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Ficha Técnica

Título: Quanto é Suficiente? – O Amor Pelo Dinheiro e a Economia da Vida Boa


Título Original: How Much is Enough? – The Love of Money and the Case for the Good Life
Autores: Robert Skidelsky e Edward Skidelsky
Tradução: Isabel Veríssimo
Revisão: Eda Lyra
Capa: Rui Garrido
ISBN: 9789724745282
Texto Editores, Lda.
Uma chancela do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© 2011, Robert Skidelsky e Edward Skidelsky
Da tradução © 2012, Texto Editores
www.texto.leya.com
www.leya.pt
Para o Hugo,
Que as suas possibilidades possam corresponder
às esperanças que Keynes tinha para os «netos»
Nada é bastante ao homem
para quem tudo é demasiado pouco.
EPICURO
Prefácio

Enquanto estávamos a escrever o livro, os nossos amigos perguntavam-nos


frequentemente, meio a brincar: «Vão dizer-nos quanto é que pensam que é
suficiente?» Nós achávamos que era sensato ripostar perguntando, no espírito
do debate académico: «Quanto é que tu pensas que é suficiente?» Muitas vezes,
perguntavam-nos: «Suficiente para quê?», ao que nós respondíamos: «O
suficiente para viver uma vida boa.» Por vezes isto suscitava a tentativa de um
número, embora, como seria de esperar, esse número variasse muito consoante
a idade, as circunstâncias e a nacionalidade. É evidente que só se pode esperar
obter uma resposta profunda e talvez empenhada de pessoas que aceitam a
existência da vida boa, independentemente dos seus desejos subjetivos. O
objetivo deste livro é persuadir os leitores de que ela – a vida boa – existe e
pode ser conhecida, e que devemos esforçar-nos ao máximo para a viver. De
quanto dinheiro necessitamos para a viver surge no fim do debate, não no
princípio1.
Fomos ajudados por muitas pessoas. Estamos extraordinariamente gratos a
Armand Clesse, diretor do Instituto de Estudos Europeus e Internacionais do
Luxemburgo, por organizar um simpósio sobre o livro no Luxemburgo nos dias
27 e 28 de maio de 2011. Armand, que presidiu com o seu habitual estilo
animado, reuniu uma galáxia interdisciplinar: Michael Ambrosi, Christian
Arnsperger, Tom Bauler, Mathias Binswinger, Ulrich Brand, Isabelle Cassiers,
Aditya Chakrabortty, Andrew Hallam, Mario Hirsch, Sir Anthony Kenny,
Charles Kenny, Guy Kirsch, Serge-Christophe Kolm, Axel Leijonhufvud, Felix
Martin, Matt Matravers, John Milbank, Adrian Pabst, Guy Schuller, Larry
Siedentop, Alfred Steinherr, Henryk Szlajfer e Paul Zahlen. Eles leram um
primeiro esboço do manuscrito e alguns até desafiaram a cinza vulcânica que
pairava então sobre a Europa para estarem presentes. Recebemos muitos
encorajamentos e estímulos com as suas sugestões.
Michael Sissons, o nosso agente no Reino Unido, e Stuart Proffitt, o nosso
editor no Reino Unido, tiveram um contributo notável para o surgimento da
proposta e orientaram o livro com amabilidade, mas com firmeza, até à
publicação, e o mesmo aconteceu com a nossa entusiasta editora norte-
americana, Judith Gurewich, cujos e-mails recordaremos durante muito tempo.
Todos nos incentivaram a romper com a capa académica e expressar
claramente as nossas opiniões.
Os nossos maiores agradecimentos às seguintes pessoas por lerem o todo ou
partes dos esboços de Quanto é Suficiente? e, com os seus comentários e
críticas, nos ajudarem a melhorar os argumentos do livro: Perry Anderson,
Tony Bicat, Carmen Callil, Meghnad Desai, Robin Douglass, Pavel Erochkine,
Richard Fynes, Peter Pagan, Pranay Sanklecha, Richard Seaford, Augusta
Skidelsky, Will Skidelsky e Wu Junqing.
Agradecemos a Pete Mills e Christian Westerlind do Robert’s Centre for
Global Studies pela ajuda generosa em investigação e críticas. Pete em
particular teve um papel importante na recolha de dados e na formação do
argumento do Capítulo 1. Donald Poon, que estava a fazer um estágio de verão
antes de ir para o LSE, ofereceu uma ajuda muito útil. Agradecemos ao
bibliotecário e funcionários da Câmara dos Lordes por responderem à nossa
procura insaciável de livros e artigos.
Acima de tudo, gostámos de trabalhar juntos. Os dois meses que passámos
no Languedoc, em abril e maio de 2011, a escrever e a falar sobre o livro, foi
um tempo extremamente feliz e também uma viagem de descoberta um do
outro: este cenário foi um grão de vida boa para ambos.
ROBERT E EDWARD SKIDELSKY
1 Num livro anterior, Robert Skidelsky aventurou-se a referir uma quantia que o economista John Maynard
Keynes teria considerado «suficiente» para satisfazer a média das necessidades: 40 mil libras ou 66 mil
dólares ou 46 mil euros por ano (nos valores atuais). Ver Robert Skidelsky, Keynes: O Regresso do Mestre
(Texto Editores, 2010), que também revela a base do cálculo. No entanto, Keynes baseou-se numa ideia
mais constante do que era a vida boa do que é agora verdade, e em menos pressão para viver uma vida má
do que existe agora.
Lista de Gráficos

01. A Previsão de Keynes


02. Crescimento desde Keynes
03. Horas Semanais desde Keynes
04. Horas de Trabalho desde 1983
05. Quota do Rendimento do 1% de Pessoas Mais Ricas
06. PIB per Capita e Satisfação de Vida
07. Felicidade Segundo Nível de Rendimento no Reino Unido
08. Felicidade e Rendimento por País
09. Mortes Relacionadas com o Álcool no Reino Unido
10. Obesidade no Reino Unido
11. Desemprego nos Países da OCDE
12. Desigualdade de Rendimentos desde 1977
13. Distribuição de Riqueza no Reino Unido
14. Casamento e Divórcio no Reino Unido
15. Presenças em Eventos Culturais no Reino Unido
Introdução

Este livro é uma tese contra a insaciabilidade, contra aquela disposição


psicológica que nos impede, enquanto indivíduos e sociedades, de dizer «isto já
é de mais!». Concentra-se na insaciabilidade económica, no desejo de mais e
mais dinheiro. Concentra-se essencialmente nas regiões ricas do mundo, onde
se pode pensar razoavelmente que existe riqueza suficiente para uma vida
coletiva decente. Nas regiões pobres do mundo, onde a grande maioria das
pessoas ainda vive em grande pobreza, a insaciabilidade é um problema para o
futuro. Porém, tanto nas sociedades ricas como nas sociedades pobres a
insaciabilidade pode ser vista onde a opulência dos muito ricos é mais
importante do que os meios de subsistência da maioria.
Os marxistas defendem que a insaciabilidade económica é uma criação do
capitalismo e que desaparecerá com a sua abolição. Os cristãos alegam que é o
resultado do pecado original. A nossa opinião é de que está enraizada na
natureza humana – na disposição para comparar a nossa riqueza com a dos
nossos pares e considerar que é insuficiente –, mas foi muito intensificada pelo
capitalismo, que a transformou na base psicológica de toda uma civilização. O
que foi em tempos uma aberração dos ricos é agora um lugar-comum da vida
quotidiana.
O capitalismo é uma espada de dois gumes. Por um lado, possibilitou vastas
melhorias nas condições materiais. Por outro, exaltou algumas das
características humanas mais ultrajantes, como a ganância, a inveja e a avareza.
O nosso apelo vai no sentido de acorrentarmos de novo o monstro recordando
o que os maiores pensadores de todos os tempos e de todas as civilizações
definiram como a «vida boa» e sugerindo mudanças na política atual que nos
ajudarão a alcançá-la.
Ao fazer isto, estaremos a desafiar a obsessão atual com o crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB) como o principal objetivo da política económica.
Nós não somos contra o crescimento económico em si, mas podemos perguntar
razoavelmente não apenas crescimento para quê, mas crescimento de quê.
Queremos que o lazer aumente e a poluição diminua. Estas duas coisas fazem
parte de qualquer ideia sã de bem-estar humano. No entanto, ambas estão
excluídas do PIB, que mede apenas a parte da produção interna que é
transacionada nos mercados. Não há subtração para a poluição nem soma para
o lazer. A medida em que um maior crescimento do PIB melhorará o bem-estar
é, por conseguinte, controversa. Melhora seguramente o bem-estar nos países
muito pobres, mas é possível que as sociedades ricas já tenham demasiado PIB.
A nossa opinião é que, no caso das nações ricas do mundo, o PIB devia ser
tratado como um subproduto de políticas destinadas a realizar a vida boa.
Apenas a experiência mostrará se o resultado do PIB é positivo, negativo ou
estacionário.
Este livro não é dedicado aos princípios da justiça, mas aos elementos da
vida boa. A maior parte da teoria política moderna baseia-se na consideração
do que é merecido, ou justo, no abstrato, e prossegue para retirar dessa
consideração planos sociais «justos». A nossa abordagem é diferente.
Começamos com o indivíduo e as suas necessidades e a partir daí procuramos
criar uma imagem do bem comum. As questões de distribuição, que estão no
centro das discussões modernas de justiça, apesar de vitalmente importantes,
são-no para nós apenas no contexto dos requisitos da vida boa.
Imaginem um mundo onde a maioria das pessoas trabalharia apenas 15 horas
por semana. Receberiam tanto, ou mais ainda, do que recebem agora, porque os
frutos do seu trabalho seriam distribuídos de uma forma mais igual na
sociedade. Proporcionalmente, os tempos livres ocupariam uma parte muito
maior das horas que passavam acordadas do que o trabalho. Foi precisamente
esta perspetiva que o economista John Maynard Keynes abordou num pequeno
ensaio publicado em 1930 intitulado «Possibilidades Económicas para os
nossos Netos». A sua tese era muito simples. Como o progresso tecnológico
tinha possibilitado um aumento da produção de bens por hora trabalhada, as
pessoas teriam de trabalhar cada vez menos para satisfazer as suas
necessidades, até que, por fim, quase não teriam de trabalhar. Então, escreveu
Keynes, «pela primeira vez desde a sua criação, o homem seria confrontado
com o seu problema real e permanente – como usar a libertação dos problemas
económicos prementes, como ocupar os tempos livres, que ciência e interesse
complexo terão vencido para que ele viva sensatamente, agradavelmente e
bem». Keynes estava convencido de que este estado poderia ser alcançado em
cerca de 100 anos – isto é, em 2030.
Tendo em conta a altura em que foi escrito, não é surpreendente que o ensaio
futurista de Keynes tenha sido ignorado. O mundo tinha problemas muito mais
urgentes para resolver, incluindo sair da Grande Depressão. E o próprio Keynes
nunca voltou a referir explicitamente esta opinião, se bem que o sonho de um
futuro sem trabalho estivesse sempre subjacente ao seu pensamento. Na
verdade, foi como teórico do desemprego de curta duração, não do progresso
económico a longo prazo, que Keynes alcançou a fama mundial com o seu
importante livro A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Não
obstante, existem bons motivos para voltarmos às questões que Keynes
suscitou e depois ignorou.
Em primeiro lugar, ele perguntou uma coisa que quase não é debatida hoje
em dia: Para que serve a riqueza? De quanto dinheiro necessitamos para viver
uma vida boa? Esta pergunta pode parecer impossível. Mas não é uma pergunta
trivial. Ganhar dinheiro não pode ser um fim em si – pelo menos para uma
pessoa que não sofra de um distúrbio mental agudo. Dizer que o meu objetivo
na vida é ganhar cada vez mais dinheiro é como dizer que o meu objetivo é
comer para ficar cada vez mais gordo. E o que é verdadeiro para os indivíduos
também é verdadeiro para as sociedades. Ganhar dinheiro não pode ser o
objetivo permanente da humanidade, pelo simples motivo de que não se pode
fazer nada com o dinheiro a não ser gastá-lo. E não podemos simplesmente
continuar a gastar. Chegaremos a um ponto em que estaremos saciados,
descontentes, ou as duas coisas. Ou não?
Em segundo lugar, o Ocidente encontra-se uma vez mais no meio de uma
«Grande Contração», a pior desde a Grande Depressão de 1929-1932. Uma
grande crise é como uma inspeção: expõe os defeitos de um sistema social e
inspira a busca de alternativas. O sistema que está a ser inspecionado é o
capitalismo, e o ensaio de Keynes oferece uma posição estratégica a partir da
qual o futuro do capitalismo pode ser considerado. A crise revelou duas falhas
no sistema, regra geral obscurecidas pelo empenho quase unânime no
crescimento a praticamente qualquer custo.
A primeira são os seus defeitos morais. A crise no setor bancário mostrou
uma vez mais que o sistema atual se baseia em motivos de ganância e
consumismo, que são moralmente repugnantes. Também divide as sociedades
em ricas e pobres, recentemente muito ricas e muito pobres, fundamentado
numa versão da ideia de «trickle down»2. A coexistência de grande riqueza e
grande pobreza, especialmente em sociedades onde há o suficiente para todos,
ofende o nosso sentido de justiça. Em segundo lugar, a crise expôs os defeitos
económicos palpáveis do capitalismo. O nosso sistema financeiro é
inerentemente instável. Quando as coisas correm mal, como aconteceu em
2008, percebemos como pode ser ineficaz, ruinoso e doloroso. É dito aos países
extremamente endividados que os mercados obrigacionistas não ficarão
satisfeitos enquanto eles não liquidarem uma grande parte do seu produto
interno. Estes colapsos periódicos da máquina de fazer dinheiro são um grande
incentivo para pensarmos em melhores formas de vida.
Por fim, o ensaio de Keynes desafia-nos a imaginar o que poderia ser a vida
após o capitalismo (pois um sistema económico em que o capital já não se
acumula não é capitalismo, independentemente do que lhe chamarem). Keynes
pensava que a base motivadora do capitalismo era «uma atração intensa dos
indivíduos para os instintos de ganhar dinheiro e de gostar de dinheiro»3. Ele
estava convencido de que, com o advento da abundância, este impulso
motivacional perderia a sua aprovação social; isto é, que o capitalismo se
aboliria a si mesmo quando o trabalho estivesse feito. No entanto,
acostumámo-nos de tal forma a considerar a escassez como a norma que
poucos de nós pensam sobre que motivos e princípios de conduta poderiam, ou
deveriam, prevalecer num mundo de abundância.
Imaginemos, então, que todos têm o suficiente para viver uma vida boa. O
que é a vida boa? O que não é? E que mudanças no nosso sistema moral e
económico seriam necessárias para percebermos isso? Estas perguntas
raramente são feitas, porque não se enquadram bem em nenhuma das caixas
disciplinares que constituem a vida intelectual moderna. Os filósofos
constroem sistemas de justiça perfeita, sem terem em consideração a desordem
da realidade empírica. Os economistas perguntam como melhor satisfazer os
desejos subjetivos, sejam eles quais forem. O nosso livro reúne as perspetivas
da filosofia e da economia com a convicção de que as duas disciplinas
precisam uma da outra, uma pela sua influência prática e a outra pela sua
imaginação ética. O objetivo é recuperar a antiga ideia da economia como uma
ciência moral; uma ciência de seres humanos em comunidades, não de robôs a
interagir uns com os outros.

Quanto é Suficiente? começa por refletir sobre as razões que levaram ao


fracasso da profecia de Keynes. Porque é que, apesar da surpreendente precisão
das suas previsões de crescimento, a maioria das pessoas ainda continua, quase
100 anos depois, a trabalhar tão duramente como quando ele escreveu o seu
ensaio futurista? A nossa opinião é que uma economia de mercado livre dá aos
patrões o poder de ditarem horas e condições de trabalho e inflama a nossa
tendência inata para um consumo competitivo, ditado pela posição social.
Keynes estava muito consciente dos males do capitalismo, mas presumiu que
eles se desvaneceriam quando o seu trabalho de criação de riqueza estivesse
concluído. Não previu que eles poderiam ficar permanentemente enraizados,
obscurecendo o ideal que procuravam inicialmente servir.
No Capítulo 2 acrescentamos que Keynes não foi o único a pensar que os
motivos maus em si podiam, não obstante, ser úteis. John Stuart Mill, Karl
Marx, Herbert Marcuse – até Adam Smith, em momentos mais arrojados –
reconheceram a esses motivos um papel positivo como um agente do progresso
histórico. Na linguagem do mito, a civilização ocidental fez as pazes com o
Diabo e em troca recebeu recursos de conhecimento, poder e prazer até então
inimagináveis. É evidente que este é o grandioso tema da lenda de Fausto,
imortalizada por Goethe. Porém, a ironia é que, agora que alcançámos por fim
a abundância, os hábitos que nos foram incutidos pelo capitalismo deixaram-
nos incapazes de desfrutá-la devidamente. Parece que o Diabo reclamou a sua
recompensa. Poderemos fugir a este destino? Talvez, mas apenas se
conseguirmos recuperar de séculos de negligência e distorção da ideia de uma
vida boa, uma vida suficiente em si mesma. Aqui, teremos de recorrer ao
extraordinário armazém da sabedoria pré-moderna, ocidental e oriental, que
esboçamos no Capítulo 3.
A oposição ao ideal de crescimento intensificou-se nos últimos anos. Os
críticos afirmam que o crescimento está não só a não conseguir deixar-nos mais
felizes como também é ambientalmente desastroso. Estas duas afirmações
podem ser verdadeiras, mas não conseguem captar a nossa objeção mais
profunda ao crescimento infinito, que é a de que é absurdo. Fundamentar o
nosso argumento contra o crescimento no facto de que é prejudicial para a
felicidade ou para o ambiente é convidar os nossos rivais a mostrar que não é
de facto prejudicial nestas formas – um convite que aceitaram rapidamente4.
Todo o argumento desaparece então num beco sem saída académico. A questão
a ter em conta é que sabemos, antes de alguma coisa que os cientistas ou os
estatísticos nos possam dizer, que a busca interminável da riqueza é loucura. É
esta a essência do nosso argumento nos Capítulos 4 e 5.
Por fim, no Capítulo 6, chegamos à parte positiva da nossa proposta: a ideia
geral da vida boa. Inspirando-nos em pormenores de todas as épocas e lugares,
identificamos os sete «bens básicos» cuja posse é sinónimo de viver bem.
Defendemos que o primeiro dever do governo é tornar realidade, na medida das
suas possibilidades, estes bens básicos para todos os cidadãos. A forma de
alcançar isto é o tema do Capítulo 7, onde sugerimos uma série de medidas
para manter o desejo ilimitado de riqueza sob o controlo de um conceito
objetivo de bem. A menos que esse controlo seja alcançado, somos uma
civilização condenada – sem nenhuma hipótese, ou pior.

Ao debatermos as nossas ideias com amigos e conhecidos, cinco dúvidas


surgiram regularmente. A primeira diz respeito ao tempo. «Agora», dizem-nos,
«não é o momento certo para falar num fim do crescimento. Se fosse vivo, o
próprio Keynes não nos aconselharia a retomar o crescimento o mais depressa
possível para baixarmos o desemprego e pagarmos a dívida pública?» Não
contestamos isto. Porém, temos de fazer a distinção entre políticas de curto
prazo para a retoma após a pior depressão desde a década de 1930, e as
políticas a longo prazo para concretizar a vida boa. Nos dois anos depois de
2008, a produção mundial diminuiu 6% e só recuperou parcialmente o seu
nível anterior. No mínimo, teremos de restabelecer a produção que perdemos
porque, da forma como a economia está organizada atualmente, não existe
outra forma de reduzir o desemprego e o endividamento, quer privado quer
público. Mas não devíamos deixar que as exigências do momento toldassem a
nossa visão dos objetivos fundamentais. A própria utopia de Keynes ficou
inscrita no fundo da Grande Depressão. «O meu objetivo neste ensaio»,
escreveu ele, «não é examinar o presente […] mas libertar-me de visões de
curto prazo e partir para o futuro.» Foi neste espírito que o nosso livro foi
escrito.
A segunda interrogação prende-se com o âmbito geográfico das nossas
propostas. Estamos a sugerir que nações onde milhões continuam mal alojados
e mal alimentados deveriam contentar-se com o que têm? É claro que não. Os
nossos argumentos dirigem-se para aquela parte do mundo onde as condições
materiais de bem-estar já foram reunidas. Nos lugares onde ainda não estão
reunidas, o crescimento mantém-se, com toda a justiça, uma prioridade. Dito
isto, se o mundo em desenvolvimento continuar a desenvolver-se acabará por
enfrentar o nosso apuro, por isso mais vale prepararmo-nos para isso
antecipadamente. O nosso erro de ficarmos tão absortos nos meios que
esquecemos os fins não devia ser repetido.
As próximas três dúvidas vão mais longe. «As vossas propostas», diz a
primeira, «terão o efeito de enfraquecer toda a iniciativa, criatividade e visão.
São um ponto de partida para a ociosidade universal.» Por vezes é acrescentado
que as nossas ideias refletem uma mentalidade «europeia antiga» decadente.
Sem surpresa, esta observação é feita essencialmente por americanos.
Para esclarecer estes equívocos, queremos declarar com firmeza que o nosso
livro não é uma defesa da ociosidade. O que queremos ver mais é lazer, uma
categoria que, devidamente compreendida, está tão longe de coincidir com
ociosidade que é praticamente o seu oposto polar. O lazer, no seu sentido
verdadeiro e agora quase esquecido, é atividade sem um fim extrínseco,
«intencionalidade sem intenção», como disse Kant. O escultor ocupado a cortar
mármore, o professor decidido a transmitir uma ideia difícil, o músico a
debater-se com uma partitura, o cientista a explorar os mistérios do espaço e do
tempo – essas pessoas não têm outro objetivo para além de fazer bem o que
estão a fazer. Podem receber uma remuneração pelos seus esforços, mas não é
essa remuneração que os motiva. Na nossa opinião, eles estão envolvidos em
lazer, não em trabalho árduo. É evidente que isto é uma idealização. No mundo
real, as recompensas extrínsecas, incluindo recompensas financeiras, nunca
estão inteiramente esquecidas. No entanto, na medida em que a ação deriva não
da necessidade, mas da inclinação, na medida em que é espontânea, não servil
e mecânica, o trabalho árduo está no fim e o lazer começou. Este – não a
ociosidade – é o nosso ideal. Só a pobreza de imaginação da nossa cultura leva
a acreditar que toda a criatividade e inovação – em oposição àquele tipo
específico destinado a melhorar os processos económicos – precisa de ser
estimulada pelo dinheiro.
«Tudo isso é muito esplêndido», poderia retorquir o nosso crítico, «mas não
é nada provável que uma redução de atividade externamente motivada leve a
um aumento do lazer, na nossa aceção empolada do termo. Preguiçosos como
nós precisam do estímulo do dinheiro para serem incentivados a fazer alguma
coisa. Sem ele, a nossa preguiça natural fica em evidência, conduzindo não
apenas à vida boa, mas também ao tédio, à neurose e à garrafa. Se lerem alguns
romances russos, perceberão o que quero dizer.»
Essa dúvida só pode ser considerada com uma declaração de fé. Nunca foi
tentada uma redução universal de trabalho, por isso não sabemos ao certo quais
seriam as suas consequências. Mas não podemos pensar que elas são tão
horríveis como o nosso crítico sugere, nem que o projeto central da civilização
europeia moderna, o de melhorar o bem-estar das pessoas, é vazio e vão. Se o
objetivo supremo da indústria é a ociosidade, se trabalhamos e criamos apenas
para que os nossos descendentes possam enroscar-se eternamente a ver
televisão o dia inteiro, então todo o progresso é, como Orwell disse, «uma luta
frenética para um objetivo que [nós] esperamos e rezamos para que nunca seja
alcançado»5. Estamos na situação paradoxal de nos incentivarmos para novos
feitos de iniciativa, não por pensarmos que valem a pena, mas porque qualquer
atividade, por muito inútil que seja, é melhor do que nenhuma. Nós temos de
acreditar na possibilidade do lazer genuíno – caso contrário, o nosso estado é
de facto desesperado.
Outra reflexão dá-nos esperança. A imagem do homem como um ocioso
simpático, que só faz alguma coisa se tiver a perspetiva de lucro, é exclusiva da
era moderna. Especialmente os economistas veem os seres humanos como
animais que precisam do estímulo de uma cenoura ou de um pau para fazerem
alguma coisa. «Satisfazer os nossos desejos ao máximo com um mínimo de
esforço» foi como William Stanley Jevons, um pioneiro da teoria económica
moderna, definiu o problema humano6. Essa não era a visão antiga das coisas.
Atenas e Roma tinham cidadãos que, apesar de economicamente improdutivos,
eram extremamente ativos – na política, na guerra, na filosofia e na literatura.
Porque não usá-los, e não ao burro, como nosso guia? É evidente que os
cidadãos atenienses e romanos eram ensinados desde tenra idade a usar
sabiamente o lazer. O nosso projeto implica um esforço educativo semelhante.
Não podemos esperar que uma sociedade treinada nas utilizações servis e
mecânicas do tempo se torne uma sociedade de homens livres de um dia para o
outro. No entanto, não deveríamos duvidar de que a tarefa é em princípio
possível. Bertrand Russell, num ensaio escrito apenas dois anos depois da
iniciativa de Keynes – mais um exemplo dos efeitos estimulantes da crise
económica –, abordou a questão com a sua clareza habitual:

Poderá dizer-se que, apesar de um pouco de lazer ser agradável, os homens não saberiam preencher
os seus dias se tivessem apenas quatro horas de trabalho nas vinte e quatro. Na medida em que isto é
verdadeiro no mundo moderno, é uma condenação da nossa civilização; não teria sido verdadeiro em
nenhum período anterior. Anteriormente, havia uma capacidade de alegria e diversão que foi até certo
ponto inibida pelo culto da eficiência […] Os prazeres das populações urbanas tornaram-se
essencialmente passivos: ir ao cinema, ver jogos de futebol, ouvir rádio, etc. Isto resulta do facto de as
suas energias ativas serem totalmente dedicadas ao trabalho; se tivessem mais lazer, desfrutariam de
novo de prazeres em que teriam um papel ativo7.

Poderíamos acrescentar que é em grande medida porque o lazer perdeu o seu


verdadeiro significado de atividade espontânea e degenerou em consumo
passivo que nos atiramos, como o pior de dois males, ao trabalho. «Uma pessoa
tem de trabalhar», escreveu Baudelaire nos seus Diários Íntimos, «se não por
gosto, pelo menos por desespero. Pois, para reduzir tudo a uma única verdade,
o trabalho é menos aborrecido do que o prazer.»8
Uma quarta dúvida assume a forma de uma defesa qualificada do objetivo de
ganhar dinheiro: é verdade, dizem os nossos críticos, que não é a mais nobre
das atividades humanas, mas é o menos pernicioso dos principais objetivos dos
esforços humanos. Keynes explicou bem: «As inclinações humanas perigosas
podem ser canalizadas para canais relativamente inofensivos pela existência de
oportunidades para ganhar dinheiro e acumular riqueza privada, pois, se não
conseguirem ser satisfeitas desta forma, poderão encontrar o seu escape na
crueldade, na procura imprudente de poder e autoridade pessoal e noutras
formas de autoenaltecimento.» No entanto, ele acrescentou que «não é
necessário para a estimulação dessas atividades e para a satisfação dessas
inclinações que o jogo seja jogado por prémios tão altos como atualmente.
Prémios muito menores servirão o objetivo igualmente bem, logo que os
jogadores se acostumem a eles»9 .Isto capta perfeitamente a nossa defesa. Não
estamos a propor a abolição de ganhar dinheiro, como aconteceu na União
Soviética, mas pensamos que «o jogo» deveria ser sujeito a regras e limitações
que não afastem a sociedade da vida boa.
A última, e mais profunda, dúvida relativamente ao nosso projeto diz respeito
ao seu carácter supostamente iliberal. John Rawls e outros ensinaram-nos a
acreditar que um Estado liberal não incorpora uma visão positiva, mas apenas
os princípios que são necessários para pessoas de diferentes gostos e ideais
viverem juntas em harmonia. Promover, como uma questão de política pública,
uma ideia positiva da vida boa é por definição iliberal, talvez até totalitário.
Voltaremos a esta questão na devida altura; por enquanto, vamos dizer apenas
que ela se baseia num conceito completamente errado do liberalismo. Ao longo
da maior parte da sua longa história, a tradição liberal esteve impregnada de
ideais clássicos e cristãos de dignidade, civilidade e tolerância. (Devemos
lembrar que «liberal» designava originalmente o que era apropriado para um
homem livre, um uso que sobreviveu em frases como «artes liberais».) No
século XX, liberais prototípicos como Keynes, Isaiah Berlin e Lionel Trilling
tomaram como certo que apoiar a civilização fazia parte das funções do Estado.
O conceito de liberalismo que o vê como um sinónimo de neutralidade entre
diferentes visões do bem é um conceito superficial. Em todo o caso, a
neutralidade é uma ficção. Um Estado «neutral» entrega simplesmente o poder
aos guardiões do capital para manipularem o gosto público de acordo com os
seus interesses pessoais.
A principal barreira intelectual à concretização da vida boa para todos é
talvez a disciplina da economia, ou antes a ortodoxia mortal que dá por esse
nome na maioria das universidades no mundo inteiro. Um texto recente refere
que a economia estuda «como as pessoas escolhem usar recursos limitados ou
escassos na tentativa de satisfazer os seus desejos ilimitados»10. Os adjetivos
em itálico são estritamente redundantes: se os seus desejos são ilimitados,
então os recursos são, por definição, limitados relativamente a eles, por muito
ricos que possamos ser no sentido absoluto. Estamos condenados à penúria,
não por falta de recursos, mas pela extravagância dos nossos apetites. Como o
economista Harry Johnson afirmou em 1960, «vivemos numa sociedade rica,
que não obstante em muitos aspetos insiste em pensar e agir como se fosse uma
sociedade pobre»11. A perspetiva da pobreza, e com ela uma ênfase na
eficiência a todo o custo, está arreigada na economia moderna.
Porém, nem sempre foi assim. Adam Smith, o fundador da economia
moderna, assumiu que o nosso desejo inato de progresso acabaria por
confrontar-se com limites naturais e institucionais e nos deixaria num «estado
estacionário». Para Alfred Marshall, professor de Keynes, a economia era o
estudo dos «pré-requisitos materiais do bem-estar», uma definição que
preservou o conceito de riqueza aristotélico e cristão como um meio para
atingir um fim. Todavia, depois de Marshall a economia mudou de velocidade.
Numa definição clássica, Lionel Robbins descreveu a economia como «a
ciência que estuda o comportamento humano como uma relação entre fins e
meios escassos que têm utilizações alternativas»12. A definição de Robbins
coloca a escassez no centro da economia e coloca entre parênteses os
julgamentos de valor. O campo de ação da economia é o estudo de meios
eficazes para atingir fins, mas o economista, enquanto economista, não tem
nada a dizer acerca desses «fins». Ele presume apenas que eles ultrapassarão
sempre os meios à nossa disposição para os atingir, o que significa que a
escassez é uma característica permanente da condição humana.
Se a escassez está sempre presente, então a eficiência, a utilização ideal de
recursos escassos, e a economia, a ciência que nos ensina eficiência, serão
sempre necessárias. No entanto, em qualquer visão da questão pautada pelo
senso comum, a escassez cresce e diminui. Sabemos que as fomes são períodos
de escassez extrema e que as colheitas boas produzem uma abundância
relativa. Thomas Malthus compreendeu que, quando a população cresce mais
depressa do que as reservas de alimentos, a escassez aumenta; e, no caso
inverso, diminui. Além disso, a escassez, como a maioria das pessoas a
entende, diminuiu muito na maior parte das sociedades nos últimos 200 anos.
As pessoas em países ricos e até medianamente ricos já não morrem de fome.
Tudo isto significa que a importância social da eficiência declinou, e com ela a
utilidade da economia.
O princípio de bom senso nesta questão é pensar na escassez relativamente às
necessidades, não aos desejos. E normalmente é assim que pensamos nela. O
homem com três casas não está a passar por grandes dificuldades financeiras,
por muito urgente que seja o seu desejo de comprar uma quarta. «Ele tem o
suficiente», dizemos, querendo dizer que tem «o suficiente para satisfazer as
suas necessidades». Manifestações flagrantes de insaciabilidade – como um
desejo incontrolável de colecionar gatos ou casas de bonecas – são amplamente
vistas como patológicas, não normais. (Os economistas, como os psicólogos,
tendem a tratar a neurose como a norma.) Em princípio, todos somos capazes
de limitar os nossos desejos às nossas necessidades; o problema é que uma
economia competitiva e monetizada nos coloca sob uma pressão constante para
querermos mais e mais. A «escassez» discernida pela economia é cada vez
mais um artefacto desta pressão. Considerado em relação às nossas
necessidades vitais, o nosso estado não é de escassez, mas de abundância
extrema.
A premissa do que se segue é que as condições materiais da vida boa já
existem, pelo menos nas regiões ricas do mundo, mas que a busca cega do
crescimento as coloca continuamente inacessíveis. Nessas circunstâncias, o
objetivo da política e de outras formas de ação coletiva deveria ser o de
garantir uma organização económica que coloca as coisas boas da vida – saúde,
respeito, amizade, lazer, etc. – ao alcance de todos. O crescimento económico
deve ser aceite como um residual, não como um objetivo.
Ao longo do tempo, essa mudança poderá afetar a nossa atitude perante a
economia. Maximizar a utilização eficaz do nosso tempo será cada vez menos
importante; e, por conseguinte, a economia «científica», como se desenvolveu
desde Robbins, será despromovida da sua posição de rainha das ciências
sociais. Pode trazer-nos para a beira da abundância, mas depois tem de
abandonar a fiscalização das nossas vidas. Era isto que Keynes tinha em mente
quando desejou que chegasse o dia em que os economistas se tornariam tão
úteis como os dentistas13. Ele escolheu sempre as suas palavras com todo o
cuidado: seria como dentistas, não médicos, que a humanidade viria a precisar
dos economistas; nas margens da vida, não como uma presença contínua e
muito menos controladora.
2 Uma teoria económica que defende que investir em empresas e reduzir os impostos que elas pagam é a
melhor forma de estimular a economia. Os defensores desta teoria acreditam que, quando o governo ajuda
as empresas, estas produzem cada vez mais e, consequentemente, contratam mais pessoas e aumentam os
salários. Por sua vez, as pessoas têm mais dinheiro para gastar na economia. (N. da T.)

3 John Maynard Keynes, Essays in Persuasion, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. 9
(Cambridge: Cambridge University Press, 1978), p. 293.

4 Nigel Lawson e Bjørn Lomborg (entre outros) defenderam que a melhor forma de lidar com o
aquecimento global é prosseguir com o progresso tecnológico para mitigar quaisquer consequências
adversas. E alguns economistas afirmaram que as nações mais ricas são na realidade mais felizes do que as
nações pobres. Para mais pormenores, ver os Capítulos 4 e 5.

5 George Orwell, The Road to Wigan Pier (Londres: Penguin, 1989), p. 182.

6 W. Stanley Jevons, The Theory of Political Economy (Londres: Macmillan, 1911), p. 37.

7 Bertrand Russell, In Praise of Idleness and Other Essays (Londres: Routledge, 2004), p. 11.

8 Charles Baudelaire, Journaux intimes (Paris: Mercure de France, 1938), p. 61.

9 John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest, and Money, The Collected Writings
of John Maynard Keynes, vol. 7 (Cambridge: Cambridge University Press, 1973), p. 374.

10 IMSciences.net, acedido em 09/09/1.

11 H. J. Johnson, «The Political Economy of Opulence» [A Economia Política da Opulência], Canadian


Journal of Economics and Political Science, vol. 26, pt. 4 (1960), p. 554.

12 Adam Smith, The Wealth of Nations (Lawrence, Kan.: Digireads.com, 2009; 1.ª edição, 1759), p. 40;
Alfred Marshall, Principles of Economics (Londres: Prometheus Books, 1920), p. 1; Lionel Robbins, An
Essay on the Nature and Significance of Economic Science (Londres: Macmillan, 1932) p. 16.

13 Keynes, Essays in Persuasion, p. 332.


1

O Erro de Keynes

Não há limites para as riquezas do homem.


Sólon

Em 1928, Keynes falou para um público de estudantes universitários em


Cambridge sobre o tema «possibilidades económicas para os nossos netos». Ele
sabia que eles estariam fortemente desencantados com o capitalismo e
inclinados para ver a União Soviética como um farol de luz. O próprio Keynes
tinha reconhecido que o progresso era um «credo sujo, enegrecido com pó de
carvão e pólvora» e que o comunismo brilhava tão sedutoramente porque,
apesar de toda a sua atrocidade, podia ser visto como «os primeiros sinais de
uma grande religião»14. Se Keynes queria levar o seu público a afastar-se deste
falso deus, tinha de persuadi-lo de que também o capitalismo era um projeto
utópico – um projeto utópico mais eficaz do que o comunismo porque era o
único meio eficiente para alcançar a abundância que possibilitaria a vida boa
para todos. No seu discurso em Cambridge foi a primeira vez que expressou
publicamente o seu capricho utópico.
Dois anos mais tarde, quando Keynes reviu a sua palestra para publicação, a
Grande Depressão fazia-se sentir: o capitalismo parecia económica e
moralmente falido; o comunismo era ainda mais atraente. Mas Keynes adaptou
habilmente a sua mensagem à nova situação. «Estamos a sofrer», escreveu,
«não de reumatismo da velhice, mas das dores crescentes das mudanças
demasiado rápidas, da dor do reajustamento entre um período económico e
outro.» A Depressão foi, pelo menos em parte, um sintoma de «desemprego
tecnológico» – isto é, «desemprego devido à nossa descoberta de meios para
economizar a utilização de mão de obra que excede o ritmo a que conseguimos
encontrar novas utilizações para a mão de obra». O desemprego tecnológico
apontava para um futuro sem trabalho, mas voluntário, não forçado.
Keynes utilizou a lógica económica ao serviço da profecia. Baseando a sua
ideia em níveis históricos de acumulação de capital e progresso técnico, propôs
que, se os meios de produção continuassem a crescer 2% ao ano, e a
«eficiência técnica» 1%, «o padrão de vida em países progressistas daqui a 100
anos será entre quatro e oito vezes mais elevado do que atualmente». Esta
projeção permitiu que Keynes chegasse à «surpreendente conclusão» de que,
«desde que não haja guerras importantes nem um aumento significativo da
população, o problema económico poderá ser resolvido, ou pelo menos a
solução estará à vista, daqui a 100 anos»15.
O que Keynes quis dizer com isto foi que a humanidade seria capaz de
satisfazer todas as suas necessidades materiais por uma fração do esforço de
trabalho existente – no máximo, três horas por dia para «satisfazer o velho
Adam que existe em nós». A abundância de tempo libertado desta forma
poderia conduzir a um «esgotamento nervoso» do tipo já comum entre «as
mulheres das classes remediadas». Mas Keynes esperava que não. Certamente,
esperava um momento em que a atitude espontânea e feliz perante a vida que
está agora confinada a artistas e espíritos livres se difundisse pela sociedade
como um todo. O ensaio culmina num maravilhoso arroubo de retórica,
entrelaçando Aristóteles e o Novo Testamento:

Vejo-nos livres para voltarmos a um dos princípios mais seguros e certos da religião e da virtude
tradicional – que a avareza é um vício, que a usura é uma infração e o amor pelo dinheiro é detestável,
que aqueles que caminham mais verdadeiramente nos caminhos da virtude e da sabedoria são aqueles
que pensam menos no dia seguinte. Valorizaremos novamente os fins acima dos meios e preferiremos
o bom ao útil. Honraremos aqueles que podem ensinar-nos a aproveitar virtuosamente e bem a hora e o
dia, as pessoas encantadoras que são capazes de apreciar diretamente as coisas, os lírios do campo, que
não trabalham arduamente nem correm16.

O filósofo Frank Ramsey, um amigo de Keynes, tinha uma palavra para este
estado paradisíaco. Chamou-lhe «Felicidade».
Assim, o capitalismo, a vida de prosperidade económica e de ganhar
dinheiro, era um estado transitório, um meio para atingir um fim, sendo esse
fim a vida boa. Como poderia ser essa vida? Keynes era um discípulo do
filósofo de Cambridge G. E. Moore, que tinha escrito em Principia Ethica que
«de longe a mais valiosa das coisas que sabemos ou podemos imaginar são
certos estados de consciência que podem ser rudimentarmente descritos como
os prazeres da comunicação humana e a posse de objetos belos». E ele disse
também: «É apenas por estas coisas – para que o maior número possível delas
possa existir em algum momento – que pode haver justificação para uma
pessoa realizar alguma função pública ou privada […] São elas […] que
formam o derradeiro objetivo racional da ação humana e o único critério de
progresso social.»17
Keynes declarou mais tarde que esta continuava a ser a sua «religião sob a
superfície». Enquanto economista e especulador, Keynes viveu a maior parte
da sua vida no inferno da ação capitalista, mas teve sempre um olho no paraíso
da arte, do amor e da busca de conhecimento, personificado para ele pelos seus
amigos de Bloomsbury. O ensaio «Possibilidades Económicas» é a sua
tentativa de conciliar estes dois lados da sua personalidade – o resoluto e o
espontâneo – ao projetá-los para o presente e para o futuro, respetivamente.
«Possibilidades Económicas» foi virtualmente ignorado na época, sendo
considerado demasiado fantasista para uma discussão séria. De facto, era uma
pièce d’occasion, um jeu d’esprit. A sua visão e argumento estavam
condensados em apenas 12 páginas. Havia muitas pontas soltas, objeções
levantadas, mas esquecidas. «Aqui estava Keynes no seu melhor e no seu
pior», escreveu um dos seus alunos. «No seu pior, porque alguma da sua teoria
social e política não resistiria a um escrutínio demasiado minucioso, pois não é
provável que a sociedade fique sem novos desejos enquanto o consumo for
conspícuo e competitivo […] No seu melhor, devido à mente errante, curiosa,
intuitiva e provocadora do homem.»18
Porém, apesar de todo o seu futurismo, «Possibilidades Económicas» está
diretamente associado à principal preocupação de Keynes: o problema do
desemprego em massa persistente. Esse desemprego proporciona a motivação
«ideal» para a revolução na política económica pela qual ele é acima de tudo
conhecido: o pleno emprego contínuo, não interrompido por crises, era o
caminho mais rápido para a utopia a que o ensaio aludia. Keynes queria
garantir que o sistema capitalista funcionava em pleno para apressar o dia em
que chegaria ao fim.
Passaram-se mais de 80 anos desde que escreveu este ensaio; nós somos os
seus «netos», até os seus bisnetos. Por isso, até que ponto é que a profecia de
Keynes se realizou?

O destino da profecia de Keynes

O ensaio de Keynes apresentou duas profecias e uma possibilidade. As


previsões relacionavam-se com crescimento e horas de trabalho. Simplificando
um pouco, Keynes pensava que, nesta altura, nós, no Ocidente, estaríamos
prestes a ter o «suficiente» para satisfazer todas as nossas necessidades sem
termos de trabalhar mais do que três horas por dia. A possibilidade – não uma
previsão, porque Keynes sugere o cenário alternativo da «dona de casa
aborrecida» – era que aprenderíamos a usar o nosso tempo extra de lazer para
vivermos «sabiamente, agradavelmente e bem». Como correram estas
especulações?
O que Keynes esperava que acontecesse nos países ricos está ilustrado sob a
forma de um diagrama no Gráfico 1. No ponto de «Felicidade», em 2030, o
crescimento do rendimento pararia (porque todos teriam o suficiente) e o
trabalho necessário cairia para zero (porque quase tudo o que as pessoas
precisavam seria produzido por máquinas).
Agora, comparemos as duas previsões com os resultados reais. O que
aconteceu ao crescimento nos países ricos comparativamente à previsão de
Keynes é mostrado no Gráfico 2. O que aconteceu às horas de trabalho nos
países ricos, comparadas com a previsão de Keynes, é mostrado no Gráfico 3.
O crescimento do rendimento real per capita foi bastante semelhante ao que
Keynes esperava. A verdade é que a coincidência é um feliz acaso. Keynes não
previu quaisquer grandes guerras nem crescimento populacional significativo
nos países abrangidos. Na realidade, houve outra guerra mundial e a população
cresceu em cerca de um terço. Mas ele subestimou o crescimento da
produtividade. Os dois erros anularam-se, com o resultado de que os
rendimentos per capita quadruplicaram de facto nos 70 anos desde 1930, até ao
limite inferior de Keynes.

14 Citado in Robert Skidelsky, John Maynard Keynes: The Economist as Saviour 1920-1937 (Londres:
Macmillan, 1992), pp. 72, 235.

15 Keynes antecipou o modelo de crescimento de Robert Solow, em que o crescimento do PIB é explicado
pelo crescimento dos fatores de capital e população e pela taxa de progresso técnico. Como a maioria dos
economistas, Keynes presumiu rendimentos decrescentes para o capital – cada parte de capital adicional
produziria menos rendimento do que o anterior – com a saturação de capital a instalar-se. Um maior
crescimento do PIB viria a depender vastamente de melhoramentos na qualidade e não na quantidade do
capital, físico e humano, isto é, do progresso técnico. O crescimento do PIB per capita necessitaria de que o
progresso técnico ultrapassasse o crescimento populacional.

16 Para o ensaio como um todo ver John Maynard Keynes, Essays in Persuasion, The Collected Writings of
John Maynard Keynes, vol. 9 (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), pp. 321-332. Foi reeditado a
partir de Essays in Persuasion de Keynes, de 1931. Para saídas anteriores, ver Skidelsky, Keynes: The
Economist as Saviour, p. 634, n. 53.
17 G. E. Moore, Principia Ethica (Cambridge: Cambridge University Press, 1903), pp. 188-189.

18 A. W. Plumptre, citado in Skidelsky, Keynes: The Economist as Saviour, p. 237.


Gráfico 1. A Previsão de Keynes
Gráfico 2. Crescimento desde Keynes

Fonte: Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics (OCDE, 2005); Measuring
Worth, disponível em www.measuringworth.com, Eurostat; acedido em 16 de janeiro de 201219.

19 Para uma discussão sobre as taxas de crescimento nos EUA, na Europa e no resto do mundo, ver
Fabrizio Zilibotti, «Economic Possibilities for our Grandchildren 75 Years After: A Global Perspetive»
[Possibilidades Económicas para os nossos Netos 75 Anos Depois: Uma Perspetiva Global], in Lorenzo
Pecchi e Gustavo Piga (eds.), Revisiting Keynes: Economic Possibilities for Our Grandchildren
(Cambridge, Mass.: MIT Press, 2008), pp. 27-39.
Gráfico 3. Horas Semanais desde Keynes

Fonte: Michael Huberman e Chris Minns, «The Times They are Not Changin’: Days and Hours of
Work in Old and New Worlds, 1870-2000» [Os Tempos que Eles Não Estão a Mudar: Dias e
Horas de Trabalho no Velho e no Novo Mundo], Explorations in Economic History, vol. 44
(2007), pp. 538-567.

O que aconteceu então às horas de trabalho? A previsão de Keynes de que,


nessas condições, as horas de trabalho cairiam em linha com o crescimento da
produtividade dependia da suposição aparentemente lógica de que o
rendimento tinha uma utilidade marginal decrescente – que cada pedaço extra
de rendimento produzia um pouco menos de satisfação extra –, de tal forma
que à medida que as sociedades se fossem tornando mais ricas prefeririam cada
vez mais o lazer a maior rendimento. À medida que o rendimento de uma
pessoa aumentasse, devido à sua produção extra por hora, as suas horas de
trabalho diminuiriam até a utilidade de uma hora extra de rendimento ser igual
à de uma hora extra de lazer.
Mas as coisas não funcionaram assim. Entre 1870 e 1930, as horas de
trabalho por pessoa caíram rapidamente e Keynes presumiu que esta tendência
de queda continuaria. «Nas nossas vidas», escreveu ele, «talvez consigamos
realizar todas as operações de agricultura, exploração mineira e fabrico com
um quarto do esforço humano a que fomos acostumados.»20 Porém, embora os
rendimentos e a produtividade tenham subido bastante em linha com as
expectativas de Keynes, as horas de trabalho por pessoa estão longe de ter
caído três quartos desde 1930. Em 1930, as pessoas no mundo industrial
trabalhavam cerca de 50 horas semanais. Hoje, trabalham 44 horas por semana.
Pelos cálculos de Keynes, neste momento devíamos estar perto das 15 horas de
trabalho semanal, se não estivéssemos já lá. Se projetarmos as tendências atuais
para 2030, poderemos chegar às 35 horas de trabalho semanal, mas nada que se
assemelhe a 15 horas de trabalho semanal. O problema é compreender porque é
que as horas de trabalho caíram muito menos do que o crescimento da
produção por hora trabalhada o levou a esperar.
Keynes não estabeleceu qualquer limite geográfico para a sua previsão.
Provavelmente, pensou que, em 2030, os países pobres estariam quase a
apanhar os países ricos. E não estava completamente errado. Um pequeno
grupo de economias asiáticas alcançou os padrões de vida ocidentais e há uma
série muito maior de países de rendimento médio que chegarão lá a médio
prazo. Porém, o crescimento populacional, que ele não previu, manteve um
quarto da população mundial desesperadamente pobre. Em 1930, a população
mundial era de 2,7 mil milhões. Atualmente é de 7 mil milhões, um aumento de
mais de duas vezes e meia. Mesmo no mundo rico é superior em mais de 30%.
A pergunta embaraçosa que Keynes não enfrentou foi até que ponto deveriam
ir os ricos no adiamento da sua própria «Felicidade» para ajudar os pobres.

As ilusões das médias

Antes de aprofundarmos mais a questão de saber porque é que as horas de


trabalho não caíram em linha com o crescimento da economia, devíamos estar
conscientes do que é dissimulado pelos nossos métodos de medição.
A média é simplesmente a tendência central de um conjunto de dados. A
maioria das pessoas pensa intuitivamente nela como um número «típico». Por
exemplo, se sabemos que o rendimento médio das pessoas na Grã-Bretanha em
2011 é de 25 mil libras por ano, tendemos a assumir que a maior parte dessas
pessoas aufere 25 mil libras por ano, com poucas a ganhar mais e poucas a
ganhar menos. No entanto, não tem de ser assim. Vejamos uma população de
10 pessoas (digamos, uma fábrica) onde o diretor-geral ganha 160 mil libras
por ano e os nove operários ganham 10 mil libras cada um. A média aritmética
dos seus rendimentos é de 25 mil libras, mas a maioria recebe 10 mil libras.
Esta é uma representação estilizada da situação na Grã-Bretanha e na América
dos nossos dias, onde a maioria das pessoas ganha menos do que a média e um
pequeno número ganha muito mais. Em 2011, o rendimento médio no Reino
Unido foi de 27 mil libras, mas o rendimento mediano foi de 21 500 libras. Isso
significa que 50% da população ganhou menos de 21 500 libras e algumas
pessoas muito menos do que esse valor21. A falácia de deduzir uma situação
«típica» a partir do estudo de médias aritméticas é extremamente relevante para
a distribuição de rendimentos. Não é possível dizer se o «bem-estar» dos
cidadãos de um país vai subir ou descer sem sabermos o que aconteceu à
distribuição de rendimento. Mas a falácia aplica-se em muitas das situações
que nos interessam.
Em primeiro lugar, o número médio de horas trabalhadas esconde variações
bastante grandes (e cada vez maiores) entre países, com a diligente América
numa ponta, a «velha Europa» na outra e a Grã-Bretanha mais perto dos
Estados Unidos (ver Gráfico 4). Apesar de a redução do número de horas
trabalhadas desde a década de 1980 ser comum a todos os países, temos de
explicar porque é que os americanos e os italianos trabalham mais horas do que
os outros. «Atualmente, os americanos», informa um inquérito em 2011,
«trabalham em média mais 122 horas por ano do que os britânicos e 378 horas
(10 semanas!) do que os alemães.»22 Algumas pessoas sugeriram que nos
Estados Unidos as horas de trabalho recomeçaram a subir recentemente. Os
holandeses foram os que mais de aproximaram do estado de «Felicidade» de
Keynes. Em 2011, as suas 1400 horas anuais – ou 34 horas semanais – valem-
lhes 42 mil dólares per capita, ao passo que as 1650 horas dos bretões lhes
rendem apenas 36 mil dólares (os americanos recebem 48 mil dólares per
capita por 1800 horas)23. É tentador relacionar estas diferentes atitudes perante
trabalho, dinheiro e lazer com divergências culturais. Numa sociedade de
imigrantes como é a sociedade americana, ganhar dinheiro era visto como a
estrada real para o sucesso; na Europa, o legado de uma cultura hierárquica que
limitava as oportunidades de ganhar dinheiro nos estratos superiores e nos
estratos inferiores levou à adoção de formas de vida que menosprezavam o
ganho de dinheiro como um objetivo. A Grã-Bretanha é um caso intermédio,
mais aberto à criação de riqueza do que a Europa Continental, menos
igualitária em termos sociais do que os Estados Unidos. Estas diferenças
culturais estão gravadas nas instituições específicas do sistema de impostos,
sistema de proteção social e mercado de trabalho e são reforçadas por elas. É
muito possível que o número superior de horas italianas deixe de fora aqueles
que trabalham apenas horas intermitentes na economia informal. (Esta parece
ser uma característica de todos os países mediterrânicos.)

20 Keynes, Essays in Persuasion, p. 325.

21 Wenchao Jin et al., Poverty and Inequality in the UK (Londres: Institute for Fiscal Studies, 2011).

22 The Week, 16 de julho de 2011.

23 Estes números são calculados de acordo com a paridade do poder de compra, que é uma medida do que o
dinheiro pode comprar em diferentes países.
Gráfico 4. Horas de Trabalho desde 1983

Fonte: Perspetiva de Emprego da OCDE 2011.

Em segundo lugar, a diminuição da média de horas de trabalho esconde uma


discrepância em horas trabalhadas por diferentes grupos dentro de países.
Apesar de as horas globais de trabalho terem estagnado, muitos dos
trabalhadores mais mal pagos trabalham menos do que querem, enquanto
muitos dos ricos trabalham mais do que precisam. É um facto marcante que as
horas de trabalho entre os ricos aumentaram, especialmente nos Estados
Unidos e na Grã-Bretanha, invertendo a relação negativa entre trabalho e
rendimento que, até há muito pouco tempo, se pensava geralmente que se
mantinha24. No tempo de Keynes, o estrato superior da sociedade trabalhava
menos horas do que o estrato inferior. A aristocracia não se dedicava a qualquer
trabalho remunerado; os profissionais passavam muito menos horas no
escritório. Hoje em dia, os ricos «viciados em trabalho» substituíram os ricos
«ociosos». A posição social já não é determinada pela imunidade ao trabalho.
Na nossa sociedade extremamente competitiva, pessoas de talento, mas sem
fortuna, têm de trabalhar mais duramente do que nunca para atingir a posição
que era desfrutada sem qualquer esforço em épocas passadas por pessoas com
fortuna, mas sem talento. Esta inversão da relação tradicional entre trabalho e
rendimento é um bom motivo para acreditarmos que não caminhamos
tendencialmente para um futuro sem trabalho.
Em terceiro lugar, a média de horas trabalhadas por ano mostra uma queda
mais acentuada que a média de horas trabalhadas por semana, porque incluem
o período de férias. Na Europa, as férias pagas previstas na lei quadruplicaram
desde a época de Keynes, de uma para quatro semanas por ano – um ganho
evidente para o lazer. Todavia, a contrabalançar este ganho está o aumento do
tempo passado nas viagens de casa para o emprego e no trabalho doméstico.
Surpreendentemente, o trabalho doméstico no Reino Unido absorve mais meia
hora por dia do que em 1961, apesar de todos os novos aparelhos que poupam
trabalho25. E, além disso, muitas mais mulheres trabalham fora de casa do que
no tempo de Keynes, pois a grande procura de mão de obra depois da guerra
levou as mulheres para o mercado de trabalho e criou carreiras para elas. Nos
Estados Unidos, a proporção de mulheres que trabalhavam em 1930 era de
25%; atualmente, é de 70%, uma tendência refletida noutros países
industrializados26. A versão moderna da dona de casa de Keynes tem uma
probabilidade menor de ter um esgotamento nervoso devido a ociosidade
involuntária do que devido ao stresse de combinar trabalho remunerado com o
tempo extra que tem de dedicar às compras (incluindo a viagem de ida e volta
para supermercados e a fila para pagar) e aos filhos (incluindo a supervisão de
brincadeiras que antigamente não eram vigiadas e o transporte de e para a
escola)27.
Além disso, como as estatísticas de horas de trabalho, quer semanais quer
anuais, incluem apenas pessoas que trabalham, não refletem os anos dedicados
à educação ou o fosso cada vez maior entre trabalho e falecimento chamado
aposentação. Deveríamos contar os anos dedicados à educação como uma
extensão do trabalho ou do lazer? Provavelmente, dependerá do tipo de
educação. Se for treino para o trabalho, como a maior parte do ensino parece
ser hoje em dia, deveria contar como trabalho; se for uma preparação para a
vida boa, deveria contar como lazer.
A aposentação é mais naturalmente considerada parte do lazer; o seu
prolongamento poderá, assim, ser contado como uma adição à possibilidade da
vida boa. No Reino Unido, em 1948, os homens trabalhavam em média até aos
65 anos e morriam dois anos depois. Hoje em dia reformam-se aos 67 anos e
vivem mais 11 anos. No entanto, deve ser seguramente errado concentrar tanto
lazer nos últimos anos da vida de uma pessoa. Não só as pessoas tiveram pouca
preparação nas suas vidas ativas para o lazer que as espera no futuro como a
sua capacidade para desfrutar dele pode ter diminuído. Também não podemos
concluir que o lazer para a sociedade como um todo vai continuar a aumentar
simplesmente em consequência do aumento da longevidade. Como a poupança
de rendimento não acompanhou o ritmo do custo cada vez mais elevado da
aposentação28, quer em termos de anos quer de despesas médicas, os anos de
trabalho estão a aumentar inexoravelmente e as políticas de não discriminação
etária dão força legislativa a esta tendência. Assim, o colapso da poupança
doméstica durante a vida ativa reduzirá inevitavelmente os anos de
aposentação, a menos que os estilos de vida pouco saudáveis das sociedades
ricas produzam o mesmo resultado invertendo o aumento da esperança de vida.
Porém, por muito que analisemos as médias, o quebra-cabeças central
mantém-se: nós, no mundo rico, estamos em média quatro ou cinco vezes
melhor do que estávamos em 1930, mas a média das nossas horas de trabalho
caiu apenas um quinto desde então.
Antes de analisarmos a que se deveu o fracasso da previsão de Keynes de
que as horas de trabalho tenderiam para zero, podemos perguntar porque é que
ele pensou que isso seria plausível. Porque é que Keynes pensou que quanto
maior fosse o rendimento das pessoas menos elas quereriam trabalhar? E
porque é que ele fixou um aumento de quatro a oito vezes como «suficiente»?
Porque não duas ou três vezes, ou até dez vezes?
A resposta à primeira pergunta é que Keynes acreditava que as pessoas
tinham uma quantidade finita de necessidades materiais que poderiam um dia
ser plenamente satisfeitas. Acreditava nisto porque não conseguiu distinguir
desejos de necessidades; na verdade, ele usou os dois termos alternadamente no
seu ensaio. Como veremos, este erro foi crucial. As necessidades – os
requisitos objetivos de uma vida boa e confortável – são finitos em termos de
quantidade, mas os desejos, sendo puramente físicos, são infinitamente
expandidos, quer em quantidade quer em qualidade. Isto significa que o
crescimento económico não tem uma tendência natural para parar. Se parar,
será porque as pessoas decidem não querer mais do que o necessário.
Porque é que Keynes pensou que um rendimento quatro a oito vezes superior
ao rendimento médio do seu tempo seria «suficiente»? A resposta é quase
certamente que ele estava a pensar num padrão de vida de classe média, o
padrão daqueles que ele considerava que tinham «uma vida confortável». Na
década de 1930, os profissionais ganhavam em média cerca de quatro vezes
mais do que a média auferida pelos trabalhadores manuais, com os médicos e
advogados a receber 5,2 e 7,5 vezes mais, respetivamente29. Keynes pensou
que, quando a maioria das pessoas tivesse rendimentos não muito superiores
aos proventos profissionais, teria o suficiente para viver uma vida boa. Muito
naturalmente, ele teria de ter em conta o aumento generalizado dos padrões de
conforto. Porém, ele terá imaginado que ao longo do tempo os pobres
aproximar-se-iam dos ricos, à medida que os ricos, estando mais próximos da
«Felicidade», fossem reduzindo as suas horas de trabalho mais depressa do que
os que estavam menos bem de vida. Ele não previu que os ricos corressem à
frente dos pobres, aumentando as suas horas de trabalho30.
A noção de suficiência de Keynes não exigia uma igualdade total de
rendimentos. Baseava-se numa ideia do que era adequado para um determinado
papel social. Esta visão da questão, que remonta a Aristóteles, era comum entre
os contemporâneos de Keynes. Assim, o economista Alfred Marshall calculou
que 500 libras por ano eram «suficientes» para um pensador. Virginia Woolf
pensava que um escritor precisava de 500 libras por ano e «uma sala só sua».
Estes valores podiam ser vistos como requisitos para essas ocupações
específicas. A vida boa podia ser desfrutada com muitos níveis diferentes de
rendimento, desde que as necessidades materiais básicas, incluindo níveis de
conforto, estivessem satisfeitas para todos.
Por fim, o que aconteceu à «possibilidade» de Keynes – que usaríamos o
nosso lazer para viver «sabiamente, agradavelmente e bem»? Ainda não
estamos em posição de responder a esta pergunta, pois nas sociedades ricas dos
nossos dias o lazer continua a ser um apêndice do trabalho e não o seu
substituto. Depois de um trabalho árduo, a maioria das pessoas só quer
«descansar». As férias são usadas para recarregar baterias para o período
seguinte de trabalho. Logo, a forma como a maior parte do tempo de lazer é
usado hoje em dia não é um bom exemplo de como seria usado se as horas de
trabalho fossem muito reduzidas relativamente ao que são atualmente, ou até se
o tipo da maior parte do trabalho não fosse tão alienador. Além disso, para os
escalões mais altos do mundo empresarial, trabalho e lazer fundiram-se numa
intencionalidade generalizada. O executivo que assiste a reuniões «fora do
local de trabalho» em clubes de golfe exclusivos, oferece uma festa para
«estabelecer contactos» e está em constante comunicação eletrónica com o seu
escritório, mesmo quando está de férias está a agir premeditadamente no
sentido de Keynes; está a fazer coisas não por elas mesmas, mas para o
benefício de outras coisas. Dir-se-ia até que a cultura das sociedades opulentas
dos nossos dias se tornou mais determinada, não menos, mais acelerada, não
mais vagarosa. Explicar este paradoxo será um dos objetivos do que se segue.

Porque é que a profecia de Keynes falhou?

As explicações para o facto de a média de horas de trabalho não estar em


linha com o crescimento do rendimento divide-se em três tipos genéricos. Diz-
se que as pessoas trabalham as horas que trabalham porque gostam, porque são
obrigadas ou porque querem cada vez mais.

As Alegrias do Trabalho

«Quem não trabalha não come», proclamou Lenine, citando São Paulo.
Keynes seguiu a política económica do seu tempo tratando o trabalho como o
custo de obter coisas absolutamente essenciais. Como Adam Smith escreveu:
«O verdadeiro preço de todas as coisas […] é o trabalho árduo e a dificuldade
de adquiri-las.» Ou, como Jeremy Bentham disse: «Na medida em que o
trabalho é visto no seu sentido próprio, o amor pelo trabalho é um paradoxo.»31
Não havia nenhuma novidade neste tratamento: a Bíblia diz-nos que o homem
foi condenado a trabalhar para expiar dolorosamente a sua desobediência a
Deus. No entanto, mais recentemente, algumas pessoas sugeriram que esta
relação ancestral do trabalho com «trabalho árduo e dificuldade» não é válida,
ou tem uma validade reduzida. O trabalho já não é esforço no sentido
economicista, mas um esforço de amor: uma fonte de estímulo, identidade,
merecimento e sociabilidade. Em suma, o trabalho não é apenas um meio para
alcançar um fim: proporciona satisfações intrínsecas. É por isso que as pessoas
continuam a trabalhar durante mais tempo do que «precisam».
Os apóstolos das alegrias do trabalho reconhecem que a visão economicista
do trabalho como um esforço sem alegria, que tem de ser compensado com um
rendimento, pode ter sido adequada para o trabalho fisicamente brutal,
mecânico e embrutecedor que a maioria das pessoas tinha de fazer no passado,
mas é preciso acrescentar que nos nossos dias isso já não é verdadeiro em
relação ao trabalho. Na era «pós-moderna», o trabalho tornou-se fisicamente
menos exigente, mais interessante, estimulante e inovador. Isto é
particularmente verdadeiro no caso de empregos de carreira e explica porque é
que aqueles que são mais bem pagos trabalham muitas vezes mais horas do que
os menos bem pagos. Nós temos um setor «criativo» em constante expansão e
muito mais escolha de trabalho «necessário» do que existia anteriormente. As
pessoas podem revelar as suas almas não apenas nas suas compras, mas nos
seus empregos. Os críticos acrescentam que Keynes tinha um desdém de
Bloomsbury pelas profissões, o que o levou a não prestar atenção às satisfações
intrínsecas que mesmo nessa altura muitas pessoas encontravam no trabalho32.
Diz-se que o equivalente ao amor pelo trabalho é o medo do lazer. Pergunta-
se muitas vezes: O que farão as pessoas se não tiverem de trabalhar?
Embebedam-se ou drogam-se? Passam o dia deitadas no sofá diante da
televisão? Subjacente a este tipo de pergunta está a opinião de que os seres
humanos são naturalmente preguiçosos, e por isso o trabalho é necessário para
os tornar produtivos, para os manter «nos eixos», para impedir que «se
arruinem». Mas há mais uma coisa. O trabalho proporciona uma sociabilidade
obrigatória; o lazer pode trazer uma solidão forçada. «Eu? Eu tenho pavor dos
fins de semana», afirma o jornalista viciado em trabalho no romance de Tom
Rachman, The Imperfectionists. «Quem me dera não ter tempo de férias… não
faço ideia do que fazer com ele. São quatro semanas em que não paro de
lembrar a mim mesmo que sou um falhado.»33
Seria um disparate negar que o trabalho remunerado sempre teve elementos
de satisfação intrínseca: a maior parte das pessoas não trabalha apenas para
comer. As pessoas podem trabalhar muitas horas por companheirismo ou para
escapar aos problemas, ou tédio, da vida familiar. A questão é se o elemento
«feliz» no trabalho tem aumentado ao longo do tempo. Isto não é de forma
alguma claro. Alguns trabalhos tornaram-se mais interessantes; o número de
trabalhos vocacionais – o ensino, por exemplo – aumentou. Diz-se
frequentemente que a Internet tornou o trabalho mais divertido (e a diversão
mais parecida com trabalho). Também alargou as oportunidades de lazer no
trabalho; o Facebook está apenas a um clique de distância. Os ambientes de
trabalho são cada vez mais projetados para serem «divertidos»34. Mas a
especialização que Adam Smith pensou que tiraria a técnica do trabalho
também tornou uma grande parte do trabalho menos gratificante. O que é
chamado «técnica» é frequentemente um eufemismo para tornar mecânico o
que em tempos requeria pelo menos um pouco de conhecimento, atenção e
envolvimento. As técnicas do artesão, do mecânico, do construtor, do talhante e
do padeiro deterioraram-se; uma grande parte do trabalho, reduzido à pura
rotina, continua a ser literalmente estupidificante. As rotinas laborais dos
supermercados e call centers modernos foram apelidadas de «taylorismo
digital» em homenagem ao inventor do tapete rolante35. Reduções drásticas de
custos diminuíram o «tempo presencial», como a sociabilidade é agora
chamada. A «criatividade» de muitos trabalhos é apenas uma imagem de
marca: «chefs trabalhadores e empenhados a criar todos os dias» é o anúncio de
uma cadeia de comida rápida muito conhecida. Mesmo para os profissionais
financeiros de topo, as «alegrias do trabalho» vêm num distante segundo lugar,
depois dos salários e bónus36. A disponibilidade dos que mais ganham para
trabalharem mais horas do que trabalhavam no passado pode confirmar, não o
interesse crescente dos seus empregos, mas a insegurança crescente dos seus
rendimentos. Uma pequena proporção de empregos, e partes de empregos,
pode ter-se tornado cativante; a maior parte continua a ser mal-amada.
Apesar das pseudoalegrias do trabalho e do medo da ociosidade, mais
trabalhadores na maioria dos países desenvolvidos, incluindo os Estados
Unidos, prefeririam trabalhar menos do que mais. Um inquérito recente sobre
futuras opções de emprego mostra um desejo generalizado de menos horas de
trabalho, mesmo sabendo que isto poderia significar um salário menor – 51%
dos inquiridos queriam menos horas e apenas 12% escolheram mais horas37.
Resultados semelhantes foram obtidos no Japão. Nos Estados Unidos, os
números foram mais equilibrados, mas a preferência foi para menos horas e
não mais horas (37% contra 21%)38. O que as pessoas dizem que fariam em
circunstâncias hipotéticas não é, evidentemente, o que fariam necessariamente
se fossem confrontadas com essas circunstâncias. No entanto, mantém-se pelo
menos uma predisposição a favor de menos horas.
Os prazeres cada vez maiores do trabalho, ou o medo do lazer, podem ser
parte da explicação de porque é que as horas de trabalho pararam de diminuir,
mas não podem ser a explicação principal. A praga de Adam pode ter-se
tornado mais leve, mas não desapareceu completamente.

A Pressão para Trabalhar


Os marxistas defenderam tradicionalmente que nos regimes capitalistas os
trabalhadores são obrigados a trabalhar mais horas do que precisam, ou
gostariam, porque são «explorados» – isto é, recebem menos do que o seu
trabalho vale para os patrões, cujo controlo do mercado laboral torna isto
possível. Isso significa que eles são privados dos ganhos plenos do aumento da
produtividade. Nos anos «social-democratas» de meados do século XX,
sindicatos poderosos conseguiram fazer subir os salários reais dos
trabalhadores e o Estado usou o sistema de tributação para redistribuir o
rendimento não proveniente dos salários dos ricos para os pobres. Mas estas
tendências de equilíbrio apossaram-se dos lucros e deixaram os ricos
comparativamente pior.

24 Jonathan Gershuny, «Busyness as the Badge of Honour for the New Superordinate Working Class»
[Ocupação como a Medalha de Honra para a Nova Classe Trabalhadora Superordenada], Institute for Social
and Economic Research Working Paper 2005-2009 (2005).

25 As famílias passam mais tempo a fazer compras devido à distância maior, ao tamanho das lojas e ao
crescimento das compras self-service. Também é dedicado mais tempo a cuidar dos filhos, o que reflete a
mudança de atitude relativamente à educação dos filhos, exemplificada pela frase «tempo de qualidade».
Em contraste, o tempo dedicado às tarefas domésticas como cozinhar e limpar diminuiu com a ajuda de
aparelhos que poupam tempo. Ver Jonathan Gershuny e Kimberly Fisher, «Leisure in the UK across the
20th Century» [«Lazer no Reino Unido Ao Longo do Século XX»], in A. H. Halsey e Josephine Webb
(eds.), Twentieth Century British Social Trends (Londres: Palgrave Macmillan, 1999), p. 634.

26 US Bureau of Labor Statistics.

27 Ver Axel Leijonhufvud in Pecchi e Piga (eds.), Revisiting Keynes, pp. 117-124.

28 A interpretação dos dados não é simples. A taxa de poupança das famílias caiu dramaticamente em
muitos países ocidentais, o que sugere que as pessoas estão a trabalhar mais horas não para poupar para a
velhice, mas para gastar. No entanto, podem estar a «poupar» comprando casas e instrumentos financeiros,
que são tratados nas contas nacionais como investimentos, não poupanças.

