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ironias sobre a Primeira Grande Guerra, ou aos produtos de Capítulos

culturas asiáticas mais ricas, como as da China e da índia,


mas mesmo assim um papel real, que ainda não terminou e "Do ponto de vista dos nativos": a
que foi e é, à sua moda, bastante poderoso. E também insistir natureza do entendimento antropológico
que, por isso, o etnógrafo de Bali, como o crítico de Jane
Austen, entre outras coisas, tem como objetivo investigar
aquilo que o professor Trilling, naquele seu último, sinuoso
e interrompido ensaio, chamou de um dos mistérios impor-
tantes da vida cultural humana: como é que as criações de
£jutms.poxQS.podem ser tãoj^róximas a seus_cnadpjrès_eL_ac£>
mesmo tempo, e tão profundamente, uma parte de nós. Há alguns anos, um pequeno escândalo irrompeu na
antropologia: uma de suas figuras ancestrais falou a verdade
em público. Como cabe a um ancestral, ele o fez postuma-
mente, por decisão de sua viúva e não dele próprio. Este
deslize foi o bastante para que alguns conservadores em
nosso meio elevassem a voz e clamassem que a viúva, tam-
bém antropóloga, havia traído o clã, divulgado seus segre-
dos, profanado um ídolo e decepcionado seus com-
panheiros. Um caso típico de "o que é que as crianças vão
pensar?" e isto sem indagar-se o que os leigos iriam pensar...
O clamor não diminuiu com todo este cerimonial de esfrega
dê mãos pois, infelizmente, o texto maldito já tinha sido
publicado. O que realmente aconteceu foi que, mais ou
menos como James Watson, que, em The Double Helix,
confessou como a biofísica funcionava na prática, Bronislaw
Malinowski, em A Diary in the Strict Sense ofthe Term, fez
com que os relatos oficiais sobre os métodos de trabalho dos
antropólogos parecessem bastante inverossímeis. O mito do
pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfei-
tamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre
ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo,
foi.jde um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez,
um dos maiores responsáveis pela sua criação.
O debate que se originou com a publicação do diário
concentrou-se, naturalmente, nos detalhes não essenciais,
e, como era de se esperar, ignorou a questão mais importan-
te que o livro continha. Grande parte do choque parece ter

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sido consequência da mera descoberta que Malinowski não
era, para expressá-lo de uma forma delicada, um sujeito mais importante que o profissional. Durante_estes anos, as
muito simpático. Dizia coisas bastante desagradáveis sobre formulações do problema foram variadas: descrições que
os nativos com quem vivia, e usava palavras igualmente são vistas. "de_dejaírol!uexsu&AS^ue,s.ãajdktaA
desagradáveis para expressar estes comentários. Passava terceira^
grande parte do seu tempo desejando estar em outro lugar.
E projetava uma imagem de total intolerância, talvez uma "cognitivas" versus "comportamehtais"; e, talvez mais comu-
das maiores intolerâncias do mundo. (Projetava também a mente, análises "êmicas" versusjinálises "éticas'^ estas últi-
imagem de um homem que se consagrara a uma vocação mas resultando" dé~ uma distinção linguística entre as
estranha a ponto de se auto-sacrificar por ela, mas isso classificações fonêmicas ou fonéticas dos sons, de acordo
notava-se menos.) Com tudo isso, baixou-se o nível do com suas funções internas na linguagem, sendo que a foné-
debate, concentrando-o no caráter - ou na falta de caráter - tica os classifica de acordo com suas propriedades acústicas
de Malinowski, e ignorando a questão profunda e genuina- propriamente ditas. A forma mais simples e direta de colocar
mente importante que o livro havia levantado, isto é, se não a questão é, talvez, vê-la nos termos de uma distinção,
é graças a algum tipo de sensibilidade extraordinária, a uma formulada pelo psicanalista Heinz Kohut para seu próprio
capacidade quase sobrenatural de pensar, sentir e perceber uso, entre o que ele chamou de conceitos da "experiência-
o mundo como um nativo (uma palavra, que, devo logo próxima" e da "experiência-distante".,
dizer, usei aqui "no sentido estrito do termo") como é
Um conceito de "experiência próxima" é, mais ou me-
possível que antropólogos cheguem a conhecer a maneira
nos, aquele que alguém - um paciente, um sujeito, em nosso
como um nativo pensa, sente e percebe o mundo? A questão
caso um_infgrmante. — usaria;naturalmente:_e,.s.em esfpjrco,
que o diário introduz, com uma seriedade que talvez só um
para definir aquilo que seus semelhantes vêem,..S-gnte,m,
etnógrafo da ativa possa apreciar totalmente, não é uma
pensam, imaginam etc. e que ele próprio entenderia facil-
questão ética. (A idealização moral de pesquisadores de
mente, se outros o utilizassem da mesma maneira. Um
campo é, em si mesma, puro sentimentalismo, quando não co^ioeitojJeJlexj^rirâ
uma forma de autoparabenizar-se ou uma pretensão exage-
de_guaiqu.er tipo - um analista, um pesquisador, um etnó-
rada.) A questão é epistemológica. Se é que vamos insistir -
grafo, ou até um padre ou um ideòlogista - utilizam para
e, na minha opinião, devemos insistir — que é necessário que
antropólogos vejam o mundo do ponto de vista dos nativos., levar a cabo seus objetiyps científicos., filosóficosou práticos.
onde ficaremos quando não pudermos mais arrogar-nos 'Amor" é um conceito de experiência-próxima; "catexia em
alguma forma unicamente nossa de proximidade psicoló- um objeto" de experiência-distante, "Estratificação social" e,
talvez-para a maioria dos povos do mundo, "religião" (e
gica, ou algum tipo de identificação transcultural com nos-
certamente "sistema religioso") são de experiência-distante;
sos "sujeitos? O que acontece com o verstehen quando o
einfilhlen desaparece? "casta" e "nirvana" são de experiência-próxima, pelo menos
para hindus e budistas.
Aliás, este problema geral vem sendo tema de inúmeros
debates na antropologia nos últimos dez ou quinze anos; a Obviamente, trata-se de uma questão -de grau, não -de
oposição extrema- "medo" é mais experiência-próxima que,-,
voz de Malinowski, do túmulo, simplesmente dramatizou a
"fobia" e "fobia" é mais experiência-próxima que "ega,dis.t<>
questão, tornando-a um dilema humano que passou a ser
nico". E, pelo menos com relação à antropologia (no caso

