006 Dogmática Católica - Cardeal Müller - P. 477-500

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Gerhard Ludwig Miiller

Dogmática
Católica
Teoria e prática da Teologia
do Espírito como força do poder de resposta. O Espírito ratifica nossa fé em Deus, no senhorio salvífico de Deus
no ser humano histórico Jesus de Nazaré. Por conseguinte, ao lado da relação teológico-trinitariamente fundada
e cristologicamente condensada com Jesus, o Filho encarnado, tal como de modo especial se apresenta no batis­
mo, existe também uma relação especial própria, teológico-trinitariamente fundada, mas pneumatologicamente
específica com a pessoa do Espírito Santo, o qual conduz os fiéis a Cristo e ao Pai, e permite participar de sua co­
munhão com o Pai e com o Filho (cf. Jo 16,13s.).
A irreversibilidade do Batismo e da Confirmação reflete ainda a impermutabilidade das missões do Filho e do
Espírito.
Na medida em que a Igreja, sob o impulso do Espírito Santo, reconheceu sua própria missão sacramental e expri-
miu-a nos ritos sacramentais concretos, ela também chegou ao firme reconhecimento da sacramentalidade própria
da Confirmação. Certamente esta se encontra em uma íntima e inseparável ligação com o batismo.

"Mas, quando a bondade e o amor de Deus, nosso Salvador, se manifestaram, Ele salvou-nos [...] lavando-nos pelo poder rege-
nerador e renovador do Espírito Santo, que Ele ricamente derramou sobre nós, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, a fim de
que fôssemos justificados pela sua graça, e nos tornássemos herdeiros da esperança da vida eterna" (Tt 3,4-7).

II. A CELEBRAÇÃO SACRAMENTAL DA COMUNHÃO DIVINO-HUMANA

3 A Eucaristia: o sacramento do amor de Deus

a) Temas da doutrina eucarística

0 lugar central da Eucaristia


À celebração da incorporação do fiel à Igreja segue-se a primeira participação na celebração da Eucaristia.
Diferentemente de todos os outros sacramentos, na Eucaristia Cristo encontra o fiel não apenas na força santi-
ficadora do sinal sacramental, mas pessoalmente. Nos demais sacramentos, os sinais sacramentais transmitem
uma presença real dinâmica; na Eucaristia, uma presença real de Cristo (DH 1639). Por causa deste lugar central,
a Eucaristia é também designada como o sacramento de todos os sacramentos (cf. Tomás de Aquino, S.th. III q. 65
a. 3: potissimum sacramentum).
Para o sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo, ademais, convergem todas as linhas como para um ponto
focal: antropologia, autoabertura histórico-salvífica do Deus unitrino (doutrina trinitária), cristologia, pneuma-
tologia, eclesiología, escatologia.

Declarações doutrinais essenciais


De maneira expressiva, o Concilio Vaticano II descreve a natureza, o significado e a realização da Eucaristia:

"O Nosso Salvador instituiu na Última Ceia, na noite em que foi entregue, o sacrifício eucarístico de seu Corpo e Sangue para
perpetuar pelo decorrer dos séculos, até Ele voltar, o sacrifício da cruz, confiando t Igreja, sua Esposa amada, o memorial da sua
morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal em que se recebe Cristo, a
alma se enche de graça e nos t■ concedido o penhor da glória futura" (SC 47).

Desta afirmação devem-se extrair elementos essenciais da doutrina eucarística:

1) A fundamentação cristológica: Jesus Cristo, o Filho encarnado do Pai eterno e o mediador do Reino de Deus
(no anúncio, na cruz e na ressurreição), instituiu a Eucaristia na Última Ceia, como uma memória real (anamnesis/
memória) de toda a sua atividade salvífica, do sacrifício de sua vida na cruz e de sua ressurreição dos mortos. Ele
é o sujeito do sacrifício da cruz e da atualização sacramental de seu sacrifício no modo da ação litúrgica da Igreja =
presença atual). Por esta razão, todos os aspectos característicos do sacrifício da cruz são dados também, sacra­
mentalmente, na Eucaristia: louvor de Deus, ação de graças, pedido e expiação como aceitação da graça do agir
pactício de Deus na obediência humana.
2) A dimensão eclesial: Esta comemoração foi confiada à Igreja por Jesus até o fim dos tempos, quando Ele, com;
juiz e aperfeiçoador do universo, completar sua ação salvífica histórica. Quando a Igreja, por mandato de Jes us,
celebra a Eucaristia, por meio deste gesto ela é edificada para o que é: comunhão de vida com Cristo, sinal da uni­
dade entre a Cabeça e o Corpo e dos membros do corpo entre si. Em obediência à instituição de Cristo e realizada
pela presença do Espírito Santo, a Eucaristia é autorrealização da Igreja que, por sua vez, representa o sacramento
geral do desígnio salvífico de Deus.
3) 0 aspecto teológico de gratuidade: nos sinais eucarísticos do pão e do vinho, e em todo o procedimento du­
rante a refeição, o próprio Cristo comunica ao fiel a comunhão com sua divindade e com sua total humanidade fl
presença real), com sua “carne e seu sangue”. Aquele que, na fé, admite a presença de Cristo nos sinais sacramen­
tais, é incluído no amor entre o Pai e o Filho no Espírito Santo. Nisto consiste a íntima realidade do sacrameri:
Quanto ao efeito, diz o Concilio de Florença (1439): “0 efeito que este sacramento opera na alma de quem o receie
dignamente é a união do homem ao Cristo. E como, pela graça, o homem é incorporado a Cristo e unido a seus
membros, segue-se que este sacramento, naqueles que o recebem dignamente, aumenta a graça e produz na vi4i
espiritual todos os efeitos que o alimento e a bebida materiais produzem na vida do corpo, alimentando-o, fazes-
do-o crescer, restaurando-o e deleitando-o” (DH 1322).
4) A perspectiva escatológica: na Eucaristia, a autocomunicação universal de Deus no Filho encarnado e no Es­
pírito Santo permanece oferecida concretamente ao ser humano e presente no mundo até à vinda de Cristc as
final dos tempos.
5) A propósito dos sinais sacramentais, o Concilio de Florença (1439) diz, no Decreto para os armênios:

"O terceiro sacramento é a Eucaristia, cuja matéria é o pão de trigo (panis triticeus) e o vinho de uva (vinum de vite), ao qual a
da consagração se deve acrescentar alguma gota de água A forma deste sacramento são as palavras com as quais o Salx.
o produziu. O sacerdote, de fato, produz este sacramento falando in persona Christi. E em virtude dessas palavras, a substã
do pão se transforma no Corpo de Cristo e a substância do vinho em sangue. Isto acontece, porém, de modo tal que o Cristo
contido inteiro sob a espécie do pão e inteiro sob a espécie do vinho" (DH 1320-1321).

6) Ministro e receptor: o sujeito da celebração sacramental da Eucaristia é a Igreja como um todo, correspoa-
dentemente à sua forma sacramental: na medida em que o sacerdote age na pessoa de Cristo, como Cabeça :
Igreja; na medida em que os leigos, no exercício do sacerdócio comum da Igreja, representam a atitude de rece:
ção da Igreja como Corpo de Cristo em relação a Cristo-Cabeça; portanto, na medida em que a Igreja apreseol
simbólica e eficazmente a autodoação sacrifical de Jesus Cristo ao Pai e sua amorosa união com Ele.
Somente “o sacerdote legalmente ordenado segundo o poder das chaves da Igreja” possui o poder de pres
dir à celebração da Eucaristia e realizar este sacramento (DH 794; 802; 1771; 4541). Verdadeiros concelebrantej
cossacrifícantes são todos os participantes da Eucaristia (SC 48; DH 3851). Concelebrar e receber só pode exclua
vamente aquele que é batizado e se encontra em plena comunhão com a Igreja. Excluídos também estão aqueà
que perderam a graça santificante através de pecados graves.

Importantes documentos magisteriais sobre a doutrina eucaristica


(1.) A Profissão de fé de Berengário de Tours, em 1079 (DH 700).
(2.) A Profissão de fé que o Papa Inocêncio III apresentou aos valdenses (DH 794).
(3.) O Decreto Cum in Nonnullis, do Concilio de Constança (1415) sobre a “Comunhão somente sob a espécie d
pão”, contrajoão Hus (DH 1198-1200).
(4.) A Bula Inter Cunctas (1418), do Papa Martinho V, que expõe diversas questões aos seguidores de João Wycüe
e João Huss, entre elas sobre a presença real e a transubstanciação (DH 1256s.).
(5.) 0 Decreto para os armênios (1439), do Concilio de Florença (DH 1320-1322).
(6.) As três declarações do Concilio de Trento em relação à Reforma Protestante:
• o Decreto sobre a Eucaristia na XIII Sessão, no dia 11/10/1551 (DH 1635-1661);
• a doutrina da comunhão sob ambas as espécies e a comunhão de criancinhas na XXI Sessão de 16/07/1562
(DH 1725-1734).
• o grande Decreto sobre o sacrifício da missa, da XXII Sessão, de 17/9/1562 (DH 1738-1759; cf. 1864; 1866).
(7.) A Encíclica Mediator Dei (1947), do Papa Pio XII (DH 3840-3855).
(8.) A Encíclica Humani Generis (1950) sobre a transubstanciação (DH 3891).
(9.) O Vaticano II: a Constituição Litúrgica Sacrosanctum Conciliam (04/12/1963); a Constituição sobre a Igreja
Lumen Gentium (21/11/1964), entre outras.
(10.) A Encíclica Mysterium Fidei (1965), do Papa Paulo VI sobre a transubstanciação (DH 4410-4413).
Dado que a Eucaristia se encontra no centro da vida cristã, devem-se destacar como fontes da fé eucarística
eclesial não somente os documentos do Magistério, mas também os da liturgia romana, egípcia, síria, bizantina,
visigótica, ambrosiano-milanesa, moçárabe (entre outras), as pregações e as catequeses, bem como os exercícios
de devoção eucarística, nos quais de maneira variada e diferenciada expressa-se a fé na Eucaristia.
Também segundo estas fontes, a Eucaristia é compreendida como a celebração da memória dos atos salvíficos
de Cristo e, ao mesmo tempo, participação neste acontecimento salvífico no Espírito. Em meio à memória (anam-
nesis), o fiel é inserido objetivamente no evento salvífico da revelação de Deus em seu Filho e no dom do Espírito
Santo. Subjetivamente, na fé, ele participa da autodoação do Filho ao Pai, no Espírito, simbolicamente apresenta­
do no ato de oferenda da Igreja (prosphora).
Inconteste permanece a convicção da presença de Cristo como o verdadeiro sujeito da ação e de sua presença
nos dons eucarísticos do pão e do vinho que são apresentados para recepção no sacramento como sua carne e seu
sangue (presença real). —

Estádios do desenvolvimento doutrinai


1) No desenvolvimento da compreensão oriental da Eucaristia podem-se distinguir de preferência entre um
tipo de argumentação alexandrina e outro antioquena (cf. abaixo). A patrística ocidental está determinada
por um pensamento preferentemente simbólico em Agostinho e uma visão bem mais realista-metabólica em
Ambrósio. No geral, os Fadres da Igreja argumentam no horizonte metafísico do pensamento platônico de
arquétipo-imagem.
2) A compreensão simbólica da realidade vigente na Antiguidade passa por uma crise mediante a compreen­
são germânica da realidade, o que, no que tange à Eucaristia, significa: o símbolo real é ou reduzido a mero
símbolo ou compreendido de maneira extremamente realista. Atesta o a primeira disputa em torno da Ceia
do Senhor do século IX e acima de tudo, a segunda, no século XI. No final desta discussão encontra-se a dou­
trina da transubstanciação na alta escolástica.
3) Nova crise da compreensão da realidade, provocada pela concepção mecanicista da natureza e das novas
ciências naturais, leva à crítica da doutrina da transubstanciação na Idade Média tardia. Ao mesmo tempo, há
um esforço em prol de novos modelos de compreensão (consubstanciação; impanação).
4) A Reforma Protestante do século XVI (luteranismo; calvinismo) critica uma frequentemente questionável
práxis da piedade eucarística. O ponto crítico essencial resulta, porém, da compreensão da justificação e
relaciona-se com o caráter sacrifical da Eucaristia. Imputa-se ao Magistério católico uma compreensão da
Eucaristia mediante a qual o sacrifício da missa aparece como obra humana e surge autonomamente ao lado
o sacrifício da cruz de Cristo, a fim de alcançar de Deus o perdão dos pecados.
5) Depois do Concilio de Trento, com as assim chamadas “teorias sacr ficais da missa”, busca-se tornar com­
preensíveis o nexo e a diferenciação entre o sacrifício da cruz e o sacr fício da missa.
6) Na esteira da renovação geral da teologia a partir de suas fontes bíblicas, patrísticas e litúrgicas, chega-se,
no século XX, a uma amplamente nova concepção teológica da doutrina eucarística. Sobre o pano de fundo
desta compreensão global, podem-se, pois, tratar também questões individuais, que pertenciam aos clássicos
temas controversos e que agora são discutidos em perspectiva ecumênica (presença real, caráter sacrificial.
comunhão sob uma espécie).
Importantes são os esforços de tornar acessível a presença real através de uma compreensão da realidade
que está marcada pela moderna ciência natural e pela filosofia natural (palavras-chave aqui: transignificação;
transfinalização).

b) A Eucaristia no testemunho bíblico

A comensalidade com Jesus como sinal do reinado escatológico de Deus


A instituição de uma refeição memorial sacramental na Última Ceia de Jesus com seus discípulos, antes de seu
sofrimento, acha-se no estilo característico de sua missão de anunciar o Reino de Deus e de realizá-lo no destino
de sua pessoa. Às ações significativas, nas quais a proximidade do Reino de Deus aparece, ao lado da cura dos
doentes, da expulsão dos poderes maus dos pecados e da morte, pertence também a comensalidade de Jesus com
os pobres, com os pecadores e com osexcluídos (cf. Mc 2,16.19). Deste modo, Jesus antecipa o banquete nupcial
escatológico (Mt 8,11; 22,1-14; 25,1-13; cf. Is 25,6; 65,13; Ap 19,9).
A miraculosa alimentação de vários milhares de pessoas deve ser entendida como um sobrepujante paralelo
com a alimentação do povo de Deus no deserto por meio do maná que Deus deixa cair do céu (Mc 6,31-44; 8,1-10:
Mt 14,14-21; 15,32-39; Lc 9,10-17). Deste modo, Jesus mostra-se como o novo Moisés. Ele é o mediador da Nova
Aliança, “o profeta que devia vir ao mundo” (cf. Jo 6,14/32/01 18,15.18).
Esta práxis do senhorio de Deus é inseparável do destino da pessoa de Jesus. Sua sorte está influenciada pela
fé e pela descrença, pela aceitação e pelo não mortífero à sua missão Com sua doação obediente até à morte na
cruz, Ele responde vicariamente pelos destinatários do Reino de Deus. Por este motivo, a cruz de Jesus torna-se
sinal eficaz do amor vitorioso de Deus pelos pecadores e da abertura de um novo espaço vital para as pessoas no
reino vindouro. Durante a Última Ceia, na qual as outras celebrações comensais e sinais do senhorio de Deus se
completam, explicita Jesus a íntima conexão entre sua singular comunhão com o Pai (relação-Abba) e sua missão
como mediador do Reino de Deus.

