época, como a Kabbalah, mas não há nada de errado em tomarmos
as palavras de Jesus e endereçá-las a qualquer homem que nasce morto em seus
delitos e pecados. Não há outro a quem possamos fazer a vontade senão o diabo.
Ele exerce poder sobre nós e sobre o mundo desde Adão e Eva e da queda. A
queda deu a ele poder sobre todos os homens descendentes de Adão, a ponto de
ele oferecer a Jesus a glória do mundo: “Tudo isto te darei se, prostrado, me
adorares.” (Mt 4:9) Ele ofereceu a Jesus aquilo que estava em sua posse.
Jesus disse àqueles israelitas que precisavam ser libertos pela verdade.
Eles realmente pensavam que eram livres, tinham livre escolha e “livre arbítrio”,
mas Jesus os colocou em seus devidos lugares:
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. Responderam-lhe:
Somos descendência de Abraão, e nunca servimos a ninguém; como dizes tu:
Sereis livres? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo que todo
aquele que comete pecado é servo do pecado.” (Jo 8:32-34) E se todo aquele que
comete pecado é servo do pecado então somos todos servos do pecado porque
absolutamente “todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3:23).
Todos a não ser um, o Cordeiro Imaculado, o Cristo. Note que Jesus nasceu da
mulher mas não é descendente de Adão, pois foi concebido pelo Espírito Santo. É
fundamental que saibamos disso e creiamos nisso sempre, porque é o que
afirmam as Escrituras.
Então como pode o homem ser escravo, mas ao mesmo tempo ter um livre
arbítrio? A impossibilidade de resposta a essa pergunta nos ajuda a entender o
porquê do arminianismo ter sido considerado herege pela igreja da época e de
seus defensores terem sido expulsos da Holanda. Parece realmente incompatível
com o ensinamento bíblico. Por que as Escrituras afirmam que Jesus é rei? Afinal,
poderiam ter sido usados termos como “líder”, “presidente”, ou até mesmo,
“coordenador”. A palavra “rei” nos esclarece claramente que Jesus não é um
presidente democrata, que está representando seu povo e foi eleito para colocar
em prática suas opiniões e democraticamente, com imparcialidade, tomar
decisões que favoreçam a maioria que representa. Não! Jesus é rei! Jesus
“governa as nações com cetro de ferro” e a única opinião que interessa é a sua
própria. Rei não pede, rei manda. Um rei bom cuida de seu povo, os alimenta e
governa com justiça, mas, acima de tudo: governa!
Os antigos reis até se aconselhavam com os sábios para tomar decisões,
mas uma vez tomadas por eles próprios, eles as impunham rigorosamente. A
decisão de um rei sempre foi suprema. E quem poderá dar conselhos ao Rei dos
reis e Senhor dos senhores? Ele profetiza e acontece! Ele governa e pune
severamente aqueles que se rebelam contra ele. Quem poderá frustrar seu plano?
Quem poderá surpreender a um Deus onisciente e onipotente? Ninguém ficará
para sempre impune diante desse Rei, porque ele é justo. Esse é o papel de um
rei e é por isso que a Bíblia usa esse termo para falar de Deus. E talvez só por
isso é que tivemos tantos séculos de reis, e governos tiranos e tanto sangue
derramado na terra, para sabermos que um rei é soberano e que governa, sendo
que a única opinião válida é a sua. São decretos soberanos.
Assim é em relação ao homem e sua condição para com o pecado. Não é à
toa que a Bíblia chama o homem de escravo e morto. Isso é exatamente o que ele
é. O homem é totalmente governado pelo pecado até que Deus interfira
drasticamente em sua vida. Agora, como explicar a liberdade humana de fazer o
bem e o mal? O ser humano convive todos os dias com a nítida impressão de que
é livre para fazer o que quiser. Como podemos explicar isso? A explicação
calvinista é que ao invés de Livre Arbítrio, podemos dizer que o ser humano
possui uma Livre Agência, ou seja, ele toma decisões e elas são legítimas de
acordo com sua limitada realidade e seu senso de moralidade, mas a motivação
para tomá-las não é livre e sim um resultado de uma carga multifatorial, sendo um
destes fatores, e seguramente o mais significativo no caso do ser humano, o
pecado que habita em sua natureza.