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da poesia e da física não seria o mesmo) a diferença não é suas, e, de qualquer maneira, não vão estar muito interes-
normativa, ou seja, um dos conceitos não é necessariamente sados neste tipo de exercício. Q que é importante é descobrir.
melhor do que o outro, nem se trata de preferir um em vez que diabos eles acham que estãojfezeadQ. . ' - - • '
do outro. Limitar-se a conceitos de experiência-próxima Em um certo sentido, ninguém sabe isto tão bem quanto
deixaria o etnógrafo afogado em miudezas e preso em um eles próprios; daí o desejo de nadar na corrente de suas
emaranhado vernacular. Limitar-se aos de experiência-dis- experiências, e a ilusão posterior de que, de alguma forma,
tante^ por outro lado, o deixaria perdido em abstrações e o fizemos. Em outro sentido, no entanto, este truísmo
sufocado com jargões. A verdadeira questão — a que Mali- simples é simplesmente falso. As pessoas usam conceitos de
nowski levantou ao demonstrar que, no caso de "nativos", experiência-próxima espontaneamente, naturalmente^ p_o_r
nã.Q_é_necessârio ser urn^ deles cara conhecer urn^ relácio- assim dizer, .coloquialmente; não reconhecem, anão ser de
na-se com os papéis que os ,dois tipos de conceitos desem- forma passageira e ocasional, quejDjjue disseram envolve
penham na análise antropológica. Ou, mais exatamente, "conceitos". Isto é exatamente o que experiência-próxima
como devem estes ser empregados, em cada caso, para significa - as ideias e as realidades que .elas representam
produzir uma interpretação do modus vivendi de um povo estão natural e indissoluvelmente unidas. Que outro nome
que não fique limitada pelos horizontes mentais daquele poderíamos dar a um hipopótamo? É claro que os 'deuses
povo - uma etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa são poderosos, se não fossem, porque os temeríamos? Ameu
- nem que fique sistematicamente surda às tonalidades de ver, o etnógrafo não percebe — principalmente não é capaz
sua existência - uma etnografia sobre bruxaria escrita por de perceber - aquilo que seus informantes percebem. O que
um geômetra. ele percebe, e mesmo assim com bastante insegurança, é o
meios,_de_gue^,_ou "através de,,qu,e!L (ou
Colocando a questão nestes termos, ou seja, indagando-
l.^fora^expressão) ojDoutros £ercebem. Em país de
se qual a melhor maneira de conduzir uma análise antropo-
cegos, que, por sinal, são mais observadores que parecem,
lógica e de estruturar seus resultados, em vez de inquirir que
quem tem um olho não é rei, é um espectador.
tipo de constituição psíquica é essencial para antropólogos,
torna-se o significado de "ver as coisas do ponto de vista dos A seguir, para tornar tudo isto um pouco mais concreto,
nativos" menos misterioso. Isto não significa que a questão gostaria de referir-me poir uns momentos a meu próprio
fique mais fácil de responder, nem que a necessidade de trabalho, que, sejam quais forem seus defeitos, tem pelo
perspicácia por parte do pesquisador de campo diminua. menos a virtude de ser meu - o que, em discussões deste
Para captar conceitos que, para outras pessoas, são de expe- tipo, não deixa de ser uma nítida vantagem. Em todas as três
riência-próxima, e fazê-lo de uma forma tão eficaz que nos sociedades que estudei intensivamente, a javanesa, abaline-
permita estabelecerjuma conexão esclarecedora com. os sa e a marroquina, tize. como um .dos meus objetivos princi-
conceitos de experiência-distante criados por teóricos para paiâ,jtejitar_id£ntificar_TOmg_as pessoas que_ vivem, .nessas-
captar os elementos mais gerais da vida social, é,.sem dúvida, sociedades se definem como pessoas, ou seja, de. que se
urna tarefa tão delicada, embora um pouco menos misterio- compõe .ajdéia. que, filassem (mas, como disse acima, que
sa, que colocar-se "embaixo da pele do outro". O truque é não sabem totalmente que têm) do que é um "eu" no estilo
. . . \L / ,_ _..T.'. ..... -..., .. -_^....._ .-..-.,,t-..^.,--_-='3'»ÍS»^:

não se deixar envolver por nenhum tipo de empatia espiri- javanês, balinês ou marroquino. E, em cada um dos casos,
tual interna com seus informantes. Como qualquer um de tentei chegar a esta noção tão profundamente íntima,,, não
nós, eles também preferem considerar suas almas como

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imaginando ser uma outra pessoa - um camponês no arro-
zal, ou um sheik tribal - para derjpis descobrir o que este ela,é,uma ideia, basjante^egaliar. Em vez de tentar encaixar
pensaria, mas sim procurando, e.depois analisando,_as_fpr- a experiência das outras culturas dentro da moldura desta
, mas simbólicas - palavras, imagens, instituições, comporta; nossa concepção, que é o que a tão elogiada "empatia" acaba
• mentos_-_em cujos termos as pessoas realmente se rçprfi; fazendo, para entender as concepções alheias é necessário
,.-, sentam_para si mesmas j2 para os outros, em cada um desses , _
, lugares. experiência..? de outros com relação à sua própria concejjção
r l