29 Henry Phelps-Brown, The Inequality of Pay (Oxford: Oxford University Press, 1977), pp. 84-86.

30 Na verdade, poder-se-ia pensar em dois efeitos. Ou os ricos reduziam as suas horas de trabalho mais
depressa do que os pobres, porque tinham menos necessidade de rendimento adicional, ou ricos e pobres
reduziam as suas horas na mesma proporção, mas os ricos partiam da posição de já trabalhar menos e, por
conseguinte, tinham menos horas de trabalho para deixar.

31 V. I. Lenin, The State and Revolution (Londres: Penguin Classics, 2010), cap. 5, alínea 3; Adam Smith,
The Wealth of Nations (Lawrence, Kan.: Digireads.com, 2009), Livro 1, cap. 5; Jeremy Bentham, A Table
of the Springs of Action (1817), p. 20.

32 Esta crítica a Keynes é recorrente nos ensaios reunidos in Pecchi e Piga (eds.), Revisiting Keynes. Ver os
ensaios de Stiglitz, p. 46, Freeman, pp. 140-141, e Fitoussi, p. 157.
33 Tom Rachman, The Imperfectionists (Londres: Quercus Publishing, 2010).

34 A sede do novo Royal Bank of Scotland em Edimburgo, uma estrutura contemporânea esplêndida, foi
construída à volta da réplica de uma rua principal com todas as comodidades modernas – cafés, farmácias,
floristas, um cabeleireiro, etc. O banco faliu em 2009. Ver Alistair Darling, Back from the Brink (Londres:
Atlantic Books, 2011), p. 60. Douglas Edwards escreve que a sede da Google, o Googleplex, «era muito
mais divertido do que a minha casa», cheio de jogos de vídeo, bolas saltitonas, hóquei aéreo, caixas de
M&M, um bar de sumos e um piano. Mas a consequência da falta de estrutura foi uma insegurança com
efeitos extremamente negativos: «Na Google, eu estava no paraíso do trabalhador, mas sentia que não
merecia.» [I’m Feeling Lucky: The Confessions of Google Employee Number 59 (Londres: Penguin, 2011),
p. 126.]

35 Aditya Chakrabortty, «Why our Jobs are Getting Worse» [Porque é que os nossos Empregos estão a
Piorar], Guardian, 31 de agosto de 2010. Ver também Irina Grugulis et al., «‘No Place to Hide’: The Reality
of Leadership in UK Supermarkets» [«Nenhum Sítio para nos Escondermos»: A Realidade de Liderança
nos Supermercados do Reino Unido], SKOPE Research Paper 91, sobre a McDonald’s-ização do trabalho.
Sobre o Taylorismo digital, ver Philip Brown et al., The Global Auction: The Broken Promises of
Education, Jobs and Incomes (Nova Iorque: Oxford University Press, 2010), pp. 65-82. Para o mundo
sinistro dos call centres, ver Simon Head, The New Ruthless Economy: Work and Power in the Digital Age
(Nova Iorque: Oxford University Press, 2003), pp. 100-116.

36 St Paul’s Institute, Value and Values: Perceptions of Ethics in the City Today (Londres: St Paul’s
Institute, 2011).

37 H. Bielenski, G. Bosch e A. Wagner, Employment and Working Time in Europe (Dublin: European
Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions [EFILWC], 2002). A pergunta exata no
inquérito era: «Se você (e o seu parceiro) pudesse fazer uma escolha livre relativamente às horas de
trabalho, e tendo em conta a necessidade de ganhar dinheiro para viver, quantas horas por semana preferiria
trabalhar atualmente?» Isto faz referência ao compromisso com o rendimento, ainda que não
explicitamente.

38 Jeremy Reynolds, «When Too Much is Not Enough: Actual and Preferred Work Hours in the United
States and Abroad» [Quando Demasiado não é Suficiente: Horas de Trabalho Reais e Preferidas nos
Estados Unidos e no Estrangeiro], Sociological Forum, vol. 19, n.º 1 (2004), pp. 89-120. Uma nota de
advertência: ao contrário do inquérito do EFILWC, só foi perguntado aos participantes neste inquérito se
gostariam de trabalhar mais, menos, ou a mesma quantidade de tempo que atualmente. Não foi feita
qualquer referência a salários. Reynolds pensa que é provável que «quando os inquiridos indicaram as suas
preferências por mais ou menos horas de trabalho, consideraram em que medida é que essas mudanças
poderiam afetar os bónus». Mas mesmo que os inquiridos não tenham levado os salários em linha de conta,
os resultados sugerem que a maioria considerava o trabalho uma desutilidade.
Gráfico 5. Quota do Rendimento do 1% de Pessoas Mais Ricas

Fonte: World Top Incomes Database (http://g-mond.parisschoolofeconomics.eu/topincomes/).

Isto foi invertido na década de 1980, aproximadamente na mesma altura em


que as horas de trabalho pararam de cair. A explicação da estabilização das
horas de trabalho parece óbvia: os trabalhadores não reduziram o seu tempo de
trabalho porque na realidade não alcançaram os ganhos no rendimento real que
os teriam levado a trabalhar menos. Os trabalhadores podem determinar os seus
compromissos entre trabalho e lazer, mas num sistema onde a classe capitalista
dita as regras.
Os dados mostram que a desigualdade de riqueza e rendimento nos Estados
Unidos e na Grã-Bretanha cresceu imenso desde 1980, com os ricos a ganhar
mais com o aumento da produtividade (ver Gráfico 5).
Os números em destaque são bem conhecidos: em 1970, nos Estados Unidos,
o ordenado de um diretor-geral de uma grande empresa era quase 30 vezes
superior ao da média dos trabalhadores; atualmente, é 263 vezes mais
elevado39. Na Grã-Bretanha, em 2000, o salário base de um diretor-geral nas
principais empresas cotadas no FTSE era 47 vezes superior à média de salários
dos trabalhadores; em 2010, era 81 vezes superior. Desde o final da década de
1970, o rendimento do quinto de pessoas mais ricas aumentou nove vezes mais
depressa do que o quinto de pessoas mais pobres nos Estados Unidos e quatro
vezes mais depressa no Reino Unido40. O Gráfico 5 confirma que os ricos têm
estado a captar uma parcela cada vez maior do produto interno. Isto explica
porque é que, apesar de o rendimento médio ter subido na maior parte dos
países, o rendimento mediano – isto é, o rendimento da pessoa no meio da
distribuição – não subiu tanto, e na América mantém-se estável há mais de 40
anos. Segundo um recenseamento recente, 46 milhões de americanos vivem na
pobreza. «No Reino Unido», escreve Larry Elliott do Guardian,

as classes médias profissionais, especialmente no sudeste, estão bem, mas abaixo delas na escala de
rendimentos estão as pessoas que se tornaram mais dependentes da dívida quando os seus rendimentos
reais estagnaram. A seguir estão as pessoas que recebem o salário mínimo, que tem de ser
complementado com apoios sociais para poderem equilibrar as suas contas. No fundo da pilha
encontram-se aqueles que não têm trabalho, muitos dos quais pertencem à segunda ou terceira geração
de desempregados41.

A recente influência dominante na distribuição de rendimento foi o


crescimento da economia de serviços e a incapacidade de usar o sistema de
tributação para compensar a tendência natural de desigualdade de crescimento
relativamente ao crescimento relativo dos serviços. Ambos estabeleceram um
limite para a diminuição de horas de trabalho. No tempo de Keynes, nos países
desenvolvidos a indústria representava 80% da produção e os serviços apenas
20%. Atualmente, esta proporção inverteu-se. Em média, os empregos no setor
dos serviços são menos bem pagos do que os empregos na indústria que
substituíram, em parte porque não podem ser automatizados até ao mesmo
ponto – pensemos nos professores, enfermeiros, cabeleireiros e taxistas – e em
parte porque não podem ser sindicalizados com tanta eficácia. O fracasso na
redistribuição de rendimento nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha significou
que muitas das pessoas empregadas nos escalões mais baixos do setor de
serviços nestes dois países, especialmente no retalho, hospitalidade e serviços
pessoais, tiveram de aumentar as horas de trabalho para escapar à pobreza42.
A socióloga Juliet Schor chamou a atenção para uma característica específica
do domínio capitalista do mercado de trabalho. Em The Overworked American
ela defende que as pressões competitivas, combinadas com uma fraca proteção
dos direitos dos trabalhadores, levou a que os patrões explorem a mão de obra
existente durante mais tempo em vez de dividirem a carga de trabalho por um
maior número de trabalhadores, uma vez que a última hipótese implicaria um
aumento de custos de treino e gestão por parte do empregador, para nem falar
das férias obrigatórias pagas, seguro de saúde e outros benefícios. Como Schor
diz: «É muito mais rentável para uma empresa contratar um pequeno número
de pessoas durante mais horas do que dividir essas horas por mais
trabalhadores (que também recebem subsídios).»43 A consequência é que a mão
de obra está a ficar segmentada num núcleo cada vez mais pequeno de
trabalhadores permanentes, que provavelmente trabalham mais do que querem,
e uma periferia alargada de desempregados e parcialmente empregados que
trabalham menos do que querem e cujos salários precisam de ser
complementados com apoios sociais para se manterem empregados.
Neste tipo de relato, o consumo aparece como uma oferta propiciatória para
os trabalhadores privados do lazer que anseiam. Para aliviar a sua frustração (e
mantê-los dóceis), é-lhes oferecida uma série de bens de consumo inúteis e
embrutecedores. As compras são espirituosamente, mas bem, denominadas
«terapia de retalho» – uma compensação por experiências desagradáveis ou
deprimentes. A criação de necessidades artificiais garante a lealdade dos
trabalhadores à ética no trabalho. Como Schor diz no seu ensaio «Towards a
New Politics of Consumption» [Para uma Nova Política de Consumo]: «Pode
haver um rumo para a economia que envolva menos trabalho e menos coisas, e
seja preferido pelas pessoas ao rumo de muito trabalho/muito consumo. Mas se
essa opção for bloqueada, então o facto de comprarmos muito já não pode ser
visto como prova ipso facto dos nossos desejos inerentes de consumo.
Podemos estar meramente a fazer o que está à nossa disposição.»44 Dito de
outra forma, adaptamos as nossas preferências, acabando por desejar o que
obtemos e não a obter o que desejamos.
A explicação de esquerda para o compromisso rendimento/lazer não é
totalmente persuasiva. É indiscutível que desde a década de 1980 os
rendimentos medianos não acompanharam os rendimentos médios e apenas
este facto explicaria uma grande parte do fracasso da diminuição das horas de
trabalho desde então. Mas o relato marxista do comportamento consumista é
menos plausível. Mesmo que as preferências dos consumidores possam
divergir das necessidades reais, elas não podem estar inteiramente dependentes
dessas necessidades, não podem ser simplesmente «incutidas» em nós pelo
«aparelho produtivo» ou por outro monstro desse tipo. Afirmar isto é negar aos
indivíduos toda a ação, reduzi-los a formigas ou autómatos. O sociólogo
marxista André Gorz parece fazer isto quando escreve acerca do indivíduo sob
o capitalismo: «Não é o “eu” que age, mas a lógica automatizada de sistemas
sociais que trabalham através de mim como Outro.»45 A publicidade pode
moldar desejos, mas não pode criar desejos do nada. (Não pode, por exemplo,
persuadir-nos a comprar cocó de cão, exceto, possivelmente, se o associar a
algum objeto de desejo já existente.) Tem de existir uma tendência anterior na
natureza humana para a publicidade se colar; de outro modo, o seu domínio
sobre nós seria misterioso.
Assim, as explicações estruturais para o fracasso da diminuição das horas de
trabalho têm de ser suplementadas com uma exploração da natureza intrínseca
dos desejos e satisfações humanos.

Insaciabilidade

Keynes presumiu que os desejos materiais podiam ser satisfeitos, que nós
podíamos «ter o suficiente». Mas suponhamos que eles são insaciáveis? Por
insaciabilidade referimo-nos ao que o dicionário diz: um desejo contínuo e
insatisfeito de mais do que se tem. «Estas “românticas” tendas Jaipur [preço:
3800 libras] criam um excelente espaço de diversão adicional no jardim», é o
slogan de um anúncio dirigido «a quem tem tudo»46. A questão é: Porque é que
as pessoas que «têm tudo» parecem querer sempre mais?
A resposta a esta pergunta tem duas abordagens, a primeira das quais começa
com a natureza dos desejos humanos no isolamento e a segunda que os
considera em relação aos outros. A incompatibilidade entre os dois é
reconhecidamente muito artificial. Os desejos são individuais; no entanto, a
forma como são expressos, a forma como são encorajados ou reprimidos, é
social. A variável explanatória que o investigador decide realçar depende em
grande medida do seu interesse em estabelecer os factos da psicologia
individual ou se, considerando estes factos tal como são apresentados, ele tenta
perceber as suas consequências para o comportamento social.
Um bom exemplo da abordagem individualista é o influente livro de 1976 de
Tibor Scitovsky, The Joyless Economy. A explicação de Scitovsky para a
insaciabilidade foi simplesmente inquietação. Aborrecemo-nos com o que
temos. A satisfação de todas as necessidades, a eliminação de todos os
desconfortos, produz um estado, não de tranquilidade satisfeita, mas de
insatisfação, que tem de ser aliviada com a novidade do mesmo modo que uma
comichão tem de ser coçada para desaparecer. À medida que a abundância
aumenta, cresce o tédio, o que provoca uma procura cada vez mais frenética de
experiências estimulantes. A nossa natureza é tal que nunca estamos satisfeitos
com o que temos. Por isso, continuamos a trabalhar para estimular os nossos
apetites saciados.
Uma segunda explicação individualista para a insaciabilidade centra-se na
escassez inerente de determinados bens. Férias em estâncias de luxo, jardins
elaborados por arquitetos paisagistas e muitas outras raridades não podem ser
desfrutados por todos numa sociedade, por muito rica que ela seja. A procura
crescente pressiona uma oferta fixa. O resultado é um aumento contínuo do
custo desses bens relativamente aos preços médios, que os coloca
permanentemente para além do alcance dos rendimentos normais. Porém, em
vez de aceitarem este lamentável facto, as pessoas continuam a querer o
melhor, que, na natureza das coisas, nem todos podem ter. Por conseguinte,
esta é outra importante fonte de insaciabilidade.
Num ensaio, Roy Harrod, um discípulo de Keynes, destruiu implicitamente a
visão cor-de-rosa do seu mestre ao chamar «oligárquicos» a esses bens
inerentemente escassos47. Um exemplo clássico é o dos velhos mestres da
pintura. Todos os lindos quadros antigos que existem já foram produzidos: a
sua quantidade não pode ser aumentada. Reconhecidamente, todas as pessoas
podem contemplá-los em museus e esta é a solução «democrática» para este
problema específico. Porém, em termos de satisfação individual o
racionamento por fila é muito inferior ao racionamento por preço, a termos o
melhor que foi criado à disposição para ser apreciado na privacidade da nossa
casa.
Os bens oligárquicos não têm de ser fisicamente escassos. Também podem
ser «socialmente escassos», o que significa que a sua multiplicação destrói as
características que os tornaram desejáveis. Estâncias de férias «em estado
natural» só se mantêm imaculadas enquanto o acesso a elas for limitado.
Harrod escreveu:

Um jovem pode ter a ambição de, quando ficar rico, viver na melhor zona de Nova Iorque, ter bons
lugares em todas as melhores peças e óperas, frequentar os clubes noturnos mais seletos […] apoiar os
melhores artistas vivos. E pode obter todas estas coisas se ficar oligarquicamente rico, mas a riqueza
democrática poderá nunca alcançá-las. Se prevalecer uma distribuição desigual, as pessoas mais ricas
avaliarão essas coisas raras muito acima das possibilidades do homem comum.

Harrod inferiu mais uma implicação. Apenas uma minoria de ricos pode dar-
se ao luxo de ter criados e, por conseguinte, conservar «grandes mansões para
viver, parques e jardins privados, estábulos […] iates», que requerem a
existência de uma classe de criados. Mas quanto mais igual se tornar a riqueza,
menos criados estarão disponíveis e acessíveis. Nenhuma das invenções que
poupam mão de obra pode compensar o desaparecimento do serviço pessoal
necessário para uma vida agradável.
O economista Fred Hirsch rotulou os bens «oligárquicos» de Harrod como
«posicionais», porque o acesso a eles depende não do nosso nível absoluto de
riqueza, mas da nossa posição relativamente aos outros. Como os prémios
principais num torneio, os bens posicionais não podem ser conquistados por
todos48. Eles serão sempre acumulados pelos mais ricos da sociedade, seja qual
for o nível global de riqueza. Assim, a competição para obtê-los nunca parará.
Na verdade, intensificar-se-á com o crescimento, à medida que uma proporção
cada vez maior de rendimento familiar for libertado para gastos posicionais. A
existência de bens posicionais enfraquece a visão de Keynes de uma sociedade
onde todos têm «o suficiente». Pois mesmo que todos ganhassem as
necessárias 500 libras por ano, ou o seu equivalente moderno, nem todos
conseguiriam (logicamente) viver nas melhores casas ou comprar os melhores
lugares na ópera.
Uma terceira explicação individualista da insaciabilidade inspira-se
fortemente na imagem economicista do ser humano como um maximizador de
utilidade racional. O trabalho pioneiro aqui é o do economista americano Gary
Becker49. Keynes considerava que o lazer era um benefício universalmente
desejado, mas outra forma de olhar para ele é como um custo – o custo de não
trabalhar. Becker referiu que o custo de uma noite no teatro não é simplesmente
o preço do bilhete, mas o custo de não ganhar naquelas horas. O lazer é uma
subtração do rendimento hipotético e Becker imaginou o indivíduo a equilibrar
as vantagens de ganhar um rendimento e de gastá-lo. Dito desta forma, a
escolha entre trabalho e lazer é essencialmente um problema de distribuição de
tempo. O lazer não é tempo livre, é tempo dispendioso. E quanto mais alto é o
rendimento, mais dispendioso o tempo. Se Becker tiver razão, não existe um
motivo a priori para acreditarmos que as horas de trabalho diminuirão à
medida que a riqueza crescer. É igualmente plausível acreditar que elas subirão
à medida que o custo de não trabalhar aumentar.
O economista sueco Staffan Linder escreveu um livro, The Harried Leisure
Class, onde desenvolveu a análise de Becker. A questão principal de Linder era
que o rendimento do lazer deve ser tão alto como o rendimento do trabalho
para as pessoas desistirem de trabalhar. A principal forma de aumentar o
«lucro» do lazer é enchê-lo de equipamento. «Assim como os trabalhadores se
tornam mais produtivos ao trabalharem com mais ferramentas e meios de
produção, também os consumidores aproveitam melhor o seu tempo de lazer
quando são usados mais aparelhos por unidade de tempo.»50 Uma viagem à
praia ou a uma estância de férias fica incompleta sem grelhador, para-ventos,
fatos de mergulho, pranchas de surf, raquetes de ténis, bolas de futebol, bolas
de praia e tacos de golfe.
Linder está acima de tudo preocupado em explicar a consequência de
consumo cheio de aparelhos para a natureza do lazer, mas o seu argumento
pode ser usado para explicar o fracasso da diminuição das horas de trabalho em
linha com a previsão de Keynes. Quantos mais bens de consumo mais duráveis
– carros, barcos, caravanas, televisores, leitores de DVD, etc. – forem usados
para aumentar o lazer, maiores os rendimentos necessários para poder pagá-los.
A seleção cada vez maior de bens necessários para o consumo produtivo
mantém-nos presos ao trabalho.
Nenhuma destas explicações individualistas de insaciabilidade – inquietação
inata, competição posicional, maximização de utilidade – envolve uma
comparação entre o que uma pessoa quer e o que outras têm. Nessa medida elas
são irrealistas, uma vez que a expressão de desejos tem sempre um carácter
social. Assim, a principal explicação sociológica para a insaciabilidade
depende do carácter relativo dos desejos. Nunca me sentirei satisfeito com o
que tenho em nenhum nível de riqueza material porque alguém terá sempre
mais do que eu. Quando a competição pela riqueza – ou pelo consumo através
do qual ela é normalmente expressa – se transforma numa competição por
posição, transforma-se num jogo de soma zero, porque, por definição, nem
todos podem ter uma posição alta. À medida que gasto mais em bens de
prestígio, ganho importância, mas faço com que outros a percam. Quando eles
gastam mais para recuperar essa posição, reduzem a minha. Não existe um
motivo para que a escalada de rendimento para manter e adquirir posição acabe
algum dia.
Estranhamente, Keynes estava bastante consciente do gasto por posição. Ele
escreveu como um importante aparte no seu ensaio que as necessidades
humanas se incluem em duas categorias:
as necessidades que são absolutas no sentido em que as sentimos seja qual for a situação dos nossos
semelhantes e as que são relativas no sentido em que as sentimos apenas se a sua satisfação nos colocar
acima dos nossos semelhantes e nos fizer sentirmo-nos superiores a eles. As necessidades do segundo
tipo, aquelas que satisfazem o desejo de superioridade, podem de facto ser insaciáveis; pois quanto
mais alto for o nível geral, maiores serão elas. Mas isto não é tão verdadeiro em relação às
necessidades absolutas – um ponto poderá ser alcançado em breve, talvez muito mais depressa do que
todos temos consciência, quando essas necessidades forem satisfeitas no sentido em que preferimos
dedicar as nossas outras energias a objetivos não económicos51.

Keynes aborda o espectro da insaciabilidade socialmente gerada apenas para


ignorá-lo; o resto do seu ensaio prossegue com a suposição de que todas as
necessidades são absolutas. Porquê este lapso? Provavelmente, ele pensava que
as «necessidades relativas» eram demasiado insignificantes para serem
aprofundadas. Keynes viveu numa época em que a esmagadora maioria dos
gastos das famílias era com comida, habitação, roupas, aquecimento e outras
utilidades desse género. O dinheiro dedicado ao consumo competitivo era uma
pequena fração do total. Hoje, a situação inverteu-se: a maior parte dos gastos
das famílias, até das famílias pobres, é em bens que não são necessários em
nenhum sentido estritamente material, mas que servem para conferir prestígio.
A própria noção de um «bem material» alargou-se para incluir tudo o que pode
ser comprado ou vendido, incluindo ideias, fragmentos de melodia e até
identidades.
Os economistas e os sociólogos identificaram três tipos de gastos destinados
a aumentar a posição social52. Os pormenores são técnicos, mas os mecanismos
são conhecidos. Primeiro, temos os «bens de onda»: bens que são desejados
porque outros já os possuem. Isto é parcialmente uma questão de inveja, mas
também de querer ser igual aos outros. Estes desejos são particularmente fortes
nas crianças, levando os pais a trabalhar mais arduamente do que poderiam
para os satisfazer. Depois há os «bens snobes», bens que são desejados porque
os outros não os possuem. Os bens snobes satisfazem o desejo de ser diferente,
exclusivo, de se destacar «da multidão». Não são necessariamente os mais
caros, mas definem os seus possuidores como pessoas de gosto superior.
Exemplos contemporâneos podem incluir obscuras bandas de música
alternativa, filmes de culto e restaurantes exóticos. Os bens snobes e de onda
não são, é claro, mutuamente exclusivos: muitos bens snobes sofrem mutações
para bens de onda, levando ao seu abandono pelos verdadeiros snobes. Este
círculo perpétuo é bem conhecido no mundo da arte e no mundo da moda.
Coincidindo com os bens snobes e de onda estão os «bens Veblen», assim
denominados em honra do grande teórico americano do consumo conspícuo,
Thorstein Veblen. Os bens Veblen são desejados na medida em que são caros e
reconhecidos como caros; com efeito, funcionam como anúncios de riqueza.
No ainda hierárquico mundo dos negócios, viajar em primeira classe, em
executiva ou económica indica a posição de uma pessoa na empresa. Outro
fenómeno veblenesco é o «efeito bling»53. É sabido que as marcas preferidas
pelas celebridades são dispendiosas e essa é uma grande parte do seu encanto
(talvez todo): quanto mais elevado o preço, mais exclusiva a marca. Quando o
seu preço desce, é possível que a procura também diminua. Uma piada russa
ilustra perfeitamente esta ideia. Dois russos novos-ricos encontram-se. «Quanto
custou a tua gravata?», pergunta um deles. «Mil dólares», responde o outro.
«Azar», diz o primeiro. «A minha custou dois mil.» O consumo conspícuo é
uma característica bem conhecida dos novos-ricos de todos os países e idades.
O sucesso na competição é normalmente assinalado por um consumo mais
sumptuoso, mas não tem de ser, nem precisa de ser, o motivo para a
competição. A posse de dinheiro pode ser um indicador suficiente de sucesso,
sem necessidade de se exibir esta posse em objetos dispendiosos. No passado,
gastar dinheiro era a forma principal de mostrar ao mundo que se tinha
dinheiro, mas, com a disseminação do conhecimento público dos rendimentos e
fortunas das pessoas através de listas oficiais como a Rich List do Sunday
Times, a competição pelo dinheiro separou-se da competição por bens. Nos
escalões mais altos do mundo empresarial, o dinheiro é procurado não apenas
como um meio de consumo, mas como um indicador de realização superior.
Como o falecido H. L. Hunt, então um dos homens mais ricos do mundo,
afirmou, o dinheiro é «apenas uma forma de registar os resultados».
É indiscutível que algumas formas de consumo relacional tiveram efeitos
benéficos. Muita filantropia deriva do consumo conspícuo. O desejo de
impressionar outros com a riqueza, poder ou gosto adornou as nossas cidades
com edifícios grandiosos e encomendou a maioria das obras de arte expostas
atualmente nos nossos museus. Hoje, o mesmo impulso é visto na competição
entre multimilionários americanos para doarem o seu dinheiro. Todavia, como
Roger Fry, um crítico de arte amigo de Keynes, referiu, só em períodos de
elevada civilização o snobismo produziu uma massa crítica de objetos
desejáveis por si mesmos54. A maioria dos donativos atuais tem de ser
justificada com propósitos utilitários.
Evidentemente, as fontes individuais e sociais de insaciabilidades
entrelaçam-se. Muitos bens descritos como «socialmente escassos» são
escassos acima de tudo devido ao seu apelo snobe ou porque proporcionam
oportunidades para o consumo conspícuo: uma licenciatura de uma
universidade de «topo» tem um valor snobe para além do acesso facilitado a
«empregos de topo». Pessoas de gosto refinado podem gostar das «melhores
coisas da vida» por si mesmas; no entanto, através da sua aquisição também
estão a assinalar que são pessoas de gosto – e riqueza – superior. O lazer cheio
de aparelhos de Linder não reflete simplesmente uma fome individualista por
um «lucro» equivalente ao trabalho, mas também uma comparação com os
aparelhos de outras pessoas. A incapacidade de identificar a sobreposição entre
as fontes individuais e sociais de insaciabilidade é em grande medida uma
criação da forma como dividimos as nossas disciplinas, estabelecendo limites
agressivos para a sua compreensão do comportamento humano.
Mas não é necessário para nós escolhermos entre as diversas explicações de
insaciabilidade, nem sequer avaliá-las por ordem de importância. Basta
percebermos que, se for levada para além de um certo ponto, a insaciabilidade
afasta-nos da vida boa.
Há alguma maneira de escapar a esta lógica? Como veremos no Capítulo 3,
há muito que foi reconhecida e condenada por filósofos e moralistas uma
tendência para a insaciabilidade. Está enraizada na natureza humana e no
carácter social do homem, não (como os marxistas diriam) na dinâmica de um
determinado sistema económico, o capitalismo. No entanto, os marxistas estão
certos neste ponto: o capitalismo inflamou a nossa tendência inata para a
insaciabilidade libertando-a dos limites do costume e da religião em que ela
estava anteriormente confinada. Esta inflamação assume quatro formas
distintas, ainda que relacionadas.
Em primeiro lugar, a lógica competitiva do capitalismo leva as empresas a
procurar novos mercados através (entre outras coisas) da manipulação de
desejos. A publicidade pode não criar insaciabilidade, mas explora-a sem
escrúpulos, sussurrando no nosso ouvido que as nossas vidas são monótonas e
de segunda categoria a menos que consumamos «mais». A publicidade é a
«criação organizada de insatisfação», como disse muito bem um antigo diretor
do laboratório de investigação da General Motors55.
Em segundo lugar, o capitalismo alarga muito o âmbito da competição por
posição. No seu clássico do século XIX, Democracy in America, Alexis de
Tocqueville referiu que a «igualdade geral de condição» da América era o solo
mais fértil para o crescimento da ética laboral e do instinto consumista56.
Tocqueville declarou que na Europa ninguém estava preocupado em ganhar
dinheiro porque as classes mais baixas não tinham esperança de o ter e as
classes mais altas pensavam que era vulgar pensar nele. Só nos Estados Unidos
é que os trabalhadores podiam acreditar que, com trabalho árduo, conseguiriam
alcançar as fortunas necessárias para desfrutar dos luxos dos ricos. A
combinação americana de igualdade social e desigualdade de rendimento
tornou-se desde então a norma capitalista, levando a uma situação em que cada
membro da sociedade está de certo modo a competir contra todos os outros. E
quanto maior for a desigualdade, maior será a pressão competitiva. «Se o
salário varia muito», escreve o economista Richard B. Freeman, «há um
incentivo bastante grande para fazer o que for necessário para subir na
distribuição de proventos, incluindo trabalhar muitas horas.» Os países com
maior desigualdade tendem a ter mais horas de trabalho; os trabalhadores em
ocupações com maiores variações de salário tendem a trabalhar mais do que os
que têm outras ocupações57. Isto explica plausivelmente porque é que
americanos e britânicos trabalham mais horas do que os europeus continentais.
Em terceiro lugar, a ideologia do capitalismo de mercado livre tem sido
consistentemente hostil à ideia de que uma determinada quantia de dinheiro
poderia representar «o suficiente». Essa ideia é vista como gasta e
condescendente, como opondo-se ao nosso desejo natural de melhorarmos a
nossa condição. «Há talvez um único instante fugaz», escreveu Adam Smith,
estabelecendo o tom, «em que qualquer homem está tão perfeita e
completamente satisfeito com a sua situação que não tem qualquer desejo de
alteração ou melhoria.»58 O lutador de Smith foi durante muito tempo contido
pelos padrões usuais da vida elegante (sempre mais fortes na Europa do que
nos Estados Unidos), mas finalmente triunfou sobre todos os obstáculos.
Antigamente, um banqueiro comprava uma propriedade logo que podia e
reformava-se; agora, pode comprar uma propriedade, mas certifica-se de que
está em contacto permanente com o mercado acionista para poder acumular
mais. Hoje em dia seria absurdo, como não teria sido há 80 anos, explicar
porque é que não se trabalhava dizendo «tenho o suficiente para viver como um
cavalheiro».
Por fim, o capitalismo aumenta a insaciabilidade «monetizando» cada vez
mais a economia. Isto tem dois aspetos. Primeiro, devido à sua tendência de
mercantilizar cada vez mais bens e serviços – isto é, torná-los permutáveis por
dinheiro –, o capitalismo aumenta constantemente a esfera do cálculo
monetário e, assim, a facilidade da comparação direta. Antes de a terra ser
avaliada em termos monetários, duas propriedades não podiam ser avaliadas
rapidamente por comparação. Atualmente, a comparação é fácil e automática.
Cada vez mais coisas que valorizamos são «avaliadas» e entram assim na
esfera da competição relacional. A educação, por exemplo, é cada vez mais
vista não como uma preparação para a vida boa, mas como um meio de
aumentar o valor do «capital humano».
Mais insidiosamente, ao aumentar a esfera do cálculo monetário o
capitalismo inflama o amor pelo dinheiro por si mesmo. Como Marx nos
recorda, citando Goethe, o dinheiro tem «amor no seu corpo»59. Corretores que
negoceiam futuros, derivados e outros produtos financeiros complexos não
precisam de saber absolutamente nada sobre os produtos que estão na
extremidade das suas transações. A viver num mundo de dinheiro puro, eles
perdem o sentido do valor das coisas. Se é cínico conhecer o preço de tudo e o
valor de nada, então os centros da finança mundial são terrenos propícios para
o cinismo.

O erro de Keynes foi acreditar que o amor pelo lucro libertado pelo
capitalismo poderia ser saciado com a abundância, deixando as pessoas livres
para desfrutar dos seus frutos na vida civilizada. Isto acontece porque ele
pensava que as pessoas tinham uma quantidade fixa de desejos naturais. Ele
não compreendeu que o capitalismo podia criar uma nova dinâmica de criação
de desejos que esmagaria as limitações tradicionais do costume e do bom
senso. Isto significa que, apesar de a nossa riqueza ser muito maior, a nossa
posição de partida para a realização da vida boa é pior do que era na sociedade
mais tradicional do seu tempo. O capitalismo alcançou um progresso
incomparável na criação de riqueza, mas deixou-nos incapazes de dar uma
utilização civilizada a essa riqueza.
Como é que criámos um sistema em que o amor pelo lucro foi libertado dos
seus limites morais e porque é que se tornou quase impossível voltar a
controlá-lo? Este será o tema do próximo capítulo.
39 Sarah Andersen et al., Executive Excess 2010: CEO Pay and the Great Recession (Londres: Institute for
Policy Studies, 2010).

40 UK Office of National Statistics; US Bureau of Labor Statistics.

41 Guardian, 15 de agosto de 2011.

42 Nos EUA, as horas de trabalho do quinto de pessoas menos bem pagas aumentaram 26% entre 1986 e
2004. No entanto, este padrão não esteve presente em todos os países ricos; a média equivalente da OCDE
foi uma queda de 5-10% nas horas de trabalho das pessoas menos bem pagas. Ver OCDE, Divided We
Stand: Why Inequality Keeps Rising (Paris: OCDE, 2011).

43 Juliet Schor, The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure (Nova Iorque: Basic
Books, 1991), p. 66.

44 Juliet Schor, «Towards a New Politics of Consumption» [Para uma Nova Política de Consumo], in Schor
e Douglas B. Holt (eds.), The Consumer Society Reader (Nova Iorque: New Press, 2000), p. 459. Schor
defende que se os governantes querem que os indivíduos desenvolvam estilos de vida mais sustentáveis não
deviam limitar-se a pedir às pessoas para reduzirem os seus níveis atuais de rendimento e consumo:
«abordagens que contenham estruturalmente o fluxo de rendimento aumentado nas mãos dos consumidores
são mais prometedoras». Ver também diversas encíclicas papais para o mesmo fim: por exemplo, Papa
Paulo VI, Octogesima Adveniens (1971;
http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_letters/documents/hfp_vi_apl_19710514_octogesima-
adveniens_en.html; acedida a 12 de janeiro de 2012): «Apesar de vastas áreas da população serem
incapazes de satisfazer as suas necessidades primárias, são engenhosamente criadas necessidades
supérfluas.»

45 André Gorz, Ecologica (Chicago: University of Chicago Press, 2010), p. 4.

46 The Week, 16 de julho de 2011. A The Week tem uma coluna regular intitulada «For those who have
everything» [Para aqueles que têm tudo].

47 Roy Harrod, «The Possibility of Economic Satiety – Use of Economic Growth for Improving the Quality
of Education and Leisure» [A Possibilidade de Saciedade Económica – Utilização do Crescimento
Económico para Melhorar a Qualidade da Educação e do Lazer], in Problems of US Economic
Development (Washington: Committee for Economic Development, 1958), pp. 207-213.

48 Fred Hirsch, Social Limits to Growth (Londres: Routledge, 1977), pp. 16-23.

49 Gary Becker, «A Theory of the Allocation of Time» [Uma Teoria da Distribuição do Tempo], Economic
Journal, vol. 75, n.º 299 (1965), pp. 493-517.

50 Staffan Linder, The Harried Leisure Class (Nova Iorque: Columbia University Press, 1970), p. 79.

51 Keynes, Essays in Persuasion, p. 365.

52 A discussão pioneira destes conceitos é Harvey Leibenstein, «Bandwagon, Snob, and Veblen Effects in
the Theory of Consumers’ Demand» [Efeitos de Onda, Snobes e Veblen na Teoria da Procura dos
Consumidores], Quarterly Journal of Economics, vol. 64, pt. 2 (1950), pp. 183-207.

53 Termo popularizado pela cultura hip hop, refere-se a joias vistosas, faustosas e caras e a acessórios
ornamentados que são usados ou instalados, como telemóveis, ou capas de ouro ou pedras preciosas nos
dentes. (N. da T.)

54 Craufurd D. Goodwin (ed.), Art and the Market: Roger Fry on Commerce and Art (Ann Arbor:
University of Michigan Press, 1998).

55 Schor, The Overworked American, p. 120.

56 Alexis de Tocqueville, Democracy in America (1835, 1840), cap. 28.


57 Richard B. Freeman, «Why Do We Work More than Keynes Expected?» [Porque é que Trabalhamos
Mais do que Keynes Esperava?], in Pecchi e Piga (eds.), Revisiting Keynes, pp. 133-142.

58 Smith, The Wealth of Nations, Livro 2, cap. 3.

59 Karl Marx, «Grundrisse», in Marx, Selected Works, ed. David McLellan, 2.ª ed. (Oxford: Oxford
University Press, 2000), p. 414 (tr. alterada).
2

O Pacto Faustiano

És um anjo de salvação? Ou vais arrastar-me para a danação?


Tatyana, in Eugene Onegin

Keynes foi profundamente ambivalente relativamente à civilização


capitalista. Era uma civilização que desencadeava maus motivos em nome de
bons resultados. A moralidade tinha de ser posta em banho-maria até ser
alcançada a abundância, pois a abundância possibilitaria uma vida boa para
todos. «Durante pelo menos mais 100 anos», escreveu Keynes, «teremos de
fingir para nós próprios e para todos que o bom é mau e o mau é bom; pois o
mau é útil e o bom não é. A avareza, a usura e a precaução têm de continuar a
ser os nossos deuses durante mais algum tempo, pois apenas elas podem levar-
nos para fora do túnel da necessidade económica e fazer-nos ver a luz do
dia.»60 Keynes compreendeu que, num determinado nível de consciência, a
civilização capitalista tinha decidido permitir motivos anteriormente
condenados como «maus» em nome de uma recompensa futura. Tinha feito um
pacto com as forças das trevas, em troca do qual garantiria o que épocas
anteriores só tinham podido sonhar – um mundo para além do trabalho árduo e
dos problemas, da violência e da injustiça de vida como ele é de facto.
Chamámos a este pacto «faustiano», em honra do famoso médico que vendeu a
alma ao Diabo em troca de conhecimento, prazer e poder.
A história começa com o antigo sonho de utopia e sofre depois uma mutação
para o projeto histórico de criar um paraíso na terra que dominou a imaginação
ocidental nos últimos 300 anos e em que a raça humana continua
irregularmente empenhada. Durante o percurso, a ideia de limites morais à
ambição humana, que sustentou todos os conceitos pré-modernos de vida boa,
perdeu-se e energias dormentes de criatividade e destrutividade foram
libertadas numa tentativa de levar a humanidade para um auge de realização e
domínio do mundo natural. Em diversas fases desta viagem, os maiores
pensadores da época tentaram imaginar um estado final, um ponto em que a
humanidade poderia dizer «basta», mas descobriram que a máquina que tinha
sido criada estava fora de controlo, um monstro de Frankenstein que
programava agora o jogo do progresso segundo a sua lógica insana. Esta é a
história de como aconteceu – como ficámos iludidos com o sonho de progresso
sem objetivo, de riquezas sem fim.

A ideia da utopia: do sonho à história

Homens e mulheres sonharam sempre com um mundo sem sofrimento, sem


injustiça e, acima de tudo, sem trabalho. Adão e Eva são colocados num jardim
onde foram plantadas «todas as árvores que são agradáveis à vista e boas para
comida». Só mais tarde, depois da Queda, é que Deus os condena a comer o
seu pão com suor e sofrimento. Os poetas gregos falam numa «era de ouro»
quando «a terra fértil produzia a sua abundante colheita de motu proprio»
(Hesíodo) e «vinho corria em todas as torrentes […] e os peixes vinham até às
casas e cozinhavam-se a si mesmos, e depois serviam-se às mesas»
(Telecleides)61. Os contornos desta fantasia antiga quase não mudaram ao longo
dos séculos. A terra medieval de Cockaigne62 era povoada por porcos assados
que deambulavam com facas de trinchar às costas, e «Big Rock Candy
Mountain», uma canção popular da década de 1920, descreve um mundo onde
as galinhas põem ovos quentes, bebidas alcoólicas escorrem pelas rochas e «o
imbecil que inventou o trabalho é enforcado».
Estas utopias populares, berrantes e ingénuas, expressam o eterno desejo
humano de ociosidade e conforto. Menos cativantes são as utopias cívicas dos
filósofos, em que os apetites estão sujeitos a governo racional e não são
simplesmente gratificados. O protótipo é a República de Platão, uma cidade
ideal governada por uma elite iluminada de guardiões que partilham tudo em
comum, incluindo as mulheres, com quem procriam periodicamente por ordem
do Estado. A Utopia de 1516 de Thomas More, a obra que batizou o género, é
igualmente dura. Aqui não apenas os governantes, mas todas as classes, têm
propriedade em comum. Poucas horas de trabalho – os utópicos trabalham
apenas seis horas por dia – são possibilitadas não pelo avanço tecnológico, mas
pelo racionamento rigoroso do apetite. O resultado é «muitas baixas nos
pequenos prazeres da vida»63. O álcool é proibido e todos usam as mesmas
roupas sem graça. O tempo de lazer é passado não a consumir (não há muito
para consumir) mas a «aprender alegremente, a debater, a ler, a recitar, a
escrever, a caminhar, a exercitar a mente e o corpo, e com diversão»64. (A
mesma privação de consumo inspirou a promoção do xadrês como uma
ocupação de lazer na União Soviética.) Também há mais do que uma alusão ao
Grande Irmão. «Todos estão de olho em ti, por isso és praticamente obrigado a
fazer o teu trabalho e usar devidamente o teu tempo livre.» As mulheres estão
subordinadas aos homens e o adultério repetido é punível com a morte65.
Todas estas utopias pré-modernas partilham uma característica: são história
exterior. Ou pertencem a algum passado mítico e que nunca será recuperado
(Éden, a era de ouro) ou não têm qualquer localização temporal. A república de
Platão é uma ideia pura, que flutua acima do mundo empírico. A utopia de
More é, como o seu nome grego implica, uma fora-topia, um «não lugar».
Nem Platão nem More tinham ideia de como este ideal poderia ser realizado,
exceto talvez à custa do seu próprio poder persuasivo. (Platão falava com
confiança sobre filósofos tornarem-se reis, mas não é claro até que ponto estava
a falar a sério.) O problema é que a história, tal como era concebida na altura,
não oferecia qualquer ponto de entrada para a utopia. Não personificava uma
energia progressiva, apenas uma oscilação cíclica de nascimento, crescimento e
deterioração, análoga às estações do ano. Períodos de vigor e expansão seriam
seguidos de períodos de luxúria e decadência, e assim sucessivamente, numa
alternância sem fim. Nicolau Maquiavel resumiu muito bem a opinião clássica:
«a valentia produz tranquilidade; a tranquilidade, bem-estar; o bem-estar,
desordem; e a desordem, ruína. E, inversamente, da ruína surge a ordem; da
ordem, valentia e, por conseguinte, glória e boa sorte»66. Esta tradição
sobreviveu. Em 1891, o papa Leão XIII dizia que «os acontecimentos de um
século são maravilhosamente iguais aos de outro»67. E no século XX tivemos as
grandiosas visões cíclicas de Spengler, Toynbee e Sorokin.
Foram os profetas judeus, especialmente Isaías, quem primeiro ofereceu uma
visão alternativa da história como a história da luta do bem contra o mal,
culminando na vitória do bem. A história profética é direcional, não cíclica;
ética, não trágica. Em vez da interminável oscilação de Maquiavel, ela procura
um ponto de conclusão em que «o lobo viverá com o cordeiro e o leopardo se
deitará com o cabrito». Esta interpretação direcional da história foi herdada
pelos primeiros cristãos, com o momento climático agora identificado como a
Segunda Vinda de Cristo. O Livro do Apocalipse, origem de tanta poesia e
loucura, profetiza um «novo paraíso e uma nova terra» em que «não haverá
mais morte, nem tristeza ou choro, nem haverá mais dor: pois as coisas
anteriores desapareceram».
A semente milenar está muito enraizada na consciência cristã, pronta para
germinar com volúpia em tempos de dificuldade ou tumulto. Mas o
cristianismo convencional manteve uma distância prudente dela. Santo
Agostinho, um antigo platonista, posicionou a «cidade de Deus» não no fim da
história, mas completamente fora do tempo, abandonando a «cidade do
homem» ao seu antigo destino cíclico. Assim, a história sagrada foi claramente
separada da história mundana, secular. Porém, o potencial para misturá-las
esteve sempre presente. Joaquim de Fiore, um místico do século XII,
desenvolveu uma engenhosa teoria da história humana baseada nas três pessoas
da Trindade. A era do Pai tinha terminado com o nascimento de Cristo; a era do
Filho estava a chegar ao fim; a era do Espírito Santo, em que todos os cristãos
seriam reunidos num novo reino espiritual, livres da lei, estava próxima. É
claro que o ano indicado veio e foi, nada aconteceu e os ensinamentos de
Joaquim foram declarados heréticos68. Mas eles lançam uma longa sombra
subterrânea que se estende até Hegel e Marx.
Particularmente relevante para o nosso tema faustiano é a ideia, subjacente a
muitas teorias cristãs da história, de que o mal é uma parte essencial do
esquema de salvação. Como muitos Pais da Igreja observaram, se Adão não
tivesse cedido à tentação, Cristo não teria vindo ao mundo. Logo, o pecado de
Adão foi um pecado «feliz», uma felix culpa. No entanto, o precedente foi
perigoso. «Continuaremos a pecar para que a graça divina possa abundar?»,
pergunta São Paulo retoricamente. A sua resposta é rápida e decisiva: «Deus
nos livre!» A ortodoxia cristã nunca deu outra resposta. Permitir o mal em
nome do bem futuro pertence exclusivamente à providência de Deus. Nós,
seres humanos, temos de orientar o nosso comportamento não pela providência
de Deus, mas pela sua lei, que proíbe terminantemente o mal.
No entanto, quando o domínio da ortodoxia doutrinal abrandou na Europa
pós-Reforma, a pergunta de São Paulo foi colocada de novo, desta vez
seriamente. Jacob Boehme, o místico luterano do século XVI, discerniu uma
qualidade sombria e dinâmica no próprio Deus, a que deu o nome de Ungrund
ou abismo. O Satanás de John Milton é uma figura nobre e eloquente, muito
diferente do hediondo homem-cabra da imagística medieval. (William Blake
disse famosamente que Milton foi «do grupo do diabo sem saber».) O próprio
Blake, mais radical do que Boehme ou Milton, via o mal como uma força
vibrante e criativa, um complemento necessário para o bem estático e de
alguma forma pudico. «Sem contrários não há progressão», escreveu em A
União do Céu e do Inferno. «Atração e Repulsa, Razão e Energia, Amor e Ódio
são necessários para a existência Humana. Destes contrários surge o que os
religiosos denominam Bem e Mal. O Bem é o passivo que obedece à Razão. O
Mal é o ativo que deriva da Energia.»69
Elementos desta tradição mística estavam possivelmente na mente de Keynes
quando escreveu «Possibilidades Económicas». (A propósito, ele estava
fascinado com a alquimia e até investiu algum dinheiro num esquema para
transformar vil metal em ouro.) Mas a fonte mais imediata do apoio público ao
tema faustiano está na tradição puramente secular da economia de Keynes.

Os economistas: da avareza ao egoísmo

A Renascença inventou – ou redescobriu – a ideia de usar desejos humanos


para governar as sociedades em vez de as criticar severamente por serem más.
Maquiavel escreveu que o príncipe sábio trata as pessoas como elas são, não
como deviam ser: ele explora a sua inconstância, hipocrisia e ganância para
atingir os seus fins. O teste da virtude na política é o sucesso, não a bondade. A
doutrina de Maquiavel era tão chocante para os moralistas cristãos que «old
Nick» tornou-se um sinónimo inglês de Diabo. Thomas Hobbes e John Locke
seguiram Maquiavel descrevendo o governo como um dispositivo para
satisfazer pacificamente os desejos humanos, não para proibi-los. A ambição
louvável subjacente a estas doutrinas «realistas» do Estado era minimizar a
violência na vida humana – particularmente a violência religiosa. Depois, no
século XVIII, uma era mais pacífica, a ideia de desviar as paixões humanas para
fins úteis migrou para a economia.
No pensamento pré-científico sobre a economia, o amor pelo dinheiro era
considerado moralmente vergonhoso e historicamente destrutivo. Santo
Agostinho tinha-o denunciado como o pior dos pecados dos homens, pior do
que o amor pelo poder ou pelo sexo. Os moralistas políticos tendiam a
concordar. A experiência mostrou que a avareza e a luxúria destruíam a
valentia das nações civilizadas, deixando-as à mercê de bárbaros bélicos, ainda
não contaminadas pela riqueza. Este padrão ancestral reforça a visão cíclica da
história de Salústio e de outros romanos e continuava vivo nas mentes de
Maquiavel, Montesquieu e Gibbon.
A ideia de que demasiada riqueza levava à decadência era natural nas
aristocracias guerreiras ou nas repúblicas com milícias de cidadãos. Mas nos
Estados do início da Europa moderna, onde a carreira das armas era uma
profissão especial, fazia muito menos sentido. Aqui, os monarcas tinham todos
os motivos para encorajar a criação de riqueza, pois ela proporcionava uma
fonte de rendimento com que eles podiam contratar mercenários ou pagar a
exércitos permanentes. Nesta perspetiva, a acumulação de riqueza podia ser
vista como o meio para o poder, não o vício que provocava o seu declínio. E se
a riqueza e o poder andassem de mãos dadas, então o velho ciclo de ascensão e
queda poderia ser finalmente quebrado. O progresso económico permanente
tornou-se uma possibilidade.
No início do século XVIII, este novo sistema de ideias tinha-se tornado a base
efetiva do governo nas principais potências mercantis da Europa, a Inglaterra e
a Holanda. Todavia, as duas nações continuavam oficialmente ligadas a uma
moralidade em que a avareza e a luxúria eram vícios. A hipocrisia foi o
resultado inevitável. Foi preciso um escritor anglo-holandês, Bernard
Mandeville (1670-1733), para lhe aplicar a agulha da sátira.
Mandeville é o Maquiavel da economia – uma daquelas pessoas irritantes
que tentam ver a natureza humana como ela é e não como os moralistas dizem
que devia ser. Ele atacou a hipocrisia daqueles que gostavam dos benefícios da
avareza e da usura enquanto pregavam contra elas. «As virtudes morais»,
escreveu ele famosamente, «são a consequência política da lisonja sobre o
orgulho.»70 Havia alguma coisa diabólica em Mandeville. Médico,
especializou-se no tratamento das «paixões hipocondríacas e histéricas». Nos
seus tempos livres, escreveu sátiras e panfletos políticos. Os críticos ficavam
chocados com o seu cinismo. Entre os eruditos, os seus textos foram
considerados de inspiração satânica71.
A obra mais conhecida de Mandeville, A Fábula das Abelhas, ou Vícios
Privados, Benefícios Públicos, é um trabalho curioso. Um longo verso burlesco
acompanhado por um comentário filosófico, relata o destino de uma colmeia
turbulenta que é inquestionavelmente a Inglaterra do século XVIII. As abelhas
de Mandeville são viciadas em «Fraude, Luxo e Orgulho» e, no entanto,
conseguem, através da «Habilidade do Estado», transformar esses «vícios
privados» nos «benefícios públicos» do comércio e da indústria:

A Avareza, Raiz do Mal,


Esse maldito, pernicioso e funesto Vício,
Era Escrava da Prodigalidade,
Esse Nobre Pecado; enquanto o Luxo
Empregava um Milhão de Pobres,
E o odioso Orgulho mais um Milhão:
A própria Inveja, e a Vaidade,
Eram Ministras da Indústria72.

Entra a Virtude: a prosperidade diminui e a colmeia é arruinada. Esta


descrição de uma quebra súbita na riqueza provocada por uma onda de
frugalidade deliciou Keynes, que citou diversos excertos de A Fábula na sua
Teoria Geral. A moral de Mandeville é simples: é possível ter riqueza e vício
ou pobreza e virtude, mas não riqueza e virtude. Qual delas querem?
O tratamento realista dos vícios de Mandeville adaptava-se à disposição da
Inglaterra pós-Restauração, mas meio século depois tinha-se instalado uma
espécie de puritanismo secular. Agora, teria parecido ímpio fazer do vício a
fundação de uma nova ciência de aperfeiçoamento, mesmo ironicamente. Mas
os pensadores mais progressistas da época depressa encontraram uma forma de
roubar a energia do paradoxo de Mandeville. O truque foi redefinir as virtudes
e vícios para os fazer concordar com a utilidade e desutilidade económica. «Em
qualquer sistema de moralidade», escreveu David Hume, um pioneiro da nova
abordagem, «é pouco menos que um paradoxo falar de um vício, que é em
geral benéfico para a sociedade.»73 O antigo termo «avareza» foi gradualmente
excluído a favor do desengraçado «egoísmo». Quando muito, foi mantido
apenas para formas patológicas ou criminosas de aquisição como acumulação
ou vigarice. Entretanto, a atividade comercial normal foi descrita em
linguagem que sugeria um passatempo benigno, mas pusilânime. «Existem
poucas formas em que um homem pode ser mais inocentemente usado do que a
obter dinheiro», afirmou o Dr. Johnson numa declaração que ficou famosa.
Montesquieu, o seu contemporâneo francês, falou da douceur74 do comércio75.
Depois de os lucros terem sido libertados do seu opróbio ético, tornaram-se
suscetíveis ao tratamento em termos de causa e efeito. O filósofo escocês
Adam Smith, amigo de Hume, assumiu o comando. A Riqueza das Nações, a
sua obra-prima de 1776, apresenta os seres humanos como impulsionados por
um desejo natural de autoaperfeiçoamento que, em condições de livre
concorrência, os leva «como por uma mão invisível» a promover o bem-estar
público. A ciência mecânica da natureza de Newton foi assim estendida às
relações económicas, com o egoísmo no papel de gravidade. Esta foi uma
invenção revolucionária. A moralidade tradicional tinha entendido a sociedade
como um empreendimento dedicado ao bem comum. Pelo contrário, para
Smith ela é um nexo puramente causal de indivíduos egoístas. Deus, a quem
Smith chama pitorescamente «O Grande Diretor do Universo», limitou-se a
colocar a engrenagem em movimento, deixando ao narcisismo a tarefa de
explorar os seus benefícios. Como o poeta Alexander Pope afirmou: «Assim
Deus e a Natureza formaram a estrutura geral/ E anunciaram que narcisismo e
social seriam o mesmo.»76
A doutrina de egoísmo de Smith fez mais do que simplesmente transformar a
avareza numa virtude; transformou a virtude clássica num vício. A exibição
extravagante foi evitada a favor da «frugalidade» ou «poupança». Na economia
política de Smith, o ascetismo torna-se a forma virtuosa de egoísmo, a causa
eficiente de acumulação de capital77. As esmolas foram desencorajadas porque
promoviam a preguiça. Só a luxúria manteve a sua condição fatal, como uma
distração do lucro e da criação de fortunas estáveis. Quer sob a forma de
extravagância, generosidade ou prazer sexual, a disseminação promíscua da
semente de uma pessoa assumiu todas as conotações de pecaminoso. Como
Freud diria mais tarde, o progresso da riqueza precisava da repressão dos
instintos.
O sistema económico de Smith foi um triunfo da economização intelectual –
uma aplicação engenhosa da navalha de Ockham ao comportamento social do
homem. As paixões turbulentas foram reduzidas ao único motivo do egoísmo.
Isto deu à economia o seu poder analítico sem par. Ela não teria de se
preocupar, como a ciência política legada por Maquiavel, em compreender e
gerir as paixões variadas e contraditórias. Um motivo principal, a busca egoísta
da riqueza, subordinou todos os outros. O próprio Smith foi menos
parcimonioso do que os seus seguidores; a par do egoísmo reconheceu um
motivo independente de «simpatia», que desenvolveu detalhadamente na sua
Teoria dos Sentimentos Morais. Porém, à medida que a economia ganhou
forma, estas complexidades foram resolvidas. O estudo do homem como ele «é
realmente» e não como «devia ser» transformou-se numa fortaleza
inexpugnável de matemática, enfeitiçando os seus acólitos e reduzindo todos os
outros a um protesto fútil.
A defesa do egoísmo feita por Smith não convenceu toda a gente. Deu à
economia a reputação de roubar à virtude o esplendor e ao vício a
mordacidade. Thomas Reid, um dos primeiros críticos, considerou que a teoria
ética de Smith era um mecanismo para embrulhar o egoísmo em
imparcialidade. Edmund Burke proferiu o clássico lamento conservador: «Mas
a era do cavalheirismo desapareceu; a dos bacharéis, economistas e
calculadores teve sucesso, e a glória da Europa extinguiu-se para sempre.»78 A
resistência ao comercialismo também veio dos revolucionários americanos e
franceses que insistiram nas «virtudes republicanas» agrárias da Roma antes de
César.
Smith pensou que tinha refutado o «sistema egoísta» de Mandeville, mas de
facto não se tinha afastado assim tanto dele79. O mecanismo central de
Mandeville – a utilização do vício para benefício público – continua a viver na
sua mão invisível, purificando-se do seu sabor demoníaco através do simples
expediente de redefinir «vício» como uma qualidade natural inócua. Com
poucas exceções, esta foi a estratégia da economia desde então. A linguagem
de valor neutro da «utilidade» e «preferências» torna o pacto faustiano do
capitalismo necessariamente invisível.
Só em alguns lugares é que Smith revela a dimensão da sua dívida para com
Mandeville. Um é o famoso trecho em A Teoria dos Sentimentos Morais que
descreve como os vícios dos ricos revertem para o benefício da sociedade
como um todo. (A propósito, esta é a primeira vez que Smith usa a metáfora da
«mão invisível».) Apesar de os ricos, escreve ele,

se preocuparem apenas com a sua própria conveniência, apesar de o seu único objetivo […] ser a
gratificação dos seus desejos vãos e insaciáveis, eles dividem com os pobres o resultado de todos os
seus progressos. Eles são levados por uma mão invisível a fazer quase a mesma distribuição das coisas
indispensáveis da vida que teriam sido feitas se a terra tivesse sido dividida em porções iguais entre
todos os seus habitantes, e, assim, sem pretenderem, sem saberem, promovem o interesse da
sociedade80.

Aqui, Smith regressa abertamente à velha linguagem moral da rapacidade,


vaidade e insaciabilidade. A máscara caiu temporariamente.
E, apesar dos seus melhores esforços para dourá-los, Smith não podia ignorar
os efeitos nefastos do sistema comercial nas vidas e caracteres dos
trabalhadores. A sua descrição dos efeitos perversos da divisão do trabalho
antecipa Marx:

O homem cuja vida inteira é passada a efetuar algumas operações simples, cujos efeitos são talvez
quase sempre os mesmos, ou muito semelhantes, não tem oportunidade para fazer uso da sua
inteligência ou exercitar a sua imaginação no sentido de encontrar expedientes para remover
dificuldades que nunca ocorrem. Assim, ele perde naturalmente o hábito de pensar e torna-se
geralmente tão estúpido e ignorante como é possível uma criatura humana tornar-se. O torpor da sua
mente torna-o não só incapaz de apreciar ou participar numa conversa racional como incapaz de
conceber qualquer sentimento generoso, nobre ou terno e, consequentemente, de formar um
julgamento justo relativamente a muitos dos deveres comuns da vida privada81.

De uma forma pouco convincente, Smith conclui com a esperança de que a


educação neutralize essas tendências embrutecedoras. Depois, esquece o tema.
Ele considerou claramente que o trabalho embrutecedor da fábrica de alfinetes
era um custo necessário em nome de benefícios futuros.
Vale a pena fazermos uma pequena pausa para considerar o que se ganhou e
perdeu com o derrube do esquema clássico de virtudes e vícios. O ganho foi a
libertação de motivos que promoviam o crescimento económico. O
consumismo foi autorizado desde que servisse o bem social. O que se perdeu
foi a ideia do bem social como uma realização coletiva. Tornou-se um
resultado de indivíduos a seguirem o seu interesse pessoal nos mercados. A
lógica do contrato foi separada da lógica da reciprocidade, que tem sido uma
parte integral da economia na maioria das culturas e sociedades humanas. À
medida que a economia se foi desenvolvendo, tornou-se cada vez mais difícil
distinguir desejos de necessidades. Neste aspeto, Keynes foi herdeiro da
tradição neoclássica, e é por isso que a sua ideia de «saciedade» parece
singular.
A escrever antes da era industrial, Smith não pensou no progresso económico
como crescimento sem fim, mas como o crescimento que as instituições,
hábitos e política de um povo permitissem. Na realidade, ele e os seus
contemporâneos não falavam de crescimento, mas de «progresso», um termo
que engloba condições morais e materiais. No fim desta estrada estava o
«estado estacionário» – um estado em que as possibilidades de melhoramento
estavam esgotadas. Todos os economistas clássicos tinham este ponto final em
mente, em diversos níveis de riqueza.
Os dois famosos sucessores de Smith, Thomas Malthus e David Ricardo,
foram muito menos otimistas do que o próprio Smith. Ensaio sobre o Princípio
da População (1798, 1826) de Malthus foi escrito para pôr em causa a
reivindicação utópica de William Goodwin de que a redistribuição da
propriedade possibilitaria abundância para todos. A sua lógica era francamente
cíclica. Sem «obstáculos» morais persistentes, a população ultrapassaria
inevitavelmente a terra disponível para o seu sustento: variações na pressão da
população determinariam ciclos de subida e descida dos rendimentos. Quando
Principles of Political Economy (1817) de Ricardo acrescentou os rendimentos
cada vez menores da terra ao quadro malthusiano, o melhor que os economistas
puderam oferecer foi um pequeno progresso relativamente ao passado, possível
graças a realizações até agora inexequíveis de eficiência moral e prática. A
economia passou a ser conhecida como «ciência deprimente».
Uma perspetiva mais utópica foi revelada por John Stuart Mill em meados do
século XIX, depois de a industrialização ter começado a fazer-se sentir. Mill
pensou que com o nível de riqueza já alcançado, e se o aumento populacional
fosse controlado, seria possível para a Grã-Bretanha, mesmo nessa altura,
proporcionar uma vida boa para todos os seus habitantes. Ele reconheceu o
carácter relacional dos desejos, mas não viu motivo para a competição não ser
restringida por uma distribuição mais igual de rendimentos:

Confesso que não estou encantado com o ideal de vida mantido por quem pensa que o estado
normal dos seres humanos é o de lutarem para progredir; que mesmo atropelando, esmagando,
acotovelando e pisando os calcanhares dos outros, as atitudes que compõem o tipo existente de vida
social, são o grupo mais desejável da espécie humana e de forma alguma os sintomas desagradáveis de
uma das fases do progresso industrial. Pode ser um estádio necessário no progresso da civilização, e as
nações europeias que até agora tiveram a sorte de ser preservadas poderão ainda ter de passar por ele
[…] Mas o melhor estado da natureza humana é aquele em que, apesar de ninguém ser pobre, ninguém
deseja ser mais rico, nem tem motivo para temer ser empurrado para trás pelos esforços de outros para
avançarem82.

Depois de Mill, a ideia do «estado estacionário», quer político quer utópico,


saiu da economia até Keynes o relembrar. A tecnologia tinha começado a
alimentar a perspetiva de acumulação de riqueza sem limite.

Fausto como metáfora literária

As verdades obscurecidas pela linguagem racional da ciência secular


emergem com uma clareza surpreendente e desconcertante na poesia. O pacto
com o diabo em nome do progresso, que os economistas não podiam
reconhecer abertamente, ou podiam analisar apenas sob a forma anestesiada de
um «custo», encontra o seu símbolo perfeito na lenda de Fausto. Fausto é o
mito exclusivamente moderno, o maior mito que não chegou até nós da
antiguidade pagã ou da Bíblia. Personifica o pensamento, estranho à cultura
cristã clássica e convencional, de que o mal não é apenas uma força negativa
para ser resistida, mas uma força positiva e criativa nas questões humanas.
A lenda de Fausto baseia-se na figura real de um académico alemão, Johann
Faust (c. 1480-1540), cujas proezas foram atribuídas pelos crédulos a um pacto
com o Diabo. Nas primeiras versões da história, Fausto é uma figura puramente
medieval, um alquimista e mágico, que usa os seus poderes demoníacos para os
fins abjetos da sedução e da astúcia. Porém, à medida que a lenda se
desenvolve, ele perde o seu passado alquímico e torna-se uma figura
distintamente moderna, um cientista que tenta dominar a natureza e sofre um
destino horrível devido à sua presunção.
O dramaturgo isabelino Christopher Marlowe produziu o primeiro grande
Fausto literário. Na sua peça Dr. Fausto, o pecado do Doutor é a sua busca do
conhecimento e poder infinitos. Fausto sonha não apenas com conquistas
sexuais, mas com poder para realizar grandes proezas – murar a Alemanha com
bronze, fazer o Reno circundar Wittenberg, vestir os seus estudantes de seda e
sair de Espanha pela Holanda. De facto, ele desperdiça o poder que lhe foi
dado pelo Diabo em trivialidades, e, como o Fausto original, tem um fim
horrível quando o Diabo reclama o seu contrato. Mas as suas ambições não
eram inteiramente desprezíveis. «Em 50 anos, Fausto tinha evoluído de um
trapaceiro histórico e depois lendário […] para um herói trágico da Renascença
enlouquecido pelo poder.»83
Quando Marlowe concebeu o seu Fausto, pode ter pensado no seu
contemporâneo, o filósofo e estadista Francis Bacon. Bacon foi o profeta da
tecnologia moderna, o primeiro homem a pensar em dominar a natureza para
criar uma história de aperfeiçoamento humano. Em vez dos métodos
especulativos da ciência antiga e medieval, ele pediu um «inquérito às
verdadeiras causas das coisas», com a ideia de explorá-las para fins humanos.
«O conhecimento humano e o poder humano misturam-se», escreveu ele
famosamente, «pois onde a causa não é conhecida o efeito não pode ser
produzido.» Marlowe discerniu algo demoníaco no seu empreendimento.
Lançou um manto faustiano sobre o projeto baconiano que, pelo menos na
Europa, nunca o abandonou.
No princípio do século XIX, na repetição clássica de Goethe (1808 e 1832),
Fausto tornou-se um símbolo do sempre combativo homem moderno, falível,
mas em última análise merecedor de amor. O Fausto de Goethe pode ser visto
como a expressão literária da felix culpa dos economistas políticos. Deus
manda humanidade (Fausto) ao Diabo (Mefistófeles) para o despertar do seu
sono. Com a ajuda de Mefistófeles, Fausto faz todos os tipos de coisas
terríveis, mas no fim a sua alma vai para o céu porque ele «se empenhou
muito». A elevação de Fausto de trapaceiro mau a herói da história mundial
reflete o enfraquecimento da ortodoxia cristã e da sua proibição absoluta do
mal. Insinua o pensamento herético de que, nas nossas relações com o Diabo,
somos nós que podemos sair vencedores.
A primeira inovação de Goethe é iniciar a sua peça com um «Prólogo no
Céu», onde Deus explica o seu problema ao demónio Mefistófeles. A
humanidade – feita à imagem de Deus – tem potencial de progresso, mas é
naturalmente preguiçosa e negligente. «É muito fácil para os homens falharem
e passado pouco tempo não querem fazer absolutamente nada.» Por isso, Deus
propõe um acordo a Mefistófeles: ele poderá ficar neste mundo, em vez de ser
imediatamente banido para o «pó» a que o Deus do Génesis relegou a serpente,
enquanto continuar a manter o homem ativo. Mefistófeles vê a sua
oportunidade de captar a humanidade para uma vida de prazer pecaminoso.
«Não tenho receio de perder a minha aposta», diz ele a Deus, confiante de que
pode desviar Fausto, o servo de Deus. A inovação seguinte de Goethe é
transformar o pacto tradicional de Fausto com Mefistófeles numa aposta. Em
vez do prazo tradicional de 24 anos, Mefistófeles oferece os seus serviços a
Fausto indefinidamente, com o direito a reclamá-lo se esses serviços o
satisfizerem plenamente. Fausto aceita a aposta, sabendo que a vida de prazer,
luxo e poder que Mefistófeles lhe oferece nunca o contentará. Ele diz a
Mefistófeles que, se alguma vez se declarar satisfeito com as coisas tal como
elas estão, aceitará a danação eterna: «Se alguma vez o momento que passa for
tão bom que eu deseje que ele não passe e lhe disser “Tu és tão lindo, fica um
pouco”, então que seja o fim. O relógio pode parar. Podes acorrentar-me e tocar
a campainha da morte. Eu recebê-la-ei de braços abertos e tu ficarás livre do
teu serviço.» Mefistófeles aceita as condições da aposta e Fausto embarca na
sua nova vida: «Um turbilhão de dissipação é o que eu procuro, isto e nada
mais.»84
O resto de Fausto é a revelação das consequências do duplo pacto. O tema da
felix culpa domina a ação e cada um dos crimes de Fausto é um pré-requisito
para um aperfeiçoamento do seu carácter. Na Primeira Parte, Fausto é tentado
pelo seu amor por uma camponesa simples, Gretchen, a «parar o relógio». Mas
Mefistófeles, que quer prolongar a sua estada na terra, sabota o caso amoroso
oferecendo a Fausto qualquer mulher que ele queira. Quando uma série de
percalços inspirados pelo Diabo provocam a morte de Gretchen, Fausto jura
que será digno do amor dela: o pecado é necessário para a redenção.
A ideia da felix culpa é recorrente na Segunda Parte, onde Goethe adapta o
material mágico e fantástico da peça de Marlowe numa narrativa de
desenvolvimento. Vários anos após o falecimento de Gretchen, Fausto chega à
corte de Carlos V. Porém, em vez de invocar o espírito de Alexandre, o
Grande, para diversão do imperador, como acontece com Marlowe, Fausto usa
feitiçaria para inundar o reino de dinheiro, permitindo que a corte financie
máscaras sumptuosas. A moral de Goethe é clara: o dinheiro é apenas um meio
para a cultura. A peça termina com o envelhecido Fausto instalado como o
proprietário progressista de um feudo imperial, a construir diques e canais para
afastar o mar. Mas o progresso do seu projeto exige o despejo (que
Mefistófeles transforma em assassínio) de um casal de camponeses idosos e
obstinados, Philemon e Baucis, que se recusam a sair do seu terreno minúsculo
– uma clara referência ao movimento de reorganização dos terrenos do século
XVIII que expulsou os camponeses da sua terra comum. Imaginando a
conclusão do seu projeto sem a ajuda extra da feitiçaria, Fausto exclama:
«Agora quase poderia dizer ao momento que passa: Fica, oh, fica um pouco, és
lindo. A marca das minhas realizações não desaparecerá. Não, não em eras,
nem em momento algum. Ao sonhar com esta felicidade incomparável,
saboreio e desfruto agora do momento supremo.»85
Ao proferir as palavras fatais, «Saboreio e desfruto agora do momento
supremo», Fausto cai morto, como jurou que aconteceria se alguma vez
sucumbisse à satisfação. Este devia ter sido o «estado final», a realização do
paraíso na terra a que Fausto tinha aspirado perto do fim da vida. No entanto,
Goethe escapa à conclusão recorrendo ao truque de pôr a expressão de
satisfação de Fausto no condicional: o Diabo só pode levar a humanidade até
certo ponto; a perfeição é para o céu. Assim, ele divide os restos entre Deus e
Mefistófeles: o Diabo fica com o corpo de Fausto, mas Deus fica com a sua
alma, porque ele se empenhou muito.
O próprio Goethe chamou «coisa louca»86 a Fausto e nunca tentou explicar
«o que queria dizer». Como toda a grande poesia, é simultaneamente precisa e
elusiva. Em termos filosóficos, o seu legado mais importante é o dialético – a
ideia de que o progresso depende de uma «negação» ou derrube contínuo da
moralidade tradicional. Esta noção, que passaria de Goethe para Hegel e daí
para Marx, foi um legado fatídico para o pensamento moderno.
Hoje estamos menos dispostos a sancionar a maldade em nome do progresso.
As seduções mefistofélicas de Goethe impressionam-nos como
irremediavelmente inocentes, como a indulgência de uma era que tinha
esquecido a realidade do mal. «Deparámo-nos com situações», escreveu o
filósofo alemão Karl Jaspers em 1948, «em que não tínhamos vontade de ler
Goethe e nos voltámos para Shakespeare, para Ésquilo ou para a Bíblia, se
ainda soubéssemos ler.»87 Goethe não acreditava na perfectibilidade do homem,
mas também não acreditava no pecado original. Aliás, ele pensava que a
Europa tinha progredido permanentemente para além da era da selvajaria. De
outra forma não teria tornado Mefistófeles um demónio tão afável. Para a nossa
era, Goethe não parece moralmente sério. Esta foi a implicação do romance de
Thomas Mann, Doutor Fausto (1947), que, significativamente, reverte para o
título original de Marlowe e põe o personagem de Fausto a enlouquecer – o
equivalente secular da danação.