A Última Ceia e a instituição da aliança escatológica por Jesus


A Eucaristia eclesial tem um inequívoco ponto de referência histórico na celebração da Última Ceia de Jesus
com seus discípulos. Foram transmitidos quatro relatos sobre o acontecimento na Última Ceia: de um lado, a
forma paulino-lucana da tradição e do texto: ICor 11,23-26; Lc 22,15-20, e, de outro, a forma do texto marcano-
-mateana: Mc 14,22-25; Mt 26,26-29. Acrescenta-se a isso o grande discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, no
qual o mistério da Eucaristia é desdobrado cristologicamente (Jo 6,22-71).
A refeição memorial sacramental, instituída por Jesus na sala da Última Ceia, inicialmente foi chamada de
“Ceia do Senhor” (ICor 11,20), “Mesa do Senhor” (lCor 10,21) ou “Partir do pão” (ICor 10,16; At 2,42; 20,11). Na
época pós-apostólica, logo “Eucaristia” (= ação de graças) torna-se termo técnico (Did. 9,5; Inácio de Antioquia.
Epf. 13,1; Philad. 4,1; Smyn. 7,1; 8,1; Justino, 1 apol. 65/66). (No âmbito da língua latina, a palavra “missa” tor­
nou-se comum, derivada de “ite missa est", a saudação de despedida.)
Posto que não seja possível reconstruir historicamente o conteúdo exato das palavras interpretativas de Je­
sus sobre o pão e o vinho (os relatos dos evangelhos já estão impregnados da práxis litúrgica da comunidade), é
possível, no entanto, reconhecer a verdadeira intenção significativa.
A forma de tradição literária mais antiga, testemunhada por Paulo, em seu colorido linguístico aponta para
uma origem palestinense, de modo que a forma da tradição textual pode ser remontada até o ano 40 d.C. Todos
os transmissores são unânimes em narrar que Jesus, antes de sua morte, reuniu-se com seus discípulos para uma
última refeição. Tal como os patriarcas e os mensageiros de Deus, segundo a compreensão judia tardia (cf. Gn 27:
despedida de Isaac), agora Jesus resume também a obra de sua vida e relaciona-a a seus discípulos em forma de
bênção. Sua bênção é seu testamento e sua herança para os discípulos. Este testamento vale para o futuro. A ceia
de despedida está em conexão com a celebração da ceia pascal; acontece em um dia antes da Festa da Páscoa e
retoma traços fundamentais da refeição pascal. Dentro desta refeição, Jesus institui algo completamente novo,
na medida em que Ele confere ao rito de abertura e ao rito de conclusão um novo sentido. A fórmula de bênção
usual (eulogia) do pai de família com a distribuição (= quebrar) do pão torna-se ensejo para uma oração de ação de
graças de Jesus que o revela como o mediador da Nova Aliança. Ele toma o pão em suas mãos e o entrega a seus
discípulos como “seu corpo”, que Ele doa por eles e pela salvação da humanidade. Depois da refeição, Ele pega do
cálice de bênção, pronuncia sobre ele a oração de ação de graças, passa-o aos discípulos como “seu sangue”, que
“por muitos” (os muitos do povo em relação ao único mediador, ou seja, por todos) é derramado e institui a Nova
Aliança (cf. Ex 24,8), uma vez que no pão e no vinho distribuídos, Jesus torna presente sua doação na cruz, seu
corpo doado e seu sangue derramado.

A evolução da forma básica da Eucaristia da Igreja primitiva


A ordem de repetição, dada por Jesus - “Fazei isto em memória de mim” -, transmitida por Paulo e Lucas, não
significa que os discípulos devessem repetir a Última Ceia como tal; como refeição de despedida, não pode ser repe­
tida. Contudo, o que deve ser feito em memória de Jesus diz respeito às duas ações eucarísticas prefiguradas por
Ele: a doação do pão e do vinho como sinais da doação vicária de sua vida para o cumprimento do reinado de Deus.
Em breve, a sequência: palavra eucarística sobre o pão - celebração da refeição - palavra eucarística sobre o
cálice é desfeita em prol de uma nova sequência: refeição comunitária precedente (ágape) e na conclusão desta,
a dupla ação eucarística. A celebração total, em Paulo, ainda se chama Ceia do Senhor, ao passo que a celebração
eucarística, em sentido estrito, também pode ser celebrada independentemente da refeição comunitária prece­
dente. De modo especial, aos domingos, a refeição comunitária é associada à dupla ação eucarística (iCor 16,2; At
20,7; cf. Ap 1,10). Ao mesmo tempo, o Evangelho é anunciado (recitado a partir das lembranças dos apóstolos) e
se reza em comum, a fim de fortalecer a comunhão (At 2,42). Já a narrativa pascal dos discípulos de Emaús aponta
para uma íntima conexão entre interpretação da Escritura e o partir do pão (Lc 24,25-32). Mais na frente, salmos,
hinos e canções espirituais são cantados (Ef 5,19).
Durante a visita de despedida do Apóstolo Paulo em Troa, os cristãos estão reunidos no primeiro dia da sema­
na (= domingo). Depois de ter feito uma longa pregação, Paulo “partiu o pão com eles” (At 20,7-12).
Devido a possíveis desvios na refeição comunitária (consumo excessivo de vinho, isolamento dos pobres que
nada podiam trazer para esta refeição), chegou-se finalmente a uma separação desta refeição da Eucaristia em
sentido estrito (cf. ICor 11,20). Celebra-se a Eucaristia nas primeiras horas da manhã, visto que Cristo ressuscitou
na manhã de Páscoa (cf. Plínio, Ep. ad Trajanum 10,96).
Por volta de meados do século II, Justino Mártir testemunha a construção litúrgica e a compreensão de fé da
Eucaristia:

■ \o dia que se chama do sol, celebra-se uma reunião [...]. Aí se leem, enquanto o tempo o permite as Memórias dos apóstolos ou
os escritos dos profetas. Quando o leitor termina, o presidente faz uma exortação e convite para imitarmos esses belos exemplos.
Em seguida, levantamo-nos todos juntos e elevamos nossas preces (intercessões). Ter ninadas as orações, nos damos mutuamente
c óculo da paz. Depois, àquele que preside aos irmãos é oferecido pão e uma vasilh i com água e vinho; pegando-os ele louva e
g orifica ao Pai do universo através do nome de seu Filho e do Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças (Eucaristia),
aor ter-nos concedido esses dons que dele provêm. Quando o presidente termina as orações e a ação de graças, todo o povo
:-esente aclama, dizendo: 'Amém' [...]. Depois que o presidente deu ação de graças e todo o povo aclamou, os que entre nós se
-amam ministros ou diáconos dão a cada um dos presentes parte do pão, do vinho e da água sobre os quais se pronunciou a
ação de graças e os levam aos ausentes. Este alimento se chama entre nós Eucaristia da qual ninguém pode participar, a não ser
:_e creia serem verdadeiros nossos ensinamentos e se lavou no banho que traz a remissão dos pecados e a regeneração e vive
::ntorme o que Cristo nos ensinou. De fato, não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária, mas da maneira
: :mo Jesus Cristo, nosso Salvador, feito carne por força do Verbo de Deus, teve carne e sangue por nossa salvação, assim nos
e-sinou que, por virtude da oração ao Verbo que precede de Deus, o alimento sobn ■ o qual foi dita a ação de graças - alimento
: :m o qual, por transformação se nutrem nosso sangue e nossa carne - é a carne e > sangue daquele mesmo Jesus encarnado. Foi
que os apóstolos nas Memórias por eles escritas, que se chamam evangelhos, noi transmitiram que assim foi mandado a eles,
arando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse: 'Fazei isto em memória de mim, este é o meu corpo'. E igualmente, tomando
:álice e dando graças, disse: 'Este é o meu sangue' [...]" (1 apol. 65-67).
0 Concilio Vaticano II resume, portanto, justificadamente: “As duas partes, de que consta de certa forma a missa,
a liturgia da palavra e a liturgia eucarística, estão tão estreitamente unidas, que formam um único ato de culto” (SC 56).

c) Estádios históricos da doutrina eucarística

Aspectos da patrística pré-nicena


Inácio de Antioquia (t 110 d.C.) recorre ao modo de falar joaneu (cf. Jo 6) contra a falsificação gnóstica e docetis-
ta da encarnação do Logos divino e explicava isto com o mistério da presença corporal nos dons eucarísticos, bem
como a esperada verdadeira ressurreição da carne por ocasião da vinda de Cristo. Temos comunhão com o Logcs
somente por meio da natureza humana assumida, por meio da carne de Cristo (cf. Smyrn. 7,1). Em assonância com
a declaração do Cristo joaneu de que seu corpo e seu sangue seriam verdadeira comida para a vida eterna, Inácio
pode designar a Eucaristia como “remédio da imortalidade” e “antídoto contra a morte”, “a fim de que se possa
viver continuamente em Cristo” (Eph. 20,2).
Para além desta relação entre cristologia e compreensão eucarística, ele faz uma ligação entre eclesiologia e
Eucaristia. Esta designa a unidade com Cristo e com toda a Igreja:

"Preocupai-vos em participar de uma só Eucaristia. De fato, há uma só carne de Nosso Senhor Jesus Cristo e um só cálice na
unidade do seu sangue, um único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos, meus companheiros de serviço.
Desse modo, o que fizerdes, fazei-o segundo Deus" (Filad. 4).

Da dimensão eclesial da Eucaristia como sinal e meio da unidade da Igreja resulta também uma ligação com
o ministério que representa a unidade da Igreja, isto é, o ministério pastoral do bispo que, por esta razão, preside
à Eucaristia:

"Considerai legítima a Eucaristia realizada pelo bispo ou por alguém que foi encarregado por ele. Onde aparece o bispo, aí esteja
a multidão, do mesmo modo que onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja Católica. Sem o bispo não é permitido batizar, nem realiza'
o ágape" (Esmirn. 8,1-2).

Justino Mártir (t por volta de 165 d.C.) compreende a Eucaristia como ápice da encarnação do Logos (cf. Jo 1,14
com 6,57) e como celebração da memória da Paixão e da Ressurreição de Jesus (1 apol. 66; dial. 117,3). A Eucaristia
é sacrifício espiritual (hóstia spiritualis) da Igreja. Todos os outros sacrifícios são resumidos e sobrepujados pelo
único sacrifício de Cristo.
Irineu de Lião (haer. IV, 19,1; 18,6s.; 38,1) coloca a Eucaristia em um horizonte de teologia geral da criação. O
evento salvífico começa com a criação e visa a uma geral “restauração de todas as coisas” (cf. At 3,21) mediante
a encarnação do Logos. Portanto, uma vez que a presença de Deus na carne e no sangue de Jesus Cristo é consti­
tutiva para o processo de salvação, por esta razão também o é sua apresentação simbólica nos dons eucarísticos
do pão e do vinho. Estes dons comunicam a comunhão com o Logos: a redenção. Eles são prova da bondade da
criação. Deste modo, todo princípio dualista e hostil à matéria recebe uma negação:

"Quando, pois, o cálice misturado e o pão preparado recebem o Verbo de Deus e a Eucaristia se torna Corpo de Cristo, com o
qual a substância de nossa carne ganha aumento e estabilidade, como podem dizer (os gnósticos) que nossa carne não seria capaz
de acolher o dom de Deus, que é a vida eterna, visto que tal carne, no entanto é alimentada com o corpo e o sangue do Senhor
e feita membro dele?" (haer V, 2s.)