O conceito de pessoa é, na realidade, um veículo exce- dpleu". Pelo menos no caso de Java, Bali e Marrocos, esta
lente para examinar toda esta questão relacionada com o concepção difere significativamente não só da nossa, como
andar por aí, investigando o que passa pela mente alheia. também r- de forma não menos dramática e com igual valor
didático - entre si.
Em primeiro lugar, sentimo-nos razoavelmente seguros para
afirmar que algum tipo de conceito desta categoria existe,
em forma reconhecível, entre todos os grupos sociais. Algu-
II
mas vezes, as noções que as pessoas têm sobre o que é ser
uma pessoa podem parecer, do nosso ponto de vista, bas- Em Java, onde trabalhei nos anos 50, estudei uma ilha
tante estranhas. Uns acreditam que pessoas voam de um lado pequena e pobre, que era uma espécie de sede de um
para outro, durante a noite, na forma de vaga-lumes. Outros condado: duas ruas ensolaradas, prédios de madeira caiados
acham que elementos essenciais de sua psique, tais como o de branco, onde funcionavam lojas e escritórios e, atrás
ódio, estão localizados em córpulos negros e granulares destes, barracos de bambu ainda mais pobres, amontoados
- dentro de seus fígados, só descobertos através de autópsias. desordenadamente. O conjunto era rodeado por um grande
-Outros crêem compartilhar seu destino com animais doppel- meio-círculo de aldeias densamente povoadas, onde planta-
, gãnger, de modo que, quando o animal adoece ou morre, va-se arroz. A terra era pouca, os empregos raros, o sistema
> eles também adoecem ou morrem. No,,entanto,, é minha político instável, a saúde de má qualidade, os preços subiam,
. experiência, que a concepção do que é um indivíduo huma- em suma, a vida, de um modo geral não era lá muito
no, em contraste com o que é uma pedra, um animal, uma promissora. Havia, uma espécie de estagnação agitada na
floresta tropical, ou um deus,, é um fenómeno universal. Ao qual^-como obs&rvei certa vez referindo-me àjcuriosa mistura
mesmo tempo, como estes exemplos selecionados aleatoria- de fragmentos importados de modernidade e relíquias da
mente sugerem, as concepções em questão variam de um tradição ultrapass_adajgu_e^ara^cterj2;avam ,_o_ lugarL_o_jutuj;o
grupo para o outro, e, frequentemente, existem diferenças parecia quase tão remotojcomjDj2jgas,,sjido. No meio deste
profundas entre elas. Por mais que, para nós ocidentais, a cenário deprimente, no entanto, havia uma vitalidade inte-
concepção da pessoa como um universo cognitivo e motiva- lectual absolutamente surpreendente, uma verdadeira pai-
cional delimitadOj único, e mais ou menos integrado, um xão filosófica, paixão que, além disso, era popular, con-
centro dinâmico de percepção, emoção, juízos e ações, centrada em descobrir, a fundo, os enigmas existenciais.
organizado em uma unidade distinta e localizado em uma Camponeses miseráveis discutiam questões relacionadas
situação de contraste com relação a outras unidades seme- com o livre-arbítrio, comerciantes analfabetos falavam sobre
lhantes, e com seu ambiente social e natural específico, nos as qualidades de Deus, lavradores comuns tinham teorias
pareça correta, no contexto geral das culturas do mundo, sobre a relação entre a razão e a paixão, a natureza do tempo
ou a confiabilidade dos sentidos. E, talvez ainda mais impor-
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tante, buscavam, avidamente, respostas para o problema do objeto de que estamos conscientes. Refere-se mais a partes
eu - sua natureza, sua função e seu modus operandi - com da vida humana que, em nossa cultura, são estudadas por
um tipo de intensidade reflexiva que, entre nós, encontra- comportamentalistas radicais - as ações externas, os movi-
mos somente em ambientes altamente sofisticados. mentos, a postura, a linguagem falada. Esta também, em sua
essência, era considerada igual para todos os indivíduos. Os
As ideias centrais em cujos termos estas reflexões se
dpis grupos de fenómenos -sentimentos internos e ações
desenvolviam e que, portanto, definiam seus limites e o
externas - são, portanto, considerados não como funções
significado de "pessoa" para os javaneses, erartidispostas^m
um do outro, mas como esferas independentes do ser, que
dois conjuntos contrastantes, que tinham como base a reli-
devem ser postas na ordem apropriada também de forma
gião: um, entre "dentro" e "fora" é o outro entre "refinado" independente.
e "vulgar". Estas palavras são, é claro, toscas e imprecisas; a
determinação exata do significado dos termos envolvidos, É em conexão com esta "ordem apropriada" que o
selecionando suas várias nuanças, era o tema principal das contraste entre alus, palavra que significa "puro", "refina-
discussões. No entanto, como um conjunto, elas formavam^ do", "polido", "belo", "etéreo", "sutil", "civilizado" e "suave"
uma concepção específica do "eu" que, longe de ser simples^ ç.kasar, que significa "indelicado", "grosseiro", "não-civiliza-
mente teórica, era a concepção através da qual os javaneses do", "áspero", "insensível", "vulgar", tem sua importância.^,
realmente se "viam" uns aos outros, e também a si próprios. metajdo. ser humano é ser alus nasjduas esferas do "eu". Na
esfera interior, chega-se ao alus através da disciplina religio-
As palavras javanesas para "dentro"/"fora", batin e lair sa, que é bastante, embora não totalmente3jnística. Na esfera
(originalmente importadas da tradição sufi do misticismo exterior, chega-se a ser alus por meio da etiqueta, cujas
muçulmano, mas modificadas localmente) referem-se, por
regras, em Java, são extraordinariamente complicadas e tem
um lado, à esfera dos sentimentos -na experiência humana, quase a autoridade de leis. Através da meditação, o homem
e, por outro, à esfera do comportamento humano observa- civilizado dilui sua vida emocional até transformá-la em um
do. Apresso-me a esclarecer que essas palavras não têm zumbido constante; através da etiqueta, ele não só protege
qualquer conexão com "alma" e "corpo" no sentido que esta vida emocional das interrupções externas, mas também
damos a estes termos; para tais conceitos, existem outras regulariza seu comportamento externo pára que este possa
palavras em javanês, com implicações bastante diferentes. parecer, aos olhos alheios, previsível, sereno, elegante, e um
Batin, a palavra que significa "dentro", não se refere a um conjunto meio frívolo de movimentos coreografados e ma-
local separado de espiritualidade encapsulada, que se des- neiras de falar estabelecidas.
taca, ou pode ser destacado do corpo, nem mesmo a qual-
quer unidade com limites, mas sim à vida emocional dos Como estes conceitos são também parte de uma ontolo-
seres humanos de um modo geral. Consiste no fluxo impre- gia, e estética específicas incluem muitas outras sutílezas
ciso e mutante dos sentimentos subjetivos, percebido dire- secundárias. Cornresp_eito a,nossaproblemática.— aconcep-
tamente em toda sua proximidade fenomenológica, mas, ção do eu - o que temos aqui é uma concepção bifurcada,
pelo menos em suas raízes, considerado idêntico para todos sendo uma de suasjsartes constituída por sentimentos meio
os indivíduos, cuja individualidade ele faz desaparecer. Da sem gestos, e a outra por gestos meio sem sentimentos. Um
mesma forma, lair, a palavra javanesa para "fora", não tem mundo interior de emoção contida e um mundo exterior de
qualquer relação com o corpo como um objeto, mesmo um comportamento estruturado se confrontam sob a forma de

