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Quanto É Suficiente - O Amor Pelo Dinheiro e A Economia Da Vida Boa
Quanto É Suficiente - O Amor Pelo Dinheiro e A Economia Da Vida Boa
Poderá dizer-se que, apesar de um pouco de lazer ser agradável, os homens não saberiam preencher
os seus dias se tivessem apenas quatro horas de trabalho nas vinte e quatro. Na medida em que isto é
verdadeiro no mundo moderno, é uma condenação da nossa civilização; não teria sido verdadeiro em
nenhum período anterior. Anteriormente, havia uma capacidade de alegria e diversão que foi até certo
ponto inibida pelo culto da eficiência […] Os prazeres das populações urbanas tornaram-se
essencialmente passivos: ir ao cinema, ver jogos de futebol, ouvir rádio, etc. Isto resulta do facto de as
suas energias ativas serem totalmente dedicadas ao trabalho; se tivessem mais lazer, desfrutariam de
novo de prazeres em que teriam um papel ativo7.
3 John Maynard Keynes, Essays in Persuasion, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. 9
(Cambridge: Cambridge University Press, 1978), p. 293.
4 Nigel Lawson e Bjørn Lomborg (entre outros) defenderam que a melhor forma de lidar com o
aquecimento global é prosseguir com o progresso tecnológico para mitigar quaisquer consequências
adversas. E alguns economistas afirmaram que as nações mais ricas são na realidade mais felizes do que as
nações pobres. Para mais pormenores, ver os Capítulos 4 e 5.
5 George Orwell, The Road to Wigan Pier (Londres: Penguin, 1989), p. 182.
6 W. Stanley Jevons, The Theory of Political Economy (Londres: Macmillan, 1911), p. 37.
7 Bertrand Russell, In Praise of Idleness and Other Essays (Londres: Routledge, 2004), p. 11.
9 John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest, and Money, The Collected Writings
of John Maynard Keynes, vol. 7 (Cambridge: Cambridge University Press, 1973), p. 374.
12 Adam Smith, The Wealth of Nations (Lawrence, Kan.: Digireads.com, 2009; 1.ª edição, 1759), p. 40;
Alfred Marshall, Principles of Economics (Londres: Prometheus Books, 1920), p. 1; Lionel Robbins, An
Essay on the Nature and Significance of Economic Science (Londres: Macmillan, 1932) p. 16.
O Erro de Keynes
Vejo-nos livres para voltarmos a um dos princípios mais seguros e certos da religião e da virtude
tradicional – que a avareza é um vício, que a usura é uma infração e o amor pelo dinheiro é detestável,
que aqueles que caminham mais verdadeiramente nos caminhos da virtude e da sabedoria são aqueles
que pensam menos no dia seguinte. Valorizaremos novamente os fins acima dos meios e preferiremos
o bom ao útil. Honraremos aqueles que podem ensinar-nos a aproveitar virtuosamente e bem a hora e o
dia, as pessoas encantadoras que são capazes de apreciar diretamente as coisas, os lírios do campo, que
não trabalham arduamente nem correm16.
O filósofo Frank Ramsey, um amigo de Keynes, tinha uma palavra para este
estado paradisíaco. Chamou-lhe «Felicidade».
Assim, o capitalismo, a vida de prosperidade económica e de ganhar
dinheiro, era um estado transitório, um meio para atingir um fim, sendo esse
fim a vida boa. Como poderia ser essa vida? Keynes era um discípulo do
filósofo de Cambridge G. E. Moore, que tinha escrito em Principia Ethica que
«de longe a mais valiosa das coisas que sabemos ou podemos imaginar são
certos estados de consciência que podem ser rudimentarmente descritos como
os prazeres da comunicação humana e a posse de objetos belos». E ele disse
também: «É apenas por estas coisas – para que o maior número possível delas
possa existir em algum momento – que pode haver justificação para uma
pessoa realizar alguma função pública ou privada […] São elas […] que
formam o derradeiro objetivo racional da ação humana e o único critério de
progresso social.»17
Keynes declarou mais tarde que esta continuava a ser a sua «religião sob a
superfície». Enquanto economista e especulador, Keynes viveu a maior parte
da sua vida no inferno da ação capitalista, mas teve sempre um olho no paraíso
da arte, do amor e da busca de conhecimento, personificado para ele pelos seus
amigos de Bloomsbury. O ensaio «Possibilidades Económicas» é a sua
tentativa de conciliar estes dois lados da sua personalidade – o resoluto e o
espontâneo – ao projetá-los para o presente e para o futuro, respetivamente.
«Possibilidades Económicas» foi virtualmente ignorado na época, sendo
considerado demasiado fantasista para uma discussão séria. De facto, era uma
pièce d’occasion, um jeu d’esprit. A sua visão e argumento estavam
condensados em apenas 12 páginas. Havia muitas pontas soltas, objeções
levantadas, mas esquecidas. «Aqui estava Keynes no seu melhor e no seu
pior», escreveu um dos seus alunos. «No seu pior, porque alguma da sua teoria
social e política não resistiria a um escrutínio demasiado minucioso, pois não é
provável que a sociedade fique sem novos desejos enquanto o consumo for
conspícuo e competitivo […] No seu melhor, devido à mente errante, curiosa,
intuitiva e provocadora do homem.»18
Porém, apesar de todo o seu futurismo, «Possibilidades Económicas» está
diretamente associado à principal preocupação de Keynes: o problema do
desemprego em massa persistente. Esse desemprego proporciona a motivação
«ideal» para a revolução na política económica pela qual ele é acima de tudo
conhecido: o pleno emprego contínuo, não interrompido por crises, era o
caminho mais rápido para a utopia a que o ensaio aludia. Keynes queria
garantir que o sistema capitalista funcionava em pleno para apressar o dia em
que chegaria ao fim.
Passaram-se mais de 80 anos desde que escreveu este ensaio; nós somos os
seus «netos», até os seus bisnetos. Por isso, até que ponto é que a profecia de
Keynes se realizou?
14 Citado in Robert Skidelsky, John Maynard Keynes: The Economist as Saviour 1920-1937 (Londres:
Macmillan, 1992), pp. 72, 235.
15 Keynes antecipou o modelo de crescimento de Robert Solow, em que o crescimento do PIB é explicado
pelo crescimento dos fatores de capital e população e pela taxa de progresso técnico. Como a maioria dos
economistas, Keynes presumiu rendimentos decrescentes para o capital – cada parte de capital adicional
produziria menos rendimento do que o anterior – com a saturação de capital a instalar-se. Um maior
crescimento do PIB viria a depender vastamente de melhoramentos na qualidade e não na quantidade do
capital, físico e humano, isto é, do progresso técnico. O crescimento do PIB per capita necessitaria de que o
progresso técnico ultrapassasse o crescimento populacional.
16 Para o ensaio como um todo ver John Maynard Keynes, Essays in Persuasion, The Collected Writings of
John Maynard Keynes, vol. 9 (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), pp. 321-332. Foi reeditado a
partir de Essays in Persuasion de Keynes, de 1931. Para saídas anteriores, ver Skidelsky, Keynes: The
Economist as Saviour, p. 634, n. 53.
17 G. E. Moore, Principia Ethica (Cambridge: Cambridge University Press, 1903), pp. 188-189.
Fonte: Angus Maddison, The World Economy: Historical Statistics (OCDE, 2005); Measuring
Worth, disponível em www.measuringworth.com, Eurostat; acedido em 16 de janeiro de 201219.
19 Para uma discussão sobre as taxas de crescimento nos EUA, na Europa e no resto do mundo, ver
Fabrizio Zilibotti, «Economic Possibilities for our Grandchildren 75 Years After: A Global Perspetive»
[Possibilidades Económicas para os nossos Netos 75 Anos Depois: Uma Perspetiva Global], in Lorenzo
Pecchi e Gustavo Piga (eds.), Revisiting Keynes: Economic Possibilities for Our Grandchildren
(Cambridge, Mass.: MIT Press, 2008), pp. 27-39.
Gráfico 3. Horas Semanais desde Keynes
Fonte: Michael Huberman e Chris Minns, «The Times They are Not Changin’: Days and Hours of
Work in Old and New Worlds, 1870-2000» [Os Tempos que Eles Não Estão a Mudar: Dias e
Horas de Trabalho no Velho e no Novo Mundo], Explorations in Economic History, vol. 44
(2007), pp. 538-567.
21 Wenchao Jin et al., Poverty and Inequality in the UK (Londres: Institute for Fiscal Studies, 2011).
23 Estes números são calculados de acordo com a paridade do poder de compra, que é uma medida do que o
dinheiro pode comprar em diferentes países.
Gráfico 4. Horas de Trabalho desde 1983
As Alegrias do Trabalho
«Quem não trabalha não come», proclamou Lenine, citando São Paulo.
Keynes seguiu a política económica do seu tempo tratando o trabalho como o
custo de obter coisas absolutamente essenciais. Como Adam Smith escreveu:
«O verdadeiro preço de todas as coisas […] é o trabalho árduo e a dificuldade
de adquiri-las.» Ou, como Jeremy Bentham disse: «Na medida em que o
trabalho é visto no seu sentido próprio, o amor pelo trabalho é um paradoxo.»31
Não havia nenhuma novidade neste tratamento: a Bíblia diz-nos que o homem
foi condenado a trabalhar para expiar dolorosamente a sua desobediência a
Deus. No entanto, mais recentemente, algumas pessoas sugeriram que esta
relação ancestral do trabalho com «trabalho árduo e dificuldade» não é válida,
ou tem uma validade reduzida. O trabalho já não é esforço no sentido
economicista, mas um esforço de amor: uma fonte de estímulo, identidade,
merecimento e sociabilidade. Em suma, o trabalho não é apenas um meio para
alcançar um fim: proporciona satisfações intrínsecas. É por isso que as pessoas
continuam a trabalhar durante mais tempo do que «precisam».
Os apóstolos das alegrias do trabalho reconhecem que a visão economicista
do trabalho como um esforço sem alegria, que tem de ser compensado com um
rendimento, pode ter sido adequada para o trabalho fisicamente brutal,
mecânico e embrutecedor que a maioria das pessoas tinha de fazer no passado,
mas é preciso acrescentar que nos nossos dias isso já não é verdadeiro em
relação ao trabalho. Na era «pós-moderna», o trabalho tornou-se fisicamente
menos exigente, mais interessante, estimulante e inovador. Isto é
particularmente verdadeiro no caso de empregos de carreira e explica porque é
que aqueles que são mais bem pagos trabalham muitas vezes mais horas do que
os menos bem pagos. Nós temos um setor «criativo» em constante expansão e
muito mais escolha de trabalho «necessário» do que existia anteriormente. As
pessoas podem revelar as suas almas não apenas nas suas compras, mas nos
seus empregos. Os críticos acrescentam que Keynes tinha um desdém de
Bloomsbury pelas profissões, o que o levou a não prestar atenção às satisfações
intrínsecas que mesmo nessa altura muitas pessoas encontravam no trabalho32.
Diz-se que o equivalente ao amor pelo trabalho é o medo do lazer. Pergunta-
se muitas vezes: O que farão as pessoas se não tiverem de trabalhar?
Embebedam-se ou drogam-se? Passam o dia deitadas no sofá diante da
televisão? Subjacente a este tipo de pergunta está a opinião de que os seres
humanos são naturalmente preguiçosos, e por isso o trabalho é necessário para
os tornar produtivos, para os manter «nos eixos», para impedir que «se
arruinem». Mas há mais uma coisa. O trabalho proporciona uma sociabilidade
obrigatória; o lazer pode trazer uma solidão forçada. «Eu? Eu tenho pavor dos
fins de semana», afirma o jornalista viciado em trabalho no romance de Tom
Rachman, The Imperfectionists. «Quem me dera não ter tempo de férias… não
faço ideia do que fazer com ele. São quatro semanas em que não paro de
lembrar a mim mesmo que sou um falhado.»33
Seria um disparate negar que o trabalho remunerado sempre teve elementos
de satisfação intrínseca: a maior parte das pessoas não trabalha apenas para
comer. As pessoas podem trabalhar muitas horas por companheirismo ou para
escapar aos problemas, ou tédio, da vida familiar. A questão é se o elemento
«feliz» no trabalho tem aumentado ao longo do tempo. Isto não é de forma
alguma claro. Alguns trabalhos tornaram-se mais interessantes; o número de
trabalhos vocacionais – o ensino, por exemplo – aumentou. Diz-se
frequentemente que a Internet tornou o trabalho mais divertido (e a diversão
mais parecida com trabalho). Também alargou as oportunidades de lazer no
trabalho; o Facebook está apenas a um clique de distância. Os ambientes de
trabalho são cada vez mais projetados para serem «divertidos»34. Mas a
especialização que Adam Smith pensou que tiraria a técnica do trabalho
também tornou uma grande parte do trabalho menos gratificante. O que é
chamado «técnica» é frequentemente um eufemismo para tornar mecânico o
que em tempos requeria pelo menos um pouco de conhecimento, atenção e
envolvimento. As técnicas do artesão, do mecânico, do construtor, do talhante e
do padeiro deterioraram-se; uma grande parte do trabalho, reduzido à pura
rotina, continua a ser literalmente estupidificante. As rotinas laborais dos
supermercados e call centers modernos foram apelidadas de «taylorismo
digital» em homenagem ao inventor do tapete rolante35. Reduções drásticas de
custos diminuíram o «tempo presencial», como a sociabilidade é agora
chamada. A «criatividade» de muitos trabalhos é apenas uma imagem de
marca: «chefs trabalhadores e empenhados a criar todos os dias» é o anúncio de
uma cadeia de comida rápida muito conhecida. Mesmo para os profissionais
financeiros de topo, as «alegrias do trabalho» vêm num distante segundo lugar,
depois dos salários e bónus36. A disponibilidade dos que mais ganham para
trabalharem mais horas do que trabalhavam no passado pode confirmar, não o
interesse crescente dos seus empregos, mas a insegurança crescente dos seus
rendimentos. Uma pequena proporção de empregos, e partes de empregos,
pode ter-se tornado cativante; a maior parte continua a ser mal-amada.
Apesar das pseudoalegrias do trabalho e do medo da ociosidade, mais
trabalhadores na maioria dos países desenvolvidos, incluindo os Estados
Unidos, prefeririam trabalhar menos do que mais. Um inquérito recente sobre
futuras opções de emprego mostra um desejo generalizado de menos horas de
trabalho, mesmo sabendo que isto poderia significar um salário menor – 51%
dos inquiridos queriam menos horas e apenas 12% escolheram mais horas37.
Resultados semelhantes foram obtidos no Japão. Nos Estados Unidos, os
números foram mais equilibrados, mas a preferência foi para menos horas e
não mais horas (37% contra 21%)38. O que as pessoas dizem que fariam em
circunstâncias hipotéticas não é, evidentemente, o que fariam necessariamente
se fossem confrontadas com essas circunstâncias. No entanto, mantém-se pelo
menos uma predisposição a favor de menos horas.
Os prazeres cada vez maiores do trabalho, ou o medo do lazer, podem ser
parte da explicação de porque é que as horas de trabalho pararam de diminuir,
mas não podem ser a explicação principal. A praga de Adam pode ter-se
tornado mais leve, mas não desapareceu completamente.
24 Jonathan Gershuny, «Busyness as the Badge of Honour for the New Superordinate Working Class»
[Ocupação como a Medalha de Honra para a Nova Classe Trabalhadora Superordenada], Institute for Social
and Economic Research Working Paper 2005-2009 (2005).
25 As famílias passam mais tempo a fazer compras devido à distância maior, ao tamanho das lojas e ao
crescimento das compras self-service. Também é dedicado mais tempo a cuidar dos filhos, o que reflete a
mudança de atitude relativamente à educação dos filhos, exemplificada pela frase «tempo de qualidade».
Em contraste, o tempo dedicado às tarefas domésticas como cozinhar e limpar diminuiu com a ajuda de
aparelhos que poupam tempo. Ver Jonathan Gershuny e Kimberly Fisher, «Leisure in the UK across the
20th Century» [«Lazer no Reino Unido Ao Longo do Século XX»], in A. H. Halsey e Josephine Webb
(eds.), Twentieth Century British Social Trends (Londres: Palgrave Macmillan, 1999), p. 634.
27 Ver Axel Leijonhufvud in Pecchi e Piga (eds.), Revisiting Keynes, pp. 117-124.
28 A interpretação dos dados não é simples. A taxa de poupança das famílias caiu dramaticamente em
muitos países ocidentais, o que sugere que as pessoas estão a trabalhar mais horas não para poupar para a
velhice, mas para gastar. No entanto, podem estar a «poupar» comprando casas e instrumentos financeiros,
que são tratados nas contas nacionais como investimentos, não poupanças.
29 Henry Phelps-Brown, The Inequality of Pay (Oxford: Oxford University Press, 1977), pp. 84-86.
30 Na verdade, poder-se-ia pensar em dois efeitos. Ou os ricos reduziam as suas horas de trabalho mais
depressa do que os pobres, porque tinham menos necessidade de rendimento adicional, ou ricos e pobres
reduziam as suas horas na mesma proporção, mas os ricos partiam da posição de já trabalhar menos e, por
conseguinte, tinham menos horas de trabalho para deixar.
31 V. I. Lenin, The State and Revolution (Londres: Penguin Classics, 2010), cap. 5, alínea 3; Adam Smith,
The Wealth of Nations (Lawrence, Kan.: Digireads.com, 2009), Livro 1, cap. 5; Jeremy Bentham, A Table
of the Springs of Action (1817), p. 20.
32 Esta crítica a Keynes é recorrente nos ensaios reunidos in Pecchi e Piga (eds.), Revisiting Keynes. Ver os
ensaios de Stiglitz, p. 46, Freeman, pp. 140-141, e Fitoussi, p. 157.
33 Tom Rachman, The Imperfectionists (Londres: Quercus Publishing, 2010).
34 A sede do novo Royal Bank of Scotland em Edimburgo, uma estrutura contemporânea esplêndida, foi
construída à volta da réplica de uma rua principal com todas as comodidades modernas – cafés, farmácias,
floristas, um cabeleireiro, etc. O banco faliu em 2009. Ver Alistair Darling, Back from the Brink (Londres:
Atlantic Books, 2011), p. 60. Douglas Edwards escreve que a sede da Google, o Googleplex, «era muito
mais divertido do que a minha casa», cheio de jogos de vídeo, bolas saltitonas, hóquei aéreo, caixas de
M&M, um bar de sumos e um piano. Mas a consequência da falta de estrutura foi uma insegurança com
efeitos extremamente negativos: «Na Google, eu estava no paraíso do trabalhador, mas sentia que não
merecia.» [I’m Feeling Lucky: The Confessions of Google Employee Number 59 (Londres: Penguin, 2011),
p. 126.]
35 Aditya Chakrabortty, «Why our Jobs are Getting Worse» [Porque é que os nossos Empregos estão a
Piorar], Guardian, 31 de agosto de 2010. Ver também Irina Grugulis et al., «‘No Place to Hide’: The Reality
of Leadership in UK Supermarkets» [«Nenhum Sítio para nos Escondermos»: A Realidade de Liderança
nos Supermercados do Reino Unido], SKOPE Research Paper 91, sobre a McDonald’s-ização do trabalho.
Sobre o Taylorismo digital, ver Philip Brown et al., The Global Auction: The Broken Promises of
Education, Jobs and Incomes (Nova Iorque: Oxford University Press, 2010), pp. 65-82. Para o mundo
sinistro dos call centres, ver Simon Head, The New Ruthless Economy: Work and Power in the Digital Age
(Nova Iorque: Oxford University Press, 2003), pp. 100-116.
36 St Paul’s Institute, Value and Values: Perceptions of Ethics in the City Today (Londres: St Paul’s
Institute, 2011).
37 H. Bielenski, G. Bosch e A. Wagner, Employment and Working Time in Europe (Dublin: European
Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions [EFILWC], 2002). A pergunta exata no
inquérito era: «Se você (e o seu parceiro) pudesse fazer uma escolha livre relativamente às horas de
trabalho, e tendo em conta a necessidade de ganhar dinheiro para viver, quantas horas por semana preferiria
trabalhar atualmente?» Isto faz referência ao compromisso com o rendimento, ainda que não
explicitamente.
38 Jeremy Reynolds, «When Too Much is Not Enough: Actual and Preferred Work Hours in the United
States and Abroad» [Quando Demasiado não é Suficiente: Horas de Trabalho Reais e Preferidas nos
Estados Unidos e no Estrangeiro], Sociological Forum, vol. 19, n.º 1 (2004), pp. 89-120. Uma nota de
advertência: ao contrário do inquérito do EFILWC, só foi perguntado aos participantes neste inquérito se
gostariam de trabalhar mais, menos, ou a mesma quantidade de tempo que atualmente. Não foi feita
qualquer referência a salários. Reynolds pensa que é provável que «quando os inquiridos indicaram as suas
preferências por mais ou menos horas de trabalho, consideraram em que medida é que essas mudanças
poderiam afetar os bónus». Mas mesmo que os inquiridos não tenham levado os salários em linha de conta,
os resultados sugerem que a maioria considerava o trabalho uma desutilidade.
Gráfico 5. Quota do Rendimento do 1% de Pessoas Mais Ricas
as classes médias profissionais, especialmente no sudeste, estão bem, mas abaixo delas na escala de
rendimentos estão as pessoas que se tornaram mais dependentes da dívida quando os seus rendimentos
reais estagnaram. A seguir estão as pessoas que recebem o salário mínimo, que tem de ser
complementado com apoios sociais para poderem equilibrar as suas contas. No fundo da pilha
encontram-se aqueles que não têm trabalho, muitos dos quais pertencem à segunda ou terceira geração
de desempregados41.
Insaciabilidade
Keynes presumiu que os desejos materiais podiam ser satisfeitos, que nós
podíamos «ter o suficiente». Mas suponhamos que eles são insaciáveis? Por
insaciabilidade referimo-nos ao que o dicionário diz: um desejo contínuo e
insatisfeito de mais do que se tem. «Estas “românticas” tendas Jaipur [preço:
3800 libras] criam um excelente espaço de diversão adicional no jardim», é o
slogan de um anúncio dirigido «a quem tem tudo»46. A questão é: Porque é que
as pessoas que «têm tudo» parecem querer sempre mais?