No começo do século III, Hipólito de Roma resume, em seu modelo de oração eucarística, a práxis eucarística
dos dois primeiros séculos. Deve-se destacar, antes de tudo, a estrutura trinitária da oração (ao Pai, por Jesus Cris­
to, no Espírito), o horizonte teológico-criacional e histórico-universal do acontecimento salvífico, o lugar central
de Cristo como mediador da redenção e sumo sacerdote. A Eucaristia é uma ação de graças na qual a Igreja une
a celebração da memória real dos atos salvíficos de Deus em Jesus Cristo com a própria auto-oferta responsorial
com Cristo, sua Cabeça, e unificadora no Espírito Santo, ao Pai. Elementos essenciais da celebração eucarística são,
por conseguinte: anamnese (= memória dos atos salvíficos), prosphora (= apresentação) e epiklese (= invocação do
Espírito Santo):

"Damos-te graças, ó Deus, por teu amado servo Jesus Cristo, que nos últimos tempos nos enviaste como salvador, redentor e
mensageiro de tua vontade; Ele, que é teu Verbo inseparável, por quem fizeste todas as coisas e que, na tua complacência enviaste
do céu ao ventre de uma virgem; e Ele, tendo sido concebido no seio, se encarnou ■ se manifestou como teu Filho, nascido do
Espírito Santo e da Virgem. Ele, querendo cumprir tua vontade e adquirir-te um povo santo, estendeu as mãos, enquanto sofria,
para libertar do sofrimento os que creram em ti. Ele, quando se entregava ao sofrimento voluntário para destruir o poder da morte
[...] e manifestar a ressurreição [. .]. Celebrando (memores; anamnesis), pois, o memorial de sua morte e ressurreição, nós te ofere­
cemos o pão e o cálice (offerimus; Prosphora), dando-te graças (eucharisteiri) porqu ■ nos tornaste dignos de estar diante de ti e de
sacerdotalmente te servir. E te pedimos que envies (Epiklese) teu Espírito Santo sobr > i oblação da tua Igreja [...]" (trad. apost. 4).

A compreensão eucarística da patrística oriental


Os alexandrinos Clemente e Orígenes explicavam todo o evento salvífico no horizonte de uma ontologia pla­
tônica. Certamente, o mundo visível, em razão de sua participação, é aparência e cópia das idéias arquetípicas. A
meta, porém, é a elevação do ser humano acima do mundo sensível para o mundo espiritual. Na Eucaristia, temos
a comunhão com o Logos redentor, porque recebemos a carne e o sangue do Logos. Mas não é simplesmente o
degustar físico das formas eucarísticas que comunica uma unidade plena de graça com o Logos, mas somente a
comunicação crente e espiritual com Ele.
Para Orígenes, o Logos é o meio salvífico e sacramento. As formas do pão e do vinho servem para a elevação do
fiel sobre o mundo sensível até à participação no mundo espiritual e na unidade com a Palavra de Deus.
Em Atanásio, a dimensão histórica da salvação adquire um peso maior. Redenção é participação do ser hu­
mano inteiro na vida divina. A fim de que o ser humano possa participar da vida divina, Deus deve previamente
encarnar-se (incarn. 54).
À pergunta de onde carne e sangue obtêm sua força salvífica, Cirilo de Alexandria responde que o corpo his­
tórico e natural de Jesus, bem como o corpo sacramental de Jesus estariam imediata e substancialmente unidos
com o Logos. Os dons eucarísticos já não existem em um sentido absoluto por si mesmos. Eles existem no Logos,
de modo que eles apresentam sacramentalmente a carne e o sangue do Logos.
Em contrapartida, os antioquenos enfatizaram a autonomia da natureza humana, sua impossibilidade de mis­
turar-se à natureza divina e tornaram bem clara a diferença entre o corpo histórico e o corpo sacramental de
Jesus. Representante especial desta concepção é o “Doctor Eucharistiae”: João Crisóstomo. Ele traça o perfil do
homem histórico Jesus: sua vida, com os mistérios da cruz e da ressurreição, é compreendida como realização da
salvação. A figura histórica do homem Jesus relaciona-se com a presença eucarística de Cristo como protótipo
e imagem, tipo e antítipo, ou realidade e símbolo. No entanto, a imagem participa realmente do protótipo, e o
protótipo apresenta-se inteiramente na imagem, embora de maneira oculta e somente reconhecível no profundo
reconhecimento da fé. A realidade histórica e humana de Jesus, em sua unidade sem mistura com o Logos é, por
sua vez, mistério (símbolo) dele. Na Eucaristia, portanto, está Jesus Cristo como pessoa humana, em sua história e
em seu ato sacrifical na cruz, no ato sacramental da Igreja, simbólica e representativamente presente.
Idêntico ao ser humano é o Cristo histórico e sacramental; eles se diferenciam, no entanto, segundo o modo
de sua presença. Idêntico também é o sacerdote sacrifical, os dons sacrificais e o ato sacrifical de Cristo e da Igreja;
eles se distinguem, porém, no modo de sua realização.
Um texto famoso de João resume sua compreensão da Eucaristia:
"Não sacrificamos nós também a cada dia? Sim, também nós sacrificamos (diariamente), mas na medida em que fazemos memó­
ria de uma morte; e esta é uma, não várias [...]. Porque ele foi oferecido apenas uma vez, como aquele sacrifício oferecido no
Santo dos Santos. Este é uma imagemdaquele, e igualmente o nosso é uma imagem daquele. Com efeito, nós oferecemos sempre
o mesmo (Cristo), não hoje um e amanhã outro Cordeiro, mas sempre o mesmo. Portanto, trata-se de um único sacrifício (obla-
ção). Em razão de ser oferecido em muitos lugares, há, pois, diversos Cristos? De maneira nenhuma! Ao contrário, em toda parte é
o único Cristo, aqui em sua totalidade e lá em sua totalidade, um único corpo. Como, pois, o que é oferecido em diversos lugares
é (tão somente) um corpo e não vários corpos, assim também trata-se de um único sacrifício (thysia = ação sacrifical). Nosso sumo
sacerdote é aquele que ofereceu (na cruz) o sacrifício que nos purifica. Aquele nós oferecemos também agora, um único ofereci­
do, o inesgotável (o sacrifício de Cristo na cruz). O atual acontece, na verdade, em memória do sacrifício que aconteceu uma vez.
Com efeito Ele diz: Fazei isto em memória de mim! Não outra memória que não a do Sumo Sacerdote de outrora, mas oferecemos
constantemente a mesma, ou antes: nós fazemos a memória do sacrificador!" (hom. in Hebr. 17,3 citado em MySal IV 2: 218s. .

Esta identidade, vista diferentemente, do corpo histórico do homem Jesus com o corpo eucarístico ocorre
mediante a mudança dos dons do pão e do vinho na carne e no sangue de Jesus. Os termos específicos para a
transformação são metaballein/convertere.
Como, porém, elementos materiais naturais podem conter e revelar uma realidade sobrenatural? Isto só é
possível quando o Espírito criador de Deus se apossa das coisas naturais, reorienta-as e preenche-as, de modo que
o sabor físico destes dons mostre e opere a comunhão sobrenatural com o homem Jesus e com sua divindade. Isto
acontece apesar de os dons permanecerem visíveis na forma natural do pão e do vinho.
As grandes controvérsias cristológicas tiveram também efeito sobre a compreensão da Eucaristia. A funda­
mentação cristológica da Eucaristia, já reconhecível em João e em Inácio de Antioquia, leva a uma comparação da
união hipostática com a unio sacramentalis do pão e do vinho com o Corpo e o Sangue de Cristo. Esta paralelização
pode dar ensejo a mal-entendidos. A unidade hipostática de duas naturezas autônomas não corresponde à trans­
formação mediante a qual pão e vinho tornam-se sinais nos quais Cristo se torna presente em sua divindade e em
sua humanidade.
A fim de ir de encontro a uma elevação monofisista da humanidade de Jesus à divindade de Cristo, nos círcu­
los que seguiam Nestório chegou-se a uma negação da transformação eucarística. Permanece inalterada e imutá­
vel a humanidade em sua unidade com o Logos; igualmente permanecem inalterados pão e vinho em sua unidade
com a carne e o sangue de Cristo. Assim como ambas as naturezas, em Cristo, estão unidas mediante a vontade,
do mesmo modo pão e vinho também só podem estar unidos à carne e ao sangue históricos de Jesus mediante o
laço da graça (cf. GELÁSIO, P. De duabus naturis in Christo, tr. VI; Leôncio de Bizâncio, Nest. et Eut. 53). Contudo, não
se duvida de que pão e vinho sejam preenchidos pelo Espírito de Deus, que os dons, simbolicamente, comunicam
realmente uma comunhão comjesus Cristo.
Quanto à patrística oriental, João de Damasco traça um resumo. A transformação eucarística acontece median­
te a descida do Espírito Santo sobre os elementos naturais, fazendo deles sinal sacramental da carne e do sangue
de Cristo. Por conseguinte, já não temos diante de nós pão ordinário, que unicamente nos oferece um apoio para
a fé subjetiva no Jesus histórico. Ao contrário, por meio dos próprios dons transformados é que Deus oferece a
presença de Cristo no Espírito. Em representação simbólica e antitípica, os dons sacramentais são idênticos ao
Corpo de Cristo, que nasceu da Virgem, jazeu na gruta de Belém, morreu na cruz e ressurgiu do túmulo.
João de Damasco explica, porém, a unio sacramentalis segundo o critério da unio hypostatica. Em sua opinião,
para atingir a ideia da transformação, ele deveria servir-se da visão alexandrina. Segundo esta, o Logos apro­
pria-se imediatamente do pão e do vinho, de modo que estes dons (independentemente de sua forma física)
subsistem e inerem no Logos como o corpo histórico e físico de Jesus está verdadeíramente no Logos.

A compreensão eucarística da patrística ocidental


Tertuliano parte menos do acontecimento geral da memória sacramental. Como toda a tradição ocidental, seu
olhar volta-se mais para os momentos eucarísticos individuais; eles são figurae corporis (adv. Marc. 4,40). Na figura
(forma) do pão e do vinho aparece a realidade do corpo e do sangue de Cristo. Tertuliano indica que, em contra­
posição a uma volatização docetista da presença de Cristo na Eucaristia, por esta razão também a visualização do
sangue de Cristo deveria ser acrescentada. Ele interpreta carne e sangue de Cristo como parte do corpo do homem
Jesus. Todavia, biblicamente não se quer indicar as partes físicas do corpo, mas a totalidade da pessoa em sua
concretitude física e histórico-vital (cf. a este propósito o problema tardio da comunhão sob uma única espécie e
a doutrina da concomitância, pela qual em cada forma da Eucaristia é recebido o Cristo total).
Em Tertuliano, a Eucaristia não é apenas memória e representação do sacrifício de Cristo na cruz. Ela é, ao
mesmo tempo, resposta da Igreja ao agir de Deus por nós em Jesus Cristo. Por conseguinte, a Eucaristia é tam­
bém - em Cristp e por meio dele - um sacrifício da pessoa humana (or. 19; cult. fem. 2,11) ou uma oblatio (cor.
3; uxor. 2,8). Na autodação sacrifical, na qual nos abrimos ao amor salvífico de Deus por nós e nos unimos à
doação de Cristo, ele se torna novamente, por assim dizer, o cordeiro de Deus imolado (immolatur; pudic. 9,11).
No entanto, Jesus não morre de maneira cruenta, na realidade natural e histórica, mas simbolicamente.
Cipriano de Cartago mostra que o relacionamento de Deus com o ser humano não deve ser interpretado sim­
plesmente segundo o esquema de dom salvífico divino e recepção passiva. Com efeito, Jesus Cristo, como Deus
e homem, já é prototipicamente uma íntima comunicação do agir de Deus para conosco e a resposta humana na
obediência e na fé em relação a Deus. Nesta (assimétrica) permutabilidade consiste a communio do amor, reali­
za-se a unidade de aliança entre Deus e o ser humano. Quando, portanto, a Igreja celebrar a memória sacramental
da paixão histórica de Jesus, ela se doa a Deus no amor, na unidade do Corpo de Cristo, por Cristo, cabeça dela,
que em sua paixão adquiriu a Igreja como seu corpo (cf. Ef 5, 23). Assim, pode-se dizer que Cristo, por meio da
realização obediente da Eucaristia, no sinal externo e na íntima realização da fé, nas formas da carne e do sangue
sacramentais, é oferecido a Deus pela Igreja (ep. 63,9).
Cipriano vê no pão e no vinho símbolos da paixão de Jesus. Assim como as uvas são esmagadas para se torna­
rem vinho, assim Jesus passa pelo lagar do sofrimento a fim de que nós, pela recepção de sua carne e seu sangue
sacramentais, tenhamos comunhão com Ele (cf. o motivo iconográfico ‘Cristo no lagar”).
Ao mesmo tempo, os dons simbolizam também a unidade da Igreja em Jesus: dos muitos grãos se fez um pão;
das muitas uvas, fez-se o vinho - assim estão unidos os membros da Igreja na fé da única Igreja.
Ambrósio busca uma interpretação mais precisa da identidade real entre o corpo sacramental e o corpo histó­
rico de Jesus (cf. De mysteriis e De sacramentis). Uma simples lembrança subjetiva dos fiéis não consegue produzir
esta identidade. Somente o próprio Cristo pode realizá-la mediante a Palavra de Deus que cria a realidade. Unica­
mente a palavra criadora de Deus possui o poder de determinar e transformar de tal maneira os elementos natu­
rais do pão e do vinho, de modo que eles não se chamam apenas corpo e sangue de Cristo ou sejam simplesmente
vistos como tais, mas que estão também presentes na forma sacramental.
Contudo, deve-se distinguir esta transformação por meio da palavra de uma transformação material: por
exemplo, da mudança da água em vinho, nas Bodas de Caná. Do contrário, comeriamos o corpo físico de Jesus e
beberíamos seu sangue material, tal como os ouvintes do discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6)
haviam entendido mal (cafarnaísmo). Todavia, através da palavra de Cristo, as coisas materiais são tomadas, esva­
ziadas de sua essência natural e são preenchidas pelo Espírito Santo de Deus, de modo que nelas se torna presente
o Cristo em sua forma humana real.
Chama-se a esta posição de realismo ou metabolismo. Ambrósio oferece também um rico vocabulário a fim de
exprimir mais precisamente o fato da transformação (esse,fieri, efficere, conficere, mutare, convertere, transfigurare).
Fausto de Riez desenvolveu ainda mais a terminologia. O sacerdote, em virtude da palavra de Cristo, transfor­
ma a “substância” do pão na “substância” do Corpo de Cristo (Ps.-Hieronymus, ep. 38,2; PL 30, 275).