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e tornaram os baíineses um povo muito mais teatral, com
esferas profundamente distintas entre si, e qualquerjndiví-
uma concepção do eu também teatral. O que é filosofia em
duo nada mais é, por assim dizer, que um locus temporário Java é teatro em Bali.
para este confronto, uma expressão momentânea da própria
existência destas duas partes, de sua separação permanente, A consequência disto é que, em Bali, existe um esforço
e de sua necessidade, também permanente, de serem man- persistente e sistemático para estilizar todas as formas de
tidas em uma ordem apropriada. Somente quando se pre- expressão pessoal a um ponto tal, que qualquer coisa idios-
sencia, como eu presenciei, um jovem cuja esposa tinha sincrática e característica do indivíduo por ser ele quem é,
morrido súbita e inexplicavelmente—e esta esposa tinha sido física, psicológica ou biograficamente, é emudecida, privile-
criada por ele e fora sempre o centro de sua vida - receber giando-se o papel que ele desempenha no cortejo perma-
convidados com um sorriso fixo e desculpas formais pela nente; e, na visão dos baíineses, imutável, que é a vida,
ausência da esposa, tentando, com técnicas místicas, aplai- balinesa. São as dramatis personae, não os atores, que
nar - corno ele mesmo se expressou - as colinas e vales de persistem; na verdade, são as dramatis personae, e não os
suas emoções para transformá-las em uma planície ("é o que atores que realmente existem no sentido exato da palavra.
temos que fazer", disse ele, "estar plano, por dentro e por Fisicamente, os homens vão e vêm, meros incidentes na
fora") pode.-se, frente a nossas próprias noções sobre a história conjuntural, sem nenhuma importância real, nem
intrínseca honestidade de um sentimento profundo, e a para si mesnios.^As máscaras que__us_am, no entanto, o lugar
importância moral da sinceridade pessoal, levar a sério esta que ocupam no palco., os papéis .que dês emfienham:, e, ainda
concepção do eu, e apreciar este tipo de poder, por mais mais importante, o espetáculo que montam juntos perma-
inacessível que este lhe pareça; necem e compreendem não a fachada, mas sim a substância
das coisas, inclusive a do eu. A visão de antigo membro de
trupe que Shakespeare tinha sobre a futilidade da ação
III diante da mortalidade - o mundo é um palco, e nós somente
pobres atores, felizes em pavonear-nos, e assim por diante -
Bali, onde trabalhei a princípio em uma outra cidadezi-
não faz sentido em Bali. Não existe faz-de-conta; é claro que
nha provinciana, embora um pouco menos mutante e depri-
os atores morrem, mas a peça continua, e é o que foi atuado,,
mente, e depois em uma aldeia na região mais alta da ilha, não quem atuou, que realmente importa.
cujos habitantes eram fabricantes altamente qualificados de
instrumentos musicais, é, em muitas coisas, semelhante a . Uma vez mais, tudo isto se manifesta através de uma série
Java, cuja cultura compartilhou até o século XV No entanto, de formas simbólicas facilmente observáveis, um repertório
em um nível mais profundo, é também bastante diferente, elaborado de designações e títulos, e não através de um
pois permaneceu hindu, enquanto que Java, pelo menos em estado de espírito geral que o antropólogo, em sua suposta
nome, se tornou islâmica. Ávida ritual complexa e obsessiva versatilidade espiritual, consegue de alguma maneira captar.
- hindu, budista e polinésia em proporções mais ou menos Os baíineses têm pelo menos meia dúzia de títulos princi-
iguais - cujo progresso foi quase interrompido em Java, pais, atribuídos, fixos e absolutos que uma pessoa usaria
deixando que seu espírito Índico se tornasse reflexivo e para designar uma outra (ou, é claro, a si mesma) como parte
fenomenológico, com tendência ao silêncio, como na estória de seu grupo. Existem marcadores para a ordem do nasci-
que acabo de descrever, floresceu em Bali atingindo níveis mento, termos de parentesco, títulos que determinam a
de grandeza e extravagância tais que assombraram o mundo