A Bíblia é muito clara em relação à graça de Deus. A idéia de o homem
salvar-se a si mesmo com seu livre arbítrio, tomando uma decisão de servir a
Deus e crer, foi refutada pela igreja histórica até o surgimento do pentecostalismo,
que restituiu o livre arbítrio como peça fundamental no seu quebra-cabeças.
Talvez essa seja a grande diferença de alguém que esteja “convencido”, mas
ainda não “convertido”, como costumam dizer alguns cristãos do nosso tempo. E
sabemos que nossas igrejas estão cheias de pessoas não convertidas e que, em
alguns casos, nem mesmo conhecem as bases do evangelho.
As igrejas estão cheias de pessoas ignorantes e que são mantidas assim
por seus pastores por razões diversas. Quantas vezes ouvimos pastores dizerem:
“se eu pregar assim vão esvaziar a igreja!” Quando deveriam estar mais
preocupados em ter certeza de que seus membros estão realmente convertidos.
Quando Jesus pregou ao jovem rico, por exemplo, ele não terminou com uma
mensagem humanista, cheia de esperança, ele foi ao âmago da questão e tocou
na ferida daquele homem. O resultado nós conhecemos: “Mas, ouvindo ele isto,
ficou muito triste, porque era muito rico.” (Lc 18:23) Jesus não estava preocupado
em como aquele homem iria receber a sua mensagem e o seu ensinamento,
assim como se Jesus fosse o pregador dos cultos de hoje, aconteceria que
provavelmente muitos não suportariam sua mensagem cortante e não mais
tornariam. As pessoas querem palavras mornas e agradáveis, palavras de
descanso e paz, mas “não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz,
mas espada. Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha
contra sua mãe, e a nora contra sua sogra e assim os inimigos do homem serão
os seus familiares. Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de
mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. E
quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim. Quem
achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, acha-la-
á.” (Mt 10:34-39)
O termo “convencido” seria aquele usado para descrever alguém que
simpatiza com o evangelho, que vai na igreja, que foi à frente declarar que Jesus é
seu Senhor, mas nunca houve sincero arrependimento no seu coração e ele
nunca recebeu fé salvífica. Ele talvez possa tentar viver uma vida melhor daqui
para frente e fazer o bem. Talvez até algumas mudanças significativas possam
estar acontecendo em sua vida do ponto de vista moral e ele possa estar dando
um grande passo em direção à uma vida moral e socialmente melhor, mas ele
jamais se derramou diante de Deus e implorou por sua vida. Ele age moralmente
melhor, politicamente correto, mas não permite que Jesus Cristo seja seu Senhor,
que exerça verdadeiro senhorio em sua vida. Pode-se perceber isso quando se
chega a um impasse de alguma verdade bíblica e ele diz: “até aqui eu vim, mas
daqui não passo. Isso é demais pra mim. Isso eu não aceito ainda que esteja
escrito na Bíblia.” Ele não consegue entregar sua alma e crer em Cristo como sua
única esperança, como sua única chance. Ele vive um semi-cristianismo, ou um
cristianismo morno.
Houve pregadores que disseram que era melhor ser um anti-cristão do que
um semi-cristão. O anti-cristão estaria mais próximo da verdade do que o semi-
cristão, que estaria apenas “esquentando o banco da igreja” e tomando o lugar de
alguém. São palavras fortes, e muitos, ao se chocarem com elas, logo abandonam
a fé, mas assim era quando Jesus pregava:
“Por isso vos disse que ninguém pode vir a mim, se pelo Pai não lhe for
concedido. Por causa disso muitos dos seus discípulos voltaram para trás e não
andaram mais com ele.” (Jo 6:65-66)
“Quando Jesus ouviu isso, disse-lhe: Ainda te falta uma coisa; vende tudo
quanto tens e reparte-o entre os pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, segue-
me. Mas, ouvindo ele isso, encheu-se de tristeza; porque era muito rico.” (Lc
18:22-23) Jesus sabia muito bem onde tudo isso iria terminar. Ele sabia que
aquele homem não ficaria contente com suas palavras e iria para casa triste
naquele dia, mas mesmo assim ele fez o que havia de fazer. Disse a verdade.