O apocalipse falhado de Karl Marx

Karl Marx gostava de Goethe e usou a figura de Mefistófeles em toda a sua


obra para retirar o véu em que economistas, desde Adam Smith, tinham
envolvido o pacto faustiano do capitalismo. Ele revelou o capitalismo nas suas
verdadeiras cores mandevilianas, voraz e insaciável. Mas também acrescentou
algo que não foi encontrado em Mandeville: a convicção de que os indivíduos
não incorrem voluntariamente nos custos do capitalismo para benefício próprio
ou das suas famílias, mas que eles lhes são impostos pelo poder da classe
capitalista. Era necessária violência para abalar este poder, para estabelecer na
terra o reino da retidão. Aqui, Marx revelou-se herdeiro das pressões mais
brutais do apocalipse judaico-cristão, com as suas visões de «derramamento de
sangue purificador». Isto conferiu ao seu pacto faustiano um terror que faltou a
Goethe e às versões inglesas mais pacíficas88.
A crítica de Marx ao capitalismo foi fundamentalmente moral. Ele pensava
que o capitalismo era demasiado odioso e injusto para sobreviver. Alienava
violentamente o trabalhador das suas ferramentas de produção e,
consequentemente, da sua substância especificamente humana, deixando-o
vulnerável à exploração. Sacrificava a «vida produtiva do homem» ao «sistema
monetário», o valor de utilização ao valor de troca. Aqui, Marx foi o sucessor
de Aristóteles e dos seus seguidores medievais; ele foi «o último dos
escolásticos», como R. H. Tawney lhe chamou.
Mas, se o capitalismo era injusto, era ao mesmo tempo o instrumento que
libertava as pessoas da pobreza. Em suma, era outra felix culpa, um pecado
feliz, parte da obra da providência. Num artigo de jornal publicado em 1853,
Marx enalteceu o domínio britânico na Índia por agitar uma sociedade
estagnada: «Fossem quais fossem os crimes da Inglaterra, ela foi a ferramenta
inconsciente da história […].»89 A ambivalência moral relativamente ao
capitalismo incomodou os marxistas desde então. Por um lado, é um mal para
ser vencido; por outro, é o instrumento indispensável para o progresso.
A dialética de Hegel foi o instrumento intelectual perfeito para resolver a
ambivalência de Marx relativamente ao capitalismo. Na filosofia de Hegel – na
realidade, uma secularização da filosofia de Joaquim de Fiore – a história é a
história do crescimento da razão. Cada estádio parcial e incompleto de
consciência humana, ou compreensão, produz a sua negação, ou recusa, que é
absorvida num nível mais completo e elevado de consciência até ser alcançada
a razão absoluta, em que toda a realidade é determinada pela Mente. Assim, a
missão histórica é «concretizada inconscientemente, apesar dos seus crimes e
paixões, por determinadas nações ou classes»90.
Marx pegou nesta ideia, mas, influenciado pelas primeiras experiências
políticas que o fizeram duvidar da reivindicação de Hegel de que o Estado
prussiano era a personificação da Razão, transformou o conflito de ideias de
Hegel num conflito de classes. A história era a história do conflito de classes: a
existência determina a consciência, não o inverso. Os sucessivos estádios
antagonistas de razão eram simplesmente sistemas antagonistas de relações de
propriedade. A interpretação de Marx acabou por ser que a religião, a grande
inimiga dos pensadores do liberalismo, era o véu espiritual usado pelos ricos
para cegar aqueles que não tinham propriedades relativamente à sua situação.
Marx só arranjou solução para uma fase do seu «materialismo dialético», a
transição do feudalismo para o capitalismo91. Nesta história, os cada vez mais
ricos, mas politicamente subordinados «burgueses» das cidades,
transformaram-se na classe da «burguesia», que pressiona o sistema senhorial
baseado na terra. A burguesia é a primeira classe a explorar sistematicamente a
mão de obra e a usar o excedente extraído para aumentar o capital e não para
luxos, guerras, catedrais, etc. Mas o capitalismo, por sua vez, torna-se um
entrave ao maior desenvolvimento das forças produtivas, por isso tem de ser
derrubado pelo proletariado que criou, dando origem ao reinado sem classes do
comunismo.
Ao nível técnico, Marx teve um problema para explicar porque é que o
capitalismo teria de acabar. O capitalismo merecia acabar; os expropriadores
mereciam ser expropriados. A justiça seria negada se isto não acontecesse. Mas
porquê e quando terminaria? Marx dedicou a maior parte da sua vida a este
problema e nunca o resolveu. Não houve uma forma de conseguir provar o
advento do apocalipse capitalista que o seu sentido bíblico de justiça exigia.
A expressão mais coerente da abordagem dialética de Marx antes de ele se
tornar um economista está na prosa comprimida e explosiva do Manifesto
Comunista de 1848. Ninguém retratou o carácter faustiano do capitalismo de
uma forma mais clara do que Marx92. A burguesia criou «forças produtivas
mais maciças e mais colossais que as que foram criadas por todas as gerações
anteriores»93. Levou «até as nações mais bárbaras para a civilização […] criou
um mundo à sua imagem»94. Mas o custo foi horrendo: «Todas as relações
fixas e rapidamente paradas, com o seu conjunto de preconceitos e opiniões
antigo e venerável, são erradicadas e todas as relações recém-formadas tornam-
se antiquadas antes de poderem ossificar. Tudo o que é sólido dissolve-se no ar,
tudo o que é sagrado é profanado […].»95
Marx foi o primeiro economista a atribuir à destrutividade do capitalismo o
seu devido valor moral. Como Adam Smith e Goethe, pensou que era o
«preço» necessário para o progresso. Porém, como escreveu 70 anos depois do
início da Revolução Industrial, compreendeu que o preço e o progresso seriam
muito maiores do que eles tinham imaginado. Não obstante, do ponto de vista
dialético de Marx, a perturbação de «relações fixas e rapidamente paradas»
pelo capitalismo é historicamente justificada porque, pela sua brutalidade a dar
livre curso ao potencial humano, está a dar origem às armas e à classe que o
destruirão.
Todavia, neste ponto do Manifesto Comunista o fio do argumento parte-se e a
retórica ocupa o seu lugar. Fazendo eco do romance Frankenstein de Mary
Shelley, Marx compara o capitalismo com «o feiticeiro que já não consegue
controlar os poderes do Inferno que conjurou com os seus feitiços»96. O
capitalismo criou os seus próprios «coveiros»97. A crença no momento
apocalíptico nunca abandonou Marx, apesar de a história não corresponder
repetidamente às suas expectativas. «Soa o dobre a finados da propriedade
privada capitalista», profetizaria vibrantemente em O Capital, 20 anos depois
do Manifesto Comunista. «Os expropriadores são expropriados.»98
A convicção de que o capitalismo estava destinado ao colapso chegou a Marx
antes de Marx chegar à economia. Depois do Manifesto Comunista, passou 20
anos no Museu Britânico a tentar provar a sua teoria e nunca conseguiu. Na
verdade, ele não era um economista nada intuitivo. Ninguém que começa a
estudar economia aos 40 anos é. Há demasiadas outras coisas na cabeça das
pessoas. Os economistas têm de começar na inocência de todas as ideias que
distraem. Têm de ter as mentes suficientemente vazias para construir ou aceitar
os modelos axiomáticos de comportamento humano que são a sua fonte de
sustento. O final da adolescência é o momento ideal para iniciar essa
aprendizagem.
Marx apresentou dois cenários possíveis para o colapso do capitalismo, a
«crise do lucro» e a «crise da realização». O primeiro, e mais bem
desenvolvido, baseia-se na teoria da exploração que derivou do seu confronto
da meia-idade com Ricardo. Marx afirmou que, ao roubarem tudo aos
trabalhadores exceto a sua força para trabalhar, os capitalistas conseguiam
extrair mais valor deles do que pagavam. Esta diferença representava «mais-
valias», a origem dos lucros. Tudo levava a crer que o que aconteceria é que à
medida que as máquinas (que não podiam custar menos do que o custo de
instalação) fossem substituindo a mão de obra no trabalho, a taxa de lucro
cairia. As tentativas de manter as mais-valias aumentando a «taxa de
exploração» acabariam por produzir a explosão de ira do proletariado que
destruiria o sistema. No final do século XIX, os marxistas ficaram confusos com
a tendência de subida dos salários reais dos trabalhadores. Alguma coisa tinha
corrido mal com a teoria. O que Marx não admitiu foi a possibilidade de
aumentar a produtividade da mão de obra investindo em tecnologia para poupar
trabalho. Isto permitiria um aumento dos salários reais sem uma diminuição da
taxa de lucro. Não havia necessidade de a taxa de lucro cair ao longo do tempo.
O Manifesto Comunista alude a outra fonte de crise: a crise da realização.
«Em crises comerciais, uma grande parte não apenas de produtos, mas também
de capacidade produtiva, é periodicamente destruída […] porque há demasiada
civilização, demasiada indústria, demasiado comércio […] As condições da
sociedade burguesa são demasiado limitadas para englobar a riqueza criada por
elas.»99 Estas frases inexatas, a que Marx nunca deu subsequentemente muita
importância, apontam para uma teoria de subconsumo mais tarde desenvolvida
pelo liberal inglês J. A. Hobson e pela marxista alemã Rosa Luxemburgo. Rosa
Luxemburgo perguntou como é que, dada a estagnação dos salários reais, a
classe operária conseguia proporcionar um mercado adequado para o volume
sempre crescente de produtos fabricados pelas novas máquinas. «Afinal de
contas», raciocinou ela, «o único objetivo do investimento era produzir coisas
que poderiam ser vendidas com lucro. E se as coisas não pudessem ser
vendidas, porque é que os capitalistas continuariam a investir?»100 Keynes fez a
mesma pergunta na década de 1930 e ela continua pertinente à luz do que
aconteceu na primeira década deste século, quando os salários reais nos países
ocidentais caíram relativamente às remunerações de capital.
A teoria do imperialismo foi inventada para explicar o poder de
sobrevivência inesperado do sistema capitalista. Enquanto Lenine via os países
pobres como um reservatório para uma maior exploração da mão de obra,
Luxemburgo via-os – juntamente com a produção de armamento – como uma
saída para mercados extra absorverem o excedente da produção capitalista em
relação ao consumo. Independentemente do que se pensa sobre a validade de
cada explicação, nenhuma aponta para o colapso do capitalismo, mas antes
para a sua capacidade de se salvar de crises internas, nomeadamente através da
globalização. Como escreve Meghnad Desai, o comentador moderno de Marx,
«Marx não consegue apresentar uma única história sobre a dinâmica do
capitalismo que preveja de alguma forma – mesmo com diversas
condicionantes – a sua eventual queda»101. A compreensão de que a sua
economia não conseguiu estabelecer o momento apocalíptico foi
provavelmente o motivo que levou Marx a nunca terminar os dois últimos
volumes de O Capital.
Tendo em conta as enormes incertezas que rodeavam a «queda» do
capitalismo, não é nada surpreendente que Marx não tenha conseguido dedicar
muita atenção à vida depois do capitalismo. O seu amigo e colaborador
Friedrich Engels falou sobre um «reino de liberdade» que estava para além do
«reino de necessidade». Mas Marx recusou preocupar-se com o que chamou os
«restaurantes do futuro». Num famoso excerto do prefácio de Contribution to
the Critique of Political Economy, escreveu: «Nenhuma ordem social
desaparece antes de todas as forças produtivas para as quais há espaço se terem
desenvolvido; e nunca aparecem novas relações mais elevadas de produção
antes de as condições materiais da sua existência terem amadurecido no útero
da velha sociedade. Assim, a humanidade só empreende tarefas que pode
realizar.»102 Essa foi a sua forma de rejeitar as experiências utópicas do seu
tempo. As suas ideias sobre a utopia vindoura foram igualmente vagas. Ele
pensava que os seres humanos podiam «caçar pela manhã, pescar à tarde, criar
gado à noite, criticar depois do jantar […] sem se tornarem jamais caçador,
pescador, pastor ou crítico»103. Não mais sensata foi a previsão de Leon Trotsky
de que sob o comunismo o tipo humano médio «ascenderá às alturas de um
Aristóteles, de um Goethe ou de um Marx. E acima desta cumeeira novos picos
se erguerão»104.
Marx apresentou um caso persuasivo para justificar porque é que o
capitalismo deveria chegar ao fim, não porque é que chegaria. Ele não
conseguiu contar com o dinamismo continuado do sistema capitalista, com a
sua capacidade de ultrapassar obstáculos. Mais seriamente, Marx foi cego para
as tentações do raciocínio dialético. Seria uma paródia dizer que ele teria
gostado do estalinismo, mas o seu método não oferecia um fundamento com
princípios para resistência a ele, nem tão-pouco ao maoísmo. Diz-se que Mao
menosprezou os milhões de mortes causadas pelo seu Grande Salto em Frente
com o insensível comentário: «Devemos rejubilar com a morte […] Nós
acreditamos na dialética, por isso não podemos não ser a favor da morte.»105

A recompensa falhada: de Marx a Marcuse

Nos 100 anos que se seguiram à publicação de O Capital, em 1867, o


socialismo revolucionário foi derrotado em países onde estava supostamente
bem desenvolvido e saiu vitorioso em países que Marx considerava que não
estavam preparados para ele. No final da década de 1950 foi o capitalismo, não
o socialismo, que pareceu ter resolvido o problema económico no Ocidente:
certamente, não o capitalismo puro e duro analisado por Marx, mas um
capitalismo tão modificado pela gestão estatal, segurança social e organização
sindical que alguns duvidam que fosse o mesmo animal. Se isto era o
capitalismo, não haveria necessidade de socialismo106. Em 1956, John Kenneth
Galbraith passou a concentrar-se nas doenças da riqueza. A sua obra de maior
sucesso, The Affluent Society, defendia que os cidadãos dos países ocidentais
estavam agora tão bem de vida que o problema económico já não era premente.
Em resumo, a era de abundância de Keynes tinha chegado (antes do previsto!).
Tinha chegado o momento de abrandar o crescimento e voltar todas as atenções
para a vida boa. A ideia de Galbraith da vida boa era bastante austera: mais da
nova riqueza devia ser canalizada para os serviços públicos. Mas esta
mensagem foi absorvida pelos jovens radicais da década de 1960 e
transformada num projeto mais empolgante: o da libertação sexual. O seu Deus
não era Marx, mas Freud.
A década de 1960 teve algo especialmente impetuoso que marcou
permanentemente aqueles que a viveram conscientemente na idade certa.
Embora tivesse havido textos utópicos e comunidades utópicas no passado, esta
foi a primeira vez na história que a utopia se moveu, por breves momentos, das
sombras para a luz, quer na teoria quer na prática. O sonho utópico de uma vida
livre de trabalho árduo e problemas, conflito e guerra, esteve prestes a
conquistar as mentes e corações de uma geração de jovens. O amor livre e a
abundância eram características de todas as utopias populares, e esta não foi
exceção. Os hippies eram lírios do campo plausíveis, com flores no cabelo.
Rejeitavam a ética laboral exigida pela escassez, porque o mundo já não
parecia precisar de trabalhar para subsistir. Sexo, drogas, música, misticismo,
protesto antiguerra e romantismo revolucionário misturaram-se num momento
orgiástico de libertação. A marijuana era um «soro da verdade»; «de cada
ereção voava a Bandeira Vermelha»107.
A base material da utopia sexual foi «um fluxo ininterrupto de proventos
confortavelmente altos»108. Isto libertou a geração baby-boom nascida na
década de 1940 da insegurança laboral que tinha afligido os seus pais. Nos 25
anos depois da Segunda Guerra Mundial não só o mundo desenvolvido cresceu
a um ritmo mais rápido do que nunca, como o crescimento foi muito mais
constante. E até os países em desenvolvimento pareciam estar a evoluir. O
medo da crise capitalista desapareceu109. Já não era um problema de obstáculos
para a obtenção de abundância, mas de obstáculos para desfrutar da abundância
conseguida.
Para os filósofos da utopia sexual, a serpente no Jardim não era o capitalismo
em si, mas a tecnologia. Theodore Roszak falou em «totalitarismo
tecnocrático»110. A indulgência específica da sua insanidade foi a corrida às
armas nucleares, que ameaçava eliminar o mundo precisamente quando ele
estava prestes a recuperar o paraíso. Doutor Estranho Amor é a condensação
fílmica clássica deste pesadelo. No entanto, a tecnologia era hipócrita, pois
também tinha libertado o homem – ou pelo menos o homem norte-americano –
da pobreza. Como Charles Reich afirmou:

A questão crucial é que a tecnologia possibilitou essa «mudança na natureza humana» que foi
procurada durante tanto tempo, mas que nunca poderia existir enquanto a escassez estivesse no
caminho. É tão simples como isto: quando houver comida e abrigo para todos, o homem deixará de
precisar de basear a sua sociedade no pressuposto de que todos os homens são antagonistas uns dos
outros. Aquilo a que chamámos «natureza humana» foi obra da necessidade – a necessidade da
escassez e do sistema de mercado. A nova natureza humana – amor e respeito – também obedece às
leis da necessidade. É necessária porque apenas juntos conseguiremos colher os frutos da era
tecnológica111.
Apesar de o protesto estudantil se ter espalhado por contágio em todos os
centros educativos do mundo ocidental no final da década de 1960, o seu
epicentro foi nos Estados Unidos112. Houve diversos motivos para isto: a
tradição americana de experiência utópica, a maior prosperidade dos
americanos comparativamente aos europeus e a guerra do Vietname. O fator
mais importante terá sido talvez a proporção muito mais elevada de jovens
americanos em universidades e institutos de educação superior. O mundo do
trabalho estava mais longe para muitos americanos jovens – cinco ou seis anos
mais longe – do que para a maioria dos jovens europeus. Isto criou uma
discordância psíquica entre a adolescência e o trabalho que foi suficiente, na
opinião de alguns filósofos hegelianos da revolução, para atingir o estado de
uma contradição. Os novos marxistas freudianos viam as universidades como
fábricas educativas que criavam uma nova classe revolucionária. O radicalismo
da década de 1960 foi um fenómeno das universidades, teorizado e promovido
pelos professores.
Destes, nenhum foi mais influente do que o filósofo emigrado Herbert
Marcuse, que proclamou a nova doutrina de libertação erótica com profunda
erudição alemã. Os livros de Marcuse Eros e Civilização (1955) e O Homem
Unidimensional (1964) tornaram-se as bíblias do protesto estudantil. A sua
frase «tolerância repressiva» definiu para os radicais a qualidade específica da
civilização americana. Como Marx, Marcuse seguia a tradição do messianismo
judeu em que «toda a discussão dos valores humanos reais e autênticos é
reduzida à escatologia» e que «abre a porta a uma utopia impenitente e otimista
que não pode ser descrita em termos de conceitos baseados num mundo não
remido»113.
Apesar da sua prosa muitas vezes impenetrável, Herbert Marcuse foi um
demónio brincalhão. A única atitude verdadeiramente progressista, disse, era
uma atitude de negação. «Aquilo que é não pode ser verdade» era um dos seus
lemas. Uma vez que os factos que parecem verdadeiros para o senso comum
são de facto a negação da verdade, a verdade só pode ser descoberta através da
«negação da negação». «A teoria crítica» era a sua ferramenta de emancipação
da sabedoria convencional. Um estudante que frequentava as suas aulas na
Universidade de San Diego, na Califórnia, escreveu que «Marcuse tem o
talento único de tornar Kant, Hegel e Marx relevantes para um corpo estudantil
que parece o elenco de um dos filmes de Hollywood cheios de adolescentes na
praia»114.
Eros e Civilização ofereceu uma interpretação freudiana da civilização
ocidental, mas sem o pessimismo de Freud. O que Freud qualificou de «instinto
mortal» não era inerente à raça humana, mas à sua repressão, e particularmente
à sua «repressão extra» pelo capitalismo ocidental. Esta repressão tinha-se
agora tornado redundante devido à automação do trabalho, embora continuasse
a ser perpetuada pelos poderosos, cujos interesses servia. Logo, a
ressexualização era a chave para a revolução. Para destruir a psicologia de
repressão em que o capitalismo se baseia, a humanidade precisava de regressar
ao estado recém-nascido de «perversidade polimorfa» em que o corpo inteiro é
a fonte de prazer erótico.
Quando escreveu O Homem Unidimensional, a esperança de Marcuse na
revolução tinha diminuído. «A contenção da mudança social é talvez a
realização mais singular da sociedade industrial avançada», escreveu ele. «O
consumo, publicidade, cultura de massas e ideologia» tinham integrado os
indivíduos na ordem capitalista e destruído eficazmente qualquer perspetiva de
«filosofia crítica»115. A sociedade moderna já não necessitava de terror, tinha
tecnologia.
O Homem Unidimensional retrata um mundo de pesadelo de «consciência
feliz» que rivaliza com distopias como Admirável Mundo Novo, com a
diferença de que se passa na América contemporânea. A tecnologia dá a cada
instinto uma expressão limitada, administrada. O pensamento oposicional já
não precisa de ser suprimido: não acontece. A cultura é integrada nas compras.
Os desvios são relegados para a psiquiatria. O que importa é que este é um
mundo feliz, um mundo que Marcuse apelida de «dessublimação repressiva»,
repressiva «precisamente ao ponto em que promove a satisfação de
necessidades que implicam a continuação da corrida de ratos para ser igual aos
seus pares e com obsolência planeada […].»116 A libertação deixa de ser
procurada porque foi entregue em lindos embrulhos de presente. A guerra
continua, mas apenas «no exterior» – em países subdesenvolvidos.
No mundo da consciência feliz, a base social para a mudança desapareceu. A
classe trabalhadora tornou-se um pilar da ordem estabelecida; a recusa absoluta
é «politicamente impotente». A automação pode libertar as pessoas do trabalho,
mas a tecnologia ainda controla as suas mentes. Em Eros e Civilização,
Marcuse tinha celebrado a função «crítica» de «perversões sexuais» como a
homossexualidade. «A desviância sexual representa […] um protesto contra a
tirania genital.»117 Mas o volume posterior abandonou este tema: as
«perversões» tinham-se tornado parte do novo normal. Não havia forma de
escapar.
Ou havia? «Subjacente à base popular conservadora está o substrato dos
marginalizados e forasteiros, dos explorados e perseguidos de outras raças e de
outras cores, dos desempregados e dos não empregáveis.»118 Este é o novo
espectro da revolução. Mas é um espectro muito mais fraco do que o que Marx
evocou para alarmar os seus leitores burgueses. Marcuse termina: «Não passa
de um acaso.»
É claro que sabemos que não foi estabelecida qualquer utopia sexual. Isto
não é surpreendente. As utopias são sociedades aperfeiçoadas: nunca existirão
neste mundo. É mais interessante considerar porque é que não houve mais
progresso para realizar os sonhos dos utópicos sexuais.
A razão mais óbvia foi o facto de as economias ocidentais terem sido
incapazes de manter a promessa de abundância generalizada. Na prática, aos
movimentos de protesto da década de 1960 seguiu-se rapidamente o colapso do
estado keynesiano em que as expectativas de abundância iminente tinham sido
construídas. Isto destruiu o utopismo. Marcuse tornou-se uma peça de museu
no Ocidente (se bem que não na América Latina) ainda antes da sua morte. O
mundo do trabalho inseguro voltou; a tendência para uma distribuição mais
igual de rendimento foi invertida; a destruição criativa regressou. Sob Reagan e
Thatcher o capitalismo recuperou uma grande parte do seu espírito de pirata e o
sonho de libertação instintiva de um trampolim de riqueza conseguida
retrocedeu.
Mas, mesmo que o crescimento tivesse continuado ao ritmo anterior, o
utopismo da década de 1960 estaria quase certamente destinado ao fracasso. O
próprio Marcuse acabou por reconhecer a capacidade do capitalismo para
«conter» mudança social. A cultura de sexo, drogas e rock and roll dos jovens
revelou-se inteiramente compatível com a continuação das relações existentes
de domínio, ainda que de uma forma modificada. Afinal de contas, o
capitalismo foi muito bem-sucedido a comercializar a revolução sexual,
absorvendo-a e transformando-a em produtos claramente vendáveis. A
violência, quer criminal quer revolucionária, tornou-se uma parte integrante da
indústria do entretenimento. O sistema capitalista demonstrou uma enorme
capacidade para amortecer castigo sem ser derrubado. É como um grande saco
de pancada que, por muito que seja massacrado, volta sempre para a pessoa,
não necessariamente com a mesma forma, mas sem dúvida com a mesma
substância.
Não obstante, a escolha de Marcuse da palavra «contenção» julga
prematuramente o caso. A contenção também envolve pluralismo. As
sociedades democráticas liberais protegem muitos atores que se opõem ao
gosto pelo lucro. Para Marcuse (como para os marxistas intransigentes), os
governos social-democratas e os sindicatos faziam parte do mesmo sistema
repressivo, que tinha de ser negado in toto. Analogamente, Marcuse não
conseguiu atribuir o devido peso às diferenças qualitativas entre fascismo e
democracia e à dimensão dos seus respetivos horrores. A ênfase exagerada que
deu ao «desejo de morte» foi, é claro, fortemente influenciada pelo Holocausto
nazi e pela ameaça de um holocausto nuclear. Os seus trechos mais irónicos
sobre a «consciência feliz» referem-se a abrigos nucleares equipados com
alcatifas e com todas as tralhas de uma sociedade de consumo.
O erro fundamental de Marcuse foi o de todos os utópicos: fechou os olhos
ao facto óbvio do «pecado original». Foi isto que lhe permitiu ver todos os
males associados ao sexo – ciúme, pornografia, sadismo, etc. – como produtos
da sua repressão pelo capitalismo. Removida essa repressão, o sexo reverteria
automaticamente para o estado de inocência infantil. Esta era uma filosofia
simplista que o próprio Freud nunca adotou. O desejo sexual está ligado na sua
origem ao poder e à vulnerabilidade, o que significa que esta regulação não é
um fenómeno transitório, mas uma condição básica de qualquer existência
civilizada.
Marcuse fechou os olhos à intensidade não só da luxúria, mas da ganância.
Como outros marxistas, pensava que a multiplicação de desejos nos era
imposta por um mecanismo produtivo demoníaco. Nós só tínhamos de nos
libertar deste mecanismo e os nossos desejos voltariam a ser reduzidos para o
seu nível «natural». Ele não conseguiu ver que os desejos se multiplicarão de
motu proprio, a menos que sejam reprimidos pela disciplina moral. O
hedonismo da década de 1960 levou, naturalmente, ao consumismo da década
de 1980.

Nós defendemos que o capitalismo se baseou num pacto faustiano. Os


demónios da avareza e da usura tiveram rédea livre sob condição de que,
depois de tirarem a humanidade da pobreza, sairiam de cena para sempre.
Seguir-se-ia um paraíso de abundância, com todos os homens livres para
viverem como apenas os poucos felizes tinham vivido. Versões do mito podem
ser encontradas em Marx, Mill, Marcuse e outros. Os momentos e mecanismos
variavam, mas todos concordavam que, mais cedo ou mais tarde, de uma forma
ou de outra, a hora feliz chegaria. Se não, qual era o objetivo do trabalho árduo,
da miséria e da deformação de sentimento? O capitalismo precisava da sua
visão radiosa; sem ela, as suas humilhações eram intoleráveis.
No entanto, como nos dizem os contos de fadas, o Diabo só honra a sua
promessa na letra, não em espírito. É verdade que agora somos mais ricos do
que nunca e é verdade que as horas de trabalho diminuíram, embora não ao
nível previsto por Keynes. Mas o paraíso de abundância não veio. A busca
inexorável de vantagem material – o «atropelando, esmagando, acotovelando e
pisando os calcanhares dos outros» de Mill – continua a ser o nosso destino no
futuro previsível. O túnel da necessidade económica, que desembocaria na luz
da felicidade económica, agiganta-se sem fim à vista.
No Capítulo 1, sugerimos que o erro de Keynes foi partir do princípio de que
os desejos naturais são naturalmente finitos. Foi por este motivo, e apenas por
este motivo, que conseguiu tolerar o espetáculo da sua indulgência
descontrolada: ele acreditava que um dia eles seriam plenamente satisfeitos,
deixando-nos livres para «coisas mais importantes». Agora temos mais juízo. A
experiência ensinou-nos que os desejos materiais não têm limites naturais, que
se expandirão sem fim a menos que os controlemos conscientemente. O
capitalismo assenta precisamente nesta expansão infinita de desejos. É por isso
que, apesar de todo o seu sucesso, continua a ser tão mal amado. Deu-nos uma
riqueza desmesurada, mas tirou o principal benefício da riqueza: a consciência
de ter o suficiente.
Os pensadores do mundo pré-moderno estavam livres dessas ilusões. Como
Keynes, consideravam que a aquisição tinha um fim ou objetivo inerente, mas,
ao contrário de Keynes, não a viam a parar obrigatoriamente quando esse
objetivo fosse alcançado. Sabiam que o impulso acumulativo tende sempre
para o excesso, que mantê-lo dentro de limites é um trabalho da vontade. Não
pensavam libertar a aquisição das barreiras morais, pois não viam «dialética»
que desse bons resultados. A sabedoria antiga era unânime neste ponto. Até
Epicuro, o arqui-hedonista, pensava que a melhor forma de atingir o prazer era
suprimir todos os desejos desnecessários, incluindo o desejo de riqueza. O seu
conselho é ignorado pela maioria dos hedonistas modernos, herdeiros do culto
romântico do excesso.
O pensamento económico pré-Iluminista é muitas vezes ignorado como uma
miscelânea de fanatismo e ignorância. Mas o fracasso da era moderna em
cumprir a sua promessa utópica apresenta-o a uma luz mais positiva. Agora é
evidente que o capitalismo não tem uma tendência espontânea para evoluir para
algo mais nobre. Entregue a si mesma, a máquina de criação de desejos
continuará a funcionar interminavelmente e inutilmente. Revisitemos, então,
aquelas figuras pré-modernas semiesquecidas, pois pode ser que sejam elas as
detentoras da chave do nosso apuro contemporâneo.
60 John Maynard Keynes, Essays in Persuasion, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. 9
(Cambridge: Cambridge University Press, 1978), p. 372.

61 Ver Krishan Kumar, Utopia and Anti-Utopia in Modern Times (Oxford: Wiley-Blackwell, 1987), pp. 3-
9.

62 Terra mítica medieval – é um lugar imaginário de enorme prazer e indolência onde os confortos e
prazeres físicos estão imediatamente à mão e onde a dureza da vida medieval rural não existe. (N. da T.)

63 Thomas More, Utopia, ed. Ralph Robinson (1869), introdução do editor.

64 Kumar, Utopia and Anti-Utopia, p. 35.

65 More, Utopia, pp. 13, 84.

66 Nicolau Maquiavel, The Florentine History (Charleston, SC: Forgotten Books, 2010), vol. 2, p. 1.

67 Papa Leão XIII, Rerum Novarum (1891), par. 59.

68 Karl Löwith, Meaning in History: The Theological Implications of the Philosophy of History (Chicago:
University of Chicago Press, 1957), p. 149.

69 William Blake, The Marriage of Heaven and Hell (1790), p. 3.

70 Bernard Mandeville, The Fable of the Bees: or Private Vices, Publick Benefits, ed. Phillip Harth
(Harmondsworth: Penguin, 1989), pp. 49, 51.

71 Ver ibid., introdução do editor; também N. T. Phillipson, Adam Smith: An Enlightened Life (Londres:
Allen Lane, 2010), p. 48.

72 Mandeville, The Fable of the Bees, p. 25.

73 David Hume, «Of Refinement in the Arts» [Sobre o Refinamento nas Artes], in Hume, Essays, Moral,
Political and Literary (Londres: Grant Richards, 1903), p. 287.

74 Em francês no original: doçura. (N. da T.)

75 A genealogia do «interesse» e «le doux commerce» é delineada por Albert O. Hirschman em The
Passions and the Interests: Political Arguments for Capitalism before its Triumph (Princeton: Princeton
University Press, 1997), pp. 31-66. O «narcisismo» começou a existir como um termo agostiniano de
opróbio, mas foi transformado por Rousseau, e Adam Smith seguiu-o, num termo neutro que designava
uma atenção natural pelo bem-estar da própria pessoa. Para pormenores, ver Pierre Force, Self-Interest
before Adam Smith (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), pp. 57-67.

76 Alexander Pope, Essay on Man, ed. Henny Morley, Project Gutenberg


(http://www.gutenberg.org/ebooks/2428; acedido no dia 12 de janeiro de 2012).
77 O significado económico de protestantismo foi famosamente explorado em textos clássicos como The
Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, de Max Weber, tr. Talcott Parsons (Londres: Routledge, 1992;
primeira edição 1905); e Religion and the Rise of Capitalism, de Richard Tawney (Londres: J. Murray,
1926).

78 Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France (1790).

79 Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments (Oxford: Oxford University Press, 1979; primeira edição,
1759), pp. 308-313.

80 Ibid., pp. 184-185.

81 Ibid., p. 461.

82 John Stuart Mill, Principles of Political Economy (1886), «Of the Stationary State» [Do Estado
Estacionário], livro iv, cap. vi, p. 748; para uma crítica ao «moralismo» de Mill, ver Michael Montgomery,
«John Stuart Mill and the Utopian Tradition» [John Stuart Mill e a Tradição Utópica], in Jürgen Georg
Backhaus (ed.), The State as Utopia: Continental Approaches (Berlim: Springer, 2011), pp. 19-34.

83 Theodor Ziolkowski, The Sin of Knowledge: Ancient Themes and Modern Variations (Princeton:
Princeton University Press, 2000), p. 68.

84 Goethe, Faust, tr. Barker Fairley (Toronto: University of Toronto Press, 1970), pp. 25, 26.

85 Ibid., pp. 196-197.

86 Johann Peter Eckerman, Conversations of Goethe (Nova Iorque: M. Walter Dunne, 1901), p. 85.

87 Karl Jaspers, Unsere Zukunft und Goethe (Bremen: Storm, 1948), p. 18.

88 Ver John Gray, Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of Utopia (Londres: Allen Lane, 2007).

89 Citado in Leszek Kotakowski, Main Currents of Marxism, vol. 1: The Founders (Oxford: Clarendon
Press, 1978), p. 285.

90 Ibid., p. 285.

91 Ver Eric Hobsbawm, How to Change the World: Tales of Marx and Marxism (Boston: Little, Brown,
2011), p. 147: «No mechanism for the breakdown [of slave society] is outlined…» [Não é esboçado
qualquer mecanismo para o fim (da sociedade escrava)].

92 Marx nunca falou em «capitalismo». Ele usou a palavra «burguesia» para realçar o carácter baseado em
classes do sistema capitalista. Mas «capitalismo» pode ser substituído sem perda de significado. Para ser
pedante, o capitalismo é um sistema em que a posse de capital está concentrada nas mãos de uma única
classe – a burguesia – que o usa em proveito próprio.

93 Karl Marx e Friedrich Engels, The Communist Manifesto, Project Gutenberg


(http://gutenberg.org/ebooks/61; acedido no dia 12 de janeiro de 2012), p. 9.

94 Ibid., p. 9.
95 Ibid., p. 8.

96 Ibid., p. 13.

97 Ibid., p. 9.

98 Karl Marx, «Capital», in Marx: Collected Writings (Londres: Lawrence and Wishart, 1974), pp. 714-
715.

99 Marx e Engels, The Communist Manifesto, p. 10.

100 Citado em Meghnad Desai, Marx’s Revenge: The Resurgence of Capitalism and the Death of Statist
Socialism (Londres: Verso, 2004), p. 95.

101 Ibid., p. 79.

102 Citado ibid., p. 44.

103 Karl Marx, «The German Ideology» [A Ideologia Alemã], in Karl Marx: Selected Writings, ed. David
McLellan (Oxford: Oxford University Press, 1977; primeira edição, 1846), p. 169.

104 Leon Trotsky, Literature and Revolution, ed. William Keach (Nova Iorque: International Publishers,
2005), p. 207.

105 Jung Chang e John Holliday, Mao: The Unknown Story (Londres: Jonathan Cape, 2005), p. 457.

106 Ver, por exemplo, John Strachey, Contemporary Capitalism (Londres: Gollancz, 1956), e Anthony
Crosland, The Future of Socialism (Londres: Jonathan Cape, 1956).

107 Charles Reich, The Greening of America (Nova Iorque: Random House, 1970), p. 259; citação de R. N.
Berki, «Marcuse and the Crisis of the New Radicalism: From Politics to Religion?» [Marcuse e a Crise do
Novo Radicalismo: Da Política para a Religião?], Journal of Politics, vol. 34, pt. 1 (1972), p. 151.

108 Theodore Roszak, The Making of a Counter-Culture: Reflections on the Technocratic Society and its
Youthful Opposition (Berkeley: University of California Press, 1969), pp. 17-18.

109 Para a «era de ouro» capitalista, ver Robert Skidelsky, Keynes: The Return of the Master, 2.ª ed.
(Londres: Penguin, 2010), cap. 5.

110 No Prefácio de The Making of a Counter-Culture, um tema que ele desenvolveu posteriormente em
Where the Wasteland Ends, J. K. Galbraith criou a expressão «a tecno-estrutura» em The New Industrial
State (Princeton: Princeton University Press, 2007).

111 Reich, The Greening of America, pp. 381-382.

112 A revolta dos jovens contra os valores dos pais não se confinou aos estudantes, mas o radicalismo
político da década de 1960 sim.

113 Citado em Alain Martineau, Herbert Marcuse’s Utopia (Montreal: Harvest House, 1984), p. 7.

114 Citado ibid., p. 20.


115 Herbert Marcuse, One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society, ed.
Douglas Kellner (Boston: Beacon Press, 1991), pp. xlii, XXX.

116 Ibid., p. 246.

117 Herbert Marcuse, Eros and Civilization (Nova Iorque: Random House, 1961), p. 48.

118 Ibid., p. 260.


3

Os Usos da Riqueza

Quem é rico? Aquele que não deseja coisa alguma. Quem é pobre? O avarento.
Ausonius

Antes de o projeto faustiano ganhar asas, o pensamento da riqueza era


governado pela ideia de limites. A localização exata destes limites era
contestada, mas a sua existência nunca esteve em dúvida. Virgílio, Maquiavel e
São Francisco estavam de acordo neste ponto, independentemente de todas as
suas diferenças. Como veremos, escritores de lugares tão longínquos como a
Índia e a China também concordam com isto.
Aristóteles é a fonte clássica do pensamento económico pré-moderno por
dois motivos. Primeiro, ao contrário de Platão, o seu antecessor mais radical,
ele não tentou criar um ideal social a partir da razão pura. O seu objetivo era
simplesmente organizar as opiniões dos seus contemporâneos eruditos e
organizá-las num sistema. A descrição de Joseph Schumpeter dos seus textos
económicos como «decorosos, prosaicos, levemente medíocres e mais do que
levemente bom senso pomposo» é uma caricatura, mas não uma distorção
total119. Segundo, e relacionado com isto, Aristóteles foi a influência dominante
de todas as teorias económicas desde o século XII até ao século XVII. Ele criou
uma estrutura de ideias que sobreviveria, com diversas modificações, até à sua
substituição pelo edifício igualmente imponente de Adam Smith.
«Textos económicos de Aristóteles» é, evidentemente, um anacronismo.
Aristóteles não sabia da existência de uma coisa chamada economia. Conhecia
oikonomike−, a palavra de onde deriva «economia», mas essa era a arte da
gestão doméstica e incluía coisas como vinicultura e o castigo dos escravos. O
que conhecemos agora como a economia de Aristóteles foi selecionado de dois
capítulos de Política e Ética a Nicómano, onde fala sobre como lidar com a
aquisição e a troca, respetivamente. O ponto central dessas discussões é
preponderantemente ético e político; o comércio é apresentado como um aspeto
da nossa vida em comum, sujeito como todos os outros aspetos à justiça e às
suas virtudes congéneres. Para Aristóteles não havia um sistema económico
porque não havia economia – não havia uma esfera social distinta com as suas
leis autónomas de movimento.
A inocência de Aristóteles relativamente ao «económico» como uma
categoria não é nada surpreendente. No século IV a. C., Atenas ainda era uma
sociedade esmagadoramente agrícola. A unidade básica de produção era a casa,
que era composta por um chefe, a sua família e dependentes, escravos e um ou
outro trabalhador contratado. A maioria das casas era autossuficiente. A
produção para troca era pouco importante e estava limitada a certos tipos de
produtos. O dinheiro era comum, mas havia muito pouco capital ou crédito. Os
proprietários de moedas limitavam-se a enterrá-las no chão. Numa sociedade
deste tipo, os atos de comércio e empréstimo eram naturalmente entendidos em
termos pessoais, como casos de conduta amistosa ou hostil. O motivo
especificamente comercial não era desconhecido, mas era considerado uma
anomalia sinistra, não uma parte normal do funcionamento social. A perspetiva
ética era abrangente120.
O primeiro princípio do pensamento ético de Aristóteles é que o homem,
como todas as espécies, tem um telos, um estado de realização ou consumação.
Aristóteles identifica este telos com a vida boa, a euze−n, pois é a única coisa
relativamente à qual não faz sentido perguntar: «Para que serve?» A vida não
tem outro objetivo para além da sua própria perfeição; sacrificar esta perfeição
a algum objetivo distante – à revolução, digamos, ou ao sucesso da marca
empresarial – é disparatado ou pior. Mas isto não é uma autorização para a
autocomplacência. O vagabundo da canção que sonha com um mundo onde as
galinhas põem ovos quentes e bebidas alcoólicas escorrem das rochas não está
a aspirar a uma vida boa no sentido de Aristóteles. A vida boa não é
simplesmente uma vida de desejo satisfeito; indica o devido objeto de desejo.
O desejo tem de ser cultivado, direcionado para o verdadeiramente desejável. A
educação moral é uma educação dos sentimentos.
Atualmente, com o debate ético dominado pelos defensores do dever de um
lado e a expressão subjetiva de pensamentos ou ideias do outro, a ideia de vida
boa de Aristóteles tem poucos apoiantes. Para a fação do dever, parece
egocêntrica e vaidosa. «A minha obrigação não é viver uma vida boa», poderia
dizer um ativista ambiental, «mas salvar o planeta». E para a fação da
expressão de pensamentos ou ideias parece horrivelmente paternalista e até
sem sentido. Seguramente, «a vida boa» é algo para ser planeado por cada
indivíduo para si mesmo, de acordo com os seus gostos e convicções. «Fiz tudo
à minha maneira», canta Frank Sinatra, e nós aplaudimos. Estes dois princípios,
dever e expressão dos pensamentos ou ideias, dividem entre si a vida moral
moderna, um deles governando as nossas relações com os nossos concidadãos
e o outro as nossas explorações privadas. Não resta espaço para a vida boa.
Pelo contrário, no mundo antigo a questão de como viver melhor estava no
centro do debate ético. As respostas iam desde o ativismo político de Péricles
até ao quietismo filosófico de Epicuro e dos seus seguidores. O contributo de
Aristóteles para este debate é tipicamente conciliatório. Ele é o mais generoso
que pode ser para a ética da honra cívica e militar, mas acaba por decidir-se
pela filosofia – uma forma de vida repleta de prazeres «surpreendentes em
pureza e estabilidade»121. (Claramente, Aristóteles não tinha noção da filosofia
académica moderna.) No entanto, o que importa aqui não é tanto os
pormenores deste debate, mas as duas suposições partilhadas por todos os seus
participantes. Estas são (a) que determinada forma de vida é melhor do que
outras, independentemente de gosto ou convicção e (b) que esta forma de vida
melhor é uma vida de lazer. Para os antigos gregos, o trabalho era apenas um
meio para um fim, nem sequer um concorrente para o título de vida boa.
Apenas atividades sem objetivo extrínseco – acima de tudo filosofia e política,
ambas concebidas não instrumentalmente – podiam entrar na lista de finalistas.
Como veremos, essas atitudes deixariam um longo legado.
Aristóteles defende que a vida boa requer não apenas as várias excelências de
carácter e intelecto (coragem, moderação, generosidade, sabedoria e outras),
mas também os «bens externos» necessários para realizar essas excelências.
«Homem algum pode viver bem, ou sequer viver, a menos que tenha as coisas
essenciais.»122 Aristóteles está a pensar em coisas como terra para cultivo,
escravos para a trabalharem, habitação, roupas, mobília, etc. – «valores de
uso», como dizem os marxistas. A natureza e números precisos desses valores
de uso depende do tipo de vida que vão manter. Uma vida política precisa de
um pouco mais, uma vida filosófica precisa de um pouco menos. Mas versão
alguma da vida boa pode prescindir inteiramente deles, como os seguidores
mais austeros de Sócrates afirmavam; e qualquer versão da vida boa, austera ou
esplêndida, implica um determinado limite para a sua busca. Uma pessoa só
precisa de um determinado número de casacos, camas, casas, etc.; continuar a
acumular depois deste ponto, como Imelda Marcos e os seus 2700 pares de
sapatos, é simplesmente demência. A pessoa justa e comedida acumula apenas
as coisas de que necessita para uma vida boa e depois para.
No entanto, a par do valor de uso, as posses têm outro tipo de valor, que está
na sua capacidade de serem trocadas. A relação entre valor de uso e «valor de
troca» – como podemos chamar-lhe, seguindo uma vez mais Marx – causa
muitas dores de cabeça a Aristóteles123. Os valores de uso são heterógenos e
incomensuráveis. Uma cama e um porco contribuem para a vida boa de formas
muito diferentes: uma é para dormir e o outro para comer. Uma cama pode ser
melhor do que outra cama, mas não faz um sentido óbvio dizer que uma cama é
melhor do que um porco, e ainda menos que é cinco vezes melhor. Porém,
sempre que trocamos uma cama por um porco, ou os avaliamos em termos
monetários, pressupomos apenas uma medida comum. Esta transformação do
«desigual» em «igual» é um mistério que Aristóteles acaba por nunca resolver,
nem pode resolver, dadas as suas premissas. A troca continua a ser um
escândalo metafísico, uma violação do carácter qualitativo único das coisas.
Muitos pensadores subsequentes sentiram uma inquietação semelhante. O
sociólogo alemão Georg Simmel lamentou «a redução dos valores concretos da
vida ao valor mediador do dinheiro»124. Keynes também foi um verdadeiro
aristotélico na sua preferência por «lojas que são realmente lojas e não
meramente lugares de multiplicação»125.
Aristóteles não é radical ao ponto de condenar abertamente a troca, apesar de
toda a sua impropriedade metafísica. Ele aceita aquilo a que chama a «arte
natural de obtenção de riqueza» – a arte de fornecer as coisas boas da vida às
famílias e aos Estados. No entanto, surgem problemas quando este tipo natural
de obtenção de riqueza passa para outro tipo não natural. O dinheiro é a
serpente do Jardim, pois sugere a possibilidade, desconhecida na troca, de
comprar coisas não para usá-las, mas para vendê-las por mais. Originalmente e
corretamente um meio de troca, o dinheiro depressa se torna um fim em si
mesmo e os valores de uso são degradados para meios. Casas, quintas e
utensílios são desprovidos do seu verdadeiro propósito e convertidos em
muitos repositórios indiferentes de valor monetário. Esta perversão de meios
para fins e de fins para meios atinge o seu clímax na usura, «que lucra com o
próprio dinheiro e não com o seu objetivo natural»126.
Dois aspetos deste processo incomodam especialmente Aristóteles. O
primeiro é o seu poder de subordinar o objetivo típico de cada atividade
humana ao objetivo suplementar do lucro. «Alguns homens transformam cada
qualidade ou arte num meio de obter riqueza.»127 Os resultados desta corrupção
são evidentes a todos os níveis: os médicos pensam apenas nos seus
honorários; os soldados lutam apenas pelo soldo; os sofistas trocam sabedoria
por lucro. O trabalho também sofre. Aristóteles destaca a «faca délfica», um
artigo de qualidade inferior concebido para cortar e martelar e nada bom em
qualquer uma destas atividades. (O sofá-cama poderia ser um equivalente
moderno.) A questão de Aristóteles é que é provável que as coisas feitas acima
de tudo para lucro e não por elas mesmas sejam mal feitas, ou tão mal quanto
possível consoante o costume vigente. Se o objetivo da General Motors for
fazer dinheiro e não carros, como Thomas Murphy, o seu diretor-geral, afirmou
uma vez, então as pessoas que gostam verdadeiramente de carros deviam
comprá-los noutro lado.
A segunda preocupação de Aristóteles é a insaciabilidade. Como já vimos, os
valores de uso têm um objetivo controlador: a vida boa. Persegui-los para além
deste ponto é insano. Pelo contrário, o dinheiro não tem um objetivo
determinante. Sendo um instrumento em branco e multiusos, as suas aplicações
são tão numerosas e diversas como o próprio desejo humano, e igualmente
ilimitadas. Se existe um bom motivo para progredir de 1000 libras para 10 mil
libras, então há um motivo igualmente bom para progredir de 10 mil libras para
100 mil libras. É claro que também é possível acumular objetos concretos sem
fim, mas esse comportamento ou é claramente irracional (a saber, a Sr.a
Marcos) ou então é um sinal de que os artigos em questão estão a ser tratados
como reservas de valor monetário. O dinheiro é a única coisa que nunca existe
em excesso, pelo simples motivo de que o conceito de «suficiente» não tem
uma aplicação lógica para ele. Há saúde e felicidade perfeitas, mas não há
riqueza perfeita.
As preocupações de Aristóteles em relação à insaciabilidade são vastamente
partilhadas na Grécia antiga. «Não foram fixadas para o homem quaisquer
fronteiras para a riqueza», declarou o poeta e legislador Sólon. O lendário rei
Midas recebeu o poder de transformar tudo o que tocava em ouro, e o resultado
foi morrer de fome no meio do luxo – uma imagem impressionante do
sacrifício do valor de uso em relação ao valor de troca. A peça de Aristófanes,
Riqueza, aborda espirituosamente o mesmo tema. «Ninguém se enche jamais
de ti», diz Chremylus a Plutus, o deus do dinheiro.

De tudo o resto a pessoa pode ter de mais – por exemplo, amor, ou pão, ou cultura, ou frutos secos,
ou honra, ou bolos, ou valentia, ou figos, ou ambição, ou pães de cevada, ou poder, ou sopa. Mas
ninguém se farta jamais de ti. Se um homem tem 80 mil dracmas, fica ainda mais decidido a ter 100
mil; e, quando conseguir, diz que a vida não vale a pena ser vivida a menos que ganhe um quarto de
um milhão128.
A desconfiança do ilimitado e infinito foi característica do pensamento grego
antigo em geral, incluindo a astronomia e a matemática. Aristóteles defendeu
que as estrelas, como corpos perfeitos, têm de seguir um movimento circular,
isto é, finito. Pitágoras detestava tanto os números irracionais que se diz que
terá assassinado o seu infeliz descobridor. Os gregos ainda tinham de descobrir
o romance das tarefas infinitas e dos desejos ilimitados de que o capitalismo
moderno é uma manifestação impressionante. Eles eram um povo
supremamente «não faustiano».
Todos os filósofos da Grécia antiga partilharam a insistência de Aristóteles
em limitar desejos a necessidades, muito embora a sua interpretação dessas
necessidades variasse muito. Num extremo estava Diógenes de Sinope, o
Cínico, do século IV a. C. que viveu num barril e atirou fora a sua única tigela
depois de ver uma criança beber água com as mãos. (Quando Alexandre, o
Grande, lhe perguntou se poderia fazer alguma coisa por ele, diz-se que terá
respondido: «Sim, sair da frente do meu sol.») Epicuro, que foi contemporâneo
de Diógenes, foi um asceta mais afável. Vegetariano e abstémio e não o
«epicuro» da lenda popular, ensinou que o prazer está não tanto na satisfação
do desejo como na sua redução a um simples mínimo. Os seus seguidores
reuniam-se num jardim, longe da azáfama do mercado, onde passavam o tempo
a conversar e a aprender.
O desprezo filosófico pela riqueza migrou da Grécia antiga para Roma, onde
se fundiu com a tradição de austeridade republicana mencionada no último
capítulo. Denúncias de avaritia (avareza) e luxuria (luxúria) passaram a fazer
parte do arsenal-padrão da sátira, a par das acusações de excessos sexuais.
«Nem calor ardente, nem inverno, fogo, mar, espada podem desviar-te do
lucro», declamou Horácio para o avarento. «Nada te para, até homem algum
ser mais rico do que tu.»129 Filósofos romanos de todas as escolas exortavam a
parsimonia ou frugalidade; entretanto, os não filosóficos eram controlados por
leis sumptuárias. O modelo de governação era alimentar: assim como temos de
nos treinar para parar de comer quando estamos satisfeitos, também temos de
nos ensinar, individual e coletivamente, a parar de acumular quando temos o
suficiente.
Que pensariam Aristóteles e outros filósofos antigos do nosso apuro
moderno? Casos individuais de avareza e extravagância não os surpreenderiam;
o mundo antigo teve o seu quinhão de Midas e Cresos. E tão-pouco teriam
ficado surpreendidos com a dinâmica da criação de desejos esboçada no
Capítulo 1, pois também isto existiu no mundo antigo, embora numa dimensão
muito mais pequena. Porém, ficariam extremamente surpreendidos por vermos
essas coisas não como uma vil deformação, mas como uma parte normal e
indispensável do mecanismo social, mesmo como marcas de vitalidade.
Aristóteles conhecia a insaciabilidade apenas como um vício pessoal; não tinha
noção da insaciabilidade coletiva, politicamente orquestrada, a que chamamos
crescimento. A civilização de toujours plus130, como o filósofo francês Bertrand
de Jouvenel lhe chamou, ter-lhe-ia parecido uma loucura moral e política.

Atitudes económicas na Europa e na Ásia

Aristóteles é sempre, e com alguma razão, menosprezado como o ideólogo


de uma oligarquia que possuía escravos. A sua visão da vida boa está muito
relacionada com a sua época e lugar. Não tem espaço para as alegrias da
natureza, da solidão, da criação artística ou do êxtase religioso, apesar de todas
as coisas que o cristianismo e o romantismo nos ensinaram a apreciar. E é claro
que a vida boa está reservada para os cavalheiros gregos; as mulheres, os
bárbaros e os escravos estão excluídos. Como pode esta apologia da ordem
social da Atenas do século IV a. C. ter algum interesse para nós hoje em dia?
As críticas a Aristóteles são muito pertinentes, mas esquecem o que é mais
profundo e mais duradouro no seu pensamento. A visão de Aristóteles da vida
boa pode ser limitada, mas a sua hipótese de que há vida boa, e que o dinheiro
é meramente um meio para desfrutá-la, foi partilhada por todas as grandes
civilizações mundiais exceto a nossa. Ao articular rigorosamente esta hipótese,
Aristóteles criou uma estrutura intelectual adaptável a ideais éticos muito
diferentes. Os seguidores do judaísmo, do cristianismo e do islamismo
puderam usar esta estrutura; estruturas semelhantes podem mesmo ser
encontradas em civilizações tão radicalmente diferentes do Ocidente como a
Índia e a China. Perante este acordo em grande escala, é a nossa devoção à
acumulação como um objetivo em si que sobressai como uma anomalia, como
algo que necessita de explicação.
O nascimento do cristianismo assinalou uma mudança, não uma revolução,
nas atitudes económicas. O apelo de Cristo para olharmos os lírios do campo
podia ser facilmente integrado nas denúncias clássicas de avareza e luxúria. Os
cristãos só diferiam dos seus antepassados pagãos na medida em que
consideravam a rejeição do mundo como um projeto coletivo, não uma
expressão de independência pessoal. O agape−, ou amor fraternal, substituiu a
autarkia, ou autossuficiência, como o motivo para a renúncia. Os cristãos
também nutriam uma ternura especial pelos pobres, os «herdeiros da terra», e
um horror quase ritual pelo dinheiro, pelo lucro imundo131. Afinal de contas, foi
o dinheiro que tentou Judas a trair Cristo. Mas esse anticomercialismo
enquadrava-se na ordem normal do sentimento clássico e judeu. A verdadeira
novidade do cristianismo está noutro lado.
A dívida do cristianismo para com o passado clássico tem a sua expressão
mais evidente no famoso dualismo de vita ativa e vita contemplativa: a vida
ativa e a vida contemplativa. Como vimos, o contraste entre estes dois ideais
foi central em muitos debates antigos, mas foi o cristianismo medieval que o
fixou com uma precisão tipológica. Nesta altura, foi dada forte prioridade à vita
contemplativa, identificada com o monasticismo, enquanto a mundana vita
ativa caiu automaticamente para segundo lugar. Entretanto, o trabalho
continuou a pertencer ao servil «terceiro estado». A Idade Média herdou,
assim, as duas suposições clássicas referidas acima, nomeadamente, que um
certo estilo de vida é bom em si, e que não é um estilo de vida de trabalho. Só
diferia do mundo antigo na sua certeza dogmática do que é realmente a vida
boa.
Estas continuidades entre os mundos antigo e medieval garantiram que,
quando as obras de Aristóteles regressaram à Europa cristã através da Espanha
muçulmana no princípio do século XIII, encontraram mentes prontas para
recebê-las. «O desejo de coisas materiais enquanto conducentes a um fim é
natural ao homem», diz um trecho quintessencialmente aristoteliano da Summa
Theologica de São Tomás de Aquino. «Logo, não tem culpa na medida em que
está confinado às normas estabelecidas pela natureza desse fim. A avareza
excede esses limites e é, por conseguinte, pecaminosa.»132 Escusado será dizer
que o Doutor Angélico tinha um conceito de «fim» muito diferente do de
Aristóteles e, por isso, uma conceção diferente (e mais modesta) dos bens
necessários para sustentá-la. Mas, estruturalmente falando, as duas descrições
são idênticas. Ambas concordam que o telos da vida humana impõe limites à
busca de riqueza e ambas reconhecem forças poderosas na natureza humana
com tendência para exceder esses limites.
Acima de tudo, foi a condenação da usura feita por Aristóteles que captou a
mente medieval. No cerne do seu argumento está um jogo de palavras:
interesse (tokos) é assim chamado porque descende (tokos) do dinheiro. Porém,
como o dinheiro é por natureza estéril, é antinatural e odioso fazê-lo crescer.
Esta visão de interesse como uma espécie de nascimento monstruoso revelou-
se irresistível para a imaginação teológica. «Repetidamente, através da mais vil
astúcia da usura, o ouro nasce do próprio ouro», refere um trecho típico da obra
completa de lei canónica do século XII de Graciano. «Nunca há satisfação;
nunca haverá um fim à vista para a ganância.»133 Sendo uma perversão do
instinto criador, a usura foi muitas vezes associada à sodomia. Dante juntou
pecadores de ambos os tipos no sétimo círculo do seu inferno. Entretanto,
figuras que representam a avareza e a usura – homens carrancudos e
atarracados a segurar sacos de dinheiro, muitas vezes com nariz adunco, às
vezes a excretar moedas – multiplicaram-se em manuscritos e catedrais por
toda a Europa. Certamente, tudo isto era grotesco, mas não sem um grão de
verdade psicológica. Ao longo das eras, artistas e escritores contrastaram a
produtividade artificial do dinheiro com a fertilidade natural do útero. É
poeticamente apropriado que Midas, na versão da lenda de Nathaniel
Hawthorne, transformasse a sua própria filha em ouro. Daí em diante, a sua
única «descendência» será monetária.
Todavia, retórica à parte, a tendência básica do cristianismo no fim da Idade
Média foi no sentido da reconciliação com o comércio. Esta foi a primeira
grande era de expansão capitalista e a Igreja não conseguiu contê-la. As
doutrinas de usura e de preço justo foram progressivamente limitadas e
diluídas, caindo finalmente em desuso. No entanto, ao contrário das suas
congéneres protestantes, a igreja católica nunca abandonou completamente o
projeto de subordinar a atividade económica a um objetivo mais nobre. «Nunca
se ultrapassou inteiramente o sentimento», escreve Max Weber, «de que a
atividade dirigida para a aquisição em si estava no fundo de um pudendum que
tinha de ser tolerado apenas por causa das necessidades inalteráveis da vida
neste mundo.»134 Uma ordem económica subserviente aos objetivos humanos –
uma em que as riquezas existem para o homem, não o homem para as riquezas,
como Santo Antonino de Florença afirmou – continua a ser o objetivo do
pensamento económico católico até aos nossos dias.
Na Índia antiga, uma cultura em que as questões éticas não estavam
claramente separadas das questões rituais e religiosas, não ocorreu nenhuma
discussão puramente secular da vida boa135. Não obstante, um conjunto claro de
atitudes perante a riqueza e o comércio emerge dos Dharmasutras, os antigos
códigos de direito dos brâmanes – atitudes não diferentes das que já
encontrámos em Aristóteles e nos escolásticos. Os Dharmasutras falam em três
objetivos na vida: dharma (lei ou retidão), artha (riqueza) e kama (prazer). Os
três são bons, mas não em igual medida: deve preferir-se o dharma ao artha, o
artha ao kama. São recomendadas penalizações severas para o homem «que,
quando a Lei (dharma) e o lucro (artha) estão em conflito, escolhe o lucro».
Quase tão mau é explorar o dharma como um meio para o artha. «Que ele não
siga as Leis por causa de benefícios mundanos», diz o texto, «pois nesse caso
as Leis não produzem fruto no tempo da colheita. É assim. Um homem planta
uma mangueira para ter frutos, mas além disso obtém sombra e fragrância. De
uma forma semelhante, quando um homem obedece à Lei obtém, além disso,
outros benefícios. Mesmo que não os obtenha, pelo menos não é feito qualquer
mal à Lei.»136 Somos recordados do desprezo de Aristóteles pelos homens «que
transformam cada qualidade da arte num meio para obter riqueza». Como
Aristóteles, os Dharmasutras estão ansiosos para proteger a integridade de
objetivos mais nobres contra o poder relativizador do dinheiro – a sua
capacidade de tornar tudo comerciável com tudo o resto.
Este conceito de uma hierarquia de objetivos, com a riqueza numa posição
subordinada, também está implícito na estrutura de castas da Índia antiga. Os
Dharmasutras listam quatro castas por ordem de importância: primeiro, os
sacerdotes brâmanes; a seguir os Kshitritas, guerreiros e reis; em terceiro lugar
os Vaishyas, camponeses e mercadores; e, em quarto lugar, os Sudras,
operários e artesãos. Debate-se até que ponto esta hierarquia alguma vez
correspondeu à realidade social, mas, enquanto autoimagem ideal da
civilização hindu tradicional, exerceu sempre uma importante influência
normativa.
O sistema indiano de castas personifica uma visão social notavelmente
semelhante aos três estados da Europa medieval. Em ambos os casos, há uma
ordenação de classes por hierarquia, com o clero em primeiro lugar, os
guerreiros em segundo lugar e os trabalhadores em terceiro lugar. A principal
diferença entre os dois está na posição dos comerciantes: na Índia, eles estão
acima dos camponeses; na Europa, a sua posição é frágil137. No entanto, há um
acordo perfeito quanto à inferioridade do trabalho em geral comparativamente
à contemplação religiosa e à ação política. Os brâmanes só estão autorizados a
cultivar ou a dedicar-se ao comércio em tempos de necessidade e estão
totalmente proibidos de emprestar dinheiro a juros138. O seu dever é
sustentarem-se ensinando e oficiando em sacrifícios, ou então tornarem-se
eremitas ou ascetas nómadas. Em todo o caso, o ideal era esse; na realidade, o
monopólio de poder ritual dos brâmanes permitiu-lhes, como aos seus
homólogos monásticos na Europa, tornarem-se imensamente ricos. Mas um
ideal negligenciado é ainda assim um ideal. A presença no vértice do sistema
de castas de uma classe nominalmente ascética e contemplativa impediu o
surgimento de uma visão do mundo abertamente comercial à semelhança da
orientação ocidental. O dinheiro nunca poderia ser o árbitro fundamental de
valor na Índia, por muito peso que pudesse ter na prática.
Por fim, os Dharmasutras ecoam a conhecida preocupação ocidental com a
insaciabilidade. O desejo de riqueza é tão tenaz como o desejo da própria vida,
e igualmente vão: «Quando um homem envelhece, o seu cabelo e dentes
evidenciam sinais de idade. Porém, a ânsia de vida e riqueza não evidenciam o
menor sinal de envelhecimento mesmo quando o homem envelhece. Ânsia! Os
tolos têm dificuldade em desistir. A ânsia não enfraquece com a idade. É uma
doença para toda a vida. Um homem que desiste dela encontra a felicidade.»139
No entanto, aqui quebra-se o paralelo entre Ocidente e Oriente. Para a tradição
ocidental, a avareza é uma perversão ou má orientação do desejo; para os
brâmanes, é uma expressão da escravidão inerente ao próprio desejo. Logo,
enquanto Aristóteles e São Tomás de Aquino nos aconselham a ajustar o desejo
ao seu objetivo, as escrituras hindus incitam-nos a extingui-lo completamente.
«Aquele que não tem desejo, que está libertado do desejo […] vai para
Brahma.»140 Este ideal, que conhecemos melhor pelo nome budista de nirvana,
tem alguma semelhança com o conceito estoico de apatheia ou tranquilidade,
mas para além disso não tem paralelo no Ocidente.
Aos preguiçosos olhos europeus, a Índia e a China pareceram muitas vezes
ter uma «sabedoria oriental» comum. Na realidade, as duas civilizações eram
quase tão desconhecidas uma da outra como cada uma delas era para o
Ocidente. A cultura superior da China antiga, como a da Grécia e a de Roma, e
ao contrário da Índia bramânica, era unificada e deste mundo. Foi assim capaz
de produzir uma coisa semelhante a uma «ética» no sentido ocidental – uma
investigação livre e racional sobre o bem humano. Onde os chineses diferiram
dos seus homólogos ocidentais e indianos foi na sua indiferença perante a
lógica. O epigrama, fragmentário e poético, era a sua forma preferida de
expressão. Não tinham paciência para aquelas longas e complicadas cadeias de
raciocínio adoradas pelos escolásticos e pelos metafísicos indianos141.
A China também diferia do Ocidente e da Índia na sua falta de – na verdade,
na sua profunda desconfiança do – impulso ascético. Não havia aqui qualquer
estigma associado ao comércio ou à usura, nenhum desprezo religioso pela
procura de riqueza. Pelo contrário, o dinheiro era abertamente e (aos nossos
olhos residualmente cristãos) vergonhosamente celebrado. Este fosso nas
atitudes continua a ser palpável nos nossos dias. Lojas e restaurantes em toda a
China estão decorados com imagens do deus da riqueza e do Buda alegre e
barrigudo, tão diferente do austero protótipo indiano. É dado dinheiro às
crianças em bonitos sobrescritos vermelhos e notas são presas festivamente em
santuários e ídolos. De uma perspetiva ocidental, o mais estranho de tudo é o
costume chinês de queimar «dinheiro dos espíritos» para ser usado pelas almas
no paraíso. Podemos ter a certeza de que nenhum lucro imundo troca de mãos
na Jerusalém celestial.
Todavia, apesar de todo o seu amor pelo dinheiro, a antiga China não era
uma civilização dedicada à acumulação em si. Também aqui, embora menos
explicitamente do que na Europa e na Índia, a procura de riqueza estava
subordinada a fins ideais. Para os homens de letras confucianos, a riqueza era
um meio para a educação e para o funcionalismo público; para os
filosoficamente inclinados taoistas, comprava lazer para o cultivo de
experiência142. Estes dois ideais correspondem aproximadamente à vita ativa e
vita contemplativa ocidentais, mas eram vistos não como rivais ou membros de
uma hierarquia, mas como pertencendo a diferentes esferas complementares da
vida. «No poder, um confuciano, na reforma, um taoista», diz um conhecido
provérbio chinês. Uma contradição lógica foi assim decomposta em harmonia
estética, uma solução tipicamente chinesa.
O ideal de Confúcio era o do funcionário educado. O «cavalheiro», como o
seu termo é habitualmente traduzido, devia estudar caligrafia, música, poesia e,
acima de tudo, li, as regras do decoro ritual, para poder servir o Estado com
integridade e sabedoria. O seu objetivo é a cultura geral, não a especialização
técnica. «Um cavalheiro», como Confúcio disse famosamente, «não é um
instrumento.»143 O ideal confuciano de diletantismo instruído foi mais tarde
incluído no exame imperial, a única forma de entrar no funcionalismo público
entre 605 e 1905. Este monumento ao centralismo burocrático garantiu que
durante mais de mil anos os cargos mais importantes do Estado foram
ocupados por homens impregnados de poesia e filosofia antigas e pouco mais
para além disso – um fator importante no colapso da China durante os últimos
anos da dinastia Qing.
A educação de um funcionário-erudito confuciano não era tarefa fácil. Eram
precisas décadas para memorizar os clássicos e para dominar as complexidades
do ensaio de «oito capítulos», e mesmo então o sucesso era raro. No entanto,
conseguir que um filho fizesse o exame era o sonho de todas as famílias de
mercadores e da pequena aristocracia, pois o funcionalismo público era
incomensuravelmente mais importante em termos hierárquicos do que qualquer
situação privada, apesar de remunerada. «As 10 mil carreiras são todas vis»,
diz um provérbio muito conhecido, «apenas o estudo é nobre.» Aqui temos de
novo a noção, já encontrada no Ocidente e na Índia, de um fosso qualitativo
entre formas de vida «mais nobres» e «mais vis», um fosso intransponível por
qualquer quantidade de dinheiro. Escusado será dizer que na realidade o
funcionalismo público era muitas vezes procurado menos pelo seu esplendor e
mais pelas oportunidades que oferecia para corrupção, enquanto a educação era
vista meramente como uma despesa enfadonha. Não obstante, o ideal do
funcionário-erudito desinteressado manteve-se eternamente vivo, garantindo
que os valores comerciais nunca poderiam dominar inteiramente a sociedade
chinesa.
Quando o mandarim chinês era destituído do cargo, como acontecia
frequentemente, voltava-se para a tradição taoista alternativa em busca de
consolo. Se o confucianismo é sóbrio e realista, o taoismo é poético e idealista.
«Ah, esta vida flutuante, como um sonho», é um verso de um poema do poeta
Li Bai. «A verdadeira felicidade é tão rara!144» No entanto, a disposição taoista
é melancólica, não trágica, pois, mesmo que nada perdure, momentos de beleza
ainda podem ser arrancados do fluxo. Para saborear esses momentos há a arte
taoista da vida. O seu espírito é bem captado nos «33 momentos felizes»
registados pelo crítico do século XVII Jin Shengtan enquanto esteve fechado
durante dois dias com um amigo num templo. Aqui estão cinco:

Não tenho nada para fazer depois de uma refeição e tento ver as coisas que estão dentro de alguns
velhos baús. Vejo que há dúzias ou centenas de declarações de dívida de pessoas que devem dinheiro à
minha família. Algumas dessas pessoas estão mortas e outras continuam vivas, mas em todo caso não
há qualquer esperança de devolverem o dinheiro. Sem as pessoas saberem, coloco-as numa pilha e faço
uma fogueira com elas, olho para o céu e vejo o último vestígio de fumo a desaparecer. Ah, isto não é
felicidade?
Acordo de manhã e parece-me ouvir alguém na casa a suspirar e a dizer que alguém morreu ontem à
noite. Pergunto imediatamente quem foi e fico a saber que foi o homem mais inteligente e calculista da
cidade. Ah, isto não é felicidade?
Cortar com uma faca afiada uma melancia verde-clara num grande prato vermelho numa tarde de
verão. Ah, isto não é felicidade?
Abrir a janela e deixar uma vespa sair da sala. Ah, isto não é felicidade?
Ver a linha do papagaio de alguém a partir-se. Ah, isto não é felicidade?145

Aqui está uma visão da vida boa diferente de qualquer outra que vimos até
agora. A lista de Jin não reflete um ideal filosófico ou religioso, não mostra o
esforço para atingir a perfeição ou a abnegação. Não passa de um registo de
alguns momentos inconsequentes de felicidade – alguns generosos, alguns
bizarros, outros completamente schadenfreudig146. Só dois séculos mais tarde o
romantismo ensinaria os leitores ocidentais a deixarem as suas mentes
deambular tão livremente e sem destino como esta.
As experiências listadas por Jin custam pouco dinheiro ou nenhum, e este
facto é importante para o seu poder de atração. Se Jin tivesse escrito sobre os
encantos da sopa de pata de urso ou jade «gordura de carneiro» ter-nos-ia
parecido meramente exótico. Ele parece humano porque escreve sobre coisas
básicas e universais. O taoismo, como o epicurismo, era uma filosofia de
prazeres simples. O seu ideal era o yinshi ou eremita, o homem que se afasta da
sociedade para escrever poesia, pintar, ou simplesmente beber chá com velhos
amigos. No entanto, o yinshi não era um asceta. Pescadores e pastores podiam
decorar os seus quadros, mas estava fora de questão dedicar-se a essas
ocupações servis. Na China, como noutros lugares, a pobreza rústica era para
ser meditada, não vivida.
A literatura chinesa antiga não tem nada tão exato como a discussão de
Aristóteles sobre os efeitos corruptores do dinheiro, mas a ideia subjacente foi
expressa com grande bravata pelo historiador do século I a. C., Sima Qian:

O desejo de riqueza não precisa de ser ensinado; é parte integrante de toda a natureza humana.
Logo, quando os jovens soldados atacam cidades e reduzem muralhas, penetram nas linhas do inimigo
e afugentam os adversários […] é porque são incitados pela perspetiva de uma rica recompensa […]
De igual forma, quando as mulheres de Chao e as donzelas de Cheng pintam os seus rostos e tocam o
grande alaúde, abanam as suas mangas compridas e andam rapidamente de um lado para o outro com
os seus chinelos pontiagudos, convidam com os olhos e atraem com o coração, pensando que não é
distância nenhuma viajar 1500 quilómetros para conhecer um protetor e não se importando se ele é
velho ou novo, é porque estão à procura de riquezas […] Quando os funcionários do governo fazem
malabarismos com frases e deturpam o sentido da lei, esculpem selos falsos e falsificam documentos,
indiferentes aos castigos mutiladores da faca e serra que os esperam se forem descobertos, é porque
estão afogados em subornos e presentes […] Assim os homens aplicam todo o seu conhecimento e
usam todas as suas capacidades simplesmente para acumular dinheiro. Nunca lhes resta qualquer força
para pensarem na questão de dar um pouco147.