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casta, indicadores do sexo, e tecnônimos, e muitos outros quatro: "o primeiro, o segundo, o terceiro e o quarto natos.
mais, e cada um deles constitui, não um mero conjunto de Depois disso, inicia-se outra vez a série, e os filhos que
etiquetas úteis e ocasionais, mas sim um sistema terminoló- nascerem em quinto e sexto lugar, serão, outra vez, chama-
gico distinto, delimitado e internamente muito complexo. dos, respectivamente, de primeiro e segundo natos. Além
Quando se usa uma dessas designações ou um desses títulos disso, os nomes são dados irrespectivamente ao destino que
(ou, como é mais comum, vários deles) referindo-se a al- tenham as crianças. Assim, crianças que morrem, mesmo as
guém, define-se este alguém como um ponto determinado que morrem ao nascer, entram na nomenclatura, e, portan-
em uma estrutura fixa, o ocupante temporário de um locus to, em um país onde existem ainda altos índices de natalida-
cultural, bastante permanente e específico. Identificar al- de e de mortalidade infantil, os nomes, por si sós, não dão
guém em Bali, seja o próprio sujeito ou uma outra pessoa, uma ideia muito confiável da ordem de nascimento verda-
é determinar seu lugar em um elenco conhecido de perso- deira de indivíduos concretos. Em um grupo de irmãos,
nagens - "rei", "avó", "o terceiro filho", "brâmane" - que alguém que é chamado de primeiro-nato, pode, na realida-
inevitavelmente compõem o drama social, como se este de, ter nascido em primeiro, quinto, ou nono lugar, ou, se
fosse nada mais que alguma peça- do tipo de Charley'saunt morreu alguma criança, em qualquer lugar intermediário
ou Springtime for Heriry - exibida pelas estradas por um entre estes três; ou alguém com o nome de segundo-nato
pode ser, na verdade, o mais velho. A nomenclatura da
grupo de saltimbancos. ordem de nascimento não identifica indivíduos como indi-
O drama não é, obviamente,.uma farsa, e principalmente víduos, nem. é-esta sua intenção; o que faz é sugerir que em
não é uma farsa de travestis,.embora nele existam elementos todos os casais que procriam os .nascimentos formam uma
de ambas. É uma representação da hierarquia, um teatro do sucessão cij£ular~de "primeiros",, "segundos", "terceiros" e
status. Infelizmente, neste ensaio, não nos é possível descre- "quartos", uma réplica contínua e em quatro estágios de uma
ver as características desta representação, embora entendê- forma imperecível. Fisicamente, os homens aparecem e de-
la seja essencial para compreender os balineses. Aqui, nos saparecem como coisas efémeras que são, mas, socialmente,
limitaremos a dizer que, tanto em sua estrutura, como na os números que os representam permanecem eternamente
forma em que operam, os sistemas terminológicos condu- os mesmos, à medida que novos "primeiro-natos" ou "segun-
zem a uma visão da pessoa humana como um representante do-natos" emergem do mundo atemporal dos deuses para
adequado de um tipo genérico, e não como uma criatura substituir aqueles que, ao morrer, dissolvem-se, uma vez
única, com um destino específico. Acompanhar este proces- mais, naquele mundo. Eu diria que todos os sistemas de
so, ou seja, como os sistemas terminológicos tendem a títulos e designações funcionam da mesma maneira: eles
obscurecer as materialidades - biológicas, psicológicas, e representam os aspectos da condição humana que estão
históricas - da existência individual, privilegiando as quali- mais ligados ao passar do tempo, como meros ingredientes
dades padronizadas do status, exigiria uma análise extensa. em um presente eterno que os ilumina como as luzes em
Talvez uni único exemplo, simplificando ainda mais a parte um teatro.
mais simples do processo, possa ser suficiente para dar uma
Nem mesmo a sensação que os balineses têm de estar
ideia de seu funcionamento.
sempre em um palco é assim tão vaga e inefável. Ela é
Todos os balineses recebem aquilo que poderíamos cha- expressa com exatidão por um de seus conceitos de "expe-
mar de nomes relativos à ordem do nascimento. Estes são riência-próxima" mais comuns: o lek. Lek foi traduzido de

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várias maneiras, na maioria das vezes incorretamente ("ver- de filmes americanos sem os bares e os vaqueiros. Um outro
gonha" é uma das traduções mais conhecidas), mas seu tipo de "eus" completamente diferentes. Meu trabalho ali,
significado mais aproximado é algo assim como o que cha- que começou em meados dos anos 60, concentrou-se em
mamos de "nervosismo de ator". O nervosismo de ator, uma cidade de tamanho médio, aos pés da cordilheira de
como sabemos, consiste naquele medo que atores sentem Atlas, cerca de umas vinte milhas ao sul de Fez. O lugar é
de que, por falta de técnica ou de autocontrole, ou talvez antigo, fundado provavelmente no século X, planejado até
por um simples acidente, não sejam capazes de manter a mesmo antes disso. Ainda conserva os muros, os portões, os
ilusão estética, deixando, assim, que o ator apareça por trás minaretes estreitos que se elevam até às plataformas de onde
do papel que desempenha. Se falha a distância estética, o os fiéis são chamados para a oração, todos elementos carac-
público (e o ator) perdem de vista Hamlet e em seu lugar, terísticos de uma cidade muçulmana clássica. Pelo menos à
para desconforto geral, vêem um gaguejante John Smith que distância, o lugar é bastante bonito: uma forma oval irregular
alguém erroneamente colocou para fazer o papel de prínci- profundamente branca, localizada em um oásis onde cres-
pe da Dinamarca. Em Bali, acontece o mesmo: o que se teme cem oliveiras de um verde de fundo de mar. As montanhas,
éjque-o desempenho, e^ público, .do papel para p_^ual que ali são cor de bronze e de pedra, se elevam por trás deste
fomos selecionados por nossa posição cultural, sej_a_urn oásis. Vista de perto, a cidade é menos imponente, mas mais
fracasso, e que a personalidade do indivíduo - ou o que nós_ estimulante: um labirinto de passagens e ruelas, três quartos
ocidentais chamaríamos de personalidade., já que os baline- das quais sem saída, rodeado por prédios que têm a aparên-
ses não o fariam, pois não acreditam nisso - se _rprnpa, cia de muros e lojas à beira das calçadas, tudo isso repleto
dissolvendo sua identidade pública estabelecida. Quando com uma variedade simplesmente surpreendente de seres
isso acontece, como às vezes acontece, sente-se a proximi- humanos extremamente simpáticos. Árabes, berberes e ju-
dade do momento com uma intensidade excruciante, e as deus; alfaiates, boiadeiros e soldados; pessoas que saem dos
pessoas, súbita e relutantemente, tornam-se criaturas reais, escritórios, dos mercados, das tribos; ricos, super-ricos, po-
mutuamente constrangidas, como se, de repente, tivessem bres e superpobres; nascidos no local, imigrantes, imitações
se flagrado nuas. É o medo dofauxpas, que se torna muito, de franceses, medievalistas acirrados, e em algum lugar, de
mais provável devido à ritualização extraordinária da vida acordo com o censo oficial do governo para 1960, um piloto
cotidiana, que mantém., o intercâmbio social sobre trilhos de avião, judeu e desempregado. Nas casas, um dos grupos
deliberadamente estreitos, e protege o sentido teatral do eu mais esplêndidos de indivíduos fortes e vigorosos que jamais
da ameaça destruidora implícita naquela proximidade e vi. Ao lado de Sefrou (este é o nome da cidade) Manhattan
espontaneidade, que nem mesmo o cerimonial mais exacer- parece quase monótona.
bado pode eliminar totalmente dos encontros face a face do,
cotidiano. Porém, nenhuma sociedade consiste unicamente de ex-
cêntricos anónimos que se tocam e ricocheteiam como bolas
de bilhar, e os marroquinos também têm seus meios simbó-
IV licos de separar gentes umas das outras e de identificar o
que é que significa ser uma pessoa. Um.,dQS. meios mais
Marrocos. Oriente Médio e clima seco, em vez de Ásia importantes - que não é o único, mas que eu considero o
Oriental e clima úmido. Extrovertido, fluido, ativo, masculi- mais importante e sobre o qual gostaria de falar neste ensaio
no, exageradamente informal. Um tipo do oeste selvagem ~ e uma forma linguística peculiar chamada, em árabe, de