Contribuição de Santo Agostinho para a doutrina eucarística ocidental


Agostinho estava convencido da presença real de Cristo na Eucaristia. A partir de sua ontologia platônico-neo-
platônica, ele distingue fundamentalmente entre protótipo e imagem (res und sígnum). Sacramentum é signum,
âgura, similitudo da realidade histórica (res) de Jesus. Quanto ao conteúdo, esta visão chamada de simbolismo não
se diferencia do metabolismo. A diferença entre realidade e sinal torna possível que os infiéis e indignes
recebam Cristo apenas segundo os sinais sacramentais (secundum signum sacramentí), mas não a comunhão espi­
ritual com Cristo em sua carne e em seu sangue aí designada, a res sacramentí. Para a autenticamenjte espiritual e
não apenas externamente sacramental recepção de Cristo e de sua salvação (manducatio oralis) são decisivos a
fé e o amor pessoais, o estado de justificação, a ortodoxia da fé e a pertença à Igreja Católica.
De maneira teologicamente profunda, Agostinho explica a dimensão eclesial da Eucaristia. Na Eucaristia, re­
cebemos não somente a comunhão com o Cristo individual. Ao conteúdo espiritual (res sacramentí) pertence, em
todo caso, a comunhão com os membros da Igreja, que é o Corpo de Cristo; a constituição eclesial e a constituição
sacramental do Corpo de Cristo condicionam-se mutuamente. Na Eucaristia torna-se presente sempre o Cristo
único e total na unidade e na diferenciação da Cabeça e do Corpo (caput et corpus).
Há, portanto, um relacionamento multiplamente estruturado do Corpo de Cristo histórico, sacramental e
eclesial.
Nesta visão de conjunto, Agostinho pôde também desenvolver uma convincente explicação do caráter sacri­
fical da Eucaristia. Ele deriva os aspectos formais da noção de sacrifício do ato pessoal da autodoação da criação a
Deus: a natureza íntima do sacrifício é o amor e não, em sentido pagão, a apresentação de um dom ou de um pro­
duto, a fim de aplacar um Deus irreconciliável. A íntima disposição sacrifical apresenta-se no sacramentam, na ação
sacrifical externa: quando, segundo esta, a Igreja, em obediência ao mandato de Cristo, realiza a memória sacra­
mental de seu sacrifício na Eucaristia, nos dons do pão e do vinho ela se apresenta a si mesma e se deixa apropriar
interiormente por Cristo e assim assímilar-se em seu ato sacrifical em relação ao Pai:

"[...] toda esta cidade resgatada, isto é, a assembléia e a sociedade dos santos, [é] oferecida a Deus como um sacrifício universal
[...] pelo Magno Sacerdote que, para de nós fazer o corpo de uma tal cabeça, a si mesmo se ofereceu por nós na sua paixão soo
a forma de escravo. Foi, efetivamente, esta a forma que Ele ofereceu, foi nela que Ele se ofereceu, porque é graças a ela que Ele
é mediador, é nela que é sacerdote, é nela que é sacrifício [...]. Assim nós, que muitos somos, constituímos em Cristo um sc
corpo [...]. Tal é o sacrifício dos cristãos: muitos somos um só corpo em Cristo. E este sacrifício a Igreja não cessa de o reproduzir
no sacramento do altar bem conhecido dos fiéis: nele se mostra que ela própria é oferecida no que oferece" (De civ. Dei, 10,6 .

No final da patrística ocidental, Isidoro de Sevilha tenta uma síntese (Etymol. 6,19,38). Infelizmente ele separa
o sacriflcium, ou seja, a presença atual do sacrifício de Cristo na liturgia sacrifical da Igreja, do sacramentam, por­
tanto, da presença real do corpo e do sangue de Cristo. Assim, desenvolveu-se na Idade Média ocidental a visão
distorcida de que o sacerdote apresentaria o sacrificium para o povo, que não participava da realização litúrgica, e
que os leigos recebem simplesmente o fruto da Eucaristia na recepção do sacramento.
Aqui se encontra o início da crítica posterior de Lutero de que a Eucaristia seria um dom salvífico de Deus
(testamentum) e não uma ação de reconciliação realizada por um med1 ador salvífico humano, na forma de um sa­
crificiam que colocaria em questão a suficiência do sacrifício de Cristo na cruz, Ele, que é o único sumo sacerdote
da Nova Aliança.

AI e a II controvérsias eucarísticas no início da Idade Média


A controvérsia que se deu entre Pascásio Radberto (t 851 ou 860) e Ratramo (t 868), um monge da mesma abadia
de Corbie, em torno de uma interpretação realista da presença eucarística ou uma interpretação mais fortemente
simbólica só pode ser compreendida sobre o pano de fundo de uma mudança na ontologia.
Os Padres da Igreja podiam, através do esquema platônico de “protótipo-imagem” e das idéias de participa­
ção expressar a diferença-unidade entre res sacramentí e sacramentam tantum (.signum). A compreensão germânica
da realidade, porém, afirma algo diferente: o real é o materialmente palpável, ao passo que o espiritual possui
uma minguada densidade de realidade. Em contraposição à afirmação de uma identidade real entre o corpo his­
tórico de Jesus e o corpo sacramental (em razão da transformação dos elementos em figurae corporis Christi), Ra­
tramo ressalta agudamente a diferença das formas de presença: somente o Jesus histórico possui corpo e sangue
de verdade (in veritate). Nos dons eucarísticos, ao contrário, ele se torna presente, na verdade, apenas figura,
imagem ou símbolo. Pela transformação, a virtus divina liga os elementos naturais ao corpo e ao sangue do Senhor
histórico e glorificado. Os dons eucarísticos tornam presente sua realidade humana. Na constituição essencial dos
elementos, porém, nada se modifica.
Contra esta compreensão da Eucaristia chamada simbolismo, os realistas contrapunham que Cristo, por con­
seguinte, não estaria presente de verdade (ín veritate) na Eucaristia, mas “apenas” simbolicamente (ín signo seu
sacramento). A noção de símbolo aqui, portanto, já está tão diluída, que chega a ser usada meramente no sentido
de substituição vicária, e já não no sentido de um verdadeiro tornar presente o Cristo.
Esta tensão entre realismo e simbolismo só irrompeu plenamente na II controvérsia eucarística (século XI).
No centro da discussão acha-se o sagaz dialético e racionalista Berengário de Tours (+ 1088). Recorrendo à ter­
minologia agostiniana, ele enfatiza que as res sacramenti seriam corpo e sangue de Jesus Cristo, mas no próprio
sinal, no sacramentum tantum, não estaria contida. Os sinais sacramentais tornam-se um meio mais exterior para
a recepção espiritual do conteúdo deste sacramento na fé. Portanto, não é o sinal sacramental mesmo que nos
liga ao Jesus histórico e Senhor elevado ao céu, mas propriamente a fé subjetiva. Entre o corpo histórico e o corpo
sacramental de Cristo não há nenhuma unidade interior. A unidade surge apenas na consciência do fiel; os dons
sacramentais e o sinal sacramental não estão unidos.
Consequentemente, Berengário nega a presença real de Cristo na Eucaristia e sua pressuposição: a transfor­
mação eucarística. Confrontando a doutrina eclesial, ele diz que esta implicaria a concepção de que o corpo glo­
rioso de Cristo deveria ser trazido do céu para a terra e distribuído em porções. Caso se levasse a sério a transfor­
mação, isto então significaria que os acidentes restantes do pão e do vinho continuariam a persistir sem sujeito,
visto que eles, pois, não poderíam naturalmente inerir ao Jesus histórico. ’or conseguinte, lógico-dialeticamente
e, por isso também, realmente, seria impossível uma transformação. Poder-se-ia falar não de uma mudança no ser
dos elementos, mas apenas de uma mudança do significado dos elementos para o fiel.
Em estreita oposição ao esvaziamento simbólico da presença real, o Sínodo de Latrão de 1059 (aliás, com con­
victas fórmulas realistas, quase de tom cafarnaístas) faz Berengário confessar:

"que o pão e o vinho que são postos sobre o altar não são, depois da consagração, somente sacramento [= mero sinal], mas o
verdadeiro corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e que podem de modo sen* ível - não só no sacramento [= como símbolo
esvaziado], mas de verdade -, ser tocados e partidos pelas mãos dos sacerdotes ou mastigados pelos dentes dos fiéis" (DH 690).

A nítida demarcação em relação a Berengário teve também como consequência uma mudança no tradicional
uso da linguagem. Até então, designava-se o corpo sacramental de Cristo como Corpus Christi mysticum, porque só
pode ser reconhecido espiritualmente na fé, ao passo que a Igreja, como comunidade visível, era chamada de Cor­
pus Christi verum. Em contraposição a Berengário, agora a Eucaristia passou a ser chamada de Corpus Christi verum,
enquanto a Igreja se chamava Corpus Christi mysticum.

A presença real no horizonte de uma nova ontologia: a doutrina da transubstanciação


Origem
Contra Berengário, sobretudo Guitmundo de Aversa (t 1095) e Lanfranc de Bec (1010-1089) elaboram uma
sova concepção. Segundo esta, o corpo de Jesus não está presente em sua forma natural de aparecimento, mas
se torna presente sob o aspecto de sua substância ou essência. Somente a substância do pão e do vinho se torna
substância da carne e do sangue de Cristo. As formas exteriores da aparência do pão e do vinho permanecem imu-
cáveis e representam o sinal sacramental que contém em si a realidade interior da comunhão com Jesus Cristo,
segundo sua humanidade e sua divindade. “Substância” não significa, como em uma ontologia sensualista, a coisa
saturai sensivelmente perceptível e transferível, mas o não explícito princípio da realidade ou o portador meta-
fsico da forma de aparição espaçotemporal de uma coisa. O intelecto humano consegue reconhecer a substância
de um ente graças à unidade entre conhecimento sensível e espiritual. Para a compreénsão~da presença real e da
transformação, cristalizam-se como termos técnicos: substantialiter convertí e transubstantiatio. A partir de 1150
estas noções tornam-se de uso geral.

A recepção magisterial da doutrina da transubstanciação


Baseando-se na explicação de que Cristo realmente está presente no sacramento, per modum substantíae, o
Sínodo lateranense de 1079 pode fazer Berengário confessar quanto segue:

"[...] que o pão e o vinho que são postos sobre o altar, em virtude do mistério da santa oração e das palavras de nosso Redento-
são transformados, quanto à substância (substantialiter convertí), na verdadeira e própria vivificante carne e sangue de Nosso
Senhor Jesus Cristo; e que, depois da consagração, são o verdadeiro Corpo de Cristo (verum corpus Christi), que nasceu da V --
gem [...] e o verdadeiro sangue de Cristo, que foi derramado do seu flanco; não só pelo sinal e pela força do sacramento, mas na
propriedade da natureza e na verdade da substância (non tantum per signum et virtutem sacramenti, sed in proprietate naturae et
veritate substantíae)" (DH 700).

0 IV Concilio lateranense também descreve no Caput firmiter a presença real na linha da doutrina da substar-
ciação:

"Ora, existe uma Igreja universal dos fiéis, fora da qual absolutamente ninguém se salva, e na qual o mesmo Jesus Cristo é sacerdo­
te e sacrifício, cujo corpo e sangue são contidos verdadeiramente fveraciter cont nentur) no sacramento do altar, sob as espécies
do pão e do vinho, pois que pelo poder divino, o pão é transubstanciado no coipo e o vinho no sangue ftranssbustantiatis par~
in corpus, et vino in sanguinem potestate divina); de modo que, para realizar plenamente o mistério da unidade (mysterium uni-
tatis), nós recebemos dele o que Ele recebeu de nós" (DH 802; cf. DH 794).