Como Aristóteles e os Dharmasutras, Sima fica chocado com o poder do


dinheiro para distorcer todos os empreendimentos humanos para cumprir o seu
próprio objetivo. E, como um bom confuciano, fica especialmente preocupado
ao ver o funcionalismo público reduzido ao nível da prostituição e da guerra.
Porém, ao mesmo tempo, parece pensar que há muito pouco a fazer em relação
a tudo isto, que é simplesmente o rumo do mundo. O seu tom é de ironia
resignada, não de zelo reformista.
As antigas civilizações da Europa, Índia e China partilharam uma perspetiva
basicamente aristotélica, ainda que não fosse retirada de Aristóteles. Todas
consideravam que o comércio estava devidamente subordinado à política e à
contemplação, enquanto ao mesmo tempo reconheciam e temiam a sua
capacidade de subjugar essas outras atividades ao seu objetivo. Todas
consideravam que o amor do dinheiro pelo dinheiro era uma aberração. Essa
concordância entre três culturas grandiosas e muito independentes devia fazer-
nos refletir. Em questões relativas ao bem comum, a opinião do mundo não
pode estar totalmente errada. Também nós somos mais aristotélicos do que o
nosso pensamento oficial nos permite admitir. Independentemente do que os
defensores do crescimento possam dizer-nos, sabemos implicitamente que o
dinheiro é essencialmente um meio para desfrutar das coisas boas da vida, não
um fim em si. Afinal de contas, sacrificar a saúde, o amor e o lazer a um mero
molho de papel ou impulsos elétricos – haveria alguma coisa mais disparatada
do que isso?

O eclipse da vida boa

Apesar de toda a sua ressonância vestigial, a ideia da vida boa já não faz
parte da discussão pública no mundo ocidental. Os políticos defendem o seu
argumento em termos de escolha, de eficácia ou de proteção dos direitos. Eles
não dizem: «Penso que esta política ajudará as pessoas a viverem vidas
produtivas e civilizadas.» A discussão privada teve tendência para imitar a
discussão pública. Quantos professores tentaram interessar os alunos em
alguma questão de ética ou estética e lhes foi dito, com um ar de
condescendência cansada, que é tudo apenas uma questão de opinião?
O efeito deste desenvolvimento foi a libertação do instinto aquisitivo de
todos os limites fixados. Se a vida boa não existir, então a aquisição não tem
um objetivo absoluto, apenas o objetivo relativo de «tanto como» ou «mais do
que» os outros; um objetivo que, uma vez que é partilhado por esses outros,
nunca é cumprido. Imaginem, como uma analogia, dois homens a caminhar
para uma determinada cidade. Perdem-se durante o percurso, mas continuam a
andar, agora com o único objetivo cada um de ficar à frente do outro. Aqui está
uma imagem da nossa situação. O desaparecimento de todos os objetivos
intrínsecos deixa-nos apenas com duas opções: estar à frente ou atrás. A luta
posicional é o nosso destino. Se não há um sítio certo para estar, é melhor estar
à frente.
Como podemos explicar o eclipse da vida boa? No último capítulo,
descobrimos a origem da história da ideia de que motivos maus podem ser
autorizados em nome dos seus efeitos bons. Mas os escritores que examinámos
– Mandeville, Goethe, Marx, Marcuse e Keynes – não tinham a ilusão de que
os motivos maus são de facto maus. Eles próprios não acreditavam que bom é
mau e mau é bom, embora possam ter sido encorajados por outros a acreditar
nisso. No entanto, as últimas duas décadas viram o triunfo de dois movimentos
de pensamento cuja tendência combinada foi corroer a própria linguagem de
«bom» e «mau» – a teoria liberal moderna por um lado e o sistema económico
neoclássico por outro. Entre eles, estes dois movimentos estabeleceram um
monopólio virtual no discurso público, empurrando tradições éticas mais
antigas para uma posição marginal e alternativa.
Desde a publicação de A Theory of Justice de John Rawls, em 1971, os
pensadores liberais insistiram na neutralidade pública entre conceitos rivais de
bem148. Eles defendem que o Estado não devia apoiar esta ou aquela perspetiva
ética; pelo contrário, devia deixar os cidadãos livres para seguirem as suas
próprias luzes morais, desde que isso seja compatível com uma liberdade
semelhante para os outros. Escusado será dizer que este ideal filosófico nunca
foi plenamente concretizado na prática. O Estado francês não é neutral no
tratamento das mulheres que usam o véu muçulmano e nenhum Estado é liberal
em relação à heroína. Porém, ao nível do argumento, o ideal rawlsiano
triunfou. Atualmente, até políticas manifestamente paternalistas são defendidas
com o fundamento de que promovem a escolha ou previnem danos a terceiros.
Por exemplo, a pornografia é condenada com o fundamento dúbio de que
explora as mulheres ou incita os homens à violação, enquanto a sua verdadeira
ofensa – a de degradar gosto e sentimento – não é mencionada. Neste, como
noutros casos, o princípio de neutralidade teve um efeito desencorajador na
discussão pública, desviando o que deveriam ser argumentos éticos para
estéreis atalhos técnicos149.
O princípio da neutralidade do Estado está agora tão enraizado que, por
vezes, esquecemos até que ponto é revolucionário. Até à década de 1960, o
liberalismo era acima de tudo uma doutrina de tolerância, não de neutralidade.
A distinção é importante. Tolerância não é uma mera ausência de preconceito,
mas uma virtude ética positiva; implica paciência, serenidade, bom humor e
respeito pela privacidade. A tolerância não exclui a preferência pública por
uma doutrina moral ou religiosa relativamente a outras; insiste apenas que os
rivais sejam tratados com consideração e respeito. Por fim, a tolerância não tem
de ser alargada ao intolerável, ao passo que a neutralidade tem de ser
consistentemente universal. O Estado tolerante não enfrenta o dilema do Estado
neutral quando lida com necrófilos, neonazis e afins.
A mudança da tolerância para a neutralidade tem duas causas principais. A
primeira é o declínio do protestantismo liberal, o pilar da antiga cultura de
tolerância. A segunda é o aumento da diversidade étnica e cultural. A partir da
década de 1950, os Estados europeus abriram as portas a grandes números de
imigrantes não brancos e não cristãos, enquanto na América a ascendência
WASP150 foi atacada por negros, católicos e judeus. Em resultado desses
desenvolvimentos, qualquer preferência pública por uma tradição religiosa ou
cultural em detrimento de outras, por muito leve ou simbólica, passou a ser
sentida como humilhante. Ironicamente, a exigência de neutralidade veio tanto
de membros de antigas elites atormentados pela culpa como das próprias
minorias, muitas das quais prefeririam viver à sombra de uma confissão rival
tolerante do que sob um secularismo imparcial, mas despótico151.
A disciplina de economia tem uma importância ainda maior para a
desmoralização da vida pública, especialmente como é agora ensinada nas
universidades e institutos de finanças em todo o mundo. Os economistas –
generalizamos, mas não muito – abstêm-se conscientemente de julgar os
desejos. «Nada em economia define tão rapidamente um indivíduo como tendo
um treino incompetente», escreveu J. K. Galbraith, «como uma disposição para
comentar a legitimidade do desejo de mais comida e a frivolidade do desejo de
um carro mais sofisticado.»152 Os economistas são totalmente a favor da
satisfação dos desejos, pelo menos dentro de certos limites. Mas, quanto aos
desejos em si, mantêm uma fastidiosa indiferença.
Esta peculiaridade da economia é um produto das raízes da disciplina na
revolta empírica contra Aristóteles. «Os filósofos de antigamente perguntaram
em vão», escreveu John Locke, um líder dessa revolta, «se o summum bonum153
consistia em riquezas, ou prazeres corporais, ou virtude, ou contemplação: e
podiam ter discutido com igual razoabilidade se o melhor sabor podia ser
encontrado em maçãs, ameixas ou nozes.»154 Locke admite prudentemente que
a existência do céu e do inferno nos dá um interesse primordial para agirmos
virtuosamente, mas acrescenta que, se não fosse assim, nenhuma forma de vida
seria preferível a outra. Este ponto de vista cético passou para a economia da
corrente dominante sob o lema de «indisputabilidade dos desejos». O desejo já
não é, como era para os antigos, uma seta capaz de atingir ou falhar o alvo; é
um simples facto psicológico, inocente e infalível. Não há uma vida
intrinsecamente desejável, apenas uma série de estilos de vida desejados.
Quando esta pedra angular do pensamento económico pré-moderno é
removida, os outros blocos caem rapidamente no chão. O primeiro a cair é a
distinção entre necessidades e desejos. No conceito clássico, as necessidades
são objetivas; referem-se aos requisitos da vida ou a vida boa. Pelo contrário,
desejos são um fenómeno psicológico; estão «na mente» daquele que deseja.
Necessidades e desejos são independentes uns dos outros. A criança precisa do
seu remédio, mas não o deseja; o bibliófilo quer uma primeira edição de Blake,
mas não necessita dela. Uma necessidade de x estabelece uma reivindicação
moral de x, ao passo que o simples desejo de x não estabelece. Os mendigos
falam sobre as suas necessidades, nunca sobre os seus desejos155.
Tendo abandonado o conceito da vida boa, a economia moderna não
consegue compreender a distinção entre necessidades e desejos. «O Arthur
precisa de um casaco» tem de ser lido como uma abreviatura de «O Arthur
precisa de um casaco para…», onde as reticências expressam algum desejo de
Arthur. Com muito esforço, os economistas poderiam admitir a existência de
necessidades de subsistência, mas provavelmente acrescentariam que até essas
necessidades estão dependentes do desejo (normalmente fiável) de estar vivo.
Outra estratégia comum é interpretar as necessidades como uma classe especial
de desejos – nomeadamente, aqueles que são relativamente indiferentes às
flutuações de preços, ou de «preços não elásticos» na gíria. Mas isto é uma
revisão, não uma clarificação, do nosso conceito normal de desejo. A heroína
não é elástica aos preços, mas os toxicodependentes não precisam de heroína.
Podem falar sobre «precisar de uma dose», mas, exceto nos casos em que a sua
vida está em risco, isto não é literalmente verdadeiro. Eles só desejam muito
uma dose.
A par da distinção entre necessidades e desejos está a distinção intimamente
relacionada entre necessidades e luxos. No sentido clássico, necessidades são
coisas de que precisamos para a vida ou a vida boa. «Homem algum pode viver
bem, ou sequer viver, a menos que tenha o essencial.»156 Pelo contrário, luxos
são coisas que as pessoas querem, mas de que não necessitam. Uma vez mais,
os dois termos estão moralmente carregados: necessidades são itens a que as
pessoas têm algum direito, embora nem sempre prioritário; luxos são extras
opcionais e, possivelmente, corruptores. Uma necessidade nunca deve ser
sacrificada a um luxo. Mas, se a vida boa não existe, então os «bens essenciais»
podem referir-se apenas a bens de subsistência como comida e abrigo, ou aos
requisitos de um determinado papel social. E neste último sentido são apenas
convencionalmente, não naturalmente, diferentes dos luxos. As viagens em
primeira classe são uma necessidade para o executivo, mas não para a pessoa
que viaja de mochila às costas. Atualmente as casas de banho dentro das casas
são consideradas uma necessidade na Grã-Bretanha, mas isso não acontecia há
50 anos.
A seguir cai o conceito de «adequação» ou suficiência. Se para o pensamento
aristotélico «suficiente» significa «suficiente para a vida boa», para o
economista moderno só pode significar «suficiente para satisfazer desejos». (É
neste espírito que Billy Bunter157 poderia exclamar, enquanto lança um olhar
brilhante aos presuntos na sua despensa, «não há suficientes».) Interpretada
neste sentido relativo a desejo, a nossa pergunta «quanto é suficiente?» só pode
ser respondida com um encolher de ombros e um «quanto queres?» E é claro
que, se suficiente significar apenas «suficiente para satisfazer desejos», querer
mais do que o suficiente é uma coisa que não existe. A avareza enquanto vício
desaparece da vista.
Por fim, mas não menos importante, a economia moderna prescindiu do
conceito central de valor de uso. Para Aristóteles, como vimos, o valor de uso
de um objeto é o seu contributo específico para a vida boa. O vinho, por
exemplo, valoriza a comida e a amizade, ambos bens humanos fundamentais.
Por conseguinte, tem valor de uso, ao passo que o crack (que não valoriza nem
a comida nem a amizade, nem nenhuma outra coisa boa) não tem. O facto de
eu preferir crack a vinho não altera este facto; mostra simplesmente que tenho
um gosto corrompido.
O conceito de valor de uso de Aristóteles foi adotado por Smith, Ricardo e,
evidentemente, Marx, que o aplicou numa enérgica obra crítica. Mas no final
do século XIX, e em parte em reação a Marx, economistas dedicaram-se a
desmantelá-lo. «O valor», escreveu Carl Menger, um pioneiro da nova
abordagem, «não é nada inerente aos bens, não é propriedade deles, nem uma
coisa independente que existe por si só. É um julgamento que os homens
economizadores fazem sobre a importância dos bens que têm à sua
disposição.»158 Este novo conceito de valor, mais conhecido por «utilidade»,
tornou-se desde então padrão na disciplina. Utilidade é um conceito puramente
descritivo; expressa o que eu quero, não o que eu deveria querer. Se prefiro
gastar o meu dinheiro em crack e não em vinho – bem, então o crack tem mais
utilidade para mim.
A descoberta da utilidade foi aclamada como um grande avanço na análise
económica, principalmente porque pareceu resolver o velho problema de
Aristóteles da relação entre o valor de uso e o valor de troca. Aristóteles tinha
refletido sobre como um porco e uma cama, que contribuem para a vida boa de
formas muito diferentes, podiam, não obstante, ser avaliados numa única escala
monetária. Mas à luz desta nova perspetiva o problema desaparece. Se o valor
de uso for apenas «utilidade no consumo», e o valor de troca «utilidade na
troca», os dois surgem, nas palavras de Menger, meramente como «diferentes
formas de um único fenómeno geral de valor»159. Deixa de existir o problema
metafísico de transformar um tipo de valor noutro e passa a haver apenas o
problema técnico de determinar em que ponto os bens de consumo serão
trocados em vez de serem usados. Todavia, como acontece tantas vezes na
história das ideias, o problema de Aristóteles não foi verdadeiramente
resolvido, mas substituído por outro problema mais tratável. Compreendido no
seu sentido original, como utilidade real e não simples utilidade no consumo, o
valor de uso deixa de poder ser transformado em valor de troca.
A dissolução da distinção entre valor de uso e valor de troca estava repleta de
importância. Desde Aristóteles até Keynes, o valor de troca – ou dinheiro, a sua
personificação pura – foi considerado um objeto de busca distinto e
questionável. Virgílio falou na auri sacra fames, a luxúria abominável por
ouro. Para Keynes, o amor pelo dinheiro «como uma posse» e não apenas
como «um meio para os prazeres e realidades da vida», foi «uma daquelas
propensões semicriminosas e semipatológicas que entregamos com um
estremecimento aos especialistas em doenças mentais»160. Todavia, se a
ortodoxia moderna estiver correta, a distinção aqui feita por Keynes não tem
substância. O dinheiro em si, distinto das coisas que domina, não pode ser um
objeto especial de amor. A paixão de Midas e de Shylock não é uma paixão
positiva, mas simplesmente uma preferência pelo consumo futuro
relativamente ao consumo presente, ou uma certa dose de aversão ao risco.
Algumas pessoas veem isto como um sinal de progresso intelectual. Sentimo-
nos inclinados a considerar que é uma regressão do pensamento económico.
Paremos para fazer um inventário. As diversas distinções estabelecidas pelo
pensamento económico pré-moderno – entre necessidades e desejos, coisas
indispensáveis e luxos, valor de uso e de troca – baseiam-se na suposição de
que algumas formas de vida são intrinsecamente superiores a outras. A
economia moderna prescindiu desta suposição. Já não aspira a realizar o Bem,
mas apenas a criar condições em que as pessoas podem realizar «o bem» tal
como o concebem. «Dado o sem-número de conceitos concorrentes da vida
boa», escreve o economista Robert Frank, resumindo a opinião ortodoxa, «o
máximo que podemos esperar nas nossas instituições sociais será talvez que
concedam a cada um de nós a maior latitude possível para criarmos vidas
adequadas para nós.»161 Os economistas não ambicionam refazer a natureza
humana. Aceitam as pessoas como elas são, não como deveriam ser. Depois de
todos os horrores cometidos em nome do céu e da utopia, esta parece-lhes uma
atitude adequadamente modesta.
Mas porque é que – poderia perguntar um crítico neste ponto – deveríamos
privilegiar o que os economistas dizem? Afinal de contas, não passam de um
grupo de académicos entre outros, e nem sequer são um grupo muito popular.
Mas essa rejeição seria insensata. A economia não é uma simples disciplina
académica. É a teologia do nosso tempo, a linguagem que todos os interesses,
pequenos e grandes, têm de falar se querem ter uma voz respeitada nos centros
de poder. Em parte, a economia deve a sua posição especial à incapacidade de
outras disciplinas imprimirem o seu cunho no debate político. A filosofia foi
uma força poderosa na vida pública até ao início do século XX, quando bateu
em retirada para a minúcia linguística. A sociologia procurou ser influente sob
Weber e Talcott Parsons, mas nunca conseguiu desenvolver um corpo
sistemático de teoria para rivalizar com a economia. A história sucumbiu à
adoração do poder. Poetas e críticos gabaram-se em tempos de serem
«legisladores não reconhecidos do mundo», uma ambição brevemente
reavivada por T. S. Elliot e F. R. Leavis, mas agora discretamente abandonada.
A economia ficou como a única proprietária do campo.
O triunfo da economia sobre as suas rivais académicas reflete uma mudança
social maior, que poderia ser rotulada como o colapso da autoridade
institucional. Ideais da vida boa, enraizados na igreja e na aristocracia rural e
promovidos por uma «elite intelectual» de escritores, artistas e fidalgos,
exerceram uma força poderosa na Grã-Bretanha já no século XX. Nas cidades
industriais, padrões partilhados de trabalho deram origem a formas de vida que,
se não eram exatamente «boas» no sentido de Aristóteles, eram pelo menos
mais que puramente maximizadoras. Tudo isto já desapareceu. A aristocracia,
privada do seu papel político, fundiu-se nos ricos; a «elite intelectual» é uma
roda pequena e nada influente; as velhas Igrejas são sombras do que foram; e a
classe operária está espalhada e sem vigor. A economia neoclássica, atomista e
subjetivista, cresceu para encher o vazio.
As duas tradições de pensamento examinadas aqui, o liberalismo pós-
rawlesiano e a economia neoclássica, proíbem qualquer preferência pública por
este ou aquele estilo de vida. Nenhum deles tem qualquer objeção a que os
indivíduos decidam por si mesmos que um determinado estilo de vida é «bom»
e não trabalhem mais do que o necessário para sustentá-lo. (Se a sua «função
de utilidade» é moldada dessa forma, quem somos nós para contradizê-los?)
Mas esta concessão é menos generosa do que pode parecer. Para uma espécie
social como a nossa, a vida boa é essencialmente uma vida em comum com
outros. A sua origem não é nos cérebros dos indivíduos, mas em grupos de
pessoas que fazem coisas juntas. O meu desejo pode ser de passar o dia inteiro
a jogar ao berlinde na praça da cidade, mas se mais ninguém jogar ao berlinde,
ou se não houver uma praça na cidade, esse desejo não se realizará. A
participação coletiva é essencial para todas as visões da realização humana,
exceto para as mais solitárias.
É claro que, numa sociedade liberal, não há nada que impeça os indivíduos
de se reunirem para viver a vida boa. Tipicamente, utópicos e sectários fazem
precisamente isso. Todavia – e isto realça um segundo sentido mais profundo
em que a vida boa é essencialmente pública –, essas associações dependem da
sua vitalidade continuada no reconhecimento da cultura circundante; sem ela, é
provável que implodam em desconfiança e ressentimento. (Compare-se o
destino da maioria das comunas modernas com o dos mosteiros medievais,
apoiados como eram por toda a sociedade, quer moral quer materialmente.)
Num mundo dedicado à satisfação dos desejos privados, a vida boa pode ser na
melhor das hipóteses uma preocupação marginal, um assunto de excêntricos e
entusiastas. Os seus adeptos estão sujeitos a ser atormentados pelo pensamento
de que não estão «à altura» das pressões da concorrência, que os seus ideais são
uma mera máscara de fracasso. Logo, embora seja verdade que uma sociedade
liberal permite qualquer número de visões da vida boa, não é, na mesma linha,
hospitaleira para nenhum deles.

A ideia da vida boa é universal no pensamento humano e surge


independentemente no mundo inteiro. Apenas considerámos aconselhável
eliminá-la. Não a vida boa, mas a própria vida – o seu conforto, conveniência e
prolongamento – tornou-se o nosso objetivo primordial. A nossa era é aquela
em que Nietzsche previu que «o homem deixará de disparar a seta do seu
desejo para lá do alcance do homem e o fio do seu arco deixará de saber
zumbir!»162
O eclipse da vida boa explica a expansão interminável dos desejos referida
no Capítulo 1. Foi sempre reconhecida uma tendência para a insaciabilidade,
mas ela foi anteriormente contida por proibições e ideais contrabalançados.
Essas proibições e ideais já desapareceram. Desligados de qualquer visão do
bem humano, e fomentados pela inveja e pelo tédio, os desejos multiplicam-se
como as cabeças da mítica hidra.
Porém, o pessimismo não é minorado. As visões da vida boa descritas neste
capítulo confinaram-se a pequenas elites que vivem do trabalho de outros,
muitas vezes de escravos. As economias tradicionais eram incapazes de
suportar um determinado número acima do nível de subsistência. Agora, pela
primeira vez na História, estamos numa posição em que é possível retificar esta
injustiça secular. Temos a capacidade material para alargar a vida boa, ou pelo
menos a possibilidade de vida boa, a todos. Os requisitos para o crescimento
humano já não entram em conflito com as exigências da justiça humana.
Mas e se a vida boa não estiver apenas contingentemente, mas, em princípio,
indisponível para todos os membros de uma sociedade, da mesma forma que os
epítetos «melhor» e «mais alto» estão indisponíveis? E se for um conceito
inerentemente snobe ou contrastivo, um conceito que tem como pressuposto a
existência de formas de vida que não são boas? A desconfiança é
desconfortavelmente plausível. Uma grande parte da ética clássica ressuma
desprezo pelos inferiores e mal nascidos, e até a virtude cristã da caridade
parece ligada à suposição de que (como Jesus disse) os pobres estão sempre
connosco. Se a ideia da vida boa se baseia no que Nietzsche chamou «o pathos
da distância», parece irreconciliável com a democracia que a maioria das
pessoas preza.
Uma resposta cabal a esta objeção tem de esperar até ao Capítulo 6. Mas
vamos dizer apenas, para tranquilizar os leitores, que a nossa visão da vida boa
não se baseia num contraste com outras formas de vida mais baixas. Os
prazeres da mestria e da condescendência não fazem parte dela. Esta restrição
exclui uma grande parte da ética pré-moderna. Não gostaríamos de ressuscitar
o ideal de Aristóteles do homem «de alma grande», deliciado com a
consciência da sua superioridade. No entanto, nem toda a ética pré-moderna
merece desconfiança. Só porque uma ideia da vida boa esteve historicamente
ligada ao privilégio, não significa que tem como consequência lógica o
privilégio. Os cavalheiros eram uma pequena elite, mas os modos elegantes
estão em princípio ao alcance de todos. É preciso resistir ao pessimismo de
Nietzsche.
Assim, a nossa tarefa é recuperar os fragmentos de sabedoria que ainda
existem, quer em tradições passadas, quer nas nossas intuições profundamente
enraizadas, para reconstruirmos a partir delas uma imagem da vida boa. Se
conseguirmos fazer isto, poderemos conseguir reviver, numa forma
democratizada, um pouco da douceur das grandes civilizações do passado, e
talvez até o seu vigor criativo. Mefistófeles não terá a sua vitória.
Antes de apresentarmos a nossa visão da vida boa, temos de olhar para duas
outras tentativas influentes de parar o ideal de crescimento. A primeira apela ao
conceito de felicidade e a segunda ao de sustentabilidade. Estamos solidários
com os objetivos dos dois movimentos, mas acreditamos que eles alteram a
verdadeira base da nossa objeção ao crescimento infinito, que é ética, não
utilitária.
119 Joseph Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova Iorque: Oxford University Press, 1954), p.
57.

120 Esta interpretação é controversa. Aqui estamos a seguir a chamada escola «primitivista», que vê um
golfo radical entre a economia antiga e o capitalismo moderno. Ver Scott Meikle, Aristotle Economic
Thought (Oxford: Clarendon Press, 1995), uma obra para com a qual temos uma enorme dívida de gratidão.

121 Aristóteles, Nicomachean Ethics, tr. Christopher Rowe e Sarah Broadie (Oxford: Oxford University
Press, 2002), p. 251. Na outra importante obra ética de Aristóteles, Eudemian Ethics, ele é mais imparcial
entre a vida ativa e a vida filosófica.

122 Aristóteles, Politics, in The Complete Works of Aristotle, ed. Jonathan Barnes, vol. 2 (Princeton:
Princeton University Press, 1984), p. 1989.

123 Não é por acaso que a terminologia de Marx se encaixa tão bem no relato de Aristóteles. Marx foi
profundamente influenciado por Aristóteles.

124 Georg Simmel, The Philosophy of Money, tr. Tom Bottomore e David Frisby (Boston, Mass.:
Routledge, 1978), p. 255.

125 Citado em Robert Skidelsky, John Maynard Keynes: The Economist as Saviour 1920-1937 (Londres:
Macmillan, 1992), p. 476.

126 Aristóteles, Politics, p. 1997.

127 Ibid., p. 1996.

128 Aristófanes, «Wealth» [Riqueza], in The Knights/Peace/The Birds/The Assemblywomen/Wealth, tr.


Alan H. Sommerstein (Londres: Penguin, 1978), pp. 277-278.

129 Horácio, Satire 1, linhas 39-40, in Satires, Epistles and Ars Poetica, tr. H. Rushton Fairclough (Londres:
Heinemann, 1961), p. 7.
130 Em francês no original: sempre mais. (N. da T.)

131 Ver Peter Brown, Poverty and Leadership in the Later Roman Empire (Hanôver, NH: Brandeis
University Press, 2002).

132 Tomás Aquino, Summa Theologiae, tr. T. C. O’Brien, vol. 41 (Londres: Blackfriars, 1972), p. 243.

133 Citado em Anne Derbes e Mark Sandona, «Barren Metal and the Fruitful Womb: The Program of
Giotto’s Arena Chapel in Padua» [Metal Estéril e o Útero Fértil: O Programa da Capela Arena de Giotto em
Pádua], Art Bulletin, vol. 80 (1998), p. 227.

134 Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, tr. Talcott Parsons (Londres: Routledge,
1992), p. 73.

135 Como Amartya Sen nos recordou recentemente [em The Argumentative Indian (Londres: Allen Lane,
2005)], não faltava vida intelectual secular na Índia antiga. Houve importantes avanços na matemática,
astronomia, metafísica e lógica, bem como tratados sobre administração escritos de um ponto de vista
secular. No entanto, o pensamento ético em oposição ao pensamento teórico e político manteve-se
intimamente ligado ao mito e ao ritual.

136 Patrick Olivelle, tr., The Dharmasutras (Oxford: Oxford University Press, 1999), pp. 35, 31.

137 Para mais debate, ver Max Weber, The Religion of India: The Sociology of Hinduism and Buddhism, tr.
Hans H. Gerth e Don Martindale (Glencoe, Ill.: Free Press, 1958), pp. 84-85.

138 Os Dharmasutras estão divididos na questão do juro. Os Dharmasutras de Apastamba, Baudhayana e


Vasistha proíbem-no; o de Gautama permite-o.

139 Olivelle, The Dharmasutras, p. 326.

140 Robert Ernest Hume, tr., The Thirteen Principal Upanishads (Oxford: Oxford University Press, 1921),
p. 141.

141 Ver Chakravarthi Ram-Prasad, Eastern Philosophy (Londres: Weidenfeld and Nicolson, 2005), p. 212 :
«É inegável que a teoria lógica é um pouco marginal na filosofia chinesa, desempenhando apenas um
pequeno papel durante a curta ascendência budista.»

142 O budismo é normalmente contado como o terceiro ensinamento tradicional na China, mas em termos
da sua influência na cultura em geral pode ser associado ao taoismo.

143 Confúcio, The Analects, tr. Arthur Waley (Ware: Wordsworth, 1996).

144 Li Bai, «On a Banquet with my Cousins on a Spring Night in the Peach Flower Garden» [Num
Banquete com os meus Primos numa Noite de Primavera no Jardim de Flor de Pêssego], in Burton Watson
(tr.), Chinese Lyricism: Shih Poetry from the Second to the Twelfth Century (Nova Iorque: Columbia
University Press, 1971).

145 Citado em Lin Yutang, The Importance of Living (Nova Iorque: Harper, 1998), pp. 132-136.

146 Palavra de origem alemã também usada noutras línguas para designar o sentimento de alegria e prazer
pelo sofrimento ou infelicidade dos outros. (N. da T.)

147 Burton Watson, Records of the Grand Historian of China, vol. 2, tr. de Shih chi of Ssu-ma Ch’ien
(Nova Iorque: Columbia University Press, 1961), pp. 491-492.

148 Entre os «neutralistas» notáveis contam-se, a par de Rawls, Ronald Dworkin e Robert Nozick. Outros
filósofos liberais, nomeadamente Joseph Raz, foram críticos em relação a esta ideia. Mas no cenário
político mais vasto foram os neutralistas, não os seus críticos, que tiveram maior influência.

149 Esta questão foi abordada com grande força por Michael Sandel em Justice: What’s the Right Thing to
Do? (Londres: Allen Lane, 2009), pp. 244-269.

150 Brancos, anglo-saxões e protestantes. (N. da T.)

151 Taraq Modood, por exemplo, defendeu a estrutura religiosa na Grã-Bretanha, mas afirmou que já podia
ter sido alargada para outros grupos religiosos. Ver Tariq Modood, Multicultural Politics: Racism, Ethnicity,
Muslims in Britain (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005), pp. 146-150.

152 John Kenneth Galbraith, The Affluent Society (Londres: Hamish Hamilton, 1958), p. 115.

153 Expressão usada na filosofia, especialmente na filosofia medieval e na filosofia de Immanuel Kant,
para designar o bem maior que o ser humano deve buscar. (N. da T.)

154 John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, vol. 1 (Oxford: Clarendon, 1894), p. 351.

155 Para uma discussão clássica moderna da distinção entre necessidades/faltas, ver David Wiggins,
«Claims of Need» [Reivindicações de Necessidade], in Wiggins, Needs, Values, Truth: Essays in the
Philosophy of Value (Oxford: Oxford University Press, 1998), pp. 1-49.

156 Aristóteles, Politics, p. 1989.

157 Personagem de ficção, criado por Charles Hamilton (1876-1961). (N. do E.)

158 Carl Menger, Principles of Economics, tr. James Dingwall e Bert F. Hoselitz (Glencoe, Ill.: Free Press,
1950), pp. 120-121.

159 Ibid., p. 229.

160 Virgílio, Aeneid, Bk. 3, linha 56; John Maynard Keynes, Essays in Persuasion, The Collected Writings
of John Maynard Keynes, vol. 9 (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), p. 369.

161 Robert H. Frank, Luxury Fever: Money and Happiness in an Era of Excess (Princeton: Princeton
University Press, 2000), p. 66.

162 Friedrich Nietzsche, «Thus Spoke Zarathustra» [Assim Falou Zaratustra], in Walter Kaufmann (ed.),
The Portable Nietzsche (Harmondsworth: Penguin, 1959), p. 129.
4

A Miragem da Felicidade

É sem dúvida um pensamento estranho que o fim seja diversão e que a atividade e o
sofrimento ao longo da vida sejam para nos divertirmos.
Aristóteles

Durante muito tempo, os intelectuais acusaram o crescimento económico de


não conseguir fazer-nos felizes. «O progresso das ciências e das artes não
acrescentou nada à nossa felicidade genuína», escreveu Jean-Jacques Rousseau
em 1751163. Certamente despertou inveja, ambição e pura curiosidade – paixões
que não podem, pela sua natureza, ser plenamente ou universalmente
satisfeitas. A verdadeira felicidade é o fruto de gostos simples e virtudes
austeras. O seu símbolo é a antiga Esparta, não a Paris moderna.
A queixa de Rousseau foi ressuscitada recentemente, agora munida das
armas da ciência estatística. «A economia da felicidade», como o novo ramo é
chamado, pretende mostrar que os cidadãos do mundo desenvolvido, apesar de
serem globalmente bastante felizes, não estão a ficar mais felizes. Os relatórios
dos níveis de felicidade na Grã-Bretanha quase não mexeram desde 1974,
enquanto o PIB real per capita aumentou quase para o dobro. Outros países
desenvolvidos revelam padrões semelhantes. Aparentemente, acima de um
certo nível o rendimento absoluto e a felicidade não estão relacionados. Em
conformidade, os economistas da felicidade aconselharam as nações
desenvolvidas a mudarem o seu objetivo do PIB para a FIB – «Felicidade
Interna Bruta». As suas críticas não passaram despercebidas. Em 2010, David
Cameron deu a conhecer um novo «índice de bem-estar» para complementar os
índices macroeconómicos tradicionais. A felicidade já é uma política séria.
Os economistas da felicidade têm as melhores intenções. Estão
acertadamente alarmados com o divórcio do crescimento económico de
qualquer fim humanamente inteligível; querem recordar-nos a antiga verdade
de que a riqueza existe para o homem, não o homem para a riqueza.
Lamentavelmente, a sua emancipação da ortodoxia está longe de ser perfeita.
Como os seus colegas mais convencionais, veem o problema económico
essencialmente como um problema de maximização; só se afastam da
convenção na escolha do que maximizar. As lacunas desta abordagem são
múltiplas. Em primeiro lugar, tem demasiada fé na exatidão dos dados dos
inquéritos. Mais perturbador, trata a felicidade como um bem simples e
incondicional, mensurável numa única dimensão. As origens ou objetivos da
felicidade são ignorados. A única coisa que importa é se temos mais ou menos
felicidade. Essas ideias são falsas e perigosas. De uma maneira geral, a
felicidade só é boa quando é adequada; quando deve haver tristeza, é preferível
estar triste. Fazer da felicidade em si, independentemente das suas finalidades,
o principal objetivo do governo é uma receita para a infantilização – a
perspetiva memoravelmente dramatizada por Aldous Huxley em Admirável
Mundo Novo. Não queremos banir os engenheiros do crescimento apenas para
vê-los substituídos pelos engenheiros da felicidade.

Uma história muito breve da felicidade

Todos sabemos a que se refere a palavra «felicidade» – aquela coisa amorosa


e familiar que os pais desejam para os filhos e as heroínas românticas anseiam
no casamento. Todavia, quando temos de explicar o que significa deparamo-
nos com uma desconcertante quantidade de definições contraditórias. A
felicidade é um daqueles «conceitos essencialmente contestados» cujo debate
não pode ser resolvido nem abandonado. Em suma, é um conceito filosófico.
A primeira discussão alargada de felicidade no mundo ocidental surge no
início das Histórias de Heródoto, com a visita de Sólon de Atenas a Creso, o
fabulosamente rico rei de Lídia. Creso pergunta a Sólon se, durante as suas
viagens, encontrou alguém «mais feliz que todos os outros». Ignorando
deliberadamente este convite para fazer um elogio ao seu anfitrião, Sólon
refere um certo Tellus como o mais feliz dos homens. Insultado, Creso exige
uma explicação. É assim que Sólon lhe responde:

Em primeiro lugar […] enquanto vivia num estado próspero, Tellus teve filhos que foram homens
bons e íntegros e viveu para os ver todos a terem filhos, e todos sobreviveram. Em segundo lugar, a
morte veio quando ele tinha um bom rendimento, pelos nossos padrões, e foi uma morte gloriosa.
Numa batalha em Elêusis entre Atenas e os seus vizinhos ele penetrou na brecha e fez o inimigo virar
costas e fugir; ele morreu, mas a sua morte foi esplêndida e os atenienses fizeram-lhe um funeral
público no local onde ele caiu, e cobriram-no de honras164.

O conceito de felicidade revelado neste texto é, simultaneamente, familiar e


estranho para nós. Podemos compreender porque é que Sólon mencionou a
riqueza de Tellus, os seus filhos e netos bons. Naturalmente, essas coisas fazem
um homem feliz! Mais difícil de compreender é a sua insistência na morte e no
funeral gloriosos de Tellus. Seguramente, tudo isto não fez nada pelo próprio
Tellus, embora alegrasse os seus parentes vivos? (Claro que Tellus poderia ter
tido alguns momentos finais felizes a contemplar a sua nobre morte, e a sua
alma, se tivesse sobrevivido, poderia ter gostado do espetáculo da sua fama
póstuma, mas não parece ser isto que Sólon tem em mente.) O ponto capital do
mistério é que a eudaimonia, a palavra grega convencionalmente traduzida
como «felicidade», não se refere de todo a um estado de espírito, mas a um
admirável e desejável estado de ser. É uma questão de apreciação pública, não
de consciência privada. Se este conceito nos parece hoje estranhamente anfíbio
– parte felicidade, parte sucesso, parte virtude – é porque nós somos herdeiros
da revolução conceptual que será descrita com maior pormenor mais adiante.
Essa revolução colocou além do nosso alcance uma noção que, ao longo da
maior parte da história ocidental e ainda hoje em muitas regiões do mundo não
ocidental, tinha parecido perfeitamente transparente.
A história de Sólon realça outra característica do conceito pré-socrático de
felicidade: a sua dependência do destino. A morte de Tellus é crucial para a sua
felicidade não apenas porque é gloriosa, mas porque o salvaguarda de mais
perdas. «Não se diga de nenhum homem que é feliz enquanto não estiver
morto», é como Sólon diz famosamente – palavras mais tarde recordadas por
Creso quando é queimado até à morte pelos persas vencedores. A moral de
Heródoto é clara: num mundo incerto, governado por deuses ciumentos,
vangloriar-se de felicidade é arrogância e loucura.
A visão da felicidade de Sólon como um presente do destino, precário e
revogável foi um tema central da literatura da antiga Grécia, mais
memoravelmente da tragédia. No entanto, a partir do final do século V a. C.
passou a ser atacada pelo movimento alternativo elitista conhecido como
filosofia. Os filósofos proclamaram que a felicidade é uma realização da
sabedoria e da virtude, ambas ao nosso alcance. Sócrates e Platão foram ao
ponto de afirmar que nada, nem sequer a tortura, podia tirar a felicidade de um
homem bom. Aristóteles foi tipicamente mais sensato. Mesmo que a felicidade
esteja na virtude, retorquiu ele, continua a ser vulnerável ao acaso uma vez que
a virtude em si, ou pelo menos o seu exercício, precisa de circunstâncias
favoráveis. Certamente ninguém diria que Príamo, que perdeu os filhos e o
reino, era feliz, enquanto aqueles que descrevem um homem que passou pelo
suplício da roda como sendo feliz estão simplesmente a «dizer disparates»165.
Todas as visões antigas de felicidade, com a importante exceção do
epicurismo, têm um carácter objetivo; debruçam-se sobre a questão: «O que é a
vida boa para o homem, a vida mais completa e mais plenamente humana?»
Eles não estão preocupados em alcançar determinados estados de espírito. O
cristianismo manteve-se dentro desta estrutura enquanto a forçava para um
limite paradoxal. A felicidade continua a ser o objetivo do homem, mas não é
encontrada em bens mundanos, nem sequer nos bens morais e intelectuais
exaltados pelos filósofos. Antes, encontra-se nas condições identificadas pelo
senso comum como infelicidade, na pobreza, solidão, perseguição e morte.
«Abençoado sejas», diz Cristo, «quando os homens te insultarem, e te
perseguirem, e disserem todos os tipos de mal sobre ti falsamente.» Esta ainda
é eudaimonia no sentido antigo, embora esteja o mais longe possível do singelo
conceito de Sólon.
A palavra inglesa «happiness», como os seus cognatos europeus, foi
originalmente sinónimo de eudaimonia. Ser feliz era ter boa «hap» ou sorte,
estar num estado abençoado, invejável. «Nós, os poucos, os felizes poucos»,
diz Henrique V de Shakespeare para as suas tropas antes de Agincourt,
plenamente convencido de que os homens seriam mortos ou estropiados. Esta
antiga utilização sobrevive em frases feitas como «feliz regresso» e «acaso
feliz», mas foi mais ou menos substituída no inglês moderno pelo novo
significado, que remonta ao século XVI, de um estado de espírito agradável ou
satisfeito. Os desenvolvimentos filosóficos tiveram influência nesta mudança
linguística. Se a consciência é a essência da humanidade, como Descartes e
Locke defendiam, então a felicidade tem de ser alguma coisa inerente a ela. Os
bens que se considerou em tempos que constituíam felicidade – riqueza, honra,
fama, etc. – parecem agora apenas algumas das muitas causas de felicidade,
variando de pessoa para pessoa. Debater qual delas «é verdadeiramente»
felicidade é absurdo; poder-se-ia debater, como vimos Locke afirmar
satiricamente no Capítulo 3, «se o melhor sabor podia ser encontrado em
maçãs, ameixas ou nozes»166.
As consequências desta transformação foram profundas. Se a felicidade é o
Bem, como a tradição ensinou, e se é um estado de espírito agradável, como a
filosofia proclamou agora, então o Bem em si é um agradável estado de
espírito. Este pensamento transformar-se-ia no utilitarismo, a tradição
dominante na ética pública britânica desde o século XIX. Na sua forma
benthamita clássica, o utilitarismo define a ação certa como aquela que
maximiza a felicidade ou o prazer geral, sendo estes dois estados considerados
equivalentes. Os objetivos da felicidade ou do prazer não têm qualquer
importância; o que importa é a quantidade. «Sendo o prazer igual», escreveu
Bentham famosamente, «o jogo do botão é tão bom como poesia.»167 Esta
lúgubre doutrina apelava fortemente à imaginação tecnocrática. Em vez da
anarquia de opinião, prometia uma regra mecânica para resolver conflito moral
e legal, um «felicific calculus», como Bentham lhe chamou. Nunca foi
plenamente explicado como esse cálculo poderia funcionar na prática. A
própria formulação de Bentham, com os seus sete vetores de intensidade,
duração, certeza, afinidade, fecundidade, pureza e dimensão, é uma pantomima
de raciocínio científico. Como veremos, o problema da medição confunde o
utilitarismo até aos nossos dias.
O utilitarismo nasceu do mesmo solo que a economia política clássica.
Bentham pertencia ao círculo mais próximo de Ricardo e James Mill; as suas
ideias foram adotadas com importantes modificações pelo filho de James, John
Stuart. Dir-se-ia até que a revolução marginalista do final do século XIX
reforçou esta ligação. Enquanto economistas anteriores se tinham focado na
expansão da produção, os marginalistas realçaram os prazeres do consumo.
«Satisfazer os nossos desejos ao máximo com o mínimo esforço», escreveu
William Stanley Jevons, um pioneiro da nova abordagem, «conseguir a maior
quantidade do que é desejável em detrimento do mínimo que é indesejável –
por outras palavras, maximizar o prazer é o problema da Economia.»168 F. Y.
Edgeworth, o brilhante embora excêntrico autor de Mathematical Psychics, foi
ainda mais longe. Para percebermos o projeto económico, afirmou, temos de
postular um «hedonímetro», um «instrumento idealmente perfeito» para medir
quantidades de prazer:

O hedonímetro varia de um momento para outro; o delicado índice a tremeluzir agora com a
excitação das paixões, a seguir estabilizado pela atividade intelectual, mergulhando durante horas
inteiras na vizinhança do zero, ou saltando momentaneamente para o infinito. A altura continuamente
indicada é registada por aparelhos fotográficos ou outros aparelhos sem atrito num plano vertical
uniformemente móvel […] Só temos de acrescentar outra dimensão para expressar o número de
sencientes e integrar todo o tempo e toda a sensibilidade para constituir o objetivo do utilitarismo
puro169.
É certo que chegámos muito longe desde a antiga Grécia. Pensa-se que Tellus
não teria ficado muito bem num hedonímetro.
Nas primeiras décadas do século XX, os economistas começaram a sentir-se
incomodados com as bases psicológicas da sua disciplina. O behaviorismo era
a grande moda; a especulação sobre estados mentais era proibida por ser
considerada não científica. Felizmente, percebeu-se que a maior parte da teoria
económica podia ser reconstruída sem referência a esses estados. Foi
demonstrado que a única coisa que é necessária é a suposição de que os
consumidores têm um conjunto coerente de preferências, reveladas no seu
comportamento. Na medida em que essas preferências são satisfeitas, diz-se
que possuem «utilidade». Por exemplo, se me oferecem uma maçã e uma pera,
e eu escolho a pera, então por hipótese a pera é mais útil para mim do que a
maçã. Porém, dizer tudo isto é não dizer nada sobre os meus estados mentais,
apenas sobre as minhas tendências de comportamento. Os hedonímetros e afins
podem ser postos de lado por serem irrelevantes.
Esta reconstrução teórica – o trabalho de uma série de grandes economistas
desde a década de 1900 até à década de 1930 – permitiu à profissão manter
uma atitude de alegre indiferença perante os factos da psicologia humana. Do
ponto de vista económico, não importa se as pessoas são altruístas, egoístas,
hedonistas, masoquistas ou outra coisa qualquer; a única coisa que importa é
que têm certas preferências e seguem-nas. Porém, este formalismo teve um
custo. O século XIX presumiu que maior riqueza levaria a maior felicidade, no
verdadeiro sentido benthamita. Mas todos os economistas modernos podem
dizer que maximiza a utilidade, o que significa a «satisfação das preferências
do consumidor». Se a satisfação das preferências do consumidor significa
felicidade é uma questão sobre a qual eles estão necessariamente silenciosos. O
projeto de crescimento económico começou a parecer o Bugs Bunny a cair de
um precipício – as suas patas continuam a mover-se, mas não têm nada para
apoiá-las.
Nas décadas de 1930 e 1940, no meio de uma recessão e guerra globais,
essas preocupações foram postas de lado como académicas. No entanto, duas
décadas mais tarde pareceram cada vez mais urgentes. Uma grande quantidade
de livros influentes – The Affluent Society de J. K. Galbraith, O Homem
Unidimensional de Herbert Marcuse e The Joyless Economy de Tibor
Scitovsky – questionaram a equação de «utilidade» e felicidade. As ansiedades
típicas de Rousseau foram reavivadas. E se o progresso tecnológico criar novos
desejos tão depressa como satisfaz os antigos? E se os seres humanos sentirem
necessidade da vantagem relativa e não absoluta, tornando a concorrência do
mercado um jogo de soma-zero? Essas questões levaram os economistas para
lá das atribuições da sua disciplina e fizeram-nos entrar no território
anteriormente proibido da psicologia.

163 Jean-Jacques Rousseau, The Discourses and Other Political Writings, ed. Victor Gourevitch
(Cambridge: Cambridge University Press, 1997), p. 26.

164 Heródoto, The Histories, tr. Robin Waterfield (Oxford: Oxford University Press, 1998), p. 14.

165 Aristóteles, Nicomachean Ethics, tr. Christopher Rowe e Sarah Broadie (Oxford: Oxford University
Press, 2002), p. 206.

166 John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, vol. 1 (Oxford: Clarendon, 1894), p. 351.

167 Citado em G. E. Moore, Principia Ethica (Cambridge: Cambridge University Press, 1903), pp. 77-78.

168 W. Stanley Jevons, The Theory of Political Economy (Londres: Macmillan, 1911), p. 37.

169 F. Y. Edgeworth, Mathematical Psychics: An Essay on the Application of Mathematics to the Moral
Sciences (1881), pp. 101-102.
Gráfico 6. PIB per Capita e Satisfação de Vida

Fonte: Eurobarómetro: World Database of Hapiness


(http://worlddatabaseofhappiness.eur.nl/index.html); ONS.

Entretanto, a própria psicologia estava a sofrer uma revolução. O veto


behaviorista à introspeção foi levantado, permitindo que autoavaliações fossem
admitidas como provas. Inquéritos sobre felicidade foram realizados pela
primeira vez na América na década de 1940 e foram repetidos, em maior
número e sofisticação, em todas as décadas seguintes. Estes dados foram uma
dádiva dos céus para os economistas insatisfeitos com o conceito puramente
formal de utilidade, pois promete uma medida de bem-estar independente da
escolha dos consumidores, um padrão sólido para avaliar os benefícios do
crescimento. A economia pode tornar-se uma vez mais o que esperava ser
originalmente: a ciência de como alcançar a maior felicidade do maior número.
A economia da felicidade

Em 1974 o economista Richard Easterlin publicou um artigo que ficou


famoso: «O Crescimento Económico Melhora a Raça Humana?» Na sequência
de um minucioso inquérito sobre felicidade e PIB numa série de países do
mundo ele concluiu que, provavelmente, a resposta é «não». Desde então a
economia da felicidade expandiu-se, mas a descoberta principal do artigo de
Easterlin, o chamado paradoxo de Easterlin, mantém-se vastamente
incontestada. Pode ser ilustrada com três simples gráficos (Gráficos 6, 7 e 8). O
Gráfico 6 traça o PIB e os níveis de satisfação de vida no Reino Unido entre
1973 e 2009. Mostra uma subida quase constante no PIB, mas nenhuma
alteração em termos de satisfação de vida. Dados de outros países
desenvolvidos revelam uma tendência semelhante. Essas descobertas são
certamente marcantes. Parece que o enorme progresso nos padrões de vida ao
longo dos últimos 36 anos não nos trouxe um acréscimo de felicidade. Talvez
Rousseau estivesse sempre certo. Mais dinheiro não nos torna mais felizes.
O Gráfico 7 baseia-se numa sondagem realizada em 2005-2008. Mostra a
percentagem de pessoas no decil superior e inferior da distribuição de
rendimento no Reino Unido que se consideram «muito felizes», «bastante
felizes», «não muito felizes» e «nada felizes». Claramente há mais pessoas
«muito felizes» entre os ricos e mais pessoas «nada felizes» entre os pobres. De
novo, conclusões semelhantes repetiram-se em países do mundo inteiro, quer
desenvolvidos quer em desenvolvimento.
À primeira vista, estes dois conjuntos de estatísticas parecem contradizer-se
mutuamente. O segundo sugere que mais dinheiro torna-nos mais felizes, o
primeiro diz que não. Mas não existe uma verdadeira contradição. Para
percebermos os números, temos de partir do princípio de que a felicidade é
afetada pela riqueza relativa, não pela riqueza absoluta. Dito de outra forma, a
felicidade dos ricos é uma expressão da sua satisfação por estarem no cimo da
pilha e a infelicidade dos pobres espelha a sua frustração por estarem no fundo.
Como os ricos se mantêm no cimo e os pobres se mantêm no fundo seja qual
for o rendimento da sociedade como um todo, os níveis médios de felicidade
não mudam. (Como uma analogia, imaginem uma fila num elevador; a mulher
que está no fim da fila permanece no fim, mesmo quando a fila avança.)
Gráfico 7. Felicidade Segundo Nível de Rendimento no Reino Unido

Fonte: Inquérito de Valores Mundiais, 2005-2008.

Experiências psicológicas parecem confirmar que o mais importante para as


pessoas é o rendimento relativo, não o rendimento absoluto. Quando foi pedido
a estudantes de Harvard que escolhessem entre dois mundos imaginários – um
em que ganhavam 50 mil dólares por ano em relação a uma média de 25 mil
dólares e outro em que ganhavam 100 mil dólares em relação a uma média de
250 mil dólares – a maioria optou pelo primeiro170. Isto pode parecer uma
expressão de vaidade, e sem dúvida é até certo ponto, mas existem motivos
para além da vaidade para querer estar no topo da pilha. Muitas das melhores
coisas da vida – lindas casas de campo, estâncias de férias em lugares exóticos,
as melhores escolas – estão essencialmente limitadas em quantidade e, por isso,
acessíveis apenas aos mais ricos. Esses bens posicionais ou oligárquicos são,
como vimos no Capítulo 1, um motivo para a ânsia pelo lucro se manter forte
mesmo nas sociedades mais ricas.
Todavia, mesmo quando são feitas todas as concessões ao rendimento
relativo, a linha teimosamente plana do Gráfico 6 permanece um mistério. Será
o rendimento absoluto irrelevante para a felicidade? Ter computadores
portáteis, Kindles, fazer tratamentos de pés, férias no estrangeiro, sushi para
takeaway e tudo o resto não acrescentou nada ao nosso bem-estar coletivo? Os
economistas da felicidade gostam de nos recordar o poder de adaptação. A
maioria dos lucros materiais tem apenas um efeito fugaz na disposição, depois
do qual esta regressa ao seu nível habitual. Assim, o rendimento pode subir
com regularidade enquanto a felicidade não aumenta nada. Outra explicação
popular para a felicidade não subir conjuntamente com a riqueza é a
desigualdade. Como vimos no Capítulo 1, a média de rendimentos no Reino
Unido duplicou nos últimos 30 anos, mas o rendimento mediano – isto é, o
rendimento da pessoa no meio da distribuição – mudou muito menos. Os lucros
têm estado predominantemente no topo. Assim, mesmo que o rendimento
absoluto não seja importante para a felicidade, as estatísticas podem refletir os
sentimentos da maioria cujo rendimento absoluto estagnou.

170 S. Solnick e D. Hemenway, «Is More Always Better? A Survey on Positional Concerns» [Mais é
Sempre Melhor? Um Inquérito às Preocupações Posicionais], Journal of Economics Behaviour and
Organisation, vol. 37 (1998), pp. 373-383.
Gráfico 8. Felicidade e Rendimento por País

Fonte: World Values Survey, 2005-2009.

O Gráfico 8 mostra o PIB e a felicidade de uma grande variedade de países


em diversos momentos da década de 1990. Como é visível, todos os países
mais infelizes têm rendimentos médios inferiores a 15 mil dólares anuais,
ponto após o qual parece haver pouca correlação171. Estes dados sugerem uma
modificação da tese original de Easterlin. Para além de um determinado
patamar, parece que o rendimento absoluto não é importante para a felicidade.
Isto não deveria constituir uma surpresa. Poderia esperar-se que a falta de
nutrição, saneamento, educação e habitação adequados tivessem um efeito
depressivo. O Gráfico 8 também sugere que as pessoas avaliam o seu bem-estar
material relativo de acordo com um padrão nacional, não com um padrão
global. De outro modo, os países com um rendimento médio teriam
consistentemente valores mais baixos do que os países com rendimentos
elevados, o que não acontece. A propósito, é por vezes referido que os
trabalhadores da Alemanha Oriental se sentiram menos felizes depois da
reunificação do que antes, embora os seus salários reais tenham subido.
Presumivelmente, começaram a comparar-se com os seus novos e muito mais
ricos compatriotas172.
Então, como é que os economistas da felicidade tencionam aumentar os
nossos níveis de felicidade em declínio? Na sua opinião, há dois problemas: um
de irracionalidade individual, o outro de irracionalidade coletiva. O primeiro
problema surge porque as pessoas exageram a felicidade que obterão a longo
prazo com o consumo de bens e subestimam as satisfações do lazer, educação,
amizade e outros intangíveis. O segundo problema surge porque, mesmo que as
pessoas sejam racionais no desejo de estarem no cimo da pilha, a lógica da
competição posicional dita que nem todos podem estar. O sucesso de A é
conseguido à custa do fracasso de B, e desse modo a felicidade global mantém-
se constante. De facto, até pode cair, uma vez que a luta posicional é
desagradável. Por analogia, quando uma pessoa começa a gritar numa festa os
outros também têm de gritar, muito embora todos estivessem melhor a falar
num murmúrio. Estamos perante um conhecido dilema da teoria dos jogos.
Os economistas da felicidade respondem a estes dois problemas de formas
previsíveis. Se determinados bens não geram melhorias duradouras na
felicidade, quer para os seus proprietários quer para a sociedade em geral,
porque não taxá-los? Isto desviaria recursos para bens que geram essas
melhorias, como o lazer, e aumentariam o rendimento para projetos públicos de
aumento da felicidade. Assim, por exemplo, o economista Robert Frank
defendeu uma taxa de consumo progressiva para travar os gastos de luxo e
encorajar a poupança173. No Capítulo 7 propomos uma coisa semelhante,
embora sem referência à felicidade. Outras medidas vulgarmente propostas
incluem restrições às horas de trabalho e a certas formas de publicidade. De
uma maneira geral, os economistas da felicidade preferem uma forma de vida
europeia em detrimento da americana, muito embora, como Will Wilkinson do
Cato Institute referiu, a América esteja mais bem classificada nos quadros da
felicidade do que a maioria das grandes democracias social-democratas
europeias174. Com poucas provas conclusivas dos dois lados, este argumento
parece destinado a continuar durante algum tempo.

Qual é o problema da economia da felicidade


Num sentido, a economia da felicidade não é nada de novo. Grandes
moralistas desde Salomão e Sócrates disseram-nos vezes sem conta que a
felicidade está no amor e na virtude, não na riqueza. «É preferível um jantar de
ervas onde existe amor», diz o Livro dos Provérbios, «do que um boi assado
com ódio à mistura.» A novidade é a tentativa de embelezar esta antiga
sabedoria com um invólucro estatístico ao qual não faltam gráficos e fórmulas.
Aparentemente, não podemos admitir que sabemos o que sabemos sem o
carimbo e selo da ciência. Este exercício de autoconfiança é perigoso por dois
motivos: exagera a utilidade dos inquéritos sobre felicidade e requer que
atribuamos um valor incondicional à felicidade em si, independentemente das
várias coisas que nos fazem felizes. Vamos analisar cada um destes dois erros
separadamente.

Problemas de Medição

Olhemos uma vez mais para o Gráfico 6. Aquela linha resolutamente plana
devia perturbar os economistas da felicidade mais do que perturba, pois sugere
não apenas que a subida dos rendimentos não surtiu efeito na felicidade, mas
também que nenhuma das grandes mudanças sociais que ocorreram na Grã-
Bretanha ao longo dos últimos 30 anos teve qualquer efeito na felicidade.
Outros países que possuem dados em série temporal, incluindo os EUA e o
Japão, evidenciam um padrão semelhante. Uma de duas coisas tem de ser
verdadeira. Ou a felicidade é extremamente insensível às mudanças no
ambiente social ou as medições de felicidade são extremamente insensíveis às
mudanças de felicidade. Nenhuma destas conclusões é particularmente
reconfortante para os economistas da felicidade.
Há motivos para pensar que o problema se prende com a forma como a
felicidade é medida. O Gráfico 6 foi compilado com dados de um inquérito em
que os inquiridos tinham de se caracterizar como (4) «muito satisfeitos», (3)
«relativamente satisfeitos», (2) «não muito satisfeitos» e (1) «nada satisfeitos».
Como a média inicial em 1973 foi de 3,15 num máximo de 4, a felicidade
podia ter subido 28% no máximo durante este período, três a quatro vezes
menos do que o PIB. Mas mesmo este aumento modesto teria implicado que
uns surpreendentes 100% dos habitantes se declarassem «muito satisfeitos». De
facto, mesmo para uma subida de 10% teria sido necessário que 31,5% da
população subisse uma categoria, isto é, passasse de «não muito» para
«relativamente» ou de «relativamente» para «muito» satisfeita – um aumento
importante na felicidade nacional. Além disso, inquéritos «limitados» como
este não podem registar alterações nas duas extremidades do espectro. Não
podem representar uma situação em que, digamos, os 10% mais felizes se
tornam ainda mais felizes, uma vez que essas pessoas já estão na categoria
superior de «muito felizes». Em contraste, se os 10% mais ricos ficarem ainda
mais ricos, o efeito no rendimento nacional pode ser profundo. Em suma, o
contraste divulgado entre a felicidade estática e o PIB a subir não passa,
provavelmente, de um artefacto da forma como as duas coisas são medidas175.
Outros inquéritos sobre felicidade usam uma escala numérica de 10 ou 11
pontos. Aos inquiridos são feitas perguntas como: «Avaliando tudo numa
escala de 0 a 10, como quantificaria a sua felicidade?» Esses inquéritos são
ligeiramente mais sensatos do que o inquérito verbal descrito acima, mas criam
mais problemas específicos. As categorias «muito feliz», «bastante feliz» e
«não muito feliz», apesar de não exatas, são pelo menos eloquentes. Mas o que
significará pontuar 7 em 10 para felicidade? Mesmo se presumirmos,
caridosamente, que faz sentido atribuir valores cardinais a estados de espírito,
não temos as informações necessárias para tal tarefa. Em primeiro lugar, o que
representam os dois extremos? Zero representará ser queimado vivo em óleo
com a família? Dez será um estado de felicidade perfeita – «Deus a ter um
orgasmo no teu cérebro», como terá dito um certo traficante de droga
referindo-se aos efeitos da sua mercadoria? E quanto ao cinco? Designa um
estado intermédio entre os dois extremos? Ou um estado de indiferença
emocional? (Estes dois estados não são necessariamente a mesma coisa; a dor
absoluta pode ser mais dolorosa do que o prazer absoluto é aprazível.) Ou
referir-se-á o cinco à felicidade média? Claramente, muitos criadores de
inquéritos interpretam os resultados dessa forma, daí a surpresa por uma vasta
maioria se classificar em seis ou acima. E se cinco se refere à felicidade média,
qual é a população de referência? A nação? O mundo? Os inquiridos nos
inquéritos sobre felicidade não são esclarecidos em relação a nenhuma destas
dúvidas.
No caso das comparações internacionais, os problemas multiplicam-se. Uma
dificuldade é que as expressões de felicidade são extremamente convencionais,
com protocolos que variam de nação para nação. Se perguntarmos a um
americano como está, é muito provável que ele responda, «ótimo, obrigado».
Se fizermos a mesma pergunta a um russo, o mais certo é ele encolher os
ombros e dizer «normalno», sugerindo que as coisas podiam estar piores. Se o
americano e o russo diferem apenas na forma como expressam a sua felicidade,
então um questionário privado poderá esclarecer a questão, mas se diferem na
forma como apreendem a sua própria felicidade então inquérito algum, por
muito bem conduzido que seja, poderá revelar os seus verdadeiros sentimentos.
Os investigadores da felicidade fecham os olhos a esta segunda possibilidade.
Eles supõem que as pessoas sabem até que ponto são felizes, ou pelo menos
que os erros de otimismo e pessimismo estão equitativamente distribuídos pelo
globo. Mas porquê supor isto? As pessoas que são educadas para ver a
felicidade como uma marca de sucesso podem sentir relutância em admitir, até
para si mesmas, que estão tristes. Será que os níveis elevados de felicidade na
América e noutras nações ocidentais revelam apenas a prevalência de
«pensamento positivo» – uma forte determinação de olhar para o lado bom da
vida? E é claro que não devemos esquecer que a maior parte das nações
ocidentais contêm grandes minorias não ocidentais, muitas vezes concentradas
em determinados escalões socioeconómicos. Os preconceitos culturais podem,
por conseguinte, comprometer a exatidão não apenas dos inquéritos
internacionais, mas também dos inquéritos nacionais.
Depois, há o problema da tradução. Os investigadores da felicidade podem
partir do princípio de que a palavra «felicidade» tem sinónimos ou quase
sinónimos em várias línguas em todo o globo; caso contrário, as comparações
não têm sentido. Mas nem sempre é assim. Vejamos xingfu, a palavra usada na
versão chinesa do World Values Survey. Xingfu implica uma condição de vida
favorável, com uma ênfase nas relações familiares fortes. Uma pessoa não é
xingfu enquanto joga ténis ou come uma laranja. E seria um abuso de termos,
não apenas um erro psicológico, chamar xingfu a uma prostituta ou a um
playboy idoso176. Em resumo, xingfu está mais perto em significado do
eudaimon grego do que do happy do inglês moderno177. Outras línguas
apresentam dificuldades semelhantes. De uma maneira geral, happy é um
termo muito mais leve e menos exigente que os seus equivalentes estrangeiros
– isto reflete talvez a influência do utilitarismo nas culturas anglo-saxónicas.
Anna Wierzbicka, uma influente especialista em semântica da emoção,
lamentou «a facilidade com que as diferenças linguísticas são por vezes
negadas na literatura atual sobre felicidade»178.
Os investigadores da felicidade não se preocupam normalmente com o
enunciado exato dos seus questionários nem com a relevância das suas escalas.
Contentam-se em observar que, independentemente do que possam estar a
medir, está fortemente correlacionado com outras coisas associadas à
felicidade: tensão arterial baixa, níveis de atividade elevados no hemisfério
esquerdo do cérebro, boa saúde e muitos sorrisos. Na gíria, os seus resultados
são «válidos». Mas isto suscita agora uma perplexidade de um tipo mais
filosófico. Se a validade dos inquéritos sobre felicidade tem de ser confirmada
relativamente ao que já sabemos sobre felicidade, que novas informações
podem conter? Ou correspondem ao conhecimento existente, e nesse caso são
redundantes, ou não correspondem, e nesse caso são imperfeitos. Quando
muito, os inquéritos sobre felicidade podem desenvolver com mais pormenores
o que nós já sabemos. Todavia, não podem dizer-nos nada radicalmente novo;
se o fizessem, não acreditaríamos neles.
Os correlativos da felicidade autoavaliada são de dois tipos: fisiológicos e
circunstanciais. Do lado fisiológico, foi demonstrado que as pessoas que se
classificam como felizes tendem a ter níveis mais elevados de atividade elétrica
no cérebro anterior esquerdo e sistemas imunitários fortes179. Mas como é que
sabemos que essas coisas detetam felicidade? (Claramente, a resposta não pode
ser que detetam a felicidade autoavaliada uma vez que é o próprio item em
questão.) Outros estudos revelam uma correlação entre felicidade autoavaliada
por um lado e as ações e circunstâncias associadas à felicidade por outro lado.
Foi demonstrado, por exemplo, que as pessoas que se caracterizam como mais
felizes também são classificadas como mais felizes pelos amigos e familiares, e
sorriem com maior frequência180. Andrew Oswald e Stephen Wu estabeleceram
uma correlação entre qualidade de vida nos estados dos Estados Unidos,
medida por horas de sol, tempos de viagem de e para o emprego, índices
criminais, etc., e a felicidade autoavaliada dos seus habitantes. (Nova Iorque
vem no fundo nas duas contagens181.)
Se esses estudos forem credíveis, mostram que as pessoas que dizem ser
felizes são de facto, em média, felizes. Todavia, este resultado não é a
justificação que parece à primeira vista, pois pressupõe que já temos uma
medida de como as pessoas são felizes, independentemente do que elas dizem
sobre o assunto, nomeadamente, a nossa compreensão racional do que mexe
com os seres humanos, do que é bom para eles. As autoavaliações não podem
ser o critério fundamental de felicidade, por muito úteis que possam ser como
indicadores complementares. Uma simples experiência de pensamento
corrobora isto. Imaginem uma mulher cujos filhos morreram num violento
acidente, e cujas ações irradiam tristeza, mas que, não obstante, se declara feliz.
Presumiríamos que ela está a mentir, que está a enganar-se a si mesma ou a
usar palavras de uma forma invulgar. (Talvez seja uma filósofa com uma
compreensão idiossincrática de «feliz».) Contra todas as aparências, não
insistiríamos que ela é verdadeiramente feliz. Em suma, a felicidade não é um
item no teatro interior da mente, visível apenas para o seu proprietário; a
felicidade manifesta-se essencialmente em atos e acontecimentos. Se não fosse
assim, seria misterioso como poderíamos falar sequer dela. O pressuposto
subjacente ao método de inquérito – que somos juízes abalizados da nossa
própria felicidade – é falso.
Essas confusões são claramente visíveis no artigo de Oswald e Wu que já
mencionámos. «Embora seja natural ser orientado por dados de inquéritos
formais», escrevem eles,

poderia pensar-se que é invulgar que o Louisiana – um estado afetado pelo furacão Katrina – esteja tão
bem classificado na lista de satisfação de vida dos vários estados. Foram feitas diversas verificações.
Constatou-se que o Louisiana teve resultados fortes antes do Katrina e num ranking de saúde mental
realizado pelo Mental Health America e pelo Office Applied Studies da U. S. Substance Abuse and
Mental Health Services Administration […] Não obstante, é provável que o Katrina tenha alterado a
composição deste estado – nomeadamente, os que ficaram não constituem uma amostra aleatória da
população – e é por isso preciso ter alguma cautela na interpretação da posição deste estado, que
poderá compensar uma investigação estatística futura182.