A resposta a esta pergunta tem duas abordagens, a primeira das quais começa
com a natureza dos desejos humanos no isolamento e a segunda que os
considera em relação aos outros. A incompatibilidade entre os dois é
reconhecidamente muito artificial. Os desejos são individuais; no entanto, a
forma como são expressos, a forma como são encorajados ou reprimidos, é
social. A variável explanatória que o investigador decide realçar depende em
grande medida do seu interesse em estabelecer os factos da psicologia
individual ou se, considerando estes factos tal como são apresentados, ele tenta
perceber as suas consequências para o comportamento social.
Um bom exemplo da abordagem individualista é o influente livro de 1976 de
Tibor Scitovsky, The Joyless Economy. A explicação de Scitovsky para a
insaciabilidade foi simplesmente inquietação. Aborrecemo-nos com o que
temos. A satisfação de todas as necessidades, a eliminação de todos os
desconfortos, produz um estado, não de tranquilidade satisfeita, mas de
insatisfação, que tem de ser aliviada com a novidade do mesmo modo que uma
comichão tem de ser coçada para desaparecer. À medida que a abundância
aumenta, cresce o tédio, o que provoca uma procura cada vez mais frenética de
experiências estimulantes. A nossa natureza é tal que nunca estamos satisfeitos
com o que temos. Por isso, continuamos a trabalhar para estimular os nossos
apetites saciados.
Uma segunda explicação individualista para a insaciabilidade centra-se na
escassez inerente de determinados bens. Férias em estâncias de luxo, jardins
elaborados por arquitetos paisagistas e muitas outras raridades não podem ser
desfrutados por todos numa sociedade, por muito rica que ela seja. A procura
crescente pressiona uma oferta fixa. O resultado é um aumento contínuo do
custo desses bens relativamente aos preços médios, que os coloca
permanentemente para além do alcance dos rendimentos normais. Porém, em
vez de aceitarem este lamentável facto, as pessoas continuam a querer o
melhor, que, na natureza das coisas, nem todos podem ter. Por conseguinte,
esta é outra importante fonte de insaciabilidade.
Num ensaio, Roy Harrod, um discípulo de Keynes, destruiu implicitamente a
visão cor-de-rosa do seu mestre ao chamar «oligárquicos» a esses bens
inerentemente escassos47. Um exemplo clássico é o dos velhos mestres da
pintura. Todos os lindos quadros antigos que existem já foram produzidos: a
sua quantidade não pode ser aumentada. Reconhecidamente, todas as pessoas
podem contemplá-los em museus e esta é a solução «democrática» para este
problema específico. Porém, em termos de satisfação individual o
racionamento por fila é muito inferior ao racionamento por preço, a termos o
melhor que foi criado à disposição para ser apreciado na privacidade da nossa
casa.
Os bens oligárquicos não têm de ser fisicamente escassos. Também podem
ser «socialmente escassos», o que significa que a sua multiplicação destrói as
características que os tornaram desejáveis. Estâncias de férias «em estado
natural» só se mantêm imaculadas enquanto o acesso a elas for limitado.
Harrod escreveu:
Um jovem pode ter a ambição de, quando ficar rico, viver na melhor zona de Nova Iorque, ter bons
lugares em todas as melhores peças e óperas, frequentar os clubes noturnos mais seletos […] apoiar os
melhores artistas vivos. E pode obter todas estas coisas se ficar oligarquicamente rico, mas a riqueza
democrática poderá nunca alcançá-las. Se prevalecer uma distribuição desigual, as pessoas mais ricas
avaliarão essas coisas raras muito acima das possibilidades do homem comum.
Harrod inferiu mais uma implicação. Apenas uma minoria de ricos pode dar-
se ao luxo de ter criados e, por conseguinte, conservar «grandes mansões para
viver, parques e jardins privados, estábulos […] iates», que requerem a
existência de uma classe de criados. Mas quanto mais igual se tornar a riqueza,
menos criados estarão disponíveis e acessíveis. Nenhuma das invenções que
poupam mão de obra pode compensar o desaparecimento do serviço pessoal
necessário para uma vida agradável.
O economista Fred Hirsch rotulou os bens «oligárquicos» de Harrod como
«posicionais», porque o acesso a eles depende não do nosso nível absoluto de
riqueza, mas da nossa posição relativamente aos outros. Como os prémios
principais num torneio, os bens posicionais não podem ser conquistados por
todos48. Eles serão sempre acumulados pelos mais ricos da sociedade, seja qual
for o nível global de riqueza. Assim, a competição para obtê-los nunca parará.
Na verdade, intensificar-se-á com o crescimento, à medida que uma proporção
cada vez maior de rendimento familiar for libertado para gastos posicionais. A
existência de bens posicionais enfraquece a visão de Keynes de uma sociedade
onde todos têm «o suficiente». Pois mesmo que todos ganhassem as
necessárias 500 libras por ano, ou o seu equivalente moderno, nem todos
conseguiriam (logicamente) viver nas melhores casas ou comprar os melhores
lugares na ópera.
Uma terceira explicação individualista da insaciabilidade inspira-se
fortemente na imagem economicista do ser humano como um maximizador de
utilidade racional. O trabalho pioneiro aqui é o do economista americano Gary
Becker49. Keynes considerava que o lazer era um benefício universalmente
desejado, mas outra forma de olhar para ele é como um custo – o custo de não
trabalhar. Becker referiu que o custo de uma noite no teatro não é simplesmente
o preço do bilhete, mas o custo de não ganhar naquelas horas. O lazer é uma
subtração do rendimento hipotético e Becker imaginou o indivíduo a equilibrar
as vantagens de ganhar um rendimento e de gastá-lo. Dito desta forma, a
escolha entre trabalho e lazer é essencialmente um problema de distribuição de
tempo. O lazer não é tempo livre, é tempo dispendioso. E quanto mais alto é o
rendimento, mais dispendioso o tempo. Se Becker tiver razão, não existe um
motivo a priori para acreditarmos que as horas de trabalho diminuirão à
medida que a riqueza crescer. É igualmente plausível acreditar que elas subirão
à medida que o custo de não trabalhar aumentar.
O economista sueco Staffan Linder escreveu um livro, The Harried Leisure
Class, onde desenvolveu a análise de Becker. A questão principal de Linder era
que o rendimento do lazer deve ser tão alto como o rendimento do trabalho
para as pessoas desistirem de trabalhar. A principal forma de aumentar o
«lucro» do lazer é enchê-lo de equipamento. «Assim como os trabalhadores se
tornam mais produtivos ao trabalharem com mais ferramentas e meios de
produção, também os consumidores aproveitam melhor o seu tempo de lazer
quando são usados mais aparelhos por unidade de tempo.»50 Uma viagem à
praia ou a uma estância de férias fica incompleta sem grelhador, para-ventos,
fatos de mergulho, pranchas de surf, raquetes de ténis, bolas de futebol, bolas
de praia e tacos de golfe.
Linder está acima de tudo preocupado em explicar a consequência de
consumo cheio de aparelhos para a natureza do lazer, mas o seu argumento
pode ser usado para explicar o fracasso da diminuição das horas de trabalho em
linha com a previsão de Keynes. Quantos mais bens de consumo mais duráveis
– carros, barcos, caravanas, televisores, leitores de DVD, etc. – forem usados
para aumentar o lazer, maiores os rendimentos necessários para poder pagá-los.
A seleção cada vez maior de bens necessários para o consumo produtivo
mantém-nos presos ao trabalho.
Nenhuma destas explicações individualistas de insaciabilidade – inquietação
inata, competição posicional, maximização de utilidade – envolve uma
comparação entre o que uma pessoa quer e o que outras têm. Nessa medida elas
são irrealistas, uma vez que a expressão de desejos tem sempre um carácter
social. Assim, a principal explicação sociológica para a insaciabilidade
depende do carácter relativo dos desejos. Nunca me sentirei satisfeito com o
que tenho em nenhum nível de riqueza material porque alguém terá sempre
mais do que eu. Quando a competição pela riqueza – ou pelo consumo através
do qual ela é normalmente expressa – se transforma numa competição por
posição, transforma-se num jogo de soma zero, porque, por definição, nem
todos podem ter uma posição alta. À medida que gasto mais em bens de
prestígio, ganho importância, mas faço com que outros a percam. Quando eles
gastam mais para recuperar essa posição, reduzem a minha. Não existe um
motivo para que a escalada de rendimento para manter e adquirir posição acabe
algum dia.
Estranhamente, Keynes estava bastante consciente do gasto por posição. Ele
escreveu como um importante aparte no seu ensaio que as necessidades
humanas se incluem em duas categorias:
as necessidades que são absolutas no sentido em que as sentimos seja qual for a situação dos nossos
semelhantes e as que são relativas no sentido em que as sentimos apenas se a sua satisfação nos colocar
acima dos nossos semelhantes e nos fizer sentirmo-nos superiores a eles. As necessidades do segundo
tipo, aquelas que satisfazem o desejo de superioridade, podem de facto ser insaciáveis; pois quanto
mais alto for o nível geral, maiores serão elas. Mas isto não é tão verdadeiro em relação às
necessidades absolutas – um ponto poderá ser alcançado em breve, talvez muito mais depressa do que
todos temos consciência, quando essas necessidades forem satisfeitas no sentido em que preferimos
dedicar as nossas outras energias a objetivos não económicos51.
O erro de Keynes foi acreditar que o amor pelo lucro libertado pelo
capitalismo poderia ser saciado com a abundância, deixando as pessoas livres
para desfrutar dos seus frutos na vida civilizada. Isto acontece porque ele
pensava que as pessoas tinham uma quantidade fixa de desejos naturais. Ele
não compreendeu que o capitalismo podia criar uma nova dinâmica de criação
de desejos que esmagaria as limitações tradicionais do costume e do bom
senso. Isto significa que, apesar de a nossa riqueza ser muito maior, a nossa
posição de partida para a realização da vida boa é pior do que era na sociedade
mais tradicional do seu tempo. O capitalismo alcançou um progresso
incomparável na criação de riqueza, mas deixou-nos incapazes de dar uma
utilização civilizada a essa riqueza.
Como é que criámos um sistema em que o amor pelo lucro foi libertado dos
seus limites morais e porque é que se tornou quase impossível voltar a
controlá-lo? Este será o tema do próximo capítulo.
39 Sarah Andersen et al., Executive Excess 2010: CEO Pay and the Great Recession (Londres: Institute for
Policy Studies, 2010).
42 Nos EUA, as horas de trabalho do quinto de pessoas menos bem pagas aumentaram 26% entre 1986 e
2004. No entanto, este padrão não esteve presente em todos os países ricos; a média equivalente da OCDE
foi uma queda de 5-10% nas horas de trabalho das pessoas menos bem pagas. Ver OCDE, Divided We
Stand: Why Inequality Keeps Rising (Paris: OCDE, 2011).
43 Juliet Schor, The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure (Nova Iorque: Basic
Books, 1991), p. 66.
44 Juliet Schor, «Towards a New Politics of Consumption» [Para uma Nova Política de Consumo], in Schor
e Douglas B. Holt (eds.), The Consumer Society Reader (Nova Iorque: New Press, 2000), p. 459. Schor
defende que se os governantes querem que os indivíduos desenvolvam estilos de vida mais sustentáveis não
deviam limitar-se a pedir às pessoas para reduzirem os seus níveis atuais de rendimento e consumo:
«abordagens que contenham estruturalmente o fluxo de rendimento aumentado nas mãos dos consumidores
são mais prometedoras». Ver também diversas encíclicas papais para o mesmo fim: por exemplo, Papa
Paulo VI, Octogesima Adveniens (1971;
http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_letters/documents/hfp_vi_apl_19710514_octogesima-
adveniens_en.html; acedida a 12 de janeiro de 2012): «Apesar de vastas áreas da população serem
incapazes de satisfazer as suas necessidades primárias, são engenhosamente criadas necessidades
supérfluas.»
46 The Week, 16 de julho de 2011. A The Week tem uma coluna regular intitulada «For those who have
everything» [Para aqueles que têm tudo].
47 Roy Harrod, «The Possibility of Economic Satiety – Use of Economic Growth for Improving the Quality
of Education and Leisure» [A Possibilidade de Saciedade Económica – Utilização do Crescimento
Económico para Melhorar a Qualidade da Educação e do Lazer], in Problems of US Economic
Development (Washington: Committee for Economic Development, 1958), pp. 207-213.
48 Fred Hirsch, Social Limits to Growth (Londres: Routledge, 1977), pp. 16-23.
49 Gary Becker, «A Theory of the Allocation of Time» [Uma Teoria da Distribuição do Tempo], Economic
Journal, vol. 75, n.º 299 (1965), pp. 493-517.
50 Staffan Linder, The Harried Leisure Class (Nova Iorque: Columbia University Press, 1970), p. 79.
52 A discussão pioneira destes conceitos é Harvey Leibenstein, «Bandwagon, Snob, and Veblen Effects in
the Theory of Consumers’ Demand» [Efeitos de Onda, Snobes e Veblen na Teoria da Procura dos
Consumidores], Quarterly Journal of Economics, vol. 64, pt. 2 (1950), pp. 183-207.
53 Termo popularizado pela cultura hip hop, refere-se a joias vistosas, faustosas e caras e a acessórios
ornamentados que são usados ou instalados, como telemóveis, ou capas de ouro ou pedras preciosas nos
dentes. (N. da T.)
54 Craufurd D. Goodwin (ed.), Art and the Market: Roger Fry on Commerce and Art (Ann Arbor:
University of Michigan Press, 1998).
59 Karl Marx, «Grundrisse», in Marx, Selected Works, ed. David McLellan, 2.ª ed. (Oxford: Oxford
University Press, 2000), p. 414 (tr. alterada).
2
O Pacto Faustiano
se preocuparem apenas com a sua própria conveniência, apesar de o seu único objetivo […] ser a
gratificação dos seus desejos vãos e insaciáveis, eles dividem com os pobres o resultado de todos os
seus progressos. Eles são levados por uma mão invisível a fazer quase a mesma distribuição das coisas
indispensáveis da vida que teriam sido feitas se a terra tivesse sido dividida em porções iguais entre
todos os seus habitantes, e, assim, sem pretenderem, sem saberem, promovem o interesse da
sociedade80.
O homem cuja vida inteira é passada a efetuar algumas operações simples, cujos efeitos são talvez
quase sempre os mesmos, ou muito semelhantes, não tem oportunidade para fazer uso da sua
inteligência ou exercitar a sua imaginação no sentido de encontrar expedientes para remover
dificuldades que nunca ocorrem. Assim, ele perde naturalmente o hábito de pensar e torna-se
geralmente tão estúpido e ignorante como é possível uma criatura humana tornar-se. O torpor da sua
mente torna-o não só incapaz de apreciar ou participar numa conversa racional como incapaz de
conceber qualquer sentimento generoso, nobre ou terno e, consequentemente, de formar um
julgamento justo relativamente a muitos dos deveres comuns da vida privada81.
Confesso que não estou encantado com o ideal de vida mantido por quem pensa que o estado
normal dos seres humanos é o de lutarem para progredir; que mesmo atropelando, esmagando,
acotovelando e pisando os calcanhares dos outros, as atitudes que compõem o tipo existente de vida
social, são o grupo mais desejável da espécie humana e de forma alguma os sintomas desagradáveis de
uma das fases do progresso industrial. Pode ser um estádio necessário no progresso da civilização, e as
nações europeias que até agora tiveram a sorte de ser preservadas poderão ainda ter de passar por ele
[…] Mas o melhor estado da natureza humana é aquele em que, apesar de ninguém ser pobre, ninguém
deseja ser mais rico, nem tem motivo para temer ser empurrado para trás pelos esforços de outros para
avançarem82.
A questão crucial é que a tecnologia possibilitou essa «mudança na natureza humana» que foi
procurada durante tanto tempo, mas que nunca poderia existir enquanto a escassez estivesse no
caminho. É tão simples como isto: quando houver comida e abrigo para todos, o homem deixará de
precisar de basear a sua sociedade no pressuposto de que todos os homens são antagonistas uns dos
outros. Aquilo a que chamámos «natureza humana» foi obra da necessidade – a necessidade da
escassez e do sistema de mercado. A nova natureza humana – amor e respeito – também obedece às
leis da necessidade. É necessária porque apenas juntos conseguiremos colher os frutos da era
tecnológica111.
Apesar de o protesto estudantil se ter espalhado por contágio em todos os
centros educativos do mundo ocidental no final da década de 1960, o seu
epicentro foi nos Estados Unidos112. Houve diversos motivos para isto: a
tradição americana de experiência utópica, a maior prosperidade dos
americanos comparativamente aos europeus e a guerra do Vietname. O fator
mais importante terá sido talvez a proporção muito mais elevada de jovens
americanos em universidades e institutos de educação superior. O mundo do
trabalho estava mais longe para muitos americanos jovens – cinco ou seis anos
mais longe – do que para a maioria dos jovens europeus. Isto criou uma
discordância psíquica entre a adolescência e o trabalho que foi suficiente, na
opinião de alguns filósofos hegelianos da revolução, para atingir o estado de
uma contradição. Os novos marxistas freudianos viam as universidades como
fábricas educativas que criavam uma nova classe revolucionária. O radicalismo
da década de 1960 foi um fenómeno das universidades, teorizado e promovido
pelos professores.
Destes, nenhum foi mais influente do que o filósofo emigrado Herbert
Marcuse, que proclamou a nova doutrina de libertação erótica com profunda
erudição alemã. Os livros de Marcuse Eros e Civilização (1955) e O Homem
Unidimensional (1964) tornaram-se as bíblias do protesto estudantil. A sua
frase «tolerância repressiva» definiu para os radicais a qualidade específica da
civilização americana. Como Marx, Marcuse seguia a tradição do messianismo
judeu em que «toda a discussão dos valores humanos reais e autênticos é
reduzida à escatologia» e que «abre a porta a uma utopia impenitente e otimista
que não pode ser descrita em termos de conceitos baseados num mundo não
remido»113.
Apesar da sua prosa muitas vezes impenetrável, Herbert Marcuse foi um
demónio brincalhão. A única atitude verdadeiramente progressista, disse, era
uma atitude de negação. «Aquilo que é não pode ser verdade» era um dos seus
lemas. Uma vez que os factos que parecem verdadeiros para o senso comum
são de facto a negação da verdade, a verdade só pode ser descoberta através da
«negação da negação». «A teoria crítica» era a sua ferramenta de emancipação
da sabedoria convencional. Um estudante que frequentava as suas aulas na
Universidade de San Diego, na Califórnia, escreveu que «Marcuse tem o
talento único de tornar Kant, Hegel e Marx relevantes para um corpo estudantil
que parece o elenco de um dos filmes de Hollywood cheios de adolescentes na
praia»114.
Eros e Civilização ofereceu uma interpretação freudiana da civilização
ocidental, mas sem o pessimismo de Freud. O que Freud qualificou de «instinto
mortal» não era inerente à raça humana, mas à sua repressão, e particularmente
à sua «repressão extra» pelo capitalismo ocidental. Esta repressão tinha-se
agora tornado redundante devido à automação do trabalho, embora continuasse
a ser perpetuada pelos poderosos, cujos interesses servia. Logo, a
ressexualização era a chave para a revolução. Para destruir a psicologia de
repressão em que o capitalismo se baseia, a humanidade precisava de regressar
ao estado recém-nascido de «perversidade polimorfa» em que o corpo inteiro é
a fonte de prazer erótico.
Quando escreveu O Homem Unidimensional, a esperança de Marcuse na
revolução tinha diminuído. «A contenção da mudança social é talvez a
realização mais singular da sociedade industrial avançada», escreveu ele. «O
consumo, publicidade, cultura de massas e ideologia» tinham integrado os
indivíduos na ordem capitalista e destruído eficazmente qualquer perspetiva de
«filosofia crítica»115. A sociedade moderna já não necessitava de terror, tinha
tecnologia.
O Homem Unidimensional retrata um mundo de pesadelo de «consciência
feliz» que rivaliza com distopias como Admirável Mundo Novo, com a
diferença de que se passa na América contemporânea. A tecnologia dá a cada
instinto uma expressão limitada, administrada. O pensamento oposicional já
não precisa de ser suprimido: não acontece. A cultura é integrada nas compras.
Os desvios são relegados para a psiquiatria. O que importa é que este é um
mundo feliz, um mundo que Marcuse apelida de «dessublimação repressiva»,
repressiva «precisamente ao ponto em que promove a satisfação de
necessidades que implicam a continuação da corrida de ratos para ser igual aos
seus pares e com obsolência planeada […].»116 A libertação deixa de ser
procurada porque foi entregue em lindos embrulhos de presente. A guerra
continua, mas apenas «no exterior» – em países subdesenvolvidos.
No mundo da consciência feliz, a base social para a mudança desapareceu. A
classe trabalhadora tornou-se um pilar da ordem estabelecida; a recusa absoluta
é «politicamente impotente». A automação pode libertar as pessoas do trabalho,
mas a tecnologia ainda controla as suas mentes. Em Eros e Civilização,
Marcuse tinha celebrado a função «crítica» de «perversões sexuais» como a
homossexualidade. «A desviância sexual representa […] um protesto contra a
tirania genital.»117 Mas o volume posterior abandonou este tema: as
«perversões» tinham-se tornado parte do novo normal. Não havia forma de
escapar.
Ou havia? «Subjacente à base popular conservadora está o substrato dos
marginalizados e forasteiros, dos explorados e perseguidos de outras raças e de
outras cores, dos desempregados e dos não empregáveis.»118 Este é o novo
espectro da revolução. Mas é um espectro muito mais fraco do que o que Marx
evocou para alarmar os seus leitores burgueses. Marcuse termina: «Não passa
de um acaso.»
É claro que sabemos que não foi estabelecida qualquer utopia sexual. Isto
não é surpreendente. As utopias são sociedades aperfeiçoadas: nunca existirão
neste mundo. É mais interessante considerar porque é que não houve mais
progresso para realizar os sonhos dos utópicos sexuais.