98 nn
nisba. A__palavra deriva de uma raiz triliteral, n^s-b, para conhecido, ou dele se soubesse alguma coisa, mas nãQ_se
"atribuição", "imputação", "relação", "afinidade", "correia-, souhess£,.sua,:Wz's6íZ. Na verdade, é mais provável que os
cão", "conexão", "parentesco". Assim, Nsíb quer dizer "pa- habitantes de Sefrou ignorem o padrão económico de um
rente por afinidade"; nsab significa "atribuir ou imputar a"; homem, sua faixa etária, seu caráter pessoal, ou onde ele
"munãsaba" quer dizer "uma relação", "uma analogia", "uma vive, do que sua nisba, ou seja, se ele é Sussi ou Sefroui,
correspondência"; mansub quer dizer "pertencer a", "fazen- Buhadiwi ou Adluni, Harari ou. Darqawi. (Com relação a
do parte de", e assim por diante, com cerca de uma dúzia de mulheres que não sejam parentes, a nisba seria provavel-
derivados, desde nassãb, ("genealogista") até nisbiya ("re- mente a única coisa que um homem saberia delas - ou, para
ser mais exato, a única coisa sobre elas que lhe seria permi-
latividade [física]").
tido_conhecer.) Os "eus" que se atropelam e se acotovelam
A palavra nisba, propriamente dita, refere-se_gortanto a
nas ruelas de Sefrou adquirem sua definição através das
um processo de_combinação morfológica, gramatical e se- relações associativas co.m-a-S.aciedade.que os .circunday-r-êla-
mântica que consiste em transformar um substantivo naqui- coes essas_que lhes.são atribuídas. São-pessaasjconiextuali-.
lo que nós chamaríamos de adjetivo relativo, mas que1_rjara zadas.
os árabes, é simplesmente um outro tipo de substantivo,
acrescentando-se i (ou iya, na forma feminina); Sefru/Sefrou; A situação, no entanto, é ainda mais complicada; nisbas
sefruwi/filho nativo de Sefrou; Sus/região do sudoeste mar- tornam os homens relativos a seus contextos, mas, como os
roquino - susi/homem nascido nessa região Beni Yozga/ uma próprios contextos são relativos, as nisbas também passam
tribo perto de Sefrou - Yazgi/um membro dessa tribo; Ya- a ser relativas, e tudo, por assim dizer, é, portanto, elevado
hud/o povo judeu como um povo, Yahudi/um único judeu; a uma segunda potência —'íelativismo ao quadrado. Assim,
Atí?/wn/sobrenome de uma família importante em Se- em um nível, todos os nascidos em Sefrou têm a mesma
frou/Adluni/um membro dessa família. Este procedimento nisba, ou pelo menos em potencial - isto é, todos são
não se limita a esta simples "etnização" de substantivos, mas Sefroui. No entanto, na própria cidade, estanisba, justamen-
também pode ser utilizado com uma variedade enorme de te porque não discrimina, não será nunca utilizada como
palavras para atribuir relações de propriedade às pessoas. parte de uma designação individual. Só fora de Sefrou a
Por exemplo, ocupação (èrar/seda — &rarz/mercador de relação com este contexto específico passa a ser capaz de
seda), seita religiosa (Darqawà/umz irmandade mística - identificar um indivíduo em particular. Em Sefrou, portanto,
Darquawi/um adepto desta irmandade ou um estado espi- ele será Adluni, Alawi, Meghrawi, Ngadi, ou qualquer outra
ritual), (Ali/o genro do Profeta -Alaivi/um descendente do nisba deste nível. E dentro de cada uma destas categorias
genro do Profeta, e, por conseguinte, também do próprio sucede exatamente a mesma coisa. Há, por exemplo, doze
nisbas diferentes (Shakibis, Zuinis e outras) através das quais
Profeta). . os Sefrou Alawis, em suas regiões, se distinguem entre si.
Uma vez formadas, as nisbas são normalmente incorpo-
radas aos nomes pessoais - Umar Al-Buhadiwi/Umar da tribo Todo o processo está longe de ser regular; que nível ou
Buhadu; Muhammed Al-Sussi/Muhammed da região Sus - e tipo de nisba será usado, ou parecerá relevante ou apropria-
este tipo de classificação adjetival atributiva é gravada_publi- do (para os que as usam, é claro), dependerá totalmente da
camente como parte da identidade de um indivíduo. Não situação. Um conhecido meu que morava em Sefrou e tra-
pude encontrar sequer um caso em que um indivíduo fosse balhava em Fez, mas era originário de uma tribo Beni Yazgha