Este reconhecimento é revelador. Apesar de reconhecerem que deviam, com


toda a lógica, «ser orientados por dados de inquéritos formais», Oswald e Wu
deixam-se influenciar pelo que sabem intuitivamente sobre os efeitos dos
furacões na felicidade. Na hora do aperto, questionam os dados; não reveem as
suas opiniões relativamente ao que faz as pessoas felizes. De uma forma
semelhante (se bem que neste caso com uma intenção crítica), Helen Johns e
Paul Ormerod apontam para uma relação positiva entre a felicidade e o crime
violento nos EUA. Usam estes fatores acertadamente como prova da
falibilidade das estatísticas; não tomam em consideração a possibilidade de o
crime violento tornar as pessoas mais felizes183. E mesmo que os dados nestes
dois casos se revelassem sólidos – isto é, retirados de amostras suficientemente
grandes e representativas – iríamos questioná-los. Suspeitaríamos de que os
participantes no inquérito eram desonestos ou estavam iludidos, ou que tinham
compreendido mal a pergunta. Não abandonaríamos o que todos sabemos sobre
as condições da felicidade.
Logo, este é o problema. Os inquéritos sobre felicidade são duvidosos, quer
devido às confusões de formulação e medição atrás mencionadas quer também,
mais fundamentalmente, porque não são especialistas na nossa felicidade. Por
conseguinte, requerem validação externa, quer sob a forma de correlações
formais quer com o nosso sentido intuitivo de como as pessoas são felizes.
Todavia, na medida em que recebem essa validação, tornam-se redundantes.
Aparentemente, a sua função é essencialmente cerimonial: serve para conferir a
bênção da ciência às constatações do senso comum.
Nesse caso, os inquéritos sobre felicidade são inúteis? Não é bem assim.
Mesmo que não possam reviver radicalmente a nossa compreensão racional do
que faz as pessoas felizes, talvez possam desenvolvê-la em zonas onde ela é
incerta ou vaga. Por exemplo, afirma-se por vezes que os homossexuais são
menos felizes do que os heterossexuais. Pelo contrário, os inquéritos indicam
que não existe qualquer diferença entre os dois grupos184. Esta conclusão
parece genuinamente informativa, mas notem que só a aceitamos porque nada
na nossa experiência a contradiz. (Se os homossexuais tivessem habitualmente
expressões sérias e bebessem muito, teríamos tendência para o ceticismo.)
Analogamente, os inquéritos podem ajudar-nos a classificar as várias causas de
felicidade e infelicidade por ordem de importância, onde isto ainda não é
óbvio. Todos sabemos que o desemprego torna as pessoas infelizes, por
exemplo, mas será talvez interessante saber que o seu impacto é ainda maior do
que o divórcio185. Por fim, os inquéritos sobre felicidade podem ser úteis em
lugares onde a obtenção de informações sobre as condições de vida é difícil ou
dispendiosa Mas quando as estatísticas de saúde, emprego, educação,
casamento, etc., estão prontamente disponíveis, como acontece no Reino Unido
e na maioria das outras nações desenvolvidas, não há motivo para não
apelarmos diretamente a elas em vez de fazermos um desvio pela felicidade.
Esta será a nossa abordagem no Capítulo 6.
No que diz respeito às comparações internacionais, as diferenças culturais e
linguísticas já mencionadas tornam quaisquer conclusões muito incertas. Até o
proeminente defensor da economia da felicidade Derek Bok admitiu que «os
esforços para comparar os níveis médios de bem-estar de diferentes países
deviam ser tratados com uma cautela considerável»186. Sem dúvida, não é por
acaso que os zimbabuanos e os haitianos se classificam como menos felizes do
que os britânicos; poderíamos ter previsto isso. Mas não devíamos dar maior
importância à felicidade superior dos dinamarqueses nem perder o sono por
causa do segredo do seu sucesso. A tentativa de criar «contas nacionais de
bem-estar» como um suplemento ou rival do PIB é um exercício de
futilidade187. Nunca devíamos esquecer que essas contas medem apenas o que
as pessoas dizem sobre a sua felicidade; não medem, nem podem medir, a
felicidade em si.

Problemas Éticos

Suponhamos que os problemas metodológicos descritos anteriormente são


ultrapassados. Suponhamos que possuímos um instrumento infalível para
medir a felicidade, um super-hedonímetro. Poderemos agora prosseguir com o
projeto de maximizar a felicidade? A resposta é não. A felicidade tal como é
entendida pelos economistas da felicidade não é um objetivo político típico,
completamente separado de quaisquer problemas de medição, pela simples
razão de que não é necessariamente bom. Transformá-lo num objetivo político
é abrir a perspetiva perturbadora do que o guru do LSD denominou
«engenharia hedónica».
Como é que os economistas da felicidade compreendem a felicidade? Poucos
deles pensam muito na matéria. Yew-Kwang Ng, um líder do ramo, contenta-se
em repetir a definição benthamita clássica de Henry Sidgwick: a felicidade é
um «excesso de prazer relativamente à dor; os dois termos são usados, com
significados igualmente abrangentes, para incluir, respetivamente, todos os
tipos de sentimentos agradáveis e desagradáveis»188. Por outras palavras, a
felicidade é um estado de espírito subjetivamente agradável, não uma condição
de ser objetivamente desejável. Outros economistas da felicidade são menos
francos, mas temos de partir do princípio de que partilham esta compreensão
psicológica de felicidade, caso contrário a sua confiança nas autoavaliações é
um mistério. Sólon não precisou de perguntar a Tellus para saber que ele era o
mais feliz dos homens.
O conceito psicológico de Sidgwick tornou-se padrão no Ocidente moderno.
Para muitos, parece o mais simples senso comum. Todavia, numa análise mais
profunda, a nossa compreensão do que é ser feliz acaba por conter muitos
resíduos da ideia mais antiga de eudaimonia ou «boa sorte». Ou, pelo menos, é
o que sugeriremos. Não insistimos na questão. Mas insistimos que, entendida
no sentido psicológico, a felicidade não pode ser o bem supremo. Não podemos
pensar que todo o nosso sofrimento e trabalho árduo tem como objetivo algo
tão trivial como um zumbido ou um formigueiro. Logo, o nosso argumento tem
a forma de um dilema. Ou a felicidade é entendida no sentido pré-moderno,
como uma condição de ser, e nesse caso não é o género de coisa que pode ser
medida em inquéritos sobre felicidade, ou é compreendida no sentido moderno,
como um estado de espírito, e nesse caso não é o bem supremo. Seja como for,
o projeto de economia da felicidade falha.

A interpretação de felicidade implícita na investigação moderna da felicidade


tem dois elementos principais. Ambos são questionáveis na medida em que
estão em conflito com o que pensamos realmente sobre felicidade, em oposição
ao que podemos à primeira vista pensar que pensamos. Vamos analisá-los
sucessivamente.
A felicidade é agregativa. Dito de outra forma, a felicidade de uma vida
inteira é o somatório (ou, possivelmente, a média; isto leva a conclusões
bastante diferentes) da felicidade dos seus momentos individuais. Isto contrasta
com o que pode ser chamado uma opinião «holística», que vê a felicidade de
uma vida como irredutível à das suas partes momentâneas. Os investigadores
discordam relativamente a como melhor medir a felicidade agregada. O
psicólogo Daniel Kahneman defendeu, muito no espírito de Edgeworth, que
devíamos tentar medir a felicidade momento a momento e depois integrar os
resultados189. Em contraste, a grande maioria dos investigadores está disposta a
confiar na avaliação que os sujeitos fazem do seu nível global de felicidade.
Mas estas são apenas diferenças de método. Todos os investigadores da
felicidade têm de concordar que a felicidade é agregativa, não de carácter
holístico, pois se assim fosse teriam de obedecer à injunção de Sólon de não
afirmar que um homem é feliz até ele morrer.
Esta compreensão agregativa de felicidade tem algum apoio da cultura
circundante. O inglês moderno (em contraste com muitas outras línguas)
permite-nos falar em sermos felizes por algumas horas ou até minutos; isto
possibilita pensar numa vida feliz como uma sequência de momentos felizes.
Mas acreditamos realmente nisto? Comparemos a vida de um homem que
ultrapassa o sofrimento no princípio da vida para realizar coisas grandiosas
com a de um jovem de ouro que perde tudo. Naturalmente, descreveríamos o
primeiro como feliz e o segundo como infeliz. Todavia, as duas vidas podem
conter um número igual de momentos felizes. Então, porquê esta distinção?
Seguramente, a resposta é que o sofrimento no começo de uma vida é sentido
como bom pela realização posterior. Em retrospetiva, pode ser visto como um
teste ou uma aprendizagem, como parte de uma história maior de sucesso. Em
contraste, o sofrimento no fim da vida mantém-se não remido – a menos, é
claro, que olhemos para além deste mundo. Esta é a verdade permanente na
máxima de Sólon. Só com a morte é que a forma ou significado global de uma
vida se torna visível. Dizer que uma vida é feliz ou infeliz antes do fim é como
classificar uma peça como trágica ou cómica antes do desfecho.
O sofrimento não remido não é a única coisa que pode arruinar a forma de
uma vida. Uma vida repleta de momentos felizes do princípio ao fim pode não
obstante ser infeliz se esses momentos não se fundirem num todo maior190.
Vem-nos à ideia o playboy que anda de porto em porto e de namorada em
namorada. Lorde Glenconner, que faleceu em 2010 depois de dissipar a sua
fortuna em divertimentos sumptuosos, foi assim. «Não me aconteceu grande
coisa», terá dito perto do fim da vida. «É como uma festa – esquece-se no dia
seguinte.»191 Poderíamos resistir a dizer que Glenconner foi feliz, embora ele
tenha vivido uma vida sem dúvida cheia de momentos felizes. E mesmo se ele
tivesse morrido antes de o arrependimento se ter instalado, ainda assim
poderíamos hesitar em caracterizá-lo como feliz. De qualquer modo, é um
ponto controverso.
Um exemplo mais perfeito do mesmo cenário é oferecido pelo filósofo Fred
Feldman. Imaginem, sugere ele, um caso como o que foi descrito por Oliver
Sacks em The Man Who Mistook his Wife for a Hat. Jamie, vítima da síndroma
de Korsakov, não consegue recordar nada durante mais do que alguns minutos.
A sua vida é profundamente fragmentada – «uma sequência incoerente de
episódios fugazes e desconexos», como diz Feldman192. Porém, Jamie está
inconsciente do seu estado. Ele sente prazer em cada momento à medida que
ele acontece, observando borboletas, jogando às damas, etc. Será feliz? O
próprio Feldman, fiel à sua teoria hedonista da felicidade, tem de afirmar que é.
Nós sentimo-nos inclinados a dizer que não é. Quando os pais desejam
felicidade aos filhos, regra geral não é uma vida como a de Jamie que têm em
mente. Pensamentos como este incentivam-nos na direção de uma teoria mais
objetivista de felicidade. A infelicidade de Jamie, mesmo que esteja na forma
como os seus estados de consciência são organizados, não está presente na sua
consciência. É necessariamente visível apenas para os outros.
A felicidade é unidimensional. Os economistas da felicidade defendem,
juntamente com Bentham e Sidgwick e contra Mill, que todos os estados
conscientes podem ser classificados de acordo com o seu nível de felicidade.
(Além disso, alguns defendem que lhes pode ser atribuído um valor cardinal
que expresse o seu grau de felicidade, mas isto é controverso193.) Na gíria,
existe uma única «moeda» de felicidade. As distinções feitas pela linguagem
comum entre felicidade, júbilo, prazer, contentamento e os seus diversos
correspondentes negativos são menosprezadas. Richard Layard oferece uma
analogia engenhosa: do mesmo modo que todos os sons podem ser
classificados como mais ou menos barulhentos, consoante as suas diferenças de
intensidade, tom, etc., também todos os estados de espírito podem ser
classificados como mais ou menos felizes194. Se não pudessem, o projeto de
medição de felicidade fracassaria à partida.
Estas suposições podem ser necessárias por razões de conveniência
metodológica, mas são, não obstante, profundamente imperfeitas. Os
sentimentos positivos existem em muitas formas e a felicidade é apenas uma
delas. E dentro da própria felicidade há distinções de qualidade irredutíveis às
diferenças de grau. Como exemplo, olhemos para as diferenças entre prazer,
felicidade e alegria, notando de passagem que pode haver outras distinções
igualmente fundamentais para fazer aqui.
Analisemos o prazer em primeiro lugar. Os economistas da tradição
benthamita identificam rapidamente felicidade com prazer, esperando dessa
forma eliminar as suas confusões. O prazer – segundo este pensamento – é um
tipo especial de sentimento que varia apenas em termos de quantidade. Assim,
se felicidade é prazer, também ela pode ser tratada quantitativamente. Mas na
verdade o prazer não é um sentimento especial, como Aristóteles demonstrou
há muito tempo. Imaginem, sugeriu ele, dois amigos que estão embrenhados
numa conversa e ouvem ao longe alguém a tocar uma gaita pastoril. Se o prazer
fosse um sentimento especial, esperaríamos que o prazer da música se
combinasse com o da conversa de uma forma francamente aditiva, como o
calor de duas fogueiras. Mas não é isso que acontece. A música distrai os
amigos da sua conversa; eles não podem desfrutar de ambas ao mesmo
tempo195. Os leitores poderão recordar a campanha que a Häagen-Dazs fez há
alguns anos, em que um casal de namorados nus era visto a esfregar-se
arrebatadamente com gelado. Nenhum de nós tentou isto, mas suspeitamos que
confirmaria a tese de Aristóteles: o prazer do sexo distrairia do prazer do
gelado, ou vice-versa. Em resumo, o prazer não é um sentimento distinto,
gerado agora de uma forma, depois de outra; está profundamente ligado aos
seus objetos. Reduzir felicidade a prazer com o objetivo de revelá-la como
unidimensional é perceber tudo mal desde o início.
Em todo o caso, felicidade não é prazer. A gramática lógica dos dois
conceitos é bastante diferente. O prazer é muitas vezes (embora nem sempre)
localizável no corpo; pensem em massagens nos pés, massagens na cabeça, etc.
Em contraste, a felicidade não tem uma localização física. Uma pessoa não é
feliz no dedo grande do pé, nem em nenhum outro lado. O prazer ocupa um
tempo preciso, do meio-dia até à uma hora, digamos. A felicidade também é
por vezes «cronometrada» desta forma, embora as suas fronteiras nunca sejam
tão precisas («esta manhã acordei feliz, mas essa felicidade depressa se
desvaneceu»). Todavia, como vimos, também há uma espécie de felicidade sem
dimensões temporais. Dizer que John teve uma vida feliz não é dizer que ele
foi feliz em determinados momentos ou numa determinada proporção do
tempo. O prazer nunca é atemporal desta forma. Uma «vida de prazer» é
apenas uma vida cheia de episódios agradáveis. O prazer pontua a vida; não
caracteriza a vida como um todo.
Estes contrastes entre felicidade e prazer estão enraizados numa diferença
mais fundamental e fenomenológica entre os dois estados. Felicidade não é
apenas um sentimento interior, mas uma atitude, uma perspetiva da realidade. É
a ditosa perceção de que isto ou aquilo acontece: que a minha filha tem de ir
para a universidade, que o meu país foi libertado. Há algumas exceções a esta
regra. Bebés e animais podem ser felizes sem serem felizes com alguma coisa;
por vezes os adultos também se sentem felizes «por nenhuma razão em
particular». Porém, mesmo nesses casos a felicidade manifesta-se tipicamente
como uma determinada atitude perante o mundo. O animal feliz está à vontade
no ambiente que o rodeia; o bebé feliz é extrovertido e comunicativo; o homem
feliz considera que o mundo é brilhante, prometedor e cheio de originalidade.
«O mundo do feliz é muito diferente do mundo do infeliz» afirmou
Wittgenstein196. A droga Ecstasy atinge os seus efeitos mudando a face do
mundo desta forma, transformando-o temporariamente num lugar mais
agradável e encantador. É por isso que as reações depois de passado o seu
efeito são tão deprimentes. Não só a pessoa sente náuseas como percebe que os
seus sentimentos foram enganados.
O prazer também tem objetivos, como Aristóteles reconheceu, mas diferem
dos objetivos da felicidade na medida em que são acima de tudo empíricos.
Uma pessoa não pode sentir prazer com coisas que acontecerão depois da sua
morte, nem do outro lado do mundo, embora seja possível sentir prazer ao
pensar nelas. Ao contrário da felicidade, o prazer não está centralmente
associado a crenças sobre o mundo; pode subsistir de fantasias e ilusões. (Uma
mulher virtual poderia dar prazer a um homem, mas apenas uma mulher real,
ou que se acreditasse ser real, poderia fazê-lo feliz.) E mesmo nos casos em
que o prazer é obtido em situações reais, ele leva-as subtilmente para a órbita
da experiência. Comparemos «Estou feliz porque o Arsenal está em primeiro
lugar no campeonato» com «Sinto prazer com o facto de o Arsenal estar em
primeiro lugar no campeonato». A primeira frase sugere um estado de satisfeita
consciência e a última uma leitura atenta dos jornais, visionamento televisivo,
etc. Isto explica a reputação dúbia do prazer. «Viver para o prazer» implica
uma cultura de experiência, uma atitude sofisticada perante o mundo. E isto
mantém-se verdadeiro quer os prazeres em questão sejam da variedade «nobre»
quer sejam da variedade «baixa».
Depois, há o júbilo. O júbilo é um estado mais exaltado do que o prazer ou a
felicidade, e no entanto também é mais elusivo. Prazer e felicidade podem ser
perseguidos, mas seria difícil perseguir o júbilo. O júbilo é paradoxalmente
congruente com o sofrimento, daí a sua predominância na escrita cristã.
Philippa Foot menciona uma mulher quaker que, depois de muitas provações e
perseguição, falou da sua «vida jubilosa» a pregar a Palavra Divina. «Ela não
disse que a sua vida era uma vida feliz», acrescenta Foot. «Teria sido intrigante
se o tivesse feito.»197 E se o júbilo é compatível com a ausência de felicidade e
prazer, felicidade e prazer são igualmente compatíveis com a ausência de
júbilo. No seu poema «A Aldeia Deserta», Oliver Goldsmith critica fortemente
os prazeres dos ricos ociosos:

Mas a longa pompa, o baile de máscaras à meia-noite,


Com a exibição de todos os caprichos da grande riqueza –
É aqui que, antes de os frívolos metade do seu desejo realizarem,
O laborioso prazer se transforma em dor.
E, mesmo enquanto as melhores artes da moda atraem para a armadilha,
Desconfiado, o coração pergunta se é felicidade.

Goldsmith não pretende negar que os farristas estão a divertir-se, pelo menos
até ao ponto em que «o laborioso prazer se transforma em dor». Eles estão a
«divertir-se» – uma palavra criada, não por acaso, aproximadamente nesta
altura. Mas essa diversão não se transforma em júbilo. E, presumivelmente,
mais diversão também não é sinónimo de júbilo; a diferença é em termos de
qualidade, não de grau.
Logo, felicidade é diferente de prazer e de júbilo. Mas mesmo no campo da
felicidade é preciso fazer distinções. Dissemos que a felicidade tem objetivos,
que é relativa a alguma coisa. Podemos agora acrescentar que a felicidade
assume o seu carácter a partir daquilo a que é relativa. A felicidade profunda,
por exemplo, é caracterizada como tal não por palpitações ou tremores – o erro
cometido por tantos escritores pouco experientes –, mas pela sua relação com
certos bens humanos crucialmente importantes: amor, parto, a conclusão de
uma obra importante. «Não faz sentido», escreve Philippa Foot na sua
excelente discussão do tema,

sugerir que alguém encontrou a felicidade profunda em, digamos, uma vitória numa discussão com um
vizinho por causa do jornal matinal ou de uma garrafa de leite, por muito que pensemos em
comportamento «efervescente» e exaltação. E quanto à felicidade profunda por causa do nascimento de
uma criança? Isso é diferente! […] Nós sentimo-nos tentados a pensar em felicidade profunda como
psicologicamente explicável de uma forma que torna possível separá-la dos seus objetivos. Mas
porque é que isto seria possível? Porque é que a uniformidade de significado não dependeria aqui de
uma reação partilhada entre os seres humanos a certas coisas que são muito gerais na vida humana?198

Se os estados de felicidade vão buscar o seu carácter aos seus objetivos da


forma como Foot descreve, não há razão para supor que todos podem ser
classificados por ordem de intensidade. É claro que, se quisermos, podemos
separar a «efervescência» e fazer dela a medida da felicidade, do mesmo modo
que, na analogia de Layard, podemos destacar o ruído de um som através dos
seus diversos outros atributos. Mas porque é que quereríamos fazer isso? O que
torna a efervescência tão importante? Seria como se – para voltar a analogia de
Layard contra ele – tivéssemos de avaliar discursos baseados unicamente no
seu volume, sem ter em conta o conteúdo. O erro também pode ser comparado
ao de pessoas que classificam os atos sexuais de acordo com a intensidade ou
frequência do orgasmo, ignorando todas as outras formas em que podem ser
um sucesso ou um fracasso.
Para mais um exemplo deste ponto, considerem a figura do general Wynne-
Candy, o personagem Blimp no maravilhoso filme realizado em 1943 por
Powell e Pressburger, The Life and Death of Colonel Blimp. Quando é jovem,
Candy apaixona-se por uma mulher que acaba por casar com o seu melhor
amigo. Ele nunca a esquece, e todos os seus amores subsequentes
(desempenhados no filme pela mesma atriz, Deborah Kerr) têm uma
extraordinária semelhança com ela. No entanto, não somos levados a supor que
o general passa demasiado tempo a pensar no seu desgosto amoroso; nas suas
próprias palavras, ele não é «um poeta de cabelo comprido». Tem uma carreira
militar de sucesso, pratica caça grossa e está quase sempre muito bem-disposto.
Então, Candy é feliz? Em qualquer teste de «efervescência», claro que é. Ele
apareceria muito bem classificado num hedonímetro. Os nossos fundamentos
para pensar que ele não é feliz, ou pelo menos que não é profundamente feliz,
relacionam-se com a nossa crença na centralidade do amor, em oposição a
matar tigres, no esquema dos objetivos humanos. Mas esta não é, talvez, uma
perceção partilhada pelo próprio Candy. Aqui, vemo-nos uma vez mais
empurrados para uma compreensão mais objetivista da felicidade.

Tentámos mostrar que uma vida feliz, tal como a frase é compreendida pela
maioria das pessoas, não é apenas uma série de estados de espírito agradáveis,
mas uma vida que inclui certos bens humanos básicos. A eudaimonia está
subjacente ao conceito psicológico moderno de felicidade; não é apenas uma
questão de «contrabandear pela porta das traseiras a ideia de vida meritória de
um determinado filósofo», como afirmaram Samuel Brittan e outros199. Mas
para os que não estão convencidos com esta sugestão (e serão muitos),
apresentamos agora a segunda parte difícil do nosso dilema: se a felicidade é
apenas um estado de espírito, como pode ao mesmo tempo ser o bem supremo,
o objetivo supremo de toda a nossa luta? Trabalhar durante anos numa obra de
arte ou a criar um filho simplesmente para desfrutar do zumbido mental daí
resultante é trair uma atitude muito peculiar perante a vida. Todavia, é
precisamente esta atitude que está na base do atual culto da felicidade.
O problema pode ser colocado com um pouco mais de precisão. Os
economistas da felicidade acreditam que os estados de espírito são bons na
medida em que são felizes. Quanto mais felizes, melhor; quanto mais tristes,
pior. Os objetivos ou ocasiões de felicidade e tristeza não têm importância
moral. «Nenhum sentimento bom é mau em si», escreve Layard. «Só pode ser
mau devido às suas consequências.»200 Outros economistas da felicidade são
menos francos, mas devem acreditar em alguma coisa semelhante se o seu
projeto é fazerem sentido moral. Se a felicidade não é intrinsecamente boa,
para que estamos a tentar maximizá-la201?
Porém, o simples facto é que a felicidade, psicologicamente concebida, não é
boa em si, mas na medida em que é devida, ou pelo menos não indevida. O
caso em que x é feliz quando x não garante felicidade, nem a obtém, não é
necessariamente uma coisa boa. Imaginem alguém a sorrir entusiasticamente
com a notícia de um desastre em que morreram centenas de pessoas. «Porque é
que estás tão feliz?», poderíamos perguntar. «Que motivo há para tanta
felicidade?» Ou pensem num estudante que, graças a uma dose dupla de um
antidepressivo, está serenamente indiferente ao seu chumbo iminente – num
paraíso de tolos, como dizemos. Poderíamos pensar que seria preferível este
estudante não estar feliz, pois pelo menos estaria em contacto com a realidade
da sua situação. (Um aristotélico reforçaria a mesma ideia dizendo que o
estudante não está nada feliz, mas essa não é uma opção para os economistas
da felicidade.) Nem toda a felicidade sem motivo é má; não queremos sufocar a
alegria sem motivo de viver da criança, nem as ilusões do moribundo. Mas,
claramente, o valor de um estado de espírito feliz depende em parte do mérito
ou então do seu objetivo. E se isto for reconhecido, então o projeto de
maximizar a felicidade em si, independentemente dos seus objetivos, assume
um aspeto sinistro.
Do mesmo modo que existe felicidade sem motivo, também existe tristeza
sem motivo. É claro que a tristeza é muitas vezes sem motivo quando está
enraizada em convicções falsas ou mecanismos mentais irracionais, mas
noutros casos é simplesmente a lúcida perceção de coisas merecedoras de
tristeza. Enquanto essas coisas existirem – e, seguramente, existirão sempre – a
tristeza só poderá ser eliminada se (a) a afastarmos da vista ou (b) alterarmos as
nossas sensibilidades para deixarmos de nos preocupar com ela. É fácil
imaginar formas de fazer isto. Os cientistas podem desenvolver uma droga –
uma espécie de aspirina psíquica – para apagar todas as recordações de
desgosto ou angústia. Jornais e boletins noticiosos poderiam deixar de noticiar
fomes, sismos, etc. Algumas dessas medidas poderiam funcionar. No entanto,
nenhuma delas nos parece remotamente desejável.
Muitas tradições religiosas e filosóficas viram a tristeza como a reação certa
não apenas para a tragédia individual, mas para a tragédia da vida humana em
si. Esta perceção desapareceu do cristianismo ocidental, mas mantém-se forte
no Oriente ortodoxo. «Se estão verdadeiramente conscientes das coisas, de
como a vida é trágica, então há contenção na vossa satisfação», declarou o
arcebispo Bloom, o antigo líder da Igreja Ortodoxa russa na Grã-Bretanha.
«Júbilo é outra coisa. Uma pessoa pode possuir um grande sentido de júbilo e
elação interior, mas desfrutar dos aspetos exteriores da vida com a consciência
das muitas pessoas que sofrem […] é uma coisa que considero difícil.»202
Pensamentos semelhantes podem ser encontrados noutras tradições religiosas.
Mesmo o pagão confesso Nietzsche teve pouco tempo para qualquer felicidade
que não tivesse origem no sofrimento. «O homem não se esforça para a
felicidade», escreveu ele famosamente, «apenas o inglês faz isso.»203
Os economistas da felicidade menosprezarão sem dúvida tudo isto como
místicas de monges da miséria. Todavia, não é preciso ser um monge russo ou
um filósofo alemão para encontrar algo perturbador no projeto de maximizar a
felicidade em si, independentemente dos seus objetivos, pois a conclusão
lógica de um projeto desse tipo é prescindir completamente dos objetivos
externos e agir diretamente no cérebro. Alguns economistas da felicidade já
chegaram a esta conclusão. Yew-Kwang Ng apelou à investigação da
estimulação cerebral, uma operação com o poder de gerar «prazer intenso sem
diminuir a utilidade marginal». Ng acrescenta alegremente que o único método
potencialmente mais eficaz é a engenharia genética204. Richard Layard fala
entusiasticamente sobre drogas que alteram a disposição, não apenas como
remédios para a depressão, mas como dispositivos que melhoram o bem-estar
geral. A euforia perpétua é rejeitada por ele apenas porque «parte do tempo
devíamos precisar que as nossas mentes estivessem suficientemente atentas
para organizar a nossa existência»205. Caso contrário, presumivelmente,
estaríamos melhor num estado de felicidade idiota permanente.
O Admirável Mundo Novo ainda não chegou. Layard e Ng não querem
obrigar-nos a beber soma206 ou a estimular os nossos cérebros. Como dissemos,
eles são maximizadores forçados; procuram maximizar a felicidade dentro da
estrutura estabelecida de direitos legais. Mas esta qualificação não é muito
tranquilizadora, pois o aspeto mais profundo e mais perturbador do Admirável
Mundo Novo não é coerção, mas infantilismo – o desaparecimento de todo o
desejo ou ligação que poderia quebrar a máquina do prazer. Um sistema deste
tipo é apenas incidentalmente coercivo; poderia surgir de uma forma
igualmente fácil em resultado de escolhas privadas livres, sem que ninguém
apontasse a arma a ninguém. Afinal de contas, se os prazeres do tipo descrito
por Ng ficassem disponíveis no mercado, algum de nós conseguiria resistir-
lhes?
Só no caso muito especial da depressão é que a infelicidade é um mal
inequívoco e um alvo legítimo de ação estatal. Mas a depressão é uma classe à
parte. Não é apenas infelicidade extrema, mas infelicidade inapta e
desproporcionada, e é isto que constitui a sua maldade peculiar. (Uma viúva
chorosa poderia ser não menos infeliz do que um homem com depressão, mas a
sua infelicidade é uma resposta adequada à perda, não um problema que tem de
ser curado.) A depressão é um problema médico e deve ser tratado sob a
rubrica da saúde mental. Não faz, como Layard afirma, parte de uma crise geral
de infelicidade e a luta contra ela também não deve ser vista como parte de
uma campanha mais vasta para tornar as pessoas mais felizes.

Ir da procura do crescimento para a procura da felicidade é passar de um


falso ídolo para outro. O nosso objetivo adequado, enquanto indivíduos e
enquanto cidadãos, é não apenas sermos felizes, mas termos razão para sermos
felizes. Ter as coisas boas da vida – saúde, respeito, amizade, lazer – é ter razão
para ser feliz. Ser feliz sem essas coisas é estar dominado por uma ilusão: a
ilusão de que a vida corre bem quando na realidade não corre. Essa ilusão é
conhecida pelos marxistas como uma ideologia e serve para esconder o facto
da opressão e degradação. Paraíso e gin eram os instrumentos tradicionais para
reconciliar os desventurados com a sua sorte. O aval à «felicidade» feito pelo
governo de Cameron sugere que também ele poderá desempenhar um papel
semelhante em breve.
É evidente que a maioria dos economistas da felicidade não tem esse
desígnio. Como nós, eles só desejam afastar a política da busca cega de riqueza
para a melhoria das condições de vida reais. Mas adotaram uma linguagem que
aponta – «objetivamente», como dizem os marxistas – numa direção bastante
diferente. Pois se a felicidade é uma simples sensação privada, sem uma
ligação intrínseca a viver bem, então o soma ou a estimulação cerebral poderão
ser os meios mais baratos e mais eficazes para alcançá-la. Porque não admitir
frontalmente que a nossa preocupação é com a vida boa – e deixar a felicidade
cuidar de si mesma?
171 É debatido se a felicidade continua a aumentar com rendimento acima dos 15 mil dólares. Segundo
inquéritos mais recentes, continua. Para pormenores, ver Angus Deaton, «Income, Health and Well-Being
around the World: Evidence from the Gallup World Poll» [Rendimento, Saúde e Bem-Estar no Mundo:
Dados do Gallup World Poll], Journal of Economic Perspetives, vol. 22, pt. 2 (2008), pp. 53-72.

172 Ver Richard Layard, Happiness: Lessons from a New Science (Londres: Penguin, 2005), p. 45.

173 Ver Robert H. Frank, Luxury Fever: Money and Happiness in an Era of Excess (Princeton: Princeton
University Press, 2000), pp. 207-226.

174 Will Wilkinson, «In Pursuit of Happiness Research: Is It Reliable? What does it Imply for Policy?»
[Pesquisa em Busca da Felicidade: É Fiável? Que Implica para a Política?], Policy Analysis, n.º 590 (2007).

175 O argumento dos dois últimos parágrafos deve-se a Helen Johns e Paul Ormerod, Happiness,
Economics and Public Policy (Londres: Institute of Economic Affairs, 2007), pp. 28-34.

176 As intuições linguísticas parecem diferir neste último ponto: alguns falantes nativos de chinês admitem
que a prostituta e o playboy idoso sejam xingfu, outros não. Talvez haja diferenças regionais ou geracionais.
Mas enquanto um número significativo de falantes nativos de chinês usar xingfu no sentido objetivista, não
pode ser adotada nenhuma equivalência com «feliz».

177 Richard Layard e Diener e Suh citam um certo Shao 1993 que indica que os estudantes de Hong Kong
apresentam níveis quase idênticos de felicidade em chinês e inglês. As notas de rodapé revelam que Shao
1993 é uma tese de mestrado, não publicada, escrita para a Universidade do Illinois. Em todo o caso, o
estudo não nos diz nada já que os inquiridos teriam provavelmente aprendido o significado de «feliz» por
comparação com xingfu ou outro termo chinês. O mesmo problema afeta todos os estudos do mesmo tipo.
Ver Layard, Happiness, p. 34, e Ed Diener e Eunkook Mark Suh, «National Differences in Subjetive Well-
Being» [Diferenças Nacionais em Bem-Estar Subjetivo], in Daniel Kahneman et al., Well-Being: The
Foundations of Hedonic Psychology (Nova Iorque: Russell Sage, 1999), p. 437.

178 Anna Wierzbicka, «“Happiness” in Cross-Linguistic & Cross-Cultural Perspetive» [«Felicidade» na


Perspetiva Interlinguística e Intercultural], Daedalus, vol. 133, pt. 2 (2004), p. 36.

179 Para pormenores, ver Layard, Happiness, pp. 17-20.

180 Diener e Suh, «National Differences in Subjetive Well-Being» [Diferenças Nacionais no Bem-Estar
Subjetivo], p. 437.

181 Andrew J. Oswald e Stephen Wu, «Objetive Confirmation of Subjetive Measures of Human Well-
Being: Evidence from the U.S.A.» [Confirmação Objetiva de Medidas Subjetivas de Bem-Estar Humano:
Dados dos EUA], Science, n.º 327 (2010), pp. 576-579. Os dados relativos à felicidade foram ajustados para
controlar rendimento e idade, por isso, no final das contas, os nova-iorquinos poderão não ser os mais
infelizes, mas apenas no que diz respeito às suas condições de vida.

182 Ibid., p. 578.

183 Ver Johns e Ormerod, Happiness, Economics and Public Policy, p. 81.

184 Julia A. Eriksen e Sally A. Steffen, Kiss and Tell: Surveying Sex in the Twentieth Century (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1999), p. 34.

185 Ver Layard, Happiness, pp. 62-65.

186 Derek Bok, The Politics of Happiness: What Government Can Learn from the New Research on Well-
Being (Princeton: Princeton University Press, 2010), p. 36.

187 Ver Juliet Michaelson et al., National Accounts of Well-Being: Bringing Real Wealth onto the Balance
Sheet (Londres: New Economic Foundation, 2009).

188 Henry Sidgwick, The Method of Ethics (Indianápolis: Hackett, 1981), pp. 120-121.

189 Ver Daniel Kahneman e Alan B. Krueger, «Developments in the Measurement of Subjetive Well-
Being» [Desenvolvimentos na Avaliação de Bem-Estar Subjetivo], Journal of Economic Perspetives, vol.
20, pt. 1 (2006), pp. 3-24.

190 Ver Julia Annas, «Happiness as Achievement» [Felicidade como Realização], Daedalus, vol. 33, pt. 2
(2006).

191 Daily Telegraph, 18 de outubro de 2011.

192 Fred Feldman, What Is This Thing Called Happiness? (Oxford: Oxford University Press, 2010), p. 176.

193 Para pormenores, ver Yew-Kwang Ng, «Happiness Surveys: Some Comparability Issues and an
Exploratory Survey Based on Just Perceivable Increments» [Inquéritos de Felicidade: Algumas Questões de
Comparatibilidade e um Inquérito Preliminar sobre Incrementos Percetíveis], Social Indicators Research,
vol. 38, pt. 1 (2011), pp. 1-27.

194 Layard, Happiness, p. 13.

195 Aristóteles, Nichomachean Ethics, p. 247.

196 Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus (Londres: Routledge e Kegan Paul, 1922), 6.43.

197 Philippa Foot, Natural Goodness (Oxford: Oxford University Press, 2001), p. 85.

198 Ibid., p. 88.

199 Samuel Brittan, «Commentary: A Deceptive Eureka Moment» [Comentário: Um Enganador Momento
Eureka], in Johns e Ormerod, Happiness, Economics and Public Policy, p. 93.

200 Layard, Happiness, p. 23.

201 Deveria acrescentar-se, com toda a justiça, que a maioria dos economistas da felicidade não estão a
propor maximizar a felicidade a qualquer preço, incluindo, por exemplo, através da lobotomização
obrigatória. Na gíria, eles são «maximizadores forçados»; procuram maximizar a felicidade dentro de uma
estrutura de direitos básicos e justiça. Geralmente, não é explorado como é que estes constrangimentos
poderiam ser justificados nas suas premissas utilitárias.

202 Metropolitan Anthony of Sourozh, God and Man (Londres: Darton, Longman and Todd, 1983), p. 16.

203 Friedrich Nietzsche, «Maxims and Arrows» [Máximas e Setas], in Twilight of the Idols (1888), n.º 12.

204 Yew-Kwang Ng, «A Case for Happiness, Cardinalism, and Interpersonal Comparability» [Um Caso
para a Felicidade, Cardinalismo e Comparabilidade Interpessoal], Economic Journal, vol. 107, n.º 445
(1997), p. 1849.

205 Layard, Happiness, p. 221.

206 Bebida ritual da cultura védica e hindu. (N. da T.)


5

Limites ao Crescimento: Naturais ou Morais?

É claro que a natureza tem boas intenções, mas, como Aristóteles disse um dia, não as pode
pôr em prática.
– Oscar Wilde

Do mesmo modo que não conseguiu melhorar a raça humana, o crescimento


económico foi acusado de violar a inocência da natureza. Esta segunda
acusação é quase tão antiga como a primeira. Em 1814, Wordsworth lamentou
a «atrocidade feita à natureza» pela produção de máquinas; outros que o
seguiram lamentaram a destruição de florestas e lugares selvagens, a extinção
de flora e fauna e a poluição de rios, lagos e mares. Porém, nas últimas duas
décadas um espectro dominou a imaginação pública acima de todos os outros:
o de uma subida irreversível e catastrófica da temperatura da terra. Para evitar
este desastre, somos instados a abandonar o crescimento económico, talvez até
a civilização tal como a conhecemos.
O caso ambientalista contra o crescimento gosta de se apresentar como uma
resposta racional aos factos estabelecidos. No entanto, o seu espírito secreto
continua a ser o do romantismo. Para os olhos imparciais não é evidente por si
mesmo que o aquecimento global implica que abandonemos o crescimento.
Poderia, antes, implicar que perseveremos com o crescimento como uma forma
de financiar as tecnologias necessárias para mitigar as suas consequências. Os
factos não são suficientes para decidir esta discussão. Estamos perante um
confronto de visões mundiais: otimismo prometeico por um lado, piedade pela
natureza do outro. Mas o tom utilitário do nosso discurso público implica que
falemos em vez disso em compensações e emissões.
O carácter dissimuladamente religioso do movimento Verde é muitas vezes
visto, por amigos e inimigos, como um embaraço, até um escândalo. Na nossa
cultura pública, a ciência é o árbitro supremo da verdade e da falsidade; o resto
é conversa. Esta não é a nossa opinião. Respeitamos e partilhamos o
sentimento religioso que está no centro do ambientalismo. No entanto,
acreditamos que este sentimento é mais bem expresso abertamente do que
escondido sob a grande parra da ciência. O encobrimento é não apenas
desonesto como cria reféns da sorte. Pois se, afinal de contas, o crescimento for
sustentável, como pode muito bem ser, então aqueles cuja oposição a ele se
baseou unicamente na sua insustentabilidade não terão nada mais para dizer.
Estarão na posição dos primeiros cristãos cuja fé se baseou na convicção do
regresso iminente de Cristo.
Há mais alguma coisa que os ambientalistas poderiam recordar. Profecias de
peste e tempestade são uma forma tradicional, mas desagradável, de encorajar
um espírito de renúncia. É mais simpático (e provavelmente mais eficaz)
mostrar às pessoas que uma vida menos confusa é uma vida boa, uma vida
desejável em si e por si. O historiador de arte Kenneth Clark falou do rococó
alemão, com os seus arrebatadores zimbórios e ornamentos, como persuasor
«não pelo medo, mas pelo júbilo». Os extremistas basearam-se sempre na
exploração do medo para alcançar os seus objetivos. A nossa aspiração é
persuadir pelo júbilo, apresentar uma visão da vida boa como uma vida para ser
seguida, não por culpa ou medo de vingança, mas com felicidade e com
esperança.

Limites ao crescimento

Keynes esperava que o crescimento atingisse um fim derradeiro, um ponto


em que todos os desejos materiais seriam definitivamente satisfeitos. Outros,
mais pessimistas, postularam um limite para o crescimento, uma barreira
externa a mais progresso. O Ensaio Sobre o Princípio da População de
Thomas Malthus, mencionado no Capítulo 2, é a primeira asserção clássica
deste ponto de vista. O argumento de Malthus é encantadoramente simples.
Começa com duas certezas: a finitude da terra e a existência de uma certa
«paixão entre os sexos». A capacidade da terra para produzir alimentos é
inerentemente limitada. Os campos podem ser acrescentados uns aos outros,
mas mais cedo ou mais tarde será atingido um ponto de capacidade máxima.
Em contraste, o poder multiplicativo da raça humana não tem limites. Se cada
geração duplicasse os seus números – e lembrem-se de que na época de
Malthus a norma era ter quatro filhos ou mais – o universo depressa estaria
cheio de humanidade. A colisão é inevitável. Como Malthus afirma, «o poder
da população é tão superior ao poder da terra para produzir subsistência para o
homem que a morte prematura tem de visitar a raça humana de uma forma ou
outra»207.
O espectro malthusiano foi evitado pela maioria dos países europeus (embora
não todos) no século XIX através de uma combinação do aumento de
produtividade agrícola, da diminuição das taxas de natalidade e da emigração
em massa para o Novo Mundo. Mas foi referido muitas vezes
subsequentemente. O bestseller de 1972 Limits to Growth previu que a
população mundial atingiria os 7 mil milhões no fim do século XX, o que
provocaria escassez de cereais, petróleo, gás, cobre, alumínio e ouro208. Essas
profecias revelaram-se previsivelmente alarmistas. Especificamente, a
«revolução verde» na agricultura, que aumentou drasticamente a produção de
cereais por hectare, afastou a ameaça de fome em massa, apesar de o
crescimento da população ser próximo do projetado. Os outros cenários de
diminuição também não se materializaram209. A «bomba populacional», para
usar o título de um influente panfleto da década de 1960, acabou por se revelar
muito pouco explosiva210.
Esta viragem dos acontecimentos não constitui surpresa para os economistas.
Há muito que conhecem a falha básica do argumento de Malthus: ignora a
força conjunta de preços e inovação tecnológica. À medida que as reservas
existentes de todas as matérias-primas diminuem, os seus preços sobem,
criando um incentivo para (a) procurar novas reservas, (b) explorar mais
eficientemente as reservas existentes e (c) explorar alternativas. Por exemplo, a
subida recente dos preços do petróleo promoveu a abertura de novos poços no
Alasca e no Golfo do México, bem como investimentos em energia eólica,
solar e outras formas de energia. Numa civilização tecnologicamente
progressista, que controla o crescimento da população, é altamente improvável
que o nosso planeta fique sem alimentos, energia ou as outras coisas
necessárias para a vida. Evidentemente, a qualidade de vida num planeta assim
é outra questão.
Todavia, o argumento malthusiano pode assumir outra forma mais poderosa.
E se o limite máximo do crescimento estiver não em «fontes», mas em
«fossas», não nas reservas de petróleo e de outros recursos industriais da terra,
mas na capacidade de absorver os resíduos sólidos? A poluição é recalcitrante
relativamente aos mecanismos habituais de mercado. É o que os economistas
chamam uma «exterioridade negativa»: os seus efeitos nefastos não são
refletidos no preço, por isso tende a ser produzida em excesso relativamente ao
seu verdadeiro custo. Para controlar a poluição é necessária uma ação coletiva.
E esta ação tem de ser global, uma vez que os efeitos da poluição são muitas
vezes sentidos a uma grande distância da sua origem.
O debate público passou a ser dominado por um determinado poluente. O
dióxido de carbono é libertado no ar através da combustão de carvão, gás e
petróleo, combustíveis que entre si representam quase 80% da energia global.
A sua concentração atmosférica aumentou constantemente desde a Revolução
Industrial e continua a aumentar. Isto é preocupante, porque o dióxido de
carbono é um de uma série de gases que impedem que o calor do sol volte para
a atmosfera. À medida que a sua concentração aumenta, a terra fica mais
quente. Este é o «efeito de estufa antropogénico (ou provocado pelo homem)»,
que se acredita ser a principal causa do aquecimento global.
O aquecimento global é bastante diferente dos anteriores medos
malthusianos, tanto em dimensão como em carácter. Os seus efeitos
antecipados incluem inundações, secas, pestes e, na pior das hipóteses, a
destruição total da vida humana. A sua eliminação requer o abandono não
apenas deste ou daquele luxo, mas de carvão, gás e petróleo – a essência da
civilização industrial. Isto proporciona uma plataforma conveniente para
aqueles que nunca gostaram da civilização industrial. O ativista do clima
George Monbiot incitou os governos do mundo rico «a manterem as taxas de
crescimento o mais perto possível do zero»211. Num espírito semelhante, o
conselheiro de sustentabilidade Tim Jackson defende que apenas a eliminação
completa do crescimento poderá salvar-nos do desastre planetário,
acrescentando esperançosamente que também nos tornará mais felizes212.
Concordamos que, para o mundo rico, o crescimento já não é um objetivo
sensato de política de longo prazo. Mas vemos isto como uma verdade ética,
não como uma conclusão de facto científico. Apesar de sérios, os problemas do
aquecimento global não requerem por si só que abandonemos o crescimento. É
apenas pela suposição adicional, normalmente não admitida, de que para além
de um certo ponto o crescimento é inerentemente indesejável que a conclusão
se torna consistente. Um ideal ético foi trazido subrepticiamente sob a capa de
uma necessidade pragmática, um estratagema bem conhecido na nossa cultura
política utilitária.
A expressão «negador da alteração climática» – à semelhança de «negador
do Holocausto», e com conotações semelhantes – é muitas vezes aplicada
àqueles que disputam o consenso científico do aquecimento global. Nós não
somos negadores. As nossas dúvidas prendem-se com as implicações
económicas, não com a ciência do aquecimento global. Dito isto, a ciência não
está tão estabelecida como se afirma muitas vezes. A climatologia é um ramo
novo, no qual muito permanece incerto e contestado. Também é fortemente
politizada, com poderosos interesses comerciais e burocráticos de cada lado do
debate. Nem sequer o Painel Intergovernamental para a Alteração Climática
(IPCC), a maior assembleia de cientistas do clima do mundo, está
completamente acima de suspeita. «Continua a ser um risco», afirma um
relatório de 2005 da Câmara dos Comuns sobre alteração climática, «que o
IPCC se tenha tornado um “monopólio de conhecimento” em alguns aspetos,
incapaz de ouvir aqueles que não seguem a linha de consenso.»213
Confrontados com esta barragem de acusação e contra-acusação, o melhor que
podemos fazer enquanto não cientistas é aceitar a opinião da maioria, que é a
de que o aquecimento global é de facto, e acima de tudo, o resultado da
atividade humana. Nada do que se segue assenta no pressuposto de que isso
não é verdade.
O argumento do aquecimento global para a redução do crescimento assume
tipicamente uma forma utilitária. Diz-se que é necessária uma dose de
sofrimento agora para impedir maior sofrimento no futuro. Mas este argumento
só é válido se (a) os custos futuros do aquecimento global puderem ser
conhecidos com algum grau de certeza e (b) esses custos tiverem igual peso
quer sejam sentidos agora, daqui a 50 anos ou daqui a 200 anos. As duas
suposições são questionáveis e vamos analisá-las separadamente.
A previsão é uma tarefa perigosa, especialmente em áreas tão complexas e
mal compreendidas como esta. No entanto, isso não impede que as pessoas
tentem. O IPCC tem apresentado estimativas dos custos do aquecimento global
desde 1990. Essas estimativas são geradas em potentes computadores e
estendem-se por décadas no futuro. Irradiam autoridade tecnocrática. Mas
quanto é que podem dizer-nos na realidade? Os modelos do IPCC baseiam-se
em projeções a longo prazo não apenas do clima, mas da população, do
crescimento económico e da mudança tecnológica, fatores que são
extremamente incertos. Se combinarmos essas incertezas, teremos o que o
próprio IPCC denomina uma «cascata da incerteza»214. Esta parece uma base
fraca para adotar medidas que terão certamente um efeito drástico no nosso
padrão de vida.
A tecnologia é fundamental para a avaliação dos custos do aquecimento
global porque determina até que ponto podemos responder bem às inundações,
secas e doença que virão a reboque. No entanto, a mudança tecnológica é em
princípio imprevisível, pelos motivos reiterados por Karl Popper: se
pudéssemos prever o que saberemos, já saberíamos215. (Isto pode ser
denominado de efeito O Caminho das Estrelas, em honra da famosa tendência
dos filmes de ficção científica antigos para nos falarem apenas das fantasias da
sua própria época.) O IPCC está consciente da dificuldade e admite que as
tecnologias «usadas daqui a 100 anos poderão ter efeitos inimaginados na
sensibilidade e vulnerabilidade do clima»216. Porém, é precisamente porque
estes efeitos são inimaginados – e inimagináveis – que não podem ser
incorporados num modelo de previsão formal. Os nossos antepassados
eduardianos não teriam conseguido prever as tecnologias genéticas que nos
permitem alimentar 7 mil milhões de pessoas hoje em dia. Devíamos ficar
surpreendidos se os nossos descendentes criarem tecnologias que lhes
permitam lidar com três, quatro ou até mais graus de aquecimento?
Em seu abono, o IPCC não associa probabilidades aos seus diversos
cenários, apresentando-os simplesmente como «enredos» alternativos. No
entanto, inevitavelmente, é o mais extremo desses enredos que é usado pelos
políticos que querem reforçar as suas credenciais Verdes e pelos conselheiros
que procuram captar as boas graças com eles. O processo é o conhecido
processo de «embelezamento»: as declarações dos especialistas são
gradualmente despidas das suas advertências, emergindo finalmente como sons
fáceis de digerir. Assim, por exemplo, foi o mais lúgubre dos seis cenários do
IPCC que se tornou a base da influente Stern Review de 2006, que por sua vez
inspirou a declaração de Tony Blair numa carta aberta para os chefes de Estado
da UE de que «temos uma janela de apenas 10-15 anos para tomar as medidas
necessárias para evitar ultrapassar um ponto de viragem catastrófico»217. (Isto
aconteceu em 2006. Já só nos faltam 5 a 10 anos.)
A ideia de um «ponto de viragem» ou «ponto de não regresso» catastrófico é
rejeitada pela maioria dos cientistas sérios por não ter uma base empírica
suficientemente forte. «A linguagem da catástrofe não é a linguagem da
ciência», escreve Mike Hulme, diretor do Tyndall Centre for Climate Research
da Universidade de East Anglia218. Mas isso não fez com que ela deixasse de
ser usada por pessoas que já deviam ter aprendido. O geoquímico veterano
James Lovelock (sobre quem falaremos mais adiante) vê o mundo a aproximar-
se de um estado que «poderia facilmente ser descrito como Inferno: tão quente,
tão mortífero, que apenas um punhado dos muitos milhares de milhões agora
vivos sobreviverá»219. Trechos como este apresentam-nos uma versão secular
da famosa aposta de Pascal: invocam um demónio tão temível que evitá-lo vale
qualquer sacrifício, por muito grande que seja. Esta estratégia argumentativa
(agora dignificada como o «forte princípio de precaução») é calculada para
inspirar pânico. Em qualquer opinião sóbria, os perigos do aquecimento global,
embora reais, estão numa escala comensurável com os da guerra, da peste e de
muitos outros desastres potenciais. Não exigem a concentração total de esforço
e recursos exigidos pelos radicais do clima.
O caso ambientalista para a redução do crescimento pressupõe não apenas
que os estragos provocados pelo aquecimento global são previsíveis com
algum nível de precisão, mas que têm igual peso independentemente da sua
distância no tempo. Mesmo que o desastre esteja 200 anos no futuro, temos de
fazer sacrifícios ao mesmo nível agora para evitá-lo. Isto é extremamente
contraintuitivo. A maioria das pessoas valoriza mais a felicidade dos vivos do
que a dos ainda não nascidos. É «centrada no presente». A maioria dos
economistas ambientais regista este facto aplicando um «desconto» ao bem-
estar futuro: com efeito, estipula que no futuro o aperto será menos importante
do que o aperto atual. Além disso, parte do princípio de que, como é provável
que as gerações futuras sejam mais ricas do que a nossa, terão mais meios para
suportar o custo do aquecimento global. Juntas, estas duas suposições levam à
conclusão de que «apesar das ameaças sérias à economia global colocadas pela
alteração climática, pouco devia ser feito para reduzir as emissões de carbono
num futuro próximo; que os controlos ao carbono deviam ser implementados
de uma forma crescente, mas gradual, começando daqui a várias décadas»220.
Os radicais do clima opõem-se veementemente a descontar o bem-estar
futuro. Porque é que o simples facto de um indivíduo nascer em 2100 em vez
de 2000 diminui o seu direito em relação a nós? Isto não é «presentismo»,
análogo ao racismo e ao sexismo? A Stern Review funciona com uma taxa de
desconto puro de tempo próxima de zero, o que significa que confere um peso
praticamente igual ao bem-estar de todos os indivíduos, presentes e futuros. (O
único motivo porque a taxa de desconto não é zero é para ter em conta a
pequena possibilidade de a raça humana deixar de existir.) Isto gera a
conclusão de que uma redução imediata das emissões de carbono, pequena no
começo, mas aumentando para 1% do PIB global em 2050, é necessária para
evitar os custos ainda maiores do aquecimento global221. Subsequentemente,
Stern duplicou a sua estimativa do custo de procurar resolver a alteração
climática, e números ainda mais elevados foram propostos por autores que o
seguiram, ascendendo a uma eliminação completa do crescimento222.
A ética da Stern Review é a de um igualitarismo celestial, no qual todas as
eras são contemporâneas e todos os seres humanos, passados, presentes e
futuros, contam igualmente como um. Mas o nosso ponto de vista, o ponto de
vista humano, é subcelestial. Nós vemos o mundo de uma localização
específica no tempo e distribuímos as nossas simpatias de acordo com ela.
Valorizamos mais o bem-estar dos nossos filhos do que o dos nossos netos e
valorizamos mais o bem-estar dos nossos netos do que o dos nossos bisnetos, e
seríamos negligentes se não o fizéssemos. Nigel Lawson recorda-nos a figura
da Sr.ª Jellyby, a «filantropa telescópica» de A Casa Abandonada de Charles
Dickens, que é tão dedicada aos pobres de África que negligencia os próprios
filhos. «A autoproclamada base ética da taxa de desconto da Stern Review é um
pouco mais que jellybismo intertemporal», acrescenta ele223. Mas a posição de
Stern é ainda mais estranha do que esta. A Sr.ª Jellyby trata os seus entes mais
próximos e queridos em pé de igualdade com desconhecidos. Stern trata as
pessoas existentes em pé de igualdade com pessoas não existentes. Ele coloca o
bem-estar da mera possibilia na balança com o de seres humanos de carne e
osso. Nós podemos rejeitar esta bizarra filosofia sem abraçarmos o après moi le
deluge224 de Luís XV. Só precisamos de dizer que o bem-estar dos não nascidos
é muito menos importante do que o bem-estar dos vivos, embora tenha alguma
importância.
O argumento do aquecimento global para a redução do crescimento é tão
fraco que procuramos explicações mais profundas para o seu apelo persistente.
Essas explicações não são difíceis de encontrar. A maioria dos radicais do
clima também odeia ardentemente a ganância e o luxo, são pessoas que em
épocas anteriores poderiam ter sido Cromwell ou Savonarola. A literatura
ambientalista está cheia de culpa. O toque puritano é inequívoco no anúncio de
George Monbiot de que a sua campanha «não é pela abundância, mas pela
austeridade. É uma campanha não para mais liberdade, mas para menos. E o
mais estranho é que é uma campanha não apenas contra as outras pessoas, mas
também contra nós próprios»225. Aqui, e não nas tristes resmas de análises de
custo-benefício criadas por computadores, está o pulsar do ativismo climático.
Para resumir: o caso ambientalista para a redução do crescimento não pode
ser explicado como uma resposta pragmática aos factos conhecidos. Trai uma
paixão, uma vontade de acreditar, na qual os factos são secundários. Quando as
previsões económicas de Marx foram refutadas pelos acontecimentos, os seus
seguidores mantiveram-se inabalados. Analogamente, se os medos atuais
relativamente ao aquecimento global se revelarem infundados, os radicais do
clima não abandonarão a sua oposição aos voos de longa distância e aos
veículos de todo-o-terreno; antes, encontrarão novos argumentos para justificar
as suas austeridades. É como fé, não como ciência, que o ambientalismo se
mantém de pé ou cai. De onde vem esta fé? Para responder a isso, teremos de
olhar para a história.

As raízes éticas do ambientalismo

A revolução científica do século XVII procurou estabelecer o que o seu


profeta Francis Bacon chamou o regnum hominis, o império do homem. A
natureza foi reduzida a material inerte, ao serviço dos objetivos humanos, e
Deus a uma abstrata «causa primeira», remota e indiferente. Apenas o homem
reinava soberano no mundo. Locke e outros reinterpretaram o Livro do Génesis
à luz desta nova filosofia, como um mandato conferido por Deus para despojar,
abrir caminho e extrair, forçando assim um laço entre o cristianismo protestante
e a exploração ambiental que perdura até aos nossos dias. O economista
americano do século XIX H. C. Carey estava a expressar o senso comum da sua
época quando descreveu a terra como «uma grande máquina, dada ao homem
para ser adaptada ao seu propósito»226.
O projeto baconiano e o seu rescaldo industrial provocaram uma reação
ardente de poetas e escritores. O protesto de Wordsworth contra a violação da
natureza foi retomado por John Ruskin e William Morris em Inglaterra, por
Henry David Thoreau e Ralph Waldo Emerson na América e por inúmeros
outros. O que influenciou estes escritores não foi uma teoria científica de
poluição ou depleção de recursos, mas um sentido semipagão primevo da
natureza como sagrada e um horror equivalente da intromissão humana. «Tudo
é mirrado com o comércio, turvado, manchado com trabalho árduo», escreveu
Gerard Manley Hopkins ao contemplar os efeitos da atividade do homem na
terra. Esta indignação foi dirigida tanto contra a agricultura como contra a
indústria. O romantismo deu origem a um novo gosto pela natureza selvagem,
por charnecas e montanhas em oposição aos pastos e vinhas preferidos por
gerações anteriores de poetas e pintores.
Os primeiros grupos ambientalistas – o National Trust na Grã-Bretanha, a
Homeland Protection League na Alemanha, o Sierra Club na América – foram
produtos do culto romântico dos edifícios antigos e das paisagens «em estado
natural». Os seus membros eram entusiastas de classe média com tendências
patrióticas e conservadoras. Não tinham nada contra a indústria em si, desde
que ela se mantivesse discretamente escondida. Os clubes de caminhantes que
se multiplicaram no final do século XIX tinham um carácter mais proletário e
esquerdista, mas também eles pretendiam apenas umas férias temporárias da
civilização industrial, não o seu desmantelamento total. Os operários sabiam
muito bem de que lado do pão é que estava a manteiga.
No entanto, o primeiro ambientalismo tinha outras tendências mais radicais,
para as quais o inimigo era a própria tecnologia, não apenas os seus abusos
ocasionais. Ludwig Klages, um carismático filósofo e poeta alemão, fez soar a
nota característica. «O progresso destina-se à destruição da vida», escreveu em
1913. «Ataca-a em todas as suas formas, derruba florestas, extingue espécies,
extermina povos indígenas, asfixia e desfigura a paisagem com o verniz do
comércio e degrada as criaturas vivas quando, como o gado, são transformadas
em simples mercadoria.»227 O filósofo Martin Heidegger foi igualmente
absolutista. O seu ensaio de 1953 sobre tecnologia moderna apresenta o
progresso como um «emolduramento» penetrante da natureza, que coopta até
tentativas de escapar a ele:

A central hidroelétrica não é construída no rio Reno como foi a antiga ponte de madeira que uniu
uma margem à outra durante centenas de anos. Antes, o rio é represado na central elétrica. O que o rio
é agora, nomeadamente, um fornecedor de força hidráulica, deriva da essência da central elétrica […]
Mas, dir-se-á, o Reno continua a ser um rio na paisagem, não continua? Talvez. Mas como? De
nenhuma forma a não ser como objeto de inspeção de um grupo de excursionistas para ali mandado
pela indústria de férias228.

Klages, um antissemita, e Heidegger, um nazi impenitente, contam-se entre


os antepassados não reconhecidos do movimento Verde moderno. As suas
ideias foram adaptadas à esquerda por Theodor Adorno e Max Horkheimer
depois da Segunda Guerra Mundial e exportadas para a América pelo antigo
colega de Adorno, Herbert Marcuse. («O movimento ecológico», declarou
Marcuse com uma intransigência típica, «tem de procurar não apenas o mero
embelezamento da Estrutura Social existente, mas uma transformação radical
das instituições e empresas que desperdiçam os nossos recursos e poluem a
terra.»229) Em décadas recentes, o ambientalismo passou a ser visto como um
movimento completamente «progressista». Apenas alguns marxistas da velha
escola desconfiam que ele esconde um desígnio de manter os pobres no seu
lugar.
Até à década de 1960, a crítica radical da tecnologia manteve-se confinada a
uma fação de estudantes, artistas e intelectuais. Dois desenvolvimentos
trouxeram-na para a corrente dominante. Um foi a emergência da ecologia, a
ciência das criaturas vivas no seu habitat natural. A ecologia encorajou uma
nova consciência da interdependência da vida e dos perigos da intervenção
humana. Conferiu apoio científico à antiga ideia mística de que a natureza
personifica um «equilíbrio» que nós perturbamos à nossa custa. Silent Spring
de Rachel Carson, um polémico livro de 1962 contra a má utilização de
pesticidas, foi uma expressão influente desta linha de pensamento. Na década
de 1960 também se assistiu a um ressurgimento de preocupações malthusianas
sobre crescimento populacional e escassez de recursos. The Population Bomb
de Paul Ehrlich foi publicado em 1968 e foi seguido pouco depois por Limits to
Growth (1972) e Small is Beautiful do economista E. F. Schumacher (1973).
Esta nova vaga de pensamento ambientalista manteve uma aura de radicalismo,
mas o seu objetivo real era a «sustentabilidade» a longo prazo da sociedade
industrial, não a sua abolição. Poderia abalar homens e mulheres práticos para
quem alienação e «emolduramento» significava pouco ou nada.
A partir da década de 1970, o ambientalismo convencional continuou a
basear-se na linguagem utilitária de sustentabilidade, embora os seus impulsos
mais profundos se mantenham éticos, estéticos ou até religiosos. Isto conduziu
a uma tensão no movimento entre os chamados ecologistas «profundos» e
«superficiais», os primeiros valorizando a natureza como um fim em si e os
últimos valorizando-a como um instrumento de objetivos humanos. (A
campanha contra as posições do aquecimento global em si no campo
«superficial», embora, como vimos, muitos dos seus apoiantes tenham
tendências «profundas».) Existe uma tensão paralela entre instintos de oposição
ao desenvolvimento tecnológico original do ambientalismo e a sua nova
dependência da previsão informática. As mesmas pessoas que há 40 anos
poderiam ter falado em «tecno-fascismo» são agora acérrimas defensoras da
ortodoxia científica.
Os dois lados do movimento ambiental, romântico e científico, estão unidos
na pessoa de James Lovelock, inventor do detetor de captura de eletrões e autor
da famosa hipótese de Gaia. Um cientista com interesses diversificados em
geoquímica, ecologia e cibernética, Lovelock chegou à conclusão de que as
criaturas vivas desempenham um papel crucial para manter a temperatura e
atmosfera da terra num estado hospitaleiro à vida. Isto levou-o a perguntar-se
se a terra como um todo não poderia ser pensada como um sistema de
regulação automática, semelhante ao organismo. Ele mencionou a sua ideia ao
romancista William Golding, um vizinho, que «sem hesitação […] recomendou
que esta criatura se chamasse Gaia, em homenagem à deusa grega da Terra»230.
Nascia um novo mito.
Gaia começou por ser proposta por Lovelock como um dispositivo
puramente heurístico, uma forma de formular hipóteses, não uma declaração
literal de facto. «Ocasionalmente tem sido difícil, sem excessivo circunlóquio,
evitar falar de Gaia como se ela fosse senciente», escreveu em 1978. «Isto não
tem um significado mais sério do que a denominação “ele” quando usada
relativamente a um navio pelas pessoas que nele navegam.»231 Mas nas obras
mais recentes de Lovelock as advertências desapareceram. «E se Mary for
outro nome para Gaia?», pergunta ele retoricamente em The Ages of Gaia. «Na
Terra ela é a origem de vida duradoura e está viva agora; ela deu à luz a
humanidade e nós fazemos parte dela.»232 Lovelock está a jogar um jogo duplo
aqui: por um lado, a tranquilizar os seus colegas científicos e, por outro, a
acenar para os neopagãos. Gaia, respeitavelmente naturalista e ao mesmo
tempo rica em sugestões míticas, é uma divindade feita à medida para uma
época incapaz de fé transcendental.
A mensagem de Gaia é ambígua. Se ela é robusta («uma velha cabra dura»,
como lhe chamou Lynn Margulis, a colaboradora de Lovelock), então talvez
possa aguentar tudo o que lhe atiramos. Afinal de contas, tem aguentado
perturbações durante toda a sua longa história. Mas talvez já não seja tão
robusta. Ou talvez a sua «acomodação» a esta perturbação específica não
assuma a forma de remover a sua origem – nomeadamente, nós próprios. O
recente livro de Lovelock, A Vingança de Gaia, tende para esta última
possibilidade. Aqui, Gaia já não é a Virgem Maria, suave e terna, mas uma
fúria pagã. «Vemos agora que o grande sistema da Terra, Gaia, se comporta
como as outras deusas míticas, Khali e Nemésis; ela age como uma mãe que é
protetora, mas implacavelmente cruel para com os transgressores, mesmo
quando são seus descendentes.»233
Com isto, a profecia triunfou finalmente sobre a ciência. A visão catastrófica
de Lovelock não tem fundamento empírico ou teórico. A sua lógica é criadora
de mitos: as más ações dos homens pedem vingança e, como Deus está morto,
a Natureza tem de empunhar a espada. Foi neste espírito que, no poema citado
no início deste capítulo, Wordsworth apelou à natureza para «vingar os seus
direitos violados», e o naturalista vitoriano G. P. Marsh falou sobre a natureza a
«vingar-se do intruso»234. Essa retórica não é apenas má ciência; é também, e
mais importante, má religião. A natureza tal como é concebida pelos seus
adeptos modernos só se importa com o seu «equilíbrio», não com o bem do
homem. Ela herda a ira de Deus, mas não a sua misericórdia. Gaia marca uma
retrogressão, não uma evolução, na consciência religiosa.
Esta breve história confirma a conclusão a que chegámos antes; foi o
sentimento, não a ciência, que orientou e continua a orientar o movimento
ambientalista. Porque é que os Verdes modernos estão relutantes em admitir
isto? Em parte porque se preocupam com a possibilidade de enfraquecer a
credibilidade dos seus argumentos puramente «positivos»; em parte, também,
porque temem que uma comunicação franca dos seus motivos exponha muito
que é duvidoso. E podem não estar errados. Porém, a pena é que, no meio de
todos os disparates e maldade, o ambientalismo tem o germe de um ideal
maravilhoso, cujo reconhecimento não enfraqueceria a sua causa, mas, pelo
contrário, fortalecê-la-ia muito. É para este ideal que nos voltamos agora.