A razão mais óbvia foi o facto de as economias ocidentais terem sido
incapazes de manter a promessa de abundância generalizada. Na prática, aos
movimentos de protesto da década de 1960 seguiu-se rapidamente o colapso do
estado keynesiano em que as expectativas de abundância iminente tinham sido
construídas. Isto destruiu o utopismo. Marcuse tornou-se uma peça de museu
no Ocidente (se bem que não na América Latina) ainda antes da sua morte. O
mundo do trabalho inseguro voltou; a tendência para uma distribuição mais
igual de rendimento foi invertida; a destruição criativa regressou. Sob Reagan e
Thatcher o capitalismo recuperou uma grande parte do seu espírito de pirata e o
sonho de libertação instintiva de um trampolim de riqueza conseguida
retrocedeu.
Mas, mesmo que o crescimento tivesse continuado ao ritmo anterior, o
utopismo da década de 1960 estaria quase certamente destinado ao fracasso. O
próprio Marcuse acabou por reconhecer a capacidade do capitalismo para
«conter» mudança social. A cultura de sexo, drogas e rock and roll dos jovens
revelou-se inteiramente compatível com a continuação das relações existentes
de domínio, ainda que de uma forma modificada. Afinal de contas, o
capitalismo foi muito bem-sucedido a comercializar a revolução sexual,
absorvendo-a e transformando-a em produtos claramente vendáveis. A
violência, quer criminal quer revolucionária, tornou-se uma parte integrante da
indústria do entretenimento. O sistema capitalista demonstrou uma enorme
capacidade para amortecer castigo sem ser derrubado. É como um grande saco
de pancada que, por muito que seja massacrado, volta sempre para a pessoa,
não necessariamente com a mesma forma, mas sem dúvida com a mesma
substância.
Não obstante, a escolha de Marcuse da palavra «contenção» julga
prematuramente o caso. A contenção também envolve pluralismo. As
sociedades democráticas liberais protegem muitos atores que se opõem ao
gosto pelo lucro. Para Marcuse (como para os marxistas intransigentes), os
governos social-democratas e os sindicatos faziam parte do mesmo sistema
repressivo, que tinha de ser negado in toto. Analogamente, Marcuse não
conseguiu atribuir o devido peso às diferenças qualitativas entre fascismo e
democracia e à dimensão dos seus respetivos horrores. A ênfase exagerada que
deu ao «desejo de morte» foi, é claro, fortemente influenciada pelo Holocausto
nazi e pela ameaça de um holocausto nuclear. Os seus trechos mais irónicos
sobre a «consciência feliz» referem-se a abrigos nucleares equipados com
alcatifas e com todas as tralhas de uma sociedade de consumo.
O erro fundamental de Marcuse foi o de todos os utópicos: fechou os olhos
ao facto óbvio do «pecado original». Foi isto que lhe permitiu ver todos os
males associados ao sexo – ciúme, pornografia, sadismo, etc. – como produtos
da sua repressão pelo capitalismo. Removida essa repressão, o sexo reverteria
automaticamente para o estado de inocência infantil. Esta era uma filosofia
simplista que o próprio Freud nunca adotou. O desejo sexual está ligado na sua
origem ao poder e à vulnerabilidade, o que significa que esta regulação não é
um fenómeno transitório, mas uma condição básica de qualquer existência
civilizada.
Marcuse fechou os olhos à intensidade não só da luxúria, mas da ganância.
Como outros marxistas, pensava que a multiplicação de desejos nos era
imposta por um mecanismo produtivo demoníaco. Nós só tínhamos de nos
libertar deste mecanismo e os nossos desejos voltariam a ser reduzidos para o
seu nível «natural». Ele não conseguiu ver que os desejos se multiplicarão de
motu proprio, a menos que sejam reprimidos pela disciplina moral. O
hedonismo da década de 1960 levou, naturalmente, ao consumismo da década
de 1980.
61 Ver Krishan Kumar, Utopia and Anti-Utopia in Modern Times (Oxford: Wiley-Blackwell, 1987), pp. 3-
9.
62 Terra mítica medieval – é um lugar imaginário de enorme prazer e indolência onde os confortos e
prazeres físicos estão imediatamente à mão e onde a dureza da vida medieval rural não existe. (N. da T.)
66 Nicolau Maquiavel, The Florentine History (Charleston, SC: Forgotten Books, 2010), vol. 2, p. 1.
68 Karl Löwith, Meaning in History: The Theological Implications of the Philosophy of History (Chicago:
University of Chicago Press, 1957), p. 149.
70 Bernard Mandeville, The Fable of the Bees: or Private Vices, Publick Benefits, ed. Phillip Harth
(Harmondsworth: Penguin, 1989), pp. 49, 51.
71 Ver ibid., introdução do editor; também N. T. Phillipson, Adam Smith: An Enlightened Life (Londres:
Allen Lane, 2010), p. 48.
73 David Hume, «Of Refinement in the Arts» [Sobre o Refinamento nas Artes], in Hume, Essays, Moral,
Political and Literary (Londres: Grant Richards, 1903), p. 287.
75 A genealogia do «interesse» e «le doux commerce» é delineada por Albert O. Hirschman em The
Passions and the Interests: Political Arguments for Capitalism before its Triumph (Princeton: Princeton
University Press, 1997), pp. 31-66. O «narcisismo» começou a existir como um termo agostiniano de
opróbio, mas foi transformado por Rousseau, e Adam Smith seguiu-o, num termo neutro que designava
uma atenção natural pelo bem-estar da própria pessoa. Para pormenores, ver Pierre Force, Self-Interest
before Adam Smith (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), pp. 57-67.
79 Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments (Oxford: Oxford University Press, 1979; primeira edição,
1759), pp. 308-313.
81 Ibid., p. 461.
82 John Stuart Mill, Principles of Political Economy (1886), «Of the Stationary State» [Do Estado
Estacionário], livro iv, cap. vi, p. 748; para uma crítica ao «moralismo» de Mill, ver Michael Montgomery,
«John Stuart Mill and the Utopian Tradition» [John Stuart Mill e a Tradição Utópica], in Jürgen Georg
Backhaus (ed.), The State as Utopia: Continental Approaches (Berlim: Springer, 2011), pp. 19-34.
83 Theodor Ziolkowski, The Sin of Knowledge: Ancient Themes and Modern Variations (Princeton:
Princeton University Press, 2000), p. 68.
84 Goethe, Faust, tr. Barker Fairley (Toronto: University of Toronto Press, 1970), pp. 25, 26.
86 Johann Peter Eckerman, Conversations of Goethe (Nova Iorque: M. Walter Dunne, 1901), p. 85.
87 Karl Jaspers, Unsere Zukunft und Goethe (Bremen: Storm, 1948), p. 18.
88 Ver John Gray, Black Mass: Apocalyptic Religion and the Death of Utopia (Londres: Allen Lane, 2007).
89 Citado in Leszek Kotakowski, Main Currents of Marxism, vol. 1: The Founders (Oxford: Clarendon
Press, 1978), p. 285.
90 Ibid., p. 285.
91 Ver Eric Hobsbawm, How to Change the World: Tales of Marx and Marxism (Boston: Little, Brown,
2011), p. 147: «No mechanism for the breakdown [of slave society] is outlined…» [Não é esboçado
qualquer mecanismo para o fim (da sociedade escrava)].
92 Marx nunca falou em «capitalismo». Ele usou a palavra «burguesia» para realçar o carácter baseado em
classes do sistema capitalista. Mas «capitalismo» pode ser substituído sem perda de significado. Para ser
pedante, o capitalismo é um sistema em que a posse de capital está concentrada nas mãos de uma única
classe – a burguesia – que o usa em proveito próprio.
94 Ibid., p. 9.
95 Ibid., p. 8.
96 Ibid., p. 13.
97 Ibid., p. 9.
98 Karl Marx, «Capital», in Marx: Collected Writings (Londres: Lawrence and Wishart, 1974), pp. 714-
715.
100 Citado em Meghnad Desai, Marx’s Revenge: The Resurgence of Capitalism and the Death of Statist
Socialism (Londres: Verso, 2004), p. 95.
103 Karl Marx, «The German Ideology» [A Ideologia Alemã], in Karl Marx: Selected Writings, ed. David
McLellan (Oxford: Oxford University Press, 1977; primeira edição, 1846), p. 169.
104 Leon Trotsky, Literature and Revolution, ed. William Keach (Nova Iorque: International Publishers,
2005), p. 207.
105 Jung Chang e John Holliday, Mao: The Unknown Story (Londres: Jonathan Cape, 2005), p. 457.
106 Ver, por exemplo, John Strachey, Contemporary Capitalism (Londres: Gollancz, 1956), e Anthony
Crosland, The Future of Socialism (Londres: Jonathan Cape, 1956).
107 Charles Reich, The Greening of America (Nova Iorque: Random House, 1970), p. 259; citação de R. N.
Berki, «Marcuse and the Crisis of the New Radicalism: From Politics to Religion?» [Marcuse e a Crise do
Novo Radicalismo: Da Política para a Religião?], Journal of Politics, vol. 34, pt. 1 (1972), p. 151.
108 Theodore Roszak, The Making of a Counter-Culture: Reflections on the Technocratic Society and its
Youthful Opposition (Berkeley: University of California Press, 1969), pp. 17-18.
109 Para a «era de ouro» capitalista, ver Robert Skidelsky, Keynes: The Return of the Master, 2.ª ed.
(Londres: Penguin, 2010), cap. 5.
110 No Prefácio de The Making of a Counter-Culture, um tema que ele desenvolveu posteriormente em
Where the Wasteland Ends, J. K. Galbraith criou a expressão «a tecno-estrutura» em The New Industrial
State (Princeton: Princeton University Press, 2007).
112 A revolta dos jovens contra os valores dos pais não se confinou aos estudantes, mas o radicalismo
político da década de 1960 sim.
113 Citado em Alain Martineau, Herbert Marcuse’s Utopia (Montreal: Harvest House, 1984), p. 7.
117 Herbert Marcuse, Eros and Civilization (Nova Iorque: Random House, 1961), p. 48.
Os Usos da Riqueza
Quem é rico? Aquele que não deseja coisa alguma. Quem é pobre? O avarento.
Ausonius
De tudo o resto a pessoa pode ter de mais – por exemplo, amor, ou pão, ou cultura, ou frutos secos,
ou honra, ou bolos, ou valentia, ou figos, ou ambição, ou pães de cevada, ou poder, ou sopa. Mas
ninguém se farta jamais de ti. Se um homem tem 80 mil dracmas, fica ainda mais decidido a ter 100
mil; e, quando conseguir, diz que a vida não vale a pena ser vivida a menos que ganhe um quarto de
um milhão128.
A desconfiança do ilimitado e infinito foi característica do pensamento grego
antigo em geral, incluindo a astronomia e a matemática. Aristóteles defendeu
que as estrelas, como corpos perfeitos, têm de seguir um movimento circular,
isto é, finito. Pitágoras detestava tanto os números irracionais que se diz que
terá assassinado o seu infeliz descobridor. Os gregos ainda tinham de descobrir
o romance das tarefas infinitas e dos desejos ilimitados de que o capitalismo
moderno é uma manifestação impressionante. Eles eram um povo
supremamente «não faustiano».
Todos os filósofos da Grécia antiga partilharam a insistência de Aristóteles
em limitar desejos a necessidades, muito embora a sua interpretação dessas
necessidades variasse muito. Num extremo estava Diógenes de Sinope, o
Cínico, do século IV a. C. que viveu num barril e atirou fora a sua única tigela
depois de ver uma criança beber água com as mãos. (Quando Alexandre, o
Grande, lhe perguntou se poderia fazer alguma coisa por ele, diz-se que terá
respondido: «Sim, sair da frente do meu sol.») Epicuro, que foi contemporâneo
de Diógenes, foi um asceta mais afável. Vegetariano e abstémio e não o
«epicuro» da lenda popular, ensinou que o prazer está não tanto na satisfação
do desejo como na sua redução a um simples mínimo. Os seus seguidores
reuniam-se num jardim, longe da azáfama do mercado, onde passavam o tempo
a conversar e a aprender.
O desprezo filosófico pela riqueza migrou da Grécia antiga para Roma, onde
se fundiu com a tradição de austeridade republicana mencionada no último
capítulo. Denúncias de avaritia (avareza) e luxuria (luxúria) passaram a fazer
parte do arsenal-padrão da sátira, a par das acusações de excessos sexuais.
«Nem calor ardente, nem inverno, fogo, mar, espada podem desviar-te do
lucro», declamou Horácio para o avarento. «Nada te para, até homem algum
ser mais rico do que tu.»129 Filósofos romanos de todas as escolas exortavam a
parsimonia ou frugalidade; entretanto, os não filosóficos eram controlados por
leis sumptuárias. O modelo de governação era alimentar: assim como temos de
nos treinar para parar de comer quando estamos satisfeitos, também temos de
nos ensinar, individual e coletivamente, a parar de acumular quando temos o
suficiente.
Que pensariam Aristóteles e outros filósofos antigos do nosso apuro
moderno? Casos individuais de avareza e extravagância não os surpreenderiam;
o mundo antigo teve o seu quinhão de Midas e Cresos. E tão-pouco teriam
ficado surpreendidos com a dinâmica da criação de desejos esboçada no
Capítulo 1, pois também isto existiu no mundo antigo, embora numa dimensão
muito mais pequena. Porém, ficariam extremamente surpreendidos por vermos
essas coisas não como uma vil deformação, mas como uma parte normal e
indispensável do mecanismo social, mesmo como marcas de vitalidade.
Aristóteles conhecia a insaciabilidade apenas como um vício pessoal; não tinha
noção da insaciabilidade coletiva, politicamente orquestrada, a que chamamos
crescimento. A civilização de toujours plus130, como o filósofo francês Bertrand
de Jouvenel lhe chamou, ter-lhe-ia parecido uma loucura moral e política.
Não tenho nada para fazer depois de uma refeição e tento ver as coisas que estão dentro de alguns
velhos baús. Vejo que há dúzias ou centenas de declarações de dívida de pessoas que devem dinheiro à
minha família. Algumas dessas pessoas estão mortas e outras continuam vivas, mas em todo caso não
há qualquer esperança de devolverem o dinheiro. Sem as pessoas saberem, coloco-as numa pilha e faço
uma fogueira com elas, olho para o céu e vejo o último vestígio de fumo a desaparecer. Ah, isto não é
felicidade?
Acordo de manhã e parece-me ouvir alguém na casa a suspirar e a dizer que alguém morreu ontem à
noite. Pergunto imediatamente quem foi e fico a saber que foi o homem mais inteligente e calculista da
cidade. Ah, isto não é felicidade?
Cortar com uma faca afiada uma melancia verde-clara num grande prato vermelho numa tarde de
verão. Ah, isto não é felicidade?
Abrir a janela e deixar uma vespa sair da sala. Ah, isto não é felicidade?
Ver a linha do papagaio de alguém a partir-se. Ah, isto não é felicidade?145
Aqui está uma visão da vida boa diferente de qualquer outra que vimos até
agora. A lista de Jin não reflete um ideal filosófico ou religioso, não mostra o
esforço para atingir a perfeição ou a abnegação. Não passa de um registo de
alguns momentos inconsequentes de felicidade – alguns generosos, alguns
bizarros, outros completamente schadenfreudig146. Só dois séculos mais tarde o
romantismo ensinaria os leitores ocidentais a deixarem as suas mentes
deambular tão livremente e sem destino como esta.
As experiências listadas por Jin custam pouco dinheiro ou nenhum, e este
facto é importante para o seu poder de atração. Se Jin tivesse escrito sobre os
encantos da sopa de pata de urso ou jade «gordura de carneiro» ter-nos-ia
parecido meramente exótico. Ele parece humano porque escreve sobre coisas
básicas e universais. O taoismo, como o epicurismo, era uma filosofia de
prazeres simples. O seu ideal era o yinshi ou eremita, o homem que se afasta da
sociedade para escrever poesia, pintar, ou simplesmente beber chá com velhos
amigos. No entanto, o yinshi não era um asceta. Pescadores e pastores podiam
decorar os seus quadros, mas estava fora de questão dedicar-se a essas
ocupações servis. Na China, como noutros lugares, a pobreza rústica era para
ser meditada, não vivida.
A literatura chinesa antiga não tem nada tão exato como a discussão de
Aristóteles sobre os efeitos corruptores do dinheiro, mas a ideia subjacente foi
expressa com grande bravata pelo historiador do século I a. C., Sima Qian:
O desejo de riqueza não precisa de ser ensinado; é parte integrante de toda a natureza humana.
Logo, quando os jovens soldados atacam cidades e reduzem muralhas, penetram nas linhas do inimigo
e afugentam os adversários […] é porque são incitados pela perspetiva de uma rica recompensa […]
De igual forma, quando as mulheres de Chao e as donzelas de Cheng pintam os seus rostos e tocam o
grande alaúde, abanam as suas mangas compridas e andam rapidamente de um lado para o outro com
os seus chinelos pontiagudos, convidam com os olhos e atraem com o coração, pensando que não é
distância nenhuma viajar 1500 quilómetros para conhecer um protetor e não se importando se ele é
velho ou novo, é porque estão à procura de riquezas […] Quando os funcionários do governo fazem
malabarismos com frases e deturpam o sentido da lei, esculpem selos falsos e falsificam documentos,
indiferentes aos castigos mutiladores da faca e serra que os esperam se forem descobertos, é porque
estão afogados em subornos e presentes […] Assim os homens aplicam todo o seu conhecimento e
usam todas as suas capacidades simplesmente para acumular dinheiro. Nunca lhes resta qualquer força
para pensarem na questão de dar um pouco147.
Apesar de toda a sua ressonância vestigial, a ideia da vida boa já não faz
parte da discussão pública no mundo ocidental. Os políticos defendem o seu
argumento em termos de escolha, de eficácia ou de proteção dos direitos. Eles
não dizem: «Penso que esta política ajudará as pessoas a viverem vidas
produtivas e civilizadas.» A discussão privada teve tendência para imitar a
discussão pública. Quantos professores tentaram interessar os alunos em
alguma questão de ética ou estética e lhes foi dito, com um ar de
condescendência cansada, que é tudo apenas uma questão de opinião?
O efeito deste desenvolvimento foi a libertação do instinto aquisitivo de
todos os limites fixados. Se a vida boa não existir, então a aquisição não tem
um objetivo absoluto, apenas o objetivo relativo de «tanto como» ou «mais do
que» os outros; um objetivo que, uma vez que é partilhado por esses outros,
nunca é cumprido. Imaginem, como uma analogia, dois homens a caminhar
para uma determinada cidade. Perdem-se durante o percurso, mas continuam a
andar, agora com o único objetivo cada um de ficar à frente do outro. Aqui está
uma imagem da nossa situação. O desaparecimento de todos os objetivos
intrínsecos deixa-nos apenas com duas opções: estar à frente ou atrás. A luta
posicional é o nosso destino. Se não há um sítio certo para estar, é melhor estar
à frente.
Como podemos explicar o eclipse da vida boa? No último capítulo,
descobrimos a origem da história da ideia de que motivos maus podem ser
autorizados em nome dos seus efeitos bons. Mas os escritores que examinámos
– Mandeville, Goethe, Marx, Marcuse e Keynes – não tinham a ilusão de que
os motivos maus são de facto maus. Eles próprios não acreditavam que bom é
mau e mau é bom, embora possam ter sido encorajados por outros a acreditar
nisso. No entanto, as últimas duas décadas viram o triunfo de dois movimentos
de pensamento cuja tendência combinada foi corroer a própria linguagem de
«bom» e «mau» – a teoria liberal moderna por um lado e o sistema económico
neoclássico por outro. Entre eles, estes dois movimentos estabeleceram um
monopólio virtual no discurso público, empurrando tradições éticas mais
antigas para uma posição marginal e alternativa.
Desde a publicação de A Theory of Justice de John Rawls, em 1971, os
pensadores liberais insistiram na neutralidade pública entre conceitos rivais de
bem148. Eles defendem que o Estado não devia apoiar esta ou aquela perspetiva
ética; pelo contrário, devia deixar os cidadãos livres para seguirem as suas
próprias luzes morais, desde que isso seja compatível com uma liberdade
semelhante para os outros. Escusado será dizer que este ideal filosófico nunca
foi plenamente concretizado na prática. O Estado francês não é neutral no
tratamento das mulheres que usam o véu muçulmano e nenhum Estado é liberal
em relação à heroína. Porém, ao nível do argumento, o ideal rawlsiano
triunfou. Atualmente, até políticas manifestamente paternalistas são defendidas
com o fundamento de que promovem a escolha ou previnem danos a terceiros.
Por exemplo, a pornografia é condenada com o fundamento dúbio de que
explora as mulheres ou incita os homens à violação, enquanto a sua verdadeira
ofensa – a de degradar gosto e sentimento – não é mencionada. Neste, como
noutros casos, o princípio de neutralidade teve um efeito desencorajador na
discussão pública, desviando o que deveriam ser argumentos éticos para
estéreis atalhos técnicos149.
O princípio da neutralidade do Estado está agora tão enraizado que, por
vezes, esquecemos até que ponto é revolucionário. Até à década de 1960, o
liberalismo era acima de tudo uma doutrina de tolerância, não de neutralidade.
A distinção é importante. Tolerância não é uma mera ausência de preconceito,
mas uma virtude ética positiva; implica paciência, serenidade, bom humor e
respeito pela privacidade. A tolerância não exclui a preferência pública por
uma doutrina moral ou religiosa relativamente a outras; insiste apenas que os
rivais sejam tratados com consideração e respeito. Por fim, a tolerância não tem
de ser alargada ao intolerável, ao passo que a neutralidade tem de ser
consistentemente universal. O Estado tolerante não enfrenta o dilema do Estado
neutral quando lida com necrófilos, neonazis e afins.
A mudança da tolerância para a neutralidade tem duas causas principais. A
primeira é o declínio do protestantismo liberal, o pilar da antiga cultura de
tolerância. A segunda é o aumento da diversidade étnica e cultural. A partir da
década de 1950, os Estados europeus abriram as portas a grandes números de
imigrantes não brancos e não cristãos, enquanto na América a ascendência
WASP150 foi atacada por negros, católicos e judeus. Em resultado desses
desenvolvimentos, qualquer preferência pública por uma tradição religiosa ou
cultural em detrimento de outras, por muito leve ou simbólica, passou a ser
sentida como humilhante. Ironicamente, a exigência de neutralidade veio tanto
de membros de antigas elites atormentados pela culpa como das próprias
minorias, muitas das quais prefeririam viver à sombra de uma confissão rival
tolerante do que sob um secularismo imparcial, mas despótico151.