Nosso objetivo não é agradar pessoas e atraí-las ou expeli-las das igrejas, mas
apenas dizer a verdade. Ninguém é responsável pela salvação de ninguém, então
se um pastor pregar uma palavra dura e seus membros abandonarem sua igreja
ele não pode ser punido por dizer a verdade. Mas se ele mantém pessoas na
igreja por muitos anos sem que elas conheçam o verdadeiro evangelho, creio que
ele terá de responder por isso diante do Pai. Estar à frente de uma congregação
cristã, se vestir de pastor, ser chamado de pastor, dar sermões e
aconselhamentos e não pregar o evangelho é pecado gravíssimo!
Pode-se concluir, então, que o ser humano é nascido em pecado, ou seja,
ele herdou o pecado de Adão e Eva e, por causa desse pecado, ele precisa ser
redimido e salvo. “Contra ti, só contra ti, pequei e fiz o que tu reprovas, de modo
que justa é a tua sentença e tens razão em condenar-me. Sei que sou pecador
desde que nasci, sim, desde que me concebeu minha mãe.” (Sl 51:4-5)
“Pecador” segundo a Bíblia é aquele que é escravo do pecado e, sendo
escravo, não tem vontade própria. Então ele definitivamente não tem livre arbítrio.
Isso nos leva à questão mais difícil. Depois de arrependido, regenerado e salvo, o
ser humano volta a ter o livre arbítrio perdido no Éden?

3. O Crente Temente a Deus

Quando o homem se arrepende, Deus transforma seu coração e abre seus


olhos e seus ouvidos, para que ele consiga ver que sua vida não agrada a Deus.
Para que ele consiga ter um vislumbre da glória de um Deus santo e eternamente
perfeito e assim possa comparar a sua existência a esse Deus e chegar à
conclusão de que não passa de um ser desprezível, egoísta e que nele não há
nada de bom, ao contrário, tudo que ele faz e tudo que ele é ofende diretamente a
Deus. Ele percebe que é servo de satanás e está sempre procurando fazer a
vontade de seu pai, o diabo. Ainda que ele pense que está fazendo a sua própria
vontade, ele está sempre agradando seu deus caído.
Normalmente, há um divisor de águas no cristianismo que se dá quando
algum “desafio” é exigido do crente e este não pode fazê-lo ou aceitá-lo por
ignorância, falta de fé ou incapacidade. Ainda que muito clara, a Palavra não o
convence ou ele mesmo não se deixa convencer de algo. São vários os vícios e
âncoras que prendem os homens e os impedem de se entregarem a Deus em sua
plenitude, mas temos que lembrar que, na verdade, essa “exigência” ou “desafio”
não é determinante para a salvação em si, que é gratuita e dada por Deus
somente, mas é um sinal de que ainda há algo na vida desse crente que o impede
de ser abençoado mais ricamente por Deus. O fato dele não conseguir abandonar
esse pecado por completo, não o exclui do Reino de Deus. Ele luta diariamente
contra o pecado, mas não chega a experimentar a liberdade completa até o dia
em que seu corpo é glorificado e o pecado totalmente aniquilado.
Ele precisa dar mais um passo em direção a Cristo e se entregar por
completo para ser um verdadeiro discípulo, mas muitos passam a ter dúvidas e
parecem querer abandonar a fé. Há algo do qual este crente não pode se
desvencilhar e por isso o senhorio de sua vida não está totalmente nas mãos de
Deus, mas isso não é motivo para desistir! Nada poderá nos separar do amor de
Cristo e nos arrebatar de sua mão. Nada pode ser colocado como empecilho para
a salvação. Muitos dos que se dizem “desviados” são, na verdade, enganados por
“doutores da lei” ou “falsos profetas” que não conhecem eles mesmos o
verdadeiro amor de Deus. Não interessa o tamanho do pecado do qual o crente
não consiga se desvencilhar, Cristo tem a medida perfeita de salvação para ele e
não o abandonará. Cristo pagou o preço por todo e qualquer pecado que o
homem tenha cometido ou virá a cometer em toda sua vida.