Harmonia com a natureza

A ética ecológica moderna divide-se em duas categorias gerais, que


identificámos como «superficial» e «profunda». A primeira vê a natureza como
um recurso humano que deve ser gerido tendo em atenção os interesses de
gerações futuras. A última vê-a como valiosa em si e por si, independentemente
da utilidade que tem para nós. Nenhuma delas capta o verdadeiro carácter da
nossa preocupação com a natureza. É através da dissecação das lacunas de
ambas que poderemos chegar a uma formulação mais adequada.
A fação «superficial» do movimento Verde, como exemplificado pela Stern
Review e por muitas publicações posteriores, estende simplesmente a análise-
padrão de custo-benefício a um período de tempo mais longo do que o habitual.
A sua fundamentação lógica é a conhecida fundamentação igualitária: não
devemos privilegiar o nosso bem-estar relativamente ao daqueles que ainda não
nasceram, do mesmo modo que não devemos privilegiar o bem-estar dos
brancos relativamente ao dos negros, ou dos homens relativamente ao das
mulheres. Não devemos ser «presentistas».
Este argumento tem algum fundamento. Já argumentámos que o bem-estar de
gerações futuras deve ter importância para nós, embora não tanta como o bem-
estar dos vivos, e que, por isso, devemos esforçar-nos para não deixar o mundo
como um deserto. Mas as considerações de bem-estar não esgotam o nosso
interesse na natureza. A filósofa Mary Midgley pede-nos para imaginarmos
Robinson Crusoe a destruir a sua ilha, juntamente com todos os seus habitantes
vegetais e animais, quando volta para casa. Não estão em causa quaisquer
interesses humanos, e, no entanto, o ato ainda nos parece injustificado235. Ou,
para darmos um exemplo da vida real, preocupamo-nos muito com o destino do
urso polar e do leopardo das neves, nenhum dos quais tem qualquer utilidade
para nós. (Algumas pessoas poderiam dizer que o prazer que temos com a sua
existência é a utilidade que eles têm para nós, mas se isso fosse verdade
poderíamos obliterar essa utilidade deixando simplesmente de nos preocupar
com eles e libertando-nos assim de qualquer obrigação de garantir a sua
sobrevivência.) É evidente que valorizamos a existência do urso polar e do
leopardo das neves «por eles próprios», independentemente de qualquer
benefício que possam ter para nós. E o mesmo se aplica à vasta maioria das
espécies ameaçadas em todo o globo.
Pensamentos como estes encorajam a ala «profunda», alternativa, do
movimento Verde. Os ecologistas profundos consideram o argumento
«superficial» apresentado acima como uma simples variante da velha ideia
lockiana errada de que a terra existe apenas para nosso benefício. Eles
recomendam-nos que vejamos «o crescimento da vida não humana» como um
fim em si, independente de qualquer interesse, a longo prazo ou não, que
possamos ter nela236. Mas isto levanta agora um problema intratável. Que pode
significar «o crescimento de vida não humana»? É que, manifestamente, não
existe uma única entidade chamada «vida não humana», apenas uma miríade
de organismos e espécies não humanos, muitos dos quais estão em competição
com outros. O crescimento do esquilo cinzento dá-se à custa do esquilo
vermelho. O crescimento da carraça dá-se à custa do cão. O que poderia
significar promover o «crescimento da vida não humana» como um todo?
Talvez a promoção do crescimento da vida não humana signifique promover
igualmente o crescimento de todas as espécies não humanas. Arne Naess, o
ecologista profundo original, fala sobre um «direito igual a viver e
florescer»237. Mas isto levanta agora uma série de outros problemas. Quem são
os portadores deste «direito igual»? Todas as plantas, fungos e bactérias estão
incluídos? Uma forma de vida obtém-no ao ser classificada como uma espécie
e perde-o ao ser reclassificada como uma subespécie (uma ocorrência comum
em biologia)? Isso parece bastante duro. Será que o «direito igual a viver e
florescer» implica que devemos dedicar recursos iguais a salvar o leopardo das
neves e o acanthomyops latipes, uma das muitas centenas de insetos em vias de
extinção? E quanto ao vírus da varíola, agora confinado a dois laboratórios no
mundo? Seguramente, neste caso, precisamos de pensar apenas nos nossos
interesses. No entanto, para os «igualitários biosféricos» como Naess, qualquer
favorecimento de uma espécie relativamente a outras com fundamentos
egoístas, sentimentais ou estéticos revela a brecha do «antropocentrismo».
Temos de ser tão desinteressados nas nossas relações com a natureza como um
Cato ou um Brutus.
Uma proposta apenas marginalmente mais sensata é de inspiração utilitária.
Se o nosso objetivo for maximizar o prazer e minimizar a dor, os prazeres e
dores animais têm de merecer igual consideração. Menosprezá-los é
«especiesismo»: um preconceito arbitrário a favor da nossa espécie238. Porém,
para além dos problemas gerais do utilitarismo, alguns deles abordados no
último capítulo, esta proposta falseia o carácter da nossa preocupação com a
natureza. Em primeiro lugar, dá-nos uma razão não instrumental para
cuidarmos de plantas, que não podem sentir prazer ou dor. Além disso, muitos
animais, especialmente herbívoros selvagens, vivem vidas ceifadas por doença,
fome e medo. Um utilitarismo consistente exigiria que os guardássemos em
grandes parques, a salvo de predadores e com acesso fácil a alimentos e
tratamento médico. Entretanto, os predadores poderiam ser alimentados com
pedaços de carne eticamente criada ou algum substituto de soja. A fantasia
pode ser desenvolvida a fundo. A questão é que esta proposta não pode ser
sancionada por alguém preocupado com o crescimento do nosso habitat
natural.
Outra estratégia para os ecologistas profundos é sugerida por Aldo Leopold,
um pioneiro da ética ambiental. «Uma coisa é certa», escreveu Leopold,
«quando tende a preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade
biótica. É errada quando tende para o contrário.»239 Aqui, a unidade de
preocupação não são todas as espécies consideradas individualmente, mas a
comunidade de espécies. Somos convidados a maximizar o bem do todo,
mesmo que isto implique o ferimento ou destruição de algumas das suas partes.
James Lovelock pertence a esta tradição holística. Ele fala de Gaia como
doente, febril, senil, etc., e instiga-nos a fazer o que ainda for possível para lhe
restaurar a saúde. Ele até parece sentir uma satisfação sinistra ao pensar que a
nossa destruição poderia beneficiar Gaia, como a eliminação de um cancro ou
de um vírus.
Essa linguagem é moralmente perigosa, como já dissemos. Também é
confusa. A comunidade biótica, ou Gaia, não é um organismo nem nada que se
pareça com um organismo. Não pode ser saudável ou doente, florescer ou
desmoronar-se. Os organismos pertencem a espécies, cujo funcionamento e
forma de vida característicos definem as suas normas de doença e saúde240. Um
camelo com uma única bossa é um camelo defeituoso a não ser, evidentemente,
que seja um dromedário. Em contraste, Gaia é sui generis. Não há «gaias».
Logo, é enganador, mesmo como metáfora, falar em Gaia como doente ou
febril. (Qual é a temperatura correta para «uma gaia»?) Promover a saúde de
Gaia é uma tarefa sem sentido – e ainda bem, caso contrário poderia obrigar-
nos a cometer suicídio coletivo.
O que correu mal? Os ecologistas profundos estão bastante certos ao insistir
que o valor da natureza é intrínseco, não instrumental; o seu erro é concluir a
partir disto que é independente do nosso ponto de vista. Não se pode tirar essa
conclusão, e não é verdade. Todo o valor, instrumental e intrínseco, é relativo
ao ponto de vista humano pelo simples motivo que somos o único animal a
avaliar. Os outros animais têm bens, mas não apreendem esses bens como bens,
como coisas dignas de busca. Eles não são agentes morais. O
«antropocentrismo» não é um preconceito, mas um simples corolário deste
facto. Como Bernard Williams afirma na sua discussão sobre este assunto,
«uma preocupação com animais não humanos é na realidade uma parte
característica da vida humana, mas nós podemos adquiri-la, cultivá-la e ensiná-
la apenas em termos da nossa compreensão de nós mesmos»241.
Pode parecer estranho dizer que o valor da natureza é antropocêntrico e
intrínseco. Como podem as suas imputações ser verdadeiras? Porém, todos
conhecemos outro item cujo valor é antropocêntrico e intrínseco,
nomeadamente, a arte. «Um dia», escreveu Oswald Spengler, «o último retrato
de Rembrandt e o último compasso de Mozart deixarão de existir – embora
talvez fique uma tela colorida e uma pauta de música – porque o último olho e
o último ouvido acessíveis à sua mensagem terão desaparecido.»242 Por outras
palavras, a arte só tem valor para criaturas que partilham as nossas
sensibilidades e preocupações. Todavia, isso não quer dizer que o valor da arte
é meramente instrumental, que só a valorizamos como uma fonte de prazer,
capital cultural ou o que for. O valor da arte é claramente intrínseco, embora só
entre no mundo através da janela das nossas perceções. E se isto é verdadeiro
para a arte, não deveria também ser verdadeiro para a natureza?
Outra forma de reforçar que o valor da natureza é antropocêntrico e
intrínseco é dizer que a harmonia com a natureza faz parte da vida boa para o
homem. Esta formulação capta os dois lados da questão. Deixa claro que o
valor da natureza é intrínseco (viver em harmonia com alguma coisa não é
manipulá-la para os nossos próprios fins) e, no entanto, ao mesmo tempo
antropocêntrico (a harmonia com a natureza faz parte do nosso bem). Preserva
o que é verdadeiro nas posições superficial e profunda e descarta o que é falso.
Um exemplo prático de «harmonia com a natureza» é proporcionado pela
atividade da jardinagem. Um bom jardineiro conhece e respeita as
potencialidades da natureza. Ele (a menos que seja francês) não vê árvores e
arbustos como simples «material» para ser torcido na forma ou tamanho
desejados. No entanto, as suas intervenções não são inteiramente
desinteressadas. Ele rega algumas plantas, arranca outras. Poda as árvores
quando elas crescem demais. Coloca veneno para lesmas e caracóis. Em suma,
canaliza as tendências inerentes da natureza de acordo com um ideal humano
de conforto e beleza. A sua relação com a natureza não é vulgarmente
instrumental nem sombriamente sacrificial. É uma relação de harmonia243.
O poder único da jardinagem para revelar o que significa viver em harmonia
com a natureza explica porque é que ela figura proeminentemente em
descrições da vida boa no mundo inteiro. A Bíblia coloca Adão e Eva num
jardim. O Corão promete aos fiéis um lugar «no jardim das delícias», onde a
água corre eternamente e a fruta nunca está fora de época. Os filósofos
chineses são tipicamente descritos e passear entre montanhas ou bosques de
bambu, longe do bulício da cidade. «Se tiverem um jardim e uma biblioteca»,
escreveu Cícero, «terão tudo o que precisam.» A recorrência dessa imagística
em culturas do mundo inteiro sugere que a harmonia com a natureza é uma
necessidade universal da alma – um «bem básico», como diremos no próximo
capítulo.
Sendo este o caso, porque é que a ideia de harmonia com a natureza aparece
tão pouco na literatura do ambientalismo moderno? Presumivelmente, a
resposta é que supõe uma imagem da natureza como algo com que nós
poderíamos estar em harmonia, como algo que nos atrairia para certos estilos
de vida e não outros. Essa imagem é agora vista como «metafísica» no mau
sentido. No moderno conceito-padrão, a natureza está simplesmente presente:
factiva, dura, impermeável à compreensão humana. Não é o tipo de coisa com
que poderíamos estar (ou não estar) em harmonia. Cuidar da natureza só pode
significar geri-la de acordo com os nossos interesses de longo prazo ou então
deixá-la seguir o seu estranho caminho – os pontos de vista da ecologia
superficial e profunda, respetivamente.
No entanto, mantém-se o facto de que a maioria das pessoas – mesmo
aquelas que passaram pelo crivo positivista, quando não se comportam de
acordo com o melhor comportamento filosófico – faz uma distinção entre
atividades que estão e não estão «em harmonia» com a natureza. Elas
consideram que os jardins de Versalhes são artificiais comparativamente aos de
Stowe, embora saibam que ambos são o resultado da arte humana. Revoltam-se
com a criação intensiva de animais, embora saibam perfeitamente bem que
toda a pecuária envolve a modificação deliberada da vida. O senso comum, o
árbitro supremo em questões de prática, diz-nos que algumas atividades estão
«com», e outras «contra», a inclinação da natureza. Precisaremos de mais do
que uma teoria filosófica para nos convencer do contrário.
Como é que um ambientalismo remodelado segundo estas linhas – podemos
chamar-lhe «ambientalismo da vida boa» – pareceria na prática? Muito
diferente do ambientalismo atual, tanto profundo como superficial. Promoveria
formas de vida «verdes» não para o bem da natureza nem para o bem de
gerações futuras, mas para o nosso bem. Encorajar-nos-ia, para o nosso bem, a
obter um conhecimento das plantas e animais locais, comer alimentos locais e,
onde possível, participar na sua produção através da pesca, horticultura e outras
atividades. Muitos ambientalistas já estão comovidos com estas considerações
da «vida boa», embora a maioria corasse ao admiti-lo. (Quantos proprietários
ingleses de terras agrícolas diriam, como uma senhora russa nos disse uma vez,
que cultivar vegetais é «bom para a alma»?) Outros ambientalistas são mais
consistentes no menosprezo dos interesses humanos. James Lovelock, por
exemplo, sugere o abandono total da agricultura a favor de alimentos
artificialmente sintetizados – um curso de ação que, sejam quais forem os seus
benefícios para Gaia, não contribuiria certamente em nada para a nossa alegria
de viver244.
Em segundo lugar, no ambientalismo da vida boa não há lugar para o
preconceito, que nos é impingido pelo romantismo, contra a agricultura e a
jardinagem. Pelo contrário, respeita-as como tentativas para deixar o homem e
a natureza em maior harmonia uns com os outros. Partilha o sentimento pela
natureza classicamente expressado por Virgílio, que escreveu versos de louvor
à enxertia e à reprodução e instigava os lavradores a «dominar com cultura os
frutos silvestres, para que a terra não fique inculta». Isto não quer dizer que
toda a agricultura é inócua. As gaiolas para galinhas poedeiras nos aviários e as
monoculturas são abominações. Porém, deviam ser vistas como perversões de
uma prática normalmente saudável, em vez de expressões de qualquer
depravação inerente à própria agricultura. A opinião do ecologista J. Baird
Callicott de que «uma manada de gado, um rebanho de ovelhas ou uma vara de
porcos é uma praga tanto, ou mais ruinosa na paisagem, como uma frota de
veículos de todo-o-terreno» não tem mérito245.
Logo, o ambientalismo da vida boa tem algum lugar para «as ervas daninhas
e para a natureza em estado selvagem» adoradas por Hopkins e por outros
românticos? Possivelmente. Mas é um lugar determinado pelas nossas
preocupações, não pelo bem da natureza em si, o que quer que isso possa
significar. A visão do homem a transformar a terra num vasto jardim é tão
rebuscada que o progressivista vitoriano Herbert Spencer nos enche a nós,
modernos, de claustrofobia. Temos tendência para concordar com o
contemporâneo mais romântico de Spencer, John Stuart Mill, que defendeu a
preservação da natureza no seu estado selvagem com o fundamento de que
«não é bom para o homem ser mantido forçosamente […] na presença da sua
espécie»246. Porém, quer seja ou não desejável em teoria, na prática a
preservação da natureza no seu estado selvagem é um empreendimento
paradoxal, pois uma natureza em estado selvagem que só pode ser preservada
no seu estado atual através da intervenção humana deixa de ser
verdadeiramente uma natureza em estado selvagem. As savanas de África,
cuidadosamente monitorizadas e manipuladas como são pelos cientistas, são,
com efeito, vastos parques, diferindo apenas em tamanho dos parques da
Inglaterra rural. E se tentarmos adicionalmente, como a justiça dita que
deveríamos, tornar a natureza no seu estado selvagem acessível não apenas
para os cientistas e exploradores, mas para os turistas normais, o seu carácter
selvagem ficará ainda mais comprometido. Parece que podemos estar
destinados a transformar o mundo num jardim, quaisquer que sejam as nossas
intenções.
Em terceiro lugar, um ambientalista da vida boa não ficará embaraçado ao
admitir que prefere a sobrevivência do leopardo das neves à do acanthomyops
latipes. Se for pressionado para explicar porquê, dirá simplesmente que o
leopardo é um animal lindo, com um lugar longo e distinto na arte e na
heráldica. Isto é indubitavelmente antropocentrismo, mas que alternativa
temos? Os ecologistas profundos imaginam que desprover a natureza de
significado humano revelará toda a profundidade do seu valor intrínseco. O
oposto é verdadeiro. Se pudéssemos desprover a natureza do significado
humano – que não podemos – ficaríamos com uma coisa sem qualquer valor
intrínseco, como reservas de carvão ou petróleo. Todo o valor é mediado
através do véu do simbolismo humano. Retire-se este véu e temos apenas «as
lúgubres e nuas estruturas do mundo».
Por fim, o ambientalismo da vida boa levará a sério o problema do
crescimento populacional. Quando escrevemos em 2011, a população mundial
tinha acabado de passar a marca dos 7 mil milhões e continua a crescer, embora
a um ritmo mais lento. Quer este aumento desencadeie uma crise malthusiana
quer não, diminuirá certamente a nossa qualidade de vida. A perspetiva de os
seres humanos viverem empilhados em cima uns dos outros como galinhas
poedeiras num aviário, mesmo que «sustentável», não é agradável. O próprio
Keynes condicionou o advento da «felicidade» ao nosso «poder de controlar a
população». Como alcançar esse poder é um problema técnico premente, mas
não se enquadra no âmbito deste livro.
Quais são as implicações económicas do ambientalismo da boa vida? A
proteção da agricultura, restrições à construção de supermercados,
encorajamento da produção artesanal de alimentos – são apenas algumas das
políticas que ajudariam a manter laços com o solo. Elas foram defendidas por
economistas ambientalistas como E. F. Schumacher durante décadas, embora
muitas vezes por razões utilitárias enganadoras. Qual seria o seu impacto no
crescimento? Possivelmente negativo, embora tanto a França como a Itália
tenham mantido as suas tradições agrícolas com maior sucesso do que a
Inglaterra, sem qualquer diminuição visível no crescimento. Seja como for, não
é crucial. Para o ambientalismo da vida boa, a redução do crescimento não é
um objetivo, mas um efeito secundário indiferente de medidas desejáveis em si
mesmas e por si mesmas.
Um movimento ambiental reformado segundo estas linhas deixaria de ser
dependente de reivindicações científicas, que são ao mesmo tempo incertas e
irrelevantes. Os limites naturais ao crescimento, mesmo que existam, entrarão
em ação demasiado tarde para cumprir os requisitos da vida boa. Fazer
depender as nossas esperanças da escassez suprema é condenarmo-nos a
décadas, possivelmente séculos, de consumismo irracional. Além disso, o
ambientalismo da vida boa dissiparia a atmosfera do moralismo desaprovador
que pairou recentemente sobre o movimento. Recordar-nos-ia que uma vida em
harmonia com a natureza não é um sacrifício, mas algo a ser desejado
ardentemente. A natureza não é matéria-prima para usar como queremos nem
um estranho deus a exigir sacrifício. Ela é um «espírito adormecido», como os
românticos alemães gostam de dizer – a portadora muda da mesma vida que
ganhou consciência em nós. Quando lhe fazemos mal, destruímos as raízes da
nossa própria existência.
207 Thomas Malthus, An Essay on the Principle of Population, Electronic Scholarly Publishing Project
(http://www.esp.org/books/malthus/population/malthus.pdf; acedido no dia 12 de janeiro de 2012), p. 44.

208 Donella H. Meadows et al., The Limits to Growth (Londres: Pan, 1974), pp. 45-87.

209 Para uma refutação exaustiva dos medos maltusianos de escassez de recursos, ver Bjørn Lomborg, The
Sceptical Environmentalist: Measuring the Real State of the World (Cambridge: Cambridge University
Press, 2001), pp. 118-148.

210 Paul Ehrlich, The Population Bomb (Nova Iorque: Ballantine Books, 1968).

211 George Monbiot, «Bring on the Recession» [Que Venha a Recessão], Guardian, 9 de outubro de 2007.

212 Tim Jackson, Prosperity without Growth: Economics for a Finite Planet (Londres: Earthscan, 2009).

213 Comissão Especial para Assuntos Económicos da Câmara dos Lordes, The Economics of Climate
Change (Londres: HMSO, 2005), p. 58.

214 Painel Intergovernamental para a Alteração Climática, Third Assessment Report (Cambridge:
Cambridge University Press, 2001), Painel de Trabalho 1, Sumário Técnico, p. 79.

215 K. R. Popper, The Poverty of Historicism (Londres: Routledge, 1961), pp. v–vi.

216 Painel Intergovernamental para a Alteração Climática, Third Assessment Report, Painel de Trabalho 2,
cap. 3, p. 154.

217 Citado em Mike Hulme, «Chaotic world of climate truth» [O mundo caótico da verdade climática],
2006, sítio da BBC News, 2006, news.bbc.co.uk/1/hi/6115644.stm (acedido no dia 9 de novembro de 2011).

218 Ibid. Ver também Ellen Raphael e Paul Hardaker, Making Sense of the Weather and Climate (Londres:
Sense about Science, 2007), p. 3: «A ideia de um ponto de não retorno é uma forma enganadora de pensar
no clima e pode ser desnecessariamente alarmista.»

219 James Lovelock, The Revenge of Gaia (Londres: Penguin, 2006), p. 189.

220 Sir Partha Dasgupta, Comments on the Stern Review’s Economics of Climate Change
(www.econ.com.ac.uk/faculty/dasgupta/STERN.pdf; acedido no dia 12 de janeiro de 2012), p. 5. Sir Partha
resume as opiniões de William Nordhaus, o mais influente economista moderno de clima. Ele não apoia
necessariamente estas opiniões.

221 Nicholas Stern, Stern Review on the Economics of Climate Change (Londres: UK Treasury, 2006), p.
xii.

222 Jackson, Prosperity without Growth.

223 Nigel Lawson, An Appeal to Reason: A Cool Look at Global Warming (Londres: Duckworth, 2009), p.
87.
224 Em francês no original: depois de mim, o dilúvio. (N. da T.)

225 George Monbiot, Heat: How We Can Stop the Planet Burning (Londres: Penguin, 2007), p. 215.

226 Citado em John Passmore, Man’s Responsibility for Nature: Ecological Problems and Western
Traditions (Londres: Duckworth, 1974), p. 21.

227 Ludwig Klages, Mensch und Erde (Jena: Eugen Diederichs, 1929), p. 25.

228 Martin Heidegger, «The Question Concerning Technology» [A Questão Relacionada com Tecnologia],
in Heidegger, Basic Writings (Londres: Routledge, 1993), p. 321.

229 Citado em Passmore, Man’s Responsibility for Nature, pp. 60-61.

230 J. E. Lovelock, Gaia: A New Look at Life on Earth (Oxford: Oxford University Press, 1979), p. 10.

231 Ibid., pp. ix-x.

232 James Lovelock, The Ages of Gaia (Londres: Penguin, 1988), p. 206.

233 Lovelock, The Revenge of Gaia, p. 188.

234 Citado em Passmore, Man’s Responsibility for Nature, pp. 23-24.

235 Mary Midgley, «Duties Concerning Islands» [Deveres com as Ilhas], in Robert Elliot (ed.),
Environmental Ethics (Oxford: Oxford University Press, 1995), pp. 89-103.

236 Segundo Arne Naess, o primeiro princípio de ecologia profunda é: «O crescimento da vida humana e
não humana na terra tem valor inerente. O valor das formas de vida não humanas é independente da
utilidade do mundo não humano para fins humanos.» Arne Naess, «The Basics of the Deep Ecology
Movement» [O essencial do Movimento de Ecologia Profunda], in Alan Drengson e Bill Devall (eds.), The
Ecology of Wisdom: Writings by Arne Naess (Berkeley: Counterpoint, 2008), p. 111.

237 Arne Naess, «The Shallow and the Deep, Long-Range Ecological Movement: A Summary» [O
Superficial e o Profundo, Movimento Ecológico de Longo Alcance: Um Resumo], in Andrew Dobson (ed.),
The Green Reader (Londres: Deutsch, 1991), p. 243.

238 O termo «especiesismo» foi popularizado por Peter Singer, Animal Liberation (Avon, 1977).

239 Aldo Leopold, «A Sand County Almanac» [Um almanaque do distrito de Sand], in Dobson (ed.), The
Green Reader, pp. 240-241.

240 Para uma defesa persuasiva da sua reivindicação, ver Michael Thompson, Life and Action (Newhaven,
Mass.: Harvard University Press, 2008).

241 Bernard Williams, Ethics and the Limits of Philosophy (Londres: Routledge, 2006), p. 118.

242 Oswald Spengler, The Decline of the West, tr. Charles Francis Atkinson, vol. 1 (Londres: George Allen,
1932), p. 168.

243 Ver David E. Cooper, A Philosophy of Gardens (Oxford: Oxford University Press, 2006), para uma
defesa interessante da importância dos jardins e da jardinagem para a vida boa.

244 Lovelock, The Revenge of Gaia, pp. 169-170.

245 J. Baird Callicott, «Animal Liberation: A Triangular Affair» [Libertação Animal: Uma Questão
Triangular], in Robert Elliot (ed.), Environmental Ethics (Oxford: Oxford University Press, 1995), p. 50.

246 Citado em Passmore, Man’s Responsibility for Nature, p. 105.


6

Elementos da Vida Boa

Preciso de uma caneca de vinho e um livro de poesia.


De meio pão para ter alguma coisa para comer,
Depois tu e eu, sentados num local deserto,
Teremos mais riqueza do que o reino de um sultão.
Omar Khayyam

Defendemos que a nossa dependência continuada do consumo e do trabalho


se deve, acima de tudo, ao desaparecimento da discussão pública de qualquer
ideia da vida boa. Aqueles objetos fixos de ambição e desejo expressados por
Keynes e Virginia Woolf – as 500 libras por ano, a sala só sua – há muito que
se desvaneceram, não deixando nada a não ser as sortes inconstantes dos
«Joneses»247 para nos orientar. Se quisermos recuperar um entendimento do
que significa ter o suficiente, teremos de reaprender a fazer a pergunta: O que é
viver bem?
A vida boa, como é mencionada no Capítulo 3, é uma vida que é desejável,
ou digna de desejo, não apenas uma vida que é vastamente desejada. Não
podemos identificá-la contando cabeças ou fazendo um questionário. Mas a
vida boa também não pode diferir totalmente das aspirações da maioria das
pessoas em todo o mundo e através do tempo. Na ética, ao contrário da ciência,
o erro universal não é uma possibilidade coerente, uma vez que o objetivo da
ética, o bem humano, é um bem relativamente ao qual todos os seres humanos
têm uma palavra a dizer. Não há peritos de moral. Aristóteles compreendeu
isto, e foi por isso que abordou questões éticas começando em primeiro lugar
por recolher «as opiniões» sobre elas, tanto populares como eruditas. Ele
percebeu que havia sabedoria na experiência comum, embora ela pudesse estar
escondida ou distorcida. Hoje podemos realizar o mesmo empreendimento
numa frente muito mais vasta, recorrendo às opiniões não apenas dos nossos
compatriotas, mas de todos os povos civilizados ao longo do tempo.
Neste ponto da discussão, é normal referir a enorme diversidade de crenças e
práticas morais. Perante tanta diversidade, como é que falamos sobre uma coisa
como «a vida boa»? Não será essa conversa apenas chauvinismo ou, pior ainda,
«imperialismo cultural», a imposição arbitrária das nossas preferências aos que
discordam? Não deveríamos limitar as nossas ambições à construção de uma
estrutura neutra de regras que permita às pessoas de crenças diferentes viverem
juntas em harmonia? Como vimos no Capítulo 3, esta abordagem tipifica a
maior parte do liberalismo moderno, especialmente o liberalismo económico.
Impõem-se duas respostas. Primeiro, não é pelo simples facto de as opiniões
morais diferirem que têm todas o mesmo valor. A verdade é que algumas
culturas – incluindo, é claro, a nossa – poderão estar erradas em relação a
questões éticas. Até os relativistas morais dogmáticos ficam normalmente
estarrecidos com a menção de exemplos tão brutais como a excisão de
mulheres no Norte de África ou o costume de ligar os pés na China. Também
não é impossível uma cultura persuadir outra do carácter errado dos seus
hábitos – com certeza não com argumentos chocantes, mas com o despertar de
sentimentos de indignação ou solidariedade até então adormecidos. Temos
como exemplos a liberalização das estruturas familiares na China da dinastia
Tang sob influência budista, e na Índia do século XX sob influência ocidental.
Não é verdade, como Milton Friedman afirmou, que «em última análise os
homens só podem lutar» contra diferenças de valor básico248.
Em segundo lugar, embora exista indubitavelmente variedade moral, esta é
menos abrangente do que muitas vezes se pensa. Todas as culturas no mundo
encorajam uniões mais ou menos estáveis entre homens e mulheres com o
objetivo de terem e criarem filhos, embora os termos exatos destas uniões
variem muito. Todos os seres humanos vivem em grupos que se estendem para
lá da família imediata, com alguma forma estabelecida de organização política.
Todos possuem alguma noção de propriedade e de troca. Todos se envolvem
em atividade que vai para além de garantir as coisas fundamentais, quer sejam
religiosas, estéticas, recriativas ou outras. Todos veneram o mundo que os
rodeia e os seus habitantes vegetais e animais através da oração, pintura ou
poesia. Todos, ou quase todos, tapam os seus genitais. Todos tratam os seus
mortos com formas ritualizadas de respeito e não apenas como carne em
decomposição249.
Estas e outras comunalidades definem a forma de vida vincadamente
humana. Revelam um consenso alargado relativamente ao que podem ser
chamados os «bens básicos» – os bens que permitem viver bem. Saúde,
respeito, segurança, relações de confiança e amor são reconhecidos em todo o
lado como parte de uma boa vida humana; a sua ausência é reconhecida em
todo o lado como uma desventura. Esses bens surgem numa imensidão de
formas. Uma coisa é cumprimentar um príncipe javanês, outra é cumprimentar
um taxista londrino. Mas o conceito de respeito em si é universal, como está
bem patente na nossa capacidade de reagir solidariamente a descrições de
humilhação em histórias do mundo inteiro250. «No fundo, é o “mesmo” ser
humano», escreve o filósofo alemão Ernst Cassirer, «que encontramos vezes
sem conta em mil manifestações e em mil máscaras.»251 Logo, temos os
materiais para um inquérito universal à vida boa, que transcendem limites de
tempo e lugar. Não estamos condenados a um «choque de civilizações»
chauvinista, mediado apenas pelas regras de mercado ou por tratados
internacionais.
Qual é a relação entre a nossa iniciativa e outras discussões recentes? Em
Uma Teoria da Justiça e livros posteriores, John Rawls definiu uma categoria
de «bens primários», bens que um indivíduo racional quererá apesar de todas as
outras coisas que poderá desejar, «pois são em geral necessários para a
construção e execução de um plano de vida racional»252. A lista de bens
primários de Rawls inclui liberdades cívicas e políticas, rendimento e riqueza,
acesso à administração pública «e as bases sociais da dignidade». Os bens
primários não são elementos da vida boa em si, mas são os meios para alcançar
qualquer versão possível da vida boa. São as condições externas de autonomia.
Um Estado liberal tem de garantir que eles estão razoavelmente divididos entre
os seus membros, mas não deve interferir na forma como são utilizados, pois
isso seria violar o seu princípio fundamental de neutralidade.
Amartya Sen e Martha Nussbaum – uma oriunda da economia de
desenvolvimento e a outra da filosofia moral – criticaram Rawls por ignorar o
grau variável em que os indivíduos conseguem transformar os bens primários
em oportunidades concretas. Uma pessoa deficiente precisará de mais dinheiro
para atingir o mesmo nível de mobilidade física do que uma pessoa forte; uma
rapariga que viva numa cultura patriarcal precisará de mais recursos educativos
para atingir o nível dos seus homólogos do sexo masculino. Logo, não
devíamos concentrar-nos em bens, mas em capacidades – poderes concretos de
pensamento e ação. A questão não devia ser «quantos recursos pode fulano de
tal dominar?», mas «o que pode fulano de tal fazer e ser?» Nussbaum
apresentou uma lista de 10 capacidades humanas principais, incluindo saúde e
integridade física, imaginação, pensamento, razão prática, afiliação e
diversão253. Ela e Sen defendem que essas capacidades definem o espaço dentro
do qual a qualidade de vida devia ser avaliada. As suas ideias foram
extremamente influentes na comunidade de desenvolvimento, inspirando uma
mudança da concentração no PIB para outros índices mais específicos.
Apesar de todas as suas divergências com Rawls, Sen e Nussbaum partilham
com ele uma preocupação global com a autonomia. É esta preocupação que as
leva a ir para além da lista de bens primários de Rawls. Como Nussbaum
escreve, resumindo a sua relação com Rawls:

Nós queremos uma abordagem que respeite a luta de cada pessoa para crescer, que trate cada pessoa
como um fim e como uma origem de atividade e valor por direito próprio. Parte deste respeito
significará não ser ditatorial em relação ao bem, pelo menos para os adultos e pelo menos em algumas
áreas fundamentais de escolha, deixando aos indivíduos um vasto espaço para importantes tipos de
escolha e afiliação séria. Mas este respeito implica tomar uma posição sobre as condições que lhes
permitem usar as suas capacidades livres das tiranias impostas por política e tradição254.

O desejo de salvaguardar a autonomia explica o interesse de Sen e Nussbaum


pelas capacidades e não pelos funcionamentos. À primeira vista, este interesse
é bastante estranho. Porque é que nos importaríamos se os indivíduos são
capazes de saúde, educação, etc.? Seguramente, o que importa é que eles são
realmente saudáveis e instruídos. Mas, para Nussbaum, assumir uma posição
pública relativamente a esta última questão significaria ser «ditatorial» para
com o bem. «No que diz respeito aos cidadãos adultos, a capacidade, não o
funcionamento, é o objetivo político adequado.»255
A nossa abordagem é muito diferente. Os bens básicos, tal como os
definimos, não são apenas meios, ou capacidades, para uma vida boa; são a
vida boa. Além disso, vemos esses bens como um objetivo adequado não
apenas para a ação privada como também para a ação política. Se o que
importa, na maioria dos casos, é não apenas a capacidade de viver uma vida
boa, mas o facto de vivê-la, então porque é que negamos a nós mesmos todos
os poderes que temos à nossa disposição para realizar isto? Imaginem duas
sociedades, uma em que não há hospitais e a outra em que há hospitais que
ninguém usa. Numa existe a capacidade da saúde e na outra não, mas o que
importa seguramente é que as duas populações são igualmente pouco
saudáveis. E ambas nos apresentam, seguramente, um problema político, um
problema de ação do Estado.
Além disso, o nosso problema precisa de uma ênfase nos objetivos e não nas
capacidades, já que estamos perante um problema de riqueza, não de pobreza.
Sen e Nussbaum estão acima de tudo preocupadas com as nações pobres, em
que muitas pessoas não possuem recursos para viver bem. Porém, no mundo
rico enfrentamos o problema muito diferente de fazer bom uso dos recursos já
existentes. Se o objetivo da política for definido unicamente em termos de
capacidades, este problema desaparece da vista. «Uma pessoa que tem
oportunidades para se divertir pode sempre escolher uma vida viciada em
trabalho», escreve Nussbaum, insinuando que, enquanto a escolha for livre, o
seu resultado não tem interesse público256. Mas se a vida em que apenas o
trabalho interessa for pobre, como a maioria das pessoas que refletiram sobre a
questão concordam que é, então a sua adoção em detrimento de vidas
melhores, quer através de uma escolha livre quer não, é sem dúvida algo que
deve preocupar-nos.
Neste ponto, o nosso adversário brandirá o temido espectro do paternalismo.
Ao sugerir que os fins e não os meios ou capacidades deveriam ser o objetivo
da política não estaremos a ser «ditatoriais em relação ao bem»? Duas
reflexões podem ajudar a aliviar esta suspeita, ou pelo menos a torná-la menos
importante. Primeiro, até há muito pouco tempo, todas as nações ocidentais
tinham nos seus códigos de leis um grande número de leis explicitamente
destinadas a tornar as pessoas melhores do que elas teriam escolhido ser. (Até à
década de 1960, a pornografia era definida pelo direito britânico e americano
como uma questão que tendia a «depravar e corromper».) Muitas dessas leis
continuam em vigor, e na verdade o seu âmbito foi alargado, embora agora
normalmente sob o pretexto de impedir danos a terceiros. Exemplos disso são
as leis contra as drogas, incesto e bestialidade, restrições à venda e uso de
pornografia, álcool e cigarros, e muita legislação sobre saúde e segurança. Só
no mundo elitista da filosofia académica é que os Estados liberais não são
«ditatoriais» relativamente ao bem.
Em segundo lugar, como qualquer definição razoável determina que a vida
boa é uma vida autónoma ou autodeterminada, o estado, enquanto órgão
coersivo, está limitado em termos do que pode fazer para promovê-la. É
manifestamente absurdo forçar as pessoas a serem civilizadas, como Pedro, o
Grande, que ordenou aos seus nobres que frequentassem salons e discutissem
filosofia sob pena de tortura. Mas há muitas coisas que o Estado pode fazer
sem chegar a tais extremos. A utilização de incentivos económicos para
encorajar as pessoas para o bem não é normalmente sentido como ditatorial,
exceto, talvez, por alguns libertários. De facto, todos os Estados liberais usam
já esses incentivos, embora a sua base racional seja normalmente utilitária e
não ética. (Por exemplo, os benefícios fiscais para casais casados são muitas
vezes justificados com base em que os filhos nascidos do casamento são mais
bem-sucedidos na vida adulta, o que, apesar de ser verdade, não vai ao cerne da
questão.) No próximo capítulo sugerimos várias formas em que os
instrumentos de persuasão económica existentes poderiam ser usados ao
serviço da vida boa. O Estado pode fazer com que as pessoas vivam bem e não
mal, mas a derradeira escolha tem de ser delas.
A noção de vida boa também poderia ser investigada em bases metafísicas
mais profundas. A imagem científica moderna da natureza como desprovida de
fins inerentes encoraja o pensamento de que o homem também não tem um fim
inerente, que o bem de cada indivíduo é como a sua imaginação ditar. Este
pensamento é a origem da doutrina económica da «indisputabilidade dos
desejos» debatida no Capítulo 3. Mas será verdade? Uma resposta cabal a esta
questão levar-nos-ia para águas profundas, por isso terá de bastar uma resposta
perentória. Mesmo que a ciência nos proiba de falar em objetivos – o que, a
propósito, é menos obviamente verdadeiro em biologia do que em física e
química – porque é que isto deveria constranger o nosso pensamento em
questões que nos dizem mais intimamente respeito? A ciência é um
instrumento maravilhoso para a exploração da natureza externa, mas, quando o
objetivo é o bem humano, são as nossas intuições, alargadas pela leitura,
viagens e conversas, que devem ser os nossos guias.

Os bens básicos

As listas de bens básicos têm um ar de arbitrariedade e, para dissipá-la,


teremos de esclarecer os nossos critérios de inclusão. E eles são quatro:

1. Os bens básicos são universais, o que significa que pertencem à vida boa enquanto tal, não apenas a
algum conceito particular e local da vida boa. Ver o universal através do particular requer fortes
intuições filosóficas orientadas pelo testemunho de diferentes eras e culturas. Esta última condição é
frequentemente esquecida. Com demasiada frequência, as «intuições» dos filósofos modernos
repetem simplesmente as banalidades do liberalismo do princípio do século XXI. O catálogo de
capacidades humanas fundamentais de Nussbaum inclui, por exemplo, «proteção contra a
discriminação com base na raça, sexo, orientação sexual, religião, casta, etnicidade ou origem
nacional» – uma lista impecavelmente progressista, mas dificilmente universal257. Uma mente de
uma classe mais filosófica poderia questionar a equação de valores universais com valores liberais
modernos. Afinal de contas, do ponto de vista da eternidade a nossa civilização é tão limitada como
qualquer outra.
2. Os bens básicos são finais, o que significa que são bons em si e não apenas como um meio para
outro bem. (Isto distingue os nossos bens básicos dos bens primários de Rawls e das capacidades de
Nussbaum e Sen.) A forma-padrão que o filósofo tem para mostrar os bens finais é perguntar «para
quê»? vezes sem conta, como algumas crianças irritantes. Quando não há mais nenhuma resposta,
sabemos que encontrámos um bem final. «Para que serve aquela bicicleta?» «Para ir para o
trabalho.» «E para que serve o trabalho?» «Para ganhar dinheiro.» «E para que serve o dinheiro?»
«Para comprar comida.» «E para que serve a comida?» «Para me manter vivo.» «E para que serve a
vida?» Olhar inexpressivo. A vida não serve «para» nada. Para nós, faz parte do bem básico da
saúde.
Todos os bens básicos são finais, mas nem todos os bens finais são básicos. Uma cadeia
explanatória poderá em teoria chegar ao fim com «para completar a minha coleção de selos
soviéticos». Completar uma coleção de selos é um bem final – normalmente, não tem outra
finalidade –, mas não é básico, pois não testa a universalidade e a indispensabilidade, que serão
discutidas pormenorizadamente mais adiante.
Muitos filósofos gostariam de acrescentar uma última condição adicional a uma dada sequência
de explicações, nomeadamente «para me fazer feliz». Nós pensamos que isto é um erro. Fora das
clínicas psiquiátricas e dos seminários de filosofia, regra geral as pessoas não explicam os seus atos
dizendo «isto vai fazer-me feliz». Como já dissemos no Capítulo 4, este é um motivo forte para não
tratarmos a felicidade como o derradeiro bem.
O requisito da finalidade exclui muitos bens que parecem básicos à primeira vista. A comida, por
exemplo, surge em muitas listas tradicionais de bens básicos, mas, como a cadeia de perguntas
apresentada acima mostra, é de facto instrumental para o bem básico da vida boa ou da saúde.
Satisfeita para além deste ponto, deixa de ser útil e pode até ser prejudicial. (Isto não quer dizer que
todas as especiarias e condimentos supérfluos para a saúde não são bons, apenas que não são bens
básicos. Não queremos reduzir toda a gente a uma dieta de salada e tofu.) Mais relevante para o
nosso tema, o dinheiro não pode ser um bem básico já que é essencialmente um instrumento para
obter outras coisas. Outros bens são mais ambíguos. Saúde, segurança e lazer são em alguns casos
finais, noutros instrumentais. Voltaremos a este assunto mais adiante.
3. Os bens básicos são sui generis, o que significa que não fazem parte de outro bem. O bem da
«liberdade do cancro» é certamente universal e final, mas não é básico porque pode ser agrupado sob
o bem maior da saúde. Muitas vezes, é difícil decidir se um bem é sui generis ou não. Por exemplo,
as relações familiares, que incluímos sob o bem da «amizade», podem ser consideradas dignas de
merecer um título próprio. Porém, como o que torna boas as relações de família e não família é em
grande medida o mesmo conjunto de coisas – amor, confiança, estabilidade – decidimos que seria
supérfluo haver duas categorias.
4. Os bens básicos são indispensáveis, o que significa que podemos considerar que qualquer pessoa
que não os possua sofreu uma perda ou dano sérios. A qualificação «qualquer pessoa» é importante.
Na sua ausência, a conclusão de uma coleção de selos poderá causar ao filatelista fanático muita
angústia genuína, mas isto não a torna um bem básico. A perda ou dano em questão também não têm
de ser vistos como tal pela sua vítima. Os danos são tomados como certos tão frequentemente que já
não são notados, mas continuam a ser danos.
Outra forma de realçar a indispensabilidade dos bens básicos é pensar neles como necessidades. O
termo «necessidade» capta mais claramente do que «bem» a ideia de que eles são a condição sine
qua non para uma existência humana decente e uma prioridade em qualquer distribuição de recursos
escassos. No começo, pensámos em falar em necessidades básicas e não bens básicos, mas acabámos
por usar bens devido ao fundamento puramente estilístico de que «necessidade» tem uma conotação
desagradavelmente puritana. «Não precisas disso», tem muitas vezes a implicação adicional de «por
isso não deves tê-lo». («Não discutam a necessidade», diz o rei Lear quando confrontado com um
argumento deste tipo pelas suas horríveis filhas.) Em contraste, falar em bens básicos deixa claro que
não há nada remotamente vergonhoso em procurar bens para além dos bens básicos – desde, é claro,
que eles não subtraiam dos bens básicos.
O critério de indispensabilidade distingue a nossa lista de bens básicos de outras listas
semelhantes. O filósofo legal John Finnis, por exemplo, define bens ou valores básicos como «os
objetivos básicos da existência humana», mas não como coisas cuja ausência num indivíduo
constitui um dano ou perda sérios. Em resultado disso, ele pode incluir «religião» (definida muito
genericamente como a preocupação pela ordem suprema das coisas) e «experiência estética» na sua
lista de valores básicos258. Ora, apesar de podermos considerar que uma cultura desprovida de
religião ou experiência estética é pobre, não diríamos que um indivíduo a quem falta alguma destas
duas coisas está seriamente prejudicado. Há muitas pessoas que são simplesmente «surdas» para a
arte ou para a religião, mas que vivem vidas saudáveis e prósperas. A definição de Finnis faz todo o
sentido tendo em conta o seu objetivo, que é o de estabelecer os primeiros princípios da lei natural,
mas o nosso objetivo, que é o de encontrar um critério de suficiência, requer que tratemos como
básicos apenas os bens cuja falta constitui uma perda ou prejuízo sérios, pois apenas a posse desses
bens poderia ser considerada «suficiente».

Que bens cumprem os nossos critérios de essencialidade? Identificámos sete.


A nossa lista não tem a pretensão de ser definitiva. Alguns dos bens que
constam dela têm elementos em comum ou abarcam uma série de preocupações
inter-relacionadas; outros podem, provavelmente, ser inteiramente excluídos.
Diz-se muitas vezes – com razão ou sem ela – que «a harmonia com a
natureza» é uma fixação peculiarmente ocidental, um produto do romantismo e
do ambientalismo. E algumas pessoas puseram em dúvida se a «saúde» e
«segurança» são boas em si e não por causa de outras coisas. Por isso, há aqui
alguma imprecisão e algum espaço para discussão. Mas isso não tem de ser
uma dificuldade. Em temas que são inexatos por natureza, a imprecisão honesta
é melhor que a falsa precisão259.

Saúde. Quando falamos em saúde, estamos a referir-nos ao funcionamento


pleno do corpo, à perfeição da nossa natureza animal. A saúde inclui todas as
coisas necessárias para manter a vida, ou uma duração razoável de vida, mas
não está de forma alguma limitada a elas. Implica vitalidade, energia, atenção e
aquela beleza corada muito apreciada por Tolstoi e outros moralistas em
detrimento de ideais mais decadentes. A saúde é geralmente associada à
ausência de dor física, mas o seu valor não é puramente utilitário, pois uma
pessoa confortavelmente doente (a tomar morfina, por exemplo) está ainda
assim em pior estado do que uma pessoa saudável. Acima de tudo, saúde
significa um feliz esquecimento do corpo, como uma ferramenta perfeitamente
preparada para cumprir as suas tarefas. Nas palavras do médico francês René
Leriche, é a «vida vivida no silêncio dos órgãos»260. A saúde olha para o
exterior. A doença lança a pessoa para dentro de si mesma.
Muitos filósofos classificaram a saúde abaixo de outros bens, com o
fundamento de que pertence à nossa natureza animal e não à natureza humana
que nos distingue. «É para o bem da alma», escreveu Aristóteles, marcando o
tom, «que […] os bens do corpo são desejáveis, e todos os homens sábios
deviam escolhê-los para o bem da alma e não a alma para o bem deles.»261 Se
isto for verdadeiro, então a saúde não é final no nosso sentido e não tem, por
conseguinte, lugar numa lista de bens humanos básicos. Mas porquê negar à
saúde o estatuto de um objetivo final simplesmente porque os animais também
podem beneficiar dela? Não será apenas um preconceito de intelectuais? A
nossa admiração pela vitalidade de um jovem não tem de envolver o
pensamento adicional de que ela o ajudará a caminhar para o emprego, a servir
o seu país ou outra coisa qualquer. Podemos admirá-la pelo que ela é, como
fazemos com a vitalidade de um golfinho a brincar ou de uma cria de leopardo.
Atualmente, a saúde é o bem relativamente ao qual os Estados liberais se
sentem com direito de tomar uma posição positiva, pois, ao contrário dos bens
da alma, tem a autoridade da ciência. Mas existirá realmente uma distinção
aqui? A ciência pode dizer-nos que a droga x trata o estado y, mas não que o
estado y em si constitui «doença». Esta última asserção pressupõe uma
compreensão pré-científica, de senso comum, do que é o florescimento para os
seres humanos. Todos reconhecemos um bebé saudável quando vemos um, do
mesmo modo que reconhecemos a cegueira e a claudicação como deficiências.
Outros casos são mais controversos. Que quantidade de gordura tem uma
pessoa de acumular para ser considerada obesa? Até que ponto tem de estar
forte para ser considerada em boa forma? A nossa resposta a estas perguntas
dependerá do que pensamos sobre as virtudes marciais, o desporto, o sexo e
muitas outras coisas. Em resumo, os julgamentos de saúde são objetivos no
mesmo sentido e até ao mesmo ponto que os julgamentos éticos: também eles
se baseiam numa ideia de florescimento humano.
Dada esta relação, não é surpreendente saber que o eclipse do pensamento
teleológico na nossa cultura avançou de mãos dadas com um esclarecimento do
conceito de saúde. O processo é semelhante ao que já analisámos relativamente
ao dinheiro. Uma noção anterior de saúde como estando numa «condição
excelente», com tudo «a funcionar como deve ser», deu lugar a um novo ideal
de melhoramento eterno. Um sintoma desta mudança é a nossa obsessão pela
longevidade. Tradições médicas mais antigas tinham como objetivo ajudar os
indivíduos a completar o seu tempo de vida natural; morrer «de velhice» não
era considerado uma calamidade. Porém, se o tempo de vida natural é uma
coisa que não existe, apenas uma norma culturalmente relativa que está em
constante mudança, então a morte em qualquer idade pode ser vista como uma
falha lamentável e remediável. A ciência moderna reavivou a antiga promessa
alquímica de juventude eterna; entretanto, pessoas que algumas décadas antes
teriam morrido de uma forma rápida e relativamente indolor são mantidas vivas
num estado de doença crónica e debilitante262.
Outro sintoma desta desorientação é o desaparecimento de qualquer distinção
concreta entre curar os doentes e melhorar aqueles que já são saudáveis. Em
tempos, a linha divisória estava bem estabelecida: as operações vitais estavam
de um lado e melhoramentos cosméticos do outro. Mas se a saúde perfeita não
existe, então qualquer estado indesejável pode ser definido como doença e
tornado objeto de tratamento médico. (E, como vimos no Capítulo 1, não há
limite para o número de coisas que as pessoas podem considerar indesejáveis.)
Todo este processo é acelerado pelas empresas farmacêuticas, que têm um forte
interesse em identificar as doenças que os seus produtos curarão. O papel da
Pfizer, a fabricante do Viagra, na transformação do que em tempos fez parte
integrante da comédia humana no assustador novo tratamento da «disfunção
erétil» é um bom exemplo.
No fundo, esta assimilação da medicina à corrida de ratos263 económica
destrói a própria ideia de boa saúde. Se cada estado do corpo pode ser visto
como defeituoso relativamente a outro estado preferido, então, de certa forma,
estamos todos perpetuamente doentes. Como Goethe disse que aconteceria, o
mundo torna-se um vasto hospital em que cada pessoa é enfermeira de todas as
outras. O que é mais importante, onde a procura de saúde é insaciável os custos
médicos aumentam conjuntamente ou mais depressa do que o rendimento,
mantendo-nos presos à rotina de trabalho/crescimento. Logo, é crucial para o
nosso objetivo que a saúde não seja definida neste sentido relativo à procura,
mas retenha o significado mais antigo da perfeição natural do corpo. Pois é
apenas neste sentido que pode funcionar como parte de um critério de
suficiência.

Segurança. Quando falamos em segurança, referimo-nos à expectativa


justificada de um indivíduo de que a sua vida prosseguirá mais ou menos no
seu curso habitual, não perturbada por guerra, crime, revolução ou grandes
agitações sociais e económicas. A segurança é uma condição necessária para a
realização de outros bens básicos na nossa lista, especialmente personalidade,
amizade e lazer. Mas também é um bem em si. Como qualquer criatura, um ser
humano tem um ambiente, um conjunto de objetivos tomados como certos e
que determinam a forma como decorre a sua vida. Se este ambiente for mudado
abruptamente ou com frequência, ele sentir-se-á perplexo e ameaçado, como
um gato numa casa nova ou um animal enjaulado libertado na selva. É claro
que, como seres inteligentes, temos em nós uma capacidade que transcende
qualquer ambiente – que «vê as estrelas por cima do telhado», como diz o
filósofo Josef Pieper264. Não obstante, os telhados e tudo o que eles significam
continuam a ser necessários, até porque proporcionam um local estável de onde
podemos contemplar as estrelas. Em todo o mundo, a palavra «paz» tem um
som calmante, enquanto «turbilhão», «caos» e os seus equivalentes vaticinam
mal.
Certamente, há tipos – tiranos, especuladores, poetas românticos – que
prosperam no caos. O presidente Mao, um tirano e um poeta romântico,
gostava tanto de caos que o rebatizou com o nome de «revolução permanente».
No Ocidente, a segurança foi vilipendiada durante tanto tempo por artistas e
intelectuais boémios que admitir uma predileção por ela agora é quase como
admitir uma predileção por gnomos de jardim. Porém, a verdade é que a
segurança é apreciada por todos os espíritos criativos – incluindo poetas,
quando são honestos consigo mesmos – como uma condição para a sua própria
produtividade. W. B. Yeats, a escrever em 1919, quando a Irlanda foi para a
guerra, rezou para que a sua jovem filha tivesse segurança quando crescesse:

E que o seu noivo a traga para uma casa


Onde tudo seja costumeiro, cerimonioso;
Pois a arrogância e o ódio são as coisas
Que são vendidas nas vias públicas.
Como, a não ser no costume e na cerimónia,
Nascem a inocência e a beleza?
Cerimónia é um nome para a linda trompa,
E costume o nome do frondoso loureiro.

Yeats não foi imune ao romantismo da desordem. Ele tinha escrito


arrebatadamente sobre a «terrível beleza» da revolta da Páscoa de 1916. No
entanto, quando confrontado com o caos real, a sua escolha foi óbvia. Ele sabia
que a desordem civil extrema é destrutiva para as artes da civilização.
Quais são os efeitos do capitalismo na segurança? Os liberais do século XIX
defenderam que le doux commerce265 teria uma influência pacificadora nas
relações internacionais, pois as nações que tinham relações comerciais umas
com as outras não teriam razões económicas para desencadear uma guerra. Este
argumento tem alguma lógica, embora é claro que as nações comerciais ainda
possam entrar em guerra por razões económicas más ou por razões não
económicas, como aconteceu em 1914. Internamente, o efeito dos mercados
livres na segurança é menos salutar. «Tudo o que é sólido derrete-se no ar»,
escreveu Marx famosamente, referindo-se à interminável revolução nas
tecnologias, especializações e formas de vida características do capitalismo.
Este retalhar interminável do tecido social é enfadonho para trabalhadores e
consumidores e é particularmente difícil para as pessoas com mais de 40 ou 50
anos, que podem ter perdido o gosto pela novidade. Os fundamentalistas do
mercado livre reagem a estes descontentamentos com um desprezo levemente
velado. Aqueles que não conseguem encontrar trabalho localmente são
aconselhados a mudar de cidade e aqueles cujos talentos se tornaram
redundantes são aconselhados a «reciclar-se». Isto é andar com as coisas
precisamente para trás. Não são os seres humanos que precisam de se adaptar
ao mercado; é o mercado que tem de se adaptar aos seres humanos. Foi esse o
princípio orientador dos liberais sociais do princípio do século XX, cujos
esforços iluminados para minimizar as inseguranças do capitalismo foram
agora amplamente abandonados, como veremos no próximo capítulo.

Respeito. Respeitar alguém é indicar, com uma formalidade ou de outro


modo, que consideramos as suas opiniões e interesses dignos de consideração,
que são coisas que não podem ser ignoradas ou espezinhadas. O respeito não
implica concordância ou afeto: é possível respeitar um inimigo. Não implica
qualquer admiração especial. No entanto, implica um certo reconhecimento do
ponto de vista do outro, implica «ter em conta» a sua opinião, uma atitude
fundamentalmente diferente da que é mostrada em relação aos animais. É
possível sentir um grande afeto por um animal de estimação, mas não respeito
ou desrespeito266.
O respeito é uma condição necessária de outros bens básicos, em especial da
amizade. No entanto, também é um bem em si. Em toda a parte, a escravatura –
isto é, a privação total de respeito – é considerada uma calamidade suplantada
apenas pela morte ou pior do que ela. De facto, como se tem dito
frequentemente, a escravatura é uma espécie de morte social, já que o escravo,
apesar de ainda ser humano no sentido biológico, perdeu o estatuto de um ser
humano. «Aquele olhar não foi um olhar entre dois homens», escreve Primo
Levi, um sobrevivente de Auschwitz, recordando o seu interrogatório realizado
por um cientista nazi267. Aqueles que são regularmente expostos a tais olhares
depressa começam a assimilar a sua perspetiva. A dignidade não pode
sobreviver durante muito tempo à privação de respeito.
O respeito não tem de ser igual ou recíproco. Eu posso respeitar uma pessoa
que me respeita menos ou absolutamente nada. Não obstante, o respeito
recíproco é satisfatório para as duas partes de um modo único, pois o nosso
maior desejo é o respeito daqueles que nós próprios respeitamos. (A adoração
de um sicofanta ou de uma turba leva mais vezes ao desprezo por si mesmo do
que à dignidade.) Em todas as eras, encontramos grupos de «pares» ou «iguais»
que se respeitam mutuamente enquanto desprezam todos os outros. Os
cidadãos da antiga Atenas eram um desses grupos, e a nobreza medieval
também. A democracia moderna estende o círculo de pares a todos os adultos
num determinado território. Não sabemos se o seu triunfo está ou não garantido
pela História, como Francis Fukuyama afirmou, mas ela tem agora o apoio de
quase todo o mundo, pelo menos no papel. Nenhuma visão moderna da vida
boa pode contrariá-la. Como referimos no Capítulo 3, isto exclui valores como
mestria e «grandeza de alma», que não podem, em princípio, ser
universalizados.
O respeito tem muitas origens, que variam de cultura para cultura. Força,
dinheiro, terra, nobreza, educação e ação foram importantes numa época ou
noutra. Nas sociedades burguesas modernas, as duas fontes básicas de respeito
são os direitos civis e a realização pessoal. Os direitos civis conferem o que
poderia chamar-se respeito «formal»; garantem ao seu possuidor proteção
contra as piores formas de poder arbitrário. Mas como são conferidos a todos
os cidadãos, independentemente dos seus méritos, são ineficazes para criar
respeito. Para isso, um indivíduo tem de fazer alguma coisa com a sua vida; no
mínimo, tem de conquistar uma «capa de honestidade». Posição e título já não
conferem respeito automaticamente. O duque dos tempos modernos tem de
provar o seu valor fazendo parte de comissões de instituições de caridade, etc.,
caso contrário parece pouco melhor que um parasita.
A igualdade de respeito formal pode coexistir com a desigualdade de respeito
real, mas apenas até certo ponto. Se o fosso aumenta demasiado, a igualdade
formal fica sob tensão. Suponham (o que não é completamente implausível)
que o desemprego persistente levava à divisão da sociedade em duas castas
hereditárias, uma maioria com trabalho e uma minoria desempregada. Se assim
fosse, seria muito fácil incluir esta distinção de facto na lei, com direitos civis e
de voto diferenciais. A democracia, tal como a conhecemos deixaria de existir.
Também é importante para o respeito mútuo que a desigualdade não exceda
determinados limites268. Uma elite que vive, se diverte e aprende
separadamente da população em geral não sentirá um laço de cidadania comum
com essa população. Uma distribuição mais igual – não completamente igual –
da riqueza e do rendimento é um requisito da solidariedade democrática.
Em contraste com as discussões liberais mais recentes, uma característica da
nossa abordagem é que os requisitos da justiça não são vistos como corretores
isolados do bem, mas como fluindo de um determinado conceito desse bem. A
igualdade baseia-se na fraternidade, não o contrário. Em resultado disso não
pode haver uma resposta abstrata a priori, do tipo tentado por Rawls, para a
pergunta «quanta desigualdade é demasiada?». Temos de analisar os efeitos da
desigualdade no tecido moral da sociedade e no sistema político em particular.
Quando os ricos se comportam com uma arrogância indiferente à lei, os pobres
com um ressentimento impotente e os políticos com reverência pelo dinheiro, a
desigualdade excedeu o limite.

Personalidade. Quando falamos em personalidade estamos a referir-nos


acima de tudo à capacidade de estruturar e executar um plano de vida que
reflete os gostos, temperamento e conceito de bem da pessoa. É o que os
kantianos chamam de autonomia e os aristotélicos de razão prática. Mas o
termo personalidade também implica mais alguma coisa, um elemento de
espontaneidade, individualidade e engenho. Muitos filósofos – e vem-nos à
ideia o próprio Kant – foram modelos de autonomia racional e no entanto,
lamentavelmente, faltava-lhes personalidade.
Porquê estabelecer a distinção entre personalidade e respeito? Não são os
dois conceitos correlativos: o respeito é prestado à personalidade; a
personalidade dá origem a respeito? Porém, existe uma diferença subtil. É
possível imaginar uma comunidade – uma ordem monástica, digamos, ou um
grupo revolucionário – onde toda a propriedade é partilhada, todos os assuntos
estão abertos para escrutínio e todas as vontades estão voltadas para o bem
comum. Os membros desta comunidade poderiam ter o maior respeito uns
pelos outros e ainda assim faltar-lhes personalidade. Personalidade implica um
espaço privado, uma «sala atrás da loja» como Montaigne lhe chamava, onde o
indivíduo tem a liberdade de se abrir, de ser ele próprio. Denota o aspeto íntimo
da liberdade, aquele que resiste às reivindicações de razão e dever públicos.
A personalidade é sobretudo um ideal europeu pós-medieval; corresponde
aproximadamente ao que o liberal francês Benjamin Constant chamou
«liberdade moderna». Porém, o seu apelo não é apenas local. Todas as culturas
têm os seus santos loucos e amantes predestinados para a infelicidade,
homenageados em verso e canções, e até na vida real. Uma sociedade
desprovida de personalidade, onde os indivíduos aceitam o seu papel social
sem tensão ou protesto, seria muito pouco humana. Seria mais como uma
colónia de insetos sociais inteligentes, do tipo criado por alguns filmes de
ficção científica.
No liberalismo moderno há uma tendência para elevar a personalidade – ou
autonomia, como é normalmente chamada – para o bem perfeito de onde todos
os outros derivam. Como vimos, uma coisa destas está na base da relutância de
Rawls, Sen e Nussbaum em discutirem bens finais. Nós pensamos que isto é
um erro. A autonomia é um bem entre outros, sem primazia especial. (Pode ser
sacrificada, sem que seja completamente absurdo, ao amor.) Desligada de
qualquer contexto mais lato de preocupação ética, a autonomia degenera
naquela «liberdade de indiferença» para a qual todas as coisas são possíveis e
nada importa. A retórica moderna de «escolher valores» é um sintoma desta
confusão. Devidamente compreendida, a escolha responde ao valor. Onde lhe é
permitido criar valor, o seu exercício torna-se arbitrário – como disparar setas
para a porta de um celeiro e desenhar alvos à volta delas.
A propriedade privada é uma salvaguarda essencial da personalidade, pois
permite que os indivíduos vivam de acordo com os seus gostos e ideais, livres
da tirania do patrocínio e da opinião pública. «Fortunas estáveis […] são um
trunfo social invisível de que todas as culturas estão mais ou menos
dependentes», escreveu o economista francês Marcel Labordère numa carta
para Keynes. «Segurança financeira para a vida das pessoas é uma condição
necessária para o lazer e para o pensamento organizado. Lazer e pensamento
organizado são uma condição necessária para uma civilização verdadeira, não
puramente mecânica.»269 Notem que é especificamente a propriedade, não o
rendimento, que tem esta influência libertadora. Os apparatchiki soviéticos,
com acesso a consumíveis de todos os tipos, mas não a capital, não eram livres
para desenvolver as suas personalidades. O mesmo acontece com os corretores
de Wall Street cujos enormes pacotes salariais desaparecem imediatamente em
despesas «necessárias»270. Independência é diferente de opulência e
incomensuravelmente mais importante.
Esta defesa «personalista» da propriedade é essencial no ensino social
católico moderno, onde faz parte de um ataque subtil com duas abordagens
possíveis ao capitalismo de mercado livre e ao socialismo estatal. A base foi
estabelecida pela Encíclica de 1891 do papa Leão XIII, Rerum Novarum. O
papa Leão XIII afirma que todo o chefe de família devia possuir meios para se
sustentar e à sua família agora e para toda a eternidade. Não ter esses meios é
ser forçado a uma dependência degradante dos gestores de capital, quer sejam
indivíduos privados quer sejam funcionários do Estado. «A lei deveria, por
conseguinte, favorecer a propriedade, e a sua política devia ser motivar o maior
número possível de pessoas para se tornarem proprietários.»271 Como veremos
no próximo capítulo, essas ideias seriam introduzidas no movimento
«distribucionista» da Inglaterra do século XX, bem como no pensamento
democrata-cristão na Alemanha e na Itália.
O argumento personalista para a propriedade privada é diferente do
argumento-padrão de mercado livre e tem implicações diferentes. Para a
economia convencional, a propriedade faz simplesmente parte da infraestrutura
legal do capitalismo. A sua distribuição não é fundamentalmente uma questão
de preocupação, exceto na medida em que leva a preços de monopólio. Em
contraste, de um ponto de vista personalista, a concentração da propriedade em
algumas mãos viola a sua função essencial, que é a de proporcionar uma vida
independente aos indivíduos e às famílias. A propriedade tem de estar bem
distribuída, caso contrário não pode fazer o seu trabalho ético. O tema central
do próximo capítulo será como é que essa distribuição poderia ser feita.

Harmonia com a Natureza. Os argumentos para tratar a harmonia com a


natureza como um bem humano básico foram apresentados no último capítulo.
No entanto, a questão continua a ser controversa. Martha Nussbaum conta que
alguns colegas do Sul da Ásia menosprezaram toda a ideia como «um floreado
romântico de Festa Verde»272. Encontrámos uma reação semelhante em amigos
chineses. A predisposição dos ocidentais modernos para se tornarem
sentimentais relativamente à natureza, por vezes ao ponto de fecharem os olhos
às exigências maiores do sofrimento humano, é inegável. Todavia, um sentido
de afinidade com os animais, plantas e paisagens dificilmente é uma
peculiaridade ocidental. A abundância de poesia da natureza em sânscrito,
chinês clássico e outras línguas do mundo é prova suficiente disso.
A harmonia com a natureza foi muitas vezes interpretada como o
favorecimento da vida rural relativamente à vida urbana. Desde os tempos da
Babilónia e de Roma, as cidades apareceram como antros de miséria e vício.
Mas o ponto de vista oposto também tem os seus defensores. Sócrates
encontrou toda a sabedoria de que necessitava dentro das muralhas de Atenas.
Marx falou da idiotia da vida rural. Não temos necessidade de entrar neste
antigo debate; os dois lados têm alguma verdade. Porém, o que é novo é a pura
dimensão da cidade moderna. Um habitante de Paris no século XVIII, na época a
maior cidade do mundo, só tinha de andar 30 minutos para se encontrar em
terra de cultivo. O seu equivalente moderno teria de andar seis horas no meio
de trânsito congestionado. Aqui está a origem daquele sentimento tipicamente
moderno de mal-estar urbano e daquela ânsia, por vezes cómica nos seus
efeitos, de «voltar para a natureza». Os efeitos perniciosos da sobrelotação
urbana no comportamento e na disposição têm sido bem documentados por
psicólogos.
Devemos então abolir a cidade moderna? Com as atuais densidades
populacionais, uma política desse tipo só conseguiria transformar o país num
vasto subúrbio. Mas nós devíamos tentar garantir que as cidades não estão
inteiramente alienadas dos seus ambientes rurais. Durante milénios, os
mercados de produtos alimentares foram o ponto de contacto entre cidade e
campo. Estes mercados já desapareceram praticamente, e com eles qualquer
noção de lugar e estação. O gastrónomo britânico moderno pode fazer cócegas
ao seu palato cansado com tempura japonesa, chili de Sichuan, cuscuz
marroquino e uma série de outras escolhas do mercado global, todas
igualmente desligadas de qualquer contexto de significado. A alienação da
natureza é apenas um dos custos não avaliados da escolha dos consumidores.

Amizade. Esta é uma tradução necessariamente inadequada da philia da


antiga Grécia, um termo que abrangia todas as relações robustas e afetuosas.
Um pai, marido, professor e colega de trabalho podem ser todos «amigos» no
nosso sentido do termo. Como já referimos, isto poderia parecer uma confusão
da distinção crucial entre relações familiares, que não são escolhidas, e
amizades no sentido estrito, que são eletivas. Porém, quando minuciosamente
examinada, a distinção não é tão evidente. Todas as relações familiares têm um
elemento eletivo – para além de um certo ponto, a pessoa tem de se esforçar
para ser uma mãe ou uma irmã – e todas as relações não familiares profundas
têm uma força que compromete, muitas vezes expressada pela adição de
termos com conotação de família: irmão de sangue, madre superiora, etc. As
relações familiares e outras relações pessoais variam em estrutura e
importância de cultura para cultura, mas algumas dessas relações são
claramente essenciais para qualquer versão concebível da vida boa. «Ninguém
escolheria viver sem amigos», referiu Aristóteles, «mesmo que tivesse as
outras coisas boas.»273
Porque é que falamos em «amizade» em vez de «comunidade», uma palavra
que se tornou horrivelmente popular nas últimas décadas? A nossa preocupação
está relacionada com reificação. É muito fácil falar sobre o «bem da
comunidade» como se isto fosse alguma coisa acima do bem dos seus membros
constituintes. O termo «amizade» não é suscetível a este tipo de abuso. A
minha amizade com o Paul é claramente uma relação entre mim e o Paul; não
paira acima de nós, como um fantasma, com interesses e direitos muito
próprios. Se pudéssemos aprender a pensar nas comunidades desta forma,
como redes de amigos, seria removida uma fonte notória de opressão política.
No mundo antigo, a amizade era levada a sério. Na sua discussão clássica
sobre o assunto, Aristóteles distingue a amizade propriamente dita da amizade
de utilidade (baseada numa coincidência de interesses) e da amizade de prazer
(baseada em passatempos comuns). A amizade verdadeira existe quando cada
parte abraça o bem do outro como seu, dando assim origem a um novo bem
comum. É uma relação que só é possível entre pessoas de virtude, que se amam
umas às outras pelo que são, não pelo que podem oferecer. A amizade é pessoal
e política. Une membros de uma família e, por extensão, cidadãos de uma
polis. É «o maior bem dos Estados e o que melhor os proteje de revoluções»274.
Estas palavras parecem estranhas para os ouvidos modernos. Estamos
acostumados a pensar no Estado como uma aliança de indivíduos egoístas e em
amizade como uma relação puramente privada, sem importância política. Mas,
do ponto de vista de Aristóteles, um Estado sem amizade não é um Estado. Um
Estado não é «uma mera sociedade […] estabelecida para a prevenção do crime
mútuo e por causa da troca». É «a união de famílias e aldeias numa vida
perfeita e autónoma, isto é, uma vida feliz e honrada»275.
A escrever 150 anos antes de Aristóteles, do outro lado do mundo, Confúcio
partilhou a sua convicção relativamente à importância política das relações
pessoais. «Aqueles que, na vida privada, se portam bem com os pais e irmãos
mais novos, raramente evidenciam na vida pública uma disposição para resistir
à autoridade dos seus superiores.»276 No entanto, a semelhança é apenas
superficial. O interesse de Confúcio centra-se na deferência para com a
autoridade, não na participação em bens partilhados. E, enquanto Aristóteles
subordina a família à categoria mais vasta de philia, o filósofo chinês destaca-a
para um louvor especial. «Seguramente, um comportamento adequado com os
pais e irmãos mais velhos é o tronco da Bondade?»277 Essas diferenças de
atitude ainda são visíveis hoje em dia. As crianças ocidentais crescem muitas
vezes a considerar os pais como «amigos» no sentido restrito, ao passo que na
China a relação continua a ser uma relação de amor e sacrifício mútuos durante
a vida inteira.
A amizade não é essencialmente um bem económico, mas tem os seus pré-
requisitos económicos. A confiança social não floresce em tempos de fome. E
uma economia marcada pela restruturação, redução de efetivos e
subcontratação não será recetiva a relações profundas e duradouras. «Tem de
libertar a sua vida de Sanguessugas e substituí-las por Energizadores», escreve
o conselheiro de estilo de vida Robert Pagliarini, uma mensagem reiterada em
inúmeros livros de autoajuda e em muitos sítios de autoajuda na Internet278. Em
termos aristotélicos, os amigos obtidos com o intuito específico de «energizar»
a pessoa não são amigos verdadeiros, mas amigos de utilidade. No entanto, são
uma característica previsível de uma cultura que valoriza a autonomia e a
mobilidade acima de praticamente todas as outras coisas.

Lazer. Na gíria contemporânea, lazer é sinónimo de descontração e descanso.


Porém, existe outro conceito mais antigo de lazer de acordo com o qual não é
apenas tempo sem trabalhar mas uma forma especial de atividade por direito
próprio. Neste sentido, o lazer é o que fazemos apenas por lazer, não como um
meio para atingir outra coisa qualquer. O filósofo Leo Strauss escreveu sobre o
seu amigo Kurt Riezler que «a atividade da sua mente tinha o carácter do
emprego nobre e sério do lazer, não de trabalho árduo»279. É neste sentido que
queremos que o «lazer» seja entendido.
Na nossa aceção, lazer não está muito relacionado com o lazer tal como ele é
geralmente entendido. O trabalho remunerado poderia ser lazer na nossa
interpretação se empreendido não essencialmente como um meio para o
dinheiro, mas por si mesmo. (Muitos escritores continuariam a escrever mesmo
que não ganhassem nada, ou mesmo que pudessem ganhar mais a fazer outra
coisa.) Inversamente, muitas «atividades de lazer» não são lazer no nosso
sentido, quer porque são empreendidas instrumentalmente – jogar squash para
perder peso, por exemplo –, quer porque são demasiado passivas para serem
consideradas ação. (Ver televisão e embebedar-se são ações apenas no sentido
mínimo de que tudo o que fazemos é ação. Falta-lhes a espontaneidade e a
habilidade características da ação no sentido pleno e, por conseguinte, são mais
corretamente avaliadas como «descanso» do que lazer.) Na nossa aceção, lazer
é diferenciado não por falta de seriedade ou vigor, mas pela ausência de
compulsão externa. Logo, aproxima-se mais do que Marx chamou trabalho não
alienado, que definiu como uma «manifestação livre da vida, por isso um
prazer da vida»280.
A importância do lazer foi reconhecida por civilizações no mundo inteiro. As
três grandes religiões abraâmicas reservam um dia de descanso semanal,
embora isto não seja exatamente lazer na nossa interpretação do termo, pois
destina-se acima de tudo à oração, não à atividade livre281. Aristóteles
aproximou-se mais na sua distinção entre a arte «liberal» e a arte «mecânica»,
sendo a primeira adequada para os homens livres e a segunda para
trabalhadores e escravos. («Chamamos mecânicas às artes que tendem a
deformar o corpo, e de igual modo a todos os empregos pagos, pois eles
absorvem e degradam a mente.»282) Todavia, foi no período Edo no Japão que a
cultura do lazer foi levada mais longe. Privada das suas ocupações tradicionais
durante séculos de paz, a aristocracia feudal voltou-se para as artes da vida,
transformando atividades quotidianas como o banho e o chá em cerimónias
requintadas. O filósofo francês Alexandre Kojève considerou que o Japão foi a
primeira sociedade «pós-histórica». Podemos esperar, escreveu ele, com
alguma ironia, «que a interação recentemente iniciada entre o Japão e o Mundo
Ocidental levará finalmente não a uma rebarbarização dos japoneses, mas a
uma “japonização” dos ocidentais»283.
Porque é que o lazer é um bem básico? A razão é clara: uma vida sem lazer,
onde tudo é feito por causa de outra coisa qualquer, é verdadeiramente vã. É
uma vida passada em eterna preparação, nunca a viver. O lazer é a fonte mais
elevada de pensamento e cultura, pois só quando somos emancipados da
pressão da necessidade é que olhamos verdadeiramente o mundo e o
ponderamos no seu carácter e perfil distintos. (A palavra grega antiga para
lazer, schole−, sugere esta ligação.) «Quando deixamos as nossas mentes
descansarem verdadeiramente na contemplação de uma rosa em botão, uma
criança a brincar, um mistério divino, ficamos descansados e estimulados como
se tivéssemos despertado de um sono sem sonhos», escreve Josef Pieper. «É
nestes momentos silenciosos e recetivos que a alma do homem é por vezes
visitada por uma consciência do que mantém o mundo unido.»284 Sem lazer não
há uma civilização genuína, mas apenas a civilização «mecânica» de que falou
Marcel Labordère. A universidade moderna, com a sua maquinaria de
«objetivos» e «produções», personifica este espectro deprimente.
Um conceito de lazer como este pode parecer redutoramente elitista, mas a
intenção não é essa. Todos os passatempos que envolvem participação ativa e
especializada – jogar futebol no parque, fazer e decorar a própria mobília, tocar
guitarra com amigos – são lazer na nossa aceção da palavra. O que importa não
é o nível intelectual da atividade, mas o seu carácter de «intencionalidade sem
intenção».
Quais são as condições económicas do lazer? Em primeiro lugar, uma
redução do trabalho árduo, uma categoria que inclui não apenas o trabalho
remunerado, mas qualquer atividade necessária, incluindo as viagens de e para
o emprego e o trabalho em casa, e exclui o trabalho remunerado empreendido
acima de tudo por si mesmo, como o do escritor ou do artesão dedicados. Nos
casos em que o trabalho árduo ocupa uma parte tão grande do dia da pessoa
que só deixa espaço para dormir e descansar, o lazer é impossível. Porém, uma
simples redução do trabalho árduo não é suficiente para o lazer no nosso
sentido, como sugere a figura da dona de casa entediada de Keynes. Viver
«sabiamente, agradavelmente e bem» requer não apenas tempo, mas aplicação
e gosto. É irónico, embora não surpreendente, que as antigas artes da vida –
conversar, dançar, fazer música – estejam a atrofiar quando mais precisamos
delas. Uma economia vocacionada para maximizar a produção comercializável
tenderá a produzir formas de lazer fabricadas e não espontâneas.