A disciplina de economia tem uma importância ainda maior para a
desmoralização da vida pública, especialmente como é agora ensinada nas
universidades e institutos de finanças em todo o mundo. Os economistas –
generalizamos, mas não muito – abstêm-se conscientemente de julgar os
desejos. «Nada em economia define tão rapidamente um indivíduo como tendo
um treino incompetente», escreveu J. K. Galbraith, «como uma disposição para
comentar a legitimidade do desejo de mais comida e a frivolidade do desejo de
um carro mais sofisticado.»152 Os economistas são totalmente a favor da
satisfação dos desejos, pelo menos dentro de certos limites. Mas, quanto aos
desejos em si, mantêm uma fastidiosa indiferença.
Esta peculiaridade da economia é um produto das raízes da disciplina na
revolta empírica contra Aristóteles. «Os filósofos de antigamente perguntaram
em vão», escreveu John Locke, um líder dessa revolta, «se o summum bonum153
consistia em riquezas, ou prazeres corporais, ou virtude, ou contemplação: e
podiam ter discutido com igual razoabilidade se o melhor sabor podia ser
encontrado em maçãs, ameixas ou nozes.»154 Locke admite prudentemente que
a existência do céu e do inferno nos dá um interesse primordial para agirmos
virtuosamente, mas acrescenta que, se não fosse assim, nenhuma forma de vida
seria preferível a outra. Este ponto de vista cético passou para a economia da
corrente dominante sob o lema de «indisputabilidade dos desejos». O desejo já
não é, como era para os antigos, uma seta capaz de atingir ou falhar o alvo; é
um simples facto psicológico, inocente e infalível. Não há uma vida
intrinsecamente desejável, apenas uma série de estilos de vida desejados.
Quando esta pedra angular do pensamento económico pré-moderno é
removida, os outros blocos caem rapidamente no chão. O primeiro a cair é a
distinção entre necessidades e desejos. No conceito clássico, as necessidades
são objetivas; referem-se aos requisitos da vida ou a vida boa. Pelo contrário,
desejos são um fenómeno psicológico; estão «na mente» daquele que deseja.
Necessidades e desejos são independentes uns dos outros. A criança precisa do
seu remédio, mas não o deseja; o bibliófilo quer uma primeira edição de Blake,
mas não necessita dela. Uma necessidade de x estabelece uma reivindicação
moral de x, ao passo que o simples desejo de x não estabelece. Os mendigos
falam sobre as suas necessidades, nunca sobre os seus desejos155.
Tendo abandonado o conceito da vida boa, a economia moderna não
consegue compreender a distinção entre necessidades e desejos. «O Arthur
precisa de um casaco» tem de ser lido como uma abreviatura de «O Arthur
precisa de um casaco para…», onde as reticências expressam algum desejo de
Arthur. Com muito esforço, os economistas poderiam admitir a existência de
necessidades de subsistência, mas provavelmente acrescentariam que até essas
necessidades estão dependentes do desejo (normalmente fiável) de estar vivo.
Outra estratégia comum é interpretar as necessidades como uma classe especial
de desejos – nomeadamente, aqueles que são relativamente indiferentes às
flutuações de preços, ou de «preços não elásticos» na gíria. Mas isto é uma
revisão, não uma clarificação, do nosso conceito normal de desejo. A heroína
não é elástica aos preços, mas os toxicodependentes não precisam de heroína.
Podem falar sobre «precisar de uma dose», mas, exceto nos casos em que a sua
vida está em risco, isto não é literalmente verdadeiro. Eles só desejam muito
uma dose.
A par da distinção entre necessidades e desejos está a distinção intimamente
relacionada entre necessidades e luxos. No sentido clássico, necessidades são
coisas de que precisamos para a vida ou a vida boa. «Homem algum pode viver
bem, ou sequer viver, a menos que tenha o essencial.»156 Pelo contrário, luxos
são coisas que as pessoas querem, mas de que não necessitam. Uma vez mais,
os dois termos estão moralmente carregados: necessidades são itens a que as
pessoas têm algum direito, embora nem sempre prioritário; luxos são extras
opcionais e, possivelmente, corruptores. Uma necessidade nunca deve ser
sacrificada a um luxo. Mas, se a vida boa não existe, então os «bens essenciais»
podem referir-se apenas a bens de subsistência como comida e abrigo, ou aos
requisitos de um determinado papel social. E neste último sentido são apenas
convencionalmente, não naturalmente, diferentes dos luxos. As viagens em
primeira classe são uma necessidade para o executivo, mas não para a pessoa
que viaja de mochila às costas. Atualmente as casas de banho dentro das casas
são consideradas uma necessidade na Grã-Bretanha, mas isso não acontecia há
50 anos.
A seguir cai o conceito de «adequação» ou suficiência. Se para o pensamento
aristotélico «suficiente» significa «suficiente para a vida boa», para o
economista moderno só pode significar «suficiente para satisfazer desejos». (É
neste espírito que Billy Bunter157 poderia exclamar, enquanto lança um olhar
brilhante aos presuntos na sua despensa, «não há suficientes».) Interpretada
neste sentido relativo a desejo, a nossa pergunta «quanto é suficiente?» só pode
ser respondida com um encolher de ombros e um «quanto queres?» E é claro
que, se suficiente significar apenas «suficiente para satisfazer desejos», querer
mais do que o suficiente é uma coisa que não existe. A avareza enquanto vício
desaparece da vista.
Por fim, mas não menos importante, a economia moderna prescindiu do
conceito central de valor de uso. Para Aristóteles, como vimos, o valor de uso
de um objeto é o seu contributo específico para a vida boa. O vinho, por
exemplo, valoriza a comida e a amizade, ambos bens humanos fundamentais.
Por conseguinte, tem valor de uso, ao passo que o crack (que não valoriza nem
a comida nem a amizade, nem nenhuma outra coisa boa) não tem. O facto de
eu preferir crack a vinho não altera este facto; mostra simplesmente que tenho
um gosto corrompido.
O conceito de valor de uso de Aristóteles foi adotado por Smith, Ricardo e,
evidentemente, Marx, que o aplicou numa enérgica obra crítica. Mas no final
do século XIX, e em parte em reação a Marx, economistas dedicaram-se a
desmantelá-lo. «O valor», escreveu Carl Menger, um pioneiro da nova
abordagem, «não é nada inerente aos bens, não é propriedade deles, nem uma
coisa independente que existe por si só. É um julgamento que os homens
economizadores fazem sobre a importância dos bens que têm à sua
disposição.»158 Este novo conceito de valor, mais conhecido por «utilidade»,
tornou-se desde então padrão na disciplina. Utilidade é um conceito puramente
descritivo; expressa o que eu quero, não o que eu deveria querer. Se prefiro
gastar o meu dinheiro em crack e não em vinho – bem, então o crack tem mais
utilidade para mim.
A descoberta da utilidade foi aclamada como um grande avanço na análise
económica, principalmente porque pareceu resolver o velho problema de
Aristóteles da relação entre o valor de uso e o valor de troca. Aristóteles tinha
refletido sobre como um porco e uma cama, que contribuem para a vida boa de
formas muito diferentes, podiam, não obstante, ser avaliados numa única escala
monetária. Mas à luz desta nova perspetiva o problema desaparece. Se o valor
de uso for apenas «utilidade no consumo», e o valor de troca «utilidade na
troca», os dois surgem, nas palavras de Menger, meramente como «diferentes
formas de um único fenómeno geral de valor»159. Deixa de existir o problema
metafísico de transformar um tipo de valor noutro e passa a haver apenas o
problema técnico de determinar em que ponto os bens de consumo serão
trocados em vez de serem usados. Todavia, como acontece tantas vezes na
história das ideias, o problema de Aristóteles não foi verdadeiramente
resolvido, mas substituído por outro problema mais tratável. Compreendido no
seu sentido original, como utilidade real e não simples utilidade no consumo, o
valor de uso deixa de poder ser transformado em valor de troca.
A dissolução da distinção entre valor de uso e valor de troca estava repleta de
importância. Desde Aristóteles até Keynes, o valor de troca – ou dinheiro, a sua
personificação pura – foi considerado um objeto de busca distinto e
questionável. Virgílio falou na auri sacra fames, a luxúria abominável por
ouro. Para Keynes, o amor pelo dinheiro «como uma posse» e não apenas
como «um meio para os prazeres e realidades da vida», foi «uma daquelas
propensões semicriminosas e semipatológicas que entregamos com um
estremecimento aos especialistas em doenças mentais»160. Todavia, se a
ortodoxia moderna estiver correta, a distinção aqui feita por Keynes não tem
substância. O dinheiro em si, distinto das coisas que domina, não pode ser um
objeto especial de amor. A paixão de Midas e de Shylock não é uma paixão
positiva, mas simplesmente uma preferência pelo consumo futuro
relativamente ao consumo presente, ou uma certa dose de aversão ao risco.
Algumas pessoas veem isto como um sinal de progresso intelectual. Sentimo-
nos inclinados a considerar que é uma regressão do pensamento económico.
Paremos para fazer um inventário. As diversas distinções estabelecidas pelo
pensamento económico pré-moderno – entre necessidades e desejos, coisas
indispensáveis e luxos, valor de uso e de troca – baseiam-se na suposição de
que algumas formas de vida são intrinsecamente superiores a outras. A
economia moderna prescindiu desta suposição. Já não aspira a realizar o Bem,
mas apenas a criar condições em que as pessoas podem realizar «o bem» tal
como o concebem. «Dado o sem-número de conceitos concorrentes da vida
boa», escreve o economista Robert Frank, resumindo a opinião ortodoxa, «o
máximo que podemos esperar nas nossas instituições sociais será talvez que
concedam a cada um de nós a maior latitude possível para criarmos vidas
adequadas para nós.»161 Os economistas não ambicionam refazer a natureza
humana. Aceitam as pessoas como elas são, não como deveriam ser. Depois de
todos os horrores cometidos em nome do céu e da utopia, esta parece-lhes uma
atitude adequadamente modesta.
Mas porque é que – poderia perguntar um crítico neste ponto – deveríamos
privilegiar o que os economistas dizem? Afinal de contas, não passam de um
grupo de académicos entre outros, e nem sequer são um grupo muito popular.
Mas essa rejeição seria insensata. A economia não é uma simples disciplina
académica. É a teologia do nosso tempo, a linguagem que todos os interesses,
pequenos e grandes, têm de falar se querem ter uma voz respeitada nos centros
de poder. Em parte, a economia deve a sua posição especial à incapacidade de
outras disciplinas imprimirem o seu cunho no debate político. A filosofia foi
uma força poderosa na vida pública até ao início do século XX, quando bateu
em retirada para a minúcia linguística. A sociologia procurou ser influente sob
Weber e Talcott Parsons, mas nunca conseguiu desenvolver um corpo
sistemático de teoria para rivalizar com a economia. A história sucumbiu à
adoração do poder. Poetas e críticos gabaram-se em tempos de serem
«legisladores não reconhecidos do mundo», uma ambição brevemente
reavivada por T. S. Elliot e F. R. Leavis, mas agora discretamente abandonada.
A economia ficou como a única proprietária do campo.
O triunfo da economia sobre as suas rivais académicas reflete uma mudança
social maior, que poderia ser rotulada como o colapso da autoridade
institucional. Ideais da vida boa, enraizados na igreja e na aristocracia rural e
promovidos por uma «elite intelectual» de escritores, artistas e fidalgos,
exerceram uma força poderosa na Grã-Bretanha já no século XX. Nas cidades
industriais, padrões partilhados de trabalho deram origem a formas de vida que,
se não eram exatamente «boas» no sentido de Aristóteles, eram pelo menos
mais que puramente maximizadoras. Tudo isto já desapareceu. A aristocracia,
privada do seu papel político, fundiu-se nos ricos; a «elite intelectual» é uma
roda pequena e nada influente; as velhas Igrejas são sombras do que foram; e a
classe operária está espalhada e sem vigor. A economia neoclássica, atomista e
subjetivista, cresceu para encher o vazio.
As duas tradições de pensamento examinadas aqui, o liberalismo pós-
rawlesiano e a economia neoclássica, proíbem qualquer preferência pública por
este ou aquele estilo de vida. Nenhum deles tem qualquer objeção a que os
indivíduos decidam por si mesmos que um determinado estilo de vida é «bom»
e não trabalhem mais do que o necessário para sustentá-lo. (Se a sua «função
de utilidade» é moldada dessa forma, quem somos nós para contradizê-los?)
Mas esta concessão é menos generosa do que pode parecer. Para uma espécie
social como a nossa, a vida boa é essencialmente uma vida em comum com
outros. A sua origem não é nos cérebros dos indivíduos, mas em grupos de
pessoas que fazem coisas juntas. O meu desejo pode ser de passar o dia inteiro
a jogar ao berlinde na praça da cidade, mas se mais ninguém jogar ao berlinde,
ou se não houver uma praça na cidade, esse desejo não se realizará. A
participação coletiva é essencial para todas as visões da realização humana,
exceto para as mais solitárias.
É claro que, numa sociedade liberal, não há nada que impeça os indivíduos
de se reunirem para viver a vida boa. Tipicamente, utópicos e sectários fazem
precisamente isso. Todavia – e isto realça um segundo sentido mais profundo
em que a vida boa é essencialmente pública –, essas associações dependem da
sua vitalidade continuada no reconhecimento da cultura circundante; sem ela, é
provável que implodam em desconfiança e ressentimento. (Compare-se o
destino da maioria das comunas modernas com o dos mosteiros medievais,
apoiados como eram por toda a sociedade, quer moral quer materialmente.)
Num mundo dedicado à satisfação dos desejos privados, a vida boa pode ser na
melhor das hipóteses uma preocupação marginal, um assunto de excêntricos e
entusiastas. Os seus adeptos estão sujeitos a ser atormentados pelo pensamento
de que não estão «à altura» das pressões da concorrência, que os seus ideais são
uma mera máscara de fracasso. Logo, embora seja verdade que uma sociedade
liberal permite qualquer número de visões da vida boa, não é, na mesma linha,
hospitaleira para nenhum deles.
120 Esta interpretação é controversa. Aqui estamos a seguir a chamada escola «primitivista», que vê um
golfo radical entre a economia antiga e o capitalismo moderno. Ver Scott Meikle, Aristotle Economic
Thought (Oxford: Clarendon Press, 1995), uma obra para com a qual temos uma enorme dívida de gratidão.
121 Aristóteles, Nicomachean Ethics, tr. Christopher Rowe e Sarah Broadie (Oxford: Oxford University
Press, 2002), p. 251. Na outra importante obra ética de Aristóteles, Eudemian Ethics, ele é mais imparcial
entre a vida ativa e a vida filosófica.
122 Aristóteles, Politics, in The Complete Works of Aristotle, ed. Jonathan Barnes, vol. 2 (Princeton:
Princeton University Press, 1984), p. 1989.
123 Não é por acaso que a terminologia de Marx se encaixa tão bem no relato de Aristóteles. Marx foi
profundamente influenciado por Aristóteles.
124 Georg Simmel, The Philosophy of Money, tr. Tom Bottomore e David Frisby (Boston, Mass.:
Routledge, 1978), p. 255.
125 Citado em Robert Skidelsky, John Maynard Keynes: The Economist as Saviour 1920-1937 (Londres:
Macmillan, 1992), p. 476.
129 Horácio, Satire 1, linhas 39-40, in Satires, Epistles and Ars Poetica, tr. H. Rushton Fairclough (Londres:
Heinemann, 1961), p. 7.
130 Em francês no original: sempre mais. (N. da T.)
131 Ver Peter Brown, Poverty and Leadership in the Later Roman Empire (Hanôver, NH: Brandeis
University Press, 2002).
132 Tomás Aquino, Summa Theologiae, tr. T. C. O’Brien, vol. 41 (Londres: Blackfriars, 1972), p. 243.
133 Citado em Anne Derbes e Mark Sandona, «Barren Metal and the Fruitful Womb: The Program of
Giotto’s Arena Chapel in Padua» [Metal Estéril e o Útero Fértil: O Programa da Capela Arena de Giotto em
Pádua], Art Bulletin, vol. 80 (1998), p. 227.
134 Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, tr. Talcott Parsons (Londres: Routledge,
1992), p. 73.
135 Como Amartya Sen nos recordou recentemente [em The Argumentative Indian (Londres: Allen Lane,
2005)], não faltava vida intelectual secular na Índia antiga. Houve importantes avanços na matemática,
astronomia, metafísica e lógica, bem como tratados sobre administração escritos de um ponto de vista
secular. No entanto, o pensamento ético em oposição ao pensamento teórico e político manteve-se
intimamente ligado ao mito e ao ritual.
136 Patrick Olivelle, tr., The Dharmasutras (Oxford: Oxford University Press, 1999), pp. 35, 31.
137 Para mais debate, ver Max Weber, The Religion of India: The Sociology of Hinduism and Buddhism, tr.
Hans H. Gerth e Don Martindale (Glencoe, Ill.: Free Press, 1958), pp. 84-85.
140 Robert Ernest Hume, tr., The Thirteen Principal Upanishads (Oxford: Oxford University Press, 1921),
p. 141.
141 Ver Chakravarthi Ram-Prasad, Eastern Philosophy (Londres: Weidenfeld and Nicolson, 2005), p. 212 :
«É inegável que a teoria lógica é um pouco marginal na filosofia chinesa, desempenhando apenas um
pequeno papel durante a curta ascendência budista.»
142 O budismo é normalmente contado como o terceiro ensinamento tradicional na China, mas em termos
da sua influência na cultura em geral pode ser associado ao taoismo.
143 Confúcio, The Analects, tr. Arthur Waley (Ware: Wordsworth, 1996).
144 Li Bai, «On a Banquet with my Cousins on a Spring Night in the Peach Flower Garden» [Num
Banquete com os meus Primos numa Noite de Primavera no Jardim de Flor de Pêssego], in Burton Watson
(tr.), Chinese Lyricism: Shih Poetry from the Second to the Twelfth Century (Nova Iorque: Columbia
University Press, 1971).
145 Citado em Lin Yutang, The Importance of Living (Nova Iorque: Harper, 1998), pp. 132-136.
146 Palavra de origem alemã também usada noutras línguas para designar o sentimento de alegria e prazer
pelo sofrimento ou infelicidade dos outros. (N. da T.)
147 Burton Watson, Records of the Grand Historian of China, vol. 2, tr. de Shih chi of Ssu-ma Ch’ien
(Nova Iorque: Columbia University Press, 1961), pp. 491-492.
148 Entre os «neutralistas» notáveis contam-se, a par de Rawls, Ronald Dworkin e Robert Nozick. Outros
filósofos liberais, nomeadamente Joseph Raz, foram críticos em relação a esta ideia. Mas no cenário
político mais vasto foram os neutralistas, não os seus críticos, que tiveram maior influência.
149 Esta questão foi abordada com grande força por Michael Sandel em Justice: What’s the Right Thing to
Do? (Londres: Allen Lane, 2009), pp. 244-269.
151 Taraq Modood, por exemplo, defendeu a estrutura religiosa na Grã-Bretanha, mas afirmou que já podia
ter sido alargada para outros grupos religiosos. Ver Tariq Modood, Multicultural Politics: Racism, Ethnicity,
Muslims in Britain (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005), pp. 146-150.
152 John Kenneth Galbraith, The Affluent Society (Londres: Hamish Hamilton, 1958), p. 115.
153 Expressão usada na filosofia, especialmente na filosofia medieval e na filosofia de Immanuel Kant,
para designar o bem maior que o ser humano deve buscar. (N. da T.)
154 John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, vol. 1 (Oxford: Clarendon, 1894), p. 351.
155 Para uma discussão clássica moderna da distinção entre necessidades/faltas, ver David Wiggins,
«Claims of Need» [Reivindicações de Necessidade], in Wiggins, Needs, Values, Truth: Essays in the
Philosophy of Value (Oxford: Oxford University Press, 1998), pp. 1-49.
157 Personagem de ficção, criado por Charles Hamilton (1876-1961). (N. do E.)
158 Carl Menger, Principles of Economics, tr. James Dingwall e Bert F. Hoselitz (Glencoe, Ill.: Free Press,
1950), pp. 120-121.
160 Virgílio, Aeneid, Bk. 3, linha 56; John Maynard Keynes, Essays in Persuasion, The Collected Writings
of John Maynard Keynes, vol. 9 (Cambridge: Cambridge University Press, 1978), p. 369.
161 Robert H. Frank, Luxury Fever: Money and Happiness in an Era of Excess (Princeton: Princeton
University Press, 2000), p. 66.
162 Friedrich Nietzsche, «Thus Spoke Zarathustra» [Assim Falou Zaratustra], in Walter Kaufmann (ed.),
The Portable Nietzsche (Harmondsworth: Penguin, 1959), p. 129.
4
A Miragem da Felicidade
É sem dúvida um pensamento estranho que o fim seja diversão e que a atividade e o
sofrimento ao longo da vida sejam para nos divertirmos.
Aristóteles
Em primeiro lugar […] enquanto vivia num estado próspero, Tellus teve filhos que foram homens
bons e íntegros e viveu para os ver todos a terem filhos, e todos sobreviveram. Em segundo lugar, a
morte veio quando ele tinha um bom rendimento, pelos nossos padrões, e foi uma morte gloriosa.
Numa batalha em Elêusis entre Atenas e os seus vizinhos ele penetrou na brecha e fez o inimigo virar
costas e fugir; ele morreu, mas a sua morte foi esplêndida e os atenienses fizeram-lhe um funeral
público no local onde ele caiu, e cobriram-no de honras164.
O hedonímetro varia de um momento para outro; o delicado índice a tremeluzir agora com a
excitação das paixões, a seguir estabilizado pela atividade intelectual, mergulhando durante horas
inteiras na vizinhança do zero, ou saltando momentaneamente para o infinito. A altura continuamente
indicada é registada por aparelhos fotográficos ou outros aparelhos sem atrito num plano vertical
uniformemente móvel […] Só temos de acrescentar outra dimensão para expressar o número de
sencientes e integrar todo o tempo e toda a sensibilidade para constituir o objetivo do utilitarismo
puro169.
É certo que chegámos muito longe desde a antiga Grécia. Pensa-se que Tellus
não teria ficado muito bem num hedonímetro.