Discussão da doutrina da transubstanciação


A noção-chave de substância, que foi desenvolvida para a salvaguarda ontológica a presença real, é resultado
de uma movimentada história de desenvolvimento terminológico. Os primeiros escolásticos ainda entendiam per
matéria o substrato corpóreo da propriedade, ao passo que a forma substancial ainda era reconhecida fenome-
nalisticamente mediante a totalidade da determinação essencial de um ente. No século XII, o termo “substância”
foi interpretado no horizonte da filosofia aristotélica da metafísica do ser. Segundo esta, a substância designa a
origem atuante e a permanência da coisa concreta em forma e matéria na existência. A transubstanciação euca-
rística significa, portanto, a mudança da origem atual da permanência do pão e do vinho na existência através
do próprio criador, que escolheu estes sinais a fim de, por meio deles, comunicar a comunhão com o Logos en­
carnado. Para tal mudança de substância, não há um único exemplo em nossa experiência da realidade naturaL
Não se trata nem de uma mudança meramente formal, nem simplesmente material, mas de uma mudança tanto
da forma quanto da matéria da substância, portanto de uma conversio substantialis: no momento da consagração,
mediante o poder de Deus, no lugar da substância natural do pão entra a substância do Corpo de Cristo, não porérr.
sua forma natural de aparição (cf. Tomás de Aquino, S.th. III q. 73-83; S.c.g. IV, c. 61-69).
A Eucaristia se diferencia dos demais sacramentos em um ponto essencial: os sinais sacramentais contêm em
si, em virtude da consagração, a presença corporal de Cristo e não apenas sua presença nos efeitos da graça, como
nos outros sacramentos.
A presença de Cristo nos dons eucarísticos, também segundo sua rumanidade, apresenta algumas dificulda­
des para a compreensão, pois evidentemente Cristo não pode estar presente em forma humana própria e física (in
própria specie). Berengário, portanto, havia colocado a doutrina da Eucaristia diante das alternativas de um cafar-
naísmo tosco-material e de um esvaziado simbolismo. No entanto, o problema da presença real, introduzido por
Berengário, só pode ser resolvido no horizonte de outra compreensão da realidade. Inicialmente, porém, deve-se
afirmar com Tomás: a fé da Igreja na presença real de Cristo nos sinais eucarísticos não depende da possibilidade
de uma explicação naturalista ou racionalista. Por outro lado, a fé não deve apelar unicamente a um poder de
Deus concebido positivamente, que também podería realizar o que é contrário à razão. A teologia pode mostrar
uma razoabilidade interior da doutrina, visto que a revelação de Deus se dá no horizonte da realidade da criação.
A verdade de fé da presença real de Cristo nos sinais eucarísticos pressupõe a estrutura simbólica da realida­
de, tal como já foi desenvolvida na doutrina geral dos sacramentos. De acordo com ela, a fé apoia-se no poder de
Deus, mediante o qual Ele pode comunicar seu cuidado salvífico às pessoas por meio de sinais sensíveis. Nestes, a
fé reconhece a Palavra de Deus a ser acolhida, que dá a conhecer a verdade ao nosso intelecto. No conhecimento,
também em questões de fé, parte sempre também da aparência sensível, no caso, da aparência do pão e do vinho.
Contudo, o intelecto atinge a íntellígíble species, comunicada nas aparições sensíveis, ou seja, a substância das coi­
sas. No caso da Eucaristia, a Palavra de Deus ensina-nos o que é a profunda razão de ser que sustenta as espécies
do pão e do vinho. Enquanto, normalmente, o intelecto humano reconhece na aparência do pão e do vinho o ser
substancial do pão e do vinho como alimento e meio de comunhão, o mesmo intelecto humano compreende, em
razão da Palavra de Deus, as formas de aparência do pão e do vinho como meios da presença de Cristo em sua
humanidade consistente em carne e sangue, e sua divindade.
Ademais: visto que Deus, em Jesus Cristo, se fez gente, a maneira humana de encontrar-se com Ele, também
depois de sua ressurreição e elevação, deve também ser possível mediante uma imagem de reconhecimento me­
diada sensivelmente. Contradiría a constituição corporal-espiritual do ser humano se Ele, tanto com seus seme­
lhantes quanto com Deus, devesse comunicar-se unicamente de maneira espiritual. A natureza corporal-material
rorça a uma comunicação nas espécies de uma corporalidade ligada ao tempo e ao espaço. E o corpo outra coisa
não é senão o ser-aí da própria pessoa para o outro. Por isso, o Cristo pascal quis permanecer corporalmente, em
sua humanidade, com seus discípulos. Esta presença corporal, per modum substantiae, é comunicada e realizada
mediante as espécies sacramentais.
No caso, trata-se de uma forma singular de comunicação da corporalidade, visto que Cristo, como foi pro-
rlematizado, não está presente na tridimensionalidade natural da corporeidade de seu corpo humano, mas na
aparência, que lhe é estranha, do pão e do vinho. A fim de que a estranha aparência dos dons se torne aquela do
Cristo, pressupõe-se a mudança de substância das espécies.
Esta unio sacramentalis, fundamentada na transformação da substância, deve ser distinguida da união hipostá-
zca, bem como da unidade substancial da alma e do corpo. Nos acidentes do pão, que continuam a existir depois da
mudança de substância, Jesus não está em uma espécie natural, mas justamente em forma sacramental e simbólica,
mediante a qual Ele comunica a realidade (substância: esse proprium) de sua humanidade à comunidade humana.
As espécies eucarísticas consagradas não tornam presente o corpo de Jesus como um corpo físico (esse animatum).
Neste contexto, duas teorias devem ser rejeitadas (cf. S.th. III q. 77):
1) A assim chamada doutrina da impanação: a concepção de que Jesus se acharia no pão mais ou menos como
um rei no palácio real. O corpo do Jesus histórico e o pão natural não constituiríam nenhuma unidade físico-
-aditiva. A doutrina da i mpanação apresentada como possível por alguns teólogos no início da Idade Média
(cf., porém, AVERSA, G. De corporis et sanguinis Chrísti veritate in Eucharistia. PL 149, 1430) e mais tarde como
declaração de fé por Wycliffe (t 1384), foi rejeitada pelo Concilio de Constança, de 1418, como contrária à fé
(DH 1256). O Concilio de Trento vê nela uma negação da singular maravilha da mudança da substância euca-
rística (DH 1652).
2) Deve ser também rejeitada a teoria da aniquilação dos acidentes. Caso o pão fosse reduzido à matéria-prima,
já não havería nenhuma aparência do pão para nossa experiência.
Aqui, não é decisivo se se fala, com os tomistas, de uma reprodução, ou seja, de um estabelecimento positivo
substância do corpo e do sangue de Cristo, ou mais com os escotistas, de uma adução da substância de Cristo à
arência acidental do pão e do vinho. Efetivamente, a questão, pois, de onde ficaria a substância do pão depois
_ transformação, é indício de uma falsa compreensão de substância. A questão “Onde?” volta-se para a aparição
acidental da substância (situação, lugar e determinação do tempo). Uma vez que Cristo na Eucaristia está preserme
substantialiter, mas não na forma de presença de seu corpo histórico e transfigurado, certamente é o sinal sacra­
mental que está exposto a mudanças acidentais, não Ele próprio (cf. S.th. ÍII q. 75 a. 1 ad 3).
A consistência da explicação teológica e a razoabilidade da doutrina da fé a respeito da presença real nãc
estão também limitadas pelas questões da filosofia natural sobre o sujeite da inerência dos acidentes do pão e dc
vinho. Vistos fisicamente, os acidentes não estão ligados à substância como a um portador físico, mas são reuni­
dos pela substância em uma unidade ontológica, ao passo que a unidade física de uma coisa sensível é realizada
mediante uma força de adesão a ser fisicamente determinada. Pão e vinho são conservados justamente em sua
constituição e aparência concretas por meio de causas materiais que conservam cada coisa sensível. Por e$*a
razão, a transformação de natureza eucarística não representa nenhuma maravilha da natureza fisicamente ve­
rificável: os acidentes não persistem sem uma força física de inerência.
A transubstanciação eucarística fundamenta-se na potencialidade e simbologia de todo o criado, também na
potencialidade dos produtos culturais produzidos pelos seres humanos artefatos), portanto, na capacidade ãe
absorção de modificação. As ocorrências do pão e do vinho, criadas por Deus e produzidas pelos seres humanos
em seu simbolismo natural, podem, em razão desta potencialidade substancial, ser apropriadas por Deus de ci
sorte que elas se tornam símbolos e meios de sua autovisualização na humanidade de Jesus. 0 mistério da presen­
ça eucarística radica-se na maravilha primordial da encarnação da palavra divina.

Aspectos da doutrina eucarística tomista


Como todo sacramento, assim também a Eucaristia é, para Tomás, um signum rememorativum: ela reporta-se
ao evento salvífico histórico. Como comemoração e representação simbólica do sofrimento e da ressurreição de
Jesus Cristo, a Eucaristia é sacrificium e hóstia. Na medida em que a Eucaristia também se refere à presença, ela e.
como todo sacramento, um signum demonstrativum: ela designa a unidade com Cristo, a communio ou synaxis (S.th
III q. 73 a.4). A unidade com Cristo aponta, ao mesmo tempo, para a incorporação do indivíduo no Corpo de Cristo,
a Igreja. A Eucaristia opera, portanto, em todo caso, a communio e a unidade dos fiéis entre si.
A Eucaristia, porém, como todo sacramento, relaciona-se também com o futuro. Como signum prognosticam
designa a plenitude definitiva de nossa salvação na fluição de Deus (fruitic Dei) e na contemplação de Deus em s_s
vida eterna (Visio beatifica). A Eucaristia é farnel (viaticum) do ser humano para esta meta. Ou ela é eu-charisüa.
bona gratia (como traduz Tomás): dons da vida eterna (cf. S.th. III q. 73 a. 4).
Por que Jesus, na Última Ceia, instituiu uma memória sacramental de seu sofrimento na imagem de um ban­
quete? Razões para isto são (S.th. III q. 73 a. 5): 1) Para indicar a encarnatória presença salvífica de Deus no munde
2) Porque sem a fé no sofrimento salvífico de Cristo ninguém pode ser salvo - assim como também a celebraçãc
da Páscoa é lembrança do ato salvífico histórico e permite uma participação real no agir libertador de Deus em
relação a seu povo. 3) Em sua despedida deste mundo, Jesus teve de instituir uma celebração memorial sub sacra-
mentali specie, a fim de despertar a emoção do amor de seus discípulos e marcar mais profundamente as relações
mútuas entre Ele e os cristãos.
Para a Eucaristia encontram-se outras prefigurações no Antigo Testamento (cf. S.th III q. 73 a. 6). O sacra-
mentum tantum tem seu modelo no sumo sacerdote Melquisedec, que oferece ao Deus Altíssimo vinho e pão (cf.
Gn 14,17-20); os sacrifícios veterotestamentários de expíação e de reconciliação prefiguram res etsacramentum da
Eucaristia: Jesus em sua figura sofredora que expia a culpa da humanidade. Neste sentido, a celebração da Festa
da Páscoa judaica, com um cordeiro sem defeito, como lembrança da salvação perante o anjo exterminador e da
servidão do Egito, também prefigura Jesus como o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo e liberta da es­
cravidão do pecado (cf. Jo 1,29). O maná, o pão do céu, que contém em si toda doçura, isto é, a alegria dos resgata­
dos em Deus (cf. Sb 16,20), aponta, no final das contas, para a res sacramenti, para a comunhão com o Deus unitrino.
A Eucaristia é o ápice e a meta de toda a vida espiritual. Com justiça, é designada como o sacramento do amor
(S.th. III q. 73 a. 3 ad 3; q. 75 a. 1). O ato interior dos fiéis, o ato do amor operado pelo Espírito Santo (Rm 5,5), é o
opus operantis, mediante o qual o amor obsequioso torna-se opus operatum (S.th. III q. 79 a. 1).
A crítica da doutrina da transubstanciação no nominalismo da Idade Média tardia
Na Idade Média tardia, falta uma visão de conjunto da Eucaristia como memória sacramental do sacrifício de
Cristo e a interpretação da presença real no contexto geral de uma teoria do símbolo ontologicamente fundida.
A Eucaristia torna-se objeto de especulação natural-filosófica. De certa maneira, não se parte da fé na presença
real a fim de explicá-la também racionalmente: coloca-se a fé sob uma compreensão da realidade que se orienta
para a física, a fim de, possivelmente, demonstrá-la racionalmente. Por conseguinte, a pergunta decisiva parece
ser como é pensável uma consistente permanência dos acidentes sem sujeito. De maneira especial é considerada
a relação entre substância e quantidade.
Tomás incluía a quantidade entre os acidentes. Durante a consagração, a quantidade de pão e de vinho é
conservada. Ela é até mesmo a razão unificante que conduz o pão e o /inho para um contínuo de aparência. A
quantidade do corpo de Cristo natural e transfigurado não está presente no modo da quantidade, mas no modo
da substância nos símbolos eucarísticos (cf. abaixo). Existe, portanto, certa relação entre o Cristo celestial e as
espécies sacramentais, quaedam habitudo (S.th. III q. 76 a. 6). O corpo celestial de Cristo, mediante sua presença
substantial e nas espécies eucarísticas, não recebe nenhum complemento acidental adicional, isto é, quantitativo.
Segundo João Duns Escoto, no entanto, o Cristo celestial, por meio de seu ser na matéria do pão, recebe um
complemento acidental adicional como esse híc.
No nominalismo, substância e quantidade são quase identificadas. Se Cristo deve estar presente segundo a
substância, como o diz a fé, Ele deve também estar presente quantitativamente - assim o exige a nova definição.
Diferencia-se uma quantidade aglomerada em um ponto, mas que permanece circunscritiva, de uma quantidade
da parte em um segmento espaçotemporal natural. Se, pois, na Eucaristia, se acham, porém, duas quantidades,
a saber, o corpo natural de Cristo e as espécies do pão e do vinho, então há também duas substâncias. Como já
foi explicado, “substância” aqui, já não significa “portador metafísico de uma espécie sensível”, mas antes, a
unidade fenomenal de acidentes, captada na experiência dos sentidos. Especialmente também na ciência natural
mecanicista do começo da Modernidade, a matéria é compreendida como quantidade. O que, a partir de então,
em química, física e biologia se chama substância, em oposição à linguagem da filosofia medieval, é o que nela foi
denominado de acidentes.
No contexto de tal mudança da visão da realidade e desta linguagem, uma transfiguração aparece, pois, fran­
camente como irracional. Ela é compreendida como um tipo de “transquantificação”.
Diversos teólogos marcados pelo nominalismo (Guilherme de Ockham, Henrique de Langenstein, Jean Ger­
son, Pierre d’Ailly, Gabriel Biel, entre outros) ativeram-se à doutrina da transubstanciação, definida pelo IV
Concilio de Latrão, mas muito mais por obediência formal à Igreja. Eles consideram mais sensata a doutrina
da consubstanciação. Segundo esta, subsistem no sacramento eucarístico duas quantidades-substâncias, uma ao
lado da outra. Os acidentes não continuariam a existir sem sujeito, mas em sua substância natural. Em cossuces-
são com eles, o corpo e o sangue de Cristo são alcançados na comunhão
A doutrina da impanação, igualmente (cf. abaixo), ganha terreno. Durando de S. Pourçaint e João Quidort
de Paris retomam formas naturais de transformação como modelos de explicação (p. ex., a mudança de forma de
.ma lagarta em borboleta). A diferença entre uma mudança de forma natural e uma mudança de forma realizada
por Deus do pão no corpo é vista na rapidez do processo.
Apela-se também, mais uma vez, à união hipostática como paralelo. A substância do pão e do vinho per­
manece igualmente intocada na união sacramental, tal como a natureza humana de Jesus, que subsiste na pessoa
do Logos.
A consequência inaceitável é que agora também entre o corpo e o sangue de Cristo, e o pão e o vinho, deve-
se admitir uma comunicação de idiomas. O pão é revestido de propriedades divinas, por exemplo, com a oni­
presença de Deus. Visto que quantidades-substâncias estão unidas hipostaticamente e pertencem a um único
suposto (como natureza divina e humana ao Logos), dever-se-ia concluir que a Eucaristia é um “pão-corpo” e
_m “vinho-sangue”, ou seja, que nas espécies eucarísticas a substância do pão e do vinho existe paralelamente
i substância da Carne e do Sangue de Cristo. A doutrina da consubstanciação é contraditória na medida em que
uma substância não se torna presente mediante sua espécie natural ou estranha, mas mediante outra substância
com sua espécie natural.
A crise da Igreja e da teologia da Idade Média tardia impulsionou para uma nova abordagem, a uma recupe­
ração de uma compreensão eucarística e de uma práxis eucarística a partir de suas fontes bíblicas no contextc m
grande tradição eclesial.