A fé salvadora é aquela que realmente coloca o homem na posição de filho
de Deus, ainda que adotado, e não permite que absolutamente nada o impeça de
seguir para o alvo.
“As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem.
Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão; ninguém as poderá arrancar
da minha mão. Meu Pai, que as deu para mim, é maior do que todos; ninguém as
pode arrancar da mão de meu Pai.” (Jo 10:27-29)
A fé salvadora coloca Deus em primeiro lugar mesmo, de verdade.
Percebemos que quando há uma exigência feita ao homem não é nada que ele
não possa fazer. Se fosse solicitado ao homem que ele fosse perfeito até o fim de
sua vida, por exemplo, isso seria algo impossível, que ele realmente não poderia
fazer por suas próprias forças por causa de sua natureza caída que ele ainda
carrega. Ao jovem rico foi solicitado que ele vendesse tudo o que tinha e seguisse
a Cristo e isso teria sido feito se Jesus fosse o Senhor de sua vida. Quanto vale
seu dinheiro quando comparado à eternidade? A outros é solicitado a própria vida
e se tornam mártires, mas ainda assim é algo que conseguem fazer e por isso
Deus os colocou ali. O próprio Deus os capacita e os carrega no colo por todo o
caminho de dor e sofrimento. Eles permanecem fiéis até o fim e preferem escolher
a tortura e a morte do que negar o nome de Jesus.
Quando o ser humano consegue visualizar isso e ver sua real condição, o
verdadeiro arrependimento pode acontecer e a fé, então, será gratuitamente
colocada no coração desse homem. É tudo dado por Deus. É Deus quem se faz
perceber e é Deus quem regenera o coração. É Deus quem imputa a fé e é Deus
quem salva. É tudo grátis! Por isso o nome é: graça. Esse homem ouve sobre
Jesus que morreu na cruz para pagar pelos seus pecados e crê que seu sacrifício
foi eficaz e suficiente para lhe salvar e então está consumado. Mas lembremos:
“Deus vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados.” (Ef 2:1), ou seja,
é Deus quem faz essa obra sobrenatural e não o homem. O “livre arbítrio” aqui só
poderia servir para imputar glória ao homem. Para ser determinante na
regeneração e salvação do homem, mas apenas Deus pode operar tal milagre.
Para muitos isso parece ser injusto, eles não conseguem entender algo
diferente do mérito humano como determinante. Podemos realmente concluir que
seria mais justo da parte de Deus colocar tamanha responsabilidade nas mãos do
homem? A morte eterna ou a vida eterna nas mãos de um ser imperfeito e
limitado? Um ser com grande dificuldade de decidir sobre coisas cotidianas e
portador de um aspecto emocional frágil e facilmente abalável estaria apto a tomar
tal decisão? Graças a Deus que não! Não é o homem responsável pela sua
própria salvação através de um suposto “livre arbítrio” e é exatamente por isso que
esta salvação é possível, porque se dependesse do homem ele viveria e morreria
rebelde contra Deus e faria de tudo para satisfazer seus próprios desejos
pecaminosos em busca do prazer hedonista.