Nas primeiras décadas do século XX, os economistas começaram a sentir-se
incomodados com as bases psicológicas da sua disciplina. O behaviorismo era
a grande moda; a especulação sobre estados mentais era proibida por ser
considerada não científica. Felizmente, percebeu-se que a maior parte da teoria
económica podia ser reconstruída sem referência a esses estados. Foi
demonstrado que a única coisa que é necessária é a suposição de que os
consumidores têm um conjunto coerente de preferências, reveladas no seu
comportamento. Na medida em que essas preferências são satisfeitas, diz-se
que possuem «utilidade». Por exemplo, se me oferecem uma maçã e uma pera,
e eu escolho a pera, então por hipótese a pera é mais útil para mim do que a
maçã. Porém, dizer tudo isto é não dizer nada sobre os meus estados mentais,
apenas sobre as minhas tendências de comportamento. Os hedonímetros e afins
podem ser postos de lado por serem irrelevantes.
Esta reconstrução teórica – o trabalho de uma série de grandes economistas
desde a década de 1900 até à década de 1930 – permitiu à profissão manter
uma atitude de alegre indiferença perante os factos da psicologia humana. Do
ponto de vista económico, não importa se as pessoas são altruístas, egoístas,
hedonistas, masoquistas ou outra coisa qualquer; a única coisa que importa é
que têm certas preferências e seguem-nas. Porém, este formalismo teve um
custo. O século XIX presumiu que maior riqueza levaria a maior felicidade, no
verdadeiro sentido benthamita. Mas todos os economistas modernos podem
dizer que maximiza a utilidade, o que significa a «satisfação das preferências
do consumidor». Se a satisfação das preferências do consumidor significa
felicidade é uma questão sobre a qual eles estão necessariamente silenciosos. O
projeto de crescimento económico começou a parecer o Bugs Bunny a cair de
um precipício – as suas patas continuam a mover-se, mas não têm nada para
apoiá-las.
Nas décadas de 1930 e 1940, no meio de uma recessão e guerra globais,
essas preocupações foram postas de lado como académicas. No entanto, duas
décadas mais tarde pareceram cada vez mais urgentes. Uma grande quantidade
de livros influentes – The Affluent Society de J. K. Galbraith, O Homem
Unidimensional de Herbert Marcuse e The Joyless Economy de Tibor
Scitovsky – questionaram a equação de «utilidade» e felicidade. As ansiedades
típicas de Rousseau foram reavivadas. E se o progresso tecnológico criar novos
desejos tão depressa como satisfaz os antigos? E se os seres humanos sentirem
necessidade da vantagem relativa e não absoluta, tornando a concorrência do
mercado um jogo de soma-zero? Essas questões levaram os economistas para
lá das atribuições da sua disciplina e fizeram-nos entrar no território
anteriormente proibido da psicologia.
163 Jean-Jacques Rousseau, The Discourses and Other Political Writings, ed. Victor Gourevitch
(Cambridge: Cambridge University Press, 1997), p. 26.
164 Heródoto, The Histories, tr. Robin Waterfield (Oxford: Oxford University Press, 1998), p. 14.
165 Aristóteles, Nicomachean Ethics, tr. Christopher Rowe e Sarah Broadie (Oxford: Oxford University
Press, 2002), p. 206.
166 John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, vol. 1 (Oxford: Clarendon, 1894), p. 351.
167 Citado em G. E. Moore, Principia Ethica (Cambridge: Cambridge University Press, 1903), pp. 77-78.
168 W. Stanley Jevons, The Theory of Political Economy (Londres: Macmillan, 1911), p. 37.
169 F. Y. Edgeworth, Mathematical Psychics: An Essay on the Application of Mathematics to the Moral
Sciences (1881), pp. 101-102.
Gráfico 6. PIB per Capita e Satisfação de Vida
170 S. Solnick e D. Hemenway, «Is More Always Better? A Survey on Positional Concerns» [Mais é
Sempre Melhor? Um Inquérito às Preocupações Posicionais], Journal of Economics Behaviour and
Organisation, vol. 37 (1998), pp. 373-383.
Gráfico 8. Felicidade e Rendimento por País
Problemas de Medição
Olhemos uma vez mais para o Gráfico 6. Aquela linha resolutamente plana
devia perturbar os economistas da felicidade mais do que perturba, pois sugere
não apenas que a subida dos rendimentos não surtiu efeito na felicidade, mas
também que nenhuma das grandes mudanças sociais que ocorreram na Grã-
Bretanha ao longo dos últimos 30 anos teve qualquer efeito na felicidade.
Outros países que possuem dados em série temporal, incluindo os EUA e o
Japão, evidenciam um padrão semelhante. Uma de duas coisas tem de ser
verdadeira. Ou a felicidade é extremamente insensível às mudanças no
ambiente social ou as medições de felicidade são extremamente insensíveis às
mudanças de felicidade. Nenhuma destas conclusões é particularmente
reconfortante para os economistas da felicidade.
Há motivos para pensar que o problema se prende com a forma como a
felicidade é medida. O Gráfico 6 foi compilado com dados de um inquérito em
que os inquiridos tinham de se caracterizar como (4) «muito satisfeitos», (3)
«relativamente satisfeitos», (2) «não muito satisfeitos» e (1) «nada satisfeitos».
Como a média inicial em 1973 foi de 3,15 num máximo de 4, a felicidade
podia ter subido 28% no máximo durante este período, três a quatro vezes
menos do que o PIB. Mas mesmo este aumento modesto teria implicado que
uns surpreendentes 100% dos habitantes se declarassem «muito satisfeitos». De
facto, mesmo para uma subida de 10% teria sido necessário que 31,5% da
população subisse uma categoria, isto é, passasse de «não muito» para
«relativamente» ou de «relativamente» para «muito» satisfeita – um aumento
importante na felicidade nacional. Além disso, inquéritos «limitados» como
este não podem registar alterações nas duas extremidades do espectro. Não
podem representar uma situação em que, digamos, os 10% mais felizes se
tornam ainda mais felizes, uma vez que essas pessoas já estão na categoria
superior de «muito felizes». Em contraste, se os 10% mais ricos ficarem ainda
mais ricos, o efeito no rendimento nacional pode ser profundo. Em suma, o
contraste divulgado entre a felicidade estática e o PIB a subir não passa,
provavelmente, de um artefacto da forma como as duas coisas são medidas175.
Outros inquéritos sobre felicidade usam uma escala numérica de 10 ou 11
pontos. Aos inquiridos são feitas perguntas como: «Avaliando tudo numa
escala de 0 a 10, como quantificaria a sua felicidade?» Esses inquéritos são
ligeiramente mais sensatos do que o inquérito verbal descrito acima, mas criam
mais problemas específicos. As categorias «muito feliz», «bastante feliz» e
«não muito feliz», apesar de não exatas, são pelo menos eloquentes. Mas o que
significará pontuar 7 em 10 para felicidade? Mesmo se presumirmos,
caridosamente, que faz sentido atribuir valores cardinais a estados de espírito,
não temos as informações necessárias para tal tarefa. Em primeiro lugar, o que
representam os dois extremos? Zero representará ser queimado vivo em óleo
com a família? Dez será um estado de felicidade perfeita – «Deus a ter um
orgasmo no teu cérebro», como terá dito um certo traficante de droga
referindo-se aos efeitos da sua mercadoria? E quanto ao cinco? Designa um
estado intermédio entre os dois extremos? Ou um estado de indiferença
emocional? (Estes dois estados não são necessariamente a mesma coisa; a dor
absoluta pode ser mais dolorosa do que o prazer absoluto é aprazível.) Ou
referir-se-á o cinco à felicidade média? Claramente, muitos criadores de
inquéritos interpretam os resultados dessa forma, daí a surpresa por uma vasta
maioria se classificar em seis ou acima. E se cinco se refere à felicidade média,
qual é a população de referência? A nação? O mundo? Os inquiridos nos
inquéritos sobre felicidade não são esclarecidos em relação a nenhuma destas
dúvidas.
No caso das comparações internacionais, os problemas multiplicam-se. Uma
dificuldade é que as expressões de felicidade são extremamente convencionais,
com protocolos que variam de nação para nação. Se perguntarmos a um
americano como está, é muito provável que ele responda, «ótimo, obrigado».
Se fizermos a mesma pergunta a um russo, o mais certo é ele encolher os
ombros e dizer «normalno», sugerindo que as coisas podiam estar piores. Se o
americano e o russo diferem apenas na forma como expressam a sua felicidade,
então um questionário privado poderá esclarecer a questão, mas se diferem na
forma como apreendem a sua própria felicidade então inquérito algum, por
muito bem conduzido que seja, poderá revelar os seus verdadeiros sentimentos.
Os investigadores da felicidade fecham os olhos a esta segunda possibilidade.
Eles supõem que as pessoas sabem até que ponto são felizes, ou pelo menos
que os erros de otimismo e pessimismo estão equitativamente distribuídos pelo
globo. Mas porquê supor isto? As pessoas que são educadas para ver a
felicidade como uma marca de sucesso podem sentir relutância em admitir, até
para si mesmas, que estão tristes. Será que os níveis elevados de felicidade na
América e noutras nações ocidentais revelam apenas a prevalência de
«pensamento positivo» – uma forte determinação de olhar para o lado bom da
vida? E é claro que não devemos esquecer que a maior parte das nações
ocidentais contêm grandes minorias não ocidentais, muitas vezes concentradas
em determinados escalões socioeconómicos. Os preconceitos culturais podem,
por conseguinte, comprometer a exatidão não apenas dos inquéritos
internacionais, mas também dos inquéritos nacionais.
Depois, há o problema da tradução. Os investigadores da felicidade podem
partir do princípio de que a palavra «felicidade» tem sinónimos ou quase
sinónimos em várias línguas em todo o globo; caso contrário, as comparações
não têm sentido. Mas nem sempre é assim. Vejamos xingfu, a palavra usada na
versão chinesa do World Values Survey. Xingfu implica uma condição de vida
favorável, com uma ênfase nas relações familiares fortes. Uma pessoa não é
xingfu enquanto joga ténis ou come uma laranja. E seria um abuso de termos,
não apenas um erro psicológico, chamar xingfu a uma prostituta ou a um
playboy idoso176. Em resumo, xingfu está mais perto em significado do
eudaimon grego do que do happy do inglês moderno177. Outras línguas
apresentam dificuldades semelhantes. De uma maneira geral, happy é um
termo muito mais leve e menos exigente que os seus equivalentes estrangeiros
– isto reflete talvez a influência do utilitarismo nas culturas anglo-saxónicas.
Anna Wierzbicka, uma influente especialista em semântica da emoção,
lamentou «a facilidade com que as diferenças linguísticas são por vezes
negadas na literatura atual sobre felicidade»178.
Os investigadores da felicidade não se preocupam normalmente com o
enunciado exato dos seus questionários nem com a relevância das suas escalas.
Contentam-se em observar que, independentemente do que possam estar a
medir, está fortemente correlacionado com outras coisas associadas à
felicidade: tensão arterial baixa, níveis de atividade elevados no hemisfério
esquerdo do cérebro, boa saúde e muitos sorrisos. Na gíria, os seus resultados
são «válidos». Mas isto suscita agora uma perplexidade de um tipo mais
filosófico. Se a validade dos inquéritos sobre felicidade tem de ser confirmada
relativamente ao que já sabemos sobre felicidade, que novas informações
podem conter? Ou correspondem ao conhecimento existente, e nesse caso são
redundantes, ou não correspondem, e nesse caso são imperfeitos. Quando
muito, os inquéritos sobre felicidade podem desenvolver com mais pormenores
o que nós já sabemos. Todavia, não podem dizer-nos nada radicalmente novo;
se o fizessem, não acreditaríamos neles.
Os correlativos da felicidade autoavaliada são de dois tipos: fisiológicos e
circunstanciais. Do lado fisiológico, foi demonstrado que as pessoas que se
classificam como felizes tendem a ter níveis mais elevados de atividade elétrica
no cérebro anterior esquerdo e sistemas imunitários fortes179. Mas como é que
sabemos que essas coisas detetam felicidade? (Claramente, a resposta não pode
ser que detetam a felicidade autoavaliada uma vez que é o próprio item em
questão.) Outros estudos revelam uma correlação entre felicidade autoavaliada
por um lado e as ações e circunstâncias associadas à felicidade por outro lado.
Foi demonstrado, por exemplo, que as pessoas que se caracterizam como mais
felizes também são classificadas como mais felizes pelos amigos e familiares, e
sorriem com maior frequência180. Andrew Oswald e Stephen Wu estabeleceram
uma correlação entre qualidade de vida nos estados dos Estados Unidos,
medida por horas de sol, tempos de viagem de e para o emprego, índices
criminais, etc., e a felicidade autoavaliada dos seus habitantes. (Nova Iorque
vem no fundo nas duas contagens181.)
Se esses estudos forem credíveis, mostram que as pessoas que dizem ser
felizes são de facto, em média, felizes. Todavia, este resultado não é a
justificação que parece à primeira vista, pois pressupõe que já temos uma
medida de como as pessoas são felizes, independentemente do que elas dizem
sobre o assunto, nomeadamente, a nossa compreensão racional do que mexe
com os seres humanos, do que é bom para eles. As autoavaliações não podem
ser o critério fundamental de felicidade, por muito úteis que possam ser como
indicadores complementares. Uma simples experiência de pensamento
corrobora isto. Imaginem uma mulher cujos filhos morreram num violento
acidente, e cujas ações irradiam tristeza, mas que, não obstante, se declara feliz.
Presumiríamos que ela está a mentir, que está a enganar-se a si mesma ou a
usar palavras de uma forma invulgar. (Talvez seja uma filósofa com uma
compreensão idiossincrática de «feliz».) Contra todas as aparências, não
insistiríamos que ela é verdadeiramente feliz. Em suma, a felicidade não é um
item no teatro interior da mente, visível apenas para o seu proprietário; a
felicidade manifesta-se essencialmente em atos e acontecimentos. Se não fosse
assim, seria misterioso como poderíamos falar sequer dela. O pressuposto
subjacente ao método de inquérito – que somos juízes abalizados da nossa
própria felicidade – é falso.
Essas confusões são claramente visíveis no artigo de Oswald e Wu que já
mencionámos. «Embora seja natural ser orientado por dados de inquéritos
formais», escrevem eles,
poderia pensar-se que é invulgar que o Louisiana – um estado afetado pelo furacão Katrina – esteja tão
bem classificado na lista de satisfação de vida dos vários estados. Foram feitas diversas verificações.
Constatou-se que o Louisiana teve resultados fortes antes do Katrina e num ranking de saúde mental
realizado pelo Mental Health America e pelo Office Applied Studies da U. S. Substance Abuse and
Mental Health Services Administration […] Não obstante, é provável que o Katrina tenha alterado a
composição deste estado – nomeadamente, os que ficaram não constituem uma amostra aleatória da
população – e é por isso preciso ter alguma cautela na interpretação da posição deste estado, que
poderá compensar uma investigação estatística futura182.
Problemas Éticos
Goldsmith não pretende negar que os farristas estão a divertir-se, pelo menos
até ao ponto em que «o laborioso prazer se transforma em dor». Eles estão a
«divertir-se» – uma palavra criada, não por acaso, aproximadamente nesta
altura. Mas essa diversão não se transforma em júbilo. E, presumivelmente,
mais diversão também não é sinónimo de júbilo; a diferença é em termos de
qualidade, não de grau.
Logo, felicidade é diferente de prazer e de júbilo. Mas mesmo no campo da
felicidade é preciso fazer distinções. Dissemos que a felicidade tem objetivos,
que é relativa a alguma coisa. Podemos agora acrescentar que a felicidade
assume o seu carácter a partir daquilo a que é relativa. A felicidade profunda,
por exemplo, é caracterizada como tal não por palpitações ou tremores – o erro
cometido por tantos escritores pouco experientes –, mas pela sua relação com
certos bens humanos crucialmente importantes: amor, parto, a conclusão de
uma obra importante. «Não faz sentido», escreve Philippa Foot na sua
excelente discussão do tema,
sugerir que alguém encontrou a felicidade profunda em, digamos, uma vitória numa discussão com um
vizinho por causa do jornal matinal ou de uma garrafa de leite, por muito que pensemos em
comportamento «efervescente» e exaltação. E quanto à felicidade profunda por causa do nascimento de
uma criança? Isso é diferente! […] Nós sentimo-nos tentados a pensar em felicidade profunda como
psicologicamente explicável de uma forma que torna possível separá-la dos seus objetivos. Mas
porque é que isto seria possível? Porque é que a uniformidade de significado não dependeria aqui de
uma reação partilhada entre os seres humanos a certas coisas que são muito gerais na vida humana?198
Tentámos mostrar que uma vida feliz, tal como a frase é compreendida pela
maioria das pessoas, não é apenas uma série de estados de espírito agradáveis,
mas uma vida que inclui certos bens humanos básicos. A eudaimonia está
subjacente ao conceito psicológico moderno de felicidade; não é apenas uma
questão de «contrabandear pela porta das traseiras a ideia de vida meritória de
um determinado filósofo», como afirmaram Samuel Brittan e outros199. Mas
para os que não estão convencidos com esta sugestão (e serão muitos),
apresentamos agora a segunda parte difícil do nosso dilema: se a felicidade é
apenas um estado de espírito, como pode ao mesmo tempo ser o bem supremo,
o objetivo supremo de toda a nossa luta? Trabalhar durante anos numa obra de
arte ou a criar um filho simplesmente para desfrutar do zumbido mental daí
resultante é trair uma atitude muito peculiar perante a vida. Todavia, é
precisamente esta atitude que está na base do atual culto da felicidade.
O problema pode ser colocado com um pouco mais de precisão. Os
economistas da felicidade acreditam que os estados de espírito são bons na
medida em que são felizes. Quanto mais felizes, melhor; quanto mais tristes,
pior. Os objetivos ou ocasiões de felicidade e tristeza não têm importância
moral. «Nenhum sentimento bom é mau em si», escreve Layard. «Só pode ser
mau devido às suas consequências.»200 Outros economistas da felicidade são
menos francos, mas devem acreditar em alguma coisa semelhante se o seu
projeto é fazerem sentido moral. Se a felicidade não é intrinsecamente boa,
para que estamos a tentar maximizá-la201?
Porém, o simples facto é que a felicidade, psicologicamente concebida, não é
boa em si, mas na medida em que é devida, ou pelo menos não indevida. O
caso em que x é feliz quando x não garante felicidade, nem a obtém, não é
necessariamente uma coisa boa. Imaginem alguém a sorrir entusiasticamente
com a notícia de um desastre em que morreram centenas de pessoas. «Porque é
que estás tão feliz?», poderíamos perguntar. «Que motivo há para tanta
felicidade?» Ou pensem num estudante que, graças a uma dose dupla de um
antidepressivo, está serenamente indiferente ao seu chumbo iminente – num
paraíso de tolos, como dizemos. Poderíamos pensar que seria preferível este
estudante não estar feliz, pois pelo menos estaria em contacto com a realidade
da sua situação. (Um aristotélico reforçaria a mesma ideia dizendo que o
estudante não está nada feliz, mas essa não é uma opção para os economistas
da felicidade.) Nem toda a felicidade sem motivo é má; não queremos sufocar a
alegria sem motivo de viver da criança, nem as ilusões do moribundo. Mas,
claramente, o valor de um estado de espírito feliz depende em parte do mérito
ou então do seu objetivo. E se isto for reconhecido, então o projeto de
maximizar a felicidade em si, independentemente dos seus objetivos, assume
um aspeto sinistro.
Do mesmo modo que existe felicidade sem motivo, também existe tristeza
sem motivo. É claro que a tristeza é muitas vezes sem motivo quando está
enraizada em convicções falsas ou mecanismos mentais irracionais, mas
noutros casos é simplesmente a lúcida perceção de coisas merecedoras de
tristeza. Enquanto essas coisas existirem – e, seguramente, existirão sempre – a
tristeza só poderá ser eliminada se (a) a afastarmos da vista ou (b) alterarmos as
nossas sensibilidades para deixarmos de nos preocupar com ela. É fácil
imaginar formas de fazer isto. Os cientistas podem desenvolver uma droga –
uma espécie de aspirina psíquica – para apagar todas as recordações de
desgosto ou angústia. Jornais e boletins noticiosos poderiam deixar de noticiar
fomes, sismos, etc. Algumas dessas medidas poderiam funcionar. No entanto,
nenhuma delas nos parece remotamente desejável.
Muitas tradições religiosas e filosóficas viram a tristeza como a reação certa
não apenas para a tragédia individual, mas para a tragédia da vida humana em
si. Esta perceção desapareceu do cristianismo ocidental, mas mantém-se forte
no Oriente ortodoxo. «Se estão verdadeiramente conscientes das coisas, de
como a vida é trágica, então há contenção na vossa satisfação», declarou o
arcebispo Bloom, o antigo líder da Igreja Ortodoxa russa na Grã-Bretanha.
«Júbilo é outra coisa. Uma pessoa pode possuir um grande sentido de júbilo e
elação interior, mas desfrutar dos aspetos exteriores da vida com a consciência
das muitas pessoas que sofrem […] é uma coisa que considero difícil.»202
Pensamentos semelhantes podem ser encontrados noutras tradições religiosas.
Mesmo o pagão confesso Nietzsche teve pouco tempo para qualquer felicidade
que não tivesse origem no sofrimento. «O homem não se esforça para a
felicidade», escreveu ele famosamente, «apenas o inglês faz isso.»203
Os economistas da felicidade menosprezarão sem dúvida tudo isto como
místicas de monges da miséria. Todavia, não é preciso ser um monge russo ou
um filósofo alemão para encontrar algo perturbador no projeto de maximizar a
felicidade em si, independentemente dos seus objetivos, pois a conclusão
lógica de um projeto desse tipo é prescindir completamente dos objetivos
externos e agir diretamente no cérebro. Alguns economistas da felicidade já
chegaram a esta conclusão. Yew-Kwang Ng apelou à investigação da
estimulação cerebral, uma operação com o poder de gerar «prazer intenso sem
diminuir a utilidade marginal». Ng acrescenta alegremente que o único método
potencialmente mais eficaz é a engenharia genética204. Richard Layard fala
entusiasticamente sobre drogas que alteram a disposição, não apenas como
remédios para a depressão, mas como dispositivos que melhoram o bem-estar
geral. A euforia perpétua é rejeitada por ele apenas porque «parte do tempo
devíamos precisar que as nossas mentes estivessem suficientemente atentas
para organizar a nossa existência»205. Caso contrário, presumivelmente,
estaríamos melhor num estado de felicidade idiota permanente.