100 101
das proximidades - além disso era da subsubfração Wulad _ _
Ben Ydir, da subfração Taghut da linhagem Hima - era desenhcLglobal complexo.jiO-qii.al a diferença indMduaLde-
conhecido como Sefroui por seus companheiros de trabalho cada_fcgm^fitó-^«ííí5tanec£jritacta. Sendo diversa mais do
em Fez, como Yazghi, por todos os não Yazghis em Sefrou, que qualquer outra coisa, a sociedade marroquina não ad-
como Ydiri por todos os outros Beni Yazghas que por ali ministra sua dbiersida.de fixando-a em castas,isolando-a em
viviam, a não ser por aqueles que vinham, eles próprios, da tribos, dividindo-a em grupos étnicos, ou co^rind(>a_çcirn_
fração Wulad Ben Ydir. Estes o chamavam de Taghuti, en- como a nacio-
quanto que, é claro, os outros poucos Taghutis o chamavam nalidade, _embora todos estes sistemas tenham sido experi-
de Himiwi. Em Marrocos, as nisbas paravam aí, mas Marro- mentados de forma esporádica. Gerenciam a diversidade
cos não é o limite até onde podem ir. Se, por acaso, nosso distjn^gyjndo, com uma precisão elaborada, os contextos-.-
amigo viajasse para o Egito, ele se transformaria em um o matrimónio, aldeYQ^áoffjigjgjae^a^
Maghrebi, a nisba formada com a palavra que, em árabe, as leis e a educação - nos quais os hornen§_sáo-Sf:.gr.egadQs,
significa África do Norte. A,cj3níextualiz,ação =sqcial das p&s- por suas diferenças; e outros - o trabalho, a amizade, a
SQas_é difusa, e na_sua maneira curiosamente nãoTrftejádica política e o comércio - onde, ainda que com desconfiança e
_ac.ab.a_ sendo sistemática. Os homens não flutuam como condicionalmente, são unidos por elas.
entidades psíquicas fechadas, que se destacam de seu con- Para este tipo de estrutura social, uma concepção do eu
texto e recebem nomes individuais. Por mais individualistas que marca a identidade pública contextualmente e relati-
e_ até obstinados, que sejam os marroquinos — e na verdade visticamente, mas o faz em condições — tribais, territoriais,
o são -, sua identidade é utn atributo que tomam empresta- linguísticas, religiosas e familiares - que se desenvolvem nas
do do cenário que os. rodeia. esferas privadas e estabelecidas da vida, onde têm uma
Como o tipo de bifurcação fenomenológicada realidade ressonância profunda e permanente, parece ser particu-
dós javaneses, com seus dentro/fora e suave/tosco, e o larmente apropriada. Na verdade, jpjxece_aue_a__grópria
sistema de títulos dos balineses que absolutiza, o modo eu. ia que rjrodug
nisba de olhar as pessoas - como se estas fossem contornos
à'espera de serem preenchidos -não é um costume isolado riã§_cujp sigmficado_éjqua^e_tc>t^^
e_sim^açtejde um tipo de estrutura que abrange toda a vida Qojnpsaico global^ que,,deixamde. JWQ*:Çorno_algo .que-deva
so.ciaL£sía^estrutura, como as de Java e Bali, também é difícil ser cuidadosamente escondido..em apartajmejitos^emplos e
de ser caracterizada de forma sucinta. Mas um de seus tendas, o conteúdo subsíantivo das categorias, ou seja, o que
elementos principais é, certamente, o fato de que existe, em elas significam subjetivamentè cqmojnpdos^dejsádã-experi- .
situações públicas, uma promiscuidade confusa de uma íSÊUtados. As discriminações da nisba podem ser mais ou
variedade de. seres humanos que, na sua vida privada, são menos específicas, indicar o local do fragmento no mosaico
cuidadosamente segregados: um cosmopolitismo exacer- de forma aproximada ou exata, e adaptar-se a quase todos
bado nas ruas, e um comunalismb estrito dentro de casa (do °s tipos de mudanças de circunstâncias. Não podem, porém,
qual a famosa segregação das mulheres é apenas o exemplo dar muito mais que uma ideia geral, um esboço ou contorno
mais óbvio). Este é o chamado sistema mosaico de organiza- do tipo e caráter dos homens a quem os nomes são atribuí-
ção social frequentemente considerado característico do dos. Chamar um homem de Sefroui é como chamá-lo de
Oriente Médio como um todo: fragmentos de formas e çorejL