A escolhas certas e o bem que fazem os cristãos genuínos estão ligados
diretamente à sua vontade e sua vontade diretamente ligada a Deus. Deus opera
o querer e o efetuar. A pessoa está mergulhada em Deus, se preocupa sempre
em fazer a vontade de Deus e é guiada por Deus, por isso ela faz o bem. Fazer o
bem nada é senão o fruto, é apenas um reflexo daquilo que há no coração: a fé. A
fé produz bom frutos e não o contrário. “Pois a boca fala do que está cheio o
coração.” (Mt 12:34) O espírito milita contra a carne e a carne contra o espírito,
então ainda assim haverá momentos que ao invés de fazer a vontade de Deus a
pessoa fará a sua própria e pecará. Uma guerra é feita de batalhas vencidas e
perdidas. Jesus nos garantiu a vitória nessa guerra, mas perderemos algumas
batalhas. E assim será até o fim de nossos dias na terra. Sinceramente, é
impossível chamar essa guerra espiritual travada na mente humana de “livre
arbítrio”, por se tratar de algo sobrenatural e de forças sobre humanas.
Na verdade, o quadro que temos quando se trata do crente genuíno e
temente a Deus, é um quadro de tomada e entrega de poderes. Quando o sujeito
se arrepende e entrega sua vida a Cristo para ser governado por Deus, ele não
consegue fazer isso total e completamente por causa de sua natureza
pecaminosa. Ele precisa de um certo tempo para se entregar por completo. Esse
tempo é sua própria vida. Essa natureza continuará a existir até o fim de seus dias
e quanto a isso não há nada a ser feito. Muitos ficam angustiados quanto a isso e
gostariam sinceramente de serem feitos totalmente santos e imaculados ainda
aqui na terra e fazer 100% da vontade de Deus em tudo e não mais pecar, mas
infelizmente isso não acontece. Pode ser até perigoso crer nisso e pensar que
podemos ser totalmente santos e sem pecado aqui neste mundo. Muitos se
ensoberbecem com isso e pensam poder julgar e subjugar outros por terem
alcançado tal “santidade”. O diabo pode se aproveitar disso facilmente.
Todos os dias tomamos a decisão de entregarmos uma ou outra área da
nossa vida a Deus ou tomá-la de volta para nossa própria vontade. A nossa
própria vontade ainda é aquela pecaminosa da inclinação inicial, sendo que
estaremos sempre pecando quando fizermos isso, ou seja, estaremos
“escolhendo escolher” e assim estaremos escolhendo fazer o mal. Quando,
porém, entregamos a nossa escolha para Deus e vivemos como que
“mergulhados” no Espírito Santo, deixamos que Deus faça as escolhas e assim
não pecamos, mas fazemos aquilo que lhe é agradável. A escolha que temos
parece ser uma escolha de não fazermos escolha alguma, sendo assim,
estaremos de livre e espontânea vontade servindo a Deus. Tudo pode parecer
muito paradoxo, e de fato é muito tênue a linha que separa todas estas nuâncias,
mas assim ousamos expressar em palavras a relação entre a vontade de Deus e a
nossa.
Muitos crentes sinceros se frustram muito com sua própria condição
pecadora e há até quem peça a Deus que os leve logo para o “seio de Abraão”
para que não continuem nessa condição, mas é uma realidade que temos que
encarar até o fim. (Eu mesmo já passei por situações onde Deus me mostrou a
minha própria condição pecaminosa e falida. Então, me vendo nu diante dele eu
só conseguia pedir que me abençoasse com a minha partida deste mundo, para
não mais envergonhar meu Pai por ser um filho mal e desobediente, incapaz de
viver plenamente na verdade. Me lembro claramente que ele mesmo foi quem me
disse: “Quem és tu para decidirdes sobre tua própria vida?”