O Admirável Mundo Novo ainda não chegou. Layard e Ng não querem
obrigar-nos a beber soma206 ou a estimular os nossos cérebros. Como dissemos,
eles são maximizadores forçados; procuram maximizar a felicidade dentro da
estrutura estabelecida de direitos legais. Mas esta qualificação não é muito
tranquilizadora, pois o aspeto mais profundo e mais perturbador do Admirável
Mundo Novo não é coerção, mas infantilismo – o desaparecimento de todo o
desejo ou ligação que poderia quebrar a máquina do prazer. Um sistema deste
tipo é apenas incidentalmente coercivo; poderia surgir de uma forma
igualmente fácil em resultado de escolhas privadas livres, sem que ninguém
apontasse a arma a ninguém. Afinal de contas, se os prazeres do tipo descrito
por Ng ficassem disponíveis no mercado, algum de nós conseguiria resistir-
lhes?
Só no caso muito especial da depressão é que a infelicidade é um mal
inequívoco e um alvo legítimo de ação estatal. Mas a depressão é uma classe à
parte. Não é apenas infelicidade extrema, mas infelicidade inapta e
desproporcionada, e é isto que constitui a sua maldade peculiar. (Uma viúva
chorosa poderia ser não menos infeliz do que um homem com depressão, mas a
sua infelicidade é uma resposta adequada à perda, não um problema que tem de
ser curado.) A depressão é um problema médico e deve ser tratado sob a
rubrica da saúde mental. Não faz, como Layard afirma, parte de uma crise geral
de infelicidade e a luta contra ela também não deve ser vista como parte de
uma campanha mais vasta para tornar as pessoas mais felizes.
172 Ver Richard Layard, Happiness: Lessons from a New Science (Londres: Penguin, 2005), p. 45.
173 Ver Robert H. Frank, Luxury Fever: Money and Happiness in an Era of Excess (Princeton: Princeton
University Press, 2000), pp. 207-226.
174 Will Wilkinson, «In Pursuit of Happiness Research: Is It Reliable? What does it Imply for Policy?»
[Pesquisa em Busca da Felicidade: É Fiável? Que Implica para a Política?], Policy Analysis, n.º 590 (2007).
175 O argumento dos dois últimos parágrafos deve-se a Helen Johns e Paul Ormerod, Happiness,
Economics and Public Policy (Londres: Institute of Economic Affairs, 2007), pp. 28-34.
176 As intuições linguísticas parecem diferir neste último ponto: alguns falantes nativos de chinês admitem
que a prostituta e o playboy idoso sejam xingfu, outros não. Talvez haja diferenças regionais ou geracionais.
Mas enquanto um número significativo de falantes nativos de chinês usar xingfu no sentido objetivista, não
pode ser adotada nenhuma equivalência com «feliz».
177 Richard Layard e Diener e Suh citam um certo Shao 1993 que indica que os estudantes de Hong Kong
apresentam níveis quase idênticos de felicidade em chinês e inglês. As notas de rodapé revelam que Shao
1993 é uma tese de mestrado, não publicada, escrita para a Universidade do Illinois. Em todo o caso, o
estudo não nos diz nada já que os inquiridos teriam provavelmente aprendido o significado de «feliz» por
comparação com xingfu ou outro termo chinês. O mesmo problema afeta todos os estudos do mesmo tipo.
Ver Layard, Happiness, p. 34, e Ed Diener e Eunkook Mark Suh, «National Differences in Subjetive Well-
Being» [Diferenças Nacionais em Bem-Estar Subjetivo], in Daniel Kahneman et al., Well-Being: The
Foundations of Hedonic Psychology (Nova Iorque: Russell Sage, 1999), p. 437.
180 Diener e Suh, «National Differences in Subjetive Well-Being» [Diferenças Nacionais no Bem-Estar
Subjetivo], p. 437.
181 Andrew J. Oswald e Stephen Wu, «Objetive Confirmation of Subjetive Measures of Human Well-
Being: Evidence from the U.S.A.» [Confirmação Objetiva de Medidas Subjetivas de Bem-Estar Humano:
Dados dos EUA], Science, n.º 327 (2010), pp. 576-579. Os dados relativos à felicidade foram ajustados para
controlar rendimento e idade, por isso, no final das contas, os nova-iorquinos poderão não ser os mais
infelizes, mas apenas no que diz respeito às suas condições de vida.
183 Ver Johns e Ormerod, Happiness, Economics and Public Policy, p. 81.
184 Julia A. Eriksen e Sally A. Steffen, Kiss and Tell: Surveying Sex in the Twentieth Century (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1999), p. 34.
186 Derek Bok, The Politics of Happiness: What Government Can Learn from the New Research on Well-
Being (Princeton: Princeton University Press, 2010), p. 36.
187 Ver Juliet Michaelson et al., National Accounts of Well-Being: Bringing Real Wealth onto the Balance
Sheet (Londres: New Economic Foundation, 2009).
188 Henry Sidgwick, The Method of Ethics (Indianápolis: Hackett, 1981), pp. 120-121.
189 Ver Daniel Kahneman e Alan B. Krueger, «Developments in the Measurement of Subjetive Well-
Being» [Desenvolvimentos na Avaliação de Bem-Estar Subjetivo], Journal of Economic Perspetives, vol.
20, pt. 1 (2006), pp. 3-24.
190 Ver Julia Annas, «Happiness as Achievement» [Felicidade como Realização], Daedalus, vol. 33, pt. 2
(2006).
192 Fred Feldman, What Is This Thing Called Happiness? (Oxford: Oxford University Press, 2010), p. 176.
193 Para pormenores, ver Yew-Kwang Ng, «Happiness Surveys: Some Comparability Issues and an
Exploratory Survey Based on Just Perceivable Increments» [Inquéritos de Felicidade: Algumas Questões de
Comparatibilidade e um Inquérito Preliminar sobre Incrementos Percetíveis], Social Indicators Research,
vol. 38, pt. 1 (2011), pp. 1-27.
196 Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus (Londres: Routledge e Kegan Paul, 1922), 6.43.
197 Philippa Foot, Natural Goodness (Oxford: Oxford University Press, 2001), p. 85.
199 Samuel Brittan, «Commentary: A Deceptive Eureka Moment» [Comentário: Um Enganador Momento
Eureka], in Johns e Ormerod, Happiness, Economics and Public Policy, p. 93.
201 Deveria acrescentar-se, com toda a justiça, que a maioria dos economistas da felicidade não estão a
propor maximizar a felicidade a qualquer preço, incluindo, por exemplo, através da lobotomização
obrigatória. Na gíria, eles são «maximizadores forçados»; procuram maximizar a felicidade dentro de uma
estrutura de direitos básicos e justiça. Geralmente, não é explorado como é que estes constrangimentos
poderiam ser justificados nas suas premissas utilitárias.
202 Metropolitan Anthony of Sourozh, God and Man (Londres: Darton, Longman and Todd, 1983), p. 16.
203 Friedrich Nietzsche, «Maxims and Arrows» [Máximas e Setas], in Twilight of the Idols (1888), n.º 12.
204 Yew-Kwang Ng, «A Case for Happiness, Cardinalism, and Interpersonal Comparability» [Um Caso
para a Felicidade, Cardinalismo e Comparabilidade Interpessoal], Economic Journal, vol. 107, n.º 445
(1997), p. 1849.
É claro que a natureza tem boas intenções, mas, como Aristóteles disse um dia, não as pode
pôr em prática.
– Oscar Wilde
Limites ao crescimento
A central hidroelétrica não é construída no rio Reno como foi a antiga ponte de madeira que uniu
uma margem à outra durante centenas de anos. Antes, o rio é represado na central elétrica. O que o rio
é agora, nomeadamente, um fornecedor de força hidráulica, deriva da essência da central elétrica […]
Mas, dir-se-á, o Reno continua a ser um rio na paisagem, não continua? Talvez. Mas como? De
nenhuma forma a não ser como objeto de inspeção de um grupo de excursionistas para ali mandado
pela indústria de férias228.
208 Donella H. Meadows et al., The Limits to Growth (Londres: Pan, 1974), pp. 45-87.
209 Para uma refutação exaustiva dos medos maltusianos de escassez de recursos, ver Bjørn Lomborg, The
Sceptical Environmentalist: Measuring the Real State of the World (Cambridge: Cambridge University
Press, 2001), pp. 118-148.
210 Paul Ehrlich, The Population Bomb (Nova Iorque: Ballantine Books, 1968).
211 George Monbiot, «Bring on the Recession» [Que Venha a Recessão], Guardian, 9 de outubro de 2007.
212 Tim Jackson, Prosperity without Growth: Economics for a Finite Planet (Londres: Earthscan, 2009).
213 Comissão Especial para Assuntos Económicos da Câmara dos Lordes, The Economics of Climate
Change (Londres: HMSO, 2005), p. 58.
214 Painel Intergovernamental para a Alteração Climática, Third Assessment Report (Cambridge:
Cambridge University Press, 2001), Painel de Trabalho 1, Sumário Técnico, p. 79.
215 K. R. Popper, The Poverty of Historicism (Londres: Routledge, 1961), pp. v–vi.
216 Painel Intergovernamental para a Alteração Climática, Third Assessment Report, Painel de Trabalho 2,
cap. 3, p. 154.
217 Citado em Mike Hulme, «Chaotic world of climate truth» [O mundo caótico da verdade climática],
2006, sítio da BBC News, 2006, news.bbc.co.uk/1/hi/6115644.stm (acedido no dia 9 de novembro de 2011).
218 Ibid. Ver também Ellen Raphael e Paul Hardaker, Making Sense of the Weather and Climate (Londres:
Sense about Science, 2007), p. 3: «A ideia de um ponto de não retorno é uma forma enganadora de pensar
no clima e pode ser desnecessariamente alarmista.»
219 James Lovelock, The Revenge of Gaia (Londres: Penguin, 2006), p. 189.
220 Sir Partha Dasgupta, Comments on the Stern Review’s Economics of Climate Change
(www.econ.com.ac.uk/faculty/dasgupta/STERN.pdf; acedido no dia 12 de janeiro de 2012), p. 5. Sir Partha
resume as opiniões de William Nordhaus, o mais influente economista moderno de clima. Ele não apoia
necessariamente estas opiniões.
221 Nicholas Stern, Stern Review on the Economics of Climate Change (Londres: UK Treasury, 2006), p.
xii.
223 Nigel Lawson, An Appeal to Reason: A Cool Look at Global Warming (Londres: Duckworth, 2009), p.
87.
224 Em francês no original: depois de mim, o dilúvio. (N. da T.)
225 George Monbiot, Heat: How We Can Stop the Planet Burning (Londres: Penguin, 2007), p. 215.
226 Citado em John Passmore, Man’s Responsibility for Nature: Ecological Problems and Western
Traditions (Londres: Duckworth, 1974), p. 21.
227 Ludwig Klages, Mensch und Erde (Jena: Eugen Diederichs, 1929), p. 25.
228 Martin Heidegger, «The Question Concerning Technology» [A Questão Relacionada com Tecnologia],
in Heidegger, Basic Writings (Londres: Routledge, 1993), p. 321.
230 J. E. Lovelock, Gaia: A New Look at Life on Earth (Oxford: Oxford University Press, 1979), p. 10.
232 James Lovelock, The Ages of Gaia (Londres: Penguin, 1988), p. 206.
235 Mary Midgley, «Duties Concerning Islands» [Deveres com as Ilhas], in Robert Elliot (ed.),
Environmental Ethics (Oxford: Oxford University Press, 1995), pp. 89-103.
236 Segundo Arne Naess, o primeiro princípio de ecologia profunda é: «O crescimento da vida humana e
não humana na terra tem valor inerente. O valor das formas de vida não humanas é independente da
utilidade do mundo não humano para fins humanos.» Arne Naess, «The Basics of the Deep Ecology
Movement» [O essencial do Movimento de Ecologia Profunda], in Alan Drengson e Bill Devall (eds.), The
Ecology of Wisdom: Writings by Arne Naess (Berkeley: Counterpoint, 2008), p. 111.
237 Arne Naess, «The Shallow and the Deep, Long-Range Ecological Movement: A Summary» [O
Superficial e o Profundo, Movimento Ecológico de Longo Alcance: Um Resumo], in Andrew Dobson (ed.),
The Green Reader (Londres: Deutsch, 1991), p. 243.
238 O termo «especiesismo» foi popularizado por Peter Singer, Animal Liberation (Avon, 1977).
239 Aldo Leopold, «A Sand County Almanac» [Um almanaque do distrito de Sand], in Dobson (ed.), The
Green Reader, pp. 240-241.
240 Para uma defesa persuasiva da sua reivindicação, ver Michael Thompson, Life and Action (Newhaven,
Mass.: Harvard University Press, 2008).
241 Bernard Williams, Ethics and the Limits of Philosophy (Londres: Routledge, 2006), p. 118.
242 Oswald Spengler, The Decline of the West, tr. Charles Francis Atkinson, vol. 1 (Londres: George Allen,
1932), p. 168.
243 Ver David E. Cooper, A Philosophy of Gardens (Oxford: Oxford University Press, 2006), para uma
defesa interessante da importância dos jardins e da jardinagem para a vida boa.
245 J. Baird Callicott, «Animal Liberation: A Triangular Affair» [Libertação Animal: Uma Questão
Triangular], in Robert Elliot (ed.), Environmental Ethics (Oxford: Oxford University Press, 1995), p. 50.
Nós queremos uma abordagem que respeite a luta de cada pessoa para crescer, que trate cada pessoa
como um fim e como uma origem de atividade e valor por direito próprio. Parte deste respeito
significará não ser ditatorial em relação ao bem, pelo menos para os adultos e pelo menos em algumas
áreas fundamentais de escolha, deixando aos indivíduos um vasto espaço para importantes tipos de
escolha e afiliação séria. Mas este respeito implica tomar uma posição sobre as condições que lhes
permitem usar as suas capacidades livres das tiranias impostas por política e tradição254.
Os bens básicos
1. Os bens básicos são universais, o que significa que pertencem à vida boa enquanto tal, não apenas a
algum conceito particular e local da vida boa. Ver o universal através do particular requer fortes
intuições filosóficas orientadas pelo testemunho de diferentes eras e culturas. Esta última condição é
frequentemente esquecida. Com demasiada frequência, as «intuições» dos filósofos modernos
repetem simplesmente as banalidades do liberalismo do princípio do século XXI. O catálogo de
capacidades humanas fundamentais de Nussbaum inclui, por exemplo, «proteção contra a
discriminação com base na raça, sexo, orientação sexual, religião, casta, etnicidade ou origem
nacional» – uma lista impecavelmente progressista, mas dificilmente universal257. Uma mente de
uma classe mais filosófica poderia questionar a equação de valores universais com valores liberais
modernos. Afinal de contas, do ponto de vista da eternidade a nossa civilização é tão limitada como
qualquer outra.
2. Os bens básicos são finais, o que significa que são bons em si e não apenas como um meio para
outro bem. (Isto distingue os nossos bens básicos dos bens primários de Rawls e das capacidades de
Nussbaum e Sen.) A forma-padrão que o filósofo tem para mostrar os bens finais é perguntar «para
quê»? vezes sem conta, como algumas crianças irritantes. Quando não há mais nenhuma resposta,
sabemos que encontrámos um bem final. «Para que serve aquela bicicleta?» «Para ir para o
trabalho.» «E para que serve o trabalho?» «Para ganhar dinheiro.» «E para que serve o dinheiro?»
«Para comprar comida.» «E para que serve a comida?» «Para me manter vivo.» «E para que serve a
vida?» Olhar inexpressivo. A vida não serve «para» nada. Para nós, faz parte do bem básico da
saúde.
Todos os bens básicos são finais, mas nem todos os bens finais são básicos. Uma cadeia
explanatória poderá em teoria chegar ao fim com «para completar a minha coleção de selos
soviéticos». Completar uma coleção de selos é um bem final – normalmente, não tem outra
finalidade –, mas não é básico, pois não testa a universalidade e a indispensabilidade, que serão
discutidas pormenorizadamente mais adiante.
Muitos filósofos gostariam de acrescentar uma última condição adicional a uma dada sequência
de explicações, nomeadamente «para me fazer feliz». Nós pensamos que isto é um erro. Fora das
clínicas psiquiátricas e dos seminários de filosofia, regra geral as pessoas não explicam os seus atos
dizendo «isto vai fazer-me feliz». Como já dissemos no Capítulo 4, este é um motivo forte para não
tratarmos a felicidade como o derradeiro bem.
O requisito da finalidade exclui muitos bens que parecem básicos à primeira vista. A comida, por
exemplo, surge em muitas listas tradicionais de bens básicos, mas, como a cadeia de perguntas
apresentada acima mostra, é de facto instrumental para o bem básico da vida boa ou da saúde.
Satisfeita para além deste ponto, deixa de ser útil e pode até ser prejudicial. (Isto não quer dizer que
todas as especiarias e condimentos supérfluos para a saúde não são bons, apenas que não são bens
básicos. Não queremos reduzir toda a gente a uma dieta de salada e tofu.) Mais relevante para o
nosso tema, o dinheiro não pode ser um bem básico já que é essencialmente um instrumento para
obter outras coisas. Outros bens são mais ambíguos. Saúde, segurança e lazer são em alguns casos
finais, noutros instrumentais. Voltaremos a este assunto mais adiante.
3. Os bens básicos são sui generis, o que significa que não fazem parte de outro bem. O bem da
«liberdade do cancro» é certamente universal e final, mas não é básico porque pode ser agrupado sob
o bem maior da saúde. Muitas vezes, é difícil decidir se um bem é sui generis ou não. Por exemplo,
as relações familiares, que incluímos sob o bem da «amizade», podem ser consideradas dignas de
merecer um título próprio. Porém, como o que torna boas as relações de família e não família é em
grande medida o mesmo conjunto de coisas – amor, confiança, estabilidade – decidimos que seria
supérfluo haver duas categorias.
4. Os bens básicos são indispensáveis, o que significa que podemos considerar que qualquer pessoa
que não os possua sofreu uma perda ou dano sérios. A qualificação «qualquer pessoa» é importante.
Na sua ausência, a conclusão de uma coleção de selos poderá causar ao filatelista fanático muita
angústia genuína, mas isto não a torna um bem básico. A perda ou dano em questão também não têm
de ser vistos como tal pela sua vítima. Os danos são tomados como certos tão frequentemente que já
não são notados, mas continuam a ser danos.
Outra forma de realçar a indispensabilidade dos bens básicos é pensar neles como necessidades. O
termo «necessidade» capta mais claramente do que «bem» a ideia de que eles são a condição sine
qua non para uma existência humana decente e uma prioridade em qualquer distribuição de recursos
escassos. No começo, pensámos em falar em necessidades básicas e não bens básicos, mas acabámos
por usar bens devido ao fundamento puramente estilístico de que «necessidade» tem uma conotação
desagradavelmente puritana. «Não precisas disso», tem muitas vezes a implicação adicional de «por
isso não deves tê-lo». («Não discutam a necessidade», diz o rei Lear quando confrontado com um
argumento deste tipo pelas suas horríveis filhas.) Em contraste, falar em bens básicos deixa claro que
não há nada remotamente vergonhoso em procurar bens para além dos bens básicos – desde, é claro,
que eles não subtraiam dos bens básicos.
O critério de indispensabilidade distingue a nossa lista de bens básicos de outras listas
semelhantes. O filósofo legal John Finnis, por exemplo, define bens ou valores básicos como «os
objetivos básicos da existência humana», mas não como coisas cuja ausência num indivíduo
constitui um dano ou perda sérios. Em resultado disso, ele pode incluir «religião» (definida muito
genericamente como a preocupação pela ordem suprema das coisas) e «experiência estética» na sua
lista de valores básicos258. Ora, apesar de podermos considerar que uma cultura desprovida de
religião ou experiência estética é pobre, não diríamos que um indivíduo a quem falta alguma destas
duas coisas está seriamente prejudicado. Há muitas pessoas que são simplesmente «surdas» para a
arte ou para a religião, mas que vivem vidas saudáveis e prósperas. A definição de Finnis faz todo o
sentido tendo em conta o seu objetivo, que é o de estabelecer os primeiros princípios da lei natural,
mas o nosso objetivo, que é o de encontrar um critério de suficiência, requer que tratemos como
básicos apenas os bens cuja falta constitui uma perda ou prejuízo sérios, pois apenas a posse desses
bens poderia ser considerada «suficiente».
Estes são, então, os bens básicos. Uma vida que os realiza todos é uma vida
boa. «Realizar» é um termo vago. Quanto respeito conta como tendo
«realizado» respeito? As respostas a esta pergunta terão sem dúvida uma
grande variedade legítima, tanto individual como cultural. No entanto, como já
referimos, a imprecisão não é necessariamente uma falha num inquérito que é
vago por natureza.
Uma preocupação mais séria prende-se com a possibilidade de conflito. E se
a expressão de ideias ou sentimentos pessoais me levar a abandonar um velho
amigo? E se o prazer do lazer me levar a renunciar ao respeito que vem de
ganhar a vida? Esses dilemas suscitam o pensamento de que deve haver um
«bem principal» ao qual todos os outros podem ser subordinados como aspetos
ou meios. A menos que esse bem exista, parece não haver uma base racional
para escolher um fim e não outro. Enfrentamos a perspetiva de um salto
artitrário, cego – o apuro imaginado por existencialistas como Jean-Paul Sartre.
Dois candidatos ao papel de bem principal dominam a literatura da ética
moderna. Um é a felicidade ou utilidade. O outro é uma «boa vontade» no
sentido de Kant, uma vontade obediente à lei moral. Nenhum deles nos parece
plausível. A felicidade não pode ser o nosso bem principal pelas razões
delineadas no Capítulo 4: interpretada no sentido clássico, é simplesmente um
sinónimo da vida boa e por isso não pode arbitrar entre os seus diversos
elementos; e, interpretada no sentido moderno padrão, como um estado de
espírito agradável, não é necessariamente boa. E a vontade moral de Kant
também não pode funcionar como o nosso bem principal, pois é demasiado
limitada para abarcar todas as coisas que valorizamos na vida. Apenas um
fanático moral (como Nietzsche chamou a Kant) poderia imaginar que nada é
bom sem qualificação exceto uma boa vontade.