Realizar os bens básicos

Estes são, então, os bens básicos. Uma vida que os realiza todos é uma vida
boa. «Realizar» é um termo vago. Quanto respeito conta como tendo
«realizado» respeito? As respostas a esta pergunta terão sem dúvida uma
grande variedade legítima, tanto individual como cultural. No entanto, como já
referimos, a imprecisão não é necessariamente uma falha num inquérito que é
vago por natureza.
Uma preocupação mais séria prende-se com a possibilidade de conflito. E se
a expressão de ideias ou sentimentos pessoais me levar a abandonar um velho
amigo? E se o prazer do lazer me levar a renunciar ao respeito que vem de
ganhar a vida? Esses dilemas suscitam o pensamento de que deve haver um
«bem principal» ao qual todos os outros podem ser subordinados como aspetos
ou meios. A menos que esse bem exista, parece não haver uma base racional
para escolher um fim e não outro. Enfrentamos a perspetiva de um salto
artitrário, cego – o apuro imaginado por existencialistas como Jean-Paul Sartre.
Dois candidatos ao papel de bem principal dominam a literatura da ética
moderna. Um é a felicidade ou utilidade. O outro é uma «boa vontade» no
sentido de Kant, uma vontade obediente à lei moral. Nenhum deles nos parece
plausível. A felicidade não pode ser o nosso bem principal pelas razões
delineadas no Capítulo 4: interpretada no sentido clássico, é simplesmente um
sinónimo da vida boa e por isso não pode arbitrar entre os seus diversos
elementos; e, interpretada no sentido moderno padrão, como um estado de
espírito agradável, não é necessariamente boa. E a vontade moral de Kant
também não pode funcionar como o nosso bem principal, pois é demasiado
limitada para abarcar todas as coisas que valorizamos na vida. Apenas um
fanático moral (como Nietzsche chamou a Kant) poderia imaginar que nada é
bom sem qualificação exceto uma boa vontade.
Logo, a pluralidade é irredutível. Enfrentamos a possibilidade de dilemas
«trágicos», em que um bem básico tem de ser sacrificado a outro. Mas isto não
tem de nos perturbar excessivamente. Deliberar e escolher entre fins
incomensuráveis é um facto da vida quotidiana. Devo seguir uma carreira
política sacrificando o lazer e a reflexão? Devo perseverar no ténis e esquecer o
piano? Os indivíduos confrontados com essas escolhas podem decidir
sensatamente o melhor curso de ação sem recorrer a um algoritmo universal.
Ao nível cívico, o debate sobre fins incomensuráveis é a base da política
democrática, pelo menos quando esta funciona devidamente. Apenas o
tecnocrata inveterado não vê uma base de entendimento entre estimativa e
caos285.
A pluralidade dos bens básicos tem a importante consequência de que a falta
de um não pode ser compensada com a abundância de outro, da forma que uma
falta de euros poderia ser compensada com uma abundância de dólares. A uma
vida sem amizade ou lazer falta algo específico que nenhuma quantidade de
respeito pode compensar. É por isso que moralistas a partir de Aristóteles e
Confúcio alertaram para o excesso de especialização. A concentração
perseverante num pequeno nicho de arte ou ciência pode enriquecer o grupo,
mas apenas à custa da deformação do artista ou cientista individuais. É claro
que quem possui o conjunto total de bens básicos pode esforçar-se
razoavelmente para obter bens adicionais mais específicos. Não é nossa
intenção tornar todas as pessoas medíocres generalistas. No entanto ninguém,
por muito bem-sucedido que seja num determinado domínio, pode afirmar que
tem uma vida boa se lhe faltarem os rudimentos de saúde, lazer, personalidade,
etc.
Se o primeiro objetivo do indivíduo é realizar a vida boa para si mesmo, o
primeiro dever do Estado é realizar, no âmbito do seu poder, a vida boa para
todos os cidadãos. (Como já foi referido, este princípio de justiça baseia-se no
bem do respeito mútuo.) A reserva «no âmbito do seu poder» é importante. A
saúde e a amizade estão em grande medida nas mãos do destino. A
personalidade, o respeito e o lazer dependem em parte da ação individual. No
entanto, o Estado tem um papel importante e legítimo na criação das condições
materiais sob as quais estes e outros bens podem florescer. Essas condições
incluem não apenas um certo nível global de riqueza nacional, mas a sua
distribuição justa, o seu gasto público sensato e muito mais para além disso. O
resto está nas mãos de indivíduos e instituições civis. Para adaptar uma frase de
Keynes, o Estado é o depositário não da civilização mas da possibilidade de
civilização.
Dissemos que o primeiro dever do Estado é criar as condições materiais para
uma vida boa para todos. Depois de isto ser alcançado, tem todo o direito de ir
atrás da beleza, do poder e da grandiosidade. Versalhes e as pirâmides têm um
lugar no sistema da civilização, embora não à custa da vida, da saúde e do bem-
estar. Esta doutrina recebeu o horrível nome de «suficientismo», mas a sua
ideia central é a ideia lógica de que as necessidades não deviam ser sacrificadas
aos luxos. Por fim, nos casos em que um bem básico permite muitas
realizações possíveis, um Estado deveria sentir-se livre para seguir as suas
tradições históricas ao escolher um e não outro. A Índia e a China não têm a
obrigação de seguir o sentimento ocidental crescente a favor da legalização do
casamento entre homossexuais e da criminalização da crueldade com os
animais. Só quando uma tradição histórica destrói um bem básico é que a
justiça ordena o seu abandono.
Onde é que tudo isto deixa o crescimento? Obviamente, nenhuma política sã
tem o crescimento em si como um objetivo final. Aristóteles estava meramente
a repetir o senso comum quando escreveu que «a riqueza não é claramente o
bem que procuramos, pois é útil e destina-se a outra coisa»286. Todavia, mesmo
que o crescimento não seja um objetivo em si mesmo, ainda assim poderia ser
desejável por outras razões. E vêm-nos à memória três dessas razões.
A primeira é que o crescimento poderia ser sensatamente procurado como
um meio para um ou mais dos bens básicos. A saúde requer comida e medicina
decente. O lazer requer tempo longe do trabalho árduo. A personalidade requer
um lugar de retiro, uma «sala atrás da loja». As populações que são demasiado
pobres para terem acesso a estes bens têm todos os motivos para procurar
tornar-se mais ricas. No entanto, aqui no mundo rico os pré-requisitos materiais
da saúde, lazer e personalidade já foram alcançados há muito tempo; a nossa
dificuldade é usá-los devidamente. Quanto aos outros bens básicos –
segurança, respeito, amizade e harmonia com a natureza –, esses dependem não
tanto do nível absoluto de riqueza, mas da organização da vida económica, bem
como de outros fatores não económicos. Eles não nos proporcionam um motivo
para persistirmos no crescimento.
A segunda é que o crescimento poderia interessar-nos como um indicador de
outra coisa que valorizamos. Nas suas Robbins Lectures de 2010, Adair Turner
sugere que o crescimento «não devia ser considerado o objetivo de política
económica, mas antes o resultado extremamente provável […] de duas coisas
desejáveis em si mesmas – liberdade económica para fazer escolhas e um
espírito de pesquisa contínua e desejo de mudança»287. Por outras palavras, o
crescimento poderia funcionar como um cardiógrafo – em si uma medida de
alguma coisa importante. No entanto, ele só pode executar esta função se (a)
estiver solidamente correlacionado com a liberdade económica e (b) a
liberdade económica for um bem fundamental em si mesma. Esta segunda
suposição é especialmente dúbia. Claramente, alguma liberdade económica é
uma coisa boa (para nós, faz parte do bem básico da personalidade), mas outras
coisas também são boas, algumas das quais poderiam inibir o crescimento288.
Uma sociedade em que as pessoas estivessem seguras nos seus empregos e
dedicassem longas horas a atividades de lazer podia ser lenta, economicamente
falando. Se uma economia bem equilibrada favorece o crescimento ou não é
uma questão empírica, não pode ser assumido a priori que uma economia em
rápido crescimento é uma economia saudável.
Por fim, o crescimento poderia ser seguido por motivos pragmáticos de curto
prazo. Durante uma recessão, com desemprego e dívida pública elevados, o
crescimento é, acertadamente, uma prioridade. Porém, devemos distinguir o
curto prazo do longo prazo. O crescimento deveria ser considerado uma
espécie de Prozac: útil para voltar a levantar o paciente, não uma droga
permanente. Infelizmente, como uma droga, o crescimento é aditivo. É
necessária uma manipulação política hábil para impedir que um expediente
temporário se transforme num hábito de uma vida inteira.
A busca continuada de crescimento é não só desnecessária para realizar os
bens básicos como pode, de facto, prejudicá-los. Os bens básicos são
essencialmente não comerciáveis: não podem ser devidamente comprados ou
vendidos. Uma economia engrenada para maximizar o valor de mercado
tenderá a expulsá-los ou a substituí-los por sucedâneos comerciáveis. O
resultado é um tipo conhecido de corrupção. A personalidade passa a fazer
parte da gíria da publicidade, dizendo-se que os consumidores dos produtos
mais banais estão a «expressar-se» ou a «desafiar-se». A amizade deixa de ser a
relação eticamente séria que era para Aristóteles e passa a ser uma intriga para
desfrutar do lazer. Entretanto, o lazer em si está sujeito à mesma lógica
economizadora que governa a produção, com desporto, jogos e clubes noturnos
a tentarem condensar o máximo de excitação no mínimo de tempo. «O
mercado penetra em áreas da vida que se tinham mantido fora do reino da troca
monetária até recentemente», escreve o sociólogo Zygmunt Bauman. «Ele
bombardeia inexoravelmente a mensagem de que tudo é ou poderia ser um bem
essencial, ou, se não puder ser um bem essencial, que poderia ser tratado como
um bem essencial.»289
É difícil representar essas mudanças estatisticamente. Os bens básicos são
qualidades, não quantidades, são objetos de discernimento, não de medição. O
que pode ser medido são os representantes dos bens básicos – quantidades que
se presume poderem subir e descer conjuntamente com eles. Os resultados de
um exercício desse tipo são desencorajantes. O rendimento britânico per capita
mais do que duplicou desde 1974. Porém, durante esse período, tanto quanto
podemos julgar, os bens básicos não cresceram nada nem atrofiaram
categoricamente. Outras nações ricas revelam um quadro mais misto.

Saúde. A esperança média de vida na Grã-Bretanha subiu em pouco mais de


sete anos entre 1974 e 2009. Porém, este aumento deve pouco ao crescimento.
A esperança de vida subiu em quase todos os países durante este período,
independentemente das taxas de crescimento, acima de tudo em resultado de
avanços na tecnologia e nas infraestruturas médicas290. A China e o Brasil
seguem agora o Ocidente com um atraso de apenas seis ou sete anos, enquanto
Cuba, uma das nações mais pobres do mundo, se gaba de uma esperança de
vida igual à dos Estados Unidos. Além disso, como já referimos, o simples
comprimento da vida é um fraco indicador de saúde, uma vez que não nos diz
nada acerca da qualidade. «Seguramente, a vida boa não é medida pelo seu
comprimento em anos», escreveu James Lovelock aos 86 anos, «mas pela
intensidade da alegria e pelas boas consequências da existência.»291

247 Filme de 2009 (Uma Família com Etiqueta) em que um casal perfeito (Os Joneses), protagonizado por
Demi Moore e David Duchovny, se muda com os seus filhos adolescentes igualmente perfeitos para um
condomínio de luxo. Têm uma vida melhor e coisas melhores do que qualquer outra família da cidade. O
problema é que não são uma família. São funcionários de uma empresa de marketing secreta e sabem como
fazer todas as pessoas quererem o que eles têm. (N. da T.)

248 Milton Friedman, «The Methodology of Positive Economics» [A Metodologia da Economia Positiva],
in Friedman, Essays in Positive Economics (Chicago: University of Chicago Press, 1953), p. 5.

249 Provas da universalidade dessas e outras práticas podem ser encontradas em Alexander MacBeath,
Experiments in Living (Londres: Macmillan, 1952) e Morris Ginsberg, On the Diversity of Morals
(Londres: Heinemann, 1956).

250 Ver Martha Nussbaum, Women and Human Development: The Capabilities Approach (Cambridge:
Cambridge University Press, 2000), p. 73: «Na medida em que podemos reagir às histórias trágicas de
outras culturas, mostramos que esta ideia de merecimento e atividade humana atravessa fronteiras
culturais.»

251 Ernst Cassirer, The Logic of the Cultural Sciences, tr. S. G. Lofts (New Haven: Yale University Press,
2000), p. 76.

252 John Rawls, A Theory of Justice (Oxford: Clarendon Press, 1971), p. 433.

253 Nussbaum, Women and Human Development, pp. 78-80.

254 Ibid., p. 69.

255 Ibid., p. 87. Amartya Sen tem uma atitude mais descontraída relativamente à relevância dos
funcionamentos; ele admite «a possibilidade de contar simplesmente com a avaliação de funcionamentos
atingidos (se desejarmos ir por esse caminho) […]» Amartya Sen, The Idea of Justice (Londres: Allen Lane,
2009), p. 236.

256 Nussbaum, Women and Human Development, p. 87.

257 Ibid., p. 79. Nussbaum acrescenta numa nota de rodapé que esta lista é baseada na constituição indiana,
artigo 15.º, com exceção de não discriminação com base na orientação sexual, que não é garantida pela
constituição. Mas isto em si dificilmente é uma garantia de universalidade, uma vez que a constituição
indiana se baseou fortemente nos protótipos britânico e americano. E, em todo o caso, que autoridade tem
um documento político numa discussão de «capacidades funcionais centrais humanas»?

258 John Finnis, Natural Law and Natural Rights (Oxford: Oxford University Press, 2011), pp. 87-90.
259 Aristóteles disse famosamente que «é a marca de uma pessoa educada procurar a precisão em todos os
tipos de dúvidas até ao ponto em que a natureza do tema permite» [Aristóteles, Nichomachean Ethics, tr.
Christopher Rowe e Sarah Broadie (Oxford: Oxford University Press, 2002).] Num espírito semelhante,
Keynes terá dito: «É melhor estar imperfeitamente certo do que precisamente errado.»

260 Citado em Georges Canguilhem, The Normal and the Pathological (Nova Iorque: Zone Books, 1991),
p. 91.

261 Aristóteles, Politics, The Complete Works of Aristotle, ed. Jonathan Barnes, vol. 2 (Princeton:
Princeton University Press, 1984), p. 2101.

262 O gerontologista Aubrey de Grey afirmou que dentro de muito pouco tempo poderemos ter centenas de
anos de boa saúde. Guy Jones, um neurocientista de Cambridge, é muito mais contido. «Estamos a
acrescentar anos à vida», escreve ele, «mas são anos de má qualidade no fim da vida» (Guy Jones, «No Way
to Go» [Beco sem saída], Guardian, 14 de novembro de 2007). O nosso objetivo não é empurrar as pessoas
para a sepultura, mas permitir-lhes que envelheçam graciosamente. «Um homem capaz de celebrar o seu
octogésimo-primeiro aniversário», escreveu o filósofo chinês Lin Yutang, «é visto como especialmente
favorecido pelo céu.»

263 Expressão usada pelos anglo-saxónicos como metáfora do estilo de vida moderno. Os ratos de
laboratório correm em labirintos para obterem uma recompensa no final. Nós vivemos numa rotina frenética
de atividade competitiva para conseguirmos uma recompensa. (N. da T.)

264 Josef Pieper, Leisure: The Basis of Culture, tr. Alexander Dru (São Francisco: Ignatius, 1963), p. 105.

265 Em francês no original: o agradável comércio. No seu livro Do Espírito das Leis, Montesquieu afirmou
que «o efeito natural do comércio é o de levar à paz». (N. da T.)

266 Aquilo a que chamamos aqui respeito também é muitas vezes chamado «dignidade», especialmente em
discussões religiosas. Nós preferimos o termo «respeito» porque ele destaca mais claramente a dimensão
interpessoal. O respeito é conferido; a dignidade é inerente. Todavia, a nossa capacidade de respeitar um ser
humano pressupõe que há alguma coisa nele que é digna de respeito, e essa alguma coisa poderia, se
desejado, ser chamada de dignidade.

267 Primo Levi, If This Is a Man (Londres: Abacus, 1987), p. 111.

268 O estrago feito pela desigualdade ao respeito é explorado em Richard Sennett, Respect in a World of
Inequality (Londres: Allen Lane, 2002).

269 Citado em Robert Skidelsky, John Maynard Keynes: The Economist as Saviour 1920-1937 (Londres:
Macmillan, 1992).

270 Sherman McCoy, o «mestre do universo» no romance de Tom Wolfe, A Fogueira das Vaidades,
consome o seu salário em rendas, propinas escolares, etc., tendo como resultado a falência poucas semanas
depois de perder o emprego. Na realidade, ele é um escravo do salário, se bem que um escravo
endinheirado.

271 Papa Leão XIII, Rerum Novarum (1891), par. 46.

272 Nussbaum, Women and Human Development, p. 157.


273 Aristóteles, Nicomachean Ethics, tr. Christopher Rowe e Sarah Broadie (Oxford: Oxford University
Press, 2002), p. 208.

274 Aristóteles, Politics, p. 2003.

275 Ibid., p. 2032.

276 Confúcio, The Analects, tr. Arthur Waley (Ware: Wordsworth, 1996), p. 3.

277 Ibid., p. 3.

278 Ver http://moneywatch.bnet.com/career-advice/blog/other-8hours/addition-by-subtraction-dont-let-bad-


friends-drag-you-down/2080/ (acedido no dia 9 de novembro de 2011).

279 Leo Strauss, «Kurt Riezler», in Strauss, What is Political Philosophy? (Chicago: University of Chicago
Press, 1988), p. 234.

280 Karl Marx, «On James Mill» [Sobre James Mill], in Karl Marx: Selected Writings, ed. David
McLellan, 2.ª ed. (Oxford: Oxford University Press, 2000), p. 132.

281 Para uma discussão interessante deste ponto, ver Sarah Broadie, «Taking Stock of Leisure» [Inventário
do Lazer], in Broadie, Aristotle and Beyond: Essays on Metaphysics and Ethics (Cambridge: Cambridge
University Press, 2007), p. 194.

282 Aristóteles, Politics, p. 2122.

283 Alexandre Kojève, Introduction to the Reading of Hegel (Nova Iorque: Basic Books, 1969), p. 162.

284 Pieper, Leisure, pp. 47-48.

285 Ver Sen, The Idea of Justice, pp. 239-241.

286 Aristóteles, Nicomachean Ethics, p. 98.

287 Adair Turner, Economics after the Crisis: Objetives and Means, Palestra 1: «Crescimento Económico,
Bem-Estar Humano e Desigualdade»
(http://www2.lse.ac.uk/publicEvents/pdf/20101011%20Adair%20Turner%20transcript.pdf; acedido no dia
12 de janeiro de 2012), p. 35.

288 Lorde Turner admite esta possibilidade. Na sua terceira palestra, ele escreve que os objetivos de
mudança e de liberdade económica «precisam de ser equilibrados contra outros objetivos potencialmente
desejáveis». Mas ele deveria acrescentar que isto fragiliza a utilidade do crescimento como um indicador de
saúde económica.

289 Zygmunt Bauman, Liquid Life (Cambridge: Polity, 2005), p. 88.

290 Para uma defesa persuasiva da sua reivindicação, ver Anthony e Charles Kenny, Life, Liberty and the
Pursuit of Utility (Exeter: Imprint Academic, 2006), pp. 65-93.

291 James Lovelock, The Revenge of Gaia (Londres: Penguin, 2006), p. 126.
Gráfico 9. Mortes Relacionadas com o Álcool no Reino Unido

Fonte: WHO Global Information System on Alcohol and Health.

Em certos aspetos, a saúde poderá até estar a deteriorar-se com a riqueza. As


mortes relacionadas com o consumo de álcool subiram acentuadamente no
Reino Unido desde a década de 1990, embora isso não tenha acontecido
noutras nações ricas (ver Gráfico 9). A obesidade aumentou o triplo na Europa
desde a década de 1980, mesmo em países com taxas tradicionalmente baixas
(ver Gráfico 10)292. As receitas para a depressão no Reino Unido também
aumentaram, embora isso possa não refletir o aumento da depressão em si293. E
o stress relacionado com o trabalho piorou desde 1992, especialmente para as
mulheres294. Pelos padrões históricos continuamos extremamente saudáveis,
mas a velha garantia de que este estado de coisas continuaria eternamente está
a desvanecer-se. As doenças da riqueza poderão vir a suplantar as da pobreza.

Segurança. O emprego pleno como objetivo de política macroeconómica foi


abandonado durante a era Reagan/Thatcher e ainda não foi restabelecido. No
Reino Unido o desemprego excedeu a marca dos 5% em 1980 e manteve-se
nesse nível desde então, disparando para 10% ou mais durante os períodos de
recessão. Um padrão semelhante predomina na OCDE, como podemos ver no
Gráfico 11. Na Grã-Bretanha e nos EUA, os empregos para a vida inteira têm
sido cada vez mais substituídos por contratos temporários ou abertos. A posse
de trabalho para os homens britânicos caiu 20% entre 1975 e 1995. (A
mudança foi menos significativa para as mulheres, acima de tudo porque hoje
em dia elas abandonam menos os seus empregos para terem filhos295.) Ao
mesmo tempo, houve um forte crescimento de trabalhadores temporários,
especialmente de agências de emprego, cujos números duplicaram desde
1992296. Estas tendências são em parte estruturais, um efeito da mudança em
curso da indústria para os serviços, mas foram exacerbadas pela política. A
segurança tem sido considerada um sacrifício legítimo para o bem maior do
crescimento, não uma necessidade humana básica.

292 Francesco Branca et al., The Challenge of Obesity in the WHO European Region and the Strategies for
Response (Copenhaga: Organização Mundial de Saúde, 2007).

293 Michael Moore et al., «Explaining the Rise in Antidepressant Prescribing: A Descriptive Study Using
the General Practice Research Database» [Explicar o Aumento de Prescrições de Antidepressivos: Um
Estudo Descritivo Usando a Base de Dados de Investigação de Clínica Geral], British Medical Journal (
2009), bmj.com.

294 Francis Green, Praxis: Job Quality in Britain (Londres: Comissão do Reino Unido para o Emprego e as
Habilitações, 2009).

295 Stephen Nickell et al., «A Picture of Job Insecurity Facing British Men» [Um Retrato de Insegurança
no Trabalho que Enfrentam os Homens Britânicos], Economic Journal, n.º 112 (2002), pp. 1-27.

296 Mark Beatson, «Job “Quality” and Job Security» [«Qualidade no Emprego e Segurança no Emprego],
Labour Market Trends (2000), pp. 441-449.
Gráfico 10. Obesidade no Reino Unido

Fonte: WHO Base de Dados sobre IMC.

Respeito. A maior barreira ao respeito mútuo na maioria das nações


ocidentais é a emergência, iniciada na década de 1970, de um grupo
permanente de dependentes do Estado297. Em tempos protegidos por um
resíduo de sentimento cristão e social-democrata, os «cravas» e «parasitas» são
agora tratados com um desprezo declarado na imprensa e na televisão. Outra
barreira ao respeito mútuo é a desigualdade excessiva. Isto destrói o respeito
não apenas pelos que estão no fundo, mas também pelos que se encontram no
topo, especialmente se as suas vantagens forem apreendidas como não
merecidas. A partir da década de 1970 a desigualdade aumentou nos países
ocidentais, especialmente na Grã-Bretanha e nos EUA, como está bem patente
no Gráfico 12. Esta tendência é em parte uma função de forças sociais
autónomas, mas não há dúvida de que foi acentuada pelo corte da taxa superior
do imposto de rendimento durante os governos de Thatcher e Reagan.
297 As dimensões precisas da classe dos desfavorecidos britânicos são perpetuamente difíceis de
estabelecer, mas o facto de o número de requerentes de subsídio de invalidez ter triplicado a partir do final
da década de 1970 para 2,7 milhões em 2006 é significativo [Carol Black, Working for a Healthier
Tomorrow (Londres: Departamento de Trabalho e Pensões, 2008), p. 34.]
Gráfico 11. Desemprego nos Países da OCDE

Fonte: OECD Employment Outlook, 2011.

Por fim, o turbo-capitalismo endeusado em Wall Street e no centro financeiro


de Londres durante os últimos 30 anos levou a uma brutalização das relações
profissionais. «O seu Blackberry e passe de segurança são-lhe retirados por
homens corpulentos, ele deixa de ter acesso ao e-mail de trabalho e tem cinco
minutos para limpar a secretária», lê-se num artigo que descreve o destino de
um analista de investimentos, despedido por ter tirado tempo de licença para ir
ver a mulher doente298. Esses episódios são muito comuns. Hoje, os salários
não são uma segurança contra a proletarização e as humilhações associadas a
ela.

Personalidade. Dissemos que a principal salvaguarda económica da


personalidade é a propriedade. Isto poderá parecer uma boa notícia para a Grã-
Bretanha, onde a propriedade de imóveis cresceu regularmente durante o
século passado e está agora nos 68%, tendo caído de um máximo de sempre de
71% em 2003. No entanto, como a maior parte das propriedades é adquirida
com hipotecas, e a posse plena só acontece tarde na vida, se é que acontece, os
seus efeitos são, quando muito, emancipadores. A propriedade hipotecada
prende o seu proprietário a um emprego regular. É especificamente a riqueza –
isto é, os bens totais de um indivíduo menos as suas responsabilidades – que
confere liberdade para seguir um plano autónomo de vida. Os governos
britânicos têm lançado iniciativas esporádicas para alargar mais a distribuição
de riqueza; foi esse o objetivo das privatizações de Thatcher na década de
1980. Esquemas maiores de propriedade partilhada também foram promovidos
numa base empresarial, incluindo, famosamente, pela John Lewis, a maior
cadeia de retalho britânica, que é possuída e gerida pelos seus 76 500
funcionários299. Todavia, essas empresas visionárias não conseguiram contrariar
a tendência global para a concentração de riqueza nas mãos de poucos, como se
pode ver no Gráfico 13.

298 Simon English, «The Poisonous City Work Ethic That Is in Urgent Need of Reform» [A Venenosa Ética
de Trabalho Urbana Tem Necessidade Urgente de Reforma], Evening Standard, 5 de julho de 2011.

299 Para exemplos de esquemas europeus de propriedade de empregados, ver


http://www.efesonline.org/PRESS%20REVIEW/2011/October.htm (acedido no dia 20 de novembro de
2011).
Gráfico 12. Desigualdade de Rendimentos desde 1977

Fonte: ONS, Banco Mundial, Eurostat.

Harmonia com a natureza. A agricultura britânica é há muito tempo menos


variada do que as suas correspondentes francesa e italiana e está a crescer ainda
menos. Uma proporção decrescente dos nossos alimentos é cultivada
localmente e uma proporção cada vez maior é importada do exterior. Em 1970,
as importações de produtos alimentares situavam-se nos 2 mil milhões de
libras; desde então, cresceram o dobro, relativamente às exportações, para
cerca de 20 mil milhões de libras. A taxa de autossuficiência do Reino Unido
(que aproxima quanto dos nossos alimentos poderíamos produzir) é a mais
baixa de sempre, pouco abaixo dos 60%; na década de 1970, esteve
consistentemente entre 70% e 80%300. As cadeias de lojas expandiram-se
bastante à custa do pequeno comércio e agora representam mais de 97% do
mercado de retalho alimentar301. Na maioria das ruas principais da Grã-
Bretanha, as «lojas que são realmente lojas» de Keynes foram absorvidas pelas
grandes cadeias. Algum alívio da monotonia é proporcionado pelos mercados
de produtores, cooperativas de produtos orgânicos e afins. Mas isto não passa
de ninharias de classe média, o equivalente moderno dos cortesãos franceses a
brincar à ordenha de vacas. Dispendiosos e apreciados, não abalam a tendência
global, que continua inexoravelmente na outra direção.

300 Departamento de Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais, Agriculture in the United Kingdom
(Londres: HMSO, 2007).

301 Os dados da TNS Global para os três meses até novembro de 2009 mostram que as lojas independentes
têm uma quota de mercado de 2,2%, sendo o resto absorvido pelas chamadas lojas «múltiplas», desde a
Tesco até ao Lidl, Netto e outras cadeias mais pequenas. Ver http://www.tnsglobal.com/news/news-
56F59E8A99C8428989E9BE 66187D5792.aspx (acedido no dia 21 de novembro de 2011).
Gráfico 13. Distribuição de Riqueza no Reino Unido

Fonte: ONS, HMRC [Nota: A riqueza comerciável (também conhecida como valor líquido) é o
valor de todos os bens que podem ser comprados e vendidos – ações, propriedades, poupanças no
banco, etc. – menos as responsabilidades. Exclui, por exemplo, as pensões profissionais que não
podem ser transferidas. Aqui o valor das habitações, que são muitas vezes doadas ou herdadas e
não compradas, é excluído.]

Amizade. Os sociólogos discutem se a amizade no nosso sentido (ou «capital


social», para usar o barbarismo atual) está a aumentar ou a diminuir. O que não
suscita dúvidas é que muitas das velhas formas institucionais de sociabilidade –
as Igrejas, os sindicatos, os bares, os clubes de trabalhadores – estão há muito
tempo em declínio na Grã-Bretanha302. No entanto, surgem substitutos. As
seitas da nova era estão em ascensão. Grupos de pressão específicos
multiplicam-se. E depois, evidentemente, temos a Web, com as suas vastas
possibilidades de interação. Em geral, houve uma mudança das relações
baseadas em estilos de vida partilhados para relações baseadas em interesses e
identidades especiais, sendo estas últimas mais adequadas para o eu pós-
moderno, versátil303. Tendências semelhantes foram observadas noutras nações
da OCDE304.

302 Peter A. Hall, «Social Capital in Britain» [Capital Social na Grã-Bretanha], British Journal of Politics,
vol. 29 [1999, pp. 417-461, refere que apesar de o número de pubs ter diminuído substancialmente – de 102
000 em 1900 para 66 000 em 1978 (e 57 500 em 2007 – Market and Business Development, Pub
Companies: 7th Report of Session 2008-9 [Londres: HMSO, 2008], p. 9) o número de pessoas que visitam
pubs e a quantidade de tempo passada ali aumentou da década de 1960 para a década de 1980.
Provavelmente, isto reflete o facto de os pubs se terem tornado cada vez mais agradáveis para as mulheres
durante este período. Não existem dados mais recentes.

303 Este tema foi eloquentemente explorado por Bauman in Liquid Life e outras obras.

304 Ver Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, The Well-being of Nations: The
Role of Human and Social Capital (Paris: OCDE, 2001), para confirmação da mudança de padrões de
associação nas nações da OCDE.
Gráfico 14. Casamento e Divórcio no Reino Unido

Fonte: ONS.

Uma instituição em especial suscita preocupação. No mundo desenvolvido,


os casamentos estão a diminuir, e dos que acontecem mais terminam em
divórcio305. Diz-se muitas vezes que os compromissos exclusivos para a vida
inteira são uma armadilha, especialmente para as mulheres. No entanto, a prova
sugere que as relações estáveis são boas para todos os envolvidos,
especialmente para as crianças, e que os casamentos são regra geral mais
estáveis do que as uniões informais306. Presumivelmente, é por isso que o sexo
é regulado por rituais e penalizações em todo o mundo. Só no Ocidente
moderno é que a liberdade sexual é considerada um direito básico.

Lazer. Como mostrámos no Capítulo 1, o tempo fora do trabalho não


aumentou nos últimos 20 anos, e poderá estar a diminuir quando são
acrescentadas as viagens de e para o trabalho e outras tarefas. No entanto,
como o «lazer» na nossa aceção não é simplesmente tempo sem trabalhar, mas
atividade livre e não intencional, é relevante perguntar como são ocupadas as
horas livres. As tendências são mistas. A televisão mantém-se a presença
dominante na Grã-Bretanha e noutras nações, com a média dos britânicos a
verem mais de quatro horas por dia307. Os jogos de vídeo e as redes sociais na
Internet são cada vez mais populares, especialmente entre os jovens. O número
de adultos britânicos que jogam pelo menos um desporto caiu de 48% para
43% entre 1990 e 2002, uma tendência replicada no Canadá e nos EUA308. O
tempo passado a ler aumentou ligeiramente no Reino Unido e em França desde
1975, embora o número total de leitores, em especial de jornais e revistas,
tenha diminuído. Nos EUA, tanto leitores como horas de leitura diminuíram
abruptamente309. A presença em eventos culturais britânicos cresceu
ligeiramente entre 1986 e 2003, como é visível no Gráfico 15. Inevitavelmente,
essas estatísticas são demasiado rudimentares para resolver o debate em curso
entre pessimistas e otimistas culturais. O que é claro é que a visão de Keynes
da cultura da classe média a disseminar-se para as massas com o aumento da
leitura não se concretizou.
A expansão da educação superior na Grã-Bretanha e noutros lugares ao longo
dos últimos 30 anos poderia, naturalmente, ser considerada um acrescento ao
lazer. Porém, como a educação superior também foi reformulada segundo
linhas cada vez mais utilitárias, a sua posição como lazer deixou de ser
evidente por si mesma. Uma educação cuja função primária é «acrescentar
valor» ao aluno ensinando-lhe «bens transferíveis» deixa de ser lazer na nossa
aceção, mas sim trabalho árduo – distinto em intensidade, mas não em carácter,
da labuta do trabalho remunerado.

O cenário global não é encorajador para os defensores do crescimento a todo


o custo. Apesar da duplicação do rendimento per capita no Reino Unido, não
possuímos mais bens básicos do que possuíamos em 1974; em certos aspetos,
possuímos menos. Corremos atrás de coisas supérfluas e negligenciámos as
coisas essenciais. A propósito, isto pode explicar a «linha plana» da felicidade
discutida no Capítulo 4, se for algo mais do que um artefacto estatístico. Pode
ser que as pessoas sintam, corretamente, que as suas vidas não são
objetivamente melhores do que eram então. Jill Matheson, diretora do Gabinete
de Estatísticas Oficiais do Reino Unido, identificou as coisas que são mais
importantes para a felicidade como «saúde, relações, trabalho e ambiente» –
uma lista que corresponde aproximadamente aos nossos bens básicos310. Dado
que as nossas vidas não melhoraram de um modo percetível nestes aspetos
desde 1974, não é surpreendente que não nos sintamos mais felizes.

305 Ver a Base de Dados para a Família da OCDE, www.oecd.org/els/social/family/database (acedido no


dia 21 de novembro de 2011).

306 Ver Patricia Morgan, Marriage-Lite (Londres: Civitas, 2000). No entanto, a conclusão de que o
casamento melhora a estabilidade da relação foi questionada recentemente com base em que o tipo de
pessoas que se casam já têm tendência para relações estáveis. Ver Claire Crawford et al., Cohabitation,
Marriage, Relationship Stability and Child Outcomes: An Update (Londres: Institute for Fiscal Studies,
2011).

307 Ver Broadcasters’ Audience Research Board, Trends in Television Viewing,


http://www.barb.co.uk/facts/tv-trends/download/2011-yy-TVTrends.pdf (acedido no dia 23 de janeiro de
2012).

308 Sport England, Trends in Sport Participation 1987-2002 (Londres: Sport England, 2002); Fidelis Ifedi,
Sport Participation in Canada (Otava: Statistics Canada, 2005); Robert Putnam, Bowling Alone: The
Collapse and Revival of American Community (Londres: Simon & Schuster, 2000), p. 113.

309 Dale Southerton et al., Trajectories of Time Spent Reading as a Primary Activity: A Comparison of the
Netherlands, Norway, France, UK and USA since the 1970s, CRESC Working Paper 39
(www.cresc.ac.uk/sites/default/files/wp39.pdf; acedido no dia 12 de janeiro de 2012).

310 Ver «How Happy Are You? Whitehall Is Keen to Know the Answer» [Até Que Ponto É Feliz?
Whitehall Quer Saber a Resposta], Guardian, 26 de julho de 2011.
Gráfico 15. Presença em Eventos Culturais no Reino Unido

Fonte: Target Group Index, BM RB International; Cinema Advertising Association.

Estamos então a sugerir um regresso aos padrões de vida de 1974? Não


necessariamente, pois os luxos adquiridos desde então podem, ainda que não
tenham acrescentado nada ao nosso bem-estar real, ser difíceis de abandonar.
(Este é um caso da verdade geral de que mudanças sociais prejudiciais nem
sempre podem ser retificadas com uma simples reversão, do mesmo modo que
um homem espalmado por um cilindro a vapor não pode ser trazido para a vida
sendo atropelado em marcha-atrás.) O que estamos a dizer é que o objetivo a
longo prazo da política económica não deveria daqui em diante ser o
crescimento, mas a estruturação da nossa existência coletiva para facilitar a
vida boa. Como isto poderia ser alcançado é o tema do nosso último capítulo.
7

Saídas da Corrida de Ratos

Qual é o significado desta busca interminável e louca de um progresso que nos foge sempre
que acreditamos que o conquistámos o bastante para desfrutar dele em paz?
Papa Paulo VI, Octogesima Adveniens

A geração de economistas de Keynes presumiu que, à medida que as pessoas


fossem ficando mais eficientes a satisfazer as suas necessidades, trabalhariam
menos e aproveitariam mais a vida – e deviam fazê-lo, como agentes racionais.
Nós identificámos dois bloqueios ao cumprimento da profecia de Keynes: os
que têm origem nas relações de poder e os que têm origem na insaciabilidade
dos desejos humanos. Os dois trabalham em conjunto para produzir uma ética
de consumo que condena as sociedades à criação de riqueza contínua e sem
objetivo – uma coisa que não existiu em épocas anteriores e que se mantém, em
alguns sentidos, típica do capitalismo.
As rivalidades internacionais acrescentam combustível ao fogo aquisitivo.
Apesar do nível elevado de riqueza já alcançado, é-nos dito constantemente
que temos de nos preparar para mais desafios, especialmente dos chineses e de
outros povos pobres, mas trabalhadores. «Sobreviver ao Século Asiático» é um
apelo típico à ação resoluta: «O Reino Unido tem de operar na máxima forma,
e, no entanto, continuamos atormentados pelas nossas fraquezas […]
investimento mais baixo em negócios, uma base de competências mais fraca,
empresas menos inovadoras e produtivas e uma presença mais reduzida nos
mercados emergentes mais vibrantes.»311 Porém, se já temos o suficiente,
porque é que deveríamos lutar por uma presença maior nos «mercados
emergentes mais vibrantes»?
Para continuarmos na «máxima forma» mantemos um sistema que continua a
privilegiar o consumo à custa da diversão. Os nossos líderes não podem
oferecer mais do que uma continuação do crescimento económico para todo o
sempre; e isto apesar das provas abundantes de que, na nossa região do mundo,
o sistema capitalista está a entrar na fase degenerativa. O principal sinal disto é
o domínio da finança, apaixonada por si mesma, mas cada vez mais sem coisas
úteis para fazer. A versão anglo-americana do capitalismo individualista é
mantida em funcionamento em grande medida para benefício de uma
plutocracia predadora, cujos membros selecionam os prémios mais avultados
enquanto justificam a sua predação na linguagem da liberdade e da
globalização. Os líderes políticos continuam a usar frases curtas e de alto
impacto; a realidade é bem escondida do escrutínio público e até da
compreensão. No âmago do nosso sistema está uma decadência moral que só é
tolerada porque a limpeza dos seus estábulos de Áugias312 é demasiado
traumática para ser considerada.
Vale a pena recordar que o ideal de crescimento económico como um
objetivo sem fim tem uma origem bastante recente. Quando o primeiro-
ministro britânico Harold Macmillan declarou aos eleitores em 1959 que eles
«nunca tinham tido uma vida tão boa», estava a ecoar a opinião amplamente
sustentada na época de que os países capitalistas do Ocidente estavam a
aproximar-se rapidamente de uma estabilização do consumo e que o principal
problema no futuro seria garantir que os frutos da nova abundância eram
democraticamente distribuídos. The Affluent Society (1958), o extremamente
influente livro de Galbraith, com a sua imagem de «riqueza privada, miséria
pública», captou esta disposição. Como mostrámos no Capítulo 2, a suposição
de abundância, e consequente repulsa contra a tecnologia e o distanciamento
psicológico do mundo do trabalho foi o pano de fundo imaginativo dos
movimentos utópicos americanos da década de 1960.
A questão é: Porque é que a perceção de Felicidade iminente da década de
1960 levou à restauração do capitalismo darwinista na década de 1980? O que
trouxe Reagan e Thatcher para o poder e levou à renovação do
fundamentalismo de mercado livre?
É fácil ver que, como os seguidores de Marcuse a imaginaram, a Felicidade
era uma ilusão. Pelas razões analisadas no Capítulo 1, é provável que as
sociedades mais ricas se tornem mais, e não menos, consumistas, à medida que
o poder dos desejos relativos for aumentando. Mas esta tendência secular não
explica o colapso súbito do sistema de economia política que trouxe a zona rica
do mundo para o início da abundância universal.
A questão é: Porque é que o crescimento económico ultrapassou de uma
forma tão rápida e decisiva todos os outros objetivos de política económica? A
resposta simples, mas surpreendente, é que, com a presumida concretização do
emprego pleno permanente pela política, não restavam outros objetivos de
política económica. Nessas circunstâncias, o pensamento económico estava
livre para se concentrar uma vez mais na eficiência da produção. Isto era mais
congruente com o espírito maximizador da economia, aproveitando ao máximo
um dado conjunto de recursos. O facto de o crescimento poder tornar-se um
objetivo de política económica deveu-se em grande medida ao
desenvolvimento de estatísticas de rendimento nacional – PIB – que permitiu
comparações entre o desempenho económico dos países. E, no rescaldo de duas
guerras extremamente destrutivas, tornar os povos mais ricos, em vez de tornar
as nações mais belicosas, pareceu um objetivo eminentemente civilizado pelo
qual valia a pena lutar.
Houve dois motivos suplementares. O primeiro foi que o Ocidente como um
todo sentiu que necessitava de acelerar a sua taxa de crescimento para manter a
corrida ao armamento com o bloco soviético. Na década de 1960 não só o
sistema soviético parecia estar a crescer mais depressa do que o capitalismo
ocidental como, ao suprimir o consumo privado, podia aplicar uma proporção
muito maior da sua riqueza crescente em gastos militares. O Ocidente tinha de
mostrar que tinha capacidade para produzir armas e manteiga. O segundo
motivo foi que o crescimento económico mais rápido foi uma forma de
contornar os factos do poder. Ofereceu uma forma de melhorar a posição dos
pobres sem ser preciso aumentar os impostos dos ricos. Neste segundo aspeto,
o crescimento económico foi uma política de esquerda para beneficiar a classe
trabalhadora sem inflamar o conflito de classes latente devido à distribuição do
produto nacional. Os apóstolos do crescimento da década de 1960 foram
essencialmente economistas e políticos de esquerda que tinham abandonado –
ou, nos Estados Unidos, nunca adotado – a propriedade pública como um
mecanismo e mantinham as suas aspirações socialistas a uma sociedade mais
igual. Ansiavam por uma versão democrática do sistema de planeamento
soviético, uma versão que incutisse maior energia à iniciativa privada através
de objetivos, subsídios e incentivos fiscais, ao mesmo tempo que atribuía uma
parcela cada vez maior dos frutos do empreendedorismo à educação, bem-estar
e serviços públicos. Isto foi especialmente apelativo na Grã-Bretanha, que
estava a crescer a um ritmo lento.
No entanto, isto ainda estava longe do capitalismo darwiniano propenso a
crises do nosso tempo. O ingrediente essencial que Thatcher (eleita em 1979) e
Reagan (eleito em 1980) acrescentaram à filosofia do crescimento foi uma fé
ideológica no sistema de mercado. A forma de crescer mais rapidamente não
era através do planeamento, mas libertando os mercados de burocracias,
melhorando os incentivos com impostos mais baixos, reduzindo o poder dos
sindicatos e alargando os mercados através da privatização e da liberalização.
Esses passos combinados tornariam mais eficiente a distribuição do capital. O
sistema de repartição Thatcher-Reagan também considerava que o aumento da
desigualdade de rendimento era aceitável na medida em que melhorava os
incentivos dos «criadores de riqueza»: haveria uma «transferência de valor»
dos ricos para os pobres. Este conjunto de ideias tornou-se o que Adair Turner
chama a «sabedoria instrumental convencional» dominante no mundo político
durante os 30 anos seguintes313.
Em retrospetiva, foi a mudança para uma filosofia de crescimento baseada no
mercado e não para uma filosofia baseada no crescimento em si que inflamou a
insaciabilidade de desejos que identificámos no Capítulo 1. «Planear para o
crescimento» não precisava de implicar mais do que trazer gradualmente o
bem-estar dos pobres para o padrão dos ricos. Em contraste, a dependência do
crescimento provocado pelo mercado marcou o abandono de qualquer interesse
no resultado social do processo de crescimento. O sistema económico devia ser
usado para a maximização da satisfação individual tal como expressada nos
mercados. Os indivíduos já não deviam ser considerados parte de conjuntos; os
conjuntos eram simplesmente a soma de partes individuais. Esta redução da
vida económica a um individualismo rudimentar remonta à década de 1970.
Em economia, a microeconomia, o estudo do comportamento económico
individual, substituiu a macroeconomia, o estudo da economia como um todo;
no pensamento político, os direitos e deveres de indivíduos substituíram os
direitos e deveres de grupos. É evidente que este tipo de ordem de mercado
estava limitada ao Estado de direito; no entanto, deixou de haver qualquer
limitação moral, política ou cultural à busca individual de riqueza; a única
limitação poderia advir dos limites naturais do próprio crescimento.
Qualquer mudança radical de consciência requer o estímulo da crise. Para os
defensores do mercado livre foi a «crise da economia keynesiana» – a
combinação de aumento do desemprego e subida da inflação identificada por
Milton Friedman como uma consequência inevitável da política de pleno
emprego. Os adeptos do mercado livre apresentaram algumas questões
eloquentes: o sistema existente tinha-se tornado esclerótico, o poder dos
sindicatos era excessivo e os níveis de tributação não eram apenas
redistributivos, mas punitivos. Todavia, o que mais contribuiu para destruir
decisivamente a democracia social keynesiana foram as duas subidas
acentuadas do preço do petróleo em 1973 e 1979. Estas subidas representaram
uma transferência cumulativa equivalente a 1900 mil milhões de dólares em
valores atuais dos ricos importadores de petróleo para os produtores de
petróleo, principalmente para principados do Médio Oriente. Os aumentos dos
preços da energia provocaram uma queda nos rendimentos reais dos
consumidores de petróleo. Perante a oposição generalizada a reduções salariais
liderada pelos sindicatos, a parte pior desta transferência começou por recair
sobre os lucros e não sobre os salários. A restauração da taxa de lucro através
do abandono do compromisso de pleno emprego, a eliminação do controlo dos
salários pelos sindicatos e a restruturação da economia da indústria para os
serviços tornou-se o projeto concreto ao qual a ideologia do mercado livre deu
um apoio ideal. Com efeito, os governos de Reagan e Thatcher voltaram a
entregar a economia aos empresários. O papel do Estado na gestão,
propriedade, regulação, atribuição e distribuição foi drasticamente reduzido. Os
governos desistiram de tentativas de orientar as forças de mercado para
resultados sociais desejáveis, limitando-se a manter condições estruturais para
um desempenho bem-sucedido do mercado. A riqueza das nações cresceria
mais depressa se o consumo fosse libertado das suas limitações comunitárias,
numa repetição dos argumentos apresentados originalmente por Adam Smith e
pelos seus seguidores.
Neste tipo de mundo não há motivo para o capitalismo acabar, desde que
tudo corra de acordo com o plano. A noção de saciedade de Keynes não tem
lugar: o progresso do sistema criará novos desejos e estimulará uma
competição posicional sem limite. E qualquer tendência observada para as
sociedades ricas deixarem de se esforçar, trabalhando e consumindo menos,
pode ser contrariada com a lógica da globalização e o estímulo de mais
desigualdade de rendimento. Mas é claro que um tal sistema não deve, nem
pode, funcionar de acordo com o plano. É económica e moralmente ineficaz.
Só sobrevive porque perdemos a noção de que o objetivo da riqueza é ser um
veículo para a vida boa. Com poucas exceções que serão referidas abaixo, as
correntes principais de teoria económica e política defendem que o Estado deve
ser neutro nas escolhas individuais. Mas no nosso tipo de sistema isto passa
inevitável e incontornavelmente a escolha do sistema e dos instrumentos para
aqueles que têm maior riqueza e poder.
Assim, passamos finalmente para a questão principal: que recursos
intelectuais, morais e políticos é que ainda existem nas sociedades ocidentais
para inverter a investida da insaciabilidade e reorientar os nossos objetivos para
a vida boa?

A virtude revisitada

No seu livro After Virtue, o filósofo Alasdair MacIntyre pede ao leitor para
imaginar uma catástrofe que destruiu as ciências naturais. Sobrevivem apenas
fragmentos de facto e prática desligados de qualquer conhecimento do seu
contexto teórico. MacIntyre sugere que «no mundo real em que vivemos, a
linguagem da moral está no mesmo estado de desordem grave que o mundo
imaginário que eu descrevi». Possuímos apenas fragmentos de moralidades
passadas desligadas dos esquemas e conceitos conceptuais que lhes deram
coerência. Mas não reconhecemos que tenha ocorrido alguma catástrofe. As
disciplinas académicas que estudam questões morais não estão conscientes
disso. Só estão conscientes dos fragmentos, que disputam furiosamente. É por
isso que o debate moral é interminável e a neutralidade entre diferentes crenças
morais é considerada o único posicionamento possível de um Estado liberal
moderno314.
A catástrofe que MacIntyre tem em mente é a ascensão do Estado moderno e
da ideologia que o acompanha. Assim, o único remédio possível que ele pode
antever é um recuo total da esfera política – um novo monasticismo. «O que
importa nesta fase», conclui ele numa veia profética, «é a construção de formas
locais de comunidade dentro das quais a civilidade e a vida intelectual e moral
possam ser mantidas durante a nova era das trevas que paira já sobre nós […]
Não estamos à espera de um Godot, mas de outro – sem dúvida muito diferente
– São Benedito.»315 As palavras de MacIntyre trazem à ideia as comunas
ambientalistas que se multiplicaram no Ocidente ao longo dos últimos 30 anos,
bem como iniciativas como o movimento de simplicidade voluntária na
América e o movimento slow food em Itália e noutros países.
MacIntyre oferece-nos um poderoso diagnóstico dos males da nossa
civilização, mas também não tem esperança nas possibilidades de reforma
política. O facto é que, até recentemente, a política pública no mundo ocidental
foi moldada, implicitamente se não sempre explicitamente, por ideias da vida
boa e da sociedade boa. Essas ideias não estavam destinadas ao fracasso; foram
derrotadas na luta política já resumida. Muitas delas mantêm-se poderosas sob
a superfície ou nas margens da nossa vida pública. Bastaria um pouco de
coragem política para voltar a colocá-las no seu lugar central. Iniciativas
privadas do tipo considerado por MacIntyre devem ser aplaudidas, mas, sem
apoio público, continuarão a ser precárias e marginais. Não devemos esquecer
que São Benedito foi precedido pelo imperador Constantino.
Dos fragmentos de moralidades sociais mais antigas que ainda estão à nossa
disposição o mais extenso é o ensino social católico, convenientemente
resumido nas 12 encíclicas papais que começam com Rerum Novarum em 1891
e acabam com Caritas in Veritate em 2009. É claro que este ensino é
propriedade de uma Igreja específica, mas não precisamos de ser católicos ou
cristãos para apreciá-lo. Ao contrário de muitas das suas equivalentes
protestantes, a Igreja católica esteve sempre aberta ao melhor da sabedoria
pagã. A sua defesa da propriedade, o seu apelo aos preços e salários justos e a
sua condenação da avareza e da usura devem tanto a Aristóteles como aos
Evangelhos. Onde o ensino católico é distintivamente cristão e muito pouco
aristotélico é na sua ênfase no trabalho como a expiação necessária dos
pecados do homem. («O homem nasce para trabalhar como o pássaro nasce
para voar», escreveu Pio XI.) Dito isto, o pensamento social católico nunca
apoiou o trabalho incessante como um ideal. «A doutrina verdadeira e
racional», escreveu monsenhor John Ryan, um teólogo americano do princípio
do século XX, «é que quando os homens produzirem bens essenciais suficientes
e confortos e conveniências razoáveis para fornecer toda a população, devem
passar o tempo que sobra a cultivar os seus intelectos e vontades, na procura da
vida mais elevada.»316
Uma das muitas forças do ensino católico é que critica em igual medida o
socialismo estatal e o capitalismo desenfreado. A Rerum Novarum
(subintitulada «Sobre o Estado da Classe Operária») que Leão XIII escreveu
em 1891 começa com uma denúncia esplêndida do capitalismo de que Marx se
teria orgulhado:

Por isso, por decretos os trabalhadores têm estado abandonados, isolados e impotentes perante a
insensibilidade dos patrões e a ganância da concorrência desmedida. O mal foi aumentado pela usura
predatória […] A isto deve ser acrescentado que a contratação de mão de obra e a condução do
comércio estão concentradas nas mãos de relativamente poucos; assim, um pequeno número de
homens muito ricos pôde colocar sobre as grandes massas de operários pobres um jugo pouco melhor
que o da escravatura317.

Porém, as soluções do pontífice são muito diferentes das de Marx, cujas


doutrinas ele denunciou como um erro pernicioso. A solução para o problema
social era «justiça entre classes», especificamente uma vasta distribuição de
propriedade. O ideal católico era o da pequena quinta ou oficina familiar. Era
através da propriedade que um homem (as mulheres não eram mencionadas nas
primeiras encíclicas a não ser como esposas e mães) deixava a «marca da sua
personalidade» no solo e providenciava segurança para a sua família. Os
salários e as condições de trabalho deviam ser suficientes para permitir que os
parcimoniosos poupassem o suficiente para adquirir propriedades modestas; as
férias deviam ser bastante grandes para recuperar do desgaste do trabalho e
cuidar da alma. A Rerum Novarum colocou a sua fé não no Estado, mas em
órgãos intermediários – agora chamar-lhes-íamos «sociedade civil» –, o mais
importante dos quais era a própria Igreja. Os ricos tinham o dever da caridade;
patrões e empregados eram encorajados a formar partidos políticos católicos e
associações de comércio católicas. O papel do Estado, embora inicialmente
restringido ao de apoio e garantia final de justiça, expandiu-se gradualmente ao
longo da história das encíclicas quando o objetivo da «justiça entre classes» se
tornou mais ambicioso.
Essas doutrinas católicas foram diversamente rotuladas de «distributivismo»,
«corporativismo» e «personalismo». Podem ser vistas como uma defesa de
uma forma não capitalista, extramercado, de propriedade privada como uma
condição crucial de personalidade; elas realçaram os deveres e não as
recompensas da propriedade, destacaram a caridade e exigiram um respeito
preferencial pelos pobres.
Porém, todos os papas insistiram que «as coisas da terra não podem ser bem
avaliadas sem se ter em conta a outra vida […]. Se excluíssemos a ideia de
futuro, a própria noção do que é bom e certo pereceria imediatamente; não,
todo o esquema do universo se tornaria um mistério negro e insondável»318. Em
resumo, a crença religiosa, e as instituições da religião, eram a única forma de
manter a rapacidade sob controlo.
O principal fruto secular da teoria social católica foi a «economia de mercado
social»319. Desenvolvida por um grupo de intelectuais antinazis na década de
1940, o seu objetivo principal era o de reconstruir uma economia alemã
fortemente cartelizada, destruída e comprometida com base nos negócios
familiares, garantindo assim o objetivo da posse dispersa de bens, que era
considerada uma condição indispensável para a liberdade. Rígidos impostos
sucessórios garantiriam condições iniciais justas para todos e era necessária a
«codeterminação» de patrões e empregados de grandes fábricas e a nível
nacional para conseguir a confiança de todos os estratos sociais. Os primeiros a
apoiar publicamente essas ideias foram os democratas-cristãos em 1948, e
depois os sociais-democratas em 1959. A teoria da economia de mercado social
ajudou a moldar o modelo social da União Europeia. O seu traço distintivo era
um Estado relativamente fraco, mas instituições civis fortes. Existe uma forte
semelhança familiar entre o catolicismo social continental, o liberalismo
sociológico de pensadores franceses como Montesquieu e Tocqueville, o
conservadorismo de Burke adotado pelos líderes pré-Thatcher do partido
conservador britânico e diversas formas híbridas de relações de propriedade
(por exemplo, sociedades mútuas e cooperativas de funcionários) que
relembram as associações medievais320.
No mundo protestante, o contributo paralelo para o catolicismo social pode
ser aproximadamente rotulado de «Liberalismo Social». Em contraste com o
seu equivalente católico, este foi secular, progressista e vastamente estatista,
mas na prática convergiu em muitas das mesmas conclusões. A primeira vaga
de liberalismo social na Grã-Bretanha antes de 1914 foi de igual modo
inspirada na posição de miséria dos pobres. Inspirada no idealismo hegeliano,
visava atualizar o liberalismo «clássico» dos economistas políticos. O Homo
economicus deu lugar a um retrato do indivíduo a realizar-se em comunhão
com outros; o Estado foi elevado de um implementador de direitos e contratos
para uma personificação do bem comum. Os liberais sociais fundamentaram os
seus projetos reformadores em dois argumentos específicos. Primeiro, o
fracasso moral não é apenas, ou principalmente, o resultado de defeitos de
carácter, mas o produto de um ambiente social doente. Segundo, o capitalismo
não regulado dá aos ricos um «incremento imerecido» (ou «excedente
tributável») que pode ser aplicado com justiça ao combate à pobreza. Os
principais instrumentos de política do liberalismo social foram, assim, o
imposto sucessório e o imposto de rendimento progressivo, cujas receitas
seriam gastas em educação, proteção social e outras medidas de
melhoramentos. A teoria liberal social do «Estado que possibilita» – um Estado
que permitia o desenvolvimento humano – é uma precursora de muitas teorias
posteriores, incluindo as de Amartya Sen e Martha Nussbaum, que têm como
objetivo principal a ação estatal para facilitar as «capacidades» individuais.
Uma segunda vaga de liberalismo social associada a Keynes, Beveridge e
Roosevelt enraizou-se nas agitadas décadas de 1930 e 1940 e atingiu a
maioridade nas décadas de 1950 e 1960. Keynes pretendia colmatar a «falha»
mais importante na economia de mercado clássica, a sua incapacidade de
proporcionar pleno emprego contínuo. Em A Teoria Geral do Emprego, do
Juro e da Moeda (1936), Keynes defendeu que era dever do Estado manter
procura agregada suficiente para garantir a utilização contínua de todos os
recursos potenciais. O pleno emprego contínuo não era apenas uma condição
essencial de segurança, mas, como vimos, fazia parte do projeto ético de
Keynes para ultrapassar o pior da «necessidade económica» o mais depressa
possível, de forma a aumentar a possibilidade de uma vida boa para todos.
William Beveridge, fundador do Estado-providência britânico e um dos liberais
sociais originais, queria destruir os cinco grandes males da miséria, ignorância,
necessidade, preguiça e doença. O contributo do seu famoso Report (1942) foi
dar às pessoas segurança «desde o berço até à sepultura» através de segurança
social obrigatória que protegeria dos «perigos» da reforma, desemprego e
incapacidade. Um Serviço Nacional de Saúde e um sistema de ensino, ambos
financiados pelos impostos, completariam o grandioso desígnio de Beveridge.
O New Deal foi introduzido pelo presidente Franklin Delano Roosevelt para
evitar o colapso da economia norte-americana durante a Grande Depressão.
Embora as políticas do New Deal fossem respostas vastamente pragmáticas aos
problemas de setores particulares da economia norte-americana, no seu
discurso inaugural de 1933 Roosevelt prometeu, com um estilo aristotélico e
uma linguagem bíblica, tirar os «vendilhões do templo». Os programas do New
Deal foram continuados, e até alargados, na década de 1960, para melhorar as
oportunidades de vida das minorias étnicas.
Um terceiro fragmento de teoria social foi proporcionado pela social-
democracia, que começou como uma rutura do socialismo revolucionário no
final do século XIX. A sua principal reivindicação era que o socialismo,
definido como a posse comum de instrumentos positivos, poderia ser alcançado
por meios democráticos (isto é, por maiorias parlamentares). Depois da
Segunda Guerra Mundial o socialismo democrático, agora irrevogavelmente
danificado devido ao comunismo, dividiu-se novamente entre aqueles que
ainda queriam implementar o socialismo e aqueles que, autodenominando-se
social-democratas, abandonaram o objetivo socialista e depositaram a sua fé
num capitalismo reformado para melhorar a condição dos pobres. A social-
democracia acrescentou assim um forte empenho igualitário ao liberalismo
social numa «economia mista» de setores privados e públicos. Com muitas
variações ao modelo básico, encontrou casas políticas na Grã-Bretanha, França,
Itália e Escandinávia.
A economia também reteve fragmentos de moralidades mais antigas. A
economia científica começou a existir impondo qualificações substanciais à
hegemonia do mercado. A par da obrigação geral de manter as condições de
concorrência, Adam Smith atribuiu ao Estado os três deveres de defesa, de
administração da justiça e de «erigir e manter» instituições e obras públicas
que, apesar de benéficas para toda a sociedade, não seriam lucrativas para os
empresários e que poderiam, por conseguinte, ser devidamente financiadas
pelos impostos. Incluída nesta terceira categoria estava a educação321. Estas
sugestões de bens não ligados ao mercado foram desenvolvidas na teoria
moderna de bens públicos e bens de mérito: bens que as sociedades desejam, e
deviam ter, mas que, por diversos motivos técnicos, os mercados não
produzem. No final do século XIX, os economistas sociais desenvolveram
argumentos utilitários para a redistribuição do rendimento, baseados na
asserção de que o último dólar ou libra valia menos para o homem rico do que
para o homem pobre, com a consequência de que maior igualdade aumentava a
utilidade ou bem-estar geral. No entanto, tipicamente, a economia passou,
acima de tudo, argumentos éticos para a sua estrutura utilitária através da
linguagem do «insucesso do mercado», tirando-lhes assim a sua relevância
moral.
Não obstante, esses fragmentos sobrepostos de teoria social foram bastante
influentes na primeira metade do século XX para permitir que a sociedade
ocidental desse grandes passos no sentido de realizar as condições morais e
materiais da utopia de Keynes. Não podemos fazer justiça aqui às muitas
variações dos temas centrais de política, mas podemos resumi-los dizendo que
os governos procuraram conscientemente garantir os requisitos materiais de
bem-estar para todos os cidadãos. O capitalismo não foi abolido, mas foi
restringido a tal ponto que pensadores como Anthony Crosland (em Future of
Socialism, 1956) questionou se continuaria a ser a mesma besta. As principais
realizações dos 25 anos entre 1950 e 1975 foram a manutenção do pleno
emprego contínuo, a redução da desigualdade através de impostos de
rendimento progressivos, um grande alargamento da segurança social e a
preservação da paz. Os aumentos de produtividade permitiram a subida dos
salários reais e a diminuição das horas de trabalho, com uma inflação muito
moderada. A pobreza degradante típica do século XIX foi erradicada. Houve
avanços na saúde, na educação e nos direitos das mulheres. Durante a maior
parte do período, o crescimento económico foi considerado uma consequência
de todo o conjunto de políticas, não um objetivo de política independente e
muito menos o objetivo primordial. Houve uma forte coesão social baseada nos
verdadeiros progressos nos padrões de vida de todas as classes.
De muitas formas, a economia política do período foi admiravelmente
adaptada para a realização dos nossos bens básicos. O problema foi que perdeu
a linguagem para se descrever nesses termos. Este é o principal motivo porque
não conseguimos sobreviver aos problemas económicos e sociais que afetaram
as sociedades ocidentais na década de 1970. O historiador Peter Clarke fez a
distinção útil entre reformismo «moral» e «mecânico». O reformismo moral
considerava que os progressos nas condições materiais eram formas de elevar a
condição moral do povo; o reformismo mecânico tinha apenas o objetivo de
aumentar a sua prosperidade322. Privados da sua linguagem ética pelo colapso
da religião e pelo estilo fortemente individualista da filosofia económica e
política, os liberais «morais» foram obrigados a recuar com argumentos
puramente «mecânicos». Eles reforçaram o aspeto positivo que uma mão de
obra mais bem alimentada, com melhor habitação, melhores roupas, mais
saudável e mais culta teria na produtividade. Isto era quase certamente
verdadeiro. No entanto, quando a linguagem geralmente aceite passou a ser a
da eficiência, os reformadores morais ficaram vulneráveis à acusação de que as
suas reformas tinham criado ineficiência ao diminuir os incentivos ao trabalho
e à poupança, e ao roubar recursos do setor produtivo. O liberalismo social das
décadas de 1950 e 1960 não tinha nada para pôr no lugar do motivo do lucro,
apenas qualificações que se aplicavam a exemplos específicos de «insucesso do
mercado». Assim, quando os Estados liberais sociais começaram a ter crises
fiscais na década de 1970, não conseguiram apresentar defesas
intelectualmente convincentes contra o ressurgimento da filosofia do egoísmo
sem entraves. As taxas de imposto caíram, o Estado-providência foi travado, as
indústrias estatais foram privatizadas e o setor financeiro foi liberalizado.
O coup de grâce323 foi dado pela queda do comunismo. Na era da Guerra
Fria, o Ocidente teve de proclamar o seu conceito da vida boa para contrariar o
apelo do comunismo. Esta necessidade desapareceu; não havia nenhum
desafiador ideológico; na Rússia pós-comunista, o instinto consumista foi
ferozmente libertado depois de uma longa repressão. A recente crise do
capitalismo produziu acessos espontâneos de anticapitalismo, mas ainda não
deu origem a uma ideologia alternativa. O individualismo de mercado continua
a ser a única escolha.
Todavia, a ironia da nossa situação é que já não temos de sacrificar a vida
boa, tal como a definimos, à eficiência. Se chegámos de facto a um ponto em
que, como Keynes disse, a «acumulação de riqueza já não tem uma
importância social elevada», ficamos livres para abandonar «todos os tipos de
princípios pseudo-morais […] costumes sociais e práticas económicas que
afetam a distribuição de riqueza, recompensas e penalizações económicas que
mantemos agora a todo o custo […] porque são tremendamente úteis para
promover a acumulação de riqueza». O que significará isto na prática?