A crítica protestante-reformadora da compreensão eucarística católica


A crítica luterana e reformada ao caráter sacrifical da missa
A redescoberta de uma “justificação unicamente pela graça e pela fé”, sem nenhuma conquista, condição e
colaboração humanas aguça-se na mais intensa crítica contra a existência, a práxis e a doutrina da missa co~c
sacrifício. O sacrifício da missa entra em conflito com o artigo central da suficiência, unicidade e irrepetibilidaae
do sacrifício redentor de Cristo na cruz, pelo qual Cristo, como o único e eterno sumo sacerdote, se teria ofereode
(cf. Calvino, Inst. chr. rei. IV, 18: A propósito da missa papal, mediante cujo sacrilégio a Última Ceia de Cristo é nãc
somente profanada, mas completamente destruída) ao Pai como sacrifício expiatório, uma vez por todas (cf. i-r
7,27; 9,28). No que diz respeito ao sacrifício da missa católica, Lutero pode declarar: “Então estamos e permanece­
mos eternamente separados e contraditórios. Na verdade, eles sentem que onde falta a missa, o papado se abala’
O importante documento confessional calvinista, 0 Catecismo de Heideberg, à 80a pergunta: “Que diferença ha
entre a Ceia do Senhor e a missa do papa?”, dá a seguinte resposta:

"A Ceia do Senhor nos testemunha que temos completo perdão de todos os nossos p >cados, pelo único sacrifício de Jesus Cr stt
que Ele mesmo, uma única vez, ealizou na cruz; e também que, pelo Espírito Santo. ■ omos incorporados a Cristo, que agora, cora
seu verdadeiro corpo, não está ia terra, mas no céu, à direita do Pai e lá quer ser adorado por nós. A missa, porém, ensina que
Cristo deve ser sacrificado todo dia, pelos sacerdotes na missa, em favor dos vivos e dos mortos, e que estes, sem a missa, não têm
perdão dos pecados pelo sofrimento de Cristo; e, também, que Cristo está corporalmente presente sob a forma de pão e vinho e
por isso, neles deve ser adorado A missa, então, no fundo, não é outra coisa senão a negação do único sacrifício e sofrimento de
Cristo e uma idolatria abominável" (STEUBING, H. (org.). Bekenntnisse der Kirche. Wuppertal, 1970, p. 146).

Depois que Lutero, em 1519, em alguns sermões, havia desenvolvido uma teologia da Eucaristia de orientaçãc
completamente agostiniana, sob a ideia de uma comunhão real com a vida, o sofrimento e a ressurreição de Jesus
e da comunhão dos cristãos entre si, daí subsequente, a partir de 1520, em seus grandes polêmicos escritos refor­
madores, ele fala de um antagonismo intransponível à compreensão sacramental católica e do papel da Igreja na
intermediação da salvação.
Em seu escrito Do cativeiro babilônico da Igreja, ele fala de três aprisioriamentos a que a cúria romana levou o
Sacramento da Eucaristia:
O primeiro confinamento consiste na recusa do cálice aos leigos. A comunhão sub una specie contradiría não
apenas a clara instituição de Jesus; deste modo, os sacerdotes tiranizariam também os leigos e os tornariam de­
pendentes de sua pretensão de domínio. Os sacerdotes humanos, porém, não seriam mediadores da salvação. Me­
diante o sacerdócio comum (lPd 2,9), estaria aberto um acesso imediato a todos os cristãos às espécies sagradas.
O segundo cativeiro consistiría na doutrina da transubstanciação, pela qual a fé estaria entregue à filosof.s
do pagão Aristóteles.
A terceira servidão seria a mais medonha. A missa como dom de Deus para nós (testamentum seu sacramenturr.
passou a ser dom do ser humano para Deus (sacrificium seu bonum opus). A Igreja teria invertido literalmente o
caminho da salvação, o qual parte de Deus para o ser humano. O ser humano faria de suas obras e méritos a base
de uma subida autônoma para Deus. Isto conduziría à autojustificação ou à autobem-aventurança. Batismo e
Eucaristia seriam, porém, sinais da bondade de Deus para conosco, confinados em formas sensíveis, não um dom
do ser humano a Deus, a fim de coagir Deus à reconciliação e ao perdão dos pecados (WA 6,520). O dom sagrado
de Deus nos sinais sacramentais só poderia ser recebido na fé pessoal e não poderia ser oferecido por outrem.
Por este motivo, o sacrifício da missa pelos mortos seria impossível; a missa seria um anúncio e, por conseguinte,
deveria ser celebrada na língua materna, e não na língua dos eruditos - o latim. A missa não seria sacrifício para
Deus, mas suma e compêndio do Evangelho do perdão gratuito dos pecados apenas (WA 6,525).
Segundo Lutero, a teologia da missa sacrifical repousa, portanto, sobre uma confusão de dom divino com
resposta humana na oração e no sacrifício:

"Por esta razão, estas duas coisas não devem ser confundidas. A missa e a oraçã > o sacramento e a obra, o testamento e o sacri­
fício; efetivamente, um vem de Deus até nós mediante o ministério do sacerdote < exige a fé; o outro vem de nossa fé para Deus
mediante os sacerdotes e pede para ser atendido. Aquele desce, este sobe" (WA 6 526).

A Confessio Augustana, de 1530, resume a crítica à doutrina da missa como sacrifício (cf. CA 24).
1) Os reformadores atribuem aos católicos a doutrina de que Cristo teria morrido na cruz antigamente apenas
para a redenção do pecado original, ao passo que teria instituído a missa como sacrifício adicional mediante
o qual os sacerdotes deveríam oferecer a Deus satisfação para os pecados atuais cometidos posteriormente.
A missa diária seria necessária, portanto, para o apaziguamento cotidiano do Deus sempre de novo ofendido,
a fim de dissuadi-lo da execução de seu justificado juízo. Daí resultaria todo o feixe de inconvenientes na
práxis: a celebração mecânica e o mais frequente possível de missas, missas encomendadas e missas privadas,
missa das almas para defuntos no purgatório, a fim de abreviar-lhes os tormentos. A isto se opõe a afirmação
bíblica de que Cristo, mediante seu sacrifício na cruz, teria efetuado, uma vez por todas, a satisfação por todos
os pecados.
2) Porque Cristo teria morrido, uma vez por todas, pelos pecados de todas as pessoas, não deveria haver ne­
nhum sacrifício adicional ao da cruz. A missa não podería ser uma repetição ou um complemento do sacrifício
da cruz. Contudo, visto que o perdão dos pecados seria recebido pela fé e não mediante a obra das pessoas, a
doutrina da eficácia dos sacramentos ex opere operato deveria também ser rejeitada.
3) A missa não seria nenhum sacrifício expiatório. O corpo e o sangue de Cristo não seriam dados à Igreja a fim
de que ela oferecesse Cristo como uma oferta sacrificial a Deus, entendida reificantemente, para a reconcilia­
ção. A Eucaristia teria sido instituída a fim de corroborar em nós a certeza do perdão dos pecados, que teria
acontecido definitivamente na cruz, que nos teria sido eficazmente prometida na palavra do anúncio e na fé,
e recebida como puro dom de Deus.
4) Uma vez que a missa não seria nenhum sacrifício, mas um sacramentam e testamentum, todos os termos
sacrificiais deveríam ser cancelados do cânone da missa.
A divisão intrarreformadora por causa da presença real
A reforma suíça e do sudoeste alemão ensinava, com Zwínglio, uma simples graciosa-externa presença de
Cristo nas espécies eucarísticas e negava uma presença substancial (cf. .OCHER, G.W. Die Zwinglische Reformation.
Gõ, 1979, 283-343). Os sacramentos não seriam meios da graça, mas sinais da fé e marcas distintivas da confissão
cristã. Eles confirmam primeiramente não os receptores, mas a comunidade que realiza o batismo como cerimô­
nia de entrada e a Eucaristia como compromisso pessoal da fé e do agir cristãos (cf. ZWÍNGLIO. De vera et falsa reli-
gione, 7III, 773-820). A missa, como memória exterior, estimularia apenas a fé subjetiva, na medida em que o fiel,
agora, no Espírito Santo, recebería a força salvífica da cruz. Depois da ascensão, o Corpo de Cristo habitaria locali-
ter no céu. Não poderia, ao mesmo tempo, tornar-se presente sobre o altar. Segundo as palavras de Jesus, “a carne
para nada” serviría (jo 6,63; Rm 14,17). Por conseguinte, o comer da carne de Cristo outra coisa não significaria
senão crer em Cristo. O est deveria ser traduzido simbolicamente por: “O pão significa (= significai) meu corpo”.
No Diálogo sobre a Religião, de Marburgo, 1529 (WA 30, II, 110-144), contra Zwínglio, Lutero insistiu em uma
interpretação fiel ao texto das palavras institucionais de Jesus. Contra uma concepção de fé idealística e espiri-
tualizante, ele enfatiza que o “é” deveria ser compreendido como uma dentidade real do pão e do vinho com o
corpo e o sangue de Cristo.
Posto que Lutero rejeite também a doutrina da transubstanciação e se aproxime mais do modelo da cor-
substanciação ou da impanação, em estreita oposição a Zwínglio, ele não deixa nenhuma dúvida quanto a uma
presença real sacramental (cf. Vom Abendmahl Christi. Bekenntnis, 1528). A Fórmula de Concórdia, de 1580, diz na
clássica formulação, que Cristo, “cum, in et sub pane” (com, no e sob o pão) estaria presente (Solida declaratio VIL
De coena Domini: BSLK 970-1016, 984, entre outras).
Contra o argumento de Zwínglio, de que o Cristo que habita o céu não poderia ao mesmo tempo estar pre­
sente na forma do pão e do vinho, Lutero responde com a doutrina da ubiquidade: apoiando-se na comunicação
cristológica dos idiomas (que resulta da união hipostática), ele diz que o corpo natural de Cristo no céu, cheio da
onipresença de Deus, ligar-se-ia com o pão e com o vinho sobre o altar. Destarte, em virtude da unio sacramentalis.
o Cristo poderia estar presente em toda parte, também na celebração eucarística. E a natureza humana, cheia da
onipresença divina, estaria presente na Eucaristia por vontade de Deus contanto que a Eucaristia seja recebida
na fé (doutrina da onipresença voluntária).
Por mais que a fé, com vistas à recepção da Eucaristia, deva ser acentuada, visto que o sacramento visaria ac
despertar e ao fortalecimento da fé salvífica, seja, no entanto, mantido que não é a fé que instituiría a presença de
Cristo nas formas sacramentais. Daí se segue que tanto os fiéis quanto os infiéis usufruem sacramentaliter do Corre
e do Sangue de Cristo, uns para a salvação, outros para o juízo (cf. ICor 11,29).
Esta consequência opõe-se a Calvino (inst. chr. rei. IV, 17). Em razão da doutrina da predestinação, somente
os cristãos verdadeiramente predestinados ao céu poderíam ter autenticamente comunhão com o Corpo de Cristo
na Eucaristia. No caso da unidade das substâncias do Corpo e do Sangue de Cristo com as substâncias do pão e
do vinho em virtude da unio sacramentalis, os infiéis receberíam também, de fato, o Corpo de Cristo (manducar:
impiorum).
Por certo, Calvino, influenciado por Agostinho, pretende ver o sinal sacramental e o conteúdo do sacrament :
mais próximo um do outro do que Zwínglio. Para ele, o sacramento não é apenas um meio subjetivo de estímulo
para a fé. Mas é menos que um meio da graça, ou seja, não é nenhum sinal com o qual estaria ligado indissoluvel-
mente um dom salvífico.
A Eucaristia intermedeia a comunhão com o Corpo de Cristo no céu, mas uma presença deste corpo sobre a
terra seria impossível. As palavras da instituição teriam intenção simbólica. Contudo, o Espírito Santo faria com
que os fiéis, ao tomarem os sinais eucarísticos, realmente participem do corpo e do sangue do Cristo celestial. Por
conseguinte, o Espírito Santo realizaria um tipo de presença real que, aliás, deveria ser diferençada de uma pre­
sença real sacramental. O Espírito de Deus operaria a salvação exclusivamente nos predestinados à vida eterna,
de modo que somente eles teriam comunhão com o Corpo de Cristo. Os infiéis e os predestinados à condenação
receberíam, durante a liturgia eucarística, simplesmente pão natural e vinho natural, ao passo que, de acordo
com a compreensão católica e luterana, o cristão carregado de pecados graves recebería o corpo e o sangue de
Cristo - embora para a perdição.