Logo, a pluralidade é irredutível. Enfrentamos a possibilidade de dilemas
«trágicos», em que um bem básico tem de ser sacrificado a outro. Mas isto não
tem de nos perturbar excessivamente. Deliberar e escolher entre fins
incomensuráveis é um facto da vida quotidiana. Devo seguir uma carreira
política sacrificando o lazer e a reflexão? Devo perseverar no ténis e esquecer o
piano? Os indivíduos confrontados com essas escolhas podem decidir
sensatamente o melhor curso de ação sem recorrer a um algoritmo universal.
Ao nível cívico, o debate sobre fins incomensuráveis é a base da política
democrática, pelo menos quando esta funciona devidamente. Apenas o
tecnocrata inveterado não vê uma base de entendimento entre estimativa e
caos285.
A pluralidade dos bens básicos tem a importante consequência de que a falta
de um não pode ser compensada com a abundância de outro, da forma que uma
falta de euros poderia ser compensada com uma abundância de dólares. A uma
vida sem amizade ou lazer falta algo específico que nenhuma quantidade de
respeito pode compensar. É por isso que moralistas a partir de Aristóteles e
Confúcio alertaram para o excesso de especialização. A concentração
perseverante num pequeno nicho de arte ou ciência pode enriquecer o grupo,
mas apenas à custa da deformação do artista ou cientista individuais. É claro
que quem possui o conjunto total de bens básicos pode esforçar-se
razoavelmente para obter bens adicionais mais específicos. Não é nossa
intenção tornar todas as pessoas medíocres generalistas. No entanto ninguém,
por muito bem-sucedido que seja num determinado domínio, pode afirmar que
tem uma vida boa se lhe faltarem os rudimentos de saúde, lazer, personalidade,
etc.
Se o primeiro objetivo do indivíduo é realizar a vida boa para si mesmo, o
primeiro dever do Estado é realizar, no âmbito do seu poder, a vida boa para
todos os cidadãos. (Como já foi referido, este princípio de justiça baseia-se no
bem do respeito mútuo.) A reserva «no âmbito do seu poder» é importante. A
saúde e a amizade estão em grande medida nas mãos do destino. A
personalidade, o respeito e o lazer dependem em parte da ação individual. No
entanto, o Estado tem um papel importante e legítimo na criação das condições
materiais sob as quais estes e outros bens podem florescer. Essas condições
incluem não apenas um certo nível global de riqueza nacional, mas a sua
distribuição justa, o seu gasto público sensato e muito mais para além disso. O
resto está nas mãos de indivíduos e instituições civis. Para adaptar uma frase de
Keynes, o Estado é o depositário não da civilização mas da possibilidade de
civilização.
Dissemos que o primeiro dever do Estado é criar as condições materiais para
uma vida boa para todos. Depois de isto ser alcançado, tem todo o direito de ir
atrás da beleza, do poder e da grandiosidade. Versalhes e as pirâmides têm um
lugar no sistema da civilização, embora não à custa da vida, da saúde e do bem-
estar. Esta doutrina recebeu o horrível nome de «suficientismo», mas a sua
ideia central é a ideia lógica de que as necessidades não deviam ser sacrificadas
aos luxos. Por fim, nos casos em que um bem básico permite muitas
realizações possíveis, um Estado deveria sentir-se livre para seguir as suas
tradições históricas ao escolher um e não outro. A Índia e a China não têm a
obrigação de seguir o sentimento ocidental crescente a favor da legalização do
casamento entre homossexuais e da criminalização da crueldade com os
animais. Só quando uma tradição histórica destrói um bem básico é que a
justiça ordena o seu abandono.
Onde é que tudo isto deixa o crescimento? Obviamente, nenhuma política sã
tem o crescimento em si como um objetivo final. Aristóteles estava meramente
a repetir o senso comum quando escreveu que «a riqueza não é claramente o
bem que procuramos, pois é útil e destina-se a outra coisa»286. Todavia, mesmo
que o crescimento não seja um objetivo em si mesmo, ainda assim poderia ser
desejável por outras razões. E vêm-nos à memória três dessas razões.
A primeira é que o crescimento poderia ser sensatamente procurado como
um meio para um ou mais dos bens básicos. A saúde requer comida e medicina
decente. O lazer requer tempo longe do trabalho árduo. A personalidade requer
um lugar de retiro, uma «sala atrás da loja». As populações que são demasiado
pobres para terem acesso a estes bens têm todos os motivos para procurar
tornar-se mais ricas. No entanto, aqui no mundo rico os pré-requisitos materiais
da saúde, lazer e personalidade já foram alcançados há muito tempo; a nossa
dificuldade é usá-los devidamente. Quanto aos outros bens básicos –
segurança, respeito, amizade e harmonia com a natureza –, esses dependem não
tanto do nível absoluto de riqueza, mas da organização da vida económica, bem
como de outros fatores não económicos. Eles não nos proporcionam um motivo
para persistirmos no crescimento.
A segunda é que o crescimento poderia interessar-nos como um indicador de
outra coisa que valorizamos. Nas suas Robbins Lectures de 2010, Adair Turner
sugere que o crescimento «não devia ser considerado o objetivo de política
económica, mas antes o resultado extremamente provável […] de duas coisas
desejáveis em si mesmas – liberdade económica para fazer escolhas e um
espírito de pesquisa contínua e desejo de mudança»287. Por outras palavras, o
crescimento poderia funcionar como um cardiógrafo – em si uma medida de
alguma coisa importante. No entanto, ele só pode executar esta função se (a)
estiver solidamente correlacionado com a liberdade económica e (b) a
liberdade económica for um bem fundamental em si mesma. Esta segunda
suposição é especialmente dúbia. Claramente, alguma liberdade económica é
uma coisa boa (para nós, faz parte do bem básico da personalidade), mas outras
coisas também são boas, algumas das quais poderiam inibir o crescimento288.
Uma sociedade em que as pessoas estivessem seguras nos seus empregos e
dedicassem longas horas a atividades de lazer podia ser lenta, economicamente
falando. Se uma economia bem equilibrada favorece o crescimento ou não é
uma questão empírica, não pode ser assumido a priori que uma economia em
rápido crescimento é uma economia saudável.
Por fim, o crescimento poderia ser seguido por motivos pragmáticos de curto
prazo. Durante uma recessão, com desemprego e dívida pública elevados, o
crescimento é, acertadamente, uma prioridade. Porém, devemos distinguir o
curto prazo do longo prazo. O crescimento deveria ser considerado uma
espécie de Prozac: útil para voltar a levantar o paciente, não uma droga
permanente. Infelizmente, como uma droga, o crescimento é aditivo. É
necessária uma manipulação política hábil para impedir que um expediente
temporário se transforme num hábito de uma vida inteira.
A busca continuada de crescimento é não só desnecessária para realizar os
bens básicos como pode, de facto, prejudicá-los. Os bens básicos são
essencialmente não comerciáveis: não podem ser devidamente comprados ou
vendidos. Uma economia engrenada para maximizar o valor de mercado
tenderá a expulsá-los ou a substituí-los por sucedâneos comerciáveis. O
resultado é um tipo conhecido de corrupção. A personalidade passa a fazer
parte da gíria da publicidade, dizendo-se que os consumidores dos produtos
mais banais estão a «expressar-se» ou a «desafiar-se». A amizade deixa de ser a
relação eticamente séria que era para Aristóteles e passa a ser uma intriga para
desfrutar do lazer. Entretanto, o lazer em si está sujeito à mesma lógica
economizadora que governa a produção, com desporto, jogos e clubes noturnos
a tentarem condensar o máximo de excitação no mínimo de tempo. «O
mercado penetra em áreas da vida que se tinham mantido fora do reino da troca
monetária até recentemente», escreve o sociólogo Zygmunt Bauman. «Ele
bombardeia inexoravelmente a mensagem de que tudo é ou poderia ser um bem
essencial, ou, se não puder ser um bem essencial, que poderia ser tratado como
um bem essencial.»289
É difícil representar essas mudanças estatisticamente. Os bens básicos são
qualidades, não quantidades, são objetos de discernimento, não de medição. O
que pode ser medido são os representantes dos bens básicos – quantidades que
se presume poderem subir e descer conjuntamente com eles. Os resultados de
um exercício desse tipo são desencorajantes. O rendimento britânico per capita
mais do que duplicou desde 1974. Porém, durante esse período, tanto quanto
podemos julgar, os bens básicos não cresceram nada nem atrofiaram
categoricamente. Outras nações ricas revelam um quadro mais misto.
247 Filme de 2009 (Uma Família com Etiqueta) em que um casal perfeito (Os Joneses), protagonizado por
Demi Moore e David Duchovny, se muda com os seus filhos adolescentes igualmente perfeitos para um
condomínio de luxo. Têm uma vida melhor e coisas melhores do que qualquer outra família da cidade. O
problema é que não são uma família. São funcionários de uma empresa de marketing secreta e sabem como
fazer todas as pessoas quererem o que eles têm. (N. da T.)
248 Milton Friedman, «The Methodology of Positive Economics» [A Metodologia da Economia Positiva],
in Friedman, Essays in Positive Economics (Chicago: University of Chicago Press, 1953), p. 5.
249 Provas da universalidade dessas e outras práticas podem ser encontradas em Alexander MacBeath,
Experiments in Living (Londres: Macmillan, 1952) e Morris Ginsberg, On the Diversity of Morals
(Londres: Heinemann, 1956).
250 Ver Martha Nussbaum, Women and Human Development: The Capabilities Approach (Cambridge:
Cambridge University Press, 2000), p. 73: «Na medida em que podemos reagir às histórias trágicas de
outras culturas, mostramos que esta ideia de merecimento e atividade humana atravessa fronteiras
culturais.»
251 Ernst Cassirer, The Logic of the Cultural Sciences, tr. S. G. Lofts (New Haven: Yale University Press,
2000), p. 76.
252 John Rawls, A Theory of Justice (Oxford: Clarendon Press, 1971), p. 433.
255 Ibid., p. 87. Amartya Sen tem uma atitude mais descontraída relativamente à relevância dos
funcionamentos; ele admite «a possibilidade de contar simplesmente com a avaliação de funcionamentos
atingidos (se desejarmos ir por esse caminho) […]» Amartya Sen, The Idea of Justice (Londres: Allen Lane,
2009), p. 236.
257 Ibid., p. 79. Nussbaum acrescenta numa nota de rodapé que esta lista é baseada na constituição indiana,
artigo 15.º, com exceção de não discriminação com base na orientação sexual, que não é garantida pela
constituição. Mas isto em si dificilmente é uma garantia de universalidade, uma vez que a constituição
indiana se baseou fortemente nos protótipos britânico e americano. E, em todo o caso, que autoridade tem
um documento político numa discussão de «capacidades funcionais centrais humanas»?
258 John Finnis, Natural Law and Natural Rights (Oxford: Oxford University Press, 2011), pp. 87-90.
259 Aristóteles disse famosamente que «é a marca de uma pessoa educada procurar a precisão em todos os
tipos de dúvidas até ao ponto em que a natureza do tema permite» [Aristóteles, Nichomachean Ethics, tr.
Christopher Rowe e Sarah Broadie (Oxford: Oxford University Press, 2002).] Num espírito semelhante,
Keynes terá dito: «É melhor estar imperfeitamente certo do que precisamente errado.»
260 Citado em Georges Canguilhem, The Normal and the Pathological (Nova Iorque: Zone Books, 1991),
p. 91.
261 Aristóteles, Politics, The Complete Works of Aristotle, ed. Jonathan Barnes, vol. 2 (Princeton:
Princeton University Press, 1984), p. 2101.
262 O gerontologista Aubrey de Grey afirmou que dentro de muito pouco tempo poderemos ter centenas de
anos de boa saúde. Guy Jones, um neurocientista de Cambridge, é muito mais contido. «Estamos a
acrescentar anos à vida», escreve ele, «mas são anos de má qualidade no fim da vida» (Guy Jones, «No Way
to Go» [Beco sem saída], Guardian, 14 de novembro de 2007). O nosso objetivo não é empurrar as pessoas
para a sepultura, mas permitir-lhes que envelheçam graciosamente. «Um homem capaz de celebrar o seu
octogésimo-primeiro aniversário», escreveu o filósofo chinês Lin Yutang, «é visto como especialmente
favorecido pelo céu.»
263 Expressão usada pelos anglo-saxónicos como metáfora do estilo de vida moderno. Os ratos de
laboratório correm em labirintos para obterem uma recompensa no final. Nós vivemos numa rotina frenética
de atividade competitiva para conseguirmos uma recompensa. (N. da T.)
264 Josef Pieper, Leisure: The Basis of Culture, tr. Alexander Dru (São Francisco: Ignatius, 1963), p. 105.
265 Em francês no original: o agradável comércio. No seu livro Do Espírito das Leis, Montesquieu afirmou
que «o efeito natural do comércio é o de levar à paz». (N. da T.)
266 Aquilo a que chamamos aqui respeito também é muitas vezes chamado «dignidade», especialmente em
discussões religiosas. Nós preferimos o termo «respeito» porque ele destaca mais claramente a dimensão
interpessoal. O respeito é conferido; a dignidade é inerente. Todavia, a nossa capacidade de respeitar um ser
humano pressupõe que há alguma coisa nele que é digna de respeito, e essa alguma coisa poderia, se
desejado, ser chamada de dignidade.
268 O estrago feito pela desigualdade ao respeito é explorado em Richard Sennett, Respect in a World of
Inequality (Londres: Allen Lane, 2002).
269 Citado em Robert Skidelsky, John Maynard Keynes: The Economist as Saviour 1920-1937 (Londres:
Macmillan, 1992).
270 Sherman McCoy, o «mestre do universo» no romance de Tom Wolfe, A Fogueira das Vaidades,
consome o seu salário em rendas, propinas escolares, etc., tendo como resultado a falência poucas semanas
depois de perder o emprego. Na realidade, ele é um escravo do salário, se bem que um escravo
endinheirado.
276 Confúcio, The Analects, tr. Arthur Waley (Ware: Wordsworth, 1996), p. 3.
277 Ibid., p. 3.
279 Leo Strauss, «Kurt Riezler», in Strauss, What is Political Philosophy? (Chicago: University of Chicago
Press, 1988), p. 234.
280 Karl Marx, «On James Mill» [Sobre James Mill], in Karl Marx: Selected Writings, ed. David
McLellan, 2.ª ed. (Oxford: Oxford University Press, 2000), p. 132.
281 Para uma discussão interessante deste ponto, ver Sarah Broadie, «Taking Stock of Leisure» [Inventário
do Lazer], in Broadie, Aristotle and Beyond: Essays on Metaphysics and Ethics (Cambridge: Cambridge
University Press, 2007), p. 194.
283 Alexandre Kojève, Introduction to the Reading of Hegel (Nova Iorque: Basic Books, 1969), p. 162.
287 Adair Turner, Economics after the Crisis: Objetives and Means, Palestra 1: «Crescimento Económico,
Bem-Estar Humano e Desigualdade»
(http://www2.lse.ac.uk/publicEvents/pdf/20101011%20Adair%20Turner%20transcript.pdf; acedido no dia
12 de janeiro de 2012), p. 35.
288 Lorde Turner admite esta possibilidade. Na sua terceira palestra, ele escreve que os objetivos de
mudança e de liberdade económica «precisam de ser equilibrados contra outros objetivos potencialmente
desejáveis». Mas ele deveria acrescentar que isto fragiliza a utilidade do crescimento como um indicador de
saúde económica.
290 Para uma defesa persuasiva da sua reivindicação, ver Anthony e Charles Kenny, Life, Liberty and the
Pursuit of Utility (Exeter: Imprint Academic, 2006), pp. 65-93.
291 James Lovelock, The Revenge of Gaia (Londres: Penguin, 2006), p. 126.
Gráfico 9. Mortes Relacionadas com o Álcool no Reino Unido
292 Francesco Branca et al., The Challenge of Obesity in the WHO European Region and the Strategies for
Response (Copenhaga: Organização Mundial de Saúde, 2007).
293 Michael Moore et al., «Explaining the Rise in Antidepressant Prescribing: A Descriptive Study Using
the General Practice Research Database» [Explicar o Aumento de Prescrições de Antidepressivos: Um
Estudo Descritivo Usando a Base de Dados de Investigação de Clínica Geral], British Medical Journal (
2009), bmj.com.
294 Francis Green, Praxis: Job Quality in Britain (Londres: Comissão do Reino Unido para o Emprego e as
Habilitações, 2009).
295 Stephen Nickell et al., «A Picture of Job Insecurity Facing British Men» [Um Retrato de Insegurança
no Trabalho que Enfrentam os Homens Britânicos], Economic Journal, n.º 112 (2002), pp. 1-27.
296 Mark Beatson, «Job “Quality” and Job Security» [«Qualidade no Emprego e Segurança no Emprego],
Labour Market Trends (2000), pp. 441-449.
Gráfico 10. Obesidade no Reino Unido
298 Simon English, «The Poisonous City Work Ethic That Is in Urgent Need of Reform» [A Venenosa Ética
de Trabalho Urbana Tem Necessidade Urgente de Reforma], Evening Standard, 5 de julho de 2011.
300 Departamento de Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais, Agriculture in the United Kingdom
(Londres: HMSO, 2007).
301 Os dados da TNS Global para os três meses até novembro de 2009 mostram que as lojas independentes
têm uma quota de mercado de 2,2%, sendo o resto absorvido pelas chamadas lojas «múltiplas», desde a
Tesco até ao Lidl, Netto e outras cadeias mais pequenas. Ver http://www.tnsglobal.com/news/news-
56F59E8A99C8428989E9BE 66187D5792.aspx (acedido no dia 21 de novembro de 2011).
Gráfico 13. Distribuição de Riqueza no Reino Unido
Fonte: ONS, HMRC [Nota: A riqueza comerciável (também conhecida como valor líquido) é o
valor de todos os bens que podem ser comprados e vendidos – ações, propriedades, poupanças no
banco, etc. – menos as responsabilidades. Exclui, por exemplo, as pensões profissionais que não
podem ser transferidas. Aqui o valor das habitações, que são muitas vezes doadas ou herdadas e
não compradas, é excluído.]
302 Peter A. Hall, «Social Capital in Britain» [Capital Social na Grã-Bretanha], British Journal of Politics,
vol. 29 [1999, pp. 417-461, refere que apesar de o número de pubs ter diminuído substancialmente – de 102
000 em 1900 para 66 000 em 1978 (e 57 500 em 2007 – Market and Business Development, Pub
Companies: 7th Report of Session 2008-9 [Londres: HMSO, 2008], p. 9) o número de pessoas que visitam
pubs e a quantidade de tempo passada ali aumentou da década de 1960 para a década de 1980.
Provavelmente, isto reflete o facto de os pubs se terem tornado cada vez mais agradáveis para as mulheres
durante este período. Não existem dados mais recentes.
303 Este tema foi eloquentemente explorado por Bauman in Liquid Life e outras obras.
304 Ver Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, The Well-being of Nations: The
Role of Human and Social Capital (Paris: OCDE, 2001), para confirmação da mudança de padrões de
associação nas nações da OCDE.
Gráfico 14. Casamento e Divórcio no Reino Unido
Fonte: ONS.
306 Ver Patricia Morgan, Marriage-Lite (Londres: Civitas, 2000). No entanto, a conclusão de que o
casamento melhora a estabilidade da relação foi questionada recentemente com base em que o tipo de
pessoas que se casam já têm tendência para relações estáveis. Ver Claire Crawford et al., Cohabitation,
Marriage, Relationship Stability and Child Outcomes: An Update (Londres: Institute for Fiscal Studies,
2011).
308 Sport England, Trends in Sport Participation 1987-2002 (Londres: Sport England, 2002); Fidelis Ifedi,
Sport Participation in Canada (Otava: Statistics Canada, 2005); Robert Putnam, Bowling Alone: The
Collapse and Revival of American Community (Londres: Simon & Schuster, 2000), p. 113.
309 Dale Southerton et al., Trajectories of Time Spent Reading as a Primary Activity: A Comparison of the
Netherlands, Norway, France, UK and USA since the 1970s, CRESC Working Paper 39
(www.cresc.ac.uk/sites/default/files/wp39.pdf; acedido no dia 12 de janeiro de 2012).
310 Ver «How Happy Are You? Whitehall Is Keen to Know the Answer» [Até Que Ponto É Feliz?
Whitehall Quer Saber a Resposta], Guardian, 26 de julho de 2011.
Gráfico 15. Presença em Eventos Culturais no Reino Unido
Qual é o significado desta busca interminável e louca de um progresso que nos foge sempre
que acreditamos que o conquistámos o bastante para desfrutar dele em paz?
Papa Paulo VI, Octogesima Adveniens
A virtude revisitada
No seu livro After Virtue, o filósofo Alasdair MacIntyre pede ao leitor para
imaginar uma catástrofe que destruiu as ciências naturais. Sobrevivem apenas
fragmentos de facto e prática desligados de qualquer conhecimento do seu
contexto teórico. MacIntyre sugere que «no mundo real em que vivemos, a
linguagem da moral está no mesmo estado de desordem grave que o mundo
imaginário que eu descrevi». Possuímos apenas fragmentos de moralidades
passadas desligadas dos esquemas e conceitos conceptuais que lhes deram
coerência. Mas não reconhecemos que tenha ocorrido alguma catástrofe. As
disciplinas académicas que estudam questões morais não estão conscientes
disso. Só estão conscientes dos fragmentos, que disputam furiosamente. É por
isso que o debate moral é interminável e a neutralidade entre diferentes crenças
morais é considerada o único posicionamento possível de um Estado liberal
moderno314.
A catástrofe que MacIntyre tem em mente é a ascensão do Estado moderno e
da ideologia que o acompanha. Assim, o único remédio possível que ele pode
antever é um recuo total da esfera política – um novo monasticismo. «O que
importa nesta fase», conclui ele numa veia profética, «é a construção de formas
locais de comunidade dentro das quais a civilidade e a vida intelectual e moral
possam ser mantidas durante a nova era das trevas que paira já sobre nós […]
Não estamos à espera de um Godot, mas de outro – sem dúvida muito diferente
– São Benedito.»315 As palavras de MacIntyre trazem à ideia as comunas
ambientalistas que se multiplicaram no Ocidente ao longo dos últimos 30 anos,
bem como iniciativas como o movimento de simplicidade voluntária na
América e o movimento slow food em Itália e noutros países.