“Lembra-te destas coisas, ó Jacó, ó Israel, porquanto és meu servo! Eu te
formei, tu és meu servo, ó Israel; não me esquecerei de ti. Desfaço as tuas
transgressões como a névoa e os teus pecados, como a nuvem; torna-te para
mim, porque eu te remi. Regozijai-vos, ó céus, porque o Senhor fez isto; exultai
vós, ó profundezas da terra; vós, montes, retumbai com júbilo; também vós,
bosques, e todas as suas árvores; porque o Senhor remiu a Jacó, e se glorificou
em Israel. Assim diz o Senhor, que te redime, o mesmo que te formou desde o
ventre materno: Eu sou o Senhor que faço todas as coisas, que sozinho estendi os
céus, e sozinho espraiei a terra; que desfaço os sinais dos profetizadores de
mentiras, e enlouqueço os adivinhos; que faço tornar atrás os sábios, e converto
em loucura o conhecimento deles;” (Is 44:21-25)
A santidade plena que Jesus nos dá é substitutiva, mas para o tempo
determinado, sendo que somos chamados santos ainda sendo pecadores. Na
descrição do reverendo John McArthur: “Quando Deus olha para mim ele vê Cristo
e quando ele olha para Cristo ele vê a mim.” Jesus é feito maldito e nós feitos
santos e apenas saber disso é muito doloroso para um crente sincero, para um
verdadeiro discípulo, para um filho de Deus. Esse é o grande mistério do
evangelho. O inocente é punido pelo malfeitor e tudo isso sob a jurisdição de um
Deus Santo e justo. Aquilo que fizemos é tão grave que apenas a morte de um
inocente poderia nos remir. Não havendo inocentes no mundo Deus, o Filho, teve
de vir até nós e tomar a forma de homem. Teve de descer de um trono de glória
para ser como um de nós. Poderia haver maior humilhação?
O Cordeiro imaculado, o filho amado de Deus, sendo entregue para o
matadouro e feito maldito. Abandonado por Deus para ser castigado e beber do
cálice da ira de Deus, do cálice da punição mais severa pelos pecados que ele
nunca cometeu. Que justiça é essa? O inocente é punido pelo pecador. Deus olha
para mim e vê o sangue de Cristo sobre minha cabeça e me declara inocente.
Sem merecimento algum eu me torno parte da família de Deus e sou morto com
Cristo e também ressurreto com ele. Que maravilhosa graça! A eternidade com
Deus para alguém como eu.
Veja que até mesmo a ciência já aponta o passado e o futuro como ilusões
ou suposições. O que existe de real é o hoje, o agora. Para Deus é assim, sendo
que ele não está submetido a tempo algum e tanto passado quanto futuro estão
nas mãos dele o tempo todo. O nosso presente, no tempo de Deus, é sincronizado
com o momento em que Cristo está sendo pregado na cruz. Se pensarmos a nível
de eternidade ele está lá agora, inocente, puro e em silêncio sendo torturado,
massacrado e humilhado. Saber que cada escolha própria que façamos ofende
diretamente a Deus e todo nosso egoísmo, ciúme, inveja, devassidão, ódio e
perversão aumenta um pouquinho mais a dor que Cristo sentiu na cruz é
avassalador! Por isso o filme “A Paixão de Cristo”, de Mel Gibson, levou às
lágrimas as salas de cinema de todo o mundo e bateu recordes de bilheteria.
Cada vez que olhamos para Cristo naquela cruz devemos ter a certeza de que
somos culpados, sim, totalmente culpados por cada segundo de sofrimento que
ele passou. Por cada gota de sangue derramado, cada segundo da maior
humilhação já vista em todos os tempos no universo inteiro. E se quisermos
exercer nosso livre arbítrio, estaremos longe do domínio do Espírito Santo,
estaremos querendo sempre fazer com que aquele Jesus, imaculado, perfeito e
tão amável, pague um pouco mais caro o preço pelo nosso pecado. Sendo assim,
ou fazemos a vontade perfeita e soberana de Deus ou fazemos a nossa.
BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS

John Piper You will know the truth and the truth will set you free
http://www.desiringgod.org/resource-library/sermons/you-will-know-the-truth-and-
the-truth-will-set-you-free

Livro de Concórdia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_de_Conc%C3%B3rdia

Confissão de Augsburg
http://pt.wikipedia.org/wiki/Confiss%C3%A3o_de_Augsburgo
Koehler, Edward W. A. Sumário da Doutrina Cristã. Porto Alegre, RS. Editora
Concórdia, 1951.

Bíblias:

Almeida Revista e Atualizada


Almeida Revista e Corrigida
Nova Tradução na Linguagem de Hoje
Nova Versão Internacional

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