A afirmação da doutrina da fé católica mediante o Concilio de Trento


O Concilio de Trento não respondeu com uma nova compreensão teo lógica abrangente de toda a doutrina eu­
carística. Em três decretos que surgiram independentemente uns dos outros, faz-se referência a questionamentos
individuais da reforma. O Concilio ocupa-se dos seguintes temas: 1) A presença real (Decreto sobre a Eucaristia.
1551). 2) A doutrina sobre a comunhão sob as duas espécies (1562). 3) O caráter sacrificial da missa (doutrina do
santo sacrifício da missa, 1562).

A doutrina da presença real


O Cân. 1, contra a afirmação de Zwínglio de que Cristo estaria presente “somente como que em sinal” e “so­
mente na eficácia por meio do Espírito Santo”, declara “que no sacramento da Santíssima Eucaristia está contido
verdadeira, real e substandalmente (vere, realiter et substantialiter) o corpo e sangue, juntamente com a alma e a
divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, e, portanto, o Cristo inteiro” (DH 1651; 1636). Segundo o Cânone 8, não
basta dizer que se comería apenas espiritualmente o Corpo de Cristo, não porém também sacramentaliter ac realiter
(DH 1658).
Cân. 2: Rejeitam-se as doutrinas da consubstanciação e da impanação, a saber, o ensinamento de que, depois
da mudança, as substância do pão e do vinho perdurariam (remanentismus). A fé católica na maravilhosa e singular
mudança de toda a substância do pão no corpo e de toda a substância do vinho no sangue de Cristo, permanecen­
do só as espécies de pão e de vinho (dumtaxat speciebus panis et viní) - mudança que a Igreja Católica chama com
muita propriedade de transubstanciação (aptissimet transsubstantiationem appelat (DH 1652).
Cân. 3 e 4: sob cada espécie e sob cada parte de cada espécie está contido o Cristo inteiro. Esta ligação da
presença de Cristo nos sinais sacramentais exclui a opinião (de Lutero) segundo a qual Cristo estaria presente
somente no uso (tantum in usu) do sacramento e não enquanto as espécies sacramentais durarem (DH 1653s.).
Cân. 5 e 11: exclui-se a opinião de que o fruto excelente ou até mesmo exclusivo da Eucaristia seria a remis­
são dos pecados. Para aqueles que se fizeram culpados de um pecado grave, não basta a fé como preparação para
a recepção da Eucaristia. Para eles, faz-se necessária a recepção do Sacramento da Penitência ou pelo menos o
desejo dele (DH 1655; 1661).
Cân. 6 e 7: da presença real, segue-se a dignidade da adoração e da veneração de Cristo no sacramento. São
fundamentadas, portanto, também as diversas formas de conservação do sacramento, seja para a comunhão dos
enfermos, seja para as procissões sacramentais etc. (DH 1656s.).
A comunhão sob uma espécie
Condena-se o ensinamento de que, segundo o mandamento de Deus, os fiéis deveríam, como exigência para a
salvação, receber Cristo sob as duas espécies (DH 1726; 1731). Porque sob cada espécie é recebido o Cristo inteiro,
a Igreja pôde aceitar, legitimamente, o costume que se constituía, desde o começo da Idade Média, de comungar
unicamente sob uma espécie. Pertence à fé a certeza de que sob cada uma de ambas as espécies recebe-se o Cristo
inteiro (DH 1729; 1733). O poder da Igreja de mudar a forma concreta e a realização de cada um dos sacramentos
não se estende, porém, à substância deles (DH 1728: “salva illorum substantia"). Para a realização da Eucaristia,
portanto, são necessários pão e vinho, ao passo que para a recepção sob as duas espécies não é obrigatória para
cada um dos participantes, individualmente, mas pelo menos para o sacerdote celebrante. Evidentemente isto
não exclui que a recepção sob as duas espécies constitua a forma normal (DH 1731-1733).

"As crianças que não têm o uso da razão não são obrigadas por nenhuma necessidade à comunhão sacramental da Eucaristia,
já que, regeneradas pelo banho do batismo e incorporadas a Cristo, não podem perder naquela idade a graça de filhos de Deus
anteriormente recebida" (DH 1 730; 1 734).

A doutrina da missa como sacrifício


Cap. 1 (cân. 1 e 2): embora o próprio Cristo se tenha oferecido ao Pai como vítima “de uma vez por todas no
altar da cruz” (semel se ipsum in ara crucis), exerce, no entanto, seu eterno sacerdócio igualmente no sacrifício visí­
vel da Eucaristia, que ele deixou para sua Igreja na sala da Última Ceia: “Aquele sacrifício cruento que se havia de
realizar uma vez por todas na cruz, [deveria] ser tornado presente (repraesentaretur) e seu memorial permanecer
até o fim dos séculos e seu poder salutar aplicado para a remissão dos pecados que diariamente cometemos” (DH
1740). A missa é, portanto, “um verdadeiro e próprio sacrifício” (verum et proprium sacrificium). A ação sacrifical
não consiste simplesmente em que o Cristo se nos seja dado como alimento (DH 1751).
Cap. 2 (e cân. 3): E, como neste divino sacrifício que se realiza na missa está contido e é incruentamente imola­
do o mesmo Cristo que se ofereceu, uma vez por todas, de maneira cruenta no altar da cruz, consequentemente o
sacrifício eucarístico deve também ser compreendido como sacrifício propiciatório (DH 1743). “Se alguém disser
que o sacrifício da missa só é de louvor e ação de graças, ou mera comemoração do sacrifício realizado na cruz,
porém não sacrifício propiciatório; ou que só aproveita a quem o recebe e não se deve oferecer pelos vivos e de­
funtos, pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades: seja anátema” (DH 1753).
Sacrifício e vítima são um e mesmo Cristo, que age na Eucaristia, mediante o ministério da Igreja. Sacrifício da
cruz e sacrifício da missa são diferentes apenas na forma de oferecer (sola offerendi ratione diversa): na cruz, como
vítima cruenta; aqui, como sacrifício memorial incruento, realizado sacramentalmente (DH 1743).
A celebração eucarística, portanto, nada mais é do que o sacrifício da cruz no qual o Cristo é sujeito, e sua
obra salvífica sacerdotal é tornada presente sacramentalmente sob a forma da repraesentatio, da commemoratio e
da applicatio. Neste sentido, a missa é verdadeiro e próprio sacrifício (DH 1740).
Seguem-se outras explicações sobre as missas, aquelas que são celebradas em honra dos santos, sobre o cânone
da missa e sobre cada uma das cerimônias, sobre missas nas quais somente o celebrantèisomunga, sobre a água que
deve ser misturada ao vinho, sobre a língua vernácula nas missas (DH 1744-1750; 1755-1759).

A teologia da missa pós-tridentina


A teologia pós-tridentina buscou especialmente nos sinais sacramentais uma semelhança com a doação sa-
crificial da vida de Jesus na cruz. O problema consistia em como o sacrifício da missa, como sacrifício relativo,
inteiramente dependente do sacrifício da cruz, mas, como “verdadeiro e próprio sacrifício” (DH 1740), devia ser
mais precisamente determinado. No caso, tudo se orientava mais por uma concepção de sacrifício segundo a ótica
da história das religiões, mediante a qual o sacrifício, de certa maneira, consistia na destruição das ofertas, em vez
de definir a noção de sacrifício a partir de sua estreita concentração cristológica, do ato pessoal de doação de Jesus
ao Pai, no qual os fiéis, mediante o ato da doação a Deus e ao próximo, se deixam envolver.
Ao lado da teoria da destruição (G. Vázquez), que partia da destruição dos dons, desenvolveu-se também umz
teoria da imolação: segundo esta, a dupla consagração simbolizaria uma imolação místico-simbólica de Jesus comc
Cordeiro de Deus (A. Tanner, L. Lessio, L. Billot), que na comunhão, segundo seu ser sacramental, é “consumidc"
e “aniquilado” (R. Belarmino). De acordo com a teoria da oblação (F. Suarez, P. de Berulle, J. de Maldonado, V.
Thalhofer, M. Lepin, M. de a Taille), a natureza do sacrifício consiste na oferta dos dons sacrificiais. Dever-se-ia
ainda mencionar a concepção de um ato sacrificial duradouro de Jesus na liturgia celestial, que se torna visível
na celebração terrestre da Eucaristia (cf. RENZ, F.S. Die Geschichte des Messopferbegriffs I-II. Freising, 1901/1902).

Princípios para uma nova teologia da Eucaristia no século XX


No contexto de uma reorientação da teologia sacramental (teologia dos mistérios; nova compreensão do sím­
bolo da herança bíblica e patrística), supera-se o tratamento da Eucaristia segundo aspectos individuais isolados
(sacrifício, sacramento, presença real) e se prepara uma visão orgânica geral.
Depois que, na Encíclica Mediator Dei, do Papa Pio XII, ressaltou-se a participação ativa dos leigos no ministé­
rio sacerdotal da Igreja, e a Eucaristia foi ressaltada novamente como memória real e participação sacramental
na pessoa e no destino de Jesus Cristo (DH 3847-3854), o Concilio Vaticano II pôde definir as idéias básicas da pre­
sença sacramental do mistério pascal de Cristo: na Eucaristia toda a Igreja celebra, segundo o mandato de Cristo,
a vitória e o triunfo de sua morte, para, ao mesmo tempo, dar graças a Deus em Cristo e na força do Espírito Santo,
pelo imenso dom da salvação (cf. SC 6).
A Eucaristia é o acontecimento simbólico, fundando no próprio acontecimento da revelação, da autopresen-
tificação de Cristo na comunidade sacerdotal do povo de Deus e de todos os seus membros:

"Participando do sacrifício eucarístico, fonte e ápice de toda a vida cristã, [= os fiéis] oferecem a Deus a Vítima divina e com ela
si mesmos. Assim, quer pela oblação, quer pela Sagrada Comunhão, todos - cada im segundo sua condição - exercem na ação
litúrgica a parte que lhes é própria. Reconfortados pelo Corpo de Cristo na Sagrada Comunhão, mostram de modo concreto a
unidade do povo de Deus, apropriadamente significada e maravilhosamente reali/ada por este augustíssimo sacramento" (LG 11 >.

No período anterior e no posterior ao concilio, havia na teologia uma ampla discussão que queria difundir
uma melhor compreensão da presença real.
Durante muito tempo, a noção de substância causou problema devido à sua mudança de significado no final
da idade Média e começos da Modernidade. No personalismo moderno, ademais, foi criticada a metafísica clássica
da substância, orientada para a materialidade do ente. A fim de explicar o mistério da fé da presença real nesta
nova compreensão da realidade, desenvolveu-se a concepção de uma transignificação e de uma transfinalização (E.
Schillebeeckx, J. Powers, P. Schoonenberg, entre outros).
O discurso da mudança de significado e da mudança de fim, porém, não podia reproduzir completamente
a intenção declaratória da doutrina da transubstanciação, pois a transubstanciação significa uma mudança na
constituição das coisas e não apenas uma mudança do significado que o ser humano atribui às coisas. Por esta ra­
zão, o Papa Paulo VI, na Encíclíca Mysterium Fideí, de 1965, reforçou a indispensabilidade da noção de transubstan­
ciação, a fim de que se pudesse conservar a identidade das espécies simbólicas do pão e do vinho com a realidade
do corpo e do sangue de Cristo (DH 4410-4413).
Deve-se considerar, porém, que a mudança na constituição das espécies eucarísticas não é considerada como
físíco-sensitiva, mas ontológica. Somente o reconhecimento humano tem acesso ao ser transformado do pão e
do vinho, ainda que o ser humano não possa produzir independentemente tal mudança. Se, consequentemente,
as proposições da transfinalização e da transignificação são desenvolvidas no âmbito de uma teoria geral do sím-
bolo-real, elas podem tornar compreensíveis tanto a mudança de ser, realizada por Deus, quanto a mudança de
sentido, acessível somente pela fé. Na medida em que Deus faz dos sinais do pão e do vinho meios realistas da pre­
sença da corporeidade de Cristo, eles se tornam símbolos reais que mostram e comunicam realmente a presença
de Cristo como Senhor glorioso, em sua humanidade gloriosa e em sua divindade. O portador do ser das espécies
simbólicas é o próprio Deus, que torna presente e comunicável sua singular presença na palavra eterna encarnada,
de maneira ímpar, em mediação sacramental.

d) Perspectivas de uma teologia da Eucaristia

A Eucaristia como memória sacramental da morte de Jesus na cruz


A ordem que Jesus deu a seus discípulos foi: 1. Fazei, 2. isto, 3. em memória de mim (cf. ICor ll,24s.; Lc 22,19).
Mediante o fato de que Jesus encarregou a comunidade dos discípulos da realização litúrgica da celebração que
Ele instituiu, uma celebração que vale até seu retorno (ICor 11,26), Ele institui o “isto” da Eucaristia, ou seja, a
realidade da doação de sua vida (cf. Jo 6,51: “O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo”). Na me­
mória sacramental permanece presente escatologicamente a nova aliança realizada em Cristo. Na Eucaristia, o
sacrifício da cruz torna-se presente quer em sua singularidade histórica, quer em sua validade que já não pode ser
anulada (entrelaçamento das dimensões do passado, do presente e do futuro). Uma vez que o sujeito da celebra­
ção eucarística é idêntico ao sujeito do sacrifício da cruz, na ação simbólica de sua comunidade, instituída por Ele,
o próprio Jesus se faz memória e comunica sua presença. A Eucaristia não é uma celebração memorial subjetiva
dos discípulos, na qual eles se lembram de Jesus. A Eucaristia é, antes, uma memória real objetiva: Jesus, de quem
se faz memória, torna-se, Ele mesmo, presente na Palavra e na celebração eucarística. Deste modo, Ele permite
que os discípulos participem de sua autodoação ao Pai, no Espírito Santo, e em sua koinonia/communio como o Pai,
mediada pneumaticamente (cf. a relação-Abba; Mc 14,36; 15,34; Jo 1,13; ljo 1,1-3).