MacIntyre oferece-nos um poderoso diagnóstico dos males da nossa
civilização, mas também não tem esperança nas possibilidades de reforma
política. O facto é que, até recentemente, a política pública no mundo ocidental
foi moldada, implicitamente se não sempre explicitamente, por ideias da vida
boa e da sociedade boa. Essas ideias não estavam destinadas ao fracasso; foram
derrotadas na luta política já resumida. Muitas delas mantêm-se poderosas sob
a superfície ou nas margens da nossa vida pública. Bastaria um pouco de
coragem política para voltar a colocá-las no seu lugar central. Iniciativas
privadas do tipo considerado por MacIntyre devem ser aplaudidas, mas, sem
apoio público, continuarão a ser precárias e marginais. Não devemos esquecer
que São Benedito foi precedido pelo imperador Constantino.
Dos fragmentos de moralidades sociais mais antigas que ainda estão à nossa
disposição o mais extenso é o ensino social católico, convenientemente
resumido nas 12 encíclicas papais que começam com Rerum Novarum em 1891
e acabam com Caritas in Veritate em 2009. É claro que este ensino é
propriedade de uma Igreja específica, mas não precisamos de ser católicos ou
cristãos para apreciá-lo. Ao contrário de muitas das suas equivalentes
protestantes, a Igreja católica esteve sempre aberta ao melhor da sabedoria
pagã. A sua defesa da propriedade, o seu apelo aos preços e salários justos e a
sua condenação da avareza e da usura devem tanto a Aristóteles como aos
Evangelhos. Onde o ensino católico é distintivamente cristão e muito pouco
aristotélico é na sua ênfase no trabalho como a expiação necessária dos
pecados do homem. («O homem nasce para trabalhar como o pássaro nasce
para voar», escreveu Pio XI.) Dito isto, o pensamento social católico nunca
apoiou o trabalho incessante como um ideal. «A doutrina verdadeira e
racional», escreveu monsenhor John Ryan, um teólogo americano do princípio
do século XX, «é que quando os homens produzirem bens essenciais suficientes
e confortos e conveniências razoáveis para fornecer toda a população, devem
passar o tempo que sobra a cultivar os seus intelectos e vontades, na procura da
vida mais elevada.»316
Uma das muitas forças do ensino católico é que critica em igual medida o
socialismo estatal e o capitalismo desenfreado. A Rerum Novarum
(subintitulada «Sobre o Estado da Classe Operária») que Leão XIII escreveu
em 1891 começa com uma denúncia esplêndida do capitalismo de que Marx se
teria orgulhado:
Por isso, por decretos os trabalhadores têm estado abandonados, isolados e impotentes perante a
insensibilidade dos patrões e a ganância da concorrência desmedida. O mal foi aumentado pela usura
predatória […] A isto deve ser acrescentado que a contratação de mão de obra e a condução do
comércio estão concentradas nas mãos de relativamente poucos; assim, um pequeno número de
homens muito ricos pôde colocar sobre as grandes massas de operários pobres um jugo pouco melhor
que o da escravatura317.
O rendimento básico
Reduzir a Publicidade
não sentem necessidade de um segundo carro a menos que lhes recordemos energicamente esse facto.
Esta necessidade tem de ser criada nas suas mentes e nós temos de os levar a perceber as vantagens que
um segundo carro lhes trará. Por vezes, eles até encaram a ideia com hostilidade. Eu vejo a publicidade
como a força educativa e ativadora capaz de provocar as mudanças de que necessitamos na procura.
Ao ensinar a muitas pessoas um padrão de vida mais elevado, aumenta o consumo para um nível
proporcional à nossa produtividade e recursos361.
Implicações internacionais
Neste Capítulo, o nosso objetivo foi apresentar uma ideia geral de uma
organização social e económica que reflete a redução na quantidade de trabalho
necessária para atingir os requisitos materiais de bem-estar. Isto significou
abandonar a perspetiva da escassez integrada na economia que faz da eficiência
um ídolo. Em vez disso, perguntamos: Como é que uma sociedade que já tem
«o suficiente» poderia pensar na organização da sua vida coletiva? Em
consequência disso, defendemos condições para viver que transgridem alguns
dos planos económicos bem estabelecidos, divisados para estados de pobreza.
A base material da nossa versão atualizada das «Possibilidades Económicas»
de Keynes está enraizada na lógica que começou por dar origem às suas
possibilidades: a diminuição a longo prazo da procura de mão de obra
resultante dos melhoramentos contínuos na produtividade laboral. Podemos
usar isto em nosso benefício expandindo muito o domínio do trabalho
partilhado e do lazer – uma solução que foi adotada pelo menos por alguns
países europeus – ou continuar com o sistema anglo-americano de criação de
desejos impulsionado pela insaciabilidade, mantida à custa de uma insegurança
laboral e de uma desigualdade de rendimento cada vez maiores, e sem querer
saber do futuro da humanidade.
E quanto à possibilidade política de realizar a vida boa? Os marxistas,
sempre atentos às bases materiais da mudança política, afirmam que «a saída
do capitalismo já começou». O capitalismo criou o instrumento da sua
destruição sob a forma da tecnologia digital. O sociólogo André Gorz vê o
pirata digital como a «figura emblemática» da revolta contra a posse privada de
conhecimento, o líder de uma nova «ética anarcocomunista». Está criado o
cenário para a luta futura entre as elites digitais e o proletariado digital369.
Duvidamos que chegue a esse ponto. Se acontecer, as elites digitais devem
vencer, uma vez que encontrarão formas de privatizar o conhecimento. E
mesmo que o proletariado digital vença, que têm eles para colocar no lugar do
que destruírem? Sem uma ideia robusta da vida boa, os seus esforços serão em
vão, quer ganhem quer percam.
Este livro pretende ser um contributo para repensarmos o que queremos da
vida: para que serve o dinheiro e o que significa «a vida boa». Isto envolveu a
reanimação de ideias filosóficas e éticas que deixaram há muito de ser
apreciadas, mas que não estão de forma alguma extintas. Na verdade, as
pessoas estão bastante divididas em relação à sua ética. A maioria dos
banqueiros do centro financeiro de Londres admite que são excessivamente
bem pagos e que os médicos e os professores são mal pagos370. No entanto,
estão tão institucionalizados nas suas ocupações, como os presos no seu
encarceramento, que já não conseguem imaginar a vida fora dos habitats a que
estão acostumados. As pessoas que se esforçam para fazer o melhor possível no
sistema vigente poderão não obstante aspirar a viver num sistema melhor. Este
livro é uma tentativa de ajudá-las a encontrar um.
O nosso compromisso com a personalidade e respeito exclui a coerção. Em
vez disso, queremos predispor os arranjos sociais a favor da vida boa – tornar
mais fácil para as pessoas organizarem as suas saídas da corrida de ratos, por
exemplo, descobrindo para si mesmas formas de vida em que o mais
importante não é ganhar dinheiro. Nenhum sistema político ou legal pode
evitar a parcialidade, por muito que proclame a sua neutralidade. De facto,
como demonstrámos, o nosso sistema atual está repleto de parcialidades.
Aprovamos algumas delas; outras parecem apontar na direção errada. O que
nós pedimos é que o Estado torne as suas escolhas éticas específicas, para
podermos ter um bom debate moral, em vez de fingir que age unicamente
como o agente do consumidor isolado. Se vamos ser paternalistas, sejamos
paternalistas honestos e não paternalistas dissimulados.
Uma reorientação de política desse género precisaria do apoio da religião?
Possivelmente. Os bens básicos, tal como os apresentamos no Capítulo 6, não
estão logicamente dependentes de uma única doutrina religiosa, mas a sua
realização poderá ser impossível sem a autoridade e inspiração que apenas a
religião pode proporcionar. A maior parte dos reformadores liberais do século
XIX e do princípio do século XX era cristã; outros contavam-se entre aqueles
que, como Keynes disse sobre si mesmo, «destruíram o capitalismo e, no
entanto, tiveram os seus benefícios»371. Uma sociedade inteiramente desprovida
de impulso religioso poderia ser levada a perseguir o bem comum? Duvidamos.
Independentemente do que os leitores possam pensar sobre as nossas
propostas específicas, não tentar desenvolver uma visão coletiva da vida boa,
cambalear simplesmente sem ter uma opinião sobre para que serve a riqueza, é
uma indulgência a que as sociedades já não podem dar-se ao luxo. O maior
desperdício com que nos confrontamos agora não é um desperdício de
dinheiro, mas de possibilidades humanas. «Quando permitimos a nós mesmos
desobedecer ao teste de lucro de um contabilista», escreveu Keynes em 1933,
«começámos a mudar a nossa civilização.» O tempo para essa mudança já está
atrasado.
311 Adam Lent e Mathew Lockwood, Creative Destruction: Placing Innovation at the Heart of Progressive
Economics (Londres: Institute for Public Policy Research, 2010).
312 É o quinto dos 12 Trabalhos de Hércules, o mítico herói grego. Hércules foi incumbido de limpar os
estábulos de Áugias, o rei de Élis, que produziam uma quantidade inimaginável de estrume e ninguém tinha
jamais conseguido limpar. Hércules conseguiu essa proeza desviando o curso de dois rios para passarem
pelos estábulos. Limpar os estábulos de Áugias é proverbial: significa um trabalho tão sujo e tão imenso
que ninguém pode esperar realizá-lo. (N. da T.)
313 Adair Turner, Economics after the Crisis: Objetives and Means, Palestra 3: Liberdade Económica e
Política Pública: a Ciência Económica como uma Disciplina Moral, Lionel Robbins Memorial Lecture
(http://www2.lse.ac.uk/publicEvents/pdf/20101013%20Adair%20Turner%20 transcript.pdf; acedido no dia
12 de janeiro de 2012).
314 Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory (Notre Dame, Ind.: University of Notre
Dame Press, 1981), pp. 1-3.
316 Citado em Juliet Schor, The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure (Nova Iorque:
Basic Books, 1991), p. 121.
319 A teoria fascista italiana do «Estado empresarial» foi uma aplicação fraudulenta das ideias da encíclica
de Leão XIII.
320 Ver David Marquand, in New Statesman, 22 de agosto de 2011. Marquand defende convincentemente
que a proeza dos fundadores da União Europeia foi «uma reconciliação histórica entre a Igreja Católica
Romana e os ideais da revolução francesa», possibilitando o capitalismo colaborativo da Alemanha e da
Itália.
321 Adam Smith, The Wealth of Nations (Lawrence, Kan.: Digireads.com, 2009), p. 407.
322 Peter Clarke, Liberals and Social Democrats (Cambridge: Cambridge University Press, 1979).
324 John Maynard Keynes, «Economic Possibilities for our Grand Children» [Possibilidades Económicas
para os nossos Netos], in Essays in Persuasion, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. 9
(Cambridge: Cambridge University Press, 1978), pp. 354-355.
325 Termo usado especialmente no Reino Unido para caracterizar as pessoas que deixam de ter contratos de
trabalho permanentes e passam a ter contratos temporários. (N. da T.)
326 André Gorz, Reclaiming Work: Beyond the Wage-Based Society (Cambridge: Cambridge University
Press, 1999), p. 94.
327 Robert LaJeunesse, Work Time Regulation as a Sustainable Full Employment Strategy (Londres:
Routledge, 2009).
328 Daniel Raventós, Basic Income: The Material Conditions of Freedom (Londres: Pluto Press, 2007), p.
8.
329 Ver John Cunliffe e Guido Erreygers (eds.), The Origins of Universal Grants: An Anthology of
Historical Writings on Basic Capital and Basic Income (Londres: Palgrave Macmillan, 2004); Samuel
Brittan, Capitalism with a Human Face (Cheltenham: Edward Elgar, 1995); James Meade, Agathotopia:
The Economics of Partnership (Aberdeen: Aberdeen University Press, 1989); André Gorz, Farewell to the
Working Class: An Essay on Post-Industrial Socialism (Cambridge, Mass.: Southend Press, 1982).
330 Milton Friedman, Capitalism and Freedom: Fortieth Anniversary Edition (Chicago: University of
Chicago Press, 2002).
331 O Fundo Permanente do Alasca foi implementado em 1976, financiado por receitas dos poços de
petróleo da região. Qualquer pessoa que nunca tenha sido condenada por um crime, e que resida legalmente
no Alasca há mais de seis meses, recebe um Rendimento Básico anual baseado numa média de cinco anos
do desempenho do Fundo. Em 2010, o dividendo foi de 1281 dólares, mas, em 2008, foi de 3269 dólares,
incluindo um reembolso especial. O Fundo tornou o Alasca o mais igual dos estados americanos. Na década
de 1990, o dividendo representou 6% do PIB do Alasca. O resultado foi que, numa década em que o
rendimento médio das famílias mais pobres nos Estados Unidos cresceu 12% e o das famílias mais ricas
subiu 26%, no Alasca a tendência foi invertida: os mais pobres ganharam mais 28% enquanto os
rendimentos dos mais ricos subiram apenas 7%. O dividendo é popular, mas politicamente contencioso, já
que o seu financiamento provém de um conjunto finito de recursos naturais. Embora o Alasca seja o único
exemplo de um rendimento básico em funcionamento, uma lei implementada no Brasil em 2004 ordena a
criação de um rendimento básico, a ser implementado gradualmente a partir de 2005, começando pelas
categorias mais necessitadas. Receitas do petróleo também são pagas a uma minoria de cidadãos dos
Emiratos Árabes Unidos, mas não à maioria dos não cidadãos que fazem a maior parte do trabalho.
332 Samuel Brittan, crítica de Gay Standing, Promoting Income Security as a Right: Europe and North
America (Anthen Press), Citizens Income Newsletter, n.º 2 (2005).
333 Chandra Pasma, «Working through the Work Disincentive» [Resolver o Desincentivo do Trabalho],
Basic Income Studies, vol. 5, pt. 2 (2010), pp. 1-20. Para uma discussão dos prós e contras da dotação de
capital e do rendimento básico, ver Stuart White, «Basic Income Versus Basic Capital: Can We Resolve the
Disagreement» [Rendimento Básico Contra Capital Básico: Podemos Resolver o Desacordo], Policy and
Politics, vol. 39, pt. 1 (2011), pp. 67-81. Mais genericamente sobre o rendimento básico, ver Stuart White,
«Reconsidering the Exploitation Objection to Basic Income» [Reconsiderando a Objeção de Exploração do
Rendimento Básico], Basic Income Studies, vol. 1, pt. 2 (2006), pp. 1-17.
334 Meade, Liberty, Equality and Efficiency; Karl Widerquist et al. (eds.), The Ethics and Economics of the
Basic Income Guarantee (Aldershot: Ashgate, 2005).
335 Yannick Vanderborght e Philippe van Parijs, L’Allocation universelle (Paris: La Découverte, 2005).
336 Bruce A. Ackerman e Anne Alstott, The Stakeholder Sociey (New Haven: Yale University Press,
1999).
337 Ao abrigo do plano, o Estado abriria uma conta para as 70 000 crianças nascidas anualmente,
despendendo um valor estimado de 480 milhões de libras. O dinheiro seria investido pela indústria
financeira até a criança fazer 18 anos, altura em que o montante poderia ser levantado para fins aprovados
como educação, estágio, para aquisição de casa ou para iniciar um negócio. O valor do título de crédito
oferecido pelo governo variava entre 400 libras para as crianças de famílias bem de vida e 750 libras a 800
libras para as crianças de famílias mais pobres. Para encorajar as famílias mais pobres a poupar, o Estado
providenciaria «fundos correspondentes» condicionados aos recursos se eles contribuíssem para as contas.
Receberiam uma declaração anual onde se veria como os seus fundos tinham crescido. Números
compilados pelo Institute for Public Policy Research (IPPR), uma junta consultiva que persuadiu o governo
a adotar o plano, sugeriram que um «baby bond» de 750 libras teria aumentado para 2625 libras em 1999.
338 Esta questão foi energicamente suscitada por Axel Leijonhufvud no seminário do Luxemburgo (ver o
nosso Prefácio).
339 Citado em André Gorz, Ecologica (Chicago: University of Chicago Press, 2010), p. 170.
340 UNICEF, Child Well-Being in the UK, Spain and Sweden: The Role of Inequality and Materialism
(York: UNICEF UK, 2011).
341 Richard A. Musgrave, «A Multiple Theory of Budget Determination» [Uma Teoria Múltipla de
Determinação Orçamental], Finanzarchiv, vol. 17, pt. 3 (1956), p. 341.
342 Ver Alan Hunt, Governance of the Consuming Passions: A History of Sumptuary Law (Nova Iorque: St
Martin’s, 1996).
343 Bernard Mandeville, The Fable of the Bees: or Private Vices, Publick Benefits, ed. Phillip Harth
(Harmondsworth: Penguin, 1989), p. 96.
344 Ver Christopher Berry, The Idea of Luxury (Cambridge: Cambridge University Press, 1994), p. 115.
345 Nicholas Kaldor, An Expenditure Tax (Londres: Allen and Unwin, 1955), p. 176. Ver também Institute
of Fiscal Studies, The Structure and Reform of Direct Taxation: Report of a Committee Chaired by
Professor J. E. Meade (Londres: Institute of Fiscal Studies, 1978).
348 Steven Pressman, ‘The Feasibility of an Expenditure Tax’ [A Praticabilidade de um Imposto sobre o
Consumo], International Journal of Social Economics, vol. 22, pt. 8 (1995), p. 6.
349 Kaldor, An Expenditure Tax; John Kay, The Meade Report after Two Years (Londres: Institute of Fiscal
Studies, 1980). Para uma crítica, ver Pressman, «The Feasibility of an Expenditure Tax» [A Praticabilidade
de um Imposto sobre as Despesas].
350 A despesa «tributável» foi definida por Kaldor, An Expenditure Tax, pp. 191-193, uma vez que o
dinheiro que uma pessoa tem à sua disposição para gastar num ano (o seu salário, rendimento de
dividendos, dinheiro no banco) menos o dinheiro gasto na aquisição de bens de capital, o seu saldo bancário
ao fim do ano, e determinados rendimentos e isenções.
351 Para pormenores sobre este esquema, ver Robert H. Frank, Luxury Fever: Money and Happiness in an
Era of Excess (Princeton: Princeton University Press, 2000), pp. 211-216.
352 Ibid., p. 3.
355 Os principais problemas são o tratamento em termos de tributação dos bens duráveis e dos presentes. O
preço de compra de bens duráveis dispendiosos deveria ser considerado um investimento isento de impostos
ou deveria ser tratado como um gasto tributável? Os presentes deveriam ser isentos de imposto e tratados
como responsabilidades (se gastos) dos beneficiários? No segundo caso, há margem de manobra para os
ricos aproveitarem um imposto progressivo sobre o consumo para usarem os presentes para levarem
beneficiários em escalões mais baixos do imposto sobre o consumo a fazerem compras por eles. Apesar da
simplicidade conceptual do imposto sobre o consumo, a sua implementação implicaria quase de certeza
uma investigação mais intrusiva das circunstâncias pessoais do que acontece com o imposto sobre o
rendimento.
356 John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest, and Money, The Collected
Writings of John Maynard Keynes, vol. 7 (Cambridge: Cambridge University Press, 1973), p. 374.
357 «How to Tame Global Finance» [Como Dominar a Finança Global], Prospect, 27 de agosto de 2009.
358 Para esta definição de um bem, ver Gary Becker e Kevin Murphy, «A Simple Theory of Advertising as
Good or Bad» [Uma Teoria Simples da Publicidade como Boa ou Má], Quarterly Journal of Economics,
vol. 108, pt. 4 (1993), p. 941. Inversamente, um «mau» é algo que o consumidor paga para se ver livre, ou
tem de ser compensado para aceitar. Na versão forte do modelo de consumidor racional não há bens
públicos ou de mérito.
360 G. W. F. Hegels, Elements of the Philosophy of Right (Cambridge: Cambridge University Press, 1991),
p. 229.
362 Não há nada de novo na ideia de tributar os custos. Por exemplo, os impostos na folha de pagamentos
são impostos sobre o custo de empregar mão de obra.
364 A forma «natural» de comércio é entre áreas do mundo com diferentes legados de recursos e climáticos.
Isto impossibilita ou torna extremamente dispendioso produzir todos os bens desejados no mesmo lugar. Se
os escoceses quiserem beber vinho, terão de o importar de zonas onde ele é cultivado, trocando-o, por
exemplo, por kilts de tartã. No entanto, a forma mais eficiente de comércio ocorre de acordo com uma
vantagem comparativa: isto é, pagará ao país A para se especializar nesse bem, ou bens, que pode produzir
de uma forma relativamente mais barata do que o país B, mesmo que possa produzir todos os bens de uma
forma mais barata do que no país B. Esta é a base da doutrina moderna do comércio livre. Evidentemente, o
seu poder persuasivo diminui em condições de abundância, quando o preço mais baixo deixa de ser a
principal consideração.
365 Uma hipótese alternativa para a observada estagnação de salários é a recompensa crescente das
aptidões nas sociedades ricas. Os dados empíricos em que o efeito domina são inconclusivos – ver Paul
Krugman, «Trade and Wages, Reconsidered» [Comércio e Salários, Reconsiderados], artigo não publicado
para o Painel de Atividade Económica do Brookings Institute de 2008.
366 Entrevista com Steve Lohr, «An Elder Challenging Outsourcing Orthodoxy» [Uma Antiga Ortodoxia
Estimulante de Subcontratação], New York Times, 9 de setembro de 2004.
367 Erik S. Reinert, How Rich Countries Got Rich… and Why Poor Countries Stay Poor (Londres:
Constable, 2008), pp. xxv-xxvi.
368 Ha-Joon Chang, 23 Things They Don’t Tell You About Capitalism (Londres: Penguin, 2010), p. 63.
370 St Paul’s Institute, Value and Values: Perceptions of Ethics in the City Today (Londres: St Paul’s
Institute, 2011).
371 Robert Skidelsky, John Maynard Keynes: Economist, Philosopher, Statesman (Londres: Pan, 2004), p.
515.