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franciscano: o nome o classifica, mas não estabelece como tos de_yista^experiências? Se afirmativo, em que sentido? O ^
ele é; localiza-o, sem retratá4gL que é exatamente que afirmamos quando declaramos com-
preender os meios semióticos através dos quais, nesses
É justamente esta capacidade do sistema de riisbas — a
casos, as pessoas se definem e são definidas pelas outras:
de criar um aDntx^riKxnojjujihyjjp^sjso^^^
que entendemos as palavras ou que entendemos as mentes?
de acordo com características que, supostamente_.JJi£-são-
inerentes (fala, sangue, fé, proveniência, e outras mais), e ao Para responder a esta pergunta, creio ser necessário,
mesmo tempo minimizar o impacto que e stas características primeiramente, observar que o movimento intelectual carac-
têm na determinação de relações práticas entre,essas_pês- terístico, e o ritmo conceptual interno de cada uma dessas
soas em. mercados, lojas, escritórios, no campo» exn-cafés, análises, e até de todas as análises semelhantes - mesmo as
banhos públicos, e estradas - que o torna tão essencialparâ de Malinowski - 4umjbordejar dialético contínuo, entre o
a concepção marroquina do eu. Á categorização do tipo menor detajhe nos locais menores, e a mais global das
nisba conduz, paradoxalmente, a um hiperindividualismo estruturas globais^jdejtal forma_jgue ambos possam_ser
nas relações públicas, pois, ao prover unicamente um con- observados simultaneamente. Na tentativa de descobrir o
torno vazio e até mesmo mutante de quem são os atores — significado do eu para os javaneses, balinéses e marroqui-
Yazghis, Adlunis, Buhádiwis, ou seja lá quem for - deixa todo nos, oscilamos incansavelmente entre um tipo de miudeza
o resto, ou seja, praticamente tudo, para ser preenchido no exótica que faz com que a leitura da melhor das etnografias
próprio processo de interação. O que faz o mosaico funcio- seja uma tortura (antíteses léxicas, esquemas de categoriza-
nar é a certeza de que podemos ser completamente pragmá- ção, transformações morfofonêmicas), e caracterizações tão
ticos, adaptáveis, oportunistas, e, de um modo geral adjhoc_ abrangentes que - a não ser pelas mais comuns - se tornam
em nossas relações com outros - urna raposa entre raposas,- um tanto implausíveis ("quietismo", "dramatismo", "contex-
um crocodilo entre crocodilos - tanto quanto qui&eHnos., tualismo"). Saltando continuamente de uma visão da totali-
sem nenhum risco de perder,o .sentidojle quem somos. A _ _ -
não ser na intimidade da procriação e da oração, o "eu!1 visão das partes através dajotalidade_qu£_é^causa.jie^ua_
nunca está em perigo porque somente suas coordenadas existêncjaiejáce^y,ersa^comj^
foram declaradas. perpétua,
a oujtra.,
. claramente, a trajetória, já bastante conhe-
cida-^do método que DiltheyLcharnou de círculo hermenêu-
Sem tentar dar nós em umas quantas dúzias de pontas Jico. Minha intenção aqui foi mostrar que ela é tão essencial
que, durante estes relatos apressados sobre o significado do para interpretações etnográficas como para interpretações
eu para cerca de noventa e nove milhões de pessoas, não só literárias, históricas, filológicas, psicanalíticas, ou bíblicas, ;
deixei penduradas, mas certamente desfiei ainda mais, re- ou até mesmo para anotações informais sobre aquelas expe-
tornemos ao ponto principal, que é saber exatamente o que rièncias cotidianas que chamamos de bom senso. Para acom-
tudo isso nos diz — ou poderia dizer, se explicado de forma panhar um jogo de beisebol temos que saber o que é um
adequada - sobre "o ponto de vista dos nativos" em Java, em bastão, uma bastonada, um turno, um jogador de esquerda,
Bali e no Marrocos. Ao descrever o uso de símbolos, estare- um lance de pressão, urna trajetória curva pendente, e um
mos também descrevendo percepções, sentimentos, pon-

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centro de campo fechado, e também como funciona o jogo são em suas_vidas_c^_cie_íj]je__nos_
^am»«_^Jt-^Jbiiíjí-jayj>juj^uu_x^momseres com
que contém todos estes elementos. Quando, em uma expli- quem vale a pena coav-ersar. Não estou, em hipótese alguma,
cation de texte, um crítico como Leo.Spitzer tenta inter- defendendo a falta de sensibilidade, e espero não ter dado
pretar a "Ode sobre uma urna grega" de Keats, ele se esta impressão. M_as seja_gual for nossa compreensão -
pergunta repetida e alternativamente duas questões: "Sobre correta ou semicorrejta - daquilo que nossos informantes,
o que é este poema?" e "O que é, exatamente, que Keats viu por assim dizer, realmente são, esta não depende de que
(ou decidiu mostrar-nos) desenhado na urna que ele descre- tenhamos, nós mesmgs, a experiência ou a sensação de estar
ve?", e chega ao final de uma espiral ascendente de observa- sendo, aceitos, pois^s^a^.ejisaçãcujem-jquajver com nossa
ções gerais e comentários específicos com uma leitura do prójpriajjiografia, não com a deles. Porém, a compreensão
poema que o interpreta como uma afirmação do triunfo da depencte de uma habilidade para analisar seus modos dêT
percepção estética sobre a histórica. Da mesrna forma, quan-_ expressão, aquilo que chamo de sistemas simbólicos, e o
do um etnógrafo de significados e símbolos como eu tenta sermos aceitos_-cnntribui..^^.«.
zrrítnc ™~*-:u,-.- - - w «jvgcjLivujLvunentg
desenvolvimento desta ha-
descobrir ^o_ que, é uma^pejâ&ojL na visão de algum grupo de bilidade. Entender a forma e a força da vida interior de
nativos, ele vai ej^e^_,ejitre_^uj.s^ej^ujitaj_que_fa^a_^i nativos - para usar, uma vez mais, esta palavra perigosa -
mesmo: "como é gysujyiiajn^jUa-dje^^ parece-se mais com compreender o sentido de um prover^
e "quais sãq^pj«cjsjymeaiLe^is^£Ículc&,através ; dos_qu.aisjss_t;a bio, captar umaalu^ão. : entender
,. uma piada - ou. como
maneira de viver se mariifesia?" chegando ao fim de uma suseri acima
sugeri acima- — interpretar^Jim
Í»-ITÍ»«-.-..-««-"
espiral semelhante com a noção de que eles consideram o uma comunhão de espíritos.
eu como uma composição, uma persona, ou um ponto em
uma estrutura. Não poderemos entender o significado de
lek a não ser que entendamos o que é o dramatismo balinês,
da mesma maneira que não saberemos o que é uma luva de
apanhador se não conhecemos o jogo de beisebol. Ou não
entenderemos o que significa uma organização social mosai-
ca sem saber o que é a nisba, exatamente como não é possível
compreender o platonismo de Keats, sem ser capaz de captar
— para usar a própria formulação de Spitzer — "o fio do
pensamento intelectual" contido em fragmentos de frases
como "a forma de Attic", "a forma silenciosa", "noiva da
tranquilidade" "pastoral fria", "silêncio e tempo lento", "ci-
dadela em paz", ou "cantigas sem nenhum tom".
Em Suma, alheias

recprrejc-a-pxetensas--eapa€id.ades-esiraordinárias
-a para ohlk
terar o próprioego e para_eaterider os sentimentos de outros,
seres humanos. Possuir _
para estas atividades- é, obviamejote,— es-sm«alT-se_te.nias
esperança de conseguir que- as pessoas tolerem nossa intru^

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