A presença atual de Jesus na Eucaristia


A Eucaristia outra coisa não é senão o sacrifício da cruz no modo de sua presença sacramental, e precisamen­
te na ação simbólica confiada por Jesus à Igreja. Uma vez que a instituição da Eucaristia durante a Última Ceia
representa uma antecipação do sacrifício da cruz, a celebração da Eucaristia, ordenada por Jesus, é uma presen-
tificação sacramental do sacrifício da cruz. Mediante as espécies eucarísticas, ele se doa à sua Igreja, no Espírito,
como o Filho de Deus encarnado, crucificado e ressuscitado (jo 17,26; Hb 9,14) e, assim, faz da Igreja o que ela é:
Corpo de Cristo, comunidade crente e amorosa de discípulos, Igreja do Pai, do Filho e do Espírito (cf. a estrutura
trinitária da oração eucarística no modelo de oração de Hipólito).
A presença real de Cristo nos sinais eucarísticos
O próprio Jesus identifica pão e vinho com sua carne e seu sangue: “Quem come a minha carne e bebe o meu
sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida
e o meu sangue é verdadeiramente uma bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em
mim, e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, também aquele que de mim se alimenta
viverá por mim” (jo 6,54-57).
Por presença de uma pessoa, compreende-se: 1) Sua presença em minha consciência, quando dela me lembro
subjetivamente, ou seja, uma imagem sensitiva cognitiva armazenada, que é ativada conscientemente. 2) Quando
uma imagem ou uma foto me traz tal pessoa à memória. 3) Quando alguém, com sua corporalidade natural, entra
no âmbito de minha experiência sensitiva atual. Contudo, uma pessoa também pode fazer-se presente a mim er
sua corporeidade mediante elementos e sinais sensíveis que ela associa à sua corporeidade e pelos quais ela se
torna tão presente a mim, que consigo entrar em comunhão com ela.
No caso incomparável da presença real eucarística, chega-se a uma incomensurável unidade e diferença er~e
o pão e o Corpo de Cristo, de modo que, por meio deste sinal sensível palpável, ele mesmo se dá a conhecer e, na fié,
torna-se pessoalmente comunicável. Ao mesmo tempo, porém, conserva-se ainda a diferença entre o sinal sacra­
mental e o conteúdo, na medida em que o pão não se torna uma parte física do corpo natural, histórico e gloriosc de
Cristo. Trata-se, aqui, do caso único de uma presença real sacramental-anamnésica. Somente Deus é capaz de cons­
tituí-la. Ela é interiormente razoável porque tanto repousa na vertente da vinda encarnatória e histórico-salvífica
de Deus ao mundo quanto corresponde à natureza corporal e social do ser humano, destinatário da revelação.
Por isso, a fé na presença real não resulta de uma simples interpretação filológica das palavras explanatórias
de Jesus, ou de uma submissão positivista à autoridade de Cristo. Em sua redação aramaica, do ponto de visíí
gramatical, não aparece o “é”. Contudo, a tradução “Isto é (tovtó ècttlv) meu corpo, que será entregue por vós”,
para a língua grega está objetivamente correta, porque o próprio Jesus interpelou o pão que Ele mantinha na mão,
e identificou-o com seu corpo. Trata-se da comunhão vivificante com Jesus, o mediador da Nova Aliança, que rc*
sua autodoação da cruz instituiu a Nova Aliança em seu sangue e adquiriu a Igreja como o novo povo da aliança.
Na Eucaristia, o fiel não come partes físicas do corpo de Jesus, mas, nos sinais do pão e o do vinho consagrados,
comunga da humanidade de Jesus, de sua missão e de seu destino na cruz e na ressurreição.
Em razão de a humanidade de Jesus ser o símbolo real da comunicação divino-humana, a Eucaristia pode ser compreen­
dida como a mais sublime condensação deste acontecimento mesmo como símbolo real da comunicação divino-humana: com:
comunhão com o Deus triuno, que é vida eterna para o ser humano. 0 receptor do Corpo de Cristo toma-se amigo de Deus (Jo
15,15; 17,3.22-26).
0 efeito da Eucaristia: nova vida, reconciliação, nova aliança
Durante a Última Ceia, Jesus interpretou sua morte como morte expiatória vicária do Servo de Deus para os
muitos, ou seja, a pluralidade ou a totalidade do povo, por quem Ele entrega sua vida (Is 53,10). Mediante isso, na
contingência do mundo, Deus realiza a reconciliação da humanidade com Ele (2Cor 5,20).
A nova aliança no sangue de Cristo (Mc 14,24; Hb 9,12-26) ilumina-se à luz dos pactos de aliança veterotesta-
mentários (Ex 24,5-8). Antigamente, Moisés espargiu sobre o altar o sangue da vítima sacrificial imolada
(= símbolo da presença salvífica de Deus). Com este mesmo sangue, porém, ele também aspergiu o povo. Nesta
ação simbólica, Yahweh e o povo são unidos pelo sinal do sangue. Assim, agora Jesus é o verdadeiro cordeiro que
tira os pecados do mundo (Jo 1,29).

"Cristo, porém, veio como sumo sacerdote dos bens vindouros. Ele atravessou uma tenda maior e mais perfeita, que não é ob'=
de mãos humanas [...]. Ele entrou uma vez por todas no santuário, não com o sangue de bodes e de novilhos, mas com o próprio
sangue obtendo uma redenção eterna [...]. Quanto mais o sangue de Cristo que, por um Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo
a Deus como vítima sem mancha, há de purificar a nossa consciência das obras mortas para que prestemos um culto ao Deus
vivo. Eis por que Ele é mediador de uma nova aliança" (Hb 9,11-15; cf. Jr 31,31; Is 24; 42,6; 52,13.15; Is 49,8: "Modelei-te e te
pus por aliança do povo [...]").
Quando o Concilio de Trento designa a Eucaristia também como sacrifício de intercessão e de expiação não
está dando a entender um acréscimo humano ao sacrifício expiatório de Cristo. Visto que a Eucaristia, como pre-
sentificação sacramental, atualiza todos os aspectos do sacrifício da cruz, nela Cristo concede aos fiéis a graça da
reconciliação. Assim, como membros do Corpo de Cristo e do novo povo da aliança, eles podem receber o dom da
reconciliação e impregná-lo em si em uma vida de seguimento de Cristo e de conformação em seu sofrimento e
em sua ressurreição (F13,20, entre outros).
Expiação, na vida cristã, não significa uma atuação que visa primeiramente à reconciliação com Deus, mas
uma ligação consciente, por meio da graça de Cristo, dos que foram reconciliados em Jesus. Ele morreu por todos,
“a fim de que aqueles que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por ele” (2Cor
5,15). Deste modo, eles completam para o Corpo de Cristo, a Igreja, na vida terrena deles, “o que falta ao sofri­
mento de Cristo” (Cl 1,24), isto é, a plenitude do desígnio salvífico de Deus no amor responsorial e na unificação
da cabeça e do corpo (Ef 4,13-16).

O Corpo de Cristo como sacramento e como Igreja

A Igreja também é designada como Corpo de Cristo (Rm 12,5; ICor 12,12-31a; Ef 1,23; Cl 1,18). Corpo significa,
falando de modo geral, a presentificação de uma pessoa espiritual e livre. Ao se falar, portanto, da Igreja como
Corpo de Cristo, expressa-se: ela é a constante presença do Senhor glorioso na comunidade visível de pessoas que
estão reunidas em seu nome Na medida em que Jesus Cristo, como cabeça, está unido à Igreja, age por meio dela
e por meio das ações simbólicas prescritas por Ele, torna-se o princípio de vida de sua Igreja. Ao celebrar a Eu­
caristia, em obediência à vontade instituidora de Jesus, ela se deixa sempre de novo reconstruir, por sua Cabeça,
como Corpo de Cristo.
A fruição do corpo sacramental reúne os muitos fiéis na unidade do corpo eclesial de Cristo (ICor 10,16s.).
Igualmente os fiéis que já morreram e que foram plenificados em Cristo pertencem ao único Corpo de Cristo (Rm
10,8s.; ITs 5,9; Hb 12,22-24; Ap 6,9; 8,3).
A partir desta intuição, no curso da crescente veneração dos santos e da solidariedade com os membros de­
funtos da comunidade que ainda carecem da perfeição de sua contrição e de sua conformação interior a Cristo
(Igreja padecente no processo de purificação/purgatório), resulta a concepção de que em cada celebração euca-
rística toda a Igreja, com todos os seus membros é, em Jesus Cristo, sujeito da memória sacramental. A práxis das
missas em honra dos santos e em socorro dos mortos no purgatório não surgiu de uma iniciativa própria da Igreja,
ao lado da mediação salvífica de Cristo, mas acentuava a acolhida e implementação do infinito valor do sacrifício
da cruz na subjetividade individual e coletiva da comunidade dos fiéis (veneração e solidariedade intercessora).
A dimensão eclesial da Eucaristia expressa-se também no cuidado pelo bem-estar físico do próximo, por uma
organização social, econômica e constitucional e pela justiça. Lucas via a comunhão de bens da Igreja primitiva
em estreita ligação com a Eucaristia (At 2,42; cf. ICor 11,21).

A Eucaristia como penhor da vida eterna

Na cruz e na ressurreição de Jesus o desígnio salvífico de Deus tornou-se irrevogavelmente reconhecível


no mundo. No processo da acolhida individual e social da salvação na fé e no amor, Deus inclui as pessoas na
acabada obra da salvação. “Agora, no fim dos tempos [...], Cristo foi oferecido uma vez por todas para tirar os
pecados da multidão. Ele aparecerá uma segunda vez, com exclusão do pecado, àqueles que o esperam para a
salvação” (Hb 9,28).
Já no ato da instituição da Eucaristia, Jesus indicara uma nova comensalidade, visto que Ele só voltaria a beber
do fruto da vinha no Reino de seu Pai (Mt 26,29; Lc 22,18; Mc 14,25).
Com vistas ao futuro escatológico do desígnio salvífico de Deus presente em Cristo, o apóstolo pode dizer:
“Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha”
(lCor 11,26). Na Comunhão eucarística da Igreja, o discípulo sabe-se relacionado, em esperança, à comunhão
eterna de Deus com as pessoas e das pessoas entre si (LG 1), na medida em que ele crê na Palavra de Deus: “Felizes
aqueles que foram convidados para o banquete das núpcias do Cordeiro” (Ap 19,9).

III. A REAÇÃO DE CRISTO AO PECADO, À ENFERMIDADE E AO PERIGO DE MORTE

4 A Penitência: o sacramento da reconciliação com Deus e com a Igreja

a) Visão geral do Sacramento da Penitência

Declarações de fé sobre o Sacramento da Penitência


Na sequência, tem-se como quarto sacramento a Penitência ou a Reconciliação em relação a pecados pós-ba-
tismais (sacramentam poenitentiae seu reconciliationis).
O Sacramento da Reconciliação pode ser considerado sob três aspectos:
1) A graça deste sacramento opera a reconciliação do batizado que perdeu a graça justificante, por meio de
um pecado grave, com Deus, o único autor e conteúdo da salvação. A reconciliação com Deus Pai realiza-se
como renovação da comunhão com Deus, com o Filho encarnado dodPai, que, como Cristo Jesus, por meio de
seu anúncio do Reino de Deus, de sua cruz e de sua ressurreição, realizou a nova aliança e a reconciliação da
humanidade com Deus. O sacramento contém também a reconciliação com o Espírito Santo, que é o amcr
autocomunicativo de Deus (Rm 5,5; 2Cor 13,13), que produz a nova criaturalidade do ser humano e permite
participar da filiação de Cristo com o Pai (G1 4,4-6).
2) O sinal perceptível do Sacramento da Penitência (res et sacramentam) é a reconciliação do pecador com a
Igreja (pax cum ecclesia). Na medida em que a Igreja realiza seu ser, santificado no Espírito Santo, em prol do
pecador, e lhe permite participar de sua vida, Deus opera a realidade da unidade de vida com ele em sua graça.
3) A ação simbólica (sacramentam tantum) é o procedimento penitencial eclesial: absolvição sacerdotal, inter-
cessão poderosa da comunidade (= indulgência), ato de contrição (como arrependimento do coração), reco­
nhecimento dos pecados, confissão e obras de penitência da satisfação.
De acordo com a teologia tomasiana, o Concilio de Florença (1439), no Decreto para os armênios, descreve este
sacramento da seguinte maneira:

"O quarto sacramento é a Penitência, do qual são como que a matéria os atos do penitente, distintos em três grupos: o primeiro
é a contrição do coração, que consiste na dor do pecado cometido acompanhado do propósito de não pecar para o futuro. O
segundo é a confissão oral, na qual o pecador confessa integralmente ao seu sacerdote todos os pecados de que tem memória.
O terceiro é a penitência pelos pecados, segundo o arbítrio do sacerdote, à qual se satisfaz especialmente por meio da oração,
do jejum e da esmola. A forma deste sacramento são as palavras da absolvição que o sacerdote pronuncia quando diz: 'Eu te
absolvoü. O ministro deste sacramento é o sacerdote, que pode absolver com autoridade ordinária ou por delegação do superior.
O efeito deste sacramento é a absolvição dos pecados" (DH 1323).

Levando em conta a pesquisa histórico-penitencial do século XX (B. Xiberta, H. de Lubac, B. Poschmarm.


M. de la Taille, K. Rahner, entre outros), o Concilio Vaticano II ressaltou uma vez mais a dimensão penitencial da
Igreja. A penitência é uma realização da natureza sacramental da Igreja, que se realiza como comunidade santa e
sacerdotal nos sacramentos:

"Os que procuram o Sacramento da Penitência obtêm da misericórdia de Deus o perdão da ofensa E ele infligida e ao mesmo
tempo se reconciliam com a Igreja, que feriram com seu pecado, mas que pela caridade, exemplo e oração trabalha por sua con­
versão" (LC 11; cf. PO 5).

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