Política social para realizar os bens básicos

Não é nossa intenção escrever um manifesto partidário, por isso só podemos


dar indicações gerais. Também não estamos a sugerir que os nossos objetivos
podem ser alcançados imediatamente. Como Keynes, queremos «fugir para o
futuro», embora de uma posição ao mesmo tempo mais e menos favorável do
que a dele: mais favorável porque agora somos quatro ou cinco vezes mais
ricos; menos favorável porque perdemos uma grande parte da linguagem moral
que ele e os seus leitores tinham naturalmente; e porque novas fontes de
escassez, que resultam do crescimento populacional e da diminuição dos
recursos naturais, fazem perigar o nosso futuro.
Como seria uma organização económica vocacionada para realizar os bens
básicos? Teria de produzir bens e serviços suficientes para satisfazer as
necessidades básicas e os padrões razoáveis de conforto para todos. Além
disso, teria de o fazer com uma grande redução da quantidade de trabalho
necessário para libertar tempo para lazer, compreendido como uma atividade
dirigida para a pessoa. Teria de garantir uma distribuição menos desigual de
riqueza e rendimento, não apenas para diminuir o incentivo para o trabalho,
mas para melhorar as bases sociais de riqueza, personalidade, respeito e
amizade. Por fim, uma sociedade cujo objetivo é realizar os bens básicos da
amizade e da harmonia com a natureza poria mais ênfase no localismo e menos
na centralização e na globalização. Estes requisitos materiais estão
relacionados e o fracasso de um compromete os outros, se bem que num grau
desigual. Se as pessoas têm de trabalhar demasiado para atingir os seus padrões
de suficiência material, são sacrificados bens básicos como o lazer. Grande
desigualdade pode ser compatível com toda a gente ter bens materiais
suficientes, mas o facto de uma minoria ter muito mais do que é suficiente
nessas circunstâncias estimularia a insaciabilidade e tornaria a riqueza
insegura. Por fim, o localismo, quer na produção quer na vida política, parece
inseparável da personalidade, do respeito e harmonia com a natureza.
Até onde deveria a política ser levada para concretizar esses objetivos? O
busílis da questão é até que ponto um Estado liberal tem justificação para
interferir nas decisões individuais sobre quanto trabalhar e o que consumir. Os
economistas e filósofos liberais estão fortemente empenhados no não
paternalismo, isto é, na opinião de que os indivíduos são o melhor juiz dos seus
próprios interesses; ou, mesmo que não sejam, que deviam ser livres para
cometer os seus erros. Os economistas acreditam que as pessoas deviam poder
trabalhar enquanto quiserem e que o que os consumidores querem comprar
deveria determinar o que é produzido, porque apenas a distribuição de bens que
satisfaz os desejos de consumidores individuais maximiza o bem-estar da
comunidade. Mais geralmente, a maioria dos liberais modernos acredita que
qualquer afastamento da «neutralidade» do Estado nestas questões constitui
uma violação da liberdade individual.
A nossa posição pode ser descrita como paternalismo não coersivo.
Acreditamos que os poderes do Estado podem ser usados para promover os
bens básicos, mas apenas na medida em que isto não prejudique o bem central
da personalidade. Assim, a nossa preferência vai sempre no sentido de medidas
não coercivas e não de medidas coercivas. O que propomos a seguir envolve
encorajar ou desencorajar certos tipos de comportamento, sem introduzir novas
limitações à liberdade de escolha do indivíduo; na verdade, as nossas propostas
destinam-se a aumentar a liberdade média de escolha individual.
No Capítulo 1, identificámos os principais impulsionadores da rotina do
trabalho como o poder superior do capital relativamente ao trabalho e o nosso
desejo insaciável de bens de consumo, inflamado pela publicidade. O primeiro
determina a quantidade de rendimento real que as pessoas têm de obter contra a
desutilidade ou angústia do trabalho; o segundo, a quantidade de rendimento
que as pessoas sentem que precisam para desistir do trabalho. Em ambos os
aspetos, o nosso sistema atual funciona para aumentar o domínio do trabalho
árduo à custa do lazer, impedindo no primeiro uma subida do rendimento
mediano em linha com a produtividade e inflamando no segundo a necessidade
psicológica de consumir em todos os níveis de rendimento. Logo, a nossa
tarefa é dupla: garantir que os frutos da produtividade são partilhados de uma
forma mais uniforme e reduzir a pressão para consumir.
Um aspeto fundamental do primeiro problema é que a atual distribuição de
rendimento não reflete o aumento médio da produtividade. Se os ganhos de
produtividade na indústria e em alguns serviços especializados tivessem
resultado para toda a população, provavelmente a média de horas de trabalho
teria continuado a cair depois de 1980. Afinal, o capital absorveu uma parte
cada vez maior do crescimento da produtividade; e nos serviços públicos, onde
o crescimento da produtividade é difícil de medir, e onde é muitas vezes
irrelevante, a estrutura para aumentar o salário em linha com a produtividade
média deixou de funcionar. Isto deixou o pagamento do setor público à mercê
das exigências das finanças públicas.
Assim, o problema que Keynes identificou em 1930 – «a nossa descoberta de
meios para economizar a utilização de mão de obra excede o ritmo a que
conseguimos encontrar novas utilizações para a mão de obra»324 – não foi
resolvido da forma que ele imaginou. A automação no fabrico não provocou
um aumento drástico no lazer, mas uma transferência drástica da mão de obra
para um setor de serviços mais mal pago em que as pessoas têm de trabalhar
mais horas para conseguirem sobreviver; além disso, aqueles que não foram
reabsorvidos na economia dos serviços ficaram desempregados,
subempregados ou casualizados325. É verdade que este último método reduz o
total de horas trabalhadas, mas aumenta muito a incerteza do emprego,
contradizendo assim o nosso bem básico de segurança. Por sua vez, a
estagnação de rendimentos produz um endividamento crescente, uma vez que o
desejo não saciado de consumo deixa de poder ser satisfeito com o rendimento
do trabalho.
Um aumento da parcela de serviços na economia é um desenvolvimento
natural para uma sociedade rica. Porém, o setor de serviços não deveria ser tão
desviado como é atualmente para a manutenção das necessidades da «riqueza
oligárquica». (Ver acima, pp. 58-59.) Na verdade, estamos a reverter
lentamente para as condições de tempos antigos, quando as sociedades estavam
divididas numa pequena classe de rentiers e numa grande classe de criados,
mas sem a estrutura hierárquica que tornou essa desigualdade de posição mais
agradável. Todos os que possuem bens substanciais poderão pagar os serviços
de todos os que são obrigados a trabalhar muitas horas por falta de bens –
motoristas, jardineiros, empregados domésticos, empregados de limpeza, amas,
tutores, treinadores, esteticistas, prestadores de cuidados, empregados de
balcão, empregados de mesa, etc. Neste tipo de sociedade, os serviços
superiores privadamente financiados para os ricos serão confrontados com
serviços inferiores financiados coletivamente para o resto da população.
Este resultado seria terrível para uma era de abundância. Como podemos
evitá-lo? Temos de reduzir a desigualdade de rendimento porque as horas
médias de trabalho só continuarão a cair se os rendimentos reais da maioria
forem aumentados relativamente aos que são agora desfrutados por uma
minoria. No Reino Unido e nos EUA, o fosso entre os rendimentos de topo e
medianos aumentou drasticamente. Devia ser feito um esforço sustentado para
subir a parte do rendimento recebido por professores, médicos, enfermeiros e
outros funcionários do setor público. Isto exigirá uma taxa de tributação mais
elevada, e por esse motivo encontrará mais resistência política do que em
países que começam com uma distribuição de rendimento mais igual.
Mas isto não é suficiente. Também há a questão da desigualdade de poder no
local de trabalho, realçada por Juliet Schor (ver acima, pp. 55-56). Isto permite
que os patrões ditem os termos e condições de trabalho, para além da
remuneração dos seus empregados. É mais lucrativo para os patrões trabalhar
mais horas com um número menor de funcionários do que dividir o trabalho
por um maior número de pessoas. O resultado é que o mercado de trabalho está
dividido entre os que são obrigados a trabalhar mais horas do que querem e os
que não conseguem arranjar trabalho suficiente.
Combater o poder do patrão relativamente aos termos e condições de
emprego implicará uma série de abordagens distintas. O passo mais simples
seria legislar no sentido de uma redução progressiva das horas de trabalho,
limitando as horas semanais e/ou aumentando os tempos de férias obrigatórias.
Não há nada de novo nisto: as horas de trabalho têm sido controladas desde as
Factory Acts do princípio do século XIX. Hoje em dia, estão limitadas a 48
horas semanais pela Diretiva Europeia de Tempo de Trabalho (embora no
Reino Unido trabalhadores individuais possam recusar esta restrição), e foram
limitadas a 35 horas semanais pela legislação francesa em 2000. Seria
preferível estabelecer um máximo de horas de trabalho na maioria das
ocupações e permitir exceções para todas as pessoas que estão fora desse
âmbito: autoemprego, sociedades, empresas familiares e pequenas empresas.
Numa estrutura desse tipo, patrões e empregados poderiam negociar
reformas flexíveis e acordos de partilha de trabalho. A partilha de trabalho foi
sempre evitada pelos economistas por tresandar à falácia da «quantidade fixa
de trabalho»: a ideia de que há apenas uma determinada quantidade de trabalho
para fazer e que devia ser partilhada entre todas as pessoas que querem
trabalhar. Esta objeção é decisiva se o objetivo da política económica for
maximizar o crescimento. No entanto, se o crescimento for abandonado como
principal objetivo de política, a partilha de trabalho é a forma civilizada de
provocar um equilíbrio entre a procura e a oferta de trabalho, num mundo em
que a automação está a reduzir a procura de postos de trabalho na indústria. A
partilha de trabalho também pode ser implementada em empregos menos bem
pagos no setor dos serviços, mas precisará do apoio de medidas adicionais.
Não existe motivo para que uma redução geral nas horas de trabalho
provoque uma queda nos salários da maioria das pessoas. Os holandeses, por
exemplo (ver p. 42), trabalham menos horas do que os britânicos, mas têm um
rendimento médio per capita mais elevado (42 mil dólares contra 36 mil
dólares), com uma distribuição mais igual de riqueza e rendimento. A
produtividade até pode subir quando os trabalhadores se empenham mais nas
menos horas trabalhadas, ou os patrões melhoram a organização do trabalho.
Isto parece ter acontecido em lugares onde a experiência foi tentada. Não se
perdeu produção praticamente nenhuma nos dois meses em que Edward Heath
pôs a Grã-Bretanha numa semana de três dias em 1974. Na década de 1980, a
Volkswagen reduziu a sua semana de trabalho de 36 para 28,8 horas para evitar
o despedimento de 30 000 trabalhadores: de facto, as suas reorganizações nas
fábricas aumentaram a produtividade. Menos horas de trabalho significa que as
fábricas podem ter mais turnos, aumentando as horas de funcionamento mesmo
quando as horas de trabalho dos funcionários são reduzidas e baixando, assim,
os custos unitários326. Esquemas semelhantes foram introduzidos noutras
regiões da Europa nas décadas de 1980 e 1990 para compensar a grande
«redução dos números de efetivos» na indústria. Ainda estão em
funcionamento e as provas sugerem que se revelaram eficazes, não apenas a
reduzir o tempo de trabalho, mas também a equilibrar as desigualdades de
salário entre empregados a tempo inteiro e a tempo parcial (como acontece nos
Estados Unidos), e até aumentando a produtividade327.
Além disso, há muitas provas de que, se puderem e se a quebra de
rendimento não for demasiado grande, as pessoas estão dispostas a trocar
rendimento por lazer. Uma lei dinamarquesa de 1993 reconhece o direito de as
pessoas trabalharem intermitentemente, ao mesmo tempo que garante o seu
direito a um rendimento contínuo. Isto permite uma forma inventiva de partilha
de trabalho. Os funcionários podem optar por um ano «sabático» de quatro em
quatro anos ou de sete em sete anos, que pode ser dividido em períodos mais
curtos. Durante o período de licença, as pessoas desempregadas ocupam o
lugar das que estão de licença e que, por seu lado, recebem 60% do salário. Os
sindicatos conseguiram usar esses direitos individuais, consagrados na lei, para
reduzir as horas de trabalho dos efetivos de empresas inteiras e aumentar,
assim, o número de empregos permanentes. Uma empresa aumentou o seu
número de funcionários em 10% garantindo que 10% estão sempre de licença.
Evidentemente, os trabalhadores que optam por trabalhar menos ganham
menos, mas a escolha é deles. O sucesso do plano dinamarquês é a prova de
que muitos trabalhadores, ao contrário dos economistas, não equacionam os
padrões de vida com o rendimento per capita. O rendimento aumenta o valor
do lazer, mas não o abrange.
Apesar dos seus encantos, estes planos de partilha de trabalho não são
possíveis para muitos trabalhadores com salários baixos, que precisam do seu
rendimento do trabalho a tempo inteiro. Esses trabalhadores teriam de ser
colocados numa posição em que poderiam dar-se ao luxo de trabalhar menos. É
neste contexto que a ideia de um rendimento básico, independente de qualquer
obrigação de trabalho, se torna apelativo.

O rendimento básico

«Rendimento básico é um rendimento pago pelo Estado a cada elemento de


pleno direito ou residente acreditado de uma sociedade, quer a pessoa queira ou
não ter um trabalho remunerado, quer seja rica ou pobre, por outras palavras,
independentemente de quaisquer outras fontes de rendimento que essa pessoa
possa ter e independentemente do tipo de coabitação na esfera doméstica.»328
O rendimento básico tem de ser distinguido do «rendimento mínimo», cujo
objetivo é impedir que os rendimentos caiam abaixo do que é considerado a
«linha de pobreza». O rendimento mínimo está sujeito à prova de recursos e
está ligado ao mercado laboral, quer através do requisito de que o beneficiário
tem de procurar ativamente emprego (no Reino Unido, o subsídio de
desemprego foi rebatizado com a designação de «ajuda para quem procura
emprego»), quer sendo usado para complementar salários excecionalmente
baixos. Em contraste, o rendimento básico é um pagamento incondicional a
todos os cidadãos, idealmente a um nível suficientemente alto para lhes
permitir uma escolha genuína de quanto querem trabalhar.
Os planos de rendimento básico – ou planos de rendimento de cidadãos,
como são por vezes chamados – têm uma história muito longa. Podemos
localizá-los em Hobbes no século XVII, em Tom Paine no século XVIII, nos
seguidores de Charles Fourier no século XIX (favoravelmente mencionado por
John Stuart Mill) e em escritores americanos na tradição de Jefferson. Em
épocas mais recentes, foram defendidos por quakers e socialistas, bem como
por James Meade, Samuel Brittan e André Gorz, entre outros329. Em 1943, a
política liberal Lady Rhys Williams propôs um «dividendo social» que seria
pago a todas as famílias independentemente do rendimento e seria financiado
por impostos sobre o rendimento, com o dividendo a aumentar em linha com o
rendimento nacional. Propostas mais recentes, como o «imposto negativo» de
rendimento de Milton Friedman – um único pagamento em numerário a todos
os rendimentos que estivessem abaixo de um determinado patamar – foram
vistas como uma forma barata de proporcionar segurança social330. Também foi
promovido um mecanismo chamado «rendimento básico» como uma forma de
aumentar os salários quando o salário de equilíbrio no mercado caísse abaixo
da subsistência, e sob esta forma foi vastamente adotado como créditos fiscais.
A maior parte dos argumentos anteriores baseava-se em direitos, ou
prerrogativas, e um dos argumentos típicos era que cada cidadão tinha direito a
um quinhão do património da nação – a sua reserva de bens, naturais ou
herdados – como forma de compensação pelo ato original da espoliação de
propriedade. Também houve um reconhecimento do valor da independência e
do lazer.
Na sua forma pura de uma garantia incondicional de rendimento para todos,
o rendimento básico foi sempre vítima de duas objeções; a primeira foi que
seria um elemento dissuasor do trabalho e a segunda que a sociedade era
demasiado pobre para poder pagá-lo. Em resultado dessas objeções, os únicos
planos existentes de rendimento básico estão implementados em algumas
regiões como o Alasca e (parcialmente) os Emiratos Árabes Unidos, cuja
riqueza consiste em recursos naturais que são extraídos com pouca mão de obra
e que, por conseguinte, oferecem poucas oportunidades de emprego para os
seus cidadãos331.
Porém, estas duas objeções falham quando o problema não é de escassez,
mas de abundância, e o objetivo da política não é o de maximizar o
crescimento, mas garantir os bens básicos. Nesta situação, o objetivo é
precisamente reduzir o incentivo ao trabalho tornando o lazer mais atrativo;
além disso, uma sociedade rica pode ter cada vez mais os recursos necessários
para pagar um rendimento básico aos seus cidadãos. Um rendimento básico
incondicional tornaria o trabalho em tempo parcial uma possibilidade para
muitas pessoas que agora têm de trabalhar a tempo inteiro; também começaria
a dar a todos os trabalhadores a mesma escolha relativamente a quanto
trabalhar, e em que condições, que têm agora os detentores de um capital
substancial. Em 2005, Samuel Brittan estabeleceu a fundamentação lógica para
um rendimento básico em termos que nos agradam muito:

O objetivo de um rendimento básico é fazer de cada cidadão um rendeiro em pequena escala. A


propriedade privada e as rendas, tão denunciadas pelos marxistas, não são inerentemente más. O
problema é que muito poucas pessoas as têm (para além das suas próprias casas) com todos os
benefícios que elas proporcionam em termos de independência pessoal. Seguramente, na sociedade
melhor a que alguns de nós aspiram, as vantagens seriam mais amplas332.

Desconcertantemente, o que é chamado rendimento básico pode existir em


duas formas alternativas: uma dotação de capital ou um rendimento anual
garantido. É possível afirmar que, analiticamente são a mesma coisa, sendo a
dotação de capital meramente o valor descontado do seu rendimento futuro
esperado. Porém, a posse de capital proporciona uma escolha ao seu detentor:
ele pode «viver do rendimento» ou gastar o capital: comprar uma casa, criar
uma empresa, poupá-lo ou esbanjá-lo. Um rendimento garantido confere maior
segurança ao longo da vida; uma dotação de capital permite maior liberdade de
escolha. Em geral, preferimos a dotação de capital porque atingiria o objetivo
de permitir uma distribuição mais vasta dos bens disponíveis – e, assim, as
bases de respeito e personalidade. Todavia, como nenhum bem básico deveria
excluir outros, um plano de rendimento básico poderia consistir numa parte de
capital e numa parte de rendimento; ou, com a experiência, oferecer uma
seleção dos dois333.
O argumento de que um rendimento básico – um rendimento que coloque
todos os cidadãos acima da linha da pobreza – não é possível está a deixar de
ser verdadeiro nas sociedades ricas. Em Agathotopia (1989), o laureado com o
Prémio Nobel James Meade considerou que um rendimento de subsistência
para todos os cidadãos, igual ao subsídio de desemprego, seria financiado
através de uma combinação de impostos sobre o capital e lucros de fundos de
investimento estatais geridos por privados. Seria calculado para crescer em
linha com o produto nacional334. Outros sugerem que a venda de autorizações
de emissões poluentes, como créditos de carbono, baseadas no impacto
ambiental, seria suficiente para financiar um rendimento básico de 1500
dólares nos Estados Unidos335. Impostos sobre as transações financeiras –
conhecidas como taxas Tobin – são outra potencial fonte de receita. Em 2001,
dois professores americanos, Bruce Ackerman e Anne Alstott, implementaram
um plano com cálculo de custos para dotação de capital baseado num imposto
sobre a riqueza particular336. Um pequeno passo para uma dotação de capital
para todos foi o plano das «baby bonds» de Gordon Brown, o Child Trust
Fund, que criou quando foi ministro das Finanças em 2001. Isto deveria ter
proporcionado um título de crédito livre de impostos no valor de até 800 libras
para cada criança recém-nascida337. Podia ter-se tornado parte de um plano
muito maior que reuniria receitas de impostos da segurança social, impostos de
capital e de transações e lucros de fundos de investimento estatais. O governo
de coligação aboliu-o em 2010 como parte dos seus cortes.
Diz-se frequentemente que os dois tipos de planos de receita básica só
serviriam para encorajar a preguiça e a devassidão. Um rendimento anual
garantido transformaria uma grande parte da população adulta em dependentes
do Estado, letárgicos e desmoralizados. Uma dotação de capital, atribuída a
miúdos irresponsáveis de 18 anos, evaporar-se-ia rapidamente em drogas e
roupas de marca, deixando os seus beneficiários na mesma situação em que
estavam antes ou até pior.
Esses riscos não são insignificantes. No entanto, há duas possibilidades mais
otimistas. A primeira diz respeito a uma dotação de capital. Não há motivo para
que os beneficiários da quantia paga de uma só vez sejam piores a conservar o
seu capital do que qualquer herdeiro, especialmente porque a dotação não será
uma sorte isolada (como ganhar a lotaria), mas parte de um contrato social. É
claro que muitas crianças com pais ricos desbarataram ou perderam ao jogo as
suas heranças. No entanto, ao longo de gerações os ricos foram extremamente
bem-sucedidos a manter as suas fortunas. E não fizeram isso inteiramente sem
ajuda. Heranças foram ligadas de várias formas, por exemplo em consórcios,
que limitam a capacidade dos herdeiros para aliená-las. Os mesmos princípios
de restrição podem ser aplicados às muito mais modestas dotações dos
cidadãos. O risco de serem «estouradas» em vidas desregradas pode ser
reduzido através da limitação do seu gasto a fins aprovados (como educação) e
aumentando a idade de recebimento para os 30 anos ou mais, como acontece
agora com heranças normais.
Em segundo lugar, podíamos tentar educar as pessoas para o lazer.
Atualmente, a educação pretende preparar os estudantes para o mercado laboral
proporcionando-lhes unicamente conhecimentos e capacidades úteis. No
futuro, prevemos que a educação será inspirada pelo conhecimento de que a
parte da vida que uma pessoa dedica ao «trabalho» será uma fração decrescente
das horas que passa acordada, e que uma das suas principais tarefas será
preparar as pessoas para a vida de realização fora do mercado laboral. Escolas
mais independentes, que educam as pessoas ricas, compreendem a importância
da educação para o lazer e oferecem aos seus alunos um currículo bastante
abrangente, mas as escolas estatais foram-se tornando cada vez mais utilitárias.
É necessária uma mudança drástica no ethos (e um aumento no financiamento)
da educação estatal se as sociedades ricas querem evitar preparar a minoria
para a boa vida e a maioria para uma vida de trabalho excessivo. No passado,
os economistas faziam parte de um grupo mais vasto de pensadores que
defendiam que o aumento de rendimentos precisava de educação para que as
pessoas vivessem a vida boa. Só posteriormente é que o sistema económico
abandonou esta ambição e começou a pensar nas escolas unicamente como
tapetes rolantes de capital humano338.
Os planos de rendimento básico não fariam com que as pessoas deixassem de
trabalhar – no sentido agora compreendido – tanto tempo e tão duramente
como quisessem em empregos isentos da regulação de horas. Sem dúvida,
muitas pessoas usariam o seu rendimento básico meramente para
complementar vencimentos de horas existentes de trabalho remunerado. Mas as
pessoas que quisessem passar mais tempo em atividades não remuneradas – e,
como vimos no Capítulo 1, muitas pessoas querem – teriam a opção de o fazer.
E as pessoas que quisessem passar de um trabalho aborrecido, mas
remunerado, para um trabalho mais satisfatório e menos remunerado – de
agente imobiliário para artesão, por exemplo – também teriam essa hipótese de
escolha. (O rendimento básico, na frase de Frithjof Bergmann, «libertaria o
trabalho da tirania do emprego»339.) Na nossa opinião, estas duas opções
constituem um ganho no lazer – em atividade espontânea, dirigida para a
pessoa – e são, por conseguinte, bem-vindas. Porém, são apenas uma parte de
um conjunto mais vasto de políticas destinadas a orientar as pessoas para a vida
boa.

Reduzir a Pressão para Consumir

Reduzir a pressão para consumir é uma forma importante de reduzir a


pressão para trabalhar, porque trabalhamos essencialmente para consumir; por
isso, quanto menos quisermos consumir, menos quereremos trabalhar. No
entanto, a nossa sociedade promove um consumo conspícuo e extravagante,
mesmo por aqueles que não podem pagar. Esta é uma razão importante para os
novos-ricos já não serem «ociosos».
No dia 5 de setembro de 2011, um jornal de Londres publicou a notícia de
que um grupo de ocupas tinha ocupado a casa de um neurologista de Harley
Street. O neurologista declarou que começou sem vantagens na vida e estava a
trabalhar 60 horas por semana para poder pagar a hipoteca de 90% da sua «casa
de sonho» de um milhão de libras. Esta é a descrição perfeita da civilização
capitalista moderna. Os ricos hipotecam o seu futuro em troca de sonhos – e os
pobres vingam-se. Quanto precisa de ganhar o nosso neurologista antes de
impostos para pagar os juros e o capital da sua hipoteca de 900 mil libras?
Dependendo das condições e do prazo do empréstimo, poderia ser algo na
ordem das 200 mil libras por ano. E o trabalho em excesso continuará. Uma
casa assim e a família que ela conterá – a mulher do neurologista estava à
espera de bebé – têm uma manutenção muito dispendiosa. Haverá um ou dois
empregados, uma ama, um treinador (para o manter em forma para as 60
horas!), equipamentos dispendiosos, férias e roupas e, a pairar acima de tudo,
as despesas de colégios privados para, provavelmente, dois filhos. Porque é que
são necessárias? Seguramente, porque são o tipo de despesas esperadas para os
profissionais no escalão de rendimentos do neurologista. No entanto, há um
inconveniente. Uma casa de 1 milhão de libras coloca o nosso neurologista nas
fileiras dos jovens de sucesso, não dos idosos de sucesso. Amigos ou
conhecidos mais velhos terão casas de 2 ou 3 milhões de libras – casas em
zonas mais exclusivas que poderão talvez gabar-se de ter piscinas na cave.
Sessenta horas de trabalho por semana poderão não ser suficientes. Assim, a
nossa forma de vida alimenta a nossa insaciabilidade e a nossa insaciabilidade
alimenta a nossa forma de vida.
O neurologista é um consumidor conspícuo. Porém, a necessidade de
consumir não está confinada a luxos. O capitalismo moderno inflama em cada
poro a fome do consumo. O consumo tornou-se o grande placebo da sociedade
moderna, a nossa recompensa falsa por trabalharmos um número absurdo de
horas. Os pais transmitem um «consumismo compulsivo» aos filhos enchendo-
os de brinquedos e aparelhos em vez de passarem tempo com eles340. É verdade
que muitas das inovações surgem no mercado para melhorar a qualidade de
vida das pessoas. No entanto, a maior parte dessas inovações fá-lo apenas
marginalmente, ao mesmo tempo que cria uma concorrência no consumo que
impede a diminuição das horas de trabalho. Uma das grandes queixas sobre o
capitalismo moderno é que produz demasiado trabalho e muito pouco lazer e as
coisas que lhe estão inerentes – amizade, passatempos, trabalho voluntário.
Então, o que pode o Estado fazer para reduzir a pressão para consumir?
O Estado já influencia a direção do consumo através dos impostos e de
outras políticas. Obriga as pessoas a pagarem impostos por serviços que não
querem, ou que prefeririam providenciar com os seus rendimentos (não
tributados), e priva-as de serviços que elas querem, como melhores escolas,
hospitais e transportes ferroviários. A influência do Estado no consumo é ainda
mais óbvia no caso dos bens de mérito, bens considerados bons para a
sociedade quer as pessoas queiram comprá-los quer não. Entre eles contam-se
almoços gratuitos nas escolas, subsídios para casas baratas e cuidados médicos
gratuitos para os pobres341. Outros exemplos de subvenções estatais são
galerias de arte, museus, salas de concertos, teatros e óperas. Também há a
categoria dos chamados bens de «demérito», como o fumo e a bebida, cujo
consumo se pensa que devia ser desencorajado. Sobre estes bens, os governos
impõem «taxas de pecado». Em ambos os casos o economista, com um
argumento sinuoso, pode afirmar que o governo está a agir em nome do
consumidor, ou pelo menos do seu eu «melhor». Assim, embora as pessoas não
queiram impostos sobre o tabaco, valorizam a sua saúde. De facto, o Estado
está a fazer um julgamento ético de que um determinado nível de provisão
desses bens é desejável ou indesejável. Só a nossa linguagem pública
empobrecida nega que o Estado tem de fazer julgamentos éticos sobre uma
grande variedade de assuntos.
No Capítulo 1, identificámos um desejo insaciável de consumir cada vez
mais, um desejo proveniente em grande parte do papel do consumo como um
definidor de prestígio. Acima de um determinado nível económico, a maior
parte do rendimento é gasto em artigos que não são necessários num sentido
absoluto e servem para distinguir os seus possuidores como superiores, ou pelo
menos não inferiores, aos outros. Esses artigos têm de ser sempre dispendiosos
relativamente ao nível médio, caso contrário não podem cumprir a sua função
diferenciadora; assim, os rendimentos são obrigados a subir competitivamente
para os adquirir. O mesmo é verdade em relação a alguns bens desejados cuja
oferta é fixa: é por isso que os preços dos Velhos Mestres sobem para preços
cada vez mais estratosféricos. Esta espiral de consumo competitivo mantém as
horas de trabalho longas e frustra, assim, o bem básico do lazer. Ao forçar as
pessoas a terem relações competitivas umas com as outras, também prejudica
os bens básicos da amizade, personalidade e segurança.
O método tradicional de reduzir os gastos competitivos foi a lei sumptuária,
que proibiu diversas formas de consumo conspícuo. As «leis de Sólon», as leis
atenienses que remontam ao século VI a. C., limitaram o tamanho das
procissões fúnebres e o valor da comida que podia ser servida durante os
funerais. Também havia regras que restringiam o valor dos dotes e presentes e
regulavam os preparativos dos casamentos. A primeira lei sumptuária romana
centrou-se de forma semelhante na extravagância e ostentação nos eventos
familiares, restringindo, por exemplo, o tamanho dos mausoléus e das refeições
servidas nos funerais. Em períodos subsequentes, a atenção passou dos
casamentos e funerais para o consumo conspícuo de alimentos. Ao concentrar
as suas restrições em artigos de consumo luxuosos, a lei sumptuária foi bem
adaptada para prevenir a escalada competitiva dos desejos, embora esta não
fosse a sua intenção principal.
A lei sumptuária baseava-se em argumentos morais e económicos. Apoiava-
se na opinião universal de que o luxo era um mal moral. O vício do luxo
contrastava com as virtudes da frugalidade e da coragem. Rousseau disse-o
sem rodeios: «O luxo é diametralmente oposto à boa moral.» O luxo não era
apenas socialmente divisor, mas, como debilitava a aristocracia, diminuía a
virtude militar. No discurso económico, «extravagância» implicava que os
recursos económicos estavam a ser desviados de utilizações produtivas; nas
sociedades em que a escassez era uma realidade constante, o desperdício estava
associado a carestia, fome e ruína. Nos séculos XVII e XVIII, a lei sumptuária,
dirigida contra a importação de luxos, fazia parte da regulação da balança
comercial do Estado mercantil342. Em períodos posteriores, a proibição
terminante deu lugar a taxas semelhantes às taxas de pecado descritas
anteriormente, mas abrangendo mais itens.
A deterioração da legislação sumptuária segue de perto o caminho do luxo
para a aceitabilidade, como foi descrito no pacto faustiano do Capítulo 2. Foi
Mandeville quem primeiro defendeu que o luxo alimentava a prosperidade
económica, descrevendo o luxo como «a sala das máquinas da imaginação e da
inovação»343. Todavia, até ele reconheceu que continuava a ser um vício
privado, embora também fosse um benefício público. A abolição da lei
sumptuária também foi uma consequência da convicção de que o consumo
poderia, sem grande risco, ser deixado ao critério individual. Adam Smith
pensava que a «frugalidade» fazia parte do egoísmo e que as leis que limitavam
os gastos luxuosos eram, por conseguinte, desnecessárias344. O que ele não
conseguiu prever foi que, nas sociedades ricas, o gasto competitivo em luxos
anteriormente confinados aos muito ricos tornar-se-ia universal, resultando no
adiamento interminável da abundância. Este estado de coisas sugere uma nova
base racional para a legislação sumptuária.
Numa economia dinâmica, a proibição ou tributação de determinados bens é
ineficaz e arbitrária, pois os indivíduos determinados a exibir a sua riqueza
podem sempre encontrar formas alternativas de o fazer. No entanto, esta
objeção não se aplica a um imposto geral sobre o consumo. Os impostos sobre
o consumo (ou, mais corretamente, a despesa) foram propostos por Nicholas
Kaldor em 1955 e por James Meade em 1978, acima de tudo como um
dispositivo macroeconómico para reduzir o consumo privado e aumentar a
poupança e o investimento privados em situação de pleno emprego. Kaldor
escreveu que o objetivo de um imposto sobre o consumo «é limitar a procura
de consumo à fração de recursos naturais que a comunidade, a agir por
intermédio do governo, desejou dedicar a esse objetivo»345. Kaldor usou um
argumento que remonta a Hobbes: o consumo faz-se à custa do crescimento a
longo prazo, ao passo que trabalhar e poupar promovem o crescimento346.
Logo, os gastos das pessoas deviam ser taxados, não os seus rendimentos. Que
o imposto deveria ser progressivo derivou de um julgamento político a favor de
uma maior igualdade económica e social347 e do seu objetivo económico de
«obrigar os rendeiros ricos a poupar e investir e não a dedicarem-se a um
consumo conspícuo»348. (Na Índia, onde o imposto de Kaldor foi parcialmente
aplicado na década de 1950, chamava-se «imposto dos marajás»349.)
O imposto sobre o consumo teve distintos apoiantes antes de Kaldor,
incluindo John Stuart Mill, mas foi sempre rejeitado como impraticável, pois
parecia exigir que as pessoas mantivessem um registo de tudo o que gastavam.
Em 1937, o economista americano Irving Fisher referiu que não era assim; o
consumo podia ser calculado como a diferença entre as entradas e saídas de
dinheiro. Tudo o que a autoridade tributária precisava de saber era o
rendimento anual da pessoa, a quantidade poupada/investida e tributar a
diferença350. Haveria um patamar de isenção para proteger os pobres.
O economista Robert Frank recuperou a proposta de Kaldor, não para
promover crescimento, que era o objetivo de Kaldor, mas para conter o
«consumo»351. «O gasto descontrolado no topo […]», escreve Frank, «deu
origem a uma febre de luxo que […] nos aprisiona a todos.»352 Quanto mais
conspícuo for o consumo dos ricos, maior será a escada rolante dos gastos
emulativos. O consumo conspícuo também desvia recursos do «consumo
discreto»: «liberdade da congestão de tráfego, tempo com a família e com os
amigos, tempo de férias, uma série de características de emprego favoráveis
[…] melhor qualidade do ar, mais parques urbanos […] água potável mais pura
[…] diminuição do crime violento […] investigação médica»353. A lista de
«bens discretos» de Frank não é idêntica à nossa lista de bens básicos, mas o
pensamento é o mesmo: o capitalismo tal como é praticado hoje em dia
desequilibra o consumo a favor dos insaciáveis. Os preços de bens comprados
pelos ricos fazem subir todos os preços graças aos efeitos snobes, de onda e
Veblen, levando por conseguinte pessoas a todos os níveis a trabalhar mais do
que trabalhariam para não ficarem atrás dos seus vizinhos.
Na proposta de Frank, todos os gastos acima de 7500 dólares por pessoa
seriam sujeitos a um escalão crescente de imposto. Quanto maior fosse o valor
do consumo de um indivíduo, mais elevado seria o seu escalão de imposto,
culminando numa taxa marginal máxima de 70%. Os impostos mais pesados
recairiam sobre o consumo de luxo dos ricos, os únicos que teriam rendimentos
suficientemente grandes para satisfazer todos os seus desejos354. Mesmo que a
substituição total do imposto sobre o rendimento por um imposto sobre o
consumo se revele impraticável355, um imposto sobre o consumo seria uma
forma de aumentar a taxa marginal de tributação se a resistência política
impedir os governos de subir o imposto sobre o rendimento. Isto teria um efeito
muito semelhante ao de um imposto sobre o consumo total na restrição do
consumo conspícuo, reduzindo o rendimento (e, assim, o trabalho) necessário
para sustentar a insaciabilidade. Como Keynes referiu noutro contexto, «o jogo
pode ser jogado com apostas mais baixas»356.
Kaldor queria um imposto que isentasse a poupança para encorajar um
crescimento mais rápido. Este fator não tem tanto peso nas condições atuais de
riqueza. Porém, um incentivo acrescido para poupar também poderia ser
necessário para financiar o período aumentado de reforma. O imposto sobre o
consumo podia ser estabelecido em níveis necessários para produzir poupança
pública e privada suficiente para financiar uma reforma confortável para todos,
realizando assim os dois bens básicos de respeito e segurança. Dessa forma, um
imposto progressivo sobre o consumo teria duas vantagens relativamente a um
imposto progressivo sobre o rendimento: reduziria a competição posicional no
consumo e aumentaria a poupança para a reforma. Também poderia ser usado
como uma fonte de financiamento para o rendimento básico.
Por si só, não reduziria o amor pelo dinheiro em si. Isto é muito claramente
exibido na indústria de serviços financeiros em constante expansão, a
verdadeira impulsionadora do capitalismo contemporâneo e a fonte mais
flagrante de enriquecimento pessoal e empresarial. Adair Turner, antigo
presidente da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido, considerou
a maioria das inovações financeiras «socialmente inúteis»357. Do nosso ponto
de vista, é pior do que isso. É uma causa da insaciabilidade que procuramos
controlar. Uma forma de travar o setor financeiro seria tributar as transações de
instrumentos financeiros como derivativos. Essas «taxas Tobin» serviriam para
reduzir o poder da finança de ditar a atividade económica e para proporcionar
receita para fins socialmente desejáveis de despesa pública.

Reduzir a Publicidade

A pressão para consumir é inflamada pela publicidade. Diz-se muitas vezes


que o único efeito da publicidade é ajudar as pessoas a obter o que desejam.
Mesmo que isto fosse verdadeiro, não satisfaria o nosso objetivo, que é o de
que as pessoas deveriam acima de tudo obter o que precisam, não o que
desejam. Mas em todo o caso não é verdade que a publicidade se limita a
ajudar as pessoas a obter o que desejam.
Como sempre, o economista lança uma luz forte, mas enganadora, sobre uma
questão complexa. A sua descrição do papel da publicidade baseia-se na
doutrina da soberania do consumidor. Decisões relativamente ao que comprar
são feitas por consumidores racionais que maximizam as suas utilidades nos
mercados competitivos. Neste modelo, não há margem para a publicidade
alterar preferências porque o consumidor já tem uma «função de utilidade»
bem definida. O único papel da publicidade é informativo: esclarecer o
consumidor sobre um produto, a sua qualidade e o seu preço, para que ele
possa fazer escolhas mais informadas. A lei só é necessária para proteger as
crianças e impedir a fraude. Todas as opiniões benignas da publicidade – e
existem muitas versões complicadas – são essencialmente variações sobre este
tema. De uma forma ou de outra, os anúncios publicitários ajudam
simplesmente o consumidor a obter o que deseja. Não pode haver «consumo
excessivo» de bens de qualquer tipo, já que, por definição, um bem é
simplesmente alguma coisa que um consumidor quer comprar358.
Em tempos, esta opinião «informativa» da publicidade teve alguma
plausibilidade – os anúncios publicitários do princípio do século XX tendiam a
estar repletos de factos –, mas está cada vez mais desfasada da realidade. Hoje,
a maior parte da publicidade não contém informações praticamente nenhumas;
o seu objetivo é criar uma atmosfera à volta do produto, aumentar o seu
encanto e atração, em suma, fazer-nos querer alguma coisa que de outra forma
não quereríamos. Vejamos o exemplo da extremamente bem-sucedida
campanha publicitária do iPod em 2003, com silhuetas a dançar extaticamente
contra um fundo fortemente colorido. Podemos duvidar de que o seu objetivo
era evocar sensações e não transmitir informações?
Confrontados com estes factos, os economistas só mantêm a sua opinião
otimista da publicidade com a ajuda de diversos subterfúgios. Diz-se, por
exemplo, que todos os anúncios publicitários, até os não informativos,
informam o consumidor pelo menos relativamente a uma coisa: que a empresa
que o comercializa se importa o suficiente com a reputação da marca para
gastar dinheiro a publicitá-la. Outra teoria defende que a publicidade aumenta o
valor do produto ao reforçar a sua imagem. (A pessoa compra não só um
Renault, mas também o estilo que lhe está associado.) O mais engenhoso de
todos é o argumento de Gary Becker e Kevin Murphy, que afirmam que mesmo
que as preferências dos consumidores sejam alteradas pela publicidade, isto só
acontece porque eles têm uma preferência anterior – uma metapreferência, se
quiserem – para alterarem as suas preferências. Isto não tem nada de sinistro,
não é pior do que a compra de um lápis aumentar o nosso desejo por um apara-
lápis. É claro que, ao contrário dos lápis, os anúncios publicitários não são
regra geral procurados; eles até podem – reconhecem Becker e Murphy de um
modo que desarma – «produzir ansiedade e depressão, fomentar sentimentos de
inveja perante o sucesso e felicidade dos outros e desencadear culpa para pais
ou filhos»359. É por isso que a publicidade está geralmente inserida em artigos
ou programas de televisão agradáveis: para compensar o público pela
desutilidade de lê-los ou vê-los. Não obstante, o facto de as pessoas verem
voluntariamente anúncios publicitários sugere que eles deviam ser
considerados «complementos» de outros bens, não causadores de uma
mudança de gostos. A Internet levou a peito a teoria dos «complementos»,
atraindo os seus utilizadores com toda uma gama de produtos semelhantes aos
que eles já encomendaram.
Todas essas teorias neoclássicas da publicidade refletem uma opinião de um
mundo em que as pessoas vêm para o mercado com preferências definidas, que
procuram satisfazer ao máximo. Elas fecham os olhos à forma como o mercado
molda as preferências que afirma satisfazer. A tradição marxista, com as suas
raízes hegelianas, tem um sentido mais apurado do carácter relacional dinâmico
dos desejos humanos – ou «necessidades», como são normalmente chamadas.
«Uma necessidade», escreveu Hegel, «é […] criada não tanto pelos que a
experimentam diretamente, mas pelos que procuram lucrar com o seu
surgimento.»360 Este pensamento tornou-se a base da crítica ao consumo de
Marcuse examinada no Capítulo 2 e também do livro The New Industrial State
(1967) de J. K. Galbraith, que defendia que são os produtores, não os
consumidores, que iniciam o processo de produção, condicionando as
necessidades dos consumidores ao que produzem. Stanley Resor, presidente da
maior agência de publicidade dos Estados Unidos na década de 1950,
concordou. Os consumidores, escreveu

não sentem necessidade de um segundo carro a menos que lhes recordemos energicamente esse facto.
Esta necessidade tem de ser criada nas suas mentes e nós temos de os levar a perceber as vantagens que
um segundo carro lhes trará. Por vezes, eles até encaram a ideia com hostilidade. Eu vejo a publicidade
como a força educativa e ativadora capaz de provocar as mudanças de que necessitamos na procura.
Ao ensinar a muitas pessoas um padrão de vida mais elevado, aumenta o consumo para um nível
proporcional à nossa produtividade e recursos361.

Se a publicidade inflama a nossa tendência para a insaciabilidade, temos


bons motivos para restringi-la. Já estão implementados vários controlos à
publicidade, com respeito a «bens de pecado» e crianças em especial. Por
exemplo, a Suécia e a Noruega proíbem a publicidade de qualquer tipo durante
o período em que as emissões televisivas são dedicadas às crianças, bem como
quaisquer anúncios publicitários especificamente destinados a crianças com
menos de 12 anos. Muitos países europeus reduzem o encanto da televisão para
os anunciantes insistindo que os anúncios devem estar «agrupados» em
formatos de revista no início e no fim dos programas, para que o espectador
possa evitá-los completamente. Infelizmente, na Grã-Bretanha a tendência
generalizada das últimas duas décadas tem sido diminuir e não aumentar as
restrições à publicidade. A proibição da publicidade de solicitadores foi
levantada em 1984, levando a um crescimento dos pedidos de indemnização ao
estilo americano. A proibição da apresentação de produtos em programas de
televisão – mostrando o homem ou a mulher a usar o produto da marca do
patrocinador do programa – foi levantada em 2011; os seus efeitos ainda não se
fizeram sentir.
Restrições à publicidade também podem ser justificadas em nome da
proteção do consumidor. Muito consumo é ruinoso no sentido em que as
pessoas compram produtos cujas qualidades desconhecem ou sobre as quais
estão mal informadas: os produtos não funcionam ou não fazem o trabalho para
que foram comprados. Quando isso acontece, os produtos têm de ser rejeitados
ou os consumidores têm de procurar compensação, o que envolve muitas vezes
uma litigação dispendiosa. (Isto aplica-se a produtos financeiros e também a
bens de consumo.) Seria melhor tentar impedir este tipo de desperdício
exigindo que todos os anúncios publicitários incluíssem avisos de saúde em
destaque, como é atualmente obrigatório para os cigarros. Caveat emptor – o
risco é do comprador!
Uma reforma tributária cortaria pela raiz a cultura da publicidade: proibindo
as empresas de incluir a publicidade como uma despesa de negócio362. As
empresas teriam de avaliar se o benefício esperado com a publicidade do seu
produto excederia o custo de pagar o imposto. As empresas que fazem
publicidade poderiam ter de subir os preços dos seus produtos e serviços, mas
isto teria o resultado desejável de reduzir as suas vendas. Os bens essenciais
precisam de pouca publicidade, por isso os bens mais afetados seriam aqueles
com o elo mais fraco às necessidades. Um imposto desse tipo prejudicaria o
financiamento da televisão comercial, que recebe atualmente 49% da sua
receita a nível mundial da publicidade. Isto significa que mais dinheiro teria de
vir de taxas de subscrição (atualmente, 42%), ou de taxas de licença de
televisão e financiamento público, que pagam agora a parte (cada vez mais
pequena) de emissão de serviço público. A publicidade na Internet poderia ser
tributada da mesma forma.
As medidas sugeridas acima para reduzir a pressão para trabalhar, consumir e
acumular riqueza não estão isentas de problemas. São indicações de direção,
não projetos de legislação. São paternalistas, mas não coercivas. Têm o
objetivo de orientar as sociedades para a vida boa, não impô-la à força.

Implicações internacionais

Temos de voltar às «Possibilidades Económicas» de Keynes uma última vez.


Ele escreveu: «Será razoável ser economicamente vantajoso para os outros
depois de ter deixado de ser razoável para si mesmo.» Os «outros» referem-se
neste caso, explica ele, a «classes e grupos de pessoas». Os primeiros podem
ser interpretados bastante naturalmente como os pobres num determinado país,
mas «grupos de pessoas» não implica um limite geográfico363. É nosso dever
ajudar os pobres, sejam eles quem forem.
No seu ensaio, Keynes não dedicou uma atenção específica ao mundo em
desenvolvimento. Na verdade, a ideia de desenvolvimento quase não existia.
Algumas partes do mundo eram mais ricas do que outras, do mesmo modo que,
na Grã-Bretanha, alguns grupos eram mais ricos do que outros. Keynes
acreditava que as regiões mais pobres do mundo depressa chegariam ao nível
das regiões mais ricas, convergindo com elas num ponto de saciedade. Não
pensou que os países ricos descolariam dos países pobres assim como não
pensou que os ricos descolariam dos pobres no seu país.
Isto veio a revelar-se um erro enorme. Embora algumas economias asiáticas
tenham alcançado ou estejam a alcançar o Ocidente, um quarto da população
mundial mantém-se atolada na pobreza. Keynes não conseguiu antecipar a
explosão populacional a nível mundial. Também partiu do princípio de que o
progresso de capital e tecnológico seriam rapidamente difundidos pelo mundo
inteiro através da ação conjunta do colonialismo e da economia liberal. Quase
todos os países pobres do mundo eram dependências coloniais de países ricos e
a ideia exploradora de imperialismo estava a dar lugar a uma noção de
«curadoria», segundo a qual os senhores coloniais se encarregavam do
desenvolvimento político e económico das suas colónias. A forma económica
concreta deste projeto – pelo menos para a Grã-Bretanha – era manter um
mercado livre para a importação de bens e um mercado livre para a exportação
de capital. Os dois faziam muito sentido num mundo em que uma parte tinha
uma riqueza muito maior do que a outra. O capital fluía de regiões onde
abundava para regiões onde escasseava, para obter um lucro mais elevado; e a
política de importações livres – isto é, não tributadas – proporcionava àqueles
que pediam emprestado os meios para pagar os juros e o capital em dívida. Nos
países ricos havia já quem se queixasse de que a exportação de capital era feita
à custa do seu próprio desenvolvimento; que a importação livre estava a
destruir empregos. Mas, globalmente, a troca entre países ricos e países pobres
era complementar, não competitiva. Os países ricos exportavam bens
industriais e os países pobres exportavam produtos alimentares e matérias-
primas.
Em 1930, a pensar nestes termos e sem a perceção da bomba-relógio
populacional que estava para acontecer, Keynes imaginou não
despropositadamente que dali a 100 anos o mundo pobre teria «alcançado» o
mundo rico. Neste ponto, a lógica do comércio livre e da exportação de capital,
que é a lógica da escassez, tornar-se-ia redundante porque o mundo já teria
todos os bens de que necessitava. As pessoas estariam numa posição em que
poderiam escolher quanto queriam transacionar umas com as outras. O
comércio reverteria para o que Adam Smith o tinha considerado: uma questão
de vantagem «natural»364. A redistribuição global, sob a forma de políticas de
auxílio, mitigaria as desigualdades geográficas remanescentes.
O nosso ponto de partida é diferente: os países ricos atingiram o patamar da
sua «Felicidade», como Keynes previu que aconteceria, mas a maior parte do
resto do mundo continua preso na pobreza, em grande medida porque o
crescimento da população ultrapassou a acumulação de capital. Além disso, e
em conjunção com o crescimento descontrolado da população, o mundo
enfrenta a ameaça de uma escassez absoluta de recursos. Nessas circunstâncias,
como é que os países ricos deveriam conduzir as suas relações económicas com
países pobres?
Muitas pessoas temem a imigração porque acreditam que ela retirará
empregos aos atuais detentores de empregos. Na medida em que a política de
partilha de trabalho e do rendimento básico reduz a pressão para os cidadãos ou
residentes trabalharem, deveria ajudar a reduzir o medo de os imigrantes nos
tirarem os empregos. Por outro lado, o bem básico do respeito mútuo é mais
difícil de alcançar numa sociedade onde os cidadãos recebem um rendimento
básico e os imigrantes não. De facto, isto é o que acontece nos Emiratos Árabes
Unidos, um país que restringe o rendimento básico aos cidadãos e tem a maior
parte do seu trabalho feito por uma classe de servos composta por imigrantes
não naturais dos Emiratos, sem direitos de cidadania ou residência. Uma
abordagem comum às horas máximas, partilha de trabalho e rendimento básico
ajudariam a impedir a emergência de uma economia de dois níveis na União
Europeia, enquanto deixaria liberdade de circulação para a mão de obra.
Na época de Keynes, o comércio era amplamente complementar; agora, é
extremamente competitivo. Os capitalistas de países ricos têm estado a
deslocalizar o fabrico e alguns serviços para países pobres, onde a mão de obra
é muito mais barata. Esses bens e serviços mais baratos são depois importados
para países ricos. Nessas condições, o comércio livre pode ter como
consequência a deterioração dos empregos nos países ricos, uma vez que os
salários não podem ser suficientemente flexíveis para manter o pleno emprego
contínuo perante a concorrência dos salários baixos. E mesmo que os empregos
destruídos possam ser substituídos, mantém-se a questão de saber se os novos
empregos serão tão bons como os antigos. A deslocalização de empregos para a
China e para a Índia provocou a queda ou estagnação dos salários de muitos
trabalhadores ocidentais, apesar dos lucros do comércio365. Como o laureado
com o Prémio Nobel Paul Samuelson declarou numa entrevista, «poder
comprar produtos de mercearia 20% mais baratos no Wal-Mart não compensa
necessariamente a perda de salários» sofrida em resultado de esses produtos
serem fabricados na China366. Mesmo quando o comércio produz um excedente
de vencedores relativamente aos perdedores para que os vencedores possam,
em princípio, compensar os perdedores, não há garantia de que isso aconteça.
O comércio livre também não é necessariamente benéfico para os países
pobres. O maior problema é que os impede de proteger as suas indústrias
nascentes. O economista Erik Reinert afirma que «pode ser mais vantajoso ter
um setor industrial ineficiente do que não ter um setor industrial», e propõe um
acordo através do qual os países ricos podem proteger a sua agricultura (mas
estão proibidos de inundar os mercados mundiais com os seus excedentes)
enquanto os países pobres podem proteger os seus setores industriais e de
serviços. Isto replica as condições em que o desenvolvimento ocorreu ao longo
de centenas de anos, até ser erradicado pelo dogma do comércio livre367.
Nenhum país ficou rico num regime de comércio livre. Entraram no mercado
global com um ponto de partida de riqueza inicial, não de pobreza inicial. Nas
palavras de Ha-Joon Chang: «Com apenas algumas exceções, todos os países
ricos dos nossos tempos, incluindo a Grã-Bretanha e os Estados Unidos – os
supostos berços do comércio livre e do mercado livre – tornaram-se
suficientemente ricos através das combinações de protecionismo, subsídios e
outras políticas que aconselham agora os países em desenvolvimento a não
adotar.»368
Isto deixa a exportação de capital como a principal forma de conjugar os
interesses dos países ricos e dos países pobres. A teoria económica da corrente
dominante diz-nos que, para os ricos, a exportação de capital para os países
pobres oferece um lucro mais elevado do que o lucro interno e também devia
diminuir o custo de empréstimo para os pobres. Na realidade, uma grande parte
do capital tem um fluxo «ascendente» – de pobres para ricos – devido ao risco
de investir em países pobres que são politicamente instáveis, um risco que era
muito menos significativo no século XIX com as suas estruturas coloniais ou
quase coloniais. Os ditadores e os seus compinchas dos nossos tempos, com as
suas contas em bancos suíços, são apenas o exemplo mais flagrante da «fuga de
capitais» dos países pobres para os países ricos. Para tornar os movimentos
livres de capital mutuamente benéficos, seria necessária uma grande reforma
do sistema monetário mundial, bem como uma restrição dos fluxos de
«dinheiro quente». Além disso, se o comércio declinasse como uma proporção
do PIB mundial, parte da exportação de capital dos países ricos para os países
pobres, teria de ser feita sob forma de doações e não empréstimos, porque os
meios de reembolso em bens seriam restringidos e os lucros seriam baixos.
A conclusão que retiramos é que para satisfazer os requisitos da vida boa
teremos de recuar das margens mais distantes da integração económica, pelo
menos até a «convergência» se tornar um facto, não uma aspiração. Os países
desenvolvidos terão de se basear mais em fontes de produção internas para
satisfazer as suas necessidades; as economias de mercados em
desenvolvimento precisarão de abandonar os modelos de
importação/exportação que se baseiam na procura de consumo sempre
crescente dos países desenvolvidos. Se os países ricos se integrassem menos
com os países pobres, os países pobres poderiam beneficiar. Em todo o caso, o
nosso envolvimento ativo nas suas economias internas pararia sem os
prejudicar necessariamente a longo prazo. Porém, ainda teríamos de manter os
nossos mercados abertos para os países muito pobres de África. Isto pode ser
feito praticamente sem custos para nós. Toda a África subsariana tem uma
economia mais pequena do que a Bélgica.
Voltemos atrás um momento. No mundo de suficiência que Keynes
imaginou, as receitas de novo investimento têm tendência para cair para zero.
A poupança seria essencialmente para a velhice e para substituir equipamento
existente. Poderá haver alguns lucros no desenvolvimento de novos produtos.
No entanto, nestas condições, o principal incentivo de ser «economicamente
vantajoso para os outros depois de ter deixado de ser razoável para si mesmo»
seria ajudar os muito pobres do mundo a subirem para o nosso nível de
eficiência.
«Trabalhar para os pobres» não tem de assumir a forma de trabalho
tradicional remunerado. À medida que as satisfações do «velho Adam»
diminuem, poder-se-ia esperar que fossem substituídas por muitos tipos de
ambições que se enquadram no nosso domínio de «lazer». Um sacrifício
voluntário dos nossos confortos para ajudar os menos afortunados é
universalmente reconhecido como moralmente admirável. Mesmo hoje em dia,
cada vez mais pessoas encontram um escape natural para os seus instintos
generosos (e aventureiros) no serviço voluntário no seu país e no estrangeiro.
Ao despenderem esforço, experiência, capacidade e amor a ajudar os outros,
essas pessoas estão a sacrificar rendimento por lazer no nosso sentido. Estão a
viver a vida boa e a direcionar outros para ela.

Neste Capítulo, o nosso objetivo foi apresentar uma ideia geral de uma
organização social e económica que reflete a redução na quantidade de trabalho
necessária para atingir os requisitos materiais de bem-estar. Isto significou
abandonar a perspetiva da escassez integrada na economia que faz da eficiência
um ídolo. Em vez disso, perguntamos: Como é que uma sociedade que já tem
«o suficiente» poderia pensar na organização da sua vida coletiva? Em
consequência disso, defendemos condições para viver que transgridem alguns
dos planos económicos bem estabelecidos, divisados para estados de pobreza.
A base material da nossa versão atualizada das «Possibilidades Económicas»
de Keynes está enraizada na lógica que começou por dar origem às suas
possibilidades: a diminuição a longo prazo da procura de mão de obra
resultante dos melhoramentos contínuos na produtividade laboral. Podemos
usar isto em nosso benefício expandindo muito o domínio do trabalho
partilhado e do lazer – uma solução que foi adotada pelo menos por alguns
países europeus – ou continuar com o sistema anglo-americano de criação de
desejos impulsionado pela insaciabilidade, mantida à custa de uma insegurança
laboral e de uma desigualdade de rendimento cada vez maiores, e sem querer
saber do futuro da humanidade.
E quanto à possibilidade política de realizar a vida boa? Os marxistas,
sempre atentos às bases materiais da mudança política, afirmam que «a saída
do capitalismo já começou». O capitalismo criou o instrumento da sua
destruição sob a forma da tecnologia digital. O sociólogo André Gorz vê o
pirata digital como a «figura emblemática» da revolta contra a posse privada de
conhecimento, o líder de uma nova «ética anarcocomunista». Está criado o
cenário para a luta futura entre as elites digitais e o proletariado digital369.
Duvidamos que chegue a esse ponto. Se acontecer, as elites digitais devem
vencer, uma vez que encontrarão formas de privatizar o conhecimento. E
mesmo que o proletariado digital vença, que têm eles para colocar no lugar do
que destruírem? Sem uma ideia robusta da vida boa, os seus esforços serão em
vão, quer ganhem quer percam.
Este livro pretende ser um contributo para repensarmos o que queremos da
vida: para que serve o dinheiro e o que significa «a vida boa». Isto envolveu a
reanimação de ideias filosóficas e éticas que deixaram há muito de ser
apreciadas, mas que não estão de forma alguma extintas. Na verdade, as
pessoas estão bastante divididas em relação à sua ética. A maioria dos
banqueiros do centro financeiro de Londres admite que são excessivamente
bem pagos e que os médicos e os professores são mal pagos370. No entanto,
estão tão institucionalizados nas suas ocupações, como os presos no seu
encarceramento, que já não conseguem imaginar a vida fora dos habitats a que
estão acostumados. As pessoas que se esforçam para fazer o melhor possível no
sistema vigente poderão não obstante aspirar a viver num sistema melhor. Este
livro é uma tentativa de ajudá-las a encontrar um.
O nosso compromisso com a personalidade e respeito exclui a coerção. Em
vez disso, queremos predispor os arranjos sociais a favor da vida boa – tornar
mais fácil para as pessoas organizarem as suas saídas da corrida de ratos, por
exemplo, descobrindo para si mesmas formas de vida em que o mais
importante não é ganhar dinheiro. Nenhum sistema político ou legal pode
evitar a parcialidade, por muito que proclame a sua neutralidade. De facto,
como demonstrámos, o nosso sistema atual está repleto de parcialidades.
Aprovamos algumas delas; outras parecem apontar na direção errada. O que
nós pedimos é que o Estado torne as suas escolhas éticas específicas, para
podermos ter um bom debate moral, em vez de fingir que age unicamente
como o agente do consumidor isolado. Se vamos ser paternalistas, sejamos
paternalistas honestos e não paternalistas dissimulados.
Uma reorientação de política desse género precisaria do apoio da religião?
Possivelmente. Os bens básicos, tal como os apresentamos no Capítulo 6, não
estão logicamente dependentes de uma única doutrina religiosa, mas a sua
realização poderá ser impossível sem a autoridade e inspiração que apenas a
religião pode proporcionar. A maior parte dos reformadores liberais do século
XIX e do princípio do século XX era cristã; outros contavam-se entre aqueles
que, como Keynes disse sobre si mesmo, «destruíram o capitalismo e, no
entanto, tiveram os seus benefícios»371. Uma sociedade inteiramente desprovida
de impulso religioso poderia ser levada a perseguir o bem comum? Duvidamos.
Independentemente do que os leitores possam pensar sobre as nossas
propostas específicas, não tentar desenvolver uma visão coletiva da vida boa,
cambalear simplesmente sem ter uma opinião sobre para que serve a riqueza, é
uma indulgência a que as sociedades já não podem dar-se ao luxo. O maior
desperdício com que nos confrontamos agora não é um desperdício de
dinheiro, mas de possibilidades humanas. «Quando permitimos a nós mesmos
desobedecer ao teste de lucro de um contabilista», escreveu Keynes em 1933,
«começámos a mudar a nossa civilização.» O tempo para essa mudança já está
atrasado.
311 Adam Lent e Mathew Lockwood, Creative Destruction: Placing Innovation at the Heart of Progressive
Economics (Londres: Institute for Public Policy Research, 2010).

312 É o quinto dos 12 Trabalhos de Hércules, o mítico herói grego. Hércules foi incumbido de limpar os
estábulos de Áugias, o rei de Élis, que produziam uma quantidade inimaginável de estrume e ninguém tinha
jamais conseguido limpar. Hércules conseguiu essa proeza desviando o curso de dois rios para passarem
pelos estábulos. Limpar os estábulos de Áugias é proverbial: significa um trabalho tão sujo e tão imenso
que ninguém pode esperar realizá-lo. (N. da T.)

313 Adair Turner, Economics after the Crisis: Objetives and Means, Palestra 3: Liberdade Económica e
Política Pública: a Ciência Económica como uma Disciplina Moral, Lionel Robbins Memorial Lecture
(http://www2.lse.ac.uk/publicEvents/pdf/20101013%20Adair%20Turner%20 transcript.pdf; acedido no dia
12 de janeiro de 2012).

314 Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory (Notre Dame, Ind.: University of Notre
Dame Press, 1981), pp. 1-3.

315 Ibid., p. 263.

316 Citado em Juliet Schor, The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure (Nova Iorque:
Basic Books, 1991), p. 121.

317 Papa Leão XIII, Rerum Novarum ( 1891), par. 3.

318 Ibid., par. 21.

319 A teoria fascista italiana do «Estado empresarial» foi uma aplicação fraudulenta das ideias da encíclica
de Leão XIII.

320 Ver David Marquand, in New Statesman, 22 de agosto de 2011. Marquand defende convincentemente
que a proeza dos fundadores da União Europeia foi «uma reconciliação histórica entre a Igreja Católica
Romana e os ideais da revolução francesa», possibilitando o capitalismo colaborativo da Alemanha e da
Itália.

321 Adam Smith, The Wealth of Nations (Lawrence, Kan.: Digireads.com, 2009), p. 407.

322 Peter Clarke, Liberals and Social Democrats (Cambridge: Cambridge University Press, 1979).

323 Em francês no original: golpe de misericórdia. (N. da T.)

324 John Maynard Keynes, «Economic Possibilities for our Grand Children» [Possibilidades Económicas
para os nossos Netos], in Essays in Persuasion, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. 9
(Cambridge: Cambridge University Press, 1978), pp. 354-355.

325 Termo usado especialmente no Reino Unido para caracterizar as pessoas que deixam de ter contratos de
trabalho permanentes e passam a ter contratos temporários. (N. da T.)

326 André Gorz, Reclaiming Work: Beyond the Wage-Based Society (Cambridge: Cambridge University
Press, 1999), p. 94.

327 Robert LaJeunesse, Work Time Regulation as a Sustainable Full Employment Strategy (Londres:
Routledge, 2009).

328 Daniel Raventós, Basic Income: The Material Conditions of Freedom (Londres: Pluto Press, 2007), p.
8.
329 Ver John Cunliffe e Guido Erreygers (eds.), The Origins of Universal Grants: An Anthology of
Historical Writings on Basic Capital and Basic Income (Londres: Palgrave Macmillan, 2004); Samuel
Brittan, Capitalism with a Human Face (Cheltenham: Edward Elgar, 1995); James Meade, Agathotopia:
The Economics of Partnership (Aberdeen: Aberdeen University Press, 1989); André Gorz, Farewell to the
Working Class: An Essay on Post-Industrial Socialism (Cambridge, Mass.: Southend Press, 1982).

330 Milton Friedman, Capitalism and Freedom: Fortieth Anniversary Edition (Chicago: University of
Chicago Press, 2002).

331 O Fundo Permanente do Alasca foi implementado em 1976, financiado por receitas dos poços de
petróleo da região. Qualquer pessoa que nunca tenha sido condenada por um crime, e que resida legalmente
no Alasca há mais de seis meses, recebe um Rendimento Básico anual baseado numa média de cinco anos
do desempenho do Fundo. Em 2010, o dividendo foi de 1281 dólares, mas, em 2008, foi de 3269 dólares,
incluindo um reembolso especial. O Fundo tornou o Alasca o mais igual dos estados americanos. Na década
de 1990, o dividendo representou 6% do PIB do Alasca. O resultado foi que, numa década em que o
rendimento médio das famílias mais pobres nos Estados Unidos cresceu 12% e o das famílias mais ricas
subiu 26%, no Alasca a tendência foi invertida: os mais pobres ganharam mais 28% enquanto os
rendimentos dos mais ricos subiram apenas 7%. O dividendo é popular, mas politicamente contencioso, já
que o seu financiamento provém de um conjunto finito de recursos naturais. Embora o Alasca seja o único
exemplo de um rendimento básico em funcionamento, uma lei implementada no Brasil em 2004 ordena a
criação de um rendimento básico, a ser implementado gradualmente a partir de 2005, começando pelas
categorias mais necessitadas. Receitas do petróleo também são pagas a uma minoria de cidadãos dos
Emiratos Árabes Unidos, mas não à maioria dos não cidadãos que fazem a maior parte do trabalho.

332 Samuel Brittan, crítica de Gay Standing, Promoting Income Security as a Right: Europe and North
America (Anthen Press), Citizens Income Newsletter, n.º 2 (2005).

333 Chandra Pasma, «Working through the Work Disincentive» [Resolver o Desincentivo do Trabalho],
Basic Income Studies, vol. 5, pt. 2 (2010), pp. 1-20. Para uma discussão dos prós e contras da dotação de
capital e do rendimento básico, ver Stuart White, «Basic Income Versus Basic Capital: Can We Resolve the
Disagreement» [Rendimento Básico Contra Capital Básico: Podemos Resolver o Desacordo], Policy and
Politics, vol. 39, pt. 1 (2011), pp. 67-81. Mais genericamente sobre o rendimento básico, ver Stuart White,
«Reconsidering the Exploitation Objection to Basic Income» [Reconsiderando a Objeção de Exploração do
Rendimento Básico], Basic Income Studies, vol. 1, pt. 2 (2006), pp. 1-17.

334 Meade, Liberty, Equality and Efficiency; Karl Widerquist et al. (eds.), The Ethics and Economics of the
Basic Income Guarantee (Aldershot: Ashgate, 2005).

335 Yannick Vanderborght e Philippe van Parijs, L’Allocation universelle (Paris: La Découverte, 2005).

336 Bruce A. Ackerman e Anne Alstott, The Stakeholder Sociey (New Haven: Yale University Press,
1999).

337 Ao abrigo do plano, o Estado abriria uma conta para as 70 000 crianças nascidas anualmente,
despendendo um valor estimado de 480 milhões de libras. O dinheiro seria investido pela indústria
financeira até a criança fazer 18 anos, altura em que o montante poderia ser levantado para fins aprovados
como educação, estágio, para aquisição de casa ou para iniciar um negócio. O valor do título de crédito
oferecido pelo governo variava entre 400 libras para as crianças de famílias bem de vida e 750 libras a 800
libras para as crianças de famílias mais pobres. Para encorajar as famílias mais pobres a poupar, o Estado
providenciaria «fundos correspondentes» condicionados aos recursos se eles contribuíssem para as contas.
Receberiam uma declaração anual onde se veria como os seus fundos tinham crescido. Números
compilados pelo Institute for Public Policy Research (IPPR), uma junta consultiva que persuadiu o governo
a adotar o plano, sugeriram que um «baby bond» de 750 libras teria aumentado para 2625 libras em 1999.

338 Esta questão foi energicamente suscitada por Axel Leijonhufvud no seminário do Luxemburgo (ver o
nosso Prefácio).

339 Citado em André Gorz, Ecologica (Chicago: University of Chicago Press, 2010), p. 170.

340 UNICEF, Child Well-Being in the UK, Spain and Sweden: The Role of Inequality and Materialism
(York: UNICEF UK, 2011).

341 Richard A. Musgrave, «A Multiple Theory of Budget Determination» [Uma Teoria Múltipla de
Determinação Orçamental], Finanzarchiv, vol. 17, pt. 3 (1956), p. 341.

342 Ver Alan Hunt, Governance of the Consuming Passions: A History of Sumptuary Law (Nova Iorque: St
Martin’s, 1996).

343 Bernard Mandeville, The Fable of the Bees: or Private Vices, Publick Benefits, ed. Phillip Harth
(Harmondsworth: Penguin, 1989), p. 96.

344 Ver Christopher Berry, The Idea of Luxury (Cambridge: Cambridge University Press, 1994), p. 115.

345 Nicholas Kaldor, An Expenditure Tax (Londres: Allen and Unwin, 1955), p. 176. Ver também Institute
of Fiscal Studies, The Structure and Reform of Direct Taxation: Report of a Committee Chaired by
Professor J. E. Meade (Londres: Institute of Fiscal Studies, 1978).

346 Ibid., p. 53.

347 Ibid., pp. 26-27.

348 Steven Pressman, ‘The Feasibility of an Expenditure Tax’ [A Praticabilidade de um Imposto sobre o
Consumo], International Journal of Social Economics, vol. 22, pt. 8 (1995), p. 6.

349 Kaldor, An Expenditure Tax; John Kay, The Meade Report after Two Years (Londres: Institute of Fiscal
Studies, 1980). Para uma crítica, ver Pressman, «The Feasibility of an Expenditure Tax» [A Praticabilidade
de um Imposto sobre as Despesas].

350 A despesa «tributável» foi definida por Kaldor, An Expenditure Tax, pp. 191-193, uma vez que o
dinheiro que uma pessoa tem à sua disposição para gastar num ano (o seu salário, rendimento de
dividendos, dinheiro no banco) menos o dinheiro gasto na aquisição de bens de capital, o seu saldo bancário
ao fim do ano, e determinados rendimentos e isenções.

351 Para pormenores sobre este esquema, ver Robert H. Frank, Luxury Fever: Money and Happiness in an
Era of Excess (Princeton: Princeton University Press, 2000), pp. 211-216.

352 Ibid., p. 3.

353 Ibid., pp. 90-91.


354 Ibid., pp. 211-216.

355 Os principais problemas são o tratamento em termos de tributação dos bens duráveis e dos presentes. O
preço de compra de bens duráveis dispendiosos deveria ser considerado um investimento isento de impostos
ou deveria ser tratado como um gasto tributável? Os presentes deveriam ser isentos de imposto e tratados
como responsabilidades (se gastos) dos beneficiários? No segundo caso, há margem de manobra para os
ricos aproveitarem um imposto progressivo sobre o consumo para usarem os presentes para levarem
beneficiários em escalões mais baixos do imposto sobre o consumo a fazerem compras por eles. Apesar da
simplicidade conceptual do imposto sobre o consumo, a sua implementação implicaria quase de certeza
uma investigação mais intrusiva das circunstâncias pessoais do que acontece com o imposto sobre o
rendimento.

356 John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest, and Money, The Collected
Writings of John Maynard Keynes, vol. 7 (Cambridge: Cambridge University Press, 1973), p. 374.

357 «How to Tame Global Finance» [Como Dominar a Finança Global], Prospect, 27 de agosto de 2009.

358 Para esta definição de um bem, ver Gary Becker e Kevin Murphy, «A Simple Theory of Advertising as
Good or Bad» [Uma Teoria Simples da Publicidade como Boa ou Má], Quarterly Journal of Economics,
vol. 108, pt. 4 (1993), p. 941. Inversamente, um «mau» é algo que o consumidor paga para se ver livre, ou
tem de ser compensado para aceitar. Na versão forte do modelo de consumidor racional não há bens
públicos ou de mérito.

359 Ibid., p. 962.

360 G. W. F. Hegels, Elements of the Philosophy of Right (Cambridge: Cambridge University Press, 1991),
p. 229.

361 Citado em Gorz, Ecologica, p. 104.

362 Não há nada de novo na ideia de tributar os custos. Por exemplo, os impostos na folha de pagamentos
são impostos sobre o custo de empregar mão de obra.

363 Keynes, Essays in Persuasion, p. 331.

364 A forma «natural» de comércio é entre áreas do mundo com diferentes legados de recursos e climáticos.
Isto impossibilita ou torna extremamente dispendioso produzir todos os bens desejados no mesmo lugar. Se
os escoceses quiserem beber vinho, terão de o importar de zonas onde ele é cultivado, trocando-o, por
exemplo, por kilts de tartã. No entanto, a forma mais eficiente de comércio ocorre de acordo com uma
vantagem comparativa: isto é, pagará ao país A para se especializar nesse bem, ou bens, que pode produzir
de uma forma relativamente mais barata do que o país B, mesmo que possa produzir todos os bens de uma
forma mais barata do que no país B. Esta é a base da doutrina moderna do comércio livre. Evidentemente, o
seu poder persuasivo diminui em condições de abundância, quando o preço mais baixo deixa de ser a
principal consideração.

365 Uma hipótese alternativa para a observada estagnação de salários é a recompensa crescente das
aptidões nas sociedades ricas. Os dados empíricos em que o efeito domina são inconclusivos – ver Paul
Krugman, «Trade and Wages, Reconsidered» [Comércio e Salários, Reconsiderados], artigo não publicado
para o Painel de Atividade Económica do Brookings Institute de 2008.
366 Entrevista com Steve Lohr, «An Elder Challenging Outsourcing Orthodoxy» [Uma Antiga Ortodoxia
Estimulante de Subcontratação], New York Times, 9 de setembro de 2004.

367 Erik S. Reinert, How Rich Countries Got Rich… and Why Poor Countries Stay Poor (Londres:
Constable, 2008), pp. xxv-xxvi.

368 Ha-Joon Chang, 23 Things They Don’t Tell You About Capitalism (Londres: Penguin, 2010), p. 63.

369 Gorz, Ecologica, pp. 15 s.

370 St Paul’s Institute, Value and Values: Perceptions of Ethics in the City Today (Londres: St Paul’s
Institute, 2011).

371 Robert Skidelsky, John Maynard Keynes: Economist, Philosopher, Statesman (Londres: Pan, 2004), p.
515.

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